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O governo republicano provisório no Brasil (1889-1891) como ditadura

soberana

Vinícius Batelli de Souza Balestra1

Observa Giorgio Agamben, em seu livro Estado de Exceção, que Carl Schmitt
construiu uma teoria do estado de exceção a partir de duas obras suas, ambas
publicadas no início da década de 1920: Die Diktatur, de 1921, e Politische
Theologie, de 1922. Agamben observa que as duas publicações funcionaram quase
como uma “profecia” de uma forma de governo que foi tomando espaço
progressivamente2 em diversos corpos políticos.3

Em A Ditadura, Schmitt apresentaria o estado de exceção por meio do


conceito de ditadura. Já na Teologia Política, a ditadura dá lugar ao tema do estado
de exceção. Agamben aponta para o fato de que, em ambos os livros, o objetivo de
Schmitt é dar uma definição de estado de exceção 4 (e de ditadura) num contexto
jurídico.

Nesse sentido, o próprio Agamben reconhece que se trata “de uma


articulação paradoxal, pois o que deve ser inscrito no direito é algo essencialmente
exterior a ele, isto é, nada menos que a suspensão da própria ordem jurídica” 5. Será
na relação da situação de exceção com a ordem jurídica que Schmitt irá construir
sua teoria sobre a ditadura.

Em A Ditadura, Schmitt teria alcançado o importante objetivo de diferenciar


uma ditadura comissária de uma ditadura soberana. 6 Vejamos como essa

1 Doutorando em Direito pela UFMG.


2 “Ancorar o estado de exceção na ordem jurídica é, para Agamben, o passo decisivo dado
pelo pensador alemão. Essa afirmação se ilumina, quando recordamos que, para o fi lósofo italiano,
o século XX marcou um momento de virada na tradição política ocidental, pois fez da exceção uma
prática normal de governo”. Cf. BIGNOTTO, Newton. Soberania e Exceção no Pensamento de Carl
Schmitt. Kriterion, Belo Horizonte, v. 118, n. 1, p.413, dez. 2008
3 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 53
4 Será na Teologia Política que Schmitt irá cunhar sua célebre definição “Soberano é aquele
que decide sobre o estado de exceção”. Cf. SCHMITT, Carl Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A
crise da democracia parlamentar. São Paulo: Scritta, 2003. p. 87.
5 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 53-54.
6 Estatui Agamben: “Na ditadura, em cujo contexto se inscreve o estado de exceção,
distinguem-se a "ditadura comissária", que visa a defender ou a restaurar a constituição vigente, e a
"ditadura soberana", na qual, como figura da exceção, ela alcança, por assim dizer, sua massa crítica
ou seu ponto de fusão” Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003, p.
53
argumentação é construída. Schmitt aponta, primeiro, para uma caracterização da
ditadura. Tanto em uma ditadura comissária quando numa ditadura soberana,
explica Schmitt, há uma situação jurídica similar: em ambas, quando determinada
finalidade a ser alcançada encontra barreiras e impedimentos de ordem jurídica,
observa-se que essas barreiras são suspensas, concretamente, para que o fim seja
atingido.7

Schmitt referencia o conceito de ditadura a partir da noção jurídica de


legítima defesa. Do mesmo modo que um ato de legítima defesa é aquele que a lei
entende como legal porque se opõe a um ato antijurídico atual – a atualidade do
ataque, neste caso, é o que legitima a reação - também o conceito de ditadura
deverá levar em conta uma situação oposta e atual a ser eliminada 8. Do mesmo
modo que a legítima de defesa terá seu conteúdo variado conforme o ataque do
qual ela precisa se defender, também uma ditadura irá variar a depender daquilo
que pretenda eliminar. A ditadura, assim, não é apenas uma ação: é também uma
reação. 9

É assim que, na ditadura comissária, entende-se que, para defender a


Constituição de algum ataque a ela mesma, para proteger essa constituição in
concreto, essa Constituição é temporariamente suspensa para dar lugar à ação
política da ditadura.

Em outras palavras, o que Schmitt faz, ao explicar a ditadura comissária, é “a


distinção entre normas do direito e normas de realização do direito”, com o que o
autor poderá realizar, assim sua articulação entre a ordem jurídica e uma ordem que
está fora do direito; essa articulação está inserida no contexto de explicar a relação
entre estado de exceção e ordem jurídica, vez que “o Estado de exceção ainda é
algo diferente da anarquia e dó caos,no sentido jurídico à ordem continua
subsistindo, mesmo sem ser uma ordem jurídica”10.

No caso da ditadura comissária, a norma que permite realizar o direito é a


ação do ditador que, ao suspender constituição, cria uma exceção concreta com a
qual se poderá, novamente, ter um meio homogêneo, uma “situação normal” na qual

7 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 179-180


8 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 180.
9 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 191.
10 SCHMITT, Carl Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia parlamentar.
São Paulo: Scritta, 2003. p. 92.
a Constituição possa gozar de validez. Ausente essa situação normal e homogênea,
a Constituição não poderá prosperar, daí a necessidade da ação comissária. 11

Na explicação de Bignotto:

Ou seja, a ditadura não é pensada como uma forma de governo, mas como
uma força, que atua no limite da vida política, lá onde as leis são forjadas. A
ditadura comissarial age fora dos limites legais, mas com o intuito de
preservar a norma. Desse ponto de vista, Schmitt não a vê como algo que
ameaça destruir totalmente a ordem, mas sim como um instrumento, que
procura conciliar norma e realidade.12

Já a ditadura soberana13 quer criar a situação, o meio homogêneo, no qual


seja possível haver uma ordem jurídica. A ditadura soberana quer eliminar a
situação atual para criar uma nova realidade concreta que torne possível uma nova
constituição; a ditadura soberana não quer suspender uma constituição, valendo-se
de um direito nela fundamentado.

O apelo, a referência, da ditadura soberana, não é uma constituição


existente, mas futura. Seria possível, a princípio, entender que essa situação não
mereceria consideração jurídica: afinal se o Estado só pode se fundamentar em
uma Constituição, a negação de uma constituição ou sua inexistência seria o
14
equivalente a não ter, efetivamente, uma ordem jurídica.

Agamben anota que, no caso da ditadura soberana, em vez de uma


separação entre normas do direito e normas de realização do direito, o que permite
conceituá-la é a própria separação entre poder constituinte e poder constituído.
Esse poder constituinte é definido como um poder que guarda conexão com as
constituições existentes, mas não é abarcado por elas, tampouco as nega.

11 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 182.


12 BIGNOTTO, Newton. Soberania e Exceção no Pensamento de Carl Schmitt. Kriterion,
Belo Horizonte, v. 118, n. 1, p.413, dez. 2008
13 O caso da ditadura soberana, que Schmitt considera tendo como exemplo a revolução
bolchevique, representa algo muito diferente: trata-se de nada menos do que da subversão da ordem
vigente com o objetivo de se criar uma nova ordem. A concentração de poderes é aqui um
expediente para restabelecer os emblemas da plenitude do poder originário e constituinte, fonte de
energia e de regeneração para toda ordem instituída. A conveniência frente à necessidade opera
como pretexto para recobrar uma dimensão latente e inextinta do poder – sua autêntica substância –,
relegando para as margens a anódina e débil ordem constitucional liberal.” Cf. PRIETO, Evaristo.
Poder, Soberania e Exceção: uma leitura de Carl Schmitt. Revista Brasileira de Estudos Políticos,
Belo Horizonte, v. 104, n. 1, p.116-117, dez. 2012.
14 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 182-183.
O poder constituinte seria aquele da clássica definição de Sieyés: contrapõe-
se ao poder constituído, e é, por princípio, ilimitado. Não é autovinculado, não sofre
coações nem está sujeito a formas jurídicas. Até mesmo os direitos inalienáveis do
homem são esquecidos quando “impera a vontade geral” 15.

Numa ditadura soberana, no entanto, como na comissária, há


representantes, há aqueles que irão atuar em nome daquela reação, daquela
contra-ação, que visa evitar determinado estado de coisas: seja uma ameaça à
constituição, seja uma ameaça à futura ordem, que é o caso efetivo da ditadura
soberana. Os representantes que atuam, na ditadura soberana, em nome do poder
constituinte do povo, são comissários dependentes.

Atuam de maneira incondicionada, embora estejam formalmente ligados ao


poder constituinte. Mas o conteúdo de sua missão deve levar em conta a formação
básica da vontade geral e a futura constituição que se pretende implantar 16. Ao
contrário de representantes ordinários, os representantes extraordinários têm plenos
poderes para executar sua específica missão, qual seja, a de organizar uma nova
constituição, que pode tanto ser outorgada, simplesmente, como também pode ser
17
submetida a referendo popular posterior.

Schmitt chama atenção para o fato de que a ditadura soberana também


conta com uma comissão de representantes, uma comissão de ação. No entanto, a
ditadura comissária autoriza a ação da sua comissão como um órgão constituído e
que encontra fundamento na própria constituição existente, enquanto a comissão
que atua na ditadura soberana deriva apenas e tão somente da necessidade de que
exercite o poder em nome do poder constituinte. O ditador comissário, por um lado,
pode agir incondicionalmente pela missão que recebe de um poder constituído; o
ditador soberano, por outro lado, representa uma comissão, que pode agir
incondicionalmente, e recebe esse poder do poder constituinte. 18

Agamben aponta para o fato de que esses conceitos como que preparam o
terreno para a futura teoria do estado de exceção, que Schmitt publica um ano
depois, em sua Teologia Política (1922). No conceito de ditadura comissária,

15 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 186.


16 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 191.
17 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 191.
18 SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985, p. 193.
percebemos que uma norma jurídica pode ser suspensa de sua aplicação concreta,
sem, no entanto, ter perdido vigência. Uma norma de realização do direito age para
suspender a norma jurídica vigente. Aqui se percebe a diferença entre norma
jurídica e norma de realização do direito. Na ditadura soberana, por outro lado,
podemos perceber uma constituição que já existe, por meio da “forma mínima do
poder constituinte”19; no entanto, essa constituição ainda não está vigente. A norma
de realização irá operar justamente para que a constituição formal possa entrar em
vigor. 20

Considere-se, agora, a oposição entre a norma e a decisão. Schmitt


mostra que elas são irredutíveis, no sentido que a decisão nunca pode ser
deduzida da norma sem deixar resto (restlos) (Schmitt, 1922, p. 11). Na
decisão sobre o estado de exceção, a norma é suspensa ou
completamente anulada; mas o que está em questão nessa suspensão é,
mais uma vez, a criação de uma situação que torne possível a aplicação da
norma ("deve-se criar a situação em que possam valer [gelten] normas
jurídicas" [ibidem, p. 19]). O estado de exceção separa, pois, a norma de
sua aplicação para tornar possível a aplicação. Introduz no direito uma zona
de de anomia para tornar possível a normatização efetiva do real. 21

Assim é que percebemos que a norma e a decisão estão, como apresentado,


opostas; a decisão, no estado de exceção, é que possibilita a aplicação da norma.
No caso da ditadura soberana, a decisão daquele que age incondicionalmente – o
comissário do poder constituinte – cria aquela “zona de anomia” para que seja
possível a vigência formal da Constituição.

Com a Proclamação da República no Brasil em 15 de novembro de 1889 e a


subsequente queda do Regime Monárquico, os revolucionários republicanos
brasileiros – amalgamados numa aliança política entre positivistas, liberais
oligárquicos e jacobinistas22 – se viram diante da necessidade de estabelecer um
Governo Provisório que, ao mesmo tempo, conduzisse os assuntos imediatos do
governo e, mais importante, erigisse as novas normas fundamentais de direito
público que regeriam a agora República Federativa. Já na data de 15 de novembro
de 1889, o Governo Provisório lança mão do Decreto nº 1, parte de “um conjunto de
atos sucessivos, cuja combinação produzira uma Constituição de bolso,
emergencial, para reger o país, evitar o caos e decretar as bases fundamentais da

19 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 58.


20 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São. Paulo: Boitempo, 2003, p. 58
21 AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 59.
22 CARVALHO, José Murilo de. Formação das Almas: o imaginário da república no Brasil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 9
organização política imediatamente estabelecida” 23. Esse governo ditatorial,
conduzido por Deodoro da Fonseca até a promulgação da Constituição em 24
fevereiro de 1891, também foi responsável pelas linhas mestras do texto
constitucional que viria a ser debatido (e pouco modificado) pela Assembleia
Constituinte.

A diferenciação recoloca o debate a respeito do governo provisório, cujo


objetivo era justamente o de fundar juridicamente a nova ordem republicana,
aproximando-o do conceito decisionista de ditadura soberana. Será possível na
continuidade dessa pesquisa, detalher melhor não apenas os conceitos de ditadura
soberana e ditadura comissária em Schmitt, como esmiuçar esse período
republicano brasileiro para analisá-lo sob o ponto de vista da teoria decisionista de
Schmitt.

REFERÊNCIAS

SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985.


BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. São
Paulo: Paz e Terra, 1991.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo, 2003.
BIGNOTTO, Newton. Soberania e Exceção no Pensamento de Carl Schmitt.
Kriterion, Belo Horizonte, v. 118, n. 1, p.401-415, dez. 2008
BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. São
Paulo: Paz e Terra, 1991.
CARVALHO, José Murilo de. Formação das Almas: o imaginário da república no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
PRIETO, Evaristo. Poder, Soberania e Exceção: uma leitura de Carl Schmitt.
Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, v. 104, n. 1, p.101-150,
dez. 2012.
SCHMITT, Carl. La Dictadura. Madrid: Alianza Editorial, 1985.
SCHMITT, Carl Teologia Política. In: SCHMITT, Carl. A crise da democracia
parlamentar. São Paulo: Scritta, 2003. p. 81-130.

23 BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. São Paulo:
Paz e Terra, 1991, p. 210.

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