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História

da Filosofia Política /1

A LIBERDADE
DOS ANTIGOS
Direcção de ALAIN RENAUT

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INSTITUTO
PIAGET
I
Prólogo
por Alain Renaut

Intitular hoje o primeiro tomo de uma História da Filosofia Política:


«A liberdade dos Antigos», é inscrever de imediato essa História na
órbita de um debate. Desde a redescoberta dos escritos políticos de
Benjamin Constant1, a expressão está, de facto, fortemente conotada
pelo sentido e talvez ainda mais pela função que lhe atribuiu o dis­
curso de 1819, proferido no Athénée Royal de Paris, sob o título: Da
liberdade dos Antigos comparada com a dos Modernos. O argumento é
conhecido, e será analisado por si mesmo no capítulo que Pierre-
-Henri Tavoillot consagrará à tradição liberal francesa. Antecipando:
entre os Antigos, a liberdade definia-se em termos de participação
nos assuntos públicos e de exercício directo da soberania, mas essa
«liberdade colectiva» de maneira alguma era tida por incompatível
«com a sujeição completa do indivíduo à liberdade do todo» — ao
ponto que «nada [era] concedido à independência individual, nem
no aspecto das opiniões, nem no da indústria, nem sobretudo no as­
pecto da religião». Em contrapartida, prosseguia Constant, entre os
Modernos, para quem, decerto, num determinado sentido, a sobera­
nia de cada um, exercendo-se apenas «em datas fixas, mas raras», e
sendo imediatamente abdicada, se vê profundamente restringida, é
«enquanto independente na vida privada» que o indivíduo se pensa
como livre: «A nossa liberdade deve compor-se do desfrute tranquilo
da independência privada», e numa época em que, «perdido na
multidão, o indivíduo nunca se apercebe da influência que exerce»,

1 Ela data de facto da reedição por M. Gauchet dos principais opúsculos políticos de
Constant, sob o título: De la liberte chez les Modernes, LGF-Livre de Poche-Pluriel,
1980, republicado em 1997, Gallimard, Folio, sob o título Écrits politiques. O contexto
dessa redescoberta e a sua importância para a discussão interior à filosofia política
francesa são analisados aqui mesmo por Pierre-Henri Tavoillot, tomo rv, cap. iii
«Constant contre Rousseau».
24 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

«devemos dar muito mais valor do que os Antigos à nossa indepen­


dência individual».
Pondo assim o par antigo/moderno no centro da sua reflexão so­
bre o «melhor regime», Constant conferia-lhe um significado que con­
tinua a ser provocatório para a reflexão e que merece ser confrontado
— neste primeiro tomo — com a leitura que os especialistas mais bem
informados fazem hoje da filosofia política da Antiguidade. Sobre­
tudo, ele fazia emergir, em tomo desse par, uma problematização da
totalidade da história da filosofia política que poderia muito bem
continuar a fornecer-nos, para expor essa história, um dos seus mais
apaixonantes fios condutores.

1 — Dos antigos segundo a perspectiva


dos modernos
Mais precisamente, é para uma dupla problematização que Cons-
tant convidava, talvez sem se dar conta, todos os futuros historiado­
res da disciplina.
De um lado, a oposição binária entre independência (moderna) e
sujeição (antiga) colocava a história da filosofia política, tal como
ela tematiza a oposição da liberdade dos Antigos e da liberdade dos
Modernos, sob o signo de uma ruptura ou de um corte radical. Decerto,
tanto no espírito como na letra da argumentação de Constant, a
cronologia, logo a própria história, desse corte pode aparecer como
complexa, ao ponto que pensadores pertencendo cronologicamente à
órbita da modernidade, tais como Rousseau ou Mably, são aí apre­
sentados e discutidos como participando ainda no projecto dos Anti­
gos, que eles teriam tentado ressuscitar; em consequência, nada
interditaria, simetricamente, a um adepto desta distinção entre liber­
dade dos Antigos e liberdade dos Modernos ir investigar até à filoso­
fia grega — ver-se-á isso aqui mesmo no capítulo que Otfried Höffe
consagra a Aristóteles — os contornos de uma apreensão «moderna»
da liberdade. Em todo o caso, para lá da sucessão das épocas, é pelo
menos sob a ideia de uma tensão, parcialmente incarnada na crono­
logia, entre dois modelos e dois princípios de organização das socie-
dades humanas que Constant situava o debate filosófico-político: que
a liberdade dos Antigos, se é verdade que Rousseau volta a compor o
seu modelo, não esteja morta com a decomposição do mundo antigo
é uma coisa; saber se a oposição da liberdade-participação e da
PRÓLOGO 25

liberdade-independência é frontal a esse ponto e se ela satura, em


matéria de concepções da liberdade, o campo dos possíveis, tal como
o explorou a história da filosofia política, é outra — e esse problema
reaparecerá nomeadamente no centro do capítulo que S. Mesure e
eu próprio, no tomo iv, consagraremos à discussão republicana da
modernidade política. Por ter sustentado que este desdobramento é
matricial e que é no seu espaço que se vem inscrever a diversidade
das concepções do melhor regime produzidas durante mais de dois
milénios, Constant abria em todo o caso aos seus sucessores, face à
própria história dessas concepções, uma primeira e fascinante
dimensão de problematização.
A isso vinha juntar-se, por outro lado, uma segunda dimensão de
interrogação induzida pela própria maneira como o discurso de 1819
convidava os seus ouvintes a apreciar o valor respectivo dos pólos
dessa tensão afirmada como irredutível entre a liberdade dos Anti­
gos e a liberdade dos Modernos. Com efeito, é um leitmotiv do opús­
culo a apresentação como uma espécie de aquisição irreversível do
acesso dos Modernos a uma compreensão da liberdade em termos de
independência — a tal ponto que, supondo o impossível, sacrificando
os direitos individuais a uma nova e mais directa «participação no
poder social», se nós pudéssemos restaurar o edifício dos Antigos, per­
deríamos nisso muito mais do que ganharíamos: «Os Antigos,
quando sacrificavam essa independência aos direitos políticos, sa­
crificavam menos para obter mais; ao passo que, fazendo o mesmo
sacrifício, nós daríamos mais para obter menos.» Apreciaremos mais
tarde com que arte das gradações, Constant, antecipando nesse ponto
as análises profundas de Tocqueville, das quais Jean-Michel Besnier
clarificará o alcance, sublinha na verdade que muitos riscos se dis­
simulam na irrupção moderna da independência individual — dado
que «o perigo da liberdade moderna é que, absorvidos no desfrutar
da nossa independência privada e na prossecução dos nossos inte­
resses particulares, renunciamos demasiado facilmente ao nosso
direito de partilha do poder político». Nessa medida, o reverso da me­
dalha faz também parte da medalha, e as derivas a que o individua­
lismo moderno pode dar lugar não abalam, no espírito de Constant,
o valor incomparável que é preciso dar, uma vez aparecida a necessi­
dade de independência individual, a um dispositivo em que foi reco­
nhecido «para cada um o direito de não estar submetido senão às
leis, de não poder ser preso, nem detido, nem morto, nem maltratado
de nenhuma maneira, pelo efeito da vontade arbitrária de um ou
vários indivíduos». Em suma, no balanço dos mais e dos menos que
26 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

pesa as vantagens e os inconvenientes das duas concepções, a


comparação da liberdade dos Antigos com a dos Modernos daria
vantagem a estes últimos — no mesmo sentido em que Tocqueville
assinalará na dinâmica democrática das sociedades modernas um
«progresso irresistível».
Retrospectivamente, essa perspectivação, que situava inequivo­
camente um em relação ao outro os dois dispositivos considerados,
constituía sem sombra de dúvida uma das mais poderosas contribui­
ções para a problematização da história da filosofia política, dado
que convidava à interrogação sobre o significado, ou pelo menos so­
bre um dos significados, que convém atribuir a essa história conside­
rada na sua globalidade. De resto, o poder heurístico da contribuição
dada por Constant ou por Tocqueville a essa problematização pode­
ria ser atestado hoje por tudo o que pôde ter e continua a ter de pro­
fundamente paradoxal a sua posteridade: longe de encerrar o debate,
esse diagnóstico pronunciado a favor dos Modernos lançou antes,
como que involuntariamente, em relação ao processo assim aberto,
um vasto movimento de reexame conduzindo muitas vezes, num con­
texto sobredeterminado pelas derivas e catástrofes da modernidade,
a relativizar a perspectiva de um progresso e a reavaliar a herança
esquecida dos Antigos.

2 — Dos antigos como alternativa


à modernidade

De acordo com esse tipo de leitura, que se poderia ilustrar nomea­


damente pelos exemplos de Leo Strauss, de Michel Villey ou, nos dias
de hoje, por um autor como Alasdair MacIntyre2, três características

2 L. Strauss, Droit naturel et histoire (1953), tradução de M. Nathan e de E. de Dampierre,


Paris, Plon, 1954; La Cité et l'homme (1964), tradução de O. Berrichon-Sedeyn, Paris,
Agora, 1987; Le Libéralisme antique et moderne (1968), tradução de O. Berrichon-
-Sedeyn, Paris, PUF, 1990. Poderá também consultar-se, entre outros textos, o capí­
tulo sobre Platão que Strauss escreveu para História da Filosofia Política, de que asse­
gurou a direcção e o artigo «Sur la philosophie politique classique» retomado em
Qu'est-ce que la philosophie politique? (1959), tradução de O. Berrichon-Sedeyn, Paris,
PUF, 1992. A leitura straussiana da República e das Leis será evocada adiante no
capítulo de André Laks sobre Platão. Entre os trabalhos de M. Villey, dar-se-á
sobretudo atenção a La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, Montchrétien,
1975; Critique de la pensée juridique moderne, Paris, Dalloz, 1976; Questions de saint
PRÓLOGO 27

essenciais seriam de facto constitutivas da filosofia política dos


Antigos.
A concepção clássica da cidade definir-se-ia em primeiro lugar
pela descoberta, contra a autoridade da tradição, da noção de «na­
tureza» entendida no sentido de uma «bitola». Strauss é claro sobre
esse ponto:
Na origem, a autoridade enraizava-se na tradição ancestral. A descoberta
da noção de natureza arruina o prestígio dessa tradição ancestral. A filosofia
abandona o que é ancestral em troca do que é bom em si, em troca do que é
bom por natureza [...]. Arruinando a autoridade da tradição ancestral, a filo­
sofia reconhece na natureza a bitola (Droit naturel et histoire, p. 108).

Portanto, aqui seria a emergência da própria ideia de um direito


natural que, ao substituir o direito ancestral (quer dizer, de facto, o
direito consagrado pela história) por uma nova figura da normati-
vidade, permitia à reflexão transcender o real, ultrapassar a positivi-
dade para a julgar a partir unicamente da consideração do melhor
(= do justo) regime. A importância decisiva, para o nascimento da
filosofia política, desse movimento de autonomização da norma tanto
em relação à história (como tradição) como em relação à própria
instância política não pode, com toda a evidência, ser contestada:
a determinação do justo aparece aí como já não se podendo reduzir à
colecção e aplicação das leis positivas herdadas do passado ou insti­
tuídas pela autoridade política, mas é a consideração do justo na­
tural que se afirma no princípio da lei e que pode mesmo intervir
para corrigir as leis escritas.
Uma vez registada esta deslocação decisiva, é preciso sublinhar
em seguida, para melhor caracterizar este dispositivo clássico, o que
foi para os Antigos esta noção de «natureza» por referência à qual
estaria acautelada a possibilidade dessa distinção entre o real e o ideal
sem a qual o próprio projecto da filosofia política, enquanto inter­
rogação sobre o «melhor» regime, perderia todo o seu sentido. Para o
fazer, é indispensável observar que diferentemente da que se insta­
lará com os Modernos, a concepção clássica, adoptando como critério
do justo (como «bitola») a «natureza», toma por norma, de modo
algum a razão do «sujeito», mas um elemento substancial — a saber,

Thomas sur le droit et la politique, Paris, PUF, 1987. As duas principais obras de
A. MacIntyre estão hoje disponíveis em francês: Après la vertu (1981), tradução de
L. Bury, Paris, PUF, 1997; Quelle justice? Quelle rationalité? (1988), tradução de
M. Vignaux d'Hollande, Paris, PUF, 1993.
28 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

a ordem cósmica que, fora do alcance do sujeito, constitui uma di­


mensão intrínseca da objectividade. Distante do que será o «direito
subjectivo» dos Modernos, a versão clássica da filosofia política pro­
põe pois o modelo onto-cosmológico de um «direito objectivo» que não
é deduzido das exigências da razão humana, mas se deixa observar
e descobrir na natureza. Para compreender em que sentido é assim a
observação da natureza que torna possível a determinação do «me­
lhor», é preciso recordar, nomeadamente com a ajuda da Física de
Aristóteles, como é que os gregos concebiam essa natureza — ou seja,
para reter aqui apenas o essencial, como um mundo fechado, hierar­
quizado e finalizado3:
— Enquanto na infinitude do espaço newtoniano não se pode
fazer outra coisa senão excluir que possam existir lugares
que não sejam relativos (ao observador), o cosmos fechado e
circular dos gregos deixa aparecer lugares que, qualitativa­
mente diferentes, não são nem neutros nem equivalentes.
— Nesse universo hierarquizado que, consequentemente, pos­
sui um alto e um baixo absolutos, é em função da sua natu­
reza que os seres ocupam um certo lugar que lhes «cabe»
intrinsecamente: assim, no espaço, os corpos pesados diri­
gem-se para baixo, não sob o efeito de uma qualquer força
de atracção, mas porque o seu lugar natural (o que convém
à sua natureza) se situa precisamente em baixo — princípio
em relação ao qual se vê sem dificuldade que significado
pode ter a sua aplicação a esse outro espaço que constitui, à
sua maneira, a cidade.
— Em virtude dessa teoria dos lugares naturais, por consequên­
cia não é o choque, causa eficiente do movimento para os
Modernos, que explica o facto que os corpos se movam, mas
a causalidade do movimento é concebida como «final»: se
os corpos se movem, é para regressar ao seu lugar natural,
logo para ocupar no cosmos o lugar que corresponde à sua
natureza e onde a sua essência se cumpre. É a própria natu­
reza que é princípio de movimento, o qual apenas ocorre
na medida em que um corpo foi expulso do seu lugar natural

3 Para uma abordagem detalhada desta concepção clássica da natureza, podemos


reportar-nos à obra de A. Koyré, Du monde clos à l'univers infini, Paris, Gallimard,
1963; para uma reflexão sobre o alcance filosófico desta representação gregâ do
mundo, ver Heidegger, Qu'est-ce qu'une chose? (1962), tradução de J. Reboul e de
J. Taminiaux, Paris, Gallimard, 1971.
í
PRÓLOGO 29

por um outro corpo que, pela sua parte, tendia para o dele:
em virtude disto o movimento de um corpo assim expulso
desta maneira do seu lugar cessa no momento em que re­
gressou a ele.

Deliberadamente sucinta, esta evocação do tipo de cosmologia da


qual é solidária a concepção clássica da cidade4 chega para com­
preender em que sentido se opera aqui a designação de natureza como
critério do justo. A determinação do melhor regime tende de facto
para provir directamente da consideração dessa ordem do mundo
onde tudo o que é possui, pela sua natureza, como que um direito de
ocupar o lugar que lhe cabe e onde acede à perfeição da sua essên­
cia: o justo é assim o que corresponde, para um ser, ao seu fim natu­
ral (ao seu telos) — aparecendo a injustiça no fundo, no registo das
acções humanas, como o análogo daquilo que Aristóteles denomina,
do ponto de vista global que é o da Física, um «movimento violento»,
ou por outras palavras: um movimento por meio do qual uma reali­
dade expulsa outra para fora do que constitui, para esta última, o seu
lugar natural e a impede de certa maneira de ser aquilo que é. Se a
injustiça é, portanto, neste sentido preciso, uma violência feita à na­
tureza, a cidade justa é aquela cujas leis exprimem o mais adequada­
mente possível esse justo natural que é na verdade, num certo sen­
tido, transcendente (na medida em que a natureza é aqui um fim ou
uma destinação para a qual cada coisa deve tender), mas objectivo
(inscreve-se na natureza, assim entendida, das coisas).
Uma última característica da concepção clássica da cidade de-
duz-se então dessa fundamentação onto-cosmológica do justo: se o
justo natural, bitola do direito, se define como o lugar que cabe a um
ser no seio do cosmos finalizado, a filosofia política será antes de
mais uma ciência da partilha ou da repartição — como Aristóteles
sublinha, já o observámos, dando a essa disciplina o seu nome, e como
o direito romano prolongará a perspectiva dele na fórmula pela qual
exprime o objectivo da justiça: suum cuique tribuere, atribuir a cada
um o que lhe é devido5. Pode então acrescentar-se que, estando o

4 Sobre essa solidariedade, cf. L. Strauss, Droit naturel et histoire, p. 20: «O direito
natural, na sua forma clássica, está ligado a uma perspectiva teleológica do universo.»
5 Sobre a definição do direito como uma ciência da partilha, podemos reportar-nos
antes de mais aos trabalhos de M. Villey, por exemplo: «Une définition du droit», in
Seize essais de philosophie du droit, Paris, Dalloz, 1969; ver também L. Strauss, op. cit.,
pp. 161 e segs.
30 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

justo inscrito na própria natureza das coisas, o método da determi­


nação do direito vai consistir essencialmente na observação da natu­
reza e na discussão racional com vista a explicitar o que, em função
da hierarquia natural do cosmos, é devido a cada um — é por isso
que a dialéctica, esse discurso racional que se desenvolve não a partir
de premissas dadas a priori, mas a partir da observação do real, pode
aparecer, neste contexto, como a verdadeira lógica da reflexão jurí­
dico-política.
Aos olhos dos autores que, ao invés do percurso de Constant, ten­
taram reactivar as intuições da filosofia clássica contra as eventuais
derivas da modernidade, as concepções antigas apresentavam, no
essencial, duas vantagens que se poderão perceber com uma nitidez
muito particular em Aristóteles, através da sua resposta à questão de
saber o que deve fazer parte do justo concebido como «o que é sus­
ceptível de criar ou salvaguardar, na totalidade ou em parte, a felici­
dade da comunidade política» (Ética a Nicómaco, V, 1).
A concepção aristotélica da cidade justa, cuja herança, pela me­
diação do direito romano, se encontra até em São Tomás, teria evi­
tado imediatamente que se tivesse feito essa confusão do direito e da
moral graças à qual, nos Modernos, o discurso jurídico se viu identi­
ficado com um conjunto de regras de conduta, prescritivas, imperati­
vas, deônticas — como se a questão do direito e do seu uso político
tivesse alguma coisa a ver com essa outra, moral, da orientação das
existências individuais.
Com efeito, o livro v da Ética a Nicómaco abre com uma análise do
equívoco linguístico que confunde no mesmo termo, «justo», a apti­
dão para realizar acções justas (morais) e o facto de estar «em con­
formidade com a lei», quer dizer de não tomar para si mais do que o
devido: frente a esta homonímia, Aristóteles propõe que se distinga
cuidadosamente a justiça como virtude (ou justiça geral), por outras
palavras, a moralidade, e a justiça particular, que visa o direito e pro­
cura portanto agir de maneira que «cada um tenha o que é seu». Nos
dois registos, ético e jurídico, o justo define-se na verdade pelo justo
meio: a virtude é o justo meio no sujeito (assim se passa, por exemplo,
com a coragem, justo meio entre a temeridade e a cobardia), ao passo
que no plano jurídico o justo meio se situa nas coisas distribuídas, in
re, escreverá, seguindo Aristóteles, São Tomás — devendo cada um
obter a parte (de honrarias, de impostos, de responsabilidades) que
lhe é devida. Mas, decerto filha da ideia de justiça moral como justo
meio, a ideia do justo político afasta-se dela na medida em que a
moral se ocupa da virtude do indivíduo (ao qual prescreve regras de
PRÓLOGO 31

conduta), ao passo que o objecto do direito, logo do político, não é de


modo algum que o indivíduo seja justo: as leis apenas têm de pro­
curar que cada um obtenha o que lhe é devido, logo que o justo (ãikaion)
reine — o que de maneira nenhuma implica que o próprio indivíduo
seja (moralmente) justo (dikaios). Em suma, o justo político respeita
unicamente ao carácter objectivo do acto (a maneira como se insere
ou não na ordem da cidade e do mundo), e só a moral é que está
interessada nas intenções subjectivas. Certamente existe uma rela­
ção entre direito e moral (no sentido em que o jurista indica ao mora­
lista o que a intenção deve perseguir), mas sem confusão entre os
dois registos: 1) Posso fazer o que é justo sem que eu próprio seja
justo, ou ser justo sem agir justamente (por exemplo, sob coacção).
2) Por meio das suas leis e daqueles que as administram, a cidade
preocupa-se que o justo seja realizado e deixa à moral o exame dos
móbiles e dos motivos. Assim, a dimensão objectiva do justo, tal como
se apresenta em Aristóteles como inseparável da sua fundação onto-
-cosmológica, pouparia à política essa temível confusão do direito e
da moral de que Platão nem sempre se teria preservado e que, impli­
cando que a legislação deve primeiramente procurar educar moral­
mente os cidadãos, abriria para uma ditadura educativa a cujos peri­
gos os Modernos, frequentemente menos atentos à especificidade do
direito, se seriam tanto mais gravemente exposto6.
Demais a mais, os partidários de um retorno aos Antigos vêem na
fundamentação aristotélica da objectividade do direito outro mérito
ainda, que lhes parece garantir definitivamente a essa concepção a
sua superioridade sobre a dos Modernos: nela, vimos como e em que
sentido é a natureza, e não a razão ou a vontade humanas, que é a
fonte do justo, fixando, para cada realidade, o lugar que lhe cabe na
ordem do mundo. Por consequência, contrariamente a uma visão do
justo político que o racionalismo moderno teria imprudentemente
tentado impor ao não conceber um direito natural que não fosse imu­
tável e universal, como podem sê-lo os princípios extraídos da ra­
zão pura, o direito objectivo, em Aristóteles, por ser natural, era por

6 Este tema é desenvolvido nomeadamente por M. Villey, La Formation de la pensée


juridique moderne, pp. 24 e segs., que sublinha, a propósito de Platão, «o totalitarismo
resultante dessa confusão entre direito e moral» e põe em evidência a importância
que pode conservar a esse respeito a análise que abre o livro v da Ética a Nicómaco,
onde Aristóteles problematiza o equívoco linguístico que confunde no mesmo
termo «justo» a «disposição que toma os homens aptos a realizar acções justas»
(moral) e o facto de ser «conforme à lei», quer dizer não tomar mais do que a parte
que nos cabe.
32 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

essência tão mutável como pode ser mutável a natureza na sua sub­
missão ao movimento. Era nesse sentido que M. Villey, por exemplo,
não hesitava em atribuir a Aristóteles e a São Tomás uma forma de
«relativismo» jurídico-político que exprime bem, na Política, o que
tem de gradativo e de diferenciado a resposta à questão do «melhor
regime» — na qual seria preciso ver, relativamente às respostas mo­
dernas, uma superioridade muito profunda do direito natural clás­
sico, que sabia «não [ser] feito de máximas gerais abstractas, mas de
relações jurídicas concretas, apropriadas às circunstâncias, próxi­
mas das necessidades da prática» (Questions de saint Thomas sur le
droit et la politique, p. 148).
Caberá aos estudos reunidos na primeira das duas secções deste
volume consagrado à «liberdade dos Antigos» confirmar, mostrar as
gradações ou desmentir, cada um à sua maneira e segundo as con­
vicções próprias do seu autor, semelhante apresentação dos méritos
susceptíveis de serem atribuídos à tematização grega, e em especial
aristotélica, da experiência política. Não se disporia, no entanto, dos
meios indispensáveis para medir o que se joga nesta discussão do
momento grego se não se integrassem nos temas a debater a conside­
ração das transformações que tinha sofrido, na Grécia do século que
precedeu o nascimento da filosofia política, a representação do di­
reito.

3 — 0 nascimento da filosofia política

Com efeito, no século v os gregos sabiam já perfeitamente, e sem


dúvida desde há muito tempo (como testemunham tanto os poemas
homéricos como os trágicos), que a referência à lei podia servir de
recurso contra as contingências do mundo natural: a valorização da
cidade como lugar onde este recurso podia ser organizado e instituído
precedeu pois a aparição da filosofia política enquanto interroga­
ção sobre os melhores meios de conceber essa institucionalização.
No entanto, foi nos séculos vi e v que os «físicos» jónicos (de Tales a
Anaxágoras) se puseram a descrever a natureza como uma ordem
racional que o homem deveria descobrir para depois pautar por ela
as suas acções: revalorização da natureza, portanto, mas que se tra­
duziu, muito logicamente, por um abaixamento da dignidade da lei.
Porque esta última, tida até aqui como o correctivo de uma natureza
má, só podia aparecer a partir de então, frente a uma natureza racio-
PRÓLOGO 33

nal, como artificial e arbitrária. E, de facto, como se sabe, quanto mais


não seja graças a Cálicles posto em cena por Platão no Górgias, os
sofistas vieram a opor physis e nomos, e a reduzir a lei a uma pura
convenção que vinha acrescentar-se à natureza para, com dema­
siada frequência, a contradizer, anulando em benefício dos fracos a
dominação natural dos fortes. Deste modo, a sofística, como mostra
mais adiante o capítulo que Alonso Tordesillas lhe consagra, tinha-
-se já esforçado, à sua maneira, por deduzir da natureza um direito
«natural» e leis «naturais» (quer dizer «não escritas»), susceptíveis
de serem postas em oposição ao direito positivo e às leis escritas.
Veremos neste volume como, cada um segundo as suas opções
filosóficas próprias, Platão e Aristóteles se esforçaram por responder
a este assalto lançado contra a lei. Para superar a oposição entre
natureza e lei, avançada pelos sofistas, Platão distinguiu da natureza
sensível uma outra natureza, esta de ordem inteligível que a lei posi­
tiva deve procurar exprimir: opor-se à lei positiva enquanto tal (e não
simplesmente às suas imperfeições), era desde logo opor-se também
à natureza. Por razões filosoficamente profundas, Aristóteles não
podia pensar uma reconciliação da natureza e da lei que, concebida
nesse modo, tivesse como base filosófica uma ontologia das ideias de
que o livro A da Metafísica mostra em que aporias ela encerra a refle­
xão. Assim, é graças a uma reelaboração inteiramente diferente da
noção de natureza que se desenvolveu na sua obra, para fundar a
racionalidade do político, uma defesa para a subversão sofística da
lei.
Sabe-se de que modo, concebida segundo os esquemas aristotéli-
cos, a natureza é constituída por matéria e forma, e como a matéria
não pode tomar-se propriamente «natureza» (physis) senão subordi­
nando-se a esse princípio de organização imanente que se torna aqui
a «ideia» (eidos), simultaneamente causa formal e causa final (telos)
do que, somente através dessa organização eidética da matéria, vem
a existir como uma natureza. Neste sentido, a natureza, que nunca
está, por causa da resistência da matéria, perfeitamente segura de
alcançar os seus fins, adquire o carácter de uma norma: ela deve pen­
sar-se, por assim dizer, como uma tendência que procura realizar-se
no particular e explorar o melhor possível os materiais disponíveis —
situando-se a norma muito exactamente nessa melhor realização
possível da natureza.
Deste modo, é uma apreensão assim da natureza, da qual se com­
preende porque não podia deixar de se repercutir directamente sobre
a concepção das relações entre natureza e lei, que encontramos, em
34 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Aristóteles, no centro dessa interrogação da qual já vimos segundo


que modalidades constitui, até no próprio aparecimento do termo, a
primeira grande tematização da filosofia política: portanto, não se
poderia apreciar o seu alcance, a partir do debate posterior entre li­
berdade dos Antigos e liberdade dos Modernos, sem compreender
também que se tinha tratado em primeiro lugar, para Aristóteles, de
prolongar por outros meios a tentativa de Platão (e de Sócrates) para
preservar a consistência e a racionalidade do nomos, portanto da ci­
dade como reino da lei, contra os ataques desferidos em nome da
physis pelos sofistas. A solução de Aristóteles — ver-se-á — consiste
em distinguir, entre as variações do direito, a parte do que é necessá­
rio (e tem a ver com o que se deve entender precisamente por «direito
natural», vendo nisso uma norma última que as legislações das cida­
des, quando elas são justas, interpretam cada uma à sua maneira) e a
parte do que é contingente (e tem a ver com o direito positivo)7. Solu­
ção subtil como poucas, e que permanece impressionante: ao conferir
um estatuto preciso a uma dimensão metapositiva do justo, ela dava
à esfera jurídico-política uma consistência suficiente para lhe evitar
escapar a toda a forma de racionalidade — e neste sentido o lugar de
Aristóteles na génese do racionalismo político não pode ser sobresti­
mado. Devemos só por isso convencer-nos hoje que não há outro ca­
minho, perante as dificuldades encontradas pela razão política mo­
derna, além de reenraizar a reflexão no contributo aristotélico para
resistir às ameaças que, em certos aspectos, a configuração contem­
porânea da reflexão faz novamente pesar sobre a racionalidade do
político? Estes são no fundo os termos da problemática a partir da
qual sé quis, nos capítulos que se seguem, reabrir o processo da liber­
dade dos Antigos.

4 — Que temos para aprender com os gregos?


É conhecida a fórmula radical de Nietzsche: «Nada temos a apren­
der com os gregos.» Fórmula que, de resto, ele próprio desmentia,
quanto mais não fosse pela sua longa e minuciosa convivência com
os trágicos, ou pelo seu fascínio por Heraclito. Procurando encontrar
no debate entre Antigos e Modernos, tão vivo no seio da filosofia

7 Para uma análise precisa desta solução, ver nomeadamente P. Aubenque, «La loi
chez Aristote», Archives de philosophie du droit, 1980.
PRÓLOGO 35

contemporânea, um fio condutor para organizar um percurso lógico


da história da filosofia política, não poderia tratar-se aqui de pensar
em arbitrar em termos tão radicais aquilo que não poderá deixar de
aparecer como um combate de gigantes, e como tal sem vencedor
nem vencido. Demais a mais percebe-se já por que razão seria difícil
pronunciar, num sentido ou no outro, um veredicto unilateral e defi­
nitivo.
As indicações preliminares que acabam de ser fornecidas, e que
os capítulos vindouros desenvolverão, permitem, com efeito, perce­
ber sem dificuldade que vantagens ofereceria hoje uma concepção
da cidade justa que, no estilo dos Antigos, fosse capaz de escapar aos
principais escolhos que L. Strauss tinha julgado que tinham vindo,
através das vagas sucessivas da modernidade, ameaçar cada vez mais
gravemente o próprio projecto de uma filosofia política. Praticada
ao estilo dos Antigos, a filosofia política não parece votada a expor-
-se aos perigos de um positivismo jurídico retirando todo o sentido,
para lá dos factos, a essa própria dimensão do ideal sem a qual não
há interrogação concebível sobre o «melhor regime»: porque nem
Platão nem Aristóteles, como se verá, de modo algum reduzem o di­
reito à legislação, e salvaguardam, na sua resposta à subversão so­
fística, a possibilidade de uma racionalidade propriamente política.
Para o fazer e apesar disso, a filosofia política dos Antigos também
não cede a esse universalismo abstracto dos Modernos que se tornou
tão difícil de assumir por uma consciência contemporânea, acostu­
mada a encarar tudo sob a forma da historicidade e da relatividade.
Neste duplo aspecto, sem dúvida que ainda nos resta muito para
aprender com os gregos.
Todavia, para chamar a atenção para o que a decisão de reenrai-
zar nos Antigos a interrogação sobre o melhor regime pode ter de
problemático, gostaria de propor, para dar todo o seu sentido ao de­
bate, uma breve observação sobre o que, do meu ponto de vista, um
tal regresso às origens se arriscaria a implicar.
No fim de um artigo sobre Aristóteles do qual retomei aqui certas
conclusões, P. Aubenque, que sublinha com satisfação esse anti-uni-
versalismo aristotélico, exprime todavia uma reserva que julgo ser
significativa; «Aristóteles nunca se pergunta se a desigualdade entre
os homens, por mais natural que seja, é compatível com os valores
que o homem traz em si»; neste sentido, acrescenta, «eu seria levado
a admitir que as teorias modernas do direito natural, dos direitos do
homem — ainda que esse homem seja intemporal e abstracto —, re­
presentam, apesar do que se possa ter dito contra,elas, um progresso
ít ti í ..
PRÓLOGO 37

em relaçao ao jusnaturalismo aristotéllco». Em claro: apesar do seu


quanto ao resto filosoficamente e politicamente incontestável8:
universalismo supostamente impossível de assumir h X T s teorias
muito pelo contrário, tal aceitação pertenceria por essência ao
modernas do justo teriam veiculado consigo, em matéíta de t o a i próprio tipo de fundamentação do justo que Aristóteles praticou —
dade, exigências em relação às quais as teses de Aristóteles — e talvez
o qual interditaria que se fizesse funcionar a normatividade (e isto,
mais geralmente dos Antigos - seriam doravante difidlmente a S
precisamente porque ela está inscrita na própria natureza) como uma
S X Z s Z o fZ re0r* mizaí f e - M * Profundamente ainda instância crítica permitindo corrigir e rectificar essa natureza. Pela
S cão D or^riif°t i d?lorof V ^ t ã o da escravatura e da sua justifi- sua própria estrutura, uma filosofia naturalista do justo tende efecti-
s S e em s ^ r se f ' “ Z ' aSSta aludido' ,oda a di<i™Made con- vamente para transformar o direito natural, não numa norma sus­
aste em saber se apesar das suas intenções, filosofias políticas uue ceptível de ser oposta à positividade, mas na aceitação, ou mesmo
íundam de maneira onto-cosmológica a sua concepção do usto Z
na legitimação, de pelo menos uma figura da positividade: a da or­
ealmente capazes de contribuir, para uma interrogação sobre o me
dem natural (hierárquica) do mundo. Observação que por si mesma
lhor regime, com uma norma transcendendo a poltiVidade do real
problematiza a eventualidade de pensar hoje, em filosofia política,
Limitar-nos-emos aqui, para escorar essa inquietação,li r e Z s S
num retorno a Aristóteles e mais geralmente às antigas fundações
ao exemplo de Aristóteles: nos casos em que e'a natareza p Z Z
onto-cosmológicas do justo, não somente porque as implicações (que
mente no sentido anstotebco, que é a norma, o próprio facto que essa
se dá o caso de serem não igualitárias) desse tipo de fundação coli­
orma esteja inscnta no movimento da natureza, da qual não consti­
dem com os valores da nossa consciência democrática, mas primeira­
tui senão a auto-realização, não a toma «demasiado próxima da
mente porque semelhante concepção da fundação das normas con­
rea idade que ela tem de reger» para constituir «um instrumento sufi
tinha já em si o risco de uma dissolução da própria ideia de direito
cientemente soberano de critica»? Objecção que é c e iZ ê n t e rimai
(logo, de melhor regime em conformidade com o direito) na sua dis­
S p é d Z ta s 3dÕ°Ztotall é Significativ° í ue um dos nossos maiores tinção em relação ao facto.
S Z quanto
u tm tfàa iragilizaçao
” ° da
u POSSa re,° mar P °r A aproximação acima esboçada entre a concepção aristotélica
cendo, transcendência dasua contaum
norma estabele­
nara
leio entre Aristóteles e Hegel: ' um Para do melhor regime e a representação hegeliana de uma racionalidade
imanente ao real de modo algum é arrojada, neste sentido. Poderia
natufetrtem nodP * T * ™ * “ SeU prÓprÍ° desenvolvimento imanente, a mesmo ser fortemente apoiada a partir de um exame mais aprofun­
pqf-á c „ f ■ P na dlzer‘ se' as costas largas e no limite justifica tudo o que dado da estrutura do naturalismo jurídico-político. Com efeito, po­
icxentemente enraizado nos costumes, no que Hegel chamará Sinli
demos perguntar-nos se o jusnaturalismo clássico não está a partir
chkeit, a moralidade concreta. A aproximação com Hegd n Í é f“ a aqu '
de agora comprometido, estruturalmente, com os mesmos caminhos
S r dT n a Í L l ) n o ered CaPtar ^ ^ T ° ^ M de radonal (Aristóteles que por vezes viriam a conduzir os Modernos até à negação pro-
d rí! . }" 1 expor-se a justificar o que uma moral mais despren-
ida das contingências nao hesitaria em condenar (P. Aubenque, op. cit).

8 Sabe-se que esta questão da escravatura, que continua a dividir os leitores de Aristó­
direto natural ó íe T t " f medida “ “ ™ Aristóteles, o teles (segundo uma clivagem que reproduz de perto a dos Antigos e dos Modernos),
atreito natural e descoberto na natureza, no seio da qual se sunõé a é discutida no livro i da Política. Certamente Aristóteles não exclui a eventualidade
de um desaparecimento da escravatura tornado possível pela mecanização da
Z to te r ís ld ,e nlre0 8 h 0 m C T S A u a l d a d e Z a é
turais) teria sido impossível a uma filosofia assim perguntar-se se a produção («se os teares tecessem sozinhos [...], os senhores não teriam necessidade
de escravos»), mas na ausência dessa mecanização de modo algum condena essa
risrir adreirrHfUd Ça° ^ mstândas jurídico-políticas não é vir a cor­ prática e justifica-a, pelo contrário, pelo seu enraizamento em desigualdades naturais
o ane s e Í ^ e ^ d n° m^ - ^ transcendente. Nesse sentido, em virtude das quais alguns são feitos para comandar e outros para obedecer: a única
que se apresenta derradeiramente, em Aristóteles, como a aceitacão reserva de Aristóteles aplica-se na realidade contra as aberrações de facto, que fazem
df dispositivo tão inaceitável para nós como o da eL ravatoa com que, na cidade tal como ela é, certos seres cuja natureza os destina para a
liberdade sejam reduzidos à escravatura — reserva que visa, portanto, de modo
ítístórico%a ^Ttum inaS d°m mbra P a t a d a , saída do contexto
tonco e cultural, vmdo ensombrar do exterior um empreendimento algum o princípio da escravatura, mas, se assim se pode dizer, os erros e as imperfei­
ções contingentes que por vezes acompanham a aplicação deste.
38 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

priamente historicista de toda a normatividade jurídico-política


transcendente. Dito brevemente, e simplesmente com a preocupação
de esboçar uma interrogação que reencontraremos noutras etapas
do nosso trajecto: não é aqui o próprio movimento da natureza que
realiza o que se chama norma — ao ponto que, deixada a si mesma, a
natureza realiza os seus fins, segundo o seu próprio desenvolvimento
imanente, das quais o direito normativo (natural) não é no fundo
mais do que o instrumento? Nestas condições, não só a natureza
adquire um valor sagrado que permite justificar tudo, desde que seja
«natural»; mas além disso a estrutura teórica subjacente ao conjunto
desse dispositivo evoca singularmente o que se exprimirá em Hegel
sob a forma de uma teoria da «astúcia da razão» — é certo que com
esta diferença (que, evidentemente, não é de menosprezar) que se
trata aqui de uma «astúcia da natureza». Nestas condições, como
não perceber que o naturalismo clássico contém em embrião dificul­
dades análogas às que o historicismo moderno explicitará? Desde logo
se esbate aqui toda a verdadeira separação entre o real e o ideal, ou,
se se preferir, entre o facto e a norma, dado que é, em última análise,
o próprio movimento do real (natural) que realiza a norma: em suma,
quando a lógica do facto (natural) é a própria realização da norma,
a posição do justo ou do ideal do melhor regime não é mais do que o
instrumento de que se serve a natureza para realizar a maior perfei­
ção possível; assim a transcendência do ser em acto sobre o ser em
potência que tende naturalmente para aquilo em que se realiza a sua
essência poderia constituir apenas uma transcendência simples­
mente relativa, incapaz por si mesma de fazer com que a ordem jurídico-
-política escapasse da lógica pura e simples do autodesenvolvimento
do real. Que haja pois, no mundo sublunar, contingência e que por
causa dessa contingência a auto-realização teleológica da natureza
(como caminhada do ser em potência para o ser em acto) possa ser
travada não muda nada, para dizer a verdade, a essa dificuldade:
com efeito, subsiste que, da potência ao acto, a transição (na qual se
realiza o melhor regime) está inscrita na lógica imanente ao ser natu­
ral realizando o seu fim, e não é muito evidente que nos pudéssemos
valer dos possíveis malogros dessa lógica (que correspondem à
génese do que a física aristotélica designa por «monstros») para consi­
derar que a função normativa da ideia do «melhor» tem a ver com
uma transcendência diferente desta, bem próxima de se diluir numa
pura imanência, do ser em acto sobre o ser em potência.
Estas interrogações, confrontadas com as vantagens susceptíveis
de serem reconhecidas às filosofias políticas clássicas, não visam de
PRÓLOGO 39

modo algum apresentar como obsoletas e, em suma, como pouco res­


peitáveis, concepções a cuja radiosa audácia a racionalidade deve
sem dúvida, hoje ainda, ter podido tomar a seu cargo, contra a auto­
ridade da tradição, a interrogação sobre o melhor regime. De facto
seria francamente tolo pretender, num contexto completamente dife­
rente e a vinte ou vinte e cinco séculos de distância, instruir um pro­
cesso contra pensamentos em que vemos despontar tanto as nossas
questões mais incontornáveis como algumas das dificuldades a que
nos expomos quando tentamos dar-lhes uma resposta. Portanto, mais
do que instruir um processo convém, confrontados como estamos por
tantos pensamentos contemporâneos com a eventualidade de nos
reenraizarmos na alteridade dos Antigos para escapar a este ou àquele
mal-estar da nossa modernidade, medir com probidade a complexi­
dade e a riqueza de um processo cujos estudos aqui reunidos impõem
sobretudo saber nunca mais o fechar.
Preliminar

A política
entre arte e sabedoria
por Pierre-H enri Tavoillot

A decisão, justificada mais acima por Alain Renaut, de instruir


aqui com prioridade o processo da querela entre Antigos e Modernos
poderia na verdade parecer injusta para com as doutrinas políticas e
jurídicas que não se integrassem nesse quadro problemático. Não
sendo possível nenhuma exaustividade em história a partir do mo­
mento em que se prefere a lógica da interpretação à da acumulação,
não se pode lamentar essa escolha. Simplesmente, é preciso pondera­
da reconhecendo que a oposição dos dois ideais tipo, do Antigo e do
Moderno — qualquer que seja o seu resultado — não esgota o signifi­
cado e o alcance contemporâneo da filosofia política antiga.
A sua descendência parece de facto manifestar-se de uma tripla
maneira: não somente, como já foi sugerido, sob as formas da exclu­
são e da nostalgia — que, por contraste, permitem desenhar os con­
tornos do mundo moderno — mas também sob a forma de uma cons­
tante reciclagem. Paradoxalmente, é esta última modalidade que se
arriscaria a escapar a uma história da filosofia política mais atenta
às rupturas importantes do que às continuidades secretas. Ora é for­
çoso reconhecer que, em matéria de pensamento político, há um
laço poderoso que nos liga a esse passado fundador mesmo para além
de todos os dispositivos de diferenciação ou de «retorno». Sem se­
quer falar do quadro problemático geral tal como é definido por Pla­
tão e Aristóteles nas suas respostas ao desafio sofístico — quadro
que será analisado com precisão por André Laks, Otfried Hõffe e
Alonso Tordesillas nos capítulos que se seguem —, pode tentar-se
um inventário, aqui necessariamente sumário porque deliberadamente
transversal, dessa outra herança sempre fecunda em matéria de filo­
sofia política.
Assim, por exemplo, quando se examinam as tradições do estoi­
cismo, do cepticismo ou do epicurismo antigos, e os seus prolonga­
mentos modernos, ou até contemporâneos, tem-se uma impressão
44 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

— justificada ou ilusória, pouco importa ainda aqui — de uma conti­


nuidade regular; em suma, como que a ideia de uma philosophia
perennis. Esta característica é provavelmente mais evidente para
estes três dispositivos que, no seu conteúdo — e apesar de todas as
suas diferenças —, se dedicam fundamentalmente a pensar de certa
maneira fora da história, ou até contra a história, quer dizer contra
as perturbações que ela encerra: sendo o seu fim último explicitar
um modelo de sabedoria, concebida como tranquilidade da alma.
Sem dúvida que este era também o caso de Platão e Aristóteles, e
talvez se tenha cometido uma infidelidade para com eles ao privile­
giar a parte especulativa da sua filosofia1. Continua a ser verdade
que, mais do que todas as outras, estas doutrinas parecem atraves­
sar os séculos e as épocas conservando intacta a força do seu ques­
tionamento.
Segundo uma tese admitida bastante comummente, a passagem
do pensamento grego clássico ao pensamento helenístico traduzir-
-se-ia por um recuo da reflexão política e social em benefício de con­
siderações mais «individualistas»: o equilíbrio (a autarcia) já não se
deve procurar na cidade, cuja situação, depois da morte de Alexan­
dre, se degrada pouco a pouco, mas no próprio indivíduo ou na pe­
quena comunidade de «amigos» que se constrói em roda dela. De
onde a relativa descentração que afecta a filosofia política no seio
dos dispositivos doutrinais da época, desde o «vive escondido!» que
Epicuro proferia às hesitações dos estóicos quanto à natureza e in­
tensidade do compromisso político que eles defendiam (... por vezes
apenas para os outros)2. Séneca parece ter resumido bem a diferença
decisiva entre estas duas escolas3 — ao passo que os estóicos aconse­
lham ao sábio que ponha «a mão nos negócios, a menos que alguma
coisa lho impeça», Epicuro recomenda-lhe que «não se aproxime de­
les, a menos que alguma coisa o empurre».

1 Cf. sobre este ponto P. Hadot, Qu'est-ce que la philosophie antique?, Paris, Gallimard,
«Folio essais», 1995.
2 Como observa Séneca (De tranquillitate animi, 1 ,10): «Resolvi seguir a máscula ener­
gia das nossas máximas e imiscuir-me na vida pública; decido procurar as honras e os
fáscios, não, decerto, porque a púrpura ou as varas do lictor me seduzam, mas para
estar em situação de melhor servir os meus amigos e os que me são próximos e
todos os meus concidadãos, e por fim a humanidade inteira: com um ardor de no­
viço dedico-me a seguir Zenão, Cleanto, Crisipo, dos quais nenhum, para dizer a
verdade, tomou parte nos assuntos públicos, mas todos convidaram os seus discí­
pulos a fazê-lo.»
3 De Otio, III, 2.
A POLÍTICA ENTRE ARTE E SABEDORIA 45

Numa passagem muito sugestiva dos seus Essais sur l'individua-


lismei, Louis Dumont analisa essa atitude «apolítica» como expres­
são de diferentes variedades de «renúncia». «Essas escolas», escreve,
«ensinam a sabedoria, e para se tornar sábio é preciso primeiro
renunciar ao mundo. Um traço crítico corre através de todo o
período sob diferentes formas; é uma dicotomia radical entre a sabe­
doria e o mundo, entre o sábio e os homens não esclarecidos què per­
manecem presos à vida mundana. Diógenes opõe o sábio e os loucos;
Crisipo afirma que a alma do sábio sobrevive mais tempo depois da
morte do que a dos vulgares mortais. Do mesmo modo que na índia
a verdade só pode ser atingida pelo renunciante, também segundo
Zenão só o sábio conhece o que é bom; as acções mundanas, mesmo
da parte do sábio, não podem ser boas mas somente preferíveis a
outras». E mesmo se é a adaptação ao mundo que parece caracte­
rizar, mais do que a renúncia, a doutrina estóica, «o indivíduo que se
basta a si mesmo continua a ser o princípio, mesmo quando se trata
do mundo»5.
Estabelecendo o paralelo entre a filosofia helenística e a figura
indiana do renunciante, L. Dumont tinha em vista as condições de
possibilidade da emergência do individualismo moderno no Ocidente.
A seus olhos, a difusão da «renúncia filosófica» na elite ocidental
tinha-a preparado para acolher favoravelmente o dispositivo cristão
de um indivíduo-em-relação-com-Deus que, por seu turno, ia tornar
possível a emergência do individualismo moderno. De onde, sem
dúvida, a dualidade da descendência contemporânea dessa tradi­
ção de filosofia política: por um lado, ela continua a «falar» ao indi­
víduo moderno como o seu eco longínquo, através da dissolução da
questão política na questão mais vasta do «como viver?» (renúncia);
por outro, traz-nos de volta à arqueologia das construções políticas
e jurídicas destinadas a paliar a cruel falta de ordem e de sabedoria
que reina no mundo sublimar (adaptação).
Na verdade, este dilema da renúncia/adaptação ao mundo, ou
— para o enunciar de outra maneira — da sabedoria e da arte política,
está já presente em Platão, que apreende o nomosç (nomos) e a politeia
(politeia) como uma tecnh (technê) unicamente necessária porque
os homens saíram da idade de ouro do governo divino6. Para ele,
essa tecnh aparece portanto ao homem como o sinal de uma queda

4 Paris, Seuil, «Points», 1983, pp. 39-40.


5 Ibid., p. 41.
6 Política, 272a.
46 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

em relação à sua natureza originária, mas ao mesmo tempo como o


meio de se distinguir do reino animal ao qual teria ficado votado se
não tivesse podido superar a sua indigência inicial7. É esta ambiva­
lência do político que a filosofia de Aristóteles amplifica, reconhe­
cendo a imperfeição essencial e definitiva do mundo sublunar. Nele,
a arte política como meio de adaptação a um mundo desordenado
já não é somente um mal menor, é uma necessidade. É assim que a
hierarquia admitida por Platão entre as três figuras do filósofo, do
legislador e do homem político se vem a inverter. O papel do filósofo
apaga-se diante do papel do nomóteta, que terá a seu cargo, segundo
as circunstâncias, fundar a cidade, modificar o regime ou inflectir as
leis. Mas, como se sabe, fazendo de Péricles o tipo acabado do ho­
mem prudente8, Aristóteles reconhecia também a necessidade de
associar à sabedoria teórica a sabedoria prática9 — ainda que reco­
nhecesse que «a prudência não detém a supremacia sobre a sabedoria
teórica.10» «É por isso», escreve, «que pensamos que Péricles e as pes­
soas como ele são homens prudentes por possuírem a faculdade de
perceber (Oewrein ) o que é bom para eles e o que é bom para o
homem em geral, e assim são também, pensamos, as pessoas que perce­
bem da administração de uma casa ou de uma cidade (t o u s
o ik o n o m ik o u s k ç )11». Mas Aristóteles esclarece imediata­
l
p
s
u
ito
a
mente a seguir que «a prudência é uma excelência e não uma arte»12,
o que equivale a preservar a sua dimensão aristocrática, sempre
ligada à ordem cósmica do mundo.
É este mesmo dilema da arte política e da sabedoria filosófica que
se apresentará a Cícero, mas indubitavelmente com uma acuidade
renovada, porque querendo reconciliar filosofia e política, se consa­
grava também a aproximar a Grécia e Roma com o fito de unificar
uma constelação cultural. De onde o facto de a sua doutrina ter por
vezes aparecido, no que tem de melhor, como um quadro minucioso
das doutrinas filosóficas contemporâneas, no que tem de pior como
um ecletismo visando somente justificar as práticas da ordem aristo­
crática estabelecida. Se é verdade que Cícero não pensa de modo
algum em perturbar a perspectiva «holista» do seu tempo, que privi­

7 Ibid., 274b-e; Protagoras, 321c-322d.


8 Ética a Nicómaco, VI, 5 , 1140b7.
9 Ibid., VI, 13.
10 Ibid., VI, 1 3 ,1145a6.
11 Ibid., VI, 5 , 1140b7-10.
12 Ibid., VI, 5 , 1140b24.
A POLÍTICA ENTRE ARTE E SABEDORIA 47

legia o todo social em relação à parte — como censurá-lo? —, pode­


mos indubitavelmente avaliar melhor o seu contributo considerando
a renovação de problemática querele introduz ou, pelo menos, acom­
panha, respeitante à adaptação ao mundo tanto no plano político como
no plano jurídico.
A filosofia de Cícero considera-se a si mesma como céptica, o que
tornava ainda mais delicado e urgente o problema da acção: como é
que o homem político pode escolher quando é um facto que os prin­
cípios que orientam a sua acção estão votados a permanecer proble­
máticos? O debate que abre o primeiro livro da República consagra-se
a mostrar em que é que a vida activa parece preferível à vida con­
templativa: «A existência da virtude», escreve ele, «depende inteira­
mente da sua aplicação; e a sua aplicação mais nobre é o governo do
Estado, e a realização efectiva, e não por palavras, das próprias coi­
sas com que os filósofos, no seu recanto, nos enchem constantemente
os ouvidos» (I, 2). A virtude só tem valor se for efectivamente reali­
zada e a excelência só existe se encontra o reconhecimento de
outrem. De resto, se a busca da glória é aqui invocada como moti­
vação séria e honrosa da actividade política, não é de modo algum
para lisonjear a baixa vaidade do homem, mas para que a acção
humana possa esperar aceder assim a uma perenidade semelhante à
que reina na natureza.
Sem dúvida que a posição de Cícero era mais matizada e condu­
zia a encarar, à maneira de Aristóteles, uma síntese ideal entre as
duas virtudes teórica e prática, entre «a experiência da administra­
ção das grandes questões e o estudo e domínio dessas outras ar­
tes13», mas o que aparece com Cícero é a ideia que a filosofia deve ser
de certa maneira política, tanto como a política se deve adornar de
filosofia. O conhecimento da lei natural (summa lex) deve orientar a
acção sem a desesperar nem se substituir a ela.
A escolha de Cícero favorecendo o «regime misto» abre deste ponto
de vista uma vasta margem de acção ao homem político. Se todas as
formas puras dos três regimes (monarquia, aristocracia e democra­
cia) estão destinadas a perverter-se (em tirania, oligarquia e oclocra-
cia14), só um governo moderado e equilibrado, compreendendo uma
mistura judiciosa das instituições e princípios dos três tipos puros,
poderá esperar adquirir uma estabilidade quase natural. A constitui­
ção romana era o perfeito exemplo disso, tal como já tinha notado

13 República, III, 4-6.


14 Reinado da multidão.
48 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Políbio: «Do lado do poder dos cônsules, a constituição parecia in­


teiramente monárquica e régia; do lado do senado, parecia aristocrá­
tica; e quando se olhava para o poder das massas, parecia claramente
uma democracia.15» Assim, nos casos em que o governo absoluto dos
sábios parece impossível, o regime misto permite uma aproximação
satisfatória16. Os dados essenciais desse regime e as qualidades reque­
ridas para os dirigentes são descritos minuciosamente por Cícero nas
Leis17. A tarefa deles consiste em «determinar não somente o que me­
lhor mas também o que é necessário»18. É paradoxalmente dizendo
adeus — sabiamente — à ideia de uma «sabedoria política» — o que
o afasta em certa medida da modernidade individualista concebida
segundo o trajecto sugerido por L. Dumont — que Cícero participa
na elaboração do nosso universo intelectual jurídico-político privi­
legiando as normas da arte política. Sem dúvida que o caminho a
percorrer continua a ser longo para que essa ideia de arte política
funcione em pleno. Será preciso — como mostrará Luc Foisneau na
sua análise do pensamento de MaquiaVel (volume ii) — que todas as
referências a uma ordem transcendente desapareçam em benefício
da única ordem imanente da «conquista e da conservação do po­
der»19. Assim, Leo Strauss podia observar que «a revolta realista de
Maquiavel contra a tradição levava a pôr o patriotismo ou as simples
virtudes políticas no lugar da excelência humana ou, mais precisa­
mente, das virtudes morais e da vida contemplativa»20. A questão do
«como devem os homens viver?» esbate-se então em benefício do
«como é que eles vivem efectivamente?». O talento político, a virtú
maquiavélica, que retoma em certos aspectos a estrutura da prudên­
cia aristotélica (Kairos-kairos, p r o a ir e s is -proairesis,-bouleusisbou-
leusis) sem o seu fundo cosmológico, converte-se na sua própria me­
dida com o risco (mas sem dúvida que não é uma fatalidade) de so­
çobrar numa pura «técnica», quer dizer numa racionalidade sim­
plesmente instrumental olhando só para os meios sem consideração
pelos fins.

15 Histórias, VI, 11-12.


16 Ao nível individual, encontramos este regime misto na ideia dos «comportamentos
preferíveis» ou dos «deveres» (De officiis) que representam como que um meio
termo entre os vícios e a virtude do sábio.
17 C f nomeadamente III, 18.
18 Leis, iii, 26. Com isso percebe-se também que o activismo político, concebido como
inteligência da necessidade, se pode conciliar com o «fatalismo» estóico.
19 Maquiavel, O Príncipe, cap. m.
20 Droit naturel et histoire, Paris, Flammarion, «Champs», 1986, p. 163.
A POLÍTICA ENTRE ARTE E SABEDORIA 49

— P oderia identificar-se um trajecto . semelhante no domínio do di-


reito
Em todo o caso, era assim que M. Villey via as coisas dando
c o n ta de uma «regressão da ciência jurídica»21 no pensamento mo-
derno em geral e no positivismo em particular. Com efeito, este, ao
excluir «o justo da noção de direito»2 eq 2, quer dizer, retirando-lhe toda
ualquer ideia de uma referência objectiva, contribui para subme-
0 direito à dominação do político; a partir do momento em que o
seu papel já só consiste na simples gestão das leis positivas, ele aban-
dona a sua tarefa essencial de «regulamentar»; em suma, desaparece.
fSem poder pormenorizar aqui nem discutir essa leitura, convém evo­
c a r brevemente a apaixonante exploração da génese do direito queela
suscita dedicando-nos mais em particular ao momento romano.
Porque é no próprio momento em que Cícero parecia revalorizar a
Arte política e a problemática da adaptação ao mundo que a arte
'jurídica parece adquirir finalmente os seus títulos de nobreza23. Ao
invés da leitura hegeliana que interpreta a emergência romana do
direito privado como a destruição da bela totalidade grega em bene­
fício de um formalismo abstracto24, M. Villey vê nela o verdadeiro
nascimento do direito.
Depois de uma época «tradicional» em que o processo jurídico
permanece intimamente ligado ao ritual religioso e de uma época «for-
malista» no decurso da qual ele se generaliza e se complexifica, dese­
nha-se, a partir do século i antes da nossa era, uma forma nova «que
se poderia chamar científica»25. O fenómeno, observa M. Villey, não
tem equivalente na história: «A primeira linhagem dos grandes juris­
consultos romanos, os veteres: Quintus Mucius Scaevola, Servius Sul-
picius, amigos de Cícero ou da sua família, autores de tratados ge-

21 Le Droit et les droits de l'homme, Paris, PUF, 1983, p. 22. -


22 Philosophie du droit, Paris, Dalloz, «Resumo», 1978 (2.a ed.), I, p. 52.
23 Cf. Cícero, De oratore, I, pp. 187 e segs.
24 Leçons sur la philosophie de l'histoire, tradução de J. Gibelin, Paris, Vrin, 1945, p. 289:
«Vimos os romanos partir do princípio da interioridade abstracta, que agora se
realiza em personalidade no direito privado. O direito privado consiste, com efeito,
nisso, que a pessoa vale como tal na realidade que ela se dá — na propriedade.
O corpo vivo do Estado, e a mentalidade romana que vivia como alma deste, está
agora reduzido à singularização do direito privado inanimado. Do mesmo modo
que, na putrefacção do corpo físico cada ponto adquire por si uma vida própria,
que no entanto não é mais do que a vida miserável dos vermes, também aqui o
organismo político se dissolveu nos átomos das pessoas privadas» (M. Villey, «Le
droit naturel romain dans la Philosophie des Redits de Hegel», Archives de philosophie
du droit, tomo xvi, 1971, pp. 275-290).
25 M. Villey, Le Droit romain, Paris, PUF, «Que sais-je?», 1993 (9.a ed.), p. 35.
50 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

rais da ciência do jus civile [...] empreenderam conferir ao direito a


forma de uma "arte" organizada.26»
Três características essenciais permitem avaliar o carácter histo­
ricamente excepcional do direito romano:
— Distingue-se em primeiro lugar, apesar das influências mar­
ginais do estoicismo, por uma fidelidade essencial à filosofia
aristotélica do direito27, e em particular à sua elaboração
conceptual extremamente rigorosa. A análise da ambivalên­
cia do termo justiça que designa simultaneamente a «dispo­
sição que torna os homens aptos a realizar actos justos»
(moral) e o facto de estar «em conformidade com a lei» consti­
tuem um preliminar. É no segundo sentido particular que a
justiça qualifica a virtude cujo objecto é atribuir a cada um
a sua parte: suum cuique tribuere — ou segundo a fórmula de
Cícero: «Sit ergo in jure çivili finis hic: legitimae atque usitatae
in rebus causisque civium aeqmbilitatis conservatio2S». O direito
é o resultado dessa acção; a jurisprudência é a ciência do
justo e do injusto.
— Mas — segundo aspecto essencial — para resolver o difícil
problema da repartição, convém considerar um padrão
fundamental. Os romanos, nisso também, seguirão a dou­
trina aristotélica29 pondo acima dos textos positivos pró­
prios de cada cidade um «direito natural» susceptível de
os fecundar. É respeitando a natureza, ela própria hierar­
quizada e finalizada, que o jurista poderá fazer respeitar a
lei.

26 M. Villey, Les Droits et les droits de Vhomme, p. 33.


27 M. Villey, La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, Montchrétien 1975
(4.a ed.), pp. 471-474.
28 O serviço de uma justa proporção na repartição dos bens e nos processos dos
cidadãos (De oratore, XLI, 188). Cf. a análise de M. Villey, em Le Droit et les droits de
Vhomme, pp. 57 e segs.
29 M. Villey {La Formation, pp. 428 e segs.) denuncia o contra-senso que haveria em
conceber (a partir de uma análise falaciosa) o estoicismo como uma filosofia do
direito natural, transcendendo a ordem positiva. Comete-se um erro em relação ao
sentido da célebre fórmula*da República de Cícero (III, 33): «A lei verdadeira é a
recta razão em acordo com a natureza.» Para dizer a verdade, o estoicismo falha
tanto ao pensar o direito (que confunde com a moral) como ao pensar a natureza
(que concebe como causa eficiente e não como causa final). Assim, a natureza não
pode fornecer uma bitola qualquer ao direito e o estoicismo não é no fundo mais do
que um «positivismo jurídico» (pp. 446, 458).
A POLÍTICA ENTRE ARTE E SABEDORIA 51

— A jurisprudência é assim antes de mais nada uma descrição


do mundo existente. Ao contrário do legicentrismo moderno,
tomado pelo frenesi de codificação e de demonstração, o
direito romano segue o adágio segundo o qual «não se deve
querer extrair o direito da regra, mas a regra extrai-se do
direito»30. «O direito romano é o contrário de um direito
logicamente construído sobre princípios a priori. Em última
instância apoia-se numa série de observações, observações
em sentidos diversos da vida real, fonte de opiniões discor­
dantes, a confrontar dialecticamente.31»

Esta tripla elaboração conceptual conduz portanto a delimitar


estritamente e rigorosamente o domínio jurídico, tal como o direito
romano o investe nessa época: respeita directamente apenas ao
dikaion politikon (o justo político) com exclusão das relações intrafa-
miliares, da moral, das questões de religião, de educação, de costu­
mes, etc. A consequência disso é decisiva, pois que através dessa «in­
venção do direito» é também uma língua que nasce, cuja terminolo­
gia específica iria — por vezes à custa de deslocamentos e de contra-
-sensos — alimentar todas as discussões da filosofia política futura.

30 Digeste, 50.17.1, citado por Villey, Le Droit romain, p. 37.


31 Le Droit romain, p. 43.
Il

I
Capítulo 1

Platão
por A n d ré Laks

Introdução — Sócrates e Platão

De uma maneira geral, não é possível tratar a filosofia platónica


sem falar de Sócrates. A obra de Platão construiu-se tanto com base
nas questões que colocou e nos princípios que defendeu, como numa
reflexão sobre a maiêutica — a arte de parir as almas por via da refu­
tação ou elenchos. Sócrates permanece nos bastidores das teses plató­
nicas, mesmo quando estas deixam de ser atribuíveis ao Sócrates his­
tórico — caso da teoria das Formas inteligíveis — ou põem de novo
em causa as suas posições fundamentais — caso da distinção, na
alma, de uma instância irracional e de uma instância racional, que
põe fim àquilo a que se chama o intelectualismo socrático (a ideia
de que o conhecimento é a condição necessária e suficiente da
virtude). Mas, tratando-se de teoria política, Sócrates é também
importante por uma série de razões mais específicas. Em níveis
muito diferentes, Sócrates foi efectivamente, por si mesmo, um
fenómeno político.
Nessa alegação pro vita sua que é a Carta VII, Platão relata como,
desde muito jovem, tinha desejado empenhar-se na vida política, a
que as suas origens aristocráticas o destinavam naturalmente. Em 404
— tinha ele 22 anos — foi seduzido pela revolução oligárquica
dos Trinta. O seu primo Crítias era um dos principais dirigentes
desta, e o seu tio Cármides, um dos dez comissários estabelecidos no
Pireu1. Ora Sócrates, cujo círculo frequentava assiduamente, tinha
passado por hostil à democracia, que contrariava directamente a exi­
gência tipicamente socrática de competência e conhecimento. De facto,

1 Cármides e Crítias são os interlocutores de Sócrates no Cármides, um diálogo ironi­


camente consagrado à grande virtude política da temperança.
55
54 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA PLATÃO

um traço distintivo da democracia ateniense era a designação dos


magistrados decidida por sorteio.
O regime depressa revelou a sua natureza criminosa. Sócrates re­
cusou, com risco de vida, contribuir para a prisão ilegal de um rico
democrata chamado Leão2. Platão põe-se à distância. A condena­ i d ?,H oPà cidade e até maior do que se possa imagmar, porque se
ção de Sócrates, em 399, pelo tribunal da democracia (que tinha sido íS de defender á causa de uma «excelência» ou
restaurada a partir de 403) acabou por convencer Platão da corrup­ 1 ffrins não são menos colectivos do que individuais (30b2)-
ção «vertiginosa» (Carta VII, 325e3) dos espíritos e das instituições3. ; ficl° J n a imaeem célebre, ser o «moscardo» dos Atenienses.
Sem renunciar formalmente à acção, instala-se na reflexão: «Não cessei Ness^sentido, Sócrates o apolítico podia também reivindicar ser o
de examinar como é que as leis e as condutas, assim como natural­ rinico verdadeiro político (Górgias, 521a). E por isso que quando, se-
mente o conjunto do regime político, podiam ser melhoradas, nem, 2- S U o procedimento em vigor, ele teve que fazer uma contrapro­
por outro lado, de esperar pelas diversas oportunidades de agir» posta relativamente à sua pena (a acusação pedia a m°rte),elepe
(325e4-326a2). Se acreditamos na reconstrução autobiográfica, foi L a beneficiar de refeições gratuitas no 6' ^ l a n e
desta investigação que saiu directamente a proposição hipotética que 5 1 vencedores dos Jogos Olímpicos {Apologia, 36d). E possível que
constitui a pedra de fecho da República: «Se não conseguirmos ou que t Z des J o que tenha acabado por lhe custar a vida.
os filósofos reinem nas cidades, ou que os presentemente chamados É6 verdade que Sócrates tinha imediatamente sublinhado a sua1* ^ '
reis e homens poderosos filosofem de maneira autêntica e satisfató­ sJên cia Se o preço da sua vida devesse ser a renuncia as suas
i ria, e que o poder político e a filosofia coincidam um com o outro [...] conversas, ele desobedeceria, e isso em nome dei superioridade
1
não haverá [...] fim nem para os males das cidades, nem para, creio, autoridade divina sobre a autoridade humana (29c-30c).
os do género humano» (República, 473b-d; cf. Leis, 711d-712a, Carta Sem que se possa atribuir a Sócrates uma filosofia política segun
VII, 326a4-b2). É porque disso depende a realização da cidade justa e todST s mgras, é claro que a sua atitude punha em causa
virtuosa. l estava já ^ e n h e de uma teoria. Na Apologia, Sócrates defende, face
Sócrates tinha combatido por Atenas e exercido os cargos que a à cidade a liberdade fundamental de examinar as ideias feitas
cidade lhe impunha: foi membro da assembleia («bouleuta») e, tendo fndo até iustificar, numa circunstância precisa, uma forma de
a sua tribo sido designada, da comissão da administração dos assun­ desobediência civil. É aqui que se trava a relaçao politicamente anv
tos da cidade («pritania»)4. Mas tinha-se abstido deliberadamente de bígua entre Sócrates e o seu mais célebre discípulo. Porque este nao
disputar as magistraturas (Apologia, 32e)5. As razões desta atitude S e S m e n f e o espírito ,u e preside à construção da adrde
são no entanto elas próprias de ordem política. Sócrates observa na tónica Na República, Sócrates faz-se porta-voz de uma doutrina cu]
Apologia que empenhar-se na vida pública, era para ele expor-se à «socratismOD^precisa de ser redefinido marcada com° e' °"üvi.
morte. Não que ele a temesse, mas tinha coisas melhores para fazer, coisas, por um programa educativo unpresinonante pela pc«dm
discutindo, em privado, com cada um. De resto, tinha, como prítane, dade em que a maiêutica não goza mais do que de uma exlsten^
dado um exemplo do que teria sido o seu combate, quando se opôs femtasínática, e em que a tónica é posta na — ac, de pnncpm
do indivíduo à ordem da cidade. Nao e certamente por acaso que
Sócrates não conduz a discussão nem no Político (em que, por razoes
aue^têm r ^ t o e n t e a ver com a história da ontologia, quem con­
2 O episódio de Leão, que a Carta VII faz alusão (325c), é mencionado na Apologia de
Sócrates, 32c. duz o d i X ^ é um Estrangeiro vindo de Eleia«), nem nas te», em
3 Sócrates foi oficialmente condenado por «corromper os jovens e reconhecer outros qüe mais facilmente se vê Hatão do que Sócrates sob a aparenca de
deuses que não os da cidade», Apologia, 32c. As verdadeiras razões são extremamente
difíceis de deslindar. Em todo o caso, obscurantismo, difamação e ressentimento
político desempenharam um papel.
; lugar a efeitos interessantes, por exemplo na passagem que evo r
4 Os atestado de serviço de Sócrates e a pritania de 406: Apologia, 28e e 32e.
í 5 Na maioria das vezes era-se voluntário no sorteio. Sócrates (299d).
56 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

um outro Estrangeiro, vindo de propósito a Atenas, a cidade política


por excelência.
Terá Platão «traído» Sócrates, segundo um tema caro à historio­
grafia liberal inglesa? Pôde sustentar-se que, na cidade das Leis, Só­
crates teria sido de novo condenado, tal como na parábola de Dos-
toievski do Grande Inquisidor aconteceu ao Cristo regressado à sua
Igreja7. Por sugestivo que seja o paralelo, ele pede duas observações.
Por um lado, a posição política de Sócrates é mais complexa do que
uma leitura isolada da Apologia o sugere. O Críton justifica a decisão
de Sócrates de ficar na prisão para esperar pela morte a que poderia
ter escapado, em nome da autoridade infrangível das leis sob as quais
aceitou viver (51d-e). A despeito de uma discussão complexa que
punha em jogo considerações jurídicas bem como filosóficas8, não é
seguro que a contradição possa ser inteiramente resolvida: o respeito
pela supremacia divina na Apologia é uma coisa, a fidelidade à cida­
de-mãe no Críton é outra, mesmo que as leis, desde o Críton, falem
também em nome do deus (54e). Em todo o caso, o facto de a lei, na
cidade platónica, ser a expressão directa de uma divindade que se
confunde com a razão ou o intelecto9 não deixa de ter consequências
sobre a própria posição de Sócrates.
Pode de facto sustentar-se que numa cidade virtuosa, tal como o é
por hipótese a cidade platónica, o processo de Sócrates não teria tido
lugar. Sem dúvida porque não haveria ninguém para o intentar, mas
acima de tudo porque não teria havido nenhum Sócrates para ser
vítima dele. Sócrates está historicamente ligado ao regime democrá­
tico. Platão sublinhou este ponto, em particular no Político (299b-e),
em que se dedica à reconstrução ideal-típica do processo que lhe foi
| intentado. Nesse sentido, a cidade platónica, construída contra a
democracia que o tinha levado à morte, não podia senão eliminá-lo à
sua maneira.
i O preço a pagar é incontestavelmente elevado. É difícil aceitar
uma cidade em que Sócrates, ou pelo menos o que ele incarna (por-
| que ele é também um fenómeno único na história da humanidade),
| estaria ausente. Mas é preciso ver bem por que razão. Partilhamos
j em geral a convicção que se a vida política deve mover-se no hori-

7 F. M. Comford, «Plato's Commonwealth», in The Unwritten Philosophy and Other


! Essays, Cambridge, Cambridge University Press, 1950.
I 8 R. Kraut, Socrates and the State, Princeton, Princeton University Press, 1984.
j 9 Nas Leis (714a e 957c), o termo nomos (lei) é «etimologicamente» derivado, à maneira
do Crátilo, de nous (intelecto). Ver infra pág. 68.
PLATÃO 57

zonte do menos mau, este sê-lo-á sempre suficientemente para exigir


ser posto em questão - um questionamento de que Sócrates perma­
nece o emblema. Platão, esse, interessava-se pelo «perfeito», ainda
que fosse sob a forma do «melhor possível».

2 — Platão e a fundação da filosofia política


Em busca da constituição perfeita, Platão desenhou os contornos
de uma nova disciplina. Certamente que a reflexão política lhe pre­
existe. Ela é indissociável da emergênciá progressiva, desde o sé­
culo vn, de uma forma de organização política até então inédita na his­
tória da humanidade, reunindo num território restrito uma comuni­
dade relativamente pouco numerosa no seio da qual o conjunto dos
que gozavam do estatuto de cidadão participavam no exercício do
poder - aquilo que é costume designar pelo termo polis («cidade»,
por vezes «cidade-estado»)10. A existência de uma nova consciência
política manifesta-se desde o início do século vi, quando, frente à
ameaça de guerra civil resultante da opressão dos camponeses endi­
vidados, Sólon, munido de plenos poderes em 594, justifica, através
de poemas cantados publicamente na ágora, medidas visando instau­
rar o equilíbrio entre ricos e pobres em nome da «boa norma» («eu-
nomia») da comunidade política. Com as reformas de Clístenes e
um conceito de «isonomia» que implica não apenas a «igualdade pe­
rante a lei», mas também o direito de participar nas questões políti­
cas, afirma-se a especificidade da democracia ateniense11. A vitória
sobre os Persas e o despotismo foram atribuídos à superioridade de
um modelo político. O famoso debate, nas Histórias de Heródoto,
sobre os méritos respectivos da monarquia> da oligarquia e da demo­
cracia, dá testemunho de uma reflexão sobre as diferentes constitui­
ções que encontramos também nos sofistas (em particular Protágo-
ras)12, na narrativa que Tucídides faz da guerra do Peloponeso, mas
também no que se sabe sobre a política pitagórica, cujas marcas são

10 Ver C. Meier, La Naissance de la politique, Paris, Gallimard, 1995. Para dar uma ordem
de grandeza, situa-se à volta de 20 000 o número de cidadãos atenienses no século
iv. Devia ter crescido consideravelmente desde o século vi. A cidade platónica das
Leis, com os seus 5040 proprietários, contará cerca de metade.
11 P. Lévêques e P. Vidal-Naquet, Clisthène VAihénien, Paris, Les Belles Lettres, 1964.
12 Ver, neste volume o capítulo que lhes é consagrado.
58 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

claras em Platão (em particular no uso que é feito da noção matemá­


tica de igualdade proporcional)13.
Se Platão pode no entanto ser considerado como o verdadeiro fun­
dador da «filosofia política», não é só porque, embora herdando do
passado, procurou conceitos e definições, perguntas e respostas, te­
mas e argumentos, que vieram a tomar-se os da disciplina, é também
porque, separando o político da política, ancorou esta disciplina
numa ontologia e numa antropologia filosófica.
A obra mais importante é, sem contestação, a República, mas co­
meça a avaliar-se melhor, há já alguns anos, a importância das Leis,
que durante muito tempo não foram verdadeiramente exploradas
senão pelos historiadores, devido ao seu valor documental considerá­
vel (veremos porque é que a cidade platónica aí se aproxima consi­
deravelmente das realidades gregas). Muitas razões, simultaneamente
filosóficas, pedagógicas e culturais, explicam a negligência que so­
freram. Mas do próprio ponto de vista da história da filosofia polí­
tica, a situação tem qualquer coisa de paradoxal. O mínimo que se
pode dizer é que a herança política da República está fortemente
hipotecada. A exigência de uma coincidência entre o poder e o saber
(doutrina dita do rei-filósofo14) pôde bem inspirar o modelo do des­
potismo esclarecido. Ela evoca muitas vezes os perigos da tirania, ain­
da que fosse a tirania dos peritos. A justificação da mentira política
e a sua institucionalização sob a forma de manipulação de resulta­
dos, no quadro de uma política eugénica, nada têm de particular­
mente atraente. A comunidade de bens, que Platão impôs aos «guar­
diães» da cidade (soldados e magistrados), e o controlo político das
produções literárias, tiveram de facto os seus defensores, e até os
seus turiferários, tal como a comunidade das mulheres e das crianças
(se bem que em grau menor). Mas a maioria dessas medidas, tomadas

13 Ver infra, pp. 91 e segs., e A. Delatte, Essai sur la politique pythagoricienne, Liège-Paris,
éd. Champion, 1922.
14 A expressão convencionada, tirada evidentemente da célebre passagem citada supra
p. 54, não é inteiramente adequada, primeiro porque não sugere que as mulheres
tenham tanto direito a reinar como os homens, e mais ainda porque confunde duas
situações claramente distinguidas por Platão na República. Na cidade realizada, os
filósofos, no plural, exercem à vez, forçados e constrangidos, até porque não po­
dem filosofar durante esse tempo, a magistratura suprema: não se trata de uma
monarquia no sentido usual do termo (o Político é mais ambíguo a este respeito,
porque fala mais frequentemente do monarca no singular. Cf. todavia 297c). A reali­
zação da cidade arrisca-se a não poder iniciar-se caso poder e saber não coincidam
num só indivíduo. As Leis vão no sentido da unicidade (711d-712a).
PLATÃO 59

em nome da «unidade» da cidade, foi muito rapidamente conside­


rada irrealista (e em parte pelo próprio Platão, nas Leis)15. As institui-
1ções da República tornar-se-ão, segundo uma tradição clássica que
Kant criticará, o símbolo da quimera política (Cícero dirá na sua
própria República, II, 52, que a cidade da República platónica é «mais
apetecível do que desejável»). Na época moderna, a República forne­
ceu um poderoso argumento aos conservadorismos de toda a espé­
cie, ainda que fossem revolucionários, e existe um Platão «totalitá­
rio»16. Apenas a igualdade de homens e mulheres em matéria de edu­
cação é algo que podemos, à primeira vista, adoptar como nosso —
sob reserva, naturalmente, de lhe assegurar uma universalidade que
falta na República, porque tanto a educação comum, como as outras
medidas comunitárias, só dizem respeito a uma fracção da cidade17.
É certo que a defesa dessas instituições, cujo carácter eminente­
mente paradoxal, portanto essencialmente frágil, Platão não deixa
de sublinhar, efectua-se com base em princípios e argumentos de uma
solidez diferente. A concepção de poder como cargo, por exemplo,
subtende a tese de que depende o plano de todo o diálogo: contraria­
mente às afirmações de Trasímaco (livro 1), o verdadeiro político
governará contra a sua vontade (livro 7). É mesmo por isso que ele
deve ser «constrangido» a governar (519c-e, 520e). Da mesma forma,
a noção de «bem comum», que devia desempenhar um papel tão
importante a partir de Aristóteles, foi pela primeira vez tematizado
em grande escala através da análise da função dos «guardiães».
É pois pela estrutura desses argumentos, mais do que pelas proposi­
ções concretas que são como a sua cristalização radicalizada, que a
República funda a filosofia política.
Subsiste que a posteridade das Leis em matéria de filosofia polí­
tica é imensa, e de uma certa maneira mais imediatamente visível.
É nesse diálogo que pela primeira vez se encontram filosoficamente
elaboradas noções politicamente tão determinantes como as de «reino
da lei» ou de «constituição mista», ou ainda o projecto de uma
educação obrigatória para todos os cidadãos. É a razão pela qual
o presente capítulo, sem negligenciar a República, põe as Leis em
primeiro lugar. A relação intrigante dos dois diálogos e o lugar do

15 As Leis renunciam à comunidade dos bens, das mulheres e das crianças. No entanto,
ainda não à censura.
16 Ver a última secção do presente capítulo.
17 Cf. J. Annas, Introduction à la Republique de Platão, tradução francesa, Paris, PUF,
1994, pp. 232 e segs.
60 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Político (a quem não se pode fazer justiça completa) serão aqui


esclarecidos.
Que a República tenha muitas vezes desempenhado, na história
da filosofia política, o papel de alavanca, ao passo que a substância
das Leis entrava no fundo comum da reflexão política, não é nada
surpreendente, porque, de certa forma, também as Leis se construí­
ram sobre os escombros da República. As instituições das Leis ocupam
o lugar deixado vago pela impossibilidade, doravante reconhecida,
de impor aos homens disposições que a República apresenta enfatica­
mente como sendo não só «apetecíveis» (as melhores), mas ainda
«possíveis». Poder-se-á para isso opor simplesmente as Leis à Repú­
blica, como se Platão tivesse a dada altura renunciado à cidade da
República para a substituir pela das Leis? A relação entre as duas obras
é de facto, como veremos, de uma terrível complexidade. O que é
certo é que a filosofia política de Platão se situa na articulação de
duas obras. Esta articulação constitui talvez a própria herança capi­
tal de Platão em matéria de filosofia política.

2 — Política e «psicologia»
E costume observar que para os gregos a política não é ainda
claramente distinta da ética, o que é incontestável18. Mas tratando-se
de Platão, pode ser-se mais preciso, e deve-se mesmo sê-lo, não tanto
por ele não conhecer ainda o termo ética (o que é apenas uma razão
formal) mas porque ele mesmo produziu uma definição de política
que funda filosoficamente a interferência tradicional dos dois domí­
nios.
O próprio termo de «política» ou «arte política» (politikê, sc.
technê) deriva do termo polis19. Mas Platão não pensa que a arte polí­
tica é simplesmente determinada pela ideia de uma tal comunidade.
Naquilo que pode ser considerado como a primeira exposição em forma
da filosofia política platónica, o Górgias avança uma definição da
política em que a característica mais surpreendente é que omite a
menção da cidade: «chamo política à técnica que tem a alma por

18 Cf. o último capítulo da Ética a Nicómaco de Aristóteles (X, 9) que mostra bem como
se passa do ético ao político por intermédio da legislação. Isso é também verdade
para Platão (ver infra, pp. 61 e segs.).
19 Ver supra, p. 57.
PLATÃO 61

objecto» (464b4). A fórmula é evidentemente feita para surpreender,


mas pode valer-se de concepções aceites. Protágoras, no diálogo que
tem o seu nome, mostra bem como a cidade faz o homem. De uma
certa maneira, Sócrates não faz mais do que aplicar esta maneira de
ver a uma antropologia determinada. Sendo admitido que o homem
é um conjunto formado por um corpo e uma alma, é estabelecida a
existência de uma arte (technê) capaz de tornar a alma boa e santa,
da mesma forma que a medicina é a arte de cuidar do corpo (464b).
Se, tratando-se da alma individual, esta arte se confunde virtual­
mente com a filosofia20, toma o nome de política quando a alma é consi­
derada colectivamente, por assim dizer. As noções de «lei» e de
«legislação» são centrais aqui. Por hipótese — e é uma hipótese forte,
em todos os sentidos do termo, porque comanda não apenas a estru­
tura da filosofia política platónica, mas grande parte da teoria polí­
tica antiga — a lei tem por função definir as virtudes. Ela enuncia o
que é justo e injusto, belo ou feio, piedoso e ímpio21. Basta desde logo
admitir que legislar é a tarefa essencial da política para ter o direito
de concluir que o objecto da política é a alma. Quando o Górgias
subdivide a arte política em «legislação» e «arte judiciária», não
faz mais do que afinar esta concepção, porque a justiça, que pune a
transgressão das leis, não é mais do que a outra face da actividade
legislativa.
Esta interpretação da definição da política como terapia da alma
está perfeitamente de acordo com as ambições propriamente políti­
cas da refutação socrática22. É porque a alma é uma parte do homem
que a política, que se ocupa dos homens, diz respeito à alma. Desta
interpretação, que se pode qualificar de «fraca», da relação privile­
giada entre a política e a alma, pode, desde o Górgias, distinguir-se
uma segunda mais forte que, desenvolvida no fim do diálogo (503d6-
-504e4), conduz ao limiar da República.

20 Idealmente, porque, uma vez tiradas as consequências da complexidade da alma


(o que não é o caso no Górgias), a retórica retoma os seus direitos. No Cármides,
«as encantações» com que se imagina a alma são «os belos discursos» (157a), que se
podem identificar com os argumentos filosóficos. Mas a metáfora pode também ser
lida não metaforicamente, como remetendo ao discurso de uma retórica filosófica
de tipo da que o Fedro promove.
21 Segundo as Leis, por exemplo, o legislador deve enunciar «o belo, o justo, e todas as
grandes noções» que tendem para a virtude e para o vício (890b7). Ver também
Aristóteles, Ética a Nicómaco, 1180a5-14 (uma passagem que se refere implicitamente
às Leis).
22 Ver supra, p. 55.
62 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

O momento decisivo é a universalização do conceito de «lei» que


acompanha a subsunção da política no género das produções arte-
sanais (ou, para imitar a palavra grega, «demiúrgicas»). O «homem»
— tanto a sua alma como o seu corpo — é considerado como uma
obra, ao mesmo nível que o quadro do pintor, a casa do arquitecto e
o navio do carpinteiro. Todos os artífices dispõem e ajustam os seus
materiais de maneira a impor-lhes uma forma (eidos, 503e2)23, que
transparece na sua disposição (taxis: a ordem das diferentes partes
do produto) (503e6). Se o médico tem por atribuição específica «fa­
zer uma organização (kosmos) do corpo e pôr ordem nele», a atribui­
ção do homem político será modelar a alma dos cidadãos segundo a
sua organização e ordem próprias. A universalidade dos conceitos
de kosmos e de taxis, que são correlativos, faz deles determinações
puramente formais, especificáveis segundo o seu domínio de aplica­
ção. No caso do corpo, esta ordem tem por nome «saúde», de que
derivam uma série de virtudes específicas (como a força). À saúde
corporal correspondem, do lado da alma, a «ordem» e aquilo a que
Platão chama aqui a «norma» (nomimon) para a distinguir do con­
ceito genérico da lei (nomos), e de que derivam as virtudes da justiça
(dikaiosunê) e da temperança (sophrosunê). A norma política, ou «lei»
no sentido restrito do termo, torna-se assim o nome da «ordem»
objectiva que tem, enquanto injunção, por tarefa instaurar ou
preservar.
As consequências desta taxinomia são consideráveis. Sendo a lei
o nome específico da ordem física, a própria alma torna-se «como»
que uma cidade, regulada pela lei que é a ordem específica dela.
A função teleológica da alma na determinação da arte política
(a alma é a sua finalidade) acompanha-se doravante de uma função
paradigmática (a alma é o modelo da cidade). A Republica comple­
tará esse movimento atenuando progressivamente a distinção entre
os dois domínios. A alma, na República, é também dotada de uma
«constituição», o que abre a via a uma prática inteiramente despo-
litizada da política. No fim da República, o filósofo, sempre na espe­
rança de essa «oportunidade divina» que o colocaria em posição de
governar, não se entrega a nenhuma outra política além da polí­
tica da «cidade que ele próprio é», e que regula a sua «constituição
interior» (591el, 592a5-9). Resulta daí uma tensão característica
da «política» platónica, e além disso muito mais radical do que a

23 Pode ver-se neste termo quer uma alusão à teoria das Formas, quer um indicador da
sua gestação.
PLATÃO 63

que se instaurava em Sócrates entre a prática privada da conversa­


ção e a participação na vida pública. Um dos elementos essenciais
da «filosofia política» de Platão é a radicalização do conflito entre
filosofia e política - a primeira forma da oposição aristotélica entre
«vida teórica» e «vida prática». É precisamente por isso que Platão
consegue sustentar que nenhum filósofo pode governar de boa
vontade.
A noção de «lei» não vai mais longe no Górgias, e o conceito de
ordem, de que ela é uma especificação, é apenas objecto de indica­
ções programáticas. Naturalmente que não é indiferente que a «dou­
trina dos sábios» a que Sócrates se refere descreva a ordem cósmica
em termos de virtude: o que mantém unido o universo, e faz do céu e
da terra, dos deuses e dos homens, uma comunidade (koinonia) unida
pela «amizade», são essencialmente a «temperança» e a «justiça»
(507e6-508a3). Mas essas indicações mantêm-se vagas, porque essas
«virtudes» não são mais do que metáforas da ordem universal.
A natureza da relação específica existente entre as virtudes da
alma e a cidade não é explicitada senão na República. A possibili­
dade de um conceito de ordem psíquica, invocado pelo Górgias, é
fundada na República graças à distinção das «partes» ou «espé­
cies» de alma.

Sabe-se que a construção da maior parte da República (II, 357a-IX,


569c) assenta num «paralelo», tão célebre como difícil, entre a alma
e a cidade. A questão que a Republica coloca é a de saber qual, se o
homem perfeitamente injusto (o tirano louvado por Trasímaco
no livro i) ou o homem perfeitamente justo (que será identificado, no
decurso do argumento, com o filósofo platónico), é perfeitamente fe­
liz. No final do livro primeiro, torna-se visível que responder à ques­
tão do predicado (feliz) supõe que se tenha previamente definido o
sujeito, neste caso o homem justo. Todavia, a análise da justiça no
homem deve ser tornada mais fácil pela consideração prévia de uma
outra justiça ainda, a da cidade, mais visível do que a primeira por­
que se escreve, segundo a fórmula do livro n, «em letras maiores»
(368c6-369a4; 434d2-435a3). A maior parte dos livros n-rv desenvolve
de maneira sistemática esse paralelo entre a cidade e a alma indivi­
dual, não apenas a propósito da justiça, mas também a propósito de
outras virtudes. A justiça vai de facto revelar-se como uma virtude de
segunda ordem, que pressupõe a existência das outras. Não sendo a
virtude de nenhuma das três partes componentes da cidade (produ­
tores, defensores e magistrados), ela é como que a resultante do con-
64 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

junto das virtudes específicas destas, quando cada uma «cumpre a


função que é a sua» no seio da cidade (433b)24. Quando os governan­
tes governam com sabedoria (uma sabedoria que implica a tempe­
rança ou moderação, [sophrosunê]), os auxiliares combatem com cora­
gem e os produtores se submetem à autoridade dos governantes (que
é a sua maneira de demonstrar «moderação»), então a cidade pode
ser dita justa. Da mesma forma, a justiça individual é uma certa rela­
ção entre as virtudes próprias de cada uma das três partes da alma,
quando cada uma exerce a sua virtude específica: a sabedoria (e a
moderação) para a parte racional, a coragem para o ardor (o thumos)
e a moderação para os desejos inferiores. Esta concepção da justiça
como «ordem», singular no facto de parecer conceber a justiça como
uma virtude individual («fazer o que lhe cabe») de preferência a ra­
cional e social, recebe uma confirmação através da única alusão que
se consegue encontrar na República a uma «Forma» da justiça: Platão
esclarece que as Formas, objectos da contemplação do filósofo, estão
«ordenadas e sempre no mesmo estado, e nem cometem injustiças
umas contra as outras, nem as sofrem» (500c). Compreende-se pois
que os livros vin e ix (até 580d), que constituem a vertente negativa
dos livros ii-iv, analisem a injustiça exibindo, por ordem de desre­
gramento crescente, as principais formas de injustiça (em número
de quatro), tanto na cidade como na alma. Platão explica assim, em
páginas de um realismo surpreendente e justamente célebres, o que
se passa quanto às motivações da timocracia (guiada pelo ardor e
pelo desejo de honrarias), da oligarquia (posta sob o signo da cupi­
dez), da democracia (em que a liberdade individual desabrocha) e
da tirania (em que todos os desejos brutais da humanidade têm
livre curso).
O paralelo entre a cidade e a alma, ele próprio justificado pelo
paradigma da escrita, é explicitamente apresentado como um proce­
dimento pedagógico. Platão tem o cuidado de sublinhar que a desco­
berta das partes componentes da cidade por um lado, e da alma por
outro, assenta em argumentos independentes25. Guiar, não é demons­
trar. De facto, existem duas diferenças importantes entre a compara­
ção de duas inscrições e a de duas espécies de justiça. Primeiro, gran­
des ou pequenas, as letras são substancialmente as mesmas. O que
não é o caso das partes componentes da alma e de uma cidade, se for
verdade que o que constitui esta última são homens, ou talvez melhor

24 Ver mais adiante, p. 70.


25 Cf. 434d-435b e o conjunto do desenvolvimento que se segue.
PLATÃO 65

ainda, funções26. Apesar de todas as similitudes estruturais que Pla­


tão construiu entre as duas séries, os seus respectivos elementos não
são menos heterogéneos. Platão era o último a querer negá-lo, dado
que insiste, no momento próprio, no facto que a similitude entre a
justiça política e a justiça psíquica se acompanha de uma subordi­
nação ontológica (e portanto axiológica) da primeira à segunda.
Quando Sócrates, no termo do desvio que conduziu da justiça polí­
tica à justiça psíquica, afirma que a cidade não apresenta senão «uma
certa imagem (eidolon) da justiça» (443c4s), é claro que a relação
«icónica» em que estão as duas espécies de justiça não é redutível à
relação de similitude existente entre os caracteres das duas inscri­
ções — é a segunda diferença em relação ao paradigma da escrita.
Tratando-se da relação imagem/cidade, o termo «imagem» é onto-
logicamente acentuado. É por isso que a justiça política, fundamen­
tando-se na repartição funcional de tarefas, é assimilada a um «so­
nho» (443b7), ao qual é posto fim pela descoberta da «verdadeira»
justiça (443c9), de que ela não foi mais do que o instrumento.
Esta prioridade ontológica da justiça psíquica sobre a justiça po­
lítica esboça a «despolitização» da política platónica a que foi feita
alusão atrás. Mas determina também em muito grande medida — e
tem-se todo o direito de achar excessiva esta medida — a própria
concepção platónica da justiça política. Porque se Platão, à super­
fície, não concede ao paralelismo entre a cidade e o indivíduo mais
do que um valor pedagógico, é difícil negar que a construção da
cidade é sub-repticiamente guiada por uma teoria relativa à natureza
da alma. A prioridade ontológica da alma é acompanhada de uma
prioridade epistémica que o paralelismo da escrita, se não contradiz,
pelo menos tende a ocultar. Compreende-se que a teoria política pla­
tónica, pelo menos sob a forma que toma na República, se expõe com­
pletamente à censura de paralogismo. A exegese, pelo menos a crítica,
está completamente condenada a mover-se livremente entre o
«psicológico» (uma teoria da alma) e o político, sem poder dissociar
o que Platão tão poderosamente integrou.
Um exemplo revelador, e politicamente importante, desta confu­
são entre psicologia e política é dado pelo desenvolvimento sobre a
temperança política, que se baseia explicitamente na análise da vir­
tude psíquica correspondente, a qual, em princípio, devia, no entanto,

26 A tripartição platónica pode dificilmente não lembrar a tripartição indo-europeia


das funções analisada por G. Dumézil, mesmo que o sacerdote seja neste caso o
filósofo.
66 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ajudar a descobrir (413a3-d2). Tudo se passa como se, contraria­


mente ao procedimento patente, a temperança fosse de uma certa
maneira mais fácil de determinar na alma individual do que na cidade.
Platão não comenta esta espantosa hysteron-proteron, mas pode-se
procurar a razão no facto de a temperança, na medida em que é
uma «boa ordenação» (kosmos), tem por definição, por assim dizer,
qualquer coisa de um «acordo» (sumphonia) e de uma «harmonia»
(harmonia) (430e3-6). O esquema é imediatamente político, na me­
dida em que a temperança supõe que os apetites obedecem à razão
— uma obediência que, em princípio, deve ser o resultado da persua­
são27. Assim entendida, a temperança tem com alguma razão de ser
tratada diferentemente das outras virtudes. Conhecimento e coragem
só se manifestam numa fracção da cidade (431el0): o primeiro é da
competência do pequeno número de magistrados consumados, a se­
gunda, do conjunto dos defensores. Quanto à justiça, se é verdade
que ela respeita à totalidade da cidade, é como vimos num sentido
particular, enquanto virtude de segunda ordem. Só a temperança
implica uma verdadeira relação entre as diferentes partes da cidade.
É assim porque impõe uma nova perspectiva da cidade, em que a
tripartição puramente funcional cede agora o lugar à polaridade sim­
ples do «melhor» e do «pior». Visto do lado dos cidadãos governados
(os produtores, evidentemente, mas também os guardiães filosofica­
mente não consumados), fazer o que lhe cabe consiste em «obede­
cer», tal como, visto do lado dos dirigentes (os filósofos, mas também
os restantes guardiães, a diferentes níveis), consiste em governar com
a preocupação do todo. Assim, uma cidade «civilizada» avalia-se me­
nos pelo que «produz» (quer se trate de bens quer de segurança), do
que pelo «consenso» (homonoia) reinante. É o que confirma a análise
do final que dá o título à própria República.

3 — Constituição e consenso

A obra a que a tradição de origem latina deu o nome de República


intitula-se em grego A Constituição (Politeia). O neologismo politeia,

27 «Obediência» e «persuasão» dizem-se em grego com a mesma palavra, peithô. Isto


é um facto linguístico cuja importância para a economia geral da filosofia política
platónica não pode ser subestimado. O que não impede, evidentemente, que Platão
distinga a obediência, enquanto efeito da persuasão, da submissão, sob o efeito da
coacção.
PLATÃO 67

que se tomou corrente na época de Platão, impôs-se progressivamente,


no decurso do século v, contra outros termos em uso (katastasis, por
exemplo, linguisticamente mais próximo da nossa «constituição», ou
ainda taxis e nomos, que se referem à ordem estabelecida). Formada a
partir de politês (o cidadão), a palavra politeia tem, na sua primeira
ocorrência conhecida, em Heródoto (IX, 34), o sentido de «cidada­
nia» ou de «direitos cívicos». O sentido de «constituição» reflecte
sem dúvida a tomada de consciência, favorecida pelo advento do re­
gime democrático, do carácter politicamente crucial da pertença ao
corpo dos «cidadãos», os únicos legitimados para exercer o poder28.
Em todo o caso, uma «constituição» é em primeiro lugar caracteri­
zada pela natureza da instância dirigente. Ela será monárquica, oligár-
quica ou democrática, consoante o poder esteja nas mãos de um
único, de um pequeno número ou de todos os cidadãos. O desdobra­
mento das duas primeiras espécies em função de critérios secundários
(consoante o poder se exerça ou não conformemente à lei, e que
assente na coacção ou no consentimento) gera um esquema com cinco
termos, em que a tirania emparelha com a monarquia, e a aristocra­
cia emparelha com a oligarquia29. É esse esquema que Platão adopta
no Político, completando-o com a distinção entre duas formas de
democracia (302d-e.), o que gera seis «falsas» constituições. No caso
da República, que descreve a génese ideal-típica de quatro constitui­
ções «injustas» por degenerescência progressiva a partir da cidade
justa, a classificação deve mais à análise (também tradicional) das
constituições em termos de «costumes». Aqui, o critério decisivo é
menos o do número do que o da virtude, ou mais exactamente da sua
perversão; a «timocracia» (termo criado para explicar a especifici­
dade do regime espartano) cultiva a honra, a oligarquia, a avidez, a
democracia, a devassidão, e a tirania, a brutalidade30.
Mantendo, do conceito tradicional, a ideia de que uma constitui­
ção deve responder à questão de saber quem governa, e se caracte-
. riza pelos tipos de conduta que promove, Platão modifica profunda­

28 É a hipótese do historiador Ch. Meier, La Naissance de la politique, Paris, Gallimard,


1995, pp. 57-67.
29 Principais testemunhos desta classificação: Píndaro, Pítica, II, pp. 86 e segs.; Heró­
doto, III, pp. 80 e segs.; Eurípedes, Fenícias, 499 e segs.; Suplicantes, pp. 403 e segs.
30 Na República, o termo aristocracia, tomado num sentido especial, serve de nome à
constituição justa. A monarquia é oficialmente ignorada, embora desempenhe um
papel na proposição-chave. É que na cidade realizada são os filósofos, no plural,
que reinam (ver infra, p. 8 e supra nota 14).
68 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

mente a sua natureza. Uma constituição «verdadeira» ou «justa»


— a primeira da República, a sétima do Político — funda-se num duplo
critério. Por um lado é exigido da constituição que a instância gover­
nante possua um certo tipo de conhecimento, ou mais exactamente,
dados os pressupostos epistemológicos de Platão (só há saber daquilo
que é), o saber. Os livros centrais da República (V-VII) qualificam os
filósofos para governar na exacta medida em que eles são os garantes
e os depositários desse saber ontológico (o que explica que a doutrina
platónica das Formas encontre a sua exposição mais completa num
diálogo político). No mesmo sentido, e sem conjecturar sobre a ques­
tão de inquirir se o conteúdo desse saber é idêntico ao da República31,
a constituição do Político é classificada como «sábia» (303cl). Desse
ponto de vista, o nome mais adequado para uma constituição assim
não é o de «aristocracia», que a República adopta (na ideia de que o
melhor, é a razão), nem o de «monarquia» (que é a linguagem usual
do Político), mas o de «noocracia» («poder do intelecto»), que, sem
inteiramente a criar, as Leis sugerem fortemente, ao lado da «teocra­
cia» (porque também o intelecto é identificado com a divindade): «se
tivéssemos que dar um nome à cidade que depende de um tal poder,
deveríamos proferir o nome do deus que reina sobre os que têm inte­
ligência» (713a)32. Uma constituição platónica, independentemente
da questão de saber se o representante é um homem (como na Repú­
blica e no Político) ou a lei (como nas Leis), é realmente uma constitui­
ção em que o nous (intelecto ou razão) reina em última instância.
Mas a normativídade a que se refere a «constituição» platónica
não é esgotado pelo critério do saber. É também exigido que uma
politeia se baseie no consentimento dos cidadãos. Contrariamente ao
primeiro, trata-se aqui de um critério tradicional, mas Platão radica­
liza o seu alcance ao interpretá-lo à luz da estrutura da temperança.
A harmonia que reina entre os governantes e governados recebe o
nome de «amizade» (philia). Esta interpretação forte tem por efeito
excluir a priori da esfera política todas as relações hierárquicas que
pudessem comportar um factor estrutural de discórdia. Assim tanto
o arbitrário despótico, por um lado, que não concede qualquer lugar

31 A teoria das Formas não é mencionada no Político (apesar de 285e-286a), que, como
o Sofista, assenta no exercício da divisão por géneros e espécies. Segundo uma
interpretação corrente, Platão teria, a partir do Parménides, renunciado à teoria das
Formas devido às dificuldades a que se expõe.
32 «Noocracia» não terá futuro. «Teocracia» não é atestada antes de Flávio José, Con­
tra Apion, II, p. 16.
PLATÃO 69

à liberdade, como o igualitarismo democrático por outro, que não


tem em conta os méritos, são recusados nas Leis em nome de diver­
gências intestinas (stasis) que inevitavelmente engendram: «nunca
escravos e mestres se tomariam amigos, nem homens vis e pessoas de
bem, se uma igual fatia de honra lhes fosse atribuída» (757al-5). Tal é
a força normativa da exigência de consenso que Platão vai até classifi­
car como «não-constituições» (e não só «falsas constituições» ou «in­
justas») todas as constituições que não a satisfaçam (Político, 303b8-c2,
Leis, 832bl0). Esta é também a razão pela qual não existe — para falar
propriamente — senão uma constituição — A Constituição.
Dois pontos de vista, epistémico e consensual, coexistem portanto
sobre a constituição. Ora a sua compatibilidade não é garantida de
imediato. Pode mesmo considerar-se que a existência de uma dupla
normatividade é o problema fundamental da politeia platónica. Per­
feitamente perceptível na República e no Político, é somente nas Leis,
no entanto, que é completamente assumido, com a paradoxal consi­
deração, tendo em vista o próprio conceito de «constituição», da
noção de «constituição despótica» e da sua contrapartida, a «servi­
dão» dos cidadãos33. Na verdade, a própria natureza do despotismo
difere conforme seja exercido pelo arbitrário humano contra outros
homens — fracções de cidade contra fracções de cidade — ou pelo
intelecto divino sobre o conjunto dos cidadãos. O termo «escravo»,
quando se refere à subordinação do irracional à racionalidade, é ali­
viado de toda a carga negativa. Além disso, Platão sugere que a «ser­
vidão» política será, segundo modalidades que ficam por explicar,
uma servidão consentida34. Subsiste o facto que o lugar concedido ao
despotismo «constitucional» não pode ser minimizado. A sujeição
despótica é a projecção, no próprio meio da racionalidade, de um
modo de acção verdadeiramente irracional. É certo que se a raciona­
lidade recorre à «coacção», é porque ela própria é coacção. Em to­
das as almas subsiste, a par de um irracional principialmente «redu­
tível» por via da persuasão, uma irracionalidade irredutível, que só
pode ser reprimida: é por isso que a temperança não conota menos
imediatamente a capacidade de resistir, quanto mais não seja pela
força (é a enkrateia, mencionada pela República em 431e7), do que o
acordo e a harmonia. Consequentemente, haverá em todas as cida­
des, e portanto em todas as constituições, algo de não político. Mas

33 Principais ocorrências: 713a3 e segs. (atrás citada); 715d4-6; 762e5; 839c4.


34 E mesmo a Platão que remonta o oxímoro de «servidão voluntária» (Leis, 700a4 e
segs.). A expressão tem neste caso, evidentemente, um sentido positivo.
70 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

isso até confirma que a metáfora da escravatura, longe de reflectir a


essência da relação política (soberano-súbdito), representa antes o
que nele subsiste do seu limite, ou até da sua negação (a relação
mestre-escravo).

4 — Economia e política

Uma análise da estrutura das duas principais cidades platónicas,


a da Republica e a das Leis, permite localizar mais precisamente o ele­
mento não político da cidade no que chamaríamos a produção eco­
nómica. A oposição do económico e do político não tem no entanto
nada de simples. E o que revela, a propósito da cidadania, uma ten­
são interna à República, e uma divergência importante entre a Repú­
blica e as Leis. As cidades platónicas manifestam uma certa dificul­
dade em manter nos factos a coextensividade, afirmada ao nível dos
princípios, entre a cidade (polis) e a constituição (politeia). Para estar
substancialmente de acordo com o seu conceito, a politeia deverá res­
tringir-se a uma parte da cidade; só é coextensiva com ela à custa de
um afrouxamento semântico que reintroduz, na cidade, a virtuali­
dade da dissensão contra a qual se constrói.

Sabe-se que, para determinar as partes (ou funções) constitutivas


i de uma cidade — prévias à definição da «justiça» — Platão utiliza
; na República a via de uma narrativa genética. Os primeiros passos da
! cidade são postos sob o signo da necessidade a que o homem está
sujeito enquanto animal (369cl0). O indivíduo não se basta a si pró-
i prio. As funções ligadas ao desenvolvimento da produção multipli­
cam-se rapidamente, a partir de um núcleo de «quatro ou cinco ho­
mens», representando a cidade do absolutamente necessário (369d.ll):
um camponês para produzir alimentos - os seus próprios e os dos
outros —, um pedreiro para construir, um alfaiate para vestir e um
sapateiro para calçar. Esta divisão do trabalho, assenta num prin­
cípio a que se chamou «especialização» (a expressão grega é inde-
I terminada: «fazer o que lhe cabe», ta hautou prattein) e que desem-
| penha um papel fundamental em Platão: embora os indivíduos
; possuam aptidões diferentes, só podem exercer profissionalmente
| uma única actividade (370a-b)35. Mas com esses ofícios, outros se

35 Ver J. Armas, op. cit, pp. 95-98.


PLATÃO 71

mostraram indispensáveis para tornarem possível o exercício dos


primeiros.
Cada produtor tem necessidade de instrumentos. Artífices, tra­
balhadores de madeira e de metais, providenciarão esses instrumen-
, tos. O seu número faz crescer pela primeira vez a «pequena cidade»
(370d6). Aparecem em seguida, por ordem (seguindo um procedi­
mento regressivo): pastagens e boieiros, que fornecerão a uns a força
de tracção, a outros couros, depois os intermediários, que importam
as matérias e produtos que faltam localmente, assim como os fabri­
cantes que entregam os produtos destinados à exportação. Este novo
ramo de actividade supõe por sua vez outros camponeses e outros
artífices, bem como comerciantes, navegadores, banqueiros e cam­
bistas (368d8-371e7). Mas como se trata apenas de tomar possível a
produção do núcleo primitivo de produtores, o último elemento da
primeira cidade, constituído pelos trabalhadores assalariados, pode
ser chamado o seu complemento («pleroma»), e a própria cidade, ser
considerada como «realizada» (371el0).
Contudo, a limitação das necessidades parece arbitrária. Apesar
do desenvolvimento que conheceu, a cidade ainda não é civilizada, e
permanece, segundo as palavras de Gláucon, uma cidade de «por­
cos» (372d4). Apenas satisfaz as exigências de um modo de vida que,
por idílico que pareça, não está menos colocado sob o signo exclu­
sivo da sobrevivência (873dl0).
Se o crescimento da primeira cidade era um crescimento contro­
lado, a multiplicação dos refinamentos, sempre «supérfluos» em rela­
ção às necessidades fundamentais, é apresentada como a tumefac-
ção artificial de uma cidade doente: a vida luxuosa (372e3) é um
inchaço, completamente oposta à vida da cidade precedente, qualifi­
cada como «sã» e «autêntica» (e6 e segs.). O princípio da cidade
primitiva, que abre a espiral das necessidades, é fundamentalmente
vicioso. A decadência é simbolicamente marcada pelo aparecimento,
entre todas as funções de uma civilização avançada que cultiva o
gosto (culinário e estético), dos médicos (373dl), que devem reme­
diar as consequências nefastas resultantes do abandono de uma vida
saudável.
No entanto, nem o crescimento do número de artífices nem a di­
versificação das suas funções constituem a marca distintiva da se­
gunda cidade. O facto novo, e capital, é que a cidade, para satisfazer
ao seu desregramento, tem que aumentar os seus recursos, logo o seu
território. Ela entra em conflito com outras cidades (373e2). A neces­
sidade da guerra, segundo o princípio de especialização (explicita-
72 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLlTICA

mente evocado em 374b6-d6), exige a função correspondente: haverá


combatentes, sendo o seu ofício combater, tal como o do sapateiro
é fabricar sapatos. A originalidade desses artífices-guerreiros tem a
ver com a natureza do seu produto: a «salvaguarda da cidade»36.
Esta última, todavia, vai revelar-se irredutível às exigências da con­
quista ou até à defesa das muralhas. A «continuação» da República
que é o Crítias (inacabado) devia mostrar como é que só a cidade
justa está em posição de vencer militarmente um agressor paradig­
mático, a cidade dos Atlantes ou Atlântida (cf. Timeu, 20d6-27b6).
Mas a verdadeira salvaguarda é primeiro que tudo interior. O longo
desenvolvimento que se estende até ao fim do livro vn faz-nos assistir
à transformação progressiva do guerreiro em magistrado, e deste em
filósofo, como que por destilação das qualidades que já se encontram
nele. De resto, o animal de guarda por excelência que é o cão, a que
os guardas são primeiramente comparados, recebe subitamente o
título de animal filosófico, devido à sua capacidade de discrimi­
nar — neste caso, entre o amigo e o inimigo (376a-b)37.
Parece realmente que, na cidade das necessidades, não existe mais
justiça do que injustiça (372e). Isso pode surpreender, em virtude da
definição ulterior de justiça, que se confunde exteriormente com o
princípio da especialização («fazer o que lhe cabe»)38. A afirmação
compreende-se melhor se se admitir que, de facto, a justiça platónica
supõe as outras virtudes, e em particular a temperança, cujo hori­
zonte é sempre o de um possível conflito, que não tem razão de ser
na primeira cidade. A lógica da narrativa impõe que uma cidade não
se possa tornar «justa» senão sobre o pano de fundo de desregra­
mento prévio, como se a justiça nascesse - anteriormente a qualquer
distinção entre justiça correctiva e justiça distributiva — de uma
necessária correcção. Nesse sentido, a justiça platónica tem no
entanto qualquer coisa de essencialmente «correctivo».
Com o aparecimento dos guardiães, a cidade pode ser conside­
rada como estando verdadeiramente realizada (427c6), com excepção
da modificação que arrastará a distinção ulterior (412b8-414a7)
entre os guardiães auxiliares e os governantes propriamente ditos

36 Para esta concepção, ver também as Leis, 921 d4 e segs. (embora já não se trate de
um exército «profissional»).
37 Platão começa aqui no ponto em que C. Schmitt acaba.
38 A sugestão, em J. Armas, op. cit, p. 101, que a primeira cidade conhece bem a justiça,
mas não a injustiça, que só a cidade doente conseguiria descobrir, é difícil de
defender, mas reveladora.
PLATÃO 73

(os magistrados ou arcontes), e a concentração nos primeiros de entre


eles, os filósofos (cujo primado transforma todas as outras magistra­
turas, e não apenas os combatentes, em magistrados «auxiliares»).
O enfoque na educação dos guardiães na perspectiva da sua meta­
morfose filosófica tem como contrapartida a ausência quase total de
indicações relativas à diversificação das suas tarefas, enquanto até a
«preservação» da cidade, tomando um aspecto verdadeiramente
político, se despoja das suas origens militares. Mal se é informado
que teriam um lugar na cidade justa sacerdotes e até juízes (qual­
quer que seja o seu número, como o dos médicos, 433e3 e segs.).
G resto da cidade, se bem que represente a parte quantitativamente mais
importante (428e7-429a), e seja mais fortemente diversificada do que
a primeira cidade — ela inclui não so médicos, mas ainda poetas-
educadores — é objecto de uma homogeneização análoga: são os
«alimentadores» (463b3). Trata-se menos de analisar a organização
da cidade do que de explicitar a especificidade da função política39.

Nessas condições, que se passa com o consenso, i.e. com a relação


que regula politicamente as relações entre os dois grandes pólos fun­
cionais da cidade — aquilo a que chamaremos com a tradição, e à
falta de melhor, «classes»? Duas observações têm que ser feitas aqui.
Primeiro, a República não trata o consenso de maneira detalhada
excepto sob a forma mais forte, a da unidade. Em seguida (e isto não
é mais do que o reverso daquilo), a análise dá lugar a uma dissimetria
notável, e tanto mais que toma um sentido diametralmente oposto à
intenção confessada. Quando se trata de enunciar as condições da
unidade de toda a cidade — produtores e guardiães —, é consagrado
um lugar desmesurado à unidade interna da classe dos guardiães.
Pode-se tentar justificar esta desproporção pelo próprio projecto da
Republica, que é guiado pela questão de saber quem deve governar.
Não deixa por isso de ser verdade que ela é a fonte de uma grave
instabilidade conceptual.
A composição, como tantas vezes na República, é eloquente.
O desenvolvimento do livro v consagrado ao problema da unidade da
cidade (462a2-465bl9) divide-se em duas secções. A primeira delas
(462a2-e7) enuncia e explicita o princípio geral que guia o conjunto

39 O Político, explorando os recursos do método de divisão, procede a uma classifica­


ção de ofícios mais precisa do que a República, e que merece ser comparada. Mas ao
distinguir o conjunto de «auxiliares» da política da própria política (287b-289c),
junta-se à polaridade essencial desta última.
74 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

do trabalho legislativo: nada é melhor para uma cidade do que aquilo


que é capaz de garantir a sua coesão (de a «tornar una», 462a9-b2).
O modelo da unidade política é fisiológico, ou mesmo orgânico. Os
sentimentos de prazer e de dor, estando inteiramente localizados (num
dedo, por exemplo), afectam todo o indivíduo (porque a alma, que é
a sua sede, é o princípio da sua unidade): o homem sofre, quando a
sua mão lhe dói. Nesse sentido, os afectos são «comuns». As diferen­
tes partes do corpo, que representam a diversidade dos cidadãos, são
tidas como «suas» pelo indivíduo que representa a sua totalidade
unificada do corpo40. Esta comunidade afectiva (ou «homopatia») é
no entanto mais do que um simples termo de comparação. Existe ao
nível da própria cidade, quando os cidadãos partilham as mesmas
alegrias e as mesmas penas. A homopatia política traduz-se ao nível
dos enunciados pelo uso corrente dos termos «meu» e «estrangeiro»
(462c4 e segs., 471 d2). Quanto maior for o número de cidadãos a
usar o possessivo nas mesmas ocasiões (462c7, 462b5), melhor será
regida a cidade (462c6-8).
A segunda secção (463al-465bl0) interroga-se sobre a questão
de saber em que medida a cidade justa incarnará esse princípio ge­
ral. Ela organiza-se como um tríptico. Ao centro, o argumento mais
circunstanciado enuncia as condições em que o princípio supremo
da unidade se concretizará numa parte da cidade, a saber nos guar­
diães. Os dois painéis laterais, de comprimento desigual (463al-b7 e
465b8-10), dizem respeito ao conjunto dos componentes da cidade, e
também à relação guardiães /produtores.
Assim distinguidos, os dois momentos da especificação do prin­
cípio geral apresentam uma diferença importante. O consenso interno
à classe dos guardiães corresponde efectivamente ao modelo da
«homopatia». O sentido das famosas medidas comunitárias, ou, como
se lhes chama por vezes à custa de um certo equívoco, «comunis­
tas», e sobre as quais Platão se estende longamente sublinhando-lhes
o carácter altamente paradoxal, é o de suprimir qualquer motivo de
dissensão interna entre os guardiães. Vivendo sob o regime da comu­
nidade dos bens e das famílias41, não terão qualquer razão para não

40 A analogia prolonga de uma certa forma o paralelo psico-político, com que no


entanto não se confunde, porque o corpo está aqui implicado, e a alma, longe de
aparecer dividida, é um princípio de coesão.
41 A expressão «comunidade das mulheres e das crianças» decalca o grego, mas a
conotação é infeliz. Não significa que os guardiães partilhem todas as mulheres (da
sua classe). Eles acasalam-se com uma de entre elas com o objectivo de procriar,
PLATÃO 75

se sentirem membros de uma mesma família, e portanto de não faze­


rem um uso simultâneo dos termos «meu» e «não-meu» (464c5-e2)
— pelo menos é esta a tese, que Aristóteles contestará com a ajuda de
um argumento tão curto como decisivo42.
Mas admitindo que seja assim, em que é que as consequências
unificadoras das disposições comunitárias, que por hipótese valem
apenas para os guardiães, se podem repercutir no conjunto da cidade?
Os produtores, que são proprietários e chefes de família, não
possuem as mesmas razões que os guardiães para recorrer simulta­
neamente às palavras «meu» e «não-meu», nem entre si, nem em
relação aos guardiães. Pode então perguntar-se em que é que se ba­
seia Sócrates quando, numa troca lapidar, obriga Gláucon a admitir
em 465b8-10 que a concórdia entre os guardiães arrastará a fortiori
rião só a dos guardiães com o resto da cidade, mas também a dos
produtores entre si. Pôde suspeitar-se que a concisão da afirmação
mascarava o carácter brutal da tese. A unidade do conjunto de cida­
dãos não seria garantida pela ameaça que a própria coesão dos guar­
diães faz pesar sobre qualquer veleidade de rebelião?
A questão é difícil de resolver, mas a dificuldade — que se junta
à de uma «constituição despótica» — é clarificada pela ambiguidade
da noção de temperança, e, mais geralmente, pelas implicações do
paradigma psicológico. O esquema analógico da República pretende
que a parte racional e os guardiães perfeitos, apoiando-se respectiva­
mente no ardor (o thumos) e nos auxiliares, comandem a parte apeti-
tiva, reputada como análoga aos produtores (442a5). A comparação
é particularmente coxa (ou sórdida) no que respeita ao terceiro ele­
mento. Platão admite de facto que os nossos apetites — a massa da
nossa alma da mesma forma que os produtores são a massa da ci­
dade — são por natureza (phusei) insaciáveis (é a expressão da sua irra­
cionalidade). Deixados a si próprios, subjugam o resto da alma. É por
isso que devem ser contidos, mesmo que seja pela força (442b5; cf.
Timeu, 70a2-7, e para uma imagem concreta, Redro: o cocheiro da
parelha que representa a alma enche de sangue a boca do cavalo ne­
gro insubmisso). Não se passa o mesmo com os produtores? Na au­
sência de qualquer indicação clara a esse respeito, somos obrigados a

segundo um procedimento regulado pelos governantes (é um dos casos mais céle­


bres de recurso à «mentira»). As crianças resultantes dessas uniões tão furtivas
quanto oficiais são quanto a eles «comuns» num sentido mais imediato do termo.
42 Privados de todas as posses, os guardiães tornar-se-ão indiferentes ao bem comum
(Política, B 3 , 1261b32).
76 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

inquirir os indícios. Uma das raras passagens da República em que


aflora a ameaça de repressão lê-se no famoso «mito fenício» — cujo
objectivo principal, no entanto, é incutir nos guardiães a ideia de que
todos os cidadãos são «irmãos». De passagem é referido que serão
colocados homens armados num ponto adequado da cidade «de onde
poderão melhor conter os do interior, para o caso de algum não que­
rer obedecer às leis, e os do exterior, se algum inimigo os agredir como
um lobo ao rebanho» (415el-3). Embora os produtores não possam,
enquanto tais, ser identificados, sem mais, com os «inimigos interio­
res» da cidade43, é difícil não aplicar esta ameaça também à classe
dos produtores, para quem a «obediência» é a virtude principal.
É certo, a educação poderia em princípio reduzir a irracionalidade
dos apetites, e é nesta via que as Leis se empenharão resolutamente.
O problema é que a República não diz quase nada sobre a educação
da classe dos produtores, quando a educabilidade dos apetites de que
eles são considerados representantes é um factor decisivo para a coe­
rência da teoria. A lacuna reforça a ideia que a República, através de
uma espécie de jogo duplo, faz da representação um instrumento da
sua política, ao mesmo tempo que põe à frente o critério consensual.
Devemos dar mais atenção, no livro v, às implicações do desen­
volvimento que, a montante da análise consagrada à unidade de classe
dos guardiães (462a9-463b9), emparelham com a observação ambí­
gua de 465b8-10. Esse desenvolvimento deixa efectivamente entrever
um tipo de unidade que, sem ser materialmente idêntica à dos guar­
diães (isto, pela razão evidente de que uns são proprietários e outros
não), fornece pelo menos o seu equivalente. Ao uso simultâneo do
pronome possessivo, nos guardiães, corresponde uma série de apelos
traduzindo a consciência que os três componentes da cidade têm da
sua solidariedade.
A passagem encara o conjunto de relações entre as diferentes ca­
tegorias de cidadãos, quer se trate de guardiães, quer de governantes
(463a2), quer de produtores, significativamente chamados aqui pelo
termo «povo», dêmos (corrente no vocabulário político, mas em ge­
ral ausente nesta secção da República). Interpelando-se mutuamente
pelo nome de «co-guardiães» ou talvez como «co-protectores» (sum-
phulakes, b9) de preferência a «co-governantes» (sunarchontes, b7), os
dirigentes sublinham que exercem a sua vigilância no interesse da

43 São classificados, em 414b2, como «coligados». Podia tratar-se, pois, de guardiães


mal educados.
PLATÃO 77

^comunidade, e em particular daqueles que eles governam. Dão assim


uma interpretação alargada ou funcional do pronome «meu», que,
?primeiramente reservado à relação (horizontal) dos governantes en­
tre si, se estende agora à relação (vertical) entre as diferentes partes
da cidade. Os súbditos não são «escravos» dos governantes44, mas
Preparadores» e «alimentadores» (b3), enquanto, aos olhos do povo,
ps governantes não são nem déspotas, nem sequer simples «gover­
nantes», mas «salvadores» e «auxiliares» (bl).
Sem dúvida que os gregos não eram menos sensíveis do que nós
às possibilidades de mistificação linguística45. Contudo, pode dar-se
uma interpretação mais caritativa, e também mais justa, do desapos­
samento da terminologia política em benefício do vocabulário fami­
liar — ou da trifuncionalidade. Primeiro, reformulando por assim di­
zer a tese de Trasímaco, Platão desenha os contornos daquilo a que
chamamos o serviço público. Em seguida, confirma a integração na
cidade dos agentes da actividade económica. Seria um erro subesti­
mar os méritos deste universalismo, por restrito que seja. Uma com­
paração com as Leis é suficiente para o mostrar. Mais próximas das
realidades da cidade grega do que a República, as Leis acentuam de
facto a tensão estrutural, já perceptível neste último diálogo, entre
as categorias socioprofissionais que contribuem para a subsistência
da cidade e a cidadania, revelando assim retrospectivamente a razão
pela qual as condições da unidade política não se encontram plena­
mente desenvolvidas na República senão em relação a esta fracção
da cidade constituída pelos seus guardiães. A limitação, sem qual­
quer dúvida, tem alguma coisa a ver com a ideologia social domi­
nante na Grécia que quer que as actividades artesanais sejam desva-
lorizadoras, e da qual Platão recebe uma grande herança46.
As Leis reservam o exercício do comércio e do artesanato aos me-
tecos e aos seus escravos, e portanto aos residentes que não gozam do
estatuto de cidadão (846dl-3, 919d2 e segs.). E o que se passa com a
agricultura? Diferentemente dos guardiães da República, os cidadãos

44 A redução à escravatura dos cidadãos intervém na cidade timocrática, como con­


tragolpe da privatização (547b2-c4). G. Vlastos, «Does slavery exist in Plato's Repu­
blic?», in Platonic Studies, Princeton, 1973, mostrou que não havia qualquer razão
para pensar que a cidade platónica pode dispensar os escravos— só que eles são por
definição excluídos da cidade enquanto comunidade política.
45 Ver a célebre narração da peste em Tucídides, II, 81.
46 Cf. P.Vidal-Naquet, «Étude d'une ambiguïté: les artisans dans la cité platonicienne»,
in Le chasseur noir. Formes de pensées et formes de société dans le monde grec, Paris,
Maspero, 1991.
78 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

da cidade das Leis são, por razões que serão indicadas na próxima
secção, proprietários (739e8 e segs.). Isso não quer dizer que se dedi­
quem aos trabalhos dos campos, a não ser a título de intendentes.
Platão invoca de novo aqui o princípio da especialização: «Porque o
cidadão possui uma arte que lhe basta, tanto pelo intenso exercício
como pelos numerosos conhecimentos que exige, quando salva­
guarda e procura a ordem comum da cidade, actividade que não convém
exercer a título secundário. Ora, dedicar-se a duas práticas ou a duas
artes, quase nenhuma de entre as naturezas humanas conseguiria,
não mais do que exercer uma, governando simultaneamente alguém
que exerceria a outra» (846d4-el). Se se exclui que a cultura da terra
é também reservada aos metecos, é indispensável que a exploração
do solo seja assegurada por escravos.
É o que, de facto, confirma uma extraordinária passagem do livro
vn, que vale a pena reproduzir integralmente, de tal forma a concep­
ção antiga do «ofício de cidadão» é expressa em termos puros, e
cruamente:
Qual seria então o modo de vida de pessoas a quem o necessário seria
fornecido na medida certa, enquanto o produto das artes teria sido confiado a
outros, e os campos entregues a escravos que dariam as primícias dos produ­
tos da terra em quantidade suficiente para pessoas vivendo na temperança,
cujas refeições comuns seriam fornecidas separadamente aos homens e, à
parte, aos domésticos, aos rapazes ao mesmo tempo que às raparigas e às
mães destas, quando o fim de todas as refeições comuns ocorreria por ordem
de presidentes e presidentas uma vez que estes, dia após dia, tivessem exami­
nado e visto a maneira como os convivas conduzem a sua vida, antes que o
presidente e os outros, tendo feito as libações aos deuses a quem esta noite e
este dia são consagrados, não voltem nestas condições para casa! A homens
assim organizados, não resta nenhuma tarefa verdadeiramente conveniente,
mas é preciso que cada um deles viva farto segundo o modo de vida que é o do
gado? Isto não é nem justo nem belo, afirmamos, e não é possível que aquele
qüe assim vive receba o que necessita. E o que convém a um animal engordado
na preguiça e indolência, é, não é verdade, ser retalhado por um outro
animal a quem a coragem e também o exercício emagreceram» (806d7-807b3)47.

Nas Leis, a delegação do trabalho no escravo, requerida pela in­


trodução do regime de propriedade privada, reproduz condições de
vida que são as da República, onde os não proprietários que são os
guardiães não podem dedicar-se em exclusividade absoluta à sua

47 Tradução minha. Sobre a importância das refeições comuns ou «syssities» na


Grécia, ver P. Schmitt-Pantel, La Cité au banquet, Roma, École française de Rome,
1992 (que restringe no entanto o papel no caso de Platão, pp. 234-237).
PLATÃO 79

tarefa senão na própria medida em que não possuem nada, e são


«alimentados» pelos produtores. É verdade que a cidadania de lazer
integral só é, nas próprias Leis, apresentada como um «ideal» a que,
em conformidade com o projecto de conjunto das Leis, se deve renun­
ciar, assim que é traçado (807b3-cl). A vida dos cidadãos das Leis
parece-se efectivamente sob muitos pontos de vista com a vida, labo­
riosa pelo menos em parte, dos pequenos proprietários-cidadãos48.
Isso não modifica em nada a estrutura do modelo de referência.

5 — Da República às Leis
Apesar de diferenças inegáveis, a República e as Leis comportam
numerosos elementos comuns. Os Antigos parecem ter sido sempre
mais sensíveis à continuidade existente entre as duas obras do que às
modificações que se introduziram de uma para a outra. Assim, Aris­
tóteles, no segundo livro da Política (consagrado à crítica da cidade
platónica), observa que Platão «volta pouco a pouco (a saber, nas
Leis) à primeira das duas constituições (a saber, a da República). Efec­
tivamente, excluindo a comunidade das mulheres e dos bens, as dis­
posições das duas constituições são idênticas. Porque a educação é
idêntica, e a sua vida afastada dos trabalhos necessários, e o mesmo
em relação às refeições em comum»49. Uma leitura unitária das duas
obras era, aliás, encorajada pelo próprio título. No vocabulário po­
lítico grego, os termos «constituição» (politeia) e lei (nomos) são de
facto complementares. Aristóteles explicita a diferença no início do
livro iv da Política: a politeia, que definiu a natureza das magistratu­
ras e os procedimentos da sua designação, incide essencialmente so­
bre a forma de governo. Os notnoi, em compensação, indicam aos
magistrados o conteúdo do seu cargo, enunciando os princípios que
devem regular a conduta dos cidadãos nas diferentes circunstâncias
da vida (1289al3-20). Esta distinção reflecte efectivamente a história
das duas palavras: se a questão a que se chama «constitucional» é

48 G. Morrow, Plato's Cretan City, Princeton University Press, 1993, p. 152.


49 Observe-se a ambiguidade do pronome «seu» que, estritamente falando, não devia
remeter para o mesmo grupo de indivíduos como é considerado na República
(apenas os guardiães) ou nas Leis (o conjunto de cidadãos), mas a facilidade com que
Aristóteles passa de uns para outros é reveladora. A continuação precisa: «senão
. que na primeira, ele diz que as mulheres devem também tomar as refeições
, em comum, e que uma dá mil para número dos que usam armas, a outra cinco mil».
80 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

especificamente a de saber quem exerce o poder, a questão legislativa


toma a seu cargo a questão da virtude50. Numa tal perspectiva, somos
facilmente conduzidos a considerar que as Leis enunciam as leis da
República. Assim, Cícero podia, no seu tratado Das leis, dizer de Pla­
tão que ele foi o «primeiro a escrever sobre a república e, numa obra
separada, sobre as leis desta» (II, 6, 14). É um facto que o lugar res­
pectivamente reservado às questões «constitucionais» e às questões
«legislativas» varia de uma obra para a outra. A República quase que
não fala de leis ou de legislação, o que permitiu que se dissesse
(a despeito do «quase») que era um estado sem leis51. Inversamente,
as Leis, como já Aristóteles o havia observado antes da passagem que
acabámos de citar, «são, na sua grande maioria, sobre as leis, e dizem
muito pouco acerca da constituição» (1265a2-4). Existe um certo exa­
gero aqui, porque o livro vi das Leis, no limiar da legislação propria­
mente dita (que ocupa os livros vii-xn), é inteiramente consagrado
ao que Platão, forjando aparentemente a expressão (734e5), chama
«leis de constituição» (i. e. «leis constitucionais»), e que essas leis são
na realidade, a despeito de Aristóteles, sensivelmente diferentes das
da República. Não é menos verdade que, num certo sentido, as Leis
vêm completar as indicações que permaneceram programáticas na
República. Os dois livros consagrados à educação (n e vn), por exem­
plo, completam utilmente e no mesmo sentido o desenvolvimento cor­
respondente da República, insistindo na educação da primeira infân­
cia. E entre as leis que enunciam, muitas fariam parte das que a Repú­
blica deixa deliberadamente a formulação à iniciativa dos dirigentes
(426e-427b). Mas esse movimento de acabamento é acompanhado de
um distanciamento, tanto mais visível quanto é enfaticamente rei­
vindicado. É traçada uma demarcação radical, nas Leis, entre uma
«primeira cidade», claramente identificada pelas disposições comu­
nitárias com a cidade justa da República52, e uma cidade «de segunda
ordem», que a língua inglesa qualifica de «second best» por oposição

50 Ver mais acima, pp. 61 e 66 e segs. Subsiste o facto de que as fronteiras são fluidas,
porque a própria constituição podia ser julgada de um ponto de vista «moral»
(cf. supra, p. 67).
51 O contra-senso, que tem consequências bastante grandes, não pode explicar-se
senão por uma visão demasiado sumária, ou demasiado global, do contraste por
outro lado inegável entre as duas obras. Supõe para além disso a retrojecção na
República da temática do Político, o primeiro diálogo a fazer da lei um problema (ver
infra, pp. 99 e segs.).
52 As Leis esclarecem no entanto que as disposições comunitárias na primeira cidade
se estendem «em todas as medidas possíveis a todas as constituições» (739cl).
PLATÃO 81

à perfeição da outra (739a5; 739b3, e5; 875d3). É dito agora que a


primeira cidade se destina aos deuses, enquanto a outra seria desti­
nada aos homens (732e, 853c3-8, 874e-875d, cf. 691e-692a)53. O conjun-to
das Leis é assim comandado pela figura de uma certa retirada, que
Platão compara à jogada consistindo, no tabuleiro de xadrez, em aban­
donar uma linha dita «sagrada» (739al-5). Esse movimento vai a par
de uma concepção nova de relação «constituição»/«lei», doravante
irredutível a uma simples complementaridade formal.
Quatro diferenças importantes distinguem as Leis da República:
1) Haverá, entre todos os cidadãos, partilha de terras e de ca­
sas, e portanto um regime generalizado - embora estrita­
mente controlado - da propriedade individual (739a).
2) A lei reinará, e não os homens (714a; 875a).
3) A constituição será «mista», ou mais exactamente «mediana»
— um justo equilíbrio entre monarquia e democracia
(691e-692a).
4) Finalmente, a palavra política terá em conta a humanidade
do homem, fazendo do prazer e do interesse um argumento
, (732e).

Tratando-se de disposições particulares que vêm especificar essas


disposições-quadro, a distinção do melhor e do relativamente me­
lhor (o «second best») não é em geral reiterada, ou porque é simples­
mente pressuposta, ou porque não tenha razão de ser, dado também
que pelo menos algumas das leis da segunda cidade não se distingui­
riam das que a primeira teria elaborado, se isso tivesse acontecido.
A legislação sexual constitui uma excepção desse ponto de vista, por­
que considera, a par de uma lei óptima, mas sem dúvida irrealista
(interditaria qualquer relação sexual fora do matrimónio), uma lei
«de segunda ordem» que tem em conta a virulência do desejo (do
macho) impondo apenas segredo absoluto a qualquer relação ilícita
(841a-842a).
Como as Leis elaboram as instituições de uma cidade de segunda
ordem, e que essa segunda ordem é definida pela sua humanidade, a
questão de saber o que é o homem das Leis, e em que é que ele se
diferencia dos deuses, é evidentemente essencial para uma justa

A fórmula não é stricto sensu incompatível com a sua restrição aos guardiães;
desloca apesar disso a tónica.
53 A primeira cidade das Leis, equivalente à República, não tem evidentemente nada a
ver com o que a República chama a primeira cidade, i. e., a cidade dos «porcos».
82 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

compreensão do projecto. Aqueles a quem Platão aqui chama «deu­


ses» não são de facto mais do que homens tais como estes seriam
capazes de viver na primeira cidade (cf. 739d6-8). Para compreender
em que é que consiste a sua divindade, e por contraste, a humanida­
de dos homens das Leis, é necessário referirmo-nos à antropologia
platónica.
Nas Leis como na República, o homem (a sua alma) é uma unidade
complexa, em que uma instância racional coabita com uma instância
irracional. A instância irracional constitui ela própria um todo com­
posto, em que as manifestações, por diversificadas que sejam, estão
reduzidas em última instância à procura do prazer e a fugir da dor.
A instância racional, essa, determina-se não em função do prazer,
mas do bem.
A diferença procurada entre os homens e os deuses não tem pois
a ver com a natureza dos elementos constitutivos, que são idênticos
de um lado e do outro (uma proximidade que corresponde a uma
tendência profunda da teologia grega), mas unicamente com modali­
dade da relação existente entre esses dois instantes.
Vista das Leis, a República, ao conceber os guardiães submetidos
ao regime da comunidade integral e ao confiar o poder aos filósofos
(os guardiães perfeitos), ignorou a natureza dessa relação concedendo
demasiado à instância racional e demasiado pouco à instância irra­
cional. É o que ressalta da maneira como são justificadas as quatro
disposições-quadro da segunda cidade. Se é preciso recorrer a
argumentos humanos, é porque «o que por natureza é mais humano
são os prazeres, as dores e os desejos, dos quais todos os animais mor­
tais, por necessidade, estão por assim dizer integralmente suspensos
e aos quais estão presos pelos interesses mais intensos» (732e7-10).
O poder deve ser limitado pela dupla face do reino da lei e da divisão
de poderes, porque a «natureza humana impelirá sempre para que­
rer mais (pleonexia) e para o egoísmo, ela que foge irracionalmente da
dor, e persegue o prazer» (875b6-9, cf. 713c6). O prazer e a dor são,
de certa maneira, aquilo que o homem tem de mais seu, ou em todo o
caso, aquilo que ele não pode deixar de considerar como sendo pró­
prio dele. E por isso que é emblemático o problema da propriedade
privada, no início do livro v. Da mesma forma que o prazer e a dor
são próprios do homem, também a propriedade é um prazer que
exige ser satisfeito. «Retirar-se da linha sagrada» consiste, de uma
forma geral, em saber ter em conta esta exigência.
A operação, recorrente nas Leis, toma essencialmente dois aspec­
tos: o compromisso, quando o legislador concede à instância irracio-
PLATÃO 83

nal, senão aquilo que ela reclama, pelo menos com que apaziguá-la; e
a força, se o conflito não puder ser resolvido de outra maneira. De
entre as disposições-quadro, duas pelo menos dependem claramente
do compromisso: a partilha das terras, e o recurso a argumentos
«humanos». Junta-se-lhes pelo menos um aspecto da constituição
mediana (a utilização limitada do sorteio). A maioria das outras dis­
posições desta constituição e a submissão dos magistrados à lei de­
senvolvem uma forma mínima de coacção, que as leis propriamente
ditas modulam de maneira mais ou menos rigorosa, em função do
grau de irracionalidade implicado pelo delito.
A questão é complicada (daí o seu interesse) porque se o homem
das Leis não é um deus, também já não é apenas um homem. Um
homem que não fosse mais do que um homem, não passaria de um
animal selvagem (c/. 718d2, 870a2). Mas se a selvajaria se mantém
sempre como uma possibilidade inscrita na natureza do homem, a
sua compleição essencial seria antes a da domesticidade — a forma
divina, por assim dizer, do animal (766a). É o que existe do deus nele,
e, mais ainda, até no seu prazer.
É o que sobressai da célebre comparação do homem com uma
«marioneta» (thauma, 644d7) no livro I das Leis que, continuando a
comparação que a República desenhava já entre as partes da alma e
os metais, lhe acrescenta uma dimensão dinâmica54. O homem está
submetido à tracção conjunta de um fio de ouro, imagem da razão,
que é precioso mas sem força, e dos cabos metálicos das pulsões irra­
cionais. A imagem presta-se, no próprio Platão, a uma interpretação
«pessimista», e de certa maneira trágica — o homem seria, segundo a
continuação do livro vn, um belo brinquedo nas mãos dos deuses
(803c). Mas num momento inicial, a marioneta é sobretudo da ordem
do prodígio, um objecto de «espanto»: é, como se sabe, o primeiro
sentido da palavra thauma. Neste caso, o espanto que a marioneta
humana provoca provém de que, ao mesmo tempo que é o lugar de
uma certa desarticulação (é o conflito entre as duas instâncias racio­
nal e irracional), ou melhor, porque é o lugar dessa desarticulação, é
também capaz de harmonia. Ouro e ferro podem, em certas circuns­
tâncias, puxar no mesmo sentido. Um exemplo disso é o prazer da
dança, presente desde a mais tenra infância, e que se prolonga (se a

54 Uma outra diferença é que as Leis abandonam o esquema trifuncional da República


em benefício da dicotomia que está, em última análise, no fundamento. Na República,
existe um lugar para o bronze (o ardor guerreiro) entre o ouro da razão e o ferro
dos apetites.
84 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

educação é coroada de sucesso) na alegria que o adulto experimenta


ao participar nas evoluções dos coros no quadro das festas religiosas
— uma das principais actividades do cidadão platónico (cf. 803e):
na dança, o conflito de tracções opostas é ultrapassado, pelo facto que o
prazer que se tem, como prazer de ordem, é um prazer racional (664e-
-665a). A dança torna-se assim o emblema de todas as mediações
possíveis. O que escapa a ela, e que pode ser considerado, sob um
certo ângulo, como sendo o que o homem tem de propriamente «hu­
mano» (porque também o deus está preservado disso), é somente o
prazer irracional, da mesma forma que, inversamente, o deus que os
homens honram se confunde com a própria razão que também está
nele55.
As Leis são portanto atravessadas por uma dupla orientação.
A consideração do irracional no homem tem como contrapartida a pre­
servação da sua divindade. Ora, por mais visíveis que sejam os com­
promissos institucionais e as obrigações da lei, um dos traços carac­
terísticos das Leis é que essas disposições «humanas» são sistemati­
camente tratadas como elementos residuais. Aquilo por que as Leis se
interessam em primeiro lugar, é a possibilidade de uma convergên­
cia, senão espontânea (existe, mas pouco), pelo menos cultivada, en­
tre o irracional e o racional: daí a posição central da educação nas
Leis e mais particularmente da pedagogia. Desse ponto de vista,
as Leis podem ser definidas como a exploração sistemática das figuras
do prodígio humano, e a tentativa do maior alargamento possível
deste. Pode mostrar-se em particular que a constituição «mediana»,
ao ter em conta a fraqueza do homem (tem de fazê-lo), toma sob
bastantes ângulos o aspecto de um «prodígio» institucional.
Pela sua descendência, esta «segunda constituição», que difere
mais profundamente da constituição da República do que sugere Aris­
tóteles56, é também de uma certa maneira mais importante. Por causa
do seu realismo e do carácter concreto das suas propostas, exerceu
uma influência mais determinante do que a utopia global e, para re­
sumir, fantasiosa, da República. Vale a pena fazer uma apresentação
moderadamente detalhada deste aspecto do pensamento político pla­
tónico, tanto mais que não é dos mais conhecidos. É que a influência
das Leis, tal como foi mediatizada, na sua dimensão ético-religiosa,
pelos padres da Igreja, foi, no plano político, em grande parte indi­
recta. Tratando-se em particular da «constituição mista», Cícero e

55 Sobre a equivalência entre o intelecto e a divindade, ver supra, p. 68.


56 Cf. supra, p. 79.
PLATÃO 85

Políbio desempenharam o papel de transmissores. Isso poderia ter


sido atribuído às contingências da transmissão intelectual, se esses
desvios não tivessem a sua lógica: em Cícero, o platonismo das Leis é
integrado numa perspectiva estóica (uma teoria da lei natural); em
Políbio, a constituição mista está ligada a Roma e o seu destino uni­
versal. Nos dois casos, a amplitude da perspectiva evidenciou aquilo
que as metamorfoses improváveis da pequena colónia cretense, que
forneceu à composição das Leis57 o seu pretexto, tinham de um pouco
mesquinho, por mais platónica que fosse essa constituição.

6 — 0 prodígio constitucional

Às «leis constitucionais» do livro vi das Leis definem-se relativamente


a duas figuras simétricas da irracionalidade política, o despotismo
autocrático por um lado, a democracia sem freio por outro. Embora
formalmente opostos, o despotismo e a democracia assentam de facto
no mesmo princípio. O exercício do poder absoluto não pode deixar
de estimular os desejos irracionais do monarca e a sua avidez (o seu
desejo de «mais» ou pleonexia, 875b6). De igual modo, o regime de­
mocrático toma como norma o prazer de cada um (é neste sentido
que é uma «teatrocracia», 700d-701b), favorecendo uma vida de li­
berdade desenfreada e de «impudência»58*. A relação dos dois regi­
mes é idêntica à dos dois vícios aristotélicos. Cada um dos extremos
assenta no excesso de um elemento dado (o poder num caso, a liber­
dade no outro) em que a medida reside num «meio» em que eles se
equilibram mutuamente. A licenciosidade deve ser racionalmente con­
trolada para que a verdadeira liberdade seja possível, da mesma forma
que o poder deve ser limitado para que uma autoridade real o
possa exercer. Todas as relações políticas são consequentemente
questão de uma certa mediação. O livro in das Leis (que descreve o
desenvolvimento das instituições políticas da humanidade desde as
origens) menciona dois exemplos históricos de uma configuração
dessas que representam, ao nível filogenético, o equivalente funcio­
nal da dança ao nível da ontogénese individual: a (boa) monarquia
do persa Ciro, e a boa democracia, tal como Atenas a praticava na

57 Ver o fim do livro m.


58 A Republica também aproxima tirania e democracia, de onde a primeira brota,
através de uma análise dos desejos (início do livro ix).
86 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA PLATÃO 87

altura da «constituição ancestral» (693d e segs.)59. A constituição Leis, as competências da Assembleia são muitas, e a liberdade a de
das Leis, por seu lado, constituiria uma forma de mediação mais con­ todos.
sumada ainda entre a democracia e a monarquia — algo como uma As instituições políticas da cidade das Leis lembram em muitos
mediação dessas mediações —, em que nenhum dos dois extremos aspectos as da Atenas democrática, com três assembleias (a Assem­
seria de todo em todo privilegiado. Nesse ponto paradigmático, os bleia propriamente dita ou ecclêsia62, o Conselho ou boulê e o Conselho
termos «democracia» e «monarquia» ganham um novo sentido. Ver­ dito «nocturno»), e corpos de magistrados, definidos pelos diferentes
dadeiramente «democrática» é uma instituição que assegura a parti­ sectores de actividade que administram: a manutenção da lei (trinta
cipação de todos os cidadãos na vida política ou pelo menos na sua e sete nomofílacas) a defesa (os oficiais militares: três generais, dois
representação; verdadeiramente monárquica, a que garante o exer­ hiparcas, dez taxiarcas e dez filarcas), a religião (os sacerdotes, em
cício da competência. Por potencialmente opostas que permaneçam número indeterminado), a economia (sessenta responsáveis pela vida
estas duas exigências, elas não tendem menos a sobrepor-se — é o rural ou agronomoi — cinco por tribo —, três responsáveis pela cidade
próprio sinal de uma mediação bem sucedida. A autoridade não se ou astínomos, cinco responsáveis pelos mercados ou agorânomos),
limita a tolerar a liberdade dos cidadãos, mas constitui, de preferên­ pela educação (um só responsável: único caso de não colegialidade),
cia, a sua condição de possibilidade. É que a verdadeira liberdade a apresentação de contas (os «auditores», euthunoi, em número de doze
depende da submissão à única autoridade autêntica, a da lei60. pelo menos) e a justiça (juízes seleccionados do supremo tribunal)63.
O magistrado da constituição mediana das Leis não é um tirano cujo O princípio da participação manifesta-se em primeiro lugar atra­
poder tivesse sido limitado, mas, precisamente, um magistrado cujos vés da composição e das funções da Assembleia (ecclêsia), a institui­
poderes estão por definição circunscritos. Inversamente, a assembleia ção democrática por excelência, porque reúne a totalidade dos cida­
democrática não é apenas (embora também o seja) uma assembleia dãos (incluindo mulheres, consta). A sua tarefa principal é seleccio-
ateniense que tivesse perdido uma parte das prerrogativas. A sua li­ nar os magistrados (à excepção dos «juízes superiores» e do minis­
berdade não é a liberdade negativa da permissão, mas sim um valor tro da educação) e eleger os membros do Conselho. Tem portanto o
— ao ponto de constituir um dos três «objectivos» oficiais da legisla­ poder de determinar o exercício dos poderes na cidade64. Mas a parti­
ção, ao lado da «sabedoria» e da «concórdia» (701d7)61. A lógica da cipação dos cidadãos na vida política traduz-se também, sob a forma
mediação exige que a liberdade não seja mais a propriedade exclu­ mais fraca da representação, de três outras maneiras. Se a represen­
siva do povo do que a sabedoria o é dos magistrados. Por outras tação administrativa (por «tribos») desempenha apenas um papel
palavras, a mistura não tem lugar apenas entre os ingredientes mis­ menor, a preocupação de representação económica é manifesta,
turados (a mediação permaneceria externa), mas afecta a própria nomeadamente no Conselho. E que a desigualdade das fortunas, por
natureza dos ingredientes (segundo o princípio de uma mediação mais limitada que seja na cidade platónica, é uma das fontes mais
interna). Há alguma coisa de democrático numa instância «real» perigosas de conflito civil. À extrema complicação do processo eleito­
(= competente) da magistratura, na medida em que se encarrega dos ral mostra a importância que Platão dá a este problema65. Mas é
interesses da comunidade (coisa que o tirano não faz), não menos do
que há uma dimensão «real» na instância democrática da Assem­
bleia, que escolhe a maioria dos magistrados. De facto, na cidade das 62 A que se junta o tribunal popular de justiça.
63 Para um quadro mais detalhado das funções relevantes das diferentes magistratu­
ras, ver R. F. Stalley, An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, Hackett, 1983,
pp. 187-191. ^
59 Os gregos da época clássica chamavam «constituição ancestral» ao regime anterior 64 As suas outras funções têm todas relação directa com o bem comum. É ela que
às reformas democráticas de Clístenes, e que era suposto ser caracterizada pela sua julga, em primeira instância, os crimes públicos; participa na regulação dos festivais
moderação e pela influência dos sábios. e sacrifícios, que por definição dizem respeito ao conjunto da comunidade; decide
60 A prefiguração aqui dos temas rousseauianos é surpreendente. a extensão dos direitos de cidadania aos estrangeiros que os mereceram da cidade,
61 Observa-se no entanto que o termo «liberdade» (eleutheria) se encontra aqui sobre- e confere, em nome desta, as honras supremas.
determinado. Refere-se certamente tanto à independência da cidade como à liber­ 65 O facto de o voto ser facultativo para os mais pobres explica-se sem dúvida pela
dade «política». preocupação de evitar que as obrigações políticas tragam prejuízos à actividade
88 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

incontestavelmente a representação política, no procedimento de se-


lecção de magistrados pela Assembleia, que recebe maior atenção.
O sistema é refinado, combinando uma fase de «nomeações», a
que todos os cidadãos podem proceder, com uma eleição final. Quanto
mais extensos forem os poderes dos magistrados, mais garantias es­
tão previstas contra a precipitação. Particularmente notável é o me­
canismo que permite escolher os «guardiães da lei» — uma magistra­
tura evidentemente capital num regime que reclama ser o reino da lei:
cada cidadão escreve numa tábua o nome do candidato que acha
mais qualificado para o cargo (tem que ter ultrapassado os cinquenta
anos). Esses nomes são submetidos à discussão pública durante três
dias. As objecções são admissíveis, e podem ser retirados nomes. Os
trezentos nomes mais mencionados são então retidos. O seu número
é reduzido a cem durante uma segunda volta, e finalmente ao nú­
mero de cargos a preencher (753b-d).

Foi possível, para caracterizar o regime institucional das Leis, apli­


car-lhes a fórmula que o Menexeno emprega a propósito da constitui­
ção dita ancestral de Atenas: uma «aristocracia aprovada pelo povo»
(238d e seg.). As Leis são sem dúvida até mais «democráticas» do que
isso. O que não quer evidentemente dizer que o povo governe, e
ainda menos que seja soberano: só o intelecto pode ser considerado
como tal66.
Se o princípio da participação/representação se exprime princi­
palmente através dos procedimentos de selecção dos magistrados, o
princípio complementar da competência é garantido simultanea­
mente pelas condições postas à elegibilidade e pela hierarquia dos
magistrados e das assembleias. Quanto mais uma magistratura re­
quer a compreensão da lei, mais desenvolvidos deverão ser a educa­
ção e o saber dos magistrados.
A maior parte dos magistrados é seleccionada pela Assembleia
sem outra condição de elegibilidade além da idade, mas todos os can­
didatos são submetidos a um «exame prévio» (ou dokimasie) condu­
zido quer pelo Conselho, quer pelos guardiães das leis67. Nos dois
casos, a escolha é da competência de corpos constituídos. O minis-

económica. Aristóteles interpretava a disposição mais maquiavelicamente, pelo


desejo de assegurar o maior peso possível aos cidadãos mais abastados (Política,
1266al4 e segs.)
66 Ver mais acima, p. 68.
67 A dokimasie era regra em Atenas.
PLATÃO 89

tro da educação é escolhido por cinco anos de entre os guardiães da


lei através de um voto secreto do conjunto dos magistrados (766b),
que, com os membros do Conselho (ao que parece), elegem também
anualmente os juízes do supremo tribunal (767c-e). Essas restrições
explicam-se muito evidentemente pela natureza das responsabilida­
des ligadas a estes dois tipos de cargos, que são de certa maneira si­
métricos. O ministro da educação é o magistrado mais importante
da cidade (766e), porque a educação das crianças é o «fundamento»
de tudo o resto, e em particular da obediência à lei. Inversamente, a
função do supremo tribunal, que julga em última instância o con­
junto dos delitos e que é o único a ter competência nos crimes políticos,
é corrigir os revezes do sistema educativo.
O Conselho chamado «nocturno» (por causa de 962cl0), mas que
merece antes o título de «matinal» (devido à hora das suas reuniões,
951d e 961b), é a instituição mais importante da cidade das Leis, a
sua «alma» e a sua «cabeça» (961d2). É também a que se afasta mais
das realidades contemporâneas, atenienses ou não. Por vezes, pen-
sou-se que esta assembleia, que não é evocada antes do livro xn, é um
acrescento mal integrado à constituição descrita no livro vi ou, mais
grave ainda, que constituía, em contradição com o próprio prin­
cípio das Leis, uma instância humana colocada acima das leis. Essas
críticas são superficiais. Que um órgão como o Conselho nocturno
seja parte integrante de uma cidade platónica, fundada na educa­
ção, não pode surpreender, mesmo que, visando a preservação das
instituições, lhe seja de alguma forma exterior. O problema de que se
encarrega é simétrico do que diz respeito à fundação da cidade68,
com esta importante diferença que esta última não pode por defini­
ção ser institucionalizada. A República exigia já que as instituições
da cidade justa incluíssem «um elemento obrigando a mesma con­
cepção da constituição que o legislador que tu és (a saber, o interlo­
cutor de Sócrates) tinha quando formulou as suas leis» (497c-d).
Ò Conselho nocturno incarna essa instituição quase filosoficamente,
apesar de as suas preocupações serem mais imediatamente orienta­
das para a política e para a lei do que as dos filósofos da República,
regularmente aliviados das suas obrigações políticas para poderem
dedicar-se à dialéctica. O estudo da lei requer em todo o caso um
saber alargado (952a), em particular no domínio da física (na qual
assenta a refutação do ateísmo do livro x) e das matemáticas (894a).

68 Ver a secção seguinte.


90 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA PLATÃO 91

O Conselho nocturno não é um órgão de governo. O seu poder Com efeito, a constituição deve ser aceite pela totalidade dos cida­
reside na sua autoridade intelectual e moral. Por essa razão, não existe dãos. Ora mesmo o grau de mediação atingido pela constituição
na cidade platónica verdadeira separação de poderes. O Conselho «média» não basta para garantir essa aceitação, e isso pela razão
nocturno inclui alguns de entre os mais importantes magistrados da bem platónica que o saber, no elemento democrático, é deficiente.
cidade: os dez guardiães da lei mais idosos, um certo número de sa­ Isto ressalta perfeitamente da famosa passagem do livro vi sobre
cerdotes e de «auditores» distintos, e o ministro da educação. Os ou­ as «duas igualdades» (757a-b)69. Platão aceita o «antigo adágio»
tros membros podem ser antigos magistrados (todos os antigos minis­ (de origem pitagórica), segundo o qual a amizade — no sentido
tros da educação fazem parte dele por inerência) ou cidadãos meri­ político do termo — é fundada na igualdade. Esta igualdade, no
tórios e ricos em experiência, em particular por terem viajado (951 d-e, entanto, não é a igualdade «aritmética», em virtude da qual todo
961a-d). Cada um dos seus membros, por definição idoso, tem por o cidadão vale o mesmo que um outro (como as unidades constitu­
adjunto um membro mais novo, entre os trinta e os quarenta anos. tivas dos números são iguais entre si), mas uma igualdade «mais
E do seio desses colaboradores, que secundam os mais velhos (a quem verdadeira e melhor», a igualdade «geométrica» ou «proporcio­
emprestam os seus olhos e ouvidos, 964-965a), que sairá sem qual­ nal» que o Górgias já recomendava (508a4-8), e em virtude da qual
quer dúvida a geração seguinte dos magistrados superiores. Esta dis­ os cargos devem caber a cada um segundo o seu valor. A constitui­
posição manifesta claramente a vocação pedagógica do Conselho ção não pode contudo eliminar a discórdia substituindo simples­
nocturno que, dedicando-se ele próprio inteiramente ao estudo apro­ mente uma pela outra. É que compreender a natureza da igual­
fundado das diferentes disciplinas em relação com a lei, educa as dade geométrica e a sua superioridade sobre a igualdade aritmética
elites da cidade. não está ao alcance de todos. Assim, a aplicação estrita do prin­
cípio da igualdade geométrica tenderá a reproduzir a um nível
Mesmo sob a sua forma mais acabada, a mediação encontra limi­ superior a discórdia que era suposto prevenir. É para sair desta
tes. E o que indica o lugar deixado na constituição das Leis à coacção dificuldade que, no seio da Constituição, será dado um lugar ao
por um lado, ao compromisso por outro, segundo uma polaridade sorteio, que é a expressão política tradicional da igualdade arit­
que se encontrará ao longo de toda a legislação propriamente dita. mética70. E nesse sentido que as magistraturas religiosas anuais
A expressão mínima dessa coacção encontra-se sob a forma das serão «democraticamente» atribuídas (759b-c); o sorteio tem tam­
diferentes condições às quais está submetido o exercício das magistra­ bém um papel na composição nos tribunais de justiça popular
turas. A sua duração, por exemplo, é limitada, e não há reelegibilidade. (758b) e no fim de algumas eleições, para desempatar entre um
No domínio judiciário, o controlo é assegurado pela existência de um número de candidatos restrito (763d, a propósito dos astínomos).
sistema de chamada, tanto para os crimes públicos (ao que parece) No total, isto é bem pouco. O sorteio parece jogar nas Leis um pa­
como para os crimes privados, e pela existência de garantias legais. pel largamente simbólico. Desse ponto de vista, difere da proprie­
A pena de morte não pode ser decretada senão em circunstâncias excep­ dade privada que é, no plano das disposições económicas, o seu
cionais e por uma comissão especial constituída pelo supremo tribu­ homólogo estrutural. Sem dúvida que isto não é insignificante.
nal e pelos guardiães da lei (855c). Mas o controlo efectua-se por meio Nenhum cidadão, por ser homem, poderá alguma vez renunciar a
da apresentação de contas aos auditores, a que estão sujeitos todos os possuir. Mas será de excluir que uma maioria de cidadãos, na con­
magistrados sem excepção — incluindo esses «magistrados dos magis­ dição de serem adequadamente educados, possam finalmente re­
trados» (945c) que são os próprios auditores. Todas essas disposições conhecer a superioridade política da igualdade geométrica sobre
têm evidentemente por função prevenir a corrupção, cuja possibili­ a igualdade aritmética? O programa pedagógico das Leis, que
dade é doravante inscrita no coração da natureza humana, mesmo
que os magistrados, cujos poderes são por definição reduzidos, não
69 Ver F. D. Harvey, «Two Kinds of Equality», Classica et Meãiaevalia, 16,1965.
estejam submetidos a eles tão fatalmente como o déspota. 70 O argumento supõe que a igualdade dos cidadãos no seio da Assembleia não conta
Da mesma maneira que admitem uma forma residual de coacção, como expressão da igualdade autêntica. Isso é revelador. O elemento decisivo é o
as leis constitucionais dão também lugar a alguns compromissos. exercício do poder (neste caso, a magistratura).
92 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA PLATÃO 93

insiste na instrução obrigatória para todos, em particular no do­ chora, encontra-se agora o homem, na sua natureza, mas também
mínio das matemáticas elementares (818b-e), incita a pensá-lo. moldado pela história, que todo o legislador tem que ter em conside­
ração; quanto ao artífice, ele é representado, pelo menos potencial­
mente, pelos legisladores que são os interlocutores do diálogo. Mais
surpreendente ainda é que o legislador das Leis, como o demiurgo do
7 — 0 possível Timeu, tem que contar sempre com uma «necessidade» que será como
que a manifestação, a níveis não principiais, desse princípio da li­
Por maior que seja, pelo menos no que respeita às medidas-qua- mitação radical que é o próprio material da sua acção (por exemplo
dro, a distância entre a República e as Leis, é difícil falar de aban­ 857dl0-858a6)71.
dono. As Leis, no próprio momento de marcar a distância entre as duas Embora o par paradigm a/realização dê conta de aspectos
cidades, sublinham que a cidade das Leis se limitará «o mais possí­ importantes das Leis, e ofereça uma maneira tão frutífera como ele­
vel» às instituições da República, e, mais explicitamente ainda, que gante de abordar o problema da relação entre as Leis e a República,
«não é necessário procurar outro modelo (paraâeigma) de constitui­ essa maneira não faz justiça à sua complexidade. Um indício exterior
ção» além do da primeira cidade, precisamente na medida em que disso é que a maioria dos intérpretes, sem ignorar os recursos do
ela só convém a «deuses ou a filhos de deuses» (739e). As Leis estabe­ paradigmatismo, tendem no entanto a sustentar que Platão, entre a
lecem assim, entre a cidade da República e a das Leis, uma relação República e as Leis, mudou de opinião.
paradigmática: a primeira cidade forneceria o modelo de que a se­ Essa interpretação pode apoiar-se com uma série de argumen­
gunda seria, senão a realização, porque toda a realização é por defi­ tos simultaneamente cronológicos, biográficos e filosóficos. Embora
nição prática, pelo menos a primeira etapa, de natureza ainda teó­ não se conheça a data da República, concorda-se com situá-la por
rica (702d), dessa realização. volta de 387, pouco depois da fundação da Academia: os livros cen­
Tal perspectiva, para além de permitir explicar simultaneamente trais, que descrevem as etapas de formação científica dos guar­
os dois movimentos tendencialmente contraditórios de «acabamento» diães filósofos, podem ser considerados como elaborando o programa
e «revisão» que coexistem de maneira tão surpreendente nas Leis, pedagógico dessa instituição inédita de educação superior. As Leis,
pode apelar para, de uma maneira geral, o paradigmatismo plató­ por seu lado, são certamente a última obra de Platão, que ele ainda
nico. Um princípio fundamental da filosofia platónica, desenvolvida se esforçava por acabar na altura da sua morte, em 347. Perto de
na República, é que o devir mantém com o ser verdadeiro (as Formas) quarenta anos separam pois a redacção das duas obras. A metafí­
uma relação icónica (de imagem a modelo) tal que a semelhança é sica platónica conheceu entretanto, senão uma verdadeira ruptura,
acompanhada de uma intransponível distância ontológica. O Timeu pelo menos inflexões importantes. Mesmo admitindo que Platão te­
especifica esta relação mostrando como o mundo da natureza, in­ nha mantido até ao fim uma doutrina das Formas inteligíveis
cluindo a natureza humana, nasce da inscrição por um artífice divino (o que é uma questão discutível), a economia geral da sua filosofia
(o «demiurgo») de Formas paradigmáticas imutáveis num «lugar» modificou-se profundamente, orientando-se, por um lado, para a
(a chora) que Platão concebe como agitado por movimentos convulsivos análise lógica da relação entre os universais, por outro, para uma
irracionais, e que a esse título chama «necessidade» (48al-5, 56c5 e ontologia da medida e da «mistura» — dois desenvolvimentos que,
segs.). Assim, as Leis podem ser consideradas como fornecendo, no em graus diferentes, tendem a reduzir o fosso entre o ser e o devir.
domínio da cidade, o equivalente do que Timeu realiza no domínio Como é que uma abordagem dessas não teria afectado a teoria po­
da cosmofisiologia — com a diferença essencial que no fim do Timeu, lítica, que na República é estritamente indissociável da teoria das
o mundo e o homem estão aí, enquanto a cidade das Leis ainda está Formas?
por realizar.
De facto, encontram-se nas Leis, mutatis mutanãis, os principais
ingredientes do processo demiúrgico. Correspondendo ao modelo das 71 Sobre o paralelo entre o Timeu e as Leis, cf. A. Laks, «Legislation and demiurgy. On
Formas em si, há o modelo político da primeira cidade; no lugar da the relationship between Plato's Republic and Laws», Classical Antiquity, 9 , 1990.
94 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Está-se tanto mais disposto a considerar as diferenças entre as


Leis e a República como uma reorientação quanto entre a redacção
das duas obras interveio aquilo a que se chama a questão siciliana,
narrada em detalhe na Carta VII, que representa, na história da filo­
sofia política, a narrativa originária das metamorfoses do filósofo
empenhado na acção política.
Em 388, justamente quando devia estar a trabalhar na redacção
da República, Platão empreendera uma viagem a Siracusa, sem dú­
vida por iniciativa do «tirano» Dionísio I, que procurava estar bem
rodeado. Durante a sua estadia, ligou-se de amizade com Dion, o
cunhado de Dionísio I72. Por morte deste, em 367, Platão ficou em posi­
ção de pesar na política siciliana, mal o poder passou para Dionísio,
o Moço, sobrinho de Dion, então com a idade de trinta anos, que
Platão podia influenciar através deste último. A influência não tinha
certamente nada a ver com a «coincidência» entre poder e filosofia
de que a República, vinte anos mais cedo, tinha feito depender a possi­
bilidade da realização da cidade justa, mas abria a via — por assim
dizer, por aproximação — a uma possível convergência. Era normal
que Platão procurasse tirar o máximo partido das circunstâncias. Mais
notável é que viria a manter-se fiel até ao fim a esse empenhamento,
mesmo quando a situação se degradou rapidamente. Dionísio, após
um início promissor, revelou-se rebelde ao ensino filosófico, que Pla­
tão se tinha proposto prodigalizar-lhe quando da sua segunda esta­
dia na Sicília (367). Suspeito de conspiração desde essa altura, Dion
foi exilado em 361, retomou Siracusa pela força em 357, antes de ser
assassinado por Calipo, que subiu ao poder em 354-353. Os únicos
interlocutores de Platão eram a partir de então, os partidários de Dion
(a quem a Carta VII é dirigida), com a ajuda dos quais podia ainda
esperar salvar o que pudesse ser salvo.
Qual é a razão entre a aventura siciliana, por um lado, e a distân­
cia que separa a República das Leis, por outro? Admite-se frequente­
mente que Platão, ensinado pela experiência, se tenha «resignado», e
que dessa resignação tenha saído o projecto de uma «segunda cidade»,
mais adaptada às dimensões da humanidade. Mas trata-se de um
contra-senso. Os acasos da aventura siciliana longe de trazerem
um desmentido aos argumentos da República, sancionaram antes a
sua pertinência, se é verdade que o fracasso empírico do projecto

72 A irmã de Dion, Aristómaca, tinha sido a primeira mulher de Dionísio. Ver o qua­
dro feito por L. Brisson (tradução, Platão, Cartas, Paris, Garnier-Flammarion, 1987,
p. 58), a que nos reportaremos para os factos.
PLATÃO 95

político que testemunham está profundamente inscrito neles, e quase


programado. A história efectiva, feita de lutas pelo poder, de ambi­
ção, de pressões, de intrigas e traições — o próprio material da Carta
VII — é a exacta contrapartida de um desígnio político cuja singu­
laridade é assumir a sua própria «improbabilidade». A República não
deixa de insistir neste ponto, ao acumular as dificuldades que se opõem,
no mundo tal como ele é, à coincidência desejada. É por isso que a
realização do projecto político é remetida para o «acaso» e para a
«oportunidade divina» (592a8, cf. Carta VII, 327e4 e seg.). Se Platão
se deixou persuadir por Dion que a «oportunidade» se apresentava
na pessoa de Dionísio, o Moço, (Carta VII, 328a6 e seg.), foi rapida­
mente desenganado. Esta distância necessária entre projecto e ac­
ção, entre esperança e decepção, é o verdadeiro tema da Carta VII.
Como ela apresenta uma perfeita complementaridade em relação à
República, de modo nenhum podemos ver nela a origem da revira­
volta operada nas Leis, excepto para dizer, como poderemos ser
tentados a fazê-lo, e tanto mais quanto insistirmos no paradigmatismo
platónico, que a cidade das Leis está já de uma certa maneira no
horizonte da República.
Fica umã objecção de peso, de natureza simultaneamente textual
e filosófica. Sublinhando a improbabilidade extrema de uma «coinci­
dência» entre o saber e o poder, a República não insiste menos na sua
possibilidade de princípio. O conjunto do argumento que se estende
de V, 471 e4 a VII, 540d3 está mesmo formalmente subordinado à
demonstração dessa possibilidade. Se é verdade que é ela que as Leis
põem em causa, não devemos dizer, apesar de tudo — e do próprio
Platão —, que as Leis renegam a República, mais do que mostram,
segundo o modelo paradigmático, a realização desta última?
Para esta questão, não há resposta simples, mas os parâmetros
que permitiriam uma articulação adequada da questão não foram
claramente determinados na tradição interpretativa. Isso é tanto mais
curioso quanto o facto de que Platão dá todos os elementos para o
fazer na própria República. A questão é simultaneamente a da exten­
são e do sentido do conceito de «possibilidade».
No que se refere ao sentido desse termo, sem dúvida que nada é
mais esclarecedor do que partir da observação de Kant segundo a
qual nada distingue um objecto real do seu conceito possível, senão
a sua própria existência ou «posição»73. O que aqui é sublinhado,
é a identidade essencial do possível e do real. Ora a metafísica

. '73 Crítica da Razão Pura, A599/B627 (com o exemplo dos cem táleres).
96 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

platónica, porque situa «a verdade» das coisas fora do «devir» mundano,


interdita-lhe essa concepção. Pressionado por Gláucon para parar
de se alargar sobre os méritos da cidade justa, e finalmente abordar,
como há muito havia prometido, a questão da sua possibilidade, Só­
crates começa por observar: «Uma coisa qualquer pode ser realizada
em acção tal como se diz, ou depende da natureza das coisas, mesmo
se alguém não fosse dessa opinião, que a acção toca menos a verdade
do que a palavra?... Não me obrigues pois a afirmar que as dispo­
sições que expus ao falar devem, se vierem a nascer, ser idênticas em
todos os pontos também nos factos. Mas se formos capazes de desco­
brir como seria organizada uma cidade tão aproximada quanto pos­
sível do que foi dito, afirma que descobrimos que essas disposições
são possíveis, como tu o exiges» (473al-bl); tradução minha). Esta
definição do «possível» em termos da maior aproximação possível
é breve, para não dizer críptica. Mas não é duvidoso que corres­
ponde a uma intuição platónica fundamental. No Timeu, a fórmula
recorrente «conforme à possibilidade» refere-se aos limites que são
impostos à actividade do demiurgo74.
A questão do campo de aplicação (da extensão) do conceito de
«possibilidade» assim entendido deriva da própria construção do ar­
gumento que segue esse preliminar capital. Platão passa tacitamente
de uma questão sobre a possibilidade da cidade justa em geral à ques­
tão mais específica do filósofo-rei que, ao mesmo tempo que é ele
próprio parte integrante da cidade paradigmática, constitui antes de
tudo a condição da sua realização, i. e. do processo de aproximação.
Naturalmente, na medida em que ela é a condição de aproximação
da cidade paradigmática, a coincidência do filósofo e do rei deve ela
própria ser possível (num sentido que cairá sob a distinção entre
palavra e acção). Nesta medida, a demonstração da possibilidade de
poder e saber coincidirem (a despeito da sua improbabilidade) faz
parte da demonstração da possibilidade da cidade paradigmática.
Mas a demonstração permanece incompleta. Estabelece apenas a
possibilidade daquilo que é a condição de possibilidade da cidade
justa, por outras palavras do que lhe é prévio. A possibilidade das
disposições constitutivas da própria cidade justa, e em particular das
medidas comunitárias que, por uma sinédoque bem compreensível,
são encarregues de representar o conjunto das instituições da cidade,
não é estabelecido na República como é estabelecida a possibilidade
do filósofo-rei. O diálogo também não descreve com que se pareceria

74 Ver por exemplo, 30a3, 37d2,38cl, etc.


PLATÃO 97

uma aproximação da cidade justa, e em que diferiria desta última,


por outras palavras, a República não aborda a questão prática,
apenas projecta o espaço desta. A única excepção situa-se na última
página do livro vn, que, ao abordar esta zona tão decisiva quanto
fatal em que argumento e realidade entram em contacto, evoca a pri­
meira medida que deveria tomar um soberano (numa cidade real), se
o processo de aproximação à cidade justa se devesse iniciar sob os
melhores auspícios: a relegação para os campos de toda a popula­
ção com mais de dez anos, para que as crianças, os futuros cidadãos
da nova cidade, pudessem receber a educação apropriada. O resto é
deixado à imaginação do leitor.
A definição do «possível» em termos de «a maior aproximação»,
na República, corresponde quase exactamente à relação que as Leis
estabelecem entre a «segunda cidade» (a das Leis) e a primeira (a ci­
dade justa da República): «Numa cidade assim, que os deuses ou
filhos de deuses habitam, os que lá vivem passam a sua vida na felici­
dade administrando-a desta maneira. É por isso que não se deve, pelo
menos no que respeita ao modelo de uma constituição, considerar as
coisas de outra forma, mas, agarrando-se a esta última, procurar a
que lhe for mais semelhante na medida do possível. Ora essa a que
nós agora deitamos a mão seria, se viesse a nascer, de certa maneira a
mais próxima possível da imortalidade e segunda em unidade»
(739d6-e4); tradução minha). A comparação das duas passagens
sugere incontestavelmente que as Leis tentam colmatar a lacuna dei­
xada aberta pela República.
Mas que seja essa a compreensão que as Leis têm da sua relação
com a República não significa ainda que a República deva ser lida
assim. Sem dúvida que a República é lacunar, mas será no sentido
exigido pela afirmação que as Leis a vieram colmatar? Quando as Leis
afirmam que a segunda constituição se mantém «o mais próximo
possível» da primeira, operam com uma medida definida, e parti­
cularmente forte, da possibilidade — possível significa aqui possível
para homens. Mas se a medida do possível é de natureza antropoló­
gica, «o mais próximo possível» pode muito bem estar muito distante
do seu modelo, como as Leis de facto estão, sob inúmeros pontos essen­
ciais, distantes da República: é que nenhuma aproximação, na esfera
do que é humanamente possível, cobrirá jamais a distância que se­
para o homem de deus. Evidentemente, a República não exclui uma
interpretação dessas, o que justifica a leitura retrospectiva que as Leis
dela fazem. Mas também não a impõe. A República é lacunar não
apenas por não pintar o quadro da cidade realizada, mas por que
98 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

não fornece qualquer precisão sobre a medida do possível. A fór­


mula de «a maior proximidade», ao nível da República, pode ser tomada
num sentido bastante mais fraco do que o adoptado nas Leis, que
visariam circunstâncias particulares, ligadas por exemplo à localiza­
ção, cujo detalhe não poria em causa o esquema fundamental da
República sem se confundir exactamente com ele. A obra platónica
conhece cidades aproximadas nesse sentido fraco. As instituições da
Atenas primitiva ou de Sais, no Egipto, tal como são descritas no
Timeu, em particular, apresentam muito mais semelhanças com a pri­
meira cidade da República do que a segunda cidade das Leis, e são
possíveis por definição, porque possuem (segundo Platão) uma rea­
lidade histórica. Esta interpretação é tanto mais plausível quanto,
no caso da coincidência do saber e do poder, Platão não parece nada
desejoso, na República, de recorrer ao conceito «fraco» da possibili­
dade. A definição da possibilidade em termos de «aproximação»,
enfaticamente posta no limiar da discussão da possibilidade da cidade
justa, já não é mobilizada na continuação, e a defesa apaixonada da
«possibilidade» do filósofo-rei, não parece ter sentido a não ser que se
trate de uma possibilidade real, e não de uma simples aproximação —
a menos que a aproximação, uma vez mais, vise apenas detalhes.
Portanto seria temerário afirmar que na altura em que escreveu a
República, Platão tinha já concebido a «continuação» que seriam as
Leis. Isto é tanto menos verosímil quanto, a despeito do que foi dito
mais acima sobre a complementaridade da «constituição» e da «lei»,
as Leis assentam numa concepção da lei que é estranha à República75.
Não é menos verdade que, devido à dupla característica do conceito
de possibilidade — simultaneamente idiossincrático e subdeterminado —
com o qual opera, a República é suficientemente ambígua para
permitir a leitura retrospectiva que as Leis dela farão. Quando as Leis
reputarem «impossíveis» (para os homens) as medidas julgadas «pos­
síveis» na República, levantarão esta ambiguidade. Assim, as Leis
apontam uma dificuldade conceptual que marca tão profundamente
a República que pode ser lida alternadamente através dos séculos, e
não sem alguma justificação, por vezes como uma utopia, outras como
um programa político. Ela é uma e outro, conforme se opere com um
conceito forte (kantiano) ou fraco (platónico) da possibilidade, duas
opções que a República permite, avançando primeiro um conceito fraco,
depois operando com base num conceito forte. A identidade virtual

75 Ver a secção seguinte.


PLATÃO 99

da cidade aproximada com o seu modelo poderia mesmo explicar


porque é que a República não se dá ao trabalho de oferecer uma des­
crição da primeira. Em compensação, as Leis alicerçam-se numa de­
finição «forte» de possível, mas recorrendo a um critério que não
o é menos (antropológico). Desse ponto de vista, são as primeiras a
denunciar a interpretação da República em termos de programa po­
lítico, e a conferir-lhe, sem o termo, evidentemente, o estatuto de uma
utopia — com a diferença importante que a utopia conserva aqui o
seu valor de modelo.

8 — A concepção platónica âa lei

Na medida em que a cidade «de segunda ordem» se define em


relação à cidade da República, as Leis são uma obra essencialmente
«segunda», detendo o seu sentido da relação que mantém com uma
outra. Mas existe pelo menos um caso em que a cidade das Leis exige
estar situada, não em relação à «utopia» da República, mas também
e sobretudo em relação àquela que elas próprias segregam, por assim
dizer, em virtude de uma problemática que lhes é própria. Mostrá-lo
passa por uma análise da noção de «lei» nas Leis, que deve ser ela
própria situada em relação ao Político.
A lei platónica pode ser encarada sob dois aspectos, que se podem
chamar «epitáctico» e «substitutivo». Primeiro, a lei dá ordens (épita-
xeis). Esta utilização corresponde a um uso comum do termo, que se
encontra por exemplo na República (415el), e que é explicitado no
Político (cf. por exemplo 260b3 e segs., c3, 294b2, d8). Mas a lei, nesse
último diálogo, possui também uma função «substitutiva». Uma
famosa crítica da lei decorre dessa função, coisa que constitui a grande
novidade e o grande interesse desse diálogo. Na República, a promul­
gação da lei não é o objecto de nenhum argumento em particular76.
Inversamente, inúmeras diferenças substanciais entre o Político e a
República — em particular a concentração sobre a figura singular do
monarca, que está longe de se sobrepor completamente aos filósofos-
-reis da República — podem ser referidas à problematização da lei.
Se a lei é levada a substituir o homem político, é por duas razões
distintas, embora aparentadas. Em primeiro lugar, um monarca, por
iriais competente que seja (possui por hipótese o «saber»), nunca

76 Cf. supra, p. 80, nota 51.


100 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

passa de um homem, e a esse título está sujeito a uma dupla limita­


ção espacial e temporal. Não pode passar a vida a prescrever a cada
um dos seus súbditos exactamente o que deve fazer; por outro lado,
não estará sempre presente, quer a sua ausência seja temporária quer
definitiva. De onde a «necessidade» (294cl0) que ele seja representado
pela lei, que escapa às limitações humanas na medida em que, pública
e escrita, está presente sempre e em todo o lado. Em segundo lugar,
se em nada se exclui que um monarca competente possa não
abusar do poder (é uma grande diferença em relação às Leis), o Polí­
tico sugere que pelo menos aos olhos dos cidadãos (os súbditos),
mesmo um bom monarca não poderá passar senão por um tirano,
por pouco que tome as medidas necessárias à realização do bem
(301c7-e4). O argumento subjectivo da cegueira dos cidadãos vem no
Político reforçar o argumento da finitude objectiva do governante
para traçar o caminho ao reino da lei.
É claro que a lei não poderia servir de substituto ao monarca se,
como ele, não desse ordens, devido à sua comum função «epitác-
tica». Mas a modalidade das suas prescrições difere. A lei é simples,
isto é, sempre idêntica, enquanto o indivíduo a que ela se dirige, bem
como os casos que considera, são diversos e mutáveis. Segue-se que a
lei não pode, em virtude da sua universalidade, remediar nem as li­
mitações do monarca nem as do conjunto de cidadãos a não ser à
custa de uma certa deficiência: a lei é estruturalmente incapaz de ter
em conta as circunstâncias particulares, e ainda menos as evoluções.
E por isso que pode ser comparada a «um homem arrogante e igno­
rante, que não permitisse a ninguém agir fosse no que fosse contra a
ordem que ele promulgou» (294cl-4). Em compensação, o «inte­
lecto» possui essa capacidade de ajustamento. A vantagem de um
monarca que viva segundo a lei é que, se a lei é um instrumento de
governação nas suas mãos — um instrumento necessário, e regra geral
perfeitamente adequado —, a sua liberdade de agir para o melhor em
cada circunstância determinada nunca é entravada por uma regra
existente. E o que faz com que o reino da lei, segundo o Político, não
possa representar a melhor escolha, e ocupe a «segunda posição»,
depois do (bom) soberano (300c).
Sobre este ponto, as Leis não dizem nada que o Político não diga
também, sendo a única diferença que o reino da lei é agora referido à
impossibilidade de um monarca absoluto não se transformar objecti-
vamente (e já não só subjectivamente) em tirano: «não há lei (nomos)
nem nenhuma ordem (taxis) que prevaleça sobre o saber (epistemê), e
não está de acordo com a justiça divina (themis) que o intelecto de
PLATÃO 101

alguém seja subjugado ou escravo, mas sim que seja ele a dirigir, se
for autêntica e verdadeiramente livre na sua natureza» (875c6-d2).
No entanto, é notável que, diferentemente do Político, o estatuto vi-
cariante da lei desempenha, nas Leis, apenas um papel periférico. Se
a lei também está sujeita à crítica nas Leis, o motor é agora o aspecto
epitáctico da lei. É o que ressalta do fim do livro iv, que analisa, antes
que o diálogo se encaminhe para a legislação propriamente dita, a
própria noção de «lei». Se a lei é deficiente, é porque, enquanto or­
dem, ela não persuade. Essa deslocação do conteúdo da lei para a
modalidade da sua imposição traça, depois da República, os contor­
nos de uma segunda utopia platónica, a utopia propriamente legisla­
tiva, cuja determinação complica ainda a ideia que se pode ter da
relação entre as Leis e a República77.
A mudança de perspectiva relaciona-se com o relevo particular
concedido nas Leis ao critério do consentimento78 que, sem estar au­
sente no Político, se mantém no entanto claramente em segundo plano,
e cujo estatuto se torna, na verdade, extremamente problemático, face
ao primado do saber. Se o Político, na análise da lei, se concentra
essencialmente na relação existente entre a ordem e a sua origem, a
saber, o bom soberano ou o intelecto, as Leis voltam-se decididamente
para a relação entre a ordem e o seu destinatário, a saber, o cidadão.
Isto resulta claramente da utilização que Platão faz da analogia
médica nas Leis. No Górgias, a analogia médica servia para estabele­
cer que o verdadeiro político não tem que «persuadir» os seus súbdi­
tos mais do que o médico tem de persuadir os seus pacientes para
aceitarem seguir a prescrição (521e6-522a3), e é esse argumento que
é significativamente retomado no Político, 293a9-b8 (uma citação
quase literal do Górgias). Porque o médico e o político conhecem, por
hipótese, o bem daqueles por quem são responsáveis, podem recorrer
à violência a fim de o impor. O fim justifica os meios. Platão especi­
fica no Político as diversas medidas correspondentes à «amputação e
à cauterização» médicas: «Que lhe seja preciso matar ou ainda exi­
lar alguns, expurgando a cidade para o bem, que lhe seja preciso,
para a submeter, criar colónias como se enxameiam abelhas ou, para
a engrandecer, mandar vir pessoas do estrangeiro e criar novos cida­
dãos, enquanto se servirem da ciência e da justiça para a conservar
e, de má, a tornar o melhor possível, temos de dizer que se trata aqui,
: neste momento e em conformidade com as definições, da única cons-

77 Cf. supra, secção VII.


\ 78 Ver supra, pp. 68 e segs.
102 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

tituição que é correcta» (293d4-9, cf. 308e8-309a3)79. Com toda a evi­


dência, esta versão do paralelo médico-político não faz do «consen­
timento» um critério da prática política, e explica que o Político possa
desenvolver uma interpretação «subjectiva» da impossibilidade do
bom monarca. Ora as coisas apresentam-se de maneira diferente nas
Leis, em que o fundamento da analogia deixa de ser o simples resul­
tado da arte (a saber, a saúde corporal ou psíquica), para incluir o
que se poderia chamar a relação intersubjectiva do médico e do seu
paciente de um lado, do legislador e dos seus súbditos, do outro. Na
medida em que o médico deve dirigir-se ao seu paciente a fim de tratar
do corpo — é esta a estrutura da prescrição —, nada mais verdadeiro
do que dizer que o médico tem que se haver apenas com o corpo.
Diferentemente do esquema que subentende o Górgias e o Político, a
reacção do paciente à prescrição deve ser tomada em consideração
pela própria prática médica. Segue-se que as contrafacções da medi­
cina e da política já não são distinguidas das versões autênticas pela
sua finalidade, como no Górgias. Enquanto a cozinha e a sofística,
neste último diálogo, procuram imitar a medicina e a legislação subs­
tituindo o bem pelo prazer (464c3-465d6), as Leis distinguem entre
duas formas de medicina e de legislação, conforme levam ou não em
consideração a persuasão e o consentimento nas suas práticas res­
pectivas (IV, 720a6-e5).
Platão explora sem dúvida aqui o facto de os médicos gregos, na
época clássica, serem secundados por auxiliares (huperêtai). A dife­
rença entre essas duas espécies de médicos reflecte, segundo Platão,
a diferença entre a competência e a prática de uns e de outros. Não
conhecendo a «natureza» das coisas, e possuindo um saber apenas
empírico, os auxiliares não fazem mais do que executar ordens do
seu chefe sem possuírem a compreensão adequada do que fazem.
Na interpretação de Platão, isto faz deles médicos «escravos». Ora o
médico, que devido à sua formação, ou melhor, à sua falta de forma­
ção, é comparável a um escravo, comporta-se despoticamente para
com os seus pacientes, ou ainda «como um tirano» (720c6 e segs.).
Esta atitude tirânica manifesta-se pelo facto de que o escravo formula
as suas prescrições sem fornecer qualquer explicação ao seu paciente,
e se não o faz, é porque ele próprio nunca se perguntou a razão
deles. A terapia do médico livre, em compensação, comporta duas
fases: primeiro, conversas prévias com o paciente assim como com a

79 Recordamos que a primeira etapa que conduzia à realização da cidade justa era uma
radical «purificação» (ver supra, p. 96).
PLATÃO 103

sua família, destinadas em parte a descobrir quais são as causas da


doença, em parte a explicar ao paciente porque é que ele deve seguir
a prescrição; em seguida, a própria prescrição, que indica ao paciente
o remédio que ele deve tomar ou a dieta que deve seguir. Se o mé­
dico-escravo fornece o modelo de uma legislação «tirânica», a prá­
tica do médico livre representa a ideia de uma legislação que seria
respeitadora do critério consensual necessariamente implicado em
qualquer constituição.
. O que Platão elabora aqui, com base na analogia médica, é de
facto a distinção, essencial para compreender a utopia legislativa das
Leis, entre uma lei, que é o análogo à prescrição médica, e uma forma
de discurso que, dependendo inteiramente da competência do
legislador, não é redutível à lei, e deve precedê-la.
Convém precisar aqui a utilização que as Leis fazem do termo lei.
Platão identifica por vezes a lei com a própria ordem (723a5), mas
trata-se de um atalho. De facto, uma lei apresenta-se como a combi­
nação de dois elementos: a uma dada ordem (para retomar o exem­
plo do livro rv: «é preciso casar antes da idade de trinta e cinco anos»)
vem juntar-se a ameaça de penalidades definidas, em caso de trans­
gressão. A crítica que Platão faz da lei nas Leis apoia-se substancial­
mente na noção complexa, mas familiar, e que parece ter sido tradi­
cional, do termo «lei»80. A lei pode ser dita tirânica na medida em que
a razão que forneça para obedecer à ordem (o primeiro elemento da
lei) seja constituída por uma ameaça, e que uma ameaça é uma vio­
lência, senão actual, pelo menos potencial. Mas esta crítica esconde
a outra, mais radical, e que visa de facto o primeiro elemento da
lei. Uma ordem nua, sem o acrescento de uma ameaça qualquer, é
mais tirânica ainda do que uma ameaça, porque não enuncia nenhuma
razão pela qual deva ser obedecida.
A lei revela-se assim incapaz de servir de base a uma constitui­
ção, se for verdade que uma constituição se funda no consentimento,
é que esse último é ameaçado tanto pela ameaça legal como pela
ordem pura e simples. É por isso que o primeiro gesto do legislador é
!' dissociar tanto quanto possível a sua função do nome que ela tem, e
de elaborar um tipo de discurso que, sendo intimamente aparentado
ao conteúdo da lei, difere profundamente dele do ponto de vista da

80 Assim, Aristóteles insiste, na definição que dá da lei, no aspecto da coacção (Ética a


ty Nicómaco, 1181a 21 e segs.), que, bem entendido, é também um tema sofístico.
O estóico Ariston de Quios definirá a lei como uma «recomendação misturada com
ameaças» (Séneca, Carta, 94, 37).
104 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

forma: é o que Platão, jogando com o facto de que o nomos em grego


designa não só a «lei», mas também uma peça musical, chama um
«prelúdio» ou «preâmbulo» (prooimion) à lei (723a3). O princípio de
um prelúdio, por oposição à lei, não é a obrigação, mas a persuasão,
de tal modo que o factor especificamente político, nas Leis, é o prelú­
dio, e não a lei.
Não é pois de espantar que o Ateniense apresente a introdução
dos prelúdios como a grande inovação da sua legislação (722e2).
A originalidade do procedimento pode mesmo explicar porque é que
ela foi totalmente rejeitada, apenas com a excepção provável de cer­
tos círculos neopitagóricos, pelo pensamento político e jurídico
posterior. Porque a proposição voltava a fazer escorregar a legisla­
ção não apenas para o domínio da retórica, mas também para o da
âisputatio filosófica. A reacção do estóico Possidónio, o mestre de
Cícero, de resto grandé admirador das Leis, é extremamente signifi­
cativa a esse respeito: «que a lei ordene, e não argumente» (jubeat lex,
non disputet)81.
Um episódio do livro ix das Leis é altamente significativo neste
aspecto. Voltando à analogia médica desenvolvida no livro iv, Pla­
tão apresenta o médico-escravo rindo-se do procedimento médico
seguido pelo seu colega «livre». O escravo escarnece da ideia de trans­
formar as conversas preliminares entre médico e paciente numa con­
versa quase dialéctica («próxima da filosofia», 857d2) que não se li­
mita a recolher a informação necessária ou a fornecer as explicações
exigidas, mas que recua até às causas da doença e até à natureza
dos corpos (857d3 e segs.). Ora se esse devesse ser o caminho seguido
na consulta médica, vê-se mal como escapar à objecção, que Platão
põe na boca do escravo, que não se trata aqui de cuidados, mas de
ensinamentos. No entanto, por legítimo que possa parecer aqui o senti­
mento do escravo, ela não seria igualmente pertinente, tratando-se
da prática legislativa. Porque se a vontade de instruir pode parecer
estranha à medicina, enquanto prática terapêutica82, ela constitui com
toda a evidência um aspecto essencial de uma legislação — pelo me­
nos na sua versão platónica. A cidade das Leis, mais ainda do que a
da República, focada na instrução dos guardiães, é uma instituição
pedagógica. O modelo do diálogo filosófico, que assenta em última
instância na argumentação, parece mesmo impor-se aqui. Porque

81 A fórmula viria a encontrar o seu caminho, por intermédio de Séneca que a cita
(Carta, 94, 38), até ao jurista F. Duaren, no seu comentário do Digeste (1560), I, 3.
82 A despeito do modelo, esboçado pelo Cármides, de uma filosofia fisicamente eficaz.
PLATÃO 105

aquilo de que falam o legislador e o filósofo é idêntico83. Segue-se que


as «conversas preliminares» se arriscam justamente a não estar «pró­
ximas da filosofia», como no caso do intercâmbio médico, mas a con­
fundir-se com ela. O livro ix, longe de ser um simples retomar do livro
iv, fornece antes uma interpretação implícita que radicaliza o al­
cance deste. Se a tarefa legislativa era inicialmente considerada como
dupla, consistindo simultaneamente em persuadir (é a função do
prelúdio) e em prescrever (é a função da lei propriamente dita), é
agora sugerido, apesar da objecção do médico escravo, ou mais exac-
tamente através desta mesma objecção, que a própria lei devia ser
abolida em favor da argumentação.
Assim, as Leis traçam o lugar de uma possível coincidência entre
prelúdio legislativo e diálogo filosófico, que pode justamente ser con­
siderada como a utopia própria das Leis. No entanto, as próprias Leis
não estão menos afastadas desta utopia do que da utopia da Repú­
blica. Não só as Leis deixam apenas um lugar reduzido à actividade
filosófica do simples cidadão (se ela se pratica, é no seio do Conselho
nocturno), mas mostram também como a própria lei — e isto significa,
se queremos manter a análise do livro iv, uma certa forma de tirania —
é em última análise inevitável, devido à própria humanidade do
homem.
A primeira renúncia à utopia legislativa traduz-se nas Leis pelo
facto de que um prelúdio persuasivo não deve tomar necessariamente,
e a maioria das vezes efectivamente não toma, a forma de uma
argumentação racional. A variedade do que é coberto pelo termo
platónico «persuasão» resulta da diferença considerável existente
entre os «prelúdios», de que Platão dá uma quinzena de exemplos
concretos nas Leis. Distinguir-se-ão, de maneira esquemática, três
grupos.
O primeiro grupo, que é o que fica mais próximo da argumenta­
ção racional, é apresentado uma única vez: trata-se da famosa refu­
tação do ateísmo, que ocupa a maior parte do livro x. Esse prelúdio
apresenta uma série de traços notáveis: o seu carácter dialógico rela­
tivamente contínuo, a sua extensão, e sobretudo o facto de a persua­
são revestir nele a forma de uma argumentação física sobre a origem
do movimento — a última forma da física platónica. Se o aspecto utó­
pico da legislação platónica se manifesta em algum lado, é exacta-
mente aqui, tanto mais que nem os futuros legisladores da cidade cre-

83 Cf. supra, n.° 21, p. 61.


106 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

tense que são os interlocutores do Ateniense, nem os destinatários


potenciais do argumento que são os naturalistas ateus, constituem
um público verdadeiramente adequado, os primeiros por causas da
sua limitação intelectual, os outros devido à sua «loucura».
O segundo grupo de prelúdios usa sistematicamente as categorias
retóricas do elogio e da censura, que provocam, na maior parte das
vezes, opiniões ou atitudes normalmente partilhadas pela maioria dos
homens, como certas ideias relativas à divindade, ao amor paternal e
à piedade filial, ou ainda ao incesto. Poder-se-ia dizer, por referência
ao vocabulário dos diálogos socráticos, que a «vergonha» e o «pu­
dor» são aqui o motor da persuasão. Desse grupo, Platão destaca
uma espécie de elogio menos «nobre», cuja força persuasiva tem a
ver com a felicidade e com o prazer que promete, segundo a lógica do
«compromisso» que percorre as Leis84.
O terceiro grupo encontra a sua principal fonte no «mito». Trata-
-se na maior parte das vezes de narrações escatológicas, ligadas às
recompensas e aos castigos para si próprio, no além, ou para a poste­
ridade, neste mundo. É aqui que a ameaça, que era função do prelú­
dio, eliminar, como vimos, se reintroduz, sob uma forma modificada,
no interior do próprio prelúdio: a lei divina, que preside aos destinos
das almas, tomou simplesmente o lugar da lei humana. Mas é ela
própria substituída por esta última, com um código penal que per­
manece coercivo, em detrimento dos avanços reais que se determi­
nam em relação aos costumes em vigor nas cidades gregas85.
A diferença é pois grande, no próprio interior das Leis, entre o
ideal legislativo que elas deixam entrever em contraponto com a crí­
tica da lei e a sua concretização: distância superior mesmo à que
separa a constituição da República da constituição das Leis, se é ver­
dade que a constituição das Leis é da esfera do «prodígio». É que a
legislação propriamente dita, e a própria necessidade de recorrer a
ela, está marcada pelo veredicto sombrio que Platão pronuncia em
relação à humanidade. Quando o prazer não obedece às ordens da
razão, deve ser contido pela força. Este aspecto repressivo é o que
mais impressionou os intérpretes; pode compreender-se, não apenas
porque é conforme ao conceito estrito da lei que as Leis desenvolvem,
mas também porque, por razões essenciais, é nele que se cristaliza o
antiplatonismo moderno.

84 Ver supra, pp. 82 e segs.


85 Ver sobre este assunto T. J. Saunders, Plato's Penal Code. Tradition, Controversy and
Reform in Greek Penology, Oxford, Clarendon Press, 1994.
PLATÃO 107

Conclusão — Platão hoje

Através dos seus meandros, a preocupação constante da filoso­


fia política platónica foi definir, na tradição inaugurada por Só-
lon, um certo «espaço público». Não, naturalmente, no sentido que
o século xvm nos legou, mas no que Aristóteles, cuja Política é pelo
menos em parte contemporânea da última reflexão platónica,
visava sob o nome de «bem comum». No entanto, Platão, mais
ainda do que Aristóteles, pensou esse bem comum em termos que,
desde o século xvm pelo menos, se tornaram em grande parte opacos
para nós. É que a liberdade individual não podia ser um valor para
ele e, por maior que seja o papel desempenhado nas nossas socieda­
des pelo modelo meritocrático, a sua igualdade — proporcional —
também não é a nossa. Não é pois surpreendente que tenha sido
em torno dos dois temas da liberdade e da igualdade que os «plato­
nismos» modernos, mas mais ainda os antiplatonismos, se tenham
desenvolvido. A constância e a diversidade desses ataques testemu­
nham a presença, negativa mas essencial, da teoria política plató­
nica no debate moderno86.
A história do platonismo político está ainda por escrever, para
aquém e para além do corte que representa, aqui como noutros luga­
res, o advento das Luzes. No que diz respeito à primeira moderni­
dade, até Rousseau inclusive, o constitucionalismo das Leis desempe­
nhou um papel essencial87. Quanto ao período pós-revolucionário,
basta enumerar as diversas figuras do antiliberalismo moderno para
engendrar outras tantas formas de «platonismo», reais ou potenciais.
O totalitarismo, o corporativismo, o elitismo, todos se valem de Pla­
tão. Se nenhum nome importante está, pela natureza das coisas,
associado à interpretação nacional-socialista de Platão, já não se passa
o mesmo para os pensamentos da ordem (E. Voegelin, H. G. Gada-
mer) e do aristocratismo antipolítico (L. Strauss). A associação de
Platão às piores formas de pensamento reaccionário foi confirmada

86 Ver R. Maurer, «De Tantiplatonisme politico-philosophique moderne», in M. Dixsaut


(éd.), Contre Platon, vol. 2 (Renverser le -platonisme), Paris, Vrin, 1995, em particular
p. 134.
87 Espera-se com interesse o segundo volume do estudo de A. Neschke-Hentschke,
cujo primeiro volume, consagrado à história do platonismo político na Antigui­
dade, avança a tese surpreendente segundo a qual Platão seria o antepassado do
direito natural moderno.
PLATÃO 109
108 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

pelo célebre panfleto que Popper, defensor da sociedade «aberta»; J L sistematicamente esta dimensão efectivamente capital do pensa-
iln to platónico, voltando a atribuir-lhe as honras propriamente po­
lançou contra o fecho da cidade platónica88.
Duas vias se oferecem para salvar Platão de si próprio e da sua

lias através da ideia de uma «pedagogia social»92. Mas esta abor-
posteridade. le e m , por mais legítima que seja, não faz mais do que sublinhar
Pode-se, em primeiro lugar, ser tentado a explorar a distinção en­ I f a apropriação moderna do pensamento político platpnico pas-
tre a liberdade dos Antigos e a liberdade dos Modernos tematizada I necessariamente por uma estratégia interpretativa definida e ar-
por B. Constant. Da mesma forma que, na história real, a aplicação Jlca-se, em vez de ser conscientemente praticada, a enfraquecer o
de modelos antigos a uma realidade alterada gera a tirania ou a sim­ Rp se ioga no debate. , . ,
ples regressão, uma interpretação guiada pelas exigências do libera­ fe Resta a possibilidade de nos colocarmos menos do ponto de vista
lismo moderno conduz a forjar uma imagem autoritária, quando não I s conteúdos do que da forma do pensamento político platomco e em
despótica, de Platão89. Quanto ao resto, a avaliação variará, se se làrticular da relação entre a República e as Leis, ou amda da distancia
conseguirem relativizar os critérios do nosso julgamento, segundo as \tre o ideal e a realidade. Foi esse aspecto que foi acentuado aqui.
convicções morais e políticas do intérprete. Uma das dimensões
positivas, do ponto de vista da modernidade, da teoria política pia-
tónica é certamente a sua tematização da especificidade do espaço I ibliografia
político, quanto mais não seja sob a forma problemática do «ofício
de cidadão»90. H. Arendt não se reencontrou aí menos do que em ftNNAS, J., Introduction à la République de Platon (1981), trad, fr., Paris, PUF, 1994.
Aristóteles. IÉ îickon L trad. Platão, Lettres, Paris, Garnier-Flammarion, 1987.
No entanto, é difícil desculpar inteiramente Platão em nome da l o S o R D F. M„ « Plato's Commonwealth » (1935), in The Unwritten Philosophy and other
I Essays, Cambridge, 1950, Cambridge University Press, pp. 46-67.
liberdade dos Antigos. Os aspectos mais contestáveis do pensamento B elatte, A., Essai sur la politique pythagoricienne, Liège-Pans, ed. Champion, 1922 (ree .
político platónico que recordámos no início, em particular a legiti­
mação da censura e da mentira, eram «iliberais» do ponto de vista l l R i s w o m Ï ^ ! «^e Ubéralisme platonicien: de la perfection individuelle comme fonde-
dos próprios Antigos, e na verdade do próprio Platão. É o limite da I f ^ m i m t d'une théorie politique», in M. Dixsaut (ed.), Contre Platon, vol. 2 (Renverser le
interpretação de Constant, e a força, salvo todos os excessos, da de R platonisme), Paris, Vrin, 1995, pp. 155-195.
Popper. IH arvey, F. D„ «Two Kinds of Equality», Classica et Mediaevaha, 16' 1965' P P 101' 146'
PKraut, R., Socrates and the State, Princeton, Princeton University Press, 19M .
Uma segunda opção consiste em desatrelar a política platónica I laks, André, «Legislation and Demiurgy. On the Relationship between Plato s Republic
daquilo que ela esconde ou visa, e em particular da pedagogia. ii and Laws», Classical Antiquity, 9,1990, pp. 209-229.
Conhece-se a famosa frase de Rousseau, no livro i de Emílio: «Quer ter
uma ideia sobre a educação pública? Leia a República de Platão. E . , ' 1957 (Beiheft 1); 9,1961
Não é uma obra política como o pensam aqueles que só julgam os
livros pelos títulos. É o mais belo tratado de educação jamais
Contre Platon, vol. 2 (Renverser le platonisme), Paris, Vnn, 1995, pp. 129-15 .
escrito91.» É ao neokantismo que cabe o mérito de ter desenvolvido ; Meier, Ch., La Naissance de la politique (1980), Paris, Gallimard, 1 9 .
ï Morrow, G., Plato's Cretan City, Princeton, Princeton University Press, « 6 0 , 1993 (2. ed.).
88 Elementos da recepção contemporânea de Platão encontram-se em E. Manasse, ! Natorp, P., «Platons Staat und die Idee der Sozialpädagogik», in Gesammelte Abhandlun-
«Bücher über Platon», Philosophische Rundschau, 5 , 1957; 9,1961; 23,1976,
89 O princípio pode ser alargado e encontrar uma aplicação, no próprio seio da
família antiliberal, entre as suas diferentes orientações. Assim, quando Gadamer e ? archéologie de la culture politique européenne, vol. ï: Le platonisme politique dans
Maurer, no seguimento do primeiro, exigem «uma conversão de pensamento» i l'Antiquité, Lovaina-Paris, 1995.
para subtrair Platão à acusação de despotismo (ver Maurer, op. tit, pp. 131,143), é
em benefício, num e no outro caso, de duas formas distintas de tradicionalismo.
90 Cf. supra, p. 78. -■ 92 Ver P. Natorp, «Platons Staat und die Idee der Sozialpädagogik», in Gesammelte
91 Oeuvres completes, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, 1962, IV, p. 250. Abhandlungen, I. Abteilung, Stuttgart, 1907.
110 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Popper, Karl, La Société ouverte et ses ennemis, vol. i: L'ascendant de Platon (1945), trad, Capítulo 2
francesa Paris, Payot, 1979.
Saunders, T. J., Plato's Penal Code. Tradition, Controversy and Reform in Greek Penology
Oxford, 1991,1994 (2.a ed.).
Schmitt-Pantel, P., La Cité au banquet, Roma, 1992.
Aristóteles
Stalley, R. F., An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, 1983.
Vidal-Naquet, Pierre, «Étude d'une ambiguïté: les artisans dans la cité platonicienne», por Otfried Hõffe
in Le Chasseur noir. Formes de pensée et formes de société dans le monde grec, Paris'
Maspero, 1991, pp. 289-315. 7 traduzido do alemão por Jean Kahn
Vlastos Gregory, «Does slavery exist in Plato's Republic?» (1968), in Platonic Studies,
Princeton, 1973, pp. 140-146. 7

Introdução ^ «

Qualquer que seja a atenção concedida ao pensamento político


de outras culturas, tais como a índia, a China e a do Próximo Oriente,
o discurso conceptual e argumentativo sobre o político é uma inven­
ção dos gregos. São os primeiros a empenhar-se numa discussão dos
fundamentos do direito, do Estado e da política, a ligá-la às suas
pesquisas empíricas sobres estes últimos, à sua avaliação normativa
e a iniciar uma crítica inspirada na filosofia. Quando a ordem jurí­
dica é ainda tida como sagrada em Homero, são as tragédias sobre
esse tema em Ésquilo (por exemplo a Oresteia), Sófocles (Antígona) e
Eurípedes (Oreste), bem como os historiadores Heródoto e Tucídi-
des que, com os sofistas, substituem o mito pelo logos e preparam o
caminho às duas figuras preeminentes que são Platão e Aristóteles.
Desses dois filósofos, é a Aristóteles que devemos a primeira pesquisa
discursiva no sentido pleno do termo a respeito da política, e incluindo
o direito, a justiça e o Estado.

1)

Aristóteles, nascido em 384 a. C. em Estagira (hoje Stavro), pe­


quena república urbana do nordeste da Grécia, vive entre 367 e 347
em Atenas na Academia de Platão, e, após doze anos de viagem,
doze «anos de aprendizagem», volta para Atenas onde ensina du­
rante doze anos no Lúkeion (origem de «Liceu»), um estabelecimento
acessível a todos. Vive na época em que a forma de sociedade dos
gregos, a república urbana livre, perde a sua liberdade. E testemunha
da derrota que Filipe II inflige aos Atenienses e aos Tebanos em
110 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

P opper, Karl, La Société ouverte et ses ennemis, vol. i: L'ascendant de Platon (1945), tra< Capítulo 2
francesa Paris, Payot, 1979.
Saunders, T. ]., Plato's Penal Code. Tradition, Controversy and Reform in Greek Penolog
Oxford, 1991,1994 (2.a ed.).
Schmitt-P antel, P., La Cité au banquet, Roma, 1992.
Aristóteles
Stalley, R. F., An Introduction to Plato's Laws, Indianapolis, 1983.
V idal-N aquet, Pierre, «Étude d'une ambiguïté: les artisans dans la cité platonicienne por Otfried Höffe
in Le Chasseur noir. Formes de pensée et formes de société dans le monde grec, Par:
Maspero, 1991, pp. 289-315.
traduzido do alemão por Jean Kahn
V lastos Gregory, «Does slavery exist in Plato's Republic?» (1968), in Platonic Studu
Princeton, 1973, pp. 140-146.

Introdução

Qualquer que seja a atenção concedida ao pensamento político


de outras culturas, tais como a índia, a China e a do Próximo Oriente,
o discurso conceptual e argumentativo sobre o político é uma inven­
ção dos gregos. São os primeiros a empenhar-se numa discussão dos
fundamentos do direito, do Estado e da política, a ligá-la às suas
pesquisas empíricas sobres estes últimos, à sua avaliação normativa
e a iniciar uma crítica inspirada na filosofia. Quando a ordem jurí­
dica é ainda tida como sagrada em Homero, são as tragédias sobre
esse tema em Ésquilo (por exemplo a Oresteia), Sófocles (Antígona) e
Eurípedes (Oreste), bem como os historiadores Heródoto e Tucídi-
des que, com os sofistas, substituem o mito pelo logos e preparam o
caminho às duas figuras preeminentes que são Platão e Aristóteles.
Desses dois filósofos, é a Aristóteles que devemos a primeira pesquisa
discursiva no sentido pleno do termo a respeito da política, e incluindo
o direito, a justiça e o Estado.

1)

Aristóteles, nascido em 384 a. C. em Estagira (hoje Stavro), pe­


quena república urbana do nordeste da Grécia, vive entre 367 e 347
em Atenas na Academia de Platão, e, após doze anos de viagem,
doze «anos de aprendizagem», volta para Atenas onde ensina du­
rante doze anos no Lukeion (origem de «Liceu»), um estabelecimento
acessível a todos. Vive na época em que a forma de sociedade dos
gregos, a república urbana livre, perde a sua liberdade. É testemunha
112 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Queroneia (338 a. C), e, por outro lado, da ascensão do filho de Filipe,


Alexandre Magno, cuja educação tinha acompanhado durante doze
anos a pedido de Filipe — situação única no seu género em que um
dos maiores filósofos toma a responsabilidade daquele que virá a ser
mais tarde um dos homens de Estado mais importantes. Aristóteles
pode muito bem ter sido responsável pelo facto de que Alexandre se
fizesse acompanhar por cientistas gregos nas suas campanhas e que, para
além dos fins militares, mantivesse interesses culturais e científicos.
Depois da morte de Alexandre, em Junho de 323, Aristóteles deixa
novamente Atenas. Embora a sua filosofia política seja mais dirigida
contra os interesses macedónios, receia tornar-se vítima das intrigas
antimacedónias. De resto, é perseguido sob a acusação de ateísmo
(asebeia) de que Sócrates foi vítima. Fazendo alusão ao destino do
«homem mais excelente, mais sábio e mais justo entre os que então
viviam» (Platão, Fédon, 118 a), teria justificado a sua partida da ci­
dade dizendo que não deixaria Atenas cometer um segundo pecado
contra a filosofia (Élien, Histórias variadas, III, 36). Aristóteles retira-
-se para a casa de sua mãe em Cálcis, na Eubeia. Pouco tempo depois,
em Outubro de 322, morre com 62 anos de uma doença de que nada
mais se sabe.
Aristóteles deixa atrás de si uma obra universal, resultado da sua
investigação em filosofia e nas ciências particulares, que, pelo facto
de aliar experiência, acuidade de espírito e pensamento especula­
tivo, permanece sem exemplo na história espiritual da humanidade.
Os seus tratados consagrados à lógica e à teoria da demonstração, à
filosofia da natureza, à ontologia e à teologia filosófica, à ética, à
política, à poética e à retórica formam até hoje o ideal e o modelo
em matéria de escritos teóricos filosóficos ou científicos. As obras de
Aristóteles não tiveram apenas influência no pensamento desde a
Antiguidade até aos tempos modernos passando pela Idade Média.
Ele que é qualificado de «divino Aristóteles» (Proclo) na Antiguidade
tardia, e que, na Idade Média, é tido como, de al-Farabi até Alberto,
o Grande, e a Tomás de Aquino, muito simplesmente «o Filósofo» e
para Dante o «mestre de todos os sábios» {Divina Comédia, «O Inferno»,
IV, 131) tem ainda hoje mais do que uma importância paradig­
mática. Mesmo que se ponha vivamente em causa a sua autoridade
nos séculos xvn e xvm, um grande número das suas investigações inci­
dindo sobre conceitos, estruturas e métodos merecem ser lidas até à
época presente, e mais ainda, permanecem válidas.
Talvez por ser meteco («residente»), e portanto estrangeiro pos­
suidor de uma «autorização de permanência», mas desprovido de
ARISTÓTELES 113

direitos políticos, não pôde envolver-se nos assuntos da república


urbana de Atenas; funda apesar disso uma ciência autónoma da po­
lítica. Enquanto em Platão, por um lado, os escritos podem ser lidos
no seu conjunto como uma contribuição para a filosofia política
— porque, em virtude'da tese do filósofo-rei (República, V, 473c-d), a filo­
sofia possui uma tarefa política, e a política, inversamente, depende
da filosofia — e que, por outro lado, a República, contrariamente ao
seu título, não encerra apenas uma filosofia política, mas uma enci­
clopédia quase completa das ciências políticas, Aristóteles empenha-
-se, no que lhe diz respeito, em emancipar os domínios temáticos
particulares para os converter em disciplinas separadas.
Porém, Aristóteles não vive retirado de toda a prática política;
entre a Macedónia e diversas cidades gregas, encarrega-se de tarefas
de mediação pelas quais os «cidadãos de Atenas» lhe agradecem
numa inscrição. Céptico em relação à vocação política do filósofo
reivindicada por Platão e por fim malograda, não considera as mis­
sões desse género como sendo a continuação «natural» da filosofia
política. Por volta do fim dos seus «anos de aprendizagem», Aristó­
teles aceita de Delfos a tarefa de estabelecer uma lista dos vencedores
dos jogos píticos. Que tenha obtido este cargo pleno de honrarias, é
um testemunho do seu renome científico; e que ele o desempenhe
correctamente, deve-se à sua vasta curiosidade intelectual; às outras
pesquisas junta-se aqui a escrita da história. Pelo seu desempenho,
é-lhe concedido um decreto honorífico que no entanto é revogado
por altura da sublevação antimacedónia de 323.

2)
O texto principal de Aristóteles em matéria de filosofia política,
uma obra-prima no seu género, que permaneceu sem igual até aos
nossos dias, a Política, tem, tanto pelos temas como pelo método, um
horizonte de tal forma extenso que não só é estudado por filósofos,
filólogos e historiadores, mas também por especialistas de teoria cons­
titucional e de ciências políticas, e até por investigadores nas ciên­
cias sociais dos ramos experimentais.
A Política não é certamente uma «obra redigida de uma assen­
tada». Se é verdade que em geral os seus oito livros constituem uma
unidade desde o primeiro momento, não se lêem no entanto com a
mesma facilidade que a Ética a Nicómaco. Apesar disso, apresentam
uma doutrina coerente no essencial. Entrp as tpcpc anfocont-uioc
114 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

muitas há que permaneceram em vigor ao longo de toda a Idade Média


e da Renascença até às revoluções americana e francesa, e mesmo
muito para além para mais do que uma de entre elas: a tónica posta
na plurivocidade do «poder» (Pol., I, 1), a afirmação central de uma
antropologia política (I, 2), as primícias de uma teoria económica
(I, 3-13), assim como a crítica, rica de consequências, do justo e das
actividades usurárias (1,10, 1258 a 38 e segs.) e a justificação, não menos
rica de consequências, da escravatura; uma discussão sobre a histó­
ria das problemáticas constitucionais (II); o modelo de uma teoria
comparativa das formas (morfologia) do político (III-IV), compreen­
dendo a ideia das formas legítimas e ilegítimas de Estados, os ele­
mentos de uma sociologia política incluindo uma patologia do polí­
tico (V); uma teoria da democracia tendo ainda em consideração o
peso das suas próprias consequências (VI, 1-5); e, para coroar tudo,
uma utopia política que esboça uma comunidade ideal e que sobre
ela discute em detalhe a propósito desta dimensão, as propriedades
do solo e o acesso ao mar, e por outro lado as classes sociais, a idade
dos casamentos e a educação, e até a divisão do território (VII-VIII).
Além disso, Aristóteles compilou as constituições gregas em toda
a sua riqueza. Mas da colecção de cento e cinquenta e oito constitui­
ções já reputadas na Antiguidade apenas foi conservada a Constitui­
ção ãe Atenas. Para a filosofia política de Aristóteles, há grandes tre­
chos da Ética a Nicómaco que são particularmente importantes: além
das suas digressões metodológicas e das discussões sobre o princípio
director comum de felicidade (eudaimonia), os tratados sobre a justiça (V),
sobre amizade (VIII-IX) e a análise diferencial das vias teórica e
política (X, 6-9). Além disso, para uma compreensão de conjunto,
devem consultar-se o capítulo introdutório da História ãe animais e a
definição da liberdade da Metafísica (I, 2, 982 b 26) bem como partes
da Retórica (o livro i, capítulo 8, por exemplo, contém o esboço de
uma teoria constitucional). Finalmente, Aristóteles redigiu dois diálo­
gos políticos: Sobre a justiça e Politikos, dos quais, no entanto, só nos
chegaram alguns fragmentos.
Aquele que espera nestes textos um mundo que lhe seja estranho,
porque o assunto teria fundamentalmente mudado desde a Antigui­
dade e além disso seria de contar com asserções teóricas ultrapassa­
das, uma teleologia da natureza, uma ideia de cosmos e outros
elementos «metafísicos», ficará surpreendido. Seguramente, encon­
trará também elementos tributários da época. Por exemplo, até os
pequenos Estados de hoje, em comparação com as repúblicas urbanas
de então, se apresentam como sociedades de dimensões enormes.
ARISTÓTELES 115

Além disso, na ordem jurídica, a massa da regulamentação é bem


mais restrita, e faltam os juízes e os juristas profissionais. Antes de
tudo, reina na Constituição de Atenas uma falta de democracia
directa, que é desconhecida não apenas das democracias representativas,
mas também da democracia directa dos cantões suíços e das suas
assembleias locais. Outros elementos, e em particular a justificação
da escravatura e da desigualdade das mulheres, são mesmo chocan­
tes, mas sobreviveram por muito tempo na Europa e nos Estados
Unidos até ao século xix. Em compensação, as afirmações sobre o
homem como ser político assim como sobre as diversas formas de
Estado permanecem até hoje dignas de serem tomadas em considera­
ção. A ideia de submeter a regras o processo político, da mesma forma
que um processo jurídico, marcará as constituições europeias
até hoje. As reflexões sobre a justiça, sobre a amizade e sobre o bom
cidadão, e, além disso, as considerações sobre a democracia convi­
dam imediatamente também elas, apesar da distância histórica, a
um discurso filosófico. As questões fundamentais não se encontram
realmente reunidas na época e os argumentos não estão, regra geral,
tão estreitamente em ligação com as particularidades da cidade
grega que se afastem a priori de um discurso que ultrapassa a simples
cultura, de um discurso universalista.

1 — Liberalismo no método

Considerada pelo seu método, a filosofia política de Aristóteles é


moderna sob múltiplos pontos de vista. E essas diferenças de ponto
de vista — uma ligação da teoria com a experiência, a renúncia à
metafísica, um interesse prático-político e a ideia de um saber com­
pendiado — são apropriadas ã um liberalismo político.

Saturado de experiência

O primeiro elemento apenas requer ser mencionado: Aristóteles


apoia-se com uma riqueza desacostumada na experiência política.
Porque conhece as alterações da comunidade ateniense, porque a
compara com outras, e até com comunidades não gregas como as de
Cartago, da Pérsia ou da Média, e observa com não menos atenção
os estabelecimentos coloniais que eram também um terreno de
116 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

experimentação da política, a sua filosofia política — tal como todo


o seu pensamento — alia um poder de análise e de especulação a
uma grande quantidade de experiência. É assim que ele satisfaz uma
primeira condição do espírito liberal: em vez de aparecer com ideias
preconcebidas estabelecidas de maneira dogmática, instrui-se
no mundo — através de experiências tanto particulares como
colectivas.

Sem metafísica

Hoje, no século da dúvida sobre a metafísica, a filosofia estabele­


ce-se regra geral como uma reflexão «sem metafísica». No caso da
filosofia política, considera-se mesmo a renúncia à metafísica como
uma condição prévia ao espírito liberal em política; na realidade, a
metafísica aparentar-se-ia com a religião, com a teologia ou com uma
ideologia (globalizante). Embora Aristóteles tenha redigido tratados
que um editor publicou posteriormente sob o título Metafísica, satis­
faz sem dificuldade esta condição.
Enquanto Platão adere na República à teoria metafísica das ideias,
a filosofia política de Aristóteles desenvolve-se sem premissas
metafísicas. Em particular, ele é profundamente estranho a esses
elementos que ameaçam o liberalismo, que associamos hoje ao funda-
mentalismo (religioso), tais como uma obrigação pública de práticas
religiosas ou uma revelação religiosa e representações de salvação e
de redenção. Aristóteles argumenta como antropólogo e como teó­
rico das sociedades, como teórico das instituições ou por comparação
das constituições, ocasionalmente referindo-se à biologia — quando
declara o todo segundo o ser (phusei ousia) anterior à parte (Rol., I, 2,
1253 a 20-22) ou quando diz que a natureza não faz nada em vão
(1253 a 9) —, mas está constantemente afastado da metafísica. Na
medida em que a política de Aristóteles está estreitamente entrela­
çada com a ética, poder-se-iam temer desse lado elementos metafísi­
cos. Mas a exigência manifestada recentemente de uma «ética sem
metafísica» (Patzig, 1971), na medida em que se entenda por «meta­
física» a teoria de um ente supremo, tinha sido já satisfeita por Aris­
tóteles. Mesmo na crítica à teoria platónica das ideias (Ética a Nicó-
maco, I, 4) e na relação com o divino contido no bios theôrêtikos (Ética
a Nicómaco, X, 6-8), os argumentos decisivos são de natureza ética.
Além disso, se existe realmente uma teleologia, não há no entanto
uma teleologia da natureza estranha à ética, mas apenas uma teleo-
ARISTÓTELES 117

logia que resulta do conceito de acção. E nos casos em que Aristóteles


recorre a uma função característica do homem (I, 6, 1097 b 24 e segs.),
ele pensa certamente estar habilitado para incluir enunciados sobre o
ser, mas esses enunciados encerram um «essencialismo» muito pru­
dente e dispensam hipóteses metafísicas no sentido da Metafísica.
Desenvolve antes de mais uma teoria do soberano bem, embora de­
termine, num discurso mordaz contra o protótipo de uma entidade
metafísica, a ideia platónica do bem (I, 4, em particular 1096 b 33-
-35), tanto como «bem praticável» (to pantôn akrotaton tôn praktôn
agathôn: I, 2 1095 a 16 e segs.) como «bem para o homem» (anthrôpinon
agathon: I, 1, 1094 b 7). Quando na Suma Teológica (I II, qu.3, art. 4,
ad 4m), Tomás de Aquino alia por exemplo a teoria da tendência com
a teleologia da física e a doutrina do movimento divino da Metafísica
(XII, 7 e 9) na concepção de uma tendência natural (desiderium natu-
rale ou appetitus naturalis) e espera a felicidade perfeita (beatitudo per-
fecta) própria desta tendência apenas no além, sistematiza enuncia­
dos presentes em Aristóteles dando-lhes uma forma desconhecida do
próprio Aristóteles.

Uma filosofia autenticamente política

O teórico da justiça John Rawls vê a alternativa à teoria metafí­


sica numa teoria «política» que recusa a pretensão a uma validade
universal, que renuncia aos enunciados sobre o ser e sobre a identi­
dade das pessoas e que se satisfaz, em vez disso, com uma «hermenêu­
tica da democracia» (Hõffe, 1996, capítulo 6). Para Aristóteles, im­
por a si mesmo uma restrição desse género, é voltar atrás em relação
às possibilidades da filosofia. Não é nem na imbricação da política
com a ética, nem na antropologia política, na teoria da justiça ou na
teoria constitucional que ele situa a pretensão contida na razão hu­
mana universal a enunciados universalmente válidos. Contudo, as
teses correspondentes são de natureza política, num sentido mais
fundamental, é certo, do que o de Rawls e simultaneamente compro­
metidas com o liberalismo: a escolha entre modelos alternativos de
direito, de Estado e de política não resulta afinal da tradição e da
convenção, mas de argumentos desembaraçados da tradição. A tese
de Aristóteles em questão encontra-se na Ética a Nicómaco, obra
colada à política. Ela enuncia de maneira tão lapidar como provoca­
dora: «o fim não é o conhecimento, mas a acção» (to telos estin ou
gnôsis alia praxis: Ética a Nicómaco, I. 1, 1095 a 5 e sevs: também TT 9
118 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

1103 b 26 e segs., e X, 10,1197 a 35 - b 2), e portanto no caso do político


a prática política. Nos Principia Ethica (1903, § 14), G. E. Moore acredita
dever defender a tese contrária: «O problema directo da ética é o saber
e não a prática.» Mas o próprio Aristóteles não procura a intenção
prática nem numa admoestação moral, nem nas acções políticas,
mas procura-a sobretudo e exclusivamente através do conceito, do
argumento e da determinação de princípios (Ética a Nicómaco, I, 2,
1095 a 30 e segs., cf. I, 7, 1098 a 33 - b 8). A filosofia prática de Aristó­
teles decorre também muito pouco, como não cessa de se dizer desde
Teichmüller (1879, § 2), da razão prática, da phronêsis, quer dizer da
prudência. Visando imediatamente não a acção, mas o conheci­
mento desta última, ela pertence segundo a acepção actual do termo
à teoria. Enquanto «teoria prática», não tem, ao contrário de uma
«teoria teorética», qualquer fim em si própria, está às ordens de um
senhor que lhe é estranho, a prática (política).
Como se sabe, Platão sustenta já uma intenção prático-política,
e de forma particularmente clara no princípio do filósofo-rei (Repú­
blica, V, 473 c-d; Carta VII, 326 a-b), em consequência do qual os males
no Estado não cessarão até que os filósofos se tornem reis ou, ao con­
trário, aqueles a que se chamam reis se ocupem sincera e seriamente
de filosofia. Em compensação, Aristóteles faz uma diferenciação
— de novo propícia ao liberalismo. Em vez de considerar toda a filoso­
fia ao serviço de um fim prático, separa as disciplinas que procuram
o conhecimento puro e simples (filosofia primeira ou metafísica, filo­
sofia da natureza e cosmologia, matemáticas) daquelas para quem o
conhecimento não é um fim em si. O carácter prático-político começa
com a capacidade de compreender as dificuldades de orientação
e de legitimação próprias da época, dificuldades de tal forma funda­
mentais que se mantiveram actuais até hoje: (1) De acordo com uma
dificuldade prática (moral ou politicamente), existem géneros de vida
concorrentes (bioi: I, 3); quer dizer em política: formas de constitui­
ção em contradição umas com as outras; e por essa razão, de um
lado o indivíduo e do outro a comunidade não sabem como realizar
melhor o fim director, a felicidade, quer dizer, o bem comum. (2) Se­
gundo a dificuldade ética, fundamentalmente política, existe no
objecto, o bem e o justo, uma tal instabilidade e uma tal incerteza
(ãiaphora kai planê) que tudo aparece como pura e simples obra
humana, como convenção (nomos) à qual falta qualquer momento
para lá da positividade (phusis: natureza; I, 1, 1094 b 14-16). (3) Nos
termos da dificuldade epistemológica, o objecto tem falta da constância
que toma possível um conhecimento (I, 1, 1094 b 16 e segs.).
ARISTÓTELES 119

De espírito realista, Aristóteles não se entrega à força de simples


palavras. Que os ensinamentos em matéria filosófica moral sejam de
alguma utilidade para os jovens, exclui-o expressamente (I, 1, 1094 b
27 e segs.; 1095 a 2 e seg.; cf. Shakespeare, Trotlus and Cressida, II, 2,
166 e segs.: «Unlike young men, whom Aristotle thought / Unfit to hear
moral philosophy»). Na verdade, pode muito bem ser-se matemático
durante a juventude, mas não prudente (VI, 9,1142 a l i e segs.), por­
que se tem falta de experiência prática e acima de tudo dessa «matu­
ridade moral» adquirida pela educação e pelo hábito, com a qual, em
vez de seguir as paixões momentâneas, pode ganhar-se para si um
estado estável na vida racional. Por essa razão, a filosofia prática não
está habilitada a suscitar a própria prática visada. Tendo em conta as
dificuldades citadas, ela pode no entanto esclarecê-las e desenvolver
através das suas luzes um potencial crítico. Este objectivo de investi­
gação continua a ser válido até à época moderna, e mesmo até ao
momento presente. De Kant até à crítica filosófica da moral por um
Nietzsche e à teoria crítica, os filósofos procuram uma clarificação
sobre a prática em nome de uma prática melhor e são por isso
mesmo, quer queiram quer não, aristotélicos.

Um saber compendiado

Devido à última dificuldade (a dificuldade epistemológica), Aris­


tóteles introduz uma forma específica de saber (Ética a Nicómaco, 1 ,1,
1094 b 11-27; cf. I, 7 e II, 2) e, com esta última, dá mostras de um
espírito liberal através do seu método autêntico. Antes de tudo, a
época moderna mede naturalmente a cientificidade usando uma
medida unitária, nomeadamente a prova dedutiva das matemáticas,
e verifica então um défice no caso da ética e da filosofia política.
Sem abolir este ideal que desenvolve nos Segundos analíticos (em par­
ticular livro I, capítulos 1-4), Aristóteles cultiva geralmente um alto
grau de flexibilidade e de tolerância epistemológica. Mencionando a
situação correspondente nos artífices — a compreender da seguinte
maneira: um ferreiro pode permitir-se tolerâncias que um ourives não
se permite —, desenvolve um princípio de exactidão proporcionado
ao objecto (Ética a Nicómaco, I, 1, 1094 b 12 e segs.: cf. Hõffe 19962,
2.a parte) com duas afirmações claras fundamentalmente diferentes: (1)
Porque os bens como a coragem, e até a riqueza, são em regra geral
propícios à felicidade sem que sejam sempre forçosamente, a ética
contenta-se — tal como, por analogia, a filosofia política — com enun-
120 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ciados exactos na maioria das vezes, mas não em todos os casos (hôs
epi to polu: Ética a Nicómaco, I , 1, 1094 b 21; III, 5,1112 b 8 e segs.; V, 14,
1137 b 15 segs.). Ao mesmo tempo, opõe-se a um rigorismo antiliberal
que proclama que as regras gerais são princípios universais. Em vez
disso, a ética requer aquilo que fortalece a responsabilidade de si
mesmo (autonomia e soberania): a capacidade, tanto sensível como
criativa, de prudência (phronêsis). (2) Porque as acções concretas e
as instituições dependem de condições marginais variáveis, fala-se
delas tupô: um saber em grandes linhas, um saber compendiado. Este
não consiste em descrições completas da coisa, mas apenas num tipo
de grelhas estruturais. Essas últimas designam o ser mantendo-se idên­
tico a si próprio (o da felicidade, da virtude e das virtudes, etc.), e têm
em conta que a realização completa faz parte do ser, e deixam cons­
cientemente em suspenso o que faz parte dele (cf. X, 9,1179 a 17-22).

2 — Política e ética

Primado ou divisão do trabalho?

Segundo o capítulo de introdução da Ética a Nicómaco (I, 1, 1094


a 26-b 11), a filosofia política está estreitamente imbricada com a ética.
O bem principal, a euáaimonia (felicidade), é de facto o mesmo
tanto para o indivíduo como para a comunidade (cf. Política, I, 1,
1252 a 1 segs. em ligação com I, 2, 1252 b 30; cf. também III, 9, 1280 a
32). A este propósito, o primado dado à política funda-se em duas
razões: por um lado, ela é «o que há de mais importante e de arqui-
tectónico em mais alto grau» relativamente à felicidade; por outro
lado, a felicidade é «seguramente já agradável num homem só, mas
é o que há de mais belo e mais divino para povos e Estados».
Segundo uma opinião difundida, a felicidade é qualquer coisa de
pessoal, até mesmo de muito privado. A concepção fundamental­
mente diferente que Aristóteles tem dela começa no momento em
que subordina a felicidade a um domínio que consideramos que nunca
se relacionaria com ela senão subsidiariamente: a política. Poder-se-
-ia querer fazer desta diferença assim esboçada o próprio símbolo
da oposição entre os Antigos e os Modernos: enquanto na época mo­
derna, é o conceito pessoal, por vezes mesmo de carácter privado, da
felicidade que predomina — a felicidade como um sentimento de feli­
cidade ou uma interioridade determinada —, para a Antiguidade re-
ARISTÓTELES 121

presentada por Aristóteles, a felicidade só se realiza no interior de


uma cidade ou do Estado. E segue-se daí um duplo primado, o do
Estado sobre o indivíduo e o da filosofia política sobre a ética. Na
verdade, Aristóteles não subordina a ética filosófica à filosofia polí­
tica, mas a felicidade à política. E mesmo esta subordinação não é
válida pura e simplesmente, mas apenas relativamente às competên­
cias práticas tais como a arte da guerra, a economia e a retórica (1094
b 3). Porque só à política é que é atribuída uma superioridade rela­
tiva, nenhuma contradição surge quando Aristóteles rejeita noutros
aspectos o primado da política: no livro VI (7, 1141 a 20-22) a propó­
sito da classe do seu objecto — é «absurdo considerar a competência
política [...] como a mais elevada, porque o homem não é o que há
de melhor no mundo» — e no livro x (capítulo 6-9) a propósito da
maior aptidão à felicidade da vida teorética.
As alternativas significam ainda outra coisa: a felicidade por um
lado e a política por outro não tomam o lugar da competência estra­
tégica, económica e retórica; elas não fazem mais do que relativizar a
posição destas últimas. A política não possui um carácter exclusivo,
incompatível com as outras opções, mas um carácter inclusivo, que
engloba essas opções (periechei) e ao mesmo tempo as dirige legife-
rando (nomothetousês). Afinal, só são relativizadas estas últimas com­
petências («artes»), e não a ética. É só na segunda argumentação
(no seguimento da Ética a Nicómaco, I, 1, 1094 a 28-b 7, neste caso
1094 b 7-11) qüe se esboça um primado — na verdade somente limi­
tado — da filosofia política sobre a ética: indivíduos e Estados per­
seguem seguramente o mesmo bem, o mesmo fim (cf. Pol, VII, 1,1323
b 40 e segs. e VII, 15, 1334 a 11); mas no caso de povos e de Estados,
este último tem um engrandecimento (1094 b 7-10; e também Políti­
ca, IV, 9, 1294 b 6-10). Esta gradação significa que já no indivíduo a
felicidade dispõe de todas as qualidades excepcionais; é perfeita
(teleion), desejável (agapêton), bela (kalon) e divina (theion). Mas nas
comunidades, muitos são os que gozam dessa felicidade.
Se é preferível que as comunidades tomem parte na felicidade,
esta seria ainda mais desejável na comunidade das comunidades, em
toda a humanidade. O grande aristotélico da Idade Média, Tomás
de Aquino, tira precisamente esta conclusão no seu comentário à
Ética de Aristóteles. Ele não acrescenta no entanto que o próprio
Aristóteles não tinha feito esta extrapolação; nem aqui nem noutros
pontos da Ética e da Política deu mostras o seu cosmopolitismo.
Quais são então as relações mútuas da filosofia política e da
ética filosófica? De um lado. há entrp as rhias rHerirdinnc miiltinlac
122 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ligações. Assim os conceitos fundamentais da ética - a felicidade, as vir­


tudes morais e em especial a justiça (ver mais adiante IV) e a amizade
(ver mais adiante p. 139) — desempenham todas igualmente sem
excepção um grande papel também na política. Inversamente, as
virtudes morais — sem prejuízo da sua ancoragem no carácter do
indivíduo - têm a cidade como sede da sua existência, e as leis desta
última têm também que conduzir a uma vida boa (cf. Ética a Nicó-
maco, X, 10). Além disso, pode realizar-se a felicidade no bios politikos,
a existência (moralmente) política. Por outro lado, há entre as duas
disciplinas uma clara divisão de trabalho; e é através dela que Aris­
tóteles se afasta de Platão que, na República, integra a totalidade da
ética na política: enquanto a ética desenvolve os conceitos funda­
mentais normativos comuns, em particular o conceito director de feli­
cidade, trata além disso das condições pessoais que ajudam o indiví­
duo a obter a felicidade e confia à Política o exame das instituições e
das constituições, incluindo as condições da estabilidade política e
da decadência política. Porque não há nenhuma subordinação, mas
sim uma coordenação, o outro título dado por Aristóteles está de
acordo com os factos, a saber a caracterização que já não hierar­
quiza, mas encadeia: hê peri ta anthropeia philosophia (X, 10, 1181 b
15). Enquanto «filosofia dos assuntos humanos», a ética e a política
formam em conjunto o núcleo de uma teoria filosófica do homem, de
uma antropologia filosófica. Os conceitos normativos fundamentais
desta última, virtude e perversidade, são específicos do género hu­
mano, porque são desconhecidos simultaneamente das feras e da
divindade (VII, 1, 1145 a 25 e segs.).

O princípio comum — a felicidade

O princípio comum que é a felicidade, Aristóteles extrai-o da sua


concepção da acção humana, a tendência (orexis). Com isso, chama
a atenção implicitamente para um estado de coisas que, em filosofia
moral, é até hoje alvo de observação: a dependência do princípio
moral em relação a uma concepção da acção. De qualquer modo
que se entenda a acção como uma actividade intencional ou virada
para um fim, ou mesmo como tendência, a dimensão última da
acção humana consiste num fim absolutamente supremo, a felicidade.
Segundo uma das objecções de Kant, o conceito de felicidade carac-
teriza-se por um alto grau de indeterminação, e dependeria além
disso de condições subjectivas (Fundamentos, Ak., IV, 418). Aristóteles
ARISTÓTELES 123

consegue portanto criar um conceito bem determinado, e por ou­


tro lado objectivo, sem se imiscuir nos direitos de cada homem a tor­
nar-se feliz a seu modo; em primeiro lugar, Aristóteles rejeita tanto a
pequena felicidade, a felicidade como sorte (Ética a Nicómaco, I, 10,
1099 b 20 e segs.; Política, VII, 1, 1323 b 26 e segs.) como a grande felici­
dade, essa felicidade (makariotês) que é reservada à divindade (Ética a
Nicómaco, X, 8,1178 b 21 e segs.). A felicidade que não deixamos que
nos advenha passivamente, mas para a qual trabalhamos activamente,
a felicidade da tendência, consiste, contrariamente à felicidade da
nostalgia, numa perfeição inerente à vida (cf. eu zên) e à acção
(eu prattein). No termo euãaimonia (literalmente: o facto de ser animado
por um bom espírito) ressoa certamente também a presença da bên­
ção e da salvação. À questão ainda hoje debatida de saber em que
consiste a felicidade, a Retórica (I, 5, 1360 b 19-24) responde com uma
longa lista: «uma boa origem, numerosas amizades, amizades honro­
sas, a riqueza, uma boa descendência, uma boa velhice, além das
qualidades do corpo — como a saúde, a beleza, a força, uma estatura
elevada, capacidades atléticas -—, o renome, a honra, a boa sorte, a
virtude (ou igualmente as suas partes: sensatez, coragem, tempe­
rança, justiça)». A Ética reúne por assim dizer todos esses elementos
tirados da convicção grega comum, mas empreende todavia precisar
a sua caracterização.
Em primeiro lugar, discute a felicidade do ponto de vista dos bioi
(I, 3 e X, 6-9): do ponto de vista das formas de vida ou dos projectos
de vida alternativos segundo os quais se vive a vida globalmente e em
função dos quais se decide por uma maneira determinada de ser ho­
mem. Esta maneira de expor a felicidade encerra já três implicações
importantes. Primeiramente, a tentativa dos utilitaristas, como Ben-
tham, de medir a felicidade com o auxílio de um cálculo hedonista
aparece aqui como ingénua. A questão a respeito da felicidade neces­
sita primeiro de uma resposta comportando pelo menos três eta­
pas: (1) procurar uma estratégia de vida apropriada para a felici­
dade; (2) nesse quadro, desenvolver atitudes fundamentais («virtudes»)
ou mesmo regras de acção de segundo nível, princípios; (3) só a
partir delas é que a acção concreta se deixa determinar. Em segundo
lugar, por mais que, como o sugere Aristóteles, a forma de vida seja
escolhida (Ética a Nicómaco, I, 3, 1095 b 20; cf. Metafísica, IV, 2, 1004
b 24 e segs.), a felicidade não se deve tanto à sorte, ao acaso ou a forças
exteriores, mas pelo contrário é o próprio indivíduo que é responsá­
vel por ela. Da mesma forma que na execução de um músico tem
pvirlpntpmpntp imnnrfâriria n insfrnmpnfn (nnr mitrpi« nalíwrpis* ns
124 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

bens exteriores), a arte da execução é no entanto mais importante


(Política, VII, 12, 1332 a 25-27). Finalmente, não se pode identificar a
felicidade nem com um estado (passageiro) de máximo bem-estar nem
com uma realização individual que se superasse. O que é para atin­
gir com segurança e — no sentido de uma «democratização da felici­
dade» — está aberto a todos, é uma qualidade que se confere à sua
biografia na medida em que forma um todo, um sucesso global de
uma vida inteira.
Dando um passo suplementar, Aristóteles exclui formas de vida
que, condicionadas pela sua estrutura, não alcançam a felicidade.
Ele ultrapassa aqui o liberalismo do laisser-faire sem restringir de ma­
neira iliberal a liberdade de acção do homem. Aristóteles não se torna
responsável pelo paternalismo de que o acusam ocasionalmente.
A uma pura vida de prazer (bios apolaustikos) falta a felicidade
porque em vez de tomar as rédeas da sua existência, se submete aos
desejos sensuais e às paixões, aos afectos. O prazer (hêdonê) é toda­
via uma parte constitutiva integrante da felicidade (I, 5, 1097 b 4 e
segs.). Entendido como aprovação livre do que se faz, reforça a acti-
vidade correspondente (X, 5,1175 a 30-36 e b 14 e seg.) e, ao mesmo
tempo, a vida boa. Na medida em que uma das virtudes, a coragem,
inclui a disposição para aceitar para si próprio as feridas e até a morte,
a vida boa não está ligada ao prazer em todos os aspectos (III, 12,
1117 b 7-16).
Menos apto ainda à felicidade do que a pura vida de prazer é esta
forma de vida que Max Weber descreverá como fundamento do capi­
talismo: a existência visando apenas o lucro financeiro (chrêmatistês
bios). Aristóteles não despreza a riqueza; pelo contrário, inclui a posse
de bens exteriores entre as condições da felicidade (por exemplo,
Ética a Nicómaco, X, 9,1178 b 33 e segs.); e grandes posses permitem à
virtude da liberalidade elevar-se até à magnificência (IV, 4-6). É pre­
ciso unicamente rejeitar esta perversão que transforma um meio tal
como a riqueza num fim em si (cf. Política, I, 9-10 e VII, 1, 1323 a 36 e
segs.). Então, amontoa-se o dinheiro até ao infinito - o que faz pensar
no processo de acumulação de capital. A vida política é também
rejeitada (bios politikos), na medida em que se aspira à timê, à consi­
deração, à glória. Aristóteles não critica aqui o interesse típico que
os gregos dão à garantia de um lugar na memória da posteridade.
Mas não vê na honra senão um sinal exterior manifestando o que se
procura verdadeiramente.
Só ficam em competição para a felicidade duas formas de vida:
a vida política, na medida em que depende do verdadeiro v alo r
ARISTÓTELES 125

(aretê: I, 3, 1095 b 22 e segs.; cf. IV, 7, 1124 a 22 e segs.), e por outro


lado, a existência teorética. Antes que a questão da sua concorrência
seja resolvida, Aristóteles determina com maior exactidão o conceito
de felicidade com duas séries de argumentos: uma reflexão formal,
semântica (I, 5) e uma outra, real, antropológica (I, 6).
Para compreender o carácter extraordinário da felicidade como
fim, Aristóteles formula via eminentiae um duplo conceito de fim su­
premo e último a que se aspira em geral (Ética a Nicómaco, I, 5). Ele
constrói pois uma hierarquia formal de fins (telê), constituída por
três níveis: (1) puros fins intermédios, que, tal como a riqueza, são
escolhidos tendo em vista outras coisas, e (2) fins finais (telê teleia)
que, como o prazer, a honra e a razão, são já escolhidos por eles
próprios, para acabar (3) este «fim mais final» (teleiotaton) a que se
aspira «sempre apenas por ele próprio e nunca tendo em vista um
outro», o fim absolutamente supremo, a felicidade (I, 5, 1097, a
15-b 6).
Tanto nos debates aristotélicos como nos debates sobre os fins exis­
tem duas interpretações respeitantes ao fim supremo. Este é, ou qual­
quer coisa de monolítico, um fim que ultrapassa e domina todos os
outros fins (por exemplo Heinaman, 1988: Kenny, 1992), ou qualquer
coisa que é em si mesma múltipla, um fim inclusivo, que abarca todos
os outros fins (Ackrill em Hõffe, 1995). Em Aristóteles, ambas as de­
terminações se prestam ao conceito de felicidade, mas apenas dentro
de certos limites. Na medida em que ele determina a felicidade em
relação aos fins últimos habituais como respeitantes a um nível logi­
camente mais elevado, atribui-lhe um carácter dominante. Mas por­
que não apresenta alternativa (felicidade ou prazer, felicidade ou
conhecimento, etc.), o conceito habitual de fim dominante não é apro­
priado para ela. A razão é dominante, no interior do mesmo estrato,
se a comparamos com a honra. A felicidade tem todavia um carácter
inclusivo naquilo que liga uns aos outros os vários «fins últimos»; pelo
menos, o prazer resulta sempre dela a título de factor de realização.
Da mesma forma, é certo que Aristóteles retoma no decurso da Ética
por assim dizer todos os elementos das representações gregas de feli­
cidade citadas na Retórica. No entanto, não afirma que só é feliz aquele
que realiza todos esses elementos juntos; pelo contrário, o bios politi-
kos dispensa alguns desses elementos e o bios theôrêtikos muitos deles.
O conceito aristotélico de felicidade lembra a definição ontoló­
gica de Deus. O que Anselmo diz relativamente ao ser — Deus é esse
para além do qual nada de maior pode ser pensado (id quo maius
r n r r i í n r i v u ? n u i t \ ---- ^rY lir^-çp V»pm m i a n f im F n m ip m f n íp ln c + p lp in fn + rm
126 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

a felicidade apresenta-se como um fim no qual a finalidade é dada


numa significação suprema inultrapassável. Na medida em que este
fim se encontra a um nível superior ao dos fins habituais e contudo
só é realizado no «interior» desses fins, ele possui um carácter trans­
cendental; é uma «condição, a título de princípio, da possibilidade
de...», a saber, a condição que decide para todos os fins a sua vali­
dade como fim.
Para a segunda determinação de felicidade, o facto de se bastar a
si mesma (autarkeia: I, 5, 1097 b 6), Aristóteles cria de novo um super­
lativo, aqui para «desejável» (hairetos). Contra a tentativa de enfra­
quecer o que há de inabitual nesse conceito, acrescenta um mê sunari-
thmoumenê. Enquanto uma vida de prazer, como é dito mais tarde, se
torna desejável quando está ligada à prudência (X, 2, 1172 b 29-31),
a felicidade, porque não tem nada mais a acrescentar-lhe, é simples­
mente digna de aspiração (I, 5, 1097 b 17; cf. 1172 b 31 e segs.;
cf. Top., III). As virtudes como a justiça são louvadas, a felicidade, em
contrapartida, um fim em si num sentido absoluto, é venerada como
algo de divino e de melhor (I, 6, 1097 b 25-27).
Distinguem-se nos nossos dias éticas universalistas e éticas espe­
cíficas de uma cultura e de uma época. Com a semântica da felici­
dade, Aristóteles insere-se na primeira família e mostra por isso que
ela é mais alargada do que normalmente se admite. A mesma coisa se
verifica para a segunda série argumentativa, a saber esta busca de
um conceito provido de um conteúdo puramente semântico podia
conduzir a uma verdade de La Palice. De novo, Aristóteles não se
refere em nada a particularidades da cidade grega, mas antes a uma
reflexão que ultrapassa a cultura, uma reflexão doravante antropo­
lógica (Ética a Nicómaco, I, 6, cf. I, 13).
E certo que em relação às reflexões antropológicas reina nos nos­
sos dias o cepticismo; porém, a maneira como Aristóteles procede
poderia ainda continuar a convencer. Ele interroga-se sobre a função
característica do homem (ergon [tou] anihrôpou: I, 6, 1097 b 24 e segs.,
1098 a 7, cf. a 16) e identifica desta maneira a felicidade com a reali­
zação de si. Realizamos o nosso verdadeiro eu numa vida em confor­
midade com o logos. O perigo que ameaça aqui dar ao domínio inte­
lectual um peso demasiado elevado, evitou-o Aristóteles porque pôs
em evidência na Política (I, 2, 1253 a 9 e segs.) o carácter moral e prá­
tico da razão e porque, por outro lado, considera presentemente a
razão de uma dupla maneira, tanto «essencialmente e em si» como
«obedecendo à razão como a um pai» (Ética a Nicómaco, I, 6, 1098 a 4 e
sees. assim como I, 13, 1103 a 3). A razão essencial aoresenta-se na
ARISTÓTELES 127

vida científica e filosófica, a «razão obediente» numa vida em con­


formidade tanto com as virtudes do carácter como a coragem, a tem­
perança, a liberdade e a justiça como com a virtude intelectual quali­
ficada, a prudência.
Segundo Sólon, não existe felicidade senão no fim da vida, mas
então o que deve ser apelidado de feliz, a vida, já é passado (I, 11).
A esse paradoxo Aristóteles responde da seguinte forma: a felicidade
deveria durar «uma vida inteira» (I, 6, 1098 a 18); porque aquele a
quem, como Príamo, lhe acontece uma grande desgraça na velhice,
não se lhe chama feliz (I, 10, 1100 a 5-9). Esta observação concisa faz
lembrar a experiência judia de Job: mesmo aquele que trabalha com
toda a rectidão para a sua felicidade permanece à mercê de uma
potência superior. Aristóteles, pensador secular e, como tal, também
liberal, não entende esta força de forma teológica, mas como um con­
junto de acontecimentos contingentes.
A ideia que a razão não garante o sentido da vida racional e por­
tanto que um conceito de felicidade bem determinado não liberta o
homem das incertezas e dos riscos da vida pode ler-se como uma crí­
tica por antecipação contra a tese estóica segundo a qual o sábio
pode ser feliz mesmo quando sujeito à pobreza e à doença, até mesmo
quando o torturam. A experiência da vida poderia dar razão a
Aristóteles. Por outro lado, no fim da Ética, na apreciação da vida
teorética e da vida política, nenhum papel é desempenhado pelo
facto de a felicidade permanecer, por mais esforços que o homem
deva fazer sobre si mesmo, um frágil bem. A consequência radical
nos termos da qual o homem não pode ser responsável senão pela
sua felicidade e não pela própria felicidade, Aristóteles não a tira; ela
relativizaria grandemente também o seu princípio de felicidade. Em
vez disso, considera — a partir de agora com razão — que não existe
em nenhuma das ocupações humanas uma tal estabilidade como há
nas actividades em conformidade com a virtude (I, 11, 1100 b 12 e
segs.). E isso mesmo quando a via da rectidão moral não protege da
infelicidade — todas as outras vias conduzem por maioria de razão
ao çrecipício.
A laia de observação conclusiva quanto ao alcance de uma ética
determinada pelo princípio da felicidade, portanto uma ética eude-
monista: o facto de ela ser apenas relativizada pelo princípio kan­
tiano da autonomia, e não pura e simplesmente abolida, é o que mostra
por exemplo a crise ambiental. Muitos são os que preferem, é certo, o
diagnóstico mais patético que reclama absolutamente uma nova mo­
ral. Na verdaóp a
128 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

bases da sua existência, e em todo o caso do seu bem-estar, logo, a


felicidade. A terapia em relação a uma tal estupidez global encontra-
-se num ethos global, um ethos mundial que esteja voltado para o bem
humano, portanto, de maneira eudemonista.

Existência política ou existência teorética?

A reflexão final da Ética (X, 6-9) pronuncia-se sobre a concorrên­


cia até aqui aberta entre o bios theôrêtikos, a vida teorética, e o bios
politikos, a vida ético-política. Para além disso, pronuncia-se sobre a
pretensa oposição entre «pessoal, privado» e «político». Aristóteles
vale-se tanto da perspectiva semântica do fim mais alto como autar­
cia como — ao lado do prazer — da actividade própria do homem.
Na medida em que o homem se distingue do animal pelo logos, o re­
sultado é manifesto. A primazia pertence à vida que Aristóteles vê
apresentada de maneira exemplar por Anaxágoras e Tales (Ética a
Nicómaco, VI, 7,1141 b 3). O protótipo de um homem modelo é aquele
que conhece coisas certas supremamente difíceis e surpreendentes,
mas sob todos os pontos de vista inúteis (b 6-8): o cientista da teoria
pura e o filósofo (Política, VII, 1-3), em particular 1325 b 14-32).
Segundo Aristóteles, a vida de theôria satisfaz os critérios da felici­
dade, por exemplo a autarcia, numa medida soberana, porque a
theôria, diferentemente da vida política, não tem necessidade nem
de bens exteriores, nem de concidadãos e de amigos em relação aos
quais se deve agir com justiça, nem de liberalidade, etc. (Ética a Nicó­
maco, X, 7, 1177 a 29-32). Por outro lado, a theôria está liberta de
ameaças ligadas às circunstâncias contrárias. E a título de prática
que é desenvolvida para si mesma (Metafísica, 1, 2, 982 b 24-28), trans­
porta em si a sua justificação.
Esta resposta é duplamente notável. Por um lado, a forma de vida
que tem o lugar mais elevado é a que o próprio Aristóteles escolheu;
por outro lado, esta forma de vida, só alguns têm acesso a ela; a Ética
e igualmente a Política (VII, 3, 1325 b 14-30) defendem uma aristo­
cracia do espírito. (Os textos religiosos e as afirmações dos artistas
cultivam na verdade a mesma estratégia; os primeiros colocam no
ponto mais alto os santos, os segundos os artistas criadores). A tese
da preeminência decidida da theôria devia ser ainda mais provoca­
dora para a época do que o é nos nossos dias. De facto, no tempo de
Aristóteles não existiam instituições científicas estabelecidas há muito
tempo e grandemente reconhecidas; e estabelecimentos como a
ARISTÓTELES 129

Academia de Platão são consideradas com desconfiança (ver a crítica


virulenta em relação aos filósofos tanto nas Nuvens de Aristófanes
como na República de Platão, VII, 500 b; ver também Górgias, em par­
ticular 484 á e segs.). A isto opõe-se a frase de introdução da Metafí­
sica com uma «estratégia genial de antecipação», com a hierarquia
antropológica do puro desejo de saber. Por outro lado, segundo os
complementos da Ética (X, 7, 1177 a 22-27), o desejo de saber faculta
ao homem o prazer mais elevado, e além disso, com uma espantosa
pureza e constância. E a Poética continua: «aprender é o que dá mais
prazer não só aos filósofos, mas igualmente aos outros homens; no
entanto, esses últimos não têm muito tempo para isso» (4, 1448 b 13-
-15). De resto, aproximamo-nos do divino com a theôria e somos os
mais amados pela divindade {Ética a Nicómaco, X, 9, 1179 a 30). Já
Platão evocava a exigência de os filósofos se tomarem reis, para pôr
termo às desgraças para os Estados, e reconhecia ainda o critério da
«pertinência social» que hoje goza de favor; é unicamente a apologia
feita por Aristóteles da theôria pura que rejeita sem compromisso esse
critério. Mas mesmo aí se encontra um momento de liberalidade po­
lítica; se bem que o homem não possa renunciar a ela, a vida em
comunidade e o serviço desta última não formam o fim supremo do
homem. Remetendo para Aristóteles, Jean Bodin declara nos Six Li­
vres de la République (1583, 1, 1) que «a verdadeira felicidade de uma
República e de um homem só é tudo o mesmo». Mas a isso opõe-se a
preeminência do bios theôrêtikos. Mesmo a interpretação prudente
de Werner Jaeger, a ideia de «um humanismo político» segundo o
qual o homem não desenvolve completamente as suas capacidades
senão no quadro da cidade, só com restrições se aplica a Aristóteles.
De facto, o bios theorêtikos, que educa a razão e, com esta última, a
humanidade, é considerado apolítico em si mesmo.
Curiosamente, a preeminência da existência teorética aparece
como manifesta, e no entanto não é válida sem restrições. A existên­
cia ético-política também pode erguer uma pretensão à felicidade.
Com efeito, o que não é simplesmente necessário, a liberdade da
theôria, é apenas possível devido a um grau elevado de desenvolvi­
mento económico e cultural. Além disso, só há muito poucos homens
que estejam aptos para a vida correspondente. E, mesmo para esses, a
theôria apresenta-se como um estado da existência que certamente
toma imortal (athanazein, Ética a Nicómaco, X, 7, 1177 b 33), mas que
não é possível ao homem, diferentemente de Deus, senão por um
breve momento, num instante perfeitamente realizado (Metafísica, XII,
7. 1 0 7 2 h 1 4 P SPVsA E n n r issr» nnp a viría nnlítiVa p u m a fo rm a al+pr-
130 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

nativa para a maioria dos homens, e para uns poucos de entre eles
uma forma suplementar da vida teorética. Aquele que se empenha
na vida teorética leva uma existência parcialmente suprapolítica,
mas não uma existência extrapolítica.

3 — Antropologia política

«Política por natureza»

Phusei politikon zôon. — Esta expressão fundamental da antropo­


logia política provém de Aristóteles. No início da Política (I, 2, 1253
a l e segs.), aparece em ligação com três outras afirmações: a cidade é
a comunidade perfeita (1252 b 28); é natural (1253 a 2; cf. a 18 e seg.);
além disso, é por natureza anterior à família e aos indivíduos (1253
a 19; cf. a 25). Esses quatro teoremas foram todos reconhecidos du­
rante séculos sem oposição; foi só no início dos Tempos Modernos
que se chocaram com uma crítica crescente. Se esta fosse aplicada, os
teoremas perder-se-iam numa via antiqua substituída pela via mo­
derna.
A objecção mais virulenta vem de Hobbes. Porque considera o
homem menos como um ser social do que como um ser conflituoso,
Hobbes vê nas comunidades políticas «não somente agrupamentos
de pessoas, mas também pactos para a conclusão dos quais são ne­
cessários confiança e compréensão» (De eive, I, 1, nota). Daí, extrai a
clara antítese de que a comunidade é produzida pela arte (art) e não
pela natureza (Leviathan, introdução). À objecção de Hobbes juntou-
-se posteriormente a objecção da teoria da legitimação segundo a qual
Aristóteles derivaria de enunciados sobre a maneira como o homem é
a maneira como deve coexistir entre os seus semelhantes; cometeria
pois o erro de inferir do ser o dever-ser. Por fim, diz-se, o homem não
podia ser já um ser político dado o facto de as comunidades corres­
pondentes terem nascido tardiamente do ponto de vista histórico.
Esse último argumento, histórico, deixa-se refutar com uma rela­
tiva facilidade, encerra um conceito estático da natureza ao passo
que Aristóteles faz uso de um conceito dinâmico. E, ao contrário do
argumento da teoria da legitimação, liga uns aos outros momentos
descritivos e momentos normativos. O termo grego para a natureza,
phusis, deriva de phuein, phuesthai, e significa crescer, produzir, ser
formado. Segundo esse modelo tirado de processos biolóeicos. «natu-
ARISTÓTELES 131

reza» significa, no contexto da antropologia política, um desenvolvi­


mento segundo três pontos de vista. Significa o início, ao mesmo tempo
o motor, o fim e, em terceiro lugar, o desenrolar do desenvolvimento.
Apesar de, segundo a significação intermédia, a natureza ter a
ver com a essência do homem e com a realização de si mesmo, Aris­
tóteles não afirma que a humanidade se organiza sempre já em repú­
blicas urbanas, mas que o ergon tou anthrôpou, a função caracterís­
tica do homem consistindo em ele ser dotado de razão e linguagem, se
actualiza completamente apenas no interior de uma cidade-comuni­
dade. É nesse sentido que Aristóteles compara tanto os homens toma­
dos individualmente, como até as comunidades domésticas com ór­
gãos que não são capazes de realizar a sua função característica
senão no quadro do organismo inteiro e vivo (Política, I, 2, 1253 a 20-
-22). Assim não sustenta de maneira nenhuma uma interpretação
organicista que define a comunidade como um organismo hierarqui­
camente articulado, porque existem funções qualitativamente diver­
sas, e antes de tudo tanto funções senhoras como funções servas (de
igual modo, Platão, considerado de perto na República, IV, não defende
um modelo organicista). Contra isso, diz-se já que os seres que não
fazem mais do que servir, os escravos, de forma alguma são cidadãos
para Aristóteles, enquanto os cidadãos, porque a cidade é definida
como uma comunidade de homens livres, estão coordenados uns com
os outros e são portanto por princípio iguais em direitos. Com a ana­
logia do orgânico, Aristóteles põe a tónica na relação com a cidade,
essencial tanto para os indivíduos como para as comunidades pré-
-políticas. Do ponto de vista do indivíduo essa relação não é a bem
dizer essencial senão para a maioria, e não para todos. Porque tanto
há homens que são incapazes de viver em comunidade — e isso segu­
ramente como um animal selvagem (thêrion) — como homens que
graças a uma inabitual auto-suficiência— e isso como um deus
(theos) — não têm qualquer necessidade da comunidade.
Aristóteles também não cai num «erro de raciocínio biológico»
em consequência do qual as comunidades políticas se desenvolvem
«por si só», sem uma contribuição consciente particular do homem.
Fala de alguém que deu vida à cidade, qualifica-o como autor de
grandes bens (Política, I, 2, 1253 a 31) e dá com isso um passo em
direcção a Hobbes. É por isso que esses dois pensadores não estão,
como habitualmente consideramos, em absoluta contradição, mas
numa simples alternativa da via antiqua e da via moderna. Aristóteles
concederia absolutamente a Hobbes um momento de artificialidade;
-v>mr\14- 4-/-V/ÍOTT1 r» í ,4 r* nr»/-*•-<-*-*-»d n n nmnl r» ^ 1-ó-L-! ^ ^ ~ A . —1 —
132 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

sentido de não natural, dado que faz parte da verdadeira determina­


ção do homem. Imediatamente surge uma comunidade de espírito
essencial; tanto Aristóteles como Hobbes se opõem à ideia segundo a
qual o Estado seria um lugar que afastaria o homem da sua essência,
seja pelo do luxo e pela decadência (tal como o apresenta a segunda
etapa da génese da cidade em Platão, República, II, 372 c e segs.), seja
por uma restrição indevida da liberdade; em vez disso, vêem nele
uma forma social que ajuda o homem a realizar-se.
«Moderno», Aristóteles é-o também no sentido em que coloca o
homem em correlação com seres vivos que lhe são inferiores; na rea­
lidade, também encontra a propriedade do político nos animais. No
capítulo de introdução da História áos animais, ele distingue os ani­
mais que vivem isolados dos animais que vivem no estado gregário, e
reagrupa estes últimos em animais que vivem no estado disperso e em
animais «políticos», dando como exemplo de animais «políticos» o
homem, a abelha, a vespa, a formiga, o grou. Todos eles realizam
efectivamente uma obra comum (koinon ergon, 487 b 33-488 a 10) na
sua vida em comum. O segundo lugar fundamental para o conceito
de político, no livro i, capítulo 2 da Política, não retoma em nada a
determinação biológica, mas completa-a através de uma abordagem
comparativa. Segundo os termos desta, o homem não é apenas um ser
político, mas é seguramente mais (politikon [...] mallon) do que a abelha
e todos os outros animais gregários (Política, I, 2, 1253 a 8 e segs.).
Pode compreender-se esta elevação de maneira puramente quan­
titativa. Mas não é disso que se trata para Aristóteles, pois do que se
trata, para ele, em primeiro lugar, é do que é autenticamente polí­
tico segundo a nossa acepção, por exemplo das administrações e ins­
tituições, do direito e da luta pelo poder. Ele acentua antes o koinon
ergon já contido no conceito biológico. E nesse último, faz menos no­
tar a fiabilidade da cooperação — aquele que sonha com os diferen-
dos, e mesmo com as guerras, dificilmente pode também considerar
os homens mais cooperativos do que as abelhas ou as formigas — do
que a qualidade. Para um animal, o que importa é, no essencial,
simplesmente viver (zên)} para o homem, em compensação, é viver
bem (eu zên), ou seja, é o princípio comum à Ética, a euãaimonia, a
felicidade.
É por isso que Aristóteles não é o último a dar mostras de «mo­
dernidade», porque desenvolve já a ideia recente da subsidiariedade
— a comunidade, a sociedade como subsiâium: como ajuda e protec­
ção para os indivíduos, e as formas superiores de comunidades, de
Q n r ip H a H p C m m n ctiiiA a o — — -— — * --------------
ARISTÓTELES 133

O fundamento da natureza política do homem aparece subita­


mente mais do que «moderno», quando ele toma em consideração o
homem tanto correlativamente à natureza que lhe é inferior como na
sua situação particular única no seu género. Mais particularmente,
Aristóteles expõe quatro séries argumentativas extremamente den­
sas, três das quais iremos esboçar aqui. A primeira série argumenta-
tiva (Política, I, 2,1252 a 26-1253 a 7) retoma a ideia de Platão segundo
a qual o indivíduo não se basta a si próprio (ouk autarkês), mas tem
necessidade de muitos outros — seus semelhantes (pollôn enãeês, Re­
pública, II, 369 b). É certo que a série estende esta ideia e não a discute
apenas, contrariamente a Platão, no sentido económico da divisão
do trabalho e da melhoria da existência. Aristóteles coloca o pensa­
mento da cooperação, já conhecido por Platão, numa base empírica
mais alargada. Além disso, passa ao crivo a crítica da civilização
que aparece em Platão na segunda etapa da cidade, em que a argu­
mentação se torna menos contestável.
Aristóteles parte de duas formas de dependência recíproca. Elas
enunciam que o homem não se apresenta como um indivíduo atómico,
existindo isolado para si mesmo, mas vive desde o primeiro mo­
mento em relação com os seus semelhantes. Para além disso, na reci­
procidade ressoa um momento normativo que, na sua modéstia que
é a de uma justiça comutativa, mais uma vez faz Aristóteles apare­
cer como moderno: devido a um impulso semelhante ao instinto (hor-
mê, 1253 a 30), o homem e a mulher unem-se, e devido a talentos
qualitativamente diferentes, o senhor coopera com o servo ou com o
escravo. A isso acrescenta-se noutro lugar, como terceira relação dada
naturalmente, a das crianças (necessitando de ajuda) com os pais.
Desta tripla relação nasce a unidade fundamental biológico-eco­
nómica, a casa (oikos, oikia). Dado que as crianças, uma vez adultas,
fundam as suas próprias famílias, constitui-se — é a segunda etapa
do desenvolvimento — uma comunidade de casas com a mesma pro­
veniência, uma vila (komê) no sentido de uma parentela ou de um
clã. A partir de vários clãs constitui-se finalmente a comunidade em
que o elemento decisivo não é representado pelos laços de sangue
nem pela divisão do trabalho, mas pelo interesse dado à vida boa; é a
república urbana ou a cidade.
Enquanto a primeira série argumentativa provém, a favor da ci­
dade, de impulsos sociais parcialmente biológicos (homem e mulher,
pais e filhos), parcialmente biológico-económicos (senhor e servo ou
escravo), a segunda série apoia-se na capacidade de linguagem e de
-------- ~ _ /T O -I O i r o . r7 1 0 \ /T 7 ^J ~ J
134 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

estão totalmente separadas, porque o escravo se caracteriza pelo seu


défice de razão, pela sua falta de entendimento prospectivo, Política,
I, 2, 1252 a 31-34). As duas determinações fundamentais da antropo­
logia ocidental, a natureza política do homem e o facto de ele ser
dotado de linguagem e de razão, dependem pois uma da outra. Sem
a capacidade de raciocínio, o homem não pode realizar a sua natu­
reza política, apesar de ser certo que a capacidade de raciocinar se
desenvolve no quadro da cidade, só fora dela consegue a realização
do bios theorêtikos. Aristóteles distingue três níveis de racionalidade
prática e articula cada um deles com um nível de faculdade de
comunicar. O primeiro nível, que é mais propriamente um nível
preliminar, o da sensação de dor e prazer, até os animais o têm; ele
torna possível o político sob a forma elementar, a sobrevivência do
indivíduo e da espécie. Por causa do segundo nível que é ao mesmo
tempo o primeiro nível verdadeiramente racional, a saber, a capaci­
dade de reflectir sobre o útil e o prejudicial, pode dividir-se o fim
director que é a sobrevivência em fins parciais e fins intermédios e
formar as relações finais que lhe são destinadas. Finalmente, o logos
permite transcender o ponto de vista das utilidades particulares e
ganha uma dimensão autenticamente política, a saber, uma comu­
nidade não só do bom e do mau, mas também do justo e do injusto
(Política, I, 2, 1253 a 14-18).
Em relação à antropologia tão extensamente desenvolvida er-
guem-se as considerações de Hobbes para quem o político não teria
sido entendido senão como uma forma de cooperação; mas como a
cooperação exige ser organizada e por outro lado é ameaçada por
conflitos, por parasitas, o político teria necessidade de administra­
ções e de instituições coercitivas. Na realidade, nem mesmo a cidade
grega é o caso excepcional de uma comunidade desprovida de ele­
mentos de poder. Até Atenas cobra impostos e chama para o serviço
militar; estabelece medidas, moedas e procedimentos de direito civil;
por meio do ostracismo, pode condenar ao exílio; possui poderes
públicos e sobretudo um direito penal que compreende até — recor­
demos Sócrates — a pena capital.
Ora, a Política trata também das leis e da obediência a estas últi­
mas, e além disso, das administrações e instituições com muito deta­
lhe, e até dos três poderes públicos que conhecemos na teoria mo­
derna da divisão de poderes (Política, IV, 14). Seria tanto mais espantoso
que se tratasse da antropologia política (Política, I, 2), da coopera­
ção, mas não da coerção nem do poder. O político conteria então
um carácter anolítico e Aristóteles r>rnniinripir-se-i;i nw cih’,,i;,,m -■>
ARISTÓTELES 135

favor de qualquer coisa que só apareceria nos Tempos Modernos, na


época da Revolução Francesa; pronunciar-se-ia a favor da ausência
de poder. Sobretudo, Aristóteles não podia, se apenas se valia da
cooperação, atingir o objectivo da sua argumentação, a reconstrução
da cidade a partir das suas partes; partindo unicamente da natureza
social, não se pode produzir uma ordem social dotada de poderes de
constrangimento, não se pode «fazer um Estado».
Aristóteles avança no entanto uma terceira série de argumentos;
mas esta última não foi notada por Hobbes e muitos outros: é dito
explicitamente do homem que vive fora da cidade que ele é «ávido de
guerra» e além disso que ele é um «animal selvagem»; e acima de
tudo, e mais grave ainda é a injustiça armada (Política, I, 2, 1253 a 6,
a 29, a 33 e segs.). Nesses argumentos é antecipada uma parte dos enun­
ciados de Hobbes sobre «a guerra de todos contra todos» e sobre o
homem apresentado como um lobo do homem. Por outro lado, não se
pode interpretar o conceito de direito e de justiça ([dikaion) unicamente
a partir da natureza social, ele refere-se à resolução de conflitos, e
até à sua prevenção. Em consequência disso, a interpretação, in­
cluída na crítica hobbesiana de Aristóteles, que não vê na antropologia
política de Aristóteles mais do que a natureza social é surpreendente­
mente limitada. Contrariamente a Hobbes não há, segundo Aristóte­
les, apenas um meio de se precaver contra o perigo da guerra; a ami­
zade é pelo menos tão importante como o direito, a justiça e o Estado.
As três séries argumentativas esboçadas não são inteiramente
coerentes. O primeiro argumento liga a cidade ao difícil problema do
eu zên, da vida boa e bem sucedida, os outros dois argumentos con­
tentam-se com a utilidade recíproca e com uma comunidade de di­
reito e justiça. Essas duas determinações são retomadas no decurso
da Política, a primeira por exemplo no livro m, capítulo 9 (1280 a 32,
b 33), a segunda no livro m, capítulo 12 (1282 b 17: politikon agathon
to dikaion). A cidade está efectivamente liberta do segundo fim. Ape­
sar de a cidade também se encarregar das tarefas de educação, por
exemplo, ser responsável pela formação em ginástica e em música e
pela instrução em gramática (Política, VIII, 1-2), ela não é compe­
tente para a forma perfeita da felicidade, a vida teorética, nem, no
quadro da vida política, para toda a extensão da virtude. Satisfeita
com o que cabe aos seus semelhantes, a virtude «habitual» do bom
cidadão (politês spoudaios) não coincide com a virtude perfeita (aretê
teleia, Política, III, 4, 1276 b 16 e segs., b 34).
Segundo uma primeira acepção, não específica, de politikon, a
natureza nolítica afirma unirampntp m » r> Inmpm nãn m folir.
136 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

isoladamente, mas só numa vida comum com os seus semelhantes.


A segunda acepção, específica, precisa o modo desta existência comum
e ao mesmo tempo não admite a tradução muitas vezes utilizada,
mas truncada, e até banalizante de ens sociale, ser comunitário: não é
ainda na sexualidade e no trabalho, nem também quando uma socie­
dade «cuida de si própria» do ponto de vista económico (cf. Política,
VII, 6, 1326 b 27-30) ou na prosperidade económica, nem ainda na
entreajuda contra os delinquentes ou na paz interior e exterior que o
homem atinge o seu eu zên, a sua existência chegada à felicidade,
mas apenas no lugar onde ele reconhece esses pontos de vista em vez
de os pôr de lado e onde os transcende ao mesmo tempo que os inte­
gra numa existência que persegue metas mais exigentes. Desta ma­
neira, o «político» abrange um largo espectro. Começa quase de
maneira apolítica com as relações económicas domésticas; eleva-se
quando incide sobre as relações de parentesco, sobre a comunidade
cultual e cultural e a protecção interior e exterior. E a cidade é polí­
tica de maneira mais forte na comunidade do direito e da justiça.
Que o homem — no sentido de um primeiro nível do pensamento da
subsidiariedade — seja remetido em geral para uma vida comum com
os seus semelhantes, que as oportunidades da existência comum ape­
sar disso não se realizem — é o segundo nível da subsidiariedade —
senão numa comunidade quantitativamente maior e qualitativa­
mente mais exigente, a saber, para Aristóteles, na cidade determinada
como comunidade de homens livres e iguais — nesta afirmação a
dois níveis encontra-se o significado completo da natureza afirmada
por Aristóteles.
Contra a obrigação para uma comunidade de realizar a felici­
dade dos seus cidadãos, particularmente na exigente interpretação aris-
totélica da felicidade como realização das oportunidades de felici­
dade inerentes ao homem, ou, de maneira um pouco mais geral, como
realização de si e da humanidade, a época moderna tornou-se cada
vez mais céptica. Neste momento, duvida que as relações jurídicas e
políticas em geral sejam susceptíveis de contribuir para a realização
de si dos cidadãos. Teme sobretudo que uma comunidade jurídica e
política seja tentada apesar de tudo a imiscuir-se no livre jogo das
forças sociais e na esfera privada das forças individuais, a desenvol­
ver assim tendências totalitárias ou pelo menos iliberais e a estar em
contradição com o verdadeiro fim, a humanidade.
Devemos no entanto distinguir em Aristóteles entre uma defini­
ção formal e uma definição substancial da felicidade. A primeira de-
nende do carácter do fim esnecífim da fpliridadp (Ftirn n Nirnnwm T 3'»-
ARISTÓTELES 137

a segunda diz respeito «à tarefa e à função particular do homem»


(o argumento já evocado do ergon). Formalmente, para Aristóteles, a
felicidade não é um fim «positivo», mas é, não obstante, um fim ne­
cessário. A felicidade não é um interesse ou um fim a par dos outros;
não se pode tender por vezes para a beleza, para a riqueza ou para o
sucesso profissional, e outras vezes para a felicidade. A felicidade é
antes esse horizonte em que todos os fins e todos os interesses habi­
tuais encontram o seu sentido. É por isso que na felicidade se encontra
o fim último possível que não pode já ser ultrapassado, e também o
fim natural das tendências humanas. E pode estar-se de acordo com
a definição formal dada por Aristóteles, mesmo tendo dúvidas sobre
o seu conceito substancial de felicidade, quer por razões de prin­
cípio, quer no quadro de debates políticos sobre a legitimação.
De resto, é necessário distinguir uma significação directa de uma
significação simplesmente indirecta da cidade para a vida boa, coisa
que Aristóteles nem sempre respeita (por exemplo VII, 2, 1325 a 7 e
segs.). Além disso, não devemos esquecer quanto uma cidade grega é
diferente de um Estado moderno. Enquanto lugar em que se pode
abarcar toda a extensão num só olhar, dotado de uma topografia
familiar, de uma população bem conhecida, uma cidade não é ape­
nas uma associação com objectivo determinado, mas também uma
pátria e oferece já por esta razão muito mais oportunidades à huma­
nidade do que o Estado contemporâneo no seu carácter sistemático.
Além disso, devido aos seus meios burocráticos e policiais, são ine­
rentes ao Estado contemporâneo maiores riscos de abuso do que os
existentes na cidade antiga.
E, coisa a não negligenciar, não se pode interpretar o elemento
normativo na ideia da vida boa com muita insistência. Mesmo que o
próprio Aristóteles não chame muito a atenção para esse ponto:
a cidade é tão vantajosa para os que procuram uma existência de
prazer ou uma vida de comércio, que prosseguem portanto estratégias
de existência que estão em contradição com a definição substancial
da felicidade.

Uma importância sempre actual

Segundo a argumentação aristotélica, não há primeiro comuni­


dades a quem se pede depois ajuda, por exemplo, apelando à solida­
riedade, quer dizer, a um princípio vago do ponto de vista norma-
fir rr» r \ tt ~ - - --- -----*— ^ ~
138 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

moral ligada à virtude. A ajuda entra em jogo mais cedo na constru­


ção. As comunidades formam-se precisamente porque os indivíduos
não podem cada um por si «organizar» a sua vida. Da mesma forma
aparecem comunidades maiores e mais englobantes quando as for­
mas existentes até então chocam com os limites da sua força de agir.
A questão de saber em qual dos casos isso se produz depende de
factores que actuam por detrás dos homens. Naquilo que diz respeito
às unidades sociais inferiores, a responsabilidade pertence a dados
biológicos, à sexualidade, à necessidade de ajuda das crianças e
— para o dizer de uma maneira mais neutra do que a de Aristóteles — a
uma diferença de dons no mundo do trabalho. No que diz respeito ao
nascimento da cidade, é igualmente responsável, decerto, uma pers­
pectiva normativa, que não está isenta de opiniões e interesses sub­
jectivos de maneira diferente da dos factores biológicos; o homem
tem um interesse natural pela vida bem sucedida, pela felicidade
(eudaimonia).
Um aristotélico do início do período moderno, Johannes Althu-
sius, terá ainda em consideração na sua Política (3.a ed., 1614, capí­
tulo 17, § 25-33) as unidades mais globais que foram desenvolvidas
na sua época. Fora disso, aceita o modelo fundamental da argumen­
tação de Aristóteles: o conceito do político é a consociatio symbiotica,
a comunidade de vida. A sua forma mais pequena é constituída pelo
casamento sobre o qual se constrói sucessiva e organicamente o todo
social: primeiro a família e a associação (confraria), seguidamente a
comuna, a cidade, o país ou a província, e finalmente o império.
A argumentação de Aristóteles não é convincente unicamente
até ao início do período moderno, mas até hoje — é verdade que
apenas nos seus princípios. Com efeito, pesam sobre ela dois pontos
de crítica. Por um lado, lança um «olhar embelezador» sobre os po­
deres públicos ao ponto de perceber em primeiro lugar o seu poten­
cial de ordem e atenuar o seu carácter de poder. Por outro lado, existe
uma lacuna considerável. Se bem que tenham existido entre os gregos
instituições comuns, por exemplo os Jogos Olímpicos ou o oráculo
de Delfos, para além das moedas comuns, noutros lugares alianças
comerciais e militares, e por último relações com comunidades da
exterior da Hélada, falta o verdadeiro esboço de uma teoria corres­
pondente a uma comunidade jurídica que ultrapassa a cidade, e pelo
menos de uma comunidade intra-helénica. Mesmo a conferência de
paz convocada por Filipe II depois da vitória sobre os Atenienses e os
Tebanos (338 a. C.), da qual resulta uma aliança pan-helénica que irá
estabelecer uma paz geral, não encontra em Aristótplps nuainnor
ARISTÓTELES 139

Numa exortação a Alexandre, teria certamente desenvolvido a visão


de um Estado universal, de uma kosmo-polis dotada de uma constitui­
ção e de um governo, e libertada da guerra. Mas que uma obra com
temas tão numerosos como a Política não contenha esboços nesta
direcção cria algum cepticismo a respeito da hipótese de que o texto
divulgado apenas em árabe tenha realmente Aristóteles por autor.
Na perspectiva «internacional» que Aristóteles considera geralmente
(Política, II, 6, 1265 a 20 segs.), ele é realmente o «filho» de uma cul­
tura adquirida pela guerra. Vê decerto — tal como Platão (República,
II, 373d-e) — as razões para preparar a guerra, mas de modo
nenhum as razões para visar a uma ordem jurídica «internacional».
O que é mais surpreendente é que falte a consideração da comu­
nidade pan-helénica, por ela ser necessária aos dois fins da Política:
tanto para a sobrevivência (zên) da cidade particular, por exemplo
em relação à ameaça da Pérsia, como para a sua vida bem sucedida
(eu zên), por exemplo para a coesão religiosa, linguístico-cultural e
económica, mas também jurídica em mais de um aspecto. A razão
desta lacuna poderia assentar na sobreavaliação do potencial de au­
tarcia de que dispõe a cidade singular. Dá-se sempre o caso que o
factor que põe em marcha a formação da comunidade, isto é, a au­
tarcia que falta aos indivíduos, se condensa em unidades superiores.
E é aí que se mostra um terceiro nível do pensamento da subsidia-
riedade resultante da falta de autarcia; exige o estabelecimento de
unidades sociais novas, mais englobantes, e finalmente uma unidade
verdadeiramente global, compreendendo toda a humanidade.

A amizade e os outros pressupostos

Aristóteles não seria um dos pensadores políticos mais significa­


tivos, se apenas se tivesse limitado a estabelecer a natureza política
do homem e tivesse menosprezado as condições prévias e os limites
do político. O elemento mais importante é a amizade. Esta não se
limita a pertencer de uma maneirá geral àquilo que de mais necessá­
rio há na existência (Ética a Nicómaco, VIII, 1,1155 a 5 e segs.). Na medida
em que a cidade existe tendo em vista a vida boa, ela conduz a
«relações de parentesco, fratrias, sacrifícios comuns e formas de vida
social»; e todas são «obras da amizade, porque a amizade não é ou­
tra coisa senão a decisão de viver uns com os outros» (Política, III, 9,
1280 b 36-39; cf. Ética a Nicómaco, VIII, 13). Aristóteles não restringe a
a m iz a d e ao caso px cpn cin n al da a m iz a d e p s n i r i + n a l « r n m â n t í r a »
140 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

inteiramente pessoal, mas pensa antes nesta espécie de relação inten­


cional (cf. «decisão»), e não igualmente, não constantemente na rela­
ção institucionalizada segundo a forma da cidade.
É na Ética que é discutida a amizade (VIII-IX; cf. II, 7,1108 a 26-
-30; Ética Euã., VII; igualmente Retórica, II, 4) porque se trata no sen­
tido citado de relações não políticas e porque as relações dela com a
justiça são estreitas. No que diz respeito à amizade entre iguais, há
três espécies (Ética a Nicómaco, VIII, 3-8 e 15). Ou depende da utili­
dade comum, ou da alegria comum, ou — no caso da forma perfeita,
a «amizade de carácter» — do verdadeiro bem e ao mesmo tempo do
próprio amigo. Nos três motivos, a amizade manifesta-se como um
reflexo social da relação que o homem mantém consigo próprio:
de facto «ninguém quer tomar-se um outro» (IX, 4, 1166 a 20 e segs.).
É na espécie de amizade em que nos empenhamos que se mostra o
que em última análise conta para nós na existência.
Outras amizades assentam na desigualdade (VIII, 8-10; e também
VIII, 12-13 e 16). Entende-se com isso as relações entre pais e filhos,
entre homem e mulher, e até entre senhores e escravos; de facto, con­
siderados como homens, esses últimos são também capazes de ami­
zade (Vm, 13,1161 b 5 e segs.). Sob as suas múltiplas formas da camara­
dagem, da amizade de juventude e dos conhecimentos pessoais, da
hospitalidade e das relações com a família e os vizinhos, assim como
— expresso em termos modernos — da vida associativa, do espírito
de corpo e das redes baseadas na utilidade até às raras associações
com vista ao bem (VIII, 6, 1157 b 23; 13, 1161 a 13-27), as amizades
constituem um obstáculo à guerra de todos contra todos no sentido
de Hobbes. Estabelecem entre os homens essa concórdia que não re­
sulta das administrações e das instituições da cidade. Desta ma­
neira, providenciam a coesão política e são por isso, segundo Aristó­
teles, ainda mais importantes do que a justiça para o legislador. Entre
amigos, não há de facto necessidade de justiça (no caso de amizades
com fins utilitários, é todavia necessária, Ética a Nicómaco, VIII, 15),
mas os justos têm realmente necessidade também de amizade (VIII,
1, 1155 a 23-31).
A amizade requer a capacidade de estabelecer relações autênti­
cas com os outros sem perder por isso a sua independência. Para esse
fim, devemos libertar-nos de duas espécies de afectos, a saber, por
um lado o coquetismo importuno e a lisonja interesseira e por outro o
espírito de querela e a grosseria. Porque esses dois afectos se opõem
como contrários, a amizade comporta também o meio termo (Ética a
Nicómaco, TL, 7, 1108 a 26-30, cf. Etica Eud., HL 7, 1233 b 30-331 através
ARISTÓTELES 141

do qual Aristóteles define a virtude de carácter (II, 5, 1106 a 29-32


entre outros), a qual se reduz a uma relação reflectida, meditada,
bem como soberana dos afectos.
À questão de saber quem se deve amar mais, se a si próprio se ao
outro, a Ética dá uma resposta à primeira vista espantosa. O homem
de bem deve amar-se a si próprio (hautô philon einai; cf. Ética Euá., VII,
6, 1240 a 8); o mau (mochthêros) não pode fazê-lo. Eis o argumento
luminoso de Aristóteles: o homem de bem age moralmente e por esta
razão é benéfico para ele e para os outros; ele trabalha para os seus
amigos e para a sua pátria, sacrifica, se for caso disso, dinheiro e até
a sua vida em caso de necessidade. Mas porque o mau segue paixões
más, prejudica-se tanto a si próprio como aos seus próximos (Ética a
Nicómaco, IX, 8,1169 a 11 e segs.). Assim, nos casos do homem de bem,
o seu bem próprio forma uma unidade com o bem dos outros; o amigo
é um «outro si mesmo» (IX, 4, 1166 a 32; 1170 b 6; Ética Euá., VII,
12, 1245 a 30). Aqui se resolve um problema fundamental do eude-
monismo, a saber a questão da maneira como aquele que se pauta
pelo princípio da felicidade pode simultaneamente ser altruísta. Pode
sê-lo porque estabelece, «em nome da felicidade», amizades que se
estendem muito para além da sua utilidade própria. (Sobre a questão
de saber se o homem feliz tem necessidade de amigos, ver também
Ética a Nicómaco, IX, 9-11). É assim que o altruísmo, mesmo sem ser
especialmente apresentado, ocupa naturalmente um lugar na esté­
tica eudemonista. É verdade que só tem por objecto alguns homens,
geralmente muitos, mas não todos. Uma filantropia geral, um amor
ao próximo no modelo da parábola bíblica do bom Samaritano não
são tomados em consideração.
A teoria aristotélica da amizade estende-se até à crítica da Repú­
blica de Platão. Contra as relações anónimas da comunidade das mu­
lheres, das crianças e dos bens possuídos, Aristóteles defende as van­
tagens das relações pessoais: há muito mais cuidado de uns com os
outros; e, sobretudo, as relações sociais são mais claras (Política, II,
1-6). Nega expressamente algo que por vezes se lhe atribui, a saber, a
dissolução do indivíduo na comunidade política.
Uma segunda condição prévia desponta para a cidade nos ele­
mentos a partir dos quais ela se erige e a que Aristóteles, como o in­
dica a crítica dirigida a Platão, concede um direito particular. Não são
apenas as relações económicas, bem como as relações entre marido e
mulher ou entre pais e filhos que nascem de fundamentos pré-políti-
cos. O carácter legal dessas relações é também pré-político; é por
isso que uma comunidade não pode suprimi-las, mas apenas
142 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

desacreditá-las. A Política — e é também nisso que ela se mostra relati­


vamente moderna — reconhece os «direitos particulares» correspon­
dentes como evidentes. A secção que é consagrada à estrutura e ao
carácter legal das comunidades domésticas (Política, I, 3-13) em
parte alguma se preocupa com a filosofia política no sentido estrito.
Também a ciência, incluindo a filosofia, obedece a regularidades
particulares.
Uma condição prévia suplementar reside numa relação mais com­
plexa com a cidade; ela reforça, de resto, a imbricação da política e
da ética: as virtudes de carácter explicitadas in extenso na Ética são
tanto um pressuposto como uma consequência da cidade, no fim de
contas algo que se estende por cima dela. De uma tal relação entre a
política e as virtudes de carácter, e em geral do entrelaçamento da
política com a ética, poderia temer-se uma moralização contrária
ao liberalismo. A política produziria pressupostos morais, embora
devesse contentar-se com a observação das leis, quer dizer, em termos
kantianos, com a legalidade, e abandonar livremente aos cidadãos a
moral autêntica, a moralidade.
De facto, Aristóteles recusa a separação da política e da moral
análoga à separação — positivista — do direito e da moral. Como
enuncia logo na frase introdutória da Política (I, 1, 1252 a 2), todos os
Estados são comunidades e todas as comunidades só existem com
vista ao bem. Mas, de acordo com a distinção respectiva feita nesse
contexto da simples sobrevivência (zên), enquanto bem elementar, e
da vida boa (eu zên), enquanto bem perfeito, Aristóteles não duvida
que se pudessem determinar alguns níveis da própria política sem
atingir o nível da perfeição, a ética eudemonista. Mas com isso não
se chega a um conceito completo da política. E aqui, mas somente
aqui, as virtudes do carácter obtêm o triplo significado citado:
1) Formam um pressuposto da cidade na medida em que, sem
elas, a existência e o bem-estar da cidade estão ameaçados.
Com efeito, é somente no homem virtuoso que as leis
coercitivas encontram uma livre aprovação, de modo que
o elemento coercivo diminui e a cidade não deve recorrer
constantemente aos seus meios coercivos, coisa que ultra­
passaria as suas competências ou até a poderia conduzir à
sua própria perversão, ou seja, a tornar-se um Estado tota­
litário. É neste ponto que Aristóteles apresenta uma ideia
que o liberalismo moderno só voltou a alcançar pouco a
pouco: depende de uma moral que lhe seja apropriada.
ARISTÓTELES 143

2) As virtudes formam uma consequência da cidade porque a


maioria delas dizem respeito às relações sociais e políticas
e, por esta razão, se mostram na vida no interior da cidade.
Finalmente, ultrapassam a cidade no sentido em que as virtu­
des do cidadão apenas compreendem uma parte da vir­
tude perfeita. A diferença da moral completa ou morali­
dade, diferença que é do domínio do liberalismo, permanece
pois como garantia. O facto de, nos governantes, a virtude
do cidadão deve na verdade coincidir com a do homem
(III, 4, 1277 a 12 e segs.) chama justamente a atenção para
a exigência moral superior nos governantes; esta exigência
alargada parece realmente exagerada. Certamente que os
dirigentes não devem, por exemplo, ser suspeitos de cor­
rupção, nem os juízes de parcialidade, para que a comu­
nidade funcione. Mas que eles ajam moralmente em todos
os casos e que nunca possam fazer nada que se lhes possa
censurar no interior da comunidade doméstica ou em rela­
ção aos amigos, isso já é difícil de exigir.

Aristóteles admite com toda a legitimidade que seria impossível


que o Estado fosse constituído por homens puramente perfeitos (Polí­
tica, III, 4,1277 a 37 e segs.). Da mesma forma, não considera a cidade
como qualificada de maneira geral para uma vida boa, mas apenas,
em substância, para a comunidade do justo e do injusto (cf. Política,
I, 2, 1253 a 15-18 entre outras). A tese muitas vezes citada da Ética
segundo a qual o indivíduo e a cidade perseguem o mesmo bem (1,1,
1094 b 7 e segs.; cf. Política, VII, 1, 1323 b 40 e segs. e VII, 15,1334 a 11
segs.) ganha por isso mesmo uma interpretação moderada. Além da
existência política há a existência teorética. Por outro lado, no qua­
dro da existência política, é certo que a cidade prepara o quadro
económico, sqcial e jurídico com vista à vida boa, mas cada cidadão
deve decidir mais exactamente e conduzir a sua própria existência
nesse quadro. E neste ponto, o bem pessoal e o bem da comunidade
nem sempre coincidem.
A cidade tem um limite ainda mais radical com a natureza do
logos. Esta última não serve na realidade nem exclusivamente nem
em primeiro lugar à prática cooperativa. Pelo contrário, a forma mais
elevada de realização humana de si próprio, a teoria, é do domínio
da eupragia, da boa acção (Política, VII, 3, 1325 b 14 e segs.). É talvez
a ela que Aristóteles alude quando diz que o homem que não tem
n P rP C C ÍH aH p H a r n m n n i H a H o o - r a r a c à e im a n fa rria ah q m cm ah q
144 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

superior ao homem (ligado à comunidade) (1253 a 3 e segs., cf. a 28 e


segs.). Em qualquer caso, a natureza política não é, por razões
diversas, a totalidade do homem; a vida no Estado não concorda com
a humanidade completa.

4 — Justiça

Justiça e equidade

Tendo em conta os rendimentos e a fortuna, Aristóteles considera


três virtudes, a saber, além da liberalidade e da magnanimidade, a
justiça (âikaiosunê). É certo que a justiça não diz respeito somente às
relações de dinheiro. O que é característico dela, é o sinal distintivo,
importante para uma ética jurídica, do que é devido, por meio do
qual Aristóteles faz a separação do direito e da ética, separação que
falta nos aristotélicos modernos como Samuel Pufendorf e Christian
Wolff: a justiça distingue-se da liberalidade e da magnanimidade no
facto de incidir sobre o que é devido, e isso porque o direito coercivo
pode intervir, contrariamente às duas outras virtudes. Aristóteles fala
do allotrion agathon (Ética a Nicómaco, V, 3, 1130 a 3 e segs., cf. V, 10,
1134 b 5), do «bem do outro» que se pode entender como um bem
sobre o qual o outro tem uma pretensão. Ao carácter de dever res­
ponde o conceito já não subjectivo («meio para nós») mas objectivo
de meio («meio segundo a coisa»).
Os termos «justo» e «injusto» têm, de uma maneira geral, dois
significados. Na sua acepção objectiva ou institucional, dizem res­
peito a regras, em particular a regras jurídicas (leis), e a instituições,
e mesmo à ordem fundamental de uma comunidade política; na sua
acepção subjectiva ou pessoal, referem-se à atitude de pessoas. Aristó­
teles trata os dois significados. Naquilo que diz respeito à justiça ins­
titucional, a saber, a política, fala do dikaion, do justo e do injusto; no
que respeita a justiça pessoal, fala de dikaiosunê, a justiça como vir­
tude. No texto que examina a questão, é o segundo significado que
fornece o conceito director.
Logo no início, trata-se de justiça, de saber que não nos limita­
mos a agir com justiça, mas que além disso queremos ser justos (V, 1,
1129 a 8 e seg.; cf., V, 10,1135 a 5-V, 13). Portanto, cabe-lhe a ela mais
do que o acordo com o que é justo a que Kant chamará legalidade
(jurídica). Além disso é preciso um livre assentimento, a intenrãn
ARISTÓTELES 145

jurídica ou a moralidade (jurídica), na qual se empenha não só Kant,


mas já Aristóteles. E até com o exemplo do empréstimo, Kant está na
tradição de Aristóteles (e até de Platão: Republica, I, 331 c e segs.); este
último não apelida de justo num sentido essencial senão aquele que
devolve o empréstimo voluntariamente e não por medo da punição
(Ética a Nicómaco, V, 10, 1135 b 4-8). Da mesma maneira, Aristóteles
não vê produzir-se uma injustiça num sentido que não seja simples­
mente contingente, senão quando isso resulte da atitude correspon­
dente (Ética a Nicómaco, V, 13,1137 a 22 e segs.; a Retórica, I, 13, 1374
a 11 e segs., fala de proairesis, de uma escolha ou de uma decisão).
O justo na significação objectiva é determinado como o legal (nomi-
nos) e o igual (isos: Ética a Nicómaco, V, 2,1129 a 33 e segs.). A primeira
determinação significa a lei parcialmente escrita, a segunda não re­
mete de modo algum para a injunção igualitária democrática, mas
ao facto de não só não devermos receber menos, mas também parti­
cularmente ao facto de não devermos tomar mais do que o que nos
cabe segundo a lei. Enquanto o homem injusto na sua insaciabilidade
(pleonektês: b 1 e segs.) quer sempre ter mais, o justo escolhe o meio
caminho entre o facto de cometer a injustiça e o facto de a sofrer.
Quanto ao resto, Aristóteles apresenta distinções que nem sempre
são inteiramente claras, mas que, até bastante tarde na época mo­
derna e em parte até hoje, ocupam um lugar inteiramente canónico
numa fixação determinada da filosofia escolástica.
As primeiras distinções resultam do objecto. A justiça, na medida
em que constitui a totalidade da virtude (holê aretê) — a filosofia es­
colástica fala de justiça universal (justitia universalis) —, vale como
virtude perfeita (aretê teleia: Ética a Nicómaco, V, 3, 1129 b 26-1130 a
13). Porque é mais fácil ser virtuoso em relação a si próprio, aquele
que está igualmente em estado de o ser em relação aos outros realiza
um engrandecimento. Mas, como o pretende a limitação introduzida
por Aristóteles em relação a Platão (Leis, I, 631 c-â), não há justiça
senão em relação aos outros, e não em relação a si mesmo. E certo
que o livro v, capítulo 15, considera como interdita uma injustiça em
relação a si mesmo, o suicídio; mas Aristóteles interpreta-a como
uma injustiça em relação à cidade; a concepção platónica de uma
injustiça em relação a si mesmo, considera Aristóteles que não é sus­
tentável senão num sentido metafórico (Ética Eud., VII, 6, 1240 a 13 e
segs.).
A justiça universal é assimilada à justiça legal (justitia legalis) de
uma forma surpreendente (V, 15, 1138 a 8-10 entre outros). Isso fun­
da-se na ideia aue as leis «falam de tudo» e nrescrevem nor exemnlo
146 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

o que exige a coragem: não abandonar o seu posto, ou o que depende


da temperança: não cometer adultério nem acto de violência (V, 3,
1129 b 14-25). Todavia, não é de temer que se trate aqui de uma mora­
lização de direito e de uma pretensão exagerada da ordem jurídica.
Porque, na opinião de Aristóteles, as leis não podem exigir as virtu­
des correspondentes, mas unicamente as suas obras (erga; V, 3, 1129
b 19 e segs.). Além disso, elas satisfazem-se âe facto com uma parte
das virtudes, não com as obrigações, mas apenas com as interdições
que para mais, como o exemplo do adultério, contavam anteriormente
como omissões ao direito.
Acima de tudo, Aristóteles ergue-se contra a concepção tradicio­
nal segundo a qual na cidade boa reina uma correspondência per­
feita entre a rectidão dos cidadãos e as leis da cidade. De facto, ele
relativiza a justiça legal através de uma segunda espécie, a justiça
enquanto parte particular (en merei aretê: V, 4 e segs.). Esta última, a
justitia particularis, ocupa-se dos bens externos que têm, no quadro da
vida política, o peso de condições prévias. É como «bens sociais fun­
damentais» desse género que Aristóteles caracteriza as funções e as
dignidades (honra: time), os rendimentos ou o dinheiro (chrêmata), e
a saúde ou a segurança (sôtêria: V, 4, 1130 b 2).
A justiça particular articula-se (V, 8, 1132 b 24 e segs.) (1) em justiça
distributiva (nemêtikon díkaion), a justitia distributiva, e (2) em justiça
que regula as relações comerciais (ãiorthôtikon; igualmente epanor-
thôtikon: 1132 a 18), que se chama justitia commutativa (justiça comu­
tativa) desde São Tomás (Suma Teológica, II II, q. 58 e segs.), mas
que não foi apresentada dessa forma por Aristóteles. A sua medida é
a proporcionalidade aritmética («a : b = b : c»). A justiça ordenadora
de Aristóteles divide-se por seu lado (2.1) num «domínio voluntá­
rio», o actual direito civil — é apenas no caso deste último que se pode
falar de justiça comutativa, e apenas quando se trata de bens —, e
(2.2) num «domínio involuntário», o actual direito penal, para o qual
mais uma vez, (2.2.1) os «delitos clandestinos» são distinguidos de
(2.2.2) os «delitos violentos». A constância dos delitos que se apre­
senta aqui é notável; o que Aristóteles apresenta (V, 5, 1131 a 1-9) é,
regra geral, actual até aos nossos dias.
Enquanto para Platão o dinheiro se mantém sempre suspeito e
não é mais do que um mal necessário (por exemplo Leis, IX, 913 b),
Aristóteles propõe no contexto da justiça ordenadora a primeira teo­
ria do dinheiro alguma vez escrita na Europa. Com uma espantosa
clareza, ele descreve a essência e a função deste último. Tornando
comparáveis em máximo grau as mercadorias e as prestações de
ARISTÓTELES 147

serviços diversos, toma possíveis os múltiplos processos de troca de uma


sociedade de divisão do trabalho. «O génio de Aristóteles», reconhece
ainda Marx, «brilha precisamente quando descobre uma relação de
igualdade na expressão do valor das mercadorias. Só os marcos his­
tóricos da sociedade em que vive é que o impedem de descobrir em
que consiste "verdadeiramente" essa relação de igualdade» (O Capi­
tal, MEW, 23, 74). Marx pensa no trabalho humano. O facto de, pelo
contrário, Aristóteles se voltar para o valor medido pelo uso e pela
necessidade, e determinar por essa razão o dinheiro como represen­
tante da necessidade (Ética a Nicómaco, V, 8, 1133 a 29) pode todavia
compreender-se também como uma alternativa a Marx.
Uma segunda distinção aristotélica, a da justiça e da equidade
(epieikeia: Ética a Nicómaco, V, 14), diz respeito a um correctivo
comandado pela lei. O correctivo seria concebível como «reparação»;
no caso em que o legislador não foi suficientemente escrupuloso, tor-
na-se necessária uma emenda. A Ética indica esse problema, mas fala
de lei promulgada muito apressadamente (V, 3, 1129 b 25). A equi­
dade consagra-se, porém, a uma outra correcção, a da aplicação
concreta. Porque as leis consoante o seu conceito, quer dizer, enquanto
regras, são gerais, não fazem justiça a cada caso particular. A equi­
dade entra aqui em cena porque protege tanto do rigor minucioso
como do rigor sem clemência. Por esta razão Cícero pode referir-se a
Aristóteles quando afirma no De offtciis (I, 10, 33) a propósito do di­
reito supremo que poderia transformar-se em injustiça suprema (sum-
mum jus summa injuria). Na verdade, o provérbio romano citado por
Cícero contém um duplo sentido: na primeira parte trata-se de um
direito legalmente garantido, na segunda parte de algo como uma
injustiça moral.
Aquele que age com equidade está prestes a ceder aí mesmo onde
tem a lei do seu lado (Ética a Nicómaco, V, 14, 1137 b 34-1138 a 3).
A propósito de uma tal renúncia, Kant diz justamente (Doutrina do
direito, «Apêndice à introdução da Doutrina do direito») que ela não
pode ser forçada. Aristóteles concorda com esta ideia na medida em
que é certo que caracteriza a instância autorizada a correcções coer­
civas, a saber, o juiz, como uma justiça animada ou viva (dikaion
empsuchon: V, 7,1132 a 22), mas não o põe em relação com a equidade.
E a Retórica (1, 13, 1374 bl9-22) obriga expressamente o juiz (ãikastês)
a seguir a lei e só ao árbitro (diaitêtês), que constitui em Atenas uma
instância independente, é que permite que considere a equidade.
Embora a justiça e a equidade sejam apresentadas como duas vir­
tudes, não têm no entanto valor como atitudes distintas (Ética a Nicó-
148 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

maco, V, 14, 1138 a 3). Situações que requerem a equidade são certa­
mente uma ocasião na qual se põe à prova a nossa justiça. Dirigida
contra um subsumir mecânico, a equidade provoca o juízo e com­
pleta assim a prudência (cf. VI, 11,1143 a 19-24). Enquanto a equidade
prepara em todos os casos a correcção da lei, a prudência determina
o correctivo exacto.
Porque as outras virtudes devem também fazer justiça ao caso
particular, poderia também esperar-se delas um correctivo, que Aris­
tóteles no entanto nunca apresenta. Nisso, ele poderia valer-se do facto
que, diferentemente da justiça, as outras virtudes não serem determi­
nadas por regras, e, enquanto «meio para nós», rejeitarem mesmo
expressamente uma tal determinação. Em consequência disto, o que
a equidade não realiza senão como correctivo, a saber, uma flexibili­
dade aberta à situação, é-lhes já imanente.
Dado que as regras restringem a justiça no caso particular, pode­
ríamos ser tentados a renunciar completamente a elas. É precisamente
esta opinião que defende Platão no Político, quando diz: «o melhor
realiza-se quando não são as leis que estão no poder, mas o homem
real dotado de discernimento» (294 a). Aristóteles apresenta na Polí­
tica (III, 15) a mesma alternativa, mas, contrariamente a Platão, não
considera que se possa renunciar a nenhuma das duas opções, nem à
justiça regular das leis, nem à justiça particular da equidade. As leis
são melhores na medida em que estão isentas de todas as paixões,
contrariamente aos homens; em compensação o homem sabe melhor
aconselhar nos casos particulares (Política, III, 15, 17-21). Aqui, ma-
nifesta-se uma dupla tarefa que não deixa de apresentar tensões e
que a linguagem corrente conserva nas expressões «justo e equita­
tivo» e «os que pensam com justiça e equidade»; por um lado, o direito
tem necessidade da norma geral porque é responsável pela igual­
dade, por outro lado, tem que reconhecer o caso particular na sua
singularidade que não pode ser confundida.

Direito natural e direito positivo

Tal como a segunda distinção, a terceira distinção já não visa o


objecto mas o domínio de validade do direito. Numa curta passa­
gem, Aristóteles apresenta um par conceptual que marca o pensa­
mento jurídico ocidental quase até aos nossos dias: fala do direito
natural (to phusikon ou phusei ãikaion) e do direito instituído (to nomi-
kon: V, 10, 1134 b 18 - 1135 a 5; cf. Retórica, I, 13, 1373 b 4 e segs.);
ARISTÓTELES 149

dir-se-á mais tarde: direito natural e direito positivo. A oposição esta­


belecida na Retórica, I, 10, entre um direito particular e um direito
universal, comum a todos os homens, frequentemente não escrito,
é importante no que toca a esta distinção. Esse direito natural — e
mesmo o direito universal — corresponde à ideia moral do direito
e caracteriza-se em Aristóteles por dois critérios: pela universali­
dade — possui por toda a parte a mesma força — e por um carác­
ter não arbitrário, não depende de facto da opinião dos homens.
De maneira surpreendente, Aristóteles não explica a possibilidade
de um conflito do direito natural com o direito positivo; não é senão
na Retórica, I, 13, que ele o admite relativamente à Antígona de
Sófocles.
Embora nos nossos dias, em que se considera em geral o direito
natural como obsoleto, se pense num ideal que permanece igual a si
próprio, Aristóteles considera-o mutável (kinêton). Sobre este ponto,
não há, para dizer a verdade, uma clareza absoluta sobre a questão
de saber se ele considera como mutável o próprio ideal ou somente a
realização sempre imperfeita deste último. Em todo o caso não é num
sistema acabado de princípios jurídicos universalmente válidos que
deverão tomar o lugar do direito positivo que Aristóteles pensa. Na
Ética, nem uma só vez estabelece os seus critérios; e na Política, por
ocasião da teoria das constituições, não retoma no essencial senão a
ideia do bem comum. Em Aristóteles, o direito natural consiste numa
«ideia reguladora», o bem comum sem mais definição, e contém pre­
cisamente por isso uma potencialidade de crítica social; à parte isso,
Aristóteles renuncia a estabelecer princípios certos. Poder-se-ia pen­
sar, com a cidade ideal que ele esboça nos dois últimos livros da Polí­
tica, que propõe uma tentativa para clarificar mais de perto a inten­
ção do direito natural. As realizações que são aí apresentadas não
se submetem no entanto, pelo menos explicitamente, aos dois crité­
rios de universalidade e de não arbitrariedade.

Desigualdades elementares

Embora Aristóteles definisse os homens pelo dom da linguagem e


da razão, não lhes concede com base nesse dom uma igualdade jurí­
dica e política. Pelo contrário, justifica as desigualdades do seu tempo,
a ausência de igualdade de direitos dos escravos, dos bárbaros e das
mulheres. Pelo menos uma parte dos argumentos apresentados tem
um carácter ideológico.
150 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Os escravos

Os escravos - activos nas minas e nas manufacturas, nas casas


privadas e nas propriedades agrícolas — estão colocados numa situa­
ção juridicamente ainda pior do que os ilotas («servos»). É certo que
os ilotas, presentes por exemplo em Esparta, são também excluídos
da propriedade fundiária e dos direitos políticos e são obrigados a
entregar uma contribuição aos seus senhores; mas vivem num local
fixo. Os escravos, em compensação, são comprados e capturados
na guerra e podem ser revendidos. A esta condição jurídica ainda
mais baixa junta-se a ausência de domicílio próprio, a ausência de
pátria.
Enquanto outros, por exemplo o sofista Alcidamante, põem em
dúvida a legitimidade do escravo (cf. Eurípedes, lon, 854 e segs.; tam­
bém Política, I, 3, 1253 b 20 e segs.), Aristóteles afirma que não há
apenas escravos bia, por violência, mas também phusei, por natureza,
e portanto a justo título. Na Política, admite escravos por nascimento e
senhores por nascimento (I, 5, 1254 a 23 e segs.). No entanto, de uma
forma espantosa, a ideia falta noutros escritos, como na Ética a Eu-
ãemo e na Magna moralia, embora tratem também da escravatura.
A ideia segundo a qual existem escravos por nascimento é verda­
deiramente, aos nossos olhos, apesar do nosso respeito por Aristóte­
les, um motivo de irritação. Ao considerar as coisas de mais perto, a
irritação vai realmente dissipar-se um pouco. Com efeito, a relação
entre senhores e escravos deverá contribuir para o bem-estar mútuo
(Política, I, 2, 1252 a 30-34; I, 5-7 e 13) e está portanto fundada na
reciprocidade e, por isso mesmo, na justiça: é senhor por natureza
aquele que, graças à sua aptidão intelectual, pode prover à sua exis­
tência; é escravo por natureza aquele que, por falta dessa aptidão, e
portanto por causa de uma deficiência condicionada por uma dispo­
sição, devido a um entrave inato, está ligado a alguém que pensa por
ele, é que além disso possui um corpo que é apropriado para a «aqui­
sição do necessário» (I, 5, 1254 b 22 e segs.).
Com efeito, no caso de uma deficiência intelectual extrema, o es­
tatuto de menoridade pode revelar-se necessário, o que corresponde
à vertente jurídica da escravatura. Contudo, toda uma série de
argumentos advogam contra Aristóteles. Por exemplo, o défice intelec­
tual raramente foi tão frequente que tenha podido ser de 35 a 40 por
cento da população; a proporção de escravos na Atenas clássica atin­
gia realmente este nível. Além disso, se a deficiência intelectual legi­
tima, em todo o caso, trabalhos sem exigência e um salário menos
ARISTÓTELES 151

elevado, não justifica a desigualdade jurídica e política. Além do


mais, a deficiência intelectual não se liga necessariamente a uma maior
aptidão para o trabalho físico. De resto, a posição de Aristóteles não
é coerente; na Política, VII, 10, 1330 a 32 e segs., recomenda que se
prometa a liberdade aos escravos como salário das suas tarefas, o que
seria absurdo para escravos por nascimento. Da mesma forma, admite,
como vimos, que pode existir amizade por um escravo desde que este
não seja considerado como um escravo, mas como um homem (Ética
a Nicómaco, VIII, 13, 1161 b 5 e segs.).
A terceira razão que legitima a escravatura aos olhos de Aristóte­
les, tinha a ver com o défice intelectual e a constituição física, o que
seria hoje uma fraqueza de carácter, uma coragem enfraquecida (VII,
7,1327 b 27 e segs.), lembra o célebre capítulo do senhor e do escravo
na Fenomenologia do Espírito de Hegel. Ser um senhor ou um servo,
isso não se decide em Hegel em função da aptidão ou da inaptidão
ao pensamento prospectivo, mas da disposição a uma luta mortal.
De uma disposição enfraquecida não resulta porém nenhum direito
a uma desigualdade jurídica e política, mas — como em Hegel —
unicamente o facto da derrota e da submissão. De resto, Aristóteles
não considera a relação do senhor e do escravo realmente segundo a
reciprocidade, mas do ponto de vista do senhor. Este último quer
dedicar-se a actividades de lazer e tem necessidade, por essa razão, para
além dos utensílios habituais que se destinam ao fabrico, de «uten­
sílios animados» como assistentes para a acção (Política, I, 4). Aquele
que é demasiado pobre utiliza como substituto um boi (I, 2, 1252
b 12); mas aquele que se pode permitir ter escravos arranja um
intendente e consagra-se à política ou à filosofia (I, 7, 1255 b 35-
-37). É aqui que a situação se inverte. O défice reside no senhor,
que teme o trabalho (físico) e que tira de facto um lucro superior
ao que parece ser uma divisão leal do trabalho. A Política admite
por isso, e a justo título, um défice de justiça (cf. Política, I, 5-6),
mas não tira dele nenhuma consequência jurídica, em particular
nenhuma crítica da escravatura. Por outro lado, Aristóteles não
faz qualquer elogio à escravatüra; pelo contrário, não vê na utili­
zação de escravos qualquer coisa de grande dignidade (VII, 3,1325
a 25 e segs.); além disso, construiu a cidade ideal com base nesta
instituição (VII, 10, 1330 a 25-33). Por outro lado, não devemos
esquecer que a primeira declaração de direitos do homem, a Bill of
Rights da Virgínia, foi proclamada num Estado esclavagista e que
os estados do Sul dos Estados Unidos autorizaram ainda por muito
152 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA ARISTÓTELES 153

Os bárbaros As mulheres

Os gregos não classificam com neutralidade como bárbaros os Em Atenas, as mulheres são, juridicamente dependentes de um
membros de uma comunidade linguística estrangeira, mas sim ho­ tutor, geralmente o pai ou o marido. O seu esposo não é escolhido
mens que não falam a língua da cultura superior, o grego; a onoma­ livremente; os seus negócios são supervisionados pelo tutor, não têm
topéia desacredita aquele que fala uma língua estrangeira como cul­ direitos sucessórios, podendo no entanto, como filhas herdeiras, trans­
turalmente inferior. É certo que, na época clássica, por exemplo em mitir a sua herança aos seus filhos. Por outro lado, são juridicamente
Heródoto, os bárbaros são admirados, a exemplo dos Egípcios e dos livres, têm juridicamente direito a obter os seus meios de subsistência
Persas, pela sua ciência, a sua sabedoria e a sua humanidade. Nas e gozam de uma protecção judiciária em caso de maus tratos.
Histórias, VII, 136, Heródoto expõe por exemplo a magnanimidade Os enunciados de Aristóteles relativos a esta questão não são in­
que Xerxes, o rei dos Persas, demonstrou para com os Espartanos. teiramente unívocos. Por um lado, a própria mulher é considerada,
Apesar disso, Aristóteles cita com aprovação a afirmação de Eurí- do ponto de vista da virtude, como inferior aos homens (Política, I,
pedes (Ifigênia em Auliãa, v. 1400): «é conveniente que os gregos 13, 1260 a 20-24), e por outro, toda a casa, e portanto a esposa incluída,
comandem os bárbaros» (Política, I, 2, 1252 b 8). Sobre este ponto, é governada monarquicamente (Política, I, 7, 1255 b 19). Por
extrai privilégios políticos da superioridade cultural; além disso, acen­ outro lado ainda, a Ética enfraquece a preeminência de um poder
tua a significação do verso ao colocar o bárbaro ao nível do escravo unicamente autocrático e fala além disso de uma divisão de trabalho
de nascença. Explica-o dizendo que lhe falta «o que por natureza (VIII, 12, 1160 b 32 e segs.; VIII, 13, 1161 a 22 e segs.). Na Política, I,
comanda». O défice correspondente em pensamento prospectivo, no 12-13, esta relação é mesmo definida como «política», e portanto
entanto, já não pode aplicar-se porque os Egípcios, os Persas, etc., como uma relação entre iguais. Mas Aristóteles, usando uma compa­
gozam de períodos de prosperidade económica, de florescimento ração, introduz sorrateiramente a desigualdade; decerto que não é
cultural e de estabilidade política. só o homem que é o único a ser capaz de dirigir, não obstante é-o em
Esquilo apresenta em Os Persas (v. 181-189) o mundo dos bárba­ grande medida (hêgemonikôteron: Política, I, 12, 1259 b 2).
ros e o dos gregos como formas de existência de igual valor; critica É já por causa de uma instituição jurídica da época, a da filha
apenas a tentativa feita para impor aos gregos um império estran­ herdeira, que autoriza a mulher a «governar» a casa (Ética a Nicó-
geiro. Também Antifonte, um contemporâneo de Sócrates, rejeita de maco, VIII, 12, 1161 a 1-3; cf. Política, II, 9, 1270 a 26 e segs.), e além
forma completamente clara esta diferença antropológica: «por natu­ disso por causa do facto de as mulheres governarem outros povos
reza, somos todos constituídos sob todos os pontos de vista de uma (gunaikokratoumenoi: Política, II, 9, 1269 b 24 e segs.) que Aristóteles, o
mesma maneira, tanto bárbaros como gregos» (Diels-Kranz, 87 B 44). empirista, pode emitir dúvidas sobre a sua hipótese da menor apti­
E neste sentido que Alexandre tratará todos os povos como iguais em dão da mulher para dirigir. De qualquer maneira, menciona o papel
direitos e procurará até fundir umas com as outras as suas camadas activo das mulheres na constituição espartana (Política, II, 9). Reco­
dirigentes. nhece também que as mulheres constituem «metade das pessoas li­
Se bem que Aristóteles não se associe a esta avaliação e se ligue vres» (I, 3, 1260 b 19). Mais frequentes e mais importantes são con­
antes a esta singularidade em política constitucional, o poder exer­ tudo os seus enunciados contrários; ele cita o exemplo de Ájax de Sófo-
cido por homens livres sobre homens livres, que interpreta como privi­ cles (v. 293): «Para a mulher, o silêncio é um adorno» (Política, I, 13,
légio ético-político dos gregos sobre os não gregos (Política, VII, 14, 1260 a 30). Além disso, na passagem correspondente, não se trata da
1333 b 27-29), isso não pode prejudicar a sua curiosidade de investi­ virtude da pessoa em geral, mas apenas da do homem (aretê andros
gador. Na Retórica, convida repetidas vezes ao estudo comparado das agathou. III, 4, 1276 b 17), tal como, relativamente aos filhos, unica­
relações políticas (por exemplo, I, 14, 1360 a 30-37); e concede todo o mente da do pai (I, 3, 1253 b 6 e segs.) e, na educação das crianças,
seu apreço a constituições como a de Cartago na Política (II, 11, 1272 unicamente da das filhas (VIII, 3, 1338 a 31).
b 24 e segs.). Por consequência, Aristóteles segue também neste caso uma prá-
154 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

de Apoio em Delfos) e em festas importantes as mulheres desempe­


nhem um papel predominante, se bem que em Homero e nas tragédias
apareçam grandes figuras de mulher — Penélope, Antígona, Ifi­
gênia, Medeia — e se bem que, também, uma vida feminina rica em
actividades cultuais e públicas esteja representada em pinturas de vasos
gregos, o grego é por excelência cidadão, soldado, chefe da casa e pai
de família, em duas palavras: um homem.

5 - A teoria constitucional

Os limites do poder e a liberdade

Na sua antropologia política, Aristóteles funda-se numa condi­


ção mínima da legitimidade social, a vantagem mútua. Pode, conse­
quentemente, falar de uma justiça que legitima a cidade; dado que a
organização política melhora a condição de qualquer homem, ela é
justa, se considerarmos que ela poderia estar ausente. Nas suas refle­
xões sobre o archê, sobre o poder e o governo, a Política de Aristóteles
contém também material para construir uma justiça que regule a
cidade.
Que a cidade tenha necessidade de um poder e de um governo, é
o que Aristóteles nunca põe em dúvida. A questão de saber porque é
que pode em geral haver um poder exercido por homens sobre
homens, a questão do bem-fundado de uma justiça que legitima a
cidade, é-lhe estranha como acontece de uma maneira geral na Anti­
guidade. (Heródoto é o único, Histórias, 3, 80-83, que fala de um prín­
cipe persa, Otanes, que se empenha a favor de uma democracia com­
pleta servindo-se do argumento segundo o qual ele não quer nem
dominar, nem ser dominado). Uma das razões disso poderia muito
bem ser que no termo archê, se considera menos o carácter coercivo
do que o elemento que exprime a ordem e a direcção, e que por esta
razão se vê desde logo na ausência de archê a desordem, a ausência
. de direcção e de ilegalidade. Tal como já viam Homero (Ilíada, II, 703
e 726), Heródoto (Histórias, IX, 23, 2), Eurípedes (Hécuba, v., 607;
Ifigênia em Aulida, v. 914) e Platão (República, VIII, 558 c e 560 e),
Aristóteles vê também na an-archia, a «ausência de poder», não como
muitas das teorias políticas da época moderna (por exemplo Edmund
Burke, A Vinãication of Natural Society, 1756) uma oportunidade para
a liberdade, mas apenas a licenciosidade, a dpsrmlpm o o
ARISTÓTELES 155

em marcha, bem como uma causa de declínio militar e político (Polí­


tica, V, 3, 1302 b 27-31). Aristóteles considera a ausência de poder
tão desejável como um barco — a imagem clássica do Estado em minia­
tura (Política, III, 4, 1276 b 20 e segs.; cf. já Platão, República, VI, 488
a e segs.) — que navega sem capitão; considera o archê como um facto
«por natureza» (Política, I, 2, 1252 a 31-34). É certo que emprega a
certa altura a expressão mê archesthai (VI, 2, 1317 b 15), o facto de
não ser governado. Mas pergunta-se apenas se a democracia poderia
ser assim interpretada (Otanes parece fazê-lo, segundo Heródoto), e
rejeita esta interpretação.
Por mais natural que seja para Aristóteles a existência do poder, a
sua forma imediata é muito pouco natural. Se se juntarem os diversos
elementos, descobre-se que o poder legítimo está limitado em cinco
aspectos: o primeiro limite está contido no conceito aristotélico dife­
renciado de poder. Em consequência desse conceito, existe uma diferen­
ça conforme se dirija uma cidade, se reine enquanto rei, se governe
uma casa ou se dêem ordens a escravos (Política, I, 1, 1257 a 7-13;
cf. VII, 3, 1325 a 27-30). Enquanto o dono da casa, ãespotês em grego,
o déspota, portanto, domina homens não livres, o soberano da cidade
governa homens livres. O poder é aqui definido a partir do cidadão
e do sujeito jurídico, e é ao mesmo tempo limitado: o poder legítimo
visa seres livres, a saber os homens, que são donos de si mesmos e
vivem para si mesmos (Política, I, 4, 1254 a 14 e segs.; Metafísica, I, 2,
982 b 26). O homem livre nãò aceita uma posição subalterna e não se
dedica a um trabalho assalariado (Política, VIII, 2, 1337 b 5 e segs.);
pode de facto, graças à sua riqueza, deixar aos outros o cuidado da
sua subsistência vital e dedicar-se às questões públicas. Além disso,
não se agarra ansiosamente ao seu dinheiro, mas caracteriza-se antes
pela liberalidade.
Nesse ponto estabelece-se uma digressão sobre o campo concep­
tual da liberdade, que Aristóteles — como os gregos em geral — não
considera como formando uma unidade. Ele dá conta, porém, da
multiplicidade dos seus fenómenos parciais; embora o título geral
lhe falte, dispõe de uma consciência tão rica como diferenciada do
problema. É preciso evidenciar os seis pontos de vista mais significati­
vos:
1) O conceito de voluntário (hekôn ou hekousion), que resulta
da teoria da acção, significa antes de tudo a liberdade ne­
gativa de uma pessoa. Aquele que age voluntariamente não
ap-p n p m n n r n h r i c m r ã n p y f p r in r n o m n n r tn rm M n rio r-noo
156 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

antes por vontade — por si próprio — e com um saber (Ética


a Nicómaco, III, 1-3);
2) Para o conceito positivo correspondente de liberdade de
acção, Aristóteles emprega a palavra proairesis, a decisão
reflectida (Ética a Nicómaco, III, 4-7). Aristóteles conduz as
suas investigações sobre o carácter voluntário e a decisão
com uma profundidade exemplar, tal que Hegel a pôde
celebrar como o «que de melhor houve até à época mais
recente» (Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie,
Werke, 19, 221);
3) Um outro conceito de liberdade é a completa satisfação, a
autarkeia;
4) A liberdade no sentido económico, assim como no jurídico
e político, chama-se eleutheria. É livre nesse sentido aquele
que, diferentemente do escravo, não é possuído por um
senhor e que, por esta razão, existe para si próprio e para a
vida boa. Coexistindo com os seus semelhantes e sujeito ape­
nas à lei e ao serviço de funções intermitentes, é politica­
mente livre num duplo sentido: no sentido positivo, dirige e
é dirigido alternadamente (Política, VI, 2,1317 b 2 e segs.), e,
no sentido negativo, pode viver como quer (b 12; ver VII, 12,
1316 b 24; VIII, 4, 1319 b 30). O liberalismo político de Aris­
tóteles compreende aqui as três dimensões que se mantive­
ram decisivas até aos nossos dias. Ao passo que, segundo o
célebre tratado De la liberté des anciens comparée à celle des
modernes de Benjamin Constant (1819), a Antiguidade não
conhece senão a segunda dimensão, política, e não a ter­
ceira, pessoal — a primeira dimensão não desempenha qual­
quer papel em Constant —, a filosofia política dispõe de pelo
menos três dimensões: tanto da liberdade económica como
da liberdade política positiva, a co-gestão democrática, que
de resto se estende mais longe do que a das nossas democra­
cias, e finalmente até da liberdade política negativa ou liber­
dade pessoal: do direito de viver segundo as suas próprias
preferências e ideias. É certo que a terceira dimensão não é
garantida pelo direito fundamental e só se aplica a uma pe­
quena parte da população: os homens livres por oposição
aos estrangeiros residentes (metecos), aos escravos e às mu­
lheres. E Aristóteles não vê que, onde a primeira dimensão
falta, deve ser realizada uma igualização, que é preciso por­
tanto uma forma corresnondpn+p Ao
ARISTÓTELES 157

5) Nesse sentido ético-político, é livre segundo Aristóteles


aquele que, em vez de se apegar à sua fortuna ou de a gas­
tar, adopta uma atitude soberana a respeito dos bens exte­
riores e se caracteriza pela liberalidade (eleutheriotês);
6) Finalmente, é livre a comunidade que não está sujeita a
nenhuma outra, que faz as suas próprias leis, que dispõe
pois de autonomia.

Os seis pontos de vista estão em correlação uns com os outros e


desempenham todos um papel na Política. Quando é a homens livres
(e do mesmo nível) que se aplica o poder sob a sua forma especifica­
mente política (Política, I, 7, 1225 b 20), quando a cidade é definida
como uma comunidade de homens livres (Política, III, 6, 1279 a 21), e
Aristóteles refere-se também com frequência ao cidadão na sua li­
berdade, então, tendo em conta o ponto de vista (4), a liberdade rea-
liza-se por excelência na independência económica, jurídica e polí­
tica. A ligação do ponto de vista (3), o da autarcia de uma cidade, e
do ponto de vista (6), o da sua autonomia, corresponde-lhe grosseira­
mente no plano político. Para a liberdade enquanto independência
de uma pessoa, pelo contrário, o que é exigido, é o ponto de vista (2),
a aptidão, tratada na Ética, para decidir, e o ponto de vista (1), igual-
mente apresentado na Ética, a liberdade negativa. E a autarcia (3) por
sua vez tem importância tanto na Política como na Ética. Nesta úl­
tima, tem a ver com a definição de felicidade (ver acima, p. 122); na
Política, a sua ausência é um dos fundamentos da natureza política do
homem e a sua presença caracteriza a cidade.

O poder exercido por homens livres sobre homens livres


Enquanto Platão advoga o célebre princípio do filósofo-rei para
o bom soberano, Aristóteles pronuncia-se a favor da (boa) lei (cf. Po­
lítica, III, 16, 1287 a 18 e segs.). Mesmo se é necessário alguém que
vele pelo cumprimento das leis, não é o homem propriamente dito
que governa, mas a lei; porque o homem age antes segundo o seu bem
pessoal e então toma-se tirano.
Separando-se da concepção platónica do poder exercido em pes­
soa por uma elite de dirigentes, e admitindo o princípio voltado para
o futuro de um poder não pessoal por meio de regras gerais, Aristóte­
les junta-se a Píndaro (cerca de 518-446 a. C ), o poeta venerado na
158 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

imortais» (segundo Platão, Górgias, 484 b, cf. Carta VIII, 345 c).
A segunda limitação incidente sobre o poder legítimo consiste nessa
«Rule of Law», nesse reino áa lei (III, 11, 1282 b 2 e segs.). Através de
determinações gerais que se devem aplicar de igual maneira aos inte­
ressados, elabora-se a igualdade jurídica que se opõe ao perigo de os
homens, porque preferem agir de acordo com o seu bem pessoal, se
tornarem tiranos (Ética a Nicómaco, V, 10, 1134 a 35-b 2). As leis estão
isentas de todas as paixões; além disso, fundam-se em considerações
feitas há muito, por outras palavras, na experiência (Retórica, I, 1,
1354 a 21 -b 2). Com elas, na verdade, somente é dada a igualdade de
direitos do primeiro nível, a aplicação imparcial das regras, que to­
lera a condição jurídica dos escravos, das mulheres e dos metecos.
Além disso, Aristóteles, consciente dos limites inerentes às regras ge­
rais, flanqueia a lei com um correctivo, a equidade. A Grécia, de resto,
não conhece nem juristas profissionais nem outros peritos profis­
sionais, o que faz com que a política esteja muito próxima do povo
(mais «democrática») e ao mesmo tempo seja menos determinada pelo
direito; o quase perito, o retórico, toma o lugar do perito em direito.
Aristóteles distingue já três poderes públicos (Política, IV, 14-16),
antecipando a ideia de separação de poderes, e expõe uma terceira
limitação de poder (Política, IV, 14, 1297 b 37 e segs.): a instância
deliberativa corresponde de certa maneira ao poder legislativo; com
efeito, ela decide da guerra e da paz, das alianças e dos tratados, das leis,
da escolha e das contas dos funcionários (a Ética, VI, 8, 1141 b 32 e
segs., apresenta a legislação por si própria e distinguindo-a da delibe­
ração). Os funcionários formam o executivo, e o terceiro poder é cons­
tituído pela jurisdição. De facto, existe ainda na Grécia uma segunda
forma, e até uma espécie duplicada de divisão de poderes, mas em
que Aristóteles não entra. Por um lado, as diferentes cidades-estado
partilham entre si o poder, e por outro lado, todas as cidades-estado
partilham a sua influência com o «centro espiritual» que é Delfos.
Na sua teoria, influente pelos seus efeitos, relativa às constitui­
ções ou às formas de Estado, na classificação destas em duas vezes
três, e portanto em seis formas, Aristóteles separa claramente as cons­
tituições visando o bem comum (to koinê sumpheron) das constituições
visando o bem dos dirigentes (to tôn archontôn), e considera as primei­
ras absolutamente legítimas e as segundas defeituosas (Política, III,
6, 1279 a 17-20). (Hobbes põe de lado esse quarto critério de limitação
de poder usando um argumento ao qual falta força: a tirania e a
oligarquia não são nomes de formas diferentes de governo, mas dos
mesmos governos, a saber a monarauia e aríst-nrraria
ARISTÓTELES 159

considerados maus: Leviathan, capítulo 19.) Segundo o número de


dirigentes — seja um, sejam alguns, sejam muitos ou todos —, exis­
tem três constituições legítimas e três constituições ilegítimas (de­
generadas). São legítimas: a monarquia, mas não a tirania, a aristo­
cracia, mas não a oligarquia (na medida em que se trata de um poder
exercido por ricos, esta chama-se plutocracia), e finalmente a politie,
mas não a democracia; porque Aristóteles entende com isso o poder
dos pobres, que na verdade passa ainda, de entre as «más constitui­
ções», pela «mais suportável» (Política, IV, 2, 1289 b 2-5).
A tirania de modo nenhum se pode comparar com as formas mo­
dernas de Estados em que esta palavra facilmente faz pensar: o abso­
lutismo ou a ditadura, sem contar com os poderes totalitários do
século xx. Com efeito, um tirano grego não dispõe, muito pelo contrá­
rio, das possibilidades de controlo e de repressão dos aparelhos de
Estado modernos. Saído de uma das famílias dirigentes, vela num
primeiro tempo por constituir uma potência doméstica, uma escolta
armada, e em seguida procura legitimar o seu poder através de obras
públicas (templos, fontes, fortificações), e portanto, de um modo
geral, através de contribuições para o bem comum. A isso se acrescenta
o papel de mecenas que desempenha em relação aos poetas, aos
escultores e às celebrações culturais.
Avaliando de maneira ético-jurídica a tirania grega, não se deve
negligenciar que há também um conceito estritamente neutro de tira­
nia. Nesse sentido, para os gregos, todo o dirigente único (monarca)
que não chegou ao poder pelo efeito da hereditariedade chama-se
tirano. Assim, a tragédia de Sófocles intitula-se Oidipous turannos
(«Édipo o tirano»); Edipo não exerce de facto o seu poder num sen­
tido moralmente condenável, mas orientando-o para o bem comum e
com grande aprovação dos seus súbditos.
No livro iv, capítulo 10, da Política, que trata esta questão, Aris­
tóteles distingue três espécies de tirania, de que as duas primeiras
— o poder sem limite de um só homem entre alguns bárbaros e o pre­
tenso poder dos aisymnetas na Grécia antiga (cf. também Política, III,
14-15) — correspondem ao conceito neutro de tirania. Efectivamente,
o poder funda-se nos dois casos numa base legal e exerce-se — porque
é eleito pelo povo — sobre súbditos que obedecem voluntariamente
(Política, IV, 10, 1295 a 15 e segs.; o facto de apesar disso o poder ser
discricionário: a 17, aparece como um acrescento incoerente). É só a
terceira espécie, a tirania propriamente dita, que responde ao critério
do condenável: (1) sem prestar contas, o senhor governa (2) sobre
todos, aue são seus ieuais, ou até são melhores do aue ele: tudo
160 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

decorre (3) em seu benefício próprio e não dos seus súbditos; e (4)
ninguém obedece voluntariamente (a 19-22).
O conceito de bem comum mantém-se singularmente vago não
obstante a sua forte significação criteriológica. Aristóteles não explica
imediatamente o conceito; no entanto, certos elementos podem ser
explicitados a partir da imagem que ele fornece da cidade ideal:
é preciso citar em primeiro lugar a defesa do país. Que se trate da si­
tuação geográfica da cidade (Política, VII, 5, 1326 b 39, 1327 a 7), que
inclui os acessos ao mar (VII, 6, 1327 a 18-25), da extensão do país
(VII, 10, 1330 a 16-23) ou da disposição das estradas (VII, 11, 1330 b
17-31) — Aristóteles aprecia sempre tudo em função da segurança
militar. Um segundo elemento é constituído pelas relações comer­
ciais (VII, 5, 1327 a 7-10) ou pelas questões gerais de política econó­
mica. Um terceiro elemento consiste na repartição das terras cultiva­
das. Aristóteles sugere quatro partes (que não são explicitamente
iguais): (1) uma propriedade comum (terras do Estado) cujo produto
cobre (1.1) os custos das explorações agrícolas e (1.2) os custos das
refeições comuns; e (2) uma propriedade privada em que cada cida­
dão, tanto por razões de justiça como para chegar à unanimidade
contra vizinhos hostis, possui duas parcelas, (2.1) uma junto às fron­
teiras do país e (2.2) uma no interior do país, situada na proximi­
dade da cidade (VE, 10, 1330 a 9-23). Um tal sistema misto, constituído
por propriedade colectiva e propriedade privada, é dirigido contra
dois extremos, simultaneamente contra uma completa «socialização»
ou estatização da propriedade fundiária e contra uma pura e sim­
ples propriedade privada do solo. Além disso, devem ser asseguradas
duas coisas pela propriedade comum, por um lado o financiamento
de missões públicas (em Aristóteles, trata-se unicamente de actos de
culto), por outro lado meios de existência suficientes («refeições
comuns») para todo o cidadão.
Por causa das funções sociais da propriedade comum, encontra­
mos em Aristóteles rudimentos de justiça comutativa ou de Estado
social. Há refeições comuns asseguradas — segundo o modelo de
Creta e ao contrário de Esparta, por exemplo — pelos serviços do
Estado (II, 10, 1272 a 12 e segs.). O Estado ideal preocupa-se até,
devido à sua importância elementar, com a água; aquela que só pode ser
utilizada para beber, a que serve para outras necessidades (VII, 11,
1330 b 11 e segs.). O raio de acção do Estado social não deve no en­
tanto ser sobrestimado por isso, na medida em que Aristóteles denuncia
as instituições democráticas como as retribuições pela presença nas
sessões, embora elas tornem possível aos mais pobres a particmarãr»
ARISTÓTELES 161

na assembleia popular. Um outro elemento pode também interpre-


tar-se, apenas à primeira vista, e não após um exame rigoroso, como
referente ao Estado social: no quadro da sua crítica da República,
Aristóteles pronuncia-se por uma forma mista de propriedade; a pro­
priedade (ktêsis) permanece privada, a utilização (chrêsis) faz-se em
comum. Mas a utilização comum não podia compreender-se então
como uma forma de socialidade do Estado a menos que fosse estabe­
lecida pelo Estado. Mas Aristóteles não se pronuncia pela forma esta-
tizada, consequentemente anónima e além disso acompanhada de
opressão, de uma utilização colectiva, mas pela forma pessoal e vo­
luntária na amizade, caracterizada pela liberalidade (e isso apesar de
VII, 10,1329 b 39 e segs.). Contra o Estado social manifesta-se também
o facto de a cidade ideal de Aristóteles conter traços fortemente auto­
cráticos. Assim o solo é, decerto, repartido entre todos os cidadãos,
mas só é explorado pelos escravos (VII, 10, 1330 a 25-33). E são ex­
cluídos do direito de cidade, além dos escravos e dos metecos, os
artífices, os comerciantes e os simples camponeses. Resta somente o
pequeno grupo dos que não exercem profissões assalariadas para se
consagrarem durante a juventude ao serviço das armas, na idade
adulta à direcção do Estado e à administração da justiça, e na
ve-lhice às funções sacerdotais (Política, VII, 9).
Se se reunirem as duas determinações principais de Aristóteles, a
demarcação do despotismo e a ancoragem no bem comum, o poder
legítimo exclui — sempre com a restrição ao quadro da verdadeira
cidadania — tanto a opressão política («governo exercido sobre ho­
mens não livres») como a exploração («poder pelo bem pessoal do
soberano»). Em contrapartida, um princípio tão exigente como a
igualdade de direitos de todos os homens, Aristóteles ignora-o; ho­
mens com direitos totais não o são nem os escravos, nem as mulheres,
nem as crianças, nem os metecos, e, na cidade ideal, nem sequer os
camponeses, artífices e comerciantes.
No fim de contas, Aristóteles prefere, no que respeita às formas de
Estado voltadas para o bem comum, o poder de muitos homens, a
politie, em constituições nas quais um só, o rei, ou apenas alguns, os
aristocratas, governam (curiosamente, a politie ou timocracia é consi­
derada, na Ética a Nicómaco, VIII, 12, 1160 a 32-36, pior do que a
monarquia ou a aristocracia). A politie é simplesmente a constituição
política, a «cidade política» ou o «Estado dos cidadãos» no qual a
cidadania — a que realmente só uma parte da população tem direito
— se define pela participação política no sentido forte, pela partici-
n a r ã n nn cm vprno F.srp rritp río pvrlni n n alm ip r m n s titiiir ã o nup
162 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

restrinja o direito de exercer o poder ou uma função a um indivíduo


ou a um grupo.
Por intermédio da tradução latina res publica, república, a politie
apresenta em todas as línguas europeias como um ideal. Hoje,
«república», da mesma forma que a sua tradução alemã Freistaat («Es­
tado livre»), é um conceito da teoria constitucional que designa um
Estado no qual o rei e a nobreza perderam o privilégio do poder. Ao
modelo grego pertencem, além disso, dois elementos: a ancoragem do
poder no bem comum e uma grande medida de democracia directa.
Os cidadãos no sentido lato do termo tomam parte em todas as fun­
ções de direcção (Política, III, 5, 1278 a 36) e governam-se a si mes­
mos alternadamente (I, 1, 1252 a 15 e segs.). Além disso, uma grande
parte das funções é até conferida por sorteio. (Cf. Estado dos Atenien­
ses, capítulos 42-69, em que são enumerados em toda a sua profusão
os cargos e outras funções até à última, incluindo as maneiras de
fazer encomendas, os prazos administrativos, os reembolsos: sobre
este ponto, Chambers, 1990.) Com isso é afastada a consolidação do
poder que — para falar propriamente, por causa do seu sistema re­
presentativo e da profissionalização dos representantes — predo­
mina nas democracias modernas. A um poder legítimo sob todos os
pontos de vista pertence, segundo Aristóteles, uma relação de reci­
procidade e de simetria que corresponde às relações entre irmãos
que se governam sucessivamente, em certa medida à maneira dos
órfãos, efectivamente desprovidos de pai. Na cidade, à qual Aristóte­
les vê o homem destinado pela natureza, os cidadãos são iguais à
nascença no pleno sentido do termo, pares, em igualdade uns com os
outros como por exemplo os lorâs na câmara alta inglesa, os confra­
des na Academia francesa e os professores ordinários na universáfi-j
dade (alemã) clássica.

Democracia ou Estado dos cidadãos

O Estado moderno assenta, considerado do ponto de vista da teo­


ria da legitimação, em dois pilares, a saber, o conceito de democracia
próprio de teoria constitucional («todo o poder emana do povo») e o
conceito estrito de igualdade próprio dos direitos do homem. Na me­
dida em que Aristóteles rejeita explicitamente a democracia e em que
considera certamente os homens como iguais numa medida mais lata
do que os cidadãos das democracias modernas, mas em que não
conhece o conceito de igualdade própria dos direitos do homem, n
ARISTÓTELES 163

seu ideal político aparece claramente como pré-moderno. Na sua


crítica da democracia, não se pronuncia pela constituição que foi
abolida pela democracia moderna, a saber, a monarquia. Apresenta
antes por um lado uma diferenciação no conceito de democracia e
por outro considera ideal a constituição que mistura democracia e
oligarquia (Política, IV, 8-9 e 11 e segs.).
Nas suas explicações sobre a democracia, Aristóteles liga a ques­
tão da teoria constitucional — «quem é o soberano (kurios)?» — à
questão socioeconómica do grupo que, no seio da população, detém
a soberania. Na alternativa mais importante à democracia, a saber, a
oligarquia, os ricos são soberanos; na democracia, não é o povo no
seu conjunto, mas o grupo dos pobres (Política, IV, 4,1290 b 1 e segs.).
Não se deve entender por estes últimos os mendigos, mas — e nisso
Aristóteles revela-se um aristocrata — os camponeses, os assalaria­
dos, os artífices e os comerciantes.
Em função do círculo daqueles a quem incumbe o poder, dos
cidadãos aptos a governar, e do raio de acção das suas competências
em matéria de poder, Aristóteles distingue quatro formas que dão
lugar a um conceito comparativo de democracia (IV, 4 e 6). Trata-se
de uma construção teórica que não corresponde, contrariamente ao
que se admite ocasionalmente, às etapas de desenvolvimento que a
constituição ateniense percorreu segundo o Estado dos Atenienses (ca­
pítulos 29-33): na primeira forma de democracia, a mais fraca, trata-
-se de um censo, de uma avaliação dos impostos. Na segunda forma,
basta ter uma origem sem objecção possível: os progenitores têm que
ser cidadãos. Na terceira forma de democracia, ainda mais forte, o crité­
rio de ascendência é flexibilizado e todos os cidadãos são susceptí­
veis de governar. É somente quando todos os cidadãos têm acesso às
funções e a sujeição à lei é abolida, nesta quarta forma, que a demo­
cracia atinge a sua forma radical ou perfeita. Nela, todos os cidadãos
estão aptos a governar; e, assim como o querem os dirigentes do povo
(dêmagôgoi), o povo pode, liberto de todas as disposições legais, pro­
nunciar-se, na altura da votação, sobre tudo, e portanto permitir-se
brilhantes infracções ao direito. Porque se trata de respeitar não o
bem comum mas o bem pessoal, um reino despótico pesa sobre «os
melhores»; a democracia radical torna-se uma tirania da maioria (IV,
4, 1292 a 15 e segs.; cf. IV, 14, 1298 a 31-33 entre outras).
Numa segunda apresentação das quatro formas de democracia
(IV, 6), Aristóteles nomeia a razão do reconhecimento e do não reco­
nhecimento. De forma surpreendente, ela não reside de todo na con-
r\ r\ ^ n ^ 1 n rr-í 4~i -rv* n n nn m n n r% 1n l ln ír i tv \ t-\ n **
164 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ciais, se bem que Aristóteles reconheça esta ideia (por exemplo, Polí­
tica, III, 15, 1286 a 17-21: a ausência de paixões). Indica antes a razão
socioeconómica segundo a qual se deixam reinar as leis nos casos em
que falta ao soberano, por exemplo, ao campesinato, o tempo (scholê)
necessário à política permanente. No entanto, se as cidades cresce­
rem e sobretudo se enriquecerem de tal forma que os pobres, neste
caso em especial os artífices e os trabalhadores assalariados (cf. IV,
12, 1296 b 29 e segs.), possuam, graças a uma retribuição correspon­
dente, o ócio requerido pela política, então suprime-se a lei, e o povo
assume a totalidade do poder (IV, 6, 1292 b 41-1293 a 10).
No que se refere ao fundamento da democracia, a saber, à liber­
dade, Aristóteles dispõe como se disse de dois conceitos: a liberdade
política positiva em consequência da qual se governa e se é gover­
nado alternadamente, e a liberdade política negativa, o notável con­
ceito liberal segundo o qual se pode viver como se quer. Do primeiro
conceito resultam as instituições democráticas (b TI e segs.): o facto
de as funções serem preenchidas por todos (os cidadãos); o facto de
todas as decisões, ou pelo menos as mais importantes, serem tomadas
pela assembleia do povo, etc.
Ora, Aristóteles critica antes de tudo a democracia radical. Le­
vanta-se contra as retribuições de presença nas sessões (pela partici­
pação na assembleia popular) que são financiadas por um imposto
sobre a riqueza e pela confiscação da propriedade (Política, VI, 5,
1320 a 17-24). Mais fundamental é a censura de uma incompetência
que não tem somente a ver com a falta de especialização; pedir-se-ia
demasiado à assembleia do povo tanto no plano intelectual com no
plano moral (Política, III, 11, 1281 b 25 e segs.). Se se considerar a
guerra do Peloponeso que foi recusada pelos ricos — teriam que suportar
os encargos com a frota — e que, pelo contrário, foi violentamente
defendida pela maioria, os pobres, tem provavelmente razão; é notó­
rio que a guerra se conclui com a derrota de Atenas e com o fim de
inúmeras coisas que se apreciam na cultura grega. Mas Aristóteles
avança também noutro lugar argumentos a favor da democracia. Ele
considera, por exemplo — contrariamente à mencionada censura de
incompetência — a maioria como mais competente do que uma pe­
quena elite (III, 11, 1281 a 39 e segs.).
A justificação deste facto é na realidade surpreendentemente in­
génua; a virtude e a prudência de diversos homens devem poder muito
simplesmente ser somadas de maneira que numa dupla perspectiva,
tanto caracterológica como intelectual, delas resulte uma competên-
/-» /> I T T r\ rm IX I i-v n /-«•< ■* i -t sA ^ ✓ -I r-v r-v -*
ARISTÓTELES 165

mento, mas do seu conteúdo pró-democrático. Pró-democrática, tam­


bém o é a observação que afirma que o bom cidadão tem que saber
fazer duas coisas: fazer-se governar e governar-se a si mesmo (III, 4,
1277 b 14 e segs.). É preciso entender por isto a capacidade de obedecer
e de comandar alternadamente, e também a aptidão para cumprir as
duas funções de maneira «altruísta» com vista ao bem comum.
No seu ideal político, Aristóteles mistura elementos democráticos
com elementos oligárquicos. Não tendo de modo nenhum sido elabo­
rado «dedutivamente», o ideal, a saber, a politie ou o Estado dos cida­
dãos, põe a claro uma realidade que se esboça em Atenas desde Só-
lon. De novo, Aristóteles junta elementos de teoria constitucional a
perspectivas de uma sociologia política. A fim de estabelecer uma
comparação tanto política como social entre a elite dirigente (rica) e
a multidão (que não é tão rica), pronuncia-se a favor da promoção
de uma grande classe média; porque é no caso de uma fortuna mé­
dia que se obedece mais facilmente à razão, além de que se estabele­
cem mais facilmente amizades, e ainda que a rebelião e o conflito
ameaçam menos; e sobretudo, os melhores legisladores (Sólon, Li-
curgo, Carondas) são originários da classe média (Política, IV, 11).
Complementos à constituição mista favorecida por Aristóteles po­
dem já ser percebidos na História da Guerra do Peloponeso de Tucídi-
des, onde são retraçadas as evoluções constitucionais de 411 a. C.
(VIII, 47 e segs., 63 e segs., 89 e segs.). Mas, no que diz respeito aos
materiais de uma teoria, temos que esperar pela obra tardia de
Platão, as Leis (III, 963 d e segs.) e a Carta VIII (354 a e segs.). Diferen­
temente de Aristóteles, Platão não se orienta por Atenas, mas pela
sua grande rival, Esparta.
A questão de saber até que ponto o Estado dos cidadãos ou a
Constituição mista se coaduna com a democracia no sentido actual
do termo tem a sua resposta no conceito de democracia. Certamente
que Aristóteles não põe a questão, que está na base da democracia
moderna, da legitimação do poder em geral. No entanto, rejeita
— em parte explicitamente, em parte implicitamente — as formas de
legitimação alternativas à democracia actual: o facto de todo o poder
proceder de Deus, de uma potência superior ou de um nascimento
correspondente. Na medida em que a Constituição mista está além
disso obrigada ao bem de todos os interessados, ao bem comum, e que
nela as decisões mais importantes são tomadas pela ekklêsia, a assem­
bleia popular, ela pode ser considerada, tanto por causa do funda­
mento da sua legitimação como na acepção moderna, como ampla-
-----.4.^ r>o roetn Aristóteles admite que «aquilo a que
166 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

hoje chamamos politie (ou república) se chamava dantes democra­


cia» (Política, IV, 13, 1297 b 24 e segs.). O pensamento republicano
tem a sua origem — não devemos esquecê-lo — não nas revoluções
americana e francesa, nem sequer na Roma republicana, mas já em
Atenas; e, neste ponto, o seu teórico mais importante é Aristóteles.
Um ponto comum suplementar entre o ideal político de Aristóte­
les e o da época moderna reside na escolha (então imediata, hoje
mediata, regra geral) do governo pelo povo e na obrigação que o go­
verno tem de prestar contas. As funções governativas são transferi­
das para pessoas particulares que, para evitar a corrupção da demo­
cracia, provêm regra geral da camada superior (cf. Política, II, 12,
1274 a 18 e segs.). É talvez aqui que se introduz um elemento não
democrático, um elemento autocrático ou oligárquico.
Por outro lado, existem diferenças consideráveis entre a constitui­
ção mista e a democracia moderna. Enquanto nas democracias mo­
dernas, representativas, o elemento de democracia directa ou falta ou
é apenas fracamente constituído, faltam no Estado dos cidadãos da
Antiguidade grega instituições como os direitos fundamentais e os
direitos do homem, os partidos e os sindicatos, a imprensa ou um
tribunal constitucional; e não existe também legislador no sentido
moderno.

6 — Aberturas

Críticas a Platão

Durante os vinte anos passados na escola fundada por Platão, a


Academia, Aristóteles não se familiariza apenas com todos os proble­
mas conhecidos através dos diálogos de Platão. Desenvolve também
ideias que lhe são próprias, que quase sempre entram em debate com
as concepções de Platão e que, segundo a frase amicus Plato, magis
arnica veritas (traduzida livremente por: amo Platão, mas ainda mais
a verdade; cf. Ética a Nicómaco, I, 4, 1096 a 11-17), mistura uma grande
consideração com uma crítica parcialmente acerada.
No quadro de uma discussão das constituições existentes e dos
projectos de Constituição, a Política orienta a sua crítica a Platão
quase exclusivamente para a República (II, 2-5; cf. também V, 12), ao
mesmo tempo que faltam tanto os primeiros diálogos sobre a mesma
auestão- tais rnmn o Crí+nvi o m ~ ~ i ---- ' 1'
ARISTÓTELES 167

o Político', e o outro diálogo tardio, as Leis, é objecto de um interesse


muitíssimo menos importante (à volta de II, 6). Esta confrontação
não completamente injustificada, porém selectiva, orientará dura­
doiramente a história da influência da filosofia platónica do Estado.
Acresce a isto que Aristóteles empreende, em parte explicitamente,
em parte implicitamente, em muitas outras ocasiões, uma crítica
da Republica. Ela inicia-se já no capítulo introdutório da Política, como
diferenciação de diversas formas de poder social (I, 1, 1252 a 7-16;
ver também VII, 3, 1325 a 25-30) (quando Durkheim diz da autori­
dade política, nas Leçons de sociologie. Physique des mceurs e du droit [1950,
quarta lição], que ela é formada segundo o modelo da autoridade
patriarcal, repete uma ideia de Aristóteles) e prossegue com a recusa
apoiada de toda a determinação puramente funcional da cidade. Ao
passo que Platão via já dada a cidade numa coexistência fundada na
divisão do trabalho e na facilidade da existência, na cooperação pu­
ramente económica do primeiro estrato da cidade, é preciso acres­
centar ainda, segundo Aristóteles, a comunidade do bem e do mal
bem como a do justo e do injusto (Política, I, 2, 1253 a 15-18).
Um dito mordaz criticando Platão, neste caso em relação ao teo­
rema do poder dos filósofos, contém a exigência de entregar, por
razões de virtude e de inteligência somadas, o poder supremo do Es­
tado (to kurion) à multidão do povo (plêthos) de preferência ao pe­
queno número dos melhores (aristoi). Mas é ainda mais de preferir
manter nas leis o poder supremo do Estado (1,13), na medida em que
estas últimas exprimem uma experiência acumulada, e além disso
são desprovidas de afectos. Contra a ideia do poder dos filósofos le­
vanta-se também a exigência segundo a qual os cidadãos no próprio
sentido do termo têm que governar e ser governados alternadamente
(I, 12, 1259 b 4-9; II, 2, 1261 a 30-b 6; III, 4, 1277 b 7-116; III, 7, 1279 a
8-16).
Crítico em relação à República, é-o de resto também o sistema
diferenciado das constituições. Ao passo que para Platão não há mais
do que uma cidade ideal, mas muitas formas abastardadas, Aristóte­
les reconhece três constituições voltadas para o bem comum. Além
disso, não reflecte apenas sobre a questão de saber qual é a cidade
absolutamente melhor, em boas condições, mas também sobre a de
saber qual é a melhor cidade relativamente, em más condições ou
condições médias (Política, III, 7). Certamente, o próprio Platão dis­
tinguiu, no Político (302 c-d), sete níveis qualitativos nas constitui­
ções dos Estados, entre os quais a forma suprema e divina do poder
exercido n or um indivíduo vi liado nela intelivêneia está reservada
168 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ao filósofo-rei apresentado pela República-, os níveis restantes refe-


rem-se a esse Estado como «imitações» (mimêmata: Político, 293 e,
297 c).
Aos elementos antiliberais, extremamente inconvenientes politi­
camente, da Política, pertencem — na verdade referidos apenas à
classe dos guardiães — a interdição da propriedade privada e a obri­
gação de uma comunidade de mulheres e crianças, e além disso a
interdição geral nessas circunstâncias da poesia tradicional e a de
toda a música que «amolece» ou que «faz perder a cabeça». Ao recu­
sar tudo isso, Aristóteles já se revela notavelmente liberal. Assim, os
poetas permanecem autónomos, bem como, em grande medida, a
ciência e a filosofia, e além disso a economia. À precursora da econo­
mia empresarial, a economia doméstica, é consagrado um tratado
particular no qual elementos tais como a teoria do dinheiro têm tam­
bém um carácter de economia política (Política, I, 3-12). Também a
política é autónoma, a tal ponto que Aristóteles defende o que a
teoria sociológica sistemática crê poder estabelecer muito mais tarde,
na época que se segue à dissolução da pretensa sociedade da Europa
antiga: uma independência pelo menos relativa dos diversos domí­
nios da sociedade. Mas, por outro lado, Aristóteles não aceita o ele­
mento liberal e emancipador de Platão, a reivindicação então provo-
catória da igualdade dos direitos do homem e da mulher no interior
da classe de guardiães (República, V, 451 c e segs.).
Para além das diferenças, sem dúvida que é preciso não esquecer
os pontos comuns. Como Platão (República, IV, 420 b 421 b e segs.),
Aristóteles liga também o Estado à felicidade (Política, VII, 2, 1325 a
7-10), e não é de maneira diferente do que faz a República que define
a boa constituição a partir do bem comum (III, 6, 1279 a 17-21 entre
outros). Também ele empreende uma legitimação subsidiária do Es­
tado: o Estado é necessário para coisas que não podem ser obtidas
para si mesmos nem pelos indivíduos, nem pelas famílias, mas que
os beneficiam; os homens devem poder ser felizes na cidade. Não é
diferentemente do que faz Platão, que Aristóteles concede uma
enorme importância à educação (VII, 14-VIII, 7). Mais, ele também
pensa naturalmente como aristocrata na medida em que os cidadãos no
sentido estrito, os que dispõem da virtude do cidadão (politou aretê),
são aliviados do trabalho com vista à satisfação das necessidades da
existência. Além disso, inspira-se na fórmula platónica da idiopragia
em consequência da íjual os homens na sua diversidade só devem
estar ocupados com a actividade que lhes é própria, correspondente
aos seus dons (IV, 433 fl); e segundo Aristóteles também, todn n
ARISTÓTELES 169

dão deve cumprir a função (ergon) que lhe é própria (Política, III, 4,
1276 b 39).
A própria crítica de Aristóteles contra o livro n da República é
conduzida na base de duas premissas partilhadas por Platão: por um
lado, procura-se uma comunidade estatal em que se aliam desejabili-
dade e réalizabilidade (Política, II, 1, 1260 b 27 e segs.), trata-se pois de
uma cidade seguramente ideal, decerto, mas não puramente utópica;
por outro lado, ambos concordam com o diagnóstico de uma carên­
cia: as constituições presentes não satisfazem ainda esta condição
(b 34 e segs.). As objecções avançadas segúidamente contra Platão são
enunciadas de maneira simultaneamente global e radical: o Estado
de Platão aspira a (1) um fim falso, emprega (2) para o seu fim meios
inapropriados que, além disso, têm (3) consequências prejudiciais.
Essas objecções múltiplas não são, na verdade, desenvolvidas a par­
tir de um princípio comum. Mas a maior parte assenta na tese se­
gundo a qual falta a medida das coisas em comum que convém a um
Estado bem ordenado.
A primeira série argumentativa começa pelas três opções conce­
bíveis: os cidadãos não têm nem nada em comum, ou têm poucas
coisas, ou tantas coisas quanto possível. Ela exclui em seguida a pri­
meira opção por um argumento lógico-semântico; a comunidade de
local, pelo menos, é indispensável ao conceito de Estado (Política, II,
1, 1260 b 40-1261 a 1). E contra a terceira opção, sustentada por Pla­
tão, da maior unidade possível do Estado no seu todo (II, 2,1261 a 15
e segs.), Aristóteles defende um fim alternativo para o Estado. Porque
a aspiração a uma maior unidade destrói o Estado — é como a redu­
ção de uma sinfonia a uma homofonia ou a de um ritmo a uma só
nota (Política, n, 5, 1263 b 35), pronuncia-se a favor da autarcia que
pertence ao fim ao qual se aspira absolutamente no mais alto grau, a
eudemonia.
Na sua crítica ao excesso de unidade no seio da elite dirigente, os
guardiães — até as mulheres, as crianças e as propriedades são par­
tilhadas —, Aristóteles não se satisfaz com a objecção pragmática
segundo a qual se exige demasiado do homem real. Ele desenvolve
em vez disso a crítica de princípio segundo a qual o excesso de uni­
ficação destrói o Estado na sua essência («natureza»); porque faz
dele uma oíkia, uma comunidade familiar e doméstica — na reali­
dade levada artificialmente até ao gigantismo —, talvez até um homem
individual (II, 2, 1261 a 18-20; cf. República, V, 462 c). Além disso, no
número de mil homens armados admitido por Platão (IV, 423 a), a
170 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

«cada cidadão tem mil filhos» e quando «não importa quem é na


mesma medida o filho de não importa quem» (Política, II, 3, 1261 b
38-40), de facto — segundo o princípio «o que é comum à maioria é
aquilo que suscita menos cuidados» (II, 3,1261, b 33 e segs.) — «negli-
genciar-se-ão todos igualmente» (b 38-40). Mais ainda, segundo Aris­
tóteles, as relações amigáveis são diluídas (II, 4, 1262 b 2-3).
Sabemos pelo Édipo de Sófocles que os gregos consideram o incesto
e delitos tais como o assassinato dos pais ou dos parentes próximos
condenáveis a tal ponto que necessitam de uma expiação religiosa
particular (cf. também Xenofonte, Memoráveis, II, 2,13 e segs. IV, 4, 19
e segs.). Embora o próprio Platão trate estes temas nas Leis (IX, 865 a-e,
868 c-869 d, 873 a e segs., 880 c-882 a), admite — como o diz a crítica
ulterior feita por Aristóteles — que, na falta de um conhecimento pre-
ciso das ligações de parentesco, o risco de delitos desse género au­
menta e, além disso, já não se pode proceder às expiações habituais
(Política, II, 4, 1262 a 30-32). Que sejam sempre os mesmos a gover­
nar conduz já à sedição aqueles que não possuem auto-estima e mais
ainda os homens enérgicos e belicosos (II, 5, 1264 b 6-10).
Segundo Platão na República, a comunidade de bens deve produ­
zir amizade; segundo Aristóteles, a comunidade é o resultado da ami­
zade (Política, III, 9, 1280 b 38). Desta maneira, a propriedade
permanece entregue aos cuidados privados, enquanto se põe à dispo­
sição dos amigos não tudo, mas no entanto bastante para que eles
gozem e tirem proveito disso a troco de outra coisa como de um bem
comum. (A máxima pitagórica a que Aristóteles se refere sobre este
ponto: «Tudo é comum entre amigos» [cf. Ética a Nicómaco, VIII, 11,
1159 b 31] é também na verdade citada por Platão: República, IV, 424
a, V, 449 c; e também Lisis, 207 c, Redro, 279 e, Leis, 799 c). Poder-se-ia
querer deduzir das formulações extremamente concisas que Aristó­
teles admite — por exemplo no sentido do Estado social moderno e da
redistribuição das riquezas — um direito dos mais pobres ao uso da
propriedade alheia. Na verdade, ele vê na falta de bens dos outros
uma ocasião para a liberalidade, e com isso não concede aos pobres
um direito subjectivo, mas exorta os ricos à beneficência. De resto, o
que lhe importa aqui, é menos a ajuda de sentido único dada aos
mais pobres do que a ajuda mútua dos que são em geral já afortu­
nados.
Por uma «admirável amizade de todos por todos», Platão espera
— assim como Aristóteles o admite — banir da cidade todas as desa­
venças, todas as falsas promessas e toda a bajulação (Política, II, 5,
1263 b 16-22). Na realidade, nos termos da Revública (V. 464. íi-AAR r\
ARISTÓTELES 171

todas as disputas jurídicas e queixas, todas as vias de facto e injúrias


devem desaparecer como resultado da comunidade de mulheres,
crianças e bens, e em seu lugar deve estabelecer-se uma pura unanimi­
dade. Aristóteles não partilha desse optimismo; ele vê efectivamente
que a causa do mal mencionado reside noutra coisa, não na comuni­
dade deficiente, mas na maldade dos homens. Na medida em que se
esperam mais conflitos no caso de uma comunidade de bens do que
no caso de uma separação de bens, ele considera, uma vez feito o
balanço, uma vida correspondente como completamente impossível
(Política, II, 5, 1263 b 27-29).
Aristóteles censura também a Republica por não deixar aceder toda
a gente, neste caso os camponeses, ao meio responsável, ao lugar da
comunidade de bens, da coesão do Estado, a saber, a educação (II, 5,
1264 a 37 e segs.). Além disso, emite uma crítica sobre o facto de os
camponeses serem convertidos em donos da sua propriedade em troca
do pagamento de um imposto (1264 a 32-34). Para mais, duvida
que Platão chegue realmente à uniformidade procurada; porque en­
quanto os guardiães estiverem estritamente separados dos campone­
ses e dos artífices, devem ser considerados por esses últimos como «uma
espécie de guarnição» (II, 5, 1264 a 26; cf. Republica, III, 415 d-417 b).
Neste argumento, não tem em conta, para dizer a verdade, uma das
razões invocadas por Platão para a comunidade de bens, a saber, a
renúncia «a uma terra que lhe pertença, às habitações, assim como
ao ouro» que rebaixa a posição privilegiada dos dirigentes de modo
que não se tornam «dominadores selvagens em lugar de aliados» (Re­
pública, III, 417a-b). O argumento platónico interessante a evocar é o
seguinte: por certo, se os guardiães exercem o poder, mas não dis­
põem ainda por cima da riqueza, então despertam menos inveja, e o
seu poder ganha em estabilidade.
Uma apresentação equilibrada da crítica da República por Aris­
tóteles não pode menosprezar o facto de haver outros pontos comuns
além dos mencionados. Aristóteles reconhece dois elementos na ideia
do poder dos filósofos, porém fora da crítica explícita da República:
a superioridade de uma existência consagrada à filosofia sobre a exis­
tência prático-política (Ética a Nicómaco, X, 6-9; Política, VII, 3, 1325
b 14 e segs.) e a possibilidade de existência de um homem superior tal
que se lhe possa obedecer voluntariamente e que se lhe chame rei
para toda a vida (III, 13, 1284 b 25-34; III, 17, 1288 a 15-29; VII, 3,
1325 b 10-14; cf. VII, 14, 1332 b 16-27). Diferentemente de Platão,
Aristóteles define a superioridade não pela filosofia autêntica, pela
dialéctica e pela compreensão que resulta da ideia do bem, mas a
172 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

partir do prático-político. Segundo Aristóteles, o que importa é a


virtude e a capacidade de realizar o melhor. E é através desta deter­
minação que consegue resolver o conflito de interesses contido no
poder dos filósofos: porque o soberano não é um filósofo, o exercício
do poder não contradiz o seu verdadeiro interesse; e graças à sua
virtude superior, preocupa-se com um Estado em que seja possível a
uma melhor existência, quer dizer a existência puramente teorética,
de maneira que os filósofos possam prosseguir os seus verdadeiros
interesses. Ao mesmo tempo, Aristóteles apresenta uma nova versão
de idiopragia: o filósofo filosofa, o político consagra-se à política.
Nesse sentido, a teoria aristotélica das cinco virtudes dianoéticas
(Ética a Nicómaco, V) contém uma separação clara da prudência (phro-
nêsis) e da sabedoria (sophia). Essa separação traduz-se em exemplos
muitíssimo diferentes; para a prudência, somos remetidos a Péricles,
para a sabedoria, a Tales.

Liberalismo ou comunitarismo?

Existe, em filosofia política, uma nova frente de discussão. De­


pois do debate sobre o liberalismo e o antiliberalismo que — dentro de
certos limites, é certo — pode ser associado à oposição de Aristóteles
e de Platão, apareceu um novo adversário do liberalismo. Trata-se do
comunitarismo, teoria feita de vários estratos e de modo algum
homogénea, que, na sua crítica do liberalismo, mas também das Luzes
e do universalismo, invoca naturalmente Aristóteles.
A um liberalismo autêntico pertencem pelo menos os cinco ele­
mentos seguintes que se fundam uns nos outros: (1) a coexistência
dos homens está sujeita a regras coercitivas de que o direito, gramá­
tica (parcial) da sociedade, apresenta a totalidade. (2) (a) O direito não
está sujeito a regras arbitrárias, mas a regras que merecem ser reco­
nhecidas por todas as partes, que (b) são identificadas pela época
moderna com princípios universais, com os direitos do homem. (3) Tanto
a determinação imediata do direito (universalista) como a sua exe­
cução, e sobretudo a decisão autoritária nos casos litigiosos, não
resulta de opiniões privadas e do poder privado, mas dos poderes
públicos. (4) A legitimação destes últimos resulta em última instância
do acordo de todos os interessados; por outras palavras, todo o
poder procede do povo. (5) Devido já às tarefas diferenciadas, mas em
seguida, também, com o fim de impedir todos os abusos de poder,
os poderes públicos estão divididos e sujeitos a um mútuo controlo.
ARISTÓTELES 173

Com excepção do elemento (2 b), encontrámos todos esses ele­


mentos em Aristóteles. É certo que na sua referência a Aristóteles, os
comunitaristas em questão dizem que ele se mostrou céptico em rela­
ção aos princípios universais da justiça e que defendeu, em vez disso,
as formas de existência particulares de pequenas comunidades.
Embora, na verdade, Aristóteles relativize as tradições da sociedade
particular, ele sabe todavia o que é diversidade do que é «bom e justo»;
e em vez de se referir apenas à tradição, ao nomos, pronuncia-se
a favor das instâncias anteriores e superiores às instâncias positivas,
a que chama phusei dikaion, «justas por natureza». Em parte alguma
defende os costumes ou as tradições que se regem antes de tudo por
compromissos estritamente universais, em última análise pela felici­
dade, definida como fim absolutamente supremo e como uma vida
não desprovida de razão.
Mesmo que as virtudes não se aprendam— como os comunitaris­
tas dizem, e còm razão — numa comunidade universal abstracta,
mas sim no interior da comunidade particular, não significa que nos
adaptemos apenas às especificações da comunidade particular. Os
comunitaristas em questão confundem aqui a aquisição das virtudes,
associada à comunidade e, nessa medida, particular, com o conceito
universal destas acompanhado da sua legitimação também univer­
sal. Que se adquiram as virtudes pelo exercício, e portanto no inte­
rior da comunidade particular, e que assim se adquira ao mesmo tempo
uma particularidade inteiramente dependente da comunidade, é o
que uma ética universalista não tem necessidade de pôr em dúvida.
Mas para além das colorações dependendo da comunidade, não se
deve menosprezar o núcleo universalmente válido. Segundo Aristó­
teles, aprende-se em primeiro lugar a responder universalmente às
exigências universais, quer dizer, dadas com a conditio humana:
o facto de não reagir negligentemente nem temerariamente ao perigo,
de proceder com o dinheiro não se mostrando nem gastador nem
avarento, mas liberal, de mostrar temperança no que respeita à dor e
ao prazer, etc.
À sua maneira, Aristóteles reconhece até os princípios universais
de justiça. Evidentemente, ele não elabora um catálogo de direitos
fundamentais e de direitos do homem, justifica até — através de um
argumento universalista, a vantagem recíproca, é certo — a escrava­
tura, e não considera as mulheres e os escravos nem iguais em valor
nem iguais em direitos. Mas cita interdições jurídicas, por exemplo
as proibições de roubo, das vias de facto, de assalto à mão armada,
de homicídio e de ultraie (Ética a Nicómaco, V, 5, 1131 a 6 e sees.l,
174 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

através das quais se pronuncia indirectamente a favor dos direitos


fundamentais correspondentes. Os direitos políticos de participação são
completamente naturais na sua opinião. Mesmo se o «bem de uma
comunidade» não tem a conotação antiuniversalista suposta pelos
comunitaristas, ele funda-se para Aristóteles tanto na comunidade
do bem e do mal, do justo e do injusto, como sobre o critério do bem
comum, certamente vago, mas universalista pela sua intenção. Ao
bem comum opõe-se a tirania, quer se trate da de um só (tirania no
sentido estrito) quer da de um grupo (oligarquia), ou até mesmo de
uma maioria (democracia na acepção de Aristóteles). Em contrapar­
tida, o Estado dos cidadãos já mencionado que é a «politie» está vol­
tado para o bem comum.
Quando outros comunitaristas defendem uma coexistência tão
isenta de Estado quanto possível e se referem então novamente a
Aristóteles, precisamente a propósito da valorização da amizade,
apercebem-se certamente que Aristóteles diz da cidade que ela está
associada às «relações de parentesco, fratrias, sacrifícios comuns e
formas da vida social» e que estes últimos são todos eles obras da
amizade, porque a amizade não é outra coisa senão a decisão de
viver juntos (Política, III, 9, 1280 b 31 e segs.). Portanto, acentua o valor
dos bens e das relações individuais, e também indirectamente dos
modos de transmissão comuns, das tradições. Mas sabe ao mesmo
tempo que eles não substituem nem a ordem jurídica nem as fun­
ções políticas ou os poderes públicos. A respeito da ausência de po­
der, alimenta profundas dúvidas; em vez disso, considera necessária
uma ordem jurídica e estatal. É certo que Aristóteles relativiza o va­
lor da justiça a favor da amizade (Ética a Nicómaco, VII, 1, 1155 a 22-
-28). A tese da prioridade — a amizade antes da justiça — admite
pelo menos três leituras. Segundo a primeira leitura, não pode haver
conflito entre as exigências da amizade e as da justiça, e isso porque,
em caso de conflito, a amizade obtém a preeminência. Se por exem­
plo um amigo tem necessidade de ajuda e esta não pode ser prestada
senão através da violação de uma obrigação de direito ou de justiça,
então essa violação é exigida. De acordo com a segunda leitura, a
amizade é qualquer coisa como um engrandecimento da justiça. Ela
realiza o que a justiça exige e ainda algo mais. Segundo esta leitura,
não existem conflitos, mas antes dois níveis, a saber, as exigências
modestas da justiça e as, difíceis, da amizade. Segundo a terceira
leitura, a justiça é supérflua onde reina a amizade; entre amigos não
se põem questões de justiça; com a amizade, a justiça perde a sua
utilidade.
ARISTÓTELES 175

A respeito da primeira tese levantam-se considerações ético-jurí­


dicas. O facto de a amizade exigir a violação das exigências elemen­
tares de justiça, como por exemplo as interdições de roubar, de enga­
nar e de matar, contradiz a nossa intuição moral e em parte alguma
é pedida por Aristóteles. E mesmo a ideia, que talvez defendamos
hoje, segundo a qual não podemos certamente em nome da amizade
faltar às exigências elementares de justiça, mas temos inteiramente o
direito de fechar os olhos às coisas de pouca importância, não é in­
terdito por Aristóteles.
Ora, poder-se-ia objectar que entre amigos verdadeiros ou au­
tênticos, tais omissões à justiça não são precisas, e inversamente
que onde se perfilam tais exigências, não pode tratar-se de amizade
autêntica. Esta objecção pressupõe, coisa que evoca o acrescento
de «verdadeira» ou de «autêntica», um conceito normativo da ami­
zade em consequência do qual não é toda a relação que, simples­
mente porque cultiva pontos comuns na reciprocidade, constitui
uma amizade. Em Aristóteles, encontramos ambos, a saber tanto
um conceito lato e ainda pré-normativo da amizade como um con­
ceito estrito, normativo. De acordo com o segundo conceito, uma
reciprocidade, a beneficência mútua pertence à amizade (Ética a
Nicómaco, VIII, 3, 1156 a 8 e segs.). A justo título, Aristóteles distin­
gue diversas espécies de bem que fazemos uns aos outros. Mas se se
é reciprocamente amigo pela utilidade ou pelo prazer, não se é
amado pelo que se é.
Nisto não se pode tratar senão de «amizade acidental» (1156 a
17), ao passo que a terceira forma, a amizade «perfeita», existe para o
bem, e existe apenas entre homens de bem e se eles são bons (VIII, 4,
1156 b 6 e segs.). Nesta amizade perfeita apresenta-se além disso uma
tripla relação de inclusão: «os homens virtuosos são absolutamente
bons e são úteis reciprocamente uns aos outros e igualmente agradá­
veis» (b 13).
Aristóteles não defende apenas a tese da prioridade no caso da
amizade perfeita. Estabelece-a antes de distinguir as três espécies de
amizade e não a restringe depois da introdução da distinção. Além
disso, baseia a prioridade da amizade num momento comum às três
formas, que apresenta numa dupla perspectiva. Cita primeiro o lado
positivo; a amizade está em correlação com a concórdia; nós dize­
mos: institui a concórdia. Por outro lado, ela afasta, quanto ao seu
aspecto negativo, «a discórdia que é uma inimizade» (Ética a Nicó­
maco, VIII, 1, 1155 a 24-26). Nestas menções, mostra-se que existe
necessidade de iustiça onde existe rivalidade e conflito.
176 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Ora, a tese da prioridade podia significar que não se devem resol­


ver conflitos em função de considerações de justiça, mas de conside­
rações de amizade. Mas Aristóteles não defende esta ideia. Reconhece,
é certo, uma relativização da justiça, a bem dizer apenas limitada;
ela tem a sua origem, no entanto, do lado da equidade (Ética a
Nicómaco, VII, 14): porque onde os homens reinam sobre homens,
onde o arbitrário ameaça, a justiça requer regras que, enquanto re­
gras gerais, todavia não fazem justiça em cada caso singular. Ora,
para evitar esta injustiça evidente que podia nascer na altura da apli­
cação esquemática das regras, entra em jogo a equidade.
A amizade relativiza a justiça fundando-a e ao mesmo tempo en­
globando-a. Ela não aparece apenas à laia de correctivo, mas supera
já a condição de aplicação da justiça na medida em que «afasta [...]
a discórdia». A amizade, diz Aristóteles, supera o conflito e a rivali­
dade. Em consequência disso, a tese aristotélica da prioridade é para
ser lida assim: sempre que haja conflitos, a justiça é necessária
— bem como, suplementarmente, a título de correctivo ocasional, a equi­
dade. Mas o que é ainda preferível ao facto de resolver os conflitos
com justiça e equidade é que, regra geral, é o caso das relações ami­
gáveis: os conflitos nem sequer se desencadeiam. Aristóteles não for­
mula esta afirmação. Pelo contrário, reserva à virtude apropriada
aos conflitos, à justiça, se bem que a amizade lhe seja superior, um
lugar bem maior que às outras virtudes — a saber, um livro inteiro.
É aproveitando-se de Aristóteles que o comunitarismo se pronun­
cia também por uma segunda forma de prioridade, a do bem (no
sentido da existência felizmente bem sucedida) sobre o justo. Mas o
que importa a Aristóteles, é uma outra alternativa, a da simples vida
(zên) e da vida boa (eu zên). E a vida boa caracteriza-se pela comuni­
dade do justo e do injusto (Política, I, 2, 1253 a 17 e segs.). Aristóteles
defende pois aqui o contrário do que se lhe atribui hoje, não uma
alternativa ao liberalismo, mas a consolidação desse último: em vez
de uma prioridade do bem sobre o justo, a sua identidade. O bem de
uma comunidade-sociedade reside no reconhecimento de princípios
comuns do justo e do injusto. É certo que não afirma uma completa
identidade. Mas ao pôr à frente a proximidade correspondente, de­
clara que ela é importante, e até essencial. Consequentemente, põe
em segundo lugar eventuais elementos suplementares do bem e pro­
nuncia-se, em relação a estes últimos, a favor da total inversão da
prioridade discutida hoje, a saber, a favor de uma supremacia do
justo sobre o bem (sempre distinto deste último).
O liberalismo definido pelos cinco elementos reconhece precisa-
ARISTÓTELES 177

mente as condições necessárias de uma socialização legítima;


mesmo que isso possa ressoar assim em mais do que um liberal: o libera­
lismo não tem pretensões a condições de realização. Em particular,
não afirma que a sociedade é organizada pelo direito, nem que o
direito consiste unicamente em elementos universalistas. Das condi­
ções mencionadas, espera certamente uma contribuição à institui­
ção da identidade de grupos e de indivíduos. Mas o problema de
instituir uma identidade «plena e inteira» — trata-se aqui da vida
boa —, deixa-a para outras instâncias. Sabe, apesar disso, e Aristóteles dá
precisamente valor a isso, que o sistema estatal e jurídico é mais do
que um simples reagrupamento instrumental, mais do que uma pura
associação de indivíduos e de grupos que perseguem em primeiro
lugar os seus fins próprios. A Comunidade constrói-se preferente­
mente sobre comunidades já existentes (as comunidades de língua
ou de um multilinguismo bem definido, de cultura, de direito, de his­
tória e em muitos lugares também de religião). E, por causa da orga­
nização de fins comuns, essas comunidades prosseguem a sua
formação; nos sistemas jurídicos e também estatais, existe um senti­
mento pronunciado do nós.
Em suma, aquele que lê Aristóteles não encontra nele o antepas­
sado do comunitarismo, o qual se compreende como alternativa ao
liberalismo e ao universalismo, mas os traços fundamentais da forma
de filosofia política e de filosofia social que hoje é necessária, a saber,
um universalismo liberal, que vai até aliar à compreensão e ao direito
a necessidade de pertenças particulares.

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178
HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

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É sempre um desafio escrever sobre os sofistas, e com maioria de
Urmson, J„ Aristotle’s Ethics, Oxford, 1988.
razão quando se trata da sua filosofia política. Por um lado, porque
muito poucos textos chegaram até nós; em matéria política, os tex­
tos são ainda menos numerosos, porque, ao todo, não temos à nossa
disposição mais do que certos fragmentos dispersos e em mau estado
de alguns papiros de Antifonte e um texto de Protágoras, apresen­
tado por Platão, em que o sofista teria tratado da origem da política.
De resto, apenas algumas referências incluídas em obras que não
tratam directamente de política permitem, de vez em quando, for­
mular algumas conjecturas, sem qualquer certeza a seu respeito. Por
outro lado, porque, apesar dessas indicações, e por vezes graças a
elas, somos efectivamente obrigados a renunciar a falar tranquilamente
de política sofística de tal forma divergentes, e até mesmo opostas e
contraditórias, parecem, a avaliar por alguns testemunhos, as atitu­
des dos sofistas considerados individualmente. Perante essa falta de
documentos e essa dispersão de atitudes, devemos pois renunciar a
examinar a questão política a partir das posições dos sofistas? Parece,
pelo contrário, que o reconhecimento das divergências entre os
sofistas permite examinar esta questão sob um novo prisma sem nos
limitarmos a algumas obras menores que encerravam esses primeiros
pensadores políticos da Grécia em oposições rígidas: natureza-lei,
democracia-aristocracia, revolução política de um século de Luzes­
-conservadorismo de momentos precedentes. É de notar, aliás, que
no debate sobre as democracias antigas que abunda nas democracias
modernas, em que na maior parte das vezes se procuram modelos e
se consideram as democracias antigas como paradigmas que permi­
tem justificar, quando não fundar, as pesquisas contemporâneas, os
sofistas parecem poder trazer alguma luz à compreensão desses de­
bates políticos na medida em que os traços que caracterizam algu­
mas constituições políticas, tanto aos olhos dos gregos como aos
7
História
da Filosofia Política / 2

NASCIMENTOS
DA MODERNIDADE
Direcção de ALAIN RENAUT

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INSTITUTO
PIAGET
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Capítulo 1

A contribuição augustiniana:
Agostinho e o augustinismo
político
por Benoit Beyer de Ryke
De todos os autores da patrística, Agostinho é sem qualquer dúvida
aquele que exerceu a mais forte e mais durável influência sobre o Oci­
dente latino da Idade Média. Frequentemente copiado, citado, usado
como auctoritas, o bispo de Hipona dominou o pensamento da cristan­
dade ocidental, pelo menos até à grande síntese aristotélica-tomista do
século xiii. Todavia, mais do que a palavra, foi o espírito de Agostinho
que reinou no período medieval. Esse espírito augustiniano é aquilo a
que se chamou o augustinismo. O P.e Pierre Mandonnet definia-o pela
«ausência de uma distinção formal entre os domínios da filosofia e da
teologia, isto é, entre a ordem das verdades racionais e a das verdades
reveladas»; caracteriza-se também pela preeminência da noção de bem
sobre a de verdade, da vontade sobre a inteligência, da mesma forma que
pela preferência atribuída a Platão em detrimento de Aristóteles e pela
tendência «para apagar a separação formal entre a natureza e a graça».
Similarmente, Étienne Gilson escreveu na sua Introdução ao estudo de
Santo Agostinho que «entre duas soluções igualmente possíveis de um
mesmo problema, uma doutrina augustiniana tenderá espontanea­
mente para aquela que atribua menos à natureza e mais a Deus».
O forte cunho doutrinal de Agostinho sobre o Ocidente marcou igual­
mente a reflexão política. A noção de «augustinismo político» foi pro­
posta por Henri-Xavier Arquillière numa obra tendo precisamente este
título: O augustinismo político, ensaio sobre aformação das teorias políticas
na Idade Média (1934). Estendendo ao domínio político as característi­
cas do augustinismo em geral concebido como uma «tendência para
absorver a ordem natural na ordem sobrenatural», Arquillière definiu
38 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

o augustinismo político como uma «tendência para absorver o direito


natural na justiça sobrenatural, o direito do Estado no da Igreja». Sabe­
mos que o cardeal Henri de Lubac se insurgiu com veemência contra a
noção de augustinismo político, estimando que havia lugar em Agosti­
nho para uma justiça natural autónoma, sendo a justiça sobrenatural
essencialmente de ordem espiritual. Por outro lado, este autor contes­
tava a ideia de que houvesse em Agostinho uma teologia política fun­
dadora da teocracia. Em Augustinus magister, Arquillière retomou, sob
uma forma análoga, a sua definição do augustinismo político: «E a ten­
dência para absorver o direito natural do Estado na justiça sobrenatural
e no direito eclesiástico.» Contudo, Arquillière esclarecia de imediato
que se a tendência vinha de Agostinho, as doutrinas medievais que dele
tinham saído não lhe podiam ser atribuídas, em particular as concep­
ções teocráticas da monarquia pontifícia. Em suma, esta tendência,
característica do augustinismo político, «para fundir a ordem natural
na ordem sobrenatural, para a segunda absorver a primeira» — e, por
conseguinte, fundir o Estado na Igreja —, conduziu numerosos eclesiás­
ticos, desde a alta Idade Média como o papa Gregório, o Grande, no
século vi ou o teólogo e compilador Isidoro de Sevilha no século vii, a
defender o modelo político de uma teocracia pontifícia colocada à ca­
beça da respublica Christiana, a comunidade de todos os cristãos.
Arquillière mostra como a antiga ideia romana de Estado tinha sido
absorvida pela ideia de Cristandade. Todavia, confundindo a cidade
celeste com a Igreja e a cidade terrestre com o Estado, os partidários
da teocracia pontifícia cometerem um contra-senso relativamente ao
pensamento de Agostinho. Enquanto este último não acreditava que a,
cidade celeste fosse realizável a partir deste mundo, os teocratas
consideraram que a Igreja era a imagem da cidade de Deus na terra.
Afirmaram desde logo a supremacia da auctoritas do papa sobre
a potestas do imperador; em nome da primazia do espiritual sobre o
temporal. O grande ímpeto das pretensões teocráticas produziu-se no
decurso da Idade Média central (séculos xi-xni); com o estabelecimento
da doutrina da plenitudo potestatis, especialmente sob os pontificados
de Gregório VII e de Inocêncio III. Depois do que assistiremos a um
enfraquecimento das teses teocráticas frente à consolidação do Estado.
Foi portanto através de uma subversão dos ensinamentos augus-
tinianos que a Igreja pôde pretender incarnar a cidade de Deus. Iremos
ver o desenvolvimento desse augustinismo político medieval, funda­
mento da teocracia pontifícia. Mas antes disso será preciso regressar
ao augustinismo político de Agostinho, mais exactamente ao seu
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 39

pensamento político, tal como se exprime principalmente em a Cidade


de Deus, a sua obra mais célebre juntamente com as Confissões, e tam­
bém a primeira grande teologia da história.

1 — A teologia da história
e a política augustiniana

A doutrina política de Santo Agostinho é inseparável da sua «teolo­


gia da história», como em tempos mostraram Henri-Irénée Marrou e
Etienne Gilson. Trata-se realmente de uma teologia da história, e não
apenas de uma filosofia: o seu fundamento não é apenas racional, é à
luz da revelação que se revelam a origem e o termo de todas as coisas,
sendo o augustinismo uma doutrina na qual a fé precede a inteligên­
cia. Essa teologia da história assenta ela própria, em última análise,
numa teologia do tempo (Maurice de Gandillac), o qual foi criado jun­
tamente com o mundo. A reflexão sobre o tempo da história que Agos­
tinho desenvolve em a Cidade de Deus é de alguma forma o reverso
social da reflexão sobre o tempo individual humano que figura no li­
vro xi das Confissões. O tempo do homem não tem existência em si, é
constituído por um triplo nada: o passado que já não é, o futuro que
ainda não é, e o presente, misto fugitivo de passado e de futuro. O tempo
do homem é um modo de experiência interior de si como criatura
de Deus, o qual está fora do tempo. No tempo vivido pela pessoa
humana desvenda-se a relação eterna do Verbo com as criaturas. Da
mesma maneira, o tempo da história não tem realidade a não ser para
o homem. É necessário para a sua realização. Esse tempo é fechado,
começou com a criação do mundo e terminará quando do Juízo Final,
quando os homens sairem da história para conhecer, uns a beatitude,
outros sofrimentos sem fim. Deus, por sua vez, é eterno, criador do
tempo e está ele próprio fora do tempo. É a partir de uma revelação de
ordem teológica que as estruturas temporais da história são conheci­
das pelos cristãos, sem referência à realidade empírica. A revelação
constitui assim um instrumento de interpretação trans-histórica. A dou­
trina augustiniana da economia da salvação na história permite-lhe dar
uma resposta permanente que transcende o desenrolar factual dos acon­
tecimentos. Com efeito, se o conhecimento histórico se ocupa de insti­
tuições humanas empíricas, a história enquanto tal não é ela própria
uma instituição humana. Ela responde a um plano divino. Agostinho é
sem dúvida o primeiro a desenvolver semelhante teologia da história,
40 HISTORIA DA FILOSOFIA POLÍTICA A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 41

muito antes das filosofias modernas da história (Kant, Hegel, Marx). a História Universal de Bossuet e depois disso. Étienne Gilson passou
Houve, e certo, a tentativa de Eusebio de Cesareia de pensar o devir em revista diversas Metamorfoses da Cidade de Deus; colocando a obra
histórico do cristianismo, mas não teve a envergadura da doutrina do doutor africano ao lado dos trabalhos de Roger Bacon, Dante, Nicolau
augustiniana. Como escreveu Étienne Gilson: «Talvez pela primeira de Cusa, a Cidade do Sol de Campanella e A Nova Atlântida, de Francis
vez [...] graças à luz da revelação que lhe revela a origem e o fim ocul­ Bacon... Augusto Çomte inspirou-se no De civitate Dei para a sua defi­
tos do universo, uma razão humana ousa tentar a síntese da história nição de humanidade como uma entidade composta mais de mortos
universal.» Diferentemente do pensamento cósmico antigo que não do que de vivos e incluiu-a entre os 158 volumes do catálogo da sua
reflectia a história, o cristianismo abre o caminho a uma visão histórica Biblioteca positiva.
do devir da humanidade, da criação e da queda à redenção e ao Juízo Vejamos agora o conteúdo dessa obra. Mas, em primeiro lugar, é
Final. Trata-se, bem entendido, de uma história providencial, conforme
preciso dizer algumas palavras sobre o contexto em que foi escrita
aos desígnios divinos. Esta teologia cristã da história — «teologia da
a Cidade de Deus. Agostinho viveu no momento de cristianização defi­
história da salvação» como alguns precisaram — procura visualizar
nitiva do Império Romano. O mais ilustre dos Padres da Igreja latina,
conjuntamente a aventura temporal humana e a eternidade. Ao tempo
cíclico dos pensadores gregos, o cristianismo opõe um tempo histórico nasceu a 13 de Novembro de 354 em Tagasta, pequena cidade da
e linear, orientado por um princípio escatológico de salvação. A obra Numídia, e morreu a 28 de Agosto de 430 em Hipona — então sitiada
por excelência na qual Agostinho desenvolve a sua teologia da história pelos Vândalos —, cidade da qual era bispo católico desde 395 ou 396,
i e, ja o dissemos, De civitate Dei. Nela, explica que o mundo inteiro, ou seja, mais ou menos dez anos depois de sua conversão (386). Santo
| da sua origem ao seu termo, tem como fim único a constituição dé Agostinho elaborou uma reflexão doutrinal muito rica ao longo de uma
! urna sociedade santa, a dos eleitos, em vista da qual tudo foi feito. obra abundante (113 tratados, mais de 800 sermões, cerca de 300 car­
• A Cidade de Deus, obra-prima do bispo de Hipona, teve um grande tas) e frequentemente polémica, reflexo dos combates que travou: con­
I sucesso na Idade Média, como o atestam os numerosos manuscritos da tra o maniqueísmo que propunha um dualismo absoluto entre o bem e
| obra <lue foram conservados. Como escreveu precisamente Dom André o mal; contra os donatistas que, na África do Norte, reprovavam à
i Wilmart1*: «Nenhuma obra de Santo Agostinho foi copiada tantas vezes Catholica ter faltado ao seu dever aquando das perseguições; contra os
j como a Cidade de Deus e a lista dos manuscritos dela que podemos pelagianos que negavam a hereditariedade do pecado original e afir­
j Propor permanece formidável relativamente às outras.» Wilmart esta­ mavam a capacidade da natureza humana de chegar à salvação sem o
; beleceu assim uma lista de 376 números, do qual o primeiro, um exem- recurso à graça. Quanto ao seu pensamento propriamente político,
I piar parcial remontando ao século v, é o mais antigo manuscrito conhe- exprimiu-o no seguimento de um acontecimento inaudito para as pes­
|eido que ainda existe de uma obra de Santo Agostinho. A título de soas da época: o saque de Roma de 410.
I comparação, o número de manuscritos das Confissões é de 258. Sabemos que o século iv foi determinante para o sucesso do cristia­
IA Cidade de Deus constituiu, duma ponta à outra da Idade Média, uma nismo. Perseguido e depois tolerado no início do século (perseguição
Ireferência incontomável na elaboração da reflexão política: Carlos de Diocleciano, 303-311/312), tomou-se religião de Estado em 380 quando
|Magno adorava que lha lessem e, no fim do século xiv, o rei Carlos V o imperador Teodósio promulgou o édito de Tessalónica tornando
Imandou-a traduzir para francês, com comentários pelo advogado Raoul obrigatório o cristianismo niceiano. Este mesmo Teodósio proibirá os
de Presles. O De civitate Dei foi o primeiro livro impresso em Itália, em cultos pagãos em 391. O século iv marcou portanto, para o Império, o
|1467 em Subiaco. Além disso, depois de ter fascinado o Ocidente medie- início dos têmpora christiana. Ora Roma, a cidade-farol desse Império,
jval, a Cidade de Deus continuou a exercer uma forte influência sobre as tomada cristã, iria sofrer em 410 o seu mais grave traumatismo: no dia
[doutrinas políticas e os pensamentos da história até aos Discursos sobre 24 de Agosto desse ano, os Visigodos de Alarico entraram na cidade
eterna e pilharam-na durante três dias. O escândalo foi geral. Na ver­
dade, o desastre foi mais simbólico do que material. A queda de Roma
1 t ^ dlÇZ daS jbfaS de Sant0 Ag °stinho' in Miscellanea Agostiam, tomo n, Roma,
Y 3} ' ? ' cltado Por G- Bardy na sua introdução geral a Cidade de Deus, em Œuvres
relança a polémica entre pagãos e cristãos e suscita um debate sobre a
e Saint Augustin, vol. 33, trad. fr. G. Combès, «Bibliothèque augustinienne», Paris, intervenção da Providência na história. Os pagãos acusam os cristãos
Desdee de Brower, 1959, p. 135. ' de serem responsáveis pelas desgraças do Império porque tinham
42 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

abandonado o culto dos antigos deuses. Os cristãos, pelo seu lado,


estavam desorientados. Porque é que a Urbs tinha caído nas mãos dos
Godos agora que o Império se tinha convertido e que as relíquias
dos apóstolos Pedro e Paulo estavam em Roma? Porque é que Deus
não os tinha protegido contra os bárbaros (que, seja dito de passagem,
se tinham convertido ao cristianismo ariano)? Alguns atribuíram a
responsabilidade da queda aos costumes ainda pagãos dos Romanos:
não foi por se ter tomado cristã que Roma tinha sido fustigada, mas
por não se ter tornado suficientemente cristã. Temos aí, grosso modo, a
posição de São Jerónimo e de Paulo Orósio. É neste clima tumultuoso
que Agostinho, dois anos depois do saque, empreende a redacção de a
Cidade de Deus, «um grande e árduo trabalho» que ele vai levar a cabo
ao longo de quase quinze anos, de 412 a 427. Começará com a idade de
58 anos e acabará com 73.
Nesta obra em vinte e dois livros, Agostinho vai tentar, por um lado,
responder à acusação dos pagãos contra os «tempos cristãos» e, por
outro lado, reconfortar os seus correligionários lembrando-lhes que o
seu reino não é o deste mundo, que eles são cidadãos do céu e não da
terra. E a isso que são consagrados os primeiros livros. Mas a perspec­
tiva geral de a Cidade de Deus é muito mais vasta e não se limita ao
drama recente: o saque de Roma serviu de pretexto a Agostinho para
apresentar a sua teologia da história, não foi a sua causa determinante.
Santo Agostinho, retoma, aliás, no De civitate Dei, temas já abordados
no De vera religione, escrito em 390. Trata-se aqui de uma apologia da
verdadeira religião devendo conduzir à beatitude. Mas a Cidade de Deus
tem mais amplitude do que De vera religione. O verdadeiro tema da obra
está exposto desde o princípio por Agostinho em intenção do seu amigo
Marcelino, alto funcionário da chancelaria imperial, de acordo com o
qual a Cidade de Deus tinha já começado: «A muito gloriosa Cidade de
Deus considerada, por um lado, no decurso das eras de cá de baixo em
que "vivendo a fé" ela faz a sua peregrinação no meio dos ímpios, por
outro lado, nessa estabilidade da morada eterna que ela espera agora
com paciência até ao dia em que a justiça será mudada em julgamento
e em que, graças à sua santidade, ela possuirá então por uma suprema
vitória numa paz perfeita, tal é, meu muito querido filho Marcelino, o
objecto desta obra2.»
A Cidade de Deus, o título é colhido nas Escrituras. Encontramos a
expressão no Livro dos Salmos (Salmo 86,6: Gloriosa dieta sunt de te, civitas
Dei; Salmo 45,5-6; Salmo 47, 2.3.9) mas igualmente no Novo Testamento

2 Dè civitate Dei, tomo 3 3 ,1, preâmbulo, p. 191.


A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 43

(ver Epístola aos Hebreus, 11, 10; 10, 3-16; 12, 22-23; e Apocalipse
3; 13,2 e 10). Quanto à oposição das duas cidades, a celeste e a terrestre,
ela já tinha sido formulada pelo bispo donatista Ticonius onde talvez
Agostinho a tenha ido buscar. Santo Agostinho evoca estas duas cida­
des em múltiplas obras anteriores a De civitate Dei: sobretudo nas
Enarrationes in Psalmos, mas também em De vera religione, De catechizanãis
ruáibus, De Genesi aã litteram e nas Confissões.
A Cidade de Deus divide-se em duas grandes partes: a primeira
(livros i a x) é polémica, trata-se de uma crítica às crenças dos pagãos,
esses «inimigos da Cidade de Deus que preferem os seus deuses»;
a segunda (livros xi a xxn), dogmática e construtiva, expõe a teologia
cristã da história, a saber, o começo, o progresso e o fim das duas cidades.
Cada uma destas duas partes — refutação do paganismo e afirmação
do cristianismo — subdivide-se por seu turno em múltiplas secções; a
primeira, em duas: os deuses pagãos não asseguram, àqueles que lhes
prestam culto, a felicidade material nesta vida (livros i a v), como não
lhes asseguram a felicidade espiritual na vida futura (livros vi a x);
a segunda e última parte divide-se, por seu turno, em três secções:
origem das duas cidades, da criação do mundo ao pecado original
(livros xi a xiv); história das duas cidades até à época de Agostinho,
cidades que estão inextrincavelmente misturadas no decurso do seu
desenvolvimento (livros xv a xvm); os fins últimos das duas cidades
(livros xix a xxn).
Para desenvolver o conteúdo do pensamento político do bispo de
Hipona, o melhor é ainda, parece, seguir as grandes articulações do De
civitate Dei, insistindo nas passagens mais significativas para o nosso
propósito. A primeira parte da obra parece não ter mais do que uma
relação bastante longínqua com o projecto augustiniano de esboçar a
história das duas cidades, desde a sua origem até à consumação dos
tempos. Trata-se na verdade, para o pensador africano, de refutar o
paganismo greco-romano antes de expor, na segunda parte, a visão
cristã do mundo e da história.
Os cinco primeiros livros são uma crítica dos politeístas que ado­
ram os deuses em consideração dos bens materiais, deuses em quem
vêem os protectores dos interesses de Roma. O início de a Cidade de
Deus é, já o dissemos, uma obra de circunstância destinada a responder
à acusação formulada em 410 pelos pagãos, que sustentavam que o
saque de Roma tinha como causa o abandono, imposto pelo cristianismo
vinte anos antes, dos cultos tradicionais da religião romana (livro i).
Agostinho dirige-se assim aos cristãos, faz-lhes ver que a pilhagem da
cidade foi uma prova salutar na medida em que lembra o escasso valor
44 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

dos bens terrestres perecíveis: para eles, a felicidade não está neste
mundo. Aos pagãos, ele replica que os deuses romanos, esses «ídolos
de madeira e de pedra», nunca protegeram Roma, pelo contrário. Muito
antes do actual desastre, a imoralidade dos costumes dos seus deuses
tinha desencadeado a corrupção moral do povo. Agostinho cita aqui
Salústio: «A República transformou-se pouco a pouco e de muito bela e
muito boa tomou-se muito má e muito corrompida3.» O bispo de Hipona
tece desta forma uma ligação entre a imoralidade da religião romana, a
cormpção dos costumes individuais, sociais e políticos, e a ruína re­
cente da cidade etema (livro n). Ele mostra à luz da história de Roma
que a Urbs conheceu desgraças no tempo do paganismo, quando o cris­
tianismo nem sequer existia (livro m). Assim, a cidade tinha já caído
uma primeira vez em 390 a. C. sob os golpes dos Gauleses. Por outro
lado, a prosperidade material e o desenvolvimento do Império Romano
não podem ter sido obra dos deuses pagãos (livro iv), nem sequer obra
de uma pretensa fatalidade astrológica. A grandeza de Roma foi uma
dádiva do único verdadeiro Deus (livro v). Aqui, Santo Agostinho de­
senvolve a sua concepção da Providência: a sorte dos impérios está nas
mãos de Deus, que favoreceu os Romanos dotando-os do amor pela
liberdade, pela glória e pelo domínio, virtudes que lhes permitiram ter
«o mais glorioso dos impérios». Foi a Providência divina, não o acaso
dos epicuristas ou o destino dos estóicos, que atribuiu a Roma a sua
glória terrestre como recompensa temporal das suas virtudes inatas.
Agostinho usa como testemunhas da grandeza romana o poeta Virgílio
e o historiador Salústio. A Roma que ele admira é aquela da República,
antes de degenerar no vício. A homenagem que o bispo de Hipona
presta aos homens virtuosos e aos heróis da Urbs, como César e Catão,
que souberam pôr o interesse geral à frente do interesse privado, essa
homenagem não o impede de relativizar a glória completamente hu­
mana e terrestre do Império Romano, sem comparação com a glória do
Reino de Deus. Agostinho apela igualmente aos Romanos para que se
virem para o verdadeiro Deus, sem por isso renunciarem que foi a sua
grandeza. «Ambiciona antes estes bens, ó nobre índole do povo romano,
raça dos Régulos, dos Cévolas, dos Cipiões, dos Fabrícios. Sim,
ambiciona estes bens, mas distingue-os da infame vaidade, da pérfida
malignidade dos demónios. Se brilha em ti um dom natural estimável,
somente a verdadeira piedade pode purificá-lo e aperfeiçoá-lo; a impie­
dade coloca-o em perigo e consome a sua ruína. Escolhe agora a tua
estrada para conseguir ser louvado sem erro, não em ti mesmo, mas no

3 Vol. 33, II, X V III, p. 361; Salústio, Historiae, fragm., 1,16.


A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 45

verdadeiro Deus4.» Por outro lado, o bispo de Hipona mostra aos cristãos
que Roma deve ser um exemplo para eles: os cidadãos da cidade
celeste devem ultrapassar as virtudes dos Romanos. O livro v termina
com um elogio dos reinados idealizados dos imperadores cristãos
Constantino e Teodósio. O bispo de Hipona vê neles um modelo do
que poderia ser um Estado ou uma república cristãos, ainda que o pe­
cado não esteja ausente. Quer isto dizer que Agostinho confunde a
cidade de Deus com o Império cristão? De forma nenhuma. Como ve­
remos mais à frente, a cidade de Deus não pode ser realizada na terra.
Trata-se de uma cidade mística cuja realização é reportada ao fim dos
tempos e que vive como que em peregrinação na história. É certo,
Constantino e Teodósio são melhores do que os imperadores ímpios e
perseguidores, mas não podem estabelecer — ninguém o pode — a
cidade de Deus na terra. O equívoco do augustinismo político da Idade
Média será precisamente o de julgar possível a realização terrestre da
cidade celeste.
Os livros vi a x são uma refutação dos filósofos que justificam o
culto dos deuses pagãos com vista à felicidade ultraterrestre. Para ata­
car os fundamentos intelectuais do politeísmo romano, Agostinho cita
abundantemente, com o fito de o criticar, o estudo do célebre erudito
Varrão, As Antiguidades das Coisas Humanas e Divinas. Partindo da dis­
tinção feita por este autor entre três teologias — a teologia mítica ou
fabulosa, a teologia natural ou filosófica, e a teologia civil ou política —,
o bispo de Hipona começa por combater a primeira e a terceira (livros
vi e viii), antes de se debruçar sobre a teologia filosófica (livros vm, ix e x).
Entre os filósofos, Agostinho escolhe, como interlocutores privilegiados,
os platónicos e os neoplatónicos (Plotino e Porfírio em particular).
O augustinismo foi frequentemente apresentado como um platonismo
cristão, insistindo na influência sofrida por Agostinho, quer seja pelo
reconhecimento da pura espiritualidade e imaterialidade de Deus e da
alma quer, no domínio da noética ou teoria do conhecimento, a manu­
tenção das ideias platónicas eternas em Deus e a doutrina da ilumina­
ção interior. E certo, tal como Tomás de Aquino pôs em evidência —
pela primeira vez, ao que parece — no século x iii , Agostinho seguiu
Platão tanto quanto o toleravam os dogmas cristãos. Todavia, ao adoptar
este ponto de vista que apresenta o augustinismo como platonismo
cristão, arriscamo-nos a esquecer a subversão que Agostinho faz sofrer
ao platonismo. Segundo o bispo de Hipona, o cristianismo assegura ao
platonismo, de certa forma, a sua realização, apresenta-se como a

4 Vol, 33, II, X X IX , p. 405.


46 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

verdadeira filosofia. Na verdade, Agostinho retém a teologia platónica,


mas rejeita-lhe a teurgia. As más meditações demoníacas, substitui-as
pelo verdadeiro mediador, a saber, Cristo. É a leitura do Prólogo do Evan­
gelho de João que lhe dá o princípio de discernimento entre o que existe
de válido no platonismo (imaterialidade de Deus, Verbo divino) e aquilo
que não se encontra nele (a Incarnação do Verbo). Também o platonismo
sofre, aos olhos do doutor africano, de uma contradição entre uma boa
teologia e uma má religião, a dos deuses da cidade. Portanto, Agosti­
nho baptizou efectivamente o platonismo, mas fazendo-o passar por
alterações profundas. E por isso que, nos seus livros de a Cidade de
Deus, ele se liga vigorosamente aos platónicos e neoplatónicos. Segundo
ele, esses pensadores, que são os mais próximos da verdade, são
também por isso os inimigos mais temíveis do cristianismo. Demasiado
espiritualistas, não aceitam a Incarnação. Para mais, perdem-se na
demonologia (Apuleio) e na teurgia. Podemos passar rapidamente por
cima destes livros porque eles não dizem respeito ao pensamento polí­
tico do doutor africano.
Depois desta primeira parte de polémica antipagã que aparece a
Marrou como «um gigantesco excurso», Agostinho empreende, na se­
gunda parte da sua obra-prima, a exposição do quadro das duas cida­
des: «Agora, sabendo o que daqui em diante se espera de mim e
recordando-me da promessa, empreendo, relativamente às duas cida­
des, a terrestre e a celeste que estão, como já disse, confundidas e de
certa forma misturadas uma com a outra neste século presente, a expo­
sição da sua origem, do seu desenvolvimento e dos fins que lhes
correspondem, tanto quanto possa, apoiado sem cessar pela assistên­
cia de Nosso Senhor e Rei5.» Vamos percorrer brevemente esse grande
fresco histórico, mas, antes disso, detenhamo-nos sobre as duas cida­
des, os laços que elas mantêm e as suas diferenças.
Agostinho considera a vida moral como estando estreitamente
ligada à vida social: cada indivíduo está para a sociedade como uma letra
está para uma frase, constitui um elemento da cidade e do reino. Ora o
laço social, aquele que permite a um grupo de homens viverem juntos,
implica necessariamente um amor comum. Daí a definição que Agosti­
nho dá do «povo»: «Uma multidão de seres racionais associados pela
participação na concórdia dos bens que amam6.» Um povo é portanto
um conjunto de homens unidos pelo seu amor comum por um mesmo
objecto. E como para o bispo de Hipona não existem fundamentalmente

5 Vol. 35, XI, p. 35.


6 Vol. 35, XIV, XXVin, p. 465.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 47

no homem senão duas vontades ou amores, não haverá também senão


dois povos ou duas cidades metafísicas, às quais se reduzirão todos os
grupamentos empíricos. A natureza dessas duas sociedades humanas
define-se pelo que elas amam. «Dois amores criaram portanto duas ci­
dades: o amor por si até ao desprezo de Deus, a cidade terrestre; o amor
por Deus até ao desprezo de si, a Cidade celeste. Uma glorifica-se em si
própria, a outra no Senhor. Uma exige a sua glória aos homens; para a
outra, Deus testemunha da sua consciência é a sua maior glória7.» Im­
porta aqui compreender que essas duas civitates, a do céu e a da terra,
não são cidades históricas, mesmo que Jerusalém («Visão de paz») seja
uma imagem da primeira, enquanto Babilónia (Babel, «Confusão») é o
símbolo da segunda. Estas cidades são cidades «místicas», como o pró­
prio Santo Agostinho diz, cidades no sentido alegórico. Henri-Irénée
Marrou fala a esse respeito da natureza «ideal» da cidade augustiniana.
Contudo, não se deve levar demasiado longe a preocupação com a
desterritorialização, com o desancorar das duas cidades relativamente
às realidades terrestres. A espiritualização das cidades augustinianas
não nos deve fazer esquecer que elas se incarnam de alguma forma no
mundo. Entretanto, no tempo da história, as duas cidades estão mistu­
radas (perplexae). Serão separadas no Dia do Juízo. Como sublinhou per­
tinentemente Étienne Gilson, é de facto o princípio da predestinação
divina que dá a chave da doutrina das duas cidades: «Todos os homens
fazem parte de uma ou da outra, porque todos os homens estão predes­
tinados à beatitude com Deus, ou à miséria com o demónio.» E por­
tanto a escatologia que está na base dessa teologia política das duas cida­
des, mas uma escatologia desigual uma vez que será marcada pela vitória
da cidade de Deus sobre a cidade terrestre. A assimetria encontra-se
temporalizada no decurso da história. A dualidade fundir-se-á numa
unidade no Juízo Final porque apenas a cidade do céu se manterá como
cidade. E em relação com a perspectiva escatológica da separação última
entre as duas cidades ou reinos que todos os acontecimentos empíricos
adquirem sentido. O bispo de Hipona dispõe assim de uma grelha de
interpretação do desenvolvimento histórico, grelha que não é ela
própria histórica, porque está fundada na revelação. Toda a história
cristã tal como a apresenta Agostinho tende para o Juízo Final. De um
lado, os eleitos, do outro,i os condenados. Notemos que Deus distingue
os eleitos dos outros «pela sua graça e não pelos seus méritos, uma vez
que toda a massa foi condenada na sua raça corrompida»; e o bispo de
Hipona acrescenta: «Cada um reconhece, com efeito, que não é por uma
48 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 49

bondade totalmente gratuita, não é pelos seus méritos, que ele será terrena, devido ao facto de ser a cidade do diabo, cidade do mal, não
arrancado ao mal, quando se vir liberto da sociedade destes homens possui, na sua essência, um ser verdadeiro. Isso depende, é claro, da
com os quais ele teria devido partilhar o justo castigo8.» tese augustiniana, oposta ao maniqueísmo, da não substancialidade do
Agostinho parte portanto de uma consideração moral, a saber, a mal: Deus, sendo perfeito, não podia criar o mal. Este, portanto, é sem
constatação de que existem dois modos de vida antagónicos determi­ substância. Como Plotino, o bispo de Hipona pensa que o mal é uma
nados por dois amores — um bom, o outro mau; e faz remontar o prin­ deficiência do bem, que não pode ser atribuído a uma natureza, ao ser.
cípio desta oposição às consequências da culpa original do primeiro A sua origem é a vontade perversa de criaturas criadas boas. Isso torna
homem. Desde o pecado de Adão, a espécie humana divide-se em duas evidentemente a cidade terrestre mais difícil de apreender no seu
grandes cidades, duas sociedades simbólicas: a cidade do céu e a «menos-ser» (Marrou) do que a cidade do céu. Mesmo essa cidade da
cidade da terra. A primeira serve Deus e os seus bons anjos, a outra serve terra é boa por natureza, é a perversidade da sua vontade que a torna
o diabo, os anjos rebeldes e os demónios. Para definir a orientação destas má.
duas cidades, Agostinho retoma as expressões de São Paulo, «viver se­ Percorramos agora brevemente a teologia da história que figura na
gundo o espírito» e «viver segundo a carne», às quais prefere, contudo, segunda parte do De civitate Dei. Aqui, como por todo o lado no pensa­
as expressões «viver segundo Deus» e «viver segundo si próprio» por­ mento augustiniano, a fé precede a razão. E portanto a revelação que
que estão menos sujeitas a mal-entendidos (sendo o orgulho do espí­ dá os elementos desse grande fresco histórico. Agostinho começa por
rito frequentemente mais grave do que o deboche da carne). Os cidadãos expor a origem primitiva das duas cidades. Para o fazer, parte da cria­
da cidade celeste estão portanto unidos no seu amor a Deus, os da ci­ ção: criação do mundo, criação dos anjos (livro xi). E afirma que o pró­
dade terrestre, no seu amor às coisas temporais. Se bem que estas duas prio tempo foi criado com o mundo, que é de alguma forma uma cria­
cidades estejam inextrincavelmente misturadas no seu desenvolvimento tura: «É portanto incontestável que o mundo foi feito, não dentro do
histórico, elas serão separadas quando do Juízo Final, quando Cristo tempo, mas com o tempo.» Quanto ao espaço, ele também não existe
pronunciar a sentença e Jerusalém, a civitas Dei, aparecer à sua direita fora do mundo. Como preâmbulo à história das duas cidades, a espiri­
enquanto Babilónia, a civitas terrena ou diaboli, estará à sua esquerda. tual e a carnal, o bispo de Hipona desenvolve o tema d as duas cidades
Se as duas cidades estão ligadas, é preciso notar que Agostinho as angélicas — uma boa, a outra má —, que estarão associadas às duas
mantém numa posição assimétrica entre si, de forma a evitar o risco do cidades humanas. No início, os primeiros homens qram felizes no
dualismo maniqueísta. Alguns emitiram no entanto a hipótese de que a paraíso (livro x h ) , antes do pecado e da irrupção do mal (livros xin e
teoria das duas cidades era em Santo Agostinho como que um resto de xiv), a primeira grande escansão na narrativa de Agostinho. Foi a partir
maniqueísmo. Não me parece que seja esse o caso. Tanto mais que, como do pecado que se operou a cisão entre os bons e os maus, da mesma
dissemos, as duas cidades não estão numa relação de igualdade: a ci­ forma que entre as cidades das quais Caim e Abel serão os fundadores, o
dade celeste acabará por se sobrepor à cidade terrestre. Reinhart primeiro da cidade da terra, o segundo da do céu. As etapas sucessivas
Koselleck insiste nesse ponto: «As duas cidades têm uma relação mútua desta história providencial distribuem-se em seis eras, reflexo dos seis
assimétrica. Não são domínios opostos de forma maniqueísta, consti­ dias da criação, antes do descanso do sétimo dia: de Adão ao dilúvio
tuem antes, estando as duas imbricadas nas leis hierárquicas de um (livro xv); do dilúvio a Abraão; de Abraão a David (livro xvi);
cosmos existente, um processo cujo resultado certo mas fixado no tempo de David à deportação para Babilónia; desta última a Jesus Cristo
não pode levar senão à vitória da civitas Dei.» A temporalidade das (livro xvii); por fim, de Cristo ao Juízo Final (livro x v iii ) . Esta reparti­
duas civitates não tem, portanto, a mesma natureza: enquanto a eterni­ ção da história da humanidade em seis eras, fundamentada analogica-
dade caracteriza a cidade de Deus, a cidade terrestre não é de forma mente nos seis dias da criação da narrativa do Génesis, antes do des­
nenhuma eterna, porque não se manterá como cidade depois do Juízo canso do sétimo dia, é extraída da tradição antiga dos hexâmetros, ou
Final, se bem que os seus membros sejam votados a penas eternas. Por comentários dos seis dias, dos quais Ambrósio tinha dado, no século iv,
outro lado, outro aspecto da assimetria entre as duas cidades, a civitas um belo exemplo. Existiam por outro lado diversas tentativas de
periodizações, tanto pagãs como cristãs, às quais Agostinho pôde ir beber
8 Vol. 35, XIV, X X V I, p. 461. ou nas quais ele em todo o caso se inspirou. Essas doutrinas das idades
50 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

do mundo, que são correntes desde as mitologias primitivas até às


modernas filosofias da história, estão geralmente concentradas, quer
sobre as origens quer sobre os fins últimos: idade de ouro versus fim
dos tempos. O presente é nelas julgado quer em função do passado,
quer do futuro e da sua escatologia. Na época em que Agostinho se
coloca, isto é, na última idade do mundo que começou com o nasci­
mento de Cristo e se completará quando do Juízo Final, nada se pode
passar de novo, excepção feita à perspectiva da espera escatológica da
segunda parusia. Notemos que se misturam, nestes capítulos tirados
da história santa, elementos saídos da história secular, sobretudo no
livro xviii. Agostinho entrega-se aqui a um exercício de história compa­
rada, recolhendo a contribuição da erudição profana e do conhecimento
das Escrituras.
Segundo o Antigo Testamento, Caim foi o primeiro fundador de
uma cidade. E também com ele que começa, com a morte do seu irmão,
a cidade terrestre como cidade do mal, enquanto Abel é a primeira fi­
gura da cidade de Deus (livro xv). Santo Agostinho compara este
fratricídio com o de Remo por Rómulo, o qual presidiu à fundação
de Roma. Cada cidade desenvolve-se com os descendentes de Caim e
de Abel até ao dilúvio que terá como causa a mistura crescente entre as
duas civitates.
A segunda grande etapa começa depois do dilúvio que vê o aniqui­
lamento, pelas águas, de toda a humanidade, com a única excepção de
Noé e dos seus, cuja arca é uma figura da cidade celeste. Dos três filhos
de Noé, dois (Sem e Jafet) são abençoados e pertencem à cidade de Deus;
um (Cam) é condenado e membro da cidade terrestre. Aqui se posiciona
o episódio capital da torre de Babel, símbolo da orgulhosa impiedade
da cidade do diabo. Babilónia é a cidade da terra por excelência, a
cidade do mal na sua realização histórica. O seu nome significa
«Confusão». Com efeito, o castigo será a confusão das línguas, «e as
suas línguas dividirão os povos». Confusão à qual a descendência de
Sem não foi evidentemente submetida porque «a pluralidade e as
variações das línguas foram o efeito de um castigo ao qual devia segura­
mente escapar o povo de Deus». Igualmente, a língua do futuro povo
eleito é a língua primitiva da humanidade.
Agostinho debruça-se de seguida sobre a aliança de Deus com
Abraão (livro xvi), depois sobre a descendência de Abraão — a de Isaac,
de Jacob, de José — que permanece fiel à promessa divina. Ao mesmo
tempo afirmam-se os impérios pagãos da Babilónia e da Assíria que
anunciam a fundação de Roma, a qual será «como uma outra Babilónia
no Ocidente». Agostinho prossegue, no livro xvn, a sua leitura selectiva
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 51

da história santa, leitura espiritual e profética das promessas de Deus


que deveriam conduzir a Cristo e ao aparecimento da Igreja. Israel é aí
apresentado como o pai do povo de Deus, logo como a prefiguração da
Igreja. O povo hebreu, que foi liberto por Moisés da servidão no Egipto,
instalou-se na terra prometida onde, repartido em doze tribos, foi diri­
gido por juízes, e mais tarde por reis (Saul e David).
Vêm em seguida o reinado de Salomão, a divisão do reino hebreu
em dois, a deportação para Babilónia. Algum tempo antes tinha sido
fundada Roma, «como uma segunda Babilónia, como uma filha da pri­
meira».
No livro xvm, o bispo de Hipona retoma, numa tabela geral, o
sincronismo das duas cidades. Mostra a mistura destas durante todo o
tempo da história, até à parúsia e ao Juízo Final. Neste livro, Agosti­
nho mistura habilmente a história santa e a história profana, inscre­
vendo desta forma os acontecimentos religiosos na história secular, de
acordo com um modelo fornecido essencialmente pela Crónica de Eusébio
de Cesareia. O pensador africano dedica-se a pôr em relação a cidade de
Deus e as formas empíricas da cidade terrestre: o Império Assírio e o
Império Romano. E em todo o lado, mostra a Divina Providência em
acção na história, porque é de Deus que dependem todos os reinos.
Quando aparece Cristo, o povo hebreu, novamente reunido depois
do cativeiro em Babilónia, tinha passado para o domínio dos Romanos.
Através da sua morte redentora, o Messias oferece aos cidadãos da
terra a hipótese de se converterem à cidade do céu. A Incarnação faz, de
certa forma, com que a cidade celeste entre no tempo. De maneira que a
Igreja, sem se identificar totalmente com ela, prefigura a cidade de Deus.
Durante estes primeiros séculos da era cristã, a Providência permite
que Roma estenda o seu Império a toda a terra e imponha a pax romana.
Ao mesmo tempo, o cristianismo, frequentemente alvo de perseguições,
expande-se pelo Império. Com Constantino e Teodósio, ele toma-se a
sua religião dominante.
Na última sequência do De civitate Dei (livros xix a x x i i ) , Santo Agos­
tinho mostra qual é o fim das duas cidades, depois do Juízo Final
(livro xx): as penas eternas do inferno para os cidadãos da cidade ter­
restre (livro xxi), a ressurreição e a beatitude para os justos da cidade
celeste (livro x x i i ) . Mas sobretudo, ele consagra um livro inteiro
(livro xix) às relações mútuas das duas cidades, livro que será uma
referência capital para os filósofos da coisa política.
O livro xix é um dos mais célebres da Cidade de Deus. Agostinho
desenvolve nele a sua concepção da política. Interrogando-se sobre o
problema dos fins perseguidos pelas duas cidades, Agostinho observa
52 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

que existe pelo menos um fim comum às duas, que é a paz: «Da mesma
forma que todos desejam a alegria, não há ninguém que não ame a
paz.» Esta busca universal da paz aparece em Santo Agostinho como
uma regra à qual se submetem todas as sociedades empíricas. Isso
permite-lhe criar um modelo formal constrangedor das regularidades
históricas, modelo fundado na sua teologia política. Essas regularida­
des permitem a Agostinho estabelecer constantes e reduzir assim a
parte de imprevisibilidade na história. Constrói desta forma um esquema
de interpretação global das condições de possibilidade do desenrolar
histórico. Toda a sociedade busca a paz, mesmo quando faz a guerra.
«Uma vez que mesmo aqueles que querem a guerra seguramente não
querem mais nada senão a vitória, é portanto a uma paz gloriosa que
aspiram atingir ao fazer a guerra.9» A falta de paz neste mundo não
se deve portanto a uma falta de amor pela paz mas sim ao facto de que
cada um procura a sua paz e que a paz procurada é frequentemente
uma paz gloriosa, e daí as situações conflituosas. Agostinho parte do
axioma teológico da paz perfeita, que não existe a não ser no além, para
desvalorizar a paz neste mundo que, todavia, é ardentemente pro­
curada no domínio terrestre. De tal forma que se o fim comum das duas
cidades é a paz, esta não é da mesma natureza para cada uma delas:
enquanto a paz da cidade do céu é eterna, a da terra nunca é definitiva.
A paz terrestre e a paz de Deus não podem ser confundidas. Não pode­
ria haver paz verdadeira sem a graça salvadora de Deus. A verdadeira
paz não é deste mundo: «Nesta terra, é verdade, dizemo-nos felizes
quando temos paz, por muito pequena que seja essa paz que possamos
ter numa vida honesta; mas essa felicidade, comparada à beatitude que
chamamos final, é de facto uma verdadeira miséria10.»
Em que condição fundamental essa paz, que toda a sociedade deseja,
pode ser mantida na duração do tempo? E preciso para isso que a
ordem reine. Daí a definição que Santo Agostinho dá da paz: «A paz de
todas as coisas, é a tranquilidade da ordem11.» Agostinho define em
que consiste essa paz na cidade: «E a concórdia bem ordenada dos
cidadãos nos mandamentos e na obediência»; e na cidade celeste «é a
comunidade perfeitamente harmoniosa na fruição de Deus e na fruição
mútua em Deus». A paz resulta da ordem estabelecida por Deus.
Quanto à ordem, é «a disposição dos seres iguais e desiguais, desig­
nando a cada um o lugar que lhe convém». Desejada por Deus, a

9 Vol. 37, XIX, XII, p. 99.


10 Vol. 37, XIX, X, pp. 95-97.
11 Vol. 37, XIX, XIII, p. 111.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 53

ordem da criação é boa. Num certo sentido, mesmo os infelizes que


não têm a paz não podem escapar à ordem divina, «eles não podem,
mesmo naquela miséria que é a sua, estar fora da ordem». Existe de
certa forma uma ontologia da ordem que está presente por todo o lado
na criação devido à organização divina do mundo. Contudo, na esfera
política, a ordem pode estar mais ou menos realizada. Agostinho, de
forma geral, estima que a ordem vale sempre mais do que a anarquia, e
que uma má ordem é preferível à desordem. Porque para o doutor
africano como para São Paulo, o poder político é simultaneamente um
castigo do pecado e uma maneira de limitar os seus efeitos. Na desor­
dem, a natureza corrompida pela queda exprime-se com mais força.
A paz e a ordem ocupam, acabámos de ver, um grande lugar na
teoria augustiniana da política. Há um terceiro conceito não menos
importante no qual o bispo de Hipona insiste com firmeza: é a justiça.
Com a ordem, a justiça é a condição da paz. É a verdadeira justiça que é
o fundamento da paz. Ora, o que é a justiça? Ela é «a virtude que atribui
a cada um o que lhe cabe12». Essa justiça que dá a cada um o que lhe é
devido é consentimento em relação à ordem divina. Estas noções de
paz e de justiça são fundamentais na perspectiva augustiniana porque
se estendem às duas cidades, são valores comuns à cidade celeste e à
cidade terrestre. Mas da mesma forma que a verdadeira paz é apanágio
da cidade do céu, a verdadeira justiça, que deriva da caridade, é reser­
vada aos eleitos. Lembremos que estes, unidos a Deus pela graça, são
arrancados à massa âamnata devido, não aos seus méritos, mas à «bon­
dade completamente gratuita» do Senhor. Portanto, a verdadeira paz,
tal como a verdadeira justiça, não é deste mundo.
Ora, se a cidade terrestre não pode estar fundamentada numa jus­
tiça verdadeira, podemos ainda chamar-lhe uma «cidade»? Agostinho
parece, num primeiro momento, responder negativamente. De forma
que não existiria em definitivo senão uma só cidade digna desse nome,
a cidade de Deus, porque apenas ela está conforme ao que uma cidade
deve ser, apenas ela está fundada na justiça sobrenatural. O raciocínio é
o seguinte. Agostinho retoma o que Cícero disse da cidade: é-lhe neces­
sária a concórdia, e a concórdia pressupõe justiça. O que é a concórdia?
Eis a definição de Cícero: «O que os músicos chamam harmonia no
canto, chama-se concórdia na cidade, o laço mais sólido e melhor para
assegurar a salvação de todo o Estado; e esse laço não pode de forma
nenhuma subsistir sem a justiça13.» Logo, sem justiça, não há concórdia,

12 Vol. 37, XIX, XXI, p. 141.


13 Vol. 33, II, XXI, p. 371; Cícero, De Republica, 11,42-43.
54 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

e sem concórdia, não há cidade. Se bem que Agostinho venha a


contestar que alguma vez tenha existido respublica romana, porque o
Estado romano não estava fundado na justiça verdadeira, isto é, na
justiça cristã. Ele vai até mais longe, nunca houve «povo» romano. Com
efeito, se a respublica é, como diz Cícero, «a coisa do povo», e se o «povo»
é «tuna multidão reunida em sociedade pelo consentimento num di­
reito e pela comunidade de interesses», então, onde a verdadeira justiça
é inexistente, não poderia haver multidão reunida pela aceitação do
direito, e consequentemente não poderia haver povo, nem a fortiori
«coisa do povo», respublica. «Subtraia-se a justiça, diz Santo Agostinho,
e o que são os governos senão pilhagem em grande escala?» Em suma,
se aceitarmos a definição de Cícero, a conclusão impõe-se: «Onde não
há justiça, não há república!» E se o bispo de Hipona recusa o nome de
respublica ao Império Romano, é porque ele era pagão. Ora numa so­
ciedade politeísta, a justiça não pode existir. Com efeito, «qual é então
a justiça do homem que subtrai o próprio homem ao verdadeiro Deus
e o escraviza aos demónios impuros? É isso atribuir a cada um o que
lhe cabe?»14.
Agostinho parece menosprezar completamente o direito natural do
Estado. Sem justiça cristã, não existe Estado digno desse nome. Tais
asserções deveriam conduzir às concepções teocráticas mais radicais
da Idade Média, como as de Gilles de Roma que, no princípio do
século xiv, se refere explicitamente no seu De ecclesiastica potestate a essa
passagem (xix, xxi) do De civitate Dei para apoiar a tese da supremacia
pontifícia. Temos aqui a tendência, que será a do augustinismo político
medieval, para absorver o direito natural do Estado na justiça sobrena­
tural da Igreja. Ora, isso entra em contradição com a frase de São Paulo,
reconhecendo a todo o poder uma certa legitimidade, pelo facto da sua
inscrição na ordem desejada pela Providência divina: non est potestas
nisi a Deo (Epístola aos Romanos, 13,1).
Mas o bispo de Hipona não fica por aqui. Queria mostrar a insufi­
ciência da definição ciceroniana da república e do povo. É por isso que
Santo Agostinho propõe essa outra definição do «povo», que nós já
citámos mais acima: «O povo é uma multidão de seres racionais associa­
dos pela participação na concórdia nos bens que amam.» E de acordo
com esta definição, que faz passar para segundo plano a noção de justiça,
Agostinho reconhece que «o povo romano, sem dúvida alguma, é um
povo, e a sua coisa uma república15. Podemos dizer o mesmo do povo e

14 Vol. 37, XIX, XXI, p. 141.


15 Vol. 37, XIX, XXIV, p. 163.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 55

da república dos Atenienses, dos Egípcios e de Babilónia, dos Assírios, e


ainda de qualquer outra república de outros povos. Agostinho reconhece
portanto um valor legítimo aos Estados de todas as nações antigas.
Ele junta-se aqui ao apóstolo Paulo ao qual parecia opor-se precedente­
mente. Mas esses povos são justos? Isso é uma outra questão: «Para sa­
ber o que é cada povo, é preciso considérar o objecto do seu amor. Qual­
quer que seja, por outro lado, o objecto que ama, se é uma reunião, não
de animais, mas de uma multidão de criaturas racionais reunidas em
sociedade pela participação na concórdia nos bens que amam, merece
com razão o nome de povo; povo tanto melhor quanto mais se entender
sobre as coisas melhores, tanto mais execrável quanto mais estiver de
acordo com as coisas mais execráveis16.» Relativamente a isso, é preciso
reconhecer que o povo romano foi na maior parte das vezes um mau
povo. Agostinho não pensa, já o dissemos, que o mundo profano, devido
à sua corrupção, seja capaz de constituir uma sociedade verdadeiramente
justa. Apenas a cidade de Deus se consagra a isso.
Bastará então que uma república — ou um império — seja cristão
para que aí reine uma verdadeira justiça? Os teóricos medievais da
teocracia acreditaram nisso, assimilando a Cristandade à civitas Dei,
à cabeça da qual deveria encontrar-se o papa, detentor de um poder
plenário. O bispo de Hipona, por seu lado, não o sustentou porque,
para ele, nenhuma sociedade terrestre pode ser salva: não existe cidade
celeste realizada neste mundo terreno, não há cidade de Deus reali­
zada aqui na terra. Toda a sociedade é feita de um misto de pecadores
e de homens justos, sem que possamos saber quem são os pecadores e
quem são os justos. A predestinação divina está na origem dessa mis­
tura das duas cidades no tempo da história, mas escapa ao conheci­
mento dos homens.
Se toda a sociedade, mesmo a melhor, está viciada pelo pecado ori­
ginal, como conceber a relação das duas cidades no século, antes que o
Juízo Final as separe? Dito de outra forma, como irão os cidadãos do
céu viver o seu exílio aqui em baixo entre os ímpios da cidade terrestre?
Antes de responder a esta questão, é preciso sublinhar uma dificuldade
que se deve à ambiguidade do texto do próprio Agostinho. Com efeito,
o doutor africano utiliza a mesma palavra civitas para evocar, por um
lado, as organizações políticas concretas, as cidades empiricamente
realizadas na história como Babilónia ou Roma, e, por outro lado, as
duas sociedades místicas dos justos e dos ímpios. O que não deixa de
criar confusão, uma vez que a expressão civitas terrena pode simultanea-

16 Vol. 37, XIX, XXIV, p. 163.


56 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

mente designar uma cidade concreta na terra e a cidade terrestre como


civitas diaboli oposta à civitas Dei: cidade na terra versus cidade da terra.
Ora se é evidente que os justos pertencem à primeira, não poderiam
ser cidadãos da segunda. Quando da sua peregrinação entre os ímpios,
os cidadãos da cidade celeste são membros de um Estado, de uma socie­
dade civil que não se confunde, pelo menos não totalmente, com a
cidade do mal. Este terceiro elemento, distinto da civitas diaboli como
da civitas Dei, é aquilo a que Marrou chama o «dado empírico da história»,
no qual os eleitos e os condenados estão inextricavelmente misturados.
Essa sociedade civil é natural, responde à organização dos homens na
sequência do pecado original.
Como conceber, dizíamos nós, a coexistência das duas cidades? Exis­
tirá algum acordo possível entre elas? Agostinho mostra que, se a con­
córdia é possível ao nível temporal, não o é ao nível espiritual, a oposi­
ção religiosa das duas cidades é inconciliável. Acordo político portanto,
mas antagonismo religioso. Vemos por aí que o conceito de Estado cris­
tão, tal como foi elaborado na Idade Média, não resulta naturalmente
do pensamento de Agostinho. Reduzindo as duas cidades a uma só,
substituindo à temática das duas cidades a de uma sociedade cristã
universal uma respublica christiana — tendo à frente o papa, os parti­
dários da teocracia pontifical ignoraram a perspectiva escatológica do
pensamento augustiniano. Com efeito, não se pode identificar cristan­
dade e cidade de Deus, porque esta última não será verdadeiramente
realizada senão no fim dos tempos.
Esse acordo sobre a terra entre as duas cidades, que forma toma ele?
As duas cidades, já o dissemos, procuram a paz e a justiça. Assim,
a conciliação é possível na prossecução da paz terrestre, por muito imper­
feita que seja. Enquanto as duas cidades se misturarem, os cidadãos do
céu utilizam, eles também, a «paz de Babilónia». Acontece o mesmo
com a justiça. Em suma, a cidade da terra não tem nada a temer da
cidade de Deus, pelo contrário, porque a cidade celeste, no decurso do
seu exílio no mundo, «não hesita em obedecer às leis da cidade terres­
tre que lhe asseguram uma boa administração, em tudo o que requer
a subsistência da vida mortal17». Mais ainda, os princípios que regem a
vida cristã limitam-se a exigir, de forma ainda mais eficaz, essa concór­
dia e essa paz que as leis da cidade buscam. Se a cidade terrestre viola a
justiça, os cidadãos da cidade de Deus continuarão a respeitar essas leis
que a cidade da terra esquece. O cristão observa tanto mais as leis da
cidade quanto elas são observadas unicamente em vista de fins supe­
riores aos da cidade.

17 Vol. 37, XIX, XVII, p. 129.


A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 57

Vimos, nas suas linhas gerais, a concepção política de Agostinho.


Que podemos concluir relativamente às relações entre Igreja e Estado?
Em primeiro lugar, é preciso desconfiar de uma identificação — que
será feita na Idade Média — entre a Igreja e a cidade de Deus, por um
lado, o Estado e a cidade terrestre, por outro. A primeira não pode ser
confundida com a cidade celeste, uma vez que esta é a sociedade de
todos os eleitos, passados, presentes e futuros. Ora, houve justos antes
do advento da Igreja de Cristo; existem, entre aqueles que não perten­
cem à Igreja — e talvez mesmo entre os seus perseguidores como
São Paulo antes da conversão —, homens predestinados à beatitude; e
existem, na Igreja, futuros condenados. Quanto ao Estado, ele não coin­
cide com a cidade terrestre. Com efeito, tanto os eleitos como os conde­
nados fazem parte do Estado. Contudo, é realmente preciso convir que
a rívitas Dei está mais ou menos presente na Igreja e que a civitas terrena
está presente nas formações políticas concretas. A Igreja, se bem que
não seja a cidade de Deus, é a única sociedade humana que se entrega
à construção dela. Não é portanto de espantar que a maioria dos seus
membros figurem entre os eleitos. Quanto ao Estado, não tem como
função ocupar-se de fins sobrenaturais. Deste modo, é bastante normal
que se recrutem, entre aqueles dos seus membros que não servem senão
a ela, a maioria dos cidadãos da terra. Mas enquanto para Agostinho a
cidade do céu não é realizável na terra, para os teóricos da teocracia
pontifical a Igreja é a imagem na terra da cidade do céu. O seu papel é
fazer reinar aqui em baixo a paz e a justiça verdadeiras. Para esse fim,
ela deve subordinar a si o Estado. Está aqui uma das inflexões pro­
fundas da doutrina augustiniana cujas consequências o poder político
irá sofrer ao longo de todo o período medieval.
Quando lemos a Cidade de Deus, não devemos esquecer a época ao
longo da qual essa obra foi redigida, a saber, a Antiguidade tardia. No
Ocidente medieval, tendo o Império dado lugar à cristandade, os cléri­
gos vão extrair da teoria augustiniana das duas cidades uma doutrina
política: a da primazia do espiritual sobre o temporal e, consequente­
mente, da subordinação do poder do Estado aos fins da Igreja. Ora,
para Agostinho, que escrevia no Império Romano que declinava, não
se tratava de incitar a cidade de Deus — que não é a Igreja — a dar as suas
leis à cidade terrestre, mas sim de lembrar aos cristãos que a süa verda­
deira pátria não é o mundo da terra onde eles vivem em exílio. Quanto
à atitude a adoptar relativamente ao poder civil, o bispo de Hipona
seguia o ensinamento patrístico tradicional. O advento do cristianismo
tinha colocado o problema da relação do crente com a ordem temporal.
Jesus tinha definido assim as relações entre a fé cristã e a autoridade do
58 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Estado: Redde Caesari quae sunt Caesaris, et quae sunt Dei Deo (Mateus,
22, 21). Esta palavra será interpretada como afirmando a distinção
necessária entre o temporal e o espiritual. Por outro lado, São Paulo
recomendava, sabemo-lo, a obediência ao Estado porque todo o poder
vem de Deus. Na época em que vivia Agostinho, esse poder tinha-se
tornado cristão. Na linha de Paulo e dos Padres dos primeiros séculos,
Agostinho afirmava que a Igreja no plano político deveria ser subme­
tida ao poder imperial. Ele não acreditava, como sustentarão a maioria
dos clérigos depois da coroação de Carlos Magno (800), que a digni­
dade imperial devesse ser transmitida por intermédio da Igreja. O bispo
de Hipona adoptava como sua a doutrina da origem divina do poder
do príncipe, fosse ele rei ou imperador. Mas não exprimiu de forma
muito clara quais eram as prerrogativas da Igreja, e quais eram as do
Estado. De onde uma certa imprecisão que alimentará os conflitos ul­
teriores entre essas duas instituições. Tanto mais que, apesar da
heterogeneidade afirmada dos dois domínios do espiritual e do tem­
poral, Agostinho julgou legítimo o recurso ao braço secular, logo à au­
toridade civil, para lutar contra os heréticos e os cismáticos, como, por
exemplo, os donatistas. Aceitou portanto uma colaboração, no plano
religioso, entre o Estado e a Igreja. Poder-se-á dizer que para isso for­
mulou votos para a constituição de um Império teocrático que se con­
fundiria com a cidade de Deus? Certamente que não, mas a questão é
delicada. Passemos a palavra a Etienne Gilson que enunciou muito bem
o problema: «Não poderíamos portanto considerar Agostinho nem
como tendo definido o ideal medieval de uma sociedade civil subme­
tida à primazia da Igreja, nem como tendo condenado à partida uma
tal concepção. O que permanece verdade, estrita e absolutamente, é
que em nenhum caso a cidade terrestre, e menos ainda a cidade de
Deus, pode ser confundida com uma forma do Estado, qualquer que
ela seja; mas que o Estado possa, e deva mesmo ser eventualmente
utilizado para os fins próprios da Igreja, e, através dela, para os fins da
cidade de Deus, é uma questão completamente diferente e um ponto
acerca do qual Agostinho não teria certamente nada a objectar. Se bem
que ele nunca tenha formulado expressamente o princípio, a ideia de
um governo teocrático não é inconciliável com a sua doutrina, pois se o
ideal da cidade de Deus não implica essa ideia, também não a exclui.»
Depois desta primeira parte sobre a política augustiniana, aborde­
mos presentemente a constituição, na Idade Média latina, da dou­
trina da teocracia pontifical, fundamentada nessa leitura redutora de
a Cidade de Deus a que chamamos, seguindo Arquillière, o augustinismo
político.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 59

2 — 0 augustinismo político
e a teocracia pontifical medieval

Foi portanto a leitura de a Cidade de Deus que inspirou, pelo menos


em parte, a doutrina da teocracia pontifical na Idade Média. Os de­
fensores do augustinismo político afirmaram a supremacia, na cidade ter­
restre, da Igreja institucional concebida — falsamente — como cidade de
Deus sobre a terra, e, consequentemente, a ideia de preponderância
dos papas sobre os príncipes políticos, imperadores ou reis; daí a pre­
tensão do papado, a partir da reforma gregoriana (século xi), a exercer
o domínio universal sobre o mundo cristão, tanto no plano espiritual
como no plano temporal. Esquematicamente, parece que a origem e o
progresso das reivindicações teocráticas do papado se explicam pelo
facto da recuperação, pela Igreja, de uma parte do poder imperial. Com
efeito, se os imperadores cristãos da Antiguidade tardia, como
Constantino e Teodósio, recuperaram as prerrogativas religiosas dos
imperadores pagãos, inversamente, depois do desmoronamento do
Império Romano do Ocidente, a Igreja tomou conta de uma parte das
incumbências da administração e das funções temporais das quais se
ocupava o Império, o que a conduziu, à medida que crescia o seu poder
político, a reivindicar para ela própria, em particular para o seu chefe,
o bispo de Roma, um certo número de prerrogativas e de privilégios
possuídos pelos imperadores romanos. Daí uma transferência do
poder imperial para a pessoa do papa, transferência que o augustinismo
político, pela sua leitura deformadora de a Cidade de Deus, facilitou
largamente. Contudo, tal como a teocracia pontifical não irrompeu
completamente desenvolvida do desmoronamento do Império, a tran­
sição do pensamento augustiniano para o augustinismo político não se
fez de uma só vez. Vejamos quais foram as suas etapas.
Os Padres da Igreja tinham já afirmado, face ao Estado romano, a
primazia do espiritual. Agostinho, pela sua distinção das duas cidades,
reiterava a oposição dos dois poderes: um espiritual, o outro temporal.
Mas é ao papa Gélásio I (492-496) que se deve a formulação mais clara
do dualismo e da coexistência dos dois poderes na sua famosa carta de
494 ao imperador Anastásio: «Existem dois organismos, augusto impe­
rador, através dos quais este mundo é governado soberanamente:
a autoridade sacra dos pontífices e o poder real.» O primeiro é o poder
espiritual do saceráotium, o segundo o da coerção temporal do regnum.
A colaboração dos poderes — religioso e político — parece à primeira
60 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

vista equitativa: ao papa os assuntos espirituais, ao rei os temporais.


Ora, esse pretenso paralelismo escondia na realidade a subordinação
da potestas dos reis à auctoritas pontifical. Com efeito, na medida em
que o Estado — reino ou império — tinha como chefe um soberano
cristão, este estava submetido, para a sua salvação, à autoridade espiritual
do papa. Quanto a esta última, ela não estava submetida da mesma
forma ao poder temporal porque «o poder dos padres é tanto mais
pesado quanto eles deverão, no Juízo Final, prestar contas ao Senhor
acerca dos próprios reis. Num mundo em que o fim superior é a salvação,
o poder político não se justifica, em última análise, a não ser pela ajuda
que presta à realização desse fim superior. As concepções de Gelásio
terão uma grande importância ao longo de toda a Idade Média. Serão
frequentemente citadas nas querelas posteriores do Sacerdócio e do
Império, nomeadamente por Gregório VII.
Gregório I, o Grande (590-604), adoptará uma atitude dupla relativa­
mente aos poderes seculares: reverência relativamente ao Império —
que passara a Bizantino — mas afirmação forte da sua «concepção minis­
terial» do poder real relativamente às realezas bárbaras que é preciso
cristianizar.
Embora manifestando relativamente ao imperador — o basileus dos
Romanos — as marcas tradicionais de respeito, Gregório, o Grande, sabe
dar-lhe a entender a necessidade de governar em vista da salvação dos
homens: «O poder foi dado do alto aos meus senhores sobre todos os
homens, para ajudar aqueles que querem fazer o bem, para abrir mais
amplamente a via que conduz ao céu, para que o reino terrestre esteja
ao serviço do reino dos céus.» O Estado deve subordinar-se aos fins da
cidade celeste, e consequentemente aos fins da Igreja. Esta submissão
do temporal ao espiritual, do direito natural à justiça sobrenatural, vai
inteiramente ao encontro do augustinismo político.
No que diz respeito aos reis bárbaros, particularmente aos prínci­
pes merovíngios, Gregório, o Grande, esforça-se por cristianizá-los
inculcando-lhes os seus deveres, especialmente em matéria de justiça e
de repressão dos crimes. Ele apresenta-se-lhes, mais claramente que
ao basileus, como o guia moral das suas acções. Gregório não faz mais
do que retomar aqui o pensamento de Gelásio: o papa terá que «pres­
tar contas ao Senhor acerca dos próprios reis». Sem chegar a afirmar a
subordinação desses reinos à Igreja, ele desenvolve uma concepção mi­
nisterial do Estado: o papa é o chefe espiritual da cristandade, o impe­
rador e os reis cristãos são os ministros temporais. Note-se que a
parcelização do Império do Ocidente em múltiplos regna ou principa­
dos bárbaros, a ausência de um poder político forte no mundo latino
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 61

facilitaram certamente o aparecimento dessa concepção ministerial do


poder secular. Tendo desaparecido a unidade política, apenas a
religião, da qual o papa era o garante, mantinha uma aparência de
unidade. Por outro lado, não estando o imperador já em Roma, o
pontífice — que é também o bispo dessa cidade — tende progressiva­
mente a ocupar o lugar dele.
Na linhagem do papa Gregório, Isidoro de Sevilha, no século vn,
precisa e endurece a concepção ministerial do poder secular: «Os prín­
cipes do século ocupam por vezes os cumes do poder dentro da Igreja,
com o fim de proteger através do seu poder a disciplina eclesiástica.
De resto, dentro da Igreja esses poderes não seriam necessários se não
impusessem pelo terror da disciplina aquilo que os padres são impo­
tentes para fazer prevalecer através da palavra. Frequentemente o reino
celeste tira proveito da realeza terrestre: quando aqueles que perten­
cem à Igreja atentam contra a fé e a disciplina, são atingidos pelo rigor
dos príncipes. Que os príncipes do século saibam que Deus lhes pedirá
contas acerca da Igreja, confiada por Deus à sua protecção.» O papel
dos reis é proteger a Igreja. Se não o fizerem, a sua autoridade não é
legítima e o seu Estado não é justo. Temos aqui o germe da construção
carolíngia, tal como se desenvolverá um século mais tarde.
Um progresso decisivo para a constituição de um poder eclesiástico
e pontifical será atingido, no fim do século vn, na Península Ibérica,
com a instauração pelo episcopado visigótico da sagração dos monar­
cas bárbaros, a exemplo dos reis da Bíblia (Saul ou David). A institui­
ção real encontrava-se assim incorporada na Igreja. A hierarquia ecle­
siástica confere ao poder do soberano uma investidura religiosa. Desde
então, aos olhos dos bispos, o rei recebe o seu poder de Deus mas por
intermédio da Igreja. Esta sacralização do poder secular pela Igreja re­
força por um lado a supremacia eclesiástica ou pontifical e, por outro,
confere ao poder real uma dignidade sacerdotal. Conhecemos a impor­
tância de que se revestirá essa cerimónia em França, a partir da sagração
de Pepino, o Breve, com os seus filhos, pelo papa Estêvão II quando da
sua viagem à Gália (754). Observe-se que em troca desta sagração que
dava legitimidade à nova dinastia, Estêvão II apela a Pepino para que
lute contra os Lombardos, e para que lhe «restitua» um determinado
número de territórios em Itália, territórios dos quais o papa reivindi­
cava a propriedade, quando eles estavam legitimamente colocados sob
jurisdição bizantina. Esta será a base do Estado pontifício, um Estado
temporal cujo fundamento teórico era a falsa Doação de Comtantino,
composta por volta de 750, segundo a qual aquele imperador teria dado
ao papa Silvestre I, para além das insígnias imperiais, a soberania
62 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

sobre Roma, a península italiana e todo o Ocidente. Este texto terá uma
imensa aceitação durante toda a Idade Média e será utilizado como
argumento da política pontifícia, sobretudo a partir do século xiii.
Com Carlos Magno produz-se uma viragem na evolução do
augustinismo político. Enquanto até então, a tendência para absorver o
político no religioso tinha favorecido o poder eclesiástico, Carlos Magno
inflecte essa tendência em proveito do poder político. Ao fazê-lo, cons­
titui uma espécie de teocracia imperial, prelúdio da teocracia pontifícia.
Com ele, o Império do Ocidente renasce, mas absorvido numa função
religiosa e sacra: o temporal funde-se com o espiritual. Carlos Magno,
«eleito de Deus», não se priva por outro lado de governar a sua Igreja:
ele legisla em todos os domínios como testemunham as capitulares,
intervindo em questões de disciplina eclesiástica, precisando o dogma
da trindade, tomando partido na querela das imagens. A antiga noção
romana de Estado, distinta da Igreja e fundamentada no direito natu­
ral, tende a desaparecer completamente em proveito de uma respublica
christiana, à frente da qual se encontra um soberano cristão, detentor ao
mesmo tempo do poder temporal e da autoridade espiritual. É visível
que a distinção gelasiana dos dois poderes é colocada em dificuldades.
Mais do que nunca, o sonho medieval de uma unidade religiosa e polí­
tica parece realizado. O seu horizonte é a comunidade política de to­
dos os cristãos. Sob Carlos Magno, o imperador está à frente dessa uni­
dade mística; mais tarde, o papa vai substituir-se ao imperador na
direcção da sociedade cristã. Um ponto anunciava já a preeminência
do papa sobre o imperador: a sagração carolíngia. Ao fazer-se —
voluntariamente ou não — coroar pelo papa Leão III no dia de Natal de
800, Carlos Magno colocava implicitamente o poder laico sob depen­
dência do poder espiritual. Era o reconhecimento da superioridade do
pontífice sobre o imperador, porque se este último está à frente
do mundo cristão, ele não é, apesar disso, mais do que o advogado de
uma Igreja cujo chefe espiritual é o papa. Em polémicas posteriores, a
sagração de Carlos Magno — e depois, de qualquer outro imperador
— será um argumento de peso a favor da supremacia pontifícia.
Sob o sucessor de Carlos Magno, Luís, o Piedoso (814-840), as coisas
mudam. O episcopado mostra pretensões hierocráticas, das quais Jonas
de Orléans se toma o teórico na sua De institutione regia (cerca de 830),
um dos mais antigos tratados políticos do período medieval. Afirma nele
o primado da autoridade sacerdotal sobre o poder imperial. Para ele,
a política não é mais do que a aplicação da moral cristã. Esta ideologia
episcopal participa seguramente no augustinismo político. Se o rei não
é justo, já não tem direito ao seu título de rei. É o que acontece em
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 63

Saint-Médard de Soissons em 833, quando os bispos, de entre os quais os


arcebispos Agobard de Lyon e Ebbon de Reims, julgando Luís indigno
do seu «ministério», o deporão e lhe infligirão uma penitência.
O século ix marca o primeiro triunfo do augustinismo político me­
dieval: será a obra dos papas Gregório IV e Nicolau I. Numa carta ante­
rior em alguns meses à deposição de Luís em Saint-Médard, Gre­
gório IV dirige-se a bispos do partido imperial em termos que não dei­
xam qualquer dúvida sobre a certeza que ele tem da superioridade da
sua função sobre a do imperador: «Porque vós não deveríeis ter
ignorado que o governo das almas, que pertence ao pontífice, é superior
ao governo imperial, que é temporal.» E quando o imperador não
exerce o governo temporal de forma justa, se, por exemplo, já não é
capaz de assegurar a paz, cabe ao papa fazê-lo. A intervenção do pon­
tífice romano nos assuntos temporais é fundada ratione peccati. É assim
que se opera a transferência da preponderância imperial para a pessoa
do papa. Como escreveu Arquillière, «uma tal transição não se pôde
operar tão rapidamente senão devido às confusões criadas pelo
augustinismo político». Os sucessores imediatos de Gregório IV (Sér­
gio II, Leão IV e Bento III) consideraram-se igualmente como depositá­
rios da manutenção da paz. Mas é com Nicolau I (858-867), o papa mais
prestigioso do século ix, que se exprime de forma mais surpreendente
a pretensão de tudo dirigir. Ele considera resolutamente a sua autori­
dade como superior a qualquer outra, à do imperador mas também à
do concílio, e afirma com força a primazia de Roma sobre todas as Igre­
jas. É a base da doutrina da plenitudo potestatis pontifícia que se desen­
volverá na Idade Média central: o papa é o único a possuir a plenitude
do poder neste mundo terreno. Temos aqui a primeira formulação da
teocracia pontifícia, fundada no augustinismo político: foi esta doutrina
que permitiu ao papado, apoiado no primado do poder espiritual,
substituir-se progressivamente ao Império na direcção do mundo cris­
tão. Mas a Igreja estava demasiadamente ligada à construção política
carolíngia para não sofrer os contragolpes do seu desmoronamento, e
também não estava à altura de dirigir a «república cristã».
A recriação do Império em 962 por Otão I, o Grande, põe novamente
a Igreja na dependência do Estado. E o tempo da Reichskirche, a «Igreja
do Império»: a dinastia otaniana nomeia os bispos e designa os papas.
Como reacção contra esta dominação do poder imperial (tema da liber­
tas Ecclesiae), mas também por razões morais e espirituais (luta contra a
simonia e o nicolaísmo), o papado lança um grande movimento de
reforma dita «gregoriana», do nome do mais ilustre dos seus promo­
tores, o papa Gregório VH (1073-1085). De facto, o movimento reformador
64 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

começa antes dele. Desde o decreto de Nicolau II de 1059, a eleição do


papa estava nas mãos do colégio dos cardeais, escapando assim às gar­
ras do poder laico. A doutrina teocrática de Gregório VII é formulada
nos Dictatus papae de 1075: espécie de catálogo de vinte e sete proposi­
ções precisando os privilégios e os poderes do pontífice romano. A pri­
meira (I) estipula que «a Igreja romana foi fundada apenas pelo Se­
nhor», não pode logo errar (XXII) e «aquele que não está com a Igreja
romana não deve ser considerado católico» (XXVI). Quanto ao papa,
ele é o único que é chamado «universal» (II) e que usa as «insígnias
imperiais» (VIII), sendo este último ponto uma alusão à Doação de
Constantino. Ordenado canonicamente, o pontífice é «indubitavelmente
tomado santo pelos méritos do bem-aventurado Pedro» (XXIII). Nin­
guém o pode julgar (XIX), enquanto as suas sentenças não são revogáveis
(XVIII) e ele é o único a poder estabelecer novas leis (VII). «Sozinho,
pode depor ou absolver os bispos» (III), mesmo ausentes (V), e enviar
legados a presidir a concílios, mesmo se o seu posto na hierarquia for
inferior ao dos bispos presentes (IV). E permitido ao papa depor os
imperadores (XII), e ele pode «libertar os súbditos do juramento de
fidelidade feito aos injustos» (XXVII). Como se vê, o papado parece
reivindicar para si próprio os dois poderes, espiritual e temporal, que
Gelásio mantinha teoricamente separados. Notemos, contudo, que as
intervenções do papa no domínio temporal são sempre justificadas por
interesses espirituais; é por razões religiosas que ele intervém nos as­
suntos políticos. Não obstante, Gregório VII aparece verdadeiramente
como o fundador daquilo a que se chamará a «monarquia pontifícia»
cujo apogeu se situará no século xiii antes de conhecer o declínio no
século xiv. Gregório VII proclama com força a plenitude de poder do
pontífice romano. Estas pretensões teocráticas desencadearão a que­
rela das Investiduras (1076-1122) à qual se seguirá a do Sacerdócio e do
Império (1157-1250). Não vamos rever aqui todas as peripécias desse
conflito entre papas e imperadores. Recordemos apenas as suas crises
principais: a excomunhão de Henrique IV e a humilhação de Canossa
(1077); o conflito entre Frederico I, Barba Ruiva, e Alexandre III a quem
o imperador germânico opõe os antipapas Victor IV (1159) e depois
Pascoal III (1164); a excomunhão, por Inocêncio III, de Otão IV em pro­
veito de Frederico II (1210); o conflito entre esse mesmo Frederico II e
os papas Gregório IX e Inocêncio IV, tendo o primeiro excomungado o
imperador por duas vezes (1227 e 1239), e o segundo decretado a sua
deposição quando do concílio de Lyon (1245); por fim, última grande
luta do Sacerdócio e do Império, a longa querela entre Luís IV da Baviera
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 65

e os papas de Avinhão, João XXII — que o excomungou (1322) — e


Clemente VI — que decretará a sua destituição (1346).
Nestes confrontos com o Império, qual foi a argumentação do papado
a favor da sua própria superioridade, em que é que se fundamenta a tese
da plenitudo potestatis pontifícia, e que lugar teve nela o augustinismo
político? De maneira geral, podemos dizer que os argumentos a favor do
poder plenário dos papas são de três ordens. Em primeiro lugar, argu­
mentos tirados das Escrituras: do Novo Testamento, especialmente do
início da Epístola aos Romanos (13,1) em que Paulo afirma que todo o
poder vem de Deus (omnis potestas a Deo), da frase de Cristo sobre
o poder das chaves - poder de unir e desunir - conferido a Pedro (Mateus,
16,19 e Lucas, 22,38), e algumas outras passagens ainda, frequentemente
solicitadas de forma excessiva: mas também do Antigo Testamento de,
entre outros, textos relativos a Samuel e Jeremias. Em segundo lugar,
argumentos «históricos»: a Igreja foi instituída por Cristo (Mateus, 16;
18: Tu es Petrus) de quem o papa é o vigário, pois os pontífices romanos
são os sucessores de Pedro; a pretensa Doação de Constantino deu o Império
do Ocidente ao bispo de Roma; desde Carlos Magno, é tradição que o
papa presida à cerimónia da coroação imperial. Em terceiro lugar, argu­
mentos de tipo filosófico e racional — sempre, bem entendido, no hori­
zonte da teologia — fundados essendalmente nos princípios dionisianos
de subordinação hierárquica e de unidade: os dois poderes temporal e
espiritual são certamente distintos, mas dependem os dois do papa como
causa primeira porque é o único a dispor da plenitude do poder. E tam­
bém nos argumentos filosóficos que convém situar a tradição do augus­
tinismo político: a Igreja é a cidade de Deus na terra, o seu papel é o de
promover neste mundo terreno o reinado da paz e da justiça verdadeiras,
sem as quais não há Estado digno desse nome. De igual modo, o poder
civil é o auxiliar da Igreja: é o completamento da concepção ministerial
do poder secular tal como ela tinha sido instalada por Gregório, o Grande.
Deste ponto de vista, todos os papas medievais participaram no
augustinismo político: eles afirmavam-se superiores aos poderes civis
mas as suas intervenções na vida política dos Estados eram legitimadas
na maior parte das vezes pela preocupação de promover a concepção
cristã de paz e de justiça, logo, de criar aqui neste mundo terreno as
condições da cidade celeste. Ao fazê-lo, tinham a impressão de estar na
linha directa de Santo Agostinho, se bem que isso seja um verdadeiro
contra-senso relativamente ao pensamento do bispo de Hipona para
quem, digamo-lo mais uma vez, a cidade do céu não podia ser realizada
na terra.
66 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

É sob o pontificado de Alexandre III (1159-1181), devido à querela


com o imperador Frederico I, Barba Ruiva, que se precisou a doutrina
da plenitudo potestatis. A reflexão assenta sobre elementos extraídos do
direito romano, cada vez mais bem conhecido neste século x i i . Com
Alexandre Hl, a monarquia pontifícia afirma-se fortemente. A preemi­
nência do espiritual, do qual o papa é a incarnação, leva-o a reivindicar
um poder temporal. A autoridade do papa é assimilada a uma verda­
deira soberania política, uma soberania temporal no verdadeiro senti­
do. Como diz Jeannine Quillet, com ele «operou-se a mutação do po­
der espiritual em poder eclesiástico». E de alguma forma uma
politização do espiritual: de carácter essencialmente espiritual na ori­
gem, o poder do papa transformou-se em poder político. Notemos con­
tudo que as intervenções do papa no domínio temporal são feitas em
nome de interesses espirituais, e nisso reside a sua principal justifica­
ção: sempre o augustinismo político. Na Igreja, Alexandre III impõe a
omnipotência da autoridade pontifícia.
No início do século xni, Inocêncio III (1198-1216), um dos papas mais
poderosos da Idade Média, apresenta-se como o sucessor de
Melquisedech: é detentor ao mesmo tempo do sacerdócio e da realeza,
o que faz dele o «rei dos reis e senhor dos senhores». Afirmando-se
como vigário de Cristo (vicarius Christi) e já não apenas como vigário
de Pedro, o papa assemelha-se a esse mesmo São Pedro a quem Cristo
tinha confiado a sua Igreja. Agostino Paravicini Bagliani mostrou bem
em Le Corps du pape (1997) essa absorção, pelo pontífice, da pessoa de
Cristo e do corpo da Igreja: o papa toma-se vigário de Cristo e incarnação
da Igreja. O seu poder já não é legitimado pela sucessão dos apóstolos
e dos pontífices precedentes — o que sugeria a expressão «vigário de
Pedro» —, mas ocupa a sua função por delegação directa de Deus: é o
que se exprime na expressão «vigário de Cristo». A doutrina da plenitudo
potestatis assenta, em Inocêncio III, na concepção de auctoritas. Essa
autoridade, marca da sua preeminência espiritual, justifica as suas
intervenções na esfera política, se ele as considerar necessárias para a
manutenção da moral (decretai Novit, 1204).
Com Inocêncio IV (1243-1254), em luta com o imperador Frederico II,
a teoria da plenitudo potestatis desenvolve-se de forma ainda mais firme
do que sob Inocêncio III. Inocêncio IV põe os argumentos filosóficos e
da Sagrada Escritura à frente dos argumentos históricos. A sua ideia
é a de que, na terra, a soberania é indivisível. Não existe uma soberania
espiritual e uma soberania temporal mas sim uma única autori­
dade absoluta da qual o papa é o único detentor. O pontífice romano
detém os dois gládios (cf. Lucas, 22, 38), espiritual è temporal, e se
A CONTRIBUIÇÃO AUGUST1NIANA 67

delega ao imperador o gládio temporal, é para não ter ele próprio que
se servir dele, tendo Cristo dito a Pedro: «Embainha de novo a espada.»
Este argumento dito «dos dois gládios», ou das duas espadas — uma
material, outra espiritual —, foi elaborado pela primeira vez no século
xn por Bernardo de Clairvaux no De consiãeratione aá Eugenium papam e
por João de Salisbúria no Policraticus.
É também no século xiii que Aristóteles faz o seu aparecimento na
universidade criada de novo. O aristotelismo universitário vem legiti­
mar, contra o augustinismo político do papado, a ascensão das monar­
quias nacionais. Tomás de Aquino (1225-1274), inspirado pela Política
do Estagirita, retoma o direito natural do Estado: a sociedade, e a auto­
ridade política que lhe está ligada, é um facto da natureza, desejado por
Deus na ordem da criação. O homem é naturalmente sociável, natural­
mente inclinado a viver em sociedade. O Estado não tem como causa o
pecado original como em Agostinho. A distinção é feita entre o Estado
ou a sociedade política, realidade natural que goza de uma certa auto­
nomia no seu domínio, e a Igreja, sociedade religiosa. O desenvolvi­
mento deste naturalismo tomista não porá fim, todavia, à tradição do
augustinismo político. Sublinhemos, contudo, que se Tomás de Aquino
reconhece uma relativa independência temporal aos poderes seculares,
estes não ficam menos submetidos, quanto ao espiritual, à autoridade
do vigário de Cristo. Os dois domínios são distintos, mas o fim espiri­
tual é o mais alto dos dois. Também o espiritual deve, em última aná­
lise, subordinar o temporal, e o poder pontifício subordinar o poder
secular. A perspectiva permanece globalmente teocrática.
Com a bula Unam sanctam publicada em 1302 no contexto do seu
diferendo com o rei de França, Filipe IV, o Belo, Bonifácio VIII (1294-1303)
dá a definição mais forte da teocracia pontifícia alguma vez formulada
por um papa. É uma declaração dos direitos do pontífice romano afir­
mando que todos os homens lhe estão em tudo submetidos. A Igreja,
ima, santa, católica e apostólica, tem como missão levar os homens à
salvação e fora dela não há remissão possível. A frente dela está um
chefe único, o vigário de Pedro, que tem todos os poderes: detém os
dois gládios do temporal e do espiritual, delegando o primeiro aos prín­
cipes laicos que lhe estão subordinados. O poder pontifício, poder espi­
ritual convertido em poder eclesiástico, é portanto absoluto e quem quer
que lhe resista «resiste à ordem estabelecida por Deus». Encontramo-nos
aqui diante de um ponto culminante da retórica teocrática e do dis­
curso do augustinismo político pontifício. Nestas declarações de Bonifácio
Vm, não há lugar para o direito natural do Estado: tudo está orientado
68 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

com vista à salvação sobrenatural na direcção da qual nos deve condu­


zir o vigário de Cristo.
Gilles de Roma, o superior dos agostinhos, uma das ordens mendi­
cantes, inspirou talvez a bula pontifícia. E um dos representantes mais
extremistas da corrente teocrática. Ele tinha já expresso as suas teses a
favor da supremacia do poder espiritual e pontifício sobre o poder tem­
poral no seu De ecclesiastica potestate, redigido em 1301. A Igreja
confunde-se com o seu chefe, o papa, que tem a plenitude do poder.
Este não pode ser julgado por ninguém, ao passo que é o juiz de todas
as coisas. O gládio temporal está subordinado ao gládio espiritual, de
acordo com um princípio hierárquico colhido em Dionísio, o Areopagita,
porque o poder mais eminente deve estar à frente do menos eminente.
Reencontramos neste texto a marca do augustinismo político: se ele não
é fundado numa verdadeira justiça, um Estado não pode ser gover­
nado; ora não existe justiça verdadeira sem ser a da Igreja e do papa.
Desde logo, a sociedade política deve ser ordenada pelo poder eclesiás­
tico. Gilles de Roma foi, contudo, um aluno de São Tomás de Aquino,
mas nada resta aqui do naturalismo deste último.
Contemporâneo de Gilles de Roma e sem dúvida seu aluno, o
agostinho Jacques de Viterbo é o autor de um tratado para glória da
monarquia pontifícia intitulado De regimine christiano. Nesta obra de
1302 dedicada ao papa Bonifácio VIII, Jacques de Viterbo trata da Igreja
e do seu chefe, o pontífice romano que, dispondo da plenitudo potestatis,
tem os dois poderes, sacerdotal e real. Em virtude da subordinação do
poder temporal ao poder sobrenatural, segundo o princípio de ordem
que preside ao universo, os príncipes temporais estão dentro da Igreja,
concebida como um reino cujo príncipe é o papa, vicarius christi.
Tais afirmações iriam suscitar neste século xiv a reacção dos partidá­
rios da independência do poder civil. Jeannine Quillet resumiu muito
pertinentemente a mudança que se opera nesse momento. Passa-se de
uma Igreja que tinha progressivamente absorvido o Estado desde a alta
Idade Média a um Estado que vai tentar, na baixa Idade Média, con­
quistar a sua independência relativamente à Igreja: «Igreja contra Es­
tado, num primeiro momento, isto é, durante o período em que a Igreja
assimilou as estruturas subsistentes do Império pagão; Estado contra
Igreja: é o segundo momento, aquele em que o Estado se tenta libertar
da tutela espiritual da Igreja ao reivindicar a autonomia dos seus pode­
res, o temporal primeiro, o espiritual a seguir.» Quais foram as reacções
relativamente à exasperação das teses teocráticas? Em primeiro lugar a
réplica do rei de França e dos seus conselheiros, em particular Guillaumé
de Nogaret, que conduzirá à humilhação de Bonifácio VIII em Anagni
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 69

em 1303, acontecimento que marca a derrota da teocracia pontifícia frente


ao galicismo nascente. Em seguida, devido à querela entre o imperador
Luís da Baviera e o papa João XXII, a elaboração pelos teólogos imperiais
da doutrina da autonomia do poder político. No Defensor pacis composto
em 1324, Marsílio de Pádua sustenta, contra o augustinismo político do
papado, que o Estado — a civitas ou comunidade civil — é uma realidade
natural e, consequentemente, independente da Igreja. Contudo, como
em Agostinho, o pecado está na origem do Estado: os homens não teriam
tido necessidade dele se tivessem permanecido na inocência. Marsílio
define no Defensor pacis o que será a sociedade laica no seio do mundo
cristão, sociedade fundamentada na representação e delegação políti­
cas. A Igreja está dentro do Estado que tem todos os poderes com vista
a realizar a paz e a ordem neste mundo. O príncipe cristão, único deten­
tor da autoridade coerciva, recebe o seu poder directamente de Deus,
sem que seja necessário passar pela mediação do papa para a sua coroa­
ção nem mesmo para a sua aprovação. Marsílio opõe-se energicamente
à plenituâo potestatis pontifícia. A Igreja universal não se limita ao corpo
dos padres, ela é o conjunto dos fiéis, clérigos e laicos, que acreditam
em Cristo. Portanto, estes estão, enquanto tais, incluindo os padres,
submetidos na terra ao poder coercivo do príncipe. O concílio geral é a
instância mais representativa do universitas fiáelium em matéria de fé, e é
por isso que Marsílio é conciliarista, defende a tese da superioridade do
concílio sobre o papa. De resto, ele volta a pôr grandemente em questão
a própria função pontifícia que é de instauração humana e não divina.
Para ele, a instituição propriamente eclesiástica, a pars sacerãotalis, dito
de outra forma, o clero, tem por finalidade o conselho e a exortação dos
fiéis para a salvação sem que lhe esteja ligado um poder de coerção. Os
padres deveriam viver na humildade e pobreza evangélicas, fora de qual­
quer hierarquia. Guilherme de Ockham critica, ele também, na sua Ope­
ra política, a teocracia pontifícia, sem por isso contestar a função papal
em si. Ele considera esta última como um ministerium mais do que como
um dominium. Quanto ao poder civil, Guilherme de Ockham defende a
sua autonomia relativamente à Igreja. Tudo isto concorre para a emer­
gência do espírito laico no fim da Idade Média, ou seja, para a emanci­
pação progressiva do político relativamente ao religioso. Contudo, não
nos enganemos, a reflexão sobre o exercício do poder não sai do qua­
dro teológico-político. Esse espírito laico não deixa de apresentar
ambiguidades porque, se é afirmada a autonomia do poder temporal,
subsiste nela uma dimensão sacra. Assim, os adversários da teocracia
pontifícia defenderam frequentemente a independência do Império em
nome do fundamento divino do seu poder. É sempre, de alguma maneira,
70 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

o retomar da herança temporal e espiritual de Carlos Magno, herança


que tinha sido reivindicada pelos imperadores germânicos Frederico,
Barba Ruiva e Frederico II e da qual Jordão de Osnabrück e Alexandre de
Roes tinham exaltado o carácter sagrado. Em suma, à politização do
poder espiritual dos papas tinha respondido a sacralização do poder
temporal dos imperadores. Quer se tratasse do primeiro caso quer do
segundo, a confusão do espiritual e do temporal, do religioso e do
político, é patente. Esse aspecto sagrado do poder é também muito claro
em França onde os reis, graças à unção, são dotados de poderes
taumatúrgicos como mostrou bem Marc Bloch (Os Reis Taumaturgos, 1924).
Isso aparece muito claramente em o Sonho do Horto, tratado de doutrina
política redigido no século xiv a pedido do rei Carlos V, primeiro em
latim (1376) e depois traduzido em francês por Evrard de Trémaugon
(1378), no qual o poder sagrado do rei é exaltado.
Face à reivindicação de autonomia e de independência do poder
secular, a Igreja reage afirmando, uma última vez, as suas pretensões
ao domínio universal. Agostinho de Ancona e Álvaro Pais são os re­
presentantes desse último sobressalto de uma «teocracia na defensiva»
(Pacaut). Na Summa de potestate ecclesiastica publicada em 1326, ou seja,
dois anos depois do Defensor da paz de Marsílio de Pádua, e como res­
posta a este, Agostinho de Ancona retoma sem grande originalidade as
teses de Gilles de Roma. O papa tem todos os poderes, a começar pelo
espiritual; ora, da mesma forma que a matéria obedece à forma, o tem­
poral obedece ao espiritual e o político ao religioso. Quanto a Álvaro
Pais, é um discípulo de Jacques de Viterbo. A sua obra maior é o De
statu et planctu ecclesiaeem que ele afirma que o papa detém o mesmo
poder que Cristo, ele é quasi Deus.
Assim sendo, estas declarações teocráticas extremas aparecem um
pouco como bravatas, não tendo a Igreja já verdadeiramente os meios
para fazer valer as suas pretensões políticas. A escalada dos parti-
cularismos nacionais dos «Estados modernos» em formação coloca em
dificuldades a própria ideia de cristandade entendida como respublica
christiana, enquanto entidade universal, religiosa e política, conduzida
por um papa dispondo dos dois poderes do sacerdotium e do regnum.
O sonho medieval de unidade político-religiosa tinha fracassado.
A teocracia pontifícia, bem como o Império, pagarão o preço disso.
Assim, antes do estilhaçar, no século xvi, da cristandade latina em múlti­
plas confissões cristãs, a «veste inconsútil» da Igreja do Ocidente tinha
já tido que sofrer um primeiro choque ligado à escalada dos Estados
nacionais na Europa dos séculos xiv e xv. Por outro lado, o grande cisma
do Ocidente (1378-1417) iria acabar de minar o absolutismo pontifício,
tomando obsoletas as pretensões do papa ao domínio universal.
A CONTRIBUIÇÃO AUGUSTINIANA 71

Que conclusões podemos tirar deste percurso através do pensamento


•político de Santo Agostinho em primeiro lugar, e daqueles que se ins­
piraram nele para desenvolver a doutrina da teocracia pontifícia em
fseguida? Ficou bastante claro que a política augustiniana não é o
^augustinismo político. A primeira inscreve-se numa teologia da história,
^desenvolve o tema de duas cidades místicas cujos membros, mistu­
rados no século, serão separados no dia do Juízo Final, os eleitos,
' cidadãos da cidade de Deus, para saborear a beatitude junto de Cristo,
f e os condenados, membros da cidade terrestre, para conhecerem as
■ penas eternas do inferno. A questão política nesta perspectiva é a de
! saber que concórdia entre as duas cidades é possível neste mundo.
O que interessa a Agostinho, é a forma como os eleitos, distinguidos
dos outros pela graça de Deus e não pelos seus méritos, que são
'■ inexistentes, vão viver o seu exílio entre os ímpios da cidade terrestre.
Mas tal como esta última não é assimilável ao Estado, a cidade de Deus
não é totalmente identificável com a Igreja. Trata-se realmente de duas
cidades no sentido alegórico que estão empiricamente misturadas
(perplexae) aqui na terra. Ao assimilar progressivamente a primeira ao
Estado e a segunda à Igreja, os teocráticos medievais acabaram, contra
o pensamento do bispo de Hipona, por submeter o Estado à Igreja,
desprezando dessa forma a perspectiva escatológica da temática das
duas cidades. Fundaram-se para isso numa passagem (XIX, XXI) de
De civitate Dei, separada arbitrariamente do resto, em que Agostinho
•recusava ao Estado romano, por ser pagão, o nome de respublica. Daí a
tradição do augustinismo político definida por Arquillière como a
«tendência para absorver o direito natural do Estado na justiça sobre­
natural e no direito eclesiástico». O raciocínio dos partidários da
teocracia pontifícia era o seguinte: não há Estado sem justiça verda­
deira; ora, não existe verdadeira justiça senão onde Cristo, ou o seu
vigário, detêm o poder; logo para que um Estado seja digno desse nome,
é preciso que esteja submetido em tudo ao papa. Em suma, a Igreja é a
cidade de Deus sobre a terra e o seu papel é fazer reinar nela a paz e a
justiça verdadeiras. Com esse fim, o pontífice romano dispõe de uma
plenitude de poder (plenitudo potestatis). Era no mínimo um desenvol­
vimento audacioso da doutrina política de Agostinho, o qual,
recordemo-lo, não acreditava que a cidade celeste fosse realizável cá
na terra e reconhecia por outro lado um valor legítimo ao direito natu­
ral do Estado. Foi da história desta subversão que nós quisemos dar
conta aqui.
72 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Bibliografia

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nasce pouco antes do século xiv (entre 1285 e 1290 provavelmente) e
Pacaut, Marcel, La Théocratie; l'Église et le pouvoir au Moyen Âge; Paris, Desclée de Brouwer morre em 1347 ou 1348, quando as primeiras vagas da «peste negra» se
1989. ' abatem sobre a Europa. Vive num século de mutações rápidas, numa
Quillet, Jeannine, Les Clefs du pouvoir au Moyen Âge; Paris, Flammarion, 1972. época em que as mudanças estruturais a longo prazo se conjugam com
Ullmann, Waiter, Medieval Papalism, the Potitical Theories of the Medieval Canonists, as conjunturas passageiras, em que as configurações de poderes con­
Londres, Methuen, 1949.
servadores estão lado a lado com as tendências novas, aliás frequente­
mente contraditórias. E certo que poderíamos definir desta maneira
qualquer época, no entanto algumas parecem prestar-se a isso mais do
que outras. O século xiv é dessas épocas inquietas, difíceis de com­
preender ao ponto de serem irritantes, um período com formas indeci­
sas em que a história parece retomar o seu fôlego. Ockham em nada é
responsável pelas agitações do seu tempo. Sábio e intelectual, profes­
sor universitário e conselheiro na corte, tem uma posição de observa­
dor, regista mas não age. Contudo, quer ver as coisas com exactidão.
A precisão do inventário que fez tomar-se-á exemplar e desencadeará
ou confirmará, por sua vez, determinadas mudanças. Graças a discus­
sões com os seus contemporâneos, desenvolve uma teoria política que
faz dele, para os historiadores, o grande inovador, o profeta, senão o
fundador da modernidade. Ao traçar os contornos da sua reflexão po­
lítica, movemo-nos precisamente entre duas épocas: a Idade Média já
não é imutável, os Tempos Modernos ainda não se impuseram em todo
o lado, e é o próprio caminho em direcção à modernidade que ainda
não está aberto.
104 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Bibliografia
Capítulo 3
[Cf. Repertorium edierter Texte des Mittelalters. Ed. R. Schönberger (1994), n.° 13372-
“13580.]
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to m o iv: Guillaume d'Ockham. Défense de l'Empire; to m o 5 : Guillaume d'Ockham criti­
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H udson , A., e W ilks, M. (ed.), From Ockham to Wyclif 1987.
povo dos colonos e conquistadores, sobre o tema ego vox clamentis in
KmSl 9^ POlltlCal ° ckhamism(1997 ttese de doutoramento - Universidade de Londres, deserto:
K ôlm el ,W ., Wilhelm Ockham und seine kirchenpolitischen Schriften, 1 9 6 2 .
Essa voz... grita-vos que vós estais todos em estado de pecado m or­
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M cgrade, A. S., The Political Thought of William of Ockham, 1974.
tal, que viveis e m orrereis nesse estado, devido à crueldade e à tirania
M iethke, J., Ockhams Weg zur Sozialphilosophie, 1969 das quais dais provas relativam ente a esses povos inocentes. Dizei, com

'■ in ^ to que direito e em virtude de qual justiça conservais vós esses índios
num a tão cruel e tão horrível servidão? Q uem poderia autorizar-vos
- , Ockham und die Institutionen des Spätmilttelalters, in Politische Institutionen im a fa z e r to d a s e ss a s g u e rr a s d e te s tá v e is a p e s s o a s q u e v iv ia m
gesellschaftlichen Umbruch, ed. G. Göhler e.a., 1990, pp. 89-112.
tranquilam ente e pacificam ente no seu país, e a exterm iná-los em nú­
- Théologie et droit dans la science politique de l’état moderne, 1991.
m ero tão infinito, através de assassinatos e de chacinas inauditas? Es­
O ckham , Guillelmus de, Opera philosophic et theologica, cura institut! Franciscani ed
° - gai, G. Etzkorn, L. Wood e. a. [17 vol.] (1974-1988) sas gentes, não são eles hom ens? N ão têm eles um a alm a, u m a razão?
- , Opera politico, ed. H. S. Offler, vol. P, II, III, IV (1974,1956,1963 1997) N ão sois vós obrigados a am á-los com o a vós próprios?... Ficai p ersua­
- , Dialogue, impresso por Johannes Trechsel (Lyon, 1494 [Reimpresso in: Guillelmus de didos de que no estado em que vós vos encontrais, não encontrareis
c am. Opera plunma, vol. 1, 1963]). De acordo em esta edição: M. Goldast, m ais a vossa salvação do que os M ouros ou os Turcos que ignoram ou
Monorchia s. Romani Impen, vol. II (Francfort-sur-le-Main, 1614). Reimpressão: Graz
1960. Reimpressão: ed. L. Firpo, Turim, 1970, pp. 394-957. desprezam a fé de Jesus C risto1.
Sieben, H. J., Die Konzilsidee des lateinischen Mittelalters, 1984.
Tierney, B Villey, Ockham and the Origin of Individual Right, in The Weightier Matters of the Janeiro de 1539, Universidade de Salamanca. Francisco de Vitoria,
Uw. Essays on Law and Religion. A Tribute to Harold J. Berrman, ed. J. Witte, Jr, e dominicano, professor titular da cátedra de Prima, pronuncia a sua pri­
F. S. Alexander, 1988, pp. 1-31.
meira aula pública (Relectio) sobre os índios recentemente descobertos,
VlLT w 5 M 9 S np p ' 163 M *™ ^ dmit SUbjeCtif' in A rc h iv e s d e P h ilo so p h ie d u d ro it

V ossenkuhl e S chönberger R. (ed), Die Gegenwart Ockhams, 1990. 1 O sermão é apenas conhecido devido à relação que fez dele, muito mais tarde,
Bartolomeu de Las Casas. Cf. Las Casas et la défense des Indiens, apresentado por
W illm es, B Kontingenz und Konkretion, Wilhelm von Ockham, in Die Rolle des Juristen bei
M. Bataillon e A. Saint-Lu, Paris, Archives Julliard, 1971, pp. 67-69.
der Entstehung des modernen Staates, ed. R. Schnur, 1986, pp. 13-49.
106 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

para se interrogar sobre a legitimidade dos títulos da Conquista. Em


Novembro do mesmo ano, Carlos V dirige-se ao prior do convento de
San Estebán em Salamanca, o mesmo em que reside Vitoria, para lhe
pedir que apreenda o texto de todas as lições em que os religiosos trata­
ram os direitos da coroa de Espanha sobre as índias Ocidentais.
Agosto de 1550, Valladolid. Carlos V, que acaba de suspender todas
as conquistas na América, reúne uma Junta em que, perante os melho­
res juristas e teólogos — Melchior Cano, sucessor de Vitoria em
Salamanca, Domingo de Soto, confessor do imperador, teólogo imperial
nas primeiras sessões do Concílio de Trento, Bartolomeu Carranza de
Miranda, que se tomará sob Filipe II arcebispo de Toledo e Primaz de
Espanha, Bemardino de Arevalo, franciscano, aos quais o imperador
tinha associado uma dezena de juristas e administradores —, defron­
tam o grande humanista, tradutor da Política de Aristóteles, Juan Ginés
de Sepúlveda, historiógrafo do rei, intérprete, no seu Democrates alter
— cuja publicação acaba de ser proibida em Espanha —, das justas
causas da guerra contra os índios, e Bartolomeu de Las Casas, bispo de
Chiapas, infatigável defensor dos índios2.
Janeiro de 1610, o papa Paulo V manda pedir a Francisco Suárez,
professor na Universidade de Coimbra, que prossiga, depois de mui­
tos outros, e especialmente o cardeal Roberto Belarmino, a controvérsia
que o opõe a Jaime I de Inglaterra desde 1606, por ocasião do juramento
de fidelidade que este último exige de todos os seus súbditos católicos.
Suárez, que tinha já dado em 1601-1602 um curso consagrado às Leis
(De Legibus ac deo legislatore), redige uma Defensio fidei, cujo livro vi é
completamente consagrado ao tema do Juramentum fidelitatis. O De
Legibus é publicado em 1612 em Coimbra, a Defensiofidei no ano a seguir.
*

* *

O espaço de tempo que separa o Sermão de Montesinos das contro­


vérsias da Santa Sé com a primeira expressão teórica do absolutismo

2 O grande historiador e editor Angel Losada sublinhou com frequência, com ênfase, a
importância real desta controvérsia: «Nunca, sem dúvida, nem antes daquela data
nem depois, um imperador tão poderoso — e, em 1550, Carlos V, imperador do Sacro
Império Romano, era o soberano mais poderoso da Europa, à cabeça de um grande
império colonial — ordenou a suspensão das conquistas até que se decidisse se elas
eram justas», in «Evolución dei Moderno Pensamiento Filosófico-Histórico sobre Juan
Ginés de Sepúlveda», Actas de Congreso internacional sobre el V Centenário ãel nacimiento
dei Dr. Juan Ginés de Sepúlveda, Córdova, 1993, p. 11.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 107

clássico-moderno3 permite seguir a elaboração conjunta da noção mo­


derna ou pré-modema de direito natural e a determinação nova do
direito das gentes, compreendido como direito internacional inter-
estados. O contexto histórico, bem como a acentuação da viragem nas
problematizações, constitui aqui as condições prévias indispensáveis a
toda a perspectivação doutrinal. As dificuldades metodológicas pró­
prias a toda a história das ideias, a partir do momento em que se trata
de estatuir sobre uma continuidade ou sobre rupturas, são de facto,
neste contexto, particularmente inflacionadas, devido ao movimento
geral da retrospecção que faz de Las Casas, por exemplo, um precursor
dos direitos do homem e, porque não, da teologia da libertação4, ou de
Vitoria, o pai do direito internacional5. Outras dificuldades estão rela­
cionadas, desta vez, com a distância constante entre as discussões jurídi­
co-teológicas e as «realidades» da Conquista: em Espanha discute-se,
muito depois do facto consumado, acerca do direito ou pelo menos do
«sentido» da Descoberta e das agitações progressivas que ela induziu,
no plano político, económico ou geopolítico. Para apreender o que o
«efeito americano» ou, muito mais tarde, o confronto de Estados sobe­
ranos absolutos, comportam de verdadeiramente inédito, os teólogos-
-juristas recorrem a esquemas de pensamento que poderíamos chamar
de «arcaicos». Com efeito, é-lhes necessário retomar, e seguramente
deslocar, um corpo de doutrina tradicional, transmitido no essencial
por Tomás de Aquino. Poder-se-á então sempre, como o fazia tão de
bom grado Michel Villey, denunciar um desvio doutrinal ou uma infi­
delidade, até mesmo apontar o «abismo» que separa um dado comen­
tário de Vitoria do ensinamento do Doutor Comum.

3 Ver o processo reunido por L. Perena e V. Abril, «Francisco Suárez», De juramento


fidelitatis, Conciencia y Política, Madrid, CSIC, 1979.
4 Cf J.-M. Aubert, «Aux origines théologiques des droits de l'homme», in Le Supplément,
n.s 160, Março de 1987, p. 114: «A repercussão da obra de Bartolomeu de Las Casas
teria podido limitar-se à humanização da colonização espanhola. Na verdade ele
abriu os olhos de numerosos teólogos sobre a verdadeira dimensão do problema
levantado, o pôr em questão da representação clássica da sociedade humana. Pode­
mos falar de uma verdadeira revolução doutrinal que faz oscilar a teologia escolástica
na modernidade. Porque, de facto, tratou-se da passagem de um direito universal
cristão fundamentado em Deus para um direito natural tipicamente individual e
laicizado.» Proposta que não pode senão deixar sonhador aquele que tenha simples­
mente aberto um dos derradeiros opúsculos do grande dominicano, Da única maneira
de evangelizar o mundo inteiro.
5 Tese que conhece uma dimensão verdadeiramente militante desde os trabalhos de
Ernest Nys (Les Initiateurs du droit public moderne, Bruxelas, 1890; Les Origines du droit
international, Bruxelas, 1894) e de James Brown Scott (The Spanish Origin of International
Law, 1933; The Catholic Conception of International Law, 1934).
108 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Limitar-nos-emos, por falta de espaço, apenas ao exame das doutri­


nas, ou melhor de alguns pontos de doutrina, quando seria preciso
aqui mais do que em qualquer outro sítio considerá-las também sem­
pre no seu contexto histórico concreto, algo a que o próprio Vitoria
encorajava ao declarar: «O dever e a tarefa do teólogo são tão vastos
que nenhum assunto, nenhuma discussão, nenhum domínio parecem
estranhos ao discurso e ao projecto teológicos.» Mas antes de vermos a
forma como Vitoria primeiro, em seguida Suárez, redefinem a articula­
ção entre direito natural e direito das gentes, temos que recordar bre­
vemente as peças essenciais do processo tomista que não cessará de
alimentar a reflexão dos teólogos-juristas que nos interessam.

1 — O pano de fundo tomista

Não saberíamos sublinhar demais a importância deste pano de


fundo, tanto no que respeita à Escola de Salamanca, da qual Vitoria
(1492—1546) é o verdadeiro instituidor, como no que respeita, um pouco
diferentemente, o ensino na Companhia de Jesus. É sabido que Vitoria
está na origem da profunda renovação do tomismo nas universidades
espanholas, e em primeiro lugar em Salamanca onde ensina a partir de
1523, introduzindo aí uma inovação pedagógica muito importante, já
usada no fim da sua docência parisiense no convento dominicano de
Saint-Jacques: substituir o comentário das Sentences de Pierre Lombard
pelo da Suma teológica6. No que respeita aos jesuítas, sabemos igual­
mente bem que a ratio studiorum recomendava sustentar sempre a opi­
nião comum, regulando-se de preferência pela tradição aristotélica e
pelo ensino tomista.
Tomás teria assim fornecido as peças principais do processo jurí­
dico-político discutido durante todo o século xvi na escolástica espa­
nhola. Trata-se no essencial de dois tratados conexos da Suma teológica:
o tratado das leis (Ia, Ilae, qu. 90-97) e o tratado da justiça (de justitia et
jure, lia Ilae, qu. 57-79), aos quais convém acrescentar as questões rela­
tivas aos «infiéis» (lia Ilae, qu. 10, de infidelitate in communi, e qu. 12, de
apostasia). Não nos cabe evidentemente expor aqui, por si mesmo, este
corpo de doutrina e menos ainda tentar situá-lo na economia geral do

6 Sobre a docência de Vitoria em Salamanca, ver espedalmente na obra colectiva editada


por Ada Lamacchia, La filosofia nel siglo de ora, Studi sul tardo rinascimento spagnolo,
Bari (1995), Levante Editori, a primeira parte: La scuola de Salamanca: prima generazione,
pp. 15-215.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 109

pensamento tomista. O que nos importa, em contrapartida, sublinhar


desde logo, é simultaneamente a distância evidente entre os dados histó­
rico-políticos sobre os quais raciocina Tomás — numa palavra os da
Respublica christiana — e os dos nossos autores (a Descoberta do Novo
Mundo por um lado, a pressão turca pelo outro, e finalmente, por
detrás da Reforma protestante, a instalação das monarquias absolutis­
tas pluriconfessionais), e ao mesmo tempo a extraordinária maleabili­
dade da doutrina tomista que permite, à custa de inflexões mais ou
menos violentas, às quais precisamente nos apegaremos, aplicar as
teses tomistas e as suas distinções a realidades heterogéneas.
O quadro doutrinal, que nos é indispensável recordar brevemente,
é constituído pela articulação bastante complexa em Tomás de Aquino
entre direito natural e direito das gentes. Como sabemos, na obra de
Aquino, o direito natural é sempre referido ao «justo» — ele próprio
visto ex natura rd — cuja apreensão é dada ao homem anteriormente a
todas as leis humanas. Neste sentido, o direito natural confunde-se com
o que em termos modernos chamaríamos a consciência da lei natural,
que é ela própria sempre concebida como uma participação na lex divina,
entendida como a razão divina que preside à ordenação do mundo7.
Contudo os comentários de Tomás de Aquino não estão isentos neste
ponto de flutuações ou de ambiguidades que se devem em primeiro
lugar à mudança de sentido dos conceitos fundamentais do direito
romano utilizados pela obra de Aquino8. Na Suma teológica (Ia Ilae),
Tomás de Aquino considera em primeiro lugar a lei humana na questão
95 cujo artigo 4 é consagrado à divisão. A obra de Aquino propõe aí
uma primeira articulação entre direito natural e direito das gentes ao
examinar a incoerência, pelo menos aparente, das distinções propostas
por Isidoro de Sevilha (Etimologias, V, cap. 6, e ibid., cap. 4):
Parece que Isidoro dá uma divisão inadequada das leis humanas
ou do direito humano (jus humanam). Com efeito, ele inclui nesse di­
reito o direito das gentes (jus gentium), assim chamado porque «quase
todas as nações (gentes) fazem uso dele». Mas, como ele próprio

7 Ia Ilae, qu. 91, a. 2: «[...] Uma tal participação da lei eterna na criatura, chamamos-lhe
a lei natural.» Cf. também Ia Ilae, qu. 93, a. 1: «[...] A lei eterna não é mais do que a
razão da divina sabedoria, na medida em que ela dirige todos os actos e todos os
movimentos.» — Sobre tudo isto, podemos remeter para os trabalhos de Michel Villey,
especialmente Questions de Saint Thomas sur le droit et la politique, Paris, PUF, 1987;
La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, éditions Montchrétien, 1975 (4.3 ed.),
particularmente pp. 123 e segs.
8 Cf. Jean-Marie Aubert, Le Droit romain dans l’oeuvre de Saint Thomas, Paris, Vrin, 1955.
110 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

diz, «é o direito natural (jus naturale) que é o direito comum a todas


as nações (commune otnnium mtionum)». Logo o direito das gentes não
está contido no direito humano positivo, mas antes no direito natural.

O Respondeo coloca claramente à luz o princípio fundamental de


subordinação que comanda todo o tratado das leis: a lei humana, preci­
samente na medida em que é lei e se conforma portanto à ratio legis,
deriva da lei natural (lex naturae), que constitui por seu turno a primeira
regra da razão em função da qual se define o «direito» (rectum) e o justo
(jtístum). E portanto em função da sua relação respectiva — mas
sempre fundamental — com a lex naturae que é preciso distinguir e
situar o direito civil e o direito das gentes, que constituem ambos o
direito positivo (jus positivum)9:

[...] pela sua definição, a lei humana deve derivar-se da lei da natu­
reza. E deste ponto de vista, dividiremos o direito positivo (jus positivum)
em direito das gentes (jus gentium) e direito civil (jus civile), segundo as
duas maneiras como um preceito pode derivar da lei natural.

Com efeito, como o mostrou Tomás no artigo 2 dessa mesma ques­


tão, a derivação de que se trata aqui, e que implica sempre uma partici­
pação, pode assumir duas formas diferentes: aquela que relaciona as
conclusões com os princípios, de acordo com o modelo aristotélico da
demonstração científica, e aquela que relaciona as determinações com
regras gerais, no sentido em que um arquitecto por exemplo deve apli­
car o tipo comum «casa» a esta ou aquela habitação concreta a ser
construída. É em função dessa distinção das formas possíveis de deri­
vação que Tomás pode estabelecer uma conexão directa, como conclu­
sões ao seu princípio, entre direito das gentes e lei natural:

Ao direito das gentes ligam-se os princípios que derivam da lei


natural pelo modo de conclusões derivadas dos princípios; tal como as
justas vendas e aquisições e outras coisas semelhantes, sem as quais os
homens não poderiam ter nenhuma vida social (ai invicem convivere);

9 Ia Ilae, qu. 95, a. 2: «Nas coisas humanas, uma coisa é dita justa pelo facto de estar
conforme à regra da recta razão. Mas a regra primeira da razão, é a lei natural. Desde
logo, toda a lei positiva humana não terá razão de lei senão na medida em que deriva
da lei natural.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 111

coisa que, contudo, está enraizada na lei natural, uma vez que o ho­
mem é por natureza um animal social10.

Portanto, se o direito das gentes vem enfileirar-se sob a rubrica mais


geral do direito humano, contradistinguido aqui não tanto do jus divinum
como da lei da natureza ou lei eterna, e se por isso é do domínio do
direito positivo, é do direito positivo tomado no sentido mais alargado
do termo, na medida em que permanece enraizado na lei natural, e se
separa portanto do direito positivo no sentido estrito, o jus civile. Este
não é de forma nenhuma conclusão ou derivação directa a partir dos
princípios, mas antes determinação, sempre particular, contextuai, levando
em conta o que caracteriza propriamente cada cidade ou Estado defini­
das, e portanto susceptível de variações históricas, o que não parece dever
ser o caso para o direito das gentes, mesmo se este implica sempre
o tempo da sua descoberta que coincide com o da explicitação completa
da natureza humana visada na sua sociabilidade intrínseca. Isto confirma
ainda o argumento aã primum, em resposta à tese que tende a separar
radicalmente direito positivo e direito das gentes, sob o pretexto de que
o direito verdadeiramente comum a todas as nações (gentes) é o direito
natural. Se na verdade, para São Tomás, o direito das gentes pode, num
certo sentido, ser considerado como «natural», é na medida em que ele é
próprio do homem enquanto criatura racional e que se apresenta como
uma conclusão suficientemente próxima dos princípios para que todos
os homens se possam pôr de acordo acerca dele:
O direito das gentes é de certa maneira natural no homem, na medida
emque este é umser racional, porqueesse direito deriva da lei natural como
uma conclusão que não está muito afastada dos princípios. Epor isso que os
homens chegam facilmente a acordo sobre ele. Todavia, distingue-se do
direitonatural estrito, sobretudo daquele que é comuma todos os animais11.

10 É a tese que ainda ensinará fielmente Domingo de Soto (1495-1560), professor em


Salamanca a partir de 1532, no seu Dejustitia et jure, I, qu. 5, a. 4: «Chamamos direito
das gentes àquilo que os mortais estabeleceram radonalmente, a partir dos princí­
pios naturais, por via de conclusão [...]; em contrapartida, o que foi instituído pela
via da determinação, como o género pela espécie, é nomeado direito positivo (jus
civile)» (Salamanca, 1556-1557; reimpresso, com introdução de V. Carro e tradução
espanhola de M. González Ordónez, Madrid, 1967-1968).
11 Ia Ilae, qu. 95, a. 4: Aã primum dicendum quod jus gentium est quidem aliquo modo
naturale homini, secundum quod est rationcdis, inqmntum derivatur a lege natumli per
modum conclusionis quae non est multum remota a principiis. Unde ãefacili in hujusmodi
homines consenserunt. Distinguitur tamen a lege naturali, maxime ab eo quod est òmnibus
112 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

É preciso lembrar, com efeito, que a lei natural propriamente dita


não diz respeito apenas ao homem na sua diferença específica (como
animal dotado de razão), mas que é comum a todos os animais consi­
derados enquanto tais. A maior generalidade pertence, pois, à lei natu­
ral cujos preceitos se impõem tanto aos homens como a todo o resto
dos animais ou dos seres vivos. A ficarmos apenas por esta generalidade
da lei natural e das inclinações essenciais que imprime em todas as
criaturas, podemos portanto considerar como positivo tudo o que não
surge simples e directamente da sua regulação. Resta que, se procurar­
mos definir mais precisamente a situação do direito das gentes, então é
preciso considerá-lo como intermediário entre a lei natural e o direito
positivo no sentido estrito instituído por cada cidade a título de deter­
minação sempre particular. Um processo contínuo de especificação,
depois de aplicação, conduz assim da lei natural ao direito positivo, pas­
sando pelo direito natural e pelo direito das gentes. Um tal esquema mos­
tra claramente que a doutrina tomista não chega nunca a fazer do di­
reito das gentes um equivalente, ou mesmo uma antecipação de um
direito internacional interestados. A sua função é quase a priori, está
directamente ligada à sociabilidade fundamental do ser humano e, nesse
sentido, é sempre pressuposta pela instituição do direito civil, ou me­
lhor do plural dos direitos civis, mutáveis e adaptados a cada cidade
ou a cada comunidade política. É dizer também que ao direito das gen­
tes não poderia incumbir a tarefa segunda de ordenar a um bem
comum superior as diferentes comunidades políticas.
É claro que, sobre este ponto, a doutrina elaborada por Vitoria,
segtmdo a qual cada Estado ou República (Respública) é parte de um
mundo que é preciso também considerar na sua inteireza (totus orbis),
na medida em que comporta um fim próprio e geral que transcende o
de cada «República» ou de cada «Província»12, não poderia reclamar-
-se directamente do ensino tomista, sem dúvida porque, para Tomás
de Aquino, o bem comum que transcende a pluralidade das comuni-

animalibus commune. — No seu comentário da Suma teológica (In Secunâum Secundae,


qu. 57, a. 3, § 2), Vitoria sustentará uma posição diferente, a mesma que desenvol­
verá Suárez: «Chamamos direito das gentes ao que não comporta em si e pela sua
natureza uma justa proporção (aequítas), mas o que foi ratificado por uma conven­
ção humana (quod ex condicto hominum sancitum est). Podemos portanto concluir que
o direito das gentes deve de preferência ser incluído sob o direito positivo e não sob
o direito natural.»
12 Francisco de Vitoria, Leçon sor le pouvoir politique, trad. fr. Maurice Barbier, Paris,
Vrin, 1980, pp. 57-58.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 113

dades políticas não se deixa nunca definir em termos puramente po­


líticos, mas comporta à partida uma dimensão cosmoteológica. Para além
dessa consideração verdadeiramente nova - esboçada apenas em
Vitoria, e desenvolvida explicitamente em Suárez (1548-1617) - que
associa sempre mais claramente direito das gentes e direito internacio­
nal, um outro elemento importante na redefinição conjunta do direito
natural e do direito das gentes, no próprio seio da Escola tomista e
dos seus representantes mais fiéis como Banez (1528-1604)13 ou Soto
(1495-1560), releva do facto de se esbater progressivamente, até desa­
parecer inteiramente, o princípio da partilha entre humanidade e
animalidade pelo qual se regulavam os jurisconsultos romanos. O di­
reito natural (jus naturale) — cada vez menos directamente ligado à
lei da natureza aplicável a todo o universo, e mais precisamente aos
que nele estão vivos, considerados em função de tudo o que é neces­
sário à sua conservação e reprodução (conjunctio, procreatio, educatio)14
— assenta já não em dispositivos ou inclinações que o homem partilha
em comum com os outros animais, mas em conhecimentos ou noções
inatas que são próprios da sua natureza racional. É o que sublinha
nomeadamente Domingo de Soto, quando opõe o direito natural, ins­
crito no nosso espírito — e por consequência imediatamente aces­
sível a cada um sem que seja necessário desenvolver qualquer racio­
cínio que seja (absque ulla ratiocinatione) —, e o direito das gentes que
deve ser explicitado a partir de um raciocínio natural (naturalis
ratiocinatio). Ao insistir no carácter natural desse raciocínio, Soto ex­
clui expressamente toda a instituição do direito das gentes fundado
na reunião e na deliberação dos homens entre si. Para desenvolver os
seus preceitos, basta raciocinar e concluir a partir de princípios co­
nhecidos por si. Se a lei natural se impõe universalmente a todos,
porque os primeiros princípios se deixam imediatamente reconhe-

13 Ele será também titular da cátedra de «Prima» em Salamanca de 1581 a 1600.


14 Cf. Cícero, De officiis, I, W, 11: «Em primeiro lugar a natureza deu a todo o tipo de seres
vivos uma inclinação para se conservarem a eles próprios, à sua vida e aos seus corpos,
para evitar tudo o que lhes seria nocivo, para procurar e pôr em condições tudo o que é
necessário à vida, alimentação, abrigo e outras coisas do mesmo tipo. A todos os seres
vivos pertence também em comum a tendência para se unirem tendo em vista a pro­
criação e para cuidar dos seres que procriaram» (Principio gerteri animantium est a natura
tributam, ut se, vitam corpusque tueatur, ãedinet ea, quae nodtura viãeantur, omniaque, quae
sunt aà vivendum necessário, àcquirat et paret...). Cf. também Tomás de Aquino, Ia Hae,
qu. 94, a. 2, iw corpore:«[...] Dir-se-ia que releva da lei da natureza aquilo que a natureza
ensinou a todos os animais, isto é, a união dos sexos, a educação das crianças e outras
coisas semelhantes» (dicuntur ea esse de lege naturali quae natura omnia anitnalia docuit,
ut est conjunctio maris et feminae, et educatio liberorum, et similia).
114 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

cer, em contrapartida as conclusões que procedem de um raciocínio


podem sempre ser obnubiladas15.
Mas regressemos a Tomás de Aquino. No artigo 3 da questão 57 da
Ha Hae (artigos 2 e 3), ele examina de novo a questão de uma possível
identificação entre direito das gentes e direito natural, partindo desta
vez da determinação mais geral do direito: jus sive justum est aliquoã
opus adoequatum àlteri secundum aequalitatis modum16. A proporção ou a
comensuração que tende para o ajustamento17pode realizar-se de duas
maneiras diferentes: segundo consideramos absolutamente e em si as
coisas que têm uma medida comum, ou as consideramos relativamente
às suas consequências. Se o primeiro modo depende directamente da
natureza da coisa — ex ipsa rei natura — (dou tanto para receber tanto),
o segundo modo de adequação ou de comensuração depende já não da
própria coisa, mas de uma convenção ou de um comum acordo
(ex conãicto, sive ex communi placito). O que importa aqui sublinhar é
que esta distinção coincide por sua vez com a partilha da animalidade

15 De justitia et jure, I, qu. 4, a. 4: «A lei natural é a mesma para todos os mortais na


medida em que diz respeito apenas aos princípios. [...] Na medida em que diz res­
peito às conclusões tiradas desses princípios, mesmo se ela é o mais das vezes a
mesma para todos, tanto no que é do âmbito da rectidão como do conhecimento, ela
comporta contudo insuficiências relativamente ao primeiro ponto, devido a certos
impedimentos particulares, relativamente ao segundo, devido ao obscurecimento
susceptível de cegar a razão através de maus hábitos» (Lex naturalis quatenus ad sola
principia extenditur, eadem est apud omnes mortales [...] Quatenus ad ejus conclusiones
etsi plurimum sit eadem apud omnes, et quantum ad rectitudinem et quantum ad cognitionem,
déficit tamen et respectu prioris propter particularia quorundam impeãimenta, et respectu
posteriores, propter rationis nubila quibus ob consuetudinem pravam excaecatur.) — A apro­
ximar de Tomás, S. Th., Ia Ilae, qu. 94, a. 2: «Os preceitos da lei natural desempe­
nham na razão prática o mesmo papel que os primeiros princípios de demonstração
na razão especulativa: uns e outros são com efeito princípios conhecidos por si. [...]
Ora da mesma forma que o ser é o que cai em primeiro lugar sob a apreensão da
razão (primum quod cadit in apprehensione simpliciter), também o bem é o que cai em
primeiro lugar sob a apreensão da razão prática, ordenada ao agir (primum quod
cadit in apprehensione practicae rationis, quae ordinatur ad opus): porque todo o agente
age para um fim, o qual tem razão de bem. É por isso que o primeiro princípio da
razão prática se funda na razão do bem, sendo o bem precisamente o que todos desejam.
O primeiro preceito da lei será portanto o de que é preciso fazer e procurar o bem e
evitar o mal. E nele serão fundados todos os outros preceitos da lei natural (et super
hoc fundatur omnia alia praecepta legis naturae).»
16 Loc. cit, a. 2: «O direito ou o justo dizem-se de uma obra adequada [proporcionada]
ao outro sob um certo modo de igualdade.»
17 Cf. qu. 57, a. 3, in corp.: «A justiça implica com efeito uma certa igualdade (aequalitas),
como o seu nome indica: o que se iguala ajusta-se, diz-se vulgarmente (ea quae
adaequantur justari).»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 115

capaz de apreender directa e absolutamente o ajustamento ou a pro­


porção, e da racionalidade humana que, para além da simples apreen­
são, está em condições de considerar qualquer coisa comparando-a às
suas consequências18.
Distinguiremos portanto um direito natural comum ao homem e
aos outros animais, reduzido à apreensão imediata de alguns princí­
pios abstractos e gerais, e um direito próprio do homem, mas que não
é por isso menos natural, na medida em que é a razão natural que des­
cobre o justo visado nas suas consequências. Esse direito natural, espe­
cificamente humano, enriquecido pelo trabalho da razão a partir de
princípios apreendidos imediatamente, pode ser caracterizado como
jus gentium. E Tomás retoma aqui por sua conta a célebre definição de
Gaio (Digeste, 1., I, tit. 1, 9): «O que a razão natural estabelece entre
todos os homens, eis o que todas as nações observam e a que se chama
direito das gentes19.» O direito das gentes assim definido não surge do
direito positivo, e também não resulta de um consenso, mas representa
antes como que um prolongamento do direito natural comum. A insti­
tuição desse direito pertence imediatamente à razão natural20. E visível
que a posição tomista permanece, ao que parece, bastante flutuante
quanto à situação respectiva do direito natural, do direito das gentes e
do direito positivo (civil): tão depressa, na Ia Ilae (qu. 95, a. 4), o direito
das gentes é considerado como um direito positivo — aquele que se
deduz do direito natural, por via de conclusão, a partir de princí­
pios —, como, na Ha Ilae (qu. 58, a. 3), o direito das gentes é distinguido
do direito natural tomando como base a diferença que existe entre a

18 Ibid.: «Falando em absoluto, o facto de apreender qualquer coisa não pertence ape­
nas ao homem, mas igualmente aos outros seres animados. E é por esta razão que o
direito a que chamamos natural de acordo com o primeiro modo é a nós e aos outros
seres animados. [...] Em contrapartida, o facto de comparar qualquer coisa relacio-
nando-a com aquilo que dela procede como consequência, eis o que é próprio da
razão» (Absolute autem apprehendere aliquid non solum convenit homini, sed etiam alliis
animalibus. Et ideo jus quod dicitur naturcde secundum primum modum, commune est
nobis et aliis animalibus. [...] Considerare autem aliquid comparando ad id quod ex ipso
sequitur, est proprium rationis).
19 «Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes populos peraeque
costoditur vocaturque jus gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur», Institutiones I,
2 ,1 , Corpus Juris Civilis, éd. Krueger, I, p. 1.
20 Ibid, ad tertium: «[...] Na medida em que a razão natural dita o que releva do direito
das gentes, esses direitos não têm necessidade de qualquer instituição especial, mas
é a própria razão que os institui» ([...] quia ea quae sunt juris gentium naturalis ratio
dictat..., inde est quod non indigent aliqua spedali institutions, sed ipsa naturalis ratio ea
instituit).
116 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

adequação imediata a um outro (que define em princípio o justum), e


essa mesma adequação relativamente às suas consequências21.
Os nossos autores vão tentar diversamente levantar estas ambi­
guidades para adaptar os considerandos ou as principais disposições
da doutrina tomista a uma situação histórica radicalmente modificada
nas suas dimensões políticas, culturais, religiosas. De facto, com a des­
coberta das índias ocidentais, a ideia da unidade cristã voa em esti­
lhaços e vem progressivamente ceder o lugar à ideia de uma irredutível
diversidade plural de povos, de Estados, de religiões. Da mesma feita,
é também o conjunto das relações conflituais da cristandade com os
«outros» que vai ver-se afectada, quer se trate dos Turcos, dos Mouros
ou dos Judeus. O resultado bastante paradoxal desta necessária adap­
tação, é que são os teólogos-juristas22que vão contribuir para separar o
direito da teologia: o direito toma-se o objecto de uma ciência autó­
noma na qual a própria noção de direito natural vai ser radicalmente
modificada.

2 — Vitoria
Uma das peças centrais na reflexão jurídico-política de Vitoria
— aquela que subtende o edifício, solidamente estruturado, da Relectio
de Indis23 —é a análise da comunidade política como comunidade perfeita
I perseguindo um fim próprio e suficiente; análise central na primeira
| lição pública, a Relectio de Potestate civili, pronunciada no fim do ano de
i 1528, no início da sua docência em Salamanca24. Vitoria está muito cons-
j
| ______________
21 Sobre tudo isto, cf. Michel Villey, Questions de saint Thomas sur le droit et la politique,
I Paris, PUF, 1987, em particular pp. 121 e segs., 141 e segs.
j 22 Retomamos aqui a caracterização tão pertinente de Venando Carro, La teologia y los
! teólogos-juristas espanoles ante la conquista de América, 2 vol. Madrid, 1955.
j 23 A edição de referênda é hoje a de L. Perena e J. M. Prendes, edição crítica com
tradução espanhola (no Corpus Hispanorum de Pace), Madrid, CSIC, 1967. Citaremos
j também a tradução francesa, com introdução e notas, de M aurice Barbier, Leçons sur
I les Indiens et sur le droit de guerre, Genebra, Droz, 1966. Infelizmente esta tradução,
I de resto excelente, não se pôde apoiar na edição de L. Perena. Assinalamos também
| a notável edição italiana bilingue, que dá o texto da edição crítica: Relectio de Indis.
j La questione ãegli índios> texto crítico de L. Perena, edição italiana e tradução de
A. Lamacchia.
24 Edição T. Urdánoz, Obras de Francisco de Vitoria, Relecciones Teológicas, Edição crítica
do texto latino, versão espanhola, Madrid, BAC, 1960. Tradução francesa por Maurice
Barbier, Leçon sur le pouvoir civil, Paris, Vrin, 1980. — A edição Urdánoz comporta
uma excelente introdução biográfica (pp. 1-107).
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 117

ciente do que está em jogo nesta determinação de um fim próprio e


quase imanente à comunidade política, sem que esta deva, à partida,
ser ordenada a um fim superior. A teoria do Estado (respublica), desen­
volvida na primeira Relectio, constitui o fundamento último da refle­
xão de Vitoria sobre o jus gentium interpretado doravante como jus inter
gentes. Definir a respublica como uma instituição do direito natural que
detém, na sua ordem própria, a soberania (summa potestas), é antes de
mais assumir uma posição contra aqueles que sustentam que ela nasce
simplesmente da vontade humana: «[...] cidades e repúblicas [...] são,
por assim dizer, a obra da natureza que forneceu aos homens esse meio
de protecção e de conservação.»25
Protecção e conservação são aqui nècessidades imperiosas devido
à condição original do homem que a natureza deixou «frágil, fraco,
desprovido e sem força, privado de todo o auxílio, faltando-lhe tudo,
nu e sem pelagem». A sociedade é assim não apenas o que permite ao
homem prover às suas necessidades, mas ainda humanizar-se, se é
verdade que a amizade e a comunidade de vida são traços fundamentais
da humanidade26. Ao afirmar que o Estado é de direito natural, Vitoria
entende regular-se pela palavra do Apóstolo (Romanos 13,1): non est
enim potestas nisi a Deo, mas se a origem do poder reconduz a Deus
como à sua causa eficiente, esta determina primeiramente uma natu­
reza e uma condição que implicam necessariamente a sociedade ou a
sociabilidade. Se o poder vem de Deus, é pois no sentido muito geral
em que «o que é natural a todos os homens vem sem dúvida nenhuma
de Deus, o autor da natureza». Vitoria poderá portanto afirmar simulta­
neamente que a comunidade política, a respublica, é o sujeito imediato
do poder27 e isso: de direito natural, ou de direito natural e de direito
divino. Acontece o mesmo, por consequência, com os poderes públicos,
porque se os homens se devem reunir e congregar para assegurar a sua
segurança, «nenhuma sociedade se pode manter sem uma força e um
poder que a governe e vele por ela», o que faz com que o poder público

25 Trad. citada, p. 43: Pater ergo quod fons et origo civitatum rerumque publicaram, non
inventam est hominum, neque inter artificata numerandum, sed tanquam a natura profectum.
26 «[...] foi necessário ao homem não errar à aventura dispersando-se e isolando-se
como os animais selvagens, mas socorrer-se mutuamente vivendo em sociedade»,
trad. citada, p. 41.
27 «Se nos abstrairmos do direito comum positivo e humano, já não existe razão para
que esse poder pertença a um mais do que ao outro. É portanto necessário que seja
a própria comunidade que se baste e que possua o poder de se governar [...] Não
existe razão para que, dentro da comunidade política, cada um reclame para si um
poder sobre os outros» (trad. citada, p. 46).
118 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

seja em absoluto tão útil e necessário como a comunidade e a socie­


dade. Não temos que entrar aqui no exame da questão do regime
monárquico nem na crítica implícita das teorias do contrato social que,
aos olhos de Vitoria, conduzem à instituição de um poder político de
maneira artificial, como se procedesse dos homens e já não do direito
natural. Em contrapartida, o que é completamente essencial na sua pro­
posta, é a definição principal do Estado na sua autonomia como comu­
nidade perfeita, e é sobre este ponto que insistirá ainda a Relectio de jure
bellf8. Retenhamos simplesmente o ponto que nos interessa para o segui­
mento deste estudo: se o Estado está em posição de ser o sujeito ime­
diato do poder, susceptível de transferir a sua autoridade para um so­
berano, isso vale tanto para os Estados pagãos como para os Estados
cristãos. Sendo a comunidade política de direito natural, nenhum
Estado, sob pena de desaparecer enquanto tal, pode ser privado dos
seus poderes públicos2 29.
8 Essa é uma necessidade essencial que de modo
algum afecta a partilha: fiel-infiel, como o sublinha ainda a Relectio de
Indis, I, 1, 4: «A infidelidade não impede ninguém de ter um poder
verdadeiro30.» Vitoria não deixa aqui de se referir a Tomás: «A infideli­
dade, diz São Tomás, não suprime nem o direito natural nem o direito
humano. Ora os poderes são ou de direito natural ou de direito humano.
Não são portanto abolidos quando falta a fé31.» Daí a conclusão de

28 De jure belli, 7-9 [24-28], trad., fr. citada, pp. 118-119: «Mas saber o que é um Estado
e quem é príncipe propriamente dito é toda a dificuldade. Respondamos brevemente
que chamamos Estado, propriamente dito, a uma comunidade perfeita. Mas o que é
uma comunidade perfeita? Essa é a questão. — Sobre este assunto é preciso notar
que «perfeita» equivale a «completa». Porque aquilo a que falta qualquer coisa é
dito imperfeito e, pelo contrário, aquilo a que nada falta é dito perfeito. E logo é
perfeito o Estado ou a comunidade que forma um todo em si mesmo, isto é, que não
faz parte de um outro Estado, mas que tem as suas leis próprias, o seu conselho
próprio e os seus magistrados próprios [...] Consequentemente, o direito de decla­
rar a guerra pertence apenas a um Estado perfeito ou ao seu príncipe.»
29 «O Estado não pode de maneira nenhuma ser privado do poder de se defender e de
se proteger das injustiças dos seus súbditos e dos estrangeiros, coisa que não pode
fazer sem poderes públicos» (trad. citada, p. 55).
30 «Non est impedimentum quod aliquis sit verus dominus.»
31 Trad. citada, p. 21. Cf. Ha Ilae, qu. 10, a. 10: « E preciso ter em conta o seguinte: a sobe­
rania e a autoridade foram introduzidas pelo direito humano, a distinção entre fiéis e
infiéis é, pelo contrário, de direito divino; apenas esse direito divino que vem da graça
•não destrói o direito humano que vem da razão natural. É por isso que a distinção entre
fiéis e infiéis, por si só, não suprime a soberania nem a autoridade dos infiéis sobre os
fiéis» (Ubi considemndum est quod dominium et praelatio introducta sunt ex jure humano;
distinctio autemfidelium et infidélium est exjure divino. Jus autem divinum, quod est exgratia,
non tollit jus humanum, quod est ex naturali ratione. Et ideo distinctio fidelium et infidélium,
secundum se considerata, noa tollit dominium et praelationem infidélium suprafideles).
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 119

Vitoria: «Nem o pecado de infidelidade nem os outros pecados mortais


jmpedem os bárbaros de possuir um poder verdadeiro tanto público
fcomo privado32.» A Lição sobre o poder político já tirava daí todas as
; consequências relativamente à questão da Conquista: «Os príncipes cris­
tãos, laicos ou eclesiásticos, não poderiam privar os infiéis do seu po­
der nem da sua autoridade pela simples razão de serem infiéis, a não
ser se eles tivessem cometido uma injustiça por outra via33.» Os povos
infiéis possuem normalmente, tal como os povos cristãos, as prerroga­
tivas jurídicas que resultam da sociabilidade humana.
A pluralidade das comunidades políticas assim reconhecida deixa­
sse portanto integrar segundo uma nova ideia directriz, a de uma civitas
maxima: comunidade de direito público na qual o bem comum é uma
finalidade superior, mas cuja definição já não é intrinsecamente teoló­
gica. Porque a sociedade política (respubtica), por completa e perfeita
que seja, não é uma realidade última: está integrada numa comunidade
que a ultrapassa e que ultrapassa também a cristandade: a sociedade
universal (totus orbis). Esta comunidade internacional, e os membros
que dela fazem parte, estão já expressamente tratados na lição De
potestate civili:

[...] cada Estado é uma parte do mundo inteiro e cada província


cristã uma parte do Estado inteiro. Logo, se uma guerra é útil a uma
província ou a um Estado, mas traz prejuízos ao mundo ou à Cristan­
dade, penso que ela é injusta por essa mesma razão34.

Ao definir assim um bem comum superior ao dos Estados, o bem


comum próprio do mundo inteiro (totus orbis) considerado como tal,
Vitoria introduz um princípio fundamental de igualização entre todas
as comunidades políticas a partir do momento em que elas sejam reco­
nhecidas na sua personalidade jurídica. Aqui mais uma vez as implica-

32 1 ,1 ,1 0 (trad. 26-17). Vitoria pode igualmente referir-se ao comentário de Cajetan


sobre as mesmas questões da Suma teológica: «Quidam autem infideles nec de jure nec de
facto subsunt secundum temporalem juridictionem principibus christianis, ut si inveniuntur
paganiqui nuntquam império romano subditifuerunt, terras inhabitare in quibus christianum
numquamfuit nomen. Horum namque domini, quamvis infideles, legitimi sunt sive regali,
sive politico regimine gubementur. Nec sunt propter infidelitatem a dominio suorum privati,
cum dominium sit ex jure positivo, et infidelitas ex divino jure, quod non tollitjus positivum.»
33 N.° 9, trad, dtada, p. 54.
34 Trad, citada, p. 58: «Into, cum una Respublica sit pars totius orbis, et maxime Christiana
provinda pars totius Respublicae, si bellum utile sit uni provinciae, aut Respublicae cum
damno orbis au Christianitatis, puto eo ipso bellum esse injustum.»
120 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

ções da aplicação de um tal princípio ao Novo Mundo aparecem ime­


diatamente. As duas lições de 1539, Sobre os índios e Sobre o Direito de
Guerra, vão extrair todas as consequências desta primeira reflexão con­
sagrada à comunidade política de direito natural e à sua inscrição na
comunidade internacional. Desde 1537, na sua Lição Sobre a Sobriedade,
Vitoria tinha-se expresso sem ambiguidade a propósito da questão
debatida da Conquista e dos seus títulos legítimos:
Qualquer que seja o motivo pelo qual fazemos a guerra aos índios,
não é lícito fazer mais do que aquilo que tem o direito de fazer um
príncipe cristão em guerra justa contra um outro príncipe cristão, que
não está autorizado através dessa guerra a tomar-lhe o seu próprio
reino. De onde se conclui que não é lícito despojar os índios dos seus
reinos e dos seus bens [...]

E no modo de raciocínio hipotético, que caracteriza a sua exposição


de 1539, Vitoria dá mais um passo absolutamente decisivo na perspec­
tiva da igualização das diferentes comunidades políticas: se a um prín­
cipe cristão coubesse reinar legitimamente sobre pagãos,
não poderia levar em consideração o interesse de outros súbditos,
como os espanhóis, mas apenas o interesse dos pagãos, de maneira a
que estes conservassem os seus bens e não fossem despojados, em
proveito de outros, das suas riquezas e do seu ouro. [...] A república
dos índios não faz parte de Espanha, mas sim organizada para si
mesma.

Para que haja verdadeira comunidade política, importa de facto que


o Príncipe não tome em consideração senão o interesse dos seus súbdi­
tos, sejam eles pagãos ou infiéis, se é verdade que o poder político as­
sume a autoridade transmitida pela comunidade e assegura a respon­
sabilidade dos cuidados de defesa e de conservação que pertencem de
direito a cada homem35. É a partir de tais premissas que Vitoria pode

35 Cf. Lições Sobre o Poder Político, trad. citada, p. 55: «Se, com efeito, o homem não pode
renunciar ào direito e à faculdade de se defender e de se servir dos seus membros à
sua vontade, também não pode portanto renunciar ao poder, porque este lhe per­
tence em virtude do direito natural e divino. Da mesma forma também, o Estado
não pode de nenhuma maneira ser privado do poder de se defender e de se proteger
contra as injustiças dos seus súbditos e dos estrangeiros, coisa que não pode fazer
sem poderes públicos.» — Sem dúvida que caberá a Las Casas, e apenas a ele, ir
muito mais longe no reconhecimento da diversidade das comunidades políticas e
dos seus direitos próprios, afirmando que cada Respüblica tem igualmente o direito
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 121

«enfrentar, na sua Lição Sobre os índios, a questão fundamental da legiti­


midade da conquista europeia, nos seus aspectos políticos, jurídicos,
éticos, religiosos.
Quais são os títulos jurídicos, se os houver, da conqui sta e da guerra?
Esta questão é instruída a partir da tese fundamental: os índios que os
Conquistadores descobriram não são selvagens ou bárbaros deixados à
margem da história do mundo, mas antes povos constituídos em Esta­
dos dos quais conviria considerar o direito numa comunidade mundial.
Eis um ponto sobre o qual Las Casas insistirá por seu turno infatigavel­
mente: os índios dominam técnicas, têm cidades, governos (a coisa
fica cada vez mais clara depois da descoberta do México e do Peru,
1532-1533). Por outras palavras, a questão de princípio que obriga a
examinar de novo a justificação ou a crítica da Conquista36é a de saber o
que é um povo, ou melhor, o que é que faz de um povo um povo37. Ques­
tão que reencontraremos no centro do Príncipatus Politicus de Suárez.38

de defender os seus deuses e que essa é uma primeira marca fundamental de pie­
dade. Na 11.® réplica redigida por Las Casas para responder às objecções de
Sepúlveda na célebre controvérsia de Valladolid, em 1550 (cf sobretudo, a propó­
sito dessa controvérsia, Lewis Hanke, All Mankind is one. A study of the Disputation
between Bartolome de Las Casas et Juan Ginés de Sepúlveda in 1550, on the Intellectual and
Religious Capacity of the American Indians, Northern Illinois Press, 1974; ver também
a excelente síntese de A. Losada, que terá contribuído grandemente para uma apre­
ciação m ais apurada das posições de Sepúlveda, «The controversy between
Sepúlveda and Las Casas in the Junta of Valladolid», na obra colectiva: Bartolome de
Las Casas in the History. Toward an understanding of the Man and His Work, ed. Juan
Friede e Benjamin Keen, Northern Illinois University Press, 1971, pp. 279-306), Las
Casas declara, com efeito: «Dada a convicção (errónea) em que se encontram os
idólatras de que as divindades que honram são o verdadeiro Deus, não só têm o
direito de defender a sua religião, como o direito natural a isso os obriga, e se eles
não quiserem expor as suas vidas para defender os seus ídolos e os seus deuses,
pecam mortalmente. A razão disso é, entre muitas outras, que todos os homens são
obrigados, pela lei natural, a amar e a servir Deus mais do que a eles próprios, e a
defender a honra e o culto divino inclusivamente até à morte [...]. E não existe ne­
nhuma diferença quanto a esta obrigação entre aqueles que conhecem o verdadeiro
Deus, ou seja os cristãos, e aqueles que não o conhecem e que julgam verdadeira
qualquer divindade. [...]. Porque a consciência errónea liga e obriga tal como a cons­
ciência recta [...]» (in Las Casas, L'Evangile et laforce. Apresentação, escolha de textos
e tradução por Marianne Mahn-Lot, Paris, Cerf, 1964, p. 192).
36 Como sabemos, o termo será oficialmente proscrito a partir das Leis novas de 1542.
37 C f M. Senellart, «L'effet américain dans la pensée politique européenne du XVIe
siècle», in Penser la rencontre de deux mondes, publicado sob a direcção de A. Gomez-
-Muller, Paris, PUF, 1993, pp. 80-81.
38 Foi sob este título que foi publicada separadamente a terceira parte da Defensio Fidei,
ed. E. Elorduy e L. Perena, Madrid, CSIC, 1965.
122 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 123

O tratado de 1539 é organizado em tomo da discussão de sete títu­ legítimo sobre as suas terras, e, por esse facto, os príncipes cristãos não
los impróprios e ilegítimos e de igual número de títulos legítimos, Vi­ têm nenhum direito imediato à Conquista43. A questão da guerra justa é
toria examina em primeiro lugar os títulos ilegítimos: a soberania mun­ elaborada em princípio no quadro de uma reciprocidade e de uma
dial do imperador — a soberania mundial do Soberano Pontífice; — o reversibilidade a priori: todos os direitos dos Espanhóis relativamente
jus inventionis (a descoberta); — a recusa do cristianismo; — os crimes aos bárbaros são igualmente válidos tratando-se dos bárbaros relativa­
bárbaros; — o pretenso livre acordo ou consentimento dos índios; — a mente aos Espanhóis. Esses direitos são recíprocos (jura contraria), de
missão divina especial definida pelas Bulas Alexandrinas. Importa notar acordo com uma reversibilidade total. Daí a fórmula, que parece fre­
imediatamente que um certo número de títulos considerados como não quentemente estranha e escandalosa, a propósito do direito de «socie­
legítimos será retomado, transformado e assumido nos títulos legítimos; dade e de comunicação», que desenvolve o exame do primeiro título
é nomeadamente o caso da propagação do cristianismo, do direito de legítimo de dominação (dicio):
intervenção e de protecção. É devido a essa estrutura argumentativa
que Cari Schmitt39 pôde insistir com razão naquilo que ele chama «a É permitido aos Espanhóis o comércio com os bárbaros, mas com
imparcialidade, a objectividade, a neutralidade» do autor cuja argu­ a condição de não trazer prejuízos ao país deles. Eles podem, por
mentação já não aparece como medieval, mas sim como moderna40. exemplo, levar as mercadorias que lhes fazem falta e entregar ouro,
O mesmo Cari Schmitt sublinha ainda a profunda novidade da tese prata ou outros bens que têm em abundância. Os príncipes índios
central de Vitoria, no seu comentário do primeiro título legítimo da não podem impedir os seus súbditos de comerciar com os Espa­
«dominação dos Espanhóis sobre os bárbaros41», o do direito natural nhóis e, inversamente, os príncipes espanhóis não podem proibir o
de «sociedade e de comunicação» (I, 3,1). Vitoria recusa aí a fórmula comércio com os índios. [...] Em suma, é certo que os bárbaros não
de Plauto: O homem é um lobo para o homem, nestes termos: Non enim podem impedir o comércio aos Espanhóis mais do que cristãos po­
homini homo lupus est, ut ait Comicus, sed homo. E Cari Schmitt comenta dem impedi-lo a outros cristãos. Ora, é evidente, se os Espanhóis
assim: impedissem os Franceses de comerciarem com eles, não para o bem
de Espanha, mas para que os Franceses não tirassem proveito desse
O termo «homo» repetido por três vezes soa de maneira tautológica comércio, essa seria uma lei injusta e contrária à caridade44. [Subli­
e neutralizadora; [...] [para a Idade Média] a qualidade comum: ser nhado por nós.]
homem, não tinha ainda necessidade de nivelar as diferenças sociais,
jurídicas e políticas que apareceram ao longo da história humana [...] Vitoria leva a inversão até ao ponto de impor aos bárbaros o man­
Todos os teólogos cristãos sabiam que os infiéis, os Sarracenos ou os damento evangélico: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!»
Judeus eram homens, e o direito das gentes da Respublica christiana,
com as suas distinções traçadas entre diferentes tipos de inimigos e Os Espanhóis são o próximo dos bárbaros, como mostra a
consequentemente de guerra, assentava sobre distinções profundas parábola do bom Samaritano (Lc 10,29-37). Ora os bárbaros são obri­
entre os homens e sobre a grande variedade do seu estatuto. gados a amar o seu próximo como a si próprios (Mt 22, 39). Não

43 Ibid., pp. 73-74. Cf. a discussão da primeira questão examinada por Vitoria (1 ,1 ,1 ;
Ora são essas distinções que são apagadas pela tautologia de Vito­ trad. fr. p. 13): «Os índios tinham um poder verdadeiro, tanto público como pri­
ria, a título de uma primeira e decisiva neutralização42. Os príncipes vado?» e a conclusão dessa discussão (1,1,16; trad. fr., p. 32): «De tudo o que precede
dos povos não cristãos — vimo-lo — têm uma jurisdição legítima sobre resulta portanto que, sem nenhuma dúvida, os bárbaros tinham, tal como os cris­
esses povos, tal como os habitantes do Novo Mundo têm um dominium tãos, um poder verdadeiro, tanto público como privado. Nem os príncipes nem os
cidadãos puderam ser despojados dos seus bens sob o pretexto de não terem poder
verdadeiro (non essent veri domini). Seria inadmissível recusar àqueles que nunca
39 Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum, Berlim, 1950. cometeram injustiça aquilo que concedemos aos Sarracenos e aos Judeus, esses ini­
40 Ibid., p. 71. migos perpétuos da religião cristã. Reconhecemos com efeito a estes últimos um
41 Leçons sur les Indiens et sur le droit de guerre, introdução, trad. e notas por M. Barbier, poder verdadeiro sobre os seus bens, salvo quando se apoderaram de territórios
Genebra, Droz, 1966, p. 82. cristãos.»
42 Ibid., p. 74: «Neutralisierung», «neutralisierende Argumentation». 44 1,3, 2; trad. fr., p. 85.
124 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 125

podem portanto afastar sem razão os Espanhóis do seu país. Com para isso é certamente que em Vitoria, e mais ainda em Las Casas, o
efeito, Santo Agostinho escreveu no De doctrina christiana: «Quando exame dos títulos da conquista desenvolve-se ainda, na realidade, num
dizemos: Tu amaras o teu proximo”, é evidente que o próximo é horizonte que permanece largamente teológico ou económico-
todo o homem45.» -teológico49. Aquilo a que o teólogo-jurista não pode renunciar, aquilo
que ele nunca põe em causa directamente, como não o fará Suárez50, é
Podemos, por fim, como faz Vitoria na discussão do terceiro título o quadro doutrinal da problemática da guerra justa. Com isso, ele adere
ilegítimo46, inverter, por hipótese, o movimento da descoberta, de Oeste ainda plenamente à base conceptual e jurídica da Respublica christiana,
para Este: os índios não teriam mais direitos sobre nós, a título de um o que nos mostra também a dimensão da extraordinária tensão que
pretenso «direito de descoberta», se tivessem sido que nos tivessem atravessa toda a sua obra ou mais precisamente a Relectio de Indis: com
descoberto (non plus quam si illi invenissent nos...); esta é ainda uma ou­ efeito, reencontramos aí a argumentação, a retórica tradicional (esco­
tra forma, é certo que paradoxal, de defender os índios e de assegurar lástica) que mantém os quadros fundamentais da missão, da evan­
a legitimidade do seu dominium: gelização, da causa de uma justa guerra, e ao mesmo tempo o alargamento
incontestável do horizonte através da noção de totus orbis, a radicalização
Sem dúvida, em virtude do direito das gentes, o que não pertence do tema da societas e do commercium, o retomar e a transposição para o
a ninguém torna-se propriedade daquele que disso se apodera [...] Mas plano internacional da philia aristotélica-ciceriana.
esses bens [os descobertos pelos Espanhóis] não eram desprovidos de Como vimos, aos olhos de Vitoria, o primeiro título legítimo da con­
proprietários. Esse título não se aplica portanto a eles [os índios] [...] quista espanhola é o direito natural de sociedade e de comunicação (De
Em si mesmo esse título [o direito de descoberta] não justifica de ma­ Indis, 1,3,1), fundado na amizade que uma natureza comum estabelece
neira nenhuma a possessão desses territórios, não mais do que se os entre todos os homens. Esse é um direito fundamental, natural e, no
bárbaros nos tivessem descoberto47. limite, susceptível de ser imposto.
Todo o ser vivo ama o seu próximo, dizem as Escrituras. Parece
É sem dúvida em relação a anotações deste género que é preciso portanto que a amizade entre os homens seja de direito natural e que é
compreender o comentário de Cari Schmitt, denunciando em Vitoria contra-natura evitar a sociedade dos homens inocentes51.
«uma subtileza demasiado abstractamente neutra, desligada e conse­
quentemente igualmente a-histórica»48. A a-historicidade merece em O primeiro título legítimo que depende do direito das gentes e
todo o caso ser sublinhada aqui na medida em que marca bem a imensa por isso do direito natural é portanto o da circulação e livre comuni­
distancia que separa as considerações jurídicas de Vitoria de qualquer cação:
tomada de posição regulada por uma ideia de progresso ou de supe­
Os Espanhóis têm o direito de ir até e permanecer nesses
rioridade de uma civilização relativamente a outra, e é talvez um dos
territórios [...] Podemos mostrá-lo, antes de tudo, a partir do di­
traços que contribuem para distinguir mais claramente a posição de
reito das gentes que é ou o direito natural ou derivado do direito
Vitoria da de um autor (mais moderno) como Juan Ginés de Sepúl-
Y£da. Não encontramos em Vitoria, e afortiori em Las Casas, nenhuma
perspectiva que diga respeito àquilo que poderíamos chamar, 49 Este ponto é naturalmente ainda mais acentuado num Las Casas do qual pudemos
anacronicamente, uma qualquer filosofia da história. A razão principal evocar o profetismo. Cf. F. Cantü, «La dialectique de Las Casas et l'histoire», in Le
Supplément, n.° 160, Cerf. Março de 1987, pp. 5-26. Este número inclui uma preciosa
documentação consagrada a «Las Casas & Vitoria. O direito das gentes na era mo­
45 1,3 ,1 . Aqui mais uma vez, a comparação com Las Casas permite medir o fosso que derna».
separa as duas doutrinas. 50 Cf. L. Perena Vicente, Teoria de la guerra en Francisco Suárez, Madrid, CSIC, 1954.
46 I, 2 ,1 0 ; trad. fr., p. 59. O tomo n inclui a edição crítica do De bello.
47 E permitido permanecer sonhador perante a nota do tradutor: «É a afirmação da 51 De Indis, 1 ,3 ,1 (trad. 83): «Omne animal diligit sibi simile (Eccl. 13 [19]). Ergo videtur
igualdade dos povos e das raças.» quad amidtia ad omnes homines sit de jure naturali, et quod contra naturam est vitare
48 Op. cit., p. 76. consortium hominum innoxiorum.»
126 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

natural. «Chamamos direito das gentes (jus gentium) ao que a ra­


zão natural estabeleceu entre todos os povos (gentes)52.» Com
efeito, em todas as nações consideramos desumano receber mal
os estrangeiros e os viajantes sem nenhuma razão especial. Mas
pelo contrário é humano e justo bem tratar os estrangeiros, desde
que os viajantes que vêm de países estrangeiros não se compor­
tem mal53.

Na citação que faz de Gaio, Vitoria substitui de forma inteiramente


significativa pelo termo gentes o termo homines. Com efeito, o
jurisconsulto definia realmente o direito das gentes como um direito
comum, impondo-se aos homens tomados como tais, e por isso distinto
tanto do direito natural no sentido estrito — aquele que diz respeito ao
conjunto dos seres vivos — como do direito civü próprio de cada cidade.
Vitoria transforma este texto arquiclássico numa nova tautologia que é
tudo menos insignificante: o direito que os Romanos colocavam entre
todos os homens vê-se assim convertido num direito entre os grupos
humanos, as nações, as gentes. O direito das gentes toma-se assim no
seu sentido próprio (moderno) um direito internacional ou interestatal.
Porque o que está em questão neste apelo ao direito de sociedade e de
comunicação, estabelecido pela razão natural que é aqui razão humana, é
uma transposição e como que um alargamento da amicitia ciceroniana
ao conjunto das nações consideradas como entidades independentes.
Certamente que não teríamos razão se compreendêssemos este direito
de comunicação, que é também o de commercium, no sentido antigo do
termo, como destinado a fundar em primeiro lugar a liberdade do
comércio ou das trocas, num sentido mercantilista ou «liberal»54. Em
contrapartida, é lícito opor a este direito de sociedade e de comunica­
ção, afirmado sem reserva, a acentuação muito diferente de Las Casas

52 Institutiones, I ,2 ,1 Corpus Juris Civilis, tomo i, ed. Krueger, p. 1: «Quod vero mturalis
ratio inter omnes homines constituit, id apud omnes peraeque custoditur vocaturque jus
gentium, quasi quo jure omnes gentes utuntur.»
53 De Indis, 1,3 ,1 , trad, fr., p. 82 (CSIC, pp. 77-78): «Primus titulus potest vocari naturalis
societatis et communicationis. — Et circa hoc sit prima conclusio: Hispani habent jus
peregrinandi in illas provindas [...] Probatur primo ex jure gentium, quod vel estjus naturale
vel derivatur ex jure naturali (Inst. De jure naturali et gentium): "Quod naturalis ratio
inter omnes gentes constituit, vocatur jus gentium": Apud omnes enim nationes habetur
inhumanum sine aliqua speciali causa hospites et peregrinos male accipere; e contrario autem
humanum [et officiosum] se bene habere erga hospites; quod non esset si peregrini male
facerent accedentes in alienas nationes.»
54 Neste sentido, podemos considerar excessivas as conclusões de Henri Méchoulan,
Le Sang de Vautre et l'honneur de Dieu, Paris, Fayard, 1979: «O direito das gentes é um
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 127

que, numa das suas últimas obras, o De thesauris55, sublinhava que di­
reito natural e direito das gentes autorizam também a defender e a
proibir a penetração no território, o comércio e a liberdade de trocas:

O desembarque ou a penetração em qualquer terra que seja deve


ser ordenado sem causar o menor prejuízo e não se pode fazer sem
autorização dos habitantes. Se agíssemos de outra forma, se forçás­
semos o desembarque ou a penetração sem uma autorização expressa
ou tácita, e sobretudo se os indígenas manifestassem, com a ajuda
de palavras, de sinais ou de acções, a sua recusa ao desembarque,
este determinaria uma lesão do direito em nome da qual, com toda
a justiça, os indígenas se sublevariam, porque a ordem natural da
justiça se veria violada pelos enviados dos nossos reis. Seria então
perpetrada violência contra os indígenas e, em nome do direito na­
tural, ser-lhes-ia lícito recorrerem às armas e, não somente impedir
o desembarque e a penetração dos ditos enviados, mas ainda repeli­
dos como inimigos culpados de um ataque injusto e vingarem-se
neles.
Assim, portanto, não importa que povo, cidade, comuna, reino
autónomo, por decisão do seu chefe, pode agir dessa forma se esti­
mar que disso depende a paz e a tranquilidade, se pensar que desta
forma evita a corrupção e defende a segurança e a existência do Estado,
do Reino ou da República. Para esse efeito, pode proibir a entrada no
seu território, na sua província ou na sua cidade a quem quer
que queira comerciar, trocar, comprar, vender ou estabelecer-
-se. Ao agir assim, será muito sábio e conduzido pela razão, e pode­
ria, fundamentando-se na autoridade do direito das gentes e do di­
reito natural, castigar todos aqueles que atentassem contra esses
direitos56.

Mas é sobretudo a propósito do último título legítimo, exposto por


Vitoria num modo hipotético, aliás, que Las Casas desenvolverá a sua
crítica. Trata-se com efeito do direito de tutela. Título que poderíamos

direito confessional e um instrumento de legalidade cristã» (p. 88), «o direito de


Vitoria é o direito dom ais forte» (p. 89). Cf. também, do mesmo autor, «Vitoria, père
' du droit international?» in Actualité de la pensée juridique de Francisco de Vitoria,
Bruxelas, Bruylant, 1988, pp. 11-26.
55 Publicado com tradução espanhola e anotações por A. Losada, Los tesoros dei Perú,
Madrid, 1958, p. 129.
56 Ed. citada, p. 125.
128 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

— como sugere Vitoria — «não sustentar com certeza, mas colocar em


discussão», porque «pode parecer legítimo a alguns»:
Ei-lo: se bem que os bárbaros não sejam completamente tolos [...]
todavia não estão longe disso e assim não parecem capazes de consti­
tuir e governar um Estado legítimo, mesmo do simples ponto de vista
humano e civil57[...]

Reconhecemos aqui sem dificuldade a tese de Juan Ginés de


Sepúlveda que Las Casas combaterá quando da célebre controvérsia
de Valladolid58. O que permanece bastante singular na economia do

57 De Indis, 1 ,3 ,1 7 . Trad. citada, p. 101.


58 Face à tese de Sepúlveda, segundo a qual os índios são bárbaros que devem em
primeiro lugar ser submetidos, Las Casas propõe uma célebre tipologia em que
distingue três categorias de bárbaros. Cf. UEvangile et la force, op. cit, pp. 184-185.
Notaremos contudo que a tese de Sepúlveda, tal como a podemos reconstituir, inde-
pendentemente dos testemunhos de Las Casas, é muito menos simples e não defende
em todo o caso a ideia de uma escravidão «por natureza». O ponto crucial que pode
ser elucidado graças aos trabalhos de A. Losada é o seguinte: «Hay además otras
cansas que justifican las guerras: una de elles, la más aplicable a estos bárbaros llamados
vulgarmente indios, es la siguiente: que aquellos bárbaros cuy condición natural es tal que
deben obedecer a otros, si rehusan il império de éstos y no queda otro recurro, sean domina­
dos pér las armas, pues tal guerra es justa según la opinión de los más eminentes filósofos,
entre ellos Aristóteles», citado por A. Losada, «Evolución dei Moderno Pensamiento
Filosófico-Histórico sobre Juan Ginés de Sepúlveda», mActas de Congreso Internacional
sobre en v. Centenário dei nacimiento dei Dr. Juan Ginés de Sepúlveda, op. cit, p. 11.
A esta afirmação do Democrates segundo, do qual Losada apresentou igualmente
uma edição crítica (Madrid, CSIC, 1951), é preciso juntar hoje esse testemunho ab­
solutamente fundamental tirado da carta que ele dirige a Francisco de Argote:
«Eu não defendo que os bárbaros devam ser reduzidos à escravatura, mas apenas
que eles devem ser submetidos ao nosso domínio. Não defendo que se deva privá-
-los dos seus bens, mas unicamente submetê-los, sem cometer contra eles a menor
injustiça. Não defendo que devamos abusar do nosso domínio [...] Em primeiro
lugar devemos arrancá-los aos seus costumes pagãos e em seguida, com afabili­
dade, impeli-los a adoptarem o direito natural, e graças a essa magnífica propedêutica
à doutrina de Cristo atraí-los com a docilidade apostólica e palavras de amor para a
religião cristã» (carta n.° 53, ed. A. Losada, Epistolario de Juan Ginés de Sepúlveda,
Instituto de Cultura Hispânica, Madrid, 1966). — Sublinhemos simplesmente dois
pontos: Sepúlveda fala de «condição» e não de «natureza, e evoca a necessidade de
conduzir os índios até ao... direito natural. De preferência a ceder à indignação
fácil, aqui muito frequente, contra aquele que defendia teses pagãs (aristotélicas),
face a um Las Casas precursor dos direitos do homem, é sem dúvida mais judicioso
e perturbador notar que Sepúlveda representa aqui o autor moderno, humanista,
detentor da ideia de progresso e da difusão de um direito natural ao qual conviria
trazer os povos «bárbaros». Se tivermos ainda que falar de «precursor», é muito
mais Sepúlveda quem novamente anteciparia em pontos fundamentais aquilo que
se tom aria no século xvm a ideologia colonial «progressista».
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 129

tratado de Vitoria, é que precisamente, antes mesmo da discussão dos


títulos ilegítimos, e como que para servir de base ao exame, este tinha
começado por estabelecer, como lembrámos, que os «bárbaros» tinham
um poder legítimo, público e privado, antes da chegada dos Espanhóis,
e que não poderíamos negar-lhes esse poder assimilando os índios a
criaturas irracionais (creaturae irrationales), próximas dos animais sel­
vagens, das crianças ou dos tolos. A conclusão desse primeiro exame
era particularmente firme: «Se [os índios] parecem tão estúpidos e ob­
tusos, penso que isso resulta, em grande parte, de uma educação má e
bárbara; porque vemos igualmente entre nós muitos camponeses que
em quase nada diferem dos animais. — De tudo o que precede, resulta
portanto que, sem dúvida nenhuma, os bárbaros tinham, tal como os
cristãos, um poder verdadeiro tanto público como privado59.» Era
também para Vitoria a ocasião de regressar à teoria aristotélica da
escravatura, tantas vezes discutida no contexto da Conquista60:*
Ao argumento «os Bárbaros são escravos por natureza, sob pretexto
de que não são suficientemente inteligentes para se governarem a si
próprios» eu respondo que Aristóteles não quis com certeza dizer que
os homens pouco inteligentes estejam por natureza submetidos ao
direito de um outro e que não tenham poder nem sobre si próprios
nem sobre as coisas exteriores. Ele fala da escravidão que existe na so­
ciedade civil: essa escravidão é legítima e não toma ninguém escravo
por natureza. Se existem homens que são pouco inteligentes por natu­
reza, Aristóteles não quer dizer que a alguém seja permitido apoderar-
se dos seus bens e do seu património, reduzi-los à escravatura e pô-los
à venda. Mas quer ensinar que eles têm natural e necessariamente ne­
cessidade de serem dirigidos e governados por outros; é bom para eles
estarem submetidos a outros, da mesma forma que as crianças têm ne­
cessidade de estar submetidas aos seus pais antes de serem adultos, e a
mulher ao seu marido. Que esse seja realmente o pensamento de
Aristóteles, é evidente, pois ele diz igualmente que alguns homens são
mestres por natureza, a saber, aqueles que brilham pela sua inteligên­
cia. Ora ele não quer certamente dizer que esses homens podem tomar
em mãos o governo dos outros, sob pretexto de serem mais sábios. Mas

59 De Indis, 1 ,1,1 5 , trad, d t, p. 31.


60 Cf. M. Bataillon, «Las Casas face à la pensée d'Aristote sur l'esclave», in Platon et
Aristote à la Renaissance, XVI Colóquio International de Tours, Vrin, 1976, pp. 403-
-420. Cf também J. A. Femândez Santa Maria, The State, War and Peace. Spanish Political
Thought in the Renaissance 1517-1559, Cambridge, 1977; e do mesmo autor «Juan
Ginés de Sepúlveda on the nature of American Indians», in The Americas, XXXI, 4
(1975), pp. 434-451.
130 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
VITORIA, SUAREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 131

quer dizer que eles receberam da natureza qualidades que lhes permi­
Mas o que vale esta analogia e em particular como designar aquele
tem comandar e governar. Assim, admitindo que esses bárbaros sejam
que teria a seu cargo exercer tal poder internacional cujo direito de
tão estúpidos e obtusos como se diz, não devemos por isso recusar­
intervenção pela causa superior da humanidade («direito de ingerên­
-lhes um poder verdadeiro e não se deve incluí-los no número dos es­
cravos legítimos [...]61 cia») é seguramente uma peça essencial63? Com efeito, o princípio de
tal intervenção nunca é discutido a partir do momento em que se trata
de sacrifícios humanos, de prostituição sagrada, de antropofagia, de
Mas deixemos de lado a controvérsia de Valladolid e a dialéctica sodomia... Uma vez reconhecido esse direito, a verdadeira e espinhosa
subtil da Relectio, e regressemos, para concluir neste ponto, à tese fun­ questão é evidentemente a das suas limitações. Da mesma forma que a
damental do teólogo jurista: se o totus orbis - transposição laicizada comunidade política nunca se fundamenta num contrato ou num con­
da Respública christiana ou do Imperium — constitui de uma certa forma curso de vontade, mas assenta no direito natural e encontra o seu ponto
(ahquo modo) um único corpo político (una respública), Vitoria não de ancoragem na necessidade que o homem tem de se humanizar atra­
considera por isso que ele possa materializar-se numa instância vés dos seus laços sociais que asseguram desde logo a sua conservação
supranacional ou superestatal. E certo, na sua Lição Sobre o Poder Polí­ e a sua defesa, a sociedade internacional, mesmo que ela se actua­
tico, vai até à estipulação de uma «autoridade do mundo inteiro» como lize factualmente através dos pactos, nunca é em si mesma de
fundamento do direito das gentes. Contudo, para ele, permanece em essência contratual, mas sempre de direito natural64; ela é, também,
aberto a questão da possível incarnação desta autoridade do totus orbis. uma exigência primordial da natureza racional e social do homem, e
Qual poderia ser ao certo o poder político da comunidade mundial? pode, como tal definir uma ordem jurídica própria: o jus gentium.
O direito das gentes assim fundado no direito natural ganha valor de
Da mesma forma que a maioria do Estado pode estabelecer um rei
lei, na medida em que o mundo inteiro (totus orbis), que constitui analo-
sobre o Estado inteiro, apesar da oposição dos outros, a maioria dos
gicamente uma nova comunidade política (una respública), vê assim
cristãos pode legitimamente, mesmo se todos os outros se lhe opuse­
ser-lhe outorgado o poder de editar leis justas e boas para todos65.
rem, escolher um único monarca, ao qual todos os príncipes e todas as
províncias seriam obrigadas a obedecer62.
63 Cf. De jure belli, 19 [52), trad. dtada, p. 125: «Ora o que é necessário ao governo e à
protecção do mundo é de direito natural: é precisamente esta razão que mostra que
o Estado tem, em virtude do direito natural, o poder de punir e de castigar os seus
61 De Indis, 1 1 ,1 6 , trad, fr., p. 32: «[...] ipsi servi a natura, quia parutn valent ratione ad próprios cidadãos quando estes o prejudicam. Se o Estado possui esse poder relati­
aS T T \ f T ° S lf ° l! tica 1 2' 1254 a 13' 15J- Ad hoc respondeo quad certe vamente aos seus súbditos, o mundo possuiu-o sem nenhuma dúvida relativamente
Aristoteles mm intellexit quod tales, qui parum valent "ingenio", sint natura alieni iuris et a todos os que o prejudicam e não vivem humanamente; e só o exerce por intermé­
tum habeant dominium et sui et aliarum rerum; haec enim est servitus civilis et legitima dio dos príncipes.»
qumnulla est servus a natura [Política 1,6,1255 a], Nec m it Philosophus quod, si qui sunt 64 Cf. sobre este ponto a excelente síntese de Antonio Truyol y Serra, Le Supplément.
a natura parum mente vtdidi quod liceat occupare patrimonia illorum et ilios redigere in Revue d'éthique et théologie morale, n.° 160, Março de 1987. «Las Casas & Vitoria.
serzntudinem et venales facere; sed m it docere quod a natura est in illos necessitas, qua
O direito das gentes na era moderna», p. 84. Cf. também, do mesmo autor, «La
indigent subiciparentihus ante adultam aetatem, et uxor viro. Et quod haec sit intentio
conception de paix chez Vitoria», in Recueils de la Société Jean Bodin, tomo XV, Bruxe­
PtoiosopAi pafef, quia eodem modo dicit quod a natura sunt aliqui domini, scilicet qui vigent
las, La Paix, 1961, pp. 241-273.
intellectu Certum est autem quad non intellect quod tales possint sibi ampere imperium in
65 De potestate civili, n.° 21 (trad. pp. 73-74): «O direito das gentes não deriva o seu valor
ahos tilo titulo, quod sint sapientiores, sed guia a natura habentfacultatem, ad imperandum
apenas de um pacto ou de um acordo entre os homens, mas tem também valor de
y ,In E ^ dUm' ^ ! u C’ dat° qVf d tSti barbari sint ita inePti et hebetes, ut dicitur, non ideo lei. Porque o mundo inteiro, que forma, de uma certa maneira, uma única comuni­
en M T * htoere verum dominium, nec sunt in numero servorum "civilium ” habendi.»
d„ n. 14. Anota do tradutor sublinha aqui, involuntariamente, a dificuldade desta dade política, tem o poder de fazer leis justas e boas para todos, como aquelas que
assim ilaçao dos Estados cristãos ao totus orbis. M. Barbier faz notar: «É uma se encontram no direito das gentes. Resulta claramente daí que todos os que violam
consequência da comunidade política mundial. Se esta existe efectivamente, possui o direito das gentes, seja em tempos de paz, seja em tempos de guerra, cometem um
um poder político da mesma forma que o Estado, isto é, em virtude do Direito natu- pecado mortal, mas com a condição de que o façam em relação a coisas bastante
importantes, como a imunidade dos embaixadores. E não é permitido nenhum
e ra a rre ^ d < ^ *f^ é rc& .Ío ^ e i8 ualmente transmitir esse poder e designar o prmdpe
Estado recusar submeter-se ao direito das gentes, porque foi em virtude da autori­
dade de todo o mundo que ele foi estabelecido» (Jus Gentium non solum habet vim ex
132 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Assim caracterizado, o direito das gentes impõe-se a todas as comu­


nidades, porque foi estabelecido em virtude da autoridade do mundo
inteiro (est enim latum totius orbis auctoritate). Vitoria é assim levado
a distinguir, antes de Grotius, do direito das gentes geral e primário
(jus inter gentes), directamente derivado do direito natural, um direito
das gentes positivo ou convencional que tira o seu valor de um
pacto ou de um acordo entre os homens (ex pacto et conãicto inter
homines) (n.° 21). Vitoria pode então explicitar duas fontes do
direito das gentes: o direito natural no sentido estrito e a opinião
unânime do género humano, mas mantém a preferência do direito
natural:

Assim, muitas coisas parecem surgir do direito das gentes que,


devido à sua suficiente derivação do direito natural, possui uma força
evidente para estabelecer um direito e uma obrigação. Admitindo que
ele não deriva sempre do direito natural, o consentimento da maioria
do mundo inteiro parece ser suficiente, sobretudo quando se trata do
bem comum a todos. Com efeito, se nos primeiros tempos da criação
do mundo ou da sua restauração depois do dilúvio, a maioria dos ho­
mens estabeleceu que por todo o lado os embaixadores seriam
invioláveis, que o mar pertenceria a todos, que os prisioneiros de guerra
seriam escravos e que conviria não expulsar os estrangeiros, isso teria
certamente força de lei, mesmo se os outros homens se lhe opuses­
sem66.

Suárez, apesar de se situar nisto na linha de Vitoria, acentuará


ainda mais, como veremos, o aspecto consuetudinário do direito das
gentes.

facto et condicto inter homines, sed etiam habet vim legis. Haec enim totus orbis, qui aliquando
est una respublica, potestatemferendi leges aequas et convenientes omnibus, quotes sunt in
jure gentium. Ex quo patef quod mortaliter peccant violantes contra jura gentium, sive in
pace, sive in hello, in rebus tarnen gravioribus, ut est de incolumitate legatorum; non licet
uni regno nolle tenerijure gentium; est enim latum totius orbis authoritate).
66 De Indis, l, 3,3 (CSIC, pp. 81-82), trad, fr., p. 86: «[...] Nota quod, si jus gentium derivatur
sufficienter ex jure naturali, manifestam mm habet ad dandum jus et obligandum. Et dato
quod non semper derivetur ex juri naturali, sequi videtur consensus majoris partis totius
orbis, maxime pro bono communi omnium. Si enim post praeterita tempora creati orbis out
reparati post diluvium, major pars hominum constituent ut legati ubique essent inviolabiles,
ut mare esset commune, ut hello capti essent servi, et hoc ita expediret, ut hospites non
exigerentur, certe hoc haberet vim, etiam aliis repugnantibus.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 133

3 — Suárez
Se Suárez, como Vitoria, afirma a autonomia e a auto-suficiência da
comunidade política como comunidade perfeita, ele radicaliza contudo
a tese do teólogo de Salamanca em função de duas considerações no­
vas: a sua determinação «voluntarista» da lei e a sua decisão quase
metodológica de considerar primeiramente o estatuto da lei e do Estado
in pura natura, isto é, abstraindo dos teologismos relativos à queda e à
história da salvação, numa palavra, abstraindo de todas as considera­
ções económicas.
No seu De Legibus, Suárez começa com efeito por criticar a definição
tomista geral da lei67, antes da sua divisão em lei eterna, lei divina, lei
humana, e secundariamente lei antiga, lei nova, porque tal definição é a
seus olhos demasiado ampla68. Para Tomás, a lei é em primeiro lugar
a ordenação racional ao bem comum, promulgada pela autoridade que
tem a seu cargo a comunidade69. Mas o ad primum da questão 93, artigo
4, precisa que no caso da lex naturae, a promulgação se deve entender
como o facto de Deus ter inscrito esta lei no espírito humano de forma
a que a lei seja naturalmente conhecida por ele (ex hoc ipso quod Deus
earn mentibus hominum inseruit naturaliter cognoscenáam). O que equivale
a dizer que o que faz com que uma lei seja lei não depende primeira­
mente ou apenas da sua promulgação por uma autoridade reconhecida,
mas que o elemento essencial para toda a lei é a ordenação da razão,
a referência ao Bem comum70.

67 Suma teológica, Ia, Ilae, qu. 90, a. 1, e qu. 93, a. 3: «A lei é uma determinada regra e
uma medida dos actos, segundo a qual somos levados a agir ou restringidos de
agir» (Lex est quaedam regula et mensura secundum quam inducitur ad agendum vel ab
agendo retrahitur).
68 De Legibus, I, c. 1, n. 1: «Esta caracterização é, parece, demasiado ampla e demasiado
geral» (Quae descriptio nimis lata et generalis videtur). Dispomos hoje para este texto
da notável edição crítica bilingue realizada por Luciana Perena, no quadro da série
«Corpus Hispanorum de Pace», Madrid, 1971 e seguintes.
69 Ia Ilae, qu. 90, a. 4 :« [...] a definição da lei: ela não é mais do que uma ordenação da
razão tendo em vista o bem comum, estabelecida por aquele que tem a seu cargo a
comunidade, e promulgada» — (definitio legis quaenihil estaliudquamquaedamrationis
ordinatio ad bonumcommune, ab eo qui curamcommunitatis habet, promulgata).
70 Suma teológica, Ia, Ilae, qu. 93, a. 4, ad 2um: «A lei humana não é propriamente uma
lei a não ser na medida em que está conforme à recta razão; nesse caso, é manifesto
que ela deriva da lei eterna. Mas na medida em que se afasta da razão, ela é o que se
pode chamar uma lei iníqua, e dessa forma não tem tanta razão de lei como de
violência» ([...] lex humana intantum habet rationem legis, inquantum est secundum
rationemrectam; etsecundumhocmanifestumest quodalegeaetemaderivatur. Inquantum
vero a ratione recedit, sic dicitur lex iniqua; et sic non habet rationemlegis...)-
134 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

A legalidade da lei não resulta portanto do facto de ela emanar de


uma autoridade reconhecida (Deus, o Soberano, o Imperador...) nem
do facto de obedecer a um procedimento codificado, pois estando
assegurados estes dois elementos, resta ainda determinar o essencial, a
saber, o elemento intrínseco que constitui a natureza da lei: a ordenação
racional ao bem comum. Assim, a lei pode ser desde logo e fundamental­
mente definida como alicjuid rationis, a saber, regula et mensura, segundo
o preceito geral, retomado por Aristóteles: rationis est orâinare adfinem71.
Assim, lei natural e lei positiva permanecem estreitamente aparenta­
das, são, as duas, ordem de razão. Mas afirmar que a lei é em primeiro
lugar e essencialmente ordem de razão, equivale também a subordinar
nela o elemento voluntário72. Sem dúvida que a vontade se deve sub­
meter à ordem ou recusá-la, mas no fim de contas é sempre à razão que
a lei deve aquilo que é e ter força e valor de lei.
A discussão crítica em que se envolve com F. Vázquez (1531-1604)73
impele Suárez para formular mais claramente a sua própria concepção
da lei e do fundamento da obrigação. A questão discutida é a de saber
se a obrigação legal, tratando-se da lex aeterna, resulta imediatamente
da essência divina ou se requer uma disposição específica da vontade.
Para Suárez, na medida em que a lex aeterna é a regra das operações
divinas ad extra, ela implica necessariamente o concurso da liberdade74.
Aquilo a que chamamos por vezes o voluntarismo suárista75 encontra
aí o seu verdadeiro ponto de ancoragem. Em relação ao ensino tomista,
a própria lei muda de natureza e de estatuto, a partir do momento em

71 Sobre a doutrina tomista da lei, cf. em particular O. J. Brown, Natural Rectitude and
Divine Law in Aquinas, Toronto, Pontifical Institute of M ediaeval Studies, 1981.
Cf. também M. Bastit, Naissance de la loi moderne, Paris, PUF, 1990, primeira parte:
«São Tomás e a lei analógica».
72 Cf. Ia Ilae, qu. 90, a. 1; la Ilae, qu. 91, a. 2, ad 3m: «Mas porque a criatura racional
participa nela num modo intelectual e racional, resulta daí que a participação da lei
eterna na criatura racional se chama propriamente uma lei: pois a lei é assunto de
razão» (Quiaratíonaliscreaturaparticipairationemaetermmintellectualiteretrationdbiliter,
ideoparticipado legis aetemae in creatura rationali proprie lex vocatur; namlex est aliquid
rationis).
73 De Legibus, II, c. 5, n. 2 (CHP, tomo m, p. 60). — Sobre esta discussão, cf. R. Specht,
«Zur Kontroverse von Suárez un Vázquez über den Grund der Verbindlichkeit des
Naturrechts», in Archivß r Rechts- und Sozial-philosophie, 1959, pp. 251 e segs.
74 Ibid., II, 3 ,3 -4 (CHP, tomo III, pp. 33-35): «É predso dizer na verdade que a lei etema
não significa um acto necessário em Deus, mas um acto livre [...] a lei etem a indui
necessariamente ou postula um acto da vontade divina [...)»
75 Cf. I. André-Vincent, «La notion moderne de droit naturel et te volontarisme (de
Vitoria à Suárez et à Rousseau)» in Archives de philosophie ou droit, 1963, pp. 237-259,
em particular p. 243.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 135

que a autoridade do direito natural já não procede directamente de


uma regra interior à razão que se impõe à vontade, mas remete em
última instância para a superioridade absoluta da vontade daquele que
é o Autor da lei natural76. A principal consequência desta crítica da
definição tomista da lei devido à sua extensão indevidamente «meta­
fórica», é que a lei não recebe força obrigatória a não ser que emane de
um organismo soberano (De Legibus, I, 4, 6-9). A força de coacção (vis
coactiva) da lei não resulta imediatamente do seu valor normativo, tor-
nã-se constitutiva da sua própria natureza na medida em que implica
uma decisão imperativa da vontade77. É portanto para deixar à lei a sua
forma e a sua força de lei que Suárez tende a introduzir uma separação
marcada entre a lei dita natural, a que está inscrita no coração do ho­
mem, e que a razão reconhece78, e a lei humana que instaura positiva­
mente, ao «determiná-la», a vontade do Soberano79. É certo que Suárez
defende aparentemente, contra Vázquez, a co-pertença da lei etema e
da lei natural, e pretende fazer da lei positiva, na linha de Tomás de
Aquino, uma determinação desta última80; contudo, a legalidade da lei
remete sempre para uma decisão e para uma injunção da vontade que

76 Cf. a discussão sobre o estatuto «legal» da lei natural, in De Legibus, II, VI, 1-13 (CHP,
tomo in, pp. 76-96).
77 De Legibus, II, VI, 1 (CHP, tomo m, p. 76): «Não existe lei no seu sentido próprio e
prescritivo sem a vontade daquele que prescreve» (Lex... própriaetpraeceptiva non est
sine vóluntate alicujuspraecipientis).
78 DeLegibus, I, III, 9, CHP, I, pp. 44-45:«[...] A lei natural no sentido próprio é portanto
_ aquela que é imanente ao espírito humano com vista a discernir o que é honesto do
que é vergonhoso [...] É por isso que esta lei se diz natural, não apenas na medida
em que o que é natural é distinto do que é sobrenatural, mas ainda na medida em
que se distingue do que é livre. Não é porque a sua execução é natural ou porque ela
proceda da necessidade, como é a execução da inclinação natural nos animais ou
nas coisas inanimadas, mas porque esta lei é como uma propriedade da natureza e
porque o próprio Deus a introduziu na natureza» (Lex ergo mturalis própria... est illa
quaehumanae mentiinsiâet aãdiscemendumhonestamaturpi... Itaergohaec lex mturalis
dicitur nonsolumprout naturale asupematurali distinguitur, sedetiamprout distinguitur
alibero; non quia ejus executio mturalis sit seu ex necessitatefiat, sicut executio mturalis
inclinationis est in brutis vel rebus inanimis, sed quia lex illaest veluti proprietas quaedam
naturae et quia Deus ipse illam naturae inseruit). — Sobre esta separatio, cf. I. André-
-Vincent, art. cit., p. 243: «Em Suárez a razão perdeu o seu carácter normativo: ela já
não dita a ordem ao Bem, não pode senão conhecê-lo especulativamente. Então a
vontade assume o lugar da razão para dar à fé a sua forma normativa: o imperium
toma-se o seu acto.»
79 De Legibus, II, 11,12 (CHP, tomo m, pp. 144-145). Cf. também I, V, 23 :« [... ] A obriga­
ção induzida pela lei emana da vontade do legislador [...]» (CHP, I, p. 98).
80 De Legibus, I, 3 ,1 3 : «Com efeito, a lei diz-se positiva porque é como que acrescen­
tada à lei natural, sem que emane necessariamente dela.»
136 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

escolhe indiferentemente. Mesmo da lei eterna, afirma Suárez, é pre­


ciso dizer que ela postula um acto positivo da vontade divina «porque
até a liberdade de Deus está formalmente contida na vontade divina»81.
Assim, para Suárez, o juízo da razão nunca é suficiente para determi­
nar a vontade que permanece sempre a causa eficiente do acto e não
recebe nada propriamente dito do seu objecto. A primeira consequência
de uma tal doutrina, no plano jurídico-político, é evidentemente a tese
da preeminência da lex sobre o jus, ao passo que este último, para To­
más, como já lembrámos, remetia sempre para um justum que era ele
próprio apreendido na sua essência (ex natura rei). Nada de espantoso
então no facto de que na sua determinação da ideia de comunidade
internacional, como na elaboração da problemática do direito das gen­
tes, o pensamento de Suárez se afastar do de Vitoria para quem a lei
permanecia essencialmente orâinatio mtionis. Certamente que Suárez re­
conhece, na linha de Vitoria, a especificidade do bonum totius orbis, mas
quando se trata de fixar o fundamento da obrigação tratando-se do jus
gentium, é o consentimento positivo dos Estados, dos quais cada um
está em primeiro lugar preocupado com a afirmação e preservação da
sua soberania, que virá muito naturalmente para o primeiro plano.
O direito natural situado fora da lei não se pode introduzir na ordem
jurídica a não ser secunáariamente e a favor de uma reflexão moral. Uma
das consequências últimas desta inflexão voluntarista na definição da
lei e da sua obrigação será o positivismo jurídico e o aparecimento de
um absolutismo de Estado, face ao qual será então preciso organizar
controlos externos, esforçando-se por atribuir limites à sua soberania,
que serão pedidos à doutrina da potesta indirecta pontifícia. Suárez, como
Belarmino, ao insistir, num contexto polémico sobredeterminado
(a polémica com Jaime I de Inglaterra), sobre o valor do pacto constitu­
cional entre o povo e o Príncipe, visa tanto distinguir a dedução ou a
derivação do poder político e a da monarquia pontifícia82, como su­
blinhar as limitações intrínsecas ao pacto constitucional no quadro
político:
É preciso compreender que a Lex regia foi constituída por meio de
um pacto pelo qual o povo transferiu o seu poder para o príncipe com
o encargo e obrigação para este de cuidar da República e administrar a

81 De Legibus, II; 3 ,4 . Cf. sobre este ponto Rainer Specht, art. citado.
82 F. Suárez, Principatus politicus, III, 13 (CHP, p. 43): «[...] a monarquia pontifícia foi
instituída imediatamente pelo próprio Deus, na Igreja universal [...] E por essa ra­
zão que o poder espiritual nunca foi "presente como no seu sujeito" na comunidade
da Igreja inteira [...]».
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 137

justiça, e que o príncipe aceitou tanto esse poder como a sua condi-
|;. çãO83.

5 E mais à frente na Defensio fidei, Suárez sugerirá mesmo a possibili­


dade de fundar directamente no jus gentium, mais do que no direito
["natural, a obediência civil, uma vez que esta não é de direito natural a
\não ser sob a pressuposição do pacto:
$
l A obediência civil devida aos príncipes, se bem que seja fun-
| damentada no direito natural no qual tem a sua raiz, pode dizer-
| -se de forma mais verdadeira e mais adequada que é do domínio
I do direito das gentes, porque não depende imediatamente do di-
t reito natural, mas que, pressupondo-se a conjunção dos homens
i; num só corpo político e numa comunidade perfeita, ela pode se­
guramente ser dita como dependendo do direito natural (jus
naturae), na hipótese de um pacto e de uma convenção entre os
homens8^...]

Vejamos agora o segundo ponto que queremos sublinhar: Suárez,


no seguimento de Vitoria, coloca a autonomia e a auto-suficiência do
poder político próprio de uma comunidade perfeita (o corpo místico
político), mas é doravante no horizonte de uma reflexão stando in pura
natura que é encarado o fim do poder político e da lei civil85.
A problemática do estatuto de pura natureza ressurge com efeito
no coração da análise da lei, e da determinação do fim do legislador e
do bem comum da comunidade política entendida como corpo místico:
[...] o poder legislativo civil, mesmo considerado segundo a
natureza pura, não tem como fim intrínseco e visado por si a felici­
dade supranatural da vida futura [...]; mas o seu fim é a felicidade
natural da comunidade humana perfeita da qual o soberano cuida,
de tal modo que nela os cidadãos vivem em paz e segundo a

83 Principatus politicus, II, 12 (CHP, p. 26). C f também II, 20: «[...] Já disse mais acima
que o poder real foi fundado num contrato ou num quase-contrato [...] Assim, tal
poder é sempre obtido imediatamente por um título humano ou por vontade hu­
mana.»
84 Defensio fidei, VI, 6 ,1 1 .
85 Sobre as expectativas e as implicações das discussões sobre o estatuto de pura natu­
reza, remetemos para as obras dássicas do padre Henri de Lubac, Surnaturel, Paris,
Aubier 1946, e Augustinisme et théologie moderne, Paris, Aubier 1965. C f também, na
linha do trabalho do padre de Lubac, Franco Todescan, Lex, natura, beatitudo. II pro­
blema delia legge nélla scolastico spagnola dei sec. XVI, Pádua, Cedam, 1973.
138 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

justiça, e com bens suficientes para a conservação e comodidade


da vida corporal, e compreendendo nela essa probidade dos cos­
tumes que é necessária à paz exterior com o fim de assegurar a
felicidade da República e a conservação que convém à natureza
humana86.

Assim, para Suárez, o Bem comum, na sua determinação propria­


mente política, encontra-se primeiramente ou essencialmente circuns­
crito a um horizonte puramente terrestre. Assim, é a esfera propria­
mente teológico-política que desaparece87.
No De Legibus88, a tese da autonomia do poder político e do fim
próprio da comunidade perfeita que é o Estado é dirigida contra
Tomás de Aquino, para quem o fim último da vida humana era a beati-
tude em função da qual deveria ser ordenada toda a lei. É certo que
Tomás reconhecia a autonomia relativa da comunidade política a título
de comunidade perfeita da qual o homem era parte integrante, mas
isso era para melhor a articular com um sistema ultimamente referido
a uma felicidade supranatural89. Para Suárez, em contrapartida, nem o
poder político, nem o jus civile, como direito positivo, devem considerar
«a felicidade eterna sobrenatural da vida futura», uma vez que esta
não poderia constituir um fim próprio, próximo ou último, para a
comunidade política. Vemos aqui claramente como na reflexão suarista
a doutrina da pura natureza influi nas suas consequências jurídico-
-políticas: o poder político é puramente natural, ora a natureza, como
tal, não tende para nenhum fim sobrenatural (De Legibus, III, XI, 4).
Suárez franqueia mesmo mais um passo na «laicização» da esfera polí­
tica: se a felicidade eterna numa vida futura não pode constituir de
nenhuma maneira o fim próprio do poder político, acontece o mesmo

86 De Legibus III, 11, 7 (CHP, tomo v, p. 152).


87 Cf. De Legibus, III, 1 1 ,7 (CHP, tomo v, p. 153): «Com efeito, da mesma forma que o
bem natural desse corpo político não se estende para além da vida presente, e não
dura senão nela, o fim desse poder ou dessa lei também não se pode estender para
além da vida presente.» — Cf. também ibid., III, 11,4 (CHP; tomo v, pp. 148-149): «O
poder dvil e o direito dvil, considerados em si, não dizem respeito à feliddade
eterna supranatural da vida futura a título de fim próprio, próximo ou longínquo.
A prova disso é que um tal poder é puramente natural; logo a sua natureza não
tende para um fim supranatural [...] Digo contudo que o poder dvil, através de uma
relação extrínseca, pode ser submetido a uma feliddade supranatural ou a um fim
último [...] Mas restringindo-se à pura natureza, a lei dvil não pode ser submetida
desta maneira a um fim supranatural.» [Sublinhado por nós.]
88 III, XI.
89 Suma teológica. Ia, Ilae, qu. 90, a. 2.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 139

com a felicidade espiritual dos homens nessa vida. Noutros termos, é


toda a ordem do «espiritual», vista no plano da comunidade política, e
até mesmo no plano pessoal da salvação individual, que é excluída da
consideração jurídico-política: «[...] Da mesma forma que o poder
político (potestas cimlis) não está ordenado à beatitude eterna da vida
futura, também não o está à felicidade espiritual da vida presente90.»
Para dizer a verdade, é a felicidade como tal, quer seja sobrenatural
quer natural, tendo em vista a vida presente, que é indiferente ao poder
civil e à sua legislação positiva, a partir do momento em que essa felici­
dade diz respeito aos «homens singulares», considerados como «pes­
t soas particulares» ou privadas. Indiferente à felicidade dos indivíduos,
quer seja sobrenatural quer natural, o poder político não tem outro fim,
próprio e intrínseco, além da felicidade natural da própria comunidade
política e, por essa via, dos indivíduos humanos, na medida em que eles
são membros dela: «[...] o fim do poder civil é a felicidade natural da
comunidade humana perfeita da qual esse poder cuida, assim como
da dos homens singulares na medida em que são membros de uma tal
comunidade91.»
I' O corpo político é certamente constituído teleologicamente, regula-
-se necessariamente por um bem, mas esse pode e deve ser definido de
forma inteiramente natural, dentro dos limites do presente ou da «vida pre­
sente». Vemos bem as razões estratégicas desta estrita delimitação do
campo e dos fins da comunidade política, e o benefício que é possível
tirar daí, nomeadamente contra todas as formas de absolutismo, à ma­
m
r: neira de Jaime I, que pretendem submeter os fins espirituais a uma
f autoridade política que por isso mesmo fica assim sacralizada e fun­
dada directamente na instituição divina92.
Concluamos acerca deste ponto: no tratado das Leis, é certamente o
horizonte da doutrina da pura natureza que contribui para deslocar de
fe forma radical a articulação tomista entre lex naturalis e lex aeterna. Suárez
procede de facto ao que somos tentados a chamar uma «laicização»
expressa do conceito de bem comum93, determinando restritivamente
ír
I
90 De Legibus, lll, XI, 6.
91 Ibid., 7: «ejus finem [a saber, o «poder civil»] esse felidtatem naturalem communitatis
humanae perfectae cujus curam gerit, et singulorum hominum ut sunt membra talis
communitatis.»
92 Cf. J.-F. Courtine, «L'héritage scolastique dans la problématique théologico-politique
de l'âge classique», in L'État baroque, 1610-1652, Paris, Vrin, 1985, pp. 87-118.
93 Sobre esse fenómeno geral de «laicização, cf. M. Villey, La Formation de la pensée
juridique moderne, Paris, Éd. Montchrétien, 19752, pp. 346-347.
140 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

o fim da Respublica humana como uma verdadeira felicidade política94.


É certo que para Tomás, como aliás para Aristóteles, o objectivo do
legislador continua a ser o bem comum, mas este último está sempre
directamente subordinado à prossecução de um fim último que o ul­
trapassa sem medida comum.
Contra a teologia política dos Reformadores, Suárez rejeita também,
e de forma completamente consequente, a tese segundo a qual a ori­
gem do Estado estaria intrinsecamente ligada à Queda; o Estado é de
preferência fundado ex institutione primae naturae: «Essa recusa deve
ser fundamentada no facto de que a reunião dos homens numa cidade
não advém apenas por acidente, devido ao pecado ou à corrupção da
natureza, mas que convém por si ao homem qualquer que seja o seu
estatuto, e que ela contribui para a sua perfeição95.»
Assim, para Suárez, como já para Vitoria, a criação ou a instituição
do Estado, a título de communitas perfecta, é sempre de direito natural96,
e se continua a ser legítimo recordar que o poder político (potestas política)
provém de Deus, importa então precisar que é sempre per jus naturae,
por intermédio do direito natural, que procede essa derivação. As
consequências desta tese impõem-se imediatamente quando se trata da
questão da origem do poder e do seu súbdito natural e primeiro97. Com
efeito, se Deus intervém na instituição política, é unicamente a título de
causa prima et universalis, isto é, de causa remota98. Porque o verdadeiro
estabelecimento de toda a sociedade política requer sempre uma causa
eficiente, a que deriva da livre decisão dos cidadãos; na origem de toda
a vida colectiva, é preciso pressupor um acto moral, que se pode consi­
derar como uma forma de contrato. A comunidade civil é assim intei-
ramente colocada no plano da natureza; esta chega perfeitamente para

94 De Legibus, 1 ,1 3 ,7 :« [...] o fim da República humana é a verdadeira felicidade polí­


tica que não pode surgir independentemente de costumes honestos; a República é
dirigida no sentido dessa felicidade por leis dvis, e é portanto necessário que essas
leis tendam por si para o bem moral [...]que é o bem pura e simplesmente.»
95 De Opere sex dierum,V, 7, n.° 6; De legibus, III, 3 ,6 (CHR tomo v, pp. 31-32).
96 Cf. Principatus politicus, II, 5-9 (CHP, pp. 18-22).
96 F. Suárez, Defensio fidei, III, 2 ,5 (Principatus politicus, II, 5, CHP, p. 18):«[...] suprema
potestas civilis, per se spectata, immediate quidem data est a Deo hominibus in civitatem seu
perfectam communitatem congregatis, non quidem ex peculiari et quasi positiva institutione
vel donatione omnino distincta a productione talis naturae, sed per naturalem consecutionem
ex vi primae creationis ejus, ideoque ex vi talis donationis non est haec potestas in una
persona, neque in peculiari congregatione multarum, sed in toto perfecto populo seu corpore
communitatis.»
98 Defensio fidei, III, 2 ,2 (Principatus politicus, CHP, p. 16). Cf. também De Legibus, III, 3,
4 (CHP, tomo V, pp. 23-24).
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 141

;4ar conta do Estado como corpo orgânico — corpo místico —, cujo fim
lé o bem comum, sem que as condições da ordem social tenham sido
rsubstancialmente modificadas pela Revelação. É por isso que o poder
público, tal como existe hoje em dia nos príncipes cristãos, não é maior
ínem de outra natureza que o dos pagãos. Reencontramos aqui, na
;linha de Vitoria, a afirmação radicalizada da autonomia da autoridade
política, aceitando a possibilidade de distinguir, em função da hetero­
geneidade dos fins (felicidade política, felicidade sobrenatural), dois
tipos de submissão ou de sujeição":
? Existe uma dupla sujeição, a saber, directa e indirecta. Chamamos
!. directa àquela que se mantém no interior e nos termos desse poder;
indirecta aquela que procede da direcção em vista de um fim superior
e que é relativa a um poder mais excelente*100.

É nesta mesma perspectiva, que conduz a acentuar a autonomia e a


auto-suficiência da comunidade política como comunidade perfeita,
que Suárez visa por sua vez a coexistência e a cooperação dos diferentes
corpos políticos — podemos falar aqui de Estados — no seio de uma
comunidade mais vasta, a comunidade internacional. Contudo, não
poderíamos considerar o nascimento e a constituição desta comunidade
internacional por analogia com a constituição de um corpo político,
sujeito primeiro do poder. O que faz a unidade de um corpo político é,
com efeito, a reunião de um grande número em virtude, seja de uma
«vontade especial», seja de um «comum consentimento», com vista a
fim especificamente político. A comunidade assim constituída pre­
cisa necessariamente de um organismo dirigente, de uma «cabeça» ou
de um «chefe», tendo em vista a assistência mútua que, por definição,
devem prestar uns aos outros os indivíduos que a compõem. E é preci­
samente por isso que o corpo político é um «corpo místico», entenda­
-se primariamente como uma comunidade formando por si uma verda­
deira unidade. A partir do momento em que ela se constitui, uma
comunidade desse género, provida de uma unidade moral, toma-se o
sujeito de um poder (potestas), esse mesmo poder que deve incarnar

; 99 Principatus politicos, V, 2 (CHP, pp. 65-66).


100 Ibid., p. 66: «Quamvis temporalis princeps ejusque potestas in suis actibus directe non
pendeat àb alia potestate ejusdem ordinis, et quae eundem finem tantum respiciat, nihilo-
minusfieri potest ut necesse sit ipsum dirigi, adjuvari, vel corrigi in sua matéria, a superiora
potestate gubemante homines in ordine ad excellentiorem finem et aeternum, et tune ilia
dependentia vocatur indirecta, quia ilia superior potestas circa temporalia non per se aut
propter se, sed quasi indirecte et propter aliud interdum versatur.»
142 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

num órgão soberano. É portanto ex natura rei, segundo uma lei de;
essência, que uma multidão, quando forma uma comunidade e se ,
encontra unida por um laço político, se toma detentora de um poder
próprio101. E por assim dizer estruturalmente, e previamente a toda á
determinação da forma de governo, que a comunidade política é corts-'
tituída em democracia primitiva. O único ponto verdadeiramente fum
damental é o de que o poder (potestas), inerente à comunidade consti­
tuída, ou melhor, em constituição, pode incarnar num órgão soberano,
único susceptível de assegurar a unidade do corpo político na prosse­
cução do seu fim próprio. Estabelecido o princípio da constituição de
uma comunidade política ou de uma comunidade perfeita orientada
pelo seu fim próprio, Suárez não parece, apesar disso, pelo menos não
mais do que Vitoria, encarar seriamente a ideia de uma única e mesma:
comunidade política universal: uma tal comunidade verosimilmente
nunca existiu, ainda que fosse numa humanidade adâmica, ou, se ti­
vesse existido, só teria durado muito pouco tempo, e não teria mais
probabilidades de existir no futuro, da mesma forma que todas as figu­
ras históricas do Império universal nunca puderam pretender seria­
mente instituir leis válidas para o mundo inteiro (totus orbis)102.301 Cabe
com efeito a cada comunidade política promulgar leis destinadas a
manter e a regular a vida do corpo político, mas tais leis são sempre
«leis humanas, próprias e particulares», leis «positivas», que não têm
portanto sentido senão em relação com o governo desta ou daquela
comunidade definida, e não poderiam em princípio ser universais, quer
dizer aqui estender-se estritamente ao conjunto de todos os homens"
(tota hominum universitas)m . Suárez, depois de Vitoria, recusa portanto
expressamente a ideia segundo a qual o imperador poderia ou teria
podido ser «de direito, senhor e soberano do universo inteiro e

101 De Legibus, III, II, 4: «Hominum multitudo quatenus speciali voluntate seu communi
consensu in unum corpus politicum congregantur uno societatis vinculo et ut mutuo se
juvent in ordine ad unum finem politicum, quomodo ejficiunt unum corpus mysticum,
quod moraliter did potest per se unum; illudque consequenter indiget uno capite. In tali
ergo communitate, ut sic, est haec potestas ex natura rei, ita ut non sit in hominum potestate
ita congregari et impedire hone potestatem.»
102 Ibid.: «Mihi verisimilius est vel nunquam vel bressimo temporefuisse hone potestatem hoc
modo in tota hominum collectione, sed paulo post mundi creationem coepisse homines divi­
di in varios respublicas et in singulis fuisse hone potestatem distinctam.»
103 III, II, 6: «[...] potestatem haneferendi leges humanas proprias et particulares (quas civiles
vocamus, tanquam ordinatas ad regimen unius communitatis perfectae), hanc (inquam)
potestatem nunquam fuisse unam et eandem in totam hominum universitatem; sed
ita fuisse per communitatem divisam, sicut ipsae communitates instituebantur et divide-
bantur.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 143

bnsequentemente obrigar o mundo inteiro pelas suas leis civis104»,


àta-se aqui a seus olhos de uma tese «inteiramente errónea e despro-
:da de qualquer fundamento», quer se aplique ao Império Romano
der ao Sacro Império germânico105.
' Se as comunidades políticas são desde logo plurais, caracteriza-
as cada uma pela especificidade das suas leis positivas ou civis,
odemos então antever a possibilidade de uma verdadeira comuni-
" ade internacional? Esta não poderia constituir uma comunidade
irfeita suplementar, nem sobretudo superior à pluralidade deter-
iada das comunidades políticas ou das Repúblicas, caracteriza-
as por leis sempre próprias e particulares. Contudo, à falta de uma
Verdadeira com unidade internacional, dotada de um poder
legislativo, é possível considerar determinados direitos, susceptí­
veis de regular a coexistência da pluralidade das comunidades polí-
|ícas, porque se as comunidades políticas são divididas pela sua
própria instituição, devem contudo, como os indivíduos congrega­
dos para formar um corpo político sempre singular, encontrar uma
certa forma de «supracomuriidade», graças à qual elas possam pres­
tar mutuamente assistência, e sobretudo manter entre si relações de
paz e de justiça. Com isto ficam realmente de novo como que orde­
nadas a um fim superior (o «bem do universo»), tal como cada Re­
pública está ordenada a um fim político próprio. Ora tais direitos
são precisamente os direitos das gentes (jura gentium), na medida
m que assentam na tradição e nos costumes106. Para Suárez, dife-
:rentemente de Tomás de Aquino, é a consideração do uso que é aqui
determinante: este teria com efeito permitido definir progressiva­
mente um certo número de direitos comuns susceptíveis de regular
as relações entre as diferentes Repúblicas ou Estados, sem que estes

104 III, VII, 1: «Potest hoc loco tractari quaestio Celebris inter juristas: An Imperator jure sit
dominus et princeps totius orbis et consequenter an possit totum mundum suis civilibus
legibus obligare...?»
105 ni, VH, 6: «Sit ergo imprimis cerium neque imperatorem romanum neque aliquem unum
hominem vel regem habere potestatem universalem ad ferendas leges civiles obligantes
Universum orbem.»
106 III, II, 6: «[...] nam licet univeristas hominum non fuerit congregata in unum corpus
politicum, sed in varias communitates divisa fuerit, nihilominus ut illae communitates
sese mutuojuvare et inter se injustitia et pace conservari possent (quod ad bonum universi
necessarium erat), oportuit ut aliqua communia jura quasi communifoedere et consensione
inter se observarent; et haec sunt quae appellantur jura gentium, quae magis traditione et
consuetudine quam constitutione aliqua introducta sunt.»
144 HISTORIADA FILOSOFIA POLÍTICA

alguma vez formem, apesar disso, um verdadeiro novo corpo


político, uma instância superior. Subsiste ainda o facto de que Suárez,
que se inscreve, nesta ocasião também, claramente no prolongamento
de Vitoria, elabora a ideia reguladora de uma comunidade interna­
cional, superior à comunidade dos Estados, e que forma como
que uma comunidade, como que uma entidade política e moral
própria:

[...] o género hum ano, se bem que esteja d ividid o em diferentes


p ovos e soberanias, conserva sem pre um a certa u n id ad e, n ão apenas
esp ecífica, m as tam bém quase p olítica e m oral, a u n id ad e que p res­
creve o p receito n atu ral de am or e de m isericórd ia m ú tuos, p receito
que se ap lica a tod os, m esm o aos que são estran geiros, seja qual for a
n ação a que pertençam . /
E p or isso que, se bem que cad a E stad o — rep ú b lica ou reino —
seja intrinsecam ente um a com unidade p erfeita e con sisten te pelos seus
p ró p rio s m em bros, ap esar disso, cad a um desses E stad os é tam bém
de algum a form a m em bro dessa com unidade u n iversal que d iz res­
p eito ao género hum ano. C om efeito, nunca essas com unidades são a
tal p on to au to-su ficien tes, tom ad as isolad am en te, que n ão tenham
necessid ad e de nenhum a assistência, socied ad e e com u n icação m útua,
seja com vista a m ais b em -estar e a um lu cro su p erior, seja ainda por
um a n ecessid ad e m oral ou p ara satisfazer u m a n ecessid ad e, com o a
exp eriên cia d em o n stra. P or esse m o tivo , elas têm n ecessid ad e de
algum d ireito que as dirija e as ord ene convenientem ente n esse género
de relação de sociedade. Em bora isso se faça em grande parte em virtude
da razão n atu ral, não se faz suficientem ente nem d irectam en te em
tod o s os casos, e é p or isso que alguns d ireitos esp eciais p uderam
ser estabelecidos pelos costum es dessas m esm as n ações. Porque, da
m esm a form a que num a cid ad e ou p rovíncia, o costu m e in trod u z o
d ireito, tam bém os usos puderam in trod u zir o d ireito das gentes na
u n iversalidad e do género hum ano. Tanto m elhor, de resto , quanto as
m atérias que form am o objecto desse d ireito são p ou co n um erosas,
m uito próxim as do d ireito n atu ral, se deduzem facilm ente d este, e são
tão ú teis e tão conform es à n atu reza que se n ão são d ed u ções evidentes
do d ireito n atu ral, absolutam ente n ecessárias p or si p róp rias à h ones­
tid ad e dos costu m es, são p elo m enos com p letam en te con form es à
n atu reza e aceitáveis p ara tod a a gen te107.

107 De Legibus, II, XIX, 9.


VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 145

Suárez irá consagrar à clarificação do seu conceito de jus gentium di­


versos capítulos do livro II do De Legibus108. Assim, o direito das gentes,
convertido em direito internacional público, refere-se principalmente, já
o sublinhámos, aos costumes ou ao uso (13,19, 6; II, 20, 2; Hl, 2, 6), mas
como tal não poderia ser assimilado a um direito positivo próprio à comu­
nidade internacional. Concede-se sem dificuldades que relativamente a
Tomás de Aquino, de Vitoria a Suárez, o direito das gentes mudou de
natureza e logo também de lugar: separou-se cada vez mais claramente
do direito natural, sem por isso se ligar pura e simplesmente ao direito
positivo do qual continua a distinguir-se precisamente por uma diferen­
ça fundamental. Ele não poderia ser instituído, no verdadeiro sentido do
termo, e em todo o caso nunca poderia ser instituído positivamente por
referência à vontade soberana dos Estados; permanece sempre muito
mais como um resultado, fruto do uso e dos costumes dos quais damos
conta depois de consagrados109.
Os preceitos do direito das gentes diferem dos preceitos do di­
reito civil na medida em que não são escritos, mas consistem nos
costumes não de uma cidade ou de outra, de uma província ou de
outra, mas de todas ou quase todas as nações: o direito humano é
com efeito duplo, a saber escrito e não escrito [...] Mas o direito nãò
escrito consiste nos costumes: que, se for introduzido pelos costu­
mes de um povo e o obrigar unicamente a ele, é chamado direito
civil. Mas se é introduzido pelos costumes de todos os povos e os,
obriga a todos, acreditamos então que se trata do jus gentium propria­
mente dito, e que difere também do direito natural, porque assenta
não na natureza, mas nos costumes, e nós distinguimo-lo também
do direito civil, quanto à sua origem, ao seu fundamento, à sua
universalidade [...]110

Com efeito, os preceitos do direito das gentes diferem dos do direito


civil, não apenas pelo facto de não serem escritos (o direito natural
também não o é), mas sobretudo porque só se impõem em virtude dos

108 De Legibus, II, XVII-XX, CSIC, IV, pp. 99-149, ao qual é preciso acrescentar as
«Additiones Suarecii ad jus gentium», ibid., pp. 151-165.
109 I. André-Vincent puxa sem dúvida exageradamente Suárez para o lado de Grotius,
quando observa (art. citado, p. 245): «Para Vitoria o direito das gentes era um direito
intermédio (um direito natural segundo). Doravante ele não é mais do que um
direito positivo. Perdeu o seu verdadeiro lugar entre esse direito positivo e o direito
natural, porque perdeu a sua verdadeira natureza. Não é mais do que positivo, ou
seja voluntário. Assenta na vontade dos Estados.»
110 De Legibus, II, XIX, 6.
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 147
146 ______________________HISTORIA DA FILOSOFIA POLÍTICA_______ ;___________________

Suárez se esforça também, senão por «renaturalizar» o direito das


costumes de todas as nações ou de quase todas as nações. O direito das
; gentes, o que seria evidentemente contraditório com a sua tese prin-
gentes distingue-se ainda do jus civile pelo facto de que não é próprio
desta ou daquela «cidade», «província» ou «nação», mas de todas as
I cipal, pelo menos por não o separar completamente da natureza: ele
I é «o mais próximo da natureza», convém a todas as nações e à sua
nações, ou de quase todas. Isto quanto à sua universalidade. Distin­
gue-se também do direito natural na medida em que não assenta na
I associação ou à sua «sociedade», logo pode difundir-se de maneira
I «quase natural», ao mesmo tempo que o género humano. A sua vali-
«natureza» (entenda-se a natura hominis, natura rationalis), mas no uso
I dade deve-se ao uso. Importa, para compreender bem a concepção
ou nos costumes. Isto quanto à sua origem e ao seu fundamento. Esta­
I suárista do direito natural, medir a tensão entre esse duplo movi­
belecido isto, trata-se então de compreender como é que o direito das
mento: historicizar o direito das gentes sem o desnaturalizar com­
gentes pode ser comum a todos os povos (gentes), sem todavia se con­
pletamente. O hábito ou os usos fornecem aqui evidentemente o con­
fundir com o direito natural ou se deixar reconduzir necessariamente a
este último, o que era, vimo-lo, uma das orientações da doutrina
I ceito intermédio de que Suárez precisa necessariamente: assim, o
I direito das gentes, sem nada perder da sua justiça (ele é jus justum),
tomista111. Trata-se de assegurar a universalidade do direito das gen­
tes, sem por isso ter que o fundar na natureza, ficando bem claro que
1 é susceptível de variações (mutabile). Ao não separar completamente
o direito das gentes da natureza, Suárez pode pretender perma­
ele não pode ter sido, inversamente, introduzido pela vontade ou pela necer fiel à doutrina tomista (S. th., Ia, Ilae, qu. 95, a. 4) segundo a
opinião dos homens (II, XIX, 5).
qual os preceitos do direito das gentes são conclusões tiradas dos
Se falarm os do d ireito d as gentes no seu v erd ad eiro sen tid o, é
princípios do direito natural, por oposição ao direito civil (positivo)
claro que ele se p ôde introd uzir no universo p ou co a p ou co, pelo uso e
que consiste, ele sim, em determinações, mas Suárez não sublinha
p ela trad ição, e graças a um a su cessão, um a p ro p ag ação e um a im ita­
menos aquilo que constitui para ele a diferença fundamental,
ção m útua dos p ovos, independentem ente de um a con ven ção ou de
essencial, entre direito das gentes (pelo menos o jus gentium proprium,
um acord o especial de tod os os p ovos, num d eterm in ad o m om ento; II, XIX; 2) e direito natural:
com efeito, este d ireito está tão p róxim o da n atu reza e é tão conve­
O d ireito d as gentes d ifere em p rim eiro lu g ar e p rin cip alm en te
niente a tod as as n ações e às suas socied ad es, que se p rop agou quase
do d ireito n atu ral p orq u e, n a m ed ida em que com p o rta p receito s p o­
natu ralm en te com o género hum ano, e p ortan to não é escrito , porque sitiv os, n ão im p lica a n ecessid ad e da co isa p rescrita, apenas a p a rtir
não foi prom ulgado p or nenhum legislador, m as antes o seu valor deve­
d a n atu reza d a co isa, e segu n d o um a in ferên cia evid en te a p a rtir de
-se aos u so s112.
p rin cíp io s n atu rais, p ois tu d o o que assim se infere, é n atu ral [...] D a
m esm a form a os p receito s n egativo s do d ireito das gen tes n ão in ter­
Aqui, mais uma vez, os dois termos importantes são: os usos e a d itam um a co isa p orq u e isso é m au p or si, p orq u e tam bém isso é
tradição. A universalidade, ou a quase universalidade do direito das p u ram en te n atu ral; assim , a p a rtir da razão h u m an a, o d ireito das
gentes, está assim sempre ligada à história. Esse direito introduz-se gen tes não só osten ta o m al, m as co n stitu i-o ; e assim que esse d ireito
pouco a pouco e difunde-se de um povo para outro, sem que tenha n ão in terd ita coisas m ás p orqu e elas são m ás, m as ao interditá-las, tor­
alguma vez sido instituído por qualquer legislador, sem que seja na-as más113. [Itálico n osso.]
preciso imaginar um congresso (conventus) e um acordo expresso
(consensus) de todas as nações. A sua progressão está pois simples­
Uma segunda diferença os separa: «O direito das gentes não pode
mente ligada aos «usos», aos «costumes» das nações. Repara-se que
ser tão imutável como o direito natural, pois a imutabilidade resulta da
necessidade.»
111 De Legibus, II, XX, 1: «Quomodo jus gentium sit omnibus commune, et tarnen non sit
naturale.»
113 Cf. também II, XX, 3: «Adão vero esse dijferentiam interjus gentium et naturale rigorosum;
112 II, 2 0 ,1 . Cf. também II, XX, 2: «In jure gentium praecepta sunt magis generalia, quia in quod jus naturale non solum praecipit bona, sed etiam ita prohibet omnia mala, ut nullum
eis consideratur utilitas totius naturae et conformitas ad prima et universalia principia permittat. jus autem gentium aliqua mala permittere potest.»
naturae.»
148 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

O terceiro traço diferencial, depois da necessidade e da imutabili


dade, diz respeito à universalidade. Enquanto a universalitas ou
communitas do direito natural não admitem excepção, não acontece?
mesmo com o direito das gentes. A «sempre» (semper) opõe-se aqú"
«regularmente» (regulariter), de tal modo que o direito das gentes sej
comum não a todos, mas a «quase» todos (fere omnibus commune). £

A conclusão que Suárez tira deste confronto diferencial é que o jiif


gentium é um direito «humano e positivo» (II, XIX, 3). Não deixando de
preservar a oposição fundamental entre o direito positivo e o direitp
natural, importa com efeito considerar que o direito positivo pode-se
subdividir por sua vez em direito civil e direito das gentes. Este último?
comporta de novo dois «modos» característicos (II, XIX, 8): aquele, mais;?
propriamente assim chamado, que todos os povos e todas as nações1
são obrigados a respeitar nas suas relações recíprocas (jus quoá orrmesl
populi et gentes variae inter se servare ãébent). Tomado neste sentido, o
direito das gentes antecipa aquilo que se chamará mais tarde direito
internacional, toma-se claramente um direito interestatal, o que acen­
tua ainda o seu carácter positivo. O segundo modo é aquele que cha­
mamos impropriamente e analogicamente direito das gentes na medida
em que é observado pelos diferentes Estados ou pelos diferentes
reinos infra se, na sua vida e nas suas relações internas114. É assim que
é do domínio do direito das gentes, propriamente dito, tudo o que diz
respeito à prática das trocas ou do comércio (usus commerciorum), o
respeito pelos embaixadores, o direito da guerra. Em contrapartida,
por muito conformes à natureza que possam ser os usos ratificados’
pelo direito das gentes, nenhum deles se impõe absolutamente nem é
necessário ex vi solius rationis mturalis, ex pura naturali ratione. Vemos
bem aqui como a expressão ratio naturalis tomou decididamente o
lugar da lei natural. Mas é por aí também que o direito das gentes,
mesmo no seu primeiro sentido, se distingue do direito universal, aquele
que engloba totus orbis, o mundo inteiro, segundo Vitoria. Porque tal
direito nunca existe efectivamente a não ser a partir da pluralidade dos
Estados soberanos e da sua vontade de chegar a acordo sobre um certo
número de convenções, não absolutamente necessárias. Com isso,
Suárez abre um fosso entre direito natural e direito das gentes bastante

114 Cf. De Legibus, II, XIX, 8: «Adão vero ad maiorem declamtionem, duóbus modis... did
aliquid de jure gentium, uno modo quia est jus, quod omnes populi, et gentes variae inter se
servare debent, alio modo quia est jus, quod singulae civitates, vel regna intra se observant,
per similitudinem autem et convenientiam jus gentium appellatur.»
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO 149

lais profundo do que aquele que Tomás havia reconhecido. Entre


litas duas formas de direito, existe de facto uma diferença de natureza
lião simplesmente transição gradual assegurando a passagem de uma
foutra.

j Para além de tudo o que separa as posições respectivas de Vitoria e


1%'Suárez — e frequentemente são mais do que simples «cambian-
fe» —/ aparece porém claramente que a problemática do direito das
lentes representa por assim dizer o terreno privilegiado sobre o qual
|§b deixa medir exactamente a distância que separa a reflexão dos teólo-
los-juristas115 do frágil equilíbrio tomista construído de acordo com o
Esquema de derivação: lex aeterna, lex naturae,jus naturale, jus gentium,
l| ís civile. Em todo o caso, o que terá sido irremediavelmente quebrado,
p a notável continuidade da ordo ou melhor da orãimtio tomista, capaz
pie integrar num poderoso movimento unificador ascensional a totali-
piade do real, segundo a medida última da lex divina. Está aqui, sem
pávida, o conceito tomista de inclinatio e o de apetite natural virado
gpara o bem que constituíam os princípios directores de uma comum
participação de todos os seres vivos numa ordem divina e providencial
fatravés da qual a ordem da natureza se reunia, sem verdadeira solução
Me continuidade, à da graça. Assim, pela sua legislação própria e posi-
çtiva, a lei humana, regulada por uma justiça, ou por um justum deter-
/ minado ex natura rei, contribuiria eminentemente, e sem verdadeira
: arbitrariedade, para a determinação da lei natural. Lei natural - direito
natural: o ponto de referência foi sempre bastante claramente assinalado
para decidir a própria legalidade da lei positiva. Ora a mais profunda
linha de fractura sobrevinda neste edifício, é sem qualquer dúvida
— como bem o mostraram os trabalhos exemplares de Henri de Lubac,
reunidos por Franco Todescan — a disjunção que se tomou patente no
século xvi entre uma ordem doravante qualificada como «sobrenatu­
ral» e um estatuto hipoteticamente constituído, o dã pura natureza.
E doravante neste quadro, como vimos explicitamente com Suárez, que
são elaboradas as teses fundamentais relativas à lex naturalis. Na pers­
pectiva do status purae naturae, a lei natural está imediatamente desli­
gada de qualquer consideração económica, estranha à articulação
tomista central na Suma — a do exitus e do reãitus —, de tal forma que
a lei ou o direito naturais representam daí em diante esse conjunto de

115 Deixamos evidentemente de lado aqui os representantes de um tomismo preo­


cupado com uma maior fidelidade ao ensinamento do Mestre, como Soto ou Banez,
nomeadamente.
151
VITORIA, SUÁREZ E O NASCIMENTO DO DIREITO NATURAL MODERNO__________
150 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

L as Casas, Bartolomeu de, L'Évangile et laforce, apresentação, escolha de textos e tradu­


princípios que a ratio naturalis está em condições de apreender segun­
ção francesa por Marianne Mahn-Lot, Paris, Cerf, 1964.
do a sua ordem própria. O direito natural toma-se assim, no seu prin­ —, Las Casas et la défense des Indiens, apresentado por Marcel Bataillon e André Saint­
cípio, um direito racional, e a partir daí importa muito pouco saber -Lu, Paris, Archives Julliard, 1971.
(Vázquez vs. Suárez) se essa racionalidade, codificável, é a de uma or­ —, Los tesoros del Péril, publicado com tradução espanhola e anotações por Angel Losada,
dem das essências que se impõe ao próprio Deus, ou se reservamos em Madrid, 1958, p. 129.
Deus uma instância propriamente voluntariosa e posicionai. Em qual­ P erena, Vicente Luciano, Teoria de la guerra en Francisco Suárez, Madrid, CSIC, 1954.
O volume 2 inclui a edição crítica do De bello.
quer caso, tratando-se da lei humana, positiva, o dictamen rationis não Sepúlveda, Juan Ginès de, Démocrates segundo, edição crítica por Angel Losada, Madrid,
pode ser suficiente para fazer lei, e é preciso ainda um novo elemento CSIC, 1951. .
constitutivo, a vontade. É esta profunda desestruturação do equilíbrio - , Epistolario de Juan Ginès de Sepúlveda, editado por Angel Losada, Madrid, Instituto
tomista — cujas razões são indissociavelmente doutrinais, confessionais de Cultura Hispânica, 1966.
e históricas — que impõe que se repense num novo esforço a própria DE Soto, Domingo, De justitia et jure, I, Salamanca, introdução de Venancio Carro e
tradução espanhola de M. González Ordónez, Madrid, 1967-1968.
ideia de mundo (totus orbis) e da sua possível reunificação segundo a
Suárez, Francisco, Principatus Políticus, editado por E. Elorduy e Luciano Perena, Madrid,
medida de um direito das gentes essencialmente consuetudinário, CSIC, 1965. Foi com este título que foi publicada separadamente a terceira parte da
historicizado e, se quisermos, desnaturalizado. Secularização, laicização Defensio Fidei. ^ .
são certamente termos demasiado gerais para caracterizar os fenómenos —, De juramento fidelitatis, Concienca y Política, editado por Luciano Perena e Vidal
de grande amplitude que sobrevêm de 1511-1512 a 1611-1612. O que é Abril, Madrid, CSIC, 1979.
certo, em todo o caso, é que os teólogos espanhóis, confrontados com a —, De Legibus, edição crítica bilingue realizada por Luciano Perena, Madrid, «Corpus
Hispanorum de Pace», 1971.
interpretação do sentido da Conquista, terão contribuído para criar as Todescan, Franco, Lex, natura, beatitudo. II problema delia legge nella scolastico spagnola del
bases daquilo que se tomará, depois de Althusius e Grotius, a Escola sec. XIV, Pádua, Cedam, 1973. . . . . , .
moderna do direito natural. Villey, Michel, La Formation de la pensée juridique moderne, Paris, Editions Montchrétien,
1975 (4.3 ed.). . . .
Vitoria, Francisco de, La questione degli índios, texto crítico de Luciano Perena, edição
italiana traduzida por Angel Lamacchia. Edição bilingue e texto da edição crítica,
1996. .
- , Obras de Francisco de Vitoria, Relecciones Teológicas - edição crítica do texto latino,
Bibliografia
Oversão espanhola T. Urdához, Madrid, BAC, 1960. Introdução biográfica (pp. 1-107).
- , Leçons sur les Indiens et sur le droit de guerre, trad. fr., com introdução e notas, de
André-Vincent, «La notion moderne de droit naturel et le volontarisme (de Vitoria à Maurice Barbier, Genebra, Droz, 1966. _
Suárez et à Rousseau)», in Archives de philosophie du droit; Paris, 1963. - , Relectio de Indis, edição crítica com introdução espanhola de Luciano Perena e José
Aubert, Jean-Marie, «Aux origines théologiques des droits de l'homme», in Le Supplément; Maria Prendes, CSIC, Corpus Hispanorum de Pace, Madrid, 1967.
revue d'éthique et de théologie morale, Março de 1987, n.Q160. —, Leçon sur le pouvoir civil, trad. fr. Maurice Barbier, Paris, Vrin, 1980.
Bastit, Michel, Naissance de la loi moderne, Paris, PUF, 1990, parte: «São Tomás e a lei
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Brown, Oscar J., Natural Rectitude and Divine Law in Aquinas, Toronto, Pontifical Institute
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Carro, Venancio, La teologia y los teólogos-juristas espanoles ante la conquista de América,
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Courtine, Jean-François, «L'héritage scolastique dans la problématique théologico-
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Hanke, Lewis, All Mankind is One. A Study of the Disputation between Bartolomé de Las
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Lamacchia, Ada (ed.), La filosofia nel siglo de ora, Studi sul tardo rinascimento spagnolo,
Bari, Levante Editori, 1995.
168 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

espírito de toda a sua filosofia, a abolição «das fórmulas prévias»,,


destruição «do império das tradições» e a inversão «da autoridade cT
mestre» — de forma que, sugere Tocqueville, o seu método teria rr
verdade que acabar, graças à dinâmica das sociedades democrática
por «sair das escolas para penetrar na sociedade e se tomar a regrâ
comum da inteligência». Neste sentido, tal como não é aceitável apagar
tudo o que distingue as filosofias modernas umas das outras, para as
absorver numa qualquer «metafísica da subjectividade» ou para as;
referir identicamente a um «paradigma da consciência» que Descarte^
teria inaugurado e definitivamente configurado13, não parece avisado^
tomar apoio nas reticências de Descartes a aventurar-se na sua reflexão/
em matéria de filosofia política, para além de alguns relances, de resto-
não insignificantes, evocados mais acima, para concluir deles a;
exterioridade do cartesianismo relativamente ao trajecto político dos
Modernos. Não somente a afirmação de uma tal exterioridade não faria
justiça às contribuições políticas de Descartes, mas sobretudo, o que
seria muitíssimo mais grave, constituiria um obstáculo a uma apreensão
suficientemente compreensiva do espírito da modernidade política. Da
mesma feita, contribuiria para tomar opaco aquilo que viria a estar em
jogo quando os assaltos mais vigorosos lançados, a partir do fim do
século xviii, contra os ideais e os princípios democráticos assumiram
também — de maneira, percebê-lo-emos no próximo volume, espanto­
samente duradoura — a forma de um confronto global com o método
cartesiano «saído das escolas» e convertido em «regra comum da inte­
ligência» moderna: tais conflitos envolvem então nada menos do que
esse racionalismo construtivista do qual os capítulos que se vão seguir
permitirão medir até que ponto contribuiu para dar à modernidade
política as suas fundações filosóficas.

13 Dediquei-me a destruir essa lenda heideggeriana e, hoje, habermassiana, em UÈre


de 1'individu.
Capítulo 1

De M aquiavel a Hobbes:
eficácia e soberania no
pensamento político moderno
por L uc Foisneau
O pensamento político moderno adquiriu os traços que lhe conhe­
cemos através de pinceladas sucessivas, sob a pena de numerosos auto­
res pertencentes a espaços geopolíticos diferentes, formados de formas
ídiversas no exercício do pensamento político. Nas páginas que se vão
. seguir, esforçar-nos-emos para dar uma análise tão exacta quanto pos-
, sível dessas diferenças, dedicando-nos mais particularmente a obser­
var os princípios formulados por Maquiavel, Guicciardini, Bodin e
Hobbes. Se outros autores teriam podido ser considerados não menos
legitimamente para esboçar os contornos intelectuais de Florença no
início do século xvi, da França do fim do século xvi ou da Inglaterra da
primeira metade do século xvn, a escolha destas figuras tem a sua justi­
ficação na vontade de pôr em evidência, para lá dos percursos singula­
res desses escritores a das circunstâncias particulares da elaboração das
suas obras, os princípios de política dos quais eles souberam junta­
mente com outros, mas frequentemente melhor do que outros, dar a
formulação exacta. Essa atenção dada à formulação dos princípios
conduzir-nos-á a atribuir uma importância particular ao vocabulário
empregue por cada um, assim como às variações de sentido que conhe­
ceram as palavras «Estado», «república» ou «estado civil» entre a re­
dacção do Príncipe de Maquiavel, em 1513, e a publicação do Leviatã de
Hobbes em 1651. Esta evolução dos termos, que reflecte à sua maneira
a evolução histórica, permitirá esclarecer mais próximo da história dos
Estados o significado filosófico dos princípios políticos da modernidade.
O estudo do pensamento de Maquiavel, perspectivado com o de
Guicciardini, seu contemporâneo e amigo, permitir-nos-á sublinhar o
170 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

aparecimento, no seio do pensamento republicano florentino de um


princípio especificamente moderno de eficácia política. Sem com isso
minorar a importância do humanismo cívico na formação de Maquiavel,
insistiremos pois mais particularmente na inflexão operada no interior
dessa tradição pela tomada em consideração da «verdade efectiva dás
coisas». Este pensamento da eficácia política, que em Guicciardini deu
lugar a uma teoria da arte de bem reger Florença, conduziu Maquiavel
a reler de uma forma extremamente original a história da república ro­
mana, e da mesma feita a história da república florentina. Se dá conta
de algumas das preocupações que guiaram os teóricos do Estado mo­
derno, o princípio maquiaveliano’ de eficácia distingue-se todavia muito
claramente do princípio de soberania que foi formulado, no fim do
século xvi, pelo jurista angevino Jean Bodin. Enquanto, para os teóricos
da soberania, o Estado é em primeiro lugar uma estrutura jurídica, para
Maquiavel ele é antes de tudo uma organização dinâmica fundada nos
costumes dos actores políticos. Assim sendo, a preocupação com a efi­
cácia que desponta tanto em O Príncipe como nos Discursos sobre a pri­
meira década de Tito Lívio, exprime-se principalmente através de uma
| teoria da virtude. Inversamente, não é certo que os teóricos da sobera-
; nia tenham tido, na origem, como finalidade principal pôr o Estado ao
í serviço de um bom governo. A afirmação e a justificação dos direitos do
i Estado são do domínio de uma lógica específica, extraída da teologia e
do direito, que não é a das artes de governar. Os teóricos da razão de
! Estado tinham compreendido muito bem que era preferível pôr em
! evidência as condições efectivas (demográficas, económicas e milita-
I res) do domínio político de preferência a expor as condições jurídicas,
I teológicas e políticas do exercício de uma soberania. Na releitura que
deles fizeram os teóricos da razão de Estado, o princípio maquiaveliano
de eficácia já não encontrará onde se aplicar numa teoria da virtude,
| mas antes numa teoria do governo eficaz. Não obstante, se a afirmação
j bodiniana dos direitos de soberania não se fez em nome de um princí-
| pio de eficácia, é menos verdadeiro que os teóricos da soberania que
lhe sucederam se preocuparam muito rapidamente com encontrar uma
conformidade entre a afirmação dos direitos do soberano e a eficácia
i do seu governo. A afirmação por Hobbes da necessária representação
j do soberano visa assim produzir essa conformidade, evitando todavia
I a subordinação dos fins políticos da cidade, a saber, a preservação dos
í direitos do soberano e da segurança dos cidadãos, a fins extrapolíticos,

* Usámos este termo porque o termo «maquiavélico» está actualmente conotado com
uma interpretação errada do espírito de Maquiavel. (Nota do revisor.)
DE MAQUIAVELAHOBBES... 171

ainda que estes fossem justificados pela procura moderna da máxima


eficácia. Tratar-se-á, tudo somado, de mostrar como a primeira vaga da
modernidade política se desenvolveu, a partir de Maquiavel, mas tam­
bém contra ele, na busca de um princípio moderno da política, que não
conseguiu encontrar nem na análise dos costumes, nem na teoria da
soberania por si só, nem unicamente na teoria do governo eficaz, mas
numa síntese do princípio de soberania e do princípio de eficácia feita
à custa de um esquecimento quase total da lição maquiaveliana a favor
da virtude política.

1 — Guicciardini e Maquiavel
ou a legitimidade republicana medida péla bitola do
princípio de eficácia

O regime político que foi instaurado em Florença, depois da queda


de Pedro de Médicis, pela lei de 22-23 de Dezembro de 1494, tinha uma
dupla origem. Enquanto governo largo (grande governo), oposto, a este
título, ao funcionamento oligárquico que tinha caracterizado o reinado
dos Médicis desde a sua ascensão ao poder em 1434, inspirava-se na
história constitucional da república florentina, da qual prolongava a
preocupação com a liberdade pública a com a participação alargada
dos cidadãos; enquanto consequência indirecta da invasão de Itália
pelos exércitos de Carlos VIU, ele estava logo à partida submetido à
questão da sua perpetuação num contexto militar inteiramente novo,
devendo a sua sobrevivência depender da sua capacidade para resistir
às forças gigantescas a às estratégias inéditas empregues pelos novos
senhores da política interna italiana. Desejosos de tirar partido das cir­
cunstâncias excepcionais que os tinham libertado dos Médicis, os
florentinos entendiam é certo restituir vida às instituições originais da
sua cidade, adormecidas durante os sessenta anos de domínio dos
Médicis, mas encontravam-se igualmente confrontados com a necessi­
dade de conferir a essas instituições uma eficácia nova para lhes dar
uma oportunidade de se manterem num contexto internacional pouco
favorável às repúblicas. A questão que se punha, portanto, era a de
saber que política convinha levar a cabo para que a refundação republi­
cana de Florença não pusesse em perigo a sua conservação. Se existia
um acordo entre os diferentes grupos sociais — pelo menos entre os
aristocratas a as classes médias — acerca da necessidade de refundar
as instituições, o mesmo não acontecia quanto às modalidades dessa
172 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

refundação. As posições diferentes de Francesco G uicciardini


(1483-1540), que pertencia a uma das famílias mais poderosas da oli­
garquia florentina, a de Niccolò Machiavelli (1469-1527), ou Maquiavel,
que pertencia a um ramo mais novo e empobrecido de uma velha famí­
lia patrícia, fizeram eco num plano teórico, e no rescaldo da reflexão,
de divergências que atravessam o debate político florentino durante o
período que durou o regime republicano, a saber, de 1494 até à fuga do
gonfaloneiro vitalício, Piero Soderini (1452-1522), no Outono de 1512.
No âmago destas divergências estava a questão da interpretação que
convinha dar ao vivere libero1, isto é, ao modo de vida que caracteriza
propriamente o cidadão de uma cidade livre. Se Guicciardini privile­
gia uma abordagem institucional do político, Maquiavel mostrará pela
sua parte que a força das instituições era ela própria indissociável da
capacidade dos cidadãos e dos seus governantes para agir politicamente,
a saber, da sua coragem política e militar. Se a obra de Guicciardini
manifesta, consequentemente, uma preocupação de eficácia no campo
da organização institucional, a de Maquiavel é uma reflexão sobre os
efeitos da disposição política para agir, que ele chama virtú, sobre a
conduta dos príncipes e sobre a vida dos cidadãos de uma cidade livre.

O princípio de eficácia segundo Guicciardini


e a reforma do governo republicano em Florença

Guicciardini mostrar-se-á desde muito cedo interessado em conci­


liar as instituições republicanas de Florença, que proibiam a confiscação
do bem comum para fins pessoais, com uma nova preocupação com a
eficácia governamental, que emparelhava, segundo ele, com a predomi­
nância dos homens competentes. Se reconhecia que era preciso «traba­
lhar para que o governo seja popular», acrescentava que era também
preciso tomar cuidado para que ele seja «bem ordenado»2. Por outras
palavras, afirma que não bastava dar uma nova juventude ao Conselho
do povo e ao Conselho da comuna através da sua junção num Grande
Conselho para que a república fosse imediatamente bem governada.

1 No vocabulário de Guicciardini, o termo vivere designa mais geralmente «o "regime"


político em vigor mas na sua acepção mais pragmática a mais "viva", que reenvia
para a administração da comunidade e para tudo o que diz respeito à sua existência»
(posfácio, in F. Guicciardini, Écrits politiques, introdução, tradução, posfácio e notas
por J.-L. Fournel e J.-C. Zancarini, Paris, PUF, 1997, p. 340).
2 F. Guicciardini, Diálogo sobre a forma âe governar Florença,, in Écrits politiques, op. cit,
p. 225.
DB MAQUIAVEL A HO BBES- 173

Complementar do princípio republicano da legitimidade popular, o cri­


tério de eficácia governamental será assim distinguido, uma vez que
Guicciardini preconizava que o governo dos assuntos do Estado fosse
confiado a homens competentes. Para velar pelos interesses da república,
era preciso, segundo ele, que «as coisas importantes» não caíssem
«nas mãos de pessoas» que não soubessem «nem deliberar nem
govemá-las»3. Se esse não fosse o caso, a defesa do território estaria em
perigo, assim como a administração da justiça, «em parte devido à inca­
pacidade daqueles que dela estão encarregues, em parte porque, não
vendo um chefe estável que a possa defender, uma pessoa mostrará con­
sideração para com uma outra e as paixões e afectos dos que lhe são
próximos poderão fazer muito4.» Longe de contradizer o princípio da
legitimidade popular, o princípio da eficácia governamental visava por­
tanto, no espírito de Guicciardini, evitar a confusão das paixões priva­
das e da justiça pública, dos interesses particulares do bem comum.
Esta preocupação com a eficácia governamental encontra-se já no
primeiro texto político que Guicciardini terminou em 1512, quando re­
sidia em Logronho junto da corte do rei de Espanha, na qualidade de
embaixador da república florentina. Afastando-se deliberadamente do
método humanista, o método seguido no Discurso de Logrono não
procura de forma nenhuma comparar as instituições florentinas com
modelos institucionais antigos. De facto, para determinar aquilo que
poderia ser uma organização política efectivamente republicana, não
basta, de acordo com Guicciardini, copiar fielmente um modelo, ainda
que de uma cidade livre, mas convém de preferência partir dos efeitos
produzidos ou susceptíveis de ser produzidos por uma instituição muna
cidade determinada. Para avaliar as instituições de Florença, o único
critério será então o da sua racionalidade medida em termos de eficácia5.
Fiel a este critério, Guicciardini procede, no Discurso de Logrono, à aná­
lise circunstanciada das principais instituições políticas da sua cidade.
Traduzindo ao mesmo tempo um apego sincero ao regime do
governo largo e uma vontade de reforma inspirada pela preocupação da
eficácia racional, o estudo do Grande Conselho fornece uma boa ilus­
tração do método de Guicciardini. Depois de ter afirmado que não ha­
via «razões para se perguntar se a melhor administração» era «a de um
só ou de alguns ou de muitos porque a liberdade é própria e natural»

3 Ibid.
4 Ibid., p. 226.
5 Ver sobre este ponto F. Gilbert, Machiavél et Guichardin. Politique et histoire à Florence
au XVIe siècle, traduzido por J. Viviès, Paris, Seuil, 1996, p. 85.
174 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

em Florença, Guicciardini esclarece, na mais completa fidelidade ao espí­


rito das instituições republicanas, que o Grande Conselho é « o espírito
e a base» do viver popular (vivere populate), «pois ele deve distribuir as
magistraturas e as dignidades da cidade»6. Se a «largueza» (larghezza)
que caracteriza o acesso ao Grande Conselho não é inteiramente des­
provida de riscos, uma vez que autoriza a presença no seu seio de «al­
guns loucos», de «muitos ignorantes» a de «muitos malvados», é pre­
ciso, não obstante, aceitar o seu princípio, pois «as escolhas que são
feitas segundo o julgamento do maior número não são insensatas»7, ou
se pode acontecer que por vezes o sejam, esse inconveniente é preferível
ao inconveniente que seria ver o poder confiscado por um só. Guic­
ciardini declara-se assim favorável a um alargamento da composição
do Grande Conselho, seguindo nesse ponto o exemplo dos Romanos
que distribuíam generosamente o título de cidadão. Todavia, este alar­
gamento desejado do acesso à cidadania é ele próprio motivado pela
preocupação oposta de restringir a uns poucos o exercício efectivo do
governo do Estado. Com efeito, quanto mais alargado for o acesso ao
voto, tanto mais legítima pode parecer a pretensão de preencher sozi­
nho as funções electivas. Inversamente, no quadro de um Conselho
bastante restrito como é o caso do Grande Conselho, todos os que par­
ticipam no escrutínio podem achar-se autorizados a candidatar-se a
funções electivas. Aumentar o número dos eleitores permitiria assim,
não sem paradoxo, justificar mais facilmente a restrição do acesso às
responsabilidades ao pequeno número das pessoas competentes. Além
disso, essa restrição permitiria aos eleitores não elegíveis votar tendo
em conta o mérito real dos candidatos, e não um interesse particular
em ver eleito um candidato de preferência a um outro. Confiando na
máxima segundo a qual «a inclinação natural de todos os homens [...]
é perseguir o bem se os seus interesses não os afastarem dele8»,
Guicciardini afirma portanto claramente a compatibilidade do princípio
da legitimidade republicana do voto do maior número com o princípio
aristocrático da restrição a uns poucos do exercício efectivo do poder.
Todavia, importa sublinhar que esta última restrição não provém ape­
nas, no Discurso de Logrono, de uma predisposição ideológica contra o
povo, mas também, e sobretudo, da vontade política de tornar possível
um funcionamento mais eficaz das instituições republicanas florentinas
no seio de um ambiente geopolítico muito instável. Para tomar as
decisões que se impõem em matéria militar e em matéria de política

6 F. Guicdardini, Discurso de Logrono, in Escritos Políticos, op. cit, p. 59.


7 Ibid., p. 60.
8 Ibid., p. 61.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 175

externa, Guicciardini estima, com efeito, que é preciso não ,só restringir
o acesso aos cargos, mas igualmente eleger, seguindo o modelo
veneziano, um chefe susceptível de assegurar a permanência das insti­
tuições. Nas instituições florentinas, esta função foi preenchida, a par­
tir da reforma institucional de 1502, pelo gonfaloneiro vitalício Piero
Soderini. De facto, a introdução na lógica institucional florentina da
função de gonfaloneiro vitalício permite resolver a contradição entre o
imperativo republicano da participação política do maior número e
o imperativo de eficácia que exigia a promoção dos homens competen­
tes aos postos de responsabilidade. A eleição de um chefe vitalício ti­
nha de facto a vantagem de permitir que uma pessoa experiente se
ocupasse assiduamente dos interesses do Estado e, se fosse caso disso,
de «manter o segredo9», sem comprometer com isso a liberdade pública,
uma vez que a autoridade continuava a emanar apenas do Grande Con­
selho. Se desta instituição puderam «nascer efeitos muito bons10», é
porque um detentor de um cargo efectivo de curta duração «não pensa
senão no tempo que dura o seu cargo e mesmo, quando se aproxima o
fim deste, começa a não pensar mais nisso11», ao passo que o gonfa­
loneiro vitalício tem todo o tempo necessário para pensar nos interesses
do Estado. Se bem que ele não possa exercer um domínio pessoal,
porque isso seria contrário ao espírito de liberdade das instituições
republicanas, o gonfaloneiro vitalício deve preencher a função do
senhor, porque deve ter «essa preocupação e esses pensamentos que
têm os senhores para os seus próprios assuntos12».
Essa preocupação com a eficácia das instituições responde a um
preconceito metodológico realista, que encontramos igualmente em
Maquiavel e em outros escritores políticos florentinos da mesma época.
Mais do que «procurar um governo imaginado e que apareceria mais
facilmente nos livros do que na prática», Guicciardini prefere, como
manda dizer a Bernardo dei Nero, «procurar um governo que não de­
sesperemos de poder introduzir, depois de ter persuadido disso a
cidade, e que possamos, uma vez introduzido, aceitar a conservar tendo
em conta o nosso gosto»13. Ora, para isso, convém partir de uma
análise da natureza, isto é, das inclinações a dos «humores da cidade
a dos cidadãos»14, à maneira do médico que nunca administra uma
9 Tbid., p. 63.
10 Tbid.
11 Diálogo sobre aforma de governar Florença, in Escritos Políticos, op. d t , p. 230.
12 F. Guicciardini formula de forma muito vigorosa essa necessidade do lugar do mes­
tre em política: «Eis porque é que precisamos de um mestre [...]» (Md.).
13 Md., p. 224.
14 Md.
176 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

poção sem ter analisado previamente o estado dos humores do seu


paciente. A metáfora médica serve aqui para indicar que o filósofo po­
lítico deve renunciar ao método dos geómetras, que é o de julgar se­
gundo regras, para seguir a prática do médico que exerce o seu discerni­
mento em função de cada caso. Não poderia tratar-se para Guicciardini
de reconstruir a cidade a partir apenas das ideias, mas sim, levando em
conta a história específica dela, de proceder aos arranjos institucionais
susceptíveis de produzir os efeitos procurados. Esta crítica da utopia
política não implica só por isso uma renúncia à ideia de uma transfor­
mação possível das instituições, mas corresponde de preferência à von­
tade de «não tanto pensar em todo o bem que seria bom fazer como
naquele que podemos esperar poder fazer15». Se quisermos aplicar
esta máxima, convém também saber distinguir entre os nomes, por mais
sedutores que eles sejam, e a realidade efectiva das coisas. Assim, não'
chega, precisa Bernardo dei Nero, dizer de um Estado que ele é livre
para que imediatamente «se possam saborear os frutos da liberdade»;
ainda é preciso garantir que por detrás do nome que é «bom e agradá­
vel» os «efeitos» não sejam «semelhantes aos do tirano»16. Quando um
povo se vale da liberdade, quer dizer, da justiça e da igualdade, para
perseguir «indevidamente quem devia poder razoavelmente estar em
segurança», a liberdade transforma-se numa tirania tanto mais terrível
quanto é mais dissimulada. Pensar a política segundo os efeitos, e não
segundo a «doçura dos nomes», deve assim permitir confrontar qual­
quer projecto político, mesmo que seja o mais louvável, com a realidade
dos efeitos que ele produz.
No que respeita à reforma do regime popular, Guicciardini preco­
niza consequentemente um método prudente susceptível de evitar uma
transformação sub-reptícia da liberdade no seu contrário. Uma vez que
a substância do governo popular reside na liberdade, e que a liberdade
supõe a obediência às leis e não a um particular, será preciso evitar con­
fiar demasiado espaço no governo a ,um só indivíduo. Para evitar que
«ao cuidar do estômago se faça mal à cabeça», será igualmente preciso
preferir «deixar as coisas com alguma imperfeição a mais, de preferên­
cia a, ao querer tomá-las demasiado perfeitas, correr o risco de voltar a
cair na tirania»17. A preocupação com a verdade efectiva das coisas con­
duz assim Guicciardini a preferir a política do meio termo a uma política
que se inclinaria para os extremos como é, segundo ele, a de Maquiavel,

15 M i., p. 225.
16 Ibid.
17 Ibid., p. 226.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 177

a quem ele reprovará, nas suas Considerações, o gosto desmesurado pelo


recurso, na política, aos «remédios extraordinários e violentos18». Toda­
via, a diferença entre os pensamentos de Maquiavel e Guicciardini diz
menos respeito a este ponto do que à importância que o primeiro atri­
bui, contrariamente ao segundo, à ideia de uma eficácia específica da
virtude (virtú) em política. Ao submetê-la ao princípio moderno da efi­
cácia, Maquiavel modifica substancialmente a concepção clássica da vir­
tude política, abrindo assim o caminho a um pensamento que permane­
cerá, até Montesquieu, sem posteridade imediata.
Depois da sua demissão da segunda Chancelaria — consequência
directa do regresso ao poder dos Médicis, em 1512 — e do seu exílio no
seu pequeno domínio de Sant'Andréa da Percussina, Maquiavel orientará
a sua reflexão numa dupla direcção, não simultaneamente como alguns
comentadores afirmaram durante muito tempo19, mas em duas fases
sucessivas: em O Príncipe, que ele redige no início do seu exílio, no Outono
de 1513, ele esforça-se por conquistar as boas graças dos novos mestres
de Florença, mostrando-lhes como um príncipe deve governar um
Estado que acaba de submeter pela força20; nos Discursos sobre a primeira
década de Tito Lívio, que redige depois do fracasso da sua tentativa de
regresso às boas graças para junto dos Médicis, provavelmente entre
1514 e 151921, toma o partido dos republicanos mostrando-lhes em
que condições uma república se pode tomar efectiva. A diversidade
das orientações políticas destes dois livros é patente, e não serviria de
nada, para salvar a todo o custo a unidade e a coerência do projecto
maquiaveliano, querer ignorá-la. A razão que presidiu a esta mudança
de atitude pode aliás deduzir-se da análise que Maquiavel propõe, nos
seus Discursos, do comportamento de Júnio Bruto, que simulou a loucura
durante algum tempo, antes de assumir a chefia da insurreição contra

18 F. Guicciardini, Considérations à propos des Discours de Machiavel, traduzido por Lucie


De Los Santos, Paris, L'Harmattan, 1997, p. 94.
19 A crítica mais convincente da hipótese da redacção simultânea do Príncipe e dos
Discursos é desenvolvida por H. Baron, em «Machiavelli: the Republican Citizen
and the Author of "The Prince"», in The English Historical Review, 76,1961, pp. 217-253,
retomada em In Search of Florentine Civic Humanism, vol. 2, Princeton, N o v a jérsia,
Princeton University Press, 1988, pp. 101-151.
20 Numa carta a Francesco Vettori de 10 de Dezembro de 1513, Maquiavel explica que
devendo um livro como o seu ser bem acolhido «por um príncipe e em particular
por um príncipe novo», ele o «dedica por consequência a Sua Magnificência Juliano
[de Médicis]» (Opere, S. Bertelli et al. [ed.], 8 vols., Milão, 1960-1965, tomo 6, p. 304,
citado em F. Gilbert, op. cit, pp. 131-132).
21 Ver Q. Skinner, The Foundations of Modem Political Thought, Cambridge, Cambridge
University Press, 1978, vol. 1, p. 154.
178 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

a realeza dos Tarquínios. Àqueles que pretendem que «a via do meio


seria a mais segura», e que seria preciso não estar nem demasiado próximo
nem demasiado afastado do príncipe, Maquiavel responde, com efeito,
que essa via é impossível de seguir, porque um déspota não seria capaz
de aceitar que um homem de valor se mantivesse à distância em relação
a ele. Igualmente, «aqueles que estão descontentes com um príncipe
devem inspirar-se no exemplo» de Bruto: «Devem primeiramente
medir e pesar as suas forças e, se forem suficientemente poderosos para
se revelarem e lhe fazerem guerra abertamente, devem optar por essa
via como sendo a menos perigosa e a mais honrosa. Mas, se as suas for­
ças não chegarem para lhe fazer guerra abertamente, devem esforçar-se
para se tomarem a todo o custo amigos dele22.» Estas propostas resu­
mem bem a linha de conduta de Maquiavel relativamente aos príncipes
da família Medieis: consciente da fraqueza dos seus meios para lhes re­
sistir, ele procurou primeiro aquiescer, «louvando, falando, fazendo coisas
contrárias ao seu próprio gosto», o que equivalia a «fingir a loucura»23,
e depois, quando viu o insucesso dos seus esforços, afastou-se resolu­
tamente deles, para se juntar ao grupo dos republicanos que se reuniam
nos jardins Oricellari em tomo de Cosimo Rucellai (1495-1519). O Príncipe
pode assim ler-se como a inversão temporária das convicções republi­
canas do seu autor, temporariamente forçado a procurar protecção junto
dos tiranos. Pode igualmente ler-se, a partir da exhortatio que fecha a
obra, como a expressão de uma esperança sincera na capacidade dos
Médicis para libertar a Itália do domínio das potências estrangeiras.
Seduzido por um tempo pela possibilidade de uma tal libertação,
Maquiavel teria regressado rapidamente à defesa do modelo republi­
cano florentino. Qualquer que seja a razão última das suas divergências
políticas, O Príncipe e os Discursos têm em comum uma igual preocu­
pação de pensar a política como uma disposição para agir em função de
um princípio específico de eficácia.

O princípio de eficácia segundo Maquiavel


e a acção política dos príncipes

Tal como o pensamento de Guicciardini, o pensamento político de


Maquiavel caracteriza-se pela atenção constante que dá à «verdade

22 Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, III, II, trad. C. Bec, in Oeuvres, Paris,
Robert Laffont, 1996, p. 374.
23 Ibid.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 179

efectiva das coisas» (alia verità effetuale delia cosa)2i. Maquiavel exige com
efeito, e é o primeiro sentido da sua célebre fórmula, que o pensamen­
to político não se perca nas miragens da utopia: «Numerosos são os
que imaginam repúblicas e monarquias as quais nunca vimos ou sou­
bemos que tenham verdadeiramente existido2 25.»
4 Os autores visados
por esta afirmação erraram ao confundir as virtudes ideais do príncipe
a as virtudes específicas que são requeridas àquele que deseja manter-se
no poder (mantenere lo stato)26, ou seja, àquele que tem como único fim
a conservação e o aumento das posições de autoridade que conquistou.
Esses autores cometeram nomeadamente o erro de terem querido des­
crever o real a partir da lógica das suas ideias em lugar de ter querido
conformar as suas ideias à lógica do real. Como a lógica do real é uma
lógica dos efeitos, e não uma lógica do sentido, Maquiavel entende que
se deve partir dos efeitos produzidos pelas acções, e não daquilo
que pode dar sentido a uma acção numa justificação posterior. Se pode
ter importância que um príncipe tenha em conta o significado da sua
acção, é apenas na medida em que esse significado é um efeito produ­
zido pela acção sobre a opinião da maioria, e que esse efeito de sentido
é susceptível de modificar a relação de dominação que o príncipe man­
tém com os seus súbditos. Dois preceitos guiam neste ponto o pensa­
mento de Maquiavel, a saber, primeiramente, a ideia de que «é perigoso
assumir a responsabilidade de um empreendimento novo, envolvendo
muita gente27», e, em segundo lugar, a ideia de que em política apenas
conta a opinião da maioria28. Uma vez tomada a decisão de se empe­
nhar na via perigosa da política, é preciso saber analisar judiciosamente
as situações a formular correctamente os problemas, a saber, em
termos de efeitos produzidos (effetti)29 e não em termos de significado.

24 Maquiavel, O Príncipe, in Le Prince et les premiers écrits politiques, edição bilingue de


C. Bec, Paris, Gamier, 1987, pp. 362-363.
25 Ibid.
26 M. Senellart considera que a afirmação de Maquiavel não visa tanto a República de
Platão e os Espelhos dos príncipes medievais como, mais precisamente, «os autores
italianos que, na segunda metade do século xvi, tinham redefinido os critérios éticos
do bom governo» (Les Arts de Gouverner. Du regimen médiéval au concept de
gouvernement, Paris, Seuil, 1995, p. 216). Entre as obras envolvidas, podemos citar o
De regno et regis institutione (entre 1481 e 1484) de F. Patrizi e o Livre du courtisan
(1513) de Baldassar Castiglione.
27 Discursos, III, XXXV, op. cit., p. 443.
28 «No mundo não há senão o vulgar; o pequeno número não tem nele lugar, enquanto
o grande número tem onde sè apoiar» (O Príncipe, cap. xvm, op. cit, p. 381).
29 O termo effetti surge muito frequentemente sob a pena de Maquiavel, tanto em
O Príncipe como nos Discursos.
180 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Depois da queda da república e da consecutiva perda do seu posto


de secretário da Segunda Chancelaria30, Maquiavel compôs, provavel­
mente entre Julho e Dezembro de 151331, um De principatibus, no qual
retomou, ordenou e interpretou as observações que tinha feito durante
os catorze anos que tinham durado as suas funções oficiais ao serviço
da república. Reencontramos em O Príncipe certas descrições de perso­
nagens ou de acontecimentos já presentes nos relatórios de legação do
período de actividade diplomática32; contudo, essas descrições servem
doravante para ilustrar regras gerais que devem guiar a acção do prín­
cipe. As dicotomias que estruturam os catorze primeiros capítulos da
obra permitem, além disso, um inventário exacto dos diferentes tipos
de monarquias e das principais determinações da função dos prínci­
pes. Uma vez afastados os republicanos, a distinção essencial é a que
opõe as monarquias hereditárias e as monarquias novas. Porque estão
acostumadas «à linhagem do seu príncipe», as monarquias hereditá­
rias conservam-se desde que o príncipe não negligencie as instituições
dos seus antepassados e se ele for capaz de temporizar com os aconte­
cimentos. Neste tipo de monarquia, de modo algum é necessário recor­
rer a meios extraordinários, porque «uma habilidade ordinária» chega
para se manter à frente do Estado. Se, na sequência de circunstâncias
excepcionais, o príncipe natural (príncipe mturale) é levado a perder o
poder, pode geralmente reconquistá-lo sem demasiado esforço, pois
goza de uma legitimidade antiga que se traduz pelo hábito de lhe obe­
decer que o seu povo tem.
A transmissão hereditária do poder constitui assim uma garantia
da permanência do Estado (lo stato), a saber, da manutenção de um
mesmo indivíduo ou de uma mesma família à frente do país33. De facto,
a continuidade do poder faz desaparecer a lembrança dos aconteci­
mentos, frequentemente violentos, que permitiriam num passado mais

30 Criada em 1437, a Segunda Chancelaria era mais particularmente responsável pela


correspondência relativa à administração dos territórios ocupados por Florença, como
os de Pisa e de Pistoia por exemplo, a propósito dos quais Maquiavel teve que escre­
ver os relatórios quando foi secretário da Segunda Chancelaria entre 1498 e 1512.
31 O prefácio a Lourenço de Médicis deve ter sido redigido entre Setembro de 1515 e
Setembro de 1516.
32 A descrição de César Bórgia, em particular, que encontramos no capítulo vn de
O Príncipe é muito directamente inspirada nos relatórios de legação que Maquiavel
tinha tido que redigir quando da sua missão junto do duque de Valentinois. Cf. Le
Prince et les premiers écrits politiques, op. cit, pp. 72-85.
33 Sobre os diferentes significados do termo stato em Maquiavel, ver F. Chabod, «Alcune
questioni di terminologia: Stato, nazione, patria nel linguaggio dei cinquecento», in
Scritti sul Rimscimento, 1957, pp. 625-637.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 181

ou menos longínquo a entronização desta ou daquela dinastia de prín­


cipes. Uma vez transformado em costume, este esquecimento é a me­
lhor garantia contra o pôr em causa do poder instalado; inversamente,
a lembrança de «uma mudança deixa um ponto de apoio para que se
edifique uma outra34».
A instabilidade política introduzida por uma mudança brutal ca­
racteriza propriamente as monarquias recentemente adquiridas, quer
seja pelo monarca de um outro país, caso em que falaremos de «monar­
quias mistas», ou por um indivíduo que se apodera de um Estado. Este
tipo de monarquia está no centro da análise maquiaveliana, porque «é
na monarquia nova que residem as dificuldades35». O novo príncipe é
confrontado de facto com uma dupla dificuldade que se deve, por um
lado, à inimizade do povo conquistado que a invasão militar submeteu
à violência das armas e, por outro lado, à inimizade dos habitantes do
país que o ajudaram na sua conquista, mas que não puderam ser re­
compensados como pensavam que deviam ser. Para dar conta da con­
duta a seguir por um novo príncipe, o método maquiaveliano consiste
em partir de um caso particular para subir até à regra geral (regola
generale) que o explica. Tomando como exemplo o fracasso do domínio
de Luís XII sobre a Lombardia, Maquiavel observa que o rei de França
não tinha respeitado nenhum dos preceitos que outros príncipes novos
tinham seguido para conquistar Estados e conservá-los. Tinha nomea­
damente com etido cinco erros, que M aquiavel resume assim ,
generalizando-os: «Ter abatido os menos poderosos; ter aumentado na
Itália o poder de um poderoso; ter introduzido na Itália um estrangeiro
muito poderoso; não ter vindo residir em Itália; não ter instalado coló­
nias no país36». A função da análise maquiaveliana consiste em mostrar
aqui que os fracassos de Luís XII nas suas tentativas expansionistas não
foram de forma nenhuma fruto do acaso, mas a confirmação directa de
regras gerais da lógica da acção política. De facto, desprovido da legiti­
midade que protege o príncipe natural, o novo príncipe não se pode
permitir a menor falta na condução da sua acção.
Entre as condições que presidem à aquisição de uma monarquia
por um príncipe inteiramente novo, isto é, por um hpmem que não
possui já uma monarquia, Maquiavel coloca em primeiro plano a virtú
e afortuna. Por vezes traduzida por «valentia», a palavra virtú designa
essa qualidade própria do príncipe, que lhe permite apreender a ocasião

34 O Príncipe, op. cit., cap. n, p. 263.


35 Ibid.
36 Ibiâ., cap. in, p. 277.
182 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

(occasione) favorável à sua acção. Contrariamente à virtude moral que


só pode ser definida relativamente às qualidades da alma, a qualidade
de alma que é a virtú do príncipe maquiaveliano não se toma efectiva a
não ser na série de acontecimentos em que se insere. Se a própria oca­
sião depende do olhar do homem virtuoso (virtuoso), a força de alma
(virtú áello animo) do novo príncipe não produz efeitos apenas porque
a ocasião de agir se lhe apresenta. Se bem que ele não entenda de forma
nenhuma deificar o poder que causa o advir da ocasião — essa for­
tuna dos antigos37 que a proviáentia cristã não traduz senão imperfeita­
mente —, Maquiavel entende contudo mostrar que a acção do virtuoso
é indissociável das circunstâncias em que se produz. Depois de ter
reconhecido que tinha por vezes atribuído demasiada importância ao
poder da fortuna e à tese dos fatalistas, acrescenta que, se bem que
«ela nos deixe governar a outra metade, ou aproximadamente», a for­
tuna é sem dúvida «o árbitro da metade das nossas acções»38. Adop-
tando o modelo de Moisés, Ciro, Rómulo e Teseu — que se tomaram
príncipes apenas por causa da sua própria valentia e da sua energia —,
quem aspira ao principado deve assim considerar a trama dos aconte­
cimentos que produz a fortuna como a «matéria onde introduzir a
forma»39que lhe parecer a melhor. Esta matéria a que um príncipe deve
dar forma à maneira do artesão de Aristóteles é uma matéria comple­
xa, que compreende tanto a série dos acontecimentos como a opinião
dos homens que se trata de governar. Se deve saber convencer o povo,
a designar as vias do futuro através da sua profecia, o novo príncipe
não pode, contudo, contentar-se com a persuasão. A sua força de con­
vicção deve ser escorada pela força das armas, para que, quando os
seus súbditos já não acreditarem nele, «os possa fazer acreditar pela
força40». E preciso evitar a desventura de Jerónimo Savonarola que per­
deu o poder e a vida, porque não se soube dotar de meios militares

37 Relativamente à divinização da Fortuna no pensamento antigo, podemos citar o


testemunho de Plínio, o Antigo: «De facto, no mundo inteiro, em toda a parte, a
todas as horas, as vozes de todos os homens invocam e nomeiam apenas a Fortuna.
[...]. Imputamos-lhe todo o passivo e todo o activo; no grande livro das contas da
humanidade, ela sozinha preenche as duas colunas, e a nossa condição está-lhe tão
submetida que a própria Fortuna, que prova a incerteza de Deus, toma o lugar de
Deus» (Plínio, o Antigo, História natural, livro n, cap. v, Paris, Les Belles Lettres,
p. 14).
38 O Príncipe, op. cit, cap. XXV, pp. 431. Sobre a refutação do argumento fatalista por
Maquiavel, ver P. Valadier, Machiavel et la fragilité du politique, Paris, Seuil, 1996,
pp. 49-52.
39 O Príncipe, op. cit, cap. vi, p. 293.
40 Ibid., p. 295.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 183

para se assegurar da obediência daqueles que tinham acreditado nele


e para forçar os incrédulos. Verdadeiro exemplo do «profeta desar­
mado»41, Savonarola devia sem dúvida ter, a exemplo de Híeron de
Siracusa, confiado menos na profecia do que na virtude das armas.
A importância que Maquiavel atribui ao poder das armas não deve
contudo induzir-nos em erro: a estratégia militar ou criminal continua
sempre submetida à virtú. Se fala de um tirano virtuoso (tyranno vir­
tuoso), não é para fazer a apologia da tirania enquanto tal, ou para apa­
gar a diferença que Xenofonte tinha estabelecido entre o rei justo e o
tirano42, mas para distinguir dois casos da violência política. Enquanto
Híeron de Siracusa, quando libertou os siraçusanos da opressão, tinha
utilizado a violência em conformidade com a virtú, em contrapartida,
Agátocles, para se apoderar de Siracusa, tinha feito um uso da violên­
cia indigno de um homem virtuoso. Maquiavel sublinha assim que não
podemos «chamar virtú ao facto de matar os seus concidadãos, de trair
os seus amigos, de não ter palavra, piedade ou religião», pois essas
maneiras podem «fazer com que se conquiste o poder (império), mas
não a glória (gloria)»43. Se bem que um príncipe deva saber escolher
quando é preciso a via do mal, a utilização da violência em política não
é em si mesma gloriosa, a não ser quando constitui uma resposta ade­
quada à necessidade. Se o retrato das virtudes do príncipe que Maquiavel
apresenta não é com certeza um retrato ideal, também não constitui
uma apologia pura e simples da utilização da violência em política.
A virtude não é definida em Maquiavel como uma qualidade moral
intrínseca, mas a partir dos efeitos que produz sobre o povo, efeitos que
se traduzem em termos de louvores e censuras44. Esta exigência de efi­
cácia encontra-se na regra, formulada no princípio do capítulo xv, se­
gundo a qual é «necessário a um príncipe, se quiser manter-se, apren­
der a poder não ser bom, e a usar ou não usar isso segundo a
necessidade45». Portanto, o essencial não é tanto que o príncipe cultive
as virtudes por si mesmas mas sim que pareça tê-las, porque a acção

41 Md.
42 Leo Strauss defende a tese inversa, segundo a qual Maquiavel teria querido arrui­
nar a diferença estabeledda por Xenofonte entre a realeza e a tirania. Cf. De la tyrannie,
Paris, Gallimard, 1983, p. 45.
43 O Príncipe, op. cit, cap. vm, p. 315.
44 Porque conjuga as ideias de virtude e de eficácia, a expressão forjada por Tomás de
Aquino para designar a virtude de prudência própria do príncipe — virtus efficax —
pode ser considerada como uma primeira formulação do problema colocado pela
virtú maquiaveliana. Cf. Suma Teológica, 2a-2ae, qu. 47, art. 11, título, p. 55; citado
por M. Senellart, op. cit, p. 221.
45 O Príncipe, op. cit, cap. xv, p. 363.
184 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

eficaz do príncipe seria entravada se o povo já não acreditasse na sua


virtude. A ética da responsabilidade, que impõe ao príncipe que
aja tendo em vista o sucesso da acção empreendida, impõe-lhe igual­
mente que renuncie a praticar as virtudes que podem criar obstáculos
a essa realização eque pratique os vícios que podem trazer-lhe «segu­
rança e felicidade46». Esta regra geral é aplicada, no capítulo xvi
de O Príncipe, à liberalidade e à parcimónia, no capítulo xvn, à cruel­
dade e à piedade e, no capítulo xvni, ao respeito pela palavra dada e à
astúcia.
A crítica que formula em relação à virtude de liberalidade mostra
claramente que o propósito de Maquiavel é nada menos que ma­
quiavélico: a sua intenção não é tanto a de fazer uma apologia da avareza
como a de pôr em evidência a incidência política da crença popular na
liberalidade do príncipe. De facto, se nos limitarmos à aparência das
coisas, não é bom gabar a avareza de um monarca; é muito preferível,
para seduzir um povo, parecer generoso. Contudo, essa virtude aparente
será causa da ruína do príncipe, se ele não souber desprender-se dela,
: como soube fazer o papa Júlio n, que retomou princípios estritos de eco-
j nomia depois de ter acedido ao papado graças à sua reputação de gene-
j rosidade. Nada como, com efeito, uma economia sã para empreender
! guerras longas e dispendiosas: o vício aparente transforma-se então no
| seu contrário, uma vez que a parcimónia do príncipe evita que o povo
i tenha que financiar o exército através de impostos excepcionais. A mes-
1ma regra vale para a crueldade e para a piedade: se é verdade que a
; crueldade enquanto tal suscita o temor e não o amor dos homens, não é
: menos verdade que um príncipe não poderia confiar a sua salvação
apenas ao amor que lhe pudesse ser dado pelo seu povo, porquanto os
! homens são «ingratos, mutáveis, simuladores e dissimuladores, cobardes
diante dos perigos, ávidos de lucro47». Confiar no amor e na palavra dos
seus súbditos equivale, para um príncipe, a expor-se à traição ao mínimo
revés da fortuna, porque, sendo os homens malvados, não hesitariam
nunca em romper uma obrigação fundamentada na confiança, ao passo
que se abstêm sempre de infringir uma convenção fundada no temor de
um castigo. Todavia, o temor que um príncipe inspira aos seus súbditos
não deve transformar-se em ódio, porque este é um sentimento mais
forte que o temor, e um príncipe deve sempre evitar os atentados aos
bens e às mulheres dos seus súbditos. Para evitar que o temor se trans­
forme em ódio, o príncipe deve também saber dar a impressão de que
DE MAQUIAVEL AHOBBES... 185

respeita a lei e a palavra dada, embora sabendo utilizar, quando for pre­
ciso, a força e a astúcia. Usando como modelo o comportamento dos
animais, um príncipe deve mais particularmente imitar a raposa e o leão,
porque a astúcia da primeira permite-lhe evitar as armadilhas e a força
do segundo permite-lhe vencer os lobos48. De facto, a utilização da astú­
cia é uma característica permanente da acção política e, entre as astúcias
políticas, a principal é a de não respeitar a palavra dada: o papa Alexan­
dre VI (1492-1503), que passou a sua vida a dissimular os seus perjúrios,
foi de todos os homens o «mais eficaz (efficaáa) a pretender uma coisa»,
a «afirmá-la com os maiores juramentos»49, e a respeitar o menos possí­
vel estes últimos. Este comportamento encontra uma vez mais a sua jus­
tificação última na maldade dos homens, a saber, neste caso, no facto de
os homens serem mentirosos e perjuros. Para se manter no poder, um
príncipe que saiba não poder contar com a fidelidade dos seus súbditos
deve saber não se envolver em compromissos que lhe seriam prejudi­
ciais. No fim de contas, as máximas formuladas em O Príncipe compõem
uma arte de governar que assenta no essencial na capacidade de um
príncipe dar uma imagem favorável de si mesmo e da sua acção, ou,
para dizê-lo de outra forma, de integrar nessa mesma acção a represen­
tação que o povo tem da sua acção. Se Maquiavel estende ao príncipe do
Renascimento um espelho onde contemplar a sua imagem, é segura­
mente uma imagem desdobrada que nele se reflecte, do príncipe tal como
deve agir e tal como deve parecer ao seu povo que ele age. O propósito
dos Discursos afasta-se seguramente desta encenação da figura princi­
pesca. Não se trata doravante de compreender a que lógica responde a
acção de um só, mas de compreender em que condições uma organiza­
ção política fundada com vista ao bem comum e animada pela preo­
cupação da liberdade é susceptível de resistir ao fenómeno recorrente
da corrupção.

O pensamento republicano de Maquiavel


ou a difícil refundação moderna
da liberdade dos Antigos

A época durante a qual Maquiavel redigiu os seus Discursos Sobre a


Primeira Década de Tito Lívio foi marcada por um regresso em força dos
principados. Os Medieis retomaram o poder em Florença em 1512,

48 Ibid., cap. xvrn, p. 377.


49 Ibid., p. 379.
187
DE MAOUIAVELAHOBBES-
186 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

argumento, é claro que a liberdade vale menos por ela própria do que
depois de um interregno republicano de dezoito anos, e mantê-lo-ão
petosefeitos, apreciados em termos de ganho de poder e de riqueza,
sem interrupção após o fracasso de uma última refundação republi­
que produz. A^emonstração de Maquiavel a favor da ^ b h c a as­
cana entre 1527 e 1530. Por todo o resto de Itália, até à sua extinção
completa no fim do século xvi, as cidades livres cederão progressiva­ senta também, no entanto, em dois pressupostos ^pecificamente p
mente o lugar a formações políticas de tipo monárquico. Esta tendên­ ticos a saber, primeiramente, que «não é o bem individual, mas o bem
cia histórica, que encontrou a sua expressão nas teorias absolutistas do I r a i que constitui a grandeza das cidades» e, em segundo lugar, que o
fim do século xvi, não arrastou, porém, o desaparecimento puro e sim- «bern geral não é certamente observado a nao ser nas republicas» .
pies de toda a reflexão sobre o modelo político republicano. As teorias Destespressupostos deduz-se logicamente a tese segundoa qual uma
elaboradas pelos humanistas do primeiro Renascimento, como Coluccio tirania desencadeia na melhor das hipóteses uma estagnaçao, na piore
Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (1369-1444) e Leon Battista Alberti o mais das vezes, uma regressão do poder e da riqueza do Estado^
(1404-1472), encontraram, com efeito, um prolongamento no pensa­ Na hipótese pouco provável em que um tirano dana provas desse
mento republicano florentino do fim do século xv e' princípio do xvi. dinamismo e de energia, o benefício da sua acçao nao aproveitar
Se bem que sejam originais em mais do que uma perspectiva, os ao seu povo, pois um tirano é incapaz de redistribuir riqueza e
Discursos de Maquiavel inscrevem-se de facto muito claramente na pos­
teridade do pensamento republicano dos humanistas florentinos do P° A preocupação maquiaveliana de pensar a republica a partir dos
primeiro Renascimento50. Retomam, em particular, o ideal de liberdade efeitos que ela produz reencontra-se, por outro lado, na escolha do
i defendido com uma força muito particular por Francesco Patrizi método seguido nos Discursos. Se bem que se inspire largamente no
; (1412-1494). Consciente do facto de que é mais fácil dizer mal dos po­ comentário humanista dos Antigos, o método dos Discursos carac
; vos51 do que dos príncipes52, Maquiavel, nos seus Discursos, toma o teriza-se, com efeito, por uma preocupação aguda com a eflcacia Pr^ '
! partido da virtude política dos povos livres. Não esquecendo, todavia, Se importa reler Tito Lívio, não é antes de tudo por amor pela Antigui
Ia lição de O Príncipe, justifica a sua adesão aos valores da república dade, ou porque o passado é sempre mais rico de ensinamentos do qu
iatravés de uma preocupação de eficácia política que não encontramos o presente56, mas porque essa leitura é susceptível de guiar a acçao
nos seus precursores florentinos do início do século xv. Assim, a propó- homens políticos, da mesma maneira que a leitem do Coiyusjuns civüis
isito dos povos livres de Itália que resistiram encamiçadamente às guer- pôde guiar os juristas modernos nas suas actividades judiciais . A aten
|ras imperialistas dos Romanos, escreve ele que o seu «afecto pela liber­ ção que dá à prática leva assim Maquiavel a interrogar-se mais atenta­
dade» se devia à convicção de que «as cidades não ganharam em poder mente do que os seus precursores sobre as condiçoes concretas da rea­
e em riqueza a não ser na medida em que tinham sido livres»53.* Neste lização do modelo republicano. Longe de esquecer o principio de
eficácia de que tinha lançado mão na sua reflexão sobre os príncipes,
50 Para uma crítica da tese formulada por Hans Baron, em The Crisis ofthe Early Italian
; Remissance (Princeton, Princeton University Press, 19661, de acordo com a qual a
esterca-se! pelo contrário, nos Discursos, por pô-lo ao serviço da sua
; im portância da reflexão política dos humanistas florentinos do prim eiro reflexão sobre as repúblicas. Se o ideal político que orienta a redacçao
: Renascimento — corrente designada por Baron sob o nome de «humanismo cívico» de O Príncipe e dos Discursos é incontestavelmente diferente, permane
; — seria devida apenas à resistência de Florença aos objectivos expansionistas de ce contudo inalterada a tese segundo a qual, uma forma política nao se
| Milão, ver Quentin Skinner, op. cit., vol. 1, pp. 69-84.
conseguiria manter sem levar em linha de conta as asperezas da
51 «A opinião desfavorável ao povo vem do facto de toda a gente dizer mal dele sem
| temor e livremente, mesmo quando ele governa; criticam-se sempre os príncipes matéria em que se deve incarnar, isto e as vicissitudes da histor
i com mil temores e suspeitas» (Discursos, I, LVIII, op. cit., pp. 288). as disposições políticas dos homens. Consciente da fragilidade das
52 A glória de César está ligada à ausência de liberdade, na qual os escritores tiveram
I durante muito tempo que se exprimir livremente sobre os seus actos e de formà
| nenhuma sobre a sua virtude: «Que ninguém se deixe enganar pela glória de César, 54 Ibid.
j vendo que ele é tão celebrado pelos escritores. Com efeito, esses que o louvam são 56 N o p re fá c io d o s e u s e g u n d o D iscu rso (op. cif., p p . 291-293), M a q u ia v e l a n a lisa o
Iseduzidos pelo seu feliz destino e assustados pela longa duração do império, cujos p re c o n c e ito q u e c o n d u z o h o m e m a lo u v a r sis te m a tic a m e n te o p a s s a d o , e a c n ti
Ichefes usavam o seu nome, que não lhes permite exprimirem-se livremente acerca
s e m d isce rn im e n to o p re se n te .
dele» (Discursos, I, X, op. cit., p. 211).
53 Discursos, II, II, op. cit., p. 297. 57 Discursos, I, op. cit., p re fá c io , p p . 187-188.
I
188 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

repúblicas, e especialmente da fragilidade da república florentina58,


Maquiavel é assim conduzido a considerar a constituição republicana
do ponto de vista das forças que a ameaçam. O desejo de liberdade que
caracteriza propriamente uma república está de facto perpetuamente
ameaçado, no exterior pelo apetite de conquista das potências vizinhas
e no interior pela vontade de alguns de fazer prevalecer o seu interesse
particular sobre o interesse geral. A fragilidade das repúblicas deve-se
igualmente à sua recusa de privilegiar uma categoria particular de ci­
dadãos, nos casos em que as monarquias mantêm indefinidamente uma
classe de agradecidos ou de pensionistas. Porque um regime livre «dis­
tribui cargos e proveitos em função de razões honestas e precisas, e,
fora isso, não recompensa nem honra ninguém», aquele que, num tal
regime, acede a um cargo «não se sente em nada obrigado relativa­
mente àquele que o recompensa»59. Contrariamente ao jugo da servi­
dão, o benefício da liberdade quase não se faz sentir: usufruir livre-
; mente dos seus bens, não ter que temer nem por si mesmo nem pelos
seus parecem, com efeito, bens de pouca monta enquanto não estão
ameaçados60. A evidência da liberdade constitui também toda a sua
! fragilidade.
A história da virtude republicana — que é o fundamento da liber-
1 dade dos povos — deve portanto compreender-se como uma luta perpe­
tuamente recomeçada contra os perigos que ameaçam a liberdade. Se
| bem que Maquiavel estime «que o mundo foi sempre igual a que sem-
S pre houve nele tanto bem como mal61», não deixa de esboçar um per-
! curso da virtude através das épocas e dos países — da Assíria a Roma,
e de Roma à Alemanha, passando pelo reino dos Francos e pela seita
j dos Sarracenos62 —, que se aparenta um pouco com uma filosofia da
história. No interior deste périplo sem finalidade, ele acentua todavia
a história da virtude republicana, e, entre os diferentes modelos repu-
i blicanos, retém o modelo romano da república de preferência ao mo­
delo veneziano. Não partilhando da admiração dos seus contemporâ-

58 Na sua História de Florença, que redige entre 1520 e 1525, a pedido do papa Medieis
Clemente VII, Maquiavel apresenta a história da república florentina como um
I lento e inexorável processo de corrupção das instituições e dos costumes,
j 59 Discursos, I, XVI, op. d t , p. 223.
i 60 Maquiavel observa muito judiciosamente que a fragilidade da liberdade se deve ao
facto de que ninguém «se confessará reconhecido àqueles que não o atacam» (Dis-
- cursos, I, XVI, op. cit, p. 223). Podemos interrogarmo-nos se as teorias da obrigação
i não assentam inversamente na eventualidade, mais ou menos imediata, de uma
agressão.
61 Discursos, II, op. cit., prefácio, p. 292.
! 62 Ibid.
DE MAQUIAVEL A H O BBES- 189

neos pela Sereníssima63, Maquiavel explica a sua escolha por uma von­
tade de apresentar a república como um regime dinâmico, mesmo que
essa dinâmica seja a do imperialismo, e não como um regime estático,
condenado a manter dentro de fronteiras intangíveis um perpétuo statu
quo. Em lugar de adoptar como modelo a demasiado serena Veneza,
Maquiavel prefere interrogar-se sobre as contradições dinâmicas da
Roma republicana. No primeiro livro dos seus Discursos, dedica-se
assim a evidenciar as condições políticas da formação progressiva da
república romana; no segundo, mostra em que é que a sua constituição
em república permitiu a Roma conquistar o seu império; e, por fim, no
terceiro, sublinha o papel da acção individual na preservação, ou na
perda, da liberdade republicana.
No primeiro livro dos seus Discursos, Maquiavel defende duas te­
ses principais, a saber, em primeiro lugar, que um regime misto é pre­
ferível a um regime simples, em segundo, que os Romanos chegaram à
perfeição do seu regime graças ao conflito que opôs o senado à plebe.
A primeira destas teses é uma tese clássica colhida em Políbio, que tinha
pensado encontrar na constituição mista um remédio para a dege­
nerescência obrigatória das formas simples que são a monarquia, a
aristocracia e a democracia. Comparando os méritos respectivos das
constituições dadas por Licurgo a Esparta e por Sólon a Atenas,
Maquiavel observa que Licurgo «organizou tão bem as leis em Esparta
que, dando a sua parte aos reis, aos optimates e ao povo, edificou um
Estado que durou mais de oitocentos anos64», ao passo que o regime
democrático fundado por Sólon foi substituído, antes da morte deste
último, pela tirania de Pisístrato. Se bem que os atenienses tenham adop-
tado pouco a pouco leis para lutar contra a insolência dos poderosos e
a licenciosidade da multidão, não tendo essas leis dado direito de cida­
dania ao princípio monárquico e ao princípio aristocrático, não asse­
guram uma estabilidade suficiente ao Estado. Fundado sobre um só
princípio constitucional, a saber, o princípio democrático, a república
ateniense não pôde escapar ao ciclo, descrita por Políbio, do encadea­
mento dos regimes simples. O poder da república romana, como a de
Esparta, explica-se inversamente pela forma mista da sua constituição
política. Contudo, diferentemente de Esparta, Roma não deve a sua
constituição à sabedoria de um único legislador, mas a um processo
histórico singular que conduziu os seus habitantes a corrigir progressi­
vamente os defeitos da sua primeira constituição monárquica.

63 Sobre a função de Veneza como «conceito e como mito», ver J. G. A. Pocock (1975),
Le Moment machiavélien, trad. fr. Luc Borot, Paris, PUF, 1997, cap. dc.
64 Discursos, I, II, op. cit, p. 194.
190 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

A história de Roma, relida por Maquiavel, conjuga num ponto no­


tável a acção de homens políticos excepcionais e o acaso dos aconteci­
mentos. A ordem de exposição do primeiro livro dos Discursos, não
obstante, insiste mais particularmente na lógica dos acontecimentos que
obrigariam os Romanos a fazer evoluir incessantemente a sua consti­
tuição. Se a passagem da monarquia à república foi incontestavelmente
resultado da valentia de Júnio Bruto, que soube convencer os seus
concidadãos, depois da violação de Lucrécia, a pôr termo à tirania dos
Tarquínios (510 a. C ), a introdução dos tribunos da plebe — e portanto
do princípio democrático — foi o culminar das lutas que opuseram,
desde a expulsão dos últimos reis de Roma até aos Gracos65, a nobreza
e a plebe. Supondo a título de hipótese que «todos os homens são maus66»,
Maquiavel mostra que o comportamento democrático da nobreza
romana depois da expulsão dos Tarquínios não foi devida a uma súbita
simpatia pelo povo, mas pelo receio de ver estabelecer-se uma aliança
entre os Tarquínios exilados e a plebe. Quando a morte dos últimos
Tarquínios excluiu a possibilidade de tal aliança, «os nobres, já não
tendo medo, começaram a cuspir sobre a plebe o veneno que tinham
dissimulado67». As desordens que se seguiram conduziriam à institui­
ção dos tribunos da plebe, cuja função era proteger o povo da violência
da nobreza. Defendendo a ideia segundo a qual a desunião entre a
plebe e o senado foi a principal causa da liberdade de Roma, Maquiavel
tendia para reduzir a opinião daqueles que consideravam que a gran­
deza de Roma não se devia senão à fortuna e à valentia dos seus exér­
citos. Recusando-se a ficar pelo aspecto exterior dos tumultos popula­
res, propõe, nos Discursos, interpretar os conflitos de classe a partir dos
seus efeitos políticos reais. Dito de outra forma, ele recusa-se a atribuir
«mais importância aos rumores e aos gritos que causavam tais tumultos
do que aos efeitos felizes (buoni effetti) que estes desencadeavam»68.
Àqueles que não querem ver na desunião da plebe e do senado mais
do que desordem e confusão, Maquiavel recorda «que, em todos os
Estados, existem dois humores diferentes, o do povo e o dos grandes, e
que todas as leis favoráveis à liberdade procedem da oposição deles69».
Em apoio desta tese iconoclasta, Maquiavel declara que, se os gritos e

65 De 509 a 121a. C.
66 Discursos, I, III, op. cit, p. 195.
67 Ibid.
68 Ibid., I, IV, op. cit., p. 196.
69 Ibid. Modificámos a tradução de Christian Bec, traduzindo umori por «humores» de
preferência a «orientações». O termo médico utilizado por Maquiavel sugere, com
efeito, que o conflito dos humores é necessário à saúde do corpo político.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 191

os tumultos da multidão apenas desencadearam pouca violência efectiva


contra cidadãos particulares, eles constituiriam, em contrapartida, um
excelente exutório para as paixões do povo. Assim, de preferência a
condenar a expressão das paixões populares em nome da tranquili­
dade pública, Maquiavel prefere considerar essas paixões como a ex­
pressão ilegítima de um desejo de viver livre. Como «bons efeitos não
podiam provir senão de muito boas causas», e «os tumultos de Roma
suscitaram a instituição dos tribunos»70, ele considera então como legí­
timo fazer o elogio do desentendimento civil.
Porque, uma vez conquistada, a liberdade deve ser protegida,
Maquiavel interroga-se em seguida se se deve confiar a protecção da
liberdade aos nobres ou ao povo, isto é, àqueles que possuem já cargos
públicos, ou àqueles que desejam adquiri-los. A sua resposta é que se
deve confiar essa protecção ao povo de preferência aos nobres, porque
«deve-se sempre confiar um depósito àqueles que têm o menor desejo
de se apoderar dele71, desejando ambos a liberdade, o povo para não
ser dominado, e os nobres para dominar o povo. Ele esclarece todavia
que a escolha a favor do povo depende ela própria do tipo de república
que se pretende instaurar. Se pensarmos numa república fechada sobre
si mesma e procurando acima de tudo a preservação do statu quo, a
protecção da liberdade deve ser confiada aos nobres de preferência ao
povo; se pensarmos, pelo contrário, numa república virada para con­
quistas, essa protecção deve ser confiada ao povo. Reencontramos aqui
o método dicotômico já utilizado em O Príncipe: ou se pretende imitar
Roma, ou se pretende imitar Veneza, e se se quiser imitar Roma, então
convém seguir os princípios que fizeram o sucesso da sua polí­
tica. O maior erro seria, neste caso, querer imitar Roma seguindo a
política que ditou a grandeza de Veneza.
A defesa por Maquiavel do modelo republicano romano está su­
bordinada, consequentemente, à sua defesa de um modelo de repúbli­
ca «que quer estender o seu império72». De facto, através do modelo
romano, importa-lhe pensar as condições políticas e militares da reuni­
ficação da Itália. As teses democráticas que Maquiavel deduz da sua
leitura da história romana estão portanto estreitamente ligadas à natu­
reza imperialista da Roma republicana. Para travar guerras longas e
difíceis, a república romana tinha efectivamente necessidade de que o
seu povo fosse armado, o que era contrário à constituição de Veneza, a

70 Discursos, I, IV, op. cit, p. 197.


71 Ibid., I, V, p. 198.
72 Md., p. 199.
192
h ist ó r ia d a f il o s o f ia políttc a
D E M AQUIAVEL A H O B BES... 193

submetidos ao temor dos deuses, os cidadãos romanos aceitariam


vergar-se ao poder da lei. Útil «para comandar os exércitos, para encorajar
a plebe, para proteger as pessoas honestas e para fazer vergonha aos maus76»,
a religião em geral é descrita por Maquiavel como uma instituição in­
dispensável aos Estados que pretendem inscrever-se duradoiramente.
O juízo emitido sobre o frade Jerónimo Savonarola (1452-1498), que
«djstmguú- a escolha que comporta menos m có n v e^en tíe tom áT confortou através das suas prédicas o sentimento republicano dos
Florentinos entre 1494 e 1498, sublinha o carácter exclusivamente polí­
tico da análise maquiaveliana. Uma vez que Savonarola conseguiu con­
vencer homens tão civilizados como os Florentinos que conversava com
Deus, é preciso concluir daí que a religião constitui em todo o lado e
compreender o desenvolvimento de Rnm » r Romanos. Para sempre um instrumento ao serviço do governo dos homens. Quanto a
saber «se a coisa era ou não verdadeira», se o frade comunicava efecti-
vamente ou não com Deus, Maquiavel declara que não quer decidir

sssésês
sobre isso,« pois não se deve falar de um tão grande homem a não ser
com respeito»77. A propósito da Igreja de Roma, dá seguramente pro­
vas de uma reserva menor: segundo ele, o comportamento indigno dos
membros da cúria tinha como efeito destruir toda a devoção e toda a
religião nos países próximos de Roma; por outro lado, envolvido nas
irmão, Remo, e do seu colega Titus T ^ u « 7 1 R a1 C° ntra ° seu
lutas pela dominação temporal, mas demasiado fraco para dominar
sozinho toda a Itália, o papado não deixava de pôr obstáculos à uni­
dade do país. Enfraquecida pelas intrigas da Igreja, a península italiana
«tinha sido reduzida ao estado de presa, não somente de poderosos
bárbaros, mas de qualquer um que a ataque78». Opostamente à antiga
religião dos Romanos, que contribuiu para reforçar a virtude dos cida­
dãos e a união da república, o cristianismo romano constitui assim, aos
olhos de Maquiavel, o principal obstáculo na via da unificação política
do povo italiano. Aglutinadora dos costumes de um povo, quando bem
ordenada, uma religião pode precipitar a corrupção dos costumes desse
mesmo povo, quando é desviada.
De constituição republicana, como vimos, Roma conduziu uma po­
lítica externa expansionista. Para se engrandecer, três meios se lhe pro­
punham, como é o caso em geral para todas as repúblicas: o primeiro,
empregue pelos Etruscos, consiste em «constituir uma federação de
várias repúblicas, em que nenhuma se sobrepõe às outras, nem em au­
toridade nem em honras79»; o segundo meio consiste em «fazer aliados,
necessidade de reduzir um povo indisciplinado à oLüêncía. U r a 'vTz

73 Ibid., I, VI, p. 202. 76 Ibid., I, XI, p. 214.


74 Ibid., I, IX, p. 209. 77 Ibid., p. 215.
75 Ibid. 78 Ibid., I, XII, p. 217.
79 Ibid., II, IV, p. 302.
194 H ISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

mas não ao ponto de não conservar o comando, a capital do império e


a iniciativa das operações80»; o terceiro e último meio consiste «em fazer
súbditos, e não aliados, como fizeram os Espartanos e os Atenienses81»;
Se reconhece o valor do modelo federal que ilustrou durante mais de
duzentos anos a poderosa federação etrusca, Maquiavel considera o
modelo da dominação directa totalmente ineficaz (inutile), pois é muito
difícil e penoso manter submetidas as cidades, muito particularmente
quando estas últimas estão habituadas a um regime de liberdade.
O modelo adoptado pelos Romanos, a saber, o da aliança imperial, apre­
senta a vantagem considerável de conservar sob uma única autoridade
a direcção efectiva das operações militares, deixando sempre que uma
parte importante do peso dessas operações caiba aos diferentes alia­
dos. As cidades aliadas de Roma, que viviam em muitos aspectos sob
as mesmas leis que ela, não viram imediatamente até que ponto contri­
buíam para aumentar o poder Romano, e para precipitar o seu próprio
enfraquecimento. Assim, quando as legiões romanas submeteram os
reinos fronteiriços da Itália, as cidades italianas, aliadas de Roma,
viram-se cercadas pelo seu aliado demasiado poderoso. Tendo fracas­
sado a sua mudança de aliança, essas cidades tiveram que se submeter.
Através deste exemplo, Maquiavel pretende mostrar que o modelo da
aliança conduz mais tarde ou mais cedo a uma transformação dos países
aliados em países submetidos.
A eficácia do modelo romano, todavia, é um modelo tanto mais admi­
rável quanto nunca foi imitado na história82. Tendo escolhido um mo­
delo inimitável, Maquiavel tem que desenhar um caminho mais prati­
cável para a Itália moderna. Por detrás do modelo romano, deixa então
entrever um segundo modelo, é certo que menos glorioso, mas mais
fácil de imitar, que podemos qualificar de modelo etrusco. Constituído
pela reunião de diversas cidades livres, o império dos Etruscos «foi
durante muito tempo seguro e glorioso por causa da sua autoridade,
das suas armas e mais ainda dos seus costumes e da sua religião83».
D iferentem ente dos Romanos, todavia, que desejavam sempre
engrandecer-se mais, os Etruscos não estavam desejosos de dominar
toda a Terra, pois ter-lhe-ia sido preciso, o que não é fácil de realizar,
partilhar os despojos das suas conquistas entre os diferentes Estados
confederados. De facto, mais lentas do que os outros Estados nas suas

80 Ibid., p. 303.
81 Ibid.
82 Ibid., p. 305.
83 Ibid.
D E M AQU1AVEL A H O B B E S ... 195

domadas de decisão, as federações são igualmente menos levadas a


■ envolver-se em empreendimentos que arriscariam ameaçar a sua coe­
são interna. Não obstante, «tal forma de proceder tem limites precisos,
que nenhum exemplo mostra que tenham sido franqueados: a saber, a
; reunião de mais de doze a catorze comunidades84». Este tamanho crítico
justifica-se, por um lado, pelo facto de que tal federação dispõe então
, de poder suficiente para se defender contra as agressões exteriores, e,
por outro lado, pelo facto de que essa federação não pode tirar proveito
de novas aquisições.
A força do modelo imperial romano não dependeu contudo apenas
da lógica das alianças. Maquiavel insiste simultaneamente na valentia
dos soldados de Roma e no modelo de organização dos seus exércitos.
Relativamente ao primeiro ponto, sublinha que a guerra constitui o
local por excelência da manifestação da virtude cívica. Mais do que do
dinheiro, que é apenas um auxiliar, o sucesso militar de Roma depen­
deu por consequência da coragem excepcional dos seus soldados: «Por­
que é impossível que os bons soldados tenham falta de dinheiro, ao
passo que o dinheiro não consegue, por si só, bons soldados85.» Relati­
vamente à sua organização, os exércitos modernos deveriam imitar os
exércitos romanos, mesmo se estes últimos não dispunham de recursos
de artilharia. A artilharia, com efeito, não teria podido impedir os Ro­
manos de realizar as suas conquistas, tal como não pôde impedir
os soldados modernos de manifestar a sua valentia em combate, ou os
exércitos de chegarem a um confronto directo86.
As vitórias dos exércitos romanos não teriam bastado, todavia, para
manter a predominância de Roma, se homens excepcionais não tives­
sem, a intervalos regulares, contribuído para a refundação da repú­
blica. Consciente da corrupção inelutável que a passagem do tempo
introduz necessariamente nas instituições, Maquiavel desenvolve, no
terceiro livro dos seus Discursos, uma teoria da renovação necessária
das instituições. Para renovar os corpos mistos que são as repúblicas e
as religiões, é preciso «devolvê-las às suas origens87», pois é na origem
de uma coisa que se encontra o princípio que lhe define a virtude.
O empreendimento de renovação pode pois ser devido quer à fortuna,
quer a instituições, quer à iniciativa de um só indivíduo. Da primeira
causa de renovação, a tomada de Roma pelos Gauleses constitui um

84 Md., p. 304.
85 Md., II, X, p. 315.
86 Md., II, XVII, p. 328. Para mais pormenores sobre a polemologia de Maquiavel, é
preciso ler A Arte da Guerra que ele publicou em 1521.
87 Discursos, III, I, op. cit, p. 370.
196 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

bom exemplo, uma vez que era preciso que «Roma fosse tomada pelos
Gauleses para que renascesse, e para que, renascendo, ela retomasse uma
nova vida e uma nova valentia e para que observasse de novo a religião e
a justiça, que começavam a perder a sua pureza88». Da segunda causa de
renovação, os tribunos da plebe são uma boa ilustração, uma vez que,
graças à sua vigilância, foi possível ter mão na ambição da nobreza.
Maquiavel sublinha todavia que as instituições, por si sós, não se po­
diam manter sem o envolvimento dos cidadãos: as melhores disposições
institucionais têm necessidade «de ser vivificadas pela energia de um
cidadão que contribui corajosamente para que sejam executadas contra
o poder daqueles que as transgridem89». De facto, a causa principal que
permite refundar um Estado, reconduzi-lo à virtude das suas origens,
reside na acção extraordinária de cidadãos de excepção. Para evitar os
progressos da corrupção, convém que intervenha regularmente uma
acção dessa natureza. Essa acção recorda aos homens que devem res­
peitar as instituições da sua cidade, e temer o castigo da lei. Essas acções
exemplares, que os homens virtuosos desejam imitar e às quais os maus
têm vergonha de se opor, produzem frequentemente os «mesmos
efeitos90» que as leis e as instituições. Comparando a acção de Piero
Soderini, quando foi gonfaloneiro vitalício da república florentina, e a
de Júnio Bruto, Maquiavel põe em evidência a necessidade, numa re­
pública estabelecida há pouco tempo, de que certos indivíduos dêem
provas de um rigor muito grande contra os inimigos do regime. A pre­
sença de Bruto quando da execução dos seus filhos, condenados por
terem conspirado contra a nova república, constitui um exemplo ex­
tremo de empenhamento individual ao serviço da renovação de um
Estado. Inversamente, a humanidade e bondade de Soderini não colhem
favor aos olhos de Maquiavel, pois a ingenuidade política deste último,
que acreditava poder persuadir os adversários do regime através da
sua indulgência relativamente a eles, arrastou a queda da república.
Mais do que temer o uso de meios excepcionais — «assumir um poder
extraordinário e destruir pela lei a igualdade dos cidadãos91»29 —,
Soderini deveria ter «pensado que, devendo os seus actos e as suas
intenções ser julgados pelos seus resultados (no caso de ele ter vencido
e sido bem sucedido), ele poderia convencer todos de que o que tinha
feito tinha sido em vista da salvação da pátria e não da sua própria

88 Ibid.
89 Ibid., p. 371.
90 Ibid., p. 372.
91 Ibid., III, III, p. 375.
92 Ibid.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S - 197

ambição92». Quem pretende salvar uma república deve portanto ter pre­
sente no espírito a ideia de que a maldade dos homens não pode ser
vencida nem pelo tempo nem pelas benfeitorias.
A tese da maldade dos homens constitui de facto um argumento a
„favor da instauração de um poder absoluto. Maquiavel sublinha, com
'.efeito, que a virtude do povo é uma condição sine qua non da manuten­
ção da forma republicana. Quando reina a corrupção num país, corrup-
■ ção cuja forma principal é a desigualdade de condições, não é possível
instaurar uma república. Para reformar as instituições feudais de um
país assim, não existe então outra solução senão instaurar uma monar­
quia, «isto é, um poder real que, através do seu poder absoluto e sem
limites (potenza assoluta ed eccessiva), possa colocar um travão à ambição
e à corrupção sem limites dos poderosos93». Historicamente, contudo,
a passagem do princípio republicano à afirmação da necessidade polí­
tica da força maior (maggiorforza), não foi o forte de Maquiavel, pois se
Jean Bodin retomou, no fim do século xvi, o termo república, o sentido
que ele dava a essa república estava muito afastado do sentido
maquiaveliano. Entre o princípio maquiaveliano de eficácia e o princí­
pio bodiniano de soberania, existe de facto toda a distância que separa
uma teoria da virtude política de uma teoria do direito político.

2 — Bodin ou a afirmação
dos direitos da soberania

O pensamento de Jean Bodin (1529-1596)94 desenvolve-se segura­


mente num contexto diferente do que presidiu ao nascimento do pen­
samento de Maquiavel. Jurista de formação, Bodin é contemporâneo
das guerras de Religião que ensanguentariam a França entre 1562 e 1598.
A sua obra política maior, Os Seis Limos da República, foi publicada pela
primeira vez em 1576, a saber, quatro anos depois do massacre da noite
de São Bartolomeu. No prefácio desta obra, em que se afirma um pen­
dor para o absolutismo que ainda não estava presente no seu pensa­
mento dez anos antes95, ele chama a atenção para que «enquanto o

93 Ibid., I, LV, p. 281.


94 Sobre a vida de Jean Bodin, ver Roger Chauviré (1914), Jean Bodin, auteur de la
République, Genebra, Slatkine reprints, 1969.
95 Nomeadamente, no capítulo vi do Methodus adfacilem historiarum cognitionem (1566),
in J. Bodin, Oeuvres philosophiques, edição e tradução de Pierre Mesnard, Paris, 1951.
Para um estudo da evolução do pensamento político de Bodin relativamente ao
198 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

navio de [a] República tinha um vento agradável pela popa, não se


pensou senão em gozar um descanso firme e assegurado», mas que
desde há algum tempo «a tempestade impetuosa atormenta a embar­
cação de [a] República com tanta violência, que o próprio Patrão e os
Pilotos estão como que fatigados e extenuados de um trabalho contí­
nuo»96. Neste trabalho extenuante de repor em ordem o reino de Fran­
ça, queria Bodin participar à sua maneira propiciando-lhe nos seus es­
critos «algumas boas advertências97». Herdeiro do pensamento dos
juristas franceses do início do século xvi, Bodin pretendia defender
aquilo a que ele chamou usando um termo antigo, mas dando-lhe um
novo significado, a soberania do Estado das usurpações constantes de
que foi objecto em França durante a última metade do século. Contra
as pretensões dos huguenotes e dos membros da Santa Liga Católica a
fazer valer os direitos das suas respectivas religiões, tratava-se para
ele, em concordância sobre este ponto com o partido dos «políticos»,
de afirmar a superioridade dos direitos do Estado.

O direito d e sobera n ia e o p rin cíp io


d e d erro gação

Apesar da imputação de maquiavelismo que rapidamente maculará


a sua reputação98, pode-se considerar que a afirmação por Bodin dorin-
cípio de soberania se afasta explicitamente da prática do poder descri­
ta por Maquiavel. O que eu gostaria de recordar aqui é menos as decla­
rações de intenção — como a do prefácio dos Seis Livros áa República99
— do que o próprio sentido do projecto jurídico-político bodiniano.

absolutismo e ao papel representado nessa evolução pela noite de São Bartolomeu,


ver J. H. Franklin (1973), Jean Bodin et la naissance de la théorie absolutiste, tradução
francesa J.-F. Spitz, Paris, PUF, 1993.
96 J. Bodin (1576), Les Six Livres de la République, Lyon, 1593 (10.â ed.), Paris, A. Fayard,
1986, p. 9.
97 Ibid.
98 Esta reputação apoia-se nas primeiras obras políticas e jurídicas de Bodin, e espe-
cialmente no seu Methodus, no qual ele designa Maquiavel como o primeiro autor
moderno que tinha feito reviver a «ciência civil» dos antigos (Jean Bodin, Oeuvres
philosophiques, op. cit, p. 167. Ver Henri Weber, «Jean Bodin et Machiavel», in Jean
Bodin, Actes du colloque interdisciplinaire d'Angers, 1984, tomo î, pp. 231-239.
99 «Temos por exemplo um Maquiavel, que esteve em voga entre os cortesãos dos
tiranos, e ao qual Paul Jove, tendo-o colocado ao nível dos homens assinalados,
chama não obstante ateísta, e ignorante das boas letras: quanto ao ateísmo
vangloria-se por meio dos seus escritos: e quanto ao saber, creio que aqueles que
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 199

' Esse projecto pode-se definir pela vontade de afirmar — de declarar,


poderíamos dizer — os direitos fundamentais que pertencem àquele
' ou àqueles que dispõem do poder soberano. Como uma república é
?«um direito do governo de múltiplas famílias, e do que lhes é comum,
com poder soberano100», a declaração dos direitos da república coincide
com a descrição das «verdadeiras marcas de soberania101». A determi­
nação jurídica da república ou do Estado exprime-se portanto, em Bodin,
sob a forma de tuna determinação dos direitos de soberania102. Esses
«direitos de soberania103» — direito de declarar a guerra e de fazer a
paz, de nomear os funcionários principais, de julgar em última instância,
de agraciar os condenados - constituem outras tantas determinações
particulares do direito fundamental do Estado moderno que é de «dar
lei a todos em geral, e a cada um em particular104».
Todavia, o essencial é que, primeiramente, o exercício do poder no
interior do Estado seja rigorosamente submetido ao direito, e em se­
gundo lugar, que esse direito seja um direito político específico, dis­
tinto do direito privado que rege as relações entre os cidadãos. Porque
os leitores de Bodin ficaram impressiònados com o segundo ponto, que
a sua teoria da derrogação ilustra de maneira notória, esqueceram com
demasiada frequência o primeiro ponto, que, no entanto, é o mais im­
portante, a saber, contrariamente a Maquiavel que se preocupa antes de
tudo com descrever por si próprio a lógica do poder, Bodin preocupa-se
em primeiro lugar com submeter a sum m a potestas ao poder do direito.
Do mesmo modo, quando reconhece que o poder soberano não está
submetido às leis que promulga, mas que as pode derrogar a seu
bel-prazer, não é para concluir disso, como faz Maquiavel, que um prín­
cipe não deve respeitar a sua palavra quando isso é contrário ao seu
interesse, mas para mostrar o que é que a derrogação real tem a ver com
um direito propriamente dito: «A palavra do Príncipe deve ser como

estão acostumados a discorrer doutamente, pesar sabiamente, e resolver subtil­


mente os altos assuntos de estado, concordarão que ele nunca perscrutou os mean­
dros da ciência política, que não consiste em desvios tirânicos, que ele procurou
por todos os cantos de Itália, e como um doce veneno derramou no seu livro do
Príncipe [...]»(Republique, op. d t , prefácio, pp. 11-12).
100 République, 1 ,1, op. d t , p. 27.
101 Md., 1 ,10, p. 295.
102 Bodin fala em várias ocasiões dos «direitos de majestade» (République, 1,10, op. cit,
pp. 295,296) para designar os direitos da soberania, pois, precisa ele noutro lugar,
«a palavra de majestade é própria daquele que maneja o timão da soberania»
(République, 1,10, op. d t , p. 303).
103 République, 1,10, op. d t , p. 310.
104 Md., p. 306.
200 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

um oráculo, que perde a sua dignidade, quando temos uma tão má


opinião dele, que não é acreditado se não jurar, ou que não está sujeito
à sua promessa, se não lhe damos dinheiro: e não obstante, conserva a
sua força a máxima de direito, que o Príncipe soberano pode derrogar
as leis que prometeu e jurou guardar, se cessar a justiça dela, sem o
consentimento dos súbditos105.» A derrogação não constitui, na ocor­
rência, uma falta à palavra dada que colocaria o príncipe em contradi­
ção com a moral comum, mas uma «máxima de direito» que é preciso
distinguir do direito ordinário para melhor afirmar o seu carácter espe­
cífico enquanto direito político. Bodin opõe-se assim claramente à inter­
pretação de um Melanchthon, que via na afirmação dos direitos da
majestade — dos quais faz parte o direito de derrogar — o próprio sinal
da tirania de um príncipe106. A crítica bodiniana de Maquiavel não é
portanto uma crítica estratégica, que seria apenas do domínio de uma
retórica da dissimulação, mas uma crítica fundamental que corresponde
à vontade de subtrair o exercício da soberania ao não-direito que carac­
teriza o exercício do poder pelo príncipe maquiaveliano. Sem dúvida
que existe derrogação nos dois casos e, nos dois autores, o príncipe não
respeita sempre a palavra dada. Contudo, a diferença essencial é que,
no principado novo descrito por Maquiavel, essa derrogação escapa
por princípio a toda a codificação jurídica, enquanto, na república de
Bodin, ela é realizada em nome do direito superior da soberania. A ins­
tância à qual pertence a derrogação é de facto uma instância jurídica,
análoga na sua ordem ao princípio que serve para desvincular um par­
ticular de um compromisso assumido levianamente: «E pelas mesmas
causas que o particular pode ser libertado de uma promessa injusta e
pouco razoável, ou que o sobrecarrega de mais, ou porque ele foi ludi­
briado por dolo, ou fraude, ou erro, ou pela força, ou medo justo, ou
lesão enorme, pelas mesmas causas o Príncipe pode ser restituído no
que toca à diminuição da sua majestade, se é Príncipe soberano107.» Não
é portanto em virtude de uma ambição desmesurada, ou por um qual­
quer pendor vicioso, que um soberano pode derrogar a palavra dada,
mas em função de um princípio jurídico que o autoriza a derrogar
quando se trata de evitar a diminuição da sua majestade. O acto pode

105 Ibid., 1,8, p. 194.


106 A crítica bodiniana de Melanchthon incide mais precisamente sobre a interpreta­
ção que este último dá de uma passagem de Samuel, na qual Deus diz a Samuel
que dê a conhecer aos Hebreus «os direitos do rei que reinará sobre eles» (1 Samuel,
8,?).
107 Republique, I, 8, op. cit, pp. 193-194.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 201

ser idêntico, os princípios que o fundamentam e que lhe dão sentido


não deixam por isso de ser radicalmente distintos.
Ao atribuir ao detentor do poder soberano direitos específicos, ao
considerar o soberano como sujeito do direito político moderno, Bodin
vira portanto as costas ao maquiavelismo, inaugurando à sua maneira
a longa série das declarações de direitos que vão marcar a modernidade
política. No mínimo, podemos considerar que a sua oportuna inven­
ção — a declaração dos direitos da soberania — tanto prefigura na sua
forma a declaração dos direitos do homem e do cidadão como prolonga
no seu conteúdo a compreensão maquiaveliana da política moderna.
De facto, é provável que não houvesse que declarar consequentemente
os direitos do cidadão, se Bodin não tivesse achado bem, dois séculos
antes, declarar os direitos da soberania. Esta observação vai permitir-nos
compreender em que é que a teoria bodiniana da soberania se distin­
gue de uma arte de governar, e condena, sem por isso a ignorar, a ques­
tão das técnicas do governo a ocupar um campo subordinado no campo
da teoria política.

O direito da soberania e as técnicas de governo

A questão da prudência política tem, na teoria de Bodin, um papel


ao mesmo tempo essencial e subordinado. Um papel essencial, em pri­
meiro lugar, porque o direito soberano de derrogar as leis obriga os
magistrados inferiores, no exercício da sua função, a dar provas de uma
prudência política acrescida. Não basta que um funcionário conheça as
leis, é preciso ainda que saiba interpretá-las à luz do princípio que as
rege, que não é mais do que o princípio de soberania. Ora a possibili­
dade de derrogação obriga os juízes a guiar as suas interpretações de
uma maneira, se não circunspecta, pelo menos prudente. Essa prudência
necessária confirma assim que o direito da soberania é diferente do
direito ordinário, que não tem necessidade de ser regulado pela prudên­
cia. Essencial à teoria, a prudência não deixa de desempenhar nela um
papel subordinado, pois contradiz menos o direito da soberania do que
é a sua condição de aplicação. Se os magistrados devem ser prudentes,
não é por preocupação de infringir o direito do soberano, mas porque
não existe outra maneira de lhe estarem submetidos. Consequentemente,
a prudência é bem o comportamento político que caminha a par, nos
magistrados inferiores, do exercício do direito de um poder absoluto,
quer dizer, de um poder que se reserva o direito de enfrentar a lei que
ele próprio promulgou.
202 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Esta dimensão prudencial da teoria política bodiniana permite com­


preender melhor o que separa uma teoria da soberania, como a de Bodin,
e uma teoria da razão de Estado, como a de Scipione Ammirato, por
exemplo. Porque não reconhece o princípio jurídico da soberania, e os
direitos que lhe estão associados, Ammirato atribui à prudência um
lugar de primeiro plano, convertendo-se assim, para ele, no princípio
de uma arte de governar específica. Na ausência do conceito de sobera­
nia que Ammirato recusa, o Estado já não aparece essencialmente como
uma formação jurídica, ligada a regras específicas, mas como um prin­
cípio de domínio, fundamentado na concentração do poder político.
Elevada à dignidade de razão de Estado, a prudência toma-se o modo
por excelência do exercício da dominação, uma vez que não existe ou­
tra forma de legitimação do poder político a não ser aquela que provém
do sucesso ou do fracasso. É preciso ser prudente, na falta de ser justo,
pois a manutenção da dominação depende exclusivamente do sucesso
da política que levamos a cabo. Aos conceitos do direito, os teóricos
da razão de Estado preferem de facto a execução de técnicas, uma vez
que o governo dos homens, para eles, não é a aplicação de um direito
— mesmo que derrogatório como é o direito de soberania —, mas a
aplicação de técnicas de governo a uma população que é preciso satis­
fazer ao máximo para que aceite a dominação que é exercida sobre ela.
Ammirato estabelece assim um laço forte e claro entre a existência de
um domínio e a aplicação de uma arte prudencial de governar cujas
regras são definidas pela razão de Estado: «Se o Estado não é mais do
que dominação, senhorio, realeza ou império, ou qualquer outro nome
que lhe queiramos dar, a razão de Estado não será mais do que razão
de dominação, de senhorio, de realeza, de império108.» Se, para exercer
a dominação, um soberano deve por vezes proceder de forma derroga­
tória, o significado da derrogação, e da prudência que ela induz, de
modo algum é o mesmo, conforme nos situemos na perspectiva de uma
teoria jurídico-política da soberania ou na perspectiva de uma teoria
da razão de Estado. No primeiro caso, em que se trata de defender os
direitos do soberano, importa antes de mais que a derrogação possa
deduzir-se logicamente do princípio da soberania. Será então chamada
legítima uma derrogação que contribua notavelmente para reforçar ou

108 S. Ammirato, Discord sopra Cornelio Tácito, Florença, F. Giunti, 1594, p. 240. Ver a
análise de G. Borrelli, «Obligation juridique et obéissance politique: les temps de la
discipline moderne pour Jean Bodin, Giovanni Botero et Thomas Hobbes», in
Politique, droit et théologie chez Bodin, Grotius et Hobbes, L. Foisneau (ed.), Paris, Kimé,
1997, p. 19.
DEMAQUIAVELAHOBBES... 203

lanter a soberania dentro dos seus direitos, ilegítima uma derrogação


gue sirva interesses particulares, estranhos à manutenção da soberania.
Jo segundo caso, em que se trata de manter ou aumentar uma domina­
ção defacto, a derrogação é legítima por pouco que contribua para man­
ter ou aumentar esse domínio. A fórmula segundo a qual a razão de
Estado não é outra que não uma «razão de domínio» (ragione ãi domínio)
•significa precisamente que o Estado não está submetido a um princípio
de direito, mas é regido por imperativos de eficácia que a razão de
?Estado lhe ordena, não sendo esta mais do que a condição teórica da
manutenção da dominação na qual reside a natureza do Estado.
O discurso bodiniano da soberania não é, contrariamente ao dis­
curso da razão de Estado, um discurso do domínio, porque, pressu­
pondo a existência de um poder superior em direito a todos os outros
(summa potestas), não põe em primeiro plano a questão das modalidades
práticas de produção a conservação desse poder. O seu fim não é tanto
o de justificar o poder absoluto dissimulando-o atrás da autoridade do
direito do que o de regular esse poder a outros poderes: é o de fazer
do soberano o sujeito absolutamente primeiro do direito político mo­
derno. Na medida em que atinge esse fim, Bodin é incontestavelmente
o inventor da teoria moderna da soberania.
Concebemos facilmente a partir daí que a arte de governar possa
ocupar um lugar subordinado na teoria de Bodin: o soberano não tem
que justificar o seu domínio mostrando que está em melhores condi­
ções de exercê-lo sobre os seus súbditos; ele deve apenas defender o
melhor possível os direitos da sua soberania. Enquanto os teóricos da
razão de Estado propõem um modelo tecnocrático no qual o exercício
do poder é legitimado na proporção da sua eficácia, Bodin propõe um
modelo jurídico-político no qual o exercício do poder não é legítimo a
não ser que esteja ao serviço dos direitos da soberania. Num caso, o
critério considerado é o da eficácia política, compreendida como eficá­
cia de uma arte de governar, no outro, o critério privilegiado é o da
legitimidade jurídica que está ligada a quem defende os direitos da so­
berania. Se estas duas dimensões do discurso político moderno se
entrecruzam frequentemente no discurso político do século xx, Bodin e
os seus contemporâneos tinham, pela sua parte, uma consciência muito
clara da heterogeneidade de princípio delas.
Podemos dar como prova disso a distinção bodiniana entre o
Estado e o governo - distinção que será retomada por todos os teóricos
ulteriores da soberania, especialmente por Hobbes e Rousseau, mas
que será rejeitada pelos teóricos da razão de Estado, em particular por
204 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Giovanni Botero109 e Scipione Ammirato110. Se é verdade que existe, I


segundo os termos de Bodin, «diferença do Estado e do governo», se
«o Estado de uma república é diferente do governo e da administração
da mesma»111, é precisamente porque a determinação do Estado deve
ser pensada em termos de soberania, ao passo que o governo é da esfera
de um saber técnico-prático indiferente à questão da soberania. A preo­
cupação com a eficácia do governo, decisiva por mais de uma razão,
não deve, segundo Bodin, prevalecer sobre a necessidade de preservar
os direitos da soberania. De facto, a oposição bodiniana não foi reto­
mada a não ser pelos pensadores políticos que consideraram, como foi
o caso de Hobbes e Rousseau, que os direitos da soberania eram mais
importantes que a eficácia do governo, ou pelo menos que o critério de
eficácia governamental devia estar ao serviço da soberania, e não o
contrário. O conceito de soberania permite assim manter à distância,
no campo do político, o imperativo de eficácia que iria progressiva­
mente reger o conjunto do pensamento moderno.
Mais do que a sua simples diferenciação, é a subordinação bodiniana
da arte de governar ao princípio de soberania do Estado que os teóricos
da razão de Estado entenderam pôr em causa. Que o tenham feito em
nome da preponderância do poder espiritual sobre o poder temporal
não muda, em relação a este ponto, a conclusão da análise: as técnicas
de governo, que eles puseram por um momento ao serviço da religião,
podem ser utilizadas em seguida por outros sistemas de domínio. In­
versamente, se não ignorava a importância da arte de governar, Bodin
pretendia mostrar que esta devia estar sempre subordinada ao princí- *
pio de soberania, a saber, que o critério da eficácia em política devia
estar sempre subordinado à defesa dos direitos do soberano. Assim, o
postulado fundamental do pensamento de Bodin é que o direito polí­
tico não está submetido — ou pelo menos não está submetido no
essencial — à regra de eficácia. Contudo, apesar de uma afirmação sem
precedentes dos direitos da soberania, Bodin não chega a pensar o
recurso ao princípio de soberania senão pelo meio indirecto de uma
afirmação do carácter absoluto da soberania que excede em parte os
limites da ordem jurídica112.

109 Ver G. Botero (1589), Della ragion di Stato, Turim, UTET, 1948, trad. fr. G. Chappuys,
Paris, 1599.
110 Cf. Y. C. Zarka, «État et gouvernement chez Bodin et les théoriciens de la raison
d'Etat», in Jean Bodin. Nature, histoire, droit et politique, Y. C. Zarka (ed.), Paris, PUF,
1996, pp. 156-158.
111 République, II, 2, op. tit, p. 34.
112 Cf. A. Tenenti, Stato: un idea, una logica, Il Mulino, 1987, p. 271.
DE MAQU1AVEL A HOBBES... 205

A soberania absoluta e o problema


da sua manifestação

Depois de ter defendido, no Methoãus de 1566, uma concepção da


«supremacia limitada, submetida à lei e aos procedimentos de consen­
timento113», Bodin adopta brutalmente, dez anos mais tarde, uma posi­
ção resolutamente absolutista. O exercício absoluto do poder é, a partir
desse momento, considerado por ele como uma condição evidente, se
bem que ignorada até então, da própria possibilidade da soberania114.
Dizer que um poder é absoluto, é dizer que não está submetido ao con­
sentimento de ninguém115, e que o seu titular tem o usufruto total dele
sem nenhuma limitação constitucional. Esta definição faz aparecer clara­
mente o carácter ilimitado — tanto no tempo como na ordem jurídica —
do poder soberano. A propósito do poder do rei dos Tártaros, Bodin
observa assim que esse «poder é absoluto, e soberano: pois não tem
outra condição sem ser o que mandam a lei de Deus e da natureza116».
Esta limitação divina, sem mediação humana, ressalta o carácter ex­
traordinário do princípio de soberania. Princípio de limitação para os
homens que lhe estão submetidos, pelo meio indirecto da obediência
às leis civis, o próprio soberano não está limitado por nenhuma lei,
pois «é preciso que aqueles que são soberanos não estejam de forma
nenhuma sujeitos às ordens de outros, e que possam dar lei aos súbditos,
e anular ou aniquilar as leis inúteis, para fazer outras117». É por esta
razão que o príncipe é chamado absoluto, isto é «remido do poder das
leis118». Longe de fazer dele um poder subordinado, a limitação do poder
soberano pelas leis divinas reforça assim o seu carácter excepcional.
Comparável à plenitudo potestatis do papa, a summa potestas do rei faz

113 J. H. Franklin, op. cit, p. 40.


114 «A soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República, a que os Latinos
chamam mnjestatem [...]» (République, 1,8, op. cit., p. 179). A perpetuidade do poder,
que, juntamente com o seu carácter absoluto, serve para definir a soberania, reside
no facto de que esse poder pertence ao soberano por todo o tempo da sua vida.
115 «[...] pois se o príncipe é obrigado a não fazer lei sem o consentimento de um maior
do que ele, é na verdade súbdito: se de um igual, ele terá companheiro: se dos
súbditos, seja do Senado, ou do povo, ele não é soberano» (République, 1,10, op. cit,
p. 306). Sobre os argumentos bodinianos a favor do absolutismo, e em particular
sobre o significado do juramento e da consulta aos parlamentos, ver J. H. Franklin,
op. cit., cap. iv.
116 République, I, 8, op. cit, p. 188.
117 Ibid., p. 191.
118 Md.
206 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

deste último um representante de Deus sobre a terra. Esta última ana­


logia não deixa todavia de constituir problema: se Deus se define
efectivamente pela sua transcendência absoluta e pela sua ausência do
mundo visível, em que medida o soberano humano pode exercer o seu
poder nesse modo da ausência, no afastamento definido por Bodin entre
o Estado e o governo?
A origem divina do poder humano conduz Bodin, por reacção, a
evidenciar a necessária manifestação do poder soberano119. Assim, o
conceito de majestas não tem no jurista angevino um sentido exclusiva­
mente jurídico, mas possui igualmente uma dimensão estética: quando
o rei está presente nos estados gerais, a sua majestade manifesta-se mais
do que quando não está. O rei «em majestade» manifesta aos olhos de
todos, sobre o teatro do mundo, os atributos da sua soberania, que
de outra forma permaneceriam escondidos no texto das leis. Essa
manifestação não deve contudo ser confundida com essa forma especta-
cular do poder, bastante vulgarizada no século xvi, especialmente no
círculo de Catarina de Médicis, que é a magia política. Em a Demono-
mania âos feiticeiros (1580), Bodin mostrou que o poder soberano não
tinha nada a ganhar em sacrificar-se assim aos exorcismos da magia.
Se os anjos e os demónios mantêm de facto, segundo ele, uma relação
com as repúblicas, não é por esse intermédio, mas na medida em que
contribuem para inscrever os corpos políticos na particularidade da
história e da geografia. A razão pela qual o poder é assim obrigado a
manifestar-se, a recorrer a signos que podem ser mais ambíguos que
os signos do direito, deve-se ao laço que a soberania humana mantém
com a soberania divina. Se bem que a soberania se exerça na ordem
espacial e temporal da natureza, ela possui de facto características que
a natureza não explicam mais do que o simples exercício da arte humana.
Pensada no modelo da plenitudo potestatis do papa, a summa potestas
converte o soberano num delegado, ou, para utilizar a expressão habitual,
num lugar-tenente de Deus sobre a terra. O poder soberano de derrogar
as leis humanas, que nós abordámos mais acima do ponto de vista da
sua conformidade com o direito da soberania, tem aqui a sua origem
numa teologia, ou pelo menos numa teoria do direito canónico. Bodin
cita muito explicitamente as suas fontes: «E da mesma forma que o papa
nunca ata as suas mãos, como dizem os canonistas: também o Prín­
cipe soberano não pode atar as suas mãos, mesmo que o quisesse120.»

119 Para a verificação desta hipótese, ver M.-D. Couzinet, «La logique divine dans les
Six Livres de la République de Jean Bodin», in Politique, droit et théologie chez Bodin,
Grotius et Hobbes, op. cit, pp. 60-61.
120 République, I, 8, op. cit., p. 192.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 207

O carácter absoluto da soberania, que erige a vontade do soberano em


princípio e norma superiores da lei, remete para uma teoria da vontade
que atribui a esta última um poder superior ao do entendimento, mas
essa teoria da vontade remete ela própria para uma teologia da liber­
dade absoluta da vontade divina. Pensada de acordo com o modelo dessa
vontade divina, a vontade do soberano possui uma liberdade total —
dentro dos limites que lhe impõem as leis naturais e divinas —, uma
responsabilidade também ela completamente total, que a toma obs­
cura ao entendimento dos súbditos. De facto, podemos pensar que o
carácter absoluto da vontade soberana põe em causa a vontade de
representá-la. Entre a soberania no seu princípio absoluto e o espaço
da representação existe assim uma distância, que não pode deixar de
ter efeitos sobre o funcionamento da política.
Contudo, é permitido interrogarmo-nos sobre a razão pela qual o
poder soberano se manifesta nesse espaço: será devido à sua origem
divina que o conduz a reproduzir, no plano político que é o seu, a ló­
gica divina em função da qual Deus se manifesta no teatro do mundo
através de golpes teatrais e de reviravoltas dignas das maiores tragé­
dias? Não será antes para colmatar o fosso que o poder absoluto cava
no seu princípio na ordem política da representação? Sem dúvida que
não é bom, em particular na época moderna, que o poder político se
mantenha demasiado à margem da vida quotidiana dos cidadãos. Os
teóricos da razão de Estado tinham-no compreendido perfeitamente, a
tomaram o exercício do poder dependente da satisfação das necessidades
dos povos. Não há dominação, seja ela qual for, sem uma tomada em
consideração da satisfação dos súbditos, sem, por consequência, uma
teoria dos efeitos da acção política. Sem dúvida que o preço a pagar
por uma tal teoria é muito elevado, uma vez que implica a renúncia a
submeter na totalidade o exercício do poder ao império do direito. Toda­
via, uma teoria do direito político que não levasse em linha de conta a
questão dos efeitos do poder não teria nenhuma hipótese de fazer pre­
8 valecer os seus pontos de vista. O que Bodin compreendeu perfeita­
mente, através nomeadamente das suas observações sobre a necessária
I encenação do poder soberano, é que uma soberania não se pode man­
i ter sem uma teoria da sua manifestação. Enquanto tal, essa teoria é se­
guramente insuficiente, pois restringe-se ainda a uma esteticização do
poder soberano e não pensa a representação política na sua especifici­
dade, como o fará Hobbes, algumas dezenas de anos mais tarde, no
capítulo xvi do seu Leviatã. Contudo, por insuficiente que seja, a teoria
de Bodin tem o mérito de indicar o problema, mostrando nomeada­
mente que a menor visibilidade do princípio de soberania, comparada
208 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

com os resultados tangíveis reivindicados pelos teóricos da razão de


Estado, não condena nessa medida o soberano à ineficácia. A afirma­
ção do princípio de soberania, apesar de ou por causa do seu carácter
jurídico abstracto, produz efeitos políticos específicos, distintos dos
efeitos produzidos por um bom governo, mas não menos necessários à
existência política de uma república moderna.

3 — Hóbbes e a instituição do estado civil


Contrariamente a Maquiavel, Thomas Hobbes (1588-1679) não foi
apenas um pensador da política. A transformação profunda que ele in­
troduziu na forma de pensar o Estado moderno inscreveu-se numa pers­
pectiva filosófica mais geral, caracterizada por uma reflexão sobre os
princípios da ciência mecanicista moderna121. Se bem que não haja lu­
gar para o desenvolvimento desse ponto nas páginas que se vão seguir,
convém, não obstante, recordar que Hobbes não é apenas o autor de
Elements ofLaw (1640), do De Cive (1642) a do Leviatã (1651), mas igual­
mente de uma filosofia primeira — De Corpore (1655) — e de uma
antropologia — De Homine (1658) —, que constituem outros tantos
elementos essenciais do seu sistema filosófico. Tradutor de Tucídides
e Homero, matemático, físico e teórico de óptica122, Hobbes não se
interessou, no decurso da sua carreira, apenas pelos problemas de
política aos quais o seu nome permanece ligado.
Convém esclarecer também que a reflexão política de Hobbes se
desenvolveu no contexto da luta cada vez mais violenta que opôs, em
Inglaterra, a partir dos anos 1630, o parlamento e o rei Carlos I. Traba­
lhando como preceptor ao serviço de uma das mais poderosas famílias
da aristocracia inglesa, a família Cavendish, Hobbes tomou partido nesta
luta pelo campo realista. Os Elements ofLaw, que circularam sob forma
manuscrita a partir de 1640, constituem à sua maneira, que é a do tra­
tado de filosofia política, um empenhamento a favor da indivisibilidade

121 A sua contribuição mais importante para a teoria mecanicista foi traduzida sob o
título de Court traité des premiers principes, texto e trad. fr. J. Bernhardt, Paris, PUF,
1988.
122 Para uma visão do conjunto da carreira intelectual de Hobbes e mais particular­
mente dos seus trabalhos em óptica, ver J. Bernardt, Hobbes, Paris, PUF, 1989. Os
elementos textuais, permitindo reconstituir a evolução do pensamento de Hobbes,
foram reunidos por Karl Schuhmann em Hobbes, chronique. Cheminement de sa pensée
et de sa vie. Paris. Vrin, 1998.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 209

da soberania, e, nessas circunstâncias, um empenhamento a favor da


monarquia. Sentindo-se ameaçado pelas vitórias políticas do Parla­
mento, e sem esperar a derrota militar das tropas realistas em Marston
Moor, em 1644, Hobbes tomou o caminho do exílio a partir do fim de 1640.
Em Paris, onde residiu entre 1640 e 1651, frequentou o círculo erudito
de Marin Mersenne (1588-1648) e os exilados, que se tinham juntado à
corte inglesa exilada em Saint-Germain-en-Laye. Esta estadia foi para
o filósofo um período de intensa actividade intelectual, tanto do ponto
de vista da redacção da sua obra política (De Cive, Leviatã) como do
ponto de vista das controvérsias em que se viu envolvido123. Regres­
sado a Inglaterra depois da Lei de Amnistia de 1651, atraiu críticas da
parte de alguns realistas que acharam a conclusão do seu Leviatã de­
masiado favorável ao poder republicano. Se bem que o rei Carlos II, de
quem ele tinha sido em tempos preceptor de matemática, não lhe mos­
trasse ressentimento, foi-lhe proibido publicar a história da guerra ci­
vil inglesa que redigiu, depois da restauração da monarquia (1660)124.
A concepção de Estado que Hobbes expõe no Leviatã é representada,
na página de título da primeira edição da obra, por uma imagem céle­
bre em que podemos ver um homem gigantesco, cujo corpo é com­
posto por uma multidão de pequenos homens. Este gigante, cuja cabeça
é coroada e que tem nas mãos uma espada e um báculo, domina tuna
paisagem de colinas no centro da qual aparece uma cidade. Por baixo
dessa imagem, podemos ler uma citação do livro de Job declarando:
Non est potestas super terram quoe comparetur ei125. Comó o Estado e o
monstro Leviatã do livro de job, o gigante do frontispício parece ter
«sido formado não para experimentar o terror126», mas, pelo contrário,
para inspirar aos homens um temor proporcionado ao seu poder. Esta
imagem pode levar-nos a interrogar-nos sobre o significado do princípio
hobbesiano de soberania: em que medida esse princípio tem como única
função garantir a paz civil? O poder do Estado não tem também por
função assegurar a mobilização de energias dos cidadãos com vista a
uma maior eficácia económica e social? Ao integrar os pequenos ho­
mens no corpo do gigante, em lugar de representá-los na cidade e no

123 A mais importante dessas controvérsias opôs Hobbes ao bispo anglicano John
Bramhall sobre a questão da liberdade e da necessidade. Ver T. Hobbes, Les Questions
concernant la liberté, la nécessité et le hasard, trad. fr. L. Foisneau e F. Perronin, Paris,
Vrin, 1999; Thomas Hobbes, De la liberté et de la nécessité, trad. fr. F. Lessay, Paris,
Vrin, 1993.
124 Béhémoth, ou le Long Parlement, trad. fr. L. Borot, Paris, Vrin, 1990.
125 «No mundo, não há outro igual a ele» (Job, 41,24).
126 Job, 41,25.
210 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

campo dedicando-se às suas ocupações, o ilustrador deixa de facto pen­


sar que o Estado do Leviatã poderia ser uma corporação política em
busca de uma eficácia decuplicada pela sua organização em Estado.
Esta impressão é além disso reforçada pelo facto de que as personagens
olham todas na mesma direcção, como se Hobbes tivesse tido por am­
bição fazer do Estado moderno uma gigantesca máquina ao serviço da
transformação do mundo humano. Se bem que certos comentadores de
Hobbes tenham podido pensar encontrar na sua obra o modelo dessa
imagem, ou até de analogias com os Estados totalitários do século xx127,
uma análise do léxico conceptual do Estado permite todavia afastar
essas interpretações e corrigir as ideias induzidas tanto pelo mito do
Leviatã como pela iconografia.
O termo «Estado» não possui no inglês e no latim de Hobbes um
equivalente único, evoluindo o léxico de Estado notavelmente entre os
Elements ofLaw (1640) e o Leviatã inglês (1651), um pouco entre o De Cive
(1642) e o Leviatã latino (1668). Nos Elements ofLaw, o termo estatelState
é frequentemente utilizado para designar a condição do homem antes
do contrato social — estate ofliberty128, estate ofwar129 —, e com menos
frequência para designar a sua condição depois do contrato, e principal­
mente então para designar a forma do governo — estate ofgovernment130.
Para designar a união das vontades dos cidadãos numa única vontade
soberana, Hobbes não utiliza o termo estate ou State, mas as expressões
boãy politic e civil society131. O termo de Commonwealth, traduzido fre­
quentemente por república, serve-lhe para designar uma espécie de boãy
politic, a saber, aquele que provém de uma convenção anterior entre os
cidadãos132. O Leviatã inglês introduz neste léxico duas modificações
importantes: em primeiro lugar, substitui a utilização do termo estate/
/state pelo de condition, falando daí em diante da natural condition of
mankind133, e, de seguida, privilegia a noção de Commonwealth comparati­
vamente com a de civil society. Ao fazer do termo Commonwealth o nome

127 Cf. J. Vialatoüx, La Cité de Hobbes. Théorie de VÉtat totalitaire. Essai sur la coneeptíon
naturaliste de la civilisation, Paris, Librairie Lecoffre, 1935.
128 Elements of Law, abreviado como EL, 1, XIV, 12, F. Tõnnies (ed.), Londres, 1889,
reedição Bad-Cannstadt, F. Cass, 1969, p. 73; tradução por M. Triomphe, Paris,
Vrin.
129 EL, I, XIV, 11, p. 73.
130 EL, II, 1,15, p. 115.
131 EL, I, XIX, 8, p. 104.
132 EL, I, XIX, 11, p. 105.
133 Léoiathan, abreviado como Lev, C. B. Macpherson (ed.), Londres, Penguin Books,
1982, título do capítulo xm, p. 183; tradução por F. Tricaud, Paris, Sirey, 1971, tradução
p. 121.
DE MAQUIAVEL AHOBBES... 211

genérico do Estado, Hobbes pretende declarar aos republicanos do seu


tempo que a monarquia que eles derrubaram não era menos um Estado
do que a república, em inglês Commonwealth, que eles instauraram no
lugar dela134. Este recurso, em parte polémico, ao termo Commonwealth,
é contudo menos significativo do que o facto de ser feita uma utilização
marginal do termo State numa obra que tem reputação de ser a fonte da
concepção moderna do Estado. Esta análise lexical indica-nos de facto
que a teoria hobbesiana do Estado não tem de forma alguma como
função descrever uma realidade, neste caso a estrutura de um Estado
administrativo moderno, mas que constitui muito pelo contrário uma
reflexão sobre as condições políticas da instauração de um estado pací­
fico e moral entre os homens, propriamente falando, de um estado civil
(civil State!societas civilis). Procuraremos portanto mostrar que o
Estado-Leviatã não tem como finalidade aumentar o poder dos homens
sobre a natureza, segundo o princípio de eficácia ilustrado pela obra do
chanceler Francis Bacon (1561-1626), vem aumentar o poder dos ho­
mens sobre as populações, segundo o modelo dos teóricos da razão de
Estado, mas que a sua soberania está unicamente ao serviço da segu­
rança dos seus cidadãos, e tem o dever proteger ao mesmo tempo dos
riscos da guerra civil e da guerra exterior. Convirá para isso compreen­
der porque é que Hobbes subordina o estabelecimento de um estado
civil das relações entre os homens à instituição de uma soberania. Será
também importante, além disso, interrogarmo-nos sobre certos aspec­
tos da soberania hobbesiana — direito absoluto de propriedade, dever
de educação do povo e de desenvolvimento da economia do país —
que parecem a priori um tanto ou quanto afastados das finali­
dades de um estado civil. A resposta a esta questão vai-nos permitir
compreender melhor as razões da ligação de Hobbes ao princípio
de soberania e a sua desconfiança correlativa quanto ao princípio de
eficácia em política, apesar de conhecer muito bem os modelos concor­
rentes propostos pelo chanceler Bacon e pelos teóricos da razão de
Estado.

134 Devido, sem dúvida, às suas origens mais antigas, o vocabulário latino do estado
sofreu menos modificações entre o De Cive e o Leviatã latino do que entre as duas
obras de filosofia política em inglês. Nas duas obras latinas, Hobbes opõe
identicamente o status naturae e a societas civilis, ao mesmo tempo que retoma a
utilização clássica do termo respublica. Encontramos no De Cive um equivalente do
estate of govemment dos Elements of Law sob a forma de um status civitatum que
Sorbière traduziu por estados (De Cive, VI, 13, rem., abreviado como DCi,
H. Warrender (ed.), Oxford, At the Clarendon Press, 1983, p. 144).
212 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

O princípio de soberania ao serviço da civilidade

Retemos geralmente que o estado civil de Hobbes é o reverso do


seu estado de natureza. Onde reinava a guerra de todos contra todos
existe daí em diante um estado de paz, tomado possível pelo poder do
Estado. Esta ideia geral não é falsa, mas erra ao misturar as característi­
cas específicas do estado civil, que se encontra reduzido por ela a não
ser mais do que o sinónimo pomposo de uma pacificação obtida pela
força monstruosa de um Leviatã, tornado um pouco mais simpático
pelo artifício do contrato social. Convém, consequentemente, corrigir
esta ideia, sublinhando que Hobbes não se interessa apenas pelas con­
dições políticas do estabelecimento da paz civil, mas igualmente pelas
condições morais que a convertem, falando propriamente, num estado
duradouro de relações civilizadas entre os homens. De facto, a exposi­
ção dos princípios do estado civil possui, em Hobbes, uma dimensão
moral e uma dimensão política, que não se deve reduzir demasiado
rapidamente uma à outra. Se é certo que Hobbes insiste no Leviatã
— talvez ainda mais do que nos Elements of Law e no De Cive — na
dimensão política do estado civil, consagra, apesar disso, dois capítulos
inteiros desta obra, os capítulos xiv e xv, a pormenorizar as condições
morais, a que chama, seguindo nisto a tradição dos teóricos do direito
natural, leis de natureza.
No capítulo xiv, ele expõe as duas primeiras leis de natureza, que
são, primeiramente, procurar a paz, quando temos esperança de obtê-la,
e senão, defendermo-nos pela força, e, em segundo lugar, de nos des­
pojarmos desse direito de legítima defesa, a que ele chama também
direito de natureza, quando os outros aceitam fazer o mesmo. A ter­
ceira lei de natureza, que é apresentada no capítulo xv do Leviatã, estabe­
lece os fundamentos de toda a justiça, logo, em particular, da justiça
política135: se desejam viver em paz uns com os outros, os homens são
obrigados a respeitar as convenções que estabeleceram. Definindo os
nossos deveres relativamente ao outro no quadro de uma ética geral
da acção pacífica, as leis numeradas de quatro a dez tomam obrigatórias
a gratidão, a complacência ou o facto de se ser acomodatício relativa­
mente aos outros, a facilidade de perdoar, a recusa da vingança gra­
tuita, a recusa de ultrajar os outros, a recusa de reservar para si mais
direitos do que os que se atribuem aos outros e a recusa da arrogância.
Vêm em seguida as leis que dizem respeito à propriedade privada. Nesta
categoria encontra-se a lei que toma obrigatória a equidade, uma vez

135 A terceira lei da natureza é a «fonte e a origem da justiça» (Lev, XV, 2, trad., p. 143).
DE MAQU1AVEL A HOBBES— 213

que a equidade diz respeito à apreciação imparcial por um juiz dos


direitos que pertencem a duas pessoas em conflito. As leis da natureza
doze, treze e catorze dizem respeito mais particularmente aos prin­
cípios de repartição dos bens entre as pessoas, no caso em que esses
bens são possuídos em comum, no caso em que é preciso tirar à sorte e
no caso em que não existe direito estabelecido para fixar a sua repartição.
Por fim, uma derradeira série de leis, da décima quinta à décima nona,
diz respeito às condições da arbitragem. Este ponto é muito impor­
tante, porque condiciona a própria possibilidade de decidir por meio
de um julgamento o conflito entre pessoas. Com efeito, se as condições
da arbitragem não forem suficientemente claras, é muito provável que
os homens entre os quais existe um diferendo precisem de recorrer à
força para o resolver. Para evitar um tal recurso, é preciso respeitar os
mediadores que se interpõem entre as partes em conflito (15.a lei), é
preciso que essas partes aceitem submeter-se ao julgamento do árbitro
(16.a lei), que ninguém seja o seu próprio juiz (Í7.a lei), que ninguém
seja juiz se existir uma razão qualquer para ser parcial (18.alei) e que os
testemunhos dos dois lados sejam escutados pelo juiz (19.a lei).
De facto, as dezanove leis de natureza, das quais acabámos de
recordar o conteúdo e a função, fazem parte da lei civil, uma vez que
«para declarar, nos diferendos que opõem os particulares, o que é equi­
dade, o que é justiça, o que é virtude moral, e para tomar essas exigên­
cias obrigatórias, são necessárias disposições do poder soberano». Não
obstante, e é sobre esse ponto que convém insistir, Hobbes esclarece
que «a obediência à lei civil é [...] igualmente uma parte da lei da natu­
reza», pois se os homens não estão dispostos a respeitar as leis morais,
que são também os preceitos da vida em sociedade, o estado civil, qual­
quer que seja, quanto ao resto, o poder de coacção do Estado, não se
poderá manter. Entre as leis de natureza, a terceira, que manda que se
respeitem as promessas feitas, reveste-se de uma importância política
mais particular, na medida em que está no fundamento do contrato que
instaura a soberania do Estado. Quando convencionam renunciar, uns
a favor dos outros, à utilização do direito que têm sobre todas as coisas
(jus in omnia) no estado de natureza, os homens pressupõem implicita­
mente que esse compromisso recíproco os vincula. Por essa razão, mas
também porque um estado não poderia ser chamado civil se os ho­
mens não se esforçassem por adoptar os costumes pacíficos impostos
pelas dezanove regras descritas no Leviatã, a teoria das leis de natureza
constitui inegavelmente uma condição moral indispensável à consti­
tuição de um estado civil136.

136 Lev, XXVI, 8, trad. p. 285.


214 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Esta condição necessária não é no entanto uma condição suficiente.


Para que a paz entre os homens se tome efectiva, é de facto conveniente
que seja erigido acima deles um poder capaz de protegê-los, simulta­
neamente, das suas próprias inclinações para se guerrearem e da ameaça
das potências estrangeiras. Este poder superior, no qual reside a di­
mensão política do estado civil propriamente dito, provém quer de uma
instituição, quer de uma conquista. Contrariamente à tradição republi­
cana clássica que tende a distinguir claramente essas duas origens do
Estado, Hobbes considera pela sua parte que a diferença entre a insti­
tuição e a conquista é uma diferença secundária: «Esta espécie de do­
mínio ou de soberania [por aquisição] difere da soberania de institui­
ção, apenas nisto, que os homens que escolhem o seu soberano fazem-no
por temor de um ou do outro, e não por temor daquele que instituem137.»
Numa república por instituição, o soberano é escolhido pelos futuros
cidadãos, no mesmo momento em que estabelecem entre si um contrato
para acabar com o receito que inspiram uns aos outros, ao passo que
numa república por aquisição, os homens «se submetem àquele que
temem138». Nos dois casos, todavia, é o temor, e mais precisamente o
temor da morte violenta, que está no princípio da instituição de um
poder soberano, dotado dos direitos políticos que Bodin tinha já des­
crito nos Seis Livros da República139. A república por instituição não é
portanto considerada por Hobbes como mais legítima do que a repú­
blica por aquisição, mas unicamente como uma expressão filosófica
mais adequada da racionalidade política que preside à instituição de
qualquer Estado, seja qual for, de resto, a sua origem histórica.
Quer os homens o queiram quer não, eles estão de facto, por todo o
tempo a viverem sem a protecção de um poder soberano, impossibili­
tados de respeitar as regras da moralidade, pois o estado de natureza
— no sentido estrito, um estado sem Estado — é um estado no qual a
actuação efectiva das leis morais se encontra suspensa. O estado civil
pode assim definir-se a contrario como um estado no qual é não só pos­
sível, mas é ainda obrigatório, respeitar as leis morais, ou seja, viver de
acordo com a equidade, a justiça e as outras virtudes morais. Esse laço
entre leis morais e vida civil, teoria moral e teoria política, exprime-se
mais particularmente através de dois aspectos singulares da teoria po­
lítica de Hobbes.
Primeiro que tudo, convém sublinhar que a dedução das leis de
natureza provém do mesmo fundamento que a dedução da necessi-

137 Lev, xx, 2, trad., p. 207.


138 Md.
139 Ver supra, «Bodin ou a afirmação dos direitos de soberania», p. 197.
DE MAQUIAVEL A HO BBES- 215

dade de um poder soberano, a saber, da descrição do estado de natureza


como um estado de guerra. De facto, as regras do comportamento mo­
ral deduzem-se quase todas de uma reflexão sobre os inconvenientes
da guerra, do conflito ou da confrontação violenta140. Alei fundamental
de natureza que ordena a procura da paz é emblemática neste parti­
cular, uma vez que não a podemos aceitar verdadeiramente a não ser
que compreendamos as consequências últimas da vida num estado de
guerra: «Porque o estado de hostilidade e de guerra faz com que a própria
natureza seja destruída e com que os homens se matem entre si [...],
aquele que deseje viver num estado que seja o da liberdade e do direito
de todos a todas as coisas está, portanto, em contradição consigo pró­
prio141. Pois cada um, por necessidade natural, deseja o seu próprio bem,
ao qual é contrário esse estado em que supomos que existe conflito
entre homens por natureza iguais e capazes de se destruírem uns aos
outros142.» Ora, é precisamente esta mesma tomada de consciência da im­
possibilidade de viver duradoiramente no estado de natureza que funda
igualmente a decisão do contrato social. Os homens comprometem-se
uns relativamente aos outros a respeitar os mandamentos daquele que
terão designado como único detentor da soberania, com o objectivo de
pôr termo ao estado de guerra, que converte cada um num assassino
potencial de cada um dos outros. A partir de uma mesma experiência
negativa do estado de natureza, a lei fundamental da natureza define
aquilo que devem ser as relações dos homens no interior de uma socie­
dade civil e o contrato político instaura concretamente a condição polí­
tica da entrada em vigor dessa lei. Protegidos pelo poder do soberano,
os comportamentos dos cidadãos devem ser orientados pela preocupa­
ção concreta e permanente de manter a paz e evitar os diferendos.
Quando ela rege efectivamente a vontade de um homem, essa obriga­
ção toma-se disposição para agir moralmente, isto é, virtude, não sendo
esta última mais do que «o hábito de agir em conformidade com essas
leis de natureza e todas as outras leis que tendem para a nossa preser­
vação143». Se os homens que fazem um contrato com vista a estabelecer
uma sociedade civil não são provavelmente ainda homens virtuosos,
não são por isso menos animados por uma aspiração a viver em paz

140 Apesar de geralmente considerada como um dever relativamente a si mesmo, a


temperança é deduzida, nos Elements ofLaw e no De Cive, da primeira lei da natu­
reza, que impõe a busca da paz (Cf. DCi, III, 25, p. 117).
141 Esta contradição é igualmente sublinhada em DCi, 1,14.
142 EL, I, XIV, 12, p. 73. ^
143 EL, I, XVII, 14, p. 94.
216 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

que constitui, no pensamento de Hobbes, o preliminar obrigatório de


toda a moralidade. Neste sentido, é possível dizer que é a experiência
do vício, a do seu prolongamento belicoso, a saber, também a expe­
riência da natureza humana no estado de natureza, que está simultanea­
mente no fundamento da sua moral e da sua política.
Todavia, é conveniente sublinhar, e este é o segundo ponto, que as
leis de natureza ou as leis morais não podem reger as relações entre os
homens a não ser no interior de um estado civil. Hobbes esclarece, com
efeito, que a aplicação das leis de natureza é necessariamente suspensa
por todo o tempo que dura o estado de natureza. De facto, não sendo a
moral de Hobbes uma moral absoluta, mas uma moral relativa a um
fim que é a preservação de si mesmo, seria contrário ao princípio da
moralidade querer, por exemplo, respeitar os seus compromissos
contratuais — terceira lei da natureza —, havendo razões legítimas para
pensar que a pessoa com a qual o contrato foi estabelecido não fará o
mesmo. Se as leis de natureza obrigam sempre a «desejar que elas te­
nham efeito», isto é, se elas obrigam sempre inforo interno, «não obri­
gam sempre in foro externo, isto é, a pô-las em aplicação»144. A questão
das condições de aplicação das leis morais desempenha, devido a isto,
um papel central no pensamento de Hobbes. Este ultimo não se inter­
roga em primeiro lugar sobre o Estado compreendido como entidade
administrativa ou princípio de governo, mas sobre o Estado com­
preendido como condição de aplicação dos princípios da moralidade
civil. Perguntamo-nos por vezes porque é que a terceira secção dos
sementa philosophiae teria sido intitulada De Cive. A razão é, parece-me,
que a preocupação primordial de Hobbes não era a de pensar o Estado
enquanto tal, mas sim pensar a condição que permite que os homens
vivam como cidadãos. Ora, viver como cidadão, é aplicar os princípios
da moralidade nas suas relações com os outros cidadãos, ou seja, aplicar
as leis de natureza, tanto quanto possível, no interior do estado civil.
Semelhante compreensão da vida civil não está mais relacionada com
a preocupação de eficácia das teorias da razão de Estado do que com o
problema que colocarão no século seguinte os teóricos da sociedade
civil145. 0 problema de Hobbes não é o de permitir a indivíduos libertos

144 Lev, XV, 36, trad. p. 158.


145 Na medida em que se distingue da questão do Estado, o problema da sociedade
civil é, com efeito, o problema de pensar a eficácia pública das paixões e dos vícios
privados. Cf. B. Mandeville, The Fable of the Bees, or Private Vices, Publick Benefits,
F. B. Kaye (ed.), Oxford, Clarendon Press, 1924; La Fable des abeilles (1974), trad.
fr. L. e P. Carrive, Paris, Vrin, 1998.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 217

da preocupação com a virtude que aumentem a riqueza da sua nação,


mas, pelo contrário, a de permitir a indivíduos pouco inclinados por
natureza para a virtude, que ajam como cidadãos, isto é, como seres, se
não virtuosos, pelo menos capazes de respeitar as regras da moral nas
relações que mantém com os seus concidadãos.
O problema da instituição de um Estado soberano está assim
logicamente subordinado à questão da aplicação das leis de natureza:
«Portanto, sendo dado que o pôr em prática as leis naturais é necessário
para a conservação da paz, a que, por sua vez, a segurança é necessária
para pôr em prática essas leis naturais, é preciso considerar o que pode­
ria providenciar essa segurança146.» Não se pode dizer mais claramente
que a instituição do Estado não tem outra função, segundo Hobbes,
além de tomar possível pôr em prática (exercitium) as leis de natureza.
Por outras palavras, o poder público não tem por objectivo fazer reinar
a paz pela virtude apenas da força. Uma vez posta a existência de uma
força soberana de coacção, a conservação provém mais do hábito, con­
traído pelos cidadãos, de respeitar as regras da vida em sociedade do
que do emprego efectivo da coacção. É certo, no entanto, que esta dis­
posição política para a paz não pode tomar-se efectiva na ausência de
um poder público, o poder do Estado ao qual frequentemente se quis
reduzir a lição de Hobbes. Para que os cidadãos possam aplicar as leis
de natureza, é de facto preciso que tenham a garantia de que o poder
público é capaz de fazer respeitar a justiça natural, ou seja, as conven­
ções aceites.
Esta exigência de protecção exclui à partida determinados modelos
da constituição do Estado. O corpo político assim concebido não pode­
ria nomeadamente apoiar-se no assentimento (consensio) de diversas
pessoas, porque esse tipo de acordo «não traz àqueles que o realizam,
ou ainda aos associados, a segurança procurada pelo exercício em
comum das leis de natureza147». Com efeito, a unidade de um corpo
político não poderia assentar na unidade de um fim perseguido em
comum, porque quando uma pessoa não é obrigada a não ser pela sua
própria vontade, é-lhe sempre permitido retractar-se se considerar que
o seu interesse particular é contrariado pelo interesse geral. Também

146 «Cum ergo ad pacem conseruandam, necessarium sit legis naturalis exercitium; & ad
legis naturalis exercitium necessaria sit securitas, considerandum est quid sit quod talem
securitatem prnestare possit» (DCi, V, 3, p. 331).
147 «Hoc est, societatem mutui tantum auxilu, non praestare consentientibus, siue sociis,
securitatem quam quaerimus exercendi inter se ipsos leges naturae surpra dictas» {DCi, V,
4, p. 132.
218 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

não podemos pensar o estado humano segundo o modelo da colmeia


ou do formigueiro, porque as associações humanas são perturbadas
pelas paixões do ódio e da inveja que as sociedades animais ignoram
totalmente. O modelo do assentimento, ou da conspiração das vonta­
des (conspiratio), deve, portanto, ceder o passo a um modelo diferente,
que é o da união (unio). Para permitir a aplicação das leis de natureza,
convém que «cada um submeta a sua vontade à vontade de outro que
seja único — um só homem ou uma só assembleia — de forma a que se
tenha como vontade de todos e de cada um tudo o que esse teria que­
rido enquanto necessário à paz comum148». Por este meio, a sociedade
já não forma mais do que um só corpo, sendo a unidade do corpo asse­
gurada pela unidade da vontade daquele que tem o poder de governar
os outros. Esta vontade única, encarregue de tomar as decisões relati­
vas à segurança de todos, não constitui propriamente falando o corpo
do estado, mas a sua cabeça, ou antes, a sua alma. A metáfora do corpo
político (boãy politic) permite assim distinguir entre aquilo que Hobbes
designa com a ajuda dos nomes de civitas e de societas civilis — nomes
que Sorbière traduz respectivamente, no francês do século xvn, pelas
palavras estado ou corpo do estado e sociedade — e o princípio que dá
ao Estado a sua corporeidade política, a saber, esse homem ou essa
assembleia que o governa.
Um tal homem, ou uma tal assembleia, não assumirá a sua função
de guardião da segurança colectiva a não ser que disponha da sobera­
nia (dominium), isto é, do poder soberano (summa potestas) e do comando
supremo (summum imperium). Esta soberania, que se deve ao facto de
cada cidadão se desfazer do seu poder de resistir ao chefe da cidade149,
é a condição da existência da sociedade civil, isto é, de uma sociedade
na qual é possível agir conformemente às leis da natureza sem temer
pela sua segurança.
A distinção que esboçámos entre estado civil e soberania não deve
contudo ser levada demasiado longe, porque ela não constitui, no pensa­
mento de Hobbes, uma distinção real — semelhante àquela que permi­
tirá opor mais tarde sociedade civil e Estado —, mas uma distinção
lógica que tem como papel dar conta da função do Estado. Enquanto a
imagem do corpo político, composto por um corpo e uma cabeça, pare­
cia dever conduzir-nos a identificar o estado com o corpo e o soberano
com a cabeça, o conceito de pessoa pública (persona civilis), introduzida

148 DCi, V, 6, p. 133.


149 «Quodfecisse (quia vim suam in alium transferre naturali modo nemo potest) nihil aliud
est, quam de iure suo resistendi decessisse» (DCi, V, 11, p. 134).
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 219

na mesma passagem do De Cive, vem corrigir essa primeira impressão.


Na medida em que possui direitos e bens próprios, a pessoa civil deve
ser distinguida e reconhecida «por um nome único entre todòs os par­
ticulares150», porque se «um cidadão particular» ou «o conjunto dos
cidadãos» não podem ser confundidos com o Estado em si (pro civitate),
não acontece o mesmo para «aquele cuja vontade tem carácter de von­
tade comum»151. Deste ponto de vista, o soberano identifica-se com
o Estado — «O Estado sou eu» —, e a soberania com o governo. Com
efeito, a partir do momento em que o soberano não se distingue do
Estado, como a fonte do comando do conjunto dos súbditos obedientes,
não há lugar a distinguir entre o detentor do comando supremo e o
chefe do governo. O erro seria confundir o Estado, ou seja, o soberano,
com o povo (populus), ou seja, a multidão (multituão). Como bom teórico
do Estado, que sente a obrigação de ser igualmente um teórico do bom
discurso sobre o Estado, Hobbes esclarece que, quando «dizemos que
o próprio povo, ou a multidão, quer, ordena ou faz qualquer coisa, é
preciso entender: o Estado que comanda, quer e age pela vontade de
um só homem, ou pelas vontades concordantes de diversos homens152».
Se esta distinção conceptual do Estado e do povo não põe em causa
a finalidade primeira do Estado que é a de proporcionar aos cidadãos
uma segurança suficiente que lhes permita agir conformemente às leis
de natureza, coloca contudo um problema específico, na medida em
que o Estado assim definido como pessoa civil aparece como totalmente
independente dos desejos e das vontades efectivas dos súbditos que
comanda. O desenvolvimento que é dado, no capítulo xvi do Leviatã, à
teoria da pessoa civil, pode compreender-se por isso como uma tenta­
tiva de reduzir a distância criada pela afirmação absoluta da soberania
entre a majestade do Estado a as expectativas dos cidadãos relativa­
mente à instância que os governa. A novidade introduzida pelo Leviatã
não respeita tanto ao emprego do conceito clássico de persona como ao
emprego dos conceitos de actor e de autor para pensar a pessoa fictícia.
Este par conceptual permite, com efeito, estabelecer um laço de repre­
sentação entre a pessoa civil e a multidão que a instituiu, sem por isso
diminuir a independência do soberano relativamente aos seus súbdi­
tos. A relação autor/actor faz do povo a fonte da autoridade política, ao
mesmo tempo que deixa ao soberano o exercício efectivo do poder. Se
o povo é realmente o autor das acções e das palavras do soberano, não

150 DCi, V, 9, p. 134


151 Md.
152 Md., VI, 1, rem., p. 137.
220 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

é menos verdade que o soberano é o detentor real da autoridade que o


povo lhe conferiu ao institui-lo153. Os termos do contrato social expri­
mem perfeitamente essa inversão da relação de autoridade: «Autorizo
este homem ou esta assembleia, e abandono-lhe o meu direito de me governar a
mim mesmo, com a condição de cjue tu lhe abandones o teu direito e de que
autorizes todas as suas acções da mesma maneira15*». Em lugar de reforçar a
sua autoridade, o acto pelo qual um homem autoriza um outro, ou di­
versos outros, a governá-lo coincide exactamente com o acto pelo qual
ele renuncia a fazer da sua autoridade uma utilização pessoal. Dito de
outra forma, a autoridade do povo serve-lhe apenas para exprimir a
sua renúncia ao exercício efectivo da autoridade. A teoria do Leviatã
permite assim resolver o problema, imperfeitamente resolvido por
Bodin, da representação de um poder absoluto.
Assim liberto pela teoria da representação da preocupação de dever
levar em conta a vontade do povo na sua diversidade, o Estado poderia
parecer igualmente livre de fixar para si próprio as finalidades que de­
sejasse. De facto, não sendo limitado por um mandato imperativo, nada
impede em princípio o representante do povo de colocar o poder do
Estado ao serviço de finalidades distintas da preservação da paz civil.
O poder estatal não poderia então ser colocado ao serviço de um princí­
pio de eficácia libertado pelos sucessos da ciência moderna? O papel
que Hobbes atribui ao Estado no domínio da propriedade, no domínio
da educação dos súbditos e no domínio da economia é da esfera de
uma captação do princípio de soberania pelo princípio de eficácia? Este
papel será ou não conforme à definição do Estado como condição de
aplicação das regas da moralidade civil?

O Estado soberano e o Estado eficaz

A função do soberano está contida «no fim para o qual lhe foi con­
fiado o poder soberano, e que é a preocupação com a segurança do
povo155». A dificuldade é, no caso em apreço, compreender bem o sen­
tido que Hobbes confere, nesta citação, à expressão clássica «segurança
do povo», em latim, salus populi. Esta expressão pode ser compreen-

153 Y. C. Zarka (1985), «Personne civile et représentation politique chez Hobbes», in


Archives de philosophie, n.s 48/2, pp. 287-310, retomado em Hobbes et la pensée politique
moderne, Paris, PUF, 1995, cap. xi, pp. 197-227.
154 Lev, XVII; 13, trad. p. 177.
155 Ibid., XXX, 1, trad. p. 357.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 221

ilida num sentido estrito e num sentido lato: no primeiro caso, a salva-
,,guarda do povo reside unicamente na preservação da ordem interior e
na defesa do país; no segundo caso, consiste em tomar em consideração
: da felicidade do povo. Poder-se-ia esperar que Hobbes retivesse a pri­
meira acepção. Ora, é a segunda que ele parece privilegiar. Ele observa,
com efeito, que por «segurança» não entende «aqui apenas a preserva­
ção, mas também todas as outras satisfações desta vida que cada um
poderia adquirir pela sua indústria legítima, será perigo nem dano para
a República156». O Estado aparece assim como responsável do de­
senvolvimento das riquezas do país, de acordo com um modelo que
não deixa de evocar o modelo das teorias da razão de Estado, ou até a
utopia baconiana de A Nova Atlântida. Esta preocupação com a satisfa­
ção dos súbditos vai bastante longe, uma vez que Hobbes preconiza,
em certos casos, a intervenção directa do Estado na esfera económica e
social.
Dois casos são particularmente emblemáticos desta intervenção di­
recta do Estado, a saber, a tomada a seu cargo dos acidentados de tra­
balho e a luta contra o desemprego. Relativamente ao primeiro ponto,
Hobbes declara que os homens que «não podem suprir às suas necessi­
dades pelo trabalho [...] não devem ser abandonados à caridade das
pessoas privadas», mas que «cabe às leis da República provê-los, em
toda a medida requerida pelas necessidades da natureza»157. Da mesma
forma que existem princípios da caridade privada, que impõem a
cada um que cuide dos inválidos, existem também princípios da cari­
dade pública, que impõem ao soberano de uma república que não aban­
done os inválidos apenas à caridade privada. O Estado tem o dever de
não «expor [os inválidos] ao acaso de uma caridade tão incerta158», em
suma, ele tem o dever de representar quanto a eles o papel de provi­
dência civil. Retativamente ao segundo ponto, Hobbes esclarece que
os homens cuja capacidade de trabalho está intacta devem poder en­
contrar um emprego, acrescentando que, se não tiverem desejo disso, é
preciso «forçá-los a trabalhar159». Para os ajudar a encontrar um em­
prego, existem dois meios principais, ambos da esfera de uma inter­
venção do Estado: convém, em primeiro lugar, que o Estado adopte leis
«que encorajem todos os ramos de actividade, tais como a navegação, a

156 Ibid.
157 Ibid., 18, trad. p. 363.
158 «[...] it is uncharibleness [...] in the Soveraign of a Commonwealth, to expose them [the
imponent] to the hazard of such uncertain Charity» (ibid.).
159 Ibid.
222 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

agricultura, a pesca, e todos os outros trabalhos manuais que requerem


mão-de-obra»; e, se o desenvolvimento económico do país não basta
para proporcionar um emprego a toda a gente, importa, num segundo
momento, «transplantar [os homens pobres] para regiões insuficiente­
mente habitadas»160. Se recorrer a estas diferentes medidas, o Estado
poderá garantir uma protecção social dos trabalhadores a remediar o
desemprego através do encorajamento legislativo da actividade econó­
mica e da colonização dos territórios pouco povoados161.
Semelhante preocupação com a eficácia governamental parece ca­
racterizar igualmente a política educativa exaltada pelo Leviatã. Com o
fim de assegurar a salvação do seu povo, o soberano deve, com efeito,
dispensar-lhe um ensino oficial, que consista ao mesmo tempo em li­
ções e em exemplos162: «No que toca a instruir o povo sobre os direitos
essenciais da soberania (que são as leis naturais e fundamentais), o so­
berano não encontra, por todo o tempo em que disponha da
integralidade do seu poder, nenhuma dificuldade, excepção feita àque­
las que provierem da sua culpa ou da culpa daqueles em quem confia
na administração da República. Em consequência, é seu dever provi­
denciar às pessoas essa instrução163.» A instrução pública não constitui
portanto um direito dos súbditos, mas um dever do soberano, uma obri­
gação intrinsecamente ligada à sua função. O argumento, que se segue
a este, e segundo o qual uma tal instrução é igualmente importante
para o proveito e para a segurança do soberano, porque ela o protege
dos riscos de rebeliões164, não modifica fundamentalmente esta ideia.
De facto, este projecto de instrução obrigatória foi considerado por cer­
tos comentadores como uma antecipação do Estado das Luzes, encar­
regue de dissipar as superstições e de esclarecer os povos sobre os prin­
cípios da sua felicidade. A mistura de despotismo e de filosofia que
caracterizou a Prússia de Frederico II encontrar-se-ia assim prefigurada
pelo Estado-Leviatã, simultaneamente preocupado com a afirmação
absoluta dos seus direitos e com a propagação de uma filosofia política

160 Ibid.
161 Hobbes esclarece que os colonos «não deverão, não obstante, exterminar aqueles
que aí encontrarem [i.e., nesses territórios pouco povoados]: mas deverão forçá-los
a adoptar um habitat mais limitado, e, em lugar de correr vastas extensões para se
apoderarem do que nelas encontrarem, a cultivar amorosamente cada parcela de
terreno, de uma maneira hábil e laboriosa, para dela receberem a sua subsistência
nos tempos vindouros» (Lev, XXX, 18, trad., p. 370).
162 Lev, XXX, 2, trad., p. 357.
163 Ibid., 6, trad., pp. 360-361.
164 Ibid., 6, trad., p. 361.
DE MAQUIAVEL A HOBBES... 223

adequada. De facto, Hobbes mostra-se muito sensível ao poder da opi­


nião sobre as acções dos homens, e consequentemente sobre a estabili­
dade dos Estados: «Com efeito, as acções dos homens provêm das suas
opiniões, e o bom governo dos homens em vista à paz e à concórdia
entre eles assenta sobre o bom governo das suas opiniões165.» Importa,
é certo, não fazer uma leitura errónea deste princípio, reduzindo-o a
uma simples máxima de Estado, porque, se está atento ao poder da
opinião, Hobbes quer-se igualmente preocupado com a verdade das
doutrinas: «Sem dúvida, em matéria de doutrinas não devemos consi­
derar senão a verdade; não obstante isso, não é incompatível com o
facto de tomar a paz como regra das doutrinas: porque uma doutrina
incompatível com a paz não pode ser verdadeira, do mesmo modo que
a paz e a concórdia não podem ser contrárias à lei da natureza166.» Este
texto mostra claramente que não é possível reconduzir a afirmação dos
direitos da soberania em matéria de doutrina a um vulgar direito de
censura. Também não é mais possível interpretá-lo como a tradução
filosófica da apropriação da potestas docendi da Igreja católica pelos go­
vernos dos países protestantes. A tese hobbesiana de um dever de
instrução dos cidadãos não contém, por essa razão, a ideia de uma
regulação pelo Estado das actividades de pesquisa e de ensino com
vista a uma maior eficácia social e política?
Podemos legitimamente perguntar-nos se a proximidade historica­
mente atestada entre Francis Bacon e Thomas Hobbes terá podido ter
uma incidência sobre a teoria do Estado do Leviatã167. Esta hipótese po­
deria assim dar um fundamento à tese da inflexão do modelo do Es­
tado como sociedade civil para o modelo do Estado eficaz. Por detrás
do modelo científico proposto por Bacon perfila-se, com efeito, o mo­
delo político, destinado a um belo futuro, do Estado gestor, a saber, de
um Estado exclusivamente preocupado com as tarefas da governação.

165 Ibid., XVIII, 9, trad. p. 184.


166 Ibid.
167 Sobière contribui sobre este ponto com o seguinte testemunho: «Ele [Hobbes] é,
com efeito, um resto de Bacon, sob o qual escreveu na sua juventude, e por tudo o
que eu lhe ouvi dizer sobre ele, e que eu reparo no seu estilo, vejo bem que ele
reteve muito dele» (Relation d'un voyage en Angleterre, Colónia, 1964, p. 75). Este
testemunho é completado por aquilo que escreveu J. Aubrey: «The Lord Chancellour
Bacon loved to converse with him [Hobbes]. He assisted his Lordship in translating severall
of his Essayes into Latin, one, I well remember, is that Of the Greatnes of Cities: the rest
I haveforgott. [...] His Lordship would often say that he better liked Mr. Hobbes's taking his
thoughts, then any of the others, because he understood what he wrote, which the others not
understanding, my Lord would many times have a horde taske to make sense of what they
writt» (Aubrey's Brief lives, O. Lawson-Dick, Mandarin, Londres, 1992, pp. 149-150).
224 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

M. Oakeshott pôs bem em evidência a originalidade da concepção


baconiana de Estado: «É preciso compreender um Estado como um ter- ?
ritório circunstancialmente distinto cujos habitantes, envolvidos na ex­
ploração sem descanso dos seus recursos, têm um interesse comum pelo
sucesso contínuo do empreendimento. E o governo de um Estado é o
guardião desse interesse comum e o director e gestor (manager) do
empreendimento168.» As características desse Collegium estatal estão sem
dúvida um tanto ou quanto dissimuladas, na descrição baconiana, por
uma dupla referência à Bíblia e à razão de Estado, pouco familiar aos
teóricos modernos do Estado gestor. A descoberta dos segredos da
Terra e a exploração das suas riquezas são, com efeito, apresentadas
pelo chanceler como as vias mais directas para honrar Deus169. Toda­
via, o ponto que importa é que o sucesso desse empreendimento de
dominação da natureza depende da sua aplicação pelo Estado. Este
último encontra-se assim dotado de uma finalidade própria, distinta
da simples preservação da paz pública, uma vez que é encarregue de
assegurar o progresso do saber com vista ao bem comum dos cidadãos.
Apesar das precauções oratórias facilmente compreensíveis170, Bacon
desenvolve igualmente uma teoria da arte política muito próxima da
de Maquiavel. Contudo, no seu projecto de tomada a cargo da investi­
gação pelo Estado inspira-se menos em Maquiavel do que nos teóricos
da razão de Estado, dos quais sabemos que desenvolveram uma con­
cepção do Estado administrativo muito atenta à diversidade das ri­
quezas e aos meios de as aumentar171. Ao integrar assim a ciência mo­
derna no dispositivo de domínio concebido sem ela pelos teóricos da
razão de Estado, o modelo baconiano do Estado afasta-se fortemente
do modelo do estado civil hobbesiano. O Estado segundo Bacon é como
o Estado segundo Giovanni Botero, que não tem como fim garantir a

168 M. Oakeshott, De la conduite humaine, traduzido por O. Sedeyn, Paris, PUF, 1995,
p. 289.
169 Cf. The Works ofFrancis Bacon, Spedding, Ellis and Heath, 14 vols., Londres, 1857-1874,
vol. i, p. 365. Para um comentário desta passagem, ver B. Farrington, The Philosophy
ofFrancis Bacon, Chicago, University of Chicago Press, 1966, pp. 27-29.
170 «De qualquer forma, é absolutamente preciso que nos recordemos que em tudo
isto os preceitos que formulámos pertencem ao género a que podemos chamar as
Bonae Artes [as boas artes]. Quanto às más artes, um homem pode certamente adop-
tar para si mesmo o princípio de Maquiavel, "não procuramos atingir a virtude em
si própria, mas apenas a sua aparência, porque uma reputação de virtude é útil,
enquanto a sua prática é um entrave"». (F. Bacon [1605], D u progrès et de laprom otion
des savoirs, trad. fr. M. Le Doeuff, Paris, Gallimard, 1991, p. 267).
171 Ver Chr. Lazzeri e D. Reynié (ed.), La Raison d'État: politique et rationalité, Paris,
PUF. 1992.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ... 225

paz civil e a aplicação das leis de natureza, mas que deve garantir para
si «um firme domínio sobre os povos», com a ajuda da razão de Estado
; que é «o conhecimento dos meios adequados para fundar, conservar e
aumentar um tal domínio e senhorio»172. Este modelo da política, com­
preendida como administração eficaz de um território, é verdadeira-
mente retomado por Hobbes? Apesar de determinadas aparências, não
se passa nada disso, pois podemos mostrar que as finalidades econó­
mica, social e educativa consideradas no Leviatãnão constituem de forma
alguma fins em si mesmas, mas apenas meios ao serviço da preser­
vação da soberania.
No que respeita, em primeiro lugar, ao envolvimento do Estado na
esfera da economia, partiremos da questão da propriedade, porque ela
é particularmente esclarecedora. Do facto de Hobbes afirmar que «em
toda a espécie de República», a repartição dos bens é da esfera de com­
petência do soberano, e que o soberano possui uma propriedade abso­
luta sobre os bens dos seus súbditos, não se deve concluir que o sobe­
rano hobbesiano é semelhante ao suserano de um domínio feudal, que
possui uma propriedade total em relação ao seu domínio, para o gerir
como entender. Evidentemente, o direito absoluto de propriedade
detido pelo soberano do Leviatã não implica de forma alguma a trans­
formação da república num domínio a explorar, pois, bem longe de
implicar a extensão do domínio real, supõe pelo contrário a sua diminui­
ção. De facto, Hobbes critica o raciocínio daqueles que pensam que, para
preservar a paz pública, o representante da república tem necessidade
de receber uma parte das terras, de ocupá-la e de fazê-la render à ma­
neira de um senhor que explora o seu senhorio173. Um tal raciocínio é
falso, pois pressupõe um representante político dotado de uma natu­
reza humana ideal, «liberto das paixões e das fraquezas humanas174»,
quando não poderíamos contar apenas com a virtude do monarca para
assegurar a salvação da república: «Mas sendo a natureza dos homens
o que é, a constituição de um domínio público, ou a atribuição à Repú­
blica dé um determinado rendimento, é um vão empreendimento que
tende para a dissolução do governo e para o regresso ao estado de pura
natureza e de guerra, a partir do momento em que o poder soberano
caísse nas mãos de um monarca ou de uma assembleia demasiado ne­
gligentes relativamente às questões pecuniárias, ou demasiado
aventurosos nas suas maneiras de aplicar os fundos públicos quando

172 G. Botero, Della ragione di Stato, trad. fr. G. Chappuys (revista), Paris, 1599,1 ,1.
173 Lev, XXIV, 8, trad., p. 298.
174 Ibid., trad., p. 265.
227
D E M AO UIAVEL A H O B B E S -
226 HISTORIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

der aos cidadãos que eles não podem beneficiar da protecção o


de uma guerra longa ou onerosa175.» A história de Inglaterra confirma
suficientemente este ponto, uma vez que o domínio real que Guilherme, Estado se não respeitarem as leis fundamentais deste, e se nao reco
o Conquistador tinha reservado para si não deveria servir-lhe «na sua nhecessem que a sua obediência civü é a condição da sua Uberdade
capacidade pública, mas apenas na sua capacidade natural176». política A intervenção do Estado em matéria de doutrina prolonga,
De facto, a afirmação de um direito absoluto de propriedade do so­ por outro lado, a sua intervenção em matéria de educaçao: ela visa in­
berano não visa promover uma exploração de tipo senhorial, mas ga­ validar ou refutar as doutrinas que punham em causa os princípios da
rantir a propriedade privada dos súbditos. Correlativamente, se os pro­ sociedade civil. Criticou-se muito Hobbes sobre este ponto, repro­
prietários privados não têm o direito de se opor à expropriação da sua vando-lhe nomeadamente o ter querido encorajar, ou justificar, uma
terra, é porque a sua propriedade está caucionada pela segurança que política de censura. A sua posição é, todavia, muito mais esbatida, uma
lhe garante o Estado, e porque essa segurança supõe ela própria que o vez que ele afirma que «a irrupção de uma verdade nova, por mui o
soberano possa reunir, dando-se o caso, os meios necessários à preser­ súbita e brutal que seja, não quebra nunca a paz», mas que «no máximo
vação do Estado. pode despertar a guerra179». A função do soberano não podeportanto
A intervenção do Estado na esfera económica e social é comandada consistir em julgar o conteúdo das doutrinas, que como doutrinas sao
por esta mesma preocupação de garantir a segurança colectiva dos ci­ da esfera de competência das universidades, mas em julgar a forma
dadãos. As leis que o soberano estabelece para garantir a responsabili­ como essas doutrinas são utilizadas no espaço público. A unica preocu­
zação pelos mais fracos e para permitir o desenvolvimento da econo­ pação do Estado é aqui mais uma vez, consequentemente, a de velar
mia não têm por finalidade pôr o poder do Estado ao serviço da pela preservação da segurança pública, e não a de procurar transformar
supressão da pobreza ou da exploração da natureza e dos homens, mas a maneira de pensar dos cidadãos. Hobbes está assim muito afastado
visam apenas assegurar aos cidadãos as condições de uma acção con­ do modelo que procura promover os déspotas esclarecidos do secu o
forme às regras da vida civil. xviii: não se pode tratar, para ele, de escolarizar toda a naçao, com o
A intervenção do Estado em matéria de pesquisa e de educação intuito de a tomar mais esclarecida, se bem que convenha proteger a paz
tem a ver com uma perspectiva idêntica. Não se trata tanto, para o sobe­ civü assegurando uma instrução cívica suficiente a todos os cidadaos.
rano, de ensinar aos homens os princípios da verdade ou as regras da Esta subordinação das finalidades particulares da pesquisa, da in­
vida feliz como de lhes ensinar os deveres fundamentais que são a con­ dústria e da educação à segurança pública exprime-se de forma parti­
dição de toda a vida política. Se é preciso recorrer, nesse caso, à peda­ cularmente esclarecedora na teoria das organizações subordinadas que
gogia, em lugar de se apoiar «numa lei civil ou no medo de um castigo encontramos exposta no capítulo xxn do Leviatã. Sob o titulo um pouco
legal177», é porque uma «lei civil que proíba a rebelião (e toda a resis­ enigmático de Sistemas súbdito/systemata civium, Hobbes apresenta, com
tência aos direitos essenciais da soberania é uma rebelião) não obriga
efeito, uma reflexão de envergadura sobre a orgamzaçao da sociedade.
de forma nenhuma enquanto lei civil, mas apenas em virtude da lei de
No prolongamento da reflexão dos pensadores medievais sobre os
natureza, que proíbe a violação dos compromissos: e se as pessoas
conceitos de societas e de universitasm, este capítulo mostra claramen e
ignorarem essa obrigação natural, o direito de qualquer das leis que
que é possível distinguir a finalidade do Estado compreendido como
faz o soberano não pode ser óbvio para elas. E quanto ao castigo, eles
uma organização regrada, absoluta e independente, das finahdades par­
tomam-no por um simples acto de hostilidade, que se esforçarão por
evitar através de outros actos de hostilidade de cada vez que pensarem ticulares das organizações que lhes estão subordinadas Se o Estado
ser suficientemente fortes para isso178». De facto, o conteúdo do ensino tem o dever de velar para que as organizações subordinadas que sao as
oficial que o Leviatãpreconiza consiste, no essencial, em dar a compreen- universidades, as corporações profissionais ou as confrarias religiosas
possam fazer respeitar os seus direitos, não pode em caso algum substi-

175 Md.
176 Md. 180 Expressions du mouvement eommunautaire dans
177 Md., XXX, 4, trad., p. 358.
178 Ibid. le Moyen Âge latin, Paris, Vrin, 1970.
228 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

tuir-se a elas, e subordinar o seu objectivo específico, que é a preserva­


ção da paz, a objectivos que cabem à competência dessas diversas orga­
nizações. Uma tal subordinação conduziria a transformar a societas civilis
numa universitas, contrariamente aos princípios do Leviatã181. Quando
o soberano deseja encorajar o desenvolvimento da economia ou da
investigação, não deve portanto fazê-lo com vista a aumentar o seu
poder em si mesmo, ou com vista a tomar mais felizes os seus súbditos,
mas com vista a assegurar a manutenção da paz civil. Objectar-se-á
que é por vezes difícil de traçar o limite entre a preocupação com a
paz civil e a mobilização do poder público ao serviço de finalidades
mais elevadas. Para responder a essa objecção, e tentar explicar a
predominância de uma compreensão limitada da finalidade do Estado
no pensamento de Hobbes, convém insistir no facto, que numa
primeira abordagem pode parecer paradoxal, da fraqueza relativa do
Leviatã.

O Estado como Deus mortal

Cita-se frequentemente a frase célebre na qual Hobbes compara o


seu Leviatã a um Deus mortal (mortal Goá)182, mas não se retém geral­
mente dessa comparação mais do que a ideia segundo a qual o Estado
seria um Deus sobre a Terra. Queria insistir, pela minha parte, numa
ideia segundo a qual esse Deus-Estado é um Deus mortal. Hobbes es­
clarece deste modo o significado que pretende dar à mortalidade do
Estado: «E ainda que a soberania, na intenção daqueles que a fundam,
seja imortal, não deixa de estar, não apenas sujeita, pela sua própria
natureza, à morte violenta (violent death) devido à guerra externa, mas
também de ser habitada, desde a sua instituição, por causa da ignorân­
cia e das paixões dos homens, por múltiplos germes dessa mortalidade
natural (naturall mortàlity) que a discórdia intestina traz consigo183.» No
capítulo do qual extraímos este texto, Hobbes considera o Estado de
um duplo ponto de vista. Descreve-o, por um lado, como um garante

181 Sobre a utilização desses conceitos para pensar a oposição entre o Estado com­
preendido como societas civilis e o Estado compreendido como universitas, ver
M. Oakeshott, De la conduite humaine, crp. cit., pp. 200-208.
182 «Tal é a geração desse grande Leviatã, ou antes, para falar dele com mais reverência,
desse deus mortal, ao qual devemos, sob o Deus imortal, a nossa paz e a nossa
protecção» (Lev, XVH, 13, trad., p. 178).
183 Lev, XXI, 21, trad., p. 234.
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ... 229

da segurança colectiva que põe termo à mortalidade violenta que reina


no estado de natureza, isto é, como um Deus imortal184mas, por outro
lado, descreve-o também — é o texto que citámos — como uma insti­
tuição frágil, ela própria ameaçada pela morte violenta de que protege
os seus súbditos. Este duplo ponto de vista de modo algum é contradi­
tório, mas corresponde a duas perspectivas complementares sobre uma
mesma realidade. Imortal do ponto de vista dos súbditos que protege,
o Estado é mortal do ponto de vista das relações que mantém com os
outros Estados, e do ponto de vista das relações que mantém com
os corpos subordinados que o compõem. Essa fragilidade é constitutiva,
porque a paz é sempre pensada por Hobbes do ponto de vista da pos­
sibilidade da guerra, quer esta última seja internacional ou civil. A mor­
talidade do Estado reside assim, mais geralmente, na possibilidade da
guerra considerada como uma dimensão inultrapassável das relações
entre os homens. A ameaça que faz planar a guerra sobre a existência
do Estado é também a razão pela qual Hobbes atribui como única fina­
lidade a este último a de assegurar a protecção dos cidadãos. Sem dú­
vida que ele poderia ter atribuído ao seu Leviatã objectivos aparente­
mente mais elevados do que este, mas recusou-se a isso, porque esses
objectivos teriam arriscado comprometer a soberania do Estado, quer
envolvendo-o em aventuras guerreiras, quer enfraquecendo a
adesão dos cidadãos aos fundamentos éticos do pacto social. Podemos
assim pensar que uma das funções principais da teoria moderna da
soberania teria sido, especialmente através do pensamento de Hobbes,
traçar limites ao desenvolvimento sem precedentes do princípio de
eficácia.

184 «Ainda que nada possa ser imortal, daquilo que fabricam os mortais, não obstante,
se os homens tivessem essa utilização da razão à qual pretendem, as suas Repúbli­
cas poderiam pelo menos ser postas ao abrigo do perigo de perecer de maleitas
internas. Com efeito, pela própria natureza da sua instituição, elas são concebidas
para viver tanto tempo como a humanidade, ou tanto tempo como as leis de
natureza ou como a própria justiça, da qual tiram a sua vida» (Lev, XXIX, 1, tradu­
ção, p. 342).
D E M AQ UIAVEL A H O B B E S ...
230 HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

Les Six Livres de la République (Lyon, 1593) Corpus des oeuvres dn


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232
HISTÓRIA DA FILO SO FIA PO LÍTICA

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Introdução: sistema e fundamento

A teoria do direito no século xvn está ligada a uma reflexão


metajurídica que visa dar um fundamento ao direito. Dar um funda­
mento, quer dizer, dar-lhe uma legitimidade histórica ou racional. Dito
de outra forma, o direito não se pensa a si próprio, exige um discurso
susceptível de fundá-lo.
Esquematicamente, podemos distinguir duas grandes maneiras de
fundamentar o direito. A primeira consiste em procurar a sua razão na
história. São os teóricos do direito comum que procedem assim dando
um fundamento consuetudinário e histórico ao direito. Esta perspec­
tiva é válida, na condição de que se estabeleçam as distinções necessá­
rias, para os juristas ingleses da Common Law e para um bom número
de constitucionalistas franceses. A segunda consiste em procurar um
fundamento racional. Esta é, bem entendido, a perspectiva dos jusnatu-
ralistas. Aqui a questão do fundamento é essencialmente filosófica.
E esta tradição jusnaturalista que nos interessará porque a questão
do fundamento é o que se joga num debate de importância extrema:
o de uma dualidade, até mesmo de uma concorrência, dos fundamentos.
Antes de ir mais longe na elucidação da questão do fundamento
nas teorias do direito natural no século xvn, importa notar que esta ques­
tão está ligada a uma outra: a do sistema. A ligação deve-se ao facto de
que a determinação do fundamento é exigida pelo esforço de constituir
um sistema do direito natural.
Capítulo 3

O contratualismo
como filosofia política
por Alain Renaut

A evidência com que determinadas noções se inscrevem no nosso


universo quotidiano incita-nos muito frequentemente a considerá-las
intemporais e a esquecer que elas podem ser o produto de uma histó­
ria. Esta invocação da história serviu geralmente de base, na filosofia
contemporânea, ao projecto de relativizar as nossas certezas, mesmo as
melhor estabelecidas, ou as nossas opiniões mais firmes, remetendo-as
para o horizonte cultural particular em que se inscrevem. Assim não se
pode ignorar como, desse ponto de vista, o processo genealógico privi­
legiado por Nietzsche e pelos seus herdeiros não cessou de participar
de uma vontade de desmistificação e de um apelo a renunciar a valores
dessacralizados pelo pôr em evidência da sua origem.
Para dizer a verdade, a historicização das noções pode todavia ser
praticada numa perspectiva completamente diferente. Com efeito, se
admitirmos que o significado ou o alcance de uma noção não se reduz
necessariamente às condições da sua emergência histórica, a invocação
de tais condições não impede em nada que continuemos a referir-nos
ao princípio que tivermos historicizado. Simplesmente, essa referência
será menos cega, na medida em que, reportada ao espaço cultural ou
histórico do seu aparecimento e desenvolvimento, a noção aparecerá
solidária com um certo número de condições de pensabilidade e de
validade que não estiveram plenamente disponíveis senão a partir de
uma certa época, e na ausência das quais essa noção perderia todo o
significado preciso e rigoroso. Assim concebido, isto é, sem reducio-
nismo, o procedimento genealógico ou arqueológico poderia revelar-se
fecundo frente a um grande número de noções cuja utilização, com o
258 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

tempo, se tomou inflacionista e das quais, peía mesma razão, tende­


mos a ignorar o que pressupõem ou o que implicam — condenando-
-nos por isso a recorrer a elas de maneira imprecisa, sem perceber cla­
ramente quando é que o seu emprego é verdadeiramente legítimo, e
quando já não o é, a não ser metaforicamente ou numa acepção de tal
forma alargada que o sentido se toma fraco e mal determinado.
Este poderia ser o caso hoje para um princípio tão presente no nosso
universo jurídico e político como o do contrato, do qual a prática social
nos leva a fazer grande uso, como se tratasse de uma forma jurídica
aplicável em todos os domínios e em quaisquer condições, quando que
se trata de nos representarmos, entre as partes participantes num com­
promisso específico, uma obrigação sem a qual esse acordo particular
ou mesmo um acordo global fundamentando o laço social, não poderi­
am ter a menor consistência. É certo que temos de considerar na maior
parte das vezes contratos com estatutos juridicamente claros, como o
são o contrato de venda, o contrato de trabalho ou o contrato de arren­
damento, mas evocamos também, cada vez mais e indiferenciadamente,
esses «quase-contratos» ou, como dizemos igualmente, esses «contra­
tos implícitos» que intervêm entre um educador e aqueles que ele for­
ma, entre um juiz e alguns dos delinquentes aos quais se aplicam as
suas decisões1, ou até entre os pais e os seus filhos — para não dizer
nada ainda acerca de um eventual «contrato natural» entre o homem e
o seu meio2. Face a uma tal inflação e à imprecisão que ela se arrisca a
induzir se não for objecto de uma reflexão sobre o significado e sobre
os seus eventuais limites, três tipos de questões podem efectivamente
ser postas.
Trata-se, muito evidentemente, de nos perguntarmos em primeiro
lugar de onde pôde provir essa extensão aparentemente indefinida de
uma noção com alcance originalmente bem determinado: que um tal
alargamento do seu campo de aplicação tenha qualquer coisa a ver com
a dinâmica democrática das sociedades modernas certamente que não
é duvidoso, mas é preciso ainda explicitar o teor exacto da articulação
entre modernização e contratualização do laço social. Já deste ponto de
vista, parece indispensável remontar do contrato até ao contratualismo,
ou seja, à tematização desta forma de acordo que é o contrato, como

1 Ver, por exemplo, no contexto da toxicodependência, as observações sensatas de


A. Garapon sobre essa espécie de «contrato entre a instituição e uma pessoa» que
constitui o compromisso do drogado em se deixar desintoxicar, in Individus sms
influence. Drogues, alcools, médicaments psychotropes, dir. A. Ehrenberg, Paris, Éd. Esprit,
1991, pp. 315 e segs.
2 M. Serres, Le Contrat naturel (publicado com o título O Contrato Natural pelo Instituto
Piaget), Paris, F. Bourin, 1990.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 259

■ sendo a que está em melhores condições de ser simultaneamente


válida e eficaz para regular os debates susceptíveis de desencadear
litígios ou conflitos num determinado espaço social, na falta de um
,consenso sobre a sua solução.
Para além desse remontar da prática dos contratos até à teoria im­
plícita que a subtende, convém também, e talvez mais fundamental­
mente, procurar, para medir o alcance do contratualismo, determinar
em que contexto essa forma do contrato se impôs para codificar relações
interpessoais. Uma hipótese, no fim de contas razoável, poderia guiar­
mos nesse particular: se o contrato, num determinado contexto histó­
rico ou cultural, se impôs, com uma evidência que nunca tinha tido,
como uma força jurídica explorável, é porque apareceram, ao mesmo
tempo que esse contexto, condições novas das quais o significado rigo­
roso da noção de contrato é estreitamente solidário; assim, poderíamos
esperar, ao identificar essas condições, conseguir delimitar melhor as
condições indispensáveis sob as quais o tratamento de relações humanas
em termos contratuais se pode legitimamente conceber.
Seria preciso, por fim, uma vez circunscritos os parâmetros segundo
os quais, senão a emergência, pelo menos o aumento de importância
do princípio contratual se inscreve no mais profundo do processo que
forneceu à modernidade política as suas fundações filosóficas,
perguntarmo-nos se essa pertença directa à órbita da modernidade não
sela o destino do contratualismo. Por motivos que, desde o empirismo
ou o romantismo, certamente se renovaram no decurso das discussões
suscitadas pela modernidade política, mas que convergem não obstante
em tomo das solidariedades que ligam a opção contratualista e o indi­
vidualismo, até mesmo o subjectivismo dos Modernos, esse diagnós­
tico não teve falta de partidários para suscitar e ressuscitar sem parar
uma «querela do contrato social» que se pôde apresentar como «intermi­
nável»3. A persistência desse debate na própria filosofia contemporâ­
nea, nomeadamente em Habermas, não pode deixar de incitar a recon­
siderar os documentos desse processo, chamando a nossa atenção para
os elementos que foram, no nascimento da modernidade, constitutivos
da filosofia contratualista: e depois disso seria também preciso pergun­
tarmo-nos em que medida, no termo dessa mesma modernidade, o
contratualismo faz ou não parte desses ídolos cujo crepúsculo se supõe
que será precipitado pela acção do martelo que lhes é infligida pelo
inquérito sobre as origens.

3 S. Goyard-Fabre, L'Interminable querelle du contrat social, Éditions de l'Université


d'Ottawa, 1983.
260 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA________________ 261

1 — A noção de contrato todas as relações entre os seres humanos são, para o melhor ou para o
pior, regidas por um contrato? Pelo menos é preciso acrescentar que,
a Antes de interrogar o contexto graças ao qual a noção do contrato segundo os a -príori jurídico-políticos que estruturam o viver juntos nas
pôde ver esboçar-se o extraordinário sucesso que tem hoje, importa diversas sociedades ou culturas, a esfera daquilo que é, de direito,
desfazer um mal-entendido. A teorização filosófica da noção de con­ contratualizável se encontra mais ou menos limitada, e que em conse­
trato é certamente muito antiga, tal como o é com maioria de razão a quência, dependendo dos casos, se confere uma importância e um signi­
prática de um direito criando um lugar para o processo contratual. ficado bem diferentes ao campo das «transacções involuntárias».
Assim, invoca-se frequentemente, como testemunho da antiguidade Assim, não há nada de misterioso em que Aristóteles, evocando as
de um direito dos contratos, a Babilónia do século x v i i antes da nossa «transacções involuntárias», não tenha podido pensar unicamente; nem
era e aquilo que se convencionou designar como o Código de Hamurabi, sequer prioritariamente, nas obrigações que o direito romano chamará
no qual se encontravam os primeiros rudimentos de uma teoria contra- ex delicto (opondo-as, ele também, às obrigações ex contractu): numa
tualista da sociedade4. É de recear, todavia, que se trate nesse caso, de cidade em que a escravatura é legal, a «transacção involuntária» não
facto, de um exemplo típico de ilusão retrospectiva. É certo que as poderia, de facto, ser mais estranha por princípio à ordem social do que
sociedades antigas não estavam isentas de relações interpessoais em o é a «transacção voluntária» (contratual), mas apenas são condenáveis
que se vinham inscrever o compromisso, a promessa e a obrigação que em direito aquelas transacções involuntárias — Aristóteles elabora uma
a ela está ligada: apesar disso, nada indica, bem pelo contrário, que a lista — que incluem a intervenção de um delito. Para explicitar a distri­
óptica constitutiva de uma contratualização das relações sociais se buição das relações interpessoais na cidade antiga, seria então neces­
encontrasse já em germe nessas sociedades. sário completar a dicotomia aristotélica (transacções voluntárias, tran-
Em geral, é a Aristóteles que se atribui o mérito de ter sabido expri­ sacções involuntárias) através da distinção, nas transacções obrigatórias,
mir filosoficamente a maneira como a Antiguidade grega teria desde daquelas que são delituosas e daquelas que, sendo da esfera, por exem­
logo identificado no contrato a forma das «relações que mantêm entre plo, do direito da escravatura, de forma nenhuma o são. Neste sentido,
si os membros de um grupo social»5. Contudo, ao considerar a passa­ mesmo quando, tanto em Aristóteles como no direito romano, uma
gem da Ética, a Nicomaco a que se faz sempre referência para escorar teorização se reveste da forma do contrato, nada anuncia ainda a
uma tal apreciação (V, 5,1130 b 30 - 1131a 9), é forçoso constatar que elevação dessa forma ao nível de um arquétipo das relações entre os
Aristóteles não considera o contrato nessa passagem (synthèkè), a não - homens.
ser como uma das formas susceptíveis de serem adoptadas pelo que ele Desta evocação da reflexão aristotélica sobre o contrato, podemos
chama uma «transãcção» (synallagma): as transacções, esclarece ele efec- apesar de tudo reter, independentemente das restrições que nela é im­
tivamente, podem ser voluntárias se se trata de uma venda, de uma posta à noção do ponto de vista da sua extensão, uma primeira caracte­
compra, de um empréstimo (a operação em causa assenta neste caso rização da noção de contrato que retém já um dos elementos essenciais
num acto voluntário dos participantes) ou, pelo contrário, involuntárias, da sua compreensão — exactamente aquele que o contratualismo explo­
quando são independentes da vontade de pelo menos um dos partici­ rará ulteriormente, quando se tiver tomado filosofia política: não há
pantes, sendo o modelo fornecido pelo roubo ou pelo adultério. Em contrato a não ser a propósito de uma relação entre duas vontades que
todo o caso, o contrato não constitui então aqui mais do que um caso se comprometem livremente. Por outras palavras: o espaço contratual
particular das relações interpessoais. Constatação banal e que não po­ abre-se a partir do momento em que uma convenção livremente
deria de maneira nenhuma desconcertar, se não envolvesse mais do debatida entre partes em presença intervém para regular uma transac­
que factos: como negar que, qualquer que seja a época considerada, ção entre elas. Consequentemente, Aristóteles explicita mesmo um
outro elemento essencial da relação contratual, a saber, que os contra­
tos surgem sempre de uma «justiça correctiva» para a qual as partes
4 Cf. por exemplo S. Goyard-Fabre, op. cit., p. 21. aceitam remeter-se para regular o litígio que as oporia assim que
5 J.-M. Poughon, «Une constante doctrinale: l'approche économique du contrat», in uma delas tirasse proveito do contrato para conseguir uma vantagem
Droits, n.° 12 (Le contrat), pp. 46.
ilícita.

1
262 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIAPOLITICA 263

Tendo estes elementos da sua compreensão sido postos em evidên­ constituir um contrato: para que haja efectivamente contrato é
cia muito cedo, a noção de contrato quase não mudara mais, na tradi­ preciso também, de facto, que as duas vontades consigam real­
ção ulterior, quanto à sua definição. Podemos constata-lo ainda hoje, no mente limitar-se, isto é, que cada uma renuncie a uma parte do
plano propriamente jurídico, ao consultar o artigo 1101 do Código que visava: é preciso portanto um acordo, não apenas sobre a
Civil: o contrato aparece nesse artigo como «uma convenção através da iíi
forma, mas também sobre a matéria ou sobre o conteúdo do con­
qual uma ou mais pessoas se obrigam relativamente a uma ou a várias trato, a saber a limitação respectiva do que pertence propria­
outras pessoas a dar, a fazer ou a não fazer qualquer coisa» — ficando mente a cada um (a propriedade) — por outras palavras: não
entendido que, da noção, rigorosamente compreendida, desta «obriga­ existe contrato a menos que seja concebível uma vontade geral
ção» que as partes se impõem, a doutrina deduz que o contrato assenta materialiter, e é precisamente essa materialidade do acordo (esse
num acordo de vontades e que é o consentimento que cria aqui o conteúdo material do acordo) que a jurisdição é chamada a fa­
direito. _ zer respeitar.
Relativamente a esta estabilidade do conteúdo da própria noção de
contrato, chegar-se-ia a uma conclusão similar no registo das teorizações Em suma, de Aristóteles a Fichte, a precisão da noção de contrato
filosóficas: assim, por exemplo, no que continua a ser, juntamente com afinou-se seguramente, mas os seus princípios constitutivos permane­
os Princípios da Filosofia do Direito de Hegel, uma das últimas grandes ceram inalterados: razão suplementar para procurar, menos na elabo­
contribuições propriamente filosóficas para a reflexão jurídica, a saber ração da própria noção do que na maneira como ela pôde encontrar um
o Fundamento do Direito Natural de Fichte (1796-1797), podemos ler no certo contexto histórico e cultural, as razões da sua extensão tão pro­
§ 16 que todo o contrato põe em presença duas vontades (dois arbítrios) fundamente transformada.
em conflito quanto à posse (propriedade) de uma coisa, e que não have­
ria contrato a não ser que sejam preenchidas duas condições6:
1) Exige-se antes de mais que as duas vontades estejam de acordo 2 — Contratualismo e modernidade
sobre o princípio da procura de uma solução jamigável, através
da limitação recíproca das suas exigências: todò o contrato é por­ Para dar simplesmente uma ideia de tal encontro, e da maneira como
tanto um acordo sobre o próprio princípio do direito (limitação ele pôde aumentar, em proporções consideráveis, a pertinência da no­
recíproca das liberdades), isto é, sobre a forma intrinsecamente' ção de contrato, seria preciso concentrar novamente o olhar sobre esse
jurídica da relação desejável entre as partes envolvidas; neste sen­ traço essencial das sociedades modernas que consiste no papel que ne­
tido, esclarece Fichte reunindo as aquisições da tradição las desempenhou a dinâmica do individualismo e cujos laços com a
contratualista, não existe contrato concebível a não ser que as dqas promoção da ideia e do valor do contrato são tão estreitos que foi sem
vontades cheguem a acordo sobre essaforma jurídica da regulação
contestação graças a essa dinâmica que o contratualismo se pôde elevar
dos conflitos, dando assim nascimento a uma «vontade geral
ao nível de uma verdadeira filosofia política. Como já aludimos, foi
formaliter» (compreender: a uma vontade comum dessa forma)7;
sem dúvida Tocqueville quem, pela primeira vez, mais fez sobressair,
2) Todavia, a existência de uma tal vontade comum incidindo sobre
I neste aspecto, as principais características do individualismo moderno,
a forma jurídica da regulação dos conflitos não chega ainda para
em análises hoje tão célebres que podemos limitarmo-nos a recordar,
do ponto de vista do que anima o nosso propósito, os seus resultados
6 As reservas de Hegel sobre determinadas aplicações da noção de contrato (por exem- essenciais.
pio, contra Kant, a aplicação ao casamento) não impedem o seu sumário das prind- Se seguirmos a análise tocquevilliana, cuja lógica interna será
pais determinações do próprio conceito de estar bastante próximo daquele que va­ evocada com mais pormenor e por si própria no volume 4 desta História,
mos propor aqui a partir de Fichte: ver Hegel, Principes de la philosophie du droit, ou:
dois traços principais caracterizam esse individualismo moderno que
Droit naturel et science de l'État en abrégé (1821), trad. R. Derathé, Paris, Vrin, 1975, »
pp. 123 e segs. (§ 72 e segs.). _ |
I encontrou na Revolução Francesa a sua mais viva expressão, através
7 J. G. Fichte, Fondement du droit naturel, trad. A. Renaut, Paris, PUF, 1986, pp. 204-205. \ dessa espantosa promoção política da ideia jurídica de contrato que
264 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

constitui/ no artigo 6 da Declaração dos Direitos do Homem de 1789, a


definição de lei como «expressão da vontade geral»:
1) O individualismo moderno, tal como é constitutivo de socieda­
des em que o indivíduo é concebido como um termo primeiro e
independente face ao todo a que pertence, traduz-se em primeiro
lugar por uma revolta dos indivíduos contra a hierarquia em
nome da igualdade. Nesta vertente, o individualismo confun­
de-se com o processo de igualização das condições, no sentido
jurídico do termo, que Tocqueville designa pelo nome de demo­
cracia. Ele encontra o seu símbolo na Declaração dos Direitos
do Homem e nessa famosa «noite de 4 de Agosto de 1789» no
decurso da qual são abolidos os privilégios que fundamenta­
vam a estrutura hierárquica do Antigo Regime. O que liga desde
aí, através desse princípio de igualdade, a era do indivíduo e
a promoção da noção de contrato é transparente: nas socie­
dades em que as hierarquias naturais que conferiam aos seres
humanos direitos desiguais se dissolvem, desaparece a possibi­
lidade de que possam ser legais as relações inter-humanas que
resultassem daquilo que Aristóteles chamava «transacções
involuntárias». Evidentemente, na realidade, tais relações vão
continuar a existir, e os exemplos de Aristóteles («o roubo, o
adultério, o envenenamento, a prostituição, etc.») permanecem
válidos, mas pelo menos fica excluído em direito (entenda-se:
pelo direito) que todas as transacções obrigatórias não perten­
çam à mesma categoria, isto é, não sejam delitos8. A abolição d*
escravatura que se seguirá a 17899, é certo que difícil e escanda­
losamente lenta, inscreveu-se pois directamente na lógica de uma
cultura jurídica e política renovada ao ponto de já só poder
admitir, entre homens vistos como iguais em direito a partir de
então, relações construídas segundo o modelo do contrato;
2) O segundo componente do individualismo moderno implica,
ainda mais inevitavelmente, uma promoção da ideia contratualista.
Faz parte, com efeito, da dinâmica da modernidade que os indi­
víduos denunciem incessantemente as tradições em nome da li­
berdade (em todo o caso, em nome de uma certa concepção
da liberdade). Já evocámos sobre este ponto as preciosas análises

8 É significativo que, entre as relações involuntárias, Aristóteles mencione a «corrup­


ção de escravo», mas de forma nenhuma, evidentemente, a própria escravatura.
9 Sabemos que a França não iria abolir definitivamente a escravatura a não ser em
1848, depois de diversas tergiversações.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 265

de Louis Dumont10: as sociedades tradicionais, das sociedades


primitivas à sociedade medieval, eram caracterizadas por um prin­
cípio de heteronomia; a tradição impunha-se ao indivíduo sem
que ele a tivesse escolhido nem, consequentemente, fundado na
sua própria vontade, ou seja, impunha-se do exterior, sob a forma
de uma transcendência radical a que os homens obedeciam como
obedecem às leis da natureza, ao ponto de ser sob a dependência
constante e não negociável dessa tradição que se encontrava
posta a existência das pessoas. A dinâmica da modernidade vai,
pelo contrário, ser a da erosão progressiva desses conteúdos
tradicionais, minados pouco a pouco por uma ideia posta em
acção com um vigor muito particular pela Revolução — a saber,
a ideia de auto-instituição, que não é mais do que a versão
propriamente política do princípio de subjectividade, e que as
transposições políticas da ideia de contrato realizadas, do
Renascimento ao século x v ii i , pelos grandes teóricos do contrato
social exprimiram directamente.

No seu princípio, a operação consistia, para subtrair a lei à vontade


das tradições, em fundá-la na vontade dos homens, entendendo-se uns
1com os outros para a converter na lei comum da sua coexistência. Se-
; gundo essa perspectiva, a estrutura do contrato que, na cidade antiga,
tse podia aplicar a certas relações interpessoais, não podia deixar de se
( impor doravante como a própria estrutura de uma sociedade composta
5por indivíduos livres e independentes. Neste sentido, não é portanto
[verdadeiramente espantoso que tenha sido sob a forma do contrato
í que as sociedades democráticas tenham sido conduzidas, cada vez mais,
i a representar-se todas as relações entre os homens que implicam a defi-
í nição, entre eles, de determinadas regras de coexistência. Que esta ten-
í; dência para a contratualização das relações interpessoais tenha mesmo

1
acabado por se tomar hiperbólica ao ponto de fazer aparecer hoje em
dia cada convenção como não podendo pretender a qualquer validade
a menos de ter sido previamente negociada, como na verdade ficar
surpreendido com isso, uma vez que, por si mesma, a crítica de todas
as formas de tradição em nome da liberdade dos indivíduos, em nome
da sua criatividade ou do seu desenvolvimento, não implica nenhum
limite? Em suma, se o espaço dos acordos contratuais não cessou de se
estender à medida que a modernidade política realizava o seu projecto,
é preciso ver nisso, antes de tudo o mais, as consequências, sem dúvida
ívU

3-0 Ver, nomeadamente, Essais sur 1'individualisme, Paris, Seuil, 1983.


266 HISTORIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

inevitáveis e de facto positivas, do próprio projecto que concebeu


indivíduo moderno, apropriando-se das normas, e não mais as receber,
Esse processo de contratualização, não se reconhecendo a priori qual-?
quer limite, não é todavia portador, no tempo longo da evolução das?*
sociedades democráticas, de uma inquietante desfiguração do que tinhá?
visado o contratualismo como filosofia política? Questão delicada, à <
qual regressaremos na conclusão deste capítulo11, mas da qual uma to­
mada em consideração suficientemente rigorosa requer que tenha já '
sido explicitada a arquitectura desse contratualismo cujo aperfeiçoa­
mento constituiu um dos momentos fundadores da filosofia política:
moderna.

3 — Do jusnaturalismo ao contratualismo
Os laços que ligam a concepção contratualista da autoridade polí­
tica à visão moderna do direito natural são, com toda a evidência, muito
estreitos, como o testemunha com uma clareza particular a forma como
Samuel Pufendorf (1643-1694) explicitou o alcance político da ideia de
contrato. Certamente praticada antes dele12, a aplicação da noção de
contrato, no quadro de uma filosofia do direito natural, à reflexão sobre
a soberania recebeu dele a sua reflexão mais célebre e mais duradoura.
Considerado, conforme os intérpretes, como um simples continuador

11 Esta questão põe-se, nomeadamente, sob uma forma particularmente aguda, a pr~
pósito da tendência contemporânea para «contratualizar», tanto no espaço da escola
como no da família, relações na infância que, durante milénios, tinham sido regidas
preferentemente por um princípio de autoridade não negociada e não negociável.
12 Se quiséssemos estabelecer a génese da aplicação da noção de contrato na questão
da origem e da legitimidade da autoridade política, sem dúvida que seria preciso
remontar pelo menos até aos monarcómacos, especialmente aos monarcómacos pro­
testantes. Em 1579, os Vmâiciae contra tyrannos, que foram editados sob o pseudó­
nimo de Júnio Bruto, mas que se devem na verdade a Ph. Du Plessis-Mornay e a
H. Languet, constituem sem dúvida a primeira obra em que é bastante explícita a
aplicação do princípio contratualista à questão da fundação do poder dos príncipes
(trad. fr. de 1581, repr. Genebra, Droz, 1979). Relativamente às utilizações anteriores
da ideia de um pactum subjectionis, é significativo que Júnio Bruto extraia dele
simultanemente o princípio da «soberania do povo («o soberano é todo o povo ou
aquele que o representa», «da qual soberania & o Rei & todos os Oficiais do Reino
devem depender») e o tema de um direito natural dos povos que resiste contra uma
tirania que quebra o contrato que criava «entre o Príncipe & o povo uma obrigação
mútua e recíproca». Ver especialmente sobre esta obra e, mais geralmente, sobre a
corrente dos monarcómacos protestantes, Q. Skinner, The Foundations of Modern
Political Thought, t. II,: «The Age of Reformation», Cambridge University Press, 1996.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 267
I'

talentoso de Grotius ou como um autêntico pensador de génio, o autor


á í T . f .• /W / ' P 7 r t \ 1 í ~ 1 .
! do Jus naturae et gentium (1672)13 não pode em todo o caso ver contes-
tado o seu mérito de ter tido uma influência excepcional sobre a história
das teorias do Estado: durante mais de um século, até Kant pelo menos,
as suas teses mais marcantes exerceram uma verdadeira hegemonia
sobre a filosofia política alemã; traduzida em numerosas línguas, no­
meadamente em francês por Barbeyrac, a obra constituiu, em 1750, uma
leitura importante para Rousseau, que a deu a conhecer a Diderot e lhe
permitiu assim impregnar muitos artigos da Enciclopédia.
Pufendorf14 tinha de facto dado uma primeira formulação ao seu
projecto desde 1660, nos Elementos de Jurisprudência Universal, apelando
à reflexão sobre o direito de ultrapassar um simples trabalho, caótico e
sem princípios, de acumulação da jurisprudência, em direcção à funda­
ção de uma ciência sistemática do direito e da moral, por outras pala-
I vras (na versão de Barbeyrac) de uma «ciência dos costumes». Em 1663,
I a Carta a Boinebourg esclarece que, metodologicamente, uma abordagem
I realmente sistemática do problema do direito deveria praticar o proce-
I dimento matemático mais do que a observação empírica, que suporia
I um trabalho de recenseamento infinito, etemamente inacabado: a par-
| tir de um princípio indiscutível, tratar-se-ia de deduzir todo o conteúdo
| do direito e de forjar um direito natural que, enraizado num princípio
| absoluto, pudesse ser universal; com esse fim e em primeiro lugar, os
fundamentos do direito natural deviam ser estabelecidos a partir da
| definição do ser humano como pessoa, assim como pela elaboração de
| noções gerais de obrigação e de lei — de onde se podem deduzir em
f seguida as diversas partes do sistema do direito, no interior das quais,
e só aí, a contribuição das observações encontra um lugar.
Este programa foi cumprido, nove anos mais tarde, pelo Jus naturae
et gentium, que apresenta assim a primeira ilustração completa da filo­
sofia contratualista. O livro i, que «contém os preliminares do direito
natural» (Barbeyrac), corresponde ao momento da fundação: Pufendorf

13 De jure naturae et gentium libri octo (1672), Lund, ed. A. Junghaus, reed. e aum. de um
quarto em 1684, Frankfurt, ed. F. Knockius; trad. J. Barbeyrac, Le droit de la nature et
des Bens, 1706, Amsterdão, ed. H. Schelte et J. Kuyper, 2 vols., com notas e um prefá­
cio do tradutor, reed. em 1712, segundo um texto revisto e aumentado, Amesterdão,
P. de Coup. Todas as referências apresentadas aqui referem-se a essa edição de
1712.
14 Sobre a obra de Pufendorf, o leitor consultará com proveito as obras recentes de
P. Laurent, Pufendorfet la loi naturelle, Paris, Vrin, 1982, e de S. Goyard-Fabre, Pufendorf
et le droit naturel. Paris, PUF, 1992.
268 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

que, diferentemente dos «seres físicos» e mesmo dos animais, age em


função de determinados princípios que dirigem os actos da vontade, é ,
que se designarão como «seres morais», no sentido em que «eles regu-
; lam os costumes e as acções do homem» (p. 3). E a partir desses «seres
imorais» criados pelo homem (sem dúvida que hoje falaríamos de pre­
ferência em «valores») que deve deixar-se construir o sistema jurídico
[encarregue de reger a existência social do homem. E preciso portanto
(procurar — tal é o objecto do livro n — o princípio da própria criação
;dos seres morais (por assim dizer, o princípio de todo o sistema de
(valores).
| Esse princípio é identificado por Pufendorf como o de sociabili­
dade, em que se enraíza na verdade, em última análise, a temática
icontratualista: simultaneamente porque o ser humano é racional e por­
que a razão é una e idêntica nos diferentes seres inteligentes, e porque
um ser inteligente tem o cuidado de se conservar e de desenvolver o
seu ser (o que não poderia fazer no isolamento e despojamento que
jcaracterizam o estado de natureza), é-lhe necessário «formar e manter,
ha medida em que depende dele, uma sociedade pacífica com todos os
joutros». A sociabilidade provém assim de uma dupla tomada de cons­
ciência, a da natureza racional do homem, mas também a das condi­
ções precárias da vida. Neste sentido, o fundamento de todo o direito
natural «extrai-se da própria constituição do homem» (p. 192), e reside
pa necessidade imperiosa de união para tomar possível uma associa­
ção e uma paz capazes de aproveitarem a todos (p. 195): essa é «a lei
fundamental do direito natural», da qual Pufendorf indica que retoma
à noção e o teor a Cumberland (p. 197). Em virtude do que «tudo o que
Contribui necessariamente para essa sociabilidade universal deve ser
considerado como prescrito pelo direito natural, e tudo o que a per-
turba deve, pelo contrário, ser considerado como proibido pelo mesmo
direito» (p. 195)15. Assim, Pufendorf vai, a partir do livro ui, centrar
lodo o seu sistema do direito no tema do contrato, concebido como o
compromisso de cada em relação a um pacto que deve simulta­
neamente respeitar a liberdade individual e realizar a felicidade de todos:
desse compromisso fundamental «depende toda a ordem, toda a beleza
ê todo o prazer da vida humana» (pp. 348 e segs.), bem como a própria
sociedade, pelo menos se ela deve ter alguma consistência. Consequen­
temente, é a partir da teoria geral dos contratos e da sua inviolabilidade
(liv. ui, cap. iv, e liv. iv, cap. i-n) que Pufendorf examinará em seguida as

15 Sobre este momento fundador do dispositivo, ver P. Laurent, op. cit.


O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 269

questões da propriedade (liv. iv e v), do direito doméstico (liv. vi: o


basamento como contrato), das relações entre a autoridade do poder e
[a liberdade dos cidadãos (liv. v ii e viii, cap. i-v), para concluir por algu-
ífíias indicações sobre o direito internacional ele próprio concebido como
(correspondendo à esfera dos «contratos entre Estados» (liv. v i i i ,
cap. v i - x ii ) .
: Esta retomada pufendorfiana da problemática do direito natural,
(relativamente pouco original por si mesma, vai ter o seu alcance mais
(profundo na aplicação, nos livros VII e VII, da teoria geral dos contra­
ctos à questão do corpo político, verdadeiro momento fundador dõ
(contratualismo como filosofia política. O que resulta disto é tão conhe-
•eido quanto à letra que nos limitaremos a lembrar aqui as grandes
; linhas para tentar, de preferência, pôr em evidência em seguida o que,
■ quanto ao significado propriamente político da operação, continua a
[ oferecer matéria à interpretação.
Se é a partir da lei fundamental do direito natural que é preciso
(, compreender que os homens saíram do estado de natureza e estabele-
: ceram as sociedades civis, e isso «para se porem a coberto dos males
que há a recear uns dos outros» antes do nascimento do estado civil
(liv. n, cap. i, § 7), impõe-se considerar que a constituição dos Estados
provém da união contratada por diversos indivíduos «para a sua de­
fesa mútua» (liv. i, cap. n, § 2). Esta união requer então uma «primeira
convenção», origem da sociedade civil, pela qual «cada um se compro­
mete com todos os outros a reunir-se para sempre num só corpo, e a
providenciar, por um comum consentimento, a sua segurança mútua»
(§ 7). O «pacto de união» que constitui esta primeira convenção não
constitui todavia mais do que o «esboço de um Estado»: a grande origi­
nalidade da teoria pufendorfiana do direito público, em especial rela­
tivamente à de Hobbes, é de facto a de sublinhar a necessidade de
uma segunda convenção através da qual, com base num «decreto»
ou muna «ordenação», fixando através da maioria dos votos a forma
do governo (liv. vn, cap. n, § 8), é decidido «a quem se confere o poder
de governar a sociedade». Mais precisamente, é graças a esse segundo
pacto que «aqueles que são revestidos dessa autoridade suprema
se dedicam a velar com cuidado pelo Bem público e os outros, ao
mesmo tempo, lhes prometem fiel obediência»: deste «pacto de sub­
missão» (que se chamará a partir daí «contrato político»), resulta plena­
mente essa união e essa submissão das vontades que «acabam de
formar o Estado e o constituem num corpo que olhamos como uma
única pessoa».
270 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Peça essencial do contratualismo político, a distinção pufendorfiana


dos dois contratos iria ser retomada tanto por Locke16 como por toda a
Escola do direito natural17, da qual, neste aspecto, Pufendorf iria per­
manecer o mestre incontestado durante mais de um século18, até que
Rousseau (Contrato Social, III, cap. xvi), depois Kant (Doutrina do Direito
§ 20, § 45) viessem abalar aquilo que se tinha tornado um dogma.
Dito isto, se a ideia teve sucesso, o seu significado político não era con­
tudo desprovido de equívoco, ao ponto de a teoria pufendorfiana dos
dois contratos vir a alimentar duas tradições políticas fortemente dis­
tintas.
À primeira vista, a temática contratualista parece poder ser inter­
pretada como participando de uma concepção «liberal» da autori­
dade19. Ao distinguir o pacto de associação e o pacto de submissão,
Pufendorf acredita de facto a tese, retomada nomeadamente por Locke
em 1690 (Segundo Tratado do Governo Civil, § 211), que «a dissolução do
governo» não envolve «a dissolução da sociedade», que o acordo entre
os cidadãos que compõem uma sociedade não provém unicamente
(como em Hobbes) da sua submissão a um chefe, logo que o povo
preexiste e sobrevive à instituição e ao desaparecimento do chefe (ver
em particular, sobre este ponto e directamente contra Hobbes, liv. vii,
cap. ii, § 12): se, «quando o rei foi coroado» e o poder soberano já não

16 Ver, por exemplo, R. Polin, La Politique morale de John Locke, Paris, PUF, 1960,
pp. 208-209. A influência, misturada com um claro distanciamento, exercida por
Pufendorf sobre Locke deu lugar a análises particularmente judiciosas, in J. Durai,
La Pensée politique de John Locke (1969), trad. J.-F. Faillon, Paris, PUF, 1991, especial­
mente pp. 60 e segs., 112 e segs., e J. Tully, Locke. Droit naturel et propriété (1982), trad.
Ch. J. Hutner, com um prefácio de Ph. Raynaud, Paris, PUF, 1992, pp. 111 e segs.
(esta obra contém aliás uma excelente apresentação das principais teses de
Pufendorf).
17 Ela encontra sob muitos pontos de vista o seu ponto de completamento em Wolff,
Institutiones juris naturae et gentium (1750), § 873-876 (trad. fr. anónimo, Institutions
du droit de la nature et des gens, Leyde, ed. E. Luzac, 1772). Sobre Wolff, ver aqui
mesmo, volume 3, primeira secção, capítulo i (A. Renaut e P.-H. Tavoillot): «O pen­
samento político das Luzes».
18 Continuaremos a referir-nos acerca deste ponto ao vasto fresco traçado por
R. Derathé, Rousseau et la Science politique de son temps, Paris, Vrin, 2.§ ed., 1970,
sobretudo pp. 78 e segs., 186 e segs., 209 e segs.
19 E essa a interpretação defendida nomeadamente por O. von Gierke, na sua obra
canónica, Johannes Althusius und die Entwicklung der naturrechtlichen Staatstheorien,
Breslau, 1880. A segunda parte desta obra examina as principais temáticas da escola
jusnaturalista — especialmente a do contrato social — e as suas transformações
históricas desde J. Althusius, que se considera em geral como o último grande monar-
cómaco protestante (Política methodice digesta, 1603).
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 271

está «nas mãos da Assembleia Geral composta por todo o povo», este
último permanece no entanto, em virtude de um pacto de união, «sem­
pre um só corpo», resulta evidentemente disso que a sociedade não
está toda inteira, incluindo a sua existência própria como conjunto de
indivíduos associados, subordinada ao Estado, mas possui, pelo contrá­
rio, relativamente a este, uma dimensão de autonomia que constitui o
embrião possível de um dualismo político ou de uma partilha da sobe­
rania entre o rei e o povo.
Subsiste que, pela sua parte, Pufendorf sempre condenou a ideia de
uma partilha da soberania20, e que os seus discípulos alemães mais di­
rectos exploraram a sua teoria do duplo contrato numa perspectiva
muito afastada da do liberalismo. Assim, em toda a escola wolffiana,
que de resto desenvolveu, apesar disso, alguns temas participando num
absolutismo esclarecido, a noção do contrato de submissão foi abun­
dantemente utilizada para apresentar a ordem e os privilégios estabe­
lecidos como provenientes desse contrato, logo para legitimá-los.
Equivale isto a dizer que o contratualismo pufendorfiano foi sobre­
carregado de equívoco neste ponto e que seja preciso concluir pela sua
«inconsistência» na qualidade de «sistema político»21? De facto, para
além de algumas fórmulas exploráveis pelos defensores da monarquia
limitada, uma tese essencial permitia-lhe manter apesar de tudo uma
opção francamente absolutista. Para Pufendorf, com efeito, que retoma
e esclarece sobre este ponto uma argumentação desenvolvida por cer­
tos comentadores de Grotius (Boeder), o verdadeiro fundamento do
contrato não é outro que não a vontade divina (liv. n, cap. m): se a
vontade humana fosse o princípio último do compromisso, este não
teria nenhum carácter sagrado, nem nenhuma força durável, uma vez
que uma vontade humana pode sempre desfazer o que fez; para que
um acto jurídico tenha então um autêntico valor de obrigação, é preciso
poder considerar que está fundado na vontade de Deus e que, se a von­
tade humana é de facto a fonte do contrato, este só é concluído porque
Deus o quis («com a aprovação e pela vontade de Deus») — constituindo
a vontade divina, a partir daí, a sua fonte de jure. Deste princípio capital,
que Kant retomará, resulta que o contrato social é irrevogável: se a
soberania dos Príncipes é não só de «direito humano», mas também de
«direito divino», o contrato deve ser tido como uma «ordem divina» e
não pode portanto ser quebrado pela vontade humana incluindo quan­
do um dos contratantes, na ocorrência o Príncipe, parece não respeitar

20 Ver sobre este ponto R. Derathé, op. cit., pp. 212,282 e segs.
21 R. Derathé, op. cit, p. 212.
272 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

os termos do contrato, isto é, não governar com vista ao «bem público/


Em suma: «Quando se entrou num compromisso qualquer de uns coúí
os outros, é preciso efectuá-lo religiosamente», devendo cada um «mà
ter inabalavelmente a sua promessa» (liv. in, cap. rv, § 2).
As consequências desta inviolabilidade do contrato social são cIae-;
ras: os cidadãos, que deram a sua palavra quando do contrato de sub*
missão, não poderiam nunca ter o direito de não se submeter e de resis*
tir ao Príncipe, quaisquer que pudessem ser as circunstâncias. Estjf
conclusão, certamente em parte implícita em Pufendorf, perfila-se cori*
tudo através da sua condenação do direito de revolução: «Alguns dh
zem que, como uma pessoa que se despojou da liberdade retém sempré
o direito de sair da escravatura, o mesmo acontece com o povo [...] Mas}
seria preciso acrescentar: bem entendido que o senhor ou o rei consin­
tam nisso e renunciem aos seus direitos» (liv. v ii cap. vi, § 6 ) . O alcance!
politicamente absolutista do contratualismo pufendorfiano é aqui
indubitável: defender que o povo não tem o direito, depois do contrató-
de submissão, de sair da sua sujeição a não ser que o rei consinta nisso
equivale a sublinhar que depois do contrato todo o direito emana doí
Estado, logo que o pactum subjectionis se traduz por uma transferência?
total ou absoluta dos direitos do indivíduo e do povo para o Estado, do
qual dependerá doravante toda a atribuição de um direito, qualquer;,
que ele seja. Assim, a lógica do contratualismo, através da primeira-
grande sistematização que Pufendorf dele ofereceu, parecia conduzir
à primeira vista as consequências completamente diferentes daquelas '
que teriam podido permitir imediatamente que essa concepção dos
fundamentos da autoridade política exprimisse as exigências de uma!
cultura democrática em processo de elaboração.

4 — Transformações do contratualismo
(Achenwall, Fichte)

A verdadeira viragem, na utilização do tema do duplo contrato pela


tradição alemã, só se efectuará através da maneira como G. Achenwall
(que, no seu /ws naturae de 1755, não desdenha referir-se a Locke e aos
seus discípulos ingleses) reorganizará profundamente o dogma,
pufendorfiano. Uma parte dessas modificações é, decerto, puramente
formal. Assim, Achenwall desenvolve pela sua parte uma teoria dos
três contratos, fazendo da ordenação pufendorfiana sobre a forma do
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 273

regime um pactum oráinationis sive lex funãamentalis, intermediário en­


tre o pactum unionis e o pactum súbjectionis. A verdadeira reinterpretação
é completamente diferente: consiste em estimar que, em consequência
do pacto de submissão, o qual obriga o soberano a promover o bem
público, o povo possui um direito de resistência à opressão e portanto
pode denunciar o pacto de submissão se o Estado não cumprir os seus
compromissos (§ 88).
Num quadro formalmente pufendorfiano, um regresso tão espan­
toso a Locke22 exigia seguramente importantes reorganizações, a mais
importante das quais consiste numa clara recusa da tese decisiva de
Pufendorf sobre a fundamentação divina do contrato. Desta forma,
Achenwall proclama-o expressamente no § 92 do seu tratado: «O go­
verno civil deriva o seu poder e a sua majestade do contrato concluído
com o povo, e não imediatamente de Deus.» Devido a isso, passava a
ser possível dessacralizar o contrato e encarar o facto de que os cida­
dãos retirassem a sua palavra no caso em que fosse manifesto que o
Príncipe tinha dado a sua palavra apenas falsamente23. E certo — e
Kant iria explorar largamente essas reservas24— que Achenwall atribuía
também limitações ao direito de resistência assim fundado, por exem­
plo rejeitando como perigoso para a paz pública um direito individual
de resistência do tipo daquele que proclamarão mais tarde as Declara­
ções francesas. Essas limitações, contudo, não alteram o princípio da
sua posição: como a mentira é excluída pelo direito natural, resulta daí
que um contrato em que uma das partes, na realidade, comprometeu a
sua palavra apenas falsamente, é nulo em relação a esse direito e conse­
quentemente a obrigação absoluta de submissão é levantada.
A interpretação propriamente pufendorfiana da teoria dos dois con­
tratos, no entanto, não morreu só por causa disso, uma vez que Theodor

22 Achenwall refere-se naturalmente a Locke e aos seus discípulos: ver especialmente


Jus naturae, II, § 88.
23 Ver, nomeadamente, Achenwall, Jus naturae, § 92: «A mentira e a restrição mental
são absolutamente proibidas pelo direito natural.»
24 Em Teoria e Prática, Kant tenta fazer da condenação do direito de resistência a ver­
dade da posição de Achenwall (trad. por L. Ferry, in Oeuvres philosophiques de Kant, dir.
F. Alquié, Paris, Gallimard, Bibliothèque de la Plêiade, tomo m, 1986, pp. 283 e segs.).
O comentário do Jus naturae (Ak., tomo xix, trad. parcial por M. Castillo, in Kant et
Vavenir de la culture, Paris, PUF, 1990, pp. 277 e segs.) manifesta em contrapartida
com mais clareza que entre Achenwall e Kant existe neste ponto uma oposição:
comentando o § 204 do livro n da segunda parte (em que é justificado o direito, para
o povo, de resistir ao tirano e de o forçar a abandonar o poder), Kant replica que
«aqueles que se submetem não podem fazer outra coisa a não ser submeter-se ao
poder do tirano». As fórmulas de Teoria e Prática fizeram esquecer esta oposição.
275
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA
274 HISTORIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

indivíduo possui direitos naturais anteriores ao Estado e oponíveis


Schmalz em 1792 (Das reine Naturrecht) ainda viria a condenar o direito à autoridade do Estado quando este, contrariamente ao compromisso
de resistência em nome do carácter sagrado da palavra dada25. Envol­ do qual provém, não promove o bem comum.
via-se assim numa importante polémica com Achenwall sobre um ponto No seu capítulo m, com efeito, Fichte, a propósito da questão do
aparentemente restrito, mas que, contudo, põe em jogo todo o alcance contrato, apresenta por certo Schmalz como «o mais consequente dos
político da teoria do contrato: trata-se muito precisamente do tipo de mestres em direito natural que nós tivemos até aqui» e testemunha-lhe
compromisso que é o contrato social. O problema é de facto o seguinte: a sua «estima», mas não deixa de sublinhar também a distancia que
sendo concluído um contrato entre duas pessoas que comprometem a separa as teses de Schmalz das suas próprias: «Quem quer que os
sua palavra, o que é que acontece se um dos dois contratantes faltar à conheça verá bem que não é de acordo com os princípios dele, mas de
sua palavra e não mantiver a sua promessa? O alcance do problema acordo com os meus, que eu raciocino.» A condenação reiterada por
é evidente quando é colocado a propósito do contrato social: a questão Schmalz do direito de resistência, as Contribuições respondem recolo­
é então efectivamente a de saber se, no caso em que o Estado não man­ cando-se de facto do lado de Achenwall, mas tentando reforçar a sua
tém a sua palavra de agir unicamente com vista ao bem público, os argumentação. Achenwall tinha sublinhado que a mentira e proibida
cidadãos ficam ou não libertos dos deveres de obediência que lhes im­ pelo direito natural - o que podia então deixar pensar que a promessa
põe o pacto de submissão. A interrogação não era certamente nova, uma com restrição mental (reticentia) era condenada em nome de um direito
vez que Pufendorf, na medida em que defendia que a vontade divina natural confundido com a moral; ora isso era, seguramente, argumen­
era o verdadeiro fundamento do contrato, tinha já concluído pela tar de forma errada, porque de um ponto de vista rigorosamente moral
irrevogabilidade deste. Posição que Schmalz, todavia, explicitava forte­ a posição defendida por Schmalz corria grandemente o risco de ser a
mente: a palavra dada deve ser respeitada em todas as situações, e menos contestável: a ideia que a palavra dada deve ser respeitada, quais­
mesmo se o Estado faltar à sua palavra, os cidadãos não ficam libertos quer que sejam as circunstâncias, não poderia de facto deixar de ser
das obrigações de submissão que lhes impõe o compromisso contra­ moralmente justa. Para defender Achenwall e a inflexão liberal dada por
tado. Daí, directamente contra Achenwall, essas linhas do § 43 do Reine este na interpretação da teoria pufendorfiana do duplo contrato, portanto,
Naturrecht, que Fichte tem o cuidado de citar: «Eu não tenho, segundo o Fichte vai retomar de facto a posição desenvolvida no Jus naturae, mas
direito natural, direito absoluto à veracidade do outro. Se me fizeram evitando cuidadosamente colocar-se no ponto de vista moral.
uma promessa mentirosa, eu não me posso queixar de nenhum dano, Com efeito, a refutação fichteana de Schmalz efectuar-se-a graças a
na medida em que por essa promessa eu não estou comprometido com uma distinção clara entre direito natural e moral26: à tese segundo a
nenhuma prestação.» qual a deslealdade do Estado-contratante não deve dispensar o cida­
Num tempo em que o próprio Kant, apesar das suas reticências re­ dão de ser leal, Fichte responde que «não se devem mishirar as ideias e
lativamente à teoria dos dois contratos, retomava contudo sobre este confundir a esfera do direito natural com a da moral». O principio
ponto as conclusões de Pufendorf e condenava Achenwall, apenas Fichte desta «rectificação das proposições» formuladas por Schmalz pode-se
iria defender a interpretação deste último. Envolvendo-se muito mais explicar assim: certamente, de um ponto de vista puramente moral,
do que Kant no sentido do anti-absolutismo, as Contribuições Destinadas mesmo uma promessa sem contrapartida deve ser respeitada, mas do
a Rectificar a Opinião do Público sobre a Revolução Francesa radicalizam a ponto de vista do direito natural, uma tal promessa e nula e sem valor,
herança de Locke em matéria de teoria do contrato social, e deduzem não obriga aquele que a fez, na medida em que apenas a reciprocidade
dela uma legitimação inequívoca do direito de resistência ao soberano é a base do contrato jurídico. Ou seja (acrescentando entre parenteses
— tendo por correlato a afirmação de que um tal direito de resistência os comentários necessários para uma melhor compreensão do proposito
supõe, de acordo com a própria perspectiva da tradição liberal, que o fichteano): «A minha vontade seria portanto condicional (ela estaria

26 Veremos no volume seguinte (primeira secção, capítulo ui: «As Luzes Criticas.
25 Em 1793, nas suas Contribuições Destinadas a Rectificar a Opinião do Público sobre a Revo­ Rousseau, Kant e Fichte») que em 1793 essa distinção estava apenas esboçada, e que
lução Francesa, Fichte resume nestes termos a argumentação de Schmalz: «Dizes-me: a reflexão ulterior de Fichte, nomeadamente em Fundamento do Direito Natural, a
mesmo se ele mente, eu não quero, pessoalmente, ser um mentiroso; a lealdade dele aprofundou e sistematizou.
não deve suprimir a minha lealdade.»
276 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

subordinada à condição de que o Estado mantivesse também a sua).


O direito que eu lhe dou pela minha vontade é condicional. Se ele men­
tisse, não adquiria nenhum direito, uma vez que eu também não adquiria
nenhum (em virtude do princípio de reciprocidade que define a rela­
ção jurídica do contrato). Não existe contratofirmado, uma vez que não há
direito comunicado e não há obrigação contratada27.» Assim, o jovem Fichte,
ainda muito afastado das suas posições ulteriores, restaurava a versão
liberal da ideia contratualista, que Achenwall, herdando-a de Locke,
tinha tentado inscrever no quadro formal legado por Pufendorf: atra­
vés deste gesto dirigido contra a versão absolutista, as Contribuições, ao
mesmo tempo que defendiam a Revolução Francesa, traziam, à custa
de uma ruptura com uma tese constante do pensamento político de
Kant, uma clarificação não negligenciável sobre o verdadeiro alcance
do contratualismo.
Em consequência desta refutação das teses de Schmalz (e de Kant),
o Fichte de 1793 defende, com efeito, que, uma vez que o contrato é
nulo para cada um dos contratantes desde que um não cumpra os seus
compromissos, qualquer contratante tem o direito de quebrar unilate­
ralmente um contrato a partir do momento em que a outra parte não
respeita os termos deste. Neste sentido, a partir do momento em que
uma relação contratual se toma contrária aos direitos inalienáveis da
I
humanidade, ela deve ser quebrada. Não se poderia opor mais directa-
mente a Pufendorf, que entendia que, se um povo tem o direito de sair
da escravidão, isso não é concebível, contudo, senão na medida em que
o soberano o consinta e renuncie ele próprio aos seus direitos. Não se
iludiram os contemporâneos de Fichte que em geral viram como ina­
ceitável esta perspectiva audaciosa de uma denúncia unilateral de um
contrato, sem perceber suficientemente de onde provinha o que eles
consideravam como uma destruição da própria noção de contrato, por­
que, na verdade, a posição fichteana participava, desde 1793, de uma
preocupação que nunca abandonaria: a de autonomizar o direito natu­
ral. Esta preocupação era válida, já o observámos, relativamente à
moral; mas não tinha menos sentido, longe disso, relativamente ao polí­
tico, isto é, relativamente ao Estado.
Na versão pufendorfiana do contratualismo, com efeito, fica claro
que todo o direito, depois do contrato, emana do Estado: o escravo ou o
povo não têm o direito de sair da sua sujeição a não ser que o senhor
ou o rei o consintam e renunciem aos seus direitos; dito de outra forma,

27 Contributions destinées à rectifier l'opinion du public sur la Révolution française, trad. J.


Band, reed., Paris, Payot, 1974, p. 134.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 277

o pactum subjectionis traduz-se por uma transferência total ou absoluta


dos direitos do indivíduo para o Estado, do qual dependerá a partir
daí toda a atribuição de qualquer direito. Inversamente, a justificação
do direito de resistência supõe que o pacto de transferência não impli­
que uma situação de alienação total, logo que existam direitos
inalienáveis e extrapolíticos. Neste sentido, confirma-se, portanto,
realmente, que em 1793 Fichte concebe, contra Pufendorf, muito preci­
samente o contrato de maneira lockeana, isto é, segundo a tradição
liberal de uma alienação parcial, a qual supõe uma teoria da soberania
reciprocamente limitada do indivíduo e do governo civil.
Uma última interpretação permitirá circunscrever ainda melhor esta
determinação liberal do contratualismo transformado que, por reactivação
das posições lockeanas e contra a versão pufendorfiana, se impôs de
Achenwall para o jovem Fichte. Ela diz respeito à questão da proprie­
dade e conduz a enunciar o problema de uma passagem do liberalismo
político ao liberalismo económico. Sabemos que, em Locke, a proprie­
dade é um direito natural, ao mesmo título que a igualdade e a liberdade.
E preciso ainda recordar como Locke articulava a sua versão da ideia
contratualista (aquilo a que chamamos hoje de liberalismo político) e a
posição do direito de propriedade como direito natural (o princípio fun­
damental do liberalismo económico). O raciocínio, desenvolvido essen­
cialmente nos capítulos ix e xi do Segundo Tratado do Governo Civil, merece
aqui, pelas suas consequências eventuais sobre o significado do contra­
tualismo liberal, ser brevemente reconstituído.
No estado de natureza, explicava Locke, cada indivíduo possui um
direito natural de propriedade sobre toda a parte da natureza que ele
modifica através do seu trabalho, logo sobre tudo aquilo em que incor­
pora uma determinada quantidade de trabalho. Mas nesse estado de
natureza, produzem-se litígios ou querelas sobre a delimitação das par­
tes do bem comum às quais cada um tem direito devido ao seu trabalho
— «o que toma o usufmto da propriedade [...] muito perigoso e muito
incerto» (§ 123). Como o indivíduo não pode aceitar o risco de se ver
espoliado do produto do seu trabalho (o que constituiria uma injustiça
relativamente ao seu direito natural de propriedade), vai consentir em
«tomar por associados outros homens» (segundo um pacto de associa­
ção) com vista à «salvaguarda mútua das suas vidas, das suas liberda­
des e das suas fortunas, o que eu designo sob o nome geral de proprie­
dade» (ibid.). O «fim principal com vista ao qual os homens se associam
em repúblicas e se submetem a governos» (em que, ao pacto de asso­
ciação, vem portanto juntar-se um pacto de submissão) não é pois outro
além de «a conservação da sua propriedade» (§ 124).
278 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

Esta explicação lockeana da génese do contrato implicava conse­


quências evidentes, que na verdade fundavam o liberalismo econó­
mico: uma vez que é para salvaguardar a sua propriedade que os indiví­
duos concluem os dois pactos, o estado civil não poderia atentar contra
0 direito natural de propriedade mais do que o fazia o estado de natu­
reza; por consequência, da mesma forma que o contrato deve global­
mente garantir os direitos naturais e não suprimi-los (liberalismo polí­
tico), ele deve em particular «garantir a cada um a Sua propriedade»
(§ 131) remediando através de leis civis as «faltas das quais resultavam
tanto mal-estar e insegurança no estado de natureza». Os pormenores
desta protecção legislativa da propriedade privada não serão analisa­
dos aqui, mas percebe-se sem dificuldade como resulta disto, no seu
princípio, o liberalismo económico: com efeito, o poder do governo
civil jamais se deverá estender para além desta garantia dada à proprie­
dade e em caso algum deverá poder arrebatar a um cidadão uma parte
da sua propriedade — em suma: o poder não pode ter outro fim que não
a «conservação», «o que nunca pode, portanto, implicar o direito de
destruir os súbditos, nem de escravizá-los nem de os empobrecer áelibera-
|damente» (§ 135). De facto, o último elemento da frase merece ser subli-
j nhado, como acabamos de nos permitir aqui, a tal ponto é verdade que,
! se o Estado não pode «empobrecer» nenhum dos seus cidadãos, por
! exemplo, expropriando uma parte dos seus bens, toda a lei de redistri-
jbuição está ipso facto condenada, e que com a perspectiva de uma lei
|assim é igualmente recusada toda a intervenção do Estado com vista a
|corrigir as desigualdades naturais e a estabelecer a justiça social. Daí
1 aquilo que escrevia Locke no fim do § 138: o governo não deve ter o
«poder de tomar a quem quer se seja uma parte dos seus bens e de os
Usar e dispor deles como quiser», de forma que «os homens devem
continuar na posse dos seus bens em toda a segurança» (§ 139). Resul­
tava daí uma importante consequência: como «os governos não podem
subsistir sem despesas muito pesadas», por exemplo, para assegurar a
defesa da comunidade, e como essa situação requer que «toda a gente
que recebe a sua parte de protecção contribua para a sua manutenção,
tirando-a dos seus bens, com uma parte correspondente», seria preciso
que o sistema de tais contribuições estivesse fundado no livre consen­
timento, na ausência do que se poderia estar a atentar contra o direito
de propriedade (§ 140).
Um sistema assim de contribuição voluntária (que corresponde a
um dos princípios essenciais de um rigoroso liberalismo económico)
pode certamente levantar muitas interrogações. Na lógica do contra-
tualismo de tipo lockeano, elas estariam no entanto resolvidas, não sem
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 279

elegância, através do recurso a um elemento essencial do liberalismo


político, a saber, o sistema parlamentar: que a própria pessoa consinta
em dar a sua contribuição, isso significa de facto «que a maioria con­
sinta nisso, coisa que ela manifesta directamente ou por intermédio de
representantes de sua escolha» — e Locke podia portanto concluir assim
o seu raciocínio: «Se alguém pretende que tem o poder de estabelecer
impostos e de cobrá-los ao povo pela sua própria autoridade, sem esse
consentimento popular, esse alguém infringe, por isso mesmo, a lei
fundamental da propriedade e subverte o fim do governo» (§ 140).
Portanto, vemos perfeitamente como, em Locke, o que nós designa­
mos como liberalismo político e o que chamamos liberalismo econó­
mico podiam, em tomo da temática contratualista, implicar-se reciproca­
mente com subtileza: da teoria do contrato de alienação limitada
(liberalismo político), podia deduzir-se um princípio de não interven­
ção do Estado na esfera da propriedade privada (liberalismo econó­
mico); mas uma aplicação realista deste exigiria inversamente (por exem­
plo, através da questão dos impostos) o liberalismo político, neste caso
um sistema representativo que, sempre servindo de travão ao poder do
governo, dava a este a possibilidade de existir e de agir sem que fosse
transgredido ipso facto o princípio do respeito dos direitos naturais.
Graças a esta implicação recíproca, a liberdade e a propriedade supor-
-se-iam uma à outra — segundo uma perspectiva que os Constituintes
franceses de 1791, por seu turno, tentariam retomar e que tem a melhor
expressão nos escritos de Sieyès28. Simultaneamente contra o absolu­
tismo e, antecipadamente, contra os desvios de um liberalismo hiperbólico
que viria a excluir toda a acção possível do Estado com vista a uma
justa repartição dos meios de subsistência e dos encargos29, o contra-
tualismo tinha assim manifestado quais os recursos que poderia trazer
à filosofia política com vista a cumprir as promessas da liberdade dos
Modernos. Nessa medida, se não é concebível, sem levar em conta es­
ses recursos, fazer com alguma probidade uma apreciação qualquer do
modelo contratualista, também já não se pode mascarar por mais tempo
as dificuldades que este modelo era também susceptível de encon­
trar — ao ponto de ter dado lugar, à medida que a modernidade

28 Assim, no seu Preliminar à Constituição (art. 3), Sieyès escrevia: «A propriedade dos
objectos exteriores, ou a propriedade real, não é mais do que um seguimento e como
que uma extensão da propriedade pessoal», isto é da liberdade.
29 No volume 5 da presente História da Filosofia Política, as análises consagradas por
P. Savidan, no capítulo i da terceira secção, às posições «libertaristas» (Hayek, Nozick)
mostrarão que a evocação de tais desvios não correspondia apenas a uma hipótese
académica.
280 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

percorria o seu trajecto, a algumas das mais vivas e prolongadas discus­


sões que os conceitos fundamentais da filosofia política alguma vez
suscitaram.

5 — 0 contratualismo em debate

Mais de três séculos depois de a temática contratualista ter conquis­


tado o seu lugar no registo da filosofia política, ela continua a oferecer
matéria para importantes clivagens. Tal como nos aperceberemos no
volume 5 desta História, o que separa hoje algumas orientações das
mais marcantes em filosofia política envolve precisamente a relação
com a tradição do contrato social. Onde Rawls sublinha expressamente
a sua pertença a esta tradição30, Habermas consagra vigorosas análises
a tomar aparente em que é que o modelo contratualista, solidário de
uma metafísica ultrapassada, já não seria pertinente depois da «vira­
gem linguística» de um pensamento contemporâneo que teria apren­
dido a partir, não da subjectividade, mas da intersubjectividade ou da
comunicação: tomando como princípio da ordem sociopolítica um acor-
j do entre vontades individuais supostamente preexistentes enquanto
I tais, cada uma na sua relação consigo própria, anterior a qualquer rela-
; ção dialógica, a tradição do contrato social estaria hoje tão gasta como a
I filosofia da consciência ou do sujeito que constitui o seu plano de fundo31.
! Deixaremos de lado aqui, para voltar a isso em desenvolvimentos
|ulteriores, tudo o que envolve esse debate imediatamente contemporâ-
i neo e aquilo que temos motivos para pensar da objecção habermassiana.
I Neste ponto do percurso empreendido no seio da história da filosofia
! política, é mais apropriado sublinhar que, qualquer que possa ser a sua
I validade, essa contestação do contratualismo se inscreve ela própria
|numa contratradição da modernidade política. Entre muitos outros, os
|assaltos lançados por Hume e por Hegel merecem nessa perspectiva
j ser mencionados: cada um segundo o seu estilo próprio e a partir de

; 30 Rawls indicava-o desde o prefácio da sua obra principal, Théorie de la justice (1971),
i trad. C. Audard, Paris, Seuil, 1987, p. 20: «A ambição deste livro será completa-
j mente satisfeita se, graças a ele, chegarmos a compreender mais claramente os prin­
cipais caracteres estruturais desta concepção da justiça que se inscreveu implicita-
| mente na tradição do contrato social.» Para balizar esta tradição, Rawls menciona os
| nomes de Locke, Rousseau e Kant.
)31 Ver nomeadamente J. Habermas, Droit et Démocratie (Faktizität und Geltung, 1992),
I trad. R. Rochlitz, Paris, Gallimard, 1997, pp. 42 e segs., 58 e segs., e sobretudo 117
j e segs.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 281

horizontes filosóficos diferentes, ou até opostos, eles ilustram de facto


algumas das argumentações mais características que puderam ser opos­
tas ao contratualismo moderno.
Hume, no seu ensaio de 1748 Sobre o Contrato Primitivo32, dedica-se
sobretudo a denunciar, no raciocínio contratualista, uma dessas passa­
gens do facto ao direito, do ser ao dever-ser das quais conhecemos o
vigor com que ele denuncia um abuso característico de tantos «siste­
mas de moral». Objecção original e hábil, de tal maneira é verdade que
não ataca frontalmente — o que, na falta de documentos, seria vão — a
questão de saber se, de facto, aquilo que impeliu os homens a agrupar-
-se e a entrar numa sociedade se exprimiu sob a forma de uma renúncia
voluntária à sua liberdade natural: mais habilmente parecia mesmo
possível a Hume conceder que «na sua origem o governo estava fun­
damentado num contrato semelhante», graças a um cálculo por cada
um dos seus interesses através da percepção de que o abandono da
liberdade poderia ser a condição necessária para a obtenção de uma
protecção. Em contrapartida, ainda que concordássemos que «o poder
de que somos os súbditos» se formou de facto assim, nada autorizaria a
concluir daí o que quer que seja quanto a qual deveria ser o funciona­
mento actual do poder: ora, de maneira geral, «não basta (aos defenso­
res do contratualismo) que o governo, no seu nascimento, derive do
consentimento, ou das vontades combinadas do povo; eles pretendem
que hoje ainda, quando o governo chegou à sua maturidade, não exis­
tem nenhuns outros fundamentos», e que «todos os homens nascem
livres, sem nada dever a nenhum príncipe, nem a nenhum governo, a
menos que se suponha que eles se obriguem a si próprios e se liguem
pela sanção de uma promessa». Em suma, Hume entende, com esta
objecção de método dirigida a uma filosofia política que pretende de­
duzir de um suposto feito norma do melhor regime, separar de alguma
forma o discurso descritivo sobre a origem das suas pretensas
consequências normativas sobre a «fonte da autoridade em todos os
governos» e sobre «o direito de resistência que cabe aos súbditos». Em
virtude do que Hume replicava então aos contratualistas que na reali­
dade, «se os povos obedecem, é mais por medo e por necessidade do
que por um sentimento de dever e de obrigação moral» enraizado num

32 Trad. fr. anónima, in D. Hume, Essais politiques, repr., Paris, Vrin, 1972, pp. 316-354.
Existe uma tradução (colectiva) mais recente, in D. Hume, Quatre essais politiques,
com prefácio de G. Granel, Toulouse, TER, 1981. Para uma análise que relacione o
anticontratualismo de Hume com o seu conservadorismo, ver D. Deleule, Hume et la
naissance du libéralisme économique, Paris, Aubier, 1979, pp. 328 e segs.
282 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

qualquer compromisso mútuo, e que, mais do que tudo, é o tempo que


«acostuma a nação a observar como seu soberano legítimo aquele que
antes tinha tomado por um estrangeiro e um usurpador»; em lugar de
uma verdadeira fundamentação do poder na normatividade da razão,
projecto constitutivo do racionalismo dos Modernos, o empirismo
reconduzia assim a política (como aliás o fazia também, em conformi­
dade com os seus próprios princípios, para a moral, a religião ou a esté­
tica) ao reino dos costumes e das impressões sedimentadas em hábitos
pela sua repetição.
Ao cingir-se também ele ao contratualismo, Hegel apoiava-se numa
ambição totalmente diferente. Iniciada a partir do artigo Sobre as Ma-
] neiras de Tratar Cientificamente o Direito Natural (1802)33, a discussão do
contratualismo desenvolve-se nos Princípios da Filosofia do Direito (5.821)
; em que a Observação ao § 258 designa Rousseau como o filósofo que
; levou mais longe a elaboração do modelo de contrato e simultanea-
: mente manifestou mais claramente, contra a sua vontade, os seus limi-
j tes: porque Rousseau, seguido de Fichte, mas, poderíamos acrescentar,
; precedido por quase toda a modernidade política, «não concebeu a von-
j tade a não ser sob a forma determinada da vontade individual», e por-
jque a vontade geral não lhe aparece a partir daí senão sob a forma
j «daquilo que sobressai como interesse comum em cada vontade indivi-
jdual consciente dela própria, a associação dos indivíduos dentro do
Estado toma-se, na sua doutrina, um contrato», que «tem como funda­
mento o livre arbítrio dos indivíduos, a sua opinião, o seu consenti-
jmento livre e explícito». Consequentemente, estima Hegel, o Estado
assim concebido não é mais do que uma abstracção vazia, uma vez que
ele é obtido no termo de um processo que, partindo do individual con­
cebido, enquanto pura singularidade, como cindido do universal, deve
colocar a «vontade substancial geral», princípio do Estado, fora da «li­
berdade subjectiva que procura realizar os seus fins singulares». Que
semelhante abstracção, nos casos em que se tomou um poder (Hegel
pensa muito evidentemente aqui na França revolucionária e na herança
jacobina do rousseauismo), tenha «desencadeado a situação mais me­
donha e cruel» que foi dada a ver na história da humanidade, não teria
então nada de espantoso: ao contratualismo político seria de facto ine­
rente por definição, segundo esta leitura, uma derivação terrorista
que —Hegel anunciava-o desde o seu artigo de 1802-1803 — aparece

33 Trad. B. Bourgeois, Paris, Vrin, 1972. B. Bourgeois também forneceu um imponente


comentário deste texto, in Le Droit naturel de Hegel Commentaire, Paris, Vrin, 1986.
Do mesmo autor, ver também «Sur le Droit naturel de Hegel, 1802-1803», in Études
hégéliennes. Raison et décision, Paris, PUF, 1992.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 283

como o único meio de reconciliar do exterior, pela força, o que antes se


separou, a saber, a «liberdade universal de todos» e a «liberdade sin­
gular» como «consciência real». Contra o que, tal como veremos no
volume 3 através do capítulo consagrado ao momento hegeliano por
L. Sosoé, se trataria então, para um pensamento jurídico-político acima
das abstracções da filosofia moderna, de tomar como ponto de partida
a própria comunidade ética como único sujeito de direito, e de forma
nenhuma a vontade individual na sua singularidade: que Hegel tenha
podido constituir para um autor como Charles Taylor uma referência
essencial na formação do seu «comunitarismo» toma-se nestas condi­
ções perfeitamente compreensível34.
Apoiados nos pressupostos do empirismo e nos do idealismo abso­
luto, as discussões do contratualismo conduzidas por Hume e por Hegel
podem parecer excessivamente custosas, filosoficamente35 e até, se é
que o esquema contratualista tem qualquer coisa a ver com a represen­
tação moderna da democracia, politicamente. Razão pela qual poderia
ser mais significativo construir os termos de um debate possível com o
contratualismo a partir de uma filosofia política que, partilhando com
este os pressupostos de uma filosofia do sujeito, foi não obstante
conduzida a experimentar certas dificuldades da tradição do contrato
social na sua versão que, numa primeira abordagem, é todavia menos
contestável.
Com efeito, depois de ter, na sua obra de 1793 consagrada a justifi­
car a Revolução Francesa, mobilizado para essa defesa a temática
contratualista na sua inflexão liberal, sabemos que, três anos mais tarde,
o Fichte do Fundamento Natural sentiu necessidade, não apenas de
contestar os próprios princípios daquilo a que nós chamamos o libera­
lismo político, mas também de reorganizar novamente, através de uma
discussão de Rousseau, a economia da filosofia do contrato36. Sem

34 Charles Taylor consagrou duas obras a Hegel, em 1975 (Hegel, Cambridge University
Press) e em 1979 (Hegel and Modern Society, Cambridge University Press).
35 Filosoficamente, esse custo compromete, de modos muito diferentes nos dois casos, a
própria possibilidade de conferir um sentido e uma validade à representação
(constitutiva do humanismo moderno) da humanidade em termos de subjectividade
fundadora: ver sobre este ponto A. Renaut, L'Ère de Vindividu, contribution à Vhistoire de
la subjectivité, Paris, Gallimard, 1989, pp. 178 e segs. (Hume) e pp. 201 e segs. (Hegel).
36 Em substância: o liberalismo lockeano torna-se, com o absolutismo, uma das duas
teses da antinomia do direito político que Fichte se propõe resolver; o contrato so­
cial, no § 17 do Fundamento do Direito Natural, muda de estatuto tornando-se, já não
o fundamento da autoridade política, mas o esquema da vontade geral. Estes dois
deslocamentos serão evocados nas páginas consagradas a Fichte pelo capítulo so­
bre Rousseau, Kant e Fichte, na primeira secção do volume 3.
284 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

abordar ainda essas reorganizações, pode ser revelador mostrar como,


sempre inscrevendo a sua reflexão de 1793, é certo que provisoriamente,
na tradição do contratualismo liberal, Fichte sentiu desde esse momento,
não apenas as seduções, mas também as dificuldades do modelo que
explorava.
De entre essas dificuldades, as que são de teor propriamente polí­
tico respeitam ao que pode haver de delicado em fundar verdadeira­
mente, a partir de tal modelo, a noção de obrigação jurídica: questão
perigosa, uma vez que, se o fundamento do carácter obrigatório das
leis não pode ser circunscrito, dificilmente se percebe como seria possí­
vel dar alguma consistência ao Estado que promulga essas leis e age de
acordo com elas. Regressemos brevemente a Locke: o que, em Locke,
criava a legitimidade de uma lei (por exemplo, a das leis fiscais), era a
possibilidade, para todas as pessoas a quem ela se aplique, de darem o
seu consentimento a essa lei — aparecendo o «consentimento popu­
lar» como o único susceptível, pela mediação de um contrato, de confe-
j rir ao «poder» uma «autoridade» verdadeira, ou por outras palavras
j (para empregar os termos de Fichte) de dar às suas leis um carácter de
i obrigação. Este problema é expressamente reformulado nas Contribui-
| ções: «Que as leis civis respeitem então àquilo que se quiser; ponho a
j questão de saber de onde vem o seu carácter de obrigatoriedade.»
Algumas linhas mais adiante, a resposta permanece de uma ortodoxia
j comovedora: «A questão era a de saber de onde vem a obrigação que
j impõem as leis civis. Eu respondo: da aceitação voluntária dessas leis pelo
‘ indivíduo37.» Do «consentimento popular» lockeano (determinado como
j aceitação da regra da maioria) à «aceitação voluntária» de Fichte, a
I continuidade parece perfeita, também neste caso, quanto à fonte da
i obrigação jurídica ou, o que vai dar ao mesmo, quanto ao fundamento
I da legitimidade contratual do poder.
i Pelo menos à primeira vista. Porque, quando se trata de esclarecer o
i que significa esse princípio da «aceitação voluntária», é a referência, não a
; Locke, mas a Rousseau que se impõe na pena de Fichte, logo a referência à
|teoria da soberania popular como soberania da vontade geral, e não a evo-
icação do princípio lockeano da regra da maioria num sistema representa­
tivo: «O direito de não reconhecer nenhuma outra lei além daquela que
!nos damos a nós próprios é o princípio da soberania indivisível, inalienável,
jde Rousseau38.» Lendo estas linhas, foi por vezes possível a admiração
jperante a brevidade da resposta assim dada ao problema capital do

37 J. G. Fichte, Contribuições, trad. citada, p. 111.


38 Md.
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 285

fundamento da autoridade das leis civis, e ver nisso o indício de que Fichte
estava «manifestamente pouco desejoso de aprofundar a noção» de von­
tade geral que convertia assim na fonte do direito: «Isso é verdadeira­
mente tudo o que Fichte pode dizer da ideia de vontade geral39?» É mes­
mo tentador acrescentar que, formulando a solução do problema da fonte
da obrigação jurídica e da autoridade política, Fichte evita aqui o termo de
«vontade geral», apesar de ele aparecer um pouco mais acima no seu ensaio,
através da evocação da crítica de Rousseau feita pelos pensadores contra-
-revolucionários (W. Rehberg). Põem-se sempre duas questões: 1) porquê
esta referência a Rousseau, e não a Locke, quando tudo no contratualismo
dq jovem Fichte parece inscrever-se na tradição saída dos Tratados do Governo
Civil e prolongada por Achenwall? e 2) porquê uma referência tão pura­
mente formal à solução de Rousseau, sem verdadeira elaboração (nem
mesmo, no quadro preciso da resposta, menção explícita) da noção-chave
de «vontade geral»? A hipótese que, articulando uma com a outra as
respostas a estas duas questões, parece mais credível é também aquela
que faz sobressair as condições últimas da pensabilidade de um
contratualismo consistente (capaz de resolver o problema do «carácter
obrigatório das leis civis») e que manifesta assim as dificuldades encon­
tradas pelo liberalismo nascente para as levar em conta.
Com efeito, se considerarmos mais de perto o que Fichte escreveu
em 1793, apercebemo-nos de que no fundo ele aceita à letra a resposta
do contratualismo liberal ao problema da fonte da obrigação jurídica:
não há lei legítima emanando de um governo civil, afirmava Locke,
sem o «consentimento» de cada cidadão40; não há «obrigação que se
prenda aos contratos sociais», retoma o jovem Fichte, se não for com
«a vontade dos contratantes» — e se for preciso haver «mudanças» ou
«confirmações» nos termos do contrato (por exemplo, no caso do con­
trato político, uma nova constituição), elas «tiram a sua obrigação do
consentimento dos contratantes». Literalmente, a fidelidade a Locke é
portanto perfeita: «Resulta imediatamente do que precede que todos
os contratantes devem estar de acordo, e que a nenhum podemos ar­
rancar à força a sua adesão; de outro modo, ser-lhe-ia prescrita uma lei
por uma coisa diferente da sua vontade41.» Mas para além da letra, que
sentido dar à solução? A ideia do consentimento de cada um, incluída
no próprio princípio do contratualismo, induz bem, analiticamente,

39 A. Philonenko, Théorie et ■ praxis chez Kant et Fichte en 1793, Paris, Vrin, 1968, p. 204.
40 J. Locke, Deuxième traité du gouvernement civil, trad. B. Gilson, Paris, Vrin, 1967,
p. 155: «O poder supremo não pode tirar a algum homem uma qualquer parte da­
quilo que lhe pertence sem o seu consentimento.»
41 J. G. Fichte, op. cit., p. 113.
286 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

a ideia de um acordo entre as vontades. Mas esse próprio acordo pode


no entanto ser concebido de duas maneiras:
- O acordo pode determinar-se a partir de uma aplicação e de uma
aceitação da regra da maioria; em virtude de um tal acordo, se
uma lei obtém em seguida o acordo da maioria das vontades,
cada contratante que reconhece essa regra estará ipso facto de
acordo com a lei, ainda que pertença pessoalmente à minoria. Tal
é evidentemente a determinação lockeana do «consentimento»
de cada um: esta versão da ideia de um acordo entre as vontades
desemboca na prática do governo representativo de carácter
maioritário;
- Mas se pensarmos que esta regra da maioria apenas funda
mediatamente (e logo insuficientemente) o carácter obrigatório das
leis (pela mediação do carácter obrigatório das decisões maiori-
tárias), podemos ser levados a exigir mais. Inferindo do facto de
que, segundo esta primeira determinação do acordo, a lei corre o
risco de não ser reconhecida (pela minoria) senão formalmente,
e não quanto ao seu conteúdo, exigir-se-á que a lei emane simul­
taneamente quanto à sua forma e quanto ao seu conteúdo do
acordo das vontades: seria então preciso que as vontades fossem
unânimes e que apenas essa unanimidade fosse considerada como
fonte imediata das leis. A determinação lockeana do consenti­
mento popular cede a partir daí o seu lugar à determinação rous-
seauista, isto é, à teoria da soberania da vontade geral.

De um modelo ao outro, o contratualismo expunha-se à eventuali­


dade de uma nova viragem, sobre cujo alcance controverso será preciso
que ulteriormente nos interroguemos simultaneamente a partir do
que é dado a entender pela própria obra de Rousseau e a partir das
precisões que o Fichte do Fundamento do Direito Natural tentará dar a
esta concepção. No quadro do presente capítulo, bastará observar que
se, face às duas determinações possíveis do «consentimento popular»,
a escolha de Fichte, em 1793, vai incontestavelmente no sentido da in­
terpretação rousseauista, a falta de explicitação da solução assim adop-
tada, a ausência de análise do que constitui o seu princípio (a própria
noção de vontade geral) parecem indicar que essa escolha não deixou
de pôr bastantes problemas e que não podia, no quadro liberal em que
se tinha desenvolvido precisamente até esse momento a reflexão, ser
assumida senão com dificuldade.
Com efeito, na versão saída de Locke, a tradição do contrato social
era fundamentalmente individualista: inscrevendo-se numa perspec-
O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 287

tiva aberta no século xiv pelo nominalismo de Guilherme de Ockham,


o pensamento lockeano considera que o homem, como toda a criatura,
está submetido ao princípio de individuação e que o seu direito a exis­
tir significa portanto o direito de ser um indivíduo capaz de uma von­
tade própria, distinta e independente da de um outro. Em consequência
disto, nesta óptica, os direitos naturais do homem são exactamente aque­
les sem os quais ele não poderia obedecer à lei da sua natureza, que o
obriga à individualidade, isto é, à independência: o homem terá assim
um «direito natural» a «ordenar as suas acções [...] sem pedir a autori­
zação de nenhum outro homem nem depender da vontade deste».
Em 1793, em conformidade com essa lógica da sua inspiração funda­
mental42, Fichte vai então definir a liberdade natural pela ausência de
submissão de uma vontade particular a uma outra vontade — segundo
a definição lockeana do «direito de ser livre da sua pessoa» — e é com
essa base (a mesma do individualismo) que, não podendo a liberdade
política contradizer directamente a liberdade natural, Fichte vem a pro­
clamar o direito absoluto, para cada indivíduo, de escolher unicamente
segundo a sua vontade a comunidade política à qual quer pertencer
e, correlativamente, o direito imprescritível de sair dessa comunidade
(isto é, de quebrar unilateralmente o contrato social) assim que o desejar.
Frequentemente sublinhado, esse individualismo do primeiro Fichte
leva-o, no entanto, a rejeitar a própria fundação da autoridade política
que, por seu lado, Locke tinha admitido. Tomada à letra, a lógica do
individualismo impõe de facto que se recuse o princípio da submissão
à maioria. Esse princípio, considerava-o certamente Locke como com­
patível com o «direito de ser livre da sua pessoa», pensando que, se
todas as vontades particulares aceitaram (fora do contrato) submeter-
-se à regra da maioria, tudo se passa em seguida como se, quando uma
vontade particular se submete a uma lei aprovada pela maioria, ela lhe
desse ela própria o seu «consentimento» (uma vez que «consentiu» no
princípio maioritário), mesmo quando o conteúdo dessa lei possa não
lhe agradar. O jovem Fichte, em contrapartida, leva até ao fim a lógica
do individualismo, conduzindo assim o liberalismo político às para­
gens do ultráliberalismo: o indivíduo não escapa verdadeiramente a
uma relação de submissão negando o seu direito de ser livre a não ser
que esteja de acordo não só com a forma, mas também com o conteúdo
da lei: «De outro modo, ser-lhe-ia prescrita uma lei por uma coisa

42 Fichte menciona frequentemente, é certo, Rousseau, desde 1790, na sua correspon­


dência, mas esta descoberta de Rousseau não o impede de forma alguma de ler
também com interesse O Espírito das Leis de Montesquieu (GA, II, 1, p. 212).
288 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

diferente da sua vontade43.» Consequentemente o princípio maioritário


(suspeito de não assegurar senão mediatamente a autonomia) parece-
-Ihe ser de rejeitar: «Todos os contratantes devem estar de acordo.»
Assim, é a lógica do individualismo que parece aqui ter imposto a pas­
sagem de uma solução lockeana a uma outra solução do problema da
fonte da obrigação jurídica, para a qual faz então referência, mesmo
que com algum embaraço, a Rousseau: o modelo maioritário apaga-se
perante a exigência de uma plena e inteira «aceitação voluntária», fun­
dada no princípio do consentimento apenas em relação às leis que nos
tenhamos dado a nós próprios — princípio ao qual parece corresponder
melhor, aos olhos de Fichte, a teoria de Rousseau de uma vontade
geral sempre unânime como fonte das leis.
Restaria então compreender porque é que, nestas condições, esse
deslocamento de Locke para Rousseau tem qualquer coisa de embara­
çoso na época das Contribuições, e porque é que — sintoma desse emba­
raço — Fichte parece hesitar em assumir essa mesma noção de vontade
geral que está apesar disso no centro dessa versão mais uma vez reno­
vada do contratualismo político. A explicação reside sem dúvida, mais
uma vez, na lógica do individualismo. Hiperbolicamente liberal, de­
fendendo um individualismo extremo que conduz a confundir, pelo
menos tendencialmente, a autonomia (como submissão da liberdade às
leis que ela se deu a si mesma) e a independência pura e simples (como
recusa de toda a limitação imposta à liberdade), o primeiro Fichte não
pode de facto assumir essa ultrapassagem das vontades individuais,
intrinsecamente diferentes, que lhe parece supor, em Rousseau, a no­
ção de vontade geral. Tudo indica que em 1793 Fichte compreende de
facto a passagem das vontades singulares à vontade geral como um
processo de abstracção das diferenças e não - segundo o que constituiria,
recordá-lo-emos no volume seguinte, uma interpretação mais profunda
da noção rousseauista — como um processo de integração dessas dife­
renças: consequentemente, não pode deixar de lhe parecer que a sobe­
rania da vontade geral transporta em si a negação das diferenças, logo
a da individualidade. Que certos obstáculos filosóficos, tendo a ver com
a rigidez da distinção então operada entre os fenómenos (de onde
surgem as vontades singulares) e os númenos (em que se inscreve a
vontade geral como autonomia da vontade), expliquem essa incom­
preensão, não é certamente duvidoso — e para que a vontade geral
já não seja «inconcebível», será portanto igualmente necessário, no
Fundamento do Direito Natural de 1796, que seja concebível um apa­
recimento fenomenal da liberdade. Fica ainda o facto de que esses

43 J. G., Fichte, Contribuições, tradução citada, p. 113.


O CONTRATUALISMO COMO FILOSOFIA POLÍTICA 289

obstáculos filosóficos44 não desempenharam o seu papel senão combi-


nando-se com considerações propriamente políticas, isto é, com as exi­
gências desse individualismo que Fichte herdou da tradição liberal e
que radicalizou ao ponto de já não se poder satisfazer com a solução
lockeana do problema posto pelo carácter obrigatório das leis e de achar
provisoriamente difícil de assimilar a ideia rousseauista de vontade
geral. Daí resulta, em 1793, uma muito pobre teoria da fonte da obriga­
ção jurídica e, correlativamente, da autoridade política, ao ponto de ser
plenamente legítimo concluir por um «fracasso das Contribuições»45,
quanto à elaboração de uma teoria da fonte da obrigação jurídica que
tivesse sido compatível com a liberdade individual: como nem o Estado
fundado no princípio maioritário (Locke) nem o Estado fundado no
princípio da vontade geral (Rousseau) parecem preservar verdadeira­
mente a liberdade do indivíduo, o princípio contratualista arriscar-se-
-ia minto a aparecer como tendo esgotado o seu percurso e conduzido
a filosofia política moderna a um impasse.
*
* *

Um regresso ao que constituía o espírito da teoria rousseauista da


vontade geral, assim como um exame das contribuições de Kant e do
Fichte da maturidade permitirão perceber, no próximo volume, como a
tradição do contrato social podia, apesar de tudo, evitar essas aporias.
Pelo menos é desde já claro e significativo que a temática contratualista,
que se tinha instalado no coração da filosofia política em virtude das
exigências inerentes à liberdade dos Modernos, deveu à complexidade
e à ambiguidade dessas exigências uma parte das dificuldades que a
preocuparam e por vezes enfraqueceram.
Apesar dessas dificuldades, o princípio contratual estava tão pro­
fundamente inscrito na lógica da cultura democrática que viu o seu
campo de aplicação estender-se muito para além da sua esfera original
e passar a incluir, como observámos no começo, relações outrora com­
pletamente estranhas à perspectiva de uma fundação da autoridade no
consentimento das partes envolvidas. Esta extensão desmesurada do
cámpo do contrato foi demasiado longe? Para dizer a verdade é forçoso
que nos perguntemos por vezes se, sob determinadas formas mais con­
temporâneas, a opção contratualista não acabou por se enfraquecer a si

44 Foram perfeitamente evidenciados por A. Philonenko, op. cit.


45 Md., p. 204.
290 HISTÓRIA DA FILOSOFIA POLÍTICA

própria através de uma tendência lastimável para esquecer a definição


precisa, e restritiva, da convenção contratual. De facto, Aristóteles ou
Fichte insistiam fortemente nisso: não existe contrato que se possa con­
ceber onde as duas partes não constituam duas vontades decidindo
livremente entender-se sobre os termos do seu acordo e remetendo
para a justiça a preocupação de arbitrar eventuais litígios que poderiam
surgir na aplicação do contrato. Em presença dos «quase contratos»
que se desenvolvem hoje em dia, estamos certos de que essas condições
sejam sempre preenchidas, e de que não haja qualquer logro em valer-
-se do contratualismo? O problema foi posto, por exemplo, muito clara
e lucidamente, a propósito dos contratos concluídos pela justiça com
determinados toxicodependentes46: de facto, como atribuir a um indi­
víduo do qual sabemos até que ponto a sua existência é governada por
uma dependência que anula todo o poder de escolha, essa capacidade,
que um verdadeiro contrato supõe, de negociar, de decidir de forma
autónoma e de aplicar livremente os termos do acordo?
Responder-se-á que, no caso presente e apesar de algumas conces­
sões não contestáveis ao rigor do conceito, é sem dúvida o reconheci­
mento dessa capacidade para contratar que, vindo da instituição e for­
necendo ao indivíduo envolvido a indicação de que ele continua a ser
uma pessoa considerada (ficticiamente ou não) como livre de colabo­
rar na sua reinserção, pode de melhor forma arrancar o indivíduo à
sua dependência e recompor nele essa vontade autónoma capaz de cons-
tituí-lo num autêntico sujeito de direito. Até que ponto considerações
deste tipo podem valèr também para os outros «quase contratos» sus­
ceptíveis de ser encarados, e a referência ao princípio contratual não
tende por vezes a tomar-se aqui puramente metafórica? A questão, que
envolveria espaços sociais tão diversos e específicos como a família, a
escola, o hospital ou outros ainda, só pode ficar aqui simplesmente no
ar. Face a estas transformações do contratualismo, pelo menos podemos
perguntar-nos sobretudo se, em todos esses casos limite, a referência à
ideia de contrato não visa, mais do que definir um quadro jurídico efec-
tivo, indicar um valor partilhado, esse valor segundo o qual a condição
do homem moderno reside no facto de estar destinado a constituir-se
como um sujeito livre. Nesta perspectiva, e na condição de não deixar
dissolver-se, através da confusão com esses espaços contratuais
deliberadamente fictícios, a determinação rigorosa da noção de contrato,
manter viva a percepção moderna do homem como sujeito autónomo
que participaria, precisamente nos seus mais inesperados desenvol­
vimentos, seria o destino contemporâneo da temática contratualista.

46 Remeto, aqui mais uma vez, ao excelente artigo, já citado, do juiz A. Garapon.
Capítulo 4

Entre antigos e modernos:


Vico e Montesquieu

1 — Vico e Montesquieu
por Fosca Mariani-Zini

Uma ciência nova dos tempos recuados

Numa primeira abordagem, Vico parece um autor arcaico1, bem re­


cuado relativamente à sua época. Enquanto os seus contemporâneos
procuram a unidade do saber através de uma análise rigorosa das pos­
sibilidades do espírito, e consideram a recta ratio como o pivot de toda a
fundamentação e de toda a sistematização, Vico adopta uma lingua­
gem metafórica, sublinha o carácter múltiplo do espírito, e põe em des­
taque as faculdades da imaginação, da memória, do ingenium2. Apoia
frequentemente os seus argumentos por meio de uma utilização
inconsiderada da etimologia3, as suas referências cronológicas ou lite­
rárias são falsas, ou imprecisas4. Enquanto os filósofos cartesianos, in­
fluentes na sua época, visam o verdadeiro, a evidência, o irrefutável,

1 P. Rossi, «G. B. Vico: arcaico e moderno, in Scienza efilosofia. Studi in onore di L. G eym onat,
dir. C. Mangione, Milão, Garzanti, 1985, pp. 787-795, insistiu no arcaísmo de Vico.
2 De antiquíssima Italomm sapientia, cap. va, pp. 3-4, in Opere filosofiche, trad. fr. G. Gra­
nel e G. Maihlos, De la très ancienne philosophie des peuples italiques, Mauvezin, TER,
1987. Doravante abreviado A. S.
3 Sobre este assunto, cf. M. Pasini, Arborhumanae linguae. Uetimologico di G. B. Vico come
chiave ermeneutica delia storia del mondo, Bolonha, Cappelli, 1984.
4 Cfi. V. Hõsle (1990), Introduzione a Vico. La scienza dei mordo intersoggetivo, Milão, Guerini,
1997, pp. 73-74.

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