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ESBKO DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

NOS SÉCULOS XIX E XX (*).

Pouco a pouco, apesar de todos os altos e baixos inevitá-


veis nas fases de tomada de consciência de maturidade, mani-
festam-se os sinais de uma renovação dos estudos de história
no Brasil. Destaca-se, por exemplo, a certeza da impossibili-
dade de considerar-se o país como algo histôricamente autôno-
mo, levando a um sempre maior alargamento dos horizontes;
as peculiaridades brasileiras, neste caso, estariam longe de jus-
tificar um isolamento, pois diversas delas, até mesmo, só po-
deriam encontrar uma explicação razoável mediante o recurso
a elementos alienígenas. O desenvolvimento de outros ramos
de estudos, os sociológicos, principalmente, contribui para lan-
çar luz sôbre vários problemas, cujo exame conduz à sua revisão
no tempo, redundando, automàticamente, num enriquecimen-
to do saber historiográfico. Principia a florescer entre nós
aquilo que, em outras regiões, tantos frutos já produziu, isto
é: a convicção de que limi tes político-geográficos não propor-
cionam um enquadramento inteligível para a História, que de-
ve ser buscada, antes, no estudo de relações processadas den-
tro de limites incomparàvelmente mais amplos . O Brasil, por-
tanto, situa-se no grande complexo comumente designado co-
mo civilização ocidental; seu processo formativo apenas pode
ser compreendido através da articulação no âmbito desta uni-
dade superior (1) . Não nos referimos, aqui, aos laços mais apa-
rentes, que associam o país a Portugal, dando origem à crença
na abosluta necessidade do estudo da história ibérica para com-
preendê-lo . Isto se dá, certamente, no tocante a todo o período
colonial. Mas, mesmo assim, como já disse alguém, a Ji'speito
das inegáveis relações com os portuguêses, foi a Europa, e não

(•). — O presente trabalho é um capítulo da obra intitulada Introdução aos Es-


tudos Históricos, sob a direção do Prof. Jean Glénisson (do Centre de
recherches historiques, Paris), a ser brevemente publicada pela Editôra
Difusão Européia do Livro (Nota da Redação).
(1). — Cf. V. M. Dean, The nature of the non•western world (New York, 1957),
em que, não obstante, se exclui tôda a América Latina do mundo ocidental.
— 108 —

Portugal sózinho, que forneceu a esta nação seus mais impor-


tantes fundamentos (2), e apenas com o pensamento voltado
para tôda a Europa Ocidental será inteligível a visão de uma
história brasileira. A integração de nosso passado no plano
do espaço terá como corolários a integração no tempo, saltando
aos olhos a falácia de tomar-se como ponto absoluto para início de
nossa história o movimento das grandes descobertas. As novas
concepções dominantes na matéria insistem em que a história
não se manifesta apenas nõ campo concreto, mais ainda, que êste
corresponde à expressão de processos verificados no campo do
pensamento . Embora com a restrição de considerar-se exage-
rada a afirmativa segundo a qual "tôda história é história do
pensamento" (3), é impossível, hoje em dia, deixar-se de levar
em conta esta circunstância para o exame do caso brasileiro.
Com isto, atingiremos dois grandes resultados, a saber: 1) . -- a
articulação do processo formativo do Brasil com a própria Idade
Média européia, não só mediante o transplante ou o reflexo das
instituições, mas também porque a isto nos conduziriam muitos
e muitos traços do desenvolvimento das idéias, da arte, da re-
ligião, da mentalidade brasileira, enfim (4); 2) . — orientar nos-
sas atenções para um quadro orgânico de nosso passado, em
que, sem se atribuir a predominância ao campo econômico, po-
lítico, ou a qualquer outro, todos êles fôssem encarados em sua
constante interação, proporcionando-nos algo que mais próximo
se encontrasse de uma reconstituição, em plano superior, da vi-
da brasileira através dos tempos. Incessantemente, assim, am-
plia-se o campo de estudo, tornando-se sempre mais difícil, nas
numerosas facetas de sua complexidade. Sômente à custa desta
ampliação, contudo, será possível reajustar-se nossa história às
tendências predominantes no pensamento ocidental contempo-
râneo, atribuindo-se ao Brasil uma posição definida no quadro
da cultura ocidental. Merecem ser lembradas, aqui, as palavras
de um moderno autor francês:
"O desagradável é que temos Histórias — da filosofia,
das ciências, da literatura — que não se entrecruzam. E,
entretanto, tudo se entrosa... Tudo se entrosa. E não
são as referências, são as interferências que têm impor-
tância" (5).
— K. H. Oberacker Tr., Der deutsche Beitrag zum Aufbauy der brasilianischen
Nation, pág. 2.
— R. G. Collingwood, The Idea of History, pág. 215.
— Cf. L. Weckmann, The Middle Ages in the conquest of America, in Spe-
culum, vol. XXVI, 1951, págs. 130-141; Sérgio Buarque de Holanda, Visão
do Paraíso, págs. 78 e ss.
— Y. Belaval, in Diogène, n.o 28, outubro-dezembro , de 1959, contra-capa.
109

A rigor, as últimas só podem ser vistas depois das primeiras,


afastando-se, desta forma, o perigo de desleixo com a determi-
nação dos fatos, com o estudo dos documentos, em favor de cons-
truções aleatórias. O historiador digno do nome jamais se ex-
porá a um risco de tal natureza. O que pretendemos deixar
claro, enfim, é que também a história do Brasil se processa se-
gundo um emaranhado de interferências de tôda ordem, que
tais interferências levam-nos ao rompimento do quadro políti-
co-geográfico, levam-nos, por vêzes, muito longe no tempo e
obrigam-nos a uma permanente vigilância no tocante à histó-
ria da totalidade do mundo ocidental. Simbólico, a tal respeito,
parece-nos ser o próprio panorama da historiografia relativa
ao país na primeira metade do século XIX, em que se desta-
cam um inglês — Southey — e um alemão — Martius. A sim-
ples lembrança dêstes nomes é suficiente para corroborar o que
acabamos de dizer, tanto mais quanto, tomando-se agora a obra
de tais autores como fonte para o estudo de sua época, sere-
mos conduzidos a uma interferência da imagem do Brasil no
panorama intelectual europeu, o que não deixa de ser, tam-
bém, uma contribuição — e das mais legítimas — para a his-
tória Brasileira. E é considerando sua importância de expres-
sões da integração do país no âmbito ocidental, que tomaremos
sua época como base para o nosso bosquejo relativo à historio-
grafia brasileira . Outro fato, ainda, confirma-nos nesta escô-
lha: a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
acontecimento contemporâneo daqueles autores .

Em começos do século XIX, a bem dizer-se, apenas existia


uma História geral do Brasil (6): a de Sebastião da Rocha Pita.
(1660-1738) . Sob o título de História da América portuguêsa,
desde seu descobrimento até o ano de 1724, publicou-se ela em
1731. Os críticos têm-na muito mais por uma crônica, llm poe-

t6). — Cf. Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 3a. edição, II, págs.
238 e ss. para outros cronistas do período; Pereira da Silva, Sebastião
da Rocha Pita (RIHGB, vol. XII, pág. 261): "O Brasil carecia de uma
História que fôsse 'como o complexo ou fusão de todos os escritos im-
pressos e não impressos acêrca do seu descobrimento, da sua colonização,
das suas nações de indígenas, das suas importantes explorações e dos
grandes acontecimentos por que teve de passar desde seus primeiros dias,
alvo da cobiça de tantos povos, que invejavam as inúmeras riquezas de
seu solo feliz' e a majestade de ' sua posição geográfica; e maior glória lhe
caberia se fôsse esta História escrita por um seu filho, do que por qual-
quer outro estranho, que lhe fôsse embora muito afeiçoado".
— 110 —

ma em prosa, ou até mesmo uma novela histórica (7), do que


prôpriamente por história, tal como a entendemos hoje, ou até
mesmo como era entendida na Europa, em meados do século
XVIII. Sua intenção era, decididamente, tecer um hino à ter-
ra, resultando daí passagens famosas, em que a natureza, espe-
cialmente, era cantada em todos os seus esplendores, numa exal-
tação gongórica às belezas e à opulência do Brasil (8); notava-se,
ainda, outra característica fundamental na obra: o desêjo de
exibir sapiência a qualquer pretexto, segundo o gôsto em vigor
nas Academias literárias, a uma das quais — a dos Esquecidos
— filiava-se Rocha Pita (9) . O elemento clássico assume uma
considerável importância, não deixando Rocha Pita de julgar
a América portuguêsa em condições de rivalizar com a Itália e
a Grécia na produção de engenhosos filhos; mas, além disto,
muito mais vinha à baila:
"origem da pólvora, genealogias, horóscopos, teologia,
tudo desfila por suas páginas, antes para mostrar o saber
do autor do que, para esclarecer o assunto" (10).

Acima de quaisquer discussões, entretanto, Rocha Pita ocupa


um lugar de relêvo na historiografia nacional, pelo reflexo que
teve no ulterior desenvolvimento desta última: repelido por
Southey, de um lado, e respeitado — quando não seguido —
pela mentalidade predominante entre os fundadores do Insti-
tuto Histórico e Geográfico. Encontramô-lo, aliás, expressa-
mente mencionado no curto prefácio do historiador britânico,
como se vê:
"A única história geral do Brasil que existe é a Amé-
rica Portuguêsa de Sebastião da Rocha Pita, obra magra
e mal alinhavada, que só na falta de outra tem podido
passar por valiosa" (11).

Noutra ocasião, ao confirmar a chegada de um documento,


completa êle o seu juízo:

— Cf. Ronald de Carvalho, Pequena História da literatura brasileira, 5a.


ed., pág. 133; Sílvio Romero, :ob. cit., II, pág. 62.
— Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, III, pág. 174.
— Outra Academia, a dos Renascidos, planejara a composição de uma His-
tória Geral do Brasil; cf. RIHGB, tomo XLV, 1, págs. 49 e ss.
— C. de Abreu, in Gazeta de notícias (23-111-1830), ap. S. Romero, ob. cit.,
pág. 65.
História do Brasil, trad. Luís Joaquim de Oliveira e Castro, anotada pelo
C.,n. Dr. J. C. Fernandes Pinheiro, I, pág. 3.
— 111

"O manuscrito chegou, e ser-me-á de grande utilida-


de, tanto mais quanto Rocha Pita assume uma posição
oposta à minha neste assunto e omite, como habitualmen-
te faz, seus principais pontos" (12).

Preencher a lacuna assim reconhecida, tal foi a missão de


que se incumbiu Robert Southey. Motivos diversos levaram-no
a isto. Em primeiro lugar, lembremos a atração exercida por
uma região tropical, por uma paisagem estranha, sôbre a ima-
ginação romântica de "um pobre ente nervoso", apaixonado
pelo sol, pelo clima luminoso, pelas "delícias do sul", enfim (13).
"Belo era o país e abundante de quanto podia desejar
o coração humano: a brilhante plumagem das aves delei-
tava os olhos dos europeus; exalavam as árvores inexpri-
míveis fragâncias, distilando tantas gôtas e sumos, que
se entendeu que, bem conhecidas tôdas as virtudes destas
plantas, nada impediria o homem de gozar de vigorosa
saúde até extrema velhice. Se o paraíso terrestre existe
em alguma parte, não podia ser longe dali" (14) .

O tema do Éden na zona equatorial, divulgado na Inglater-


ra já nas Principal Navigatioms de Hakluyt (15), ajustava-se
excelentemente aos sonhos da geração de Southey, tudo indi-
cando que, por seu intermédio, tenha ingressado a imagem do
Brasil no romantismo britânico (16) . Apesar das semelhanças
com as idéias de Rocha Pita, uma passagem como aquela de-
riva, portanto, de uma concepção bem diferente do assunto, bas-
tando as primeiras páginas da obra para nos convencer disto,
pois nem tudo é risonho e belo na história brasileira, como se vê:
"Percorrendo os seus anais, mais freqüentes nos agi-
tarão a indignação e a cólera, do que êsses sentimentos
elevados, que o historiador prefere excitar. Tenho de falar
de selvagens tão desumanos, que pouca simpatia nos po-
dem inspirar os sofrimentos por que tiveram de passar, e
de colonos cujos triunfos pouca alegria nos podem causar,
porque não menos cruéis eram êles do que os índios que

— Carta a Th. e H. Koster, de 27-V-1815, in RIHGB, tomo 178, 1943.


— Cf. Carta a Grosvenor Bedford, ap. Oliveira Lima, Retrato ,de Southey,
in RIHGB, tomo XLVIII, 2a. parte, 1907, págs. 233-252. C. de Abreu, En-
saios e Estudos, I, ,pág. 139.
— História do Brasil, I, págs. 40-41.
■ 15). — Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso, págs. 325-326.
(16). — O interêsse de Southey pela América, em geral, reflete-se também nos
seus planos de fundação de uma colônia literário-agrícola na América do
Norte, juntamente com Coleridge e outros. Cf. 01. Lima, art. cit., pág. 237.
112 — •

guerreavam, e tão avarentos como bárbaros, perpetravam


o maior dos crimes pelo mais vil dos motivos. Nem os
poucos caracteres mais nobres que aparecem, alcançaram
renome que fôsse além dos limites de sua própria religião
e do seu idioma" (17) .

Tudo isto, porém, Southey o afirmava em base em abun-


dante documentação, jamais incorrendo no defeito
"de dar como verdadeiros alguns fatos, que qualquer
minucioso exame, ou investigador raciocínio, teria decla-
rado falsos, e mesmo inverossímeis" (18),

defeito êste que os próprios admiradores foram forçados a re-


conhecer em Rocha Pita . Deveras, encontrava-se à sua dispo-
sição a biblioteca de seu tio, o reverendo Herbert Hill, que
vivera durante mais de trinta anos em Portugal, reunindo, in-
clusive, uma
"coleção de manuscritos, não menos copiosa do que
interessante, e tal como na Inglaterra se não acharia ou-
tra" (19) .

A facilidade de acesso a êste rico material contribuiu, cer-


tamente, para a decisão de compor a História do Brasil, com-
plemento necessário à História de Portugal, em que também
trabalhava Southey. O interêsse pelo assunto explica-se, ain-
da, graças à relativa importância conferida ao Brasil pela trans-
migração da família real, em 1807 (20); isto foi que o levou a
entrever para o país um futuro brilhantíssimo, diante do qual
empalideceria até mesmo a significação da índia no plano das
conquistas portuguêsas (21), despertando-lhe a ambição de ter
sua memória lembrada, como o corifeu de uma grande nação
(22) .

— Ili , t4ria do Brasil, I, pág. 6.


— S. M. Pereira da Silva, Sebastião da Rocha Pita, in RIHGB, tomo XII,
pág. 271.
— História do Brasil, Prefácio.
;20). — Oliveira Lima, art. cit., pág. 246.
— História do Brasil, I, págs. 14-15.
— Cf. Carta a C. IH. Townshend, ap. Oliveira Lima, art. cit., pág. 247: "Seria
faltar à sinceridade que vos devo, esconder que minha obra, daqui a lon-
gos tempos, se encontrará entre as que não são destinadas a perecer;
que me assegurará o ser relembrado em outros países que não o meu;
que será lida no coração da América do Sul e transmitirá aos brasileiros,
quando se tiverem tornado uma nação poderosa, muito de sua História
que de outra forma teria desaparecido, ficando para éles o que para a
Europa é a obra de Heródoto".
— 113

Outro traço, ainda, deve ser. sublinhado . Southey compre-


endeu a necessidade -- ao menos -- da asséciação da História
do Brasil à das colônias espanholas limítrofés, prevenindo o lei-
tor a tal respeito, e nunca deixando de traçar a História daque-
las colônias, desde que a julgasse necessária para a elucidação
de pontos referentes à formação do Brasil.
Procedeu êle, enfim, de molde a mereceriéspeito até os nos-
sos dias, pois,
"apesar de ultrapassada sob certos aspectos, e des-
mentida em outros, continua a ser a mais compreensiva
exposição em inglês" dos tempos coloniais brasileiros (23).

No mundo intelectual do Brasil seu contemporâneo, todavia,


não nos parece ter sido caloroso o acolhimento dado à obra
(24) . O exacerbado nativismo dos primeiros tempos de indepen-
dência não via com bons olhos um estrangeiro — e protestante,
além do mais — que se ocupava de nossa história. E o mesmo
nativismo, por outro lado, achava-se muito mais à vontade se-
guindo uma linha não muito distante dos entusiasmos de Ro-
cha Pita. Isto é o que nos revela, principalmente, a fundação do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1839. O ilustra-
tivo discurso de seu primeiro secretário perpétuo, Januário da
Cunha Barbosa, desmancha-se em alusões à
"tão feliz quanto prodigiosa descoberta" do Brasil,
terra admirável pelas "riquezas de suas minas e matas,
pelos produtos de seus campos e serras, pela grandeza de

— R. A. Humphreys, Latin American History. A guide to the literature in


English, pág. 65. O julgamento de Oliveira Lima condensa-se nas se-
guintes palavras: "...a mais conscienciosa, detalhada e exata antes da
de Varnhagen, a mais literária, formosa e cativante, mesmo depois da
de Varnhagen" (art. cit., pág. 233). Quanto a Varnhagen, assim se ex-
pressou: "Não diremos que fêz uma obra completa: êle mesmo reconhe-
ceu que não, quando, em dezembro de 1821, dizia avaliar quanto a mes-
ma História do Brasil poderia ser acrescentada por alguém que viesse a
compulsar os arquivos em Lisboa; mas fêz quanto pôde, e ninguém na-
quela época faria melhor" (in RIHGB, tomo VI, pág. 63). Na Inglaterra,
não foi de todo favorável a acolhida ao seu trabalho, considerado por
um crítico como "the most unreadable production of our time. Two or
three elephant folios about a single Portúguese colony! Every little colo-
nel, captain, •bishop, friar discussed at as imuCh length as•they were
so many Cromwells or Loyolas" (Blackwood's Edinburgh Magazine. Fev.
1824, ap. C. R. Boxer, The Dutch in Brazil, págs. VII-VIII).
— Isto a despeito de sua inclusão como membro honorário do Instituto His-
tórico. Sua morte foi lembrada por Manuel de Araújo ,Pôrto Alegre, no
discurso de praxe, relativo aos mortos do ano' (cf. RIHGB, supl. ao to-
mo VI, págs. 40-41).
— 114 —

seus rios e baías, variedade e pompa de seus vegetais.


abundância e preciosidade de seus frutos, pasmosa novi-
dade de seus animais e, finalmente, pela constante benig-
nidade de um clima, que faz fecundos os engenhos de nos-
sos patrícios como o solo abençoado que o habitam"; por
conseguinte, continua o orador, "acharemos sempre um te-
souro inesgotável de honrosa recordação e de interessan-
tes idéias, que se deve manifestar ao mundo em sua ver-
dadeira luz" (25).

Louvores à terra, mas também aos homens, como nos cer-


tificamos logo adiante:
"no período de pouco mais de três séculos, não terão
aparecido, neste fértil continente, varões preclaros por di-
ferentes qualidades, que mereçam cuidados do circuns-
pecto historiador e que se possam oferecer às nascentes
gerações como tipos das grandes virtudes?"

Desembocamos, por fim, numa clara demonstração de mau


humor, diante do que se apresentava sob a forma de uma verda-
deira intromissão estrangeira no aproveitamento dos tesouros
nacionais, com as seguintes palavras:
"E deixaremos sempre ao gênio empreendedor dos es-
trangeiros o escrever nossa história, sem aquêle acêrto
que melhor pode conseguir um escritor nacional?... A
nossa História abunda de modelos de virtudes; mas um
grande número de feitos gloriosos morrem ou dormem na
obscuridade, sem proveito das gerações subseqüentes. O
Brasil, posto que em circunstâncias não semelhantes às da
França, pode contudo apresentar pela História, ao estudo
e emulação de seus filhos, uma longa série de varões dis-
tintos por seu saber e brilhantes qualidades. Só tem fal-
tado quem os apresentasse em bem ordenada galeria, co-
colocando-os segundo os tempos e lugares, para que sejam
melhor percebidos pelos que anelam seguir seus passos
nos caminhos da honra e da glória nacional..." (26).

A referência expressa, que em seguida se faz, ao nome de


Rocha Pita, não nos permite qualquer dúvida acêrca do prin-
cipal modêlo em que se abeberava o orador. Ajustava-se o au-
tor da História da América portuguêsa às tendências nativis-

— RIHGB, tomo I, pág. 13.


— Idem, idem, págs. 18-19.
— 115 —

tas, pondo-se de parte, assim, sua posição anti-separatista, incon-


dicional partidário que era da ligação da colônia a Portugal (27).
No segundo número da Revista do Instituto Histórico a mes-
ma tecla é batida pelo presidente, Visconde de São Leopoldo,
no Programa Histórico proposto aos membros da associação .
Os arroubos, então, impelem-no, inclusive, a um flagrante des-
respeito pela geografia, dando-nos a impressão de esboçar um
quadro imaginário, acentuando-se a falta de contacto com o pla-
no concreto. Veja-se, por exemplo, o seguinte:
"...Brasil, debaixo de céu benigno e ameno;... aqui
tudo ri ou assusta; tanta variedade de vistas e sensações
desperta e interrompe tediosa monotonia. Colocado o Bra-
sil no ponto geográfico o mais vantajoso para o comércio
do universo, com portos boníssimos sôbre o Oceano, gran-
des lagos, ou mais antes, mediterrâneos;... tudo, enfim,
pressagia que o Brasil é destinado a ser, não acidentalmen-
te, mas de necessidade, um centro de luzes e de civilização,
e o árbitro da política do Novo Mundo" (28).

Longe nos levaria um exame da linha nativista ao longo da


Revista do Instituto Histórico, órgão do nosso principal centro
de estudos de história durante quase um século, até a institui-
ção de Faculdades de Filosofia no país. Suficiente será, acre-
ditamos, destacarmos alguns traços desta importantíssima ten-
dência do mundo intelectual brasileiro, ou melhor, dêste ele-
mento sem o qual é pràticamente impossível delinearmos algo
merecedor do nome de mentalidade brasileira. Chama-nos a
atenção, antes de tudo, e paradoxalmente, o esfôrço de paren-
tesco com a Europa, através da França . A extraordinária sim-
patia por esta nação, já no século XVIII, denunciada por San-
ta Rita Durão (29), assumira proporções novas com o movi-
mento pela independência, fatalmente inclinado a buscar fon-
tes de inspiração nos princípios liberais emanados da Revolu-
ção Francesa. No campo da história, a fundação do Instituto
Histórico e Geográfico ocorreu precisamente quando flores-
ciam na França os historiadores românticos, empolgados pelas
idéias de liberdade, de exaltação à nacionalidade, cujas ori-
gens últimas procuravam reconstituir em suas obras. Meneio-

— Cf. Capistrano de Abreu, ap. Sílvio Romero, op. cit., II, pág. 65: ,"...a
idéia da independência não lhe-sorria; quando tratava de qualquer sin-
toma separatista, a sua simpatia nunca estava com os brasileiros".
— RIHGB, tomo I, n.o 2, pág. 77.
— "Tome o Brasil a França por madrinha". Cf. Silvio Romero, op. cit.,
II, pág. 91.
— 116 --

ne-se, apenas, o caso de Augustin Thierry, com seus Récits


des temps mérovingiens, publicados já entre 1833-1837 na Re-
vue des Deux Mondes e reunidos em volume no ano 1840. Ora,
no Prefácio, talvez na sua passagem mais conhecida, Thierry
nos dá conta de seu arrebatamento pelos episódios de guerra
dos francos, através das páginas de Chateaubriand (30), pon-
do-nos frente a frente com o entusiasmo romântico pelo bár-
baro, pelo rude, mas também pelo puro . No Brasil, por sua
vez, o anti-lusitanismo, desencadeado de maneira compreen-
sível pela independência, recorria à exaltação do indígena, co-
mo o legítimo, o verdadeiro ancestral da nacionalidade (31) . O
fenômeno não era novo, pois já no século XVII Gregório de
Matos pudera escarnecer dos que se vangloriavam de antepas-
sados aborígenes (32) . Fácil seria, pois, o encôntro da corrente
indianista com os reflexos do romantismo francês, especialmen-
te quando à história competia a missão de colaborar para uma
clara definição do sentimento nacional; a todo momento, na co-
leção da Revista do Instituto Histórico, deparamos com disserta-
ções relativas aos indígenas; sua simples freqüência, quando
mais não fôsse, constituir-se-ia num fato digno de atento exame.
A preocupação nacional, também, transparece no pragma-
tismo, tantas e tantas vêzes enunciado na intenção de buscar
na história modelos para as novas gerações. E' inevitável ver-
mos aí o prestígio que cercava os autores da Antigüidade clás-
sica, através de uma educação em que tão grande era seu pa-
pel; a lembrança de Plutarco está viva na série de Biografias
dos brasileiros distintos por armas, letras, virtudes, etc., publi-
cadas regularmente pela Revista do Instituto. Rocha Pita, na-
turalmente, vai encontrar aí o seu lugar, biografado que foi por
J. M. Pereira da Silva. Sua História da América portuguêsa é
considerada,
"não só para aquela época, ainda pobre de obras his-
tóricas, senão também para a nossa, que possui maior
abundância de materiais acêrca do Brasil", como "obra
muito preciosa e muito necessária para todos os brasilei-
ros, que quiserem saber a História de seu país".

— No discurso de Cunha Barbosa, faz-se referência , a outro historia-


dor romântico francês: Barante.
— X' clara a posição pró-indígenas e contra os colonizadores..Cr. Dissertação
histórica, etnográfica e política pelo coronel Inácio lAcioli de Cerqueira
e Silva, in RIHGB, tomo XII, pág. 233: "O coração estremece de horror
ao rememorar os atos de canibalismo empregados contra os indígenas...".
— Cf. Sílvio Romero, ob. cit., II, págs. 47-48.
-7 147 17—

Entre seus defeitos, contudo, não deixa Pereira da Silva de


apontar, muito significativamente, a pouca atenção concedida às
tribos indígenas (33) . Rememorando, portanto, a vida e a obra
do patrono por excelência do nativismo, insistia-se ainda na no-
ta indianista . O pragmatismo louvaminheiro, expressando-se no
louvor dos vultos do passado a título de exemplos, teve longa
vida na mentalidade dominante entre os membros do Instituto,
como se depreende da seguinte passagem, escrita já no século
XX:
"Um século é já decorrido, depois que o Brasil reve-
lou à metrópole e à Europa a opulência de sua cultura com
a pujança que era já prenúncio de sua independência.
Abriu-se o século XX para nossa pátria com uma página
de glória escrita, pelo nosso patrício Santos Dumont, con-
quistando para a ciência o domínio dos ares. Desta alta
culminância, lançando um olhar retrospectivo sôbre o pas-
sado, vejamos o que foram os nossos compatriotas ao abrir-
se o século XIX. Dêste estudo tão digno da majestade
da História, resulta um ensinamento profícuo às novas
gerações e um estímulo para se repetir no futuro o que
tão nobremente os nossos maiores realizaram no passa-
do" (34) .

Além de suas intenções de ordem patriótica, duas outras fa-


cetas — ao menos — caracterizavam o grupo de fundadores do
Instituto Histórico: a preocupação com uma nova maneira de
apresentar-se a história e a consciência da necessidade da bus-
ca de documentos, o cuidado com a pesquisa, enfim. A primei-
ra delas tem sua mais clara expressão na amiudada referência
à chamada História filosófica, a começar pelo próprio discurso
de Cunha Barbosa (35) . Acreditamos poder discernir-se, aqui,
novo reflexo do contacto com a cultura francesa, pois provàvel-
mente esta "História filosófica" fôsse buscada em Chateaubriand,
que entendia por isto a exclusão do papel da Providência nos
acontecimentos, para os quais deveriam ser procuradas causas
naturais e humanas (36) . Enfàticamente, exige-se uma estrita
imparcialidade, a fim de que tal história possa ser realmente
praticada, como se vê:

— Cf. RIHGB, tomo XII, pág. 273.


— Barão Homem de Melo, O Brasil intelectual em 1801, in RIHGB, tomo
LXIV, I, 1901, pág. 1.
(35).. — Entre os objetivos do Instituto: "...as coadjuvações de muitos brasilei-
ros.. para que sirvam de membros . ao. corpo de uma História geral e
filosófica do Brasil".
(36) — G. Lefebvre, Notions d'bistoriographie moderne, CDU, págs. 123424.
- 118 -

"O circunspecto gênio do historiador, sentando-se sô-


bre a tumba do homem, que aí termina suas fadigas, des-
preza argumentos de partido e conselhos de lisonja, por-
tando-se, em seus juízos, como austero sacerdote da ver-
dade".

Tudo isto, porém, sem prejuízo da colaboração patriótica e


do pragmatismo, uma vez que
"o amor da glória nacional nos levará a depurá-la (à
História) das inexatidões... E não oferecerá uma histó-
ria verídica de nosso país estas lições, que tão profícuas
podem ser aos cidadãos brasileiros no desempênho de seus
importantes deveres?" (37).

Quanto aos documentos, constituem-se êles, mesmo, no ob-


jetivo principal do Instituto, como inferimos da própria pro-
posta de fundação, assinada por Raimundo José da Cunha Ma-
tos e pelo cônego Januário da Cunha Barbosa. Ei-la:
"1 — ...membros do conselho administrativo da So-
ciedade Auxiliadora da Indústria Nacional, conhecendo a
falta de um Instituto Histórico e Geográfico nesta Côrte,
que principalmente se ocupe em centralizar imensos do-
cumentos preciosos, ora espalhados pelas províncias, e que
podem servir à história e geografia do Império, tão difí-
cil por falta de um tombo ou prontuário de que se possam
aproveitar nossos escritores...; 2 — O fim dêste Instituto
será, além dos que fôrem marcados pelos seus regulamen-
tos, coligir e metodizar os documentos históricos e geo-
gráficos interessantes à história do Brasil".

O item 9 constitui-se numa prova, não só do sentimento de


uma certa afinidade com a França (38), mas também da cons-
ciência da importância das 'instituições estrangeiras para me-
lhor realização do objetivo colimado, segundo vemos:
"O Instituto abrirá correspondência com o Instituto
Histórico de Paris, ao qual remeterá todos os documentos
de sua instalação; e assim também com outros da mesma
natureza em nações estrangeiras; e procurará ramificar-
se nas províncias do Império, para melhor coligir os do-
cumentos necessários à história e geografia do Brasil".
— Cunha Barbosa, RIHGB, tomo I, págs. 17-18.
— Entre os membros honorários do Instituto, além de várias outras perso-
nalidades francesas, encontrava-se o presidente do Instituto Histórico de
Paris, conde Le Peletier D'Aunay; Cunha Matos e Cunha Barbosa, por
sua vez, eram membros do Instituto parisiense.
— 119 —

O nativismo, assim, não implicava em xenofobia. O discur-


so de Cunha Barbosa, naturalmente, insiste na indispensável
tarefa de pesquisa e organização de um fundo documental, de-
vendo o Instituto
"concentrar documentos..., purificando dos erros e
inexatidões que os mancham muitos impressos, tanto na-
cionais quanto estrangeiros" (39).

Ainda de sua lavra foi a Lembrança do que devem pro-


curar nas províncias os sócios do Instituto Histórico e Geográ-
fico Brasileiro, para remeterem à sociedade central no Rio de
Janeiro, na qual se punha em destaque o seguinte: 1) . — Notí-
cias biográficas, impressas ou manuscritas, dos brasileiros dis-
tintos por suas letras, virtudes, armas, serviços relevantes ou
por qualquer outra qualidade notável; 2) . — Cópia autênticas
de documentos interessantíssimos... e extratos de notícias ex-
traídas nas secretarias, arquivos e cartórios, tanto civis quan-
to eclesiásticos; 3) . — Notícias sôbre os costumes dos índios, sua
catequese e civilização; 4) . — Descrições do comércio interno
e externo da Província, sua indústria e literatura e outros da-
do.s gerais, até população e divisão por classes; 5) . — Notícias
de fatos extraordinários (40) . No tocante à execução de pla-
nos relativos ao material existente no estrangeiro, requer-se
do govêrno imperial um adido de legação para a cópia de do-
cumentos em Portugal e Espanha; outrossim, o relatório de 3
de novembro de 1839 afirmava contarmos com
"alguns dos mais distintos escritores do Velho Mundo
que, tomando interesse pelas coisas do Brasil, nos têm
consagrado alguns rasgos de suas brilhantes penas, fazen-
do melhor conhecer na Europa as riquezas desta nossa
terra..." (41).

Todo o empênho em organizar coleções de documentos-fon-


tes colocava-se na linha de pesquisa histórica, tal como se esta-
va orientando na Europa, especialmente na Alemanha. E um
alemão, justamente, foi quem nos enviou uma famosa memória
acerca de como se deve escrever a história do Brasil, em res-
posta à solicitação do próprio Instituto, referente à melhor for-

— Cf. Os Estatutos do Instituto Histórico, Art. 1. 0


— RIHGB, tomo I, 1, págs. 141-142.
— Idem, idem, págs. 272-273.
— 120

ma de composição de, uma. História geral brasileira (42) . Tra-


tava-se de Karl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), o
naturalista que, juntamente :com von Spix, empreendera urna
.

viagem pelo Brasil, de 1818 a 1820. Para Martius, o primeiro fato


a merecer realmente atenção do historiador, no nosso caso, re-
sidiria na formação do povo, pois
"do encôntro, da mescla, das relações mútuas dessas
três raças (a de côr de cobre ou americana, a branca ou
caucasiana, e enfim a prêta ou etiópica), formou-se a atual
população, cuja História, por isso mesmo, tem um cunho
muito particular. Portanto devia ser um ponto capital
para o historiador reflexivo mostrar como no desenvolvi-
mento sucessivo do Brasil se acham estabelecidas as con-
dições para o aperfeiçoamento de' três raças humanas, que
nesse país são colocadas uma ao lado da outra".

Cada uma destas raças é, então, considerada particularmen-


te, indicando-se os rumos da pesquisa no sentido de fixar-se
sua participação no desenrolar da História. Exigir-se-ia, no ca-
so dos indígenas, o estudo da língua, de que se poderiam extrair
fecundos ensinamentos,
"conduzindo a investigações etnográficas e compre-
endendo urna grande parte do Novo Mundo".

Quanto aos portuguêses, mereceria relêvo o sistema de mi-


lícias, importante por ter fortalecido e conservado o espírito
aventureiro, repercutindo na extensão do domínio luso, e por
favorecer
"o desenvolvimento de instituições municipais livres
e de uma certa turbulência e até desenfreamento dos ci-
dadãos capazes de pegar em armas em oposição às auto-
ridades governativas e poderosas ordens religiosas". Além
do mais, "o, período da descoberta e colonização primitiva
do Brasil não, pode ser compreendido, senão em seu nexo
com as façanhas marítimas, comerciais e guerreiras dos
portuguêses, que de modo algum pode ser considerado co-
mo fato isolado na História dêste povo ativo, e que sua
importância e relações com o resto da Europa está na mes-
ma linha com as -ernprésas dos portuguêses".

(42). — Cf. Suplemento ao torno II, pág.. 72.. A memória de Martins encontra-se
no tomo VI, págs. 381-403, tendo sido reeditada no• tomo CÇXIX, abril-
junho de 1953, págs. 187-205.
121

O estudo dos costumes do século XV, bem como da legisla-


ção e do' estado social de Portugal naquela época, do clero em
geral, e particularmente das ordens religiosas, é também indis-
pensável, com a agravante de nos levarem estas últimas até mes-
mo para fora da Península Ibérica, mediante a participação de
jesuítas franceses e alemães em missões no Brasil. A Europa,
no seu conjunto, é invocada, como se vê por êste parágrafo, dos
mais interessantes de tôda a dissertação de Martius:
"Uma tarefa de sumo interêsse para o historiador prag-
mático do Brasil será mostrar como aí se estabeleceram e
desenvolveram as ciências e artes como reflexo da vida
européia. O historiador deve transportar-nos à casa do
colono e cidadão brasileiro; êle deve mostrar-nos como vi-
viam nos diversos séculos, tanto nas cidades como nos
estabelecimentos rurais, como se formavam as relações do
cidadão para com seus vizinhos, seus criados e escravos;
é finalmente com os fregueses nas transações comerciais.
Êle deve juntar-nos o estado da Igreja, a escola, levar-nos
para o campo, às fazendas, roças, plantações e engenhos.
Aqui deve apresentar quais os meios, segundo que siste-
mas, com que conhecimentos manejavam a economia rús-
tica, lavoura e comércio colonial... Pertence à tarefa do
historiador brasileiro ocupar-se especialmente com o pro-
gresso da poesia, retórica e tôdas as mais ciências em Por-
tugal; mostrar a sua posição relativa às mesmas no resto
da Europa, e apontar qual a influência que exerceram sô-
bre a vida científica, moral e social dos habitantes do
Brasil... Achará o historiador um atrativo variadíssimo
na narração das numerosas viagens de descobertas e in-
cursões dos diferentes pontos do litoral para os desertos
longínqüos do interior (os sertões), empreendidas em pro-
cura de ouro e pedras preciosas, ou com o fim de cativar
e levar como escravos os indígenas".

O negro, ao qual Martius consigna bem menos observações


do que às outras raças, deveria ser estudado na sua origem, no
seu papel frente à colonização lusa na África, como escravo,
influindo no "desenvolvimento civil, moral e político" da popu-
lação. Finalmente, sôbre a forma que deve ter uma história do
Brasil, embora reconhecendo-se o inestimável valor dos traba-
lhos até então publicados a respeito das províncias (43),
(43). — Entre os autores que podem ser aqui ireferidos, destacam-se; Pedro Ta-
ques de Almeida Paes Leme, Frei Gaspar da Madre de Deus, José de Sou-
za Azevedo Pizarro e Araújo, Luis Gonçalves dos Santos, Baltasar da
Silva Lisboa, José Feliciano Fernandes Pinheiro, Inácio • Acioli de Cer-
queira e Silva, Manuel Aires do Casal.
— 122

"não satisfazem ainda às exigências da verdadeira


historiografia, porque se ressentem demais de certo espí-
rito de crônicas; ...aqui se apresenta uma grande difi-
culdade em conseqüência da grande extensão do territó-
rio brasileiro, da imensa variedade no que diz respeito à
natureza que nos rodeia, aos costumes e usos e à compo-
sição da população de tão disparatados elementos".

Recomenda Martius, com vistas a evitar-se o perigo de se


comporem Histórias especiais de cada uma das províncias — e
não uma História do Brasil — tratarem-se
"conjuntamente aquelas porções do país que, por ana-
logia de sua natureza física, pertençam umas às outras.
Assim, por exemplo, converge a história das províncias
de São Paulo, Minas, Goiás e Mato Grosso; a do Mara-
nhão liga-se à do Pará", etc.

O trabalho do naturalista alemão foi considerado como de


nível superior às possibilidades do momento no Brasil, o que
não impedia devesse ser tomado como base pelos futuros histo-
riadores (44) . Tal foi a admiração votada à memória, que aca-
bou por despertar as críticas — e violentíssimas — de Sílvio
Romero (45) . Para êste, pràticamente nada de original haveria
nas idéias de Martius, pois
"um estrangeiro, que nos visitou às carreiras, preo-
cupado com coisas de Botânica e, no mais, nos desconhecia
quase completamente",

apenas teria, em grande parte, alinhavado um tecido de luga-


res-comuns acêrca de nossa história. Não cabe aqui a discussão
do assunto . Mas negar-se o valor da dissertação em causa pa-
rece-nos uma atitude injustificàvelmente extremada, quando
levamos em conta as idéias dominantes no país em 1843; sufi-
ciente seria, para avaliarmos da diferença de nível, a compara-
ção do trabalho do cientista com o de Júlio de Wallestein, tam-
bém concorrente ao prêmio oferecido pelo Instituto para a me-
lhor proposta relativa ao assunto que entãó o preocupava (46) .
Tivemos, desta forma, entre 1810 e 1843, um primeiro mo-
dêlo de História do Brasil em moldes ainda hoje dignos de no-
ta, com Robert Southey; a fundação de um organismo patroci-
— RIHGB, tomo IX, pág. 279.
— História da Literatura brasileira, 3a. ed., V, págs. 133-162.
— RIHGB, tomo XLV, I, pág. 49 ss.: "O plano que parece mais acertado, de
se escrever a história do Brasil, é seguramente o mesmo que seguiram
Tito-Lívio, João de Barros e Diogo do Couto, isto é, pelo sistema das dé-
cadas, narrando-se os fatos acontecidos dentro de períodos certos...".
— 12 —

nador da pesquisa de documentos; e uma orientação para os his-


toriadores do futuro. Dada a importância assumida pela pes-
quisa, objeto de cuidado permanente no campo da história, ve-
jamos como se desenvolveu ela, entre nós, no século XIX, até
Capistrano de Abreu (47) .
O Instituto Histórico prosseguiu incessantemente suas ati-
vidades, deixando-nos, em sua Revista, um excelente e multi-
forme repositório de dados para o estudo do passado brasileiro,
inestimável, sobretudo, para a história das idéias no século
XIX. Incentivando, por todos os meios ao seu alcance, a busca
de documentos, lançava êle, ao mesmo tempo, temas a serem
desenvolvidos e discutidos pelos associados, tais como:
"determinarem-se as verdadeiras épocas da História
do Brasil e se esta se deve dividir em Antiga e Moderna,
ou quais devem ser suas divisões (48);

qual a influência que sôbre a civilização do país têm exercido


os diversos membros do Instituto falecidos, que por sua ilus-
tração foram considerados pelo público (49), etc. À semelhan-
ça do que acontecera na capital do Império, também nas pro-
víncias formaram-se Institutos, mas nem sempre em condições
de levar a cabo os empreendimentos estipulados em seus pro-
gramas . Destacaram-se o Instituto Histórico e Geográfico do
Ceará e o Instituto Arqueológico e Geográfico de Pernambuco,
em cuja Revista Raposo de Almeida se propunha seguir, para
o seu Estado, as diretrizes lançadas no Rio de Janeiro por Cunha
Barbosa. Relacionadas com o Instituto Histórico, verificaram-
se também pesquisas de caráter particular, em que se ilustra-
ram nomes como Meneses Vasconcelos de Drummond e Fran-
cisco Adolpho de Varnhagen. O primeiro, na sua qualidade de
diplomata, pôde rebuscar em vários países europeus grande nú-
mero de documentos, impressos ou manuscritos (50), que fo-
ram doados ao Instituto Histórico ou, então, ao seu discípulo
Melo Morais, êle próprio conhecido como pesquisador, especial-
mente no âmbito do Arquivo Nacional e do Arquivo da Secre-
taria do Império. Varnhagen, de seu lado, já atraira a atenção
de Vasconcelos Drummond, que nele reconhecera talento e in-
vulgar capacidade de trabalho. Em 1840 doara ao Instituto ma-
— Para êste apanhado da pesquisa durante o século XIX apoiamo-nls em
José Honório Rodrigues, A Pesquisa Histórica no Brasil, Rio de Janeiro,
1952. Veja-se, também, Virgílio Correia Filho, Missões brasileiras no; ar-
quivos europeus, in RIHGB, tomo 213, out.-dez, 1951, págs. 133-175.
— RIHGB, tomo I, pág. 57.
— RIHGB, tomo XII, pág. 280.
— Cf. RIHGB, tomo XXXVII, 2a. parte, págs. 424-431.
— 12*

nuscritos copiados em Portugal; dedicara-se, em seguida, a pes-


quisas em São Paulo ,ocasião em que afirmou -sua convicção 'de
se encontrarem nas cartas dos jesuítas os melhores documen-
tos para as primeiras épocas da história do Brasil (51) . Sua
nomeação para o cargo de adido de primeira classe em Lisboa
(1842) proporcionou-lhe a oportunidade de coligir, coordenar e
analisar documentos, agora no exercício de uma função públi-
ca, tarefa a que se consagrou até 1846. Uma carta sua, dirigida
ao secretário do Instituto Histórico, em 1843, nos dá uma idéia
dos resultados de seu trabalho, como se vê:
"...ainda que minhas averiguações hoje sejam rela-
tivas às épocas mais remotas, não me descuido de diligen-
ciar e obter cópias do que é importante ainda mais mo-
derno. Assim vou reunindo e colecionando as informações
que por ordem da Côrte davam por escrito, no princípio
do século passado, os nossos sertanejos que descobriram
as Minas Gerais, o Cuiabá e Mato Grosso" (52).

Em 1847, transferido para a Espanha, prossegue em suas


atividades, percorrendo os principais arquivos do país, parti-
cularmente o de Simancas; buscava êle, com isto, material re-
ferente aos problemas de limites com as antigas colônias espa-
nholas. Até 1851, ano em que regressou ao Brasil, foi-lhe dado,
ainda, pesquisar em arquivos holandeses (52a), aumentando o
acervo de fontes destinadas a serem aproveitadas para a História
Geral do Brasil. Uma segunda permanência na Europa, de
1851 a 1858, sempre no serviço diplomático, é seguida pela trans-
ferência para o Paraguai, o que dá margem a novas diretrizes
na sua função de pesquisador, agora no campo da América es-
panhola. De volta à Europa, em 1868, é no centro do continente,
em Viena, que se abrem novos arquivos a Varnhagen; até 1876,
numerosas foram as viagens motivadas pela sua ânsia de re-
buscar, muito embora Portugal sempre o atraisse, estando em
Lisboa o centro preferido de seus estudos e publicações (53) .
No território nacional, patrocinou o Instituto uma série de
pesquisas, avultando, em São Paulo, os nomes de Machado de

— RIHGB, tomo II, pág. 526, ap. José Honório Rodrigues, op. cit., pág. 40.
— RIHGB, tomo V, págs. 94-97, ap. José Honório Rodrigues, op. cit., pág. 43.
(52a). —H. Waetjen duvida de tais pesquisas: "Por um lado tinha êle ao seu
dispor os resultados das investigações de Netscher; por outro, podia se
apoiar sôbre as cópias dos documentos holandeses de Caetano da Silva.
Isto poupou-lhe o incômodo de empreender pesquisas próprias em Haia"
(O Domínio colonial holandês no Brasil", 1938, pág. A2).
— José Honório Rodrigues, op. cit., pág. 50. Cf. Varnhagen, História Geral
do Brasil, 3a. ed., I, pág. X.
— 125 — •

Oliveira e de Pereira Pinto'. As províncias do -norte foram ex-


ploradas por' Gonçalves Dias (54), em virtude de missão a êle
confiada diretamente pelo govêrno Imperial; não teria sido ani-
mador o resultado de seus trabalhos, a julgar-se pelas palavras
de J. Honório Rodrigues:
"Desta investigação... verifica-se o estado de aban-
dôno em que se encontravam aquêles depósitos, o desamor
pelos papéis históricos, sua paulatina destruição, muitas
vêzes consciente, e também que o nosso poeta não era tal-
vez a pessoa realmente indicada para uma tarefa desta
natureza. Uma total incompreensão sôbre o exato sen-
tido de um inquérito e exame dos arquivos estaduais de-
terminava a remessa do material para o Arquivo Nacio-
nal, com prejuízo dos estudos locais, que ficavam sem as
indispensáveis fontes primordiais" (55).

Não de todo satisfatória, ainda, foi a estada do poeta na


Europa, com o fim de buscar documentos, até sua substituição
por João Francisco Lisboa. Êste, de seu lado, tratou logo de por-
se em contacto com Varnhagen, junto a quem esperava encontrar
uma orientação proveitosa e sadia; foi o que o levou a dedicar-se
à exploração do Arquivo do Conselho Ultramarino (56). Sempre
na Europa, especialmente na França e na Holanda, tiveram des-
tacada atuação Joaquim Caetano da Silva (57), a quem se de-
ve uma riquíssima coleção de documentos para o estudo dos
holandeses no Brasil e o sólido estudo L'Oyapock et I'Amazonie,
de J. Franklin Massena, que se concentrou nos arquivos da Com-
panhia de Jesus em Roma. O empênho do govêrno Imperial no
vasculhamento dos arquivos europeus motivou uma segunda
missão de Gonçalves Dias, em 1863-1864, e a missão Ramiz Gal-
vão, em 1873, da qual resultou a reforma da Biblioteca Nacio-
nal, a descoberta de novas fontes e a publicação
"dos melhores instrumentos de pesquisa, bibliografias
e catálogos" (58).

Sob o patrocínio do Instituto Arqueológico e Geográfico


de Pernambuco, José H. Duarte Pereira empreendeu impor-

— RIHGB, tomo XVI, págs. 370-384, ap. José Honório Rodrigues, op. cit.,
pág. 56.
— José Honório Rodrigues, op. cit., pág. 63.
— Cf. carta a A. H. Leal (12-IV-1857), ap. José Honório 'Rodrigues, pág. 82.
— "...homem mais erudito que o Brasil tem dado, Joaquim Caetano da
Silva..." (C. de Abreu, Ensaios e Estudos, I, pág. 198).
458). — José Honório Rodrigues, op. cit., pág. 97.
— 126

tante investigação na Holanda (1885-1886) e no. Museu Britâ-


nico, e F. A. Pereira da Costa examinou os arquivos públicos
de Olinda (1892) . Chegamos, com, isto, aos fins do século XIX,
época em que, no panorama da historiografia brasileira, já
principiava a repercutir profundamente o nome de Capistra-
no de Abreu.
Passando-se aos mais importantes historiadores da mes-
ma fase, encontramos em Varnhagen o principal dentre todos,
com sua História Geral do Brasil antes de sua separação e in-
dependência de Portugal. Filho de pai alemão, formado na at-
mosfera da cultura européia e -- por outro lado — apegado ao
Brasil, dispunha êle de uma posição privilegiada para marcar
época em nossa historiografia, levando-se em conta sua voca-
ção (59) e seus excepcionais dotes de pesquisador, como aca-
bamos de ver. Deveras, defrontamos em sua obra (cuja pri-
meira edição data de 1854-1857), com sérios indícios de um pen-
samento orientado segundo linhas bem diversas das que mar-
cavam a mentalidade do Instituto Histórico e que, aliás, conti-
nuavam a ser amplamente aceitas nas esferas intelectuais do
país . Há uma notável restrição às tendências nativistas, fazen-
do o autor votos para que os leitores descubram em sua obra,
"através da ostentação de uma tolerância civilizadora.
os sentimentos de patriotismo nobre e elevado... ; não de
outro lamentável patriotismo cifrado apenas na absurda
ostentação de vil e rancoroso ódio a tudo quanto é estran-
geiro!" (60).

A exaltação do indígena, verdadeiro corolário nativista, não


era compartilhada por Varnhagen, o que lhe valeu uma série de
dissabores, vislumbrados por trás das "piedosas lágrimas",
mencionadas no fim do Prefácio à la. edição (61) . A cons-
ciência de espicaçar melindres ao encarar os indígenas de for-
ma não louvaminheira reconhecia-se, ao ler-se o seguinte:
"Pelo que respeita a quanto dissemos dos coloniza-
dores e dos colonos africanos, cremos que em geral ape-
nas haverá discordância de opiniões. Outro tanto não su-

t59). — CL Varnhagen, História Geral do Brasil, 3a. ed., I, pág. XIX. A mais
volumosa obra de que temos notícia, a respeito de Varnhagen, é a de
Ciado Ribeiro Lessa, Vida e obra de Varnhagen, in RIHGB, tomos 223
(abr.-jun. 1954), págs. 82-297; 224 (jul.-set. 1954), págs. 109-315; 225 (out.-
dez. 1954), págs. 120-293; 226 (jan.-mar. 1955), págs. 3-168; e 277 (abr.-
jun. 1955), págs. 85-236.
— Varnhagen, op. cit., I, pág. XXII.
— Cf., ainda, Varnhagen, op. cit., I, pág. XVIII.
— 127

cede, porém, respectivamente aos índios, filosófica e pro-


fundamente pouco estudados, e que não falta quem seja
devoto que se devem de todo reabilitar, por motivos cujas
vantagens de moralidade, de justiça ou de conveniência
social desconhecemos — nós que como historiadores sa-
crificamos tudo às convicções da consciência, e estamos
persuadidos de que, se, por figurada idéia de brasileiris-
mo, os quiséssemos indevidamente exalçar, concluiríamos
por ser injustos com êles, com os colonizadores, com a hu-
manidade em geral, que tôda constitui uma só raça, e
portanto com a nação atual brasileira, a que nos gloria-
mos de pertencer" (62).

Isto, bem entendido, nem de longe significa haver êle Menos-


prezado a participação do índio na história brasileira, como se
depreende do Prólogo à 2a. edição:
"A êstes e outros muitos mais fatos inéditos, apurados
exclusivamente pelo critério histórico, primam, porém, os
que respeitam à etnografia e antropologia tupi, de cujas
línguas procuramos popularizar entre nós o estudo, levan-
do a cabo a custosa reimpressão da gramática e dos va-
liosos dicionários do Padre Montoya. Foi a melhor res-
posta que podíamos dar aos que levianamente nos acusam
de prevenção contra os antigos habitadores desta re-
gião...; esquecendo-se, em tais acusações, de que em 1840
sustentávamos a necessidade do estudo e ensino das lín-
guas da terra a que já nos votávamos; de que em 1849
propúnhamos que se pedissem das Províncias certas infor-
mações acêrca dos índios; de que conseguíramos a criação
no Instituto do Rio da secção de etnografia, que nele exis-
te; e finalmente, de que fôra neste campo que mais im-
portantes investigações havíamos tido a fortuna de apre-
sentar acêrca da história pátria" (63) .

Não nos sentimos muito longe de Southey, ao vermos lan-


çar-se a condenação aos
"ferozes assassinos de nosso primeiro bispo, aos bár-
baros aquilombados, aos ferozes Mascates",

não havendo qualquer recúo pseudo-patriótico diante do que


se considerava digno de repúdio, pois

— Idem, idem, pág. XXI.


— Idem, idem, pág. XIV. Exemplos de estudos sôbre indígenas, in RIHGB,
tomo III, págs. 53, 61, 138; tomo XII, pág. 366; tomo XXI, pág. 431.
— 128 —

"se houvéssemos querido seguir cômodamente as pi-


sadas de alguns, que, nos pontos mais difíceis è melindro-
sos, em vez de os estudar e submeter à discussão pública,
procuram eximir-se de dar o seu parecer, mui fácil nos
houvera sido narrar de modo que, se não contentasse a
todos, pelo menos não descontentasse a nenhum, como às
vêzes, hoje em dia, fazem certos políticos" (64) .

O reflexo de Martius, por sua vez, parece claro, por exem-


plo, através de uma passagem como a seguinte:
"Insistimos, porém, mais do que nenhum dos que
nos precederam em trabalhos idênticos, na verdadeira
apreciação comparativa do grau de civilização dos colo-
nizadores, do de barbárie dos colonos escravos trazidos
impiamente da África, e do de selvajaria dos povos, úl-
timos invasores nômades, que ocupavam em geral o ter-
ritório que hoje chamamos Brasil" (64a).

Em todo o trabalho, porém, transparece a relação entre os


dois autores, levando Capistrano de Abreu à afirmação pura e
simples de que,
"com o plano de Martius, Varnhagen atirou-se franca-
mente ao estudo" (65).

O influxo da crítica histórica, então em plena voga na Eu-


ropa, é marcante na História Geral do Brasil; Varnhagen não
hesita, assim, em contrapor-se expressamente a tudo quanto lem-
brasse a tendência de Rocha Pita, cuja obra era considerada
"omissa em fatos essenciais, destituída de critério, e
alheia a intenções elevadas de formar ou de melhorar o
espírito público nacional" (66).

Os fundamentos geográficos da História do Brasil, aos quais


talvez não seja estranho o bafejar das idéias de K. Ritter, são
bem diversos do que até então se apresentara. A terra era hostil,
difícil a sua penetração (67), dura foi a luta dos colonos com o
gentio, em matas virgens de aspecto sombrio,
— História Geral do Brasil, 3a. ed., pág. XXI; cf. I, pág. 54, após tratar dos in-
dígenas: A pintura que fizemos destas gentes... bem pouco lisonjeira é
na verdade". Acêrca de Varnhagen frente a Southey, cf. Capistrano de
Abreu, Ensaios e Estudos, I, págs. 213-215.
(64a). — Idem, idem, págs. XX-XXI.
— Ensaios e Estudos, I, pág. 196.
— História Geral do Brasil, 3a. ed., I, pág. XII.
— Idem, idem, pág.
— 129 —

"ante o qual o homem se contrista, sentindo que o co-


ração se lhe aperta, como no meio dos mares, ante a imen-
sidade do oceano" (68).

Heroismo, também, não é coisa a ser posta em destaque, co-


mo se vê:
"...cumpre repetir aqui... que o amor à verdade nos
obrigará mais de uma vez a combater certas crenças ou
ilusões, que já nos havíamos acostumado a respeitar. Aos
que lamentem o ver dissipadas algumas dessas ilusões de
apregoados heroismos, rogamos que creiam que os havere-
mos precedido nessas jeremiadas; e pedimos se resignem
ante a verdade dos fatos..." (69).

A verdade, assim, os fatos, tal como realmente aconteceram,


segundo a diretriz de Ranke, no qual é impossível aqui deixar-
mos de pensar.
Enorme foi o número de trabalhos deixados por Varnhagen
(70), destacando-se, entre os estritamente históricos, a História
das lutas contra os holandeses (1871) e a História da Indepen-
dência do Brasil, não terminada, publicada na Revista do Insti-
tuto Histórico sômente em 1917 (71) .
Unânimes têm sido os críticos, ao considerá-lo o máximo
expoente da historiografia brasileira no século XIX. Sílvio Ro-
mero louva sua erudição séria, o estudo direto dos documentos
nos arquivos, bibliotecas e cartórios, bem como sua capacida-
de de superar a fase das pequenas monografias, lançando-se aos
amplos trabalhos que lhe deram fama (72). Capistrano de Abreu,
no necrológio publicado no Jornal do Comércio, acha
"difícil exagerar os serviços prestados pelo Visconde
de Pôrto Seguro à História Nacional, assim como os es-
forços que fêz para elevar-lhe o tipo" (73) .

Não obstante, fazia-lhe várias restrições, próprias a todos


quantos abram caminhos novos, em qualquer setor; a tal res-
peito, é útil lembrar-se que

Z68). — Idem, idem, pág. 5.


— Idem, idem, pág. XIII.
— Cf. Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 3a. ed., V, págs.
164-166.
— Reeditada em 1940, na mesma Revista.
— História da Literatura Brasileira, 3a. ed., V, págs. 163.164.
— Ensaios e Estudos, I, pág. 136.
— 130 —

"Varnhagen foi a primeira pessoa que escreveu a His-


tória do século XVIII. E' o mesmo que dizer que o seu
trabalho deixa muito a desejar" (74) e que "cada século
exige qualidades especiais em quem os estuda" (75). Se-
jam quais fôrem os defeitos de sua obra, "é preciso re-
conhecer nele o mestre" (76).

Com Varnhagen, inegàvelmente, notava-se uma mudança no


panorama historiográfico do país, não deixando de merecer men-
ção o apôio a êle sempre concedido pelo Instituto Histórico e pelo
Imperador, apesar de sua posição contrária a tantos princípios
divulgados pelo nativismo da época.
Sua figura assume ainda maiores proporções, quando o com-
paramos com o único historiador seu contemporâneo a preten-
der um lugar em nossas considerações relativas à história de
âmbito nacional: J. M. Pereira da Silva. Caracterizado pela fe-
cundidade, classificou êle mesmo seus trabalhos em históricos,
literários, políticos e de fantasia (77); entre os primeiros avul-
tam a História da fundação do Império Brasileiro (1864 1868), -

Varões ilustres do Brasil durante os tempos coloniais (1858),


Segundo período do reinado de D. Pedro I (1871), História do
Brasil de 1831 a 1840 (1879) e Memórias de meu tempo (1895-
1896) . O próprio Sílvio Romero, embora repelindo o desprêzo
com que se tem encarado sua obra, não se abalançou a pro-
curar e indicar as qualidades que nela porventura se contives-
sem, limitando-se a transcrever o juízo de J. Nabuco — para o
qual Pereira da Silva, em última análise, era um improvisador
superficial (78) — e a recomendar cautela com os exageros. Já
nos referimos à maneira como Pereira da Silva considerava a
obra de Rocha Pita, fato passível de nos dar a medida de sua
visão da história . A mesma biografia apresenta ainda um as-
pecto interessante, quando o autor procura traçar o seu ideal
de historiador, ao qual,
"uma vez examinada e conhecida a verdade dos acon-
tecimentos, ouvida a voz dos séculos passados, cumpre
ainda narrar e descrever, e de par com a narração e a
descrição julgar e analisar. A história é uma missão no--
bre e elevada, que aperfeiçoa a inteligência, purifica o es-
pírito, esclarece a consciência e adorna o coração. A des-

— Idem, idem, I, pág. 199.


— Idem, idem, I, pág. 201.
— Idem, idem, I, pág. 215.
— Cf. Sílvio Romero, op. cit., V, pág. 177.
— RIHGB, tomo LXI, 2a. parte, págs. 762-765. Cf. Capistrano de Abreu,
Ensaios e Estudos, I, pág. 215.
— 131 —

crição e a moralização, a pintura e o juízo, a narração e o


raciocínio, são elementos indispensáveis para traçar-se o
grande quadro dos acontecimentos humanos, indagar-lhes
as causas, descobrir-lhes os resultados, ligar a vida do
indivíduo à vida da sociedade, reunir o homem à espé-
cie, e formar assim essa grande lição, para que foi insti-
tuída a História" (79).

Não se furta êle a nos dar uma súmula das escolas históri-
cas, para concluir que
"a verdadeira e única escola histórica é a de Tácito e
Tucídides; é a de Gibbon e de Niebuhr; é a da Maquiavel
e de Mueller; é a de Plutarco e a de Thierry; é a de Po-
líbio e de Lingard";

mistura bastante heterogênea, em que todos êstes autores — su-


pondo-se que Pereira da Silva os houvesse realmento lido — são
reunidos sem que se saiba como e por que . Significativa, tam-
bém, é a repulsa pela
"escola criada por Mignet, desenvolvida por Thiers e
Armand Carrel" (...), "nascida das teorias da revolução
francesa de 1789, pois ela estraga a vida, desmoraliza a
consciência e perturba o espírito" (80).

Com facilidade saltam aos olhos os ressaibos do espírito


louvaminheiro, já pelo simples título Varões ilustres do Brasil,
dentre os quais, por exemplo, Alvarenga Peixoto lembra Petrar-
ca e Metastásio, apresentando sua poesia
"o colorido de Rafael de Urbino, o sentimentalismo de
Corrégio e alguma coisa de cândido e puro, como as com-
posições de Murilo, ou de alegre e doce como a Psyehé
de Canova" (81) .

De fato, isto nos aproxima bem mais de um Rocha Pita mes-


clado de um Théophile Gautier em seus momentos de mau gôs-
to, do que do espírito crítico de Varnhagen ou das preocupações
marcantes do movimento historiográfico europeu dos meados
do século XIX.

— ItHIGE, tomo XII, pág. 266.


— Idem, idem, págs. 264-265.
-- Ap. Ronald de Carvalho, Pequena História da Literatura Brasileira, 5a.
ed., pág. 268.
— 132 —

Paralelamente à história nacional, desenvolveu-se a his-


tória local, cujo estudo — parece-nos — poderia ser fascinan-
te, pelas conclusões a que conduzisse, no plano da formação da
nacionalidade brasileira. Deveras, a intelectualidade das pro-
víncias estava em condições de proporcionar algo muito mais
próximo do que houvesse, então, de mentalidade legitimamente
brasileira, do que a de um centro como o Rio de Janeiro; esta
cidade, bafejada por favores especiais, constituia-se num am-
biente inapto a servir de base para avaliarmos da atmosfera do-
minante no Nordeste, no centro ou no extremo sul do país (82) .
João Francisco Lisboa, que já vimos desempenhando impor-
tante papel na pesquisa de documentos, é uma das maiores ex-
pressões desta categoria de trabalhos . Seus Apontamentos para
a história do Maranhão valeram-lhe o julgamento de ser um
historiador
"em cujas páginas se sentem palpitar algumas das
agitações da alma popular, algumas das pulsações do co-
ração da nacionalidade", pois "aqui e ali refere-se mais
particularmente ao Estado do Maranhão e Grão-Pará, mas
o que diz se aplica ao Brasil inteiro" (83) .

Outro celebrado autor é Joaquim Felício dos Santos, ao qual


se devem as Memórias do Distrito Diamantino, publicadas ini-
cialmente no semanário O Jequitinhonha, em 1862 (84) . Ao
anunciar seu trabalho, assim se dirigia Felício dos Santos aos
leitores:
"A história dos tempos coloniais do desgraçado povo
que habitava êste torrão diamantino, sujeito a autorida-
des com poder absoluto, e regido por leis peculiares, for-
mando, por assim dizer, uma colônia particular isolada no
imenso território do Brasil, não deixará de ser interessan-
te a todo brasileiro. Foi esta população, por isto mesmo
que existia em um solo rico, a que mais suportou os vexa-
mes e exações do govêrno da Metrópole de ambição insa-
ciável, que só procurou tirar todo proveito de nosso país,
pouco lhe importando sua prosperidade senão era para en-
riquecer o Erário Régio. O que podemos afiançar aos nos-

— Um exemplo da importância dos trabalhos de História local encontra-se


no Prólogo de Capistrano de Abreu às Notas sobre a Paraíba, de I.
Joffily, in Ensaios e Estudos, I, págs. 221 e ss.
— Sílvio Romero, op. cit., V, págs. 187 e 189.
— Cf. Nazareth Menezes, Joaquim Felício dos Santos e sua obra, in Me-
mórias do Distrito Diamantino, Rio de Janeiro, A. J. de Castilho, 1924,
pág. XXIII.
— 133 —

sos leitores é a veracidade dos fatos que vamos publicar:


a sua prova encontrarão em documentos existentes na Se-
cretaria da Administração Diamantina e quando recorrer-
mos a tradições procuraremos o testemunho de pessoas
fidedignas" (85) .

Resultado de pesquisa escrupulosa, portanto, é o que se nos


apresenta . Mas muito mais poderemos ainda inferir destas li-
nhas: primeiramente, um acendrado liberalismo, confirmado na
posição política do autor, decididamente republicano; em segun-
do lugar, o nacionalismo tão característico da época, refletido
no libelo contra Portugal; e vislumbramos, talvez, uma noção
da amplitude do campo histórico, com a afirmação do interêsse
de um assunto local para todo o país . Leitura agradabilíssima
é o que temos aqui. Jamais se esquecerão as peripécias e os so-
frimentos dos garimpeiros de contrabando, a vida social no Ti-
juco, a carreira do desembargador João Fernandes de Oliveira,
ou a personalidade do intendente Manuel da Câmara Bitten-
court. Menção especial é devida ao cuidado em relacionar a
repulsa pelo domínio português com as idéias do iluminismo
francês; penetravam estas com mais facilidade na região, não
só em virtude das relações econômicas normais com a Metró-
pole, mas também por meio do contrabando, praticado ininter-
ruptamente com países da Europa, Inglaterra e Holanda em
particular. Foi assim que
"nossa pequena sociedade neste canto do mundo tam-
bém logo se animou com o mesmo espírito de filosofia dos
enciclopedistas; seus livros eram procurados com sofre-
guidão, e suas idéias de liberdade aceitas com tanto mais
predileção, quanto mais tínhamos necessidade de vê-las
realizadas" (86) .

Ambos os autores, J. F. Lisboa e Felício dos Santos, ligaram


seus nomes ao de Varnhagen, não deixando de ser útil para o
nosso bosquejo a referência destas relações. O primeiro foi
um dos que refutaram as idéias do visconde de Pôrto Seguro
acêrca dos indígenas (87), levando-nos sempre à confirmação
do prestígio do indianismo. O segundo põe às claras um dos
defeitos da História Geral do Brasil, que consiste em, por vê-
zes, moldar os acontecimentos segundo a vaidade do seu autor;
assim é que, para dar a seu pai a glória de ter sido o primeiro
— Idem, idem, pág. XXX.
— Memórias do Distrito Diamantino, págs. 200-201.
— Cf. Sílvio Romero, op. cit., V, pág. 193-.
— 134

fundidor de ferro do país, Varnhagen subestima a fábrica de


Pilar, da qual, já em 1815, saíam barras de ferro (88) .
O fecundo Joaquim Norberto de Sousa Silva (1820-1891)
merece, também, uma consideração particular, pelo seu traba-
lho relativo à conjuração mineira (88a), apresentado ao Ins-
tituto Histórico em fins de 1860. Southey fôra o primeiro a
publicar uns tantos pormenores acêrca do assunto, e a inserção
de seu capítulo na Revista do Instituto Histórico e Geográfico
testemunha do interêsse despertado por esta iniciativa (88b);
baseara-se, porém, essencialmente na sentença condenatória.
Coube a Joaquim Norberto utilizar-se dos autos da devassa da
Inconfidência, renovando assim, completamente, o panorama do
movimento mineiro.
Grande foi o número de estudos locais, como se verifica,
não só pelas revistas das províncias, mas também pela própria
Revista do Instituto Histórico. Sempre constituem-se êles em
significativa fonte, quando não diretamente para os assuntos de
que tratam, então — certamente — para pesquisas concernen-
tes à mentalidade dominante nos dias de sua elaboração. O
mesmo acontece, enfim, com qualquer outro ramo literário, em
qualquer época ou país. Nunca poderemos esquecer, por exem-
plo, o muito que se pode buscar de história dos costumes, ou
de história das idéias, além de subsídios para diversos outros
ramos, na obra dos poetas românticos, de José de Alencar ou
de Joaquim M. de Macedo e, sobretudo, nas Memórias de um
sargento de milícias, de Manuel A. de Almeida (89) . Por vê-
zes, mesmo, são êles fontes tanto mais importantes quanto, li-
vres da preocupação consciente dos historiadores, assumem o
aspecto de testemunhos espontâneos e fiéis. O jornalismo é ou-
tro importante setor a considerar-se, pois
"a liberdade de imprensa, mantida pràticamente em
todo o país, fêz dessa fonte de informação uma das mais
abundantes contribuições para a história do Império" (90).

— Memórias do Distrito Diamantino, págs. 272-282. Cf. Capistrano de Abreu,


Ensaios e Estudos, I, pág. 212.
(88a). —História da Conjuração Mineira, Imprensa Nacional, Rio de Janeiro,
1948, 2 vols., Prefácio de Osvaldo Melo Braga.
(8813). — Tomo XII, pág. 550 ss.
— Macedo, aliás, compôs trabalhos de História do Brasil (Lições de His-
tória do Brasil, 1861; Efemérides da História do Brasil, 1877), e foi
1.0 secretário e orador do MG.
— Cf. Américo Jacobino Lacombe, Brasil — Período Nacional, México, 1956,
pág. 104.
— 135 —

No exterior, continuou a ser representada a historiografia


acêrca do Brasil, durante o século XIX. Na França, nomes co-
mo Ferdinand Denis (91) e D'Avezac (92) associaram-se ao de
Varnhagen ; na Inglaterra, John Armitage prosseguiu a obra
de Southey, estendendo-a à independência e ao reinado de D.
Pedro I (93); o alemão Louis Schneider foi autor de uma afa-
mada Guerra da tríplice aliança contra o govêrno ida República
do Paraguai (Berlim, 1872-1875), publicada em edição brasilei-
ra com notas do Barão do Rio Branco (94) . Heinrich Handel-
mann, da Universidade de Kiel, publicou uma História do Bra-
sil digna de nota por estar já em plena relação com o desen-
volvimento da imigração alemã; "a salvação do Brasil", lê-se aí,
"repousa na imigração Unicamente espontânea de agri-
cultores livres europeus" (95).

Muito animador, todavia, não parecia ser o ambiente bra-


sileiro, aos olhos de Handelmann, como verificamos pelas con-
siderações finais de sua História. Sirvam de amostra as seguin-
tes palavras:
"Portanto, em resumo, repetindo o que se disse até
aqui: um acolhimento mais franco da parte dos brasilei-
ros, mais tolerância no sentido político, religioso e nacio-
nal, seria agradável e necessário; o que restaria ainda a
desejar no interêsse da imigração, não é menos do inte-
rêsse do próprio povo brasileiro" (96).

Um novo marco na nossa historiografia é plantado por Ca-


pistrano de Abreu; leva-nos êle, aliás, a voltar os olhos para o
ambiente que condicionou os primeiros tempos de sua forma-
ção, e que é um cenário regional, animado por um bando de
idéias novas a erguer-se de todos os lados do horizonte (97) . Em
1870-1871, o desfêcho da guerra franco-prussiana abalara con-

,91). — Cf. História Geral do Brasil, 3a. ed., I, págs. XV e XVIII; RIHGB, tomo
LIII, 2a. parte, págs. 474-477.
(92). — Au tour de considérations géographiques sur l'histoire du Brésil, Pa-
ris, 1857.
{93). — Cf. R. A. Humphreys, Latin American History, pág. 90: "....his infor-
mation was generally exact and the high reputation which his history
enjoys is well deserved".
— Cf. Karl H. Oberacker Jr., Der deutsche Beitrag zum Aufbau der brasi-
lianischen Nation, onde há uma lista das contribuições alemãs para a
historiografia brasileira no século XIX (págs. 313-315).
— Publicação da RIHGB, tomo CVIII, 1931, pág. VII.
— Idem, idem, pág. 996.
— Cf. João Cruz Costa, O desenvolvimento da filosofia no Brasil no sé-
culo XIX e a evolução histórica nacional, págs. 107 e ss.
— 136 —

sideràvelmente o prestígio da cultura francesa, ao mesmo tem-


po que o fim da guerra do Paraguai punha a nú uma imensi-
dão de pontos fracos na monarquia brasileira. A inquietude apo-
derou-se dos espíritos, que ansiavam por novas bases, por uma
visão do mundo capaz de ajustar-se a condições completamen-
te novas (98) . E no Nordeste, especialmente em Recife, houve
campo para o florescimento de um grupo aberto à cultura ger-
mânica, sobressaindo o nome de Tobias Barreto. Autores in-
glêses, também, passaram a ser mais conhecidos, mesmo porque
alguns dos mais afamados dentre os intelectuais alemães — tal
o caso de Haeckel — inspiravam-se em Darwin. Sílvio Rome-
ro invectivava o ambiente patrício, acusando-o de lamentável,
vazio e dominado pelas banalidades; aspirava êle a tomar con-
tacto com o verdadeiro Brasil, não com o falso, com o país da
imitação dos sediços lugares-comuns de origem francesa (99) .
"Compreendeu êle a extenuação e morte inevitável
do romantismo e lançou os germes de outra fórmula li-
terária para a poesia, para o romance, para a arte em
geral. Avaliou convenientemente a necessidade de rever
tôda a velha base da estesia pátria e introduziu na críti-
ca e na história brasileira o verdadeiro princípio etno-
gráfico, até então falsificado pela mania do indianismo.
Quis ser o homem de seu tempo, sem deixar de ser ho-
mem de seu país, e aplicou as idéias novas européias
sempre a assuntos nacionais..." (100) .

Crescia o prestígio alemão, Spencer ganhava novos admira-


dores, e tudo isto exigia uma outra maneira de encarar-se o
passado. Ainda Sílvio Romero, ao pronunciar um discurso, co-
mo deputado provincial, voltava-se contra os métodos "atrasa-
dos e não científicos" dos historiadores brasileiros, para con-
cluir, mais tarde, da seguinte maneira: depois de Mommsen e
Buckle, sômente uma imensurável ingenuidade justificaria um
apêgo às maneiras de pensar de Michelet e Quinet.
Correspondendo a estas exigências, surgiu João Capistrano
de Abreu. Nascido em Maranguape (Ceará), em 1852, dirigiu-
se a Recife em 1869, com o fim de estudar Direito; lá estudou
francês e inglês, procurou familiarizar-se com as idéias filosó-
ficas então em voga na intelectualidade local, resolveu dedicar-
se à história e abandonou os estudos jurídicos. Após algum
tempo, encontrâmo-lo em Fortaleza, onde, à semelhança do Re-
— Idem, idem, págs. 125 e ss.
— Cf. Carlos Suessekind de Mendonça, Sílvio Romero, pág. 293.
— Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 3a. ed., V, pág. 259.
— 137 —

cife, os jovens intelectuais encontravam-se em estado de efer-


vescência (101) . O positivista Raimundo Antônio da Rocha Li-
ma constituira-se no centro de um grupo, cujos participantes
denominavam-se, a si mesmos, Academia Francesa. Ora, o pró-
prio Rocha Lima, antes de aderir ao Comtismo, percorrera tri-
lhas diversas, mas sempre estudando com mais gôsto a história,
principalmente história religiosa, para o que recorrera a Bur-
nouf, Maury, Quinet, Reuss e a estudos de filosofia (102); Va-
cherot, autor de Science et Consciente, fôra um de seus men-
tores, substituído depois por Taine, que o encaminhou para o
reconhecimento da urgência de uma completa transformação de
suas idéias.
"Nesta convicção veio confirmá-lo o estudo dos es-
critos de Buckle. Muitas idéias do pensador inglês repug-
navam-lhe profundamente, como as que se referem à
teoria das leis morais; porém a exposição da influência
mesológica; a discussão do método introspectivo; a con-
cepção da história científica, muito mais definida aqui do
que em Taine; mil sugestões fecundas que pululam em
tôda a obra, encontrando um terreno preparado, atuavam
de maneira duradoura e fértil sôbre sua mentalidade"
(103).

Em 1875 dispersou-se o grupo da Academia, encontrando-se


rocia Lima em plena fase positivista; indo para o Rio de Ja-
neiro, em 1877, já principiava, contudo, a inclinar-se para Spen-
cer.
"Achava admirável a classificação hierárquica das
ciências, porém a de Spencer, sem lhe parecer menos per-
feita, figurava-se-lhe talvez menos automórfica. Repug-
nava-lhe admitir a lei dos três estados, porque além de
ser uma generalização empírica, nem se aplica a tôdas as
sociedades, nem a todos os fenômenos de uma sociedade.
Suspeitava que o pensador britânico, vindo depois da re-
volução operada na biologia pelo darwinismo, na psico-
logia pela teoria da associação, poderia elevar um monu-
mento mais considerável que a filosofia positiva. Enfim,
o que sobretudo o fascinava era essa concepção sintética
do universo, que reduz tôdas as realidades a órgãos de
uma função imensa — a Evolução — órgãos que apenas se

— Cf. Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, I, pág. 208.


— Capistrano de Abreu, Ensaios e Estudos, I, págs. 114-115.
— Idem, idem, pág. 116.
— 138 —

distinguem pelo seu maior ou menor grau de heteroge-


neidade, pela maior ou menor proporção em que são de-
finitos ou indefinitos" (104).

Se nos detivemos na pessoa de Rocha Lima, é porque a jul-


gamos azada a nos dar uma idéia das locubrações do próprio
Capistrano, que lhe votava ilimitada admiração, a ponto de con-
fessar tomá-lo como exemplo (105). Taine, Buckle, Comte e Spen-
cer foram também etapas marcantes na sua formação (106),
além de autores alemães, então conhecidos através de tradu-
ções francesas (107) . Já no Rio, em 1883, seus estudos permi-
tiram-lhe conquistar a cátedra de História do Brasil no Colé-
gio Pedro II, graças a uma tese relativa ao descobrimento e
desenvolvimento da região no século XVI (108); outros traba-
lhos revelavam-no como uma verdadeira novidade no campo
da historiografia nacional. A partir daí permaneceu êle no Rio,
dedicando-se exclusivamente às atividades intelectuais. Suas
cartas, em tão boa hora editadas por J. Honório Rodrigues (109),
mostram à saciedade a constante preocupação com a pesquisa his-
tórica e o esfôrço de manter-se ao par do que de importante se
publicasse na Europa. Com freqüência surgem os nomes de au-
tores europeus, notando-se particular cuidado com a bibliogra-
fia alemã. Sua predileção orientava-o para os especialistas em
economia política, merecendo Schmoller (110) um destaque to-
do especial, ao lado de Buecher, cujos princípios — segundo Ca-
pistrano — tornavam-se habituais na interpretação de fatos
históricos, em geral, com exceção dos concernentes à Antigüi-
dade (111) . Compreensivelmente, empenhava-se em conhecer
tôdas as obras relativas à história da América e de Portugal
(112), mas sua curiosidade abrangia tôda a história do Ociden-
te, pois ela, em última análise, deveria ser considerada pa-

— Idem, idem, pág. 121.


— Idem, idem, pág. 123.
— Cômodo exemplo do resultado destas leituras, in Ensaios e Estudos, I,
Págs. 61-107, compostas quando Capistrano de Abreu tinha 21 anos de
idade. Cf. as palavras de Araripe Júnior, ap. Castro Rebelo, Capistrano
de Abreu e a síntese histórica, págs. 9-10.
— Cf. A. Pinto do Carmo, Bibliografia de Capistrano de Abreu, pág. 22.
Castro Rebelo, op. cit., págs. 13-14.
— Cf. Sílvio Romero, Lucros e Perdas, n.o 2, julho de 1883: "A teoria
spenceriana fornece a filosofia histórica do autor" (ap. A. Pinto do Car-
mo, op. cit., pág. 42).
(109) — Correspondêntda de Capistrano de Abreu, Rio de Janeiro, Instituto Na-
cional do Livro, 1954-1956, 3 vols.
(110). — Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, I, págs. 203, 204, 150.
(311). — Idem, II, págs. 220, 244, 290.
(112). — Idem, II, págs. 334, 369.
— 139 —

ra o estudo e a compreensão da História do Brasil (113) . A


psicologia, através das obras de Wundt, foi por êle tida como
um elemento indispensável para o historiador; e a geografia
ocupou notabilíssimo lugar em suas cogitações . Traduziu pa-
ra o português (às vêzes com a colaboração de Vale Cabral), a
pequena Geographie de Wappoeus, a Allgemeine Geographie
Brasiliens, de Selin, e ainda um trabalho de Kirchhoff sôbre a
antropogeografia . Esteve atento aos princípios formulados por
Ratzel, tomando-os como base para um artigo sôbre a história
do Ceará (114) . Como era de esperar-se, tem-se indagado em
que medida Capistrano deixou-se influenciar pelos alemães.
Para J. Honório Rodrigues, as relações com a cultura alemã agi-
ram fundo nos seus métodos de trabalho e na sua concepção de
história, como se vê:
"a metodologia alemã guiara-o no estudo rigoroso dos
documentos; os conhecimentos geográficos e econômicos
focalizavam a visão na estrutura real dos acontecimentos
históricos; a psicologia de Wundt, início da psicologia ex-
perimental, fazia-o abandonar a vaga anatomia psicoló-
gica, impedindo-o de cair no factualismo pela compreen-
são da vida dos povos. Essas influências causam uma re-
viravolta no seu espírito num sentido realista. Agora sua
concepção é o realismo histórico, dos teóricos alemães, e
sua tarefa narrar o que realmente aconteceu" (115).

Outra é a opinião de Castro Rebelo, para o qual


"não parece possível assinalar-se em qualquer dos
trabalhos de Capistrano, posteriores ao conhecimento di-
reto que veio a travar com os historiadores alemães, quan-
do os pôde ler no original, qualquer sinal indicativo de
uma mudança na sua concepção de história" (116) .

Acreditamos que seria mais conveniente, aqui, indicarem-


se as dificuldades para a determinação das diferentes influên-
cias a que esteve submetido Capistrano. Antes de tudo, forçoso
é levarmos em conta que tendências tais como a estrita verifi-
cação das fontes, ou a pesquisa das relações do homem com o
meio, embora houvessem partido da Alemanha, já em fins do

— Cf., por exemplo, Correspondência, I, pág. 203. Isto sem embargo do


interêsse também pela História não ocidental (cf. Correspondência, I,
pág. 205).
— Cf. Caminhos antigos e povoamento do Brasil, pág. 219.
— Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. XLIV.
— Castro Rebelo, op. cit., pág. 15.
— 140 —

século XIX pertenciam ao domínio comum dos especialistas no


Ocidente. Desde cêdo Capistrano tivera conhecimento de obras
francesas e inglêsas que podiam agir como intermediárias pa-
ra os métodos de trabalho vigentes na Alemanha; tais métodos,
assim, te-lo-iam atingido mesmo antes que êle dominasse a lín-
gua alemã. Além do mais, suas obras não se prestam a permi-
tir uma avaliação do grau das influências; em sua maioria, não
se publicaram em forma de volumes durante sua vida, mas sim
esparsamente, como artigos, críticas, introduções a trabalhos
de outros autores, etc. Significa isto a ausência do prefácio em
seus livros, que, reunidos após sua morte, viram-se privados de
uma explicação concernente às linhas mestras do autor ao com-
por o seu trabalho. Mesmo os Capítulos de História Colonial,
cuja edição foi por êle dirigida, não apresentam um prefácio.
Nestas condições, restam-nos suas cartas como fonte pa-
ra pesquisarmos os elementos diretores de sua atividade de his-
toriador. Trata-se, na verdade, de um valiosíssimo material,
tanto para o estudo da vida e das idéias de Capistrano, quanto
para a história do Brasil em sua época, pois êle jamais deixa de
narrar e criticar os principais acontecimentos e personalidades
contemporâneos. Estendem-se desde 1880 até 1927, data da
morte de Capistrano, e sua leitura leva-nos a concluir, de fato,
pela inexistência de qualquer preconceito de ordem cultural,
ou de uma influência exclusiva de algum autor ou país em qual-
quer momento de sua vida. No que toca à atividade intelec-
tual, jamais pecou pela unilateralidade. O que era decisivo
para êle, pode ser fàcilmente inferido de palavras como as se-
guintes:
"A alma é um organismo: as diferentes faculdades
coexistem na dependência. Para que a cultura seja com-
pleta é preciso que se cultivem tôdas as faculdades ao
mesmo tempo" (117) .

Quem assim se expressa, não poderia preferir autores ale-


mães a todos os outros, pois inclinar-se-ia a abeberar-se em tô-
das as obras dignas de consideração, fôssem elas alemãs ou não.
À semelhança do que se verifica na alma, também os povos "co-
existem na dependência", mormente no que tange à cultura.
Indiscutivelmente, porém, foi por reconhecer o respeito votado
em todo o mundo à profundidade e ao valor da cultura alemã
que Capistrano se abalançou a estudar a língua e a tirar todo
partido disto; é êle próprio, aliás, quem nos diz:
(117). — Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 29.
— 141 —

"Não me vanglorio nem se envergonho de ter estu-


dado a língua. Fí-lo porque certos livros alemães satis-
faziam-me algumas curiosidades de meu espírito, e es-
perar que fôssem traduzidas importava, na melhor das
hipóteses, numa demora de anos" (118) .

Puro comportamento de intelectual honesto, enfim; e nun-


ca preconceito em favor da cultura alemã (119) . Não só os li-
vros referidos provêm de todos os cantos do mundo ocidental;
o mesmo sucede às revistas . Numa época em que nenhuma bi-
blioteca pública do Rio de Janeiro possuia coleções de perió-
dicos estrangeiros especializados em história (120), procura-
va êle, por todos os meios, pôr-se em dia com a Revue Histori-
que, a English Historical Review, a American Historical Review,
a Revue de Synthèse historique, e outras mais. E ainda a cor-
respondência é testemunha da desnecessidade de uma prefe-
rência pelos alemães para a aplicação dos métodos de traba-
lho inaugurados em seu país; de fato, escrevendo a Guilherme
Studart, Capistrano assim se expressa:
"Por que motivo, portanto, te insurges contra uma
obrigação a que se sujeitam todos os historiadores, prin-
cipalmente desde que, com os estudos arquivais, com a
criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, cria-
da por Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada
a fisionomia da história?" (121).

Todos os historiadores, portanto, independentemente de sua


nacionalidade, já procediam segundo certos princípios partidos
da Alemanha. A posição de Capistrano, na verdade, é a de um
legítimo ocidental, para quem a cultura européia surge como
um todo, não suscetível de ser fraccionada pelos limites de or-
dem política. Êste é o traço que mais o caracteriza, a nosso
ver; e sem o levarmos em conta, não é possível compreender-se
a maneira nova como Capistrano encarou os problemas da his-
tória do Brasil, pois tal maneira era condicionada, antes de tu-
do, pelo espírito e pela formação cultural de um homem.
Prestando a Varnhagen o devido respeito, não silenciava
as deficiências — e mesmo os defeitos — de sua obra, a co-
meçar pela falta de uma visão de conjunto, do que resultava o
(118). — Idem, I, pág. 240.
(179). — Isto não impede que Capistrano, como homem, tivesse simpatias pela
Alemanha. Cf. carta a Mário de Alencar, in Correspondência de Capis-
trano de Abreu, págs. 235-239, como um decisivo documento a respeita.
— Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 268.
— Idem, I, págs. 165-166.
— 142 —

não estabelecimento de relações entre fatos aparentemente lon-


gínqüos uns dos outros.
"Varnhagen não primava pelo espírito compreensivo
simpático que, imbuindo o historiador dos sentimentos
situações que atravessa, o torna contemporâneo e con-
fidente dos homens e acontecimentos. A falta de espírito
plástico e simpático — eis o maior defeito do visconde de
Pôrto Seguro. A história do Brasil não se lhe afigurava
um todo solidário e coerente. Êle poderia excavar do-
cumentos, demonstrar-lhes a autenticidade, solver enig-
mas, desvendar mistérios, nada deixar que fazer aos seus
sucessores no terreno dos fatos: compreender, porém, tais
fatos em sua origem, sua ligação com os fatos mais am-
plos e radicais de que dimanam; generalizar as ações e
formular-lhes teoria; representá-los como conseqüências
demonstração de duas ou três leis basilares, não conse-
guiu, nem conségui-lo-ia" (122) .

Destas palavras, tão férteis em conclusões para as idéias


do próprio Capistrano, infere-se, ainda, que o próprio trato com
as fontes deixava muito a desejar em Varnhagen: de fato, co-
mo saber o que procurar, o que selecionar, sem as qualidades
indispensáveis para isto? — E' o pesquisador, aqui, que se co-
loca sob reserva, segundo nos confirmam as cartas de Capis-
trano, quando tomou a si o encargo de preparar uma nova edi-
ção da História Geral do Brasil. Leia-se, por exemplo, o se-
guinte:
"Dou-lhe a agradável notícia que espero pôr para fo-
ra até o fim do ano o primeiro volume de Varnhagen.
Tem-me dado um trabalhão; êle é muito mais descuidado
inexato do que pensava a princípio: basta ver a cambu-
lhada que fêz de Francisco Caldeira e Alexandre de Mou-
ra. Tôda a expedição do Maranhão precisa ser escrita de
novo: eu tinha pensado em lhe pedir um documento iné-
dito que Varnhagen possuia sôbre ela, mas agora é tar-
de" (123) .

O cuidado com a documentação, assim, é nele de primeira


ordem (124), cabendo-lhe um excepcional lugar como pesqui-
sador da história brasileira. Mais uma vez insistimos na rique-
za de dados proporcionados pela correspondência. As cartas a
(122). — Ensaios e Estudos, I, págs. 138, 139-140.
(M). — Carta a G. Studart, in Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pâg.
162.
(124). — Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, II, pág. 165.
— 143 —

Lino de Assunção, a João Lúcio de Azevedo, ao Barão do Rio


Branco, a Guilherme Studart, põem a descoberto um sem-nú-
mero de preocupações com a busca de documentação, tarefa,
aliás, em que se destaca seu colaborador Vale Cabral (125) .
Pensando, inicialmente, em editar uma grande coleção de do-
cumentos inéditos (126), abrangendo o século XVI (127), dedi-
cou-se a investigações de que resultou a publicação de Fernão
Cardim, das Informações do Brasil e suas capitanias em 1584,
pelo Pe. José de Anchieta, das Informações e fragmentos histó-
ricos do Pe. Joseph de Anchieta, do Diálogo das grandezas do
Brasil, da Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Bra-
sil, da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador. Esta,
já do século XVII, chama-nos a atenção pelo seu significado,
tendo já sido consultada por Varnhagen e João F. Lisboa em
Portugal, mas permanecendo inédita até que, em 1886, Capis-
trano e Vale Cabral se empenharam em sua publicação (128) .
Frei Vicente (Vicente Rodrigues Palha) terminara a composi-
ção de sua obra em 1627, revelando amor à terra natal e cer-
teza no seu futuro, entrevendo suas possibilidades como cen-
tro e refúgio do govêrno português .
"Era senhor da cultura da época, versado na literatu-
ra latina sagrada e profana, na literatura pátria, leitor
de histórias, de viagens, de poesias; sabia espanhol e tal-
vez italiano... Imaginemos que a História de Frei Vicen-
te, em vez de ficar enterrada e perdida tantos anos, viesse
logo à luz; as conseqüências podiam ter sido consideráveis:
serviria de modêlo. Os arquivos estavam completos e te-
riam sido consultados com as limitações impostas pelo
tempo. As entradas sertanejas teriam atraído a atenção
e o conhecimento delas não ficaria em nomes escoteiros,
sem indicações biográficas, sem achegas geográficas, me-
ros sujeitos sem predicados" (129) .

Tais palavras, do próprio Capistrano, dão idéia da impor-


tância da obra.
Dentre seus trabalhos originais, dois, acima de tudo, exi-
gem consideração especial: os Capítulos de história colonial e
os Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Sua posição na

— Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 284.


— José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil, pág. 130. Cf.
Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 118.
— Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, I, págs. 112-113.
— Ensaios e Estudos, II, págs. 176-179.
— Idem, idem, págs. 193-198.
— 144 —

historiografia brasileiro foi posta em foco por J. Honório Ro-


drigues, em palavras que nos parecem excelentes e que, por
isso, transcrevemos:
"Os Capítulos de história colonial são a mais perfei-
ta síntese jamais realizada na historiografia brasileira. O
livro nascia do desêjo de divulgar e atualizar, em forma
simples, o conhecimento de nos1sa história, mais social e
econômica do que política, liberta o mais possível da se-
riação de datas e nomes, livre da cronologia dos vice-reis
e governadores... Ninguém lerá os Capítulos sem ver de
imediato que Capistrano se preocupa com "o povo duran-
te 3 séculos capado e recapado, sangrado e ressangrado".
Por isso êles são uma síntese social e econômica limpa e
enxuta... Os Caminhos antigos e o povoamento defini-
ram os roteiros da época colonial, explicaram a articula-
ção de várias capitanias, mostraram um campo novo na
historiografia. Ninguém atribuira, como Capistrano, des-
de o fim do século, tanta importância à conquista e ao
povoamento do sertão... Os Caminhos antigos são, para
a historiografia brasileira, o que The frontier in American
History, de F. Turner, é para a americana... Êle (Capis-
trano) viu o sertão e o caminho como processo de incor-
poração e dilatação da fronteira ocidental: era um cam-
po novo, um método de investigação e interpretação ori-
ginal da formação colonial do Brasil. O sertão e os cami-
nhos são um fator de criação da vida brasileira... O ser-
tão e o caminho são ilustrações dos processos de desen-
volvimento da história brasileira... No processo de trans-
formar o sertão, o colono a princípio se barbariza e depois
êle próprio e o sertão se alteram e, nesta mudança, cria-se
uma nova personalidade... O papel do sertão e dos cami-
nhos, entrevisto agora pela primeira vez, modificou pro-
fundamente o escrito e a metodologia histórica no Bra-
sil. A história do Brasil colonial não era só a da coloni-
zação da costa atlântica, mas a expansão pela terra, livre
ou ocupada por bárbaros" (130).

Ambos os trabalhos enquadram-se nas diretrizes traçadas


por Martius, o que contribui para afirmar a importância da
memória do naturalista (131) . E dêle nos lembramos, ainda, ao
considerar outra categoria das atividades de Capistrano: a con-
cernente ao estudo de línguas indígenas. A recomendação de
(130). — Capistrano de Abreu e a historiografia brasileira, in Correspondência
de Capistrano de Abreu, I, págs. XLVI-XLVII e LII-LIII. José Honório
Rodrigues é o autor da Introdução aos Capítulos de História Colonial,
4a. ed., 1954.
(I31). — Cf. Ensaios e Estudos, I, pág. 70, nota 9.
— 145 —

tal estudo incluia-se nas orientações de Martius, e com afinco


dedicou-se Capistrano a êle. Percorra-se sua correspondência,
e ver-se-ão os índios que, compartilhando de sua vida, agiam
como a mais pura fonte de estudos lingüísticos; o bacairi e o
caxinauá foram as línguas a que mais se dedicou, tendo dei-
xado, acêrca desta última, o volume Rã txa hu ni ku i. Bem
- - - - -

grande era o papel atribuído ao índio na formação do Brasil,


como se vê:
"A minha tese é a seguinte: o que houver de
diverso entre o brasileiro e o europeu, atribuo-o em má-
xima parte ao clima e ao indígena" (132) .

Temos aí, portanto, uma frase cuja análise muito nos pode
revelar de sua posição na historiografia brasileira. Primeira-
mente, o tom sereno, isento de qualquer espécie de arroubo, ao
tratar de assunto que tão delicado fôra durante o século XIX.
Não será isto sinal de equilíbrio, resultante de tomada de cons-
ciência de nacionalidade? — Em segundo lugar, a certeza de
ser o brasileiro simplesmente um europeu submetido a um pro-
cesso de diferenciação, cuja fôrça está longe de bastar para a
justificativa de um isolamento no campo histórico. Não tere-
mos aí o indício de integração num plano superior, em que
América e Europa estejam para sempre ligadas? — Por fim,
o reconhecimento da função do índio, como fator de peculia-
ridade de um povo no âmbito do Ocidente; de peculiaridade,
apenas, sem louvores, sem lirismos, sem a preocupação de opor
uma idealização do indígena à imagem estranha de uma Euro-
pa indiferente. Legítima consciência de brasileiro, agora, sen-
tindo-se participante de uma ininterrupta e intrincada corren-
te de relações, a qual se dá o nome de história (133) .
Explica-se, assim, o seu profundo reflexo, não apenas na
historiografia, mas em todo o movimento de renovação da inte-
lectualidade brasileira. Como era natural, não se encontrava
êle isolado no aprofundamento de nossa história; sua persona-
lidade, quando mais não fôsse, facilitaria o despertar de voca-
ções e estimularia o trabalho de seus contemporâneos, por êle
mesmo lembrados, em 1882, numa página cuja transcrição nos
parece bem útil. Ei-la:
— Ensaios e Estudos, III, pág. 155.
— Freqüentemente, aliás, sente-se em Capistrano de Abreu a ânsia de pene-
trar nas camadas profundas destas relações, como se vê, por exemplo:
"O ideal da História do Brasil seria uma em que o lugar ocupado pelas
guerras flamengas e castelhanaS passasSe aos sucessós estranhos a tais
sucessos. Talvez nossos netos consigam ver isto" (Correspondência <ft
Capistrano de Abreu, II, pág. 16).
— 146 —

"Os estudos históricos vão se adiantando... Os tra-


balhos de Batista Caetano assentam os estudos lingüísti-
cos num tererno científico; Barbosa Rodrigues, José Ve-
ríssimo e Serra tentam penetrar a alma do indígena e
arrancar o segrêdo de sua organização; Hartt lança, antes
de morrer, as bases da arqueologia brasileira; Rodrigues
Peixoto, ajudado por Lacerda, funda a antropologia; Ma-
cedo Soares e Sílvio Romero desfibram na raça atual a
origem de fatôres ainda desconhecidos; Araripe Júnior in-
vestiga as origens de nossa literatura; Silva Paranhos pro-
cura esclarecer aquêle labirinto intrincadíssimo do Rio da
Prata; Augusto da Costa e Pereira da Costa aprofundam a
história de Pernambuco; Franklin Távora tenta renovar
a história da revolução de 1817; Assis Brasil e Ramiro
Barcelos celebram a revolução rio-grandense; Alcides Li-
ma revela a história do Rio Grande do Sul; Henrique Leal
arquiva ciosamente as glórias do Maranhão; Teixeira de
Melo atira-se às questões internacionais; Vale Cabral fun-
da a bibliografia pátria e desvenda os anais da impren-
sa; Alencar Araripe prepara a história do Ceará e das
revoluções regenciais; Severiano da Fonseca embrenha-
se pelo Mato Grosso; Moreira de Azevedo esgrima-se com
a Sabinada; Paulino Fonseca apura a crônica das Ala-
goas; Ladislau Neto prepara o Catálogo da exposição an-
tropológica; Felix Ferreira, João Brígido, Pôrto Alegre e
outros trazem sua pedra para o monumento" (134).

Esta relação apresenta, sobretudo, o mérito de testemunhar •

a existência de uma fermentação, de uma curiosidade febrici-


tante a percorrer o país. Diversos dêstes nomes têm interêsse
apenas para a história estritamente local e, além do mais, a
lista refere-se ao ano de 1882. Eis porque, dentre os contempo-
râneos de Capistrano, poremos em destaque apenas um nome
nela mencionado: o de Silva Paranhos, Barão do Rio Branco .
Outrossim, forçoso nos é lembrar personagens estranhos a ela:
Joaquim Nabuco, Oliveira Lima, Pandiá Calógeras, João Ribei-
ro. Nabuco e Rio Branco, na qualidade de diplomatas em fase
de solução das questões de limites, empenharam-se numa pes-
quisa documental que, por si só, garantir-lhes-ia um lugar na
historiografia patrícia (135) . Outros títulos, contudo, os con-
firmam naquela posição. O primeiro, com a biografia de seu
pai — José Tomás Nabuco de Araújo — elaborou um traba-

— Ensaios e Estudos, I, págs. 216-217. " •


— Cf. José Honório Rodrigues, A pesquisa histórica no Brasil, págs. 127-
129; idem, Teoria da História do Brasil, 2a. ed., págs. 463468 'e 470-473.
— 147

lho indispensável para o estudo do segundo Reinado (136), en-


quanto que, com a obra autobiográfica Minha formação, deixou
.

uma fonte concernente à vida de uma família do patriciado bra-


sileiro no século XIX. Rio Branco, por sua vez, orientava-se
para a história militar, como nos demonstram suas notas à tra-
dução do trabalho de Schneider (137) e o Esbôço biográfico do
general José ide Abreu, barão do Serro Largo (138) . Quanto às
suas Efemérides brasileiras, seja-nos suficiente referir aqui a
opinião de Capistrano:
"Tenho lido suas Efemérides no Jornal do Brasil e
apreciado devidamente. Pela primeira vez aparece neste
gênero trabalho sério e fundado nas fontes" (139) .

Oliveira Lima destacou-se pela pesquisa de documentos na


Inglaterra e teve, também, a atividade de historiador facilita-
da pelas suas funções na diplomacia (140) . Dentre suas obras,
a mais importante, tida como ampla fonte de informações acêr-
ca do Brasil-reino, é D. João VI no Brasil (1890)' (141) . Pan-
diá Calógeras, em estrita ligação com Capistrano (142), com-
pôs, parcialmente no espírito dos Capítulos de história colonial,
a Formação histórica ido Brasil. De sua lavra ficaram-nos, ain-
da, a Política exterior do Império e uns tantos estudos (acêrca
das minas do Brasil e sua legislação, por exemplo), aos quais
cabe o mérito de revelar
"as amplas perspectivas que oferece a exploração de
um domínio quase virgem: o de nossa história econômi-
ca" (143) .

João Ribeiro notabilizou-se por uma pequena História do


Brasil, de caráter didático, elaborada ainda sob o influxo das
idéias de Martius (144); continua ela a merecer novas edições
em nossos dias (145) . No tocante à publicação de documentos,
— Cf. Carolina Nabuco, A vida de Joaquim Nabuco, 2a. ed., págs. 297-298.
— Cf. Silvio Romero, História da Literatura Brasileira, 3a. ed., V, págs.
378-380.
(338). — Publicado na RIHGB, tomo XXXI, 2a. parte, págs. 62-135.
('39). — Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 133.
— RIHGB, tomo LXV, 2a. parte, págs. 1-139; cf. José Honório Rodrigues,
A pesquisa histórica no Brasil, págs. 104-111.
— Sérgio Buarque de Holanda, ;El Pensamiento histórico en el Brasil, In
Ficción, Buenos Aires, jan-fev. 1958, pág. 148.
— Correspondência de Capistrano de Abreu, I, págs. 350-417.
— Sérgio Buarque de Holanda, art. cit., pág. 143.
— José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 2a. ed., págs. 173-
174. Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, II, págs. 80, 226.
• — 16a. edição,. Rio de Janeiro, 1957.
— 148 —

avultam as Atas da Câmara de Santo André (impressas por ini-


ciativa de Washington Luís) e de São Paulo (principiadas em
1914), o Registro Geral da Câmara de São Paulo, dos Inventá-
rios e Testamentos e das Sesmarias (146) .
Certamente poderíamos alongar a lista dos trabalhos pas-
síveis de inclusão no nosso esbôço. Deter-nos-íamos, por exem-
plo, em Guilherme Studart, pesquisador da história do Ceará;
em Euclides da Cunha, com Os Sertões, Contrastes e contfron-
tos e À margem da história; em Tobias Monteiro, com seus es-
tudos relativos à independência e ao Império; em Rodolfo Gar-
cia, colaborador e continuador da obra de Capistrano (147); na
massa de fatos acumulada por Rocha Pombo em sua História
do Brasil; ou escolheríamos alguns dentre os inúmeros traba-
lhos dignos de se considerarem como fontes para a história dos
costumes, para a história social, para outros setores, ainda.
Limitemo-nos, todavia, a relembrar o que antes dissemos: a ri-
gor, tudo quanto se publica — ou melhor, que se escreve — é
digno de atenção do interessado em história, e muitas vêzes
os resultados mais surpreendentes provêm de fontes inespera-
das. Não achamos ocioso, também, sublinhar uma circunstân-
cia capaz de nos levar a umas tantas reflexões, relativamente
aos principais autores acima mencionados: todos êles, de uma
ou de outra forma, tinham seu espírito aberto para a cultura
européia, todos êles faziam história com a gente imbuída de
Europa. Na diplomacia de Rio Branco, Nabuco e Oliveira Li.
ma, no entusiasmo de J. Ribeiro pela cultura alemã, nos altos
postos ocupados por Calógeras, preponderavam sempre as opor-
tunidades para o rompimento de uma visão pautada pelo nati-
vismo . A própria esfera em que se moviam, é verdade, limita-
va um tanto a profundidade de sua visão, num sentido legiti-
mamente brasileiro. Eis porque devemos voltar a Capistrano
de Abreu, a fim de passarmos a nova etapa dos estudos de his-
tória do Brasil: ao esfôrço, agora, de final ruptura do isolamen-
to no campo histórico, de se atingir aquilo que — com as re-
servas exigidas por tal expressão — correspondesse mais de per-
to a uma realidade histórica brasileira, de abrir a possibili-
dade de sua pesquisa a mais amplas camadas da população. E' o
que nos leva à liqüidação da progênie de Rocha Pita, ao movi-
mento modernista e à fundação da Universidade.
Mais uma vez invocamos a correspondência de Capistrano .
Revelam-nos as cartas o zêlo de compreensão do Brasil, tal co-

(14C). — Cf. Sérgio Buarque de Holanda, art. cit., pág. 143.


(147). — Cf. José Honório Rodrigues, Notícia de vária História, págs. 210-223.
— 14 9 —

mo é, e não como se desejaria que fôsse. E o resultado não é


de todo lisonjeiro para o país, no qual Capistrano debalde pro-
cura razões de grandes entusiasmos. Note-se nada ter êste fato
a ver com o amor pela terra; nas cartas encontram-se expres-
sões insofismáveis, tais sejam:
"Amo, admiro o Brasil e espero nele. Os maus brasi-
leiros passam, o Brasil fica" (148).

E justamente por isso queria êle encarar o mais possível da


verdade, longe que estava de se deixar embalar por louvami-
nhas já transformadas em lugares-comuns. A terra, considera-
da em si mesma, não lhe surgia como algo maravilhoso, como
se vê:
"A mais fértil terra do mundo... Onde? Não na Ama-
zônia, onde, raspada uma camada de mateiro, bate-se
na esterilidade. Nos outros Estados é quase invariavel-
mente o mesmo" (149).

O povo não lhe parece tão inteligente quanto muitos o afir-


mam (150) e a vida política é fonte de constantes decepções
(151) . A êle remonta aquela melancólica frase, com a qual pre-
tendia resumir o Brasil:
"o jaburú... a ave que para mim simboliza nossa terra.
Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e
passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, tris-
te, daquela austera, apagada e vil tristeza" (152).

Não foi por acaso que Paulo Prado lançou mão desta pas-
sagem, como epígrafe ao seu Retrato do Brasil; o livro, que le-
va a auto-crítica aos seus extremos, coloca-se, assim, sob o pa-
trocínio de Capistrano. Por isso já se disse ser o Retrato do
Brasil uma obra de Capistrano, embora escrita pelo seu amigo
(153) . Curiosamente, notamos que outro traço marcante do mun-
do intelectual do século XIX, o indianismo, apesar de tôda a
'148). — Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 63.
.149). — Idem, II, pág. 234; cf. pág. 420. A mudança de atitude perante a natu-
reza, entre os intelectuais brasileiros do comêço do século XX foi um fe-
nômeno riquíssimo de significação. Cf. Ronald de Carvalho, Pequena His-
tória da Literatura Brasileira, 5a. ed., págs. 365-366.
1150). — Idem, I, pág. 416; II, pág. 420.
k J51). — Um, entre muitos exemplos: Correspondência de Capistrano de Abreu, I,
pág. 233.
,752). — Idem, II, pág. 21.
1153). — Humberto de Campos, Crítica, I, pág. 60. Cf. José Honório Rodrigues, in
Capítulos de História Colonial, 4a. ed., pág. 26.
— 150 --

importância a êle reconheCida, bem como ao elemento indíge-


na, apesar do afinco dos estudos lingüísticos, era tido como su-
perado, segundo se depreende de uma carta a Mário de Alen-
car, datada de 1914:
"Para que se ocupar com índios? E' uma dissipação
sem utilidade. Não sei bem o que V. pretende procurar,
mas asseguro-lhe desde já que sairá desiludido" (154) .

Ligando-se esta opinião a outras passagens de sua obra, con-


cluiríamos residir o primacial objetivo de semelhante estudo no
seu significado para a compreensão da mentalidade do século
XIX. Ou seja: o assunto integrara-se na história, no passado,
portanto. O Brasil novo, brotando do surto pelo qual passavam
São Paulo e os Estados do Sul, derivava do movimento imigrató-
rio e rompia o esquema das três raças, preconizado por Martius.
Aos que lamentavam as transformações daí decorrentes, opu-
nham-se respostas dêste teor:
"São Paulo é, continua a ser, e será sempre visce-
ralmente brasileiro. Isso não impede que cem raças se
debatam no seu xadrez etnológico; são justamente êsses
reflexos imigratórios, ordeiros e trabalhadores que, na-
cionalizando pelo berço de seus filhos, tornaram... São
Paulo um dos Estados mais belos e prósperos do país"
(155) .

E, certamente, Capistrano se apercebia dêste fato .


Capistrano, o historiador, que semente poderia atingir o ní-
vel característico de sua obra através da maior identíficação
possível com a realidade brasileira, cuja visão do passado se ali-
cerçava no contacto vivo, consciente e ininterrupto com o mun-
do seu contemporâneo, presta-se, melhor do que ninguém, a
ilustrar a transição para uma nova fase, em cujo âmbito os es-
tudos históricos passariam por uma total renovação. Referi-
mo-nos àquilo que, na falta de uma expressão mais justa, tem
sido designado pelo nome de modernismo; não num sentido res-
trito à arte ou à literatura, mas amplamente, como nos elucida
Ronald de Carvalho, ao expressar-se assim:

(134). — Correspondência de Capistrano de Abreu, I, pág. 228.


(153). — Hélios, Nacionalismo perigoso, in Correio Paulistano, 4-V-1920, ap. Mário
da Silva Brito, História do Modernismo brasileiro. Antecedentes da Se-
mana de Arte Moderna, pág. 125.
— 151 —

"O homem novo do Brasil quer viver a realidade do


momento. Ser moderno não é ser futurista nem esque-
cer o passado. Ninguém pode esquecer o passado. Re-
peti-lo, entretanto, seria fraccionar artificialmente a rea-
lidade, que é contínua e indivisível" (156).

Paulo Prado, um dos patrocinadores da. Semana de 1922,


"aquêle que teve fé no movimento, o que estimou a
importância, o valente e belíssimo trabalho da Sema-
na de Arte Moderna",

que aspirava por uma transformação nos meios cultos brasi-


leiros e era, inclusive, favorável a uma mudança política (157),
era também amigo de Capistrano e voltou-se também para a
história. O Retrato do Brasil é o avesso de Rocha Pita, pois, co-
mo se lê,
"damos ao mundo o espetáculo de um povo habitan-
do um território que a lenda — mais que a verdade —
considera imenso torrão de inigualáveis riquezas, e não
sabendo explorar e aproveitar o seu quinhão... 0 Bra-
sil... Dorme o seu sono colonial... Apesar da aparência
de civilização, vivemos assim isolados, cegos e imóveis,
dentro da própria mediocridade em que se comprazem
governantes e governados" (158).

Tais palavras, que se tornam amenas, diante da profunda


amargura de todo o volume, são o resultado de um exame do
passado, através da tomada de congeiência do presente (159) .
Salta aos olhos a ânsia de chegar ao cerne. do Brasil — tal co-
mo em Capistrano; — e — ainda como em Capistrano — é per-
manente a preocupação com a Europa, combatendo-se o nacio-
nalismo provinciano e buscando-se acertar o passo :com os va-
lores representativos da cultura ocidental; nesta, deveria caber
um lugar ao Brasil. •
No campo da historiografia, logo se fariam sentir os esfor-
ços das novas tendências. Os documentos — cuja publicação não
se interrompera — passaram a ser aproveitados em favor do
novo espírito; os Inventários e testamentos, assim, serviriam a
Alcântara Machado para a Vida e morte do Bandeirante. O pró-
prio Paulo Prado entregava-se à reconstituição e revisão da
— Pequena História da Literatura Brasileira, 5a. ed., pág. 371.
— Cf. Mário da Silva Brito, Os patrocinadores da Semana, in Estado de São
Paulo, Suplemento Literário, n.o 121, 7 de março de 1959.
— Paulo Prado, Retrato do Brasil, 3a. ed, 1929, págs. 200 e 214-215.
— Idem, idem, págs. 183-184.
— 152 —

história paulista, ao lado de vários outros, como Washington


Luís, Basílio de Magalhães e Alfredo Ellis Júnior. Embora alheio
ao modernismo, avultava, pela amplidão de sua pesquisa, Afon-
so de Taunay, também correspondente de Capistrano, ao qual
deveu inúmeros conselhos para sua História geral das bandeiras
paulistas (1924-1951) (160) . A fermentação característica da dé-
cada de 1920, do ponto de vista do ensino, expressou-se ainda
num movimento renovador, abrangendo a campanha pela funda-
ção das Universidades no país. O passo fundamental para a efeti-
vação desta medida concretizou-se ao se instituirem as Faculda-
des de Filosofia, Ciências e Letras de São Paulo e do Rio de Ja-
neiro, respectivamente em 1934 e 1935. E, conforme muito bem
põe em destaque Fernando de Azevedo (161), mais do que nunca
tornou-se gritante a carência, entre nós, de personalidades real-
mente dignas de exercerem cargos de magistério superior, no
ensino dos vários domínios da especialidade intelectual e cien-
tífica. No caso particular da história da civilização, estávamos
diante de um vazio quase absoluto . Deveras, um fatos a difi-
cultar consideràvelmente a compreensão e a própria pesquisa
da históri ado Brasil, era o que podemos chamar de completa
falta de base no concernente à história geral (162) . A maneira
perfunctória como • a matéria era ensinada no curso secundário
não permitia seu aproveitamento para a elucidação de inúme-
ros traços da história brasileira, resultando daí o divórcio qua-
se total entre o campo nacional e o geral do desenvolvimento
histórico . Desde a escola, portanto, era o Brasil visto como al-
go mais ou menos isolado do resto do mundo, compreendendo-
se, diante disto, a facilidade de expansão dos dogmas "ufanis-
tas", contra os quais reagiram Capistrano e seu círculo. Havia,
é verdade, quem tomasse contacto com obras de história geral
superiores -- ao menos em massa — aos manuais do curso se-
cundário . Quais eram estas obras? — Primeiramente, a Histó-
ria Universal de César Cantu, composta entre os anos de 1837-
1848, considerada na Europa como trabalho de vulgarização de
categoria inferior (163); e, depois, a grande História Universal

— Cf. Correspondência de Capistrano de Abreu, 1, págs. 274-350. Sérgio Buar-


que de Holanda, art. cit., pág. 144.
— A Cultura brasileira, 2a. ed., págs. 405-406:..,, ,
— Para o que toca à história no âmbito da Faculdade ..filosofia ..da Uni-
versidade de São Paulo, utilizamo-nos de rióSáo" artigo . O tstado da his-
tória na Faculdade de Filosofia, Ciências e ,Letras dá Universidade de
São Paulo, publicado em O Estado de São paillo“d,:e" 2$1:104`. teimpressO
na Revista de História, n.o 18 (1954) e noS"Ensaiós–paúliStaS; ed.; Anhembí.
— Cf. Gooch, History and Historians in the nineteenth -Ceibiry, 11eaCon Press,
1959, pág. 405. • '
— 153 —

publicada na Alemanha sob a direção de G. Oncken e de cuja


tradução se haviam encarregado os portuguêses. Tratava-se, na
realidade, de uma coleção de obras de história, de valor muito
desigual, mas que contava, entre seus colaboradores, com no-
mes respeitáveis, tais o de Eduardo Meyer. O simples fato, en-
tretanto, de se considerar tal obra como a suma perfeição no
assunto, já nos revela a maneira pela qual se encarava a maté-
ria: não era sentida a necessidde de um contacto contínuo com
o movimento editorial europeu referente à história, ou me-
lhor, a imensa maioria, tão grande que poderíamos chamá-la de
totalidade, mal sabia da existência dêste movimento . E não dei-
xa de ser curioso notar-se que, apesar das grandes simpatias
pela França, logo no setor da história, tão importante para o
desenvolvimento do entusiasmo pró-francês, as obras que aqui
gozavam de maior fama fôssem de autoria de um italiano e de
um grupo de professôres alemães (164) .
Com as recém-fundadas Faculdade de Filosofia, tinham os
que se sentissem atraídos pelo estudo da história, pela primei-
ra vez no país, a oportunidade de freqüentar cursos em que a
matéria, na medida das possibilidades, fôsse ministrada segun-
do moldes europeus; lançavam-se, assim, os fundamentos, sôbre
os quais seria de se esperar pudesse florescer uma moderna his-
toriografia brasileira. Para São Paulo e Rio de Janeiro vieram
professôres franceses, cujos nomes jamais serão esquecidos, ao
tratar-se da história cultural do país: Émile Coornaert, Fernand
Braudel, Henri Hauser, Eugène Albertini, Jean Gagé. Sob a
orientação dêste último as cadeiras de história, em São Paulo,
principiaram a formar seus primeiros doutores; por mais defei-
tuosas que fôssem as teses apresentadas, em virtude das condi-
ções dominantes, não se pode negar representarem um grande
progresso. Pela primeira vez, no Brasil, trabalhava-se metódica-
mente, sob a orientação de um mestre europeu, e dava-se ao
movimento de auto-crítica, que fermentava na elite brasileira,
uma nova direção, na medida em que se principiava a ver o Bra-
sil como uma parte do mundo ou, ao menos, do Ocidente; com-
preendia-se, assim, o quanto de absurdo havia naquela atmos-
fera antes predominante, em que se tinha a impressão de viver
isolado do resto da humanidade. Naturalmente, tratava-se ape-
nas do início, e de um início bem modesto. Havia, e há ainda,
muitos para os quais correspondia a uma verdadeira falta de juí-

(164). — Apenas em 1955 iniciou-se a publicação de uma grande coleção francesa:


a História Geral das Civilizações, sob a direção de M. Crouzet, editada pela
Difusão Européia do Livro (1955-1958).
— 154 —

zo ou perda de tempo a preocupação com estudos relativos à An-


tigüidade, à Idade Média, ou a qualquer outro setor não especifi-
camente brasileiro. Segundo êste ponto de vista, era esta uma
atividade inútil, uma vez que não nos encontrávamos em condi-
ções de lançar caminhos originais em pesquisas sôbre assuntos
desta natureza; em compensação, dever-se-ia dar todo apôio aos
esforços de pesquisas acêrca da história brasileira ou, então, na
última das hipóteses, acêrca da história portuguêsa ou ibérica,
conforme o caso. Acreditamos que tal maneira de encarar-se a
questão é suscetível de ser discutida. Pensamos, em primeiro lu-
gar, que, fora do plano da história geral, não é possível uma
história do Brasil ou, melhor, não é possível dar-se à história
brasileira o seu pleno sentido; de fato, consideramos como in-
dispensável o seu entrosamento no panorama ocidental, ao me-
nos para corrigir-se a tendência à idéia do isolamento e do par-
ticularismo histórico. Ainda mais: a familiarização com pro-
blemas de história geral tem como resultado, mesmo para o es-
pecialista em história brasileira, a abertura de novos horizon-
tes, de novas possibilidades no campo do método . E, neste caso,
até mesmo um trabalho sôbre longínqüas e estranhas regiões po-
deria repercutir favoràvelmente, inclusive sôbre pesquisas lo-
cais de história nacional. Principalmente, uma sadia base de
conhecimentos de história geral é indispensável para o desen-
volvimento de uma legítima consciência ocidental, tanto mais
para os brasileiros, povo de origem colonial, cujas raízes então
na Europa. Alguns séculos não são suficientes para destruir a
fôrça da língua, da religião, das formas sociais e de uma enor-
me massa de tradições, por intermédio das quais estamos, para
sempre, ligados à Europa.
Vários serão os aspectos negativos a merecerem destaque, se
nos dedicarmos a um exame sereno do que têm sido os estudos de
história nas Universidades, na de São Paulo, por exemplo. Vol-
temo-nos, porém, apenas para o que de positivo ela nos deu.
Chama-nos a atenção, antes de tudo, a fundação da Revista de
História, idealizada por E. Simões de Paula; surgiu ela em 1950,
constituindo-se no primeiro periódico brasileiro dedicado à his-
tória, em geral, e contando com a permanente colaboração de
especialistas estrangeiros (165) . Associada ao mesmo grupo des-
ta revista, funciona ainda a Socieda4L de Estudos Históricos,
fundada em 1942 e reorganizada em 1g5q „: Não negligenciável
(165). — A propósito da Revista de História no exterior, cf. Fr. Mauro, Au Brésil:
la Revista de História, in Annales, Jan.-mar. 1957, págs. 103-106; Revue
Historique, 1952, tomo CCVII, n.o 422, págs. 362-363; Bulletin Hispanique,
tomo LIII, n.o 1, 1951, pág. 106, etc.
— 155 —

foi, também, o empênho na constituição de uma biblioteca espe-


cializada, tarefa bastante ingrata, à qual se opunham numero-
sos obstáculos, tudo devendo começar pràticamente do nada; a
aquisição de coleções de revistas, de obras básicas da historio-
grafia européia, de coleções de documentos publicados, de ma-
terial iconográfico, exigia — e continua a exigir — considerá-
veis somas e boa vontade, que nem sempre se encontram (166) .
Por fim, publicaram-se trabalhos reveladores de uma efetiva
renovação na maneira de encarar-se a história, não só entre os
profissionais da matéria, mas também em outros departamen-
tos, que não podem ser postos de lado . Com os olhos postos no
Brasil, foi que Alice P. Canabrava elaborou dois trabalhos de
história da América, recebidos calorosamente pela crítica espe-
cializada (167): O comércio português no rio da Prata (1580-
1640) e A indústria do açúcar nas ilhas francesas e inglêsas do
mar das Antilhas (1697-1735) . A novidade das concepções de-
monstrava-se na introdução ao primeiro volume, como vemos:
"A história da contribuição luso-brasileira para a
evolução dos países platinos tem sido vista principalmen-
te sob o ângulo das campanhas militares, enquanto ou-
tros aspectos, talvez mais interessantes, como o da pro-
funda influência exercida pelo Brasil na formação so-
cial e econômica daqueles países, têm passado desper-
cebidos. Nosso trabalho, pi.ôcurando mostrar a expansão
comercial luso-brasileira nos territórios espanhóis do vi-
ce-reino do Perú na época da união das corôas espa-
nhola e portuguêsa, representa um esfôrço nesse sen-
tido".

Ainda no quadro da história americana, podendo ser apro-


veitado para se atingirem pontos de interêsse para o caso bra-
sileiro, publicou se A penetração comercial da Inglaterra na
-

América espanhola (1713-1783), de Olga Pantaleão. No concer-


nente à história do Brasil stricto sensu, a pesquisa de documen-
tos relativos ao Brasil colonial encontrou em Myriam Ellis de-
dicação e. honestidade, enquanto que Nicia Vilela Luz explorava

— Sirva-nos de consôlo saber que nem em todos os países europeus a situação


é melhor que a nossa. Cf. o caso de Portugal, como nos diz Vitorino Ma-
galhães Godinho: "Cela dit... par un Portugais qui se rapelle qu'a la Fa-
culté des Lettres comme à la Bibllothèque nationale de Lisbonne on cher-
che en vain les oeuvres essentielles de l'historiographie française, anglaise,
italienne, etc..." (Le problème des découvertes, in Annales, 1948, n.o 4,
pág. 523).
— Cf. Annales, 1948, n.o 4, págs. 541-550.
— 156 --

um assunto tão mal conhecido, como o do nacionalismo econô-


mico brasileiro (168) .
Na história das idéias, lembremos João Cruz Costa, com O
desenvolvimento da filosofia no Brasil no século XIX e a evo-
lução histórica nacional, insistindo em temas de grande impor-
tância, como se depreende do seguinte trecho da introdução ao
seu volume:
"O pensamento é sempre produto da atividade de
um povo e, assim, é para nossa história, nas suas rela-
ções com a história universal, que devemos nos voltar
para apreender a nossa própria significação, o sentido do
nosso espírito, a fim de melhor compreendermos os ma-
tizes da transformação de idéias que vieram exercer in-
fluência no nosso meio. Muita idéia mudou e muita teo-
ria nascida do outro lado do Atlântico tomou aqui ex-
pressões que não parecem perfeitamente condizentes com
suas "premissas" originais. E' que há um estilo próprio
aos diferentes meios, estilo êsse condicionado pelas vi-
cissitudes históricas dos povos, que determina ou que in-
flui na tranformação dos sistemas que a inteligência
constrói para explicar a vida".

Contribuições relevantes devem-se a Laerte Ramos de


Carvalho, com A formação filosófica de Farias Brito e pes-
quisas concernentes às reformas educacionais do Marquês de
Pombal, e a Roque Spencer Maciel de Barros, estudioso de Luís
Pereira Barreto e do movimento das idéias durante o Segundo
Reinado .
Lourival Gomes Machado, voltado para os estudos políticos,
trilhou um caminho de invejável beleza, ao relacioná-los com a
história da arte brasileira; o absolutismo e o barrôco, assim,
constituem-se num único e largo horizonte em que se exercita
sua vida curiosidade intelectual.
Sob a orientação do experimentado mestre Fernando de
Azevedo, os estudos sociológicos, contando ainda com a colabo-
ração de Roger Bastide, avançaram o suficiente para abrir no-
vos caminhos à própria pesquisa histórica; no seu âmbito foi
que Florestan Fernandes e Egon Schaden elaboraram seus tra-
balhos relativos ao indígena, campo em que se ilustrou a cadei-
i a de Etnografia e Língua Tupi-Guarani, sob a chefia de Plínio
Ayrosa . Ao departamento de geografia devem-se numerosos
volumes, de importância sobretudo para a história de São Pau-
lo, principalmente sob a orientação de Aroldo de Azevedo.
(168). — Coleção dos Cadernos da Revista de História, 1959.
— 157 —

Inegável é, assim, a fermentação espiritual existente na Fa-


culdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São
Paulo, apesar de todos os inconvenientes, próprios às circuns-
tâncias de um país destituído de tradição universitária e resul-
tantes de uma guerra cuja irrupção se deu em momento tão de-
licado para a nossa cultura. Não se limitou a ela, porém, o im-
pulso assumido pela nossa historiografia nas últimas décadas.
Outras instituições tiveram o mérito de patrocinar e estimular
a pesquisa e a publicação de documentos, cabendo ao Serviço
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a catalogação sis-
temática e a proteção dos arquivos estaduais, municipais, ecle-
siásticos e particulares, cujos acervos interessem à história do
Brasil (169); a Biblioteca Nacional iniciou, em 1928, a coleção
dos Documentos históricos e lançou a público, em 1935-1938,
os preciosos Autos da Devassa da Inconfidência Mineira; o Mi-
nistério da Educação, logo após ter sido fundado, principiava
a divulgação de fontes, sendo o mesmo caminho seguido por
outros institutos (170); publicações foram ainda levadas a ca-
bo pelo Arquivo Nacional e pela Academia Brasileira de Letras
e repertórios de fontes deveram se a particulares, tal o caso de
-

J. C. de Macedo Soares, com as Fontes da História da Igreja ca-


tólica no Brasil; repertórios bibliográficos dignos de atenção fo-
ram A historiografia e bibliografia do domínio holandês no Bra-
sil, a Bibliografia brasileira, de Rubens Borba de Moraes e o
Manual bibliográfico de Estudos Brasileiros (171) .
Importantíssimas publicações são a História da Compa-
nhia de Jesus no Brasil (10 vols., 1938-1950), do Pe. Serafim Lei-
te, ou os 14 vols. da História do café no Brasil, de Afonso de
Taunay. A história econômica assinalou os nomes de Roberto
Simonsen e Caio Prado Júnior, autor, também, de uma Forma-
ção do Brasil Contemporâneo, abrangendo, por enquanto, o pe-
ríodo colonial (172) . A fase dos descobrimento, na qual tanto
se aprofundam os portuguêses, despertou o interêsse de um pes-
quisador com colorido de polemista e que já obteve repercus-
são internacional: T. O. Marcondes de Souza .

— Cf. José Honório Rodrigues, Teoria da História do Brasil, 2a. ed., pág.
324.
— O Instituto do Açúcar e do Álcool, por exemplo, dispõe de um serviço es-
pecializado em documentação histórica, tendo iniciado, em 1954, a publi-
cação dos documentos para a história do açúcar.
— Apesar de tudo, o panorama da pesquisa histórica no Brasil deixa ainda
muito a desejar. Cf. José Honório Rodrigues, A Pesquisa histórica no
Brasil, pág. 155.
— Cf. F. Braudel, Deux livres de Caio Prado, in Annales, 1948, n.o 1, págs.
99-103.
— 158 —

A história pelo prisma biográfico tem seu maior represen-


tante em Otávio Tarquínio de Souza, com os 10 vols. da Histó-
ria dos fundadores ?do Império do Brasil; grande é, aí,
"a parte concedida ao exame da contribuição das
principais personagens que surgiram no momento histó-
rico da emancipação do Brasil e atuaram no processo da
formação de suas instituições políticas. Mas neste con-
junto de biografias os homens aparecem indissolüvelmen-
te ligados aos acontecimentos, homens históricos e não
puros espíritos, homens concretos e não abstratos, asso-
ciando natureza e cultura, natureza e história, ao mes-
mo tempo anges et bêtes, a prevalecer o pensamento de
Kierkegaard. Quando esteve nas possibilidades do au-
tor, sua tarefa biográfica inspirou-se em boa parte nas
lições de Dilthey e diligenciou descobrir, baseado nas
melhores fontes documentais, o nexo efetivo em virtude
do qual as figuras estudadas foram determinadas pelo
meio em que viveram e como sôbre êle reagiram" (173).

Destacam-se, ainda neste parágrafo, Alberto Rangel, Cas-


tro Rebelo, Alvaro Uns, Wanderley Pinto e outros.
Vasta é a obra de Pedro Calmon, desde trabalhos sôbre a
expansão baiana, passando pelas pesquisas em arquivos portu-
guêses (174), até uma grande História do Brasil e uma História
Social do Brasil, campo em que também se ilustrou Nelson Wer-
neck Sodré, com a Formação da Sociedade Brasileira.
Afonso Arinos de Melo Franco, J. F. de Almeida Prado,
José Maria dos Santos, José Maria Belo, Hélio Viana e nume-
rosos outros, voltados para a história regional — ou mesmo lo-
cal (175) — poderiam ser mencionados, se fôsse nossa intenção
dar uma longa lista de nomes; bastará, em lugar disto, uma re-
ferência à, obra de J. H. Rodrigues, Teoria da História do Bra-
sil, onde, além de uma tentativa de sistematização, encontram-se
informes bibliográficos em condições de satisfazer quem queira
aprofundar o assunto (176) .
Na esfera da Sociologia, com profundas repercussões na
historiografia, três nomes, ao menos: Oliveira Viana, Gilberto
Freyre e Fernando de Azevedo. O primeiro, com as Populações
— Otávio Tarquirtio de Sousa, Introdução à História dos fundadores do Im-
pério do Brasil, Ministério da Educação e Cultura, Serviço de Documen-
tação, págs. 8-9.
— Cf. RIHGB, tomo CXCII, págs. 134 ss.
— Cf. Sérgio Buarque de Holanda, art. cit., págs. 151.152.
— Cf., também, os guias publicados no México pelo Instituto Pan-americano
de Geografia e História, em 1953-1956, 3 vols., a cargo de Emílio Willems,
José Honório Rodrigues e Américo Jacobina Lacombe.
— 159 —

meridionais do Brasil e uma série de ensaios inspirados pela


história do Império; o segundo, com Casa Grande e Senzala,
um dos livros de maior ressonância no Brasil dos últimos tem-
pos (177); e o terceiro, com A Cultura brasileira, na qual,
"familiarizado com procedimentos de investigação
social, especialmente os que derivam de teorias durkhei-
mianas, aplica-os ao exame de nossa evolução social, cul-
tural e política" (178)

Não só se verificou no Brasil um movimento merecedor do


nome de "descoberta da Europa"; em diversos centros europeus,
também a nova fase iniciada por volta de 1920 deu lugar a uma
"descoberta do Brasil" (179). E' o que exlica o interêsse votado à
história brasileira por nomes como os de C. R. Boxer, de E.
Coornaert e Henri Hauser, de Manchester e de Hill, de perió-
dicos especializados, a exemplo dos Annales e da Hispanic Ame-
rican Historical Review, ou, na História da Arte, de G. Bazin
e R. C. Smith.
Finalmente, na obra de Sérgio Buarque de Holanda, discer-
nem-se os frutos da inquietação intelectual brasileira, atribuin-
do-se ao país um belíssimo lugar na história das aspirações de
todo o mundo ocidental, quiçá da humanidade. Não deixa de
ser simbólico o fato de ter êle partido de um exame das Raízes
elo Brasil, em 1936, para chegar à Visão do Paraíso, em 1959. Pois,
na verdade, sómente através do empênho em busca da realida-
de brasileira é admissível a nossa integração histórica no plano
ocidental, e sõmente rompendo o vício de considerar-se a his-
tória do Brasil como um compartimento estanque e isolado atin-
giremos, por seu intermédio, a realização de um ideal verdadei-
ramente humano, universalmente humano .

PEDRO MOACYR CAMPOS


Professor-adjunto da Cadeira de História da Civilização
Antiga e Medieval da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo.

— Sf. Sérgio Buarque de Holanda, art. cit., pág. 149.


— Idem, idem, pág. 151.
— Acêrca da ignorância relativa ao Brasil na Europa, cf. C. R. Boxer, Sal-
vador de Sá and the struggle for Brazil and Angola, págs. VII-VIII, ou H.
Hauser, Notes et réfletions sur le travail historique au Brésil, in Revue
Historique, Bulletins critiques, jan.-mar., 1937, pág. 86.

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