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A Casa da Rua Frederico Alvarenga

Marcelo Costa
09/01/2016

A obra tem como narrativa central uma aterrorizante lenda urbana, permeada por
acontecimentos misteriosos e paranormais em um velho casarão construído na
Rua Frederico Alvarenga - antiga Rua do Hospício - localizado na Várzea do
Carmo – hoje Parque Dom Pedro II distrito do bairro da Sé -, zona central da
ainda tímida e pequena cidade de São Paulo do século XIX.
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A CASA DA RUA FREDERICO ALVARENGA

Capítulo I - ...No Hospício


O frio de julho naquele ano de 1954 estava de cortar a alma, mesmo dos filhos
mais tradicionais da terra da garoa. Sem sombra de dúvida os que mais sofriam
com as baixas temperaturas, eram os recém-chegados nordestinos, que, no êxodo
provocado pela seca no sertão, vinham em busca de trabalho no sudeste no país.
No largo do Anhangabaú próximo ao Viaduto do Chá uma verdadeira multidão
aguardava ansiosa pela surpresa que estava por vir logo mais nas primeiras horas
da noite, era o segundo dia dos três escolhidos para a comemoração pelo IV
Centenário da fundação da cidade de São Paulo
A espera realmente valeu a pena, por volta das vinte e duas horas, uma linda
chuva de prata - triângulos prateados jogados aos montes por aviões da FAB -
Força Aérea Brasileira - caíram do céu, proporcionando um espetáculo belíssimo
aos olhos de quem estivesse ali presente.
Esta inteligente iniciativa foi um presente das industrias Pignatari para a cidade
de São Paulo, que além deste belo momento, também pode contar com inúmeras
atrações e grandiosos eventos no decorrer dos três dias de festa. Tudo para
homenagear aquela que era a exemplo do slogan: "São Paulo, a cidade que mais
cresce no mundo", a metrópole do futuro, que a todos recebia de braços abertos.
No meio da multidão formada por pessoas de diferentes classes sociais, tão
ansioso quanto os demais ali presentes, estava um promissor jovem médico
psiquiátrico de nome Dr. Cassidônio Miguelli, oriundo de uma família de
Italianos que assim como a maioria dos imigrantes, enfrentaram penosos e longos
dias dentro dos navios em busca de novas oportunidades no Brasil.
Seus pais conheceram-se ainda jovens, numa fazenda de café na região de Jundiaí,
destino escolhido pela conhecida Hospedaria do Imigrante no bairro do Brás para
muitas famílias oriundas do velho continente.
Com uma cerimônia simples, casaram-se na humilde capela construída dentro da
própria fazenda a mando do dono das terras cafeeiras para os eventos religiosos
dos colonos. Passado um mês de matrimonio, a jovem esposa já carregava dentro
do ventre o futuro herdeiro, o casal achou por bem fazer como muitos irmãos de
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pátria, mudar para a capital em busca de uma vida mais digna, para assim quem
sabe conseguir realizar o sonho de fazer a América.
Por coincidência ou mesmo força do destino, o jovem casal foi trabalhar nas
Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo - IRFM. Ela como tecelã na Tecelagem
e Estamparia do Belenzinho e Ele na função de motorista de caminhão na Casa
das Caldeiras, esta localizada Av. Francisco Matarazzo, no bairro da Água
Branca.
Os primeiros anos na metrópole não foram nada fáceis. No sobradinho simples,
alugado na Rua Major Diogo no bairro da Bela Vista - o velho e conhecido
"Bixiga" - o casal procurava economizar o pouco dinheiro que entrava de todas as
maneiras.
Foram muitas noites no qual o jantar servido na rústica cozinha do sobradinho
resumia-se somente a polenta. As roupas muito simples, feitas em sua maioria
com tecidos rústicos, eram costuradas pela própria matriarca na antiga Singer
comprada de um vizinho. Sapatos, estes eram comprados uma vez por ano,
geralmente só para o filho mais velho que doava o dele para o irmão mais novo e
assim sucessivamente. Diversão não existia, as poucas saídas da família eram
apenas para as missas dominicais na Paróquia Nossa Senhora Achiropita na Rua
Treze de Maio. Todo este esforço tinha um único objetivo, manter e ajudar o filho
primogênito a se formar na Escola de Medicina de São Paulo.
Depois de alguns pesados anos, o resultado de tanto sacrifício valeu a pena, no
ano de 1953 o jovem Cassidônio Miguelli tornou-se Doutor em Psiquiatria, os
pais embora muito orgulhosos não entendiam o porquê da escolha do filho, mas
enfim, o sonho estava realizado, finalmente tinham um filho "Doutore", e isso era
o mais importante de tudo.
O reluzente espetáculo das lâminas prateadas mal havia chegado ao fim, e o
jovem médico rapidamente tomou o rumo de casa. O motivo de abandonar a festa
justamente no momento de maior alegria, seria que no dia seguinte ele começaria
a clinicar no conhecido Hospital Psiquiátrico de Juqueri, o conhecido Pinel,
localizado em Franco da Rocha - antigo município de Juqueri.
Após uma boa noite de sono, finalmente chegou o tão esperado dia. A ida até o
novo local de trabalho não foi das mais fáceis, o jovem Dr. Cassidônio Miguelli
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passou por maus bocados ao enfrentar o precário transporte público, depois de


quase três horas entre ônibus e trem, enfim chegou ao seu destino.
A primeira pessoa a recebê-lo em seu novo local de trabalho foi o Dr. Euclides de
Andrade, um médico especialista na área de Psiquiatria, perto de seus setenta anos
de idade, quarenta deles todos dedicados no Complexo do Juqueri, praticamente
conhecia a história de vida da maioria dos pacientes, salvo alguns.
O experiente médico fez questão de acompanhá-lo pelas dependências do extenso
complexo psiquiátrico, que atendia em suas dependências aproximadamente
11.000 internos, entre homens e mulheres com deficiências mentais, entre outros
muitos problemas. A visita teve início por um dos muitos grandes pavilhões
construídos no imenso terreno com mais de 150 hectares.
Na segunda semana na função de médico na respeitada instituição, o jovem Dr.
Cassidônio Miguelli sentia-se bem mais a vontade, inclusive para caminhar pelas
dependências da colônia sozinho, por precaução no pavilhão no qual os pacientes
eram mais agressivos, era sempre acompanhado por dois enfermeiros. E foi
justamente numa certa ocasião em que saia de um destes pavilhões, que ao passar
pelo grande espaço aberto, na verdade um imenso e belo jardim com diversas
plantas, permeado por mesas com cadeiras, e grandes bancos de madeira, um
pequeno, porém bonito detalhe chamou sua atenção; um cantar melancólico, saído
de uma voz feminina que vinha de uma das pacientes sentada em um dos muitos
bancos.
Não era a primeira vez que ouvia aquele triste cantar, mas como na maioria das
vezes estava atarefado devido a atenção dada à algum interno, nunca dispunha de
tempo para ver do que se tratava. Porém neste dia diferente dos outros, a calmaria
fazia-se presente no complexo, aproveitou para aproximar-se daquela paciente que
insistia em cantar sempre a mesma canção.
Bem devagar Dr. Cassidônio Miguelli caminhou em direção ao tal banco. Os
outros pacientes ao perceberem a aproximação do jovem médico, assim como
animais quando sentem a aproximação de um possível predador, afastaram-se
rapidamente, os pobres enfermos de certo, por instinto, ou mesmo por um pouco
de sanidade, sabiam que quando alguém vestido com avental branco aproximava-
se, no mínimo era para escolher um deles para algum triste e doloroso tratamento.
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No banco do jardim restou apenas quem distraída cantava; tratava-se de uma


elegante senhora com idade realmente muito avançada, que mesmo com as tristes
marcas do tempo em seu rosto, deixava claro que no passado fora uma mulher
belíssima.
Tocado pelo encantamento dos belos versos, o jovem médico aproximou-se bem
devagar para não interrompê-la, calmamente sentou-se ao seu lado. Foi então que
além do próprio canto, outro detalhe chamou sua atenção; junto ao seu ventre,
abraçada com força, carregava uma antiga boneca de louça. Ela não importando-
se com a sua presença, continuou até os últimos versos.

... Se eu roubei
Se eu roubei teu coração
Tu roubaste
Tu roubaste o meu também
Se eu roubei
Se eu roubei teu coração
É porque
É porque te quero bem.

-- Daqui a pouco ela vem me buscar. - afirmou a senhora com um leve sorriso nos
lábios, contemplando cheia de esperança o infinito verde da pradaria.
-- Ainda mais com uma voz tão bonita assim - completou o médico com um
singelo sorriso.
Surpreso pelo que acabara de ouvir, Dr. Cassidônio Miguelli sentiu a
oportunidade de colocar em prática tantos anos de estudo, como estratégia tentou
jogar com as palavras. Quem sabe ali não viria o real motivo da estadia daquela
senhora naquele lugar?
De nada adiantou, a frase dita por ele foi praticamente em vão, sem dizer mais
uma única palavra, a senhora levantou-se com muita dificuldade devido ao peso
da adiantada idade, e caminhou em direção ao pavilhão feminino onde estavam as
demais pacientes.
Numa distância razoável dos dois, um senhor mulato trajando um velho macacão
cinza de brim, manipulava com habilidade um grande rastelo de ferro sobre o
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gramado na labuta de juntar as muitas folhas caídas das árvores. Por um breve
instante ele havia parado o trabalho para apreciar com um sorriso irônico nos
lábios toda a cena.
O jovem médico ao perceber a presença daquele funcionário com um certo ar de
quem divertiu-se com a sua fracassada tentativa, não pensou duas vezes,
aproximou-se dele afim de saber qual era o motivo de tanta graça. Porém antes
que ele se pronunciasse o senhor mulato de rastelo na mão foi mais rápido.
-- Bom tarde doutor. O senhor não me leve a mal não viu? Mas o doutor não é o
primeiro que tenta conversar com esta senhora.
-- Como assim?
-- A única coisa que sai da boca dela é aquilo que o doutor ouviu, praticamente
todo dia é a mesma coisa, desde que ela chegou aqui. De vez em quando ela tem
umas crises, aí levam a coitada lá pra dentro, daí o resto o senhor já sabe não é?
Mas isso até que vem diminuindo com o passar dos anos.
-- Sei, entendi. Deve ser mais uma coitada abandonada pela família aqui.
-- Não senhor. A história desta senhorinha é bem outra.
-- Como assim bem outra?
-- Eu já conhecia a história dela antes de vir trabalhar aqui, e olhe que só neste
lugar estou há mais de trinta anos.
-- Agora o senhor me deixou mais curioso ainda. Sabe da história desta paciente
antes de vir trabalhar aqui? - admirado questionou o médico - Por favor, me
explique isso.
-- Sei sim, lá no bairro onde nasci e me criei, muitas pessoas sabem da história
dela, principalmente quase toda gente da minha cor.
-- Desculpe, mas de onde o senhor é?
-- Sou nascido e criado na Bela Vista - completou com um sorriso carregado de
orgulho - Sou do Bixiga!
Ao ouvir o nome Bela Vista, o jovem médico ficou surpreso, pois assim como
aquele senhor, ele também havia nascido naquele mesmo bairro, na verdade ainda
residia lá. Por um instante achou que poderia ser invenção daquele funcionário,
mas em todo caso resolveu dar crédito em suas palavras, achou por bem saber o
que aquele senhor simples, de rastelo na mão tinha a dizer.
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-- Engraçado, também sou nascido e criado na Bela Vista, aliás, moro lá até hoje e
nunca ouvi nada a respeito disto.
Com outra risada, o senhor sentiu-se obrigado a explicar o porquê do jovem rapaz
não conhecer o fato:
-- Na verdade poucas pessoas sabem, dizem que uma antiga rezadeira do nosso
bairro morreu por causa dos misteriosos problemas na família desta senhora. Mas
como ela era de família importante na época, com certa influência, fizeram com
que o assunto caísse no esquecimento.
-- Meu Deus! Agora que não estou entendendo nada mesmo. Família Importante?!
Por favor, o senhor poderia me contar tudo o que sabe? De repente pode até ser
uma maneira de eu ajudá-la.
-- Sim, posso. Mas o senhor promete que o assunto morre entre nós dois? Afinal
de contas não quero me prejudicar aqui dentro. Nesta altura do campeonato não
posso perder este emprego. Afinal não sou mais nenhum menino feito o doutor
não é? - o senhor acabou a frase com mais um leve sorriso demonstrando já
alguma intimidade.
-- Claro! Pode confiar em mim, dou minha palavra. Mas me conte tudo o que sabe
por favor, principalmente os detalhes.
-- Está bem. Vamos sentar ali no banco onde ela estava, assim descanso um pouco
também, meu horário de trabalho terminou por hoje.
-- Fique tranquilo, qualquer coisa eu falo que foi um pedido meu.
-- Bem, vamos lá. A história desta senhora é de muito tempo. Embora ela caminhe
até que com certa firmeza, sua idade é bem avançada.
-- Sim, eu percebi, soube que passa dos oitenta anos.
-- Oitenta e nove para ser mais exato!
-- Realmente ela está até bem para a idade. Mas vamos lá, por favor me conte o
que sabe, confesso que estou curioso.
-- O senhor se importa se eu fizer uma coisinha antes? A história é longa e já que
sentei mesmo né? - concluiu novamente com um singelo sorriso.
-- Não me importo, fique a vontade.
E ele ficou mesmo, de dentro de um dos bolsos do surrado macacão de brim, tirou
uma caixa de fósforos e um cigarro todo amassado, que parecia estar ali há pelo
menos uma semana. Com todo carinho e sem pressa alguma, o simpático senhor
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afilou a pequena porção de tabaco enrolado na mortalha de papel, deixando-o


novamente em condições de ser fumado. Em seguida o acendeu e tragou com
vontade para bem fundo do peito, depois baforou bem devagar na intenção de
contemplar a fumaça que saia de sua boca, desmanchando tranquila, dona de seu
tempo, pelo ar, tomando o rumo do infinito. Após este pequeno momento de raro
prazer, finalmente permitiu-se dar início a sua longa narrativa.
-- Dizem as antigas línguas lá do Bixiga. O senhor não se importa que eu chame
nosso bairro pelo apelido não é mesmo?
-- Claro que não! Fique a vontade. Eu também quando estou em casa ou entre
amigos, só me refiro lá como Bexiga. - Concluiu o jovem médico com um sorriso
nos lábios.
-- Ah Tá! Eu entendo. Bem, deixa eu contar logo, porque percebi que o jovem
doutor está curioso. Vamos lá, tudo começou numa certa manhã, quando o esposo
dela, mais o filho voltaram de uma viagem do interior, e deram de cara com a
pobre mulher caída no meio do milharal no quintal da casa onde moravam, na
verdade já estava sendo socorrida por alguns empregados. Dizem que parecia uma
louca, toda desarrumada e suja, gritava sem parar chamando desesperada pela
filha que sumira naquela noite.
-- Então ela já teve uma família? Digo, ela no papel de esposa e mãe.
-- Sim doutor, teve sim. Como eu disse antes, era de uma família conceituada da
cidade. Estou falando dos tempos do café doutor, a coisa toda aconteceu no final
do século passado, faz muito tempo. Quando acharam a coitada, ela tinha a idade
de Cristo.
-- Entendi. De certo eles moravam nos Campos Elíseos como a maioria destas
famílias ricas na época.
-- Que Campos Elíseos que nada doutor! Aí é que está a coisa, eles residiam num
casarão antigo que existe até hoje, ali no Parque Dom Pedro, na Rua Frederico
Alvarenga.
-- Rua Frederico Alvarenga? Esse é o nome do antigo administrador do Hospício
dos Alienados, ouvi falar muito bem dele quando estava na faculdade.
-- Pronto! Esse mesmo, não sei se o doutor sabe, mas antes a rua chamava-se Rua
do Hospício por causa deste tal Hospital mesmo que ficava ali perto, inclusive
esta senhora veio pra cá quando este aí que o doutor falou fechou as portas de vez.
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-- Entendi. Mas por favor continue.


-- Bem, vou contar tudo o que sei. Mas antes deixa fazer uma pergunta para o
doutor.
-- Fique a vontade, se eu souber como responder.
-- O jovem doutor aí por acaso acredita em Deus?
-- Claro! Fui criado nos dogmas da religião católica, inclusive fiz primeira
comunhão na igreja da Nossa Senhora de Achiropita, lá no nosso bairro.
-- Sei. E nas coisas do mal? Nas almas penadas, no mundo dos mortos? O doutor
acredita que um lugar possa ser amaldiçoado?
-- Penso assim; se existe o bem, com certeza existe o mal. Mas qual o motivo da
pergunta?
-- Nada demais não senhor. Então já vi que posso continuar a história.
-- Por favor, sou todo ouvidos.
Com toda tranquilidade do mundo, entre uma tragada e outra, o simpático senhor
mulato da Colônia do Juqueri prosseguiu sua narrativa...

Capítulo II - A Chegada
Final de tarde fria e silenciosa, quase noite, um sereno gelado cai do céu sempre
cinzento e triste da capital paulista. Para quem olha do alto da colina dos fundos
da igreja Jesuíta do Pátio do Colégio na Várzea do Carmo, tem de fato uma visão
privilegiada da quase que infinita campina verde que segue insistente em direção
ao norte da cidade.
Na imensa vastidão, exageradamente separadas umas das outras, apenas algumas
casas, feitas em sua maioria de pau a pique. Porém não muito distante dos olhos
de quem contempla do alto da colina aquele lindo quadro quem sabe pintado pelo
Senhor, um imóvel destaca-se pela sua imponência e enorme tamanho, um velho
assobradado edificado todo com tijolos a vista. Fechado há décadas, por demais
castigado pelo tempo e completamente abandonado, lá estava ele imponente; o
solitário e velho casarão na rua do Hospício.
O inverno naquele ano parecia ser pior do que dos anos anteriores. Já passava das
dezessete horas, e a cidade preparava-se para descansar em uma esplêndida
escuridão. A maioria dos poucos habitantes que residiam próximos as ruas Libero
Badaró e Florêncio de Abreu, entre outras ruelas do comércio local, já
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encontravam-se recolhidos em suas casas. O muito que podia-se ver eram as


sinhazinhas delgadas sentadas sobre namoradeiras de alvenaria construídas aos
pés das grandes janelas de madeira das paredes feitas de taipa.
Pelas ruas alguns moçoilos, jovens estudantes da Faculdade de Direito de São
Paulo, de posse de suas lanternas, aventuravam-se ávidos pelas emoções da idade.
Estes com certeza iriam transitar noite adentro em busca das tabernas e dos
prazeres mundanos. Fora estes poucos seres escolhidos por Deus ou mesmo pelo
Diabo, a cada avanço da hora a cidade esvaziava-se, silenciava-se cada vez mais.
Porém no meio daquele sonoro vazio, não mais do que de repente, pode-se ouvir
ao longe os trotes dos obedientes cavalos puxando com força duas belas Coupés
Negras carregadas com grandes bagagens. Elegantes, os animais rumam seguros
de si determinados sobre a pequena rua de terra em direção ao velho casarão.
Enquanto o primeiro dos veículos de tração animal trazia uma grande quantidade
de bagagens, malas e pequenos utensílios, o segundo tinha a função de conduzir a
família Jordão vinda do interior, que a partir daquele final de tarde fria, faria do
velho casarão sua nova morada.
O patriarca da família, um fazendeiro rude e de poucos amigos de nome Sr.
Francisco Jordão, havia comprado o casarão por uma bagatela de preço. Ele
mesmo fez toda a negociação, sem procurar saber nem ao menos quem era o seu
antigo proprietário, o que lhe interessava mesmo era o preço baixo que pagara
pelo imóvel.
Toda burocracia da negociata foi realizada por um tabelião da capital, tudo
executado por meio de procurações, sem a presença do proprietário - se é que
existia algum - ,
uma prática não muito comum na época.
Outra coisa que Sr. Francisco Jordão nunca entendeu, assim como também não
fez nenhuma questão de entender, foi o porquê daquele preço tão acessível para
um imóvel tão grande e luxuoso. Apenas soube por meio de terceiros e pelo
próprio tabelião que o mesmo estava fechado para venda há muito tempo, sem
interesse de compra por ninguém há décadas.
Mas qual o motivo deste preço tão convidativo? A regra era simples; o novo
proprietário que adquirisse o luxuoso casarão, teria que obedecer um acordo
contratual no mínimo por demais estranho: o de não desfazer-se de nenhuma
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mobília, assim como nenhuma obra de arte já existente dentro do luxuoso


palacete.
Sr. Francisco Jordão teve a certeza absoluta que este acordo iria unir o útil ao
agradável. Pois, além de facilitar na acomodação de sua família, o pouparia de
gastos extras com mobílias novas, embora dinheiro de longe não fosse um
problema para ele.
Seja lá como for, o negócio veio a calhar para os interesses do fazendeiro, era de
seu gosto que sua família residisse na capital. O rude homem tinha um objetivo
traçado em sua mente para o futuro de seu primogênito; torná-lo um respeitado
Bacharel formado pela já famosa e conceituada na época: A Faculdade de Direito
de São Paulo, e para facilitar ainda mais, a localização do casarão era
relativamente perto da suntuosa instituição, no qual sem sombra de dúvidas
facilitaria bem a ida e vinda todos os dias do futuro acadêmico.
Além do próprio patriarca, a família era formada por sua esposa Sra. Silvia Jordão
e seus dois filhos pequenos; ela, a esposa, uma jovem senhora muito educada, de
alma generosa e bondosa, bem quista e admirada por todos os empregados da
família.
No alto da sua beleza praticamente grega de seus trinta e três anos, rosto bem
afilado e delicado, dona de uma cútis clara como a neve, contrastava com os olhos
e cabelos negros como ébano, chamava a atenção por onde fazia-se presente.
Embora de pouca idade, a bela senhora já era mãe de um rapazote de
aproximadamente quinze anos de nome Antônio Jordão e de uma menina, a
pequena Joana Jordão, sempre alegre, com apenas sete primaveras, seus cabelos
louros e cacheados lembravam um belo anjo barroco, realmente uma criança
linda.
Nem bem as duas carruagens atravessaram o grande portão de madeira do terreno
da recém adquirida propriedade, as duas crianças dentro da inocência peculiar da
idade, saíram correndo quintal adentro em direção a entrada principal do imóvel
recém comprado. Quando chegaram em frente a enorme porta de madeira, pintada
na cor marrom escura, entalhada com figuras mitológicas, pararam estatelados
meio sem saber ao certo o que fazer.
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Se para o rapazote já era uma visão admirável, para a menina então, tão
pequenina, aquela imensidão toda de tijolos a vista entrecortadas por grandes e
pesadas janelas era realmente admirável e assustadora.
Com seus pequeninos olhos fixos no enorme monumento imponente, aguardava
quem sabe que aquelas enormes paredes criassem vida e os engolissem vivos,
igualmente a um dos monstros das histórias mirabolantes que sua mãe costumava-
lhe contar antes de dormir. Todo aquele cenário era praticamente um outro
mundo, cheio de possíveis histórias e aventuras dentro do imaginário de qualquer
criança.
Sra. Silvia descera da carruagem amparada pela mão de seu esposo, assim como
as crianças, o casal também ficou impressionado com o tamanho do imóvel a qual
tinha tomado posse, ambos discorreram serenamente aquela imensidão toda de
tijolos.
Linda e elegante como era de costume, trajava um belo vestido negro longo com
detalhes em fios de seda em tom vinho. O vestuário vindo da França descia até a
altura dos tornozelos. Para cobrir as delicadas mãos um belo par de luvas na cor
Champagne com detalhes dourados bordados minuciosamente. Sobre a cabeça
um casquete no mesmo tom do vestido. A bela senhora parada ali, inerte, sem
ação, ficou a contemplar serenamente aquela maravilhosa mansão que seria
daquele final de tarde em diante sua nova morada.
Sr. Francisco caminhou lentamente até a porta principal onde encontravam-se
ansiosos os dois pequenos. Em sua enrugada mão direita, mapeada por
contorcidas veias saltadas, marcas cruéis que denunciavam sem dó e nem piedade
os seus cinquenta e sete anos de vida, penduradas, estavam as chaves da casa.
Calmamente escolheu uma das peças do grande molho metálico, com uma certa
dificuldade, devido a visão já cansada, acertou o alvo: a fenda da não menos
trabalhada fechadura cor de bronze da imensa porta.
Precisou empregar certa força é verdade para girar a pesada chave, foram duas
voltas completas, não mais, apenas duas, quando de repente um forte estralo pode
ser ouvido pelos três ali presente.
Pronto! A porta estava destrancada, o homem virou a pesada maçaneta, abrindo-a
lentamente. Um ranger triste, agudo doeu nos ouvidos do pai e dos filhos, aos
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poucos os últimos raios da fraca luz de final de tarde, adentraram-se timidamente,


revelando sem pressa um grande, belo, porém assustador corredor.
Os dois irmãos parados na entrada ficaram impressionados, ao olharem para
aquele enorme ladrilhado em mármore branco, detentor de pelo menos três
grandes salas até seu final, no qual quebrava em curva reta a esquerda, onde
podia-se ver do seu lado também esquerdo, uma grande escadaria.
Quem a olhasse de baixo para cima, postado em seu pé, logo a associava a figura
de uma grande fera mitológica; com uma boca larga, pronta para engolir com
voracidade quem atreve-se a subir sua longa língua. Toda assentada em assoalho
negro, alinhados por corrimões robustos feitos em madeira nobre não menos
escura do que os degraus. Bem no meio da enorme escadaria, ao fundo, podia-se
ver a parede, com pé direito alto, com duas enormes janelas decoradas com
coloridos vitrais no qual destacava-se a cor vermelha, pela posição colocadas,
lembravam dois olhos de fogo. Neste exato ponto, a enorme língua de assoalho
negro, igualmente a uma peçonhenta criatura, dividia-se em duas partes, sendo
uma para o lado leste e outra para o oeste, ambas terminavam em um outro
corredor, não menos assustador do que o do andar térreo. Neste segundo corredor
localizado no primeiro piso, encontravam-se os grandes aposentos do velho
casarão, estes com certeza guardavam muitos segredos e mistérios.
Ao ver aquele imenso corredor, um certo receio tomou conta dos dois pequenos
ao adentrar-se naquele mundo desconhecido, porém encorajados pelo pai,
avançaram em passos lentos pelo interior do Palacete. Antônio e Joana foram
desbravando aquele longo corredor observando cada detalhe; as paredes claras
com adornos em gesso, as portas de duas folhas pintadas com cor marrom escura
das salas, as pequenas colunas em estilo neo clássico, tomadas sem exceção por
uma camada generosa de poeira, que revelava o tempo de abandono em que
encontrava-se o belo imóvel.
Era bem da verdade que o ambiente dentro do velho casarão não era nada
convidativo, aliás, muito pelo contrário. Pois, fechado há muito tempo, um odor
estranho dominava todo o espaço, não apenas de poeira ou de mofo, mas um odor
muito peculiar, fétido, quase fúnebre.
Da entrada do corredor podia-se ver pendurados na parede do lado esquerdo uma
sequência separada matematicamente com antigos quadros. Um a um, as telas
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traziam em suas molduras quase todas talhadas em estilo rococó, retratos pintados
a mão de algumas pessoas com idades bem avançadas. Com certeza senhoras e
senhores da aristocracia paulista, donos do poder que o ouro negro exercia sobre a
sociedade da época. Dos quadros expostos um destacava-se, inclusive pelo detalhe
de sua conservação e limpeza entre os demais todos empoeirados.
Tratava-se de um retrato de uma jovem senhora, que pelo rosto pintado na tela
não devia ter mais de vinte e cinco anos de idade. Com traços de uma cabocla bem
apessoada, o rosto pincelado naquela moldura era lindo; com traços delicados, a
pele lisa, cor de jambo maduro recém tirado do pé em meados de janeiro, os
cabelos e os olhos bem negros como a imensidão da noite. Porém, mesmo com
toda esta beleza e formosura, trazia em sua fisionomia um pesar de muita tristeza
e dor.
Joana que seguia pelo corredor com seu irmão, ao ver o quadro da jovem senhora
de expressão triste, não se conteve, de imediato estancou os passos, olhou fixo
para aquele belo rosto pintado na tela. A menina ficou encantada com tal beleza,
permaneceu ali, parada, contemplando aquela imagem que destacava-se das
demais. Não tardou e a cabecinha de Joana encheu-se com vários
questionamentos, com tantas perguntas sem respostas, depois de alguns bons
minutos admirando a tela, sua mãe que já encontrava-se na entrada da casa
chamou-a pelo nome:
- Joana! Joana!
A menina, ao ouvir a conhecida voz da matriarca, pôs-se a andar, porém em um
determinado momento algo a fez virar para trás com a intenção de dar aquela
última e tentadora olhada para aquela bela mulher, foi então que ela teve uma
desagradável surpresa; a moça é quem estava com os olhos fixos nela, sem
pestanejar a menina deu uma carreira assustada em direção a mãe, em seguida
abraçou-a com força, Sra. Silvia recebeu aquele abraço demorado com gosto, sem
entender direito o que tinha acontecido, sentiu o pequeno coração de Joana bater
acelerado. As duas permaneceram abraçadas por algum tempo.

Capítulo III - O Jantar


Passado este primeiro momento de reconhecimento do novo território, Sra. Silvia
no seu papel de Matriarca da família, responsável pelos afazeres domésticos
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tratou logo de cumprir sua função, acomodar a todos. Ordenou para que dois de
seus empregados descarregassem as bagagens, que por sinal eram muitas. Para a
arrumadeira, uma jovem mulata de dezesseis anos, não mais que isso, filha de ex-
escravos, coube a tarefa de fazer a arrumação nos quartos, enquanto uma outra,
ficaria responsável pela cozinha, esta por sua vez era uma velha senhora negra,
gorda, também ex-escrava que estava junto à família Jordão desde criança, seu
nome Anastácia, que pelo avançado da idade e talvez até por consideração, quem
sabe, tinha apenas uma função nas prendas da casa, cuidar das refeições da
família.
Sem perder tempo, a velha senhora negra dirigiu-se direto para a grande cozinha
para preparar algo para a ceia, sabia que tinha que ser rápida no preparo de algo
bem leve, pois o adiantado da hora já não permitia pratos muito elaborados, sendo
assim pôs-se logo a trabalhar.
Com seus redondos braços, de caminhar lento, puxando de uma das pernas
inchada devido a uma moléstia mal curada no tempo da juventude - Erisipela para
uns, Elefantíase para outros - Anastácia segurou com firmeza de conhecimento
no assunto uma enorme galinha que ela mesma havia abatido e depenado um dia
antes, com uma habilidade de anos de experiência, a golpes certeiros começou a
decepar a coitada da ave bem nas juntas.
Após este primeiro ato que mais parecia uma típica cena da velha Londres, dos
tempos do famoso e cruel estripador. A velha de corpo coxo caminhou até o
quintal afim quem sabe, de achar algum tempero no meio de tantas plantas e
matos crescidos devido ao longo tempo de abandono. Deu sorte, achou alguns,
assim como um bom alquimista, escolheu e selecionou cada tempero, para depois
picá-los em minúsculos pedacinhos, milimetricamente iguais. Logo após todo este
ritual, que mais parecia a feitura de uma poção macabra, deu-se início em fogo
brando o preparo de uma suculenta canja.
Tudo corria normal no preparar da ceia, Anastácia estava ali, em pé, calmamente
mexendo de vez em quando a grande panela de ferro, quando de repente seus
ouvidos foram invadidos por um som agudo, arrepiante de arranhar na madeira, de
cima para baixo, parecia vir de um dos grandes móveis de guardar mantimentos
da cozinha.
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O arranhar era longo e demorado, como se alguém descesse escorrendo pela


parede de madeira do mesmo. Anastácia assustou-se, olhou rapidamente na
direção do armário, nada! Neste exato momento ela sentiu passar pelas suas largas
costas algo que a arrepiou dos pés a cabeça, seguido de um cheiro forte de flor
Dama da Noite, a cozinheira tremeu-se toda, rapidamente começou a rezar, o
medo foi tanto que hora as falas eram católicas, hora africanas, num verdadeiro
sincretismo religioso. O verdadeiro balaio de rezas parece que deu resultado, não
demorou muito e tudo voltou a sua normalidade.
Após esta pequena manifestação, Anastácia respirou fundo, caminhou até a porta
da cozinha que dava saída para o quintal dos fundos, repleto de árvores e plantas,
no qual não podia-se enxergar nada devido a noite que já fazia-se presente,
completamente escura, sem o brilho do luar.
Ao olhar aquele breu, na experiência de vida de seus quase noventa anos,
pressentiu que aquele velho casarão guardava algum mistério, com certeza
aquelas largas paredes de tijolos a vista tinham muito a revelar.
Já passava das dezenove horas quando a família Jordão finalmente sentou à mesa,
Sr. Francisco na cabeceira, sua esposa Sra. Silvia do lado esquerdo, e as duas
crianças na direita, uma ao lado da outra. Todos aguardavam ansiosos pela iguaria
que viria da cozinha.
Não demorou muito para Anastácia aparecer na entrada da sala de jantar, com um
doce sorriso nos lábios, de posse de uma sopeira de louça branca toda trabalhada
em detalhes em folha de ouro, o nobre artefato estava cheio quase até a borda com
a suculenta canja feita do sacrifício da coitada da galinha.
Sra. Silvia, sempre benevolente, vendo a dificuldade daquela senhora marcada
pelo tempo, puxando de uma perna doente, pediu com muita delicadeza que
deixasse a louça ali sobre a mesa que ela mesma serviria um a um da família.
Anastácia obedeceu, fez o que a patroa mandou, retirou-se lentamente da sala de
jantar, porém antes de sair, sem saber o porquê, sentiu a necessidade de
aproximar-se de Joana, com delicadeza colocou sua enrugada mão direita sobre
um dos ombros da pequena criança, balbuciou baixinho algumas palavras
ininteligíveis, finalizou com um leve beijo sobre sua cabecinha, em seguida
retirou-se. Um gesto meio impróprio para a ocasião, os pais da menina sem
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entender nada trocaram olhares, mas pelo respeito a velha empregada não
manifestaram nada naquele momento.
Após esta pequena, porém não menos estranha cena, a matriarca serviu
calmamente primeiro seu esposo, em segundo seu primogênito, e em seguida a
pequena Joana, que alegre e faminta não via a hora de dar a primeira colherada
para dentro de seu pequeno corpo. Sra. Silvia foi a última a se servir, sempre
moderada e comedida, serviu-se bem pouco do bem temperado e suculento prato.
Talvez pela fome que era muita devido a longa viagem, até a reza que era de
costume fora esquecida. O silêncio fazia-se presente à mesa, os únicos sons que
ouviam-se eram os sugares da canja vindos das belas colheres de prata.
Tudo parecia normal, até que Joana parou repentinamente de comer. Olhou
fixamente para a porta da sala de jantar, como se visse alguém, a menina
permaneceu quieta a ponto de chamar atenção dos demais presentes, menos de seu
pai que nem percebeu, pois preocupado em saciar sua fome não tirava os olhos do
prato fundo que esvaziava-se rapidamente. Mãe e filho notaram a atitude estranha
da menina, os dois olharam-se assustados com aquela imagem, ficaram perplexos
até que Sra. Silvia tomou a atitude de chamar pela menina que demorou a atender
a mãe, que precisou repetir seu nome pelo menos três vezes.
Igual saída de um transe a menina voltou ao normal em um movimento rápido,
como se nada tivesse acontecido, com um leve sorriso nos seus pequenos lábios,
voltou a preocupar-se apenas em esvaziar seu prato. Sra. Silvia vendo aquele
comportamento de Joana ficou meio apreensiva, e porque não dizer assustada, fez
uma tentativa de tocar no assunto com Joana mas de nada adiantou, a menina se
comportou como se nada tivesse acontecido.
Ao final do jantar todos se recolheram, pois o dia havia sido longo e cansativo, a
viagem do interior até a capital levara praticamente o dia todo. Levantaram-se e
foram em direção a majestosa escadaria central que levava ao andar de cima onde
ficavam os futuros dormitórios da família. No exato momento em que iam pisar
nos primeiros degraus, Joana parou repentinamente, sem falar nada, sobrepôs uma
de suas pequenas mãos na negra de madeira de um dos pilares, ponto de partida
de um dos corrimões. Sua mãe achou mais esta atitude estranha, Antônio também
assustou-se com tal gesto da irmã, apenas o pai que seguia a frente de todos, já
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estava praticamente no meio da escada não viu nada, andando estava, andando
continuou.
Após a repentina e estranha pausa, Joana finalmente manifestou-se:
-- Mamãe, a senhora está sentindo?
Sra. Silvia sem entender nada, retrucou a pergunta:
-- Sentindo o que meu bem?
Joana serena e calma, respondeu naturalmente:
-- Este cheiro de flor. Nossa mamãe, é tão bom não é?
Sra. Silvia assustada olhou para o filho como que se prolongasse a pergunta da
filha, o menino por sua vez, apenas balançou negativamente a cabeça, Sra. Silvia
percebendo que só a menina sentia o tal cheiro de flor, respondeu decidida para a
menina:
-- Não minha filha, não estou sentindo nada. Aliás, nem eu, nem seu irmão, deve
ser impressão sua. Agora deixemos estas coisas pra lá e vamos nos recolher. Já é
tarde e precisamos dormir, estamos todos cansados da longa viagem.
Joana olhou para os dois sem entender o porquê só ela era contemplada com
aquele doce aroma, sem questionar, acompanhou sua mãe e seu irmão até os
aposentos do casarão.

Capitulo IV - A Primeira Noite


Após acomodar carinhosamente os filhos, cada qual em seu leito, Sra. Silvia em
silêncio abriu a porta calmamente e saiu do quarto das crianças, de posse de uma
lamparina na mão dirigiu-se em direção ao quarto principal da casa que havia
ficado para ela e seu esposo.
Os dois eram bem distantes um do outro, para deslocar-se era necessário caminhar
alguns bons metros, ambos ficavam em lados opostos, tendo as duas saídas do
leque da escadaria como um divisor no meio do corredor, exatamente calculado.
Quem dirigia-se de um aposento para o outro obrigatoriamente passava por estas
saídas. E foi justamente no momento em que Sra. Silvia, ao passar por ele sua
lamparina como em um sopro repentino apagou-se.
Uma imensa escuridão fez-se presente, sem a luz que o objeto fornecia não podia-
se ver nada a um palmo de distância dos olhos, a elegante senhora ficou
apavorada, parou de andar, assustada apoiou uma das mãos no pilar que findava
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um dos corrimões, respirou fundo, procurou manter a calma, então decidiu


continuar em direção ao seu quarto, desta vez bem mais lenta, passo a passo, com
pisadas leves nas pontas dos pés para sentir bem o toque no chão e assim não
correr o risco de tropeçar e cair.
Neste momento aquele imenso corredor pareceu-lhe ser bem mais longo do que
realmente era, pois o fato de não poder enxergar nada, fazia com que o medo
crescesse, e não era para menos, algo realmente iria acontecer durante aqueles
minutos cruciais.
Um estranho som de passos, fez-se presente na cena. Como se alguém pé ante pé,
a seguisse bem no seu encalço. Sra. Silvia sentiu um arrepio que subiu-lhe pela
espinha, ainda tentou enganar-se, como algo apenas de sua imaginação, porém as
pisadas eram reais e persistentes, a cada passo dela, também ouvia-se o passo de
seu misterioso seguidor.
Mesmo tremendo dos pés a cabeça procurou manter o mesmo ritmo no caminhar,
e assim foi até chegar a porta do seu quarto, sem pestanejar colocou uma das mãos
na maçaneta, abriu a porta e rapidamente entrou no seu aposento.
Fechou a porta sem olhar para trás, direto dirigiu-se para a cama onde seu esposo
já estava em sono pesado, com roncos que podiam ser ouvidos a léguas de
distância. Neste momento a jovem senhora olhou para seu marido, o homem que
tinha planejado tudo aquilo, sentiu um certo ódio em seu coração, pensou: --
porque ela teria que ficar ali, presa naquele velho casarão, enquanto ele teria toda
a liberdade de ir e vir da fazenda? Ela mesma sabia da resposta, porém não teria
como mudar a situação. Conformada com sua posição de esposa, deitou-se e
procurou dormir.
Enquanto isso no quarto das crianças tudo parecia normal, os dois dormiam o
sono dos anjos, foi quando a porta lentamente abriu-se sozinha, uma brisa fria e
lenta invadiu todo o ambiente com a missão de acordar Joana, e assim o fez.
Inebriada novamente pelo cheiro forte de Dama da Noite, a menina calmamente
afastou as duas cobertas pesadas que a protegia da típica noite fria de julho, com
certa dificuldade devido a sua pouca idade desceu da grande cama de madeira,
calçou suas pequenas chinelas de couro macio revestidas por dentro com pele de
carneiro e caminhou em direção a porta já aberta.
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Após passar pela porta de seu quarto, caminhou lentamente pelo corredor em
direção a escadaria, ao chegar antes do primeiro degrau parou, fixou seu olhar
para baixo, como se visse algo no pé da escadaria. Neste momento por
coincidência ou por instinto materno sua mãe que ainda não havia pego no sono
teve um pressentimento ruim, levantou para olhar os filhos, mas ao tentar abrir a
porta sentiu uma resistência, como se algo segura-se pelo lado de fora. A
matriarca forçou, forçou, e nada! Foi então que desesperada chamou pelo esposo:
-- Francisco! Francisco! Me ajude pelo amor de Deus!
O homem que embora estivesse em sono pesado, ao ouvir o chamado desesperado
da esposa deu um salto assustado da cama e mais do que ligeiro foi até ela para
ver o que acontecia ali. Sem entender nada ele questionou o porquê daquele
desespero:
-- Calma mulher, o que acontece? Por que deste desespero todo?
Ela, assustada com as duas mãos na maçaneta da porta, usando de toda sua força
mas sem nenhum resultado respondeu:
-- A porta não quer abrir, parece que alguém a segura pelo lado de fora.
Francisco achando tudo aquilo muito estranho, afastou a esposa do local e colocou
a mão na maçaneta, então com um leve toque a mesma abriu-se quase que
sozinha, macia e silenciosa.
Sra. Silvia ficou sem entender nada, os dois olharam-se em silêncio por um breve
momento, ela confusa saiu do quarto sem falar nada em direção ao quarto dos
pequenos, na pressa nem lembrou de pegar a lamparina, andou, desta vez
apressada pelo corredor escuro. Francisco a seguiu também sem entender o que se
passava, mas este por sua vez não esqueceu a lamparina, acendeu e saiu.
Quando Sra. Silvia dobrou o corredor escuro em direção ao quarto que tinha como
objetivo, avistou um vulto parado na beira da escadaria, olhando para baixo,
estático. Logo percebeu que se tratava da pequena Joana.
Silvia correu até a menina, segurou-a pelo braço, e chamou-a pelo nome:
--Joana minha filha! O que faz aqui?
Joana novamente em transe, não respondeu, seu olhar continuava fixo para baixo,
em direção ao pé da escada. Sra. Silvia tornou a chamar, desta vez com sacudidas
no corpo da menina:
-- Joana! Joana! Fala comigo pelo amor de Deus, o que você faz aqui?!
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A filha retornando de sua viagem do mundo do desconhecido, serena respondeu:


-- Nossa mamãe, coitadinha da moça...
A mãe e o pai - que chegara logo em seguida - ficaram sem entender aquela
estranha fala da menina. Afinal do que falava Joana? No meio da madrugada, ali,
sozinha, parada? Foi então que, Sr. Francisco já meio sem paciência com tudo
aquilo, apreensivo falou com a filha:
-- Joana minha filha, do que você está falando? Você deveria estar na sua cama!
Isso não são horas para brincadeiras...
Antes que continuasse seu típico discurso patriarcal Joana interrompeu-lhe:
-- A moça papai, a moça. Coitada da moça, machucou-se.
Ao mesmo tempo que falava, apontava em direção ao pé da escada. Os dois
adultos olharam para baixo e obvio que não viram nada, a não ser a escuridão que
era peculiar da situação.
Francisco em uma postura mais enérgica falou a esposa:
-- Silvia, leve esta menina para o quarto. Esta claro que ela sonhou e deve ter
vindo até aqui dormindo. Eu já falei para você que estas crianças estão se
recolhendo muito tarde.
A culpa é sua! Vamos, tome aqui a luz, leve-a para o quarto, depois venha se
deitar.
Sra. Silvia embora indignada com a postura do marido, obedeceu como de
costume, por um instante realmente sentiu-se culpada, mas sua intuição materna
dizia que algo realmente estranho tinha acontecido ali.
Obediente que era, caminhou com a menina até o seu quarto, colocou-a na cama,
em seguida com uma paciência peculiar de mãe, esperou que a filha adormecesse
de vez para depois voltar para junto do esposo, ao passar pela saída da escadaria
ainda achou tempo para olhar para baixo no objetivo quem sabe de ver algo que a
filha havia narrado, porém como era de se esperar, não viu absolutamente nada,
apenas a imensa escuridão acompanhada de um silêncio questionador.

Capitulo V - O Café da Manhã


Tímidos raios de sol que insistiam em rasgar a cerração, trouxeram ainda que bem
devagar o amanhecer para a cidade. Gotículas de orvalho da geada que caíra na
madrugada fria daquele mês acalentavam as águas do imenso telhado da casa,
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assim como em toda as plantas, árvores e o capim alto por falta de corte do
imenso quintal.
Logo cedo pelas ruas do comercio local, já na labuta sofrida do dia-a-dia podia-se
ouvir ao longe os carvoeiros, os vassoureiros e outros mascates com seus pregões
que cruzavam com jovens boêmios e moças de vida fácil retornando estafados da
noite farta de álcool e luxuria para suas casas e quartos de pensões.
Dentro do casarão, na sala de almoço, já sentados à mesa, a família Jordão
preparava-se para seu primeiro café da manhã na nova residência. Anastácia que
levantara antes do sol nascer, havia preparado com todo carinho os bolos e
quitutes que já estavam colocados sobre a grande mesa de madeira escura
rebuscada, toda detalhada em estilo manuelino português.
A mesa estava realmente farta; além do costumeiro café e leite bem quentes, dos
bolos e quitutes, haviam também vários derivados do milho: canjica, pamonhas
entre outras iguarias. Pratica comum na culinária nas vilas paulistas da época.
Enquanto deliciavam-se com aquela fartura toda, Sr. Francisco aproveitou para
dar um comunicado a esposa; pois assim que terminasse o desjejum ele partiria de
volta para o interior, pois precisava acompanhar o andamento dos trabalhos da
colheita do café.
-- Silvia, estou de partida. Vou para fazenda, volto daqui três dias.
Silvia sem entender muito bem, respeitosa indagou:
-- Desculpe Francisco, mas não entendi o que você disse.
Francisco, foi mais incisivo na fala como que dando um ponto final ao assunto.
-- Serei mais claro. Assim que terminar o café vou para a fazenda, tenho negócios
a resolver. Época de colheita, quero estar por perto.
Silvia mesmo sabendo que nada adiantaria contrapor o marido, tentou argumentar:
-- Mas Francisco, nós mal chegamos aqui, não conheço nada, tudo é muito
estranho para mim e para as crianças...
Antes que ela terminasse Francisco a interrompeu grosseiro:
-- O que tem de estranho Silvia? Apenas é uma casa grande, nada demais, por isso
que eu trouxe alguns empregados para cá, assim você não terá quase trabalho
algum, a não ser cuidar de nossos filhos. E tem mais, sabes que tenho meus
negócios e não sou homem de ficar preso em casa.
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-- Eu sei, eu sei. Mas tem algo aqui que me incomoda, desde ontem, desde que
passamos daquele portão para dentro, tem acontecido coisas estranhas,
principalmente com Joana. Você mesmo viu nesta madrugada.
-- Pare com suas besteiras! A menina teve um pesadelo, somente isso. Não me
venha com bobagens. Não quero saber de tolices. E assunto encerrado!
O clima na mesa que parecia tranquilo no começo do desjejum mudou
rapidamente, as duas crianças fingiram que nada estava acontecendo, continuaram
a comer as delícias que Anastácia havia preparado com tanto carinho.
Sra. Silvia percebeu que não teria argumentos que convencesse Sr. Francisco do
contrário, calou-se também. Por um breve instante a vontade da jovem senhora foi
de gritar, e avançar feito uma leoa enfurecida para cima do esposo. Mas a razão
falou bem mais alto que a emoção, e ela na sua condição de mulher e esposa teria
que obedecer os mandamentos do lar.
Assim que terminou o café, Sr. Francisco subiu em umas das carruagens e partiu
ao seu objetivo sem sequer se despedir das crianças. Pois, em sua concepção de
homem, um bom chefe da família, jamais permitia-se a certas tolices.

Capítulo VI - O Porão
Depois de se empanturrarem com tantas coisas boas no café da manhã, finalmente
chegou a hora tão esperada por ambos; desbravar aquele quintal imenso cheio de
árvores frutíferas e lindas plantas. As Jabuticabeiras, Figueiras e Cambucizeiros
repletos de frutos doces e maduros eram um ótimo convite para qualquer criança
fartar-se durante horas, esquecidas da vida, esparramadas confortavelmente sobre
seus galhos.
Antônio e Joana embora tivessem uma boa diferença de idade, davam-se muito
bem como irmãos, o jovem amava por demais sua pequena irmã, cuidava e
ensinava o pouco que ele sabia das coisas do mundo para a pequerrucha.
Correram, pularam, comeram frutas frescas dos pés, brincaram tanto, que exaustos
sentaram para descansar um pouco. Foi quando Antônio sem pretensão nenhuma,
e quase que sem querer, olhou para o lado, avistou o porão que ficava embaixo do
casarão. Para ele seria uma nova descoberta, pois, na noite anterior que chegou,
devido ao cair da noite e pelo fato de estar cansado da longa viagem, nem havia
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percebido que a casa além de tudo também tinha um porão, que por sinal enorme,
tomava todo o espaço do alicerce da imensa edificação.
Antônio cutucou a irmã, que de posse de um graveto brincava distraída de irritar
as miúdas Lavapés, tirando-as da longa fila indiana criada por elas mesmas em
busca de seu sustento. A menina rapidamente parou a traquinagem, atendeu o
irmão que mostrou o que acabara de achar para a menina.
Um pequeno detalhe chamou a atenção dos dois; o pequeno portão de ferro do
escuro lugar encontrava-se um pouco aberto. Não demorou muito e uma
curiosidade tomou conta das duas crianças, logo os dois fedelhos foram
bisbilhotar o que teria por debaixo da casa.
Meio desconfiados dirigiram-se para perto do portão, ao chegaram bem perto
Antônio percebeu que realmente o porão era enorme, pela escuridão parecia não
ter fim. Um pouco ressabiado do que poderia encontrar lá dentro, o jovem rapaz
decidiu que não entraria, ainda mais sem nenhum objeto que lhe desse luz. Foi
quando Joana sem pestanejar fez menção de entrar, seu irmão a barrou de
imediato com uma pequena bronca:
-- Que isso Joana? O que você vai fazer? Não vamos entrar, além de muito escuro,
não temos nenhuma lamparina. E outra, se tem alguém que pode entrar neste
porão, este alguém sou eu!
Joana sem entender e brava com a atitude de Antônio retrucou:
-- Por que só você? Só por que é grande e menino? Eu não tenho medo, posso até
te proteger.
O irmão que escondia a sete chaves um imenso medo, respondeu o que realmente
não queria responder, mas que seu ego masculino exigia:
-- Sim! Isso mesmo. Eu sou o homem entre nós dois, e além do mais você é muito
pequena ainda. Fique aqui, que eu vou até a cozinha pedir uma lamparina para
Anastácia e já volto. Me espere.
O pequeno grande homem correu para a cozinha em busca de uma lamparina ou
algo que pudesse iluminar aquela infinita escuridão. Assim que percebeu que
estava fora do alcance do irmão, o instinto de curiosidade somado a uma coragem
repentina tomaram conta de Joana, que rapidamente entrou naquele novo e
misterioso espaço a ser desbravado.
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Ao passar pelo pequeno portão de ferro seu delicado rosto foi logo acariciado por
enormes teias de seda de possíveis proprietárias daquele lugar. Rapidamente
tentou livrar-se delas, mas percebeu que era praticamente inútil, quanto mais
tentava tirá-las, mais grudavam em seu pequeno corpo.
A cada passo, o novo lugar ficava mais escuro, a cada passo ela podia ouvir os
sons dos outros donos daquele misterioso lugar; roedores, besouros, baratas
cascudas entre outros rastejantes. Joana caminhou praticamente até o meio do
enorme porão, foi quando de repente, talvez para afirmar que sabia o caminho de
volta, ou mesmo para ter alguma segurança, virou a cabeça, percebeu que a saída
e o feixe de luz estavam reduzidos a quase nada.
Joana quase desistiu, mas algo mais forte tomou conta de seu corpo e de sua
razão, fazendo-a continuar com sua fantástica aventura, foi quando do nada, quase
que repentino, seus pequenos ouvidos foram tomados por algo.
Uma melodia linda cantada suavemente por uma voz não menos linda de mulher.
A menina por um breve instante, assim como marinheiros encantados pelos cantos
das sereias, flutuou em pensamento. Saiu do mundo real para embarcar quem
sabe onde?
O cantar inebriante a cada momento ficava mais alto e melancólico, quando deu
por si, Joana já balbuciava algumas palavras da canção, como que tentando
aprender a melodia:

Se esta rua, se esta rua fosse minha


Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com Pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
Para o meu, para o meu...
Antes que conseguisse aprender o resto foi interrompida por um grito vindo da
entrada do porão chamando pelo seu nome:
-- Joana! Joana!
Súbito a menina voltou a si, olhou rapidamente para a entrada de onde se via
apenas a luz delineada pelo vulto de um corpo meio envergado que repetia o
chamar, desta vez acrescido de uma pequena bronca:
-- Joana! Joana! Saia já daí. Agora! Sua desobediente!
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Sem pensar duas vezes Joana percebeu que seu irmão falava sério, achou por bem
obedecer. Quando fez menção em voltar, seus pés sem querer esbarraram em algo
no chão escuro, ela olhou para baixo, mesmo com toda escuridão do lugar,
conseguiu ver o que parecia ser uma pequena boneca, e era; linda, vestida e
enfeitada com indumentárias fieis a de uma dama da aristocracia europeia, toda
feita em madeira com a cabeça em porcelana. Verdade que estava um pouco suja e
empoeirada devido as condições do lugar, mas nada que uma boa limpeza não
resolvesse.
Joana ao ver aquele objeto no chão, ali, pedindo para ser pego, não hesitou,
agarrou-o como um faminto agarra um pedaço de pão. Embora um cheiro forte de
poeira dominou o espaço neste pequeno ato, a menina tomada pela beleza do
brinquedo abraçou-o com força e posse.
Após feito a captura de seu novo tesouro, tratou de sair logo dali, pois, sabia que
teria que dar satisfações ao seu irmão que a aguardava do lado de fora com
fisionomia de poucos amigos. Joana sabia que tinha poucos segundos para
inventar uma boa desculpa para justificar sua desobediência.
Uma vez fora, Antônio numa atitude paterna, agarrou-a pelo braço com força
para conduzi-la até a mãe, Joana não conseguia acompanhar os passos acelerados
do irmão, que tomado por uma cólera levava a menina como um carrasco leva o
condenado para seu destino irremediável: a morte.
Joana, percebeu que a situação estava realmente feia para seu lado, mas
inteligente e astuta que era pensou em algo rápido para se livrar da bronca e do
provável castigo de sua mãe. Foi quando num ímpeto deu a última cartada, era
tudo ou nada naquele momento.
Mesmo sabendo que aquilo não era coisa para meninos, ela mostrou ao irmão o
que tinha encontrado, quem sabe ele não mudaria de ideia. Antônio de tão
possesso que estava não havia nem percebido o objeto na mão da menina:
-- Antônio, olha o que eu achei. Não é linda?
O jovem rapaz nem deu ouvidos a pequena Joana, continuou sua determinada
caminhada em direção a mãe. Joana não desistiu, insistiu mais, desta vez com
mais veemência.
-- Antônio! Olha que linda! Eu achei no porão!
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Ao ouvir a palavra porão, ele parou repentino e olhou em direção da irmã. Foi
quando pode perceber algo nas mãos dela. Meio sem entender o que aquilo estava
fazendo ali, questionou-a sobre o assunto.
Neste momento Joana percebeu que sua estratégia havia dado resultado, agora era
a chance de aproveitar a pequena pausa da cena para tentar por meio de seu
charme de irmã caçula, fazer com que ele esquecesse o ocorrido, e quem sabe
assim ela estaria livre de sua condenação: a temida bronca que levaria da mãe.
Com um pequeno gesto esticou os rechonchudos bracinhos com o brinquedo nas
mãos, e ofereceu para que ele segurasse e pudesse ver melhor.
Antônio tomado por uma força maior, não hesitou, logo segurou o pequeno
objeto de madeira e porcelana em seus braços afim de apreciar melhor cada
detalhe, de repente uma força maligna saiu dos negros olhos pintados a mão para
presenteá-lo com uma sucessão de imagens que invadiram sua mente,
conduzindo-o numa viagem alucinante de horror, o pequeno rosto antes meigo e
delicado de porcelana deu lugar a uma máscara demoníaca pronta a devorá-lo.
Antônio com o susto, largou-a rapidamente, Joana sem entender o porquê daquele
gesto brusco, rapidamente pegou-a do chão, como uma mãe que cuida de seu
filho, tomou-a em seus braços com carinho. Assustada, ficou sem entender o que
havia acontecido com seu irmão, permitiu-se apenas a olhar o coitado parado,
pálido feito um fantasma.
Após um breve momento nesta condição catatônica, Antônio voltou ao normal,
com uma pequena diferença; seu comportamento havia mudado completamente,
todo aquele modo rude passou, seu humor voltou a ser o do irmão paciente e
dócil. Joana mesmo sem saber o motivo de tal mudança repentina de humor,
tentou falar algumas palavras com o menino:
-- Antônio, o que aconteceu? Você está muito estranho.
O jovem rapaz também sem entender direito tudo aquilo, respondeu
carinhosamente, como sempre fazia:
-- Como Joana? Aconteceu o que? Do que você está falando?
Joana insistiu em continuar o pequeno diálogo:
-- Você derrubou a boneca assustado. Depois ficou aí parado feito uma estátua.
Antônio não lembrava de nada, mas para não deixar sua irmãzinha preocupada,
mudou o rumo da prosa:
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-- Não foi nada, devo ter me assustado com algo. Vamos fazer o seguinte:
Esqueçamos o ocorrido lá no porão, pegue sua nova amiguinha e vá brincar.
Mamãe não precisa saber de nada. Caso ela pergunte da boneca, você diz que
achou lá perto do milharal.
Joana abriu um largo sorriso, fez um gesto com a cabeça que concordava, e antes
que seu irmão mudasse de ideia novamente, saiu correndo em direção a porta da
cozinha, pois sabia que Anastácia estaria por lá com certeza, queria mostrar seu
novo brinquedo.
E foi justamente como ela imaginara, assim que chegou perto da cozinha a viu
curvada com seu robusto corpo em direção a uma pequena planta, como um
detetive que procura alguma pista para desvendar um crime, seus olhos
deslizavam lentamente a procura de alguns bons ramos de manjericão, buscava os
mais verdes e frescos dentro do arbusto.
Tão distraída que estava que quando Joana chegou correndo gritando pelo seu
nome, Anastácia jogou seu pesado corpo para trás com tamanho susto que levou.
Joana não se conteve em risos ao ver aquela imensidão de carne quase ir ao chão
por causa dela.
Anastácia ainda que tentou dar uma bronca na menina pelo susto, mas aquele
rostinho lindo e inocente rindo com gosto fez com que a velha empregada da
família Jordão largasse mão do que pretendia fazer. Joana esticou os braços
oferecendo a boneca para que ela a tomasse nos seus, com carinho e um sorriso
largo nos lábios, sabia que ao receber bem o novo brinquedo, com certeza deixaria
a menina feliz.
Capítulo VII - A Aula de Canto
Os dias na nova casa passaram até que rápidos, todos já estavam bem
familiarizados com tudo, ou quase tudo. Sr. Francisco como de costume ficava
mais fora do que dentro, sempre ocupado com suas idas e vindas quase que
constantes da Fazenda. Praticamente ausente na criação e formação dos filhos,
pois o que ele dava mais importância na verdade era a criação e a formação dos
seus outros filhos, se é que podemos assim dizer; os pés de cafés, estes traziam-
lhe ótimos lucros. O patriarca exportava quase tudo, sabia como tirar proveito
deste setor da economia que era o mais importante no período da Primeira
República no Brasil.
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Para Sra. Silvia sobrava toda a responsabilidade dos afazeres domésticos, embora
estivesse cercada e amparada por bons e fieis empregados, tudo era comandado
por ela, sua jornada era longa; desde os primeiros raios de sol, até os primeiros
raios do luar.
Geralmente após o horário do almoço, a jovem senhora sempre elegante, dirigia-
se ao quintal para caminhar pelo grande jardim em um momento apenas seu.
No meio das Camélias, Verbanas e Cravinas, Sra. Silvia era livre para buscar
lembranças saudosas dos tempos de menina em que morava em um casarão na
cidade interiorana de Campinas.
E foi justamente em um destes passeios vespertinos que Sra. Silvia deparou-se
com uma cena um pouco inusitada; ainda distante viu Joana sentada em um dos
bancos do jardim com sua boneca nos braços, até o momento tudo absolutamente
normal, a menina andava muito apegada ao brinquedo, o que chamou a atenção de
sua mãe foi o fato dela estar repetindo aquela canção.
Joana não apenas cantarolava, o curioso eram as pausas entre um verso e outro,
tudo indicava que a menina aguardava alguém falar para ela repetir, método
geralmente usado por quem ensina e aprende nas aulas de canto.
A mãe ficou ainda meio em dúvida se era isso mesmo, resolveu observar um
pouco mais de perto, de um modo que Joana não percebesse sua presença. Sra.
Silvia lentamente chegou-se por trás do banco.
Realmente era o que ela havia imaginado ao ver a cena de longe, Joana estava
tentando aprender a letra da musica com alguém, mas quem?
Assustada ao ver aquele tentar musical sem nexo, Sra. Silvia resolveu chamar pela
menina, porém antes que ela pudesse falar a primeira sílaba do nome da filha,
repentinamente Joana virou-se para trás, como se soubesse que a mãe estivesse
ali, ou mesmo alguma voz soprou em seu ouvido avisando-a:
-- Olá mamãe, aprendi a cantar toda a musica.
A mãe embora assustada, disfarçadamente fingiu achar normal aquilo tudo,
concordou com um sorriso amarelo nos lábios sem muito saber o que fazer, muito
menos o que falar para resolver e dar assunto para a filha:
-- É mesmo filha? Que lindo! Com quem você aprendeu esta bela canção? Por
acaso foi Anastácia que lhe ensinou?
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Em sua inocência e sem perceber a real intenção da pergunta da mãe, Joana na


maior naturalidade peculiar de uma criança respondeu:
-- Não mamãe. Foi a moça. A moça que mora aqui na casa. Ela é minha amiga,
gosta de mim. Quer ver eu cantar?
A resposta fez com que as forças das pernas da jovem senhora faltassem, ela
quase foi ao chão, um calafrio tomou-lhe todo o corpo, porém tentou manter a
normalidade como se não tivesse escutado as palavras da filha, em um tom
enérgico falou com a menina:
-- Joana, aqui não tem ninguém. Não gosto que você invente coisas. Agora deixe
de besteiras, vamos entrar, já está começando a esfriar.
Neste momento a menina deu uma pequena olhada para o lado, como se prestasse
atenção em alguma orientação de alguém - mas quem? - Balançou a cabeça
positivamente, rindo, voltou-se novamente para a mãe:
-- Brincadeira mamãe, brincadeira. Eu não lembro como aprendi esta musica, só
sei que aprendi. Mas é linda não é?
Mal terminou de completar a frase, já estava em pé, ao lado da mãe, segurando
firme em uma de suas mãos. Se olharam, um silêncio fez-se presente naquele
momento. Pois as duas sabiam que uma enganação dupla pairava no ar. Sem uma
palavra sequer saíram do jardim em direção ao interior da casa.

Capítulo VIII - Canção na Madrugada


Passava das duas horas da manhã, madrugada fria, total silêncio dentro e fora da
casa, no grande quintal, além da própria escuridão, apenas o conversar das
criaturas da noite e o ronquejar de Anastácia em seu aposento que ficava em uma
edícula próxima a entrada da cozinha, cansada pelos afazeres do forno e fogão,
dormia o sono dos justos, roncava pesado feito uma leoa que acabara de saciar-se
com alguma saborosa caça.
Sra. Silvia sozinha dentro de seu quarto como de costume, devido as constantes
viagens do esposo, não conseguia por mais que se virasse e revirasse na cama
pegar no sono, algo a incomodava, mas não sabia o que.
Entre um movimento e outro, uma puxada na coberta e outra, escutou algo vindo
do corredor, afinou os ouvidos para ouvir melhor. Não teve duvida, com certeza
era a tal musica que Joana cantarolara no quintal a tarde. A jovem senhora
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assustada saltou feito um raio da cama e caminhou até a porta. Em um silêncio


quase que felino abriu-a lentamente, por uma pequena fresta pode perceber um
certo clarão que vinha do corredor perto da escada, de onde também vinha a bela
canção, criou coragem saiu do quarto de vez. Dirigiu-se lentamente até o corredor,
mais uma vez viu a filha ali parada, de frente para a escadaria, pronta para descer,
cantando a musica sem receio.
Um detalhe chamou mais sua atenção; Joana estava com uma de suas mãos
erguidas como se estivesse segurando na mão de uma pessoa adulta. Mas quem?
Se não havia ninguém ali. Sra. Silvia numa mescla de desespero e loucura, tomada
pela força de seu instinto materno, não pensou duas vezes, correu em direção a
filha. Ao aproximar-se da menina o cheiro inebriante de Dama da Noite tomou-
lhe as narinas, deixando-a meio sem direção, meio tonta, tirando-lhe as forças para
chegar-se ao seu objetivo naquele momento, que era resgatar a filha seja lá do que
fosse.
O esforço deu resultado, ao aproximar-se da filha - que inocente cantava, levada
não se sabe para onde - gritou desesperada pelo nome de Joana que ao ouvir o
chamado, lentamente virou a cabeça para trás. Definitivamente não era a filha
meiga e delicada de sempre. Seu rosto estava pálido, putrefato, típico de um
cadáver em estado avançado. Os pequenos lábios, antes carnudos e róseos, agora
completamente roxos, sem vida. No lugar do belos olhos inocentes de criança,
apenas duas esferas brancas.
A menina ao se deparar com a mãe, rapidamente voltou ao normal:
-- A senhora me chamou mamãe? Eu vou brincar com minha amiga. A senhora
não vai ficar brava não é mamãezinha querida? -
Falou a menina num tom sarcástico, acompanhado de um riso macabro e irônico,
desafiador. Sra. Silvia assustada, ainda soube disfarçar dentro daquela situação
toda de horror que se encontrava, ainda achou forças para atuar, fingiu concordar:
-- Claro meu bem, não estou brava com você. Mas acho melhor trocar de roupa
para brincar não é?
Neste momento Sra. Silvia em um movimento rápido, puxou a menina para seus
braços, abraço-a com a força, Joana em seus braços caiu em um sono profundo.
Uma ventania tomou conta do espaço, um grito estridente de horror seguiu escada
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abaixo. Ali permaneceram abraçadas até os primeiros raios da manhã atravessar


pelas grandes janelas da casa.

Capítulo IX - O Conselho de Anastácia


A manhã ainda era tímida e Anastácia como de costume preparava com carinho a
primeira refeição do dia da família Jordão, quando algo inesperado aconteceu;
Sra. Silvia entrou na cozinha. A nobre senhora raramente tomava aquela atitude,
apenas em último caso ou em alguma situação extraordinária, e este segundo
exemplo foi o que a levou para aquele cômodo, na época lugar reservado
praticamente apenas aos empregados da casa.
Anastácia distraída que estava no aguardo que o leite da panela desce o ar da
graça de subir, assustou-se ao ver sua patroa ali: parada, pálida, onde destacavam-
se as fúnebres olheiras, típicas de quem passou a noite em claro. A velha
empregada antes que pudesse soltar a primeira palavra, seus ouvidos escutaram as
da jovem senhora:
-- Anastácia! Estou apavorada! Algo terrível aconteceu esta noite com Joana.
A empregada além de assustada, agora também estava curiosa, sentiu no fundo de
sua sapiência empírica que daquela boca não sairiam boas notícias, ela mesma
desconfiava há tempo de algo estranho em relação a menina Joana:
-- Diga lá. O que aconteceu? A patroa está branca feito um fantasma.
Sra. Silvia pensou como poderia contar o ocorrido sem ser interpretada como uma
débil mental, teria que ter muito cuidado ao empregar as palavras, pois precisaria
que Anastácia acreditasse em sua história para assim poder ajudá-la, porém no
momento em que começou a falar, o nervosismo foi mais forte:
-- Anastácia, eu sei que parece loucura, mas você tem que acreditar em mim, estou
sozinha neste lugar, Francisco ausente sempre, Antônio embora um rapazinho,
ainda é muito imaturo. Só posso confiar em você minha doce Tata, me conheces
desde menina, sabes que não sou mentirosa, nem louca, mas coisas horríveis estão
acontecendo desde que chegamos aqui, parece loucura eu sei, eu achava que era
quimera da minha cabeça; muita solidão, muita responsabilidade com a casa, as
crianças, os afazeres, os empregados...
Anastácia em um tom materno e carinhoso, puxando de sua perna sempre inchada,
caminhou até a mesa, tomou uma moringa de barro em uma de suas mãos
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marcadas pelo tempo e colocou um pouco de água fresca em uma caneca de ferro,
depois tentou acalmar sua patroa:
-- Calma Sinhazinha, a senhora está muito nervosa, senta aqui, toma um gole
d'água, estou aqui perto, a sua Tata aqui sempre vai acreditar em tudo que a
menina falar, mas pelo amor de Deus, nosso senhor Jesus Cristo, se acalme. Beba
a água com calma e conte o ocorrido para a sua nega velha aqui. Não tenha pressa,
conte calminha, conte.
Sra. Silvia assim como nos tempos de menina quando Anastácia era sua
Cuidadora, obedeceu. Sentou-se numa das cadeiras rústicas perto do grande
balcão de madeira que era usado para o preparo das comidas. Bebeu da água com
tanta sofreguidão, que uma gota escorreu por um dos lados de seu lindo e alvo
rosto. Depois respirou fundo algumas vezes, um pouco mais calma explicou o
ocorrido da madrugada anterior:
-- Tata, desde que chegamos para morar nesta casa, tenho observado coisas
estranhas, aliás, tudo é estranho aqui; aquele quadro pintado com aquela bela
senhora pendurado na parede, por que apenas aquele tem uma moça tão jovem no
meio de tanto outros com senhores e senhoras bem mais velhas? Outra coisa, este
cheiro sempre presente de Dama da Noite, se nem estamos em época de florada...
-- Ah! Isso é bem verdade, também ando sentindo o tal cheiro. - comentou
Anastácia.
-- E esta boneca direto na mão dela? Achei aquela desculpa que Joana deu muito
estranha. Tem algo errado com aquela boneca. E esta musica maldita que ela
insiste em cantar pelos cantos da casa? Como aprendeu? Eu não ensinei, você não
ensinou. E esta amiga que ela insiste em dizer que tem? Eu sei que é coisa de
criança, mas ela fala com tanta verdade, com tanta propriedade. Não sei o que está
acontecendo. Preciso de ajuda. Se eu pensar em falar com Francisco, ele vai achar
que estou louca, e eu não estou louca, eu sei o que vi, esta casa tem alguma coisa,
alguma coisa...
Cada palavra, cada frase disparada da jovem senhora, Anastácia ouvia
calmamente, com o peso dos cabelos brancos e talvez o mais importante naquele
momento; o vasto conhecimento do mundo dos mortos, em pensamento
arquitetava uma maneira de orientar sua patroa de modo que ela acreditasse nas
palavras que estariam por vir. Quando finalmente Sra. Silvia encerrou o falar, a
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cozinheira sentiu o momento de orientá-la, como o que viria a seguir era deveras
sério, trocou o chamar carinhoso de Sinhasinha por Patroa:
-- Patroa, preste atenção no que vou lhe dizer. Eu acredito nas suas palavras, eu
sei que a senhora esta falando a verdade. Realmente tem alguma coisa estranha
nesta casa. Alguma coisa do passado, algo mal resolvido, eu também andei
sentindo e vendo coisas.
Sra. Silvia neste momento questionou a empregada, assim como Anastácia,
também trocou o modo de tratá-la, indignada o lado patroa falou mais alto:
-- E porque você não me disse nada Anastácia? Porque guardou este tempo todo?
-- Ora por que? A Patroa ia achar que eu tava caducando, que não passava de
invenção da minha cabeça velha. Mas o que importa agora é que ainda podemos
ajudar a menina Joana. Presta atenção no que vou dizer pelo amor de Deus nosso
senhor Jesus Cristo. A patroa vai procurar por uma prima minha que mora aqui na
capital, o nome dela é Adelaide, esta minha parenta entende das coisas do outro
mundo, pode ajudar a patroa. Amanhã bem cedo ordena que um dos meninos leve
a patroa lá de carroça. Adelaide não mora longe daqui, a casinha dela fica na tal
da Chácara do Bexiga, chegando lá é só perguntar pela Dona Adelaida, a velha
que cura "os male da alma" que todo mundo conhece.
Sra. Silvia escutou com atenção as palavras da velha sábia, saiu da cozinha
decidida, esqueceu-se até de agradecer o conselho. No outro dia iria bem cedo na
busca da ajuda da curandeira da Chácara do Bexiga.

Capítulo X - A Consulta com Dona Adelaide


Mal bem terminara de fazer seu desjejum, a elegante botina fechada de camurça
negra pisou decidida o primeiro degrau da carruagem, que seria guiada com
firmeza por um de seus empregados; um jovem mulato de nome Jacinto. Alto, de
corpo bem definido, trazia no rosto traços claros da influência europeia, diziam as
más línguas que o rapaz era filho de uma ex-escrava com um dos filhos do Barão,
o pai da Sra. Silvia, sendo assim, seria um sobrinho torto de sua própria patroa.
Bem, isso só Deus tinha a certeza se era verdade ou não.
Rapaz educado e prestativo assim como a maioria dos empregados, estava a
serviço da família Jordão há muito tempo. Depois de ajudar sua patroa a acabar de
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subir no veículo de tração animal, o rapaz tomou o rumo em direção ao local


indicado por Anastácia.
Calmamente as grandes rodas de madeira rolaram firmes sobre a rua da Santa
Cruz, cruzou o rio Itororó, chegando a estrada Velha de Santo Amaro, subiu
calmamente, ao passar em frente ao ainda novo Prédio da Escola de Primeiras
Letras, Sra. Silvia não teve como não lembrar mais uma vez dos tempos de
menina no interior, lentamente a carruagem seguia em direção a recém
inaugurada Av. Paulista, mas antes que chegasse lá, o condutor com um puxar
firme na guia, impôs aos cavalos para que virassem a direita entrando na Rua
Pedroso, aos poucos a carroça foi se entranhando pelas ruelas da Chácara do
Bexiga.
Entre uma informação hora com um mascate, hora com alguns meninos
maltrapilhos de pés no chão, que disputavam uma acirrada partida com bolas de
gude, a jovem senhora conseguiu chegar ao seu destino.
A moradia de dona Adelaide na verdade era uma casinha pequenina de taipa
muito humilde, construída embaixo de um telhado de apenas duas águas, de tão
pequena, era praticamente do mesmo tamanho da edícula que Anastácia dormia
no quintal do casarão da família Jordão.
Jacinto freou os cavalos, desceu da carruagem enquanto sua patroa permaneceu
sentada observando tudo ao redor; os pobres casebres, as crianças na rua,
desocupados jogando conversa fora, entre outras coisas típicas da periferia da
cidade. O educado mulato foi averiguar se o local era mesmo o que procuravam,
andou lento, como que pisando em ovos, tentando fugir da sujeira da irregular e
tortuosa ruela, depois de alguns passos chegou perto do portãozinho capenga de
madeira, soltou a voz:
-- Ó de casa! Ó de casa!
Depois de falar, olhou para trás em direção a patroa com uma fisionomia não
muito animada, fez um gesto para ela de que ali naquele casebre parecia não ter
ninguém, ela retribuiu o olhar e na mesma linguagem, também fez um gesto
indicativo com a cabeça para que ele insistisse mais algumas vezes, Jacinto
obedeceu, chamou novamente, desta vez soltando mais a voz, quase um grito:
-- Ó de casa ! Ó de casa! Senhora Adelaide!
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Após a última palavra estalada no ar, os dois; empregado e patroa se olharam


desiludidos, crentes que tinham dado viagem perdida, certos que o máximo que
iriam fazer era dar meia volta, e tomar o rumo de volta para a Várzea do Carmo.
Foi quando a frágil porta abriu-se, de dentro saiu uma senhorinha negra, bem
magrinha, a coluna envergada para frente revelava sua adiantada idade, a
cabecinha parecia ter uma pequena plantação de algodão. Vestida apenas com um
vestido simples, muito desgastado pelas diversas pancadas sofridas na pedra na
beira do riacho, revelava as marcas do tempo. Para proteger os pequenos pés
calejados, de calcanhares rachados, apenas uma chinela de couro não menos
desgastada.
A senhorinha passou pela porta, calmamente caminhou até o portão, com um
sorriso nos lábios, numa feição simpática e boa perguntou do que se tratava, o que
aquelas pessoas faziam ali na frente da sua humilde casa, principalmente uma
senhora branca, tão distinta e bem vestida:
-- Bom dia dona, em que posso ajudá-la? Que vento trouxe a senhora aqui para
estas bandas do Bexiga?
Antes de responder Sra. Silvia, fitou dos pés a cabeça aquela figura magra, velha e
humilde por demais, por um pequeno instante pensou o que era toda aquela
situação? Onde ela estava com a cabeça ao dar ouvidos as crendices da sua
cozinheira? Não tardou e as respostas vieram logo, lembrou dos mistérios
ocorridos com sua filha, e isso bastava para ela estar ali. Definitivamente seus
filhos eram a razão de seu viver, o marido talvez não, mas os filhos sim, com
certeza eram!
Também muito educadamente e meio receosa respondeu:
-- Olá, bom dia para a senhora. Quem me mandou aqui foi sua prima Anastácia,
ela trabalha para minha família há muitos anos, desde menina, hoje em dia é
minha cozinheira. Ela disse que a senhora poderia me ajudar.
Dona Adelaide que só tinha o rosto de coitada retrucou logo a fala daquela
senhora alva e bem vestida que estava ali na sua frente, necessitada de ajuda:
-- Eu sei que minha prima Anastácia está na sua família há muito tempo dona. Ah!
E Como sei...A coitada, assim como toda a família dela, sofreu muito nas mãos da
tua família lá no interior, seu pai não era flor que se cheire Dona, judiou de muitos
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irmãos nossos na fazenda de vocês. Fez muita da nossa gente sofrer,


principalmente as nossas meninas. Principalmente as nossas meninas!
Ao ouvir esta última frase Sra. Silvia movida por uma força inexplicável olhou
rapidamente para Jacinto, como que se algo tivesse sido revelado, o mulato sem
entender, inocentemente retribuiu o olhar. A jovem Sra. abaixou a cabeça
vergonhosamente, sabia que tudo era verdade, embora ela nunca havia
presenciado nada, pois ficava na casa grande da cidade onde os escravos eram
tratados com um pouco mais de respeito ou para ser mais exato, com um pouco
menos de truculência. Dona Adelaide percebeu que foi um pouco dura demais
com a jovem senhora que acabara de conhecer, achou por bem mudar o rumo da
prosa:
-- Bem, isso é passado. O que passou, passou. O que importa agora é que hoje
somos livres, demorou é verdade, mas nosso Senhor Jesus Cristo olhou por nós,
abençoando a mão da tal da princesa. Mas vamos se chegando, a casa é humilde
na feitura, mas é grande de coração. Para a senhora ter vindo até aqui é sinal que
algo feio está acontecendo para os seus lados.
Sra. Silvia concordou com a cabeça, desceu da carroça, ordenou que Jacinto
aguardasse por perto, as duas adentraram-se na pequena casa de taipa.
Dona Adelaide ofereceu uma cadeira para Sra. Silvia sentar-se, depois pegou
outra, sentou-se bem em frente a ela. Com calma pediu que a jovem senhora
contasse o real motivo da sua visita. Sra. Silvia ficou meio sem jeito, após alguns
segundos pensativa, tomou coragem e finalmente desfiou o rosário:
-- Bem Dona Adelaide, desde que mudamos para aquele casarão coisas estranhas
acontecem, principalmente com a minha caçula, minha pequena Joana mudou seu
jeito completamente. As vezes acordo no meio da noite e ela está no corredor,
parada, cantarolando uma musica que diz que aprendeu com uma amiga. Que
amiga? Se nem saímos de casa. Outra coisa, ela achou uma antiga boneca lá pelo
quintal, veio com uma história estranha, e não larga o brinquedo por nada.
Dona Adelaide com seu olhar sereno de mulher vivida e experiente, prestava
atenção a cada palavra dita pela jovem senhora, que não parava de falar nem para
respirar:
-- Tem também aquele cheiro de flor Dama da Noite fora de hora, principalmente
quando acontece essas coisas com minha filha. Meu filho mais velho, Antônio,
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também já me revelou que tem escutado barulhos de passos, principalmente na


escadaria central da casa. Até Anastácia anda assustada. Ah! E tem um maldito
quadro com o retrato de uma moça em uma das paredes, quando passamos por ele
um arrepio toma conta da gente, os olhos dela parecem que nos acompanha pelo
corredor. Meu filho até evita passar perto. Só meu esposo que não sabe de nada,
também nem penso em contar, pois ele tem muitas preocupações com a fazenda.
Enfim dona Adelaide, o que será que está acontecendo? Preciso muito de sua
ajuda.
A senhora magrinha viu o desespero da jovem senhora, com calma pegou em suas
mãos, abaixou a cabeça, fechou os olhos, e deu início a uma reza baixinha, numa
língua que só ela entendia. Sra. Silvia ficou ali, sem saber o que fazer, apenas
olhando para aquela figura concentrada no seu ofício, admirando a beleza da
imagem que se formara, das quatro mãos sobrepostas, vendo aquela pele escura
marcada pelo tempo sobre a sua pele branca, delicada, macia como seda.
Depois de passado alguns minutos, dona Adelaide levantou a cabeça, como se
voltasse de um estado de transe, soltou as mãos de Sra. Silvia, caminhou até um
vaso colocado estrategicamente no batente da janela da humilde cozinha, decidida
arrancou alguns pequenos galhos de Arruda, trouxe até a nobre senhora, pegou em
suas mãos novamente, esfregou-os com força em suas palmas, o cheiro forte da
planta tomou conta de todo o pequeno cômodo, Sra. Silvia sem nada entender,
sentiu prazerosamente aquele aroma entrar pelo suas afiladas narinas. Dona
Adelaide finalmente depois de um largo bocejo típico de quem reza, resolveu dar
o ar da graça:
-- Olhe dona, preste atenção viu? O caso é muito sério, sua filha corre perigo de
verdade. Esta casa de vocês é "malassombrada", e a menina por ser a mais
novinha e inocente de todo mundo ali, está correndo perigo. A senhora tem que se
mexer logo, se não vai perder sua filha para a verdadeira dona daquela casa.
Aquela que depois que passou para o mundo das criaturas da noite, da escuridão,
permitiu que o ódio aflorasse em seu coração, tornou-se má, revoltada de ter
deixado esta vida de cá tão cedo e pior, por saber que não poderia contemplar a
benção que viria num futuro próximo. Vixi! Ainda mais do modo que tudo
aconteceu. A senhora tem que ir embora de lá o quanto antes.
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Sra. Silvia assustou-se com tudo que acabara de ouvir da boca de Dona Adelaide,
por mais que achasse tudo aquilo estranho não tinha como fugir das verdades dos
acontecidos, e por mais que estivesse apavorada, queria saber a real história
daquele maldito casarão:
-- Como assim mal-assombrada? Por favor, do que a senhora está falando? Por
favor, me conte o que a senhora sabe. O que devo fazer?
Dona Adelaide calmamente sentou-se novamente na frente da jovem senhora, com
um sorriso delicado de quem já viu e viveu muitas coisas, de quem realmente
conhecia bem sobre o mundo dos mortos, resolveu contar tudo o que sabia, ou
quase tudo do verdadeiro mistério daquele casarão...

Capítulo XI - Uma Volta ao Passado


Algumas décadas antes da família Jordão resolver assumir o casarão como sua
moradia, por volta do ano de 1832, uma outra família residia no suntuoso imóvel,
na verdade tratava-se de um casal sem filhos. Ele, de nome José Ramalho, um
homem de muitas posses, dono de muitas terras na região, de poder político
influente.
Perto dos seus cinquenta anos de idade, tinha uma boa aparência, traços herdados
talvez da sua ascendência portuguesa e indígena, trazia em sua linhagem o sangue
dos primeiros habitantes da São Paulo de Piratininga, os conhecidos mais antigos
da família afirmavam que ele ascendia na verdade do aventureiro português João
Ramalho e da Índia Bartira, filha do cacique Tibiriçá, já outros que também
conheciam a família há muito tempo, diziam que esta história não passava de
boato, que o Ramalho de seu nome não passava de mais uma simples coincidência
lusitana.
Enfim, seja lá qual era a verdadeira versão sobre sua origem, Sr. José Ramalho
talvez por uma questão subconsciente do gosto da alma, veio também a casar-se
com uma cabocla, uma moça linda de nome Esmeralda, de família um pouco
menos abastada que a dele, porém não menos tradicional da capital paulista.
Entre outros atributos de beleza, o que mais chamava a atenção daquela linda
jovem além de seus belos olhos que pareciam duas jabuticabas maduras de tão
negros, eram seus longos cabelos, não menos negros que as duas meninas dos
olhos destacados no seu belo e delicado rosto, sem fazer força as madeixas
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escorregavam fácil pelas suas lindas costas até sua delgada cintura, embora na
maior parte do tempo viviam presos em forma de coque por uma questão social.
Realmente Esmeralda não era preciosa apenas no nome, a mistura das raças
europeia e indígena deram-lhe muita sorte em toda sua feitura de mulher.
Os casal realizou seu enlace matrimonial na bela Igreja da Ordem Terceira do
Carmo, igreja esta que depois da bela ampliação ocorrida entre os anos de 1772 e
1802, chamava atenção pelo seu novo frontispício, a obra foi executada por
Joaquim Pinto de Oliveira, o “mulato Tebas”, escravo do mestre de obras Bento
de Oliveira Lima.
A bela Arte Barroca dentro da edificação era um balsamo para os olhos de quem a
contemplasse, com suas pinturas nos tetos da capela-mor e do coro, de autoria do
mestre ituano Frei Jesuíno do Monte Carmelo, somado ao
caprichoso altar rococó do século XVIII com certeza deixava as cerimônias
matrimoniais nela realizadas, bem mais sublimes e pomposas.
E não resta sombra de dúvida que foi esta a intenção do Sr. José Ramalho ao
escolher tal igreja, casando naquele verdadeiro templo católico, certamente
causaria boa impressão a todos os presentes no dia da cerimônia. Para data tão
sublime, tinham sido convidados os nomes mais importantes da elite Paulista
entre Barões, Condes, Viscondes além de políticos da época.
Embora a maioria das famílias da emergente Elite Paulista residissem nos novos
palacetes construídos nas mediações dos bairros dos Campos Elíseos e Jardim da
Luz, Sr. José Ramalho optou pela compra daquele imóvel na Várzea do Carmo
por estar mais próximo do caminho para a região da Paróquia de Nossa Senhora
da Penha de França, no qual ele tinha adquirido algumas terras naquelas bandas,
e sua intenção era ainda comprar outras mais distantes, para os lados do Vale do
Paraíba.
Se durante a maior parte do século XVIII São Paulo foi moderada no que diz
respeito ao crescimento, no início do século seguinte este ciclo foi rompido com o
intenso afluxo de escravos africanos para atender à expansão de produção
açucareira e cafeeira na província, e se algum homem soube bem tirar proveito
deste crescimento todo, este foi Sr. José Ramalho, realmente seu faro para os bons
negócios era inquestionável e porque não dizer invejável por muitos.
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O enorme casarão realmente chamava a atenção de qualquer um que passasse pela


sua frente ou mesmo pelos fundos, pois o terreno nele construído dominava
praticamente um quarteirão todo da região. Sr. José Ramalho não economizou nos
reis, no interior do pomposo imóvel com o intuito de tirar o ar sombrio e grave,
como todos os das ricas habitações contemporâneas, ordenou novas pinturas
parietais com inspirações rococó para atenuar a atmosfera soturna. Fez questão de
decorar com móveis de primeira linha, vindos em sua maioria da França, além de
lustres luxuosos e lindos tapetes vindos do oriente.
Nas paredes do grande corredor interno, que ligava a porta de entrada até a
escadaria central, Sr. José Ramalho mandou colocar algumas telas com retratos a
óleo de antigos familiares. Porém fez questão de deixar um espaço em destaque
bem no meio do corredor, sua ideia era ocupar tal espaço com uma tela que seria
para ele a mais especial, a mais bela de todas.
Com muito apresso encomendou a um artista pintor de renome da Província uma
tela com o retrato do rosto de sua amada esposa, Sr. José Ramalho estava disposto
a pagar o quanto ele pedisse, com tanto que executa-se um trabalho de primeira
qualidade.
O artista ao ouvir o modo como o nobre homem descreveu sua adorada esposa,
sensibilizou-se, percebeu o quanto era imenso o amor daquele homem pela sua
mulher, sem perder tempo, debruçou-se sobre o cavalete com todo o fervor de um
jovem que descobre os prazeres da vida, e o resultado com certeza não poderia ser
outro.
Após algumas semanas a encomenda estava pronta, uma verdadeira Obra Prima,
no sentido mais literal da expressão, perfeita e sublime. Esmeralda retratada na
tela parecia estar viva, linda e delicada com seus belos olhos negros destacando-se
de todo o contexto da obra.
Sr. José Ramalho ao ver o resultado do trabalho do artista ficou imensamente
satisfeito, quase fora de si, que resolveu pagar o dobro do que havia combinado.
Ao chegar na residência de posse no novo e admirado objeto, não perdeu tempo,
ordenou logo que o pendurassem no espaço que ele havia reservado para sua
amada.
Não demorou muito e o pacato casarão que até então era calmo e tranquilo, passou
a ser um local com grandes encontros e festas oferecidas pelo casal que vivia em
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plena harmonia, Sr. José Ramalho embora gostasse muito de tais encontros, de
comportamento sempre fino e educado para com os convidados, que os
respeitavam e admiravam muito pela sua formação, também trazia consigo uma
característica humana um pouco exagerada mesmo para a época: O Ciúmes.
Este sentimento doentio dominava-o completamente, talvez por ser bem mais
velho do que Esmeralda, enquanto ele com o peso de quase meio século de vida
nas costas, ela praticamente cheirava a leite, mal tinha completado vinte e três
anos. Em plena flor da idade, causava com certeza inveja a muitas mulheres. Aos
olhos dos homens desejosos, era vista como uma escultura grega de mulher.
Por vezes este lado transtornado de seu comportamento tornava-o violento e
agressivo, qualquer coisa, por menor que fosse, era motivo de ciúmes, e possíveis
discussões entre o casal. Com o tempo o nobre homem passou a focar seus
pensamentos nisso, seu espírito tornou-se completamente cego para outras coisas
que estavam bem a sua frente.
Exemplo disso era a inveja e o despeito de outros homens pelo fato dele conseguir
cada vez mais sucesso no mundo dos negócios cafeeiros e comerciais. Muitos dos
que se diziam amigos, na verdade não viam a hora de passar-lhe a perna em
alguma transação comercial. E assim quem sabe tomar-lhe parte da fortuna?
E foi justamente um destes falsos amigos; Sr. Frates Alcântara, homem
inescrupuloso e desonesto. Acostumado desde jovem a trapacear para subir na
vida e com isso conseguir enriquecer. Fazer o mal para os outros dava-lhe uma
sensação de prazer febril, um estase que ele mesmo não sabia de onde vinha.
Trazia consigo esta condição maléfica desde menino, quando judiava até matar as
pequenas crias na casa de seus pais.
O falso amigo sabendo do ponto fraco e a fragilidade de Sr. José Ramalho,
resolveu aplicar-lhe um golpe; a intenção era ludibriá-lo, confundi-lo, deixá-lo
sem chão para assim talvez apropriar-se de algumas terras por meio de algum
negócio ilícito quem sabe. Para isso o maquiavélico homem já tinha traçado seu
plano meticuloso de maldade, foram dias arquitetando, ajustando um a um os
maus pensamentos para com certeza não ter erro.
Estes exercícios macabros o deixavam orgulhoso de si mesmo, Sr. Frates
Alcântara sentia-se um mestre, um senhor de tudo. As vezes não percebia nem o
adiantado da hora, de tão entretido na elaboração das maldades, esquecia-se até de
43

cear a noite. E foi numa destas ocasiões que finalmente concluiu mais um plano
maldoso, para ser aplicado em uma determinada vítima; Sr. José Ramalho.
Numa acertada tarde, Sr. Frates ficou de espreita em um dos becos próximos a
residência do casal, aguardou horas, esperando quando a carruagem do nobre
homem apontasse na esquina. Sabia que isso não tardaria a acontecer, pois soube
por meio de informações pagas a um dos escravos da família Ramalho, que o
proprietário do casarão esteve fora durante alguns dias resolvendo negócios, que
seu retorno se daria justamente naquele final de tarde.
Realmente as moedas gastas com a corrupção do escravo traidor deu resultado,
quando o fraco sol já pensava em se aninhar por trás das colinas, os cavalos
apontaram no começo da rua.
Astuto que era Sr. Frates matutou rápido uma boa desculpa para abordar a
carruagem fazendo-a parar antes que adentra-se pelo grande portão de madeira do
casarão.
Sr. José Ramalho ao ver de longe o homem que pensava ser seu amigo, percebeu
que ele não estava sozinho, mas sim ao lado de outra pessoa que ele não
conseguiu distinguir devido a distância, sua visão apenas permitiu ver um vulto
escuro ao lado esquerdo do que ele sabia quem era.
De imediato pediu que o cocheiro desse ordem aos cavalos que parassem, quando
finalmente a carruagem chegou perto, Sr. José Ramalho achou estranho, o amigo
estava sozinho a sua espera, com uma interrogação em sua cabeça resolveu
perguntar o que estava acontecendo ao Sr. Frates:
-- Boa tarde Sr. Frates, que grande coincidência encontrá-lo aqui no meio da rua.
Aliás, onde está a outra pessoa que estava com o senhor, tenho certeza que vi de
longe alguém ao seu lado, logo que entrei na rua. - concluiu a frase procurando
sem sucesso com os olhos seja lá quem fosse.
Sr. Frates com um sorriso admirado com o que acabara de escutar retrucou a
pergunta do Sr. José Ramalho:
-- Olá caro amigo, não entendi a pergunta, de quem o amigo está falando? Estou
sozinho aqui o tempo todo.
Sr. José Ramalho sem se convencer, achando que se tratava de alguma piada de
mau gosto, ainda tentou explicar:
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-- Tenho certeza Sr. Frates, quando a minha carruagem dobrou a esquina eu logo o
avistei, e o caro amigo estava com alguma pessoa ao lado, só não consegui
enxergar devido a distância, na verdade um vulto escuro sem definição.
-- Engano seu, realmente seus olhos pregaram-lhe uma boa peça, o amigo anda
vendo coisas que não existem - acabou esta frase com mais um sorriso sarcástico,
tratou logo de mudar o rumo da prosa, e assim conseguir o que queria, sem mais
delongas entrou logo no assunto que lhe interessava - E o amigo viajando muito
por causa dos negócios?
Sr. José Ramalho que não era muito adepto de falar de sua vida íntima seja lá para
quem fosse, tentou desconversar, embora sabia que tal tentativa seria praticamente
inútil.
-- Entre outras coisas Sr. Frates, entre outras coisas...Mas como o amigo sabia que
eu não estava por estas bandas?
Esta pergunta era tudo o que achava-se esperto queria ouvir, foi praticamente a
deixa certeira do protagonista para o antagonista, agora era a hora de cutucar a
onça com vara curta:
-- Então caro amigo, cheguei a esta conclusão pelo fato de ver a esposa do nobre
amigo sozinha um final de tarde destas, caminhando próximo a rua Libero
Badaró. Confesso que achei até estranho, pois sabemos que o amigo não gosta que
ela ande sozinha pela província, ainda mais a tardinha, quase a luz do luar.
Sr. José Ramalho não gostou nada do que ouviu, não demorou para sua cachola
começar a arquitetar pensamentos distorcidos sobre a bela e sempre fiel esposa.
Ainda numa tentativa de achar um motivo que o tirasse os maus pensamentos,
buscou uma resposta que o acalantasse:
-- Estranho mesmo caro amigo, para ela sair de casa assim, deve ter ocorrido algo
muito grave, deve ter ido em busca de algum boticário para lhe receitar algum
elixir para suas eternas dores na fronte, deve ter sido isso.
O maquiavélico homem, astuto que era, percebeu que o amigo tentava dar uma
desculpa, mas que em seu íntimo um vulcão preparava-se para eclodir dentro de
seu peito rancoroso, desta vez para atingi-lo ainda mais na alma, começou o
discurso pelo nome do nobre homem:
-- Pois é caríssimo Sr. José Ramalho, creio que o nobre amigo está um pouco
enganado a respeito de sua esposa, ela estava bem disposta, não me pareceu ter
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nada de errado com sua saúde, aliás, com todo o respeito, como a sua Senhora é
simpática e educada, não fazia-se de rogada, conversava com quase todos por
onde passava. Inclusive no momento em que a vi, estava trocando algumas
palavras com aquele jovem recém chegado do interior, aquele moreno meio
parrudo, que veio para cursar na faculdade de Direito, como é o nome dele
mesmo? Lembra? Aquele que trocamos algumas conversas outro dia na taberna?
Ah! Lembrei ! Leopoldo. Isso mesmo, Leopoldo.
Pronto! A armadilha estava armada, era questão de minutos, na verdade o tempo
de sua vítima chegar em casa transtornado. Sr. Frates movido pela sua
característica mais forte; a inveja, tinha conseguido o que queria.
Por outro lado, Sr. José Ramalho já tomado completamente pela cólera que lhe
fora infectada, disfarçadamente tratou logo de ver-se livre daquele homem:
-- Então deve ter sido outro motivo mesmo. Bem meu amigo, agora deixa-me
chegar em casa, além de cansado, ainda tenho uma recepção hoje a noite para
alguns convidados, preciso ver como estão os preparativos.
Com um sorriso de inveja e ao mesmo tempo tomado por uma boa dose de raiva,
Sr. Frates ao ouvir a palavra "convidados", não perdeu a oportunidade de jogar
com as palavras mais uma vez, aliás, uma característica peculiar dele. Quem sabe
não seria uma ótima chance de conhecer mais pessoas importantes?
-- Ah! Então o nobre amigo dará uma recepção - a palavra recepção saiu de sua
boca com veemência - em sua casa hoje? Mas que coisa, o amigo esqueceu deste
humilde comerciante aqui?
Sr. José Ramalho já querendo perder a paciência, ainda conseguiu segurá-la por
mais um instante, educadamente saiu-se da colocação provocativa do homem em
pé em frente a sua carruagem.
-- Não se trata disso Sr. Frates, de esquecer ou não. Na verdade trata-se de uma
recepção para pouquíssimos convidados, pois a cidade acaba de adquirir mais um
morador, o Sr. Barão Nicolau de Albuquerque, vindo da cidade de Lorena, deixou
a fazenda de café nas mãos do filho primogênito, mudou-se para cá com a família
para cuidar da filha doente, coitadinha da menina, não conseguem descobrir o que
ela tem, cada dia que passa definha mais. Dizem até as más línguas que a
coitadinha está amaldiçoada. Bem amigo, agora realmente preciso mesmo ir, até
mais ver, foi um prazer inenarrável encontrá-lo.
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Esta penúltima palavra saiu de sua boca como pura estratégia de educação, na
verdade aquele encontro não tinha sido nada agradável, muito pelo contrário.
A história da chegada do Barão Nicolau de Albuquerque era realmente verdade,
porém a tal da moléstia da menina, essa não passou de uma carta na manga criada
pelo Sr. José Ramalho de última hora para desviar o foco do assunto recepção.
Quem sabe com esta pequena mentira - que por sinal não era do feitio do nobre
cavalheiro - ele sensibilizaria Sr. Frates, fazendo-o esquecer por um instante as
palavras "ser convidado"?
Mesmo sem acreditar em uma palavra pronunciada por Sr. José Ramalho, porém
completamente satisfeito, Sr. Frates tinha certeza absoluta que seu plano havia
funcionado, que com certeza um enorme ponto de interrogação tinha sido
plantado na cabeça do nobre homem sentado dentro da carruagem.
Sendo assim, com um sorriso tímido nos lábios somado a um olhar satânico,
colocou a mão direita sobre a cartola que estava sobre sua maldosa cabeça, fez
menção de despedir-se com uma reverência, e assim o fez, sem falar nada, deu as
costas, afastou-se lentamente.
Sr. José Ramalho ficou ali, parado, fitando aquele cavalheiro vestido todo de
negro indo embora, virou-se para ordenar que o cocheiro prosseguisse com o
término da viagem, foi quando de repente voltou os olhos para o homem que já ia
longe, viu novamente aquele outro ser, vestido também de negro, com uma cartola
também negra bem ao lado esquerdo dele. O nobre cavalheiro quase teve uma
síncope, ainda pensou em questionar ao cocheiro sobre aquele vulto escuro, mas
algo mais sério o tomava a mente.

Capítulo XII - A Conversa


Enquanto o grande portão de madeira abria-se lentamente, Sr. José Ramalho
tentava digerir o que acabara de escutar do falso amigo Sr. Frates, muitas coisas
passaram-lhe pela mente; será que sua esposa aproveitava-se de sua ausência para
sair de casa sozinha? Será que este tal jovem Sr. Leopoldo seria um suposto
amante? Mas por que ela faria isso? Muitas outras questões atordoaram a mente
do nobre homem, que assim como um vulcão prestes a entrar em erupção, parecia
estar em chamas por dentro.
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Ao descer da carruagem dentro do grande quintal já escurecido devido ao fim da


tarde, ele mal dirigiu a palavra para com os poucos escravos do casarão, salvo
apenas uma, no qual perguntou em qual cômodo encontraria Esmeralda.
Ao saber o local, o homem adentrou-se pelo corredor em passos decididos e
firmes, seguiu em direção da escadaria central, ao pé da mesma, súbito parou,
igualmente a uma pausa cênica, precisamente marcada pelo diretor em um palco
teatral. No silêncio da suposta cena, somente duas coisas podiam ser ouvidas; sua
respiração ofegante cheia de ódio e a bela cantata que vinha do andar de cima do
casarão. Bela e afinada, interpretada calmamente por uma voz feminina doce e
meiga, quase de menina:

Se essa rua, se essa rua fosse minha


Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante,
Para o meu, para o meu amor passar...

Ao pé da escada, o homem ao ouvir aquela linda canção cantada por Esmeralda,


mesmo com todo ódio que tomava-lhe o coração naquele momento, não pode
deixar de amá-la ainda mais. Sr. Ramalho sabia que ela gostava de cantar a doce
melodia principalmente quando ele; seu homem, estava para chegar de alguma
viagem. Com certeza era uma das maneiras dela demonstrar o amor e o carinho
que sentia por ele. Naquele instante a vontade foi de subir correndo, entrar no
quarto e tomar-lhe em seus braços calorosamente.
Porém a semente da desconfiança plantada minutos antes pelo maléfico Sr. Prates
já brotara, tinha criado as primeiras raízes em seu coração doentio, fazendo com
que o arbusto do ódio crescesse rapidamente, tomando-lhe todo o corpo.
Prova que ele já estava transbordando deste ruim sentimento, foi que, quando
escutou o último doce verso saído pela boca da bela cabocla: -- "Para o meu, para
o meu amor passar..." - Rapidamente a imagem do jovem Sr. Leopoldo surgiu na
sua frente, com certeza naquele momento ela estava cantando pensando nele.
Naquele momento uma voz rouca soprou suave em seu ouvido esquerdo:
-- Ela esta cantando para o amante...para o amante! Você não vai fazer nada?
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Um arrepio tomou conta do corpo de Sr. José Ramalho que virou-se rapidamente
assustado, achou que tivesse realmente alguma pessoa do seu lado esquerdo,
porém não viu nada! Ninguém!
Pensou logo que tratava-se de sua imaginação, pois mesmo descontrolado, tinha
consciência que estava cheio de raiva. Porém não tardou, a voz fez-se presente
novamente, desta vez mais rouca ainda, sinistra, acompanhada de um odor de
enxofre, que tomou conta de todo espaço em sua volta:
-- E sua honra de marido? Esta canção é para aquele jovem. Sabes o por quê não
é? Ele é jovem. Jovem...
Desta vez a frase teve o efeito esperado, tomado por uma forte cólera de ódio, Sr.
José Ramalho decidiu dar um basta naquela cantoria. E quem sabe também dar
um basta em tudo?
Suas botas de couro, ainda marcadas pela terra vermelha do interior, pisaram com
força a madeira escura dos degraus da escadaria central do casarão. Uma a uma,
emitiam um som em um ritmo quase que militar. A cada passo do determinado e
raivoso homem a doce voz de Esmeralda tornava-se mais próxima de seus
ouvidos, deixando-o mais confuso ainda, uma mistura de amor, raiva, desejo,
ciúmes. Uma fúria incontrolável tomava-lhe todo seu corpo.
Ao chegar no corredor do primeiro andar do casarão, Sr. José Ramalho caminhou
em direção ao quarto principal, avistou-o com a porta quase toda aberta,
aproximou-se lentamente, parou na entrada, estático, observou Esmeralda sentada
de costas para a porta, de frente para a elegante penteadeira francesa com seu
grande espelho de cristal.
A bela mulher estava linda, vestida com um penhoar também francês, branco de
tecido leve, todo adornado com rendas e fitas. Era seu costume ficar assim
enquanto escovava os longos cabelos, o penhoar antecederia o belo vestido
branco, confeccionado especialmente para a recepção logo mais a noite, marcada
para ter início por volta das vinte horas e trinta minutos.
Distraída em seus devaneios ou talvez apenas aguardando calmamente a hora que
seu amor chegasse em casa, escovava suavemente os longos cabelos negros
enquanto cantava:
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...Nesta rua, nesta rua tem um bosque


que se chama, que se chama solidão
dentro dele, dentro dele mora um anjo
que roubou, que roubou meu coração...

Se eu roubei, se eu roubei seu coração


tu roubas-te , tu roubas-te o meu também
Se eu roubei, se eu roubei...

Antes que ela terminasse o verso, ouviu a voz máscula, firme, vinda da porta:
-- Esmeralda!
Feito um soldado que ouve as ordens de seu superior Esmeralda parou
repentinamente. Reconheceria aquela voz à léguas de distância, era seu esposo
que retornara, rapidamente tomada por uma alegria sincera virou-se com um
sorriso lindo de menina em direção a porta, levantou-se súbita e caminhou até seu
amado:
-- José ! O meu amor, que bom te ver aqui. Achei que não retornaria há tempo
para a recepção. Não sabes como estou feliz em vê-lo!
Neste momento a bela jovem tentou abraçar seu homem, porém, ágil como uma
presa que foge de seu algoz, Sr. José Ramalho desviou rapidamente, fugindo do
possível abraço que viria, dando as costas para ela.
Esmeralda sem entender tal reação, ficou por um instante sem saber o que fazer,
tentou mais uma vez uma meiga aproximação, novamente ele esquivou-se.
Um silêncio pairou no ar, nenhuma palavra de ambos, ele ali, riste, de frente para
uma das grandes janelas do quarto olhando para o nada. Ela em pé, sem saber o
que tinha acontecido para seu amado esposo estar daquele jeito, seu ciúmes não
era novidade para ela, mas naquele final de tarde seu comportamento estava um
pouco além do normal. Esmeralda ainda tentou saber o porquê daquele
comportamento:
-- José, o que está acontecendo? Por que esta reação para comigo?
Ainda de costas ele respondeu seco:
-- Você sabe muito bem o que acontece, muito bem. Não se faça de tola, de tola
não tens nada!
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Como uma flecha que atinge sua presa, aquela frase atingiu a jovem senhora de
supetão, ofendida retrucou:
-- Que isso? Nunca falas-te comigo deste jeito? Por que me tratas assim? Mereço
um mínimo de respeito.
Pronto, tudo indicava que o plano do maléfico Sr. Frates começava a funcionar, a
discórdia estava plantada no casal, seu tolo amigo tinha caído direitinho nas
mentiras inventadas por ele, agora era uma questão de tempo, e pelo andar da
carruagem não seria tanto tempo assim.
-- Respeito?! Você vem me falar em respeito? Tenho visto coisas, tento relevar,
mas depois do que descobri hoje...
Antes que ele terminasse a frase, Esmeralda que também já estava com seu humor
transformado, e não era para menos, cortou-lhe já em outro tom de voz:
-- Descobriu o que? Por que falas que não me dou ao respeito?
-- Sabes muito bem! Ainda bem que tenho amigos fieis, em que posso confiar.
-- Que amigos? Por favor seja claro, já estou ficando louca com tantas colocações
soltas, sejas claro pelo amor de Deus!
-- Não ousas tocar o nome de Deus, ele é testemunha do que realmente és, por
favor poupe o nome do criador.
-- Que isso? Me respeite José, sabes que sempre fui uma mulher de fé. Fale logo,
o que está acontecendo? Por que falas-te em amigos fieis, que amigo é esse, o que
te falaram?
Nesta altura do drama seus lindos olhos negros já estavam completamente
marejados, tomada por uma ofensa de qual ela mesma não sabia do que se tratava,
aquela voz mansa e doce tinha sido trocada por gritos que podiam ser escutados
além dos grossos paredões de tijolos do casarão.
-- Vamos fale! O que está acontecendo, do que me acusas? Deves estar com a
cabeça cheia de tolices que te plantaram, sejas mais claro para que eu possa pelo
menos me defender, se é que tenho alguma culpa. Pelo amor de Deus homem!
Sempre te amei, te respeitei, do que me acusas?
Em um tom baixo, seco e sereno ele arriscou uma palavra que poderia ser a chave
para ela confessar algo:
-- Leopoldo!
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Esmeralda sem entender aquela colocação sem nexo, reagiu dentro da sinceridade
de quem não está entendendo nada:
-- Quem é Leopoldo? Do que estais falando?
Sr. José Ramalho dentro de sua loucura fez uma leitura errada da reação da
esposa, achou com certeza que ela tentava disfarçar ao responder com duas
perguntas. Por que ela respondeu com duas perguntas e não uma? Uma era o
suficiente, apenas uma.
Tomado por uma raiva maior do que quando entrou no quarto, pois tinha certeza
de que ela fingia uma inocência que não tinha:
-- Será que não sabes mesmo Sra. Esmeralda Ramalho? Até quando a senhora vai
esconder a verdade? - aos gritos, pegando-a pelos braços - Vamos! Fale! Diga a
verdade, negues que aproveita minha ausência para ficar de conversa com este tal
de Sr. Leopoldo pelas ruas feito uma mulher da vida!
A coitada, sem saber o que falar, sem saber o que estava acontecendo, de onde ele
tinha tirado aquela história toda, também aos gritos ainda tentou fazer com que ele
fosse mais objetivo:
-- Olha do que você está me chamando? Que Sr. Leopoldo? Do que você está
falando homem? Estais me deixando louca, sejas claro. Por que esta tortura para
comigo? O que inventaram sobre mim?
Ainda presa em seus braços, aos prantos, o estado de nervos era tanto que as
forças das pernas faltaram-lhe, só não foi ao chão porque ele a sustentou no ar.
Ao sentir seu peso, achou que ela tivesse desmaiado, colocou-a em cima de uma
namoradeira que ficava encostada ao pé da cama.
A linda moça aos prantos, sem forças para gritar, com o belo rosto sobre os
próprios braços, entre um soluço de choro e outro, ainda tentava entender o que
estava acontecendo:
-- Pelo amor de Deus José, pelo amor de Deus. Não aguento mais tal tortura, sejas
claro homem, o que inventaram de mim para você. Eu não fiz nada. Nada! Eu
juro!
Ao ver sua jovem esposa ali, meio sentada, meio deitada no móvel, com aqueles
cabelos negros caídos sobre aquele corpo delgado, lindo, coberto apenas pelo belo
penhoar branco, chorando, exausta, por um breve instante o nobre homem teve a
certeza que tinha exagerado, que tudo não passara de uma mentira do Sr. Frates.
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Porém dentro de sua ingenuidade masculina, resolveu tocar no nome daquele que
pensava ser seu amigo, quem sabe assim ela confessaria alguma coisa:
-- Foi o Sr. Frates!
Esmeralda recuperou as forças, sem entender ainda mais o porquê agora apareceu
outro nome na discussão, questionou-o:
-- Sr. Frates? Aquele seu amigo? Sabes que não confio nele. Aquele que todos
dizem ser um falso, mentiroso, interesseiro? O que tem ele a ver com tudo isso?
-- Foi ele.
-- Foi ele o que homem? Foi ele o que?
-- Quando eu vinha chegando da viagem deparei com ele na rua, quase já perto
daqui de casa. Ele me disse que a viu nas proximidades da Libero Badaró numa
tarde destas que eu estava ausente, que conversavas com este tal Sr. Leopoldo, o
jovem moreno estudante da faculdade de Direito.
-- E você foi dar ouvido aquele homem que não vale nada? Como podes dar
crédito aquele maldito? Desconfiar de mim? Colocar minha honra a prova por
algumas mentiras?
-- E por que ele inventaria tudo isso? Por que?
-- E eu sei? Inveja, maldade, sei lá... Mas agora você saberá que não tens uma
esposa infiel, os escravos estão de prova que eu não sai daqui nenhum dia dos
quais você esteve fora. Vou provar minha inocência, vou provar...
Neste momento, ainda chorando, mas certa de sua verdade, Esmeralda levantou-
se caminhou rapidamente para fora do quarto em direção ao andar debaixo, estava
decidida, iria reunir os escravos e fazê-los falar a verdade perante ao Sr. José
Ramalho, este por sua vez ao perceber que iria passar por uma situação no
mínimo constrangedora diante dos negros e negras da casa, seguiu-a para evitar tal
vergonha.
Quando ela estava em frente a escada pronta para descer, agarrou-a pelos braços e
tentou argumentar:
-- Não faça isso! O que queres fazer? Me desmoralizar perante aos escravos?
Ela virou-se, ainda presa em um de seus braços, mas agora dona da situação
retrucou decidida:
- Desmoralizar? Você vem me falar em desmoralizar? Me largue José, me largue!
Só quero provar minha inocência. Você sabe que serias a última pessoa no mundo
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que eu desmoralizaria. Porém senhor meu esposo Sr. José Ramalho, também
tenho um nome a zelar, também tenho família e honra. Vou provar minha
inocência!
Segurando-a firme para evitar que descesse a escada, tentou levá-la de volta ao
quarto, desta vez para tentar desculpar-se pelo fato ocorrido, pois percebera que
tudo não passara de uma mentira inventada pelo Sr. Frates, com o falso amigo ele
resolveria depois, agora tinha que por um basta naquela situação, porém a jovem
ofendida que estava, não ia mudar de ideia tão fácil assim:
-- Vamos voltar lá para o nosso quarto, vamos conversar lá, eu errei, admito que
errei.
-- Errou não José, você anda tomado por este ciúmes doentio não é de hoje, venho
relevando muitas coisas, mas estou cansada, cansada! Hoje você vai ver que não
sou infiel, esta história até que veio a calhar, realmente Deus escreve certo por
linhas tortas, e graças a ele que temos escravos fieis.
Com certeza nem todos, mal sabia ela daquele um que tinha passado as
informações da viagem de seu esposo para o crápula do Sr. Frates.
-- Pare com isso mulher, já disse que me arrependi, pare com isso.
Ela tomada por uma justa revolta, tentando se soltar dele:
-- Não! Me solte, me deixe. Ofendeste-me na alma! Ofendes-te meu nome, o
nome da minha família. Vou provar que sou uma mulher séria! E depois desta
noite volto para a casa de meus pais, não mereço isso. Me larga!
Nesta última frase Esmeralda tentou escapar dos braços de seus esposo, com um
solavanco conseguiu, como estava muito próxima do primeiro degrau para descer,
ao puxar seu braço para trás, desequilibrou-se, rolou escada abaixo, Sr. José, ainda
tentou segurá-la, foi em vão, vendo aquela cena gritou:
-- Esmeralda!
A jovem Cabocla rolou sete vezes, não mais, apenas sete vezes. Quase no último
degrau, após várias pancadas nas quinas dos degraus, seu corpo parou. Ali ficou.
Imóvel. Do corpo caído torto na madeira escura, um fino fio rubro escorreu,
tingindo o lindo penhoar branco, descendo pelos dois últimos degraus até pintar
de escarlate o frio piso de mármore branco. Seus lindos olhos negros, agora
petrificadas, já não ofereciam mais o brilho da vida. Esmeralda estava morta.
Morta!
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Capítulo XIII - O Grande Erro


Novamente o cheiro de enxofre tomou conta de todo o espaço, desta vez mais
forte. Do alto da escada, praticamente sem reação, com a mão direita apoiada
sobre a coluna de madeira da escada Sr. José Ramalho viu o belo corpo de sua
mulher estático, completamente inerte caído sobre chão frio.
Não demorou muito e a razão voltou ao homem, rapidamente ele desceu com a
intenção de fazer algo para ajudá-la, numa última esperança, tentou buscar nem
que fosse um pequeno movimento de respiração vindo de suas costas, mas nada!
Seu corpo parado estava, parado continuou.
Naquele instante curto de tempo muitas lembranças fizeram-se presente em sua
memória; desde dos tempos passados em que se conheceram no interior, os
momentos felizes que vivenciaram juntos. Do seu olhar doce, do seu sorriso
sempre lindo, do seu quase eterno jeito de menina, dona de uma alegria sem igual,
sempre cantarolando a velha canção dedicada a ele.
Sr. José Ramalho agachou-se lentamente, de leve tocou-a com sua mão ainda
tremula, acariciando-a carinhosamente, sabia que não tinha mais o que fazer,
consciente de que era o grande responsável pela tragédia que acabara de ter seu
grande final. Em silêncio, apenas uma lágrima escorreu de seu olho esquerdo. O
hábil homem dos negócios, sempre acostumado a vencer seus adversários do
comércio, desta vez ali, entregue ao nada. Derrotado por ele mesmo, pelo seu
maior inimigo; o poderoso demônio do ciúmes. Doentio, latente dentro de seu ser.
O tal cheiro ainda pairava no ar, quando de repente a voz novamente sussurrou em
seu ouvido, desta vez acompanhada de risos macabros:
-- Ela mereceu, ela te traia com aquele jovem, sejas forte, sejas forte...
Assustado, pensando estar louco, ele tentou desviar o pensamento, este podia estar
lhe pregando mais uma armadilha. De nada adiantou, o sarcástico texto fez-se
presente em seus ouvidos:
-- Anda, tome uma atitude, já está feito! Ela procurou isto, foste sempre honesto.
Tome uma atitude, os convidados logo estarão aqui, livre-se deste corpo que
nunca te respeitou! Ela te traia com o jovem, com o jovem, com o jovem...
Totalmente tomado novamente pelo ódio, percebeu que tinha que tomar uma
atitude rápida, tinha que se livrar daquele corpo rapidamente, afinal logo teria uma
recepção na casa que lhe poderia render ótimos negócios futuros.
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A primeira coisa que pensou foi em chamar por seu escravo mais antigo, de mais
confiança. Um velho negro de nome Sebastião. Aos berros chamou pelo homem:
-- Sebastião! Sebastião!
Não tardou e o velho homem apontou na esquina entre os dois corredores; o da
entrada da casa com o da escada, logo avistou o chão tomado por uma poça
formada pelo grosso líquido encarnado. Sem entender o que estava acontecendo,
em passos lentos, bem devagar aproximou-se. Ao ver aquele quadro de horror.
Seu Senhor ali parado. Entregue. Agachado ao lado daquele corpo caído no chão,
com muita força soltou algumas palavras:
-- Sinhozinho, pelo amor de Deus, nossa senhora Virgem Maria. Pelo amor de
Deus! Que aconteceu com nossa sinhazinha? Creio Deus pai todo poderoso. O
que o Sinhozinho feizi? Minha nossa Senhora.
Rapidamente Sr. José Ramalho tentou tirar a culpa de suas costas, e realmente o
que havia ocorrido ali foi um acidente, embora tudo podia ter sido evitado.
Mesmo abalado, mas totalmente influenciado pela tal estranha voz. O nobre
homem pensou logo em uma saída, esconder toda aquela situação. Tinha que agir
rápido, foi então que teve uma ideia no mínimo um pouco estranha. Por que não
dizer macabra?
-- Não fale besteiras homem, eu não fiz nada, ela escorregou lá de cima e rolou até
aqui, tentei segurá-la mas não consegui.
-- Mas nóise tudo escutamo a discussão do senhor e da Sinhazinha Esmeralda, lá
do quintar deu para ouvi tudin, tudin...A coisa tava feia...
Sr. José ramalho ainda tentando desvencilhar-se da culpa, resolveu dar um basta
naquilo tudo:
-- Sim Sebastião, foi apenas uma discussão de casal, nada demais. Mas agora
temos que limpar todo esse sangue, tirá-la daqui o mais rápido possível. Já sei,
vamos esconder o corpo, depois enterramos lá no quintal. Afinal daqui a pouco
irão chegar os convidados, pessoas importantes da cidade, e eu tenho um nome a
zelar.
Mesmo sabendo que o Senhor era um homem frio e calculista, Sebastião nunca o
viu assim, com um comportamento tão mórbido, frio e cruel. Aquele que
argumentava ali na sua frente, ao lado do corpo da própria esposa não parecia
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nada com o homem elegante, educado e tão apaixonado que era. O escravo ainda
que tentou questionar mais uma vez o que faria com a pobre Esmeralda:
-- Senhor, mai vamo faze o que? Levá a coitada pronde? Pelo amor de Deus, isso
não é coisa que se faça, Sinhazinha era sua esposa. Não merece isso.
-- Sim eu sei, não estou dizendo ao contrário, mas temos que resolver. Tive uma
ideia, vamos levar o corpo para o porão, deixamos lá até depois da recepção,
quando todos forem embora, voltamos lá e enterramos no quintal mesmo. Pode
deixar que eu já tenho uma boa desculpa para falar para todos.
Sebastião desta vez não se aguentou, mesmo dentro da sua condição social de
escravo, achou por demais levar o corpo da coitada para o porão:
-- Para o porão? Pelo amor de Deus homi! Ela era sua esposa, a Dona que o
senhor amava tanto. Vamos levar pro quarto do Sinhozinho, colocamo ela em
cima da cama, depois Sinhozinho pensa melhor o que faze.
-- Não! Para o quarto não, sabe como são estas festas, sempre tem um convidado
que aproveita para bisbilhotar a casa, e até os aposentos. Ou mesmo jovens casais
querendo dar uma escapada para conversar mais intimamente. Vamos para o
porão mesmo. Infelizmente não tem mais o que fazer. Ela está morta. Minha
Esmeralda se foi para sempre.
Por um momento Sebastião olhou para seu Senhor sem querer acreditar que
aquelas palavras estavam saindo de sua boca. Afinal o que estava acontecendo?
Sr. José Ramalho estava realmente fora de si, definitivamente aquele homem frio,
mórbido daquele jeito, não era o mesmo que ele conhecia. Parecia que estava
tomado por outra coisa, por outro ser. Mas pelo que? Por quem?
Mesmo indignado por dentro, tratou de obedecer as ordens do seu Senhor, tomou
o corpo da moça em seus braços, embora o peso da idade tinha-lhe forrado a
cabeça de cabelos brancos, o velho negro ainda era muito forte, não foi difícil
carregar o corpo delgado de Esmeralda até o local determinado pelo Sr. José
Ramalho; o escuro e sujo porão.
Momentos antes dos dois homens saírem com o corpo de Esmeraldo, algo muito
estranho aconteceu do lado de fora do casarão. No quintal estavam os outros
escravos a espreitar, pois tinham escutado a discussão do casal, e viram quando o
Senhor deles chamou por Sebastião. Curiosos, aguardavam com ansiedade para
saber o que havia ocorrido dentro da casa, o real motivo da discussão dos seus
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Senhores. Com certeza o velho Sebastião seria sem sombra de dúvida a esperança
de notícias frescas para todos.
Como que obedecendo uma ordem macabra, uma ventania violenta tomou conta
de todo quintal, uma manifestação realmente diferente do normal. A fúria do
vento foi tanta que levantou folhas, galhos soltos e até pedregulhos, que voavam
com força e raiva em todos que aguardavam no quintal.
Nenhum dos escravos conseguiu se defender, tantas eram as pedradas, as
folhadas, as galhadas, a maioria certeiras nos olhos de muitos deles. A única saída
foi correr para dentro da edícula, e assim quem sabe se proteger daquela
verdadeira surra de objetos da natureza. Logo que entraram, a anormal ventania
parou instantaneamente. Rapidamente o quintal estava completamente vazio,
pronto para que os dois homens passassem com a morta sem serem testemunhados
por ninguém.
Ao chegar lá, Sebastião curvou um pouco seu velho tronco e adentrou-se pela
escuridão do imenso local com sua sinhazinha morta nos braços, com todo
cuidado do mundo colocou-a em um canto, procurou um lugar que estivesse
menos sujo, tarefa nada fácil naquele imenso breu. Antes de sair, com os olhos
cheios de lágrimas e a mente completamente confusa, o fiel escravo ainda rezou
um Pai Nosso e Uma Ave Maria pela alma da jovem Esmeralda. Retirou-se do
local escolhido por seu patrão, voltou rapidamente para avisá-lo que a ordem
estava feita:
-- Sinhozinho, Sinhozinho! O corpo da coitada já está lá, tive o cuidado de colocar
com jeitin lá bem no fundo, pra mor da coitadinha ficá em paz. Ainda rezei um
Pai Nosso e uma Ave Maria pra alma da coitadinha.
Sr. José Ramalho olhou para seu Sebastião com carinho, na verdade com pena
pela vida desgraçada que aquele ser levara desde menino. Mais uma vez constatou
a fidelidade e o apresso que o humilde negro tinha pela pessoa dele.
-- Bom trabalho Sebastião, bom trabalho. Agora temos que manter total segredo,
você está me entendendo? Está me entendendo?
-- Sim sinhô, tô sim. O Sinhozinho pode confiar em mim. Noise erramo. Mas
Sinhozinho sabe o que faz.
-- Eu errei Sebastião. Eu errei, e não vou me perdoar nunca. Você no fundo sabe
que a culpa foi minha. Mas o que está feito, está feito. Não temos mais o que
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fazer. Agora quero te pedir mais uma coisa, não comente com os demais escravos
da casa, com ninguém mesmo, nem com seu maior amigo.
-- Sinhozinho nem precisa pedir isso. Sabe que sou fiel ao senhor - com o dedo
indicador ainda sujo de sangue, apontou para o alto - Deus é quem vai nos julgar.
-- Muito bem, agora volte para perto dos outros, veja como estão os preparativos
para a recepção. Irei me arrumar. Quando tudo isso acabar nos encontramos e
acabamos o serviço. Agora vá, vá...
Sebastião retirou-se depressa para cumprir as ordens. Sr. José Ramalho subiu
rapidamente até seu aposento para trocar os trajes, o tempo havia ficado curto e
logo os convidados passariam portão a dentro.
E assim ocorreu, não tardou e os convidados começaram a chegar no casarão,
todos sem exceção sentiram a ausência da esposa do dono da casa. Ele por sua vez
inventou uma mentira de última hora; dizia a quem perguntasse que ela teve que
viajar para o interior as pressas para visitar uma tia moribunda que havia caído e
batido a cabeça. Na verdade Sr. José Ramalho apenas transferiu o acidente para
outra pessoa, talvez fosse uma forma dele enganar-se a respeito do fato ocorrido
horas antes.
E assim entre bebidas, farta comida e a grande mentira, a recepção ocorreu como
o esperado, tudo dentro dos conformes, a não ser um pequeno detalhe; que bem
embaixo dos passos dos vários casais que dançavam ao som das valsas e polcas
germânicas tocadas com maestria pelos músicos, estava o corpo já pálido, sem
vida de Esmeralda.

Capítulo XIV - Surpresa no Porão


Perto da meia noite quando o último convidado cruzou o grande portão de
madeira para fora do terreno, a recepção chegara ao seu final, tudo tinha ocorrido
como Sr. José havia planejado, ou quase tudo. O homem tratou logo de ordenar
aos escravos que se recolhessem e não saíssem de seus aposentos até segunda
ordem, quem desobedecesse iria pagar um preço alto, muito alto. Ninguém se
atreveu a desobedecer. O único que não se enquadrava neste mandado era o velho
e bondoso Sebastião que teria uma árdua tarefa madrugada fria adentro.
Rapidamente o velho escravo pegou algumas ferramentas, junto com seu dono
dirigiu-se para a entrada do porão, este por sua vez estava ansioso, louco para
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resolver toda aquela situação. E não era pra menos, o pior ainda estaria por vir,
que desculpa ele teria que inventar para todos os parentes, amigos e conhecidos do
casal, pois se realmente ela estivesse viajando, logicamente uma hora teria que
retornar, mas isso por motivos óbvios não iria acontecer.
Quando os dois homens; Senhor e escravo estavam em frente ao pequeno portão
de ferro do porão, Sr. José Ramalho ordenou que Sebastião entrasse e resgatasse o
cadáver de Esmeralda, ao dar a ordem tomou todo cuidado em falar em um tom
mais baixo que o normal para não ter do perigo dos demais escravos ouvirem:
-- Sebastião, traga o corpo dela aqui, eu ficarei aguardando, depois vamos lá para
o fundo do quintal e a enterramos, te ajudarei a cavar a cova, assim não perdemos
tempo. Agora entra.
Sebastião fez menção de entrar, mas antes de passar pelo portão de ferro, voltou-
se meio corpo, parado, olhou triste e revoltado por alguns instantes aquele homem
que tinha dado fim a vida da própria mulher.
Naqueles poucos segundos uma verdadeira avalanche de questionamentos
passaram em sua mente; o que estava acontecendo com seu Senhor? Aquele não
era o homem sensato que ele conhecia. O que o tinha transformado naquele
monstro? Como podia sua Sinhazinha ter morrido assim, tão brutalmente?
Sr. José Ramalho ao perceber o olhar indignado do escravo, tentou disfarçar seus
sentimentos apressando-o para que entrasse rápido, afinal logo iria amanhecer,
com um sinal de cabeça mandou que Sebastião entrasse de uma vez. Ele assim o
fez.
Aqueles poucos minutos do lado de fora do porão pareceram uma eternidade, seus
pensamentos voaram para longe dali, arrependido por tudo o que tinha pensado de
Esmeraldo, ele não conseguia se perdoar, sabia que algo estava estranho com ele,
ao mesmo tempo que batia o sofrimento em seu coração, algo maior fazia ele
lembrar do tal Leopoldo. Amor e ódio juntos e misturados, sensação esta que ele
nunca tinha experimentado, certeza apenas uma: seu grande amor estava vindo
morta nos braços do seu escravo.
De repente, correndo, ofegante com o coração quase saindo pela boca, Sebastião
saiu do porão com uma expressão de quem tinha visto o cão, mas na verdade pelo
contrário, ele não tinha visto nada lá dentro, principalmente o que tinha ido
buscar.
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As palavras quase não saiam de sua boca, os olhos esbugalhados, tremendo feito
vara verde, Sr. José Ramalho sem entender nada, sacudiu-lhe pelos braços
cobrando alguma explicação e ainda em tom de sussurro falou-lhe :
-- Sebastião, o que aconteceu? Fale homem de Deus, cadê Esmeralda? Cadê
Esmeralda?
O velho negro por mais que tentasse não conseguia emitir uma palavra sequer, seu
Senhor insistiu:
-- Sebastião! Sebastião! Fala comigo homem, fala comigo!
Após muita insistência, depois de muitos sacodes naquele corpo velho, Sebastião
finalmente conseguiu falar o que tinha acontecido:
-- Sinhozinho num vai acreditá! A nossa Sinhazinha sumiu. Sumiu!
Aquela notícia cortou Sr. José Ramalho feito uma lâmina de aço, sem entender
nada, questionou mais uma vez o que tinha ocorrido naquele porão, o velho negro
praticamente em estado de choque tentou falar pausadamente:
-- O que você disse Sebastião? Como assim nossa Sinhazinha sumiu?
-- Pois é a mais pura verdade. Entrei, fui até onde tinha colocado o corpo dela;
direitim, ajeitadim, num lugarzim certo, mas quando cheguei lá, nada de corpo.
Sinhazinha sumiu!
-- Não é possível, ela estava morta, como poderia sair daqui, se apenas eu e você
sabíamos do caso dela. Você procurou direito?
-- Craro Sinhozinho, craro...Eu fiz direitim o que o sinhô pediu.
-- Então ela está lá criatura de Deus! Ela esta lá.
-- Não tá Sinhozinho, não tá! Tô falando pro sinhô, posso ser veio, mas besta eu
não sô.
-- Então vamos fazer o seguinte; eu vou entrar com você, vamos procurar juntos.
Sem que desse tempo do velho escravo responder alguma coisa, seu Senhor
agarrou-o pelo braço, puxou-o para dentro do escuro espaço. Apenas uma pequena
tocha iluminava o local. Sem demora fez Sebatião levá-lo no lugar exato onde o
corpo deveria estar. Para sua decepção seu fiel escravo realmente de besta não
tinha nada, estava certo. Revistaram os quatro cantos do grande porão e nada.
Após algum tempo dentro daquele mausoléu gigante, quase embriagados com o
cheiro de poeira e mofo que dominava o lugar, resolveram que o melhor a fazer
seria sair dali.
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Uma vez fora, os dois completamente estupefatos, não conseguiam falar uma
palavra sequer, os olhares já falavam por si sós. A madrugada fria cortava-lhes os
respectivos rostos. Sr. José dispensou Sebastião, pois não teria mais serventia
nenhuma, se o motivo real de sua presença ali tinha sumido:
-- Sebastião, quer saber do mais? Vá se deitar, obrigado pela ajuda, você mostrou
mais uma vez que não é apenas um escravo leal, e sim um amigo. Agora vá...
-- Mas Sinhozinho vai ficar aqui sozim? É melhor entrar também, amanhã pensa
em argo...
-- Fique tranquilo, preciso ficar só, muita coisa aconteceu hoje, preciso pensar no
que vou fazer da minha vida.
Sebastião percebeu que o melhor que tinha a fazer era se recolher no seu
quartinho de dormir que ficava quase no fim do quintal, por mais que não
concordasse com toda aquela loucura, sabia que os problemas só estavam
começando para seu Senhor.
Sr. José Ramalho ainda observou por alguns minutos o caminhar lento do velho
negro, não tardou e seus pensamentos o puxaram para dentro do casarão, a cena
de sua linda e jovem mulher rolando escadaria abaixo repetia-se inúmeras vezes
dentro de sua cabeça, seguida da imagem dela estática, morta, com aquele olhar
fixo que parecia questionar o porque de tudo aquilo.
Ele, parado ali estava, parado ali ficou, sem dar uma palavra, sem mexer um
músculo, quando deu por si, os primeiros raios de sol surgiram calando os últimos
suspiros da madrugada fria.

Capítulo XV - O Periódico
Não tardou e o periódico O Observador Constitucional informou por meio de
uma nota em destaque o estranho desaparecimento da esposa do bem sucedido e
respeitado comerciante e fazendeiro Sr. José Ramalho. O pequeno artigo obteve
um enorme sucesso, comparado até nas devidas proporções ao mesmo sucesso do
comentário do próprio jornal impresso dois anos antes, sobre o acontecimento da
Revolução de 1830 em Paris.
Muitos foram os leitores da estranha notícia, e como não poderia deixar de ser um
deles foi o já conhecido e interesseiro Sr. Frates Alcântara, que ao ler curioso
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artigo, logo associou o sumiço da jovem senhora ao seu encontro daquela singela
tarde com o recém chegado de viagem Sr. José Ramalho.
Por um breve momento, mas somente por um breve momento mesmo, o maléfico
ainda pensou que pudesse ter exagerado na mentira, mas sua ganância somada a
sua crueldade o fez logo esquecer o possível sentimento de remorso. De certo este
acontecimento lhe traria uma grande possibilidade de bons negócios.
Como todo bom articulador pensou com seus próprios botões: -- agora é só dar
tempo ao tempo, apenas esperar o momento certo para dar o bote. E assim o fez,
sabia que tarde ou menos tarde, as autoridades locais descobririam alguma coisa
em relação ao acontecido, e assim toda verdade viria a tona, mas por via das
dúvidas, para garantir ainda mais o sucesso de seu cruel plano, resolveu procurar
um amigo redator de ética um pouco desconfiável no meio intelectual que
prestava serviços no respeitado jornal da Província. Quem sabe este suposto
amigo com sua habilidade peculiar na escrita não poderia dar uma pequena ajuda
em troco de alguns "favores"?
"UMA SEMANA, DUAS SEMANAS, TRÊS SEMANAS. ONDE ESTARÁ A
NOBRE SENHORA PAULISTA? "
Era o título da matéria com quase um quarto de página mais uma vez publicada no
periódico jornal da Província de São Paulo, e como não poderia deixar de ser,
mais uma vez obteve enorme sucesso entre seus curiosos leitores.
O artigo muito bem escrito porém tendencioso, cobrava das autoridades uma
resolução para o caso, em suas linhas metricamente pensadas, minuciosamente
escritas, recheadas com palavras escolhidas com cautela para que sugerissem uma
leve suspeita a cair sobre o esposo. Pois era sabido por quase todo o meio social e
intelectual da época que o mesmo era um homem muito ciumento, ao ponto de
não deixar sua jovem esposa sair de casa em sua ausência, além de outros gestos
considerados absurdos mesmo para os mais conservadores.
Com esta segunda matéria lançada pelo renomado jornal, as autoridades sentiram-
se na obrigação de solucionar o caso mais rápido. Embora Sr. José Ramalho fosse
um homem respeitado pela elite paulista, com fortes influências políticas perante a
todos, as investigações levavam a crer que o desaparecimento da jovem e bela Sra.
Esmeralda tinha ocorrida dentro do próprio casarão.
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Todos os moradores do casarão foram ouvidos, dos escravos ao próprio dono da


residência, mas por mais que as evidências direcionavam para um crime
passional, uma dúvida pairava no ar: Onde está o corpo da desaparecida Sra.
Esmeralda?
Talvez esta pergunta ainda era o que impedia da acusação cair mais forte sobre o
Sr. José Ramalho, que, insistia em afirmar nos depoimentos que a jovem esposa
tinha ido visitar uma tia moribunda no interior, e não havia regressado na data
esperada conforme combinado entre ambos.
A única pessoa que poderia desmentir tal versão afirmada com veemência pelo Sr.
José Ramalho, seria seu escravo mais fiel, o velho negro Sebastião, porém a
submissão de anos de escravidão impregnada em seu ser jamais permitiria que o
coitado se manifestasse.
Outro fator que também o impedia de fazer algo, era a certeza de ser acusado
como cúmplice no crime, fato este que certamente o levaria para uma última
oração dentro da Igreja Nossa Senhora da Boa Morte na rua do Carmo.

Capítulo XVI - Aqui se Faz, Aqui se Paga


Quase natal de 1835, praticamente três anos já havia passado do misterioso caso
do casarão da Rua do Hospício, nem uma resposta positiva para o sumiço da sua
proprietária. Por mais que as autoridades se empenharam nas investigações, não
conseguiram nenhuma resposta concreta, tudo continuava na mesma; nada do
corpo, nada do criminoso, se é que realmente existia um crime para ser
solucionado.
Enfim, de mãos atadas a polícia estava, de mãos atadas e polícia continuou. E o
caso acabou sem solução, arquivado. Situação bem favorável para Sr. José
Ramalho.
A única testemunha que poderia mudar o rumo de tudo falecera misteriosamente
um ano após o acontecimento, Sebastião havia sido encontrado pendurado com
uma corda no pescoço amarrada em um Cambucizeiro no fundo do quintal do
casarão na manhã de uma sexta-feira chuvosa de agosto.
Por se tratar apenas de um negro, as autoridades não perderam tempo em
investigar, chegaram a rápida conclusão que o velho escravo havia se matado,
para eles pouco importava o motivo, pois não era nenhuma novidade escravos
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acabarem com a própria vida por desgosto e tristeza. Aquele não era o primeiro, e
com certeza não seria o último caso de suicídio de negros descontentes com suas
desgraçadas e miseráveis vida no Brasil.
Na época da morte do fiel escravo, Sr. José Ramalho que já não estava nada bem
desde o desaparecimento de sua esposa, piorou ainda mais seu estado de espírito,
pois ele era o único que sabia o real motivo daquele suicídio, mais um remorso
tomou-lhe conta de seu já doente corpo, sentimento este que ele teria que guardar
consigo para o resto da vida, sem poder compartilhar com ninguém, mesmo que
fosse muito próximo, pois fatalmente levantaria suspeita.
Aquele natal de 1835 que aproximava-se seria apenas mais uma data corriqueira
na vida do nobre homem que passaria mais uma vez sozinho, fechado em seu
casarão, pois a alegria de viver já não existia há muito tempo.
A situação econômica que também não era das melhores, as muitas dificuldades
crescentes o arrastaram à bancarrota e à perda quase que total dos bens.
Muitos negócios haviam sido desfeitos, os antigos amigos não o procuravam
mais, os poucos escravos tinham sido vendidos para quitar dívidas de jogos,
bebidas e mulheres da vida. Sr. José Ramalho agora completamente perdido na
vida, um trapo humano, um ser amaldiçoado, definhava-se cada vez mais com o
passar dos dias.
Suas posses agora resumiam-se apenas a alguns alqueires de terras cafeeiras dos
lados do Vale do Paraíba. Por não dedicar-se mais com tanto afinco nos negócios,
os lucros com a exportação do café diminuíram drasticamente, o pouco que
entrava dava realmente apenas para seu misero sustento, agora restrito muito mais
as tabernas e ao bordeis da Província.
E foi justamente em um destes famosos bordeis, ou "pensões alegres" para
muitos, localizado na já conhecida e famosa rua do Imperador, logradouro
precursor do meretrício paulista, região que em poucos anos depois receberia "as
mais legítimas representantes do amor brejeiro da Paulicéia", as alegres meninas
Ritinha Sorocabana, Antoninha Bella, Palmiteira, Bellona, Ana Pérula,
Izabelinha Onça e a Paraguaia entre outras, que o decadente homem soube do
fim trágico do ser que com certeza teve uma grande contribuição para sua
desgraça.
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Foi entre um gole e outro de cachaça, um cheiro e outro no cangote de alguma


delgada rapariga, que chegou aos seus ouvidos que o Sr. Frates Alcântara, que
bem ao contrário dele, estava indo de vento em popa nos negócios, havia sido
encontrado morto em seu pequeno escritório localizado na ladeira dos Piques.
Diziam as más línguas que o desonesto homem, dentro de sua ganância de
sempre, havia como era de seu feitio, passado a perna no sentido figurado da
expressão em um outro negociante, um português de nome Sr. Joaquim Tevês.
O velho português por sua vez, conhecedor da fama do famoso farsante, não
tardou e logo descobriu toda a maldosa armação. Obvio que seu sangue lusitano
não aceitou a dita falcatrua. Sem pestanejar, não teve dúvidas, contratou um
conhecido forasteiro, um ex caçador de escravos fugitivos recém chegado do
interior, e ordenou que o matasse com um tiro certeiro de pistola bem no meio
peito. O forasteiro que aceitou o serviço por uma quantia não muito alta, assim o
fez, o serviço saiu do jeitinho que foi ordenado.
A trágica notícia até certo ponto serviu de consolo para o Sr. José Ramalho,
pensou que de certa forma a justiça tinha sido feita. Uma pequena alegria tomou
conta de seu triste coração, fazendo-o pedir ao atendente da casa noturna mais
uma dose da boa do alambique para comemorar o feito. Ao virar o cálice para
dentro de seu decadente corpo, uma frase veio rápido em sua mente:
-- Aqui se faz, aqui se paga!
Após tomar a cachaça numa golada só, antes mesmo do rosto despedir-se da feia
máscara peculiar de quem bebe da maldita destilada, o vibrante homem bateu com
força o pequeno copo na mesa quadrada de madeira rústica, e com um sorriso
sarcástico de satisfação nos lábios gritou:
-- Homem, coloca mais uma!
Naquela noite Sr. José Ramalho bebeu com gosto. Cantou. Dançou. Brincou até se
acabar com o mulherio. De certa forma sentia-se vingado pela aquela desgraçada
tarde em que voltava de viagem.
Amanhecia quando o decadente ébrio passou pelo pesado portão de madeira do
seu casarão, cambaleando, quase não se aguentava em pé. Acertar a chave na
fechadura da porta foi uma tarefa árdua, perdeu uns bons minutos parado em
frente a porta. Realmente desta vez ele tinha extrapolado nas doses da famosa
bebida que passarinho não bebe.
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Depois de algumas tentativas fracassadas, finalmente a grande porta colaborou


com tamanho esforço, lentamente abriu-se. Sem perder tempo Sr. José Ramalho
adentrou-se pelo grande corredor, que aos seus quebradiços olhos parecia não ter
fim.
Com a ajuda das paredes, lentamente caminhou em direção a escadaria que o
levaria para seu aposento. Após alguns minutos desta verdadeira peregrinação,
finalmente sua mão pode apoiar-se no primeiro pilar de madeira da escadaria.
Quando preparava-se para a segunda difícil tarefa; subir a escada. Um som vindo
do andar de cima chamou sua atenção. Mesmo demasiado bêbado, compreendeu
bem as palavras que chegavam aos seus peludos ouvidos:

Se esta rua, se esta rua fosse minha


Eu mandava, eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante
para o meu, para o meu amor passar...

Ao ouvir a bela canção novamente, reconheceu de imediato a doce voz, não


restava dúvida, era sua amada Esmeralda. Uma alegria incontrolável tomou-lhe o
coração, sem que pudesse controlar devido talvez ao efeito do álcool, seus olhos
marejaram iguais a de um menino novo.
Parado ali ao pé da escada. Sem reação. Permaneceu por alguns instantes. Ouviu
com alegria a conhecida canção:
...Nesta rua, nesta rua tem um bosque
que se chama, que se chama solidão
dentro dele, dentro dele mora um anjo
que roubou, que roubou meu coração...
Esta segunda estrofe foi a deixa para ele confirmar que realmente era sua amada
esposa que estava novamente lá em cima, cantando para ele. Tomado por um
súbito contentamento resolveu subir as escadas para encontrá-la, tinha plena
certeza que sua bela mulher estaria esperando-o sentada dentro do grande
aposento.
Com receio que ela pudesse sumir novamente, com um certo esforço na fala
devido ao alto estado etílico que se encontrava, chamou-a pelo nome:
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-- Esmeralda! Você voltou meu amor? Já estou subindo meu amor, já estou
subindo.
Graças a ajuda do forte corrimão, Sr. José Ramalho pode subir a escadaria, já que
suas pernas em cambaio, estavam mais pra lá do que pra cá de tão bambas. Com
muito esforço, porém incentivado pela canção que não parava de ser cantada,
finalmente chegou no primeiro andar do casarão. Agora somente alguns metros de
caminhada separava-o da entrada do quarto do casal.
Uma vez na porta do cômodo, mesmo com a visão meio perturbada, pode ver o
que realmente imaginara ser enquanto estava no andar debaixo.
A cena repetia-se feito uma película rebobinada de um filme: Esmeralda sentada
de costas para a porta. Novamente de frente para a elegante penteadeira francesa
com seu grande espelho de cristal, penteando os longos cabelos enquanto
cantarolava a bela canção.
-- Esmeralda!
Assim como havia feito da outra vez, Sr. José Ramalho chamou-a novamente, a
diferença desta vez foi na inflexão da voz, muito mais saudosa e amorosa.
A palavra mal terminou de ressoar e Esmeralda calou-se. No lugar apenas um
silêncio fez-se presente durante um breve instante. Ele por sua vez, percebeu que
não se tratava de uma miragem, uma vez que ela tinha se calado ao escutar o
chamar de seu nome.
Lentamente Esmeralda virou a cabeça em direção a ele, apenas a cabeça, feito
uma típica rasga mortalha parada sobre o galho seco de alguma árvore na noite
escura. Seus olhos fúnebres foram certeiros de encontro aos olhos dele. Com um
leve sorriso, levantou-se, caminhou devagar até aquele resto de homem que a esta
altura estava tomado por um arrepio inexplicável que subia-lhe dos pés a cabeça.
Ele não acreditou no que seus olhos viram; sua esposa ali, viva, mais linda do
nunca, perplexo pensou no que sempre desconfiou: -- Realmente eu estava certo.
No fundo, no fundo mesmo, eu nunca acreditei naquilo tudo.
Súbito ela chegou bem perto, ficaram praticamente rosto a rosto. Se antes a
diferença no aspecto da idade entre os dois já era grande, agora então, um abismo.
Ele completamente maltratado pela vida, com uma aparência horrível, muito
longe daquele homem elegante e fino dos tempos de outrora.
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Ela pelo contrário, mais linda do que nunca, porém uma diferença chamava
atenção, aliás, uma gritante diferença; sua pele estava muito mais alva do que o
normal, na verdade um rosto exageradamente pálido, quase branco. Seu olhar
agora era negro e profundo, diferente de antes, causava certo pavor.
-- Esmeralda, você voltou? Onde esteve este tempo todo?
Ela ao abrir a boca carnuda para responder as duas perguntas, o esperançoso
esposo não pode deixar de perceber o tom aviolado de sua língua, assim como os
lábios. Com uma voz grave, bem diferente daquela que cantava minutos antes,
acompanhada de um hálito fétido, a eterna esposa apaixonada respondeu com um
sorriso macabro:
-- Eu estive aqui meu amor. Eu estive aqui o tempo todo.
A fala inebriante infestou todo o ambiente, um odor que remetia com certeza a de
algum necrotério da Província. O irremediável cheiro da morte.
Embora estivesse ainda tomado pelo efeito do álcool, Sr. José Ramalho não pode
deixar de sentir aquele odor característico. Achou estranho é verdade, mas como
ainda estava tomado pela alegria de ver sua fiel esposa, desconsiderou.
-- E por que demoras-te tanto para retornar? Senti tanto a sua falta meu amor.
Ela dentro do mesmo sorriso macabro jogou com as palavras:
-- Não demorei meu amor, não demorei. Voltei no tempo certo, eu vim te buscar.
-- Buscar? Para ir onde? Nossa casa é aqui.
-- Sim meu amor, a minha casa é realmente aqui.
Neste momento Esmeralda tocou em um de seus braços, segurando-o firme com
sua galgaz mão com longas unhas não menos avioladas que sua boca. O homem
ao sentir a mão gelada em seu braço arrepiou-se ainda mais, tentou
desenvencilhar-se, mas de nada adiantou, ela segurava-o com uma força
sobrenatural.
Sem ter noção do que estava acontecendo, mas tomado por um certo sentimento
de medo, questionou mais uma vez:
-- Que história é esta de me buscar? Por que você está tão gelada? Parece até que
está...
Antes que ele terminasse a frase ela completou com um sorriso irônico.
-- Morta! É isso que você queria dizer? Parece até que está morta?
-- Não! Eu não ia dizer isso.
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-- Claro que quis dizer meu amor, claro que quis. Vou te falar uma coisa que você
precisa saber.
Nesta altura da conversa ele já não entendia mais nada. Esmeralda estava muito
diferente. Aquele cheiro. Aquela frieza na pele. Aqueles risos sarcásticos.
Conforme soltava as palavras, seu rosto ficava mais pálido, seu olhar mais
profundo. Um quadro de horror se formava do seu rosto.
-- O que eu preciso saber? Como assim você veio me buscar?
Neste momento o rosto angelical e belo de sua esposa, deu lugar a uma criatura
horrível, cadavérica, já em estado avançado de putrefação que respondeu tomada
de ódio:
-- Você precisa saber de muita coisa meu amor! Hoje você vai comigo, hoje você
vai comigo. Assassino! Assassino! Afinal como você mesmo diz: Aqui se faz,
aqui se paga!
A última frase saiu de sua fétida boca seguida de risos maldosos.
Sr. José Ramalho ao ver aquela cena de horror, arrancou forças sem saber de
onde, e mesmo cambaleando correu em direção a escada para descer, e quem sabe
conseguir fugir dali.
Ao chegar em frente ao primeiro degrau, antes que começasse a descer, Esmeralda
já o aguardava. Em pé, gelada, com seu sorriso demoníaco. Desta vez com o rosto
completamente desfigurado. Um monstro!
Ao ver aquela figura Sr. José Ramalho não se conteve. Amedrontado assustou-se,
e num desespero de horror caiu escada abaixo. Assim como ela, rolou sete vezes,
não mais, apenas sete! Chegou no penúltimo degrau morto.
No casarão apenas o som do silêncio, que rapidamente tomou conta do espaço.
Ele, ali, caído, de olhos abertos, vitrificados. Novamente a cena se repetiu, um fio
grosso do rubro líquido da vida começou a tingir de encarnado o belo mármore
branco.
Seu corpo rijo e fétido, só foi encontrado muitos dias depois, quando a podridão e
o odor de seu cadáver passou os limites do muro do casarão. Um misero mascate
na sina de seu ofício, passava pela rua e não pode deixar de sentir o tal indício de
morte. Mais do que depressa chamou as autoridades que invadiram o casarão e o
encontraram caído, já em estado avançado de putrefação.
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A conclusão da polícia na época foi que ele de tão embriagado que estava, havia
tropeçado sozinho e rolado escada abaixo, causando seu próprio fim.
É verdade. Em partes as autoridades até que estavam com a razão. Apenas em
partes.

Capítulo XVII - A Volta ao Presente


O sacudir da carruagem não teve o mesmo encanto da ida, o percurso pareceu bem
maior no caminho da volta. Ao passar novamente pelo Prédio da Escola de
Primeira Letras Sra. Silvia pensativa apenas discorreu com seus belos olhos, sem
permitir-se novamente as antigas lembranças. Impressionada com toda aquela
história, entre um balançar e outro do carro de tração à animal, a nobre senhora
tentava elaborar alguma maneira de convencer seu cético esposo de que a filha
Joana realmente corria perigo de morte caso não abandonassem aquele velho
casarão amaldiçoado.
Jacinto conduzia com maestria as rédeas presas nos animais, calado sempre,
porém com a astúcia de um felino, não pode deixar de perceber a fisionomia de
preocupação de sua bela patroa. Mesmo não sendo de seu feitio desta vez não se
conteve, talvez movido pela típica curiosidade peculiar do ser humano ou mesmo
por pura preocupação, tentou arrancar algo da conversa da nobre senhora com a
velha curandeira do Bexiga:
-- A senhora Silvia me desculpe pela curiosidade, mas percebi que a patroa saiu de
dentro da casa daquela senhorinha por demais de muito preocupada.
-- Pois é Jacinto, as coisas são bem piores do que eu pensava. Infelizmente
teremos que mudar daquela casa o quanto antes, estou muito preocupada com
minha filha.
-- Difícil mesmo vai ser convencer o patrão, pelo pouco de prosa que temos de
vez em quando, entre uma viagem e outra, parece que ele está feliz por demais da
conta com a casa.
-- Infelizmente você tem razão Jacinto, infelizmente.
A última palavra da Sra. Silvia veio acompanhada de mais uma boa sacudida da
carruagem, ela aproveitou o ensejo para colocar um fim no pequeno assunto com
seu empregado.
71

Assim que passou pelo grande portão de madeira, a nobre senhora não perdeu
tempo, caminhou as pressas para a cozinha, pois sabia com certeza pelo adiantado
da hora, que Anastácia estava na função de seu ofício, na beira do grande fogão de
ferro a lenha.
Foi justamente o que ela viu, assim que encostou na entrada da cozinha, lá estava
aquela figura tão doce e boa, imensa de gorda. Com o pesado corpo curvado,
concentrada em arrumar um toquinho de lenha que teimava em não compartilhar
do mesmo espaço do resto do feixe de lenha na parte de baixo do pesado artefato
de ferro.
De tão distraída que estava, e ao mesmo tempo preocupada em deixar o farto e
saboroso almoço pronto no horário de praxe, nem deu por conta a presença da
patroa que acabara de chegar. Sra. Silvia ao perceber a distração da velha senhora,
procurou chamá-la de um modo que não a assustasse, para tal chamou-a pelo
nome docemente:
-- Anastácia.
Mesmo com o tom da voz da bela mulher saindo suavemente de sua boca, não
teve jeito, ao escutar seu nome, Anastácia de tão distraída, deu um salto para trás
de susto, caiu com todo seu peso no piso frio, faltou pouco para não trazer consigo
lenhas, panelas, caldeirão entre outros utensílios que estavam por perto. Sr. Silvia
mesmo com toda preocupação, não se conteve, riu com gosto feito menina, ao
mesmo tempo que foi acudir a sua velha Tata.
Anastácia não se conteve também e caiu em risos, ao ver sua patroa divertindo-se
com a patética cena, por um breve instante voltou ao passado, nos bons tempos do
casarão da fazenda, quando o "Senhora" ainda não fazia parte do nome da sua
menina, e sim apenas um singelo e bonito "Sinhazinha".
Ao ver o riso de criança no belo rosto de sua patroa, não se conteve, por um breve
instante a amável cozinheira foi tomada pela dor da saudade. Do cheiro gostoso
do mato. Do cacarejo do imponente galo denunciando a chegada de um novo dia.
Dos tempos da vida simples no interior. Da sua pecorrucha menina brincando
inocente pelos campos do senhor seu pai.
Sra. Silvia preocupada e com um certo sentimento de culpa pelo acontecido, entre
um riso e outro tentou ajudar como podia, afinal faltava forças para tamanho
corpo caído no piso vermelho:
72

-- Minha doce Tata, não queria assustá-la. Machucou-se?


Depois de um certo esforço, Anastácia estava novamente em pé, as duas ainda
meio sem jeito pela situação engraçada, porém um pouco constrangedora,
tentaram retomar a normalidade.
Sr. Silvia tomou o real assunto que a tinha levado para a cozinha, pois precisa
resolver de alguma maneira o grande impasse, que era convencer o marido que as
coisas não estavam nada bem, que a saída do velho casarão seria a única solução
para talvez tentar salvar a menina Joana da maldição impregnada naquele lugar.
-- Não minha filha, a sua velha aqui é forte. Só me empresta a mão aqui. Mas diga
lá, encontrou minha prima?
-- Sim encontrei. Ela me tratou muito bem por sinal, foi muito gentil.
-- Ela é uma alma boa, ajuda todo mundo ali pelas redondezas, as vezes sincera
por demais da conta é verdade, chega até magoar as pessoas, mas não faz por mal.
Sr. Silvia ao ouvir esta afirmação não pode deixar de lembrar das palavras de
Dona Adelaide sobre o seu pai, mas nem fez questão de tocar no assunto, achou
que não valia a pena, pois o foco preocupante era outro.
-- Então Tata, confesso que no começo achei tudo meio estranho, mas ela fez
umas orações para mim lá mesmo, e depois de um tempo com os olhos fechados,
me revelou tudo sobre esta casa aqui.
Anastácia como se já soubesse do assunto, questionou curiosa para saber o que
sua prima havia revelado a sua patroa:
--Tudo? Tudo o que minha filha? Que revelação foi essa?
-- Ela me contou o passado daqui, revelou que esta casa tem uma maldição, e que
querem levar minha pequena Joana para o outro mundo. Teve morte aqui
Anastácia. Morte feia!
-- Ave Maria! Creio em Deus Pai todo poderoso! Ai minha nossa Senhora da Boa
Morte! E agora? Olha minha menina, Adelaide não costuma errar viu? Temos que
agir e rápido, antes que seja tarde.
-- Agir como Anastácia? Agir como? Francisco não me dá ouvidos, acha que tudo
que falo não passa de asneiras, tolices.
Infelizmente a sábia negra teve que concordar com sua patroa, Sr. Francisco
jamais acreditaria em uma só palavra de sua esposa, além de ser um homem rude
e severo, por muitas vezes parecia incrédulo, era perceptível sua impaciência
73

dentro de uma igreja no momento da missa. As línguas afiadas das mulheres mais
fieis, as conhecidas baratas de sacristia, não deixavam de comentar em tom de
cochicho o seu comportamento dentro da casa de Deus.
No bem da verdade apenas uma coisa realmente lhe interessava; o bom
andamento do mercado cafeeiro, o amor pelos lucros do ouro negro era
incondicional. Se a safra fosse boa seu humor era um, se fosse fraca, seu humor
era outro.
A prosa ainda durou algum tempo enquanto Anastácia preparava o almoço, depois
de alguns conselhos para cá, outros para lá, a nobre senhora saiu decidida de lá.
Aproveitaria o retorno de seu esposo da fazenda naquela noite para descrever em
detalhes os ocorridos macabros, para quem sabe talvez ele concordar que o melhor
a fazer realmente seria sair com sua família daquela casa de vez.

Capítulo XVIII - A Troca


Logo após fartarem-se com a deliciosa refeição do meio dia, preparada com
dedicação e carinho pelas experientes mãos de Anastácia, as crianças como de
costume, foram brincar no imenso quintal do casarão.
A tarde estava convidativa, diferentemente das outras típicas do mês de julho,
mesmo dona de um frio cortante, oferecia um céu de um azul intenso, lindo de se
ver, raro na capital paulista quase sempre cinza e úmida devido ao cair da fina
garoa.
Antônio foi o primeiro a deixar a mesa, seguido logo por sua irmã Joana, de posse
da misteriosa boneca sempre grudada junto ao seu pequeno corpo. A exemplo da
maioria dos irmãos caçulas, estava sempre disposta a aceitar as sugestões de
brincadeiras propostas pelo rapazote.
Sra. Silvia cansou-se só de olhar a disposição dos pequenos, cheios de alegria, não
preocupavam-se com nada, a não ser brincar, desvendar os mistérios do mundo
com seus olhos de criança.
A nobre senhora permaneceu sentada à mesa por algum tempo, além de cansada
pela manhã exaustiva que tivera, trazia consigo a preocupação e o medo do que
poderia acontecer com relação ao futuro de sua filha, e porque não dizer de toda a
família.
74

Antônio e Joana ao pisarem na terra vermelha do imenso quintal, não perderam


tempo, escolheram logo brincar perto da entrada do porão. Por se tratar de um
espaço aberto, tinha um clarão entre as várias árvores frutíferas, a terra batida era
convidativa para brincadeiras, principalmente para a preferida dele; jogar com
bolas de gude.
Entre um estralar de uma balebada e outra, na maioria das vezes certeira nas
covinhas rasas feitas no piso vermelho de terra, Antônio imerso em seu mundo
lúdico, tão distraído na sua epopeia de vidro, não percebia ou escutava nada ao
seu redor.
Colocado estrategicamente bem perto do portão, um pedaço grande de tronco de
um velho abacateiro servia de acento para a pequena Joana, que, entre um carinho
e outro no seu bibelô de rosto de louça, observava atenta ao seu herói naquela
batalha épica com as fubecas translúcidas, cheias de efeitos coloridos.
Tudo parecia normal se não fosse por um lamentar triste vindo justamente de
dentro do escuro porão. Rapidamente os olhos da menina guiaram-se para o negro
espaço, após constatar que o tal pranto vinha realmente lá de dentro, Joana olhou
para Antônio na esperança que ele também tivesse escutado a feminina lamúria,
mas nada! O jovem entretido estava, entretido continuou.
Foi então que Joana sem medo, tomada novamente pela curiosidade natural da
idade, levantou-se do tronco ao qual estava sentada, com muito cuidado para seu
irmão não perceber, caminhou lentamente em direção daquela possível mulher,
que por algum motivo triste, estava em prantos, pelo timbre que saia de sua
garganta lamentosa, ela com certeza já sabia de quem se tratava.
Joana bem devagar curvou seu pequeno corpo, passou pelo portão de ferro, andou
calmamente guiada pelo aumentar do barulho, adentrou-se cada vez mais naquele
verdadeiro buraco negro.
Precisou apenas de alguns bons passos para finalmente achar quem ela imaginava
que fosse. E realmente era. Sua amiga, sentada sobre um pequeno banquinho de
madeira velho, de costas para a saída do porão, com suas longas madeixas negras
escorridas pelas costas, caídas sobre um vestido branco, já não tão belo, marcado
pelo tempo. Joana sem perder tempo, vendo a agonia daquela figura conhecida
que pensava ser sua amiga, indagou logo:
-- Por que você está chorando? Você está triste?
75

A segunda pergunta caiu feito uma luva, o pranto estancou de repente, a voz suave
porém rouca de mulher soltou uma resposta rápida:
-- Sim minha menina, estou muito triste.
A menina dentro de sua inocência continuou:
-- Triste por que? O que te fizeram?
-- Estou triste porque não querem mais que eu e você sejamos amigas.
-- Quem disse isso? Eu sou sua amiga, não quero deixar de ser.
-- Eu também não, mas tem gente aqui que não gosta de mim. Quer que eu vá
embora, que eu não cante mais com você. Por isso estou muito triste.
Joana sensibilizada na sua inocência de criança, não conseguia entender o porquê
daquilo tudo, uma vez que a sua amiga era tão boa para com ela:
-- Mas me fala quem é. Eu não vou deixar!
Mesmo sentada de costas, a bela mulher misteriosa não pode deixar de perceber
que a menina estava em suas mãos, que era só uma questão de tempo, de jogar
com as palavras certas:
-- Você me ajudaria mesmo Joana? Ajudaria sua amiga aqui?
-- Ajudo! Ajudo sim. Eu prometo! Me conta quem é.
-- Seu irmão!
-- Antônio?
-- Sim, ele tem ciúmes de você comigo. Ele não gosta de mim, quer me ver longe
daqui.
-- Vou falar com ele agora mesmo.
-- Não! Falar não adianta, temos que fazer outra coisa. Você faria por nós? Você
prometeu que me ajudaria. Você disse. Não disse?
Joana demorou para responder, um certo temor tomou conta de seu pequeno
corpo. O que seria afinal esta "outra coisa" pronunciado com tanta veemência.
Em um tom mais macabro e certeiro sua amiga cobrou uma resposta.
-- Então Joana, vai ajudar sua amiga ou não?
A menina após uma breve pausa, com um pequeno gesto de cabeça concordou,
este pequeno gesto positivo foi o suficiente para que algo estranho a dominasse.
Possuída por uma força maior, em passos firmes caminhou para fora do porão,
antes de passar pelo pequeno portão, trocou a boneca por uma barra de ferro que
76

estava caída no chão, saiu do cômodo escuro, decidida andou em direção ao seu
irmão que brincava inocente próximo a terra de solo batido.
A doce menina, que não parecia ser mais uma menina, naquele momento era outro
ser, dona de um olhar satânico, aproximou-se lentamente por trás do irmão que
estava de cócoras pronto para dar mais uma jogada certeira, o ingênuo rapaz nem
percebeu aquele corpo em pé, ríspido, atrás do dele.
Lentamente ela levantou a barra de ferro, de olhar fixo, só esperou o momento
certo para acertá-lo bem na cabeça, porém no exato momento que ia proferir o
golpe, um grito bastou para impedir a desgraça:
-- Joana!
Anastácia, que havia ido até o quintal apanhar algumas folhas frescas de salsa,
quase que sem querer presenciou a possível cena de horror. Antes que fosse tarde
e o pior acontecesse, chamou rapidamente pelo nome da menina.
No momento exato em que foi chamada, Joana mais uma vez como que saída de
um transe, caiu em si, Antônio não pode também deixar de escutar a voz da
cozinheira, virou-se ligeiro para trás, ao ver sua irmã, ali, parada com aquele ferro
na mão, desequilibrou-se e caiu de susto.
A velha cozinheira, com muito sacrifício, dentro do seu sofrer físico, correu até as
duas crianças, rapidamente tirou o ferro das mãos de Joana, que assustada, voltou
a si, sem saber o que estava acontecendo pôs-se a chorar.
-- Minha menina, o que você ia fazer pelo amor de Nossa Senhora?
Perguntou Anastácia carinhosamente abraçada a pequena menina tremula e
apavorada, que sem ter a mínima noção da fatalidade que estava prestes a fazer,
apenas chorava desesperadamente:
-- Não sei Anastácia, não sei.
-- Como não sabe menina? Você ia fazer uma besteira. Que brincadeira boba é
esta?
-- Não sei Anastácia, já disse que não sei. Cadê a minha boneca? Eu quero a
minha boneca.
Foi quando Antônio ainda assustado, mas já de pé, apontou para a entrada do
porão:
-- Olhem, está ali, encostada na parede, bem ao lado do portãozinho.
77

E realmente lá estava o brinquedo, a maldita boneca, sentada sobre o tronco do


abacateiro encostado na parede, observando tudo. Como que se colocada
cuidadosamente por alguém para assistir com aqueles olhos negros pintados
naquele rosto de louça a rubro cena que certamente viria a acontecer. Mas quem
deixaria justamente naquele lugar?
Após o ocorrido os três foram para dentro de casa, Anastácia não perdeu tempo,
contou tudo, com todos os detalhes para sua patroa que ao ouvir tal relato
apavorou-se, percebeu que as coisas dentro daquele casarão pioravam cada vez
mais.
Daquela noite não passaria, ela tentaria convencer seu esposo a qualquer custo, ele
teria que acreditar nela, pois afinal de contas além da menina, todos corriam
perigo caso continuassem morando ali.

Capítulo XIX - A Conversa do Casal


Como já era esperado por todos, principalmente pela nobre Senhora, mal o sol deu
pretensão de se recolher por trás da Serra da Mantiqueira, pode-se ouvir o grunhir
agudo do grande portão de madeira do casarão, Sr. Francisco Jordão depois de
alguns dias fora estava finalmente de volta ao seu luxuoso lar.
Como de costume, com seu humor quase nunca simpático, mal falou com todos,
nem bem desceu da carruagem, dirigiu-se súbito para seu escritório para desfazer-
se de alguns documentos e o principal, conferir o quanto tinha lucrado com a
venda do café desta vez.
Sra. Silvia que ainda fez menção de recebê-lo com um sorriso, quando percebeu
que seu esposo nem fez questão de cumprimentá-la, logo desistiu, era
simplesmente perda de tempo tentar algum gesto de carinho com aquele homem.
O frio senhor nem sequer perguntou pelos pequenos, os empregados então, quanto
a estes pareciam que não existiam para ele, no máximo que fazia era trocar
algumas palavras com Jacinto, o cocheiro mulato, Anastácia, esta coitada, apenas
em último caso, pois sabia que sua esposa tomava a frente de tudo o que era da
casa, principalmente no que se diz respeito aos fazeres culinários.
Por um breve momento a bela senhora pensou; O que tinha feito de sua vida?
Qual motivo de se unir a um ser tão frio, rude e egoísta? Será que todas as
78

mulheres passavam por isso ou só ela? Bem, se não fosse todas, com certeza pelo
menos a maioria sofria da mesma sina.
Grande parte desta condição, devia-se pelo fato dos matrimônios serem em sua
maioria realizados por meio de armações patriarcais, regadas a muitos interesses
financeiros, e o dela como não poderia deixar de ser, não tinha sido diferente.
Mesmo sabendo de tudo isso, e o pior ainda, que não seria nada fácil abrir um
diálogo com aquele homem, tentaria a qualquer custo, afinal o que estava em jogo
era a vida da pequena Joana, e ainda mais agora depois da quase tragédia
acontecida no quintal na tarde do dia anterior, percebeu que seu primogênito
Antônio também corria perigo de morte.
Ao presenciar mais um gesto grosseiro de seu rude marido, a vontade naquele
momento foi de entrar naquele maldito escritório, bater com força a palma da mão
sobre a Barroca escrivaninha de madeira escura, jogar todos os papéis pelos ares,
e o principal, desabafar tudo o que estava preso em sua garganta há anos, sem dar-
lhe tempo para alguma reação, virar as costas, agarrar-se junto aos seus dois
amados filhos, sua amada Tata, e voltar de vez para Campinas. Obvio que ela não
faria isso, a sua condição de esposa submissa e obediente não permitia tal ato de
rebeldia feminina.
Após este pequeno pensamento de revolta, retornou a sua dura realidade, decidiu
que iria iniciar a conversa logo após o jantar. Assim quem sabe Sr. Francisco com
o bucho farto de muita comida, seu humor estaria um pouco mais aceitável?
Assim o fez, logo após a abundante e caprichada ceia, feita propositalmente com
todo carinho por Anastácia, com o intuito de deixar seu patrão um pouco mais
feliz quem sabe, finalizada como de costume com uma boa xícara de café fresco,
vindo direto da fazenda, passado na hora, Sra. Silvia pediu que as crianças
saíssem, e fossem direto para o quarto, pois queria conversar com o seu esposo a
sós:
-- Crianças, já que acabaram de comer, vão para o vosso quarto, mamãe precisa
trocar algumas palavras com o senhor vosso pai.
Joana ainda tentou argumentar:
-- Mas mamãe não estamos com sono, quero ficar perto do papai, estou com
saudades dele.
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Sr. Francisco por um breve lapso de sensibilidade paterna, deu crédito as palavras
da filha:
-- Que isso Silvia? Nós mal acabamos de fazer a refeição, deixa as crianças mais
alguns minutos aqui. Por isso que a menina sonha pesado.
Sra. Silvia que não tinha o costume de contrariar seu esposo, desta vez seguiu seu
instinto materno, obedeceu seu lado irracional de proteger a cria, sem sequer olhar
para ele, não mudou de ideia, seca, com um tom mais enérgico dirigiu-se a filha:
-- Joana, não me contrarie. Vou repetir apenas mais uma vez: os dois, vão para o
quarto agora! Quero falar um assunto sério, conversa de adulto com vosso pai.
Antônio que por uma questão natural conhecia a mãe há mais tempo, sabia que o
tom de sua voz não estava para brincadeiras, pegou sua irmãzinha pelo braço, e
juntos subiram para o quarto.
Sr. Francisco ainda pensou em falar mais alto, mas desta vez não o fez, pois nunca
tinha presenciado sua esposa assim tão fria e decidida. Achou por melhor escutar
as palavras que estavam por vir. Nem bem as crianças sumiram dos olhares de
ambos, ela começou a desfiar o rosário:
-- Bem Francisco, tenho um assunto muito sério para tratar com você, muito sério
mesmo, preciso muito que você acredite em mim, e o mais importante, preste
atenção em cada palavra que vou dizer agora.
Por um breve momento aquele homem tão rude, de postura tão firme, não soube
como argumentar com negatividade sua esposa, pois pela primeira vez, ela estava
tendo numa atitude que ele nunca tinha sequer imaginado; dominar as rédeas de
uma conversa.
Tal atitude totalmente fora do padrão convencional da época, além de deixá-lo
ressabiado, também deixou-o curioso por demais da conta:
-- Nossa Silvia, nunca falas-te neste tom comigo, confesso que estou admirado, e
porque não dizer curioso para ouvir suas palavras. Pois diga logo.
Como todo homem de seu tempo, mesmo meio temeroso com o comportamento
de sua esposa, não podia deixar de acabar a fala com uma ordem, por menor que
fosse. Assim como num texto teatral, ao ouvir a deixa ela prosseguiu:
-- Francisco temos que sair desta casa o mais rápido possível, coisas estranhas
estão acontecendo aqui, você não percebe porque fica fora a maior parte do
tempo.
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-- Bem, não vamos recomeçar com esta ladainha de novo pelo amor de Deus, se
era para falar que fico fora, devia ter deixado as crianças aqui, sabes que tenho
meus negócios e além do mais...
Antes que ele pudesse continuar com o conhecido discurso, sentiu o peso do corte
seco:
-- Não é disso que estou falando! O assunto não é este! Quanto a você ficar fora já
não ligo mais, sinceramente, para mim já não faz mais diferença, não é de hoje
que percebi que esta é e sempre será a minha sina de esposa para o resto da vida.
Disto já estou conformada!
Mais uma vez seu lado feminino falou mais alto, aproveitou um assunto para tocar
em outro, porém a gravidade da situação fez com que ela voltasse ao real motivo
da conversa:
-- O que quero dizer é que nossa filha Joana corre risco de morte se continuarmos
aqui, desde que chegamos coisas estranhas acontecem nesta casa, você mesmo viu
naquela madrugada. Você lembra disso?
-- Claro que lembro, realmente eu vi não nego, mas aquilo com certeza não passou
de pesadelo, a menina deve ter comido mais do que o necessário e não passou
bem.
Sra. Silvia já meio sem paciência retrucou com veemência:
-- Então ela deve estar comendo mais do que o necessário todo o tempo! Pois os
ocorridos estranhos tem acontecido no decorrer dos dias também! Ontem por
exemplo, era começo de tarde, os dois foram brincar no quintal como fazem toda
tarde, e ela quase causou um acidente feio em Antônio.
Ao tocar no nome de seu futuro Doutor, do seu futuro herdeiro nos negócios, Sr.
Francisco ficou preocupado, mudou o tom da conversa:
-- Como? O que você está dizendo? Quase causou um acidente no meu filho
Antônio?
-- Nosso filho Antônio! Sim, quase, sorte que Anastácia chegou em tempo de
impedir a tragédia. Caso contrário, nem sei o que seria de nós a uma hora destas.
Dentro de sua ignorância espiritual, ele ainda tentou argumentar, arrumar uma
saída:
81

-- Essa menina está ficando muito atiradinha, muito danadinha. E isto é culpa sua
e da cozinheira que faz tudo o que ela quer. Mimada! Isso que ela está ficando,
mimada.
-- Que isso homem! Pelo amor de Deus, a coitadinha é um doce de menina, o que
aconteceu é que ela saiu de si, teve uma crise sei lá do que. Anastácia disse que
ela não parecia ser ela entendes? Como aconteceu naquela noite, assim como das
outras vezes. Só eu, Anastácia e os outros empregados sabemos o que anda
acontecendo nesta casa maldita. Só por Deus!
Enquanto argumentava algo no mínimo estranho aconteceu naquele momento na
sala de jantar. Do nada, mesmo com todas as portas e janelas fechadas como era
de costume devido ao adiantado da hora, uma cena voltou a repetir-se, novamente
o inebriante cheiro de Dama da Noite tomou conta de todo ambiente, com um
pequeno detalhe, apenas ela pode sentir, sem perder tempo questionou-o se
também sentia:
-- Francisco, estais sentindo este cheiro de flor?
Sr. Francisco apenas negou com a cabeça, pois pelas suas narinas nada havia
passado, a não ser o fim do aroma gostoso do café que Anastácia tinha trazido
após o jantar.
-- Não estou sentindo nada Silvia, que cheiro de flor o que?
Neste momento a senhora levantou-se, foi conferir se alguma janela da sala havia
ficado aberta por engano, obvio que não estava. Após constatar o que já tinha
quase certeza, virou-se em direção a mesa com a intenção de voltar a sentar ao
lado dele e assim dar prosseguimento a conversa, foi neste momento que seus
olhos perceberam um vulto escuro passar por trás de seu esposo, súbito como o
vento, mas bem perceptível ao seu olhar.
Sra. Silvia ao ver aquilo deu um grito de susto, um arrepio tomou conta de todo
seu corpo, fazendo sua fisionomia mudar completamente. Sr. Francisco ao
perceber que sua esposa não estava bem, acudiu-a, colocando-a sentada
novamente a mesa:
-- O que foi Silvia? Que grito foi esse? Estais branca feito papel mulher. Pelo
amor de Deus, fala comigo, responde!
A nobre senhora ainda meio fora de si, tomada por um imenso medo, procurou
responder as duas perguntas:
82

-- Eu vi algo passar por trás de você, passou rápido é verdade, mas eu vi, juro que
vi. Meu Deus, minha Nossa Senhora, parecia uma mulher! Que horror! Que
horror!
Neste momento Sr. Francisco percebeu que aquela conversa estava indo longe
demais, que sua esposa não estava nada bem, pensou que talvez fosse pelo fato de
ficar sempre dentro de casa, presa ali, somado aos acontecidos, sua mente havia
criado, situações anormais, verdadeiras elucubrações.
Para encerrar o assunto, ele prometeu que iria pensar no assunto, na possibilidade
da mudança que ela tanto queria. Claro que a promessa não passava de um blefe
para despistar e encerrar a conversa de vez.
No seu conceito de vida, jamais daria ouvidos a uma mulher, mesmo que essa
fosse a mãe de seus filhos. Pois tinha comprado aquele casarão com um propósito,
e nada, absolutamente nada, o faria mudar de idéia, muito menos histórias
fantasiosas e mirabolantes, que com certeza não passavam do imaginário
propenso ao mítico da sua esposa.

Capítulo XX - Passou o Santo, Passou a Festa


Como já era de se esperar, a promessa que Sr. Francisco havia feito para sua
esposa realmente não passou de uma enganação, somente para acalmá-la. Um
breve tempo depois da conversa o rude homem já estava de malas prontas
novamente, pronto para retornar para junto do que realmente ele amava, os
arbustos bem alinhados na terra do ouro negro, como ele mesmo gostava de
chamar o café.
E assim o fez, nem bem o dia amanheceu, partiu em busca de lucro certo. Corria
um boato entre os empregados da casa, segundo palavras ditas ao pé do ouvido
pelo mulato Jacinto, que o bem da verdade é que a sua paixão não era penas pelos
cafezais, mas sim por uma jovem que trabalhava dentro da casa grande da
fazenda; linda, de corpo delgado, de traços delicados e jeito brejeiro, que fez o
rude Sr. Francisco enamorar-se completamente feito um menino que passa a usar
calças compridas.
Sra. Silvia em pé por trás do basculante de vidro abaixado devido ao frio de uma
das grandes janelas do seu dormitório, apenas observou o abrir do pesado portão,
e o passar da carruagem. Certa que situação alguma mudaria no que dependesse
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de seu esposo, que para o bem de seus filhos, a atitude de mudança teria que partir
dela.
Nem bem a carruagem dobrou a esquina da rua de terra batida, o som do solado
das botinas de couro determinaram o ritmo rápido pelos degraus de madeira
escura da escadaria central. A nobre senhora desceu as escadas no intuito de
encontrar Anastácia, sua mente não perdeu tempo, com certeza articulou um plano
para resolver aquela situação, só esperou o momento certo para colocá-lo em
prática.
Ao passar pelo corredor, Sra. Silvia olhou mais uma vez para o quadro da jovem e
bela moça pendurado na parede. Algo estranho fez com que seu olhar voltasse
para aquele belo rosto, era a esperança de uma certeira vingança, de uma vitória
que ela mesma não sabia do que, ou na verdade no fundo sabia.
Antes que chegasse na cozinha, já chamou pelo nome da cozinheira, pois não
queria passar por outra situação constrangedora com sua adorada Tata caída no
chão devido a algum possível susto:
-- Anastácia! Anastácia! Anastácia...
A velha cozinheira concentrada, segurava com um de seus imensos braços uma
vasilha redonda de louça e com o outro de posse de uma grande colher de pau,
batia com força a massa do que viria a ser um saboroso bolo de milho, somado
aos ouvidos que já não eram mais os mesmos, demorou um pouco para perceber o
chamado, mas pela insistência da conhecida voz que vinha de longe, da sua
amada e eterna Sinhazinha, entre uma mexida e outra com a colher de pau,
respondeu também em voz alta:
-- Sua Tata esta aqui! O que foi desta vez para Sinhazinha vim me procurar tão
cedo?
-- Bom dia Anastácia, só aguardei que Francisco saísse para vir lhe falar.
-- Falar o que minha menina? O que aconteceu desta vez? Minha menina me deixa
preocupada.
-- Não aconteceu nada Anastácia, aliás, absolutamente nada! Por enquanto, mas
sabes que tudo pode acontecer nesta casa.
-- Mas por que a menina disse que esperou o patrão sair?
-- Sabes que ele tinha prometido que mudaríamos deste lugar, porém, tudo não
passou de uma mentira para eu me acalmar. Para meu esposo, uma vez que passou
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o ocorrido, passou a necessidade de se fazer algo, como dizia minha mãe: "Passou
o santo, passou a festa", ela sempre repetia esta frase para nós. Francisco só está
preocupado com a Fazenda, e acha que os acontecidos não passam de coisas da
minha cabeça.
-- Mas a senhora disse a ele o que quase aconteceu com o menino Antônio? Que
eu cheguei na hora, antes da desgraça?
-- Sim, falei tudo! Mas ele é incrédulo, não acredita em nada. Como disse, acha
que somos todos ignorantes, que tudo não passou de peraltice de Joana.
-- Só por Deus mesmo! Desse jeito fica difícil, o patrão parece que está cego, só
não vê quem não quer.
Este "parece que está cego" dito por Anastácia com certeza tinha um sentido
dúbio, não se referia apenas aos acontecidos da casa, vivida que era, matutou logo
os pensamentos, tinha certeza que a cegueira também era por outro motivo.
-- Bem, como meu esposo não vai tomar nenhuma atitude, tomamos nós.
-- E o que a minha menina tá pensando em fazer?
--Trazer sua prima Dona Adelaide aqui, quem sabe ela não faz umas rezas, umas
preces, sei lá mais o que. Alguma coisa que possa quebrar com a maldição?
Nesta momento Anastácia parou de bater o bolo, olhou para Sra. Silvia, ficou em
silêncio por algum tempo sem saber o que responder, pois sabia que Adelaide sua
prima até poderia vir, mas que o risco de acontecer algo de ruim com ela era quase
que certo. Por outro lado, não poderia deixar que aquela situação continuasse.
A velha cozinheira ficou entre a cruz e a espada, ainda sem saber o que responder,
arriscar a vida de sua prima numa situação que não era dela, ainda mais por uma
família que no passado judiou tanto de seus entes queridos, embora a coitada da
Sra. Silvia não tinha nada ver com o passado, na época não passava de uma
menina, e de certo se fosse já adulta não teria deixado tudo aquilo acontecer - ou
no fundo será que teria? O coração de Anastácia acreditava que não, e isso
ajudou-a em sua decisão, o lado cristão falou mais alto:
-- Olha minha menina, você percebeu que Adelaide não tem papa na língua, que a
bicha é geniosa, um coração bom, mas geniosa. Podemos até tentar, mas não
garanto.
-- E se eu pagar um valor para ela? Um valor pelo feito?
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-- Pelo amor de Deus! A senhora nem me fala uma coisa dessa perto dela, aí é que
ela não vem mesmo. Aquele Dom é dela. É uma coisa dada por Deus, aquilo vem
dos nossos parentes antigos, ela veio para este mundo com este Dom da caridade,
de ajudar as pessoas. Na verdade ela é merecedora desta dádiva de Deus. Fazer o
bem, sem olhar a quem.
Sra. Silvia balançou a cabeça positivamente como se tivesse entendido, embora
aquela explicação toda era muito difícil de ser compreendida por ela, que tinha
uma visão religiosa limitada, restrita apenas as missas aos domingos nas suntuosas
igrejas que frequentava.
-- Desculpe Anastácia, eu não quis ofender, é a força do hábito em querer pagar
por tudo, por favor não me leve a mal. Mas vamos chamá-la aqui? Quero resolver
esta situação na ausência de Francisco.
-- Bem, vou fazer o seguinte; Jacinto está na casa né? Ele não foi pra fazenda?
-- Sim, desta vez Francisco foi com outro cocheiro, pois disse que iria ficar muitos
dias na fazenda, e eu poderia precisar de alguma coisa da rua, e Jacinto seria útil,
parece até que estava adivinhando.
-- Ótimo! A Sinhazinha me faça um bilhete, diga que nós precisamos da ajuda
dela aqui, e que é para ela vir até sua casa.
Sra. Silvia entendeu o recado, virou-se para sair da cozinha, porém lembrou de um
pequeno detalhe, voltou para a velha e questionou:
-- Tata, só uma coisa. Ela sabe ler?
Anastácia riu com tal colocação de sua patroa, embora fosse uma pergunta
pertinente, pois a maioria dos descendentes de escravos, e porque não dizer da
população, principalmente os mais humildes eram analfabetos. Mas no caso de
dona Adelaide era diferente:
-- Sim minha menina, sabe ler sim. A danada aprendeu na raça, por conta. Pode
escrever o bilhete, pedir para Jacinto levar, que tenho certeza que ela vem.
Ao ouvir estas palavras a nobre senhora esboçou um leve sorriso por estar mais
tranquila, rápida saiu da cozinha em busca de um papel e uma pena para escrever
o recado para quem sabe fosse a salvadora daquela situação toda.
Uma vez de bilhete na mão, entregou a Jacinto, pediu que o mulato fosse o mais
rápido possível, não perdesse tempo, obediente que era, assim o fez. Não demorou
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muito e a carroça já estava embrenhada pelas ruelas da Chácara do Bexiga em


direção ao casebre humilde de dona Adelaide.
Ao chegar no seu destino, Jacinto desceu da carroça, caminhou pelo chão de terra
entre uma poça de lama e outra, chegou até o portãozinho capenga de madeira
velho. Mesmo para ele que não passava de um simples cocheiro da família Jordão,
a visão daquele lugar não era das melhores, uma gente maltrapilha, sofrida pela
vida, formada na maioria de ex-escravos e imigrantes italianos fugidos das
fazendas de café.
Jacinto bateu palmas com força, na intenção que a tal rezadeira aparecesse logo,
sua intenção era entregar o bilhete, e sair o mais rápido dali. E realmente suas
palmas deram resultado, não demorou quase nada e dona Adelaide apareceu na
porta.
-- Pois não moço? O que posso ajudar?
-- Bom dia senhora, venho da parte de dona Anastácia sua prima, e da minha
patroa Sra. Silvia.
Jacinto que de sonso não tinha nada, citou primeiro o nome de Anastácia, pois
quem sabe assim Dona Adelaide ao escutar o nome da prima em primeiro lugar,
não se sensibilizaria, e o atendesse com mais boa vontade. Mas para sua surpresa,
aquela senhorinha magrinha, de vestes humildes, surrateadas pelo tempo, era bem
menos ingênua do que ele pensava, com um sorriso mais do que esperto
respondeu a colocação do jovem mulato:
-- Por parte de Anastácia? Sei, sei, diga logo a que veio, sei que está aqui por
causa de sua patroa. O que foi desta vez?
Meio sem jeito pela resposta que acabara de ouvir, Jacinto com riso amarelo,
entregou o bilhete para Dona Adelaide, esta pegou-se em sua mão enrugada e
trêmula, leu ali mesmo, de imediato deu a resposta:
-- Olhe menino, você diga a sua patroa, que hoje antes que o sol se ponha de vez,
eu chego por lá, que ela me espere.
-- Mas a senhora vai até lá como? Minha patroa deu ordens que eu a levasse até a
casa.
-- Como eu vou menino? Eu vou na caminhada, vou de pés. E tem mais, a tal
obrigação, o trabalho que vou fazer lá na casa só pode ser feito a noite. Agora vá
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se indo vá! Leve o recado para sua patroa, mais tarde me achego por lá. Tenho
muita gente para ajudar aqui hoje. Passar bem e até mais ver!
Dona Adelaide não esperou nem um até logo do jovem Jacinto, virou as costas,
calmamente adentrou-se na humilde casa. Jacinto ficou ali, parado, com cara de
nada, percebeu que o melhor a fazer era subir na carroça, tocar os cavalos de volta
para Várzea do Carmo e dar o recado para sua patroa.

Capítulo XXI - Café com Bolo


Promessa é dívida! O tímido sol da terra da garoa já estava prestes a recolher-se
mais uma vez por trás das colinas do lado norte da cidade, quando o som do
insistente bater de palmas fez-se ouvir por quem estivesse do lado de dentro do
portão, Anastácia ao ouvir o chamado atinou rápido que tratava-se de sua prima
que chegara na casa para a difícil obrigação.
Sem perder tempo, ela mesma foi abrir o portão, fazia muito tempo, na verdade
anos que não via sua parenta. Mesmo morando em uma distância relativamente
perto uma da outra, provável que, devido aos afazeres domésticos e as
circunstâncias da vida, contato entre ambas quase certo que não existia.
Anastácia ao abrir o grande e pesado portão, deparou-se com a prima ali parada;
velha, magra, marcada pelo tempo sempre ingrato e cruel com os mais
desfavorecidos, trajando um vestido que, embora um pouco melhor do que o outro
- de ficar em casa - igualmente surrado pelas pancadas nas pedras do riacho. A
gorda cozinheira não segurou a emoção, antigas imagens tomaram conta de sua
cachola branca.
A imagem típica Debretiana chamava a atenção dos poucos transeuntes que
passavam pela rua naquele momento: As duas velhas negras, ex-escravas; uma
gorda de perna inchada e a outra magra por demais, inertes em frente uma da
outra, esperando uma da outra quem daria o ar da graça e tomasse a iniciativa de
um saudoso e apertado abraço.
Olhos nos olhos demorados, contemplativos, depois de um bom tempo nesta
pausa pictórica do famoso pintor, finalmente veio a tona a antiga sintonia dos
tempos de meninas, deram-se as mãos, abraçaram-se demoradamente entre gritos
e risos de alegria.
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Anastácia talvez por servir uma família, ou talvez por ajudar a criar as duas
inocentes crianças, ou ainda talvez por ser gorda, imensa de gorda, com aquela
perna inchada, sempre dolorida por causa da maldita erisipela mau curada, ou por
apenas os vários talvezes da vida, que só Deus mesmo com certeza saberia
responder, permitiu que a primeira lágrima escorresse sobre seu rosto redondo e
reluzente de tão negro, marcado pelo tempo.
-- Entra prima, pelo amor de Deus. Quanto tempo! quanto tempo! Ai meu Deus!
Minha Nossa Senhora quanto tempo! Entra vai, passa pro lado de dentro. Vamos
entrar lá pra dentro da cozinha, aqui tá muito frio! - falou a velha cozinheira, ainda
emocionada.
Adelaide que, aparentava ser a mais forte, de sentimento seco, também
emocionou-se ao ver a prima, com um sorriso sincero, passou do portão quintal
adentro. Logo seus olhos igualmente marejados, ficaram desobedientes, guiados
possivelmente por força própria para contemplar aquelas belas e altas paredes, de
tijolos vermelhos a vista, cortadas pelas enormes janelas de madeira.
A velha curandeira do Bixiga fitou durante um bom tempo a imponente
arquitetura neoclássica, admirada com tanta beleza, não pode deixar de comparar
aquele que para ela era um verdadeiro monumento com sua casinha pequenina,
pobre, humilde, feita ainda de taipa de pilão.
Tal comparação levou-a a questionar com Deus em pensamento: -- Meu Deus!
Sua pobre filha aqui sabe que o senhor meu pai tá sempre certo. Mas não me leve
a mal por favor, Mas algo tá errado no mundo, e como tá!
Uma vez acomodadas dentro da rústica, porém aconchegante cozinha do casarão,
bastaram algumas palavras trocadas para toda intimidade dos tempos em que eram
meninas brotar novamente, as duas primas conversaram durante um bom tempo,
colocaram a conversa em dia, relembraram o passado dos tempos de escravidão
no interior, das brincadeiras de criança, isso das poucas vezes que podiam se dar
ao luxo de ser criança.
Quando Anastácia ia servir uma xícara quente de café passado na hora, com um
suculento e molhado pedaço de bolo de milho cremoso que ela havia feito
justamente para esperar a prima, Sra. Silvia entrou no recinto, deparou-se com as
duas mulheres prontas para saciar a fome. Cumprimentou com elegância a recém
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chegada, súbita não pensou duas vezes, simples que era, sentou à mesa, bem ao
lado da visita, sem pestanejar pediu também café e bolo para comer.
Adelaide olhou Sra. Silvia com um certo receio, e porque não dizer uma pequena
admiração, mesmo com toda sua sapiência de vida, era difícil para ela
compreender como uma Senhora tão bela, tão nobre, e o principal, de pele branca,
pudesse dividir aquela mesa de madeira rústica com uma simples e velha negra,
ex-escrava, vinda da periferia da cidade.
Este pequeno gesto da nobre senhora, com certeza conquistou o coração de
Adelaide, contribuiu para uma mudança, ainda que tênue, sobre o seu olhar crítico
para com a maioria da gente pele branca.
Mal Anastácia serviu Sra. Silvia, esta sem perder tempo abocanhou com uma gula
inocente de criança o pedaço de bolo que lhe foi dado, Dona Adelaide que não
estava ali para saciar a fome, resolveu entrar no assunto do real motivo de sua
vinda, porém antes não perdeu a oportunidade de fazer uma graça com a nobre
senhora, talvez com a intenção de criar uma certa amizade:
-- Eita! Parece que a Sra. Silvia está com fome mesmo não é Anastácia? Cuidado
para não engasgar em dona?
A velha cozinheira que conhecia de longa a data sua patroa, rindo, apenas
concordou com um gesto de cabeça, lisonjeada pelo sucesso da iguaria cremosa
junto a sua menina.
Sra. Silvia não se conteve, riu também, mesmo com a boca cheia da molhada
massa doce e amarela, não pode deixar de rir daquela situação. Depois de um
certo sacrifício, conseguiu engolir tudo, e finalmente com uma graça pode
responder a pergunta:
-- Desculpe o meu jeito, pareci uma morta de fome não é?
Adelaide admirada, de olhos arregalados, apenas concordou com que acabara de
ouvir, Sra. Silvia continuou com a tentativa de justificativa para o seu jeito moleca
de comer, conforme argumentava, as duas velhas achavam mais graça na alma de
menina daquela linda mulher.
-- Sabe o que é? Eu adoro este bolo de milho que sua prima faz, desde quando eu
era pequena lá na fazenda, Anastácia o fazia quase que todos os dias pra mim, eu
pegava um farto pedaço e ia comer com gosto sentada num banquinho que tinha
bem na entrada da cozinha da casa grande. Você lembra não é Tata?
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A velha Anastácia sabia que quando sua patroa a chamava de Tata, era porque a
saudade estava falando mais alto, sem querer atrapalhar o momento da sua eterna
Sinhazinha, sem falar nada, novamente apenas concordou balançando a cabeça
com sorriso tão doce quanto o próprio motivo da cena.
-- Aquelas tardes para mim eram inesquecíveis, aquele era o meu momento, só
meu, mais de ninguém! Sentada ali, comendo com gosto o tão esperado pedaço de
bolo quente, ao longe aquela campina verde, a florada dos cafezais de meu pai
parecia uma pintura de tão linda, entre elas podia-se ver os escravos, eram muitos.
Meu Deus! Tão menina que eu era, inocente de tudo, não entendia porque
trabalhavam tanto naquele sol quente, e os outros homens apenas olhavam. Aquilo
mexia comigo sabe? Não sei porque, mas mexia. Eu não achava justo, nunca
achei.
Dona Adelaide ainda tentou entrar no assunto, dizer algo, mas Sra. Silvia como
que tomada pelo dom da palavra continuou:
-- Mas sabe o que é Dona Adelaide? Aqui, neste canto da casa, junto de
Anastácia é que me sinto livre, me sinto eu mesma. Igual quando caminho pelo
jardim, entre as flores, uma paz tão boa toma conta de meu peito, bate aqui dentro
uma saudade daquele tempo de outrora que não volta mais.
-- A senhora não é feliz aqui né Dona?
Interrompeu Dona Adelaide.
-- Não sou. Mesmo antes de vir morar neste casarão maldito, confesso para a
senhora que eu não era. Tirando os meus dois filhos, estes com certeza são a razão
do meu viver, do resto, falta muito, acho que falta amor sabe? E depois que
viemos morar aqui então, com todas estas coisas estranhas acontecendo com
minha pequena Joana, aí é que a minha felicidade foi-se embora mesmo. Não
adianta ter tudo, ou quase tudo de luxo, mas não ser amada de verdade pelo
homem que deita com você todas as noites, ou no meu caso quase todas as noites.
Desculpe falar assim, é que com a senhora senti a mesma liberdade que tenho com
a minha Tata, por favor, releve as minhas palavras.
Neste momento as primas se olharam, perceberam a emoção aflorada da nobre
senhora, viram que já estava mais do que na hora de mudar o rumo da prosa,
afinal aquela visita não era apenas um passeio, Dona Adelaide veio para tentar
quem sabe solucionar o grave problema, e pelo adiantado da hora, já estava bom
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de iniciar os trabalhos. Foi quando Anastácia que até então só observava tudo,
resolveu dar destino aos afazeres de sua prima:
-- Nós sabemos que não é fácil as coisas da vida né Adelaide? - a outra concordou
com a cabeça - Mas é bom nós começarmos os trabalhos né Adelaide?- a prima
novamente concordou em silêncio - Então tá, vamos dar a última golada no café,
e vamos ver o que temos que fazer né Adelaide? - pela terceira vez a senhorinha
magra apenas concordou - Não sei não, mas acho bom viu patroa, deixar minha
prima sentir por onde devemos começar né Adelaide? - a velha curandeira já não
aguentando mais tanto "né Adelaide?", desta vez apenas fechou os olhos.
Com as pálpebras ainda fechadas, dona Adelaide começou uma reza em voz
baixa, mas tão baixa, que mesmo quem estive do lado dela não conseguiria
compreender as palavras que saiam de seus enrugados lábios numa velocidade
anormal.
Sra. Silvia e Anastácia apenas observaram, quietas, esperando o que estava por
vir. Depois de algum tempo, dona Adelaide parou de rezar, levantou a cabeça, e
manifestou o seu parecer para as duas, que ansiosas esperavam pelo que viria a ser
dito:
-- Temos que ir até o corredor lá dentro Dona. É isso! No corredor onde tem o tal
quadro da moça pintada que a dona me falou.
Sra. Silvia assustada com o que acabara de ouvir concordou:
-- Sim, vamos. Nossa! Como detesto aquele quadro.
-- E não tem nada que gostar mesmo Dona Silvia. Me leva até ele.
Após pequena pausa, surgida quem sabe pela curiosidade, as três mulheres
levantaram-se e dirigiram-se em direção ao corredor onde encontrava-se o tal
quadro pintado a óleo da tal moça mencionado pela sábia e experiente curandeira.

Capítulo XXII - Dona Adelaide e o Quadro


Não tardou e as três decididas mulheres já encontravam-se paradas em frente ao
misterioso quadro, dona Adelaide ao mirar aquela pintura, de traças delicados,
ricos nos detalhes que sem exagero parecia dar vida a bela cabocla nela retratada.
Mais do que de repente, a curandeira foi tomada por um forte arrepio, que súbito
subiu por sua velha e cansada espinha, desta vez sentindo um raro medo, a
experiente benzedeira percebeu que a luta seria bem mais difícil do que ela havia
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imaginado. Porém esta era a sua missão naquela casa, e com certeza seu objetivo
de limpar espiritualmente o casarão seja lá de quem fosse, tentaria cumprir da
melhor maneira possível.
Na posição de líder entre as três, Dona Adelaide deu as ordens do que seria feito,
mas antes do início propriamente dito dos trabalhos, tirou algumas dúvidas com a
proprietária do velho casarão:
-- Dona, nós vamos começar o trabalho, mas antes quero saber da senhora se as
crianças já estão recolhidas no quarto delas?
-- Sim, com certeza, pedi que tomassem a ceia mais cedo do que de costume
porque imaginei que seria melhor mesmo ficarem longe daqui.
-- Muito bem dona, muito bem! Nós vamos começar agora e não temos hora para
terminar, vamos entrar noite adentro, a dona tá me entendo? Você também prima?
Sra. Silvia e Anastácia receosas olharam-se por um breve instante, depois ambas
lentamente lançaram seus respectivos olhos assustados para Dona Adelaide, e
praticamente ao mesmo tempo balançaram a cabeça positivamente.
A velha curandeira do Bixiga ao ter a confirmação das duas mulheres, deu início
ao que seria um verdadeiro e difícil ritual de limpeza espiritual.
-- Então vamos começar de vez isto aqui, nós três vamos rezar para nosso senhor
Jesus Cristo e Nossa Senhora, sem parar, quantas vezes for preciso, mesmo que eu
fale outras coisas no meio, a dona e a prima continuam com a reza tá certo? Não
parem de forma alguma. As duas estão entendendo o que estou dizendo?
Novamente as duas balançaram a cabeça positivamente, Anastácia ainda pensou
em questionar alguma coisa, mas achou por bem ficar calada para não falar
nenhuma bobagem quem sabe.
-- Outra coisa, eu preciso que as duas sejam fortes e mais do que isso; corajosas,
pois bem provável que muita coisa feia pode aparecer aqui nesta noite. Pelo amor
de Deus, não me parem de rezar nem um minuto. Rezem com esperança, verdade,
e o mais principal de tudo, muita fé e amor do fundo dos vossos corações.
Pela terceira vez, as duas balançaram a cabeça concordando com dona Adelaide,
esta por sua vez e já irritada porque as duas não falavam nada, indagou:
-- Mas que Diacho que ninguém fala nada uai!
-- Falar o que prima? Tamo aqui escutando as ordens, prestando atenção na suas
palavras para não fazer nenhuma besteira.
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-- Então tá! Vamos começar logo, que isso vai longe, muito longe...
Em pé e paradas em frente ao quadro, as três mulheres deram as mãos, no qual
dona Adelaide ficou no meio, Anastácia do lado esquerdo e Sra. Silvia do lado
direito, esta com a palma da mão completamente suada, de certo medo.
Um detalhe chamou atenção de Dona Adelaide, o sentir diferente do pegar de
cada mão. Na esquerda uma mão calejada, marcada pelo tempo, a segurava firme.
Na direita uma mão jovem, de pele macia, de dedos esguios, que a segurava leve e
delicadamente.
Rapidamente não pode deixar de lembrar de seu velho pai, um escravo que nos
tempos antigos era forte e parrudo, com o passar de mais de sessenta anos na
labuta diária, de sol a sol, morreu velho e cansado, quase cego devido aos males
deixados por uma picada de cascavel na lavoura de café da família de Sra. Silvia.
A lembrança da imagem do pai, não veio do nada, serviu apenas para resgatar
uma frase que o velho negro africano forte sempre repetia: "-- A diferença do
negro e do branco começa pelas mãos; a cor das palmas são até da mesma, mas o
modo de segurar é bem diferente. Por isso fia, nunca confie nos branco. Nunca!".
Por um breve instante a antiga revolta tomou conta do coração de dona Adelaide,
porém o momento não era para lavar velhas roupas sujas, e sim de ajudar aquela
nobre senhora, desesperada por salvar sua família.
As três mulheres juntas, abriram o trabalho de desobsessão com um Pai Nosso,
depois uma Ave Maria, e em seguida um Credo. Dona Adelaide com
conhecimento de causa, puxava e definia a sequência da ladainha cristã, permeada
as vezes por um ou outro falar em idioma Banto, que apenas ela e a prima
entendiam.
Encostado estrategicamente em um dos cantos da sala principal do casarão, o
belo e imponente Carrilhão Alemão, todo feito em madeira nobre da Floresta
Negra, talhado com ricos detalhes em dourado, e grandes ponteiros na mesma
cor, marcava as exatas vinte e uma horas quando a ladainha das três vozes
femininas deram início a esperançosa reza.
Quase que tomadas por um transe espiritual, as três ficaram ali por horas a fio.
Dona Adelaide embora fosse a mais magrinha, sem sombra de dúvida era a mais
firme e forte. Sra. Silvia mesmo com toda experiência de tantas missas
dominicais, estava praticamente entregue ao cansaço. Anastácia Coitada, das três,
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era a pior de se ver; com aquele corpo imenso de gordo, a perna inchada e escura,
seu olhar já transparecia o enorme sofrimento físico.
Já sabendo do avançado cansaço das três mulheres ali presente há horas; em pé,
paradas, de mãos dadas, rezando sem parar. O mal lentamente, sem pressa, deu o
ar da sua graça, mostrou seus primeiros sinais.
No carrilhão batia exatamente meia noite.
O velho conhecido cheiro de Dama da Noite não tardou, tomou conta do espaço
ocupado pelas três senhoras, o forte cheiro veio acompanhado por vultos escuros
que lentamente passeavam pelas suas costas. Em pausas longas, encostaram
sutilmente por trás, nas costas de Sra. Silvia e de Anastácia, prontos a manifestar
algo quem sabe ao pé do ouvido das duas. Tais encostos macabros presenteavam-
nas com horríveis calafrios e tremores por todo o corpo.
Talvez pelo fato de ser a mais frágil das três, Sra. Silvia foi a primeira a sentir a
presença nada agradável daquelas criaturas assombrosas da noite. De olhos
fechados estava, de olhos fechados continuou, pois, sabia e sentia que tinha algo
muito estranho por perto, uma outra pessoa, além dela e das duas senhoras.
A nobre senhora não queria e nem tão pouco estava preparada para ver sabe-se lá
o que? Mas de uma coisa tinha absoluta certeza, não podia parar com as orações,
teria que aguentar firme, até o limite dos limites. Teria que ser forte, ter muita,
mas muita fé no supremo.
Rezar, rezar e rezar era sem sombra de dúvida talvez o maior e único balsamo de
paz espiritual sobre todas elas naquela noite. Por mais que o pavor tomasse conta
de seu corpo, sabia que o futuro de sua amada filha Joana estava de certa forma
em suas mãos.
A velha cozinheira também não escapou da horrível sensação, mesmo tomada de
medo, sabia muito bem o que teria que ser feito. Anastácia já tinha visto muitas
coisas do mundo dos mortos. A vida havia lhe presenteado com muitas
experiências ditas do além. Desde menina, nos tempos da escravidão, ela
participara das reuniões com os homens negros descalços da Senzala, os
respeitados e honrosos pretos velhos.
Ao sentir o mal em suas costas, rezou com mais fé, sem perceber apertou com
força a mão de sua prima, chegando ao ponto de estalar os magros dedos da
coitada. Esta por sua vez, ao perceber o que estava acontecendo com as duas,
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sentiu a necessidade de impor para quem é que fosse, que quem comandava o
trabalho era ela, que se tivessem que atacar alguém, que fosse ela e não as outras
duas. Imperativa ordenou:
-- Seja lá quem for você, eu ordeno em nome de Nosso Jesus Cristo e de Nossa
Senhora Aparecida que deixe esta casa, que dê sossego para esta família. Saia
daqui agora! Em nome de Deus! Vai te embora coisa ruim! Vai te embora filha do
Demo!
A velha benzedeira do Bexiga nem bem terminou sua firme colocação, e tudo
voltou ao normal, o cheiro de Dama da Noite e a sensação da presença de outros
seres desapareceu feito um raio. Sra. Silvia e Anastácia aliviadas com tamanha
sensação de paz, trocaram olhares cúmplices, aos poucos seus corpos foram sendo
tomados pela normalidade.
Mesmo assim a líder da difícil tarefa alertou que o perigo não havia passado, que
nada estava resolvido, muito menos acabado. Pelo contrário, a batalha ainda seria
árdua madrugada adentro:
-- Prestem atenção mais uma vez, isso só foi o começo. A coisa acalmou, mas não
acabou. Muita batalha pela frente, muita oração de nós três.
Anastácia não se conteve, questionou a prima:
-- Mas prima, será que o mal não foi embora de vez? Parece que tudo voltou ao
normal.
-- Isso é só uma trégua minha prima, uma trégua! O pesadelo é muito mais feio do
que parece. Vocês duas continua a reza, não para. Vou até o quintal e já volto.
Neste momento Sra. Silvia olhou assustada para dona Adelaide como quem diz: --
vai aonde? Vamos ficar aqui sozinhas? A velha negra lendo o pavor nos olhos da
nobre senhora, tentou acalmá-la:
-- A senhora fique tranquila viu? Por enquanto a coisa tá controlada. Eu vou
buscar umas coisas no quintal e já me volto. Vou num pé e volto no outro. Sra.
Silvia mesmo desconfiada, apenas balançou a cabeça concordando.
Em passos firmes, porém lentos, dona Adelaide dirigiu-se até o escuro quintal,
sem perder tempo colheu alguns galhos de arruda bem fresco, e uma folha bem
comprida de espada de São Jorge.
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Uma vez de posse das duas distintas plantas, agradeceu com um olhar cheio de fé
em direção ao céu cinza da madrugada paulistana, a nobre oportunidade de salvar
aquela família infeliz.
Dentro de sua consciência e credo africano, tinha a certeza do poder mágico dos
seres da natureza, da força dos espíritos da mata. Aprendeu com seus ancestrais
que muitos, se não todos, estavam presentes nas plantas e árvores da natureza.
Ao regressar para dentro do velho casarão, caminhou de volta para perto das duas
mulheres que a esperavam ansiosas e apreensivas. Desta vez foi Sra. Silvia que
indagou sobre aquele verde todo nas mãos de dona Adelaide, parou por um
instante a reza, questionou:
-- Nossa! Porque destas plantas todas em sua mão? A arruda eu até já tinha ouvido
falar que é bom para espantar o mau olhado. Mas Espada de São Jorge eu não
sabia que também servia para estas coisas do outro mundo.
Dona Adelaide com um pequeno sorriso irônico de quem sabe das coisas,
respondeu com calma a nobre senhora, aproveitou para não perder a oportunidade
de dar uma leve cutucada:
-- A senhora não sabe de muita coisa dona. Deus nos deu a natureza não só para
encher a barriga do homem. Os irmãos da mata estão aqui para ajudar. Para fazer
o bem para o homem, pena que a maioria de vocês brancos não enxerga isso. No
fundo a minha gente mesmo sofrida e mal tratada tem pena de vocês, gente
branca. Mas vamos voltar ao que interessa. Vocês duas continuem rezando, que
eu vou colocar um galhinho de arruda na orelha direita de cada uma, assim como
na minha orelha também. Isso vai afastar por hora os malditos. A Espada de São
Jorge fica na minha mão.
E assim ela o fez, com delicadeza enfeitou as orelhas das outras duas, o que antes
estava tomado pelo cheiro de Dama da Noite, agora era dominado pelo aroma da
fresca Arruda, ao término desta tarefa, dona Adelaide com a comprida Espada de
São Jorge na mão direita, começou a rezar em uma língua que até mesmo
Anastácia desconhecia, a cada frase dita, dona Adelaide batia com força a folha no
chão, como se estivesse dando um castigo em alguma entidade.
Sra. Silvia e Anastácia assistiram aquela verdadeira cena de açoitamento para com
o chão admiradas, pois era realmente muito estranho de se ver. Quanto mais ela
rezava, mais força batia.
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Depois do pequeno ritual, ela simplesmente parou, com o objeto em punho, fixou
o olhar direto na menina dos olhos da moça retratada no quadro. Começava neste
momento uma disputa espiritual entre a benzedeira e a verdadeira dona daquele
casarão.
Tudo ocorria como o esperado por dona Adelaide, porém algo estranho aconteceu,
exatamente as três horas da manhã, a nobre senhora e a velha cozinheira caíram
em um sono profundo, a velha benzedeira testemunha do cansaço físico das duas,
sabia que jamais elas se permitiriam dormir numa ocasião daquela. Não
aguentaram, caíram quase que desmaiadas de sono.
Tudo muito estranho, as duas mulheres dormirem justamente na hora em que os
portais para o outro mundo estavam abertos. Diziam os antigos que as três horas
da tarde, foi a hora exata da morte de Cristo, sendo assim as três horas da
madrugada ficou conhecida como a Hora Oposta, a hora que o mal tem mais
força e liberdade para zombar com a santíssima trindade: Pai, Filho e o Espírito
Santo. Para a santíssima igreja a revelada A Hora Morta!
E realmente não foi coincidência, dona Adelaide percebeu que tinha algo a mais
ali, e não é que ela estava certa?
De repente grunhidos bestiais, gritos sofridos vieram dos diversos cantos da casa,
as chamas das velas que iluminavam o ambiente, quebraram-se, ficando
praticamente deitadas, como se alguém as assoprassem sem parar. Os vultos
tomaram conta do ambiente novamente, desta vez com mais veemência.
Dona Adelaide embora sabia que seria difícil, não arredou pé, permaneceu em
oração, firme e forte, até que do quadro saiu algo assustador que agarrou o magro
pescoço da velha senhorinha, apertando cada vez mais, esta por sua vez, ainda
tentou esboçar alguma reação, mas de nada adiantou. A luta era desigual.
Aos poucos o brilho de seu olhar foi sendo trocado pelo vazio do infinito, pela
escuridão das trevas. Lentamente a espada de São Jorge escapou de sua mão que
já não tinha como segurá-la. Suas magras pernas aos poucos foram arreando,
cedendo ao próprio peso do velho corpo, que devagar encontrou o piso frio de
mármore branco do corredor.
Era o fim da famosa e bem quista Benzedeira do Bexiga, mulher corajosa que não
temia ninguém, vivo ou morto. A senhorinha negra, sempre arrumadinha com seu
vestido velho de chita, não tinha medo de falar a verdade doesse a quem doesse. A
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sábia que com suas orações e bondade salvou muitas crianças daquele bairro
periférico da cidade. Molecada pobre, bichada por vermes, cobreiros e mau
olhados. Curou e aconselhou também muitos adultos das maldições do corpo e da
alma.
Mesmo com tudo isso, ela não foi forte o bastante para vencer a verdadeira dona
do velho casarão. Desta vez as forças das trevas prevaleceram sobre as forças da
luz . Dona Adelaide estava morta!

Capítulo XXIII - Jacinto e o Mordomo


Mal deu tempo dos guardiões da calada da noite escura trocarem a guarda com
seus companheiros da luz, e pode-se ouvir as batidas dos solados de couro
pisarem decididos os degraus de madeira da escada central sentido ao térreo do
casarão.
Diferente da pequena Joana que continuava nos braços de Morfeu, sonhando sabe-
se lá o que? Talvez com as brincadeiras e passatempos de criança no grande
quintal do casarão, ou com as compridas fileiras das Lavapés, seguindo sempre
em linha reta, pequeninas, quase invisíveis, que insistiam seguir sempre o mesmo
caminho, com o mesmo objetivo ou mesmo sonhando com sua adorada boneca.
Ao contrário da inocente menina, Antônio desde a noite anterior, quando sua mãe
ordenou que os dois se recolhessem mais cedo para o quarto, desconfiou que algo
estranho iria acontecer na casa.
Muita conversa, muita falação. Quem era aquela senhora magra, estranha, que ele
mesmo nunca tinha visto dentro de sua casa, confabulando aos montes com sua
mãe?
E não é que o rapazote de calças curtas estava bem que certo na sua mineirice?
Assim que seu pé direito tocou o último degrau da escada, olhou no meio do
corredor, bem em frente ao tal quadro misterioso, as três mulheres deitadas; ali,
dormindo tranquilas nos ladrilhos brancos de mármore frio.
Ao presenciar perplexo aquela cena no mínimo estranha, além de confuso, de
imediato foi tomado por uma enorme curiosidade.
-- Que negócio é esse? Por que será que as três foram dormir justamente ali?
Mal sabia o inocente rapaz que uma das três senhoras caídas naquele chão frio, de
olhos fechados, na realidade não estava dormindo, e sim morta.
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Ressabiado e temeroso pelo o que poderia descobrir daquela imagem, aproximou-


se devagar. Ao chegar perto das três, parou por um breve instante. Fixou os olhos
naqueles corpos deitados. Observou demoradamente um a um, pode ver o
movimento do sono no peito de sua mãe, o subir e descer do respirar. Depois
dirigiu os olhos para Anastácia, também constatou o mesmo movimento. Porém
ao olhar para a terceira mulher, a tal que ele desconhecida, percebeu logo que seu
peito estava completamente inerte. Nem para baixo, nem para cima. Parado. Sem
vida.
Assustado correu em direção a sua mãe, debruçou-se sobre seu corpo caído, com
várias sacudidas fortes, repetidas chamadas, forçou-a a acordar.
Após um certo esforço, como que por contra vontade, lentamente as pálpebras da
pele branca da nobre senhora abriram-se. Aos poucos ela foi retomando a
consciência. Quando deu por si, estava completamente de volta ao mundo real.
Sem lembrar de nada o que tinha acontecido nas últimas horas, igualmente ao
filho, também assustou-se com a própria posição que encontrava-se. Antônio sem
perder tempo, trouxe a mãe para a dura realidade:
-- Mamãe, o que aconteceu? Vocês dormiram aqui? E o que são estas folhas na
sua orelha? Quem é esta senhora? Por que tudo isso?
Atordoada com tantas perguntas, ainda perdida pela situação no mínimo
constrangedora. A nobre senhora por um instante não soube o que responder
primeiro. Na verdade ela mesma não estava compreendendo nada do que se
passava ali.
O garoto percebeu que a crivada de perguntas não surtiram efeito, optou por ir
mais devagar com as indagações:
-- Desculpe mamãe, é que me assustei. Ver vocês três aqui no corredor deitadas.
-- Tens razão meu filho, nem eu estou entendendo nada. Só lembro que estávamos
em oração.
-- E o pior, creio que aquela senhora não esteja dormindo feito a senhora e
Anastácia.
Neste momento ele esticou seu magro braço, típico de um menino que está
entrando na puberdade; nem de criança, nem de homem, e com o indicador
apontou para corpo morto de Dona Adelaide.
100

Sra. Silvia ao olhar dona Adelaide deitada, sem nenhum movimento que acusasse
algum sopro de vida. Rapidamente levantou-se, sem perder tempo dirigiu-se até
Anastácia para acordá-la depressa.
A velha cozinheira ainda dominada pelo feitiço do sono profundo, demorou um
certo tempo para abrir os olhos, acordar. Depois de muita insistência por parte de
sua patroa, ela finalmente também voltou ao mundo dos vivos.
-- Tata! Tata! Levante-se mulher de Deus, algo terrível aconteceu com sua prima.
Anastácia ainda meio que atordoada questionou junto a patroa:
-- O que foi? O que aconteceu? Santo Deus, parece que dormi uma eternidade. Ai
minha cachola, como dói...
-- Nós dormimos aqui no corredor, mas parece que o pior aconteceu com a
senhorinha Adelaide, olha lá...Olha lá!
Neste momento a velha cozinheira, que acabara de vencer com êxito a árdua
batalha para ficar em pé, olhou para a direção que sua patroa apontara, seus olhos
não queriam acreditar no que viam, mas era a mais pura verdade, sua prima estava
caída no chão, esticada, morta. Anastácia deu um grito de susto e desespero,
dirigiu-se com dificuldade para junto do corpo caído da já saudosa prima. Com o
redondo rosto lavado em lágrimas, inconformada tentou o impossível:
-- Prima! Prima Adelaide! Pelo amor de Deus prima, acorda prima, abre esses
olhos! Não é possível meu Deus! Minha Nossa Senhora, o que eu fiz? O que eu
fiz?
O peso da culpa por ter envolvido a prima na história macabra do casarão fez-se
forte neste momento. Jamais, em tempo algum, ela poderia imaginar que sua
prima que distante dela há tantos anos fosse morrer ali ao seu lado, sem ela poder
fazer nada.
Senhora Silvia ao ver o desespero justificável de sua cozinheira, com a ajuda do
jovem Antônio tentou acalmá-la, afinal não tinha mais o que ser feito, a não ser
chamar as autoridades, e tentar explicar o inexplicável.
-- Vamos Tatá, acalme-se por favor, ela faleceu tentando nos ajudar, vamos ser
fortes. Você não teve culpa, nós não tivemos. A culpa foi desta maldita casa.
-- Eu tive sim Sinhazinha, tive sim. Fui meter minha prima nesta história, a
coitada não tinha nada a ver com tudo isso aqui.
101

-- Mas Tatá, você só quis nos ajudar mulher de Deus, e ela realmente era a pessoa
mais indicada para tentar resolver tudo isso. Você não fez por mal, apenas quis
proteger a mim, e as crianças. Ela sabia de sua missão, era uma mulher
abençoada, veio ao mundo com este dom de Deus.
-- Eu sei Sinhazinha, eu sei...E agora vamos fazer o que?
-- Vamos chamar as autoridades e o Dr. Onofre, nosso médico da família, vamos
falar que ela teve um mal súbito, e não sabemos o motivo.
-- Mas nós sabemos sim Sinhazinha o motivo, nós sabemos muito bem que foi
essa maldita maldição da casa, foi ela que levou minha priminha.
-- Claro que no fundo sabemos. Mas como vamos explicar isso para Dr. Onofre,
um médico, que creio eu que nem acredita em Deus, e explicar para as
autoridades? E pior ainda, para Francisco, com esta confusão toda havia até me
esquecido dele. Você acha minha querida que todos eles irão acreditar nas nossas
crendices? Se nem meu esposo que presenciou coisas estranhas aqui dentro
acredita. Vamos limpar tudo isso aqui, tirar essas plantas e tudo mais. Antônio
meu filho, faz um favor para sua mãe, me chame Jacinto aqui, rápido.
O jovem rapaz que até o momento apenas obervava a dolorosa cena; o choro
ressentido da velha cozinheira em cima do cadáver, obedeceu rapidamente ao
pedido de sua mãe. Nas carreiras foi até a edícula onde Jacinto morava com outros
empregados da casa. Uma vez na porta da pequena e humilde alvenaria, o garoto
não precisou chamar duas vezes, pois Jacinto como de costume já estava de pé,
pronto para mais um dia de labuta:
-- Jacinto! Jacinto !
-- Bom dia jovem Antônio, o que manda aqui tão cedo, caiu da cama?
-- Antes fosse Jacinto, antes fosse. Aconteceu uma desgraça lá dentro da casa,
minha mãe pediu para você correr lá.
Ao ouvir a explicação do garoto, Jacinto percebeu que tratava-se de algo sério,
feito um raio correu para dentro do casarão. Ao adentrar-se no corredor, pode ver
as três mulheres; duas em pé chorando e uma caída. Sem entender nada
aproximou-se ressabiado, boa coisa não podia ser. Sra. Silvia ao vê-lo não perdeu
tempo:
-- Jacinto, pegue a carruagem e vá o mais rápido possível até os Campos Elíseos,
vá até a casa do nosso médico Dr. Onofre, diga-lhe que uma parenta da nossa
102

cozinheira teve um mal súbito e veio a falecer aqui em casa. Se possível aproveite
a viagem e traga-o com você.
Jacinto dentro da sua ingenuidade ainda tentou argumentar:
-- Patroa, não é por nada não, mas se ela já está morta, do que adianta chamar o
Dr. Onofre, não seria melhor ir direto no Serviço Funerário Municipal?
Sra. Silvia mesmo vendo tamanha ignorância do jovem cocheiro, ainda teve
paciência para explicar o porque não era assim que as coisas funcionavam.
-- Não Jacinto, temos que chamar o doutor primeiro, ele terá que constatar a causa
morte, ainda mais que ela veio a falecer dentro de uma casa particular. Agora por
favor, sem mais delongas, faça o que lhe mandei, apresse-se.
-- Pode deixar Sra. Silvia, irei o mais rápido possível.
Sem perder tempo o jovem cocheiro tomou o rumo com destino ao nobre bairro
dos Campos Elíseos. Com sua peculiar habilidade no manejo das rédeas, colocou
os cavalos para fazerem jus a sua fama; fez com que os mesmos explorassem ao
máximo a potência dos músculos de suas fortes pernas.
Entre uma chibatada e outra no ar, as largas narinas abriam-se e fechavam-se em
curtos espaços de tempo, tomadas pela respiração ofegante vindas dos grandes
pulmões dos vigorosos alazões.
Não tardou quase nada e a carruagem parou na frente do nobre Palacete na rua da
Graça nº 78. Sem perder tempo Jacinto desceu do veículo de tração animal, talvez
contagiado pela emoção da velocidade, bateu palmas sôfrego.
Após alguns minutos uma das folhas da grande porta escura de madeira abriu-se
lentamente, de dentro saiu um senhor alto, pálido, exageradamente delgado,
próximo quem sabe aos setenta anos de idade.
Proprietário de modos distinto e educado, trajava belas vestes negras muito bem
engomadas, típicas de um mordomo da elite Paulista; nas mãos luvas brancas, nos
pés sapatos de cromo alemão, reluzentes de tanto brilho. Sem sombra de dúvida
um ser todo impecável.
O elegante senhor ao ver aquele singelo rapaz parado em frente ao grande portão
de ferro, no vestir muito ao contrário do dele, trajando vestes bem humildes; um
casaco de lã velho surrado pelo tempo, calças não menos desgastadas, nos pés um
par de botinas de couro marrom desbotado, sujo com terra, de solado gasto e
furado.
103

O sério mordomo não pode deixar de medi-lo dos pés a cabeça, logo pensou com
seus dourados botões: -- Que Diabos este jovem maltrapilho, com olhar de
cachorro sem dono está fazendo na frente do portão nesta hora da manhã?
Jacinto ao ver aquele senhor de aparência no mínimo estranha, também logo
pensou com seus humildes botões de madeira de seu surrado casaco de lã: --
Agora eu entendi porque a patroa me mandou aqui, estou na frente do próprio
porteiro do mundo dos mortos. Que homem mais esquisito. Será que o Dr. Onofre
não está?
Antes que desse tempo de Jacinto pensar mais alguma coisa, o elegante mordomo
com um ar de desprezo e nojo questionou-o:
-- Pois não. O que o senhor deseja?
Jacinto mesmo preocupado com a situação que o levara ali, não perdeu a
oportunidade de dar uma bela cutucada no esguio senhor de preto, que embora
muito elegante, assim como ele também não passava de um simples empregado
no Palacete.
-- Bom dia para o senhor também! Venho a mando da família Jordão, da Sra.
Silvia para ser mais preciso. Trago um recado para o Dr. Onofre, é urgente. Minha
patroa pediu que o doutor fosse o mais rápido até a casa dela, digo agora mesmo,
se possível que eu mesmo o conduzisse. O caso é grave, muito grave. O caso é de
vida ou morte, para falar o bem da verdade, de morte. Por acaso o senhor é o
Doutor Onofre?
Claro que Jacinto sabia que não se tratava do médico, pois já tinha o conhecia,
vira-o várias vezes no casarão, ou mesmo em encontros da sociedade, quando
conduzia seu patrão. Este último questionamento propositalmente colocado para
irritar novamente.
-- Não sou eu, apenas trabalho aqui. Sou o mordomo da família.
-- Ah bom, o senhor me desculpe viu? Quer dizer que o senhor é um empregado
feito eu, apenas um pouco mais arrumadinho né? Mas nós dois obedecemos
ordens iguais não é verdade? Eu entendo, eu entendo. Por acaso o seu Patrão está?
O velho mordomo mesmo irritado com o tom irônico do jovem cocheiro, não
perdeu a elegância:
-- Por obsequio, aguarde um momento, vou ver se o Dr. Onofre pode atendê-lo.
Aguarde aí do lado de fora. Do lado de fora!
104

Em um movimento preciso, o homem deu as costas para Jacinto e entrou


novamente no belo Palacete. Não demorou muito para Dr. Onofre sair de dentro
da casa, já arrumado, de posse de sua inseparável valise de couro preta. Pois ele
sabia que para aquele empregado da família Jordão estar ali naquela hora da
manhã, o caso devia ser mesmo grave, e era, afinal tinha um cadáver esticado no
meio do corredor.
O médico atendia a família há gerações, na verdade desde os tempos do interior,
antes de residir na capital, ele também morou muitos anos em Campinas. As duas
famílias tinham uma relação que ia além das questões profissionais. O médico
conhecia Sra. Silvia desde menina, e sendo um pedido dela urgente, não poderia
jamais deixar de ser atendido o mais rápido possível.
Diferentemente de seu mordomo, pelo fato de ser realmente uma pessoa da alta
sociedade, culta, estudada, dominava a psicologia, sabia como poucos lidar com
os mais humildes. Hábil em articular e jogar com as palavras de maneira que
agradasse e caísse na confiança de quer quem fosse; do cidadão mais nobre ao
mais humilde.
-- Bom dia meu jovem rapaz. Recebi o recado, e como conheço sua patroa há
muito tempo a coisa deve ser grave mesmo. Para não perdemos mais tempo,
voltarei com você. Vamos o mais depressa que pudermos. Estes animais são
ligeiros?
-- Bom dia doutor. Sim, são bem ligeiros. O Doutor faça um favor de entrar e
sentar, fecharei a janela, assim a poeira levantada dos trotes dos cavalos não
sujarão sua roupa.
-- Não meu jovem, vou sentado na frente mesmo, ao seu lado. Assim você já me
adianta o assunto. E outra coisa, gosto de ver o movimento dos animais, e a
agilidade de quem comanda as rédeas. Lembra meus tempos de menino no
interior.
Jacinto que já havia ficado surpreso com o "bom dia" do nobre médico, agora
então que ficou mais admirado ainda com a simplicidade daquele homem
estudado e bem sucedido na vida.
Uma vez acomodados na carruagem, o jovem cocheiro não perdeu a oportunidade,
olhou com um certo ar de deboche para o mordomo que aguardava parado, riste,
105

ríspido na porta da casa, apenas observando. Este por sua vez, fingiu não entender
o olhar, virou-se súbito, em passos firmes entrou para dentro do Palacete.
Bastou um grito agudo, umas boas sacolejadas nos reios, para os garanhões
entenderem que estava na hora de voltar a sua velha sina. Rapidamente as grandes
rodas da carruagem voltaram a girar sobre a rua de terra.
Sem fugir do sentido tradicional e muitas vezes curioso das coisas da vida, o
caminho de volta para a Várzea do Carmo pareceu ser bem mais rápido do que o
de ida até os Campos Elíseos, não mais que trinta minutos foram suficientes para
a carruagem atravessar o grande portão de madeira do casarão.

Capítulo XXIV - Um Corpo Estendido no Chão


Os animais nem bem pararem dentro do quintal para Dr. Onofre descer
rapidamente e mais do que de pressa, em passos ligeiros ir decidido em direção a
porta principal da entrada do casarão, esta por motivos óbvios estava entre aberta.
Sra. Silvia ao vê-lo vindo em sua direção pelo corredor não se conteve, também
dirigiu-se até ele bombardeando-o com palavras e frases soltas, sem muito nexo.
Comportamento típico de uma pessoa atordoada pelo nervosismo:
-- Ah Dr. Onofre! Ah Dr. Onofre, finalmente o doutor chegou. Tudo foi muito
rápido, muito rápido. Ela estava com a gente, de repente não estava mais. Do
nada, muito do nada ela caiu. Coitada, veio nos ajudar. Digo, veio nos
visitar...quero dizer, veio visitar a prima dela, a nossa cozinheira Adelaide. O
doutor lembra dela não é? Eu sei que lembra, desde os tempos lá de Campinas.
Então ela do nada teve este mal súbito e caiu, bem ali, na frente do quadro,
daquele quadro que uma vez eu disse ao senhor que não gostava. O doutor
também está lembrado disso que eu comentei não é?
Dr. Onofre logo percebeu que sua estimada paciente de muitos anos não estava
nada bem, e não era para menos, afinal não é todo dia que se tem um corpo
estendido no chão da sua casa. O médico com a parcimônia peculiar da profissão,
logo procurou acalmá-la:
-- Calma minha jovem, vamos tentar resolver o problema. Mas antes procure se
acalmar, o que está feito, está feito. Me leve até o corpo.
-- Sim senhor, desculpe Dr. Onofre pelo meu jeito. Não é fácil uma situação desta.
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-- Eu sei. Claro que não é fácil. Mas vamos ter calma e tentar resolver tudo da
melhor maneira possível. Mas para isso preciso que você se acalme minha jovem.
Me leve até o corpo da finada.
Sem perder tempo os dois caminharam corredor adentro, logo chegaram em frente
ao corpo da coitada. Dr. Onofre ao bater os olhos sobre aquele cadáver magro por
demais, observou durante alguns minutos tentando imaginar que doença aquela
mulher trazia consigo. Com certeza devia ser algo de muitos anos, afinal aquela
magreza fugia do normal. Anastácia que estava um pouco mais afastada, percebeu
a admiração do Doutor, entre um soluço de choro e outro fez um comentário:
-- Não repare na magreza dela Doutor, garanto que não foi por causa disso que ela
se foi. Minha prima Adelaide desde criança era assim, magrinha feito um
gravetinho, mas posso garantir pro senhor Doutor, de todas nós, ela é a que tinha a
saúde melhor. Não foi disto que ela morreu.
-- Não estou falando nada senhora, apenas observei. Só poderei falar alguma coisa
depois que examiná-la. É assim que a ciência funciona; nada funciona sem
fundamento científico!
-- Ah tá! O senhor Doutor me desculpe. Mas vou ser sincera com o Doutor, acho
meio difícil, mesmo com este tal de fundamento aí que o Doutor falou descobrir a
causa da morte da minha adorada prima.
Ao ouvir esta última colocação da sua cozinheira Sra. Silvia rapidamente a
fulminou com os olhos, repreendendo-a apenas no gesto. Anastácia entendeu logo
que tinha falado mais do que devia, porém o médico fisgou no ato algo no ar:
-- Por que a senhora diz isso? Fora o fato do próprio óbito, por acaso algo mais
estranho ocorreu aqui neste lugar?
Rapidamente Sra. Silvia tentou consertar a gafe de Anastácia:
-- Não Doutor, a única coisa estranha aqui realmente é o que estamos vendo na
nossa frente. Releve as palavras de minha cozinheira, o doutor sabe como é a fé e
a crendice deste povo não é? Devemos entender tamanha inocência.
Desta vez quem dirigiu o olhar fulminante foi Anastácia para sua patroa, pois
sabia que no fundo tudo realmente era uma questão de fé e crenças do além.
Sem poder perder mais tempo do que já haviam perdido, Doutor Onofre procurou
agilizar os assuntos, pois tinham que resolver de uma vez por todas aquele fato
estranho ocorrido no casarão da família Jordão. Rapidamente ele deu uma ordem a
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Antônio, que até o momento só obervava tudo, sem entender nada, absolutamente
nada.
-- Meu jovem, vá até o quintal e chame aquele cocheiro aqui - para Sra. Silvia -
Qual o nome dele mesmo?
-- Jacinto Doutor, Jacinto.
-- Ah sim! Ele me disse quando vínhamos para cá, Jacinto! Havia me esquecido.
Por favor releve, creio que já são os males da idade - para o jovem novamente -
Então meu jovem, vá chamar Jacinto, peça para ele vir até aqui, preciso que ele
me ajude a tirar o corpo desta senhora do chão, colocá-lo sobre alguma cama para
que eu possa examiná-lo detalhadamente.
Rapidamente Antônio dirigiu-se para o quintal para chamar Jacinto, este ao ver o
menino vindo em sua direção já imaginou que vinha dar algum recado lá de
dentro:
--Jacinto, o Doutor Onofre pediu que você fosse até lá, precisa que ajude a colocar
a defunta em um outro local.
-- Vamos lá, vamos lá.
Rapidamente os dois dirigiram-se novamente para dentro do casarão. Ao
chegarem próximos aos demais e ao corpo de dona Adelaide Dr. Onofre orientou
Jacinto o que ele deveria fazer:
-- Jacinto, me ajude a colocar o corpo desta senhora em algum cama - Para Sra.
Silvia - Minha jovem, para qual quarto devo leva-la?
-- Acho melhor levarmos para o quarto de Anastácia, lá fora, no quintal, perto da
cozinha. Afinal é parenta dela - apontou para a velha Anastácia - Talvez seja
melhor.
Neste momento Anastácia olhou para Sra. Silvia com um olhar de quem sabia o
real motivo. Para ela era obvio que levar o corpo para o seu quarto não tratava-se
apenas de uma questão de parentesco, ou mesmo uma espécie de consideração,
mas sim pelo fato da mulher ser de uma camada social inferior, pobre, e o pior
negra.
No fundo a velha cozinheira sabia que o preconceito estava acima de qualquer
consideração, ainda mais quando se tratava de patroa e serviçal.
Dr. Onofre ouviu as palavras da nobre Senhora, e rapidamente seguiu a sugestão:
108

-- Então vamos levar para lá. Jacinto, pega no tronco que eu pego pelas pernas -
disse o médico.
-- Não se preocupe doutor, deixa que eu carrego sozinho, é melhor para nós dois,
principalmente para o doutor. Afinal esta senhorinha era tão magrinha coitadinha.
Deixa comigo.
Jacinto mal terminou de falar e já estava com o corpo de dona Adelaide nos
braços, que estranhamente já encontrava-se em estado avançado de Rigor Mortis.
Assim como carregava as selas para colocar nos cavalos, sem sofrimento ele
carregou dona Adelaide em direção do aposento de Anastácia.
Ao chegar no lugar sugerido pela Sra. Silvia, com muito carinho, cuidado e
respeito colocou o corpo da desgraçada sobre o duro colchão de palha. Após este
pequeno gesto, o educado rapaz parou em frente a cama. Em pé. Riste. Olhou
demoradamente para aquela senhora morta, mesmo conhecendo-a pouco, não
pode deixar de sentir pela vida que se fora. Seus olhos marejaram.
Não demorou e os demais chegaram logo em seguida, Sra. Silvia pediu que todos
se retirassem para que o médico pudesse fazer o exames devidos. Todos
obedeceram, inclusive a dona do aposento.
O médico esperou que todos saíssem. Fechou a porta. Calmamente abriu sua
valise de couro preta, de dentro além de seu avental, tirou sua Lupa de cabeça,
alguns instrumentos feitos em ferro.
Uma vez pronto, com todos os seus aparatos, deu início a investigação. Começou
aos poucos; primeiro puxou as pálpebras dos olhos da morta para baixo, afim de
ver a coloração da carne por dentro, constatou que estava normal para os padrões
de uma pessoa morta. Depois com o auxílio da Lupa olhou profundamente as
meninas dos olhos, também não achou nada que pudesse ajudar. Resolveu descer
pelo pescoço, no qual apalpou várias vezes até chegar na região do abdômen,
insistiu mais uma vez nas apertadas com as pontas dos dedos, nada estranho, tudo
normal, já era notado o leve enrijecimento da carne. Foi quando mudou para as
mãos e os pés, mais uma vez sem sucesso. Por último deu uma minuciosa olhada
no resto do corpo. Quem sabe não acharia alguma picada de cobra, escorpião,
lacraia talvez? Nada! O corpo estava limpo.
Depois de quase uma hora e meia, finalmente a porta do quarto abriu-se. Os que
aguardavam do lado de fora, como que ensaiado numa coreografia bem
109

sincronizada, olharam ao mesmo tempo para o médico em busca de alguma


resposta. E ela veio rápida:
-- Sra. Anastácia pelo que examinei, sua prima realmente teve um mal súbito, bem
provável que o coração parou de repente. Tenho certeza que ela não sofreu nada.
Tudo deve ter sido muito rápido. Adianto para a senhora que isto é muito com em
pessoas de idade mais avançada. Da minha parte o que tinha que ser feito, foi
feito. Assinarei o atestado de óbito como morte natural.
Anastácia ouviu tudo aquilo indignada, pensou "-- Não sofreu nada, não sofreu
nada". Sem poder fazer nada, sabia que de morte natural não tinha nada. Tinha
absoluta certeza que o ocorrido naquela madrugada foi sim, um ato sobrenatural,
para ela que nem conhecia esta palavra, coisas do além, do mal maior.
Porém o jeito era conformar-se com a tragédia. Enterrar sua prima dignamente e
tratar de sair daquele casarão o mais rápido possível, antes que mais vidas se
fossem.

Capítulo XXV - O Enterro


Uma vez prontos, assinados e liberados os atestados do médico, no caso aqui feito
pelo próprio Doutor Onofre e o Sepulte-se da autoridade eclesiástica, requisitos
legais para um sepultamente, além também da exigência das vinte e quatro horas
após o óbito, só restava agora agilizar os preparativos para o enterro da pobre
coitada.
A intenção de Anastácia era enterrar o corpo da prima no terreno da igreja da
Nossa Senhora da Boa Morte, ali mesmo na Várzea do Carmo, assim ficaria mais
fácil de visitar seu túmulo quando sentisse saudades.
Porém desde a data de quinze de agosto de 1858, a Câmara determinava que
todos os sepultamentos da cidade de São Paulo, fossem feitos no Cemitério da
Consolação, ficando proibida a execução em outras localidades. Sendo assim não
teve outro jeito, Dona Adelaide teria e seria com certeza sepultada no Cemitério
da Consolação.
A notícia da estranha morte da senhorinha negra dentro do casarão da família
Jordão não tardou, espalhou-se feito notícia na boca de bêbado, logo chegou no
seu antigo reduto, na Chácara do Bexiga.
110

A comoção tomou conta de todos os moradores, na sua maioria gente humilde,


pobre e ignorante; os recém chegados italianos, os antigos portugueses, e
principalmente da maioria; os negros. Uma tristeza inebriante pairava no ar.
Não tinha um só canto, uma só ruela da Chácara que não tivesse alguém
lamentando com os olhos cheios d'água pelo o triste ocorrido. Para aquela
população esquecida da periferia da cidade, Dona Adelaide ou a velha curandeira
do Bexiga era o retrato de uma santa, uma sábia conselheira, uma mãe preta velha,
que sabia agir com rigor e benevolência quando era preciso.
Suas fortes rezas, seus inúmeros elixires feitos de ervas nativas, tinham curado e
por vezes salvado pessoas que já estavam desacreditadas pela medicina formal,
isso para as poucas que se permitiam consultar com um médico de vez em
quando. Coisa rara, muito rara.
Sra. Silvia achou por bem que o Cortejo saísse do próprio casarão, para tal
determinou que Jacinto e Anastácia fossem até a casa de dona Adelaide buscar um
vestido mais adequado para enterrá-la, procurar e achar um feito na cor preta se
possível. Os dois empregados tomaram o rumo para a casa da pobre senhorinha.
Ao chegarem em frente ao humilde casebre feito de taipa de dona Adelaide,
Jacinto calmamente parou a carroça, desceu primeiro, rodeou passando pela frente
dos animais, estendeu sua mão e ajudou Anastácia na árdua tarefa de descer, pois
além de imensa de gorda, a maldita erisipela insistia em atrapalhar com vontade
qualquer que fosse o movimento.
Após certificar-se que a velha cozinheira estava firme, em pé, com os dois pés no
chão, bem assentados, o moçoilo aguardou sentado na carroça estacionada na rua.
Anastácia de posse das chaves, caminhou com certa dificuldade pela ruela de
terra, passou pelo portãozinho capenga de madeira velha. Devagar mirou a chave
no buraco da fechadura e girou. Pronto. Bastou uma volta para uma das folhas da
porta de madeira caindo aos pedaços, descascada pelo tempo saltar levemente
para frente.
De dentro veio um cheiro forte da arruda plantada num jarro de barro queimado
que ficava perto da pia da cozinha. Bem devagar, meio ressabiada ela entrou. Uma
vez dentro do casebre, ao pisar naquele chão de terra vermelha batida, ao ver
aqueles poucos e velhos móveis, e o fogãozinho a lenha de ferro, de imediato um
punhado de lembranças tomaram conta da cabeça branca da velha cozinheira.
111

Lembranças estas que viajaram desde o dia que Dona Adelaide firmou moradia
ali, coisa de uns trinta anos atrás, época que vários negros fugidos ou não das
fazendas de café instalaram-se naquela região da cidade. Depois deste dia, se
Anastácia esteve naquela casa mais umas duas vezes foi muita, pois antes era a
distância de morar no interior, e agora mesmo morando relativamente perto, os
afazeres do dia-a-dia na casa da Família Jordão tomavam-lhe praticamente todo o
tempo. E as visitas a parenta iam ficando sempre para um outro dia, e assim o
tempo passou.
Após este breve momento de recordação, a cozinheira tratou de procurar um
vestido que servisse para enterrar a prima. Tal tarefa não demorou quase que nada,
depois de mexer, revirar algumas gavetas, procurar entre um vestido surrado e
outro, finalmente encontrou um preto, dobrado bem no cantinho da última gaveta
do velho guarda-roupa.
Estava lá, dobradinho, limpinho, dentre os demais vestidos, era o mais novo e
conservado. Parecia que tinha sido comprado há poucos dias, depois colocado
naquele canto da gaveta. Reservado especialmente para o dia que fosse ser
necessário. E este dia chegou.
Anastácia pegou-o em suas mãos, fechou a gaveta, arrumou os outros de volta nas
outras gavetas e rapidamente, aliás, quase rapidamente saiu da casa. O que seria
feito de tudo aquilo ali, só Deus sabe. O momento agora era outro.
Com seu andar pesado saiu da casa, foi em direção a carroça, Jacinto que a
aguardava, veio em sua ajuda mais uma vez para ajudá-la a subir novamente na
carroça. Curioso questionou:
-- Então Dona Anastácia, achou um vestido que sirva para a ocasião?
-- Achei meu filho, achei. E não é que a coitada da minha prima tinha deixado um
reservado justamente pra isso?
Jacinto meio que sem entender, voltou a questionar:
-- A dona me desculpe, mas eu não estou entendendo nada. Já tinha um vestido
esperando pela morte dela?
-- Pensa comigo, um vestido preto, novo, dobradinho, colocado bem no cantinho
da gaveta, embaixo dos demais. Claro que ela muito sabida que era, se preveniu
né Jacinto? Você é novo meu filho, mas a gente que já está descendo a ladeira da
misericórdia da vida, sabe que dia ou menos dia nosso Senhor vai nos chamar
112

para perto dele. Os pensamentos mudam meu filho, os pensamentos mudam.


Agora toca este troço, que temos muito o que fazer ainda, quero deixar minha
adorada prima uma defunta muito da ajeitada.
Jacinto assim o fez, não demorou muito e os dois chegaram de volta ao casarão.
Sra. Silvia ao vê-los questionou logo Anastácia se havia encontrado algum
vestido:
-- Então minha doce Tata? Achou algum que servisse para a coitadinha ser
enterrada?
-- Sim sinhazinha. Está aqui. Vamos arrumá-la. Já faz muitas horas que minha
prima se foi, daqui a pouco o mal cheiro começa a impregnar pelos cantos.
As duas mulheres apressaram-se, e em poucos minutos dona Adelaide estava
arrumada, com o vestido que havia comprado especialmente para seu enterro,
pena que ela mesma não podia ver. Será mesmo que não podia?
Todos estavam prontos para fúnebre cerimônia: Sr. Francisco Jordão, que chegara
da fazenda naquele exato dia, Sra. Silvia, o jovem Antônio, a pequena Joana,
Anastácia, Jacinto, os outros empregados, alguns mascates e pregoeiros
conhecidos da velha cozinheira e do cocheiro, além do próprio vigário da
Paróquia da Nossa Senhora da Boa Morte que havia sido chamado pelo dono da
casa para acompanhar o cortejo, falar algumas palavras, e fazer a última oração
para a coitada.
Na soma total não passavam de quinze pessoas, seria um enterro muito simples,
humilde, se não fosse pelo pedido de Anastácia para com Sra. Silvia:
-- Sinhazinha eu queria fazer um pedido em homenagem a minha prima querida
que nos deixou.
-- Pois não Tata, pode falar, se estiver no meu alcance.
-- Está sim Sinhá, com certeza está.
-- Então diga, pode falar.
-- Quero pedir que o cortejo passe por dentro da Chácara do Bexiga, que passe em
frente a casinha dela, depois nos seguimos até o cemitério da Consolação.
-- Mas porque isso agora Anastácia? Vai fazer alguma diferença?
-- Com certeza vai senhora, e como vai.
Sr. Francisco ouviu o pedido da empregada calado, apenas olhou com um certo ar
de reprovação quanto a sugestão para sua esposa, esta por sua vez, fingiu que não
113

percebeu a atitude do esposo, e a resposta veio rápida, talvez mesmo como uma
certa forma de desobediência, de expor sua revolta para com ele:
-- Sim minha querida Tata, vamos fazer o caminho pelo lugar onde dona Adelaide
morava. Jacinto, tome a frente com a carroça para orientar o cocheiro do carro
fúnebre.
O jovem empregado também fingiu não ver o olhar de reprovação do Sr.
Francisco e obedeceu as ordens de sua patroa. E assim foi feito.
Lentamente o cortejo seguiu pela estrada Velha de Santo Amaro em direção a Av.
Paulista, mas novamente antes que chegasse lá, Jacinto que ia na frente, mais uma
vez impôs aos cavalos para que virassem a direita entrando na sua já conhecida
Rua Pedroso afim de adentrar-se pelas ruelas do humilde bairro.
Os moradores, os pequenos comerciantes, os vagabundos, as donas de casa com
seus aventais sempre molhados pela lida dos afazeres domésticos, os moleques
que sempre brincavam na rua, ao verem aquelas pessoas seguindo o carro fúnebre,
sabiam que quem ia ali naquele caixão era a conhecida benzedeira do Bexiga. Aos
poucos, todos, sem exceção, passaram também a seguir o tal carro fúnebre que
desfilava com maestria a caminho do cemitério. Não tardou e uma verdadeira
multidão estava formada, que logo pôs-se a rezar e cantar alguns louvores em
homenagem a defunta Adelaide.
O próprio vigário ficou admirado, pois em nenhum dos enterros das pessoas
consideradas ilustres, nobres e distintas da elite paulista que ele tinha
acompanhado, havia tido uma multidão daquele tamanho, formada por tantas e
diferentes pessoas.
Para um cortejo que quase não tinha ninguém, a mudança foi brutal, e porque não
dizer emocionante. As vozes de maioria negra, ecoavam os cantos que hora eram
em latim, hora em algum dialeto africano.
Por volta das dezesseis horas e vinte minutos daquela tarde chuvosa e cinza o
cortejo chegou ao Cemitério da Consolação, a cova com sete palmos, como
determinava a Lei, já estava aberta, a espera do pequeno caixão de madeira.
Algumas poucas palavras foram pronunciadas pelo Vigário, em seguida, as exatas
dezesseis horas e trinta minutos o caixão, sustentado por grossas cordas,
escorregou lentamente para dentro do vermelho buraco na terra.
114

Neste momento uma voz feminina, forte, negra, entoou do meio da multidão uma
bela canção, em dialeto Banto talvez. Quem sabe?

Soconiu Ladalê
Ulá Dalê
Ulá Dalê Olá
Soconiu Ladalê
Ula Damala Hummmm

Aê Aêê
Aê Aêê
Aê Aê
Aê Aê

Uem Terená Tim Bau Bau


Mocomani Djiugutá
Manifuru Iogo Djiugutá

Dentê Mâânifêê
Dentchi Cadjôô Miêê

Secumá Iná Biná


Cadjoôô Miêê

A cada frase cantada, todos ali presentes - salvo os da família Jordão e o próprio
vigário - repetiam as palavras com um fervor sem igual, um canto que vinha da
alma, do coração.
Neste momento enquanto a terra jogada pelas mãos dos dois coveiros aos poucos
caia, espalhando-se calmamente sobre a tampa marrom escura do caixão. A linda
cantoria dominava tudo e todos.
O céu tão cinza da terra da garoa, permitiu-se oferecer um último presente para
dona Adelaide; um lindo raio de sol, típico de fim de tarde, rasgou as nuvens com
um brilho intenso, numa verdadeira batalha épica entre a tristeza cinza e a alegria
vermelha. No fundo um lindo arco-íris surgiu lento, como que para findar a
pesada cena.
115

Capítulo XXVI - O Fazendeiro e a Besta


A noite já fazia-se presente, dona de uma de imensa escuridão, quando a família
Jordão e os demais moradores adentraram-se finalmente no terreno do casarão. O
caminho de volta mais uma vez pareceu ser bem mais longo do que o da ida.
Todos quietos, calados, não conseguiam achar motivos para conversa alguma.
Naquela cena muda, apenas o silêncio quebrado pelas palavras essenciais; de
ordem e de obediência. Aos poucos cada qual tomou seu rumo dentro do imenso
quintal.
Anastácia ainda tomada pela profunda tristeza, caminhou lenta como de costume
direto para a cozinha com o objetivo de preparar algo para servir no jantar para
seus patrões. Afinal a vida deveria continuar como de costume, mesmo dividindo
o assento coberto na elegante Coupé negra com a família Jordão devido ao
fúnebre episódio, a velha cozinheira tinha plena consciência que seu lugar na
verdade em outra ocasião normal seria sentada no assento da frente, o aberto, sem
proteção, junto do cocheiro Jacinto. Assim era a sociedade, assim era a vida,
assim era a humanidade; sempre repleta de amargas diferenças.
Antes de entrar no recinto a qual tinha intenção, parou em frente ao tanque que
ficava nos fundos do casarão para banhar as mãos, o rosto e o largo dorso.
Limpar-se fazia-se deveras necessário naquela ocasião, principalmente para tirar
os ditos males do cemitério.
Depois de bem limpa e seca, retornou pelo quintal afim de colher algumas folhas
de couve manteiga ainda precoce da pequena horta. Com calma, sem pressa,
talvez devido ao cansaço do dia, escolheu as mais verdinhas, de talo ainda mole.
Em sua cachola branca o menu para a ceia já fazia-se elaborado; serviria um
suculento caldo verde bem forte, bem temperado, com fartas rodelas de linguiça
calabresa bem seca, que ela mesma havia condimentado e defumado mais ou
menos há uns dois meses, acrescido também com uns bons pedaços de Paio
português, este comprado no armazém de secos e molhados na rua da Quitanda - a
antiga rua do Cotovelo. A verde sopa seria acompanhada por broa de milho que
ela também havia assado dias antes, por ocasião para servir para sua própria prima
na tal visita maldita.
Além do prato principal, a ceia jamais era encerrada sem os agrados individuais:
para Sr. Francisco que era o mais exigente, era imprescindível uma boa xícara de
116

café bem forte; as crianças tomavam leite quente com canela e muito açúcar; Sra.
Silvia sempre mais comedida, bastava apenas uma xícara com chá de Camomila
ou Erva-doce.
Do lado de fora do casarão, o cocheiro Jacinto tratou de retirar os arreios dos
animais para que os mesmos pudessem descansar um pouco, pois a jornada havia
sido longa, entre subidas e descidas, a distância entre a Várzea do Carmo até o
alto da Consolação não era das menores, e muito menos das melhores, afinal
ninguém era muito amigo do reduto que se encontrava lá.
Após feito o serviço, o jovem cocheiro também tratou de chegar-se até o tanque,
lavou-se caprichosamente igualmente a Anastácia, com certeza também queria
livrar-se quem sabe dos males do cemitério. Depois de limpo só pensou em uma
única coisa: recolher-se no seu humilde quartinho da edícula como era de
costume, e descansar até os primeiros raios de sol raiarem novamente.
Ao entrar no pobre cômodo, pendurou o seu velho chapéu em um prego colocado
estrategicamente na parede de taipa, descalçou-se das pesadas e sujas botas de
couro, a calça desta vez foi tirada do corpo com um pouco mais de cuidado, pois
diferente das outras poucas que o jovem rapaz possuía, esta última era um pouco
mais nova, usada para ocasiões especiais.
Cansado deitou-se sobre sua velha cama sobreposta pelo não menos velho e duro
colchão de palha. Acendeu um pequeno cigarro feito por ele mesmo de fumo de
corda. Cruzou as pernas. Respirou fundo como se fosse o último ar disponível na
face da terra, e por um bom tempo ficou a contemplar o nada. Revoou no
pensamento, longe, demasiadamente longe. Na sua cabeça martelava um
profundo questionamento; o que de fato havia ocorrido com a pobre coitada
daquela mulher? Não demorou quase nada para suas pálpebras fecharem,
entregando-se ao abraço de um sono pesado e profundo.
O casal e as crianças sem perder tempo, súbitos entraram na casa. Por ordem da
matriarca, os dois pequenos foram direto para o banheiro afim de se lavarem.
Entraram no grande banheiro que ficava no térreo, bem ao lado da escadaria
central. Coube ao jovem Antônio a tarefa de ajudar a pequena Joana a lavar-se.
A menina não podia ficar sozinha, mesmo com o tempo exageradamente frio,
fruto de um inverno rigoroso e cruel, ela com certeza aproveitaria para brincar
com a água, que de tão gelada, quase recusava-se a sair da luxuosa torneira de
117

cobre instalada na bela pia branca de mármore. Se tivesse liberdade para brincar,
de certo deixaria o ladrilho praticamente um espelho d'água.
O casal chegou em seguida, com certa paciência aguardou que os dois pequenos
terminassem a higiênica tarefa e saíssem do cômodo. Sr. Francisco foi o primeiro
a entrar, lavou-se rapidamente e deu a vez para sua esposa, esta por sua vez
demorou um pouco mais, foi mais cuidadosa com a limpeza, detalhista como
sempre.
Limpos e asseados todos da família Jordão dirigiram-se em direção a nobre sala
de jantar, sentaram-se a mesa para aguardar a ceia que não tardaria a chegar. O
silêncio foi inevitável, tomou conta de todos, ou quase todos, a inocente Joana,
talvez pela ingenuidade peculiar da idade ainda insistia em brincar com seu irmão
mais velho, este por sua vez, embora entendesse a pouca idade da irmã, não
conseguia retribuir com o mesmo entusiasmo as brincadeiras, afinal o jovem rapaz
tinha acompanhado toda a história, na verdade feito parte dela.
Não demorou muito para a velha cozinheira trazer a suculenta sopa, a broa de
milho, o café, o leite e o chá. Sra. Silvia como de costume agradeceu. Pela
primeira vez, talvez pelo acontecido no dia, ou mesmo por um certo peso de
consciência, ofereceu um lugar à mesa para que Anastácia ceasse com eles:
-- Minha doce Anastácia, sente-se conosco aqui, tome um prato do que você
mesma preparou.
Ao ouvir as palavras passadas pelos lábios de sua esposa, o patriarca que já estava
com uma colherada do verde caldo em direção a boca, praticamente teve uma
sincope, parou de repente, com um gesto de reprovação, apenas olhou firme para
a nobre senhora.
Ela, por sua vez, fingiu não perceber a contestação silenciosa do esposo, insistiu
mais uma vez para que Anastácia sentasse junto a eles:
-- Vamos Anastácia, deves estar muito cansada, ceia com a gente aqui à mesa,
assim quem sabe não se distrai um pouco. E outra; deves estar com muita fome
também, afinal de contas o dia foi puxado, e assim como nós, não comeste
praticamente nada.
A velha cozinheira sábia e vivida que era, tinha plena e total consciência da sua
condição de subalterna, mais ainda, de ex-escrava, que o seu lugar de fato, era na
cozinha lá fora, ou ao lado dos outros empregados. No fundo sabia também que
118

sua tão adorada Sinhazinha estava fazendo tudo aquilo talvez para agradá-la, ou
mesmo pelo remorso causado pela morte de sua prima. Após uma breve pausa,
respondeu ao estranho convite com uma mentira que não prejudicaria ninguém, a
não ser ela mesma.
-- Obrigada pela consideração patroa, mas enquanto preparava a janta dos patrões
aproveitei para comer algo. Fique tranquila. - para todos - Aproveitem, mesmo
muito cansada e triste, fiz com muito carinho. Bom apetite pra todos. - antes de se
retirar, ainda brincou com a pequena Joana - Joana minha doce criança, não quero
ver sobrar comida, papai do céu não gosta. Toma toda a sopinha viu? Tá muito
gostosa.
Joana que já se fartava com as colheradas do caldo verde, apenas balançou a
cabeça positivamente. Anastácia virou-se rápida para não dar tempo de Sra. Silvia
argumentar novamente, e do jeito que entrou, saiu rápida.
Ao término do Ceia todos retiraram-se da sala de jantar, como de costume, de
prontidão feito um guardião riste, dentro de sua atribuição, encostado no canto da
parede o velho carrilhão alemão acusava vinte e uma horas e trinta e cinco
minutos passados. Todos subiram em direção aos seus respectivos cômodos de
dormir.
Sr. Francisco em passos lentos, cansados, subiu pela escada central em direção ao
seu aposento, antes entrou no banheiro que ficava no corredor de cima da casa,
mais próximo de onde as crianças dormiam, o que mais era usado por ele e sua
esposa, esta, assim como as crianças, dirigiu-se direto para o dormitório.
Agora com a fome saciada, mais tranquilo, talvez pensou melhor sobre as coisas
ruins que o cemitério nos dá de graça. Despiu-se do pesado casaco preto de lã, da
camisa linho branco. Nu da cintura pra cima, mesmo sentindo muito frio, lavou-se
com abundância. Jogou várias vezes a água gelada no rosto, no peito. Esfregou as
mãos, os braços com força. O exagero foi tanto, que parecia que ele é que tinha
saído debaixo da terra.
Após feita a lambança toda, o patriarca se recompôs e saiu do banheiro. Desta vez
realmente o chão do recinto tornou-se um verdadeiro espelho d'água. Aquele que
Joana não deixou no banheiro de baixo, ficou no de cima. Sr. Francisco não estava
nem um pouco preocupado, afinal de contas não seria obrigação dele secar, o
empregados que se virassem para secar e limpar o cômodo no outro dia.
119

Caminhou pelo corredor em direção ao seu quarto, ao passar pela escada central,
de repente algo estranho o fez parar. Igualmente a um chamado, seus olhos
direcionaram-se escada abaixo, no qual avistaram apenas o vazio quase infinito
dos degraus. Sem mesmo saber o porquê Sr. Francisco permaneceu parado um
longo tempo.
Praticamente hipnotizado, foi envolvido pelo já conhecido cheiro forte da planta
maldita. Ao longe, muito ao longe, escutou o cantar vindo de uma bela voz
feminina. Era a mesma canção que sua filha insistia em cantar pela casa. Um
calafrio tomou conta de seu truculento corpo, foi completamente dominado por
uma sensação anormal em saber o que era aquilo tudo, envolvido pelo prazeroso
desejo do desconhecido.
Aos poucos o doce som da voz feminina e o torpe cheiro ficaram mais intensos,
neste momento, alguém aproximou-se por trás de suas costas. Bem perto, quase
encostado, sentiu o toque suave de duas mãos a segurar seus largos ombros.
Totalmente fora da razão, uma sensação boa de submissão dominou-o
completamente. Vontade de olhar não faltou, porém algo a mais não permitia.
Entregue aquela força misteriosa, sentiu que algo de ruim estava prestes a
acontecer. Vencido, fechou os olhos e esperou o pior. Foi quando do nada, de
repente ouviu:
-- Francisco!
Parada na entrada do quarto do casal, Sra. Silvia imperativa chamou pelo nome
seu esposo. Percebeu logo que algo estranho estava acontecendo. Afinal o que
aquele homem fazia ali parado em frente a escada? No fundo com certeza a nobre
senhora sabia do que se tratava.
Ao ouvir o chamado de seu nome, Sr. Francisco rapidamente saiu daquele estado
catatônico em que encontrava-se. Caiu novamente em si. Sem saber nada do que
havia acontecido no pouco tempo que ficou parado, retomou seu objetivo inicial.
Ao chegar perto de sua esposa, rapidamente foi questionado:
-- O que aconteceu? Eu vi quando vinha em direção do quarto, do nada parou no
meio do corredor, olhou para baixo da escada. Achei que fosse apenas por
distração, mas permaneceu ali parado um bom tempo.
Sem saber o que dizer, e muito menos sem entender nada do que sua esposa
falava, apenas respondeu como se nada tivesse acontecido:
120

-- Nada demais oras! Eu vinha pelo corredor, dei uma olhada como de costume
para baixo, e foi o tempo de ouvir sua voz me chamando.
-- Como assim? - questionou a esposa - Francisco, você ficou parado naquele
canto pelo menos uns três minutos, ou mais. Fiquei aqui da entrada do nosso
quarto te olhando, aguardando o seu continuar, mas nada, parecia paralisado.
-- Que conversa é essa mulher? Queres me envolver nas maluquices sua e de
Anastácia? Vamos parar logo com isso! Eu já disse que não houve nada.
Sra. Silvia, experiente com os fatos já ocorridos no casarão, achou de bom grado
deixar por isso mesmo, sabia que não adiantava discutir com o teimoso e
ignorante de seu esposo. Por bem resolveu ficar calada, entrou em definitivo no
aposento, e foi preparar-se para deitar, afinal o dia havia sido longo, e ela estava
por demais de cansada. Mas Sr. Francisco ao contrário dela, prosseguiu com a
conversa:
-- Me diga Silvia, o que está acontecendo com vocês todos nesta casa? Agora que
passou tudo isso, me diga. Que diabos aquela senhora foi falecer justamente aqui?
Vocês podem enganar todo mundo, mas a mim não!
-- Não adianta eu tentar explicar Francisco, você não entende, ou não quer
entender. Sobre a dona Adelaide, a coitada veio visitar a prima, deu azar de ter
uma mau súbito aqui, como disse Dr. Onofre: "-- pode ter sido devido a emoção
de reencontrar a parenta". Foi isso, pronto, finito, acabou-se. Agora vamos dormir
, estou muito cansada e com dor de cabeça.
Sr. Francisco, mesmo não convencido com aquele argumento, resolveu aceitar,
pois na sua incrédula consciência era muito difícil achar outra explicação. Para ele
o fato do falecimento poderia até ser realmente o narrado pela sua esposa, mas o
que não entrava em sua dura cabeça, era justamente o porquê dela fazer questão
de arcar com as despesas do enterro, e ainda mais querer que o cortejo saísse de
sua casa.
Sendo assim resolveu calar-se, decidiu esperar mais algum tempo para tentar
descobrir seus questionamentos.
Sra. Silvia ao perceber que seu esposo tinha a princípio concordado com ela,
também optou em ficar quieta, voltou a prepara-se para deitar, foi quando do
nada, um pequeno gesto feito por ela o deixou ressabiado.
121

Não era costume dela, mas naquela noite, antes de ir para cama, a bela esposa
sentou-se em frente a penteadeira e de frente ao grande espelho de cristal, sem
pressa, começou a escovar delicadamente os longos cabelos.
Sr. Francisco olhou para aquela cena sem entender nada, para ele podia ser mais
uma invenção de mulher, mas não se tratava apenas de um escovar de cabelos
normal. Ele que já estava sentado sobre a cama, percebeu que o gestual daquela
escova descendo suave pelos longos fios de cabelos de sua esposa estava por
demais diferente.
Na verdade parecia outra pessoa sentada na cadeira em frente ao móvel. Não
demorou muito e do nada, sem mais nem menos, ela começou a cantarolar
docemente a musica que a filha cantava, que ele sabia que ela mesma detestava.
Pela primeira vez Sr. Francisco admitiu para si uma certa sensação de medo,
definitivamente não era sua esposa que estava sentada na frente daquele espelho.
Até o desenhar de seu corpo era diferente. Um pequeno detalhe de erotismo
brotava do seu gestual, a cada movimento, a cada escovada.
Veio-lhe uma vontade de chamar pelo seu nome, mas faltou coragem, ou não teve
forças, ou ainda quem sabe o instinto animal da curiosidade falou mais alto. Para
completar a cena, novamente o maldito cheiro da conhecida flor tomou conta de
todo o ambiente. Desta vez, por mais que não aceitasse, não tinha como negar que
algo estranho estava ocorrendo naquele quarto.
O doce e suave escovar ainda levou algum tempo, na verdade, o tempo exato
daquela bela mulher encerrar seu o cantar, pois quando ela soltou o último verso,
os movimentos repentinamente também pararam. Nesta hora o homem que era tão
corajoso, tão incrédulo, gelou, sua mente logo foi tomada por uma pergunta: "--
Que diabos estava acontecendo naquele quarto?"
E realmente aconteceu. Aquela mulher que de longe não parecia nada com sua
doce e sempre pacata esposa, calmamente levantou-se, permaneceu por um tempo
em pausa admirando sua própria imagem de frente para o espelho de cristal,
tempo este para deixar Sr. Francisco mais apreensivo ainda.
De repente, em um movimento rápido e decidido virou-se, firme, transformada,
com um olhar penetrante e sedutor nunca visto por ele em todos os anos de
matrimonio.
122

Sem falar uma palavra caminhou decidida, abusando do pisar nas meias pontas do
pés, lenta, praticamente flutuava em sua direção. Com as mãos, fez questão de
segurar parte do saiote da camisola de seda para cima, deixando as grossas coxas à
mostra. Realmente Sra. Silvia era uma bela mulher, escondida durante anos por
trás de uma infelicidade submissa de esposa. Definitivamente aquela alma ali
presente naquele lindo corpo não era a dela.
Ele por sua vez, completamente sem ação, apenas observou perplexo, sem saber o
motivo que sua esposa comportava-se daquela maneira. Uma coisa era certa; da
forte atração que sentia por ela naquele momento.
Aquela estranha mulher ao chegar perto da cama, finalmente ele pôde observar
melhor os seus olhos penetrantes, as íris estavam completamente negras,
exageradamente maior do que um ser humano normal, no lugar do branco um
vermelho fogo.
Sem falar nada, a Besta avançou sobre ele com voracidade de um animal no cio,
devorando-o demoniacamente, suas unhas o arranhavam com força as costas ao
ponto de filamentos vermelhos escorrerem livres em direção ao lençol branco de
seda, os beijos sôfregos pareciam querer arrancar todo o âmago daquele corpo
masculino entregue aquela intensa luxúria que parecia não ter fim.
Sr. Francisco nunca tinha vivenciado uma experiência como aquela, mesmo em
suas longas viagens, mesmo conhecendo os mais famosos bordéis do interior,
mesmo tendo deitado-se com as mais fogosas e já famosas meretrizes da noite
paulistana. Nunca! Aquela experiência surreal era única, e com certeza também
seria a última se não fosse pelo chamar do lado de fora da porta do quarto:
-- Mamãe! Mamãe! Estou com medo, não consigo dormir.
Nesta hora, feito um raio que corta o céu igual a uma afiada navalha, tudo
rapidamente voltou ao normal. A nobre senhora caiu desfalecida em cima do
marido, desmaiada. Ele, perdido, assustado, sem saber o que fazer, respondeu
desesperado a filha que chamava.
-- Já vai minha filha, já vai. - para a esposa - Silvia, acorda, pelo amor de Deus,
acorda!
Aos poucos a nobre senhora voltou a si, lentamente recuperou a consciência, até
que também ouviu o chamar da filha.
-- Mamãe ! Abre a porta, por favor.
123

A mãe ainda atordoada, sem ter o mínimo de noção do que acabara de ocorrer
com ela mesma, buscou explicação de seu esposo que ainda a tinha nos braços:
-- Francisco, o que aconteceu? Por que me segura assim? Ai minha cabeça, que
peso, que dor!
A menina insistiu mais uma vez:
-- Mamãe, estou com medo.
-- Por que Joana chama lá fora? O que está acontecendo Francisco? Deixa eu abrir
a porta para minha filha.
A mulher fez menção de levantar-se, porém não teve forças, seu corpo ainda
cansado, parecia que tinha levado uma surra. Sr. Francisco ao perceber que sua
esposa não tinha condições nenhuma de executar a intenção, saltou rápido para
fora da cama, caminhou até a porta do quarto, abriu-a para que Joana pudesse
entrar.
A pequena criança correu para a cama do casal, pulou em cima da mãe,
envolvendo-a com os dois bracinhos em volta do pescoço, apertou com força,
como se fosse o último abraço em sua vida.
-- Mamãe, estou com medo, quero ficar aqui com a senhora e com papai. Só hoje,
por favor.
Sr. Francisco ainda com a mão na maçaneta da porta aberta, totalmente atônito
com tudo que acabara de ver, pior; sentir, lentamente empurrou a porta
novamente, fechando-a. Sem dar uma palavra, voltou para cama em passos lentos.
Abraçou mãe e filha, e ali ficou durante um bom tempo.
Pela primeira vez o sempre áspero e rude homem admitiu que algo estranho
existia entre as paredes daquele velho casarão que ele tanto gostava.
No quarto apenas um silêncio sepulcral, quebrado somente pelo som da
respiração profunda das três pessoas de sobrenome Jordão.

Capítulo XXVII - Conselhos do Padre Eustáquio


A Aurora chegara decidida naquela manhã fria, aos poucos o silêncio das crianças
da noite era trocado pelo cantar estridente dos galos nos quintais das poucas casas
da vizinhança, assim como o do próprio casarão da família Jordão.
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Na rua podia-se ouvir ao longe os primeiros agudos dos pregoeiros e carvoeiros,


que na labuta desde o fim da madrugada, tentavam quem sabe garantir a féria do
dia.
E foi justamente deste verdadeiro balaio imaginário, repleto de diferentes sons
vindos da rua que contribuiu para que Sr. Francisco fosse o primeiro a abrir os
olhos naquela manhã, seguido após um bom tempo pelo acordar de sua esposa, e
esta por sua vez, pela pequena Joana, que serelepe e cheia de disposição pulou
rapidamente da cama.
Sem falar uma palavra, o homem tratou de vestir-se rápido, trocou a ceroula de
dormir pelas calças e camisa de linho, por cima colocou seu pesado Sobretudo
negro, depois com a ajuda de uma calçadeira longa de ferro, travou uma luta com
as não menos pesadas botas de couro. Venceu uma a uma. Pronto! Estava
praticamente arrumado para sair.
Como que se pulasse de dois em dois, desceu os degraus da escadaria central as
pressas em direção a sala de refeições para tomar o desjejum antes de todos. E a
intenção deu certo, pois quando os demais membros da família desceram para
sentarem-se à mesa, ele praticamente já estava no término da pequena refeição da
manhã.
Sem dar muita satisfação, foi conciso nas palavras ao falar com sua esposa que,
sem saber de nada, acabara de acomodar-se calmamente a mesa:
-- Estou a caminho da fazenda, tenho negócios a resolver, creio que estarei de
volta em cinco dias, talvez um pouco mais.
Ela, surpresa pelo fato dele já ter terminado de comer, assim como pela sua
pressa, sem entender o motivo daquilo tudo, com um gesto positivo de cabeça,
apenas concordou com o esposo, que, súbito levantou-se para não dar tempo dela
nada questionar, limpou ligeiramente a boca com o guardanapo de algodão
branco, afim de tirar o último molhado de café do canto da boca.
Caminhou até o mancebo que ficava ao lado oposto do grande carrilhão Alemão,
em frente ao espelho de cristal do móvel, pegou sua escova de roupa feita em
metal com monograma e deu duas escovadas em cada ombro, depois ainda
permitiu-se uma última conferida em seu traje, Em seguida saiu decidido em
direção ao quintal na intenção de encontrar o cocheiro e juntos seguirem em
direção ao interior.
125

A nobre e inocente senhora não tinha a mínima noção do ocorrido na noite


anterior, a única lembrança era apenas de estar escovando os cabelos sentada em
frente a penteadeira, quando sua filha bateu na porta com a ideia de dormir com
eles, aliás, um costume corriqueiro entre o casal e a pequena Joana.
Não demorou muito para ela imaginar que aquela atitude de seu esposo deveria
ser mais uma nova mania, certamente criada pela obstinação dele pelos negócios
cafeeiros.
Esta conclusão de Sra. Silvia até que tinha lá seu fundamento, pois Sr. Francisco
Jordão, talvez pelo adiantado da idade, estava ficando cada vez mais cheio de
manias, porém mal sabia ela, desta vez o fato era bem diferente, só mesmo para
quem presenciou o que tinha ocorrido naquele quarto, sabia o verdadeiro motivo
da tal pressa do homem.
No decorrer de todo caminho Sr. Francisco praticamente não deu uma palavra,
nem mesmo as ordens de costume; para o cocheiro ir mais depressa ou mesmo
para reclamar da poeira na estrada do Araçá que levava a uma das vertentes em
direção ao rio Tiete, para depois passar sobre a ponte Sete de Abril, caminho
quase que obrigatório para quem ia e vinha do interior do Estado de São Paulo.
Inclusive o próprio cocheiro achou estranho o comportamento de seu patrão
naquela viagem, mas como o fazendeiro não falava nada, não seria ele, um
simples empregado que iria tomar a iniciativa do assunto.
No rude balançar da carruagem, uma imagem não saia da cabeça do nobre
fazendeiro, a beleza aterrorizante no rosto de sua esposa, nunca vista por ele antes,
aquele olhar lúgrube, assim como a sua estranha atitude, ao saltar sobre seu corpo
em cima do leito de dormir. Ao mesmo tempo que tal lembrança causava-lhe um
certo espanto, por outro lado sentia-se muito mais desejoso por ela. Em sua mente
uma coisa era certa; algo exageradamente anormal acontecera naquela noite,
definitivamente todo o ocorrido não era coisa deste mundo. Mas o que poderia ser
então?
Embora seu catolicismo resumia-se exclusivamente as muitas doações
filantrópicas para a igreja, decidiu que assim que chegasse na pequena cidade, no
lugar de ir direto para a fazenda, iria primeiro falar com o líder da Paróquia, o
conhecido Padre Eustáquio, este certamente ele poderia expor toda a história
126

acontecida com sua esposa. Com certeza o Pároco seria a pessoa de confiança, que
guardaria o pesado assunto em segredo.
Eram quase doze horas quando finalmente a carruagem entrou nos limites da
cidade de Jundiaí. Antes que o cocheiro ordenasse a direção dos cavalos para que
pegassem o caminho para a fazenda, veio a ordem:
-- Pare na frente da Matriz, eu preciso ter um momento de prosa com o Padre.
O humilde empregado embora achasse estranho seu patrão fazer um pedido deste,
obedeceu sem questionar.
A carruagem estacionou bem em frente a escadaria da Igreja Matriz, que pelo
adiantado da hora, era tomada pelo badalar dos seus enormes sinos.
-- Espera aqui, aliás, vá levar os cavalos para tomar água. Não vou me demorar -
antes de sair de vez da Coupé Negra voltou-se para Jacinto mais uma vez - Releve
meu jeito Jacinto, eu sei que você cuida bem dos animais, é que ando meio
preocupado com algumas coisas.
-- Não seja por isto patrão, estou aqui para servi-lo. Percebi mesmo que o patrão
não está muito bem..
Sr. Francisco desceu firme da condução, passo a passo como que se contasse o
número de degraus existentes, subiu a escadaria de alvenaria revestida com lajotas
brancas, ao chegar na entrada da casa do Senhor, parou por alguns instantes,
contou em pensamento o badalar dos pesados instrumentos de cobre, até que no
décimo segundo soar, os pesados sinos calaram-se de vez.
Após esta sonora recepção, decidido entrou na Igreja Matriz, caminhou
lentamente pelo corredor central em direção a sacristia. O silêncio e o frescor do
ambiente trouxeram-lhe sem cobrar nada uma paz interior que há muito tempo
não sentia.
Seus olhos apreciaram com carinho os ricos detalhes barrocos nos afrescos
pintados naquela imensa nave côncava arquitetada bem no alto, lá em cima, feita
quem sabe para alcançar o céu com sua beleza. Nas paredes ele pode observar
também os ricos vitrais que descrevia em verdadeiras cenas dramáticas o caminho
da Via Dolorosa.
Após este verdadeiro balsamo de beleza para os olhos, Sr. Francisco chegou
finalmente na sacristia, nela encontrou um senhor idoso, esguio, de sobrancelhas
exageradamente grandes, penteadas para cima, tão brancas quantos os próprios
127

cabelos. Sentado em uma cadeira de madeira de lei escura em frente a uma bela
escrivaninha, ambas talhadas delicadamente em estilo rococó.
Em uma de suas mãos enrugadas pelo tempo, entre os dedos manchados pela tinta
escura, havia uma Pena de escrever apoiada em um tinteiro ainda cheio, a outra
colocada sobre algumas folhas de papel. O cenário indicava que o velho senhor
com certeza labutava em algo burocrático, nos afazeres da instituição romana.
Tudo estaria normal, a não ser por um pequeno detalhe; o dedicado empregado
dormia pesadamente, tão profundo era seu sono, que exageros à parte, podia-se
ouvir seus roncos na grande praça em frente a Matriz.
Sr. Francisco ao ver aquela cena, não se conteve, riu com seus botões, ficou meio
sem jeito é verdade, mas viu-se obrigado a tirar aquele velho senhor dos
aconchegantes braços de Morfeu. Em um tom baixo, educado de voz, o chamou:
-- Por obsequio. Por obsequio.
Nada, o máximo que recebeu como resposta foi um ronco vindo bem do fundo do
âmago. Teve que ser um pouco mais incisivo no chamar, desta vez quase que aos
gritos:
-- Por obsequio! Senhor! Acorde por favor! Senhor!
Este último Senhor realmente saiu mais alto do que o previsto para se falar dentro
de uma igreja, porém deu resultado. Assustado o velho Sacristão quase cometeu
uma verdadeira lambança sobre toda a papelada. Ao se deparar com aquele
homem que ele nunca tinha visto, tratou de recompor-se rapidamente, ainda meio
sem jeito respondeu:
-- Pois não senhor? Me desculpe, me desculpe. É que tive uma noite daquelas!
Sofro de gota. Não sei se o senhor sabe? Mas dói muito, minhas juntas ficam
praticamente travadas. O doença maldita!
-- Sei sim senhor, meu pai sofria dessa doença. A famosa doença dos Reis, assim
falava meu velho pai, o coitado morreu sem nunca ter sarado.
-- Isso mesmo, que o Rei não nos ouça - risos - Mas em que posso ajudá-lo meu
caro homem? Adianto que o Padre Eustáquio está no refeitório, não sei se o
senhor percebeu pelo badalar dos Sinos, mas estamos na hora do almoço, e ele é
irredutível quando trata-se da hora de alimentar-se.
-- Sim, não só percebi, como também escutei. Aliás, parece quê quem não ouviu
foi o senhor. Não estou certo?
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Envergonhado, com um sorriso mais do que amarelo, o velho Sacristão viu-se


obrigado a concordar.
-- É verdade, é verdade. Mas o que posso fazer pelo nobre cavalheiro?
-- Leve-me até o Padre, preciso falar com ele urgente.
-- O nobre cavalheiro vai me perdoar, mas como havia lhe dito, ele não gosta de
ser perturbado na hora do almoço. Se o senhor quiser posso deixar um recado para
Vossa Excelência Reverendíssima.
Sr. Francisco que não costumava ser contrariado, argumentou de um modo nada
cordial, porém muito irônico:
-- Claro! O senhor pode dar o recado com certeza. Diga ao Padre Eustáquio que o
fazendeiro, Sr. Francisco Jordão esteve aqui, mas infelizmente não pode ser
recebido. O nosso Padre Eustáquio sabe muito bem quem sou. Afinal boa parte
dos meus lucros com o café que planto aqui na região, são doados para esta casa
do Senhor nosso Deus todo mês. Passar bem meu bom homem. Aliás, Vossa
Excelência Reverendíssima usa-se para Bispo se não estou enganado, e pelo que
sei ele ainda é Padre ou já subiu de cargo dentro da Santíssima Igreja e eu não sei?
Sr. Francisco não poderia sair sem antes corrigir aquele homem, afinal percebeu
que o errado pronome de tratamento que se referiu ao padre saiu de sua boca
numa tentativa de intimidação para com ele.
-- Claro que não meu nobre homem. Foi apenas um modo de chamar, eu mesmo
que gosto de tratá-lo assim - respondeu o sacristão sem saber onde colocar o rosto
de vergonha.
Além desta pequena gafe, o velho sacristão ao ouvir a palavra doação,
rapidamente levantou seu magro corpo da cadeira em que estava sentado, dirigiu-
se para o refeitório afim de dar o recado ao Padre. Este, ao saber de quem se
tratava, mandou que o chamasse rapidamente, assim daria tempo quem sabe do
nobre cavalheiro sentar-se à mesa com ele para degustar um pouco da singela
comida doada pelos cristãos da cidade.
Sr. Francisco ao receber o recado, não se fez de rogado, logo acompanhou o
Sacristão até o refeitório, aceitou o convite para almoçar ao lado do Padre, afinal a
viagem havia sido longa, e seu estômago também pedia por alguma doação.
Ao adentrar-se no recinto Sr. Francisco logo foi visto pelo Padre Eustáquio que
ainda meio que de boca cheia por um belo pedaço do Suã de porco assado, acenou
129

com o braço, e mesmo com dificuldade no falar, chamou carinhosamente o


homem para sentar-se à mesa:
-- Sr. Francisco Jordão, quanta honra! Quanta alegria! Por favor venha sentar-se
ao meu lado, venha degustar da nossa humilde e singela mesa.
O nobre fazendeiro dirigiu-se rápido até o local onde se encontrava a mesa, pois a
fome era grande, depois de beijar a mão direita do padre, sentou-se, foi quando
pode observar o tanto que era humilde o almoço do Pároco, para não dizer ao
contrário.
Além do próprio Suã assado, em cima da bonita toalha branca esticada sobre a
enorme mesa, tinha uma travessa de madeira com costeletas também de porco,
assadas com batatas douradas, salpicadas com minúsculos pedaços de folhas de
alecrim e salsa. Sobre um grande e belo prato de porcelana portuguesa, pedaços de
espigas de milho cozido, ainda com as marcas da manteiga derretida entre os
amarelinhos grãos. Dentro de um tacho de ferro um farto tutu de feijão. Noutra
panela funda de barro uns bons pedaços de galinha guisada com quiabo. Em uma
outra travessa do mesmo jogo de porcelanato português o arroz branco. Tudo
acompanhado por uma farta salada de tomate bem encarnado, cebola e rúcula bem
nova, colhida ainda pela manhã. Para completar o humilde almoço, uma enorme
broa de milho.
Sr. Francisco ao olhar tudo aquilo, e por ser um homem acostumado a falar o que
lhe via a cabeça, em risos não se conteve:
-- Nossa Sr. Padre Eustáquio, realmente muito humilde esta mesa, nem sei por
onde começar.
-- Fique a vontade meu caro e bondoso homem, imagino que o nobre cavalheiro
deva estar com fome, pelo traje imagino que estejas chegando da capital agora.
-- Sim, com certeza. Parei aqui antes mesmo de ir para fazenda. Preciso falar
urgente com o senhor, coisas estranhas estão acontecendo em minha casa, mais
precisamente com minha esposa.
-- Claro! Podemos conversar. A propósito também preciso falar com o senhor, é
sobre o teto da nossa Matriz, está precisando de alguns reparos, e o nobre
cavalheiro sabe, nossa situação é muito precária.
130

Neste momento Sr. Francisco discorreu o olhar demoradamente por cima da mesa
farta de comida, não perdeu a oportunidade mais uma vez, novamente usou de sua
ironia:
-- Estou vendo Padre... Estou vendo... Tudo demasiadamente precário.
Com certeza Padre Eustáquio entendeu aquelas frases ditas pausadamente em três
inflexões tão distintas, disfarçadamente voltou ao assunto pelo qual foi procurado.
-- Vamos fazer assim, acabamos o comer com calma, sem pressa, depois iremos
até a minha sala, assim podemos conversar com mais privacidade. Agora por
favor, aproveite da nossa singela refeição.
Realmente Sr. Francisco aproveitou, comeu de tudo um pouco. Após o término da
saborosa refeição, os dois dirigiram-se para a tal sala, na verdade um escritório no
qual Padre Eustáquio despachava os documentos para a capital, que por sua vez
eram despachados para Roma. O local também lhe servia como um certo canto de
reclusão, de privacidade.
Assim que entraram o Pároco calmamente caminhou para trás de sua
escrivaninha, sentou-se com gosto, talvez pelo peso que se encontrava devido a
farta comida. Com um gesto pediu que o nobre fazendeiro senta-se na cadeira
colocada estrategicamente a frente do móvel, desta maneira os dois poderiam
conversar tranquilamente. Sem perder mais tempo deu início ao diálogo, pois
ainda queria ter tempo de tirar um bom cochilo antes da missa das dezoito horas.
-- Mas diga Sr. Francisco, qual motivo o fez vir até aqui? O assunto deve ser
muito sério mesmo.
-- Com certeza é Padre. Com certeza! Vou contar-lhe todo o ocorrido, peço por
favor que preste atenção, pois confesso que nunca vi algo parecido. Confesso para
o senhor que pela primeira vez nesta vida realmente tive medo.
-- Nossa Senhora Virgem Santíssima! Deve ser grave mesmo. Por favor, relate
tudo.
Sr. Francisco respirou fundo, e após uma breve pausa passou a narrar a história
macabra, sem pressa contou tudo, inclusive os mínimos detalhes. Padre Eustáquio
atento escutou toda a narração sem interromper. Ambos permaneceram sentados
na sala por um longo tempo. Após aproximadamente duas horas, finalmente o
homem encerrou sua narrativa:
131

-- E foi isso Padre Eustáquio. O que o senhor acha? O que pode ter acontecido
com ela?
O Padre antes de responder, ficou por um longo tempo com os olhos fixos no
fazendeiro, pensativo, sem saber ao certo por onde começar.
A sala foi tomada pelo silêncio de ambos; Sr. Francisco sem ter mais nada para
falar, aguardava angustiado por um parecer daquele homem de batina negra, que,
sem falar nada, levantou-se, caminhou até a instante repleta de livros, sua mão foi
certeira em um exemplar de capa negra, puxou para si, levou-o até a escrivaninha,
e ainda em silêncio abriu-o na página certa. Com a ponta do dedo indicador, na
intenção de facilitar a leitura, deu inicio a procura de algo. Mas o que seria
exatamente?
Sr. Francisco agoniado, apenas obervava, ansioso por uma só palavra que fosse.
Enquanto isso o dedo indicador do Pároco deslizava devagar sobre a folha escrita
com textos de letras miúdas, quase invisíveis, numa cautelosa e verdadeira
consulta, até que de repente parou em um determinado parágrafo, concentrado leu
para si pausadamente, foi então que em um único gesto fechou o livro.
Levantou-se, foi novamente até a instante, colocou o livro novamente em seu
lugar, voltou para de trás da escrivaninha, sentou-se, olhou fixo nos olhos de Sr.
Francisco, e finalmente indagou algo:
-- Sr. Francisco, por acaso o senhor já ouviu falar em Histeria?
-- Histeria? Não Padre, nunca ouvi falar. Do que se trata?
-- Vou lhe explicar Sr. Francisco, vou lhe explicar. Preste atenção, porque isso
pode ser um caso sério que esteja ocorrendo com a Sra. sua esposa.
-- Por gentileza Padre Eustáquio, pois fale logo, o Padre está me deixando mais
preocupado do que já estou.
-- Então, pelo o que o senhor me contou, sua esposa está com um quadro
Histérico, digo, um problema mental.
-- Problema mental? - assustado Sr. Francisco, respondeu com outra pergunta.
Rapidamente sua mente encheu-se de questionamentos: Será que sua esposa
estava ficando louca? Será que seu fim seria na ladeira da Tabatinguera, no
conhecido “Velho Hospício da Várzea do Carmo” ou "Hospital dos Alienados"
como era conhecido pela maioria das pessoas? Seria muito sofrimento para sua
bela esposa, com certeza ela não merecia isso.
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-- Por favor Padre explique melhor.


-- Vou explicar, tenha calma, peço que preste bem atenção: Segundo um eminente
médico Frances, para ser mais preciso, um neurologista, Dr. Jean-Martim
Charcot, após anos de pesquisa por meio de uma técnica de nome hipnose em
vários pacientes, em sua maioria mulheres diga-se de passagem, chegou a
conclusão que ideias mórbidas, digo, como estas histórias que o senhor acabou de
colocar aqui, contadas pela Sra. sua esposa para o senhor: a porta do quarto que
ela não conseguiu abrir, e que com o senhor abriu tão facilmente; a respeito da sua
filha andando sonâmbula pelo corredor e ela associar com algo sobrenatural; a tal
cantoria insistente da menina; a morte daquela senhora negra em sua casa; esta
manifestação pecaminosa de desejo. Enfim, entre outras coisas que fogem da
normalidade.
Pois bem, este acúmulo de pensamentos totalmente estranhos e sem nexo algum,
somado principalmente a este último fato que o senhor contou, nos leva a crer que
trata-se de um quadro clínico de nome Histeria, inclusive os casos são mais
ocorridos em mulheres, segundo estudos feitos pelo Doutor.
Sr. Francisco, aconselho ao senhor procurar um bom médico na capital, pois o
caso pode ficar grave, inclusive levando-a a tornar-se perigosa para seus próprios
filhos, para ela mesma e para o senhor também.
O nobre Fazendeiro escutou toda a explicação, perplexo com tudo que acabara de
ouvir, após uma longa pausa, sem falar uma palavra se quer, levantou-se. Com um
pequeno gesto agradeceu ao Padre por tê-lo recebido. Atônito, saiu em silêncio da
tal sala.
Do mesmo jeito que entrou, saiu da Paróquia, passou pela Sacristia sem nem se
despedir do velho sacristão de sobrancelhas brancas penteadas - que para variar
estava a cochilar novamente sentado na cadeira - caminhou pelo corredor central,
desta vez sem dar atenção as obras de arte barroca que havia admirado tanto na
chegada, finalmente passou pelas grandes portas da saída da igreja Matriz.
Bem em frente, na rua encontravam-se sua carruagem e seu cocheiro, dirigiu-se
até ele, em uma passada forte subiu no veículo negro, ainda pensativo, mais sério
que nunca, foi conciso e objetivo nas palavras:
-- Vamos embora! Toca para a fazenda, temos muito trabalho pela frente.
133

Capítulo XXVIII - Enquanto Isso na Capital


Após o farto e saboroso almoço preparado como sempre com muito carinho pela
dedicada senhora a velha e boa Anastácia, naquela tarde Sr. Silvia diferentemente
do hábito que exercia todos os dias de passear pelo frondoso e florido jardim,
resolveu recolher-se um pouco em seu aposento, tomada por um estranho mal
estar, cansada e sonolenta, subiu as escadas devagar, sem pressa, apoiando-se com
força no corrimão de madeira.
A dedicada cozinheira que neste momento recolhia de cima da mesa os finos
pratos feito de louça branca - ornados com delicados desenhos pintados com fios
de ouro, manchados na sua maioria pelos restos de comida deixados pelos três
membros da família Jordão - observou a cena com desconfiança. Sua patroa desta
vez não fez um elogio se quer no menu servido como era de seu costume. Calada
estava, calada continuou.
A bela Senhora ao término do quase infinito subir da escada, caminhou pelo
corredor que pela situação naquele momento, parecia ser bem mais longo do que
realmente era.
Ao chegar em frente ao quarto, com um único e decidido gesto virou a maçaneta,
sem perder tempo, adentrou-se no luxuoso cômodo, foi o tempo apenas de fechar
as grandes e pesadas cortinas feitas em estilo Vitoriano na cor vermelho sangue
penduradas nas pesadas janelas de madeira. Insistiu por deixar os dois cortes de
tecido bem juntos, na intenção de alcançar no cômodo o máximo do ambiente
escuro da noite. Em seguida deitou-se sobre a cama, não se dando nem o trabalho
de tirar a colcha, o máximo que se permitiu foi livrar-se das negras botinas de
couro.
Foi apenas o tempo de encostar os belos cabelos sobre a fronha branca de seda do
grande travesseiro recheado com penas de ganso, que suas pesadas pálpebras
fecharam-se lentamente, não demorou quase nada e a nobre senhora entregou-se
de vez em um sono pesado e profundo.
As crianças por sua vez, carregadas pela energia abençoada da idade, correram
para o imenso e já conhecido quintal, afim de quem sabe, inventarem alguma
brincadeira nova.
Joana, sempre de posse da sua inseparável amiga de rosto de louça, mal pisou nos
primeiros metros de terra e propôs qual seria a brincadeira:
134

-- Mano, vamos brincar de esconde-esconde?


Antônio por sua vez, talvez quem sabe por estar em outra fase da idade, já tomado
por outros pensamentos peculiares da adolescência, rejeitou de cara a proposta:
-- A não Joana, vamos brincar de outra coisa. Sempre a mesma brincadeira?
-- Por favor mano, só mais esta vez. Prometo que não peço mais, só hoje vai, por
favor.
Antônio que era louco pela irmã, não se conteve ao ver aquele rostinho lindo,
rosado, implorando. Sabia que a promessa da pequena Joana duraria até o final
daquela tarde, e que no outro dia o mesmo pedido seria feito outra vez, e no outro
também, e mais no outro também, ele sabia que suas palavras não teriam sucesso,
o mais fácil era aceitar logo a sugestão:
-- Está bem, está bem, mas só hoje hem? Amanhã faremos outra coisa.
-- Que bom! Você conta primeiro e eu vou me esconder. Conta bastantão para dar
tempo tá bom?
Sem responder Antônio virou-se de costas, encostou seu antebraço no grosso
tronco do grande Cambucizeiro, apoiou a testa afim de cobrir os olhos, e deu
início a contagem. Joana rapidamente entendeu o gesto, agarrada sempre com sua
boneca, pôs-se a correr na intenção de achar um lugar bem difícil de seu irmão
encontrar, tarefa um pouco difícil é verdade, uma vez que naqueles dias a
brincadeira da vez era sempre esta.
Os primeiros números ainda que saíram da boca do rapazote em volume alto,
somente os primeiros, nem bem chegou ao número treze para ele transferir a
contagem para o pensamento, assim poderia pular algumas dezenas, e assim
iniciar logo a procura, não demorou quase nada e sua contagem já beirava o
número oitenta, se fosse contar mesmo estaria no máximo no vinte e cinco.
Em um movimento rápido virou-se:
-- Lá vou eu!
Em voz alta anunciou o início de seu objetivo, caminhou para o fundo do quintal,
próximo as outras árvores. Algo lhe dizia em pensamento que sua irmã desta vez
havia tomado aquele rumo, sua intuição não estava errada, não demorou muito
para ver a larga barra do branco vestido sobrando para fora do tronco de um dos
abacateiros, por mais que a pequena Joana tentasse ficar menor do que era,
135

encolhida, imóvel, parte de suas vestes não obedecia, no papel de um delator,


entregava sua vítima.
O irmão nem precisou chegar perto, de longe mesmo soltou o grito característico
da brincadeira:
-- Joana pega!
Ela ainda tentou correr em direção ao cambucizeiro, mas de nada adiantou, desta
vez perdeu, e o pagamento para tal derrota seria assumir a contagem no lugar de
seu irmão, mas ele como sempre muito bondoso, permitiu que ela fosse se
esconder novamente.
Neste formato, a brincadeira esticou durante boas horas, ele sempre a contar, e ela
sempre a se esconder, e assim a tarde fria caminhava para seu final, o tímido sol
de julho dava os primeiros sinais que iria se recolher para seu descanso depois de
mais um dia de labuta.
Na sala do casarão, o velho carrilhão acusava em seus dourados ponteiros as
exatas dezoito horas.
Ao perceber que a luz do dia seria trocada pelo forte negro da noite, Antônio
resolveu inverter a brincadeira, assim quem sabe Joana não desistiria de brincar.
Pois bem, na última vez que ele a encontrou, sugeriu disse que agora era a vez
dela fazer a contagem para ele se esconder, porém para sua surpresa o tiro saiu
pela culatra.
Sem reclamar nada, na verdade achando graça de tudo, a inocente menina tomou
seu posto de contadora. Agarrada com sua companheira, virou seu pequeno corpo
para a frondosa árvore, e deu início a contagem:
-- 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7...- assim como o irmão, logo calou-se, afim de contar o resto
também em pensamento.
Antônio saiu para se esconder sem muita pressa, pois sabia que sua irmãzinha
mesmo contando também em pensamento, ao contrário dele, era honesta, e que
demoraria bem mais tempo com os olhos cobertos. O rapaz diferentemente dela
caminhou em direção ao imenso jardim, pois tinha quase que certeza que sua irmã
o imitaria, repetiria o caminho feito por ele em direção ao fundo do quintal,
mesmo este já bem escuro devido ao cair da tarde.
Antônio logo tratou de embrenhar-se por dentro do complicado labirinto de
arbustos repletos das mais diferentes e belas flores, uma vez lá dentro, resolveu
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esconder-se por traz de um deles, escolheu o mais frondoso, agachou-se até ficar
de cócoras, pôs-se em silêncio. No lugar que escolhera para ficar, apenas o som do
estalar de um galho e outro devido ao insistente vento frio, típico dos fins das
tardes de julho.
Deu início ao já conhecido ritual de espera da brincadeira, pacientemente esperou
o momento certo para sair correndo afim de salvar-se mais uma vez, seria apenas
o tempo da pequena Joana afastar-se para ele fazer sua parte, tudo estava
planejado, calculado, articulado em sua cabeça, aguardava o momento certo para
correr em direção do Cambucizeiro.
Permaneceu quieto, de cócoras, com o olhar fixo no caminhar decidido da
pequena Joana em direção ao fundo do quintal, porém nesta hora algo inesperado
aconteceu, de repente seus ouvidos foram aos poucos sendo tomados por algo
diferente: A doce melodia já tão conhecida devido ao cantar de Joana por todos os
cantos da casa.
De uma coisa ele tinha certeza; Joana não haveria de ser, uma vez que estava pros
lados do fundo do imenso quintal, perto do milharal. Outro pequeno detalhe; a
linda voz não era de criança, embora também fosse aguda, com certeza era de
mulher feita.
Antônio virou seu rosto guiado pela conhecida melodia, foi quando avistou
sentada sobre um dos bancos do jardim, de costas para ele, uma bela mulher
vestida com um lindo vestido branco, por um rápido momento achou até que
poderia ser sua mãe, porém um pequeno detalhe o fez esquecer tal possibilidade:
por baixo do banco podia-se ver os pés dela completamente descalços, os dois
encontravam-se trançados, o direito encostando com delicadeza a meia-ponta
sobre a terra fria e vermelha.
A pouca luz do final de tarde, proporcionava aos olhos de quem visse, uma bela
fotografia, praticamente uma obra de Monet, isso se não fosse o detalhe dos pés
apoiados no chão de terra vermelha, e foi justamente isso que atraiu a atenção do
jovem rapaz, levando-o a um estado físico até então desconhecido ainda por ele.
Completamente encantado pelo que via naquele momento, hipnotizado pelos
belos versos que saiam da boca daquela mulher, Antônio levantou-se devagar,
saiu de trás de seu esconderijo, caminhou lento em direção ao banco, a cada passo
seus ouvidos - iguais a de um marinheiro encantado por uma sedutora Ligeia -
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eram tomados cada vez mais pela inebriante canção proferida por aquela estranha
figura feminina sentada delicadamente sobre o banco de madeira.
Ao aproximar-se por trás da misteriosa mulher, um calafrio tomou conta do
franzino corpo do jovem rapaz, igual acontecera com seu pai dias antes, uma
sensação boa de medo passou a dominá-lo completamente, arrependeu-se é
verdade de estar ali naquele momento, ainda mais quando do nada ela de repente
parou de cantar. Um Silêncio lúgubre tomou conta da cena.
Após torturada pausa, os delicados pés que até então tinha apenas a meia ponta do
direito apoiado no chão de terra vermelha, descruzaram-se calmamente, passando
os dois a pisaram firmes, afim de erguer de vez aquele misterioso e belo corpo.
Uma vez em pé, permaneceu de costas ainda algum tempo.
O silêncio continuava, parecia eterno, um sofrimento para ele, que,
completamente entregue, dominado por aquela força estranha. Sua vontade neste
momento era buscar forças de algum lugar para sair correndo para perto de sua
protetora mãe.
Aos poucos aquele belo ser feminino de pés descalços dentro do não menos belo
vestido branco, lentamente virou seu corpo na intenção de ficar frente a frente
com o jovem rapaz, este por sua vez, embora tomado por arrepios de medo, não
pode deixar de admitir para si, que um desejo nunca sentido também o dominava,
a curiosidade de ver aquele rosto tornou-se quase que obrigatório naquele
momento.
Não demorou muito e seus olhos puderam contemplar uma beleza jamais vista
por ele, ainda mais naquela idade. Ao ver aquele lindo rosto que, embora muito
pálido, quase branco, ainda trazia traços bem feitos da cabocla, percebeu logo que
tratava-se de alguém conhecido. Porém quem poderia ser?
Depois de um breve instante matutando em pensamentos, sua memória finalmente
resgatou a imagem do quadro pendurado no comprido corredor da entrada
casarão. Não teve dúvida, era ela: a linda moça retratada na tela, pendurada na
imensa parede branca, propositalmente colocada no meio das outras. Moldura
esta, que o fez tantas vezes mudar o rumo dos caminhos internos do casarão,
agora ali, ao vivo, na sua frente.
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Os dois corpos, em pé, face a face, separados por um palmo de distância, não
mais. Ao longe podia-se ouvir o bater sôfrego do coração do jovem e ainda
inocente rapaz, já o dela por sua vez completamente parado.
Lentamente ela ergueu sua mão esquerda em direção ao rosto de Antônio, de leve
o acariciou a face rosada pelo frio da tarde que se despedia rapidamente para dar
lugar a escura noite. Ao perceber que iria ser tocado, sem forças para reagir,
apenas fechou os olhos, numa atitude de quem espera um carinho, ou naquele
caso quem sabe algo ainda desconhecido em sua puerícia de menino. Foi o que
aconteceu, a palma fria, quase sem cor, passeou sem pressa, delicadamente em seu
rosto. Em seguida sentiu em seus lábios ainda virgem o leve toque dos carnudos
lábios violáceos daquela bela mulher, que o presentearam com um longo beijo
com o sabor da morte.
Após o demorado beijo, ainda de olhos fechados, descobrira pela primeira vez
uma sensação boa que nunca havia sentido, mesmo tomado pelo medo, sabia que
teria de enfrentar aquele ser, seja lá quem ele fosse, e assim o fez, respirou fundo,
permitiu que suas pálpebras desencostassem uma da outra, olhou de frente aquele
rosto delicado, pálido, quase branco.
A primeira vista veio a admiração, ele nunca havia ficado tão perto, ou mesmo
conhecido uma mulher tão bela, sua única referência de beleza feminina
certamente era apenas sua própria mãe. Percebeu que seu olhar além da beleza
negra das meninas dos olhos, trazia consigo uma profunda tristeza, causada talvez
por uma dor sofrida no passado, quem sabe. Conforme era acariciado
carinhosamente pela mão gélida, mesmo sem compreender o que se passava, se
compadecia cada vez mais por aquele olhar triste.
No silêncio da noite que já se fazia presente no pouco tempo em que os dois
estavam parados no jardim, sem falar uma palavra sequer, com seu olhar negro e
profundo, cheio de dor e mágoa, foi o suficiente para que ela o dominasse
completamente.
Antônio foi tomado por um ódio nunca sentido antes, a feição ingênua do menino
doce e educado já não existia mais, completamente transformado em outro ser,
sairia daquele jardim com um objetivo traçado, uma ordem a ser cumprida.
139

Ao perceber que sua intenção havia sido realizada com sucesso, a bela mulher
desceu sua mão lentamente, virou-se de costas, cantando sua canção calmamente,
caminhou lentamente para entre os arbustos do jardim sumir por inteira.
Antônio em completo silêncio, apenas observou aquele belo corpo de vestido
branco, de pés descalços desaparecer aos poucos de sua visão, foi quando de
sopetão ouviu o conhecido chamado:
-- Pego! Te achei, agora é a sua vez de procurar.
Joana percebeu que seu irmão não deu atenção ao seu grito de alerta, de costas ele
estava, de costas ele continuou, não convencida tentou mais uma vez, desta vez
pelo nome de seu mano:
-- Antônio te achei. Vamos brincar, vem, é a sua vez. Antônio! Antônio!
O silêncio do jovem rapaz a fez ficar ressabiada, não pensou duas vezes, sem
pestanejar, aproximou-se até poder tocá-lo. Finalmente quando chegou bem perto,
puxou-o pelo grosso suéter de lã azul marinho que ele vestia, o pequeno puxão foi
o suficiente para que Antônio saísse do estranho transe, porém seu
comportamento foi completamente diferente do acostumado por todos. Aliviada
com a reação de seu irmão Joana ainda se deu ao luxo de chamá-lo atenção.
-- Nossa! Estou chamando faz tempo e você nada Antônio. O que foi? Não quer
mais brincar? É porque já está de noite?
Antônio devagar virou-se em direção da pequena menina, com um olhar
completamente diferente do de sempre, respondeu com um tom de voz mais
grave, quase rouco parte das perguntas feitas por sua irmã.
-- Não quero. Vamos entrar, já é noite.
Joana com seu jeito meigo de irmã caçula que consegue tudo o que quer, cheia de
manha, ainda tentou indagar:
-- Por favor, só mais um tiquinho, por favor.
Antônio virou-se de costas, sem falar nada caminhou determinado na intenção de
entrar no casarão. Joana apenas observou seu irmão indo, percebeu que desta vez
não teria jeito, obedecer seria a melhor escolha.

Capítulo XXIX - O Outro Antônio


Nem bem entraram em casa, cada qual tomou um rumo diferente, Antônio
diferentemente das outras vezes seguiu pelo corredor, sem medo, determinado,
140

passou pelo já conhecido quadro, encarou-o seriamente, fitou fixamente nos olhos
da figura feminina retrada nele, como se concordasse com algo, seguiu em direção
a escadaria para assim subir em direção ao seu quarto. Joana observou seu irmão a
caminhar pelo corredor, achou por demais estranho, porém como ele estava
diferente desde o final da brincadeira, achou por bem não falar nada, seguiu seu
rumo, claro que por outro caminho.
De posse de sua velha boneca, logo foi sentar-se sobre uma namoradeira de
madeira, forrada com tecido no tom vinho escuro ornado com belos desenhos de
flores do campo, o belo móvel ficava na sala, a pouca distância do Carrilhão
Alemão, o velho controlador do tempo, que acusava em seus grandes ponteiros as
exatas dezenove horas.
Antônio, com a mão direita apoiada sobre o robusto corrimão de madeira,
diferente do costume de sempre, de subir aos pulos de dois em dois degraus, desta
vez pé ante pé, subiu lentamente a grande escada.
Uma vez no andar de cima, dirigiu-se até a porta do quarto, ao chegar em frente
da mesma, abriu-a determinado, entrou rápido, estranhamente sentou-se sobre sua
cama, ali permaneceu parado, pensativo, como que aguardasse a hora certa de
realizar a sua missão.
Após uma hora sentado sobre o grande colchão de molas, imóvel, com um olhar
fixo, cheio de ódio para um determinado ponto do canto do quarto, ouviu o
chamar vindo do pé da escada, que o fez finalmente mudar de posição. Súbito
levantou-se e saiu do aposento.
Quem gritava por seu nome era Anastácia, a velha e boa cozinheira que o
solicitava para cear, pois já havia passado da hora, normalmente este momento
acontecia por volta das dezoito horas, mas por coincidência ou não, justo naquele
dia a saborosa sopa levou mais tempo no fogão a lenha.
Ao chegar na sala de jantar, todos, com exceção de seu pai, encontravam-se
sentados à mesa; a cabeceira permaneceu vazia, devido ao respeito do lugar que
era do Patriarca, Sra. Silvia de um lado, Joana no oposto da mãe, ao seu lado a
cadeira vazia a espera dele, que sem falar com ninguém sentou-se, apenas
permaneceu a espera que Anastácia o servisse.
Sra. Silvia logo percebeu o comportamento arredio do filho, em pensamento
questionou consigo mesma o que poderia estar ocorrendo, muito estranho aquele
141

comportamento, assim como aquele olhar sério e profundo vindo de seus olhos.
Achou por bem não falar nada naquele momento, pois poderia ser a fome que o
dominava, resolveu então esperar o andamento de todo o jantar.
Anastácia sempre dedicada, como de costume na ausência de Sr. Francisco
Jordão, serviu a pequena Joana, que na ansiedade de criança não via a hora de
saborear a primeira colherada. Com um delicado gesto a matriarca indicou para
que em seguida servisse o jovem rapaz, ela seria a última a ser contemplada com a
delicioso caldo, Anastácia assim o fez.
Para seu estranhamento, desta vez Antônio não se deu o trabalho nem de
agradecer, Sra. Silvia vendo aquele lapso de comportamento, como mãe e
educadora, viu-se obrigada a intervir:
-- Meu filho, você não está esquecendo de nada?
Sem responder nada, ele primeiro olhou para Anastácia, a coitada por sua vez, ao
vê-lo sentiu um certo calafrio, percebeu rápido que algo de muito estranho
acontecia com aquele menino. Depois do obedecido, ele voltou sua cabeça para o
prato sobre a mesa, e sem falar nada começou a tomar a parte que lhe cabia do
menu daquela noite.
A patroa e a empregada olharam-se, mesmo sem trocarem uma palavra se quer,
entenderam-se numa conversa apenas delas, pois, perceberam que mais um
episódio estranho estava acontecendo dentro daquela casa, desta vez com o
menino.
O jantar prosseguiu normalmente, praticamente dominado pelo silêncio até seu
término, se não fosse pelas poucas palavras soltas ditas pela pequena e doce
Joana. Sra. Silvia ao escutar o som de sinos vindos da sala, provenientes do
Carrilhão Alemão que avisava as exatas vinte e duas horas, depois de constatar
que seus pequenos estavam satisfeitos, ordenou que subissem para dormir, pois já
havia passado muito da hora de recolherem-se.
Antônio e Joana levantaram-se quase que ao mesmo tempo, ela dirigiu-se próxima
a mãe afim de dar-lhe um leve beijo na face de boa noite. Ele que também tinha
este costume, desta vez apenas virou-se de costas, e sem falar nada dirigiu-se ao
pé da escada onde esperou a irmã para assim subirem juntos, porém antes, sem
que ninguém percebesse, nem mesmo Anastácia, discretamente tomou posse de
uma das facas que estava em cima da mesa.
142

Após passados alguns minutos do meigo beijo de Joana, Sra. Silvia caminhou até
o pé da escada afim de assegurar-se que as duas crias realmente já haviam entrado
no seu devido aposento, concentrou-se no som das solas dos dois pares de sapatos
percussivos contra o assoalho de madeira que vinham do corredor de cima, estes
foram diminuindo gradativamente até que silenciaram de vez.
Uma vez constatado o silêncio no andar de cima, ela voltou para a sala de jantar,
Anastácia que neste momento recolhia o aparelho de jantar e os talhares da mesa,
ao ver sua patroa voltando tratou logo de dar início a prosa, a vontade das duas era
tanta para falar sobre o comportamento de Antônio que sem querer chamaram-se
ao mesmo tempo:
-- Sinhazinha...
--Tata...
Por um breve momento riram-se da singela coincidência, porém por uma questão
de hierarquia, a nobre senhora teve primeiro a palavra:
-- Tata, você observou como Antônio estava estranho durante a ceia?
-- E não é isso mesmo que eu ia dizer minha Sinhazinha, na hora que cheguei
perto dele para servir a sopa, senti até um calafrio subindo pela espinhela véia
aqui.
-- Também fiquei arrepiada, principalmente quando ele encarou-me, aquele olhar
não era do meu amado filho.
-- Aí tem coisa Sinhá, aí tem coisa, vamos nos preparar.
-- Tata, estou com medo. De verdade, estou com medo. Se Francisco pelo menos
estivesse por aqui.
-- Esquece, o patrão não acredita em nada destas coisas, ele acha que somos todas
loucas.
Mal sabia a velha cozinheira que seu próprio patrão havia sentido na pele uma
experiência nada agradável, por isso um dos motivos que o fez sair tão rápido para
o interior.
-- Calma, vamos fazer o seguinte: a senhora vai pro seu aposento, procure
descansar, em vez deu dormir no meu quartinho, ficarei de olho aqui esta noite,
deixa que me ajeito aqui dentro da casa mesmo.
Sem falar nada, a nobre Senhora apenas balançou a cabeça concordando com a
ideia de sua cozinheira. Rapidamente subiu a escadaria em direção ao seu
143

aposento, já no corredor, contrário de ir pelo lado esquerdo em direção ao seu


quarto, para ter certeza que tudo estava bem, seguiu pelo lado direito na intenção
de ir até o quarto dos filhos, assim o fez, parou em frente a porta, de leve encostou
o ouvido esquerdo na porta na intenção de escutar algo. Permaneceu parada um
certo tempo. Nada! Achou por bem então dar meia volta, e seguir em direção ao
seu próprio aposento, ao chegar sem titubear entrou rápido.
Foi o tempo de despir-se do belo vestido negro que usava para colocar seu traje de
dormir e deitar-se na grande cama do casal. Pensativa, preocupada, demorou para
pegar no sono, só depois de umas boas horas deitada, finalmente foi vencida pelo
cansaço. No andar debaixo, na sala de estar, o Carrilhão acusava exatamente meia
noite.
Neste momento no outro quarto algo diferente aconteceu. Joana abraçada com sua
boneca debaixo da pesada coberta de lã, entregue em um sono profundo, dormia
pesadamente. Antônio deitado de barriga para cima, porém totalmente descoberto
também dormia pesado, foi quando de repente, no badalar do carrilhão, suas
pálpebras abriram-se rapidamente, revelando de uma vez as pupilas castanhas
dilatadas, parado com um olhar fixo para o teto do quarto, permaneceu naquela
posição alguns minutos depois num único movimento do tronco, súbito, ergueu-se
da cintura para cima, sentando-se na cama. Nela permaneceu parado nesta posição
por alguns segundos, depois aos poucos resolveu descer. Caminhou devagar até o
mancebo no qual havia deixado sua calças penduradas, enfiou a mão no bolso
fundo da perna direita, e lentamente trouxe para fora a faca que pegara de cima da
mesa da sala de jantar.
Com o pisar leve, caminhou para fora do quarto, antes de passar pela porta, virou-
se, deu uma última olhada para a irmã que pelo leve e doce sorriso nos lábios com
certeza deveria estar sonhando com os anjos. Após esta pequena constatação, o
possuído rapaz decidido abriu a porta e saiu.
Mesmo com a imensa escuridão no corredor, de pés descalços sobre o chão frio
do assoalho de madeira escura, determinado, ele caminhou em direção ao quarto
de sua mãe, passou pela saída da escada, parou por um breve instante, olhou fixo
para baixo como que visse algo, nesta hora mais uma vez o cheiro forte da
conhecida flor Dama da Noite tomou conta de todo o ambiente.
144

Após este breve momento de observação, o jovem rapaz voltou ao seu objetivo
inicial, deu continuidade ao seu determinado caminhar.
Ao chegar em frente ao quarto de sua mãe, com a mão oposta a que segurava a
faca, forçou firme a maçaneta da porta na intenção de abri-la, porém desta vez
Sra. Silvia diferente das outras vezes que deixava destrancada quando o esposo
não encontrava-se na casa, por uma intuição vinda não se sabe de onde, trancou
pelo lado de dentro.
Mesmo assim Antônio forçou várias vezes, conforme empregava mais força, sua
respiração assim como a de um animal em fúria ficava mais forte e sôfrega,
podendo ser ouvida por quem estivesse do lado de dentro do quarto, ou mesmo no
andar debaixo da casa.
Devido ao horripilante barulho, a nobre Senhora acordou assustada, viu e ouviu a
maçaneta sendo forçada, logo apavorou-se, o medo tomou conta de seu corpo. Do
lado de fora, seu filho cada vez mais tomado pela cólera, segurava cada vez mais
forte a faca, o aperto sobre o objeto metálico foi tanto, que gotas de sangue
começaram a escorrer oriundos dos cortes feitos pela lâmina de prata que batia
com força em sua perna de menino.
Tudo indicava que mais cedo ou mais tarde aquela maçaneta iria ceder, não
demoraria muito, e com certeza mais uma tragédia seria escrita nas história
daquele casarão, porém quando a porta estava prestes a ser arrombada, uma voz
forte veio do meio do corredor, da saída da escada:
-- Deixa a patroa em paz sua desgraçada! Em nome de Deus e Nossa Senhora!
Com um movimento rápido, o tomado rapaz virou a cabeça em direção a escada,
seu rosto totalmente transformado, trazia na face uma expressão demoníaca, cheia
de rancor e ódio, os olhos castanhos do bondoso menino de antes, agora trocados
pelos já conhecidos de cor negra da verdadeira dona do casarão. Este mesmo
olhar demoníaco avistou ao longe quem ousava falar naquele tom com ele.
Em pé, riste, determinada, como um verdadeiro anjo negro do Senhor que desceu
dos céus para a realizar sua missão na Terra, era ela: Anastácia, a ex-escrava, a
velha negra, gorda, de perna inchada, que estava ali, pronta a enfrentar seja lá o
que fosse para salvar sua amada Sinhazinha e seus pequenos filhos.
O dominado rapaz após constatar quem era que reclamava em nome de Deus, fez
seu corpo acompanhar o movimento que antes estava só na cabeça, virou-se de
145

frente para sua inimiga, e feito um raio voou para cima daquele anjo em forma de
gente, parou exatamente a um palmo de distância, não mais que isso, encarou-a
seriamente, neste momento uma gota de suor escorreu levemente pela testa da
velha senhora, medo talvez, quem sabe, mas ela não arredou pé, firme estava,
firme ficou, assim como sua finada prima Dona Adelaide também morreria
naquela noite se fosse preciso.
Na escuridão do corredor, bem em frente a descida da escada, os dois corpos
parados de frente um para o outro, rosto a rosto, náufragos em um oceânico
silêncio apenas cortado pelo barulho causado pelas duas respirações que juntas,
sentiam o forte cheiro da flor das trevas.
Ele com a faca de prata na mão esquerda, segurava firme, só no aguardo do
momento certo de proferir o golpe. Ela com um Terço Católico na mão direita e
uma folha de espada de São Jorge na esquerda, pronta para reagir com a força de
sua fé.
Anastácia encarou firme aquele rosto no escuro da noite que revelava sua
verdadeira essência, sem perder tempo começou a rezar um Pai Nosso com toda
fé, foi quando neste exato momento, no fim do corredor abriu-se porta do quarto
principal, Sra. Silvia saiu, de longe viu aquela cena bizarra, igualmente tomada
por uma fé exacerbada, acompanhou o rezar que vinha do corredor.
Conforme a reza ficava mais forte, Anastácia percebia que seu inimigo perdia a
força, foi quando mesmo na penumbra, percebeu que o rosto em sua frente antes
cheio de ódio, agora trazia um sofrimento, uma dor profunda, não demorou muito
e pode-se ouvir o barulho do estalar do metal caindo sobre o assoalho, em seguida
o jovem rapaz desmaiou nos braços da velha cozinheira.
Sra. Silvia ao perceber que Antônio havia caído no braços de Anastácia, no
desespero natural de uma mãe que quer salvar seu filho, correu ao encontro dos
dois. Ao chegar perto, sem entender o que ocorrera naquele lugar, reconheceu
logo a faca de prata caída no chão, depois com cuidado puxou o filho amado para
seus braços, ao abraça-lo, sentou no assoalho frio e pôs-se a chorar copiosamente.
Sua Tata que estava muito cansada, porém satisfeita com o feito realizado,
observava aquela típica cena de Pietá com alivio, pois sabia que por meio de sua
fé em Deus havia livrado sua Sinhasinha da morte certa.
146

Após algum tempo, as duas mulheres levaram o jovem rapaz para seu quarto, ele,
mesmo meio sonolento, com alguma dificuldade no andar, conseguiu chegar até o
quarto. Com carinho colocaram-no deitado sobre a cama, Anastácia tratou logo de
enrolar uma faixa de pano na perna talhada do garoto, enquanto Sra. Silvia o
acariciava o rosto delicadamente.
As duas ali permaneceram, rezando baixinho, até os primeiros cacarejos
anunciarem a aurora fria com seus ainda tímidos raios de sol.

Capítulo XXX - A Cravina Solitária


O trajeto de Jundiaí para a capital nunca o fora tão longo como desta vez, pelo
menos para o fazendeiro Sr. Francisco Jordão, que não conseguia parar de pensar
na conversa que teve com Padre Eustáquio na igreja Matriz, principalmente na
estranha e preocupante palavra, que de agora em adiante faria parte de seu
vocabulário: Histeria!
Em sua cabeça uma pergunta martelava atrás da outra, criando um verdadeiro
turbilhão dos possíveis destinos que poderiam vir a acontecer com sua amada
esposa. Será que sua bela mulher, tão jovem ainda, com a vida toda pela frente,
acabaria seus dias hospedada na Edificação localizada próxima ao desvio do Rio
Tamanduateí, o conhecido e temido Hospício de Alienados.
Assim como a sua própria casa, o hospital psiquiátrico também estava localizado
na Várzea do Carmo. Será que o destino havia traçado esta triste coincidência?
Terminariam seus dias perto um do outro, porém separados por alguns
quarteirões.
Por outro lado, a cena de horror ocorrida em seu quarto na noite antes desta última
ida a Jundiaí o deixava ainda mais confuso em seus pensamentos; o cantar da
musica que Joana aprendera, o caminhar dela até ele completamente sedutora, mas
ao mesmo tempo maléfica. O salto com voracidade sobre ele na cama. Os
arranhões em suas costas a ponto de sangrá-las. Será que ele também estava
ficando perturbado da cabeça?
Em seu íntimo de homem uma certa curiosidade aflorava a cada pensamento,
mesmo com medo, o desejo e o instinto animal falavam mais alto.
147

Enfim, Sr. Francisco ansiava pela chegada ao casarão, teria que resolver esta
imensa loucura o mais rápido possível, antes que acontecesse alguma tragédia
com seus filhos, com ele, ou mesmo com ela.
Após longas e cansativas horas de estrada, finalmente a grande carruagem
atravessou novamente a ponte Sete de Abril, desta vez em sentido ao contrário,
isso com certeza era um bom sinal, mais uma hora ou uma hora e meia no
máximo cruzariam o pesado portão de madeira.
E foi justamente o que aconteceu, às treze horas e quarenta e cinco minutos, pode-
se ouvir o ranger do portão, que finalmente abria-se para a carruagem passar. Sr.
Francisco como de costume, mal esperou que ela parasse, desceu e caminhou
sôfrego direto para dentro do casarão.
A porta como era de costume, estava meio aberta, ele só se deu ao trabalho de
empurrá-la afim que seu corpo passasse por inteiro, seguiu pelo já conhecido
corredor dos quadros com destino ao seu escritório, diferentemente das outras
vezes, desta vez ao passar pelo retrato da mulher misteriosa algo o conteve,
chamou sua atenção, fez com que ele parasse e voltasse alguns passos. Tomado
por uma vontade maior, seus olhos dirigiram-se aos negros olhos da bela mulher
pintados na tela.
Não teve como fugir, aquele olhar era o mesmo da sua esposa na noite antes da
viagem, um medo tomou conta de seu corpo, fazendo-o sentir a mesma sensação
dúbia de medo e desejo.
-- Que loucura é essa meu Deus? - pensou ele.
Por mais que quisesse sair dali, da frente daquela tela maldita, faltava-lhe forças, a
imagem mesmo parada parecia dominá-lo, puxá-lo talvez para uma viagem sem
volta. Completamente estático, permaneceu durante um bom tempo, feito um
completo idiota a mercê dos desejos daquela figura macabra.
-- Papai! Papai!
O inocente chamado veio da porta de entrada do corredor, era a voz da doce
Joana, que brincava no quintal e viu quando seu pai chegou de viagem,
apaixonada por ele como era, não pensou duas vezes, foi ao seu encontro.
Rapidamente ao ouvir a voz da filha, o patriarca caiu em si, virou-se para a saída
da casa para vê-la, rapidamente abaixou-se ficando de cócoras com os braços
abertos a espera dela que correu para abraçá-lo. Os dois permaneceram abraçados
148

alguns minutos, ela realmente era muito apegada ao pai, da parte dele também não
era diferente.
-- Minha doce Joana, papai estava com saudades de você sabia?
Ao ouvir a pergunta, a menina achou estranho, pois, mesmo os dois sendo muitos
apegados um ao outro, ela já estava acostumada com o modo de ser frio do pai,
que mesmo abraçando-a deixava que as palavras de carinho saíssem apenas de sua
boca.
Feliz com o que acabara de ouvir, a pequena menina não perdeu tempo, fez
questão de retribuir o gesto de carinho, aproveitou para contar a novidade.
-- Eu também estava papai, o senhor saiu tão rápido no outro dia, fiquei com
saudade. Papai, sabia que Antônio se machucou?
-- Machucou-se? - curioso o pai devolveu com outra pergunta.
-- Sim, na perna. Mamãe disse que ele se cortou dormindo.
-- Cortou a perna? Como assim Joana? Cortou-se como? Que história mal contada
é essa?
Ao ouvir a menina dizer a palavra mamãe, rapidamente Sr. Francisco lembrou do
discurso de Padre Eustáquio. Será que este pequeno acidente com seu primogênito
foi obra de sua esposa? Antes de deixar-se tomar por pensamentos mais sórdidos,
tentou fazer o uso da razão. Porém desta vez, não iria falar direto com Sr. Silvia,
usaria de outro caminho, antes iria até Anastácia, tentaria descobrir junto a velha
cozinheira o que de fato havia ocorrido na sua ausência.
-- Joana minha filha, antes de mais nada preciso falar uma coisinha com
Anastácia, sabe dela?
-- Sim papai, quando entrei aqui para te ver, ela estava na horta colhendo
verduras.
-- Obrigado minha filha, agora deixa eu ir até lá falar com ela antes que eu
esqueça. Volte a brincar, volte.
A menina sem perder tempo, correu para o quintal, afim de aproveitar os tímidos
raios de sol que faziam-se presentes naquela tarde fria de fim de inverno. Sr.
Francisco seguiu-a, seu destino também era o quintal, porém para outro lugar, um
pouco mais específico: a horta.
Ao chegar lá, logo viu Anastácia que, com sacrifício abaixava-se na intenção de
colher as melhores e mais verdes hortaliças, a larga cesta de vime estava quase
149

completa, mais algumas folhas e pronto, o jantar estava garantido. Sem perder
tempo, Sr. Francisco chamou pelo seu nome, queria falar o mais rápido possível
antes que Sra. Silvia o visse.
-- Anastácia! Preciso falar-lhe urgente.
A cozinheira de costas, admirou-se ao ouvir a voz de seu patrão, achou por demais
estranho, ele que quase nunca dirigia a palavra a ela, aliás, a nenhum dos
empregados a não ser Jacinto, o jovem e fiel cocheiro. Rapidamente virou-se para
atendê-lo.
-- Boa tarde Sr. Francisco. Como foi de viagem?
Afim de não perder tempo com as perguntas corriqueiras de sempre, Sr. Francisco
foi sucinto na resposta:
-- Sim, foi tudo bem. Tudo ótimo.
-- Ah tá certo! Estranho o senhor por aqui na horta? Aconteceu alguma coisa?
-- Eu que pergunto. Mal cheguei de viagem e Joana veio me dizer que Antônio
machucou a perna. Antes de saber de Silvia, achei melhor falar com você.
Anastácia que de tola não tinha nada, já havia combinado tudo com sua patroa,
pois as duas sabiam que não poderiam contar a verdade para Sr. Francisco, para
isso criaram uma pequena história, meio estranha é verdade, mas definitivamente
foi a melhor saída que encontraram. Com um sorriso disfarçado contou-a:
-- O patrão, é esse o motivo do senhor estar aqui. Não se preocupe viu? Não
aconteceu nada demais, o menino Antônio machucou-se dormindo.
-- Dormindo?
-- Dormindo sim senhor, fruto de um pesadelo daqueles! - mais disfarçada ainda,
com riso amarelo nos lábios - Mas a culpa foi minha, quem mandou eu caprichar
tanto na ceia? O garoto nesta idade que está tem um apetite de leão. Foi isso,
comeu mais do que devia e teve um enorme pesadelo.
Sr. Francisco não muito satisfeito viu-se obrigado a aceitar a tal explicação de sua
cozinheira, embora achasse tudo meio estranho, admitiu que isso poderia
realmente ter acontecido, afinal de contas ele também já havia sido jovem um dia,
sabia muito bem das transformações que ocorrem na puberdade, principalmente
com relação ao apetite.
-- Muito bem Anastácia, já entendi. Então foi isso o ocorrido? É que Joana falou
de um jeito que achei que fosse algum acidente mais grave.
150

-- E o patrão lá não sabe como a menina Joana exagera nas coisas? Criança é
assim mesmo.
-- Pois é, pois é. Mas diga, e Silvia por onde anda?
-- Se bem conheço minha sinhazinha, com certeza deve estar no jardim
descansando, ela faz isso quase todos os dias depois do almoço.
-- Está certo. Vou até o jardim. Agradecido pela explicação, confesso que tinha
ficado preocupado.
-- Não seja por isso Sr. Francisco. Não seja por isso.
Mal ela terminou de falar a segunda frase para seu patrão virar as costas com
intenção de seguir para o jardim, Anastácia não admirou- se, o ato dele ter
agradecido por incrível que poderia parecer já era um grande feito, sinal que
alguma coisa diferente realmente tinha acontecido nesta viagem.
Poucos passos foram suficientes para Sr. Francisco ver sua amada esposa sentada
em um dos bancos de madeira do belo e florido jardim. Sozinha como sempre na
vida, parecia dialogar com uma solitária Cravina vermelha em uma das mãos. O
fraco sol de julho acariciava com seus tímidos raios seu belo e jovem rosto,
deixando-o ainda mais alvo que o normal.
Antes de aproximar-se para dar o ar da graça que havia chegado, o nobre homem
parou numa distância segura, que ela não pudesse vê-lo, neste momento permitiu-
se admirá-la por um breve momento, percebeu o quanto sua esposa realmente era
linda. Para ele era difícil, quase impossível de acreditar que aquela formosura toda
de mulher estivesse tomada pela tal doença que o pároco havia comentado.
Enfim, como nesta vida Deus escreve certo por linhas tortas. Quem sabe isso tudo
não seria um castigo justamente para ele, que sempre foi muito rude, frio, sem
tempo para com ela. Afinal de contas, caso isso tudo que o padre lhe disse fosse
verdade mesmo, não demoraria muito para a coitada sair completamente da razão,
viajar de vez, num caminho sem volta para o lugar fantástico e desconhecido da
loucura, um mundo que passaria a ser apenas dela e dos poucos desgraçados
escolhidos pelo destino da vida. Sendo assim o real sofrimento como sempre
nestes casos sobraria para os que ficassem do lado de cá, no dito mundo
conhecido como normal.
Rapidamente procurou espantar tal possibilidade, pelo menos por enquanto. A
verdade era uma só, naquela hora, sua vontade mesmo foi aproximar-se de sua
151

linda esposa, tomá-la em seus braços e beijar-lhe calorosamente como há muito


tempo não o fazia, porém mais uma vez seu orgulho patriarcal o impediu,
resolveu que o melhor por fazer era manter o mesmo comportamento de sempre.
Com calma caminhou em sua direção.
A bela mulher ao perceber que seu esposo aproximava-se, continuou sentada,
apenas virou o delicado rosto em direção ao dele, com um leve sorriso recebeu-o
com uma conversa meio estranha para quem recebe o esposo recém chegado de
viagem, isso poderia ser mais um motivo para deixá-lo ressabiado em seus
pensamentos.
-- Estávamos aqui confabulando, eu com esta pobre e sozinha Cravina, falávamos
de como é triste o peso da solidão.
Ao ouvir esta frase Sr. Francisco meio atordoado que estava, ficou ainda mais
com a pulga atrás da orelha. Sua mente confusa mais uma vez trabalhou rápido;
Como assim confabular com uma flor? Será que já era a doença fazendo-se
presente? Seria o início do fim de seu casamento?
Melhor mesmo seria parar com tais devaneios, pois deste jeito quem logo iria
morar no Hospício dos Alienados com certeza seria ele. Rapidamente voltou a si,
percebeu que sua esposa estava apenas brincando com os dizeres, desta vez
resolveu entrar na brincadeira.
-- Realmente é uma bela flor para viver na solidão.
Sra. Silvia com um pequeno gesto convidou-o para sentar sobre o banco ao seu
lado, ele pela primeira vez permitiu-se a tal gesto, pois desde que foram morar no
casarão, ele nunca havia sentado em algum dos bancos do jardim, aliás, dava para
contar nos dedos de umas das mãos as vezes que Sr. Francisco andou entre as
flores daquela parte do quintal, na verdade apenas uma, quando foi conhecer a
propriedade para comprá-la, e mesmo assim não se deu conta de apreciá-las.
O sol que até agora preocupava-se apenas em iluminar a bela mulher sentada no
banco daquele jardim em mais uma tarde de inverno, agora via-se com outra
obrigação; também iluminar o rosto daquele homem.
O cenário impressionista estava montado, com os dois modelos estrategicamente
colocados pelo destino naquele jardim, prontos para quem sabe servirem de
inspiração para algum artista pintor, porém o máximo que aconteceu foi que a rara
152

cena pode ser apreciada por uma pequeno e seleto público formado pelos dois
filhos, Jacinto, Anastácia e pelos demais empregados.
Sim, com certeza, sem exceção, todos estavam admirados com aquela bela
imagem formada naquele jardim. Permitiram-se parar o que estavam fazendo por
um instante para contemplar o belo casal sentado no banco do jardim. Realmente
algo raro, e por que não se dizer quase impossível de se ver?
Ainda com um leve sorriso nos lábios Sra. Silvia concordou com seu esposo:
-- Você disse tudo agora Francisco, uma bela flor para viver na solidão - nas
poucas palavras com certeza tinha dado seu recado, achou por bem mudar o rumo
da conversa - E você meu esposo, que milagre é este de vir até aqui me procurar?
-- Nada demais, como havia falado com Anastácia há pouco, ela me disse que
estavas aqui, resolvi vir ao seu encontro.
-- Nossa! Além de vir até aqui, você a falar com Anastácia! - admirada -
Aconteceu algo na viagem?
Após uma pequena pausa, Sr. Francisco teve vontade de contar toda a conversa
que teve com Padre Eustáquio, falar da existência da doença e de sua preocupação
naquele momento para com ela, mas achou por bem não tocar no assunto.
-- Não aconteceu nada Silvia, é que mal retornei de viagem e fiquei sabendo pela
boca de Joana que Antônio machucou a perna, se cortou.
-- Ah! Então foi isso? Aconteceu nada demais, apenas machucou-se dormindo,
algum pesadelo, acho que abusou um pouco na ceia.
-- Sim, Anastácia comentou. Mas não achas meio estranho?
Sra. Silvia também teve vontade de falar toda a verdade, mostrar a ele a real
situação de perigo de todos dentro daquela maldita casa, porém assim como ele
sobre o assunto da viagem, achou melhor manter o combinado que tinha feito com
sua fiel Anastácia.
-- Como lhe disse, ele deve ter comido mais do que o necessário. Um pesadelo,
não mais que isso.
-- Certo, menos mal. Bem, preciso entrar, coisas a resolver no escritório, a
colheita desta vez não foi como eu esperava.
Com um sorriso desta vez irônico, a bela mulher concordou com seu esposo:
-- Entre, vá fazer o que tem que ser feito. Ficarei mais um tempo aqui
conversando com minha Cravina, temos muito o que falar sobre a vida.
153

Sr. Francisco levantou-se calado, de certo tinha compreendido a mensagem dita


por ela na última frase, sem falar mais uma palavra afastou-se, mesmo não
satisfeito com as tais explicações sobre seu filho, tomou o rumo do escritório.

Capítulo XXXI - Apenas um Copo D'água


Regidas com a mesma determinação das virgens Valquírias imortalizadas por
Richard Wagner, que cavalgavam determinadas em seus magníficos corcéis, nos
presenteando por meio do brilho de seus escudos um magnífico espetáculo da
mais linda aurora boreal, a tarde na capital paulista igualmente avançava
irrefragável pelas horas em um maravilhoso tom de vermelho alaranjado em busca
da temida escuridão da noite.
Sem perder a rotina de sempre, as tardes nas ruas da Várzea do Carmo, assim
como dos bairros próximos, prosseguia com todos nos seus afazeres diários: o
comércio com seus armazéns de secos e molhados tomados pela sequencia de
sons quase que ininterruptos dos tilintares agudos das recém inventadas caixas
registradoras, revelando um entra e sai de possíveis consumidores dos mais
diferentes tipos: caboclos, negros ex-escravos, antigos patrícios e os muitos
imigrantes recém chegados da Europa, na maioria italianos, estes últimos por
sinal, devido a mão de obra, cultura e costumes, iriam em um futuro não distante
contribuir com certeza para o crescimento econômico da cidade.
Os mascates cansados, praticamente em final de expediente, preparam-se para
despedir-se de mais um dia exaustivo de labuta, alguns mais felizes com a féria
do dia, outros nem tanto. Os jovens estudantes da Faculdade de Direito do Largo
São Francisco após mais um dia de aprendizado com os mestres vindos em sua
maioria da Academia de Coimbra, apressam-se pelas calçadas afim de chegar em
suas casas e pensões - morada provisória para os que vinham de outras terras -
afim de descansar um pouco, recuperar a energia física para logo mais visitarem
os seus cafés-chiques, locais prediletos para confabularem alto entre um gole e
outro de cachaça, acariciados intimamente pelas alegres, carnudas e fogosas
raparigas.
No grande casarão não era diferente, assim como as ruas da cidade, também
seguia seu ritmo quase que diário, quebrado raramente, quando aos finais de
semana a família Jordão permitia-se ir até o conhecido e belo Jardim da Luz.
154

Realmente era um passeio que sem sombra de dúvida agradava a todos sem
exceção: Sra. Silvia gostava de apreciar a paisagem do lugar com suas flores das
mais diferentes espécies, assim como a diversidade de árvores frondosas, na sua
maioria as figueiras plantadas em meados de 1864. Para o jovem Antônio o que
chamava mais atenção era o famoso empreendimento realizado pelo antigo
presidente de quando São Paulo ainda era Província, João Teodoro; a torre de
vinte metros de altura, que tinha como função ser um observatório meteorológico,
o mirante era conhecido jocosamente como “Canudo do João Teodoro”, aliás, na
verdade esta edificação atraia atenção praticamente de toda a cidade,
principalmente dos frequentadores mais assíduos da elite-cafeeira paulista. Joana
por sua vez gostava mesmo era do grande espaço que tinha para brincar e correr,
além de observar os diversos chafarizes espalhados por boa parte do Jardim. O
interesse do Sr. Francisco Jordão ia além de apreciar toda beleza verde oferecida
pelo local, como bom articulador que era, aproveitava estes passeios dominicais
para aproximar-se de outros homens de posse, e assim quem sabe trocar
informações, realizar novos negócios.
Salvo estes raros finais de semana, a família praticamente mal se via, a não ser
nos momentos das refeições diárias: Sr. Francisco Jordão quando não estava pelas
bandas do interior, passava praticamente o dia todo no cômodo escolhido como
escritório, entretido com a burocracia que o café exigia dos que trabalhavam com
ele. Sra. Silvia após os passeios pelo seu adorado jardim, geralmente ia conferir
junto a sua fiel cozinheira como estava o andamento para a ceia de logo mais a
noite. As crianças, estas sim, sabiam como ninguém aproveitar a liberdade
peculiar da idade, a única preocupação era brincar pelo grande quintal, depois
banharem-se para assim cearem limpas, conversar mais um pouco e recolherem-se
em seu quarto exaustas afim de aguardar o outro dia.
Realmente tudo ocorreu conforme o previsto, após a deliciosa ceia preparada com
carinho por Anastácia, desta vez um pouco mais leve afim de não presentear
ninguém com possíveis pesadelos. O menu oferecido por ela foi uma leve canja de
galinha caipira, bem temperada com bastante salsinha fresca, bem verdinha. Para
acompanhar a canja uma gostosa Broa de Milho, feita com espigas também
colhidas do próprio quintal. Todos, sem exceção saborearam com gosto até a
última colherada no prato.
155

Após este momento em comunhão, não demorou muito para a família Jordão
quase que ao mesmo tempo recolher-se para seus respectivos aposentos.
As crianças ao entrarem no quarto, rapidamente trocaram suas vestes do dia pelas
da noite, após rezaram o Pai Nosso e a Ave Maria como era de costume, deitaram-
se em suas respectivas camas, não precisou de muito tempo para serem capturadas
pelo sono, pois o dia havia sido puxado com muita distração.
O mesmo aconteceu com Sr. Francisco, talvez devido a viagem de volta do
interior, não tardou muito para que os roncos dessem o ar da graça com seu
estrondoso espetáculo operístico. Sra. Silvia por sua vez saiu de sua rotina,
resolveu arrumar-se mais antes de ir para a cama, sentada em frente a conhecida
penteadeira com seu espelho de cristal, trajada com seu penhoar de seda francesa,
escovou demoradamente as longas madeixas, depois de certificar-se que estavam
bem lisas e desembaraçadas, a bela mulher finalmente deitou-se ao lado de seu
esposo na esperança quem sabe de um abraço carinhoso. Quem dera, o rude
homem mesmo em sono profundo, ao sentir a presença dela na cama, sem
pestanejar virou-se de costas afim de ajeitar-se melhor, ela coitada, como diria o
provérbio popular lusitano: "ficou a ver navios".
Bem, não restou outra saída para Sra. Silvia, uma vez que não teve o carinho do
qual esperava, o melhor a fazer foi fechar os olhos, assim como seus amados
filhos também rezar baixinho um Pai Nosso e uma Ave Maria em agradecimento
por mais um dia de vida, e aguardar com paciência o abraço envolvente de
Morfeu, não mais que isso.
Realmente ele não tardou a chegar, porém pode-se dizer que sua visita foi mais
rápida do que o habitual, por volta das três horas da manhã, suas pálpebras
afastaram-se uma da outra, a bela mulher perdeu completamente o sono, sem ter a
menor ideia o porquê desta insônia sem motivo, achou por bem beber um pouco
d'água, quem sabe assim não voltaria dormir mais rápido.
Sentou-se na beira da cama, com a mão direita foi certeira em direção ao criado
mudo na intenção de beber a água que ficava dentro de uma taça de cristal,
sempre protegida por um guardanapo de algodão bem alvo sobre a borda fina de
ouro da mesma. O pano era sobreposto desta maneira afim de evitar que caísse
algum cisco de poeira ou mesmo o inesperado mergulho de algum inseto
desapercebido.
156

A taça era colocada estrategicamente todas as noites pela sua cozinheira


Anastácia, este pequeno gesto de carinho e preocupação servia para poupá-la de
descer até a cozinha ou mesmo até a sala de jantar para saciar a sede. Porém desta
vez estranhamente o artefato transparente estava completamente vazio, inclusive
sem o guardanapo de pano, que havia caído sobre o assoalho de madeira. Devido
a escuridão do cômodo, outro pequeno detalhe que a nobre senhora não percebera
foi a marca vermelha deixada por algum lábio na borda de ouro do fino objeto de
cristal.
Sem poder beber água naquele momento, o melhor a fazer era ir até o encontro da
moringa de barro queimado que ficava no centro da rústica mesa de madeira da
cozinha, sem hesitar resolveu então descer até lá para saborear o abençoado
líquido cristalino.
Vestiu seu penhoar de seda, calçou suas confortáveis chinelas de couro forradas
com pele de carneiro, pegou a lamparina também de cima do criado mudo,
acendeu-a afim de iluminar o caminho e andou lentamente até a porta, bem
devagar virou a maçaneta com cuidado, afim de evitar qualquer barulho que
pudesse acordar seu esposo, girou-a até sentir o destravar da porta, então abriu-a
devagar, seguiu pelo corredor em direção a escada central que ligava os dois
andares do casarão.
Guiada pelo clarão amarelo que a lamparina oferecia, não demorou muito para
que chegasse a escada, com uma das mãos apoiada no grande corrimão, pisou
com o pé direito o primeiro degrau, deu início a descida, rapidamente chegou no
andar térreo, virou a direita, depois a direita novamente afim de pegar o corredor
que além de terminar na porta da saída, alguns metros antes tinha uma virada
curta a direita que levava direto para a cozinha da casarão.
Com ajuda da luz oferecida pela lamparina logo avistou a tal moringa de barro
sobre a mesa, apoiou o objeto de luz que segurava em cima da pia, foi até uma das
Cristaleiras, abriu uma das pequenas portas e pegou uma pequena caneca de Ágata
esmaltada branca, caminhou até a mesa, pegou a moringa de barro para encher o
pequeno objeto, até o momento tudo ocorria dentro do planejado, quando de
repente a lamparina apagou-se de uma vez, um imenso breu tomou conta de tudo,
rapidamente o cheiro da flor maldita tomou conta do ambiente, agora muito mais
forte do que das outras vezes, Sra. Silvia com o susto, talvez pelo instinto humano
157

de sobrevivência, mesmo sem enxergar nada, rapidamente guiou os olhos em


direção onde havia colocado o objeto, logo constatou que realmente o mesmo
estava completamente apagado. Procurou não apavorar-se, colocou a moringa e a
caneca sobre a mesa, para assim com as mãos livres poder pegar o útil fornecedor
de luz e reacendê-lo, assim o fez.
Uma vez aceso novamente, virou-se para a mesa para dar sequencia ao motivo
pelo qual a trouxe ali, porém ao dar a volta com seu corpo, o pequeno artefato
iluminou algo a mais do que o esperado.
Ela, a medonha. Pálida feito um boneco de cera do famoso museu londrino de
Madame Tussauds, trajando seu vestido branco exageradamente surrado pelo
tempo. Parada do outro lado da mesa, apoiava firme as duas mãos esqueléticas de
longas unhas roxas sobre o tampão de madeira da mesa. Em silêncio com os olhos
negros e fúnebres cheios de ódio, oferecia por meio de seus lábios carnudos e não
menos roxos um horripilante sorriso macabro.
Sra. Silvia ao deparar-se com a monstruosa figura apavorou-se a tal ponto de não
conseguir gritar, muito menos correr, completamente congelada de pavor foi
obrigada a encarar sua rival de frente. Seus olhos nunca tinham visto uma coisa
tão horrível: as carnes da face além de sujas, revelavam manchas e feridas podres,
típicas de um cadáver em estado avançado de decomposição, as pálpebras além de
pesadas, eram negras e profundas, os longos cabelos também negros estavam em
sua maioria envoltos por camadas de teias de aranhas empoeiradas pelo tempo.
De repente, com um gesto súbito suas belas mãos foram sobrepostas com força
pelas geladas e putrefatas mãos daquele ser feminino dotado com o fedor da
morte, que com o olhar fixo nos olhos de Sra. Silvia dominou-a completamente.
Neste momento a nobre senhora, foi presenteada por uma sensação nunca sentida
por ela antes, imagens destorcidas começaram a ser projetadas dentro das negras e
dilatadas íris dos olhos do monstro que invadiram o belo corpo da nobre senhora.
Assim como uma película documental criada pelos irmãos Lumière, cenas
horripilantes do passado daquele casarão maldito vieram à tona em sua mente;
imagens sucessivas e rápidas misturavam-se com risos assustadores, dizeres
soltos, choros amargurados, a escadaria central do casarão banhada de sangue, os
quadros na parede do corredor com seus retratos neles pintados animados com
risadas descompensadas, ao fundo o som lento e contínuo da tal canção de Joana.
158

Os gritos de desespero revelavam sem dó nem piedade os horrores encarnados,


guardados há décadas entre as silenciosas paredes de tijolos do antigo imóvel.
Entre as muitas imagens reveladas, duas destacaram-se por sua estranheza talvez
reveladora: a presença de sua amada filha Joana de mãos dadas com uma bela
moça trajando um vestido branco caminhando pelo quintal em direção ao velho
porão. Em outro momento esta mesma moça chorando desesperadamente aos
gritos com as duas mãos sobrepostas na altura do ventre manchado de vermelho.
Quando toda a cena caminhava para um final não menos trágico do que todo o
revelado em sua mente, Sra. Silvia foi buscar forças não se sabe da onde - talvez
do fundo de seu âmago, de sua fé em Deus - soltou um grito desesperado, pondo
fim aquele verdadeiro filme de horror:
-- Me deixa maldita! - após isso caiu desfalecida sobre o piso frio.
O grito de desespero saído de Sra. Silvia foi de um volume tão exagerado que
chegou aos aposentos da casa, assustadas as crianças pularam de suas camas e
correram em direção ao quarto dos pais, Sr. Francisco, que também havia
escutado o tal barulho, já estava acordado, por não ver sua esposa ao seu lado na
cama, desconfiado, resolveu sair rápido do quarto para procurá-la, foi quando
encontrou os filhos assustados, Antônio de mãos dadas com a pequena Joana logo
abordou o pai:
-- Pai, o que foi este grito? Parecia a voz da nossa mãe.
Neste momento, com a mesma rapidez com que apareceu do outro lado da mesa,
aquele ser misterioso sumiu. Voltou para seu demimonde - o mundo escondido
entre o que sabemos e o que sentimos das trevas, de certo foi para junto das outras
infelizes almas, que assim como ela, são amaldiçoadas a viver eternamente na dor,
na angústia, no pesar, na culpa, no sofrimento. Enfim, nos sentimentos ruins que
machucam e envenenam o espírito.
Pai, filho e filha desceram acelerados a escada guiados pelo ensurdecedor grito de
desespero que acabaram de ouvir, ao adentraram-se na cozinha a primeira coisa
que viram foi o corpo da matriarca caído no chão. Rapidamente Sr. Francisco e
Antônio foram ao seu encontro com o objetivo de tentar reanimá-la, Joana
tremendo, muito assustada, ficou da entrada apenas olhando. O homem por ser
mais forte ficou com a tarefa de tentar erguê-la, Antônio na intenção de ajudar,
159

aproveitou a caneca que estava em cima da mesa, encheu-a com água da moringa
e ofereceu a mãe.
Após algumas sacudidelas no corpo alternadas com leves tapas no rosto, Sr.
Francisco ao perceber que sua esposa aos poucos estava acordando, pegou a
caneca da mão de Antônio e levou até seus lábios para que ela pudesse beber um
pouco d´água. Com certa dificuldade, entre um balbuciar de palavras sem nexo e
outro, conseguiu tomar alguns goles, neste momento o esposo assustado, resolveu
questionar o que havia ocorrido.
-- Silvia! Silvia! Que diabos aconteceu aqui?
Ela ainda meio grogue, ainda regressando lentamente de algum lugar
desconhecido pela maioria dos seres ditos normais, esforçou-se para responder:
-- Francisco? O que fazes aqui? Cadê nossa filha?
-- Eu que pergunto Silvia. O que você faz aqui na cozinha a esta hora da
madrugada, caída no chão?
A bela senhora sem se dar conta da pergunta do esposo, respondia com outra
pergunta, sua preocupação era saber da filha.
-- Onde está Joana? Temos que proteger Joana!
Sr. Francisco sem entender nada, quase perdendo o pouco predicado que já não
lhe era muito: a paciência, resolveu ser mais incisivo na colocação, afim de trazê-
la para o mundo real de uma vez por todas:
-- Pelo amor de Deus Silvia! O que está acontecendo? Joana está bem, olha ela ali
assustada. Você está deixando todos nós preocupados. O que aconteceu?
Ao virar o rosto e ver a filha assustada no canto da cozinha, esticou os braços num
gesto de carinho, oferecendo um abraço caloroso, a menina rapidamente entendeu
o código maternal, correu ao seu encontro.
-- Minha filha amada, mamãe não vai deixar que nada aconteça com você, pode
confiar em sua mãe. Ninguém vai tirá-la de mim, eu sou sua mãe, eu sou sua mãe,
eu sou sua mãe...
Sem entender o motivo daquela insistência toda nas falas, pai e filho olharam-se
perplexos e porque não dizer admirados. Afinal de contas o que estava
acontecendo naquela cozinha?
A menina por sua vez, embora estivesse aliviada de ver sua mãe acordada, mesmo
sendo tão novinha e inocente achou estranho aquele alarde todo. Sr. Francisco
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novamente não pode deixar de lembrar dos conselhos do Padre Eustáquio. Será
que sua linda mulher estava realmente em um caminho sem volta para o
misterioso lugar dos escolhidos por Deus para passarem os restos de suas vidas?
-- Silvia, você está assustando a menina, aliás, a todos nós. Por que destas
palavras? Ninguém vai tirar Joana de nós, muito menos de você. Agora com
calma levante-se, vamos para o nosso quarto, você precisa descansar, dormir.
Antônio, ajude aqui, vamos!
Pai e filho mesmo com um certo esforço conseguiram colocá-la de pé, segurando-
a cada um de um lado, devagar levaram-na de volta para o quarto. Para Joana
restou levar a caneca de ágata branca cheia com água para que sua mãe pudesse
beber quando quisesse.
Ao entrarem no aposento do casal, com muito carinho deitaram-na na cama, ela
por sua vez não tirava o olhar de cima de Joana, insistia no falar sem nexo.
-- Filha, fica aqui perto da mamãe, deita aqui comigo deita filha. Mamãe vai
proteger-te, ninguém vai tirar você da mamãe.
Naquele momento para não contrariar Sr. Francisco fez um sinal com os olhos
para que a filha aproximasse da mãe, assim quem sabe ela não ficaria mais calma,
e consequentemente conseguisse dormir. A menina obedeceu o pai, deitou-se ao
lado da mãe que abraçou-a com ternura, um sutil silêncio tomou conta do espaço.
O Patriarca olhou para seu filho, que por ser mais velho, não pode também deixar
de perceber que sua amada mãe não estava dentro de suas razões, emocionado
retribuiu com um olhar marejado, porém ao mesmo tempo questionador.
Não demorou muito para que Sra. Silvia pegasse no sono, foi então que Sr.
Francisco calmamente, com muito cuidado afastou a menina de perto dela, porém
ao levantar o braço de sua esposa de cima da filha, percebeu algo estranho em sua
mão, sem causar alarde, apenas ordenou que os dois fossem para o quarto deles,
daquele momento em diante ele cuidaria de Sra. Silvia sozinho, além disso não
tardaria muito para que os primeiros raios de sol entrassem pelas frestas das
grandes janelas do aposento.
Os dois pequenos obedeceram, saíram com destino para suas devidas camas, o
homem ao ficar sozinho, pegou a luminária, aproximou em sua direção, mais
precisamente perto das costas das mãos de sua esposa, com a luz pode ver grandes
manchas escuras, verdadeiros hematomas.
161

Aquilo o deixou mais apreensivo ainda. Será que ela mesma tinha se auto
flagelado ou havia machucado com a queda? Mas logo nas duas mãos? E por que
marcas tão distintas?
Muitas perguntas e nenhuma resposta, antes que ele mesmo fosse parar no
Hospício dos Alienados, resolveu que o melhor a fazer naquele momento era
deitar-se, tentar dormir um pouco, pois logo amanheceria, durante o dia pensaria
com calma qual atitude tomar com relação a sua esposa.
E realmente foi o que aconteceu, bastou o dia clarear e a nobre senhora abrir os
olhos para ver Sr. Francisco sentado sobre a luxuosa namoradeira de madeira e
vime que ficava ao pé da cama. Em silêncio aguardava o momento exato que sua
esposa acordasse para dirigir-lhe algumas palavras, mas antes que ele desse início
ao diálogo, ela antecipou-se:
-- Bom dia Francisco, achei que já estivesse tomando o desjejum.
-- Não desci ainda, aguardava que você acordasse, afinal precisamos conversar
não achas?
-- Com certeza. Mas antes, me diga como cheguei aqui em cima, não lembro de
mais nada depois do ocorrido.
-- Ocorrido?
-- Sim, foi horrível. Por falar nisso, cadê nossa filha? Onde está Joana?
-- Calma, ela está com Anastácia, assim como Antônio, já estão no andar debaixo,
sentados à mesa, não se preocupe. Mas vamos ao que interessa, me conte tudo o
que aconteceu.
Neste momento a nobre senhora levantou-se da cama, calçou as confortáveis
chinelas, vestiu seu Penhoar, com calma caminhou para sentar-se também sobre a
namoradeira ao lado dele, respirou fundo e o encarou nos olhos pensativa: por
onde começar a contar a assustadora narrativa, os momentos de terror que viveu
na madrugada anterior?
Após sentar-se, quase que instintivamente os dois pares de mãos foram de
encontro um do outro, assim como a imagem formada no jardim no dia anterior,
mais uma vez um belo quadro formou-se por meio do casal, com a diferença que
desta vez sendo iluminado pelos frestados e tímidos raios de luz e pelo frescor da
manhã.
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Sem falar nada, e ainda com uma certa paciência Sr. Francisco esperou pela tão
misteriosa explicação. Ela, depois de olhá-lo fundo nos olhos, percebeu que não
tinha outra saída a não ser contar a mórbida história, porém antes lhe fez um
pedido:
-- Antes de contar o que aconteceu, preciso que me prometas uma coisa.
-- Diga Silvia, se estiver ao meu alcance.
-- Sim está, com certeza está. Peço encarecidamente que não duvides de mim, o
que vou contar a você é muito grave e horrível, mas juro por tudo que é mais
sagrado nesta vida, pelas almas de nossos filhos que não estou inventando nada, é
tudo verdade.
-- Por favor Silvia, comece a falar, estás me deixando mais apreensivo ainda.
-- Pois bem, vou começar - mais uma vez respirou fundo - Na noite passada por
volta das três horas da manhã eu acordei com sede, fui pegar a água que sempre
fica na taça deixada por Anastácia, porém a mesma estava completamente vazia,
inclusive com o pano que fica em cima caído no chão, por um momento até achei
que você tivesse acordado antes de mim e bebido, enfim...Resolvi descer até a
cozinha, pois lembrei da moringa cheia d'água fresca que sempre fica em cima da
mesa. Preocupada em não acordar-te, afinal pelos roncos estrondosos devias estar
bem cansado, foi então que em silêncio, de posse da luminária desci sozinha até
lá...
Assim como os fios do urdume e da trama juntam-se numa sincronia sem igual
para formar os mais belos tecidos ou mesmo iguais as hábeis mãos dos antigos
mestres dos países do mediterrâneo na arte de trabalhar a lã de carneiro, aos
poucos a narrativa contada pela nobre senhora desenrolou-se permeada por ricos,
porém não menos sórdidos detalhes, oferecendo um verdadeiro e longo corte
estampado de horror no imaginário de Sr. Francisco, que sem manifestar um só
comentário que fosse, de olhar sereno e curioso, permitia-se apenas prestar
atenção em cada palavra revelada por sua bela esposa.
Embora achasse tudo por demais estranho, sentia-se na obrigação de dar um certo
crédito naquela história, afinal ele mesmo também havia passado por um episódio
parecido, ou quase parecido, inclusive protagonizado pela mesma personagem.
Após alguns bons minutos sentados frente a frente, Sra. Silvia chegou ao fim da
horripilante narrativa:
163

-- Após desmaiar só lembro que acordei nos teus braços, o resto você já sabe.
-- Tudo bem Silvia, tudo bem. Realmente é uma história um tanto fantástica.
Temos que averiguar com calma todos os fatos, eu ainda insisto que tudo não
passou de um forte pesadelo, enfim...- fugindo do assunto - Agora vamos descer
para tomar nosso desjejum, estou faminto, você deve alimentar-se também, vejo
olheiras em você, ainda estais meio abatida de ontem - A última frase veio
acompanhada pelo levantar rápido de cima da namoradeira.
Em seguida caminhou até a porta do quarto e saiu em direção ao andar debaixo.
Sra. Silvia ainda permaneceu sentada algum tempo. Observando-o pensativa,
tinha certeza que seu esposo não estava crente em uma palavra pronunciada por
ela, por outro lado também sua preocupação por hora não era esta, o que
importava mesmo naquele momento era desvendar ao máximo aquelas horríveis
imagens da madrugada anterior para tentar evitar que mal algum se apoderasse de
sua amada filha, não era de agora que ela sabia que Joana era o real motivo de
todos os horríveis acontecimentos no casarão. Mas por que justamente sua filha?
Uma imagem dentre as outras não saia-lhe da cabeça: a mancha vermelha
marcada no vestido bem na região do ventre daquele monstro em forma de gente.

Capítulo XXXII - O Simples Dr. Onofre


Quando o casal finalmente sentou-se à mesa para saborear as delícias feitas por
Anastácia, as duas crianças haviam terminado há algum tempo, entretidas com as
novas e velhas brincadeiras já corriam soltas, livres pelo grande quintal de terra
batida do casarão.
O silêncio foi o elemento mais presente à mesa naquela manhã que, embora fria,
presenteava a capital paulista com um belo céu azul. Sra. Silvia quieta, com gestos
comedidos e delicados, apenas ateve-se a petiscar um pequenino pedaço do
saboroso bolo de cenoura coberto por uma fina camada de chocolate,
acompanhado por uma xícara de café com leite, desta vez pouco adoçado.
Seus olhos passeavam timidamente de vez em quando para observar a postura do
esposo, que ao contrário dela, grosseiramente apenas preocupava-se no ato de
trabalhar as mandíbulas afim de saciar a fome, dele não escapou nada: o bolo de
cenoura, a broa de milho, o queijo meia-cura, o pão sovado, além do próprio café
bem forte e amargo como era seu costume.
164

Com o término da refeição da manhã, cada qual tomou seu rumo: Sra. Silvia sem
perder tempo foi ao encontro de sua cozinheira, tinha a certeza que ela estaria na
cozinha ou na horta colhendo alguns temperos para o preparo do almoço. A nobre
senhora ansiava em dividir o que havia acontecido na madrugada anterior, pois
sabia que mais uma vez poderia contar a ajuda de sua adorada Tata.
Realmente Sra. Silvia não enganou-se, mal colocou os pés fora da imponente
edificação para de longe a ver entretida na horta, tão conformada com aquela vida
desgraçada no sentido mais literal da palavra, sem nenhuma perspectiva diferente
do que aquela rotina enfadonha e injusta da maioria dos negros no Brasil,
principalmente dos ex-escravos, no caso dela então pelo adiantado da idade,
apenas servir a família Jordão e esperar conformada pela boa hora.
Com seu corpo já cansado, meio encurvado em direção ao solo, destacava-se o
reluzente prateado causado pelos raios de sol sobre a cabeça, que mesmo
protegida por um velho lenço estampado, permitia escapar pelos cantos das
orelhas e da nuca boa parte das mexas que lembravam tufos de algodão bem
alvos.
A velha negra e gorda, de perna inchada, como sempre dedicada nos seus
afazeres, entretida enquanto colhia os temperos e hortaliças frescas, cantarolava
despretensiosa uma singela canção em idioma Banto. O dia e o horário estavam
propícios para aquela tranquila atividade, pois além do frescor dos verdes
produtos, os raios de sol da manhã paulistana, mesmo que tímidos, batiam com
vontade no seu largo dorso, proporcionando-lhe uma sensação boa de conforto e
paz.
Aquela imagem só veio a afirmar uma coisa: de como o tempo é realmente algo
impiedoso e cruel, principalmente com os mais desfavorecidos. Igualmente a uma
grande e imponente locomotiva a vapor, dona de si, que por vontade própria não
obedece a ninguém, por vezes inclusive nem mesmo a Deus. Em sua infinita
labuta puxa com força e determinação, sem dó nem piedade um longo comboio
onde nós meros mortais somos os passageiros, parece que não, mas navega ligeira
sobre os curvilíneos trilhos da vida, com destino só por ela sabida, e que por mais
que lutemos para tentar maquinar tal transporte, jamais, em tempo algum,
conseguiremos vencer tão injusta batalha.
165

-- Bom dia Tatá, nem terminou o café da manhã, já preocupada com o almoço? -
iniciou o assunto meio que disfarçando, como quem não quer nada.
Anastácia respondeu com um sorriso carinhoso, sabia que para sua patroa estar ali
logo cedo, algo a mais existia naquele simples Bom dia:
-- O minha sinhazinha, bom dia! Pois é, quero aproveitar que as bichinhas ainda
estão fresquinhas, e este solzinho gostoso também meio que chama a gente.
-- Com certeza...com certeza. Quando acabar de colher tudo podemos ter uma
prosa rápida na cozinha? Preciso contar-lhe mais uma coisa muito grave.
-- Mais uma sinhazinha? O que foi desta vez? Vamos indo, já terminei aqui, lá
podemos prosear mais sossegadas, e sem o perigo de nenhum dos outros
empregados nos atrapalhar. Sinhazinha sabe como este povo daqui é curioso.
Sra. Silvia apenas concordou com um leve sorriso, em seguida as duas
caminharam em direção a cozinha, a bela senhora entrou primeiro no cômodo,
puxou uma das pesadas cadeiras de madeira e sentou-se. Anastácia ao entrar logo
acomodou os pertences sobre a pia na intenção de lavá-los, depois assim como sua
patroa puxou outra cadeira e também sentou-se.
Pronto! As duas mulheres mais uma vez estavam prontas para dar início a mais
uma conversa sobre o já conhecido assunto. E assim o fizeram, prosearam durante
um bom tempo. Igual fez com seu esposo, sentada sobre a namoradeira, Sra.
Silvia repetiu toda a história para sua fiel cozinheira, que com toda calma do
mundo, prestou atenção a cada palavra que saia de sua boca.
Do lado de dentro do casarão Sr. Francisco assim que levantou da mesa, dirigiu-se
para seu escritório, pensativo, via com certo receio a possibilidade de Padre
Eustáquio estar coberto de razão em suas colocações, foi então que para eliminar
esta terrível dúvida que insistia em não sair de sua cabeça, tomou a decisão de
mandar chamar o médico da família, o conhecido Dr. Onofre para examinar sua
esposa. Assim quem sabe caso a segunda opção fosse realmente diagnosticada,
ainda daria tempo de salvá-la.
Sem perder mais tempo, ordenou que Jacinto fosse buscar mais uma vez o
conceituado médico. As duas mulheres que ainda conversavam na cozinha,
admiraram-se ao ouvir o ranger do grande portão de madeira abrindo tão cedo
para Jacinto passar sozinho na Carruagem, não imaginavam que o fiel cocheiro na
166

verdade estivesse a caminho da Rua da Graça, no bairro do Bom Retiro na


execução de uma missão não muito agradável, principalmente para Sra. Silvia.
Diferentemente do outro dia que esteve no nobre bairro da elite paulista, desta vez
Jacinto foi recepcionado pelo esguio e esquisito mordomo de uma maneira bem
menos arrogante e preconceituosa, o homem de preto não demorou muito para
avisar seu patrão que a família Jordão necessitava mais uma vez de seus serviços,
este por sua vez, sem perder tempo aprontou-se rápido para atender seus
estimados clientes da Várzea do Carmo.
Foram necessárias apenas duas horas, não mais que isso, para a carruagem estar
de volta a rua do Hospício, assim que Jacinto estacionou-a dentro do grande
quintal, Dr. Onofre desceu súbito, subiu os poucos degraus que levavam ao
pequeno terraço que ficava em frente a porta principal do casarão, adentrou-se
pelo corredor, caminhou direto para o escritório onde Sr. Francisco o aguardava
ansioso:
-- Graças a Deus o doutor chegou! Preciso falar-lhe urgente. Sente-se por favor.
-- Quando vi seu educado cocheiro em frente ao meu portão, logo corri para
aprontar-me, logo imaginei algo grave, a última vez que estive aqui a coisa não foi
nada boa.
-- Pois é, pois é... Mas preciso que o doutor me faça uma gentileza, de preferência
bem discreta.
-- Diga lá, se estiver ao meu alcance, farei com o maior prazer. Explique do que se
trata.
-- Pois bem, tentarei ser o mais conciso e entendível possível. Há alguns dias
estive no interior para tratar de alguns assuntos referentes aos negócios da
fazenda, porém antes passei na igreja Matriz para trocar algumas palavras com o
Padre Eustáquio, um velho conhecido meu.
-- Compreendo, por acaso é ele que está enfermo?
-- Não, pelo contrário, o Padre Eustáquio tem uma saúde de touro. É que ele me
alertou de algumas coisas, bem...nem sei direito como lhe falar...
-- Por favor Sr. Francisco fique a vontade, sabes que podes confiar em mim.
-- Eu sei doutor Onofre, disso eu não tenho dúvida. Bem, deixa eu tentar me fazer
explicar melhor...
167

Depois de perder-se mais algumas vezes na tentativa de falar o real motivo da


visita do médico em sua casa, Sr. Francisco, como diria outro provérbio popular:
"finalmente achou o fio da miada", de maneira clara conseguiu desatar os vários
nós do pensamento.
O respeitável médico prestou atenção em cada palavra dita pelo nobre homem,
mesmo para ele que já havia visto e presenciado tantas coisas nesta vida, inclusive
com várias viagens de pesquisa pela Europa e parte da África, os acontecimentos
ocorridos no casarão, assim como o comportamento da Sra. Silvia pareciam-lhe
por demais estranho. Finalmente após quase quarenta minutos de conversa, Sr.
Francisco concluiu o assunto:
-- Foi isso doutor, então gostaria muito que o doutor a examinasse.
-- Claro! Compreendo sua preocupação caríssimo Sr. Francisco, mas adianto que
a psiquiatria não é minha especialidade, posso ver o que consigo descobrir, mas
também tenho um pedido a lhe fazer.
-- Pois não doutor Onofre, do que se trata?
-- Não quero que sua encantadora esposa fique constrangida, e que não perca a
confiança em mim, afinal de contas sou o médico da família há muitos anos.
-- Com certeza doutor Onofre, e nem eu quero que isso aconteça.
-- Para tal exame, procurarei agir da maneira mais natural possível, farei algumas
perguntas básicas, não mais que isso.
-- Está ótimo, façamos o seguinte; pelo adiantado da hora o caro doutor fica para
almoçar conosco, assim já podes dar início de maneira discreta ao combinado.
-- Mas quando ela me ver aqui hoje, não achará estranho?
-- Digo que mandei chamar o doutor para falar de alguns empregados da fazenda,
pedir orientação sobre alguma enfermidade que anda por lá.
-- Combinado então, aceito o convite para almoçar com sua família.
Quando os ponteiros do carrilhão anunciaram as exatas doze horas, a mesa já
estava posta com todos os pratos escolhidos para o menu do dia, Anastácia
embora tivesse ficado um bom tempo de prosa com sua patroa, mesmo assim
conseguiu preparar um delicioso almoço, ainda mais quando soube que teria
como convidado uma figura tão importante.
A comida embora fosse relativamente simples, era bem diversificada, mais uma
vez a herança Bandeirante deu o ar da graça sobre a mesa: em uma das belas
168

louças brancas seria servido uma suculenta galinha caipira com quiabo colhido da
horta, em outra travessa também de louça bistecas assadas, numa panela de barro
estava o bem temperado Tutu de feijão caprichado fartamente com minúsculos
pedaços de toucinho e carne seca, rodeado por bananas empanadas e fritas em
azeite bem quente, noutra travessa o arroz bem branquinho com salsinha picada
na ponta da faca espalhada delicadamente por cima, e para finalizar uma deliciosa
salada de rúcula com cebola e tomates cortados em rodelas bem finas, temperados
com pequenas folhas de manjericão fresco, suco de limão siciliano e azeite
português bem verde.
Dr. Onofre ao ver tanta fartura sobre a mesa até que não achou ruim a ideia de seu
cliente, com certeza iria passar muito bem, só não poderia esquecer o real motivo
pelo qual havia sido convidado.
-- Sente-se doutor, fique a vontade, sinta-se em casa. - disse o patriarca, que logo
em seguida teve a fala completada por sua esposa com um leve sorriso:
-- Isso mesmo doutor, não se faça de rogado, só espero que não repare na nossa
simples refeição, se eu soubesse que irias almoçar conosco teria pedido para
Anastácia preparar algo mais apropriado.
-- Pois é Silvia, nem lhe falei, mas tive que chamar o doutor aqui antes que eu
viaje novamente, estamos com um problema de saúde com alguns empregados da
fazenda, creio que seja alguma moléstia desconhecida.
-- Nossa! Sinto muito, coitadas daquelas pessoas. - virando-se em direção ao
médico - Mas tenho absoluta certeza que nosso prestigiado médico saberá o que
fazer. Mesmo assim, insisto que se soubesse teria mandado preparar algo
diferente.
-- Por obsequio Sra. Silvia, não sou destes, pelo contrário, sou um homem simples
que sabe apreciar uma boa comida. - respondeu meio encabulado o conceituado
médico.
As crianças sentadas à mesa aguardavam ansiosas a oração do Pai Nosso de
agradecimento de todos os dias, sempre iniciado pelo pai, e seguido por todos,
inclusive por algum empregado que estivesse por perto. E neste dia não foi
diferente, assim que o Amém final foi pronunciado Antônio e Joana, iguais a dois
famintos atacaram, precisou Sra. Silvia intervir, afinal não estavam apenas os
membros da família sentados à mesa, havia uma pessoa de fora, Anastácia que
169

estava em pé, riu-se sozinha ao ver a cena, sabia que parte daquela vontade toda
dos pequenos era mérito dela.
Entre uma garfada e outra da deliciosa refeição, Dr. Onofre achou o momento
propício para calmamente soltar cinco perguntas simples, porém eficientes. Este
número de questões seria o suficiente para diagnosticar se uma pessoa estava no
seu estado normal da razão.
E foi justamente o que aconteceu, como ele mesmo desconfiava, Sra. Silvia
encontrava-se mais lúcida do que nunca, o máximo que ele percebera foi uma
certa ansiedade, mas nem levou em consideração, sabia que este estado físico era
normal na maioria das mulheres da época. Na sua curiosidade dentro da medicina,
ele também havia estudado sobre a tal da Histeria, mas no caso dela com certeza
não chegava a tanto. Achou por bem nem comentar isso com Sr. Francisco, sabia
que ele, assim como a maioria dos homens, não eram avançados culturalmente o
suficiente para compreender tal assunto. As terras tupiniquins ainda teriam que
caminhar muito em termos de evolução para compreender certas coisas do mundo
moderno. Que este assunto permanecesse por enquanto no velho continente
mesmo, mais precisamente com os franceses.
Após o almoço como de costume todos tomaram seus rumos: as crianças correram
para o quintal com o propósito de continuar as inocentes brincadeiras; Sra. Silvia
pediu licença à visita e dirigiu-se ao belo jardim para descansar um pouco;
Anastácia recolheu as louças com os poucos restos das guarnições; os dois
homens voltaram para o escritório, Sr. Francisco estava mais do que curioso para
saber o que Dr. Onofre diagnosticou, porém para sua surpresa e alivio a resposta
foi bem outra:
-- Então doutor, qual sua visão em relação a minha esposa?
-- Caro Sr. Francisco, sua cordial e sempre bela esposa está mais lúcida do que
nunca, claro que senti nela uma leve ansiedade, mas isso deixemos pra lá, faz
parte da maioria das mulheres nesta faixa etária.
-- Graças a Deus! Então ela não tem nada grave?
-- Nadinha de nada! Lúcida, lúcida, lúcida! Pode confiar em mim.
-- Eu confio doutor, e como confio! Meu muito obrigado.
170

-- Não seja por isso. Bem, acho que já me passei muito da hora, tenho alguns
pacientes para atender agora no final da tarde, aproveitarei que estou aqui perto e
vou a pé mesmo para meu consultório.
-- Não quer que Jacinto lhe leve?
-- Não se preocupe, daqui a Rua Florêncio de Abreu é um pulo - respondeu
caminhando em direção a porta do escritório - Bem, já vou indo então, passar
bem, meu muito obrigado pelo farto almoço, confesso que nunca havia comido
um Tutu de feijão tão bem temperado. Realmente vossa cozinheira tem mãos de
fada. Coitada e não faz muito tempo que perdeu a prima não é mesmo?
-- Pois é doutor Onofre, esta história ainda não me desceu direito, ainda acho tudo
isso muito estranho. Aquela senhorinha achar de morrer justamente aqui na minha
casa?
-- Ninguém escolhe o lugar para morrer caríssimo Sr. Francisco, realmente a
famosa e temida dama da das trevas é danada mesmo, quando menos esperamos
ela vem nos buscar. Brincadeiras à parte, realmente foi um mal súbito, apenas
isso. O senhor sabe como é este povo mal tratado pela vida, ainda mais ela, muito
magrinha, não devia se alimentar bem, uma desgraçada no sentido mais real da
palavra, morando ali na periferia da cidade, triste Chácara do Bixiga, no meio
daquela falta de higiene toda. - mal sabia o respeitado médico que na realidade a
velha dona Adelaide tinha uma saúde de ferro.
-- Passar bem doutor, o senhor não ficará ofendido se não lhe acompanhar até o
portão?
-- Que isso? Como disse a sua esposa, sou um homem simples, continue aqui nos
seus afazeres, tenho consciência que a burocracia da fazenda não é nada fácil,
minha família também é dona de terras, eu é que fugi desta sina, não levo jeito
para esta lida - completou com risos.
-- Não é fácil mesmo. - respondeu Sr. Francisco também com um leve sorriso.
Assim que a porta do escritório fechou-se novamente após Dr. Onofre passar com
destino a saída do casarão, o nobre fazendeiro sentou-se pensativo em sua
elegante cadeira atrás do pesado e rústico birô de madeira. Por mais que confiasse
no diagnóstico do sábio médico, algo não estava normal com sua adorada esposa,
muito menos com aquela casa.
171

Mas o que? Isso ele mesmo teria que descobrir ou aceitar que tudo aquilo
realmente não passou de um forte pesadelo, argumento este bem mais fácil de ser
digerido.
E foi o que realmente resolveu fazer, achou por bem aceitar que tudo aquilo não
passava de péssimas coincidências herdadas pelas fartas comilanças dos jantares
servidos quase que todas as noites. Exageros recheados por boas doses de
histórias mirabolantes entre Sr. Silvia e Anastácia, coisas de mulher, talvez por
falta realmente do que se preocupar, diferentemente dele que tinha os difíceis
negócios da fazenda: do plantio, da colheita, do comércio, da exportação do café.
Realmente Sr. Francisco era digno de pena, um coitado, fruto da arrogância
machista tão peculiar da época, mergulhado dentro de sua total ignorância dos
mistérios existentes do desconhecido mundo dos mortos, mal sabia ele o que
ainda estaria por vir.

Capítulo XXXIII - O Vestido Encarnado


As peças de louça, assim como as pratarias usados no almoço daquele dia,
colocadas com todo cuidado uma a uma nas frestas de um grande escorredor de
cobre existente sobre a pia da cozinha, repousavam tranquilas aguardando a hora
de serem guardadas em suas devidas Cristaleiras, carregavam ainda as últimas
gotículas cristalinas da água saída da velha torneira de ferro quando de surpresa
Sra. Silvia apareceu novamente para conversar, a velha cozinheira admirou-se de
ver sua patroa ali mais uma vez, tinha certeza que ela ainda estava no seu habitual
exercício vespertino de todas as tardes. Com um doce e curioso sorriso indagou tal
presença:
-- A Sinhazinha aqui de novo? Cansou de ficar no jardim?
-- Não Tata, não é isso. Se existe um lugar desta casa que não canso nunca, este
lugar é o meu jardim. Na verdade estou aqui porque entre tudo que lhe contei pela
manhã, das tantas coisas ruins que lhe disse que presenciei naquelas horríveis
visões, uma delas em especial não sai da minha cabeça.
-- Diga lá Sinhá. O que mais pode afligir a senhora? Já são tantas maluquices que
acontecem nesta casa, uma a mais, uma a menos tenho certeza que não vai fazer
muita diferença.
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-- Recorda-te quando falei do vestido branco da mulher? Da mancha vermelha


localizado na parte da frente?
-- Sim, claro que lembro. Mas o que tem isso demais?
-- Então Tata, preciso descobrir que sinal era aquele, com certeza é um sinal, algo
de muito ruim que aconteceu com esta mulher. Quem sabe o segredo de todas
estas loucuras não está neste pequeno detalhe?
A velha cozinheira sem responder nada apenas fitou bem fundo nos olhos de sua
patroa, por um breve momento o medo tomou-lhe conta do seu imenso corpo, pois
ela sabia que sua Sinhazinha era capaz de qualquer coisa para proteger sua
família, principalmente a pequena Joana. Mesmo com receio do que poderia ouvir
como resposta lançou a pergunta:
-- Desculpe a curiosidade, mas se a Sinhazinha veio até aqui falar com a velha
Anastácia, alguma coisa Sinhazinha tá querendo. Pode falar, o que está passando
por esta cabeça?
-- Hoje a noite tentarei descobrir o que é aquele sinal. De alguma maneira vou
buscar esta resposta. Tenho certeza absoluta que isso ajudará a mudar o rumo em
que as coisas estão caminhando nesta casa, e para isso preciso contar com sua
ajuda Tata.
Esta última frase entrou nos ouvidos de Anastácia feito uma lança que atinge
precisa a caça, sem dar-lhe nenhuma chance de sobrevivência.
Por mais que, assim como a finada sua prima também conhece-se parte dos
segredos do mundo das trevas, Anastácia sabia que não era párea para enfrentá-
los. Com o passar dos seus oitenta e três anos bem vividos, carregava consigo uma
regra básica para estes assuntos: "eu não mexo com eles do lado de lá, e eles não
mexem comigo do lado de cá", simples assim. Talvez por não respeitar esta lógica
que a coitada de dona Adelaide pagou um preço alto, e ela com certeza não estava
predisposta de ser a próxima vítima da sina existente do lado de dentro dos muros
daquele terreno maldito.
Por outro lado também não poderia deixar sua adorada Senhora, sua Sinhasinha
querida, sua eterna e linda menina, mergulhar sozinha numa aventura
extremamente misteriosa e arriscada.
-- Me diga uma coisa Sinhá. O que a patroa pretende fazer? Por acaso está
pensando em procurar a tal mulher?
173

-- Isso mesmo Tata. Isso mesmo! E será hoje a noite, com certeza preciso de sua
ajuda.
-- Ai minha Nossa Senhora! Ai meu Senhor Jesus Cristo! Larga mão disso Sinhá,
é muito arriscado! Lembra o que a finada Adelaide disse: "-- Vocês tudo tem que
sair desta casa, mudar daqui o quanto antes".
-- Eu sei, mas isso não impede que eu tente descobrir a verdade. Quem sabe não
conseguimos mudar o rumo da história? Além do mais sabes muito bem que
Francisco não acredita em nada, por ele ficaremos morando aqui até o fim da vida,
ainda mais por causa dos estudos de Antônio.
-- Eu sei de tudo isso Sinhá, mas pense bem, olhe no que vamos nos meter mais
uma vez. Já não bastou aquela noite? Não bastou eu perder minha prima? Agora
vou eu me perder também?
-- Está bem Anastácia. Não tiro sua razão, não se preocupe, tentarei resolver
sozinha, tenho consciência da sua dor, fique tranquila.
Desapontada por não ter o apoio que foi buscar, sem dar tempo de ouvir se quer
um outro argumento, a nobre senhora virou-se súbita, saiu determinada em
direção ao casarão, sua mente trabalhava rápida, mesmo confusa procurava
colocar os pensamentos numa ordem para que não houvesse erro na execução do
seja lá qual fosse o plano que iria elaborar.
Subiu os poucos degraus que ligavam o quintal a pequena varanda, passou pela
porta e seguiu corredor adentro, ao passar pelo quadro parou por alguns instantes,
olhou profundamente nos olhos negros pintados na tela como que quisesse
desafiar a conhecida pintura para uma batalha. Após a pequena pausa cênica
seguiu em direção a escadaria principal, subiu acelerada apoiando uma das mãos
no escuro corrimão de madeira e a outra segurando parte da frente do longo
vestido para que suas negras botinas não os tocassem causando quem sabe um
tropeço.
Ao chegar no andar de cima tomou rumo de seu quarto, determinada abriu a porta
do mesmo, uma vez dentro do confortável e elegante cômodo rapidamente dirigiu-
se ao criado mudo colocado ao lado da cama de casal, aquele mesmo da conhecida
taça com água, abriu a gaveta, dentro estavam uma pequena bíblia, com um
Rosário feito todo em Contas de madeira escura em cima. Os dois artefatos
174

católicos pertencia-lhe desde menina, ainda muito nova, havia ganho por ocasião
de um amigo comerciante da família recém chegado de Lisboa.
Após olhar os dois objetos por um breve instante, achou por bem retirá-los de
dentro da gaveta, tinha certeza absoluta que os mesmos trariam forças positivas
contra seja lá o que ela fosse enfrentar. Uma vez em mãos, abriu o pequeno livro
sagrado na página onde localizava-se o Salmo 91, apoiou uma de suas belas mãos
em cima, e com a outra segurou delicadamente o Rosário, que com a prática
religiosa desde sempre, conseguia passar de uma Conta para outra apenas com o
manuseio dos dedos polegar e indicador, determinada, rezou sem parar até a hora
de descer para o jantar.
O tempo pareceu estar ansioso por presenciar o que iria acontecer naquela casa,
realmente as horas naquela tarde e começo de noite passaram bem mais rápidas
como de costume, não tardou para todos já estarem recolhidos em seus aposentos,
pelo menos aos olhos de Sra. Silvia, que sentada em frente à penteadeira
propositalmente escovava mais do que o necessário as longas madeixas na
intenção de fazer passar o tempo, assim quem sabe seu esposo adormeceria antes
dela deitar-se, definitivamente naquela noite a bela senhora não estava disposta
para muitos assuntos.
O início da orquestra executada pelos estrondosos roncos foi a deixa para
informar que seu esposo finalmente havia pego no sono. Permaneceu sentada,
com a voz em volume muito baixa, quase sussurrando retomou as rezas, começou
com um Pai Nosso, seguida de uma Ave Maria, na sequencia outras orações
costumeiras dentro da eucaristia, e foi justamente no meio de uma das ladainhas
que da sala pôde ouvir o conhecido som; o badalar do Carrilhão que anunciava a
chegada da meia noite, hora esta em que as crianças da noite finalmente acordam
de seus pesados sonos do dia, ágeis ultrapassam os altos muros da cidade dos
mortos para livres brincarem na calada da noite pelas ruas escuras e vazias da
cidade cinza e adormecida.
Calmamente Sra. Silvia silenciou a reza, com a mão direita fez o sinal da cruz,
pendurou o Rosário em seu pescoço, levantou-se tranquilamente, de posse da
lamparina caminhou em direção a porta - praticamente repetiu a cena da noite
anterior - abriu-a com cuidado para não fazer barulho e saiu, seguiu pelo corredor
em direção à escada, desceu pé ante pé, no térreo tomou o rumo da porta da saída,
175

logo ao dobrar a esquina do corredor deu de encontro com Anastácia que vinha
em sentido contrário, o susto de ambas foi inevitável, novamente pareceu uma
cena bem marcada pelo diretor.
-- Ai meu Deus! - gritaram juntas as duas mulheres.
-- Anastácia! O que fazes aqui à essa hora? - questionou em voz baixa a nobre
senhora.
-- E Sinhazinha achou que eu ia deixar a patroa resolver isso sozinha? - respondeu
a cozinheira no mesmo tom de voz - vim até aqui para ver o que patroa pretende
fazer.
-- Passei a tarde rezando para buscar alguma luz, e parece bobagem, quanto mais
eu rezava, mais a imagem do porão não me saia da cabeça, achei então por bem ir
até lá - prosseguiu aliviada - confesso que estava morrendo de medo, mas agora
vendo você aqui me sinto bem mais segura.
-- Segura onde Sinhá? O máximo que eu posso fazer além de rezar também é
gritar, nem pra correr eu presto mais. Velha, com este corpo, ainda mais com esta
maldita perna inchada. A senhora tem certeza do que está fazendo? Não é melhor
largar mão disso e voltar pro quarto?
-- De jeito nenhum! Você me conhece, sabes que quando quero uma coisa, vou até
o fim.
-- E eu não sei? Desde menina a sinhazinha é teimosinha.
Sra. Silvia e Anastácia continuaram prosando baixinho até passarem pela porta da
sala, desceram os degraus da pequena varanda até seus respectivos calçados
tocarem o chão de terra batida do quintal. Novamente o silencio tomou conta das
duas, talvez pelo frio, talvez pelo medo, afinal todo o espaço de fora do casarão
estava por demais escuro, a não ser pela pouca luz amarela da lamparina.
O vento gelado da noite além de cortar seus rostos igualmente a uma lâmina de
aço gelada, também tinha a missão de fazer com que os galhos das muitas árvores
e plantas do imenso quintal confabulassem entre si, as vezes mais raivosos, as
vezes mais tranquilos. Embora completamente tomadas pelo pavor, as duas
mulheres não desistiram, continuaram a caminhar lentamente feito duas
personagens que cruzam em diagonal o palco no meio de um suntuoso cenário de
alguma tragédia Shakespeariana.
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Não demorou muito e quando deram por si já estavam paradas em frente ao


pequeno portão de ferro do obscuro e misterioso porão. Em silêncio, viraram-se
uma de frente para outra ao mesmo tempo, olharam-se assustadas por um breve
instante, e como que ensaiadas viraram seus rostos novamente para a escuridão
infinita do tenebroso e macabro lugar.
-- Nossa Anastácia, nunca tinha me dado conta de como é grande esse porão.
-- Pois é Sinhá, deve pegar a casa toda por baixo. Por isso que as crianças são tão
curiosas, Joana então sempre falando de como é lá dentro, quem ouve pensa logo
que ela já entrou aí.
Mal sabiam as duas mulheres que sim, Joana conhecia o misterioso porão como
ninguém, que diferente da versão contada pela própria menina, foi de dentro dele
que a misteriosa boneca de louça passou a fazer parte da família.
Definitivamente a noite seria muito longa para elas, no fundo não sabiam por onde
começar, o melhor a fazer mesmo seria esperar por algo que provavelmente nem
viesse a acontecer, mas o tempo passou e realmente nada aconteceu, a noite foi
rotineira como todas as outras, a não ser pela presença das duas, paradas no frio
cortante da madrugada que no seu auge preparava-se para começar a despedir-se
da noite.
Patroa e empregada apoiavam-se uma na outra para quem sabe manter-se em pé,
definitivamente o cansaço tomara conta das duas, pelo andor da carruagem, na
verdade já não esperavam mais muita coisa. Talvez o melhor mesmo a fazer seria
desistir, voltar para dentro de casa, tentar dormir um pouco, pois logo viria o
amanhecer do dia e junto com ele os afazeres domésticos que não podiam se dar
ao luxo de esperar a boa vontade de serem realizados, principalmente pelos
empregados do casarão, no caso aqui específico de Anastácia.
Em comum acordo tomaram tal decisão, deixaram a frente do porão para
caminharem rumo aos seus dormitórios, Anastácia não chegou nem a entrar
novamente no casarão, apenas acompanhou Sra. Silvia até o primeiro degrau da
pequena escada que dava acesso a varanda da entrada principal, após isso virou-se
e dirigiu-se ao seu cômodo que ficava na pequena e humilde edícula.
Logo que adentrou-se no pequeno porém bem ajeitado cômodo, a velha cozinheira
permitiu-se apenas tomar uma caneca cheia com água fresca tirada de uma outra
pequena moringa de barro, trocou as vestes, deitou seu enorme corpo sobre o duro
177

colchão de palha, cobriu-se com uma velha colcha feita de retalhos de tecidos de
diferentes cores, já de olhos fechados iniciou um Pai Nosso que não deu tempo de
chegar no último fraseado, logo adormeceu igual aos tempos que era menina
nova, ainda escrava na fazenda.
Sra. Silvia por outro lado ainda teria uma pequena distância a percorrer, de
lamparina em mãos, passou pela grande porta da entrada do casarão, seguiu
corredor adentro, de tão cansada, desta vez nem permitiu-se olhar para a tal tela
pendurada na parede, de caminhar lento e pesado, seu único pensamento era deitar
seu belo corpo sobre seu confortável colchão de molas, forrado com lençóis de
seda vindos da França, cobrir-se com sua não menos confortável colcha de Piquet
branca, e assim entregar-se por inteira a um sono mesmo que breve, até os
primeiros sinais da Aurora.
Porém entes de colocar os pés nos primeiros degraus da escadaria central algo
chamou a sua atenção; um pequeno clarão do lado oposto ao que ela vinha, ainda
que fraco pois parecia estar longe, despertou a curiosidade da cansada mulher, de
imediato um arrepio tomou-lhe todo o corpo, seu instinto animal fez-se presente,
logo pensou em Joana.
Procurando fazer o máximo de silêncio recuou da escada, mudou de destino,
seguiu lentamente atraída pela misteriosa luz. Ao chegar próxima a quina da
parede que dividia os dois corredores que formavam parte da ferradura, seus olhos
finalmente puderam presenciar o verdadeiro motivo daquela claridade, era o que
seu íntimo já desconfiava, pedia para que não fosse, mas era: a imagem de Joana e
aquele demônio em forma de mulher, lado a lado, caminhavam tranquilas, juntas,
em direção a saída oposta do casarão, a menina com a boneca agarrada em seu
braço esquerdo, e o outro ocupado em segurar a mão da amaldiçoada, embora Sra.
Silvia não pudesse escutar nada, era nítido a existência de um diálogo amigável
entre os dois corpos: o da viva e o da morta.
Em determinado momento, talvez sabendo que estavam sendo observadas, o
caminhar cedeu ao tempo uma pequena pausa, sincronizados os dois corpos
contorceram-se afim de poder mostrar seus respectivos rostos para quem é que
fosse o observador. Dois sorrisos distintos foram oferecidos naquele momento;
um inocente da pequena Joana e outro malévolo da demoníaca mulher, este
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segundo de certo com o objetivo de provocar a verdadeira mãe da criança, sorriso


este acompanhado por um olhar possesso, cheio de ódio e rancor.
A mãe vendo aquela cena desesperou-se, assim como fez da outra vez no andar de
cima do casarão, correu em direção para resgatar a filha do mal, mas desta vez por
mais que tentasse, algo maior a impedia de aproximar-se das duas, que a esta
altura com seus corpos virados por completos em sua direção, apreciavam com
gosto seu sofrimento, riam com exageradas gargalhadas cada vez mais crescentes,
somadas agora por gritos de almas desesperadas carregadas de sofrimento e dor,
por vozes de crianças entre choros e risos cantando a canção de Joana.
O longo vestido branco trajado pela a amaldiçoada, revelava mais uma vez a tal
mancha vermelha na região do ventre, mancha esta que rapidamente aumentou de
tamanho, tomando o tecido por completo, passando a dominar também as vestes e
o corpo da pequena Joana que a esta altura parecia estar todo banhado do rubro
líquido da vida, a pobre mãe, desesperada, enlouquecida com os braços esticados
inutilmente tentava alcançar a filha que distanciava-se cada vez mais, desta vez
parecia que a tragédia estava anunciada quando por um breve momento divino ou
mesmo de lucidez, Sra. Silvia teve o ímpeto de sacar o Rosário de seu pescoço e
arremessá-lo com força em direção as duas, o objeto mesmo leve ao cair teve seu
cordão arrebentado, espalhando as muitas Contas de madeira pelo piso branco de
mármore, foi o bastante para rapidamente tudo voltar a sua normalidade.
A desesperada Senhora mesmo sem entender muita coisa, as pressas dirigiu-se ao
andar de cima com a intenção de chegar rápido ao quarto dos filhos. Uma vez em
frente a porta do cômodo, respirou fundo, buscou na alma ainda que difícil uma
certa serenidade, pois não queria acordá-los, muito menos assustá-los,
principalmente a pequena Joana.
Sra. Silvia adentrou-se devagar, caminhou até a cama de Joana que coberta por
um grosso cobertor de lã de carneiro, dormia tranquila feito um anjo, do outro
lado, não menos confortável, Antônio também viajava no sono dos justos, enfim,
tudo parecia estar dentro de sua normalidade.
Por via das dúvidas a mãe, ainda preocupada, deveras assustada, afim de proteger
suas duas crias, embora demasiadamente exausta por tudo, resolveu ficar ali,
sentou-se sobre o assoalho de madeira escura, ao lado da cama da filha, encostou
o rosto por cima dos braços cruzados sobre o cobertor que cobria Joana, olhou
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mais uma vez o rosto dócil da menina, para logo em seguida suas pálpebras
selaram-se graciosamente.

Capítulo XXXIV - A Derradeira Discussão


A tímida luz da manhã que entrara pela fresta deixada entre as duas cortinas
pouco encostadas uma na outra de uma das janelas do quarto de dormir do casal,
foi suficiente para despertar Sr. Francisco Jordão de seu pesado sono, que ao abrir
os olhos na esperança de ver o belo corpo de sua esposa deitado ao seu lado, teve
uma surpresa no mínimo estranha; o lado do colchão pertencente a ela estava
completamente vazio, e o pior, bem arrumado. A fronha branca do travesseiro e
parte do lençol também branco de seda bem esticados denunciavam que nenhum
corpo repousara sobre eles na noite passada.
Rapidamente o nobre homem pôs-se de pé, trocou os trajes da noite pelos os do
dia, desceu em direção a sala de jantar na esperança que sua linda esposa já estive
no matinal desjejum, porém para sua surpresa, embora a mesa já estivesse posta
com quase todos os deliciosos preparados - ainda faltavam o leite e o café, estes
Anastácia trazia por último afim de não perderem a quentura - todos os lugares
ainda se encontravam vazios; nada de crianças, nada de sua esposa.
Neste momento sua intuição falou mais alto, mesmo sem saber o porquê, desta
vez achou que o melhor a fazer era não contrariá-la, dirigiu-se até o escritório,
pois algo dizia que Sra. Silvia estaria por lá, caminhou sôfrego pelos corredores
da casa neste objetivo.
Quando estava próximo a porta de entrada do cômodo, sentiu por debaixo do
solado de seus sapatos, um certo incomodo, como o ato de pisar em miúdas
pedras, foi quando resolveu olhar em direção ao piso branco de mármore,
percebeu então que não se tratavam dos pequeninos minerais, mas sim de Contas
de madeira soltas.
Definitivamente aquele não era um lugar muito apropriado para encontrar tais
objetos, ainda mais soltos, espalhados pelo chão, logo desconfiou de algo. Sem
perder tempo, desceu uma das mãos até o chão, recolheu umas duas ou três, não
mais. Aproximou-as bem próximo ao rosto afim de enxergar melhor. Com a ponta
do dedo indicador da outra mão, tocou-as com certa delicadeza para confirmar o
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que seus olhos viam, se realmente eram Contas de algum Rosário. Não havia
engano, eram.
Não precisou de muito tempo para seus olhos logo associarem a lembrança da
imagem do antigo Rosário pertencente a sua esposa. Tudo naquele momento
pareceu muito estranho. Que Diabos estariam fazendo ali espalhados pelo chão?
Matutando o que poderia ser toda aquela situação, Sr. Francisco Jordão retomou o
objetivo inicial de sua saída da sala de jantar, mesmo ainda olhando para os
pequenos objetos de madeira na palma de sua mão, quase que mecanicamente
entrou no seu escritório, ao levantar os olhos, sua intuição não o havia enganado,
avistou Sra. Silvia de costas para a porta da saída do cômodo, sentada na nobre
cadeira que ficava em frente ao velho birô, admirado de encontrá-la ali num
horário tão cedo, rapidamente indagou o motivo de tal visita:
-- Silvia! Você aqui logo cedo, o que aconteceu?
A resposta veio seca e objetiva, numa postura que não lembrava nem de perto a
doce, submissa e obediente esposa de sempre:
-- Sente-se Francisco, precisamos conversar novamente, escute bem o que vou
dizer, e por favor, desta vez sem tentar me ludibriar como fizeste da outra vez.
O nobre homem admirado com aquele tom de voz, não ousou nem questionar,
numa rápida inversão de valores, obedeceu. Caminhou para de trás do escuro
móvel e sentou-se em sua cadeira. Diferente das outras vezes em que traçaram
seus diálogos sentados lado a lado feito um casal apaixonado, agora pareciam dois
negociantes prontos a desfazerem um acordo que não deu certo.
Sem perder mais tempo, cheio de curiosidade, Sr. Francisco deu início a conversa,
mesmo sabendo qual seria o assunto, em todo caso preferiu escutar o que viria de
encontro aos seus ouvidos, procurou manter a calma, gentilmente soltou a
pergunta:
-- Pronto Silvia, estou aqui, sentado como você pediu. O que é desta vez? Por que
levantou tão cedo, ou melhor, por que não chegou nem a deitar em nossa cama?
Numa pequena estratégia masculina, as duas últimas palavras: "nossa cama",
saíram de sua boca numa tentativa de laçar pelo romantismo sua bela esposa, mas
o tiro mais uma vez saiu pela culatra, de nada adiantou, determinada como estava,
nem que ele lhe trouxesse uma carruagem repleta de flores do campo, não
mudaria seu estado emocional naquele momento.
181

-- Realmente não dormi Francisco, pois tive uma noite horrível mais uma vez!
-- Como assim? O que foi dessa vez?
-- Vou te contar todo o ocorrido, peço-lhe mais uma vez paciência para escutar.
Já sabendo que teria que ouvir outra história no mínimo fabulosa, tranquilamente,
com um gesto calmo, apenas concordou com a cabeça, ela ao perceber seu
semblante típico de quem vai escutar apenas por escutar, completou a frase:
-- E tem mais, quando acabarmos nossa conversa aqui, indiferente do que você
disser, eu já sei que atitude tomar.
-- Calma Silvia, peço muita calma nesse momento, primeiro conte o ocorrido, e
conforme for, tomamos uma atitude juntos - tentou mais uma vez jogar com as
palavras, e mais uma vez de nada adiantou.
-- Pois bem, preste bem atenção em tudo que vou lhe dizer.
-- A propósito, antes de começar, por acaso essas Contas do seu antigo Rosário
fazem parte desta nova história?
-- Sim, graças a elas que não perdemos nossa filha, deixa eu começar a falar tudo
o que aconteceu, depois tomarei meu rumo junto com meus filhos.
-- Calma Silvia, não tome nenhuma atitude precipitada, vamos resolver tudo com
calma, não adianta ficar assim.
Nesta altura da conversa a paciência de Sra. Silvia já não fazia-se muito presente,
o tom de voz que no início estava sereno mudara completamente, alterada
respondeu:
-- Como resolver com calma Francisco? Até quando você se fará de
desentendido? Até quando não enxergarás as coisas bizarras que existem nesta
maldita casa. Faltou pouco para perdermos nossa filha, aliás, filha e filho diga-se
de passagem! Estou cansada disso tudo, estou cansada deste lugar, estou cansada
de suas atitudes passivas, não aguento mais! - Estas últimas frases saíram de sua
boca quase que aos gritos.
Ele ainda tentou intervir:
-- Calma Silvia, estais gritando. Procure ficar calma, conte o que aconteceu.
Ela mais alterada ainda continuou o enérgico discurso:
-- Não contarei mais nada. Que adianta se não acreditas em uma palavra minha?
Não perderei mais meu tempo com você, com esta casa, com tudo. Subirei agora
182

para nosso quarto, arrumarei as malas, pegarei nossos filhos e juntos voltaremos
para casa de meus pais.
-- Pare com isso Silvia! Que bobagem é esta? Estais ficando louca?
-- Sim! Estou ficando louca! Louca com esta casa maldita! Louca com tudo! Vou
embora. Não aguento mais! Não aguento mais! - respondeu a nobre Senhora
completamente alterada.
Sr. Francisco ao ver aquele comportamento exacerbado de sua esposa, não pode
deixar de associá-lo ao discurso de Padre Eustáquio, definitivamente ela não
estava dentro da dita normalidade do ser humano, tratava-se com certeza de algum
quadro clínico. Por outro lado também lembrou da rápida consulta de Dr. Onofre,
de seu diagnóstico positivo em relação a ela. Quem estaria certo afinal de contas?
Decisão mais que difícil de ser tomada, afinal de contas, os dois homens: o da fé e
o da ciência eram pessoas sérias e respeitadas, extremamente confiáveis.
Mas enfim, fazer o que? Não tinha muito tempo, haveria de tomar uma atitude
logo, em primeiro lugar precisaria acalmá-la, depois sozinho quem sabe, pensaria
numa melhor maneira de resolver tudo.
Do lado de fora da sala em que acontecia a aflorada discussão, ou melhor, que
Sra. Silvia explanava com vigor as palavras, Anastácia que entre um fazer e outro
da rotina doméstica, por coincidência naquele exato momento passava em frente
ao escritório, não pode deixar de ouvir a voz alterada de sua patroa, preocupada
com o que ouvia, achou por bem ver o que acontecia dentro daquele bendito
escritório, sem pensar duas vezes bateu na porta, como não obteve resposta,
mesmo sabendo que poderia ser chamada atenção, achou por bem entrar assim
mesmo. Para seu completo estranhamento foi recebida com alívio por Sr,
Francisco, que mais do que depressa percebeu que a velha cozinheira poderia ser a
salvação naquele momento:
-- Anastácia! Que bom vê-la, ajude aqui, Silvia está muito nervosa, procure
acalmá-la pelo amor de Deus.
-- O que está acontecendo aqui meu senhor? Por que sinhazinha está deste jeito?
Sra. Silvia mesmo nervosa, não estava fora de si, antes que seu esposo
respondesse à Anastácia, firme, tomou a frente.
-- Estou bem Anastácia, não é nada demais, estamos apenas conversando do nosso
futuro.
183

-- Sim minha filha, mas estais muito nervosa, isso não é nada bom. Vem com a
sua Tata, vamos tomar uma água com açúcar lá na cozinha, depois o casal
continua a tal da conversa.
Sr. Francisco mais do que depressa concordou com Anastácia, realmente a melhor
coisa naquele momento atribulado seria sua esposa tentar se acalmar:
-- Isso mesmo Anastácia, leve-a para a cozinha. Água com açúcar fará muito bem.
Vá com ela Silvia, depois continuamos.
Mesmo meio contrariada, a nobre Senhora acompanhou Anastácia, que com a
delicadeza de uma mãe que zela pelo seu filho, conduziu-a para fora do recinto,
porém antes de passar pela porta, Sra. Silvia num movimento rápido de cabeça,
virou para trás em direção de seu esposo a tempo de dar um último recado:
-- Não pense que acabamos nossa conversa, não vai me ludibriar como fizeste das
outras vezes. De hoje não passa! De hoje não passa! - após falar com ele, voltou-
se para a cozinheira - Anastácia, depois vamos até meu quarto, quero que me
ajudes com as malas; minha e das crianças, à propósito faça as tuas também, você
volta comigo para o interior - fez questão de falar em claro e bom tom para seus
esposo escutar.
-- Está bem Sinhá, está bem. Mas primeiro a minha Sinhazinha precisa se acalmar,
em nome de Deus e nosso Senhor Jesus Cristo, tudo se resolve com uma boa
conversa, agora vamos até a cozinha, depois a senhora toma seu café da manhã, se
alimenta direitinho e daí a gente vê o que faz. - a última fala veio acompanhada do
fechar da porta.
Ao ficar sozinho no escritório, o nobre homem percebera que o caso estava bem
mais sério do que ele pensava. Conduzido por uma vontade imprópria, sentou-se
novamente na requintada cadeira atrás do Birô, respirou fundo duas vezes,
preocupado, pôs-se a pensar qual deveria ser a atitude tomada naquele momento.
Após algum tempo mergulhado num profundo turbilhão de pensamentos, achou
por bem esperar o que iria acontecer ao longo do dia, uma vez que a manhã havia
sido excessivamente atribulada, resolveu que o melhor a fazer naquele momento
era sair de casa, passar o dia fora para não ter que encontrá-la ainda nervosa.
Definitivamente sua esperança estava toda lançada nas sábias palavras de
Anastácia, de como ela conduziria os pensamentos e as atitudes de sua esposa.
184

Rapidamente dirigiu-se ao encontro do fiel cocheiro Jacinto, inventou como


desculpa que iria resolver alguns problemas no comercio local, mas antes de mais
nada aproveitaria o ensejo para da uma chegada até o bairro dos Campos Elíseos,
no palacete de Dr. Onofre. Mais do que depressa Jacinto aprontou a Coupe Negra
que passou ligeira pelo grande portão de madeira.
O jovem Mulato que não era de se intrometer nos assuntos da família Jordão,
achou meio estranho aquela saída tão cedo para realizar compromissos dentro da
cidade mesmo, geralmente só acontecia desta maneira quando o destino eram os
cafezais no interior.
-- Desculpe a curiosidade Sr. Francisco, mas não está um pouco cedo demais?
Creio que o comercio ainda esteja de portas abaixadas.
-- Sim, eu sei Jacinto. Antes do comércio daremos uma chegada até a casa de Dr.
Onofre, quero encontrá-lo antes que saia para seu consultório, por isso
combinamos logo cedo, inclusive tomaremos o café da manhã juntos. Por falar em
café da manhã, você comeu alguma coisa?
-- Sim patrão, muito bem por sinal. Estou de pé desde as quatro e meia da manhã,
já fiz muita coisa. Os cavalos precisavam de alguns cuidados a mais nos cascos,
não é todo dia, mas de tempos em tempos é preciso que se faça, inclusive já vi
animal quebrar a pata por causa de casco mau cuidado.
-- Entendo que não é fácil mesmo, tudo é muito trabalhoso nesta vida. Aliás, só
tenho a agradecer a você, Anastácia e aos outros pela dedicação nos afazeres da
casa.
Jacinto embora achasse estranho aquele pequeno gesto de humildade vindo de seu
patrão, com um leve sorriso nos lábios e com um pequeno sinal de cabeça
retribuiu os agradecimentos.
Patrão e empregado confabularam vários assuntos, seguiram tranquilos ao som
compassado e tranquilo dos trotes oferecidos pelos elegantes animais. Aos poucos
a negra carruagem seguiu seu destino. Entre uma curva e outra, passou por
diferentes ruas que, tomadas por pequenas e singelas casas de taipas, como que
combinadas, numa obediente coreografia destas criadas pelas coincidências da
vida, aos poucos abriam suas pequenas janelas de madeira afim de serem
invadidas pelos ainda tímidos raios de sol.
185

A pequena viagem não levou mais que quarenta minutos, um pouco menos, um
pouco mais talvez. Assim que Jacinto estacionou a elegante carruagem em frente
ao palacete no bairro dos Campos Elíseos, ágil feito um rapaz novo e ainda
encantado pela vida, no auge de seus vinte anos, Sr. Francisco saltou rapidamente
da carruagem. Cinco passos foram suficientes para chegar em frente ao grande
portão de ferro, não se deu ao luxo de esperar Jacinto para esta função que
pertencia ao conjunto das atribuições sociais dos subalternos; de chamar por
alguém, pois ele mesmo bateu palmas com força, para que estas pudessem ser
ouvidas mesmo no cômodo mais longe dentro do palacete.
Não demorou muito para uma das folhas da luxuosa porta de madeira escura
abrir-se, de dentro como já era esperado saiu o esguio Mordomo, elegante como
de costume, porém nada simpático, mas com tudo ao ver de quem se tratava
rapidamente dirigiu-se ao portão todo solícito.
-- Bom dia Sr. Francisco, o senhor logo cedo por aqui. Entre por favor, Doutor
Onofre está acabando de tomar o desjejum, ficará feliz em vê-lo.
-- Obrigado meu caro pela gentileza.
-- Não seja por isso Sr. Francisco, não seja por isso. Por favor, venha comigo que
o levo até a sala de refeição.
Os dois adentraram-se no luxuoso Palacete, passaram pela sala de estar muito bem
decorada quase toda em estilo neoclássico, com ressalvas de alguns móveis ainda
herdados do Barroco. No belo chão de assoalho escuro, um espesso tapete Persa,
fruto de alguma viagem realizada por um parente do renomado médico, ou mesmo
por ele próprio. Assim como na casa de Sr. Francisco, as largas paredes brancas,
sustentavam muitas telas pintadas com retratos de antigos familiares.
Assim que chegaram ao cômodo de destino, o velho Mordomo em silêncio, com
um gesto delicado apontou com a palma da mão coberta pela luva branca virada
para cima de costume, indicando assim que Sr. Francisco entrasse no Cômodo,
ele, também em silêncio retribuiu com um pequeno aceno, entrou.
A primeira coisa que seus olhos avistaram foi Dr. Onofre sentado à cabeceira da
mesa, completamente distraído, entretido feito um menino na tentativa de criar
um pequeno orifício na casca do Ovo Quente, este firme, apoiado em pé sobre um
pequeno artefato de prata, muito usado nos desjejuns das famílias mais abastadas,
próprio para degustar este tipo de iguaria, no qual a gema fica bem cremosa e a
186

clara molinha, um costume mais presente nos homens, talvez por uma questão da
eterna busca da masculinidade.
Sr. Francisco não pode deixar de associar aquela situação com a visita que fez ao
conhecido Padre Eustáquio " -- Será possível? Justamente na hora em que
procuro os dois homens que confio para falar do mesmo assunto, os mesmos
estão sentados à mesa comendo. Que coisa..." - pensou o nobre homem.
-- Caro Dr. Onofre! Desculpe interromper seu desjejum. - manifestou-se Sr.
Francisco afim de fazer-se presente.
De tão distraído que estava Dr. Onofre, ao escutar pelo amigo, assustou-se
batendo com mais força a colherinha de prata na casca, fazendo-a com que
quebrasse mais do que o necessário. Rapidamente tentou arrumar a sujeira, mas
não teve jeito, a bonita toalha de renda ficaria em parte engomada.
-- Sr. Francisco ! A que devo tão nobre visita logo cedo? Algum caso grave?
-- Não caro amigo, apenas preciso lhe falar, aquele assunto novamente: Saúde de
Silvia.
-- Ah tá certo, tá certo. Mas antes, sente-se aqui, coma alguma coisa. Acredito que
pelo horário o nobre amigo deve ter saído muito cedo e não fez o desjejum. O
caro amigo sabe não é? Temos que começar o dia nos alimentando muito bem.
-- E como sei caro Dr. Onofre, e como sei. Não me farei de rogado, realmente
com tantas delícias em cima da mesa é quase impossível resistir, principalmente
este bolo de cenoura. - concluiu a fala com um singelo sorriso amarelo.
-- Sim Sr. Francisco, isso não posso negar, estão mesmo. Claro que nada
comparado as delícias feitas pela sua competente cozinheira Anastácia. Que mãos
de fada tem aquela senhora.
Enquanto os nobres cavalheiros confabulavam sentados à mesa, entre um pedaço
de bolo e outro, entre um gole de café e outro, Sr. Francisco contou em detalhes a
atitude de sua esposa naquela manhã. Ao término do desjejum, com os dois
complemente satisfeitos, Dr. Onofre opinou o que seria talvez a solução.
-- Olha caríssimo amigo, conheço a jovem Sra. Silvia desde menina, dos tempos
em que nem sonhava em um dia tornar-se a elegante Sra. Jordão. Confesso que
fiquei realmente preocupado com que o estimado amigo contou. Talvez realmente
ela sofra de algum mal, o caso seja mais grave do que eu pensei.
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-- Pois é, acho que estas histórias estão indo longe demais, e depois de hoje,
também fiquei bem preocupado, por isso que estou aqui. O que o amigo sugere?
-- Olhe, veja bem, o que vou sugerir é meio triste e talvez meio doloroso para sua
esposa, e para todos vocês da família, mas no ritmo em que caminham as coisas,
se o comportamento dela continuar agravando a cada dia, não vejo outra saída a
não ser a internação por uns tempos no Hospital do Alienados, soube que o
tratamento está muito avançado por lá, principalmente com relação as mulheres
diagnosticadas com quadro de Histeria.
Após esta última fala de Dr. Onofre, o silêncio fez-se presente por um certo
tempo, Sr. Francisco não teve reação, calado, apenas olhou para o velho médico
da família, por um breve momento seu pensamento voou até sua casa, mais
precisamente até sua amada esposa, uma coletânea de cenas vividas entre eles no
decorrer de tantos anos de matrimonio, passou uma a uma por sua mente. Uma
tristeza tomou conta de seu peito cheio de questionamentos. Assim como fez na
igreja Matriz, apenas levantou-se da mesa, sem conseguir falar uma palavra se
quer, acenou com a cabeça num gesto educado de agradecimento ao amigo
doutor, despediu-se, e retirou-se da sala de refeição.
Dr. Onofre não fez menção de reagir, pois sabia pelo que o estimado amigo estava
passando naquele momento, achou por bem deixá-lo ir, sabia que havia sido um
pouco realista demais no comentário, porém também sabia que tem momentos na
vida que não adianta tentar tapear o sol com a peneira, na maioria das vezes a
realidade é dura e cruel.
Já sentado dentro da carruagem, pediu para que Jacinto tocasse os cavalos para os
demais compromissos que havia programado ao longo do dia, com certeza tentaria
ao máximo preenche-lo com muitos afazeres, pois uma coisa era certa: ele só
retornaria para casa no começo da noite.

Capítulo XXXV - A Canção no Porão


Após acalmar-se graças aos carinhos e conselhos de Anastácia, somado com
certeza a uma boa xícara de chá feito com camomila fresca, recém colhida do
jardim, Sra. Silvia finalmente voltou ao seu estado emocional de costume, porém
ainda com o pensamento firme na atitude a ser tomada, de ir embora daquele lugar
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junto com os filhos e Anastácia. Definitivamente para ela não tinha outra maneira
de livrar-se da maldição existente naquele casarão.
-- Está se sentindo melhor minha menina? - questionou carinhosamente Anastácia.
-- Graças a Deus Tata, graças a Deus. Muito grata pelo afeto, realmente você é um
anjo na minha vida, aliás, na minha e na dos meus filhos.
Com um sorriso doce de mãe nos lábios a velha cozinheira lisonjeada agradeceu
as palavras de Sra. Silvia:
-- Que isso Sinhá, os anjos estão no céu junto de nosso Senhor Jesus Cristo e
Nossa Senhora Aparecida. Eu sou apenas uma pobre velha, cheia de pecados.
-- Modo de falar minha doce Tata, modo de falar...Bem, agora que estou mais
calma, preciso conversar com as crianças, falar da minha decisão.
-- A minha menina pretende ir embora mesmo?
-- Sim! Eu, meus amados e você. Mas pensei melhor, não vamos hoje, quero
arrumar os pertences com calma, além do mais, também quero despedir-me de
Francisco, embora esteja muito magoada com ele, não acho de bom grado sair
assim. Partiremos amanhã nas primeiras horas do dia. Além do mais Jacinto está
com ele neste momento, não quero outro cocheiro para nos conduzir. Bem, agora
preciso falar com as crianças, prepará-las para o futuro.
-- Vão sentir muito, a patroa sabe que elas gostam muito desta casa, inclusive
numa hora desta, já devem estar no quintal brincando.
-- Eu sei Tata, são inocentes, não tem a noção de perigo, principalmente Joana.
Agora por favor, vá chamá-las. Melhor não! Pode deixar, irei até lá,
conversaremos sentados em algum banco do jardim, será uma maneira de
despedir-me da única parte da casa que tenho algum apreço.
Decidida a elegante Senhora levantou-se súbita da cadeira na qual estava sentada
na cozinha, caminhou em direção ao grande quintal, mais precisamente ao jardim.
Ao chegar perto, ainda distante pode ver os dois filhos; inocentes e alegres
brincando, entre uma carreira e outra dentre as frondosas e frutíferas árvores como
era de costume. Sem sombra de dúvidas Joana era a mais afoita e falante, já seu
irmão bem mais tranquilo, sereno no comportamento, revelava os pequenos sinais
da passagem do tempo, seus interesses aos poucos caminhavam para outras
coisas, pertencentes ao sério e metódico mundo dos adultos. Era nítido que
Antônio seguia as instruções ditadas por Joana, ficava claro para quem visse de
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longe que era ela quem ditava as regras do brincar, restava a ele como um bom
irmão mais velho que era, apenas a tarefa de obedecer com toda paciência do
mundo.
Sra. Silvia antes de chamá-los permitiu-se observar aquela cena lúdica por um
breve instante, mais uma vez seus pensamentos a levaram de volta aos tempos de
menina na fazenda de seu pai, porém não deixou-se voar pelo pensamento,
rapidamente voltou a si, hoje a realidade era outra, completamente diferente, cheia
de perigos. Então com um falar alto chamou pelos filhos.
-- Antônio! Joana! Venham cá, preciso falar-lhes.
Ao ouvir o chamado da matriarca, rapidamente os dois cessaram o corre-corre,
obedientes que eram, ligeiro foram de encontro a mãe, que já encontrava-se
sentada em um dos belos bancos do florido jardim. Joana sem sombra de dúvida
foi a primeira a chegar, esbaforida mas feliz como se tivesse ganho uma
competição junto ao irmão, este por sua vez, ainda fez menção de correr, apenas
para incentivar a irmã, pois assim que ela saiu, com um leve sorriso achando graça
na inocência da pequena seguiu andando tranquilamente.
-- Diga mamãe, o que a senhora quer falar comigo e Antônio? - adiantou-se Joana.
-- Calma, já falo, deixa seu irmão chegar aqui, aproveite para respirar Joana, estais
ofegante.
Joana sem perder tempo, cobrou a chegada de Antônio.
-- Vem mano, que demora! Por isso que ele nunca ganha de mim mamãe, Antônio
é muito preguiçoso.
-- Não fale assim de seu irmão. Calma, ele já está chegando.
Realmente não demorou para Antônio estar perto das duas, Sra. Silvia fez um
sinal para que os dois sentassem, um de cada lado. Antes de começar a dissertar
sobre o sério assunto, a doce mãe olhou carinhosamente para um, depois para o
outro, respirou fundo, e finalmente deu a que seria uma triste notícia para ambos.
-- Meus amados filhos, mamãe depois de relutar muito, foi obrigada a tomar uma
decisão que talvez vocês não gostem, porém é um mal necessário.
Antônio conhecia bem sua mãe, sabia que quando a conversa começava neste
tom, algo não muito agradável estava por vir, mesmo com medo do que iria ouvir,
questionou:
190

-- Nossa mamãe! Que jeito mais sério de falar, assim a senhora nos assusta.
Aconteceu algo grave?
-- Aconteceu não meu filho, vem acontecendo desde que chegamos aqui. Você
mesmo é testemunha, sabes disso. Mas não quero entrar em detalhes agora, vamos
ao que interessa no momento.
-- Está bem mamãe, somos todos ouvidos - respondeu o jovem, Joana mesmo não
entendo muito o provérbio dito pelo irmão, fez questão de participar da conversa.
-- Isso mesmo mamãe, somo todos ouvidos.
-- Bem, quero dizer que amanhã bem cedo partiremos para fazenda de vosso avô.
Iremos eu, vocês e Anastácia.
Antônio sem entender o motivo de uma viagem tão fora de época assim,
questionou novamente. Afinal de contas o que será que estava acontecendo?
-- Viajar assim tão de repente? Mas por que isso agora? Vamos ficar muitos dias
por lá?
-- Vamos ficar o tempo necessário, até seu pai arrumar outra casa para morarmos.
Esta última fala entrou feito uma lança nos ouvidos dos dois, principalmente de
Joana, que mesmo sem saber o real motivo, percebeu que isto de certo significaria
deixar a casa que gostava tanto. Sua reação não foi das melhores, seus pequenos
olhos marejaram rapidamente, afinal de contas ela amava aquela lugar, além de
outros motivos bem mais fortes que a dominavam, sentida, com a voz engasgada
na garganta, pronunciou-se a respeito do assunto:
-- Mas por que não podemos morar mais aqui? Eu gosto daqui, não quero ir
embora.
-- Eu sei minha amada filha, mas no momento é um mal necessário. Por favor,
peço que compreenda sua mãe, eu só quero o melhor para vocês dois.
Assim que Sra. Silvia terminou sua fala, deu-se início a outra manifestação
anormal para um dia tão ensolarado como aquele, rapidamente o céu fechou-se
em grandes e pesadas nuvens negras, um verdadeiro vendaval começou a soprar
em várias direções, ao ponto de erguer folhas, gravetos e pedregulhos caídos no
solo, a assustadora manifestação climática repentina foi tão forte que desfez os
penteados da mãe e da filha. Os três com o intuito de proteger os olhos, levaram
as mãos a frente dos seus respectivos rostos, porém o que parecia ser de longa
duração, do nada estancou. Sra. Silvia e o filho ao descobrirem os olhos, tomaram
191

um susto, pois Joana estava em pé, parada em frente ao seus corpos. Com um
olhar fixo para a mãe, a menina que até então estava toda manhosa, chorosa, em
um estado emocional típico de criança que não quer algo, agora encontrava-se
serena, com um semblante doce, encarava a mãe com um sorriso obediente e
tranquilo, numa mudança súbita de comportamento concordou plenamente com a
matriarca:
-- Claro mamãe. A senhora está certa, vamos sim.
Sra. Silvia admirou-se pela mudança repentina de comportamento da filha, mas
naquele momento achou por bem não falar nada, olhou para Antônio que não
menos admirado retribuiu o gesto, ela para não perder o momento compreensivo
da menina agradeceu:
-- Que bom que entendeste minha filha, fico mais aliviada. Agora voltem a
brincar, eu e Anastácia logo após o almoço começaremos a arrumar as malas.
Antônio viu na desculpa de arrumar as malas uma boa oportunidade de dar um
tempo na brincadeira, resolveu que ele mesmo separaria seus pertences, sendo
assim fez uma sugestão para sua irmã:
-- Joana, vamos fazer assim: Brincamos agora pela manhã, após o almoço eu
mesmo quero ajeitar minhas coisas, tem coisas que preciso levar comigo sem
falta. A tarde você brinca sozinha está bem?
Joana compreensiva como nunca estivera antes, com um sorriso diferente do
normal concordou com o irmão:
-- Claro mano, pode deixar, brinco eu e minha amiga - apontou com seu pequeno
dedo indicador para o pequeno objeto de louça que encontrava-se distante dos
três.
A velha boneca fora colocada pela menina propositalmente sentada, encostada em
um dos troncos de uma das muitas árvores do quintal, para que assim com seus
funestos olhos de vidro, confortavelmente pudesse observar toda a brincadeira de
ambos, porém na pressa de vir até a mãe quando esta os chamou, Joana acabou
por esquecer de pegá-la.
Uma vez tudo acertado e resolvido entre mãe e filhos, a nobre Senhora bem mais
aliviada levantou-se do banco em direção a cozinha, com certeza queria
comunicar a Anastácia que a conversa tinha sido bem tranquila, que as crianças,
principalmente Joana, havia entendido a necessidade da repentina viagem.
192

Colocando em prática o trato feito no período da manhã, logo após o almoço,


Antônio e Sra. Silvia subiram juntos com destino ao andar de cima do casarão, a
bela luz da tarde que transpassava pelo colorido vitral da enorme janela localizada
no final do primeiro lance da escadaria central, oferecia aos dois sem cobrar nada
em troca, uma luminosidade ímpar, de certo um privilégio restrito apenas nos
palcos teatrais; vista e admirada pelo público, sentida e absorvida prazerosamente
pelos atores. Instintivamente, talvez pelo prazer de receber aquela leve luz em
seus corpos, mãe e filho cúmplices daquela plena sensação, sem falar nada,
trocaram olhares sorridentes.
O jovem ao ver o rosto de Sra. Silvia contagiado pela bela luz, mais uma vez pode
constatar como sua mãe realmente era uma mulher linda, dona de uma beleza
deslumbrante. Naquele breve instante desejou que um dia não muito distante,
quando finalmente fosse um homem feito, que Deus o abençoasse com uma
esposa tão bela quanto sua mãe.
Uma vez no andar de cima, no corredor cada qual tomou seu rumo: ele seguiu
para o lado direito, ela para o esquerdo, ambos com destino aos seus respectivos
quartos, sabiam que tinham muitas coisas para arrumar e que neste primeiro
momento não poderiam levar tudo de uma vez, apenas alguns pertences seriam
priorizados.
Igualmente a sua mãe e seu irmão, também respeitando o combinado da manhã,
Joana não perdeu tempo, marcou o guardanapo de algodão branco com uma
última mancha do molho do suculento guisado de carne, tomou posse de sua
inseparável amiga de louça e juntas tomaram o rumo para mais uma tarde de
brincadeiras.
Do lado de fora da edificação, a pequena por estar sozinha, resolveu que não iria
brincar nos fundos do terreno do grande quintal, ficaria por ali mesmo, mais perto
da casa, foi então que olhou com calma em todas direções afim de achar um lugar
propício para deixar sua boneca, não demorou muito para encontrar um,
justamente o tronco cortado que ficava ao lado da entrada do velho porão,
caminhou até ele, ajeitou cuidadosamente seu brinquedo sobre o grande pedaço de
madeira, após isso foi rapidamente para perto da Lavapés.
Uma das brincadeiras prediletas de Joana era quebrar as folhas ainda verdes em
minúsculos pedaços, depois soltá-los perto das sempre atarefadas Lavapés, em sua
193

inocência de criança, achava que era uma maneira de contribuir para que não
faltasse alimento para os pequenos insetos quando o cruel inverno chegasse - fazia
esta associação por causa de uma das fábulas de Esopo que de certo sua mãe
contara-lhe em uma noite destas antes de dormir - Então arrancou um punhado de
folhas de um dos galhos de um cambucizeiro ainda novo - pois de uma árvore
adulta certamente ela não alcançaria devido a altura do tronco - uma vez de posse
das mesmas, chegou bem perto da fileira, agachou-se devagar, enquanto
observava o caminhar ligeiro das avermelhadas miúdas, começou a despedaçar
uma a uma, com muito cuidado para que cada pedacinho ficasse no tamanho ideal
de serem carregados.
Tudo parecia normal na sadia brincadeira de Joana, a tarde caminhou para o seu
fim, de tão distraída que estava nem percebeu o passar das horas, por volta das
dezessete horas e trinta minutos, o ar fazia-se mais frio, realmente a temperatura
começava a cair devido a diminuição da luz do dia. Ao sentir a pele arrepiada de
frio, a pequena menina achou por bem encerrar a brincadeira, além de que, o
cansaço já tomava-lhe conta do seu pequeno corpo.
Joana levantou-se, em pé, parada, olhou fixo para a ininterrupta fila indiana
durante algum tempo, numa forma quem sabe de despedir-se das pequenas
amiguinhas, pois sabia que talvez nunca mais as visse devido a forçada mudança
do dia seguinte, após a pequena pausa caminhou em direção ao tronco.
Perto da grande madeira caída, ao esticar seus pequenos braços para pegar a
boneca de volta, de repente seus ouvidos foram inebriados pelo doce e conhecido
cantar, o belo som vinha novamente de dentro do porão. Joana mesmo
reconhecendo a bela voz, por um breve momento ainda pensou se deveria entrar
ou não, mas sabendo de quem se tratava e mesmo sem nenhuma luz apropriada
entrou.
Uma vez dentro do escuro e tenebroso espaço, deixou-se guiar pela doce melodia,
de fato não precisou andar muito, mesmo na escuridão em que encontrava-se o
porão, logo avistou sentada em um dos muitos cantos sua macabra amiga, que,
ainda cantando lentamente estendeu-lhe um dos braços, chamando-a para perto de
si.
Quando a menina finalmente chegou perto, pode perceber que a aparência daquele
conhecido corpo desta vez era outro, bem diferente das outras vezes em que
194

conversaram. O rosto da bela mulher que dizia-se sua amiga, encontrava-se bem
mais pálido, com olheiras roxas e profundas, a íris dos olhos exageradamente
maiores e mais negras, a pele antes tão lisa, agora com pequenas chagas. O longo
vestido que antes era tão vistoso, agora totalmente velho e gasto pelo tempo. As
mãos com longas unhas negras pareciam deixar os dedos maiores do que o
normal.
Pela primeira vez Joana sentiu um certo medo de estar ali, achou tudo muito
estranho, porém antes que pudesse falar algo, rapidamente o canto foi trocado por
alguns questionamentos:
-- Por que você vai embora da casa? Aqui é o seu lugar. Não és mais minha
amiga?
-- Não sei. Mamãe acha que esta casa não é boa para nós - titubeando respondeu
Joana.
-- Mas você não quer ir embora daqui não é verdade?
-- Gosto daqui.
-- Então não vá, fica comigo!
Após este pedido, a macabra mulher abaixou a cabeça entre as duas mãos, e fingiu
um choro sentido, uma maneira quem sabe que convencer a pequena menina pela
emoção.
-- Não chore. Minha mãe quer o melhor para mim e meu irmão. Por isso que
vamos.
Ainda de cabeça baixa, com uma voz satânica veio uma estranha afirmação:
-- Você não vai embora daqui! Você é minha!
Joana questionou:
-- Como assim?
Rapidamente a tenebrosa mulher afastou a cabeça das mãos, encarou Joana de
frente, seu rosto desta vez era como das outras vezes, belo e jovial.
-- Uma maneira de dizer Joana, apenas uma maneira de dizer. Olhe, não diga nada
que estivemos juntas está bem? Nós duas juntas faremos sua mãe mudar de ideia
está certo?
Mas não fale nada. Agora vá, devem estar preocupados com sua demora.
Joana sem falar nada, apenas concordou com um tímido sorriso, deu as costas
para sua amiga e caminhou em direção a saída do escuro porão, porém, antes de
195

sair numa tentadora vontade, ainda virou-se para dar uma última olhada, mas o
canto em que antes era ocupada pela macabra figura, agora encontrava-se
completamente vazio.
Ao passar pelo pequeno portão de ferro, rapidamente tomou o rumo para dentro
de casa, passou rapidamente por Anastácia que distraída com a arrumação da
mesa para a ceia de logo mais, nem a percebeu. Seguiu pelo corredor, desta vez
passou pelo conhecido quadro rapidamente, sem se quer olhá-lo, subiu ligeira a
escadaria em direção ao encontro de Antônio. Entrou no quarto tão rápido que
assustou o jovem rapaz, que assim como Anastácia na cozinha, também
encontrava-se distraído em escolher alguns livros para levar consigo:
-- Nossa Joana, para que entrar deste jeito? Assustou-me.
Sem falar uma palavra, a pequena menina de posse de sua inseparável boneca,
sentou-se sobre a cama, e ali abraçada ao seu brinquedo de louça, com as pernas
balançando, pois devido a sua baixa estatura, de certo seus pequenos pés não
tocavam o escuro assoalho, pôs-se apenas a observar a tarefa de seu irmão, que
por sua vez, conhecendo bem sua irmã, achou estranho aquela quietude toda da
menina.
-- O que foi Joana? Te conheço. Por que estais calada deste jeito?
-- Nada não mano, estou triste, não quero ir embora daqui.
-- Mamãe já nos explicou os motivos, ela sabe o que é melhor para nós.
Ao escutar a aceitação conformada de seu irmão, Joana numa atitude que
certamente não era sua, carregada de raiva sussurrou para si mesma:
-- Ela não vai nos levar embora, não vai!
Antônio ao ouvir aquele estranho sussurro, sem parar o que estava fazendo, com
os olhos fixos em algum título de capa dura, questionou junto a irmã:
-- O que você disse Joana? Não consegui entender direito.
-- Nada Antônio. Nada!
Joana saiu correndo para fora do quarto, Antônio ficou sem entender aquela
repentina atitude. Voltou ao que estava fazendo, de certo pensou que fosse mais
uma denguice da irmã caçula. Mal sabia ele o que estaria por vir ao longo daquela
última noite naquele casarão.
196

Capítulo XXXVI - Aqui Jaz Jacinto


Após sair do palacete do estimado médico, Sr. Francisco ordenou a Jacinto que o
levasse ao encontro de outro conhecido, um velho amigo açoriano, dono de um
estabelecimento de Secos e Molhados localizado na rua da Quitanda.
Rapidamente o jovem cocheiro pôs as rédeas para trabalhar, com um timbre
certeiro, soltou seu grito agudo, quase feminino. Determinado tocou os cavalos
para que tomassem o rumo desejado por seu patrão.
Desta vez para Sr. Francisco o tempo de retorno dos Campos Elíseos para a região
do centro da cidade pareceu ser bem mais rápido do que o da ida, quando deu por
si já encontrava-se dentro do estabelecimento degustando enormes e saborosas
azeitonas gregas imersas em uma boa quantidade de azeite português, salpicadas
com muito orégano, recém trazidas do velho continente em grandes tonéis de
carvalho.
Entre uma prosa e outra entre os dois amigos, a manhã cumpriu com seu papel
dentro do espetáculo do dia, sendo assim ao perceber o adiantado da hora, Sr.
Francisco despediu-se do comerciante açoriano, agradeceu pelos negros e verdes
petiscos, assim como pela boa conversa, saiu a caminhar pelas ruas do entorno.
Aproveitou a oportunidade para visitar o conhecido Beco da Cachaça, que ficava
bem próximo de onde estava. Sua intenção era saber se havia alguma boa
novidade vinda dos alambiques, pois conforme fosse, aproveitaria o ensejo para
comprar algumas garrafas. E não é que deu sorte? Comprou foi logo cinco, cheias
até o gargalo. Toda esta aguardente era recém vinda da região das Minas Gerais.
Traziam em sua feitura um leve aroma de Carvalho, com um sabor sublime de
mel de laranjeira, a cor de um amarelo profundo, quase ouro.
E foi neste ritmo, entre uma visita e outra pelo comercio local, que o dia cedeu
lugar a noite. Sr. Francisco cumpriu com o objetivo traçado; passar o dia longe da
esposa para quem sabe ela, longe de sua presença, tirasse de uma vez por todas a
ideia de voltar para o interior.
Já passava das vinte e duas horas quando finalmente as pesadas botinas insistiam
sem sucesso a busca pelo silêncio ao pisaram os degraus da escadaria central da
Casa. Sorrateiro o nobre fazendeiro tentou entrar no aposento sem acordar sua
esposa, que ele pensava estar dormindo, porém para seu estranhamento, assim que
197

passou pela porta encontrou-a atarefada, preocupada em completar mais uma das
muitas malas para a viagem.
-- Silvia, achei que tivesse tirado esta ideia sem nexo de sua cabeça!
-- Por que haveria Francisco? Por que haveria?
-- Simples, porque as coisas não se resolvem assim do dia para noite, ou melhor,
da noite para o dia, enfim, entendeste o que eu quis dizer.
-- Sim, entendi muito bem. Porém estou cansada, com muito medo,
principalmente pelos meus filhos. Aliás, foi bom você chegar, preciso avisar
Jacinto que sairemos logo cedo.
Nesta última frase talvez estaria a saída para fazer sua esposa mudar de ideia, pelo
menos por mais uma noite, depois ele tentaria outra coisa, buscaria outros
argumentos, sendo assim aproveitou a deixa:
-- A propósito Silvia, foi bom mesmo você falar de Jacinto, não sei se foi algo que
comeu enquanto estivemos pela rua, mas no caminho de volta para casa o coitado
não vinha nada bem, não via a hora de chegar em casa, estava até suando frio.
-- Como assim? Suando frio? - questionou Sra. Silvia admirada e já preocupada.
Sr. Francisco ao perceber a inflexão na fala de sua esposa, que por sinal ele
conhecia muito bem cada tom de voz empregado por ela, sabia de sua
benevolência principalmente para com os empregados, rapidamente percebeu que
sua pequena travessura de menino havia dado certo, por um pequeno instante
sentiu-se o mais esperto dos homens da terra.
-- Sim Silvia, o pobre coitado uma hora destas deve estar recolhido no quartinho
dele. - até a palavra quarto mereceu um tratamento mais meigo. Tudo pensado
propositalmente.
-- Por favor Francisco, poupe-me dos detalhes.
-- Claro, claro! Desculpe-me.
-- E agora? Como farei amanhã?
-- Eu sei que você está irredutível com esta ideia, mas acho melhor aguardar o
coitado melhorar. E tem mais, para uma viagem longa destas eu só confio nele.
-- Neste ponto tens razão, eu também só confio nele.
-- Vamos fazer assim, dê um dia ou dois para ele recuperar-se bem, depois disso
vocês viajam.
198

Sra. Silvia embora muito contrariada, não viu outra alternativa, infelizmente teria
que concordar com seu esposo, afinal de contas não iria judiar do pobre coitado
doente. Mal sabia ela que tudo não passava de uma grande mentira, que Jacinto
estava mais forte do que nunca, e que no máximo que ele poderia estar era meio
tonto, pois assim como seu patrão, também aproveitou a visita ao Beco da
Cachaça para tomar uns bons goles de água ardente.
-- Tudo bem Francisco, você está certo desta vez, não vamos amanhã. Mas assim
que ele melhorar partimos.
-- Tens a minha palavra! - respondeu Sr. Francisco aliviado.
-- Bem, pelo adiantado da hora as crianças já devem estar dormindo. Falei para
elas dormirem cedo, pois sairíamos antes mesmo do sol nascer. Bem, amanhã
explico tudo para elas do acontecido com Jacinto, coitado, espero que melhore.
-- Então vamos deitar, já é tarde e hoje meu dia foi puxado, mesmo a carruagem
sendo de certa maneira confortável, foram muito trajetos no dia de hoje, estou
com as costas que não me aguento.
-- Eu imagino, deite, descanse. Não vou me demorar, antes quero e preciso rezar
um pouco.
Ao falar isso a nobre senhora deu as costas para o esposo, sentou-se sobre o
banco forrado com tecido aveludado em frente ao espelho de cristal da
penteadeira. Após escovar as longas madeixas algumas vezes, calmamente abriu
uma das gavetas, tirou de dentro outro Terço dos muitos que possuía. Apoio-o
com as duas mãos sobre o móvel, abaixou a cabeça, encostou as pálpebras e pôs-
se no exercício da fé.
Sr. Francisco ao assistir aquela verdadeira cena litúrgica, percebeu logo que a tal
da reza iria longe, mas no final das contas como havia conseguido o que queria,
achou por bem não intervir. Aproveitou que havia banhado o rosto assim que
chegara da rua, no tanque do lado de fora, perto da edícula de Anastácia, sem
perder mais tempo trocou suas vestes do dia pelas da noite, já deitado rezou um
meio Pai Nosso, apenas para não passar em branco, fechou os olhos e esperou o
sono chegar, este por sua vez também foi rápido em fazer-se presente.
Sra. Silvia tão compenetrada em sua fé só percebeu que seu esposo havia pego no
sono quando um dos pesados roncos entrou pelos seus ouvidos. Entre seu dedo
polegar e indicador estava a última Conta do Terço, era sinal que o pequeno Rito
199

católico aproximava-se do fim, após a oração Salve Rainha a nobre Senhora


estaria livre para recolher-se sobre a cama ao lado do esposo.
E assim o fez, ao terminar esta última oração, fez o sinal do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, retornou o Terço para dentro da gaveta do móvel, agradeceu mais
uma vez e levantou-se em direção ao Biombo para trocar de roupa quando neste
exato momento ouviu três pausadas batidas na porta, o susto foi inevitável.
Embora desta vez as mesmas não vieram acompanhadas pela conhecida voz, Sra.
Silvia imaginou quem fosse. Caminhou até a porta e devagar girou a maçaneta,
em seguida puxou a pesada folha de madeira para si. Ela realmente estava certa,
era a filha.
Ao contrário da menina doce de sempre, Joana trazia consigo um semblante sério,
dona de um olhar frio, sórdido, carregado de sentimentos ruins. Sem falar uma
palavra sequer, permitiu-se apenas a observar a mãe friamente, que sem entender
nada questionou o porquê da menina estar ali parada.
-- O que foi minha filha? Perdeste o sono de novo?
As duas perguntas ficaram soltas no ar, nem um gesto de cabeça que fosse.
Calada, Joana apenas virou-se de costas para a mãe, caminhou lenta pelo corredor
no sentido da escadaria.
Sra. Silvia sem entender, porém tomada por uma curiosidade, seguiu os passos da
filha que ao chegar próxima ao primeiro degrau parou de andar. Virou o rosto para
trás, como que para constatar se a mãe realmente a seguia, olhou-a séria num sinal
para que continuasse segui-la, a mãe embora muito assustada retribuiu o olhar
dando a entender que havia entendido o recado.
A menina então desceu lentamente, degrau por degrau, igualmente uma cantora
lírica das famosas Óperas italianas, em bocca chiuse cantarolava a conhecida
canção que havia aprendido com sua amiga do porão. Uma vez no térreo da casa,
tomou a direção para a porta principal, que dava saída para o quintal, ao chegar
perto, colocou a mão na maçaneta - porém antes deu mais uma olhada para trás,
mais uma vez para certificar-se que a mãe estava atrás, com certeza estava -
decidida girou a maçaneta, que pelo silêncio da noite pareceu estralar mais alto do
que o normal, puxou para si uma das pesadas folhas da grande porta e saiu.
Como não poderia ser diferente para a época, o frio intenso dava a sensação de
cortar a pele de quem o enfrentasse, ainda mais naquele horário, quase meia noite.
200

Joana mesmo trajando apenas a roupa de dormir, parecia não se abalar com o
clima. Ao som do próprio canto, passeou serena pelo quintal como se estivesse no
Jardim da Luz numa tarde de primavera de um domingo qualquer. Sra. Silvia por
outro lado tremia dos pés a cabeça, um arrepio misturado de medo e frio tomava-
lhe conta do corpo que movido por uma força maior, não desistiu de acompanhar
os passos da filha.
Joana ao chegar a alguns metros do quarto de Jacinto parou o andar, voltou pela
terceira vez os olhos para mãe. Levantou seu pequeno braço com o dedo indicador
em riste e apontou para a porta de entrada do humilde cômodo.
Mesmo confusa com toda aquela situação Sra. Silvia entendeu o sinal, lentamente
caminhou na direção indicada. Uma vez em frente a porta, apavorada olhou para
filha novamente que, pela primeira vez na noite, balançou a cabeça num gesto
positivo para que a mãe a abrisse, ela assim o fez. Sra. Silvia colocou a mão sobre
a maçaneta - sua intuição dizia-lhe que dentro daquele pequeno quarto
encontraria muito mais do que apenas um homem dormindo, no caso Jacinto -
tomada por uma força maior, num movimento rápido puxou-a para si.
Ao abrir a porta deu de frente com sua rival, que com um leve sorriso de boas
vindas nos aviolados lábios, parecia já aguardar pela nobre visita. Assustada e
completamente perdida Sra. Silvia não soube o que fazer naquele momento, sua
primeira atitude foi olhar em direção a filha que a obsevava também com um
sorriso macabro de longe, depois voltou-se novamente para aquele corpo
cadavérico, de olhos negros e profundos, que continuava a encará-la sorrindo.
Súbito o monstro em forma de mulher avançou em cima do corpo do rapaz que
inocente dormia. Feito um animal no cio, saltou sobre ele, caindo sentada em cima
de sua cintura. Rapidamente sobrepôs as duas mãos no pescoço de sua vítima
que, ao sentir a pressão sobre si, num instinto animal de defesa, ainda meio
inconsciente, tentou defender-se daquele ataque de fúria. Da entrada do quarto
Sra. Silvia assistia aquele verdadeiro espetáculo de horror, Jacinto numa luta
desesperada pela vida, tentava com toda sua força de homem novo desvencilhar-
se da fera montada sobre ele.
Em um desespero de tentar salvar o pobre rapaz Sra. Silvia fez menção de entrar
no quarto, porém neste exato momento foi impedida por Joana que, com um
201

sorriso maléfico nos lábios segurou-a pelo braço, forçando-a a assistir ao desfeche
trágico do espetáculo.
Enquanto isso no quarto do casal Sr. Francisco por coincidência acordara devido
ao susto que tomou com um de seus estrondosos roncos, ao perceber que mais
uma vez sua esposa não encontrava-se ao seu lado, rapidamente imaginou algo de
ruim. Súbito saiu do quarto, antes de descer ainda achou tempo para entrar no
quarto das crianças. Quem sabe ela não estaria por lá? Mas para sua decepção não,
no cômodo apenas os dois filhos que dormiam feito anjos. Então desceu ligeiro a
procura de Sra. Silvia, ao chegar no andar de baixo, logo foi tomado pela corrente
de ar que vinha pelo corredor, só podia ser da porta da saída da casa que
encontrava-se aberta, realmente era.
Preocupado com o que poderia encontrar desta vez, Sr. Francisco avançou quintal
adentro, que pelo adiantado da noite estava um verdadeiro breu, na pressa de
descer esqueceu de pegar a lamparina. Desesperado começou a chamar em voz
alta pelo nome de sua esposa. Após andar alguns metrôs, mesmo no escuro, pode
perceber que a porta do quarto de Jacinto encontrava-se aberta, achou estranho,
resolveu ir até lá, ao chegar na entrada seus olhos foram obrigados a ver o que
certamente não queriam.
A cena era realmente assustadora, Sra. Silvia com suas vestes quase que toda
rasgada e suja, parada ao lado do colchão de palha com o do corpo já sem vida de
Jacinto.
-- Silvia o que significa isso? - chamou o atônito esposo.
Ela por sua vez, sem saber o que falar ou mesmo fazer, apenas virou o rosto com
os olhos marejados em direção da voz que chamava pelo seu nome, para em
seguida cair desfalecida sobre o chão de terra batida.
Sr. Francisco correu em sua direção para acudi-la, assim como fez no triste
episódio ocorrido na cozinha, tomou-lhe em seus braços, mas diferente da outra
vez, sabia que agora o caso tornara-se extremamente grave. Completamente
perdido, entre um olhar para o corpo desmaiado de sua esposa em seus braços e
outro para o corpo morto de seu fiel cocheiro sobre o colchão de palha, apenas
uma certeza tomava-lhe conta naquele momento: Sua amada esposa realmente
estava tomada pela tal da doença.
202

Capítulo XXXVII - Triste Decisão


Havia-se passado uma semana após o discreto enterro de Jacinto, ao contrário do
saimento de Dona Adelaide, o préstito fúnebre do pobre rapaz contou com
pouquíssimas pessoas: seus patrões, os demais empregados da casa, um ou outro
conhecido que ele fizera amizade no pouco tempo em residiu na Várzea do
Carmo. Por ordem do próprio Sr. Francisco, seu corpo também foi enterrado no
Jazigo da família Jordão no cemitério da Consolação.
Tal feito não era considerado normal para os padrões sociais da época, inclusive
tornou-se motivo de alguns comentários negativos entre alguns membros da elite
Paulista, que em sua concepção burguesa de vida, tais atitudes fugiam
completamente dos preceitos cristãos da santa igreja católica. Não se
conformavam, nem tão pouco aceitavam que dois corpos negros fossem
enterrados em covas que deveriam ser exclusivas de corpos brancos, ainda mais
num Jazigo de uma família de nome tão respeitável na cidade.
Dentro do casarão a preocupação era completamente outra, esta sim dentro dos
preceitos do Decálogo, a profunda tristeza da perda precoce de um ente tão
querido, ainda mais deveras estranho como aconteceu.
Anastácia muito vivida que era, acostumada com tantas peças que o destino nos
oferece ao longo da estrada da vida, carregava consigo um velho provérbio que
aprendera ainda menina com os velhos negros escravos do ouro negro: "Para
morrer, basta estar vivo", embora ela repetisse esta frase aos quatro cantos do
mundo para quem quisesse ouvir, no fundo de sua alma, sabia que a verdadeira
história com o pobre Jacinto era bem outra.
Sra. Silvia ainda muito abalada, praticamente permaneceu estes sete dias dentro de
seu quarto, entre um cochilo e outro, apenas permitia-se rezar pedindo perdão a
Deus por não ter conseguido fazer nada para impedir a morte do pobre
desgraçado.
Seu estado de tristeza era tanto que não permitia-se descer para fazer as refeições,
sua adorada Tata com toda paciência do mundo prestava-se ao trabalho de levar as
refeições até seu aposento, estas que, na maioria das vezes voltavam para a
cozinha quase que intactas.
Devido as condições estranhas que tudo ocorrera naquela madrugada, por
questões legais, Sra. Silvia seria obrigada a permanecer na cidade o tempo que
203

fosse necessário devido as investigações para descobrir a verdadeira Causa Mortis


de Jacinto.
Neste mesmo passar de tempo, Sr. Francisco preocupado com o que poderia vir
acontecer com sua esposa, tratou logo de precaver-se, foi em busca de um amparo
nos sábios conselhos do médico da família, Dr. Onofre, que mais uma vez
prontamente atendeu ao seu pedido.
Sr. Francisco tinha toda razão em preocupar-se, realmente o caso era por deveras
sério, precisava mais do que depressa achar uma saída plausível para aquela
situação inesperada, pois todos os indícios do ato ocorrido naquela madrugada no
casarão levavam para um homicídio doloso, que facilmente poderia ser
enquadrado como motivo torpe ou motivo fútil ou ainda na pior das hipóteses um
crime passional, quem sabe? Pois só Deus para saber as loucuras que passam na
cabeça de cada ser humano.
As possibilidades eram muitas, para a polícia que cuidava do caso, era apenas
uma questão de tempo, de achar e reunir algumas provas cabíveis, colher alguns
depoimentos dos empregados da casa, para definir qual seria o crime, se é que
realmente teria sido um crime, no fundo nem mesmo eles com tanta experiência
no assunto podiam afirmar.
Por precaução, para evitar mais comentários, os dois homens reuniram-se em
sigilo absoluto no consultório do renomado médico na rua Florêncio de Abreu.
Por mais que já tivesse visto muitas coisas estranhas nos seus bem vividos
sessenta e cinco anos de vida, Dr. Onofre não conformava-se como uma desgraça
daquela poderia ter acontecido, ainda mais na presença da nobre senhora que ele
conhecia e cuidava desde menina. O que o deixava mais cabreiro ainda, era o que
ela estaria fazendo no quintal naquela hora da noite? Por mais que ele tentasse,
não conseguia achar uma razão lógica que a levara aquele local em plena
madrugada. Outra coisa no mínimo estranha era o fato de que dias antes ele
mesmo havia confirmado que Sra. Silvia não sofria mal algum, que era
completamente saudável, e que tudo não passava de uma cisma de seu esposo.
Será que tinha errado no diagnóstico?
Mas enfim, para ele uma coisa era certa; nem o mais racional dos homens
consegue entender e decifrar os segredos e os mistérios existentes no lado não
palpável da vida, muito menos os existentes na tenebrosa noite, os estranhos
204

elementos que na maioria das vezes fogem completamente do entendimento


humano.
Depois de passarem praticamente a tarde toda em função do desagradável assunto,
Sr. Francisco e Dr. Onofre chegaram a uma triste conclusão, que realmente Sra.
Silvia estava com sérios problemas de saúde, mais precisamente alguma doença
mental, quem sabe o novo mal do século que afligia principalmente as mulheres.
-- Será que Silvia realmente está atacada por esta maldita doença Dr. Onofre? -
questionou desesperado Sr. Francisco.
-- Meu caro amigo Sr. Francisco, infelizmente não posso afirmar nada, como lhe
disse em sua casa, não sou especialista nestes casos, porém o pouco que estudei e
conversei com alguns colegas, infelizmente tudo indica que sim.
-- Então o padre Eustáquio estava certo. Meu Deus! Coitada da minha esposa.
-- Calma, não nos precipitemos por enquanto, veja o lado menos perverso da
coisa.
-- Qual Dr. Onofre? Qual? Nesta altura dos acontecimentos, o que poderia ser
menos perverso?
-- Se conseguirmos provar que Sra. Silvia está realmente passando por um período
de doença, mesmo que as autoridades constatem que o ocorrido foi um crime, não
poderão acusá-la de nada, afinal de contas a coitada não está no exercício de suas
faculdades normais.
-- Entendi, olhando por este lado realmente o Dr. está certo, não quero minha
esposa presa. O que temos que fazer então?
-- Tenho uma sugestão não muito agradável, mas para o momento creio que seja a
mais racional.
-- Qual seria Dr. Onofre?
-- Interná-la por um pequeno período no Hospício dos Alienados.
Após ouvir a resposta Sr. Francisco mais uma vez permaneceu em silêncio por
algum tempo, por mais que buscasse, não conseguia falar uma palavra que fosse.
Assim como a maioria das pessoas, um temor pairava no ar quando o assunto era
aquele maldito lugar. Histórias horríveis corriam soltas pelas ruas e becos da
cidade. Rapidamente lembrou que dias antes, quando esteve no Beco da Cachaça,
escutou dois homens mal trapilhos, já meio alterados pelo efeito da aguardente
conversando sobre o temido lugar. Um narrava por meio de palavras quase não
205

entendíveis, permeadas por soluços típicos dos ébrios para o outro não menos
alterado, porém extremamente curioso que, infelizmente havia perdido uma
parenta no Hospício dos Alienados, que a coitada da pobre mulher entrara lá para
nunca mais sair, aliás, que até saído tinha, porém direto para a cidade dos pés
juntos.
Dr. Onofre ao perceber a perplexidade de seu nobre cliente, viu-se obrigado a
trazê-lo de volta a realidade.
-- Sr. Francisco? O nobre amigo está bem?
-- Sim, estou caro amigo. Confesso que não esperava uma sugestão dessa. Temo
pela vida de minha esposa. Soube que a fama daquele lugar não é nada boa.
-- Quanto a isso não se preocupe, tenho uma certa amizade com o diretor clínico
de lá, o conceituado Dr. Francisco Franco da Rocha, com certeza ela terá um
tratamento diferenciado das demais internas.
-- Não sei, não sei...Tenho cá minhas desconfianças Dr. Onofre, soube também
que as condições do prédio é causa de muitas doenças, que devido a umidade, o
lugar é por demais insalubre, e que as doenças pulmonares imperam por lá.
-- Quanto a isso também não se preocupe, o antigo administrador Sr. Frederico
Alvarenga visando justamente um melhor acolhimentos dos alienados, fez das
tripas coração, para realizar grandes reformas. Depois de enfrentar muitas
dificuldades burocráticas, finalmente conseguiu realizar importantes reformas,
tornando a edificação bem diferente do que era. Dizem as más línguas, aliás, e as
boas também, que o dedicado homem usou até dinheiro próprio bolso que
ganhara em loterias para concretizar os trabalhos. Bem, isso eu já não sei se é
verdade. O nobre amigo sabe que o povo fala demais.
-- E como sei caro amigo. E como sei! Bem, vamos fazer o seguinte: vamos
esperar mais um pouco, veremos o que dará esta investigação. Paralelamente vou
conversar com alguns amigos meus Bacharéis em Direito sobre o caso, vamos ver
o que eles dizem. Enquanto isso, hoje a noite converso com Silvia, vejo como ela
está, tento explicar esta ruim possibilidade.
-- O nobre amigo quem sabe. Aguardemos então. Bem, creio que por enquanto
estamos conversados, ficarei no aguardo de sua posição. Olhe Sr. Francisco,
gostaria de lhe dizer o quanto lamento esta situação toda com tua família,
definitivamente vocês não merecem tal sofrimento.
206

-- Obrigado Dr. Onofre, o doutor tem se mostrado mais que um amigo, sou muito
agradecido por tudo. Nos falamos sem falta daqui a alguns dias. Agora deixa eu
me retirar, estou ansioso para ver Silvia.
-- Claro! Tens toda razão. Aliás, o senhor vai como para rua do Hospício?
-- Vou na caminhada. O caro amigo sabe que daqui até lá é bem perto não é
verdade?
-- Sim, e como sei. Naquele dia que tive o prazer de almoçar em sua casa também
vim para o consultório na caminhada.
-- Então. E outra, preciso pensar um pouco na vida, no que eu realmente estou
errando.
-- Tenha calma Sr. Francisco, tenha calma. Não se culpe de nada.
-- Pois é...Bem, até mais ver. Forte abraço e prazer em vê-lo.
De fato o caminhar de volta para casa não passou de uns míseros vinte minutos.
Assim que saiu do consultório do renomado médico, Sr. Francisco aproveitou o
declive da rua Florêncio de Abreu para descer ligeiro até a rua 25 de março, afinal
de contas como diziam os antigos: "Para baixo todo Santo ajuda." Uma vez na
conhecida rua da parte de baixo da colina do Pátio do Colégio, quase que sem
perder o ritmo caminhou ligeiro em direção a rua do Hospício. Pelo adiantado da
hora, quase noite, ao passar em frente ao Beco do Pinto deu uma boa olhada para
averiguar se não descia nenhum arruaceiro em busca de encrenca, para sua sorte
apenas alguns mascates de final de dia, cansados da labuta do dia, aproveitavam o
corte do trajeto que ligava a cidade alta à cidade baixa, para de certo ganharem
algum tempo no caminho de volta para suas casas, que em sua maioria ficavam na
região do Brás, ou até mesmo mais longe, pelas bandas da Paróquia de Nossa
Senhora de Penha de França.
Assim que passou portão adentro, Sr. Francisco antes de ir ao encontro de Sra.
Silvia, dirigiu-se até a cozinha atrás de Anastácia, porém o cômodo estava vazio,
foi então que lembrou-se que ela poderia estar na horta colhendo algum tempero,
rapidamente fez menção de caminhar até lá, porém não deu nem tempo, quando
virou-se deu de encontro com a velha cozinheira vindo com o pequeno balaio na
mão cheio com folhas de Couve Manteiga fresquinhas.
-- Boa noite Anastácia. Colhendo hortaliças a esta hora?
207

-- Sim senhor, vou preparar um bom caldo verde para minha Sinhasinha, quero
ver se ela toma. A coitadinha anda muito abatida depois da perda do nosso
Jacinto.
-- Nem me fale Anastácia, nem me fale. Estou extremamente preocupado com
minha esposa, sinceramente não sei mais o que fazer. Aliás, justamente passei
aqui antes de subir para saber de você. Afinal como ela passou o dia?
Ao ouvir as palavras de seu patrão, antes de responder algo a respeito,
propositalmente permitiu-se a uma pequena pausa. Com um olhar questionador
encarou-o bem fundo nos olhos, culpando-o por grande parte de tudo aquilo.
Meio sem saber para onde olhar, Sr. Francisco afim de sair daquela pequena
situação constrangedora, retomou a pergunta de antes:
-- Então Anastácia, como Silvia passou o dia?
Após mais alguns segundos daquela verdadeira tortura do silêncio ela resolveu
responder:
-- Nada bem Sr. Francisco, nada bem. Sinhasinha precisa de ajuda.
-- Coitada. Bem, subirei até o quarto para conversar um pouco com ela. Obrigado
por tudo viu? Como Silvia diz: "-- és muito mais que uma simples cozinheira"
Sem dar tempo de Anastácia falar mais nada, Sr. Francisco virou as costas para
ela e súbito saiu em direção a porta de entrada do casarão. Ao vê-lo adentrar-se a
velha cozinheira pensou como era grande a ignorância dos homens perante aos
mistérios da vida. Se ele tivesse dado crédito a primeira vez que Sra. Silvia alertou
sobre aquela casa, talvez nada de mau tivesse acontecido.
Ao chegar no aposento do casal, a primeira coisa que ele viu foi sua esposa
cabisbaixa, sentada em frente a penteadeira com a testa sobre as duas mãos de
posse do Terço apoiadas sobre o móvel. A cena realmente não era nada agradável,
mesmo de costas podia-se fazer a leitura do peso da tristeza que ela carregava.
Preocupado ele caminhou em passos lentos até ela, tocou-lhe a mão com carinho
sobre seu ombro direito afim de despertá-la tranquila, sem tomar um susto do
possível sono que estava. Ela por sua vez ao sentir o peso da mão de seu esposo
em seu corpo, lentamente ergueu a cabeça, então pode vê-lo pelo reflexo do
espelho da penteadeira.
-- Francisco! Já retornaste? Achei que só chegarias mais tarde.
208

-- Não Silvia, assim que terminei minha conversa com Dr. Onofre vim o mais
rápido para ver como você está.
-- Estou bem Francisco, dentro das atuais possibilidades estou bem. E as crianças?
-- Não se preocupe, Anastácia toma conta delas.
-- Sim, definitivamente Anastácia é meu Anjo da guarda. Mas se meus ouvidos
não me enganaram, disseste que conversou com Dr. Onofre. Posso saber o
motivo?
-- Sim, pode. Aliás, deve. Conversamos demoradamente, o assunto foi justamente
você Silvia.
-- Desculpe, mas não entendi. Como assim o assunto fui eu?
-- Calma, ele acha, aliás, nós achamos que você não está bem, que precisa de
ajuda médica, e ele sugeriu um tratamento para você.
Sra. Silvia que até então estava até tranquila, ao ouvir tais colocações de seu
esposo mudou completamente seu estado emocional.
-- Claro que não estou bem Francisco, depois de tudo que passei. Querias que eu
estivesse como?
-- Sim meu amor, eu entendo a situação. Mas há de concordar comigo que desde
que chegamos nesta casa você nunca mais foi a mesma.
-- Agora você disse tudo Francisco; nesta casa! Por que será que eu mudei tanto?
-- Não vamos retomar tais colocações sem sentido. Para o momento precisamos
resolver os seus problemas, deixe-me pelo menos tentar explicar do que se trata.
-- Pois bem, diga lá, sou toda ouvidos. - respondeu Sra. Silvia ironicamente.
-- Então, depois de uma longa conversa, achamos por bem você se tratar em um
local apropriado, pois andas muito nervosa, Dr. Onofre desconfia que estejas
doente.
-- Local apropriado? Doente? - mais incisiva ainda - Francisco, por favor sejas
mais claro, fale sem rodeios por favor.
Sr. Francisco percebendo que não tinha muito mais o que tentar explicar, procurou
ser mais objetivo:
-- Bem, é o seguinte: Dr. Onofre acha melhor você ficar alguns dias internada no
Hospício dos Alienados, tratar-se com médicos especialistas, que possam
realmente cuidar de você com todo cuidado que merece. Apenas por um tempo,
até todo este imbróglio da morte de Jacinto passar, inclusive assim quem sabe
209

evita também que a culpa não caia sobre você, afinal estavas lá na hora do
acontecimento - ainda titubeando nas palavras, tentou achar algo positivo na ideia
que a fizesse aceitar a estranha sugestão - pelo menos tem um lado bom nisso
tudo, a edificação fica aqui bem próximo, praticamente na mesma rua da nossa
casa.
Se Sra. Silvia não estava doente, realmente com esta última e ridícula colocação
dita por seu esposo com certeza foi motivo bastante para deixá-la louca de vez, já
sem nenhuma compostura de esposa comportada, furiosa retrucou-lhe num tom
baixo porém não menos irônico:

-- Realmente tens razão, pelo menos é perto da nossa casa. Nossa! Não tinha
pensado nisso.
Ele por sua vez, com um pequeno gesto de rosto que certamente entregava que sua
colocação não tinha sido feliz, questionou timidamente.
-- Então?
Furiosa e já sem nenhuma paciência, Sra. Silvia quase avançou em seu pescoço,
só não o fez porque ainda tinha um pouco de sensatez, porém a voz ela não
poupou, aos berros respondeu sua pequena pergunta:
-- Então o que Francisco? Estais achando que sou alguma idiota? Claro que não
vou aceitar esta ideia absurda. O que passa pela sua cabeça e de Dr. Onofre? Até
ele está tomado pela desgraça desta maldita casa? Sabes muito bem que não tenho
nada, sabes muito bem que tenho razão nas minhas colocações, foste testemunha
de muitas coisas que aconteceram aqui, principalmente com nossa filha.
Infelizmente sua arrogância o impede de aceitar os verdadeiros fatos, sabes que no
fundo tenho razão. Mas não! Preferes sempre a resposta da razão, do palpável, do
visível. Eu sou sempre a errada não é Francisco? Sempre a esposa submissa e boa
que queres que eu seja não é Francisco? Muito mais fácil achar-me uma doença,
internar-me, livrar-se de mim. - já cansada e com os olhos banhados por lágrimas,
sentou-se novamente em frente ao espelho - Meu Deus! Que mal fiz ao senhor
meu pai? Que mal? Se for para sofrer tanto assim, peço que me leves desta vida
Senhor, só peço que poupe meus filhos de sofrerem neste maldito lugar.
Sr. Francisco ao ver sua amada esposa naquele estado de nervos, percebeu que
tinha sido completamente infeliz em sua colocação, que realmente tal ideia talvez
210

não fosse a melhor solução para aquele momento. Mais tarde pensaria em algo
mais sensato, agora sua preocupação era acalmar Sra. Silvia, lentamente
aproximou-se da penteadeira para desculpar-se pelas infelizes palavras:
-- Silvia, me perdoe. Tens razão. Não sei onde estava com a cabeça quando
concordei com esta sugestão sem pé, nem cabeça do Dr. Onofre. De coração peço
perdão a você.
Entre um soluço e outro, com olhos ainda marejados, voltados para si mesmos de
frente ao espelho, serena respondeu:
-- Por favor saia, me deixe sozinha aqui, preciso rezar.
Sr. Francisco percebeu que o melhor a fazer naquele momento realmente era sair,
deixá-la só para assim quem sabe acalmar-se. Embora não fosse um homem de
frequentar muito a igreja, apenas aos domingos, salvo quando não estava pelas
bandas da fazenda, ainda assim acreditava que a fé em Deus era o mais apropriado
acalanto nas horas difíceis dos males da vida.
Assim como fez quando chegara da rua, novamente tocou-lhe de leve o ombro, a
diferença que desta vez foi o esquerdo. Após o pequeno gesto de carinho, sem
falar uma palavra sequer, virou-se de costas e caminhou em direção a porta de
saída do nobre aposento, puxou-a em sua direção, deixando-a meio aberta, porém
antes de passar pelo pequeno espaço, tomado talvez pela força do sentimento do
amor, deu uma última olhada para sua amada esposa, que sentada, mesmo
sentindo que estava sendo obervada, continuou inerte, calada, sentada de frente ao
espelho.
Ele por sua vez, após esta pequena pausa teatral, voltou-se ao seu objetivo, virou-
se novamente em direção a saída do aposento, passou pela pesada porta,
fechando-a lentamente. Caminhou pensativo em direção ao seu escritório no piso
térreo, com certeza teria que achar outra solução para o possível problema que sua
esposa poderia vir a ter.

Capítulo XXXVIII - Nada Como Uma Boa Conversa


Dr. Onofre mal tinha começado a saborear o seu farto desjejum, quando o fiel
mordomo, sempre muito educado adentrou-se na sala para pequenas refeições
afim de avisar-lhe que Sr. Francisco já o aguardava sentado na sala de estar do
nobre palacete.
211

Imediatamente o médico interrompeu seu prazeroso momento matinal, porém


antes de levantar-se para ir ao encontro de Sr. Francisco, permitiu-se tomar um
gole do forte café quente, recém colocado na xícara de porcelana inglesa, depois
limpou ligeiro a boca com seu guardanapo branco de algodão, em seguida saiu em
direção ao cômodo revelado pelo fiel mordomo.
Com certeza depois da conversa voltaria a pequena sala de refeições para dar
continuidade ao delicioso pecado da gula propiciado pelas muitas delícias
expostas sobre a mesa: bolo de cenoura, broas de milho recém tiradas do forno,
queijo meia cura, sucos e pedaços de frutas da época, mel e leite.
Do caminho de um cômodo ao outro ainda teve um certo tempo para pensar qual
resposta traria Sr. Francisco depois de conversar com sua esposa. No bem da
verdade seu interesse era que ela tivesse aceito o diferente, porém não menos
assustador tratamento. Queira sim, queira não, o fato de ter uma paciente
internada no Hospício do Alienados seria uma ótima oportunidade que ele teria de
acompanhar de perto o tratamento desta nova doença que assolava as mulheres
daquele século. O experiente médico tinha absoluta certeza que por atender a
família Jordão há muitos anos, teria acesso livre para entrar no dito lugar na hora
que bem entendesse. Outra vantagem é que teria contato com outras internas, com
diferentes casos.
Sendo ele um homem com uma visão moderna e futurista, sua intenção era
aprofundar-se nesta nova doença, pesquisar com calma, na prática, por meio do
uso de minuciosas observações, para depois quem sabe fundamentar
cientificamente, escrever com propriedade uma nova tese ou mesmo uma nova
obra literária sobre o assunto.
Assim que Dr. Onofre entrou na sala de estar, Sr. Francisco levantou-se da
namoradeira na qual estava sentado para cumprimentá-lo, pela expressão de
preocupado tudo indicava que a conversa com Sra. Silvia não havia sido das
melhores. Pelo visto sua tese ou obra literária ficaria para uma próxima
oportunidade, mesmo decepcionado com o que poderia escutar, procurou manter a
elegância e educação de sempre:
-- Sr. Francisco, que bom vê-lo logo cedo aqui. Por que não dirigiu-se direto para
sala de refeição para desfrutar o desjejum comigo? Seria um prazer inenarrável
dividir a mesa com o nobre amigo.
212

-- Bom dia Dr. Onofre, me alimentei antes de sair de casa, mas agradeço assim
mesmo. Eu que peço desculpas por novamente vir tão cedo, mas creio que se fez
necessário.
-- Que isso? Não temos cerimônias entre nossas famílias. O amigo sabe que pode
vir aqui a hora que bem entender. Mas diga lá, falou com minha adorada paciente?
-- Sim, conversamos muito, aliás, para ser sincero, não muito. Bem, como eu
mesmo já desconfiava, ela recusou-se por completo submeter-se a tal tratamento.
E quando toquei na possibilidade de ficar internada.
-- Sim? - curioso questionou o médico.
-- Minha Nossa Senhora! Pelo amor de Deus! Quase voou no meu pescoço.
Confesso para o amigo que me assustei. No fundo não tiro a razão dela Dr.
Onofre, não é fácil para ninguém enfrentar um manicômio, ser taxado como
louco. Enfim, temos que pensar em outra alternativa para resolver o problema
perante a justiça, o caso da doença dela, se é que realmente existe uma, damos um
jeito depois. Sabe-se lá também, de repente a coitada não tem nada mesmo.
-- Calma, ainda não esta nada certo que vão acusá-la de algo. Temos tempo, afinal
sabes que neste país a justiça é lenta, ainda mais se tratando de pobres e negros.
-- Sim, eu sei disso. Mas tratando-se de uma morte estranha, na casa de uma
família conceituada como a minha, com certeza é um prato cheio para todos os
Periódicos da cidade.
-- Realmente neste sentido o caríssimo amigo tem razão. Bem, estava pensando
aqui com meus botões, o delegado que investiga o caso me deve alguns favores.
-- Favores? Como assim?
-- Numa ocasião salvei a vida de umas de suas filhas; enferma durante três
semanas em cima de uma cama, nenhum colega de profissão por mais que
tentasse conseguia achar o problema de saúde da coitada. Desesperado e mesmo
sabendo que não sou um médico de preços acessíveis para qualquer um, o pai
pediu encarecidamente que eu fosse vê-la.
-- E o Doutor foi?
-- Sim, com certeza! Sabes que como médico não posso negar ajuda a ninguém,
afinal fiz o solene Juramento de Hipócrates, e além do mais o amigo sabe, sou um
homem cristão, temente a Deus. O importante naquele momento era salvar a
213

pobre moribunda. Coitadinha da desgraçada, era apenas pele e osso, os olhos


pareciam dois poços, de tão profundos.
-- E a salvou?
-- Graças a Deus! No final das contas não era tão grave assim, tinha visto um caso
parecido em uma das minhas viagens ao velho continente. Por coincidência ou
mesmo providência divina, eu havia trazido o mesmo elixir que curou os
enfermos de lá, sabia que uma hora precisaria aqui no Brasil, o amigo sabe que
muitas doenças estão chegando aqui por meio destes navios repletos de
Imigrantes, não deu outra, parecia que eu estava adivinhando. Enfim, só foi
ministrar a dose certa que em menos de três dias a jovem já estava de pé,
completamente curada.
-- Graças a Deus o doutor salvou a moça.
-- Sim Sr. Francisco, e graças ao avanço da medicina no primeiro mundo. Enfim,
o pai não sabia como agradecer pelo feito, perguntou quanto me devia, mas eu não
quis cobrar nada. O amigo sabe como são estas coisas, é sempre bom ter uma
carta debaixo da manga, sendo ele um delegado, uma pessoa do poder público,
uma hora eu poderia precisar de algo da parte dele. Nunca se sabe não é verdade?
E agora pelo que vejo, tal hora chegou.
-- O Doutor falaria com ele sobre o caso da morte de Jacinto? Faria isso por nós?
Igualmente aquele desesperado pai, também serei eternamente grato ao amigo.
-- Claro! Deixe comigo, hoje mesmo irei até a delegacia, aliás, pensando melhor,
mandarei que um de meus empregados vá até lá pedir que ele me procure no
consultório no finalzinho da tarde. Afinal quem me deve um favor é ele não estou
certo?
Sr. Francisco não tinha outra saída a não ser concordar, porém esta pequena
conversa serviu também para ele conhecer uma outra face de Dr. Onofre, um
outro lado talvez não tão ético assim do tão respeitável médico que há tantos anos
atendia sua família.
Achou estranho o porquê dele não ter dado esta ideia antes, ainda mais não tendo
certeza do diagnóstico da doença em Sra. Silvia, e pior, sugerir interná-la naquele
triste lugar. Bem, o importante naquele momento era resolver o caso, livrar sua
esposa de qualquer tipo de acusação. Porém uma coisa era certa, daquele dia em
diante ele passaria a observar o conceituado médico Dr. Onofre com outros olhos.
214

-- Então está bem, ficarei no aguardo de sua conversa com o delegado, espero que
dê tudo certo.
-- Fique tranquilo Sr. Francisco, no fim tudo sempre se resolve. Tenho certeza do
desfecho positivo sobre este mal entendido. Mas indiferente disso, precisamos
ainda nos preocupar com sua esposa, não descartamos a possibilidade dela estar
doente.
-- Claro! O caro amigo tem toda razão, cuidarei disso um pouco depois. O mais
importante agora é resolver o tal problema junto a justiça. Bem, deixe-me ir então,
tenho muitas coisas para resolver, os negócios do café me aguardam. Ficarei
ansioso pelo resultado de sua conversa de logo mais.
-- Deixe comigo, o amigo será o primeiro a saber. Eu te acompanho até a porta.
Por favor, tenha bondade, por aqui.
Os dois homens caminharam até a saída do palacete, o mordomo aguardava
parado o momento de abrir a porta para que pudessem passar. Assim que
aproximaram-se da saída o fiel empregado com um pequeno gesto de cabeça,
despediu-se educadamente da estranha visita. Uma vez do lado de fora da
edificação, cordialmente Sr. Francisco e Dr. Onofre despediram-se, o primeiro
tomou o rumo de volta para a Várzea do Carmo, enquanto que o segundo voltou
para dentro de seu palacete.
Assim que entrou caminhou rápido para onde estava antes do nobre fazendeiro
chegar, afim de continuar o que havia sido interrompido; seu farto ritual matinal.
Uma vez satisfeito do prazeroso pecado da gula, Dr. Onofre tratou logo de
aprontar-se, pois a conversa, mesmo que rápida com Sr. Francisco acarretou em
um pequeno atraso nos seus compromissos da manhã. Sem perder mais tempo,
rapidamente vestiu seu pesado casaco inglês, sobre a cabeça tomada por muitos
cabelos grisalhos colocou sua cartola de tecido acetinado - esta comprada numa
loja recém aberta na rua Libero Badaró - na mão direita tomou posse de sua
elegante Bengala com punho de marfim, castão e ponteira de ouro, feita em bastão
de madeira envernizada, lembrança de uma de suas viagem a Bangladesh. Na
verdade um regalo de um amigo londrino também médico, residente no pequeno
país asiático dominado pela coroa britânica. Para completar o figurino diário, na
mão esquerda a sua indispensável maleta de couro negra, repleta com pequenos
aparelhos e utensílios típicos dos doutores em medicina. Uma vez pronto e
215

arrumado partiu sem delongas para mais um dia de atendimento em seu


consultório na rua Florêncio de Abreu.
Como já era de se esperar, a conversa entre Dr. Onofre e o Delegado no final da
tarde daquele dia não poderia ter sido melhor. O resultado das investigações
concluíram que o pobre Jacinto, assim como Sra. Adelaide, também havia sofrido
um mal súbito devido a uma doença crônica que carregava consigo desde menino,
mas que ele mesmo desconhecia. Para os interessados no caso, como alguns
jornalistas dos Periódicos da cidade, foi apresentado um atestado de óbito
assinado pelo próprio Dr. Onofre, no qual confirmava a tal moléstia crônica do
rapaz:

"Eu, Dr. Onofre Machado, médico, venho por meio deste atestado de
óbito, confirmar o real motivo da Causa Mortis do jovem Jacinto, empregado da
família Jordão, no qual presto meus serviços clínicos há muitos anos.
Afirmo que após realização da autópsia do corpo, constatei que o
mesmo sofria de uma doença crônica e rara, que com certeza fora agravada no
decorrer dos anos devido ao uso constante de cigarros feitos com fumo de corda
envoltos em Palha seca, conhecidos popularmente como Cigarros de Palha.
Sendo assim, afirmo que o jovem Jacinto teve uma morte natural,
proveniente de um ataque súbito do coração, não tendo tempo de pedir nenhum
tipo de socorro."

E assim chegou-se ao fim de mais um estranho caso de morte dentro do casarão


da família Jordão. Tudo resolvido por meio de uma boa conversa entre duas
pessoas com certas influências, assim como de um certo favor pago em hora
oportuna.
Com a notícia espalhada pelos quatro cantos, o máximo que poderia acontecer
naquele momento era uma pequena queda nas vendas de fumo nas Tabacarias da
cidade. Maldito cigarro de Palha!

Capítulo XXIX - Entre Ir e Ficar


Não foi preciso muito tempo, com o passar de um mês, não mais que isso, o
fatídico acontecimento no casarão da família Jordão já havia caído no
216

esquecimento de todos, ou quase todos, para duas pessoas as palavras escritas no


tal Atestado de Óbito de nada valiam. A Crédula Anastácia tinha absoluta certeza
que tudo aquilo não passara de mais uma praga da verdadeira dona daquele
casarão, da maldita alma retratada naquele não menos maldito quadro pendurado
no corredor. Sra. Silvia era a outra, testemunha ocular, presenciou toda a cena de
horror sem poder fazer nada. Assim como sua cozinheira, também tinha absoluta
certeza que o mal trazido naquela noite fora protagonizado pela maléfica mulher.
Para as crianças, sempre inocentes de tudo, o que restaria seria as saudades do
jovem Jacinto, as boas lembranças; do cuidado dele para com os cavalos da
propriedade, do respeito e carinho com que as tratava, sempre com alguma
anedota para narrar ou mesmo alguma brincadeira para propor, principalmente
com a pequena Joana, por ser a caçula da casa, ou mesmo nos momentos de
descanso, quando o viam sentado debaixo de alguma das muitas árvores
espalhadas pelo imenso quintal para pitar tranquilo seu cigarrinho de Palha, o tal
vilão causador de tudo. Costume este que só vinha confirmar a versão contada
pelo próprio pai para eles. Como conforto agora o melhor a fazer era rezar pela
alma do pobre rapaz, que Deus o recebesse de braços abertos no Céu, assim como
fez com Dona Adelaide.
Com o passar deste pequeno período Sra. Silvia melhorou consideravelmente,
voltou a tomar conta dos afazeres domésticos, delegar atribuições aos
empregados, cuidar com zelo e amor dos dois filhos. Parecia que tudo voltara
como era antes, porém em sua mente uma coisa ainda era certa; ir embora para o
interior o mais rápido possível. O mês de calmaria, sem nenhum grave
acontecimento, a não ser o eterno cantar de Joana pelos cantos da casa, não fez
com que ela mudasse de ideia. Como havia dito a Anastácia em uma das várias
idas a cozinha, só estava aguardando Sr. Francisco retornar da fazenda para
retomar o assunto.
E foi dito e feito, depois de uns bons dias longe da capital, sua chegada estava
marcada para aquela noite, com certeza desta vez ele não escaparia de uma boa
conversa sobre este desagradável assunto. Sr. Francisco teria que ser muito astuto
e convincente para fazê-la mudar de ideia.
E aconteceu como o esperado, assim que o dia encerrou sua labuta cedendo lugar
a noite, no apagar da luz do sol, trocadas pelas luzes amarelas dos poucos
217

candeeiros espalhados pela cidade, o grande portão de madeira abriu-se


lentamente para que a nobre Coupe Negra passasse com o patriarca da família, tão
esperado por todos, principalmente por Sra. Silvia, que, elegante como de
costume, o aguardava em pé com as delicadas mãos sobrepostas sobre a baixa e
larga mureta de tijolos, coberta com cerâmica vermelha da pequena varanda da
porta principal da casa.
Assim que Sr. Francisco colocou o pé para fora da carruagem que fora
estacionada no terreno a uma boa distância da casa - uma prática trivial para evitar
o cheiro dos dejetos dos animais - avistou Sra. Silvia na pequena varanda, mesmo
com a pouca iluminação, mais uma vez ele pode constatar como sua mulher era
por demais bela.
Naquele final de tarde especialmente parecia ter caprichado mais do que o normal,
trajava um fino vestido vinho, rico em detalhes com muitos babados, plissados,
franjas e passamanarias. Por cima dos ombros, afim de proteger-se do sereno
típico daquele horário, um xale feito de renda negra. Realmente Sra. Silvia era de
uma beleza paulistana rara, sua cútis clara e delicada, de tão jovial que era, fazia
com que de longe não aparentasse os trinta e três anos de vida.
Ao mesmo tempo que apreciou o que acabara de ver, o nobre fazendeiro ficou
meio ressabiado, pois não era costume de sua esposa recepcioná-lo daquela
maneira, de certo alguma nova surpresa o aguardava. Bem, como não tinha outra
saída, uma vez fora da carruagem, seguiu em direção a entrada da casa. Ao
aproximar-se dos primeiros degraus da edificação, cumprimentou-a simpático,
porém não menos surpreso:
-- Silvia, não esperava você aqui. Confesso que fiquei surpreso.
-- Olá Francisco, fez bom retorno? Estava aqui parada pensando na minha vida, o
ato de encontrar você chegando não passou de uma coincidência.
Sr. Francisco sabia que aquelas palavras vindas da boca de sua esposa não eram
verdadeiras, conhecendo-a como ninguém, tinha certeza que algo estava por vir,
mas para o momento achou por bem entrar no jogo, com uma risada amarela
tentou manter a simpatia, procurou mostrar-se interessado pelo andamento da
casa:
-- Está bem, então vamos dizer que foi uma coincidência boa. Como foram estes
dias que fiquei fora? As crianças e você estão bem?
218

Sra. Silvia que também o conhecia muito bem, percebeu logo que tais perguntas
não passaram de mais um blefe, da velha tática dos homens quando querem
desconversar de algum possível assunto, sendo assim ela entrou no jogo, porém
não deixaria passar o real assunto que a levara ficar postada naquela varanda:
-- Sim, estamos todos bem, como de costume. Vamos entrar, tomar este sereno
sobre a cabeça não é bom. Anastácia já deve inclusive te colocado a mesa, deves
estar cheio de fome.
-- Realmente estou faminto! Faminto e cansado, foram muitas sacudidelas no
caminho de lá para cá, este novo cocheiro embora muito prestativo, não é tão
habilidoso como o finado Jacinto.
Por um breve instante Sr. Francisco achou que havia escapado de algum assunto
que o deixaria chateado, sem perder tempo entrou na casa e súbito tomou o rumo
do escritório, porém assim que passou pela porta, mal tinha começado a caminhar
pelo corredor, Sra. Silvia que vinha logo atrás, soltou a fala que certamente ele
não queria ouvir:
-- Francisco, depois do jantar precisamos conversar sobre aquele assunto.
Sr. Francisco tentou disfarçar ao mesmo tempo que acelerava o passo:
-- Assunto?
-- Sim Francisco, sabes muito bem qual é. Por favor, não se faça de desentendido.
-- Não estou me fazendo, realmente não sei do que se trata.
Sr. Francisco procurou acelerar o passo ainda mais, afim de fugir do assunto, mas
o maldito escritório nunca estivera tão longe, em sua mente quanto mais rápido
chegasse lá, estaria salvo do que certamente não queria ouvir. Sra. Silvia por sua
vez, continuou em seu encalço, também entraria no escritório se necessário fosse.
Definitivamente toda aquela situação se não fosse trágica, seria cômica, era
praticamente uma típica cena de Comédia de Costumes.
-- Não se preocupe, eu o lembrarei com certeza. Depois do jantar conversamos.
Após esta última fala, ela parou de andar, deixou-o que seguisse para seu destino.
O recado estava dado.
Realmente foi o que aconteceu, Sra. Silvia assim que percebeu que os dois filhos
estavam satisfeitos, ordenou-os que fossem para o quarto, pois queria conversar
um assunto sério com o pai deles. Até Joana desta vez não ousou questionar nada,
pois pelo tom de voz da matriarca, até ela achou por bem obedecer sem falar nada.
219

Assim que os sons dos solados das duas crianças deixaram de ser ouvidos nos
degraus da escadaria, Sra. Silvia entrou no temido assunto:
-- Então Francisco, podemos conversar?
-- Claro Silvia, do que se trata?
-- Sabes muito bem do que se trata.
-- Não, não sei.
-- Quero dizer-lhe que não mudei de ideia. A infeliz morte de Jacinto só veio a
confirmar o que eu temia. Não perderei mais tempo aqui, amanhã ou no máximo
depois de amanhã, tomo o rumo do interior com as crianças e Anastácia. Não
arriscarei mais vidas por causa de sua teimosia.
-- Por favor Silvia, achei que tivesse tirado esta ideia da cabeça. Você mesma viu
que a morte de Jacinto foi causada por uma doença que acompanhava o coitado
desde menino.
-- Por favor digo eu Francisco! Pelo amor de Deus! Não me tire por idiota, eu sei
que tudo aquilo foi uma grande trama inventada por você e Dr. Onofre, que aliás,
muito me admiro, jamais esperaria isso dele, inclusive chegar ao ponto de querer
me internar, me taxar como louca.
-- Não era isso, desconfiávamos que estiveste um pouco doente dos nervos,
apenas isso.
-- Doente do nervos. Era só o que me faltava. Depois de tudo que vi e passei
dentro desta casa. Bem, minha colocação é essa. O que meu nobre e austero
esposo tem a me dizer? Me acompanharás ou terei que ir sozinha?
-- Por favor Silvia, não sejas irônica. Por favor. Vamos pensar em outra saída,
menos drástica.
-- Não tem outra saída Francisco. Não queres enxergar. Quanta teimosia homem!
Esta casa tem uma maldição, e todos nós corremos perigo, principalmente nossa
pequena Joana, já lhe disse isso. O que mais terá que acontecer para te convencer?
Deixe de ser incrédulo pelo amor de Deus!
-- Não sou incrédulo, por favor não diga isso, sou temente a Deus assim como
você. Peço um pouco mais de tempo, vou tentar achar uma saída plausível para
tudo isso.
-- Da outra vez disseste a mesma coisa e deu no que deu, mais uma pessoa se foi.
Bem, por mim está tudo acertado, definitivamente não ficarei mais nesta casa.
220

Um silêncio fez-se presente naquele momento, Sr. Francisco permaneceu calado,


por mais que tentasse não conseguia pensar em nada que pudesse tirar a ideia de
sua esposa de ir embora do casarão. Nesta hora sua nuca recebeu um sopro vindo
do nada, que novamente o presenteou com uma sensação estranha de prazer e
medo, seu corpo arrepiou-se completamente. Suas narinas mais uma vez foram
inebriadas pelo cheiro forte de Dama da Noite. Sentiu alguém aproximar-se por
detrás de suas costas, para em seguida abaixar-se lentamente, ao ponto de quase
tocar o lado esquerdo de seu rosto, pronto a sussurrar algo em seu ouvido, e assim
o fez.
Sra. Silvia também sentada à mesa bem a frente ao esposo, nada viu ou sentiu,
porém percebeu que aquela pausa estava por deveras longa, que por mais que Sr.
Francisco tentasse pensar em alguma resposta que o favorecesse, com certeza não
precisaria de tanto tempo. Incomodada com a demora e tamanho silêncio o
indagou:
-- Francisco! Estais bem? Não falaste nada homem. Por favor, assim me deixas
preocupada.
Sr. Francisco ao ouvir as palavras de sua esposa, rapidamente caiu em si
novamente, num instante toda aquela sensação de antes sumira tão rápida como
veio. Para enorme surpresa dela, sua resposta desta vez foi completamente outra,
inclusive seu tom de voz era outro, calmo, tranquilo e compreensivo:
-- Nada demais Silvia, pensei melhor em tudo que disseste. Tens razão, o melhor a
fazer é sair desta casa o quanto antes. - após outra pausa, desta vez mais curta -
Pronto! Acabei de tomar uma decisão! Vou procurar outra casa aqui pela região,
talvez ainda mais perto da Faculdade de Direito, afinal um dos motivos pelo qual
adquirimos esta propriedade foi pensando no futuro de nosso filho Antônio não
foi?
Admirada com a mudança repentina de atitude do esposo, Sra. Silvia questionou:
-- Estais falando sério Francisco? Não queres me tapear mais uma vez?
-- Nunca falei tão sério assim em minha vida. Só não faço isso amanhã, porque
infelizmente prometi visitar a fazenda de um antigo amigo, talvez eu faça um
grande negócio com ele. Mas desta vez será rápido, em três dias estou de volta,
inclusive estou pensando em levar Antônio comigo, já está na hora deste menino
participar dos negócios da família. O que achas?
221

Sra. Silvia mais uma vez estranhou a colocação de seu esposo. Esta última
pergunta então, deixou-a por demais admirada, ele nunca foi de pedir a opinião
dela para nada, ainda mais quando o assunto eram os negócios.
-- O que eu acho? Veja com ele, creio que ficará feliz em sair sozinho com o pai.
Mas quanto a questão da mudança?
-- Sim, como ia dizendo, assim que voltar vejo isso, procuro outra casa para nós.
Peço-lhe um pouco de paciência. Prometo que desta vez não falharei. Podes
confiar em mim, não quero mais que se preocupe com isso.
-- Eu sempre confiei em você Francisco, és meu marido, o homem que amo mais
do que tudo nesta vida. Pena que você nunca enxergou isso, sempre me tratou
como uma esposa submissa e recatada. Sempre estive ao seu lado mais do que
você pensa.
-- Eu sei Silvia, nunca duvidei disso. É que esta vida muitas vezes nos transforma
em seres rudes. Bem, vamos subir. Quero falar com Antônio antes que ele durma,
afinal ele terá que acordar cedo para ir comigo.
-- Quem não vai gostar desta ida de Antônio com você será Joana, estou até vendo
o ciúmes dela.
-- Com certeza, mas definitivamente este não é o tipo de passeio para Joana, é
muito pequenina ainda, além do mais é assunto de homem.
-- Façamos o seguinte, vá indo na frente, ainda quero falar algumas coisas com
Anastácia, não me demoro, prometo.
Calado Sr. Francisco apenas concordou com um gesto positivo, em seguida
levantou-se, dirigiu-se ao andar de cima para falar com o filho sobre a pequena
viagem do dia seguinte. Sra. Silvia permaneceu sentada, o dito falar com
Anastácia foi apenas um pretexto para que seu esposo adiantasse o destino para o
andar de cima. Sua intenção
na verdade era ficar sozinha por um breve momento, tentar entender o porquê da
mudança tão rápida de atitude do esposo. Muitos questionamentos vieram a tona
naquele momento.

Capítulo XL - A Despedida
Debaixo de uma torrencial chuva que insistia em cair desde a madrugada, um dos
empregados do casarão mesmo com muita dificuldade devido a quantidade de
222

água que lhe caia sobre os olhos, desceu a robusta taramela para trancar o pesado
portão de madeira que havia sido aberto para que a Coupé Negra passasse com
destino a tal fazenda.
Dentro, acomodados confortavelmente estavam o patriarca Sr. Francisco Jordão e
o seu amado primogênito Antônio, este não se continha de tanta alegria em poder
finalmente viajar com o pai. Já não era de hoje que o jovem rapaz ansiava por um
momento como este. Por mais que as muitas brincadeiras em parceria com a
pequena Joana fossem divertidas, os anseios da puberdade afloravam cada vez
mais fortes no jovem rapaz.
Mesmo com a visão prejudicada pela forte chuva, através do vidro de uma das
janelas de seu aposento, estava Sra. Silvia ainda em trajes de dormir, protegida
apenas pelo seu Penhoar, com o olhar preocupado de mãe, típico de quem sabe
que a cria em breve ganhará o mundo, observava o elegante carro de tração animal
diminuir cada vez mais ao seguir pela rua de terra batida. Desta vez ao invés do
sentido da Serra da Mantiqueira como era de costume, o trajeto escolhido foi o
oposto, para as bandas da Paróquia Nossa Senhora da Penha de França, onde o
destino final seria o promissor Vale do Paraíba.
Ainda que sem conseguir enxergar mais o motivo pelo o qual a fizera ficar atrás
da janela, Sra. Silvia ainda permaneceu algum tempo observando o forte temporal
que parecia não ter mais fim. Na verdade sua real preocupação era se ao término
destes três dias de ausência, seu esposo realmente cumpriria com o prometido.
Sua intuição feminina revelava que o tempo para tentar salvar a pequena Joana e
os que a cercavam estava prestes a se esgotar, a derrota para o mal era eminente.
Por falar em Joana, assim que Sra. Silvia desceu para tomar seu desjejum,
encontrou-a sentada à mesa, saboreando com prazer um grande pedaço de bolo de
milho que Anastácia acabara de tirar do forno. Assim que viu a mãe aproximar-se
da mesa, ainda com a boca cheia da quente massa amarela, entre uma mastigada e
outra, manifestou-se pela viagem do irmão:
-- Por que só Antônio viajou com papai?
-- Bom dia para você também minha filha. - corrigiu a mãe com um leve sorriso
nos lábios.
Joana percebendo a pequena gafe logo cedo, tratou de corrigir a fala:
-- Desculpe mamãe. Bom dia para a senhora também.
223

-- Muito bem, agora sim posso responder sua pergunta. Pois bem, seu pai quis
levar seu irmão porque ele já é quase um homenzinho, já está na hora de começar
a fazer coisas para a idade dele.
-- Sim, entendi. Mas quem brincará comigo hoje?
-- Não se preocupe, mamãe brinca com você está bem? Só não quero que fiques
pelo quintal sozinha, principalmente no cair da noite. Estamos combinadas? Aliás,
hoje será quase que impossível brincares lá fora, parece que o nosso Senhor bom
Deus resolveu abrir todas as torneiras do céu, nunca vi tanta água.
Joana mesmo sem entender a metáfora que a mãe acabara de pronunciar, colocou
outro enorme pedaço de bolo na miúda boca, e sem falar nada apenas concordou
com um pequeno gesto de cabeça.
A chuva parecia não ter fim, castigou a cidade o dia todo, entrou pela noite,
seguiu madrugada adentro mais forte ainda, como sempre acontecia, o rio
Tamanduateí transbordou mais uma vez, alagando quase toda a Várzea do Carmo,
só no terceiro dia resolveu dar uma trégua, as pesadas nuvens deram lugar ao
infinito azul do céu.
Joana de posse de sua inseparável amiga de louça, finalmente correu para brincar
no quintal, de tão ansiosa que estava, de certo esqueceu as recomendações que a
mãe havia feito dias antes. Empolgada não se conteve em ficar perto da casa,
ganhou a imensidão do quintal como se este fosse apenas seu, com certeza
naquele momento era, e talvez passasse a ser por toda a eternidade.
Anastácia entre uma ida e outra na horta para colher uma nova hortaliça ou
tempero, não perdia a oportunidade de observar a menina correndo sozinha de
uma lado para o outro; uma hora com um graveto na mão, outra hora com uma
flor, outra com um sabugo de milho seco, dos muitos caídos do grande milharal
que ficava ao fundo do terreno. Realmente as possibilidades eram muitas, a
corpulenta cozinheira, cansava-se só de ver a disposição daquela criança feliz a
brincar.
E assim o dia caminhou para seu final, quando Joana preparava-se para encerrar
sua última brincadeira, a conhecida cantoria fez-se presente mais uma vez, vinda
de dentro do porão. Joana como que obedecendo a um chamado, tomada por uma
força maior, não pensou duas vezes, caminhou determinada para dentro do escuro
local, no qual logo avistou sua amiga sentada ao fundo.
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Diferente das outras vezes, a sórdida criatura trajava o belo vestido que não usara
na noite fatídica que despediu-se do mundo dos vivos. Seu rosto estava mais
jovial do que nunca, belo como nos tempos das grandes cerimônias realizadas no
casarão. O cantar que antes era de tristeza, voltara a ser alegre e doce. Ao ver
Joana dentro do porão, estendeu o braço num sinal para que ela chegasse o mais
perto possível de onde encontrava-se sentada.
Permaneceram juntas dentro do porão um longo tempo, até serem interrompidas
por outro chamado que vinha de perto da cozinha do casarão.
-- Joana! Joana venha pra cá menina! Já está tarde!
Era Anastácia que ao ver que o dia caminhava para o seu fim, achou por bem
mandar a menina recolher-se. Em pé, com as mãos apoiadas sobre a larga cintura,
obervou quando Joana saiu de dentro do porão, abraçada com sua inseparável
boneca caminhou em sua direção. Vinha sem pressa, em passos lentos, porém
bem marcados, caminhava com uma postura diferente da costumeira alegria de
sempre. Tinha conhecimento que havia extrapolado no horário, mas pela
expressão séria de seu rosto não demonstrava nenhum tipo de preocupação com a
possível bronca que poderia levar de sua mãe.
-- Menina! Que horas são estas? Sua mãe não te falou que era para vir antes de
anoitecer?
A frase dita por Anastácia entrou por um ouvido e saiu pelo outro, sem responder
com uma palavra sequer, Joana passou direto pela cozinheira como se não
houvesse ninguém ali, esta por sua vez não teve reação alguma, apenas observou
o sereno caminhar da menina até entrar em casa. Com certeza algo estranho havia
acontecido, mas o que poderia ser?
Anastácia ainda fez menção de segui-la, porém no exato momento em que ia
começar a andar, foi tomada por uma queimação jamais sentida antes na região da
perna inchada pela Erisipela. A dor foi tão intensa que rapidamente teve que
sentar-se no banco de madeira que ficava encostado do lado de fora da parede da
cozinha. Ali permaneceu durante um longo tempo, gemendo, com os olhos cheios
de lágrimas, como a dor não diminuía, resolveu enfrentá-la assim mesmo, com
muita dificuldade caminhou até o jardim para colher algumas folhas de Zimbro
afim de fazer uma imersão para depois aplicar compressas frias sobre a dolorida
perna.
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Muito estranho aquilo tudo acontecer justamente quando ela pensou em ir atrás de
Joana, que sem perceber o que havia ocorrido com a velha cozinheira, entrou
rápido para dentro do casarão, caminhou direto para seu quarto, onde permaneceu
até a hora de descer para a cear junto a mãe.
Por volta das dezenove horas a mesa já estava quase posta, como só eram as duas
mulheres da casa que iriam comer, Anastácia havia preparado apenas um leve
caldo verde, que seria acompanhado por broa de milho assada durante a tarde.
Quem colocou a mesa naquela noite foi uma das empregadas mais novas, Sra.
Silvia achou um pouco estranho, pois esta era uma das funções específicas de
Anastácia.
-- Onde está Anastácia? - perguntou a patroa.
-- Dona Anastácia pediu que eu colocasse a mesa senhora, pois ela está com muita
dor na perna doente. Não se preocupe, quando a senhora e a pequena Joana
acabarem de comer, eu venho retirar as coisas.
A desconfiança tomou conta de Sra. Silvia, pois, fazia tempo que Anastácia não
tinha crises de Erisipela, na verdade há mais de um ano. Bem, mas doença é
doença, e não tem a menor obrigação de avisar quando vai manifestar-se. A nobre
senhora decidiu que ao terminar a ceia, iria até a edícula para ver se sua Tata
estava precisando de alguma ajuda.
O jantar ocorreu dentro da rotina de sempre, ao final a empregada veio retirar os
pratos e demais pertences de cima da mesa, Sra. Silvia recomendou que Joana
subisse, ela iria em seguida, antes faria o que havia pensado. Porém Joana não a
deixou sair de perto, disse que estava com medo de subir sozinha, sentia falta de
Antônio, pediu que a mãe a levasse para seu quarto. O estranho disso tudo é que
ela só foi sentir tal medo no terceiro dia de ausência do irmão, nos anteriores não
reclamou de nada.
Por um breve momento Sra. Silvia ficou sem saber o que fazer, mas no final o
lado materno falou mais alto, optou pela filha. Então pediu que a empregada
avisasse se algo acontecesse de pior com Anastácia, que a chamasse
imediatamente, na hora que fosse.
Mãe e filha subiram para o andar de cima, uma vez no corredor seguiram juntas
até entrarem no quarto pertencente as crianças da casa. Joana fez questão que a
mãe ficasse com ela até que pegasse no sono.
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Diferente do normal, naquela noite a menina parecia estar brigada com o sono,
Sra. Silvia praticamente esgotou seu Baú imaginário de histórias. No Carrilhão os
ponteiros acusavam vinte e três horas quando finalmente a menina deu-se por
vencida e caiu no sono.
Também tomada pelo cansaço, e vendo que não havia recebido nenhum recado
vindo da edícula, Sra. Silvia achou por bem também recolher-se, afinal de contas
no outro dia seu esposo e filho chegariam da viajem, e ela queria estar bem para
recebê-los, saber principalmente de Antônio o que sentiu da primeira experiência
como um adulto.
A mãe finalizou o ajeitar da filha com um leve beijo em sua testa, depois com
todo cuidado, procurou sair do quarto com o máximo de silêncio, com delicadeza
abriu e fechou a porta.
Em uma das mãos a lamparina, a outra usou para erguer um pouco a barra do
longo vestido, afim de facilitar a caminhada. Seguiu pelo corredor escuro com
destino ao seu aposento, porém ao passar ao lado da escadaria sentiu a
necessidade de olhar para baixo, neste momento um arrepio, seguido de um
tremor tomou-lhe conta do corpo, temente do que poderia acontecer, acelerou o
passo até finalmente entrar em no cômodo.
Assim que passou pela porta, colocou a lamparina sobre o criado mudo, abriu a
gaveta do mesmo para de dentro tirar o Terço. Sentou-se na beira da cama e
começou a rezar. Após passar quase vinte minutos entre muitos Pai Nossos e Ave
Marias, sentiu que a paz tomava-lhe conta de seu coração novamente. Levantou-
se, trocou de roupa, em frente ao espelho escovou brevemente os longos cabelos,
para depois deitar-se sobre o lençol branco de seda. Logo adormeceu feito uma
menina.
Na edícula após várias compressas frias de Zimbro sobre o inchaço, assim como a
ingestão de várias xícaras de chá de camomila, Anastácia finalmente pode dormir
tranquila. O sofrimento havia sido tanto que agora para compensar, seu sono era o
mais pesado de todo o universo, o mundo poderia acabar em barranco que ela não
despertaria. Pelo o que a aguardava logo mais, com certeza não despertaria
mesmo.
O silêncio era o elemento mais presente no entrar da madrugada, quebrado
apenas pelos balbucios dos jovens estudantes bêbados e mulheres da vida que
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caminhavam sem destino pelas ruas e becos da cidade escura, acompanhadas sem
perceberem pelas crianças da noite.
Dentro do casarão o máximo que podia-se ouvir era o metódico Tic-tac do
Carrilhão Alemão no canto da sala, os seus ponteiros não menos metódicos
estavam prestes a acusar a chegada da tão temida Hora Morta. E foi exatamente
as três horas da manhã que deu-se aquele que seria o início do fim da família
Jordão.
Um ranger agudo fez-se presente na pesada porta sala, que ao abrir-se sozinha
permitiu que a verdadeira dona de tudo pudesse passar para cumprir seu maléfico
objetivo. Porém antes de adentrar-se no casarão, a maldita criatura havia visitado
outro local; a edícula da pobre Anastácia, com o intuito de presentea-la com o
sono eterno, e assim o fez, tirou-lhe a vida sem dó nem piedade.
Os doces versos da conhecida canção saiam suaves de sua boca fétida enquanto
caminhava sem pressa pelo corredor, em seu rastro deixava o inebriante cheiro da
Dama da Noite. Uma vez ao pé da escada, apoiou a mortuosa mão esquerda sobre
o corrimão afim de dar início a tenebrosa subida. Os pés descalços pareciam
saborear a cada pisada nos frios degraus de madeira, compassadamente eliminou
um a um até chegar ao primeiro andar.
Uma vez lá, permitiu-se a uma pequena pausa, talvez para lembrar dos velhos
tempos, quem sabe. Depois tomou o rumo do seu verdadeiro destino; o quarto da
inocente Joana. Em frente a porta girou a maçaneta bem devagar, em seguida
entrou. A menina a aguardava sentada na beira da cama com um inocente sorriso
nos lábios, ao vê-la desceu e caminhou feliz até aquela que certamente seria sua
algoz.
No mesmo instante, do outro lado do corredor, Sra. Silvia talvez por uma força
maior, despertou de seu pesado sono, um pressentimento ruim tomou-lhe conta do
peito, imediatamente sentiu uma necessidade sem igual de ir ver como Joana
estava, levantou-se rápida, vestiu seu Penhoar, acendeu a lamparina e saiu ao
encontro da filha.
Assim que pôs os pés para fora do cômodo, seus olhos viram a última coisa que
gostaria de ver em vida; Esmeralda e Joana de mãos dadas, felizes, cúmplices,
paradas antes do primeiro degrau da escadaria, prontas para dar início aquela que
seria a última descida da menina em vida. Sra. Silvia observou que a mancha
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vermelha antes tão presente no vestido da maldita mulher, desta vez não estava lá,
logo entendeu do que se tratava.
Este pequeno detalhe a deixou mais desesperada ainda, tentou correr para resgatar
a filha, porém foi completamente dominada pelo mal, que a impediu de sair do
lugar, tentou gritar na esperança que alguém a ouvisse, mas foi sufocada com um
apertar forte em seu pescoço ao ponto de fazê-la quase desmaiar. Seus ouvidos
foram tomados por gritos desesperados de horror, risos sarcásticos misturados a
uma cantoria sofrida saída de vozes amaldiçoadas de crianças e mulheres, todas
condenadas a viver no mundo eterno dos mortos.
Nesta hora a única coisa a fazer foi apelar para a fé em Deus, numa última
tentativa de salvar a menina, em pensamento começou a rezar e pedir ao criador
que lhe desse forças, mas diferente das outras vezes, de nada adiantou, parecia que
o maldito destino haveria de cumprir sua sentença naquela noite.
Esmeraldo e Joana lentamente desceram a escada cantando, depois seguiram pelo
corredor até atravessarem tranquilas, em definitivo pela porta, para livres tomarem
o rumo da escuridão.
Neste momento como que solta propositalmente, Sra. Silvia conseguiu livrar-se da
força maligna que a prendia, correu em direção a escada para em seguida descer
desesperada ao ponto de quase rolar os degraus abaixo. Ao chegar no térreo sentiu
uma corrente de ar gelado em seu rosto, observou que a porta estava aberta,
entendeu que as duas haviam passado por ali, depressa passou pela mesma para
tomar o rumo do quintal em direção ao porão, porém antes resolveu pedir ajuda a
Anastácia.
Empurrou a porta da edícula que já encontrava-se aberta, ao entrar teve uma triste
surpresa, encontrou o imenso corpo de Anastácia estendido sobre a cama com os
olhos arregalados em direção ao teto, completamente petrificados. Sua amada
Tata estava morta.
Neste horrível pesadelo, por mais que tentasse gritar por ajuda, não conseguia ser
ouvida, saiu da edícula desesperada pelo quintal de um lado para outro chamando
pela filha, as muitas vozes cada vez mais fortes em seus ouvidos deixavam-na
completamente atordoada, depois de muitas voltas em vão pelo escuro quintal,
entrou no temido Porão.
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Dentro do apertado cômodo, mesmo com muita dificuldade devido a baixa altura
do teto, vasculhou por todos os cantos, esbarrou em vários objetos ao ponto de
prender e rasgar parte de suas vestes, seu corpo ficou com muitas manchas roxas
deixando-a completamente machucada. Ao perceber que a filha não se encontrava
ali, achou por bem voltar ao quintal, foi quando seu pé direito bateu em algo no
chão, era a inseparável amiga de louça de Joana, que caída no chão, estava com o
aspecto sujo de quando foi encontrada pela menina. Sra. Silvia tomou-lhe em seus
braços, em seguida passou pelo pequeno portão de ferro em direção ao grande
milharal, completamente atordoada gritou em vão pelo nome da filha pelo resto da
madrugada.
Naquele noite fatídica, marcada pelo terror, o que restou no grande Casarão da rua
do Hospício - que hoje leva o nome de Frederico Alvarenga - foram os dois
corpos sem vida, estendidos cada qual sobre sua cama; o de Anastácia dentro da
sua humilde edícula, e o da inocente e doce Joana em seu quarto, com marcas de
estrangulamento sobre seu pequeno pescoço.
Ao amanhecer Sra. Silvia completamente machucada, com vários hematomas e
arranhões, com as roupas rasgadas e sujas, foi encontrada pelos outros
empregados da casa sentada entre os vários pés de milho. Catatônica, olhava
perdida o infinito, ao mesmo tempo em que cantava baixinho a misteriosa canção.
Em seus braços segurava com força a inseparável amiga de louça de Joana.

FIM

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