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5. 0 positivismo Afilosofia das ciéncias A expressio “filosofia das ciéncias” aparece por volta dos anos 1830, André-Marie Ampere (1775-1836), autor da teoria eletromagnética em 1827, inventor do telégeafo elétrico e do eletroima, vai ser o primeiro a empregar a expresso “filosofia das cigncias” em um livro que visa apresentar uma classificagio “racional” das ciéncias. Na sequéncia, Auguste Comte vai explicar que ele poderia ter chamado sua doutrina de “filosofia das ciéneias”, mas que ele finalmente preferiu a nomeagao “filosofia positiva”, a fim de ressaltar 0 cardter, segundo ele, mais cru de sua douteina: sua recusa do negativo. O positivismo se inscreve assim, deimediato, em uma relagio polémica no seio da filosofia, pois o negativo vai ser rapidamente assimilado & metafisica, William Whewell (1794-1866) inaugurou, uma dezena de anos depois de seus primeiros usos em francés por Ampére ¢ depois por Comte, nprego da expressio inglesa philosophy of science, em uma obra cujo titulo completo é Philosophy of inductive sciences, founded upon their history. construgio da verdade, Whewell insiste sobre esse ponto: nao ha diferenga fundamental entre o conhecimento comum eo conhecimento cientifico. 0 catamente como o segundo, Mas suas indug iéncias indutivas, ciéncias que usam a indugdo como método de primeiro pratica indugoe so menos rigorosamente controladas, mais aproximativas, O segundo & 6 uso convenient nente regi lado do primeiro. Por exemplo: cu nao vou pedir a Michel que va me buscar leite, porque ele recusou na iiltima vez. Eis um raciocinio muito comum, quase banal (conhecimento comum). Ele comporta uma indugdo implicita: eu presumo que se lhe pedir novamente a mesma coisa, Michel vai recusar de novo. Mas se reconhecemos aqui a forma do raciocinio indutivo, vemos também que ele é muito mais fragil © aproximativo do que, suponhamos, o mesmo raciocinio que se fundasse sobre uma dezena de recusas sucessivas da parte de Michel. As leis cientificas sio precisamente extraidas de eventos que so observados ndio uma, mas tum grande ntimero de vezes. Do conhecimento comum ao cientifico, a diferenga ndo é de natureza, mas de grau. Eo grau de controle a0 qual sto submetidas as afirmagdes que faz a diferenga. Quando esse grau de controle ¢ frdgil, falamos de conhecimento comum; quando ele é elevado, falamos de conhecimento cientifico, Essa éa concepgao inducion da ciéncia, que poderiamos também chamar de concepgio chissica da ciéncia. Aclassificagao de Ampére e de Comte Com Comte ¢ Ampére, assistimos a uma interessante renovacao da questo da classificagao das ciéncias e, principalmente, ao aparecimento das primeiras classificagdes “racionais”, Nao vai se tratar mais, simplesmente, de catdlogos que ordenam o conjunto dos saberes em um quadro sindptico, mas de “concepgdes de ciéncias” que conduzem a uma certa maneira de pensar sua articulagao. Ora, da concepgao de ciéncias que defendemos depende notadamente 0 estatuto que atribuimos as ciéncias experimentais em relagao As, entao nascentes, ci ias humanas. Essa é uma questo crucial para toda teoria unificada da ciéneia, Na verdade, uma teoria unificada da ciéncia idealmente nao propde qualquer difere entre as ciéncias da natureza e as ciéncias hum: A grande divisao que encontramos hoje nos saberes entre “c da natureza” € “ciéncias humanas” $6 vai se impor bem depois das classificagdesde Ampere ¢ Comte. Entretanto, a problematica dessa divisio ja esta presente em suas reflexdes. Essa divisio vai ser, na sequéncia, designada tanto pela oposigio entre ciéneias da natureza e ciéncias da cultura (Rickert), quanto por aquela entre ci espirito (Dilthey), ou ainda pela divisio entre ciéncias empirico-an: e cigncias hist6rico-hermenéuticas (Ricoeur). Mas essa divistio sempre vai colocar em destaque o fato de quea palavra “ciéncia” deve ser entendida a0 menos er dois sentidos diferentes. Dilthey vai sustentar, por exemplo, ricias da natureza e ciéneias do icas que convém fazer uma distingio entre “explicar” e “compreender”. As cigncias da natureza buscam, segundo ele, explicar os fendmenos percebendo as relagdes constantes entre eles. As ciénicias humanas oferecem apenas pontos de “compreensio” dos fendmenos. Certamente nada disso ocorre no pensamento de Comte, para quem 0 espirito positive comega quando, segundo sua célebre formula, renunciamos & questo “por qué?” para colocarmos apenas a questo “como?”. Aafirma pensar quanto 0 objeto sobre o qual pensamos encontra-se jé colocada em o de uma divisio dos saberes que toca tanto a forma de um contemporaneo de Bacon, Blaise Pascal (1623-1662). Este distingue © espitito de fineza (ou finura) do espirito de geometria: Diferenga entre o espirito de geometria e o espirito de finura, Num os principios sio palpaveis, mas afastados do uso comum, de sorte que se tem dificuldade para virar a cabega para esse lado, por falta de habito: mas, por pouco que se vire, véem-se os principios plenamente; € seria preciso ter 0 espirito coralmente falso para raciocinar mal sobre prinefpios tio patentes que é quase impossivel que eles escapem. Mas, no espirito de finura,os prineipios esto no uso camum ¢ diante dos othos de toda gente. 430 adianta virar a cabega, nem fazer violéncia; a questio resume-se em se ter boa vista, mas € necessirio té-la boa: pois os princfpios esto tio desconexos ¢ em tio grande mimero que é quase impossivel nao escaparem. Ora, a omissio de um principio conduz ao erro; assim & preciso ter a vista bem clara para ver todos os principios e em seguida 0 espirito justo para no raciocinar de modo falso sobre principios conhecidos. (Pascal 2005, p. 235) ‘Também encontraremos essa dist que distingue o conhecimento cientifico ¢ aquele do “mundo da vida”, especialmente em A crise das ciéncias europeias ¢ a fenomenologia ‘do, mais tarde, em Husserl, transcendental. Igualmente a encontraremos em As duas culturas =e uma segunda leitura, de Charles Pierce Snow. Essas divisdes teriam de ser seguidas com cuidado e nuances deveriam certamente ser trazidas, para ndio compararmos abusivamente noges resultantes de contextos tio diversos. Porém, indiquemos rapidamente que uma das geandes apostas da filosofia do século XX vai ser saber se é possivel on impossivel abol essa distinga0. Os positivistas, de Comte sociobiologia ¢, depois, a psicologia evolucionista contemporanea, tiveram por programa aboli-la, E nao positivista toda doutrina que afirma a impossibilidade de abolir essa distingZo (veremos em Popper um exemplo). F antipositivista uma doutrina que afirma a incomensurabilidade das formas de conhecimento, a impossibilidade de medi-las entre si (veremos em Kuhn um exemplo), Veremos também que a afirmagio central da filosofia analitica, © positivismo dos tempos modernos, repousa sobre a ideia de que uma “ciéncia unificada” € possivel (afirmada com forga pelo Circulo de ‘Viena com sua “concepgio cientifica do mundo”), levando a postular que nenhuma distingdo fundamental deve ser feita entre espirito de fineza e espirito de geometria. Essa disting’io que fazia Pascal é, entao, puramente formal? £ uma simples forma de se exprimir, sem repercussiio epistemologica profunda? Ou é ela, a0 contrétio, uma intuigao profunda daquilo que, de mil maneiras, a cultura cientifica sempre vai repetir, de uma forma ou de outra, ¢ que Wittgenstein (2001, p. 281) expds com tamanha clareza na tinica proposigéo do capitulo VII do Tractatus logico~ philosophicus, “Sobre aquilo de que nao se pode falar, deve-se calar”: fatos e valores ndo podem decididamente falar a mesma linguagem? Mas o que € precisamente 0 positivismo? Para responder, o melhor é seguir a forma pela qual Ampére e Comte estabeleceram suas classi Por meio das diferenas de suas formas especificas de procede nitidamente os tragos distintivos do espirito “positivo” Ampére: Classificacao racional André-Marie Ampére (1775-1836) propés a primeira classificagao racional das ciéncias. Enquanto ele prepara um curso no College de France, onde é titular da cadeira de fisica geral e experimental, ele se interroga: “O que é a fisica geral e por quais caracteres precisos ela se distingue das outras ciéncias?” (Ampere 1966, p. v), avangando a seguinte resposta: Eu pensava que esse cardter devia ser determinado ao dizer que ela tem por objeto estudar as propriedades inorganicas dos corpos ¢ 0s fendmenos que apresentam, independentemente da utilidade que thes atribuimos das me 8 que essas propriedades ou esses fendmenos provam, de acordo com os tempos, os lugares ¢ os climas. Eu digo “propriedades inorginicas dos corpos” para separar a fisica geral das ciéncias naturais; ew acrescento “independentemente da utilidade que thes atribuimos™ para distingui-la da tecnologia; eu digo, enim, “independentemente das modificagies que essas propriedades ou esses fendmenos provam, de acordocom os tempos, os lugares e os climas” para fixar de uma maneira ‘exata os limites que a separam da geografia fisica e das outras ciéncias que tém por objeto 0 estudo do globo terrestre.(Ibid., pp. v-vi) ‘Trata-se, portanto, em um primeiro momento, de simplesmente fornecer detalhamentos sobre o objeto de uma ciéncia particular: dizer em que precisamente consiste a fisica. Em um segundo momento, tratar- se de precisar 0 que so os ramos da fisica, Mas, finalmente, esse questionamento aparentemente limitado, quase estreito, vai conduzir a ‘uma classificagao do conjunto das cigncias existentes na época de Ampére, mas também, como vamos ver, éncias; e ndo apenas do conjunto das igualmente das cigncias vindouras. Ampere menciona as tentativas de elassficagio das ciéncias eferuadas por Bacon ¢ por D’Alembert. Mas é para logo notar sua fragilidade, Em primeiro lugar, esses ensaios nao podiam dispor do modelo que representa icagiio, q ‘nha m a classificagao das plantas. Essa cla atribui a Jussieu, le tile fk pened ‘se fotee ainda que sua paternidade prov

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