You are on page 1of 4

tripartida com a qual o próprio Sena se

costumava apresentar depois de ter passa-


do a residir nos Estados Unidos. Trata-se,
pois, de uma sequência de poemas em que
predomina o testemunho lírico desde um
exílio estratégico nas Américas, primeiro
no Brasil (iniciado em 1959) e depois nos
Estados Unidos, para onde Sena se havia
transferido em 1965 e onde permanecera
com a família até falecer, em 1978. Mui-
tos dos poemas que tematizam aspectos
a experiência estaduni-
dense, sem dúvida modulada por essa
fragmentação identitária, emergiram de
um conjunto de textos que começa a es-
crever a partir de 1968. Elaborados, por-
tanto, ao longo dos últimos dez e intensos
anos de atividade intelectual, estes textos
misturam o testemunho de um homem
público com o trabalho de interpretação
cultural e sociopolítica norte-americana
durante uma década iniludivelmente de-
terminante para a história mundial e dos
Estados Unidos. Jorge de Sena estava, por
assim dizer, no olho do furacão, assistin-
do às inúmeras convulsões do século
dentro do ambiente crítico e altamente
VÁRIA politizado das instituições académicas
norte-americanas. Dando, pois, segui-
Jorge de Sena mento ao propósito de publicar as Obras
AMÉRICA, AMÉRICA Completas de Jorge de Sena, tais textos
Organização de Mécia de Sena e Jorge Fazenda foram coligidos por Mécia de Sena e Jor-
Lourenço ge Fazenda Lourenço sob o título Améri-
Lisboa, Babel / 2011 ca, América.
Durante os quase treze anos em que foi
Em nota prévia ao volume póstumo de «professor norte-americano», primei-
poesia de Jorge de Sena, Sequências ro na Universidade do Wisconsin, em
(1980) , Mécia de Sena escreve que o con- Madison, e depois já como catedrático
junto de 28 poemas que encerra o livro, na Universidade da Califórnia, em Santa
intitulado «América, América, I love Bárbara (a partir de 1970), Sena esteve
you», difere dos outros que o antecedem almente subscrito na cate-
porque se funda menos no experimenta- goria de «residente permanente», eufe-
lismo poético e mais na experiência de mismo ainda hoje utilizado pelo governo
vida que Jorge de Sena teve como «escri- norte-americano para designar o imi-
tor português, cidadão brasileiro e pro- grante legal não-naturalizado. A par do
fessor norte-americano» — identidade conhecimento cultural que põe em cena,

257
da atualidade das informações que arti‑ cação do Novo Mundo, para a análise de
cula e do apaixonado trabalho de crítica uma «América» que não se restringe,
do que lhe era contemporâneo, o livro aliás, aos Estados Unidos, já que abre seu
traz constantemente à tona, sem dúvida, olhar para um alcance continental e ar‑
a consciência e os impasses da sua condi‑ ticula, embora em menor escala, aspetos
ção enquanto imigrante português. socioculturais do Brasil e, de passagem,
Estendendo, de certo modo, ao âmbi‑ da América Hispânica. A visão panorâ‑
to estadunidense algumas das reflexões mica que aí se lança sobre a diversidade
sobre política e diáspora portuguesa do bloco panamericano revela, ainda, o
ensaiadas por Sena no volume anterior quanto se aguçou a perspetiva seniana
das Obras Completas, Rever Portugal, a sobre o seu país no contexto mundial
leitura de América, América não cessa‑ — especialmente no que diz respeito à
rá de revelar também as circunstâncias mentalidade política portuguesa — e, de
pessoais em que Jorge de Sena viveu nos resto, sobre a herança histórica da Europa
Estados Unidos. Apesar da sua integração Ocidental.
profissional, do convívio intelectual e do Os textos de América, América estão
trato cultural com a visão de mundo e as organizados cronologicamente em cinco
práticas sociais dos norte­‑americanos, grupos temáticos: o primeiro, que abre o
Jorge de Sena jamais deixou de se sentir volume, é composto de um único texto,
uma pessoa à parte, aceite, como declara, «Testemunho pessoal sobre viver nos
com reservas e até com relutância. Se o Estados Unidos da América», onde já se
estranhamento por ser estrangeiro havia anuncia a complexidade da vivência se‑
sido relativamente amenizado, como ele niana, entre o sentimento de estar como
sugere, nos seus anos de Brasil, tal não foi que no centro nervoso do mundo, estando
o que experienciou na «América», onde ao mesmo tempo fora de lugar. Neste tes‑
ficara evidente uma potencialização da temunho, ensaiam­‑se pois as matrizes das
consciência do exílio, especialmente de‑ questões pessoais e dos problemas históri‑
pois da Revolução dos Cravos, quando a cos a serem desdobrados mais largamente
liberdade política não veio acompanha‑ no resto do livro. O segundo grupo de tex‑
da de oportunidades de emprego para o tos concentra­‑se na interpretação cultural
prestigiado professor e poeta internacio‑ pela via da análise política. Aí, encontra­
nalmente laureado. É nesse sentido que, ‑se o ensaio mais longo do volume, «So‑
na escritura de América, América, o rigor bre a Cultura Norte­‑Americana», que
analítico e a inovação de abordagem dos também tem como ferramenta de orien‑
Estados Unidos como problema na his‑ tação o inegável saber historiográfico e
tória cultural do Ocidente vai ser menos literário do legado anglo­‑saxão, que Jor‑
visível que o projeto ético­‑pessoal de tes‑ ge de Sena desde cedo investigou, leu,
temunhar os tempos da humanidade e os traduziu e de que foi crítico. No texto
modos do mundo a partir das especifici‑ seguinte, «Os Americanos e a História,
dades e por vezes mesmo das miudezas e Portugal», Sena discute o modo como
da vida quotidiana norte­‑americana, nas a mitologia do self­‑made man se opõe às
suas esferas privadas e públicas. tradições humanistas europeias, e como
O título do livro, além de aludir à te‑ o imigrante português médio foi histori‑
mática de vários poemas de «América, camente cooptado para servir a esse mito.
América, I love you», como se disse, Por tal razão, segundo Sena, o imperialis‑
aponta, em sua genérica e repetida evo‑ mo norte­‑americano logrou uma rasura

258
do passado do imigrante (e não só deste, de 1960 para 1970, a colocar em xeque
mas do passado mesmo como centro de os seus mitos e a sua potência mesma
gravidade da História). Ainda neste gru‑ no mundo moderno. Através da escrita
po de textos, «A Descoberta das Ilhas por vezes digressiva e sempre caudalosa,
Encantadas ou As Barbas de Molho» é Jorge de Sena vigia o calor das ebulições
o primeiro escrito já em Santa Barbara. ideológicas em cujo seio florescia a con‑
Nele, Sena desdenha, em linhas ligeiras tracultura hippie, a Pop Art, bem como a
e um tanto circunstanciais, a visão norte­ informática, a corrida espacial, a menta‑
‑americana do colonialismo português a lidade ecológica, a especialidade acadé‑
propósito dos Açores, e aponta algumas mica, o sensacionalismo e o espetáculo
feições do neocolonialismo estaduniden‑ mediático, formando uma espécie de es‑
se no mundo contemporâneo. No terceiro tufa cuja atmosfera era estrategicamente
grupo de textos desponta mais concentra‑ controlada pela gestão biopolítica do
damente a voz do Jorge de Sena professor. Estado norte­‑americano. Sena delineia
Aí, são traduzidas as questões referentes à as contradições, reconhece os méritos e
relação geral dos norte­‑americanos com denuncia os recalcamentos dessa com‑
as línguas estrangeiras. Emerge nestas plexa sociedade de massas resultante
reflexões a sua longa experiência não só historicamente de tensões internas e ex‑
de ensino do português em âmbito uni‑ ternas, multilaterais e plurissubjetivas, e
versitário, mas dos desafios que enfren‑ que ainda hoje logra sustentar o ideal de‑
tou como falante da variante europeia do mocrático dos seus «fundadores» como
português num contexto onde a variante protagonista inequívoco que é da cena
brasileira, por motivos que deixam Sena macropolítica e das tendências culturais
perplexo, sempre teve maior apelo e rece‑ do mundo globalizado.
tividade académica. O quarto e o quinto Apesar do arranjo cronológico e do
grupos têm uma continuidade bastante agrupamento temático proposto pelos
fluida, pois trazem textos menos ensa‑ organizadores, todos os textos de Améri‑
ísticos e igualmente mais testemunhais, ca, América se intercomunicam e interi‑
abrangendo, a partir do tema da diáspora luminam, reforçando a coerência interna
e da imigração, a questão das tradições que atravessa a obra inteira de Jorge de
culturais que as comunidades portugue‑ Sena, qualquer que seja a modalidade de
sas sustentam (ou perdem) uma vez nos escrita. Nos iniludíveis traços de uma in‑
Estados Unidos. Completa o volume um quietação intelectual multímoda e de um
apêndice que reproduz breve reportagem vigor pedagógico admirável, se reafirmam
anónima sobre uma palestra de Jorge de aspectos marcantes da personalidade de
Sena na Faculdade de Letras da Univer‑ Jorge de Sena, como a indignação ante o
sidade do Porto, de 1974, a propósito da cinismo das sociedades, a franca ironia
sua experiência no ensino universitário em face às ilusões da política, a violenta
nos Estados Unidos. paixão pela humanidade e a afiada autori‑
Todos esses textos são contemporâ- dade doutoral. Estes e outros traços, como
neos da Guerra do Vietname e de parte o do intervencionista, o do tradutor, o do
de um período de tensões geopolíticas imigrante português e cidadão do mundo,
da chamada Guerra Fria, com a ascensão se entreteceram e se complexificaram nos
das grandes corporações neoliberais e a Estados Unidos de forma decisiva para a
expressiva crise de valores da sociedade consolidação do que há de poliédrico no
norte­‑americana na viragem da década perfil de Jorge de Sena.

259
Nesse sentido, a interpretação histórica
e cultural que Sena construiu dos Estados
Unidos e registou nos textos de América,
América, para além dos conhecimentos de
causa que aciona, interessa sobretudo por-
que dá acesso ao trabalho apaixonado de
articulação dialética de si mesmo. De fac-
to, o livro de Jorge de Sena não só foi es-
crito a partir de um inegável saber, mas re-
presenta ele mesmo o testemunho pessoal
de um homem complexo numa época con-
vulsa. Discursividade, subjetivação e his-
tória coadunam-se num intenso exercício
de enxergar o presente e oferecer ao futuro
uma síntese da realidade que viveu e pen-
sou, já que nunca abandonou seu projeto
ade ao mundo. Em Améri-
ca, América, a vigência desse projeto logo
se confessa: «Sou incapaz de não amar a
humanidade que desprezo» (p. 27).

Sebastião Edson Macedo

Mécia de Sena, «Nota Prévia», in Jorge de Sena,


Sequências, Lisboa, Moraes Editores, 1980, p. 7.

260

You might also like