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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Serão todos filhos de Adão?


A invenção da África Negra pelo imaginário cristão a partir da literatura de
viagem e cartografia dos séculos XV e XVI

Letícia Cristina Fonseca Destro

2012

9
Serão todos filhos de Adão? A invenção da África Negra pelo
imaginário cristão a partir da literatura de viagem e cartografia dos
séculos XV e XVI

Letícia Cristina Fonseca Destro

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em História Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Mestre em História Social.

Orientador: Prof. Dr. Manolo Garcia Florentino

2012

10
AGRADECIMENTOS

Agradeço ao prof. Manolo Florentino pelo apoio inestimável e pela orientação


que me abriu portas instigantes na busca pelo conhecimento. Daqui saiu não só um
trabalho, mas uma boa amizade.
A todos os amigos e colegas que, em vários momentos, muitas vezes sem o
saber, me agraciaram com suas opiniões, companhias e incentivos. Além, é claro, dos
momentos de lazer e descontração: Weder, Vanuza, Isabel, Roger, Luísa, Flora,
Jorcelino, Sharla, enfim...
A Luana e a Caroline que em meio as pesquisas na Biblioteca Nacional e no
Arquivo Nacional se fizeram presentes de uma forma ou de outra na escrita e na
superação das dificuldades inerentes a pesquisa.
A Priscilla pela amizade construída em meios aos prazos, disciplinas e reuniões
de orientações. Em terras cariocas, encontrei nela uma nova e verdadeira amiga.
Ao amigo André Assunção que foi um exemplo de leitor e serenidade, com
quem pude compartilhar minhas dificuldades e minhas leituras.
A Ione e Luiz, preciosos pais, que suportaram as ausências e a distância. Mesmo
sem entender muito bem o que eu faço, me apóiam e me dão suporte e equilíbrio nessa
longa jornada acadêmica.
A minha querida irmã, Ana Luiza, por se alegrar e orgulhar das minhas
conquistas.
Ao Goshai por absolutamente tudo. Namorado e colega de profissão passamos
pelas ansiedades, tropeços e felicidades desse momento juntos, ora um dando suporte
ora outro.
As professoras Marcia Amantino e Flávia Eyler por aceitarem participar da
minha banca de defesa me agraciando com a leitura e os comentários sempre bem
vindos.
A professora Luciana Villas Bôas, do departamento de Letras da UFRJ,
agradeço pela recepção dada em seu curso e pelas sugestões feitas, bem como a
disponibilidade oferecida através de emails. Ao professor Francisco Cosentino, da
Universidade Federal de Viçosa, por continuar a fazer parte dessa empreitada mesmo
depois da graduação.

11
Por fim, agradeço ao CNPq, que me concedeu uma bolsa de estudos sem a qual
esta pesquisa não se concretizaria.

12
LISTA DE FIGURAS

1 – O mundo segundo os EUA

2 – Diagrama da concepção ptolomaica-cristã do universo

3 – Reprodução de Ptolomeu editada em Ulm, 1482

4 – Reprodução de Heródoto

5 – Esquema T.O., Santo Isidoro de Sevilha (séc. VII d.C.)

6 – Mapa de Hereford, 1290. Cópia facsimile, Wychwood Editions

7 – Atlas Catalão, 1375

8 – Detalhe África, Atlas Catalão

9 – Atlas Catalão-Estense, séc. XV.

10 –Detalhe do rei com cabeça de animal, Atlas Catalão-Estense

11 – Universalis cosmographia... de Martin Waldseemüller,1507

12 – Planisférios de Cantino, 1502

13 –Detalhe África, Planisfério de Cantino

14 – Mapa-múndi de Pierre Desceliers, 1550

13 – Detalhe África, Mapa de Pierre Desceliers

16 – Africae Nova Descriptio, Willem Blaeu, 1642

17 – Nova Africa Descriptio. Mapa de Frederick de Wit, 1660

18 – Detalhe da nudez dos habitantes da Costa da Mina, Planisfério de


Cantino

19 – O Mediterrâneo e a África saariana. As caravanas.

20 – Principais áreas de influência muçulmana, século XVI

21 – Propaganda Nívea, 2011

22 – Paraíso Terrestre, Atlas Catalão-Estense

13
LISTA DE QUADROS

1 – Global Estimate of Trans-Saharan Slave Trade

2 – Fluxo de escravos entre a África e as Américas de acordo às áreas de


origem e de recepção dos cativos, 1501-1600
3 – Fluxo de escravos entre a África e as Américas de acordo às áreas de
origem e de recepção dos cativos, 1601-1700
4 – Níveis e categorias de representação do Africano (c. 1453-1508)

14
NOTAS INTRODUTÓRIAS

Este trabalho tem por objetivo analisar a invenção, enquanto conceito, da África
subsaariana a partir das representações mediadas pela cartografia e literatura de viagem
cristãs dos séculos XV e XVI. As características que viriam a dar forma ao que se
convencionou chamar de África subsaariana ou Negra, e em última instância a própria
noção de negro, bem como os caminhos e desvios que os trouxeram para a esfera do
pensar ibérico cristão e, portanto, europeu serão algumas questões que buscaremos
tratar.

Os séculos que abrangem a pesquisa foram marcados pelo início do


estabelecimento de relações sistemáticas entre a Europa e a África subsaariana, em
especial sua costa ocidental, para além do mundo oriental e americano. Foi, por isso, um
século no qual a necessidade de se conhecer e compreender novos e velhos mundos
obrigou à indagação, por parte do próprio cristão, a respeito de sua identidade e à
reafirmação de suas diferenças em relação aos outros povos. Também foi tempo de se
questionar considerações consagradas dos antigos, especialmente Claúdio Ptolomeu, e a
organização do universo cristão, em especial da distribuição do Orbis Terrarum, tal
como ele vinha sendo divulgado até então. É dentro dessa dinâmica de relacionamentos
e [re]formulações que interessa-nos ver como os cristãos se inseriram, ou esperaram se
inserir, neste mundo “ampliado”, como percebeu e lidou com o exótico, com o estranho.
Tal visão associada, portanto, a uma já antiga forma de se conceber o mundo delimitou
a imagem da África e dos africanos retratando-os, inventando-os, de um determinado
modo que se fizesse sentir pela Europa.
Neste mesmo processo se insere o já muito investigado “surgimento” do Novo
Mundo. Essa quarta parte do orbis - que ganhou de Américo Vespúcio tal nome por
exatamente testemunhar o desconhecimento total em relação a estas terras - foi palco de
visões do paraíso, mito do bom selvagem, canibalismos e exotismos. Mas, o novo
mundo, no sentido de mundo para além do conhecido e, portanto, novo, não foi somente
a América. Talvez fosse melhor falar de Novos Mundos, dado que também a África, e
porque não a Ásia, faziam parte dessa história. As porções de terras africanas situadas
para lá do Cabo Bojador seriam para os cristãos tão estranhas, exóticas e selvagens
15
quanto as americanas. O que, na verdade, estamos aqui a defender é que as discussões
que se apresentam de forma inédita para o caso americano já estavam sendo
desenvolvidas há praticamente um século com a expansão ao sul do Bojador. As
imagens da colonização recheadas de discussões sobre selvagens, gentios e canibais não
foram exclusividade americana, nem mesmo o espanto causado pelo diferente. A África
já era parte integrante do mundo antigo, intensamente conhecida nos tempos áureos do
comércio mediterrânico, como reduto dos povos muçulmanos. Mas toda a realidade que
fosse além das fronteiras do Islã parecia com lugar de antípodas, de monstros, de
riquezas, enfim, de novos mundos. Esta África desconhecida era, sobretudo,
apresentada através de textos e imagens. Uma profusão deles produzidos ao longo dos
séculos XV e XVI por aventureiros, cronistas, cartógrafos, impressores e comerciantes,
espalhou-se pela Europa em cópias manuscritas, publicações em tipos ou mesmo na
leitura e difusão oral. A abordagem do extenso leque de textos exigiria de nós uma
pesquisa de maiores dimensões, a qual não poderíamos desenvolver nesta dissertação.
Por outro lado, pretendemos realizar um recorte dessas fontes tendo em vista
problematizar algumas questões referentes às representações acerca da África e dos
africanos ao sul do Saara no momento dos primeiro encontros.
Tendo como ponto de partida alguns exemplares da chamada literatura de
viagem e dos mapas, buscamos a comparação e junção das duas fontes permitindo,
assim, visualizar como veiculava-se a imagem da África e dos africanos. O termo mapa
será empregado aqui como referencial mais próximo, pois não havia, na época em
questão, uma palavra exclusiva para designar o que hoje chamamos por “mapas”1. Já
“literatura de viagem” é utilizada de forma a abranger um heterogêneo corpus
documental constituído por relatos, crônicas e descrições. Para tanto, dentre o variado
acervo de literatura de viagem, optamos pelos primeiros relatos que compreendem as
obras: Gomes Eanes Zurara, Diogo Gomes, Luís de Cadamosto, Duarte Pacheco Pereira
e Valentim Fernandes.
Do acervo cartográfico, selecionamos alguns exemplares que se constituíram
como referenciais estilísticos de determinadas “escolas” e/ou “dinastias”, já que elas se

1
Em algumas línguas europeias – português, inglês e espanhol, por exemplo – o mapa mundo deriva da
palavra mappa, que significa roupa. Já no francês, italiano e russo a palavra deriva do latim carta, um
pequeno e formal documento. Por isso a ambiguidade que persiste até os dias atuais. HARLEY, David.
“Preface”. In: HARLEY, J. B.; WOODWARD, David. Cartography in prehistoric, ancient, and medieval
Europe and the Mediterranean. Chicago & London: University of Chicago Press, 1987. p. XVI.
16
constituíram como referenciais estilísticos: Maiorca com o Atlas Catalão e Catalão
Estense; Dieppe com Pierre Desceliers; os Bleau com Wilhem Bleau e Frederik de Witt.
Alguns mapas avulsos também foram selecionados devido a importância e ineditismo
das informações: como o Planisfério de Cantino, o primeiro português a retratar o Novo
Mundo, o Universalis Cosmographia de Martin Waldseemüller e a reprodução de
Ptolomeu editada em Ulm, adaptações ptolomaicas. Além do exemplar T.O. de
Hereford como forma de representar o mundo medieval com base nos preceitos
bíblicos.
Ambos os corpus documentais possuíam, muitas vezes, uma direta ligação na
sua elaboração, especialmente no que dizia respeito às influências das informações da
literatura de viagem nos mapas:
Muitos cartógrafos eram geógrafos de gabinetes: Seu papel na rede de
profissionais envolvidos com a feitura dos mapas era a de compilar
todas as informações geográficas disponíveis, coletadas por outros,
submetê-las à sua crítica severa, e, a partir delas, traçar a carta que
seria, então, impressa e comercializada por terceiros2.

Levando em consideração que as fontes são diferentes na forma como


representam o outro, uma a partir da “narrativa” e a outra da iconografia, optamos por
separá-las em capítulos diversos, mas sem perder o diálogo. No capítulo I debruçamo-
nos sobre a organização do universo, globo terrestre e mundo nos moldes cristãos, e
como ela interferiu nas discussões sobre o tamanho da Ilha da Terra, suas terras
habitáveis e as possibilidades de circunavegação da África. Nele tratamos também dos
preceitos cristãos que davam sentido a todo o mundo conhecido, especialmente
vinculado e dividido entre as gerações de Adão. Nesse aspecto os africanos seriam os
herdeiros de Cam, a geração amaldiçoada por Noé.
A partir da análise da cartografia buscamos investigar tais questões e como elas
se transfiguraram em representações sobre o outro comportando lugares comuns como a
nudez, cor negra e vários elementos fantásticos como os monstros e o Preste João. Além
disso, discutimos também a importância do “surgimento” americano e o impacto
causado tanto no imaginário cristão quanto na imagem que vinha sendo feita da África.
Na investigação iconográfica consideramos que a maioria dos autores, anônimos ou

2
FURTADO, Júnia Ferreira. Oráculos da Geografia iluminista: Dom Luís da Cunha e Jean Baptiste
Bourguignon D’Anville na construção da cartografia do Brasil. Belo Horizonte: Ed.UFMG, 2011 [no
prelo]. p. 3.
17
não, trabalhavam em cima do que leram e ouviram, não do que vivenciaram,
construindo e divulgando uma determinada ideia de África.
No segundo capítulo, por sua vez, analisamos as representações inscritas pelas
penas dos viajantes que navegaram até a África. Empenhando-se veemente em dar a
conhecer aos seus leitores as realidades extraordinárias recém encontradas, estes textos
expressam o vivo desejo de integrar as novas geografias na ordem do mundo. Com base
nisso e também no imaginário cristão, analisamos como eles contribuíram para a
propagação de uma determinada África, que assim como na cartografia, era recriada
com em suas impressões com base em lugares comuns. O capítulo também trata dos
princípios teológicos que legitimavam as expedições na busca por reinos cristãos e
possíveis conversos. O mito do selvagem e a gentilidade seguiram como justificativa
para a conversão dos africanos ao cristianismo, bem como distorceram a presença
islâmica que já se expandia naquelas paragens com a ajuda da busca de metais
preciosos. Entre os viajantes, a conversão de alguns nativos ao islamismo foi associada
a uma superficialidade na crença e, portanto, gentios ainda de alma seriam propícios à
conversão.
A maldição de Noé tratada no capítulo anterior, aqui ganhou um
aprofundamento. Tendo ela como fundamental, porém não única, justificativa, os negros
africanos se tornaram a principal mão de obra escrava – em detrimento da mão de obra
ameríndia – e foram exportados tanto para Europa quanto para América em muito maior
escala. O tráfico de escravos, com o passar dos anos, foi tomando contornos mais
sólidos, virando uma instituição altamente rentável e densamente utilizada nas colônias
atlânticas especialmente portuguesas, não mais apenas na Europa. Escravos africanos
foram, assim, exportados durante longos anos contribuindo para uma imagem do
continente e seus habitantes diretamente relacionada à escravidão.
E por fim, no terceiro capítulo apresentamos outras discussões acerca da
invenção da África a partir das representações europeias, utilizando para isso
pesquisadores tanto africanos, como Valentim Mudimbe e Kwame A. Appiah - que
discutem a problemática do ponto de vista político -, quanto europeus, como José da
Silva Horta, Kate Lowe e outros. Estes, além disso, apresentam investigações que vai ao
encontro da nossa pesquisa, complementando-a sempre que possível, na medida que
analisam lugares comuns das representações europeias em diversas outras fontes de
origem não somente portuguesa.
18
Apresentamos também algumas considerações acerca do aporte teórico que se
baseou a pesquisa, tendo como estudos fundamentais a noção de mediação de George
Simmel e invenção de Edmundo O’Gorman, bem como as discussões em torno das
noções de maravilhoso, espanto e imaginário.

19
Capítulo I
Os herdeiros de Cam na cartografia do mundo cristão

Há um tempo, circulava na internet, especificamente nas redes sociais onde a


criatividade desabrocha, um curioso mapa. Curioso porque, diferente dos mapas atuais,
não tem a finalidade de localização geográfica, de representar características de relevo,
clima, demografia, ou mesmo as características políticas, econômicas, demográficas de
uma região. Nada ligado ao que tange hoje o campo da geografia cartográfica. Muito
menos possui os elementos básicos da confecção dos mapas como escala, orientação e
fonte. Ao contrário, sua proposta se apresenta na satírica representação dos países do
mundo a partir de uma suposta “visão norte-americana”, e é nesse sentido que se torna
um mapa curioso e divertido.
O ponto central do mapa, claro, são os Estados Unidos representados pela sua
bandeira. Os demais países e, em alguns casos, continentes aparecem identificados por
legendas que supostamente os caracterizariam a partir do “olhar norte-americano”. A
América do Sul, por exemplo, é apresentada como uma vasta porção de terra roxa com
os dizeres: “café, sexo, drogas”. Genericamente também estão representados os países
da América Central como “latinos”. O enorme espaço vazio em preto e branco que,
apenas ao sul, possui diamantes é o continente africano. Os países europeus, região azul
escura, estão identificados pela legenda “vinho, perfume e espaguetti...”, ao passo que a
Inglaterra é apenas uma extensão dos EUA, seu 52º estado. Na área laranja lê-se
“petróleo e guerra” referindo-se aos países do Oriente Médio. Já em marrom, os
bêbados derrotados, uma alusão aos russos e a Oceania, em azul, é apenas uma Ilha
Grande que talvez fosse o Havaí.
Eesse exemplo contemporâneo usa para a sátira uma das características mais
interessantes dos mapas antigos: a imaginação como forma de conceber a realidade. Os
suntuosos e ornamentados mapas-múndi medievais, também apresentavam, a partir da
iconografia, sua visão de mundo. Eles utilizavam, muitas vezes, da criatividade
principalmente para representar o incompreendido. Mas longe de ser algo irreal, o
mundo imaginabilis tinha sua plena realidade e era, aliás, a condição para o
conhecimento. É sobre essas representações imaginárias ou não do mundo que estamos
tratando neste trabalho.

20
Figura 1 – O mundo segundo os EUA

Fonte: http://jowcartoons.wordpress.com/2009/12/01/o-mundo-segundo-os-eua/

21
I. O universo cristão

O universo, o globo terrestre, a Ilha da Terra e principalmente o mundo


(Ecúmeno) eram organizados de acordo com interpretações cristãs e tinham, por isso,
conotações muito específicas e diferentes do que se concebe hoje. Eles eram concebidos
de acordo com preceitos bíblicos e nos limites do conhecimento geográfico e
maravilhoso da época.
O universo era concebido como uma criação de Deus, portanto era finito e
perfeito – tudo nele já estava feito de forma inalterável e de acordo com um modelo
arquetípico e único3. A imagem arcaica do universo que o Cristianismo deu contornos
teológicos (Figura 2) era a de uma imensa esfera com duas zonas concêntricas que se
diferenciavam principalmente pela natureza. A primeira e mais afastada da Terra
(centro) era a zona celeste que continha as órbitas do empíreo (reservado aos santos,
anjos e seres abençoados), do primeiro motor (causa inicial de todo o movimento), do
cristalino, do firmamento e dos sete planetas juntamente com o Sol e a Lua. Em seguida
começava a segunda, a sublunar, que continha os quatro elementos: o fogo, a água, o ar
e a terra. Nessa zona conhecida também como elementar ou da decomposição eram
gerados os seres vivos destinados a perecer4.
O globo terrestre, por sua vez, não era sequer um corpo celeste, “era uma
massa de matéria mais pesada do universo: uma grande bola que, fixa no centro,
suportava o peso das massas de matéria em escala crescente de leveza [...]”5. Ele era,
então, o alicerce de todo o cosmo e alojava a zona do inferno que também estava
estruturado em órbitas correspondentes aos sete pecados. Na última esfera vivia Lúcifer.
Por sua vez, a distribuição do globo em terra e mar suscitava indagações a respeito do
tamanho de cada uma dessas partes. Indagações essas que conheceram soluções
hipotéticas se vistas à luz dos conhecimentos atuais, mas não arbitrárias, pois
respondiam a exigências de natureza científica e religiosa, como ressalta Edmundo
O’Gorman6. A primeira refere-se à tese aristotélica que tem como princípio a
predominância do elemento água, o Oceano, na totalidade do globo terrestre e a outra à
noção bíblica, na qual predominava a terra: “Deus ordena que as águas que estão

3
Cf. O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo
Mundo e do sentido do seu devir. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 72.
4
Ibidem. p. 75.
5
Ibidem. p. 74
6
Ibidem. p. 76.
22
debaixo do céu, ajuntem-se num só lugar, e apareça o (elemento) árido. [...]. E Deus
chamou ao (elemento) árido terra e ao conjunto das águas chamou mares”7.

Figura 2 – Diagrama da concepção ptolomaica-cristã do universo

Fonte: O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América. São Paulo: Editora da Universidade


Estadual Paulista, 1992

7
Gênesis I, 9-10 (41ª edição. São Paulo: Edições Paulinas, 1985).
23
Essa preocupação estava diretamente relacionada à navegação, principalmente
na época em que se buscava o melhor caminho para as Índias. Se fosse admitida a
hipótese que atribuía à Ilha da Terra uma enorme extensão, seria mais viável uma
travessia pelo Mar Oceano (Atlântico), já que não se sabia ao certo se o fim meridional
da África era mesmo o Equador conforme indicação de Claudio Ptolomeu (90-168
d.C.). De acordo com o geógrafo egípcio em seu A Geografia, a África se estendia de tal
modo para o sudoeste que se encontrava com a Península Asiática e o Mar Índico era,
em consequência, um mar fechado tal como o Mediterrâneo. Na reprodução de
Ptolomeu editada por Johannes de Armsshein em Ulm (1482), o caminho para Índia,
contornando a África, é bloqueado por uma terra incógnita secund. Ptolomeu ao sul da
Ethiopia Interior (Figura 3) 8. Ao contrário, se fosse considerada uma extensão
diminuta, o caminho costeiro seria o mais aconselhável. Essa foi a decisão dos
portugueses sob a inspiração do príncipe Henrique (1394-1460) quando lançaram-se em
busca da Índia, acreditando que os confins da África não se estenderia além do
Equador9.
Outra questão ligada ao tamanho da Ilha da Terra dizia respeito a possibilidade
de haver terras antípodas em outros hemisférios. Na Antiguidade acreditava-se que nem
toda a Ilha da Terra era adequada para abrigar o mundo, partes dela eram consideradas
inabitáveis em um sentido absoluto. Eram regiões nas quais se supunha existir certas
condições cósmicas que o homem jamais alteraria ou remediaria, porque dependiam da
própria estrutura do universo. Essas “outras terras” ou Orbis Alterius caso pudessem ser
habitados, o seriam por outras criaturas que não o homem10.
A teoria clássica a esse respeito, de acordo com O’Gorman, ganhou contornos
definitivos com Aristóteles e sua divisão do globo terrestre de acordo com as cincos
zonas: duas polares, duas temperadas e a intermediária, chamada zona tropical, tórrida
ou quente. As únicas habitáveis eram as zonas temperadas, as compreendidas entre os
círculos árticos e os círculos dos trópicos, ou seja, a extensão do mundo habitável ficava
compreendida dentro da zona temperada setentrional, no hemisfério norte. As demais
teriam as intransponíveis barreiras dos círculos do Ártico e do Trópico de Câncer.

8
A parte ao sul do Equador, como o próprio cartógrafo escreve não era conhecida por Ptolomeu, portanto
foi uma anexação dos conhecimentos da época da edição
9
O’GORMAN, Edmundo. Op cit. p. 83.
10
Ibidem. p. 88.
24
Figura 3 – Reprodução de Ptolomeu editada em Ulm, 1482

Fonte: http://www.raremaps.com

25
Dessa forma, caso a concepção cristã de mundo aceitasse a afirmação da
existência dessas terras claramente distinguiria a Ilha da Terra do Ecúmeno (mundo) –
apenas a parte habitável por seres humanos – pois a primeira compreenderia todas as
terras do globo: as antípodas e o ecúmeno.
Contudo, a possibilidade de serem habitadas por espécies distintas confrontava
diretamente o mais básico dos preceitos cristãos: o da unidade fundamental do gênero
humano. Tendo em vista que todos procederam de um único e original casal, não
haveria lacunas no dogma cristão para espécies de homens diferentes e nem mesmo no
Evangelho, segundo o qual os ensinamentos de Cristo e de seus apóstolos haviam
chegado aos confins de toda a Ilha. No entanto, a contestação da teoria de que os
homens descendem de um único casal é tão antiga quanto ela própria. Conforme ressalta
Leon Poliakov, antigos exegetas judeus concluíram que o universo provavelmente tivera
uma criação anterior e que algo desta criação talvez subsistisse a “anjos, demônios, ou
homens, quiçá melhores, quiçá piores que a posteridade de Adão”11.
Dessa forma, salienta-se que a ideia de que nem todos descendem de um pai
comum circulava muito antes das descobertas de Novos Mundos, embora tenha
recebido mais adeptos nos séculos que se seguiram, ganhando contornos mais
definitivos no século XVIII.

II. A geração de Cam


O mundo esboçado era representado tripartido em Europa, Ásia e África. Esta
famosa divisão tem antecedentes na cultura clássica, como atesta a reconstrução de
Heródoto (484 – 443 a.C.) que insere a Líbia à composição formada por Europa e Ásia
(Figura 4)12. Essa divisão, contudo, não trata apenas de uma distribuição territorial. As
três entidades eram dotadas de um sentido que transcende a geografia e integravam “[...]
uma estrutura de natureza qualitativa do cenário cósmico que se desenvolve a vida
humana, não num plano de igualdade, mas numa hierarquia que não remete,
primariamente, às circunstâncias naturais, mas às diferenças de natureza espiritual”13.
Nessa hierarquia espiritual, a Europa ocupava o mais alto patamar.

11
POLIAKOV, Léon. O mito ariano: ensaio sobre as fontes do racismo e dos nacionalismos. São Paulo:
Perspectiva, 1974. p. 105.
12
A noção de terras “continentes” só aparecerá no século XV quando se considerou que as terras, mesmo
cortadas pelos mares, eram um todo contínuo: “Continents: contíguo, imediatamente junto ou vizinho de
outra coisa” (O’Gorman, Edmundo. Op cit. Nota 3. p. 190).
13
Ibidem. p. 193.
26
Figura 4 – Reprodução de Heródoto

Fonte: http://www.henry-davis.com/MAPS/

27
Para esses geógrafos antigos, a África era dividida em três partes: Líbia, Egito
e Aethiopia. A Líbia correspondia à região oeste da fronteira do Egito. Este ligava-se às
áreas do império faraônico e a Aethiopia/Etiópia situava-se ao sul do Egito. Entretanto,
a designação Etiópia era bastante equívoca e assim se manteve durante muitos anos.
Não havia um consenso a respeito das suas fronteiras, com as incursões portuguesas o
termo foi alargado, por exemplo, para abarcar as novas áreas conhecidas chegando a
designar a região do rio Senegal até o cabo da Boa Esperança, conforme descreve
Duarte Pacheco: “Primeiramente, é de notar como aqui [rio de Çanaga] é o princípio
dos Etiópios e homens negros; e porque são duas Etiópias, bem é que se saiba como esta
primeira se chama Inferior ou Etiópia Baixa Oucidental [...]. A outra Etiópia Superior
começa no rio Indo, além do grande reino de Pérsia, do qual a Índia este nome tomou
[...]”14. Além disso, “na geografia helênico-romana e, em seu seguimento na geografia
medieval, dividia-se o mundo em três partes, sendo a Ásia e a África separadas pelo rio
Nilo. A África que se estendia a poente do Egipto e da Líbia e Etiópia seria várias vezes
incluída na Índia”15, segundo a historiadora portuguesa Marília Lopes.
O cristianismo, posteriormente, atribuiu à antiga divisão referida um
fundamento próprio, no qual a Terra fora repartida entre os três filhos de Noé. De
acordo com essa tradição, Cam (pai de Canaã), o filho mais novo de Noé, “tendo visto a
nudez de seu pai [embriagado], saiu fora a dizê-lo a seus dois irmãos”16. Ao despertar
da embriaguez e saber o que ocorrera, Noé amaldiçoou a geração de seu filho: “Maldito
seja Canaã, ele será escravo dos escravos de seus irmãos”17; e abençoou a posteridade
dos utros dois, Sem e Jafet, por terem o respeitado e o vestido. Após o dilúvio, cada
filho foi povoar uma parte no mundo, e “[...] Sem, seu primogênito, habitou a parte
oriental, e Cão, a parte do meo dia [África], e Jafet habitou a parte setentrional [...]”18,
conforme ressalta Duarte Pacheco.
A Europa conservou, portanto, sua posição elevada que já ocupava na cultura
clássica, era o reduto da verdadeira civilização fundada na fé cristã. À África, habitada
pelos descendentes de Cam, coube o último lugar na hierarquia como se pode

14
PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de Situ Orbis. 3ª edição. Lisboa, 1954. p. 96. Mais detalhes da
vida e obra dos autores no capítulo seguinte.
15
LOPES, Marília dos Santos. Da descoberta ao Saber. Os conhecimentos sobre África na Europa dos
séculos XVI e XVII, Viseu: passagem, 2002. p. 125.
16
Gênesis 9, 22-23
17
Gênisis 9, 25-26
18
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 22.
28
testemunhar pelas próprias palavras do cronista mor do reino de Portugal Gomes Eanes
da Zurara (1410-1474):
“E aqui haveis de notar que estes negros, posto que sejam Mouros
como os outros, são porém servos daqueles por antigo costume, o qual
creio que seja por causa da maldição que depois do dilúvio lançou
Noé sobre seu filho Cam, pela qual maldisse, que a sua geração fosse
sugeita a todalas outras gerações do mundo, da qual estes descendem
[...]”19.

Vale ressaltar, contudo, que essa passagem bíblica que dá a servidão como
punição é repleta de inconsistências. De acordo com Gerhard Von Rad a narrativa de
Noé é uma fonte Javista (J) enquanto que a mesa das nações (distribuição do mundo) é
“sacerdotal”, acrescentada posteriormente20. Em J, a narrativa não era “[...] sobre esse
ecumênico esquema das nações, mas sobre um esquema Palestino muito mais antigo e
limitado: Sem, Jafé e Canãa”21. A mesa das nações, uma fonte posterior, acrescentou a
distribuição, após o Dilúvio – símbolo da Queda do homem -, de todo mundo entre os
herdeiros de Noé, Cam, Sem e Jafé. Conforme ressalta David Brion Davis, a mesa das
nações forneceu, entretanto, a base para uma elaborada exegese destinada a provar que
os negros, descendentes de Cam, estavam condenados a serem escravos e servir os
demais povos22. O mundo representado segundo tais premissas teológicas
consolidaram-se nos mapas denominados T.O. (Orbis Terrarum), cujo exemplo mais
antigo se encontra no Ethimologiarum Originum de Santo Isidoro de Sevilha do século
VII (Figura 5). Suas características básicas ilustram bem a revelação bíblica: o mundo
tripartido em forma de T, símbolo de Cristo crucificado, com Jerusalém ao centro
rodeado pelo oceano. O Paraíso Terrestre está acima do quadrante que ocupa a Ásia. As
outras duas partes são representadas por Europa e África. Cada uma dessas áreas está
associada aos três herdeiros de Noé.

19
ZURARA, Gomes Eanes. Crónica do descobrimento e conquista da Guiné. Publicações Europa-
América, 1989. p. 79.
20
O Pentateuco (Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio) foi escrito, de acordo com os
estudiosos da Bíblia, a partir de diversas fontes de tempos diferentes. O primeiro e mais antigo
documento é conhecido como Javista (J). Alguns anos depois, encontram o Eloísta (E) e incorporaram-no
ao J. A diferença primordial entre ambos, em linhas gerais, são as denominações do Deus: Javé e Elohim.
Séculos depois foi encontrado o Deuteronômico (D) e anexado. Por fim, o documento final, o sacerdotal
(P), acrescentou e alterou muitos desses escritos, projetando muitos ideais de seus escritores.
21
“[…] not about this ecumenical scheme of nations, but about a much older and more limited
Palestinian one: Shem, Japheth and Canaan” (RAD, Gerhard von. Genesis, a Commentary. Filadélfia,
1961. p. 133).
22
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização
brasileira, 2001. p. 82 e 83.
29
Figura 5 – Esquema T.O., Santo Isidoro de Sevilha (séc. VII d.C.)

Fonte: http://www.henry-davis.com/MAPS/

30
O mapa de Hereford (Figura 6), atualmente na catedral de Hereford (onde
provavelmente foi exposto durante as missas) na Inglaterra, elaborado entre 1290 e
1300 é um exemplar dessa perspectiva adornado com imagens. Não se sabe ao certo a
autoria do mesmo, apenas que foi assinada por Ricardo de Haldingham e Lafford, e
destinado a Hereford desde que foi completado (ficando nesta cidade desde então)23.
Acredita-se que o exemplar ficava exposto, embora não se saiba com que freqüência e
nem em que local da catedral, e que também tivesse finalidades pedagógicas.
O mapa possui numerosas figuras que representam cidades, montanhas,
animais, seres mitológicos e principalmente eventos bíblicos, já que esse tipo de mapa
era como fonte de informações das verdades da fé. Na parte superior, fora do orbe está
representado o julgamento final, com Cristo entronizado julgando os homens e
recebendo alguns em Jerusalém Celeste e enviando outros para o Inferno. À esquerda e
abaixo do orbe representa-se o Imperador romano ordenando a três sábios que sigam
por todo o mundo. A parte que cabia ao mundo propriamente dito, por sua vez, é
reconstituído caoticamente, cabendo, portanto, ao homem, a partir de suas ações e
valores religiosos, merecer entrar no reino celeste ordenador e eterno.
Dentre as regiões que o mapa representa, a África e a Ásia são as menos
precisas de informações. Nelas os elementos maravilhosos e reais estão bem misturados,
há várias cidades existentes que contrastam com minotauros e dragões. No quadrante
destinado à África, mas que possui a legenda de Europa por lapso, há várias cidades
conhecidas especialmente pelo comércio mediterrânico. Ao sul, contudo, há um
corredor, talvez uma terra antípoda, onde se reúne uma coleção de exemplares de
monstros – especialmente os descritos por Plínio -, tais como os Blêmios (que não
possuem cabeça e os órgãos dos sentidos estão localizados no peito), os Ciápodes
(monstros com apenas um pé) e os Amyctyraes (monstros com lábios inferiores
protuberantes que podem servir para proteger do sol)24.

23
O primeiro fac-símile foi produzido por Thomas Ballard od Ledbury em 1830 em Londres.
24
O mapa de Psalter e de Ebstorf, ambos de meados do século XIII e também exemplares T.O.,
similarmente trazem, na mesma região (entre o Nilo? e o Oceano), exemplos de monstros como os
desenhados no mapa de Hereford.
31
Figura 6 – Mapa de Hereford, 1290.

Fonte: http://www.henry-davis.com/MAPS/

32
Essas figuras monstruosas, muitas vezes, marcavam o início do território
desconhecido, sendo que a localização e, especialmente, a climatologia eram
importantes aspectos para a explicação da variedade de tipos e costumes. A África, pelo
clima extremo, abrigava diversos deles, desde trogloditas até pigmeus25. A própria
etimologia da palavra “monstro” origina-se de mostrar (monstrare); para indicar algo ou
prenunciar o significado de algo.
A partir dessa configuração geográfica, os monstros eram designados, além da
morfologia, através de um quadro de distinções pautado especialmente em diferenças
“culturais”. Na taxonomia de Plínio, por exemplo, certos seres como a raça de Homens
Sem Discurso eram definidos exclusivamente com base na linguagem, seja pelo o que
era considerado a ausência de discurso articulado ou pelo idioma incompreensível
(muitas vezes também tratado, por desconhecimento, de ausência de linguagem). Outro
elemento diferenciador dizia respeito aos tipos de alimentação: os comedores de Lótus
em Homero, por exemplo, os Antropophagi, dentre outros. A habitação, como os
monstros homéricos que habitavam bosques, florestas, cavernas e desertos, também
seriam um determinante de monstruosidade, além do uso de armas primitivas e a nudez.
É nesse sentido, analisa Peter Burke, que o antigo Antropophagi se transforma no
canibal quando em contato com os Novos Mundos26.
A grande questão tratada, entretanto, pelos autores ligados à Igreja residia no
problema de explicar o motivo da existência de monstros, afinal, na própria Escritura
Sagrada apresentam-se alguns exemplares: no livro de Jô, capítulos 40 e 41, descreve-
se, por exemplo, os monstros marinhos Beemot e o famoso Leviatã. Além das bestas
apocalípticas e dos seres extraordinários das profecias de Daniel. A partir disso, Marie-
Hélène Huet analisa que os monstros também eram considerados como resultado da
glória e ira de Deus: “alguns dos mais famosos casos de progênies de monstros foi
construído como mensagem mandada por Deus para expressar sua ira em relação aos
pecados do homem”27. Ou, como sugere Santo Agostinho a partir de Plínio: os monstros
seriam parte da maravilhosa variedade da criação de Deus. Como cristão que era, Santo

25
BURKE, Peter.Frontiers of the monstrous: perceiving national characters in early modern Europe. In:
KNOPPERS, Laura L.; LANDES, Joan (ed.). Monstrous Bodies/Politcal monstrosities in early modern
Eeurope. Cornell University Press, 2004. p. 17.
26
Ibidem. p. 28
27
“Some of the most famous cases of monstrous progenies were construed as messages sent by God to
express HIS anger at the sins of men” (HUET, Marie-Hélène.Monstrous Medicine. In : KNOPPERS,
Laura L.; LANDES, Joan (ed.). Op cit. p. 131).
33
Agostinho aborda a questão a partir da descendência de Noé, já que o Dilúvio teria
renovado toda a população da Terra, esses seres descenderiam também do patriarca28.
Dessa forma, a existência dos monstros confrontava questões relativas à
definição da própria humanidade. De modo geral, as raças monstruosas pareciam ficar
entre a condição de animal e de humano, porém criação de Deus conforme defendia
Santo Agostinho. Na classificação de Lineu, já no século XVIII, os monstros (anões e
gigantes) eram a categoria final do homo sapiens29.
Transladar para o desconhecido elementos fantásticos e também bíblicos
parecia, portanto, facilitar a assimilação e o controle sobre o espaço estrangeiro. Os
posteriores exemplares de carta-portulano30, entretanto, tinham, além disso, interesses
geográficos que dessem conta, em especial, das rotas de comércio. A atenção se voltava
em específico para as rotas que adquiriam mercadorias suficientes para abastecer o
comércio mediterrâneo e principalmente os países do Ocidente cristão que buscavam
uma substituição das moedas visando estancar a hemorragia de metais preciosos em
benefício do Oriente. O ouro do Sudão foi uma alternativa que, durante um período,
manteve o equilíbrio comercial conforme discutiremos no capítulo que se segue. Esta
riqueza sudanesa era filtrada através das rotas africanas traçando o Saara em direção ao
Magrebe, região que a partir do século XIII se tornou a mina de ouro sem a qual a
atividade mediterrânea teria se paralisado. Todas as mercadorias que a Europa podia
fornecer afluíam pelas cidades do norte africano, cidades essas que ligaram a história do
Magrebe aos longínquos destinos das cidades e dos reinos do grande anel do Níger para
além do Saara31.
Essas cartas, entretanto, ainda ornamentavam as regiões exóticas como Ásia e
África com elementos fantásticos e religiosos. Um exemplar famoso dessa categoria é o
Atlas Catalão elaborado em 1375 e cuja autoria é concedida ao judeu Abrão Cresques
(1325?-1387), cartógrafo real maiorquino (Figura 7). O Atlas, conservado na Biblioteca
28
PRIORE, Mary Del. Esquecidos por Deus. Monstros no mundo europeu e ibero-americano, uma
história dos monstros do Velho e do Novo Mundo (séculos XVI-XVIII). São Paulo: Companhia das Letras,
2000. p. 24.
29
PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. São Paulo: EDUSC,
1999. P. 68.
30
A carta-portulano é um tipo de “cartografia” baseada em experiência efetiva, e eficaz técnica
representativa, ela constitui um revolucionário avanço sobre o período anterior. É directamente motivada
por necessidades de tipo hidrográfico e articula-se directamente com os roteiros (“portulanos”) de que é a
expressão gráfica (MARQUES, Alfredo Pinheiro. A cartografia dos descobrimentos. Lisboa: Edição Ello,
1994. p. 21).
31
BRAUDEL, Fernand. Moedas e civilizações. Do ouro do Sudão à Prata da América. In: Revista de
História, n. 13-14. São Paulo, 1953. p. 69 e 70.
34
Nacional de Paris, foi feito sob encomenda para o rei Carlos V da França a pedido do rei
Pedro IV de Aragão.
Cresques utilizou-se, como de costume, de passagens bíblicas para preencher o
mapa, além de informações geográficas, históricas e mitológicas. Na África, em
específico, há destaque para a figura alegórica do imperador de Mali, trajando vestes
muçulmanas, segurando uma pedra de ouro seguida pelo desenho da cidade de
Tombuctu. A presença do Mansa é sintomática em vários outros mapas da época e
muito provavelmente a popularidade se deve a uma viagem que o Mansa Musa32 fizera
à Meca. Aproveitando da estadia na capital egípcia, conforme ressalta Alberto da Costa
e Silva, ele tratou de colocar seu nome e de sua cidade em evidência, espalhando sua
fama por todo mundo árabe e até mesmo europeu. A imagem passada era a de um rei
riquíssimo, senhor do ouro, construída a partir do esbanjo do metal ao longo da rota
Mali e Meca33. Ao lado do rei há um camelo e um negro nu representando os habitantes
nativos daquelas paragens conhecidos pelos viajantes principalmente pela ausência de
vestimenta. A seguir aparece o Rei de Organa, com turbante e vestido azul, cuja legenda
diz: “aqui reina o rei de Organa, sarraceno que tem continua guerra com os sarracenos
marítimos, e com outros árabes (alarahps), ou occidentaes”34. Na sequência é o rei da
Núbia e por último, conforme a legenda, rei da Babilônia35.
É provável que esse mapa seja um dos primeiros a considerar a existência de
populações negras com algum tipo de poder organizador, representado pela figura do
soberano, o rei– embora o termo demonstre claramente uma projeção de categorias
conhecidas pelo cartógrafo sobre o “outro”. Assim também o fazem os viajantes, mas
com a ressalva: “deveis saber que este rei [Jalofo] não é nada semelhante aos nossos reis
da Cristandade: porque o rei é senhor de gente selvagem e muito pobre [...]36”, adverte
Cadamosto.

32
Kanku Musa subiu ao trono por volta de 1307 sob o título de Mansa Musa I. Reinou de 1307 até 1332
(Cf. NIANE, Djibril Tamsir. O Mali e a segunda expansão Manden. In: História geral da África, vol. IV.
Brasília: UNESCO, 2010. p. 165)
33
SILVA, Alberto da Costa e. A enxada e a lança: A África antes dos portugueses. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1996. p. 306.
34
LUIZ, Cardeal D. Francisco S. Portugueses em Africa, Asia, America, e Oceania. Volume I. Lisboa,
1848. p. 174.
35
Não se trata da Babilônia da Torre de Babel, mas de uma antiga cidade do Egito. A identidade de
nomes que leva a confusão foi advertida por Susani Silveira Lemos França na sua tradução de Viagens de
Mandeville (MANDEVILLE, Jean de. Viagens de Jean de Mandeville. São Paulo, EDUSC, 2007. p. 61).
36
CADAMOSTO, Luís de e SINTRA, Pedro de. Viagens. Lisboa: Academia Portuguesa da História,
MCMLXXXVIII. p. 117.
35
Figura 7 - Atlas Catalão, 1375

Fonte: http://gallica.bnf.fr

36
Figura 8 – Detalhe África, Atlas Catalão

37
De acordo com o historiador Jean Massing, a iniciativa de representar as
regiões por seus governantes era uma forma de repassar a ideia de que continente era
permeado por monarquias centralizadas37 e, por que não, pela ideia de povos
governados pelo capricho de seus senhores – repercutida inclusive pela classificação do
francês Carl Linné (Lineu) em 173538.
Representar o interior da África com figuras de reis, entretanto, era uma
característica dos exemplares portulanos. O que variava era apenas a quantidade,
embora os específicos exemplares apresentados por Cresques eram comuns a todos. O
Catalão-Estense de autoria desconhecida que data de meados do século XV (Figura 9),
conservado na biblioteca Estense de Modena, acrescenta a figura do lendário imperador
etíope Preste João no delta do Nilo. A lenda desse reino maravilhoso surgiu em tempos
de cruzada, Preste João era o rei que triunfava na batalha contra o Islã em um momento
em que todos fracassavam. Entretanto, a localização primeira do reino era a Ásia, mais
precisamente na sua fronteira com a Pérsia, se deslocando para a Etiópia no século XIV.
O interesse em buscar tal reino levou os portugueses a explorarem a costa africana na
esperança de encontrar Preste João, como escreve Gomes Eanes Zurara, por exemplo,
que D. Henrique encomendara a Antão Gonçalves que soubesse novas da Terra dos
Negros e “[...] mais ainda das Indias, e de terra de preste João, se ser podesse”39.
Continuando no mapa mais ao sul afigura um rei negro com cabeça de animal
(Figura 10). Tendo em vista que todos os demais reis africanos possuem feições
humanas e trajes muçulmanos, o último ao sul nos sugere que sua animalização
provavelmente esteja ligada a sua localidade retornando a discussão acima iniciada a
respeito da geografia dos monstros. O sul da África seria, assim, lugar de monstros tal
como nos sugeriam os mapas T.O. Uma característica distinta desse mapa é que ao sul,
a África liga-se a uma porção de terra desabitada, muito provavelmente retomando as
antigas assertivas a respeito das terras antípodas. Além disso, o mapa mostra maiores
detalhes a respeito da região do Golfo da Guiné, como a presença das ilhas de Cabo
Verde. O mapa foi desenhado, portanto, paralelamente aos primeiros contatos com os
povos costeiros ao sul do Saara, por volta de 1450.

37
Cf. MASSING, Jean M. The image of Africa and the iconography of lip-plated Africans in Pierre
Descelier’s world map of 1550. In: LOWE, Kate & Early, T. F. Black Africans in Renaissance Europe.
Cambridge: Cambridge University, 2005.
38
PRATT, Mary L. Op cit. p. 68.
39
ZURARA, Gomes Eanes da. Op cit. p. 79.
38
Figura 9 – Atlas Catalão-Estense, séc. XV.

Fonte: http://www.cedoc.mo.it/estense/img/geo/index.html

39
Figura 10 –Detalhe do rei com cabeça de animal, Atlas Catalão-Estense

40
Maiores detalhes desses primeiros encontros nos deram os viajantes já citados:
Luís de Cadamosto, Gomes Eanes da Zurara e Duarte Pacheco Pereira. Todos, em
especial Cadamosto, descreveram e enumeraram os povos que habitavam estas regiões
como veremos no próximo capítulo. Os primeiros passos para esboçar o africano
passam, por conseguinte, por uma descrição e enumeração de seus costumes, premissa
para a definição do seu posicionamento no mundo.

III. A quarta parte do mundo

No final do século XV e no século XVI, as novidades advindas das grandes


navegações trouxeram transformações profundas na concepção de mundo, conforme
discutimos anteriormente. O conjunto de terras, que se convencionou a chamar de Novo
Mundo, aumentou ainda mais os problemas relativos à antiga concepção de Orbis
Terrarrum. Localizadas para lá do limite imposto pelo oceano, facilmente poderiam ser
um Orbis Alterius que os antigos acreditavam existir. O problema estava posto; se as
terras além do Oceano eram outra ilha que tanto falavam os pagãos, o que seriam seus
povoadores? No entanto, se fossem humanos, como chegaram até aquelas terras? Como
escaparam do Dilúvio bíblico? Pois, de acordo com o Gênesis, somente os animais e
homens da Arca de Noé salvaram-se da grande inundação:
Tudo o que respira e tem vida sobre a terra, tudo morreu. E foram
exterminados todos os seres (vivos) que havia sobre a terra, desde o
homem até às bestas, tanto os répteis como as aves do céu, tudo foi
exterminado da terra; ficou somente Noé e os que estavam com ele na
arca40.

Então o que dizer das espécies de animais desconhecidas e da humanidade


daquelas gentes? Se todos os povos descendiam de Adão e, após o Dilúvio, de Noé,
como teriam chegada àquelas terras distantes? Duarte Pacheco exprimiu muito bem essa
questão:
Muitos Antigos disseram que, se alguma terra estevesse ouriente e
oucidente com outra terra, que ambas teriam o grau do Sol igualmente
e tudo seria de ua calidade. E quanto à igualeza do Sol é verdade; mas
como quer que a majestade da grande natureza usa de grande
variedade, em sua ordem, no criar e gerar das cousas, achamos, por
experiência, que os homens deste promontório de Lopo Gonçalver e
toda a outra terra de Guiné são assaz negros, e as outras gentes que

40
Gênesis 7, 22-23.
41
jazem além do mar oceano ou oucidente (que tem grau do Sol por
igual, como os Negros da dita Guiné) são pardos quási brancos; e
estas são as gentes que habitam na terra do Brasil, de que já no
segundo capítulo do primeiro livro fizemos menção. E que algum
queira dizer que se muitas árvores nesta terra há, que tantas e mais, tão
espessas, há nesta parte ouriental daquém do ouceano de Guiné. E se
disserem que estes daquém são negros porque andam nus e os outros
são brancos porque andam vestidos, tanto privilégio deu a natureza a
uns como a outros, porque todos andam segundo nasceram; assi que
podemos dizer que o sol não faz mais empressão a uns que a outros. E
agora é pera saber se todos são da geração de Adão41.

Tanto os negros quanto os índios americanos esbarravam na questão primordial


da unidade fundamental do gênero humano. O problema apontado por Duarte Pacheco
demonstra que para além da questão geográfica, como se tentou convencionar, a
pergunta principal dizia respeito a serem ou não filhos de Adão42. Negros ou pardos,
aquelas gentes desafiavam esse preceito bíblico. As novas terras, ainda mais pelo seu
completo desconhecimento, geraram dúvidas a respeito da Sagrada Escritura. A
possibilidade de explicação, conforme analisa O’Gorman, foi reconhecê-las como uma
entidade separada e diferente do Orbis Terrarum, mas, que apesar disso, constituía a sua
“quarta parte”43.
O mapa-múndi do cartógrafo alemão Martin Waldseemüller de 150744 (Figura
11), um dos componentes do Vosgean Gymnasium de Saint-Diè-des-Vosges (na
França), ilustra as terras recentemente conhecidas já como a quarta parte do mundo,
sendo o primeiro documento cartográfico conhecido que ostenta o nome de América.
Ou seja, não só se reconhece as novas terras como uma entidade diferente e separada do
Orbis, mas também se atribui à referida entidade um nome próprio que a individualize.
Com influências de Ptolomeu, Waldseemüller, contudo, apresenta as novidades que o
antigo ainda não chegara a vislumbrar na sua obra A Geografia, baseando-se
especialmente em Américo Vespúcio (principalmente fonte de investigação do grupo
Saint-Diè).

41
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 161.
42
Séculos mais tarde, sobre o mesmo raciocínio um discípulo de Lineu diria: “na África encontram-se
negros e macacos antropóides; na América do Sul, sob o mesmo clima, ambos inexistem; não decorre daí
que os homens negros são fruto de um cruzamento entre macacos e homens brancos?” (POLIAKOV,
Léon. Op cit. p. 157).
43
Cf. O’GORMAN, Edmundo. Op cit. p.
44
A respeito do Universalis cosmographia secundum Ptholomaei traditionem et Americi Vespucii
aliorumque lustrationes, sabe-se que foram feitas mil cópias, mas apenas uma é conhecida e ela se
localiza na Biblioteca do Congresso em Washington, D.C..
42
Figura 11 – Universalis cosmographia... de Martin Waldseemüller,1507

Fonte: http://www.loc.gov

43
Nesse sentido, o Orbis Terrarum perdera os antigos limites insulares da arcaica
noção de mundo bondosamente destinado por Deus ao homem, para se converter em um
mundo aberto que o homem conquista e transforma45. Dessa forma, o Oceano passou a
ser incluído no Orbis e, portanto, cessou automaticamente de delimitar o mundo como
vinha sendo pensado. Assim, a separação que as suas águas impunham às porções de
terras não submersas não significava mais uma descontinuidade, mas um mero acidente
geográfico: “[...] por diferente que possa parecer a separação oceânica entre a América e
a antiga Ilha da Terra é da mesma natureza daquelas que individualizam
geograficamente a Europa, a Ásia e a África”46. Estas observações, analisadas por
O’Gorman e contidas na Cosmographiae Introductio47, mostram que o pressuposto
fundamental estava em considerar a totalidade da terra como um todo contínuo.
Enquanto terras contínuas, independemente do espaço de mar que existia entre elas,
puderam ser definidas com o novo conceito geográfico: “continentes” 48. Assim sendo,
o mundo já não se dividia mais em “partes”, mas em quatro continentes de uma mesma
terra.
As descobertas geográficas, portanto, revelaram que os mapas que os antigos
legaram ao século XVI estavam equivocados. Mas não era apenas uma questão de erro
empírico, conforme ressalta Klass Woortmann, foi uma ruptura face a um padrão de
autoridade: “a experiência da autoridade começa a ser substituída pela autoridade da
experiência”49. Essa transformação, além disso, se expressa no novo significado dos
mapas: se antes eram uma representação simbólica do mundo bíblico, agora passaram a
se tornar instrumentos práticos, destinados mais a descrever e medir o mundo. A
revolução na concepção do espaço, que agora é habitável, torna a Europa um continente
entre outros, existindo, assim, homens não-europeus. Começa-se a colocar o difícil
problema da alteridade e da unidade da humanidade que encontrou diferentes soluções
ao longo do Iluminismo e adiante.

45
O’GORMAN, Edmundo. Op cit. p.185.
46
Idem. p. 187.
47
Cosmographiae introductio cum quibusdam geometriae ac astronomiae principiis ad eam rem
necessariis. Insuper quatuor Americi Vespucii navigationes. Universalis Cosmographiae descriptio tam
in solido quam plano, eis etiam insertis, quae Ptholomaeo ignota a nuperis reperta sunt. Livro publicado
em 1507 pela Academia de Saint-Dié que inclui a Lettera de Américo Vespúcio em tradução latina, e a
carta geográfica destinada a ilustrá-lo, o mapa-múndi de Martin Waldeseermüller.
48
Atendo-se, conforme ressalta O ‘Gorman, à acepção original do termo que se refere à: contínuo,
imediatamente junto ou vizinho de alguma coisa (O’Gorman, Edmundo. Op cit. p.190).
49
WOORTMANN, Klass. Religião e ciência no Renascimento.Brasília: Série Antropologia, 1996. p. 33.
Disponível em: <http://www.dan.unb.br/br/serie-antropologica>. Acesso em 10 de dezembro de 2011.
44
Mas voltemos para os estranhos habitantes. Assim como os negros africanos, os
nativos da América foram considerados bestiais e selvagens. Conforme ressalta
Woortman, a projeção de um imaginário sobre o ameríndio – nu, descabelado, pagão e
possuidor de tecnologia rudimentar – foi também uma exotização do outro. Para a
América, assim como era para África ao sul do Saara – esta com menor freqüência –,
foram transplantadas imagens de Plínio, o velho, da Antiguidade, até as de Mandeville e
Isidoro de Sevilha50. Monstro e selvagem confundiam-se em um mesmo personagem
inventado, expressando tudo aquilo que a civilização negava. Ao mesmo tempo,
expressavam problemas teológicos: “se o homem havia sido criado à imagem e
semelhança de Deus, e se o europeu era o paradigma de tal criação, tudo que se afastava
do europeu, vale dizer, do cristão, era monstruoso, fosse em sentido físico ou moral”51.
Mas a selvageria tanto podia ser bestial quanto idílica. A não valorização do
outro, o paganismo e outras características levavam à infantilização do outro. Nesse
caso, o selvagem ameríndio era a inocência, o estágio primitivo do homem. Nesse
estágio primitivo, o selvagem viveria em um estado de pureza edênica, sem as manchas
do pecado original, sendo uma antítese do mundo da corte e da cidade. Dessa forma, por
vezes, os colonizadores concebiam os ameríndios como seres destituídos de intelecto e
impróprios para vida em sociedade. A nudez, os desregramentos sexuais, a inexistência
de um poder centralizador, o canibalismo e o desconhecimento de Deus os integravam a
uma natureza selvagem típica das feras animálias. Em outros momentos, a
solidariedade, o cuidado com as crianças, a ingenuidade e a inocência aproximavam-nos
ao reino da concórdia e do equilíbrio, conforme ressalta Ronald Raminelli52.
Para completar, os índios rapidamente foram considerados homens, veri
homines, pela Santa Sé. Se a escravidão era compatível com a sociedade pecadora,
como se poderia escravizar legitimamente esses inocentes homens? Não se pode negar
que a escravização de índios aconteceu, mas diferentemente da dos negros, muitos
tentaram protegê-los das forças exploradoras da colonização. Um amplo corpo de
legislação foi criado para isolar e proteger os nativos americanos.

50
WOORTMAN, Klass. O selvagem e o Novo Mundo: ameríndios, humanismo e escatologia. Brasília,
UnB.2004.p. 73.
51
WOORTMAN, Klass. Op cit. p. 74
52
RAMINELLI, Ronald. Imagens da colonização. A representação do índios de Caminha a Vieira. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1996. p. 41.
45
No entanto, a redução gradual da escravidão dos índios contribuiu para
aumentar a demanda de negros, que não eram protegidos por uma grande rede de
sanções imperiais. Alguns dos principais advogados dos índios, como o bispo Luanda,
eram os maiores defensores da escravidão negra53. De acordo com Brion Davis, essa
discriminação levou quase naturalmente a uma visão de que os negros tinham nascido
para serem escravos e eram inferiores aos índios tanto quanto aos brancos. Esboça-se,
assim, um contraste entre índios “brancos” e etíopes “negros”, sublinhada, como sugere
Poliakov já no primeiro livro que trata do “Novo Mundo” (De Orbe Novo de Pedro
d’Anghera,1516)54. Contudo, por que os índios foram idealizados ao passo que os
negros representavam o escravo natural de Aristóteles? Brion Davis justifica a diferença
pelo fato das sociedades africanas serem, segundo ele, muito mais populosas e
organizadas do que as indígenas. Havendo, assim, pouca razão para associar o africano
a uma natureza primitiva e não-corrompida. Além disso, o negro já havia sofrido, em
algumas regiões, influência da cultura muçulmana. Dessa forma, “[...] ele [o negro]
estava muito adiantado em matéria de cultura para ser considerado um inocente
selvagem sem terra e liberdade [...]”55. Se os negros foram considerados, de certa forma,
mais organizados socialmente e isso levou a sua escravização não saberíamos dizer (até
porque a escravidão já existia na África como analisaremos no próximo capítulo).
Afinal, eram julgados, muitas vezes, como gentios e bestas. Mas numa escala
hierárquica, certamente não ocupavam um patamar mais alto do que os índios.
A escravidão do negro parecia assim justificada, ele nascera para o trabalho.
Além disso, eram bárbaros e cometiam crimes enormes e detestáveis, a escravidão era
simplesmente a sua salvação. Parece ser com esse sentimento que Zurara razoa sobre a
piedade que há daquelas gentes, afinal eles mereciam ser escravos:
Eu te rogo que minhas lagrimas nem sejam dano da minha
consciencia, que nem por sua lei daquestes, mas sua humanidade
constrange a minha que chore piedosamente o seu padecimento. E se
as brutas animálias, com seu bestial sentir, por um natural instinto
conhecem os danos de suas semelhantes, que queres que faça esta
minha humanal natureza, vendo assim antes meus olhos aquesta
miseravel companha, lembrando-me de que são da geração dos filhos
de Adão!56

53
DAVIS, David Brion. Op cit. p. 199.
54
POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 110.
55
DAVIS, David Brion. Op cit. p. 209.
56
ZURARA, Gomes Eanes da. Op cit. p. 96-97
46
Esse interesse por escravos africanos ficou ressaltado, inclusive na cartografia.
O planisfério de Cantino57 (Figura 12 e 13), que data do ano de 1502, destaca, como se
fosse esse seu interesse principal a respeito da África, os lugares donde se resgatam
escravos e outras iguarias. Na legenda referente a “Serra Leoa” escreve: “em esta serra
leoa a muito ouro este eh o mais fino que ay em nenhua parte e traenlom pera portugall
e muitos escravos deles sam de jelof e delos de mandinga e de cape, e esteiras mui boas
e panos de algodã”. O “Castello da mina” está rodeado por negros e ao lado de casas
nativas e é acompanhado da seguinte legenda: “donde traçem ao muyto escelente
principe dom manuell Rey de portugall cada anno doze carauelas com ouro traze cada
caravera hua com outra XXV mjll pesos douro val cada peso qujnhentos rreaes e mais
traem muytos escavos e pimenta e outras cousas de muyto proueito”. A respeito do “rei
de Meni” (Benim) uma legenda diz que é mouro e que sua gente trata com os navios
portugueses que tiram dali escravos, ouro, papagaios e pimenta. Mais para o interior,
referem-se as terras do Rei de Organa e Rei da Núbia, que como já ressaltamos são
figuras típicas dos mapas portulanos. O interior do continente, entretanto, continua
desconhecido e apenas nomeado como “Terra do Preste Juam”.
O mapa de Cantino também apresenta a existência de um novo reino, o reino do
Congo (reino localizado a sudoeste da África) cujo representante era o Manicongo58
registrado pela legenda: “Aquj eh o Rey de magnicongo o quall Rey mando Rogar ao
Rey don Juã que De[us] tem que mandasse la freires porque elle se queria tornar cristam
e el Rey os mandou certos frades da hordem dos pedricadores e el Rey e la Reyna se
tor[nar]am cristaos e os muitos dos de seu Reyno daquj e este Rey trata cõ os da ilha de
santo thome e sam escravos por cousas de pouco preço”.

57
O planisfério de Cantino foi feito no início do ano de 1502 por um cartógrafo português a mando de
Alberto Cantino (séc. XV-séc. XVI) como encomenda para o duque de Lisboa. A encomenda fora
realizada com a exigência de que se desse conta das novidades, como ressalta A. Teixeira Mota, das
“novas terras” à Ocidente. MOTA, Avelino Teixeira da. A África no planisfério português anónimo
“Cantino” (1502). Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1977. p. 2).
58
De acordo com Alberto da Costa e Silva, por volta do século XIV, o chefe de um reino local, Antino-
Uene, decidiu se atribuir o título de manicongo para expressar-se como senhor de todo o Congo. Pelo
título, ele será senhor, por direitos de linhagem, de vários outros chefes, mas que seu reino fossem bem
pequena, restringindo a uma aldeia (Cf. SILVA, Alberto da Costa e. Op cit. p. 496-498).
47
Figura 12 – Planisférios de Cantino, 1502

Fonte: http://www.cedoc.mo.it/

48
Figura 13 –Detalhe África, Planisfério de Cantino

49
Cantino, além de já delimitar melhor as fronteiras africanas até o Cabo da Boa
Esperança devido à circunavegação de Bartolomeu Dias, também já inscreve as
novidades advindas com as expedições de Pedro Álvares Cabral. Nas “terras novas”
está desenhada uma paisagem composta por papagaios, árvores e rios.
A Terra Brasilis ganha maior ornamentação em mapas posteriores, como o
mapa-múndi do cartógrafo da escola francesa de Dieppe, Pierre Desceliers (1500?-
1558?)59, elaborado em 1550, onde o autor representa os hábitos e costumes dos
indígenas (Figura 14 e 15). Pode-se vislumbrar também cenas de combates entre índios
e europeus, de pesca e caça. A fauna é ornamentada com cobras, lagartos ou jacaré e
animais aquáticos dos mais diversos – representando o exotismo da natureza daquelas
terras. A América nesse mapa já está avançadamente inventada em relação ao de
Cantino. A África, por sua vez, apresenta-se com suas fronteiras bem delimitadas. Mas
quem vive nessa África já inventada geograficamente? Os mesmo habitantes que
outrora se encontravam nas regiões desconhecidas ou os contatos contribuíram no
avanço da percepção do outro?
Para começar, há dois textos no continente com os seguintes títulos: Affrique e
Ethiopie. No que se refere a Affrique, Desceliers escreve que a região mais próxima da
Europa é relativamente fértil e próspera, no entanto a maior parte do continente é
deserta por causa do clima e dos animais perigosos. O autor ainda destaca os diferentes
animais como leões, elefantes, camelos, leopardos, linces, dromedários e diversos
outros. A Ethiopie, por sua vez, é dividida em duas partes. Segundo o texto, a maior
parte dos habitantes possui faces de monstros. Os que vivem ao leste são cristãos e a
oeste são chamados de mouros. Em Meroe (antiga cidade às margens do rio Nilo, na
Núbia) se acha canela, pedras preciosas e minas de ouro. Verifica-se, portanto, uma
distinção entre África e Etiópia.

59
A vida de Pierre Desceliers é, em grande parte, desconhecida. Sabe-se apenas que foi ordenado padre e
examinou pilotos marítimos, autorizado a outorgar licenças em nome do rei da França. Existem, além
disseo, três mapas cuja autoria é dada a Desceliers: um de 1546 que se encontra na Biblioteca John
Rylands, Manchester; o de 1550 que está em Londres na British Library e é objeto de nossa análise e o de
1553 que foi destruído no incêndio de Dresden, Alemanha, em 1915.
50
Figura 14 – Mapa-múndi de Pierre Desceliers, 1550

Fonte: http://www.bbc.co.uk/bbcfour/beautyofmaps/historical_maps.shtml#/desceliers/intro/

51
Figura 15 – Detalhe África, Mapa de Pierre Desceliers

52
Outra diferenciação se faz através da inversão das imagens. A região norte, com
os reis da Mauritânia e da Núbia, se encontra invertida em relação aos demais desenhos
ao sul do Saara. Provavelmente, uma tentativa de diferenciá-los das terras dos negros. O
imperador cristão Preste João e seus súditos, embora se localize na região etíope,
também aparecem invertidos, ou seja, na mesma posição dos reis que se localizem no
norte africano.
Na terra dos negros, por sua vez, estão representados os reis de Organa, do
Congo e outro sem legenda. Acima do Manicongo, o cartográfo desenhou dois negros
sentados, um está segurando um machado e uma pepita de ouro. Ambos possuem os
lábios inferiores alargados, detalhe contado à Cadamosto em conversa com negros a
respeito dos povos com quem fazem a troca muda, espécie de comércio de sal onde não
se fala:
[...] eram homens muito pretos e bem formados de corpo, e maiores
um palmo do que eles; e têm o lábio inferior com mais de um
‘somesso’ de largo, o qual cai até o peito, grosso e vermelho,
mostrando pela parte de dentro deitar como que sangue; e o lábio de
cima tinham-no como pequeno [...]60

Próximo a uma das margens do rio Nilo há dois monstros, dentre eles um
Blêmio. Ao sul do continente se verifica ainda mais exemplares de seres fantásticos,
nesse caso são animais alados, com cabeça de uma espécie e corpo de outra. Se,
conforme analisamos anteriormente, muitos desses monstros e/ou seres fabulosos
serviam para habitar, no imaginário medieval, lugares desconhecidos sobressai a isso
que, apesar do continente delimitado geograficamente e dos avanços dos contatos, ainda
persistiam lugares comuns a respeito da África e de seus habitantes e desconhecimentos
com relação ao sul e ao interior africano.

IV. A reorganização das espécies


No racionalista século XVII, o clima mental havia evoluído de tal forma que a
teoria pré-adamita passou a ser aceita em vários países europeus. É nesse século que
começaram as discussões a respeito da categoria “raça” e sua hierarquização61.

60
CADAMOSTO, Luís. Op cit. p. 111.
61
Foi, contudo, no século XVIII que as discussões acaloradas se acirraram em torno do que
genericamente se denomina de poligenismo, que exibia como seu principal argumento a antiga teoria pré-
adamita. Nesse sentido, as diferenças entre os povos podia se justificar ao pertencimento a raças
completamente distintas, a maior parte delas sub-humanas, e em alguns casos, marcadas pela bestialidade.
53
Se as conquistas geram desde o fim do século XVII a idéia do
Progresso (que talvez não seja mais do que a inversão da idéia Cristã
de Queda), o contraste contém em seu germe a futura e persuasiva
argumentação dos racistas, já que é invencível a tentação de atribuir
aos homens brancos, portadores deste Progresso, e em que a Razão
triunfante elegeu domicílio, uma superioridade biocientífica
congênita62.

Em 1684, François Bernier publica um livro em que propõe a existência de


quatro raças humanas. Mas de fato, é com a famosa classificação de Lineu que nasce a
sistemática catalogação das espécies viventes. No entanto, vale ressaltar que mesmo na
época de Lineu, a palavra raça não tem um significado exato. Há quem use como
sinônimo de espécie, ou mesmo de nacionalidade, contudo a ideia de que existem
subespécies ou variedades geográficas já está presente e que, a partir de um determinado
momento, serão chamadas de raças63. Em meados do século XVII observamos alguns
mapas a respeito da África que hierarquizam os negros africanos nas franjas laterais.
Parece ser essa uma marca da família holandesa Blaeu inaugurada por Willem Blaeu
(1571-1638)64 e utilizada também por Frederik de Wit (1629-1706)65.
O interior do mapa é repleto de informações geográficas, ao passo que os
desenhos iconográficos se deslocaram para as laterais. Em ambos os casos as franjas
superiores figuram os principais centros urbanos na visão de seus autores. Quase todas
as cidades se localizam na África do Norte, com exceção de Moçambique e Forte de El
Mina presentes apenas no mapa de Blaeu, que eram, de todo modo, importantes
entrepostos comerciais de escravos (Figuras 16 e 17). Nas bordas laterais, entretanto,
estão representados alguns povos africanos da costa ocidental versus a oriental. Na
medida em que seguimos para o sul, os povos adotam a nudez, uma alegoria da típica
selvageria dos negros, reforçando a ideia de que o sul é território da selvageria. No alto
da hierarquia estão os povos da região norte como os marroquinos e os egípcios.

62
POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 120.
63
BARBUJANI, Guido. A invenção das raças. São Paulo: Contexto, 2007. p. 65.
64
Willem Janszoon Blaeu estudou matemática e astronomia e se dedicou à confecção de globos e mapas,
além de editar e publicar trabalhos de outros autores como Willerbrord Snell e Adriaan Metius. Seu
trabalho mais conhecido é o Altlas Maior de 1645 que contém o mapa aqui analisado.
65
Frederick de Wit nasceu em Gouda, uma das províncias da Holanda. Em meados do século XVII ele se
mudou para Amsterdã, onde abriu um escritório de impressão pelo qual ficou conhecido. Seu mapa-
múndi mais conhecido é Nova Orbis Tabula in Lucem Edita de 1665.
54
Figura 16 – Africae Nova Descriptio, Willem Blaeu, 1642

Fonte: http://www.raremaps.com/gallery/

55
Figura 17 – Nova Africa Descriptio. Mapa de Frederick de Wit, 1660

Fonte: http://www.mapsorama.com/frederik-de-wit-map-of-africa-in-17th-century/

56
Neste momento a África já estava geograficamente inventada. Sua forma
continental já estava praticamente traçada e reis nativos já não são mais a tônica do
momento, nem mesmo os monstros que agora só habitam os mares. Começa-se, então, a
distinguir os diferentes grupos étnicos e reinos africanos como Mandingas, Jalofos,
Benin e demais. As ambigüidades que permeavam o continente cederam lugar a povos
cuja “cultura”, se é que se pode considerá-los portadores de alguma cultura aos olhos
dos europeus, é atrasada e pobre. Esse pensamento, com respaldos nos estereótipos até
aqui analisados, manterá a África Negra e os africanos a-históricos por longos séculos.

57
Capítulo II
Cristãos, Mouros e Gentios: a experiência dos primeiros contatos

Em 1434, o navegador português Gil Eanes, a mando do Infante Dom


Henrique, cruza o temido Cabo Bojador cuja dificuldade de transpô-lo contribuiu com
antigos mitos de existência de monstros marinhos e demais histórias fantásticas. A
ultrapassagem do dito Cabo demonstrou, entretanto, a possibilidade de continuar a
viagem em mares nunca dantes navegáveis: “menosprezando todo perigo, [Gil Eanes]
dobrou o cabo [para] além, onde achou as coisas muito pelo contrário do que ele e os
outros até ali presumiram”66. O grande feito abriu, pois, aos cristãos novos mundos até
então ignorados. Mundos esses que abrigavam nativos dos mais distintos costumes e
animais das mais variadas espécies, os antípodas de tudo aquilo que era conhecido e
enquadrado pelo cristianismo, conforme discutimos no capítulo anterior. Das primeiras
viagens para além do Cabo nos restaram alguns documentos escritos que este capítulo
ora se ocupa de analisar.
Gomes Eanes de Zurara (ou Azurara) é o primeiro cronista, que se tem notícia,
a dar informações tanto do “atrevimento” de Gil Eanes quanto dos primeiros feitos
portugueses na costa Ocidental da África ao sul do Saara. Zurara nasceu nos idos de
1415 e 1420, filho do cônego das Sés de Coimbra e Évora. Cedo entrou para a ordem de
Cavalaria de Cristo, onde chegou a ter o grau de comendador de Alcains. Em 1454
substituiu Fernão Lopes nas funções de guarda-mor da Torre do Tombo, também foi
nomeado como bibliotecário da livraria real fundada por Afonso V e encarregado de
escrever várias crônicas dos feitos portugueses. A Crónica do Descobrimento e
Conquista da Guiné foi escrita em 1448 a pedido do então rei de Portugal para
presentear seu tio rei de Napóles. O manuscrito desapareceu se tendo noticias dele em
1837 quando foi encontrado na Biblioteca de Paris. Contudo, há uma cópia editada e
adaptada por Valentim Fernandes do início do século XV. Uma versão de 1841
transladada do manuscrito original se encontra na Biblioteca Nacional de Lisboa, na
Biblioteca Nacional de Madrid (séc. XVIII) e na Biblioteca de Munique (séc. XVII).

66
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 62
58
Décadas despois das experiências manuscritas por Zurara, Diogo Gomes,
também moço da câmara do Infante D. Henrique, contribui com a sua presença na
exploração inicial da costa africana. Pouco se sabe sobre a sua vida. Natural de Lagos, o
seu nascimento deve ter ocorrido por volta de 1425 e é certo que já era falecido no ano
de 1502, pois sua esposa registrou pagamento por sua alma neste ano. Das primeiras
viagens que efetuou, sabe-se que com Gil Eanes e Lançarote de Freitas participou na
expedição militar de 1445 à Ilha de Tider. Nomeado, entretanto, escrivão real em 1451,
prestou serviços tantos à Casa henriquina quanto à Coroa. Depois da viagem de 1456
em terras africanas foi recompensado com o cargo de Almoxarife da Vila de Sintra. Em
1460 realizou sua terceira viagem pela costa africana. Por estes tempos, estava bem
relacionado nos tratos do Reino e em 1464 apresenta-se como armador. Acumularia
também funções administrativas importantes como Juiz das Sisas de Vila de Colares
que D. João lhe confiou em 1482 e foi cavaleiro da Casa Real. Das duas viagens de
Diogo Gomes, 1456 e 1460, nos ficou um relato que nos chegou por interposta pessoa,
o que gerou discussões a respeito da autoria. As suas viagens acabaram lembradas e
fixadas em versão muito breve por Martinho da Boémia ou Martim Behaim67 (1459-
1507) com exata designação de De prima inventione Guynee. Este alemão, diretamente
interessado nos feitos portugueses, recolheu informações que circulavam em forma
escrita ou oral. Supõe-se que esse relato pode ter sido escrito com base nas narrativas
orais do próprio Diogo Gomes. O texto de Behaim acabou em mãos do impressor
Valentim Fernandes, sobre quem falaremos mais adiante, entre 1495 e 1508, que o
mandou, juntamente com outros relatos, para a Alemanha. A notícia de Behaim, inserta
por Valentim Fernandes, acabaria por ser traduzida, em versão completa, por Gabriel
Pereira em 1899 – versão utilizada por nós.
Quase que paralelamente às viagens de Diogo Gomes, o veneziano Luís de
Cadamosto ou Alvise de Ca da Mosto também se embrenhou em terras africanas. Ele
foi o responsável por fazer circular as informações acerca da natureza exuberantemente
verde e exótica, e principalmente dos estranhos68 costumes dos nativos das terras mais

67
Autor de um dos primeiros globos terrestres conhecidos que ele chamou de “Erdapfe”, mas que ficou
conhecido como o Globo de Behaim ou Globo de Nuremberga, sua cidade natal.
68
Freud, indo além das definições de unheimliche (traduzido comumente por estranho), considera que a
condição essencial para o surgimento de um senso do Estranho é a incerteza intelectual. O próprio termo
é para nós de todo sugestivo, o significado de heimliche (doméstico, familiar, confortável) se desenvolve
na direção da sua ambivalência, até que finalmente coincide com o seu oposto unheimliche (secreto,
oculto). Este último é, de um modo ou de outro, uma [sub]espécie de heimliche. FREUD, S. O estranho.
59
além do que Zurara e Diogo Gomes foram. O veneziano nasceu no ano de 1432.
Também de origem nobre, desde cedo navegava nas galeras do Mediterrâneo. Em uma
de suas navegações conheceu um enviado do infante D. Henrique cuja missão era
recrutar pessoas para expedições ao longo da costa da África. Cadamosto realizou duas
viagens a serviço do Infante, uma iniciada no ano 1455 e interrompida pela hostilidade
dos habitantes da foz do Gâmbia, e a segunda iniciou no ano de 1456 que visitou as
ilhas do arquipélago de Cabo Verde, das quais assumiu-se como descobridor, e voltou
novamente ao rio Gâmbia e rio Grande (Geba). O seu manuscrito é referente a essas
duas viagens e só foi escrito cerca de dez anos depois com o intuito de informar seus
feitos aos seus descendentes como ele mesmo sugere. É provável que Cadamosto
tivesse a intenção de deixar para a sua família uma narrativa que seria utilizada para
valorização social. São conhecidas algumas cópias manuscritas do texto de Cadamosto,
o que mostra o interesse pelas informações contidas no mesmo ainda antes do
desenvolvimento da imprensa. Por conta das cópias, supõe-se que a obra obteve uma
grande difusão pouco tempo depois de sua redação. Logo no início do ano de 1507
encontra-se o relato de Cadamosto incluído na coletânea Paesi nuovamente ritrovati et
Novo Mondo da Alberico Vesputio florentino intitulato. E em 1550 é inserida no Delle
navigazioni et viaggie de Ramusio.
Duarte Pacheco Pereira, por sua vez, dá informações da costa africana já com
maior presença portuguesa no Golfo da Guiné com a construção da fortaleza de São
Jorge da Mina (1482), cujo capitão por dois anos foi o próprio Duarte Pereira (nomeado
em 1519). Nascido por volta de 1460, oriundo de uma família nobre portuguesa, foi
cavaleiro da casa de D. João II. Segundo consta, para além de soldado e navegador, foi
também inventor do cosmógrafo. Faleceu no ano de 1533. Seu único trabalho
Esmeraldo de situ orbis escrito entre os anos de 1506 e 1508 é um relato das suas
viagens ao longo da costa ocidental africana dedicado a D. Manuel I. O manuscrito
original da obra perdeu-se, existindo hoje apenas duas cópias. A mais antiga, que data
da primeira metade do século XVIII se encontra na Biblioteca Municipal de Évora e a
outra da segunda metade do mesmo século que está na Biblioteca Nacional de Lisboa.
Por fim, temos o alemão da Morávia Valentim Fernandes que viajou para
Portugal em 1495 e ali se estabeleceu até a sua morte em 1508. Ele foi o encarregado de

In:Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund FREUD, vol. XVII. Rio de
Janeiro: Imago, 1996. p. 244.
60
divulgar os feitos portugueses em costas africanas para lá da Europa. Perfeitamente
adaptado a vida lusitana, foi, inclusive, nomeado em 1503 por D. Manuel I como
notário dos comerciantes alemães em Lisboa. Função que lhe deu prestígio junto ao
poder real. Valentim Fernandes era também importante impressor, talvez primeiro nesta
atividade em Portugal, e divulgador das novidades relativas aos descobrimentos
portugueses. Coube a ele a impressão de oito livros dos vinte e oito publicados antes de
1500 em Portugal. Além de publicar e traduzir manuscritos, Fernandes enviava
informações à Alemanha sobre as atividades náuticas portuguesas. Um de seus
destinatários conhecido era o Dr. Conrado Peutinguer, banqueiro e agente político de
Carlos V. As epístolas por ele enviadas foram reunidas em um volume que atualmente
se encontra em Munique, tendo sido posteriormente publicadas sobre o título
Manuscritos de Valentim Fernandes. A Coletânea contem a versão da Crónica da Guiné
de Zurara editada e adaptada pelo próprio Valentim Fernandes e o relato de Diogo
Gomes conforme dissemos. O Descripcã de Çepta por sua Costa de Mauritânia e
Ethiópia pellos nomes modernos proseguido as vezes algūas cousas do sartão da terra
firme também se encontra no Manuscrito, e não possui autoria o que sugere a muitos
que foi escrito por ele próprio. No entanto, não deixa de ser uma compilação de
informações presentes em outros relatos, como o do próprio Cadamosto a quem ele cita
no texto.

I. No limiar da salvação
Navegando rumo ao sul do Bojador, portanto, os cristãos se viram diante de fés
e povos desconhecidos. Esses contatos geraram um senso de missão em Portugal que
levou, segundo Stuart Schwartz, a uma visão providencialista do país na história e na
ordem divina: “aquele que levaria a cruz a novas terras e gentes”69. Visão essa que foi
apropriada e utilizada pela Coroa e pelas ordens missionárias.
Para completar, pensando em resolver a querela entre Estado e Igreja que
afligia a toda Europa, Portugal decidiu-se por estreitar seus vínculos com o Papado
através da Ordem de Cristo70. Toda parte espiritual das expedições ficavam a cargo da
Igreja, como nos conta Diogo Gomes: “[...]o infante Henrique herdou de ele [D.

69
SCHWARTZ, Stuart. Cada um na sua lei. Tolerância religiosa e salvação no mundo atlântico ibérico.
São Paulo: Companhia das Letras; Bauru: EDUSC, 2009. p. 149
70
Cf. CALDEIRA, Jorge. A nação mercantilista. Ensaios sobre o Brasil. São Paulo, Edições 34, 1999.
61
Fernando] muitos castellos e cidades, nas ilhas de Açores e da Madeira e tudo que lhe
pertencia quanto secular, porque no espiritual tudo cedeu à ordem de Cristo, a qual
ordem antes fôra de Templários”71. Consequentemente, os empreendimentos marítimos
tiveram, em primeira instância, um projeto bastante voltado, confirma a bula Romanus
Pontifex de Nicolau V (1455), para a evangelização e busca por reinos cristãos que
pudessem fazer frente ao domínio sarraceno, conforme ressaltado no trecho do
comerciante veneziano Luís de Cadamosto:
E desejando [senhor Infante D. Henrique] conhecer coisas novas,
também com o fim de saber da geração dos habitantes daqueles países,
por querer atacar os Mouros, fez aparelhar três das suas caravelas com
as coisas necessárias tanto em munição de armas como em outras
coisas de mantimentos72.

O cronista mor do reino, Gomes Eanes Zurara, também demonstra o caráter


evangelizador das expedições quando enumera as “cinco razões” que segundo ele
teriam o Infante Dom Henrique, irmão do rei de Portugal, para “mandar buscar” aquelas
terras da África até então desconhecidas:
1) [...] porque ele (Infante D. Henrique) tinha vontade de saber a terra
que ia além das ilhas Canárias e de um cabo que se chama Bojador,
porque até aquele tempo, nem por escritura, nem por memória de
nenhuns homens, nunca foi sabido determinadamente a qualidade da
terra que ia além do dito cabo.
2) E a segunda foi, porque considerou, que achando-se em aquelas
terras alguma povoação de cristãos, ou de alguns tais portos, em que
sem perigo pudesse navegar, que se poderiam para estes reinos trazer
muitas mercadorias, que se haveriam bons mercados [...]
3) A terceira razão foi, porque se dizia, que o poderio dos Mouros
daquela terra d’África era muito maior do que se comumente pensava,
e que não havia entre eles cristãos, nem outra alguma geração.E
porque todo sisudo, por natural prudência, é constrangido a querer
saber o poder de seu inimigo.
4)A quarta razão foi, porque de trinta e um anos que havia que
guerreava os Mouros, nunca achou rei cristão, nem senhor de fora
desta terra, que por amor de nosso senhor Jesus Cristo o quisesse na
dita guerra ajudar. Queria saber se se achariam em aquelas partes
alguns príncipes cristãos, em que a caridade e amor de Cristo fosse tão
esforçada, que o quisessem ajudar contra aqueles inimigos da fé.
5)A quinta razão, foi o grande desejo que havia de acrescentar em a
santa fé de nosso senhor Jesus Cristo, e trazer a ela todas as almas que
se quisessem salvar, conhecendo que todo o mistério da encarnação,
morte e paixão do nosso senhor Jesus Cristo, foi obrado a este fim,

71
GOMES, Diogo. As relações do descobrimento da Guiné e das Ilhas dos Açores, Madeira e Cabo
Verde. Versão do latim por Gabriel Pereira. Boletim da Sociedade de Geografia, 1899. p. 13.
72
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 85
62
scilicet, por salvação das almas perdidas, as quais o dito senhor queria
por seus trabalhos e despesas, trazer ao verdadeiro caminho73

Mesmo a partir do reinado de d. João II, período em que se começou a


transferência de poderes para a Coroa, preservou-se o domínio espiritual à Ordem,
permanecendo, assim, as demandas missionárias das expedições74. No Esmeraldo, já no
século XVI, Duarte também ressalta o plano salvítico da empreitada:
[...] aqueles que dantes não conheciam a fé de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e eram perdidos de corpo e de alma, agora, por nossa
conversação, a conhecem e estão em auto pera se salvarem, como de
feito muitos destes Etiópios que são trazidos a estes Reinos, são feitos
cristãos, recebendo a água do Santo Batismo, por o qual sua salvação
há de ser certa75.

Dessa forma, o desejo da Igreja de salvar as almas aliado ao anseio de fazer


frente ao poderio muçulmano, e, claro, a busca por comércio e metais preciosos por
parte da Coroa – que analisaremos melhor adiante - serviram igualmente de justificativa
para o avanço imperial de Portugal e também de Castela76. Não se pode, portanto,
desvincular dessa literatura inicial um sentimento missionário que muito influenciou as
explorações de terras ignotas e os lugares comuns que permearam as imagens
inventadas por esses textos.
Como temos ressaltado até aqui, o encontro com as gentes subsaarianas
colocou em cheque a máxima cristã do Antigo Testamento - a unidade fundamental do
gênero humano – porque,
[...] depois do universal dilúvio e total destruição, do qual, por divino
privilégio, o santo Noé e seus filhos escaparam, sendo a terra
descoberta das áuguas e elas recolhidas em seu lugar, por eles e sua
geração foi possuído todo o universo; e por esta causa, se diz que
Sem, seu primogênito, habitou a parte oriental, Cão a parte do meio
dia, e Jafet habitou a parte setentrional77.

O contato com nativos tão distintos do padrão cristão que povoavam terras que
antes julgava-se impossível de serem habitadas caso existissem – pois, nem mesmo sua
extensão era conhecida – confluíam para a pergunta levantada por Duarte Pereira: “E

73
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 56-57
74
CALDEIRA, Jorge. Op cit.
75
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit.. p. 168.
76
SCHWARTZ, Stuart. Op cit. p. 163
77
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 22.
63
agora é pera saber se todos são da geração de Adão”78. A questão sugerida pelo
cosmógrafo, contudo, era fruto da problemática a respeito dos preceitos bíblicos. Não
sendo filhos de Adão, os habitantes dessas terras seriam seres de outra espécie que o
Livro Sagrado não dava conta. A validade do Antigo Testamento dificilmente seria
contestada, o que gerava uma problemática em torna de como definir a natureza daquela
gente não raro considerada besta em forma humana e selvagem no trato.
Os lugares comuns que permeavam os textos escritos e iconográficos rodeavam
a noção que ia se construindo do próprio europeu em contraposição ao não-europeu e
vice-versa79. E a primeira e mais óbvia distinção se dava na cor da pele. Negro foi, além
da cor da pele, o termo empregado para denominar e diferenciar aquelas gentes do
europeu. Antes de falar de africano, fala-se de negro. Havia muitas variações da cor da
pele ao longo da África subsaariana, mas elas foram ignoradas e generalizadas pelo
termo “negro” e suas implicações.
[...]Ca entre eles havia alguns de razoada brancura formosos e e
apostos; outros menos brancos, que queriam semelhar pardos; outros
tão negros como etiópios, tão desafeiçoados, assim nas caras como
nos corpos, que quase parecia, aos homens que os esguardavam, que
viam a as imagens do hemisfério mais baixo80.

O enegrecimento aparece associado, não de forma unívoca, a diversas


simbologias em várias narrativas e iconografias, inclusive ao demônio como fez Zurara.
Essa relação já era difundida especialmente pelas obras doutrinárias da Igreja. A Visão
de Túndalo81, amplamente divulgada na Europa trado medieval, narra a história de um
cavaleiro que morre por três dias, período em que faz uma viagem rumo ao inferno para
redenção de seus pecados – apegos mundanos e luxúria especialmente. A descrição do
último estágio da viagem, o Inferno Inferior, tem-se que “[...] aqueles demônios eram
negros como carvões, e os olhos haviam como candeias acesas, e os dentes haviam
brancos assim como a neve e traziam rabos, como escorpiões [...]”82. De acordo com

78
Ibidem. p. 161.
79
O espanto e a maravilha com que os portugueses entraram na África dos negros foram também reações
dos povos de cá. Muito embora não se tenha, para nosso pesar, descrições redigidas pelos próprios
Jalofos, Madingas e demais, os viajantes não deixaram de notar que eles viam-nos “[...] como uma
maravilha, e parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar, nunca dantes visto: e não
menos se espantavam com o meu traje e da minha brancura” (CADAMOSTO, Luis. Op. Cit. p. 141)
80
ZURARA, Gomes Eanes da. Op. cit. p. 97
81
Relato cisterciense que se espalhou por toda a Europa e deu lugar a versões nas línguas vulgares, que
remontam aos séculos XIII a XVI .
82
PEREIRA F. M. Esteves (Ed.). Visões de Túndalo. In: Revista Lusitana, III, 1895. p. 110. Disponível
em: <http://cvc.instituto-camoes.pt/bdc> Acesso em 20 de dezembro de 2011.
64
José da Silva Horta, o diabo comumente intervém, na literatura medieval, sob a forma
animalizada como se apresenta em Visões de Túndalo, mas também sob a forma
humana como no Espelho dos Reis de Álvaro Pais, no qual ele possui a aparência de
uma criança negra: “E de S. Martinho se lê que o diabo amiúde lhe apareceu em forma
humana. Semelhantemente se lê de S. Antonio a quem apareceu na forma de um menino
negro e na forma de diversas alimárias”83. Em ambos os casos a cor negra é um ponto a
se destacar. Também nas obras de artes, como o Juízo Final de Fra Angélico e a
Tentação de Cristo de Duccio di Buoninsegna (c.1225 -1319), os demônios também são
frequentemente representados negros.
Associada a distinta cor, estavam também outras disposições que serviram para
aproximar o “negro” de um estado bestial e selvagem. Em todos os textos a nudez dos
nativos aparece destacada: “Tôdolos os negros dessa andam nus senão quando cobrem
as partes inferiores e membro de geração com um pano de algodão”84. Também nos
mapas se via representada a nudez – conforme o detalhe do Planisfério de Cantino
(Figura 18) - como uma característica dos negros africanos, embora os reis fossem
representados com vestimentas, o que foi também observado por Cadamosto: “Quanto
ao vestir desta gente, quase todos andam nus continuamente salvo que trazem um coiro
de cabra posto em forma de Braga com que cobrem as vergonhas; mas os senhores e
aqueles que podem alguma coisa vestem camisa de pano de algodão”85
A nudez aparece associada a uma falta de pudores que somada ao fato de não
serem monogâmicos levam-nos ao grave pecado, talvez o maior deles aos olhos da
Igreja: a luxúria. Tais costumes contrastam com a moralidade baseada nos códigos de
conduta cristãos e os aproxima a um estado animal sem regras e moral:
São esses negros e negras muito luxuriosos, porque uma das coisas
principais que, instantemente me pedia este Budomel era, estando
informado de que nós, Cristãos, sabíamos fazer muitas coisas, se, por
ventura não poderia ensinar-lhes a maneira dele poder contentar
muitas mulheres [...]86

83
MENESES, Miguel P. de (Ed. e trad.). Espelho dos Reis. Apud HORTA, José da Silva. A imagem do
africano pelos portugueses antes dos contactos. In: FERRONHA, Antônio Luis (org.). O Confronto do
olhar, O encontro entre os povos na época das navegações portugeuses, séculos XV e XVI. Lisboa:
Caminho, 1991. p. 45
84
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 118.
85
CADAMOSTO, Luís. Op cit. p. 120.
86
Ibidem. p.129.
65
Figura 18 – Detalhe da nudez dos habitantes da Costa da Mina, Planisfério de
Cantino

Fonte: ver figura 12

66
Isso sem contar a ausência de “moralidade” do próprio “rei”, para usar o termo
empregado no texto, a quem era lícito “[...] dormir tanto com as servas da mulher como
com as próprias mulheres”87. Essa figura emblemática da política europeia, o rei, foi
transferida para a organização política dos nativos, não sem antes perceber diversas
diferenças: “E deveis saber que este rei é senhor não é nada semelhante aos nossos reis
da Cristandade: porque o rei é senhor de gente selvagem e muito pobre; e, na verdade,
não há no país nenhuma cidade nem lugar murado, senão aldeias e casas de palhas
[...]”88. O mesmo se percebe no caso do rei da geração dos Bolões que, segundo
Fernandes, “não tem rendas dos seus súditos nenhuma nem tributos salvo se ele quer
roçar e semear ou colher suas novidades então todos da sua justiça lhe servem ao dito
trabalho de graça”89
Pouco comum é, curiosamente, a representação iconográfica da antropofagia
africana. Diferentemente do caso americano, no qual pululam xilogravuras a respeito de
tal prática, para o africano temos raros exemplares. Contudo, é bem comum na literatura
a sua descrição: “E algumas vezes se acontece estes negros comerem outros homens,
ainda que isto não usam tão comumente como se usa em outras partes desta Etiópia”90.
Desde Heródoto a antropofagia estava relacionada aos povos chamados bárbaros e a sua
relação com o aspecto animalesco dos seus praticantes remonta a Plínio, História
Natural, na sua descrição de entes bizarros na África91.
Uma pitada de mitologia grega também se fez presente nas penas desses
narradores. O cosmógrafo Duarte Pacheco tão logo entrara na região de Serra Leoa, se
deparou com homens selvagens a quem os Antigos chamavam Sátiros - uma entidade
mitológica grega metade homem e metade bode – “[...] cobertos de um cabelo ou sedas
quási tão ásperas como de porco; e estes parecem criatura humana e usam o coito com
suas mulheres como nós usamos com as nossas; e em vez de falarem, gritam quando lhe
fazem mal”92. E as semelhanças com animais não param por aí, assim como a imagem
do rei com cabeça de cão presente no mapa Catalão Estense (ver Figura 10), o
cosmógrafo também nos conta a respeito dos moradores da província de Toom que

87
Idem.
88
Ibidem. p.117
89
FERNANDES, Valentim. Op cit. p. 89
90
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 117.
91
FONSECA, Pedro. Primeiros encontros com a antropofagia ameríndia: de Colombo a Pigafetta. In:
Revista Iberoamericana,vol. LXI, 1995. Disponível em: <http://revista-iberoamericana.pitt.edu > .
Acesso em 05 de janeiro de 2012.
92
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 118.
67
tinha o “[...] rosto e dente como cães, e rabo como de cão, e são negros e de esquiva
conversão, que não querem ver outros homens”93. Mas vale ressaltar que nem sempre as
descrições relativas à aparência do negro se davam pelas posições negativas, embora
estas sejam mais presentes. Em alguns momentos é ressaltado que, ao contrário dos
“pardos e enxutos do norte”, os negros são “bem dispostos de corpos”94.
A habitação, ou a falta dela, também chamava a atenção dos viajantes. Em
contraposição às cidades muradas e protegidas da Europa, as cavernas, aldeias e casas
de palhas eram indicativos de “gente selvagem e muito pobre”95. Estranho de se notar,
ressalta Zurara, é que:
na terra dos Negros não há outro lugar cercado se não a que eles
chamam Oadem, nem povoação senão algumas que estão à beira
do mar, de casas de palha, as quais forma despovoadas por os
que lá foram em os navios desta terra: bem é que toda a terra
geralmente é povoada, mas a sua vida não é senão em tendas e
alquitões [...]96

As aldeias nativas também apareciam representadas na cartografia. No detalhe


destacado anteriormente do Planisfério de Cantino, elas aparecem rodeando o Castelo
de são Jorge da Mina. Pierre Desceliers também as retrata em diversas regiões: no Golfo
da Guiné próximo à imagem dos nativos e seu governante, ou nas terras mais centrais
rodeando o rio Nilo (Figura 15). Já as tendas são mais presentes nos mapas da escola de
Maiorca como os Atlas Catalão e Catalão-Estense (Figuras 7 e 9), muito provavelmente
por conta do poderio islâmico que é ressaltado.
A dúvida, portanto, levantada por Duarte Pacheco não estava em desacordo
com as informações e observações da selvageria e bestialidade que tanto parecia
distanciar os negros africanos dos brancos cristãos aos olhos destes. Na Idade Média, os
selvagens se contrapunham aos civilizados por viverem sem controle sexual, sem o
ordenamento do Estado, sem a salvação prometida pela Igreja. Muitas vezes, como
ressalta Ronald Raminelli, foram confundidos com os agentes do demônio. Nada
diferente do que tem se atribuído aos nativos subsaarianos. Mas não considerá-los filhos
de Adão iria contra a Sagrada Escritura e ao proselitismo cristão. Deste modo, o mais
repugnante dos homens, seja bárbaro, pagão ou herético, poderia se converter à

93
Ibidem. p. 107.
94
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 115
95
Ibidem. p. 117.
96
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 204
68
verdadeira fé. Até mesmo os seres monstruosos e selvagens, conforme defendeu Santo
Agostinho, teriam a capacidade de entender os evangelhos e se converter, já que a
diferença entre estes e os pagãos seria apenas em grau e não em espécie. Outros
pensadores medievais, entretanto, optaram por ir de encontro à Sagrada Escritura e
enfatizar a diferença entre as almas97. Nessa perspectiva, os selvagens eram seres com
alma de animal, homens degenerados e incapazes de receber a salvação divina.
A rigidez do mundo cristão, contudo, não permitia pensar uma continuidade
entre o animal e o humano. No entanto, o homem selvagem reuniria ambas as esferas,
sendo justamente uma mediação entre esses dois pólos incompatíveis. A sua existência,
portanto, não necessariamente precisava ser vista como antagônica aos preceitos
bíblicos e as gentes africanas poderiam, sim, fazer parte do reino de Deus. Inclusive, o
primitivismo, como veremos, foi muitas vezes visto como uma facilidade à conversão.
Sem fugir, destarte, da narrativa bíblica sobre a divisão do mundo, passou-se a
divulgar, como podemos notar já nos mapas T.O., que os habitantes da África
descenderiam de Adão pela linhagem de Cam, que como ressalta Duarte Pacheco,
habitou a parte do meio dia. E como herdeiros de tal filho de Noé, estariam destinados à
eterna maldição rogada pelo pai: “[...]depois do dilúvio lançou Noé sobre seu filho
Cam, pela qual maldisse, que a sua geração fosse sujeita a todalas outras gerações do
mundo, da qual estes descendem [...]”98. Assim, eles descenderiam “[...] da geração dos
filhos de Adão!”99, mas carregariam a eterna maldição rogada por Noé e seriam, por
vontade de Deus, tão bestiais:
[...] vivem nos ermos, afastados de toda conversão, os quais
porque não perfeitamente o uso da razão, vivem assim como
bestas, semelhantes a estes que depois do departimento das
linguagens, que por vontade de nosso Senhor Deus se fez a
Torre de Babel espargendo-se pelo mundo100.

Dessa forma, mesmo selvagens e bestiais, os negros ainda poderiam receber o


reino de Deus através da conversão. Para completar, a Etiópia, ao contrário da
América101, não estava de toda desfamiliarizada com a cristandade, pois já conhecera,

97
RAMINELLI, Ronald. Op cit. p. 35-26.
98
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 85.
99
Ibidem. p. 121-122.
100
Ibidem. P. 117.
101
Para muitos cristãos da época, conforme analisa Raminelli, o Criado permitiu o abandono do novo
continente em prol da Europa, Ásia e África, onde criou o homem, formou o Paraíso e enviou os
69
em um passado distante, a palavra do evangelho através dos Apóstolos, conforme relata
o Duarte Pacheco: “[...] a doutrina de Nosso Senhor, que pelos Apóstolos foi pregada
pera salvação universal do mundo, também nestas Etiópias se perdeu”102. Na própria
Bíblia, no salmo de Davi, já se há dito que a todos os cantos da terra se fez conhecer a
Glória de Deus: “Não há linguagem nem idioma,/ em que não sejam entendidas as suas
vozes. O seu som estendeu-se por toda a terra,/ e suas palavras até as extremidades do
mundo”103. Assim, além da necessidade de conversão daquelas gentes, era quase que
uma ação ordenada por Deus que se reascendesse a palavra que ali fora perdida já que
as almas daquelas gentes clamam por salvação: “Ouço a preces das almas inocentes
daquelas bárbaras nações, em número quase infinito, cuja antiga geração desde o
começo do mundo nunca viu luz divinal”104.

II. Entre Cristo e Mafamede


Navegando rumo ao sul do cabo Bojador a primeira parada, contudo, não
foram as férteis e povoadas terras dos negros. Antes, porém, os viajantes nos contam
das terras quase desérticas e de muito pouca povoação. Por lá “[...] andam alguns
homens selvagens e nus que se mantém de gazelas que tomam em laços [...] falam a
língua dos Azenegues e adoram a burla da seita de Mafoma”105. Maravilhosa coisa
parece, portanto, que como uma fronteira de dois mundos, um rio possa separar duas
Áfricas tão distintas: uma de habitantes negríssimos, grandes e gordos de tão bem
constituídos e com uma natureza exuberantemente verde de enormes árvores e diversas
espécies desconhecidas dos cristãos; a outra, dos pequenos e enxutos azenegues, com
terras áridas e secas106
O rio Senegal é, nesse sentido, um limite que divide as duas distintas terras: a
“terra dos mouros” e a “terra dos negros”. Dos seus habitantes, aqueles situados fora do
Cristianismo, Judaísmo ou Islamismo eram integrados na categoria de gentios.
Normalmente o negro era identificado como tal, embora muitas vezes fosse islamizado
– o que, como veremos nesse item, não impedia de serem considerados gentios. Esse

patriarcas. Em conseqüência, “a América permaneceu, até a chegada dos primeiros enviados da Igreja,
sem a palavra revelada, sem luz, sem fé, sem salvação”(RAMINELLI, Ronald. Op cit. p. 24).
102
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 79.
103
Salmos 18; 4-8.
104
ZURARA, Gomes Eanes da. Op cit. p. 39.
105
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 90.
106
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 115
70
cenário completa a formação da tríade – cristãos, mouros e gentios – que permitiu
posicionamentos dos cristãos em relação à África subsaariana. Não é de se admirar, que
a principal base do relacionamento diádico tenha se dado no campo religioso, muito
embora a diversidade religiosa africana não tenha sido compreendida como tal.
O Islamismo aqui aparece, como já apresentamos, como uma razão para o
cruzamento do dito Cabo. Os viajantes vinham de uma época de forte influência da lei,
cultura e comércio islâmico na Península Ibérica. Muçulmanos, cristãos e judeus
viveram juntos em uma coexistência não muito fácil, o que criou condições para
cruzamentos culturais e para as hostilidades recorrentes. Com a expansão do poderio
otomano na África do Norte no século XV, analisa Stuart Schwartz, intensificou-se o
problema dos cristãos prisioneiros dos muçulmanos e vice-versa. Por conta disso,
muitos cativos optaram por se converter para fugir dos maus tratos, ganhar maior
liberdade ou mesmo por convicção facilitada pela crença de que “cada qual pode se
salvar em sua lei”107. Uma posição rara entre os viajantes, porém parecida com a que
narra Cadamosto acerca do que disseram os africanos Jalofos islamizados:
[...] agradando-lhes muito os nossos costumes e vendo que ainda as
nossas riquezas e o nosso engenho em todas as coisas, em relação a
eles, dizem que o deus que nos deu tantas boas coisas mostra sinais de
grande amor para conosco, o que não podia ser se não nos tivesse
dado boas leis; mas que, não obstante, também a sua é lei de Deus, e
que nela se podem salvar tanto como nós na nossa [...]108.

Muitos cristãos e muçulmanos conversos acabaram passando por experiências


que nutriam crenças que tornavam atraentes o relativismo ou o universalismo. Ideias
essas compartilhadas não só por tais grupos minoritários, outros cristãos-velhos também
delas comungavam, mas ao mesmo tempo reascendiam sentimentos de intolerância por
parte tanto do Estado quanto das demais pessoas109.
A preocupação constante da Igreja e do Estado durante grande parte desse
período foi definir os não católicos ou os falsos católicos como indivíduos não só
condenados teologicamente, mas também perigosos politicamente – o que criou uma
larga base de suspeita, rejeição e aversão a esses grupos110. O mundo ibérico tinha uma
identidade católica de raízes profundas e procurou fortalecer a fé por meio da repressão.

107
Segundo Schwartz, essa frase aparecia com freqüência nos depoimentos aos inquisidores
(SCHWARTZ, Stuart. Op cit. p. 117).
108
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 119.
109
SCHWARTZ, Stuart. Op cit. p.120 .
110
Ibidem. p. 126.
71
Assim, as tendências contraditórias de condenação e admiração, ou de medo e atração,
permearam durante muito tempo as relações entre os seguidores das três leis, incluindo
o Judaísmo. Mas, a intensificação dos conflitos políticos e religiosos entre elas, após o
século XIV, aumentou também a imagem negativa dos povos e culturas de outros
credos111. E foi nesse cenário que se deu a expansão ao sul do Saara.
Os muçulmanos, no período em questão, já eram senhores do Magrebe112 e
pouco a pouco o norte africano foi se convertendo no motor de todo o Mediterrâneo,
como analisa Fernando Braudel113. Abastecidos com o ouro em pó que chegava do
Sudão Ocidental (ou Bilad al-Sudan como chamavam os árabes)114 já antes do século X,
muitas cidades como Argel e Orã nasciam como novos grandes centros e muitos
Estados na curva do Níger se formaram. Além disso, diversos reinos menores no litoral
da Alta Guiné se desenvolveram em função desse comércio de ouro e de outras
mercadorias, como os grandes impérios da savana interior (Figura 19). Dessa forma,
com a ajuda do ouro e do comércio de escravos, os muçulmanos alcançaram pontos
muito avançados ao sul da Saara antes que os próprios cristãos pudessem estabelecer a
travessia pelo Cabo Bojador. O trajeto do ouro é exemplificado, inclusive, por
Cadamosto:
E este ouro que chega a Meli deste modo, reparte-se depois em três
partes: a primeira parte vai com a caravana que segue o caminho de
Meli para um lugar que se chama Chochia, que é o caminho que se
dirige para Soria; e a segunda e terceira partes vêm, com uma
caravana de Meli para Tambuctu; e aí dividem-no. E uma parte vai
para Toet e daquele lugar se espalha, contra Tunes da Berberia, por

111
Ibidem. p. 127
112
Pelo continente como um todo, antes de chegar à oeste, o Islã expandiu-se através de dois caminhos
distintos: o primeiro pelo oriente e o segundo pelo norte. Nessas duas entradas, ele percorreu espaços
vazios através das águas do Oceano Índico e das areias do Saara. O Islã na costa Oriental, entretanto,
permaneceu, durante séculos, isolado na estreita faixa costeira, e o processo de islamização do interior só
foi acelerado no século XIX, quando os muçulmanos da costa aventuraram-se na hinterlândia em busca
de marfim e escravos. Ao passo que, do Egito, ele fluiu pelo Mar Vermelho e pela área costeira da África
Oriental, subindo o Nilo em direção ao Sudão e através do deserto em direção ao Magrebe. No século
XII, os vestígios da população cristã que certa vez ocupou o norte da África desapareceram. Pelo século
XV, os cristãos coptas do Egito foram reduzidos a menos da metade da sua população e os cristãos núbios
– que resistiram à expansão por seis séculos – perderam progressivamente influência nos séculos XII e
XIV. Apenas no Chifre da África que a disputa entre Islã e Cristandade permaneceu indefinida. A Etiópia,
em contrapartida, permaneceu um Estado cristão, mas tão logo as comunidades islâmicas cresceram,
colocaram em xeque a hegemonia da Etiópia cristã. (CAIRUS, José Antônio Teófilo. Jihad, Cativeiro e
Redenção: Escravidão, resistência e irmandade, Sudão Central e Bahia (1835). Rio de Janeiro: UFRJ,
2002. 233 p. (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. p. 98).
113
BRAUDEL, Fernand. El Mediterraneo y el Mundo Mediterraneo em la epoca de Felipe II. Tomo I.
México, Fondo de Cultura Economica, 1987. p. 619.
114
Antes do ouro e prata da América, o Mediterrâneo encontrou nessas paragens os metais preciosos
indispensáveis para o seu comércio.
72
toda a costa de cima; e a outra parte vem para Odem, lugar já
nomeado; e ali se derrama para Orão e One, lugares da Berberia, para
dentro do estreito de Gibraltar, e por Fez e Marrocos e Arzila, e por
Safim e por Messa, lugares da Berberia fora do Estreito. E desdes
lugares compramo-lo nós, Cristãos, aos Mouros pelas diversas
mercadorias que lhe damos115.

Entorpecidos no Oriente com a expansão turca, os mercadores cristãos


encontraram no Sudão a compensação para as suas dificuldades. Mas até onde iria o
poderio dos povos do norte africano? A travessia pelo deserto se fazia impraticável aos
europeus. Além de dominado pelos mercadores muçulmanos, o clima desértico somado
ao desconhecimento não eram favoráveis aos portugueses. A opção seria mesmo por
mar. Restava, portanto, saber as extensões das terras ao sul. Se os metais preciosos eram
o motor do comércio mediterrânico, também não faltavam histórias de grandes e ricos
imperadores - como o caso do famoso Mansa Musa de Mali, cuja peregrinação à Meca
rendeu muita informação a respeito da riqueza de ouro na sua região - que atraíam a
cobiça dos europeus.
Assim, antes mesmo que os ibéricos pudessem levar a sua verdadeira fé em
busca de metais preciosos ou buscar metais preciosos em nome da verdadeira fé, a
África ao sul do Saara já vinha sendo inventada por outros mediadores que contribuíram
não só por desenhar uma África islâmica como também por mediar a sua relação com os
europeus. As primeiras informações e contatos que estes travaram foram com os
mercadores islâmicos do Magrebe e os nômades berberes. Foi através desses
mercadores que se realizaram as intermediações comerciais:
As gentes são maometanas e grandes inimigos dos Cristãos
extraordinariamente, e não estão nunca fixados, e andam sempre
vagueando por aquele deserto. E são homens que vão sempre às terras
dos negros, e também vêm a estas nossas Berberias de cá. E são em
grande número. E têm grande quantidade de camelos, e com eles
conduzem os objetos de cobre da Berberia, e pratas e outras coisas a
Tambucto e às outras terras dos sobreditos negros, e de lá trazem ouro
e malagueta que conduzem para cá116

115
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 112.
116
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 102-103.
73
Figura 19 – O Mediterrâneo e a África saariana. As caravanas.

Fonte: CHAUNU, Pierre. Expansão europeia do século XIII ao XV. São Paulo: Livraria Pioneira
Editora, 1978

74
Esses intermediários, além disso, contribuíram principalmente para a expansão
do Islã em terras negras, já constatava Valentim Fernandes: “Há muito nesta terra que
tem seita de Mafoma e assim andam muitos bisserijis que são clérigos mouros por esta
terra que ensinam sua fé a esta gente”117. Eles acabaram por mediar as influências da
religião entre o Magrebe e o Sudão Ocidental. As tribos berberes ocuparam as duas
franjas do Saara, no limite entre a “África branca” e a “África negra”. Ao longo dessa
linha divisória foi criado o terminal de comércio transaariano que atualmente corta os
países africanos do Sahel: Senegal, Mali, Níger, Chad e o Sudão118. A conversão, nesse
sentido, tornou-se condição para os que desejavam participar dessas redes comerciais e
foi conduzida por religiosos que fizeram os primeiros contatos com os governantes
locais. Esses governantes foram os primeiros receptores da religião e por isso era tão
necessária a centralização e organização do Estado no processo de islamização, embora
o Islã também tenha se expandido em sociedades descentralizadas119. A lei islâmica
(shari’a), dessa forma, forneceu um sistema legal que contribuiu para criar uma rede de
confiança dando melhores contornos ao comércio de longa distância120.
O Islã, portanto, expandiu pela África Ocidental121 mediado por esses
mercadores que comerciavam com as populações para além do Saara e, ao contrário da
parte oriental, rapidamente ele adentrou a hinterlândia. A expansão ao sul e em direção
ao interior foi, em contrapartida, facilitada pelo tráfico de escravos e movimentos
populacionais, conforme ressalta I. M. Lewis122. Não parece ter sido antes do século XI
que as dinastias ocidentais da África subsaariana adotaram o Islã. Aos Ibadis, subseita
123
de Khawarij , coube o mérito de terem sido os primeiros a iniciarem os povos
sudaneses. Contudo, a expansão dos Almorávidas colocou fim na crescente influência
do Ibadis e consolidou o Islã malikita nessas paragens.

117
FERNANDES, Valentim. Op cit. p. 78
118
CAIRUS, José Antônio Teófilo. Op cit. p.101.
119
Ver LEWIS, I. M. (Ed.). Islam In Tropical Africa. London: Indiana University Press. p. 32-35
120
CAIRUS, José Antônio Teófilo. Op cit. p. 101.
121
De acordo com I.M. Lewis, a expansão do Islã pela África Tropical, como ele prefere chamar, se deu
de formar diversas em cada parte. Por isso, nos concentraremos aqui na região Ocidental sobre a qual os
viajantes narram.
122
LEWIS, I.M. Regional Review of the distribution of Islam. In: LEWIS, I. M. (Ed.). Op cit. p. 15.
123
Khawarij é um ramo do Islã formado no cisma do século VII sobre quem deveria suceder Uthman no
comando da religião: Ali ibn Abi Talib genro e primo de Maomé ou Muawiyah, governador de Damasco
e primo do último califa. O kharidjismo (cujas principais formas são ibadismo e sufismo)expandiu‑se
essencialmente em meio as populações berberes das regiões desérticas, encontradas da Tripolitânia, ao
Leste, até o Sul do Marrocos, a Oeste, passando pelo Sul de Ifrīkiya, influenciando especialmente os
berberes da grande família zanāta (Cf. Mohammed El Fasi. A islamizaçao da África do Norte. In:
História geral da África, vol. III. Brasília: UNESCO, 2010. p.73 a 82)
75
Além disso, foi com os Almorávidas que as atividades islâmicas na região
tornaram-se mais intensas, se disseminando pelas cidades mais importantes como Mali
e Gao124. Os mapas da Escola de Maiorca, dos séculos XIV e XV, foram os primeiros,
ou um dos primeiros, a representar uma série de sultões, reais e lendários, reconhecendo
a presença do poder islâmico em possíveis terras ao sul, especialmente do famoso rei de
Mali.

Figura 20 – Principais áreas de influência muçulmana, século XVI

Fonte: LEWIS, I. M. (Ed.). Islam in Tropical Africa. London: Indiana University Press.

124
Ressalta Ivan Hrbek e Jean Devisse, que a região ao sul do Marrocos e seu prolongamento até o rio
Senegal, na primeira metade do século XI, eram povoados por diferentes grupos berberes que estavam
divididos em facções hostis e contrárias. A necessidade de remediar tais divergências e o caráter
superficial da islamização desses sanhādja (tanto sedentários quando os nômades do deserto)
desempenharam papel decisivo na emergência do movimento almorávida fortemente influenciado pelo
malikismo, uma das quatro escolas do islã sunita. Com ‘Abdallāh ibn Yāsīn, século XI, se desnvolveram
as primeiras atividades reformistas junto aos sanhādja, atividades essas que ganharam adeptos entre os
lamtūna, considerados como a voz dos almorávidas. A partir de então, de movimento reformador, tornou-
se um movimento militante, cujos membros estavam decididos a expandir a doutrina junto aos outros
sanhādja e até em outras populações chegando ao Sudão Ocidental onde se tornou predominante(Cf.
HRBEK, Ivan e DEVISSE, Jean. Os almorávidas. In: História geral da África, vol. III. Brasília:
UNESCO, 2010. p. 395-430).
76
Assim, o avanço da armada cristã pela costa ocidental da África que levava a
esperança de encontrar possíveis conversos e cristãos, em determinada altura, se
deparou com a presença do Islã. Descendo pelo Golfo de Arguim, a terra deserta quase
sem população, abrigava os mouros, mas nem “a letra com que escrevem, nem a
linguagem com que falam, não é tal a dos outros Mouros”125. Não vindo da linhagem de
mouros e sim de gentios, possuíam alma e “[...] pelo qual seriam melhores, de trazer ao
caminho da salvação [...]”126. Por conta disso, “[...] não achavam endurecidos na crença
dos outros mouros, e viam que de boa vontade se vinham à lei de Cristo [...]”127. Nesse
momento, Zurara faz claramente uma distinção entre mouros, inimigos da fé, e gentios.
Estes se aproximando do homem selvagem, que mais acima discutimos, seriam capazes
de conhecer o caminho da salvação. Ao contrário, os mouros, sem alma, estariam
danados ao eterno pecado de terem acreditado na falsa fé. Além disso, Zurara não
acreditava na expansão do islamismo entre os negros africanos, inclusive, o famoso
reino muçulmano de Mali provavelmente não passaria de lenda, ao contrário do Preste
João. Para ele, a terra dos gentios seria uma espécie de sinal da existência de reinos
cristãos logo avante, uma crença que parece também ter sido partilhada pelos
cartógrafos.
Quando o cronista começa a descrever a “terra dos negros que são chamados
guinéus”128 o termo mouro, largamente utilizado para as terras ao norte, é substituído,
embora não abandonado129, de forma sistemática por negro, guinéu e/ou gentio. Estes,
para o cronista, seriam de mais fácil conversão e por isso eram a preferência no resgate.
Como enfatiza no capítulo LX , um “moço negro” foi feito tão perfeitamente cristão que
se dizia que o infante D. Henrique queria tomá-lo como sacerdote a fim de voltar a sua
terra para evangelizar130. A passagem, além disso, realça a crença no poder de

125
ZURARA, Gomes Eanes da. Op cit. p. 207
126
Ibidem. p. 79.
127
Ibidem. p. 99
128
“E esta gente de esta terra verde é toda negra; e por isso é ela chamada terra dos Negros ou terra de
Guiné, por cujo azo os homens e mulheres dela são chamados Guinéus (que quer dizer tanto como
negros) (Ibidem. p. 165).
129
Zurara continua a empregar o termo “mouro” para designar os habitantes das “terras dos negros”,
mesmo acreditando que naquelas terras não havia se propagado o islamismo. Segundo Mariza Carvalho
de Soares esta aparente ingenuidade de Zurara é explicada pela leitura de bulas papais da época, já que
bula Dum Diversas de 1452 concede a Portugal o direito de conquista sobre os “mouros”. A sua
utilização ressalta um indiscutível direito de conquista (SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor.
Identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000. p. 44)
130
Ibidem. p. 166-167
77
transformação do cristianismo – ao contrário do islamismo que nem sequer conseguia
uma conversão total, permanecendo muitos em seu estado bestial131 – ressaltando as
potencialidades dos negros em se tornarem cristãos.
A gentilididade, nesse sentido, foi associada à ausência de “lei”, no sentido
religioso e não jurídico ou político, o mesmo que idolatria: “São idolatras porque são
gentios”132. Desvinculados das três principais leis – Cristianismo, Judaísmo e Islamismo
– as religiões autóctones entraram para o rol da idolatria. Bastava o pejorativo “são
todos idolatras” para unificar uma enormidade de ritos, procedimentos, cultos e
religiões. Cadamosto, ao descrever os habitantes das Ilhas Canárias ressalta que: “Não
têm fé nem conhecem a Deus, mas adoram uns o Sol, e outros a Lua, e outros, ainda, os
planetas; e tem novas ideias de idolotria”133. Valentim Fernandes parece ter um pouco
mais de interesse ou curiosidade e descreve alguns rituais e cerimônias:
Todas aldeias em Serra Leoa tem uma fé e são idólatras e crêem que
os ídolos lhes podem a ajudar e socorrerem suas necessidades. E tem
muitos ídolos porém cada aldeia tem um ídolo geral a todos a quem
eles chamam crü. Esse crü é uma árvore só muito velha por eles
chamada manipeyro que é gorda e ramada e é pau muito mole e tem
espinhas as folhas dela são como de oliveiras e o fruto dela é como
ameixa branca134.

A caracterização dos povos gentios e mouros, apenas esboçada em Zurara e


ainda pouco definida na sua aplicação às regiões além do rio Senegal até a Serra Leoa,
começa, então, a clarificar na literatura posterior. Segundo Duarte Pacheco, mouro é na
verdade uma corrupção do vocábulo mauro que é a denominação dos habitantes da
Mauritânia. Mas independente de qual seja a etimologia da palavra, os mouros foram
constantemente alvo de impiedosas e negativas imagens:
[...] todos são circuncisos e macometas, os quais adoram a burla
de Mafoma. Esta gente é viciosa, de pouca paz uns com os
outros, e são muito grandes ladrões e mentirosos, que nunca
falam verdade, e são muito grande ladrões e mentirosos, e
grandes bêbados e muito ingratos, que bem que lhe façam não
agradem, e muito desavergonhados que não deixam de pedir135

131
Idem.
132
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 134
133
CADAMOSTO, Luís de. Op cit. p. 98.
134
FERNANDES, Valentim. Op cit. p. 89.
135
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 74.
78
Mas o interessante é que tais imagens se estendem das ditas terras desérticas e
inférteis dos homens pardos para as exuberantes verdes florestas dos negros. Ao se
depararem com os povos islamizados das regiões ao sul do Senegal, a atitude não foi de
toda diferente frente ao juízo que fizeram de suas práticas: “[...] possuem muitos vícios,
tem as mulheres que querem, e a luxúria entre eles totalmente é comum”136 e os Jalofos
cuja gente é “[...] toda viciosa, de pouca paz uns com os outros, e são muito grandes
ladrões e mentirosos [...]”137.
É-nos notável, contudo, que ao contrário do que poderiam dizer a respeito dos
muçulmanos do Magrebe, os ditos negros islamizados receberam um tratamento
diferente. Se esses negros estivessem totalmente inseridos na “falsa seita”, dificilmente
poderiam se converter à “verdadeira fé”. Então, se aquelas gentes estivessem mesmo a
serviço de Alá, não restaria muita esperança de encontrar nem reinos cristãos e nem
possíveis conversos. Assim, nos parece bem plausível, tal como fez Cadamosto, sugerir
que: “A fé destes primeiros negros é maometana; mas nem por isso estão bem firmes na
fé (como estes mouros brancos), particularmente a gente miúda”138.
O mesmo observa Valentim Fernandes:
Elrey e todos seus fidalgos e senhores desta província de Giloffa são
maffometanos e tem seus bischerijs [que] são clérigos e pregadores de
Maffoma os quais sabem escrever e ler. [...]. A [gente] ou [povo]
miúdo deles crêem em Maffoma porem os mais deles são idolatras,
como todos desta província são circuncidados como mouros139.

Tanto o morávio quanto o veneziano, dessa forma, sugerem que embora o


islamismo tenha se expandido em terras negras, ainda assim se fazia de forma amena e
superficial. A gente miúda, como ele chama, permanecia sem lei, ou seja, continuavam
idólatras enquanto que os “senhores e fidalgos”, por intermédio de pregadores
muçulmanos, se convertiam. Contudo, o veneziano além de comentar as diversas
gradações de conversão dos africanos ao islamismo, ressalta que inclusive os senhores,
que Valentim Fernandes também dizia muçulmanos, estavam convertidos
superficialmente. Nem mesmo os Azenegues que em todos os textos aparecem como
mouros sem restrições, para Cadamosto não estão bem instruídos na fé Maometana e
que por isso poderiam facilmente se converter ao catolicismo:

136
Ibidem. p 108.
137
Ibidem. p. 97.
138
CADAMOSTO, Luís de. Op cit. p. 119
139
FERNANDES, Valentim. Op cit. p. 65.
79
[...] tratando estes com cristãos e convivendo com eles, por serem
homens simples, que nunca trataram com outros cristãos nem os
viram, ainda que sejam, só de nome, Maometanos, facilmente se
poderão reduzir a fé católica; porque eles não estão bem instruídos na
sobredita fé maometana salvo no que ouviram dizer140.

A boa vontade com que muitas vezes iam ao caminho da fé estava esboçada
nas palavras de Diogo Gomes:
E por último eu mesmo interroguei a respeito de Maffamede, no qual
eles acreditam. As quais palavras agradaram àquele senhor, de tal sorte
que mandou ao bispo que em três dias saísse do seu reino. E erguendo-
se em pé disse, que sob pena de morte ninguém mais ousasse nomear
Maffamede, porque só cria no Deus vivo e uno, e que não acreditava
que outro Deus existisse [...]

Já no Esmeraldo não há uma avaliação sobre a potencialidade da presença


islâmica entre os negros africanos e Zurara, como já ressaltamos, nem sequer acredita
que possa haver existência do islamismo em tais terras. Além disso, Duarte Pacheco não
relaciona a circuncisão ao islamismo, pois, segundo ele, muitos negros são
circuncidados por influência de outros que são “macometas” como os Mandingas e
Jalofos. E embora estes últimos fossem maometanos, o cosmógrafo não os considera
inimigos da cristandade como os muçulmanos setentrionais, fazendo assim como os
demais autores uma distinção entre os muçulmanos do norte da África e os do sul do
Saara.
Portanto, face ao encontro inesperado com uma anterior expansão do Islã ao
sul do Senegal, sugerir que tais gentes não estavam de toda inserida na sobredita fé
favoreciam mais aos interesses da Coroa e, claro, da Igreja. Ressaltar para os possíveis
leitores, especialmente para a coroa portuguesa, a maior interessada naquelas
expedições e naqueles livros, que toda a terra ao sul estava tomada pelo Islã, não
renderia bons ganhos. Mas o fato é que havia distinções no islamismo daqueles nativos
em comparação ao da África do Norte e dos mouriscos da Península Ibérica, conforme
ressaltamos, e essas distinções foram apreendidas como uma conversão superficial que
muito beneficiaria aos interesses portugueses.

140
CADAMOSTO, Luís de. Op cit. p. 105
80
III. “Escravos dos escravos de seus irmãos...”
E por fim, restou às gentes pobres e selvagens, que no limite da salvação
perambulou entre a verdadeira e falsa fé, a eterna maldição de serem escravos dos
escravos de seus irmãos. Maldição essa cumprida e averiguada pelo incansável tráfico
de escravos que perdurou durante longos séculos. Mas como justificá-la? A validade
legal e moral da escravidão141 constituiu uma questão perturbadora no pensamento
cristão da época. Se todos eram iguais, a submissão de um pelo outro era contrária a
natureza e, portanto, injusta. Mas se ela era um mal, como Deus permitiu que ela
existisse inclusive na Sagrada Escritura? A resposta estava também na Bíblia: o pecado
original. À medida que a Igreja sustentava a crença de que os homens compartilhavam
uma origem comum e eram livres e iguais em seu estado natural, ela também promovia
leis e normas que reconheciam a humanidade do escravo. Quando capturavam ou
compravam pagãos, os cristãos se viam atacando a infidelidade geral, bem como
salvando novas almas do caminho da perdição142.
Muito embora os portugueses tenham desenvolvido argumentos para justificá-
la, eles não precisavam exatamente legalizar a existência de escravos, pois, nos reinos
peninsulares, escravos há muito já trabalhavam como domésticos, artesãos e demais. O
código de lei espanhola do século XIII, conhecido como as Siete Partidas, claramente
fala sobre o status dos escravos e do poder dos senhores143. Para os portugueses, assim
como para os outros ibéricos, não havia nada de não usual acerca da existência de
escravos. No Mediterrâneo, por exemplo, já havia uma longa tradição de escravidão, o
que fez com o comércio de escravos negros não fosse tão novo.
No entanto, como temos ressaltado até aqui, a busca por mão de obra escrava
não estava entre os primeiros objetivos que moveu os portugueses. Mesmo depois de
cruzarem o Bojador, comercialmente falando, os lusitanos buscavam terras, mercados e
uma alternativa para o Oriente e ouro. A mão de obra africana ainda não era tão
cobiçada, embora não fosse descartada. Com o progressivo reconhecimento da costa -
especialmente das ilhas atlânticas (Madeira, Cabo Verde, São Tomé e demais) -, como

141
De acordo com David Brion Davis, na Península Ibérica, o termo sarraceno foi durante o século XIII, a
expressão comumente usada para designar um escravo. Como resultado do trato de escravos no
Mediterrâneo, sclavus foi adotado de modo crescente na Espanha no século seguinte. Só no século XV
que o termo escravo ganhou aceitação em Portugal (DAVIS, David Brion. Op cit. p. 51).
142
Ibidem. p. 122.
143
METCALF, Alida C. Go-betweens and the colonization of Brazil, 1500-1600. University of Texas
Press, 2005. p. 159
81
analisa Manolo Florentino, a situação começa a mudar e o favorecimento da “[...]
exploração mercantilista rentável identificou-se ao trinômio grande propriedade,
monocultivo e trabalho escravo, em uma antecipação do modelo que vingaria em boa
parte das Américas”144. Nesse processo, a mão de obra começa a aparecer como uma
das peças principais do jogo.
Importa ressaltar que os traços característicos da dinâmica do tráfico não era
um fator totalmente novo no contexto africano. A escravidão era difundida na África
atlântica desde a Antiguidade. Fontes gregas, romanas e egípcias mencionam a presença
de cativos negros, os etíopes, adquiridos através das rotas nilóticas e trans-saarianas145.
Segundo John Thornton, dada a natureza corporativa das sociedades africanas,
organizadas em famílias, clãs, aldeias e estados, a criação de dependentes (mulheres,
filhos e escravos) era a única forma de enriquecimento pessoal legitimada. A
propriedade privada nesse sentido não adiantava para o enriquecimento pessoal.
Diferentemente dos sistemas legais europeus que legitimavam a terra como uma
propriedade privada lucrativa e principal, a escravidão aqui acabava por ocupar uma
posição relativamente inferior.
A importância da escravidão na África pode ser compreendida ao compará-la
brevemente com a escravidão na Europa. Ambas possuíam a instituição, e tendiam a
definir os escravos do mesmo modo: como membros subordinados da família146. Muitos
historiadores enfatizam o caráter dócil da escravidão africana pré-colonial em
comparação com a que se instituiu com o tráfico. Em seus trabalhos, eles optam por
termos como “cativos adotados” e “dependentes” em substituição a “escravos”. Outros
preferem empregar o termo “servos” devido a semelhança com os camponeses da
Europa medieval. Mas de acordo com Manolo Florentino, tais características não
invalidam a condição de escravo como bem mostrou os latifúndios brasileiros e
caribenhos, onde comuns parcelas de terras eram trabalhadas por e em proveito
exclusivo dos cativos147.
O escravo, portanto, não se define apenas em função de seu estatuto cultural,
tão variável quanto o número de sociedades escravistas. Por intermédio da herança

144
FLORENTINO, Manolo. Aspectos do tráfico negreiro na África Ocidetnal (c. 1500-c.1800). [no
prelo]. p. 2
145
Ibidem. p. 26
146
THORNTON, John. A África e os africanos na formação do mundo Atlântico, 1400-1800. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2004. p. 139.
147
Florentino, Manolo. Op cit. p. 25
82
jurídica romana, o atributo que o definia era o de ser uma propriedade. Tendo em vista
que o escravo africano pré-colonial era propriedade adquirida por meio de guerras ou
trocas e estavam, portanto, sujeitos a coerções econômicas, não há motivos para não
chamá-los de “escravos” na acepção Ocidental do termo148. Dessa forma, a instituição
do cativeiro remonta à Antiguidade, a mão de obra escravizada já era maciçamente
utilizada muito antes da chegada dos europeus e o Saara, como ressaltado, já era uma
rota de tal comércio.
O tráfico através do Saara e do Mar Vermelho remonta, segundo
documentações, já ao período inicial da expansão do Islã, analisa Patrick Manning. O
volume inicial desse comércio nesse momento inicial, contudo, era bem baixo perto do
que se desenvolveu posteriormente. O tráfico Oriental, como prefere o historiador149, se
dava especialmente com a Savana e o Chifre africano, e menos com a costa ocidental.
Mas ele foi intensificado com a expansão islâmica do século VII, ganhando maior
repercussão no século X ao XV (Quadro 1).

Quadro 1 – Global Estimate of Trans-Saharan Slave Trade

Period Total

650-800 150.000

800-900 300.000

900-1100 1.740.000

1100-1400 1 650.000

1400-1500 430.000

1500-1600 550.000

1600-1700 710.000

1700-1800 715.000

1800-1880 1.165.000

148
FLORENTINO, Manolo. Op cit. p. 25-26
149
Patrick Manning opta por falar em tráfico Oriental e Ocidental para diferenciar o tráfico se verificou
no mundo islâmico e cristão (cf. MANNING, Patrick. Slavery and african life. New York: Cambridge
University Press, 1990).
83
1880-1900 40.000

Sub-Total 7.450.000

Desert Edge Retention 5%

Mortality 20%

Total 9.387.000
Fonte: Austen, Ralph. “The trans-saharan slave trade”, in: GEMERY, Henry A. &
HOGENDORN, Jan. S. (eds). The uncommon market (essays in the economic history of the Atlantic
slave trade). New York, Academic Press, 1979, pp. 23-76.

Diferentemente do que se verificou no tráfico Ocidental, a preferência do tráfico


Oriental era por cativas mulheres para o trabalho doméstico, enquanto que aquele visava
preferencialmente cativos homens para trabalho em plantations e minas150. Apesar dos
juristas muçulmanos considerarem a escravidão antinatural, eles tenderam a relaxar suas
normas quando mercadores árabes viajaram ao interior da África e retornaram com um
grande número de negros151. As problemáticas que a escravidão inseria e a questão de
como justificá-la também estava posta entre os muçulmanos. Al-Jirari, em seu exílio no
Marrocos entre 1593-1608, por exemplo, endereçou algumas questões que demonstram
a natureza da polêmica da escravidão
“No caso de não se saber ao certo seu status, origem e se sua
conversão foi anterior à captura, seria legal comercializar o individuo
sem uma completa investigação? Essa investigação é compulsória ou
recomendada? Qual seria o procedimento se chegasse a uma decisão
dúbia? O que manda a lei? A palavra do escravo deve ser aceita ou
não? Se a questão resultar em dúvida sobre o impedimento da
escravização, deve ser anulada? Como na jurisprudência estabelecida
nos casos de divórcio e manumissão? Ou como no caso de como
proceder na dúvida sobre o estado de impureza após saber da
necessidade do estado de pureza ser obrigatório? Ou no caso de se
renunciar a retaliação quando um pai que matou o filho com uma
lança não for condenado à morte devido a dúvida de sua
intencionalidade. Sob que condições a retaliação seria necessária,
devido à grande afeição e compaixão do pai?152

150
Ibidem. p. 36
151
Para compreender as características das grandes linhagens do cativeiro existentes no oeste africano e
os três grandes tipos de sistemas escravistas da época pré-colonial (ver FLORENTINO, Manolo. Op cit.
p. 27-29)
152
HUNWICK, John & HARRAK, Fatima. Miraj Al-Su’ud: Ahmad Baba’s replies on slavery. Apud.
CAIRUS, José Antônio Teófilo. Op cit. p. 149
84
Mas ao contrário do caso cristão, nas leis islâmicas o aspecto preponderante na
escravidão era religioso – mesmo que ele não fosse muitas vezes respeitado. A própria
leitura que se fez da maldição de Cam foi distinta. No trabalho do historiador
muçulmano, Ìbn Khaldun (1332-1406), cita-se a maldição mencionada na Torá.
Segundo ele, relacioná-la a cor da pele dos seus descendentes seria um equívoco, pois a
cor estaria, na verdade, relacionada às nuances geográficas da adaptabilidade dos seres
humanos ao meio em que viviam153. Em outro trecho da carta de Al-Jirari citada acima
também se discute e questiona acerca da maldição:
“Ibn Mas’ud contou que Noé se banhava e notou que seu filho o
olhava e disse, ‘Você está me olhando enquanto me banho? Que
Deus mude sua cor! E ele tornou-se negro e o ancestral dos sudan’
(negros). Ibn Jarir (al-Tabari) disse: “Noé rezou para que Sem e seus
descendentes fossem profetas e mensageiros e lançou uma maldição
sobre Ham, rezando para que seus descendentes fossem escravos de
Sem e Jafé”. Qual é o significado dos descendentes de Cam se
tornarem escravos dos descendentes de Sem e Jafé? Se o significado
é que exista infiéis entre eles, então (ser escravos) não está restrito a
eles, nem de forma análoga (possuir escravos) restrita aos seus dois
irmãos, Sem e Jafé, porque o infiel pode ser propriedade de um
branco ou de um negro. Qual é o significado de restringir a
escravidão através da conquista aos sudan (negros)? Quando os que
não são negros compartilham com eles o status de infiéis que é o
cerne da questão.154

Dessa forma, também entre os muçulmanos a escravidão inseria problemas


fundamentais. Os negros da África subsaariana mais uma vez as propulsionavam,
embora muitas vezes fossem aqui considerados também escravos naturais155, e apesar de
toda essa complexa discussão, os mercadores islâmicos foram responsáveis, no início
das expedições, pelo comércio de negros fazendo-o durante longo tempo. O fizeram,
inclusive, com os ibéricos. Conta-nos Cadamosto que neste comércio, os cristãos
traziam “[...] diversas coisas como o sejam panos, e tecidos de linho e prata, alquicés,
tapetes, saiotes, e outras coisas, e sobretudo trigo, porque estão sempre esfomeados” e
recebiam “ em troca escravos negros que trazem os árabes das terras dos negros; e tão
outro tiber. De modo que este senhor Infante faz construir um castelo nesta ilha, para
conservar e multiplicar este tráfico perpetuamente”156. Antes, porém, de fazer a troca
com os portugueses, tais árabes “levam-nos [cavalos] às terras dos negros, vendendo

153
Ibidem. p. 146
154
Ibidem. p.149-150.
155
Cf. Davis, David Brion. Op cit.
156
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 104
85
aqueles cavalos aos senhores os quais dão, em troca, escravos: e aqueles cavalos [por]
10, 12, 15 escravos cada um [...]”157. Além disso, trocavam também “[...] seda
mourisca, que se fazem em Granada e em Tunes de Berberia, e pratas e outras lindas
coisas”. Os cativos, após saíram da terra dos Negros, “chegam à dita escala e lugar de
Odém e a partir dali dividem-se, pois que parte deles vai ter ao dito lugar de Tunes e a
toda a costa da Berberia; e uma outra parte trazem para este lugar de Arguim, e vendem-
nos a estes portugueses [...]158
O aspecto novo, dessa forma, instaurado pelo posterior tráfico atlântico estava
na sua natureza maciça e na sua potencialidade de expandir os conhecimentos europeus
a respeito do continente africano. Em pouco mais de três séculos o comércio negreiro
abarcou toda a África Ocidental e vastas regiões meridionais da África atlântica e
índica. Sem o intermédio dos árabes, no século XV, o principal meio de obtenção inicial
de escravos eram ataques às vilas e aldeias visando a captura de cativos:
[...] olharam para a povoação e viram que os mouros com suas
mulheres e filhos saíam já quanto podiam de seus alojamentos porque
houveram vista dos contrários e eles chamando Santiago, São Jorge,
Portugal deram eles matando e prendendo quanto podiam, ali
poderíeis ver mães desamparando filhos e maridos mulheres,
trabalhando cada um de fazer quanto mais podia e uns se afogavam
sob as águas, outros escondiam os filhos debaixo dos limos por
cuidarem de os escapar onde os depois achavam[...]159

Sobre tais assaltos também nos conta Cadamosto: “[...] caravelas de Portugal
costumavam vir a este Golfo de Arguim armadas, 4 e outras vezes mais; saltavam em
terra a noite, e assim tomavam as aldeias que aí há de pescadores, e também faziam
correrias pelo interior”160 . Mas nos tempos em que esteve por aquelas bandas, “[...]tudo
se reduziu à paz [...]”161. De acordo com Diogo Gomes, foi por conselho do senhor Dom
Henrique que essa situação mudou, pois ele ordenou que no “[...]futuro não brigassem
com aquela gente naquelas regiões, mas que travassem alianças, e tratassem de
comércio, e com eles assentassem pazes, porque a sua intenção era fazê-los cristãos. E
mandou caravelas preparadas para paz e guerra”162

157
Ibidem. p. 104
158
Idem.
159
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 87.
160
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 105.
161
Ibidem. p. 105
162
GOMES, Diogo. Op cit. p. 10.
86
Posteriormente, as guerras internas muito frequentes tornaram-se o principal
meio de escravização. Mas Cadamosto nos dá também informações dos escravos negros
que o rei do reino de Senegal “[...]manda pilhar não só no país como nos outros países
vizinhos”163. E como temos dito, o uso interno era também muito comum entre os
africanos e, segundo o veneziano, o rei
[...] se serve por muitos modos; fá-los, principalmente trabalhar no
cultivo de certas terras e propriedades a ele destinadas. Muitos deles
vende-os aos mercadores azenegues que lá aparecem com cavalos e
outras coisas (e também os vende aos Cristãos desde que começaram
os ditos Cristãos a mercadejar nas terras dos negros)164.

A importância da escravidão na África no desenvolvimento do comércio de


escravos pode ser observada na notável velocidade com que o continente começou a
exportá-los. Assim que os lusitanos atingiram a região do rio Senegal e abandonaram a
antiga estratégia de ataques às vilas e aldeias enunciadas por Zurara e Cadamosto, 700-
1.000 escravos foram exportados por ano, primeiramente com as caravanas na fronteira
com o Saara. Depois das missões diplomáticas, em 1457, os governadores da África
Ocidental abriram mercados ao norte do Gâmbia, as exportações cresceram chegando a
1.200-2.500165. Assim, antes mesmo de chegarem ao rio Senegal, os lusitanos
compravam escravos de caravanas ao norte do posto de Arguim, estabelecendo relações
duradouras.
E os alagarves e Azenegues trazem a Arguim ouro que ali vem
resgatar, e escravos negros de Jalofo e Mandinga, e couro de antas
para adagas, e goma arábica e outras cousas; e de Arguim levam
panos vermelhos e azuis, de baixo preço, e lenços grossos e bordates,
e mantas de pouca valia que fazem em Alentejo, e outras cousas de
esta calidade166

Coube, aos lusitanos iniciarem estratégias que trariam melhores resultados ao


tráfico: a criação de feitorias e fortes. Um exemplo de tal esquema é descrito na citação
acima por Duarte Pereira, que também relata sobre a construção do famoso forte de São
Jorge da Mina (1482) na atual Gana. A respeito desse castelo implantado na Costa do
Ouro pelos portugueses comenta Catherine Vidrovich:
Os mercadores portugueses juntavam-se em torno de castelos
fortificados, que desempenharam simultaneamente o papel de feitorias

163
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 117.
164
Ibidem. 117-118
165
THORNTON, John. Op cit. p. 150.
166
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 76
87
comerciais e de postos militares, protegendo os navios de passagem
das pilhagens indígenas ou dos ataques de flibusteiros [...]167.

O comércio negreiro ganhou contornos mais sólidos e índices mais elevados


com a colonização do Novo Mundo. As plantações do Caribe e os sistemas mineradores
do México ligaram a África às Américas: oito em cada dez africanos desembarcaram
nos portos da América espanhola. A colonização portuguesa intensificou o fluxo de
escravos através do Atlântico. À Europa, nesse período somente a Península Ibérica,
cabia pouca importação168.
Do fluxo de escravos entre a África e as Américas no período inicial que
compreende 1501 a 1600, a África Ocidental desponta como a principal fornecedora de
mão de obra seguida pela África Central Atlântica e St. Helena (Quadro 2). Como já
comentamos, nela localizava as mais importantes feitorias que fortaleciam e
organizavam o comércio. Nesta região, o Senegâmbia correspondia a mais de 90% dos
escravos exportados. Baseado nisso percebe-se que o comércio negreiro inicial estava
circunscrito basicamente ao litoral da costa ocidental, região na qual a presença lusitana,
ainda predominante, se encontrava – pouco se estendendo ao interior ou regiões mais ao
sul.

Quadro 2– Fluxo de escravos entre a África e as Américas de acordo às áreas de


origem e de recepção dos cativos, 1501-1600

%
Regiões de origem
1. África Ocidental 159.627 57.5
Senegâmbia e Bacia Atlântica 147.281
Serra Leoa 1.405
Windward Coast 2.482
Baía de Biafra 8.459
2. África Central Atlântica e St. Helena 117.878 42.5
Total de exportados 277.505 100.0

Regiões de desembarque %
1. Europa 640 0.3
2. América Espanhola 169.370 85.0
3. Brasil 29.275 14.7
Total de importados 199.285 100.0

167
VIDROVITCH, Catherine C. (org). A Descoberta da África. Lisboa, Biblioteca de estudos africanos,
1965. p. 110
168
FLORENTINO, Manolo. Op cit. p. 3
88
Fonte: Anexos 1 e 2

Antes do século XVI, contudo, a demanda americana por africanos foi


relativamente baixa e as potencialidade do tráfico não se mostraram em toda a sua
plenitude. Somente a partir do século XVII que o quadro começa a modificar. A Alta
Guiné tradicionalmente marcada por baixa densidade demográfica perdeu a posição de
grande centro provedor de escravos em prol da Baixa Guiné – Costa do Ouro e baías de
Benin e de Biafra. É nesse momento que as outras nações entraram no comércio de
escravos e também criaram suas próprias feitorias e fortes ao longo do litoral:
[...]os holandeses expulsaram-nos [portugueses] de S. Jorge da Mina,
os ingleses instalaram-se na Gâmbia e em Cape Coast Castle, os
franceses em São Luís do Senegal e em Uidá, no Daomé; os
dinamarqueses e os brandenburgueses possuíam igualmente fortalezas
com a ajuda das quais demarcavam as costas de África. Essas
fortalezas, todavia, garantiam aos seus donos uma ‘zona reservada’
bastante precária porque, entre outras razões, os castelos ficavam bem
próximos uns dos outros: só na costa do Ouro, havia treze fortes
holandeses, nove ingleses e um dinamarquês169.

O aumento da demanda americana transformou o escravo em eixo fundamental


do comércio que antes se diversificava em outros produtos como ouro, marfim,
especiarias e demais. Importava-se quase sete vezes mais africanos do que no século
anterior. Logo aumentaram vertiginosamente as guerras intra-africanas, consolidando
diversos aparelhos estatais nativos. Simultaneamente, a escravização nas regiões
litorâneas tornavam-se insuficientes para sustentarem a demanda externa. A captura e a
comercialização acabaram deslocando-se para o interior, alcançando o Sudão Ocidental,
onde os grandes impérios se desintegravam por conta das disputas internas e invasões
estrangeiras170. Os Estados intermediários da savana interior e os compradores do litoral
acabaram por se fortalecer, dominando direta ou indiretamente o fluxo de escravos. No
século XVII, as regiões de origem se estenderam de tal forma que ultrapassou a África
Ocidental e Central em direção à África do Sul e Oriental (Quadro 3), ampliando,
através do comércio de escravos, o conhecimento geográfico do continente. Nesse
período, como se observa no mapa de Willem Bleau e Frederik de Witt (ver Figuras 16

169
VIDROVICHT, Catherine. Op cit. p. 110.
170
FLORENTINO, Manolo. Op cit. p. 12
89
e 17), a África já está geograficamente inventada pelos europeus enquanto continente
com suas fronteiras delimitadas e o seu interior mais conhecido.

Quadro 3 – Fluxo de escravos entre a África e as Américas de acordo às


áreas de origem e de recepção dos cativos, 1601-1700
%
Regiões de origem
1. África Ocidental 709.110 37.8
Senegâmbia e Bacia Atlântica 136.104
Serra Leoa 6.843
Windward Coast 1.350
Costa do Ouro 108.679
Baía de Benin 269.812
Baía de Biafra 186.322
2. África Central Atlântica e St. Helena 1.134.807 60.5
3. África Sul-Oriental e ilhas do Índico 31.715 1.7
Total de exportados 1.875.631 100.0

Regiões de desembarque %
1. Europa 2.981 0.2
2. América do Norte 15.147 1.0
3. Caribe Britânico 310.477 20.4
4. Caribe Francês 38.685 2.5
5. América Holandesa 124.158 8.2
6. Caribe Dinamarquês 18.146 1.2
7. América Espanhola 225.504 14.8
8. Brasil 784.457 51.5
9. África 3.122 0.2
Total de importados 1.522.677 100.0

Fonte: Anexos 1 e 2

As redes que uniam a savana ao conjunto da costa dividiam, segundo Manolo


Florentino baseado nos trabalhos de Paul Lovejoy e Jan Hogendorn, a África Ocidental
em quatro regiões:
[...] a que se estendia por toda a savana, desde a volta do rio Níger e o
lago Chade até a Senegâmbia; a que tinha seus pontos terminais na
Costa do Ouro e na baía do Benin; a que abarcava a área entre o vale
do rio Benué e a Baía de Baiafra; e, por fim, o litoral que se estendia
da Costa do Marfim até a Guiné atuais171.

171
Ibidem. p. 13.
90
O domínio dos caminhos que uniam o interior ao litoral logo se tornou o fim
último das atividades políticas e militares. Sobressai disso que a interiorização do
continente africano se deu estreitamente ligada ao processo de escravização dos povos
negros pelos europeus que diretamente influenciou tanto as representações que estes
construíam do continente e dos habitantes quanto as imagens que se construíram
daqueles em diversas outras partes do mundo para onde foram destinados como mão de
obra.
Ao desembarcarem no Novo Mundo, os negros africanos passaram a ser
identificados pela região de origem ou de desembarque. Os critérios para diferenciação
das populações africanas escravizadas começaram a ser gestados nos primeiros anos da
chegada dos portugueses à Guiné, mas é nas paróquias onde esses escravos são
batizados, que esses critérios são mais regularmente atualizados. É nos assentos
batismais, ressalta Mariza de Carvalho Soares, que se imprime nos escravos a marca de
sua procedência. O batismo, além de inserir o gentio no mundo cristão e colonial, “[...]
faz surgir daí, mais que uma simples nomenclatura, um verdadeiro sistema de
classificação a ser utilizado nas mais variadas circunstâncias”172. O termo “africano”
aqui vem acompanhado de “nação” ou “gentio de” que o vinculava a um determinado
grupo, como Mina, Angola, Congo, Guiné e demais173. De acordo com Mariza Soares, a
utilização do termo “gentio” advém do momento inicial do tráfico e foram também
utilizados nos assentos eclesiásticos. A Guiné, diferente dos demais, está sempre
associada a um gentio e não a uma nação.
O processo de definição de grupos étnicos africanos levou, assim, a uma
[re]construção das identidades africanas, mas nem por isso estavam desvinculadas das
primeiras imagens que aqui buscamos analisar. Muitos estereótipos foram, pois,
responsáveis pela construção da imagem do escravo também no Novo Mundo bem
como do continente africano contemporâneo. No entanto, discussões acerca desses
temas requer uma outra pesquisa.

172
SOARES, Mariza de Carvalho. Op cit. p. 96
173
Ibidem. p. 96-97
91
Capítulo III
A invenção da África

No cenário contemporâneo, marcado pelas reinvenções identitárias e pelo


dinamismo da comunicação, o papel ocupado pela África reflete determinados lugares
comuns praticamente cristalizados na forma como brasileiros, portugueses, americanos
e demais vêem o continente como um todo. As imagens produzidas e reproduzidas pelas
experiências históricas vivenciadas ao longo dos séculos destacam-se nas mais variadas
formas. A viagem, por exemplo, realizada em 2003 pelo então presidente brasileiro Luís
Inácio Lula da Silva à África exemplifica como determinadas concepções estão
incorporadas a uma ideia de África. Em seu discurso improvisado, ao verbalizar sua
admiração pela limpeza e organização de Windhoek, capital da Namíbia, Lula
evidenciou lugares comuns que cotidianamente se associam à África:
Quem chega em Windhoek não parece que está em um país africano.
Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas
arquitetonicamente e tem um povo tão extraordinário como tem essa
cidade [...]. A visão que se tem da América do Sul, e especialmente
do Brasil, é que é um continente de índios pobres. E a visão que se
tem da África é de um continente só de pobres, quando, na verdade,
se não fosse o grande tempo de colonização e se não fossem as
guerras internas, certamente os países africanos já teriam crescido de
forma extraordinária174.

Mais recentemente, no ano de 2011, a empresa alemã de cosméticos Nívea


lançou uma campanha publicitária que também causou polêmica não só no Brasil. Na
imagem da propaganda, um homem negro, barbeado e com cabelo bem cortado, se
prepara para arremessar uma versão de si mesmo com cabelo afro e barba por fazer.
Aconselhando o uso da marca, o slogan principal é: “re-civilize yourself” (algo como
“recivilize-se”). Formou-se uma discussão em torno do assunto, pois a propaganda dava
margem para a interpretação de que os negros não são civilizados – embora uma
segunda parte da propaganda apresente a mesma situação protagonizada por um homem
branco, mas com um slogan diferente: “Sin City não é uma desculpa para se parecer
com o inferno".

174
BACOCCINA, Denize. Namíbia não é limpa e não parece a África, diz Lula. Folha de São Paulo, São
Paulo, 07 de nov. 2003. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/bbc/ult272u25816.shtml>.
Acesso em 30 de janeiro de 2012.
92
Figura 21 – Propaganda Nívea, 2011

Fonte: Nivea Pulls Ad, Apologizes After Racism Accusations. 19/08/2011 Disponível em
http://adage.com/

Poderíamos citar outros tantos exemplos da mesma natureza que circulam na


mídia em todo mundo, mas o que nos interessa é, pois, ressaltar que conscientemente
[ou não] algumas considerações a respeito do negro e da África, especialmente no
singular, são ainda muito comuns e pode-se, inclusive, dizer que remontam há anos de
história. Mesmo que a propaganda da Nívea não tivesse o menor interesse de vincular a
imagem do negro à característica de incivilizado, mas foi assim interpretado por aqueles
que viram a propaganda e por isso causou a polêmica. A relação foi feita de uma forma
ou de outra.
Dessa forma, sobressai a isso que lugares comuns aparecem relacionados a
uma forma de se conceber a África e os negros – afro-descendentes ou africanos – como
um todo, e eles são rescaldos, por assim dizer, do seu processo de invenção desde os
primeiros contatos com os europeus e, porque não, desde a Antiguidade Clássica.

93
Vários pesquisadores175, contudo, se esforçaram e tem se esforçado na tentativa
de desconstruir os argumentos tendenciosos formulados especialmente durante a
presença colonial europeia. Renegada a um status de continente a-histórico, muitos
intelectuais, não somente africanos, iniciaram uma retomada do papel histórico da
África e dos africanos por diversos caminhos diferentes. Um deles perpassa a ideia de
que a própria África, em específico a África chamada Negra, é uma “invenção”
ocidental. É a respeito desses trabalhos que iremos discutir, além da própria ideia de
invenção e outros conceitos utilizados para a pesquisa.

I. A África em debate
Pensar a [ideia de] “África Negra” enquanto uma construção pautada em
representações é um tema recente assim como a própria historiografia sobre o
continente176. As dificuldades em compreender a diversidade africana e as tentativas em
decifrar os mecanismos mentais da elaboração de imagens (mais textuais do que
iconográficas), sobretudo da África subsaariana, é um assunto que tem recebido atenção
de pesquisadores de forma diversa.
O filósofo congolês Valentim Mudimbe está entre os nomes africanos que
pensam “a” África enquanto uma invenção. No livro The invention of Africa, revisando
discursos elaborados por antropólogos, missionários, teólogos, ensaístas e outros
agentes, africanos ou não, Mudimbe busca mostrar como tais materiais vão constituindo
sedimentos que configuram o que ele chama de “invenção da África”.
Diversos foram os discursos que Mudimbe elenca para a análise. A partir de
uma densa discussão que aqui se apresenta de forma resumida, o filósofo inicia a análise
com os missionários e teólogos. Esse primeiro discurso, enfatiza o filósofo, se revela
como expressões de interesses religiosos e da política imperial e perpassam a ideia de
que é necessário “salvar” a África - implicitamente sugerindo a superioridade da
cristandade. Durante muito tempo, esse discurso se constituiu como o rei do

175
Dentre vários nomes que poderíamos associar à perspectiva de reconhecimento da África como um
objeto de estudo histórico podemos citar: Joseph Kizerbo, Cheikh Anta Diop, Elikia M’Bokolo, Phillip
Curtin, John Fage, Joseph Miller, David Birmingham, entre vários outros.
176
Uma historiografia sobre o continente, pode se dizer, surgiu com maior força em meados do século
XX com a realização de trabalhos pelos próprios africanos. Trata-se de uma literatura fortemente
relacionada com as primeiras lutas de libertação nacional dos países africanos, e que propunha uma
História que pudesse servir como instrumento de luta ideológica e política contra o colonialismo – em seu
contexto, essas teorias ficaram conhecidas como afrocentrismo. (BARBOSA, Muryatan Santana.
Eurocentrismo, História e História da África. In: Sankofa. São Paulo, n. 1, jun/2008. Disponível em:
http://sites.google.com/site/revistasankofa/ . Acesso em 25-10-2011).
94
conhecimento e influenciou antropólogos e viajantes. Durante os séculos XVI e XVIII,
os missionários eram, de acordo com Mudimbe, parte do processo político de criação e
extensão dos direitos europeus pelas terras recentemente “descobertas”177. Nesse
sentido, “reis cristãos, seguindo as decisões do Papa, podiam ocupar reinos pagãos,
principados, senhorios, possessões (regna,principatus Dominia,possessiones) e
despossuí-los de suas propriedades pessoais, terras, e qualquer coisa que tiverem [...]. O
rei e seus sucessores tinham o poder e o direito de colocar essas pessoas em uma
escravidão perpétua”178. O status básico do outro, nesse sentido, era o primitivismo,
sendo necessária a sua conversão à cultura ocidental e ao cristianismo. A partir de 1950,
enfatiza Mudimbe, houve um aparecimento de um novo discurso articulado em torno da
ideia de “indigenização” dos aspectos externos das práticas religiosas. Essa nova
perspectiva estabeleceu uma premissa completamente diferente: a “cultura pagã” é aqui
considerada e analisada como um campo abandonado no qual os sinais de Deus já
existiu, ressalta Mudimbe.
Entre os antropólogos, por sua vez, o discurso da alteridade se reproduz como
um discurso colonial que visava produzir um conhecimento explorador das
dependências. Essa antropologia, reforça ele, fundou uma série de oposições binárias
que contrastaram com virtudes europeias de civilização; a sua ausência seria o
africano179. Assim como os missionários, os antropólogos utilizaram como premissa
básica a ideia de primitivismo que foi inventado por três tipos de “discursos”: o exótico
texto sobre selvagens, representado por viajantes; interpretações filosóficas sobre a
hierarquia da civilização; e, a pesquisa antropológica sobre o primitivismo180.
A década de 1920 aparece como uma ruptura nesse discurso antropológico. A
partir de então surge uma nova antropologia que se funda através da organização do
conhecimento em congruência direta com a “existência” Ocidental: “Evolucionismo,
funcionalismo, difusionismo – qualquer que seja o método, todos reprimem a alteridade
em nome da igualdade, reduz o diferente ao que já se conhece, e assim
fundamentalmente escapa da tarefa de dar sentido a outros mundos”181. Baseados nesses

177
MUDIMBE, Valentim Y. The invention of Africa. Gnosis, philosophy, and the order of knowledge.
Bloomington: Indiana University Press, 1988. p. 45
178
Idem
179
Ibidem. p. 64
180
Ibidem. p. 69
181
Ibidem. p. 72-73
95
discursos estavam antropólogos, como V. Malinowski, e autores africanos que viriam
promover alguns movimentos de independência.
No caso da filosofia, essas evoluções se expressam de maneira similar a partir
da noção inicial de “filosofia primitiva” em voga nos anos de 1920 e 1930. Nessa
perspectiva haveria, de acordo com Mudimbe, uma oposição radical entre ocidente,
caracterizado por uma história intelectual, e os “primitivos”, cuja vida e o pensamento
não têm nada em comum com os do ocidente. Posteriormente surge a etnofilosofia cujos
representantes participaram do clima ideológico da Negritude e das políticas intelectuais
de busca pela alteridade. Eles almejavam, afirma o filósofo, uma autenticidade africana
a partir de questões fundamentais da identidade negra182.
Por fim, tem-se o que Mudimbe chama de filosofia africana com intelectuais
preocupados com o poder político e o desenvolvimento de estratégias para a sucessão de
ideologias183. Ressaltando que as categorias e sistemas conceituais dos modelos
analíticos, consciente ou inconscientemente, se referiam a uma ordem “epistemológica
ocidental”, o filósofo critica as próprias teorias afrocêntricas contidas na filosofia
africana. De acordo com ele, os intelectuais africanos iniciaram um esforço de definir
uma identidade africana, mas elencaram para isso padrões ocidentais184. O problema
estaria, portanto, no fato de que o ocidente inventou uma imagem primitiva da África
como forma de manter e justificar sua hegemonia: “isso [colonialismo em específico]
revela uma forte tensão entre a modernidade que é frequentemente uma ilusão de
desenvolvimento, e uma tradição que às vezes reflete uma pobre imagem de um passado
mítico”185. Esse discurso, por sua vez, permeou inclusive os intelectuais africanos.
O colonialismo e suas armadilhas, especialmente a Antropologia Aplicada e o
Cristianismo, tentaram silenciar a existência de discursos africanos que residem nas
tradições. Assim, contra essa “epistemologia ocidental”, Mudimbe propõe uma
“autêntica episteme” africana186, que desde já se mostra complicada, afinal até que

182
Ibidem. p. 152
183
Ibidem. p. 154-161
184
Ibidem. p. 78-80
185
Ibidem. p. 5
186
O filósofo se baseia nas alegações de Michel de Foucault e recobre inclusive as críticas feitas a ele. A
busca por uma autêntica epistemologia, ou mesmo a possibilidade dela existir, ressalta um
“estruturalismo” que muitos, tal como Jean-Paul Sartre, condenaram na teoria Foucaultiana: “[...] nos
espaços pontilhados da ação humana, o que se via atravessando em profundidade, desde um antes de nós,
e como que suporte disto que éramos e/ou do que somos, seria o sistema”(QUEIROZ, André. O presente,
o intolerável... (Foucault e a História do Presente). Rio de Janeiro: 7Letras, 2004. p. 32).
96
ponto o próprio discurso de Mudimbe é realmente africano? Ou mesmo, o que é
realmente “africano”?
Na mesma vertente, o filósofo anglo-ganês Kwame Appiah, no livro A casa de
meu pai, também trabalha a ideia da África inventada. Na sua análise, ele ressalta que
existem alguns elementos utilizados com frequência pelos diversos grupos, espacial e
temporalmente distintos, no esforço em definir suas semelhanças e distinções na relação
com o “Outro”: “Remontando quase aos escritos humanos mais primitivos, afinal,
podemos encontrar opiniões mais ou menos bem articuladas sobre a diferença entre
‘nossos iguais’ e as pessoas de outras culturas”187. Foi, portanto, dessa relação que se
teria gerado o instrumental baseado em valores, categorias e códigos comuns à cultura
do observador que contaminaram e influenciaram o seu “olhar” sobre o observado
gerando consequências diversas ao longo do tempo, especialmente a exclusão ou
inferiorização.
Dessa forma, analisa Appiah, as mediações utilizadas para ver o outro foram
construídas pelo próprio eu. Remontando à Antiguidade, os gregos, por exemplo,
“identificavam os povos por sua aparência característica, tanto em aspectos biológicos,
como cor da pele, dos olhos e do cabelo, quanto em questões culturais, como os
penteados, o corte da barba e os estilos de vestuário”. Nesse sentido, o que o autor
sugere é que havia uma eleição, na verdade, das suas próprias características, tidas como
superiores, que serviam como fio condutor na comparação com o outro. As diferenças
entre as sociedades seriam, portanto, atribuídas ao meio ambiente deixando em aberto a
possibilidade de modificações. Assim, embora a opinião geral na Grécia pareça ter sido
a de que os “etíopes” eram inferiores aos helenos, não havia uma suposição geral de que
essa inferioridade pudesse ser corrigível188.
A ascendência/descendência também está fortemente presente, continua
Appiah, nas tradições influenciadas pelos textos bíblicos. Mas neste caso, o “[...] que se
considera característico nos povos são menos a aparência e os costumes do que sua
relação, através de um ancestral comum, com Deus”189. Portanto, o destino de um povo
estava traçado pelo Livro Sagrado através da benção ou da maldição de seu ancestral.
As interpretações cristãs acerca das populações não cristãs, incluindo os africanos,

187
APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1997. p. 30
188
Idem.
189
Ibidem. p. 31
97
passaram, então, a ser conduzidas por uma regra, muito semelhante à antiga: não
comungando dos meus valores, o outro passa a ser reduzido e alvo de leituras negativas,
depreciativas e conversoras. Porém, se antes as diferenças eram justificadas como
oriundas de condições climáticas, na lógica judaico-cristã, elas seriam fruto das
maldições ou bênçãos divinas. As concepções teológicas, dessa forma, serviram de
fronteira na relação entre os povos.
Dessa forma, as características que definiam os povos africanos foram
recodificados no imaginário europeu, de acordo com Appiah, com empréstimos de
aspectos negativos ao longo dos anos, em um processo de invenção da África e dos
africanos. As próprias categorias de negro e africano são, no fundo, produtos europeus,
conceitos pautados em noções de inferioridade e desigualdade:
A própria invenção da África (como algo mais do que uma entidade
geográfica) deve ser entendida, em última instância, como um
subproduto do racialismo europeu; a ideia de pan-africanismo
fundamentou-se na noção do africano, a qual, por sua vez, baseou-se,
não numa autêntica comunhão cultural, mas, como vimos, no próprio
conceito europeu de negro190.

O século XX viu surgir, todavia, a ideia de África pensada pelos próprios


africanos e “[...]as bases em que tem sido predominantemente teorizada até hoje – a
raça, uma experiência histórica comum, uma metafísica compartilhada – pressupõem
falsidades sérias demais para serem ignoradas”191. Por conta disso, qualquer tentativa de
uma definição de identidade africana associadas às noções como de “raça” e de
“afrocentrismo” são formas de inferiorizar os africanos, pois são meramente uma
inversão de argumentos europeus que singularizam e simplificam uma realidade tão
diversa. Pelo o que foi exposto até aqui, um argumento central comum tanto à Appiah
quanto à Mudimbe é a afirmação de que a identidade africana foi inventada ao longo do
complexo processo de trocas e relações estabelecidas entre as populações propriamente
africanas e os outsiders.
Dessa forma, a utilização que Appiah faz do termo “invenção”, assim como
Mudimbe, é marcada por ideais políticos ideológicos. Há ali uma luta pela
descolonização da ideia de África, uma busca crítica para se [re]construir uma
identidade africana, uma espécie de pan-africanismo, liberta das noções depreciativas e

190
Ibidem. p. 96
191
Ibidem. p. 243
98
pejorativas que rondam a imagem do seu continente e seu povo. Ora, a produção
literária na África vigente não é, segundo Appiah, a tradução de um espírito nacional ou
continental, mas sim o resultado de um encontro colonial. Daí a necessidade de aportes
mais seguros do que “raça” que acaba por legitimar os anseios europeus.
No outro lado, estão os próprios europeus que têm contribuído para os estudos
sobre o continente, especificamente sobre a representação da África e dos africanos. Em
uma coletânea recentemente publicada em Portugal, Representações de África e dos
Africanos na História e Cultura – Séculos XV a XXI, diversos pesquisadores refletiram
sobre as variadas formas que os portugueses, na longuíssima duração, representaram a
África ou as Áfricas. A coletânea possui vinte artigos que analisam as representações
nas mais diversas fontes e em diferentes temporalidades. Para fins práticos, optamos
aqui por selecionar aquelas que abarcam o período dos séculos também por nós
selecionados nesta dissertação.
Em seu artigo, Ana Cristina Roque apresenta algumas considerações de sua
pesquisa sobre as representações portuguesas sobre a África Austral, como ela
denomina. Ressaltando o papel inovador destes que “[...] lançados na aventura da
expansão e dos descobrimentos, [...] vieram, de forma decisiva, contribuir para uma
nova visão do homem e do mundo"192. A pesquisadora não mede esforços para
desconstruir as interpretações correntes de que os portugueses criaram representações
negativas dos povos que iam conhecendo ao sul da Saara. De acordo com ela, muitos
foram os que se revelaram incapazes de admitir as transformações que a antiga noção de
mundo vinha sofrendo e continuavam a perpetuar, no retrato dos habitantes de tais
regiões, os velhos mitos de seres semi-humanos e semi-animais:
Aos olhos dos europeus, os usos e costumes desses homens, e
sobretudo o aspecto físico, colocavam-nos no último degrau da escala
dos humanos. A sua apresentação explorava a diferença e a
dessemelhança para sublinhar, de forma intencional, não o que podia
ser tido como ‘anormal’ por referência ao modelo europeu, mas o que
se considerava como ‘animal’ e selvagem, por oposição ao ‘humano’
e civilizado193

192
ROQUE, Ana Cristina. “Portugueses e africanos na África Austral no século XVI: imagem da
diferença ao reforço da proximidade”. In: ROGRIGUES, José Damião e RODRIGUES, Casimiro (Ed.).
Representações da África e dos africanas na história e cultura – séculos XV a XXI. Ponta Delgada:
Centro História de Além-Mar, 2011. p. 90.
193
Ibidem. p. 91
99
Mas a experiência, como ela mesma enfatiza, tendeu a corrigir essas
considerações que ressaltavam a ideia de “negros bestiais” aperfeiçoando-as e
conferindo-as progressivamente uma “humanidade”. Não que as imagens de selvagem,
ser inferior ou mesmo animal não perpassassem as linhas mestras que orientaram a
expansão inicial e também as políticas de marginalização e exclusão, ressalta a autora,
mas essas eram apenas imagens que os portugueses pretendiam que fosse a realidade ou
o que oficialmente deveria ser dito contribuindo para alimentar a própria “política de
sigilo”194. A análise das questões que envolvem a representação do africano não deve,
pois, marginalizar outras que lhe são inerentes e que diz respeito à escolha do
testemunho. Para Ana Cristina Roque, a fonte que retratasse o vivenciado e que
estivesse desvinculada de qualquer caráter oficial ou influência da coroa portuguesa
apresenta outras possibilidades de leituras. Somente a partir de relatos de quem não
tinha sobre si a responsabilidade oficial do conhecimento é que poderia averiguar “[...]
uma posição privilegiada de poder relatar a ‘realidade’. Ainda que, naturalmente, a
‘realidade’ não possa ser considerada em absoluto, como única e indiscutível pela
componente de subjetividade que encerra[...]”195.
Assim, Ana Cristina Roque considera que autores de textos como Duarte
Barbosa e Martim Fernandes de Figueiroa, ambos do século XVI, possuem uma certa
imparcialidade no descrição do outro e por isso até contribuíram para emergência
manifestações de “humanidade dessas gentes”, já que delas surgiram descrições do
outro que refletem não tanto a diferença, mas a proximidade e a semelhança196.
Portanto, enquanto os filósofos africanos acusam os europeus de uma negativa visão da
África que se abrigou no imaginário até os dias atuais, Roque tenta demonstrar que as
imagens que sobressaíram aos primeiros encontros nem sempre foram negativas e
depreciativas, e que veiculam uma “[...] imagem menos conceptualizada e menos
fabricada do africano, e em que este se apresenta de facto como é e pelo é, pelo que faz
e como faz”197.
Dessa forma, o principal argumento da autora está em uma tentativa de
expandir o horizonte interpretativo nos diversos trabalhos sobre as representações do
africano, no qual busca-se considerar representações mais isentas de preconceitos – o

194
Ibidem. p. 92
195
Ibidem. P. 92
196
Ibidem. p. 94.
197
Ibidem p.104.
100
que nos parece demasiado audacioso. Supor que algum relato é mais próximo do fato
como ele é, vai de encontro inclusive à própria noção de representação que ela mesma
utiliza no decorrer do texto. Parece-nos enganoso pensar que desconstruir imagens ou
mitos é simplesmente desconsiderar sua existência, ou vinculá-las a um tipo de discurso
que ela considerada isolado e sem repercussão.
Outro trabalho da coletânea que se propõe a análise da literatura de viagem a
partir da problemática das representações é o de José da Silva Horta198. Nele e em
outros trabalhos dos quais o artigo é síntese, o autor atribui um peso significativo aos
referentes culturais europeus-peninsulares e às imagens medievais na gênese das
primeiras representações acerca da categoria espacial da época, “Guiné do Cabo
Verde”, que a historiografia tem progressivamente assumido como Grande Senegâmbia.
O recuo ao horizonte referencial das representações medievais, segundo ele, permite
compreender que a experiência peninsular havia marcado profundamente as
representações dos africanos, pois:
A representação, enquanto tradução mental de uma realidade exterior
percepcionada, implica um processo de abstração que passe pelo gerir
– mais ou menos inconsciente – das classificações disponíveis no
stock cultural para tornar inteligível e avaliar essa realidade199.

Os valores que subjazem aos portugueses, cristalizam-se, dessa forma, em


categorias, lugares comuns e estereótipos que organizam as representações. A
construção do que ele chama de “grelha” classificatória haveria se dado antes mesmo
dos contatos diretos com a África subsaariana e apôs-lhes um selo com tudo que tinha
de estereotipado e simplificado200. Mas, ao analisar as fontes portuguesas, portanto,
percebe-se que nem sempre, ressalta ele, se valoriza suficientemente o peso desses
referentes culturais prévios aos contatos. Horta, assim sendo, enfatiza que se deve
atentar simultaneamente:
À especificidade do Africano-Negro, isto é, às imagens e
representações anteriores que lhe estavam associadas; aos valores e
categorias antropológicas – essas categorias, pela sua articulação e
hierarquização, constituem aquilo que se pode designar, com

198
O artigo é uma recuperação de investigações que o autor fizera durante os seus anos de pesquisa e
também estão contidas, de forma mais completa, no trabalho aqui também consultado: HORTA, José da
Silva. “A representação do africano na literatura de viagens, do Senegal à Serra Leoa (1453-1508)”. In:
Mare Liberum. nº 2, 1991.
199
Ibidem. p. 209.
200
HORTA, José da Silva. “Perspectivas para o estudo da evolução das representações dos africanos nas
escritas portuguesas de viagem: caso da ‘Guiné de Cabo-Verde’ (Sécs. XV-XVII)”. In: ROGRIGUES,
José Damião e RODRIGUES, Casimiro (Ed.). Op cit. p. 412
101
propriedade, classificações – disponíveis para compreender, através
do seu filtro, a heterogeneidade do espaço social extra-europeu201.

Baseando sua análise na abordagem do leque classificatório dos africanos com


base no horizonte cultural que permeia as fontes portuguesas, Horta propôs um modelo
de análise que, no primeiro momento de contato, permitisse perceber como os viajantes
organizavam e pensavam a massa de dados202. Para tanto, ele estabelece um sistema
classificatório em três níveis principais: corpo, crenças e modo de viver; e deles
sobressaem as categorias como branco, negro, cristão, judeu, bárbaro, bestial dentre
outras e as vincula ao contexto dos contatos (quadro 4). A partir disso o pesquisador
analisa as tendências de valorização ou desvalorização do outro e as mudanças na forma
de concebê-los.

Quadro 4 – Níveis e categorias de representação do Africano (c. 1453-1508)

CORPO categorias e signos identificativos:


Branco/Negro/baço, pardo...
organização da descrição e sistema de adjetivação:
caras e copos, cabelos crespos, curtos,
desafeiçoados, presença razoada...

Crenças categorias:
Cristãos/Judeus/Mouro/Gentio-idólatra
(-) (-) (-) (+/-) (-)
(-) e (+) indicam tendências de valorização ou desvalorização

MODO DE códigos de descrição e de avaliação:


VIVER alimentação-trabalho/guerra/vestuário/habitação/organização
Social (“costumes)/entendimento-racionalidade
categorias: Bárbaro, Bestialidade/Política
Fonte: HORTA, José da Silva. “Perspectivas para o estudo da evolução das representações dos
africanos nas escritas portuguesas de viagem: caso da ‘Guiné de Cabo-Verde’ (Sécs. XV-XVII)”.
In: ROGRIGUES, José Damião e RODRIGUES, Casimiro (Ed.). Representações da África e dos
africanos na história e cultura – séculos XV a XXI. Ponta Delgada: Centro História de Além-Mar,
2011.

201
HORTA, José da Silva. Op cit. [1991]. p. 210
202
HORTA, José da Silva. Op cit. [2011]. p. 412
102
Com o passar do tempo e o aumento do contato, a realidade foi desconstruindo o
imaginário espacial prévio: as representações adaptaram-se à necessidade de se
valorizar os espaços gentios africanos, de estabelecer relações diplomáticas e de
começar a organizar o processo de “missionação”203. De uma forma esquemática, como
propõe Horta, a evolução das representações pode ser pensada a partir da interconexão
permanente que articula de um lado as imagens e representações com as condições de
produção de textos e discursos, por outro com a natureza dos contatos e atitudes acerca
dos africanos204. A evolução, portanto, é considerada em seu trabalho com base nas
transformações dentro dessas esferas estritamente conectadas205. Assim, tal como Ana
Cristina Roque, Horta demonstra que há diferenças na alteridade/identidade para com o
africano e busca analisar valorizações e desvalorizações das mesmas. Mas diferenciando
dela, Horta não pressupõe uma “veracidade” das descrições e nem mesmo
representações isentas de estereótipos preconcebidos, além de utilizar para sua análise
as fontes que Roque considera oficial – como é o caso do cronista real Gomes Eanes de
Zurara e Duarte Pacheco Pereira: “compreender o estatuto do Africano à luz das
coordenadas doutrinárias, jurídicas e políticas [...], nomeadamente nos escritos mais
permeáveis à ideologia da Corte, torna-se amiúde decisivo para a inteligibilidade das
representações”206.
Dessa forma, o trabalho de Horta apresenta um sistema classificatório bastante
esquemático e, por vezes, generalizante das representações, a partir do qual é
representado o africano. Mas o pesquisador português insere, de qualquer maneira, o
imaginário europeu, que preferimos chamar cristão, como um importante elemento na
construção da relação entre africanos e portugueses, conferindo a ela uma perspectiva
relacional que poucas vezes tem se apresentado nas análises acerca do tema.
A pesquisadora portuguesa Isabel de Castro Henriques também avalia a
construção do imaginário acerca dos africanos. Contudo, ao contrário do que se veio até
aqui comentando, ela ressalta especialmente a importância da presença africana na
construção da identidade portuguesa. Já que a perspectiva é relacional, ambos os lados
foram afetados pelos constantes contatos que se travaram desde o século XV: “As
complexas relações de Portugal com outros homens, outras culturas, com outros

203
Ibidem. p. 415.
204
Ibidem. p. 415
205
Ibidem. P. 415
206
HORTA, José da Silva. Op cit. [1991]. p. 211.
103
mundos, constituem uma questão indispensável para o estudo da estruturação da nação,
da construção de identidades, da compreensão do que somos enquanto portugueses
[...]”207.
Diversas foram as populações que chegaram, ressalta ela, em Portugal e
deixaram inúmeras marcas pelo país afora. Árabes e romanos, por exemplo, ocuparam o
espaço peninsular cumprindo projetos políticos próprios e assegurando a colonização
dos territórios. Mas se a ocupação desses para a construção do patrimônio português foi
resultado de operações pensadas e organizadas, não se pode dizer o mesmo da herança
africana. A presença destes na Península Ibérica constituiu, reforça Isabel Henrique de
Castro, um elemento diferenciador fundamental: na maioria dos casos, homens,
mulheres e crianças não foram trazidas de lá de livre e espontânea vontade, mas sim
capturados ou comprados no litoral africano. Diferente também foi a herança, pois, ao
contrário dos árabes e romanos, os africanos não legaram estradas, edifícios, religião,
mas sim uma “herança invisível, herança fragilmente materializada, está ela presente, de
forma consciente ou inconsciente, num mundo de imagens e de ideias feitas que se foi
lentamente consolidando no espírito dos portugueses”208.
Assim, a interação de milhões de africanos deixou sinais diretos ou indiretos no
imaginário português; uma herança diversa marcada por formas sincréticas e uma
“contra-herança” – que ao fim também é uma herança – que se traduziu na consolidação
de imagens, estereótipos e de preconceitos resultantes das relações seculares entre
africanos e portugueses. Esses preconceitos pertencem à criação de um imaginário
aplicado há séculos aos africanos e que ainda se encontra vestígios nas anedotas,
caricaturas, contos infantis e juvenis, historias grotescas e monstruosas de ideias sobre
antropofagia e inadequação aos valores da civilização.
Dessa forma, atentando não somente para a importância da construção das
representações portuguesas sobre os africanos na invenção da própria África, Isabel
Henriques de Castro chama a atenção para a influência que os mesmos africanos e suas
representações tiveram na construção da identidade europeia, para qual o exemplo
português é uma metonímia. E tal como José da Silva Horta, ela ressalta a importância
da articulação entre representações e referenciais culturais europeus.

207
HENRIQUES, Isabel de Castro. Os africanos na sociedade portuguesa: formas de integração e
construção de imaginários (séculos XV-XX) In: ROGRIGUES, José Damião e RODRIGUES, Casimiro
(Ed.). Op cit. p. 13.
208
Ibidem. P. 14
104
Nessa mesma linha de análise de Isabel Henriques Castro, que investiga as
representações dos negros africanos na Europa Renascentista e a sua importância na
construção de identidades europeias, está outra coletânea de artigos recentemente
publicada na Inglaterra chamada Black Africans in Renaissance Europe. Ao contrário,
contudo, as pesquisas abrangem outros países europeus e não somente Portugal. Embora
a maioria dos artigos trate da presença africana na Europa, eles apresentam reflexões
sobre termos muito caros a nossa pesquisa, especialmente: africanos, europeus e África
Negra. Kate Lowe, editora da coleção juntamente com T. F. Earle, escreve na
introdução que Portugal era só a ponta do iceberg de toda uma relação Europa-África.
Daí a iniciativa de apresentar trabalhos acerca de outros países, mas sem excluir
Portugal. Focados principalmente na presença africana na Europa os dezesseis artigos
abrangem diversas fontes. Discutiremos aqui, os primeiros que tratam especificamente
das representações do negro africano, tema que nos interessa.
A começar pelos termos que são comumente utilizados – europeus e africanos
– Kate Lowe ressalta que é “um absurdo tratar negros africanos como um grupo
homogêneo nos séculos XV e XVI, assim como é absurdo falar de europeus no período
renascentista. Esses conceitos só possuem valor em oposição ou contraste [...]209”. Lowe
ainda ressalta que nenhum lugar genericamente conhecido como “África Negra” existe
ou existiu. África era/é um vasto continente, cheio de diversidades culturais, sociais,
religiosas, linguística e étnica. Mas os primeiros contatos seguidos pelos estereótipos
retiraram toda essa diversidade generalizando-as como negros africanos, pois para os
europeus a característica que definia os africanos era a cor da pele, embora o status de
escravo e selvagem também era uma diferenciação do branco e civilizado cristão210. Só
assim é possível falar de africano e europeu.
Apesar do estereótipo relacionado ao negro africano existir desde muito antes
do Renascimento, foi neste período que teve ele lugar na própria definição do branco
europeu: “É paradoxal que a propósito de uma definição para cristalizar a brancura
europeia, foi necessário aos europeus renascentistas encontrar negros africanos na
aparência”211. Assim, por meio do termo “negro”, os europeus categorizaram e

209
LOWE, Kate. The Black African presence in Renaissance Europe. In: EARLE, T. F.; LOWE, K. J. P.
Black Africans in Renaissance Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. p. 2.
210
Ibidem. p. 6
211
LOWE, Kate. The stereotyping of black Africans in Renaissance Europa. In: EARLE, T. F.; LOWE,
K. J. P. Op cit. p. 47
105
estereotiparam de diversas maneiras os nativos africanos, em uma oposição às
particularidades da visão renascentista ideal. A primeira leva de escravos capturados na
costa ocidental da África desencadeou, afirma Lowe, a ideia de civilização, que se torna
critica para a própria imagem europeia, na qual
certas noções europeias de civilização solidificadas no sistema de
crenças, e vários conjuntos de comportamento europeu foram
rotulados como civilizados e vários outros conjuntos de
comportamento não-europeu foram (por contraste) rotulados como
incivilizados212.

Assim, uma das principais problemáticas de Lowe é analisar como o


estereótipo do negro africano foi usado no Renascimento sendo uma categoria analítica
que excluiu os africanos subsaarianos da vida e cultura europeia: “A força dos
estereótipos e as contradições inerentes à justaposição do conceito de negro africano
com liberdade, poder, status, saúde e civilidade foram responsáveis por respostas
desiguais”213. Esse processo, argumenta ela, era multifacetado e teve, portanto, vários
componentes em conformidade com normas renascentistas de comportamento.
Pesquisando em diversas fontes – literatura de viagem, pinturas, livros e
diversos outros – Lowe analisa as imagens do negro africano que ali se construía e
reproduzia pela Europa. De acordo com a pesquisadora, a visão do negro tinha uma
certa unidade em toda a Europa, já que determinados lugares comuns pululavam nas
representações. A primeira e mais óbvia diferenciação é a cor da pele. Embora tivesse
diversas variações de cor na África como um todo: “a chamada pele negra era quase que
uniformemente condenada, e era impossível para o negro africano escapar das
implicações negativas de sua pele”214. A própria escravidão corroborava para a relação
direta feita pelos europeus entre escravo e negro. A nudez, a preguiça e a luxúria
também eram categorias constantemente vinculadas à imagem do africano que serviam
para inferiorizá-lo aos olhos do europeu. Contudo, determinadas características eram
ressaltadas e nem sempre eram negativas: a força física, bem como aptidões para a
guerra, música e dança eram constantemente ressaltadas, Embora elas também pudessem
ser usadas como forma de denegrir o africano, como reforçar as aptidões físicas em detrimento
de uma qualidade intelectual 215.

212
LOWE, Kate. Op cit. p. 18.
213
Ibidem. p. 43
214
Ibidem. p. 20
215
Ibidem. p. 41.
106
Dessa forma, a análise de Lowe apresenta uma proposta crítica de análise das
representações europeias acerca do negro africano. Sem perder de vista o que José da
Silva Horta chamou de horizonte cultural, Lowe atenta para as imagens pré-concebidas
do negro e dos estereótipos que tais imagens e o contato, em justaposição, construíram.
Os termos África Negra, negro, africano e europeu – tão caros ao nosso trabalho –
foram por ela analisados também como construções e enquanto tais são interpretados a
partir de uma perspectiva relacional e contextual.
Outro artigo da coletânea que versa sobre o assunto é o de Jeremy Lawrance.
No entanto, ao contrário da abordagem mais geral de Kate Lowe, Lawrance foca na
literatura espanhola. Tendo em vista que Portugal e Espanha foram os países europeus
com a maior população negra desde os primeiros encontros, a dinâmica social era um
pouco diferente dos demais países. Nesses casos, ressalta ele, negros libertos, até final
do século XV, já tinham fundado suas próprias confraternizações e estavam presentes e
envolvidos na estrutura social, mesmo que ainda marginalizados.
A presença do negro africano foi, pois, amplamente refletida na literatura e o
principal estereótipo reforçado foi a escravidão justificada pela maldição rogada por
Noé a seu filho Cam: “Nenhuma quantidade de contato com reais africanos poderia
substituir essas ideias – ao contrário, a escravidão tornou-se o fato mais importante
reforçando estereótipos étnicos”216.
A imagem do africano, ressalta Lawrance, mesmo na etnologia erudita ou na
popular caricatura, constantemente era retratada com algumas características comuns
nas quais a relação entre o corpo e cultura identificam a nudez como alegoria de uma
desenfreada luxúria. Em um dos exemplos citados por Lawrance, Comiençan unas
coplas a los negros y negras (1500-10) de Rodrigo Reinosa, conta-se a história do negro
liberto, Jorge, e da escrava Kumba. Jorge se considera um “bom negro” por servir ao
bispo e ter conquistado a alforria dando-lhe um “porte”. Ao propor à Kumba que
casassem, a mesma recusou e daí começou a discussão. Os insultos do debate se deram
diretamente às regiões de origem de cada um. Kumba acusa o esfomeado Jalofo de
comer escaravelhos e cabeça de cão. Já Jorge indignado responde que a Guinea é uma
terra podre de pessoas preguiçosas que comem peixe podre. Laurence ressalta que o

216
LAWRANCE, Jeremy. Black Africans in Renaissance Spanish literatura. In: EARLE, T. F.; LOWE,
K. J. P. Op cit. p. 71
107
poema é uma paródia que zomba do escravo, apresentando suas regiões como sujas e
bárbaras217.
Outro exemplo, dentre tantos analisados por Lawrance, é o anônimo Coplas de
cómo uns dama ruega a um negro que cante (1520). O tema principal é a sedução de
um escravo por sua senhora branca. A inocente rima, “Canta, Jorge, por tu fe, y verás
que te da’re, uma argolla para el pie, y outra para la garganta”218, se transforma no
requiebro, ou sedução, envolvendo uma perigosa inversão das regras sociais.
Recorrendo a um tabu da sociedade espanhola que era a relação entre a senhora branca e
o seu escravo, o poema joga com os estereótipos acerca do negro africano especialmente
no que tange a sexualidade, ou o excesso dela – analisa o pesquisador. Apesar de toda a
lamentação de Jorgico, sua “máscara” cai quando ele começa a se vangloriar de moer
como um moleiro e atirar como um arqueiro – expressões, que segundo Laurence,
tinham duplo sentido na época.
Assim sendo, Jeremy Lawrance segue analisando diversos poemas dos séculos
XV e XVI que de uma forma ou de outra vão divulgando determinados estereótipos
acerca da imagem do negro africano na Espanha que confluem para a análise feita por
Kate Lowe mais acima. Esses mesmos estereótipos aparecem também nas regiões mais
ao norte da Europa. Anu Korhonen, em seu artigo na mesma coletânea, investiga a
conceitualização da pele negra na Inglaterra renascentista a partir de alguns exemplares
da literatura inglesa como Richard Brome (meados do século XVI) e George Beste
(XV-XVI). Segundo Korhone, a África subsaariana – “Terra dos Negros” –, era
conhecida pelos ingleses como um continente misterioso habitado por pessoas
desconhecidas219. A enigmática natureza da pele negra foi central, ressalta o
pesquisador, para a construção da “alteridade” e também pelas implicações à identidade
branca. Enquanto o conceito de raça ainda não tinha emergido, a cor da pele serviu
como fronteira da civilidade e barbaridade marcando o status do africano de diferentes
formas. A aparência era a típica característica ressaltada na relação entre o “eu” e o
“outro”, e o que era visto na superfície do corpo era reflexo tanto do ser quando do
cultural220.

217
Ibidem. p. 74
218
Ibidem. p. 86
219
KORHONEN, Anu. Washing the Ethiopian White: conceptualising black skin in Renaissance Europe.
In: EARLE, T. F.; LOWE, K. J. P. Op cit. p. 95
220
Ibidem. p. 96
108
Assim, as características físicas do negro eram interpretadas nesse esquema: o
negro equivalia à feiúra e a deformidade, enquanto que o branco relacionava-se à
beleza221 e a lealdade. A pele negra também estava associada ao exótico e erótico, e
produzia uma mistura de prazer combinado com horror. Ressaltando a imoderada
sexualidade e imoralidade dos negros, alguns exemplares da literatura inglesa fazem
uma distinção entre o branco sinônimo de virtude e que o negro se vinculado à luxúria e
impureza. Tendo como pano de fundo a tradição cristã, muitos escritores ingleses
relacionavam a pele negra ao demônio. O pecado era preto e a virtude era branca. Nesse
sentido, por exemplo, em muitos textos medievais, Lúcifer se torna negro como um
sinal por pecar contra Deus.
Dessa forma, de acordo com Anu Korhonen, “a pele negra era talvez não ‘a
característica definidora na construção da alteridade’ na Inglaterra renascentista (como
Lynda Bosse sugeriu), mas no encontro entre o branco inglês e o negro africano, ela
certamente foi extremamente poderosa”222. Como um sinal visível e observável, a pele
negra, argumenta ele, foi definidora nas várias descrições acerca da África e dos
africanos e incorporou muitas das definições europeias acerca do continente.

Esses trabalhos, por fim, longe de esgotarem a discussão, apresentam alguns


pontos que tem permeado o debate em torno, direta ou indiretamente, de uma invenção
da África. Os trabalhos de Appiah e Mudimbe inserem a [ideia] de África a partir de
uma perspectiva de construção histórica respaldada pelo conceito de invenção. Contudo,
o objetivo fundamental dessas análises é a busca política e ideológica por uma autêntica
identidade africana, desconsiderando [ou tentando desconsiderar] qualquer influência e
relação com o Ocidente. Por outro lado, não necessariamente no outro extremo, estão os
europeus que tem se esforçado nas análises das representações e estereótipos sobre a
África e os africanos que Mudimbe tenta apagar. Sem utilizarem do conceito de
invenção, mas ressaltando a importância de se pensar a África e os africanos como
construções, os pesquisadores europeus analisam diversas representações que
permearam, e permeiam, a imagem do continente com base no “imaginário” da época
que muito influenciou o encontro entre os dois grupos.

221
A beleza no período em questão tinha a ver com harmoniosas proporções de todas as partes do corpo e
das convenções Petrarquistas especialmente focadas no nariz, lábios e cabelos. (Ibidem. p. 97)
222
Ibidem. p. 111
109
II. Através da mediação

A África, ou as Áfricas no plural, não é só os processos internos do continente,


elas são também representações que se fazem sobre o continente. É nesse sentido que
ela é uma invenção pautada em representações mediadas, no caso aqui proposto, pela
literatura de viagem e cartografia com base no imaginário cristão da época.
Ao tratar do período dos primeiros contatos, a relação diádica223 estabelecida
entre africanos e europeus perpassa especialmente, porém não unicamente, pela
mediação de textos – escritos e iconográficos. Essa característica mediadora, analisada
pelo sociólogo alemão Georg Simmel, das relações sujeito-objeto nos levou a pensar e
tentar analisar tais fontes a partir do seu caráter sociológico224. Depreende-se disso que a
premissa da mediação institui uma malha de ligação, ou seja, enquanto meios esses
textos são, ao mesmo tempo, o resultado e a forma impulsionadora de um processo de
transformações encadeadas de diversas forças, necessidades sociais e correntes
simbólicas que vão se desenvolvendo225.
Os mediadores imprimem uma dinâmica na sociedade. Seus conteúdos chegam
muitas vezes a se autonomizarem, desprendendo-se dos sujeitos que os construíram: “A
pessoa já não se vê a si mesma na sua obra; esta torna-se tão pouco parecida ao todo
pessoal-espiritual e surge apenas como uma parcialidade completa da nossa essência,
indiferente à unidade total do homem”226. Dessa forma, quanto mais um determinado
fenômeno é atravessado por múltiplas instâncias de mediação, mais o caráter destas
instâncias consiste sem ser válido como parte de uma totalidade. Por consequência, essa
totalidade é mais independente dos sujeitos que lhes deram origem227.
Pautada nessa premissa de mediação, a historiadora Alida Metcalf baseou sua
análise das representações do encontro entre europeus e nativos americanos:
“mediadores influenciaram as dinâmicas de poder em jogo nas relações entre os mundos

223
De acordo com Georg Simmel, a formação sociológica mais simples é aquela que opera entre dois
elementos e ela contem o esquema, o germe o material de inúmeras formas mais complexas. Assim, a
limitação a dois elementos é condição necessária de existência para diversas formas de sociabilidade
(SIMMEL, Georg. The sociology of Georg Simmel. Trans. Kurt Wolff. New York: Free Press, 1950. P.
122).
224
Simmel desenvolveu sua análise de mediação tendo o dinheiro como exemplar dessa categoria, já que
“o dinheiro não pode exercer a função de troca sem, ao mesmo tempo, medir valores, mas a última função
é, em certos aspectos, independente da antiga. (SIMMEL, Georg; FRISBY, David. The philosophy of
money. Routledge, 2004. p. 191)
225
GARCIA, José L. “Sobre as origens da crítica da tecnologia na teoria social: Georg Simmel e a
autonomia da tecnologia”. Scientiae Studia, v. 5, 2007. p. 300
226
SMMEL, Georg Op cit. p. 455 .
227
GARCIA, José L. op cit. p. 314.
110
indígenas e europeus”228. Dialogando com o linguista Stephen Greenblatt que em seu
livro Possessões Maravilhosas também trabalha com a mesma noção, Alida ressalta que
ele, mais interessado nas “práticas representacionais” que os europeus criaram para
descrever os americanos, analisa os mediadores enfatizando que os mesmos tendem a
ser os escritores de textos e os escultores de imagens:
O contato europeu no Novo Mundo é continuamente mediado por
representações; em verdade, o contato em si, pelo menos quando não
consiste inteiramente em atos de agressão e assassinato, revela-se
quase sempre em contato entre representantes munidos de
representações229

Baseando-se, assim, nas observações de Greenblatt, Metcalf formulou tipos de


mediadores que, de uma forma ou de outra, se fizeram sentir nas relações entre os dois
grupos em contato. O primeiro tipo é o físico, que Metcalf prefere chamar de biológico,
pois carregam doenças, introduzem animais europeus e transplantam da América flora e
fauna para a Europa. Marinheiros, capitães, tripulação, colonos e passageiros são todos
mediadores físicos e biológicos, assim como também africanos que atravessaram o
Atlântico em direção ao Novo Mundo e também à Europa como escravos. Não é por
acaso que uma das primeiras iniciativas dos europeus quando encontram ilhas e terras
desconhecidas, foi logo de levar produtos e escravos, e deixar outras mercadorias: “Os
mercadores portugueses resgatam nesta terra muitos couros de vacas e doutras animálias
e muitos escravos, ouro pouco. E levam para lá alquicees, bedees, pano vermelho e azul.
E cavalos”230
O segundo tipo é o transacional que são os tradutores, negociadores e
mediadores culturais (cultural broker). Alguns são famosos individualmente, como é o
caso da Doña Marina ou Sacagawe (guia intérprete nas expedições pela costa norte-
americana do Pacífico no século XIX). Mediadores transacionais possuem complexas e
inconstantes lealdades que são difíceis para os historiadores modernos reconstruírem.
Tanto europeus como indígenas perceberam o poder da mediação transacional e muitos
utilizaram-se disso. Embora pouco frequente nas fontes aqui analisada, a presença de
intérpretes foi importante nos primeiros contatos com os africanos e por isso Luís
Cadamosto estava sempre acompanhado de seu turgimão negro. O Infante Dom

228
METCALF, Alida C. Op cit. p. 12
229
GREENBLATT, Stephen J. Possessões maravilhosas: o deslumbramento do novo mundo. São Paulo:
Edusp, 1996. p. 159
230
FERNANDES, Valentim. Op cit. p. 69
111
Henrique, muito antes, na viagem de 1436, instruía exatamente no sentido de que se
capturasse um possível tradutor, chamado de língua, para fazer o contato, conforme nos
conta Gomes Eanes Zurara:
[...] é minha intenção de vos enviar lá outra vez, em aquele mesmo
barinel [embarcação], e assim por me fazerdes serviço, como por
acrescentamento de vossa honra, vos encomendo que vades o mais
avante que poderdes, e que vos trabalhareis de haver língua dessa
gente, filhando um [...]231

De acordo com Zurara, fica claro que ao longo da costa africana a adoção de
tradutores não fora de bom grado. O cronista nos conta que os primeiros capitães, Antão
Gonçalves e Nuno Tristão, ao trazer intérpretes, o fizeram capturando Berberes a força.
E assim, levando cativos a Portugal, esses capitães conseguiram marcar a virada na
forma como o infante Dom Henrique instruía as embarcações e comandava a exploração
da costa africana. O contrário também foi narrado por Zurara. Em 1445, quando as
caravelas foram ao Rio do Ouro, o escudeiro João Fernandes “[...] que por sua vontade
lhe prouve ficar em aquela terra somente pela ver e trazer novas ao Infante, quando quer
que se acertasse de tornar”232. Ele lá ficou comendo somente pescado e leite de
“camelas”, depois de sete meses solicitou seu retorno, quando partiu “[...] muitos deles
[azenegues] choravam com saudoso pensamento”233. Diogo Gomes, por sua vez,
ressalta o importante papel do preto chamado Bucker, conhecedor daquelas terras, que o
orientou ao subir o rio em direção a Cantor. Lá chegando, ordenou que saísse para que
“[...]manifestasse aos homens d’aquella terra o modo a fim porque ali viera para tratar
comércio. E assim em grande multidão os negros se aproximaram”. Foi feita a paz entre
eles.
O terceiro, e mais poderoso, tipo de mediadores são aqueles que representaram
o outro para europeu, ou vice-versa234. Para Greenblatt, todos os mediadores, de uma
forma ou de outra, são representacionais, ao passo que no trabalho de Metcalf, ela faz
uma distinção entre eles que é claramente baseada no poder e influência. Para Metcalf,
mediadores representacionais são aqueles que através da escrita, do desenho, da
confecção de mapas e da tradição oral perfilaram como os europeus e americanos [no

231
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 63
232
Ibidem. p. 106.
233
Ibidem. p. 116
234
METCALF, Alida. Op cit. p. 10.
112
nosso caso; africanos] viram-se235. Na grande maioria dos casos são eles que trazem
informações, inclusive, dos demais tipos de mediação.
Mediadores representacionais são, portanto, cartógrafos, escritores, cronistas
que na maioria são europeus. Ao contrário do caso americano, que temos o relato do
lado americano como Guaman Poma, não se tem notícias de relatos, infelizmente, das
representações africanas acerca dos europeus. Envolvendo a dinâmica das
representações, o discurso de viagem, em Greenblat, é por excelência um exemplo
representacional. Nele, percebe-se, além disso, pouca distância entre uma representação
e um representante. Colombo, por exemplo, toma o lugar de algo que transcende a ele
próprio, que autonomiza-se, poderíamos dizer para citar Simmel. A dinâmica que se
insere favorece a isso: em primeiro lugar, as representações e as tecnologias específicas
que as geram são levadas daqui para acolá, movendo-se, na maioria das vezes, em
conformidade com a lógica do comércio e da conquista, embora, também, tomando
direções imprevistas. Em segundo lugar, aqueles que acolhem representações de outras
partes movem-se, eles próprios, em meio a uma série de imagens e técnicas disponíveis
em sua cultura236.
Tudo se baseia, outrossim, no sonho de posse do europeu, ver e assegurar
aquilo que de outra forma seria incrível faz parte da visão significativa e representativa.
O complemento que a imaginação fornece à visão amplia o campo perceptivo e o pouco
que se viu torna-se metonímia do todo. Essa representação, por seu turno, é transmitida
ao público para quem foi escrito ou pelos quais circulou, e o ver se transforma no
testemunhar237. Assim, a pessoa que testemunha ou que representa passa a ser o ponto
de contato, o mediador entre o nós e o que está lá fora.
A difusão, assim sendo, dos textos permite, implica, em última instância, na
autonomização da própria ideia de África. Ideia essa, contudo, inventada pelos próprios
mediadores representacionais com base em um imaginário social. Pois, como
desconstruiu Edmundo O’Gorman para o caso da América, as imagens de um
continente não são algo natural. Assim, ao repensar o aparecimento histórico da
América, o historiador mexicano propôs que a chave para interpretar esse

235
E como ressalta Metcalf, os próprios pesquisadores são, em última instância, mediadores
representacionais – posicionando-se entre o passado e o presente, interpretando culturas passadas e
representando-as para leitores modernos.
236
GREENBLATT, Stephen. Op cit. p. 160.
237
Ibidem. p. 162.
113
acontecimento estava em considerá-lo como uma invenção do pensamento ocidental e
não um como um descobrimento meramente físico, realizado, antes de mais, por
causalidade:
Não será difícil convir que o problema fundamental da história
americana consiste em explicar satisfatoriamente o aparecimento da
América no seio da Cultura Ocidental, porque essa questão envolve, a
maneira de se conceber o ser da América e o sentido que se há de
atribuir à sua história238.

A América não estava dada, enquanto tal não existia. Seu sentido dependeu da
atribuição que lhe concederam em uma determinada forma de conceber o mundo e em
última instância, em uma concepção acerca da dimensão do próprio homem do século
XV. Assim, para além de uma ideia de um Novo Mundo, lida-se também com uma
concepção de europeu. Nesse sentido, a opção pelo termo é de toda sugestiva pelas
ambiguidades que possibilita: de um lado, o termo vem acompanhado do fantástico,
fabuloso, legendário e mítico; de outro, lembra algo que é construído racionalmente239.
Sob essa perspectiva e salvo as distinções entre os processos de invenção da
América e da África, recai a ideia de que esta última é uma categoria construída a partir
de um antigo processo de se concebê-la. Longe de ser algo em si mesma, ela depende do
sentido que lhe atribuem no seio de um determinado imaginário. Em outras palavras, as
imagens da África, e por consequência dos africanos, estão projetadas, nesse momento,
sob um complexo sistema simbólico produzido pelos cristãos, através do qual eles se
percepcionam, dividem e elaboram seus próprios objetivos, constituindo o que
Bronislaw Backzo chama de imaginário social. Este dá legitimidade à ordem vigente,
orienta condutas, pauta e hierarquiza os valores:
Os imaginários sociais fornecem, deste modo, um sistema de
orientações expressivas e afectivas que correspondem a outros tantos
estereótipos oferecidos aos agentes sociais: ao indivíduo relativamente
ao seu grupo social; aos grupos sociais relativamente a sociedade
global, as suas hierarquias e relações de dominação, etc.; a sociedade
global relativamente aos “outros” que constituem o seu meio
envolvente 240.

Contudo, a influência dos imaginários depende, em larga medida, da difusão


destes e, por conseguinte, dos meios que a asseguram. Os imaginários, por sua vez, se

238
O’GORMAN, Edmundo. Op cit. p. 25
239
Ibidem. p. 11
240
BACZKO, B. “A imaginação social”. In: Enciclopédia EINAUDI, v.5, Anthropos-Homem Portugal:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 311.
114
tornam comunicáveis e inteligíveis através da produção dos “discursos” nos quais e
pelos quais se efetua a reunião das representações em uma linguagem241. Os textos
longe de serem discursos neutros, produzem estratégias que tentam impor uma
autoridade, legitimar um projeto ou justificar as escolhas e condutas. Dessa forma,
insere-se o que o historiador Roger Chartier chamou de lutas de representação, lutas
essas que “[...] têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tentar impor, a sua concepção do mundo
social, os valores que são seus, e o seu domínio”242.
Os imaginários, dessa forma, se constituem por meio de categorias
representacionais partilhadas por um determinado grupo social, que permitem entender,
classificar e atuar sobre o real. Por um lado, a África e seus nativos são incorporadas
sob a forma de categorias mentais de classificações da própria organização social; e por
outro, como matizes que constituem o próprio mundo social, na medida em que
comandam atos e definem identidades243. Essas categorias mentais perpassam
especialmente pela reposta humana quintessencial àquilo que Decartes chama de
primeiros encontros: o maravilhamento244.
Confrontados com o estranho, os viajantes recorreram ao maravilhoso não
apenas para assinalar o novo, mas para fazer à relação entre o “cá e o lá”. Mas o que
significa, para o homem daquela época, o maravilhoso, ou como se prefere, a mirabilia?
Aos olhos contemporâneos, o maravilhoso é visto como um atributo pautado pela
capacidade de provocar admiração. No entanto, nesse momento dos primeiros encontros
o maravilhoso é mais do que uma categoria, ele é um universo. O próprio oceano
Atlântico245 é em si maravilhoso, habitat de monstros marinhos e do desconhecido – o

241
Cf. BACKZO, Bronislaw. Op cit.p. 311.
242
CHARTIER, R. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1998. p. 17.
243
Ibidem. p. 18
244
Nas línguas germânicas a palavra wunder designa tanto uma determinada emoção quanto o objeto que
a provoca, já em latim os temos correspondentes são admiratio para designar uma determinada atitude
cognitiva e miracula (milagre) e mirabilia (maravilha) para designar os objetos que lhe dão origem.
(BÔAS, L. V. O relato de viagem e a transmissão de conhecimento empírico do século XVI. Floema, v.
6, ano VI, 2010. p. 140).
245
As águas que hoje identificamos como oceano Atlântico sofreram diversas modificações ao longo dos
anos. Desde os tempos clássicos, em uma breve explanação, tinham sido consideradas como um mar que
circulava o conjunto de terras habitadas e era genericamente conhecido como Mar Oceano, Mare
Oceanus, e assim ficou identificado em muitos mapas como o Planisfério de Cantino. No entanto, essa
denominação não era unitária e muitos, como Pierre Desceliers, também chamavam de Mare Occidentale.
Mas nesse caso, normalmente, ele se refere a sua porção norte, enquanto que ao sul nomeia-se Mare
Australis. No século XVI, a dupla Mar Ocidental/Mar Austral deu lugar ao Oceano Etiópico ou Mare
115
que não dizer das [im]prováveis extensões ao sul? O Atlântico aparece, sobretudo, como
o outro lado e o Cabo Bojador funciona como a fronteira de ruptura para além do qual
não se regressa: “Como passaremos, diziam eles [marinheiros do Infante Dom
Henrique], os termos que puseram nossos padres, com os corpos, ca conhecidamente
seremos homicidas de nós mesmos?”246.
Já em um segundo momento de intensas investidas marinhas, o imaginário do
Atlântico apresenta-se real e navegável. Mas o maravilhoso o ronda, assim como suas
novas ilhas, novos mundos. É dele ou para ele que convergem as águas do rio do
paraíso e que em um primeiro momento encontra-se na África: “Diz-se que este rio
[Senegal] é um dos quatro rios que saem do paraíso terrestre o qual se chama Gion, [e]
que de lá vindo, banha toda a Etiópia [...]”247. Alguns cartógrafos também trataram de
localizar o paraíso nas regiões mais desconhecidas da África, como é o caso da carta-
portulano Catalão Estense. Nele, o artista anônimo, alocou-o na região oriental da
África (Figura 22). Mas depois do encontro com o Novo Mundo e todo o dilema que ele
criou no imaginário cristão, só podia ser lá a localidade do famoso paraíso: “yo muy
asentado tengo em el anima que allí, adonde dije, es el Paraíso Terrenal”248

Figura 22 – Paraíso Terrestre, Atlas Catalão-Estense

Fonte: ver figura 9

Aethiopicus/Mar Atlântico ou Mare Atlanticus como aparece nos mapas de Wilhem Bleau e Frederik de
Witt.
246
ZURARA, Gomes Eanes. Op cit. p. 59
247
CADAMOSTO, Luís. Op cit. p. 116
248
COLOMBO. Diario del tercer viaje. Apud O’GOMAN, Edmundo. Op cit. p. 140.
116
A produção do maravilhamento, como sublinha Stephen Greenblatt, não é uma
mera expressão do efeito que o diferente causa, mas uma estratégia a serviço da
legitimação. Tal reação é em si contextual, pois depende das fronteiras morais e das
classificações naturais em questão; e é perspectivada, pois o que é excepcional para um,
pode ser esperado pelo outro249. A “maravilha” é uma figura central da resposta inicial
dos europeus ao novo e também motivo e influência de ir conhecer, como se percebe no
trecho de Luís de Cadamosto:
[...] há um certo tempo pra cá tinha feito navegar mares que nunca
por outros foram navegados, e descoberto terras de diversas gerações
estranhas, entre as quais se achavam coisas maravilhosas; e que
aqueles que haviam estado naquelas partes tinham feito entre aquela
nova gente grandes ganhos, pois de um soldo faziam sete e dez. E
acerca disso disseram tantas e tantas coisas, que me fizeram, como os
outros, maravilhar, e até fizeram crescer o desejo de ir lá250.

Já na experiência do contato, nos limites da alteridade, o espanto se manifesta


nas diversas ocasiões quando o estranho surpreende os viajantes. Cerimônias, rituais,
adorações, feições, natureza, toda essa diversidade fora do mundo conhecido torna-se
objeto inequívoco de admiração e “na medida em que é removido do corpo do viajante,
o espanto é transferido para o corpo do texto”251, e, continua Luciana Villas Bôas, “a
reintegração do viajante não culmina na dissipação da admiratio, mas coincide com a
sua mediação textual e a sua recontextualização em matérias distintas do livro”252.
Além disso, é bem possível que os negros africanos também tenham
experimentado, conforme atesta Luís de Cadamosto, uma sensação de maravilhamento:
“[...] como uma maravilha, parecia-lhes coisa extraordinária ver um cristão em tal lugar,
nunca dantes visto: e não menos se espantavam com o meu traje e da minha
brancura”253. Ou mesmo os pardos azenegues que quando avistaram pela primeira vez
os navios, “[...] acreditaram que eles fossem grandes aves com asas brancas que
voassem, que de algum estranho lugar tivessem ali chegado”254. Mas, por falta de
relatos das impressões dos africanos, ficamos apenas com as impressões de poucos,
como Cadamosto, que se deram o trabalho de interpretar o outro.

249
BYNUM, Caroline. Wonder. In: The American Historical Review, v. 102, 1997. p. 24.
250
CADAMOSTO, Luís. Op cit. p. 88
251
BÔAS, Luciana Villas. Op cit. p. 146
252
Ibidem. p. 146
253
CADAMOSTO, Luís. Op cit. p. 141
254
Ibidem. p. 107.
117
Adentrar a África subsaariana foi tarefa árdua pelo clima e natureza, mas
principalmente pelo reconhecimento do outro. O que se viu e ouviu deixou a muitos
perplexos e incrédulos, desde o exotismo dos animais até os habitantes, como os
moradores dos montes descritos por Duarte Pacheco Pereira:
Nesta terra há uns homens selvagens que habitam nos montes e
arvoredos desta região, aos quais chamam, os Negros do Beni, <osá>;
e são muito fortes, e são cobertos de sedas como porcos. Tudo tem de
criatura humana, senão que, em lugar de falar, gritam. E eu ouvi já de
noite os gritos deles e tenho uma pele de um destes selvagens255

Mas também instigou e admirou a muitos, como Cadamosto demonstra na


descrição das diferenças naturais da terra e somáticas dos habitantes antes e depois do
rio Senegal:
[...] maravilhosa coisa me parece que para cá do rio todos sejam
negríssimos; e, além de muito pretos, grandes e gordos, e bem
constituídos; e para lá sejam os sobreditos azenegues pardos, enxutos
e de pequena estatura. E para cá do rio, toda a região é árida e seca; e
para lá, abundante de enormes árvores e de diversas espécies de fruta,
novas para nós por não haver tais frutos em nossas terras. E esta
região é muito fértil256

O maravilhamento evoca, portanto, tanto o terror e a repugnância quanto a


deslumbre; tanto a recusa da conquista quanto justifica a apropriação. Assim, o
maravilhoso marcou os limites do conhecido e não conhecido, foi também uma reação a
este e configurou as fronteiras culturais entre o doméstico e exótico, entre o cultivado e
o vulgar257.
Dessa forma, perpassando o maravilhoso do imaginário cristão da época, foi se
inventando a imagem da África e do africano a partir da mediação da literatura de
viagem e cartografia. As fontes não esgotam a questão, tão longe são as únicas
responsáveis pelas representações, mas foram por nós escolhidas para desenvolver um
pouco a problemática da invenção da África na época dos primeiros encontros e por
serem um dos poucos registros desse momento que se fez ou que nos presenteou o
tempo.

255
PEREIRA, Duarte Pacheco. Op cit. p. 150.
256
CADAMOSTO, Luis. Op cit. p. 115
257
DASTON, Lorraine e PARK, Katharine. Wonder and the order of nature, 1150-1750. New York, NY:
Zone Books, 1998. p. 20.
118
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Propusemo-nos traçar neste trabalho alguns aspectos da invenção, enquanto


conceito, da África e dos africanos, especialmente ao sul do Saara, tendo por
mediadores a literatura de viagem e a cartografia cristãs do período que compreende
principalmente o século XV e XVI. A partir dessa documentação buscamos apresentar
alguns lugares comuns que permearam a imagem do continente e seus habitantes e em
ultima instância a própria noção moderna de negro.
A África, diferente da América, não era de todo desconhecida. Suas terras
banhadas pelas águas do Mediterrâneo era antiga conhecida dos cristãos, especialmente
pelo trato comercial. Também desde a Antiguidade Clássica, já se tinha notícias da
entidade África e dos “etíopes”que habitavam suas terras mais distantes, conforme nos
conta Heródoto. Mas a questão se impunha nas zonas tórridas que Aristóteles dizia ser
impossível servir de moradia ao homem. As terras para além do Trópico de Capricórnio
só poderiam ser o habitat de seres monstruosos.
A organização do mundo, no período que se segue, ganhou contornos
teológicos. A partir dos preceitos bíblicos, as partes habitáveis foram vinculadas às
gerações dos filhos de Noé: a África ficou com os herdeiros amaldiçoados de Cam, a
Europa com o mais velho Jafet e a Ásia com o do meio Sem. Para os mais ortodoxos, os
monstros das zonas tórridas seriam apenas blasfêmias, mas o fantástico e o maravilhoso
se faziam presente inclusive nos mapas religiosos da Idade Média. Neste momento, as
terras tórridas e/ou as antípodas poderiam sim servir de morada a seres de outras
espécies: monstros, animais fantásticos e demais. Dessa forma, enquanto ao norte a
África abrigava importantes enclaves comerciais, para além ocupava-se apenas a
imaginação.
Quando as caravelas portuguesas se encontraram em terras ignotas além do
Cabo Bojador, a possibilidade de serem habitadas deixou de ser uma suposição e
tornou-se um real problema. Seriam aquelas estranhas gentes de costumes tão diversos
filhos de Adão? A problemática da unidade fundamental do gênero humano estava
posta. Nessa conjuntura, o norte africano já era o eixo comercial nas trocas
mediterrânicas que pelas rotas trans-saarianas traziam o principal motor do comércio: os
metais preciosos do Sudão. Através dessas rotas, mercadores islamizados já se

119
enveredavam pelo interior do continente atingindo pontos inimagináveis pelo
pensamento cristão estendendo a África conhecida em direção ao sul, em uma invenção
paralela à dos cristãos por nós analisados. A partir desses mercadores islâmicos do
norte, a lei de Maomé expandiu seus domínios através do Saara alcançando limites
desconhecidos aos cristãos. Assim, quando estes chegaram com seu duplo desejo de
explorar e incorporar novas terras e almas, o islamismo já havia iniciado sua expansão.
Mas sua presença foi descrita e avaliada com base nos referenciais que os autores
tinham a respeito da religião. Inimigos da fé, mentirosos, traidores e viciosos aparecem
em todas as narrativas como características daqueles que acreditavam na “burla
macometa”. Sem medo de Deus eram povos condenados. A presença do islamismo em
terras negras prejudicava os projetos evangelizadores e diminuíam as chances de
encontrar reinos cristãos. Os europeus afirmaram a possibilidade de conversão dos
negros africanos, interpretando como uma pouca adesão à doutrina islâmica as
diferenças entre o islamismo que se praticava ali e o da África do Norte/Península
Ibérica.
Mas as diferenças entre o islamismo que se praticava na África do Norte e na
Península Ibérica e o que se verificou naquelas terras contribuíram para afirmar a
possibilidade de conversão dos negros africanos – já que tais diferenças foram
relacionadas pelos cristãos a uma pouca introdução às doutrinas islâmicas.
Dessa forma, durante os primeiros séculos após o contato, os negros foram se
tornando seres conhecidos e incluídos na cultura cristã, mas a literatura de viagem não
se preocupou em abarcar a complexidade cultural desses povos como esforçamo-nos em
demonstrar. Observando o cotidiano, selecionaram informações e relacionaram-nas ao
universo cristão. Os autores anularam as particularidades daquelas gentes e deram-lhes
novos atributos. As alcunhas de bárbaro e gentio legitimavam a conquista e a
intervenção, pois cabia aos cristãos livrá-los do atraso e da penúria. No entanto, a
idolatria e o islamismo serviram para manchar a alma dessas gentes e renegá-los a um
posto inferior.
Haveria, destarte, duas formas de categorizar os negros africanos: mouros e
gentios. A primeira categoria, na maioria dos casos, abrangia aqueles que haviam se
convertido, ainda que superficialmente, ao islamismo. Mas mesmo entre eles haveria
distinções: aqueles considerados muçulmanos de fato, ou seja, os habitantes do norte e
os mouros por convenção ou castigo. Já os gentios abarcavam os povos considerados
120
selvagens e bestiais. Estes, em um primeiro momento, foram descritos como inocentes
bárbaros, o equivalente ao que mais tarde seriam os índios americanos. Mas tal
inocência se extingue com a percepção da idolatria desses mesmos gentios. O desenho
montado por estes autores da organização e classificação da África e dos africanos não
é, de certa forma, diferente daquele apresentado pela cartografia, onde se verifica
representações de nativos nus, vivendo em aldeia ao redor da figura do “rei” islamizado.
Com o surgimento do Novo Mundo no imaginário cristão, a discussão sobre a
unidade fundamental do gênero humano retoma novo fôlego ainda mais intenso. Era
certo que a divisão do mundo se dava entre os três filhos de Noé, então o que era e a
quem pertencia essa quarta parte que sequer se faz menção na Bíblia? A natureza de
seus habitantes também longe de esgotarem a problemática, cria ainda novas
justificativas: construtores da Torre de Babel, descendente de Sem, uma das “dez tribos
perdidas de Israel”258. Não faltaram tentativas para vinculá-los a uma explicação
teológica do mundo. As desventuras desses primeiros contatos levaram também a
invenção da América e dos americanos259.
A imagem do índio carregou também protótipos que legitimavam e incentivam
a permanência missionária. Para muitos, como Simão de Vasconcelos, a humanidade há
muito havia abandonado-os, pois comportavam-se como animálias, sem política, sem
prudência, possuindo inúmeras perversões, dados à preguiça, à mentira, à gula e à
bebedeira260. Tudo isso confluía para a selvageria e a barbárie a partir das quais eram
descritos – quase nada diferente dos negros africanos. Contudo, as discussões a respeito
da natureza dos ameríndios iam além. No pólo oposto, muitos viajantes e jesuítas
discutiam o selvagem ameríndio a partir do mito do bom selvagem. Nesse sentido, o
idílico e romanceado paraíso se podia sentir naquelas terras, esses selvagens, diria
Michel de Montaigne, eram a ingenuidade pura e simples que o ocidente há muito teria
perdido. Nem mesmo a república imaginada por Platão chegaria a tanta perfeição:
As leis da natureza, não ainda pervertidas pela imisção dos nossos,
regem-nos até agora e mantiveram-se tão puras que lamento por vezes
não as tenha o nosso mundo conhecido antes, quando havia homens
capazes de apreciá-las. Lamento que Licurgo e Platão não tenham
ouvido falar delas, pois sou de opinião que o que vemos praticarem
esses povos, não somente ultrapassa as magníficas descrições que nos
deus a poesia da idade de ouro, e tudo o que imaginou como suscetível

258
POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 112
259
Ver O’GORMAN, Edmundo. Op cit.
260
RAMINELLI, Ronald. Op cit. p. 27
121
de realizar a felicidade perfeita sobre a terra, mas também as
concepções e aspirações da filosofia261.

Portanto, como legitimar a escravidão de habitantes tão inocentes? Depreende-


se disso que a instituição se tornou, por excelência, baseada na mão de obra negra. O
uso de escravos já era uma prática na África antes da chegada dos europeus, mas a
presença destes desenvolveu mecanismos que massificou a mesma, especialmente com
a “descoberta” do mais Novo Mundo. A ampla aceitação da instituição, ao mesmo
tempo em que vinculava a imagem do negro a de um escravo, também facilitou a
“interiorização” da África. Com o desenvolvimento do tráfico, a presença portuguesa
deixou de ser isolada no litoral e passou a adentrar em direção ao sul e ao Índico
contribuindo por estender as fronteiras geográficas daquele que já era considerado o
continente africano.
Ao aportarem no Novo Mundo a identificação começou a se fazer a partir do
grupo étnico de origem sem grandes especificações, mas aqui eles passaram a ser
conhecidos pela designação “africano”, “gentio” e “nação”: Mina, Gentio da Guiné,
Congo, Cabinda e demais. Muitas das classificações guardam lugares comuns dos
primórdios do tráfico que perpetuaram ora se mantendo ou se modificando também no
continente americano. E se ainda quisermos avançar no tempo e atingir os séculos que
se seguem ao recorte dessa pesquisa, de forma panorâmica veremos enfatizadas
determinadas noções já tão antigos quanto a própria relação europeus e africanos: “É
preciso confessar”, ressalta Leibniz, “que há pontos importantes em que os bárbaros nos
superam, sobretudo com relação ao vigor do corpo e com relação à própria alma; pode-
se dizer que sob certos aspectos sua moral prática é melhor do que a nossa, porque eles
não têm avareza alguma[...]”. Contudo, continua ele, “há entre nós mais bem e mais mal
do que entre eles: um europeu perverso é mais perverso do que um selvagem”. Por fim,
ele recai em sua posição, a Razão europeia, e acrescenta: “Entretanto, nada impediria os
homens de unir as vantagens que a natureza dá a estes povos com as que a razão nos
dá”262.
Além disso, o homem que dominou as ciências e a natureza no século XVIII,
Carlos Lineu, apresentou os problemas que o confronto do macaco, do negro e do
branco para os cientistas da época. Discutindo genealogias sem o respaldo da antes

261
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo : Abril Cultura, 1980. p. 106.
262
Leibniz, Gottfried. Nouveaux essais sur l’entendemente. Apud. POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 122
122
irrefutável teoria adamita, esse cientista aprofundou ainda mais o fosso entre bancos
legisladores e negros escravos: “seria difícil alguém persuadir-se de que eles saíram da
mesma origem”263. A sua famosa classificação, vale ressaltar, renegou aos africanos a
vontade arbitrária de seus senhores, assim como a astúcia, preguiça e negligência.
Também conde de Buffon, cuja obra Histoire Naturelle foi, quase durante um século, a
principal fonte de informação da Europa culta sobre os homens e os animais exóticos,
ressalta que: “Se existisse o fato de que o negro e o branco podem produzir
juntamente... haveria duas espécies distintas; o negro estaria para o homem como o asno
pra o cavalo, ou antes, se o branco fosse homem, o negro não seria mais homem, seria
um animal à parte [...]”264. E por aí vão diversos exemplos que poderíamos passar
páginas destacando. Mas finalizamos aqui, pois essa já é uma outra história.

263
Lineu, Carlos. Amoenitates Academicae. Apud. POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 137.
264
Buffon, Histoire Naturelle. Apud POLIAKOV, Léon. Op cit. p. 143
123
ANEXOS

Anexo 1 – Exportações de escravos africanos para as Américas, ilhas do Atlântico


e Europa, de acordo às áreas de origem dos cativos, 1501-1866

1501-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1866 Totais


Senegâmbia e Bacia Atlântica 147.281 136.104 363.187 108.941 755.513
Serra Leoa 1.405 6.843 201.985 178.538 388.771
Windward Coast 2.482 1.350 289.582 43.454 336.868
Costa do Ouro 0 108.679 1.014.529 86.114 1.209.321
Baía de Benin 0 269.812 1.284.585 444.663 1.999.060
Baía de Biafra 8.459 186.321 904.616 495.164 1.594.560
África Central Atlântica e St. Helena 117.878 1.134.807 2.365.204 2.076.685 5.694.574
África Sul-Oriental e ilhas do Índico 0 31.715 70.930 440.023 542.668
Totais 277.505 1.875.632 6.494.619 3.873.580 12.521.336

Fonte: Eltis, David; Richardson, David; Berhens, Stephen; Florentino, Manolo. The trans-
atlantic slave trade database. http://wilson.library.emory.edu:9090

124
Anexo 2 – Exportações e importações de escravos africanos para as Américas,
ilhas do Atlântico e Europa, de acordo às áreas de recepção dos cativos, 1501-1866
1501-1600 1601-1700 1701-1800 1801-1866 Totais
1.Europa
Exportações 903 3.639 6.255 - 10.798
Importações 640 2.981 5.239 - 8.860
2.América do Norte
Exportações - 19.956 358.845 93.581 472.381
Importações - 15.147 295.482 78.117 388.747
3. Caribe Britânico
Exportações - 405.117 2.139.820 218.475 2.763.411
Importações - 310.476 1.813.323 194.452 2.318.252
4. Caribe Francês
Exportações - 50.356 1.178.519 99.549 1.328.422
Importações - 38.685 995.133 86.397 1.120.216
5. América Holandesa
Exportações - 145.980 339.559 28.654 514.192
Importações - 124.158 295.215 25.355 444.728
6. Caribe Dinamarquês
Exportações - 22.610 81.801 25.455 129.867
Importações - 18.146 68.608 22.244 108.998
7. América Espanhola
Exportações 241.917 313.301 175.438 860.589 1.591.245
Importações 169.370 225.504 145.533 752.505 1.292.912
8. Brasil
Exportações 34.686 910.361 2.210.930 2.376.141 5.532.118
Importações 29.275 784.456 1.989.017 2.061.625 4.864.374
9. África
Exportações - 4.312 3.451 171.137 178.901
Importações - 3.122 2.317 150.130 155.569
10. Totais
Exportações 277.506 1.875.631 6.494.619 3.873.580 12.521.336
Importações 199.285 1.522.676 5.609.869 3.370.825 10.702.656

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200 p. (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em História Social, Faculdade de
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131

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