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Revista

Brasileira fa s e i x
• J U L H O - A G O S T O - SE T E M B R O 2 0 1 8 •

ano i • n.° 96
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 8
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretário-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
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Arnaldo Niskier
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Merval Pereira
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João Almino
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Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
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Diegues, Candido Mendes de Almeida, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cícero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domicio Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
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Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
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Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

As colaborações são solicitadas.

Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

Esta Revista está disponível, em formato digital, no site www.academia.org.br/revistabrasileira.


Sumário

A pr esentaç ão
Cícero Sandroni  7

CI CLO GUIM ARÃES ROSA, ES CR ITOR E D IP L O M ATA


José Nêumanne Pinto  O jagunço e o bacharel 9
Deonísio da Silva  O julgamento de Zé Bebelo e a lava a jato 15
João Almino  Guimarães Rosa, do Sertão às fronteiras 19
Benito Barreto  Rios e Riobaldos 37

D I SCURSO
Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènitán Ògúnwùsì Odjádja II  Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènìtán Bàbátúndé Ògúnwùsì,
Rei de Ifé, Odjádja II 53
Marco Lucchesi  Discurso de Marco Lucchesi 55

en s aio
Arno Wehling  Conhecimento Histórico e teoria – a propósito do conceito 57
Antonio Maura  Lorca e o Brasil 61
Abhay K.  Poesia e Diplomacia 71
Nazir Ahmed Can  O condenado, o escravo e um “cardume de porcos”: notas sobre Biografia do Língua,
de Mário Lúcio Sousa 77
Pires Laranjeira  Agreste matéria: o trabalho poético de José Luiz Tavares ou a busca da extrema
singularidade e excepcionalidade 83
Marcelo Backes  A doença para a arte, não para a morte, na obra de Thomas Mann 87
Jeová Silva Santana  Genolino Amado e seus leitores‑ouvintes 93
Emmanuel Santiago  As ambivalências da tradição na poesia de Antonio Carlos Secchin 99
Glauber de Oliveira  O poeta Alberto da Costa e Silva 107
Mario Werneck   Breve análise de uma história narrada por Jalāl al-Dīn Rūmī 111

POESIA
Adriano Wintter  121
Rodrigo Petronio  129
William Soares dos Santos  133

conto
Primo Levi  Os mnemagogos 141
Otto Lara Resende  Mater dolorosa 147

CA LI GRAMA
Nilo Dante  Retratos da alma 155
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação

Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras

N
esta edição da Revista Brasileira, acompanhado de grande comitiva, compro-
ainda apresentada só na sua versão vadores da profunda relação entre o Brasil
digital, mas na expectativa de voltar e a África.
também à forma impressa em 2019, o leitor Contribuem também para a composição
encontrará textos sobre Guimarães Rosa, desta edição o presidente do Instituto His-
escritor fundamental da literatura brasileira tórico e Geográfico Brasileiro, e Acadêmico,
traduzido em vários idiomas e membro da Arno Wehling, o sócio correspondente da
ABL. Os estudos foram apresentados em ABL, e o filólogo e ensaísta espanhol Anto-
conferências pronunciadas em Ciclo apre- nio Maura. E não menos importantes, mas
sentado no Teatro R. Magalhães Jr. Seus au- destacadas figuras da cultura brasileira,
tores, o diplomata, Acadêmico romancista publicamos textos essenciais dos que vêm
João Almino, atualmente embaixador em a seguir: Abhay K., Nazir Ahmed Can, Pi-
Quito, no Equador, José Nêumanne Pinto, res Laranjeira, Marcelo Backes, Jeová Silva
jornalista, colaborador do jornal O Estado Santana, Emmanuel Santiago, Glauber de
de S. Paulo e escritor, o romancista mineiro Oliveira e Mario Werneck.
Benito Barreto, de vasta e celebrada obra, e A poesia é necessária, nas palavras do
o escritor, ensaísta e crítico literário Deoní- saudoso Rubem Braga, e em nossas pági-
sio da Silva. nas o leitor encontrará versos dos poetas
Enriquecem esta edição os discursos Adriano Winter, William Soares dos Santos
pronunciados em cerimônia realizada no e Rodrigo Petronio. E, na ficção, os “Os me-
Petit Trianon da ABL, por iniciativa do Se- nenagogos”, conto do químico e escritor
cretário-Geral da Casa, Alberto da Costa judeu italiano Primo Levi, durante a guerra
e Silva, em homenagem a Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye levado a Auschwitz. Resgatado pelo Exéci-
Ènìtán Bàbátúndé Ògúnwùsì, Rei de Ifé. O to soviético, conseguiu voltar à Itália onde
leitor encontrará não só o discurso do pre- escreveu romances e contos sobre os hor-
sidente da Casa, Marco Lucchesi, mas a res- rores do nazismo e da vida nos campos de
posta de Sua Majestade, que compareceu concentração. Vítima de grande depressão
8  •  Cícero Sandroni

pelas lembranças da guerra, suicidou-se parte da obra do fotógrafo romeno Eddy


1987. No conto “Mater Dolorosa”, o sem- Navarro. Segundo perfil narrado pelo poeta
pre lembrado Acadêmico, jornalista, ro- e Acadêmico Manuel Bandeira, Navarro foi
mancista e contista Otto Lara Resende nos “o grande artista da fotografia, à altura dos
dá uma lição de vida, embora o “dar lições” grandes artistas – Picasso, Chagall, Braque e
não constasse do repertório do grande fra- tantos outros – que ele fixa para a eternida-
sista e amigo. de graças à implacável exatidão, à rara com-
No caligrama desta edição, a introdução preensão dos seus olhos de mestre”.
do jornalista e escritor Nilo Dante apresenta Boa leitura.
C I C L O G U I M A RÃES ROS A , ES C R I TOR E D I P L O M A T A

O jagunço e o bacharel

José Nêumanne Pinto


Jornalista, poeta e escritor

Q
uando Deonísio da Silva, espécie que reúne intelectuais e notáveis? Muito
de Indiana Jones na caça à origem amiga de minha mulher, Isabel, e minha, a
das palavras, me avisou que o poe- professora Márcia Lígia Guidin, cuja tese de
ta Carlos Nejar queria  me incluir na progra- doutorado na USP versa  sobre Machado,
mação de seminário sobre Guimarães Rosa, sugeriu-me que abordasse dois dos prin-
tremi nas bases. E mais ainda: abrindo o cipais relatos dos gênios da literatura pelo
ano desta Casa de Machado de Assis. Que que têm em comum. Duas de suas obras-
desafio para esse cangaceiro das palavras, -primas, Dom Casmurro e Grande Sertão:
sem formação acadêmica para me escudar Veredas, são relatos de velhos saudosos de
nem leitura recente em que me apoiar, ao episódios do passado, protagonizados pelas
discorrer sobre o percurso daquele jagunço duas mais sedutoras mulheres da literatura
das letras!  Contudo, não sou de fugir de nacional em todos os tempos: Capitolina, 
desafios, e não me abalei com a segunda no formoso e frenético burgo de São Sebas-
parte da proposta: teria de fazer uma co- tião do Rio de Janeiro, ex-Corte do Império
nexão – provável, porém pouco estudada – e capital da República Velha, e Deodorina,
entre o gênio de Cordisburgo e o bruxo do nos ermos e ignotos sertões ditos dos Ge-
Cosme Velho. Aí, danou-se! Mas me dispus rais às margens do Velho Chico e seus
a navegar nas carrancas do Velho Chico e afluentes. Os episódios, ocorridos no século
a viajar de carruagem nas priscas eras da 19, presumivelmente ainda no Segundo Im-
República entre a rua Matacavalos e a praia pério, são narrados por velhos que viveram
do Flamengo. amores mal resolvidos com as damas cita-
Como diria meu avô Chico Ferreira, que das, que se tornaram as verdadeiras pro-
diacho podia haver que identificasse o ama- tagonistas, conhecidas tempos afora pelos
nuense que fundou a Academia Brasileira apelidos familiares:  Capitu e Diadorim.
de Letras com o diplomata e ex-médico ful- Aprendi desde cedo que quem tem ami-
minado por um infarto horas após tomar go não morre pagão. Recorri à cultura ines-
posse nesta venerável instituição cultural gotável dos leitores obsessivos José Mario
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 6 de março de 2018.
10  •  José Nêumanne Pinto

Pereira e Christine Ajuz e eles prontamente capítulos sobre os olhos e os braços de Ca-
me socorreram. Outro leal amigo, Maurício pitolina não deixam dúvidas sobre o ciúme
Melo Júnior, que acaba de lançar um ro- doentio que foi tomando conta da narra-
mance e tem obra biográfica de destaque ção, de forma sibilina e também exaltada,
no campo do documentário sobre grandes injetado pelo autor no pleno domínio de
escritores no canal de TV do Senado Fede- seu ofício.
ral, citou-me a coincidência notória de que Dom Casmurro, como, de resto, a obra
o bruxo do Cosme Velho e o filho de Cor- inteira de Machado, pode ter em comum
disburgo (a cidade do coração) publicaram com a de Rosa certa referência aos deslo-
contos com o mesmo e significativo título – camentos, no caos urbano, de seus perso-
O Espelho –, o primeiro em Papéis Avulsos, nagens. A obra mais popular de Machado
o segundo em Primeiras Estórias. Em co- pode ser definida como a descrição de pe-
mum entre os dois, porém, apenas o tema quenas viagens em torno de sua cidade na-
e o título. Machado escreveu uma novela tal. Machado era tão fiel ao Rio de Janeiro
de realismo mágico avant-la-lettre. E Rosa que desprezou os anos passados por seu
aventurou-se por digressões psicanalíticas, narrador bacharel nas arcadas do convento
como se abordasse um assunto mais cien- de São Francisco, em São Paulo, limitando a
tífico do que ficcional. descrição mais detalhada de sua formação
Desde a primeira leitura dos dois clás- escolar aos anos de seminário, e só voltan-
sicos, me deixei levar pelos devaneios, pri- do à narrativa já com diploma de Direito em
meiro com Capitu e depois com Diadorim, punho no Rio. Machado é um dos mais ra-
apesar dos relatos abertamente opostos a zoáveis motivos para se amar a cidade em
respeito das duas: a adoração que virou que ele nasceu e sobre a qual apoiou sua
desprezo do bacharel Bento Bentinho e a obra inteira. Aprendi a amar o Rio lendo
veneração ampliada com o distanciamento Machado.
dos fatos narrados pelo jagunço Riobaldo Chamo, então, atenção para a similitu-
Tatarana Urutu-Branco sobre o mais que de entre a cena urbana da Corte que virou
amigo que conheceu na infância como Rei- capital da República no século 19 e o sertão
naldo, depois transformado no companhei- de então e de hoje. O menino Bentinho,
ro Diadorim em vários bandos de jagunços como sabemos, passou a infância atormen-
aos quais a dupla pertenceu. tado por seu destino traçado pela promessa
É impossível ler a descrição dos olhos de da mãe de fazê-lo padre. Posso testemunhar
Capitu pelo apaixonado na pena impecável que no sertão de Riobaldo, assim como no
do Bruxo do Cosme Velho sem ser assaltado burgo de Bentinho, o ensino religioso era,
pelo êxtase causado pela emoção provoca- à época das narrativas comparadas, a saída
da pela beleza da narrativa, pela elegância encontrada por muitos jovens para suprir as
do estilo e pela veneração do autor por nos- carências educacionais de seus lugares de
sa língua portuguesa. A leitura do capítulo origem.
específico sobre os braços prepara o leitor Minha relação com a obra magistral de
tanto para o enamoramento quanto para o Rosa foi mais permanente do que a que
ciúme do narrador em relação à heroína. Os mantive com a de Machado, mas também
O j ag u n ç o e o b ac h a r e l   •  11

mais casual. O exemplar de Grande Sertão: diagnóstico de Jacob uma observação ex-
Veredas esteve sempre à mão, pois costu- traída da leitura mais recente do livro má-
mava lê-lo como o faço com poesia e com ximo de Machado: o autor salpicou toda a
a Bíblia: abria ao acaso uma página e lia o estória do narrador com vários episódios de
que estava à minha frente. Para escrever sua imaginação farta e falsa.
este texto, resolvi ler a obra-prima de Rosa O gênio de Machado também incluiu
em voz alta para minha mulher, Isabel, e na história um personagem de alta rele-
para mim mesmo. E, na tarefa de releitura, vância, o agregado José Dias – que podia
comprei uma edição recente e muito boa ser intrigante ou bajulador, dependendo da
de Dom Casmurro, lançada pela Penguin/ circunstância –, e este cultivava o vício de
Companhia das Letras, dirigida pelo colega reforçar seus argumentos com o uso exage-
Matinas Suzuki. A introdução do professor rado dos aumentativos. Não é de estranhar
Luís Augusto Fischer é um verdadeiro vade- que, convivendo com essa figura, Bentinho
-mécum da fortuna crítica do romance mais se tornasse, ele mesmo, um narrador exa-
comentado e criticado da literatura brasilei- gerado, e assim não seria gratuito incluir a
ra. Ao deparar com os nomes citados por questão do adultério da mulher nesse vício
ele, percebi que a aventura de abarcar essa retórico aumentativo.
fortuna crítica seria mais penosa do que o A leitura falada do texto de Rosa aqui
destino de Capitu depois da conclusão a abordado, como já relatei antes, me propi-
que chegou Bentinho de que ela o traíra ciou uma abordagem nova da linguagem
com Escobar, resultando no “fruto podre” de Rosa, que eu tentarei resumir, não tanto
que o levou a proferir uma das piores im- para surpreendê-los, encantá-los ou infor-
precações do histórico da relação entre pai má-los, e sim, muito mais, para lançar al-
e filho: a de que não lamentava os gastos gumas inquietações de leitor sobre a possi-
com seu enterro, por compará-los com o bilidade de preservar o legado canônico da
alívio representado pela ausência de um língua de Camões e Eça em terras de Ma-
bastardo, já que este só reproduzia sua ver- chado e Rosa, cujas obras-primas, como de-
gonha de marido traído pela amada de in- finiu um colega de ofício que também per-
fância com o amigo que mais respeitava, e tenceu a essa Academia, Antônio Callado,
pelo qual tinha um afeto incomum. compõem em paralelo o díptico que mos-
Não vim aqui para debater, mas para su- tra, de um lado o Brasil  profundo do sertão
gerir as causas que podem ter levado Bento e, do outro, o país urbano, paradoxo que
Bentinho a acreditar-se traído por Capitoli- desde então, está sempre a nos desafiar.
na. E não posso deixar de acrescentar uma Reler Dom Casmurro,  mantendo conta-
colher de puro fel de meu amigo Jacob tos esporádicos com os textos de Machado,
Pinheiro Goldberg, advogado e psicólogo, foi também a chamada oportunosa ensan-
que exaltou a genialidade de Machado ao cha para aprimorar o gosto e, em seguida,
incutir no narrador indignado uma descon- o texto, em que pontifica a verve do Bruxo,
fiança que povoa o imaginário masculino capaz de produzir no idioma de Camões e
brasileiro: todo homem acha que foi, é ou Eça o suprassumo da melhor embocadura
virá a ser traído. Acrescento ao maldoso do sense of  humour da verve na língua de
12  •  José Nêumanne Pinto

Shakespeare, reconhecida como ponto má- das palavras a partir de um conhecimento


ximo da fina ironia. E esta oportunidade me enciclopédico das estruturas das línguas to-
foi dada pela Academia pela intercessão do das da literatura ocidental, cujo ápice está
poeta Carlos Nejar após sugestão do pro- na obra de James Joyce. Não me refiro a
fessor e escritor Deonísio da Silva. Finnengans Wake, mas especificamente à
A releitura em voz alta, às vezes inter- tradução de Ulysses feita pelo grande mes-
rompida por exclamações de deleite e en- tre da filologia nacional, Antonio Houaiss.
tusiasmo, tanto de minha parte quando Peço, porém, vênia para reafirmar que o
da parte de Isabel, nos fez perceber que recurso ao neologismo não contradiz o uso
a obra-prima de Guimarães Rosa também criativo e ao mesmo tempo respeitoso de
tem esse condão de preservar o melhor Rosa da nossa língua materna e de João Ca-
de nosso vernáculo na urdidura de sua bral, Bandeira e Drummond. Neste esforço
escrita, em que a trata de forma erudita para fazer ligações singulares entre nossos
e com apoio em seu notório e notável co- dois gênios, encontrei a incomum palavra
nhecimento de várias línguas estrangeiras, espórtulo, usada por Machado no conto
com as quais demonstrava intimidade E o O Espelho e por Rosa em seu clássico sobre
faz de tal forma que consegue reproduzir o qual tratamos neste momento. 
expressões de um arcaísmo saboroso, que A releitura a viva voz de Grande Sertão
se perderam na algaravia urbana, mas se me permitiu compreender melhor todas as
mantêm intactas tanto no sertão de onde viagens que o autor faria pelo sertão, narra-
Isabel e eu viemos quanto naquele em que das em livros como o de Fernando Granato
Rosa nasceu. E que reproduziu de forma e em documentários como os de Pedro Bial
magistral em suas narrativas. Esta observa- para a televisão. Recitando o texto seminal
ção pode parecer estranha, pois o mineiro é de Rosa, pude me deparar com esse lingua-
tido e havido como um dos mais habilido- jar que, em muitas ocasiões, se assemelha
sos criadores de neologismos da literatura muito ao universo vocabular a que Isabel
universal em seu tempo. Na primeira vez em e eu nos acostumamos em nossa infância
que li Grande Sertão: Veredas, tive eviden- e juventude no sertão de Uiraúna, Pombal
temente contato com palavras e expressões e Condado, no Semiárido paraibano, e em
criadas e outras que parecem bebidas nos Campina Grande, que, no alto do Planalto
potes de barro de minha infância. Desde da Borborema, sempre tem acolhido esses
então, sempre me senti tentado a incluir o vocábulos.
ápice da literatura tida como de vanguarda Convém registrar ainda que refiz alguns
na estirpe de escritores que, em minha opi- conceitos de minha primeira leitura do
nião de leitor, bebem da mesma água com grande romance de um fôlego só, e uma
que se destila o uísque irlandês. Exatamente delas diz respeito ao gênio que escreveu Os
na época em que tive o primeiro contato Sertões, de que acaba de sair mais uma edi-
com Dom Casmurro e Grande Sertão: Ve- ção crítica, organizada por Walnice Noguei-
redas, até mesmo antes, graças a Sagara- ra Galvão. À primeira leitura, concluí que
na, percebi no autor sua filiação à corrente o sertão de Joca de Cordisburgo não era o
recriadora da ficção com a metamorfose mesmo meu, de Graciliano Ramos, Rachel
O j ag u n ç o e o b ac h a r e l   •  13

de Queiroz e José Américo de Almeida, como o é o caso de “viver é muito perigo-


nem mesmo o de Canudos. Hoje, contudo, so”. Se é! Mas, sobretudo, na epígrafe mais
percebo que me enganei redondamente. adequada que já encontrei numa obra em
Como diz Riobaldo, o sertão é um só, e, minha trajetória de leitor: “o diabo na rua
embora todos os escritores citados aqui, e no meio do redemoinho”. Na primeira vez
muitos outros, sejam luminares e superio- em que deparei com essa epígrafe, li, parei,
res, não têm hoje a repercussão alcançada repeti e fiquei  meia hora pensando, lendo
pela obra de Rosa e Euclides. A minúcia e relendo. Só depois é que me aventurei a
enciclopédica com que o diplomata e ex- navegar no curso do texto-rio para saber
-médico mineiro descreveu a terra, a flora e que muitas frases ainda me fariam parar a
a fauna do norte de Minas em tudo se asse- leitura, algumas, aliás, repetidas por ele.
melha ao trabalho ciclópico do fluminense E, antes de encerrar, preciso abordar as
que relatou a campanha de Canudos como “ligações mais singulares” entre o tema do
correspondente do jornal O Estado de S. seminário e o fundador desta Casa de sá-
Paulo, onde hoje milito. bios: a beleza, o charme e o veneno da mu-
Encontrei, ao longo da releitura do lher brasileira. Refiro-me, naturalmente, à
Grande Sertão, referências à luta entre carioca Capitolina e à sertaneja Deodorina.
Deus e o Diabo que lembram alocuções de São dois nomes estranhos e incomuns. A
Antônio Conselheiro, relatadas por Euclides única referência que conheço em relação à
e usadas por Glauber Rocha num dos mais musa que Machado presenteou ao bacharel
esplendorosos momentos do cinema brasi- Bentinho é o nome da escola em que Isabel
leiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol. Des- lecionou, em João Pessoa, capital da Paraí-
taco que as pregações do profeta cearen- ba: Capitulina Sátiro. De Deodorina, nome
se Antônio Vicente Maciel, o Conselheiro, que só é revelado junto com a citação do
citadas por Euclides, usadas por Glauber e batistério nas últimas páginas da saga, que
hoje também recolhidas em livro específico, apelidei, de forma roseana, de “ságua” do
espalham-se pelas referências permanentes jagunço tiro certo, só me ocorre que pode
de Rosa ao pacto com o demônio, leitmo- ser o feminino de Deodoro, general que
tiv de seu clássico. Resumo-as na toada de deu o primeiro golpe bem-sucedido da nos-
Sérgio Ricardo com que Glauber encerra o sa História: a República que pegou o povo
filme citado: “Que a terra é do homem, não bestializado, no dizer do jornalista socialis-
é de Deus nem do diabo”, talvez o resumo ta Aristides Lobo, lembrado no clássico de
do relato de Riobaldo Tatarana, marcado nossa historiografia, da lavra do Acadêmico
pela repetição de frases que causaram o José Murilo de Carvalho. Como a República
maior impacto neste redator que lhes dirige insana já tinha dez anos quando a obra veio
a palavra. Tudo isso é da mesma inspiração a lume, talvez não se devesse levar dema-
de Rosa ao concluir seu romance: “Nonada. siado em conta essa ironia, associando-a ao
O diabo não há. É o que digo, se for... Existe mito de HuaMulan, a guerreira mais famosa
é homem humano. Travessia”. da China ancestral de Reinaldo/Diadorim.
Antes de chegarmos a esse fecho mag- De qualquer forma, isso não teria impor-
nífico, tropeçamos em pérolas do vernáculo, tância maior, pois Machado realizou em Dom
14  •  José Nêumanne Pinto

Casmurro a narrativa espetacular sobre uma Quanto a Deodorina, ficou a glória de


mulher fascinante e uma dúvida cruel. E isso ser a mais deslumbrante, mas também a
foi tão celebrado já em seu tempo que, con- menos verossímil heroína de romance da
forme registra notícia de jornal à época, seu história da literatura mundial. Guerreira
caixão foi levado da casa do Cosme Velho ao como ela foi a francesa Joana d’Arc, mas o
coche fúnebre que o transportaria à Acade- martírio desta é verossímil porque aqueles
mia por mocinhas, entre as quais as muito jo- com quem conviveu sabiam que era mu-
vens filhas de Fausta (mais uma coincidência, lher, e do povo, com armadura de soldado.
hein?), prima  do arqueólogo Edgardo Pires E ela terminou sendo o marco da identidade
Ferreira, que recentemente nos contou que francesa. Diadorim é um anjo inefável que
chegou a conhecê-las. A mulher é Capitu, acompanha o atirador de tiro certo dos ban-
cujo apelido é mais usado do que o próprio dos de jagunços do norte de Minas como
nome em nossos dias; e a dúvida que Ma- uma espécie de brisa benfazeja, a guiá-lo
chado lançou no ar é a do possível adultério para longe das encruzilhadas onde poderia
que atormentou Bento Bentinho, o bacharel vender a alma ao Mefisto das margens do
da capital. Capitu é de longe, muito longe, São Francisco, nos sertões de Bahia e Minas
longe mesmo, a figura que merece desta- Gerais.
que e simpatia. Bento Bentinho é a criação Poucas personagens poéticas terão seu
genial de um personagem mesquinho, me- charme relatado pelo amante, ao qual o
díocre, de pouca relevância e escasso brilho mistério só foi desvendado com a morte,
intelectual, sempre socorrido pelo agregado que o liberou para a noiva dos sonhos, uma
José Dias e pelo melhor amigo Escobar nas entre muitas mulheres de um narrador mu-
empreitadas que exigiam lógica e raciocínio. lherengo como o autor das memórias de
Ele resumiu este episódio difamatório a um Giacomo Casanova. Como Bento Bentinho,
ponto final no qual só restou a tirânica pa- Riobaldo Tatarana é um velho nostálgico
lavra do narrador contra o silêncio sepulcral contando uma história de amor impossível.
de sua vítima. A Bento o que é de Bento, a Mas, diferentemente daquele outro, este
Capitu o que a Capitu pertence. Capitu está era merecedor da mulher disfarçada de
sendo julgada até hoje, após ter morrido no companheiro de jagunçagens  pelo fato de
exílio, ao qual a relegou seu próprio criador ter sido fiel a seu mistério até o fim.
e carrasco. Jornalista, poeta e escritor.
O julgamento de Zé Bebelo
e a lava a jato

Deonísio da Silva
Professor, romancista, contista e ensaísta

R
éu em inusitado julgamento no pátio sagaz. Zé Bebelo é um réu que dirige o jul-
da Fazenda Sempre-Verde, o jagun- gamento, fixa limites de suas penas e traça
ço letrado Zé Bebelo, salvo por Rio- as condições para cumpri-las: receber mon-
baldo, seu ex-professor, conduz o próprio taria, escolta, água e comida na viagem para
julgamento. Goiás, onde promete fixar-se, deixando de
No insólito tribunal, os juízes são outros combater os ex-companheiros de luta, como
cangaceiros, liderados pelo grande chefe vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar
Joca Ramiro, todos sob o olhar misterioso todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um
de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ juiz ainda mais sagaz do que o réu.
Diadorim. A batalha travada pelo bando de Zé Be-
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura belo contra as hostes de Joca Ramiro tem
deste curioso episódio de Grande Sertão: este particular de semelhança com a ope-
Veredas, em que o sertão é assim definido: ração Lava a Jato, que parece a “indesejada
“Sertão é onde manda quem é forte, com das gentes”, como da morte disse o poeta
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que Manuel Bandeira. Quando investigadores
venha armado!” E mais: “onde criminoso batem à porta de investigados é como se
vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho chegassem com o caixão feito sob medida
de autoridade.” para o enterro.
O Brasil também já foi assim. E agora Sob o comando de Sérgio Moro, a Lava
chegamos à encruzilhada onde tribunais a Jato mostra que os criminosos de colari-
superiores estão decidindo se continuará nho branco não têm os valores éticos dos
assim ou se mudará. jagunços letrados de Grande Sertão: Vere-
Fazendo as vezes de um Sérgio Moro das. A operação tornou-se onipresente na
do sertão, o jagunço Joca Ramiro, conheci- mídia, e o romance pode ser lido pelos inte-
do por sua lealdade e senso de justiça por ressados, à mão em qualquer biblioteca ou
todos os cangaceiros, tem diante de si um livraria, e está disponível também em por-
réu audacioso, solerte e a seu modo leal e tais de domínio público na internet.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 13 de março de 2018.
16  •  Deonísio da Silva

Zé Bebelo está quase derrotado, coman-   3. É um viés original do qual todos po-
da nove homens e quando seu bando con- dem discordar.
ta com apenas três, Riobaldo, para salvar   4. Mas são garantidas a conversa clara
a vida do ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca e o trato justo.
Ramiro quer este homem vivo”.   5. O inusitado não começa pelo con-
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma ferencista, mas pelo autor, contem-
no chão antes de ser preso e, quando os ini- plado com o Prêmio Machado de
migos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me Assis com um léxico e uma sintaxe
matam logo, aqui, ou então eu exijo julga- originais, nunca antes vistos na lite-
mento correto legal.” ratura, nem depois.
Diante de Joca Ramiro imponente, mon-  6. O papel iluminador de analistas
tado em cavalo branco, Ze Bebelo a pé, ras- como Walnice Nogueira Galvão e
gado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu Willi Bolle, de tradutores como Ber-
igual.” Ouve de Joca Ramiro: “se acalme, o thold Zilly e Curt Meyer-Clason.
senhor está preso.”   7. Hans Staden, Augusto Meyer e imi-
É quando toda a jagunçada vai para a grantes: alemães sempre se interes-
Fazenda Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos saram pelo Brasil, a quem goleiam
amarradas, é conduzido em cima de um ca- por 7 × 1 não apenas no futebol.
valo preto, na rabeira da tropa.   8. A Lava a Jato fez cair sobre o Brasil
E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é li- os novíssimos: Morte, Juízo, Inferno
bertado sob condições que o próprio réu e Paraíso. Mas o nome da operação
impõe. (fim) é sempre escrito errado na mídia.
 9. Guimarães Rosa não era estranho
à política: diplomata, sucedendo a
Notas indispensáveis João Neves da Fontoura, recebido
Reúno neste espaço alguns destaques por Affonso Arinos. E hoje sob o co-
da conferência, esmiuçados ao distinto pú- mando de Sérgio Moro a Lava a Jato
blico, entre os quais vários acadêmicos, cujo mostra que os criminosos de colari-
registro escrito tout court poderia eliminar nho branco não têm os valores éticos
os sabores que teve na fala. dos jagunços letrados de GSV.
  1. Inusitado do título: minha interven- 10. A Lava a Jato começou num posto de
ção tira faísca de outra pedra, quer combustível que lavava a jato carros e
produzir outras labaredas. Nada de dinheiro ilícito. Portanto, o nome da
falar o que outros já disseram ou es- operação não pode ser Lava Jato. Não
creveram, por despiciendo. lavava aviões, lavava carros...E dinhei-
  2. Ademais, a Lava a Jato entra onde ro sujo. E rapidamente também. Daí o
não é chamada, a decisão não é nome correto: Lava a Jato.
nossa. Parece-se com a “indesejada 11. Também em Grande Sertão: Vere-
das gentes”, como da morte dizia das dá-se julgamento, com seme-
MB. É como se chegasse com o cai- lhanças e diferenças notáveis entre
xão feito sob medida. as duas operações.
O j u l g a m e n to d e Zé Bebelo e a l ava a j ato   •  17

12. O amor de Diadorim é amor de um depois convencido por Reinaldo/


homem por outro até quase o des- Diadorim, entra para o de JC.
fecho do romance... José Nêuman-   4. O julgamento de ZB dá-se na derro-
ne Pinto tratou disso na conferência ta do bando dele, mas no final ele
anterior. E Rubem Fonseca levantou ganha a guerra.
a questão da homossexualidade mal   5. Recebendo a visita de Riobaldo, de-
desenvolvida no romance. pois que Hermógenes matou Joca
13. Nunca um escritor teve tanta aten- Ramiro e foi morto e matou Reinal-
ção como a teve João Guimarães do/Diadorim, encaminha o ex-aliado
Rosa. Teve reconhecimento ainda e ex-inimigo ao “compadre meu
em vida, o que é raro entre escri- Quelemém”, místico e espiritualista.
tores. Foi herdeiro e beneficiário do  6. A caminho da velhice, Riobaldo
romance de 30 e da poesia de 45. conta a história de sua vida a um
14. A divulgação de sua obra deve interlocutor jamais identificado,
muito ao cinema e às minisséries provavelmente alter ego do próprio
e adaptações para cinema e televi- autor do romance.
são. O público acredita menos na  7. O romance do autor mineiro foi
existência de Cleópatra do que na eleito por respeitáveis, reconheci-
de Elizabeth Taylor. Menos na de dos e qualificados críticos um dos
Diadorim e Riobaldo do que na de 100 melhores romances do mundo.
Bruna Lombardi e Tony Ramos. Como se sabe, em Minas, “Nin-
guém enlouquece, o sujeito apenas
se manifesta”.
Parte II  8. Seu grande tema é o do Fausto,
  1. Antes de dar o resumo do romance lenda medieval dos séculos XV e
de Gumarães Rosa, dei outro resu- XVI, que encontrou em Goethe sua
mo: o de Avalovara, de Osman Lins, maior expressão com os dois Faus-
e o palíndromo da frase-chave. tos (1806 e 1832): a venda da alma
  2. Personagens solares do romance de ao Diabo. Queixando-se de que não
Rosa: professor de Zé Bebelo, Riobal- consegue dilapidar todo o dinheiro
do, afilhado e talvez filho de Selorico obtido com a venda de sua alma, o
Mendes (nada é dito sobre a mãe), Diabo lhe diz uma frase diabólica:
olha encantado para hóspedes do “Experimentou a caridade?“
aluno, em cuja casa ensina: Joca Ra-  9. Riobaldo, no século XX, vai fa-
miro, Ricardão, Hermógenes. zer o pacto com o Diabo, vender-
 3. Deste encanto José Lins do Rego -lhe a alma, tarde da noite, numa
deu sensível depoimento em sua encruzilhada, que nos parece um
obra. Jagunços rezam a santos im- quadro de natureza morta. Mas
plorando que os ajudem a matar é uma encruzilhada europeia. No
com crueza, mas com humanidade! Rio, as encruzilhadas têm outro tipo
Ele entra para o bando de ZB, mas, de natureza morta: predominam
18  •  Deonísio da Silva

as galinhas mortas dos despachos sempre menos arrevesadas do que


e os presuntos, como um repórter as dos ministros daquela corte.
policial designou para sempre os ca- 14. Guerreiros letrados vêm da antigui-
dáveres de pessoas executadas por dade clássica. O que é um clássico?
bandidos ou por policiais, às vezes O exemplo de De Bello Gallico (A
em sinistras parcerias, que ali costu- Guerra Gaulesa), de Caio Júlio César.
mavam ser expostos.
10. O Diabo, do grego diábolos (que se-
Parte III – como se dá o
para), ao contrário do synbolos (que
une), tem 22 nomes. Para traduzi-
julgamento
-los, Meyer-Clason usou só 14 e as- 1. Zé Bebelo está quase derrotado,
sim mesmo precisou inventar três: comanda apenas nove homens.
Pé de cavalo, Sujinho e Mentiroso. Quando estão em apenas três, Rio-
Seis são muito famosos: Asmodeu, baldo grita “JOCA RAMIRO QUER
Belzebu, Mamon, Azazel, Leviatã, ESTE HOMEM VIVO”.
Lúcifer. 2. Preso e desarmado, Zé Bebelo des-
11. “O diabo na rua no meio do rede- carrega a arma no chão, inimigos o
moinho” poderia ser a sexualidade agarram e tiram-lhe o punhal, e ele
ilegítima, um dos sete pecados ca- diz: “Ou me matam logo, aqui, ou
pitais cunhados pelo monge Evrágio então eu exijo julgamento correto
do Ponto no século IV e proclamados legal.”
pelo papa Gregório Mago no século 3. Diante de Joca Ramiro imponente,
VI, inventor também do cantochão montado em cavalo branco, Zé Be-
ou gregoriano: gula, avareza, ira, belo a pé, rasgado e sujo, requer:
preguiça, inveja, soberba e luxúria. A “Dê respeito, sou seu igual.” Ouve
última lista é do papa Bento XVI. de Joca Ramiro: “se acalme, o se-
12. Tradutores de obras brasileiras me- nhor está preso.”
reciam ser mais reconhecidos entre 4. Toda a jagunçada vai para a Fazenda
nós. Quem sabe devêssemos dar Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos
atenção também a alguma opções amarradas, é conduzido em cima de
estranhas, de que é exemplo este um cavalo preto, na rabeira da tropa.
trecho: “feito flecha, feito faca, 5. Zé Bebelo dispensa o banquinho e
feito fogo” traduzido para “vie der também senta no chão, como fez
Welle, vie der Wille, vir der Wind”. Joca Ramiro, para que no julga-
(onda, vontade, vento). mento o réu e o juiz sejam tratados
13. Ninguém entende os letrados do como iguais.
STF, mas todos entendem os ja- 6. Desfecho: Zé Bebelo é libertado sob
gunços letrados do Grande Sertão: condições que o próprio réu impõe.
Veredas, cujas intervenções são (fim)
Guimarães Rosa, do Sertão
às fronteiras

João Almino
Ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras

R
espondendo a perguntas de uma pri- tinha como cenário o sul da Alemanha. Diz
ma para trabalho escolar, João Gui- uma das filhas de Guimarães Rosa, a es-
marães Rosa (1908-1967) revelou critora Vilma Guimarães Rosa, que o que
que desde menino “brincava de imaginar ambientava esses primeiros contos era “um
intermináveis estórias, verdadeiros roman- cosmopolitismo de atitude”, que “refletia
ces.” “Quando comecei a estudar Geogra- provavelmente a vontade de transportar-se
fia – matéria de que sempre gostei –,” diz, a outras terras, apenas conhecidas em tan-
“colocava as personagens e cenas nas mais tas e tantas leituras, no sossego mineiro.”2
variadas cidades e países; um faroleiro, na
Grécia, que namorava uma moça no Japão,
fugiam para a Noruega, depois iam passear O espaço
pelo México...”1. O espaço decisivo da obra do autor, o
Com 21 e 22 anos, publicou contos Sertão, vai entrar em sua literatura depois
cujas histórias se passavam no estrangeiro. que ele sai de Minas. É a partir da saudade
O primeiro foi selecionado em concurso da que aquele Sertão se completa literariamen-
revista O Cruzeiro, que o publicou em 7 de te. Sagarana (do radical germânico “Saga”
dezembro de 1929: “O Mystério de High- e sufixo tupi “rana”, que significa “à ma-
more Hall”, história que se passa na Escó- neira de”), livro marco, verdadeiro divisor de
cia. Em 21 de junho de 1930, na mesma águas, escrito na linguagem que notabilizou
revista, um conto com título em grego sig- o escritor e publicado em abril de 1946, de-
nificando “Tempo e Destino” (“Chronos Kai pois de quase dez anos de reescrita, é, diz
Anagke”), sobre o tema do jogo de xadrez,
Vilma, citando o pai, “o predomínio do que
1 Guimarães, Vicente, Joãozito. Infância de João Gui- não está presente”.3 Alberto da Costa e Silva,
marães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Edi-
tora, 1972, p. 28. A entrevista a sua prima Lenice data 2 Guimarães Rosa, Vilma, Relembramentos: João Gui-

de 19 de outubro de 1966. Na época, já havia publica- marães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: editora Nova
do Sagarana, Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas e Fronteira, 1983, p. 67.
Primeiras Estórias. 3 Idem, ibidem, p. 69.

Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 20 de março de 2018.


20  •  João Almino

por sua vez, afirma que na “extraordinária contava de andanças sertanejas – era um
geografia” de Rosa, que mistura cerrados e grande causeur – e sobretudo ler os relatos
savanas brasileiras com paisagens imagina- de seu tio Vicente Guimarães, em Joãzito,
das, “o Sertão passa a ser... um quase inven- infância de João Guimarães Rosa. Este faz
to de Guimarães Rosa, real como a Polinésia referência a tipos sobretudo populares e a
que só existe nos quadros de Gauguin”.4 É o episódios conhecidos por Rosa na infân-
próprio Guimarães Rosa quem diz, em carta cia transpostos para seus muitos contos e
a João Condé sobre o processo de escrita de para seu único romance, uma das obras-
Sagarana, que depois de pensar sobre sua -primas da literatura universal do século
concepção do mundo e experimentar o es- 20, Grande Sertão: Veredas (veredas aqui
tilo com ideal de precisão micromilimétrica e no sentido não de caminhos ou vias, mas
de horror ao lugar comum, tinha de escolher de “regato” ou “riozinho”, significado
onde localizar as histórias. Podia ser, entre regional empregado nos campos gerais).5
outros lugares, na China, no arquipélago de As aventuras de Miguilim, por exemplo,
Neo-Baratária (alusão à ilha imaginária que do conto “Campo Geral”, teriam sido
Sancho Panza governou), no espaço astral vividas de forma semelhante pelo autor.
“ou, mesmo” – cito literalmente – “[n]o pe- O que veio da memória e da imaginação
daço de Minas Gerais que era mais meu. E foi complementado por respostas a car-
foi o que preferi. Porque tinha muitas sau- tas a amigos e familiares, com a ajuda das
dades de lá.” quais se acrescentaram muitos detalhes
Assim como Oswald de Andrade disse do Sertão e de seus personagens6, além
que “se alguma coisa... trouxe das ... via- de anotações de viagem em seus cader-
gens à Europa dentre duas guerras foi o ninhos e daquelas em seus cadernos de
Brasil mesmo”, Guimarães Rosa redesco- estudos feitas nos moldes dos relatos dos
briu muito do Sertão longe dele. A distância viajantes cientistas estrangeiros do século
da terra propiciada pela diplomacia deu sua 19, como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire,
contribuição para essa redescoberta, em Spix e Martius e Emanuel Pohl. Há cer-
parte por oferecer os contrastes através dos tos estrangeirismos na descrição da pai-
quais a memória podia se reacender. sagem, a crer no próprio Rosa: “...dizem
O Sertão inventado por Rosa não é que eu fiz uma paisagem, um crepúsculo
produto do intelecto e do artifício, mas mineiro e não é nada de crepúsculo mi-
sim do afeto que se origina na vivência neiro, é um crepúsculo que eu vi na Ho-
direta. Embora não seja o Sertão realista, landa, misturei com umas coisas que eu vi
toma este como ponto de partida, sertão em Hamburgo, com coisas de Minas... as
distinto daquele da secura que caracte­
rizava o regionalismo literário nordes­ 5 Nogueira Galvão, Walnice, “Guimarães Rosa”. São
tino. Se houvesse dúvida quanto a isso, Paulo: Publifolha, 2000, p. 29.
6 Diz Felipe Fortuna, acertadamente, que “foi no exte-
bastaria ouvir de seus amigos casos que rior, com a ajuda de cartas, que o universo de Guima-
rães Rosa se fortaleceu em livro e aventura.” Fortuna,
4 Costa e Silva, Alberto, “Sagarana e João Guimarães Felipe, “Guimarães Rosa, viajante”. In: Costa e Silva,
Rosa”, in: O Vício da África e outros vícios. Lisboa: edi- Alberto (org.), O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de
ções João Sá da Costa, 1989, p. 157. Janeiro: Francisco Alves, 2002, p. 364.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  21

pessoas dizem que eu estou fazendo uma A linguagem


cena do interior de Minas, e eu estou fa-
zendo um omelete ecumênico.”7 No plano da linguagem, Guimarães
Do estrangeiro vieram inclusive alguns Rosa coerentemente não se limita a uma
personagens. No conto “Orientação”, de reprodução realista do linguajar popular
Tutaméia – Terceiras Estórias, a sertaneja do Sertão de Minas. Sua pesquisa e expe-
que se casa com o chinês Yao Tsing-Lao, rimentação linguísticas, frequentemente
naturalizado como Yao Tsing Joaquim e comparadas às de James Joyce, “na ha-
conhecido como Quim, assimila a cultura e chura entre signo e transparência” no dizer
até mesmo características físicas orientais e do Acadêmico Marco Lucchesi9, o levam a
chinesas. A crônica “Cipango”, de Ave, Pa- elaborar uma linguagem que não se reduz
lavra, uma história de imigrantes japoneses, à de nenhuma região em particular, a não
recolhe, nos diálogos, o sotaque desses imi- ser àquele Sertão “do tamanho do mun-
grantes. O personagem principal do conto do”, para utilizar conhecida expressão do
“O Cavalo que Bebia Cerveja”, de Primeiras personagem-narrador de seu romance. Essa
Estórias (1962), é um imigrante italiano. Em linguagem está adaptada ao que Antonio
Grande Sertão: Veredas, estão retratados Candido chamou de “universalidade da re-
o alemão Vupes e o turco Sêo Assis Wa- gião”, que percorre rios de caudalosa ima-
baba. Este é pai de Rosa’uarda (duas vezes ginação na contracorrente do regionalismo
“rosa”, já que “uarda” é “rosa” em árabe). e do nacionalismo.
Foi a primeira namorada do narrador da Silviano Santiago, que admira a “feroci-
estória, Riobaldo, que, na parte sobre ela, dade” de Rosa, diz que seu romance “ma-
vem a dizer: “Toda a vida gostei demais de nuseia dicionários reais e estapafúrdios,
estrangeiro.”8 pessoais e imaginários e, em sintaxe traves-
Do estrangeiro também veio aquele sa e com pontuação anárquica, esparrama
que pode ser considerado o tema principal perdulariamente palavras, tocos de palavra
de Grande Sertão: Veredas, um “Fausto e interjeições onomatopaicas pela página
sertanejo” na definição do próprio Rosa. em branco. Não se preocupa o escritor se
Em seu diário há, por sinal, anotação sobre os vocábulos se duplicam e, em n vezes, se
uma encenação do Fausto em Hamburgo multiplicam em sinônimos vernaculares ou
em 1940. artificiais.”10 São características que muitos
associaram ao barroco, mas não o Acadê-
mico e Embaixador Alberto da Costa e Silva,
7 Relato que Haroldo de Campos fez de sua conversa
por acreditar que o barroco tem saudade do
com Rosa (entrevista realizada para o documentário Os
nomes do Rosa. São Paulo, novembro de 1996), citado equilíbrio clássico por trás de sua aparente
em Costa, Ana Luiza Martins, “Rosa, leitor de relatos de anarquia, enquanto aqui se trata de uma
viagem”. In: Fantini, Marli (org.), A poética migrante de
Guimarães Rosa. Belo Horizonte: editora UFMG, 2008, representação tropical do mundo. Embora
pp. 338 e 339. Sobre as referências aos viajantes cien-
tistas do século 19 nos cadernos de estudos de Rosa, 9 Lucchesi, Marco, “JGR: Sertão ocultado demais”. In:
ver mesmo ensaio, p. 325 e seguintes. Revista Brasileira, n. 86, pp. 169-175.
8 Galvão, Walnice Nogueira, Mínima mímica: ensaios 10 Santiago, Silviano, Genealogia da ferocidade: Ensaio

sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Le- sobre Grande Sertão: Veredas. Recife: Cepe editora,
tras, 2008, pp. 208 e 209. 2017, pp. 21 e 22.
22  •  João Almino

a linguagem de Rosa não seja a do Sertão, com a publicação de um dicionário sobre o


é possível argumentar que tal linguagem in- vocabulário do Grande Sertão.13 Outro bom
ventada é o que poderia ter sido aquela lin- dicionário do gênero é de Nilce Sant’Anna
guagem do Sertão, com sua musicalidade, Martins, O Léxico de Guimarães Rosa.14
seus ritmos e sua capacidade criativa. É o Empregando frequentemente pontua­
que pensa Alberto da Costa e Silva ao dizer ção e gramática não convencionais em
que “a fidelidade a um idioma do Sertão estórias ricas em enredos, Guimarães Rosa
reside no fato de ligar regionalismos a la- cria, com expressões multirregionais e mul-
tinismos, desentranhar palavras do tupi ou tilinguísticas, eruditas e populares, regiona-
do inglês, efetuar mudanças violentas de lismos, palavras arcaicas, neologismos cons-
sentido, prefixar e sufixar com uma extraor- truídos por justaposições ou por analogias,
dinária habilidade, ao sabor das intenções uso inventivo de prefixos e sufixos, palavras
da frase, usar termos eruditos numa ora- de raízes latinas, gregas, árabes, indígenas
ção coloquial, tudo dentro, porém, de um e africanas um harmonioso quilt cuja marca
método de criação e deturpação da palavra é inconfundivelmente dele. Poliglota e es-
e da sintaxe, o qual pertence à linguagem tudioso de dicionários, adaptava para sua
sertaneja... Ninguém fala o romance de ficção termos do inglês, do alemão, do ro-
Guimarães Rosa. Mas poderia falar. Foge mani e de outras línguas ou dialetos. Até re-
ele do insinuante realismo da anotação di- gionalismo hamburguês o tradutor alemão
reta do dialeto matuto, para nos dar, no ho- Curt Meyer-Clason identificou em Grande
rizonte da palavra escrita, o sonho de uma Sertão: Veredas.15
linguagem que, embora nova, já estava na Disse Rosa na citada entrevista a sua
memória de nossos ouvidos.”11 prima: “Eu acho que estudar o espírito e o
O que não significa dizer, claro, que o mecanismo das outras línguas ajuda muito
sertanejo – ou qualquer pessoa, aliás – en- a compreensão mais profunda do idioma
tenda plenamente e de imediato a lingua- nacional.” Em relação a este não são me-
gem sertaneja de Rosa. Quando seu tio nos intensas e profundas as pesquisas. Eis
Joãozinho recebeu um exemplar de Corpo exemplos de palavras, segundo Guimarães
de Baile, em 1956, escreveu ao sobrinho, Rosa, “catadas vivas, no interior”, palavras
procurando ecoar algo de seu estilo: “...con- “mágicas”, que “dizem mais do que as pa-
fesso o cansaço de canseira braba, por amor lavras dizem”: “meno” significa menino
de ‘bailar’ nas folhas do dicionário, nele nem
13 Castro, Nei Leandro de. Universo e Vocabulário do
nunca não achando a palavra querida. Mes-
Grande Sertão. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
mo assim mesmo, continuei ledor, vez de Editora, 1970, 195 p., das quais 170 dedicadas ao vo-
vez, ignorando o dizer.”12 Mais tarde, Nei cabulário.
14 Martins, Nilce Sant’Anna. O Léxico de Guimarães
Leandro de Castro ganharia o Prêmio Mario Rosa. Assistente Evair Dias; revisão geral Diva Gomes.
de Andrade do Instituto Nacional do Livro – 2.a edição. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2001.
15 “Soposo”, segundo Meyer-Clason, pode ter a ver
11 Costae Silva, Alberto, op. cit., 1989, pp. 154 e 155. com “suppig”, regionalismo hamburguês que significa
12 Guimarães, Vicente, Joãzito, Infância de João Guima- “chuvoso”, “ensopado”. A palavra assim aparece em
rães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, Grande Sertão: Veredas: “Lembro, deslembro. Ou – o
1972, p. 100. senhor vai – no soposo: de chuva-chuva” (grifo meu).
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  23

pequeno, de colo; nhalvo: alvo; susso: aca- para obter efeito de humor e ironia. É a favor
lanto suave; lélis: intriga, enredo; empinho: de construções literárias que reabilitem a arte
em pé, empinado. Estão entre uma cente- depois de “um longo e infeliz período de re-
na de palavras de “Campo Geral”, que o laxamento, de avacalhação da língua, de
crítico e professor Paulo Rónai não conse- desprestígio do estilo, de primitivismo falso e
guiu entender quando se preparava para de mau gosto.” Em muito do que se publica-
apresentar aquela novela do livro Corpo va no Brasil havia, segundo ele, “empobre-
de Baile em aulas como professor visitante cimento de vocabulário, rigidez de fórmulas
na Universidade da Flórida em Gainsville.16 e formas, estratificação de lugares-comuns,
Chamemos de “rosiana” essa linguagem na como caroços num angu ralo, vulgaridade,
qual a pesquisa vocabular, a inventividade falta do sentido de beleza, deficiência repre-
linguística e a musicalidade são evidentes, sentativa. É preciso distendê-la, destorcê-la,”
para distingui-la de outras linguagens, me- diz, “obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-
nos significativas e que vou comentar mais -lhe músculos. Dar-lhe precisão, exatidão,
adiante, também presentes em escritos de agudeza, plasticidade, calado, motores. E é
Guimarães Rosa. preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas
Não era, aliás, preocupação dele ser horas”. E acrescenta: “A palavra de ordem
compreendido por todos. Ou será que não é: construção, aprofundamento, elaboração
deveríamos acreditar na carta de 11 de cuidada e dolorosa da ‘matéria-prima’ que
maio de 1947 a seu tio Vicente Guimarães? a inspiração fornece, artesanato!” Cita Gra-
Já após a publicação de Sagarana, ali afir- ciliano Ramos: “Arte é artifício!” E Aurélio
ma: “quando se pensa com determinado Buarque de Holanda: “Nunca procuramos
nível de erudição, em palavras e frases, seria rebaixar, mas sempre elevar o gosto do
pecado contra o Espírito Santo, acovardar- povo”. Nunca teria sido sua intenção escre-
-se e, por medo de vaias da plebe, usar da ver para aquele que chama “o leitor vulgar”.
preocupação de rebaixar o seu estilo, para É enfático: “A língua portuguesa, aqui
ficar ao alcance de todos.”17 no Brasil, está uma vergonha e uma miséria.
Trata-se de carta em que, a propósito de Está descalça e despenteada: mesmo para
um artigo seu,18 defendia o estilo que já em- andar ao lado da espanhola ela ‘não tem
pregara no seu aclamado primeiro livro de roupa.’”19 (O grifo é meu). Observe-se que
contos. A carta é quase um manifesto esté- aqui valoriza os vestidos que o crítico Ser-
tico. Defende notas intencionalmente arcai- gio Milliet quis que fossem mais leves ou
cas contrastando com textos hipermodernos moldados ao corpo, ao comentar Sagarana.
Dizia aquele grande crítico: “Parece-me o
16 Rosa, João Guimarães. Carta a Paulo Rónai, de 3 de
estilo de Guimarães Rosa esses ricos vesti-
abril de 1967. In: Guimarães Rosa, Vilma, op. cit., pp. dos de uma época já passada que escon-
342 e 343. diam aos olhos mais curiosos as formas ver-
17 Guimarães, Vicente. Joãzito, op. cit., p. 137.
18 “Histórias de Fada”, publicado no Correio da Manhã dadeiras do corpo... Ainda aqui, entretanto,
em 20 de abril de 1947. Revisto e encurtado, foi in- acho que a solução de Guimarães Rosa é
cluído no livro póstumo Ave, Palavra (uma miscelânea
segundo a definição do próprio Rosa, citada na nota
introdutória de Paulo Rónai). 19 Guimarães, Vicente. Op. cit., pp. 130 a 139.
24  •  João Almino

útil. Andamos desnudando demasiado a Linguagem e sertão


forma literária na ânsia louvável de mostrar
incompreendidos
um corpo nu e verificamos ao findar a ex-
periência que o nu integral não perturba os Para fazer um contraponto ao Guima-
sentidos de ninguém.”20 Retenha-se desta rães Rosa glorificado de hoje, vale a pena
observação (feita muitos anos antes de Gui- relembrar que sua linguagem e o seu Sertão
marães Rosa ter publicado Grande Sertão: nem sempre foram bem compreendidos, e
Veredas) a percepção de que a literatura não apenas porque os dicionários fossem
brasileira teria oscilado entre dois polos: dos insuficientes para aclarar certas dúvidas sus­
ricos vestidos ao corpo nu. Mas certamente citadas por seus escritos. Já citamos o crítico
não era no extremo do barroco pitoresco Sérgio Milliet. Não se limitou a falar dos ves-
que se situava Guimarães Rosa, assim como tidos quando Guimarães Rosa estreou com
não era no polo do realismo mais cru que se o livro de contos Sagarana. Reconheceu, de
encontrava Graciliano Ramos, dois dos três imediato, em texto de maio de 1946, a im-
maiores prosadores brasileiros do século 20, portância do autor, “capaz de uma grande
sendo a terceira Clarice Lispector. obra”, mas, comparando-o com Graciliano
Mas os vestidos não inquietavam ape- Ramos, acreditava faltar-lhe uma “participa-
nas a Sérgio Milliet. O Embaixador e futuro ção mais íntima” na vida de seus persona-
Chanceler Antônio F. Azeredo da Silveira, o gens, sua “lucidez excessiva” provocando
Silveirinha, “um dos amigos mais queridos” “certa frieza na narrativa”: “Acontece que
de Guimarães Rosa, segundo sua filha Vil- li Sagarana depois de me haver comovido
ma, analisava – diz ela – “os originais que intensamente com os contos de Graciliano
lhe eram constantemente mostrados, che- Ramos, e minhas observações sem dúvida se
gando a aconselhá-lo, mais de uma vez, a ressentem de comparação inevitável. É que,
não exagerar na roupagem.”21 ao contrário de Guimarães Rosa, o nordesti-
Naquela mesma carta que, como disse, no Graciliano, que escreve com uma sobrie-
pode ser lida como manifesto estético, Gui- dade e uma propriedade raras, visa o hu-
marães Rosa esclarece, por outro lado e para mano antes de tudo e bem pouca atenção
evitar qualquer mal-entendido, que “nunca dá ao pitoresco. Sua originalidade é por isso
retornaremos ao verbalismo inflacionado e mesmo intrínseca e não apenas exterior. E a
oco de Coelho Neto”, autor que, anos mais presença da vida é nele profunda.” E mais
tarde, o destino recomendou que citasse no adiante, em relação a Sagarana: “Deseja-
discurso de posse da Academia Brasileira de ria que o Sertão chegasse a nós com mais
Letras, por ser um de seus antecessores na crueza, na sua desolação, menos ‘artista’,
Cadeira número 2. Foi, contudo, econômico menos literário, menos anedótico também.
ao pinçar dele um curto mote elogioso a Mi- Que o autor tivesse arrancado dele a tragé-
nas e ao caracterizá-lo apenas como “amo- dia humana e não o espetáculo.”22
roso pastor da turbamulta das palavras”. Meses mais tarde, quando leu a crítica de
Antonio Candido a Sagarana, que esposava
20 Milliet, Sérgio. Diário Crítico. 2.a edição. São Paulo:
Martins-Edusp, vol. III, 1981, p. 114.
21 Guimarães Rosa. Vilma. Op. cit., pp. 318 e 319. 22 Milliet, Sérgio. Op. cit. pp. 75 e 76.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  25

o ponto de vista de que Guimarães Rosa publicação de Grande Sertão: Veredas em


transcenderia o regional e que “Sagarana 1956. O jovem e já então reconhecido poe-
nasceu universal pelo alcance e coesão da ta Ferreira Gullar, posto que autor do extra-
fatura”, duvidou disso por sentir no autor ordinário “A luta corporal” em 1954, de-
mineiro “uma incapacidade de interessar clarava: “Li 70 páginas de Grande Sertão:
o leitor não brasileiro”.23 As muitas tradu- Veredas. Não pude ir adiante. A essa altura,
ções recebidas com entusiasmo por um cer- o livro começou a parecer-me uma história
to leitor estrangeiro, em geral culto, não o de cangaço contada para os linguistas.” O
desmentiram por completo, provavelmente crítico uruguaio Emir Rodríguez Monegal,
menos pelas razões mencionadas por ele conhecedor do português e que anos de-
do que pela riqueza e complexidade da lin- pois, como professor da Universidade de
guagem, o que é paradoxal, pois simplificar Yale, veio a ter um papel preponderante
a linguagem de Rosa em nome da clareza no lançamento do chamado boom latino-
descaracterizaria e por isso tornaria menos -americano, afirma em entrevista de 1968
atraente seu projeto. Foi o que aconteceu a propósito do livro de Rosa: “Custei um
com a tradução de Grande Sertão, Veredas pouco a vencer a humilhação de crer que
para o inglês, que não está à altura das que havia perdido uma das línguas de minha
foram feitas para o alemão e o italiano. infância.” O escritor e Acadêmico Adonias
Ainda sobre a linguagem, Sérgio Milliet Filho publica artigo intitulado “Guimarães
questionava Antonio Candido quando este Rosa: um equívoco literário.”25
afirmava que a língua usada pelo autor mi- A unanimidade atual da crítica brasileira
neiro “parece ter atingido o ideal de expres- e estrangeira, bem como o êxito de públi-
são literário-regionalista”: “Desejaria que co no Brasil ampliado pelas adaptações da
o Sr. Antonio Candido... nos dissesse... em obra para televisão, cinema e teatro não se
que essa língua erudita e admiravelmente sustentam apenas no Sertão ampliado e na
artística de Guimarães Rosa se prende ain- linguagem inventiva do autor. O Sertão em
da ao regional.” Não era apenas ao uso do Guimarães Rosa é menos realidade geográ-
vocabulário regional que Sérgio Milliet se fica que realidade mítica, ao estabelecer os
referia. Sua observação ia além: “Quanto à parâmetros para as descrições da fauna e
língua, que o sr. Antonio Candido aponta da flora, a criação de personagens marcan-
como ideal, vejo nela belezas de ritmo e de tes e para a dimensão espiritualista, intros-
vocabulário incomparáveis, certo preciosis- pectiva. Diz Riobaldo: “Sertão: é dentro da
mo sintáxico quase sempre feliz mas can- gente.” Isto explica que alguns de nossos
sativo... Um rebuscamento, uma profusão melhores críticos da obra de Guimarães
barroca que atordoam por vezes mas não Rosa tenham se dedicado, em grande parte,
penetram além da inteligência da gente.”24 à interpretação do mito em sua obra, como
Outras incompreensões, mais con- fez, por exemplo, Walnice Nogueira Galvão
tundentes, foram expressas quando da em Formas do Falso e Mitológica Rosiana.

25 Citados em Santiago, Silviano, Genealogia da feroci-


23 Idem, ibidem, p. 114. dade: Ensaio sobre Grande Sertão: Veredas, de Guima-
24 Idem, ibidem, pp. 113 e 114. rães Rosa”. Recife: Cepe editora, 2017, p. 19.
26  •  João Almino

Para além do Sertão As cidades estrangeiras por onde pas-


sou entraram pouco em sua literatura. Apa-
Vamos seguir, pelo Sertão, para as fron- recem em algumas matérias geralmente
teiras e além delas. Benedito Nunes, no saídas na imprensa (anotações sobre zoo-
ensaio “A viagem” do livro O Dorso do lógicos, poemas, fragmentos de diários,
Tigre, sustenta que “através do motivo da crônicas, pequenas ficções), quase todas
viagem, que está presente em quase toda a recolhidas em Ave, Palavra,29 livro póstumo
sua obra, de Sagarana a Primeiras Estórias, de linguagem muito pouco rosiana naquele
Guimarães Rosa liga-se às grandes expres- sentido já mencionado.
sões do “romance de espaço”. “É o espa- Algumas dessas crônicas ou contos se re-
ço que se abre em viagem, e que a viagem ferem ao período em que Guimarães Rosa
converte em mundo. Sem limites fixos, lu- esteve como Cônsul-adjunto em Hamburgo,
gar que abrange todos os lugares, o Sertão para onde seguiu, em primeira remoção, em
congrega o perto e o longe, o que a vista 1938, e onde viria a conhecer Aracy Moebius
alcança e o que só a imaginação pode ver”. de Carvalho, funcionária do Consulado que
“Há também, a par de muitos périplos, an- se tornou sua segunda mulher.
danças, partidas e chegadas, de Primeiras Uma das crônicas, “Homem, intentada
Estórias, a peregrinação sem horizontes”, viagem”, de O Globo em 18 de fevereiro de
“soturna, tresloucada” de “A Terceira Mar- 1961, relata a história de um brasileiro que,
gem do Rio”.26 de maneira recorrente, vinha aos Consula-
É traço igualmente destacado por Felipe dos para obter repatriação e, portanto, mais
Fortuna, no ensaio “Guimarães Rosa, via- uma travessia do oceano. “Ele era sempre
jante”, publicado no livro O Itamaraty na da outra margem”, diz o autor. Felipe For-
Cultura Brasileira, de iniciativa do Instituto tuna já fez ver a semelhança entre o caso
Rio Branco e organizado pelo Acadêmico daquele desvalido e o personagem do con-
Alberto da Costa e Silva. Afirma que “em to “A terceira margem do rio”, de Primeiras
todas as suas profissões... será possível des- Estórias30, que – não certamente por acaso
cobrir o amor [de Guimarães Rosa] à via- – foi publicado no ano seguinte. Como ob-
gem – muitas vezes viagem de pesquisa e servou Eneida Maria de Souza, citando este
introspecção, mais voltada para dentro do conto, nos dois personagens existe “a ine-
que para o exterior. Para ele, a viagem é rente ‘necessidade de partir e longinqüir, se
o fio da meada.”27 É o próprio Guimarães exportar, exairar-se, sem escopo, à lontania,
Rosa quem diz, no que chamou de “Boba- às penúltimas plagas’”.31
gens biográficas”, enviadas por carta a seu
tradutor italiano, que “o gosto de estudar com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri. 3.a Ed. Rio de
línguas, e a ânsia de viajar mundo, levaram- Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 145.
29 Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro:
-no a deixar a medicina.”28 Livraria José Olympio Editora, 1970.
30 Fortuna, Felipe. Op. cit., p. 382.
26 Nunes, Benedito. O Dorso do Tigre. São Paulo: edi- 31 Souza, Eneida Maria de. “Rosa entre duas margens.

tora Perspectiva, 2.a edição, 1976, Pp. 173-74, 177-78. In: https://www.ufmg.br/aem/inicial/publicacoes/artigos/
27 Fortuna, Felipe. Op. cit., p. 360. rosa.htm#_ftn4. Cita ROSA, João Guimarães. Homem,
28 Anexadas a carta de 25 de fevereiro de 1964. In: Guima- intentada viagem. In: Ave palavra. Rio de Janeiro: José
rães Rosa, João, João Guimarães Rosa: correspondência Olympio, 1970, p. 214.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  27

Outra crônica, com o título de “A Senho- confusa, foi em qualquer manhã, pelo tele-
ra dos Segredos”, tem a ver com horóscopos, fone. Uma senhora, muito velha e doente,
tema do interesse de Rosa. Conta a história pedia que o Cônsul lhe fosse à casa, para
de uma horoscopista que, como a cartoman- assunto de testamento, Frau Wetterhuse.”
te do conto de Machado de Assis, erra redon- Ora, não seria fácil atender ao pedido nas
damente em sua previsão. Assim começa: circunstâncias vividas pelo Consulado, sobre-
“Não sei se creio em quiro ou cartomantes; tudo em razão da perseguição que se fazia
em astrólogos, sim, quase acredito. Pelo me- aos judeus: “O recado se perdia, obrigação
nos, duas vezes tive fé em Frau Heelst, dada e abstrata, no tumulto diário de casos, o Con-
gabada então como horoscopista de Hitler.” sulado invadindo-se de judeus, sob mó de
Foi em Volksdorf, perto de Hamburgo. A pri- angústias, famintos de partir, sofridos imen-
meira visita a ela foi em grupo, em meados de sos, em desengano, público pranto e longo
1938, da qual participou também sua mulher estremecer, quase cada rosto prometendo-se
Aracy, ali citada como Ara. A segunda, diz ele, a coativa esperança final do suicídio. Vê-los,
“se deu em meados de junho [de 1939], e vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rou-
portanto depois quase de um ano, quando o co, raivoso. Contra esses, desde novembro,
Dr. Goebbels andava visitando Dantzig, e eu se implacara mais desbordada e atroz per-
tinha para Frau Heelst uma pergunta pronta: seguição, dosada brutal. Viesse a guerra, a
– Haverá guerra?” A resposta da horoscopista primeira ordem seria matá-los?”
foi categórica:” – Ach, nee... De modo ne- Finalmente, visitou-a. Era a Dame Verô-
nhum. Sossegado esteja.” Foi enfática, dissu- nika, viúva de um judeu. Angélika, a filha
adiu-o “de especular naquilo, pois guerra não ali presente, por ser teuto-hebreia, uma
iria haver.” Passam junho, julho, agosto. Frau “mestiça do primeiro grau”, corria sério
Heelst ligou de Volksdorff, aflita: “Se lhe seria perigo. Dame Verônica confessou ao Côn-
consentido emigrar, para o Brasil... Se podia sul num português perfeito, língua que a
vir ver-me, combinar o que, pronto receber os filha não compreendia: “Minha filha não é
papéis, partir...” E a crônica termina: “Não, filha de meu marido. Nem ela nem ele ja-
não era mais possível. Nada deixavam os as- mais souberam... Foi em vosso país... O pai
tros. Doze dias depois, começava a guerra.”32 de minha filha não era de sangue judeu.”
Considerando o que se sabe hoje sobre Diz o narrador: “Não, em fato. Não. Tive
o empenho que tiveram Aracy e ele próprio de sacudir a cabeça. Dame Angélika nem
em salvar judeus que fugiam do nazismo mesmo era brasileira. Tudo indeterminado,
para se abrigar no Brasil, são de particular sem fundamento certo, apenas o citar de
interesse duas outras crônicas cujas histórias um romance perdido no antigo... Quem iria
também se passam em Hamburgo à época querer crer?” ...”Levantei-me; eu nem era
em que Guimarães Rosa lá estava em sua um cooperador passivo do destino”...“O
função consular. Assim começa a crônica sistema do mundo. A velha vida”. E o Côn-
“A velha”: “Sua primeira menção, um tanto sul esquivou-se.33

32 Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: 33 Idem, ibidem, pp. 108-11. Originalmente publicada

Livraria José Olympio Editora, 1970, pp. 210-13. em O Globo, 3 de junho de 1961.
28  •  João Almino

De todas as estórias narradas por Rosa Lá para as tantas, pergunta, inconfor-


relativas a seu período de Hamburgo a mais mado, o narrador: “Por que teve Márion
complexa e a que melhor se aproxima de de vir a conhecer Annelise?” Annelise era
uma das características da prosa rosiana, a mulher de um tal Capitão K. Por causa
plena de enredos e subenredos, é a que da amizade entre as mulheres, os dois ma-
tem por título “O Mau Humor de Wotan”, ridos se tornam também amigos. Ambos
publicada no Correio da Manhã em 29 de são recrutados e servem ao Exército ale-
fevereiro de 1948. Wotan é um deus da mão na França. Retornam, diz o narrador
mitologia germânica associado às tempes- no adiantado da história, “enquanto nós,
tades, paixões e à guerra. nós outros, chorávamos ainda a França.”
Neste caso, a crônica se aproxima de um Hans-Helmut volta encantado com a França
conto em primeira pessoa, cujo narrador e seus requintes. Uma noite, o pai de An-
vive o cotidiano em Hamburgo, numa épo- nelise, o Dr. Schwartz, demonstra irritação
ca em que o nazismo penetrava em todos com os relatos de Hans-Helmut sobre a
os poros da sociedade alemã. Dialoga e até guerra, na qual ficou sempre na retaguarda.
mesmo constrói amizade com aqueles de É certamente por sua influência que Hans-
quem discorda. Toda a crônica está pontua- -Helmut é recrutado para lutar na linha de
da pelos desastres da guerra, e uma das ma- frente, sob a chefia do Capitão K. Ao lon-
neiras de entender sua estrutura é observá- go da crônica, que se encerra com a morte
-la pela ótica dos afetos e da apresentação de Hans-Helmut, o narrador acompanha a
de uma face humana do horror. Senão veja- aflição vivida por Márion Madsen em razão
mos: a estória começa com o quase namoro dos riscos enfrentados pelo marido.
entre o narrador e a bela Márion Madsen.
Ela, nas palavras dele, “hesitava em ceder
primaverazmente às gratidões do amor”.
Escritos diplomáticos
Quer casar-se. É o que faz dali a mais de Além de peças literárias como estas,
ano, “quinze dias talvez antes do ataque produzidas a partir de sua experiência de
à Polônia”. Os recém-casados vão em lua diplomata, Guimarães Rosa escreveu notas,
de mel a Bruxelas durante a destruição de memorandos, ofícios e cartas na sua pró-
Varsóvia. Diz o narrador: “[Márion] passou pria função diplomática. Quem melhor es-
a ser Frau Heubel, mulher de Hans-Helmut. tudou o assunto foi a Embaixadora Heloisa
Do modo, por falho namoro e pela forte Vilhena de Araújo num de seus cinco livros
camaradagem seguinte, vim a conhecer dedicados ao autor e que tem por título
um meu amigo.” Ou seja, desenvolve uma Guimarães Rosa, diplomata.
amizade também com o marido de Márion, Antes de ir a alguns desses textos, gosta-
que, embora esposando às vezes ideias pa- ria de me referir à maneira como Guimarães
cifistas, tem simpatias nazistas e quer ser Rosa via a diplomacia. Seu concurso, presta-
recrutado pelo exército de Hitler. Nas con- do em 1934 e para o qual se preparou com
versas com a família do casal, a aliada do afinco, está minuciosamente descrito em
narrador é a mãe de Márion, Frau Madsen, sua correspondência. Logo no início, quan-
que o faz repetir cada discurso de Churchill. do havia sido designado para trabalhar no
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  29

Cerimonial, afirma em carta enviada a seu quando podem fazê-lo a favor do homem.
pai, Senhor Florduardo (por sinal, um nome Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acre-
bastante rosiano), datada de 21 de agosto dito no homem e lhe desejo um futuro. Sou
de 1934, do Rio de Janeiro: “A princípio a escritor e penso em eternidades. O político
carreira é difícil: estou trabalhando em uma pensa apenas em minutos. Eu penso na res-
seção de muita responsabilidade, e os ven- surreição do homem.”36
cimentos são pequenos.... Tenho esperança Pensar em eternidades seria ponto de
de fazer carreira breve [no sentido de “rápi- convergência entre o escritor e o diploma-
da”], e para isso empregarei todos os meus ta. Em Ave, Palavra inclui-se um texto que
esforços, pois penso que descobri a minha ilustra esse pensamento, intitulado “O Lago
verdadeira vocação.”34 A filha Vilma acha do Itamaraty”, originalmente publicado nas
que seu pai “era um diplomata nato. Intui- Seleções do Reader’s Digest de agosto de
tivo. Sabia lidar com diferentes tipos de pes- 1951, no qual lemos o seguinte:
soas e contornar qualquer conversa, se não “No dia a dia, ..., sem aparato,” o lago do
quisesse entrar direto no assunto”.35 Itamaraty “rende quadro certo e apropriado à
Numa de suas poucas entrevistas, con- Casa diplomática. Porque de sua face, como
cedida ao crítico alemão Günter Lorenz, em aos lagos é eternamente comum, vem inde-
Gênova, em janeiro de 1965, quando então teriorável placidez, que é reprovação a todo
já trabalhava no Serviço de Demarcação de movimento desmesurado ou supérfluo.”
Fronteiras do Itamaraty, cuja chefia assu- Também, uma vez, em 1935, e acaso asso-
mira em 1962, ali ficando até a morte em ciado à lembrança de outro lago, forneceu
1967, Guimarães Rosa disse, referindo-se à imagem imediata a um dos mais desvenci-
diplomacia e à concessão de vistos aos ju- lhados espíritos que jamais nos visitaram: [o
deus: “um diplomata é um sonhador e por escritor e diplomata espanhol] Salvador de
isso pude exercer bem essa profissão. O di- Madariaga. Que concluindo, ali, no auditório
plomata acredita que pode remediar o que da Biblioteca, memorável conferência sobre
os políticos arruinaram. Por isso agi daquela “Genebra” – id est a Sociedade das Nações
forma e não de outra. E também por isso ou qualquer organização que se proponha
mesmo gosto muito de ser diplomata.” realizar alguma harmonia entre os povos –
Na mesma entrevista, afirma: “... eu comparou que a mesma seria, na vida inter-
jamais poderia ser político com toda essa nacional, o que a água é na paisagem: mais
constante charlatanice da realidade. O luz, por reflexão, e o calmo equilíbrio da ho-
curioso no caso é que os políticos estão rizontalidade.”
sempre falando de lógica, razão, realidade A diplomacia e a literatura, em Guima-
e outras coisas do gênero e ao mesmo tem- rães Rosa, também têm em comum pensar
po vão praticando os atos mais irracionais o mundo e a nação, porém com linguagens
que se possam imaginar. Talvez eu seja um
político, mas desses que só jogam xadrez, 36 Coutinho, Eduardo de Faria. (org). Guimarães Rosa. Rio

de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1983, p. 78.


A entrevista completa também está disponível em http://
34 Rosa, Vilma Guimarães. Op. cit., pp. 147-48. www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-
35 Idem, ibidem, p. 128. -rosa-entrevista.html (Consultado em 27/1/2018).
30  •  João Almino

muito distintas uma da outra, apesar de Mesmo esses exemplos estão muito dis-
pontos de contato. Entre estes, Heloisa tantes da linguagem do ficcionista Guima-
Vilhena de Araújo nota, por exemplo, que rães Rosa. No geral, as linguagens do fic-
as estórias de Sagarana, em especial as do cionista e do burocrata são distintas e, para
conto “O Burrinho Pedrês”, podem estar que cada uma mantenha a excelência, não
ecoadas na descrição que Guimarães Rosa, poderia ser diferente. Na linguagem diplo-
em Ofício de 10 de maio de 1949, quando mática, tão bem empregada por Guimarães
lotado na Embaixada em Paris, faz de um Rosa, este não busca, porque seria inapro-
grupo de lavradores franceses do “Centre priado, inovação linguística ou vocabular.
d’Essais d’Alesmes” que deseja emigrar Não investe em musicalidade, onomato-
para o Brasil: “Há um jeito sábio e amoro- peias ou aliterações. O que é adequado ao
so”, escreve Guimarães Rosa, “de revolver conto ou ao romance não o é à burocracia.
na mão a terra da gleba arada; de tocaiar Num memorando de 26 de janeiro de 1945
as toupeiras, que alongam o morrete de ao Chefe do Departamento de Administra-
suas galerias pelos canteiros da horta; de ção sobre correção linguística, o próprio
armar engenhosos espantalhos para defe- Guimarães Rosa é claro sobre este ponto
sa da semeadura, estacando manipansos ao dizer que “no gênero epistolar, princi-
ou pendurando um pintarroxo morto, que palmente em cartas oficiais, a simplicidade
se balança ao vento e escarmenta os de- é sempre aconselhável.”37
mais pintarroxos atrevidos; de recobrir com O que ambas as linguagens emprega-
grades de ocasião os viveiros de hortaliças; das por Guimarães Rosa têm em comum
de improvisar interessantes portas rústicas, é o esmero, a precisão, a atenção ao deta-
de armação de madeira recheada com has- lhe e o rigor, fruto de apuro, dedicação e
tes verdes de giestas; de pagar com um grande capacidade de trabalho. Nada em
carinho o cavalo de charrua ou o boi de seus textos está ali por acaso. Esta obser-
carreta, ou escolher nomes afetivos para vação vale para a sua ficção, nas suas múl-
os animais domésticos; de recolher as ove- tiplas facetas. Um exemplo bastante ilus-
lhas quando o vento aperta; de zelar pela trador disso é que a escritora e Acadêmica
fonte supridora de boa água; e de com- Ana Maria Machado escreveu todo um
parar, com os seus próprios, a altura e o magistral livro em torno dos nomes dos
colorido novo dos campos de centeio dos personagens na ficção de Guimarães Ro-
vizinhos.” sa.38 Mas aplica-se também aos relatórios
Embora em correspondência particu- políticos que o diplomata fez em 1940 so-
lar eivada de humor, é possível mencionar, bre Portugal e Espanha para a Embaixada
como curiosidade e mais uma demonstra- do Brasil em Berlim e que mereceram elo-
ção do gosto de Guimarães Rosa pela pes- gio do então Embaixador do Brasil naque-
quisa vocabular, a carta toda escrita com
palavras que começam com a letra “C” 37 Araújo, Heloisa Vilhena. Guimarães Rosa: Diplomata.

que, como Cônsul Adjunto em Hamburgo, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1987, p. 135.
38 Machado, Ana Maria. Recado do Nome, Leitura de
escreve ao “Cônsul Caro Colega Cabral”, Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens.
lotado em Frankfurt. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976.
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la cidade, Cyro de Freitas Vale. São peças reuniões que duravam o dia inteiro. Tudo
de um afiado analista político da situação isso, sob a circunstância de ser, entre os 80
desses dois países e de suas tendências no milhões de brasileiros, o que é pago para
panorama que se desenhava na Europa, cuidar do assunto, debaixo do peso dele.
opondo o Eixo aos Aliados. E com a saúde – como Você sabe. E com
Merece destaque entre os textos buro- o visceral “medo de errar”, a necessidade
cráticos a nota n.o 92, de 25 de março de compulsiva de cuidar de todos os detalhes,
1966, sobre questões de limites com o Pa- a lentidão meticulosa do mineiro da roça,
raguai na região do Salto de Sete Quedas. de terra onde os galos cantam de-dia. As-
Foi redigida por Guimarães Rosa à frente sim, fiquei fora e longe de tudo o mais,
do Serviço de Demarcação de Fronteiras. nem me lembrava que eu era Guimarães
O assunto exigiu intenso trabalho seu. Já Rosa, não respondi às cartas das editoras
cerca de dois anos antes, em 13 de maio estrangeiras, perdi dinheiro, sacrifiquei in-
de 1964, em carta a seu tradutor italiano teressantes oportunidades, adoeci mais,
Edoardo Bizzardi, dizia: “Temos assuntos soterrei-me. Aaaaaaaah…….”40
graves, como, por exemplo, o que Você A nota 92 é um longo documento, de
deve ter visto dele menção, frequente, 156 parágrafos, baseado em pesquisa apu-
nos jornais: o do Salto Grande das SETE rada sobre negociações prévias, atas de
QUEDAS.”39 E, em 21 de outubro de 1966, reuniões e tratados subscritos pelas partes.
portanto sete meses depois de enviada a Lembra os trabalhos histórico-geográficos
nota n.o 92, em nova carta ao tradutor ita- realizados pelo Barão do Rio Branco como
liano diz: “de meados de 65 para cá, hou- negociador principal das fronteiras do Bra-
ve tanta coisa, sobre mim, tanta carga! Às sil. Vários autores têm assinalado com pro-
vezes me desola e reprovo, achando que priedade que a nota, que veio a ser assi-
sou o que os franceses dizem: une petite nada pelo então Embaixador do Brasil em
nature. Tem horas, porém, que me consola Assunção, Jayme de Souza-Gomes, abria o
pensar que até resisto bem, ao de fora e terreno para as futuras negociações em tor-
ao de dentro – a ondas e enxurradas. Pois, no do aproveitamento dos recursos energé-
Você... deve ter acompanhado nos jornais ticos por ambos os países, ou seja, o Brasil
o palpitante caso de divergência com o e o Paraguai.
Paraguai, o assunto Sete-Quedas. Imagi- Outra participação de Guimarães Rosa
ne, pois, o que sucedeu, de junho do ano em negociações que podem ter tido in-
passado, até julho deste. Foi uma absurda fluência no trabalho futuro nas regiões
e terrível época, de trabalho sem parar, de de fronteiras deu-se em reunião dos Em-
discussões, de reuniões, de responsabili- baixadores brasileiros nos países amazô-
dades. Várias vezes, tive de trabalhar aqui nicos, realizada em Manaus em 1967,
no Itamaraty até as 5 horas da manhã... meses antes da posse de Guimarães Rosa
e comparecer no outro dia já às 9, para na Academia Brasileira de Letras e de seu
falecimento. Trata-se de uma das primeiras
39 Rosa, João Guimarães. João Guimarães Rosa, Corres-

pondência com seu tradutor italiano Edoardo Bizzarri.


3. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 158. 40 Idem, ibidem, pp. 179-80.
32  •  João Almino

iniciativas a contribuir para as discussões ideias e a coordenação das informações de


que levariam à assinatura, mais de dez que dispunham.41
anos depois, ou seja, em 1978, do Tratado A Embaixadora Heloisa Vilhena de Araú-
de Cooperação Amazônica. Ali, enquan- jo inclui também entre os anexos a seu livro
to vários outros delegados manifestavam um bem elaborado memorando de Guima-
posições a partir das perspectivas de seus rães Rosa como Chefe da Divisão do Orça-
países, Guimarães Rosa procurava ressaltar mento (função que assumiu em 1953). O
os interesses comuns. Dizia, por exemplo, memorando trata de tabelas de gratificação
que “seria desejável e mesmo necessário de representação.
que, desde já, [as intervenções] transcen- O que fica clara através da leitura des-
dessem o aspecto de meras monografias ses textos é a dedicação de Guimarães Rosa
corográficas isoladas e encarnassem, em ao seu trabalho diplomático. Diz Walnice
sua dinâmica e atualidade, o tema ‘intera- Nogueira Galvão: “Os testemunhos conver-
gem para delinear o perfil de um funcionário
mazônico’ – isto é, especificamente tendo
consciencioso e trabalhador.”42 Afirma Vilma
em vista, à luz das peculiaridades de cada
Guimarães Rosa, sobre seu pai, que “sempre
país, a concepção de uma planejada ação
se dedicou ao trabalho com o mesmo ardor
valorizadora, mediante esforços comuns
com que se entregava à literatura.”43 Talvez
conjugados, das diversas Amazônias.”
alguns julguem exagero, considerando que
Heloísa Vilhena de Araújo coletou uma
o Serviço de Demarcação de Fronteiras, dé-
série de outros documentos, tais como a
cadas depois da finalização das grandes ne-
nota enviada por Guimarães Rosa, como
gociações empreendidas pelo Barão do Rio
Chefe da Secretaria do Instituto Rio Branco,
Branco e com suas bem organizadas Comis-
ao Diretor daquele Instituto em 1952 para
sões Demarcadoras, não seria das áreas de
o programa do Concurso de Provas na parte
mais intenso trabalho no Itamaraty. A leitura
referente à Cultura Geral. Num belo texto da correspondência de Guimarães Rosa, em
intitulado “Guimarães Rosa, examinador distintas épocas de seus 33 anos de carrei-
de cultura”, o Embaixador Rubens Ricupe- ra no Itamaraty, revela, porém, que, se sua
ro relata o encontro com Guimarães Rosa visão de si próprio for exata, dedicava com
como examinador justamente da prova de seriedade longas horas de seus dias ao tra-
Cultura Geral, a última do exame do Institu- balho na Casa.
to Rio Branco a que se submeteu em 1958.
41 Ricupero, Rubens, “Guimarães Rosa, examinador de
Conhecedor agora daquele texto de 1952,
cultura”. In: João Guimarães Rosa, edição especial (nú-
conclui que Rosa aplicou suas sugestões meros 20 e 21, dezembro de 2006), Cadernos de Lite-
de então ao concurso de 1958 ao substi- ratura Brasileira, Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles,
n.os 20-21, dezembro de 2006, pp. 66-75. O encontro
tuir perguntas de almanaque que predomi- de Rubens Ricupero com Guimarães Rosa, então seu
navam nesse tipo de prova por uma longa examinador na prova de Cultura Geral do exame para o
Rio Branco, é também evocado no Prefácio que escreve
dissertação a propósito de dois fragmentos a seu novo livro, A diplomacia na construção do Brasil,
de textos que permitissem aos candidatos 1750-2016. Rio de Janeiro: VersalEditores, 2017.
42 Galvão, Walnice Nogueira, Guimarães Rosa. São Pau-
demonstrar a variedade de seus conheci- lo: Publifolha, 2000, p. 68.
mentos, a capacidade associativa entre as 43 Rosa, Vilma Guimarães. Op. cit., p. 60.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  33

Depois da volta de Bogotá, por exem- que anuncia: “O “SAGARANA” deve sair lá
plo, de onde chegara em 1944 e para para o fim do mês”.45
onde, como Segundo-Secretário, havia sido Cerca de três meses depois, em carta
designado em 1942, envia carta a seu pai, de 5 de junho do mesmo ano de 1946 ao
datada do Rio Janeiro em 6 de novembro Embaixador Orlando Leite Ribeiro, que, se-
de 1945: “Trabalho muito, isto sim. Aliás, gundo Vilma, “teve uma influência decisiva
desde que cheguei, não tenho podido des- e muito importante na carreira do jovem
cansar um só dia. O Ministério tem, atual- diplomata”, já que teria sido o responsá-
mente, muito poucos funcionários, do que vel por sugerir “seu nome para chefe de
resulta estarem todos sempre sobrecarrega- gabinete do chanceler João Neves da Fon-
dos de serviço.”44 toura”, Guimarães Rosa volta a descrever
Em 1946, ele é nomeado, pela primei- seu intenso trabalho: “Mais telefonemas,
ra vez, Chefe de Gabinete do Chanceler mais audiências, mais telegramas, mais in-
João Neves da Fontoura, de quem se tor- cumbências. No meio da barulheira, o Gui-
na amigo (voltará a ocupar o mesmo car- marães Rosa vai fazendo um pouco como
go, também com o Chanceler João Neves o burrinho pedrês da história [refere-se ao
da Fontoura em 1951). Queixa-se em carta mais conhecido conto de Sagarana]; mas, à
ao pai, enviada do Rio de Janeiro em 14 saída, lá pelas nove da noite, nada se fez, de
de março de 1946: “Vou bem, mas num ponderável e palpável, e a cabeça está zon-
regímen duríssimo de trabalho: nunca o za de nomes, coisas, providências a tomar,
“batente” foi tão forte, em horas de dura- a notar, a telefonar, e não há ânimo para se-
ção e na intensidade do serviço. Da manhã gurar papel e pena, para uma carta amiga.
à noite, recebo dezenas de pessoas, trato Veja Você no que deu a sua ideia de colocar
de dezenas de casos, resolvo dezenas de um poeta na chefia do Gabinete...”46
assuntos, distribuo tarefas, tomo providên- Ainda em 1946, viaja a Paris para a Con-
cias, informo papéis, dito cartas e ofícios, ferência de Paz e acompanha o Ministro
atendo ao Ministro, atendo a políticos, di- em viagens relacionadas com o término da
plomatas, pessoal da casa, redijo memo- guerra. Em carta às filhas Vilma e Agnes,
randuns, e... aguento três telefones. Já sou enviada de Paris em 3 de setembro daque-
capaz de falar em três telefones, a um só le ano, relata: “Tenho trabalhado muito,
tempo. É coisa para botar qualquer pessoa e viajado um pouco. No dia 16, fui com o
maluca, ao fim de certo tempo. Mas, com Ministro à Alemanha: Berlim, Nuremberg e
coragem e filosofia, tudo vai bem. Mas, só Munich. Vimos muita miséria e ruínas em
lá pelas 9 horas da noite é que paro e venho quantidade, e voltamos a Paris no dia 19.
para casa.” É naquela época em que ocu- Em Nuremberg, estive na sala do julgamen-
pa cargo-chave e de intenso trabalho que to dos criminosos de guerra nazistas..../
publicará o livro que está reescrevendo há Agora estou de retorno de outra viagem.
quase dez anos e que marcará para sem- Cheguei ontem à noite, da Holanda e
pre sua literatura, pois é na mesma carta
45 Idem, ibidem, pp. 161-62.
44 Idem, ibidem, pp. 158 e 159. 46 Idem, ibidem, p. 162.
34  •  João Almino

Bélgica, aonde fôramos tratar pessoalmen- A promoção a Conselheiro ocorreu em


te assuntos de imigração... Agora, sinto-me Paris, onde serviu de 1948 a 1951. Em
cansado de viagem.”47 carta a Vilma, enviada daquela cidade em
Em carta a seu pai, senhor Florduardo, 29 de maio de 1950, dá a notícia: “Ah,
de 26 de março de 1947, diz que passou uma novidade, que pode ser a Você, para
“uma temporada dura de trabalho, com a farol: fui eleito Conselheiro, não sou mais
realização dos exames vestibulares para o apenas “Secretário (Primeiro)”, mas sim
Instituto Rio Branco, que acabam de en- “Conseiller d’Ambassade”. Como Você,
cerrar-se. Durante a semana passada, por que é Conselheira. Infelizmente, é apenas
exemplo, trabalhei, cada dia, das oito da título honorífico, o conselheirato, tal como
manhã até 1 e 2 horas da madrugada, com o seu, não rende pecúnia, não traz aumen-
pequena interrupção para almoço e jantar. to de vencimentos... Em todo o caso, é o
Além da parte administrativa, funcionei caminho para a promoção a Ministro.”50
como examinador, nas bancas para Portu- A promoção a Ministro de Segunda Clas-
guês, Francês e Geografia com tarefas pe- se não tardou. Veio em 1951, ano em que
nosas, inclusive a revisão de cento e tantas volta a ser Chefe de Gabinete de João Ne-
provas escritas, para cada matéria. Foi forte, ves da Fontoura.
mas passou. E era interessantíssimo.”48 Sete anos depois, num dia de 1958,
Noutra carta, esta dirigida a sua mãe, recebe um telefonema do Presidente da
Dona Chiquitinha, e a Seu Florduardo, em 8 República, que ele conhecia de velhos tem-
de outubro de 1958, relata período em que pos quando, ambos médicos, haviam sido
assumiu a Chefia do então Departamento oficiais-médicos da Força Pública de Minas
Político: “... durante a ausência do Ministro durante a Revolução Constitucionalista de
de Estado, passei 18 dias de trabalho tre- 1932:
mendo na Chefia do Departamento Políti- – Capitão Rosa?
co – comparecendo de 9 da manhã às 9 da – Continência, comandante Juscelino!
noite, sem pausas, e ainda trazendo serviço Apresentando arma!
para casa. Isso, sem contar a responsabili- – Parabéns, Embaixador Rosa!
dade aumentada enormemente, e a porção – Embaixador?...
de coisas e assuntos em que tinha de me Juscelino Kubitschek acabara de assinar
desdobrar, sempre sob tensão e urgência. o decreto promovendo-o a Ministro de Pri-
Variedade danada. Inclusive, tive de presidir meira Classe.
reuniões e almoços, fazer discursos... Mas
foi mesmo um tempo duro. Tive de adiar Depois ele escreve a JK:
a viagem a Belém do Pará, à fronteira com
a Venezuela, que provavelmente farei ainda “Sozinho,
este ano.”49 Com alteração,
Com premente apelo –
  a gratidão, profunda,
47 Idem, ibidem, pp. 229-30.
48 Idem, ibidem, p. 162.
49 Idem, ibidem, pp. 187/188. 50 Idem, ibidem, p. 242.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as   •  35

  a admiração, de mais de 30 anos, poemas Magma, vencedor de concurso da


  e a fiel continência Academia Brasileira de Letras. Não que de-
   do seu Capitão Guimarães Rosa”.51 vamos considerar, por isso, que sua poesia
esteja no mesmo nível que sua obra de fic-
Em maio de 1963, Guimarães Rosa can­ ção. Tanto não é assim que ele nunca quis
didata-se pela segunda vez, agora com êxi- publicar esse livro, que somente teve edição
to, à Academia Brasileira de Letras (a pri- póstuma. Mas o desejo de escrever poesia
meira fora em 1957, saindo o resultado da estava lá no início e não surpreende que
eleição em 23 de janeiro de 1958, quando sua ficção de linguagem rosiana esteja toda
Afonso Arinos de Melo Franco obteve 27 ela impregnada de poesia. É o que é am-
votos e ele 10, em suas palavras “os 10 vo- plamente reconhecido pela crítica. Já num
tos bons, que deram para ‘salvar a face’).”52 ensaio de 1960, “Grande Sertão: a fala”,
Quatro anos depois, Otto Lara Resende fez incluído no livro A sereia e o desconfiado,
uma nota no Jornal do Brasil sobre o boato Roberto Schwarz, por exemplo, observava
de que finalmente tomaria posse na Acade- que Guimarães Rosa criava “um poderoso
mia, notícia que repetiu em programa que jorro verbal, em cujo curso e sintaxe a pala-
fazia diariamente na TV Globo. “Ele ouviu e vra adquire qualidade poética” e que “não
telefonou-me para casa. Pediu-me que me fica essa qualidade restrita a determinadas
referisse a ele como Embaixador”, diz Lara passagens do livro, que impregna todo. In-
Resende. O pedido era sobretudo para im- depende da temática, é produto de um flu-
pressionar sua neta,53 segundo alegou. xo retórico peculiar no qual ... o vocábulo é
Guimarães Rosa teria, então, de prepa- valorizado a ponto de reviver com a intensi-
rar seu discurso de posse, “a última coisa dade que identificamos ao lirismo”.55
importante que” faria “na vida”, segundo O discurso de posse na Academia é de
anunciou a seu amigo Alberto da Costa e um poeta prosador e é quase todo sobre
Silva54 e que viria a ser seu último escrito. um diplomata, seu ex-chefe no Itamaraty, a
Neste caso, texto do Embaixador, prosador quem sucede na Cadeira. Guimarães Rosa é
e poeta. ali fiel à linguagem rosiana ao falar do Ser-
Não falei ainda dessa outra possível lin- tão em que nasceu. Senão vejamos: “Cor-
guagem de Guimarães Rosa, a da poesia, e disburgo era pequenina terra sertaneja,
com isso encerro por onde eu poderia ter trás montanhas, no meio de Minas Gerais.
iniciado. Não por acaso o êxito de Guima- Só quase lugar, mas tão de repente boni-
rães Rosa na escrita começou com o livro de to: lá se desencerra a Gruta de Maquiné,
milmaravilha, a das Fadas; e o próprio cam-
51 Idem,
po, com vasqueiros cochos de sal ao gado
ibidem, p. 311.
52 Rosa, João Guimarães. Carta a Paulo Dantas, em 4 bravo, entre gentis morros ou sob o demais
de fevereiro, citada por Costa, Ana Luiza Martins “Ve-
redas de Viator”. In: João Guimarães Rosa. Cadernos 55 Schwarz, Roberto, A sereia e o desconfiado; ensaios

de Literatura Brasileira, p. 38. Ver também Rosa, Vilma críticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
Guimarães, op. cit, p. 329 p. 25. Em 1992, Alberto da Costa e Silva publicava um
53 Rosa, Vilma Guimarães. Op. cit, p. 329. ensaio que exaltava a qualidade fundamentalmente po-
54 Costa e Silva, Alberto da, “O ‘Primeiro Rascunho’ de ética da prosa de Guimarães Rosa (Guimarães Rosa, poe-
Grande Sertão: Veredas”. Texto cedido pelo autor. ta. Bogotá: Centro Colombo-Americano, 1992).
36  •  João Almino

de estrelas, falava-se antes: ‘os pastos de COSTA E SILVA, Alberto da. “O ‘Primeiro Rascunho’ de
Grande Sertão: Veredas”. Texto cedido pelo autor.
Vista Alegre’.” Ou sobre o Acadêmico e COUTINHO, Eduardo de Faria. (org). Guimarães Rosa. Rio
ex-chanceler João Neves da Fontoura: “E, de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1983.
FORTUNA, Felipe, “Guimarães Rosa Viajante”. In: Costa e
em instante, brusco ou gradual, baixavam- Silva, Alberto (org.), O Itamaraty na Cultura Brasileira.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2002.
-lhe outras veras, estalo, faculdade, fôlego, GALVÃO, Walnice Nogueira. As formas do falso. São Paulo:
expediam-se-lhe por volta anjos novos da Perspectiva, 1972.
_____. Guimarães Rosa. São Paulo: Publifolha, 2000.
guarda, caboclos, gênio, verbigênio, apolí- _____. Mínima mímica: ensaios sobre Guimarães Rosa. São
nica chispa, o ‘duende’, o ‘daimon’? Erguia- Paulo: Companhia das Letras, 2008.
_____. Mitológica rosiana. São Paulo: Ática, 1978.
-se e erguia-nos, por comoção e impacto, GUIMARÃES, Vicente. Joãozito, Infância de João Guima-
rães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Edi-
raptura. Ereto – mínimo vulto, mais mente tora, 1972.
e menos matéria – maludo e esmarte ago- MACHADO, Ana Maria. Recado do Nome, Leitura de Gui-
marães Rosa à luz do nome de seus personagens. Rio
ra, ao ápice e às ordens, no tinir do metal, de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976.
centro de círculos até que em fecho enfim o MARTINS, Nilce Sant’Anna. O Léxico de Guimarães Rosa.
Assistente Evair Dias; revisão geral Diva Gomes. – 2.a
circuito único encantatório, por efluxo tam- edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Pau-
bém invariável –: daquela presença e inten- lo, 2001.
MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. 2. a edição. São Paulo: Mar-
sidade anímica.” Note-se aí o emprego de tins-Edusp, vol. III, 1981.
NUNES, Benedito. O Dorso do Tigre. São Paulo: editora
“esmarte”, termo não dicionarizado prove- Perspectiva, 2. a edição, 1976.
niente do inglês, empregado para o jagunço RICUPERO, Rubens. “Guimarães Rosa, examinador de
cultura”. In: João Guimarães Rosa, edição especial
em Grande Sertão: Veredas: “Aqueles es- (números 20 e 21, dezembro de 2006), Cadernos de
merados esmartes olhos.” Tanto Diadorim Literatura Brasileira, Rio de Janeiro: Instituto Moreira
Salles, n.os 20-21, dezembro de 2006.
quanto João Neves da Fontoura eram “es- _____. A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016.
Prefácio. Rio de Janeiro: VersalEditores, 2017.
martes”. E por que não Guimarães Rosa? RÓNAI, Paulo. “Nota Introdutória”. In: Rosa, João Guima-
rães, Ave, palavra. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio
Editora, 1970.
Bibliografia ROSA, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: Livra-
ria José Olympio Editora, 1970.
ARAÚJO, Heloisa Vilhena. Guimarães Rosa: Diplomata. Bra- _____. João Guimarães Rosa, Correspondência com seu tra-
sília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1987. dutor italiano Edoardo Bizzarri. 3. Ed. Rio de Janeiro:
CASTRO, Nei Leandro de. Universo e Vocabulário do Gran- Nova Fronteira, 2003.
de Sertão. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Edi- _____. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José
tora, 1970. Olympio Editora, 13.a edição. 1979.
COSTA, Ana Luiza Martins. “Rosa, leitor de relatos de _____. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Livraria José Olym-
viagem”. In: Fantini, Marli (org.), A poética migrante pio Editora, 1974.
de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: editora UFMG, _____. Sagarana. 72.a edição. Rio de Janeiro: Editora Nova
2008. Fronteira, 2017.
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dernos de Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
Moreira Salles, n.os 20-21, dezembro de 2006. 1983.
COSTA E SILVA, Alberto da. Guimarães Rosa, poeta. Bogo- SANTIAGO, Silviano. Genealogia da ferocidade: Ensaio sobre
tá: Centro Colombo-Americano, 1992. Grande Sertão: Veredas. Recife: Cepe editora, 2017.
_____. “Sagarana e João Guimarães Rosa”, in: O Vício da SCHWARZ, Roberto. A sereia e o desconfiado; ensaios críti-
África e outros vícios. Lisboa: edições João Sá da Cos- cos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira.
ta, 1989. SOUZA, Eneida Maria de. “Rosa entre duas margens”. In:
_____. “Três Cartas de Guimarães Rosa sobre Corpo de Bai- https://www.ufmg.br/aem/inicial/publicacoes/artigos/
le”. Texto cedido pelo autor. rosa.htm#_ftn4.
Rios e Riobaldos

Benito Barreto
Escritor e jornalista. Ocupante da Cadeira 2 na Academia Mineira de Letras

O
CANGAÇO: Figura de crucial pre- – Menino, isso aqui é pra seu pai – me
sença em toda a nossa formação disse um dia, antanho, recuado, o Tião Ven-
como povo e nação, foi o jagunço tena, em domingo de missa no, então, meu
braço e chicote do senhor de terras e enge- arraial de Dores de Guanhães em nossa Mi-
nhos, na Escravidão, durante a Colonização nas Gerais – ao que, assim dizendo, afastou
e o Império; fez Canudos onde deu fogo e com a mão, de lado, o paletó, me dando a
chegou a alarmar a nação, nos anos difíceis ver em sua cinta acobreada de cartuchos,
da implantação da República; sustentou o numa banda, o parabélum e, na outra, seu
Coronelismo no Brasil em transe da chama- punhal: – sirvo ele, o seu papai, com um ou
da República Velha; vai opor-se ao Cavaleiro outro ou com os dois, se carecer, diz lá pra
ele e conta pra sua mamãe, também.
da Esperança, a Coluna Prestes, Brasil afora
Corria, então, o ano 36, eu tinha 7 anos
e um milhar deles em armas, arrebanhados
e via e conhecia, pois e assim, no mesmo
em Pilão Arcado, no São Francisco – conta-
dia e a um só tempo e vez primeira, um au-
-nos o Rosa em carta a um seu tradutor, na
tomóvel que, o mais das vezes, puxado a
Europa – vão ser quem a fustiga e obriga, já
junta de bois, trazia da distante Diamanti-
cansada e frustrada, a internar-se na Bolívia;
na S. Exa. o Pastor do Arcebispado, vindo
Getúlio Vargas terá de haver-se com eles em
ministrar a crisma no arraial, e o Ventena,
sua caminhada, antes e depois de chegado um jagunço em carne e osso, com aquele
ao poder, nos anos 30, e como se isso, esse recado pra meus pais.
seu constante desempenho, fosse pouco e Centrava a Praça ou Largo da Matriz,
lhe não bastasse a atestar sua presença na assim também chamado, um pedestal de
história e no cenário nacionais, ainda será pedras acavaladas; nele engastado um cru-
ele, o Cangaço, na pessoa de Riobaldo, um zeiro de braúna e aí um fazendeiro a quem
jagunço, o herói dessa Rapsódia Brasilei- chamei de Almeida Barros, em romance
ra que é Grande Serão: Veredas do nosso meu, pelas 4 horas de um domingo de mis-
imortal mineiro João Guimarães Rosa. sa como aquele, lá chegado, puxou pelas
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 27 de março de 2018.
38  •  Benito Barreto

rédeas sua montaria, uma ruana; apeou-se boiada de mil bois da qual só o tropel se ou-
dela, lhe largando no pescoço, sobre a cri- via e a seu berrante, aquela tarde parecendo
na, as rédeas; subiu alguns degraus até o aboiar, sozinho, sem seu dono, seo Nestor...
cruzeiro; sacou pela corrente, na lapela, seu O JAGUNÇO EM NOSSA VIDA E NA LI-
relógio de bolso e, olhando-o, gritou para TERATURA: Assim, pois, Brasil afora e, mais
seus inimigos e chefes locais, ali à frente notadamente, margeando os seus grandes
e às suas costas, entrincheirados: – são 4 Rios como, em Minas, o São Francisco, onde
horas, seus mandões de merda, a hora que fizeram por entrar na História e ascender à
vocês marcaram pra me ouvir e a gente se Ficção e à lenda, chefes bandoleiros como o
acertar de frente e de homem pra homem, foram os famigerados Antônio Dó, na região
sem esses jagunços seus, os quais com es- de Januária e... “Aquele – sequinho, espi-
ses, essa corja não me meço nem me sujo, gadinho, vestido cidadão, com mãozinhas
não... – ainda dizia, quando, sob seu paletó pequenas, pezinhos e do ar sempre assus-
alevantado às costas, sentiu, em ponta o tado constantemente. Dele sozinho, o que
espetando, o cano duro e frio do parabé- se diz: umas duzentas mortes! – Conheceu
lum do Tico Luca que, então, e sem pala- o senhor? no barranco do São Francisco –
vras, com seis tiros o matou, tendo do lado o coronel Rotílio Manduca, em sua Fazenda
e por lugar tenente aquele outro, do recado Baluarte”, de quem e cuja vida, ao que tudo
a meus pais. leva a crer, fez Guimarães Rosa o seu perso-
E foi às armas o arraial: pela rua ninguém nagem Zé Bebelo, como se depreende desta
passava; cada casa uma trincheira e cada citação, à pág. 450 de Grande Sertão: Ve-
quintal linha de frente, um campo de mano- redas, 1.a edição, com amplo e competente
bras para a defesa e o ataque que o nosso respaldo em Os Descaminhos do São Francis-
Guaianã correndo a jusante do Rio Doce da co e Rio das Velhas, de Marco Antônio Tava-
interdição, por séculos, e do genocídio dos res Coelho, Ed. Paz e Terra.
Botocudos, pelos Portugueses, calado e sem Presente, pois e também, na crônica de
partido, entre bambuais, descia, separando outros, senão todos os nossos rios, nota-
em dois o arraial que uma ponte de braú- damente o das Velhas, o Doce e o Jequiti-
na interligava, porém, já então, interditada nhonha; o Urucuia e o Grande; o Verde e
pelas carabinas de cada lado ou partido, o das Mortes e tantos outros desaguando
em suas posições de tiro que aquela tarde uns nos outros ou a descer, buscando o mar,
às mãos de jagunços pagos, só minha mãe assim, repito, – o poder e a prevalência do
cruzara, desafiando o matador Tico Luca que Cangaço assustaram e enlutaram áreas e
em menino ela recebera em casa e o criara populações, Brasil afora, que nem o foi e lá
para vê-lo, agora, matador de aluguel! fizeram, no Ceará, à sombra e com as bên-
No Largo da Matriz, o Almeida Barros, çãos do Padim Padre Cícero e por todo o
sem socorro e vigiado pela guarda de jagun- Nordeste e o Norte, notadamente, a Bahia
ços, sangrava, a escorrer, descendo o chão, com seus Coronéis, Coriscos e Lampiões,
buscando o rio até esvair-se enquanto, pela místicos errantes e, mais que todos, impor-
Rua Nova, a passo, costeando o arraial, en- tante e assustador, o profeta e para muitos,
trava e passava, em contrição, calada, uma santo Antônio Conselheiro, quem, a seu
Rios e R i o b a l d o s   •  39

tempo, na travessia dos séculos XIX para o vindo eu ao Rio para receber meu prêmio,
XX, galvaniza e atrai jagunços de todo o país fui notificado a lhe telefonar, pois tinha ele
em seu apoio e defesa, no reduto fortifica- algo a me dizer sobre Capela dos Homens,
do de Canudos, desde onde vai assombrar o romance em questão e volume II daquela
a nação, todo o Brasil e desafiar até mesmo minha saga, já citada.
o Exército Brasileiro no curso de uma guerra Era 1967, o ano quarto de sua eleição
custosa e sangrenta em que o Brasil Litorâ- a esta Academia, cuja posse acabava de
neo e o Sertanejo se confrontam e sangram, acontecer; e ele me diz do que granjeara,
tragédia que, malgrado a mortandade, defe- de sua parte, o voto em meu livro e das ob-
nestra vícios e obscuras práticas do Império, servações que lhe ocorrera me fazer (conf.
então, ainda presentes; reacende e reafirma em edição do jornal Estado de Minas na
os postulados da República nascente e, mais semana seguinte à sua morte, e em Benito
que tudo, deixa-nos de saldo OS SERTÕES, Barreto – 50 anos de Literatura, de Rachel
a epopeia do gênio e lavra de Euclides da Cardoso Barreto):
Cunha, como o vai ser, de igual grandeza, – Gostei, sim, do seu Capela dos Ho-
o épico e não menos imortal GRANDE SER- mens, Benito, dos seus Guaianãs: é uma
TÃO: Veredas, do nosso gênio e mui sau- estória forte com cheiro de mato.
doso membro do sodalício desta Casa – o – Foi surpresa e muito honroso para
mineiro JOÃO GUIMARÃES ROSA, de cuja mim o prêmio que mereceu da Comissão
obra hoje aqui me ocupo, na pessoa do ja- esse meu livro ainda com arestas a aparar.
gunço e seu personagem principal, Riobaldo – ... o que em princípio foi temerário de
Urutu Branco, o Tatarana. sua parte – ele me ensina – algo a ser evi-
Registre-se, pois, que o Cangaço se lhes tado, porque o livro deve já estar maduro
impôs, a esses dois gênios nossos, como e pronto antes de ser levado ao júri de um
tema e personagens seus em OS SERTÕES concurso ou trazido ao público. No seu, por
e em GRANDE SERTÃO: Veredas, obras es- isso mesmo, algo, ali, às vezes, sobra e ou-
sas, todas duas entre as mais grandes que tras, você fica a dever, por completar, enfim,
conhece o mundo das Letras, afora outras um trabalho de tesoura e costura a ser feito
e outros romancistas nossos que do mes- – prosseguia, também me acautelando para
mo tema e presença se ocuparam, tais en- o que chamou de minha inclinação para o
tre outros, Jorge Amado, Graciliano Ramos, poético. – O que eu disse, em algum lugar,
José Lins do Rego, Mário Palmério e muitos da travessia... – assinalou: há que sacrifi-
outros de igual força e grandeza. car, sempre, alguma coisa ou não se chega
Um deles que o sou, entre os menores, à outra margem do rio...! O belo costuma
também, eu, com obra minha intitulada Os arrastar-nos às efusões, daí o alongamento
Guaianãs, graças a ela vou estar uma se- dispensável, umas partes gordurosas, certo
gunda vez com o diplomata e Acadêmico esbanjamento do poético.
JOÃO GUIMARÃES ROSA, quando, entre Isso, no entanto, não será uma singulari-
outros distinguido no Concurso Walmap de dade sua, de iniciante, toda obra tem lá suas
Literatura, de que fora ele, com Jorge Ama- gorduras – seguia, então, dizendo, – daí se
do e Antônio Olinto, a Comissão Julgadora, nos impondo levá-las ao fogo das revisões,...
40  •  Benito Barreto

as enxugar, faca na mão, para os cortes, os alternância, um trecho no começo dele com
quais, no entanto – acentuava e eu aqui re- outro tanto, no final, em que você retome
lembro no pressuposto de que aos que so- e possa cotejar, na sua sequência ou anda-
mos do ramo, acaso possam interessar –, há mento, um mesmo personagem ou assun-
que fazê-los com escrúpulo e na medida; to; volte ao ponto lido e deixado no princí-
com rigorosa seriedade e o necessário equi- pio; avance mais um pouco e torne ao final,
líbrio no uso da faca, porque esses cortes e fazendo outro tanto até que, assim progre-
o polimento são, de resto, o momento mais dindo e convergindo, respectivamente, do
delicado da criação para o escritor. começo e do fim do livro para o centro dele,
Eu o adivinhava do outro lado da linha você o defenda e resguarde a ele e a você
– porque foi ao telefone este nosso reen- mesmo de incoerências sempre possíveis na
contro – a acompanhar e completar com condução de um mesmo tema ou persona-
as mãos as palavras, suas palavras sempre gem, sobretudo em se tratando do evoluir
apropriadas e que ele enunciava em tom de protagonistas e/ou do enredo em obras
afetuoso e amável, conquanto empenha- de maior fôlego e complexidade.
do e algo confidencial, solene, de quem Esse processo costuma resultar em uma
transmitisse um segredo ou ensinamento pesca de bom rendimento – empenhado,
dos deuses. Me acautelando, então e pre- concluía: ... ajuda-nos na descoberta de uma
venindo – aqui, também, palavras suas – do infinidade de cochilos, tais, entre outros,
risco de se cortar a faca a meada sutil dos sempre possíveis desajustes cronológicos; in-
movimentos ou de se ferir com a lima uma coerências narrativas; descuidos no talhe dos
corda, assim e por inadvertido, afetando-se personagens, na descrição e montagem de
a modulação interior, necessária, o ritmo e perfis, situações e assim por diante...
a harmonia do conjunto. Deveras extraordinário! – penso, então,
– Bem, doutor Guimarães – o senhor já comigo, impressionado com o rigor e o pen-
me deu demais do seu precioso tempo que, te fino do seu zelo no artesanato solitário da
em verdade, me pesa lhe tomar. Levo co- ficção, mas já anoitecia e eu tinha que pegar
migo os seus ensinamentos e vou, sim, me de volta a Beagá o Vera Cruz das 20 horas:
empenhar e trabalhar meu livro, na medida agradeci, me desculpando pelo que o ocu-
do possível, com as ferramentas e à luz do pava naquela semana agitada e tensa, de
que, atento e generoso, o mestre do “Gran- sua posse nesta Casa, dito o que lhe apre-
de Sertão...” me passa e ensina. sentei as felicitações de minha mulher, a Irá
– Mas faça, sempre, mais do que o pos- e de seu pai, o Dr. Ismael de Faria e seu co-
sível, Benito. A Literatura quer a nossa força lega de curso e formatura, quem, em depoi-
inteira; todo o nosso tempo, e após quei- mento na inauguração da “ Sala Guimarães
madas as gorduras, enxugado o texto, con- Rosa” do “Centro de Memória da Medicina
cluída a revisão final da obra – enfatizou: de Minas Gerais”, na UFMG, a todos nos fi-
– ...você, por último e ainda, o submeta a zera, então, saber que, em 1926, ainda no
uma derradeira e singular leitura em que, segundo ano do curso e aos 17 anos, já era
com o livro aberto ao meio, passo a pas- o estudante Guimarães Rosa um poliglota,
so, o releia, achando e confrontando, em o que viera a furo, um dia, e de surpresa,
Rios e R i o b a l d o s   •  41

quando a turma, em dificuldade para fazer- paradoxalmente, imortal, perene, o seu


-se entender numa situação de rua com um jagunço e barranqueiro baldo, o Riobaldo
sírio vendedor de maçãs, fora acudida pelo Urutu Branco, o Tatarana do Sertão e da
colega Rosa que, então, contorna o hilário guerra que aí lutou e viveu, vencendo o ini-
impasse, entrando na conversa, porém, em migo, porém, perdendo para ele e a morte
árabe e mantendo com o “patrício” embe- seu amor.
vecido e feliz da vida uma surpreendente e Senhor Acadêmico Carlos Nejar, Coor-
correntia conversação em sua língua; ainda denador do “Ciclo de Conferências Guima-
a esse tempo – 1926, continua o depoen- rães Rosa, escritor e diplomata”; Senhores
te: “no enterro de um colega, chorávamos acadêmicos e demais presentes: o meu
sua perda quando o Rosa, de repente e de tema-texto, a que, agora, eu passo, perfila
improviso, a todos surpreende e consola, a obra em tela no seu todo – o sertão e a
nos dizendo que as pessoas não morrem... guerra, seu contexto e personagens princi-
ficam encantadas...”– mantra de sua lavra pais – que, todavia, só registro, tangencio e
que, quarenta anos depois, em seu discurso passo para deter-me em Riobaldo e Diado-
de posse nesta Casa, repetirá, ao referir-se à rim que me proponho, mais de perto, ler e
morte de seu antecessor e amigo, o Acadê- acompanhar, os decifrar e/ou adivinhar para
mico João Neves da Fontoura. lá e além de sua fala contextual, sua rotina
– Boa viagem, Benito – do outro lado da de caserna e marchas no quotidiano dos
linha ele diz, me cortando o fio dessas lem- confrontos, tréguas e caminhadas dos dois,
branças: – para você e o seu livro, quando lutando contra o inimigo e as dificuldades
o venha a lançar. E aos seus e aos amigos do seu caso de amor, sua intimidade apai-
pode a todos lhes dizer que passei, sim, no xonada e, todavia, a perscrutar pelo leitor,
teste e tomei posse; sou e estou, agora, um posto que, a rigor, sem gestos nem nenhu-
acadêmico; venci; estou de pé. ma visível e atestada interação mais íntima
Me despedi, saí correndo; tomei o Vera ou pessoal, dos dois.
Cruz, minha cabine e ainda vivendo a rica Eis pois que, em contraponto e passo a
experiência desse meu reencontro com o passo, vão estar e se contextualizar, nos ra-
Mestre genial me povoando o sono, ama- sos e lonjuras do Sertão – lá fora, os anda-
nheci em Belo Horizonte com as rádios e os mentos fatais da guerra – e na intimidade
jornais de luto, anunciando sua morte na dos dois, com seus mistérios e embaraços,
madrugada, perda e crime ante e contra os inibições e dúvidas, o mais das vezes, calados
quais – e mais doer, me revoltar – eu não – o drama do seu amor tão grande e, to-
achava em mim, comigo, um deus, nin- davia, sem vez nem vida, em cujos silêncios,
guém a quem os debitar! por isso mesmo, entro e tento lhes dar voz;
suponho gestos; falas; reações e sempre pos-
síveis movimentos bem como a seus cama-
Grande sertão: Veredas radas, não sem razão, também, perplexos,
O gênio de Guimarães Rosa deixava- do seu lado e ao redor os espiando e vendo,
-nos, porém a sua obra vasta e de supe- porém, e por respeito e medo, fingindo nada
rior grandeza, de toda ela destacando-se, ouvir nem ver do drama existencial que, nas
42  •  Benito Barreto

pegadas do conflito, entre os dois se confi- porém, plural, de fora e, supostamente, de


gura e fia, ameaçando com enredá-los e os governo, acaba de chegar, pondo presença;
levar a se perderem em sua teia. e porque sonha com vir a ser deputado pela
Assim, o meu trabalho, essa leitura pes- Região – demanda um professor a Selori-
soal a que me atrevo, escuta e a si mesma co Mendes, fazendeiro que o encaminha a
se permite, em relação aos dois – Riobaldo e Mestre Lucas a quem ocorre a lembrança de
Diadorim – captar e interpretar o que mes- ex-aluno seu que tem por competente e em
mo a si ou entre si os dois não dizem – seus tudo a jeito para esse desempenho – Rio-
silêncios, presumivelmente, carregados de baldo, o próprio, um sertanejo ainda moço
desejos, intenções e sentimentos; os seus e por saber-se a que veio mas em quem,
calados gestos e impulsões, tais e quais, à no meio, já se aposta e se põe fé, dado o
guisa de exemplos – arroubos e ou inibições seu perfil de combatente e, sobretudo, um
de ambos, supostamente, correntios – Rio- ribeirinho amante do seu grande rio, o Ve-
baldo, vez que outra, incontido, deixan- lho Chico de tão potenciais grandezas a
do a perceber por Diadorim sua excitação que atrela o Sertão com sede e seu torrão
e mesmo o seu desejo que mal contém e natal, em que aposta a própria vida, o seu
nem consegue ao outro esconder; ... um destino.
suspirar de Diadorim , traindo-o, lhe alevan- Figura exponencial, portanto, e jovem
tando os seios sob a cartucheira de través ainda se fazendo, ao mesmo tempo que
no peito que Riobaldo ainda não sabe se de rapsodo dos seus andamentos de sonho e
homem ou de mulher; uma furtiva lágrima luta, amor e sorte, a permeando, em seu
em Diadorim do olhar de luz e mel ao fim enredo, Riobaldo, como na tragédia gre-
de um flerte que move e anima as mãos de ga, tende a ver e receber como coisa sua e
Riobaldo, todavia, contidas pelo outro ou ingrediente ou parte, pois, do seu destino,
outra com expressão severa que ao jagunço tudo o que e quanto a vida, no seu dia a
do Sertão mais bravo e temido, ainda assim dia, traz ou lhe coloque, de onde que, por
o faz parar e, por castigo, avexado, o cha- princípio e de momento, aceita e assume a
ma ao respeito; lhe impõe baixar os olhos e condição de professor de Zé Bebelo, um ho-
conter as mãos! mem...zinho, paradoxalmente, ambicioso
Entretanto, Riobaldo aí ainda não che- de empresas grandes e grandes feitos, esse
gou, na evocação que em casa faz de sua afamado forasteiro que aluno seu vai ser.
vida e do Sertão a seu atento ouvinte e vi- Riobaldo dá-lhe aulas de português,
sitante, assistido do compadre Quelemém sobretudo no que toca ao bem falar, lin-
de Góis, seu alter ego: de resto, a guer- guagem; e na aritmética vai até às equa-
ra, por então, ainda mais não é nem são ções, daí e a pedido do aluno, o entretém
que nuvens feias que nos céus, aqui e ali e empolga com a História e a Geografia, os
se arregimentam, ora ameaçando com tor- grandes feitos de que tem notícia e os seus
menta, carregadas, ora dissipando-se em heróis, seus generais e quando e onde fo-
azuis e claros horizontes: político de faro e ram e aconteceram, Brasil e mundo afora,
comandante militar até mais competente assim cativando o aluno, Zé Bebelo que, de
que político, certo Zé Bebelo, um homem, seu lado, também, o impressiona, e, muito
Rios e R i o b a l d o s   •  43

principalmente, por suas artes e competên- a sós, haviam os dois, a instâncias do Rei-
cias marciais de comandante e combatente naldo – este sendo o nome dele, o outro
em até mais de uma arma e ocasião, lugar –, atravessado o Rio numa canoa tosca e
ou frente... em que dera fogo ou tivera que “afundadeira”, ali achada, travessia essa
ir às vias de fato com terceiros em sua vida em que ele, Riobaldo, conhecera o medo
vária e aventureira. e acreditara ver, por perto e vez primeira, a
Entretanto, professor e aluno, homens morte enquanto que, alegre e lindo, o ou-
ambos mais da ação que de fiar ideias e co- tro, esse menino, feliz e realizado, ria como
ser cultura, movendo-se cada um e perse- se fora a morte a sua vocação ou compa-
guindo objetivos próprios, paixões, talvez, nheira, um seu brinquedo!
nem sabem, exatamente, quais nem onde e Nunca mais se esquecera disso, da linde-
quando, mas, ainda assim ou por isso mes- za e da coragem sem afetação desse garoto
mo, passado um tempo, dão por termina- que, agora, e de repente, já feito homem,
do, de momento, o curso, aquelas aulas e um guerreiro, reencontra e se reconhecem
cada um seu rumo, movem-se os dois com numa outra leva de jagunços em armas, e
sua inquietação que, no caso de Riobaldo também de passagem pela casa do coiteiro
e à falta de melhor inspiração, o leva, de Malinácio.
passagem e a passeio à casa de certo Mali- Coisa de Deus, a mais bonita o Reinaldo
nácio, um coiteiro de jagunços em trânsito que é seu nome e mais ainda, agora em suas
com os quais, mui jovial e interessado em vestes de jagunço, assim ajaezado de polai-
suas vidas e combates, se entretém... nas, borzeguins e esporas, seu punhal e a
O DESTINO: Está, então, lançada a sor- faca, a cartucheira de través no peito alto e
te e, em curso e por imposição dos Fados as suas mais e matadeiras armas! – diz con-
– não dele – seu destino; aí começa, nesse sigo, embevecido, o contemplando... ago-
passo, a sua iniciação na vida do jagunço ra, porém, no entanto..., isso daí, de ser ou
que, tudo passado e vivido, agora em casa vir a ser jagunço, seja lá por causa de que
e assistido do compadre Quelemém, Rio- vivem esses tais às armas, punindo e penan-
baldo, relembrando e revivendo, narra a do, matando e morrendo e, a mais, por-
seu autor ouvinte e visitante, de como vai que, por isso mesmo, muitos deles, como
o Demo, desde então, tomar a Deus seus se diz de certo Hermógenes, acabam até
passos ou aí, aos Céus, é que ou quando os tomando partes com o Diabo – ...por uma
passa a disputar. e outra dessas coisas não são gente, não,
E olha só à sombra e no rastro de quem pra exemplar nem ser modelo meu nem do
é que, disfarçado, lhe chega e toma acento Reinaldo, esse menino anjo que lhe dera o
em sua vida o Coisa Ruim! – ...na pessoa Velho Chico, embora que, por sujo e asso-
do menino que, um dia, conhecera, quando reado, aquele dia de que ainda se lembra,
conheceu, ao mesmo tempo, o São Fran- lá tristonho e paradão, sem barcos, aquela
cisco, o Velho Chico de sua querência e boniteza que são nele os barcos de pesca
sonhos de criança, levado pela mãe, a Bi- e transporte, subindo e descendo, levando
gri, em pagamento de promessa. Ao acaso ou trazendo a seu destino os dourados e os
e aos 14 anos aí se conhecendo, juntos e surubins, animais, madeira, cereais e gente!
44  •  Benito Barreto

Entretanto, na vida como em tudo, cada o que põe e promete em matérias de co-
um é um, nem é todo jagunço que se vende ragem e decisão; de fala e argumentação;
para coronel de terras e boiadas ou que, pra tomadas de partido, firmeza em suas posi-
se fechar e defender, faz trato e trocas com ções e liderança inconteste nessa guerra de
o Diabo, lá isso não, não é nem há-de. De morte jurada e sem trégua, dos coronéis do
mais a mais e pra tudo isso pôr e enfeixar latifúndio e seus jagunços em que são che-
numa palavra só – em hipótese nenhuma fes e generais a exporem, em combate, suas
vai deixar sozinho nisso, no Cangaço em vidas e mais ainda a de terceiros – homens
perigo de guerra e a risco de matar ou ser tais e quais Medeiro Vaz, o rei do Sertão; o
matado, o Reinaldo, seu menino do Rio, o arrivista e guerreiro, supostamente, a servi-
Chico lá em seu leito assoreado... – rendi- ço do governo, Zé Bebelo; Joca Ramiro, o
do, diz consigo e, conquanto ainda e só em pai de Diadorim, por mui respeitado e que-
intenção, já decidiu, olhado e adivinhado rido, apelidado O Príncipe e, afora outros
pelo outro, que... mais, porém, menores, o pactário Hermó-
O PROFESSOR VAI SER JAGUNÇO: Eis genes e seu parceiro em armas e negócios,
pois que, do ponto de vista de sua forma ou Ricardão, aos quais veio juntar-se o até há
fôrma, seu engenho e arte, GRANDE SER- pouco professor Riobaldo e, agora, narrador
TÃO: Veredas são lembranças como de um guerreiro que de tudo e todos, conta-nos a
novelo, em toda a sua trama, desfiadas e espantosa estória dessa guerra atemporal,
revividas com seu autor e o compadre Que- sem data e, todavia, histórica, no Grande
lemém, na evocação, por Riobaldo, seu per- Sertão: Veredas dos Gerais de Minas.
sonagem central e a ela sobrevivente, des- UM HOMEM INACABADO SE FAZENDO:
de quando, ainda um jovem mestre-escola Já de começo viu-se que não é pessoa co-
e serviçal campeiro, andara ele, aqui e ali a mum o narrador, muito menos um jagunço
empreitar-se nos serviços de tropas e boia- qualquer e nem, tampouco, um homem
das, vez que outra, de mestre-escola a ensi- feito e acabado no sentido de estar ou não
nar, ganhando seu pão, e porque, como no de bem consigo e, em tudo, satisfeito e
verso do poeta... a vida é luta renhida e, no completado nas suas relações com Deus, o
sertão, mais guerra que vida – adestrando- Outro e o mundo ao seu redor; adivinha-
-se no tiro e no punhal para, aí, também, ter -se, por exemplo, que a lembrança da Bigri,
chances de sobrevivência e de respeito num sua mãe, lhe dói; bem assim que o intriga e
qualquer lugar, espaço ou pedaço a chamar inquieta o não saber quem foi ou é seu pai:
de seu por onde e aonde o leve a vida. se vivo ainda ou morto e em que circunstân-
Sua presença vai, pois, e desde aí, se cias, contudo, desses e de outros danos, do-
impondo; vai crescendo e como a vida, no res e demônios afligindo-o, o alivia e recom-
sertão, é guerra e na guerra há-que ter e pensa esse reencontro seu com o outro, a
tomar partido, não tarda e o até há pouco volta à sua vida do menino do rio e, agora,
professor vai ver-se nela inserido e distingui- companheiro seu de armas e jornadas, o...
do , tanto mais porque tido e havido por ca- DIADORIM, sua neblina... quem lhe traz
bra bom de tiro como nos combates à arma contentamento tal e tão tamanho que Rio-
branca – punhal, faca e facão – isso afora baldo tem a sensação de reaver da vida o
Rios e R i o b a l d o s   •  45

que era seu, mais seu e principal, seu bem rapaz! coisa mesmo de virar a cabeça a um
maior que, no caminho, se perdera, não cristão, tirar o sono e o juízo da gente isso
achava e era, todavia, quem ou aquele por de um guerreiro e companheiro assim que
quem viera a este mundo – Reinaldo, seu nem esse, um meu igual e macho que nem
Menino do rio, o Velho Chico, a quem, lá eu em tudo, porém, e a mais de mim, com
numa praia, com a Bigri, sua mãe, um dia essa beleza de cara e cabeça; a testa alta e
aí por seus 14 anos – como está sempre a inteligente; sua dourada cabeleira, os olhos
se lembrar – conhecera e só agora, homens de menina e esse corpo escultural e quente
feitos, reencontra e volta a ver e bem assim que a vista adivinha e até se coça com von-
que nem num rasgo de surpresa e sorte, sa- tade de pegar nele e o acarinhar a mão da
ído duma curva em seu caminho, um perdi- gente... – calado e amante, diz consigo e ale-
do e desolado viajante, topasse de frente e vantando os olhos vê que Diadorim, atento,
de repente, com nada mais nem menos que o espia e contempla, ele, também, com os
a razão de ser da sua vida, em algum lugar olhos rasos d’agua; e se demora, enamorado
ou imemorial ocasião, perdida! seu e a Riobaldo até parecendo... o escutar e
Ah! que agora ter por companheiro a mim, também, querer e me amar!
amigo e do seu lado esse jagunço da sua DESFEITA E REPRIMENDA: Um caso,
idade e que só tem e traz de seu suas armas esse... seu, mui controverso e singular, cer-
e a coragem de ser quem é e, logo, contra to o mais de quantos teve e com os quais
quem – o bando matador do pactário do se deparou na vida, agora, a ponderar, con-
Demo, o Hermógenes com seu parceiro, o clui, enquanto tira detrás da orelha uma
sanguinário Ricardão! – é guerra a pelejar palha que escolhe e alisa; do bolso a lasca
e tão bonita e boa nas suas razões, seus de fumo que esmói a dedo, rela e rala com
fundamentos... que eu até morrer, morria, uma das mãos no côncavo da outra, fazen-
rindo, para nela pelejar! do o pito a fumarem junto, os dois, que, as-
E, assim, arrebatado, Riobaldo desde en- sim que pronto, quebra na ponta e oferece
tão, toma partido: não ensina mais pra Zé ao outro, do seu lado:
Bebelo; não quer mais o seu dinheiro e, mais – Faltou, porém, colar, pra mim, a língua,
e ainda: jagunço assumido e feito, vai às ar- a palha dele como é de costume se fazer... –
mas contra ele, os seus e mesmo contra seu Diadorim, pegando o pito, faz reparo, o de-
Governo se ao Sertão, um dia, cá ele vier! volvendo a Riobaldo que o apanha, lambe
Gente! E que pessoa é ele, o Diadorim, e enrola, inseguro, o pondo, outra vez, na
essa pintura animada, esse poema de pes- mão do companheiro a quem acode com
soa, agora, de volta à minha vida e do meu o isqueiro aceso que Diadorim, no entanto,
lado! Bonita e sem medo, visto que de um apaga e recusa, tirando da boca o pito que
confronto já participou com ele e o viu se de- guarda no bolsinho da camisa ou blusa...
fender e pôr a correr o inimigo, firme e tran- junto ao peito ou... lá, quem sabe, entre
quilo, na hora do tira-teima, a vez e a hora seus seios...? – calado, olhando-o, Riobal-
de um cabra, um homem ser e dizer a que foi do, excitado, se pergunta.
que veio cá! A mais e, todavia, porém, con- – Pensei que a gente fosse aqui fumar a
tudo... – que figura, mãe! que lindeza de... dois o pito que a palha e o fumo eu arrumei
46  •  Benito Barreto

pra nós, agora que sozinhos neste tempo Coisa Ruim ande por perto. E Diadorim comi-
de descanso, afinal, eu e o Menino que go, mais que nunca, me ficando rente...
nem na “afundadeira” lá no Chico, esta- – Assim vai ser, mas te vigia, Riobaldo;
mos sós... – frustrado, queixa-se Riobaldo. não deixe o Diabo te pôr sela.
– Se importe não, que vou guardar e só – Vade retro, Satanás! Mas amor, o bem
pitar é quando, um dia, com saudade, eu da gente é coisa lá de se deixar a risco!? cá
te lembrar... no meu modo de sentir, de ver, amor é vida,
– Pensei que a gente não fosse nunca o mel da vida para a gente um ao outro
mais se separar! Sabe? ...depois que a gente servir e dele ser servido, coisa boa e bonita
se achou, passado aquele encontro de beira sendo, mais pra ser vivido e consagrado, eu
d’água e travessia, lá no Chico, eu, a dizer acho-que.
verdade e com o coração na boca e nestas – Eu não desdenho dos antigos, não,
mãos, só penso e quero a vida é com você, sabe, Riobaldo, meu...
o Menino do Rio, comigo do meu lado; pra – ...o quê! ...nunca sabendo o que nem
lhe ser franco e mais dizer e tudo duma vez quem eu sou e, por isso, onde me pôr, Dia-
só, eu cá nem mais queria ela, a vida e acei- dorim me larga nas reticências da dúvida e
tava de continuar vivendo ela, aqui, fazendo nunca diz, no exato, o que é Riobaldo em
a guerra, esta guerra sem a sua companhia! sua vida? quem nem quê!
– O que da minha parte eu sei e sinto, – Indaga do Sertão que até os rasos e
eu também, e bem assim, mas guarda isso as veredas dele hão de estar sabendo o que
só pra gente e fala assim mais não nem pra só Riobaldo não vê nem sabe, razão que eu
ninguém. não vou gastar tempo em explicar o que
– E por que causa-quê? ...da guerra? de tudo e todos é sabido, e quanto a isso
– Dela, a guerra, estou acabado de re- mais dizer; agora, no entanto, é sempre cer-
ceber e venho te trazer um fato novo, e to que eu aceito pra mim e pratico a regra
de repente – um emissário de Joca Rami- deles, os velhos e os gentios que recomen-
ro, lá chegado, na Fazenda Sempre Verde, dam a gente guardar e resguardar a sete
em seu cavalo branco, levando sob guarda chaves nossa joia, a melhor, mais rara e rica,
e amontado num cavalo preto aquele que o mais querido bem da gente, e até mesmo
foi aluno seu, o Zé Bebelo, vencido e preso o esconder por defender de mau olhado,
para ser julgado: Riobaldo e Diadorim so- o meu mais meu de que eu não abra mão,
mos presença requerida pelo vencedor, meu na vida... entendido? estou? A pois, porém,
pai, juiz no ato, o Julgamento. voltando ao que a gente vinha, antes, di-
– Rendo meu louvor ao Príncipe do Ser- zendo e pondo, eu, também, não quero ir,
tão que me agrada ver e assistir em sua glória sair de cena e muito menos assim tão cedo,
embora o que vai ser ruim de aceitar e engo- quero não, agora, quando eu for, chegada
lir é lá a gente vir a ter que aceitar de igual, a hora,... vou estar sozinho e quer você sa-
presente, o pactário do Hermógenes mais o ber do meu por quê? minha razão?
outro, o Ricardão ali, de ombros com a gente. – De morrer, sempre se sabe e nem care-
Vade retro, Satanás! Quero uma guarda nossa ce especular, é nossa condição, agora uma
lá e armada, como convém, sempre quando o pessoa de luz que nem você, o Dia... achar
Rios e R i o b a l d o s   •  47

razão e até prazer na morte, e pôr mesa e se apaga ela no seu coração e na cabeça assim
enfeitar pra ela, não é coisa de bom gosto, que nem no quadro negro ou no caderno,
não, sendo mais pra quem não ama a vida, a gente apagava, na escola, um borrão ou
é meu pensar. Porque mesmo um matador um erro com a borracha e vamos lá viver e
que nem o Hermógenes, eu acho que ele amar numa barranca dele, o Velho Chico,
põe mais fé na vida que nessa aí – a vala vil defendendo ele e o penteando pelas mar-
sem volta! que ele, de costume, serve com gens – já pensou?! você o Dia... a alumiar
ela os outros, sendo nisso até muito pon- no Rio..., a vida, minhas águas!
tual. A bom, no arrematar: eu sou é gente – Ciúmes...! Riobaldo? coisa feia!
pra morrer como qualquer, porém, mais do – Ciúme da morte que o Menino parece
meu gosto é a vida, que... mais querer do que a mim, é isso, o pon-
– ...no entanto – a sua, a minha e de to, o poço a que eu cheguei e nele afundo,
toda gente – é, sempre, a feia morte quem vou caindo, o que se vê: fato mesmo é que
consente. enquanto eu me arreceio de um tiro, ponta
– E é...? Podia-quê? a gente, então, nas- de faca ou uma onça nesses rasos e veredas
ce da morte? é dela, então, que eu venho!? te pegar, razão que, vencida esta guerra e
– E para onde a gente volta, torna ao alimpado o Sertão de Zé Bebelos, Ricardões,
nada e se recicla ou se transforma e volta Hermógenes e outros tais que-nem, incluso
noutra forma e montaria, é mais ou menos o Cão que manda neles, eu... o meu sonho
isso ou esse o eterno ciclo, vida e morte, a é te levar daqui, pra mim, comigo, inteiro
nossa condição... e lindo e, pra isso, até os despojos desta
– ... o que não é uma excursão, nenhum guerra, eu, aqui deixava pelo tanto que te
passeio ou festa, eu acho... quero do meu lado e para lá bem longe da
– Mas, também, uma tragédia, um dra- gente a morte, e a terras de mais água e
ma não é não. verdes, te levava – você o Menino e meu
– Diadorim..., você tem vez que me pa- amado o que só me quer é pra chorar a sua
rece mais querer é ir com ela e lá ficar, sei lá ausência, e logo eu que até virava mar ou
por quê! sua razão...! um lago, parado no meu curso pelo tanto
– ... é muita estimação a gente ser cho- que te quero luz e vida animando minhas
rado, eu acho. águas... ao passo que pela feia morte, Dia-
– Quer dizer: mais o luto, o desespero dorim, alegre e bem servido, me largava e
e a minha dor que um beijo meu, a minha se mandava sem olhar pra trás!
mão e o meu afago! Oh não e não, meu – Em verdade, o que te digo e ponho é
arrebol, minha neblina: estimação real, mais que, vencida e terminada a guerra, a nossa
grande é amar e ser amado, o que Diado- grei pacificada, sonho eu, também, com o
rim desdenha e põe de lado! – com uma Dia e o Rio, a gente os dois, juntos, corren-
lágrima e a voz entrecortada, Riobaldo re- do num só leito... – diz Diadorim, que chora
age, ressentido e enciumado: – esquece a e a Riobaldo, por primeira vez, lhe toma e
morte, Diadorim! Larga dela, essa megera beija a mão.
feia e fria, essa não sei que diga! E se você – ...Me beija a mão mas não me bei-
não gosta de quem é, dá você pra mim! ja a boca! Ah, Diadorim, minha neblina!
48  •  Benito Barreto

– arrebatado, diz Riobaldo, e, comovido, o é, e assinou, já fez, mas a perenidade des-


estende a mão, buscando- o, que Diadorim, sa chama, o Diadorim, esse companheiro e
no entanto, mais uma vez, lhe nega e re- guerreiro da mais singular beleza e femini-
colhe, alevantando-se do cepo em que se nos traços, que ao sertão inteiro intriga, e
assenta e do qual, logo e calado, se afas- em tal medida e tão impactante é isso de se
ta, tomando a direção duma vereda ali por haverem juntas, nele, a beleza e a bravura,
perto, seu retiro de quase todo dia, onde se que, Riobaldo, encabulado, não entende
acredita que ele reza e medita a sua vida, nem aceita essa espécie de namoro dele, e
não se sabe bem... tão constante e até, mesmo, militante... –
– O Menino aceita a minha companhia não com a vida, porém, sempre fiel e forte
aí por onde, agora, vai...? envolvido com a fria e feia morte!
– Não e nem é lugar aonde a gente vá Beleza de moça virgem e bravura de ja-
ou coisa que se faça a dois – contudo, e gunço matador, sem medo, assim em com-
quando, passada uma hora, ele está de vol- bate como nos arranchamentos em veredas
ta, Riobaldo descobre ainda molhada uma de água e sombra, sempre o mesmo o Dia-
mecha dos seus dourados cabelos que lhe dorim que o seu recato e discrição a toda
vazam do chapéu de couro e que Diadorim prova e a naturalidade no trato que, igual,
cheira a sabão de banho, sabonete, ante o dispensa a todos, não conseguem apagar
que, frustrado e ofendido, monta seu cava- nem distrair o calado espanto, em relação
lo e viaja sem dizer ao outro até logo nem a ele, de todo o bando em guerra onde, ao
aonde vai. certo, ninguém, nem mesmo o Riobaldo –
DÚVIDA E PAIXÃO: ...Pudesse haver em quem, com a mãe Bigri, o conhecera ain-
tudo isso algum desígnio, presença e artes da meninos os dois, beirando o Chico que
da Administração de Deus ou lá quem sabe, atravessaram naquela canoa “afundadeira”
é Ele e tudo isso coisa e partes Dele! o Ou- – soube então nem hoje sabe se debaixo
tro? o Coisa Ruim!? – ... isso de duas vidas das roupas do menino de ontem como do
se quererem, assim que nem nós, no rio, o gibão de couro e da armadura e armas do
Chico, uma primeira vez, meninos, vadian- guerreiro de hoje, tem... um homem ou
do de brincar com a morte, e, agora que já uma mulher!!!
homens feitos, a gente, os dois se amando E vai a vida ou, mais exatamente, a
e quanto, porém, em guerra e para o amor guerra, no sertão, matando e andando para
ainda sem ocasião nem vez, sendo, pois, só frente: amuado e quase só falando com Dia-
pra matar ou só morrer... o existir da gente! dorim, Riobaldo assume o seu amor por ele
Nonada. A vida são casos e acasos que em quem, a rigor, só pensa, quando saem a
em geral não dão costura; fatalidades e combate: em protegê-lo e o resguardar do
rasgões sem vez nem como os remendar... inimigo, isso em tal medida e com tamanho
Ah, pudesse eu e conhecesse os meios, zelo que, de tal se dando conta, o compa-
fiel, embora, e defendido em Deus, pacta- nheiro ou companheira o admoesta e mais
va, também, com o Demo e não era, por duma vez, protesta, insistindo em que sabe
principal, minha defesa e a dele, que nem defender-se; não carece de escudos; está
pactário da sua, consta que o Hermógenes grandinho e já senhor de si, não precisando
Rios e R i o b a l d o s   •  49

de tutela que, no entanto, em vão dispensa tigre ou de leão feroz, mesmo em relação a
e no bando, entre os camaradas, consta e ele, Riobaldo e seu jamais assumido amor,
corre, embora muito a medo e só em pen- sempre que ou quando, em não se conten-
samento, que Riobaldo, em combate, mais do, acaso mais perto lhe chegue e fale ao
defende o companheiro, atrás ou do seu coração, ainda que só em palavras ou com
lado que a si mesmo se defende e ataca o um que outro discreto afago, um distraído
inimigo, ao lado e em frente. toque de mãos...
O DIABO NÃO TIRA FÉRIAS! Entretanto, Ao que, então e, também, raivoso, re-
e porque sempre intrigado com o enigma agindo, o Tatarana dá-lhe o troco e vinga-
de seu próprio berço e pai, dos quais, um -se, saudoso, se lembrando de Rosa’uarda
e outro, a Bigri nunca lhe dera o endere- e da sua Nhorinhá do “gosto bom ficado
ço nem o nome, e porque já lhe vespran- em minha boca”; monta seu cavalo e sai às
do viajar à fazenda Sempre Verde para o putas de beira estrada, tais a Maria da Luz,
julgamento de Zé Bebelo por Joca Ramiro, a Hortência e outras; vai e vem, viaja e luta
o Príncipe do Sertão e pai de Diadorim..., enquanto Otacília, a noiva prometida que o
Riobaldo, interessado, se questiona no que espera, impaciente e sem notícias dele, sai
toca e tange ao mistério das relações dos de casa, em vão, a seu encontro, pois que,
dois, pai e filho ou filha por quem, em si- do Menino seu, do Rio, o Diadorim, Riobal-
lêncio e jogando com a própria vida, um ou do não se liberta e voltam os dois a con-
outro dos dois, faz a guerra e de quem nem viver e namorar, porém, sem toques, pro-
sobre quem, contudo, jamais fala; nunca! messas nem confissões, embora até cenas
Seria que a filha veste-se de homem a de carinho um pelo outro e de ciúmes um
mando dele, o pai? Que ele não goste dela! do outro, ocorram, sem, contudo, nenhu-
quisesse, antes, um varão por filho!? E a ma perspectiva, avanços nem hipótese de
mãe dela, de que Diadorim, também, não intimidades com as quais, Riobaldo, ainda e
fala? E a ligação, supostamente, existente, sempre, sonha e espera e já nem se importa
entre ela ou ele com a mulher do Hermóge- em saber, ao certo, quem é, mesmo, o Dia-
nes...! Por que ela, essa mulher, e como se dorim – se homem ou mulher sob o gibão
explica essa estranha relação? e o culote de couro que o peito e a cintura,
E mais e ainda: seria ela, essa mulher, a cartucheira e a cinta desfiguram – assim
quem sabe, um pomo de discórdia e de po- mantendo-se o mistério...
tencial tragédia entre Hermógenes e Joca Entretanto, derrotado Zé Bebelo, o ini-
Ramiro, calado, se pergunta: – seria...!? migo, e levado a julgamento que consagra
Ah, que aí, a ver... Deus dorme e o Dia- Joca Ramiro como o líder e chefe, suposta-
bo fia! mente derradeiro, da jagunçagem sertane-
VERSÃO CABOCLA DA ESFINGE A DE- ja, e dada a conduta altiva e corajosa de Rio-
CIFRAR – rosto de mulher em corpo de leão baldo, no seu voto e nos debates, Diadorim
– de que já ouvira alguém falar, Diadorim parece dar um salto de aproximação e afeti-
é sua esfinge – e quão bonita e bela! – a vidade em relação a ele na fazenda Sempre
face de mulher mui linda, porém, no peito, Verde, onde lhe fica do lado, e junto e bem
o coração e a garra do homem, senão do chegado o tempo todo dos depoimentos
50  •  Benito Barreto

e debates, não raro, confrontantes, tensos então, armando o cerco a Joca Ramiro, O
e até mesmo perigosos, quando em causa Príncipe, a quem, em breve, vão matar.
as opiniões e os votos discordantes do Her- URUTU BRANCO, O TATARANA: Pai de
mógenes, o Ricardão e partidários seus os Diadorim e Príncipe do Sertão, que um e ou-
quais, insurgindo-se contra o juízo magnâ- tro os fora em vida, há que, agora, vingar
nimo e cavalheiro de Joca Ramiro, quiseram Joca Ramiro, traído e morto pelo famigera-
condenar à morte e ali mesmo, executar à do Hermógenes, que em todo o Sertão se
faca o réu; tudo consumado, Zé Bebelo li- sabe pactário do Diabo, sempre servido do
vre, mandado embora, e, à conta de descar- seu par e parceiro Ricardão, o fato e o crime
rego das tensões, saindo Riobaldo em busca induzem Riobaldo a pactuar, ele, também,
de mulher e boemia pelas redondezas, aí, com o Demo, o mesmo trato e aliança, de
também, vai ter com ele o Diadorim, sua modo a estar em igualdade de condições e
neblina e trazê-lo de volta a seu aconchego, proteção ante o inimigo na guerra da vin-
assim mudado e aparentemente acenando gança contra os “judas”, que, favorito do
com vida nova ao namorado e combatente Diabo, vence, tornando-se Urutu Branco, o
companheiro a quem, até há pouco, nem a Tatarana do Grande Sertão e rico herdeiro do
mão lhe dava ou consentia...! seu espólio, porém, ao preço de Diadorim, o
Novos tempos, sim, parece dizer consi- seu Menino do Rio e frustrado amor que só
go o Chefe e Pai, Joca Ramiro, feliz abra- então vem a saber mulher e conhecer depois
çando-os e os vendo, juntos, viajar de volta, de morta e rasgada à faca no seu duelo final,
enquanto à Casa Grande da Sempre Verde a arma branca, com o pactário Hermógenes,
chegam e se apeiam, por cumprimentá-lo e a quem, e a faca, também, mata.
lhe trazer sua adesão e respeito, fazendei- Senhor agora do Sertão que o pórtico
ros e jagunços, entre os quais – virá, depois, de entrada habita, e já casado, levando
saber-se –, já uns homens a serviço do pac- pela mão sua Otacília, Riobaldo chama à
tário Hermógenes e do seu sócio e parceiro, varanda da fazenda seu ouvinte visitante e
o Ricardão...! ao compadre Quelemém de Góis, braço es-
Quem e os quais, esses... – em tanto que tendido lhes apontando à distância, porém,
dispersa e viajada de volta a seus pagos a visíveis, e ao alcance de um tiro ou salva de
multidão dos chefes e jagunços seus parcei- foguete, as fazendas de seus sobreviventes
ros, vindos por Joca Ramiro e o Julgamento; companheiros e lugar-tenentes dos quais
e cessada a visitação, o beija-mão dos que se cerca, assim e em terra, defendendo-se
ao Vencedor de Zé Bebelo tinham vindo por como“ no Mindubim, tem lá um crente me-
saudá-lo e lhe render respeito em sua Sem- todista – lhes diz; não longe daqui, a Maria
pre Verde, já, então, se esvaziando, já voltan- Leôncia e no Vau-Vau a Isina Calunga que a
do a ser morada e, em virtude do pós-guerra uns já pago e a outros todo mês eu vou fa-
e da paz reinantes, agora, até sem guarda, zer encomenda de reza por mim, um terço
senão e apenas só servida de caseiros desar- todo santo dia, para nos céus me garantir,
mados... – em silêncio e na calada da noi- também: Quero punhado delas me defen-
te, apossam-se de posições no entorno da dendo em Deus; Viver é muito perigoso; a
Fazenda, que ocupam, assim e à traição, já, minha vida não deixou benfeitorias.”
Rios e R i o b a l d o s   •  51

FINAL E CONCLUSÃO: Obra de gênio chegado e esgotado o tempo, já vou eu


e engenho de irrecusáveis significação e pondo um fim a esta fala, renovando o
transcendência na Literatura Brasileira, que meu agradecimento pela distinção e hon-
em sabido consenso a Inteligência e o Pú- raria que me foi a oportunidade de trazer
blico do País e o Mundo reconhecem e com minha palavra de testemunha e aprendiz,
razão consagram, quiseram o herói Riobal- nada importante, a este o mais alto e re-
do, seu rapsodo e o interlocutor ouvinte, presentativo sodalício de nossa Inteligência
seu autor, a situar e sediar no Sertão – na e Cultura no âmbito das letras. Desculpan-
obra em tela, um gueto territorial e huma- do-me pelo que, em minha fala não lhes
no que se sabe em Minas sem com Minas, trouxe como pelo que, acaso, em demasia
socialmente, vincular-se – e num tempo eu nela tenha posto, me permito lembrar
impreciso que remete o leitor ao Brasil em que...
transe da República Velha e eclosão ou fa- Minas são várias como ensinava-nos,
zimento da Nova, nos anos revolucionários em vida, o mineiro autor desta Rapsódia
que têm seu marco, o seu começo na Colu- Brasileira a que, hoje, aqui, nos repor-
na Prestes, insurgindo-se no Rio Grande do tamos e da qual, por terminar, lhes dou
Sul em 1922 e percorrendo até 1927 o Bra- meu testemunho e, também, assino que
sil que tenta acordar, incluída a nossa Minas em Riobaldo vive e sobrevive, sim, frustra-
e o seu Sertão que, vinda de Goiás, borde- do embora e raivoso das suas incertezas,
ja – mui singularmente referida e atestada o nosso Velho Chico, o Rio São Francisco
por Riobaldo, quem – afora o Sertão e sua em transe; em Diadorim, que amar não
guerra – só esse fato histórico do Brasil e do se consente – triunfa e o consome a ob-
mundo de então, registra, correta e singular sessão da morte; ficando-nos, por último,
menção, me parece, a quem foi, em verda- o Sertão – o fáustico e o mineiro ou ro­
de, o Cavaleiro das Esperanças do Brasil de seano – em que vejo e vive o próprio Rosa
então, buscando seu futuro. com suas veredas verdes de água, sombra
Acadêmico Carlos Nejar, Diretor des- e seiva, agora, encantado, fecundando o
te Ciclo de Conferências Guimarães Rosa; chão brasil bem barro e brasileiro de nossa
Srs. Acadêmicos e demais presentes: Aqui Cultura e da Literatura que fazemos.
D I S C U RSO

Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènìtán Bàbátúndé


Ògúnwùsì, Rei de Ifé, Odjádja II

Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènitán Ògúnwùsì Odjádja II


Rei de Ifé

É
uma grande honra estar na presença que lá está. Uma diplomata maravilhosa.
de Acadêmicos e de pessoas tão espe- Gostaria que ela se levantasse para que pu-
ciais que tanto têm contribuído para o déssemos agradecê-la. Na verdade, ela foi
crescimento do Brasil. um dos instrumentos para que nós todos
É de fato uma honra estar recebendo estivéssemos aqui hoje. Agradecemos mui-
essa condecoração da Academia Brasileira to. Muito obrigado.
de Letras, tão respeitada, e ter aqui também Estamos aqui no Brasil, basicamente,
conosco a ex-consulesa-geral brasileira que para nos conectar com os nossos irmãos
planejou esta visita ao Brasil. que têm realizado grandes obras.
O escritor e professor Wole Soyinka Toda a raça humana pertence a uma
também estaria aqui conosco hoje, mas foi família, independentemente de nossa cor
convocado pela presidência nigeriana para ou de nosso credo, ou religiosidade, ou
um evento onde se celebrará a democracia formação. Não importa ser rico ou pobre.
e aqueles que deram suas vidas para o go- Não importa ser líder ou seguidor. Sempre
verno democrático na Nigéria. O professor pertenceremos a uma única família. Precisa-
Soyinka enviou o seu amor e o seu respeito mos, então, estar juntos para fazermos deste
e pediu que os transmitisse ao embaixador mundo um lugar melhor, vivermos em paz
e imortal Alberto da Costa e Silva. e termos nossas mentes livres para realizar
Foi também uma surpresa muito grata grandes ações.
para mim ter aqui, entre nós, a ex-consule- Ao longo do tempo, temos nos ofendi-
sa-geral do Brasil em Lagos, Maria Auxilia- do uns aos outros. Mas devemos deixar o
dora Figueiredo, que sempre foi uma mulher passado e seguir em frente para que a vida
de muita credibilidade, muito apaixonada e seja muito melhor para todos nós.
dedicada aos assuntos relacionados à po- Estou aqui com os meus outros irmãos
pulação negra e que, em seu trabalho na Reis de todo o reino Iorubá, que é o ter-
Nigéria, procurou proteger o patrimônio de ritório da maior população negra do mun-
nossos ancestrais e o patrimônio brasileiro do. Depois da Nigéria, a segunda maior
Discurso proferido na ABL em12 de junho de 2018 com tradução simultânea de Carolina Morais Osunleye.
54  •  Ọ́ ọ̀ni Adéyeye Ènitán Ògúnwùsì Odjádja II

população negra do mundo é a do Brasil. E o Brasil. Deus abençoe o mundo e toda a


depois do grande Brasil, voltamos ao Conti- raça negra.
nente Africano. Muito obrigado.
Todos sabem da importância do Brasil ...
para toda a raça negra mundial. Não exis-
te uma maneira de falar sobre a história da Tenho um presente para o imortal Alber-
raça negra sem mencionar o Brasil, que é to da Costa e Silva. É uma obra de arte do
uma extensão do reino de toda a raça ne- Reino de Ifé. A arte representa aquilo que
gra. É de lá que todos nós viemos, não im- edifica a alma humana. Qualquer alma que
porta ser branco ou negro. A nossa raiz ain- esteja extremamente infeliz, quando ouve
da é o Continente-mãe, a África. Devemos, música – da mesma maneira como ficamos
então, andar juntos e juntos fazer uma vida ao ouvirmos essas pessoas maravilhosas que
melhor para todo o povo. Devemos andar fizeram essa apresentação aqui esta noite –
juntos para saber como a vida pode ser me- ... no momento em que os ouvi tocar, o meu
lhor em termos de autoestima. Devemos espírito se elevou e ficou muito contente.
nos unir para sermos úteis para toda a raça Acho que merecem um grande aplauso.
humana. E é por isso que estamos aqui, Parece que todos aqui sabiam o presen-
para abrirmos essa mentalidade do povo te que eu daria a vocês. É por isso que con-
negro e para que ele saiba a que pertence e vidaram essas pessoas maravilhosas para
o que pode fazer. tocarem para nós. É uma linda coincidên-
Dedico, então, essa honraria que ganhei cia. É comum à raça humana: todo mundo
aqui a toda a comunidade negra do Brasil, ouve música. Estamos aqui para elevarmos
começando pelo Rio de Janeiro. Quero que nossas almas. Para agregar valor à raça hu-
eles mantenham uma coexistência pacífica mana. Dou este presente, feito de fibra de
e em harmonia com todas as outras pessoas vidro e bronze, para a Academia Brasileira
do país. de Letras, que nos recebeu hoje.
Deus abençoe todos vocês. Deus Deus abençoe vocês e todo o trabalho
abençoe o Rio de Janeiro. Deus abençoe feito por suas mãos.
Discurso de Marco Lucchesi

Marco Lucchesi
Ocupante da Cadeira 15 na Academia Brasileira de Letras

Sua Majestade Imperial motivos cósmicos, é centro de um mundo


Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènìtán Bàbátúndé Ògúnwùsì hoje globalizado, com tantos súditos dis-
Rei de Ifé, Odjádja II persos, nos quatro cantos da Terra. Súditos
Corte Real de uma história e de uma identidade tradu-
Senhoras Acadêmicas zidos na visita de Vossa Majestade ao Bra-
Senhores Acadêmicos sil, ao atravessar o rio chamado Atlântico,
Senhoras e Senhores segundo a feliz definição de nosso querido
Secretário-Geral.
Ẹ káàsán! E, contudo, Vossa Majestade não desco-
nhece a dívida imensa de nosso país com os
A visita de Vossa Majestade ao Brasil tra- afrodescendentes, que reúne outras culturas
duz um marco simbólico, um gesto seminal e etnias, passados cento e trintas anos do
para a cultura da paz. E como atingi-la, se- fim da escravidão. Torna-se inadiável a reto-
não através do diálogo multilateral, encarna- mada e ampliação das políticas afirmativas,
do justamente na visita de Vossa Majestade, pois não é favor nem concessão apressar
dentro e fora de nossos países, diálogo sul- o fim da desigualdade. É antes uma ferida
-sul que demanda uma epistemologia bilate- aberta a demanda de emancipação.
ral, tão fascinante e tempestiva? Vossa Majestade comoveu a todos, em
Vossa Majestade ocupa o centro de um Salvador, com a oração do apaziguamento
império mais extenso e sutil que o de seus das almas dos escravos. Porque é da me-
ancestrais, ferido ou marcado pela diáspo- mória que se trata para a construção da li-
ra africana, intermitente, como a entende berdade e da cidadania plena. Apaziguar os
o escritor Wole Soyinka. Um império cul- mortos, que iluminam nossos terreiros, com
tural e espiritual, onde passado e futuro se sua fascinante glossolalia, escola dos viven-
convergem, livres, sob o céu de um império tes, construtores da paz e da harmonia.
Ioruba, que não distingue o azul celeste de Apaziguar os mortos e promover a
Ifé e o de Salvador. Um império que, por igualdade cidadã, que inclua os jovens
56  •  Marco Lucchesi

negros, nas periferias, comunidades e terras esta língua tonal e isolante. Perdoe-me a
quilombolas. Eis a nossa missão, Majestade. ousadia.
Cito o poema “Dedicatória” de Soyinka, Nosso horizonte será mais duradouro
na tradução de Luis Giffoni, atravessado por e generoso que o passado, cuja memória
um raio de utopia, entre recusa e adesão: é como o fóssil de Soyinka, vivo, inscrito
em nosso DNA. Já não podemos esquecê-
Umedece -lo. Apaziguar, Majestade: os que partiram,
teus lábios com sal, anônimos, para sempre, e os que ainda não
que não seja o de tuas lágrimas. chegaram, senhores do futuro. O clamor do
Esta chuva-água é presente dos deuses
presente não admite adiamento. Incluir é
– bebe sua pureza, frutifica na hora certa.
Leva, pois, os frutos à boca,
preciso, assim como navegar.
corre para devolver o milagre de teu A presença do Ọ́ ọ̀ ni de Ifé é um sinal ben-
nascimento. fazejo de que os ventos de mudança agitam-
Cria marés humanas como as ondas, -se nos dois lados do Atlântico. Venha res-
imprime tua lembrança nas areias que ainda taurar um pouco seu império imaterial, os
guardarão fragmentos dispersos de luz e sangue de
fósseis. uma diáspora incessante. Somos um pouco
todos súditos simbólicos de nossa tradição.
O trabalho da terra e o código de li-
Peço ao Acadêmico Alberto da Costa e
berdade. O sal e os lábios. A redenção das
Silva, nosso intérprete da história da África,
águas. E o desenho da subjetividade, não
poeta e escritor, que aponha em Vossa Ma-
como privilégio mas como demanda legíti-
jestade as palmas acadêmicas, a mais alta
ma e essencial.
honraria com a qual esta Casa, de raro em
Seja bem-vindo, Majestade, mais uma vez,
raro, presta homenagem aos grandes vultos
Ẹ káàbọ̀ ! internacionais.

As expressões em iorubá emergem de Yoo dará!


meu antigo caderno, onde anotei, fasci­nado, Kara o lê!
e n s ai o

Conhecimento Histórico e teoria


– a propósito do conceito

Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras.

M
inha exposição trata de questões tornaria estas observações redundantes e,
relacionadas à pesquisa histórica, portanto, supérfluas. O que viso é levantar
suscitadas pela comunicação fei- algumas questões que dizem respeito aos
ta há algumas semanas a este plenário pelo instrumentos para a compreensão e a in-
Acadêmico Evaldo Cabral de Mello, quando terpretação da história, tendo como moti-
teceu comentários sobre o tema a propósito vação os mencionados trabalhos, mas não
do livro do sociólogo Luiz de Gusmão inti- necessariamente me cingindo aos aspectos
tulado O fetiche do conceito, cujo prefácio por eles tratados e nem considerar todas as
é de sua autoria. nuances dos pontos por eles destacados.
O assunto foi discutido por vários dos O enfoque pelo qual optei é o das rela-
presentes, tendo os Acadêmicos Cícero ções entre os aspectos teóricos e empíricos
Sandroni e Ana Maria Machado sugerido da pesquisa histórica, questões que em di-
que, após o cumprimento do silêncio ob- ferentes universos culturais foram cogitadas
sequioso consuetudinariamente observado a propósito do conhecimento histórico.
na Casa, manifestasse minha opinião sobre Dito de outro modo: como foi pensada,
o assunto. Assim instado, é o que passo a em jargão universitário a operação historio-
fazer. gráfica, isto é, a atividade de narração de
O objetivo não é realizar a recensão do eventos considerados históricos?
livro em apreço, uma valiosa contribuição às Isso exclui de antemão a tradicional filo-
reflexões em torno a aspectos epistemoló- sofia da história que buscava interpretar o
gicos e metodológicos das ciências sociais, processo histórico a partir de sua materia-
rara no Brasil pelo caráter substantivo e lidade. E inclui um leque de situações que
crítico que possui. Também não pretendo vai da epistemologia das ciências humanas
discutir os pontos de vista expendidos pelo mais abstratamente elaborada às circuns-
prefaciador – neste e em outros brilhan- tâncias concretas da investigação histórica.
tes ensaios sobre o conhecimento históri- Separemos dois aspectos que atual-
co – com os quais estou de acordo, o que mente sofrem interseções mútuas e que
Exposição na sessão do dia 17 de agosto 2017.
58  •  Arno Wehling

lucraríamos em distinguir: o pedagógico- a das mentalidades, os marxismos de Lucáks,


-universitário e o da pesquisa histórica pro- Goldmann ou Althusser e o furacão Foucault
priamente dita. mudaram o eixo da percepção. O pêndulo os-
Em alguns segmentos do meio univer- cilou para o extremo oposto: de nenhum ou
sitário de história, à hipertrofia do método escasso interesse por problemas teóricos, para
sobre o objeto dos anos 1970-1980 passou- o seu exagero. Tudo isso porém em diapasão
-se à prática de uma obrigatória fundamen- todo francês e muito próximo da atuação dos
tação dita “teórico-metodológica” (e não Annales, com o conhecimento episódico da
mais somente “metodológica”), seguida de historiografia inglesa, italiana ou espanhola e
análise temática que frequentemente guar- muito escasso da alemã.
dava pouca relação com aquela. Do leito de O segundo aspecto, o da pesquisa his-
Procusto se ia às duas faces de Janus e com tórica em suas relações teoria-prática, nos
ambas as atitudes pouco lucrava o conheci- leva ao âmago do problema.
mento histórico. Quando nos indagamos se a pesquisa
Diga-se como atenuante dessas posi- histórica e seu produto, a narrativa, devem
ções – igualmente hipertrofiadas – que, an- ser precedidas de uma tomada de posição
tes da década de 1970, no Brasil reinava na teórica, ou se é mais cabível a investigação
área uma ojeriza a qualquer tipo de “filo- direta nas fontes a partir do senso comum,
sofia da história”, compreendidas no rótulo a resposta a meu ver é “depende”.
questões metodológicas, historiográficas, Depende se estamos falando da forma-
epistemológicas e propriamente “filosófi- ção profissional de um jovem, da pesquisa
cas” – aqui leia-se as sínteses de Danilevski, de um amadurecido intelectual preocupado
Spengler e Toynbee. Uma gigantesca confu- com uma questão histórica ou da própria
são que unia, em frente única, historiadores maneira de conceber o conhecimento his-
de diferentes matizes, dos empiricistas var- tórico, entre outras condicionantes que po-
nhagenianos a positivistas, marxistas e pri- deríamos escolher.
meiros adeptos dos Annales. A tímida en- Admitindo que pudéssemos fazer tábu-
trada em cena nos anos 1950 da disciplina la rasa dessas opções seria possível chegar
Introdução aos Estudos Históricos nos currí- a um denominador comum pela negativa:
culos, modesta cunha em cursos estrutura- o historiador não se beneficia para a qua-
dos sobre cátedras onipotentes e as obras lidade de sua produção, de uma opção di-
do então outsider ao meio universitário cotômica entre formação teórica e trabalho
José Honório Rodrigues, não modificaram empírico. Lembremos uma observação de
substancialmente o quadro até os anos 70. Ortega y Gasset criticando o dualismo car-
Estudava-se IEH como uma propedêutica à tesiano, quando pergunta que mal há se a
pesquisa documental, centrada na tipologia res cogitans se estenda e a res extensa pen-
das fontes e na descrição das ciências ditas se: de modo mais pedestre, indago que mal
auxiliares. há em que o teórico mergulhe nos arquivos
O artigo de Fernand Braudel sobre a rela- e o mergulhador dos arquivos teorize?
ção entre história e ciências sociais, a abertura Na verdade, a esta altura do desenvol-
para a história econômica, a história social e vimento do conhecimento histórico, das
C o n h ec i m e n to H i st ó r ic o e teoria – a p ro p ó s i to d o c o n ce i to   •  59

demais ciências sociais e da filosofia, creio Pedindo empréstimo a Gunnar Myrdal


que avançaríamos superando a dicotomia em sua teoria do desenvolvimento: falamos
teoria-prática. E arrisco a hipótese, sem de- de uma causação circular entre a reflexão e
sejar em nenhum momento ser prescritivo, a empiria documental, com inúmeras idas
de duas maneiras. e vindas, sem que se possa fixar a priori de
Desde logo e mais importante, conven- qual polo se parte.
cionando que nenhum historiador realmen- Outro aspecto relevante: a percepção
te bem formado pode prescindir de três de que os rótulos “teoria” e “prática” en-
domínios razoavelmente desenvolvidos. volvem amplo universo de referências. Por
São eles o conhecimento das obras clássi- “teoria” às vezes se entendem de manei-
cas da historiografia e subsidiariamente das ra muito genérica e simplista aspectos de
ciências sociais e da filosofia; das filiações natureza propriamente filosófica, como os
intelectuais dos últimos duzentos anos na ontológicos, além de categorias e proble-
produção historiográfica; e dos arquivos so- mas epistemológicos, metodológicos e his-
bre seu tema. toriográficos distintos entre si. Em minhas
Primeiro domínio: conhecer as obras aulas na pós-graduação da UFRJ sempre
clássicas, de Tucídides a Braudel ou Cassi- precisava separar a teoria da metodologia,
rer, passando por Maquiavel, Marx, Weber porque havia uma instintiva propensão dos
e tantas outras. Afinal, são modelos do que alunos a considerá-los siameses, além de
fazer e eventualmente do que não fazer. meramente propedêuticos e instrumentais
Segundo domínio: as filiações do conhe- para a pesquisa. A teoria ou epistemologia
cimento histórico ou localizar as tradições. da história, precisava dizer-lhes nesses en-
A tradição francesa desde a primeira meta- contros, trata de questões de caráter cogni-
de do século XIX até o positivismo histórico, tivo, algumas comuns às demais ciências e
os Annales e a Nova História; a tradição em- saberes, outras específicas para o estudo da
pirista inglesa; a do historismo alemão, com ação deste agente histórico por excelência
sua distinção entre ciências nomotéticas e que é o tempo. Já a metodologia refere-se a
ideográficas e o desdobramento destas no procedimentos ad hoc para a exequibilida-
âmbito histórico e na sociologia weberiana. de de cada pesquisa encetada, aliás descar-
Neste ponto poderá bem concluir que não táveis sempre que surjam melhores instru-
há oposição entre os procedimentos analíti- mentos. E a historiografia, isto é, a história
cos, fundados sobretudo na sociologia, na da historiografia é o lócus privilegiado para
economia e na ciência política e os procedi- a análise e a crítica das nossas construções
mentos hermenêuticos, antes complemen- intelectuais sobre o passado.
taridade dependendo do tipo de questão a Por último, já que a motivação inicial foi
elucidar. o “fetiche do conceito”, precisamos trazer
Terceiro domínio: a familiaridade com os para o terreno da interpretação, narrativa
arquivos. Os documentos não falam por si, ou discurso histórico o problema crucial de
mas são eloquentes se perguntados adequa- como fazê-lo, de como descrever um recorte
damente e podem suscitar questões que não histórico qualquer. Marc Bloch indaga-se so-
haviam sido pensadas pelo pesquisador. bre julgar ou compreender, Paul Veyne sobre
60  •  Arno Wehling

o relato dos acontecimentos históricos, Her- A segunda aporia é utilizar o conceito


der pede empatia, Berlin denuncia o mito pelo senso comum, o que é apenas outra
da inevitabilidade histórica. Oriundos de tra- forma de generalizá-los e naturalizá-los.
dições distintas têm em comum a recusa a Para ficar ainda na historiografia francesa,
qualquer laivo de explicação metafísica ou embora seja fácil exemplificar em qualquer
perspectivas deterministas que submetam outra, Gustave Glotz, o historiador do se-
os acontecimentos ao garrote do intérprete. gundo grande livro sobre a cidade grega,
Se estivermos de acordo com tal premissa, o utiliza candidamente conceitos como bur-
passo seguinte será a pergunta: como nar- guesia, comunismo e socialismo para se re-
rar algo que se pesquisou nas fontes, que se ferir aos acontecimentos do IV e III séculos
submeteu à crítica, que se interpretou? a.C. como se falasse de seus contemporâ-
Não me parece que se deva condenar o neos da Terceira República francesa.
conceito ao último círculo. Nos anos 1950 A geração seguinte de historiadores não
Henri Marrou fez uma pioneira tentativa fez diferente, e o livro inaugural da gran-
de estruturar conceitos historicamente uti- de coleção História Geral das Civilizações
lizáveis e atualmente a Begriffsgeschichte dos anos 1950, aqui emulada pela História
– História dos conceitos – faz um processo da Civilização Brasileira dirigida por Sergio
sistemático de crítica e historicização das Buarque de Holanda, fala correntemente
grandes categorias conceituais: absolutis- em “ideais burgueses” na Atenas clássica,
mo, nobreza, burguesia etc. como se falava neles na França gaullista em
Isso sugere que estamos avançando. que viviam ou como eram caricaturados
Classificar e conceituar são necessidades pela nouvelle vague.
do espírito e não há porque expurgá-los do Apenas uma possibilidade, entre outras
conhecimento histórico. O exercício que se possíveis: por que, em lugar de generalizar e
precisa fazer – e aqui há um papel relevan- naturalizar conceitos, utilizando-os pelo sen-
te para a epistemologia e a história da his- so comum, não respeitar a própria concei-
toriografia – é enfrentar satisfatoriamente tuação da época? Por que não chamar polis
duas dificuldades: primeiro, a generalização à organização política grega e meteco o co-
ou naturalização dos conceitos – o Estado, merciante enriquecido? Não se trata apenas
da Antiguidade ao século XXI, é o exem- de nomenclatura, mas de conceito: um par-
plo clássico. Lucien Febvre em seu curso de ticular e relativo – relativista – conceito, des-
1945-47 Honra e Pátria deu dela irônica critor menos anacrônico para dar conta de
descrição: processos coletivos de sociedades diversas da
“... Adoráveis propósitos aqueles dos juris- nossa pela estrutura social, relações econô-
tas que nos dizem: o Estado é isso, a nação, micas e de poder, valores e quadros mentais.
aquilo. Lá vão eles com a fita métrica na mão:
O que na verdade enfrentamos quando
cintura, tanto... ombros, tanto...! Acabada a
discutimos tais temas é um dos grandes pro-
roupa, grito de triunfo: como cai bem! Em ter-
mos bem pesados, o que estes homens defini- blemas da linguagem e da comunicação, tan-
ram foi seu pensamento em um determinado to a do senso comum quanto a científica, que
momento; seu pensamento sobre o Estado, perturba o conhecimento histórico: as pala-
sobre a Nação.” vras mudam, mas não avisam que mudaram.
Lorca e o Brasil

Antonio Maura
Ocupante da Cadeira 17 dos Sócios Correspondentes na Academia Brasileira de Letras

E
m duas ocasiões, Federico García Lor- do México que, além de dar ao poeta uma
ca pisou em solo brasileiro e, especifi- caixa de vidro com borboletas tropicais, que
camente, as duas foram no Rio de Ja- Federico guardaria como lembrança em seu
neiro: no dia 9 de outubro de 1933, quando apartamento em Madri, levou-os à redação
o transatlântico Conte Grande o levava para do jornal A Noite, onde Lorca, exultante por
Buenos Aires e parou por algumas horas no seus triunfos na Argentina, foi entrevistado
porto do Rio de Janeiro, e em 30 de março por um jornalista que, logo, destacou em
de 1934, em seu retorno no Conte Bianca- sua crônica:
mano, que atracou nas docas do Rio. Em “A bordo do Conte Biancamano que hoje
ambos os casos, Lorca esteve poucas horas tocou o nosso porto, passaram pelo Rio duas
na cidade e foi recebido e lisonjeado pelo figuras muito estimadas nas letras e nas ar-
embaixador do México nesta cidade, Al- tes espanholas: García Lorca e Manuel Fonta-
fonso Reyes. Na primeira ocasião, o escri- nals. García Lorca tem lugar destacado entre
tor mexicano entregou ao poeta espanhol os poetas da nova geração de sua pátria. As
os primeiros exemplares de a Oda a Walt suas produções literárias, os poemas líricos
Whitman, que acabara de ser publicada em e as comédias de fatura moderna, cedo lhe
uma edição limitada no México. Nessa visita deram o renome e a fama que goza hoje, e
que já transpuseram as fronteiras da Espanha
ao Rio, acompanhado pelo cenógrafo Ma-
para repercutirem e se espalharem no estran-
nuel Fontanals e pelo próprio escritor me-
geiro. […] O embaixador mexicano falou-nos
xicano, visitaram as ruas do Rio de Janeiro
de ambos com entusiasmo. Acerca de García
e a Baía de Guanabara por algumas horas
Lorca, nos disse que é hoje, talvez, o mais fes-
antes de retornarem ao navio que os leva- tejado dos poetas jovens na Espanha. As obras
ria a Santos - onde ficaria no transatlântico de Lorca, acrescentou o distinto diplomata,
-, Montevidéu e Buenos Aires. Na segunda atingem sempre os maiores êxitos de livraria,
ocasião, já de volta à Espanha, Lorca tam- não só na terra pátria, mas em todos os países
bém foi acompanhado por Fontanals e fo- onde se fala a língua castelhana.” (A Noite,
ram recebidos novamente pelo embaixador 31/3/1934).
62  •  Antonio Maura

O grande polígrafo Alfonso Reyes não O grande poeta criador de A Rosa do


estava errado: Lorca começa a ser famoso Povo já vislumbrava, nestas palavras, o fa-
internacionalmente, pelo menos na Argen- moso livro de poemas que publicou em
tina, Uruguai, Cuba e México, mas – com 1945. Lorca é, sem dúvida, um poeta popu-
exceção de Austregésilo de Athayde, a lar, mas também culto. Foi capaz de combi-
quem conhece em Buenos Aires, segundo nar a erudição da grande poesia espanhola
o Acadêmico Cícero Sandroni – não entra de Gongora ou Lope com as vozes de “can-
em contato com nenhum escritor brasilei- te jondo” e as histórias que ouviu das em-
ro. É importante ressaltar que entre 1933 e pregadas de sua casa ou do povo da Vega
1934, poetas como Carlos Drummond de de Granada. Drummond finaliza seu elogio
Andrade, Manuel Bandeira ou Mário de An- dizendo: “Fuzilaram o poeta... Mas o poeta
drade, romancistas como José Lins do Rêgo continua... A poesia está viva...”.
ou Jorge Amado, pintores como Cândido Nesse mesmo ano, Mauro de Alencar
Portinari ou o ensaísta Gilberto Freyre – que esboçou a primeira análise da obra do po-
já havia publicado Casa-grande & Senzala, eta granadino, publicada na revista Rumo:
entre muitos outros –, já se destacavam “Vida, mundo e obra de FGL”, que inaugu-
como símbolos de uma época de ouro. Ne- raria uma longa série de estudos literários e
nhum dos que moravam ou estavam no Rio biográficos do autor de Granada.
foi receber Lorca ou entrevistá-lo. Eles sim- No entanto, a repercussão da morte do
plesmente não o conheciam. poeta na Argentina, onde se fez conhecido
Foi após sua morte agourenta em agos- devido à viagem comentada anteriormente,
to de 1936, diante da comoção que causou foi muito diferente. Em setembro de 1936,
na Europa, na Argentina e no Uruguai, que pouco mais de um mês após o seu assas-
os escritores brasileiros começaram a es- sinato, Pablo Rojas Paz publicou no jornal
crever sobre ele. De fato, em 1937, quase Crítica, de Buenos Aires, um artigo em que
um ano depois, no Boletim de Ariel, Car- afirmava: “Porque a morte não pode matar
los Drummond de Andrade explica que co- a palavra, porque a morte não pode matar
nheceu Lorca graças a sua morte: “García um poeta, porque a morte não pode matar
Lorca, desconhecido do nosso público, só a Espanha.”
chegou até nós por essa informação rápi- Poucos dias depois, um grupo de inte-
da do assassinato do poeta pelos fascistas lectuais argentinos, entre os quais o já cita-
de Granada.” Nessa primeira contribuição, do Rojas Paz e o jovem Jorge Luis Borges,
neste apelo à intelectualidade e ao público enviaram uma carta-telegrama à Junta de
brasileiro sobre o valor do poeta assassina- Burgos, que representava a hierarquia mi-
do, Drummond acrescenta que García Lorca litar dos rebeldes, na qual denunciavam
“soube distinguir entre as contradições de a morte do poeta por homens, disseram,
sua pátria e achar, através delas, o seu justo “que, direta ou indiretamente, agem às
caminho. Ficou com o povo, apropriando- suas ordens” e que “na sombra da bandei-
-se assim do opulento cabedal lírico que o ra que afirma reivindicar o esplendor das
povo costuma oferecer aos que realmente o antigas glórias espanholas, uma das vozes
penetram e assimilam.” mais puras e nobres da Nova Espanha foi
Lorca e o B r a si l   •  63

brutalmente extinta”. E conclui afirmando numerosos poemas, publicados em revistas


que “o sangue nobre de Federico García ou em livros na cobertura do assassinato do
Lorca, que só correu impulsionado pelo poeta. Também não podem ser esquecidos,
amor à beleza e à justiça, colocou uma nova porque ainda batem em nossos ouvidos,
mancha, desta vez indelével, nas costas cul- aqueles versos de a Oda a Federico García
posas de sua morte”. Lorca, também de 1936, que posteriormen-
Muitos foram os jornalistas e escritores te fariam parte da coleção de poemas Espa-
argentinos que escreveram denunciando a nha en el corazón (1937), de Pablo Neruda:
morte de Lorca, executado por parafascis-
Si pudiera llorar de miedo en una casa sola,
tas do novo regime espanhol liderado pelo
si pudiera sacarme los ojos y comérmelos,
general Franco. E os poetas seguiram os lo haría por tu voz de naranjo enlutado
articulistas. Talvez um dos primeiros tenha y por tu poesía que sale dando gritos.
sido o argentino Conrado Nalé Roxlo, que
Porque por ti pintan de azul los hospitales
publicou este soneto em outubro de 1936:
y crecen las escuelas y los barrios marítimos,
La alta torre de Dios yace abatida, y se pueblan de plumas los ángeles heridos…
polvo celeste en pólvora quemado,
río de sol y nardos apagado No entanto, no Brasil seria necessário es-
bajo el puente redondo de tu herida. perar até 1944, ano de estreia de Bodas de
Sangre no Rio de Janeiro. Diante dos inte-
El alto cielo tu silencio mida,
haz de flores y flechas disparado lectuais brasileiros, Lorca volta a ser defen-
hacia la eternidad y enraizado sor da liberdade, das classes oprimidas e da
en el hondo diamante de la vida. poesia – a voz – assassinada. Os escritores
brasileiros, que colaboraram com o número
En los lirios de Góngora, crespones,
en las rosas de Lope, llanto y duelo, que a revista Leitura dedicou a García Lorca
lágrimas de poetas y leones naquele ano, como Mário de Andrade, Ra-
quel de Queiroz, Cecília Meireles – também
acompañen tu entrada al ancho cielo,
tradutora da peça teatral de Lorca – reivin-
sueño de muerte, para ti desvelo
en la luz matinal de tus canciones. dicaram a figura do poeta contra ditadores
como Franco ou Getúlio Vargas nos tempos
Lorca atingiu, desta forma, a glória da do Estado Novo.
mais alta literatura espanhola – junto com Mário de Andrade publicou um impor-
Lope e Góngora – como um dos defenso- tante artigo "Lorca, pobre de nós", em que
res da liberdade e do povo espanhol, que expressa esse sentimento de falta de soli-
foram aniquilados pelos fascistas, inimigos dariedade diante da injustiça e da falta de
mortais também da cultura. Lorca era o liberdade. Lorca foi ignorado no Brasil, sua
poeta do povo, segundo Cayetano Córdova
morte passou despercebida, pobre de nós,
Iturburu, membro da Agrupación de Inte-
lamenta o grande intelectual brasileiro:
lectuales, Artistas, Periodistas y Escritores “Nos falta sentimento de classe, nos falta
argentinos (AIAPE). solidariedade coletiva, nos falta confiança na
O soneto de Nalé Roxlo, reproduzi- ideia. Por isso não conseguimos nos assustar
do acima, seria seguido na Argentina por com crimes contra a inteligência no mundo.
64  •  Antonio Maura

Por isso não percebemos que com o assassi- Ele estava pálido e suas mãos tremiam.
nato de Lorca sofríamos também uma espécie Sim, ele estava com medo porque era tudo tão
de morte. […] O assassínio de Lorca inventa inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal
a supressão da Inteligência – essa inteligência puderam articular as palavras de pasmo que
que ainda pode pensar calada, que acusa ain- lhe causava a vista de todos aqueles homens
da quando muda, e que é a única forma de preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis
liberdade nas ideologias totalitárias. O assas- a balbuciar preces matinais no céu deliquescen-
sínio de Lorca ordena que é preciso matar o te. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos
pensamento livre.” que nunca, compreendeu a razão de ser de
tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para
Manuel Bandeira, que já conhecia o tra- cantar. Aquela madrugada que raiava para pre-
balho de Lorca em sua língua original, mi- senciar sua morte, não tinha sido ela sempre a
sua grande amiga? Não ficaria ela tantas vezes
nistrou um curso de poesia em que analisa
a escutar suas canções de silêncio? Por que o
os poemas do autor de Bodas de Sangre. haviam arrancado a seu sono povoado de aves
Ele também escreveu um poema em sua ho- brancas e feito marchar em meio a outros ho-
menagem, que publicou em seu livro Belo mens de barba rude e olhar escuro?
Belo, de 1948. Nele, o poema de Neruda é Pensou em fugir, em correr doidamente
glosado e o amor pela liberdade e autenti- para a aurora, em bater asas inexistentes até
voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caça-
cidade da Espanha é manifestado, não a Es-
dores maus que o confundiam com o milhafre,
panha de Franco ou do Cid, nem do Grande
ele cuja missão era cantar a beleza das coisas
Capitão, mas a de Teresa de Jesús, Juan de naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro
la Cruz, Lope, Góngora e Cervantes: inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.
[…]
A Espanha de Franco, não!
Sim, teve medo. E quem, em seu lugar,
Espanha republicana,
não o teria? Ele não nascera para morrer as-
noiva da Revolução!
sim, para morrer antes de sua própria morte.
Espanha atual de Picasso,
Nascera para a vida e suas dádivas mais arden-
de Casals, de Lorca, irmão tes, num mundo de poesia e música, configu-
assassinado em Granada! rando na face da mulher, na face do amigo e
Espanha no coração na face do povo. Se tivesse tido tempo de cor-
de Pablo Neruda, Espanha rer pela campina, seu corpo de poeta-pássaro
no vosso e em meu coração! ter-se-ia certamente libertado das contingên-
cias físicas e alçado voo para os espaços além;
Depois vieram novos poemas de Drum-
pois tal era sua ânsia de viver para poder can-
mond, de Vinicius de Moraes, que tinham tar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o
muito em comum com o poeta de Grana- amor, o grande amor que era nele sentimento
da – poeta e músico –, de Murilo Mendes, de permanência e sensação de eternidade.
Hilda Hilst, Lêdo Ivo e tantos outros. Mas Mas foram apenas outros pássaros, seus
entre as vozes, os poemas, invadem minha irmãos, que voaram assustados dentro da luz
da antemanhã, quando os tiros do pelotão de
memória as palavras que Vinicius, autor de
morte soaram no silêncio da madrugada.
tantas canções e versos inesquecíveis, dedi-
cou a ele com o título de Morte de um pás- Certamente, foi de manhã cedo quan-
saro (Réquiem para Federico Garcia Lorca): do o poeta do Romancero Gitano morreu,
Lorca e o B r a si l   •  65

como descreveu Ian Gibson em detalhes: e particularmente o poeta, é sempre um anar-


uma manhã sinistra de 18 de agosto de quista, não sabe ouvir outras vozes além
1936, ao lado de um olival além do desfila- daquelas que fluem dentro de si, três vozes
fortes: a VOZ da morte, com todos os seus
deiro de Víznar, a caminho de Alfacar. Vini-
presságios; a VOZ do amor e a VOZ da arte...”
cius recria a cena com um verismo poético,
que não está muito longe da realidade, em- O fato de não ser militante de um par-
bora não houvesse pássaros nem lua, que tido político não impediu que estivesse
estaria em seu quarto minguante antes do comprometido com a causa da liberdade e
assassinato. Com ele, dois bandarilheiros e com o espírito profundo do povo espanhol
um professor de escola foram crivados de e, especificamente, do povo andaluz. Todo
balas. o seu trabalho caracterizou-se pela busca
Era Lorca um homem político? Sem dú- das raízes milenares de uma terra e de um
vida. Era impossível não sê-lo na Espanha povo que, em sua opinião, remonta-se ao
dos anos trinta do século passado. Mas ele Al-Andalus, e mesmo antes, à Tartessos de
não pertencia a nenhum partido, embora Argantonio (o “homem de prata”), que,
mantivesse pública e claramente seu com- para o os gregos, representa a primeira civi-
promisso com a esquerda. Leu seus poemas lização do Ocidente.
em um comício massivo realizado na Casa Esse espírito lendário e telúrico é trans-
del Pueblo de Madrid e se tornou membro ferido para seus poemas e, especialmente,
da recém-formada Asociación de Amigos para as três peças teatrais que, especifica-
de América del Sur (dedicada ao combate mente, tratam da terra andaluza. Refiro-me
às ditaduras de Miguel Gómez em Cuba e à mal denominada “trilogia” dramática de
Getúlio Vargas no Brasil), assim como do Bodas de Sangre, Yerma e La Casa de Ber-
Comité de Amigos de Portugal, fundado narda Alba. E eu digo mal chamada “trilo-
com o objetivo de informar o público es- gia” porque Lorca, que efetivamente previa
panhol sobre o regime fascista de Oliveira uma trilogia composta pela tragédia Bodas
Salazar, como assinala Ian Gibson. Mesmo de Sangre e o poema trágico Yerma, não
assim, ele era muito crítico em relação à tinha em mente concluí-la com La Casa de
poesia confessional. Segundo comentou Bernarda Alba. Em uma entrevista, publi-
aos jornalistas Ricardo F. Cabal e Francisco cada em finais de 1934, ele afirmou que
Herrero (La Mañana, León, 12 de agosto de queria completar esta trilogia com uma
1933): peça inicialmente chamada El drama de las
”O artista deve ser única e exclusivamen- hijas de Lot, obra que, pouco tempo depois,
te isso, artista. Dando tudo o que tem den- seria intitulada La destrucción de Sodoma.
tro de si, como poeta, como pintor... já faz o Em qualquer caso, não fica totalmente claro
bastante. O oposto é prostituir a arte. Lá você
que La casa de Bernarda Alba seja a versão
vê o caso de Alberti, um dos nossos melho-
final de tal epílogo, embora também se tra-
res poetas jovens que, agora, depois de sua
viagem à Rússia, tornou-se comunista e não te de um drama e fale sobre umas filhas,
mais faz poesia, embora acredite nisso, mas neste caso não as de Lot, mas as de Bernar-
má literatura de jornal. O que é isso de artis- da. Alguns críticos, como Allen Josephs e
tas, de arte, de teatro proletário! ... O artista, Juan Caballero, consideram que, embora as
66  •  Antonio Maura

três obras se refiram a acontecimentos no são cruciais para entender a tragédia que
interior de Andaluzia, estas não devem ser se aproxima. O segundo ato começa com
consideradas uma trilogia porque a Casa de a impressionante “Nana del caballo que no
Bernarda parece inaugurar um novo mode- quiso el agua”, uma das obras-primas da
lo de teatro que sintetizou todas as desco- arte popular recuperada por García Lorca:
bertas técnicas e literárias que o poeta havia
Nana, niño, nana
experimentado até aquele momento. Esta é del caballo grande
a razão pela qual eles preferem agrupar as que no quiso el agua.
três obras sob o título de “tríptico”. Por ou- El agua era negra
tro lado, não parece lógico que as duas pri- dentro de las ramas.
meiras peças da trilogia, ou tríptico, tratem […]
de eventos da Andaluzia e a última acabe Duérmete, rosal,
sendo uma tragédia de magnitude bíblica. que el caballo se pone a llorar,
las patas heridas,
Parece que La casa de Bernarda Alba é a
las crines heladas,
continuação do espírito telúrico que Bodas
dentro de los ojos
de Sangre e Yerma representam e que su- un puñal de plata.
põem, nas palavras do próprio Lorca, sua
consciência e seu amor pela terra. Bajaban al río,
¡Ay cómo bajaban!
Bodas de Sangre, uma obra de dimen-
la sangre corría
sões cósmicas, como descrita por um crítico
más fuerte que el agua.
argentino (Marcial de Laiglesia, “Lo poéti-
co y lo pictórico”, Correo de Galicia, 26 de Como nas tragédias gregas, o resultado
novembro de 1933), teve sua origem em foi anunciado desde o início. Não pode ser
um fato que realmente aconteceu e que evitado, ninguém pode evitá-lo, porque pa-
foi coberto pelos jornais: perto da cidade rece estar escrito nas estrelas. A mãe ador-
de Níjar, em Almería, houve um misterioso mece a criança com a mais trágica canção
assassinato na véspera de um casamento. O de ninar que deve ser cantada, porque essa
morto, Curro Montes, era um antigo aman- é a realidade, o fado desta terra e destas
te da noiva que, depois de raptá-la no dia personagens. A força telúrica é irreprimível
anterior ao casamento, morreu nas mãos e é isso o que o cavalo simboliza, pura pai-
do irmão do noivo. Esses fatos, recolhidos xão indomável.
na imprensa de Madri em 1928, especifica- Por outro lado, o espaço não deixa de
mente em ABC e no Heraldo de Madrid, são ser especialmente arcaico: a noiva vive em
o começo desta tragédia em que o mistério, uma caverna, como algumas que ainda
o destino e o sangue se unem. existem na Andaluzia, dando à cena um ar
Na obra existem dois elementos simbóli- anacrônico e primitivo, que mais uma vez se
cos: a faca e o cavalo. O primeiro representa liga a um passado remoto e lendário.
o sacrifício e tem sido usado secularmen- No terceiro ato, deixando para trás os
te em ritos sagrados. O segundo refere- protagonistas da obra, entramos em um
-se à força bruta, ao instinto, poderoso e ambiente enigmático. Trata-se de uma flo-
impossível de se conter. Os dois elementos resta, à noite, com troncos úmidos. Essa
Lorca e o B r a si l   •  67

paisagem contrasta claramente com as entre outros, do Prêmio Nobel Jacinto Be-
terras áridas de Almería e com as cavernas navente, Miguel de Unamuno, Fernando
esculpidas pelo vento nos pés de suas mon- de los Ríos e as jovens promessas da nova
tanhas. Parece que estamos dentro de um geração de poetas, Vicente Aleixandre, Luis
lugar quase sagrado, como aquela floresta Cernuda, Jorge Guillén, Pedro Salinas e Ma-
misteriosa na qual Macbeth começa, e não nuel Altolaguirre. Lorca colocou-se, assim,
em uma paisagem andaluza de cavernas à frente de uma geração que combinava o
e desertos. Lorca também usa os cenários dramático com o poético numa simbiose
como elementos emblemáticos, e suas per- comparável apenas aos autores do Barroco
sonagens pouco podem fazer contra essas e do Renascimento e, ainda mais distante
paisagens, objetos e animais carregados de no tempo, às fontes rituais e sagradas da
destino e mensagens. Logo a Lua sai, que tragédia grega. O poeta de Granada cha-
é personificada e tem uma voz, entoando mava, dessa forma, à porta da antiga civili-
uma canção poética que, mais uma vez, zação de Argantonio e Tartessos.
elogia o sangue e a faca. A Lua, como o Bodas de Sangre também foi recebida
cavalo da canção de ninar, também está de forma clamorosa em Buenos Aires, inter-
congelada: pretada por Lola Membrives, uma das atri-
La luna deja un cuchillo zes argentinas mais destacadas no momen-
abandonado en el aire, to. Como já assinalamos, alguns críticos
que siendo acecho de plomo descobriram nela uma “dimensão cósmi-
quiere ser dolor de sangre. ca”, que seria um dos pilares da futura lite-
¡Dejadme entrar! ¡Vengo helada ratura latino-americana da segunda metade
por paredes y cristales! do século XX. Obras como Pedro Páramo,
Pouco depois aparece a Mendiga, que Cien años de soledad, e poderíamos tam-
personifica a morte. A fuga dos amantes bém mencionar Grande sertão: veredas, be-
está, portanto, condenada ao fracasso, e a bem desta fonte em que o mítico se une ao
tragédia é inevitável. Lua e Mendiga são en- cotidiano de uma terra que obscurece suas
carnações plásticas de uma realidade sobre- fronteiras e limita com o sagrado ou com a
natural. Lorca nos faz sentir essa “verdade” morte, isto é, com as paisagens simbólicas
de maneira esmagadora, com uma plasti- do além humano.
cidade que deixa de ser dramática para ser No Brasil, como dito anteriormente, a
trágica no mais puro sentido grego, isto é, estreia de Bodas de Sangre foi realizada
cerimonial. Como lembra Ángel Álvarez de no Rio de Janeiro em 1944 pela compa-
Miranda: “Não é possível representar mais nhia Dulcina e Odilon, sob a direção e in-
vividamente o mito da lua como a divinda- terpretação da própria Dulcina de Morais.
de da morte.” É um rito de características A estreia, também bem-sucedida, abriu os
religiosas, arcaicas, enraizado poderosa- olhos da intelectualidade brasileira para a
mente na terra e no sangue. obra de um dos poetas e dramaturgos mais
Esta obra foi estreada primeiro em Ma- significativos da Península Ibérica, além de
dri, em 8 de março de 1933, com grande ser uma das vítimas na luta pela liberdade
sucesso. A estreia contou com a presença, e os direitos do povo, tão encurralados e
68  •  Antonio Maura

humilhados pelos regimes ditatoriais que militar contra os muçulmanos do reino de


assolaram a Europa e também, em grande Granada. Ao longo do século XVI, o tecido
parte, a América Latina. adquiriu poderes milagrosos e ficou conhe-
A obra foi traduzida para o português cido como o Santo Cristo del Paño. Também
do Brasil pela mão da grande Cecília Mei- foi designada uma data para sua adoração:
reles, quem, em um artigo publicado no 5 de outubro. Com o tempo, esta festa
mesmo ano na Revista Leitura (fevereiro de tornou-se muito popular, transformando-
1944), chama a atenção para a importância -se em uma peregrinação famosa em toda
do autor e de sua obra, além das reivindi- a Andaluzia. De forma ainda misteriosa, o
cações e usos partidários, tentando “não pano sagrado passou a ter poderes mágicos
amesquinhar a memória do poeta e suas para favorecer a fertilidade feminina, e o
virtudes literárias, fazendo de seu fuzila- fato é que, a cada 5 de outubro, a peregri-
mento razão de ser das homenagens que nação do Moclín foi tornando-se uma longa
se lhe dirigem como a uma espécie de mera fila de homens e mulheres que atravessa-
vítima política”. Para Cecília Meireles, Lorca vam a Vega para conseguir descendência.
não é apenas uma vítima da repressão fas- Francisco García Lorca, irmão do poeta,
cista na Espanha, mas, acima de tudo, um lembraria que uma litografia grosseira do
grande poeta, como mostrado no trabalho Cristo del Paño esteve pendurava na parede
traduzido, em que “todas as figuras nos do quarto que compartilhou com Federico
transmitem o pressentimento de sua queda em sua infância. No início do século XX, a
fatal, tal qual no velho tema de «El enamo- famosa peregrinação tinha um certo caráter
rado y la muerte». Em todas pesa essa an- orgíaco, de modo que muitas das gestações
gústia de um estado fatal, que elas mesmas teriam de ser atribuídas mais à intervenção
reconhecem a cada instante como destino, humana do que à divina. Centenas de ho-
sina, fado – e que lhes imprime a grandeza mens participavam no bacanal, enquan-
mitológica do drama grego”. Cecilia Meire- to as pessoas gritavam para os maridos
les também descobre a reminiscência telúri- de mulheres inférteis: “Cornos, cornos!”,
ca, grega, do poeta. Lorca, evidentemente, referindo-se à cópula frenética delas, que
era muito mais que uma vítima, ele era um se entregariam a outros homens para en-
autor indiscutível da tradição cultural espa- gravidarem. Como observado por Marcelle
nhola e ibero-americana. Auclair, o próprio Federico tinha comenta-
Yerma, também traduzida por Cecilia do ao contemplar a imagem do Cristo del
Meireles, se baseava em fatos reais. Ao nor- Paño: “Em síntese, pode-se perceber sob
te da Vega de Granada ergue-se a fortaleza a fina camada que o cobre, os cascos e o
de Moclín, construída pelos árabes e toma- cabelo emaranhado de um fauno.” Se essa
da pelos Reis Católicos em 1486. Lá, Fer- afirmação for certa, podemos concluir mais
nando e Isabel passaram longos períodos uma vez que em Yerma, a tragédia que iria
até a capitulação da cidade de Granada. escrever, já está lavrada a tradição pagã, an-
Como um sinal de afeto, eles deram à igre- tes da cristianização da Vega de Granada
ja erguida naquele lugar o estandarte de e das terras andaluzas. Lorca voltaria nova-
Cristo que içaram em toda a sua campanha mente a essas raízes telúricas, ao sangue e à
Lorca e o B r a si l   •  69

paixão milenar da terra. De fato, no último entre o indivíduo e a sociedade”, segundo


ato da peça, enquanto as mulheres inférteis Juan Caballero. La casa de Bernarda dispen-
desenvolvem seu canto, é preciso colocar sa situações mágicas explícitas, como o diá-
a dança selvagem do Macho e a Fêmea, logo entre a Mendiga e a Lua em Bodas de
em que ele agita descontroladamente um sangre ou a dança do Macho e da Fêmea em
chifre de touro como um símbolo fálico e Yerma, mas não abre mão de certos símbo-
assedia uma mulher fascinada, enquanto o los que permanecem estampados na peça:
coro entoa: o cavalo ou a figura um pouco emblemática
Si tú vienes a la romería de Pepe el Romano, que nunca aparece no
a pedir que tu vientre se abra, palco, mas é o motor que arrancará a tragé-
[…] dia, porque não pode ser dado outro nome
vete sola detrás de los muros ao triste desenlace da obra com o suicídio
donde están las higueras cerradas da mais nova das filhas, Adela. É no terceiro
y soporta mi cuerpo de tierra ato que ela, diante de uma noite escura e
hasta el blanco gemido del alba.
sem lua, escuta ou imagina o cavalo no cur-
É, sem dúvida, como Álvarez Miranda ral: “O cavalo garanhão estava no centro do
comenta, um rito que se liga a uma religio- curral. Branco, enchendo toda a escuridão.
sidade arcaica, nada cristã, em que a lua e a Parecia ter o dobro do tamanho”. E, em se-
noite, a fecundidade e o símbolo fálico são guida, comentários anunciando, de alguma
os elementos cerimoniais. forma, o final da peça: “O céu está cheio
Se Bodas de Sangre é um ritual mágico de estrelas imensas como punhos.” Adela
que celebra o sacrifício, Yerma é um ritual tem os ouvidos e olhos abertos não só para
que celebra a fecundidade. Talvez por isso o desejo, mas também para as forças das
Lorca tenha chamado essas obras de tragé- trevas que agitam o ser humano. É a per-
dias e não dramas, como seria o caso de La sonagem que, de maneira mais clara, en-
casa de Bernarda Alba. frenta a tirania de Bernarda e os rumores e
Esta última obra também teve seu re- difamações da cidade. É ela que faz da sua
ferente na realidade, pois foi baseado na vida uma paixão, que se entrega a ela até
figura de Frasquita Alba, vizinha dos Gar- a morte com um destino inevitavelmente
cía Lorca em Asquerosa, e em forma de trágico. É por isso que não precisa de ritos
testemunha, porque, apesar de ser uma alheios aos que batem em seu próprio san-
mulher autoritária, nunca chegou aos ex- gue. Em La casa de Bernarda Alba estamos
cessos de Bernarda. Em todo caso, a últi- mais uma vez testemunhando o sacrifício
ma obra do poeta do Romancero Gitano, de um ser humano que, paradoxalmente,
que não estreou enquanto ele viveu, pode para conseguir a liberdade e o direito de vi-
ser considerada como a culminação de um ver a própria vida, é capaz de perdê-la.
longo processo que engloba as duas obras Por outro lado, o palco de Bernarda
mencionadas e as tentativas de caráter mais Alba representa uma nudez total, uma sala
ou menos surrealista de El Público e Así que vazia com apenas algumas cadeiras, onde
pasen cinco años. E é, nesse sentido, a “ex- só há duas cores: branco e preto. Nesse
pressão mais radical do conflito lorquiano sentido, pode ser comparado à Guernica,
70  •  Antonio Maura

de Picasso, em que a cidade bombardea- de Bernarda. O número de ressonâncias é


da pelos nazistas parece uma sala fechada, interminável, e ainda é sintomático que esta
assim como La casa de Bernarda, em preto seja a única obra que Clarice traduziu de
e branco. Será que a obra de Lorca tem Lorca, embora quase não a tenha mencio-
algo a ver com a pintura de Picasso, que nado em seus escritos e parece não lhe ter
denuncia o primeiro bombardeio de uma dado muita importância. No entanto, nós
população civil? Será que de alguma forma podemos atribuir essa relevância porque
antecipa o horror da guerra? Clarice e Federico foram artistas da palavra
A obra foi traduzida para o português que se envolveram com os abismos mais
do Brasil, em 1968, por Clarice Lispector em profundos do ser humano, com a sabedoria
colaboração com Tati de Moraes. A tradução que ressoa em nossas veias, com o distan-
não foi publicada, mas sei que ela foi repre- te e o sagrado, com os ritos ancestrais que
sentada em algumas ocasiões. Eu verifiquei repetimos ignorando seu significado, com o
esta versão e posso testemunhar que está mistério... “Só o mistério nos faz viver, só o
correta e que se encaixa muito bem com as mistério”, escreveu Lorca ao pé de um de
torções puramente andaluzes que o poeta seus desenhos. Não poderia ser essa uma
granadino usa. E não posso deixar de notar frase escrita por Clarice em um dos pedaços
que alguns dos símbolos dos quais Lorca se de papel em que ela registrava suas ideias
serve, e que são inerentes à obra, também súbitas? Que essa pergunta fique no ar
fazem parte da obra de Clarice como o já como o grito desgarrador que é ouvido no
mencionado “cavalo” ou a água, que em final de Bodas de Sangre ou o golpe mortal
La Casa de Bernarda é tão importante: água que encerra La casa de Bernarda Alba.
para beber ou para esfregar, água do poço,
do rio, da tempestade, da beira-mar, o mar
Referências bibliográficas
ÁLVAREZ DE MIRANDA, Ángel. La metáfora y el mito. Tau-
de luto etc. Estes símbolos lembram os ca- rus. Madri, 1963.
valos de A cidade sitiada, a água que alaga AUCLAIRE, Marcelle. Vida y muerte de García Lorca. Biblio-
teca Era. México D.F., 1972.
como um ser vivo a narração Água viva. A GARCIA LORCA, Federico. Conversaciones con F.G.L. La
presença do homem inatingível, Martim, canción de los chopos. Ed. de Víctor Fernández. Con-
fluencias. Antequera, 2017.
no romance A maçã no escuro, pode ser _____. La casa de Bernarda Alba. Ed. Allen Josephs e Juan
Caballero. Cátedra, Madri, 1976
comparada com Pepe el Romano em todo _____. Obras completas. Aguilar. Madrid, 1972.
seu valor de macho simbólico e arquetípi- GIBSON, Ian. Vida, pasión y muerte de Federico García Lor-
ca. Plaza-Janés. Barcelona, 1998.
co. Também nesse último romance clarice- LARREA, Pedro. Federico García Lorca en Buenos Aires. Re-
ano, a personagem de Ermelinda recorda, nacimiento. Los cuatro vientos. Sevilha, 2015.
MORAES, Vinicius de. Poesia e prosa. Editora Nova Aguilar.
em suas fantasias, a de Adela de La Casa Rio de Janeiro, 1976.
Poesia e Diplomacia

Abhay K.
Poeta e diplomata indiano no Brasil

O
fato de que a boa literatura nasce mistura de perspicácia política, sutileza cul-
quando há a união das culturas, tural e habilidades de linguagem e de con-
das civilizações ou das cosmovisões versação para exercer o poder da persua­
é amplamente aceito. Acontece frequente- são. A diplomacia geralmente é conduzida
mente no caso de diplomatas-poetas que com frases curtas que revelam tanto quanto
estão em situações exóticas, circunstâncias escondem. A poesia não é diferente.
inusitadas ou acompanhados de pessoas
com pontos de vista distintos.
A Liga do Nobel de
Existe uma ligação entre diplomacia e
poesia, pois vários diplomatas ao longo dos
Poetas‑Diplomatas
anos se destacaram na poesia e oito deles Gabriela Mistral (1889-1957) foi uma po-
ganharam o prêmio mais cobiçado da lite- eta-diplomata chilena, a primeira mulher la-
ratura: o Prêmio Nobel. Esse é um dos fatos tino-americana a receber o Prêmio Nobel de
literários pouco conhecidos. Literatura em 1945. Seu nome verdadeiro
A Liga do Nobel de diplomatas-poetas in- era Lucila Godoy Alcayaga. Amor, traição,
clui Gabriela Mistral, Saint-John Perse, Geor- tristeza, reconquista. O amor, a traição, a
ge Seferis, Ivo Andric, Miguel Angel Asturias, tristeza, a reintegração, a natureza e a iden-
Pablo Neruda, Czeslaw Milosz e Octavio Paz. tidade latino-americanas formadas por uma
A América Latina tem a maior parcela de pre- mistura de influências ameríndias e euro-
miados do Nobel nessa categoria. peias são temas centrais de seus poemas.
O que faz com que alguns diplomatas Serviu como consulesa do Chile de 1932 até
sejam excelentes na refinada arte da poe- sua morte e trabalhou em Nápoles, Madri,
sia? A diplomacia geralmente é estereoti- Lisboa, Nice, Petrópolis, Los Angeles, Santa
pada como a requintada arte de degustar Bárbara, Veracruz, Rapallo e Nova York.
vinhos e jantares, e os diplomatas como
sonhadores. A verdade é que a diplomacia Saint-John Perse (1887-1975) era o pseu-
é uma arte complexa que envolve uma boa dônimo do poeta-diplomata Alexis Leger,
Tradução de Vania Maria da Cunha Martins Santos.
72  •  Abhay K.

vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de o impulso épico dirigido ao protesto social.


1960. Foi um diplomata francês de carreira, Asturias passou grande parte de sua vida
de 1914 a 1940, e viveu nos Estados Unidos no exílio. Na década de 1940 ingressou na
após esse período até 1967. Seus poemas fo- carreira diplomática e serviu no México, em
ram reunidos e publicados em 1971 na Bollin- Buenos Aires, em Paris e em San Salvador ao
gen Series da Princeton University Press. longo de décadas. O comitê do Nobel notou
especialmente seu ciclo poético pouco co-
Ivo Andric (1892-1975) foi um romancista-
nhecido, Clarivigilia Primaveral (Vigília na pri-
-poeta e diplomata iugoslavo que recebeu o
mavera), chamando-o de um trabalho “im-
Prêmio Nobel de Literatura em 1961. Iniciou
pressionante” que “trata da própria gênese
sua carreira literária como poeta. Em 1914
das artes e da criação poética, numa lingua-
foi um dos colaboradores do Hrvatska Mlada
gem que parece ter assumido o esplendor
Lirika (Jovens Letristas Croatas). No final da
brilhante das penas mágicas do quetzal e o
guerra publicou dois livros de prosa lírica –
bruxuleio dos insetos fosforescentes”.
um deles intitulado Nemiri (Anxiedades). Du-
rante a Segunda Guerra Mundial, no tempo Pablo Neruda (1904-1973) era seu pseu-
livre imposto pelas circunstâncias, Andric es- dônimo e, posteriormente, o nome civil do
creveu três grandes trabalhos, todos publica- poeta-diplomata chileno Neftali Ricardo
dos em 1945: Na Drini Cuprija (Ponte sobre Reyes Basoalto. Ele escolheu seu pseudôni-
Drina), Travnicka Hronika (História bósnia) e mo em alusão ao poeta tcheco Jan Neruda.
Gospodjica (A mulher de Sarajevo). Em 1971 Neruda recebeu o Prêmio Nobel
de Literatura. Neruda tornou-se conhecido
George Seferis (1900-1971) nasceu em
como poeta ainda adolescente. Escreveu
Urla, próximo a Smyrna (atualmente Izmir,
em vários estilos, inclusive poemas surrea-
Turquia). Seu nome verdadeiro era Georgios
listas, épicos históricos e poemas de amor
Seferiades. A perambulagem e o exílio estão
carregados de erotismo.
presentes na poesia de Seferis. A coleção de
sua poesia inclui Strophe (O ponto decisivo, Czesław Miłosz (1911-2004) foi um poe-
1931), E Sterna (A cisterna, 1932), Mythis- ta, escritor de prosa, tradutor e diplomata
torima (1935) e Logbook I, II e III (1940, polonês. Ganhou o Prêmio Nobel de Lite-
1945, 1955). Seferis ingressou no serviço ratura em 1980. Miłosz serviu como adido
diplomático da Grécia em 1925. Ocupou cultural da recém-formada República Popu-
cargos na Inglaterra, Albânia, Egito, África lar da Polônia em Paris e Washington.
do Sul, Itália, Ancara, Líbano e Síria. Sefe-
ris serviu como Embaixador Real da Grécia Octavio Paz (1914-1998) foi um diplomata
no Reino Unido de 1957 a 1961. Em 1962 e poeta mexicano, mais conhecido por seus
aposentou-se e mudou-se para Atenas. trabalhos Labyrinth of Solitude (O labirinto
da solidão), Sun Stone (Pedra de Sol) e outros
Miguel Angel Asturias (1899-1974) foi um poemas de amor. Foi premiado com o Nobel
poeta guatemalteco, romancista, diplomata em 1990, o primeiro mexicano a recebê-lo.
e vencedor do Nobel em 1967. A escrita de Sua carreira como escritor começou quando
Asturias mistura o misticismo dos maias com tinha apenas 19 anos com a publicação de
P o e si a e D i p l o m aci a   •  73

seu primeiro livro de poemas, Forest Moon de observação para olhar as coisas a distân-
(Lua da floresta). Teve longa carreira na di- cia com leve imparcialidade.
plomacia mexicana e serviu em Nova York, Pablo Neruda escreveu: “A poesia é um
Paris, Genebra, Tóquio e Nova Delhi. ato de paz. A paz está para o poeta assim
como a farinha está para o pão.” Um diplo-
mata tem tempo e espaço de sobra durante
Poesia e Diplomacia
as estadas ligeiramente descontraídas de
Existem certas semelhanças entre o pa- sua função para estar em paz consigo mes-
pel de um poeta e o de um diplomata. O mo e com o mundo.
poeta prepara o pano de fundo filosófico A poesia se ajusta bem a diplomatas por
ou a visão de mundo – um quadro filosófico causa de sua forma e estrutura. Um poema é
de como as coisas poderiam se moldar no geralmente um recurso literário curto e con-
futuro. O diplomata implementa essa visão. densado que pode ser criado numa pequena
“A poesia é a embaixadora do espírito”, janela de oportunidade quando a inspiração
escrevem Tina Chang, Ravi Shankar e Na- os atinge. É durante estes pequenos interva-
thalie Handal, editores de Poetry for a New los que o diplomata escreve o primeiro rascu-
Century: Poetry from Asia (A poesia para nho de um poema. O primeiro esboço, bruto,
um novo século: a poesia da Ásia). E acres- pode ser revisto várias vezes em épocas mais
centam: “A poesia nos parece o modo mais relaxadas para esculpir um poema perfeito.
profundo de diplomacia, aquele que pode Como profissional de relações interna-
ajudar a gerar o diálogo e o entendimento cionais, um diplomata precisa enviar rela-
mais duradouros no mundo.” tórios diplomáticos sobre o país a que foi
Os diplomatas vivem situações únicas designado. Um diplomata trata com a elite
por conta de seu estilo de vida nômade e e com as massas para desempenhar suas
na busca de encontrar um lar longe de casa. funções. Com o tempo ele se torna fluente
O sentido de exílio de sua pátria, de perda e em várias línguas internacionais, desenvol-
nostalgia da terra natal são frequentemente ve uma sensibilidade aguda, uma habilida-
percebidos por um diplomata quando ele de de observação aguçada e uma comuni-
está no exterior. O poeta W. H. Auden cha- cação precisa. Um poeta está um pouco à
mou a vida de um diplomata de “pesadelo frente de um diplomata em sensibilidade e
da solidão pública”. Acredita-se que diplo- na exploração de dimensões sutis de pensa-
matas criativos comecem a escrever poesia, mento e emoções das pessoas.
ficção ou memórias para escapar do pesa-
delo da solidão pública de Auden, enquan- Poetas-Diplomatas
to os comuns agarram-se ao álcool.
expressivos da América
A aprendizagem durante toda a vida é
a marca registrada de um diplomata. A di-
Latina
versidade de exposição que um diplomata A América Latina possui a maior parce-
obtém enquanto serve seu país no exterior la e os mais importantes poetas-diplomatas
pode ser verdadeiramente uma experiência que receberam o Prêmio Nobel de Literatu-
inigualável. Um diplomata tem um ponto ra no mundo.
74  •  Abhay K.

Luís Caetano Pereira Guimarães Júnior tornou-se embaixador na Venezuela, no


(1845-1898) foi um diplomata, poeta, ro- Reino Unido, na Nicarágua, na França, na
mancista e dramaturgo brasileiro. Como di- Bélgica e na Holanda. Serviu também como
plomata, viveu em Santiago do Chile, Roma Secretário de Estado do Equador. Suas
e Lisboa. Foi membro e um dos fundadores obras líricas foram publicadas como Obra
da Academia Brasileira de Letras. Suas cole- poética completa.
ções de poesia incluem Noturnos e Sonetos
e rimas. Vinicius de Moraes (1914-1980) começou
sua carreira diplomática em 1942 no Minis-
Félix Rubén García Sarmiento (1867- tério das Relações Exteriores brasileiro. Ser-
1916) também conhecido como Rubén viu em Los Angeles, em Paris e em Monte-
Darío, foi um poeta nicaraguense que ser- vidéu, e foi aposentado compulsoriamente
viu como embaixador em Madri. Iniciou o em 1969. Foi um dos compositores de “Ga-
movimento literário espano-americano co- rota de Ipanema”, a canção que se tornou
nhecido como Modernismo, que desabro- um hino mundial nos anos 1960.
chou no final de século XIX. Darío exerceu
grande e duradoura influência na literatura Miguel Serrano (1917-2009) foi um poe­
e no jornalismo espanhol do século XX. Foi ta-diplomata chileno. Serviu na Índia, Iu-
exaltado como o “Príncipe das Letras Cas- goslávia e Aústria. Autor de Um discurso da
telhanas” e indiscutível pai do movimento América do Sul, Os mistérios, As visitas da
literário modernista. rainha de Sabá, entre outras obras.

José Gorostiza Alcalá (1901-1973) foi um João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
poeta e diplomata mexicano. Suas obras de foi um poeta e diplomata brasileiro. Traba-
poesia incluem Canciones para cantar em lhou a maior parte de sua vida como diplo-
las barcas (Canções para cantar em barcos), mata. Ele é considerado um dos maiores
sua obra-prima, Muerte sin fin (Morte sem poetas brasileiros de todos os tempos. Di-
fim) e Del poema frustrado (Do poema frus- zem que suas obras são secas, desprovidas
trado). Durante sua carreira atuou em várias de emoções, exaltadas, geralmente associa-
posições diplomáticas em todo o mundo e das à poesia, arraigadas a imagens, ações
foi embaixador do México na Grécia. e descrições físicas em vez de sentimentos.
Os poemas mais famosos de Melo Neto são
Jorge Carrera Andrade (1902-1978) foi “Morte e Vida Severina”, “Uma Faca só Lâ-
um poeta, historiador, autor e diploma- mina” e “Cão sem Plumas”.
ta equatoriano do século XX. Durante sua
vida, e após sua morte, foi reconhecido por Eduardo Cote Lamus (1928-1964) foi um
Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Octavio poeta, diplomata e político colombiano. Fez
Paz e César Vallejo como um dos poetas muitas contribuições à literatura e à cultu-
latino-americanos mais importantes daque- ra, colocando a Colômbia no mapa mundial
le século. Foi cônsul no Peru, na França, no contemporâneo através da revista Mito, a
Japão e nos Estados Unidos. Mais tarde, primeira publicação literária cosmopolita da
P o e si a e D i p l o m aci a   •  75

Colômbia. Seus cinco livros de poesia foram Homero Aridjis (1940) é um poeta, nove-
escritos entre 1950 e 1963, um curto perío- lista e diplomata mexicano, autor de várias
do de tempo que mostra o intenso processo obras de poesia e prosa. Foi embaixador na
de sua criatividade. Há importantes transfor- Holanda e na Suíça. É, talvez, o encontro de
mações de seu primeiro livro até seu último, culturas e civilizações que fornece a ener-
Estoraques, considerado um dos poemas lon- gia e a imaginação a poetas e escritores da
gos de maior sucesso na poesia latino-ame- América Latina para a criação da grande li-
ricana. Serviu na Alemanha em uma missão teratura. É uma tendência literária significa-
diplomática antes de ingressar na política. tiva que precisa ser mais explorada.
O condenado, o escravo e um “cardume
de porcos”: notas sobre Biografia do
Língua, de Mário Lúcio Sousa

Nazir Ahmed Can


Professor de Literaturas Africanas na UFRJ. Licenciado em Letras pela Universidade do Porto,
Mestre e Doutor em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade
Autônoma de Barcelona e Pós-doutor pela USP

A
lém de transitar com desenvoltura de Portugal. Inspirada no cubano Esteban
por diversas artes, como a música, Montejo, escravo negro representado em
a pintura ou a poesia, Mário Lúcio Biografía de un cimarrón (1966), de Miguel
Sousa tem sabido entrecruzá-las de modo Barnet2, a experiência de Língua será obje-
instigante em seu projeto literário. Nascido to de uma aguda pesquisa estética acerca
em 1964, o autor, que também viveu em dos laços entre exclusão racial e expansão
Cuba, regressa à ficção com Biografia do ocidental no mundo. Também o condenado
Língua (2015). Neste romance, vencedor é um caso raro de longevidade, pois atra-
do Prêmio Literário Miguel Torga – Cidade vessa dois séculos para relatar as peripécias
de Coimbra, vários traços de seu percurso da vida de Língua. A partir dessas histórias,
biográfico e de seu ecletismo artístico se e da forma como as narra, não só encontra
evidenciam. O presente ensaio visa mostrar uma criativa maneira de resistência como
como Mário Lúcio Sousa, em diálogo com ainda contribui para a invenção de uma
diversas tradições literárias, repensa o tráfe- insólita comunidade de destino: “estamos
go negreiro, conferindo-lhe uma dimensão a criar a nossa própria harmonia, a nossa
universal.1 própria humanidade, se assim se pode di-
A narrativa gira em torno da vida de zer. (…), exactamente aqui neste lugar, que
um condenado à morte por fuzilamento a devia ser de morte.” (p. 71; p. 80) Suce-
quem é concedido um último desejo. Sem dem-se, assim, em catadupa as experiências
hesitar, pede para contar a história de Lín- fantásticas de um escravo que é, ao mes-
gua, um escravo que viveu durante mais de
mo tempo, anti-herói e herói exemplar, e as
um século e pronunciou sua primeira fra-
2 No preâmbulo, Mário Lúcio Sousa refere que Esteban
se (“Tenho uma língua”) aos sete meses,
Montejo, entrevistado por Barnet em 1963, quando
tendo, por isso, chamado a atenção do Rei tinha 104 anos, é possivelmente o único indivíduo a
ter vivido “o colonialismo, a escravatura, a Abolição, a
1 Este texto recupera e desenvolve algumas ideias da guerra da independência, a ocupação, o capitalismo,
resenha que elaborei sobre o romance, publicada em o imperialismo e o comunismo, sucessivamente e num
maio de 2016 na Revista Colóquio/Letras, n.º 192. mesmo lugar” (p. 12).
78  •  Nazir Ahmed Can

vivências possíveis de um condenado que, pecha: “Mas ninguém sabia mais do que
em situação de imobilidade física, faz flo- até aos sete meses do menino. Eu, contudo,
rescer o abalo. ficava a imaginar.” (p. 47) É deste modo,
Biografia do Língua é, com efeito, uma portanto, que no jogo proposto por Má-
fábula sobre uma sociedade fundada no rio Lúcio Sousa se reinstauram alguns dos
paradoxo. Erguido por um homem que se fundamentos da tradição oral: um cenário
apresenta como “memória e arquivo” do (a falésia); um auditório (os verdugos), rapi-
povo (p. 290) e que se vai salvando “pela damente alargado à população que acode
escuta do outro” (p. 111), este universo faz em massa, em um misto de curiosidade e
da exceção sua regra de funcionamento. identificação com o protagonista do relato;
Como tal, algumas das mais inusitadas in- o contador, que revitaliza a herança de nar-
versões compõem o dia a dia de seus ha- rar os fatos anteriormente transmitidos; e
bitantes: “Bem, este é o meu ofício, pelo as estórias, que, devido à fenda inaugurada
menos até eu cair de joelhos crivado de pela história e à própria natureza do conhe-
balas. Mesmo trágica, a situação não dei- cimento, se inscrevem em um processo que
xa de ser cómica (…), estou a guardar os não desconsidera a invenção.
meus próprios carrascos.” (p. 64) Contra o Avesso a essencialismos, o autor indi-
fuzil e a parede, em uma espécie de fim do cia que o dilaceramento produzido pelos
mundo, o condenado-narrador inaugura a processos históricos impossibilita a restitui-
mais sã das dependências: a de histórias. E ção completa dos fatos. Daí procurar criar,
isto sucede até mesmo em dias de funeral: nesse exercício que é simultaneamente de
“Vai Falésia soluçando o finado e ouvindo o desconstrução da biblioteca imperial e de
condenado.” (p. 232) Todavia, o narrador construção de uma gramática alternativa,
não se apresenta como detentor do mono- algo próximo daquilo a que o angolano
pólio do contado, diferenciando-se, assim, Ruy Duarte de Carvalho definiu como “uma
da epistemologia e da literatura de outros zona de indiferenciação entre o falado e o
contextos. Como se sabe, ao associarem o escrito.... um falado que no entanto só pu-
continente africano a uma ideia de vazio desse ser escrito, um escrito que no entanto
(de tempo, de espaço, de humanidade) e só pudesse ser falado.” (2009, 299) Trata-
de anomia, os saberes imperiais justificaram -se de um projeto ambicioso, no qual uma
a necessidade de ocupação territorial e con- poética de complementaridade de saberes
solidaram um imaginário assente na certeza e de instituição de uma nova sensibilidade,
da superioridade civilizacional. O narrador, que não tem pejo em retorquir a antiga
pelo contrário, penetrando em terrenos nem vergonha de rir de si própria, se con-
simbólicos que se consagraram nas litera- figura como horizonte. Ao entrelaçar duas
turas africanas a partir da segunda metade narrativas, Biografia do Língua favorece ain-
do século XX, integra sua versão em uma da o cruzamento de gêneros, em especial o
cadeia mais vasta de relatos: “E eis o que conto, o microrrelato, a poesia, o romance
tenho a contar, porque me contaram.” (p. e o ensaio. Ainda que não possamos nos
19) Além de recusar a paternidade de par- estender aqui nesta questão, destacamos,
te da história que conta, assinala-lhe uma para além das obras do próprio Ruy Duarte
O c o n d e n a d o , o e scr avo e u m “cardume d e p o rc o s ”   •  79

de Carvalho, os romances João Vêncio: os “Felizmente, os bebés não têm dentes, es-
seus amores (1979), do angolano Luandino ses ossos alvos que traem os negros no es-
Vieira, Terra Sonâmbula (1992), do moçam- curo. Para ele, o céu-da-boca não passava
bicano Mia Couto, e Nour, 1947 (2001), do ainda de um curioso lugar onde via láctea e
malgache Jean-Luc Raharimanana como seio eram a mesma coisa.” (p. 21) Contra-
exemplos de narrativas que entrelaçam a riando o tom épico das narrativas imperiais,
escrita, seus vários gêneros e os diversos nas quais a oposição entre o “fardo do ho-
códigos da oralidade para ler, cada qual a mem branco” e a insalubridade dos lugares
sua maneira, a complexa e acidentada his- ocupados é colocada em um plano central,
tória de seus países. No romance de Mário o que se relata aqui é a primeira vez de um
Lúcio Sousa, este tipo de procedimento, bebê. Trata-se de um movimento que con-
ademais de promover a ampliação das ba- fere humanidade ao sujeito, historicidade
lizas temporais da narrativa, está a serviço aos lugares e energia poética aos pequenos
de um desafio inédito: investigar dois tipos atos do cotidiano. Face à recusa de totali-
de experiência-limite, possivelmente os em- zação e à impossibilidade de domesticação,
blemas mais radicais da imobilidade social. já que “ninguém é capaz de traduzir o que
Assim, se a existência do condenado se en- vai na língua de uma gota de gente de dois
contra em uma zona próxima do indizível dias de nascido” (p. 31), o autor aposta na
(“Não há na vida nenhuma sensação mais polissemia da imagem, restituindo por esta
forte do que estar de pé contra um pelotão via uma das funções primordiais da litera-
de fuzilamento”, p. 15), a vida do escravo tura: sondar esteticamente os sentidos (em
será “algo assim só comparável à vida de suas várias acepções) da humanidade.
um perpétuo condenado à morte.” (p. 12) De resto, o diálogo intertextual com a
Ambos, de resto, podem ser mortos por al- história de um escravo cubano não impede
guém com quem partilham uma história. Mário Lúcio Sousa de deslocar a narrativa
Operando, portanto, no fragmento para para outros territórios simbólicos. A falé-
examinar o totalitarismo e auxiliando-se sia, que se transformou em “Falésia” após
da imaginação para preencher os espaços cerca de duzentos anos de histórias conta-
lacunares dessas vidas sentenciadas, Mário das pelo condenado, pode ser lida como a
Lúcio Sousa resgata a virtualidade poética metonímia de Cabo Verde. Ou do próprio
das experiências abissais. Tarrafal, terra natal de Mário Lúcio Sousa,
Como já mencionado, o condenado município da Ilha de Santiago onde o Esta-
teve acesso à história dos primeiros sete do Novo português criou um dos campos
meses do escravo por intermédio de relatos de concentração mais violentos do século
terceiros. Ao contrário do que seria habi- XX. Papéis da Prisão (Caminho, 2015), de
tual em um texto herdado, porém, a des- Luandino Vieira, é um dos raros textos so-
crição dessa fase da vida de Língua alcança bre a experiência concentracionária no Tar-
um notável grau de plasticidade. Mediada rafal. Dado que mereceria uma análise mais
pela metáfora, pela sinédoque e até mes- detida, a escassez de documentos sobre os
mo pela ironia, tal vivência é objeto de um campos de concentração erguidos na África
investimento na pluralização de sentido: contrasta radicalmente com a proliferação
80  •  Nazir Ahmed Can

de literatura acerca dessa experiência em racial, da História nacional em História ra-


solo europeu.3 Seja qual for seu referente cial, da unidade nacional em unidade racial
imaginado, a narrativa guarda uma notó- (Arendt, 2013). Se todos esses elementos
ria dimensão universal. O narrador alerta, concorrem, enfim, para a partilha de um
todavia, para os riscos de confusão entre olhar de dominação das antigas potências
“universalismos”. O relato não é o mesmo imperiais, também podemos considerar
de Xerazade, que atrasou o seu fim por mil alguns pontos de distinção entre elas. Por
e uma noites, adiando, assim, o desfecho exemplo, a inscrição da brutalidade rituali-
da narrativa: “A história que eu tenho de zada, quando acompanhada pelo ethos da
contar é para salvar o próprio Língua.” (p. doçura, eufemismo luso-tropical por exce-
90). O condenado evita ainda paralelismos lência, permite-nos identificar o colono que
com Penélope, a esposa de Ulisses: “eu não é posto contra as cordas pelo sarcasmo do
estou a enredar-me aqui para enganar o narrador: “Aqui é tudo brando e até lhes
tempo. Estou contra o tempo.” (p. 91) Fi- damos feriados. Aqui obedecemos escrupu-
nalmente, desassocia-se de eventuais com- losamente às regras do açoite às grávidas,
parações com a ave Fênix, a tal que ressur- quatrocentas lategadas no máximo e sem-
gia de suas próprias cinzas: “Não, eu quero pre cuidadosamente aplicadas com a ges-
simplesmente contar a verdade que não se tante de barriga para baixo, para poupar o
conhece.” (p. 91) Na contramão dessas per- bebé.” (p. 190) Portugal, diga-se em abono
sonagens canonizadas pela literatura mun- da História, e dessas estórias, foi o grande
dial, o escravo, o colonizado ou o operário protagonista do maior crime contra a hu-
explorado, donos de uma história apenas
manidade, arrastando nas condições mais
parcialmente contada, raramente desfila-
degradantes quase 6 milhões de pessoas de
ram no panteão dos mártires da humanida-
um continente a outro (Coelho, 2016). Esse
de. Em segundo lugar, o que se narra aqui
deslocamento produz ainda hoje efeitos
tem a ver com um tipo específico de vio-
nefastos: “As vítimas dessa catástrofe vêm
lência. Enquanto sistema concentracionário
lutando há séculos contra seu cruel desti-
a céu aberto, o colonialismo é, no quadro
no em ambos os lados do Atlântico: de um
da totalidade dos imperialismos, uma expe-
lado, raspando o chão das fazendas arruina-
riência histórica extrema de subjugação e
das de um continente devastado; de outro,
de expropriação material e mental (Fanon,
trabalhando duro no rescaldo sufocante do
1979; Said, 2007) por via da falsificação
cativeiro.” (Achebe, 2012, 61) Para além de
de si pelo outro (Mbembe, 2000), projeto
interpelar a teoria de Gilberto Freyre – autor
consolidado quando se dá a transforma-
que escancara sua inclinação salazarista em
ção da identidade nacional em identidade
Aventura e Rotina, talvez o principal texto
3 Rita Chaves nos recorda que, “não obstante o con- orientalista escrito em português no século
ceito de barbárie aparecer sempre ligado ao holocausto XX – e de sublinhar o perverso papel de Por-
judeu, não podemos subestimar o que foram os campos
de japoneses no território americano na II Guerra. No
tugal nos séculos precedentes, com o tráfi-
próprio Continente Africano levantam-se terríveis exem- co de escravos, Mário Lúcio Sousa revira ou-
plos como os campos em que os alemães mantiveram os
hereros no começo do século XX, e aqueles que fazem
tro mito quando ironiza a política linguística
parte da história da guerra anglo-boer” (no prelo). do império lusitano. Em contextos como o
O c o n d e n a d o , o e scr avo e u m “cardume d e p o rc o s ”   •  81

de Moçambique ou Angola, diga-se, Portu- pássaros, sínodo para os seus bispos, ou tur-
gal deixou como “legado civilizacional” 94 ma para os seus estudantes e trabalhadores e
a 97 por cento de analfabetos, números de médicos e juízes. Tinham o que tinham. Por-
tanto, como eu ia dizendo, cardume de por-
1975.4 Dívida ao invés de dádiva, ou então
cos (pp. 211-212).
“despojo de guerra”, segundo a bela sínte-
se de Luandino Vieira, a língua portuguesa Apesar de longo, o segmento sintetiza
tem sido uma arena de disputas nas antigas algumas das características de uma escrita
colônias, mas também, em maior ou menor que privilegia a enumeração desataviada
medida, de reapropriações criativas. Man- para compreender a perda. De fato, é a partir
tendo o tom irônico, mas sem negligenciar da doxa que o autor fará uma contundente
o investimento no ritmo e na musicalidade, avaliação do paradoxo que estrutura a his-
o autor cabo-verdiano reflete sobre a tensa tória desses lugares. Organizando o enun-
relação entre palavra, coisa e propriedade: ciado pela ordem alfabética que o mundo
Sim, não foi por descuido ou por igno- regrado pelo dicionário cultiva, o narrador
rância. Era como os escravos chamavam um exalta a língua construída pela experiência
grupo de leitões. Os escravos diziam cardu- daqueles que vivem na esfera oposta, sus-
me de porcos, monte de cabras, mancha de
pensos na exceção. Se, por um lado, Mário
peixe, curral de burros, quintal de cavalos,
achada de cachorros, ninho de ratos, cesto de Lúcio Sousa se apossa de um gênero es-
gatos, cochada de rapazes, casa de mulheres, crito (bio-grafia) para projetar uma estória
rol de meninos, capoeira de pombos, lote de ancorada na oralidade, não dispensa, por
homens, etcétera. Hão de entender que não outro, de um mergulho na bibliografia so-
se podia exigir que os escravos dissessem bre a condição do escravo. Ora de maneira
vara de porcos, matilha de cães, armento de direta, privilegiando a máxima sentenciosa,
gado, alcatéia de lobos (...) Os escravos não
ora de modo implícito, priorizando a elipse
diziam assembleia para os seus parlamentares
ou a metáfora, o autor perscruta as fases
e associados, ou atilho para as suas espigas,
baixela para os seus objetos de mesa, banca de uma origem desvalida. Neste quadro,
para os seus examinadores, cabido para de- destacam-se o horizonte minado de quem,
signar os seus cónegos (...) Os escravos não sem liberdade, só tem direito ao passado
diziam esquadra para os seus navios de guer- (“Os anos passaram olhando para trás”,
ra, esquadrão para os seus soldados de ca- p. 106), a necessidade do carnaval que se
valaria, falange para os seus anjos, fato para aciona como válvula de escape para contor-
as suas cabras, girândola para os seus fogos-
nar uma lembrança incômoda (“os escravos
-de-artifício, horda para os povos selvagens e
cantavam com frenesim e esquecimento”,
nómadas, malhada para as suas ovelhas, mó
para as suas gentes, panapaná para as suas p. 163) ou a impossibilidade de concretizar
borboletas ou pinacoteca para as suas pintu- a relação (“porque amor confinado é uma
ras. Não. Os escravos não tinham plantel para coisa, amor sem poder ter é outra canção”,
os seus atletas, plêiade para os seus poetas, p. 172); em sentido contrário, mas que
récua para as suas bestas de carga, réstia para acentua a natureza dialética da narrativa,
as suas cebolas e alhos, revoada para os seus realçam-se o dever de memória de quem,
4 Sobre o colonialismo português em Moçambique,
para se salvar, fala com seu outro “eu”
veja-se Cabaço (2010). (“Esteban, se a gente se esquecer da gente,
82  •  Nazir Ahmed Can

a gente morre num ui”, p. 230), o desejo de mito e realidade, romance e outros gêneros
fuga daqueles que já nem com a morte se artísticos, tradição oral e escrita, história e
assustam (“para quem tudo perdeu, arriscar estória, o autor abre novos caminhos para
é uma margem de ganhar, não arriscar é in- as letras africanas e para o comparativismo
dulgência”, p. 145) e a difícil relação com entre literaturas de diferentes línguas.
a liberdade, após a evasão (“Nada do que
aprendera no percurso entre o barracão e a Referências bibliográficas
plantação estava a servir-lhe”, p. 201). ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o pro-
tetorado britânico, São Paulo: Companhia das Letras,
Enfim, de modo a repensar o maior cri- 2012.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo:
me contra a humanidade e suas consequên- Companhia das Letras, 2013.
cias na contemporaneidade, Mário Lúcio CABAÇO, José Luís. Moçambique. Identidade, colonialismo
e libertação, São Paulo: EDUSP, 2009.
Souza faz confluir descrição e reflexão (“E CHAVES, Rita. “O romance em João Paulo Borges Coelho:
respirar a diferença na escrita”, in Mulemba, n.o 18, v.
o feto, assim se chamava o menino antes 10, 2018 (no prelo).
de ser negro, tinha o dom de escutar me- CARVALHO, Ruy Duarte. A Terceira Metade. Lisboa: Cotovia,
2009.
lhor do que a própria mãe”, p. 41), investe COELHO, Alexandra Lucas. “O que Portugal tem a ver com
o Brasil”, in Público, 27-3-2016. Disponível em: https://
no humor que lê a dor (“Claro, eu estou www.publico.pt/mundo/noticia/o-que-portugal-tem-
num pedestal e tenho o privilégio da vista”, -a-ver-com-o-brasil-1727252
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Trad. de J. L. de
p. 225) e na ironia que escrutina os pode- Melo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
res (“Se antes da abolição um escravo não MBEMBE, Achille. De la Postcolonie. Essai sur l’imagination
politique dans l’Afrique contemporaine. Paris: Kharta-
recebia nada por ser escravo, agora paga- la, 2000.
SAID, Edward. Orientalismo – o Oriente como invenção do
va para sê-lo”, p. 141). Mobilizando, além Ocidente. Trad. de R. Eichenberg, São Paulo: Compa-
disso, uma vasta cadeia intertextual, que nhia das Letras, 2007.
SOUSA, Mário Lúcio. Biografia do Língua, Lisboa: Dom Qui-
contribui para o abalo das fronteiras entre xote, 2015.
Agreste matéria: o trabalho poético de
José Luiz Tavares ou a busca da extrema
singularidade e excepcionalidade

Pires Laranjeira
Universidade de Coimbra

1 – O livro Contrabando de cinzas (Revisita- real, da escrita, da perenidade, do “obscuro


ção & Súmula), de José Luiz Tavares, publi- animal”), ou a inominável desrazão deste
cado em 2016, em São Paulo, pela editora modo de comunicação não utilitarista, em
Escrituras, é, segundo as próprias palavras que o leitor tem “algo a acrescentar” (todos
insertas no subtítulo, uma revisitação da os leitores, incluindo obviamente os brasilei-
sua obra, capturando o que nela pode ser ros), sem o qual o trabalho da e sobre a pa-
apresentado como súmula de um percurso lavra posta em discurso não teria qualquer
de escrita. significação e muito menos sentido. Se tem
A imagem do “contrabando”, muito sentido, é porque o leitor lê: “a gente ale-
cara a certos poetas irônicos (o angolano vantada do meu país.” Dir-se-à que o povo
David Mestre teria gostado dessa palavri- cabo-verdiano é o destinatário privilegia-
nha), condiz ajustadamente com a perícia do que não chegará até esta poesia – como
de fintar as significações preestabelecidas deveria – ainda. Que povo? O que vai à es-
no dicionário e chegar mais além da lin- cola superior? O povo descalço das chãs de
guagem, onde o sentido se instaura na baixo? E que poemas de Tavares são esco-
mente do leitor. Esse é um contrabando de lhidos para os poucos escolhidos? E como
“cinzas”, ou o que resta das palavras e do lê-los? Com que instrumentos? Toda uma
real, muito aquém de factos (da chamada panóplia de questões a resolver pela tempo-
realidade). Convém, pois, relembrar sem- ralidade e o seu trabalhar metódico e irre-
pre a psicanálise de Lacan, segundo a qual vogável: “que de passagem apenas somos
o real não penetra no texto, e é evidente feitos”; “à arte não se chega por aflante
que Tavares, embora convoque referentes via”. Aqui se permite ler estas frases poéti-
do “mundo”, tem consciência da difícil cir- cas e filosóficas fora do seu cotexto, com a
culação entre os membros do quadrinômio intenção de mostrar a constante articulação
mundo-poeta-palavra-leitor. entre escrita e interrogação existencial. A
A sua poesia não fala de outro obje- “dúvida soberana” – temos de conceder –
to que não seja a “dúvida soberana” (do ultrapassará, então, o fazer poético, para
84  •  Pires Laranjeira

se instaurar como dúvida permanente e lan- da escrita, do ser no mundo da palavra, do


cinante sobre o (des)fazer da vida, seja ela seu fazer situado no mundo ou em relação
individual ou coletiva. com ele: o ofício, a atividade, a consciência
ou intempestividade do labor, a sua verda-
2 – Ao proceder a uma arrumação dife- deira estranheza.
renciada do conjunto da sua obra poéti-
ca, escolhendo uns textos em detrimento 3 – O poeta foi mais drástico na nova orde-
de outros, abre mão sobretudo de muitos nação de poemas retirados do livro Lisbon
dos que agora eventualmente considerará blues (2008), publicado também no Brasil,
exercícios menos conseguidos ou mais irre- pela mesma editora. Portanto, procurou
levantes, como, por exemplo, o trecho n.o 9 não repetir esse livro, como se fizesse uma
de “Matinais”, secção de Agreste matéria reedição dentro de outro, reordenando os
mundo (2004, o segundo livro). textos escolhidos segundo as conveniências
Tratando-se de uma edição para o mer- do novo livro. Por exemplo, há uma nova
cado brasileiro, que funciona como uma es- sequência para os poemas seleccionados de
colha antológica ou seleção autoral, pode Paraíso apagado por um trovão (2010, ed.
ser vista, com as suas 275 páginas, enquan- cabo-verdiana) e também os textos extraídos
to mostra eficaz de uma obra em balanço de Cidade do mais antigo nome (2009) e
e ainda demonstração de um critério de de Coração de lava (2014) apresentam uma
exclusão. nova sequencialidade, que ajuda a direcionar
Assim, verifica-se uma lógica de con- a leitura para novos sentidos, não tão sinto-
catenação semântica, que não respeita a maticamente relacionados com o universo
organização anterior de cada livro publica- cabo-verdiano. E acontece ainda que, por
do pelo poeta, embora também não seja exemplo, se intercala um texto de um livro
radicalmente diferente. Por exemplo, a numa sequência originária de outro.
parte intitulada “Crítica da razão poética” Além do mais, quem pode garantir que
(inclusa no livro Agreste matéria mundo) o texto “Coração de lava”, fora do seu
é agora uma versão reduzida. Ainda ou- cotexto original, o livro do mesmo nome,
tro exemplo: o poeta não inclui, desta vez, magnificamente ostentando fotografias de
tantos sonetos, como acontecera em Lis- Duarte Belo sobre as terras vulcânicas do
bon blues. país, remete para a geografia e não para a
José Luiz Tavares assume, neste volume, criação literária e a paixão amorosa? O poe-
a primazia da metapoética, isto é, do dis- ta, já na edição original, tornava ambíguo
curso poético sobre o próprio fazer poético. o discurso – característica maior de gran-
E, como se viu, é complementar da inqui- des vates, qual seja a sua latitude. Atente-
rição sobre a existência e condição huma- -se no início desse poema: “No princípio
na. É por isso que uma parte significativa também era eu,/entre pedras e escórias,
do começo deste novo livro é composta por vacilante,/(calma, leitor, a queda será mais
textos saídos de Agreste matéria mundo, adiante)”. E, mais para o final, encontra-
aquele que mais demoradamente, logo a mos um exemplo de versos que confirmam
partir do título, interrogava a questão fulcral essa hesitação de sentido, entre o espaço
A g r es t e m at é r i a   •  85

e a convulsão: “não possa haver bálsamo Não seremos puros, anuncia o poema.
para essa febre/que devora as entranhas, (...)
para esse susto.” A imagem do vulcão será Mas se aqui estás, mesmo entre a merda, é
pra vencê-lo,
tanto da ordem da vulcanologia quanto
sem causa outra, que estar vivo (e dizê-lo)
da antropologia do imaginário e da pai-
não é arte pouca.
xão: uma vulcanologia poética, pela pena
de um Vulcano fervente. O classicismo é De facto, a iconoclastia do poeta, tantas
adequado, sustentado pela escuta de José vezes indo à fonte de Aretino, Bocage ou
Luiz Tavares de alguns dos principais poe- O’Neill, que o levam a arriscar queimadu-
tas canônicos, além de filósofos: Szymbor- ras na pele da pólis, sobressai num gesto de
ska, Herberto Helder, João Cabral de Melo altaneira indomabilidade, também de fei-
Neto, Rilke, Dylan Thomas, Cioran, Manuel ção, mais do que romântica e isolacionista,
Bandeira, Sá de Miranda, Jorge de Sena, desesperadamente realista e dorida: “nem
Carlos Drummond de Andrade. rei nem relho”; “Fodam-se pátrias hinos
O que significa, para o leitor do Brasil, bandeiras.” Afirmar altivamente uma inde-
Cabo Verde ou qualquer outro território (na pendência (“altiva orfandade”, diz o poe-
nuvem, no éter) esta nova entrega? Sem o ta), uma insubmissão a ordens e sistemas,
explicitar, com certeza uma depuração dos é mergulhar no vulcão do improvável e do
materiais, rasurando textos da opera omnia. irresolúvel, que conduz poeticamente ao di-
Semelhante a outros bardos, a mesma bus- laceramento da razão e de um ser sonhado
ca de extrema singularidade e excepciona- como apoteose do humano.
lidade. Os títulos do livro e de alguns poe- A apoteose do humano constrói-se aqui
mas, bem como as recorrentes angústias com a lava que cinzela o chão das chãs, a
da criação questionando o quotidiano efé- evocação do trovão que destruiu o paraíso
mero e o caos, que provocam a crispação, perdido, o percurso em busca da universa-
indicam-nos, pelo menos, a grande lição de lidade da (des)razão e o trabalho pesado
Pound e Dylan Thomas. Se pensarmos na sobre uma psicanálise dos dias e o ouro das
devastação, na terra e no espírito de cinzas, cinzas cinzelado a golpes de memória feri-
fica a pairar, subtensa, a tradição romântica da na língua afiada pelos grandes clássicos:
das paisagens interiores desenfreadas e, ao “Dai-me uma pátria assim de pedra.”
mesmo tempo, melancólicas, associadas a A poética de José Luiz Tavares: um vul-
um bucolismo exorbitante feito de desar- cão de lava jorrando do caos para a ironia e a
monia e pesadas sombras, que apenas a angústia de uma palavra trançada com fúria
busca da palavra certeira consegue iluminar e desvelo (“quem te mandou a ti negro ca-
a espaços. lafate//ousar o donaire que do florentino/a
aretino tão alta se fez?”). Uma gigantesca
4 – Surpreendentemente, porém, podíamos paixão consumida pelo ofício de trevas,
rever todos os clichês sobre a capacidade de que busca, em última instância, serenar a
elocução e elocubração e atentar no primei- medonha inquietação de conciliar a me-
ro e no último dos seus versos, para chegar lancolia das origens (um qualquer Cabo
a um outro patamar de sentido: Verde que quase se apaga dos textos) com
86  •  Pires Laranjeira

a inaudita força da viagem pelos mundos sobre a perda, a errância, o obstáculo e


do sofrimento, a que somente o discurso a morte, erguendo uma Obra por cima de
– a submissão a uma ordem própria – con- toda a dureza da pedra, da sociedade,
segue dar sentido, que é o da interrogação do tempo e da palavra.
A doença para a arte, não para a
morte, na obra de Thomas Mann

Marcelo Backes
Doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha.
Escritor e tradutor.

N
o âmbito da vigorosa obra de Tho- da limitação imposta ao “desejo” pela “lin-
mas Mann (1875-1955), Doutor guagem”, que segundo ele deveria ser o
Fausto ocupa um lugar privilegiado objetivo de toda a Arte que queira merecer
e à parte. O romance é apenas um dos tes- esse nome.1 E, ao terminar o romance, em
temunhos do comprometimento eterno do vários momentos mencionou que lhe resta-
autor com a elaboração da enfermidade e a va uma sensação de que o que ainda viria, o
compreensão da alma a partir de suas vicis- que ele ainda faria, tanto na arte quanto na
situdes, a mais preciosa das pérolas que a vida, lhe parecia pálido e superficial diante
ostra “doente” de Lübeck produziu. da grande obra.
Escrito entre 1943 e 1947, Doutor Faus-
to se passa entre 1943 e 1945, numa es-
tratégia interessante, que permite ao autor
Biografia
botar grande sabedoria futurística nas es- Thomas Mann é tão conhecido no Brasil
peculações de seu narrador. O romance é, que muitos leitores de sua obra e conhe-
além disso, a obra na qual Thomas Mann cedores de sua importância ignoram que
reelabora o maior dos mitos alemães, o de sua mãe foi brasileira: seu estofo de autor
Fausto e seu pacto com o diabo (que já ha- é maior do que sua origem patrioticamen-
via encontrado uma cristalização definitiva te nacional. Se é um dos grandes escritores
no Fausto de Goethe), e a “confissão vital” do século XX, Mann é também autor do
do autor, a obra que ele próprio pensou romance que definiu os descaminhos artís-
que fosse sua derradeira, seu grande tes- ticos e políticos do mesmo século à perfei-
tamento, depois de um câncer no pulmão ção, o já mencionado Doutor Fausto. Dono
descoberto em 1946 e tratado cirurgica- de uma consciência enorme e bem precoce
mente em Chicago. Thomas Mann diria,
acerca de sua própria capacidade, já aos
acerca de Doutor Fausto, que aos 70 anos
1Die Entstehung des Doktor Faustus. In: Schriften und
escreveu seu livro mais “selvagem”, o mais Reden zur Literatur, Kunst und Philosophie. Frankfurt
perto de romper a fronteira do “dizível” e am Main: Fischer Bücherei, 1968, p. 90.
88  •  Marcelo Backes

14 anos assinaria uma carta a Frieda L. Har- 1933, porque os nazistas ainda julgavam
tenstein com as palavras “Thomas Mann. que era possível negociar com o já célebre
Poeta lírico e dramático”. E até nas primei- escritor, pouco mais tarde ele veria confisca-
ras anotações infantis de seus Diários, o es- dos todos seus títulos, seus bens e inclusive
critor já parece manifestar a certeza de que sua nacionalidade. Depois de passar pela
o material um dia seria publicado, tamanho Suíça, Mann se estabeleceria em 1938 nos
é o cuidado e a precisão dos registros. EUA, onde receberia cinco doutorados ho-
Descendente da burguesia orgânica de noris causa, pelas universidades de Harvard,
Lübeck, no norte da Alemanha – o pai foi se- Yale, Columbia, Rutger e Princeton, em re-
nador –, Thomas Mann se estabeleceria em conhecimento a sua grande atividade inte-
Munique a partir de 1894, depois de perder lectual e política no exílio.
o pai, e inclusive trabalharia numa segura- A combatividade de Thomas Mann du-
dora de incêndios, abandonada logo em se- rante a II Guerra Mundial faria com que
guida por uma espécie de incompatibilidade seu nome fosse lembrado em 1945 para o
kafkiana com o trabalho. O sucesso literário cargo de primeiro presidente da República
viria bem cedo, sobretudo a partir de uma Federativa da Alemanha. Mas as dificulda-
viagem decisiva e goethiana à Itália em 1897 des do escritor com sua nação, tão grandes
– Goethe também fugiu da Alemanha para que impediram seu estabelecimento na pá-
a terra onde os limões florescem em bus- tria destruída, fariam com que a ideia não
ca de inspiração –, logo sedimentado com vingasse. E Thomas Mann se cansaria dos
a publicação do conto “O pequeno senhor EUA apenas em 1951, depois de anos de
Friedmann”. Em 1904, Thomas Mann faria benesses e bons tratos. A nova paranoia es-
um sólido e estável casamento com Katja tatal americana se tornaria hostil inclusive a
Pringsheim, que durante a vida inteira ten- ele e registraria Thomas Mann oficialmente
tou compreender a abstração de suas ver- como um dos mais famosos apologistas de
dadeiras inclinações sexuais, inclusive depois Stálin e companhia.
do sofrimento causado pela publicação de Aquilo era demais para um escritor que,
Morte em Veneza. Em 1929, Thomas Mann apesar de saudar a I Guerra Mundial, se po-
receberia o Prêmio Nobel de Literatura, con- sicionara de modo tão convicto, e já desde
decorado pela obra monumental que escre- bem cedo, contra as manifestações ainda
vera quase 30 anos antes, Os Buddenbrook, incipientes do nazismo. Thomas Mann de
publicado em 1901; o autor inclusive ficaria fato defendera o militarismo alemão du-
magoado, apesar da premiação, demons- rante a I Guerra Mundial, opondo-se a seu
trando mais uma vez a melancolia que sem- irmão Heinrich e a autores pacifistas como
pre o caracterizou, pelo fato de a academia Arthur Schnitzler, Hermann Hesse, Stefan
ter ignorado, no discurso de entrega do prê- Zweig e sobretudo Karl Kraus. Em sua obra
mio, um outro romance bem mais recente e Considerações de um apolítico (Betrachtun-
também monumental: A montanha mágica, gen eines Unpolitischen, de 1918), Mann
de 1924. ainda estipula uma diferença fundamen-
Se as obras de Thomas Mann seriam tal entre “espírito alemão” e “civilização
poupadas da grande queima de livros em francesa”, defendendo a cultura alemã em
A doen ç a pa r a a a rt e , n ã o pa r a a m o rt e , n a o b r a d e T h o m as M a n n   •  89

oposição à civilização europeia e adotando A enfermidade na obra do


uma posição contrária à do “Zivilisationsli-
autor do Doutor Fausto
terat”, conforme o chamou, representada
entre outros pelo seu irmão Heinrich. Sem Uma das melhores cifras para obser-
contar que também louvaria o posterior- var poeticamente a obra de Thomas Mann
mente tão perigoso “caminho especial” da certamente é a da enfermidade, a relação
germanidade, incompatível, segundo ele, apurada existente entre doença e arte em
com os fundamentos democráticos da Fran- sua obra. A proximidade entre medicina e
ça e dos EUA, usando Nietzsche e até Dos- literatura, aliás, é constatável direta e indire-
toiévski e seu eslavismo para se justificar. No tamente no âmbito de toda a literatura uni-
“Ensaio a Fiorenza”, Mann inclusive é um versal. São inúmeros os escritores que têm
dos primeiros a usar a expressão “Terceiro uma relação direta com a medicina. Para
Reich”, que em pouco adquiriria laivos tão dar apenas alguns e importantes exem-
sinistros. plos: Flaubert e Dostoiévski eram filhos de
Depois do assassinato de Walther Ra- médico, Proust foi filho e irmão de médi-
thenau em 1922, no entanto, Thomas co, Schnitzler e Tchekhóv foram médicos,
Mann acordaria de seu sonho germânico Guimarães Rosa foi médico. A medicina,
e passaria a defender a República e seus ademais, concede metáforas interessantes
valores. Após a grande votação dos nazis- no sentido de compreender a arte. Só en-
tas em 1930, Mann inclusive faria um dis- tendemos de fato como o corpo funciona
curso na Sala Beethoven de Berlim intitula- quando ele adoece, quando ele nos mos-
do “Apelo à razão”. Nele, Mann já refere tra que existe porque cessa de nos atender,
visionariamente o nazismo como “uma nós que o arrastamos pela vida afora – por
onda gigantesca de barbarismo excêntrico mais vinculados ao mundo físico que seja-
e crueza de mercado público”, cheio “de mos – como um traste a serviço do espírito.
primitivismo” e marcado por “convulsões Enquanto a saúde impera, não nos damos
de massa, barulho de boteco, aleluias e conta sequer de que temos um corpo, mui-
repetições mistificantes de chavões mo- to menos entendemos seu funcionamento,
nótonos, até que todo mundo espume até porque a saúde convida à vida, a viver
pela boca”. No mesmo discurso, o autor a vida e não a elaborar traumas através da
se pergunta se poderá se tornar realidade arte. Só a doença, e qualquer precariedade,
“o desiderato de uma singeleza primitiva, qualquer falta, qualquer necessidade, qual-
pura de sangue, simples de coração e de quer vicissitude, em suma qualquer vazio,
juízo”, misturada como “carne moída” e físico ou metafísico, instiga à arte.
“toda obediente em seus olhos azuis”, se Em sua obra toda, Thomas Mann usou a
essa “completa simplicidade nacional” po- doença não para a morte, como na expres-
derá mesmo dar certo num “povo cheio são do filósofo dinamarquês Søren Kierke-
de cultura e maduro e experiente como o gaard, mas sim para a arte. O tratado tardio
alemão”. A resposta definitiva e descon- de Kierkegaard, Sygdommen til Døden (A
soladora à pergunta do autor viria já três doença para a morte, 1849), publicado sob
anos depois, em 1933. o pseudônimo de Anti-Climacus, se ocupa
90  •  Marcelo Backes

do problema existencial do desespero, sub- o si mesmo originalmente correto, que só


metendo-o à perspectiva do cristianismo. A se alcança no abandono a Deus com todas
expressão supostamente kierkegaardiana é as forças e fraquezas desse mesmo “si mes-
tirada de uma passagem de Os sofrimen- mo”. É fácil encontrar desesperados, dificí-
tos do jovem Werther, embora ali se refi- limo é encontrar os que superaram seu de-
ra apenas à situação do herói do título. Na sespero. O desespero é “morrer a morte”,
verdade, Werther discute com Alberto a pois isso significa “viver a morte”. Morrer
“Krankheit zum Tode des Geistes” (“doen- eternamente porque viver a morte apenas
ça para a morte do espírito”) e menciona o um instante é vivê-la eternamente. Quem
caso de uma moça abandonada pelo ama- desespera quer se destruir, e de modo ab-
do que se afunda em trevas profundas, sem soluto, mas é justamente isso que o deses-
esperança, e acaba se atirando num preci- perado não poderá jamais alcançar, pois so-
pício, antecipando assim o próprio Werther, mos um “si mesmo” infinito, que não tem
que se suicidará pela impossibilidade de controle na determinação nem sequer de
consumar outro amor – pelo menos de con- sua constituição, nem inclusive de seu fim.
sumá-lo na vida, para que Goethe o consu- Ele não pode “não existir”, e acabar com a
ma na arte. Se Werther morre, aliás, Goe- vida física não é nem de longe se destruir de
the, que viveu paixão semelhante a de seu modo absoluto. O maior desespero é, pois,
herói, permanece vivo, mais ou menos do nem sequer poder morrer. Quando a vida
mesmo modo que Gustav von Aschenbach não permite esperança, e a última esperan-
de Morte em Veneza, também vítima de ça é morrer, a impossibilidade de morrer de
um amor interditado, morre para que Tho- modo absoluto é a desesperança derradei-
mas Mann permaneça vivo. E assim Thomas ra. Thomas Mann, e o próprio Goethe, so-
Mann, mais do que qualquer outro escritor, lucionam a questão, não como Kierkegaard
usou extensivamente a doença, a falta, a quer, com a volta a Deus, mas sim através
precariedade, para arrancar dela sua arte, da elaboração artística.
continuando uma vida que obviamente vá- Se Goethe foi, aliás, o maior clássico ale-
rias vezes percebia desprovida de sentido. mão de todos os tempos, Thomas Mann foi
Para Kierkegaard, o desespero é como seu descendente mais legítimo e um escritor
uma gripe que não cura nem mata, na opo- que, mais do que qualquer outro, consagrou
sição existente – e por ele dissecada – en- sua vida à arte. Tanto que a vida de Mann
tre as doenças do corpo finito e as doenças foi sua obra artística, elaborada inclusive no
do espírito infinito. E é só por isso que a devir dos personagens centrais de obras de-
doença não finda com a morte; ela só pode finitivas e abrangentes como Doutor Fausto
acabar, e ser aniquilada, ao ser vivida até o e inclusive de obras menores e ainda geniais
fim. Quanto maior a consciência, maior é o como Tonio Kröger. Para Thomas Mann, na
desespero; mas também maior é a possibi- vida (no salão, diria Marcel Proust) não exis-
lidade da cura, ao final. A cura vem, para o te espírito genuíno. Ambos, vida (ou vitali-
filósofo dinamarquês, quando se consegue dade) e espírito, vivem em conflito e, para
abandonar o “si mesmo” (Selbst) vaidoso e viver a arte até o fim, é preciso renunciar à
imaginário (eingebildet), para triunfar com vida, vivendo suas potencialidades apenas
A doen ç a pa r a a a rt e , n ã o pa r a a m o rt e , n a o b r a d e T h o m as M a n n   •  91

na solidão inclusive enferma da arte, na Já “possuído” pelo demônio depois do


criação da fantasia, o que fica claro so- pacto que talvez não passe de uma qui-
bretudo em obras como Morte e Veneza e mera de seu cérebro atingido pela sífilis,
A montanha mágica. Leverkühn alterna momentos de intensa
produção com períodos de exaustão e im-
produtividade total. Recomeçam suas en-
O Fausto no centro
xaquecas hereditárias; e Leverkühn anula
Doutor Fausto é o romance mais sutil- sua vida social. Emagrece e empalidece e
mente autobiográfico de Thomas Mann, a sua cabeça começa a pender cada vez mais
obra na qual se biparte em dois persona- para o lado direito, assim como a do Cristo
gens, os dois lados de uma mesma moe- crucificado, e talvez para afastar o cérebro
da, o crítico biógrafo Zeitblom e o artista resoluto de seu coração atormentado. Ao
biografado Leverkühn. Tanto que o próprio final, o compositor assume uma expressão
Mann em vários momentos vê em Serenus de ecce homo. Sua barba grisalha, que lhe
Zeitblom uma paródia de si mesmo, regis- alonga ainda mais o rosto, e suas sobran-
trando em Adrian Leverkühn, a quem cha- celhas espessas o tornam parecido com as
ma de lebenskühn (audaz na vida), uma figuras de El Greco.
“determinação vital para a arte” na qual Para Thomas Mann, a música sempre
“há mais de mim do que se deveria – do foi uma emissária essencial da decadência,
que se deve acreditar”, conforme carta de o maior tema de suas obras. É a música que
21 de outubro de 1948 a Paul Amann. Ali- derriba o último dos Buddenbrook, o frá-
ás, quando o personagem Leverkühn diz, gil e doentio Hanno. Em Tristão, o aziago
a certa altura do romance: “Onde nós es- destino da senhora Kloeterjahn cumpre-se
tamos, é Kaisersachern” não faz mais do sob os acordes de Wagner. E, no clima uni-
que arremedar o autor Mann, que diante versalmente enfermo de A montanha má-
dos jornalistas americanos que lhe pergun- gica, Settembrini já questionava a respon-
tavam em que medida não estava sofrendo sabilidade da música e assegurava que ela
por ter de deixar para trás a sua pátria, ao tinha intenções impuras. Mann, aliás, fez
fugir do nazismo, se limitou a responder: várias reflexões no sentido de que a relação
“Onde eu estou é a Alemanha!” da Alemanha com o mundo foi sempre de
Doutor Fausto adentra livremente os ordem musical, manifestando inclusive seu
terrenos da arte, da religião, da política e da estranhamento pelo fato de o Fausto da
sociedade, debatendo o dilema do artista lenda medieval não ter sido artista e dizen-
moderno perante a arte esgotada, a busca do que um Fausto genuinamente alemão
incansável de novas formas de originalidade tinha de ser necessariamente músico.
que voltem a fazer da arte essência e não E em nenhuma obra Thomas Mann é
mera aparência, criação e não apenas cópia tão autoral, revela tão profundamente o
paródica. Narrativamente, Thomas Mann que pensa acerca da enfermidade e de-
traça um paralelo nítido entre a vida do fende seus verdadeiros princípios com tan-
compositor alemão Adrian Leverkühn, seu ta veemência quanto em Doutor Fausto.
Fausto, e a trajetória da Alemanha nazista. Mesmo no ensaísmo, um gênero autoral
92  •  Marcelo Backes

por excelência, e sobretudo quando fala de seu caráter mais autêntico na formalidade
outros autores, Mann é menos autêntico e de sua obra ensaística, mas distancia esse
sempre se mostra suavemente elogioso, se mesmo ensaísmo de sua arte, o lugar em
limitando muitas vezes a esboçar retratos e que o autor verdadeiramente se esbaldava e
fazer discursos fúnebres, responder a per- ultrapassava as fronteiras de uma dignidade
guntas de jornais e homenagear aniversa- autoimposta artificialmente, conforme acon-
riantes. Ele afinal de contas é o autor que tece em Morte em Veneza e mais do que
se limita a registrar em seus Diários, no dia nunca em Doutor Fausto. Em sua obra-pri-
6 de agosto de 1945: “Em Westwood para ma, Mann cristaliza definitivamente – na li-
comprar sapatos brancos e camisas colori- berdade da arte – sua visão filosófica da vida
das. Primeiro ataque com bombas ao Japão, e da própria arte, sua crítica à época e ao
no qual se mostram os efeitos do átomo espírito da época, fazendo de Doutor Fausto
fissionado.” A indiferença parece extrema uma espécie de escoadouro de seu pensa-
e não deixa de lembrar a de outro autor, mento, livre porque artístico, e condensan-
muito ocupado consigo mesmo em outra do também suas especulações filosóficas e
guerra, que iniciava 30 anos antes; em 2 de políticas, mostrando mais do que nunca que
agosto de 1914, Franz Kafka anotaria em sua vida foi sua obra artística, embora Tonio
seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Kröger já se queixasse muitas vezes de sentir
Rússia. À tarde, escola de natação.” E, no um cansaço mortal por ter de representar o
entanto, como ambos os autores entende- humano sem tomar parte nele.
ram o funcionamento do mundo... É o Fausto artista de Thomas Mann que
Já em Os Buddenbrook, Mann analisara carrega seu legado não apenas artístico,
a decadência da Alemanha, para levá-la a mas seu legado inclusive vital e a elaboração
toda a Europa em A montanha mágica. E, derradeira de sua enfermidade. Foram pou-
se o autor se mostra cativado pela psicologia cos os escritores que “viveram” tão pouco
“doente” de Dostoiévski, que aliás também quanto Thomas Mann, e contaram tanto,
já deixara Nietzsche tão seduzido, é porque descreveram quase tudo, inclusive no âmbi-
identifica um parentesco direto entre si e o to da pouco vivida e intensamente narrada
autor russo: a proximidade entre enfermi- sexualidade, que é onde a vida encontra a
dade e genialidade, aliás também abordada vida em sua face talvez mais vívida e ver-
por Nietzsche. Não é por acaso que tanto dadeira. Se outros vitalizaram sua obra na
o filósofo quanto o escritor alemão se ocu- busca de identidade entre o escrito e o vivi-
pam tanto da obra de Wagner, essa tentati- do, Thomas Mann parece ter estetizado sua
va decadente de superar a decadência. vida na mesma direção, deixando de viver a
Thomas Mann sempre flertou com a de- vida na vida para vivê-la de verdade apenas
cadência, mas viveu uma vida cheia de digni- na arte, na literatura de um Doutor Fausto,
dade e circunspecção, que se manifesta em seu único exílio, sua verdadeira pátria.
Genolino Amado e seus
leitores‑ouvintes

Jeová Silva Santana


Professor titular na Universidade Estadual de Alagoas e na rede pública de ensino em Aracaju, SE

A
inda são muitas as vicissitudes en- Machado de Assis na Biblioteca Nacional do
frentadas pelos que se arvoram a Rio de Janeiro, quando colhia material para
ser pesquisador neste país. Essa sua dissertação de mestrado.
empreitada ainda é muito árida, principal- Os dados do acaso fazem isso uma vez
mente nas cercanias das universidades.1 em um milhão. Mas a possibilidade de es-
Empreender esforços às custas de renúncias tudar autores, textos e ideias fora de nos-
e sacrifícios pessoais, sustentado por bolsas so lugar por causa do lavor do tempo, nos
exíguas, só mesmo, usando uma expressão permite ver com olhos renovados os moldes
bem nossa, com muito “sangue no olho”. que forjaram os nichos da História. Tais im-
Mas já que estamos no fogo, acendamos as pressões me vieram à mente no dia em que
maravalhas que nos cabem para iluminar as pude ter acesso à correspondência do jor-
pequenas, mas significativas recompensas. nalista, cronista e ensaísta Genolino Ama-
É evidente que todos os que adentram do (Itaporanga – SE, 1902 – Rio de Janeiro,
no “paraíso dos ácaros” – como ainda são 1989) sobre o qual dediquei dois anos de
conhecidos a maioria dos arquivos brasilei- minha vida para elaborar uma dissertação
ros – esperam viver a experiência de Daniela de mestrado para o Instituto de Estudos da
Callipo, professora da Unesp – Universidade
Linguagem da Unicamp.2
Estadual Paulista (campus de Assis) – que,
Embora lamentasse não ter tido acesso
em 1998, encontrou uma crônica inédita de
àquela documentação na fase em que fazia
1 Na primeira versão deste artigo, o discurso dominan- a pesquisa para a construção do texto aca-
te era a valoração de resultados e estatísticas, política
movida por Paulo Renato de Souza, então ministro da dêmico, foi com entusiasmo de principiante
Educação. Hoje a situação continua tensa. Devido à
que me lancei aos manuscritos que, por al-
crise institucional vivida pelo país há um ano, um dos
alvos de ação de cerceamento e restrições têm sido jus- gumas horas, abriram-se à minha frente nos
tamente as universidades, visto que, em situações dessa
ordem, não são aceitas ações contrárias a ela, feitas sob 2 A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino

o signo da resistência diante de novas formas de obs- Amado, sob a orientação da professora doutora Orna
curantismo. Messer levin, defendida em 20 de outubro de 2000.
94  •  Jeová Silva Santana

arquivos da paisagística Fundação Casa de quem espera a mulher gostosa e amada que
Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. volta de uma longa viagem (22/8/1940).
A carta é o instrumento com o qual se
O empenho de Amado transita por as-
chega mais perto de um autor. A imagem
suntos técnicos, tais como a revisão “em
deste, somente através de textos publica-
questões de fato, informação, gramática,
dos, será sempre desfocada. Ter acesso à
pontuação”; a qualidade do material gráfi-
sua correspondência, mais que satisfazer o
co, “pois será difícil arranjar papel melhor,
espírito de voyeur que há em nós, é encon-
infelizmente. E isso se explica pela guerra”;
trar os laivos psicológicos que ajudam a re-
e até pela comparação de taxas de publi-
montar as iluminuras entre ele e seu tempo.
cação entre o Brasil e o país onde o irmão
Ver, por exemplo, como Genolino Ama-
estava: “o livro impresso aí, não sendo em
do atuava nos bastidores para promover o
português, paga realmente, como disse na
romance Os interesses da companhia, de
outra carta, o imposto de $570 (quinhentos
Gilberto Amado (1942), seu irmão mais fa-
e setenta réis).” Além disso, há a preocu-
moso, é descobrir uma personalidade que,
pação em se buscar vozes que colocassem
nem de longe, faz lembrar o “cronista das
o romance na dimensão que supunha, pois
mudanças de mentalidade”3 (MERQUIOR,
todo seu trabalho “é e será para que se fale
1983, p. 184). O que ali se revela é um ho-
do livro, para que se faça debate em torno
mem atado às exigências da esfera familiar,
dele, e não coro declamatório... o debate
ardendo na fogueira das vaidades, lutando
é que dá interesse, é que situa o livro, é o
de forma renhida para fazer com que nin-
que fica.”
guém ficasse indiferente ao livro que se en-
Contudo, para atingir este objetivo,
contrava no prelo:
Amado vê como inimigo todo aquele que
Eu sei que o livro será enorme e o espero
se tornar indiferente a seu apelo: “O Gra-
com o coração aceso, mas tranquilo. Vou vi-
ciliano, preguiçoso, tímido, achando o livro
ver esses meses ou essas semanas que faltam
para recebê-lo com o mesmo anseio feliz de grande demais para ele, ainda não escreveu,
3 É importante lembrar duas outras atividades exercidas
mas o José Olympio prometeu arrancar-lhe
pelo autor, tais como tradutor e dramaturgo. Nesta, ele o artigo, que será naturalmente belo, pois é
escreveu a comédia Avatar, editada pela Sociedade Bra- o mais entusiasta e um dos agudos comen-
sileira de Autores Teatrais em 1948. Neste mesmo ano,
foi premiado com a medalha de ouro da Associação de tadores.”
Críticos Teatrais por Dona do mundo. Como tradutor,
destacam-se A cidadela (The citadel) , de A. J. Cronin;
Tais relatos nos fornecem uma visão di-
A vida errante de Jack London (Sailor on Horseback), de ferente do autor que, no apagar das luzes
Irving Stone; Zadig (Zadig), de Voltaire, A outra comé-
dia, de Somerset Maugham (teatro); História da minha da belle époque carioca, fez com que as
vida (My autobiography), de Charles Chaplin; Chuva características da crônica e do ensaio jorna-
(Rain), Somerset Maugham (Teatro); Anna Christie, de
Eugene O´Neill, (teatro) e Medéia, de Euripedes, na lístico se fundissem para falar sobre temas
adaptação de Peter Jeffers. (Teatro). Em relação ao livro caros à realidade brasileira, tais como o sen-
de A. J. Cronin, Genolino Amado assim se expressou
em uma das cartas (s/d) a Gilberto Amado: “A cidadela timentalismo do cinema, a popularidade do
abriu caminho e marcou uma época nova. Venderam-se
futebol, os desmandos administrativos e a
em poucos meses quarenta mil exemplares, a dezoito
mil réis” (grifo do original). natureza do Rio, a presença do pobre-diabo
Genolino Amado e s e u s l e i to r e s ‑ o u v i n t es   •  95

na literatura, o fastio da tradição do roman- corrigir uma informação dada por Amado
ce regional etc. em uma de suas crônicas diárias:
Embora tenha sido mínima nossa in- O preclaro professor equivoca-se quando
cursão subjetiva, pois só tivemos acesso a diz que Gravatá do Bezerro é uma pequena
vinte e seis cartas da correspondência ativa, vila sertaneja de Pernambuco. Não senhor.
Gravatá de Bezerros (não de Bezerro) é cida-
escritas entre 1940 e 1968, fomos recom-
de. É uma bela cidade. Fica a menos de três
pensados ao encontrar algumas mensagens
horas de trem de Recife, e é cortada quase
de leitores e ouvintes de Genolino Amado.
pelo meio pela estrada de ferro. A estação
Um pequeno, mas significativo registro de está localizada quase no centro da cidade.
uma relação estabelecida em mais de vinte
anos como autor de textos para jornais e rá- Esta correção, porém, não deve ser vista
dios paulistas e cariocas. O prestígio que ele como preciosismo, pois o leitor reconhecia
alcançou nessa atividade pode ser medido, como “em alto conceito é tido o magnífico
por exemplo, nos quinze anos do programa escritor que risca de seu vocabulário as pa-
“Crônicas da Cidade Maravilhosa”,4 que lavras difíceis e imita Coelho Neto”. Uma
era apresentado pelo locutor César Ladeira comparação que não deixa de ser curiosa,
na rádio Mayrink Veiga. Além deste, ainda já que estamos diante “de um homem que
produziu “Biblioteca do Ar”5 e “Crônica da sabe escrever” (PRADO, 2001, p. 183). Mais
Cidade”. ainda se levarmos em conta a posição que
Dois aspectos nos chamaram a atenção. Coelho Neto ocupa em nosso imaginário
O primeiro foi perceber quantos leitores- com a sua prosa fundamentada no fato
-ouvintes escreviam bem, não do só do de se considerar “o último dos helenos”,
ponto de vista da caligrafia, mas também além de ter sido alvo da pena impiedosa
na exposição do assunto. O segundo, quan- de Lima Barreto que o retrata na pele do
to ao grau de cumplicidade existente entre personagem Veiga Filho, em Recordações
o cronista e seu público. Este vê no homem do escrivão Isaías Caminha, como exem-
que ama, critica e elogia a cidade um amigo plo do artista da belle époque brasileira
para quem pode estender os elos do jeito que tem o perfil “vaidoso, preciosista e
carioca de ser. bajulador.”(ZILBERMAN, 2001, p. 19). Uma
Os poucos exemplos aqui alinhavados das características básicas da crônica é pos-
podem dimensionar melhor essa relação. O
suir um viés de utilidade pública em sua
primeiro deles nos é dado por Paulino da
mensagem, o que a transforma em uma
Costa, morador de Bauru que, em carta
espécie de porta-voz dos que transitam no
datada de 4/7/1952, toma a liberdade de
anonimato da cidade. Não é outra a impres-
4 O compositor André Filho compôs a marcha “Cidade
são que nos trazem estas palavras da leitora
Maravilhosa”, em 1935, para a abertura deste progra-
ma (COELHO, 2016, p. 166). Ângela, em carta de 4/11/1952: “Senhor
5 “A Biblioteca do Ar não tinha como objetivo principal
Genolino Amado. Sou uma dessas tantas
o estudo aprofundado de determinado gênero literário,
mas sua divulgação. A proposta do programa consistia moças que o senhor fala em suas crônicas.
na apresentação das literaturas nacional e estrangeira,
Pobre, sim, mas, porém (sic) de espírito ele-
por meio da exposição de pequenos trechos de diferen-
tes obras (COELHO, 2016, p. 168). vado (desculpe a pretensão).”
96  •  Jeová Silva Santana

Muitas vezes o cronista extrapolava o Minhas amigas não compreendem por


mero comentário dos fait divers para se tor- que exijo que às 13 hs (sic) esteja livre e em
nar cúmplice e “resolvedor” de problemas casa. Se lhes dissesse que era apenas para ou-
vir um programa de cinco minutos rir-se-iam
pessoais, como atesta a carta de Odália de
de mim, mas que não compreenderiam quão
Queirós Cunha (s/d) que pede a colabora- interessantes são estes cincos minutos. (Rio,
ção do autor para diminuir os estragos de 12/12/1952)
um furto do qual fora vítima:
Desejaria que o prezado cronista da Cidade A relação de intimidade e a perspecti-
Maravilhosa fizesse uma crônica, um apelo ao va de que o cronista fosse um prestador de
larápio para devolver os documentos, cujo en- serviço ficam mais explícitas na mensagem
dereço e telefone se encontram nos mesmos. enviada no dia 27/1/1953. Nela, um funcio-
PS: Caso o assunto interesse, peço ao nário da Marinha sugere, em nome dos co-
prezado amigo omitir meu nome. O larápio legas, um “tema” para o escritor que fez da
foi felicíssimo, pois a minha carteira continha crônica um “exercício das ideias” (BROCA,
mais de CR$ 500, ABI, Banco de Sangue, car- 1992, p. 127):
tões de visita, meus e de meu marido, vários Quem lhe escreve é um simples servidor do
retratos, etc. Q.G. (Ministério da Guerra) em nome dos de-
mais servidores civis. Não deixamos de apreciar
O espírito de irreverência e a verve ca-
as coisas belas, por isso tomei a iniciativa junto
rioca, mesmo em uma situação adversa, aos meus colegas para que nos atenda no se-
podem ser medidos no efeito do uso do guinte pedido: fazer uma Crônica da Cidade
superlativo “felicíssimo”, prova inconteste para uma funcionária desse Q.G. Bonita, ele-
de que o cronista escrevia para um público gante e atraente e de uma personalidade única.
Entra às 11,30 h. com seus passinhos apres-
bastante afinado com as mazelas do coti-
sados, com seu cordial cumprimento a todos,
diano, mas capaz de usar o humor como
não olha para ninguém porque sabe que é de
forma de vencê-las. fechar o Q.G sem ser dia feriado. Com os seus
Muitas vezes, escrevia-se somente para cabelos castanho-claros muito curtos para trás,
um agradecimento singelo, como se lê no com os seus sapatinhos Kalu e caras de gato nas
texto de Margarida que, em 7/1/1953, diz: orelhas, vai para sua seção onde sai mais tarde
para voltar no dia seguinte, mais cheia e bela.
“Ouvi a ‘Crônica da Cidade’ de hoje, e aqui
Chamaram-na e chamam-na rainha. Perguntei
estou para agradecer-lhe a referência que
o porquê, então me disseram porque tinha cari-
fez ao meu Piauí.” Entranhada no dia a dia nha de boneca e seu nome é Rosa.
da cidade, a crônica radiofônica, da qual Aí está o nosso pedido. Desde já lhe agra-
Genolino Amado é considerado um dos decemos, e pedimos que faça a sua crônica
pioneiros, tinha um prestígio que diminuiria a este respeito numa quinta ou num sábado.
Felicidade, saúde e abraços dos servidores
com a chegada de formas mais sedutoras
deste Q.G.
de informação como as que passaram a vi-
gorar na televisão. O depoimento da leitora O tempo era curto, a vida precisava ser
Laura revela a importância do rádio como tocada, mas deixei o Rio com o desejo de
um meio eficaz para a expansão da palavra voltar, pois outro projeto ficou no meio do
escrita: caminho: ouvir as crônicas que Genolino
Genolino Amado e s e u s l e i to r e s ‑ o u v i n t es   •  97

Amado escreveu para o rádio. Elas, contra- lembrando as palavras de Herman Lima
riando a fina ironia de Merquior (1983, p. (1942), “Pode-se dizer que nunca os mor-
182) não repousam num “museu imaginá- tos se vão tão depressa, como no setor das
rio do som”, mas no Museu da Imagem e letras nacionais”.
do Som, do Rio de Janeiro, segundo infor-
mações obtidas junto a uma editora carioca. Referências
Essa empreitada deveria ter sido concre- BROCA, Brito. Horas de leitura: 1.a e 2.a Séries (coordena-
ção Alexandre Eulálio), Campinas, SP: Editora da UNI-
tizada, 2002, sob os auspícios da comemo- CAM, 1992.
COELHO, Patrícia. Educadores do rádio: programas para
ração do centenário do autor de Um meni- ouvir e aprender (1935-1950). Rio de Janeiro: PUC-
no sergipano: memórias (1977). Não deu. -Rio; Mauad, 2016.
LIMA, Herman. Revista Leitura, ano IV, n.o 42, Rio de Janei-
Felizmente, ficou o consolo de a pesquisa ro, abril de 1942.
acadêmica ter virado livro por meio do pro- PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do teatro brasilei-
ro moderno – crítica cultural de 1947-1955. São Paulo:
grama de edições da Universidade Federal Editora Perspectiva, 2001.
MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Rio de
de Sergipe (2014). Afinal, de silêncio basta Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
o que cai sobre os que usam a efemerida- SANTANA, Jeová Silva. A crítica cultural no ensaio e na crô-
nica de Genolino Amado. São Cristóvão: Editora UFS;
de da crônica e do ensaio jornalístico como Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2014.
forma de registrar seu tempo e marcar ZILBERMAN, Regina. “Imprensa e literatura no Brasil”. In:
Jornalismo cultural cinco debates. Florianópolis: FFC
sua passagem pelo mundo dos vivos, pois EDIÇÕES, 2001, p. 19.
As ambivalências da tradição na
poesia de Antonio Carlos Secchin

Emmanuel Santiago
Poeta, crítico literário e tradutor. Doutor em Literatura Brasileira pela USP

D
esdizer e antes,1 de Antonio Carlos institucionais de legitimação, esses poetas
Secchin, foi um dos mais relevantes imprimiam artesanalmente seus livros e os
lançamentos de poesia brasileira do distribuíam pessoalmente, ficando também
ano passado. O volume, que contém uma conhecidos como “geração mimeógrafo”.
série de poemas inéditos escritos de 2003 a Tal forma de circulação da poesia, cen-
2017 (compondo o livro Desdizer) e reúne trada no autor, vinculava-se à sociabilidade
o restante da obra poética do autor (o “an- de um público em sua maior parte jovem
tes” do título), representa uma oportunida- e ligado ao meio universitário, num con-
de de passar em vista a trajetória de um de texto em que a contracultura, em seu viés
um poeta que, a seu modo, ilustra o destino comportamental – o chamado “desbunde”
de toda uma geração. –, tornara-se uma alternativa à militância
Secchin debutou na literatura no co- política (sufocada pela perseguição do Es-
tado) como atitude contrária ao ambiente
meço da década de 1970, no período de
repressivo instaurado no regime militar. As-
emergência da chamada “poesia margi-
sim, entende-se o espírito irreverente e algo
nal”. Junto a outros colegas de geração,
anárquico que insuflava a poesia da época,
integrou a célebre antologia 26 poetas hoje
o que, para Heloisa Buarque de Holanda,
(1976)2, organizada por Heloisa Buarque de
fazia lembrar o modernismo de 1922.
Holanda. Às margens das reputações esta-
No geral, as características da poesia
belecidas e ao largo das experimentações
desses autores eram a coloquialidade e
concretistas, a organizadora captou o surgi-
o prosaísmo, a captura de momentos do
mento de poetas que exerciam uma postura cotidiano e da vida urbana, o desejo de
anticonvencional na cena literária brasileira. representar a experiência subjetiva de ma-
Excluídos do mercado editorial e dos canais neira imediata (isto é, fugindo aos lugares-
1 SECCHIN, Antonio Carlos. Desdizer e antes. Rio de -comuns da tradição), o humor, além do
Janeiro: Topbooks, 2017.
2 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje (an- diálogo com meios de comunicação de
tologia). 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. massa, como o cinema, a música pop e o
100  •  Emmanuel Santiago

jornalismo. É o caso de “Aviso” (em Ária Agora é hora de ter mais seriedade,
de estação, 1973): para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
Desfiz noivado mas não se cansa de acenar um não eterno.
vendo sem uso Falar de amor, oh meu pastor, é que que eu
almofadas soltas queria,
jogo porém os fados já perseguem teu poeta,
mesinha mármore rosa deixando apenas a promessa da poesia,
cama sofá arquinha
matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus flecheiro me lançasse a sua seta,
No rodapé, o autor informa: “(extraído eu tinha a chave para trancar este soneto.
de anúncio do Jornal do Brasil, 5/10/69)”.
O procedimento utilizado lembra o do fa- Trata-se de um soneto metalinguístico
moso poema de Manuel Bandeira, “Poema e paródico, no qual se percebem algumas
tirado de uma notícia de jornal”, porém referências intertextuais: no terceiro verso,
radicalizado. O texto é de natureza para- temos uma citação do soneto “A um poe-
tática, construído pela justaposição de pa- ta”, de Olavo Bilac; já no primeiro terceto,
lavras furtadas a um classificado, ao modo o vocativo “meu pastor” sugere o universo
de uma colagem dadaísta ou cubista. Não idílico da poesia árcade. Além disso, “fa-
há pontuação e a sintaxe está restrita aos dos” e “deus flecheiro” remetem ao re-
elementos mínimos. Também não há de- pertório de lugares-comuns classicistas. No
senvolvimento narrativo, o que atenua o entanto, tais referências, ao serem emula-
páthos do evento narrado (mais perceptível das, aparecem sob negação: nem a ginás-
no poema de Bandeira, a despeito de sua tica parnasiana garante a necessidade do
objetividade). poema, nem o poeta, atormentado pelas
Outro aspecto da poesia surgida no intempéries da existência, é capaz de falar
começo dos anos 1970 é a postura icono- de amor (o mais previsível tema do gênero
clasta diante da tradição literária, caracterís- lírico) da maneira como tal sentimento cos-
tica de uma geração que reclamava maior tuma ser tratado na tradição, o que torna o
liberdade individual contra as interdições de “Soneto das luzes” a paródia de um soneto
uma sociedade conservadora, resgatando a convencional.
irreverência do modernismo de 1922. Den- Quanto à metalinguagem, percebemo-
tre os poemas de Secchin coligidos em 26 -la no movimento autorreferente do texto
poetas hoje, vejamos “Soneto das luzes”, (“este quarteto”, “este soneto”), que evi-
incorporado a Desdizer e antes na seção dencia os elementos da forma na qual foi
escrito, como, no segundo verso, a alusão
“Dispersos”:
às “doze sílabas” e, no último, à chave-de-
Uma palavra, outra palavra, e vai um verso, -ouro. Interessante, também, é o período
eis doze sílabas dizendo coisa alguma. sintático localizado do nono ao décimo
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço segundo verso, que, referindo-se a um
que este quarteto seja inútil como a espuma. conteúdo “que não coube num terceto”,
As ambival ê nci as da t r a d i ç ã o n a p o es i a d e A n to n i o C a r l os S e cc h i n   •  101

espraia-se de uma estrofe a outra, cons- poesia de Secchin, embora imbuída de valo-
tituindo um exemplo de isomorfia. Esses res vanguardistas, apresentava uma postura
expedientes revelam um elevado grau de ambígua em relação à tradição. Em primei-
consciência compositiva e de distanciamen- ro lugar, há a filiação a autores-chave do
to crítico (manifesto numa perspectiva irô- Modernismo em língua portuguesa, como
nica), características que acompanhariam o nos poemas “A João Cabral” e “A Fernan-
autor ao longo de toda sua obra. do Pessoa” (para não falar das ressonâncias
Ainda em “Dispersos”, encontra-se de Drummond e Murilo Mendes), demons-
outro soneto, “Linguagens”, que também trando a sedimentação de uma tradição
assume uma atitude irreverente diante da modernista (a incorporação das conquistas
tradição. Nele, há a listagem de figuras de advindas da vanguarda ao cânone).
estilo em versos que parodiam exemplos Em segundo lugar, como aponta Heloi-
clássicos delas em nossa literatura. Ao pé sa Buarque de Holanda em texto à segun-
da página, o autor esclarece que o poema da edição de sua antologia (1998), uma
foi escrito a partir das figuras de lingua- das contradições da poesia de 1970 era
gem apresentadas em manuais escolares. o repúdio à tradição literária combinado
De igual maneira, as diversas referências à obsessão em evocá-la.3 Secchin, contu-
intertextuais trazidas compõem o currículo do, vai além: no livro de 1973, temos um
regular das aulas de Literatura. O poema poema como “Cantiga”, que retoma, não
expressa revolta contra o cânone escolar – como paródia, mas como pastiche, as can-
denunciando uma introdução à literatura tigas de amor do trovadorismo português;
que se dá basicamente por meio da leitura em “A ilha”, a disposição dos versos re-
dos clássicos – e o desejo de se derrubar as mete à terza rima d’A divina comédia, de
barreiras que separam arte literária e vida Dante, embora sem a regularidade métrica
contemporânea (um projeto de origem van- de seu modelo. Desde o livro de estreia,
guardista). No soneto em questão, manifes- estabeleceu-se, na poesia de Secchin, a
ta-se o espírito libertário e anti-institucional dinâmica entre uma atitude vanguardista
que se apossou da juventude progressista (ruptura) e o interesse pelo cânone (tradi-
das décadas de 1960 e 1970. ção), ainda visível nos livros mais recentes
Além da retomada de elementos do Mo- do autor, porém com ênfase diversa, como
dernismo de 1922 e da visada crítico-irôni- se verá.
ca sobre a história da literatura brasileira, No livro seguinte, Elementos (1983),
outro aspecto que liga a primeira fase da temos a suspensão momentânea dessa
poesia de Antonio Carlos Secchin ao ciclo dinâmica. Mais especificamente, há uma
vanguardista no Brasil é o flerte com o con- neutralização do polo tradicionalista. Divi-
cretismo em poemas como “Itinerário de dido em quatro partes, cada uma delas de-
Maria” e “Poema” (ambos de Ária de esta- dicada a um dos quatro elementos, o livro
ção). Um dos fundamentos das vanguardas, consiste num exercício metalinguístico por
como se sabe, é a ruptura com o passado, meio do qual se procura atingir o cerne da
propondo uma arte mais adequada à sen-
sibilidade contemporânea. Àquela altura, a 3 HOLLANDA, op. cit., 257.
102  •  Emmanuel Santiago

linguagem poética. Assim como, na filoso- e espartilhos de donzela” – aparece como


fia pré-socrática, os elementos eram consi- síntese da frivolidade mundana do escritor
derados os componentes básicos da maté- beletrista, caracterizado pelo bovarismo,
ria, no livro de Secchin, observa-se a busca isto é, a fuga da realidade social em dire-
por uma poesia “elementar”, mergulhan- ção a um mundo imaginário de prazeres e
do-se na linguagem a contrapelo de sua sofisticação. A mensagem é clara: o bonde
dimensão histórica. O desejo que norteia o do real esmaga as quimeras de uma poesia
conjunto de poemas é atingir uma palavra sem lastro na vida contemporânea. Os últi-
poética aquém de qualquer tradição e, por mos dois versos são:
isso mesmo, essencial. Outra diferença en-
contrada em Elementos é sua dicção mais Em torno do corpo,
propriamente poética, renunciando ao co- policiais e parnasianos se entreolham
assustados.
loquialismo que dava o tom da produção
anterior.
A princípio, soam anacrônicas as investi-
Em 1988, Secchin publicava Diga-se de
das contra a poesia de nossa Belle Époque.
passagem, pequeno volume composto de
Contudo, o parnasianismo de Oliveira e a
sete poemas. Nele, retornam a coloquiali-
cocoterie simbolista de Gama são tomados
dade e a dinâmica entre ruptura e tradição,
como alegorias de uma literatura acadêmi-
com ênfase na primeira. Predomina, mais
ca, sem contato com a vida real e, assim,
uma vez, o distanciamento irônico. É o caso
destituída de verdadeiro teor poético. No
do soneto “Sete anos de pastor”, que, re-
segundo poema, o nefelibata, aos olhos
tomando o famoso poema de Camões,
espantados de parnasianos e policiais, é
consiste numa versão bem menos sublime
atropelado por um veículo que representa a
e mais violenta dele. Vejamos, agora, “Re-
realidade ignorada, ressurgindo de manei-
morso”:
ra traumática. Constrói-se uma correspon-
dência entre o caráter normativo do acade-
A poesia está morta.
Discretamente, micismo e as forças repressivas do Estado
A. de Oliveira volta ao local do crime. – convenção e repressão se equivalem. No
contexto do fim do processo de abertu-
Os três versos – pela concisão, o pro- ra política, o estilo démodé da Belle Épo-
saísmo deliberado e o tom irreverente que recebe um novo significado e a poesia
– remetem ao poema-piada modernista. torna-se o front no qual as liberdades in-
Igualmente modernista é o ataque ao par- dividuais devem ser afirmadas, seja contra
nasianismo, encarnado na figura de Alberto o autoritarismo, seja contra as convenções
de Oliveira. No poema seguinte, “Notícia literárias.
do poeta”, relata-se, numa linguagem ob- Entre 1988 e 2002 (data de publicação
jetiva que imita a jornalística, a morte do de Todos os ventos), verifica-se um hiato
simbolista Marcelo Gama num acidente de na obra poética de Antonio Carlos Secchin,
bonde. O poeta nefelibata – que ia com a preenchido por uma farta produção crítica
cabeça nas nuvens, sonhando com “cheiros e teórica, cujos fragmentos foram coligidos
As ambival ê nci as da t r a d i ç ã o n a p o es i a d e A n to n i o C a r l os S e cc h i n   •  103

na seção “Aforismos”. No livro de 2002, mudança significativa. Transmite-se a ideia


ocorre uma inflexão na dinâmica ruptura/ de que a produção contemporânea conver-
tradição. Se, até então, predominava a ati- teu-se em academicismo, condenando tudo
tude vanguardista, expressa por uma visada que não se enquadra em seus pressupostos,
irônica sobre o cânone, a partir desse pon- inclusive a versificação tradicional e o uso
to passa a haver maior reconhecimento da de formas fixas (aceitáveis, anteriormente,
tradição como instância mediadora do fazer apenas como paródia).
poético, formada por referências, regras e Todos os ventos estabelece um diálogo
hierarquias, embora estas, como assinala T. mais profícuo com a tradição. Dividido em
S. Eliot, não sejam rígidas, posto que, a cada quatro partes, na primeira delas (“Arte”), fi-
nova obra, o sistema de relações entre os guras de nossa literatura são evocadas, em
textos literários se reconfigura.4 Além dessa poemas que vão desde a sátira (no soneto
concepção mais dinâmica (e moderna) da “Trio”, mais uma vez, contra o parnasianis-
tradição, Secchin mantém o humor e um mo) até o pastiche sério (caso do soneto
alto grau de liberdade criativa, sem incorrer “Cisne”, dedicado a Cruz e Sousa), pas-
numa submissão reverente aos clássicos. O sando por homenagens que variam de tom
que se vê é uma tentativa de revigorar as e nível de humor. Não falta a iconoclastia
referências do passado, colocando-as em de raiz vanguardista, mas há também, da
fricção com a matéria do presente. parte do autor, uma tentativa de se inse-
Como exemplo dessa mudança de ênfa- rir na tradição de maneira mais orgânica,
se, tome-se o poema “Colóquio”, espécie incorporando estilemas, lugares-comuns
de atualização de “Os sapos”, de Manuel e procedimentos. A segunda parte, “Dez
Bandeira. Só que, em vez da sátira aos poe- sonetos da circunstância”, caracteriza-se
tas parnasianos, o que temos é uma crítica pelo emprego do soneto não mais na cha-
a correntes da poesia contemporânea que ve da paródia ou da emulação, e a forma
prescrevem o hermetismo, representadas fixa se torna suporte à elaboração do estilo
numa “Academia do Poeta Infeliz”: autoral, configurando um discurso que se
apropria de tópicas tradicionais, ainda que,
Severos juízes da lira alheia, muitas vezes, de maneira crítica. A tendên-
sabem falar vazio de boca cheia. cia se confirma no livro seguinte, Desdizer
(2017), que também conta com uma seção
Este não vale. A obra não fica.
de sonetos, “Dez sonetos desconcertados”,
faz soneto, e metrifica.
jogando com o coloquial e o prosaico, a fim
E esse aqui, o que pretende? de romper com a expectativa do sublime,
faz poesia, e o leitor entende. comum a tal forma poética e à maioria de
seus exemplares incorporados ao cânone.
O alvo das invectivas não é mais, como No livro de 2017, constata-se o emprego
ocorria nos outros livros, a poesia do pas- mais frequente da versificação tradicional,
sado, mas a do presente, o que é uma sem abrir mão da coloquialidade, do prosaís-
4 ELIOT, T. S. “Tradição e talento individual”. In: Ensaios. mo e do humor. Um bom exemplo é o poe-
Tradução Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989, pp. 39-40. ma “Disk-morte”, escrito em decassílabos
104  •  Emmanuel Santiago

dispostos em quartetos, simulando um re- Ressoa na minha gaveta


clame de serviços funerários. O verso livre um comício de versos reles.
continua presente e, num poema como “Vi- Em coro parecem dizer:
Não somos Cecília Meireles.
nicius revisitado”, vemos a irreverência de
timbre modernista voltar-se também contra O desavisado leitor
nossos clássicos recentes, porém não como não espere muito de mim.
sátira, e sim como homenagem bem-humo- O máximo, que mal consigo,
rada. Esse projeto de resgate da tradição, é chegar a Antonio Secchin.
mas sem incorrer numa atitude solene, pode Percebe-se, no poema, a plena cons-
ser sintetizada num dos quartetos de “Linha ciência das linhas de forças que constituem
de fundo”: nossa tradição literária recente e da difícil
tarefa, de todo poeta contemporâneo, de
Se pouco do que digo me redime,
inserir-se nela, incorporando e reelaboran-
cópia pirata de um desejo alheio,
do suas referências. O caráter irônico do
revelo a ti, leitor, o que eu anseio:
um abutre no cadáver do sublime. poema se constata na dubiedade do gesto
modéstia, pois, se é verdade que o eu lírico
Diante da impossibilidade de o eu lírico se coloca em posição inferior aos grandes
dizer algo original (o que denota conheci- nomes do modernismo em língua portu-
mento da tradição), ele se contentaria em guesa, o simples fato de colocar-se ao lado
rebaixar o caráter sublime da lírica ao plano deles, inscrevendo sua assinatura autoral,
do ordinário. O poema (um soneto inglês) com direito à rima e em estrofe em tudo si-
proclama a caducidade do estilo elevado métrica às dedicadas aos autores canônicos,
das poéticas classicistas, a despeito da re- indica um senso de pertencimento e fami-
tomada de seus temas e formas. É possível liaridade. Trata-se, na verdade, de um gesto
identificar um interessante expediente aqui: de inscrição no cânone, ainda que numa
o emprego da modéstia como artifício retó- compreensão mais dinâmica e instável do
rico, consistindo num correspondente irôni- que tal palavra significa. Contudo, não se
co-paródico da atitude de reverência diante deve interpretar isso como gesto autolauda-
das obras canônicas. É o que também se vê tório, mesmo porque o uso da ironia, neste
em “Na antessala”, poema que serve de caso, possui ambivalências.
abertura a Desdizer: Na verdade, o poema, assim como o
volume do qual faz parte (que consagra a
Espalhei dezoito heterônimos obra poética de Secchin), é antes um indício
em ruas do Rio e Lisboa. da institucionalização da poesia daqueles
Todos eles, se reunidos, escritores que, na década de 1970, posicio-
não valem um só de Pessoa. navam-se às margens do campo literário.
O marginal integrou-se ao canônico e o in-
Trancafiei-me num mosteiro,
gresso de Antonio Carlos Secchin na Aca-
esperando de Deus um dom.
O que Ele me deu foi pastiche demia Brasileira de Letras, em 2004, é um
da poesia de Drummond. entre outros momentos culminantes dessa
As ambival ê nci as da t r a d i ç ã o n a p o es i a d e A n to n i o C a r l os S e cc h i n   •  105

trajetória, que se confirma também pelo Bibliografia básica


interesse de grandes casas editoriais em pu- ELIOT, T. S. “Tradição e talento individual”. In: Ensaios. Tra-
blicar, em edições bem cuidadas e às vezes dução Ivan Junqueira. São Paulo: Art, 1989.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje (antolo-
com sucesso comercial, as obras completas gia). 6.a ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007.
SECCHIN, Antonio Carlos. Desdizer e antes. Rio de Janeiro:
dos poetas daquela geração. Talvez aí esteja Topbooks, 2017.
uma das motivações da mudança de ênfase
que procurei descrever na dinâmica entre
ruptura e tradição na poesia de Secchin.
O poeta Alberto da Costa e Silva

Glauber de Oliveira
Formado em Ciências Sociais e Filosofia (Bacharelado/Licenciatura) na UFPE

“Nas antigas lajes os passos dos meninos Em silêncio, vives a infância de teus olhos
gravados no passado remoto e, bem marcado, e, morto, és tão puro que te tornas menino.”
o trotar dos burricos que flores carregavam.”
Este poema “Elegia” deve ser integral-

C
mente citado. Poema magnânimo por versos
omeçamos este ensaio sobre a poe-
como estes: “...Porém não esquecer / a pro-
sia de Alberto da Costa e Silva com
messa de flores nas sementes dos frutos, / o
estes versos de “O Parque” que nos
rosto de teu pai na face do teu filho”. E estes
sugerem que este autor, parece, tem asso-
versos também: “as ondas que voltam sobre
ciação com Francis Jammes. Texto em terce-
tos de métrica mais ou menos livre. as mesmas praias, / noivas desconhecidas a
Fazendo poesia um pouco metafórica, cada novo encontro.” Poema feito em ale-
o poeta apresenta-nos a morte como em xandrinos.
“Flumen, Fluminis”. Poema em verso livre. Interessante notar os temas já presen-
“Aparição em Fortaleza”: poema me- tes no jovem Alberto da Costa e Silva. Nos
morialístico. Nova sugestão de aproximação seus “Poemas dos vinte anos”, a “Canção
com Francis Jammes pela lembrança dos às Moças Tísicas” é um exemplo de extrema
burricos. sensibilidade.

“Sofrer esta infância, esta morte, este início.


As cousas não param. Elas fluem, inquietas, De pé na varanda recordando
como velhos rios soluçantes. As flores
“ De pé na varanda recordando
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.
o menino a tosquiar o pelo do carneiro
Sazonar, eis o destino. Porém não esquecer
flautas de um azul sobre a terra dos telhados
a promessa de flores nas sementes dos frutos,
enquanto parto adeus! aceno do cavalo
o rosto de teu pai na face do teu filho,
as ondas que voltam sobre as mesmas praias, logo as lavadeiras cantam a branda espuma
noivas desconhecidas a cada novo encontro. e o focinho estremece do animal detido
As cousas fluem, não param. As folhas nascem, pelas rédeas na mão do menino no açude
as folhas tombam longe, em longínquos jardins. tranquilo é o sol e o sonho é invertido
108  •  Glauber de Oliveira

e se alguém nasceu por fugir do silêncio Presença poética de sua amada, Vera,
nem por isso as palmeiras se cansaram desde os vinte anos.
de sua sombra de cravo tocado pelos dedos Poeta de textos descritivos com forte pre-
e louça da manhã disposta sobre a mesa
sença de animais, de vegetais, da natureza, en-
adeus! que já desabam as folhas mamoeiros fim. Inevitável a lembrança de Francis Jammes.
se partem à beira d’água enquanto indago e Nos “Poemas dos trinta anos” volta-se a
escuto apresentar a descrição da natureza.
a minha voz o canto de um inferno vencido Belo poema “A Travessia do Rio Volta”.
pelo odor das mangas e o prostrado menino
Descritivo e metafórico ao mesmo tempo.
que soluça tombado sobre o magro joelho Outro grande poema é “Hoje: Gaiola
de um outro (velho) fácil é apear-se a cilha sem paisagem”. Devemos pedir desculpas
se aperta depressa e dóceis são os dias aos leitores, pois as referências as mais di-
que a palavra recria como flores de cacto
versas são muitas nos poemas de Alberto
mas vivê-los? vivê-los nem as bilhas da Costa e Silva. Que se enfatize a feitura
com sua clara frescura nos devolvem de uns versos nos “Poemas dos trinta anos”
esta alegria de sonhá-los altos que é quase uma prosa poética. Textos os
e não a areia pobre que nos deram
mais agradáveis, por sinal.
e se pelo natal devoramos castanhas Agradável presença da filosofia grega
de que inverno nascem que dias adormecem com “Fragmento de Heráclito” nos “Poe-
em sua polpa branca é a camisa que veste mas dos Quarenta Anos”.
o corpo solitário a beber o seu vinho Ótimo fazedor de cenas como em “A
espanco o animal o pranto suja o rosto Despedida da Morte”.
salto o tear das flores até à vista! meus Uso mais frequente dos versos livres
são os verões por viver e os campos de dores como no poema dedicado ao pai: “Prece de
o sol não se disfarça nos olhos dos coelhos.” 23 de Novembro”.
O jovem poeta Alberto da Costa e Silva Contínuo sonetista, que vai imarcescibili-
é um talento precoce. Isto está exemplifica- zando-se nos “Poemas dos cinquenta anos”.
do neste poema acima reproduzido. Como ajuda-nos às vezes os títulos dos
Primeira apresentação de sonetos já na textos. Encontrou-se a “Elegia de Lagos”.
década dos seus vinte anos. Decassílabos! A elegia é outra definitiva forma de texto
É uma sucessão incrível de versos incrí- feita por Alberto da Costa e Silva.
veis criados por Alberto da Costa e Silva. Poeta também filosófico.
Como estes de “Poema de Aniversário”: Ótimas referências de autores como
“mas os olhos e as mãos nada conquistam, Hölderlin, Camões, Ricardo Reis...
/ e enegrece na mesa a maçã limpa.” Quase ininterrupta presença da natureza
Poeta verdadeiro e culto desde tenra na poesia de Alberto da Costa e Silva. Isso é
idade. Usando vocábulos incomuns para ratificado nos “Poemas de cinquenta anos”
um jovem e com muita legitimidade. num texto como “Dezembro, em Bogotá”.
O p o e ta A l be rto da C o s ta e S i lva   •  109

Soneto o poeta Alberto da Costa e Silva, além de


tantas outras coisas com que se notabiliza,
E quando eu era um príncipe e andava entre
os rebanhos,
mais até do que de poeta (inegável destacar
e só havia a pressa do bonde e da guitarra, seu trabalho como diplomata, africanólogo,
eu ia para a escola montado num carneiro, historiador etc.) é um dos maiores poetas
o pássaro do sonho pousado no meu ombro. brasileiros vivos. Deve-se dar-lhe os parabéns
por trajetória tão auspiciosa.
E passavam por mim, a conduzir os jumentos,
aguadeiros descalços, franzinos, remelentos, P.S. (1): Um pós-escrito cabe a este ensaio,
e a dor que deles tinha, ensolarada no corpo, na verdade um ensaio com forma de diário,
eu a via queimar-se no fogão da cozinha,
já que foi feito de apontamentos. Quer-se
nas guelras dos pescados, na rouquidão espessa dizer que se trabalhou com uma coletânea
do grito das galinhas, no retesar da corda dos “Poemas Reunidos” do autor dissertado.
que prendia os cabritos, os asnos e os sonhins.
P.S. (2): Termine-se dizendo que o autor
Mas não a imaginava nesta adulta tristeza discutido, utiliza-se tanto da dicção confes-
e que vestiram de amor, como se não bastasse
sional como da dicção impessoal, presente
que a ave no meu ombro me bicasse a orelha.
a primeira fortemente em poetas como Ma-
Belissimo soneto! Digno de ser transcrito. nuel Bandeira e Ribeiro Couto e a segunda
Nos “Poemas dos Sessenta anos”, o poe- fortemente em poetas como Carlos Drum-
ta paulista dedica-se a louvar nomes que lhe mond de Andrade e João Cabral de Melo
são caros. Acredita-se que sejam familiares: Neto, ou seja, o autor tem as melhores quali-
filhos, a esposa... São reforçadas as formas dades, situando-o dentro da poesia brasileira
usadas no decorrer das dezenas dos anos e, até mesmo universalmente, ao tempo de
em que são organizados os “Poemas Reu- que é coevo. Nas inevitáveis limitações de um
nidos” e se chega a um remate arrebatador: texto, foi o que se tentou falar.
Breve análise de uma história
narrada por Jalāl al-Dīn Rūmī

Mario Werneck
Mario Guimarães Werneck Filho. Doutor em Ciência da Religião.
Professor PUC Minas e Instituto Santo Tomás de Aquino

O
presente artigo propõe uma análi- vertente mais racionalista. A contenda entre
se de um conto do poeta e místico os sábios leva Bahā’ al-Dīn a deixar Balkh.
da tradição Sufi Jalāl al-Dīn Rūmī, Este teria sido um dos motivos que fez com
que nasceu em Vakhsh, uma aldeia situada que a família Walad deixasse a região. Con-
nas cercanias Balkh (atual Afeganistão), em tudo o motivo mais forte foi a invasão dos
30 de setembro de 1207 (6 Rabīʿ aI-Awwal mongóis.
604) filho de Bahā’ al-Dīn Valad um emérito Após uma grande peregrinação passam
doutor da lei – que no mundo Muçulmano por diversas cidades, entre elas Nayshāpur –
significa aquele que é versado em teologia, onde provavelmente seu pai teria se encon-
filosofia e jurisprudência – mas também um trado com o emérito sufi ‘Aṭṭār e este o teria
místico e pregador detentor do título de presenteado com seu Asrār-Nāmeh (Livro dos
Sulṭān al-‘ulamā’ “Rei dos Sábios”. Nessa Segredos). ‘Aṭṭār será para Rūmī uma grande
época, toda a região fervilhava com diferen- influência, assim como Sanāʿī, ambos citados
tes culturas que se misturavam nas cidades
com frequência em seus escritos.
do Império Khwarazm.
Continuam a peregrinação até Damas-
O ambiente em que Rūmī foi criado
co, Aqshahr e Larende (atualmente Kara-
era pleno de espiritualidade, onde debates
man, pequena província da Turquia) – em
em torno de jurisprudência e teologia pro-
que a família permanece por sete anos e
duziam um terreno fértil de ideias. É num
onde Rūmī se casa com Gowhar Khātun –,
desses debates que se encontram Bahā’ al-
sua mãe Muʿmini Khatun falece e seu filho
Dīn Valad partidário das ideias sufis e Fakh
Sulṭān Walad nasce. Atingem finalmente a
al-Din Rāzi1 que era “cortesão e professor
Anatólia, onde em 626/1228 Bahā’ al-Dīn é
do rei Khwarazm-sha”2 e partidário de uma
acolhido pelo príncipe Seljúcida ‘Ala’ al-Dīn
1 Esta contenda seria por declarações antirracionalistas

de Bahā’ al-Dīn. Para uma visão detalhada de todo este


Kaykubad. Lá ensinou até 628/1231, ano
processo: Cf. LEWIS, Franklin D. Rumi Past and Present, de sua morte.
East and West. Oxford: Oneworld, 2001.
2 IQBAL, Afzal. The Life ande Work of Jalaluddin Rumi. Karachi: Oxford University Press, 1999, p. 53.
112  •  Mario Werneck

Lewis informa que até aproximadamen- singular contava aproximadamente 60 anos


te o ano de 1237 Rūmī3 completa e apri- e passara sua vida em peregrinação, sendo
mora seus estudos nas Madrasas de Alepo conhecido sob a alcunha de “paranda”, isto
e Damasco nas quais aprofunda seus apre- é, “o voador”, o seu nome Šams significa
mdizados na lei, na teologia, nos Hadiths, sol: Sol de Tabriz.
e no Corão. Afirma-se que ele talvez tenha Com Šams, Rūmī conhece a experiência
escutado conferências públicas de teósofos do Amor radicalmente suscitado por Deus às
e teóricos sufis como Ibn ʿArabī”,4 apesar criaturas, Amor irresistível, dilacerante arreba-
de jamais citar nominalmente o mestre de tador dos corações. Amor que em suas infini-
Múrcia como faz com Hallāj, Sanāʿī e ‘Aṭṭār. tas capacidades carreia o espírito das procelas
Após esta temporada, Rūmī retorna e da loucura, à calmaria sempiterna da proximi-
passa por períodos de exercícios ascéticos dade do encontro no abraço amoroso.
nos quais contempla os cadernos de seu Rūmī encontrou, em Šams, alguém que
pai e os comentários corânicos de Borhān além de versado nas ciências conhecidas pelos
al-Din um antigo discípulo Bahā’ al-Dīn, homens, possuía também o chamado conhe-
tornado então, seu mestre. Algum tempo cimento inspirado, baseado na contemplação
depois Rūmī, que ficou conhecido como dos mistérios do Amor Divino. Mawlānā, en-
Mawlānā (nosso mestre), assume as funções tão, passou a intensificar seus exercícios con-
de seu pai. templativos com o mestre de Tabriz.
Nessa época, Kônia era um nicho para Tal comportamento de Mawlānā não
onde diferentes culturas confluíam buscan- tardou a fomentar a ira dos discípulos, que
do refúgio das hordas de Gengis Khan. A ci- terminaram por tramar contra a vida de
dade era assim um caldeamento de diferen- Šams. Para Šams (o Sol de Tabriz) Rūmī de-
tes etnias e um símbolo de cosmopolitismo. dicou toda uma monumental obra poética
Aos 37 anos, Rūmī já possuía grande conhecida como Dīwān-i Šams-i Tabrīz.
reputação como mestre e profundo conhe- Com a morte do mestre, companheiro
cedor de filosofia, teologia, poesia clássica amado, Rūmī já tornado dervixe, cantor
e jurisprudência. É precisamente nesse mo- extático, ébrio de Deus, aprofunda a ideia
mento de sua vida que ocorre o aconteci- de Amor paixão ʿišq. De dor pela separação
mento que mudará o rumo de sua existên- original, baila nas ondas cósmicas das bati-
cia de maneira radical, fazendo-o mergulhar das do ferreiro Ṣalāḥ al-Dīn Zarkūb – compa-
nos abissais segredos da transcendência. nheiro de jornada mística de Rūmī depois da
Trata-se de seu encontro com o dervixe er- morte de Šams e que permaneceu com ele
rante Šams-i Dīn Tabrīz em 29 de novembro por dez anos.
de 1244 (26 Jumādī II 642). Este homem Com a morte de Ṣalāḥ al-Dīn Zarkūb,
Rūmī escolhe como companheiro Ḥusām
3 Informa F. Lewis que o nome de Rūmī relaciona-se al-Dīn, que irá acompanhá-lo fazendo as
com o fato de ele ter vivido na Anatólia, que do ponto transcrições dos seus arroubos extáticos
de vista Islâmico relacionava-se com Roma por causa do
império Bizantino. Cf. LEWIS, Franklin. Rumi:Past and até sua morte. É também ele quem inspira
Present, East and West, p.9. Mawlānā no Masnavī. Escrito em seis volu-
4 LEWIS, Franklin. Rumi:Past and Present, East and

West, p.273. mes, a obra é dedicada a Ḥusām al-Dīn.


Breve a n á l ise d e u m a h is t ó r i a n a r r a da p o r Jalāl a l -Dī n Rū m ī   •  113

O Masnavī composto de 25.000 ver- romano correspondendo ao Livro e a nume-


sos pode ser dito: um clássico universal da ração referindo-se aos versos.
poesia e da mística. A obra também ficou
conhecida como o “Corão em Persa”,5 e a
A história do caçador de
admiração por ela chegou a tal ponto que
alguns místicos da província de Sind no Pa-
serpentes (M.III. 976-1065)
quistão se nutriam espiritualmente de três Escuta a história do contador, a fim de poder
livros: o Corão, o Masnavī, e o Dīwān de ter ao menos um indício desse mistério.
Hafiz.6 Segundo informa Arberry, o tipo de Certo dia um caçador de serpentes partiu
para as montanhas a fim de capturar uma
composição masnavī atingiu seu apogeu
para os seus encantamentos.
com Rūmī.7 Contudo, este modelo pode
Súbito ele vê um enorme dragão morto cujo
ser encontrado na tradição poética iraniana aspecto fez encher de medo seu coração.
pré-Islâmica como gênero que proporcio- Enquanto buscava por uma serpente na
nava longas canções idílicas para entreteni- época de rude inverno, o caçador viu um
mento das cortes “princepescas”.8 É com dragão morto.
Sana’i e ‘Aṭṭār que o estilo masnavī ganha a Um caçador de serpentes as captura a fim de
força de transformar-se em mescla de estilo espantar as pessoas –
Veja a loucura dessa gente!
poético e revelação mística.9 A monumental
O homem é uma montanha: Como cairia
obra de Rūmī, engloba “Diwan com (Cole-
em tentação? Como uma montanha se
ção de poemas) compreendendo 3.200 ga- surpreenderia com uma serpente?
zéis totalizando 35.000 versos; 44 tarjīʻāt O homem infeliz não se conhece: Vindo de
um tipo de poema composto de dois ou um estado elevado quedou num estado vil.
mais gazéis, num total de 1.700 versos; e O homem se vendeu por uma bagatela: Ele
2.000 rubā’yyāt ou quadras”.10 No presen- era um cetim
te artigo as citações do Masnavī terão o se- E coseu-se a si mesmo sobre um manto de
farrapos.
guinte formato: M de masnavī, o algarismo
Centenas de serpentes e montanhas com ele
5 NICHOLSON, Reynold A. Poetas y Místicos del Islam.
se assombram,
p.88. Também Schimmel se refere a esta alcunha dada Porque ele ficaria estupefato e afeiçoado a
ao Masnavī pelo místico Jāmī (1414-1492): “Jami cha- uma serpente?
mou o poema místico didático Masnavī, de ‘Corão em
O caçador captura a serpente e ruma para
Pahlavi’, quer dizer, em língua persa”. SCHIMMEL,
Annemarie. Le Soufisme ou Les Dimensions Mystiques Bagdá, a fim de impressionar a turba.
de L’Islam. Paris: Du Cerf, 1996, p.388. Também Iqbal Por um baixo salário ele transporta um
que considerava Masnavī a “magnum opus de Rumi”
dragão semelhante ao pilar de uma casa.
relembra com profunda admiração a estupefação de
Jāmī: “que dizia do peta, ‘embora não tivesse sido um Dizendo: ‘Levo um dragão morto: sofri
Profeta, ele fez um Livro”. IQBAL, Afzal.The Life ande mortes e paixões para lhe caçar.”
Work of Jalaluddin Rumi, p.175.
6 Cf. SCHIMMEL, A. Le Soufisme, p. 403.
Ele acreditava que o dragão estava morto,
7 Cf. ARBERRY, A.J. Le Soufisme, p.124. mas ele estava vivo, e o caçador não via
8 Cf. BANANI, Amin. Rūmī the Poet, In: BANANI, HOU-
muito bem.
ANNISIAN and SABAGH. Poetry and Mysticism in Islã:
O dragão congelado por gelo e neve; estava
The heritage of Rumi. Cambridge: Cambridge Universi-
ty Press. 1987. p.29. vivo, mas parecia morto.
9 Cf. BANANI, Amin. Rūmī the Poet, p.30.
Esse mundo é gelado: Seu nome é djamâd
10 CHITTICK, W.The Sufi Path of Love. Albany: SUNY
(inanimado); ou djâmid (gelado).
Press, 1983, p.5.
114  •  Mario Werneck

Espere até que o sol da Ressurreição se torne O caçador de serpentes paralisado de medo
manifesto, a fim de perceber o movimento gritava: “O que eu trouxe das montanhas e
do corpo do universo. do deserto?!”
Pois nesse mundo, quando o bastão de Nesse momento o dragão fez o imbecil em
Moisés tornou-se uma serpente, pedacinhos enrolou-se em um pilar e devorou
O intelecto recebeu indicações concernentes até seus ossos.
às coisas inanimadas. (...)
O caçador chega então a Bagdá e instala seu O objetivo principal de Rūmī com essa
espetáculo às margens do rio Tigre. história é mostrar a importância do comba-
Um rumor se eleva em Bagdá:“Um caçador te espiritual dos instintos carnais que na psi-
de serpentes trouxe um dragão: cologia sufi chamam-se nafs; entretanto, há
Ele capturou um animal raro e muito mais sendo trabalhado nas sutilezas
extraordinário!”
diáfanas das entrelinhas.
Miríades de tolos e simplórios se
A figura do caçador se por um lado é
ajuntaram...
Se tornariam presas da mesma maneira que a representação clara do poderio respon-
eram agora presas de sua própria loucura. sável outorgado pelo pacto de Alast, por
Mais a multidão aumentava, mais aumentava outro também deixa ver a mácula inscrita
o valor do óbolo. no âmago da criatura (feita perfeita) pela
O caçador então começa a descerrar o queda, e aqui pede-se a vênia a John Mil-
manto que cobria o dragão ton para que cante a tristeza de Adão: “Ó
E a multidão acompanha esticando pescoços
golpe inesperado, pior que a morte! Devo
E veem que o dragão estava sendo mantido
deixar o Paraíso? Deixar-te assim, ó terra
congelado envolto em rudes trapos
E amarrado com grossas cordas, pois o natal! (...) Como me separarei de ti? Como
caçador havia tomado grandes precauções. errarei num mundo inferior?” Este teor
Contudo durante o intervalo da dramático da queda ressoa para Rūmī num
apresentação, o sol do Iraque brilhou sobre visar-se presente; presença que se projeta
o dragão numa imagem ainda diáfana para além de
Fazendo com que os humores frios esvaíssem si numa protorrelação.
de seus membros;
Rūmī mostra o caçador como homem de
Ele estava morto e ressuscitou; Surpreso, o
busca, mas o que ele busca é ainda glória e
dragão se põe a desenroscar-se.
Vendo mover-se o dragão morto o estupor louros, algo fugaz e por demais intencional;
das pessoas se multiplicou mil vezes. por isso, ainda é presença diáfana, de cer-
Assombrados puseram-se a gritar correndo ta forma a intensão, digamos por demais
para longe de seus movimentos. mundana, enublou seus olhos com o clâmi-
Ele se pôs a arrebentar suas amarras de negro do ego.
E aos gritos das pessoas apavoradas as A presente história é uma advertência
amarras que ainda estavam congeladas se
de Rūmī quanto aos ardis da alma (nafs).
partiram.
O caçador vê a aparência da serpente, mas
Livre o dragão investiu furioso sobre a turba,
rugindo como um leão. sua essência ontológico-metafísica lhe é
Na desordem muitos foram mortos; cem oculta. Há aqui uma relação aparentemente
montes foram feitos daqueles que tombaram contraditória entre Unidade e multiplicida-
mortos. de; ou entre o Real e mundo fenomênico.
Breve a n á l ise d e u m a h is t ó r i a n a r r a da p o r Jalāl a l -Dī n Rū m ī   •  115

Se por um lado tem-se o mundo como possibilidade de uma existência autêntica


prisão e local de degredo, por outro este de valorização da subjetividade a partir da
mesmo mundo é o lugar de manifestações atualização dos atributos originalmente ou-
teofânicas para o buscador. De certa manei- torgados.
ra, somente aquele que enxerga as atualiza- Rūmī pensa a alma como possuindo
ções teofânicas conhece em última análise, uma natureza indivisível e unitária. Sua ideia
o mundo enquanto realidade onomatofâ- advém da observação da palavra que prin-
nica11 (teofanias operadas pelos nomes – cipia o ato criador: “Seja!” Kun! Essa pa-
Atributos – de Deus). lavra princípio espalha o suspiro doador da
O signo da ambivalência do mundo é vida. Ao mesmo tempo Mawlānā mostra a
antes de tudo o signo da ambivalência do relação dessa ideia de comando criador por
ser, pois a alma (nafs)12 do ser humano é um outro viés: comando em árabe significa
caracterizada por este traço. De certa for- amr14 o que objetiva a apreensão do primei-
ma, toda percepção sensível revela a parcia- ro nível da alma como sendo nafs amma-
lidade do sujeito observador, daí que para rah, ou seja, alma que comanda, concita,
Rūmī o pensar na alma adquira um viés que chama ao mal, às más ações.
poderia apontar para uma, como que, pe- Rūmī, então, recolhe as palavras corâni-
dagogia desta alma. Para poder se pensar cas (VII: 54) “A Ele pertencem a criação e
no conceito de nafs é preciso ter em conta o comando”15 e mostra a natureza unitária
que uma das características fundantes do da alma, que nada mais é que o suspiro de
sufismo é a transformação interior. Por isso Deus unitário e indivisível. Se nada existia
pensar na alma, no eu (nafs),13 é pensá-la antes da criação, então a criação é indivi-
como um lugar de conversão. Nesse sen- sível, pois o sopro é um para todos, e as
tido, Mawlānā aponta para uma profunda formas somente diferem aparentemente.
viragem do ser e, assim, torna patente a Por isso Rūmī afirma que sendo o “ho-
mem uma montanha como se espantaria
11 Onomatofania é a manifestação teofânica dos nomes com uma serpente?”, ou seja, como um
de Deus, que regem determinado estado. Cf. BENEITO, ser criado com todas as potencialidades de
Pablo. La Doctrina Del Amor em Ibn Al-‘Arabī. In Anales
Del Seminário de História de la Filosofia. Madrid, 2001, conhecimento do cosmos poderia se ater
p.72. paralisado ante a visão de uma serpente? O
12 “O espírito (ruh) é diferente da alma (nafs). Não vês

que no sonho, a alma vai bem longe, enquanto que ser humano possui as potencialidades que
o espírito permanece no corpo? Essa alma viaja e se lhe foram outorgadas na criação e assim
transforma. (...)”. RUMI, J. Fihi ma Fihi . p. 87.
13 “Rumi sempre se refere ao espírito animal com o ter- tem a possibilidade de ver no universo o ta-
mo nafs que mais comumente traduzido por ‘alma’ ou lhe dos olhos do Criador.16 Entretanto, seus
‘eu’. Em Árabe e Persa o termo nafs é sempre sinônimo
dos termos rūh ou jān, i. é, ‘espírito’. Rūmī ocasional- olhos foram velados:
mente usa o termo para se referir aos elevados níveis
do espírito. Mas sempre emprega o termo nafs para 14 cf. Kassis, Kobbervig. p. 30. Amara cuja raíz trilítera é

referir-se ao espírito animal, esta forma de usá-lo foi AMR: aconselhar, dar ordem, decidir, instar, mandar etc.
inspirada pelo verso Corânico: ‘não declaro que minha Esta raiz e sua derivações possui dezenas de citações no
alma (nafs) é inocente: verdadeiramente a alma do ho- Corão: II:27/25; III:20/21; VI:8/8; XXXIV:32/33; etc.
mem o incita ao mal.’ (XII:53). Os sufis e outros sempre 15 Cf. HAKIN, Khalifa Abdul. The Metaphysics of Rumi.

se referem a esta alma como nafs-i ammārah, a ‘alma p. 11.


que incita ao mal’”. CHITTICK, William. The Sufi Path 16 Isso leva a pensar que “existem muitos aspectos no

of Love. p. 33. homem que são fenomênicos e criados mas, existe


116  •  Mario Werneck

O homem infeliz não conhece a si mesmo: num ser de autossuficiência e necessita


apenas que o calor do desejo pelos apeti-
Vindo de um estado elevado,
tes se faça presente. Seguro em sua auto-
Quedou-se em estado vil.
O ser humano se vendeu por uma bagatela; determinação (fato que afirma sua deletéria
Ele era um cetim vaidade), ele carrega agrilhoada não mais
E coseu-se a si mesmo sobre um manto de a serpente, mas um dragão. Sua vanglória
farrapos. supera qualquer ordenação racional, quase
(M.III:1000-1001) que se pode imaginar seu frêmito interno
e o brilho fusco que dardeja de seus olhos.
Os pensamentos do caçador de serpen-
O bloco de gelo não lhe parece tão pe-
te já mostram em si o desejo da alma carnal
sado; é ele um homem dotado dos melho-
nafs ammarah, pois ele busca a glória neste
res augúrios, depositário da grande virtude
mundo, busca louros dos elogios fugidios.
de saber-se só, voltado para si; sentindo-se
Os dias passados no rigor do inverno e
poderoso em sua soturna solitude solipsis-
da solidão deram a ele a percepção de se
ta. A cada passo montanha abaixo parece
autorreconhecer, vendo então, seu eu (nafs)
que vai ficando clara a descida aos umbrais
através da imagem do dragão congelado,
mais sombrios de seu ser.
por isso teve medo, se apavorou ante a vi-
Mas Rūmī procurava chamar a atenção
são horrenda de seus instintos e impulsos
para as virtualidades latentes da criação e
mais baixos. Contudo, não permaneceu na
chama o ser humano a que se esforce numa
constância, caindo novamente nas solertes
contenda contra nafs. Uma afirmação do ca-
escaramuças do eu despótico.
çador pode fornecer a pista para o itinerário
Captura, então, o dragão fenomênico
a ser seguido pelo ser humano com o fito de
sem se ater ao fato de que este era como
burilar a alma. Quando ele afirma:
que o espelho de sua própria interioridade
abjeta e tacanha. O dragão/serpente era Levo um dragão morto: sofri mortes e
um espelho que refletia toda a sua obscuri- paixões para lhe caçar.
dade interior – que fica claro quando Rūmī
Isso significa que existe a possibilidade
fala do desejo do caçador de impressionar
de se educar a alma fazendo com que ela se
as pessoas. E Rūmī aqui parece ressoar os
volte para seu Senhor (Real). De uma situa-
ensinamentos de ‘Attar quando este ad-
ção de auto-opressão inconsciente na qual
verte para os perigos da alma carnal e seu
não vê a existência do mundo invisível, pode
incomensurável desejo pelo mundo: “essa
o ser humano sair em busca por levantar os
alma ímpia é um ídolo; esqueça-a.”17
véus da realidade subjacente.18 Mas ainda
A serpente deixou de ser serpente, e tor-
nou-se dragão; dragão congelado apresado 18 “(...) é preciso ver além das boas ou das más característi-

cas do homem, é preciso saber qual é a sua essência e sua


algo nele, sua alma, ou a alma de sua alma, ou sua realidade: é assim que se pode ver e conhecer verdadeira-
essência, que é eterna e divina, e de alguma maneira mente. Eu me surpreendo com pessoas que dizem: ‘como
equivalente a Deus”. HAKIN, Khalifa Abdul. The Me- os santos e os amantes de Deus podem amar o mundo
taphysics of Rumi. p. 26. Pois não é verdade, segundo espiritual que não tem lugar nem forma e é desprovido
Corão (XV:29), que alma foi insuflada no ser humano de qualificações? Como se explica que recebem força, aju-
pelo suspiro de Deus? da e impressões desse mundo?’ Estão mergulhados dia e
17 ‘ATTAR, F. Le livre des Secrets. p. 196. noite nesse mundo. Mas esse homem que gosta de uma
Breve a n á l ise d e u m a h is t ó r i a n a r r a da p o r Jalāl a l -Dī n Rū m ī   •  117

aqui o Dragão que o caçador pensava morto O intelecto recebeu indicações concernentes
está apenas congelado, aguardando soler- às coisas inanimadas. (...)
temente a oportunidade de despertar. Com
Quando Rūmī relembra o cajado de Moi-
isso Rūmī chama a atenção para a necessida-
sés transmudado em serpente mostra que a
de de se estar concentrado na busca de ma-
serpente nas mãos de um Homem Perfeito
neira a que nada possa distrair o buscador
– e Moisés é por excelência – desveste-se
e fomentar a insurgência de nafs ammarah.
de sua pele maculada pelo signo do desejo
De um modo geral, o que ocorre com
(outro símbolo que mostra a renovação per-
o ser humano é que a alma carnal nafs
manente a qual o ser humano é chamado a
ammārah,19 de certa forma, arma uma ci- realizar) para então tornar-se vitalidade que
lada para os sentidos, não permitindo que salvaguarda vidas sob a forma de cajado fei-
eles captem o real significado daquilo que to cobra. Não mais víbora arrasadora, mas
veem, fazendo-os acreditar que apreende- serpente de força e equilíbrio, seu veneno
ram o real a partir destes dados sensíveis traz oculto seu antídoto.
fornecidos pelo eu carnal, o que – no dizer A rudeza do inverno temporal coincidia
de Mawlānā – transforma os sentidos em com o estado interior do caçador, por isso o
enganosos e os seres humanos em idóla- dragão lhe pareceu morto, pois assim se sen-
tras. Contudo existe o aprendizado: tia em relação ao seu eu despótico, que já
Pois nesse mundo, quando o bastão de então adormecera como soberano supremo
Moisés tornou-se uma serpente, de um corpo entregue aos seus comandos.
Eis que então culmina sua descida na
determinada pessoa e é ajudado por ela obtém tudo ao
mesmo tempo; ajuda, graça, beleza, ciência, lembranças, acolhida pasma do vilarejo. E novamente
pensamentos, alegria e tristeza; todas essas qualidades aqui é preciso se observar o conhecimen-
pertencem ao mundo infinito; e a cada momento , através
dessas qualidades, obtém ajuda e impressões. Ele não se to profundo da alma que Rūmī possuía. As
surpreende com isso, mas se espanta com a ideia de que pessoas que acorrem de pronto à chegada
possa gostar do mundo infinito e ser ajudado por ele.”
RUMI, J. Fihi ma Fihi. p. 67. De maneira semelhante lê-se
do caçador querem o viço do primeiro olhar,
no Dhammapada: “Venham, olhem este mundo que se e seduzidos se acotovelam ante a enorme
assemelha a uma cintilante carruagem real;/ Nele os tolos
afundam, mas para os discernidores apego (nele) não há.”
forma ainda coberta seduzidas pela possibi-
DHAMMAPADA. p. 103. Este chamado ao desapego é lidade da visão inédita e privilegiada.
visto assim pelo Zen Budismo: “Não se apeguem à forma.
Não se apegar à forma significa Quididade. O que significa
Mais se acotovelam, mais se embeve-
Quididade? Significa inconsciente. O que é inconsciente? ce o caçador de seu feito. O povo grita em
É não pensar em termos de ser e não-ser, não pensar em
termos de bem e mal, não pensar em limites ou ausência
frêmito “o caçador trouxe algo diferente”.
de limites; não pensar em medidas (ou não-medidas); não E novamente aqui Rūmī mostra o cuidado
pensar na iluminação, nem pensar em ser iluminado; não
pensar no Nirvana, nem em atingir o Nirvana: é isso o in-
que se deve ter na apreensão das formas,
consciente. O inconsciente nada mais é que o o próprio pois durante a criação do ser humano “o
Prajñāpāramitā. E o Prajñāpāramitā (perfeição da sabedoria
da outra margem) nada mais é do que o Samādhi da Uni-
intelecto recebeu indicações sobre as coisas
dade.” SUZUKI, D. T. A Doutrina Zen da Não-Mente. p. 52. inanimadas”. Nesse instante um tolo da tur-
19 Observe-se aqui a referência Corânica do termo nafs

ammāra: “Todavia não clamo que minha alma seja ino-


ba grita: “capturou um animal raro e extra-
cente – seguramente a alma do homem incita ao mal ordinário.” Quão obtusa ideia, talvez este
exceto quando age a misericórdia de meu Senhor; ver-
dadeiramente meu Senhor é Clemente e Compassivo.”
homem também tomado de insana preten-
(XII:53) The Koran. são quisesse dizer que a raridade do achado
118  •  Mario Werneck

lhe era conhecida, mas isso só aumenta seu de certa forma a doadora de sentido daquilo
desconhecimento e o que diz não é mais que foi apreendido externamente, esta apre-
que um despautério. ensão carece de significado extraexistencial.
Quando tocado pelo sol, o gelo vai Em outras palavras, o que se observa está,
progressivamente se desfazendo e o dra- nesse sentido, tão eivado de autossignifi-
gão começa a se movimentar. O que Rūmī cação, que perdeu sua dimensão essencial.
quer mostrar com esta alusão é que o mes- Aquilo que se vê é aquilo que de certa forma
mo movimento se instaura na alma que se se quer ver pelo influxo do eu, ao passo que
abre ao mundo dando a ele um valor de ser ver as coisas tais como são seria observá-las
que totaliza as atenções e tipifica um viver pelos signos de sua pré-eternidade.20
inautêntico em relação à gênese do próprio O conto chama atenção para a potencia-
espírito. Quando o sol do desejo toca o dra- lidade do ser humano de ser lugar de trans-
gão congelado da alma, ele se descongela e formação e isso implica situar o eu como
trucida o ser humano. algo a ser modificado, o que ocorre pelo fato
O conto, de certa forma, deambula por de ser o eu um sítio onde a ambivalência se
esses estágios aparentemente como um instaura em primeiro lugar com relação a
exercício informal de inspirações ambíguas, si mesmo – pois este eu criado imagina-se
mas o encadeamento é de beleza insigne. como possuindo uma existência autônoma,
O mundo é visto como gelado, frio e es- e como consequência torna-se um véu para
tranho (à alma iluminada), ao mesmo tem- os signos de Deus. Por outro lado, este mes-
po em que o mostra em toda sua realidade mo eu posiciona-se frente às criaturas como
aparente (já tornada realidade factível) para dominador não no sentido previamente de-
a alma segura de sua existência autônoma. terminado por Deus, mas desconectado de
Ao mesmo tempo, alude a um modo de co- qualquer associação ontológica em relação
nhecimento dado ao intelecto que objetiva a elas. Está cego para seus próprios atribu-
a apreensão das coisas inanimadas nos sig- tos e mais cego ainda aos atributos dos seres
nos que elas trazem em latência. velados por seu egoísmo. Rūmī reconhece
Rūmī alerta para o fato de que a alma no mundo algo que se poderia chamar de
carnal persuade o ser humano a tornar-se oblação da natureza: “(...) os minerais, e
amigo da paixão e do desejo. Ela é capaz em menor grau as plantas, em virtude de
de operar coisas inimagináveis ao lograr as sua insensibilidade externa e inconsciência
faculdades do discernimento. “Se te acon-
selhares com tua alma carnal oponha-te a 20 “Enquanto a consciência humana permanece no

nível da experiência cotidiana ordinária, ela não pode


tudo o que esta alma vil te disser. A alma ter uma visão da realidade. Para ascender até aí, dizem
carnal é fomentadora de intrigas, e formará os filósofos desta escola, o espírito deve sofrer uma
transformação total. A consciência deve transcender a
contra ti um complô.” (M.II: 2273-2274) dimensão da consciência ordinária na qual o mundo do
O que impressiona a visão das coisas ex- ser é apreendido como constituído de coisas sólidas e
subsistentes cada uma tendo uma base ontológica que
ternas tomadas a partir de um movimento chamamos essência. Deve surgir dentro do espírito um
de dentro para fora retorna ao conhecimen- tipo de consciência todavia diferente dentro do qual o
mundo se revele sob uma luz totalmente diferente.”
to como um visado em relação à própria per- IZUTSU, T. Unicité de l’Existence et Création Perpétuelle
cepção, mas como a própria percepção foi en Mystique Islamique. p.14.
Breve a n á l ise d e u m a h is t ó r i a n a r r a da p o r Jalāl a l -Dī n Rū m ī   •  119

implícita, reconhecem a onipotência divina nefasta de nafs-i ammara,23 mas que, por ou-
e glorificam o Criador com a língua de seus tro lado, deve ser superada, pois pertence e
estados interiores”.21 Por isso adverte: funciona no estrato do mundo aparente:
Ao tomar consciência de que a alma com-
Espere até que o sol da Ressurreição se torne
pulsiva rege seu ser, entra em cena o nível
manifesto, a fim de perceber o movimento
do corpo do universo. da alma conhecido como nafs-i lawwāmah,
ou eu que censura:24 “Quando a vaidade é
Para se observar como o encadeamento destruída pelo encarceramento, a alma que
do conceito de nafs se faz necessário apon- censura domina sobre ela.” (M.V:2062)
tar para as demais categorias visadas por Esta nafs que censura é a mesma que
Rūmī e pelos sufis em geral. em illo tempori cometeu o pecado original,
Como Mawlānā concebia a alma e os e então se tornou sabedora dos efeitos da
seus diversos graus? A alma humana possui, concupiscência; é uma alma que flutua entre
em latência, todas as possibilidades, quer o pecado e a remissão. Sob a batuta deste
para o desenvolvimento aos umbrais do em- eu que censura a si pelas compulsões, vai-
píreo, quer para a estagnação e a descida -se progressivamente equilibrando as ações
aos níveis mais inferiores de existência. do eu, atingindo-se um nível chamado de
A alma possui então, este primeiro está- nafs-i muṭmaʿinnah (que é a alma em paz
gio no qual ela é (nafs-i ammārah), ou seja, com Deus).25
a alma que atua pelo comando (ammārah) Estes três níveis da alma são sempre uti-
da compulsão levando o ser humano a acre- lizados pelos sufis, contudo, existem outros
ditar que a realidade pode ser vista pela rea- que variam de acordo com o pensamento
lização dos desejos por ela concitados.22 de cada corrente. Rūmī, por exemplo, fala
Sobre a torrente avassaladora desse eu o
23 “(...) O intelecto e o pensamento não guiam o ho-
ser humano se vê diante da necessidade de mem – somente o ajudam a que conheça uma parte de
lutar e vai, portanto, buscar forças junto a um si mesmo e não todo o seu ser – (...)” ARASTEH, Reza.
Rumi, el Persa, el Sufi. p. 62.
aliado que lhe dá um apoio necessário para 24 “O eu censurador, nafs al-lawwāma, é sabedor da

não soçobrar neste aluvião. O auxílio presti- necessidade de se controlar estas compulsões e dese-
jos. Aqui inicia-se um estágio de tumulto interno, pois
moso vem da razão, que possui uma impor- alguém pode não estar muito apto a entender o quanto
tância relativa, no sentido de buscar fazer estes desejos o escravizam. A qualidade que deve ser
despertada neste estágio é a abstinência ou tempe-
com que o ser humano reconheça a atividade rança.” HELMINSKI, Kabir. The Knowing Heart. p. 111.
Note-se novamente o influxo corânico do termo: “Não!
Eu juro pela alma que se censura.” (LXXV:2) The Koran.
21 IQBAL, Afzal. The Life and Work of Jalaluddin Rumi. 25 “Este é um estado onde o ser humano sobe até o cami-

p.100. nho do desenvolvimento da consciência, com o despertar da


22 “O eu obsessivo-compulsivo, nafs al-ammāra, é to- presença individual e a relembrança de Deus tornando-se o
talmente dominado pelos desejos e instintos, jamais se- foco da atividade da vida.” HELMINSKI, Kabir. The Knowing
parando desejos e ação. Aquele que está sob o coman- Heart. p. 111. Corbin mostra esta transformação da alma
do (ammāra) de sua compulsão. Nafs al-ammāra pode da seguinte maneira: “O ser que chega até às premissas
convencer-nos de que atua em nosso próprio interesse, do amor divino é aquele mesmo que anuncia que a alma
mas a evidência é bem outra. Assim, este desejo caóti- passional (nafs ammāra) dominada para coação do Espírito
co distancia-nos da Realidade enquanto exerce a tirania tornou-se alma pacificada (nafs muṭmaʿinnah ) alma para a
sobre o coração. A qualidade que deve ser desperta- qual se dirige a passagem corânica (LXXXIX: 27-28). CORBIN,
da neste estágio é o arrependimento, ou remorso da H. Islam Iranien. V.III. p. 124. Eis aqui a Sura relativa a este
consciência”. HELMINSKI, Kabir. The Knowing Heart. estado: “Ó alma em paz, retornai a seu Senhor, satisfeita e
p. 111. deleitosa.” (LXXXIX:27) The Koran.
120  •  Mario Werneck

da alma Universal nafs-i kullī como um es- referencial deste eu que em si não é ilusó-
tado de passividade frente ao Intelecto Uni- rio, mas causador de ilusões.28
versal e seu processo de criação constante.26 Grande conhecedor da natureza huma-
O que se aufere destes estágios progres- na, Rūmī convida a que se busque alcançar
sivos de superação aponta para um concei- uma autoconsciência que é, em última ins-
to de fundamental importância no Islã, e tância, o reflexo do Real de si para si.
que tomou na atualidade uma conotação
pejorativa fruto de insanas abordagens. Tra- Referências bibliográficas
ta-se do conceito de ğihad; em sua acepção ARASTEH, Reza. Rumi, el Persa, el Sufi. Buenos Aires: Paidos.
1976.
principal e mais forte significa esta luta do- ARBERRY, A.J. Le Soufisme. Paris: Éditions le Mail. 1998.
‘ATTAR, F. Le livre des Secrets. Paris: Les Deux Océans. 1996.
lorosa, este embate lancinante, esta refrega BANANI, Amin. Rūmī the Poet. In: BANANI, HOUANNISIAN
cáustica pela qual passa o dervixe em seu and SABAGH. Poetry and Mysticism in Islã: The heritage
of Rumi. Cambridge: Cambridge University Press. 1987.
combate contra seu eu.27 BENEITO, Pablo. La Doctrina Del Amor em Ibn Al-‘Arabī. In
Anales Del Seminário de História de la Filosofia. Ma-
Ao longo de sua ğihad vai o dervixe ob- drid. 2001.
tendo conquistas a cada sítio subjugado de CHITTICK, William. The Sufi Path of Love. The spiritual tea-
chings of Rumi. Albany: SUNY Press. 1983.
seu eu, o que ele conquista não é algo que CORBIN, H. Islam Iranien. Aspects spirituels et philosophi-
ques. V.III. Paris: Gallimard 1991.
o faça observar o mundo exterior – i.e., o DHAMMAPADA. A senda da Virtude. Tradução do original
fenomênico – como inexistente, mas é bem Páli por Nissin Cohen. São Paulo: Palas Athena. 2000.
HAKIN, Khalifa Abdul. The Metaphysics of Rumi. A Critical
mais observar que este mundo exterior ine- and Historical Sketch. Lahore: Institut os Islamic Cutu-
xiste na medida em que foi apreendido a re. 1965.
HELMINSKI, Kabir. The Knowing Heart. A Sufi path of trans-
partir de uma intelecção obliterada de um formation. Boston: Shambhala. 2000.
IQBAL, Afzal. The Life and Work of Jalaluddin Rumi. Kara-
eu enganoso. De certa forma, pode-se dizer chi: Oxford University Press. 1999.
que o que de fato causou este falseamento IZUTSU, T. Unicité de l’Existence et Création Perpétuelle en
Mystique Islamique. Paris: Les Dexs Océans. 1980.
na percepção foi a observação a partir do KASSIS, Hanna E. Y KOBBERVIG, Karl. Las Concordancias del
Corán. Madrid:Instituto Hispano-Arabe de Cultura. 1987.
LEWIS, Franklin D. Rumi Past and Present, East and West.
26 CHITTICK, William. The Sufi Path of Love. p. 352. Oxford: Oneworld, 2001.
27 “Não foi o Profeta mesmo que chamou nafs o mal da NICHOLSON, Reynold A. Poetas y Místicos del Islam.
alma carnal como o mais perigoso inimigo do homem, RUMI, Jalaluddin. The Mathnaawí of Jalalu’ddin Rúmí. Edited
situado entre seus dois lados; um inimigo que deve ser and translated by Reynold Nicholson. Vol. VIII. London:
conquistado na grande ‘guerra santa’?” SCHIMMEL, An- The trustees of the “E. J. W. Gibb Memorial”, 1940.
nemarie. The Triumphal Sun. p. 269. Rūmī faz uma bela ____ . Fihi ma Fihi . São Paulo: Edições Dervish. 1993.
SUZUKI, D. T. A Doutrina Zen da Não-Mente. São Paulo:
alusão a este combate quando diz: “Os chefes militares
Cultrix. 1989.
e a cavalaria desejam que seu rei tenha um adversário,
SCHIMMEL, Annemarie. The Triumphal Sun. Albany: SUNY
pois só assim podem manifestar sua coragem e seu amor Press. 1993.
ao rei, e o rei não os reuniria, pois não teria necessidade _____. Le Soufisme ou Les Dimensions Mystiques de L’Islam.
deles. Mas eles não gostam do adversário, caso contrário, Paris: Du Cerf, 1996,
não o combateriam. Dessa forma, também o homem de- THE KORAN. Translated with na introduction by Arthur Ar-
seja que em seu espírito haja incitação para o mal, pois berry. Oxford: Oxford University Press. 1998.
não pode mostrar sua gratidão, obediência e piedade sem
que essa tentação exista. O desejo de algo é o desejo do
que lhe é concomitante. Porém, ele não gosta dessas ten- 28 “Rūmī constrói uma imagem de nafs-i ammara como

tações, pois faz um esforço para afastá-las de seu espírito. algo ladino, astuto, motivado pelo mal e possuindo uma
Portanto, por um lado quer o mal, por outro recusa. Nosso natureza produtora de paixões. Adotando a forma da
adversário diz que Deus não quer o mal. Mas é impossível luxúria, rouba da mente sua inteligência, e ao coração,
querer algo sem querer o que lhe é concomitante. Uma sua reverência. É o ídolo matriz que impulsiona o ho-
das razões da ordem dessa proibição é esse espírito nega- mem em sua busca de metas materiais, lhe impede o
dor (nafs) que, por natureza, deseja o mal e se afasta do desenvolvimento, inclusive podendo criar na mente ído-
bem. Todos os males que existem no mundo são concomi- los tais como a voracidade, a injúria e o desejo de poder
tantes a esse espírito.” RUMI, J. Fihi ma Fihi. pp. 238-239. per si.” ARASTEH, Reza. Rumi, el Persa, el Sufi. p. 97.
POES I A

Adriano Wintter

A
driano Wintter é poeta e tradutor. Suplemento Literário de Minas Gerais, Sibila,
Nasceu e reside em Porto Alegre, Eutomia, Mallarmargens, Ellenismos, 7Faces,
Rio Grande do Sul. Integra as an- Babel e Correio das Artes, jornais Relevo e
tologias: Escriptonita (Patuá, 2015), Prêmio Poesia Viva. Traduziu o poeta cubano José
Escriba (2015) e Femup (2010). Traduzido Kozer, os uruguaios Victor Sosa/Alfredo
ao inglês, espanhol e catalão, tem coletâ- Fressia, e o espanhol Fernando Soriano Ben-
neas publicadas nas revistas internacio- susan, entre outros. Integrou o corpo edito-
nais: sèrieAlfa (Espanha), Triplov (Portugal), rial da Revista de Poesia e Arte Contempo-
Separata (México), Cinosargo (Chile), Ex- rânea Mallarmargens, na qual publicou os
perimenta (Argentina) e Devir (Portugal); principais nomes da poesia brasileira.
além das publicações nacionais: Revista da
Academia Brasileira de Letras (RB n.º 82), Blog: http://adrianowintter.wordpress.com.
122  •  Adriano Wintter

a flor e a fala

aroma
dobrado no rubro
design da luz

antes
que letras lancem
seu obus

e o som perfure
o calor da corola

ou a noturna
claridade
(paradoxo)
da linguagem
faça a tácita flor
inodora

ou pétala por pétala


a voz desfolhe
ou dissipe a elétrica
festa entre fibras
o berro dos fótons
no carmim se cale
e a magnífica
textura se torne
obscuro vocábulo

antes
que aqui
inscreva

rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa

e na flor de Camões
a flor converta
Adriano Wintter   •  123

roída
pelo verme
invisível do termo
como a rosa de Blake
pelo inseto do texto

a fala
funda
a falta
R O S A

ao soar
é perda
tudo
na palavra
vira morte do ser
– ou nada –
que
assim
dito
desce
inerte
matéria flórea
que o verbo
sepulta

rola
uma rocha
e lacra
a fúria solar
da forma

o denso
cadáver de dobras
que agora jaz
entre paredes de letras
no escuro
silêncio da ideia
onde nenhum perfume
dedilha as liras
124  •  Adriano Wintter

aéreas de suas
moléculas
e nenhum vento
verte
sobre o olfato
o breve
poder de ouvi-las

onde a razão é um
útero
nutrindo trevas
entre os muros
mudos
do vocábulo

R O S A

e a flor morta
expecta
que a palavra opere
dentro dela
(ou fora)
esse milagre
que chamamos vida
ou (melhor)
linguagem

um flash forte
perpassa
a parte íntima
da palavra
ou
– feito chama
divina
no homo sapiens –
a parte frontal
do cérebro
fazendo
o que fala
voltar do óbito
Adriano Wintter   •  125

páscoa
que eleva o ser
acima do estado
em que estava
passagem
pelo sepulcro
do verbo
ou mar negro
do gráfico
inserindo
as células
em camadas
secretas
de realidade

aquilo
que Platão não viu
a língua opera:
o nome
aproxima a coisa
da pura Ideia

veja a palavra

R O S A

cor e aroma
textura e murmúrio
de átomos

tudo transfigurado
para além do corpóreo
que em si ela guarda

de modo
que na flor verbal
o perfume passa
por filtros de éter
e sob os mornos
fachos de maio
seu vermelho olor
126  •  Adriano Wintter

em selos perpétuos
grava-se macio
no centro do cérebro

como disse Hölderlin


num verso:
o que permanece
fundam os poetas

e não importa
se daqui a três
ou cinco décadas
pensar ou falar

rosa

subirá idêntico
o aroma da forma
o açúcar da cor
pois dentro do verbo
o cão do tempo
que fareja atrás
de tudo que é
caça e não acha
fibra ou filamento
para estraçalhar
(nada que na fala
fira ou feneça)
só polpas pneumáticas
onde não se encaixam
dentes cronológicos

assim
de rosa
pouca e visível
ela se torna
imarcescível
e forja nova
forma de flor
Adriano Wintter   •  127

como Heidegger ensinou:


a linguagem é a casa
do ser

na palavra habitam
a coisa e o homem
que a vê

e mais
que acolher
a fala dilata
pelo infinito
o conceito de ser

o verbo – além
de salvar do nada
e evitar que a seiva
seja mastigada
pelo cão do tempo –
amplifica o cosmos
de significados
possíveis da rosa
(veja aquela
branca: em Dante
flor celeste e ampla
cercando esfuziante
o seio do Excelso)

como se no corpo
insuflasse sopros
inimagináveis
e abrisse ao todo
a flor singular

que (sem a fala)


é mera farra
fátua de pétalas
ou golpe temporal
na taça das células
128  •  Adriano Wintter

porém
na palavra

R O S A

cresce livre agora


sem cessar: inversa
ao rigor da carne
(essa carne-pétala)
que o verbo evoca
e alarga em seu gás

como flor simbólica


flor-metáfora

toda ressurreta
Rodrigo Petronio

R
odrigo Petronio nasceu em 1975, em Pedra de luz [poemas, 2005], Venho de um
São Paulo. Autor, organizador e edi- país selvagem [poemas, 2009], entre outros.
tor de diversas obras. Há mais de 20 É autor também de Matias Aires [2012], Odo-
anos trabalha em quatro áreas: escrita, edi- rico Mendes [2013], Oliveira Lima [2014],
ção, ensino e jornalismo. Desenvolve pós- ensaios críticos e biográficos destes intelec-
-doutorado no Centro de Tecnologias da tuais brasileiros, publicados pela Série Essen-
Inteligência e Design Digital [TIDD|PUC-SP]. cial da ABL. Organizador dos três volumes
Doutor em Literatura Comparada [UERJ], é das Obras Completas do filósofo brasileiro
Professor Titular da FAAP onde atua como Vicente Ferreira da Silva [Editora É, 2010-
professor-coordenador de dois cursos de 2012]. Coorganizador com Rosa Alice Bran-
pós-gradua­ ção: Escrita Criativa e Roteiro co do livro Animal olhar [Escrituras, 2005],
para Cinema e Televisão. Há 15 anos co- primeira antologia do poeta português An-
labora com diversos veículos da imprensa, tónio Ramos Rosa publicada no Brasil. Hoje
tendo sido colunista da revista Filosofia. em dia divide com Rodrigo Maltez Novaes a
Atualmente é colaborador dos jornais Valor coordenação editorial das Obras Completas
Econômico e O Estado de S. Paulo. Rece- do filósofo Vilém Flusser [Editora É]. O livro
beu prêmios nacionais e internacionais nas Pedra de luz foi finalista do Prêmio Jabuti
categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. 2006. A obra Venho de um país selvagem
É autor dos livros História Natural [poemas, recebeu o Prêmio Nacional ALB/Braskem de
2000], Transversal do Tempo [ensaios, 2002], 2007, além de ser contemplada com o Prê-
Assinatura do Sol [poemas, Lisboa, 2005], mio da Fundação Biblioteca Nacional [2009].
130  •  Rodrigo Petronio

Gravidade e Graça
Entre o peso que desce
E o peso que se eleva
Caminho e abro espaço
Entre estas pedras.

Entre a mão que prende


E a mão que liberta
Uma chaga e um punhal
A face cega.

Entre o que fora ilusão


E agora devém e se transforma
O prisma escuro do cristal
Enfim aflora.

O vazio inaugural me oferece


A clara transciência desta hora
O corpo lembra a poeira das estrelas
Gota a gota.

Entre a graça que fere


E o peso desta brisa
Nada do que é vivo se completa
Nada do que é vivo cicatriza.

Os astros emergem
Canta o húmus de meu corpo
O vento anima o humano
Sopro a sopro.

Entre o peso que eleva


E a leveza que condena
Recolho cada instante
Em um livro de areia.

Entre o peso de uma pluma


E a graça de um Deus morto
O amor dissipa a alma
A alma aniquila o corpo.

Entre a face que se oculta


E o fogo manifesto
A graça circula no meu sangue
A gravidade cria o alfabeto.
Rodrigo Petronio   •  131

Quadras Circulares

I
A terra é minha missão.
O infinito, meu arco.
Quem vive morre em Deus
Como O houvesse sonhado.

II
Mais puro é o que se extingue.
A eternidade nos mata.
A beleza da chama fere
Porque nunca é duplicada.

III
Sábio o sinal de um céu
Vazio de todos os deuses.
Faz do coração o poço
No qual Deus se olha às vezes.

IV
Todo Eu é uma ilusão.
Nele só existo espelhado.
Eu somente vivo Nele
Sendo em Deus aniquilado.

V
Mundo é o que nunca muda.
Deus, tudo o que passa.
Eu, círculo e quadratura:
O infinito não me abraça.
132  •  Rodrigo Petronio

VI
Eu e a alma do mundo
Somos uma só pessoa.
Eterna esta centelha
Fora de mim me coroa.

VII
Quanto mais eu me evado
Do mundo e do que em mim há.
Cumpro o círculo quadrado.
Vivo e sou onde o eu não está.

VIII
Quanto menos tenho limite
Mais me sinto limitado.
Pois não existe maior limite
Que ser de infinito cercado.
William Soares dos Santos

W
illiam Soares dos Santos (1972), em Linguística Aplicada (PIPGLA) da Facul-
é carioca, professor da UFRJ e es- dade de Letras da UFRJ. Escreve textos aca-
critor. Possui graduação (1997) dêmicos e literários. Dentre os seus traba-
em Letras (Português/Italiano), mestrado lhos literários, destacam-se o livro de contos
(2002) em Linguística Aplicada, ambos Um amor (2016) e os livros de poesias Rare-
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro feito (2015) e Poemas da meia-noite (e do
(UFRJ) e doutorado em Letras (Estudos da meio-dia) (2017), livro ganhador do Prêmio
Linguagem) pela PUC-Rio (2007). É profes- PEN Clube do Brasil para livros de poesias
sor Adjunto da Faculdade de Educação da em 2018 e finalista do 3.o Prêmio Rio de
UFRJ, onde atua como Professor de Práti- Literatura 2018. O seu último trabalho li-
ca de Ensino de Português e Italiano, e do terário publicado é o livro de poesias Raro
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação (poemas de Eros) (2018).
134  •  William Soares dos Santos

Os peregrinos da Síria

Depois
de terem os pés afundados na lama
e cobertos pelo pó levantado pelas
bombas que assolaram
os campos de sua cidade natal,
muitos sírios que sobreviveram
tomaram das forças que lhes restaram
para seguir o caminho
em direção a uma terra
estrangeira.

Sem olhar para trás,


muitas vezes,
trazendo
em seu peito
apenas
o que deixaram no solo
de seus ancestrais,
os peregrinos,
agora,
enfrentam o mar
de incerto destino.

O frio,
o vento,
a fome,
a morte e as
incongruências
de vidas ao azar
espreitam
os barcos
encharcados de imigrantes
cujos olhares anseiam pelo futuro.
William Soares dos Santos   •  135

O presente lhes é negado e,


sem a visão do que esteja além,
seus olhos são traspassados
pela amplidão sem horizonte.

Deixar o seu lar


pode ser,
quem sabe,
deixar
uma semente que
nunca irá brotar.

Passar por cima dos mortos,


passar por cima dos corpos
destroçados que
a guerra renegou
ao tempo impiedoso
a devorar em fragor
almas
pelas paragens,
pelos desertos,
pelos gemidos
em purgação.

Já são heróis os que conseguem


chegar à margem de uma nova sorte,
de um país qualquer,
do qual não se reconhece a língua
do afeto materno,
ou aportar em uma praia
cujo cheiro
não alimenta a esperança
dos dias.

Lidar com um novo começo,


sem vislumbre de retorno,
pode ser um alívio para os
que conseguem um cais.
Mas, em pleno oceano,
espíritos afogados
136  •  William Soares dos Santos

dançam no cortejo da morte,


enquanto aguardam no além
o repouso de
sua batalha deixada para trás.

O que dizer do vazio


daquele
que vê o corpo do
seu filho chegar
sem vida
a uma enseada
sem nome,
agora a alimentar
aquela mesma natureza
que dentro da
alma o consome?

Mesmo para o mais forte dos sírios,


o longo caminho do inverno
drena a força dos ossos
como um verme a
remoer a espinha da
quase carcaça humana
que,
passo a passo,
dor a dor,
rasteja a superar
quilômetros em busca
de uma ventura
ainda não revelada
no limiar da noite
que os acompanha.

Doenças corroem
a pele dos peregrinos
castigados pelos ventos
que os açoitam,
como pregos a
atingir os espaços
comprimidos da medula.
William Soares dos Santos   •  137

Não há lençóis
nessa incerta travessia.
Há os que carregam os seus pais
há os que carregam os seus filhos,
há os que carregam seus mortos
em corações que pesam mais
a cada estação dessa via.

A suspensão do ar rarefeito,
a causticação do sol,
a fustigação do vento
tornam a respiração
do peregrino um anseio
pelo sentido da existência
- que virá ou não virá.

Pés à mostra e
mãos descosidas
de sua forma intrínseca.

As vertigens se assomam
aos olhos por ansiarem uma morada
que os abriguem
da amarga neve que cai no
campo da terra estrangeira,
da garoa que não oferece o repouso
na tarde infame,
insistente em se arrastar,
enquanto o soldado
sem palavra e sem memória,
guarda os muros de uma
cidade exangue.

E o que dizer do que ficou para trás?


E o que dizer de Deraa,
onde a flor da liberdade floresceu
e deu os seus primeiros passos?
138  •  William Soares dos Santos

O que sobrou de Aleppo,


antes a mais bela pérola da Síria,
hoje o pó que esconde
os restos de corpos descartados?

O que dizer de Damasco,


hoje sem a luz
que um dia cegou
o apóstolo em sua
inesperada conversão?

O que dizer de Homs,


a cidade que abraçou
a transformação
desde o seu fundamento
e agora sofre o seu pesado
esgotamento?

O que dizer de Kobane,


que ao restolho das
sangrentas batalhas
findou cerceada em trapos
junto a fronteira despedaçada?

E o que dizer das crianças


que ficaram para trás,
de seus corpos tortos,
de suas feridas acessas,
de seus sonhos mortos?

E o que dizer das crianças que


prosseguiram pelo caminho
do desterro?
De suas feridas expostas,
dos abusos e do desespero?
De sua maturação ao mundo dos adultos,
antes do esperado?
William Soares dos Santos   •  139

O que dizer das crianças incendiadas


entre bombas e impropérios?
O que dizer do sangue das crianças
em meio ao pó?
O que dizer de sua não
reação ao que não se pode reagir?

O que pode a poesia


diante de tudo isso?
O que pode a palavra
que se quer consoladora,
que se quer morada,
que se quer libertadora?

A poesia não pode nada.


A poesia está condenada ao
fracasso de encerrar-se em si mesma,
pois ela não é mais do que uma
espécie de grito no deserto
da humanidade,
uma forma traiçoeira de ter esperança,
uma armadilha da linguagem.

A poesia dobrou seus joelhos


incapaz
diante da imunda guerra,
da escarnecedora guerra,
da escandalosa guerra.

E qual guerra não é aberração?


E qual guerra se justifica
dentre as ações dos homens,
que com os seus cabelos
pastosos e seus
dedos de seda,
sem trégua e sem remorso,
apertam
botões de disparar
armas pelo mundo?
140  •  William Soares dos Santos

E, no entanto,
em pleno mar,
um menino mantém-se vivo
murmurando uma
antiga poesia,
em forma de canção de ninar,

quando despertam seus olhos


incônscios da cantilena vã
as cores esperançosas de uma terra
que ao longe desponta
aos primeiros raios
da dedirrósea manhã...
c o n to

Os mnemagogos

Primo Levi
Químico e escritor italiano

O
doutor Morandi (que ainda não endereço que estava no cartão, cruzando a
se habituara a ser chamado de cidade deserta sob um sol inclemente.
doutor) desceu da viatura com a Chegou ao lugar com dificuldade, de-
intenção de conservar-se incógnito por no pois de infinitos giros inúteis; não quis per-
mínimo dois dias, mas logo viu que seria guntar a rua a ninguém, porque nos rostos
impossível. A proprietária do café Alpino o dos poucos que avistou pelo caminho pare-
acolhera com neutralidade (evidentemente ceu discernir uma curiosidade malévola.
não era muito curiosa, ou não muito argu- Esperava que a placa de identificação da
ta); mas, pelo sorriso deferente, maternal casa fosse velha, mas a achou mais velha
e levemente debochado da dona da taba- que qualquer expectativa, coberta de fer-
rugem e com o nome quase ilegível. Todas
caria, ele entendeu que já era “o doutor
as persianas da casa estavam fechadas, e
novo”, sem possibilidade de adiamentos.
a baixa fachada, descascada e sem cor. À
“Devo ter o diploma escrito na cara – pen-
sua chegada, houve um rápido e silencioso
sou: ‘tu es medicus in aeternum’, e, o que é
acender de lâmpadas.
pior, todos vão perceber.” Morandi não ti-
Montesanto em pessoa desceu e veio
nha nenhum gosto pelas coisas irrevogáveis
recebê-lo. Era um velho alto e corpulento,
e, naquele momento, sentia-se inclinado
de olhos míopes e vivos num rosto de traços
a ver naquela história uma grande e inter- gastos e pesados: movia-se com a seguran-
minável chateação. “Algo parecido com o ça silenciosa e maciça dos ursos. Estava de
trauma do nascimento”, concluiu de modo mangas curtas, sem colete: a camisa estava
não muito coerente. puída e não parecia limpa.
... No entanto, como primeira conse- Pela escada e em cima, no estúdio, es-
quência do anonimato perdido, era preciso tava fresco e quase escuro. Monsanto sen-
encontrar Montesanto, sem mais demoras. tou e ofereceu uma cadeira a Morandi, es-
Voltou ao café para retirar da mala a car- pecialmente incômoda. “Vinte e dois anos
ta de apresentação e se pôs à procura do aqui dentro”, pensou Morandi com um
142  •  Primo Levi

arrepio mental, enquanto o outro lia sem sua fisionomia se ia reanimando, os olhos
pressa a carta de apresentação. Mirou ao brilhavam ágeis e vivos no rosto desfeito.
redor, enquanto seus olhos se habituavam Surpreso, Morandi se dava conta de expe-
à penumbra. rimentar uma nítida e crescente simpatia
Sobre a escrivaninha, cartas, revistas, pelo velho. Tratava-se evidentemente de
receitas e outros papéis de natureza inde- um solilóquio, um grande devaneio que
finível, todos amarelados e amontoados Montesanto estava se concedendo. Para ele
numa pilha impressionante. Do teto pen- as ocasiões de falar (e se via que sabia falar
dia um longo fio de aranha, apenas visível e que conhecia a importância disso) deviam
pela poeira que o envolvia, balançando ser raras, breves retornos a um antigo vigor
molemente aos sopros imperceptíveis da de pensamento agora talvez perdido.
brisa meridiana. Um armário envidraçado Montesanto narrava a sua impiedosa
com poucos instrumentos antigos e poucas iniciação profissional nos campos e trin-
garrafinhas nas quais os líquidos tinham cheiras da outra guerra; a sua tentativa de
corroído o vidro, assinalando o nível que carreira universitária, iniciada com entusias-
por muito tempo haviam conservado. Na mo, continuada com apatia e abandonada
parede, estranhamente familiar, a grande entre a indiferença dos colegas, fato que
moldura fotográfica dos “Laureandi Medici havia enfraquecido todas as suas esperan-
1911”, bem conhecido dele: aí está o rosto ças; o exílio voluntário no povoado obscu-
quadrado e o queixo forte de seu pai, Mo- ro, em busca de algo muito indefinido para
randi sênior; e logo ao lado (ai, como seria poder ser encontrado; e finalmente a vida
difícil reconhecê-lo!) o aqui presente Igna- atual de solitário, estrangeiro numa comu-
zio Montesanto, magro, nítido e espantosa- nidade de gente pequena e ociosa, boa e
mente jovem, com ar de herói e mártir do ruim, mas para ele irremediavelmente dis-
pensamento, tão ao gosto dos formandos tante; a prevalência definitiva do passado
da época. sobre o presente e o naufrágio último de
Após a leitura, Montesanto pousou a todas as paixões, salvo a fé na dignidade
carta sobre o monte de papéis da escriva- do pensamento e na supremacia das coisas
ninha, onde ela camuflou-se perfeitamente. do espírito.
“Bem”, disse em seguida, “estou muito “Velho estranho”, pensava Morandi;
contente que o destino, a sorte...”, e a frase notara que o outro falava havia quase uma
acabou num murmúrio indistinto, seguido hora sem sequer o olhar. De início, tentara
de um longo silêncio. O velho médico in- várias vezes fazê-lo voltar a um plano mais
clinou a cadeira sobre as pernas posterio- concreto, indagá-lo sobre o estado sanitário
res e dirigiu o olhar para o teto. Morandi da jurisdição, sobre a renovação dos apare-
se dispôs a esperar que o outro retomasse lhos, sobre o armário dos remédios, talvez
o discurso; o silêncio já começava a pesar até sobre a própria organização pessoal;
quando Montesanto retomou subitamente mas não conseguira, por timidez e por um
a fala. mais ponderado respeito.
Falou por muito tempo, a princípio com Agora Montesanto estava calado,
muitas pausas, depois com mais rapidez; a com o rosto virado para o teto e o olhar
Os m n e m ag o g os   •  143

acomodado no infinito. Era evidente que tivera tempo de cobrir-se de ridículo com a
o solilóquio continuava internamente. Mo- história do campo nêurico.
randi estava embaraçado; perguntava-se se O outro havia agarrado com as duas
a sua réplica era esperada ou não, e qual mãos os ângulos da escrivaninha e olhava o
seria, e se o médico se dava conta de que vazio franzindo a testa. Depois recomeçou:
não estava sozinho em seu estúdio. “Agora mostrarei algo inusitado. Durante
Mas ele se dava conta. De repente dei- os meus anos de assistente em farmacologia,
xou a cadeira cair sobre os quatro pés e, estudei muito a fundo a ação dos adrenalí-
com uma voz curiosa e esforçada, disse: nicos absorvidos por via nasal. Não descobri
“Morandi, o senhor é jovem, muito jo- nada de útil à humanidade, mas apenas um
vem. Sei que é um bom médico, ou melhor, fruto bastante indireto, como o senhor verá.
que se tornará bom; penso até que deve ser Mesmo mais tarde, dediquei muito do
um homem bom. Caso o senhor não seja meu tempo à questão das sensações olfati-
bom o suficiente para compreender o que vas e de suas relações com a estrutura mo-
eu lhe disse e o que lhe direi agora, espe- lecular. Trata-se, a meu ver, de um campo
ro que seja bom o bastante para não rir extremamente fecundo, aberto inclusive a
de mim. E, se rir, não será um grande mal: pesquisadores dotados de recursos modes-
como o senhor sabe, dificilmente nos en- tos. Vi com prazer, ainda recentemente, que
contraremos de novo; de resto, é da ordem alguém está se ocupando disso, e também
das coisas que os jovens se riam dos velhos. estou a par das novas teorias eletrônicas,
Só lhe peço que não se esqueça de que é o mas o único aspecto da questão que agora
primeiro a saber dessas minhas coisas. Não me interessa é outro. Creio que hoje possuo
quero adulá-lo dizendo que o senhor me o que mais ninguém no mundo possui.
pareceu particularmente digno de minha Há quem não se importe com o passado
confiança. Sou sincero: o senhor é a primei- e deixe que os mortos enterrem seus mor-
ra ocasião que se apresenta há muitos anos, tos. E há os que se interessam pelo passado,
e provavelmente a última.” entristecendo-se com a sua contínua desa-
“Pode falar”, disse Morandi simples- parição. Há ainda os que têm o cuidado de
mente. manter um diário contínuo, a fim de que
“Morandi, já notou com que potência cada coisa sua seja salva do esquecimento,
certos odores evocam certas lembranças?” e quem conserva em sua casa e em sua pes-
O golpe chegara imprevisto, Morandi soa lembranças materializadas: uma dedica-
engoliu com esforço: disse que havia nota- tória num livro, uma flor seca, um cacho de
do e podia até arriscar uma teoria explicati- cabelo, fotografias, velhas cartas.
va para o caso. Eu, por natureza, só posso pensar com
Não se explicava a mudança de tema. horror na eventualidade de que uma só de
Concluiu com seus botões que devia se tra- minhas lembranças seja cancelada, e por
tar de um “parafuso” solto, daqueles que isso adotei todos esses métodos; mas tam-
todos os médicos têm depois de certa ida- bém criei um novo.
de. Como Andriani: aos sessenta e cinco Não, não se trata de uma descober-
anos, cheio de fama, dinheiro e clientela, ta científica, simplesmente tirei partido de
144  •  Primo Levi

minha experiência de farmacologista e re- é imensamente mais eficaz na evocação


construí, com exatidão e numa forma con- das horas intermináveis de tédio sobre o
servável, um certo número de sensações silabário; o estado de espírito peculiar das
que para mim significam alguma coisa. crianças (de mim criança!) à espera terrifi-
A isso (repito, não pense que falo sem- cante da primeira prova de ditado. Quan-
pre sobre esse assunto) chamo mnemago- do inalo isto aqui (não agora: é preciso um
gos: ‘suscitadores de memória’. Quer me certo grau de recolhimento, naturalmente),
acompanhar?” quando cheiro, minhas vísceras se retorcem
Ergueu-se e dirigiu-se ao corredor. Na como quando esperava ser sabatinado aos
metade do caminho, voltou-se e acrescen- sete anos. Quer escolher mais uma?”
tou: “Como o senhor pode imaginar, devem “Acho que esta me lembra... espere...
ser usados com parcimônia, do contrário seu Na casa de meu avô, no campo, havia um
poder evocativo pode diminuir; além disso, quartinho onde se colocavam as frutas para
não é preciso que lhe diga que são inevitavel- amadurecer...”
mente pessoais. Estritamente. Aliás, pode-se “Muito bem”, fez Montesanto com sin-
dizer que são a minha pessoa, já que ao me- cera satisfação. “Exatamente como dizem
nos em parte eu consisto neles.” os tratados. Fico grato de que o senhor te-
Abriu um armário. Ali estavam umas nha escolhido um odor profissional: este é o
cinquenta garrafinhas de tampa esmerilha- cheiro do hálito do diabético em fase aceto-
da, todas numeradas. nêmica. Com mais uns anos de prática o se-
“Por favor, escolha uma.” nhor certamente teria descoberto sozinho.
Morandi o olhava perplexo; estendeu Como sabe, é um sinal clínico infausto, o
uma mão hesitante e escolheu uma. prelúdio do coma.”
“Abra e cheire. O que está sentindo?” “Meu pai morreu diabético, há quinze
Morandi inspirou profundamente várias anos; não foi uma morte breve nem miseri-
vezes, primeiro com os olhos em Montesan- cordiosa. Meu pai representava muito para
to, depois erguendo a cabeça numa postu- mim. Eu o velei por noites inumeráveis,
ra de quem interroga a memória. assistindo impotente à progressiva anula-
“Isso me pareceria cheiro de caserna.” ção da sua identidade; não foram vigílias
Montesanto cheirou por sua vez: “Não estéreis. Muitas das minhas crenças foram
exatamente”, respondeu, “ou pelo menos abaladas, muito do meu mundo mudou.
não é o mesmo para mim. É o cheiro das Para mim, portanto, não se trata apenas de
aulas nas escolas primárias; aliás, da minha maçãs ou de diabetes, mas do sofrimento
sala na minha escola. Não vou me estender solene e purificador, único na vida, de uma
sobre a composição: contém ácidos gra- crise religiosa.”
xos voláteis e uma acetona não-saturada. “... Esta não passa de ácido fênico!”,
Entendo que para o senhor não seja nada: exclamou Morandi, cheirando uma terceira
para mim, é a minha infância.” garrafa.
“Também conservo a foto dos meus “De fato. Pensava que para o senhor
trinta e sete colegas de escola do primeiro esse cheiro também dissesse alguma coisa;
ano primário, mas o cheiro desta garrafinha mas ainda não faz um ano que o senhor
Os m n e m ag o g os   •  145

terminou os turnos de hospital, a recor- “Sim, também. Parabéns pelo seu ol-
dação ainda não amadureceu. Porque o fato. Sente-se esse cheiro no alto da mon-
senhor deve ter notado – não é verdade? tanha, quando a rocha se escalda ao sol;
– que o mecanismo evocatório de que esta- especialmente quando há um desmorona-
mos falando exige que os estímulos, depois mento de pedras. Asseguro-lhe que não foi
de terem agido repetidamente, associados fácil reproduzir in vitro e tornar estáveis as
a um ambiente ou a um estado de alma, em substâncias que o constituem sem alterar
seguida cessem de agir por um tempo bas- suas qualidades sensíveis.”
tante largo. De resto, o senso comum diz “Antigamente eu ia muito à montanha,
que as recordações, para serem sugestivas, quase sempre sozinho. Quando chegava
devem ter um sabor antigo. ao topo, deitava sob o sol no ar parado e
Eu também dei muitos plantões em hos- silencioso e me parecia que alcançara um
pitais e respirei ácido fênico a plenos pul- objetivo. Naqueles momentos, e só se me
mões. Só que isso ocorreu há um quarto de concentrasse, percebia esse cheiro suave,
século, e, além disso, desde aquela época o raro de ser sentido em outros lugares. No
fenol deixou de constituir o fundamento da que me diz respeito, deveria chamá-lo aro-
antissepsia. Mas no meu tempo era assim, e ma da paz conquistada.”
é por isso que ainda hoje não posso cheirá- Superado o desconforto inicial, Morandi
-lo (não o quimicamente puro, mas este, começava a se afeiçoar ao jogo. Pinçou ao
a que acrescentei pitadas de outras subs- acaso uma quinta garrafa e a estendeu a
tâncias que o tornam específico para mim) Montesanto: “E esta?”.
sem que me surja na mente um quadro “Isto não é um lugar nem um tempo. É
complexo, de que fazem parte uma música uma pessoa.”
então em voga, o meu entusiasmo juvenil Fechou o armário; havia falado em tom
por Blaise Pascal, uma certa languidez pri- definitivo. Morandi preparou mentalmente
maveril nos rins e nos joelhos e uma colega algumas expressões de interesse e de ad-
de curso que, fiquei sabendo, tornou-se avó miração, mas não conseguiu superar uma
recentemente.” estranha barreira interna e renunciou a
Dessa vez ele mesmo escolhera uma externá-las. Despediu-se apressadamente,
garrafa; ofereceu-a a Morandi: com uma vaga promessa de nova visita, e
“Confesso que até hoje sinto orgulho precipitou-se pela escada em direção ao sol.
deste preparado. Apesar de nunca ter pu- Sentiu que enrubescera intensamente.
blicado seus resultados, considero-o o meu Depois de cinco minutos entre os pi-
verdadeiro sucesso científico. Gostaria de nheiros, subia furiosamente pela parte
ouvir a sua opinião.” mais íngreme, calcando o bosque macio,
Morandi aspirou com todo o cuidado. longe de qualquer caminho. Era muito
Certamente não era um cheiro novo: po- agradável sentir os músculos, os pulmões
deria ser qualificado de ardente, enxuto, e o coração funcionando a pleno vapor,
quente... assim, naturalmente, sem necessidade de
“... Quando se chocam duas pedras de intervenções. Era muito bom ter vinte e
ignição...?” quatro anos.
146  •  Primo Levi

Acelerou o ritmo da subida o mais que a ninguém. Nem a Lucia, nem a Giovanni.
pôde, até sentir o sangue batendo forte nos Não seria generoso.
ouvidos. Depois se estirou na grama, com Embora no fundo... somente com Gio-
os olhos fechados, contemplando o brilho vanni... e em termos estritamente teóricos...
do sol através das pálpebras. Até que se Existia algo que não se pudesse comunicar
sentiu como lavado e novo. a Giovanni? Sim, escreveria a Giovanni.
Então aquele era Montesanto... Não, Amanhã. Aliás (conferiu a hora), imediata-
não era preciso fugir, ele não se tornaria mente; a carta talvez ainda partisse com o
assim, não se deixaria transformar daque- correio da noite. Logo.
le jeito. Também não mencionaria o caso
Mater dolorosa

Otto Lara Resende


Sexto ocupante da Cadeira 39 na Academia Brasileira de Letras

E
Era assim desde o começo do mundo. Proibido m casa ou em toda a cidade, ninguém
fazer barulho. Papai pensou em pregar uma se lembrava mais de quando Mamãe
placa na rua, reclamando silêncio, como nos caiu doente. Havia muitos anos que
hospitais. A cidade inteira tomou ciência.
estava de cama. Talvez antes do parto, tal-
A rua era calada, sem crianças.
vez depois, quando sofreu uma ameaça de
Ninguém ria, ninguém cantava.
eclampsia. Ou no inverno seguinte, quando
teve uma pleurisia e tirou um litro de pus
dos pulmões. Talvez quando em seguida
ficou fraca do peito, com tanta punção e
sinapismo. Cataplasma e ventosas aplicadas
no meio da noite agônica, encharcada do
forte cheiro do éter.
– Mamãe não pode ser incomodada – as
tias recomendavam.
Tinha sido sempre assim. Era assim des-
de o começo do mundo. Proibido fazer ba-
rulho. Papai pensou em pregar uma placa
na rua, reclamando silêncio, como nos hos-
pitais. A cidade inteira tomou ciência. A rua
era calada, sem crianças. Ninguém ria, nin-
guém cantava. O alto muro de era, o jardim
isolava ainda mais a nossa casa. Lá dentro
todo mundo andava na ponta dos pés.
O bico de pena de Otto Lara, que aprece nesse con-
to, não é uma boa informação gráfica sobre ele, mas De começo, Papai e as tias se irritavam
foi feito por Rubem Braga. No bilhete que mandou com a falta de consideração de estranhos
acompanhando o desenho, Otto explica: “pouco im-
porta que não se pareça comigo; é do Rubem – e tanto
que passavam rindo pela calçada. Como é
basta.” que se podia rir com Mamãe no seu leito
148  •  Otto Lara Resende

de dor? Mas o pior foi quando um vizinho vozes nem passos. O leiteiro evitava de ma-
quase defronte deu uma festa. Escárnio: o drugada tilintar as garrafas na nossa porta.
alarido das vozes e da música batia em nos- O padeiro não se anunciava com voz can-
sas vidraças cerradas e nos unia com ran- tante por cima do portãozinho. Mamãe es-
cor contra o bruto sacrilégio. Papai queria tava doente. O ar viciado, era preciso evitar
ir pessoalmente explicar, dar um tapa de as correntes e os golpes de ar. As tias quei-
luva, pois já sabiam que Mamãe não estava mavam essências pelos cantos, fumigações.
passando bem. Foi tia Vera que não deixou A casa cheirava a eucalipto e a incenso, tal
Papai sair. Podia não se controlar, estourar câmara ardente. Mamãe estava doente. Ao
de santa cólera. A Encarnação é que afinal aproximar-se da nossa casa, todo mundo
deu o recado (– Por favor, Dona Maria está policiava os pés, controlava os movimen-
passando mal) e voltou triunfante. Crioula tos bruscos, prendia a respiração e, com ar
decidida, sem papas na língua. O xale nos compungido, exprimia solidariedade e co-
ombros, o terço na mão, tia Dulce desfia- miseração.
va jaculatórias e responsos. Invocou Santo – Dona Maria não está passando bem
Antônio, exigiu um milagre de São Judas – o refrão era repetido entre pequenas notí-
Tadeu. Rezou ao Senhor do Monte das Oli- cias de cólicas e sucessivas injeções.
veiras, do Gólgota, do Calvário. Por um mo- O médico vinha amiúde antes do almo-
mento, o vozerio no vizinho diminuiu. As ço. Às vezes voltava à tardinha e passava
janelas e as portas foram hermeticamente de novo à noite. Conversava à meia-voz na
fechadas. Recorreu-se a cobertores e traves- sala com Papai – as tias trêmulas, curiosas,
seiros. Mas a música e a alegria penetravam mantidas à distância. Só o chefe da casa po-
pelas frinchas da casa abafada. A Encarna- dia ficar sabendo e despedia-se do médico
ção escaldou um chá para acalmar as tias mais triste, mais derreado. Tinha aprendido
atarantadas e Papai se trancou amargo no um pouquinho mais do terrível, incurável
escritório. As tias aconselhavam: meditasse segredo. Recorria-se em sigilo a curandei-
na Descida da Cruz, na agonia no Horto. ros e rezadeiras, que a Encarnação sugeria.
– Falta de respeito – rosnou tia Vera, e Cogitava-se de convocar mais uma confe-
foi render tia Dulce na vigília ao pé do leito rência médica. Mandar buscar especialistas,
lá em cima. recorrer à cirurgia. Podia também ser vol-
Nos dias seguintes, Papai entrava e saía vo, nós nas tripas. Mamãe não estava em
como uma sombra cumprindo com o seu condições de viajar até um meio maior, de
dever. Porque Mamãe estava doente, ele recursos. A portas fechadas, a conferência
tinha os ombros caídos e olheiras no rosto médica se eternizava no escritório de Papai,
vincado. Era penoso viver com saúde na- mas o diagnóstico continuava impreciso e
quela casa doente. As vasilhas tinham de o prognóstico era sombrio. Seria sífilis tam-
ser esterilizadas com cuidado. Um saco de bém? E o medo das complicações, o fantas-
água quente não bastava. Eram necessá- ma da tuberculose rondando a família.
rios dois e três, que se alternavam. Mamãe No quarto lá em cima, Mamãe gemia,
reclamava silêncio, tinha o ouvido apurado suspirava e soluçava. Apertava no peito as
para qualquer barulho. Não podia ouvir mãos crispadas, tinha tonteiras e desmaios,
M at e r d o l o ro s a   •  149

tremores e delíquios. Pálida, puxava a ca- apreensão. As dolorosas tias dolorosamen-


beleira desgrenhada. Divagava, delirava. te subiam e desciam as escadas, de chine-
Ficavam dura e inconsciente, os ossos es- las de feltro, com emplastros e pacotes de
talavam. Tinha a cama cheia de medalhas algodão. Tia Dulce falava com um fiapo de
milagrosas, de bentinhos e relíquias. Um voz, difícil de escutar, propunha um mila-
oratório com o Cristo da Cana Verde foi ar- groso cataplasma de mostarda. Tia Vera ia
mado na alcova ao lado. Para aliviar as do- ficando curva, o rosto desfigurado, fazia
res da doente, veio uma cama de hospital, novenas ao Senhor Morto. As duas sofriam
de manivela, que as tias manejavam aflitas sinceras com o sofrimento de Mamãe. E de
dia e noite sem parar. Para baixo, para cima madrugada, no escuro, tropeçavam uma na
– em vão. Primeiro sob os lençóis, depois já outra, entre sustos e sobressaltos, fantas-
sem recato, Mamãe fazia suas necessidades mas de camisola.
numa comadre que se despejava e lavava Porque Mamãe estava doente, almoçá-
no banheiro. E vertia ardida a sua amea- vamos depressa e mal. Papai comia inape-
çadora urina cor de cobre. Uma lâmpada tente. Precisava de constantes apelos para
vermelha permanecia acesa na cabeceira da se alimentar, continuar vivendo. Almoçar
cama. Instalou-se uma campainha em for- com gosto e apetite seria uma ofensa à
ma de pera, que tocava impacientemente doente no andar de cima. A qualquer hora
na copa toda vez que a enferma ficava so- do dia ou da noite, a cozinha estava a ser-
zinha. Um rosário com bênção especial do viço de Mamãe – seus chás, suas papas e
Papa envolvia o abajur. Uma garrafinha com mingaus, seu pirão de farinha, sua canja
água de Lisieux garantia a proteção da Se- insossa, seus caldos engrossados. O médi-
nhora de Lourdes. Três Ágnus-Dei estavam co recomendava alimentá-la bem, prescre-
pregados com alfinete na camisola desbota- veu um regime de superalimentação. Mas
da da mater dolorosa. Mamãe não queria comer. Com a bandeja
– Coitada, é uma santa. Nunca ninguém servida no tabuleiro, em cima do seu ventre
sofreu assim. murcho, as tias imploravam que comesse. A
Longamente esquecido, imóvel na ca- Encarnação ia dizer pessoalmente que tinha
deira austríaca, Papai depositava os ócu- conseguido um tempero inocente que não
los no colo e, olhos fechados, tomava sal burlava as ordens médicas. Mas a pobre da
amargo e interrogava os desígnios do céu. Dona Maria não achava gosto nos pratos,
Pensava em mandar buscar sumidades da tinha medo de congestão.
ciência médica. Na penumbra de dentro de Depois da batalha no andar de cima,
casa, as coisas agonizavam em silêncio. As começava o almoço dos que não estavam
cortinas empoeiradas não mais se abriam. doentes. Num silêncio constrangido, com
Como todo mundo, a Encarnação instalou uma Pietá pendendo da parede da copa,
uma surdina na garganta. Uma empregada ninguém aprovava o próprio apetite.
nova foi despedida porque soltou uma ri- – Passe a abobrinha – dizia um e logo se
sada sem propósito, um escândalo. Quem envergonhava.
é que podia rir entre tantas dores? Todos Tia Vera comia escondido na cozinha
falavam baixo, cochichavam com temor e e se lamuriava com a mão no queixo: não
150  •  Otto Lara Resende

tinha apetite. Tia Dulce lambiscava e, na ele se sacrificasse. Precisava acordar cedo,
hora do almoço, entre imprecações, supli- já se impunha muitos sacrifícios.
cava a Papai que comesse mais um pou- A estridente campainha da porta foi
quinho: pela santíssima Virgem Maria, por desligada. Mamãe não a suportava. Com
Nossa Senhora da Conceição, pelo Senhor qualquer barulho, se estava cochilando,
do Gólgota e Sua coroa de espinhos, basta- despertava sobressaltada e o susto podia
va uma doente naquela casa. ser fatal. Queria saber quem era, o que se
Aos poucos, o jantar acabou suprimido. passava. Vinham-lhe ânsias de vômitos com
A família evitava reunir-se à mesa para um a preocupação. As ordens eram rigorosas:
festim. Cada qual comia por sua conta, so- a doente devia ser preservada. Acabou por
zinho. ser posta à margem, de nada sabia, nada
Na cozinha ou na copa, sentado numa lhe era comunicado. Conformou-se, desin-
ponta de tamborete ou mesmo em pé, to- teressou-se, não perguntava por mais nin-
dos nos despachávamos. Não queríamos guém, não dava notícia de coisa nenhuma.
testemunhas na hora de cumprir uma obri- Vivia a sua doença, coitada. Sua flagelação.
gação vergonhosa, matar a fome. E comí- Sofria vinte e quatro horas por dia. O resto
amos depressa, sem molhos ou requintes, não existia. O sol parou, o tempo foi coagu-
com medo de que Mamãe desconfiasse. lado. E tia Vera inventava mentiras piedosas
Papai não jantava, rodava a colherzinha na para enganá-la. Em vão procurava animá-la:
xícara, que tilintava funebremente. Depois ia ficar boa, convalescia.
ia sentar-se na poltrona diante da doente. E – Desta cama só para o túmulo – Ma-
mais tarde recolhia-se ao escritório, de onde mãe choramingava.
só o chamavam em caso de necessidade. Tenazmente, dia após dia, só se rezava
Houve um tempo em que era chamado por intenção de Mamãe. As tias sabiam de
com frequência. Uma crise de falta de ar, cor o ofício dos agonizantes e aguardavam
uma palpitação que ameaçava precipitar o em pânico o dies-irae. O vigário vinha vê-
desenlace. Uma dúvida na administração -la com frequência. Trazia-lhe o viático, a
dos xaropes e poções, uma seringa para misteriosa hóstia branca no radioso cibório.
ferver, uma injeção de coramina ou até de Mais de uma vez, na sua visita à paróquia,
óleo canforado. Calmantes e analgésicos, o Senhor Bispo veio visitar a enferma e con-
fricções e escalda-pés, palavras de conso- solar os aflitos. Vestidos a caráter, avisados
lo ou súplicas de voz embargada. Fora das com antecedência, recebíamos piedosa-
crises, das cólicas, dos suores noturnos, mente, compungidamente, a consoladora
dos acessos de tosse, das dispneias ou dos visita episcopal. Nas suas vestes vermelhas,
sustos, a noite decorria sem surpresas. Pa- sapatos de fivela, respeitoso anel, o Senhor
pai trancado no escritório até alta hora. Bispo se interessava pela saúde da doente,
Recolhia-se tarde ao quarto, dormia pica- demorava-se na sala de visitas especialmen-
do, despertava entre gemidos e suspiros de te aberta para recebê-lo. As tias ofereciam-
Mamãe. Com o tempo, passou a dormir no lhe um chá da índia caprichado, na melhor
escritório, salvo quando tirava o seu plantão porcelana, ou um fino licor de jenipapo, da
junto da doente. As tias não queriam que melhor frasqueira. E o Senhor Bispo, afável,
M at e r d o l o ro s a   •  151

dispensava a genuflexão, distribuía com numa casa envolvida pelas sombras da mor-
mão gorda a bênção e se deliciava com um te. Devia ser sacrilégio tentar alegrar o filho
doce de coco com ovo, especialidade da de uma santa senhora há tanto tempo pre-
Encarnação. Por ocasião de uma das suas sa irremediavelmente ao leito. Espadanejan-
solenes visitas, os dedos melados de doce, do asas e penas contra as paredes da gaiola,
afagou-me paternalmente as bochechas es- esfalfado, de bico aberto, o sabiá estranhou
pantadas. Na rua, juntava gente para ver o a nova morada e nervosamente queria voar
Senhor Bispo, que nos distinguia com a fi- para longe da nossa casa doente. Fiz tudo
neza de sua visita. E toda a cidade entendia para acalmá-lo.
que Mamãe estava gravemente enferma, Desprezou a talhada de mamão, recu-
resistindo a todos os recursos da ciência sou a água fresquinha que lhe ofereci. Aris-
médica. co, rejeitava a minha amizade, piava triste
Saído o Senhor Bispo, tia Vera multipli- e zangado, arrepiava as penas, queria fugir
cava as promessas e as novenas. Todas as por entre as varetas da gaiola. Encorajado,
noites rezávamos o terço, tirado pelas tias, sujava a gaiola e o chão por perto. As tias
diante do oratório melancólico, a lampada- tramaram soltá-lo, mas afinal o ignoraram.
zinha vermelha. Nossa Senhora Visitadora Triste e rebelde sabiá gigante, que eu tam-
veio passar uma temporada conosco e, na bém acabei esquecendo, passados os dias
sua capa prateada, também subiu as esca- de deslumbramento. Meu padrinho estava
das, foi respeitosamente exibida à doente. redondamente enganado – feio e depena-
A imagem milagrosa atraía à nossa casa do, o sabiá não cantava.
algumas beatas piedosas, que reforçavam Mamãe não ficou sabendo da existên-
as orações e ajudavam a implorar aos céus cia do sabiá. Podia não gostar, precisava ser
que devolvessem a saúde a Mamãe. A luz poupada. Vivia agora fora do mundo, sem
da sala brilhava mais por uns instantes e a notícia do que se passava em casa. As visi-
casa recendia a lírio, dama-da-noite e jas- tas foram rareando, desapareceram – certa-
mim. Trocavam-se as flores com frequência mente para não incomodar. Vizinhos e pa-
e um ramo de cravos ou de rosas era colo- rentes mandavam as criadas caridosamente
cado ao pé do Sagrado Coração de Jesus. A indagar como ia passando a Dona Maria e
lâmpada de azeite estalejava noite adentro. desejar-lhe impossíveis melhoras. Uma pa-
Porque a Mamãe estava doente, tudo den- renta velha mandou da fazenda uma tradi-
tro de casa era triste, opaco e funesto. cional estampa colorida da Descida da Cruz.
Menos o graúdo sabiá, no primeiro As tias chorosas agradeciam e informavam
dia de sua chegada. Foi presente do meu baixinho que Mamãe ia indo como Deus era
padrinho. Passei horas pecaminosamente servido, mas no íntimo sabiam que ia mal,
entretido com o meu sabiá, tentando fazê- desenganada. Os recados se trocavam no
-lo cantar. Tia Vera desaprovou. Tia Dulce alpendre, sob os vasos de samambaia e de
achou que era pecado, Mamãe tão doente, avenca, sem que ninguém se sentasse. Com
perder tempo com um passarinho. Papai piedoso interesse, as visitas compreendiam
não quis vê-lo, mas não havia de gostar da- que não era possível receber como mandava
quele sinal de vida faltando com o respeito a boa educação, com café e quitandas, ou
152  •  Otto Lara Resende

um licor de tamarindo fechado no guarda- alertas, com medo de serem apanhadas des-
-louça para essas ocasiões. Ninguém tomas- prevenidas. A vela benta de cera do santuá-
se como desfeita aquela acolhida chocha. rio de Congonhas do Campo estava sempre
Era cautela, para não chamar a atenção da à mão, para a extrema necessidade. Secre-
doente, e era também pudor, reverente res- tamente, os tocheiros estavam guardados, a
peito ao seu sofrimento. roupa da defunta jazia pronta no armário. A
No meio da noite, transpirando, o sudá- qualquer hora, o médico e o padre podiam
rio empapado, Mamãe costumava acordar ser chamados. O ofício dos mortos estava
e com ela toda a casa acordava. A Encar- marcado com uma fitinha roxa no livro de
nação ia para a cozinha ferver água para orações. Alheio às providências, passada a
alguma precisão. Papai, de pijama, desa- crise, Papai sentava-se na cadeira de balan-
tinado com aquele transtorno, custava a ço, os olhos vermelhos, mas conformados.
encontrar os óculos. As tias cochichavam, Uma noite, Mamãe acordou com os tro-
rezavam, trocavam sugestões, procuravam vões e os relâmpagos de uma tempestade
remédios e mesinhas, cápsulas e comprimi- que sacudia janelas e portas. As luzes sinis-
dos, subiam em silêncio e desciam afobadas tramente acesas, a casa era um navio que
com um susto no rosto. Mamãe em pranto naufragava. E nós todos a bordo. Mamãe
revirava os olhos, podia ser o fim – que se- chorava, imprecava, maldizia a natureza
ria depois? A morte é noturna, à noite todo cruel que não respeitava o seu sofrimento.
doente agoniza. Aplicavam-lhe cataplasmas As tias chamavam por Santa Bárbara e por
e suplicavam à Mamãe que tivesse paciên- São Jerônimo. No telhado, a água escacho-
cia, esperasse amanhecer o dia, suportas- ava como maldição. Os raios chicoteavam a
se por intenção das almas do purgatório noite escura. Esquivo diante de tanto corre-
e do santo escárnio aquela prova, vivesse. -corre, Papai foi postar-se na janela do escri-
Apertavam-lhe no peito magro uma relíquia tório e ficou olhando lá fora a violência do
de Santa Rita de Cássia, sugeriam-lhe que enxurro. De costas, seus ombros tremiam,
invocasse Nossa Senhora da Piedade. Da- como se chorasse. Lá em cima, tia Dulce,
vam-lhe a beber da milagrosa garrafada de de joelhos, agarrava a mão fria de Mamãe,
Santa Manuelina dos Coqueiros. Liam com beijava-a e a friccionava, alternadamente.
voz trêmula a bênção especial mandada por Tia Vera, em pânico diante da tempestade,
Monsenhor Horta. temia um castigo e exigia de Mamãe que
As luzes acesas anunciavam à cidade tivesse ânimo, que ia passar, que resistisse.
indiferente que naquela casa de dor, sozi- Pela manhã continuava a chover. Calçando
nha, Mamãe mais uma vez podia despedir- as galochas, enfiando a capa de gabardine
-se da vida e ainda uma vez vencia a morte. e o chapéu de feltro, Papai abriu o guarda-
Só ao raiar do dia, com os vitoriosos galos -chuva e cedinho saiu para a rua, sem dizer
cantando, os cães latindo despudorados, en- palavra. Pensamos que ele ia bater à porta
tre gemidos e atrozes sofrimentos, Mamãe da farmácia, buscar mais um remédio ur-
conseguia adormecer. Exaustas, as luzes se gente para Mamãe. As tias lamentaram a
apagavam, a Encarnação se recolhia resmun- fortuna gasta com medicamentos. Um su-
gando rezas fortes e as tias permaneciam midouro. Mas Papai só voltou muito tarde,
M at e r d o l o ro s a   •  153

na hora do jantar, e de mãos abanando. providências para o velório e o enterro. Na


Ninguém ousou perguntar onde ele foi. cozinha, a Encarnação acendeu o forno e o
Até que um dia, de dia, depois do al- fogão para receber com agrados de boca os
moço, numa hora banal e preguiçosa, de- que vinham fazer quarto pelo resto do dia
pois de termos almoçado um ensopado de e por toda a comprida noite fúnebre. Como
carne com moranga, quando nada fazia se nunca tivessem previsto aquele desfecho,
prever qualquer acontecimento, sozinha as tias lastimavam a falta de tempo para o
no quarto, cochilando serenamente, Ma- padre dar a extrema-unção. Trancaram-se
mãe exalou seu último suspiro. Sem vela no quarto da falecida e, rezando a duas
na mão, sem ofício dos mortos, sem bispo, vozes, lavaram, perfumaram, vestiram e en-
sem padre e sem sacristão, sem despedida, feitaram a defunta – seu rosto lívido, suas
morreu. Enfim descansou. A notícia correu mãos nervosas, seu nariz afilado e pontudo,
depressa pela cidade e, num átimo, come- sua boca amarga.
çaram a chegar as primeiras visitas. Voz Esquecido de todos, querendo since-
baixa, agradecendo com polido controle ramente sofrer, escondi-me no fundo do
cada abraço de pêsames, subitamente de quintal. E só então reparei que, de novo
preto como se há muito tivesse preparado emplumado e saltitante, em plena aleluia,
o viúvo que ia ser, Papai começou a tomar meu sabiá começou finalmente a cantar.
CALIGRAMA

Retratos da alma

Nilo Dante
Nasceu em Barra do Piraí. Trabalhou em dez jornais do Rio, dos quais dirigiu cinco.

“Eddy Novarro – grande artista da fotografia, Novarro morreu em 25 de agosto de


à altura dos grandes artistas – Picasso, 2003, no Rio, encerrando um capítulo fas-
Chagall, Braque e tantos outros – que ele cinante da história das artes do Século XX.
fixa para a eternidade graças à implacável Eddy Novarro nasceu em Bucareste, Ro-
exatidão, à rara compreensão de seus olhos
mênia, em 14 de novembro de 1925. Em
de mestre”.
certa noite em fins de 1939, seus pais o le-
M anuel B andeira
varam à gare principal de Bucareste onde
a Cruz Vermelha Internacional o embarcou
“Novarro fixa a verdade e a verdadeira
num trem com destino a Roma, como refu-
face de cada um desses artistas e desses giado de guerra. Em 1946, a Cruz Vermelha
escritores, de um Picasso e um Tzara a um o trouxe para o Brasil.
Niemeyer e a um Mario Cravo. Mais do que Apesar de seus estudos de Arquitetura
simples retratos, são criações à altura dos e das Artes em Roma, ele desembarcou na
retratados”. Ilha das Flores, em plena Baía de Guanaba-
J orge A mado ra, como qualquer imigrante de 20 anos:
passaporte de apátrida na mão e 15 dólares
no bolso. Desde então, trabalhou muito em

A
obra deixada pelo fotógrafo rome- seus primeiros tempos no Rio. Foi auxiliar
no Eddy Novarro é tão abrangente, de serviços gerais da extinta loja de depar-
tão singular e tão implausível que tamentos Mesbla, no Passeio Público, a
se poderia até pôr em dúvida de que um poucos passos da Rua das Marrecas, onde
dia existiu, não fossem as centenas de ne- ele dividia um quarto com outros imigran-
gativos que pareciam perdidos na Europa, tes que a Cruz Vermelha ali acomodava
onde o artista desenvolveu a maior parte de em uma modesta pensão. Trabalhou em
seu trabalho, mas há pouco foram recupe- pequena impressora de mimeógrafos. De-
rados pelos herdeiros e acabam de voltar ao pois, em oficina especializada em consertos
Brasil. em aparelhos de rádio e vitrolas. Chegou a
156  •  Nilo Dante

caçar borboletas para o British Museum na Adenauer, o Dalai  Lama, Ben Gurion,
Floresta da Tijuca e nos matagais de Niterói. Anwar Sadat, Xá da Pérsia, Mário Soares,
A certa altura, passou a frequentar um Farah Diba, Rei Hussein, Albert Sabin, Aki-
grupo de jovens arquitetos de vanguarda ra Kurosawa, Ava Gardner, Daniel Cohn-
como Oscar Niemeyer que seria seu grande -Bendit, Moshe Dayan, Miles Davis, Juan
amigo pelo resto da vida. Le Corbusier, uma Peron, Isaac Stern, Andre Malraux, Eugene
espécie de guru da turma, o aconselhou a Ionesco, Edward G. Robinson, Curd Jur-
optar pela fotografia. gens, Tennessee Williams, Jorge Luis Bor-
Novarro aceitou o conselho. O resultado ges, Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek,
é o maior acervo fotográfico que se conhe- Murilo Mendes, Tom Jobim, Vinicius, Car-
ce dos gênios das artes do século XX. Acer- los Drummond de Andrade e muitos ou-
vo que começa em Portinari e inclui Picasso, tras personalidades, inclusive os acadêmi-
Braque, Miró, Dalí, Chagall, De Chirico, Ma- cos Manuel Bandeira, Jorge Amado, João
gritte, Francis Bacon, Bruno Giorgi, Di Ca- Cabral de Melo Neto, Roberto Marinho,
valcanti, Botero, De Kooning, Kokoschka, Ivo Pitanguy e Fernando Henrique Cardo-
Rivera, Giacometti, Marcel Duchamp, Andy so, a última das celebridades que passaram
Warhol, Krajcberg, Botero, Burle Marx, Va- por sua lente.
sarely, Mabe, Tomie Otake, Cícero Dias e Eddy Novarro vestia-se com apuro, era
outros craques de igual quilate. Inclusive os fluente em seis idiomas, transitava com
autores de cinco das sete obras de arte mais sucesso nos salões das artes e do grand
valiosas da história: Picasso, Giacometti, monde. Discorria com naturalidade e co-
Andy Warhol, Francis Bacon e De Kooning. nhecimento sobre a constelação dos gênios
Em 1958, o arquiteto Sergio Bernardes das artes que povoaram seu interesse inte-
o contratou para fotografar uma de suas lectual desde a adolescência – de Da Vinci
obras, o Pavilhão do Brasil na Feira de Bru- a Picasso, de Giotto a Chagal, de Rafael a
xelas. Na Bélgica, Novarro se aproximou de Michelangelo, de El Greco a Giacometti, de
René Magritte e fez amizade com o toureiro Fragonard a Braque, de Rembrandt a Ma-
Luiz Dominguín, que o introduziu na tribo gritte, de Bosh a Dalí, de Portinari a Miró,
do Picasso. Com as bênçãos do pintor, que de Rivera a Di Cavalcanti.
se encantou com seu conhecimento das ar- Muitos dos artistas e personalidades
tes a ponto de acolhê-lo em sua casa, No- com os quais conviveu – e fotografou – se
varro não parou mais de fotografar os gran- tornaram seus amigos e o presentearam
des de sua época. com óleos, gravuras, desenhos, rabiscos,
Em outro plano de seu impressionante esboços acompanhados de afetuosas dedi-
portfólio, Eddy Novarro também fotogra- catórias e mensagens manuscritas.
fou estadistas, escritores, monarcas, músi- Este material foi reunido no livro Who
cos, filósofos, hierarcas religiosos, poetas, is who – Eddy Novarro and the avant-garde
cientistas, astros de cinema, ativistas polí- from the 50s and the 70s publicado pelo
ticos, heróis nacionais e uma seleta inco- Museu Pablo Picasso, em 2011, a propósito
mum de celebridades mundo afora. Entre da mostra ali realizada das obras dos artis-
estes figuram Golda Meir, Paulo VI, Conrad tas a ele dedicadas.
R e t r atos da a l m a   •  157

A obra de Novarro foi objeto de várias grande pintor à morte, aos 59 anos. Ficou fa-
exposições na Europa, nas Américas e de um mosa, também, pelas lágrimas incontidas de
luxuoso livro de arte editado na França pela Oscar Niemeyer, quando a viu pela primeira
Edition Cercle D’art, de Paris – Novarro Close vez e pode observar o drama de seu compa-
Up – assinado pelo célebre crítico Pierre Res- nheiro de tantas obras, como a Capela da
tany, com Picasso na capa. No Brasil realizou Pampulha, o Ministério da Educação, no Rio,
apenas duas exposições. A primeira, em no- o Colégio de Cataguazes e outras.
vembro de 1989, na 20.ª Edição da Bienal de Um dos aspectos mais instigante na
São Paulo. A segunda, em janeiro de 1990 saga de Novarro foi sua prodigiosa capaci-
no Paço Imperial, no Rio. dade de frequentar a agenda do primeirís-
Em outubro de 1957, ganhou a Medalha simo time da Pintura, Escultura, Literatura,
de Ouro em um concurso internacional de Cinema, Música, Arquitetura e do Poder
Fotografias do Fluminense Foto Clube, com que ele retratou e com quem conviveu.
aquilo que a imprensa da época chamou Ao concentrar sua lente radical nos
“portrait colorido” – um close de Portinari olhos, mais que o semblante dos retratados,
com uma xícara na mão direita enluvada. Eddy Novarro criou um estilo só para ele. O
A foto foi o primeiro registro público do en- estilo de desvendar a alma de seus persona-
venenamento pelas tintas que condenaria o gens. Não raro conseguiu.
158  •  Nilo Dante

Candido Portinari
R e t r atos da a l m a   •  159

Manuel Bandeira

Marc Chagall
160  •  Nilo Dante

Fernando Henrique Cardoso

João Cabral de Melo Neto


R e t r atos da a l m a   •  161

Pablo Picasso

Ivo Pitanguy
162  •  Nilo Dante

Dalai Lama

Roberto Marinho
R e t r atos da a l m a   •  163

Vinicius de Moraes

Carlos Drummond de Andrade


Petit Trianon – Doado pelo governo francês em 1923.
Sede da Academia Brasileira de Letras,
Av. Presidente Wilson, 203
Castelo – Rio de Janeiro – RJ
PATRONOS, FUNDADORES E MEMBROS EFETIVOS
DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
(Fundada em 20 de julho de 1897)
As sessões preparatórias para a criação da Academia Brasileira de Letras realizaram-se na sala de redação da
Revista Brasileira, fase III (1895-1899), sob a direção de José Veríssimo. Na primeira sessão, em 15 de dezembro
de 1896, foi aclamado presidente Machado de Assis. Outras sessões realizaram-se na redação da Revista, na
Travessa do Ouvidor, n.o 31, Rio de Janeiro. A primeira sessão plenária da Instituição realizou-se numa sala do
Pedagogium, na Rua do Passeio, em 20 de julho de 1897.

C a d e i r a P at r o n o s Fundadores Membros Efetivos


01 Adelino Fontoura Luís Murat Ana Maria Machado
02 Álvares de Azevedo Coelho Neto Tarcísio Padilha
03 Artur de Oliveira Filinto de Almeida Joaquim Falcão
04 Basílio da Gama Aluísio Azevedo Carlos Nejar
05 Bernardo Guimarães Raimundo Correia José Murilo de Carvalho
06 Casimiro de Abreu Teixeira de Melo Cícero Sandroni
07 Castro Alves Valentim Magalhães Cacá Diegues
08 Cláudio Manuel da Costa Alberto de Oliveira Cleonice Serôa da Motta Berardinelli
09 Domingos Gonçalves de Magalhães Magalhães de Azeredo Alberto da Costa e Silva
10 Evaristo da Veiga Rui Barbosa Rosiska Darcy de Oliveira
11 Fagundes Varela Lúcio de Mendonça Helio Jaguaribe
12 França Júnior Urbano Duarte Alfredo Bosi
13 Francisco Otaviano Visconde de Taunay Sergio Paulo Rouanet
14 Franklin Távora Clóvis Beviláqua Celso Lafer
15 Gonçalves Dias Olavo Bilac Marco Lucchesi
16 Gregório de Matos Araripe Júnior Lygia Fagundes Telles
17 Hipólito da Costa Sílvio Romero Affonso Arinos de Mello Franco
18 João Francisco Lisboa José Veríssimo Arnaldo Niskier
19 Joaquim Caetano Alcindo Guanabara Antonio Carlos Secchin
20 Joaquim Manuel de Macedo Salvador de Mendonça Murilo Melo Filho
21 Joaquim Serra José do Patrocínio Paulo Coelho
22 José Bonifácio, o Moço Medeiros e Albuquerque João Almino
23 José de Alencar Machado de Assis Antônio Torres
24 Júlio Ribeiro Garcia Redondo Geraldo Carneiro
25 Junqueira Freire Barão de Loreto Alberto Venancio Filho
26 Laurindo Rabelo Guimarães Passos Marcos Vinicios Vilaça
27 Maciel Monteiro Joaquim Nabuco Antonio Cicero
28 Manuel Antônio de Almeida Inglês de Sousa Domicio Proença Filho
29 Martins Pena Artur Azevedo Geraldo Holanda Cavalcanti
30 Pardal Mallet Pedro Rabelo Nélida Piñon
31 Pedro Luís Luís Guimarães Júnior Merval Pereira
32 Araújo Porto-Alegre Carlos de Laet Zuenir Ventura
33 Raul Pompeia Domício da Gama Evanildo Bechara
34 Sousa Caldas J.M. Pereira da Silva Evaldo Cabral de Mello
35 Tavares Bastos Rodrigo Octavio Candido Mendes de Almeida
36 Teófilo Dias Afonso Celso Fernando Henrique Cardoso
37 Tomás Antônio Gonzaga Silva Ramos Arno Wehling
38 Tobias Barreto Graça Aranha José Sarney
39 F.A. de Varnhagen Oliveira Lima Marco Maciel
40 Visconde do Rio Branco Eduardo Prado Edmar Lisboa Bacha
C o mp o s t o em Frutiger Light 9,5/13,5 pt; C i ta ç õ e s , 9 / 1 2 pt

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