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Brasileira fa s e i x
• J U L H O - A G O S T O - SE T E M B R O 2 0 1 8 •
ano i • n.° 96
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 8
Diretoria Diretor
Presidente: Marco Lucchesi Cícero Sandroni
Secretário-Geral: Alberto da Costa e Silva
Conselho Editorial
Primeira-Secretária: Ana Maria Machado
Arnaldo Niskier
Segundo-Secretário: Merval Pereira
Merval Pereira
Tesoureiro: José Murilo de Carvalho
João Almino
Comissão de Publicações
Membros Efetivos Alfredo Bosi
Affonso Arinos de Mello Franco, Antonio Carlos Secchin
Alberto da Costa e Silva, Alberto Evaldo Cabral de Mello
Venancio Filho, Alfredo Bosi,
Produção Editorial
Ana Maria Machado, Antonio Carlos
Secchin, Antonio Cícero, Antônio Torres, Monique Cordeiro Figueiredo Mendes
Arnaldo Niskier, Arno Wehling, Cacá Revisão
Diegues, Candido Mendes de Almeida, Vania Maria da Cunha Martins Santos
Carlos Nejar, Celso Lafer, Cícero Sandroni, Projeto Gráfico
Cleonice Serôa da Motta Berardinelli, Victor Burton
Domicio Proença Filho, Edmar Lisboa Bacha,
Editoração Eletrônica
Evaldo Cabral de Mello, Evanildo Cavalcante
Estúdio Castellani
Bechara, Fernando Henrique Cardoso,
Geraldo Carneiro, Geraldo Holanda Academia Brasileira de Letras
Cavalcanti, Helio Jaguaribe, João Almino, Av. Presidente Wilson, 203 – 4.o andar
Joaquim Falcão, José Murilo de Carvalho, Rio de Janeiro – RJ – CEP 20030-021
José Sarney, Lygia Fagundes Telles, Marco Telefones: Geral: (0xx21) 3974-2500
Lucchesi, Marco Maciel, Marcos Vinicios Setor de Publicações: (0xx21) 3974-2525
Vilaça, Merval Pereira, Murilo Melo Filho, Fax: (0xx21) 2220-6695
Nélida Piñon, Paulo Coelho, Rosiska Darcy E-mail: publicacoes@academia.org.br
de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, Tarcísio site: http://www.academia.org.br
Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2
Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
pelas exatidão das citações e referências bibliográficas de seus textos.
Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.
A pr esentaç ão
Cícero Sandroni 7
D I SCURSO
Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènitán Ògúnwùsì Odjádja II Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye Ènìtán Bàbátúndé Ògúnwùsì,
Rei de Ifé, Odjádja II 53
Marco Lucchesi Discurso de Marco Lucchesi 55
en s aio
Arno Wehling Conhecimento Histórico e teoria – a propósito do conceito 57
Antonio Maura Lorca e o Brasil 61
Abhay K. Poesia e Diplomacia 71
Nazir Ahmed Can O condenado, o escravo e um “cardume de porcos”: notas sobre Biografia do Língua,
de Mário Lúcio Sousa 77
Pires Laranjeira Agreste matéria: o trabalho poético de José Luiz Tavares ou a busca da extrema
singularidade e excepcionalidade 83
Marcelo Backes A doença para a arte, não para a morte, na obra de Thomas Mann 87
Jeová Silva Santana Genolino Amado e seus leitores‑ouvintes 93
Emmanuel Santiago As ambivalências da tradição na poesia de Antonio Carlos Secchin 99
Glauber de Oliveira O poeta Alberto da Costa e Silva 107
Mario Werneck Breve análise de uma história narrada por Jalāl al-Dīn Rūmī 111
POESIA
Adriano Wintter 121
Rodrigo Petronio 129
William Soares dos Santos 133
conto
Primo Levi Os mnemagogos 141
Otto Lara Resende Mater dolorosa 147
CA LI GRAMA
Nilo Dante Retratos da alma 155
Esta a glória que fica, eleva, honra e consola.
Machado de Assis
Apresentação
Cícero Sandroni
Ocupante da Cadeira 6 na Academia Brasileira de Letras
N
esta edição da Revista Brasileira, acompanhado de grande comitiva, compro-
ainda apresentada só na sua versão vadores da profunda relação entre o Brasil
digital, mas na expectativa de voltar e a África.
também à forma impressa em 2019, o leitor Contribuem também para a composição
encontrará textos sobre Guimarães Rosa, desta edição o presidente do Instituto His-
escritor fundamental da literatura brasileira tórico e Geográfico Brasileiro, e Acadêmico,
traduzido em vários idiomas e membro da Arno Wehling, o sócio correspondente da
ABL. Os estudos foram apresentados em ABL, e o filólogo e ensaísta espanhol Anto-
conferências pronunciadas em Ciclo apre- nio Maura. E não menos importantes, mas
sentado no Teatro R. Magalhães Jr. Seus au- destacadas figuras da cultura brasileira,
tores, o diplomata, Acadêmico romancista publicamos textos essenciais dos que vêm
João Almino, atualmente embaixador em a seguir: Abhay K., Nazir Ahmed Can, Pi-
Quito, no Equador, José Nêumanne Pinto, res Laranjeira, Marcelo Backes, Jeová Silva
jornalista, colaborador do jornal O Estado Santana, Emmanuel Santiago, Glauber de
de S. Paulo e escritor, o romancista mineiro Oliveira e Mario Werneck.
Benito Barreto, de vasta e celebrada obra, e A poesia é necessária, nas palavras do
o escritor, ensaísta e crítico literário Deoní- saudoso Rubem Braga, e em nossas pági-
sio da Silva. nas o leitor encontrará versos dos poetas
Enriquecem esta edição os discursos Adriano Winter, William Soares dos Santos
pronunciados em cerimônia realizada no e Rodrigo Petronio. E, na ficção, os “Os me-
Petit Trianon da ABL, por iniciativa do Se- nenagogos”, conto do químico e escritor
cretário-Geral da Casa, Alberto da Costa judeu italiano Primo Levi, durante a guerra
e Silva, em homenagem a Ọ́ ọ̀ ni Adéyeye levado a Auschwitz. Resgatado pelo Exéci-
Ènìtán Bàbátúndé Ògúnwùsì, Rei de Ifé. O to soviético, conseguiu voltar à Itália onde
leitor encontrará não só o discurso do pre- escreveu romances e contos sobre os hor-
sidente da Casa, Marco Lucchesi, mas a res- rores do nazismo e da vida nos campos de
posta de Sua Majestade, que compareceu concentração. Vítima de grande depressão
8 • Cícero Sandroni
O jagunço e o bacharel
Q
uando Deonísio da Silva, espécie que reúne intelectuais e notáveis? Muito
de Indiana Jones na caça à origem amiga de minha mulher, Isabel, e minha, a
das palavras, me avisou que o poe- professora Márcia Lígia Guidin, cuja tese de
ta Carlos Nejar queria me incluir na progra- doutorado na USP versa sobre Machado,
mação de seminário sobre Guimarães Rosa, sugeriu-me que abordasse dois dos prin-
tremi nas bases. E mais ainda: abrindo o cipais relatos dos gênios da literatura pelo
ano desta Casa de Machado de Assis. Que que têm em comum. Duas de suas obras-
desafio para esse cangaceiro das palavras, -primas, Dom Casmurro e Grande Sertão:
sem formação acadêmica para me escudar Veredas, são relatos de velhos saudosos de
nem leitura recente em que me apoiar, ao episódios do passado, protagonizados pelas
discorrer sobre o percurso daquele jagunço duas mais sedutoras mulheres da literatura
das letras! Contudo, não sou de fugir de nacional em todos os tempos: Capitolina,
desafios, e não me abalei com a segunda no formoso e frenético burgo de São Sebas-
parte da proposta: teria de fazer uma co- tião do Rio de Janeiro, ex-Corte do Império
nexão – provável, porém pouco estudada – e capital da República Velha, e Deodorina,
entre o gênio de Cordisburgo e o bruxo do nos ermos e ignotos sertões ditos dos Ge-
Cosme Velho. Aí, danou-se! Mas me dispus rais às margens do Velho Chico e seus
a navegar nas carrancas do Velho Chico e afluentes. Os episódios, ocorridos no século
a viajar de carruagem nas priscas eras da 19, presumivelmente ainda no Segundo Im-
República entre a rua Matacavalos e a praia pério, são narrados por velhos que viveram
do Flamengo. amores mal resolvidos com as damas cita-
Como diria meu avô Chico Ferreira, que das, que se tornaram as verdadeiras pro-
diacho podia haver que identificasse o ama- tagonistas, conhecidas tempos afora pelos
nuense que fundou a Academia Brasileira apelidos familiares: Capitu e Diadorim.
de Letras com o diplomata e ex-médico ful- Aprendi desde cedo que quem tem ami-
minado por um infarto horas após tomar go não morre pagão. Recorri à cultura ines-
posse nesta venerável instituição cultural gotável dos leitores obsessivos José Mario
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 6 de março de 2018.
10 • José Nêumanne Pinto
Pereira e Christine Ajuz e eles prontamente capítulos sobre os olhos e os braços de Ca-
me socorreram. Outro leal amigo, Maurício pitolina não deixam dúvidas sobre o ciúme
Melo Júnior, que acaba de lançar um ro- doentio que foi tomando conta da narra-
mance e tem obra biográfica de destaque ção, de forma sibilina e também exaltada,
no campo do documentário sobre grandes injetado pelo autor no pleno domínio de
escritores no canal de TV do Senado Fede- seu ofício.
ral, citou-me a coincidência notória de que Dom Casmurro, como, de resto, a obra
o bruxo do Cosme Velho e o filho de Cor- inteira de Machado, pode ter em comum
disburgo (a cidade do coração) publicaram com a de Rosa certa referência aos deslo-
contos com o mesmo e significativo título – camentos, no caos urbano, de seus perso-
O Espelho –, o primeiro em Papéis Avulsos, nagens. A obra mais popular de Machado
o segundo em Primeiras Estórias. Em co- pode ser definida como a descrição de pe-
mum entre os dois, porém, apenas o tema quenas viagens em torno de sua cidade na-
e o título. Machado escreveu uma novela tal. Machado era tão fiel ao Rio de Janeiro
de realismo mágico avant-la-lettre. E Rosa que desprezou os anos passados por seu
aventurou-se por digressões psicanalíticas, narrador bacharel nas arcadas do convento
como se abordasse um assunto mais cien- de São Francisco, em São Paulo, limitando a
tífico do que ficcional. descrição mais detalhada de sua formação
Desde a primeira leitura dos dois clás- escolar aos anos de seminário, e só voltan-
sicos, me deixei levar pelos devaneios, pri- do à narrativa já com diploma de Direito em
meiro com Capitu e depois com Diadorim, punho no Rio. Machado é um dos mais ra-
apesar dos relatos abertamente opostos a zoáveis motivos para se amar a cidade em
respeito das duas: a adoração que virou que ele nasceu e sobre a qual apoiou sua
desprezo do bacharel Bento Bentinho e a obra inteira. Aprendi a amar o Rio lendo
veneração ampliada com o distanciamento Machado.
dos fatos narrados pelo jagunço Riobaldo Chamo, então, atenção para a similitu-
Tatarana Urutu-Branco sobre o mais que de entre a cena urbana da Corte que virou
amigo que conheceu na infância como Rei- capital da República no século 19 e o sertão
naldo, depois transformado no companhei- de então e de hoje. O menino Bentinho,
ro Diadorim em vários bandos de jagunços como sabemos, passou a infância atormen-
aos quais a dupla pertenceu. tado por seu destino traçado pela promessa
É impossível ler a descrição dos olhos de da mãe de fazê-lo padre. Posso testemunhar
Capitu pelo apaixonado na pena impecável que no sertão de Riobaldo, assim como no
do Bruxo do Cosme Velho sem ser assaltado burgo de Bentinho, o ensino religioso era,
pelo êxtase causado pela emoção provoca- à época das narrativas comparadas, a saída
da pela beleza da narrativa, pela elegância encontrada por muitos jovens para suprir as
do estilo e pela veneração do autor por nos- carências educacionais de seus lugares de
sa língua portuguesa. A leitura do capítulo origem.
específico sobre os braços prepara o leitor Minha relação com a obra magistral de
tanto para o enamoramento quanto para o Rosa foi mais permanente do que a que
ciúme do narrador em relação à heroína. Os mantive com a de Machado, mas também
O j ag u n ç o e o b ac h a r e l • 11
mais casual. O exemplar de Grande Sertão: diagnóstico de Jacob uma observação ex-
Veredas esteve sempre à mão, pois costu- traída da leitura mais recente do livro má-
mava lê-lo como o faço com poesia e com ximo de Machado: o autor salpicou toda a
a Bíblia: abria ao acaso uma página e lia o estória do narrador com vários episódios de
que estava à minha frente. Para escrever sua imaginação farta e falsa.
este texto, resolvi ler a obra-prima de Rosa O gênio de Machado também incluiu
em voz alta para minha mulher, Isabel, e na história um personagem de alta rele-
para mim mesmo. E, na tarefa de releitura, vância, o agregado José Dias – que podia
comprei uma edição recente e muito boa ser intrigante ou bajulador, dependendo da
de Dom Casmurro, lançada pela Penguin/ circunstância –, e este cultivava o vício de
Companhia das Letras, dirigida pelo colega reforçar seus argumentos com o uso exage-
Matinas Suzuki. A introdução do professor rado dos aumentativos. Não é de estranhar
Luís Augusto Fischer é um verdadeiro vade- que, convivendo com essa figura, Bentinho
-mécum da fortuna crítica do romance mais se tornasse, ele mesmo, um narrador exa-
comentado e criticado da literatura brasilei- gerado, e assim não seria gratuito incluir a
ra. Ao deparar com os nomes citados por questão do adultério da mulher nesse vício
ele, percebi que a aventura de abarcar essa retórico aumentativo.
fortuna crítica seria mais penosa do que o A leitura falada do texto de Rosa aqui
destino de Capitu depois da conclusão a abordado, como já relatei antes, me propi-
que chegou Bentinho de que ela o traíra ciou uma abordagem nova da linguagem
com Escobar, resultando no “fruto podre” de Rosa, que eu tentarei resumir, não tanto
que o levou a proferir uma das piores im- para surpreendê-los, encantá-los ou infor-
precações do histórico da relação entre pai má-los, e sim, muito mais, para lançar al-
e filho: a de que não lamentava os gastos gumas inquietações de leitor sobre a possi-
com seu enterro, por compará-los com o bilidade de preservar o legado canônico da
alívio representado pela ausência de um língua de Camões e Eça em terras de Ma-
bastardo, já que este só reproduzia sua ver- chado e Rosa, cujas obras-primas, como de-
gonha de marido traído pela amada de in- finiu um colega de ofício que também per-
fância com o amigo que mais respeitava, e tenceu a essa Academia, Antônio Callado,
pelo qual tinha um afeto incomum. compõem em paralelo o díptico que mos-
Não vim aqui para debater, mas para su- tra, de um lado o Brasil profundo do sertão
gerir as causas que podem ter levado Bento e, do outro, o país urbano, paradoxo que
Bentinho a acreditar-se traído por Capitoli- desde então, está sempre a nos desafiar.
na. E não posso deixar de acrescentar uma Reler Dom Casmurro, mantendo conta-
colher de puro fel de meu amigo Jacob tos esporádicos com os textos de Machado,
Pinheiro Goldberg, advogado e psicólogo, foi também a chamada oportunosa ensan-
que exaltou a genialidade de Machado ao cha para aprimorar o gosto e, em seguida,
incutir no narrador indignado uma descon- o texto, em que pontifica a verve do Bruxo,
fiança que povoa o imaginário masculino capaz de produzir no idioma de Camões e
brasileiro: todo homem acha que foi, é ou Eça o suprassumo da melhor embocadura
virá a ser traído. Acrescento ao maldoso do sense of humour da verve na língua de
12 • José Nêumanne Pinto
Deonísio da Silva
Professor, romancista, contista e ensaísta
R
éu em inusitado julgamento no pátio sagaz. Zé Bebelo é um réu que dirige o jul-
da Fazenda Sempre-Verde, o jagun- gamento, fixa limites de suas penas e traça
ço letrado Zé Bebelo, salvo por Rio- as condições para cumpri-las: receber mon-
baldo, seu ex-professor, conduz o próprio taria, escolta, água e comida na viagem para
julgamento. Goiás, onde promete fixar-se, deixando de
No insólito tribunal, os juízes são outros combater os ex-companheiros de luta, como
cangaceiros, liderados pelo grande chefe vinha fazendo até ali. Mas se consegue obrar
Joca Ramiro, todos sob o olhar misterioso todos estes feitos é porque Joca Ramiro é um
de um jagunço que é jagunça: Reinaldo/ juiz ainda mais sagaz do que o réu.
Diadorim. A batalha travada pelo bando de Zé Be-
A Lava a Jato pode inspirar outra leitura belo contra as hostes de Joca Ramiro tem
deste curioso episódio de Grande Sertão: este particular de semelhança com a ope-
Veredas, em que o sertão é assim definido: ração Lava a Jato, que parece a “indesejada
“Sertão é onde manda quem é forte, com das gentes”, como da morte disse o poeta
as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que Manuel Bandeira. Quando investigadores
venha armado!” E mais: “onde criminoso batem à porta de investigados é como se
vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho chegassem com o caixão feito sob medida
de autoridade.” para o enterro.
O Brasil também já foi assim. E agora Sob o comando de Sérgio Moro, a Lava
chegamos à encruzilhada onde tribunais a Jato mostra que os criminosos de colari-
superiores estão decidindo se continuará nho branco não têm os valores éticos dos
assim ou se mudará. jagunços letrados de Grande Sertão: Vere-
Fazendo as vezes de um Sérgio Moro das. A operação tornou-se onipresente na
do sertão, o jagunço Joca Ramiro, conheci- mídia, e o romance pode ser lido pelos inte-
do por sua lealdade e senso de justiça por ressados, à mão em qualquer biblioteca ou
todos os cangaceiros, tem diante de si um livraria, e está disponível também em por-
réu audacioso, solerte e a seu modo leal e tais de domínio público na internet.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 13 de março de 2018.
16 • Deonísio da Silva
Zé Bebelo está quase derrotado, coman- 3. É um viés original do qual todos po-
da nove homens e quando seu bando con- dem discordar.
ta com apenas três, Riobaldo, para salvar 4. Mas são garantidas a conversa clara
a vida do ex-chefe e ex-aluno, grita “Joca e o trato justo.
Ramiro quer este homem vivo”. 5. O inusitado não começa pelo con-
Sem saída, Zé Bebelo descarrega a arma ferencista, mas pelo autor, contem-
no chão antes de ser preso e, quando os ini- plado com o Prêmio Machado de
migos tiram-lhe o punhal, ele diz: “Ou me Assis com um léxico e uma sintaxe
matam logo, aqui, ou então eu exijo julga- originais, nunca antes vistos na lite-
mento correto legal.” ratura, nem depois.
Diante de Joca Ramiro imponente, mon- 6. O papel iluminador de analistas
tado em cavalo branco, Ze Bebelo a pé, ras- como Walnice Nogueira Galvão e
gado e sujo, requer: “Dê respeito, sou seu Willi Bolle, de tradutores como Ber-
igual.” Ouve de Joca Ramiro: “se acalme, o thold Zilly e Curt Meyer-Clason.
senhor está preso.” 7. Hans Staden, Augusto Meyer e imi-
É quando toda a jagunçada vai para a grantes: alemães sempre se interes-
Fazenda Sempre-Verde. Zé Bebelo, de mãos saram pelo Brasil, a quem goleiam
amarradas, é conduzido em cima de um ca- por 7 × 1 não apenas no futebol.
valo preto, na rabeira da tropa. 8. A Lava a Jato fez cair sobre o Brasil
E sobrevém o desfecho: Zé Bebelo é li- os novíssimos: Morte, Juízo, Inferno
bertado sob condições que o próprio réu e Paraíso. Mas o nome da operação
impõe. (fim) é sempre escrito errado na mídia.
9. Guimarães Rosa não era estranho
à política: diplomata, sucedendo a
Notas indispensáveis João Neves da Fontoura, recebido
Reúno neste espaço alguns destaques por Affonso Arinos. E hoje sob o co-
da conferência, esmiuçados ao distinto pú- mando de Sérgio Moro a Lava a Jato
blico, entre os quais vários acadêmicos, cujo mostra que os criminosos de colari-
registro escrito tout court poderia eliminar nho branco não têm os valores éticos
os sabores que teve na fala. dos jagunços letrados de GSV.
1. Inusitado do título: minha interven- 10. A Lava a Jato começou num posto de
ção tira faísca de outra pedra, quer combustível que lavava a jato carros e
produzir outras labaredas. Nada de dinheiro ilícito. Portanto, o nome da
falar o que outros já disseram ou es- operação não pode ser Lava Jato. Não
creveram, por despiciendo. lavava aviões, lavava carros...E dinhei-
2. Ademais, a Lava a Jato entra onde ro sujo. E rapidamente também. Daí o
não é chamada, a decisão não é nome correto: Lava a Jato.
nossa. Parece-se com a “indesejada 11. Também em Grande Sertão: Vere-
das gentes”, como da morte dizia das dá-se julgamento, com seme-
MB. É como se chegasse com o cai- lhanças e diferenças notáveis entre
xão feito sob medida. as duas operações.
O j u l g a m e n to d e Zé Bebelo e a l ava a j ato • 17
João Almino
Ocupante da Cadeira 22 na Academia Brasileira de Letras
R
espondendo a perguntas de uma pri- tinha como cenário o sul da Alemanha. Diz
ma para trabalho escolar, João Gui- uma das filhas de Guimarães Rosa, a es-
marães Rosa (1908-1967) revelou critora Vilma Guimarães Rosa, que o que
que desde menino “brincava de imaginar ambientava esses primeiros contos era “um
intermináveis estórias, verdadeiros roman- cosmopolitismo de atitude”, que “refletia
ces.” “Quando comecei a estudar Geogra- provavelmente a vontade de transportar-se
fia – matéria de que sempre gostei –,” diz, a outras terras, apenas conhecidas em tan-
“colocava as personagens e cenas nas mais tas e tantas leituras, no sossego mineiro.”2
variadas cidades e países; um faroleiro, na
Grécia, que namorava uma moça no Japão,
fugiam para a Noruega, depois iam passear O espaço
pelo México...”1. O espaço decisivo da obra do autor, o
Com 21 e 22 anos, publicou contos Sertão, vai entrar em sua literatura depois
cujas histórias se passavam no estrangeiro. que ele sai de Minas. É a partir da saudade
O primeiro foi selecionado em concurso da que aquele Sertão se completa literariamen-
revista O Cruzeiro, que o publicou em 7 de te. Sagarana (do radical germânico “Saga”
dezembro de 1929: “O Mystério de High- e sufixo tupi “rana”, que significa “à ma-
more Hall”, história que se passa na Escó- neira de”), livro marco, verdadeiro divisor de
cia. Em 21 de junho de 1930, na mesma águas, escrito na linguagem que notabilizou
revista, um conto com título em grego sig- o escritor e publicado em abril de 1946, de-
nificando “Tempo e Destino” (“Chronos Kai pois de quase dez anos de reescrita, é, diz
Anagke”), sobre o tema do jogo de xadrez,
Vilma, citando o pai, “o predomínio do que
1 Guimarães, Vicente, Joãozito. Infância de João Gui- não está presente”.3 Alberto da Costa e Silva,
marães Rosa. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Edi-
tora, 1972, p. 28. A entrevista a sua prima Lenice data 2 Guimarães Rosa, Vilma, Relembramentos: João Gui-
de 19 de outubro de 1966. Na época, já havia publica- marães Rosa, meu pai. Rio de Janeiro: editora Nova
do Sagarana, Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas e Fronteira, 1983, p. 67.
Primeiras Estórias. 3 Idem, ibidem, p. 69.
por sua vez, afirma que na “extraordinária contava de andanças sertanejas – era um
geografia” de Rosa, que mistura cerrados e grande causeur – e sobretudo ler os relatos
savanas brasileiras com paisagens imagina- de seu tio Vicente Guimarães, em Joãzito,
das, “o Sertão passa a ser... um quase inven- infância de João Guimarães Rosa. Este faz
to de Guimarães Rosa, real como a Polinésia referência a tipos sobretudo populares e a
que só existe nos quadros de Gauguin”.4 É o episódios conhecidos por Rosa na infân-
próprio Guimarães Rosa quem diz, em carta cia transpostos para seus muitos contos e
a João Condé sobre o processo de escrita de para seu único romance, uma das obras-
Sagarana, que depois de pensar sobre sua -primas da literatura universal do século
concepção do mundo e experimentar o es- 20, Grande Sertão: Veredas (veredas aqui
tilo com ideal de precisão micromilimétrica e no sentido não de caminhos ou vias, mas
de horror ao lugar comum, tinha de escolher de “regato” ou “riozinho”, significado
onde localizar as histórias. Podia ser, entre regional empregado nos campos gerais).5
outros lugares, na China, no arquipélago de As aventuras de Miguilim, por exemplo,
Neo-Baratária (alusão à ilha imaginária que do conto “Campo Geral”, teriam sido
Sancho Panza governou), no espaço astral vividas de forma semelhante pelo autor.
“ou, mesmo” – cito literalmente – “[n]o pe- O que veio da memória e da imaginação
daço de Minas Gerais que era mais meu. E foi complementado por respostas a car-
foi o que preferi. Porque tinha muitas sau- tas a amigos e familiares, com a ajuda das
dades de lá.” quais se acrescentaram muitos detalhes
Assim como Oswald de Andrade disse do Sertão e de seus personagens6, além
que “se alguma coisa... trouxe das ... via- de anotações de viagem em seus cader-
gens à Europa dentre duas guerras foi o ninhos e daquelas em seus cadernos de
Brasil mesmo”, Guimarães Rosa redesco- estudos feitas nos moldes dos relatos dos
briu muito do Sertão longe dele. A distância viajantes cientistas estrangeiros do século
da terra propiciada pela diplomacia deu sua 19, como Wied-Neuwied, Saint-Hilaire,
contribuição para essa redescoberta, em Spix e Martius e Emanuel Pohl. Há cer-
parte por oferecer os contrastes através dos tos estrangeirismos na descrição da pai-
quais a memória podia se reacender. sagem, a crer no próprio Rosa: “...dizem
O Sertão inventado por Rosa não é que eu fiz uma paisagem, um crepúsculo
produto do intelecto e do artifício, mas mineiro e não é nada de crepúsculo mi-
sim do afeto que se origina na vivência neiro, é um crepúsculo que eu vi na Ho-
direta. Embora não seja o Sertão realista, landa, misturei com umas coisas que eu vi
toma este como ponto de partida, sertão em Hamburgo, com coisas de Minas... as
distinto daquele da secura que caracte
rizava o regionalismo literário nordes 5 Nogueira Galvão, Walnice, “Guimarães Rosa”. São
tino. Se houvesse dúvida quanto a isso, Paulo: Publifolha, 2000, p. 29.
6 Diz Felipe Fortuna, acertadamente, que “foi no exte-
bastaria ouvir de seus amigos casos que rior, com a ajuda de cartas, que o universo de Guima-
rães Rosa se fortaleceu em livro e aventura.” Fortuna,
4 Costa e Silva, Alberto, “Sagarana e João Guimarães Felipe, “Guimarães Rosa, viajante”. In: Costa e Silva,
Rosa”, in: O Vício da África e outros vícios. Lisboa: edi- Alberto (org.), O Itamaraty na Cultura Brasileira. Rio de
ções João Sá da Costa, 1989, p. 157. Janeiro: Francisco Alves, 2002, p. 364.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as • 21
sobre Guimarães Rosa. São Paulo: Companhia das Le- sobre Grande Sertão: Veredas. Recife: Cepe editora,
tras, 2008, pp. 208 e 209. 2017, pp. 21 e 22.
22 • João Almino
pequeno, de colo; nhalvo: alvo; susso: aca- para obter efeito de humor e ironia. É a favor
lanto suave; lélis: intriga, enredo; empinho: de construções literárias que reabilitem a arte
em pé, empinado. Estão entre uma cente- depois de “um longo e infeliz período de re-
na de palavras de “Campo Geral”, que o laxamento, de avacalhação da língua, de
crítico e professor Paulo Rónai não conse- desprestígio do estilo, de primitivismo falso e
guiu entender quando se preparava para de mau gosto.” Em muito do que se publica-
apresentar aquela novela do livro Corpo va no Brasil havia, segundo ele, “empobre-
de Baile em aulas como professor visitante cimento de vocabulário, rigidez de fórmulas
na Universidade da Flórida em Gainsville.16 e formas, estratificação de lugares-comuns,
Chamemos de “rosiana” essa linguagem na como caroços num angu ralo, vulgaridade,
qual a pesquisa vocabular, a inventividade falta do sentido de beleza, deficiência repre-
linguística e a musicalidade são evidentes, sentativa. É preciso distendê-la, destorcê-la,”
para distingui-la de outras linguagens, me- diz, “obrigá-la a fazer ginástica, desenvolver-
nos significativas e que vou comentar mais -lhe músculos. Dar-lhe precisão, exatidão,
adiante, também presentes em escritos de agudeza, plasticidade, calado, motores. E é
Guimarães Rosa. preciso refundi-la no tacho, mexendo muitas
Não era, aliás, preocupação dele ser horas”. E acrescenta: “A palavra de ordem
compreendido por todos. Ou será que não é: construção, aprofundamento, elaboração
deveríamos acreditar na carta de 11 de cuidada e dolorosa da ‘matéria-prima’ que
maio de 1947 a seu tio Vicente Guimarães? a inspiração fornece, artesanato!” Cita Gra-
Já após a publicação de Sagarana, ali afir- ciliano Ramos: “Arte é artifício!” E Aurélio
ma: “quando se pensa com determinado Buarque de Holanda: “Nunca procuramos
nível de erudição, em palavras e frases, seria rebaixar, mas sempre elevar o gosto do
pecado contra o Espírito Santo, acovardar- povo”. Nunca teria sido sua intenção escre-
-se e, por medo de vaias da plebe, usar da ver para aquele que chama “o leitor vulgar”.
preocupação de rebaixar o seu estilo, para É enfático: “A língua portuguesa, aqui
ficar ao alcance de todos.”17 no Brasil, está uma vergonha e uma miséria.
Trata-se de carta em que, a propósito de Está descalça e despenteada: mesmo para
um artigo seu,18 defendia o estilo que já em- andar ao lado da espanhola ela ‘não tem
pregara no seu aclamado primeiro livro de roupa.’”19 (O grifo é meu). Observe-se que
contos. A carta é quase um manifesto esté- aqui valoriza os vestidos que o crítico Ser-
tico. Defende notas intencionalmente arcai- gio Milliet quis que fossem mais leves ou
cas contrastando com textos hipermodernos moldados ao corpo, ao comentar Sagarana.
Dizia aquele grande crítico: “Parece-me o
16 Rosa, João Guimarães. Carta a Paulo Rónai, de 3 de
estilo de Guimarães Rosa esses ricos vesti-
abril de 1967. In: Guimarães Rosa, Vilma, op. cit., pp. dos de uma época já passada que escon-
342 e 343. diam aos olhos mais curiosos as formas ver-
17 Guimarães, Vicente. Joãzito, op. cit., p. 137.
18 “Histórias de Fada”, publicado no Correio da Manhã dadeiras do corpo... Ainda aqui, entretanto,
em 20 de abril de 1947. Revisto e encurtado, foi in- acho que a solução de Guimarães Rosa é
cluído no livro póstumo Ave, Palavra (uma miscelânea
segundo a definição do próprio Rosa, citada na nota
introdutória de Paulo Rónai). 19 Guimarães, Vicente. Op. cit., pp. 130 a 139.
24 • João Almino
tora Perspectiva, 2.a edição, 1976, Pp. 173-74, 177-78. In: https://www.ufmg.br/aem/inicial/publicacoes/artigos/
27 Fortuna, Felipe. Op. cit., p. 360. rosa.htm#_ftn4. Cita ROSA, João Guimarães. Homem,
28 Anexadas a carta de 25 de fevereiro de 1964. In: Guima- intentada viagem. In: Ave palavra. Rio de Janeiro: José
rães Rosa, João, João Guimarães Rosa: correspondência Olympio, 1970, p. 214.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as • 27
Outra crônica, com o título de “A Senho- confusa, foi em qualquer manhã, pelo tele-
ra dos Segredos”, tem a ver com horóscopos, fone. Uma senhora, muito velha e doente,
tema do interesse de Rosa. Conta a história pedia que o Cônsul lhe fosse à casa, para
de uma horoscopista que, como a cartoman- assunto de testamento, Frau Wetterhuse.”
te do conto de Machado de Assis, erra redon- Ora, não seria fácil atender ao pedido nas
damente em sua previsão. Assim começa: circunstâncias vividas pelo Consulado, sobre-
“Não sei se creio em quiro ou cartomantes; tudo em razão da perseguição que se fazia
em astrólogos, sim, quase acredito. Pelo me- aos judeus: “O recado se perdia, obrigação
nos, duas vezes tive fé em Frau Heelst, dada e abstrata, no tumulto diário de casos, o Con-
gabada então como horoscopista de Hitler.” sulado invadindo-se de judeus, sob mó de
Foi em Volksdorf, perto de Hamburgo. A pri- angústias, famintos de partir, sofridos imen-
meira visita a ela foi em grupo, em meados de sos, em desengano, público pranto e longo
1938, da qual participou também sua mulher estremecer, quase cada rosto prometendo-se
Aracy, ali citada como Ara. A segunda, diz ele, a coativa esperança final do suicídio. Vê-los,
“se deu em meados de junho [de 1939], e vinha à mente a voz de Hitler ao rádio – rou-
portanto depois quase de um ano, quando o co, raivoso. Contra esses, desde novembro,
Dr. Goebbels andava visitando Dantzig, e eu se implacara mais desbordada e atroz per-
tinha para Frau Heelst uma pergunta pronta: seguição, dosada brutal. Viesse a guerra, a
– Haverá guerra?” A resposta da horoscopista primeira ordem seria matá-los?”
foi categórica:” – Ach, nee... De modo ne- Finalmente, visitou-a. Era a Dame Verô-
nhum. Sossegado esteja.” Foi enfática, dissu- nika, viúva de um judeu. Angélika, a filha
adiu-o “de especular naquilo, pois guerra não ali presente, por ser teuto-hebreia, uma
iria haver.” Passam junho, julho, agosto. Frau “mestiça do primeiro grau”, corria sério
Heelst ligou de Volksdorff, aflita: “Se lhe seria perigo. Dame Verônica confessou ao Côn-
consentido emigrar, para o Brasil... Se podia sul num português perfeito, língua que a
vir ver-me, combinar o que, pronto receber os filha não compreendia: “Minha filha não é
papéis, partir...” E a crônica termina: “Não, filha de meu marido. Nem ela nem ele ja-
não era mais possível. Nada deixavam os as- mais souberam... Foi em vosso país... O pai
tros. Doze dias depois, começava a guerra.”32 de minha filha não era de sangue judeu.”
Considerando o que se sabe hoje sobre Diz o narrador: “Não, em fato. Não. Tive
o empenho que tiveram Aracy e ele próprio de sacudir a cabeça. Dame Angélika nem
em salvar judeus que fugiam do nazismo mesmo era brasileira. Tudo indeterminado,
para se abrigar no Brasil, são de particular sem fundamento certo, apenas o citar de
interesse duas outras crônicas cujas histórias um romance perdido no antigo... Quem iria
também se passam em Hamburgo à época querer crer?” ...”Levantei-me; eu nem era
em que Guimarães Rosa lá estava em sua um cooperador passivo do destino”...“O
função consular. Assim começa a crônica sistema do mundo. A velha vida”. E o Côn-
“A velha”: “Sua primeira menção, um tanto sul esquivou-se.33
32 Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. Rio de Janeiro: 33 Idem, ibidem, pp. 108-11. Originalmente publicada
Livraria José Olympio Editora, 1970, pp. 210-13. em O Globo, 3 de junho de 1961.
28 • João Almino
Cerimonial, afirma em carta enviada a seu quando podem fazê-lo a favor do homem.
pai, Senhor Florduardo (por sinal, um nome Ao contrário dos ‘legítimos’ políticos, acre-
bastante rosiano), datada de 21 de agosto dito no homem e lhe desejo um futuro. Sou
de 1934, do Rio de Janeiro: “A princípio a escritor e penso em eternidades. O político
carreira é difícil: estou trabalhando em uma pensa apenas em minutos. Eu penso na res-
seção de muita responsabilidade, e os ven- surreição do homem.”36
cimentos são pequenos.... Tenho esperança Pensar em eternidades seria ponto de
de fazer carreira breve [no sentido de “rápi- convergência entre o escritor e o diploma-
da”], e para isso empregarei todos os meus ta. Em Ave, Palavra inclui-se um texto que
esforços, pois penso que descobri a minha ilustra esse pensamento, intitulado “O Lago
verdadeira vocação.”34 A filha Vilma acha do Itamaraty”, originalmente publicado nas
que seu pai “era um diplomata nato. Intui- Seleções do Reader’s Digest de agosto de
tivo. Sabia lidar com diferentes tipos de pes- 1951, no qual lemos o seguinte:
soas e contornar qualquer conversa, se não “No dia a dia, ..., sem aparato,” o lago do
quisesse entrar direto no assunto”.35 Itamaraty “rende quadro certo e apropriado à
Numa de suas poucas entrevistas, con- Casa diplomática. Porque de sua face, como
cedida ao crítico alemão Günter Lorenz, em aos lagos é eternamente comum, vem inde-
Gênova, em janeiro de 1965, quando então teriorável placidez, que é reprovação a todo
já trabalhava no Serviço de Demarcação de movimento desmesurado ou supérfluo.”
Fronteiras do Itamaraty, cuja chefia assu- Também, uma vez, em 1935, e acaso asso-
mira em 1962, ali ficando até a morte em ciado à lembrança de outro lago, forneceu
1967, Guimarães Rosa disse, referindo-se à imagem imediata a um dos mais desvenci-
diplomacia e à concessão de vistos aos ju- lhados espíritos que jamais nos visitaram: [o
deus: “um diplomata é um sonhador e por escritor e diplomata espanhol] Salvador de
isso pude exercer bem essa profissão. O di- Madariaga. Que concluindo, ali, no auditório
plomata acredita que pode remediar o que da Biblioteca, memorável conferência sobre
os políticos arruinaram. Por isso agi daquela “Genebra” – id est a Sociedade das Nações
forma e não de outra. E também por isso ou qualquer organização que se proponha
mesmo gosto muito de ser diplomata.” realizar alguma harmonia entre os povos –
Na mesma entrevista, afirma: “... eu comparou que a mesma seria, na vida inter-
jamais poderia ser político com toda essa nacional, o que a água é na paisagem: mais
constante charlatanice da realidade. O luz, por reflexão, e o calmo equilíbrio da ho-
curioso no caso é que os políticos estão rizontalidade.”
sempre falando de lógica, razão, realidade A diplomacia e a literatura, em Guima-
e outras coisas do gênero e ao mesmo tem- rães Rosa, também têm em comum pensar
po vão praticando os atos mais irracionais o mundo e a nação, porém com linguagens
que se possam imaginar. Talvez eu seja um
político, mas desses que só jogam xadrez, 36 Coutinho, Eduardo de Faria. (org). Guimarães Rosa. Rio
muito distintas uma da outra, apesar de Mesmo esses exemplos estão muito dis-
pontos de contato. Entre estes, Heloisa tantes da linguagem do ficcionista Guima-
Vilhena de Araújo nota, por exemplo, que rães Rosa. No geral, as linguagens do fic-
as estórias de Sagarana, em especial as do cionista e do burocrata são distintas e, para
conto “O Burrinho Pedrês”, podem estar que cada uma mantenha a excelência, não
ecoadas na descrição que Guimarães Rosa, poderia ser diferente. Na linguagem diplo-
em Ofício de 10 de maio de 1949, quando mática, tão bem empregada por Guimarães
lotado na Embaixada em Paris, faz de um Rosa, este não busca, porque seria inapro-
grupo de lavradores franceses do “Centre priado, inovação linguística ou vocabular.
d’Essais d’Alesmes” que deseja emigrar Não investe em musicalidade, onomato-
para o Brasil: “Há um jeito sábio e amoro- peias ou aliterações. O que é adequado ao
so”, escreve Guimarães Rosa, “de revolver conto ou ao romance não o é à burocracia.
na mão a terra da gleba arada; de tocaiar Num memorando de 26 de janeiro de 1945
as toupeiras, que alongam o morrete de ao Chefe do Departamento de Administra-
suas galerias pelos canteiros da horta; de ção sobre correção linguística, o próprio
armar engenhosos espantalhos para defe- Guimarães Rosa é claro sobre este ponto
sa da semeadura, estacando manipansos ao dizer que “no gênero epistolar, princi-
ou pendurando um pintarroxo morto, que palmente em cartas oficiais, a simplicidade
se balança ao vento e escarmenta os de- é sempre aconselhável.”37
mais pintarroxos atrevidos; de recobrir com O que ambas as linguagens emprega-
grades de ocasião os viveiros de hortaliças; das por Guimarães Rosa têm em comum
de improvisar interessantes portas rústicas, é o esmero, a precisão, a atenção ao deta-
de armação de madeira recheada com has- lhe e o rigor, fruto de apuro, dedicação e
tes verdes de giestas; de pagar com um grande capacidade de trabalho. Nada em
carinho o cavalo de charrua ou o boi de seus textos está ali por acaso. Esta obser-
carreta, ou escolher nomes afetivos para vação vale para a sua ficção, nas suas múl-
os animais domésticos; de recolher as ove- tiplas facetas. Um exemplo bastante ilus-
lhas quando o vento aperta; de zelar pela trador disso é que a escritora e Acadêmica
fonte supridora de boa água; e de com- Ana Maria Machado escreveu todo um
parar, com os seus próprios, a altura e o magistral livro em torno dos nomes dos
colorido novo dos campos de centeio dos personagens na ficção de Guimarães Ro-
vizinhos.” sa.38 Mas aplica-se também aos relatórios
Embora em correspondência particu- políticos que o diplomata fez em 1940 so-
lar eivada de humor, é possível mencionar, bre Portugal e Espanha para a Embaixada
como curiosidade e mais uma demonstra- do Brasil em Berlim e que mereceram elo-
ção do gosto de Guimarães Rosa pela pes- gio do então Embaixador do Brasil naque-
quisa vocabular, a carta toda escrita com
palavras que começam com a letra “C” 37 Araújo, Heloisa Vilhena. Guimarães Rosa: Diplomata.
que, como Cônsul Adjunto em Hamburgo, Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 1987, p. 135.
38 Machado, Ana Maria. Recado do Nome, Leitura de
escreve ao “Cônsul Caro Colega Cabral”, Guimarães Rosa à luz do nome de seus personagens.
lotado em Frankfurt. Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda, 1976.
G u i m a r ã es R o s a , do S e rt ã o à s f ro n t e i r as • 31
la cidade, Cyro de Freitas Vale. São peças reuniões que duravam o dia inteiro. Tudo
de um afiado analista político da situação isso, sob a circunstância de ser, entre os 80
desses dois países e de suas tendências no milhões de brasileiros, o que é pago para
panorama que se desenhava na Europa, cuidar do assunto, debaixo do peso dele.
opondo o Eixo aos Aliados. E com a saúde – como Você sabe. E com
Merece destaque entre os textos buro- o visceral “medo de errar”, a necessidade
cráticos a nota n.o 92, de 25 de março de compulsiva de cuidar de todos os detalhes,
1966, sobre questões de limites com o Pa- a lentidão meticulosa do mineiro da roça,
raguai na região do Salto de Sete Quedas. de terra onde os galos cantam de-dia. As-
Foi redigida por Guimarães Rosa à frente sim, fiquei fora e longe de tudo o mais,
do Serviço de Demarcação de Fronteiras. nem me lembrava que eu era Guimarães
O assunto exigiu intenso trabalho seu. Já Rosa, não respondi às cartas das editoras
cerca de dois anos antes, em 13 de maio estrangeiras, perdi dinheiro, sacrifiquei in-
de 1964, em carta a seu tradutor italiano teressantes oportunidades, adoeci mais,
Edoardo Bizzardi, dizia: “Temos assuntos soterrei-me. Aaaaaaaah…….”40
graves, como, por exemplo, o que Você A nota 92 é um longo documento, de
deve ter visto dele menção, frequente, 156 parágrafos, baseado em pesquisa apu-
nos jornais: o do Salto Grande das SETE rada sobre negociações prévias, atas de
QUEDAS.”39 E, em 21 de outubro de 1966, reuniões e tratados subscritos pelas partes.
portanto sete meses depois de enviada a Lembra os trabalhos histórico-geográficos
nota n.o 92, em nova carta ao tradutor ita- realizados pelo Barão do Rio Branco como
liano diz: “de meados de 65 para cá, hou- negociador principal das fronteiras do Bra-
ve tanta coisa, sobre mim, tanta carga! Às sil. Vários autores têm assinalado com pro-
vezes me desola e reprovo, achando que priedade que a nota, que veio a ser assi-
sou o que os franceses dizem: une petite nada pelo então Embaixador do Brasil em
nature. Tem horas, porém, que me consola Assunção, Jayme de Souza-Gomes, abria o
pensar que até resisto bem, ao de fora e terreno para as futuras negociações em tor-
ao de dentro – a ondas e enxurradas. Pois, no do aproveitamento dos recursos energé-
Você... deve ter acompanhado nos jornais ticos por ambos os países, ou seja, o Brasil
o palpitante caso de divergência com o e o Paraguai.
Paraguai, o assunto Sete-Quedas. Imagi- Outra participação de Guimarães Rosa
ne, pois, o que sucedeu, de junho do ano em negociações que podem ter tido in-
passado, até julho deste. Foi uma absurda fluência no trabalho futuro nas regiões
e terrível época, de trabalho sem parar, de de fronteiras deu-se em reunião dos Em-
discussões, de reuniões, de responsabili- baixadores brasileiros nos países amazô-
dades. Várias vezes, tive de trabalhar aqui nicos, realizada em Manaus em 1967,
no Itamaraty até as 5 horas da manhã... meses antes da posse de Guimarães Rosa
e comparecer no outro dia já às 9, para na Academia Brasileira de Letras e de seu
falecimento. Trata-se de uma das primeiras
39 Rosa, João Guimarães. João Guimarães Rosa, Corres-
Depois da volta de Bogotá, por exem- que anuncia: “O “SAGARANA” deve sair lá
plo, de onde chegara em 1944 e para para o fim do mês”.45
onde, como Segundo-Secretário, havia sido Cerca de três meses depois, em carta
designado em 1942, envia carta a seu pai, de 5 de junho do mesmo ano de 1946 ao
datada do Rio Janeiro em 6 de novembro Embaixador Orlando Leite Ribeiro, que, se-
de 1945: “Trabalho muito, isto sim. Aliás, gundo Vilma, “teve uma influência decisiva
desde que cheguei, não tenho podido des- e muito importante na carreira do jovem
cansar um só dia. O Ministério tem, atual- diplomata”, já que teria sido o responsá-
mente, muito poucos funcionários, do que vel por sugerir “seu nome para chefe de
resulta estarem todos sempre sobrecarrega- gabinete do chanceler João Neves da Fon-
dos de serviço.”44 toura”, Guimarães Rosa volta a descrever
Em 1946, ele é nomeado, pela primei- seu intenso trabalho: “Mais telefonemas,
ra vez, Chefe de Gabinete do Chanceler mais audiências, mais telegramas, mais in-
João Neves da Fontoura, de quem se tor- cumbências. No meio da barulheira, o Gui-
na amigo (voltará a ocupar o mesmo car- marães Rosa vai fazendo um pouco como
go, também com o Chanceler João Neves o burrinho pedrês da história [refere-se ao
da Fontoura em 1951). Queixa-se em carta mais conhecido conto de Sagarana]; mas, à
ao pai, enviada do Rio de Janeiro em 14 saída, lá pelas nove da noite, nada se fez, de
de março de 1946: “Vou bem, mas num ponderável e palpável, e a cabeça está zon-
regímen duríssimo de trabalho: nunca o za de nomes, coisas, providências a tomar,
“batente” foi tão forte, em horas de dura- a notar, a telefonar, e não há ânimo para se-
ção e na intensidade do serviço. Da manhã gurar papel e pena, para uma carta amiga.
à noite, recebo dezenas de pessoas, trato Veja Você no que deu a sua ideia de colocar
de dezenas de casos, resolvo dezenas de um poeta na chefia do Gabinete...”46
assuntos, distribuo tarefas, tomo providên- Ainda em 1946, viaja a Paris para a Con-
cias, informo papéis, dito cartas e ofícios, ferência de Paz e acompanha o Ministro
atendo ao Ministro, atendo a políticos, di- em viagens relacionadas com o término da
plomatas, pessoal da casa, redijo memo- guerra. Em carta às filhas Vilma e Agnes,
randuns, e... aguento três telefones. Já sou enviada de Paris em 3 de setembro daque-
capaz de falar em três telefones, a um só le ano, relata: “Tenho trabalhado muito,
tempo. É coisa para botar qualquer pessoa e viajado um pouco. No dia 16, fui com o
maluca, ao fim de certo tempo. Mas, com Ministro à Alemanha: Berlim, Nuremberg e
coragem e filosofia, tudo vai bem. Mas, só Munich. Vimos muita miséria e ruínas em
lá pelas 9 horas da noite é que paro e venho quantidade, e voltamos a Paris no dia 19.
para casa.” É naquela época em que ocu- Em Nuremberg, estive na sala do julgamen-
pa cargo-chave e de intenso trabalho que to dos criminosos de guerra nazistas..../
publicará o livro que está reescrevendo há Agora estou de retorno de outra viagem.
quase dez anos e que marcará para sem- Cheguei ontem à noite, da Holanda e
pre sua literatura, pois é na mesma carta
45 Idem, ibidem, pp. 161-62.
44 Idem, ibidem, pp. 158 e 159. 46 Idem, ibidem, p. 162.
34 • João Almino
de Literatura Brasileira, p. 38. Ver também Rosa, Vilma críticos. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira,
Guimarães, op. cit, p. 329 p. 25. Em 1992, Alberto da Costa e Silva publicava um
53 Rosa, Vilma Guimarães. Op. cit, p. 329. ensaio que exaltava a qualidade fundamentalmente po-
54 Costa e Silva, Alberto da, “O ‘Primeiro Rascunho’ de ética da prosa de Guimarães Rosa (Guimarães Rosa, poe-
Grande Sertão: Veredas”. Texto cedido pelo autor. ta. Bogotá: Centro Colombo-Americano, 1992).
36 • João Almino
de estrelas, falava-se antes: ‘os pastos de COSTA E SILVA, Alberto da. “O ‘Primeiro Rascunho’ de
Grande Sertão: Veredas”. Texto cedido pelo autor.
Vista Alegre’.” Ou sobre o Acadêmico e COUTINHO, Eduardo de Faria. (org). Guimarães Rosa. Rio
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le”. Texto cedido pelo autor. rosa.htm#_ftn4.
Rios e Riobaldos
Benito Barreto
Escritor e jornalista. Ocupante da Cadeira 2 na Academia Mineira de Letras
O
CANGAÇO: Figura de crucial pre- – Menino, isso aqui é pra seu pai – me
sença em toda a nossa formação disse um dia, antanho, recuado, o Tião Ven-
como povo e nação, foi o jagunço tena, em domingo de missa no, então, meu
braço e chicote do senhor de terras e enge- arraial de Dores de Guanhães em nossa Mi-
nhos, na Escravidão, durante a Colonização nas Gerais – ao que, assim dizendo, afastou
e o Império; fez Canudos onde deu fogo e com a mão, de lado, o paletó, me dando a
chegou a alarmar a nação, nos anos difíceis ver em sua cinta acobreada de cartuchos,
da implantação da República; sustentou o numa banda, o parabélum e, na outra, seu
Coronelismo no Brasil em transe da chama- punhal: – sirvo ele, o seu papai, com um ou
da República Velha; vai opor-se ao Cavaleiro outro ou com os dois, se carecer, diz lá pra
ele e conta pra sua mamãe, também.
da Esperança, a Coluna Prestes, Brasil afora
Corria, então, o ano 36, eu tinha 7 anos
e um milhar deles em armas, arrebanhados
e via e conhecia, pois e assim, no mesmo
em Pilão Arcado, no São Francisco – conta-
dia e a um só tempo e vez primeira, um au-
-nos o Rosa em carta a um seu tradutor, na
tomóvel que, o mais das vezes, puxado a
Europa – vão ser quem a fustiga e obriga, já
junta de bois, trazia da distante Diamanti-
cansada e frustrada, a internar-se na Bolívia;
na S. Exa. o Pastor do Arcebispado, vindo
Getúlio Vargas terá de haver-se com eles em
ministrar a crisma no arraial, e o Ventena,
sua caminhada, antes e depois de chegado um jagunço em carne e osso, com aquele
ao poder, nos anos 30, e como se isso, esse recado pra meus pais.
seu constante desempenho, fosse pouco e Centrava a Praça ou Largo da Matriz,
lhe não bastasse a atestar sua presença na assim também chamado, um pedestal de
história e no cenário nacionais, ainda será pedras acavaladas; nele engastado um cru-
ele, o Cangaço, na pessoa de Riobaldo, um zeiro de braúna e aí um fazendeiro a quem
jagunço, o herói dessa Rapsódia Brasilei- chamei de Almeida Barros, em romance
ra que é Grande Serão: Veredas do nosso meu, pelas 4 horas de um domingo de mis-
imortal mineiro João Guimarães Rosa. sa como aquele, lá chegado, puxou pelas
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 27 de março de 2018.
38 • Benito Barreto
rédeas sua montaria, uma ruana; apeou-se boiada de mil bois da qual só o tropel se ou-
dela, lhe largando no pescoço, sobre a cri- via e a seu berrante, aquela tarde parecendo
na, as rédeas; subiu alguns degraus até o aboiar, sozinho, sem seu dono, seo Nestor...
cruzeiro; sacou pela corrente, na lapela, seu O JAGUNÇO EM NOSSA VIDA E NA LI-
relógio de bolso e, olhando-o, gritou para TERATURA: Assim, pois, Brasil afora e, mais
seus inimigos e chefes locais, ali à frente notadamente, margeando os seus grandes
e às suas costas, entrincheirados: – são 4 Rios como, em Minas, o São Francisco, onde
horas, seus mandões de merda, a hora que fizeram por entrar na História e ascender à
vocês marcaram pra me ouvir e a gente se Ficção e à lenda, chefes bandoleiros como o
acertar de frente e de homem pra homem, foram os famigerados Antônio Dó, na região
sem esses jagunços seus, os quais com es- de Januária e... “Aquele – sequinho, espi-
ses, essa corja não me meço nem me sujo, gadinho, vestido cidadão, com mãozinhas
não... – ainda dizia, quando, sob seu paletó pequenas, pezinhos e do ar sempre assus-
alevantado às costas, sentiu, em ponta o tado constantemente. Dele sozinho, o que
espetando, o cano duro e frio do parabé- se diz: umas duzentas mortes! – Conheceu
lum do Tico Luca que, então, e sem pala- o senhor? no barranco do São Francisco –
vras, com seis tiros o matou, tendo do lado o coronel Rotílio Manduca, em sua Fazenda
e por lugar tenente aquele outro, do recado Baluarte”, de quem e cuja vida, ao que tudo
a meus pais. leva a crer, fez Guimarães Rosa o seu perso-
E foi às armas o arraial: pela rua ninguém nagem Zé Bebelo, como se depreende desta
passava; cada casa uma trincheira e cada citação, à pág. 450 de Grande Sertão: Ve-
quintal linha de frente, um campo de mano- redas, 1.a edição, com amplo e competente
bras para a defesa e o ataque que o nosso respaldo em Os Descaminhos do São Francis-
Guaianã correndo a jusante do Rio Doce da co e Rio das Velhas, de Marco Antônio Tava-
interdição, por séculos, e do genocídio dos res Coelho, Ed. Paz e Terra.
Botocudos, pelos Portugueses, calado e sem Presente, pois e também, na crônica de
partido, entre bambuais, descia, separando outros, senão todos os nossos rios, nota-
em dois o arraial que uma ponte de braú- damente o das Velhas, o Doce e o Jequiti-
na interligava, porém, já então, interditada nhonha; o Urucuia e o Grande; o Verde e
pelas carabinas de cada lado ou partido, o das Mortes e tantos outros desaguando
em suas posições de tiro que aquela tarde uns nos outros ou a descer, buscando o mar,
às mãos de jagunços pagos, só minha mãe assim, repito, – o poder e a prevalência do
cruzara, desafiando o matador Tico Luca que Cangaço assustaram e enlutaram áreas e
em menino ela recebera em casa e o criara populações, Brasil afora, que nem o foi e lá
para vê-lo, agora, matador de aluguel! fizeram, no Ceará, à sombra e com as bên-
No Largo da Matriz, o Almeida Barros, çãos do Padim Padre Cícero e por todo o
sem socorro e vigiado pela guarda de jagun- Nordeste e o Norte, notadamente, a Bahia
ços, sangrava, a escorrer, descendo o chão, com seus Coronéis, Coriscos e Lampiões,
buscando o rio até esvair-se enquanto, pela místicos errantes e, mais que todos, impor-
Rua Nova, a passo, costeando o arraial, en- tante e assustador, o profeta e para muitos,
trava e passava, em contrição, calada, uma santo Antônio Conselheiro, quem, a seu
Rios e R i o b a l d o s • 39
tempo, na travessia dos séculos XIX para o vindo eu ao Rio para receber meu prêmio,
XX, galvaniza e atrai jagunços de todo o país fui notificado a lhe telefonar, pois tinha ele
em seu apoio e defesa, no reduto fortifica- algo a me dizer sobre Capela dos Homens,
do de Canudos, desde onde vai assombrar o romance em questão e volume II daquela
a nação, todo o Brasil e desafiar até mesmo minha saga, já citada.
o Exército Brasileiro no curso de uma guerra Era 1967, o ano quarto de sua eleição
custosa e sangrenta em que o Brasil Litorâ- a esta Academia, cuja posse acabava de
neo e o Sertanejo se confrontam e sangram, acontecer; e ele me diz do que granjeara,
tragédia que, malgrado a mortandade, defe- de sua parte, o voto em meu livro e das ob-
nestra vícios e obscuras práticas do Império, servações que lhe ocorrera me fazer (conf.
então, ainda presentes; reacende e reafirma em edição do jornal Estado de Minas na
os postulados da República nascente e, mais semana seguinte à sua morte, e em Benito
que tudo, deixa-nos de saldo OS SERTÕES, Barreto – 50 anos de Literatura, de Rachel
a epopeia do gênio e lavra de Euclides da Cardoso Barreto):
Cunha, como o vai ser, de igual grandeza, – Gostei, sim, do seu Capela dos Ho-
o épico e não menos imortal GRANDE SER- mens, Benito, dos seus Guaianãs: é uma
TÃO: Veredas, do nosso gênio e mui sau- estória forte com cheiro de mato.
doso membro do sodalício desta Casa – o – Foi surpresa e muito honroso para
mineiro JOÃO GUIMARÃES ROSA, de cuja mim o prêmio que mereceu da Comissão
obra hoje aqui me ocupo, na pessoa do ja- esse meu livro ainda com arestas a aparar.
gunço e seu personagem principal, Riobaldo – ... o que em princípio foi temerário de
Urutu Branco, o Tatarana. sua parte – ele me ensina – algo a ser evi-
Registre-se, pois, que o Cangaço se lhes tado, porque o livro deve já estar maduro
impôs, a esses dois gênios nossos, como e pronto antes de ser levado ao júri de um
tema e personagens seus em OS SERTÕES concurso ou trazido ao público. No seu, por
e em GRANDE SERTÃO: Veredas, obras es- isso mesmo, algo, ali, às vezes, sobra e ou-
sas, todas duas entre as mais grandes que tras, você fica a dever, por completar, enfim,
conhece o mundo das Letras, afora outras um trabalho de tesoura e costura a ser feito
e outros romancistas nossos que do mes- – prosseguia, também me acautelando para
mo tema e presença se ocuparam, tais en- o que chamou de minha inclinação para o
tre outros, Jorge Amado, Graciliano Ramos, poético. – O que eu disse, em algum lugar,
José Lins do Rego, Mário Palmério e muitos da travessia... – assinalou: há que sacrifi-
outros de igual força e grandeza. car, sempre, alguma coisa ou não se chega
Um deles que o sou, entre os menores, à outra margem do rio...! O belo costuma
também, eu, com obra minha intitulada Os arrastar-nos às efusões, daí o alongamento
Guaianãs, graças a ela vou estar uma se- dispensável, umas partes gordurosas, certo
gunda vez com o diplomata e Acadêmico esbanjamento do poético.
JOÃO GUIMARÃES ROSA, quando, entre Isso, no entanto, não será uma singulari-
outros distinguido no Concurso Walmap de dade sua, de iniciante, toda obra tem lá suas
Literatura, de que fora ele, com Jorge Ama- gorduras – seguia, então, dizendo, – daí se
do e Antônio Olinto, a Comissão Julgadora, nos impondo levá-las ao fogo das revisões,...
40 • Benito Barreto
as enxugar, faca na mão, para os cortes, os alternância, um trecho no começo dele com
quais, no entanto – acentuava e eu aqui re- outro tanto, no final, em que você retome
lembro no pressuposto de que aos que so- e possa cotejar, na sua sequência ou anda-
mos do ramo, acaso possam interessar –, há mento, um mesmo personagem ou assun-
que fazê-los com escrúpulo e na medida; to; volte ao ponto lido e deixado no princí-
com rigorosa seriedade e o necessário equi- pio; avance mais um pouco e torne ao final,
líbrio no uso da faca, porque esses cortes e fazendo outro tanto até que, assim progre-
o polimento são, de resto, o momento mais dindo e convergindo, respectivamente, do
delicado da criação para o escritor. começo e do fim do livro para o centro dele,
Eu o adivinhava do outro lado da linha você o defenda e resguarde a ele e a você
– porque foi ao telefone este nosso reen- mesmo de incoerências sempre possíveis na
contro – a acompanhar e completar com condução de um mesmo tema ou persona-
as mãos as palavras, suas palavras sempre gem, sobretudo em se tratando do evoluir
apropriadas e que ele enunciava em tom de protagonistas e/ou do enredo em obras
afetuoso e amável, conquanto empenha- de maior fôlego e complexidade.
do e algo confidencial, solene, de quem Esse processo costuma resultar em uma
transmitisse um segredo ou ensinamento pesca de bom rendimento – empenhado,
dos deuses. Me acautelando, então e pre- concluía: ... ajuda-nos na descoberta de uma
venindo – aqui, também, palavras suas – do infinidade de cochilos, tais, entre outros,
risco de se cortar a faca a meada sutil dos sempre possíveis desajustes cronológicos; in-
movimentos ou de se ferir com a lima uma coerências narrativas; descuidos no talhe dos
corda, assim e por inadvertido, afetando-se personagens, na descrição e montagem de
a modulação interior, necessária, o ritmo e perfis, situações e assim por diante...
a harmonia do conjunto. Deveras extraordinário! – penso, então,
– Bem, doutor Guimarães – o senhor já comigo, impressionado com o rigor e o pen-
me deu demais do seu precioso tempo que, te fino do seu zelo no artesanato solitário da
em verdade, me pesa lhe tomar. Levo co- ficção, mas já anoitecia e eu tinha que pegar
migo os seus ensinamentos e vou, sim, me de volta a Beagá o Vera Cruz das 20 horas:
empenhar e trabalhar meu livro, na medida agradeci, me desculpando pelo que o ocu-
do possível, com as ferramentas e à luz do pava naquela semana agitada e tensa, de
que, atento e generoso, o mestre do “Gran- sua posse nesta Casa, dito o que lhe apre-
de Sertão...” me passa e ensina. sentei as felicitações de minha mulher, a Irá
– Mas faça, sempre, mais do que o pos- e de seu pai, o Dr. Ismael de Faria e seu co-
sível, Benito. A Literatura quer a nossa força lega de curso e formatura, quem, em depoi-
inteira; todo o nosso tempo, e após quei- mento na inauguração da “ Sala Guimarães
madas as gorduras, enxugado o texto, con- Rosa” do “Centro de Memória da Medicina
cluída a revisão final da obra – enfatizou: de Minas Gerais”, na UFMG, a todos nos fi-
– ...você, por último e ainda, o submeta a zera, então, saber que, em 1926, ainda no
uma derradeira e singular leitura em que, segundo ano do curso e aos 17 anos, já era
com o livro aberto ao meio, passo a pas- o estudante Guimarães Rosa um poliglota,
so, o releia, achando e confrontando, em o que viera a furo, um dia, e de surpresa,
Rios e R i o b a l d o s • 41
principalmente, por suas artes e competên- a sós, haviam os dois, a instâncias do Rei-
cias marciais de comandante e combatente naldo – este sendo o nome dele, o outro
em até mais de uma arma e ocasião, lugar –, atravessado o Rio numa canoa tosca e
ou frente... em que dera fogo ou tivera que “afundadeira”, ali achada, travessia essa
ir às vias de fato com terceiros em sua vida em que ele, Riobaldo, conhecera o medo
vária e aventureira. e acreditara ver, por perto e vez primeira, a
Entretanto, professor e aluno, homens morte enquanto que, alegre e lindo, o ou-
ambos mais da ação que de fiar ideias e co- tro, esse menino, feliz e realizado, ria como
ser cultura, movendo-se cada um e perse- se fora a morte a sua vocação ou compa-
guindo objetivos próprios, paixões, talvez, nheira, um seu brinquedo!
nem sabem, exatamente, quais nem onde e Nunca mais se esquecera disso, da linde-
quando, mas, ainda assim ou por isso mes- za e da coragem sem afetação desse garoto
mo, passado um tempo, dão por termina- que, agora, e de repente, já feito homem,
do, de momento, o curso, aquelas aulas e um guerreiro, reencontra e se reconhecem
cada um seu rumo, movem-se os dois com numa outra leva de jagunços em armas, e
sua inquietação que, no caso de Riobaldo também de passagem pela casa do coiteiro
e à falta de melhor inspiração, o leva, de Malinácio.
passagem e a passeio à casa de certo Mali- Coisa de Deus, a mais bonita o Reinaldo
nácio, um coiteiro de jagunços em trânsito que é seu nome e mais ainda, agora em suas
com os quais, mui jovial e interessado em vestes de jagunço, assim ajaezado de polai-
suas vidas e combates, se entretém... nas, borzeguins e esporas, seu punhal e a
O DESTINO: Está, então, lançada a sor- faca, a cartucheira de través no peito alto e
te e, em curso e por imposição dos Fados as suas mais e matadeiras armas! – diz con-
– não dele – seu destino; aí começa, nesse sigo, embevecido, o contemplando... ago-
passo, a sua iniciação na vida do jagunço ra, porém, no entanto..., isso daí, de ser ou
que, tudo passado e vivido, agora em casa vir a ser jagunço, seja lá por causa de que
e assistido do compadre Quelemém, Rio- vivem esses tais às armas, punindo e penan-
baldo, relembrando e revivendo, narra a do, matando e morrendo e, a mais, por-
seu autor ouvinte e visitante, de como vai que, por isso mesmo, muitos deles, como
o Demo, desde então, tomar a Deus seus se diz de certo Hermógenes, acabam até
passos ou aí, aos Céus, é que ou quando os tomando partes com o Diabo – ...por uma
passa a disputar. e outra dessas coisas não são gente, não,
E olha só à sombra e no rastro de quem pra exemplar nem ser modelo meu nem do
é que, disfarçado, lhe chega e toma acento Reinaldo, esse menino anjo que lhe dera o
em sua vida o Coisa Ruim! – ...na pessoa Velho Chico, embora que, por sujo e asso-
do menino que, um dia, conhecera, quando reado, aquele dia de que ainda se lembra,
conheceu, ao mesmo tempo, o São Fran- lá tristonho e paradão, sem barcos, aquela
cisco, o Velho Chico de sua querência e boniteza que são nele os barcos de pesca
sonhos de criança, levado pela mãe, a Bi- e transporte, subindo e descendo, levando
gri, em pagamento de promessa. Ao acaso ou trazendo a seu destino os dourados e os
e aos 14 anos aí se conhecendo, juntos e surubins, animais, madeira, cereais e gente!
44 • Benito Barreto
Entretanto, na vida como em tudo, cada o que põe e promete em matérias de co-
um é um, nem é todo jagunço que se vende ragem e decisão; de fala e argumentação;
para coronel de terras e boiadas ou que, pra tomadas de partido, firmeza em suas posi-
se fechar e defender, faz trato e trocas com ções e liderança inconteste nessa guerra de
o Diabo, lá isso não, não é nem há-de. De morte jurada e sem trégua, dos coronéis do
mais a mais e pra tudo isso pôr e enfeixar latifúndio e seus jagunços em que são che-
numa palavra só – em hipótese nenhuma fes e generais a exporem, em combate, suas
vai deixar sozinho nisso, no Cangaço em vidas e mais ainda a de terceiros – homens
perigo de guerra e a risco de matar ou ser tais e quais Medeiro Vaz, o rei do Sertão; o
matado, o Reinaldo, seu menino do Rio, o arrivista e guerreiro, supostamente, a servi-
Chico lá em seu leito assoreado... – rendi- ço do governo, Zé Bebelo; Joca Ramiro, o
do, diz consigo e, conquanto ainda e só em pai de Diadorim, por mui respeitado e que-
intenção, já decidiu, olhado e adivinhado rido, apelidado O Príncipe e, afora outros
pelo outro, que... mais, porém, menores, o pactário Hermó-
O PROFESSOR VAI SER JAGUNÇO: Eis genes e seu parceiro em armas e negócios,
pois que, do ponto de vista de sua forma ou Ricardão, aos quais veio juntar-se o até há
fôrma, seu engenho e arte, GRANDE SER- pouco professor Riobaldo e, agora, narrador
TÃO: Veredas são lembranças como de um guerreiro que de tudo e todos, conta-nos a
novelo, em toda a sua trama, desfiadas e espantosa estória dessa guerra atemporal,
revividas com seu autor e o compadre Que- sem data e, todavia, histórica, no Grande
lemém, na evocação, por Riobaldo, seu per- Sertão: Veredas dos Gerais de Minas.
sonagem central e a ela sobrevivente, des- UM HOMEM INACABADO SE FAZENDO:
de quando, ainda um jovem mestre-escola Já de começo viu-se que não é pessoa co-
e serviçal campeiro, andara ele, aqui e ali a mum o narrador, muito menos um jagunço
empreitar-se nos serviços de tropas e boia- qualquer e nem, tampouco, um homem
das, vez que outra, de mestre-escola a ensi- feito e acabado no sentido de estar ou não
nar, ganhando seu pão, e porque, como no de bem consigo e, em tudo, satisfeito e
verso do poeta... a vida é luta renhida e, no completado nas suas relações com Deus, o
sertão, mais guerra que vida – adestrando- Outro e o mundo ao seu redor; adivinha-
-se no tiro e no punhal para, aí, também, ter -se, por exemplo, que a lembrança da Bigri,
chances de sobrevivência e de respeito num sua mãe, lhe dói; bem assim que o intriga e
qualquer lugar, espaço ou pedaço a chamar inquieta o não saber quem foi ou é seu pai:
de seu por onde e aonde o leve a vida. se vivo ainda ou morto e em que circunstân-
Sua presença vai, pois, e desde aí, se cias, contudo, desses e de outros danos, do-
impondo; vai crescendo e como a vida, no res e demônios afligindo-o, o alivia e recom-
sertão, é guerra e na guerra há-que ter e pensa esse reencontro seu com o outro, a
tomar partido, não tarda e o até há pouco volta à sua vida do menino do rio e, agora,
professor vai ver-se nela inserido e distingui- companheiro seu de armas e jornadas, o...
do , tanto mais porque tido e havido por ca- DIADORIM, sua neblina... quem lhe traz
bra bom de tiro como nos combates à arma contentamento tal e tão tamanho que Rio-
branca – punhal, faca e facão – isso afora baldo tem a sensação de reaver da vida o
Rios e R i o b a l d o s • 45
que era seu, mais seu e principal, seu bem rapaz! coisa mesmo de virar a cabeça a um
maior que, no caminho, se perdera, não cristão, tirar o sono e o juízo da gente isso
achava e era, todavia, quem ou aquele por de um guerreiro e companheiro assim que
quem viera a este mundo – Reinaldo, seu nem esse, um meu igual e macho que nem
Menino do rio, o Velho Chico, a quem, lá eu em tudo, porém, e a mais de mim, com
numa praia, com a Bigri, sua mãe, um dia essa beleza de cara e cabeça; a testa alta e
aí por seus 14 anos – como está sempre a inteligente; sua dourada cabeleira, os olhos
se lembrar – conhecera e só agora, homens de menina e esse corpo escultural e quente
feitos, reencontra e volta a ver e bem assim que a vista adivinha e até se coça com von-
que nem num rasgo de surpresa e sorte, sa- tade de pegar nele e o acarinhar a mão da
ído duma curva em seu caminho, um perdi- gente... – calado e amante, diz consigo e ale-
do e desolado viajante, topasse de frente e vantando os olhos vê que Diadorim, atento,
de repente, com nada mais nem menos que o espia e contempla, ele, também, com os
a razão de ser da sua vida, em algum lugar olhos rasos d’agua; e se demora, enamorado
ou imemorial ocasião, perdida! seu e a Riobaldo até parecendo... o escutar e
Ah! que agora ter por companheiro a mim, também, querer e me amar!
amigo e do seu lado esse jagunço da sua DESFEITA E REPRIMENDA: Um caso,
idade e que só tem e traz de seu suas armas esse... seu, mui controverso e singular, cer-
e a coragem de ser quem é e, logo, contra to o mais de quantos teve e com os quais
quem – o bando matador do pactário do se deparou na vida, agora, a ponderar, con-
Demo, o Hermógenes com seu parceiro, o clui, enquanto tira detrás da orelha uma
sanguinário Ricardão! – é guerra a pelejar palha que escolhe e alisa; do bolso a lasca
e tão bonita e boa nas suas razões, seus de fumo que esmói a dedo, rela e rala com
fundamentos... que eu até morrer, morria, uma das mãos no côncavo da outra, fazen-
rindo, para nela pelejar! do o pito a fumarem junto, os dois, que, as-
E, assim, arrebatado, Riobaldo desde en- sim que pronto, quebra na ponta e oferece
tão, toma partido: não ensina mais pra Zé ao outro, do seu lado:
Bebelo; não quer mais o seu dinheiro e, mais – Faltou, porém, colar, pra mim, a língua,
e ainda: jagunço assumido e feito, vai às ar- a palha dele como é de costume se fazer... –
mas contra ele, os seus e mesmo contra seu Diadorim, pegando o pito, faz reparo, o de-
Governo se ao Sertão, um dia, cá ele vier! volvendo a Riobaldo que o apanha, lambe
Gente! E que pessoa é ele, o Diadorim, e enrola, inseguro, o pondo, outra vez, na
essa pintura animada, esse poema de pes- mão do companheiro a quem acode com
soa, agora, de volta à minha vida e do meu o isqueiro aceso que Diadorim, no entanto,
lado! Bonita e sem medo, visto que de um apaga e recusa, tirando da boca o pito que
confronto já participou com ele e o viu se de- guarda no bolsinho da camisa ou blusa...
fender e pôr a correr o inimigo, firme e tran- junto ao peito ou... lá, quem sabe, entre
quilo, na hora do tira-teima, a vez e a hora seus seios...? – calado, olhando-o, Riobal-
de um cabra, um homem ser e dizer a que foi do, excitado, se pergunta.
que veio cá! A mais e, todavia, porém, con- – Pensei que a gente fosse aqui fumar a
tudo... – que figura, mãe! que lindeza de... dois o pito que a palha e o fumo eu arrumei
46 • Benito Barreto
pra nós, agora que sozinhos neste tempo Coisa Ruim ande por perto. E Diadorim comi-
de descanso, afinal, eu e o Menino que go, mais que nunca, me ficando rente...
nem na “afundadeira” lá no Chico, esta- – Assim vai ser, mas te vigia, Riobaldo;
mos sós... – frustrado, queixa-se Riobaldo. não deixe o Diabo te pôr sela.
– Se importe não, que vou guardar e só – Vade retro, Satanás! Mas amor, o bem
pitar é quando, um dia, com saudade, eu da gente é coisa lá de se deixar a risco!? cá
te lembrar... no meu modo de sentir, de ver, amor é vida,
– Pensei que a gente não fosse nunca o mel da vida para a gente um ao outro
mais se separar! Sabe? ...depois que a gente servir e dele ser servido, coisa boa e bonita
se achou, passado aquele encontro de beira sendo, mais pra ser vivido e consagrado, eu
d’água e travessia, lá no Chico, eu, a dizer acho-que.
verdade e com o coração na boca e nestas – Eu não desdenho dos antigos, não,
mãos, só penso e quero a vida é com você, sabe, Riobaldo, meu...
o Menino do Rio, comigo do meu lado; pra – ...o quê! ...nunca sabendo o que nem
lhe ser franco e mais dizer e tudo duma vez quem eu sou e, por isso, onde me pôr, Dia-
só, eu cá nem mais queria ela, a vida e acei- dorim me larga nas reticências da dúvida e
tava de continuar vivendo ela, aqui, fazendo nunca diz, no exato, o que é Riobaldo em
a guerra, esta guerra sem a sua companhia! sua vida? quem nem quê!
– O que da minha parte eu sei e sinto, – Indaga do Sertão que até os rasos e
eu também, e bem assim, mas guarda isso as veredas dele hão de estar sabendo o que
só pra gente e fala assim mais não nem pra só Riobaldo não vê nem sabe, razão que eu
ninguém. não vou gastar tempo em explicar o que
– E por que causa-quê? ...da guerra? de tudo e todos é sabido, e quanto a isso
– Dela, a guerra, estou acabado de re- mais dizer; agora, no entanto, é sempre cer-
ceber e venho te trazer um fato novo, e to que eu aceito pra mim e pratico a regra
de repente – um emissário de Joca Rami- deles, os velhos e os gentios que recomen-
ro, lá chegado, na Fazenda Sempre Verde, dam a gente guardar e resguardar a sete
em seu cavalo branco, levando sob guarda chaves nossa joia, a melhor, mais rara e rica,
e amontado num cavalo preto aquele que o mais querido bem da gente, e até mesmo
foi aluno seu, o Zé Bebelo, vencido e preso o esconder por defender de mau olhado,
para ser julgado: Riobaldo e Diadorim so- o meu mais meu de que eu não abra mão,
mos presença requerida pelo vencedor, meu na vida... entendido? estou? A pois, porém,
pai, juiz no ato, o Julgamento. voltando ao que a gente vinha, antes, di-
– Rendo meu louvor ao Príncipe do Ser- zendo e pondo, eu, também, não quero ir,
tão que me agrada ver e assistir em sua glória sair de cena e muito menos assim tão cedo,
embora o que vai ser ruim de aceitar e engo- quero não, agora, quando eu for, chegada
lir é lá a gente vir a ter que aceitar de igual, a hora,... vou estar sozinho e quer você sa-
presente, o pactário do Hermógenes mais o ber do meu por quê? minha razão?
outro, o Ricardão ali, de ombros com a gente. – De morrer, sempre se sabe e nem care-
Vade retro, Satanás! Quero uma guarda nossa ce especular, é nossa condição, agora uma
lá e armada, como convém, sempre quando o pessoa de luz que nem você, o Dia... achar
Rios e R i o b a l d o s • 47
razão e até prazer na morte, e pôr mesa e se apaga ela no seu coração e na cabeça assim
enfeitar pra ela, não é coisa de bom gosto, que nem no quadro negro ou no caderno,
não, sendo mais pra quem não ama a vida, a gente apagava, na escola, um borrão ou
é meu pensar. Porque mesmo um matador um erro com a borracha e vamos lá viver e
que nem o Hermógenes, eu acho que ele amar numa barranca dele, o Velho Chico,
põe mais fé na vida que nessa aí – a vala vil defendendo ele e o penteando pelas mar-
sem volta! que ele, de costume, serve com gens – já pensou?! você o Dia... a alumiar
ela os outros, sendo nisso até muito pon- no Rio..., a vida, minhas águas!
tual. A bom, no arrematar: eu sou é gente – Ciúmes...! Riobaldo? coisa feia!
pra morrer como qualquer, porém, mais do – Ciúme da morte que o Menino parece
meu gosto é a vida, que... mais querer do que a mim, é isso, o pon-
– ...no entanto – a sua, a minha e de to, o poço a que eu cheguei e nele afundo,
toda gente – é, sempre, a feia morte quem vou caindo, o que se vê: fato mesmo é que
consente. enquanto eu me arreceio de um tiro, ponta
– E é...? Podia-quê? a gente, então, nas- de faca ou uma onça nesses rasos e veredas
ce da morte? é dela, então, que eu venho!? te pegar, razão que, vencida esta guerra e
– E para onde a gente volta, torna ao alimpado o Sertão de Zé Bebelos, Ricardões,
nada e se recicla ou se transforma e volta Hermógenes e outros tais que-nem, incluso
noutra forma e montaria, é mais ou menos o Cão que manda neles, eu... o meu sonho
isso ou esse o eterno ciclo, vida e morte, a é te levar daqui, pra mim, comigo, inteiro
nossa condição... e lindo e, pra isso, até os despojos desta
– ... o que não é uma excursão, nenhum guerra, eu, aqui deixava pelo tanto que te
passeio ou festa, eu acho... quero do meu lado e para lá bem longe da
– Mas, também, uma tragédia, um dra- gente a morte, e a terras de mais água e
ma não é não. verdes, te levava – você o Menino e meu
– Diadorim..., você tem vez que me pa- amado o que só me quer é pra chorar a sua
rece mais querer é ir com ela e lá ficar, sei lá ausência, e logo eu que até virava mar ou
por quê! sua razão...! um lago, parado no meu curso pelo tanto
– ... é muita estimação a gente ser cho- que te quero luz e vida animando minhas
rado, eu acho. águas... ao passo que pela feia morte, Dia-
– Quer dizer: mais o luto, o desespero dorim, alegre e bem servido, me largava e
e a minha dor que um beijo meu, a minha se mandava sem olhar pra trás!
mão e o meu afago! Oh não e não, meu – Em verdade, o que te digo e ponho é
arrebol, minha neblina: estimação real, mais que, vencida e terminada a guerra, a nossa
grande é amar e ser amado, o que Diado- grei pacificada, sonho eu, também, com o
rim desdenha e põe de lado! – com uma Dia e o Rio, a gente os dois, juntos, corren-
lágrima e a voz entrecortada, Riobaldo re- do num só leito... – diz Diadorim, que chora
age, ressentido e enciumado: – esquece a e a Riobaldo, por primeira vez, lhe toma e
morte, Diadorim! Larga dela, essa megera beija a mão.
feia e fria, essa não sei que diga! E se você – ...Me beija a mão mas não me bei-
não gosta de quem é, dá você pra mim! ja a boca! Ah, Diadorim, minha neblina!
48 • Benito Barreto
de tutela que, no entanto, em vão dispensa tigre ou de leão feroz, mesmo em relação a
e no bando, entre os camaradas, consta e ele, Riobaldo e seu jamais assumido amor,
corre, embora muito a medo e só em pen- sempre que ou quando, em não se conten-
samento, que Riobaldo, em combate, mais do, acaso mais perto lhe chegue e fale ao
defende o companheiro, atrás ou do seu coração, ainda que só em palavras ou com
lado que a si mesmo se defende e ataca o um que outro discreto afago, um distraído
inimigo, ao lado e em frente. toque de mãos...
O DIABO NÃO TIRA FÉRIAS! Entretanto, Ao que, então e, também, raivoso, re-
e porque sempre intrigado com o enigma agindo, o Tatarana dá-lhe o troco e vinga-
de seu próprio berço e pai, dos quais, um -se, saudoso, se lembrando de Rosa’uarda
e outro, a Bigri nunca lhe dera o endere- e da sua Nhorinhá do “gosto bom ficado
ço nem o nome, e porque já lhe vespran- em minha boca”; monta seu cavalo e sai às
do viajar à fazenda Sempre Verde para o putas de beira estrada, tais a Maria da Luz,
julgamento de Zé Bebelo por Joca Ramiro, a Hortência e outras; vai e vem, viaja e luta
o Príncipe do Sertão e pai de Diadorim..., enquanto Otacília, a noiva prometida que o
Riobaldo, interessado, se questiona no que espera, impaciente e sem notícias dele, sai
toca e tange ao mistério das relações dos de casa, em vão, a seu encontro, pois que,
dois, pai e filho ou filha por quem, em si- do Menino seu, do Rio, o Diadorim, Riobal-
lêncio e jogando com a própria vida, um ou do não se liberta e voltam os dois a con-
outro dos dois, faz a guerra e de quem nem viver e namorar, porém, sem toques, pro-
sobre quem, contudo, jamais fala; nunca! messas nem confissões, embora até cenas
Seria que a filha veste-se de homem a de carinho um pelo outro e de ciúmes um
mando dele, o pai? Que ele não goste dela! do outro, ocorram, sem, contudo, nenhu-
quisesse, antes, um varão por filho!? E a ma perspectiva, avanços nem hipótese de
mãe dela, de que Diadorim, também, não intimidades com as quais, Riobaldo, ainda e
fala? E a ligação, supostamente, existente, sempre, sonha e espera e já nem se importa
entre ela ou ele com a mulher do Hermóge- em saber, ao certo, quem é, mesmo, o Dia-
nes...! Por que ela, essa mulher, e como se dorim – se homem ou mulher sob o gibão
explica essa estranha relação? e o culote de couro que o peito e a cintura,
E mais e ainda: seria ela, essa mulher, a cartucheira e a cinta desfiguram – assim
quem sabe, um pomo de discórdia e de po- mantendo-se o mistério...
tencial tragédia entre Hermógenes e Joca Entretanto, derrotado Zé Bebelo, o ini-
Ramiro, calado, se pergunta: – seria...!? migo, e levado a julgamento que consagra
Ah, que aí, a ver... Deus dorme e o Dia- Joca Ramiro como o líder e chefe, suposta-
bo fia! mente derradeiro, da jagunçagem sertane-
VERSÃO CABOCLA DA ESFINGE A DE- ja, e dada a conduta altiva e corajosa de Rio-
CIFRAR – rosto de mulher em corpo de leão baldo, no seu voto e nos debates, Diadorim
– de que já ouvira alguém falar, Diadorim parece dar um salto de aproximação e afeti-
é sua esfinge – e quão bonita e bela! – a vidade em relação a ele na fazenda Sempre
face de mulher mui linda, porém, no peito, Verde, onde lhe fica do lado, e junto e bem
o coração e a garra do homem, senão do chegado o tempo todo dos depoimentos
50 • Benito Barreto
e debates, não raro, confrontantes, tensos então, armando o cerco a Joca Ramiro, O
e até mesmo perigosos, quando em causa Príncipe, a quem, em breve, vão matar.
as opiniões e os votos discordantes do Her- URUTU BRANCO, O TATARANA: Pai de
mógenes, o Ricardão e partidários seus os Diadorim e Príncipe do Sertão, que um e ou-
quais, insurgindo-se contra o juízo magnâ- tro os fora em vida, há que, agora, vingar
nimo e cavalheiro de Joca Ramiro, quiseram Joca Ramiro, traído e morto pelo famigera-
condenar à morte e ali mesmo, executar à do Hermógenes, que em todo o Sertão se
faca o réu; tudo consumado, Zé Bebelo li- sabe pactário do Diabo, sempre servido do
vre, mandado embora, e, à conta de descar- seu par e parceiro Ricardão, o fato e o crime
rego das tensões, saindo Riobaldo em busca induzem Riobaldo a pactuar, ele, também,
de mulher e boemia pelas redondezas, aí, com o Demo, o mesmo trato e aliança, de
também, vai ter com ele o Diadorim, sua modo a estar em igualdade de condições e
neblina e trazê-lo de volta a seu aconchego, proteção ante o inimigo na guerra da vin-
assim mudado e aparentemente acenando gança contra os “judas”, que, favorito do
com vida nova ao namorado e combatente Diabo, vence, tornando-se Urutu Branco, o
companheiro a quem, até há pouco, nem a Tatarana do Grande Sertão e rico herdeiro do
mão lhe dava ou consentia...! seu espólio, porém, ao preço de Diadorim, o
Novos tempos, sim, parece dizer consi- seu Menino do Rio e frustrado amor que só
go o Chefe e Pai, Joca Ramiro, feliz abra- então vem a saber mulher e conhecer depois
çando-os e os vendo, juntos, viajar de volta, de morta e rasgada à faca no seu duelo final,
enquanto à Casa Grande da Sempre Verde a arma branca, com o pactário Hermógenes,
chegam e se apeiam, por cumprimentá-lo e a quem, e a faca, também, mata.
lhe trazer sua adesão e respeito, fazendei- Senhor agora do Sertão que o pórtico
ros e jagunços, entre os quais – virá, depois, de entrada habita, e já casado, levando
saber-se –, já uns homens a serviço do pac- pela mão sua Otacília, Riobaldo chama à
tário Hermógenes e do seu sócio e parceiro, varanda da fazenda seu ouvinte visitante e
o Ricardão...! ao compadre Quelemém de Góis, braço es-
Quem e os quais, esses... – em tanto que tendido lhes apontando à distância, porém,
dispersa e viajada de volta a seus pagos a visíveis, e ao alcance de um tiro ou salva de
multidão dos chefes e jagunços seus parcei- foguete, as fazendas de seus sobreviventes
ros, vindos por Joca Ramiro e o Julgamento; companheiros e lugar-tenentes dos quais
e cessada a visitação, o beija-mão dos que se cerca, assim e em terra, defendendo-se
ao Vencedor de Zé Bebelo tinham vindo por como“ no Mindubim, tem lá um crente me-
saudá-lo e lhe render respeito em sua Sem- todista – lhes diz; não longe daqui, a Maria
pre Verde, já, então, se esvaziando, já voltan- Leôncia e no Vau-Vau a Isina Calunga que a
do a ser morada e, em virtude do pós-guerra uns já pago e a outros todo mês eu vou fa-
e da paz reinantes, agora, até sem guarda, zer encomenda de reza por mim, um terço
senão e apenas só servida de caseiros desar- todo santo dia, para nos céus me garantir,
mados... – em silêncio e na calada da noi- também: Quero punhado delas me defen-
te, apossam-se de posições no entorno da dendo em Deus; Viver é muito perigoso; a
Fazenda, que ocupam, assim e à traição, já, minha vida não deixou benfeitorias.”
Rios e R i o b a l d o s • 51
É
uma grande honra estar na presença que lá está. Uma diplomata maravilhosa.
de Acadêmicos e de pessoas tão espe- Gostaria que ela se levantasse para que pu-
ciais que tanto têm contribuído para o déssemos agradecê-la. Na verdade, ela foi
crescimento do Brasil. um dos instrumentos para que nós todos
É de fato uma honra estar recebendo estivéssemos aqui hoje. Agradecemos mui-
essa condecoração da Academia Brasileira to. Muito obrigado.
de Letras, tão respeitada, e ter aqui também Estamos aqui no Brasil, basicamente,
conosco a ex-consulesa-geral brasileira que para nos conectar com os nossos irmãos
planejou esta visita ao Brasil. que têm realizado grandes obras.
O escritor e professor Wole Soyinka Toda a raça humana pertence a uma
também estaria aqui conosco hoje, mas foi família, independentemente de nossa cor
convocado pela presidência nigeriana para ou de nosso credo, ou religiosidade, ou
um evento onde se celebrará a democracia formação. Não importa ser rico ou pobre.
e aqueles que deram suas vidas para o go- Não importa ser líder ou seguidor. Sempre
verno democrático na Nigéria. O professor pertenceremos a uma única família. Precisa-
Soyinka enviou o seu amor e o seu respeito mos, então, estar juntos para fazermos deste
e pediu que os transmitisse ao embaixador mundo um lugar melhor, vivermos em paz
e imortal Alberto da Costa e Silva. e termos nossas mentes livres para realizar
Foi também uma surpresa muito grata grandes ações.
para mim ter aqui, entre nós, a ex-consule- Ao longo do tempo, temos nos ofendi-
sa-geral do Brasil em Lagos, Maria Auxilia- do uns aos outros. Mas devemos deixar o
dora Figueiredo, que sempre foi uma mulher passado e seguir em frente para que a vida
de muita credibilidade, muito apaixonada e seja muito melhor para todos nós.
dedicada aos assuntos relacionados à po- Estou aqui com os meus outros irmãos
pulação negra e que, em seu trabalho na Reis de todo o reino Iorubá, que é o ter-
Nigéria, procurou proteger o patrimônio de ritório da maior população negra do mun-
nossos ancestrais e o patrimônio brasileiro do. Depois da Nigéria, a segunda maior
Discurso proferido na ABL em12 de junho de 2018 com tradução simultânea de Carolina Morais Osunleye.
54 • Ọ́ ọ̀ni Adéyeye Ènitán Ògúnwùsì Odjádja II
Marco Lucchesi
Ocupante da Cadeira 15 na Academia Brasileira de Letras
negros, nas periferias, comunidades e terras esta língua tonal e isolante. Perdoe-me a
quilombolas. Eis a nossa missão, Majestade. ousadia.
Cito o poema “Dedicatória” de Soyinka, Nosso horizonte será mais duradouro
na tradução de Luis Giffoni, atravessado por e generoso que o passado, cuja memória
um raio de utopia, entre recusa e adesão: é como o fóssil de Soyinka, vivo, inscrito
em nosso DNA. Já não podemos esquecê-
Umedece -lo. Apaziguar, Majestade: os que partiram,
teus lábios com sal, anônimos, para sempre, e os que ainda não
que não seja o de tuas lágrimas. chegaram, senhores do futuro. O clamor do
Esta chuva-água é presente dos deuses
presente não admite adiamento. Incluir é
– bebe sua pureza, frutifica na hora certa.
Leva, pois, os frutos à boca,
preciso, assim como navegar.
corre para devolver o milagre de teu A presença do Ọ́ ọ̀ ni de Ifé é um sinal ben-
nascimento. fazejo de que os ventos de mudança agitam-
Cria marés humanas como as ondas, -se nos dois lados do Atlântico. Venha res-
imprime tua lembrança nas areias que ainda taurar um pouco seu império imaterial, os
guardarão fragmentos dispersos de luz e sangue de
fósseis. uma diáspora incessante. Somos um pouco
todos súditos simbólicos de nossa tradição.
O trabalho da terra e o código de li-
Peço ao Acadêmico Alberto da Costa e
berdade. O sal e os lábios. A redenção das
Silva, nosso intérprete da história da África,
águas. E o desenho da subjetividade, não
poeta e escritor, que aponha em Vossa Ma-
como privilégio mas como demanda legíti-
jestade as palmas acadêmicas, a mais alta
ma e essencial.
honraria com a qual esta Casa, de raro em
Seja bem-vindo, Majestade, mais uma vez,
raro, presta homenagem aos grandes vultos
Ẹ káàbọ̀ ! internacionais.
Arno Wehling
Ocupante da Cadeira 37 na Academia Brasileira de Letras.
M
inha exposição trata de questões tornaria estas observações redundantes e,
relacionadas à pesquisa histórica, portanto, supérfluas. O que viso é levantar
suscitadas pela comunicação fei- algumas questões que dizem respeito aos
ta há algumas semanas a este plenário pelo instrumentos para a compreensão e a in-
Acadêmico Evaldo Cabral de Mello, quando terpretação da história, tendo como moti-
teceu comentários sobre o tema a propósito vação os mencionados trabalhos, mas não
do livro do sociólogo Luiz de Gusmão inti- necessariamente me cingindo aos aspectos
tulado O fetiche do conceito, cujo prefácio por eles tratados e nem considerar todas as
é de sua autoria. nuances dos pontos por eles destacados.
O assunto foi discutido por vários dos O enfoque pelo qual optei é o das rela-
presentes, tendo os Acadêmicos Cícero ções entre os aspectos teóricos e empíricos
Sandroni e Ana Maria Machado sugerido da pesquisa histórica, questões que em di-
que, após o cumprimento do silêncio ob- ferentes universos culturais foram cogitadas
sequioso consuetudinariamente observado a propósito do conhecimento histórico.
na Casa, manifestasse minha opinião sobre Dito de outro modo: como foi pensada,
o assunto. Assim instado, é o que passo a em jargão universitário a operação historio-
fazer. gráfica, isto é, a atividade de narração de
O objetivo não é realizar a recensão do eventos considerados históricos?
livro em apreço, uma valiosa contribuição às Isso exclui de antemão a tradicional filo-
reflexões em torno a aspectos epistemoló- sofia da história que buscava interpretar o
gicos e metodológicos das ciências sociais, processo histórico a partir de sua materia-
rara no Brasil pelo caráter substantivo e lidade. E inclui um leque de situações que
crítico que possui. Também não pretendo vai da epistemologia das ciências humanas
discutir os pontos de vista expendidos pelo mais abstratamente elaborada às circuns-
prefaciador – neste e em outros brilhan- tâncias concretas da investigação histórica.
tes ensaios sobre o conhecimento históri- Separemos dois aspectos que atual-
co – com os quais estou de acordo, o que mente sofrem interseções mútuas e que
Exposição na sessão do dia 17 de agosto 2017.
58 • Arno Wehling
Antonio Maura
Ocupante da Cadeira 17 dos Sócios Correspondentes na Academia Brasileira de Letras
E
m duas ocasiões, Federico García Lor- do México que, além de dar ao poeta uma
ca pisou em solo brasileiro e, especifi- caixa de vidro com borboletas tropicais, que
camente, as duas foram no Rio de Ja- Federico guardaria como lembrança em seu
neiro: no dia 9 de outubro de 1933, quando apartamento em Madri, levou-os à redação
o transatlântico Conte Grande o levava para do jornal A Noite, onde Lorca, exultante por
Buenos Aires e parou por algumas horas no seus triunfos na Argentina, foi entrevistado
porto do Rio de Janeiro, e em 30 de março por um jornalista que, logo, destacou em
de 1934, em seu retorno no Conte Bianca- sua crônica:
mano, que atracou nas docas do Rio. Em “A bordo do Conte Biancamano que hoje
ambos os casos, Lorca esteve poucas horas tocou o nosso porto, passaram pelo Rio duas
na cidade e foi recebido e lisonjeado pelo figuras muito estimadas nas letras e nas ar-
embaixador do México nesta cidade, Al- tes espanholas: García Lorca e Manuel Fonta-
fonso Reyes. Na primeira ocasião, o escri- nals. García Lorca tem lugar destacado entre
tor mexicano entregou ao poeta espanhol os poetas da nova geração de sua pátria. As
os primeiros exemplares de a Oda a Walt suas produções literárias, os poemas líricos
Whitman, que acabara de ser publicada em e as comédias de fatura moderna, cedo lhe
uma edição limitada no México. Nessa visita deram o renome e a fama que goza hoje, e
que já transpuseram as fronteiras da Espanha
ao Rio, acompanhado pelo cenógrafo Ma-
para repercutirem e se espalharem no estran-
nuel Fontanals e pelo próprio escritor me-
geiro. […] O embaixador mexicano falou-nos
xicano, visitaram as ruas do Rio de Janeiro
de ambos com entusiasmo. Acerca de García
e a Baía de Guanabara por algumas horas
Lorca, nos disse que é hoje, talvez, o mais fes-
antes de retornarem ao navio que os leva- tejado dos poetas jovens na Espanha. As obras
ria a Santos - onde ficaria no transatlântico de Lorca, acrescentou o distinto diplomata,
-, Montevidéu e Buenos Aires. Na segunda atingem sempre os maiores êxitos de livraria,
ocasião, já de volta à Espanha, Lorca tam- não só na terra pátria, mas em todos os países
bém foi acompanhado por Fontanals e fo- onde se fala a língua castelhana.” (A Noite,
ram recebidos novamente pelo embaixador 31/3/1934).
62 • Antonio Maura
Por isso não percebemos que com o assassi- Ele estava pálido e suas mãos tremiam.
nato de Lorca sofríamos também uma espécie Sim, ele estava com medo porque era tudo tão
de morte. […] O assassínio de Lorca inventa inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal
a supressão da Inteligência – essa inteligência puderam articular as palavras de pasmo que
que ainda pode pensar calada, que acusa ain- lhe causava a vista de todos aqueles homens
da quando muda, e que é a única forma de preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis
liberdade nas ideologias totalitárias. O assas- a balbuciar preces matinais no céu deliquescen-
sínio de Lorca ordena que é preciso matar o te. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos
pensamento livre.” que nunca, compreendeu a razão de ser de
tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para
Manuel Bandeira, que já conhecia o tra- cantar. Aquela madrugada que raiava para pre-
balho de Lorca em sua língua original, mi- senciar sua morte, não tinha sido ela sempre a
sua grande amiga? Não ficaria ela tantas vezes
nistrou um curso de poesia em que analisa
a escutar suas canções de silêncio? Por que o
os poemas do autor de Bodas de Sangre. haviam arrancado a seu sono povoado de aves
Ele também escreveu um poema em sua ho- brancas e feito marchar em meio a outros ho-
menagem, que publicou em seu livro Belo mens de barba rude e olhar escuro?
Belo, de 1948. Nele, o poema de Neruda é Pensou em fugir, em correr doidamente
glosado e o amor pela liberdade e autenti- para a aurora, em bater asas inexistentes até
voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caça-
cidade da Espanha é manifestado, não a Es-
dores maus que o confundiam com o milhafre,
panha de Franco ou do Cid, nem do Grande
ele cuja missão era cantar a beleza das coisas
Capitão, mas a de Teresa de Jesús, Juan de naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro
la Cruz, Lope, Góngora e Cervantes: inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.
[…]
A Espanha de Franco, não!
Sim, teve medo. E quem, em seu lugar,
Espanha republicana,
não o teria? Ele não nascera para morrer as-
noiva da Revolução!
sim, para morrer antes de sua própria morte.
Espanha atual de Picasso,
Nascera para a vida e suas dádivas mais arden-
de Casals, de Lorca, irmão tes, num mundo de poesia e música, configu-
assassinado em Granada! rando na face da mulher, na face do amigo e
Espanha no coração na face do povo. Se tivesse tido tempo de cor-
de Pablo Neruda, Espanha rer pela campina, seu corpo de poeta-pássaro
no vosso e em meu coração! ter-se-ia certamente libertado das contingên-
cias físicas e alçado voo para os espaços além;
Depois vieram novos poemas de Drum-
pois tal era sua ânsia de viver para poder can-
mond, de Vinicius de Moraes, que tinham tar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o
muito em comum com o poeta de Grana- amor, o grande amor que era nele sentimento
da – poeta e músico –, de Murilo Mendes, de permanência e sensação de eternidade.
Hilda Hilst, Lêdo Ivo e tantos outros. Mas Mas foram apenas outros pássaros, seus
entre as vozes, os poemas, invadem minha irmãos, que voaram assustados dentro da luz
da antemanhã, quando os tiros do pelotão de
memória as palavras que Vinicius, autor de
morte soaram no silêncio da madrugada.
tantas canções e versos inesquecíveis, dedi-
cou a ele com o título de Morte de um pás- Certamente, foi de manhã cedo quan-
saro (Réquiem para Federico Garcia Lorca): do o poeta do Romancero Gitano morreu,
Lorca e o B r a si l • 65
três obras se refiram a acontecimentos no são cruciais para entender a tragédia que
interior de Andaluzia, estas não devem ser se aproxima. O segundo ato começa com
consideradas uma trilogia porque a Casa de a impressionante “Nana del caballo que no
Bernarda parece inaugurar um novo mode- quiso el agua”, uma das obras-primas da
lo de teatro que sintetizou todas as desco- arte popular recuperada por García Lorca:
bertas técnicas e literárias que o poeta havia
Nana, niño, nana
experimentado até aquele momento. Esta é del caballo grande
a razão pela qual eles preferem agrupar as que no quiso el agua.
três obras sob o título de “tríptico”. Por ou- El agua era negra
tro lado, não parece lógico que as duas pri- dentro de las ramas.
meiras peças da trilogia, ou tríptico, tratem […]
de eventos da Andaluzia e a última acabe Duérmete, rosal,
sendo uma tragédia de magnitude bíblica. que el caballo se pone a llorar,
las patas heridas,
Parece que La casa de Bernarda Alba é a
las crines heladas,
continuação do espírito telúrico que Bodas
dentro de los ojos
de Sangre e Yerma representam e que su- un puñal de plata.
põem, nas palavras do próprio Lorca, sua
consciência e seu amor pela terra. Bajaban al río,
¡Ay cómo bajaban!
Bodas de Sangre, uma obra de dimen-
la sangre corría
sões cósmicas, como descrita por um crítico
más fuerte que el agua.
argentino (Marcial de Laiglesia, “Lo poéti-
co y lo pictórico”, Correo de Galicia, 26 de Como nas tragédias gregas, o resultado
novembro de 1933), teve sua origem em foi anunciado desde o início. Não pode ser
um fato que realmente aconteceu e que evitado, ninguém pode evitá-lo, porque pa-
foi coberto pelos jornais: perto da cidade rece estar escrito nas estrelas. A mãe ador-
de Níjar, em Almería, houve um misterioso mece a criança com a mais trágica canção
assassinato na véspera de um casamento. O de ninar que deve ser cantada, porque essa
morto, Curro Montes, era um antigo aman- é a realidade, o fado desta terra e destas
te da noiva que, depois de raptá-la no dia personagens. A força telúrica é irreprimível
anterior ao casamento, morreu nas mãos e é isso o que o cavalo simboliza, pura pai-
do irmão do noivo. Esses fatos, recolhidos xão indomável.
na imprensa de Madri em 1928, especifica- Por outro lado, o espaço não deixa de
mente em ABC e no Heraldo de Madrid, são ser especialmente arcaico: a noiva vive em
o começo desta tragédia em que o mistério, uma caverna, como algumas que ainda
o destino e o sangue se unem. existem na Andaluzia, dando à cena um ar
Na obra existem dois elementos simbóli- anacrônico e primitivo, que mais uma vez se
cos: a faca e o cavalo. O primeiro representa liga a um passado remoto e lendário.
o sacrifício e tem sido usado secularmen- No terceiro ato, deixando para trás os
te em ritos sagrados. O segundo refere- protagonistas da obra, entramos em um
-se à força bruta, ao instinto, poderoso e ambiente enigmático. Trata-se de uma flo-
impossível de se conter. Os dois elementos resta, à noite, com troncos úmidos. Essa
Lorca e o B r a si l • 67
paisagem contrasta claramente com as entre outros, do Prêmio Nobel Jacinto Be-
terras áridas de Almería e com as cavernas navente, Miguel de Unamuno, Fernando
esculpidas pelo vento nos pés de suas mon- de los Ríos e as jovens promessas da nova
tanhas. Parece que estamos dentro de um geração de poetas, Vicente Aleixandre, Luis
lugar quase sagrado, como aquela floresta Cernuda, Jorge Guillén, Pedro Salinas e Ma-
misteriosa na qual Macbeth começa, e não nuel Altolaguirre. Lorca colocou-se, assim,
em uma paisagem andaluza de cavernas à frente de uma geração que combinava o
e desertos. Lorca também usa os cenários dramático com o poético numa simbiose
como elementos emblemáticos, e suas per- comparável apenas aos autores do Barroco
sonagens pouco podem fazer contra essas e do Renascimento e, ainda mais distante
paisagens, objetos e animais carregados de no tempo, às fontes rituais e sagradas da
destino e mensagens. Logo a Lua sai, que tragédia grega. O poeta de Granada cha-
é personificada e tem uma voz, entoando mava, dessa forma, à porta da antiga civili-
uma canção poética que, mais uma vez, zação de Argantonio e Tartessos.
elogia o sangue e a faca. A Lua, como o Bodas de Sangre também foi recebida
cavalo da canção de ninar, também está de forma clamorosa em Buenos Aires, inter-
congelada: pretada por Lola Membrives, uma das atri-
La luna deja un cuchillo zes argentinas mais destacadas no momen-
abandonado en el aire, to. Como já assinalamos, alguns críticos
que siendo acecho de plomo descobriram nela uma “dimensão cósmi-
quiere ser dolor de sangre. ca”, que seria um dos pilares da futura lite-
¡Dejadme entrar! ¡Vengo helada ratura latino-americana da segunda metade
por paredes y cristales! do século XX. Obras como Pedro Páramo,
Pouco depois aparece a Mendiga, que Cien años de soledad, e poderíamos tam-
personifica a morte. A fuga dos amantes bém mencionar Grande sertão: veredas, be-
está, portanto, condenada ao fracasso, e a bem desta fonte em que o mítico se une ao
tragédia é inevitável. Lua e Mendiga são en- cotidiano de uma terra que obscurece suas
carnações plásticas de uma realidade sobre- fronteiras e limita com o sagrado ou com a
natural. Lorca nos faz sentir essa “verdade” morte, isto é, com as paisagens simbólicas
de maneira esmagadora, com uma plasti- do além humano.
cidade que deixa de ser dramática para ser No Brasil, como dito anteriormente, a
trágica no mais puro sentido grego, isto é, estreia de Bodas de Sangre foi realizada
cerimonial. Como lembra Ángel Álvarez de no Rio de Janeiro em 1944 pela compa-
Miranda: “Não é possível representar mais nhia Dulcina e Odilon, sob a direção e in-
vividamente o mito da lua como a divinda- terpretação da própria Dulcina de Morais.
de da morte.” É um rito de características A estreia, também bem-sucedida, abriu os
religiosas, arcaicas, enraizado poderosa- olhos da intelectualidade brasileira para a
mente na terra e no sangue. obra de um dos poetas e dramaturgos mais
Esta obra foi estreada primeiro em Ma- significativos da Península Ibérica, além de
dri, em 8 de março de 1933, com grande ser uma das vítimas na luta pela liberdade
sucesso. A estreia contou com a presença, e os direitos do povo, tão encurralados e
68 • Antonio Maura
Abhay K.
Poeta e diplomata indiano no Brasil
O
fato de que a boa literatura nasce mistura de perspicácia política, sutileza cul-
quando há a união das culturas, tural e habilidades de linguagem e de con-
das civilizações ou das cosmovisões versação para exercer o poder da persua
é amplamente aceito. Acontece frequente- são. A diplomacia geralmente é conduzida
mente no caso de diplomatas-poetas que com frases curtas que revelam tanto quanto
estão em situações exóticas, circunstâncias escondem. A poesia não é diferente.
inusitadas ou acompanhados de pessoas
com pontos de vista distintos.
A Liga do Nobel de
Existe uma ligação entre diplomacia e
poesia, pois vários diplomatas ao longo dos
Poetas‑Diplomatas
anos se destacaram na poesia e oito deles Gabriela Mistral (1889-1957) foi uma po-
ganharam o prêmio mais cobiçado da lite- eta-diplomata chilena, a primeira mulher la-
ratura: o Prêmio Nobel. Esse é um dos fatos tino-americana a receber o Prêmio Nobel de
literários pouco conhecidos. Literatura em 1945. Seu nome verdadeiro
A Liga do Nobel de diplomatas-poetas in- era Lucila Godoy Alcayaga. Amor, traição,
clui Gabriela Mistral, Saint-John Perse, Geor- tristeza, reconquista. O amor, a traição, a
ge Seferis, Ivo Andric, Miguel Angel Asturias, tristeza, a reintegração, a natureza e a iden-
Pablo Neruda, Czeslaw Milosz e Octavio Paz. tidade latino-americanas formadas por uma
A América Latina tem a maior parcela de pre- mistura de influências ameríndias e euro-
miados do Nobel nessa categoria. peias são temas centrais de seus poemas.
O que faz com que alguns diplomatas Serviu como consulesa do Chile de 1932 até
sejam excelentes na refinada arte da poe- sua morte e trabalhou em Nápoles, Madri,
sia? A diplomacia geralmente é estereoti- Lisboa, Nice, Petrópolis, Los Angeles, Santa
pada como a requintada arte de degustar Bárbara, Veracruz, Rapallo e Nova York.
vinhos e jantares, e os diplomatas como
sonhadores. A verdade é que a diplomacia Saint-John Perse (1887-1975) era o pseu-
é uma arte complexa que envolve uma boa dônimo do poeta-diplomata Alexis Leger,
Tradução de Vania Maria da Cunha Martins Santos.
72 • Abhay K.
seu primeiro livro de poemas, Forest Moon de observação para olhar as coisas a distân-
(Lua da floresta). Teve longa carreira na di- cia com leve imparcialidade.
plomacia mexicana e serviu em Nova York, Pablo Neruda escreveu: “A poesia é um
Paris, Genebra, Tóquio e Nova Delhi. ato de paz. A paz está para o poeta assim
como a farinha está para o pão.” Um diplo-
mata tem tempo e espaço de sobra durante
Poesia e Diplomacia
as estadas ligeiramente descontraídas de
Existem certas semelhanças entre o pa- sua função para estar em paz consigo mes-
pel de um poeta e o de um diplomata. O mo e com o mundo.
poeta prepara o pano de fundo filosófico A poesia se ajusta bem a diplomatas por
ou a visão de mundo – um quadro filosófico causa de sua forma e estrutura. Um poema é
de como as coisas poderiam se moldar no geralmente um recurso literário curto e con-
futuro. O diplomata implementa essa visão. densado que pode ser criado numa pequena
“A poesia é a embaixadora do espírito”, janela de oportunidade quando a inspiração
escrevem Tina Chang, Ravi Shankar e Na- os atinge. É durante estes pequenos interva-
thalie Handal, editores de Poetry for a New los que o diplomata escreve o primeiro rascu-
Century: Poetry from Asia (A poesia para nho de um poema. O primeiro esboço, bruto,
um novo século: a poesia da Ásia). E acres- pode ser revisto várias vezes em épocas mais
centam: “A poesia nos parece o modo mais relaxadas para esculpir um poema perfeito.
profundo de diplomacia, aquele que pode Como profissional de relações interna-
ajudar a gerar o diálogo e o entendimento cionais, um diplomata precisa enviar rela-
mais duradouros no mundo.” tórios diplomáticos sobre o país a que foi
Os diplomatas vivem situações únicas designado. Um diplomata trata com a elite
por conta de seu estilo de vida nômade e e com as massas para desempenhar suas
na busca de encontrar um lar longe de casa. funções. Com o tempo ele se torna fluente
O sentido de exílio de sua pátria, de perda e em várias línguas internacionais, desenvol-
nostalgia da terra natal são frequentemente ve uma sensibilidade aguda, uma habilida-
percebidos por um diplomata quando ele de de observação aguçada e uma comuni-
está no exterior. O poeta W. H. Auden cha- cação precisa. Um poeta está um pouco à
mou a vida de um diplomata de “pesadelo frente de um diplomata em sensibilidade e
da solidão pública”. Acredita-se que diplo- na exploração de dimensões sutis de pensa-
matas criativos comecem a escrever poesia, mento e emoções das pessoas.
ficção ou memórias para escapar do pesa-
delo da solidão pública de Auden, enquan- Poetas-Diplomatas
to os comuns agarram-se ao álcool.
expressivos da América
A aprendizagem durante toda a vida é
a marca registrada de um diplomata. A di-
Latina
versidade de exposição que um diplomata A América Latina possui a maior parce-
obtém enquanto serve seu país no exterior la e os mais importantes poetas-diplomatas
pode ser verdadeiramente uma experiência que receberam o Prêmio Nobel de Literatu-
inigualável. Um diplomata tem um ponto ra no mundo.
74 • Abhay K.
José Gorostiza Alcalá (1901-1973) foi um João Cabral de Melo Neto (1920-1999)
poeta e diplomata mexicano. Suas obras de foi um poeta e diplomata brasileiro. Traba-
poesia incluem Canciones para cantar em lhou a maior parte de sua vida como diplo-
las barcas (Canções para cantar em barcos), mata. Ele é considerado um dos maiores
sua obra-prima, Muerte sin fin (Morte sem poetas brasileiros de todos os tempos. Di-
fim) e Del poema frustrado (Do poema frus- zem que suas obras são secas, desprovidas
trado). Durante sua carreira atuou em várias de emoções, exaltadas, geralmente associa-
posições diplomáticas em todo o mundo e das à poesia, arraigadas a imagens, ações
foi embaixador do México na Grécia. e descrições físicas em vez de sentimentos.
Os poemas mais famosos de Melo Neto são
Jorge Carrera Andrade (1902-1978) foi “Morte e Vida Severina”, “Uma Faca só Lâ-
um poeta, historiador, autor e diploma- mina” e “Cão sem Plumas”.
ta equatoriano do século XX. Durante sua
vida, e após sua morte, foi reconhecido por Eduardo Cote Lamus (1928-1964) foi um
Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Octavio poeta, diplomata e político colombiano. Fez
Paz e César Vallejo como um dos poetas muitas contribuições à literatura e à cultu-
latino-americanos mais importantes daque- ra, colocando a Colômbia no mapa mundial
le século. Foi cônsul no Peru, na França, no contemporâneo através da revista Mito, a
Japão e nos Estados Unidos. Mais tarde, primeira publicação literária cosmopolita da
P o e si a e D i p l o m aci a • 75
Colômbia. Seus cinco livros de poesia foram Homero Aridjis (1940) é um poeta, nove-
escritos entre 1950 e 1963, um curto perío- lista e diplomata mexicano, autor de várias
do de tempo que mostra o intenso processo obras de poesia e prosa. Foi embaixador na
de sua criatividade. Há importantes transfor- Holanda e na Suíça. É, talvez, o encontro de
mações de seu primeiro livro até seu último, culturas e civilizações que fornece a ener-
Estoraques, considerado um dos poemas lon- gia e a imaginação a poetas e escritores da
gos de maior sucesso na poesia latino-ame- América Latina para a criação da grande li-
ricana. Serviu na Alemanha em uma missão teratura. É uma tendência literária significa-
diplomática antes de ingressar na política. tiva que precisa ser mais explorada.
O condenado, o escravo e um “cardume
de porcos”: notas sobre Biografia do
Língua, de Mário Lúcio Sousa
A
lém de transitar com desenvoltura de Portugal. Inspirada no cubano Esteban
por diversas artes, como a música, Montejo, escravo negro representado em
a pintura ou a poesia, Mário Lúcio Biografía de un cimarrón (1966), de Miguel
Sousa tem sabido entrecruzá-las de modo Barnet2, a experiência de Língua será obje-
instigante em seu projeto literário. Nascido to de uma aguda pesquisa estética acerca
em 1964, o autor, que também viveu em dos laços entre exclusão racial e expansão
Cuba, regressa à ficção com Biografia do ocidental no mundo. Também o condenado
Língua (2015). Neste romance, vencedor é um caso raro de longevidade, pois atra-
do Prêmio Literário Miguel Torga – Cidade vessa dois séculos para relatar as peripécias
de Coimbra, vários traços de seu percurso da vida de Língua. A partir dessas histórias,
biográfico e de seu ecletismo artístico se e da forma como as narra, não só encontra
evidenciam. O presente ensaio visa mostrar uma criativa maneira de resistência como
como Mário Lúcio Sousa, em diálogo com ainda contribui para a invenção de uma
diversas tradições literárias, repensa o tráfe- insólita comunidade de destino: “estamos
go negreiro, conferindo-lhe uma dimensão a criar a nossa própria harmonia, a nossa
universal.1 própria humanidade, se assim se pode di-
A narrativa gira em torno da vida de zer. (…), exactamente aqui neste lugar, que
um condenado à morte por fuzilamento a devia ser de morte.” (p. 71; p. 80) Suce-
quem é concedido um último desejo. Sem dem-se, assim, em catadupa as experiências
hesitar, pede para contar a história de Lín- fantásticas de um escravo que é, ao mes-
gua, um escravo que viveu durante mais de
mo tempo, anti-herói e herói exemplar, e as
um século e pronunciou sua primeira fra-
2 No preâmbulo, Mário Lúcio Sousa refere que Esteban
se (“Tenho uma língua”) aos sete meses,
Montejo, entrevistado por Barnet em 1963, quando
tendo, por isso, chamado a atenção do Rei tinha 104 anos, é possivelmente o único indivíduo a
ter vivido “o colonialismo, a escravatura, a Abolição, a
1 Este texto recupera e desenvolve algumas ideias da guerra da independência, a ocupação, o capitalismo,
resenha que elaborei sobre o romance, publicada em o imperialismo e o comunismo, sucessivamente e num
maio de 2016 na Revista Colóquio/Letras, n.º 192. mesmo lugar” (p. 12).
78 • Nazir Ahmed Can
vivências possíveis de um condenado que, pecha: “Mas ninguém sabia mais do que
em situação de imobilidade física, faz flo- até aos sete meses do menino. Eu, contudo,
rescer o abalo. ficava a imaginar.” (p. 47) É deste modo,
Biografia do Língua é, com efeito, uma portanto, que no jogo proposto por Má-
fábula sobre uma sociedade fundada no rio Lúcio Sousa se reinstauram alguns dos
paradoxo. Erguido por um homem que se fundamentos da tradição oral: um cenário
apresenta como “memória e arquivo” do (a falésia); um auditório (os verdugos), rapi-
povo (p. 290) e que se vai salvando “pela damente alargado à população que acode
escuta do outro” (p. 111), este universo faz em massa, em um misto de curiosidade e
da exceção sua regra de funcionamento. identificação com o protagonista do relato;
Como tal, algumas das mais inusitadas in- o contador, que revitaliza a herança de nar-
versões compõem o dia a dia de seus ha- rar os fatos anteriormente transmitidos; e
bitantes: “Bem, este é o meu ofício, pelo as estórias, que, devido à fenda inaugurada
menos até eu cair de joelhos crivado de pela história e à própria natureza do conhe-
balas. Mesmo trágica, a situação não dei- cimento, se inscrevem em um processo que
xa de ser cómica (…), estou a guardar os não desconsidera a invenção.
meus próprios carrascos.” (p. 64) Contra o Avesso a essencialismos, o autor indi-
fuzil e a parede, em uma espécie de fim do cia que o dilaceramento produzido pelos
mundo, o condenado-narrador inaugura a processos históricos impossibilita a restitui-
mais sã das dependências: a de histórias. E ção completa dos fatos. Daí procurar criar,
isto sucede até mesmo em dias de funeral: nesse exercício que é simultaneamente de
“Vai Falésia soluçando o finado e ouvindo o desconstrução da biblioteca imperial e de
condenado.” (p. 232) Todavia, o narrador construção de uma gramática alternativa,
não se apresenta como detentor do mono- algo próximo daquilo a que o angolano
pólio do contado, diferenciando-se, assim, Ruy Duarte de Carvalho definiu como “uma
da epistemologia e da literatura de outros zona de indiferenciação entre o falado e o
contextos. Como se sabe, ao associarem o escrito.... um falado que no entanto só pu-
continente africano a uma ideia de vazio desse ser escrito, um escrito que no entanto
(de tempo, de espaço, de humanidade) e só pudesse ser falado.” (2009, 299) Trata-
de anomia, os saberes imperiais justificaram -se de um projeto ambicioso, no qual uma
a necessidade de ocupação territorial e con- poética de complementaridade de saberes
solidaram um imaginário assente na certeza e de instituição de uma nova sensibilidade,
da superioridade civilizacional. O narrador, que não tem pejo em retorquir a antiga
pelo contrário, penetrando em terrenos nem vergonha de rir de si própria, se con-
simbólicos que se consagraram nas litera- figura como horizonte. Ao entrelaçar duas
turas africanas a partir da segunda metade narrativas, Biografia do Língua favorece ain-
do século XX, integra sua versão em uma da o cruzamento de gêneros, em especial o
cadeia mais vasta de relatos: “E eis o que conto, o microrrelato, a poesia, o romance
tenho a contar, porque me contaram.” (p. e o ensaio. Ainda que não possamos nos
19) Além de recusar a paternidade de par- estender aqui nesta questão, destacamos,
te da história que conta, assinala-lhe uma para além das obras do próprio Ruy Duarte
O c o n d e n a d o , o e scr avo e u m “cardume d e p o rc o s ” • 79
de Carvalho, os romances João Vêncio: os “Felizmente, os bebés não têm dentes, es-
seus amores (1979), do angolano Luandino ses ossos alvos que traem os negros no es-
Vieira, Terra Sonâmbula (1992), do moçam- curo. Para ele, o céu-da-boca não passava
bicano Mia Couto, e Nour, 1947 (2001), do ainda de um curioso lugar onde via láctea e
malgache Jean-Luc Raharimanana como seio eram a mesma coisa.” (p. 21) Contra-
exemplos de narrativas que entrelaçam a riando o tom épico das narrativas imperiais,
escrita, seus vários gêneros e os diversos nas quais a oposição entre o “fardo do ho-
códigos da oralidade para ler, cada qual a mem branco” e a insalubridade dos lugares
sua maneira, a complexa e acidentada his- ocupados é colocada em um plano central,
tória de seus países. No romance de Mário o que se relata aqui é a primeira vez de um
Lúcio Sousa, este tipo de procedimento, bebê. Trata-se de um movimento que con-
ademais de promover a ampliação das ba- fere humanidade ao sujeito, historicidade
lizas temporais da narrativa, está a serviço aos lugares e energia poética aos pequenos
de um desafio inédito: investigar dois tipos atos do cotidiano. Face à recusa de totali-
de experiência-limite, possivelmente os em- zação e à impossibilidade de domesticação,
blemas mais radicais da imobilidade social. já que “ninguém é capaz de traduzir o que
Assim, se a existência do condenado se en- vai na língua de uma gota de gente de dois
contra em uma zona próxima do indizível dias de nascido” (p. 31), o autor aposta na
(“Não há na vida nenhuma sensação mais polissemia da imagem, restituindo por esta
forte do que estar de pé contra um pelotão via uma das funções primordiais da litera-
de fuzilamento”, p. 15), a vida do escravo tura: sondar esteticamente os sentidos (em
será “algo assim só comparável à vida de suas várias acepções) da humanidade.
um perpétuo condenado à morte.” (p. 12) De resto, o diálogo intertextual com a
Ambos, de resto, podem ser mortos por al- história de um escravo cubano não impede
guém com quem partilham uma história. Mário Lúcio Sousa de deslocar a narrativa
Operando, portanto, no fragmento para para outros territórios simbólicos. A falé-
examinar o totalitarismo e auxiliando-se sia, que se transformou em “Falésia” após
da imaginação para preencher os espaços cerca de duzentos anos de histórias conta-
lacunares dessas vidas sentenciadas, Mário das pelo condenado, pode ser lida como a
Lúcio Sousa resgata a virtualidade poética metonímia de Cabo Verde. Ou do próprio
das experiências abissais. Tarrafal, terra natal de Mário Lúcio Sousa,
Como já mencionado, o condenado município da Ilha de Santiago onde o Esta-
teve acesso à história dos primeiros sete do Novo português criou um dos campos
meses do escravo por intermédio de relatos de concentração mais violentos do século
terceiros. Ao contrário do que seria habi- XX. Papéis da Prisão (Caminho, 2015), de
tual em um texto herdado, porém, a des- Luandino Vieira, é um dos raros textos so-
crição dessa fase da vida de Língua alcança bre a experiência concentracionária no Tar-
um notável grau de plasticidade. Mediada rafal. Dado que mereceria uma análise mais
pela metáfora, pela sinédoque e até mes- detida, a escassez de documentos sobre os
mo pela ironia, tal vivência é objeto de um campos de concentração erguidos na África
investimento na pluralização de sentido: contrasta radicalmente com a proliferação
80 • Nazir Ahmed Can
de Moçambique ou Angola, diga-se, Portu- pássaros, sínodo para os seus bispos, ou tur-
gal deixou como “legado civilizacional” 94 ma para os seus estudantes e trabalhadores e
a 97 por cento de analfabetos, números de médicos e juízes. Tinham o que tinham. Por-
tanto, como eu ia dizendo, cardume de por-
1975.4 Dívida ao invés de dádiva, ou então
cos (pp. 211-212).
“despojo de guerra”, segundo a bela sínte-
se de Luandino Vieira, a língua portuguesa Apesar de longo, o segmento sintetiza
tem sido uma arena de disputas nas antigas algumas das características de uma escrita
colônias, mas também, em maior ou menor que privilegia a enumeração desataviada
medida, de reapropriações criativas. Man- para compreender a perda. De fato, é a partir
tendo o tom irônico, mas sem negligenciar da doxa que o autor fará uma contundente
o investimento no ritmo e na musicalidade, avaliação do paradoxo que estrutura a his-
o autor cabo-verdiano reflete sobre a tensa tória desses lugares. Organizando o enun-
relação entre palavra, coisa e propriedade: ciado pela ordem alfabética que o mundo
Sim, não foi por descuido ou por igno- regrado pelo dicionário cultiva, o narrador
rância. Era como os escravos chamavam um exalta a língua construída pela experiência
grupo de leitões. Os escravos diziam cardu- daqueles que vivem na esfera oposta, sus-
me de porcos, monte de cabras, mancha de
pensos na exceção. Se, por um lado, Mário
peixe, curral de burros, quintal de cavalos,
achada de cachorros, ninho de ratos, cesto de Lúcio Sousa se apossa de um gênero es-
gatos, cochada de rapazes, casa de mulheres, crito (bio-grafia) para projetar uma estória
rol de meninos, capoeira de pombos, lote de ancorada na oralidade, não dispensa, por
homens, etcétera. Hão de entender que não outro, de um mergulho na bibliografia so-
se podia exigir que os escravos dissessem bre a condição do escravo. Ora de maneira
vara de porcos, matilha de cães, armento de direta, privilegiando a máxima sentenciosa,
gado, alcatéia de lobos (...) Os escravos não
ora de modo implícito, priorizando a elipse
diziam assembleia para os seus parlamentares
ou a metáfora, o autor perscruta as fases
e associados, ou atilho para as suas espigas,
baixela para os seus objetos de mesa, banca de uma origem desvalida. Neste quadro,
para os seus examinadores, cabido para de- destacam-se o horizonte minado de quem,
signar os seus cónegos (...) Os escravos não sem liberdade, só tem direito ao passado
diziam esquadra para os seus navios de guer- (“Os anos passaram olhando para trás”,
ra, esquadrão para os seus soldados de ca- p. 106), a necessidade do carnaval que se
valaria, falange para os seus anjos, fato para aciona como válvula de escape para contor-
as suas cabras, girândola para os seus fogos-
nar uma lembrança incômoda (“os escravos
-de-artifício, horda para os povos selvagens e
cantavam com frenesim e esquecimento”,
nómadas, malhada para as suas ovelhas, mó
para as suas gentes, panapaná para as suas p. 163) ou a impossibilidade de concretizar
borboletas ou pinacoteca para as suas pintu- a relação (“porque amor confinado é uma
ras. Não. Os escravos não tinham plantel para coisa, amor sem poder ter é outra canção”,
os seus atletas, plêiade para os seus poetas, p. 172); em sentido contrário, mas que
récua para as suas bestas de carga, réstia para acentua a natureza dialética da narrativa,
as suas cebolas e alhos, revoada para os seus realçam-se o dever de memória de quem,
4 Sobre o colonialismo português em Moçambique,
para se salvar, fala com seu outro “eu”
veja-se Cabaço (2010). (“Esteban, se a gente se esquecer da gente,
82 • Nazir Ahmed Can
a gente morre num ui”, p. 230), o desejo de mito e realidade, romance e outros gêneros
fuga daqueles que já nem com a morte se artísticos, tradição oral e escrita, história e
assustam (“para quem tudo perdeu, arriscar estória, o autor abre novos caminhos para
é uma margem de ganhar, não arriscar é in- as letras africanas e para o comparativismo
dulgência”, p. 145) e a difícil relação com entre literaturas de diferentes línguas.
a liberdade, após a evasão (“Nada do que
aprendera no percurso entre o barracão e a Referências bibliográficas
plantação estava a servir-lhe”, p. 201). ACHEBE, Chinua. A educação de uma criança sob o pro-
tetorado britânico, São Paulo: Companhia das Letras,
Enfim, de modo a repensar o maior cri- 2012.
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo:
me contra a humanidade e suas consequên- Companhia das Letras, 2013.
cias na contemporaneidade, Mário Lúcio CABAÇO, José Luís. Moçambique. Identidade, colonialismo
e libertação, São Paulo: EDUSP, 2009.
Souza faz confluir descrição e reflexão (“E CHAVES, Rita. “O romance em João Paulo Borges Coelho:
respirar a diferença na escrita”, in Mulemba, n.o 18, v.
o feto, assim se chamava o menino antes 10, 2018 (no prelo).
de ser negro, tinha o dom de escutar me- CARVALHO, Ruy Duarte. A Terceira Metade. Lisboa: Cotovia,
2009.
lhor do que a própria mãe”, p. 41), investe COELHO, Alexandra Lucas. “O que Portugal tem a ver com
o Brasil”, in Público, 27-3-2016. Disponível em: https://
no humor que lê a dor (“Claro, eu estou www.publico.pt/mundo/noticia/o-que-portugal-tem-
num pedestal e tenho o privilégio da vista”, -a-ver-com-o-brasil-1727252
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Trad. de J. L. de
p. 225) e na ironia que escrutina os pode- Melo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
res (“Se antes da abolição um escravo não MBEMBE, Achille. De la Postcolonie. Essai sur l’imagination
politique dans l’Afrique contemporaine. Paris: Kharta-
recebia nada por ser escravo, agora paga- la, 2000.
SAID, Edward. Orientalismo – o Oriente como invenção do
va para sê-lo”, p. 141). Mobilizando, além Ocidente. Trad. de R. Eichenberg, São Paulo: Compa-
disso, uma vasta cadeia intertextual, que nhia das Letras, 2007.
SOUSA, Mário Lúcio. Biografia do Língua, Lisboa: Dom Qui-
contribui para o abalo das fronteiras entre xote, 2015.
Agreste matéria: o trabalho poético de
José Luiz Tavares ou a busca da extrema
singularidade e excepcionalidade
Pires Laranjeira
Universidade de Coimbra
e a convulsão: “não possa haver bálsamo Não seremos puros, anuncia o poema.
para essa febre/que devora as entranhas, (...)
para esse susto.” A imagem do vulcão será Mas se aqui estás, mesmo entre a merda, é
pra vencê-lo,
tanto da ordem da vulcanologia quanto
sem causa outra, que estar vivo (e dizê-lo)
da antropologia do imaginário e da pai-
não é arte pouca.
xão: uma vulcanologia poética, pela pena
de um Vulcano fervente. O classicismo é De facto, a iconoclastia do poeta, tantas
adequado, sustentado pela escuta de José vezes indo à fonte de Aretino, Bocage ou
Luiz Tavares de alguns dos principais poe- O’Neill, que o levam a arriscar queimadu-
tas canônicos, além de filósofos: Szymbor- ras na pele da pólis, sobressai num gesto de
ska, Herberto Helder, João Cabral de Melo altaneira indomabilidade, também de fei-
Neto, Rilke, Dylan Thomas, Cioran, Manuel ção, mais do que romântica e isolacionista,
Bandeira, Sá de Miranda, Jorge de Sena, desesperadamente realista e dorida: “nem
Carlos Drummond de Andrade. rei nem relho”; “Fodam-se pátrias hinos
O que significa, para o leitor do Brasil, bandeiras.” Afirmar altivamente uma inde-
Cabo Verde ou qualquer outro território (na pendência (“altiva orfandade”, diz o poe-
nuvem, no éter) esta nova entrega? Sem o ta), uma insubmissão a ordens e sistemas,
explicitar, com certeza uma depuração dos é mergulhar no vulcão do improvável e do
materiais, rasurando textos da opera omnia. irresolúvel, que conduz poeticamente ao di-
Semelhante a outros bardos, a mesma bus- laceramento da razão e de um ser sonhado
ca de extrema singularidade e excepciona- como apoteose do humano.
lidade. Os títulos do livro e de alguns poe- A apoteose do humano constrói-se aqui
mas, bem como as recorrentes angústias com a lava que cinzela o chão das chãs, a
da criação questionando o quotidiano efé- evocação do trovão que destruiu o paraíso
mero e o caos, que provocam a crispação, perdido, o percurso em busca da universa-
indicam-nos, pelo menos, a grande lição de lidade da (des)razão e o trabalho pesado
Pound e Dylan Thomas. Se pensarmos na sobre uma psicanálise dos dias e o ouro das
devastação, na terra e no espírito de cinzas, cinzas cinzelado a golpes de memória feri-
fica a pairar, subtensa, a tradição romântica da na língua afiada pelos grandes clássicos:
das paisagens interiores desenfreadas e, ao “Dai-me uma pátria assim de pedra.”
mesmo tempo, melancólicas, associadas a A poética de José Luiz Tavares: um vul-
um bucolismo exorbitante feito de desar- cão de lava jorrando do caos para a ironia e a
monia e pesadas sombras, que apenas a angústia de uma palavra trançada com fúria
busca da palavra certeira consegue iluminar e desvelo (“quem te mandou a ti negro ca-
a espaços. lafate//ousar o donaire que do florentino/a
aretino tão alta se fez?”). Uma gigantesca
4 – Surpreendentemente, porém, podíamos paixão consumida pelo ofício de trevas,
rever todos os clichês sobre a capacidade de que busca, em última instância, serenar a
elocução e elocubração e atentar no primei- medonha inquietação de conciliar a me-
ro e no último dos seus versos, para chegar lancolia das origens (um qualquer Cabo
a um outro patamar de sentido: Verde que quase se apaga dos textos) com
86 • Pires Laranjeira
Marcelo Backes
Doutor em Germanística e Romanística pela Universidade de Freiburg, na Alemanha.
Escritor e tradutor.
N
o âmbito da vigorosa obra de Tho- da limitação imposta ao “desejo” pela “lin-
mas Mann (1875-1955), Doutor guagem”, que segundo ele deveria ser o
Fausto ocupa um lugar privilegiado objetivo de toda a Arte que queira merecer
e à parte. O romance é apenas um dos tes- esse nome.1 E, ao terminar o romance, em
temunhos do comprometimento eterno do vários momentos mencionou que lhe resta-
autor com a elaboração da enfermidade e a va uma sensação de que o que ainda viria, o
compreensão da alma a partir de suas vicis- que ele ainda faria, tanto na arte quanto na
situdes, a mais preciosa das pérolas que a vida, lhe parecia pálido e superficial diante
ostra “doente” de Lübeck produziu. da grande obra.
Escrito entre 1943 e 1947, Doutor Faus-
to se passa entre 1943 e 1945, numa es-
tratégia interessante, que permite ao autor
Biografia
botar grande sabedoria futurística nas es- Thomas Mann é tão conhecido no Brasil
peculações de seu narrador. O romance é, que muitos leitores de sua obra e conhe-
além disso, a obra na qual Thomas Mann cedores de sua importância ignoram que
reelabora o maior dos mitos alemães, o de sua mãe foi brasileira: seu estofo de autor
Fausto e seu pacto com o diabo (que já ha- é maior do que sua origem patrioticamen-
via encontrado uma cristalização definitiva te nacional. Se é um dos grandes escritores
no Fausto de Goethe), e a “confissão vital” do século XX, Mann é também autor do
do autor, a obra que ele próprio pensou romance que definiu os descaminhos artís-
que fosse sua derradeira, seu grande tes- ticos e políticos do mesmo século à perfei-
tamento, depois de um câncer no pulmão ção, o já mencionado Doutor Fausto. Dono
descoberto em 1946 e tratado cirurgica- de uma consciência enorme e bem precoce
mente em Chicago. Thomas Mann diria,
acerca de sua própria capacidade, já aos
acerca de Doutor Fausto, que aos 70 anos
1Die Entstehung des Doktor Faustus. In: Schriften und
escreveu seu livro mais “selvagem”, o mais Reden zur Literatur, Kunst und Philosophie. Frankfurt
perto de romper a fronteira do “dizível” e am Main: Fischer Bücherei, 1968, p. 90.
88 • Marcelo Backes
14 anos assinaria uma carta a Frieda L. Har- 1933, porque os nazistas ainda julgavam
tenstein com as palavras “Thomas Mann. que era possível negociar com o já célebre
Poeta lírico e dramático”. E até nas primei- escritor, pouco mais tarde ele veria confisca-
ras anotações infantis de seus Diários, o es- dos todos seus títulos, seus bens e inclusive
critor já parece manifestar a certeza de que sua nacionalidade. Depois de passar pela
o material um dia seria publicado, tamanho Suíça, Mann se estabeleceria em 1938 nos
é o cuidado e a precisão dos registros. EUA, onde receberia cinco doutorados ho-
Descendente da burguesia orgânica de noris causa, pelas universidades de Harvard,
Lübeck, no norte da Alemanha – o pai foi se- Yale, Columbia, Rutger e Princeton, em re-
nador –, Thomas Mann se estabeleceria em conhecimento a sua grande atividade inte-
Munique a partir de 1894, depois de perder lectual e política no exílio.
o pai, e inclusive trabalharia numa segura- A combatividade de Thomas Mann du-
dora de incêndios, abandonada logo em se- rante a II Guerra Mundial faria com que
guida por uma espécie de incompatibilidade seu nome fosse lembrado em 1945 para o
kafkiana com o trabalho. O sucesso literário cargo de primeiro presidente da República
viria bem cedo, sobretudo a partir de uma Federativa da Alemanha. Mas as dificulda-
viagem decisiva e goethiana à Itália em 1897 des do escritor com sua nação, tão grandes
– Goethe também fugiu da Alemanha para que impediram seu estabelecimento na pá-
a terra onde os limões florescem em bus- tria destruída, fariam com que a ideia não
ca de inspiração –, logo sedimentado com vingasse. E Thomas Mann se cansaria dos
a publicação do conto “O pequeno senhor EUA apenas em 1951, depois de anos de
Friedmann”. Em 1904, Thomas Mann faria benesses e bons tratos. A nova paranoia es-
um sólido e estável casamento com Katja tatal americana se tornaria hostil inclusive a
Pringsheim, que durante a vida inteira ten- ele e registraria Thomas Mann oficialmente
tou compreender a abstração de suas ver- como um dos mais famosos apologistas de
dadeiras inclinações sexuais, inclusive depois Stálin e companhia.
do sofrimento causado pela publicação de Aquilo era demais para um escritor que,
Morte em Veneza. Em 1929, Thomas Mann apesar de saudar a I Guerra Mundial, se po-
receberia o Prêmio Nobel de Literatura, con- sicionara de modo tão convicto, e já desde
decorado pela obra monumental que escre- bem cedo, contra as manifestações ainda
vera quase 30 anos antes, Os Buddenbrook, incipientes do nazismo. Thomas Mann de
publicado em 1901; o autor inclusive ficaria fato defendera o militarismo alemão du-
magoado, apesar da premiação, demons- rante a I Guerra Mundial, opondo-se a seu
trando mais uma vez a melancolia que sem- irmão Heinrich e a autores pacifistas como
pre o caracterizou, pelo fato de a academia Arthur Schnitzler, Hermann Hesse, Stefan
ter ignorado, no discurso de entrega do prê- Zweig e sobretudo Karl Kraus. Em sua obra
mio, um outro romance bem mais recente e Considerações de um apolítico (Betrachtun-
também monumental: A montanha mágica, gen eines Unpolitischen, de 1918), Mann
de 1924. ainda estipula uma diferença fundamen-
Se as obras de Thomas Mann seriam tal entre “espírito alemão” e “civilização
poupadas da grande queima de livros em francesa”, defendendo a cultura alemã em
A doen ç a pa r a a a rt e , n ã o pa r a a m o rt e , n a o b r a d e T h o m as M a n n • 89
por excelência, e sobretudo quando fala de seu caráter mais autêntico na formalidade
outros autores, Mann é menos autêntico e de sua obra ensaística, mas distancia esse
sempre se mostra suavemente elogioso, se mesmo ensaísmo de sua arte, o lugar em
limitando muitas vezes a esboçar retratos e que o autor verdadeiramente se esbaldava e
fazer discursos fúnebres, responder a per- ultrapassava as fronteiras de uma dignidade
guntas de jornais e homenagear aniversa- autoimposta artificialmente, conforme acon-
riantes. Ele afinal de contas é o autor que tece em Morte em Veneza e mais do que
se limita a registrar em seus Diários, no dia nunca em Doutor Fausto. Em sua obra-pri-
6 de agosto de 1945: “Em Westwood para ma, Mann cristaliza definitivamente – na li-
comprar sapatos brancos e camisas colori- berdade da arte – sua visão filosófica da vida
das. Primeiro ataque com bombas ao Japão, e da própria arte, sua crítica à época e ao
no qual se mostram os efeitos do átomo espírito da época, fazendo de Doutor Fausto
fissionado.” A indiferença parece extrema uma espécie de escoadouro de seu pensa-
e não deixa de lembrar a de outro autor, mento, livre porque artístico, e condensan-
muito ocupado consigo mesmo em outra do também suas especulações filosóficas e
guerra, que iniciava 30 anos antes; em 2 de políticas, mostrando mais do que nunca que
agosto de 1914, Franz Kafka anotaria em sua vida foi sua obra artística, embora Tonio
seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Kröger já se queixasse muitas vezes de sentir
Rússia. À tarde, escola de natação.” E, no um cansaço mortal por ter de representar o
entanto, como ambos os autores entende- humano sem tomar parte nele.
ram o funcionamento do mundo... É o Fausto artista de Thomas Mann que
Já em Os Buddenbrook, Mann analisara carrega seu legado não apenas artístico,
a decadência da Alemanha, para levá-la a mas seu legado inclusive vital e a elaboração
toda a Europa em A montanha mágica. E, derradeira de sua enfermidade. Foram pou-
se o autor se mostra cativado pela psicologia cos os escritores que “viveram” tão pouco
“doente” de Dostoiévski, que aliás também quanto Thomas Mann, e contaram tanto,
já deixara Nietzsche tão seduzido, é porque descreveram quase tudo, inclusive no âmbi-
identifica um parentesco direto entre si e o to da pouco vivida e intensamente narrada
autor russo: a proximidade entre enfermi- sexualidade, que é onde a vida encontra a
dade e genialidade, aliás também abordada vida em sua face talvez mais vívida e ver-
por Nietzsche. Não é por acaso que tanto dadeira. Se outros vitalizaram sua obra na
o filósofo quanto o escritor alemão se ocu- busca de identidade entre o escrito e o vivi-
pam tanto da obra de Wagner, essa tentati- do, Thomas Mann parece ter estetizado sua
va decadente de superar a decadência. vida na mesma direção, deixando de viver a
Thomas Mann sempre flertou com a de- vida na vida para vivê-la de verdade apenas
cadência, mas viveu uma vida cheia de digni- na arte, na literatura de um Doutor Fausto,
dade e circunspecção, que se manifesta em seu único exílio, sua verdadeira pátria.
Genolino Amado e seus
leitores‑ouvintes
A
inda são muitas as vicissitudes en- Machado de Assis na Biblioteca Nacional do
frentadas pelos que se arvoram a Rio de Janeiro, quando colhia material para
ser pesquisador neste país. Essa sua dissertação de mestrado.
empreitada ainda é muito árida, principal- Os dados do acaso fazem isso uma vez
mente nas cercanias das universidades.1 em um milhão. Mas a possibilidade de es-
Empreender esforços às custas de renúncias tudar autores, textos e ideias fora de nos-
e sacrifícios pessoais, sustentado por bolsas so lugar por causa do lavor do tempo, nos
exíguas, só mesmo, usando uma expressão permite ver com olhos renovados os moldes
bem nossa, com muito “sangue no olho”. que forjaram os nichos da História. Tais im-
Mas já que estamos no fogo, acendamos as pressões me vieram à mente no dia em que
maravalhas que nos cabem para iluminar as pude ter acesso à correspondência do jor-
pequenas, mas significativas recompensas. nalista, cronista e ensaísta Genolino Ama-
É evidente que todos os que adentram do (Itaporanga – SE, 1902 – Rio de Janeiro,
no “paraíso dos ácaros” – como ainda são 1989) sobre o qual dediquei dois anos de
conhecidos a maioria dos arquivos brasilei- minha vida para elaborar uma dissertação
ros – esperam viver a experiência de Daniela de mestrado para o Instituto de Estudos da
Callipo, professora da Unesp – Universidade
Linguagem da Unicamp.2
Estadual Paulista (campus de Assis) – que,
Embora lamentasse não ter tido acesso
em 1998, encontrou uma crônica inédita de
àquela documentação na fase em que fazia
1 Na primeira versão deste artigo, o discurso dominan- a pesquisa para a construção do texto aca-
te era a valoração de resultados e estatísticas, política
movida por Paulo Renato de Souza, então ministro da dêmico, foi com entusiasmo de principiante
Educação. Hoje a situação continua tensa. Devido à
que me lancei aos manuscritos que, por al-
crise institucional vivida pelo país há um ano, um dos
alvos de ação de cerceamento e restrições têm sido jus- gumas horas, abriram-se à minha frente nos
tamente as universidades, visto que, em situações dessa
ordem, não são aceitas ações contrárias a ela, feitas sob 2 A crítica cultural no ensaio e na crônica de Genolino
o signo da resistência diante de novas formas de obs- Amado, sob a orientação da professora doutora Orna
curantismo. Messer levin, defendida em 20 de outubro de 2000.
94 • Jeová Silva Santana
arquivos da paisagística Fundação Casa de quem espera a mulher gostosa e amada que
Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. volta de uma longa viagem (22/8/1940).
A carta é o instrumento com o qual se
O empenho de Amado transita por as-
chega mais perto de um autor. A imagem
suntos técnicos, tais como a revisão “em
deste, somente através de textos publica-
questões de fato, informação, gramática,
dos, será sempre desfocada. Ter acesso à
pontuação”; a qualidade do material gráfi-
sua correspondência, mais que satisfazer o
co, “pois será difícil arranjar papel melhor,
espírito de voyeur que há em nós, é encon-
infelizmente. E isso se explica pela guerra”;
trar os laivos psicológicos que ajudam a re-
e até pela comparação de taxas de publi-
montar as iluminuras entre ele e seu tempo.
cação entre o Brasil e o país onde o irmão
Ver, por exemplo, como Genolino Ama-
estava: “o livro impresso aí, não sendo em
do atuava nos bastidores para promover o
português, paga realmente, como disse na
romance Os interesses da companhia, de
outra carta, o imposto de $570 (quinhentos
Gilberto Amado (1942), seu irmão mais fa-
e setenta réis).” Além disso, há a preocu-
moso, é descobrir uma personalidade que,
pação em se buscar vozes que colocassem
nem de longe, faz lembrar o “cronista das
o romance na dimensão que supunha, pois
mudanças de mentalidade”3 (MERQUIOR,
todo seu trabalho “é e será para que se fale
1983, p. 184). O que ali se revela é um ho-
do livro, para que se faça debate em torno
mem atado às exigências da esfera familiar,
dele, e não coro declamatório... o debate
ardendo na fogueira das vaidades, lutando
é que dá interesse, é que situa o livro, é o
de forma renhida para fazer com que nin-
que fica.”
guém ficasse indiferente ao livro que se en-
Contudo, para atingir este objetivo,
contrava no prelo:
Amado vê como inimigo todo aquele que
Eu sei que o livro será enorme e o espero
se tornar indiferente a seu apelo: “O Gra-
com o coração aceso, mas tranquilo. Vou vi-
ciliano, preguiçoso, tímido, achando o livro
ver esses meses ou essas semanas que faltam
para recebê-lo com o mesmo anseio feliz de grande demais para ele, ainda não escreveu,
3 É importante lembrar duas outras atividades exercidas
mas o José Olympio prometeu arrancar-lhe
pelo autor, tais como tradutor e dramaturgo. Nesta, ele o artigo, que será naturalmente belo, pois é
escreveu a comédia Avatar, editada pela Sociedade Bra- o mais entusiasta e um dos agudos comen-
sileira de Autores Teatrais em 1948. Neste mesmo ano,
foi premiado com a medalha de ouro da Associação de tadores.”
Críticos Teatrais por Dona do mundo. Como tradutor,
destacam-se A cidadela (The citadel) , de A. J. Cronin;
Tais relatos nos fornecem uma visão di-
A vida errante de Jack London (Sailor on Horseback), de ferente do autor que, no apagar das luzes
Irving Stone; Zadig (Zadig), de Voltaire, A outra comé-
dia, de Somerset Maugham (teatro); História da minha da belle époque carioca, fez com que as
vida (My autobiography), de Charles Chaplin; Chuva características da crônica e do ensaio jorna-
(Rain), Somerset Maugham (Teatro); Anna Christie, de
Eugene O´Neill, (teatro) e Medéia, de Euripedes, na lístico se fundissem para falar sobre temas
adaptação de Peter Jeffers. (Teatro). Em relação ao livro caros à realidade brasileira, tais como o sen-
de A. J. Cronin, Genolino Amado assim se expressou
em uma das cartas (s/d) a Gilberto Amado: “A cidadela timentalismo do cinema, a popularidade do
abriu caminho e marcou uma época nova. Venderam-se
futebol, os desmandos administrativos e a
em poucos meses quarenta mil exemplares, a dezoito
mil réis” (grifo do original). natureza do Rio, a presença do pobre-diabo
Genolino Amado e s e u s l e i to r e s ‑ o u v i n t es • 95
na literatura, o fastio da tradição do roman- corrigir uma informação dada por Amado
ce regional etc. em uma de suas crônicas diárias:
Embora tenha sido mínima nossa in- O preclaro professor equivoca-se quando
cursão subjetiva, pois só tivemos acesso a diz que Gravatá do Bezerro é uma pequena
vinte e seis cartas da correspondência ativa, vila sertaneja de Pernambuco. Não senhor.
Gravatá de Bezerros (não de Bezerro) é cida-
escritas entre 1940 e 1968, fomos recom-
de. É uma bela cidade. Fica a menos de três
pensados ao encontrar algumas mensagens
horas de trem de Recife, e é cortada quase
de leitores e ouvintes de Genolino Amado.
pelo meio pela estrada de ferro. A estação
Um pequeno, mas significativo registro de está localizada quase no centro da cidade.
uma relação estabelecida em mais de vinte
anos como autor de textos para jornais e rá- Esta correção, porém, não deve ser vista
dios paulistas e cariocas. O prestígio que ele como preciosismo, pois o leitor reconhecia
alcançou nessa atividade pode ser medido, como “em alto conceito é tido o magnífico
por exemplo, nos quinze anos do programa escritor que risca de seu vocabulário as pa-
“Crônicas da Cidade Maravilhosa”,4 que lavras difíceis e imita Coelho Neto”. Uma
era apresentado pelo locutor César Ladeira comparação que não deixa de ser curiosa,
na rádio Mayrink Veiga. Além deste, ainda já que estamos diante “de um homem que
produziu “Biblioteca do Ar”5 e “Crônica da sabe escrever” (PRADO, 2001, p. 183). Mais
Cidade”. ainda se levarmos em conta a posição que
Dois aspectos nos chamaram a atenção. Coelho Neto ocupa em nosso imaginário
O primeiro foi perceber quantos leitores- com a sua prosa fundamentada no fato
-ouvintes escreviam bem, não do só do de se considerar “o último dos helenos”,
ponto de vista da caligrafia, mas também além de ter sido alvo da pena impiedosa
na exposição do assunto. O segundo, quan- de Lima Barreto que o retrata na pele do
to ao grau de cumplicidade existente entre personagem Veiga Filho, em Recordações
o cronista e seu público. Este vê no homem do escrivão Isaías Caminha, como exem-
que ama, critica e elogia a cidade um amigo plo do artista da belle époque brasileira
para quem pode estender os elos do jeito que tem o perfil “vaidoso, preciosista e
carioca de ser. bajulador.”(ZILBERMAN, 2001, p. 19). Uma
Os poucos exemplos aqui alinhavados das características básicas da crônica é pos-
podem dimensionar melhor essa relação. O
suir um viés de utilidade pública em sua
primeiro deles nos é dado por Paulino da
mensagem, o que a transforma em uma
Costa, morador de Bauru que, em carta
espécie de porta-voz dos que transitam no
datada de 4/7/1952, toma a liberdade de
anonimato da cidade. Não é outra a impres-
4 O compositor André Filho compôs a marcha “Cidade
são que nos trazem estas palavras da leitora
Maravilhosa”, em 1935, para a abertura deste progra-
ma (COELHO, 2016, p. 166). Ângela, em carta de 4/11/1952: “Senhor
5 “A Biblioteca do Ar não tinha como objetivo principal
Genolino Amado. Sou uma dessas tantas
o estudo aprofundado de determinado gênero literário,
mas sua divulgação. A proposta do programa consistia moças que o senhor fala em suas crônicas.
na apresentação das literaturas nacional e estrangeira,
Pobre, sim, mas, porém (sic) de espírito ele-
por meio da exposição de pequenos trechos de diferen-
tes obras (COELHO, 2016, p. 168). vado (desculpe a pretensão).”
96 • Jeová Silva Santana
Amado escreveu para o rádio. Elas, contra- lembrando as palavras de Herman Lima
riando a fina ironia de Merquior (1983, p. (1942), “Pode-se dizer que nunca os mor-
182) não repousam num “museu imaginá- tos se vão tão depressa, como no setor das
rio do som”, mas no Museu da Imagem e letras nacionais”.
do Som, do Rio de Janeiro, segundo infor-
mações obtidas junto a uma editora carioca. Referências
Essa empreitada deveria ter sido concre- BROCA, Brito. Horas de leitura: 1.a e 2.a Séries (coordena-
ção Alexandre Eulálio), Campinas, SP: Editora da UNI-
tizada, 2002, sob os auspícios da comemo- CAM, 1992.
COELHO, Patrícia. Educadores do rádio: programas para
ração do centenário do autor de Um meni- ouvir e aprender (1935-1950). Rio de Janeiro: PUC-
no sergipano: memórias (1977). Não deu. -Rio; Mauad, 2016.
LIMA, Herman. Revista Leitura, ano IV, n.o 42, Rio de Janei-
Felizmente, ficou o consolo de a pesquisa ro, abril de 1942.
acadêmica ter virado livro por meio do pro- PRADO, Décio de Almeida. Apresentação do teatro brasilei-
ro moderno – crítica cultural de 1947-1955. São Paulo:
grama de edições da Universidade Federal Editora Perspectiva, 2001.
MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Rio de
de Sergipe (2014). Afinal, de silêncio basta Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1983.
o que cai sobre os que usam a efemerida- SANTANA, Jeová Silva. A crítica cultural no ensaio e na crô-
nica de Genolino Amado. São Cristóvão: Editora UFS;
de da crônica e do ensaio jornalístico como Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2014.
forma de registrar seu tempo e marcar ZILBERMAN, Regina. “Imprensa e literatura no Brasil”. In:
Jornalismo cultural cinco debates. Florianópolis: FFC
sua passagem pelo mundo dos vivos, pois EDIÇÕES, 2001, p. 19.
As ambivalências da tradição na
poesia de Antonio Carlos Secchin
Emmanuel Santiago
Poeta, crítico literário e tradutor. Doutor em Literatura Brasileira pela USP
D
esdizer e antes,1 de Antonio Carlos institucionais de legitimação, esses poetas
Secchin, foi um dos mais relevantes imprimiam artesanalmente seus livros e os
lançamentos de poesia brasileira do distribuíam pessoalmente, ficando também
ano passado. O volume, que contém uma conhecidos como “geração mimeógrafo”.
série de poemas inéditos escritos de 2003 a Tal forma de circulação da poesia, cen-
2017 (compondo o livro Desdizer) e reúne trada no autor, vinculava-se à sociabilidade
o restante da obra poética do autor (o “an- de um público em sua maior parte jovem
tes” do título), representa uma oportunida- e ligado ao meio universitário, num con-
de de passar em vista a trajetória de um de texto em que a contracultura, em seu viés
um poeta que, a seu modo, ilustra o destino comportamental – o chamado “desbunde”
de toda uma geração. –, tornara-se uma alternativa à militância
Secchin debutou na literatura no co- política (sufocada pela perseguição do Es-
tado) como atitude contrária ao ambiente
meço da década de 1970, no período de
repressivo instaurado no regime militar. As-
emergência da chamada “poesia margi-
sim, entende-se o espírito irreverente e algo
nal”. Junto a outros colegas de geração,
anárquico que insuflava a poesia da época,
integrou a célebre antologia 26 poetas hoje
o que, para Heloisa Buarque de Holanda,
(1976)2, organizada por Heloisa Buarque de
fazia lembrar o modernismo de 1922.
Holanda. Às margens das reputações esta-
No geral, as características da poesia
belecidas e ao largo das experimentações
desses autores eram a coloquialidade e
concretistas, a organizadora captou o surgi-
o prosaísmo, a captura de momentos do
mento de poetas que exerciam uma postura cotidiano e da vida urbana, o desejo de
anticonvencional na cena literária brasileira. representar a experiência subjetiva de ma-
Excluídos do mercado editorial e dos canais neira imediata (isto é, fugindo aos lugares-
1 SECCHIN, Antonio Carlos. Desdizer e antes. Rio de -comuns da tradição), o humor, além do
Janeiro: Topbooks, 2017.
2 HOLLANDA, Heloisa Buarque de. 26 poetas hoje (an- diálogo com meios de comunicação de
tologia). 6ª ed. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007. massa, como o cinema, a música pop e o
100 • Emmanuel Santiago
jornalismo. É o caso de “Aviso” (em Ária Agora é hora de ter mais seriedade,
de estação, 1973): para essa rima não rumar até o inferno.
Convoco a musa, que me ri da imensidade,
Desfiz noivado mas não se cansa de acenar um não eterno.
vendo sem uso Falar de amor, oh meu pastor, é que que eu
almofadas soltas queria,
jogo porém os fados já perseguem teu poeta,
mesinha mármore rosa deixando apenas a promessa da poesia,
cama sofá arquinha
matéria bruta que não coube no terceto.
Se o deus flecheiro me lançasse a sua seta,
No rodapé, o autor informa: “(extraído eu tinha a chave para trancar este soneto.
de anúncio do Jornal do Brasil, 5/10/69)”.
O procedimento utilizado lembra o do fa- Trata-se de um soneto metalinguístico
moso poema de Manuel Bandeira, “Poema e paródico, no qual se percebem algumas
tirado de uma notícia de jornal”, porém referências intertextuais: no terceiro verso,
radicalizado. O texto é de natureza para- temos uma citação do soneto “A um poe-
tática, construído pela justaposição de pa- ta”, de Olavo Bilac; já no primeiro terceto,
lavras furtadas a um classificado, ao modo o vocativo “meu pastor” sugere o universo
de uma colagem dadaísta ou cubista. Não idílico da poesia árcade. Além disso, “fa-
há pontuação e a sintaxe está restrita aos dos” e “deus flecheiro” remetem ao re-
elementos mínimos. Também não há de- pertório de lugares-comuns classicistas. No
senvolvimento narrativo, o que atenua o entanto, tais referências, ao serem emula-
páthos do evento narrado (mais perceptível das, aparecem sob negação: nem a ginás-
no poema de Bandeira, a despeito de sua tica parnasiana garante a necessidade do
objetividade). poema, nem o poeta, atormentado pelas
Outro aspecto da poesia surgida no intempéries da existência, é capaz de falar
começo dos anos 1970 é a postura icono- de amor (o mais previsível tema do gênero
clasta diante da tradição literária, caracterís- lírico) da maneira como tal sentimento cos-
tica de uma geração que reclamava maior tuma ser tratado na tradição, o que torna o
liberdade individual contra as interdições de “Soneto das luzes” a paródia de um soneto
uma sociedade conservadora, resgatando a convencional.
irreverência do modernismo de 1922. Den- Quanto à metalinguagem, percebemo-
tre os poemas de Secchin coligidos em 26 -la no movimento autorreferente do texto
poetas hoje, vejamos “Soneto das luzes”, (“este quarteto”, “este soneto”), que evi-
incorporado a Desdizer e antes na seção dencia os elementos da forma na qual foi
escrito, como, no segundo verso, a alusão
“Dispersos”:
às “doze sílabas” e, no último, à chave-de-
Uma palavra, outra palavra, e vai um verso, -ouro. Interessante, também, é o período
eis doze sílabas dizendo coisa alguma. sintático localizado do nono ao décimo
Trabalho, teimo, limo, sofro e não impeço segundo verso, que, referindo-se a um
que este quarteto seja inútil como a espuma. conteúdo “que não coube num terceto”,
As ambival ê nci as da t r a d i ç ã o n a p o es i a d e A n to n i o C a r l os S e cc h i n • 101
espraia-se de uma estrofe a outra, cons- poesia de Secchin, embora imbuída de valo-
tituindo um exemplo de isomorfia. Esses res vanguardistas, apresentava uma postura
expedientes revelam um elevado grau de ambígua em relação à tradição. Em primei-
consciência compositiva e de distanciamen- ro lugar, há a filiação a autores-chave do
to crítico (manifesto numa perspectiva irô- Modernismo em língua portuguesa, como
nica), características que acompanhariam o nos poemas “A João Cabral” e “A Fernan-
autor ao longo de toda sua obra. do Pessoa” (para não falar das ressonâncias
Ainda em “Dispersos”, encontra-se de Drummond e Murilo Mendes), demons-
outro soneto, “Linguagens”, que também trando a sedimentação de uma tradição
assume uma atitude irreverente diante da modernista (a incorporação das conquistas
tradição. Nele, há a listagem de figuras de advindas da vanguarda ao cânone).
estilo em versos que parodiam exemplos Em segundo lugar, como aponta Heloi-
clássicos delas em nossa literatura. Ao pé sa Buarque de Holanda em texto à segun-
da página, o autor esclarece que o poema da edição de sua antologia (1998), uma
foi escrito a partir das figuras de lingua- das contradições da poesia de 1970 era
gem apresentadas em manuais escolares. o repúdio à tradição literária combinado
De igual maneira, as diversas referências à obsessão em evocá-la.3 Secchin, contu-
intertextuais trazidas compõem o currículo do, vai além: no livro de 1973, temos um
regular das aulas de Literatura. O poema poema como “Cantiga”, que retoma, não
expressa revolta contra o cânone escolar – como paródia, mas como pastiche, as can-
denunciando uma introdução à literatura tigas de amor do trovadorismo português;
que se dá basicamente por meio da leitura em “A ilha”, a disposição dos versos re-
dos clássicos – e o desejo de se derrubar as mete à terza rima d’A divina comédia, de
barreiras que separam arte literária e vida Dante, embora sem a regularidade métrica
contemporânea (um projeto de origem van- de seu modelo. Desde o livro de estreia,
guardista). No soneto em questão, manifes- estabeleceu-se, na poesia de Secchin, a
ta-se o espírito libertário e anti-institucional dinâmica entre uma atitude vanguardista
que se apossou da juventude progressista (ruptura) e o interesse pelo cânone (tradi-
das décadas de 1960 e 1970. ção), ainda visível nos livros mais recentes
Além da retomada de elementos do Mo- do autor, porém com ênfase diversa, como
dernismo de 1922 e da visada crítico-irôni- se verá.
ca sobre a história da literatura brasileira, No livro seguinte, Elementos (1983),
outro aspecto que liga a primeira fase da temos a suspensão momentânea dessa
poesia de Antonio Carlos Secchin ao ciclo dinâmica. Mais especificamente, há uma
vanguardista no Brasil é o flerte com o con- neutralização do polo tradicionalista. Divi-
cretismo em poemas como “Itinerário de dido em quatro partes, cada uma delas de-
Maria” e “Poema” (ambos de Ária de esta- dicada a um dos quatro elementos, o livro
ção). Um dos fundamentos das vanguardas, consiste num exercício metalinguístico por
como se sabe, é a ruptura com o passado, meio do qual se procura atingir o cerne da
propondo uma arte mais adequada à sen-
sibilidade contemporânea. Àquela altura, a 3 HOLLANDA, op. cit., 257.
102 • Emmanuel Santiago
Glauber de Oliveira
Formado em Ciências Sociais e Filosofia (Bacharelado/Licenciatura) na UFPE
“Nas antigas lajes os passos dos meninos Em silêncio, vives a infância de teus olhos
gravados no passado remoto e, bem marcado, e, morto, és tão puro que te tornas menino.”
o trotar dos burricos que flores carregavam.”
Este poema “Elegia” deve ser integral-
C
mente citado. Poema magnânimo por versos
omeçamos este ensaio sobre a poe-
como estes: “...Porém não esquecer / a pro-
sia de Alberto da Costa e Silva com
messa de flores nas sementes dos frutos, / o
estes versos de “O Parque” que nos
rosto de teu pai na face do teu filho”. E estes
sugerem que este autor, parece, tem asso-
versos também: “as ondas que voltam sobre
ciação com Francis Jammes. Texto em terce-
tos de métrica mais ou menos livre. as mesmas praias, / noivas desconhecidas a
Fazendo poesia um pouco metafórica, cada novo encontro.” Poema feito em ale-
o poeta apresenta-nos a morte como em xandrinos.
“Flumen, Fluminis”. Poema em verso livre. Interessante notar os temas já presen-
“Aparição em Fortaleza”: poema me- tes no jovem Alberto da Costa e Silva. Nos
morialístico. Nova sugestão de aproximação seus “Poemas dos vinte anos”, a “Canção
com Francis Jammes pela lembrança dos às Moças Tísicas” é um exemplo de extrema
burricos. sensibilidade.
e se alguém nasceu por fugir do silêncio Presença poética de sua amada, Vera,
nem por isso as palmeiras se cansaram desde os vinte anos.
de sua sombra de cravo tocado pelos dedos Poeta de textos descritivos com forte pre-
e louça da manhã disposta sobre a mesa
sença de animais, de vegetais, da natureza, en-
adeus! que já desabam as folhas mamoeiros fim. Inevitável a lembrança de Francis Jammes.
se partem à beira d’água enquanto indago e Nos “Poemas dos trinta anos” volta-se a
escuto apresentar a descrição da natureza.
a minha voz o canto de um inferno vencido Belo poema “A Travessia do Rio Volta”.
pelo odor das mangas e o prostrado menino
Descritivo e metafórico ao mesmo tempo.
que soluça tombado sobre o magro joelho Outro grande poema é “Hoje: Gaiola
de um outro (velho) fácil é apear-se a cilha sem paisagem”. Devemos pedir desculpas
se aperta depressa e dóceis são os dias aos leitores, pois as referências as mais di-
que a palavra recria como flores de cacto
versas são muitas nos poemas de Alberto
mas vivê-los? vivê-los nem as bilhas da Costa e Silva. Que se enfatize a feitura
com sua clara frescura nos devolvem de uns versos nos “Poemas dos trinta anos”
esta alegria de sonhá-los altos que é quase uma prosa poética. Textos os
e não a areia pobre que nos deram
mais agradáveis, por sinal.
e se pelo natal devoramos castanhas Agradável presença da filosofia grega
de que inverno nascem que dias adormecem com “Fragmento de Heráclito” nos “Poe-
em sua polpa branca é a camisa que veste mas dos Quarenta Anos”.
o corpo solitário a beber o seu vinho Ótimo fazedor de cenas como em “A
espanco o animal o pranto suja o rosto Despedida da Morte”.
salto o tear das flores até à vista! meus Uso mais frequente dos versos livres
são os verões por viver e os campos de dores como no poema dedicado ao pai: “Prece de
o sol não se disfarça nos olhos dos coelhos.” 23 de Novembro”.
O jovem poeta Alberto da Costa e Silva Contínuo sonetista, que vai imarcescibili-
é um talento precoce. Isto está exemplifica- zando-se nos “Poemas dos cinquenta anos”.
do neste poema acima reproduzido. Como ajuda-nos às vezes os títulos dos
Primeira apresentação de sonetos já na textos. Encontrou-se a “Elegia de Lagos”.
década dos seus vinte anos. Decassílabos! A elegia é outra definitiva forma de texto
É uma sucessão incrível de versos incrí- feita por Alberto da Costa e Silva.
veis criados por Alberto da Costa e Silva. Poeta também filosófico.
Como estes de “Poema de Aniversário”: Ótimas referências de autores como
“mas os olhos e as mãos nada conquistam, Hölderlin, Camões, Ricardo Reis...
/ e enegrece na mesa a maçã limpa.” Quase ininterrupta presença da natureza
Poeta verdadeiro e culto desde tenra na poesia de Alberto da Costa e Silva. Isso é
idade. Usando vocábulos incomuns para ratificado nos “Poemas de cinquenta anos”
um jovem e com muita legitimidade. num texto como “Dezembro, em Bogotá”.
O p o e ta A l be rto da C o s ta e S i lva • 109
Mario Werneck
Mario Guimarães Werneck Filho. Doutor em Ciência da Religião.
Professor PUC Minas e Instituto Santo Tomás de Aquino
O
presente artigo propõe uma análi- vertente mais racionalista. A contenda entre
se de um conto do poeta e místico os sábios leva Bahā’ al-Dīn a deixar Balkh.
da tradição Sufi Jalāl al-Dīn Rūmī, Este teria sido um dos motivos que fez com
que nasceu em Vakhsh, uma aldeia situada que a família Walad deixasse a região. Con-
nas cercanias Balkh (atual Afeganistão), em tudo o motivo mais forte foi a invasão dos
30 de setembro de 1207 (6 Rabīʿ aI-Awwal mongóis.
604) filho de Bahā’ al-Dīn Valad um emérito Após uma grande peregrinação passam
doutor da lei – que no mundo Muçulmano por diversas cidades, entre elas Nayshāpur –
significa aquele que é versado em teologia, onde provavelmente seu pai teria se encon-
filosofia e jurisprudência – mas também um trado com o emérito sufi ‘Aṭṭār e este o teria
místico e pregador detentor do título de presenteado com seu Asrār-Nāmeh (Livro dos
Sulṭān al-‘ulamā’ “Rei dos Sábios”. Nessa Segredos). ‘Aṭṭār será para Rūmī uma grande
época, toda a região fervilhava com diferen- influência, assim como Sanāʿī, ambos citados
tes culturas que se misturavam nas cidades
com frequência em seus escritos.
do Império Khwarazm.
Continuam a peregrinação até Damas-
O ambiente em que Rūmī foi criado
co, Aqshahr e Larende (atualmente Kara-
era pleno de espiritualidade, onde debates
man, pequena província da Turquia) – em
em torno de jurisprudência e teologia pro-
que a família permanece por sete anos e
duziam um terreno fértil de ideias. É num
onde Rūmī se casa com Gowhar Khātun –,
desses debates que se encontram Bahā’ al-
sua mãe Muʿmini Khatun falece e seu filho
Dīn Valad partidário das ideias sufis e Fakh
Sulṭān Walad nasce. Atingem finalmente a
al-Din Rāzi1 que era “cortesão e professor
Anatólia, onde em 626/1228 Bahā’ al-Dīn é
do rei Khwarazm-sha”2 e partidário de uma
acolhido pelo príncipe Seljúcida ‘Ala’ al-Dīn
1 Esta contenda seria por declarações antirracionalistas
Espere até que o sol da Ressurreição se torne O caçador de serpentes paralisado de medo
manifesto, a fim de perceber o movimento gritava: “O que eu trouxe das montanhas e
do corpo do universo. do deserto?!”
Pois nesse mundo, quando o bastão de Nesse momento o dragão fez o imbecil em
Moisés tornou-se uma serpente, pedacinhos enrolou-se em um pilar e devorou
O intelecto recebeu indicações concernentes até seus ossos.
às coisas inanimadas. (...)
O caçador chega então a Bagdá e instala seu O objetivo principal de Rūmī com essa
espetáculo às margens do rio Tigre. história é mostrar a importância do comba-
Um rumor se eleva em Bagdá:“Um caçador te espiritual dos instintos carnais que na psi-
de serpentes trouxe um dragão: cologia sufi chamam-se nafs; entretanto, há
Ele capturou um animal raro e muito mais sendo trabalhado nas sutilezas
extraordinário!”
diáfanas das entrelinhas.
Miríades de tolos e simplórios se
A figura do caçador se por um lado é
ajuntaram...
Se tornariam presas da mesma maneira que a representação clara do poderio respon-
eram agora presas de sua própria loucura. sável outorgado pelo pacto de Alast, por
Mais a multidão aumentava, mais aumentava outro também deixa ver a mácula inscrita
o valor do óbolo. no âmago da criatura (feita perfeita) pela
O caçador então começa a descerrar o queda, e aqui pede-se a vênia a John Mil-
manto que cobria o dragão ton para que cante a tristeza de Adão: “Ó
E a multidão acompanha esticando pescoços
golpe inesperado, pior que a morte! Devo
E veem que o dragão estava sendo mantido
deixar o Paraíso? Deixar-te assim, ó terra
congelado envolto em rudes trapos
E amarrado com grossas cordas, pois o natal! (...) Como me separarei de ti? Como
caçador havia tomado grandes precauções. errarei num mundo inferior?” Este teor
Contudo durante o intervalo da dramático da queda ressoa para Rūmī num
apresentação, o sol do Iraque brilhou sobre visar-se presente; presença que se projeta
o dragão numa imagem ainda diáfana para além de
Fazendo com que os humores frios esvaíssem si numa protorrelação.
de seus membros;
Rūmī mostra o caçador como homem de
Ele estava morto e ressuscitou; Surpreso, o
busca, mas o que ele busca é ainda glória e
dragão se põe a desenroscar-se.
Vendo mover-se o dragão morto o estupor louros, algo fugaz e por demais intencional;
das pessoas se multiplicou mil vezes. por isso, ainda é presença diáfana, de cer-
Assombrados puseram-se a gritar correndo ta forma a intensão, digamos por demais
para longe de seus movimentos. mundana, enublou seus olhos com o clâmi-
Ele se pôs a arrebentar suas amarras de negro do ego.
E aos gritos das pessoas apavoradas as A presente história é uma advertência
amarras que ainda estavam congeladas se
de Rūmī quanto aos ardis da alma (nafs).
partiram.
O caçador vê a aparência da serpente, mas
Livre o dragão investiu furioso sobre a turba,
rugindo como um leão. sua essência ontológico-metafísica lhe é
Na desordem muitos foram mortos; cem oculta. Há aqui uma relação aparentemente
montes foram feitos daqueles que tombaram contraditória entre Unidade e multiplicida-
mortos. de; ou entre o Real e mundo fenomênico.
Breve a n á l ise d e u m a h is t ó r i a n a r r a da p o r Jalāl a l -Dī n Rū m ī • 115
que no sonho, a alma vai bem longe, enquanto que ser humano possui as potencialidades que
o espírito permanece no corpo? Essa alma viaja e se lhe foram outorgadas na criação e assim
transforma. (...)”. RUMI, J. Fihi ma Fihi . p. 87.
13 “Rumi sempre se refere ao espírito animal com o ter- tem a possibilidade de ver no universo o ta-
mo nafs que mais comumente traduzido por ‘alma’ ou lhe dos olhos do Criador.16 Entretanto, seus
‘eu’. Em Árabe e Persa o termo nafs é sempre sinônimo
dos termos rūh ou jān, i. é, ‘espírito’. Rūmī ocasional- olhos foram velados:
mente usa o termo para se referir aos elevados níveis
do espírito. Mas sempre emprega o termo nafs para 14 cf. Kassis, Kobbervig. p. 30. Amara cuja raíz trilítera é
referir-se ao espírito animal, esta forma de usá-lo foi AMR: aconselhar, dar ordem, decidir, instar, mandar etc.
inspirada pelo verso Corânico: ‘não declaro que minha Esta raiz e sua derivações possui dezenas de citações no
alma (nafs) é inocente: verdadeiramente a alma do ho- Corão: II:27/25; III:20/21; VI:8/8; XXXIV:32/33; etc.
mem o incita ao mal.’ (XII:53). Os sufis e outros sempre 15 Cf. HAKIN, Khalifa Abdul. The Metaphysics of Rumi.
aqui o Dragão que o caçador pensava morto O intelecto recebeu indicações concernentes
está apenas congelado, aguardando soler- às coisas inanimadas. (...)
temente a oportunidade de despertar. Com
Quando Rūmī relembra o cajado de Moi-
isso Rūmī chama a atenção para a necessida-
sés transmudado em serpente mostra que a
de de se estar concentrado na busca de ma-
serpente nas mãos de um Homem Perfeito
neira a que nada possa distrair o buscador
– e Moisés é por excelência – desveste-se
e fomentar a insurgência de nafs ammarah.
de sua pele maculada pelo signo do desejo
De um modo geral, o que ocorre com
(outro símbolo que mostra a renovação per-
o ser humano é que a alma carnal nafs
manente a qual o ser humano é chamado a
ammārah,19 de certa forma, arma uma ci- realizar) para então tornar-se vitalidade que
lada para os sentidos, não permitindo que salvaguarda vidas sob a forma de cajado fei-
eles captem o real significado daquilo que to cobra. Não mais víbora arrasadora, mas
veem, fazendo-os acreditar que apreende- serpente de força e equilíbrio, seu veneno
ram o real a partir destes dados sensíveis traz oculto seu antídoto.
fornecidos pelo eu carnal, o que – no dizer A rudeza do inverno temporal coincidia
de Mawlānā – transforma os sentidos em com o estado interior do caçador, por isso o
enganosos e os seres humanos em idóla- dragão lhe pareceu morto, pois assim se sen-
tras. Contudo existe o aprendizado: tia em relação ao seu eu despótico, que já
Pois nesse mundo, quando o bastão de então adormecera como soberano supremo
Moisés tornou-se uma serpente, de um corpo entregue aos seus comandos.
Eis que então culmina sua descida na
determinada pessoa e é ajudado por ela obtém tudo ao
mesmo tempo; ajuda, graça, beleza, ciência, lembranças, acolhida pasma do vilarejo. E novamente
pensamentos, alegria e tristeza; todas essas qualidades aqui é preciso se observar o conhecimen-
pertencem ao mundo infinito; e a cada momento , através
dessas qualidades, obtém ajuda e impressões. Ele não se to profundo da alma que Rūmī possuía. As
surpreende com isso, mas se espanta com a ideia de que pessoas que acorrem de pronto à chegada
possa gostar do mundo infinito e ser ajudado por ele.”
RUMI, J. Fihi ma Fihi. p. 67. De maneira semelhante lê-se
do caçador querem o viço do primeiro olhar,
no Dhammapada: “Venham, olhem este mundo que se e seduzidos se acotovelam ante a enorme
assemelha a uma cintilante carruagem real;/ Nele os tolos
afundam, mas para os discernidores apego (nele) não há.”
forma ainda coberta seduzidas pela possibi-
DHAMMAPADA. p. 103. Este chamado ao desapego é lidade da visão inédita e privilegiada.
visto assim pelo Zen Budismo: “Não se apeguem à forma.
Não se apegar à forma significa Quididade. O que significa
Mais se acotovelam, mais se embeve-
Quididade? Significa inconsciente. O que é inconsciente? ce o caçador de seu feito. O povo grita em
É não pensar em termos de ser e não-ser, não pensar em
termos de bem e mal, não pensar em limites ou ausência
frêmito “o caçador trouxe algo diferente”.
de limites; não pensar em medidas (ou não-medidas); não E novamente aqui Rūmī mostra o cuidado
pensar na iluminação, nem pensar em ser iluminado; não
pensar no Nirvana, nem em atingir o Nirvana: é isso o in-
que se deve ter na apreensão das formas,
consciente. O inconsciente nada mais é que o o próprio pois durante a criação do ser humano “o
Prajñāpāramitā. E o Prajñāpāramitā (perfeição da sabedoria
da outra margem) nada mais é do que o Samādhi da Uni-
intelecto recebeu indicações sobre as coisas
dade.” SUZUKI, D. T. A Doutrina Zen da Não-Mente. p. 52. inanimadas”. Nesse instante um tolo da tur-
19 Observe-se aqui a referência Corânica do termo nafs
lhe era conhecida, mas isso só aumenta seu de certa forma a doadora de sentido daquilo
desconhecimento e o que diz não é mais que foi apreendido externamente, esta apre-
que um despautério. ensão carece de significado extraexistencial.
Quando tocado pelo sol, o gelo vai Em outras palavras, o que se observa está,
progressivamente se desfazendo e o dra- nesse sentido, tão eivado de autossignifi-
gão começa a se movimentar. O que Rūmī cação, que perdeu sua dimensão essencial.
quer mostrar com esta alusão é que o mes- Aquilo que se vê é aquilo que de certa forma
mo movimento se instaura na alma que se se quer ver pelo influxo do eu, ao passo que
abre ao mundo dando a ele um valor de ser ver as coisas tais como são seria observá-las
que totaliza as atenções e tipifica um viver pelos signos de sua pré-eternidade.20
inautêntico em relação à gênese do próprio O conto chama atenção para a potencia-
espírito. Quando o sol do desejo toca o dra- lidade do ser humano de ser lugar de trans-
gão congelado da alma, ele se descongela e formação e isso implica situar o eu como
trucida o ser humano. algo a ser modificado, o que ocorre pelo fato
O conto, de certa forma, deambula por de ser o eu um sítio onde a ambivalência se
esses estágios aparentemente como um instaura em primeiro lugar com relação a
exercício informal de inspirações ambíguas, si mesmo – pois este eu criado imagina-se
mas o encadeamento é de beleza insigne. como possuindo uma existência autônoma,
O mundo é visto como gelado, frio e es- e como consequência torna-se um véu para
tranho (à alma iluminada), ao mesmo tem- os signos de Deus. Por outro lado, este mes-
po em que o mostra em toda sua realidade mo eu posiciona-se frente às criaturas como
aparente (já tornada realidade factível) para dominador não no sentido previamente de-
a alma segura de sua existência autônoma. terminado por Deus, mas desconectado de
Ao mesmo tempo, alude a um modo de co- qualquer associação ontológica em relação
nhecimento dado ao intelecto que objetiva a elas. Está cego para seus próprios atribu-
a apreensão das coisas inanimadas nos sig- tos e mais cego ainda aos atributos dos seres
nos que elas trazem em latência. velados por seu egoísmo. Rūmī reconhece
Rūmī alerta para o fato de que a alma no mundo algo que se poderia chamar de
carnal persuade o ser humano a tornar-se oblação da natureza: “(...) os minerais, e
amigo da paixão e do desejo. Ela é capaz em menor grau as plantas, em virtude de
de operar coisas inimagináveis ao lograr as sua insensibilidade externa e inconsciência
faculdades do discernimento. “Se te acon-
selhares com tua alma carnal oponha-te a 20 “Enquanto a consciência humana permanece no
implícita, reconhecem a onipotência divina nefasta de nafs-i ammara,23 mas que, por ou-
e glorificam o Criador com a língua de seus tro lado, deve ser superada, pois pertence e
estados interiores”.21 Por isso adverte: funciona no estrato do mundo aparente:
Ao tomar consciência de que a alma com-
Espere até que o sol da Ressurreição se torne
pulsiva rege seu ser, entra em cena o nível
manifesto, a fim de perceber o movimento
do corpo do universo. da alma conhecido como nafs-i lawwāmah,
ou eu que censura:24 “Quando a vaidade é
Para se observar como o encadeamento destruída pelo encarceramento, a alma que
do conceito de nafs se faz necessário apon- censura domina sobre ela.” (M.V:2062)
tar para as demais categorias visadas por Esta nafs que censura é a mesma que
Rūmī e pelos sufis em geral. em illo tempori cometeu o pecado original,
Como Mawlānā concebia a alma e os e então se tornou sabedora dos efeitos da
seus diversos graus? A alma humana possui, concupiscência; é uma alma que flutua entre
em latência, todas as possibilidades, quer o pecado e a remissão. Sob a batuta deste
para o desenvolvimento aos umbrais do em- eu que censura a si pelas compulsões, vai-
píreo, quer para a estagnação e a descida -se progressivamente equilibrando as ações
aos níveis mais inferiores de existência. do eu, atingindo-se um nível chamado de
A alma possui então, este primeiro está- nafs-i muṭmaʿinnah (que é a alma em paz
gio no qual ela é (nafs-i ammārah), ou seja, com Deus).25
a alma que atua pelo comando (ammārah) Estes três níveis da alma são sempre uti-
da compulsão levando o ser humano a acre- lizados pelos sufis, contudo, existem outros
ditar que a realidade pode ser vista pela rea- que variam de acordo com o pensamento
lização dos desejos por ela concitados.22 de cada corrente. Rūmī, por exemplo, fala
Sobre a torrente avassaladora desse eu o
23 “(...) O intelecto e o pensamento não guiam o ho-
ser humano se vê diante da necessidade de mem – somente o ajudam a que conheça uma parte de
lutar e vai, portanto, buscar forças junto a um si mesmo e não todo o seu ser – (...)” ARASTEH, Reza.
Rumi, el Persa, el Sufi. p. 62.
aliado que lhe dá um apoio necessário para 24 “O eu censurador, nafs al-lawwāma, é sabedor da
não soçobrar neste aluvião. O auxílio presti- necessidade de se controlar estas compulsões e dese-
jos. Aqui inicia-se um estágio de tumulto interno, pois
moso vem da razão, que possui uma impor- alguém pode não estar muito apto a entender o quanto
tância relativa, no sentido de buscar fazer estes desejos o escravizam. A qualidade que deve ser
despertada neste estágio é a abstinência ou tempe-
com que o ser humano reconheça a atividade rança.” HELMINSKI, Kabir. The Knowing Heart. p. 111.
Note-se novamente o influxo corânico do termo: “Não!
Eu juro pela alma que se censura.” (LXXV:2) The Koran.
21 IQBAL, Afzal. The Life and Work of Jalaluddin Rumi. 25 “Este é um estado onde o ser humano sobe até o cami-
da alma Universal nafs-i kullī como um es- referencial deste eu que em si não é ilusó-
tado de passividade frente ao Intelecto Uni- rio, mas causador de ilusões.28
versal e seu processo de criação constante.26 Grande conhecedor da natureza huma-
O que se aufere destes estágios progres- na, Rūmī convida a que se busque alcançar
sivos de superação aponta para um concei- uma autoconsciência que é, em última ins-
to de fundamental importância no Islã, e tância, o reflexo do Real de si para si.
que tomou na atualidade uma conotação
pejorativa fruto de insanas abordagens. Tra- Referências bibliográficas
ta-se do conceito de ğihad; em sua acepção ARASTEH, Reza. Rumi, el Persa, el Sufi. Buenos Aires: Paidos.
1976.
principal e mais forte significa esta luta do- ARBERRY, A.J. Le Soufisme. Paris: Éditions le Mail. 1998.
‘ATTAR, F. Le livre des Secrets. Paris: Les Deux Océans. 1996.
lorosa, este embate lancinante, esta refrega BANANI, Amin. Rūmī the Poet. In: BANANI, HOUANNISIAN
cáustica pela qual passa o dervixe em seu and SABAGH. Poetry and Mysticism in Islã: The heritage
of Rumi. Cambridge: Cambridge University Press. 1987.
combate contra seu eu.27 BENEITO, Pablo. La Doctrina Del Amor em Ibn Al-‘Arabī. In
Anales Del Seminário de História de la Filosofia. Ma-
Ao longo de sua ğihad vai o dervixe ob- drid. 2001.
tendo conquistas a cada sítio subjugado de CHITTICK, William. The Sufi Path of Love. The spiritual tea-
chings of Rumi. Albany: SUNY Press. 1983.
seu eu, o que ele conquista não é algo que CORBIN, H. Islam Iranien. Aspects spirituels et philosophi-
ques. V.III. Paris: Gallimard 1991.
o faça observar o mundo exterior – i.e., o DHAMMAPADA. A senda da Virtude. Tradução do original
fenomênico – como inexistente, mas é bem Páli por Nissin Cohen. São Paulo: Palas Athena. 2000.
HAKIN, Khalifa Abdul. The Metaphysics of Rumi. A Critical
mais observar que este mundo exterior ine- and Historical Sketch. Lahore: Institut os Islamic Cutu-
xiste na medida em que foi apreendido a re. 1965.
HELMINSKI, Kabir. The Knowing Heart. A Sufi path of trans-
partir de uma intelecção obliterada de um formation. Boston: Shambhala. 2000.
IQBAL, Afzal. The Life and Work of Jalaluddin Rumi. Kara-
eu enganoso. De certa forma, pode-se dizer chi: Oxford University Press. 1999.
que o que de fato causou este falseamento IZUTSU, T. Unicité de l’Existence et Création Perpétuelle en
Mystique Islamique. Paris: Les Dexs Océans. 1980.
na percepção foi a observação a partir do KASSIS, Hanna E. Y KOBBERVIG, Karl. Las Concordancias del
Corán. Madrid:Instituto Hispano-Arabe de Cultura. 1987.
LEWIS, Franklin D. Rumi Past and Present, East and West.
26 CHITTICK, William. The Sufi Path of Love. p. 352. Oxford: Oneworld, 2001.
27 “Não foi o Profeta mesmo que chamou nafs o mal da NICHOLSON, Reynold A. Poetas y Místicos del Islam.
alma carnal como o mais perigoso inimigo do homem, RUMI, Jalaluddin. The Mathnaawí of Jalalu’ddin Rúmí. Edited
situado entre seus dois lados; um inimigo que deve ser and translated by Reynold Nicholson. Vol. VIII. London:
conquistado na grande ‘guerra santa’?” SCHIMMEL, An- The trustees of the “E. J. W. Gibb Memorial”, 1940.
nemarie. The Triumphal Sun. p. 269. Rūmī faz uma bela ____ . Fihi ma Fihi . São Paulo: Edições Dervish. 1993.
SUZUKI, D. T. A Doutrina Zen da Não-Mente. São Paulo:
alusão a este combate quando diz: “Os chefes militares
Cultrix. 1989.
e a cavalaria desejam que seu rei tenha um adversário,
SCHIMMEL, Annemarie. The Triumphal Sun. Albany: SUNY
pois só assim podem manifestar sua coragem e seu amor Press. 1993.
ao rei, e o rei não os reuniria, pois não teria necessidade _____. Le Soufisme ou Les Dimensions Mystiques de L’Islam.
deles. Mas eles não gostam do adversário, caso contrário, Paris: Du Cerf, 1996,
não o combateriam. Dessa forma, também o homem de- THE KORAN. Translated with na introduction by Arthur Ar-
seja que em seu espírito haja incitação para o mal, pois berry. Oxford: Oxford University Press. 1998.
não pode mostrar sua gratidão, obediência e piedade sem
que essa tentação exista. O desejo de algo é o desejo do
que lhe é concomitante. Porém, ele não gosta dessas ten- 28 “Rūmī constrói uma imagem de nafs-i ammara como
tações, pois faz um esforço para afastá-las de seu espírito. algo ladino, astuto, motivado pelo mal e possuindo uma
Portanto, por um lado quer o mal, por outro recusa. Nosso natureza produtora de paixões. Adotando a forma da
adversário diz que Deus não quer o mal. Mas é impossível luxúria, rouba da mente sua inteligência, e ao coração,
querer algo sem querer o que lhe é concomitante. Uma sua reverência. É o ídolo matriz que impulsiona o ho-
das razões da ordem dessa proibição é esse espírito nega- mem em sua busca de metas materiais, lhe impede o
dor (nafs) que, por natureza, deseja o mal e se afasta do desenvolvimento, inclusive podendo criar na mente ído-
bem. Todos os males que existem no mundo são concomi- los tais como a voracidade, a injúria e o desejo de poder
tantes a esse espírito.” RUMI, J. Fihi ma Fihi. pp. 238-239. per si.” ARASTEH, Reza. Rumi, el Persa, el Sufi. p. 97.
POES I A
Adriano Wintter
A
driano Wintter é poeta e tradutor. Suplemento Literário de Minas Gerais, Sibila,
Nasceu e reside em Porto Alegre, Eutomia, Mallarmargens, Ellenismos, 7Faces,
Rio Grande do Sul. Integra as an- Babel e Correio das Artes, jornais Relevo e
tologias: Escriptonita (Patuá, 2015), Prêmio Poesia Viva. Traduziu o poeta cubano José
Escriba (2015) e Femup (2010). Traduzido Kozer, os uruguaios Victor Sosa/Alfredo
ao inglês, espanhol e catalão, tem coletâ- Fressia, e o espanhol Fernando Soriano Ben-
neas publicadas nas revistas internacio- susan, entre outros. Integrou o corpo edito-
nais: sèrieAlfa (Espanha), Triplov (Portugal), rial da Revista de Poesia e Arte Contempo-
Separata (México), Cinosargo (Chile), Ex- rânea Mallarmargens, na qual publicou os
perimenta (Argentina) e Devir (Portugal); principais nomes da poesia brasileira.
além das publicações nacionais: Revista da
Academia Brasileira de Letras (RB n.º 82), Blog: http://adrianowintter.wordpress.com.
122 • Adriano Wintter
a flor e a fala
aroma
dobrado no rubro
design da luz
antes
que letras lancem
seu obus
e o som perfure
o calor da corola
ou a noturna
claridade
(paradoxo)
da linguagem
faça a tácita flor
inodora
antes
que aqui
inscreva
e na flor de Camões
a flor converta
Adriano Wintter • 123
roída
pelo verme
invisível do termo
como a rosa de Blake
pelo inseto do texto
a fala
funda
a falta
R O S A
ao soar
é perda
tudo
na palavra
vira morte do ser
– ou nada –
que
assim
dito
desce
inerte
matéria flórea
que o verbo
sepulta
rola
uma rocha
e lacra
a fúria solar
da forma
o denso
cadáver de dobras
que agora jaz
entre paredes de letras
no escuro
silêncio da ideia
onde nenhum perfume
dedilha as liras
124 • Adriano Wintter
aéreas de suas
moléculas
e nenhum vento
verte
sobre o olfato
o breve
poder de ouvi-las
onde a razão é um
útero
nutrindo trevas
entre os muros
mudos
do vocábulo
R O S A
e a flor morta
expecta
que a palavra opere
dentro dela
(ou fora)
esse milagre
que chamamos vida
ou (melhor)
linguagem
um flash forte
perpassa
a parte íntima
da palavra
ou
– feito chama
divina
no homo sapiens –
a parte frontal
do cérebro
fazendo
o que fala
voltar do óbito
Adriano Wintter • 125
páscoa
que eleva o ser
acima do estado
em que estava
passagem
pelo sepulcro
do verbo
ou mar negro
do gráfico
inserindo
as células
em camadas
secretas
de realidade
aquilo
que Platão não viu
a língua opera:
o nome
aproxima a coisa
da pura Ideia
veja a palavra
R O S A
cor e aroma
textura e murmúrio
de átomos
tudo transfigurado
para além do corpóreo
que em si ela guarda
de modo
que na flor verbal
o perfume passa
por filtros de éter
e sob os mornos
fachos de maio
seu vermelho olor
126 • Adriano Wintter
em selos perpétuos
grava-se macio
no centro do cérebro
e não importa
se daqui a três
ou cinco décadas
pensar ou falar
rosa
subirá idêntico
o aroma da forma
o açúcar da cor
pois dentro do verbo
o cão do tempo
que fareja atrás
de tudo que é
caça e não acha
fibra ou filamento
para estraçalhar
(nada que na fala
fira ou feneça)
só polpas pneumáticas
onde não se encaixam
dentes cronológicos
assim
de rosa
pouca e visível
ela se torna
imarcescível
e forja nova
forma de flor
Adriano Wintter • 127
na palavra habitam
a coisa e o homem
que a vê
e mais
que acolher
a fala dilata
pelo infinito
o conceito de ser
o verbo – além
de salvar do nada
e evitar que a seiva
seja mastigada
pelo cão do tempo –
amplifica o cosmos
de significados
possíveis da rosa
(veja aquela
branca: em Dante
flor celeste e ampla
cercando esfuziante
o seio do Excelso)
como se no corpo
insuflasse sopros
inimagináveis
e abrisse ao todo
a flor singular
porém
na palavra
R O S A
toda ressurreta
Rodrigo Petronio
R
odrigo Petronio nasceu em 1975, em Pedra de luz [poemas, 2005], Venho de um
São Paulo. Autor, organizador e edi- país selvagem [poemas, 2009], entre outros.
tor de diversas obras. Há mais de 20 É autor também de Matias Aires [2012], Odo-
anos trabalha em quatro áreas: escrita, edi- rico Mendes [2013], Oliveira Lima [2014],
ção, ensino e jornalismo. Desenvolve pós- ensaios críticos e biográficos destes intelec-
-doutorado no Centro de Tecnologias da tuais brasileiros, publicados pela Série Essen-
Inteligência e Design Digital [TIDD|PUC-SP]. cial da ABL. Organizador dos três volumes
Doutor em Literatura Comparada [UERJ], é das Obras Completas do filósofo brasileiro
Professor Titular da FAAP onde atua como Vicente Ferreira da Silva [Editora É, 2010-
professor-coordenador de dois cursos de 2012]. Coorganizador com Rosa Alice Bran-
pós-gradua ção: Escrita Criativa e Roteiro co do livro Animal olhar [Escrituras, 2005],
para Cinema e Televisão. Há 15 anos co- primeira antologia do poeta português An-
labora com diversos veículos da imprensa, tónio Ramos Rosa publicada no Brasil. Hoje
tendo sido colunista da revista Filosofia. em dia divide com Rodrigo Maltez Novaes a
Atualmente é colaborador dos jornais Valor coordenação editorial das Obras Completas
Econômico e O Estado de S. Paulo. Rece- do filósofo Vilém Flusser [Editora É]. O livro
beu prêmios nacionais e internacionais nas Pedra de luz foi finalista do Prêmio Jabuti
categorias poesia, prosa de ficção e ensaio. 2006. A obra Venho de um país selvagem
É autor dos livros História Natural [poemas, recebeu o Prêmio Nacional ALB/Braskem de
2000], Transversal do Tempo [ensaios, 2002], 2007, além de ser contemplada com o Prê-
Assinatura do Sol [poemas, Lisboa, 2005], mio da Fundação Biblioteca Nacional [2009].
130 • Rodrigo Petronio
Gravidade e Graça
Entre o peso que desce
E o peso que se eleva
Caminho e abro espaço
Entre estas pedras.
Os astros emergem
Canta o húmus de meu corpo
O vento anima o humano
Sopro a sopro.
Quadras Circulares
I
A terra é minha missão.
O infinito, meu arco.
Quem vive morre em Deus
Como O houvesse sonhado.
II
Mais puro é o que se extingue.
A eternidade nos mata.
A beleza da chama fere
Porque nunca é duplicada.
III
Sábio o sinal de um céu
Vazio de todos os deuses.
Faz do coração o poço
No qual Deus se olha às vezes.
IV
Todo Eu é uma ilusão.
Nele só existo espelhado.
Eu somente vivo Nele
Sendo em Deus aniquilado.
V
Mundo é o que nunca muda.
Deus, tudo o que passa.
Eu, círculo e quadratura:
O infinito não me abraça.
132 • Rodrigo Petronio
VI
Eu e a alma do mundo
Somos uma só pessoa.
Eterna esta centelha
Fora de mim me coroa.
VII
Quanto mais eu me evado
Do mundo e do que em mim há.
Cumpro o círculo quadrado.
Vivo e sou onde o eu não está.
VIII
Quanto menos tenho limite
Mais me sinto limitado.
Pois não existe maior limite
Que ser de infinito cercado.
William Soares dos Santos
W
illiam Soares dos Santos (1972), em Linguística Aplicada (PIPGLA) da Facul-
é carioca, professor da UFRJ e es- dade de Letras da UFRJ. Escreve textos aca-
critor. Possui graduação (1997) dêmicos e literários. Dentre os seus traba-
em Letras (Português/Italiano), mestrado lhos literários, destacam-se o livro de contos
(2002) em Linguística Aplicada, ambos Um amor (2016) e os livros de poesias Rare-
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro feito (2015) e Poemas da meia-noite (e do
(UFRJ) e doutorado em Letras (Estudos da meio-dia) (2017), livro ganhador do Prêmio
Linguagem) pela PUC-Rio (2007). É profes- PEN Clube do Brasil para livros de poesias
sor Adjunto da Faculdade de Educação da em 2018 e finalista do 3.o Prêmio Rio de
UFRJ, onde atua como Professor de Práti- Literatura 2018. O seu último trabalho li-
ca de Ensino de Português e Italiano, e do terário publicado é o livro de poesias Raro
Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação (poemas de Eros) (2018).
134 • William Soares dos Santos
Os peregrinos da Síria
Depois
de terem os pés afundados na lama
e cobertos pelo pó levantado pelas
bombas que assolaram
os campos de sua cidade natal,
muitos sírios que sobreviveram
tomaram das forças que lhes restaram
para seguir o caminho
em direção a uma terra
estrangeira.
O frio,
o vento,
a fome,
a morte e as
incongruências
de vidas ao azar
espreitam
os barcos
encharcados de imigrantes
cujos olhares anseiam pelo futuro.
William Soares dos Santos • 135
Doenças corroem
a pele dos peregrinos
castigados pelos ventos
que os açoitam,
como pregos a
atingir os espaços
comprimidos da medula.
William Soares dos Santos • 137
Não há lençóis
nessa incerta travessia.
Há os que carregam os seus pais
há os que carregam os seus filhos,
há os que carregam seus mortos
em corações que pesam mais
a cada estação dessa via.
A suspensão do ar rarefeito,
a causticação do sol,
a fustigação do vento
tornam a respiração
do peregrino um anseio
pelo sentido da existência
- que virá ou não virá.
Pés à mostra e
mãos descosidas
de sua forma intrínseca.
As vertigens se assomam
aos olhos por ansiarem uma morada
que os abriguem
da amarga neve que cai no
campo da terra estrangeira,
da garoa que não oferece o repouso
na tarde infame,
insistente em se arrastar,
enquanto o soldado
sem palavra e sem memória,
guarda os muros de uma
cidade exangue.
E, no entanto,
em pleno mar,
um menino mantém-se vivo
murmurando uma
antiga poesia,
em forma de canção de ninar,
Os mnemagogos
Primo Levi
Químico e escritor italiano
O
doutor Morandi (que ainda não endereço que estava no cartão, cruzando a
se habituara a ser chamado de cidade deserta sob um sol inclemente.
doutor) desceu da viatura com a Chegou ao lugar com dificuldade, de-
intenção de conservar-se incógnito por no pois de infinitos giros inúteis; não quis per-
mínimo dois dias, mas logo viu que seria guntar a rua a ninguém, porque nos rostos
impossível. A proprietária do café Alpino o dos poucos que avistou pelo caminho pare-
acolhera com neutralidade (evidentemente ceu discernir uma curiosidade malévola.
não era muito curiosa, ou não muito argu- Esperava que a placa de identificação da
ta); mas, pelo sorriso deferente, maternal casa fosse velha, mas a achou mais velha
e levemente debochado da dona da taba- que qualquer expectativa, coberta de fer-
rugem e com o nome quase ilegível. Todas
caria, ele entendeu que já era “o doutor
as persianas da casa estavam fechadas, e
novo”, sem possibilidade de adiamentos.
a baixa fachada, descascada e sem cor. À
“Devo ter o diploma escrito na cara – pen-
sua chegada, houve um rápido e silencioso
sou: ‘tu es medicus in aeternum’, e, o que é
acender de lâmpadas.
pior, todos vão perceber.” Morandi não ti-
Montesanto em pessoa desceu e veio
nha nenhum gosto pelas coisas irrevogáveis
recebê-lo. Era um velho alto e corpulento,
e, naquele momento, sentia-se inclinado
de olhos míopes e vivos num rosto de traços
a ver naquela história uma grande e inter- gastos e pesados: movia-se com a seguran-
minável chateação. “Algo parecido com o ça silenciosa e maciça dos ursos. Estava de
trauma do nascimento”, concluiu de modo mangas curtas, sem colete: a camisa estava
não muito coerente. puída e não parecia limpa.
... No entanto, como primeira conse- Pela escada e em cima, no estúdio, es-
quência do anonimato perdido, era preciso tava fresco e quase escuro. Monsanto sen-
encontrar Montesanto, sem mais demoras. tou e ofereceu uma cadeira a Morandi, es-
Voltou ao café para retirar da mala a car- pecialmente incômoda. “Vinte e dois anos
ta de apresentação e se pôs à procura do aqui dentro”, pensou Morandi com um
142 • Primo Levi
arrepio mental, enquanto o outro lia sem sua fisionomia se ia reanimando, os olhos
pressa a carta de apresentação. Mirou ao brilhavam ágeis e vivos no rosto desfeito.
redor, enquanto seus olhos se habituavam Surpreso, Morandi se dava conta de expe-
à penumbra. rimentar uma nítida e crescente simpatia
Sobre a escrivaninha, cartas, revistas, pelo velho. Tratava-se evidentemente de
receitas e outros papéis de natureza inde- um solilóquio, um grande devaneio que
finível, todos amarelados e amontoados Montesanto estava se concedendo. Para ele
numa pilha impressionante. Do teto pen- as ocasiões de falar (e se via que sabia falar
dia um longo fio de aranha, apenas visível e que conhecia a importância disso) deviam
pela poeira que o envolvia, balançando ser raras, breves retornos a um antigo vigor
molemente aos sopros imperceptíveis da de pensamento agora talvez perdido.
brisa meridiana. Um armário envidraçado Montesanto narrava a sua impiedosa
com poucos instrumentos antigos e poucas iniciação profissional nos campos e trin-
garrafinhas nas quais os líquidos tinham cheiras da outra guerra; a sua tentativa de
corroído o vidro, assinalando o nível que carreira universitária, iniciada com entusias-
por muito tempo haviam conservado. Na mo, continuada com apatia e abandonada
parede, estranhamente familiar, a grande entre a indiferença dos colegas, fato que
moldura fotográfica dos “Laureandi Medici havia enfraquecido todas as suas esperan-
1911”, bem conhecido dele: aí está o rosto ças; o exílio voluntário no povoado obscu-
quadrado e o queixo forte de seu pai, Mo- ro, em busca de algo muito indefinido para
randi sênior; e logo ao lado (ai, como seria poder ser encontrado; e finalmente a vida
difícil reconhecê-lo!) o aqui presente Igna- atual de solitário, estrangeiro numa comu-
zio Montesanto, magro, nítido e espantosa- nidade de gente pequena e ociosa, boa e
mente jovem, com ar de herói e mártir do ruim, mas para ele irremediavelmente dis-
pensamento, tão ao gosto dos formandos tante; a prevalência definitiva do passado
da época. sobre o presente e o naufrágio último de
Após a leitura, Montesanto pousou a todas as paixões, salvo a fé na dignidade
carta sobre o monte de papéis da escriva- do pensamento e na supremacia das coisas
ninha, onde ela camuflou-se perfeitamente. do espírito.
“Bem”, disse em seguida, “estou muito “Velho estranho”, pensava Morandi;
contente que o destino, a sorte...”, e a frase notara que o outro falava havia quase uma
acabou num murmúrio indistinto, seguido hora sem sequer o olhar. De início, tentara
de um longo silêncio. O velho médico in- várias vezes fazê-lo voltar a um plano mais
clinou a cadeira sobre as pernas posterio- concreto, indagá-lo sobre o estado sanitário
res e dirigiu o olhar para o teto. Morandi da jurisdição, sobre a renovação dos apare-
se dispôs a esperar que o outro retomasse lhos, sobre o armário dos remédios, talvez
o discurso; o silêncio já começava a pesar até sobre a própria organização pessoal;
quando Montesanto retomou subitamente mas não conseguira, por timidez e por um
a fala. mais ponderado respeito.
Falou por muito tempo, a princípio com Agora Montesanto estava calado,
muitas pausas, depois com mais rapidez; a com o rosto virado para o teto e o olhar
Os m n e m ag o g os • 143
acomodado no infinito. Era evidente que tivera tempo de cobrir-se de ridículo com a
o solilóquio continuava internamente. Mo- história do campo nêurico.
randi estava embaraçado; perguntava-se se O outro havia agarrado com as duas
a sua réplica era esperada ou não, e qual mãos os ângulos da escrivaninha e olhava o
seria, e se o médico se dava conta de que vazio franzindo a testa. Depois recomeçou:
não estava sozinho em seu estúdio. “Agora mostrarei algo inusitado. Durante
Mas ele se dava conta. De repente dei- os meus anos de assistente em farmacologia,
xou a cadeira cair sobre os quatro pés e, estudei muito a fundo a ação dos adrenalí-
com uma voz curiosa e esforçada, disse: nicos absorvidos por via nasal. Não descobri
“Morandi, o senhor é jovem, muito jo- nada de útil à humanidade, mas apenas um
vem. Sei que é um bom médico, ou melhor, fruto bastante indireto, como o senhor verá.
que se tornará bom; penso até que deve ser Mesmo mais tarde, dediquei muito do
um homem bom. Caso o senhor não seja meu tempo à questão das sensações olfati-
bom o suficiente para compreender o que vas e de suas relações com a estrutura mo-
eu lhe disse e o que lhe direi agora, espe- lecular. Trata-se, a meu ver, de um campo
ro que seja bom o bastante para não rir extremamente fecundo, aberto inclusive a
de mim. E, se rir, não será um grande mal: pesquisadores dotados de recursos modes-
como o senhor sabe, dificilmente nos en- tos. Vi com prazer, ainda recentemente, que
contraremos de novo; de resto, é da ordem alguém está se ocupando disso, e também
das coisas que os jovens se riam dos velhos. estou a par das novas teorias eletrônicas,
Só lhe peço que não se esqueça de que é o mas o único aspecto da questão que agora
primeiro a saber dessas minhas coisas. Não me interessa é outro. Creio que hoje possuo
quero adulá-lo dizendo que o senhor me o que mais ninguém no mundo possui.
pareceu particularmente digno de minha Há quem não se importe com o passado
confiança. Sou sincero: o senhor é a primei- e deixe que os mortos enterrem seus mor-
ra ocasião que se apresenta há muitos anos, tos. E há os que se interessam pelo passado,
e provavelmente a última.” entristecendo-se com a sua contínua desa-
“Pode falar”, disse Morandi simples- parição. Há ainda os que têm o cuidado de
mente. manter um diário contínuo, a fim de que
“Morandi, já notou com que potência cada coisa sua seja salva do esquecimento,
certos odores evocam certas lembranças?” e quem conserva em sua casa e em sua pes-
O golpe chegara imprevisto, Morandi soa lembranças materializadas: uma dedica-
engoliu com esforço: disse que havia nota- tória num livro, uma flor seca, um cacho de
do e podia até arriscar uma teoria explicati- cabelo, fotografias, velhas cartas.
va para o caso. Eu, por natureza, só posso pensar com
Não se explicava a mudança de tema. horror na eventualidade de que uma só de
Concluiu com seus botões que devia se tra- minhas lembranças seja cancelada, e por
tar de um “parafuso” solto, daqueles que isso adotei todos esses métodos; mas tam-
todos os médicos têm depois de certa ida- bém criei um novo.
de. Como Andriani: aos sessenta e cinco Não, não se trata de uma descober-
anos, cheio de fama, dinheiro e clientela, ta científica, simplesmente tirei partido de
144 • Primo Levi
terminou os turnos de hospital, a recor- “Sim, também. Parabéns pelo seu ol-
dação ainda não amadureceu. Porque o fato. Sente-se esse cheiro no alto da mon-
senhor deve ter notado – não é verdade? tanha, quando a rocha se escalda ao sol;
– que o mecanismo evocatório de que esta- especialmente quando há um desmorona-
mos falando exige que os estímulos, depois mento de pedras. Asseguro-lhe que não foi
de terem agido repetidamente, associados fácil reproduzir in vitro e tornar estáveis as
a um ambiente ou a um estado de alma, em substâncias que o constituem sem alterar
seguida cessem de agir por um tempo bas- suas qualidades sensíveis.”
tante largo. De resto, o senso comum diz “Antigamente eu ia muito à montanha,
que as recordações, para serem sugestivas, quase sempre sozinho. Quando chegava
devem ter um sabor antigo. ao topo, deitava sob o sol no ar parado e
Eu também dei muitos plantões em hos- silencioso e me parecia que alcançara um
pitais e respirei ácido fênico a plenos pul- objetivo. Naqueles momentos, e só se me
mões. Só que isso ocorreu há um quarto de concentrasse, percebia esse cheiro suave,
século, e, além disso, desde aquela época o raro de ser sentido em outros lugares. No
fenol deixou de constituir o fundamento da que me diz respeito, deveria chamá-lo aro-
antissepsia. Mas no meu tempo era assim, e ma da paz conquistada.”
é por isso que ainda hoje não posso cheirá- Superado o desconforto inicial, Morandi
-lo (não o quimicamente puro, mas este, começava a se afeiçoar ao jogo. Pinçou ao
a que acrescentei pitadas de outras subs- acaso uma quinta garrafa e a estendeu a
tâncias que o tornam específico para mim) Montesanto: “E esta?”.
sem que me surja na mente um quadro “Isto não é um lugar nem um tempo. É
complexo, de que fazem parte uma música uma pessoa.”
então em voga, o meu entusiasmo juvenil Fechou o armário; havia falado em tom
por Blaise Pascal, uma certa languidez pri- definitivo. Morandi preparou mentalmente
maveril nos rins e nos joelhos e uma colega algumas expressões de interesse e de ad-
de curso que, fiquei sabendo, tornou-se avó miração, mas não conseguiu superar uma
recentemente.” estranha barreira interna e renunciou a
Dessa vez ele mesmo escolhera uma externá-las. Despediu-se apressadamente,
garrafa; ofereceu-a a Morandi: com uma vaga promessa de nova visita, e
“Confesso que até hoje sinto orgulho precipitou-se pela escada em direção ao sol.
deste preparado. Apesar de nunca ter pu- Sentiu que enrubescera intensamente.
blicado seus resultados, considero-o o meu Depois de cinco minutos entre os pi-
verdadeiro sucesso científico. Gostaria de nheiros, subia furiosamente pela parte
ouvir a sua opinião.” mais íngreme, calcando o bosque macio,
Morandi aspirou com todo o cuidado. longe de qualquer caminho. Era muito
Certamente não era um cheiro novo: po- agradável sentir os músculos, os pulmões
deria ser qualificado de ardente, enxuto, e o coração funcionando a pleno vapor,
quente... assim, naturalmente, sem necessidade de
“... Quando se chocam duas pedras de intervenções. Era muito bom ter vinte e
ignição...?” quatro anos.
146 • Primo Levi
Acelerou o ritmo da subida o mais que a ninguém. Nem a Lucia, nem a Giovanni.
pôde, até sentir o sangue batendo forte nos Não seria generoso.
ouvidos. Depois se estirou na grama, com Embora no fundo... somente com Gio-
os olhos fechados, contemplando o brilho vanni... e em termos estritamente teóricos...
do sol através das pálpebras. Até que se Existia algo que não se pudesse comunicar
sentiu como lavado e novo. a Giovanni? Sim, escreveria a Giovanni.
Então aquele era Montesanto... Não, Amanhã. Aliás (conferiu a hora), imediata-
não era preciso fugir, ele não se tornaria mente; a carta talvez ainda partisse com o
assim, não se deixaria transformar daque- correio da noite. Logo.
le jeito. Também não mencionaria o caso
Mater dolorosa
E
Era assim desde o começo do mundo. Proibido m casa ou em toda a cidade, ninguém
fazer barulho. Papai pensou em pregar uma se lembrava mais de quando Mamãe
placa na rua, reclamando silêncio, como nos caiu doente. Havia muitos anos que
hospitais. A cidade inteira tomou ciência.
estava de cama. Talvez antes do parto, tal-
A rua era calada, sem crianças.
vez depois, quando sofreu uma ameaça de
Ninguém ria, ninguém cantava.
eclampsia. Ou no inverno seguinte, quando
teve uma pleurisia e tirou um litro de pus
dos pulmões. Talvez quando em seguida
ficou fraca do peito, com tanta punção e
sinapismo. Cataplasma e ventosas aplicadas
no meio da noite agônica, encharcada do
forte cheiro do éter.
– Mamãe não pode ser incomodada – as
tias recomendavam.
Tinha sido sempre assim. Era assim des-
de o começo do mundo. Proibido fazer ba-
rulho. Papai pensou em pregar uma placa
na rua, reclamando silêncio, como nos hos-
pitais. A cidade inteira tomou ciência. A rua
era calada, sem crianças. Ninguém ria, nin-
guém cantava. O alto muro de era, o jardim
isolava ainda mais a nossa casa. Lá dentro
todo mundo andava na ponta dos pés.
O bico de pena de Otto Lara, que aprece nesse con-
to, não é uma boa informação gráfica sobre ele, mas De começo, Papai e as tias se irritavam
foi feito por Rubem Braga. No bilhete que mandou com a falta de consideração de estranhos
acompanhando o desenho, Otto explica: “pouco im-
porta que não se pareça comigo; é do Rubem – e tanto
que passavam rindo pela calçada. Como é
basta.” que se podia rir com Mamãe no seu leito
148 • Otto Lara Resende
de dor? Mas o pior foi quando um vizinho vozes nem passos. O leiteiro evitava de ma-
quase defronte deu uma festa. Escárnio: o drugada tilintar as garrafas na nossa porta.
alarido das vozes e da música batia em nos- O padeiro não se anunciava com voz can-
sas vidraças cerradas e nos unia com ran- tante por cima do portãozinho. Mamãe es-
cor contra o bruto sacrilégio. Papai queria tava doente. O ar viciado, era preciso evitar
ir pessoalmente explicar, dar um tapa de as correntes e os golpes de ar. As tias quei-
luva, pois já sabiam que Mamãe não estava mavam essências pelos cantos, fumigações.
passando bem. Foi tia Vera que não deixou A casa cheirava a eucalipto e a incenso, tal
Papai sair. Podia não se controlar, estourar câmara ardente. Mamãe estava doente. Ao
de santa cólera. A Encarnação é que afinal aproximar-se da nossa casa, todo mundo
deu o recado (– Por favor, Dona Maria está policiava os pés, controlava os movimen-
passando mal) e voltou triunfante. Crioula tos bruscos, prendia a respiração e, com ar
decidida, sem papas na língua. O xale nos compungido, exprimia solidariedade e co-
ombros, o terço na mão, tia Dulce desfia- miseração.
va jaculatórias e responsos. Invocou Santo – Dona Maria não está passando bem
Antônio, exigiu um milagre de São Judas – o refrão era repetido entre pequenas notí-
Tadeu. Rezou ao Senhor do Monte das Oli- cias de cólicas e sucessivas injeções.
veiras, do Gólgota, do Calvário. Por um mo- O médico vinha amiúde antes do almo-
mento, o vozerio no vizinho diminuiu. As ço. Às vezes voltava à tardinha e passava
janelas e as portas foram hermeticamente de novo à noite. Conversava à meia-voz na
fechadas. Recorreu-se a cobertores e traves- sala com Papai – as tias trêmulas, curiosas,
seiros. Mas a música e a alegria penetravam mantidas à distância. Só o chefe da casa po-
pelas frinchas da casa abafada. A Encarna- dia ficar sabendo e despedia-se do médico
ção escaldou um chá para acalmar as tias mais triste, mais derreado. Tinha aprendido
atarantadas e Papai se trancou amargo no um pouquinho mais do terrível, incurável
escritório. As tias aconselhavam: meditasse segredo. Recorria-se em sigilo a curandei-
na Descida da Cruz, na agonia no Horto. ros e rezadeiras, que a Encarnação sugeria.
– Falta de respeito – rosnou tia Vera, e Cogitava-se de convocar mais uma confe-
foi render tia Dulce na vigília ao pé do leito rência médica. Mandar buscar especialistas,
lá em cima. recorrer à cirurgia. Podia também ser vol-
Nos dias seguintes, Papai entrava e saía vo, nós nas tripas. Mamãe não estava em
como uma sombra cumprindo com o seu condições de viajar até um meio maior, de
dever. Porque Mamãe estava doente, ele recursos. A portas fechadas, a conferência
tinha os ombros caídos e olheiras no rosto médica se eternizava no escritório de Papai,
vincado. Era penoso viver com saúde na- mas o diagnóstico continuava impreciso e
quela casa doente. As vasilhas tinham de o prognóstico era sombrio. Seria sífilis tam-
ser esterilizadas com cuidado. Um saco de bém? E o medo das complicações, o fantas-
água quente não bastava. Eram necessá- ma da tuberculose rondando a família.
rios dois e três, que se alternavam. Mamãe No quarto lá em cima, Mamãe gemia,
reclamava silêncio, tinha o ouvido apurado suspirava e soluçava. Apertava no peito as
para qualquer barulho. Não podia ouvir mãos crispadas, tinha tonteiras e desmaios,
M at e r d o l o ro s a • 149
tinha apetite. Tia Dulce lambiscava e, na ele se sacrificasse. Precisava acordar cedo,
hora do almoço, entre imprecações, supli- já se impunha muitos sacrifícios.
cava a Papai que comesse mais um pou- A estridente campainha da porta foi
quinho: pela santíssima Virgem Maria, por desligada. Mamãe não a suportava. Com
Nossa Senhora da Conceição, pelo Senhor qualquer barulho, se estava cochilando,
do Gólgota e Sua coroa de espinhos, basta- despertava sobressaltada e o susto podia
va uma doente naquela casa. ser fatal. Queria saber quem era, o que se
Aos poucos, o jantar acabou suprimido. passava. Vinham-lhe ânsias de vômitos com
A família evitava reunir-se à mesa para um a preocupação. As ordens eram rigorosas:
festim. Cada qual comia por sua conta, so- a doente devia ser preservada. Acabou por
zinho. ser posta à margem, de nada sabia, nada
Na cozinha ou na copa, sentado numa lhe era comunicado. Conformou-se, desin-
ponta de tamborete ou mesmo em pé, to- teressou-se, não perguntava por mais nin-
dos nos despachávamos. Não queríamos guém, não dava notícia de coisa nenhuma.
testemunhas na hora de cumprir uma obri- Vivia a sua doença, coitada. Sua flagelação.
gação vergonhosa, matar a fome. E comí- Sofria vinte e quatro horas por dia. O resto
amos depressa, sem molhos ou requintes, não existia. O sol parou, o tempo foi coagu-
com medo de que Mamãe desconfiasse. lado. E tia Vera inventava mentiras piedosas
Papai não jantava, rodava a colherzinha na para enganá-la. Em vão procurava animá-la:
xícara, que tilintava funebremente. Depois ia ficar boa, convalescia.
ia sentar-se na poltrona diante da doente. E – Desta cama só para o túmulo – Ma-
mais tarde recolhia-se ao escritório, de onde mãe choramingava.
só o chamavam em caso de necessidade. Tenazmente, dia após dia, só se rezava
Houve um tempo em que era chamado por intenção de Mamãe. As tias sabiam de
com frequência. Uma crise de falta de ar, cor o ofício dos agonizantes e aguardavam
uma palpitação que ameaçava precipitar o em pânico o dies-irae. O vigário vinha vê-
desenlace. Uma dúvida na administração -la com frequência. Trazia-lhe o viático, a
dos xaropes e poções, uma seringa para misteriosa hóstia branca no radioso cibório.
ferver, uma injeção de coramina ou até de Mais de uma vez, na sua visita à paróquia,
óleo canforado. Calmantes e analgésicos, o Senhor Bispo veio visitar a enferma e con-
fricções e escalda-pés, palavras de conso- solar os aflitos. Vestidos a caráter, avisados
lo ou súplicas de voz embargada. Fora das com antecedência, recebíamos piedosa-
crises, das cólicas, dos suores noturnos, mente, compungidamente, a consoladora
dos acessos de tosse, das dispneias ou dos visita episcopal. Nas suas vestes vermelhas,
sustos, a noite decorria sem surpresas. Pa- sapatos de fivela, respeitoso anel, o Senhor
pai trancado no escritório até alta hora. Bispo se interessava pela saúde da doente,
Recolhia-se tarde ao quarto, dormia pica- demorava-se na sala de visitas especialmen-
do, despertava entre gemidos e suspiros de te aberta para recebê-lo. As tias ofereciam-
Mamãe. Com o tempo, passou a dormir no lhe um chá da índia caprichado, na melhor
escritório, salvo quando tirava o seu plantão porcelana, ou um fino licor de jenipapo, da
junto da doente. As tias não queriam que melhor frasqueira. E o Senhor Bispo, afável,
M at e r d o l o ro s a • 151
dispensava a genuflexão, distribuía com numa casa envolvida pelas sombras da mor-
mão gorda a bênção e se deliciava com um te. Devia ser sacrilégio tentar alegrar o filho
doce de coco com ovo, especialidade da de uma santa senhora há tanto tempo pre-
Encarnação. Por ocasião de uma das suas sa irremediavelmente ao leito. Espadanejan-
solenes visitas, os dedos melados de doce, do asas e penas contra as paredes da gaiola,
afagou-me paternalmente as bochechas es- esfalfado, de bico aberto, o sabiá estranhou
pantadas. Na rua, juntava gente para ver o a nova morada e nervosamente queria voar
Senhor Bispo, que nos distinguia com a fi- para longe da nossa casa doente. Fiz tudo
neza de sua visita. E toda a cidade entendia para acalmá-lo.
que Mamãe estava gravemente enferma, Desprezou a talhada de mamão, recu-
resistindo a todos os recursos da ciência sou a água fresquinha que lhe ofereci. Aris-
médica. co, rejeitava a minha amizade, piava triste
Saído o Senhor Bispo, tia Vera multipli- e zangado, arrepiava as penas, queria fugir
cava as promessas e as novenas. Todas as por entre as varetas da gaiola. Encorajado,
noites rezávamos o terço, tirado pelas tias, sujava a gaiola e o chão por perto. As tias
diante do oratório melancólico, a lampada- tramaram soltá-lo, mas afinal o ignoraram.
zinha vermelha. Nossa Senhora Visitadora Triste e rebelde sabiá gigante, que eu tam-
veio passar uma temporada conosco e, na bém acabei esquecendo, passados os dias
sua capa prateada, também subiu as esca- de deslumbramento. Meu padrinho estava
das, foi respeitosamente exibida à doente. redondamente enganado – feio e depena-
A imagem milagrosa atraía à nossa casa do, o sabiá não cantava.
algumas beatas piedosas, que reforçavam Mamãe não ficou sabendo da existên-
as orações e ajudavam a implorar aos céus cia do sabiá. Podia não gostar, precisava ser
que devolvessem a saúde a Mamãe. A luz poupada. Vivia agora fora do mundo, sem
da sala brilhava mais por uns instantes e a notícia do que se passava em casa. As visi-
casa recendia a lírio, dama-da-noite e jas- tas foram rareando, desapareceram – certa-
mim. Trocavam-se as flores com frequência mente para não incomodar. Vizinhos e pa-
e um ramo de cravos ou de rosas era colo- rentes mandavam as criadas caridosamente
cado ao pé do Sagrado Coração de Jesus. A indagar como ia passando a Dona Maria e
lâmpada de azeite estalejava noite adentro. desejar-lhe impossíveis melhoras. Uma pa-
Porque a Mamãe estava doente, tudo den- renta velha mandou da fazenda uma tradi-
tro de casa era triste, opaco e funesto. cional estampa colorida da Descida da Cruz.
Menos o graúdo sabiá, no primeiro As tias chorosas agradeciam e informavam
dia de sua chegada. Foi presente do meu baixinho que Mamãe ia indo como Deus era
padrinho. Passei horas pecaminosamente servido, mas no íntimo sabiam que ia mal,
entretido com o meu sabiá, tentando fazê- desenganada. Os recados se trocavam no
-lo cantar. Tia Vera desaprovou. Tia Dulce alpendre, sob os vasos de samambaia e de
achou que era pecado, Mamãe tão doente, avenca, sem que ninguém se sentasse. Com
perder tempo com um passarinho. Papai piedoso interesse, as visitas compreendiam
não quis vê-lo, mas não havia de gostar da- que não era possível receber como mandava
quele sinal de vida faltando com o respeito a boa educação, com café e quitandas, ou
152 • Otto Lara Resende
um licor de tamarindo fechado no guarda- alertas, com medo de serem apanhadas des-
-louça para essas ocasiões. Ninguém tomas- prevenidas. A vela benta de cera do santuá-
se como desfeita aquela acolhida chocha. rio de Congonhas do Campo estava sempre
Era cautela, para não chamar a atenção da à mão, para a extrema necessidade. Secre-
doente, e era também pudor, reverente res- tamente, os tocheiros estavam guardados, a
peito ao seu sofrimento. roupa da defunta jazia pronta no armário. A
No meio da noite, transpirando, o sudá- qualquer hora, o médico e o padre podiam
rio empapado, Mamãe costumava acordar ser chamados. O ofício dos mortos estava
e com ela toda a casa acordava. A Encar- marcado com uma fitinha roxa no livro de
nação ia para a cozinha ferver água para orações. Alheio às providências, passada a
alguma precisão. Papai, de pijama, desa- crise, Papai sentava-se na cadeira de balan-
tinado com aquele transtorno, custava a ço, os olhos vermelhos, mas conformados.
encontrar os óculos. As tias cochichavam, Uma noite, Mamãe acordou com os tro-
rezavam, trocavam sugestões, procuravam vões e os relâmpagos de uma tempestade
remédios e mesinhas, cápsulas e comprimi- que sacudia janelas e portas. As luzes sinis-
dos, subiam em silêncio e desciam afobadas tramente acesas, a casa era um navio que
com um susto no rosto. Mamãe em pranto naufragava. E nós todos a bordo. Mamãe
revirava os olhos, podia ser o fim – que se- chorava, imprecava, maldizia a natureza
ria depois? A morte é noturna, à noite todo cruel que não respeitava o seu sofrimento.
doente agoniza. Aplicavam-lhe cataplasmas As tias chamavam por Santa Bárbara e por
e suplicavam à Mamãe que tivesse paciên- São Jerônimo. No telhado, a água escacho-
cia, esperasse amanhecer o dia, suportas- ava como maldição. Os raios chicoteavam a
se por intenção das almas do purgatório noite escura. Esquivo diante de tanto corre-
e do santo escárnio aquela prova, vivesse. -corre, Papai foi postar-se na janela do escri-
Apertavam-lhe no peito magro uma relíquia tório e ficou olhando lá fora a violência do
de Santa Rita de Cássia, sugeriam-lhe que enxurro. De costas, seus ombros tremiam,
invocasse Nossa Senhora da Piedade. Da- como se chorasse. Lá em cima, tia Dulce,
vam-lhe a beber da milagrosa garrafada de de joelhos, agarrava a mão fria de Mamãe,
Santa Manuelina dos Coqueiros. Liam com beijava-a e a friccionava, alternadamente.
voz trêmula a bênção especial mandada por Tia Vera, em pânico diante da tempestade,
Monsenhor Horta. temia um castigo e exigia de Mamãe que
As luzes acesas anunciavam à cidade tivesse ânimo, que ia passar, que resistisse.
indiferente que naquela casa de dor, sozi- Pela manhã continuava a chover. Calçando
nha, Mamãe mais uma vez podia despedir- as galochas, enfiando a capa de gabardine
-se da vida e ainda uma vez vencia a morte. e o chapéu de feltro, Papai abriu o guarda-
Só ao raiar do dia, com os vitoriosos galos -chuva e cedinho saiu para a rua, sem dizer
cantando, os cães latindo despudorados, en- palavra. Pensamos que ele ia bater à porta
tre gemidos e atrozes sofrimentos, Mamãe da farmácia, buscar mais um remédio ur-
conseguia adormecer. Exaustas, as luzes se gente para Mamãe. As tias lamentaram a
apagavam, a Encarnação se recolhia resmun- fortuna gasta com medicamentos. Um su-
gando rezas fortes e as tias permaneciam midouro. Mas Papai só voltou muito tarde,
M at e r d o l o ro s a • 153
Retratos da alma
Nilo Dante
Nasceu em Barra do Piraí. Trabalhou em dez jornais do Rio, dos quais dirigiu cinco.
A
obra deixada pelo fotógrafo rome- seus primeiros tempos no Rio. Foi auxiliar
no Eddy Novarro é tão abrangente, de serviços gerais da extinta loja de depar-
tão singular e tão implausível que tamentos Mesbla, no Passeio Público, a
se poderia até pôr em dúvida de que um poucos passos da Rua das Marrecas, onde
dia existiu, não fossem as centenas de ne- ele dividia um quarto com outros imigran-
gativos que pareciam perdidos na Europa, tes que a Cruz Vermelha ali acomodava
onde o artista desenvolveu a maior parte de em uma modesta pensão. Trabalhou em
seu trabalho, mas há pouco foram recupe- pequena impressora de mimeógrafos. De-
rados pelos herdeiros e acabam de voltar ao pois, em oficina especializada em consertos
Brasil. em aparelhos de rádio e vitrolas. Chegou a
156 • Nilo Dante
caçar borboletas para o British Museum na Adenauer, o Dalai Lama, Ben Gurion,
Floresta da Tijuca e nos matagais de Niterói. Anwar Sadat, Xá da Pérsia, Mário Soares,
A certa altura, passou a frequentar um Farah Diba, Rei Hussein, Albert Sabin, Aki-
grupo de jovens arquitetos de vanguarda ra Kurosawa, Ava Gardner, Daniel Cohn-
como Oscar Niemeyer que seria seu grande -Bendit, Moshe Dayan, Miles Davis, Juan
amigo pelo resto da vida. Le Corbusier, uma Peron, Isaac Stern, Andre Malraux, Eugene
espécie de guru da turma, o aconselhou a Ionesco, Edward G. Robinson, Curd Jur-
optar pela fotografia. gens, Tennessee Williams, Jorge Luis Bor-
Novarro aceitou o conselho. O resultado ges, Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek,
é o maior acervo fotográfico que se conhe- Murilo Mendes, Tom Jobim, Vinicius, Car-
ce dos gênios das artes do século XX. Acer- los Drummond de Andrade e muitos ou-
vo que começa em Portinari e inclui Picasso, tras personalidades, inclusive os acadêmi-
Braque, Miró, Dalí, Chagall, De Chirico, Ma- cos Manuel Bandeira, Jorge Amado, João
gritte, Francis Bacon, Bruno Giorgi, Di Ca- Cabral de Melo Neto, Roberto Marinho,
valcanti, Botero, De Kooning, Kokoschka, Ivo Pitanguy e Fernando Henrique Cardo-
Rivera, Giacometti, Marcel Duchamp, Andy so, a última das celebridades que passaram
Warhol, Krajcberg, Botero, Burle Marx, Va- por sua lente.
sarely, Mabe, Tomie Otake, Cícero Dias e Eddy Novarro vestia-se com apuro, era
outros craques de igual quilate. Inclusive os fluente em seis idiomas, transitava com
autores de cinco das sete obras de arte mais sucesso nos salões das artes e do grand
valiosas da história: Picasso, Giacometti, monde. Discorria com naturalidade e co-
Andy Warhol, Francis Bacon e De Kooning. nhecimento sobre a constelação dos gênios
Em 1958, o arquiteto Sergio Bernardes das artes que povoaram seu interesse inte-
o contratou para fotografar uma de suas lectual desde a adolescência – de Da Vinci
obras, o Pavilhão do Brasil na Feira de Bru- a Picasso, de Giotto a Chagal, de Rafael a
xelas. Na Bélgica, Novarro se aproximou de Michelangelo, de El Greco a Giacometti, de
René Magritte e fez amizade com o toureiro Fragonard a Braque, de Rembrandt a Ma-
Luiz Dominguín, que o introduziu na tribo gritte, de Bosh a Dalí, de Portinari a Miró,
do Picasso. Com as bênçãos do pintor, que de Rivera a Di Cavalcanti.
se encantou com seu conhecimento das ar- Muitos dos artistas e personalidades
tes a ponto de acolhê-lo em sua casa, No- com os quais conviveu – e fotografou – se
varro não parou mais de fotografar os gran- tornaram seus amigos e o presentearam
des de sua época. com óleos, gravuras, desenhos, rabiscos,
Em outro plano de seu impressionante esboços acompanhados de afetuosas dedi-
portfólio, Eddy Novarro também fotogra- catórias e mensagens manuscritas.
fou estadistas, escritores, monarcas, músi- Este material foi reunido no livro Who
cos, filósofos, hierarcas religiosos, poetas, is who – Eddy Novarro and the avant-garde
cientistas, astros de cinema, ativistas polí- from the 50s and the 70s publicado pelo
ticos, heróis nacionais e uma seleta inco- Museu Pablo Picasso, em 2011, a propósito
mum de celebridades mundo afora. Entre da mostra ali realizada das obras dos artis-
estes figuram Golda Meir, Paulo VI, Conrad tas a ele dedicadas.
R e t r atos da a l m a • 157
A obra de Novarro foi objeto de várias grande pintor à morte, aos 59 anos. Ficou fa-
exposições na Europa, nas Américas e de um mosa, também, pelas lágrimas incontidas de
luxuoso livro de arte editado na França pela Oscar Niemeyer, quando a viu pela primeira
Edition Cercle D’art, de Paris – Novarro Close vez e pode observar o drama de seu compa-
Up – assinado pelo célebre crítico Pierre Res- nheiro de tantas obras, como a Capela da
tany, com Picasso na capa. No Brasil realizou Pampulha, o Ministério da Educação, no Rio,
apenas duas exposições. A primeira, em no- o Colégio de Cataguazes e outras.
vembro de 1989, na 20.ª Edição da Bienal de Um dos aspectos mais instigante na
São Paulo. A segunda, em janeiro de 1990 saga de Novarro foi sua prodigiosa capaci-
no Paço Imperial, no Rio. dade de frequentar a agenda do primeirís-
Em outubro de 1957, ganhou a Medalha simo time da Pintura, Escultura, Literatura,
de Ouro em um concurso internacional de Cinema, Música, Arquitetura e do Poder
Fotografias do Fluminense Foto Clube, com que ele retratou e com quem conviveu.
aquilo que a imprensa da época chamou Ao concentrar sua lente radical nos
“portrait colorido” – um close de Portinari olhos, mais que o semblante dos retratados,
com uma xícara na mão direita enluvada. Eddy Novarro criou um estilo só para ele. O
A foto foi o primeiro registro público do en- estilo de desvendar a alma de seus persona-
venenamento pelas tintas que condenaria o gens. Não raro conseguiu.
158 • Nilo Dante
Candido Portinari
R e t r atos da a l m a • 159
Manuel Bandeira
Marc Chagall
160 • Nilo Dante
Pablo Picasso
Ivo Pitanguy
162 • Nilo Dante
Dalai Lama
Roberto Marinho
R e t r atos da a l m a • 163
Vinicius de Moraes