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AQUELE QUE INVENTOU O VERBO "FOTOGRAFAR"

Aquele que inventou o verbo "fotografar" vivia num calor intolerável, contra uma
escarpa do Monte Sinai. Ele se exprimia em grego, pelo menos é o que se pensa, já que
ninguém jamais conseguiu tirar dele qualquer parcela de conversa. Dir-se-ia que o calor
opressivo da luz, nesta região da montanha - região denominada Batos e que se supõe ter
sido o lugar preciso onde queimou a Sarça Ardente - dir-se-ia que o ar sufocante e sagrado
tinha constrangido este homem a uma espécie de silêncio definitivo.
Ele vivia na reclusão e na solidão. Mas ele não era um destes grandes sábios do
deserto, que nos deram de beber cem mil verdades profundas e condutas a manter. Ele não
procurava nem moral nem mesmo conhecimento. Ele se contentava simplesmente em ser -
ser sob a luz inumana. Frequentemente ele ia sentar-se perto de um espinheiro, molhando
os ramos com saliva, e o dia todo fazia tranças, resmungando, sem se interromper, uma
frase incompreensível. Na infinita recitação desta frase, ele tentava sempre inspirar, o que
dava a todo o seu corpo um ritmo estranho, quase sufocante de ser visto. Ele imaginava,
talvez, que absorvia com o ar escaldante a substância daquilo que proferia. Ele imaginava,
talvez, que comia a luz do lugar. Ele detestava este momento, na respiração, em que se
rejeita o sopro, porque ele tinha, então a impressão de se dissipar, de recair, escarrar de
novo no ar sua atenção e seu grande amor pelo ar. Ele desejava, é claro, fixar o sol.
Algumas vezes, entretanto, para inspirar melhor, ele apoiava o queixo sobre o peito e seu
olhar pousava longamente - eu quero dizer durante dias inteiros -sobre seu próprio umbigo.
Um certo Barlaam, o calabrês, homem malicioso embora sábio, trouxe para o Ocidente esta
expressão desdenhosa para o designar: "Omphalopsyque', para significar com isto que ele
queria: "enfiar sua alma no seu umbigo". Ele se chamava, em realidade, Filoteu, o Sinaíta,
ou Filoteu de Batos. Ele deve ter vivido entre os séculos IX e Xll de nossa era, mas ninguém
sabe exatamente quando. Os eruditos deploram não conhecer qualquer episódio de sua
vida, o que significa compreendê-lo bem mal, ele que desejava, sobretudo, viver sem
história, sem incidentes, sem qualquer acontecimento além do desdobramento de seu corpo
na luz do Horeb. É perturbador reencontrar, apesar disto, os vestígios de sua palavra - sua
palavra jamais pronunciada talvez, mas uma vez escrita por ele, depois cem vezes
recopiada por outros - até nas brumas de Veneza, onde trinta e três fólios manuscritos
dormem concentrados acima da água verde. 1 As mais antigas compilações, em que se
encontra seu texto maior, intitulado Capítulos da sobriedade ou Capítulos do despertar,
atravessaram o tempo e o espaço (porque são reencontrados nos confins da Rússia) sob o
nome de Philokalia, "o amor da beleza". Filoteu - "o apaixonado do divino" - aí aparece
discretamente, já que os quarenta capítulos, ou melhor parágrafos que compõem seu texto
contêm, em algumas páginas somente, no meio de uma multidão de nomes estranhos,
nomes de homens tão estranhos como ele, sem dúvida: Évagre, Cassien, Hésychius, Nil,
Diadoque, Jean de Carpathos, Théodore d'Édesse, Maxime lê Confesseur, Thalassius, Jean
Damascène, Philémon, Théognoste, Élie l'Ecdicos, Théophane de l'Échelle, Pierre le
Damascène, Macaire, Syméon le Nouveau Théologien, Nicétas Stéthatos, Théolepte,
Nicéphore l'Hésicnaste, Grégoire le Sinaite, Grégoire Palamas, Cailiste 11, Ignace des
Xanthopouloï, Cailiste Cataphygiotès, Syméon de Théssalonique, Marc d'Éphèse, Maxime
le Cavsocalybite...*

O homem que inventou o verbo "fotografar" mergulhou um dia numa grande bacia
de mármore vermelho, em Constantinopla, Damasco ou Alexandria, e desta imersão
batismal ele ressurgiu com um nome novo, seu verdadeiro nome humilde de Filoteu, e com
a certeza para sempre de ter sido revelado na água para o que ele era no mais essencial de
si mesmo. Ora, esta essência, ele a denomina, nos seus escritos to kafei-kona, o que
significa: o ser segundo a imagem... Como se toda a sua existência tivesse sido guiada pelo
soberano desejo de se transfigurar, de se converter a si mesmo numa imagem. Mas esta
não é a única singularidade deste homem. Há também a via que ele escolheu para realizar
sua lenta mutação: pois, na aridez ocre do monte Horeb, ele arrematava continuamente o
banho de água lustral pelo banho de fogo e re-encenava a sufocação de seu mergulho na
água fria através dos excessos abrasados de seu sopro. Ele buscava desde então
mergulhar seus olhos no fluxo solar ardente. Imaginando tornar-se imagem a se submeter à
luz. O único caminho, pensava ele, para ver e ser visto por qualquer coisa que ele
denominava "Deus".
Ele renunciou, portanto, pelo resto da vida, a qualquer fluidez sensual, a qualquer
efusão, como se quisesse guardar a recordação, absolutamente depurada, única, intacta,
da antiga imersão batismal que o tinha feito nascer. Ele desejaria nunca mais beber, ele que
tinha provado a embriaguez de um único mergulho. A palavra que volta sempre em seus
raros escritos é a palavra nèpsis, que significa a sobriedade e, além disto, uma espécie de
jejum total, jejum do corpo e jejum da alma. O desígnio era o de uma perfeita vigilância:
olho sempre aberto, olho puro. Todo o ver sabe então que tu te tomaste em ti mesmo o
elemento e o objeto de tua visão, sabe que tu te tornaste a luz que tu contemplas.
Inventar o verbo "fotografar" não correspondia de modo algum, compreende-se, à
idéia de qualquer fabricação de objetos visíveis, mas ao desejo de uma experiência singular
e irreproduzível. Era o apelo de uma ascese da visão, em que podia enfim florescer a
equivalência paradoxal do ver e do ser visto, a dissolução do ser vidente no tempo do olhar,
a incorporação recíproca da luz no olho e do olho na luz. Inventar o verbo "fotografar"
respondia à exigência paradoxal de um pensamento que utilizava as palavras "artista" ou
"imaginação" para significar o mal absoluto. É preciso repetir de novo que a experiência
"fotográfica", assim concebida, não visava, em suma, senão a "expulsar as imagens",
segundo a própria expressão de Filoteu. Expulsar as imagens significa consentir pela
renúncia, catharsis, na única condição de possibilidade de todas as imagens, tanto as más
como as menos más. Ora, esta condição de possibilidade é também a negação delas: é a
luz, a luz "sem forma nem figura" (amorphos, aschèmatistos), a luz que nos é
incandescência e nevoeiro, que nos cega, diante da qual nós nos velamos normalmente a
face, assim como Moisés deve ter feito diante da Sarça Ardente... Enfim, uma luz diante da
qual ver equivaleria a não ver mais coisa alguma. É possível, depois de tudo, que o velho
eremita tenha inventado o verbo "fotografar", no próprio momento em que ele se sentia
cegar sob as transverberações do sol do meio-dia.
Inventar o verbo "fotografar" terá sido, portanto, o feito de um homem que não dava
seu assentimento a nada mais que à luz cegante de uma escarpa sagrada. Ele inventou
este verbo como um verbo que não seria nem ativo nem passivo, mas que tentaria articular
uma experiência pura, sem sujeito predador nem objeto da captura. Verbo de uma
experiência em que ver equivaleria a desejar, a combater, a comer e ser comido, a fruir, a
sofrer também - tudo isto enunciado por Filoteu em termos que exigem o silêncio:

"Dir-se-ia uma luz que explode de repente, quando se retira o véu opaco que
a ocultava. Mesmo que se persiga esta sobriedade atenta e constante
(desperta, lúcida), a alma mostra de novo o que se tinha esquecido, o que
lhe escapava. Ao mesmo tempo, a favor da sobriedade, ela ensina a guerra
do espírito contra o inimigo e os embates dos pensamentos. Ela nos revela
como arremessar dardos, neste combate singular, atingir em cheio os
pensamentos, com uma pontaria exata, subtraindo inteiramente seu espírito
aos golpes e refugiando-se das trevas funestas até na luz desejada... Aquele
que saboreou esta luz me entende. Esta luz, uma vez saboreada, desde
então tortura cada vez mais a alma, com uma verdadeira fome: a alma come
sem jamais se saciar; quanto mais ela come, tanto mais ela tem fome. Esta
luz, que atinge o espírito como o sol atinge o olho, esta luz, por si mesma
inexplicável e que, no entanto, se faz explicável, não em palavras, mas na
experiência daquele que dela desfruta ou, mais exatamente, é por ela ferido -
esta luz me impõe o silêncio [...]."

É o corpo-a-corpo fabuloso de imagens embaralhadas. Imagens contra imagens!


Imagens de lembranças contra imagens de esquecimento, umas passando seu tempo a
perseguir as outras e as segundas a tentar as primeiras. Era assim que Filoteu concebia
toda a vida do corpo e a do espírito. De um lado, portanto, o que ele chama as imagens de
sombras, seu poder é imenso, temível o seu "encadeamento" - palavra que se deve tomar
nos dois sentidos de ligação e de captação - perversas e satânicas suas consequencias:
"Isto começa pela sugestão e continua pela ligação, o consentimento, o
cativeiro, e termina pela paixão, caracterizada pela continuidade do hábito. E
eis que se conquista a vitória da mentira".

Filoteu sonhava também matar os sonhos. Ele sonhava também a si mesmo como um
"caçador de imagens" - não um buscador de troféus imaginários a reconduzir para junto de
si, mas antes um destruidor, um despovoador de imagens, diante das quais, escreve ele,
"uma cólera sentida e uma amargura benéfica podem, a cada momento, reduzir a nada toda
a fascinação dos pensamentos, a diversidade das sugestões, palavras, sonhos,
imaginações tenebrosas, enfim, todas as armas e todas as táticas que o artista da morte
[isto é, o diabo] emprega imprudentemente para devorar nossa alma."
O homem que, pouco a pouco, se dirigia rumo à palavra "fotografar" odiava, portanto,
as imagens nascidas da sombra e do domínio da noite. Assim que a palavra "verdade"
aparece em seu texto, geralmente a palavra "sol" não está longe, ou acabou de apareceu
ou logo vai aparecer. Filoteu, sobre sua escarpa, desfrutava o zénite, como esta duração
sem sombra em que todos os sonhos entram em fusão e se evaporam, por fim diante da
imagem despovoada, a imagem nua -phôs, a luz sem medida e sem forma.
Um dia, portanto - talvez um meio-dia, ardendo sobre sua escarpa, tendo ele muito
demoradamente fixado o sol - ele inventou o verbo "fotografar". Ele sentia seu corpo e o
interior de seu corpo, semelhantes a uma porção de cera derretida, que é marcada por um
sinete. Assim é que em mim, pensou ele, o Deus luminosamente se imprime,
phõteínographeistaï, se "fotografa". Assim é que, pensou ele ao mesmo tempo, eu o vejo. E
ele abria olhos tão grandes, que imaginou ter quebrado todas as telas para sempre,
pálpebras, véus dos sentidos, miragens, a própria noite. Durante este tempo, sua carne lhe
parecia exalar-se em fumarolas sob a ação da luz, porque, "fotografado", gravado no mais
íntimo de si mesmo pelo sinete da luz, e/e se transformava nesta luz que ele tinha sabido
olhar de frente. Uma crença muito velha guia tudo isto: ela assegura que só o semelhante
vê, que só o semelhante ama e conhece verdadeiramente seu semelhante. Tu não sabes
ver a luz, porque tu mesmo não és feito de luz. Mas se, um dia, a luz te atinge, te "fotografa"
a tal ponto que tu a podes (.... ) resto, pouco a pouco, desnudado,
rejeitado, esfolado como pele morta. No seu terceiro Capitulo da sobriedade, Filoteu, o
Sinaíta, exorta seu leitor- mas a quem ele se dirige, ele que deixou seus pergaminhos
recobertos de areia por ocasião de sua morte? - ele nos exorta a "nos privar do excesso de
alimento, suprimir tanto quanto nos seja possível o beber e o comer".
Ele também não se nutria senão de formas petrificadas, que evocavam a lágrima e
refratavam a luz: são as gotas endurecidas de uma resina de árvore. Elas têm a
transparência e a cor do âmbar; a sua dureza não se funde, mas se esfarela na boca e é
necessária uma longa mastigação paciente para reunir todos os pedaços numa pasta
endurecida que exalará, por muito tempo, seu suco amargo. Os autores latinos a
denominaram gutta, associando-a às lágrimas da Virgem sobre o túmulo do Filho, assim
como aos aromas do amortalhamento. A gutta se queimava, aliás, como incenso nas
sinagogas e nas velhas basílicas do Oriente. Tinha Filoteu feito voto de não comer senão o
que se queima? Talvez, entretanto, ele comesse uma ou duas cebolas cruas que lhe levava,
de tempos em tempos, um velho caravaneiro do Egito, certo de aprender qualquer coisa ao
vê-lo descascar lentamente cada uma das membranas, até que não tivesse mais nada, e
chorar em silêncio, sorriso nos lábios, a face virada para a escarpa, deixando secar sua
lágrima.
O homem que inventou o verbo "fotografar" desejava, portanto, transformar-se a si
mesmo numa imagem, uma imagem diáfana. Ele desejaria não beber nunca e nunca fechar
o olho. Ele esperava, no fundo, "deixar seu corpo", como ele mesmo escreveu. Olho puro, o
"olho perpetuamente aberto", a abstinência e o "silêncio prudente dos lábios" - tudo isto
equivalia para ele a um grande ato de Mnèmè, a memória, este fio estendido entre a água
de seu nascimento (onde suas pálpebras submersas se fecharam por um instante) e a luz
de sua morte, da qual ele tentava, precisamente adquirir o que ele denomina uma memória
(e onde nunca mais ele piscaria os olhos diante do sol ardente). Filoteu, o Sinaíta, maldisse
o esquecimento como se maldiz o diabo; ele pensava, aliás, que o esquecimento é uma
maquinação satânica. Nós nos enganaríamos, entretanto, extremamente, ao buscar em
seus Capítulos da sobriedade uma literatura de sábia quietude. Ao contrário, tudo aí denota
o combate sem misericórdia da recordação com o "esquecimento maldito":

"Desenvolve-se em nós um combate mais ardente que a guerra visível. [...] É


uma guerra secreta na qual os espíritos maus guerreiam contra a alma a
golpes de pensamentos. Como a alma é incorpórea, estas potências do mal
a atacam imaterialmente, de acordo com a natureza delas. Vêem-se
enfrentar armas e frentes de batalhas, emboscadas e combates terríveis, há
lutas corpo-a-corpo [...]."

Hoje nós não sabemos mais onde ficava a escarpa do Sinai, contra a qual Filoteu
de Batos abria amplamente seus olhos ao sol e imaginou o verbo "fotografar". Nós não
sabemos o nome incompreensível escondido por sua visão e sua respiração ávidas. Nós
sabemos, somente, que o verbo "fotografar" surgiu ali, em sua língua, não como a
exigência de um prazer de imagens e de formas da realidade, mas como a exigência de
uma fruição infinita da imagem sem forma: esta pura intensidade tátil que é a luz em
borbotões sobre nossa face oferecida - nossa face vista por fora, como por uma mãe
que nos dá à luz.
1
É o manuscrito Marcianas gr. C. I. II/ LXXIII. 439 do XIV0 Século, (antigo Nanianus 95). fólios 93r°-125r°, abrangendo 4
de seus escritos. Os outros manuscritos conhecidos - outros copistas, outras épocas -encontram-se em Madrid
(Matritenses gr. 14), no monte Atos {Iviron 713), em Jerusalém (Biblioteca do Patriarcado, gr. 171), em Moscou (Biblioteca
sinodal, gr. 30), em Milão (Ambrosianus I, 9, gr.432), em Oxford (Cromwell 111, n.25-26), em Paris (B.N., gr. 1091), no
Vaticano (gr. 658) e em Viena (B.N., gr. 156). A ironia da sorte quis que a edição dos escritos de Filoteu, no Tomo CLXII da
Patrologia grega, por Migne, tenha sido inteiramente destruída no incêndio.

DIDI-HUBERMANN, G. Celui qui invent le verbe "photographier". In: Phasmes: essais sur l'apparicion.
Paris muit, 1998.
Trad. Roberto Torres Bittencourt

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