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1 A ARTE

1.1 CONCEITUALIZAÇÃO

Inicialmente queremo-nos concentrar na indispensabilidade da arte na


liturgia. Quando usamos o termo indispensabilidade queremos frisar,
enfaticamente, que não existe liturgia verdadeira e eficiente quando a arte é
prescindível. É certo que, à primeira vista, pode e verdadeiramente parece
ambiciosa e, talvez, exacerbada tal declaração. E tal percepção é procedente, uma
vez que, hoje, exauriu-se quase completamente o conhecimento da eficácia da
arte como canal de comunicação e ligação com o transcendente.
Outro momento extremamente difícil hoje é poder falar de arte sem
que se tenha a pseudo-impressão de que a palavra arte nos reporte a realidades
de uma classe social distante, favorecida economicamente, ocupada com
trivialidades, distanciada do evangelho, etc. Visões obtusas do verdadeiro papel e
conceito da arte podem facilmente nos levar a tais impressões. Mas, ainda assim,
como é possível tratar de arte na favela? Existe arte na miséria? Pode a arte
desempenhar algum papel significativo na paupérie? Somente um conceito
“correto” de arte pode responder.
Uma vez que nos estamos movendo no contexto da religiosidade, mais
especificamente no âmbito da liturgia, mantenhamo-nos nessa área, já que o
contexto não afeta o conceito. Consideremos ainda uma situação mais específica,
a situação de uma ação litúrgica, particularmente a maior de todas as AÇÕES DE
GRAÇA: a Missa. Seja no contexto de toda a missa ou no de uma ação específica,
esta ação de graças consiste num conjunto de AÇÕES que deve partir do desejo
intrínseco de agradecer a Deus, não só em pensamento como de alguma forma
palpável e frutuosa, ou seja, imanentizar o transcendente, “palpabilizar” o
impalpável, materializar o abstrato. Concluindo: Ação litúrgica é o ato de
traduzir, trazer ao imanente o transcendental em ações que devem ser
impregnadas do desejo incontido de ir em direção a Deus. Tal será
possível a partir da entrega de si à busca da superação de nossas “AÇÕES”,
concepção de vida esta que nos leva, invariavelmente, a um conceito mais amplo
de arte. Vejamos: É ato de artisticidade, portanto, e prenúncio de arte
verdadeira, toda ação cuja finalidade seja a superação. A busca incessante
da superação, em diferentes circunstâncias da vida, seja em alguma atividade ou
ocupação, levará, cedo ou tarde, ao aperfeiçoamento que, por sua vez, conduzirá
a irrepetibilidade e, conseqüentemente, à expressão artística. Na continuidade
desse caminho, chegar-se-á à arte pura e, como tal, ela desempenhará o seu
divino papel de ser o ato palpável da imanentização do transcendente e
transcendentalização do imanente.
Concluímos, pois, que o papel ou função da arte é infinitamente similar
ao da ação-simbolo litúrgico, ou seja, elo entre o divino e o humano. Constatado
que este “ato litúrgico” jamais pode prescindir da busca de superação – que nos
levará, indubitavelmente, a um “ato” de arte – não pode ser concebível ação
litúrgica dissociada da arte.
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1.2 APLICAÇÃO

Uma vez compreendido o conceito de arte e sua função primordial,


gostaríamos então de expor um conjunto de fatores ligados diretamente à
expressão de arte mais proeminente nas celebrações: o canto e a música litúrgica.
Ainda que particularizássemos nossas considerações às peculiaridades da música e
do canto, não podemos de forma alguma esquecer do seguinte:

Na liturgia, a percepção estética é uma percepção integral,


onde a arte, ou o belo, resulta de todo o conjunto. Em
outras palavras, se um canto desenvolve na liturgia os
significados fundamentais do canto, e se corresponde a uma
situação ritual típica ou especifica, resultará arte (assim
como resulta "sacro"). [GELINEAU, J. Em nossas
assembléias: Teologia da missa. São Paulo: Paulinas, 1975, p.
234]

A estética autônoma, e por isso se entende a estética pela estética,


deve ser substituída pela ESTÉTICA DOS SIGNIFICADOS, das funções, das ações.
TUDO deve estar em função do significado do que se celebra.
Voltamos a insistir – por mais que muitos, por razões insondáveis,
encontrem tremenda dificuldade em convencer-se – que toda a questão se
resume, em última análise, em fazer com QUALIDADE.
“Se a música for como de fato requer a liturgia, será um sinal que nos
leva do visível ao invisível”. [CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL.
Pastoral da música litúrgica no Brasil . Rio de Janeiro: Paulinas, 1976 (Série
Documentos da CNBB 07) p.17]
A extrema qualidade com que algo simples e elementar é feito eleva
este algo a significação de obra de arte. Porém, muito mais importante que isso é
não cairmos no erro de concluirmos que algo, por ser complexo e rebuscado,
obrigatoriamente seja uma obra de arte.
Se formos a uma apresentação musical ou a um concerto e lá nos
oferecerem uma execução sofrível de obras de Mozart, por exemplo, a obra de
arte não se realizou. Foi como se tivéssemos ido a um museu observar uma
estátua empoeirada, mal iluminada, atrás de um vidro sujo. Se não tivermos olho
clínico para observarmos o objeto, apesar das contingências negativas,
certamente sairemos com uma impressão totalmente equivocada do mesmo.
Portanto, se não formos ainda capazes, em nossas igrejas, de cantarmos cânticos
mais complexos, cantemos aquilo que possamos fazer com a máxima qualidade.
Para tanto, onde quer que estejamos, é preciso que tenhamos sempre alguém
para orientar os “artistas” a verem as falhas e corrigi-las e a preocuparem-se para
que o canto e/ou a execução no instrumento, bem como as leituras e outros ritos,
sejam realizados sempre com mais sacralidade sem permitir a vazia teatralidade.
A seguir poderemos contemplar uma espetacular compreensão do
papel da arte na relação homem-Deus.
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O Vaticano II não vacila em afirmar ser característico do


homem "não atingir a humanidade plena e verdadeira senão
pela cultura", ou seja, mediante o cultivo de suas qualidades
materiais e espirituais, dentro do grupo social a que cada
um pertence. Mas a palavra cultura indica a "maneira
particular como os homens cultivam sua relação com a
natureza, as suas relações entre si e com Deus".
[CHEUICHE, Dom Antônio do Carmo. Na fronteira com o
sagrado. Cultura e Liturgia, Porto Alegre, p.1]

Mantenhamo-nos atentos ao que se segue:

Sob a denominação de "expressões culturais", entende-se,


em geral, o conjunto complexo de costumes, tradições,
hábitos, assim como a linguagem, as artes, as comunicações
sociais, etc.
Dentro do enorme arco que abrange a variedade do
complexo âmbito das "expressões culturais",encontra-se o
que se conhece como "formas artísticas". Trata-se de um
tipo de expressão de conteúdo mais profundo e espiritual,
portadoras de decisivos valores de sentido, tão importantes
para qualquer cultura. São expressões que se destinam, não
ao uso, mas à exigência contemplativa do homem, ao ser
estético que ele igualmente é.
As expressões culturais nesse sentido mais rigorosas e
profundas, isto é, as formas artísticas, tal como as entende
a filosofia da arte, são figuras simbólicas, metafóricas.
Quer dizer que elas têm a sua forma própria, objetiva,
cópia da natureza ou criação pelo homem, mas, ao mesmo
tempo, com poder de sugerir e significar outra realidade
que se encontra para além delas. Resultam verdadeiras
metáforas, segundo o sentido etimológico desta palavra,
funcionam como mediações de sentido, que nos levam, nos
transportam, para cima. A metáfora se encontra, de fato,
na fronteira entre a arte e a mística. (grifo nosso)
[CHEUICHE, Dom Antônio do Carmo. Na fronteira com o
sagrado. Cultura e Liturgia, Porto Alegre, p.1]

E ainda:, “em todas as culturas, a arte constitui a mais excelsa


linguagem, o único idioma, com que comunicar experiências interiores do ser
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humano, tanto em meio ao cosmos como diante do mistério de Deus”.


[CHEUICHE, Dom Antônio do Carmo. Na fronteira com o sagrado. Cultura e
Liturgia, Porto Alegre, p.3]
Lembramos que necessitamos ter em mente a todos os instantes a
compreensão do conceito de arte exposto anteriormente. O fato de a arte
constituir a mais excelsa linguagem não impede que o mais simplório dos seres
humanos não possa realizá-la em seu universo e ir ao mais excelso de seu
universo, ultrapassando seus próprios limites. Universos devem ser expandidos e
limites rompidos, e é dever e obrigação dos pastores da Igreja catapultar a cada
ser humano sob seu cuidado a superar-se a si mesmo.
Essas considerações são válidas para todas as formas de expressão
artística presentes na celebração.

A linguagem literário-litúrgica deve privilegiar aqueles


termos e expressões que transcendem a utilidade ou a
clareza formal, a mediocridade do banal, a trivialidade
do dia-a-dia rotineiro, desgastada por todo o tipo de
propaganda e manipulação. O estilo literário da
celebração procure, antes de tudo, suscitar um estado de
atenção e alegria espiritual profundas de respectiva
disponibilidade. Esse despertar para o espírito e a
manutenção dessa atitude constituem um resultado de toda
experiência estética, que deveria ser incorporado ao culto.
(grifo nosso) [MALDONADO, Luis; POWER, David. Arte e
símbolo na liturgia. Petrópolis: Vozes, 1970, p.6(158)]

Diante do exposto não nos podemos equivocar. Não estamos propondo


posturas pernósticas. Conduzir o povo ao entendimento de uma linguagem
mais elevada não significa deixar de falar a “língua do povo”.

Infelizmente no canto de hinos parece que houve a ilusão


de que, para o povo participar, as palavras devem ser
fáceis. Para muitos lugares pode ainda ser válido um
comentário feito dez anos atrás: "Música composta ao
redor de três acordes, teologia pobre e espiritualidade
fraca ainda ocupam o primeiro lugar".(grifo nosso) [POWER,
David. Música e experiência de Deus. Petrópolis: Vozes,
1970. p.150(294)]

Levarmos ao povo uma linguagem ou expressão mais elevada nos dá


mais trabalho, pois compete ao que conduz a tarefa explicar, esclarecer e ampliar
os horizontes do povo. No entanto, é comum ouvirmos tais argumentações: “esta
palavra o povo não entende!” ou “o povo não fala assim!” E de fato nunca
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entenderá e muito menos falará se não houver aquele que o instrua. Descer até o
povo? Sempre. Estar com o povo? Sempre. Estagnar com o povo? Nunca. Com
ele, impulsiona-o.

“Vivam a liturgia; e, sobretudo, cantem, cantem, cantem


ordenadamente bem; e cantem todos. Devo confessar-lhes:
esta solicitude pelo espírito litúrgico, arraigado nas
entranhas do povo, e a prática e o gosto pelo canto na
igreja, eu os carrego no coração” (João XXIII,
Comemoração de D. Lorenzo Perosi, 14 de maio de 1959).
(grifo nosso) [ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica:
Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.70]

João XXIII declara: “ordenadamente bem”. Essas palavras nos levam


imediatamente àquela idéia do caminho que nos leva à arte , elo de comunhão
entre Deus e o homem. Se o homem é capaz de Deus é inconcebível que não seja
capaz da arte.
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2 A SITUAÇÃO DA LITURGIA HOJE

2.1 QUESTÕES GERAIS

2.1.1 Problemas conceituais

Cremos que a situação da liturgia hoje, sobretudo no Brasil, é


gravíssima. Para que possamos visualizar a gravidade da situação é imperioso que
nos abramos a um universo mais amplo. Somente com amplos parâmetros de
comparação poderemos dar-nos conta da situação que vivemos. O profundo e
detalhado estudo dos documentos oficiais da Igreja sobre liturgia, somado ao
firme propósito de os cumprir, poderá significar o princípio de mudança.
Em nossa opinião, a causa primeira que desencadeou esse processo,
que teve início em princípios da década de 1970, foi o desejo louvável de
aproximar a Igreja ainda mais dos desfavorecidos com uma linguagem nova e
cativante. Porém, apesar da excepcional decisão, foi verdadeiramente sem
preparo e sem uma avaliação profunda das conseqüências, que a apaixonada
empreitada foi posta em prática.

No contexto da liturgia romana reformada pelo Vaticano


II, muitas comunidades tentaram criar um tipo de
celebração que fosse antes de tudo evangélico-
evangelizadora e, em segundo lugar, criativa. Para o
primeiro, julgou-se necessário que a liturgia fosse um
testemunho da pobreza anunciada pelas bem-aventuranças.
Deveria agir com "meios pobres". Para o segundo, pensou-se
que seria mister fomentar a espontaneidade.
Essas boas intenções produziram frutos, mas igualmente
problemas. Por falta de experiência de uma ampla visão do
que é a evangelização e do que significa criatividade,
chegou-se a um tipo de liturgia amputada e mutilada, uma
liturgia inexpressiva, ou seja, destituída de verdadeira
expressividade por carecer de uma forma fundamental de
expressão, a expressão artística. (grifo nosso) [ALCALDE,
Antonio. Canto e música litúrgica: Reflexões e sugestões.
São Paulo: Paulinas, 1998, p.70]

Essa postura fez com que a Igreja viesse inconscientemente a


contribuir com o processo de deterioração do sentido crítico-estético que se levava
a cabo pelas circunstâncias políticas do país no período.
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O anúncio e, sobretudo, a celebração de fé que acontece na


liturgia não é possível, caso não se alcancem certas
profundezas do homem. E o acesso a tais níveis passa pelo
caminho de uma certa experiência estética. Além disso, a
expressão artística é fruto, certamente, da criatividade,
mas nunca do espontaneísmo. Confundiu-se muitas vezes
criação (isto é, gestação difícil, longa, busca de estruturas,
etc.) com improvisação. Os resultados foram uma liturgia
pobre, indigente e frustrante. (grifo nosso)
[MALDONADO, Luis; POWER, David. Arte e símbolo na
liturgia. Petrópolis: Vozes, 1970, p.7(159)]

É mister que entendamos de uma vez por todas certos conceitos


simples e que não permitamos mais confusões insipientes. Cremos
verdadeiramente ser vital uma campanha de esclarecimento e definições quanto a
conceitos básicos. Na democracia também se estabelecem conceitos e definições.
Ainda hoje se perde um tempo precioso em debates e discussões sobre assuntos
que já deveriam estar fora da pauta há muito tempo.
Uma liturgia complexa e formalista nada tem a ver com uma liturgia
simples e nobre e muitíssimo menos com uma liturgia pobre e banal.
Porém é preciso que estabeleçamos, talvez em uma cartilha, todas as
características peculiares da simplicidade, da pobreza, da nobreza, da dignidade,
etc.
É preciso que os pobres sejam simples e nobres e os ricos sejam
simples e nobres e que então ricos e pobres se encontrem nesse universo para
que os corações de ambos sejam tocados.

Talvez a nova liturgia ofereça ocasião de superar o abismo,


pois as diversas classes encontram-se na comunidade (na
medida em que a Igreja não perdeu os intelectuais e os
trabalhadores). Poderá a música eclesiástica prestar um
serviço não só a um problema de classes na comunidade,
mas, através da comunidade, ao problema de classes no
mundo? É bonito demais para se poder imaginar.
[HUIJBERS, Benard. Arte e símbolo na liturgia . Petrópolis:
Vozes, 1970, p.122(274)]

A máxima “é difícil para o povo” normalmente advém dos que


confundem pobreza com falta de inteligência. Falta de educação, informação,
embrutecimento das sensibilidades não é falta de inteligência.

2.1.2 Efeito da banalização


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Grave problema na liturgia hoje é a banalização, resultado da confusão


dos conceitos: simplicidade-banalização, nobreza-ostentação, entre outros. Em
nenhum outro elemento da liturgia se percebe isso mais contundentemente que
na música litúrgica.
“Confunde-se o bem feito com luxo, com falta de pobreza, com
ostentação. Porém, não colocamos flores murchas no altar – seria um desrespeito.
Pois a música sem preparo pode-se comparar às flores murchas.” [SCHUH, Renato
Inácio; KOCH, Renato (coord.). Estudo sobre ensino da música nas casas de
formação. Viamão, 1989, p.2]
Não temos intenção de, neste momento, lançarmos polêmica ou
abrirmos debates. Apenas constatar um fato incontestável: A CONSTITUIÇÃO DO
BANAL É A EFEMERIDADE. Isto é tão óbvio que dispensa explicação. A liturgia
quando constituída de elementos banais (efêmeros) provoca uma
natural fome voraz por mudanças e “novidades” constantes.

O canto litúrgico, tanto quanto o rito e a própria liturgia, é,


por natureza repetição, memória, costume e por sua vez,
novidade, atualização. O canto, tanto quanto a liturgia, é
repetitivo, muito embora ocorra sempre uma estréia. O
Kyrial, por exemplo, era repetitivo no decurso do ano; por
vezes, entretanto, vinha a ser uma variedade. Cada tempo
litúrgico tinha seu canto específico, que era cantado ano
após ano. O próprio canto continha em si o poder
evocativo do tempo: o Rocate coeli, no Advento; Adeste
Fidelis, no Natal; Attende Domine, na Quaresma; Victimae
paschale laudes, na Páscoa; Veni, Sanctae Spiritus, no
Pentecostes... Eram cantos e hinos respectivos que
identificavam o tempo, pertencentes à “memória coletiva”
da comunidade, os quais, todavia, estreavam a cada ano.
O passado nos ensina com sua pedagogia multissecular e
poderíamos selecionar os quatro ou cinco cânticos mais
específicos e representativos para cada tempo litúrgico. Ao
ouvi-los novamente a cada ano, esses cânticos evocarão a
assembléia o tempo em que nos encontramos, ambientando-
a no espírito desse tempo. Os cantos selecionados não mais
serão cantados até o ano seguinte. (grifo nosso) [ALCALDE,
Antonio. Canto e música litúrgica: Reflexões e sugestões.
São Paulo: Paulinas, 1998, p.23]

A causa única de todos os problemas da atual música litúrgica


se encerra na falta de conteúdo literário e musical, falta de
profundidade. Por mais que a preparemos e ensaiemos logo fastidiará,
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pois não possui sustentabilidade, e serão necessárias outras e outras e


outras...
A aplicação do conceito ação-superação, que leva invariavelmente a
uma expressão que poderá vir a ser artística, ainda que rudimentar – no caso de
favelas, por exemplo – conduzirá o indivíduo e, por conseguinte, a comunidade a
um aprimoramento crítico e conseqüentemente à necessidade de mais elaboração
na realização da ação litúrgica.
O primeiro passo é não permitir um grande equívoco: permitir
introduzir na Igreja os cânticos que agradem ou “divertem” a comunidade,
baseado no simples critério de que, caso contrário, muitos deixarão de
comparecer e participar da celebração. [ALCALDE, Antonio. Canto e música
litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.30]
Isso não significa que seja dispensável o bom senso na condução do
processo.
“Em comunidades carentes, sobretudo, é um grande desafio, todavia
muito interessante, conjugar o popular e o artístico, o belo e o fácil, o simples e o
nobre.” [ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica : Reflexões e sugestões. São
Paulo: Paulinas, 1998, p.31]
Cremos ser ainda necessário expormos algumas situações que deixarão
claro as causas e conseqüências de equívocos cometidos no passado e que
perduram no presente. Por exemplo, orientações como: “a música deve expressar
a fé autêntica do povo” nos levou e leva a grosseiros erros quanto ao que, de
fato, é autêntico do povo.

Formas amadorísticas, de grafia rudimentar e linha


fastidiosa, de sovadas fórmulas rítmicas, pseudo-invenções,
contrafações da música folclórica... rebaixam o nível
artístico da assembléia, que a liturgia – “exercício do múnus
sacerdotal do Cristo” – procura elevar. Diletantismo
infantil e ridículo a evitar-se! Certo amadorismo vem
tentando os temerários aventureiros da “composição”
musical, de formação deficiente, para reduzir a
“primativismo” o repertório da Comunidade Eclesial. (grifo
nosso) [SOUZA, José G. de. Tradição musical
brasileira:princípios normativos para se adaptar essa
linguagem à liturgia: preparação e formação artística.
Revista de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1976 (set./out.de
1976), p.25]

Já em meados dos anos 1970 o próprio Papa Paulo VI juntamente com


muitos outros advertiam sobre os problemas que então já assustavam, e estavam
apenas iniciando.
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O Santo Padre, papa Paulo VI, dezenas de vezes o tem


reclamado, em alocuções e documentos escritos.
Lamentação universal brotando, especialmente, das
sensatas observações de pastores (Cardeais, Bispos, e
Superiores religiosos) e de artistas, musicistas e regentes,
no seio das civilizações ocidentais, acentuadamente latino-
americanas. Liturgistas de fama internacional o estão a
reclamar: “à hora de uma convulsão mundial que sacode
todos os domínios da vida religiosa... como raramente se deu
no curso da história, será necessário, a fim de resolverem-
se os problemas da música sagrada, haja compositores... da
ressonância daqueles cujas obras ultrapassaram o tempo...”,
proclamava o Prof. Dr. Carlos Winter, de Friburgo, no
Mozarteum de Salsburgo, durante o Congresso
Internacional de Música Sacra, em setembro de 1974.
[SOUZA, José G. de. Tradição musical brasileira: princípios
normativos para se adaptar essa linguagem à liturgia:
preparação e formação artística. Revista de Liturgia. São
Paulo: Paulinas, 1976 (set./out.de 1976), p.25]

A reflexão que se segue é impressionantemente verdadeira e traduz de


fato o espírito do diletantismo (que é a característica de uma pessoa que trata
de um assunto de forma medíocre e superficial, mas satisfaz-se com sua
mediocridade). Ao serem citadas, a seguir, algumas das máximas expressões da
arte humana, não podemos nos permitir preconceitos que nos fechem em um
universo no qual não alcancemos todo o espectro das manifestações humanas.

Sôfrega afoiteza de lançar no papel pentagramado, ao


disco, às fitas magnetafônicas, aos prelos, uma enxurrada
de do-ré-mis, para consumo. Tendências antropocêntricas,
e... hélas! por vezes dessacralizantes! Dessacralização ou
profanação... Cavalgando as trincheiras fronteiriças entre o
sagrado e o profano; perdendo-se a “mística do Santuário”
onde reside “magna gloria Domini”; em que a música-oração
associa os três valores fundamentais: culto-oração-música;
em que a Arte tem sentido somente quando é “l’art pour
Dieu”... transferem-se, então, para as AÇÕES Litúrgicas
cantos leves, recreativos, (destinados a Encontros,
Círculos, jornadas literário-musicais), baterias estrepitosas
(comparar estas com o efeito, misteriosamente submisso,
dos tambores ao “Sanctus” da Missa Luba”), guitarras
rechinantes. Pululam “missas” dos mais prosaicos títulos,
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nas quais textos sublimes do Glória, venerando hino da


eucologia triunfal; do Santo-Santo-Santo, dos Serafins de
Isaías e da apocalíptica visão (quem conhece o repertório
polifônico deve lembrar-se do místico “Duo Serafim” de
Victoria) são entregues a batucadas levianas, a cantilações
abastardas (a insuperável perfeição do recitativo
gregoriano do Pai-Nosso e do Prefácio maravilha a Mozart!),
de fictícia exteriorização.
“É preciso dar música”... respondiam-nos alguns, aos quais,
delicadamente, fazíamos reserva quanto à pressa com que
se fartavam de dar e devorar ao mimeógrafo folhas e mais
folhas, cadernos infindáveis de notas musicais, escritas
sobre um teclado, ao violão, numa mesinha, fecundos como
geniais Mozart, ou Villa-Lobos! A hora urge, é certo. Um
“canto novo” – é, afinal, a tese que expusemos em tantos
Encontros, Cursos e escritos, e, aqui, repetimos – deve
repor os vazios deixados pelos repertórios tradicionais:
gregoriano e polifonia, em latim. Mas a música é arte e
“arte proeminente, necessária e integrante da liturgia”. Há
cânones fundamentais, há normas reguladoras; as nódoas da
linguagem, o desleixo no escrever, não se perdoam; e
abastardam até o conceito do “sagrado”. Compor – só
quando se tem algo para dizer, insiste Stravinsky; “temos
um dever para com a música, ou seja, inventá-la... a invenção
supõe imaginação... a faculdade de criar nunca nos é dada só
por si... é a cultura que traz á luz o valor completo do
gosto... o artista impõe uma cultura sobre si próprio e
termina por impô-la aos outros... é evidente – cita
Baudelaire – que as retóricas e as métricas não são tiranias
inventadas arbitrariamente, mas uma coleção de regras
exigidas pela própria organização do ser espiritual...”
(Poética da Música, passim). Não nos apraz relembrar que,
desde o Antifonário de Gregório e o Sacramentário de
Metz (VI – IX s.) às excrescências decadentes do Gradual
Romano de Veneza, de 1602 (manuscrito notado com
diafonia e órgão), passaram-se dez séculos; e que a áurea
Polifonia preencheu o repertório litúrgico, desde a Missa de
“Notre-Dame” de G. Macheaut (c. 1350) a “Papae Marcelli”
de Palestrina (c. 1555)... em dois séculos! O número 124 da
Constituição pede que os ordinários retirem de circulação
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as obras “medíocres”. (grifo nosso) [SOUZA, José G. de.


Tradição musical brasileira: princípios normativos para se
adaptar essa linguagem à liturgia: preparação e formação
artística. Revista de Liturgia. São Paulo: Paulinas, 1976
(set./out.de 1976), p.25]

2.1.3 A paráfrase musical

O problema que a paráfrase musical traz é assustadoramente mais


amplo do que normalmente se imagina. A paráfrase musical na liturgia é sempre
sinal de permissividade que se tornou comum como critério para “agradar”.

O critério que prevalece não era outro além do fato de


ser uma melodia pegadiça, rítmica, vivaz e que o povo
participa. Impunha-se, muitas vezes, o critério do “agrada-
me”, e a canção “agradava” quanto mais se parecesse com os
ritmos e melodias que escutávamos continuamente pelo
rádio, pela televisão ou na discoteca. Teríamos que estudar
a partir da Psicologia as lembranças e memórias,
conscientes ou inconscientes, que tais melodias, com
texto religioso, evocam em nós ao cantá-las na igreja.
(grifo nosso) [ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica:
Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.45]

Não obstante, as adaptações do texto e as paráfrases proliferam nestes


anos de reforma conciliar.
É evidente que tais melodias advindas da música própria para outros
ambientes induzem a comunidade a confusões fazendo desaparecer a clareza
entre sacro e profano. É A MÚSICA QUE DEVE NOS LEVAR À ATMOSFERA
PRÓPRIA DE CADA SITUAÇÃO. JAMAIS O TEXTO. Uma canção gospel,
desprovida do texto, continua sendo uma balada romântica ao estilo Celine
Jones. A presença do texto religioso, pouquíssima diferença faz, sobretudo no
nível do inconsciente.
“O princípio da íntima ligação do canto com a ação litúrgica pede que
sejam excluídas das celebrações litúrgicas as músicas de dança, melodias-sucesso
de películas cinematográficas, de novelas, de festivais, de peças teatrais e
similares.” [CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Pastoral da
música litúrgica no Brasil. Rio de Janeiro: Paulinas, 1976 (Série Documentos da
CNBB 07) p.26]

Partindo do fato de estarmos tão saturados de ouvir


música de todos os lados, ao ouvir esses ritmos trepidantes
e sons eletroacústicos (rádio, televisão...), não teríamos,
porventura, que reservar o espaço e tempo da celebração
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para ouvir/cantar outros cantos, outros gêneros, outros


estilos musicais? (grifo nosso) [ALCALDE, Antonio. Canto
e música litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo:
Paulinas, 1998, p.24]

Isso certamente deveria trazer-nos à memória fatores que levaram à


conversão de Santo Agostinho: Ao ouvir a sublimidade da música sacra chorou
numerosas vezes e converteu-se. Teria a música sacra sido relevante no processo
de conversão de Santo Agostinho se ela se parecesse ou fosse como a música
popular-profana de seu tempo?

2.1.4 Relação música-texto

Certamente se faz necessário esclarecermos certos pontos quanto à


compreensão e relação entre música e texto.
Por mais que inicialmente possa parecer estranho ou difícil entender,
precisamos esclarecer que o fenômeno musical, isto é, a música em si, é
inteiramente autônoma e também inteiramente responsável por todos os efeitos
emocionais que produz no indivíduo. Queremos dizer o seguinte: A música
somente desempenha de fato seu papel, quando, inteiramente despida de texto,
for capaz de traduzir toda a gama de sensações emotivas e espirituais no
indivíduo, apesar de sabermos que a maioria esmagadora da população vive hoje
sob o jugo escravista do texto na “música”. Conseqüência disso é a concepção por
parte destes de que a música é boa quando o texto (letra) agrada e ruim quando
o texto não agrada.
Tratando-se de música, seja folclórica, erudita, popular, etc., o texto,
quando presente, será determinante mas jamais essencial.
No âmbito da música popular, ao ouvirmos uma gravação de uma
canção em língua desconhecida – francês, por exemplo – devemos perceber que
se trata de uma canção de amor ou uma canção cômica pelo caráter da
composição. Ao termos acesso ao texto traduzido viremos a confirmar o que já
havíamos constatado através da MÚSICA.
Outro exemplo: Localizemo-nos em um ambiente eclesial, imaginando-
nos em um bairro carente, ou mesmo em outro ambiente social. Dentre algumas
pessoas do bairro que participam da comunidade eclesial como violonistas ou
tecladistas, encontra-se um compositor de sambas enredos. Demos a estes
artistas do lugar a seguinte tarefa: compor a música para o Santo, o Cordeiro de
Deus e o Ato Penitencial. Porém ao serem apresentadas as composições para a
apreciação deverão ser apresentadas sem o texto, apenas a melodia com o
respectivo acompanhamento. A tarefa somente será considerada realizada se pelo
caráter da composição (melodia, acompanhamento, andamento, tonalidade,
colorido, etc.) for possível identificar qual das composições é o Santo, o Cordeiro e
o Ato Penitencial.
A probabilidade de que a tarefa fracasse é imensamente grande e
certamente ouviremos dos desconhecedores um “mas pra que isso!” ou “isso é
impossível!” ou ainda pior “está se querendo elitizar o que é do povo!”.
17

Outro exemplo: apesar da inquestionável dedicação, boa intenção e


desejo de contribuir para a Igreja, o que sucederia se chegássemos a alguns de
nossos compositores eclesiais e lhes pedíssemos que compusessem apenas uma
melodia de caráter majestoso, outra de caráter jocoso, outra de caráter
melancólico, outra de caráter lúgubre, outra marcial e ainda uma de caráter
pastoril? Esses elementos musicais elementares da lida musical já praticamente
desapareceram do universo de nossos compositores populares. Resta-nos
perguntar: O que sobrou? Basta retirarmos o texto de tudo o que ouvimos pelas
rádios e em nossas igrejas e observemos o que sobra. Constataremos que algo
muito próximo do nada.

Eles consagravam todas suas forças, todos seus esforços e


todo seu amor a construir templos e catedrais, ao invés de
dedicarem-se à máquina e ao conforto. O homem de nossa
época dá mais valor a um automóvel ou a um avião que a um
violino, mais importância ao planejamento de um aparelho
eletrônico que a uma sinfonia. Pagamos preço bem alto por
aquilo que nos parece o cômodo, o indispensável; sem nos
darmos conta, rejeitamos a intensidade da vida em troca da
sedução enganadora do conforto - e aquilo que
verdadeiramente perdemos, jamais recuperamos.
[PRINCÍPIOS fundamentais da música e da interpretação:
o discurso dos sons: a música em nossa vida, p.13]

Todavia, apesar da difícil situação, não é utópico se pensar em uma


reversão do quadro.
Não queremos acreditar que verdadeiramente perdemos a
possibilidade de fazer arte-liturgia.

2.2 ALGUMAS QUESTÕES ESPECÍFICAS

2.2.1 A multiplicidade de cantos

Queremos contemplar alguns outros problemas que enfrentamos hoje


no que se refere à música na liturgia.
Ao tratarmos mais especificamente da música, devemos fazê-lo sem
perder de vista o conjunto das ações litúrgicas.

Com a reforma conciliar, voltou-se a dar à assembléia o


protagonismo nos cantos do Ordinário. O que se conseguiu
nesses 30 anos de pós-concílio? Lamentavelmente, acredito
que tenha sido pouco. Centralizamos nossa atenção numa
ou duas missas e pouco mais. A assembléia não dispõe de
18

uma variedade de melodias dos cantos do Ordinário que lhe


permitam expressar a variedade em dias de féria, festas e
solenidades. Cantamos, por exemplo, o mesmo Santo numa
festividade como em outra, num domingo do tempo
ordinário como no domingo de Páscoa, talvez porque não
saibamos outro.(grifo nosso) [ALCALDE, Antonio. Canto e
música litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas,
1998, p.73]

Devemos agora deter-nos na questão da “variedade de melodias”


mencionada acima. Em primeiro lugar não devemos confundir “variedade de
melodias” com o que certamente nos poderá passar pela cabeça: variedade de
textos (letras). Uma vez que o texto do Santo ou do Cordeiro é sempre o mesmo
– ou pelo menos deveria ser, já que os documentos oficiais da Igreja o
determinam, e a paráfrase subverte o significado histórico-ritual destes textos –
somente o caráter da composição musical deverá e poderá dar a “atmosfera”
exigida pelo texto-rito bem como pelo tempo litúrgico.

Poderíamos definir o problema atual de nossas assembléias,


quanto ao que concerne ao canto litúrgico, como um
problema de dispersão, devido à proliferação de cantos,
manuais de cânticos, cassetes, à grande variedade de
comunidades e grupos religiosos e, inclusive, à
multiplicidade de critérios para a seleção dos cantos, no
intuito de ir elaborando, pouco a pouco, um repertório
significativo. [ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica:
Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.26]

Quanto a “repertório significativo” tampouco devemos entender como


significativo quantitativamente, mas sim significativo qualitativamente. Hinários
com 400, 500, 600 ou mais números de cânticos litúrgicos é uma montanha
intransponível no caminho para a unidade musical, qualidade musical,
artisticidade, etc.

A introdução ininterrupta de cantos novos, conseqüência de


uma sede de novidades, criada e cultivada por uma
sociedade de consumo, teve como conseqüência que o povo
emudeceu, não dando conta de assimilar uma oferta tão
superabundante. [...] Da parte do presbitério, também, o
canto desapareceu. A maior parte dos presidentes só fala a
liturgia, eliminando totalmente seu caráter celebrativo.
Antes da reforma litúrgica, por bem ou por mal, os
19

presidentes cantavam as melodias gregorianas de um


Prefácio, de uma Doxologia, de um ‘Ite, missa est!’ Agora,
não havendo um esquema igual e amplamente praticado de
melodias simples em vernáculo, os padres emudeceram e
chegamos a ter liturgias monótonas, repletas de ‘falatório’
cansativo, parecendo mais aulas de leitura onde cada fiel se
preocupa mais com o seu folheto, não havendo uma boa
comunicação entre altar e nave
Na vida civil, nunca se pensou em recitar o Hino Nacional
Brasileiro, nas comemorações do dia 7 de setembro; assim,
poderia se dizer que um Prefácio, um Glória, um Aleluia
falados são como uma ‘contraditio in terminis’. (grifo nosso)
[POSTMA, Joel. Música litúrgica na celebração eucarística
desde o Concílio Vaticano II. Revista de Liturgia. São Paulo:
Paulinas: 1986 (jul./ago.de 1986), p.14]

Podemos observar que o que o povo canta, quando canta, está apoiado
na condição de terem nas mãos um hinário ou o folheto, o que representa um
embuste.
Freqüentemente observamos o povo adivinhando e conseqüentemente
resmungando um cântico desconhecido apoiado no folheto ou hinário e deixando-
se levar intuitivamente, contando com a obviedade da linha melódica, pobre,
apoiada numa estrutura esquelética composta por 2 ou 3 acordes elementares.
Isso é freqüente em nossas assembléias. E cantar assim é uma falácia. É o mesmo
que não cantar.
Se num determinado momento se determinasse que o povo devesse
cantar de memória, de coração – de cor – os cantos litúrgicos, depois de passadas
as tribulações, que certamente não deixariam de suceder-se, maravilhas
começariam a acontecer.
“Um repertório conhecido é de vital importância para a sobrevivência
da participação da assembléia no canto, pois faz parte de uma tradição cultural,
que firma e conserva a identidade de um povo.” [POSTMA, Joel. Música litúrgica
na celebração eucarística desde o Concílio Vaticano II. Revista de Liturgia. São
Paulo: Paulinas: 1986 (jul./ago.de 1986), p.14]
Da mesma forma, ao nos referirmos a “repertório conhecido” não
podemos nos confundir com aquela orientação bem intencionada, porém
desastrosa: “o canto deve ser conhecido pelo povo”. Se o canto deve ser
invariavelmente conhecido pelo povo, onde e como ficará a missão dos pastores
de dar ao povo a conhecer? Algo é desconhecido até que se conheça.

A experiência dos últimos anos nos mostra claramente que


muitos dos cantos usados, em qualquer parte da Celebração
Eucarística, não possuem a qualidade que os torne
compatíveis com a liturgia. Eles não correspondem à grande
20

norma da Igreja que diz que um canto é tanto mais


litúrgico, quanto mais se engaja no ato litúrgico.
Finalmente, diante de uma multiplicação abundante de
inúmeros cantos e tipos de celebração, um pouco de
uniformidade seria bom para contrabalançar uma
diversificação desenfreada demais. [POSTMA, Joel. Música
litúrgica na celebração eucarística desde o Concílio
Vaticano II. Revista de Liturgia. São Paulo: Paulinas: 1986
(jul./ago.de 1986), p.14]

2.2.2 Música adequada aos textos e tempos litúrgicos

Devemos também determo-nos por alguns instantes em um problema


já brevemente citado: o problema da avalanche de cânticos litúrgicos que assola
nossas assembléias.
Isso continuará sendo assim enquanto o critério, ou melhor dizendo, o
necessário para a composição de um cântico litúrgico continue sendo adaptar-criar
uma melodia amalgamada sobre 2 acordes, para um texto que pode ser o Santo,
uma paráfrase do Santo ou outro texto litúrgico ou para-litúrgico qualquer. O
resultado será melodias óbvias que poderão vestir o texto do Santo, ou Canto de
Comunhão, ou Ofertório, etc., indiferentemente.
Faz-se mister que se elabore um projeto e se leve a cabo um programa
de construção de uma uniformidade-unidade para os cânticos litúrgicos da
Missa, deixando toda a avalanche de modismos, todo o diletantismo, amadorismo,
experimentalismo para as celebrações para-litúrgicas, encontros, louvores, grupos
de oração, etc.
Essa uniformidade precisa ser compreendida no âmbito da unidade
para que não caiamos em erros como o do engessamento do canto litúrgico.
Que se componha tanta música para o texto do Santo, por exemplo,
quanto for possível, mas que seja próprio para tal, possuidora das características
necessárias para a função que deve desempenhar na liturgia (caráter,
majestosidade aclamativa, dignidade, etc.) bem como identificar o tempo litúrgico.
“Como hino próprio do tempo de Natal e Páscoa, teríamos de
estabelecer uma diferença, a partir do ponto de vista musical, entre o glória que
se canta no Natal, com sua melodia mais pastoril, e o glória que cantamos na
Páscoa, com melodias mais solenes.” [ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica:
Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.77]
O Santo, por exemplo, como já foi dito, trata-se de uma majestosa
aclamação à grandeza de Deus. A música deve “dizer” isso. Porém a música que
deve ser escrita para essa mesma majestosa aclamação deve trazer também o
caráter do tempo litúrgico que se vive. O majestoso Santo da Quaresma não pode
ser o mesmo majestoso Santo do Natal ou do Tempo Comum.
Nossos compositores precisam ser reciclados e capacitados para
fazerem isso, e nossas assembléias igualmente recicladas e capacitadas para
perceberem isso.
21

Outro fenômeno ocorrido em nossa trajetória de canto


litúrgico está no fato de que os cantos considerados pela
liturgia como periféricos (as oferendas, canto de saída, de
paz, o pai-nosso) na celebração eucarística assumiram o
caráter de importantes para muitos grupos de animadores,
relegando à categoria de secundários os que realmente são
importantes (Santo, Cordeiro de Deus). Isso poderia ser
comprovado se fizéssemos uma pesquisa perguntando
quantos sanctus e quantos cantos conhecem para o
ofertório e para a paz. [ALCALDE, Antonio. Canto e música
litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998,
p.27]

2.2.3 Descuidos litúrgicos

Outro problema é a lei do menor esforço. No que se refere às coisas


relacionadas a Deus, tal postura está abaixo da condição de ser sequer debatida.
O que nos leva a esta postura? As causas não são assuntos pertinentes
a esta monografia, mas as conseqüências, sim. E estas são óbvias. “A liturgia, de
acordo com o Vaticano II, é o ‘cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao
mesmo tempo, é a fonte donde emana toda a sua força”. [CHEUICHE, Dom
Antônio do Carmo. Na fronteira com o sagrado. Cultura e Liturgia, Porto Alegre,
p.4]
Se liturgia é o que declara o Concílio, desleixo, descuido,
despreocupação no que se refere à liturgia atentam contra a própria Igreja.

2.2.4 Não cantar o que é próprio para o canto

Queremos contemplar também o problema de não se cantar o que é


próprio para o canto.
Tornou-se comum ouvirmos o Glória – o cântico dos anjos – rezado,
como se o Glória fosse uma oração e não um cântico. O mesmo no que se refere
ao Santo, os cânticos bíblicos, os Salmos, etc.
Ao abordarmos esse assunto, à primeira vista, a muitos pode parecer
que não há nada de errado em recitar os salmos ou o Santo na Missa. Quão
doloroso é o fato de o RITO do canto do Glória, com seu texto de inestimável
valor histórico-religioso-poético, ter-se praticamente perdido.

Os salmos, Palavra de Deus, são composições líricas


destinadas a serem cantadas, constituem o livro de cantos
do povo de Israel. Muitos deles também contêm indicações
musicais, do instrumento com que devem ser acompanhados,
com instruções para o mestre do coro, para os solistas e
22

outras. (grifo nosso) [ALCALDE, Antonio. Canto e música


litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998,
p.13]

O que ocorreu no seio da Igreja foi algo que jamais nos passaria pela
cabeça pôr em prática em situações cerimoniais similares. Como já mencionado
anteriormente, imaginemos o quão absurdo e patético seria em um momento
solene cívico, em vez de cantarmos o Hino Nacional o recitássemos. Mais
inconcebível ainda seria recitarmos o “Parabéns a você” na hora de apagar as
velinhas em uma festa de aniversário. Seria uma aberração. Pois tais aberrações
foram e ainda continuam a ser perfeitamente plausíveis e comuns em nossas
celebrações.
“TODA a liturgia sinagogal era cantada e cada livro da escritura
tinha o seu próprio estilo melódico de canto”, [ALCALDE, Antonio. Canto e música
litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.14] como já nos
referimos em capítulos anteriores e seria de fato ingênuo supor que tal costume
se devesse apenas ao desejo de ornamentar a cerimônia. O mais impressionante é
observar que o cantilação das orações, preces, monições, bênçãos, etc., só vieram
a ter este destino na cristandade do ocidente, mais precisamente no seio da Igreja
Católica Romana. O mesmo não se observa nas Igrejas do Oriente. E como
instrumento de inestimável eficácia para a passagem de uma mensagem, jamais
foi abandonado no seio de outras grandes religiões do mundo: Islã, Judaísmo,
Hinduísmo e outras.
Tudo se resume ao fato de havermos perdido, em alguma gaveta da
história da Igreja, o conhecimento referente ao poder do canto como instrumento
condutor de uma mensagem. Ao termos perdido esse conhecimento, cantar se
tornou tradição, e em nome da reforma litúrgica cortamos a tradição.
Quando nos referimos a canto, referimo-nos ao canto-música que
conduz, induz e provoca um estado de ânimo mais ou menos próprio para que
através dele o ouvinte receba a mensagem-texto. Assim deparamo-nos outra vez
com a questão da música que suscita um estado de ânimo “x”, porém é portadora
de uma mensagem-texto “y” (caso da música gospel mencionada anteriormente).
Hoje é quase unânime a opinião de que a cantilação do evangelho ou
orações é uma questão de decoração, enfeite, solenização das celebrações em
ocasiões mais festivas.
Um estudo científico apropriado a respeito do assunto nos levaria a
constatações inacreditáveis a respeito do efeito causado pela mensagem-texto
proclamada através do canto ou mais corretamente, através da cantilação.
A beleza intrínseca do canto jamais pode ser vista como
elemento decorativo e, sim, como ferramenta de insuperável eficácia
para a evangelização na liturgia. Sendo assim, esse deveria ser um
elemento presente sempre.
Diante do exposto poderíamos esperar a seguinte intervenção: Qual
seria a diferença então entre o Tempo Comum, Festas e Solenidades? Antes de
respondermos diretamente, queremos recordar que não devemos cultivar o hábito
de “empobrecermos” o Tempo Comum, justamente para termos elementos para
23

usarmos nas Festas e Solenidades, como se no “Tempo Comum” Deus merecesse


menos.
Quando conseguirmos, em cada paróquia, rica ou pobre, em cada
diocese, que o Tempo Comum chegue à nobreza dos tempos solenes, estes terão
que se tornar ainda mais belos, e este caminho é infinito e nos aproximaremos da
luz. Todavia, infinito é também o caminho inverso.

“Sabem o que é um hino? É um canto de louvor a Deus.


Se você louva a Deus e não canta, não diz um hino.
Se você canta e não louva a Deus, não diz um hino.
Se louva algo que não pertence
ao louvor de Deus, ainda que louve cantando,
não diz um hino.
O hino, por conseguinte,
consta de três coisas:
Do canto, do louvor e de que este seja dirigido a Deus.
Portanto, denomina-se hino o louvor de Deus cantado.”
[SANTO AGOSTINHO apud ALCALDE, Antonio. Canto e música litúrgica:
Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.77]

2.2.5 Orientações inexatas

Freqüentemente nos deparamos, em nossos documentos, com


orientações de caráter dúbio possibilitando uma infinidade de interpretações: “A
Igreja aprova e admite no culto divino todas as formas de verdadeira arte dotadas
das devidas qualidades.” [CONCÍLIO Vaticano II. Sacrosanctum Concilium 112] Ou
ainda orientações como a seguinte: “É preciso reconhecer que todos os gêneros
de cantos ou de instrumentos não são igualmente aptos a sustentar a oração e a
exprimir o mistério de Cristo.” [II Instrução da Sagrada Congregação para o Culto
Divino, de 5/9/1970, nº 3c]
Ao mencionar-se, por exemplo, que nem todos os instrumentos são
próprios para a celebração, fica a pergunta: quais são próprios? Quais critérios
adotar para defini-los?
Imaginemos uma comunidade de periferia, ou rural, onde temos a
situação em que ninguém tem a formação para orientar. Se o Padre não teve a
formação adequada nesse aspecto, somente orientações documentais claras e
bem definidas poderão dar bom e correto direcionamento, sobretudo nos
documentos emitidos pelas Igrejas particulares. Somente a necessidade de
cumprir metas e superar desafios levará uma comunidade à superação.
Parece-nos também que em muitos casos, orientações a respeito da
música litúrgica ou outras formas de expressão artística na liturgia, partem de
orientadores que não possuem a devida formação acadêmica na área. Devido a
isso, freqüentemente nos deparamos com o seguinte fenômeno: Os orientadores
normalmente não têm a devida formação musical, e músicos e artistas de fora da
estrutura da Igreja normalmente não têm a compreensão pastoral. Portanto, a
24

Igreja deveria encaminhar padres e liturgos a cursos acadêmicos de música e


artes plásticas. Essa deficiência faz com que com freqüência nos deparemos com
declarações desta natureza: em nossa cultura não há um Credo cantado. Ao fazê-
lo poderia tornar-se ridículo e “operístico”.
É evidente a limitação e a mínima vivência musical de numerosos
autores, que declaram, por exemplo, que o texto do Credo, por não ser rítmico,
ou seja, não estrófico e rimado, é difícil de ser bem musicado. Sem sequer entrar
em contestações técnico-musicais, a oração do Pai-Nosso é igualmente arrítmica,
não rimada e possui apenas 24 palavras a menos que o texto do Credo Apostólico,
o que é muito pouco significativo. Entretanto, belas melodias já foram criadas
para a referida oração.
A afirmação a seguir traz em si uma berrante contradição conceitual:
“quanto mais uma obra musical se emancipa do texto, do contexto, das leis e ritos
litúrgicos, muito embora se torne demonstração de arte e de cultura ou de saber
humano, tanto mais é imprópria ao uso litúrgico.” [CONFERÊNCIA NACIONAL DOS
BISPOS DO BRASIL. Pastoral da música litúrgica no Brasil. Rio de Janeiro:
Paulinas, 1976 (Série Documentos da CNBB 07), p.16]
É absolutamente correto que, quanto mais uma obra musical se
emancipa do texto, do contexto, das leis e ritos litúrgicos, tanto mais é imprópria
ao uso litúrgico. A demonstração de arte, de cultura e saber humano jamais se
fariam presentes, uma vez que os elementos imprescindíveis, intrínsecos à
sustentação da obra não se fizessem presentes, ou seja, a íntima relação do
contexto com a forma devida de expressão artística – obra musical – não só no
caso da liturgia, como em qualquer outra circunstância similar.

2.2.6 Missa-Concerto

Por motivo de preconceitos primários em diversos âmbitos, é


compreensível ter-se estabelecido uma verdadeira repulsa em grande número de
liturgos e clérigos às missas em que são executadas obras do repertório erudito
universal.
Vejamos o seguinte caso: por ocasião da posse de um novo governador
de um Estado, celebrar-se-á na catedral metropolitana a Missa de posse. É
provável que 90% dos “espectadores” não sejam católicos praticantes. Nestas
circunstâncias, o que quer que se “apresente” nessa missa, será teatral. Seja Pe.
Zezinho ou Beethoven.
Entretanto, para fiéis católicos praticantes, amantes da música erudita,
uma celebração em que seja executada, pela orquestra, coro e solistas, a música
da Missa Solene de Beethoven ou da Missa Breve de Mozart, jamais será teatral
ou encarada como uma missa-concerto.
“Quando ouvem a schola na missa solene, não estão num concerto,
mas ouvem o louvor cantado em seu nome, meditam a palavra de Deus e
dispõem seus corações para a oração comum.” [ALCALDE, Antonio. Canto e
música litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998, p.63]
O que faz uma missa tornar-se uma “missa-concerto” ou uma “missa-
teatro” não é jamais a música, mas, sim, a relação do sujeito com o significado da
presença desta ou daquela manifestação artística na celebração.
25

Todos os seguimentos da sociedade estão contidos no seio da Igreja,


mais ou menos mesclados, em maior ou menor quantidade, e é dever da Igreja –
clero e fiéis – empreender todos os esforços para que todos sejam contemplados
com ilimitadas formas de louvarem ao Criador, rompendo limites, expandindo
universos.
26

3 CONSIDERAÇÕES INDISPENSÁVEIS

3.1 POR QUE CANTAR?

Jesus nasce num povo que expressa sua fé cantando. Ele


cantou com palavras e tons, como qualquer judeu de seu
tempo, orando em recitação ritual, com balanço em dois
tempos, de acordo com o costume de seu povo. O ofício da
sinagoga é cantado, quase em sua totalidade: orações,
bênçãos, salmos. [ALCALDE, Antonio. Canto e música
litúrgica: Reflexões e sugestões. São Paulo: Paulinas, 1998,
p.11]

Algo sobre essa questão já foi colocado anteriormente, ou seja, a


música-canto como elemento condutor de uma mensagem. Contudo, outras
peculiaridades únicas da música-canto devem ser levadas em consideração ao
aplicarmos na liturgia. Uma delas é a expressão dos sentimentos através das
propriedades do canto.

Bem posso exprimir meus sentimentos mesmo de outros


modos, por exemplo, com a palavra. Na palavra, porém o
sentimento passa pelo conceito e, parece, perder em
intensidade. Cantando, ao contrário, os sentimentos
parecem permanecer, por assim dizer, mais próximos de um
"estado puro". Assim se costuma dizer que o canto
intensifica a expressão dos sentimentos. [GELINEAU, J.
Em nossas assembléias: Teologia da missa. São Paulo:
Paulinas, 1975, p. 219]

Neste momento, ainda que estejamos concentrando-nos no canto, não


devemos esquecer que “arte litúrgica” é o resultado da integração dos
elementos da ação litúrgica em uma expressão artística unificada.
O objetivo primordial é fazer com que a mensagem evangélica
chegue da forma mais eficaz possível àquele que a ouve, independentemente do
tempo litúrgico, féria, festa ou solenidade. Toda liturgia deve ter este fim.
Portanto as características próprias dos diferentes tempos e missas
devem permanecer apenas no âmbito da quantidade e forma dos ritos
previstos – missa ferial ou missa solene, por exemplo – mas jamais na
qualidade do envio da mensagem.
Concentremo-nos na questão da palavra:
27

Meditar a palavra significa apropriar-se dela interiormente,


em sua realidade física, aprofundar-se nela, em seus
ritmos, sons, imagens; por fim, é a palavra que se apropria
de nós e de nossa interioridade. Na salmodia (ou canto
análogo) os elementos musicais formam uma espécie de
halo, aderente à palavra, criando como que uma
temperatura de fusão que facilita nossa identificação à
palavra. (grifo nosso) [GELINEAU, J. Em nossas
assembléias: Teologia da missa. São Paulo: Paulinas, 1975,
p.227]

Esta é a questão: o canto representará sempre um acréscimo de


eficácia na proclamação e celebração da palavra.
Concentremo-nos ao máximo no que se segue:

Na oração eucarística (e em casos análogos), a palavra


adquire uma função que os lingüistas denominam
performativa (em oposição há “constatativa”), para
indicar que ela realiza aquilo que diz (ao contrario de um
simples enunciado). A “memória” litúrgica é uma palavra
que se põe explicitamente como rito, como repetição
simbólica e consciente de um acontecimento. Por isso,
esta palavra celebrante não requer ser simplesmente
anunciada, mas celebrada; e o canto pode para isso
contribuir.
Na oração tem-se um acréscimo de comunicação que
ultrapassa a informação nocional na direção do poético. Por
isso, a prece pode ser cantada.
A oração não é uma leitura; e um canto pode ajudar-nos a
evitar que um texto ou gesto de oração caia na banalidade
de uma “leitura”. A oração é um gesto simbólico, gratuito,
não utilitário: o canto pode acentuá-lo. E a contribuição
lírica do canto é na linha da festividade, isto é, da atitude
de ação de graças que impregna TODA oração cristã.
Finalmente, em certas leituras (trechos dos profetas ou
dos livros sapienciais, evangelho das bem-aventuranças
etc.) o gênero literário se afasta da narração-parênese
que, para a média dos fieis, representa a leitura; por
isso, pode se justificar uma “cantilação” com um
recitativo musical, quando se pode fazê-la da maneira
28

devida, tendo presente que, com isso, a proclamação da


palavra tende a transformar-se em celebração da
palavra.
Em quanto uma recitação falada, seja ela mesma lírica,
limita-se a dar o justo relevo ao gênero literário do texto,
quando se passa o canto o gesto vocal tende a mudar de
significado: a mensagem indireta e implícita, que os
lingüistas chamam de conotação (no presente caso, os
valores poéticos do canto) toma a dianteira sobre a
mensagem direta e explícita, isto é, a significação (os
significados nocionais do texto). A comunicação semântica
tende a transformar-se em comunicação estética. (grifo
nosso) [GELINEAU, J. Em nossas assembléias: Teologia da
missa. São Paulo: Paulinas, 1975, p.228]

A que conclusões chegamos então? O CANTO SERÁ SEMPRE


INSEPARÁVEL DA PALAVRA. Portanto, um presbítero que canta bem,
consciente do efeito que o canto produz, não o faria sempre? Somente se não o
soubesse e crendo no canto como elemento decorativo. Temos que considerar
também que mudanças de costumes são sempre difíceis e necessita-se de
coragem para romper conceitos e preconceitos sedimentados.
Observemos ainda:

Aquele que recita não deve pensar que seu gesto seja um
canto; não deve preocupar-se com "respeitar" a fórmula.
Ele é um ministro da palavra; a fórmula está a seu serviço. É
ele, antes de tudo, alguém que se diz, um declamador. A
fórmula deve permanecer um esquema, um ponto de
referência, um sumário; deve continuamente adaptar-se,
restringir-se, dilatar-se, ornar-se e variar segundo a
extensão da frase, o peso da palavra, os acentos e as cores
e o sentido do período. Se a fórmula permanece rígida, o
texto é que deverá ser adaptado; em tal caso, porém, o
rito da palavra se transformará num canto monótono,
insípido, sem vida, nem sentido. (grifo nosso)
[GELINEAU, J. Em nossas assembléias: Teologia da missa.
São Paulo: Paulinas, 1975, p. 233]

A busca pela superação, que resulta em Arte, levará ao êxito na


evangelização no âmbito da liturgia.
O exposto recentemente deixa claro que não se supõe que só por
cantar, tudo estará perfeito. Cantar poderá ser pior que recitar. Contudo,
29

recitar bem nunca será tão eficaz quanto cantar bem. O essencial é que o
que quer que se faça se faça com Arte.
E o que deve ser primordial àquele leitor, diácono ou presbítero que
não dispõe das condições necessárias para o canto? Pois que busque o ápice da
arte da declamação-recitação para a transmissão da mensagem evangelizadora.
“[...] na religião judaica [...] a música é como a encarnação do
pensamento divino que se exprime num canto. Este canto se apresenta
então necessariamente como plenitude da palavra que se realiza numa
espécie de sacramentalidade.” [NOCENT, Adrien. Música e experiência de
Deus. Petrópolis: Vozes, 1970 p. 129 (273)]
Diante disso, jamais teríamos chegado a situações endêmicas como o
que ocorre, por exemplo, com a Oração após a Comunhão. Hoje são raros os
casos em que depois de um adequado e necessário silêncio, o sacerdote,
cantando ou recitando, convida solenemente à oração. Esta é a última grande
oração da missa, quando após termos recebido o corpo de Cristo, o silêncio é
rompido pelo convite: OREMOS. Dado o devido tempo para a oração, o sacerdote,
solenemente, eleva a oração final a Deus em nome de todos.
Quantas vezes essa oração se transforma em frugal frivolidade e
formalidade, às vezes seguida dos avisos que já foram dados, tendo a “atmosfera”
já sido totalmente quebrada. Atrevidamente perguntamos: o que podemos querer
como resposta dos fiéis em tais situações? Cantar pelo menos o “oremos” já
mudaria a conotação.

3.2 O CORO

A assembléia celebrante é um grupo dialogante. A Celebração da


Palavra e Eucarística é um grande diálogo por excelência. Em um diálogo a cada
participante cabe o direito de pronunciar-se e fazer-se ouvir. Portanto, quando se
fizer presente o coro, cabe a ele momentos de pronunciamento, enquanto todos
os demais se calem, da mesma forma como se faz quando se pronuncia o
presidente da assembléia. Há momentos em que cada membro desta assembléia
toma a palavra e se faz ouvir, há momentos em que todos juntos aclamam ou
concordam com o que foi dito por um dos integrantes.
Temos ainda o fato de que a assembléia pode e por vezes deve
“delegar” a uma parte dela – o coro – que se pronuncie em seu nome. Esta
“procuração” é dada quando o coro é resultado dos esforços da própria
comunidade. Esta legitimidade representativa se dá quando a comunidade
trabalha engajada na manutenção do coro, na simples confecção de suas
vestimentas, na “vaquinha” para a compra de material, na manutenção do
maestro e pelo fato de que grande quantidade de famílias possuírem membros
seus participantes do coro. Em circunstâncias assim é remotíssima a possibilidade
de que o coro seja visto como um “participante estranho”.

Em que condições, numa celebração, o canto de uma minoria


pode ser considerado um verdadeiro "canto de assembléia",
um canto coletivo que faz verdadeiramente a comunidade?
30

A resposta não é difícil: quando as motivações do canto, a


qualidade da minoria que canta, o repertório e a execução
são tais que a maioria se sente representada por aquele
grupo, percebe o canto como um símbolo comunitário e a ele
se identifica, tornando-o seu. Na prática, porém, não é
sempre fácil, e o desejo de ter a todo custo um canto de
assembléia levou certas assembléias a uma "recusa" do
coro. (grifo nosso) [GELINEAU, J. Em nossas assembléias:
Teologia da missa. São Paulo: Paulinas, 1975, p. 222]

Após 40 anos do Concílio, podendo-se hoje observar mais claramente,


vemos que testemunhamos o conhecido Fenômeno do Pêndulo. Antes do Concílio,
encontrávamo-nos em um extremo, nas primeiras décadas após o concílio, fomos
a outro extremo. Hoje se tornou imprescindível que busquemos o termo médio.
“Grave erro foi cometido pela incompreensão do verdadeiro papel dos corais. Com
o favorecimento do canto do povo, muitos pastores pensaram na supressão dos
corais” [CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Pastoral da música
litúrgica no Brasil. Rio de Janeiro: Paulinas, 1976 (Série Documentos da CNBB 07),
p.14]. Isso contribuiu também para a diminuição do espectro de possibilidades
para jovens, crianças e adultos de terem contato com mais um universo das
manifestações da natureza humana.

“A renovação litúrgica não pôs em questão o CORO em si


mesmo, mas, ao contrário, deu-lhe um papel de destaque na
liturgia” (cf. MS 19). O coro deve, porém, renovar-se como
liturgia no seu modo de ser, de atuar, em seu repertório,
estilo, formação e mentalidade... Ele desempenha um
verdadeiro ministério (SC 29) ou função litúrgica na
assembléia celebrante e, por isso, é hoje, mais do que
nunca, indispensável a uma celebração viva na liturgia
renovada, e sua atuação redunda em benefício da própria
comunidade, principalmente. [CONFERÊNCIA NACIONAL
DOS BISPOS DO BRASIL. Pastoral da música litúrgica no
Brasil. Rio de Janeiro: Paulinas, 1976 (Série Documentos da
CNBB 07), p.19]

O que ocorreu nesse aspecto foi um grande contraceno, já que em sua


constituição a Igreja sempre se fez defensora e protetora das artes. Certamente
para muitos essas declarações não passam de formalidades necessárias.

Como poderíamos recuperar o terreno perdido, numa Igreja


que sempre tem sido defensora da arte, mas que, nestes
31

últimos anos, descuidou bastante da formação litúrgica dos


seminários?
O que é que uma comunidade faz , sem líderes, sem músicos
entendidos, sem um grupo de cantores e instrumentistas?
Precisamos chamar de volta os corais na Igreja, não como
antes, para substituir o canto da assembléia, mas para
estar a seu serviço, dialogando com o povo, acompanhando-o
com polifonia e, às vezes, cantando sozinhos, pois ouvir é
praticar também! (Grifo nosso) [POSTMA, Joel. Música
litúrgica na celebração eucarística desde o Concílio
Vaticano II. Revista de Liturgia. São Paulo: Paulinas: 1986
(jul./ago.de 1986), p.13]

Ouvir é a chave. Como podemos querer que o povo ouça o coro se


desaprendeu a ouvir a palavra proclamada. Entretanto, é importante salientar
que o povo desaprendeu a ouvir depois que desaprendemos a proclamar. Temos
acreditado que devemos permitir a integrantes de nossas assembléias, sem
condições mínimas, o exercício do ministério da leitura, com a postura de que é
preciso “oportunizar”. Resultou que oportunizamos a alguns, não os capacitamos,
incorrendo no sacrifício da muitos.
32

4 FORMAÇÃO

O estudo das artes nos seminários e outras entidades formativas


eclesiais, nas últimas décadas, restringiu-se a uma prática improvisada do violão.
Igualmente a formação da voz, tão necessária para uma boa comunicação, com
raras exceções, não mereceu a devida atenção. “Tenha-se em grande
consideração nos seminários, nos noviciados dos religiosos e nas casas de estudo
de ambos os sexos e nos demais institutos e escolas católicas a formação e a
prática musical” [CONCÍLIO Vaticano II. Sacrosanctum Concilium 115]. Todo o
esforço será em vão se não tivermos presente a conscientização da necessidade
de termos em nossos seminários a formação artística – musical, plástica, etc. –
adequada. “Atribui-se, em grande parte, à falta de autênticos formadores nos
seminários este clima de mediocridade e indiferença em relação à música sacra, o
que repercute, profundamente, em toda ação pastoral das paróquias e nas
próprias casas de formação” [SCHUH, Renato Inácio; KOCH, Renato (coord.).
Estudo sobre ensino da música nas casas de formação. Viamão, 1989, p.3]. No
mínimo se faz necessário que essa conscientização seja realidade na cúpula
administrativa da Igreja. Quando nos referimos à conscientização, referimo-nos à
necessidade de termos a formação estético-artística do postulante como elemento
também prioritário e não complementário, ou pior ainda, uma formalidade
obrigatória do currículo.
Para tanto, é capital que estejamos convencidos da eficácia da
evangelização na liturgia através da expressão artística em qualquer seguimento
da sociedade.
É preciso que coloquemos em prática projetos-piloto em comunidades
de diferentes classes sociais e regiões, para que constatemos a eficácia do
proposto.

Apesar do esforço de um bom número de pastores e


compositores, ainda somos pobres em pessoas habilitadas
para a criação de uma música litúrgica que venha satisfazer
às necessidades variadas das comunidades eclesiais.
Faltam-nos escolas especializadas em música litúrgica, e,
por isso, são poucos os compositores bem formados. Entre
estes, são ainda em pequeno número os que podem dedicar-
se inteiramente à música, dado o engajamento em outros
setores da pastoral e outras atividades ligadas à própria
subsistência. [CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS
DO BRASIL. Pastoral da música litúrgica no Brasil. Rio de
Janeiro: Paulinas, 1976 (Série Documentos da CNBB 07),
p.12]
33

Em relação à falta de escolas especializadas em música litúrgica, como


o exposto acima, cremos que, antes de pensarmos em escolas dessa natureza,
deveríamos encontrar maneiras de aproveitarmos a estrutura já existente na área
da formação artística (música, artes plásticas, etc.) nas universidades públicas e,
inclusive, das escolas de arte de nível médio existentes, onde, paradoxalmente, é
indispensável o estudo das Artes Sacras.
Quanto à dedicação integral à música e demais artes, não é o que se
propõe, ao menos inicialmente, mas que o seminarista e, posteriormente, o
presbítero, possua, por exemplo, condições de conduzir o(s) artista(s) que por
ventura pertença(m) à comunidade a participar e contribuir nas atividades da
comunidade, devido a sua formação e experiência.
Ainda que sejam em número reduzido os estudantes universitários de
música, artes plásticas ou cênicas que participam de nossas comunidades, é
também verdade que sua participação nela é nula, bem como se pode constatar
facilmente que neste aspecto sua comunidade eclesial representa normalmente
um lugar inóspito para a manifestação de seus dons. Isso se deve,
indubitavelmente, ao fato de vermos a arte, em geral, como manifestação elitista
e, portanto, indevida ao povo.
Uma vez que tenhamos pessoas assim em nossas comunidades, o
primeiro passo é integrá-las às atividades artísticas da igreja, por mais
rudimentares que sejam, não as engessando aos moldes que lá existem, mas
permitindo que ampliem e estabeleçam desafios que levarão ao crescimento da
comunidade. Claro que não se produzirá bons resultados sem a sensata
integração das partes envolvidas.
Segundo Antonio Alcalde (1998, p.56), “poderemos desse modo, em
uma mesma celebração, no que se refere à música, por exemplo, cantar uma bela
melodia gregoriana entoada por toda a comunidade, em outro momento da
celebração, a participação do coro com uma excelente polifonia, em outro
momento um cântico popular, etc”.
Diversidade na unidade: diversidade nas manifestações artísticas,
unidade na qualidade com que todas são executadas.
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