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A história da geometria não contada na escola

Pedro Paulo Scandiuzzi1

Resumo: Este trabalho aponta os resultados de uma pesquisa feita em área indígena. Para
dar consta dos dados coletados tive de recorrer a história da matemática e a outras áreas das
ciências. Deparo-me com aspectos da história da matemática esquecidos e/ou não
mencionados no espaço escolar por motivos diversos, mas que pesquisadores como
Seindenberg e Keller traz-nos informações de que este lado da geometria não esta
esquecido.

Palavras chaves: história da matemática; geometria; etnomatemática; educação

Introdução:

A história da matemática nos espaços escolares tem nos auxiliado e muito


para que o processo educacional se desenvolva a contento. Mais ainda enriquecedor tem
sido a construção da história da matemática pelos alunos como metodologia de ensino.
Um dos primeiros indícios da existência de outra lógica no campo da
geometria está sinalizado por Boyer (1974) quando nos diz que Heródoto dizia que a
origem da geometria está na necessidade prática de fazer novas medidas de terra enquanto
Aristóteles afirmava que a origem está no lazer sacerdotal e ritual e ambos não tem a
audácia de sugerir o início antes dos povos egípcios.
Este caminhar da história da matemática e da metodologia de ensino
como construção da história da matemática tem me levado a refletir em minhas pesquisas
com povos indígenas: porque a construção histórica do pensamento geométrico dos povos
indígenas não está contemplada nos livros de história da matemática? Que estes povos têm
a dizem sobre geometria?
Diante destas perguntas este trabalho aporta o objetivo de fazer uma
tentativa de trilhar este caminho desconhecido e por ele, validar a história que não nos foi
contada nos espaços escolares. Trilhar este caminho só foi possível por causa da audácia
exigida na pesquisa etnomatemática.

1
Doutor em Educação pela UNESP – Marília – SP e professor assistente na UNESP de São José do Rio Preto
– SP.
Desenvolvimento do tema:

Trabalhar em área indígena é desenvolver um olhar no individual e no


coletivo do campo social / cultural.
Para desenvolver este olhar, uma pessoa graduada em matemática tem de
deixar uma série de pré - conceitos e adentrar em uma nova forma de visualizar o mundo
que o cerca. Neste trabalho, vou ater-me em uma figura geométrica – a hipérbole – não
esquecendo as recomendações da antropóloga Ribeiro (1989): a) a interpretação do motivo
ornamental pode não ser idêntica; b) cada grupo indígena imprime em sua arte a
singularidade do seu modo de ser e suas principais motivações e c) a arte indígena reflete
um desejo de fruição estética e de comunicação de uma linguagem visual.
Também para este novo olhar devemos usufruir dos dizeres de Santos
(1975):
“o mundo horizontal2 e o mundo da comunicação editorial vertical3 atuam por
meio de elementos visuais, auditivos e táteis, mas entre eles a diferença é profunda.
O primeiro convenciona uma imagem mental, através destes três elementos que
podem também ser transformados em escrita. O segundo cria, através destes três
elementos, um conceito cuja atuação está colocada no mesmo elemento formal.
ELES NADA POSSUEM DE COMUM EM SEUS CÓDIGOS. ENTRE ELES, O
ÚNICO ELEMENTO COMUNITÁRIO É O SER HUMANO”.

Em alguns indícios apontados por Carvalho (1979) a figura hiperbólica


está relacionada ao mito dos gêmeos, e sabemos pela literatura que o mito gemelar é um
código estruturado para uma informação datada de mais ou menos 6300 AC4.
Nos escritos de história da matemática, não encontrei a hipérbole como
uma forma geométrica descrita antes dos estudos de Menaecmo, a não ser as observações
características dos livros de História da Matemática, tais como estão nos dizeres de Boyer
(1974; p.70,97,103-107) e de Domingues (1998,p.43).
O ponto de vista de Seidenberg (1960-1962) nos impulsiona a pensar que
a geometria teve sua origem nos rituais, que existe uma distinção entre uso e origem e que
os círculos e quadrados eram figuras sagradas e eram estudadas pelos sacerdotes tal qual
eles estudavam as estrelas, nominalmente, para conhecer seus deuses melhor. Keller (1995)
2
mundo horizontal é o espaço entre o elemento mental e a forma convencional representada, com todos os
riscos e a falta de garantia que este espaço representa em suas formas oral e escrita.
3
comunicação vertical é a edição do som, do gesto e do movimento.
4
Para maiores esclarecimentos ver Scandiuzzi (1997) e Scandiuzzi (2000).
apresenta a construção geométrica como ritual e as formas geométricas como portadoras de
símbolos.
O formato do campo de bola é hiperbólico, o túmulo dos caciques segue
este mesmo formato, a pintura do cabelo do pajé... e os livros de história da matemática que
não mencionam algo significativo... Todos esses dados aguçaram o meu olhar para esta
figura. Sendo assim, fiquei atento ao jogo de bola, uma vez que o campo de jogo se
diferenciava assustadoramente dos nossos campos.
O fato do mito dos gêmeos estar presente no jogo de bola e ter um campo
hiperbólico fez-me deter nos movimentos do sol e da lua. O movimento do sol e da lua
deveriam ser observados deste lugar específico da aldeia dos kuikuro. Estas afirmações
solidificam o encaminhamento do programa de etnomatemática no caminho do respeito,
solidariedade e cooperação.
Campos e Franchetto (1987) nos afirmam que o sol em seu movimento
anual percorre o horizonte entre os dois solstícios, num angulo de 48º se olharmos da
praça central e simétrico com o eixo leste – oeste, eixo este chamado pelos astrônomos de
meridiano local. Vieira5, em um email de 20/04/00 afirma que este ângulo é na verdade de
46º (-23º a +23º) para o movimento do sol e de 56º (-28 a +28º) para o movimento da lua,
durante o ano. Não consegui encontrar respostas de como é determinado o meridiano local
pelo povo kuikuro, mas para eles é importante determiná-lo e o determinam!
Os indícios de que da casa dos homens o movimento do sol e da lua,
durante o ano, forma o ângulo do meridiano local, sugere que, para construir a aldeia, este
povo observa as sombras projetadas pelo sol e constrói a casa dos homens dentro do
círculo. A porta central desta casa está perpendicular ao meridiano local e possibilitará a
observação, quase que diária, do movimento do sol e de suas sombras. Talvez seja por este
motivo que Campos e Franchetto (1987, p.263) explicam que este tipo de construção

“integra o conhecimento dos kuikuro ao incorporar-se na arquitetura de suas aldeias pelo


alinhamento este - oeste de três elementos: o local da luta, o banco de tora e a casa dos
homens. Esta incorporação faz possível que funcione uma espécie de relógio solar, onde a casa
funciona como abrigo aos raios solares, ao projetar-se sua sombra sobre a praça da aldeia. Até
as três da tarde, quando a praça se encontra com sol, tem início a luta; e termina quando a
sombra, inicialmente sobre a tora, cai sobre os lutadores”.

5
Fernando Vieira é astrônomo do planetário do Rio de Janeiro e seu endereço eletrônico é:
planetário_rio@hotmail.com
Que observam os kuikuro, através das sombras durante o ano?
Apesar da pergunta estar falando no geral, para todo o povo kuikuro,
sabemos que existem os especialistas observadores que passam estas informações nos
diálogos diários. Não sei informar se as mulheres fazem observações deste tipo, mas pude
perceber que os homens as fazem.
No dia dos dois solstícios – o do inverno e do verão – quando a curva feita
pela sombra de algum objeto e que foi observada no percurso de um dia é a que se distancia
mais deste objeto, perceberão que elas formam os dois lados da hipérbole6, enquanto que,
no dia do equinócio7, - que acredito ser o das festas do quarup, pois estas festas são em
setembro – eles vêem uma reta. O sol sai no horizonte, lança seus raios solares em direção à
casa dos homens, passa pelo local do huka-huka, pela tora e pela porta central e segue seu
caminho passando pela casa do chefe da casa dos homens. Neste dia do equinócio, a casa
dos homens e a casa do chefe da casa dos homens receberão a luz do sol mais intensamente
pela porta de entrada.
Estas observações solares e lunares, entre os solstícios e equinócios estão
relacionadas com as colheitas e plantios uma vez que o povo kuikuro tem as estações da
seca e das chuvas. Por exemplo, início da coleta dos ovos de tracajá é sinal de que as
chuvas estão chegando, que o dia da passagem do sol pela porta central da casa dos
homens, onde está a flauta kagoto, também está chegando. O equinócio da primavera se
aproxima. Será nesta época que os arcos da hipérbole vão trocar o lado, mudar a sua
posição em relação ao eixo de simetria, que, neste caso, é a sombra produzida pelo
equinócio, e as sombras se projetarão simetricamente, até que volte ao equinócio do outono.
A simetria de reflexão ocasionada pelos movimentos do sol é observável no decorrer de um
ano.
A lua por sua vez estará produzindo uma mesma figura hiperbólica
durante o ano, mas suas sombras podem ser observáveis somente na lua cheia, ou nos dias
próximos a esta fase da lua. Será por causa das observações serem feitas a partir do sol e da

6
Estes dados, que garantem que as sombras no local da aldeia desenham uma hipérbole, foram confirmados
por Vieira no email citado acima.
7
No hemisfério Sul, no ano 2000 o equinócio da primavera foi dia 22 de setembro as 17h27’ e equinócio de
outono 20 de março as 07h35’. (site: http://www.if.ufrg.br/~kepler/fis207/estaçoes.htm)
lua que a forma geométrica do círculo e da circunferência estão presentes? Podem também
se juntar a estas observações as quatro fases da lua? Esta última interrogação é proveniente
de que a observação lunar, durante as quatro fases da lua, também produz uma figura
hiperbólica, com eixo central de reflexão na lua nova e seus extremos estão de uma lua
cheia a outra, caracterizando o mês, por isso o uso de “meu filho tem x luas”.
Estas observações confirmam as conclusões de Carvalho (1979) a respeito
da tríplice encruzilhada, quando discute o desenho feito por Steinen (1940). A tríplice
encruzilhada se dá entre três círculos que se interceptam, produzindo três espaços
definidos: o espaço que permite o relacionamento com pessoas e “coisas” que não
pertencem à aldeia, chamado por Carvalho de “mundo exterior” geográfico; o outro espaço
é o que simboliza o “mundo nosso”, mundo dos kuikuro. Estes dois espaços permitem a ida
e vinda, enquanto o terceiro espaço, que é o espaço formado pelas curvas da hipérbole –
espaço onde se dá o eixo da simetria da hipérbole, onde está o jogo da vida e morte, da lua
e do sol – este não tem retorno.

Conclusão:

Os resultados desta pesquisa apontam para que um novo olhar de


geometria deve ser lançado nos espaços escolares. A globalização e a holização nestes
últimos anos nos direciona para este novo olhar. Falar de uma geometria que faz parte do
cotidiano e que tem significado transcendente nas suas formas parece-me mais atraente do
que elucidar a geometria euclidiana que limita o ser humano a racionalidade esquecendo do
lado emotivo, afetivo, emocional que o complementa.
Também sugere que os pesquisadores em história da matemática devem
estar atentos aos resultados das pesquisas que utilizam o caráter etnográfico, para possíveis
inclusões nos livros de história da matemática destes resultados e assim construir a história
da matemática produzida por povos até agora não reconhecidos.
Se esta construção acontecer, possivelmente a área educacional se
transformará e poderá revitalizar o ensino da matemática.
Referências Bibliográficas:

1. BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo. Edgard Blücher Ltda.


1974
2. CARVALHO, S. M. S. Onças míticas e jogo de bola. In: Revista de Antropologia.
VolXXII. 1979
3. DOMINGUES, H. H. Seções Cônicas: história e ensino. In: Revista de Educação
Matemática. São Paulo. SBEM. Ano 6 nº4. 1998. P. 43- 49
4. FRANCHETTO, B. e CAMPOS, M. D. Kuikuru: integración cielo e tierra en la
economia y en el ritual. In: DE GREIFF, J.A. e REICHEL, P. E. Etnoastronomias
americanas. Bogotá. Ediciones de la Universidad Nacional de Colômbia. 1987
5. KELLER, O Préhistoire de la geométrie: l´étrange gestation d´une science d´après les
sources archéologiques et ethnographiques. In: La construction des savoirs
mathématiques. Actes de la 6ème Université d´été interdisciplinaire sur l´histoire des
mathémattiques. Bensançon. France. 1995 p.15 – 40
6. RIBEIRO, B. G. Arte Indígena, Linguagem Visual. Belo Horizonte – MG. Itatiaia.
São Paulo- SP Ed. Da USP. p.187 1989
7. SANTOS, Y. L. BARRACCO, H. B. e MYAZAKI, N. Textos - ritos do índio
brasileiro: xinguano e kadiwéu. São Paulo. EBRAESP. 1975
8. SCANDIUZZI, P. P. Educação Indígena X Educação Escolar Indígena: uma relação
etnocida em uma pesquisa etnomatemática. Marília.SP. FE-UNESP. 2000. (Tese
de Doutorado)
9. SEIDENBERG, A. The Ritual Origin of Geometry. In Archive for History of Exact
Sciences. Alemanha. p. 488-527 1960-1962
10. STEINEN, K. von den. Entre os aborígenes do Brasil Central. In: Revista do Arquivo
Municipal. São Paulo. XXXIV – LVIII. 1894/1940

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