You are on page 1of 72

1

MA
lun
IRMÃOS
DE BARCO

GO
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(eDOC BRASIL, Belo Horizonte / MG)

O48m
Oliveira, Luciana.
Malungo = irmãos de barco : carrancas de Mestre Orlando e Paulo
Nazareth / Curadoria Luciana Oliveira. – Belo Horizonte (MG): Ed. do Autor,
2017.
72 p.

ISBN 978-85-922633-0-0

1. Arte contemporâneo – Brasil - Exposições. 2. Mestre Orlando. 3.


Nazareth, Paulo, 1977-. I. Título.

CDD-702.812
3

Pilões de Mestre Orlando


e Paulo Nazareth
Foto: Érica Si.
4

Baú de Mestre Orlando


Cabeça de Cavalo de Paulo Nazareth
Concepção: Luciana de Oliveira
Foto: Erica Si
5

Vou andando, caminhando, caminhando;


I set off, walking, walking;
me misturo rio ventre do mato, mordendo raízes.
I blend the river womb of the jungle, biting roots.
(…)
(...)
Agora são os rios afogados,
Now the rivers are drowned,
bebendo o caminho.
Drinking the route.
A água vai chorando afundando afundando.
The water is crying, sinking, sinking.
(…)
(...)
Um dia
One day
ainda eu hei de morar nas terras do Sem-Fim.
yet to come I will dwell in The Violent Land.

Raul Bopp
(Excertos do poema Cobra Norato)
Raul Bopp
(Excerpts from the poem
‘Cobra Norato’ or ‘Black Snake’)
6

Paulo Nazareth
“No me olviden cuando yo sea un hombre importante”
impressão fotográfica sobre papel de algodão
67 cm X 90 cm
2011
7

MALUNGO==IRMÃOS DE BARCO:
MALUNGO==BOAT BROTHERS:
CARRANCAS DE MESTRE
THE CARRANCAS OF MESTRE
ORLANDO E PAULO NAZARETH
ORLANDO AND PAULO NAZARETH
Luciana de Oliveira*
DE COMO SURGIU
ESTA EXPOSIÇÃO: CURA-DOR-IA

Causou-me admiração, ao visitar a exposição Prêmios HOW THIS EXHIBITION


Bananas de Paulo Nazareth no Masp (Museu de Artes CAME TO BE: CURATORSHIP
de São Paulo - dezembro/2012), o fato de que sua bio-
grafia, inscrita nas prestigiosas paredes dessa instituição Upon visiting Paulo Nazareth’s Prêmios Bananas
artística, começava, como eu havia lido em outros luga- exhibition at the MASP (São Paulo Art Museum, De-
res, destacando o início de sua carreira como aluno de cember 2012) and seeing his biography written on the 1. Native
Mestre Orlando em Belo Horizonte. Este, um baiano institution’s prestigious walls, I noticed that his career of Bahia state

radicado nas terras mineiras desde 1973, dedicava-se à began as a student of Mestre Orlando in Belo Horizonte
escultura, entalhando carrancas e ensinando essa arte(- – something that I had read elsewhere. A Baiano1 rooted
sã) a crianças e jovens em projetos sociais e centros cul- in Minas Gerais since 1973, Mestre Orlando was a sculp-
turais distantes do centro oficial da cidade, do mercado tor, carving wooden carrancas and teaching this art(isan)
da cultura e alheio ao que seriam os padrões estéticos ca- to children and young people through social projects and
nônicos. Desde esse dia, cultivei em mim a ideia de fazer community centres that were far detached from the city
uma exposição reunindo trabalhos do Mestre e de seu centre, far from the cultural marketplace and far from the
discípulo-bananeiro. generally accepted aesthetic standards of the time. From
Em várias outras ocasiões, desde que comecei a acom- that day onwards, I cultivated my own concept for an
panhar de perto a carreira de Paulo, este sempre decla- exhibition that gathered the works of the Mestre and his
rava que não fora um bom discípulo de Mestre Orlando, banana-disciple.
que tudo o que tinha desse período de aprendizado era Ever since I started closely following Paulo’s career, he
uma carranca por terminar, perdida em alguma das mil stated on several occasions that he had not been a good
e uma caixas que guardam suas infinitas coleções no ate- disciple of Mestre Orlando; that all he had from this time
liê-casa no Bairro Palmital. Mas, como pude notar nas as an apprentice was an interminable carranca sculpture,
artes desse gravureiro, parte de seu processo criativo lost somewhere amongst the thousand-odd boxes that
calcado numa aproximação ou, como ele diz: “na cria- contained his endless art collections at his workshop in
ção de causos amorosos” com as pessoas que fotografa, the Palmital neighbourhood. However, as I observed in
filma, grava, desenha e, sobretudo brinca – consiste em the craftsmanship of this sculptor, part of his creativity
se deixar esculpir por seus modos de vida, suas filosofias, was based on a closeness to people or, as he puts it, “in cre-
suas festas, seus cantos, suas histórias, suas piadas, seus ating love affairs” with the people he photographs, films,
8

gestos, seu choro, suas comidas, suas risadas. Foi olhando records, draws and, above all, plays. It involves carving
para as imagens criadas a partir dessas aproximações que their ways of life, their philosophies, their festivals, their
comecei a enxergar as carrancas em sua obra, convencen- songs, their stories, their jokes, their gestures, their cries,
do-me de que sim, ele foi um bom aluno. their food, their laughter. Looking at the images that he
Assim, buscando visualidades que pudessem cons- created from this closeness to people, I started to see the
truir boas questões para o recorte curatorial e o desenho carrancas in his work, ultimately convincing me that, in
da exposição, investi numa pesquisa das obras dos dois fact, he was a good student.
artistas para perceber a leitura inventiva criada por cada Thus, in searching for a vision that would raise con-
um no campo da arte carranqueira. Vista numa acepção siderations for curatorial scope and for the exhibition’s
positiva da ideia de precariedade, intuí a inventividade design, I began researching the work of the two artists to
formal associada àquilo que marca de forma incisiva os better understand their inventive interpretations in the
saberes, as técnicas e as artes populares, indígenas, afro- field of carranqueira art. A precarious idea viewed in a
descendentes: a maleabilidade de aspectos organizacio- positive light, I sensed the formal inventiveness associated
nais, transmissivos e de constituição das subjetividades. with what incisively marks knowledge, technique, and folk
Isso significa experienciar vida e arte de forma mais elás- art, indigenous and Afro-descendant: the malleability of
tica, acolhendo as necessidades subjetivas, as diferenças e the organisational, transmissive, and subjective aspects.
as mudanças com maior abertura, gesto que parece ren- This means experiencing life and art in a more flexible
der resultados tanto para encontrar recursos expressivos way, welcoming subjective needs and accepting differenc-
e criativos no campo do desejo, quanto para criar tecnolo- es and changes with greater openness. This is a gesture
gias de comunalidade com menor peso das instituciona- that seems to yield results both in finding expressive and
lidades, ou do que nossa filosofia chama de identidades. creative resources within the realms of desire, and in cre-
Quando escrevi o projeto para o Prêmio Funarte Arte ating a technological commonality with less institutional
Contemporânea 2015, duas outras fontes de elaboração weight, or what our philosophy calls identities.
do que seria o conceito norteador da exposição foram in- When I wrote the project for the Funarte Contempo-
cisivas e decisivas. A partir de minha experiência como rary Art Prize 2015, there were two other sources of in-
docente e pesquisadora na UFMG e, especialmente, de cisive and decisive inspiration that guided my concept for
minha participação em ações curatoriais dos Festivais de the exhibition. It was based on my experience as a profes-
Inverno da universidade (2012, 2013 e 2014), na cogestão sor and researcher at UFMG (Federal University of Minas
da Formação Transversal em Saberes Tradicionais (de Gerais), and in particular on my job as a curator at the
2014 até a atualidade) bem como em ações de pesquisa, University’s Winter Festivals (2012, 2013 and 2014) that
extensão e aprendizado junto com Guaranis e Kaiowas I was better able to elaborate the complex relationship
do Mato Grosso do Sul, fui elaborando melhor essa com- between traditional knowledge and contemporary art. I
plexa relação entre saberes tradicionais e arte contempo- was involved in the management of the Transversal Train-
rânea. Essa experiência, vivenciada junto com a pesquisa ing in Traditional Knowledge (from 2014 to the present),
visual e estilística das obras dos dois artistas, levou-me a and in research and learning activities with Guaraní and
um ponto importante, de caráter comunicacional e peda- Kaiowa groups from Mato Grosso do Sul. These expe-
gógico: o foco da exposição deveria ser a relação de trans- riences, together with the visual and stylistic research of
missão de saberes que, processando-se fora dos formatos the work of the two artists, led me to an important ped-
convencionais de escola, cria outras mediações sensíveis agogical and communicational realisation: that the focus
entre discípulo e mestre, permeadas pela coetaneidade of the exhibition should be the conveyance of knowledge
entre a invenção da vida, a invenção das formas de conhe- which, outside the conventional school format, creates
cê-la e a invenção das formas de afirmá-la em situações de other sensitive mediations between mestre and disciple.
9

opressão política, genocídio, etnocídio e epistemicídio. This transmission of knowledge is permeated by co-conti-
Outro achado nesse percurso foi a necessidade de afir- nuity between the invention of life, the invention of ways
mar estética e politicamente uma outra relação entre a of understanding it and the invention of ways of affirming
arte contemporânea, os saberes e as comunidades tradi- it in times of political oppression, genocide, ethnocide and
cionais, na qual estes últimos não sirvam apenas como epistemicide. Another finding along the journey was the
uma “inspiração” ou uma matéria sobre a qual o artista need to aesthetically and politically affirm another rela-
possa trabalhar e imantar com os dons da alta cultura tionship; one between contemporary art, knowledge and
apropriando-se da experiência da alteridade como modo traditional communities, in which the latter serve as an
de invenção autoral autocentrada. “inspiration” or a subject matter on which the artist can
Apresentamos nesta exposição um conjunto de car- work and imitate the gifts of high culture by appropriat-
rancas de Mestre Orlando, hoje sob a guarda de sua fa- ing the experience of otherness as a mode of self-centred
mília, que seguem na frente do barco-vida, a “espantar” self-invention.
os “maus espíritos” das injustiças, dos apagamentos, das This exhibition presents a range of carrancas by Me-
emoções mal-ditas (ou pior, não ditas), dos esquecimen- stre Orlando, which are currently in the care of his fam-
tos, das hierarquizações e autoritarismos. Com inspi- ily. The carrancas sit at the bow of the ship to ‘ward-off’
ração nessa arte popular “do contra”, as obras de Paulo the ‘evil spirits’ of injustice, obliteration, ill-sentiment,
Nazareth são carrancas de quem bem aprendeu de seu oblivion, hierarchy and authoritarianism. Inspired by this
Mestre. Ambos criando maquinarias contra as formas “resistance” folk art, Paulo Nazareth’s carrancas are the
estáveis, gerais e aprisionadoras do Estado, do merca- work of a man who learnt well from his Mestre. Both art-
do, do pensamento unívoco, do preconceito instituído ists created machines against the stable and imprisoning
e dos imaginários viciados, contra o imperativo da regra forms of the state, against the market, against unequiv-
cega que – como águas perigosas sobre as quais desliza o ocal thought, against institutional prejudice and embed-
complexo barco-carranca –, demanda a ação mágico-pro- ded stereotypes, against the command of blind rule which
tetora. Caminhar, navegar e (i)migrar são analogias inci- – just like the treacherous waters on which the carran-
sivas no trabalho com as carrancas de ambos os artistas ca-boat sails – demands a magical-protectiveness. Sailing,
na medida em que esculpem formas de experiência dessa walking, and (im)migrating are cutting analogies in the
elasticidade existencial e coletiva que aciona regimes de work of both artists’ carrancas. From this existential and
conhecimento calcados no deslocamento. collective elasticity, they sculpt experiences that activate
Foi assim que começou o processo de investigação que an understanding based on displacement.
culminou em Malungo==Irmãos de Barco. Carrancas de This was the crossing that culminated in Malun-
Mestre Orlando e Paulo Nazareth, exposição que se con- go==Boat Brothers. The carrancas of Mestre Orlando and
cretiza com a ocupação do Galpão 5 da Funarte-MG — Paulo Nazareth is an exhibition that took over Funarte’s
recentemente ocupada, para além dos editais, com uma Hangar 5 in Minas Gerais – which not long ago unveiled
das mais impressionantes ações artísticas e políticas dos one of the most impressive artistic and political move-
últimos tempos no Brasil. Inspirada por esse movimento ments of recent times in Brazil. Inspired by this move-
e por outros, essa exposição é também intento de inven- ment and by others, the exhibition also attempts to invent
ção de formas de ocupação de uma instituição de arte. new ways of occupying an art institution. It constitutes
Ela se constitui no reencontro com águas que curam, a reunion with healing waters, an imaginary adventure
uma andança imaginária por territórios carranqueiros through carranqueiro territories – “drinking the way” – as
— “bebendo caminho” — como se faz necessário nos necessary through time... Made with many hands, many
tempos que correm… Feita a muitas mãos, muitas vozes, voices, many affections, “waters that cry”, as expressed in
muitos afetos, “águas que choram”, como diz o poeta. the poem.
10

EPISTEMOLOGIA DAS
CARRANCAS: SABERES E OBRAS
CARRANCA EPISTEMOLOGY:
As carrancas são objetos dotados de poderes má- KNOWLEDGE AND ARTWORK
gicos. De madeira ou de outros materiais, precipitam
seres míticos que habitam uma espécie de fronteira Carrancas are objects endowed with magical pow-
humano-animal-espírito. São usadas nas embarca- ers. Made from wood or other materials, they take
ções — conhecidas, por isso, como barcas de figu- the form of mythical beings somewhere between hu-
ra — para proteger os navegantes de seres de outros man-animal-spirit. They are used on vessels known
mundos que habitam as águas dos rios. No Brasil, a as ‘carranca boats’, and they protect navigators from
arte das carrancas está associada diretamente à na- otherworldly beings that inhabit the river waters. In
vegação no Rio São Francisco, conhecido como rio Brazil, carranca art is directly associated with nav-
da “integração nacional” por sua presença em diver- igating the São Francisco River. This is recognised
sos estados do país, nascendo nas montanhas de Mi- as a river of “national integration” due to it flowing
nas Gerais e indo desaguar nos mares de Alagoas. through several of the country’s states. The source of
Eram vários os víveres e produtos transportados em the river is in the mountains of Minas Gerais and it
largos trechos, usando de força e de engenho: sal da empties into the Atlantic Ocean off the coast of Ala-
terra, rapadura, tecidos, farinha, açúcar, café, ouro, goas. Various foodstuffs and products were trans-
solas, arroz pilado, tabaco, couros e peles, borracha ported across large distances using a combination
de maniçoba e de mangabeira, resina de jatobá e an- of force and ingenuity: earth salts, unrefined sugar
gico, plumas de garça, cera de carnaúba e carne seca cane, fabrics, flour, sugar, coffee, gold, shoe soles,
1. NEVES, Zanoni. “Os Remeiros do sertão. ground rice, tobacco, leather and animal skins, man-
do São Francisco na Literatura” O epíteto, ao qual o rio faz jus em sua amplitu- ioc and Mangabeira rubber, Stinkingtoe and Angico
em: Revista de Antropologia. São
Paulo, vol 46, n.1, 2003. Disponível de rizomática, esconde e apaga um vasto conjunto tree resin, heron feathers, Carnauba palm wax and
em: https://goo.gl/v0i1Dx de acúmulo de profissões e de histórias de vida como dry meat from the sertão2 .
as de remeiros, tropeiros, farinheiros, rapadureiros, The river’s nickname, which it lives up to with its
2. Interior backlands of
Northeastern Brazil queijeiros, vaqueiros, agricultores, carreiros e guiei- huge root-like expanse, conceals and erases a vast
ros, pescadores, roceiros, beiradeiros que, tal como collection of work and life stories; histories of the re-
3. NEVES, Zanoni. “Os Remeiros aponta Zanoni Neves1 cumpriram um papel fun- meiros (rowers), tropeiros (cattle herders), farinheiros
do São Francisco na Literatura”
In: Revista de Antropologia. São damental na integração econômica regional, na for- (flour merchants), rapadureiros (sugar cane produc-
Paulo, vol 46, n.1, 2003. Available mação nacional e na produção de bens, riquezas e ers), cheesemakers, cowboys, farmers, fishermen,
at: <https://goo.gl/v0i1Dx> serviços. Não obstante, tais vidas e trabalhos foram and men of the coast. As pointed out by Zanoni
subvalorizados tanto no campo dos direitos — traba- Neves3, all played a fundamental role in regional
lhistas, políticos e civis — quanto no nível epistêmi- economic integration, in nation building and in pro-
co, que concerne aos seus saberes. A folclorização das ducing goods and services and generating wealth.
histórias, das narrativas sagradas e das experiências Nonetheless, these livelihoods and professions were
11

do ofício, bem como a associação entre origem étnica undervalued in the fields of labour, politics and civil
e saber serviu como base da estigmatização que colo- rights, as was their knowledge. The ‘folklorization’ of
cava essas pessoas em lugar social subalterno. the stories, sacred narratives, and trade experiences,
Nessa senda, vale lembrar ainda a conexão entre as well as the association between ethnic origin and
carranca e Exu, ou entre carranca e caboclo. A rela- knowledge, served as a basis for a stigmatisation that
ção com Exu, bastante comum, pode ser entendida placed these people in a subaltern social context.
pela afinidade com o orixá mensageiro que, tal como Along the way it is worth remembering the con-
a figura na proa, vai andando na frente, abrindo os ca- nection between carrancas and Exu4, or between
minhos, facultando a comunicação com os espíritos carrancas and the caboclo5. The relationship with
donos das águas, dos animais e das plantas. A relação Exu is fairly common and can be understood by an
com os caboclos, mais rara, pode ser entendida pela affinity with the orixá messenger6 in that, just like 2. LUNA, Jairo Nogueira. Por
afinidade com a figura do indígena e sua relação com the figurehead of the boat, he leads the way, opens Uma Mitologia das Carrancas
do Vale do São Francisco. UPE/
a natureza. No discurso científico, hegemonicamen- up the route and enables communication with the FFPG, 2007. Disponível em:
te eurocêntrico, a origem das carrancas está ligada spirits who possess the river waters, the animals and <http://www.recantodasletras.
aos saberes tradicionais indígenas e afro-brasileiros the plants. The somewhat rarer relationship with the com.br/artigos/504113>

— colocados no lugar do folclore e da superstição —, caboclos can be understood by an affinity with the fig- 3. NEVES, op. cit., 2003, p. 194.
servindo tal origem também para classificá-las como ure of the indigenous people and their relationship
arte menor ou artesanato. Alguns especialistas, ao with nature. According to hegemonic and Eurocen- 4. Lorenzo de Mammí foi curador
da exposição A Viagem das
fazerem essas aproximações, destacam a malignida- tric scientific discourse, the origin of the carranca is Carrancas, e organizador do livro
de e a violência das figuras de proa, em contraponto linked to traditional indigenous and Afro-Brazilian homônimo. MAMMI, L. A Viagem
ao caráter bondoso e pacífico das heranças culturais knowledge – placed at the heart of folklore and su- das Carrancas. Rio de Janeiro,
Instituto do Imaginário do Povo
e religiosas de matriz branca e europeia como a cruz perstition – classifying them as minor artworks or Brasileiro, Editora Martins Fontes
ou a imagem de alguns santos2 . handicrafts. In making these approximations, some e Instituto Moreira Salles, 2015.
De acordo com Zanoni Neves3, foi “na segunda experts highlight the malevolence and violence of O trecho citado está disponível
em: http://www.ims.com.br/ims/
metade do século XIX, [que] os barqueiros adota- the carranca, as opposed to the compassionate and visite/exposicoes/viagem-das-
ram a figura, hoje conhecida como carranca. Um dos peaceful character of the cultural and religious leg- carrancas. Acesso em 16/01/2017.
primeiros cronistas a mencioná-la foi Durval Viei- acies of the white and European matrix, such as the
4. A figure from Yoruba mythology
ra de Aguiar em 1882 (…). Figura, figura de proa e crucifix or the image of saints7. that symbolizes movement and
leão de barca são os termos ou expressões que os re- According to Zanoni Neves8, it was “in the second passage
meiros e outros ribeirinhos utilizavam para se refe- half of the nineteenth century [that] boatmen adopted
5. A person of mixed Brazilian
rirem às carrancas”. O autor também assinala uma the figureheads, now known as carrancas. One of the indigenous and European race
tipologia das carrancas em três formas gerais: as de earliest chroniclers to mention them was Durval Vie-
tipo zoomorfo, ou seja, com formas de animais; as ira de Aguiar in 1882 (…). Figures, figureheads and 6. A spirit in Yoruba mythology
that reflects one of the
antropomorfas (mais raras) com formas humanas; e boat-lions are terms and expressions that boatmen manifestations of God
as zooantropomorfas (mais comuns) que mesclavam and other river-dwellers used to refer to the carran-
características humanas e características animais. cas. The author also points out three general forms of 7. LUNA, Jairo Nogueira. Por
Uma Mitologia das Carrancas
Consta ainda, de acordo com ex-remeiros em relatos carranca typology: the ‘zoomorphic’ type which took do Vale do São Francisco. UPE/
orais, o uso de chifres de boi na proa dos barcos como animal form; the ‘anthropomorphic’ (rarer) which FFPG, 2007. Available at: <http://
forma de proteção contra o mau olhado e também took human form; and ‘zoo-anthropomorphic’ (more www.recantodasletras.com.br/
artigos/504113>
contra os seres míticos protetores do rio. common) which blended human characteristics with
São quatro os elementos estéticos que marcam animal characteristics. Oral accounts of past boatmen 8. NEVES, op. cit., 2003, p. 194.
o rosto da carranca, tal como as trazemos em nosso recall the use of ox horns on the bow of boat as a form
12
13

Mestre Orlando
Esculturas em Pedra Sabão
s/ título
Entre 1995 e 2003
Fotos: Marconi Marques
e Júlio Nazareth
14

5. O pesquisador Luiz Severino imaginário e nas figuras que podem ser vistas hoje of protection to ward-off curses, the evil eye and the
da Silva (2013, p. 216) chama a em dia em lojas de artesanatos e de umbanda: dentes mythical river-protecting beings.
esse movimento de “vitória estética
e mercadológica da carranca e olhos grandes, vasta cabeleira e cores vivas como o There are four aesthetic aspects that mark the
vampira”, cuja origem, no ano de vermelho, o preto e o branco. A estética afirma uma face of the carranca, elements that we picture in
1971, “[teve] o mestre escultor potência de proteção — força, visão de tudo, ethos our imagination and which can be seen nowadays
Severino Borges de Oliveira, mais
conhecido como Bitinho, como seu guerreiro — frente aos perigos temidos pelos nave- in Umbanda9 craft shops: large teeth and eyes, thick
criador. Pensada como uma forma gantes: Caboclo D’água, Minhocão, Negro D’água, hair, and vivid colours such as red, black and white.
de recriar um monstro visto em Compadre, Mãe D’Água, Cavalo d’Água, Cachorri- The aesthetics affirm a protective power – strong
cartaz de filme japonês, a “carranca
macaca”, inicialmente imaginada nho D’Água, Surubim-Rei, além dos perigos temidos and all-seeing – a warrior ethos to confront the
pelo mestre Bitinho, ganhou forma nas zonas rurais ao longo do rio como o Romãozi- dangers feared by navigators: Caboclo D’água (Wa-
e se transfigurou na atualmente nho, Pé de Garrafa e Cobra de Asas. No entanto, ter Caboclo), Minhocão (Big Worm), Negro D’água
denominada “carranca vampira”
Ver: https://goo.gl/8Ry9tV. como chama atenção o curador Lorenzo Mammì4: (Dark Water), Compadre (The Friend), Mãe D’Água
Acesso em 16/01/2017. “muitas das mais antigas são bastante realistas. É o (Water Mother), Cavalo d’Água (Water Horse),
caso de uma série de cabeças de leão, de contornos Cachorrinho D’Água (Water Puppy), Surubim-Rei
6. Informações que se valem dos
dados coletados nas pesquisas quase clássicos, e da maioria dos cavalinhos, usados (King Catfish), in addition to the dangers feared
de PARDAL, P. Carrancas do geralmente em embarcações menores”. Por outro in rural areas along the river such as Romãozinho
São Francisco. Rio de Janeiro, lado, foram os elementos grotescos, sem dúvida, que (a character from Brazilian folklore who bears the
Funarte/Ministério de Educação
e Cultura,1979 (Coleção tornaram populares as figuras5. Além de espantar as burden of immortality), Pé de Garrafa (Bottlefoot)
Cadernos de Folclore); NEVES, forças do mal, dispostas a virar o barco, a imaginação and Cobra de Asas (Flying Snake). However, as the
Z. Navegantes da integração: os filosófica de trabalhadores do rio e das margens, con- curator Lorenzo Mammì10 points out, “many of the
remeiros do rio São Francisco.
Belo Horizonte, UFMG, 1998; cebia as figuras de proa como apoio para que a em- oldest ones are quite realistic: such as the classic
NEVES, Z. Os remeiros do São barcação não afundasse, livramento de intempéries e profile of a lion’s head, or little horses which were
Francisco na literatura. Revista atração dos peixes para os pescadores6 . often used on smaller boats”. Meanwhile, it was un-
de Antropologia, São Paulo, USP,
2003, v. 46, n. 1; SILVA JR., L. S. O fotógrafo Marcel Gautherot, em expedição pelo doubtedly the grotesque elements that made these
da. Carranca Vampira: a vitória da Rio em território baiano na década de 1950, junta- figures popular11. In addition to repelling the evil
estética mercadológica. IX EHA mente com Pierre Verger, Hans Gunter Flieg e Paulo forces that lay waiting to capsize the boat, the phil-
- Encontro de História da Arte -
UNICAMP, 2013. Pardal, documentou uma série de embarcações e de osophical imagination of those working on the river
formas de figuras, com especial atenção para o estilo and riverbanks conceived supportive carrancas to
7. O reconhecimento destes e artístico de Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany protect the boat from sinking, from storms and to
de outros nomes como mestres
carranqueiros tem tanto a ver com (Santa Maria da Vitória-BA,1884-1987), conhecido attract fish for the fishermen12 .
critérios das comunidades ligadas como Mestre Guarany. Além dele, são internacional- On an expedition along the river in Bahia state
à atividade barqueira, mas também mente conhecidos os nomes de mestres carranqueiros in the 1950s, together with Pierre Verger, Hans
com a sua maior visibilidade
no mercado de arte popular, como Afrânio, Ana Leopoldina dos Santos ou Ana Gunter Flieg and Paulo Pardal, photographer Mar-
especialmente a partir dos anos de das Carrancas, Ubaldino Biquiba, filho de Guarany, cel Gautherot documented a series of vessels and
1960. Mestre Davi, por exemplo, Davi José Miranda Filho ou Mestre Davi, Dona Lur- shapes of carranca figures, with particular attention
ganhou fama internacional quando
o explorador Jacques Cousteau des Barroso, Expedito Viana , Chico Chagas7. to the artistic style of Francisco Biquiba Dy La-
instalou uma carranca no barco A construção da carranca é uma ciência que, in- fuente Guarany (Santa Maria da Vitória-BA, 1884-
“Calypso”. serida nos regimes dos conhecimentos tradicionais, 1987), known as Mestre Guarany. In addition to
9. Brazilian religion that blends vale-se das habilidades do corpo, da força da intui- Mestre Guarany, a number of carranqueiro masters
African religions with Catholicism, ção e dos afetos, bem como dos cálculos racionais, are internationally known, such as Afrânio, Ana
Spiritism, and considerable conjunto de competências que garantiam a flutua- Leopoldina dos Santos (or Ana das Carrancas), Ub-
indigenous lore
bilidade e a adaptabilidade da carranca ao barco. O aldino Biquiba (son of Guarany), Davi José Miranda
15

tempo de construção de uma carranca grande podia Filho (or Mestre Davi), Dona Lurdes Barroso, Expe- 8. Elaboração baseada em dados
tardar até dois anos, desde a escolha do material, do dito Viana, and Chico Chagas13. coletados, op. cit.

entalhe com o manuseio de instrumentos como fa- The construction of the carranca is a science 9. A carranca de pedestal é um
cão, machado e formão até o assentamento na em- based on a regime of traditional knowledge. It relies invento dos mestres carranqueiros,
barcação. Além disso, estava combinada com duas on physical ability, strong intuition and affection; as quando a carranca se torna objeto
de apreciação artística. O que marca
outras importantes ciências: a construção naval e a well as rational calculations and a skillset to guaran- essa transição, segundo Pardal (op.
navegação propriamente dita. Da primeira delas de- tee the buoyancy and adaptability of the carranca to cit.) é uma exposição realizada
riva a habilidade de equilibrar todos os elementos e the boat. The construction of a large carranca could por ocasião do IV Centenário da
Cidade de São Paulo (1954). As
todas as partes do barco: o camarote, o murundu, o take up to two years, from the choice of material, the carrancas, para serem levadas a
leme – dividido em duas partes: a cana do leme usa- carving and the handling of tools such as machetes, essa exposição, foram cerradas das
da pelo piloto e o “leme propriamente dito, submerso axes and the chisels, right up to fixing it to the ves- embarcações.

nas águas –, o espaço aberto para acolher o mestre- sel. This was further combined with two other im- 10. Lorenzo de Mammí was
-piloto, as coxias a bombordo e a boreste onde traba- portant sciences: shipbuilding and shipping itself. the curator for the A Viagem
lhavam os redeiros. Estes, por sua vez, trabalhavam The first of these constitutes the ability to balance das Carrancas (The Journey of
the Carrancas) exhibition and
com a vara, varejão ou vara ferrada. Havia trechos all the elements and all parts of the boat: the cab- organiser of the publication of the
— conhecidos como travessas — em que somente a in, the murundu, the rudder (divided into two parts: same name, MAMMI, L. A Viagem
força das varas manejadas com propriedade e esforço the rudder handle used by the pilot and the rudder das Carrancas. Rio de Janeiro,
Instituto do Imaginário do Povo
árduo empurravam a embarcação para cima. Os pilo- itself, submerged in the water), the space to accom- Brasileiro, Editora Martins Fontes
tos evitavam choques e encalhes, manejando o leme modate the pilot-master, the port and starboard and Instituto Moreira Salles, 2015.
com muita habilidade, rapidez e perspicácia. Todas walkways where the boatmen worked. They worked The extract quoted is available
at: http://www.ims.com.br/ims/
os saberes ligados aos ofícios de barqueiros, remei- with reeds, canes or sticks. There were stretches visite/exposicoes/viagem-das-
ros, pilotos e carranqueiros requeriam amplo conhe- known as sleepers where only the hardest of sticks carrancas. Acesso em 16/01/2017.
cimento do rio, dos regimes de chuva, dos ventos e and a huge amount of force were sufficient to propel
dos perigos invisíveis8 . the boat. The pilots avoided collisions and grounding 11. The researcher Luiz Severino
As carrancas inspiram, na intercessão das obras by handling the rudder with great skill, speed and da Silva (2013, p. 216) calls this
de Mestre Orlando e Paulo Nazareth, pensar em precision. The trades of boatmen, sailors, pilots and movement as the “aesthetic victory
and mercadology of the vampire
três ações de vida e de arte: navegar, caminhar, mi- carranqueiros required extensive knowledge and un- carranca”, founded in 1971, “[it
grar. De certo modo, as três ações se entrelaçam na derstanding of the river, rainfall patterns, winds and had] the master sculptor Severino
ancestralidade que os une como homens negros e os invisible dangers14. Borges de Oliveira, better known
as Bitinho, as its founder. Devised
torna, mestre e discípulo, contemporâneos na traves- Amongst the works of Mestre Orlando and Pau- as a way of recreating the monsters
sia do navio negreiro, antecedida por longas e exte- lo Nazareth, the carrancas inspire us to think about seen in Japanese movie posters,
nuantes caminhadas do interior da África até a costa. three actions of life and art: sailing, walking, migrat- the “carranca monkey” initially
imagined by Mestre Bitinho, gained
Talvez, essa ancestralidade possa alcançar tempos ing. In a way, the three actions are intertwined in took shape and became what is
ainda mais remotos, se pensamos nas caminhadas ancestry; uniting master and disciple as black men now called the “vampire carranca”.
e navegações que explicam a povoação da América e and making them contemporaries of the slave ship See: P http://www.unicamp.br/
chaa/eha/atas/2013/Luiz%20
que se enlaçam na história de Luzia que também an- crossing, preceded by long and strenuous walks from Severino%20da%20Silva%20Jr..pdf.
dou pelos nortes — pela calunga de céu e de mar — the African interior to the coast. This ancestry may Accessed: 16/01/2017.
em que Orlando e Paulo caminham com suas artes. stretch even further back in time, if we consider the
Como bem explica Isabel Casimira em seu texto “Por journeys in the settlement of the Americas which
que eles são Malungo?” (ver neste catálogo), a an- are entwined in the story of Luzia who also headed
cestralidade é da ordem do tempo espiralar que põe north – through the sky and sea of the Kalunga – the
em movimento o tempo mítico e o tempo histórico, journey that Orlando and Paulo continue with their
16

12. Information from data provocando sua inseparabilidade da vida cotidiana. É artwork. As Isabel Casimira explains in her text in
collected in the research projects ela que dá o sentido da existência, também no tempo, this catalogue “Por que eles são Malungo?” (“Why
of de PARDAL, P. Carrancas
do São Francisco. Rio de Janeiro, daquilo que está sempre acontecendo, seja esse acon- are they Malungo?”), ancestry commands a time con-
Funarte/Ministério de Educação tecer presente, passado ou futuro. Mestre e discípulo tinuum that sets mythical time and historical time
e Cultura,1979 (Coleção vêm, no movimento da ancestralidade, constituin- in a spiralling motion, provoking its inseparability
Cadernos de Folclore); NEVES,
Z. Navegantes da integração: os do sua contemporaneidade como filhos da diáspora from everyday life. It is this that gives us a sense of
remeiros do rio São Francisco. afro-brasileira, migrantes em seu país, fazedores de existence, a sense of what is happening and wheth-
Belo Horizonte, UFMG, 1998; caminhos e de caminhadas, sejam elas concretizadas er it is past, present or future. Mestre and disciple
NEVES, Z. Os remeiros do São
Francisco na literatura. Revista com seus corpos, sejam elas completadas pelo corpo move through ancestry, constituting their contem-
de Antropologia, São Paulo, USP, do rio, do barco, do ônibus, da bicicleta, do formão poraneity as children of the Afro-Brazilian diaspo-
2003, v. 46, n. 1; SILVA JR., L. S. ou da câmera. ra, migrants in their country, creators of paths and
da. Carranca Vampira: a vitória da
estética mercadológica. IX EHA É nessa fronteira que se coloca esta exposição, journeys, be they carried out in body, or be they com-
- Encontro de História da Arte - cujo foco principal é uma relação de transmissão de pleted by the river body, the boat, bus, bicycle, chisel
UNICAMP, 2013. conhecimento que se faz com hospitalidade e criação or camera.
13. The recognition of these and de uma vizinhança estética que, no campo da arte, já The exhibition has been placed along this fron-
other names as masters of carranca teceu diversas modalidades de relação entre as for- tier. Its main focus is knowledge transfer, made with
art has to do with the criteria of mas acadêmicas e institucionais e os mundos popu- warmth and the creation of an aesthetic neighbour-
the communities involved in the
boating activity as well as their lares, indígenas, quilombolas. É da criação de um hood that has already forged diverse connections
exposure in the folk art market, léxico que permite, cada um a sua maneira, esculpir between academic and institutional formats in the
particularly since the 1960s. suas carrancas que buscaremos tratar, ao criar uma world of art, and between the popular, indigenous
Mestre Davi, for example, gained
international fame when the exposição, no sentido alargado do termo, que se pre- and quilombola worlds. It is the creation of a lexicon
explorer Jacques Cousteau fitted a tende um experimento político-ficcional-artístico. that allows them – each in their own way – to sculpt
carranca to the “Calypso” boat. Esculturas em madeira e pedra sabão, instrumentos the carrancas that we seek to address, and, by creat-
14. Based upon information from de trabalho, pilões, fotografias, vídeos, panfletos, ins- ing an exhibition in the broadest sense of the term,
data collected , op. cit. talação, performance e objetos diversos, conformam it is intended as a political-fictional-artistic experi-
uma expografia-rio que pode ser explorada e ocupada ment. Wood and soapstone sculptures, work tools,
14. The mounted carranca is an
invention of the carranqueiro de diversas maneiras. pestles, photographs, videos, pamphlets and various
masters, when the carranca As esculturas de Mestre Orlando escolhidas para other objects all make up a river exploration that you
becomes an object for artistic a exposição são de diferentes fases de sua produção: can discover and engage with in different ways.
appreciation. According to Pardal
(op. cit.) this dates back to an as de madeira – carrancas de pedestal9 e medusas The sculptures of Mestre Orlando chosen for the
exhibition held to celebrate 400 – concentram-se numa fase anterior à sua atuação exhibition are at different stages of production: the
years of the City of Sao Paulo como artesão na Feira da Praça da Liberdade; as de wooden sculptures – mounted carrancas15 and me-
(1954). To be transported to the
exhibition the carrancas were pedra sabão, numa fase posterior mais ligada ao tra- dusas – remain a work-in-progress ahead of their dis-
sawed off their ships. balho de ensino-aprendizagem, são apresentadas jun- play at the craft-market Feira da Praça da Liberdade.
to com instrumentos de trabalho e mobiliário de seu Those made of soapstone, which are at a later produc-
ateliê no bairro Floramar. As carrancas de Orlando tion stage and linked to the teaching-learning pro-
têm uma marca muito própria, não se assemelhando cess, are exhibited alongside work tools and furniture
aos trabalhos dos mestres mais conhecidos. Elas são from his workshop in the Floramar neighbourhood.
em sua maioria um híbrido dos tipos antropomor- Orlando’s carrancas carry their own trademark,
fo e zoomorfo. Orlando lê de forma muito particular distinct from the work of the best known masters.
o universo das carrancas e a arte carranqueira, mas They are mostly a hybrid of the anthropomorphic
respeita o procedimento comum a muitos mestres and zoomorphic types. Orlando reads the world of
17

de escutar a matéria viva, orgânica como modo de carranca and carranquiera art in a unique way, but re-
fazer surgirem as figuras. Valem-se ainda de outras spects the process that is common of many masters
cores fortes como o verde, por vezes emprestando by listening to living, organic matter in order to make
um aspecto extraterrenal à carranca, incorporando the figures come to life. They invoke strong colours
imaginários cinematográficos e urbanos em sua ico- such as green, sometimes lending an extra-terrestrial
noclastia. A pintura das peças de madeira é feita com appearance to the carranca, and incorporating cin-
tinta látex e óleo de nogueira, enquanto as esculturas ematographic and urban iconoclastic imagery. The
de pedra sabão apresentam a matéria orgânica pura wood is painted using latex dye and walnut oil, while
sem outros acabamentos que não o polimento. the soapstone sculptures consist of pure organic mat-
De Paulo Nazareth, buscamos identificar carran- ter without any finish other than polish.
cas nos diversos suportes que o artista vem traba- From Paulo Nazareth, we seek to identify carran-
lhando, advindas dos projetos Notícias de América cas in the various mediums in which the artist has
e Cadernos de África. Dentre as fotografias esco- been working, originating from the projects Notícias
lhidas, uma tem grande centralidade: de pé em uma de América and Cadernos de África. Among the pho-
avenida de Nova Iorque, trajando uma túnica mu- tographs chosen, one in particular has a great cen-
çulmana, ele porta um cartaz com os dizeres: “no me trality: standing on an avenue in New York, wearing
olviden cuando yo sea un hombre importante”. Ela a Muslim tunic, he carries a sign saying: “Do not for-
traduz de maneira direta o sentido da exposição: fa- get me when I am an important man”. It directly ex-
lar sobre memória, apagamentos e resistências, bem presses the meaning of the exposition: to talk about
como da perenidade do vínculo de afeto que une mes- memory, erasures and resistance, as well as the per-
tre e discípulo. Ser um nome/um homem importante petual bond of affection that unites mestre and dis-
pode significar também esquecer-se de outras pos- ciple. Being an important name/man can also mean
sibilidades do ser. Nas imagens fotográficas de Na- forgetting about other possibilities of being. In Naz-
zareth, as carrancas se fazem com o uso de objetos areth’s photographs, the carrancas are made using
que, plasmados a seu corpo, conformam o sentido da objects that, moulded and shaped to his body, con-
proteção ou da luta contra as intempéries, como é o form to a sense of protection or the fight against the
caso do esqueleto de uma cara de touro em Para Ven- elements, as is the case of the skeletal bull face in Para
da (For Sale), Auto-retrato con bandera de México e Venda (For Sale), Auto-retrato con bandera de México
Cabeza de Vaca. Em outro conjunto, o corpo do ar- (Self-portrait with Mexican flag) and Cabeza de Vaca
tista é barco e a carranca é um cartaz gigante em I (Cow’s Head). In another collection, the artist’s body
am an american also ou o barco vencendo os trechos is a boat and the carranca is a giant poster stating ‘I
difíceis – quebra-botão na linguagem de remeiros – am an american also’, or the boat overcoming the diffi-
com o uso da cabeça para empurrar uma parede em cult stretches – “button-breakers” as they are known
He. A seleção de panfletos busca privilegiar as ações, in the language of the boatmen – he uses his head to
comentários literários e alusões cínicas e/ou irônicas push a wall in ‘He’. The selection of leaflets seeks to
que aludem aos dentes e cabelos – importantes ele- favour actions, literary comments and cynical and/
mentos da segregação racial e da circulação social de or ironic allusions of teeth and hair – important el-
alguns produtos de consumo – como também frutas, ements of racial segregation and social circulation of
árvores, bichos, posturas corporais, manifestos e fra- some consumer products – as well as fruits, trees, an-
ses que “assustam” pelo exotismo e/ou pelo tamanho. imals, body postures, declarations and phrases that
Carrancas de lata, bonecos, máscaras, matrizes de xi- “frighten” due to their exoticism and/or size. Tin car-
logravura e uma coleção de bacias marcam a coleção rancas, puppets, masks, woodcutters and a collection
18

de objetos selecionada para a exposição, bem como as of river basins are included in the collection of objects
“carrancas” iniciadas e inacabadas que Paulo fez sob selected for the exhibition, as well as the unfinished
a supervisão de Orlando. Das obras em vídeo, em Ol “carrancas” that Paulo began under the supervision
Ri Buruku é a cabeça de um homem negro, imigran- of Orlando. The video artwork in Ol Ri Buruku dis-
te nigeriano, que despeja xingamentos sobre a cidade plays the head of a black man, a Nigerian immigrant,
de São Paulo do topo do Edifício Itália — o barco who pours curses on the city of São Paulo from the
—, que configura a carranca e seus sons perturbado- top of the Edifício Itália (Italy Building) – the boat
res. Em Bicho de Pé, Paulo “esculpe” o próprio corpo – that configures the carranca and its disturbing
ao retirar um bicho de pé com o uso de uma goiva. sounds. In Bicho de Pé, Paulo “sculpts” his own body
Voyage Out e Potato is underground trazem, de for- pulling out a parasite known as the chigoe flea using a
ma viva, o tema do vencer as águas, principalmente gouge. ‘Voyage Out’ and ‘Potato is underground’ vividly
as águas interiores que fazem a existência acontecer carry the theme of overcoming the waters; especially
em face de turbulências e perigos tão reais porque the inner waters that make existence happen in the
imaginados. face of turmoil and danger, as real as it is imagined.
Um pilão de Mestre Orlando e um pilão de Paulo, Objects from their personal collections will be
dois objetos de seus acervos pessoais, serão instala- installed at the entrance of Hangar 5 – like a house
dos na entrada do Galpão 5 - à maneira de terreiros and farmyard – two pestles, one belonging to Mestre
e de algumas casas - que são também carrancas, ou Orlando and one belonging to Paulo, which are also
seja, objetos de proteção. carrancas: objects of protection.
A exibição compreende ainda a apresentação de The exhibition also includes a presentation of un-
obras inéditas dos dois artistas. As de Paulo Naza- published works by the two artists. Those of Paulo
reth foram realizadas durante a ação de caminhar da Nazareth were made along the walk from the source
nascente até a foz do Rio São Francisco e consistem to the mouth of the São Francisco River and consist
de dois vídeos e de um conjunto de fotografias de pe- of two videos and a small set of photographs. This
quena dimensão. Um trabalho em parceria com a fa- was made possible through working in partnership
mília de Mestre Orlando permitiu realizar, junto com with the family of Mestre Orlando; along with the
a mostra de obras, um Ateliê Aberto – ação capitane- work’s exhibition Ateliê Aberto – led by his son, Al-
ada por Allan Ferreira, seu filho, com a participação lan Lopes – and with the participation of his wife,
de Maria Aparecida, sua esposa –, como forma de in- Maria Aparecida, as a way of inventing other forms
ventar também outras formas de ocupação do Galpão of occupation in Hangar 5 and the open spaces of Fu-
5 e de espaços abertos da Funarte, afins ao espírito narte: similar to the spirit that guides the curatorial
que guia o recorte curatorial e o desenho expográfico. scope and the exhibition’s design.

*Luciana de Oliveira *Luciana de Oliveira


Professora e Pesquisadora na UFMG Professor and Researcher at UFMG
Curadora independente (Federal University of Minas Gerais)
Ganhadora do Prêmio Funarte Arte Independent Curator
Completar aqui no inglês: Winner of the
Contemporânea 2015 Funarte Art Contemporary Award 2015

Obs: se for possível colocar uma


assinatura só com a tradução entre
as linhas tal como os títulos
19

Paulo Nazareth
CA – Carranca de Papel – Ponto Chique-MG – BRASIL
Impressão Fotográfica sobre papel de algodão
28cm x 21cm
2017
20

MESTRE
ORLANDO

Mestre Orlando com máscaras


de Gamela
Foto: Guilardo Veloso

Excerto de jornal
Arquivo da Família Orlando
21

Orlando dos Santos Ferreira10 é baiano, natural


de Salvador. Migrou em 1973, junto com Beto Bahia,
para Belo Horizonte depois que seu cunhado, Jessé,
já um mestre escultor, instalou-se na capital mineira
buscando melhores condições de vida. Vivendo esses Orlando dos Santos Ferreira16 is from the city of
primeiros anos no bairro São João Batista, na “casa Salvador, in the state of Bahia, Northeastern Bra-
dos baianos”, assim conhecida na região pela alegria zil. In 1973, he moved to Belo Horizonte with Beto
e pela alimentação peculiar: ovo com salame. Logo Bahia, following his brother-in-law Jessé, a master
após chegar, Orlando já começou a trabalhar volun- sculptor who had already moved to the Minas-Gerais
tariamente com os ensinos de entalhe em madeira capital in search of a better life. For the first few years,
para a juventude humilde na vizinhança de sua resi- he lived in the São João Batista neighbourhood, in the 10. Biografia elaborada por Luciana
de Oliveira no processo de pesquisa
dência nos bairros São João Batista, Pompeia e Nova ‘Casa dos Baianos’ (House of the Bahians), known da exposição Malongo, com base
Vista (entre 1975 e 1978). throughout the region for being fun and also for its em entrevistas realizadas com Allan
Nos dons do entalhe ele foi autodidata e, mais tar- peculiar local dish of eggs with salami. After his ar- Lopes (2014 e 2016) e documentos
diversos pertencentes à família de
de, se aperfeiçoou na convivência e trabalho compar- rival, Orlando began to volunteer, and between 1975- Mestre Orlando.
tilhado com os cunhados. Orlando trabalhava como 1978 he taught woodwork to deprived children in São
pintor na Bahia. Foi nesse ofício, contratado para João Batista and surrounding neighbourhoods Pom- 16. Biography written by Luciana
de Oliveira during research
trabalhar no restauro de uma antiga senzala, que ele peia and Nova Vista. undertaken for the Malungo
descobriu algumas peças de madeira feitas por sujei- He taught himself the skills and later improved exhibition. Information is based
tos na condição de escravos e escravas que estavam through living and working with his brothers-in-law. on interviews with Allan Lopes
in 2014 and 2016, and on various
ali guardadas ou esquecidas. Vendo essas peças que Orlando had worked as a painter in Bahia. It was in documents belonging to Mestre
lhe saltaram aos olhos pela beleza e grande riqueza this trade, contracted to work on the restoration of an Orlando’s family.
de detalhes ele pensou: “se eles com as mãos acorren- old senzala (slave quarters) that he came across some
tadas puderam fazer, por que eu livre não posso?”. pieces of wood that had been carved into the figures of
Além disso, pode-se dizer que certa sensibilidade ar- slaves, left there for safekeeping or forgotten. Amazed
tística lhe foi transmitida pelo pai que, segundo ele by the beauty and richness of detail, he exclaimed: “If
contava, foi um grande pintor, embora só pintasse às they could do it with their hands chained, why can’t
escondidas. Orlando descobriu as pinturas do pai um I, free, do the same?”. He also inherited some artis-
dia, por acaso, debaixo da cama e admirou-se com a tic ability from his father, who claimed to be a great
beleza das telas e do próprio ato de pintar. painter, although he only painted in secret. Orlando
Os dons do ensino e da transmissão sempre fo- found the paintings one day by chance, under the bed,
ram a sua grande marca. Uma vontade de doação de and fell in love with the beauty of the canvases and
si que “fez acontecer” seus projetos nas periferias que with the very act of painting itself.
ele transformava em centros, em escolas de trocas de The gift of teaching and the ability to transmit his
experiência e de formação. Ao que tudo indica, isso knowledge were Mestre Orlando’s defining features.
é uma característica de sua personalidade, talvez Word got out about his willingness to teach, and
adensada por experiências com a fundação do bloco his projects in deprived neighbourhoods turned into
de carnaval Ilê Aiyê em 1974 do qual ele participou centres, training schools and exchange programmes.
entre idas e vindas de Salvador. As exigências subja- This was a personal characteristic, enhanced perhaps
centes à fundação do bloco definiam como suas prio- by his role in the founding of the carnival group Ilê
ridades: funcionar como uma entidade de militância Aiyê in 1974 which he participated in, travelling back
negra, africanização do carnaval de Salvador, ação and forth to Salvador. The founding principles of Ilê
22

social, cultural e educacional com a afirmação pública Aiyê became his own personal priorities. They in-
de tradições Yorubá, a valorização e o respeito a essa cluded:militancy in the black movement, Africanisa-
matriz fundadora da cultura baiana e brasileira. Es- tion of the Salvador carnival, participating in social,
sas diretrizes, Orlando traz consigo quando vem para cultural and educational activism publicly affirming
Belo Horizonte. Assim, ele se torna um promotor da Yorubá traditions, valuing and respecting the found-
produção e ensino das artes plásticas nos bairros Jar- ing principles of Bahian and Brazilian culture. Orlan-
dim Guanabara, Floramar, São Bernardo e Jardim do brought these values with him to Belo Horizonte,
Felicidade. seen in his promoting and teaching of visual arts in the
Junto com o trabalho de arte e educação, Orlando neighbourhoods of Jardim Guanabara, Floramar, São
trabalhava como pedreiro. Era morador da ocupação Bernardo e Jardim Felicidade.
urbana que hoje constitui o Bairro Floramar e par- As well as working in art and education, Orlan-
ticipava do movimento negro. Durante muitos anos, do also worked as a bricklayer. He lived in the urban
foi expositor na Feira Hippie que funcionava na Praça settlement now known as Bairro Floramar and par-
da Liberdade, ocasião em que o valor de seu trabalho ticipated in the black movement. For many years, he
foi reconhecido por alguns artistas mineiros, o que exhibited at the Feira Hippie (Hippy Market) in the
propiciou a mudança da categoria de sua produção de Praça da Liberdade, which gave a platform for his
artesanato para a prestigiosa denominação de Arte. work to be viewed by some artists from Minas Gerais
Assim, em 1977, ele participa e vence o prêmio do and fostered the change from his products being de-
salão do Museu de Arte da Pampulha, e algumas de fined as ‘artisan’ to the more prestigious title of Art. In
suas obras passam a compor o acervo da instituição. 1977, he won the Museu de Arte da Pampulha prize,
A visibilidade conquistada nesse momento propiciou and some of his pieces were archived in the museum.
sua participação em outras exposições e outros prê- The resulting exposure allowed him to participate in
mios, com destaque para o Salão Nacional de Arte de more exhibitions and win further prizes, including
Porto Alegre, a 1ª Bienal Latino-americana em São the Salão Nacional de Arte de Porto Alegre, 1st place
Paulo, a exposição Santeiro Imaginário, no Paço das in the Bienal Latino-americana in São Paulo, the San-
Artes e diversos eventos artísticos ligados à cultura teiro Imaginário exhibition, the Paço das Artes and
afro-brasileira. other artistic events with connections to Afro-Brazil-
Além de manter o espaço de ensino do entalhe em ian culture.
madeira no Bairro Floramar por mais de dez anos, He taught woodcarving in Floramar for over ten
Mestre Orlando capitaneou projetos culturais como years, and also headed cultural projects such as Percor-
o Percorrendo BH, mediante o qual seu trabalho de rendo BH (Roaming Belo Horizonte), through which
transmissão ampliou-se para diversas regiões perifé- his work became known in the suburbs of the city and
ricas da cidade e, ainda, para movimentos da juventu- amongst black youth movements such as: Barragem
de negra, como: Barragem Santa Lúcia, 1o de Maio, Santa Lúcia, 1o de Maio, Vila Mariquinha/Zilah
Vila Mariquinha/Zilah Spósito e Lagoa do Nado. Spósito and Lagoa do Nado. He pioneered the idea of
Ancorado, pioneiramente, numa ideia de descentra- the decentralisation of culture.
lização da cultura. Orlando married Maria Aparecida, his companion
Orlando casou-se com Maria Aparecida, sua com- in life and woodcarving, with whom he had twelve
panheira de vida e de entalhe, com quem teve doze children, many of whom also went on to become well
filhos, boa parte deles também conhecedores da arte known carranca artists. He died in 2003.
de fazer carrancas. Faleceu em 2003.
23

PAULO
NAZARETH

Ateliê Orlando
Bairro Floramar
Arquivo da Família Orlando
Foto: Guilardo Veloso

Paulo Nazareth
“Para venda (For Sale)”
impressão fotográfica sobre papel
de algodão
70 cm X 93 c
24

11. Biografia elaborada por Nascido Paulo Sérgio da Silva em 1977, adotou Born Paulo Sérgio da Silva in 1977, he adopted
Luciana de Oliveira no processo o nome artístico Paulo Nazareth11 em homenagem à the pen-name Paulo Nazareth17 in homage to his
de pesquisa da exposição
Malungo, com base na observação avó, Nazaré Cassiano de Jesus, indígena borun, violen- grandmother, Nazaré Cassiano de Jesus, an indige-
de entrevistas concedidas por ta e injustificadamente levada ao manicômio de Bar- nous Borum who was violently and unfairly taken to
Paulo Nazareth e conversações bacena. Carregar o nome da avó é um de seus mais the infamous Barbacena asylum. Taking his grand-
cotidianas com o artista.
notáveis trabalhos, ponto de partida de sua pesquisa mother’s name was hugely significant for the artist,
12. Algumas obras desse período autobiográfica-histórica-mítica-poética. Aos 12 anos, and spurred his autobiographical-historical-myth-
de aprendizado fazem parte do parte de sua família migrou de Governador Valadares ical-poetic research. When he was 12, part of his
acervo em exposição: “Torso de
Mulher” (1999) de propriedade para Belo Horizonte, com uma rápida passagem pela family moved from the city of Governador Valadares
de Antônio da Silva, irmão de cidade de Curvelo onde Paulo trabalhou como cuida- to Belo Horizonte, stopping briefly in the city of
Paulo, Perfil I (1998), do acervo do dor de porcos em uma fazenda. Durante toda a ado- Curvelo where Paulo worked keeping pigs on a farm.
artista, Flor (s/ data) e Boneco com
Barulho (2000). lescência e primeira juventude, trabalhou ainda como Throughout his adolescence, he worked as a care-
faxineiro, jardineiro, padeiro, capineiro, vendedor am- taker, gardener, baker, grass-cutter, street vendor,
17. Biography written by Luciana bulante, cozinheiro, varredor de rua, agente de saúde cook, street sweeper, health visitor, amongst other
de Oliveira during research
undertaken for the Malungo e outros pequenos ofícios. Os dons da arte apareciam jobs. His talents began to emerge during this time,
exhibition, based on watching amalgamados aos fazeres desses ofícios que o ensina- because his work taught him to look around and
interviews conducted with ram a olhar para a beleza do que se encontra na rua appreciate the beauty of what he saw in the street
Paulo Nazareth and on various
conversations between curator (embalagens, objetos, propagandas, recortes de rolo de (packages, objects, flyers, leftover film negatives), to
and artist. filme), a criar e intervir em bonecos e brinquedos, in- create puppets and toys, to invent songs, to observe
ventar músicas, observar os animais e as pessoas, escu- animals and people, to listen to stories, to feel spirits
18. Some pieces from the time
when Paulo Nazareth studied tar histórias, sentir os espíritos e o tempo. A invenção and time. This way of seeing things, of reinventing
under Mestre Orlando are part of desse olhar, que reinventa o belo, constitui também beauty, defined the paths he was to take, becoming
the exhibition: “Torso de Mulher” parte da criação dos caminhos a percorrer — o que what is conventionally called the creative process.
(1999), belonging to Nazareth’s
brother, Antônio da Silva; “Perfil convencionalmente chamamos de processo criativo. Growing up alongside his family, existing and
I” (1998), from the artist’s own Fazer a vida acontecer junto com a família, existir e resisting as part of day-to-day life, discovering his
archives, “Flor” (no date), and resistir como parte da experiência cotidiana, a desco- ‘blackness’ during middle school, his Afro, the stories
“Boneco com Barulho” (2000).
berta de sua negritude no ensino médio, o cabelo afro, that made him feel Borum — afro-krenak, afro-borun,
as histórias que o faziam sentir o seu ser borun — afro- afro-american- all of this inspired him to create and
-krenak, afro-borun, afro-americano — oportunizavam perform. At the School of Fine Art, he understood
a realização de muitas criações e ações performáticas that his creations could be called contemporary art.
que a formação acadêmica em Belas Artes ajudou a Before this, during his formative years under Mestre
entender que podiam ser nomeadas como arte con- Orlando, he realised that being a master of folk art
temporânea. Antes disso, porém, veio todo o perío- is a lot more difficult than being an academic. There
do de formação com Mestre Orlando entre os anos de were many more years ahead, many more demands.
1997 e 2000 e o reconhecimento de algo importante: With Orlando, Paulo learned how to carve wood18 ,
ser um mestre popular é muito mais difícil do que ser but he also learned the principle that would serve
um mestre acadêmico. São muito mais anos de for- him for a long time: to make art with a purpose, art
mação, muito mais exigências. Com Orlando, Paulo which can’t be separated from life and art which is
aprendeu entalhe em madeira12 , mas aprendeu, so- also work, prayer, macumba, ebó, song, business, pol-
bretudo, o princípio daquilo que se tornaria marca de itics, as the popular educator teaches. He also learned
sua forma de criação: praticar uma arte de conduta, that work is a reflection upon its creator, independent
uma arte que não se separa da vida e na qual o fazer of the fact it is for consumption, and that it is always
25

artístico é também trabalho, reza, macumba, ebó, progressing, it is never ‘done’. In this sense, perhaps
canto, negócio, política, como bem ensina a maestria in others, too, Paulo makes carrancas.
popular. Também aprendeu que um trabalho é sem- In both the beautiful conversation woven into
pre de quem o fez, independente dos caminhos que the improbability of contact between two worlds
percorre como objeto de consumo e que, mesmo nes- that gain joy simply from being together, the stu-
sas relações, segue em progresso, em feitura. É nesse dent-teacher relationship also outlined social strug-
sentido, talvez em outros, que Paulo faz carrancas. gles and political resistance. They are evidence of a
Tanto a boa conversa tecida na improbabilidade work that is intrinsic to life, that protagonises and
do contato de mundos que se tangenciam pelo sim- includes those believed to be outside of the creative
ples prazer do estar juntos, quanto a relação discípu- process, with the exception of the symbolic and eco-
lo-mestre no campo da arte popular faz emergirem nomic elite that castellate the art market. .
também os fortes contornos de lutas sociais e resis- In this case, it is not just wood, or paper, or digital
tências políticas. Evidenciam um trabalho que não se camera cement Paulo’s work, but the body and soul
separa da vida e que coloca dentro do jogo da criação of the artist himself—the ‘soul-word’, as the Kaiowas
também os sujeitos que pensam estar fora dele, a sal- from Mato Grosso do Sul say—that is continuous-
vo nas cúpulas econômico-simbólicas que blindam o ly moulded by these relationships. This soul-matrix,
mercado de arte. wood-soul, is continuously present in every exchange.
Nesse caso, não são somente a madeira, o papel, a It exists in human contact: between bodies, faces, in
câmera digital que tomam as formas das pessoas com glances, from near and far. It is there in communal
quem Paulo concretiza suas investigações, é a própria space, whether that of a mother or father and their
alma-corpo do artista — a “alma-palavra” como dizem children communicating through a borrowed phone,
os Kaiowas do Mato Grosso do Sul — que vai sendo or a kitchen with African-American-Europeans sit-
moldada por essas relações. Essa alma-matriz, alma- ting around the table. It is present too with his neigh-
-madeira, que se faz e refaz na interação – no contato bours in the Palmital neighbourhood, his friends in
dos corpos, das caras, dos olhares cúmplices, do estra- the Savassi market in Santa Luzia, the Kaiowa peo-
nhamento e da aproximação, da criação de um comum ple in Tekoha Guaiviry, an unnamed black youth in a
pelo sensível – , seja ela com a mãe, o pai e os irmãos chapa or a machibombo (minibus) in Mozambique, a
usando bônus ou mensagens de algum celular toma- girl offering him bread in a voodoo ritual in Benin, a
do de empréstimo quando não na comensalidade de family of Kachquele artists and farmers in Guatema-
uma cozinha repleta de Afromérica-Europa. Também la. It is there with acquaintances and friends on Face-
se faz com os vizinhos do bairro Palmital, os amigos book or another social media platform, or simply the
na feirinha da Savassi em Santa Luzia, os indígenas exchange of a glance or a smile, a performance kindly
Kaiowa do tekoha Guaiviry, um jovem negro anôni- enacted for the camera. Every situation becomes an
mo num “chapa” ou “machibombo” em Moçambique, exchange of blessings, open and never-ending.
uma menina que lhe oferece pão num ritual vodu em
Benin, uma família de artistas e agricultores kachque-
le na Guatemala, conhecidos e amigos de facebook ou
qualquer outra rede de informantes, ou simplesmente
na troca de um olhar ou um sorriso cúmplice, uma
performance gentilmente realizada para sua câmera.
Cada situação conformando círculos de dádiva e tro-
cas abertas e sem uma finalidade previsível.
26

Paulo Nazareth
Slavers Ship For Sale
Gravura
2014
Foto: Paulo Nazareth
27

POR QUE
WHY
ELES SÃO
ARE THEY
MALUNGO
MALUNGO?

Isabel Casimira*

No Festival de Inverno em Diamantina [2013],


em que aconteceu a Casa da Memória, um lugar de
encontro de mestres e mestras dos saberes da diáspo-
ra africana, um grupo cantou, porque pediu licença
para o tio, uma música sagrada. Por causa disso, eles At the 2013 Winter Festival in Diamantina,
nos contaram que aquela música sagrada era a músi- Minas Gerais, the Casa da Memória took place. This
ca que mostrava a travessia, e acrescentaram: “Essa gathering together of experts on the African diaspo-
é a música da travessia, que é a hora que ele [o afri- ra, which translates from the Portuguese as ‘House
cano na condição de escravo] entrou no porto lá em of Memories’, was a space for us to discuss and con-
Angola para chegar aqui… Na Bahia, por exemplo”. front the past. During the meeting, a group sang a
É aquele canto que conta o espaço de tempo daquele sacred song after seeking the approval of an elder.
período. They told us that this song represented the crossing
Na hora que eles entraram naquele navio todo enslaved peoples made across the sea, adding: “This
mundo era irmão. Cada um de uma nação, de uma is the song of the crossing, the moment where he (the
nação africana, mas se tornaram irmãos por inicia- enslaved African), arrived at the port in Angola to be
ção, aquele conjunto de pessoas que ficou naquele brought here… to Bahia”. The song narrates the story
momento, naquele ritual, eles são irmãos de barco. of that time.
E esses irmãos de barco remetem àquele barco ne- As soon as they stepped onto the boat, they became
greiro, navio negreiro que saía de lá e chegava aqui. brothers. Hailing from different nations, different
Então, aquele canto era da travessia. Com o dizer da African nations, but they were brothers from the very
travessia, porque não é canto que se canta toda hora, start, that group of people present in that ritual, they
porque é um canto triste. É um canto que quando se are boat brothers. The boat brothers-Mestre Orlan-
canta, ele dói lá dentro, faz lembrar: você sabe o que do and Nazareth, make sure that we don’t forget that
aquele pessoal passou… você sente o que é aquele ne- slave ship that left from ‘there’ and arrived ‘here’. The
gócio (…) song is one of passage. It can’t be sung all the time, it
Nós já tínhamos que cantar, nós já tínhamos com- is a sad song. It’s a song that hurts, stirs up memories:
binado com a mamãe [Dona Isabel Casimiro das we know what happened, we feel what happened (…)
28

19. Este texto foi editado junto Dores, in memoriam] o que é que tinha que cantar. We were already planning to sing… we’d already
com Isabel Casimira a partir de A mamãe foi cantar, só que ela cantou em português. agreed with my mother (Dona Izabel Cassimiro de
um depoimento da mesma por
ela concedido à pesquisadora (…) Depois que ela cantou, explicou, falou, quando Jesus, in memoriam). She started singing, but in Por-
Thaise Valentim Madeira. In: já tinha terminado o debate em que o pessoal fez um tuguese. After she finished, she spoke, she explained,
MADEIRA, T. V. A mediologia das tanto de perguntas. Daí minha mãe falou assim: “Ó, even though the debate was meant to have finished.
práticas culturais: da transmissão à
mis en scene da cultura tradicional agora nós temos que cantar e mandar os irmãos de Then she said: “Now we’ve got to sing and bring the
no processo de festivalização. volta, que eles estão todos lá no barco esperando”. brothers back, they’re on the boat waiting”. As if
2014. Tese de (Doutorado (…) Como se ela tivesse chamado, eles tivessem feito she’d called them, as if they’d crossed the sea again
defendida junto ao Programa de
Pós-Graduação em Comunicação a travessia e estivessem ali com a gente. (…) and they were there among us.
Social?) – Faculdade de Por quê? Porque na medida em que você vai fa- Why? Because we are all connected. Because as
Filosofia e Ciências Humanas da zendo, as conversas vêm passando, a sua mente vai we do things, we talk about things, and things come
Universidade Federal de Minas
Gerais, 2014. lembrando, às vezes você acha que é seu mesmo, que into our minds and sometimes we confuse them with
você está lembrando disso e daquilo e, às vezes, com our own memories. But they aren’t, and with time,
19. This text was edited with Isabel o tempo você entende que não é você, é induzido. E, we come to understand that. Sometimes, we think
Casimira after an interview with
the researcher Thaise Valentim às vezes, mais para frente, você entende que mes- things, but we can’t say them out loud because of
Madeira. In: MADEIRA, T. V. A mo você estando pensando nisso e naquilo, você não circumstance. My mother sang again, for them to
mediologia das práticas culturais: pode falar nisso naquele instante porque você está come back and the boat to return. They went back to
da transmissão à mis en scene da
cultura tradicional no processo de nessa ou naquela situação. Aí a mãe cantou de novo their ancestral home. What I mean is, they’re there,
festivalização. 2014, – Faculdade para eles retornarem e para o barco voltar. Foram… and they’re here, all at the same time. A true cele-
de Filosofia e Ciências Humanas Para o lugar de origem deles. Quer dizer, eles estão bration of ancestry. We must never forget our tata
da Universidade Federal de Minas
Gerais, 2014. lá e estão cá, estão aqui e estão lá. É uma festa de an- (grandfather). You miss your grandfather, but you
cestralidade pura! Pura, que você não esquece do seu talk about him, the way in which he spoke, his little
tata de jeito nenhum. Você pode não falar nele. “Ah possessions, one thing or another. They’re constantly
que saudade do vovô”. Mas você fala nas coisas dele, being honoured. It’s a constant struggle, and it gives
no jeito que ele falava, nos trenzinhos dele, de uma us the feeling that we are not alone. It reminds us to
coisa e de outra. Então, estão sendo sempre reveren- be responsible, not to destroy what we didn’t build
ciados. É uma luta constante. E te dá o sentido de não , to preserve what’s been created, and not to let the
estar sozinha. De ter responsabilidade, de não derru- tree, which we did not plant, fall down.
bar o que não foi você que construiu, de manter o que
já está construído, de não deixar cair a árvore que não
foi você que plantou. Isabel Casimira (Belinha)19

Rainha do 13 de Maio de Nossa Senhora do


*
Isabel Casimira (Belinha)19 Rosário (Queen of the 13 de Maio de Nossa Senhora
do Rosário Samba School)
Rainha do 13 de Maio de Nossa Senhora do Rainha Conga do Estado de Minas Gerais (Queen
Rosário of the Congada Guard, Minas Gerais State)
Rainha Conga do Estado de Minas Gerais
29

AOS MESTRES,
TO THE MESTRES,
COM CARINHO
WITH LOVE

Francisco Magalhães*

ELA VEIO
DE OUTRO LUGAR...

Uma grande fotografia do rosto de uma mulher foi


colada sobre a fachada de vidro de um arranha-céu no
centro da cidade. No interior desse edifício, há um gran-
de vão que dá acesso a teatro, cinema, biblioteca, galeria
de arte e café. Como na fachada, dentro do grande vão,
outras fotografias estampam rostos de mulheres. As fo- SHE CAME
tos, suspensas por fios transparentes, levitam alheias ao FROM ELSEWHERE…
corre-corre, ao entra e sai. Lançadas entre o chão e o teto, In the city centre, a large photograph of a woman’s
disputam lugar com uma escada rolante e banners de es- face has been stuck onto the glass façade of a skyscraper.
petáculos teatrais, soterrados pelo vazio do pé direito de Inside the building, there is a huge foyer which leads to
altura inumana do arranha-céu. a theatre, a cinema, a library, an art gallery, and a café.
As fotografias expostas na fachada de vidro e na gran- Just like on the building’s façade, this great space has
de sala não trazem nenhuma legenda, nenhum nome. been filled with photographs of women’s faces. The pho-
Junto às imagens não há nada que identifique o objeto. tos, hanging from invisible threads, float above the rush
Mas, estampado nas caras, pode-se ver o tempo, a pele of people; disconnected from the bustle below. Draped
vincada, cicatrizes. São mulheres negras, mestiças – cara from floor to ceiling, they contend for space with esca-
do povo brasileiro. Vista do lado de fora da edificação, lators and posters for theatre shows; squashed under the
o retrato da mulher se confunde com anúncios, placas empty weight of the inhumanly tall structure.
comerciais, outdoors, produtos para consumo... A im- The images displayed on the glass façade, and
pressão – retícula de pontos coloridos que desenham a throughout the great space inside, are not accompanied
imagem sobre uma fina lâmina transparente colada na vi- by any captions; there is nothing to identify their pur-
draça – funciona como um filtro: permite que a luz do sol pose. The subjects of the photographs are nameless, but
oeste atravesse e ilumine o interior. Composta por mi- etched onto their faces are the marks of time, lines in
cropontos de tinta, exposta à luz que tudo destrói, terá their skin, scars. The women are black, mixed race, the
suas cores queimadas pelos raios do sol. Com o passar face of the Brazilian people. Seen from the street, the
do tempo, sol a sol, as cores se esmaecerão. Marcas, ru- women’s portraits are jumbled together with adverts,
gas, cicatrizes, vestígios do real, experimentarão o ocaso business signs, billboards, consumer products… The im-
antes que a pessoa que as traz seja iluminada. Quem é? ages are printed in an array of coloured dots onto a thin,
30

O que faz? Porque está ali exposta? Lançada à beira da transparent layer of laminate. This is then glued onto the
calçada, à margem da rua da cidade que se consome sob glass, and acts as a filter: it allows the sunlight to flow
a égide do trabalho, pessoas anônimas circulam apres- through from the West and enlighten the inside of the
sadas. A imagem se modificará antes que seja nomeada building. Composed of tiny microdots of ink, exposed to
pelos transeuntes. the light which destroys all. The sun’s rays will burn away
Na grande vidraça e no vão de entrada do arranha- the colours. As time goes on, from sunrise to sunrise, the
-céu estão expostas mulheres que representam grupos ink will fade. Marks, wrinkles, scars, traces of the real
sociais que mantém tradições importantes da cultura. world: the sun will go down on them before the person
Elas são Rainhas, Princesas, Capitães de Guardas do who placed them there is brought to light. Who are they?
Congado que vieram de tradições engendradas ao longo What are they doing? Why are they displayed here? Cast
dos anos em relações geracionais. Todavia, suas praticas to the curb, to the side of the street; in a city consum-
– forjadas pela mesma cultura que ergueu o arranha-céu ing itself under the auspices of work, where anonymous
– esquivam-se dos modos de produção da indústria e do people hurry around. The image will change before the
consumo. Elas produzem algo para além do consumo. passers-by even give it a name.
Seus fazeres ativam canais, podem nos fazer mais huma- The women whose faces are displayed throughout the
nos. Um trabalho que tem a vida como lastro. E é nisso foyer and on the huge glass front of the skyscraper are
que reside a nobreza do objeto que elas nos trazem. representatives of social groups who uphold important
Quando arrancadas do ambiente de produção de seus cultural traditions. They are Queens, Princesses, Cap-
fazeres - cantos, rezas, festas – a imagem dessas mulhe- tains of the Congado Guard, who come from a long line
res, expostas dentro do grande arranha-céu, torna-se um of traditions passed down from generation to generation.
objeto de consumo. Uma apropriação perversa que, mais However, their customs (moulded by the same culture
que divulgar ou fomentar as praticas culturais que lhes that built the skyscraper) elude industrial and consum-
deram origem, dissolve o sentido de sua existência. erist production methods. They produce something
intended for more than just consumption. Their works
open channels; they can make us more human. Life itself
keeps their work afloat, and therein lies the true nobility
ELE VEIO of the artefacts they provide us with.
DE LONGE... When plucked from the environment in which they
produce their works – songs, prayers, celebrations –
Ele é um artesão, constrói instrumentos musicais, the images of these women displayed within the huge
caixas de folia, tambores, que ressoam nas Festas do skyscraper become consumer items. A perverse appro-
Rosário e outras manifestações da cultura. Ele vive no priation which, rather than spreading or fostering the
nordeste de Minas, chão de cerrado, semiárido, região cultural practices that gave rise to them, dissolves the
de Chapada do Norte. Lá, no alto Vale, terra seca, sob very meaning of their existence.
o azul etéreo do céu, ofício e existência correm no mes-
mo vau. Ele aprendeu o oficio do pai, o pai aprendeu do
avô: ir ao mato, escolher árvore de tronco roliço, no tem-
po certo, tombar a árvore, cortar o tronco, tabicar, secar HE CAME
à sombra. Seco o tronco, fazer dele um toco, ocar o toco. FROM AFAR…
Lavrar a terra, plantar o milho, esperar a chuva crescer
o milho, colher o milho, catar o grão, guardar a palha, He is a craftsman. He makes musical instruments:
tecer cordas da palha do milho. Comer o milho. Ir ao traditional caixas de folia, the drums which reverberate
31

mato, procurar a casa da abelha, extrair dela o mel, be- throughout the Festa do Rosário celebrations and oth-
ber o mel. Retirar a cera e com ela amaciar as cordas de er cultural festivities. He lives in northeastern Minas
palha de milho. Criar o boi, cortar o boi, separar carnes, Gerais, on the semi-arid savanna of the Chapada do
ossos, vísceras e couro, comer carne e vísceras, salgar a Norte region. There, at the top of the valley, amid the dry
carne, sob o sol, secar o couro. Ir ao mato, escolher o cipó, earth and under the celestial blue of the sky, trade and
cortar o cipó, secar, fazer dois círculos perfeitos do cipó. life flow together in the same stream. He learnt his craft
Do couro seco, curtido, cortar dois círculos e tiras finas, from his father, and his father learnt it from his grandfa-
costurar os círculos do couro aos círculos de cipó, encai- ther: go out into the bush; choose a tree with a rounded
xar os círculos no toco oco do tronco da arvore trazida do trunk; when the time is right, chop it down; separate the
mato; passar a corda, prender os círculos ao toco, afinar o trunk; split the wood; leave it to dry in the shade. Once
som. E assim, levado pelo rio que corre, vai-se o tempo e a the wood is dry, make it into a stump and hollow it out.
vida. Dentro da vida os fazeres das mãos do artífice e da Plough the earth; plant some corn; wait for the rain to
natureza, generosas, moldam instrumentos musicais das nourish the corn; harvest the corn; take the grains; keep
tradições ancestrais do povo. the straw; weave a rope from the straw. Eat the corn. Go
No alto, o arco do céu, aqui, a terra. Dentro da casa, out into the bush; find a bee’s nest; take out the honey;
no alto do Vale, abrigados sob teto da cultura, homens drink the honey. Take the wax and use it to soften the
e mulheres dançam pés, cantam vozes, ecoam tambores. rope made from the straw of the corn crops. Raise the ox;
Celebram Divindades despertas. kill the ox; separate the hide, meat, bones, and innards;
Convidado a ensinar na cidade grande, nos próximos eat some of the meat and the innards; salt the rest of the
dez dias, estará junto a pessoas interessadas em aprender meat and leave it out in the sun; dry out the hide. Go out
habilidades de seu oficio. Ele sabe construir com as mãos. into the bush; choose a vine; chop down the vine; dry it
É mestre atento, ilumina, conduz, ensina. out; make two perfect hoops from the vine. Take the dry
Uma grande mesa foi disposta no jardim interno da hide, now hardened into leather, and cut out two circles
Casa de Cultura. Em torno dela, o artesão ensina, alu- and two thin strips; sew each leather circle onto one of
nos aprendem. As mãos treinadas do mestre organizam the vine hoops; fit the leather circles around the hollow
sobre a mesa o material de trabalho. Ele trouxe suas pró- stump of the tree trunk which was taken from the bush;
prias ferramentas. São objetos antigos herdados do avô. use the straw rope to tie the circles to the stump; tune the
Dispõe as madeiras, couro, palha, cera. Explica os usos, sound of the drum. Just like that, time and life are car-
os manuseios... A matéria magnífica manipulada pela ried away by the river which flows on. Throughout his life
mão que escolhe é transmutada em forma. Vibra sólido the artisan’s generous hands, together with the hands of
o som. O material não utilizado é cuidadosamente guar- nature, shape the traditional musical instruments passed
dado pelo artesão. Do trabalho não há aparas ou restos. down by his people’s ancestors.
A atenção e o cuidado parecem supor que do fazer não há Up there, the expanse of the sky; down here, earth.
sobra, nada se perde. Inside the house, at the top of the valley, sheltered under
Olhares observam. Os alunos tentam aprender mini- the roof of their culture, men and women’s feet dance;
mamente a prática do trabalho do artesão. Iluminados pelo their voices sing; their drums echo. They are celebrating
Mestre de mãos e olhar espertos, tecem fios, cortam o cou- awakening divinities.
ro, serram... Faca... Corte... Amarras...Trabalham felizes. He has been invited to teach in the big city, and over
Meio da tarde, veio a fome. Trouxeram o lanche. Al- the next ten days he will spend time with people who are
guém trouxe. Suco, café, refrigerantes, quitutes...Pausa. interested in learning the skills of his trade. He knows
Descanso e deleite, conversa fora... Sobre o vão aberto how to build with his hands. He is an attentive teacher.
do jardim o sol escaldante. O calor dissolvente, as mãos He instructs; he drives; he enlightens.
32

dispersas... Ao fim, o fazer desatento - as nossas dificul- A large table has been set up in the interior garden of
dades postas sobre a mesa. O objeto precioso da cultura the Casa de Cultura. Around it, the craftsman teaches;
do Mestre: o couro, a palha, a cera, madeiras se misturam the students learn. The Mestre’s trained hands arrange
a sacos e copos de plástico, guardanapos amassados, so- materials on the table. He has brought his own tools with
bras de alimento. A matéria magnífica é reduzida à triste him. They are old artefacts, passed down by his grand-
condição do descartável, junto dela, o fazer das mãos da father. He lays out wood, hide, straw, wax. He explains
cultura. O fazer do Mestre. how to use them, how to handle them… The magnificent
materials, sculpted by his selective hands, are brought to
life. The sound vibrates strongly. The unused material is
carefully saved by the craftsman. There are no scraps or
ELA VEIO DE UMA remainders. His care and attentiveness seem to suggest
ELITE CULTURAL... that nothing is left over from his work; nothing is lost.
Curious eyes observe him. The students attempt to
A jovem está assentada no chão, apoia entre as per- learn even the basics of the craftsman’s work. Enlightened
nas uma cuia, dentro da cuia repleta, o cosmos feito em by the Mestre’s sharp hands and eyes, they weave strands,
miçangas azuis. As sementes-vidro azuis vieram antes de they cut leather, they saw… Knife… Cutting… Tying…
todos, chegaram aqui junto com os primeiros europeus. they are happily at work.
Antes, muito antes disso, foram joias na Mesopotâmia, Hunger arrives mid-afternoon. They have brought
no Egito, em Roma, bordados em tramas sagradas e pa- lunch. Someone brought it. Juice, coffee, soft drinks,
gãs. Na África e aqui, escambo entre homens e deuses. As snacks… a break. Rest and relish, relaxed conversation…
mãos hábeis da jovem seguram um fio de nylon, num rit- about the open space of the garden and the scorching
mo que foge à percepção do olhar, mergulham a ponta do sun. The dissolving heat, their hands spread out… Care-
fio na cuia, enfileiram as contas azuis. As contas, dispos- less work, in the end: our problems laid out on the table.
tas em fios, tornar-se-ão trama e urdidura. O objeto fina- The leather, straw, wax and wood, precious artefacts of
lizado trará desenhos de animais e padrões geométricos. the Mestre’s culture, are jumbled together with plas-
A artesã faz um colar macio e delicado ao olhar, ao toque tic bags and cups, crinkled napkins, and leftover food.
das mãos, ao colo dos homens e mulheres do mundo. A The magnificent materials are reduced to the sad status
jovem artesã é filha de uma elite cultural brasileira. Ela é of disposable items, along with the work crafted by the
uma índia. O trabalho que ela faz, encomenda de pessoas hands of culture. The work of the Mestre.
da cidade, será fotografado, transformado em uma ima-
gem. A imagem será transformada em uma matriz seri-
gráfica, a matriz proliferará múltiplos, inúmeros colares
planos impressos sobre palas de camisetas ordinárias. SHE CAME FROM
... A CULTURAL ELITE…
Na fatura de objetos de adorno e ritualísticos, índios
brasileiros utilizam uma infinidade de materiais de ori- The young girl sits on the floor, nestling a cuia fruit
gem vegetal, animal e mineral: penas, tintas, pedras, con- between her legs. The cuia is brimming with a cosmos
chas, sementes, madeiras, ossos... O valor da matéria na of blue beads. The crystal blue seeds came before every-
feitura desses objetos reside no potencial do material thing else; they arrived together with the first Europe-
que, dado às mãos de hábeis fazedores, resultará no arte- ans. Earlier, a long time before that, they were jewels
fato construído. Mais que matéria, o importante é saber in Mesopotamia, in Egypt, in Rome, embroidered into
o que fazer dela. sacred pagan fabrics. In Africa, and now here, a trade
33

Eles vêm da forja do conhecimento de técnicas between Gods and men. The girl’s skilful hands clutch
ancestrais... a nylon thread. At a pace faster than the eye can see,
Ao olhar do artesão, o valor estético e a plasticida- they plunge one end of the thread into the cuia and
de do material são de grande interesse na confecção do skewer the blue beads. The beads, arranged on threads,
artefato. Na construção dos objetos ritualísticos, à be- will become fabric and tapestry. The finished artefact
leza e plasticidade do material, somam-se valores sim- will feature animals and geometric patterns. The young
bólicos. Ao longo dos anos de convívio entre culturas, os craftswoman makes a necklace, thin and delicate to the
fazeres das mãos de artesãos de várias etnias indígenas eye, to the touch, to the necks of the men and women of
incorporaram novos materiais. Contemporâneos e an- the world. This artisan is the child of a Brazilian cultur-
tigos, esses materiais apropriados pela forja do conhe- al elite. She is an Indian. Her work, commissioned by
cimento e do fazer de técnicas ancestrais, muitas vezes people in the city, will be photographed: transformed
tomam outra aparência. Oriundos de lugares distantes, into an image. This image will be transformed into a
emprestados de outras culturas e moldados pelo arte- silk-screen mould; the mould will spawn multiple, in-
são, os materiais novos se mimetizam, confundem-se numerable flat necklaces which will be printed on the
entre si ou com os materiais do lugar: penas de plástico, collars of plain shirts.
sementes de vidro, resinas de colas, metais nacarados, …
lápis de olho, corretivos, batons, pelos, peles impressas... When crafting artefacts for rituals and adornment,
O interesse em padrões visuais e objetos indígenas Brazilian Indians use an infinity of materials of floral,
tem se revelado uma fonte de inspiração para a indús- animal and mineral origin: feathers, inks, stones, shells,
tria da moda. Na contramão da generosidade dos arte- seeds, woods, bones… The value of the substances used
sãos e dos artistas índios, a indústria, por sua vez, não to craft these artefacts lies in the potential of the mate-
tem correspondido a escambo justo. Se os primeiros – rial which, placed in the hands of skilful creators, will
artesãos armados do arsenal tecnológico transmitido result in the finished article. Rather than the material
por muitas gerações – transformam os materiais novos, itself, the important thing is knowing what to make of it.
moldam verdadeiras joias, a indústria, por outro lado, se They come moulded by knowledge of ancestral
apropria de maneira superficial da complexidade estética techniques…
do objeto original. Transmuta desenho e forma, mas na In the eye of the craftsman, the aesthetic value and
confecção dos objetos dados ao consumo da moda, ela, the flexibility of the material are of huge importance to
muitas vezes, pretere os seus próprios recursos tecnoló- the preparation of the artefact. When making objects
gicos e a imensa possibilidade de matérias na “tradução” for rituals, symbolic value is added to the material’s
desses fazeres. beauty and flexibility. Throughout years of interaction
A indústria poderia, mais amiúde, à sua moda, criar between cultures, the hands of artisans from various
outras joias, mas não o faz. Na cultura da elite da moda indigenous ethnicities incorporate new materials into
e do consumo, grande parte dos objetos produzidos não their craft. Contemporary and ancient, these appropri-
ecoa a beleza correspondente aos objetos matrizes. São ated materials become moulded by the knowledge and
superfícies planas, anódinas, não têm cerne, falta-lhes o crafting techniques passed down from ancestors; often
unto. Consomem-se, esquecem as fontes que lhes deram taking on a new shape. Emerging from faraway places,
origem: os fazeres e objetos de um grupo de importân- borrowed from other cultures and shaped by the artisan,
cia matricial para a cultura brasileira. the new materials mimic each other. They mix together,
Fiquemos atentos ao encontro entre culturas, à cul- or become jumbled with native materials: plastic feath-
turomania, à onda da customização e ao uso indébito da ers, glass beads, glue resins, pearlescent metals, eye pen-
mão do povo. cils, concealers, lipsticks, hair, animal-print fabrics…
34

Do encontro entre culturas: Interest in visual patterns and indigenous objects has
O que se aprende? O que se esquece? become a source of inspiration for the fashion industry.
Quem ganha? Quem perde? The Indian artisans and artists have been generous. On
the other hand, the fashion industry has not reciprocat-
*
ed with a fair trade. The former, artisans armed with a
Francisco Magalhães technological arsenal passed down through many gener-
Artista e Mordomo da Bandeira de São ations, transform new materials: they form true jewels.
Benedito da Guarda de Moçambique e The industry, for its part, superficially appropriates the
Congo do Reinado Treze de Maio aesthetic complexity of the original artefact. It transfers
design and form; but in “translating” these works into ob-
jects for fashion consumption, it often overlooks its own
Artist and Butler of St. Benedict's Flag technological resources and the immense possibilities of
from Guard of Mozambique and Congo the materials.
Kingdom of 13 of May The industry could more often, in its own unique fash-
ion, create other jewels; but it doesn’t. Within the culture
of the fashion and consumer elite, many of the objects
produced do not echo the beauty which befits the mould
of the original artefacts. They are flat, anodyne surfaces.
They have no essence, they lack the grease. They are con-
sumed, forgetting the sources that gave rise to them: the
works and artefacts of a group who have moulded Brazil’s
culture.
Let us be mindful of the encounter between cultures,
of culture-mania, of this flood of customisation, and of the
improper use of the hand of the people.
When cultures meet:
What is learnt? What is forgotten?
Who wins? Who loses?
35

Paulo Nazareth
Todos os corpos, rostos e
mentes que passaram por aqui
Panfleto
2008
36
37

Vista Geral
Exposição Malungo == Irmãos de Barco.
Carrancas de Mestre Orlando e Paulo Nazareth.
Galpão 5 – Funarte-MG
2017
Foto: Erica Si
38

In the “Old house” where I was born, where my grandparents


Na “Casa velha” onde nasci, onde moraram meus avós
and later my parents lived, there was a flour mill and a cocoa
e depois meus pais, tinha casa de farinha, chácara de
farm. Coffee and mango trees also grew there, along with a few
cacau, café, mangueiras, alguns pés de algodão e urucum.
cotton and urucum plants. The front of the house looked out
Na frente, voltado pra ladeira de terra vermelha, tinha
onto a slope of red earth: up there, in the pock-marked face of
buracos no barranco – ali, tranquilas, galinhas botavam e
the ravine, hens would peacefully lay their eggs. The house has
chocavam. A casa há muito tempo não existe mais, a chá-
been gone for a long time now. The farm has been turned into
cara virou pasto e manteve o nome da casa; o barranco
a pasture, but has kept the house’s original name. The ravine is
sim, sempre mudando de lugar.
still there, constantly shifting.
39

CARRANCA
NO BARRANCO

Marconi Marques*

Numa encosta-quase-mirante, no final da Rua Nossa


Sra. do Rosário, em Veneza, Ribeirão das Neves, região
norte de Belo Horizonte, Paulo comprou uma casinha de
alvenaria inacabada, em ruína, e a batizou de “Casa Na- Paulo bought a small house on a hillside-cum-lookout
zareth Cassiano de Jesus” (homenageando a avó), para, point in the Brazilian city of Ribeirão das Neves, north
futuramente, abrigar um centro cultural. Ele convidou- of Belo Horizonte; he baptised the house “Casa Naza-
-me para integrar uma exposição, aí, nesse bairro-homô- reth Cassiano de Jesus” in homage to his grandmother.
nimo onde, pela segunda vez consecutiva, instalara uma Despite its unfinished brickwork and ruined condition,
paralela à Bienal de Veneza, da qual ele participava, na it would later be converted into a cultural centre. He
Itália. Era, na verdade, uma mostra sem curadoria, sem invited me to take part in an exhibition there, in the
tempo, sem placas, sem textos, numa casa quase sem- neighbourhood of Veneza: a namesake of the Italian city
-teto. Na mostra vi obras de: Alfredo López Casanova, of Venice. For the second time in a row, Paulo had had
Daniel Murgel, Gustavo Speridião, Rodrigo Marques, organised a Brazilian alternative to the Venice Biennial
Sonia Gomes, Tiago Martins de Melo. Francisco Maga- that he also took part in. In truth, the display in Veneza
lhães, em processo, entre o chão e a parede, organizava had no curator, no set dates or times, no signs, no texts,
objetos para deuses. Havia, também, Arte Postal e um in a house with almost no roof. At the exhibition I saw
varal do projeto “Bordados pela Paz Guarani e Kaiowa”, works by Alfredo López Casanova, Daniel Murgel, Gus-
ação coordenada por Luciana Oliveira. Contornei a casa, tavo Speridião, Rodrigo Marques, Sonia Gomes, and Ti-
chamou-me a atenção o barranco nos fundos, produzido ago Martins de Melo. Francisco Magalhães was at work,
pelo corte no morro para o nivelamento do solo. Quando flitting between the floor and the walls, arranging objects
lá voltei, levei o amigo e artista, Igor Reis, para me ajudar for the Gods. There was also some mail art, and a few
num trabalho que eu vinha fazendo em outros lugares, hangings from the ‘Bordados pela Paz Guarani e Kaiowa’
chamado de Carranca no Barranco. project (‘Embroideries for Guaraní and Kaiowa Peace’),
Barranco é terra em iminência de barro. Barro no organised by Luciana Oliveira. Wandering around the
devir de gente. Matéria-mãe em criação ou destruição. house, the ravine opposite caught my attention: a cut in
Esse trabalho – que comecei nos barrancos do Vale do the hill created by erosion. The next time I went back I
Jequitinhonha (em terra natal), fez-se cara embaixo de brought my friend with me, the artist Igor Reis, to help
um cupinzeiro na margem da linha de trilhos da antiga with a project I had already been carrying out elsewhere:
“Central do Brasil” em Cordisburgo, subiu a favela e fez- it was called Carranca no Barranco.
-se carranca embaixo de uma pedra – desaguará no Rio The surface of a ravine is rich in clay. Clay which
São Francisco junto ao mar... Mas não quero aqui falar moulds the development of people. A raw material for
40

do mar... de meu nome... quero celebrar um encontro creation or destruction. I began this project in the ravines
possível com o Malungo – Irmãos de Barco. Através da of my homeland in the Jequitinhonha Valley; we carved
poética e da lembrança que esse trabalho oferta, desafio- a face below a termite mound by the railroad tracks of
-me a pensar um fio condutor, curso d’água, na margem e the old ‘Central do Brasil’ in Cordisburgo. We also went
no entre-margem, talvez em uma terceira (em referência/ up into the favela and carved a carranca below a rock: it
reverência a Guimarães Rosa). No conto, a solidão de um will eventually be deposited in the sea by the São Fran-
homem no não-lugar, no invisível, sobre uma canoa de cisco River, but I don’t want to talk about the ocean…
vinhático sem figura de proa – e no raso do seco, a sua about those three letters that my name shares with the
mulher que o deixa ir sem deixar. Em sua travessia, Pau- Portuguese word for ‘Sea’… I want to celebrate a pos-
lo, andarilho, errante em seu performar, divide o barco sible encounter with Malungo – Boat Brothers. Through
com seu mestre, com alguns irmãos/irmãs, com a família, the poetry and the reminders which are enshrined in this
agrupando arte popular e popularizando arte contempo- project, I challenged myself to think of a central thread;
rânea. Atento aos processos de ensino-aprendizagem. a stream. Flowing along the banks, between the margins,
Mediante esse projeto, conheço a história do mestre perhaps even on a third shore of the river. The latter is
através de seu filho Allan, e penso novamente no conto a referential/reverential allusion to a tale by Guimarães
de Rosa, onde o filho vive o dilema – seguir ou não a sina Rosa: a story of the loneliness of a man floating in the
do pai? Substituí-lo no barco à deriva? Seguir ou não uma ‘non-space’, in the invisible, in a canoe made of vinháti-
tradição? Allan, apesar de deter e repassar grandes en- co wood with no figurehead. On the dry plains, his wife
sinamentos do pai, não se mostra tão esperançoso com lets him leave without letting him go. Along his journey,
a ideia de viver de arte, e relembra um outro lugar que Paulo the wanderer meanders through his performances,
cabe nesta reflexão: O lugar do instável, do risco, do perí- sharing his craft with Mestre Orlando; with his siblings;
odo em que viveram debaixo de lonas em acampamento, with his family; bringing together folk art and popularis-
sem-tetos. Vindo da Bahia para Minas, Mestre Orlando ing contemporary art. Along the way, he is always mind-
se colocou numa situação de barranqueiro urbano. E se- ful of the teaching-learning process.
meou... Ensinando muitas crianças e adolescentes a bus- During this project, I have become familiar with Me-
car “o grande peixe”, a viver, acreditando em si mesmas stre Orlando’s story through his son, Allan. This leads
– entre criaturas zooantropomórficas e gamelas-más- me again to think of Guimarães Rosa’s tale, where the
caras –, espantou a baixa autoestima, os maus olhados, son faces a dilemma: to follow or not to follow in his
ofertando, com riso, dignidade e doçura a elas, comba- father’s footsteps? Whether to assume control of his
tendo a carrancuda realidade social – ele dizia que come- father’s drifting craft? To continue or not to continue
çou esse trabalho em gratidão a Deus pela sua melhoria the tradition? Allan, despite having received and passed
de vida. on so many of his father’s teachings, seems slightly less
Barranqueiros são ribeirinhos, de hábitos e moradias sure of the idea of living off his art. This brings to mind
simples, que vivem em barrancos à margem de um rio – o another place which fits into this reflection: the place of
poder público descobriu seu Orlando sendo rio e remador instability, of risk, of the period when the family slept
em meio a um deserto, e viu que isso era bom, e apropriou- under plastic covers in a homeless camp. After moving
-se. Entre seus vários lugares de atuação, Mestre Orlando from Bahia to Minas Gerais, Mestre Orlando became a
fincou carranca na Lagoa do Nado e – através de Paulo, kind of urban barranqueiro. He planted seeds, teaching
um de seus discípulos –, em nonada, mares abertos. Am- many children and teenagers to “go after the big fish”. He
bos se tornam parte de um conto utópico, e são tachados: taught them to live, to believe in themselves. Teaching
pagadores de promessas, loucos, desregulados... them to create zoo-anthropomorphic figures and masks,
41

Na minha periferia, na Zona Norte, não muito longe he scared away their low self-esteem and the evil eyes; of-
da casa da família do mestre, tem um rio que se chama fering them laughter, dignity and kindness. He helped
Onça, um dos poucos urbanos, não concretados, ainda them fight against a social reality every bit as fierce as
com quedas d’agua, cachoeira. E como disse Riobaldo: the expression on the face of a carranca. Mestre Orlando
“cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, used to say that he began this project as a way of thank-
retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o ing God for the improvements in his own life.
barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito In Minas Gerais, Barranqueiros are river-dwellers:
perigoso...” Esse rio que dá no das Velhas, em desenho, é they have simple habits and simple homes, living along
um ramo da grande árvore deitada, que é o Velho Chico the riverbanks. The public authorities found the flow
- a espera de um machado cego que o corte. of Orlando’s river. They discovered him paddling in the
Carranca no Barranco é uma ação que gera rostos im- middle of a desert, and they saw that it was good: adopt-
permanentes sobre suportes em erosão. Não pretendo ing his work as their own. Among the various places
navegar na contramão da tradição da escultura, mesmo where he has worked, Mestre Orlando has planted a car-
porque a criação se dá por um processo quase arqueológi- ranca in the Lagoa do Nado park. In addition, through
co. Quero falar de presença, de esquecimento e memória, Paulo (one of his disciples) he has carved these faces in
de enterro e desaterro, e por que não de vanitas, quan- the ether, in the open seas. Both of these figures are in-
do em seu desbarrancar? Nessa quase iconoclastia, talvez volved in a utopian tale, and are labelled as promise keep-
dialogue com a “carranca inacabada” de Paulo Nazareth. ers, maniacs, outsiders…
In my community in northern Belo Horizonte, not
too far from Mestre Orlando’s family home, there is a
*Marconi Marques river called the Onça. It is one of the few urban rivers;
Artista Visual it has not been built on, and water still cascades down
Pós-graduado em Artes Plásticas e its falls. As Riobaldo said in another of Guimarães Ro-
Contemporaneidade (Guignard/UEMG) sa’s stories: “A waterfall is only a high bank with water
Arte-educador tumbling over the edge. Take away the water, or level the
bank – what becomes of the waterfall? Living is a very
dangerous business…” The Onça, which feeds into the
Visual Artist
das Velhas River, is one branch of the great tree of the
Post-graduate in Fine Arts and São Francisco: known affectionately as the Velho Chico.
Contemporaneity (Guignard University) It lies in wait for a blind axe to cut it down.
Art-educator Carranca no Barranco is a project which carves tempo-
rary faces into eroding surfaces. It is not my intention to
go against the tide of traditional sculpture, particularly as
these creations involve an almost archaeological process.
I want to talk about presence; about memory and oblivi-
on; about burial and unearthing; and why not about va-
nitas, while digging so deep? Amid this near-iconoclasm,
perhaps there is space for dialogue between the latter
and Paulo Nazareth’s ‘unfinished Carranca’.
42
43

“Carranca no Barranco” – intervenção/entalhe


de Marconi Marques sobre barranco de terra –
Bienal de Veneza/ Neves, 2015.
Fotos por Igor Reis e Marconi Marques.

Carving into a ravine as part of the ‘Carranca


no Barranco’ project - Veneza Biennial, 2015.
Carrancas were originally figureheads in the
shape of humans or animals, often attached to
river craft in Northeastern Brazil. They were
used to identify traders on the São Francisco
river, as well as to guard them from evil spirits.
44

Paulo Nazareth
CA – carroceria de caminhao – petrolina – PE – BRASIL
Impressão fotográfica sobre papel de algodão
28 cm x 21 cm
2017
45

AFLUENTES
TRIBUTARIES

Júlio Nazareth*

Voltando à nascente desse rio de minha vida ao lado


do Malungo, percorrendo seu curso, busco alguns mo-
mentos submersos em minha memória. O primeiro a ser
resgatado é o de quando Paulo e eu brincávamos no quin- Returning with my Malungo to the source of the river
tal de nossa casa em Santo Antonio das Figueiras, antigo of our lives, and re-tracing its course, I search for some
nome da cidade de Governador Valadares que o bro [w] distant moments submerged deep below the surface of
retoma de Benedito [Benedito Valadares, governador de my memory. The first recollection I recover is of playing
Minas, renomeou a cidade do santo com o próprio nome with Paulo in our yard in Santo Antonio das Figueiras in
político]. O irmão, que ainda não tinha incorporado Na- Minas Gerais: the city now known as Governador Va-
zareth ao seu nome, reproduzia miniaturas de sacos de ladares, still referred to by my bro as ‘Benedito’ (Benedito
cimento e miniaturas de quadros feitos a partir de qua- Valadares was the state governor for Minas Gerais, who
drinhos de gibis. Ganso, alcunha de um amigo, chegou e renamed the city by replacing its saintly name with his
viu aquelas coisas e proferiu: “Paulo, você é um artista! own political title). My brother, not yet using the name
Vamos vender isso, você pode criar outras coisas mais!”. Nazareth, would create figurines out of cement bags and
São muitas as coisas que vêm à tona, e a pescaria no build miniature sets inspired by comic books. When our
rio da memória será farta. Das pontinhas de gravetos friend Ganso laid eyes on the creations, he excitedly de-
para bonequinhos de plásticos Gulliver atravessarem as clared: “Paulo, you’re an artist! Let’s sell them, you can
erosões feitas pela chuva, às casinhas de barro feitas nos create other stuff as well!”.
barrancos. As gambiarras que tínhamos que fazer para So much comes flooding back. There are plenty of
sobreviver, já que éramos privados de muita coisa. Ha- fish to catch in the river of memories: from the little stick
via uma plantação de batata-doce no quintal, que forne- bridges made for our plastic army men to cross the can-
cia suas folhas para complementar a alimentação que era yons created by the rain, to the small clay houses we made
praticamente composta por arroz, feijão e farinha. As fo- in the ravines. As we had very little, we needed creative
lhas de batatas vinham como iguaria em nossa alimenta- solutions to get by. There was a sweet potato plantation
ção diária. Às vezes, tínhamos sorte de comer ovos que as in the yard and the leaves would complement our meals:
galinhas do vizinho botavam em nosso terreiro. Trans- almost exclusively made up of rice, beans and manioc
formar pequenos azulejos, colhidos nas caçambas de flour. Potato leaves became something of a delicacy in
obras, em brinquedos de montar como se fossem “Legos”, our diet. Sometimes we were lucky enough to eat eggs
também compunha essa arte de Nazareth. Ficar plantado that the neighbour’s hens laid on our land. We’d convert
diante das vitrines das Lojas Brasileiras, imaginando ter small tiles collected from construction site skips into
todos aqueles brinquedos, era uma forma de compensar building toys, as though they were Lego: this was also
a falta deles. Mas não sofríamos sua ausência, tínhamos a part of Nazareth’s art. Looking into the shop window
46

capacidade de inventar outros, como bolão-cascudo e ou- of the Lojas Brasileiras department store and imagining
tros mais. Antes de ser Paulo Nazareth, era Paulo Jay [ou what it would be like to have all those toys and games
J? de José, Joseph, João, John ou Julio, Julius?], um aven- was a way of compensating for their absence. But we did
tureiro que me nomeou Júlio G (Leia-se no inglês) [seria not suffer from a lack of toys; we had the creativity to in-
G de Gordon, um herói dos quadrinhos? Gest de hospe- vent others, such as bolão-cascudo, among others. Before
de? ou G de grande? e seria eu o herói de meu irmão?] Jay becoming Paulo Nazareth, my brother was Paulo Jay (or
e G saiam correndo pelos muros da vizinhança, atrás de, was it ‘J’ for Joseph, John, Julius?). He was an adventurer,
e desafiando inimigos imaginários. A arte estava presen- who named me Julio G (with the English pronunciation,
te em Paulo, que ainda não era Nazareth. ‘G’ as in Gordon the comic-book hero; or maybe it was
Em agosto de 1989, Ana Gonçalves, leva seus três fi- ‘G’ for George, and was I my brother’s hero?). Jay and
lhos mais novos, a irmã mais velha e um neto para Belo ‘G’ running along the neighbourhood walls, chasing and
Horizonte, buscando uma vida menos sofrida. A ima- confronting imaginary enemies. Even before he became
ginação dos mais novos dizia-lhes que na capital minei- Nazareth, Paulo’s art was there for all to see.
ra não havia pobreza. Fomos morar na sauna de uma In August 1989, Ana Gonçalves took her three young-
mansão no Bairro Mangabeiras, um dos mais “nobres” est children, her older sister and her grandson to Belo
de Belo Horizonte. Pronto! Não havia miséria em BH, Horizonte (BH); in search of a better, less arduous life.
em nosso imaginário, digo! Seguimos em frente, olhan- As far as the younger migrants were concerned, there was
do aquela enorme casa com piscina, salas enormes, dife- no poverty in the capital of Minas Gerais. We went to
rente daquela de Governador Valadares que, em alguns live in the hot basement of a mansion in the Mangabeiras
momentos, pensávamos iria air quando chegava a época district, considered one of the most “noble” areas of Belo
de chuva e ventania. Essa mudança de cidade viria a in- Horizonte. “There we are, there is no poverty in BH.” Or
terferir muito no conceito artístico de Paulo futuramen- so we thought! We arrived in awe of the massive house,
te. A fase de responsabilidades de um adulto começaria with a swimming pool and huge rooms. A world away
ali. Aos poucos, pudemos perceber que aquela casa que from our home in Governador Valadares, that we always
estávamos era, na verdade, uma espécie de senzala con- feared might collapse in the wind and rain. This move
temporânea. Meses depois, mudamos para uma fazenda would have an impact upon Paulo’s future concept of art.
do patrão [quase irmão adotivo de minha mãe não fosse It was in the new house that adult life began. We slowly
o lugar social], que fica em Curvelo, cidade da região cen- realised that the house was in fact a modern-day planta-
tral de Minas Gerais, a 170 km de Belo Horizonte. tion, and we lived in the senzala (slave quarters). Some
Na roça de um coronel, o então patrão de minha mãe, months later we moved to a farming estate owned by our
que exigia que seus empregados o tratassem como “Dou- boss (If it wasn’t for the social gulf between the two, he
tor”, Paulo – nessa época com doze anos – foi empregado could almost be considered my mother’s adopted broth-
numa pocilga, onde começou como ajudante, recebendo er). The farm was in Curvelo, 170km from Belo Horizon-
¼ do salário mínimo. Meses depois, “Geraldo dos por- te in the central region of the State of Minas Gerais.
cos” foi dispensado e Paulo assumiu a responsabilidade My mother’s boss at the time, the coronel (the rich
de cuidar de mais de 400 porcos. Além de alimentá-los, local land baron) demanded that his employees referred
tinha que ajudá-los na inseminação. E, ainda, aplicar va- to him as “Doctor”. Twelve-year-old Paulo was employed
cinas e manter limpa, a pocilga. As brincadeiras com seu as an assistant on a pig farm, earning a quarter of the
irmão e fiel escudeiro eram escassas, mas sempre esta- minimum wage. Months later, “Geraldo the pig farmer”
vam juntos nas pescas proibidas do final do dia, na co- was dismissed and Paulo became responsible for over
lheita noturna de milho, junto com os peões de obras 400 pigs. As well as feeding them, he also assisted in
que ali estavam para construir um curral. Meses depois, their insemination, the delivery of their vaccines, and
47

retornariam a Belo Horizonte, onde continuaria a traje- maintenance of the sty. Opportunities to play with his
tória de vida que, também, viria a interferir muito em seu brother and faithful sidekick were few and far between.
conceito artístico na atualidade. Time spent together involved illicit fishing excursions at
No início de 1990, estávamos de volta a Belo Hori- the end of the day and late-night corn picking in the com-
zonte, onde as fantasias dariam lugar à realidade. Foi pany of the labourers who were building a barn. Months
quando descobrimos que havia favelas nessa cidade. Fo- later we returned to Belo Horizonte to continue with our
mos morar na Cabeça de Porco – um aglomerado no lives, a move that would have a similar impact on Paulo’s
Bairro Serra – num barracão que ficava abaixo do nível present-day concept of art.
da rua. Era como se fosse uma caverna, havia uma jane- It was the start of 1990; we were back in Belo Hori-
linha de madeira, de onde olhávamos de vez em quando zonte and reality had shattered our fantasy of a city free
– era algo bem sinistro: um dos cômodos do barraco era of poverty. We discovered that there were favelas in the
todo cercado de terra, piso, paredes e teto. O banheiro city. We moved to Cabeça de Porco (Pig’s Head), a clus-
ali era comunitário, e havia uma fila para banhar-se ou ter of housing in the Serra neighbourhood. We lived in a
para as necessidades fisiológicas feitas num vaso sanitá- shack below street level. It was like living in a cave; there
rio quadrado de concreto e com acabamento de cimen- was a wooden window which we would peer out of now
to queimado. Paulo ficou ali por alguns dias, depois foi and again. It was all quite unsettling. One of the rooms
convidado pela esposa do “Doutor”, “senhor do engenho”, was carved into the mud: the floor, walls and ceiling.
para trabalhar como caseiro na “casa grande” do Man- There was a communal bathroom where you’d have to
gabeiras. Essa experiência como caseiro serviria como queue to wash, or to satisfy your physiological needs into
uma de suas inspirações para seu conceito artístico no a square concrete toilet lined with burnt cement. Paulo
futuro. Voltando a navegar em águas turvas, Paulo teve spent a few days there, before being invited by the wife
uma rotina com muita turbulência. Um dia sua senho- of the “Doctor” (or “plantation owner”) to work as a care-
ra o questionou, perguntando se ele preferia estudar ou taker in the modern-day “plantation mansion” in Mang-
trabalhar, a resposta veio de prontidão “prefiro estudar”. abeiras. The experience as a caretaker represents one of
Ela, então, disse a ele: “mas, para estudar, você precisa the inspirations for his subsequent concept of art. Once
trabalhar”, e ele finalizou “e para trabalhar, eu preciso es- again navigating turbulent waters, Paulo had a tempes-
tudar”. Ele, que estudava de manhã e trabalhava do início tuous daily life. One day his mistress asked him whether
da tarde até no início da madrugada, passou a ter que le- he would prefer to work or study. “Study,” he replied in-
vantar mais cedo para molhar as plantas de sua senhoria, stantly. She then said: “Well, you have to work to study,”
antes de ir para a escola. Nos finais de semana era leva- to which he replied “And to work I need to study”. From
do para a roça para serviços extras, mas sem remunera- then on, he would study in the mornings and work from
ção extra. Às vezes, era “emprestado” por sua senhoria the afternoon into the early hours of the next day. He
a uma de suas irmãs, para “servicinhos” de jardinagem. had to be up early before school to water the lady of the
Depois, começamos a vender produtos da roça pelas ruas house’s plants. At weekends he was taken to the country
do Bairro Serra. Nessa época, Paulo começou a criar suas estate for extra jobs, albeit unpaid. Sometimes he was
carrancas, para afugentar os maus espíritos, passou a es- “lent” by his mistress to one of her sisters for gardening
tudar aos sábados, para ter um pouco de descanso. Via work. Later, we started selling products from the farm
nos estudos, sua única chance de escapar daqueles espíri- on the streets of the Serra neighbourhood. It was around
tos escravocratas. this time that Paulo began to create his carrancas to ward
Em 1992 ocorre a fuga para o Palmital, pois, nossa off evil spirits. It was also when Paulo began studying on
mãe consegue financiar ali uma casinha da Cohab. Foi o Saturdays, to have some respite. He saw his studies as the
ano em que o barco de nossas vidas tomou outro norte. only chance to escape the spirits of slavery.
48

Uma casinha geminada, onde ouviam-se as “tretas” diá- The escape to Palmital took place in 1992. It was a
rias dos vizinhos. Paredes pintadas à cal, piso de cimento year the river of our lives changed course. Our mother
queimado de cor vermelha. As portas de madeira tinham managed to raise the money for a small unit in a pub-
que ser montadas a cada vez que eram abertas ou fecha- lic housing project: a small, semi-detached house where
das. No terreiro da frente, uma grama onde, vez ou outra, we could hear the neighbours bickering every day.
havia uma vaca ou um cavalo fazendo o desjejum mati- Lime-plastered walls and red-coloured burnt cement
nal. Os mitos acerca da nova morada eram os mesmos floors. The wooden doors would have to be put back into
dos das moradas anteriores, os mesmos com que rotulam place every time they opened or closed. Out in the front
as favelas de modo geral. Com o apelido de “Caldeirão do yard, there was a small stretch of grass where every so
inferno”, o Palmital viria a ter grande importância nos often there would be a cow or a horse enjoying its morn-
trabalhos de Nazareth. A falta de água era constante, o ing breakfast. The new house carried the same stigma as
abastecimento só se dava a cada seis meses e tínhamos our previous homes: the same labels used to characterise
que buscar água em cisternas de alguns moradores do favelas in general. Nicknamed the “Cauldron of Hell”,
bairro ou em algumas bicas d’água que ainda lá existem. Palmital would have a huge impact on Nazareth’s art-
Em junho daquele ano, Dona Ana conseguiu outro work. The lack of water was constant; it would be sup-
serviço, como auxiliar de cozinha, em uma fábrica de sal- plied once every six months and we would have to collect
gados. Era a oportunidade de ela se livrar daquele tra- more from the cisterns of other residents or at one of the
balho semiescravo e vislumbrar outros horizontes. Ela few local springs that still remained.
saiu, mas Paulo continuou. A “senhora do engenho” ha- In June that year our mother, Dona Ana, found a new
via feito uma pressão psicológica sobre ele, que acreditava job as a kitchen assistant in a food factory. It was an op-
que para estudar teria que continuar a trabalhar para ela. portunity to free herself from the quasi-slavery of her
Mas, como ele era o último remanescente da família que former job and broaden her horizons. She left the Mang-
ainda continuava por lá, sempre que era possível juntava abeiras mansion, but Paulo remained. The “lady of the
suas coisas em sacos de estopas a fim de levar para o Pal- house” exerted considerable psychological pressure upon
mital. E assim continuou a fazer durante o resto dos me- him and he believed his studies were dependent upon
ses daquele ano. No dia vinte e quatro de dezembro, ele já him remaining in her employment. Nevertheless, as he
tinha deixado seu último saco escondido em um lote vago was the only family member still on the estate, at every
das proximidades de onde trabalhava. Já eram oito horas given opportunity he would collect his belongings in
da noite, quando sua patroa chegou até ele para lhe atri- burlap bags to take to Palmital. He did this continuous-
buir as tarefas da festa natalina. Quando disse a ela que ly until the end of that year. On the 24th of December
não trabalharia mais ali, ela ficou surpresa com a notícia he stored his last bag of belongings in a vacant lot close
e começou a dizer que aquilo era uma canalhice da parte to where he worked. It was past 8pm when his boss ap-
dele, que ele estava repetindo o que a mãe dele havia feito proached to give him his orders for the Christmas party.
com ela. Por fim, ela pegou um objeto que estava embru- That’s when he told her he was leaving. She was surprised
lhado num papel de presente e disse: “Não darei mais seu by the news, and started saying that it was a treacherous
presente de natal”. Então, ela abriu o embrulho... e o que thing for him to do: that he was behaving ungratefully
havia dentro era um relógio despertador, daqueles cujo just like his mother had earlier in the year. Finally, she
barulho é bem estridente. Ela esbravejou muito e tentou grabbed hold of an object enveloped in wrapping paper
a todo custo impedir sua saída. Dizia que ele estava per- and said: “You’re not getting your Christmas present
dendo a oportunidade de, no futuro, ser o motorista dela. any more”. She opened the gift in front of Paulo… inside
Não teve jeito, Paulo foi embora para o Palmital, onde was an alarm clock, the kind that pierces your ears. She
navegaria em águas mais brandas. ranted tirelessly and tried everything to stop him from
49

Meses após trabalharmos juntos vendendo picolé e pi- leaving. She claimed he was throwing away opportunity
poca na Praça da Estação, o curso da vida nos colocou em to work as her chauffeur in the future. There was no go-
rumos diferentes. Eu fui vender jornais para a Casa do ing back: Paulo left to Palmital where he would navigate
Pequeno Jornaleiro em Belo Horizonte, ele foi trabalhar calmer waters.
como vendedor de pães, e na capina das ruas do “Caldei- Months later, we worked together selling ice lollies and
rão” – projetos idealizados pela Irmã Diva, uma senhora popcorn in Belo Horizonte’s Praça da Estação before our
que era ligada à igreja católica e que o amadrinhou. lives took different courses. I went to sell newspapers at the
Anos mais tarde, o rio da vida nos colocou juntos no- Darcy Vargas Foundation’s Casa do Pequeno Jornaleiro; he
vamente. Fomos trabalhar como faxineiros numa empre- went to work in a social project created by Sister Dulce, a
sa de limpeza que prestava serviços para a Construtora lady from the Catholic church that had taken Paulo under
Andrade Gutierrez. Para nossa surpresa, ao entrarmos her wing. His responsibilities were to sell bread and work
em uma das salas para limpar o chão, encontramos o on the upkeep of the streets of the “Cauldron”.
“Doutor” novamente. Ele era diretor dessa construtora. Years later, the paths of our rivers merged once more.
No entanto, estávamos ali só de passagem. Alguns meses We went to work as janitors for a cleaning contractor that
mais tarde, no ano de 1997, nas aulas de geografia – gra- serviced the Andrade Gutierrez Construction company.
ças à professora Ádila, da escola pública onde Paulo es- Much to our surprise, when we went into an office to clean
tudava – desperta-se nele o interesse pelas carrancas do the floor we came across the “Doctor” once more. He was
São Francisco, que costumava ver em estabelecimentos the company chairman. For us, the work was only a stop-
comerciais ao longo da BR 040. Chamou-lhe a atenção gap. Some months later, in 1997, in geography class at the
uma em especial, nas proximidades do Rio Paraopeba, public school where he studied, inspired by his teacher
onde seu antigo patrão havia comprado terras anos antes. Adila, Paulo took an interest in the carranca sculptures
Nessa ocasião, o levara a visitar a outra possível fazenda from the São Francisco river sold along the BR 040 High-
em que futuramente deveria trabalhar. Quem sabe teria way. One particular carranca caught his eye. It was from
sido essa carranca do Paraopeba que tenha espantado os the Paraopeba River region where his former employer
maus espíritos que nos assombravam desde o Rio Sua- had acquired land some years earlier. He had been taken
çuí, cujos parentes boruns eram obrigados a trabalhar nas to visit the farm with the expectation that he would work
fazendas que se formaram em suas terras? É neste ano there in the future. Perhaps it was the Paraopeba carran-
que Paulo conhece Mestre Orlando. Após ser reprovado ca that had banished the spirits which haunted us from
no teste de aptidão na Escola de Belas Artes da UFMG, the River Suaçi; whose Borum relatives, descended from
Paulo prestou vestibular para o curso de arquitetura, mas Africa, were forced to work the land?. It was the same
não passou. Alguns meses após a reprovação comunicou- year that Paulo met master sculptor and folk artist, Me-
-me que, sairia do serviço para se dedicar aos estudos. stre Orlando. After an unsuccessful entrance exam for a
Desejei-lhe boa sorte. A partir daquele momento, não fez place at the Federal University of Minas Gerais (UFMG)
outra coisa, senão estudar. Dormia tarde e acordava bem School of Fine Art, Paulo also sat entrance exams for ar-
cedo, dedicou-se muito e, no ano de 1998, foi aprovado chitecture but was similarly unsuccessful. Some months
para a Escola de Belas Artes da UFMG. after failing these exams he told me he was going to leave
No ano de 1999, iniciou os estudos, e meses depois work to concentrate on his studies. I wished him well.
começou a frequentar o Parque Lagoa do Nado, a fim de From then on he studied morning, noon and night. His
continuar o aprendizado com o escultor Mestre Orlando, dedication finally paid off, and in 1998 he gained a place
com quem aprendeu o manejo da madeira e da pedra, e at the UFMG’s School of Fine Art.
a quem atribui grande parte de sua formação como ar- The fine art course began in 1999, and some months
tista. Com ele, Paulo começou a esculpir uma carranca, later he started regularly visiting the Lagoa do Nado Park
50

que ainda não foi finalizada e se encontra em seu poder, to continue his apprenticeship with Mestre Orlando.
guardada com muito cuidado e sob a promessa de um dia The Mestre had taught him to work with wood and stone,
finalizá-la. Nesse mesmo ano, adotou o nome da avó ma- and Paulo claims he played a substantial role in his de-
terna Nazareth Cassiano de Jesus, filha de boruns – povo velopment as an artist. Paulo began sculpting a carranca
originário do sul da Bahia e Vale do Rio Doce – tornan- with Mestre Orlando, which is still unfinished. He keeps
do-se Paulo Nazareth. A partir daí incorporou, como it under his zealous care, and promises to finish it one
parte de objeto de pesquisa, as causas indígenas e raciais, day. This was also the year that he became Paulo Naz-
e as indagações sociopolíticas. Eternizava, assim, o nome areth, adopting the name of his maternal grandmother,
de sua mãe, o da avó, o de seu povo e o de sua cultura. Nazareth Cassiano de Jesus: the daughter of members
A partir daí, mais consciente de sua missão, Paulo en- of Borum people from the south of Bahia and the Rio
frenta preconceitos, transforma as “pedras” encontradas Doce valley. From this moment on, he has incorporat-
pelo caminho em objetos de arte, quebra paradigmas, ed the causes of indigenous and afro-descendent people
traspõe barreiras, leva a favela para o meio artístico. Faz and sociopolitical inquiry into his work. The adoption
instalações em locais que não estavam no circuito oficial of ‘Nazareth’ eternalised the name of his mother and
das artes plásticas; instala uma banca de gravuras na fei- grandmother, his people, and their culture.
rinha do Palmital; projeta inserir o nome do Palmital na From then on, now more conscious of his mission,
historia da arte mundial; vende objetos de arte a preços Paulo confronts prejudice: he transforms the “rocks”
acessíveis a qualquer classe social. which stand in his way into art, he breaks paradigms, he
No ano de 2013, mergulha em sua inquietação de in- crosses boundaries, bringing the favela to the art world.
fância, de quando seguia para a roça na camionete do He produces exhibitions in places outside of the official
“senhor do engenho” e via uma placa apontando para Ve- art circuit; he sets up art stalls at Palmital market; he
neza, e ficava confuso, pois na escola aprendera que Ve- aims to insert Palmital’s name into global art history; he
neza ficava na Itália. Mas e aquela placa na BR-040? ... sells his art at prices accessible to all social classes.
Nesse ano, em que foi convidado para participar da 55ª In 2013, he delved back into his restless childhood.
Bienal de Veneza na Itália, nasce-lhe a convicção: Veneza On the way to the estate in the back of the truck of the
sempre foi essa daqui, em Ribeirão das Neves. Em con- “plantation owner”, he would pass the sign to a place
sequênciia, paralela à Bienal de Veneza da Itália, Paulo called Veneza (which is also the Portuguese name for
inaugura a Bienal de Veneza de Ribeirão das Neves, e, Venice). This caused some confusion, as at school he’d
aí, começa a historia da Casa Nazareth Cassiano de Jesus learnt that “Veneza” was in Italy. So why is it signpost-
onde o artista inscreve sua Arte de Lugar, Arte de Lar, ed on the BR-040 highway? That same year, he received
Arte Lá, Aqui é Arte. an invitation to the 55th Venice Biennal in Italy. Paulo
Paulo Nazareth continua a seguir em águas amenas, became convinced that the true “Venice” was here in Ri-
com algumas pequenas turbulências que a vida nos pre- beirão das Neves, Minas Gerais. Therefore, Paulo decid-
para, mas nada impossível de se enfrentar. No curso dela ed to found the Veneza de Ribeirão das Neves Biennal
encontra-se novamente com Mestre Orlando, que, agora which would coincide with the Venice Biennal in Italy.
in memoriam, renova sua presença através de suas obras This is where the story of the Nazareth Cassiano de Je-
de arte que encantam quem as vê. sus gallery begins, where the artist’s Arte de Lugar, Arte
E é o espírito do Mestre que nos fortalece para que de Lar, Arte Lá, Aqui é Arte (Art in the Place, Arte in the
continuemos a nossa navegação, sempre com uma car- Home, Art There, Art is Here) project is displayed.
ranca à frente da proa para nos proteger dos maus espíri- Paulo Nazareth continues to sail on calm waters. Life
tos, pois, como diz Paulo parafraseando sua mãe diante throws a few storms at us along the way, but nothing that
de salafrários: can’t be weathered. Along the course he reunites with
51

– Jesus e Maria passam na frente e Exu atrás dan- Mestre Orlando, now in memoriam, whose presence is
do porrada! revived through his artwork which enchants its viewers.
The spirit of Mestre Orlando provides us with the
strength to carry on our journey, always with a carran-
*
Júlio Nazareth ca as the figurehead of the boat to protect us from the
Assessor e Produtor evil spirits. As Paulo would say, paraphrasing one of our
Advisor and Productor mother’s reproaches to our bad behaviour:
– Jesus, Mary and Joseph at the front; and Exu be-
hind dishing out beatings!

Paulo Nazareth
CA – vanilson carranqueiro em oficio – petrolina – PE – BRASIL
Impressão fotográfica sobre papel de algodão
28 x 21 cm | 2017
52

PALAVRA DE DISCÍPULO:
WORDS FROM DISCIPLES:

HOMENAGENS
TRIBUTES

A MESTRE ORLANDO
TO MESTRE ORLANDO

Ateliê de Mestre Orlando


Bairro Floramar
Arquivo da Família Orlando
Fotos: Guilardo Veloso
53

ALLAN
FERREIRA
DOS SANTOS

Filho de Orlando
Orlando’s son

Pra gente é um honra, um prazer em estar participan- For us it’s an honour, a joy to be participating [IN
do [SOBRE A EXPOSIÇÃO MALUNGO]! Em saber THE MALUNGO EXHIBITION]! In knowing that a
que tem um ex aluno subindo aí! Já conceituado, vivendo former student has made it! is a renowned artist, making
de arte... um herói! [RISOS] Pra gente, pra nossa família a living from their work… a hero! [laughs]. For us, for our
é bacana, pra nós também estarmos levando o trabalho family it’s cool, it’s really cool for us to be carrying on the
do Mestre, é bem bacana! A gente fica super feliz! Que Mestre’s work! It made us really happy that there’s people
tem pessoas que estão aí trilhando este caminho. following his path.

Há uma transição na obra do mestre, quando começa


na Bahia, um pintor de parede, um pedreiro/ajudante de There’s a transition in the Mestre’s art. From when he
pedreiro, vem pra BH, com o recurso que tinha, de cria- started out in Bahia, a painter and decorator, labouring
tividade, começou a trabalhar com os troncos, e aí come- in construction, he comes to BH with the one resource he
ça a se aprimorar na técnica e daí vai para gamelas onde had, creativity. He started working with the tree trunks,
cria uma outra marca, no tronco todo mundo trabalhava! perfecting the techniques and then moves on and makes
Na gamela eram poucos, muitos trabalhavam o dentro a name for himself working on the mangers. Everyone
da gamela, e ele começar a trabalhar o fora da gamela e worked with tree trunks! There were only a few people
aí cria a identidade das máscaras, isso é dele... Então ele working with mangers and they would work on the in-
criando isso, vai para um outro viés, dá uma outra di- side of the manger. He started working on the outside of
mensão de trabalho, abre mais portas, para expor é mais the mangers and created the masks and their identities,
leve o material, e aí a gente começa ver um novo amadu- that’s all his... So doing this takes the work in another
recimento do trabalho, e depois parte para a pedra sabão, direction, adding another dimension to his work, open-
depois para pra pedra pome,, depois vai para o couro, de- ing more doors. The material is light so easier to exhibit,
pois para a pintura, para a tela – que foram poucas que and so we witness a further evolution of his work. He
ele pintou, mas ele vai para a tela, e por último, volta de then starts working with soapstone and then pumice
novo para a origem onde ele começou, nos troncos, ele stone, then on to leather, then he started painting – to
tenta fazer isso de novo, esse resgate. Isso para mim é the canvas – he didn’t paint much, but he would go to
54

fantástico, ele está sempre em movimento, nunca fica pa- the canvas. Finally, he returned to where it all began, on
rado só em uma coisa, está sempre percorrendo, como era the tree trunks, he tries to bring it back, do it again. For
o nome do projeto [referindo se ao Percorrendo BH], ele me this is amazing, he’s always on the move, never stops
percorre em todas as coisas – e a última, que assim, eu on one thing, he’s always roaming, what was the name
soube do meu pai é que ele começou a fazer escultura no of that project [referring to Percorrendo BH - Roaming
cimento, nas paredes – jogava massa na parede e ia cor- BH], he roams through everything – the last I knew
tando, fazendo as esculturas, veio isso na memória agora, about my father’s work was that he was making cement
de uma das coisas que ele fazia também. Mas esse foi bem sculptures on the walls. He’d throw the mix onto the
pouco, ele não deu continuidade nisso. Ele percorreu por wall and start cutting it, making the sculptures. That’s
muita coisa, nunca ficou parado só numa coisa, desenvol- just all come back to me now, one of the other things he’d
vendo várias técnicas, de pintura, na madeira, na pedra, do. But it was for a short time only he didn’t continue
testando várias coisas. with it. He roamed across so much, never stopping at one
thing, he developed numerous techniques in painting,
wood, stone, trying out various things.

As carrancas, essa ideia... estava em muitos filmes que The idea of the carrancas... it was in a lot of films we’d
a gente assistia junto com meu pai, e alguns livros que a watch with my father, and in some books we’d read, there
gente via, eram os totens dos índios americanos e tam- were the American-Indian totems and also a link with
bém uma ligação com os africanos, com algumas obras Africans, with some African sculptures – where you’d
africanas – que começam ver essas tribos trabalhando see these tribes working on a divinity or working on the
uma divindade, ou trabalhando os totens ou as carran- totems or carrancas as a divinity. So, there he had all
cas, como uma divindade. Então ali, ele tem umas ideias these ideas about also working freehand, but with his
de trabalhar também à mão livre, mas colocando as suas own ideas. Carrancas were made to ward the evil spir-
ideias. As carrancas elas tinham uma ideia de espantar its away from sailors. From there [some people] started
maus espíritos para os navegantes. E ali começa então associating his work with this, putting the carranca on
(algumas pessoas) a associar alguns trabalhos dele com their verandas or in their offices to ward off evil spirits.
isso, e colocar em varandas, para espantar maus espíritos, Some people just thought they looked good, or because
ou no escritório, e outras também acham que também they were totems, he would leave it to people’s imagina-
porque era bonito, ou porque eram totens, e ele deixava tion, he didn’t correct people, he would let them think
as pessoas imaginarem, o que elas queriam imaginar, ele freely... and he also worked based on metamorphosis at
não cortava as pessoas, ele deixava as pessoas livres... e the moment of creation, he’d let the works of art speak
ele trabalhava também com a metamorfose no momento for themselves. This was always one of his ideas, to pres-
de criação, de deixar a própria matéria falar por si. E essa ent things this way.
sempre foi uma ideia dele, de apresentar isso.
55

A primeira obrigação dos alunos do Mestre era a Escola. School was the first obligation of the Mestre’s students.
Ninguém ia para o Ateliê sem ir para a escola, depois co- Nobody came to the Studio unless they’d been to school,
meçam as exposições, daí o incentivo era: as parcerias com then the exhibitions started. The incentive was partner-
o Sesc, Palácio das Artes, Lagoa do Nado... A parceria era ships with Sesc [Social Service of Commerce], the Palácio
incentivá-los a serem artistas mesmo e que eles levassem das Artes, Lagoa do Nado Park… The partnerships were
o trabalho mais a sério, esses parceiros abrem as portas, to encourage the artists to take their work more seriously,
aí é que começa... Hoje a gente ainda tem aí alguns que these partnerships open doors, that’s where it starts... To-
continuam e outros que deram outro rumo a vida, mas o day we’ve got some that are still at it and there are others
interessante é: eles começaram a fazer algo bacana na vida, whose lives took a different path, but the interesting thing
deslancharam! A ideia do meu pai não era que nem todos is they all went on to make something of themselves, they
fossem artistas, mas que eles fossem bons cidadãos, bons took off! It wasn’t my father’s idea for them to become art-
homens, boas mulheres... Os meus irmãos também fazem ists, rather that they develop into good people, good men
[esculturas] e aí alguns vão para outros caminhos, como eu and women.. my brothers and sisters do it [sculptures] and
também fui estudar, meio em conflito, em viver da arte, e some took a different path, like me, I went off to study.
o mercado da arte em Belo Horizonte começa a minguar, I was a bit conflicted between living from my art with
fecha bastante portas e aí a gente vive aquele conflito: ou the art market in Belo Horizonte going downhill, lots
continua a viver da arte ou muda de profissão. E aí a gente of doors closing and we are left in doubt: continue living
tentou conciliar as duas coisas. Daí chegou um tempo que from our art or change profession. We tried to consoli-
foi um divisor de águas para mim, onde eu parei, fui mes- date the two. Then the watershed moment for me arrived,
mo para o mercado de trabalho, aí passou mais de quinze when I stopped, I went and got a job, fifteen years later I
anos, eu voltei de novo, a trabalhar de novo, tanto assim came back to work with art again in a workshop my father
que numa oficina que meu pai dava, que chamava Percor- was giving called Roaming BH, that was the name of the
rendo BH, que era o nome do projeto, aí ele até fala lá com project. He turned to one of his students and said to her:
uma das alunas: “Pensei que ele nem sabia mais!” Porque “I thought he’d have forgotten how to do it!”. Because I
eu retorno assim do nada. Quero voltar a trabalhar com a came back out of the blue. I wanted to go back to working
pedra sabão, e nisso comecei a trabalhar. Foi muito edifi- with soapstone, and that’s what I did. It was really satisfy-
cante, muito prazeroso, é que eu volto a respirar de novo ing and enjoyable, and I start breathing again doing what
aquilo que eu queria, que eu sentia falta. Aí a gente ago- I want to do, I’d missed it. So we’ve restarted the project,
ra aqui retoma a iniciativa, já há cinco anos que eu estou I’ve been here for five years now. We’re coming back, go-
aqui. A gente está voltando, retomando às raízes. Ensinar ing back to our roots. Again, teaching what we’ve learnt
de novo aquilo que eu aprendi e repassar, uma das coisas and passing it on. One of the thing’s my father would say
que meu pai falava é que a gente nunca deve ter medo de was that we shouldn’t be afraid of teaching or passing on
ensinar ou passar o conhecimento, porque quando a gente knowledge, because we’re all going into a coffin when we
morre vai tudo pra dentro do caixão. Então a gente não die. So, we have no fear of teaching, no fear of being sur-
tem medo de ensinar, não tenho medo de um aluno cres- passed by our students, no fear of a student going abroad
cer mais, subir mais alto, não tenho medo de um menino living from their art winning biennials. I’m not afraid of
aqui ir para fora, viver de arte, ganhar bienais, eu não te- that, I’m not holding anyone back, that’s what my father
nho medo disso, eu não prendo ninguém, isso que meu pai taught me… To give them wings, let them fly higher! So
me ensinou... A dar asas, deixar a pessoa subir mais alto! I think that’s one of the virtues of Mestre Orlando: the
Então acho que a virtude do mestre é essa: o mestre pode master artist can be hidden away over there, and the stu-
ficar escondido ali, e o aluno pode subir mais alto, pode dent can reach great heights, they can fly! To be a trampo-
voar! Ser um trampolim! Essa que é nossa filosofia, e eu line! That’s our philosophy and I carry it with me into the
56

carrego isso até hoje! Trabalhando pouco, mas querendo present day. Doing a little bit of work but wanting to do
fazer mais, esse que é nosso ideal! more, that’s our ideal.

Ateliê Aberto
Família Mestre Orlando/Allan Ferreira
Malungo==Irmãos de Barco.
2017
Foto: Erica Si
57

ANA
FERREIRA
DOS SANTOS

Filha de Orlando
Orlando’s daughter

Foi um aprendizado de vida. Aprendi também a pro- It was the school of life. I also learnt the trade, I helped
fissão, ajudei muito! Pintei, lixei, ajudei a sair para ven- a lot! I painted, cleaned up, helped taking things to mar-
der, foi uma escola, que meu pai deixou pra gente. Vi o ket, it was a school that our father left to us. I witnessed
crescimento de outros. E alguns seguiram e outros não... others grow. Some continued with it others didn’t… My
O meu irmão seguiu. Para mim, enquanto escolha para a brother continued. For me, as a life choice, I decided not
vida não optei em continuar, mas graças a Deus meu ir- to continue, but thank God, my brother followed the
mão seguiu o caminho que ele ensinou e aprecio tudo. Ele path of his teachings and I appreciate everything. He
me ensinou a apreciar culturas diversas e tudo que apren- taught me to appreciate diverse cultures and everything
di, aprendi com ele. Hoje eu sei que tem muita gente que I learnt, I learnt from him. I know there’s people who
olha e fala assim: ahh coisa esquisita!! Tem gente que look and say things like: ohh that thing’s weird!! There
acha isso, não sabe apreciar o valor da arte e do artista, are people that think like that, they don’t know how to
independente da arte que seja. Ver os outros levando em appreciate the value of art and the artist, whatever the
frente o trabalho dele é uma cultura que não vai se per- art may be about. Seeing others take his work forward is
der e ver quando os meninos estão aqui aprendendo, ver a practice that’s here to stay and it’s great to see the kids
a nova geração aprendendo, é legal faz lembrar da época here learning, the new generation learning. It reminds
em que meu irmão ensinava pra gente. me of when my brother used to teach us.

Versátil!! Ele tinha disponibilidade e inteligência para Versatile, he was approachable and had the intelli-
encarar tudo, ele mudava: na mesma hora que estava fa- gence to deal with everything, he’d change: one moment
zendo uma carranca, ele estava fazendo uma máscara, he’d be sculpting a carranca the next minute a mask, he
ele era versátil... acho que ele estava pronto para enca- was versatile… I think he was ready for anything! What-
rar tudo! O que estivesse na inspiração na hora ele fazia. ever inspired him at the time he would do. It’s a pity that
Pena que ficou coisas sem terminar. Ele pode ter deixado some items were left unfinished. There may be things he
alguma coisa sem fazer mas a gente não tinha conheci- didn’t achieve but we’re not aware of them, I believe he
mento, mas eu acredito que ele tenha realizado muitos realised many of his dreams…only good things.
sonhos da vida dele... só coisas boas.
58

Ateliê Mestre Orlando


Bairro Floramar
Arquivo da Família Orlando
Foto: Guilardo Veloso
59

ELÍCIO
GOMES

Ex-aluno no Ateliê de
Orlando no Floramar)
Former student of Orlando’s
from the Florimar studio

Como eu devia chamar o Mestre Orlando: Enciclopé-


dia! Ele entendia de todas as artes. Conheci o Mestre em
1996/1997, mais ou menos nesta época. Mestre Orlando
para mim não foi só um mestre, foi como pai, aprendi a What can I call Mestre Orlando? Encyclopaedia! He
entalhar, a esculpir e a fazer policromia. Ele fez parte da knew everything about all types of art. I met the Mestre
minha vida e me ajudou a crescer artisticamente. Um fato in 1996/1997, sometime around then. Mestre Orlando
curioso que aconteceu foi que ele me convidou para par- wasn’t just a master to me, he was like a father, I learnt to
ticipar de uma exposição de arte, de esculturas da África, carve, sculpt and print with polychrome. He was a part
especificamente do Senegal, no Sesi Minas. Fiquei apai- of my life and helped me grow as an artist. An interest-
xonado com a tamanha perfeição que vi nestes trabalhos. ing thing happened when he invited me to participate in
Fiquei louco para adquirir uma peça e não tinha dinheiro an exhibition of African sculptures, from Senegal specif-
para levá-la. Adivinhe o que aconteceu? Mestre Orlan- ically, at the Sesi Minas. I fell in love with such perfec-
do trocou uma de suas peças com o Biramba (que era o tion I saw in these exhibits. I really wanted one but didn’t
curador), por uma peça que estava em exposição. Ou seja, have the money. Guess what happened? Mestre Orlando
Mestre Orlando me deu uma escultura da exposição e eu exchanged one of his pieces with Biramba (who was the
abro mão dela por nada. curator) for one of the pieces. What that means is Mestre
Ele era um pai de família, um artista, um eterno Orlando gave me a sculpture from the exhibition and now
brincante.. não se conseguia ficar triste perto do Mestre I wouldn’t give it up for anything.
Orlando... Se chegasse com algum problema ou se quei- He was a father, an artist, an eternal joker.. it was im-
xando de alguma coisa, ele começava a conversar comigo possible to feel sad around Mestre Orlando... If you came
e rapidinho eu começava a mudar o meu humor. E não to him with a problem or complaining about something,
existia pessoa capaz de entreter uma criança, um jovem e he’d talk to you and you’d quickly be in a much better
até mesmo um adulto. Ele era um mestre, e tinha o dom mood. No one could entertain a child, teenager or even
de criar bons sentimentos na gente. Ele tinha uma cer- an adult like he could. He was a master, he had a gift of
ta mania de chamar atenção dos meninos e já chamava spreading positive emotions amongst us. He had a distinct
atenção: “Menino o que que você está fazendo aqui oh?! way of getting our attention: “Lad, what are you doing
Não pode jogar o formão desse jeito não!” E a gente já over here? Hey! You can’t just throw the chisel that way!”.
morria de rir, pelo jeito dele lidar com os alunos dele. Eu And we’d burst out laughing from the way he interacted
devo muito a ele, porque ele foi o cara que me ensinou a with his students. I owe him a lot because he taught me
ser artista e acima de tudo me ensinou a viver. Agradeço to be an artist and above all he taught me to live. I’m very
muito ao Mestre Orlando e a sua família porque me en- grateful to Mestre Orlando and his family because they
sinaram muito.” taught me a lot.
60

Paulo Nazareth
Watu e o boneco
2003
Arquivo PNAC/LTDA
61

BRUNO
SANTIAGO
Ex-aluno no Ateliê de
Orlando no Floramar)
Former student of Orlando’s
from the Florimar studio
Eu conheci o Mestre Orlando num projeto social, eu
tinha mais ou menos uns 7 anos de idade. Quando o con-
junto estava começando era realmente aquele momento I met Mestre Orlando on a social project, I was about 7
do projeto. É porque ele tirou muita gente das drogas e years old. That was when the studio started and it was the
me incentivou bastante. É até muito emocionante falar defining moment of the project. It’s because he got a lot of
do Seu Orlando... Através da escultura eu descobri pes- people away from drugs and he really encouraged me. I get
soas diferentes, locais bacanas. Me ensinou demais como emotional talking about Sir Orlando... Through sculpture
pessoa, sei lá se não fosse ele eu estaria em outro mundo... I discovered different people, cool places. He taught me
Estaria preso, talvez até morto. Através de Seu Orlando so much as a person, maybe if it wasn’t for him I’d live in
eu descobri um prazer de viver, através da arte... Ele foi another world... I’d be in jail, maybe even dead. From Sir
como um pai também e realmente ensinava valores que Orlando I discovered the joy of living through art… He
eram realmente importantes. Foi uma construção de va- was like a father and he taught the most important of val-
lores que eu carrego para a vida toda e é bacana realmente ues. A set of values I will carry with me my entire life and
como ele tinha uma vontade de ensinar... it’s so cool that he had this desire to teach...
O bacana das oficinas, que era um grupo de 10 a 15
alunos. E na hora do café da manhã, a gente comprava The great thing about the workshops was there was a
um pão, um suco... Os meninos ficavam doidos! Porque group of 10 to 15 students. At breakfast we’d buy some
na realidade eram pessoas carentes com dificuldade em bread, some juice… The kids would love it! Because these
casa, e eu também, e na hora do café da tarde era bacana were poor people with troubles at home, me included, and
demais, marcou também quando tinha as exposições, no afternoon coffee was great as well. Exhibitions were mem-
Palácio das Artes, tinha gente do Brasil todo, do Japão, orable as well, at the Palácio das Artes there were peo-
eu tenho peças nos Estados Unidos, na África, as peças ple from all over Brazil, from Japan, I’ve got pieces in the
iam para tudo quanto era lugar. Conheci gente impor- United States, in Africa, the pieces go everywhere. I met
tante demais, realmente ele fazia um trabalho bacana e a some really important people, he did a really amazing job
gente vendia as peças na feira, dava pra salvar uma grana, and we’d sell our work at the market, it meant we could
naquela época lá ainda tinha um local que a gente expu- save some money. At that time, there was still a stall where
nha e a gente fazia um revezamento: eu levava num do- we would sell our work and we’d take it in turns: I’d take
mingo aí outra pessoa levava do outro domingo. A gente one Sunday and another person would take the next Sun-
ia revezando entre os meninos pra vender as peças... E a day. Us kids would take it in turns to sell the pieces… and
gente vendia bem, viu!? Em todas as exposições que eu they sold well! you know? In all the exhibitions. I’d go to
fui, Palácio das Artes, Sesc, eu vendi todas! E uma pessoa Palácio das Artes, Sesc, I’d sell everything. Another per-
também que eu fiz uma amizade bacana foi o Marquim, son I became good friends with around that time, during
durante esse processo aí. Seu Orlando pegava no pé, xin- the whole process was Marquim. Sir Orlando would be on
gava, mas era um paizão! our case, he’d curse, but he was a father figure!
62

Paulo Nazareth
Boneco com Barulho
Escultura de madeira e cabelo do artista
1999
63

MAURÍLIO
DO CARMO
Ex-aluno no Ateliê de
Orlando no Floramar)
Former student of Orlando’s
from the Florimar studio
Fui aluno do Seu Orlando, ele foi tudo! Ensinou a
gente a talhar, a andar de perna de pau. Você olhava,
aquilo foi tudo mesmo... Ele é o cara! Deus dê a ele um I was a student of Sir Orlando’s, he was brilliant!
bom lugar, mas tudo que ele fez para nós está valendo. He taught us to carve, walk on stilts. You’d look at all
Sem ele meu nome não estava conhecido na arte, eu já that and it was everything… He’s the man! God rest his
fui até para Alemanha, já fiquei conhecendo várias pes- soul, but everything he did was worth it. Without him
soas também, neh?! Muita gente importante: o Adelci- I wouldn’t be known in the art world, I’ve been to Ger-
nho (brincante)... ahh... muita gente!! A gente não tem many, I’ve met loads of people, you know?! Lots of im-
nem como falar do seu Orlando, aquele homem é tudo! portant people: Adelcinho (jokingly)… ahh… loads of
Me ensinou a respeitar o outro, não agredir o outro, sem people!! It’s hard to know what to say about Sir Orlando,
palavrão, nem nada! Não tem nem como eu falar, pois ele that man is everything! He taught me to respect others,
era tão gente boa. Uma coisa que me marcou foi quando not to strike others, not to curse or anything! It’s hard to
começamos a andar de perna de pau: foi a melhor coi- find the words as he was such a great person. One lasting
sa que teve! Além do ateliê, além das esculturas, a escola memory is when we started walking on stilts: it was the
de circo que a gente teve. Teve uma escola de circo aqui best thing ever! As well as the studio, as well as the sculp-
muito boa com professores muito prestativos para aju- tures, it was the circus school we had. There was this
dar a gente. Aí graças a Deus estamos aí. Uma história really good circus school here with really attentive teach-
engraçada foi quando a gente foi fazer um negócio para ers always helping us. Thank God we’re here. There’s a
uma empresa de circo chamada Chocolate com Limão, funny story from when we went to do some work with
lá também foi chique, um lugar muito bonito, longe da- a posh circus company called Chocolate com Limão, a
qui, e a gente foi lá. Foi uma semana, fazendo escultura really nice place far from here, and we all went. It was
e ensinando os meninos também lá! Na praça da Esta- for a week, we’d do sculpturing and teach the kids there
ção, também, Seu Orlando também fez um ateliezinho too! At the Praça da Estação as well, Sir Orlando set up a
lá pra ajudar o pessoal que andava de perna de pau, fa- mini studio to help the stilt walkers there, he’d do sculpt-
zia escultura, caricatura... Fizemos várias coisas boas. E ing, caricatures... We did a lot of good things. And there
também tinha o lanche. O lanchinho sempre há e era o was snack time. We’d never be without our snacks with
que Seu Orlando não deixava faltar o lanche. Era refrige- Sir Orlando. It was a soft drink with ten mini pastries,
rante e uns dez pasteizinhos, só eu comia nove, ele ficava I would eat nine on my own which would annoy him
meio invocado mas sorria do mesmo jeito, ele nunca era though he’d still be smiling all the same, I never saw him
visto com rosto fechado, era sempre de sorriso no rosto. with a frown, always with a smile upon his face. That’s
Foi daí que eu conheci Seu Orlando. A gente conheceu how I met Sir Orlando. We met here at Floramar, but we
ele aqui no Floramar, mas a gente foi com ele em vários travelled with him to many places, too many to remem-
lugares, é tanto lugar que eu nem consigo gravar, mas já ber, a lot of places.
fomos em muitos.
64

Ateliê Mestre Orlando


Bairro Floramar
Arquivo da Família Orlando
Foto: Guilardo Veloso
65

Ateliê Aberto
Família Mestre Orlando/Allan Ferreira
Malungo==Irmãos de Barco.
2017
Foto: Erica Si
66

AGRADECIMENTOS
ACKNOWLEDGMENTS

Licença e bença!
Agradeço: minha vida é de muitas lutas e de agradecimento. Àqueles e àquelas que estão
sempre, que vieram antes, que estão chegando agora e que permanecerão depois de mim
intensificando e fazendo a roda girar.
A Paulo, por potenciar o amor e pela chance de fazermos caminho.
A Orlando, que não conheci, mas que admiro e sinto que anda comigo.
Ao Allan e à família Orlando, por todo apoio ao projeto e à sua concretização.
Ao Gabriel e à Maria, as maiores dádivas, criações.
Minha família: mãe Dade, irmãos e irmãs: Perpétua, Geraldo, Marquinho, Fátima,
Cássia, Zoca; a sobrinhada, a cunhadagem.
Minha família: mãe Ana, irmãos e irmãs: Zecá, Nem, Beto, Tõe, Tola, Júlio, Vera;
a sobrinhada, a cunhadagem.
A malungos e malungas que escolhi para fazer navegar esse barco: Marconi Marques,
Júlio Nazareth, Erica Si, Bárbara Altivo, Rodrigo Marques, Thaís Araújo, Ronei Sampaio,
Matthew O’Connor (o Inglês), Consuelo Salomé.
À gente que
me ajudou a compor o catálogo com escritos incríveis: Isabel Casimira,
Allan Ferreira dos Santos, Ana Ferreira dos
Francisco Magalhães, Ricardo Aleixo, Marconi Marques e Júlio Nazareth. Santos, Maurílio do Carmo, Elício Gomes,
As gentes que fizeram Malungo ser uma exposição em processo, aberta, politeísta e que Bruno Santiago e Ricardo Evange-
trouxeram tantos mundos para habita-la: Isabel Casimira (Belinha), Avelin Buniaka lista
Kambiwa, Pai Ricardo de Oxóssi, Capitã Pedrina de Lourdes dos Santos, Yanifa Yfadara,
Makota Kidoiale, Wilson Avellar, Marilene, Gibran e Vinícius do Ponto de Cultura
Art22, alunos e alunas do Instituto São Rafael, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário
Os Ciriacos, Guarda de Moçambique de Justinópolis, Reinado Treze de Maio, crianças de
jovens do Palmital e do Floramar, famílias e pessoas que participaram do Ateliê Aberto.
Ao Renato Silva, diretor da galeria Mendes Wood e grande amigo, apoio institucional
para viabilizar tudo a tempo e a hora de forma profissionalíssima e cheia de afetos. E a toda
equipe da Mendes Wood: Gregory, Caio, Cris, Ana, Matheus.
A Patrícia Brito, querida inventora de delícias e entalhadora de sabores-memórias.
Ao pessoal da Svoa, pelo trabalho zeloso de audiodescrição.
Aos colegas e às colegas da UFMG com quem, prazerosamente, compartilho a organização
da Formação Transversal em Saberes Tradicionais, de modo especial a César Guimarães e
André Brasil.
Ao pessoal que ocupou a Funarte em 2016, por garantirem que a Funarte e a arte
continuassem a ser valorizados no Brasil.

Dedico esse projeto a meu pai, Sebastião Gonçalves de Oliveira, mestre maior.
Agradeço pelos ensinos que me transmitiu sem falar, pelo seu infinito amor pelos rios, pelos
encontros a que me conduz, por me carregar no colo, por seu riso carranqueiro.
67

Luciana de Oliveira
Vencedora do Prêmio Funarte de Arte Contemporânea (2015) pelo
projeto curatorial e expográfico da exposição “Malungo == Irmãos de
Barco. Carrancas de Mestre Orlando e Paulo Nazareth”. É graduada Cortar esse interruptor aqui, por favor!
em Comunicação Social pela PUC Minas, mestre em Sociologia da
Cultura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e Doutora
em Ciências Humanas: Sociologia e Política na mesma instituição.
Atua como professora e pesquisadora no Programa de Pós Graduação
e nos cursos de graduação em Comunicação Social da UFMG, sendo
líder do grupo de pesquisa Corisco: Coletivo de Estudos, Pesquisas
Etnográficas e Ação Comunicacional em Contextos de Risco. Interessa-
-se pelos seguintes temas de pesquisa: comunicação e cultura,
comunicação e artes visuais, comunicação e religião, disputas político-
simbólicas em torno de acontecimentos e produtos midiáticos ligados
a grupos, sujeitxs, corpos e coletivos de margem, de modo especial
aqueles relacionados às lutas indígenas no Brasil. Trabalha desde
2012 com as diversas formas de visibilidade de questões indígenas
e, de modo mais específico, com o Conselho Aty Guasu dos povos
Guarani e Kaiowa do Mato Grosso do Sul, onde realiza atividades de
pesquisa etnográfica e de extensão no campo da produção audiovisual
relacionadas ao projeto Imagem Canto Palavra nos Territórios Guarani
e Kaiowa (algumas delas desenvolvidas no âmbito do Laboratório
de Documentários Elizabeth Teixeira vinculado ao LabMídia do
Departamento de Comunicação Social da UFMG, do qual faz parte).
Atuou como curadora do Festival de Inverno da UFMG nas edições
de 2012, 2013 e 2014. Atua desde 2014 na gestão do Programa de
Formação Transversal em Saberes Tradicionais da UFMG que promove
a inserção de mestres e mestras populares, indígenas, quilombolas e de
terreiros como professorxs e pesquisadorxs na Universidade. Desde
2013 é impulsionadora do projeto Bordados pela Paz Guarani e Kaiowa
Brasil, pertencente à rede de Bordados por la Paz (México, Argentina,
França, Japão e outros), tendo promovido 7 jornadas de bordados em
diversos lugares (Tekoha Guaiviry Mato Grosso do Sul 2013 e 2014,
Mira! Arte Indígena Contemporânea, Belo Horizonte/Centro Cultural
da UFMG/2013, Bienal de Veneza/Itália 2013, Universidade de Braga/
Portugal 2013, Bienal de Veneza/Neves 2013 e 2015, Escola Superior Paulo Nazareth
de Jornalismo - Maputo/Moçambique, 2013; Universidade Federal do Instalação com vassouras
2017
Amazonas/Manaus, 2013). Foto: Marconi Marques

Trocar crédito para Erica Si


68

FICHA
TECHNICAL
TÉCNICA
STAFF
Curadoria e Projeto Expográfico Tradução de textos ao inglês
Curatorship and Expographic Project Translation of texts into English
LUCIANA OLIVEIRA ANWEN ROYS
MATTHEW O’CONNOR
Coordenação de Projeto NIALL FLYNN
Project coordination SEAN CALLAGHAN
MARCONI MARQUES
Revisão de textos em português
Produção | Production Revision of texts in Portuguese
JÚLIO NAZARETH CONSUELO SALOMÉ

Mediadores | Mediators Imagens | Images


RODRIGO MARQUES PAULO NAZARETH
THAÍS EDUARDA L. GOMES DE ARAÚJO MARCONI MARQUES
ERICA SI JÚLIO NAZARETH
ERICA SI
Ateliê Aberto | OpenAtelier GUILARDO VELOSO
ALLAN DO SANTOS FERREIRA
E FAMÍLIA DO MESTRE ORLANDO Concepções Educativas
Educational Conceptions
Assessoria de Comunicação MARCONI MARQUES,
Press Office LUCIANA DE OLIVEIRA
BÁRBARA ALTIVO E JÚLIO NAZARETH

Design Gráfico | Graphic Design Montagem | Mounting


AMÍ COMUNICAÇÃO E DESIGN MARCONI MARQUES,
JÚLIO NAZARETH,
Audiodescrição | Audio description MARCELO DOLA,
SVOA ERICA SI,
RODRIGO MARQUES
E THAÍS EDUARDA L. GOMES DE ARAÚJO
69

MINAS
GERAIS

Presidente da República
MICHEL TEMER

Minstro de Estado da Cultura


ROBERTO FREIRE

Fundação Nacional de Artes


Presidente
STEPAN NERCESSIAN

Diretor Executivo
REINALDO VERÍSSIMO

Diretor do Centro de Artes Visuais


FRANCISCO DE ASSIS CHAVES BASTOS
(XICO CHAVES)

Coordenadora do Centro de Artes Visuais


ANDRÉA LUIZA PAES

Coordenadora do Prêmio Funarte


de Arte Contemporânea 2015 | FUNARTE MG
ANA PAULA RODRIGUES DE SIQUEIRA

Coordenadora de Comunicação
CAMILLA PEREIRA

Coordenadora da FUNARTE MG
DANIELA MEIRA

Equipe Técnica
LUCIANE GOLDSTEIN – Administradora Cultural
70

PROGRAMAÇÃO
PROGRAMMING

PERÍODO
15/03 a 28/04/2017 25/03 (SÁBADO) >> 14H ÀS 18H:
Ateliê Aberto com participação de Erica Si e Marconi
GALPÃO 5 Marques com a ação “Vou jogar pra tu pegar: entalhe
FUNARTE MG sobre sabão, pescaria e mergulho” - com crianças do
Rua Januária, 68, Centro Bairro Palmital/Santa Luzia
VISITAÇÃO:
De quarta à domingo, 06/04 (QUINTA) >> 19H:
das 14h às 22h Padê Malungo: conversas entre exu e as carrancas. com
participação de pais, mães e zeladores de santo: Pai
EVENTO GRATUITO
Ricardo de Oxóssi; Mametu Muiandê; Ianifá Ifadará;
Capitã Pedrina de Lourdes dos Santos
08/04 (SÁBADO) >> 14H ÀS 18H:
15/03 (QUARTA) >> 19H: Ateliê Aberto com participação de Wilson de Avellar com
Exposição aberta ao público a ação “Voltar, Pegar, Trazer: carranquinhas e outros
badulaques” - com crianças do Bairro Floramar
17/03 (SEXTA) >> 19H:
Evento de abertura: roda de conversa: o rio, o riso
e o raso. Com Paulo Nazareth, Allan dos Santos 22/04 (SÁBADO) >> 14H ÀS 18H:
Ferreira, Luciana de Oliveira, Marconi Marques e Ateliê Aberto + Ponto de Cultura Art 22/Santa Luzia
Avelin Buniacá Kambiwá. + Ação Peixe Grande**
Ação Memória Gustativa com Patrícia Brito
+ Ação Lava Pé
28/04 (SEXTA) >> 19H:
Histórias de travessia: relatos de viagens contra-
24/03 (SEXTA) >> 15H: diaspóricas. Com participação de comunidades
Visita mediada: alunos e alunas do Instituto afro-brasileiras que visitaram África: Irmandade de
São Rafael (participação especial equipe Svoa Nossa Senhora do Rosário Os Ciriacos, Guarda de
Audiodescrição) Visita mediada: alunos e alunas do Moçambique de Justinópolis e Reinado Treze de Maio
Instituto São Rafael (participação especial equipe Lançamento do catálogo.
Svoa Audiodescrição) + Ação Lava Pé Ação Memória Gustativa com Patrícia Brito
71

RIO
(aos malungos Paulo e Orlando)

O rio
Raso
Regato
Rápido
Risco no mapa da ralé

O rio
Rasgo na testa
Riar de lama e merda
Asco
Rachadura na engrenagem das regras

O rio
Sem riso e sem rio
Riu menos que isso
Mais que tudo
A reza da mulher Krenak

O rio
A roça de Rita
Rota de deserto
A rua sem festa
Remar sem rumo e meta

O rio
Resto
De razão
Da república
Rasa e abjeta

O rio
Lágrima que não cessa
À gota d’água
A roda vida
Revolução das raças que nos restam.

Por Ricardo Evangelista


72

Distribuição gratuta, proibida a venda

APOIO:

REALIZAÇÃO:

Este projeto foi contemplado pelo


Prêmio Funarte de Arte Contemporânea
2015 | Galpão 5 - Funarte MG

You might also like