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Publicado em: As fissuras do poder. Sociologia Ciência & Vida Ed. 49, São Paulo, p.

76 - 80,
01 out. 2013

Disponível em: http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/News/view/3297 [04.04.2014]

Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina


Pilar Calveiro; tradução Fernando Correa Prado. São Paulo: Boitempo, 2013.
Coleção Estado de Sítio (ISBN 978-85-7559-338-7)

AS FISSURAS DO PODER
Graciela Foglia 1
Publicar Poder e desaparecimento: os campos de concentração na Argentina,
neste momento em que, mais uma vez, está em questão a ação da polícia e sua
militarização diante do desaparecimento, no Rio de Janeiro, do pedreiro Amarildo e o
assassinato, em São Paulo, do prestador de serviços da UNIFESP Ricardo Ferreira
Gama, em que se fala que a polícia carioca mata em média mil pessoas por ano (quando
a estadunidense, conhecida pela sua truculência, mata 300 por ano 2), não poderia ser
mais oportuno. Mesmo que no caso argentino abordado no livro se trate do
desaparecimento e morte de militantes políticos e sindicais, este ensaio, pela
multiplicidade de aspectos que aborda referentes ao poder desaparecedor de pessoas e
suas consequências na sociedade, pode nos ajudar a pensar o momento atual do Brasil.
Mais ainda, não podemos nos esquecer que, no Brasil, durante a ditadura cívico-militar
(1964-1985) houve centros clandestinos de detenção e houve também desaparecidos.
Neste livro, cuja primeira edição na Argentina é de 2001, Pilar Calveiro, presa
No 362, torturada, durante a última ditadura cívico-militar argentina (1976-1983),
exilada, cujo marido foi preso no Brasil, em 1980, no marco do Plano Condor, e está
desaparecido, afirma que olhar o campo de concentração como forma repressiva pode
ser uma maneira de entender as características de "um poder que circulou em todo o
tecido social e que não pode ter desaparecido".
Não investigar os crimes da ditadura, não investigar as prática da tortura, o
desaparecimento de pessoas; não procurar a verdade; a demora para fazer dessa
problemática uma política de Estado, parece ter levado, no Brasil, a uma certa
normalização da violência. A despeito de filmes e novelas que abordam o tema da
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Dra. em Letras pela Universidade de São Paulo. Docente da Universidade Federal de São Paulo.
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graciela.fo@gmail.com
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Voltolini, Artur. "Dez mil mortes em dez anos". Carta maior
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22646
ditadura, que têm circulado em maior profusão desde os anos dois mil, ainda é possível
ouvir, entre a classe média, no mundo da cultura 3 ou na academia em São Paulo, Rio ou
Salvador, "essa história está fora da moda" (ou a forma, igualmente desqualificadora,
“esse é um tema que está na moda”), "a ditadura apenas atingiu uns poucos da classe
média", e tantas outras afirmações que demonstram um profundo desconhecimento
sobre 21 anos de história do Brasil.
Nesse pano de fundo é publicado Poder e desaparecimento: os campos de
concentração na Argentina. E se o subtítulo leva a pensar que é um texto apenas
destinado aos estudiosos da problemática dos campos de concentração e restrito ao caso
argentino, a leitura nos leva a uma reflexão maior: o questionamento da aparente
onipotência do poder desaparecedor e o desafio de pensar como esse poder se
transformou ao longo dos anos.
Neste ensaio-testemunho, Calveiro, ao refletir sobre o poder desaparecedor e os
campos de concentração, também o faz sobre o tipo de sociedade que permitiu a sua
existência; e mesmo que cada uma, a brasileira e a argentina, tenham características
específicas, o texto estimula a reflexão sobre o que tornou possível, sendo sociedades
com histórias tão diferentes, o mesmo tipo de violência.
O ensaio consta de dois capítulos, "Considerações preliminares" e "Os campos
de concentração". No primeiro a autora faz uma contextualização histórica tanto do
universo militar, quanto da militância armada. E é no segundo onde desenvolverá a
descrição do poder desaparecedor através da análise do funcionamento dos centros
clandestinos de detenção.

PODER E DESAPARECIMENTO
Para Calveiro, o poder, em geral, se caracteriza pelo seu caráter repressor e pela
pretensão de ser total e absoluto. Por isso, para descrevê-lo é necessário se referir tanto
ao que o poder reconhece como constitutivo de si mesmo, quanto àquilo que exclui e
àquilo que lhe escapa. Como o "poder mostra e esconde, e se revela tanto no que exibe
quanto no que oculta", Calveiro se propõe falar da face que o poder nega de si mesmo,
da face que não pode ser mostrada, da vergonhosa.

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Nesse sentido, veja-se, por exemplo, as declarações do músico Lobão, quando afirma que há "um
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excesso de vitimização na cultura brasileira… Essa tendência esquerdista vem da época da ditadura. Hoje,
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dão indenização para quem seqüestrou embaixadores e crucificam os torturadores que arrancaram umas
unhazinhas". http://www.pragmatismopolitico.com.br/2011/06/cantor-lobao-exalta-ditadura-militar-
e.html
Assassinato político, tortura de presos ("foi uma prática constante e até mesmo
socialmente aceita em relação aos chamados delinquentes comuns"), sequestro e
posterior assassinato com aparecimento do corpo da vítima, todas essas práticas "cruéis
em seu exercício", se diferenciam do desaparecimento de pessoas. "O desaparecimento
não é um eufemismo, e sim uma alusão literal: uma pessoa que a partir de um
determinado momento desaparece, se esfuma, sem que reste registro da sua vida ou de
sua morte. Não há corpo da vítima nem de delito, um corpo material que dê testemunho
do acontecido." Na Argentina, o "desaparecimento, como técnica do poder instituído,
com o seu correlato institucional, o campo de concentração/extermínio" passaram a ser
"a modalidade repressiva do poder, executada diretamente a partir das instituições
militares" desde 1976.
Calveiro aponta vários aspectos para a viabilização do maquinário
desaparecedor. Entre eles, um de ordem organizativa: a burocratização, a fragmentação
das tarefas (já Hannah Arendt tinha apontado o mesmo aspecto para os campos
nazistas): um grupo era encarregado do sequestro, outro da tortura, outro do traslado dos
corpos adormecidos para serem jogados no mar ou nos descampados. Com essa divisão
de tarefas, ninguém se sentia responsável pelo resultado final: a produção de morte4.
Outro aspecto é de ordem ideológica. É a lógica binária, a lógica amigo-inimigo,
que sustenta o campo; uma construção de tipo guerreiro, que reduz o político aos termos
do enfrentamento militar, de tal forma que acaba se movendo com as noções de amigo-
inimigo, batalhas, guerras e aniquilamentos; uma lógica paranoica: todos que não são
meus amigos “querem me destruir”. Diz Calveiro que os militares declararam a guerra e
a guerrilha aceitou o desafio. Nesse sentido, outro desaparecido da ditadura, o escritor e
militante Rodolfo Walsh, nos anos 70, quando a militância montonera5 estava sendo
dizimada, em documentos internos do movimento, já alertava sobre o desvio militarista
e o abandono do terreno político. "La mirada bélica es una mirada siempre ligada con
una perspectiva autoritaria"6, afirma a autora e propõe um ponto de vista alternativo ao

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Em De dioses, hombrecitos y policías, romance escrito por Humberto Costantini, também militante,
também preso e exilado, pode-se constatar a efetividade dessa divisão de tarefas entre os policias.
http://xa.yimg.com/kq/groups/21523210/297040112/name/De+Dioses,+hombrecitos+y+polic%C3%ADa
s.pdf (30-10-2012)
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Montoneros foi a maior organização de guerrilha urbana na Argentina, de extração peronista. O nome
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vem das "montoneras", os gauchos que no século XIX participaram nas guerras de independência da
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Argentina.
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Calveiro, Pilar. "Una mirada no violenta de la política es una mirada falsa". Página 12.
http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/espectaculos/17-29530-2013-08-12.html
pensamento binário: “na luta política os enfrentamentos não se dão em branco e preto,
mas em sucessivas gradações de cinza”.

FACES VERGONHOSAS DO PODER


Seguindo o fio condutor de evidenciar a face oculta e vergonhosa do poder, a
partir de vários depoimentos de sobreviventes dos centros clandestinos de detenção,
Calveiro mostra como junto com as práticas mais cruéis do desaparecimento, da tortura,
do sequestro, das arbitrariedades, conviviam várias outras formas de delinquência:
roubo, desfalque, rapina, sequestros extorsivos; enfim, o mais comum da delinquência.
Como aponta Calveiro, não há que esquecer esse traço porque o "discurso
grandiloquente da guerra contra a subversão" convivia com "uma prática que, longe de
ser guerreira, se alimentou de torturas", de castigos arbitrários e implacáveis, e de
ladrões comuns. Apesar das diferenças, que não podem ser esquecidas sob o risco de se
perderem as especificidades e se desviarem as análises sobre o presente no Brasil (e não
só), nessa conformação de forças e dizeres podem se ouvir ecos daqueles discursos em
falas mais recentes: "guerra contra a delinquência", "guerra contra o tráfico", "guerra ao
terror".
Porém, o mais inquietante é comprovar, como Primo Levi e Hannah Arendt já o
fizeram em relação aos nazistas, que por trás desse poder onipotente existem homens
comuns; homens que cumprem qualquer tipo de ordem porque são subordinados ("a
normalidade da obediência"); não há monstros nem cruzados, apenas "homens comuns,
homens como nós, essa é a difícil verdade, que não pode ser admitida socialmente" e
que o poder oculta.
Outro aspecto do campo, também levantado em depoimentos sobre os campos
nazistas, mas que Calveiro pensa do ponto de vista das fissuras na trama do poder,
refere-se às diferentes formas dos presos políticos resistirem ao poder
concentracionário. Desde os cuidados de si (higiene, ginástica etc.) até a solidariedade
com os companheiros, que foi uma das chaves de subsistência. O cuidado de si era uma
vitória contra a „animalização‟ que pretende o campo; a modo de exemplo, Calveiro
comenta o caso de Norma Arrostito, uma das mais famosas guerrilheiras, que decorava
o Romancero Gitano, de García Lorca; outros chegaram a fabricar pequenos livrinhos
com piadas recortadas de jornais para dar de presente no Natal em 1977.
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Nessa linha, Calveiro também considera as múltiplas formas de escape, todas


elas, como as anteriores, associadas à preservação da dignidade. Desde a própria fuga
física do campo de concentração até o suicídio, passando pelo engano, a conspiração, o
jogo duplo, mas sobretudo o riso; Calveiro dedica vários parágrafos ao valor libertador
do riso7. Por isso é de se destacar a dedicatória de Poder e desaparecimento: a "Lila
Pastoriza, amiga querida, sábia na arte de encontrar fissuras e disparar sobre o poder
com duas armas de altíssima capacidade de fogo: o riso e a sátira."

FORMA DA ESCRITA
O riso, a sátira, a ironia permeiam a escrita da autora, que, por momentos,
lembra a de Rodolfo Walsh em "Carta abierta de un escritor a la junta militar", o último
texto do autor antes de ser morto. Quando fala dos piores, como Alfredo Astiz, o anjo
da morte8, figura paradigmática das aberrações cometidas durante a ditadura, em lugar
de dizer que era um covarde ou um sádico, apenas diz que "estava mais preparado para
enfrentar um peronista que um oficial britânico".
Também o uso coloquial de palavras, algumas metáforas, a construção irônica,
que a ótima tradução conseguiu manter na maior parte das vezes, reforçam a escolha de
resistir à dor, neste caso a dor de relatar e reflexionar sobre os campos, pelo humor. A
modo de exemplo: Calveiro descreve as classes de torturas começando pelo "tormento
'universal' dos campos de concentração argentinos", a picana elétrica, e diz: "É natural:
trata-se de um instrumento nacional, 'vernáculo', inventado por um argentino"; "natural"
e "vernáculo", duas palavras que não esperaríamos encontrar neste contexto, usadas
para falar de um tema que não tem nada de natural, que não tem nada de correto e que
nos envergonha.
Ainda pensando na escrita de Poder e desaparecimento, Calveiro constrói o seu
ensaio-testemunho com as vozes, com os depoimentos de vários sobreviventes;
protagonistas, com nome e sobrenome, e com uma história política. Dessa forma, como
antes Primo Levi (mas diferente de É isto um homem? pela multiplicidade de vozes),
opõe-lhe à massificação, à desumanização concentracionária, o indivíduo.

Enfim, Poder e desaparecimento. Os campos de concentração na Argentina fala


de muito mais que os campos de concentração naquele país, de muito mais que de

7
Recentemente, numa roda de conversa, Feminismo e Universidade, no campus de Humanas da
UNIFESP, em Guarulhos, Maria Amélia Teles (Amelinha), que foi presa e torturada durante a última
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ditadura no Brasil, também apontou o humor como forma de resistência à barbárie.


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Condenado pelo governo francês pelo sequestro, tortura e desaparição de duas freiras francesas, Alice
Domon e Léoni Duquet, e da adolescente Dagmar Hagelin; infiltrado entre as Madres de Plaza de Mayo,
rendeu-se às forças britânicas durante a guerra de Malvinas (1983).
torturas e assassinos; fala sobre as condições do poder, das formas de resistência a esse
poder, do que ainda tem que ser feito em relação aos envolvidos e propõe o exercício de
tentar compreender como se recicla o poder desaparecedor, que novas formas tem
tomado esse poder.

SOBRE A EDIÇÃO DA BOITEMPO


Poder e desaparecimento. Os campos de concentração na Argentina, além da
cuidadíssima tradução e de manter o "Prelúdio" escrito para a primeira edição argentina,
pelo poeta Juan Gelman, traz também uma esclarecedora apresentação de Janaína de
Almeida Teles, "Ditadura e repressão no Brasil e na Argentina: paralelos e distinções"
que, como indica o título, traça semelhanças e diferenças, mas também atualiza alguns
dados sobre a repressão na Argentina e traz informações sobre os centros clandestinos
de repressão no Brasil.
Além dessas características da edição, outro dado que parece confirmar o
compromisso dos editores com o resgate da memória é o cuidado editorial até a última
página literalmente; nela há um desenho com os lenços que simbolizam a luta das
Madres de Plaza de Mayo e o dizer: "Publicado em junho de 2013, ano em que o ex-
general Jorge Rafael Videla morreu, na prisão, sentado no vaso sanitário, este livro foi
composto..."

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