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THE UNSEEN REALM

RECOVERING THE SUPERNATURAL WORLDVIEW OF THE


BIBLE

O REINO INVISÍVEL

RECUPERANDO A VISÃO SOBRENATURAL DA BÍBLIA

ATENÇÃO

ESTA É UMA TRADUÇÃO NÃO OFICIAL PARA A LÍNGUA


PORTUGUESA DO LIVRO

“THE UNSEEN REALM” DO DR. MICHAEL S. HEISER

PARA MAIORES INFORMAÇÕES, FAVOR VISITAR O SITE DELE EM

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OBS: Favor não distribuir esta tradução sem autorização do autor, pois
se trata de um trabalho de 15 anos do Dr. Heiser. Sem mais, espero que
essa obra possa nos instruir ainda mais, muito mais, neste livro
maravilhoso, o livro de Deus, o livro de nossas vidas, a Bíblia.

QUE A SUA JORNADA SE TÃO MARAVILHOSA QUANTO A MINHA

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PARTE 1
AS PRIMEIRAS COISAS
CAPÍTULO 01
LENDO SUA BÍBLIA DE NOVO – PELA PRIMEIRA VEZ
Todos nós temos um momento de mudança em nossas vidas,
pontos críticos e reviravoltas onde, desse momento em diante, nada será
como era antes.
Um desses momentos aconteceu na minha própria vida, o
catalizador por trás desse livro veio numa manhã de domingo na igreja
enquanto eu estava na faculdade. Estava conversando com um amigo
que, como eu, estava trabalhando numa tese de PhD em estudos
hebraicos, conversamos uns minutos antes do culto começar. Não me
lembro muito do que conversamos, apenas de ter certeza que era algo
sobre a teologia do Velho Testamento. Mas nunca esquecerei como ela
terminou. Meu amigo me emprestou a Bíblia Hebraica dele e abriu em
Salmos 82. Ele simplesmente disse: “Aqui, leia isso... preste atenção”.
O primeiro versículo me acertou como um raio de trovão:
Deus (elohim), o supremo Juiz, levantou-se na assembleia
divina, no meio dos deuses (elohim) abre o julgamento.
Indiquei a vocês a palavra hebraica que me chamou atenção e
colocou meu coração na garganta. A palavra elohim acontece duas vezes
nesse curto versículo. Além do outro nome que nos é dado, Yahweh, essa
é a palavra mais comum no Velho Testamento para Deus. E o primeiro
uso dela nesse versículo é tranquilo. Mas desde que conheço minha
gramática hebraica, vi imediatamente que a segunda instância precisava
de uma tradução como plural. E assim estava lá, claro como o dia: O Deus
do Velho Testamento era parte de uma assembleia, um panteão, de
outros deuses.
Sem mais a dizer, não consegui ouvir uma palavra do culto.
Minha mente não parava.

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Como era possível eu nunca ter visto isso antes? Eu já havia lido
a Bíblia toda umas sete ou oito vezes. Fui ao seminário. Lecionei por
cinco anos numa universidade bíblica.
O que isso iria fazer com a minha teologia? Sempre pensei, e
ensinava para os meus estudantes, que todos os outros “deuses”
referenciados na Bíblia eram apenas ídolos. Por mais fácil e confortável
que fosse essa explicação, isso agora não fazia sentido. O Deus de Israel
não era parte de um grupo de ídolos. Mas eu não poderia imaginá-Lo
andando por aí com outros deuses reais, de jeito nenhum. Isso era a
Bíblia, e não uma mitologia grega. Mas estava lá, preto no branco. O
texto me pegou pela garganta, não me sentia confortável.
Imediatamente comecei a pesquisar para encontrar respostas.
Rapidamente descobri que o campo que estava explorando era um lugar
temido e ameaçado pelos evangélicos. As explicações que encontrei dos
estudiosos evangélicos eram perturbadoramente fracas, a maioria dizia
que os deuses (elohim) no versículo eram apenas homens, anciãos
judeus, ou que o versículo falava sobre a Trindade. Eu sabia que
nenhuma delas estava correta. Salmos 82 afirma que os deuses foram
condenados como corruptos em sua administração das nações da Terra.
A Bíblia em nenhum outro lugar ensina que Deus apontou um conselho
de anciãos judeus para governar sobre nações estrangeiras, e Deus
certamente não iria tecer condenação contra o resto da Trindade, Jesus
e o Espírito, de serem corruptos. Francamente, as respostas não eram
nenhum pouco honestas para com as palavras que estavam ali no texto
de Salmos 82.
Quando olhei para além dos estudos evangélicos, descobri que
outros estudiosos já haviam lançado dúzias de artigos e livros sobre
Salmos 82 e a religião israelita. Eles não deixaram pedra sobre pedra
mostrando paralelos entre o salmo e suas ideias e a literatura de outras
civilizações do mundo bíblico, e em alguns casos, comparando as frases
do salmo palavra por palavra. A pesquisa deles trouxe luz a outras
passagens bíblicas que ecoavam o conteúdo de Salmos 82. Vim a
entender a maioria do que aprendi sobre o mundo invisível na faculdade
bíblica e no seminário foi simplesmente filtrado pelas traduções em

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inglês / português ou derivadas de fontes como o Paraíso Perdido de
Milton.
Aquela manhã de domingo e tudo o que se seguiu me forçou a
uma decisão. Minha consciência não iria me deixar ignorar minha
própria Bíblia de maneira a reter a teologia com a qual eu estava
confortável. Eu estava sendo leal ao texto ou à tradição cristã? Será que
eu realmente deveria escolher dentre os dois? Eu não tinha certeza, mas
sabia que o que eu estava lendo em Salmos 82 foi extremamente
valoroso, e simplesmente não se encaixava nos padrões teológicos que
eu sempre aprendi. E parti a procura de respostas. Afinal de contas, as
passagens que eu havia percebido só agora, também haviam sido lidas
por apóstolos como Paulo, e pelo próprio Jesus, só para lembrar. Não
encontrei ajuda para achar as respostas, eu deveria ter que encaixar
todas as peças por mim mesmo.
Essa jornada me tomou quinze anos e levou a esse livro. O
caminho não foi fácil. Ele veio com risco e desconforto. Amigos, pastores
e colegas algumas vezes não entendiam minhas questões e as minhas
refutações às suas propostas de resposta. As conversas muitas vezes não
acabavam bem. Isso tipo de coisa acontece quando demandas de credos
e tradições se alinham por trás do contexto bíblico.
A claridade eventualmente prevaleceu. Salmos 82 se tornou o
foco da minha dissertação de doutorado, o qual também examina a
natureza do monoteísmo israelita e como os escritores bíblicos
realmente pensavam sobre o reino espiritual invisível. Gostaria de dizer
que só fui esperto o bastante para entender as coisas do meu próprio
jeito. Mas na verdade, mesmo pensando e crendo que estava
providencialmente preparado para a tarefa acadêmica que eu encarava,
houveram momentos no processo quando a melhor descrição que posso
dar era a de que eu estava sendo levado para as respostas.
Ainda acredito na singularidade do Deus da Bíblia. Ainda abraço
a deidade de Cristo. Mas se quisermos ser honestos com nós mesmos
quando afirmamos a inspiração, então temos que levar em conta como
falamos sobre isso e outras doutrinas e leva-los em conta no texto
bíblico.
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O que você lerá nesse livro não vai mudar suas convicções sobra
a doutrina cristã, mas vocês passarão por muitas granadas mentais. Não
temam, isso será fascinante, um exercício de construção da fé. O que
estão para aprender é que a teologia do mundo invisível que deriva
exclusivamente do texto entendido através das lentes dos antigos, uma
visão mundial pré-moderna dos autores que nos informa toda doutrina
bíblica de maneira significante. Se isso parece que estou prometendo
muito, deixe seu julgamento até que tenha lido todo o resto do livro.
O que irão ler nesse livro os mudará. Vocês nunca serão capazes
de olhar para sua Bíblia da mesma maneira de novo. Centenas de
pessoas que já leram rascunhos desse livro na década passada me
disseram isso, e adoraram profundamente a experiência. Sei que estão
certos, pois eu vivi essa experiência também.
Meu objetivo é simples. Quando você abrir a sua Bíblia, quero
que sejam capazes de ver como os antigos israelitas, ou judeus do
primeiro século a viam, perceber e considerar isso realmente deve ser.
Eu quero a visão mundial sobrenatural deles na mente de vocês.
Vocês vão achar essa experiência desconfortável em alguns
lugares. Mas seria desonesto de nossa parte afirmarmos que os
escritores bíblicos liam e entendiam os textos da maneira que nós
fazemos hoje como pessoas modernas, ou intendermos significados que
se conformem a sistemas teológicos criados séculos depois que o texto
fora escrito. Nosso contexto não é o contexto deles.
Ver a Bíblia sob os olhos de um leitor da antiguidade requer
tirarmos os filtros de nossas tradições e pressuposições. Eles
processavam a vida em termos sobrenaturais. Os processos cristãos de
hoje são uma mistura de credos e doutrinas de um racionalismo
moderno. Quero ajuda-los a recuperar a visão sobrenatural dos
escritores bíblicos, as pessoas que produziram a Bíblia. Obter e reter esse
tipo de pensamento requer a observação de algumas regras básicas, as
quais examinaremos no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 02
REGRAS DE COMPROMISSO
Eu sempre fui interessado em tudo que é antigo e estranho. Eu
era bom na escola também. Quando me tornei cristão no segundo grau
da escola, senti que havia nascido para o estudo da Bíblia. Eu sei, esse
nível de interesse na Bíblia não é normal para um adolescente. Era tipo
uma obsessão. Gastava horas estudando a Bíblia, assim como livros de
teologia. Estudava os comentários com muita atenção.
Uma vez que não existiam regras de como lidar com esse meu
tipo de vício, entrei para a faculdade bíblica para alimentá-lo. Depois
disso fui ao seminário. Queria ser um professor de estudos bíblicos,
então o próximo passo seria me graduar na universidade, onde
finalmente me foquei na Bíblia Hebraica e vários outros idiomas mortos
antigos. Encontrei o nerdvana, pelo menos até aquela manhã de
domingo quando li Salmos 82 sem a camuflagem em português.
Voltando lá atrás, posso explicar todo meu estudo, formação e
aprendizado antes e depois do meu momento com Salmos 82 usando
duas metáforas: um filtro e um mosaico.
FILTRANDO O TEXTO
Filtros são usados para eliminar coisas a fim de se alcançar o
resultado desejado. Quando os usamos para cozinhar, os elementos não
desejados são dragados, mantidos e descartados. Quando os usamos nos
carros, eles previnem as partículas de interferirem na performance.
Quando os usamos no e-mail, eles exterminam o que (ou quem) não
queremos ler. O que sobra é o que usamos, e isso contribui para um
melhor alimento, motor e sanidade.
A maior parte da minha formação foi conduzida dessa maneira,
usando filtros. Não havia nada de sinistro nisso. Era assim que era feito.
O conteúdo que aprendi era filtrado através de certas pressuposições e
tradições que colocavam o material em ordem para mim, para colocá-lo
dentro de um sistema que fazia sentido para minha mente moderna. Os
versículos que não se encaixavam muito bem na minha tradição eram

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chamados de “passagens problemáticas” que eram filtradas para fora ou
consignadas à periferia das sem importância.
Entendo que muitos dos bons estudantes da Bíblia, pastores e
professores não prestam atenção na maneira com a qual eles chegam até
a Bíblia. Eu sei, pois também não prestava. Mas isso é o que acontece.
Vemos a Bíblia através de lentes do que conhecemos e do que nos é
familiar. Salmos 82 quebrou meu filtro. E mais importante, ele me
alertou para o fato de que eu estava usando um. Nossas tradições, por
mais honoráveis que sejam, não são intrínsecas à Bíblia. Eles são
sistemas que inventamos para organizar a Bíblia. Eles são artificiais. Eles
são filtros.
Quando despertei para isso, me senti um infiel ao usar um filtro.
Mas jogar fora meus filtros iria me custar os sistemas com os quais eu
ordenei as Escrituras e a doutrina em minha mente. Fui deixado com um
monte de fragmentos. Não me sentia dessa forma naquela época, mas
isso foi a melhor coisa que poderia ter me acontecido.
O MOSAICO
Os fatos da Bíblia são apenas peças, pedaços de dados
espalhados. Nossa tendência é impor ordem, e fazendo isso nós
aplicamos um filtro. Mas ganhamos uma perspectiva que é ampla e
profunda se nos permitirmos vermos as peças em seu próprio contexto
original.
A Bíblia é verdadeiramente um mosaico teológico e literário. O
padrão de um mosaico não é muito claro que observado de perto. Fica
parecendo só uma distribuição aleatória de peças. Só quando damos um
passo para trás que podemos ver toda a maravilha. Sim, as peças
individuais são essenciais; sem elas não o mosaico não existiria. Mas o
significado de todas as peças é encontrado apenas num mosaico
completo. E um mosaico não é posto sobre as peças; ele se origina delas.
Agora vejo que Salmos 82 não é uma passagem que destruiu meu
filtro, mas como uma peça importante um mosaico maior e maravilhoso.
Salmos 82 tem o seu centro o reino invisível e sua interação com o
mundo humano. E esse salmo não é apenas a única peça sobre isso;
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existem muitas outras. Na verdade, a intersecção do nosso reino e do
mundo invisível, o qual inclui o Deus trino, e também um elenco
numeroso, é o coração da teologia bíblica.
Meu mais profundo desejo é instiga-lo a remover seu filtro e
começar a olhar as peças das Escrituras como parte de um mosaico, de
maneira que a “grande pintura” possa entrar em foco. Se você o fizer, irá
encontrar, como eu fiz, que essa abordagem o levará a responder
perguntas como: “O que é isso na Bíblia”? e “Como isso pode fazer
sentido”? Se você já gastou muito tempo com as Escrituras, sabe que
existem passagens muito estranhas, frases curiosas, paradoxos
preocupantes, ecos de um evento no outro, conexões dentro e entre os
testamentos que não podem ser coincidências.
OBSTÁCULOS E PROTOCOLOS
Existem alguns sérios obstáculos quando fazemos a transição de
vermos a Bíblia através dos filtros a permitirmos que todas as suas peças
formem um mosaico. Experimentei todos eles.
1. Fomos treinados a pensar que a história do cristianismo é o
verdadeiro contexto da Bíblia.
Falamos muito sobre interpretar a Bíblia em seu contexto, mas a
história do cristianismo não é o contexto dos escritores bíblicos. O
contexto certo de se interpretar a Bíblia não é o de Agostinho ou muitos
outros pais da igreja. Não é o da Igreja Católica. Não são os movimentos
rabínicos da antiguidade e os da Idade Médica. Não é do da Reforma ou
dos Puritanos. Não é o dos evangélicos e os de suas muitas
denominações. Não é o do mundo moderno afinal, ou de qualquer outro
período da história.
O contexto correto de se interpretar a Bíblia é o contexto dos
escritores da Bíblia, o contexto que produziu a Bíblia. Qualquer outro
contexto é estranho aos escritores da Bíblia e, assim sendo, da Bíblia.
Mesmo assim ainda há uma tendência persuasiva na Igreja crente
para filtrar a Bíblia através de credos, confissões e preferências
denominacionais.

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Não estou querendo dizer que devemos ignorar nossos pais do
cristianismo. Estou simplesmente dizendo que devemos dar às suas
palavras e seus pensamentos a perspectiva apropriada e prioridades.
Credos servem a um propósito útil. Eles instilam importantes ideias
teológicas, apesar de cuidadosamente selecionadas. Mas eles não são
inspirados. Eles não substituem o texto bíblico.
O texto bíblico foi produzido por homens que viveram no antigo
Oriente Próximo e Mediterrâneo entre o segundo milênio A.C. e o
primeiro século D.C. Para entender como os escritores bíblicos
pensavam, precisamos entrar no meio intelectual daquele mundo. Uma
enorme quantidade de material está a nossa disposição, graças à
tecnologia moderna. Quanto mais o nosso entendimento do mundo dos
escritores bíblicos for crescendo, também crescerá nosso entendimento
do que eles queriam dizer, e o mosaico do pensamento deles começará a
tomar forma em nossas mentes.
2. Fomos dessensibilizados da vitalidade e importância
teológica do mundo invisível.
O cristianismo moderno sofre de dois sérios problemas quando
lidamos com o mundo sobrenatural.
Primeiro: muitos cristãos afirmam acreditar no sobrenatural,
mas pensam (e vivem) como céticos. Falar sobre o mundo sobrenatural
é desconfortável. Isso é típico de denominações e congregações
evangélicas fora do movimento carismático / pentecostal, em outras
palavras, aqueles que tiveram a criação com a qual cresci.
Existem duas razões básicas do porquê os não carismáticos
tendem a fechar suas portas ao mundo sobrenatural. Uma é a suspeita
deles de que as práticas carismáticas não se encaixam com uma séria
exegese das Escrituras, mas com o tempo isso vai se degenerando
amplamente numa reação exagerada de mentes fechadas as quais ficam,
em si mesmas, separadas da visão mundial dos escritores bíblicos.
A outra razão é ainda pior. A igreja crente está ligada ao peso de
seu próprio racionalismo, uma visão moderna que seria completamente
estranha aos escritores bíblicos. O ensino tradicional cristão tem
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mantido a séculos o mundo invisível sob perspectiva. Acreditamos na
soberania de Deus porque não haveria cristianismo sem isso. O resto do
mundo invisível é falado em sussurros e até mesmo piada.
O segundo e sério problema é evidente dentro do movimento
carismático / pentecostal: a elevação da experiência sobre as Escrituras.
Enquanto o movimento é predisposto a abraçar a ideia de um mundo
espiritual vivo, sua concepção desse mundo é formada amplamente pela
experiência e uma leitura idiossincrásica do livro de Atos.
Esses dois problemas, embora sejam bem diferentes, nascem
fundamentalmente do mesmo lugar sem serem observados: a visão do
cristianismo moderno do mundo invisível não é formada pela visão dos
antigos escritores da Bíblia. Um segmento erroneamente liga o reino
invisível à periferia da discussão teológica. O outro está mais preocupado
em buscar uma interação com ele e se desviou das disciplinas bíblicas,
resultando numa caricatura.
Fico preocupado com os dois problemas, mas uma vez que esse
livro é derivado de minha própria história, o problema dos cristãos
céticos é o que está perto de mim e essa é a minha maior preocupação.
Se a sua criação, como a minha, é dentro de um ramo evangélico
não pentecostal do Protestantismo, talvez você se considere uma exceção
aos padrões que identifiquei, ou pensa que exagerei sobre a situação.
Mas o que você pensaria se um amigo seu cristão confessasse a você que
ele crê estar sendo ajudado por um anjo da guarda, ou que ele ouviu em
voz alta uma voz do além alertando-o sobre um perigo? E se seu amigo
afirmasse ter testemunhado uma possessão demoníaca, ou foi
convencido de que Deus estaria direcionando sua vida através de um
sonho no qual Jesus aparecia?
A maioria de nós não pentecostais teríamos que admitir que
nosso impulso inicial seria o da dúvida. Mas na verdade nosso reflexo
seria menos transparente. Iríamos virar a cabeça e escutar com atenção
à fervorosa história de nosso amigo, mas o tempo todo estaríamos à
procura de possíveis explicações. Isso acontece porque nossa inclinação
moderna é insistir na evidência. Uma vez que vivemos numa era
científica, estamos prontos a pensar nesse tipo de experiência como más
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interpretações emocionais dos eventos ou, prior, alguma coisa que deva
ter tratada com a medicação correta. E em todos os casos individuais,
agiremos assim, mas a verdade é que a nossa subcultura evangélica
moderna nos treinou a pensar que nossa teologia se opõe a quaisquer
experiências do mundo invisível. Consequentemente, ela não é uma
parte importante de nossa teologia.
Minha argumentação é que, se nossa teologia realmente é
derivada do texto bíblico, precisamos reconsiderar esse nosso
sobrenaturalismo seletivo e recuperar uma teologia bíblica do mundo
invisível. Isso não é sugerir que a melhor interpretação de uma
passagem sempre será a mais sobrenatural. Mas os escritores bíblicos e
aqueles para os quais eles escreviam eram predispostos ao
sobrenaturalismo. Ignorar essa visão ou marginalizá-la irá produzir uma
interpretação bíblica que reflete a nossa maneira de pensar, mais do que
a dos escritores bíblicos.
3. Assumimos que muitas coisas na Bíblia são muito estranhas
ou periféricas para nos preocuparmos.
Uma vez quando me mudei para Wisconsin para meu trabalho de
doutorado, minha esposa e eu encontramos uma igreja que nos fez sentir
como se estivéssemos num novo lar eclesiástico. O pastor tinha uma
graduação de um seminário bem conhecido. Seus dois primeiros
sermões de 1 Pedro foram cheios de uma sólida exposição. Fiquei
empolgado com o que viria. Mas lá pelo nosso terceiro culto, ele chegou
em 1 Pedro 3:14-22 em sua série de sermões, uma passagem bem
estranha e que também era uma de minhas favoritas. O que aconteceu
depois ficou marcada em minha memória. O pastor pegou o púlpito e
anunciou numa completa sinceridade: “Vamos pular essa parte de 1
Pedro, pois ela é muito estranha”. Nunca mais voltamos.
Já vi esse tipo de evasão mais de uma vez. Geralmente ela não é
tão dramática. Pastores geralmente não dizem às pessoas a pular partes
de sua Bíblia. A estratégia mais comum para “lidar” com essas passagens
estranhas é mais sutil: tire a passagem bizarra de tudo que faz dela ser
bizarra. O objetivo é dar a interpretação mais ordinária e confortável
possível.
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Essa estratégia é no mínimo irônica. Por que os cristãos os quais
defenderiam de forma extenuante sua crença em Deus ou no nascimento
de uma virgem, fazem acusações sobre algo não científico ou irracional
e não hesitam em chamar as equipes de acadêmicos da SWAT para jogar
fora as passagens “malucas” da Bíblia? O centro das doutrinas de fé não
são nem ordinárias e nem se encaixam confortavelmente ao
racionalismo empírico.
As esquisitices são muito grandes e você nunca ouviu que Salmos
82 tem um papel central na teologia bíblica (incluindo a teologia do Novo
Testamento). Já sou um cristão há mais de trinta anos e nunca ouvi um
culto sobre ele. Existem muitas outras passagens cujo conteúdo é curioso
ou “não faz sentido” e, dessa forma, são abandonados ou subestimados.
Aqui vai a lista de alguns:

 Gên 1:26
 Gên 3:5, 22
 Gên 6:1-4
 Gên 10-11
 Gên 15:1
 Gên 48:15-16
 Êxodo 3:1-14
 Êxodo 23:20-23
 Num 13:32-33
 Deut 32:8-9
 Deut 32:17
 Juízes 6
 1 Sam 3
 1 Sam 23:1-14
 1 Reis 22:1-23
 2 Reis 5:17-19
 Jó 1-2
 Salmos 82, 68, 89
 Isa 14:12-15
 Ezeq 28:11-19
 Dan 7
12
 Mateus 16:13-23
 João 1:1-14
 João 10:34-35
 Rom 15:24, 28
 Rom 8:18-24
 1 Cor 5:4-5
 1 Cor 6:3
 1 Cor 10:18-22
 Gálatas 3:19
 Efésios 6:10-12
 Hebreus 1-2
 1 Pedro 3:18-22
 2 Pedro 1:3-4
 2 Pedro 2:4-5
 Judas 5-7
 Apocalipse 2:26-28
 Apocalipse 3:21
Não considerem isso apenas um catálogo. Essa lista é deliberada,
e todas essas passagens serão examinadas nesse livro. Todas elas estão
interconectadas conceitualmente, e todas nos ajudarão a iluminar as
passagens mais comumente estudadas, aquelas que “fazem sentido”.
Deem uma olhada nelas para uma rápida amostra do que iremos
explanar.
Como iríamos entender a identidade dos “filhos de Deus” em
Gênesis 6:1-4? Por que Jesus repreendeu ferozmente Pedro dizendo
“Arreda-te de mim Satanás”? Por que Paulo disse à igreja dos Coríntios
para pararem porque eles iriam um dia “governar sobre anjos”? Existe
um monte de explicações oferecidas por pastores e professores da Bíblia
para essas e outras passagens estranhas, mas a maioria delas são dadas
sem levar em consideração de como essa explicação funciona com o resto
da Bíblia, com as passagens estranhas e as nem tão estranhas.
Nesse livro, lhes oferecerei minha posição em muitas dessas
“passagens estranhas”. Outros estudiosos já fizeram o mesmo. Mas se a
minha é diferente, é porque eles cresceram fora da perspectiva do
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mosaico. Elas não existem de forma isolada das outras passagens. Elas
possuem um poder explanatório em mais de um lugar.
Não quero sugerir que possamos ter certeza absoluta na
interpretação de todos os lugares na Bíblia. Ninguém, nem mesmo o
presente escritor, está sempre certo sobre o significado de todas as
passagens. Tenho certeza absoluta da minha própria falta de onisciência.
(Assim como minha esposa, só para constar.) Ao invés disso, meu
argumento nesse livro é que se é esquisito, é importante. Toda passagem
possui um papel coerente em todo o mosaico.
Já disse que o mosaico da teologia bíblica nos dá coerência às
peças da Bíblia. Mas a Bíblia é um trabalho longo e detalhado. Uma das
partes mais difíceis sobre escrever esse livro foi decidir o que reservar
para um próximo livro, como ser compreendido sem ser cansativo.
Decidi ser conciso.
O presente livro é o resultado de anos do meu tempo gasto lendo
e estudando o texto bíblico e explorando os pensamentos de outros
estudiosos. Acumulei milhares de livros e artigos de estudos de jornais
que se relacionam de alguma maneira à visão bíblica antiga que produziu
o mosaico. Li quase todos eles ou parte deles. Minha bibliografia é tão
grande quanto esse livro. Estou dizendo isso para deixar claro de que as
ideias que você irá ler aqui não são forjadas. Todas elas têm sobrevivido
ao que os estudantes chamam de revisões periódicas. Minha maior
contribuição é a síntese de ideias e articular uma teologia bíblica que não
seja derivada de uma tradição, mas formada exclusivamente no contexto
da própria visão bíblica do mundo antigo.
O presente livro é de um tom acadêmico, mas não é
necessariamente um livro para estudiosos. Você não precisa ter ido ao
seminário ou ter recebido uma graduação avançada para entende-lo.
Tentei reservar as discussões técnicas para um site na internet conectado
a esse livro que irá prover discussões completas em certos tópicos,
bibliografias adicionais, e dados “muito loucos” dos idiomas originais
para aqueles que assim desejarem.
Para aqueles que acharem esse livro muito denso, escrevi uma
versão menos detalhada chamada de Supernatural (Sobrenatural). Ele
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cobre o centro dos conceitos desse livro com uma orientação ruma a uma
aplicação mais prática da visão sobrenatural dos escritores bíblicos, em
direção a como o mosaico bíblico apresentado aqui deveria mudar as
nossas vidas espirituais e maneiras.
O subtítulo desse livro (“Recuperando a Visão Sobrenatural da
Bíblia”), captura a batalha de ser uma pessoa moderna com um coração
crente tentando pensar como um escritor bíblico pré-moderno. Se você
conseguir sentir um pouco desse conflito, você está onde estive por
muito tempo. E ainda estou nessa jornada. Em algum lugar dessa
caminhada, cheguei a acreditar que não precisava da proteção da minha
Bíblia. Se você também acreditou nisso, está pronto para continuar.

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PARTE 2
CAPÍTULO 03
AS FAMÍLIAS DE DEUS
Muitas vezes as crianças perguntam: “o que existia antes de Deus
fazer o mundo”? A resposta que a maioria dos adultos daria seria que
Deus existia. Isso é verdade, mas está incompleto. Deus tinha
companhia. Não estou falando dos outros membros da Trindade.
A FAMÍLIA DE DEUS
A resposta bíblica é que as hostes celestiais estavam com Deus
antes da criação. Na verdade, eles testemunharam ela. O que Deus diz
para Jó em Jó 38:4-7 é bem claro nesse ponto:
Onde estavas tu, quando Eu lançava os alicerces da terra? Conta-me,
se é que tens verdadeiro entendimento? 5Quem determinou os limites
das dimensões da terra? Talvez tenhas essa resposta! Ou quem
estendeu sobre a face da terra o cordel, a linha de medir? 6E quanto
aos seus fundamentos, sobre o que foram assentados? E quem colocou
a angular, a pedra fundamental, 7enquanto estrelas da manhã, como
a Alva, juntos cantavam e todos os anjos, filhos de Deus, bradavam de
júbilo?
Quando Deus lança os fundamentos da Terra, os “filhos de Deus”
estavam lá, cantando. Mas quem são os filhos de Deus? Obviamente, eles
não são humanos. Isso foi antes da criação do mundo. Podemos achar
que eles sejam anjos, mas isso não seria correto.
O mundo invisível possui uma hierarquia, algo refletido em
termos como arcanjo versus anjo. Essa hierarquia às vezes é difícil de
ser discernida por nós no Velho Testamento, uma vez que não estamos
acostumados a ver o mundo invisível como uma família dinástica (mais
sobre isso a seguir), como um israelita teria processado certos termos
usados para descrever essa hierarquia. No mundo semita antigo, os
filhos de Deus (Hebraico: benei elohim) é a frase usada para identificar
seres divinos com alto nível de responsabilidades e jurisdições. O termo

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anjo (Hebraico: mal’ak) descreve uma tarefa menor, mas também
importante: entregar mensagens.
Em Jó 38, os filhos de Deus são referidos como “estrelas da
manhã”. A mesma descrição é encontrada fora da Bíblia em textos
antigos do mundo bíblico. As pessoas da antiguidade achavam que as
estrelas eram entidades viventes. O pensamento deles era simples:
muitas estrelas se moviam. Isso era um sinal de vida para a mente antiga.
Estrelas era a glória brilhante de seres vivos.
As estrelas também habitavam o reino divino, literalmente, no
sentido de que elas existiam fora da Terra. Os antigos acreditavam que
os seres divinos viviam bem longe dos humanos, em lugares remotos
onde a habitação humana não é possível. O lugar mais remoto de todos
era o céu, o firmamento.
As estrelas da manhã são que se podia ver além do horizonte,
pouco antes do sol aparecer de manhã. Elas assinalavam uma nova vida,
um novo dia. A indicação funcionava. Ela continha um pensamento
correto. As estrelas da manhã originais, os filhos de Deus, viram o início
da vida como a conhecemos, a criação da Terra.
Desde o princípio, então, Deus tinha companhia, outros seres
divinos, os filhos de Deus. A maior parte das discussões do que acontecia
durante a criação, omite os membros da hoste celestial. Isso é uma
infelicidade, pois Deus e os filhos de Deus, a família divina, foram as
primeiras peças do mosaico.
Nós mal tocamos na criação ainda, e já descobrimos algumas
verdades importantes vinda das Escrituras que têm o potencial de afetar
a nossa teologia de forma simples e profunda. Sua importância, se ainda
não ficou clara, se tornará aparente logo.
Primeiramente, aprendemos que os filhos de Deus são divinos e
não humanos. Os filhos de Deus testemunharam a criação muito antes
que existissem pessoas. Eles são seres inteligentes e não são humanos. A
referência aos filhos de Deus como estrelas também deixa claro de que
eles são divinos. Mesmo a linguagem sendo metafórica, ela também é
muito mais do que só metafórica. No próximo capítulo veremos outras
17
passagens que nos dirão que os filhos de Deus são reais, entidades
divinas criadas por Yahweh, o Deus de Israel.
Em segundo lugar, o título “filhos” merece atenção. Esse é um
termo familiar, e ele não é dito por coincidência e nem
inconsequentemente. Deus tem uma família invisível, na verdade, essa é
a sua família original. A lógica é a mesma por trás das palavras de Paulo
em Atos no Monte de Marte (o Areopagus) de que todos os humanos são,
na verdade, descendentes de Deus (Atos 17:28). Deus criou uma hoste
de seres divinos, cujo domínio é (aos olhos humanos) um reino invisível.
E, por ter criado eles, ele os chama de filhos, da mesma forma que você
chama suas crianças de filhos e filhas, pois você fez parte da criação
deles.
Mesmo estando claro que os filhos de Deus estiveram com Deus
antes da criação, existem muitas coisas sobre eles que não estão claras.
Eles são divinos, mas o que isso realmente significa? Como devemos
pensar sobre eles em relação a Deus?
A FAMÍLIA DE DEUS
Os governantes do antigo Egito eram chamados de Faraós. Na
linguagem do antigo Egito, esse título era formado por duas palavras,
per a-a, que significa “grande família”. O conceito de família para as
famílias governantes do antigo Egito era o de uma burocracia dinástica.
Os Faraós tipicamente tinham famílias grandes, extensas. Eles
frequentemente apontavam membros da família para posições chave de
autoridade em sua administração. Os membros da elite da burocracia
governamental do rei, vinham tipicamente da casa do Faraó. Eles eram
administradores e não apenas mensageiros.
Esse conceito e estrutura era bem conhecido através do mundo
antigo. Ele fala sobre autoridade em camadas: um alto rei, uma elite de
administradores que eram relacionados com o rei, e pessoas de níveis
mais baixos os quais serviam os altos níveis da autoridade. Todos nesse
sistema faziam parte do governo, mas a autoridade e o status eram
ranqueados.

18
Muitas passagens do VT descrevem essa estrutura administrativa
existente no reino celestial. Salmos 82 talvez seja o mais claro, e talvez o
mais impressionante. Como disse no primeiro capítulo, essa é a
passagem que abriu meus olhos. O salmo se refere à administração de
Yahweh como um conselho. O primeiro versículo temos:
Deus (elohim), o supremo Juiz, levantou-se na assembleia divina, no
meio dos deuses (elohim) abre o julgamento.
Sem dúvidas vocês notaram que, como mostrei no capítulo 1, a
palavra elohim aparece duas vezes nesse versículo. Vocês também
provavelmente reconhecem elohim como um dos nomes de Deus, apesar
do fato de que a forma dela indica um plural. Em português, nós
montamos plurais adicionando “s” no final das palavras (ratos, cavalos,
histórias). No hebraico, os plurais de substantivos masculinos terminam
com “im”.
Mesmo a palavra elohim estando no plural, seu significa por ser
tanto plural como singular. A maior parte das vezes (quase 2000 vezes)
na Bíblia Hebraica ela é singular, se referindo ao Deus de Israel.
Temos palavras como essa em Português. Por exemplo, a palavra
lápis pode ser tanto singular quanto plural. Quando lemos só lápis
sozinha, não sabemos se pensamos em apenas um ou mais de um. Se
colocarmos o lápis numa sentença (“O lápis vermelho está na mesa”),
saberemos o que significa, pois, o verbo requer que seja um substantivo
singular. Da mesma forma, “Os lápis coloridos estão na mesa” nos
informam que mais de um lápis está em discussão. A gramática nos guia.
E é assim também com o hebraico.
Salmos 82:1 é especialmente interessante, uma vez que elohim
aparece duas vezes no mesmo versículo. Em Salmos 82:1, o primeiro
elohim tem que ser singular, uma vez que a gramática hebraica tem a
palavra como sujeito de um verbo na forma singular (“levantou”). O
segundo elohim tem que ser plural, uma vez que a preposição na frente
dele (“no meio dos”) requer mais de um. Você não pode estar “no meio
de” um. A preposição necessita de um grupo, assim como o substantivo
anterior, assembleia. O significado do versículo é inevitável: o singular
elohim de Israel preside sobre uma assembleia de elohim.
19
Uma rápida leitura de Salmos 82 nos informa que Deus chamou
uma reunião do seu conselho para julgar os elohim devido a um governo
corrupto sobre as nações. O versículo 6 do salmo declara que esses
elohim são filhos de Deus. Deus diz a eles:
Eu declarei: vós sois deuses (elohim); todos vós sois filhos do Altíssimo
(beney elyon)!
Para um escritor bíblico, o Altíssimo (elyon) era o Deus de Israel.
O VT se refere a ele como o Altíssimo em vários lugares (Gên 14:18-22;
Núm 24:16; Salmos 7:17; 18:13; 47:2). Os filhos de Deus / o Altíssimo
aqui são claramente chamados de elohim, pois o pronome “vós” no
versículo 6 é uma forma plural no hebraico.
O texto não é claro se todos os elohim estão sob julgamento ou só
alguns. A ideia dos elohim governando as nações sob a autoridade de
Deus é um conceito bíblico que é descrito em outras passagens que
também iremos explorar depois. Por agora, é suficiente que vejam
claramente que os filhos de Deus são seres divinos sob a autoridade do
Deus de Israel.
Vocês podem ver o porquê esse salmo ficou dando voltas na
minha mente. O primeiro versículo vemos Deus presidindo sobre uma
assembleia de deuses. Isso não parece um panteão, algo que associamos
com o politeísmo e mitologia? E é por essa razão que muitas traduções
em português obscurecem o hebraico nesse versículo. Por exemplo, a
King James Atualizada traduz assim: “6Eu declarei: vós, ó juízes, sois
como os deuses; todos vós sois filhos do Altíssimo!”
Não há necessidade de se camuflar o que o texto em hebraico diz.
As pessoas não deveriam se proteger de suas Bíblias. Os escritores
bíblicos não eram politeístas. Mas uma vez que Salmos 82 levanta
questões e controvérsias, precisamos gastar mais tempo e ver o que ele
nos ensina e o que ele não nos ensina, junto a outras passagens que nos
informam sobre esse conselho divino. Faremos exatamente isso no
próximo capítulo.

20
CAPÍTULO 04
APENAS DEUS
Não há nenhuma dúvida de que o Salmo 82 pode mexer com
nossa visão bíblica. Uma vez que enxerguei o que ele realmente estava a
dizer, fiquei convencido de que eu precisava ver a Bíblia através dos
olhos dos antigos, e não as minhas tradições. Tive que navegar em
questões que provavelmente flutuam em nossas próprias mentes e
corações agora que vocês já leram, realmente leram, essa passagem.
Primeiramente e ainda mais importante, vocês devem estar
atentos para uma das vias que são bem claras nos significados de Salmo
82 e são distorcidas por interpretadores e por que elas não estão
ensinando o politeísmo.
SERES DIVINOS NÃO SÃO HUMANOS
Muitos cristãos que são contra o claro significado do texto
hebraico de Salmo 82, afirmam que esse salmo está, na verdade,
descrevendo Deus Pai conversando com os outros membros da
Trindade. Essa visão resulta em heresia. E tenho confiança que agora
vocês podem ver porque, pois, no salmo, Deus está julgando os outros
elohim por corrupção (versículos 2-4). Os elohim corruptos são
sentenciados a morrerem como humanos. (versículo 7). Essas
observações somente, deveriam fazer com que todos os cristãos que têm
cuidado sobre a doutrina de Deus, abandonem essa ideia. E ela tem
outras falhas. O final do salmo deixa evidente que os elohim que foram
castigados tinham algum tipo de autoridade sobre as nações da terra,
uma tarefa na qual eles falharam. Isso não se encaixa com a Trindade.
Outros cristãos que veem problemas com essa primeira ideia
tentam argumentar que os filhos de Deus eram seres humanos, judeus
para ser específico. Alguns leitores judeus (os quais obviamente não são
trinitarianos) também favorecem essa visão.
Essa “visão humana” também é falha, assim como a visão
trinitariana. Em nenhum lugar no VT, a Bíblia nos ensina que judeus ou
líderes judeus tiveram autoridade dada sobre as nações. O oposto é

21
verdadeiro, eles foram separados das outras nações. A aliança com
Abraão pressupunha essa separação: Se Israel fosse totalmente devota à
Yahweh, as outras nações seriam abençoadas (Gen 12:1-3). Humanos
também não são serem naturalmente sem corpos. A palavra elohim é um
termo para “lugar de residência”. Nossa casa é o mundo da
personificação / corpos; elohim por sua natureza, habitam o mundo
espiritual.
O grande problema com a visão humana, no entanto, é que ela
não pode se reconciliar com outras referências no VT hebraico que se
referem ao conselho divino dos elohim.
Salmo 89:5-7 (Hebraico vv. 6-8) contradiz de forma explícita a
noção de um conselho divino no qual os elohim são humanos.
Os céus exaltam tuas maravilhas, SENHOR, e tua fidelidade, na
assembleia dos santos (conselho divino). 6Quem, nos céus se compara
ao SENHOR? Quem é igual ao SENHOR entre os seres celestiais?
7No conselho dos santos (conselho divino), Deus é grandemente temido
e inspira mais temor do que todos os que o cercam.
O conselho divino de Deus é uma assembleia nos céus, não na
terra. A linguagem não deixa dúvidas. Isso é precisamente o que
esperamos se entendemos que os elohim são seres divinos. Essa
passagem fica completamente sem sentido se pensarmos neles como
humanos. Não há nenhuma referência nas Escrituras sobre um conselho
de seres humanos servindo a Yahweh nos céus (judeus ou seja lá o que
for).
O que Salmo 82 e 89 descrevem é completamente consistente
com o que vimos mais cedo em Jó 38:7, um grupo de filhos celestiais de
Deus. Isso também está em perfeito acordo com outras referências aos
filhos de Deus como plural de elohim:
Os filhos de Deus vieram a se apresentar perante Yahweh (Jó
1:6; 2:1)
Tributai ao SENHOR, vós, filhos de Deus, rendei ao SENHOR
glória e força. 2Tributai ao SENHOR a glória devida ao seu Nome.

22
Adorai ao SENHOR, por causa do esplendor da sua santidade. (Salmos
29:1-2)
Essas referências descrevem um grupo de líderes judeus, dentre
os quais (na passagem de Jó) o grande adversário de Yahweh aprece,
levando Jó a sofrer? A conclusão é óbvia.
O PLURAL ELOHIM NÃO QUER DIZER POLITEÍSMO
Muitos estudiosos acreditam que o Salmo 82 e outras passagens
demonstram que a religião da antiga Israel começou como um sistema
politeísta e depois evoluiu para o monoteísmo. Eu rejeito essa ideia,
assim como outras explicações que procuram esconder toda a claridade
do texto. Em todos esses casos, o pensamento é sempre desviado. O
problema é enraizado numa noção errada do que exatamente a palavra
elohim significa.
Uma vez que elohim é tão frequentemente traduzida como Deus,
lemos a palavra hebraica da mesma forma quando lemos D-e-u-s com
letra maiúscula. Quando lemos a palavra Deus, nós instintivamente
pensamos em um ser divino com um conjunto único de atributos:
onipresença, onipotência, soberania e por aí vai. Mas não é assim que o
escritor bíblico pensava quando lia o termo. Os autores bíblicos não
assinalavam um conjunto específico de atributos à palavra elohim. Isso
é evidente quando observamos como eles usavam a palavra.
Os escritores bíblicos se referem a uma meia dúzia de entidades
diferentes com a palavra elohim. Em todas as passagens religiosas, os
atributos dessas entidades não são iguais.

 Yahweh, o Deus de Israel (milhares de vezes. Ex: Gên 2:4-


5; Deut 4:35)
 Os membros do conselho de Yahweh (Salmos 82:1, 6)
 Deuses e deusas das outras nações (Juízes 11:24; 1 Reis
11:33)
 Demônios (Hebraico: shedim – Deut 32:17)
 O espírito do morto Samuel (1 Samuel 28:13)
 Anjos ou o Anjo de Yahweh (Gên 35:7)

23
A importância dessa lista pode ser resumida em uma só
pergunta: Será que qualquer israelita, especialmente o escritor bíblico,
realmente acreditava que o espírito de um humano morto e demônios
estão no mesmo nível de Yahweh? Não. O uso do termo elohim pelos
escritores bíblicos nos diz de maneira bem clara que o termo não é sobre
um conjunto de atributos. Embora quando lemos “D-e-u-s”, pensamos
num conjunto único de atributos, quando um escritor bíblico escrevia
elohim, ele não pensava dessa maneira. Se assim o fosse, ele nunca teria
usado o termo elohim para descrever qualquer coisa que não fosse
Yahweh.
Consequentemente, não existe nenhuma garantia para se
concluir que o plural elohim produz um panteão de deidades
intercambiáveis. Não há bases para se concluir que os escritores bíblicos
viam Yahweh como algo que não era melhor que os outros elohim. Um
escritor bíblico não iria presumir que Yahweh poderia ser derrotado por
qualquer outro elohim (e nem todos eles ao mesmo tempo), pois não
tinham o mesmo conjunto de atributos. Isso seria um pensamento
politeísta. Essa não é o quadro bíblico.
Podemos ter confiança nessa conclusão mais uma vez ao observar
o que os escritores bíblicos dizem sobre Yahweh, e nunca dizem sobre os
outros elohim. Os escritores bíblicos falam sobre Yahweh de maneiras
que telegrafam sua crença em sua singularidade e incomparabilidade:
“Quem é igual a ti dentre os deuses (elim), Yahweh?” (Êxodo
15:11)
“Qual deus (el) existe no céu ou na terra que se compare às suas
obras e seus milagres?” (Deut 3:24)
“Oh Yahweh, Deus de Israel, não outro deus (elohim) como tu
nos céus acima ou embaixo na terra” (1 Reis 8:23).
“Pois tu, Oh Yahweh, é o Altíssimo sobre toda a terra. És
altamente exaltado sobre todos os deuses (elohim).” (Salmos 97:9).
Os escritores bíblicos também assinalavam qualidades únicas a
Yahweh. Yahweh é o todo-poderoso (Jer 32:17; Salmos 72:18; 115:3), o

24
rei soberano sobre os outros elohim (Salmos 95:3; Dan 4:35; 1 Reis
22:19), o criador dos outros membros do seu conselho (Salmos 148:1-5;
Nee 9:6; Jó 38:7; Deut 4:19-20; 17:3; 29:25-26; 32:17; Jonas 1:17) e o
único elohim que merece adoração dos outros elohim (Salmos 29:1). Na
verdade, Neemias 9:6 explicitamente declara que Yahweh é único, só
existe um Yahweh (“Somente tu é Yahweh”).
O uso bíblico de elohim não difícil de se entender, uma vez que
sabemos que ele não fala sobre atributos. O que todas as figuras da lista
acima têm em comum é que elas são habitantes do mundo espiritual.
Neste reino há uma hierarquia. Por exemplo: Yahweh possui atributos
superiores a todos os outros elohim. Mas os atributos de Deus não é o
que faz dele um elohim, uma vez que seres inferiores são membros do
mesmo grupo. Os escritores do VT entendiam que Yahweh era um
elohim, mas nenhum outro elohim era Yahweh. Ele é uma espécie única
dentre todos os residentes do mundo espiritual.
Isso não quer dizer que um elohim não pudesse interagir com o
mundo humano. A Bíblia deixa bem claro que os seres divinos podem (e
o faziam) assumir forma física humana, e até mesmo carne corpórea,
para interagir com as pessoas, mas esse não é o seu estado normal. Seres
espirituais são “espíritos” (1 Reis 22:19-22; João 4:24; Hebreus 1:14;
Apocalipse 1:4). Da mesma maneira, humanos podem ser transportados
para o reino divino (Isaías 6), mas esse não é o nosso plano normal de
existência. Como expliquei mais cedo nesse capítulo, a palavra elohim é
um termo para “lugar de residência”. Ele nada tem a ver com um
conjunto específico de atributos.
Vamos dar uma olhada em algumas questões que o Salmo 82 nos
apresenta.
POR QUE DEUS PRECISA DE UM CONSELHO?
Essa é uma pergunta óbvia. E a resposta para ela também é óbvia:
Deus não precisa de um conselho. Mas é textualmente claro que Ele tem
um. A questão na verdade é similar a outra: Deus precisa de pessoas? A
resposta é a mesma: Deus não precisa de pessoas. Mas Ele as usa. Deus
não depende dos humanos para Seus planos. Deus não precisa de nós
para evangelizar. Ele poderia salvar todas as pessoas que quisesse só com
25
a força do pensamento. Deus poderia terminar com o mal num piscar de
olhos e dar um fim à história humana com o final que Ele deseja a
qualquer momento. Mas Ele não o faz. Ao invés disso, ele realiza Seu
plano para todas as coisas na terra através dos seres humanos. Ele
também não é incompleto sem a nossa adoração, mas Ele a deseja.
Não quero dizer com isso que a questão sobre se Deus precisa de
um conselho não tem sentido. Estou dizendo é que não há argumento
contra a existência de um conselho divino.
OS ELOHIM SÃO REAIS?
Aqueles que querem se afastar do que o Salmo 82 deixa claro,
argumentam que os deuses são apenas ídolos. Dessa forma eles não são
reais. Esse argumento é amplamente derrubado pelas Escrituras.
Também não há lógica e mostra um desentendimento sobre a idolatria
racional.
Com respeito às Escrituras, é só olharmos para Deuteronômio
32:17.
“Eles (os Israelitas) sacrificavam a demônios (shedim), e não a
Deus (eloah), para os deuses (elohim) os quais eles não conheceram.”
O versículo claramente chama os elohim adorados
perversamente pelos Israelitas de demônios (shedim). Esse termo usado
raramente (Deut 32:17; Salmos 106:37) vem do Acadiano shedu. No
antigo Oriente Próximo, o termo shedu era neutro; ele poderia se referir
a seres espirituais bons ou mais. Essas figuras Acadianas eram
frequentemente tidas como guardiões ou entidades protetoras, embora
o termo também tenha sido usado para descrever a força vital de uma
pessoa. No contexto de Deuteronômio 23:17, shedim eram elohim, seres
espirituais guardiões de um território estrangeiro, que não deveriam ser
adorados. Israel deveria adorar seu próprio Deus (aqui, eloah; Deut
29:25). Não se pode negar a realidade dos elohim/shedim em
Deuteronômio 32:17 sem negar a realidade dos demônios.

26
Os estudiosos discordam sobre que tipo de entidade os shedim
eram. Mas seja qual for o correto entendimento do que seriam os
shedim, eles não eram peças de madeira ou pedra.
Os estudiosos da primeira carta de Paulo aos Coríntios sabem
que, nos alertas que o apóstolo dá sobre não terem relações com
demônios (1 Cor 10:20), os comentários de Paulo seguem a história dos
Israelitas descrita em Deuteronômio 32. Ele alerta aos crentes contra o
relacionamento com demônios como base para a falha de Israel ao
adorar outros deuses. Paulo usa a palavra daimonion, umas das palavras
frequentemente usadas no NT para seres espirituais maléficos, para
traduzir o shedim de Deuteronômio 32:17. Paulo conhecia sua Bíblia
Hebraica e não negava a realidade dos shedim, que são os elohim.
“NÃO HÁ NINGUÉM ALÉM DE MIM”?
Outra estratégia desviada é argumentar que as afirmações no VT
que têm Deus dizendo: “não há ninguém além de mim” significa que não
existem outros elohim. Esse não é o caso. Essas frases não contradizem
o Salmo 82 ou outros que, por exemplo, dizem que Yahweh está acima
de todos os elohim ou é o “Deus dos deuses (elohim).”
Escrevi muito sobre esse assunto, ele foi o foco da minha
dissertação de doutorado. Essas “afirmações de negação”, como são
chamadas pelos estudiosos, não afirmam que não existem outros elohim.
Na verdade, algumas delas são encontradas em capítulos onde a
realidade dos outros elohim são afirmadas. Já vimos que Deuteronômio
32:17 se refere aos elohim que Paulo acreditava que existiam.
Deuteronômio 32:8-9 também se refere aos filhos de Deus.
Deuteronômio 4:19-20 é paralela à essa mensagem, e ainda temos
Deuteronômio 4:35 dizendo que não há deus além de Yahweh. Será que
as Escrituras estão cheias de contradição?
Não. Essas “afirmações de negação” não negam que outros
elohim existam. Ao invés disso, elas dizem que nenhum outro elohim se
compara à Yahweh. Elas são afirmações de incomparabilidade. Esse
ponto é facilmente ilustrado ao notar onde mais a mesma linguagem de
negação aparece na Bíblia. Isaías 47:8 e Sofonias 2:15 têm,
respectivamente Babilônia e Nínive dizendo: “não há ninguém além de
27
mim”. Temos que entender aqui que essa frase declara que nenhuma
outra cidade existe além de Babilônia e Nínive? Isso seria um absurdo.
O foco da afirmação é de que Babilônia e Nínive consideravam a si
mesmas incomparáveis, pois nenhuma outra cidade era como elas. Esse
é precisamente o entendimento quando usamos as mesmas frases para
outros deuses, pois eles não se comparam a Yahweh. A Bíblia não se
contradiz a si mesma nesse ponto. Aqueles que querem argumentar de
que os outros elohim não existem, provavelmente não estão sintonizados
com a visão sobrenatural dos escritores bíblicos.
EXAMINANDO A LÓGICA
A negação de que os outros elohim existem, insulta a sinceridade
dos escritores bíblicos e a glória de Deus. Qual a coerência em se dizer
que os versículos exaltando a superioridade de Yahweh sobre todos os
elohim (Salmos 97:9) na verdade estaria nos falando que Yahweh é
maior do que seres que não existem? Onde está a glória de Deus nas
passagens que mostram os outros elim a adorar Yahweh (Salmos 29:1-
2) quando os escritores não acreditavam que esses seres eram reais? Será
que os escritores foram inspirados a mentir ou fazer uma pegadinha
conosco? Dar-nos uma teologia sem sentido?
Aos meus ouvidos, isso é zombar de Deus ao dizer: “Tu és maior
do que algo que não existe”. Parece meu cachorro a dizer: “Dentre os
seres que todos nós sabemos que não existem, não há nenhum como
Yahweh” é o equivalente a comparar Yahweh como o Homem-Aranha ou
Bob Esponja. Isso reduz o louvor a uma risadinha. Por que o Espírito
Santo iria inspirar algo tão sem sentido?
MAL ENTENDIMENTO DA IDOLATRIA
Os profetas bíblicos amam fazer piada sobre a fabricação de
ídolos. Parece tão estúpido esculpir a forma de um ídolo em madeira ou
pedra, ou fazer um de barro e depois adorá-lo. Mas as pessoas da
antiguidade não acreditavam que seus deuses eram verdadeiramente
imagens de pedra ou madeira. Não estamos sintonizados com os
escritores bíblicos se pensarmos dessa forma.

28
O que os adoradores de ídolos da antiguidade acreditavam era
que os objetos que eles faziam eram habitados pelos seus deles. É por
isso que eles realizavam cerimônias para “abrir a boca” da estátua. A boa
(e as narinas) deveriam ser ritualmente abertas para o espírito da
deidade entrar ali e ocupar aquela estátua, uma noção inspirada pela
ideia de alguém precisa respirar para viver. O ídolo primeiramente teria
que ser animado pela presença espiritual verdadeira da entidade. Uma
vez que isso fosse feito, a entidade era localizada para ser adorada e
negociada.
Isso é facilmente provado através de textos antigos. Existem
histórias, por exemplo, de ídolos sendo destruídos. Não há nenhuma
sensação de medo nessas histórias pela morte do deus. Ao invés disso,
só existia a necessidade em se fazer outro ídolo.
Os alertas de Paulo em 1 Coríntios 10:18-22, já comentados
anteriormente, refletem esse pensamento. Logo no início da carta, ele
diz aos Coríntios que um ídolo não tem poder e era, em si mesmo, nada
(1 Cor 8:4). Enquanto os gentios possuíam outros senhores e deuses,
para os crentes só havia um verdadeiro Deus. Mas no capítulo 10, ele
deixa claro que também sabia que os sacrifícios a ídolos eram, na
verdade, sacrifícios a demônios, membros maléficos do mundo
espiritual.
E SOBRE JESUS?
Os leitores do Salmo 82 também mostram uma específica
pergunta sobre Jesus. Se existem outros filhos divinos de Deus, o que
fazemos com a descrição de Jesus como “unigênito” filho de Deus (João
1:14; 18; 3:16; 1 João 4:9)? Como Jesus poderia ser o único filho divino
quando ali haviam outros?
“Unigênito” é uma tradução confusa infelizmente, especialmente
aos ouvidos modernos. A tradução “unigênito” não apenas parece
contradizer as óbvias afirmações do VT sobre os outros filhos de Deus,
ela implica que em algum tempo atrás o Filho não existia, que ele teve
um início.

29
A palavra grega traduzida nessa frase é monogenes. Ela não
significa “unigênito” no sentido de “nascimento”. A confusão vem de um
antigo desentendimento da raiz da palavra grega. Por anos o monogenes
foi ensinado como derivado de dois termos gregos, monos (“único”) e
gennao (“gerar, carregar”). Os estudiosos gregos mais tarde descobriram
que a segunda parte da palavra monogenes não veio do verbo grego
gennao, mas do substantivo genos (“classe, tipo”). O termo literalmente
significa “o de uma classe” ou “único”, sem a conotação de uma origem
criada. Consequentemente, uma vez que Jesus é, em verdade,
identificado com Yahweh e também está com Yahweh, único dentre os
elohim que servem a Deus, então o termo monogenes não contradiz a
linguagem do VT.
A validade desse entendimento nasce do próprio NT. Em
Hebreus 11:17, Isaque é chamado de o monogenes de Abraão. Se você
conhece seu VT, você sabe que Isaque não era o filho “unigênito” de
Abraão. Abraão já havia sido pai de Ismael (Gên 16:15; 21:3). O termo
significa que Isaque era um filho único, pois ele era o filho da aliança da
promessa. A linhagem genealógica de Isaque seria aquela que traria o
Messias. Assim como Yahweh é um elohim, e nenhum outro elohim é
Yahweh, então Jesus é o filho único, e nenhum outro filho de Deus é
como ele.
Já encontramos muito material que precisa de uma explicação
cuidadosa, e ainda mal começamos essa épica história. Os filhos de Deus
viram como Deus preparou as fundações da terra (Jó 38:7). Agora vamos
ver, como eles o fizeram a muito tempo atrás, exatamente o que o
Criador deles estava fazendo.

30
CAPÍTULO 05
ASSIM NA TERRA, COMO NO CÉU
O dito “assim na terra, como no céu” é familiar aos cristãos. Ele é
parte da oração do Pai Nosso (Mateus 6:9-15). Nessa oração,
aprendemos o que o dito significa: “venha a nós o vosso reino, seja feita
a vossa vontade” (6:10). O reino de Deus é o governo de Deus. Deus
deseja governar sobre tudo o que Ele criou: o reino espiritual invisível e
o reino terreno visível. Ele assim o fará em ambos os domínios.
Nos próximos três capítulos, explicarei como os antigos
escritores bíblicos originalmente concebiam esse reinado desde o início
da criação. Iremos descobrir muitas coisas sobre o verdadeiro foco da
Bíblia, seu centro teológico, se assim entender. Gostaria de colocar dessa
forma:
A história da Bíblia é sobre o desejo de Deus, e seu governo,
sobre os reinos que Ele criou, visível e invisível, através das imagens
que Ele criou, humanas e não humanas. Essa agenda divina está em
andamento em ambos os reinos, concomitantemente.
O termo imagem como me refiro, pode parecer estranho. Mais
tarde nesse capítulo explicarei melhor o que quero dizer.
A parte da história que mais conhecemos é aquela na qual
estamos inseridos, o visível mundo terrestre. Naturalmente, essa é a que
atrai a maior atenção dos pastores e teólogos. O reino invisível é
regularmente esquecido, ou apenas mostrado em relação a Deus, Jesus
e o Espírito Santo. Os dois reinos não são mutualmente exclusivos ou
periféricos entre si; eles estão integralmente conectados, projetados
assim. Esse ponto é telegrafado desde cedo na história bíblica.
CRIADOR OU CRIADORES?
O “assim na Terra, como no céu”, é uma ideia muito mais antiga
do que a oração do Pai Nosso. Ela começa em Gênesis. O primeiro
capítulo de Gênesis é facilmente mal interpretado por aqueles que ainda
não entenderam o habitat original de Deus e sua família, o conselho

31
divino. Note cuidadosamente a ênfase que negrito que coloquei em
Gênesis 1:26-28:
Então Deus determinou: “Façamos o ser humano à nossa
imagem, de acordo com a nossa semelhança. Dominem eles sobre os
peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os grandes animais e todas
as feras da terra, e sobre todos os pequenos seres viventes que se
movem rente ao chão!” 27Deus, portanto, criou os seres humanos à
sua imagem, à imagem de Deus os criou: macho e fêmea os criou.
28Deus os abençoou e lhes ordenou: “Sede férteis e multiplicai-vos!
Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as
aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!”
Muitos leitores da Bíblia veem os pronomes no plural (nossa;
nós) com curiosidade. Eles sugerem que os plurais se referem à
Trindade, mas uma pesquisa técnica na gramática hebraica e sua exegese
tem mostrado que a Trindade não é uma explicação coerente. A solução
é muito mais complexa, uma que um antigo israelita rapidamente
poderia compreender. O que temos é uma só pessoa (Deus) se dirigindo
a um grupo, os membros do conselho divino.
É como se eu entrasse numa sala de amigos e dissesse: “Ei, vamos
pedir uma pizza!” Sou eu quem está falando. Um grupo está ouvindo o
que estou falando. De maneira similar, Deus vai até o conselho divino
com um grande anúncio: “Vamos criar a humanidade!”
Mas se Deus está falando para o seu conselho divino aqui, isso
sugeriria que a humanidade fora criada por mais de um elohim? Teria a
criação da humanidade sido o projeto de grupo? Não. Voltando ao meu
exemplo da pizza: se eu é quem vai pagar pela pizza, realizando o plano
depois de anuncia-lo, então eu sou o responsável tanto pela inspiração
quanto pela iniciativa de todo o projeto. É assim que Gênesis 1:26
funciona.
Gênesis 1:27 nos diz claramente que só o próprio Deus cria. No
hebraico, todos os verbos de criação na passagem estão na forma
singular: “Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à
imagem de Deus os criou”. Os outros membros do conselho não

32
participaram da criação da humanidade. Eles assistiram, assim como
quando Deus fez as fundações da Terra (Jó 38:7).
Vocês devem estar se perguntando nesse ponto por que a
linguagem muda do plural no versículo 26 (“Façamos o ser humano à
nossa imagem, de acordo com a nossa semelhança”) para o singular no
versículo 27 (“Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à
imagem de Deus os criou”). Será que a Bíblia se contradiz a si mesma?
Não. Mas entender essa mudança requer compreender o que essa
linguagem de “imagem” significa.
IMAGEM OU SEMELHANÇA?
Identificar a natureza da imagem divina tem preocupado
estudantes e pastores por muito tempo. Há chances de vocês já terem
ouvido um ou dois sermões sobre o assunto. Aposto que já ouviram algo
sobre a imagem de Deus semelhante a essa lista:

 Inteligência
 Habilidade racional
 Emoções
 Habilidade de comunhão com Deus
 Autoconsciência (senescência)
 Habilidade de linguagem / comunicação
 A presença de uma alma ou espírito (ou ambos)
 A consciência
 Livre arbítrio
Todas essas coisas soam como possibilidades, mas elas não são.
A imagem de Deus não significa nenhuma dessas coisas. Se assim o
fosse, então os crentes na Bíblia deveriam abandonar a ideia da
santidade da vida humana no útero. Essa afirmativa talvez possa te
sacudir, mas ela é evidente, uma vez que você considere essa lista à luz
de como as Escrituras falam sobre a imagem de Deus.
Gênesis nos ensina muitas coisas sobre a imagem de Deus, o que
chamo de “geração da imagem divina”. Tudo o que aprendemos do texto

33
deve ser levado em conta em todas as discussões sobre o significado da
imagem.
1. Tanto homem quando mulher são igualmente incluídos.
2. A geração da imagem divina é o que faz a humanidade ser
diferente do resto da criação terrena (isto é, plantas e
animais). O texto de Gênesis 1:26 não nos informa que a
geração da imagem divina nos faz diferentes dos seres
celestiais, aqueles filhos de Deus os quais já existiam no
período da criação. Os plurais em Gênesis 1:26 significam
isso, de alguma forma, compartilhamos algo com eles
quando em relação à geração da imagem de Deus.
3. Existe algo sobre a imagem que faz a humanidade ser
“como” Deus de alguma maneira.
4. Não há nada no texto que sugere que a imagem tenha sido
ou possa ser outorgada para incrementá-la ou piorá-la.
Ou você foi criado à imagem de Deus ou não. Não se pode
falar de um ser parcialmente ou potencialmente a
imagem de Deus.
Dentre a lista das respostas propostas sobre os significados da
imagem, estão um número de habilidades ou propriedades: inteligência,
raciocínio, habilidades, emoções, comunhão com Deus, autoconsciência,
capacidade de se comunicar / linguagem e livre arbítrio. O problema em
se definir a imagem por quaisquer dessas qualidades é que, por um lado,
seres não-humanos como os animais possuem algumas dessas
habilidades, embora não no mesmo nível dos humanos. Se qualquer
animal em qualquer lugar, seja em que tempo for, tiver aprendido
qualquer coisa contrária ao instinto, ou se comunicar de forma
inteligente (conosco ou dentro de sua espécie), ou mostrar uma resposta
emocional (novamente para nós ou outra criatura), esses itens devem
entrar na criação da imagem. Sabemos que certos animais possuem
essas habilidades, pois há pesquisas cuidadosamente conduzidas no
campo da cognição animal. A inteligência artificial está perto de
resultados similares. E se inteligência extraterrestre for descoberta,
também poderá destruir tais definições.

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Definir a criação da imagem como quaisquer atividades é algo
errado. Isso me leva de volta à minha afirmação pró vida. A posição pró
vida é baseada na proposição de que a vida humana (e dessa maneira, a
pessoalidade) começa na concepção (o momento em que o óvulo é
fertilizado pelo espermatozoide). O zigoto unicelular dentro do útero
feminino, os quais os pró vida acreditam ser uma pessoa humana, não é
autoconsciente; não tem inteligência, processos de pensamento racional,
ou emoções; ele não pode falar ou se comunicar; e não pode ter
comunhão com Deus ou orar; e ele não pode exercer seu arbítrio ou
responder à consciência. Se vocês desejam argumentar de que essas
coisas estão ali de forma potencial, então isso significa que ali existem só
uma pessoa em potencial. E na verdade essa é a posição dos pró-escolha.
Pessoalidade potencial não é uma pessoalidade real. Esse tipo de
pensamento leva a entender que o aborto não é um assassinato até que
a pessoalidade seja alcançada, e é assim que quase todos os pró-escolha
iriam certamente considerar acontecer só após o nascimento.
Até mesmo a ideia da alma falha nos testes da existência e da
singularidade. Essa noção é derivada do tradicional pensamento de
Gênesis 2:7 na versão do Rei James da Bíblia (“e o homem se tornou uma
alma vivente”). A palavra hebraica para “alma” é nephesh. De acordo
com a Bíblia, os animais também possuem nephesh. Por exemplo, em
Gênesis 1:20, quando lemos que Deus fez bandos de “criaturas vivas”, o
texto hebraico sobre “criaturas” é nephesh. Gênesis 1:30 nos fala que os
“nephesh viventes” são os animais.
O termo nephesh nessas passagens significa vida consciente ou
vida animada (o oposto a algo como a vida de uma planta). Os humanos
compartilham uma consciência básica com certos animais, embora a
natureza dessa consciência varie amplamente.
Também não podemos apelar ao ser espiritual como significado
da imagem criada. A palavra nephesh que mostramos é usada de
maneira intercambiável com a palavra hebraica para espírito (ruach).
Temos exemplos disso em 1 Samuel 1:15 e Jó 7:11. Amos os termos falam
sobre uma vida interior onde o pensamento, a razão e as emoções
acontecem, junto com seu uso em atividades como orar e tomar decisões.
O ponto é que o VT não faz distinção entre alma e espírito. Todas essas
35
qualidades associadas com o espírito requerem função cognitiva, e dessa
forma não são relevantes até que a formação do cérebro (e seu uso) no
feto.
Então como vamos entender a criação da imagem divina de
maneira que ela não se tropece sobre esses problemas e ainda assim se
alinhe com a descrição de Gênesis? A gramática hebraica é a chave. O
“pulo do gato” é o significado da preposição à em respeito à frase “à
imagem de Deus”. Em português usamos a preposição à para
denotarmos muitas ideias diferentes. Isso é, à nem sempre significa a
mesma coisa quando a usamos. Por exemplo, se eu disser: “coloque as
louças à pia”, estou usando a preposição para denotar localização. Se eu
disser: “Quebre o espelho aos pedaços”, estou usando o aos para denotar
o resultado de uma ação. Se eu disser: “Eu trabalho à educação”, estou
usando a preposição para denotar que trabalho como um professor ou
agende educacional.
Esse último exemplo nos direciona ao que a preposição hebraica
traduzida como à significa em Gênesis 1:26. A humanidade foi criada
como a imagem de Deus. Se pensarmos nessa criação como um verbo ou
função, essa tradução faz sentido. Fomos criados à imagem de Deus,
para sermos a sua imagem. Isso é o que somos por definição. A imagem
não é uma habilidade que temos, mas um status. Somos os
representantes de Deus na terra. Ser humano é ser a imagem de Deus.
É por isso que Gênesis 1:26-27 é seguido pelo que os teólogos
chamam de “mandato de domínio” no versículo 28. Esse versículo nos
informa que Deus deseja que sejamos Ele nesse planeta. Temos que criar
mais imagens (“sede férteis e multiplicai-vos ... povoai”) para subjugar a
terra se utilizar de suas fontes e manipulá-la para o benefício de todas as
imagens humanas (“sujeitai...dominai”).
AS DUAS FAMÍLIAS E CONSELHOS DE DEUS
Entendendo que somos a imagem de Deus na terra nos ajuda a
absorver os plurais em Gênesis 1:26 e a mudança para a linguagem no
singular no próximo versículo. Deus criou a humanidade sozinho para
funcionarmos como seus administradores na terra. Mas ele também
criou os outros elohim do reino invisível. Eles também são como Ele. Eles
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realizam a Sua vontade naquele reino, agindo como seus representantes.
Eles são o seu conselho celestial no mundo invisível. Nós somos o
conselho e administração de Deus neste reino. Consequentemente, os
plurais nos informam que ambas as famílias de Deus, a humana e a não
humana, compartilham o status da imagem, embora os reinos sejam
diferentes. Assim na terra, como no céu.
Essa teologia bíblica configura um pensamento para
entendermos outras passagens e conceitos em ambos os testamentos. A
lógica da idolatria da qual falamos mais cedo se torna ainda mais irônica.
Os humanos depois da queda recorrerão à fabricação de objetos de
madeira e pedra que devem cerimonialmente animar para trazer a sua
deidade para dentro do artefato. Mas desde o início, Deus criou as suas
próprias imagens, a humanidade, homem e mulher. Seu desejo era o de
viver entre eles, e para eles para governar e reinarmos com Ele.
Depois da queda esse plano não foi alterado. Eventualmente,
Deus iria decidir habitar junto aos humanos, através de seu Espírito. A
linguagem descreve os crentes como filhos ou crianças de Deus (João
1:12; 1 João 3:1-3), ou como “adotados” na família de Deus (Gálatas 4:5;
Efésios 1:5) não por acidente e nem de maneira pragmática. Isso reflete
a visão original de Gênesis. E uma vez que sejamos glorificados, as
famílias dos dois conselhos serão uma só, um novo Éden. Descobriremos
mais sobre todos esses temas com o decorrer do livro.
Isso é que é o Éden ... assim na Terra, como no céu. A intenção
original se torna cada vez mais clara, uma vez que entendamos o antigo
conceito do Éden.

37
CAPÍTULO 06
JARDINS E MONTANHAS
Aprendemos que o VT descreve duas famílias originais de Deus,
uma humana e outra não humana. Essas duas famílias foram criadas
como representativas de Deus para servi-Lo em diferentes reinos. Nesse
capítulo exploraremos como as descrições do Éden reforçam esses
conceitos.
Normalmente pensamos no Éden como é descrito em Gênesis
2:8, o primeiro lugar que os humanos chamaram de lar: “Yahweh Deus
plantou um jardim no Éden no oriente, e lá pôs o homem que formou”.
Mas a descrição do Éden como o lar da humanidade desvia a nossa
atenção do status primário do Éden.
Éden era a casa de Deus na terra. Era a Sua residência. E onde o
Rei vivia, seu conselho se reunia. Como leitores modernos, vão vemos
como esse entendimento é telegrafado no texto bíblico. Leitores antigos
não perdiam nada disso.
O CONTEXTO ANTIGO
O Éden só pode ser propriamente entendido à luz da visão
mundial que os escritores bíblicos compartilhavam com as outras
pessoas do antigo Oriente Próximo. Como Israel, as pessoas do antigo
Egito e Mesopotâmia, por exemplo, também acreditavam num mundo
espiritual invisível que era governado por um conselho divino. As
moradas divinas dos deuses, os lugares que eles viviam e onde eles se
encontravam para lidar com as coisas do mundo humano, eram
mostradas das mais variadas formas. Duas das mais comuns eram
jardins e montanhas. O Éden é descrito como ambos no VT.
O povo antigo achava que os seus deuses viviam em jardins
luxuriantes ou montanhas por razões simples. Faz sentido que os deuses
teriam o melhor estilo de vida pois, bem, eles são deuses. Celebridades
cósmicas não podem simplesmente viver como nós.
O antigo Oriente Próximo era de uma cultura agrária
primariamente, onde a maioria das pessoas subsistiam do dia-a-dia, da
38
mão para a boca. Os poucos que não viviam dessa forma era reis ou
sacerdotes, e pensando como os antigos pensavam, esses poucos foram
escolhidos pelo seus elevados status pelos deuses. O ambiente era quente
e árido. A vida dependia de se encontrar água e usá-la apropriadamente.
É por isso que as primeiras civilizações do mundo foram fundadas ao
longo de rios (o Nilo, Tigre, Eufrates). É claro que os deuses viviam num
lugar onde a água era abundante, onde a vegetação que supria a vida e
as frutas cresciam em todos os lugares, onde havia abundancia de
animais e esses eram cuidados até ficarem gordos. Os deuses viviam em
lugares onde a escassez era algo inconcebível. O paraíso.
Os picos das montanhas era o domínio dos deuses, pois nenhum
humano viveria ali. Os tempos antigos não eram como os dias de hoje.
As pessoas não escalavam montanhas por recreação. Eles não tinham
equipamentos para chegar longe se tentassem. As montanhas eram
remotas e proibidas, os lugares perfeitos para deuses se manterem longe
dos pobres humanos. Os picos das montanhas tocavam os céus, os quais
eram obviamente o domínio dos deuses.
Esse tipo de pensamento em parte explica porque os templos do
Egito eram esculpidos e pintados com imagens de jardins luxuriantes,
ou porque as pirâmides e zigurates eram construídos. Essas estruturas
eram montanhas feitas por mãos humanas que serviam como portais
para o mundo espiritual, o reino dos deuses, na vida ou na morte. Elas
eram metáforas em pedra.
UGARÍTICO ANTIGO
Para nosso propósito, entretanto, foi a menos grandiosa
civilização antiga de Ugarit, uma cidade-estado na antiga Síria, logo ao
norte de Israel, que é particularmente relevante.
O sítio onde Ugarit foi descoberta data de 1928 e escavada nas
décadas seguintes. Um dos maiores achados foi uma biblioteca contendo
milhares de tábuas de barro, aproximadamente 1400 numa linguagem
alfabética (hoje chamada de Ugarítico) que era o mais próximo do
hebraico bíblico do que qualquer outra língua antiga. O vocabulário e a
gramática eram, em muitas instâncias, virtualmente idênticos.

39
Estudiosos aprenderam muito com essa biblioteca, tanto sobre
ugarítico, como o conteúdo do VT. A deidade chefe de Ugarit era El, um
dos nomes que aparecem no VT para o Deus de Israel. El tinha um
conselho divino cujos membros eram os “filhos de El”, e ele tinha um co-
regente, Baal. Uma vez que as tarefas de El e Baal algumas vezes
pareciam se sobrepor, e uma vez que Ugarit era geograficamente muito
perto de Israel, dá para ver que a adoração a Baal era um problema em
Israel. As descobertas em Ugarit colocou toda essa história do VT em
contexto.
El e Baal eram, pelo menos, extremamente diferentes em seus
comportamentos quando comparados a Yahweh de Israel. Mas a
literatura de Ugarit provou ser bem esclarecedora em respeito a outras
coisas, especialmente onde El, Baal e o conselho divino de Ugarit viviam
e se encontravam. Em Ugarit, o conselho divino tinha três níveis: a
autoridade maior (El, que realizava a maior parte do seu governo através
de um co-regente vizir, Baal), os “filhos de El”, e deuses mensageiros
(mal’akim).
O conselho de El se encontrava numa montanha ou num jardim
luxuriante. Eles não são lugares diferentes. Ao invés disso, o mesmo
lugar era descrito de duas formas diferentes. A morada de El tinha um
suprimento de água abundante, pois se situava na “fonte de dois rios” no
“meio das fontes das duas profundezas”. O conselho divino se
encontrava num lugar chamado Tsapanu, os picos remotos do Norte
(tsapanu significa “norte”).
As reuniões do conselho eram tidas nas “tendas de El” ou nas
“tendas do santuário”, onde os decretos eram dados. As vezes o palácio
de Baal era descrito, com seus “tijolos pavimentados” que dava à sua casa
“a clareza do lápis lazúli”.
A MORADA DE YAHWEH
Tudo isso soará familiar a alguém que já leu o Velho Testamento
com atenção. A Bíblia hebraica usa essas mesas descrições para a morada
e a sala do trono de Yahweh. E onde Yahweh está, ele está cercado pela
sua assembleia celestial, pronta para conduzir os negócios (Isaías 6, 1
Reis 22:13-28). O VT possui uma estrutura de conselho em três níveis
40
como em Ugarit. Yahweh está no topo. Sua família celestial (“filhos de
Deus”) são os próximos na hierarquia. O nível mais baixo é reservado
para os elohim mensageiros, os mal’akim (a palavra traduzida como
“anjos”).
A estrutura da tenda do Tabernáculo e a Tenda da Comunhão,
ambos são mencionados através dos livros de Êxodo e Juízes, são
paralelos claros aos lugares onde Deus habita e escreve seus decretos.
Yahweh também pode ser encontrado nas montanhas (Sinai ou Sião).
Em Salmos 48:1-2, Jerusalém, a cidade de Deus, é dita estando
localizada nos “picos do Norte” (tsaphon em hebraico). O Monte Sião é
a “montanha da assembleia”, novamente localizada nos “picos do Norte”
(Isaías 14:13). No Sinai, Moisés e os outros viram o trono do Deus de
Israel, sob cujos pés havia um pavimento “como tijolos de safira e como
a própria claridade dos céus” (Êxodo 24:9-10).
O jardim do Éden, é claro, é um luxo, um lugar cheio de água
(Gênesis 2:5-14). Ezequiel 28:13 menciona o jardim do Éden (“jardim de
Deus”), mas também adiciona a descrição de que o jardim de Deus é “a
sagrada montanha de Deus” (Ezequiel 28:14). Nós naturalmente
pensamos na montanha de Deus como o Monte Sinais ou o Monte Sião.
Quando temos a imagem do jardim, este último é descrito em termos
Edênicos. Como o Éden, o Monte Sião também é descrito como uma
habitação com muitas águas (Isa 33:20-22; Ezeq 47:1-12; Zacarias 14:8;
Joel 3:18). Seja Sinai ou Sião, a montanha de Deus é, em efeito, o seu
templo.
IMPLICAÇÕES
Um antigo Israelita teria aprendido que o Éden era a morada de
Deus e o lugar onde Deus e seu conselho dirigiam os negócios da
humanidade. A imagem é completamente consistente em como os
vizinhos de Israel pensavam sobre seus deuses. Mas na teologia bíblica,
havia uma mensagem adicional.
Como veremos adiante nos próximos capítulos, a versão bíblica
do conselho divino na morada divina incluía uma presença humana. A
mensagem teológica é a de que o Deus de Israel criara esse lugar não
apenas como seu próprio domínio, mas porque ele deseja viver entre seu
41
povo. Yahweh deseja um reinar em sua nova Terra que Ele criou, e esse
governo será compartilhado com a humanidade. Uma vez que o conselho
divino é também onde está Yahweh, ambas as famílias deveriam
funcionar juntas. Se a queda não tivesse acontecido, a humanidade teria
sido glorificada e estaria fazendo parte do conselho.
Isso não é especulação. No último capítulo nós vimos o início da
ideia teológica de que os humanos são filhos de Deus. Era a intenção
original de Deus fazer deles parte de sua família. A falha no Éden iria
alienar Deus do homem, mas Deus daria uma via para a salvação e trazer
os crentes de volta à sua família (João 1:12, 1 João 3:1-3). Nós também
vimos a presença da humanidade mostra que o desejo original de Deus
era para seus filhos humanos participarem de seu governo. Esses dois
tópicos andam através do VT e criam o contexto do qual os escritores do
Novo Testamento irão falar sobre o reino e a glorificação dos crentes.
Essas são ideias que iremos desenvolver nos capítulos futuros.
Mais um versículo sobre o Éden, um que vai nos jogar no próximo
capítulo: o Éden é descrito em Ezequiel 28:2 como “a cadeira dos
deuses”. A frase deveria ser familiar aos leitores modernos. Ela fala de
uma autoridade governamental (“cadeira do prefeito”; “cadeira do
congresso”). As palavras de Ezequiel nos fazem atentar ao Éden como
uma cadeira de autoridade e ação. Havia trabalho a ser feito. Deus tinha
planos para todo o planeta, e não apenas o Éden.

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CAPÍTULO 07
ÉDEN: COMO NENHUM LUGAR NA TERRA
Deus não age sem propósito. Ele criou as hostes celestiais para
que eles fizessem a sua vontade. Será que Ele os teria criado para
preencher alguma necessidade dele? Não. Um ser completo e perfeito
não possui deficiências. Deus não precisa de um conselho, mas ele usa
um. Da mesma maneira, Deus não precisa de humanos para servirem de
mordomos de sua criação ou, mais tarde, revelar que o Messias já veio.
Mas essas foram suas escolhas. Deus se deleita criar procuradores para
representa-Lo e realizar os seus desejos. Suas decisões nesse sentido
possuem ramificações.
A TERRA NÃO ERA O ÉDEN
A primeira observação é uma que se mostra transparente no texto
bíblico, mas, de alguma forma, mal-entendida pela maioria: O Éden não
era o mundo inteiro. É importante estabelecermos que o Éden era só
uma parte de toda a criação terrestre e não toda a Terra. Essa distinção
se tornará importante nos capítulos futuros. O texto nos fala sobre isso
de várias formas.
O Éden era, na verdade, um pequeno ponto na Terra. Sua
localização era circunscrita por marcadores geográficos (Gênesis 2:8-
14). No último capítulo nós vimos que o conselho em Ugarit se
encontrava em um jardim onde dois rios se juntavam (“no meio das
fontes das duas profundezas”). O Éden é descrito com quatro fontes de
água:
E saía um rio do Éden para regar o jardim; e dali se dividia e se
tornava em quatro braços. 11O nome do primeiro é Pisom: este é o
que rodeia toda a terra de Havilá, onde há ouro; 12e o ouro dessa
terra é bom: ali há o bdélio, e a pedra de berilo. 13O nome do segundo
rio é Giom: este é o que rodeia toda a terra de Cuche. 14O nome do
terceiro rio é Tigre: este é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto
rio é o Eufrates. (Gênesis 2:10-14)

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Só essa descrição já nos diz de maneira clara que a terra não era
o Éden. Há outros indicadores.
Em Gênesis 1:26-27, Deus fez a humanidade a sua imagem, seus
representantes neste novo domínio. Essa visão funcional da imagem se
torna clara nos mandamentos do versícul0 28:
Então Deus os abençoou e lhes disse: Frutificai e multiplicai-
vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre
as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra.
Notem que o versículo 28 diz que a terra precisava ser
preenchida. Isso não se refere ao Éden. O Éden ainda nem sequer havia
aparecido na história de Gênesis. Sua primeira menção só vem em
Gênesis 2:8:
Então plantou o Senhor Deus um jardim, da banda do oriente,
no Éden; e pôs ali o homem que tinha formado.
O jardim do Éden é dito que ficava no oriente. Essa indicação de
direção nos informa que existiam outras partes na terra. Deus “plantou”
esse jardim. Sabemos de Gênesis 1 que a terra seca (chamada “terra”) já
existia. Tinha que ser assim para que Deus plantasse um jardim nela no
oriente.
Gênesis 2:15 também é de nosso interesse. O homem que Deus
fez é colocado no jardim por uma razão: “E Yahweh Deus pegou o
homem e o colocou no jardim do Éden para cultivá-lo e mantê-lo”. O
trabalho do homem era o de tomar conta do jardim. Anteriormente, em
Gênesis 1:28, sua função era a de “frutificar e se multiplicar, e encher a
terra e sujeita-la, e dominar...” É claro que o homem precisava de uma
mulher para isso, mas ela ainda não havia sido criada em Gênesis 2
quando Deus colocou o homem no jardim. Cultivar o jardim e sujeitar a
terra não eram as mesmas tarefas.
Gênesis 1 e 2 não têm a intenção de serem cronológicos em suas
relações. O que eles revelam é que a tarefa original do homem era a de
cuidar do jardim, onde ele vivia (Gên 2). Depois que ele tivesse uma
parceira (Gên 1), Deus diz que ambos (os mandamentos estão no plural

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em hebraico) frutificariam, multiplicariam, preencheriam a terra,
sujeitá-la-iam, e exerceriam domínio sobre todas as criaturas.
Podemos ver que as tarefas da humanidade, tomadas
concomitantemente com as primeiras observações que requerem que o
Éden e a Terra sejam diferentes, distinguem o Éden e a Terra. Não faz
sentido sujeitar o jardim de Deus. Ele já é o que Deus quer que ele seja.
Não há nenhum lugar na terra como ele. Se ele precisasse ser sujeitado,
isso implicaria imperfeição. Isso é algo que não pode ser dito sobre o
Éden, mas era verdade em relação ao resto do mundo. É claro que Deus
estava feliz com toda a criação. Ele pronunciou isso “muito boa” (Gên
1:31). Mas “muito boa” não é a mesma coisa que perfeita.
Então, o Éden e a Terra devem ser distintos, uma vez que, depois
da queda, Adão e Eva foram expulsos dele e tiveram que viver em outro
lugar. Ao menos que você acredite que eles tenham sido mandados para
o espaço sideral, vocês têm que entender que o Éden e a Terra eram
diferentes.
Observar essa distinção afeta uma ampla gama de conceitos
bíblicos e nos dá soluções para alguns poucos problemas teológicos
chatos. Mas estou preocupado apenas com só um problema aqui. A
distinção nos ajuda a ver que a tarefa original da humanidade era a de
transformar toda a Terra no Éden.
Adão e Eva viviam no jardim. Eles cuidavam dele. Mas o resto da
Terra precisava ser sujeitada. Isso não era na horrível, pois na verdade
Gênesis 1 nos diz que ela era habitável. Mas ela não era o que o Éden era.
O mundo inteiro precisava ser como o lar de Deus. Ele poderia fazer o
serviço sozinho, mas Ele escolheu criar as imagens humanas para fazê-
lo por Ele. Ele baixou o decreto; eles tinham que fazer isso acontecer.
Eles assim o fariam ao se multiplicarem e seguirem a direção de Deus.
O Éden é onde a ideia do reino de Deus começa. E não é
coincidência de que a Bíblia termine com a visão de uma nova Terra
Edênica (Apocalipse 21-22).

45
PROCLAMAÇÃO E PARCERIA
O relacionamento estabelecido entre Deus e a humanidade, antes
e depois da queda, envolve uma participação genuína e significativa por
parte das imagens humanas de Deus. Isso é mais claramente visto
quando Deus age através de figuras como Moisés, Josué, Davi, Salomão,
os profetas e os apóstolos. Mas este padrão se estende a nós, todos os
crentes. Não há nada que façamos que o próprio Deus não poderia fazer
ele mesmo. Mas Ele não escolheu esse método. Ao invés disso, ele nos
diz qual é o desejo dele e comanda seus filhos leais a fazerem a obra.
Vimos num capítulo anterior que o status de imagem é algo
compartilhado pelos seres humanos e não humanos, seres divinos. Esse
fato é refletido na linguagem plural de Gênesis 1:26, quando Deus disse:
“Façamos a humanidade”. As formas seguintes no singular nos guiam a
concluir que a humanidade foi criada por um único criador, o Deus de
Israel, o qual criou os humanos como sua imagem. A linguagem plural
anterior era uma pista de que a outra família de Deus, os filhos divinos
que Deus criou algum tempo antes, também são imagens do seu criador.
Dada essa conexão e cenário, a natureza da participação do
atuante relacionamento entre Deus e suas imagens humanas não nos é
surpresa. O conselho celestial trabalha sob o mesmo tipo de arranjo.
Deus decreta a sua vontade de a deixa para ser realizada pela seus
administrativos. Isso é aparente nessas duas passagens do VT.
1 Reis 22 nos dá uma rápida revelação de um encontro do
conselho divino. Os primeiros quinze versículos preparam o contexto.
Depois de três anos de paz entre a Síria e Israel, o Rei Jeosafá de Judá, o
reino israelita do Sul, fez uma visita a Acabe, o rei de Israel, o reino do
Norte que se separara das tribos leais à dinastia de Davi. Os reis do Norte
são descritos no VT como espiritualmente apóstatas. Acabe era
certamente o pior deles.
Acabe queria que Jeosafá se juntasse a ele num plano para
quebrar a paz atacando Ramote-Gileade, que estava sob controle sírio.
Ramote-Gileade era parte da terra da tribo original de Gade e um cidade
de refúgio Levita (Josué 20:8; 21:38; 1 Crônicas 6:80; Deut 4:43). Ela
não pertencia legitimamente aos sírios. Essa era a contenda de Acabe.
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Jeosafá concordava com as razões dele, mas queria saber Yahweh
aprovaria. O rei apóstata de Israel convocou quatrocentos dos seus
profetas, que disseram aos reis que eles venceriam a batalha.
Suspeitando disso, Jeosafá perguntou se tinha ali outros profetas para
serem consultados. Sim, existe um, respondeu Acabe, e não escondeu o
ódio que tinha desse profeta. Micaías, o profeta de Yahweh, sempre disse
a Acabe coisas que ele não queria ouvir, como a verdade.
Miquéias foi convocado e perguntado se os reis deveriam ir para
a guerra. Primeiramente ele escarneceu Acabe, pretendendo seu como
os outros profetas, mas Acabe não era estúpido. Aqui é o que acontece
depois:
16Diante disso o rei lhe questionou: “Quantas vezes terei que te
fazer jurar que não me falarás senão a verdade em o Nome do
SENHOR?” 17Então o profeta declarou: “Vi todo o Israel disperso por
muitas colinas, como ovelhas que não têm pastor; e disse Yahweh:
‘Estes não têm senhor; volte cada um em paz para sua casa!” 18E o rei
de Israel afirmou a Josafá: “Eu não te adiantei que ele não profetizaria
o bem a meu respeito, mas somente o mal? 19E Micaías acrescentou:
“Ouve a Palavra de Yahweh! Vi o SENHOR assentado no seu trono, e
todo o Exército celestial em pé junto a ele, à sua direita e à sua esquerda.
20Então Yahweh indagou: ‘Quem enganará Acabe a fim de que ataque
Ramote-Gileade e encontre a morte lá?’ E alguns espíritos davam uma
interpretação, mas outros sugeriam ideias diferentes, 21até que,
finalmente, um espírito colocou-se diante de Yahweh e declarou: “Sou
eu que haverei de enganá-lo!” E Yahweh, o SENHOR, lhe questionou:
“De que modo pretendes realizar isso?” 22Ao que ele respondeu: “Eu
sairei e serei um espírito mentiroso na boca de todos os profetas do rei”.
Ao que Yahweh, o SENHOR afirmou: “Tu o enganarás e ainda
prevalecerás; sai e faze o que deves fazer!” 23Agora, portanto, Yahweh
colocou um espírito mentiroso na boca de todos estes teus profetas; mas
Yahweh é quem pronunciou contra ti a desgraça!” (1 Reis 22:16-23).
Nessa passagem, especificamente nos versículos 19-22, temos a
descrição de um encontro entre deus e seu conselho divino. O versículo
20 nos diz claramente que Deus decidiu que era a hora de Acabe morrer.
Deus então perguntou ao exército celestial que estava em reunião sobre
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como a morte de Acabe deveria acontecer. Deus decretou que Acabe iria
morrer em Ramote-Gileade, mas como ele iria morrer não foi decretado.
O conselho debateu o assunto até que um dos seres espirituais se
apresentou com uma proposta (versículos 21-20): “Eu sairei e serei um
espírito mentiroso na boca de todos os profetas do rei”. Após ouvir isso,
Deus disse (parafraseando): “Muito bom, sei que isso vai funcionar, vá
lá e assim o faça”.
Existem outras passagens desse tipo mostrando decisões sendo
tomadas pelo conselho divino, onde o decreto de deus a uma genuína
participação por parte de seu conselho são ambos evidentes.
Em Daniel 4, Nabucodonosor relata um sonho onde ele viu uma
enorme árvore que chegava até o céu. Nabucodonosor disse a Daniel que
no sonho ele viu um sentinela, um termo para ser divino (um “anjo”)
nesse capítulo de Daniel (Dan 4:13; 17; 23). O sentinela diz que a árvore
será cortada abaixo, deixando só o seu toco. A árvore e o toco são
símbolos para Nabucodonosor, o qual, anunciou o sentinela, irá perder
ficar com a mente confusa e se comportar como um animal (Dan 4:13-
16).
No versículo 17, os leitores descobrem quem decretou esse
destino a Nabucodonosor:
17E esta sentença é, pois, proclamada por sentinelas; os seres
angelicais declaram o veredito, a fim de que todos os que vivem saibam
que Elah, o Altíssimo domina sobre todos os reinos dos seres humanos
e os dá a quem quer, e quando deseja; e pode decidir colocar no poder
o mais simples dos homens!” (Daniel 4:17).
O que temos de fascinante aqui é que a fonte do decreto dada
pelos sentinelas, mas a soberania pertence ao singular Altíssimo. Mais
tarde, quando Daniel interpreta o sonho, ele diz:
24Sendo assim, eis a interpretação do teu sonho, ó rei, e este é o
decreto que Elah, o Altíssimo, expediu contra vossa majestade, meu
senhor (Daniel 4:24).

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Aqui vemos que a autoridade final por trás do decreto é Deus, o
Altíssimo, e ainda assim o sentinela que entrega o decreto no versículo
17 disse: “Esta sentença é, pois, proclamada por sentinelas”. Tanto Deus
quanto seis agentes divinos estavam envolvidos na decisão.
Daniel ainda nos dá mais detalhes enquanto continua. Notem a
ênfase em negrito cuidadosamente:
25Tu (Nabucodonosor) serás expulso do convívio com os seres
humanos e viverás com os animais silvestres; comerás capim como os
bois e serás molhado pelo orvalho do céu. Passarão sete períodos de
tempo até que admitas que o Altíssimo domina sobre os reinos de
todos os homens e os dá a quem quer, e quando deseja. 26Todavia, a
ordem para deixar o resto do tronco da árvore com as raízes significa
que o teu reino te será restituído quando reconheceres que Shâmayin,
os Céus, dominam. (Daniel 4:25-26).
O versículo 25 diz de forma bem clara que o Altíssimo é soberano.
Está no singular. A frase “os céus dominam” é interessante, pois a
palavra aramaica traduzida como céu (shâmayin) é um plural e é
acompanhada por um verbo no plural. A pluralidade de shamayin pode
apontar tanto para os membros do conselho ou o conselho como um
coletivo. Em qualquer evento, a linguagem é sugestiva de um
intercâmbio entre o conselho e o Altíssimo no início de Daniel 4.
O fato é que Deus domina sobre o reino celestial e o reino
terrestre com a genuína assistência das suas imagens representantes. Ele
decreta e eles executam os seus mandamentos. Esses pontos são claros.
O que talvez seja menos claro são que os meios pelos quais a vontade de
Deus seja executada e cumprida é aberta, as imagens podem tomar
decisões livres para o cumprimento da vontade de Deus. Deus decreta os
fins, mas meios podem (e aparentemente são às vezes) ser deixados para
as imagens.
Esse balanço entre soberania e livre arbítrio é essencial para o
entendimento do que aconteceu no Éden. As escolhas feitas pelos seres
humanos e não humanos descritas em Gênesis 3, não foram coercivas
nem necessárias para que Yahweh cumprisse seu grande plano. O risco
em se criar portadores da imagem que podem livremente escolher se
49
rebelar, era algo que Deus previa, mas não decretou. Examinaremos
tudo isso em mais detalhes no próximo capítulo.

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CAPÍTULO 08
SÓ DEUS É PERFEITO
Como na história da criação, a história da queda em Gênesis 3 é
um daqueles episódios na Bíblia que todos aqueles que tiveram um
mínimo de contato parecem conhecer. Mas existe muito mais nessa
história do que parece. Nos próximos capítulos estarei dando atenção a
alguns detalhes frequentemente subestimados nessa história e as
questões que eles levantam.
O que cobrimos nos capítulos anteriores é um entendimento
crucial para entendermos a queda. O Éden era tanto a morada divina
quando o centro nervoso do plano de Deus para a Terra. A visão mundial
do escritor bíblico era: Onde Yahweh está, assim também está o seu
conselho.
Yahweh anunciou sua intenção em criar a humanidade como sua
imagem (Gên 1:26). Os membros do conselho ouviram que esses
humanos, os novos membros da família de Yahweh, teriam a tarefa de se
espalharem pela terra, avançando o domínio do reino de Deus. Eles eram
a escolha de Yahweh para serem os reis-herdeiros sobre um Éden global
sob sua autoridade.
Veremos em breve que um ser divino ficou contra isso. Mas como
poderia existir problema no paraíso? Como as coisas poderiam ter dado
tão errado?
O livro de Jó contém algumas das pistas.
O PANO DE FUNDO
O livro de Jó é ímpar. E é por isso que ele é tão interessante. A
história começa com uma cena do conselho divino, os filhos de Deus
aparecem perante Yahweh (Jó 1:16). Durante o encontro do conselho, o
satanás aparece. Sua hierarquia não é clara. A linguagem é ambígua com
respeito se ele é do mesmo nível dos filhos de Deus ou está na cena como
um servo oficial do conselho. Parece ser o status mais baixo, dado o que
sabemos sobre sua função.

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Eu uso a frase “o satanás” de maneira deliberada. O hebraico
(satanás) significa algo como: “adversário”, “perseguidor” ou
“desafiador”. Ela fala sobre uma função legal oficial dentro de um corpo
governante, nesse caso, o conselho de Yahweh. Quando Yahweh
pergunta ao satanás onde ele estava, aprendemos que sua tarefa envolve
a investigação do que está acontecendo na terra (Jó 1:7). Ele é, por assim
dizer, os olhos e ouvidos de Yahweh no solo, reportando o que ele via e
ouvia.
O satanás em Jó 1-2 não é um vilão. Ele está fazendo a sua tarefa
dada a ele por Deus. O livro de Jó não identifica o satanás nessa cena
como a serpente de Gênesis 3, a figura conhecida no Novo Testamento
como o demônio. O VT nunca usa a palavra satanás para a figura da
serpente de Gênesis 3. Na verdade, a palavra satanás não é um
substantivo pessoal apropriado no VT.
Os estudiosos do VT sabem muito bem disso. A conclusão deles é
que satanás não é um nome pessoal próprio no VT, e a gramática
hebraica dá suporte a isso. Como no português, o hebraico não liga o
artigo definido (a palavra “o”) a substantivos pessoais próprios. Os
oradores em português não se referem a si mesmos (ou outras pessoas)
com frases como “o Tiago” ou “a Sandra”. Eu não sou “o Mike”. O
português não usa o artigo definido com nomes pessoais. Nem o
hebraico.
A maioria das 27 ocorrências de satanás a Bíblia Hebraica, no
entanto, possuem o artigo definido, incluindo todos os lugares onde os
leitores em português presumem que o demônio está presente (Jó 1:6-9;
12; 2:1-4; 6-7; Zacarias 3:1-2). O satanás descrito nessas passagens não
é o demônio. Ao invés disso, é um perseguidor anônimo, por assim dizer,
cumprindo um papel no conselho de Yahweh, trazendo uma notícia de
acusação. As instâncias de satanás no VT que não possuem o artigo
definido também não se referem ao demônio ao à figura da serpente.
Essas ocorrências descrevem tanto humanos ou o Anjo de Yahweh, o
qual é ocasionalmente enviado por Deus para se “opor” a alguém ou
executar julgamento (Num 22:22-23).

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A função do ofício do satanás é o motivo pelo qual, mais tarde,
os escritos judaicos começam a adotá-lo como um nome próprio para a
figura da serpente de Gênesis 3 que trouxe a ruína ao Éden. Essa figura
se opôs às escolhas de deus para suas imagens humanas. A figura
obscura de Gênesis 3 era eventualmente ensinada como a “mãe de todos
os adversários”, e então o rótulo satanás ficou ligado a ele. Ele merece.
O ponto aqui é só que o VT não usa esse termo para um criminoso divino
do Éden.
Em Jó 1, o satanás e Deus conversam sobre Jó. O satanás se
torna um pouco ousado, desafiando Deus sobre a integridade de Jó.
Conhecemos o resto da história, onde Deus dá ao satanás latitude
suficiente para provar que este estava errado, apesar do preço pago por
Jó.
O início de Jó é de interesse para nós, devido a duas afirmações
que são feitas mais tarde no livro. Em Jó 4, um dos amigos de Jó, Elifaz,
reponde aos lamentos de Jó e deseja a morte (Jó 3:11). Ele não ofereceu
muito conforto. Ele questiona as crenças de Jó, dizendo que ele não fez
nada para merecer sofrer (Jó 4:6), algo que o leitor sabe que é verdade
(Jó 1:8). Elifaz diz em certo ponto:
17‘Pode um ser mortal ser perfeitamente justo diante de Deus?
Pode o ser humano se conservar puro em seus caminhos sob o olhar do
Criador? 18Se Deus não deposita confiança em seus próprios servos,
percebe-se erro em seus anjos e os julga por insensatez, 19quanto mais
aos que habitam em casas de barro, cuja fundação está no pó, e são
esmagados mais facilmente que uma traça! (Jó 4:17-19).
Quem pensas que és, Jó! Um homem não é mais sem culpa do
que seu Criador! Por que Deus o consideraria sem culpa quando ele
também não olha para os seus mensageiros celestiais da mesma forma?
Elifaz ainda repete em Jó 15:14-15:
14Que é o homem, para que seja puro? E o que nasce da mulher,
para que fique justo? 15Eis que Deus não confia nos seus santos, e nem
o céu é puro aos seus olhos; (Jó 15:14-15)

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O que Elifaz diz é significante. Aqui temos duas afirmações
escriturais de que os membros do conselho celestial de Deus são
corruptíveis; eles não são perfeitos.
Isso não é tão terrível à primeira vista. O único Ser realmente
perfeito é o próprio Deus. Deus na verdade nunca disse que Jó era
incorruptível e perfeito, só que ele era sem culpa durante o encontro do
conselho. Deus sabe que Jó poderia, na verdade, falhar, assim como os
seres divinos em seu conselho. Até mesmo os elohim menores não
podem ser completamente confiáveis.
IMAGENS LIVRES
Deus sabe que nenhuma de suas imagens, divinas ou humanas,
podem ser completamente confiáveis. A razão é fácil de se entender.
Embora as imagens sejam como Deus, elas não são Deus. Isso é uma
verdade que sabemos muito bem devido às nossas lutas e experiências
num muito caído.
Sem um livre arbítrio genuíno, as imagens não poderiam
representar Deus de forma verdadeira. Vimos mais cedo que a imagem
de Deus não é um atributo ou habilidade. Ao invés disso, esse é um status
conferido por Deus a todos os humanos, que é o de representar Deus.
Deus criou a humanidade para estender o Éden por toda a terra. Esses
são os mandamentos de Gênesis 1:27, coletivamente referidos pelos
teólogos como o mandato de domínio, é sobre isso. A humanidade
deveria se multiplicar, sujeitar a criação e governar sob a vontade de
Deus. O objetivo era o de cuidar da terra e obter dela as suas riquezas
para o bem-estar das imagens humanas, tudo isso ao mesmo tempo de
se regozijar na presença de Deus.
Como tudo isso se procede no nosso mundo pós queda varia de
pessoa para pessoa. Na nossa experiência, os humanos possuem uma
ampla gama de habilidades diferentes. Alguns nunca vieram a nascer
devido à morte natural ou aborto. Outros manifestam em seus corpos os
efeitos de um mundo que não é o Éden. Alguns seres humanos possuem
defeitos mentais e físicos importantes que os impedem ou limitam a
representarem Deus de acordo com a visão original. E até mesmo
quando somos abençoados com o que consideramos ser uma saúde
54
normal, estamos todos sujeitos a doenças, ferimentos, envelhecimento e
às fraquezas de um mundo sujeito à corrupção. Mas a imagem está ligada
à nossa humanidade. Independentemente de nossa habilidade ou
situação, a vida humana é sagrada exatamente porque nós somos as
criaturas que Deus colocou para representa-Lo na terra.
Os humanos que sobrevivem ao nascimento sem sofrer
limitações importantes, no entanto, são capazes de representar Deus
como na intenção original. Eles farão isso através dos meios de um
espectro de habilidades que temos como humanos. Essas habilidades são
parte de nosso ser como Deus. Elas são atributos os quais
compartilhamos com Deus, tais como inteligência e criatividade. Os
atributos que Deus compartilha conosco são os meios de agirmos como
imagens, não o status da imagem per si. O status da imagem e nossos
atributos estão relacionados, mas não são conceitos iguais.
Um desses atributos é a liberdade, o libre arbítrio que se revela
nas tomadas de decisão. Se a humanidade não tivesse sido criada com
uma liberdade genuína, a representação de Deus não seria possível. Os
humanos não iriam ser um reflexo do seu Criador. Eles não poderiam ser
a imagem exata dele. Deus não é um robô. Somos reflexos de um Ser
livre e não de um autômato cósmico.
Colocando de outra forma, Deus não queria criar imagens que
não fizessem nada. E isso é verdade, até mesmo se uma imagem não
fizesse nada (um feto abortado por exemplo), eles ainda seriam uma
imagem. Mas a intenção original de Deus era a de armar as suas imagens
com o arbítrio e a habilidade de cumprir os seus decretos. Representar a
Deus como suas imagens e possuir o livre arbítrio estão
inextrincavelmente relacionados.
Uma vez que os elohim menores também foram criados como
imagens de Deus, eles também têm que ter livre arbítrio. Tanto imagens
humanas como não-humanas são menores do que o seu Criador. Só Deus
é perfeito na possessão e exercício de seus atributos. Todos os seres
menores são imperfeitos. O único Ser perfeito é Deus. É por isso que as
coisas poderiam e deram errado no Éden.

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Se isso foi verdade até mesmo no Éden, o lugar na terra onde o
conselho estava presente, então estar na presença de Deus não é
garantia de que os seres com livre arbítrio nunca se dispersarão ou
agirão por vontade própria. Só Deus é perfeito. Seres que são menores
do que Deus, sejam humanos ou divinos, não são perfeitos. O potencial
para erro e desobediência é possível por definição. Problemas poderiam
acontecer no paraíso, e é claro que aconteceram. A decisão de Deus de
criar imagens livres envolve esse tipo de risco.
Vocês devem estar pensando que todo o risco era nosso, afinal de
contas, a mundo da humanidade já sofre desde seu início. Mas a única
maneira de não haver riscos envolvidos para Deus é se você definir risco
como a ameaça de se lesionar. Deus não pode se lesionar. Mas ele pode
se entristecer. Ele é comovido pelo pecado e sofrimento humanos (Gên
6:6; Isa 54:6-7). Deus queria se arriscar em ter a humanidade.
O que aprendemos nos deixa com questões importante. Mesmo
sendo o livre arbítrio algo necessário para sermos a imagem e a
representação, risco seria a palavra certa pela decisão de Deus? Se Deus
sabe de todas as coisas que irão acontecer como resultado de sua decisão,
será que ele também não predestinou essas coisas? Mas se ele assim o
fez, como podemos falar sobre livre arbítrio? Adão e Eva teriam sido
realmente responsáveis? E sobre a noção de que eles iriam “conhecer o
bem e o mal” (Gên 3:5) e serem como Deus, isso significa que Deus tem
um pedacinho de mal nele?
Essas questões têm sido há muito tempo debatidas. E posso
surpreendê-los dizendo que todas elas possuem respostas bem simples.
O que vimos nesse e nos capítulos anteriores sobre o Éden, Deus e seu
conselho divino nos preparam para as respostas. Deus não se deleita no
mal e no sofrimento. Ele nem mesmo precisa disse para executar o seu
plano soberano. As complicações se evaporam se nós deixarmos o
próprio texto dizer o que ele tem a dizer. Temos que deixar de lado
nossos sistemas teológicos de lado, responder a essas questões como os
antigos israelitas o teriam feito, e absorver os resultados.

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CAPÍTULO 09
PERIGO E PROVIDÊNCIA
Fechamos o capítulo anterior com uma série de questões. Será
que é apropriado falar sobre as decisões de Deus envolvendo riscos? Se
Deus já soubesse o que iria acontecer, e se ele predestina os eventos,
onde estaria o risco? Talvez Adão e Eva precisassem aprender uma lição
sobre o bem e o mal. É claro que Deus não precisa aprender nada. Mas
como tiramos Deus do gancho moral quando vemos aparecer o pecado e
o mal?
Um antigo israelita teria pensado mais diferente sobre essas
questões do que a maioria dos crentes de hoje. Uma dessas razões é que
temos camadas de tradição que filtram a Bíblia na nossa maneira de
pensar. Já é hora de jogarmos essas camadas para longe.
O DOM DE DEUS
Muitas vezes imaginamos por que Deus simplesmente não acaba
com o mal e o sofrimento na terra. As respostas podem parecer
paradoxais: Ele não pode, pois isso requereria a eliminação de todas as
suas imagens. Mas ele assim o fará no último dia. Para o mal ser
eliminado, a Terra e a humanidade como a conhecemos tem que acabar.
Deus tem uma cronologia, um plano, para o seu desenvolvimento final.
Não poderia haver outra forma, dada sua decisão em criar humanos
presos ao tempo como veículos de seu governo. Mas durante esse
período, experimentamos as maravilhas positivas da vida. Embora Deus
soubesse dos riscos do Éden, ele considerou a existência da humanidade
preferível à nossa ausência eterna.
Apesar do risco do mal, o livre arbítrio é um dom maravilhoso. A
decisão de Deus foi a de puro amor. Entendendo que ela requer apenas
uma consideração das duas alternativas: (1) não ter vida, e (2) ser um
robô sem mente, capaz apenas de obedecer a comandos e responder a
uma programação.
Se nossas decisões fossem todas conhecidas, quão autênticas
seriam essas “decisões” na verdade? Se o amor é conhecido e

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programado, será que é realmente amor? Seriam quaisquer decisões
realmente decisões genuínas? Não seriam. Para uma decisão ser real, ela
deve ser feita contra uma alternativa que pudesse ser escolhida.
Todos nós sabemos a diferença entre liberdade e coerção. O
Imposto de Renda não diz a você que talvez possa pagar suas taxas até o
final de abril. Quando você se comporta de maneira errada, onde estaria
a cura emocional do perdão se a pessoa que você ofendeu tivesse sido
meramente programada para dizer essas palavras, ou coerida a dizê-las?
O livre arbítrio é um dom, apesar do risco.
CONHECENDO O BEM E O MAL
Muitas frases em Gênesis 3:5, 22 que têm quebrado a cabeça de
vários interpretadores, se tornam mais entendíveis à luz do que temos
discutido.
Em Gênesis 3:5, a serpente (do hebraico: nachash) diz a Eva:
“Pois Deus (elohim) sabe que o dia em que ambos comerem dele, então
os seus olhos se abrirão e ambos serão como deuses (elohim),
conhecendo o bem e o mal”. Esse versículo é como Salmos 82:1. A
palavra elohim aparece duas vezes no mesmo versículo. A primeira
instância é singular devido a gramática (o verbo “sabe” está na forma
singular). Enquanto a maior parte das traduções em português
constroem a segunda instância como “Deus”, ela deveria estar no plural
devido ao contexto fornecido por Gênesis 3:22. Esse versículo está
assim: “E Yahweh Deus disse: Vejam, o homem se tornou como um de
nós, conhecendo o bem e o mal”. A frase “um de nós” nos informa que,
assim como em Gênesis 1:26, Deus está falando para os membros do seu
conselho, os elohim. Isso nos diz claramente que a segunda instância de
elohim em Gênesis 3:5 deveria estar no plural.
Isso se encaixa perfeitamente em Salmos 8:5, quando o salmista
nota que a humanidade foi criada “um pouco abaixo dos elohim”. Nós
não somos um “pouco” abaixo de Deus, somos anos-luz mais baixos.
Relativamente falando, a lacuna é menor se assumirmos que a referência
nesse salmo é um plural (“um pouco abaixo do que os elohim). É dessa
forma que o escritor de Hebreus toma essa frase. Em Hebreus 2:7 o

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escritor cita Salmos 8:5 do Septuaginta. Essa tradução possui o plural
“anjos” para elohim, um plural bem claro.
Em Gênesis 3:5, é dito a Eva que ela violou o mandamento de
Deus, ela e Adão se tornariam como os elohim, conhecendo o bem e o
mal. Notem que a frase “conhecendo o bem e o mal”, não é ser capaz do
bem e do mal. Como seres de livre arbítrio, Adão e Eva já eram capazes
de desobedecerem. Como os santos de Deus no conselho, eles eram
imperfeitos. Mas Adão e Eva ainda não haviam experimentado o mal,
seja por sua própria culpa ou pela de outros.
A frase “conhecendo o bem o e mal” com o mesmo vocabulário
em hebraico aparece em outro lugar. Deuteronômio 1:39 diz:
Vossos meninos, entretanto, dos quais dizeis que seriam
tomados como presa, vossos filhos que ainda não sabem discernir entre
o bem e o mal, eles é que lá estarão; Eu darei a terra a eles para que a
dominem.
Os meninos aqui referidos são a geração de israelitas que iriam
surgir depois da geração original que escapou do Egito no Êxodo. Essa
primeira geração havia sido sentenciada por Deus a vagar pelo deserto
por quarenta anos até que morressem pela sua recusa a entrarem na
terra prometida buscada (Números 14). A nova geração não conhecia o
bem ou o mal e teria sua entrada permitida na terra.
O significado é claro de que a segunda geração não era tida como
moralmente capaz dos pecados de seus pais. Mesmo como crianças e
sob a autoridade de seus pais, eles não eram capazes de terem autoridade
em tomar decisões sobre o assunto e, dessa forma, não eram
participantes ativos. Dessa forma eles não eram considerados
responsáveis. Eles eram inocentes.
A mesma perspectiva faz sentido em Gênesis 3. Antes de
conhecer o bem e o mal, Adão e Eva eram inocentes. Eles nunca haviam
tido um desejo, tomado uma decisão consciente para desobedecerem a
Deus. Eles nunca haviam visto um ato de desobediência também.
Quando eles caíram, tudo isso mudou. Aí então eles realmente

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conheceram o bem e o mal, assim como Deus e o resto de seus membros
do conselho celestial, incluindo o nachash (“serpente”).
O MAL E PRESCIÊNCIA
Reconhecer a presciência de Deus e também o livre arbítrio
genuíno da humanidade, especialmente com respeito à queda, levanta
questões óbvias: A queda foi predestinada? Se assim o for, a
desobediência de Adão e Eva foi livre? Como eles são verdadeiramente
responsáveis?
Uma vez que não nos é dito muito em Gênesis como a liberdade
humana funciona em relação aos atributos divinos como presciência,
predestinação e onisciência, temos que dar uma olhada em outro lugar
nas Escrituras por alguma luz. Vamos ler o que temos em 1 Samuel 23:1-
13. Notem o que está destacado com cuidado.
1Disseram a Davi que os filisteus tinham atacado a cidade de Queila e
estavam roubando o trigo que havia sido colhido recentemente. 2Então
Davi consultou a Yahweh, o SENHOR, dizendo: “Devo partir e batalhar
contra esses filisteus?” Ao que o SENHOR lhe respondeu prontamente:
“Vai, ataca os filisteus e salva a cidade de Queila!” 3Entretanto, os
homens de Davi lhe confessaram: “Se aqui em Judá já estamos sentindo
medo, quanto mais ao nos aproximarmos da cidade de Queila e
ficarmos diante do exército dos filisteus?” 4Davi, então, voltou a
consultar Yahweh, e o SENHOR lhe assegurou: “Levanta-te, desce a
Queila, porque Eu entregarei os filisteus nas tuas mãos!” 5Então Davi
e os seus homens foram a Queila, combateram filisteus, mataram
muitos deles e se apoderaram de seus rebanhos, impondo-lhes total
derrota e libertando a população daquela cidade. 6Aconteceu que
Abiatar, filho de Aimeleque, tinha levado o efod, o colete sacerdotal
quando fugiu para se juntar a Davi, em Queila. 7Assim que Saul foi
informado de que Davi havia partido para Queila, exclamou: “Deus o
entregou nas minhas mãos! Davi foi para uma cidade cercada de
muralhas, com portões reforçados, e assim aprisionou-se como quem
cai numa armadilha.” 8Em seguida Saul convocou todos os seus
soldados para a batalha a fim de marchar contra a cidade de Queila e
cercar a Davi e os seus homens. 9Quando Davi recebeu as notícias de
60
que Saul tramava o mal contra ele, disse ao sacerdote Abiatar: “Traze
o colete sacerdotal! Vamos consultar a Deus.” 10Então Davi orou: “Ó
Yahweh, Deus de Israel, o teu servo ouviu dizer que Saul se prepara
para atacar a cidade de Queila e destruir a todos por minha causa! 11Os
líderes de Queila me entregarão em suas mãos? Saul descerá de fato,
como entendeu o teu servo? Ó Yahweh, Deus de Israel, faze-o saber a
teu servo!” Então, prontamente, o SENHOR respondeu: “Descerá.”
12Davi perguntou ainda: “Será que os líderes e o povo de Queila
entregarão a mim e aos homens que me seguem nas mãos de Saul? E o
SENHOR afirmou: “Entregarão.” 13Então Davi e seus homens, que
formavam uma milícia com cerca de seiscentos soldados, partiram da
cidade de Queila, e vagaram sem rumo definido. Contudo, assim que
Saul foi informado de que Davi havia fugido de Queila, ele interrompeu
a marcha.
Nessa narrativa, Davi apela ao Deus onisciente para dizer a ele
sobre o futuro. Na primeira instância (23:1-5), Davi pergunta a Deus se
ele deveria ir para a cidade de Queila e se ele teria sucesso derrotando os
Filisteus lá. Deus responde afirmativamente em ambos os casos. Davi vai
para Queila e realmente derrota os Filisteus.
Na segunda sessão (23:6-13), Davi faz duas perguntas a Deus: (1)
seu perseguidor Saul irá até Queila e ameaçará a cidade devido à
presença de Davi? E (2) será que as pessoas de Queila ficarão ao lado de
Saul para evitar a ira de Saul? Novamente, Deus responde a ambas as
perguntas de maneira afirmativa: “Descerá”, e “Entregarão”.
Nenhum desses eventos que Deus previu na verdade
aconteceram. Uma vez que Davi ouviu as respostas de Deus, ele e seus
homens deixaram a cidade. Quando Saul descobre esse fato (v. 13), ele
abandona sua viagem a Queila. Saul nunca foi à cidade. Os homens de
Queila nunca se viraram contra Davi e a favor de Saul.
Por que isso é significante? Essa passagem estabelece
claramente que a presciência divina não necessita predestinação
divina. Deus já sabia o que Saul faria e o que as pessoas de Queila fariam
dadas as circunstâncias configuradas. Em outras palavras, Deus sabia
das possibilidades, mas seu conhecimento antecipado não é mandatório
61
para que a possibilidade verdadeiramente predestinada viesse a
acontecer. Os eventos nunca aconteceram, então, por definição, eles não
foram predestinados. E ainda assim o Deus onisciente os previu.
Predestinação e presciência são separáveis.
O ponto teológico pode ser colocado dessa maneira:
Aquilo que nunca aconteceu pode ser preconcebido por Deus,
mas não é predestinado, uma vez que ele nunca aconteceu.
Mas e sobre as coisas que aconteceram? Eles obviamente podem
ser preconcebidos, mas eram predestinados?
Uma vez que vimos acima que a preconcepção em si mesma não
necessita predestinação, toda essa preconcepção verdadeiramente
garante que algo é preconcebido. Se Deus preconcebeu algum evento que
aconteceu, então esse pode ter sido um evento predestinado. Mas o fato
de que Ele preconcebeu um evento não requer sua predestinação se ela
acontecer. A única garantia é a de que Deus já o preconcebera
corretamente, acontecendo ele como um evento verdadeiro ou sendo
meramente apenas um evento possível.
O ponto teológico pode ser colocado dessa forma:
Uma vez que a preconcepção não requer predestinação, os
eventos previstos que aconteceram podem ou não ter sido
predestinados.
As configurações dessas ideias vão contra vários sistemas
teológicos modernos. Alguns desses sistemas presumem que a
preconcepção requer predestinação, e dessa forma tudo deve ser
predestinado, desde a queda até o holocausto, àquilo que você irá
escolher para o jantar. Já outros diluem a preconcepção ao propor que
Deus não tem presciência de todas as possibilidades, uma vez que todas
as possibilidades não podem acontecer. Ou eles propõem a existência de
outros universos onde todas as possibilidades aconteçam. Essas ideias
são desnecessárias à luz de 1 Samuel 23 e outras passagens que ecoam a
mesma ideia fundamental: presciência / preconcepção não necessita de
predestinação.

62
As coisas que discutimos mais cedo nesse livro nos permitem
levar essa discussão ainda mais além. Deus pode até preconceber um
evento e predestinar esse evento, mas tal predestinação não
necessariamente inclui as decisões que levarão a tal evento. Em outras
palavras, Deus pode conhecer e predestinar o fim, de algo que acontecerá
no final, sem predestinar os meios para esse fim.
Vimos essa relação precisa quando observamos a decisão feita no
conselho divino de Deus. As passagens de 1 Reis 22:13-23 e Daniel 4 nos
informam que Deus pode decretar algo e então deixar os meios para as
decisões dos seus outros agentes com livre arbítrio. O fim é
soberanamente ordenado; os meios para esse fim podem ou não.
IMPLICAÇÕES
Um antigo israelita teria absorvido essa análise de presciência,
predestinação, soberania e livre arbítrio. Ele não teria sido atrapalhado
por uma tradição teológica. Ele teria entendido que essa é a maneira
através da qual o próprio Deus decidiu que governar os negócios
humanos iria funcionar. Essas são as decisões de Yahweh, e nós as
aceitamos.
Isso possui implicações significantes não apenas para a queda,
mas a para a presença do mal no nosso mundo em geral. Deus não é mal.
Não há nenhuma razão bíblica para argumentarmos que Deus havia
predestinado a queda, embora ele a houvesse preconcebido. Não há
razão bíblica para afirmarmos que Deus predestinou todos os agentes
maus através da história humana simplesmente porque ele os
preconcebeu.
Também não há coerência bíblica à ideia de que Deus fabricou
todos os atos maus em seu grande plano para as eras. Essa é uma
perspectiva comum, mas falha e sem bases sólidas, adotadas para se
afastarem da noção prévia de que Deus diretamente predestina os
eventos maus. Isso erroneamente implica que o plano “perfeito” de Deus
precisou incorporar atos maus, pois, bem, nós os vimos todos os dias, e
é claro que eles não podem apenas acontecer, uma vez que Deus prevê
tudo. Assim sendo (segundo essa perspectiva falha), eles devem ser

63
apenas uma parte de como Deus decidiu a melhor maneira de direcionar
a história.
Deus não precisa que uma criança seja abusada aconteça para
que venha o bem venha. Sua presciência não requer que o holocausto
seja parte de um plano que nos dará o reino na terra. Deus não precisa
do mal como meio de alcançar nada.
Deus previa a queda. Essa previsão não fez o evento acontecer.
Deus também previa a solução para queda que ele mesmo iria garantir,
uma solução que entrou em sua mente muito antes dele lançar as
fundações da terra. Deus já estava preparado. O risco era terrível, mas
ele amou tanto a noção da humanidade que resolveu fazer tudo.
O mal não flui de um primeiro dominó que o próprio Deus
derrubou. Ao invés disso, o mal é a perversão ao bom dom dado por Deus
do livre arbítrio. Ele nasce das escolhas feitas por imagens imperfeitas,
não de preparos feitos por Deus ou predestinação. Deus não precisa do
mal, mas ele tem o poder de vencer o mal que segue das decisões do livre
arbítrio, humanas ou não, e usá-las para produzir o bem e sua glória
através da obediência de suas imagens leais, que são as suas mãos e pés
no chão por agora.
Tudo isso significa que o que escolhemos fazer é uma importante
parte de como as coisas irão se desenrolar. O que nós fazemos importa.
Deus decretou os fins a que todas as coisas chegarão. Como crentes,
somos preparados pelo seu Espírito para sermos bons meios para esses
fins decretados.
Mas o Espírito não é a única influência. As experiências de nossas
vidas envolvem outras imagens, ambas boas e más, incluindo as imagens
divinas que não podemos ver. A visão mundial do escritor bíblico era
dinâmica, onde os membros do mundo invisível interagem com os
humanos. Membros leais da “congregação” (conselho) de Deus, enviados
para ministrar a nós (Heb 1:14), abraçavam a visão Edênica de Deus,
somos irmãos e irmãs (Heb 2:10-18).
Outros seres divinos iriam se opor ao plano de Deus. A
dissidência original terá um papel central no próximo capítulo.
64
RESUMO DA SESSÃO
Estamos só no começo de nossa jornada. Mas já aprendemos
alguns conceitos chave: conceitos que irmão emergir em outros lugares
na Bíblia e formarão padrões. Outras ideias advirão desses conceitos, e
o mosaico começará a tomar forma.
Existem vários pontos dessa primeira sessão do livro que
tomarão mais forma e definição ao prosseguirmos.
Primeiro, Deus tem uma família divina, uma assembleia celestial,
ou conselho, de elohim. Esses elohim não são uma substituição à
Trindade, e nem se somam a ela. Yahweh está entre os elohim, mas Ele
é superior a todos os outros elohim. Ele é o Criador deles e o mestre
soberano. Ele é único. Uma vez que Jesus é Yahweh em carne, ele
também diferente deles, e superior a todos os elohim. Mesmo Deus não
precisando de um conselho, as Escrituras deixam claro que Ele usa um.
Sua família divina é a sua administração divina. Os elohim o servem para
executar os seus decretos.
Deus também tem uma família e administração humanas. Seu
status e função são um espelho da família administrativa divina. Assim
como os membros do conselho divino os quais representam Deus nas
tarefas que devem fazer, assim são os representantes humanos imagens
de Deus. Assim como Deus não precisa de um conselho divino, ele
também não precisa de humanos, mas ele escolheu usá-los para colocar
em andamento as suas intenções para a Terra.
Céu e Terra são reinos separados, mas conectados. As famílias de
Deus operam paralelamente rumo a um destino mútuo. Seus pontos de
interseção ao longo do caminho informam muitas outras características
da teologia bíblica.
Com o Éden, o divino vem à terra, e a terra deveria ser trazida à
conformidade. Os humanos foram criados para se regozijar num eterno
acesso à presença de Deus, trabalhando lado a lado com os leais elohim
de Deus. Mas essa empreitada de Deus veio com um risco, um risco que
era completamente conhecido por ele e aceito. O livre arbítrio nos
corações e mãos de seres imperfeitos, sejam eles humanos ou divinos,
65
significa que as imagens podem optar por sua própria autoridade no
lugar da de Deus.
Infelizmente, isso também se tornará um padrão. As duas
famílias de Deus experimentarão a rebelião. O resultado será o começo
de uma longa guerra contra a intenção original de Deus. A boa notícia é
que haverá um esforço de cometimento igualitário da parte de Deus para
preservar o que ele começou.

66
PARTE 03
TRANSGRESSÕES DIVINAS
CAPÍTULO 10
PROBLEMA NO PARAÍSO
A história da queda da humanidade em Gênesis 3 parece algo
simples, talvez porque nós já a ouvimos muitas vezes. A verdade é que a
passagem apresenta muitas questões interpretativas. Já devotamos
algum tempo em algumas delas nos capítulos anteriores. Agora é tempo
de examinarmos o personagem principal, a serpente. Mais uma vez, aqui
temos muito mais do que parece.
Uma das coisas que sempre me incomodou sobre a história foi o
porquê de Eva não ter sentido medo quando a serpente começou a falar
com ela. Não há indicação de que ela tenha achado o incidente incomum.
Estudei algumas explicações meio esquisitas nesse assunto, tais como:
“talvez os animais antigamente pudessem andar e falar”. Esse tipo de
especulação é direcionado para preservar uma super-literalização do
texto, e é frequentemente acompanhada por um apelo à ciência, uma
afirmação de que a anatomia da serpente mostrando que esta uma vez já
teve pernas. É algo errado quando alguém tenta defender o literatismo
bíblico apelando para a história evolutiva das serpentes. E de qualquer
forma, a explicação acaba perdendo seu foco. Ela também fica
presumindo que o vilão era um simples animal. E ele não era.
A verdade é que um antigo leitor não esperaria que Eva tivesse
medo. Dado o contexto, ela estava no Éden, o reino de Yahweh e o
conselho dos seus elohim, estaria claro que ela estava conversando com
um ser divino. Como vimos nos capítulos anteriores, o autor bíblico
telegrafou que Eva estava num lugar divino.
GÊNESIS 3 EM CONTEXTO
Na literatura no Oriente Próximo do mundo Velho Testamento,
a fala animal não era incomum. O contexto para tal fala era a de magia,
a qual é claro estava ligada ao mundo dos deuses, ou intervenção direta
divina. Nenhum egípcio, por exemplo, teria presumido que os animais
67
que eles conheciam no seu dia-a-dia pudessem falar. Mas quando os
deuses ou forças mágicas estavam ali, a história era diferente. Animais
eram frequentemente o veículo para a manifestação de uma presença
divina ou poder na história. O tipo de animal iria variam dependendo
das características associadas com aquele animal, ou com o status desse
animal com a religião de determinada cultura.
Consequentemente, o ponto em Gênesis 3 não é o de nos
informar sobre zoologia antiga ou um tempo no qual os animais podiam
falar. Não estamos no reino da ciência por design. Gênesis mostra ideias
simples mas profundas aos leitores israelitas: o mundo que vocês
experimentam foi criado por um Deus todo-poderoso; seres humanos
são seus representantes criados; o Éden era sua morada; ele era
acompanhado por uma hoste sobrenatural; um membro dessa comitiva
não estava gostando das decisões de Deus ao criar a humanidade e dar
domínio a eles. Tudo isso nos leva a como a humanidade entrou nessa
bagunça.
Em respeito algumas coisas, sabemos que a “serpente” de
Gênesis não era realmente um membro do reino animal. Temos outras
passagens que nos ajudam a chegar a esse ponto, particularmente no
Novo Testamento. Entendemos que, até mesmo quando os escritores do
NT se referem à serpente lá atrás no Éden, eles realmente estão se
referindo a uma entidade sobrenatural, e não um mero membro do reino
animal (2 Cor 11:3; 1 Tessalonicenses 3:5; Apo 12:9).
É assim que devemos pensar sobre a história de Gênesis 3. Um
israelita saberia que o episódio descrito é o de uma interferência no
drama humano por um ser divino, um descontente de dentro do
conselho de Yahweh. O vocabulário usado pelo escritor revela muitas
coisas sobre o inimigo divino que emergiu do conselho. Se só pensarmos
em termos de uma serpente, estaremos perdendo a mensagem.
Minha tarefa nesse capítulo e do texto é de ajuda-los a pensar
além da literalidade da linguagem da serpente. Se realmente é verdade
que o inimigo no jardim era um ser sobrenatural, então ele não era uma
cobra.

68
Mas também é verdade que a história nos diz dessa maneira por
uma razão. Por mais estranho que isso soe, o vocabulário e as imagens
são projetadas para alertar os leitores para a presença de um ser divino,
e não literalmente uma cobra. Desenvolver esse caso irá envolver a
comparação de Gênesis 3 com outras passagens do VT. Mas para vermos
que essas passagens estão sim conceitualmente ligadas a Gênesis 3,
precisamos revisar algumas coisas que já aprendemos.
O Éden era uma morada divina, então, o lugar onde Yahweh
tinha encontros com o conselho. Aqui vão alguns termos e versículos
associados ao Éden que brevemente vimos num capítulo anterior.
Adicionei algumas palavras em hebraico por trás do português.
Termo Significado em Conceito Versículos
Hebraico Português Importantes
elim, elohim “deuses” Membros do Gên 3:5, 22
(plural) conselho
gan “jardim” Morada Gên 2:8-10, 15-
divina, local 16
do encontro Gên 3:1-3, 8, 10,
do conselho 23-24
‘ed “(aquoso) névoa” Descrição do Gên 2:6, 10-14
nahar “rio” jardim bem Ezeq 28:2
yamim “mares, águas” irrigado do
conselho
har “monte, Cadeia de Ezeq 28:13
montanha” montanhas
onde o
conselho
divino se
reunia
moshab “cadeira dos a assembleia Ezeq 28:2
elohim deuses” (lugar de divina
autoridade
governamental)

Vocês puderam ver rápido que, além de Gênesis 2-3, as outras


fontes de citação estão em Ezequiel 28. Esse é um dos capítulos
69
conceitualmente ligados a Gênesis 3. Essa conexão é explícita. Ezequiel
28:13-14 se refere ao “Éden, o jardim de Deus ... A montanha sagrada de
Deus”.
A tabela não lista todos os pontos de conexão entre os dois.
Existem vários outros, a maioria deles arduamente debatida entre os
estudiosos. De volta ao primeiro capítulo, já disse que existem muitas
interpretações para passagens estranhas na Bíblia, mas as melhores são
aquelas que fazem sentido no contexto de muitas outras, o mosaico. A
relação de Gênesis 3 com Ezequiel 28 e outras passagens nos ilustrará
esse ponto.
EZEQUIEL 28
Ezequiel não é especificamente sobre a queda da humanidade.
Ele também não é um comentário sobre Gênesis 3. O capítulo começa
com Deus punindo o príncipe de Tiro (Ezequiel 28:1-8). Deus acusa esse
príncipe de uma arrogância extraordinária. No versículo 2 o príncipe
considera a si mesmo um deus (el), o qual se senta na cadeira dos deuses
(moshab elohim), um termo associado ao conselho divino.
A escolha de el que o príncipe se considera ser é interessante. Ela
também aparece no versículo 9, onde ela está em paralelo a elohim. A
palavra el é outra palavra que significa “deus” em hebraico e outras
línguas semíticas. As pessoas de Ugarit chamavam seu deus maior de El,
eles usavam esse termo como substantivo próprio. Assim também fazia
o povo de Tiro, que era uma cidade Fenícia. A religião fenícia tinha um
conselho divino liderado por El, o qual também era chamado de elyon
(“Altíssimo”) nos textos fenícios e era considerado o criador da Terra.
Ao leitor antigo familiarizado com El, a noção de que o príncipe
de Tiro pensava ele mesmo ser um governante no lugar de El (ou até
mesmo ser uma deidade participante mais genérica no conselho divino)
seria ridícula. Para os escritores bíblicos, a ideia era também ofensiva.
Para eles, Yahweh era o Altíssimo, o verdadeiro rei de todos os deuses e
criador do céu e da terra. É por isso que os escritores se referem a
Yahweh como el-elyon (“Deus Altíssimo”; Gên 14:20,22). O ponto em
assinalar el e elyon a Yahweh não é para endossar como os fenícios e
residentes de Ugarit pensavam sobre seus deuses, mas para corrigir a
70
superioridade de Yahweh. Ele era incomparável dentre os seres
espirituais; os outros eram pretendentes. Consequentemente, os
escritores bíblicos teriam visto a arrogância humana do príncipe de Tiro
como uma afronta ao Deus de Israel.
Deus procede reconhecendo a grande inteligência desse príncipe,
mas lembra a ele que ele não é nenhum deus, e certamente não é o
Altíssimo (Ezeq 28:2-6). Esse tipo de arrogância deve ser punido. O
julgamento virá. Deus pergunta de forma sarcástica (v. 9): “Porventura
ainda replicarás: ‘Eis que sou um deus!’ Diante daquele que te chamar à
morte?”
No versículo 10, Deus adiciona um estranho detalhe: “Terás tão
somente a morte dos incircuncisos, e ainda pelas mãos cruéis de
estrangeiros pagãos”! Uma vez que o príncipe de Tiro já é um
incircunciso de qualquer forma, a frase parece faltar coerência. Se
dermos uma lida mais à frente em Ezequiel, o ponto ficaria claro para
um leitor antigo. O reino do submundo dos mortos, Sheol, é descrito por
Ezequiel como o lugar para onde os inimigos reis e guerreiros
incircuncisos de Israel se encontram (Ezeq 32:21, 24-30, 32; Isa 14:9).
Esse é o lugar dos mortos Refaim, seres quase-sobrenaturais que
encontraremos mais tarde.
É nesse ponto que Deus faz o profeta lançar um lamento sobre o
príncipe de Tiro, o brilhante príncipe cuja arrogância levou à queda, não
apenas na terra, mas sob a terra. Deus, através do profeta, começa:
12“Ó filho do homem, ergue, pois, um grande lamento sobre o rei de
Tiro e dize-lhe: Assim declara o SENHOR Deus: Tu eras o modelo da
perfeição, repleto de saber e magnífico em beleza! 13Estiveste no Éden,
Delícia, jardim de Deus; as mais lindas e perfeitas pedras preciosas
adornavam a tua pessoa: sárdio, topázio, diamante, berilo, ônix, jaspe,
safira, carbúnculo, esmeralda e outras. Seus engastes, guarnições e
outras jóias eram feitos com ouro puro; tudo foi preparado para ti no
exato dia em que foste criado. (Ezequiel 28:12-13)
Esses versos levantam questões. O príncipe de Tiro não estava no
Éden, ele estava em Tiro. Vemos agora que, embora Ezequiel 28 fale
sobre o príncipe de Tiro, ao descrever a arrogância desse príncipe, queda
71
e estado original, o profeta se utiliza de uma antiga história de uma
queda no Éden.
A ARROGÂNCIA DE ADÃO?
Muitos estudiosos argumentam que a figura edênica em questão
seja Adão. Essa perspectiva é aceitável para partes da descrição, mas não
todas elas. A alternativa mais coerente é a serpente, mais
especificamente, um ser divino que havia esquecido seu lugar na ordem
estabelecida.
Mas onde podemos ver uma serpente em Ezequiel 28? Vamos ver
primeiro o que está claro antes de respondermos a pergunta.
Esse “príncipe” estava no Éden, o jardim de Deus (v. 13). Ele é
muito bonito, palavras como brilhante e radiante são as que vêm à
mente quando lemos sobre a quantidade de pedras preciosas que faziam
parte de seu “adorno” (vv. 12b-3).
Alguns estudiosos tomam essa linguagem para se referir
literalmente à vestimenta judaica encrustada de joias pelo príncipe
humano. Dessa forma eles argumenta que o príncipe do Éden era Adão.
Eles também notam que muitas das joias listadas aqui correspondem às
joias sobre adorno no peitoral do alto sacerdote Israelita (Êxodo 28:17-
20; 39:10-13). A figura, dizem eles, é Adão como sacerdote-rei do Éden.
Uma vez que Jesus foi o segundo Adão e um sacerdote-rei, a analogia se
encaixa. O pano de fundo da arrogância do príncipe de Tiro é o Adão
rebelde, e não a serpente.
Isso parece razoável até que você começa a ler como “Adão” é
caracterizado nos versículos que se seguem.
14Além disto, foste também ungido como querubim guardião; afinal,
foi precisamente para essa função que Eu te designei. Estiveste também
no Monte Sagrado de Deus e caminhavas entre pedras
resplandecentes. 15Naquele tempo eras perfeito e irrepreensível em
teus sentimentos e atitudes, desde o dia em que foste criado, até que se
observou malignidade em ti. 16Por intermédio dos teus muitos negócios
em toda a terra encheste teu coração de arrogância e brutalidade, e

72
pecaste; por este motivo Eu te lancei, profanado e humilhado, para
longe do Monte Sagrado de Deus. Eu mesmo te expulsei, ó querubim da
guarda, do meio da glória das pedras fulgurantes! 17O teu coração
tornou-se altivo e soberbo por causa da tua impressionante formosura,
e corrompeste a tua sabedoria por conta do teu esplendor e da tua
fama. Por isso Eu te lancei à terra; fiz de ti um espetáculo e advertência
perante reis e governantes. (Ezequiel 28:14-17).
Adão era um “querubim guardião ungido”? Onde nós lemos em
Gênesis 3 que Adão era cheio de violência, ou que seu pecado foi
impelido pelo fato de que ele foi egoisticamente enamorado pela sua
própria beleza e esplendor? Quando Adão foi expulso para a terra para
ser exposto perante reis (v. 17)?
Todas essas frases que aparecem aludidas a essas perguntas são
importantes. Explicá-las irá nos levar ao resto desse capítulo e o
próximo. A pergunta chave na qual se baseia a nossa discussão é essa:
Estaria Ezequiel a descrever uma história sobre a rebelião de um ser
divino contra Deus, ou sobre a rebelião de Adão contra Deus? Acredito
que a primeira seja mais coerente, uma decisão que liga o que está
acontecendo aqui ao único rebelde divino de Gênesis 3, a serpente. No
que resta desse capítulo, começarei a explicar minhas razões, e então
continuar essa exploração no próximo capítulo.
OUTRA ABORDAGEM
Ezequiel 28:12b relata sobre o príncipe de Tiro dessa forma:
“Você foi o modelo perfeito de um exemplo”. Algumas traduções
escrevem: “Você foi o marcador da perfeição”. Essa linha é uma das mais
problemáticas do livro para se traduzir. Alguns estudiosos chegam ao
ponto de lista-la como uma das mais problemáticas de todo o Velho
Testamento. A palavra hebraica por trás de “modelo perfeito” ou “anel
marcador” (ch-w-t-m) é a cruz do problema. A palavra não é um
substantivo, mas um particípio que literalmente significa “o protetor”.
Uma tradução de “anel marcador” leva o termo a denotar algum objeto,
mas o termo é direcionado a uma pessoa (“Você”). O fato desse
“protetor” ser descrito como “cheio de sabedoria” e “perfeito em beleza”

73
também deixa claro que não é um objeto que está sendo descrito, mas
alguém inteligente ou entidade.
A questão é claro, é como essa entidade deveria ser identificada.
No final, a resposta a essa pergunta deriva da resposta à pergunta
anterior de se Ezequiel está descrevendo uma história sobre um rebelde
divino ou a de um humano. Essa questão é o foco do próximo capítulo.
Mas temos certas observações que podem ser feitas aqui que nos
ajudarão a elucidar essa discussão.
Consideremos as pedras preciosas que descrevem a aparência do
“protetor” em Ezequiel 28:13. Como mencionei antes, os proponentes da
visão de que Ezequiel está descrevendo a rebelião de Adão para sua
analogia ao comportamento do príncipe de Tiro querem argumentar que
as pedras preciosas apontam para um humano sacerdote-rei. Mas o
“adorno” pode ser facilmente telegrafado em algo mais, a divindade.
Todas as pedras têm uma coisa em comum, elas brilham e resplandecem.
Luminescência é uma característica de seres divinos ou presença divina
através do mundo do antigo Oriente Próximo e do VT (Ezeq 1:4-7, 27-
28; Ezeq 10:19-20; Dan 10:6; Apo 1:15). Essa descrição de querubim
divino no Éden é projetada para descrever divindade, uma presença
luminosa.
Existem mais detalhes. O querubim ungido no final é expulso do
Éden, para fora “do meio das pedras afogueadas”. Já sabemos de outros
dados que o Éden é o local do conselho. As “pedras afogueadas” são uma
outra pista nessa direção. Essa frase está associada a outros textos
judaicos (1 Enoque 18:6-11; 1 Enoque 24-25) a respeito da morada
montanhosa e sobrenatural de Deus e do conselho divino.
Podemos objetar aqui que o Éden era o lugar de morada de Deus
e então as “pedras afogueadas” não apenas apontam para os seres
divinos do conselho de Yahweh. Isso é verdade, mas existem mais coisas
nessa frase do que um local de morada. Outros estudiosos também têm
apontado nossa atenção para a propensão do antigo Oriente Próximo em
descrever seres divinos como estrelas. Jó 38:7 se refere aos filhos de
Deus como “estrelas”, e Isaías 14:12-13 se refere a um ser caído do céu
como a “Estrela do Dia, filho da Alvorada”, o qual desejou subir acima
74
das “estrelas de Deus” no reino divino. As “pedras afogueadas”, então,
não apenas descrevem um lugar, mas também entidades divinas nessa
morada.
A “terra” para onde o ser divino rebelde fora expulso e colocado
em desgraça, também é de nosso interesse. A palavra hebraica traduzida
para “terra “ é ‘erets. Esse é um termo comum para a terra sob nossos
pés. Mas também é uma palavra que é usada para se referir ao
submundo, o reino dos mortos (Jonas 2:6), onde os reis guerreiros
esperam seus confrades na morte (Ezeq 32:21, 24-30, 32; Isa 14:9).
Adão, é claro, já estava na terra, então ele não podia ser sentenciado ali.
E ele também não foi ao submundo. E mesmo assim esse tipo de
linguagem nos é esperada se o ponto tivesse sido a expulsão de um ser
celestial do conselho divino.
Finalmente, alguns estudiosos sugerem que o problemático
termo “protetor” (do hebraico ch-w-t-m), pode ser uma referência
criptografada à figura da serpente de Gênesis 3. Se a sugestão deles está
certa, essa confusão se torna um sinal claro de que não é Adão quem está
sendo descrito.
Existe um raro fenômeno nas línguas antigas semitas onde a
última letra m é silenciosa (o “enclítico mem”). Se o m for silencioso em
(em efeito, removido de) nossa confusa palavra, a palavra se transforma
em ch-w-t, que significa “serpende” em fenício e outros idiomas semitas.
O substantivo nessa forma é ch-w-h.
Embora esse tipo de leitura não possa ser tido como conclusiva,
essa mensagem lida em Ezequiel 28:11-19 à luz de Gênesis 3 nos fala
sobre a serpente. Ela produz um jogo de palavras que nos leva
diretamente de volta à cena da queda no Éden. Uma vez que sabemos
que não estamos lidando com um mero animal em Gênesis 3, mas de um
ser divino que é descrito como uma criatura, a descrição dessa figura no
jardim como um “querubim guardião ungido” faz sentido. Um querubim
era um guardião do trono divino no antigo Oriente Próximo. A arte do
antigo Oriente Próximo e suas esculturas possuem muitos exemplos de
tais guardiões de trono como animais, incluindo serpentes. Há muito

75
pouca coerência em ver o querubim guardião de Ezequiel 28 como sendo
o humano Adão.
Vamos resumir onde isso nos deixa. Ezequiel 28 intimida o
príncipe de Tiro usando uma antiga história de uma arrogância divina
no Éden, onde um membro do conselho de Yahweh pensou estar
equiparado ao Altíssimo. Esse guardião de trono divino foi expulso do
Éden para a “terra” ou submundo.
Esses elementos nos são mostrados em outra passagem: Isaías
14. Consideremos o que Isaías tem para nos dizer e então daremos uma
nova olhada no que aconteceu no Éden.

76
CAPÍTULO 11
COMO O ALTÍSSIMO?
No capítulo anterior, vimos que Ezequiel 28 nos apresentou com
o trágico mostruário do príncipe de Tiro. O profeta usa a estratégia
literária de desenvolver uma antiga história de um ser divino no Éden
que achava ele mesmo ser o chefe “das cadeiras dos deuses” (Ezeq 28:2),
o conselho divino. Esse ser foi punido com a sua expulsão do Éden para
o submundo. A amostragem desse ser como um divino guardião
querubim, usando imagens como: brilhante, de pedras luminosas e uma
serpente, possui conexões conceituais a Gênesis 3.
Esses elementos também aparecem em Isaías 14. Consideremos
essa passagem e depois vamos dar outra olhada na serpente do Éden.
ISAÍAS 14
Em Isaías 14:4, Deus diz ao profeta para levantar uma “sátira”
(do hebraico: mashal) contra o rei na Babilônia. Uma mashal é melhor
descrita como uma parábola comparativa. A questão que temos que
manter em mente quando procedermos é: com quem o rei da Babilônia
está sendo comparado?
O começo da parábola soa desfavorável ao rei da Babilônia como
na descrição de Ezequiel sobre o príncipe de Tiro. O rei da Babilônia é
chamado de um “opressor” (v. 4) o qual ferozmente perseguia as nações
(vv 5-6). O mundo finalmente descansará quando o opressor for “cair”
(vv. 7-8). Numa antecipação à alegria de finalmente se livrarem do rei da
Babilônia, o profeta escreve:
9Nas profundezas, o Sheol, o mundo dos mortos, está todo agitado para
recebê-lo quando chegares. Por tua causa o além desperta os espíritos
dos mortos, todos os príncipes e governantes da terra. E faz levantar
dos seus tronos a todos os reis das nações. 10Todos eles se interpelam e
o questionam: “Então, também tu foste abatido como nós e acabaste na
mesma condição que estamos?” 11A tua soberba foi lançada também
no Sheol, na sepultura, junto com o som de glória das tuas harpas. Eis

77
que agora tua cama é feita de larvas, e tua coberta de vermes. (Isaías
14:9-11).
Como em Ezequiel 28, a figura em Isaías 14 que é alvo desse
ataque vai para o Sheol, o submundo. Os Rephaim estão lá, aqui
identificados novamente como os reis-guerreiros (“acabaste na mesma
condição que estamos”). O rei da Babilônia será um desses mortos vivos,
assim como o príncipe de Tiro.
Relembrem-se que Ezequiel 28 mudou do príncipe de Tiro para
uma figura divina no Éden. Essa mudança nos informa que o escritor
estava usando uma história cósmica, uma rebelião divina, por
comparação, a fim de mostrar a arrogância do príncipe terreno. Depois
do versículo 11, Isaías 14 muda para o contexto divino com conexões
claras a Ezequiel 28. Essas conexões, por sua vez, nos levam
conceitualmente de volta a Gênesis 3.
Lemos em Isaías 14:12-15:
12Como foi que caíste dos céus, ó estrela da manhã, filho d’alva, da
alvorada? Como foste atirado à terra, tu que derrubavas todas as
nações? 13Afinal, tu costumavas declarar em teu coração: “Hei de subir
até aos céus; erguerei o meu trono acima das estrelas de Deus; eu me
estabelecerei na montanha da Assembleia, no ponto mais elevado de
Zafon, o alto do norte, o monte santo. 14Subirei mais alto que as mais
altas nuvens; tornar-me-ei semelhante ao Altíssimo!” 15Contudo, às
profundezas do Sheol, da morte, foste precipitado; lançado foste no
fundo do abismo! (Isaías 14:12-15).
O contexto do conselho divino é claro. Vocês já viram várias
dessas terminologias no capítulo 6 sobre os jardins divinos e as
montanhas.
A figura com a qual o rei da Babilônia está sendo comparado é
um ser divino caído “do céu” (v. 12). Ele é chamado de “estrela da manhã,
filho da alvorada”. A linguagem nos leva de volta à Jó 38:7, onde os filhos
de Deus eram chamados de “estrelas da manhã”. Mas os termos
hebraicos em Isaías 14:12 são diferentes dos de Jó 38:7.

78
“Estrela da manhã, filho da alvorada” é uma tradução em
português do hebraico helel bem-shachar, o qual literalmente significa
“o luminoso, filho da alvorada”. Quando falamos sobre Jó 38:7 no
capítulo 3, mostrei que “estrelas da manhã” eram as estrelas brilhantes
visíveis no horizonte quando o sol começa a aparecer. Os astrônomos
(antigos e modernos) conheciam outro objeto celestial que se
comportava da mesma maneira, um objeto tão brilhante que podia ser
visto ainda com o nascer do sol. Esse objeto era Vênus, e então Vênus,
embora seja um planeta, ficou conhecido pelos antigos como a “estrela
brilhante da manhã”.
Em essência, pegando emprestada a linguagem de Ezequiel 28,
Isaías mostra este ser divino em particular inutilmente enamorado ao
seu próprio brilho. Sua arrogância era tão grande que ele declara a si
mesmo estar acima das “estrelas de Deus” (kokebey el), os outros
membros do conselho divino (Jó 38:7).
A ideia de superioridade que esse “iluminado” achava ter sobre
os outros membros do conselho divino é indicada na frase “levantarei ...
meu trono” e seu desejo em se “sentar” no “monte da assembleia”. Esse
“monte da assembleia” fala do conselho divino de forma clara em sua
localização, “Zaphon” (“o norte”; tsaphon) e as nuvens. O linguajar de
“assento” é familiar em Ezequiel 28:2 (a “cadeira dos deuses”). Isaías 14
nos mostra uma tentativa de golpe no conselho divino. Helel ben-
shachar queria sua cadeira na assembleia divina na montanha divina
acima de todos os outros. Ele queria ser “como o Altíssimo” (elyon). Mas
só pode existir um desse.
Não é surpresa que helel ben-shachar, o iluminado, conhecerá o
mesmo fim do divino guardião do trono em Ezequiel 28. Em três lugares
vemos esse destino. Vocês já viram dois desses versículos. Prestem
atenção na ênfase em negrito:
9Nas profundezas, o Sheol, o mundo dos mortos, está todo agitado para
recebê-lo quando chegares. Por tua causa o além desperta os espíritos
dos mortos, todos os príncipes e governantes da terra. E faz levantar
dos seus tronos a todos os reis das nações.

79
12Como foi que caíste dos céus, ó estrela da manhã, filho d’alva, da
alvorada? Como foste atirado à terra (‘erets), tu que derrubavas todas
as nações?

15Contudo, às profundezas do Sheol, da morte, foste precipitado;


lançado foste no fundo do abismo!
(Isaías 14:9, 12, 15).
A punição de helel é a de viver no reino dos mortos. Helel termina
no Sheol, o abismo (bor); atirado à terra (‘erets) por Deus, o verdadeiro
Altíssimo.
A tabela abaixo expande aquela que começamos no capítulo
anterior. Ao progredirmos, adicionarei termos e versículos àqueles de
Ezequiel 28. Irei focar nas conexões de conselho divino entre esse
capítulo, Isaías 14 e Gênesis 3, mas incluirei referências de outros lugares
quando for apropriado.

80
O CONTEXO DO CONSELHO DIVINO
Termo Significado em Conceito Versículos
Hebraico Português Importantes
elim, elohim “deuses” Membros do Gên 3:5, Salmos
(plural) conselho 82:1,6; Ezeq 28:2
beney elim “filhos de Deus” Membros do Jó 38:7; Salmos
beney elohim “estrelas da conselho 29:1, 89:6; Isaías
kokebey boqer manhã” 14:13; Ezeq 28:13
kokebey el “estrelas de Aparência (pedras preciosas)
helel ben- Deus” luminosa
shachar “o luminoso,
filho da
alvorada”
gan “jardim” Morada divina, Gên 2:8-10, 15-16
local de Gên 3:1, 8, 10, 23-
encontro do 24
conselho Ezeq 28:13
‘ed “(aquoso) névoa” Descrição do Gên 2:6, 10-14
nahar “rio” jardim cheio de (Sião); Ezeq 47:1-
yamim “mares, águas” águas do 12 (Templo de
conselho Jerusalém –
Zacarias 14:8);
Ezeq 28:2
har “monte, Cadeia de Êxodo 24:15
montanha” montanhas onde (Sinais – Salmos
o conselho 68:15-17; Deut
divino se reúne 33:1-2); Isa 14:13;
27:13 (Sião); Ezeq
47:1-12 (Templo
de Jerusalém)
adat “assembleia” A assembleia Salmos 82:1;
sod “conselho” divina 89:7; Isa 14:13;
mo’ed “encontro” Ezeq 28:2
moshab “cadeira”
(governo)
tsaphon “norte” Cadeia de Salmos 48:1-2
yarketey “altos do norte” montanhas (Templo de
tsaphon “altura” onde o Jerusalém –
bamot conselho Ezeq 40:2); Isa
divino se reúne 14:13-14
81
O NACHASH DE GÊNESIS 3
O personagem central de Gênesis 3 é a serpente. A palavra
hebraica traduzida para serpente é nachash. Essa palavra é tanto plana
como elástica em sua aplicação.
O significado mais simples é aquele que virtualmente todos os
tradutores e intérpretes optam: serpente. Quando a raiz hebraica das
letras n-ch-sh são um substantivo, esse é o significado.
Mas n-ch-sh também são as consoantes de um verbo. Se
trocarmos as vogais para uma forma verbal (lembrem-se que o hebraico
originalmente não possui vogais), teríamos nochesh, que significa “o
adivinho”. Adivinhação se refere à comunicação com o mundo
sobrenatural. Um adivinho no mundo antigo era aquele que dizia
presságios e dava informações divinas (oráculos). Vemos esse elemento
na história. Eva estava recebendo informação desse ser.
As consoantes n-ch-sh também podem formar um substantivo
alternativo, nachash, que às vezes é usado descritivamente, como um
adjetivo. Esse termo é usado em lugar de nomes fora da Bíblia e uma vez
dentro do Velho Testamento. 1 Crônicas 4:12 se refere a “Tehinnah, pai
de Ir-Nachash”. O então desconhecido Tehinnah é tido nesse versículo
como o fundador da cidade (hebraico: ir) de nachash.
Essa cidade ainda está para ser seguramente identificada por
arqueólogos. A frase significa “a cidade de cobre/bronze (ferreiro)”.
Palavras hebraicas como nechosheth (“bronze; “cobre”) são derivadas
desse substantivo. Ir-nachash era um lugar conhecido pela metalurgia
do cobre e do bronze. Essa opção é interessante, pois cobre e bronze são
brilhantes quando polidos. Na verdade, o VT usa nechosheth para
descrever seres divinos (Daniel 10:6).
Temos palavras com tal elasticidade em português, o significado
depende da parte do texto. Por exemplo:
(Substantivo): “Correr é uma boa forma de exercício”.

82
(Verbo): “Estou correndo muito bem”.
(Adjetivo): “Pintura corrida é bem diferente”.
Algumas vezes os escritores, quando usam um termo, querem
que seus leitores pensem sobre todos os possíveis significados e nuances.
Se eu perguntar: “Como sua leitura tem sido”? O leitor é forçado a pensar
sobre todas as três. Será que estou me referindo ao seu último acesso
(substantivo)? Estaria eu me referindo se você está usando os óculos
certos (adjetivo)? Ou estou me referindo ao processo (verbo)? O que
estou sugerindo é que, uma vez que temos pistas imediatas na história
de que a serpente é mais do que uma mera cobra, então ela deve ser o
adversário divino, pois o termo nachash possui um significado triplo. O
escritor quer que seus leitores considerem todas as possibilidades de
nuances em suas interpretações, uma experiência intelectual. Todas elas
carregam um peso teológico.
A serpente (nachash) era uma imagem comumente usada em
referência a um guardião de trono divino. Dado o contexto do Éden, isso
ajuda a identificar o vilão como um ser divino. O adversário divino
dispensa informação divina, usando-a para enganar Eva. Ele dá a ela um
oráculo (ou, um presságio!): Na verdade não morreras. Deus sabe que
quando comer do fruto, serás como um dos elohim. E por último, uma
aparência luminosa está ligada a uma natureza divina. Todos os
significados telegrafam algo importante. Eles também são consistentes
com a imagem dada a nós em Isaías 14 e Ezequiel 28.
JULGAMENTO DIVINO
Tenho uma tendência a me simpatizar com Eva. Ela é muito
frequentemente tida como estúpida e ingênua. Dado o contexto do
conselho divino e seu status como imagem de Deus e uma nova membra
dessa família, o que o nachash disse a ela tinha um ar de validade. É claro
que Deus quer que sejamos como os elohim, pois somos todos uma só
família. Todos nós representamos o criador, não é verdade? Por que
deveríamos morrer?
Isso não desculpa Eva (ou Adão). A desobediência deles gerou
graves consequências. Mas mesmo a razão para o julgamento de Deus
83
ser bem clara, os significados desse julgamento nos exigem um
pensamento mais cuidadoso. Livros inteiros têm sido escritos sobre as
implicações da resposta de Deus, então meu raciocínio será bem seletivo.
A maldição lançada sobre Adão (Gên 3:17-19) não sobrepujou o
mandamento de Deus para sujeitar a terra e ter domínio sobre ela. Mas
ela deixou essa tarefa mais difícil. A expulsão da humanidade do Éden
(Gên 3:22-25) tornou uma missão de domínio gloriosa numa labuta
mundana. Sabemos que Deus daria passos para restaurar essa missão, e
os descendentes de Adão (especialmente um deles: Gên 3:15) seria
crítico para esse reino. A ânsia humana por uma utopia é interessante
sob esse aspecto. Parece que temos uma sensação interna de uma
necessidade de restaurarmos algo que foi perdido, mas o Éden não pode
retornar em termos puramente humanos.
O julgamento de Deus a Eva é, de alguma forma, ligado à
maldição sobre o nachash. Eva sofreria dores intensas no parto (Gên
3:16: “Multiplicarei sua dor”). Não há indicação de que, mesmo ela tendo
tido algum filho antes da queda, de que ela não teria tida dor nenhuma.
Ela era humana. E era importante que ela tivesse gerado filhos, uma vez
que dar à luz teria uma relação ao destino do nachash e seu ato.
15Porei inimizade entre ti e a mulher, e entre a tua descendência e a sua
descendência; esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar. (Gên
3:15)
As palavras de Gên 3:15 são veladas. Por razões que deixarei
claras mais tarde, acredito que profecias como essa que no final vão em
direção ao Messias, sejam deliberadamente criptografadas. Mas pelo
menos o versículo nos diz que Deus não havia desistido da humanidade
ainda. O objetivo do domínio da terra através da humanidade não seria
abandonado. Um descendente de Eva viria e em algum dia desfaria o
estrago causado pelo rebelde divino, o nachash. Essa descendência
ligada a Eva implica que o resultado será atingido através de sua
linhagem sanguínea.
Essa ameaça humana ao nachash é conveniente. A sedução ao
pecado significa que Yahweh teria que ser verdadeiro à sua palavra e
eliminar a humanidade. O nachash contava com a justiça de Deus para
84
eliminar os seus rivais. Deus pensaria apenas a esse respeito. A
eliminação do Éden significaria, então, a morte, mas não no sentido de
aniquilação imediata. Deus veria que as vidas deles acabariam, mas não
antes de continuarem o seu plano. A humanidade morreria, mas também
iria, em algum ponto, produzir um descendente que iria no final
restaurar a visão Edênica de Deus e destruir o nachash.
Adão e Eva possuíam imortalidade contingente antes da queda.
Eles tinham uma vida sem fim, dependendo de certas circunstâncias. A
imagem do Éden, a casa do Criador e sua árvore da vida nos dão a noção
que, enquanto Adão e Eva comessem da árvore da vida, chamando o
Éden de seu lar, e não fazendo nada que resultasse numa injúria mortal
(eles eram verdadeiramente humanos afinal de contas), eles viveriam.
Protegidos nesse ambiente perfeito, eles poderiam se multiplicar e
executar suas tarefas como representantes de Deus na terra até que o
serviço fosse feito.
Tudo isso foi deixado de lado quando eles foram removidos do
Éden. Deus até mesmo tomou uma medida extra para prevenir que eles
retornassem à árvore da vida no Éden (Gên 3:24). Uma vez que tivessem
acesso à ela, eles iria continuar vivendo, apesar do que acontecera.
Depois da queda, o único caminho para estender a obra de Deus humana
desse conselho familiar seria dando à luz. Eva foi redimida através da
geração de filhos (1 Tim 2:15). Assim como o resto de nós, no sentido de
que esta é a única via do plano original de Deus que ainda permanece
viável. Se não houver descendentes, não haverá imagens humanas e nem
reino.
Mas o julgamento sobre Eva também nos diz que o nachash teria
uma descendência. O resto da história bíblica não consiste de humanos
lutando contra um povo cobra. E isso não é uma surpresa, uma vez que
o inimigo da humanidade não era uma mera cobra. A Bíblia, no entanto,
descrê um conflito crescente entre os seguidores de Yahweh, humanos e
seres divinos que seguem o caminho espiritual do nachash. Todos
aqueles que se opõem ao plano do reino de Deus são a semente do
nachash.

85
Muitos leitores que ainda sentem urgência em ver só uma cobra
no Éden, sem dúvida contendem que a maldição pronunciada sobre o
nachash requere que assim seja. Não concordo. Leituras literais são
inadequadas para mostrar toda a mensagem teológica e a plenitude do
contexto dessa visão.
Considerem o que acontece com o nachash contra um fundo da
linguagem do julgamento encontrado em Ezequiel 28 e Isaías 14:
SERPENTE / LUMINOSO: IMAGEM & PUNIÇÃO
Termo Significado em Conceito Versículos
Hebraico Português importantes
nachash “serpente” Jogo de palavras; Gên 3:1-2, 4, 13-
(substantivo) significado triplo 14
“usa adivinhação, da serpente
dá presságios (guardião do
(verbo) trono divino),
“bronze, brilho” informação do
(adjetivo) reino divino
(adivinhação),
aparência
luminosa
associada com a
divindade
(brilhante)
chawwat “serpente” Ezeq 28:12 (com
o m mudo)
helel ben- “iluminado, filho Aparência Isa 14:12
shachar da alvorada” brilhante Ezeq 28:13
associada com (pedras
divindade preciosas)
yarad “lançado abaixo” Uma expulsão da Ezeq 28:8, 17
gada’ “cortado” presença divina e Isa 14:11-12, 15
shalak “humilhado” ex-servidor de
Yahweh
‘erets “terra, solo” Submundo, reino Ezeq 28:17
Abstratamente: o dos mortos Isa 14:9, 11-12, 15
reino do NOTA: o
submundo dos nachash de Gên
mortos 3 foi condenado a
sheol Sheol; reino dos andar sobre seu
mortos ventre, colocado

86
no solo, sob os
pés dos animais
(Gên 3:14)
rephaim Rephaim; as Ocupantes do Ezeq 28:17
“sombras”; os submundo Isa 14:9
mortos no
submundo
melakim “reis” (inimigos
caídos)

O nachash foi punido tendo que andar sobre seu ventre, uma
imagem que está ligada a ser lançado abaixo (Ezeq 28:8, 17; Isa 14:11-
12, 15) no chão. Em Ezequiel 28 e Isaías 14, vimos o vilão ser lançado
abaixo no ‘erets, um termo que se refere literalmente a poeira e
metaforicamente ao submundo (Ezeq 28:17; Isa 14:9, 11-12, 15). A
punição também tem ele “comendo o pó”, claramente uma referência
metafórica, uma vez que cobras, na verdade, não comem pó como
alimento. Ele não faz parte da “dieta natural das cobras”. O
entendimento tido como punição é o que o nachash, que queria ser como
o “Altíssimo”, seria o “baixíssimo”, expulso da presença de Deus e do
conselho da terra, e até mesmo sob a terra. No submundo, o nachash é
até mesmo mais baixo do que os animais do campo. Ele está escondido
de nossa visão e da vida no mundo do Deus. Seu domínio é a morte.
Depois da queda, embora a humanidade tenha sido afastada de
Deus e não sendo mais imortal, o plano de Deus não se extinguiu.
Gênesis 3 nos diz porque nós morremos, porque precisamos de uma
redenção e uma salvação, e porque não podemos salvar a nós mesmos.
Ele também nos diz que o plano de Deus só foi adiado, e não derrotado,
e a história humana seria de uma trágica batalha e uma saga miraculosa
e providencial.
Mas a situação irá piorar, antes de melhorar.

87
CAPÍTULO 12
TRANSGRESSÃO DIVINA
Após a ruína no Éden, a história humana desandou de vez. E isso
era esperado. As maldições que se seguiram aos eventos no jardim
ligaram o destino da humanidade com a semente do nachash, e aí estão
todos aqueles que se opõem à liderança de Deus, seja no reino terreno
ou espiritual. O governo de Deus conhecido como Éden iria desaparecer,
sendo mantido vivo apenas através de uma incipiente humanidade para
quem Deus estendeu a sua misericórdia.
A semente do nachash também é literal (pessoas e seres divinos
são reais) e espiritual (a linhagem de uma rebelião espiritual). Essa
descrição tem raízes bíblicas seguras. Jesus disse aos Fariseus: “Vós sois
de seu pai o diabo, e fazeis as vontades de seu pai” (João 8:44), e os
chamou de “serpentes” e “uma descendência de víboras” (Mateus 23:33).
Em 1 João 3, o apóstolo João expressou a noção de uma semente
espiritual, boa ou má, se manifestando no coração humano quando ele
escreveu:
Aquele que vive habitualmente no pecado é do Diabo, pois o Diabo peca
desde o princípio. Para isto, o Filho de Deus se manifestou: para
destruir as obras do Diabo. 9Todo aquele que é nascido de Deus não se
dedica à prática do pecado, porquanto a semente de Deus permanece
nele e ele não pode continuar no pecado, pois é nascido de Deus. 10Deste
modo, conhecemos quem são os filhos de Deus e quem são os filhos do
Diabo: quem não pratica a justiça não procede de Deus, nem tampouco
aquele que não ama seu próprio irmão. A marca do cristão: o amor
11Ora, a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos
amemos uns aos outros. 12E não sejamos como Caim, que pertencia ao
Maligno e assassinou seu irmão. E por que o matou? Porque suas obras
eram más e as de seu irmão eram justas. (1 João 3:8-12)
Essa passagem descreve as pessoas cujas vidas são caracterizadas
pela maldade como “filhos do diabo”, um contraste aos espirituais “filhos
de Deus”. Essa é uma linhagem espiritual, uma vez que os filhos de Deus
possuem a “semente de Deus” habitando neles, uma referência ao
Espírito Santo. Pedro ecoa o mesmo pensamento em 1 Pedro 1:23, onde
88
ele descreve aqueles que nasceram de novo (literalmente, nascidos “do
alto”) como sendo nascidos não apenas de uma semente ou descendência
mortal, mas de uma “semente imperecível”, através da palavra de Deus.
A linguagem, então, nos leva em direção ao espiritual, seguindo a
Yahweh ou seguindo o exemplo do rebelde original, o nachash.
Interessante é que João menciona Caim especificamente. Cain
matou Abel em algum momento depois que seus pais foram expulsos do
Éden, o ponto onde chegamos em nossa exploração. O pai espiritual de
Caim foi o nachash. Eles trilharam o mesmo caminho.
As coisas foram se tornando eventualmente tão ruins que em
Gênesis 6:5 nós lemos: “Contudo, o SENHOR observou que a
perversidade do ser humano havia crescido muito na terra e que toda
a motivação das ideias que provinham das suas entranhas era sempre
e somente inclinada à prática do mal.” Mas esse veredito é precedido
por quatro versículos que descrevem um tipo diferente de rebelião, uma
divina. Existiam alguns naquele reino que, como fez o nachash, fizeram
uma escolha livre que violava o plano de Deus e a sua estratégia para
governar a terra.
No resto desse capítulo, daremos uma olhada de perto nessa
transgressão divina, focando em como essa história tem sido
manipulada para ser retirada dela as suas características espirituais e,
dessa forma, todo seu entendimento, pela maioria dos intérpretes
cristãos. Continuaremos essa discussão nos dois próximos capítulos,
onde examinaremos como o contexto original e a intenção da passagem
nos compele a uma interpretação sobrenatural e depois exploraremos as
implicações dessa interpretação.
A PRECURSORA DO DILÚVIO: A REBELIÃO DIVINA
Gênesis 6:1-4 é um desses textos que a maioria dos leitores e
pastores irá pular. Não aqui. A sua mensagem teológica é importante.
1Sucedeu que, quando os homens começaram a multiplicar-se sobre a
terra, e lhes nasceram filhas, 2viram os filhos de Deus que as filhas
dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as
que escolheram. 3Então disse o Senhor: O meu Espírito não
89
permanecerá para sempre no homem, porquanto ele é carne, mas os
seus dias serão cento e vinte anos. 4Naqueles dias estavam os nefilins
na terra, e também depois, quando os filhos de Deus conheceram as
filhas dos homens, as quais lhes deram filhos. Esses nefilins eram os
valentes, os homens de renome, que houve na antigüidade.
Existem poucas passagens na Bíblia que levantam tantas
questões como essa. Quem são os filhos de Deus? Serão eles divinos ou
humanos? Quem são os Nephilim? Como esses versículos se relacionam
à maldade humana descrita em Gênesis 6:5?
Antes de começarmos a nos debruçar sobre essas e outras
perguntas, precisamos aprender como não interpretar essa passagem.
A INTERPRETAÇÃO SETITA
Essa interpretação de Gênesis 6:1-4 é a mais comumente
ensinada nas igrejas cristãs, evangélicas e outras. Ela tem sido a posição
dominante desde o final do Século IV a.C.
Nessa abordagem, os filhos de Deus em Gênesis 6:1-4 são
meramente seres humanos, homens da linhagem de Sete, o filho de Adão
e Eva que nasceu depois que Caim matou Abel (Gên 4:25-26; 5:3-4).
Presumivelmente, esses quatro versículos descrevem um inter-
relacionamento proibido entre homens santos da linhagem de Sete
(“filhos de Deus”) e as filhas ímpias da linhagem de Caim (“filhas da
humanidade”). Lendo desse jeito, todos aqueles que viviam na terra
vieram dessas duas linhagens, ambas linhagens descendiam dos filhos
de Adão e Eva. Dessa forma, a Bíblia distinguia os santos dos ímpios.
Parte desse raciocínio vem de Gênesis 4:26 onde, dependendo da
tradução, lemos que tanto Sete ou a humanidade “começou a clamar em
nome do Senhor”. A linhagem de Sete permaneceu pura e separada da
linhagem má. Os casamentos de Gênesis 6:1-4 acabaram com essa
separação e isso incorreu na ira de Deus para o dilúvio.
Expor as deficiências da visão Setita não é difícil. A posição é
cheia de falhas.

90
Primeiramente, Gênesis 4:26 nunca diz que só as pessoas que
“clamavam o nome do Senhor” eram os homens da linhagem de Sete.
Essa ideia é imposta no texto. Segundo, como veremos no próximo
capítulo, a visão falha miseravelmente em explicar os Nephilim.
Terceiro, o texto nunca chama as mulheres no episódio de “filhas de
Caim”. Ao invés disso, elas são as “filhas da humanidade”. Não existe
nenhuma ligação no texto com Caim. Isso significa que a visão Setita do
texto é apoiada por algo que não é apresentado no texto, o que é a própria
antítese da exegese. Quarto, não há nenhum mandamento no texto em
relação a casamentos ou qualquer proibição contra se casar com certas
pessoas. Não existiam “judeus e gentios” naquela época. Quinto, nada
em Gênesis 6:1-4 ou em qualquer outro lugar na Bíblia identifica as
pessoas que vieram da linhagem de Sete com a frase descritiva de “filhos
de Deus”. Essa conexão é puramente uma presunção através da qual a
história é filtrada por aqueles que se apoiam a visão Setita.
Uma leitura mais atenta de Gênesis 6:1-4 deixa claro que um
contraste está sendo criado entre duas classes de indivíduos, uma
humana e outra divina. Quando falamos em como a humanidade estava
se multiplicando na terra (v. 1), o texto menciona só as filhas (“lhes
nasceram filhas”). O ponto não é que literalmente todos os nascimentos
na história da terra depois de Caim e Abel resultaram em meninas. Ao
invés disso, o escritor está mostrando um contraste de dois grupos. O
primeiro grupo é humano e feminino (as “filhas dos homens”). O
versículo 2 introduz o outro grupo do contraste: os filhos de Deus. Esse
grupo não é humano, mas divino.
Existem mais deficiências nesse ponto de vista setita do que
gastarei aqui para expor, mas eles são bem evidentes. A hipótese setita
colapsa sob o peso de sua própria incoerência.
GOVERNANTES HUMANOS DIVINIZADOS
Outra abordagem que argumenta que os “filhos de Deus” em
Gênesis 6:1-4 são humanos, sugere que eles deveriam ser entendidos
como governantes humanos divinizados. Uma pesquisa na literatura
acadêmica argumentando essa perspectiva revela que ela se baseia no
seguinte: (1) tomar a frase “filhos do Altíssimo” em Salmos 82:6 está se
91
referindo a humanos, e então lermos novamente Gênesis 6:1-4; (2) notar
a linguagem onde Deus se refere a humanos como seus filhos (Êxodo
4:23; Salmos 2:7), o qual é argumentado estar em paralelo às crenças do
antigo Oriente Próximo de que os reis eram tidos como sendo de
descendência divina; e (3) argumenta que esses casamentos malignos
condenados nos versículos, eram uma poligamia humana da parte
desses líderes divinizados.
Já vimos como a visão humana do plural elohim em Salmos 82 é
falha, então essa falha fundamental não precisa ser mostrada de novo
aqui. Mas existem outras falhas nessa abordagem.
Primeiramente, o texto de Gênesis 6 nunca diz que os casamentos
eram poligâmicos. Essa ideia deveria ser lida na passagem. Segundo, os
paralelos antigos restringem a linguagem de descendência divina aos
reis. Consequentemente, a ideia de um grupo de filhos de Deus não tem
coerência quando colocada em paralelo ao antigo Oriente Próximo. A
frase plural precisa se refere a seres divinos em outros lugares no VT, e
não a reis (Jó 1:6, 2:1; 38:7; Salmos 29:1; 82:6 [82:1b]; 89:6 (Hebraico
89:7). Terceiro, a ampla ideia de “reinados de humanos divinizados” em
outros locais do VT não é um argumento coerente contra a visão
sobrenatural de Gênesis 6. O desejo original de Deus era de que seus
filhos humanos fossem seus servos governantes sobre a terra sob Sua
autoridade e seus representantes, na presença de Sua glória. Restaurar
a visão do Éden perdido eventualmente envolve a criação de um povo
conhecido como Israel e dar a eles um rei (Davi), o que é o modelo de
messias. No desenrolar escatológico final, o messias é o último rei
Davídico, e todos os crentes glorificados compartilharão essa nova
liderança num novo Éden global. Mas há uma hermenêutica falha em ler
tanto o reinado antigo ou a glorificação dos crentes de volta em Gênesis
6. A razão é óbvia: os casamentos em Gênesis 6:1-4 corromperam a terra
no prelúdio para a história do dilúvio. Uma teologia bíblica de
relacionamentos humanos divinizados no Éden restaurado não seria
corruptiva e má.
Resumindo, a pluralidade da frase “filhos de Deus” e os contextos
celestiais que são usados em outros lugares, nos mostram que não razão
exegética para excluir as ocorrências da frase em Gênesis 6:2, 4 da lista
92
de seres sobrenaturais. O que nos leva a essa escolha é a apreensão sobre
a alternativa.
PEDRO E JUDAS
Pedro e Judas não temiam a alternativa. Eles entendiam a visão
sobrenatural de Gênesis 6:1-4. Duas passagens são especialmente
relevantes.
1Assim como, no passado, surgiram falsos profetas entre o povo, da
mesma forma, haverá entre vós falsos mestres, os quais introduzirão,
dissimuladamente, heresias destruidoras, até ao cúmulo de negarem o
Soberano que os resgatou, atraindo sobre si mesmos repentina
destruição. 2Muitos seguirão seus falsos ensinos e práticas libertinas, e
por causa dessas pessoas, haverá difamação contra o Caminho da
Verdade. 3Movidos por sórdida ganância, tais mestres os explorarão
com suas lendas e artimanhas. Todavia, sua condenação desde há
muito tempo paira sobre eles, e sua destruição já está em processo.
4Ora, se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas os lançou no
inferno, aprisionando-os em cadeias abismais tenebrosas, com o
propósito de serem reservados para o Juízo, 5de igual modo, Ele não
poupou o mundo antigo quando abateu o Dilúvio sobre aquele povo
ímpio, entretanto preservou Noé, proclamador da justiça, e mais sete
pessoas. 6Também condenou as cidades de Sodoma e Gomorra,
reduzindo-as a cinzas, tornando-as exemplo do que sucederá aos que
vivem praticando o mal. 7E Deus livrou o justo Ló, que vivia oprimido
com o procedimento corrupto e libertino daqueles incrédulos; 8porque
este justo, pelo que via e ouvia diariamente, quando habitava entre eles,
sentia sua alma atormentada por causa das muitas obras iníquas
daquelas pessoas. 9Constatamos, portanto, que o Senhor sabe livrar os
piedosos da provação e manter em castigo os ímpios para o Dia do
Juízo, 10principalmente os que seguem as vontades imorais da carne e
desprezam toda autoridade constituída. Atrevidos e arrogantes! Tais
pessoas não têm receio nem mesmo de insultar os gloriosos seres
celestiais; (2 Pedro 2:1-10).
5Quero, portanto, recordar-vos, embora já estejais bem informados
sobre tudo isso, que o Senhor libertou um povo do Egito, contudo, mais
93
tarde, destruiu todos os que não creram. 6E, quanto aos anjos que não
guardaram sua autoridade e santidade originais, mas abandonaram
seu próprio domicílio, Ele os tem mantido em trevas, presos com
correntes eternas para o julgamento do grande Dia. 7De maneira
semelhante a estes, Sodoma e Gomorra e as cidades circunvizinhas
entregaram-se à imoralidade e a todo tipo de depravação sexual.
Estando sob o castigo do fogo eterno, essas cidades nos servem de
exemplo. (Judas 5-7).
Os estudiosos concordam que as passagens são sobre o mesmo
assunto. Elas descrevem um episódio do tempo de Noé e do dilúvio onde
“anjos” pecaram. O pecado, que precipitou o dilúvio, foi de natureza
sexual; ele é colocado na mesma categoria que o pecado de levou ao
julgamento de Sodoma e Gomorra. A transgressão foi interpretada por
Pedro e Judas como evidência da desobediência à autoridade e aos
limites de uma “morada apropriada” pelas partes envolvidas. Todos
esses elementos são claros em Gênesis 6:1-4. Simplesmente não há
nenhum outro pecado no VT que bate com esses detalhes específicos, e
nenhum outro pecado “angelical” com certeza no VT que se refere a esse.
A punição por essa transgressão, no entanto, é mencionada em
Gênesis 6:1-4. Pedro diz que os filhos divinos de Deus foram presos no
“Tártaro” nas correntes da escuridão até o dia do julgamento. Judas ecoa
esse pensamento e ainda diz que o julgamento como sendo o dia do
Senhor (“o grande Dia”; Sofonias 1:1-7; Apocalipse 16:14). Esses
elementos vêm da literatura judaica escrita entre o Velho e o Novo
Testamento (o período do “Segundo Templo”) que reconta o episódio de
Gênesis 6. O mais famoso deles é 1 Enoque. Esse livro nos informa o
pensamento de Pedro e Judas; ele fazia parte da visão intelectual deles.
Os escritores inspirados do NT estavam perfeitamente confortáveis com
o conteúdo encontrado em 1 Enoque e outros livros judaicos para
articular sua teologia.
Essas observações são importantes. Todas as tradições judaicas
antes da era do NT tinham uma visão sobrenatural de Gênesis 6:1-4. Em
outras palavras, elas estavam alinhadas com 2 Pedro e Judas. A
interpretação dessas passagens, pelo menos em respeito à sua orientação

94
sobrenatural, não era um problema até o final do Século IV a.C., quando
caiu a favor de alguns pais influentes da igreja, especialmente Agostinho.
Mas a teologia bíblica não deriva de tais pais da igreja. Ela deriva
do texto bíblico, formada em seu próprio contexto. Os estudiosos
concordam que a literatura judaica do Segundo Tempo que influenciou
Pedro e Judas mostram uma familiaridade íntima com o contexto
mesopotâmico de Gênesis 6:1-4. Para as pessoas que consideram os
Velho e o Novo Testamento igualmente inspirados, interpretar Gênesis
6:1-4 “em contexto” significa analisa-lo à luz de seu fundo
mesopotâmico, assim como fizeram 2 Pedro e Judas, cujos conteúdos
utilizam interpretações sobrenaturais da teologia judaica de seu próprio
tempo. Filtrar Gênesis 6:1-4 através da tradição cristã que surgiu séculos
depois do período do Novo Testamento não pode ser honestamente
considerado como interpretando Gênesis 6:1-4 em contexto.
Nosso próximo passo é construirmos o que aprendemos. No
próximo capítulo, daremos uma olhada de perto em como os antigos
contextos de Gênesis 6:1-4 demandam uma análise sobrenatural para a
passagem. Fazendo assim, seremos capazes de entender essa mensagem
e dominar melhor a narrativa bíblica mais amplamente.

95
CAPÍTULO 13
A SEMENTE MALIGNA
No último capítulo aprendemos que os escritores do novo
testamento partilhavam do clima intelectual de sua própria comunidade
judaica, uma comunidade que floresceu no período entre o Velho e o
Novo Testamento. Seria desnecessário mencionar isso, dado o
entusiasmo que muitos leitores da Bíblia têm hoje de em dia em tentar
entender o pensamento judaico para entender as palavras de Jesus e dos
apóstolos. Quando isso chega em Gênesis 6:1-4, no entanto, esse
entusiasmo frequentemente azeda, uma vez que o resultado não é
apoiado pela maioria das confortáveis interpretações cristãs.
A verdade é que os escritores do NT não conheciam nada da visão
Setita, nem nenhuma outra visão que fazia dos filhos de Deus de Gênesis
6:1-4 humanos. Nosso objetivo nesse capítulo é revisita essa passagem e
nos aprofundarmos ainda mais. Quando a tomarmos em seus próprios
termos, poderemos determinar suas características e significado.
O CONTEXTO DO ORIENTE PRÓXIMO
Que Gênesis 1-11 possui muitas conexões com a literatura
mesopotâmica, isso não é novidade para os estudiosos, evangélicos ou
outros. A história da criação, as genealogias antes do dilúvio, o próprio
dilúvio e o incidente da Torre de Babel, todos eles possuem conexões
seguras com o material mesopotâmico que é muito mais antigo que o
Velho Testamento.
Gênesis 6:1-4, também, possui raízes mesopotâmicas profundas
que, até bem recentemente, não haviam sido totalmente reconhecidas e
apreciadas. A literatura judaica como 1 Enoque que reconta essa história
nos mostra uma consciência aguda desse contexto mesopotâmico. Essa
consciência nos mostra que os pensadores judaicos do período do
Segundo Templo entendiam corretamente que a história envolvia seres
divinos e uma descendência de gigantes. Esse entendimento é essencial
para absorvermos o que os escritores bíblicos estavam tentando nos
comunicar.

96
Gênesis 6:1-4 é uma polêmica; ele é um esforço literário e
teológico para destruir a credibilidade dos deuses mesopotâmicos e
outros aspectos da visão daquela cultura. Os escritores bíblicos fazem
isso frequentemente. A estratégia frequentemente envolve pegar linhas
emprestadas e motivos da literatura da civilização alvo para articular a
correta teologia sobre Yahweh e mostrar desprezo pelos outros deuses.
Gênesis 6:1-4 é um estudo de caso nessa técnica.
A Mesopotâmia tinha várias versões da história do catastrófico
dilúvio, completadas com um grande barco que salva animais e
humanos. Eles incluíam a menção de um grupo de sábios (os apkallus),
possuidores de um grande conhecimento, no período antes do dilúvio.
Esses apkallus eram seres divinos. Muitos apkallus eram considerados
maus; esses apkallus eram parte integrante da demonologia
mesopotâmica. Após o dilúvio, a descendência dos apkallus era dita
como sendo humana (isto é, tinham um parente humano) e “dois terços
apkallus”. Em outras palavras, os apkallus se relacionaram com
mulheres humanas e produziram uma descendência quase divina.
Os paralelos a Gênesis 6:1-4 são impossíveis de não serem
percebidos. Os “dois terços divinos” descritos, são especialmente
importantes, uma vez que ele precisamente se encaixa com a descrição
do herói mesopotâmico Gilgamesh. Trabalhos importantes recentes
sobre as tábuas cuneiformes do Épico de Gilgamesh revelaram que
Gilgamesh era considerado um gigante que reteve conhecimento de
antes do dilúvio.
Outras conexões: na história do dilúvio mesopotâmica
encontrada num texto conhecido como o Épico de Erra, o alto deus
babilônico Marduk pune os maus apkallus com o banimento para as
águas profundas subterrâneas de dentro da terra, as quais eram
conhecidas como Apsu. O Apsu também era considerado parto do
submundo. Marduk mandou que eles nunca subissem novamente. Os
paralelos são claros e inequívocos. O banimento desses sinistros seres
divinos para além da terra é significante. No último capítulo, notei que
esse elemento da história, encontrado em 2 Pedro e Judas, não é
encontrado no Velho Testamento. A presença desse item em livros como
1 Enoque e, subsequentemente, no Novo Testamento, é uma clara
97
indicação que os escritores judaicos no período entre os testamentos
estavam alertas ao contexto mesopotâmico de Gênesis 6:1-4.
Existem outras duas características para destacarmos em nossa
discussão antes de discutirmos o que tudo isso significa.
OS FILHOS DE DEUS:
Sentinelas, Filhos do Céu, Santos
A transgressão divina antes do dilúvio é recontada em vários
textos judaicos do período intertestamentário. Pelo menos um tem os
ofensores divinos vindo à terra para “consertar” a bagunça que era a
humanidade, para fornecer uma direção e liderança através do seu
conhecimento. Eles estavam tentando ajudar, mas uma vez que
assumiram a carne, falharam em resistir aos seus impulsos. A versão
mais comum dos eventos, a que possui o sabor mais sinistro, é
encontrada em 1 Enoque 6-11. Essa é a leitura que informou Pedro e
Judas. A história começa bem parecida com Gênesis 6:
E quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias, filhas
lindas e graciosas nasceram deles. E os sentinelas, os filhos do céu,
viram-nas e desejaram-nas. E eles disseram uns aos outros, “Vamos,
escolhamos para nós mesmos esposas das filhas dos homens, e geremos
filhos para nós mesmos”.
A narrativa fala dos Sentinelas descendo no Monte Hermon, um
lugar que será um fator importante dentro do épico bíblico de maneiras
inesperadas. Sentinela, a tradução para o português do Aramaico ‘ir, não
nos é nova. Num capítulo anterior sobre como Deus e seu conselho
participavam juntos para tomar uma decisão, vimos uma parte de Daniel
4 em que ele escreve em Aramaico, e em Hebraico. Daniel 4 é a única
passagem bíblica que especificamente usa o termo sentinela para
descrever esses “santos” do conselho do Yahweh. O contexto geográfico
de Daniel, é claro, é a Babilônia (Dan 1:1-7), a qual fica na Mesopotâmia.
A descendência dos Sentinelas (filhos de Deus) em 1 Enoque
eram gigantes (1 Enoque 7). Alguns fragmentos de 1 Enoque dentro dos
Pergaminhos do Mar Morto nos dá os nomes de alguns gigantes. Outros

98
textos que recontam essa história e, logo, estão relacionados a 1 Enoque,
fazem o mesmo. O mais impressionante desses é conhecido pelos
estudiosos de hoje como O Livro dos Gigantes. Ele só existe em
fragmentos, mas dá nomes a vários gigantes, descendentes dos
Sentinelas, que sobreviveram. Um dos nomes é Gilgamesh, o
personagem principal do Épico de Gilgamesh da Mesopotâmia.
As figuras dos apkallus, os equivalentes mesopotâmicos dos
filhos de Deus, são conhecidos através dos trabalhos dos arqueólogos
mesopotâmicos. Eles eram enterrados em filas de caixas como partes da
fundação dos muros das construções mesopotâmicas para se
defenderem de poderes malignos. Essas caixas eram referidas pelos
mesopotâmicos como mats-tsarey, que significa “sentinelas”. A conexão
é explícita e direta.
OS NEPHILIM
Um dos grandes debates sobre Gênesis 6:1-4 é o significado da
palavra Nephilim. Vimos no contexto mesopotâmico que os apkallus
eram divinos, se casaram com mulheres humanas, e produziram uma
descendência de gigantes. Também vimos que os pensadores judeus do
período do Segundo Templo viam os descendentes de Gênesis 6:1-4 da
mesma forma, como gigantes. Uma análise do termo Nephilim deve ser
feita, e não ignorado ou violado, o seu contexto.
A interpretação do termo Nephilim deve também levar em conta
outro fenômeno judaico entre os testamentos, a tradução do Velho
Testamento para o grego. Falo aqui do Septuaginta. A palavra Nephilim
aparece duas vezes na Bíblia Hebraica (Gên 6:4; Num 13:33). Em ambos
os casos o Septuaginta traduziu o termo como gigas (“gigantes”).
Dados os estudos que já fizemos, deveria ser óbvio que a palavra
Nephilim era para ser entendida como “gigantes”. Mas muitos
comentaristas resistem a essa tradução, argumentando que ela deveria
ser lida como “os caídos” ou “aqueles que foram derrubados” (uma
expressão de batalha). Essas opções são baseadas na ideia de que a
palavra deriva do verbo hebraico n-p-l (naphal, “cair”). Ainda mais
importante, aqueles que argumentam que Nephilim deveria ser
traduzido como uma dessas expressões, ao invés de “gigantes”, fazem
99
isso para deixar d elado a natureza quase divina dos Nephilim. Dessa
forma fica mais fácil para eles argumentarem que os filhos de Deus eram
humanos.
Na verdade, não importa se “os caídos” seja a tradução. Em
ambos contextos mesopotâmicos e do pensamento judeu do Segundo
Templo, seus pais eram divinos e os Nephilim (independentemente de
sua tradução) ainda são descritos como gigantes. Consequentemente,
insistir que o nome significa “caídos”, não produz nenhum argumento
que vá contra a interpretação sobrenatural.
Apesar desse argumento ser inútil, não estou inclinado a
conceder análise. Não acho que Nephilim significa “caídos”. Os
escritores judeus e tradutores habitualmente pensam em “gigantes”
quando eles usam ou traduzem o termo. Acho que existe uma razão para
isso.
Explicar minha própria visão do que o termo significa, envolve a
morfologia hebraica, a maneira como as palavras são soletradas ou
formadas no hebraico. Uma vez que essa discussão se torna técnica
muito rapidamente, preferi colocar esses detalhes em outro lugar, pelo
menos a maior parte. Mas como não gosto de deixar perguntas sem
respostas, temos que devotar uma atenção aqui.
Ao soletrar a palavra Nephilim, temos uma pista da raiz de onde
o termo é derivado. Nephilim é soletrado de duas maneiras diferentes na
Bíblia Hebraica: Nephilim e nephiylim. A diferença entre elas é o “y” na
segunda instância. O hebraico originalmente não possui vogais. Todas as
palavras são escritas só com consoantes. Com o passar do tempo, os
escribas hebreus começaram a usar algumas das consoantes para marcar
sons de vogais longas. O português faz isso com a consoante “w”, sendo
ela às vezes uma vogal. O hebraico também faz isso com a sua letra “y”
(o yod).
O que temos aqui é que a segunda instância (nephiylim) nos
mostra que a raiz por trás do termo possui um longo “i” (y) nela, antes
que o final no plural (-im) seja adicionado. Isso nos ajuda a determinar
que a palavra não significa “aqueles que caíram”. Se esse fosse o caso, a
palavra deveria ser soletrada como nophelim. A tradução de “caídos” do
100
verbo naphal também é enfraquecida pela forma soletrada com o “y”. Se
a palavra viesse do verbo naphal, teríamos a palavra nephulim para
“caídos”.
No entanto, existe outra possibilidade de defesa para o
significado de “caído”. Ao invés de vir do verbo naphal, a palavra poderia
vir de um substantivo que possui uma vogal “i” longa na segunda sílaba.
Esse tipo de substantivo é chamado de substantivo qatiyl. Embora não
exista tal substantivo como naphiyl na Bíblia Hebraica, a forma plural
hipotética seria nephiylim, que é a forma mais longa que vemos em
Números 13:33.
Essa opção resolve o problema da soletração, mas falha em
explicar todo o resto: o contexto mesopotâmico, o reconhecimento dos
judeus do Segundo Templo desse contexto, a conexão do termo aos
gigantes Anakim (Números 13:33; Deut 2-3), e o fato de que os
tradutores do Septuaginta interpretavam a palavra como “gigantes”.
Então de onde a palavra nephiylim veio? Será que existe uma
reposta que iria simultaneamente explicar porque os tradutores
pensavam consistentemente em “gigantes”?
Na verdade, existe.
Lembrem-se que o Velho Testamento nos diz que os intelectuais
judeus foram levados para a Babilônia. Durante esses setenta anos, os
judeus aprenderam a falar Aramaico. Mais tarde eles trouxeram isso de
volta para Judá. Foi assim que o Aramaico se tornou o idioma principal
na Judéia nos tempos de Jesus.
O ponto de Gênesis 6:1-4 era o de expressar desprezo pelos
apkallus mesopotâmicos e sua linhagem de gigantes. Os escritores
bíblicos tinham uma escolha fácil de vocabulário para seres divinos: os
filhos de Deus. Seus leitores deveriam saber que a frase apontava para
seres divinos, e outras passagens na Torá (Deut 32:17) rotulavam outros
seres divinos como demônios (shedim). Mas esses escritores precisavam
de uma boa palavra para vilificar a descendência gigante. “Os caídos” não
iria telegrafar gigantismo, então ela não iria ajuda-los a chegarem ao
ponto.
101
Minha visão é essa, que para resolver esse problema de
mensagem, os escribas judeus adotaram um substantivo Aramaico:
naphiyla, que significa “gigante”. Quando você importa essa palavra e a
pluraliza no hebraico, você tem nephiylim, assim como vemos em
Números 13:33. Essa é a única explicação para o significado da palavra
que aparece em todos os contextos e fornece todos os detalhes.
A ESTRATÉGIA DE GÊNESIS 6
Mas o que tudo isso significa? Por que Gênesis 6:1-4 está na
Bíblia? Qual é a sua mensagem teológica? Já mostrei que o objetivo era
polêmico, uma rejeição à religião mesopotâmica. Mas isso era um pouco
vago. Vamos explorar isso.
Devido ao fato de Gênesis 1-11 possuir muita profundidade,
pontos específicos com a literalidade mesopotâmica funcionam, e
muitos estudiosos acreditam que esses capítulos, ou foram escritos
durante o exílio na Babilônia ou foram editados nessa época. Os escribas
queriam deixar claro que certas ideias religiosas sobre os deuses e o
mundo eram enganosas ou falsas.
Pensem no que acontecia. Os judeus, seguidores de Yahweh,
estavam na Babilônia, deportados contra seu desejo pelo maior império
do mundo conhecido. Embora cativos, profetas como Ezequiel (e
Jeremias antes dele) diziam às pessoas que a sua situação era
temporária, que o Deus de Israel permanecia em total soberania. Ele
estava com total controle e era o verdadeiro Deus. Eles seriam libertados
e a Babilônia iria cair. Para os escribas judeus, seu trabalho durante o
exílio era uma oportunidade de deixar isso gravado para a posteridade.
E isso eles fizeram.
Os intelectuais da Babilônia (a maioria deles da classe dos
sacerdotes) presumiam que a civilização da Mesopotâmia antes do
dilúvio havia sido criada por seus deuses. E por essa razão, eles queriam
se conectar e as suas realizações intelectuais com esse conhecimento de
antes do dilúvio. Era a maneira deles de afirmar que seu conhecimento
e habilidades eram divinos e, sendo assim, superior àqueles das nações
que conquistaram. Isso significa que os deuses dessas nações eram
inferiores aos deuses da Babilônia.
102
Os apkallus era grandes heróis cultos de conhecimento pré-
diluviano. Eles eram os sábios divinos de uma gloriosa era perdida. Os
reis babilônicos afirmavam descender desses apkallus e outras figuras
divinas de antes do dilúvio. O pensamento coletivo era o de que a
gloriosa Babilônia era a única a possuir o conhecimento divino, e que a
sua liderança como império era aprovada pelos deuses.
Os escritores bíblicos e judeus da época não concordavam. Eles
viam o conhecimento babilônico como sendo de origem demoníaca, em
grande parte porque os próprios apkallus eram, por si mesmos, bem
ligados à demonologia mesopotâmica. A elite babilônica ensinava que o
conhecimento divino dos apkallus havia sobrevivido ao dilúvio através
de uma geração pós-diluviana de apkallus que se sucedeu, gigantes, uma
descendência de seres quase divinos que tiveram como pais os apkallus
pré-diluvianos.
Os escritores bíblicos pegaram o que os babilônios achavam ser à
prova de sua própria herança divina e contaram uma história diferente.
Sim, existiram gigantes, homens de renome, antes e depois do dilúvio
(Gên 6:4). Mas essa descendência e seu conhecimento não era do
verdadeiro Deus, eles eram o resultado de uma rebelião contra Yahweh
por seres divinos menores. Gênesis 6:1-4, junto com 2 Pedro e Judas,
mostram que a ostentação babilônica como uma horrível transgressão e,
até pior, o catalizador que espalhou a corrupção através da humanidade.
Gênesis 6:5 é essencialmente o resumo do efeito dessa transgressão. Ele
é pequeno, é uma narrativa restrita. A literatura judaica do final do
Segundo Templo vai bem além com detalhes completos.
1 Enoque 8 descreve como certos sentinelas corromperam a
humanidade por meios de conhecimento divino proibido, práticas
amplamente absorvidas pelas ciências babilônicas, outra clara indicação
de que o contexto intelectual da história era conhecido aos autores do
Segundo Templo. Uma vez que os apkallus babilônicos eram
considerados demoníacos, não é nenhum mistério entender por que
Pedro e Judas ligam os eventos de Gênesis 6:1-4 a falsos profetas (2
Pedro 2:1-4). Enquanto atacavam seu conhecimento aberrante, Pedro e
Judas evocavam as imagens de Gênesis 6. Falsos profetas eram homens
“sem vergonha” os quais se satisfaziam em “concupiscências
103
contaminadas” (2 Pedro 2:2, 10; Judas 8). Como os seres divinos de
Gênesis 6 os quais “não mantiveram sua própria habitação” (Judas 6),
diferentes dos elohim leias do conselho de Yahweh, falsos profetas
“desprezam a autoridade” e “insultam gloriosos seres celestiais” cujos
anjos não ousam pronunciar quaisquer acusações difamatórias (2 Pedro
2:9-11; Judas 8-10).
Ainda menos óbvia é a implicação do incidente em respeito à
semente prometida de Eva. Os escritores bíblicos dão atenção à pureza
de Noé (Gên 6:9). As escrituras não especificamente eximem Noé e sua
família da coabitação pecaminosa de Gênesis 6:1-4, mas uma vez que o
evento era tão hediondo, seria um absurdo presumirmos o contrário. Os
conceitos como os de filiação divina começaram a aparecer na Bíblia com
respeito a Israel povo de Yahweh (Êxodo 4:23), o rei Israelita (Salmos
2:7), e, no final, o messias, a mensagem teológica se torna importante.
Noé está na linhagem de Cristo (Lucas 3:36; 3:38). E não se pode afirmar
de jeito nenhum que a semente final de Eva, o libertador messiânico, fora
filho de qualquer elohim que não seja Yahweh.
Gênesis 6:1-4 está longe de ser de uma importância periférica.
Ele alimenta o tema do conflito entre os rebeldes divinos (a “semente do
nachash”) e a humanidade que impedirá o progresso da restauração do
Éden. É uma das duas passagens do Velho Testamento que
fundamentalmente formam a história de Israel como um povo e uma
terra. A outra é o assunto do próximo capítulo.

104
CAPÍTULO 14
ATRIBUIÇÕES DIVINAS
As transgressões divinas de Gênesis 3 e 6 são parte de um
prelúdio teológico que forma o resto da Bíblia. Esses dois episódios,
junto com um terceiro que iremos cobrir nesse capítulo, são os
componentes centrais da visão sobrenatural dos antigos israelitas e da
comunidade judaica na qual o cristianismo nasceu.
Tomados juntos, esses episódios são o conto de uma moralidade
teológica sobre a futilidade e o perigo de tentar se recuperar o Éden de
qualquer jeito que não seja aquele que Deus projetou. Depois do Éden,
Deus ainda quer habitar com a humanidade. Mas existirá uma oposição.
Seres divinos a serviço de Yahweh podem atrapalhar. Os inimigos de
Yahweh e sua liderança, desde humanos até divinos a algo entre eles,
espreitam além do horizonte. Céu e terra eram destinados a se reunificar,
mas isso será uma batalha titânica.
Enquanto isso, qualquer esforço de se recapturar a intenção
original de Deus fora da própria estratégia de Deus e desejo em restaurar
o Éden terminaria em desastre. Não existiria nenhuma utopia edênica
revivida pelos seres humanos ou outros deuses. Isso seria uma lição
dolorosa.
DO DILÚVIO ATÉ BABEL
Existem muitas características de Gênesis 6 que um israelita teria
pego nas informações que ele lia nas outras passagens da Torá. O
versículo 4 é especialmente importante:
4Ora, naquela época, e também algum tempo depois, havia nefilins na
terra, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens e elas
lhes deram filhos. Esses gigantes foram os heróis dos tempos antigos,
homens rudes e famosos!
Os Nephilim são tidos como “heróis / guerreiros” (gibborim) e
“homens de renome / famosos”, literalmente”, “homens do nome”
(shem). Os termos gibbor(im) e shem aparecem em vários lugares na
história do VT.
105
Imediatamente depois do dilúvio, Ninrode (cujo nome é quase
igual a “rebelião”) é chamado de um gibbor. Ninrode é tido como o
progenitor das civilizações da Assíria e Babilônia (Gên 10:6-12). Mais
uma vez, assim como em Gênesis 6, o contexto mesopotâmico é claro.
Assíria e Babilônia são as duas civilizações que mais tarde irão destruir
o sonho de um reino terreno de Deus em Israel, desmantelando,
respectivamente, o reino do Norte (Israel) e o reino do Sul (Judá).
A linguagem não é coincidência. Ela liga a Babilônia de volta a
Gênesis 6 e sua transgressão divina. A descrição de Ninrode em Gênesis
10, na então chamada Tabela das Nações, é então uma ponte teológica
entre a violação de Gênesis 6:1-4 e o próximo evento importante na Torá
que formará toda a história de Israel.
A TORRE DE BABEL
A famosa história da construção da Torre de Babel é muito mais
do que um projeto de construção doentia e confusão de línguas. O
episódio está no coração da visão do VT. Foi na Babilônia que as pessoas
buscaram “fazer um nome (shem) para elas mesmas” ao construir uma
torre que chegasse até os céus, o reino dos deuses. A cidade é mais uma
vez tida como a fonte de uma sinistra atividade e conhecimento.
Lemos assim em Gênesis 11:1-9:
1Em todo o mundo, as pessoas se serviam de uma mesma língua, e de
uma única maneira de falar. 2Quando os seres humanos emigraram
para o Oriente, encontraram uma planície em Sinear e ali se
estabeleceram. 3Combinaram uns com os outros: “Vinde! Façamos
tijolos e cozamo-los ao fogo!” O tijolo lhes serviu de pedra e o betume de
argamassa. 4E decidiram mais: “Vinde! Construamos uma cidade e
uma torre cujo ápice penetre nos céus! Dessa forma, nosso nome será
honrado por todos e jamais seremos dispersos pela face da terra!” 5O
SENHOR desceu para observar a cidade e a torre que os homens
estavam erguendo. 6Então declarou o SENHOR: “Eis que a
humanidade se constitui em um só povo e falam todos a mesma língua,
e essa construção é apenas o início de suas iniciativas! Em breve nada
poderá impedi-los de realizar o que quiserem! 7Portanto, vinde!
Desçamos! Confundamos a linguagem dos seres humanos, a fim de que
106
não mais se entendam uns com os outros!” 8E foi dessa maneira que o
SENHOR os espalhou dali por toda a terra, e pararam de erguer a
cidade. 9Por isso ficou conhecida como Babel, porquanto ali o SENHOR
confundiu a língua de todo o mundo. E, assim, desde a Babilônia, o
SENHOR dispersou a humanidade sobre a face da terra.
Vocês notarão de cara que temos aqui o mesmo tipo de
“exortação no plural” acontecendo no versículo 7 como vimos em
Gênesis 1:26. O versículo tem Yahweh proclamando: “Desçamos!
Confundamos a linguagem dos seres humanos”. Como foi no caso de
Gênesis 1:26, o anúncio no plural é seguido pela ação de apenas um ser,
Yahweh: “Então Yahweh os espalhou”. (11:8).
É nesse ponto que a maioria dos leitores da Bíblia presumem que
não há nada mais no que se pensar. Isso é porque as passagens do VT
que falam sobre esse evento tendem a ser omitidas da discussão. O mais
importante desses é Deuteronômio 32:8-9:
8Quando o Altíssimo separou os povos e deu a cada nação as suas
terras em herança, quando separava os filhos dos homens uns dos
outros, fixou os limites dos povos, segundo o número dos filhos de Deus!
9Mas o povo preferido do SENHOR é Israel: Jacó e a descendência que
lhe coube.
Deuteronômio 32:8-9 descreve como que a dispersão de Yahweh
das nações em Babel resultou em sua deserdação daquelas nações e seus
povos. Esse é equivalente do VT a Romanos 1:18-25, uma passagem
familiar onde Deus “desistiu (da humanidade) ” devido à sua rebelião
persistente. A afirmação em Deuteronômio 32:9 de que “a porção do
SENHOR (isto é, Yahweh) e seu povo, Jacó e a descendência que lhe
coube” nos mostra um contraste de afeição e propriedade é requerida.
Yahweh, em efeito, decidiu que os povos das nações do mundo não mais
iriam se relacionar com ele. Ele começaria um novo. Ele entraria numa
relação de aliança com o novo povo que não existia ainda: Israel.
As implicações dessa decisão e essa passagem são cruciais para
entendermos a maior parte do que está no VT.

107
A maioria das Bíblias em português não estão escritas “de acordo
com o número dos filhos de Deus” em Deuteronômio 32:8. Ao invés
disso, elas estão escritas: “de acordo com o número dos filhos de Israel”.
A diferença é derivada de desentendimentos entre os manuscritos do VT.
“Filhos de Deus” é a tradução correta, pois agora é conhecida dos
Pergaminhos do Mar Morto.
Francamente, não precisamos saber as razões técnicas do por que
lermos “filhos de Deus” em Deuteronômio 32:8-9 é o que o verso
originalmente diz. Vocês devem apenas pensar um sobre a leitura
errada, os “filhos de Israel”. Deuteronômio 32:8-9 nos leva de volta aos
eventos da Torre de Babel, um evento que aconteceu antes da chamada
de Abraão, o pai da nação de Israel. Isso significa que as nações da terra
foram divididas em Babel antes de Israel sequer existir como um povo.
Não faria sentido para Deus dividir as nações da terra “de acordo com o
número dos filhos de Israel” se Israel ainda não existia. Esse ponto nos
traz de volta a esse raciocínio pelo simples fato de que Israel não está
listada na Tabela das Nações.
A VISÃO MUNDIAL DE DEUTERONÔMIO 32
Então o que aconteceu às outras nações? Qual é o significado de
elas terem sido feitas heranças de acordo com o número dos filhos de
Deus?
Por mais estranho que pareça, o resto das nações foram
atribuídas aos elohim menores como um julgamento do Altíssimo,
Yahweh.
Essa interpretação é sólida e é deixada ainda mais clara por uma
passagem paralela explícita, Deuteronômio 4:19-20. Aqui Moisés diz aos
Israelitas:
19Tudo isso para que, ao levantardes vossos olhos em direção ao céu e
observardes o sol, a lua, as estrelas e todos os demais corpos celestes,
não vos deixeis seduzir por esses astros para adorá-los e a eles servir!
Porquanto, são apenas coisas que Yahweh, vosso Deus, distribuiu entre
todos os povos que vivem debaixo do céu. 20Contudo, quanto a vós, o
SENHOR vos tomou e tirou do meio da fornalha de fundir ferro, do
108
Egito, a fim de que sejais o povo da herança de Yahweh, como hoje se
observa claramente!
Deuteronômio 4:19-20 é o outro lado da moeda punitiva de Deus.
Onde em Deuteronômio 32:8-9 Deus reparte ou desiste das nações para
os filhos de Deus, aqui Deus disse que “atribuiu” os deuses a essas
nações. Deus decretou, no despertar de Babel, que as outras nações que
ele abandonou teriam outros deuses que não ele para adorarem. Isso é a
mesma coisa que Deus dizer: “Se vocês não querem me obedecer, não
estou interessado em ser seu Deus, serei substituído por outro deus”.
Salmos 82, onde começamos nossa discussão sobre o conselho divino,
ecoa essa decisão. Esse Salmo tem Yahweh julgando os outros elohim,
filhos do Altíssimo, pela sua corrupção na administração das nações. O
Salmo termina com o salmista pedindo: “Levante-se, Oh Deus, julgue a
terra, pois pertencem todas as nações”.
Parece que a resposta de Deus no incidente da Torre de Babel foi
bem severa. Mas considerem o contexto. Não que Yahweh fosse o
inspetor de uma construção glorificada.
Como notamos num capítulo anterior, imaginava-se que os
deuses vivessem em montanhas. A torre de Babel é tida por todos os
estudiosos como uma das montanhas sagradas mesopotâmicas mais
famosas feitas por mãos humanas, um zigurate. Zigurates são moradas
divinas, lugares onde os mesopotâmicos acreditavam que o céu e a terra
se misturavam. A natureza dessa estrutura deixa evidente o propósito
em construí-la, trazer o divino para baixo na terra.
O escritor bíblico não perde tempo em ficar ligando esse ato à
transgressão divina anterior de Gênesis 6:1-4. Essa passagem visava
mostrar os gigantes quase divinos dos heróis da cultura babilônica (os
apkallus) que sobreviveram ao dilúvio como “homens de renome” ou,
mais literalmente, “homens de nome (shem)”. Aqueles que construíram
a Torre de Babel queriam faze-la para “fazer um nome (shem)” para eles
mesmos. A construção da Torre de Babel significava perpetuar o
conhecimento das religiões babilônicas e substituir a liderança dos
deuses em Babel pela liderança de Yahweh.

109
Yahweh não teve nada a ver com isso. Depois do dilúvio, Deus
mandou que a humanidade mais uma vez “frutificasse e multiplicasse, e
enchesse a terra” (Gên 9:1). Essas palavras reiteravam a intenção
Edênica original. Mas ao invés de obedecerem e terem Yahweh como seu
deus, as pessoas se juntaram para construir uma torre. A mensagem
teológica dessa história é clara. A humanidade afastou-se de Yahweh e
do seu plano de restaurar o Éden através deles, então ele iria se afastar
deles e começar de novo.
Mesmo sendo essa uma decisão dura, as outras nações não foram
completamente esquecidas. Yahweh deserdou as nações, e no próximo
capítulo de Gênesis, ele chama Abraão para fora, imaginam de onde,
Mesopotâmia. Novamente, isso não aconteceu por acidente. Yahweh
tiraria um homem do meio do coração da rebelião e faria uma nova
nação, Israel. Mas nessa aliança com Abraão, Deus disse que todas as
nações da terra seriam abençoadas através de Abraão, através de seus
descendentes (Gên 12:1-3).
A linguagem usada nesta aliança revela a intenção de Deus,
debaixo dos calcanhares de sua decisão em punir as nações, que os
israelitas serviriam como um conduto para seu retorno ao verdadeiro
Deus. Essa é uma das razões pelas quais Israel é mais tarde chamada de
“um reino de sacerdotes” (Êxodo 19:6). Israel estaria em aliança com o
“Deus dos deuses” e o “Senhor dos senhores” (Deut 10:17). Essa
deserdação estaria ligada espiritualmente aos corruptos filhos de Deus.
Mas Israel seria um condutor, um mediador. Yahweh deixaria um rastro
espiritual de migalhas de pão atrás dele mesmo. O caminho levaria à
Israel e, no final, ao messias de Israel.
Após a fatídica decisão em Babel, a história do Velho Testamento
é sobre Israel versus as nações deserdadas, e Yahweh versus os corruptos
e rebeldes elohim dessas nações. A divisão dessas nações e suas
atribuições sob os outros elohim está por trás das cenas em todos os tipos
de lugares na história bíblica. Dar-vos-ei uma amostra do que digo no
próximo capítulo.

110
CAPÍTULO 15
GEOGRAFIA CÓSMICA
No último capítulo tivemos nossa primeira exposição a
Deuteronômio 32:8-9, Yahweh deserdando as nações. Essa era a lente
teológica através da qual um antigo israelita via sua própria nação com
respeito à todas as outras, e seus elohim, Yahweh contra os deuses dessas
nações. Por definição, Yahweh era superior. Ela é o Altíssimo (elyon), o
título usado em Deuteronômio 32:8-9.
Dessa forma, o VT descreve um mundo onde linhas geográficas
cósmicas foram desenhadas. Israel era solo sagrado, pois era a
“possessão” de Yahweh, na linguagem de Deuteronômio 32:8-9. Os
territórios das outras nações pertenciam aos outros elohim, pois Yahweh
assim decretou. Salmos 82 nos diz que os elohim menores eram
corruptos. Não nos é dito como os elohim aos quais Yahweh atribuiu as
nações se tornaram corruptos, só que eles eram. Está claro em
Deuteronômio 4:19-20; 17:3; 29:25 e 32:17 que esses elohim não eram
de adoração legítima por parte de Israel.
Essa perspectiva geográfica cósmica explica muitas passagens
esquisitas na Bíblia, e nos fornece um fundo teológico dramático a
outras. Uma das mais chamativas está no Novo Testamento. Esperemos
por ela até que alcancemos o tempo de Jesus e os apóstolos. Por agora,
ilustrarei o ponto com alguns exemplos rápidos, mas fascinantes.
O PREDICAMENTO DE DAVI
Depois de ser ungido por Samuel e obter vitória sobre Golias (1
Samuel 16-18), Davi gastou um tempo danado tentando escapar da ira
do Rei Saul. Durante este tempo em que ele fugia, Davi ocasionalmente
caía em territórios fora dos limites de Israel. Em um dos episódios onde
Davi encontra Saul numa situação vulnerável e podendo até mesmo ter
matado seu perseguidor, lemos a seguinte conversa:
17Neste momento Saul reconheceu a voz de Davi, e exclamou: “Não é
tua voz que ouço, meu filho, Davi?” – “Sim, meu senhor e rei!” redarguiu
Davi. 18E acrescentou: “Por que o meu senhor teima em perseguir o teu

111
servo? Que fiz eu de que possa ser incriminado? 19Rogo-te, senhor meu
rei, que ouças as palavras do teu servo: se é Yahweh que te impele a
castigar minha pessoa, certamente aceitará uma oferta de paz; se,
porém, são homens que o instigaram contra mim, que sejam
amaldiçoados diante do SENHOR! Porquanto, hoje eles me afastaram
da minha porção na herança de Yahweh, como se ordenassem: ‘Vai,
cultua e serve a outros deuses!’ (1 Samuel 26:17-19).
Um dos pontos da preocupação de Davi é que ele havia sido
afastado “da sua porção na herança de Yahweh”. A linguagem da
“herança” é a mesma encontrada em Deuteronômio 32:8-9, onde Jacó
(Israel) é a herança de Yahweh, a terra e o povo que Yahweh “pegou”
para ele mesmo (Deut 4:19-20).
Será que Davi era um ignorante pelo fato de não saber que Deus
é quem fez o céu e a terra e pode estar em todos os lugares? Não. Na
mente de Davi, ser levado para fora de Israel significava não ser capaz de
adorar a Yahweh. Notem que ele não se preocupa em ser levado para
longe da Arca da Aliança, localizada em Quiriate-Jearim (1 Samuel 7:2),
ou do Tabernáculo, aparentemente localizado em Nobe (1 Samuel 21-
22). Sua preocupação era em ser expulso da “herança” de Yahweh, a terra
santa do seu Deus. Davi não poderia adorar como deveria se ele não
estivesse em solo santo. As terras fora de Israel pertenciam a outros
deuses.
NAAMAN PEDE POR TERRA
Outra história fascinante que ilustra a visão israelita geográfica
cósmica é a história de Naaman, o comandante do exército da Síria, uma
país estrangeiro colado na fronteira norte de Israel. Aconteceu que
Naaman foi afligido com lepra.
De acordo com 2 Reis 5, sob sugestão de uma serva cativa de
Israel, Naaman decidiu procurar pelo profeta Eliseu para uma cura de
sua doença. Ele viajou até Israel, mas Elias nem mesmo saiu para falar
com ele pessoalmente. Ele enviou um mensageiro para dizer ao herói
militar para se lavar no Jordão por sete vezes se ele quisesse ficar curado.
Se sentindo insultado, Naaman primeiramente resistiu, então relevou
por aconselhamento de seus servos. Ele fez como instruído e saiu de lá
112
limpo da doença de sua pele. Naaman retornou até o profeta, o qual
dessa vez resolveu falar com o sírio. Assim continua a história:
15Em seguida retornou à casa de Eliseu com toda a sua comitiva. Ao
chegar diante do homem de Deus, declarou: “Eis que agora sei que em
toda a terra não há Deus, a não ser em Israel; rogo-te, pois, que recebas
um presente do teu servo. 16Entretanto o homem de Deus respondeu:
“Juro por Yahweh, o Nome do SENHOR, o Deus vivo, a quem sirvo, que
nada aceitarei!” Naamã ainda insistiu com ele para que recebesse um
presente, mas ele se recusou a receber qualquer gratificação. 17Então
Naamã pediu: “Permita ao menos que este teu servo leve duas mulas
carregadas de terra, porquanto de agora em diante teu servo jamais
oferecerá holocaustos nem sacrifícios a outros deuses, senão a Yahweh,
o SENHOR! 18Contudo, eu rogo a Yahweh que me perdoe por uma
única atitude: Quando eu tiver de acompanhar meu rei ao templo de
Rimom, o deus da Síria, meu senhor costuma apoiar-se no meu braço
para reverenciar sua divindade, e, por isso, tenho que me ajoelhar ali
também. Que o SENHOR perdoe teu servo por isso”. 19Ao que lhe
respondeu Eliseu: “Shalom! Vai em paz e boa viagem.” E Naamã foi se
afastando. (2 Reis 5:15-19).
A rápida viagem a Israel para se encontrar com o profeta de
Yahweh ensinou uma boa teologia a Naaman. Ele afirma que “em toda a
terra não há Deus, a não ser em Israel” (v. 15). Dali em diante ele
sacrificaria apenas a Yahweh. Mas como ele iria manter esse voto depois
de retornar à Síria? Simples: ele pediu para levar terra para casa.
Naaman via a terra de Israel como solo sagrado, era o território de
Yahweh. Naaman levou o tanto de terra que suas mulas conseguiram
levar para que ele pudesse adorar a Yahweh no próprio território de
Yahweh, mesmo embora Naaman vivesse no domínio do deus Rimmon.
Não nos é dito se Naaman chegou em casa e espalhou terra no
chão de uma sala em sua casa. Não sabemos como ele lidou com suas
funções em acompanhar seu rei idoso dentro do templo de Rimmon.
Talvez ele carregasse terra com ele como uma prova de sua crença leal à
Yahweh. O que sabemos é que a terra era uma afirmação teológica. A
terra de Israel era o meio através do qual Naaman mostrou sua fé e
manteve seu voto ao verdadeiro Deus, Yahweh.
113
DANIEL E PAULO
Outra passagem no VT, Daniel 10, presume a visão de
Deuteronômio 32. Em Daniel 10 nós lemos sobre uma visão do profeta.
Daniel vê um “homem” vestido em linho, o qual ele descreve dessa
forma:
6Seu corpo brilhava como o berilo e outras pedras preciosas; o rosto,
iluminado como o relâmpago. Os olhos, como tochas acessas; os braços
e as pernas reluziam como bronze polido, e sua voz soava forte e grave
como o barulho das multidões. (Daniel 10:6).
Já vimos toda essa luz e brilho antes numa descrição padrão de
um ser divino. Essa figura radiante, que nunca é identificada na
passagem, diz a Daniel:
12E o anjo prosseguiu me exortando: “Não temas, caro Daniel, porque
as tuas palavras foram ouvidas sim; desde o primeiro dia em que
aplicaste humildemente o teu coração a fim de buscar entendimento
diante do teu Deus, as suas orações foram ouvidas, e eu vim em
resposta ao teu clamor. 13Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu
durante vinte e um dias. Então Miguel, um dos príncipes supremos,
veio me ajudar a vencer o inimigo, porquanto não pude mais continuar
ali com os reis da Pérsia. 14Assim, estou aqui agora para explicar-te o
que acontecerá ao seu povo nos tempos futuros, pois a visão que tiveste
se refere a dias ainda muito distantes.” (vv. 12-14).
A figura fala ainda, antes de terminar a conversa:
20Ao que ele acrescentou: “Sabes por que eu vim a ti? Contudo, agora
terei que retornar para seguir pelejando contra o príncipe da Pérsia;
todavia, logo que eu sair o príncipe da Grécia virá! 21Antes, porém, eu
te declararei o que está escrito no Livro da Verdade. E nessa batalha
ninguém me ajuda contra eles, senão Miguel, o príncipe celeste de
Israel. (vv. 20 e 21).
Estudiosos bíblicos são unânimes em afirmar que os “príncipes”
aqui referidos em Daniel 10 são seres divinos, e não humanos. Isso é
claro devido à menção sobre Miguel em 10:13 e 10:21, o qual é chamado

114
de “príncipe” (Dan 12:1). Eles também concordam que esse conceito é
baseado em Deuteronômio 32:8-9.
Essa passagem, junto com Deuteronômio 32:8-9, é a fundação
para a teologia de Paulo sobre o mundo invisível. Isso é deixado claro
num sentido abrangente em Atos 17:26-27, onde Lucas escreve a fala de
Paulo no Areópago. Falando sobre o plano de salvação de Deus, Paulo
diz:
26De um só homem fez Deus todas as raças humanas, a fim de que
povoassem a terra, havendo determinado previamente as épocas e os
lugares exatos onde deveriam habitar. 27Deus assim procedeu para
que a humanidade o buscasse e provavelmente, como que tateando, o
pudesse encontrar, ainda que, de fato, não esteja distante de cada um
de nós:
Paulo deixa bem que claro que está se referindo à situação das
nações produzida por Deus no julgamento de Babel, a visão de
Deuteronômio 32:8-9. Deus deserdou as nações e seu povos e fez um
novo povo para ele mesmo, Israel, sua própria “porção” (Deut 32:9).
Imediatamente depois do julgamento de Babel (Gên 11:1-9), Deus
chamou Abraão para esse propósito, iniciando uma relação de aliança
com Abraão e seus descendentes ainda não nascidos. Essa é a relação de
aliança dentro do pensamento de Paulo referida em Atos 17:27, o destino
das nações deserdadas dos Gentios (Gên 12:3). O raciocínio de Paulo
para o seu próprio ministério aos Gentios era o da intenção de Deus em
reclamar as nações para restaurar a visão edênica inicial. Todas as
pessoas em todas as nações agora teriam a oportunidade de se
arrepender e acreditar no Cristo que se levantou (Atos 17:30-31). A
Salvação não era agora apenas para os filhos físicos de Abraão, mas para
qualquer um que cresse (Gálatas 3:26-29).
Mais específica ainda é a terminologia de Paulo para os poderes
da escuridão refletidos na visão cósmica geográfica advindas de
Deuteronômio 32:8-9. A palavra hebraica para “príncipe” usada através
de Daniel 10 é sar. Em Daniel 10:3, onde Miguel é chamado de “um dos
príncipes chefes”, o Septuaginta se refere a Miguel como um dos chefes
archonton. Em outra tradução grega de Daniel, um texto que muitos
115
estudiosos consideram ser até mesmo mais velho que o Septuaginta em
uso hoje, o príncipe da Pérsia e o príncipe de Israel, Miguel, são ambos
descritos com a palavra grega archon. Esses são termos usados por Paulo
quando ele descreve os “governantes dessa era” (1 Cor 2:6,8), os
governantes “nos lugares celestiais” (Efésios 3:10) e “o governante das
autoridades do ar” (Efésios 2:2).
Paulo frequentemente intercambia esses termos com outros que
são familiares à maioria dos estudantes da Bíblia:

 “principados” (arche)
 “potestades” / “autoridades” (exousia)
 “potestades” (dynamis)
 “domínios” / “senhores” (kyrios)
 “tronos” (thronos)

Esses termos têm algo em comum: eles são usados tanto no NT


quanto em outras literaturas gregas para exprimir domínios de governos
geográficos. Esse é o conceito de domínios divinos de Deuteronômio
32:8-9. Às vezes esses termos são usados para humanos, mas muitas
instâncias demonstram que Paulo tinhas seres espirituais em mente.
Os primeiros três termos são encontrados em Efésios 6:12
(“Nossa luta não é contra carne e sangue, mas contra os principados,
contra as autoridades, contra os governantes do mundo das trevas,
contra as forças espirituais malignas nos lugares celestiais”). Paulo nos
diz em Efésios 1:20-21 que quando Deus levantou Jesus de dentre os
mortos, “ele se sentou à sua direita nos lugares celestiais, muito acima
do governo, autoridade, poder e domínio”. Foi só depois de Cristo ter se
levantado que o plano de Deus “se fez conhecido... aos governantes e
autoridades dos lugares celestiais” (Efésios 3:10). Essas forças cósmicas
são os “governantes e as autoridades” desarmados e envergonhados pela
cruz (Col 2:15).
O incidente em Babel e a decisão de Deus de deserdar as nações
desenhou as linhas de batalha para uma guerra pesada pelo planeta. A
corrupção dos elohim filhos de Deus colocada sobre as nações significava
que a visão de Yahweh de um Éden global encontraria força divina
116
contrária. Cada centímetro fora de Israel seria contestado, e a própria
Israel faria um jogo justo contra as conquistas hostis. Os deuses não se
renderiam dando suas heranças de volta à Yahweh; ele teria que
reclamá-las. Deus daria o primeiro passo numa campanha
imediatamente após Babel.

117
PARTE 04
YAHWEH E SUA PORÇÃO
CAPÍTULO 16
A PALAVRA DE ABRAÃO
Aprendemos de Deuteronômio 32:8-9 que Yahweh colocou as
nações sob o governo dos elohim menores, os filhos de Deus do seu
conselho divino. Ao deserdar a humanidade, relutante pois era para ela
cumprir o mandamento do Éden em se espalhar pela terra, ele decidiu
que era hora de começar de novo. O leitor de Gênesis tem a sensação de
que o novo começo foi quase que imediato, pois a história da Torre de
Babel é imediatamente seguida pela chamada de Abraão.
Abrão, é claro, foi o nome original de Abraão. Deus chamou esse
homem mesopotâmico, aparentemente do nada, para deixar a sua
extensa família e viajar para um lugar estranho. Deus entrou numa
aliança com ele, mudando seu nome para Abraão, e então habilitando-o
e a sua esposa a produzirem um filho, Isaac, em sua idade avançada.
Isaac, por sua vez, se tornou o pai de Jacó, cujo nome mais tarde foi
mudado para Israel.
Simples, certo? Vocês não iriam se surpreender se dissesse a
vocês que está acontecendo aqui muito mais do que parece. Abraão
estava para se encontrar com seu Deus, mas para a proteção de Abraão,
Deus deveria se tornar um homem de maneira que abafasse a luz de sua
própria glória e ajudasse Abraão a processá-Lo como uma pessoa.
A ALEGRIA DE ABRAÃO
Primeiramente encontramos as promessas da aliança de Deus
para com Abraão em Gênesis 12. Mas esse capítulo não é o começo do
relacionamento de Deus com Abraão. Em Gênesis 12, Abraão não está
na Mesopotâmia; ele está num lugar ao norte de Canaã chamado Harã
(Gên 12:4). Para entender o verdadeiro início do contato de Deus com
Abraão, vamos relembrar.

118
Após o episódio de Babel, o lembrete de Gênesis 11 é devotado a
uma genealogia, a genealogia de Abrão (Abraão) de volta até Shem, filho
de Noé. As genealogias frequentemente contêm algo importante ou
interessante, e essa não é uma exceção. Comparem os dois últimos
versículos das raízes genealógicas de Abraão (Gên 11:31-32) com Atos
7:2-4, e vocês descobrirão que Yahweh contatou Abraão primeiramente
antes de dele ir para Harã, e isso foi muito mais do que uma conversa em
sua cabeça. Em Atos 7:2-4, Estevão diz:
2Diante disso, declarou Estevão: “Caros irmãos e pais, ouvi-me com
atenção! O Deus da glória apareceu a Abraão, nosso pai, estando ele
ainda na Mesopotâmia, antes de morar em Harã, e lhe ordenou: 3‘Sai
da tua terra e da comunidade dos teus parentes e vai para a terra que
Eu te mostrarei’. 4Então, ele saiu da terra dos caldeus e se estabeleceu
em Harã. Após a morte de seu pai, Deus o trouxe para esta terra em
que vós agora habitais.
O elemento importante para ver aqui está na primeira linha:
Yahweh apareceu a Abraão. O primeiro encontro divino de Abraão na
Mesopotâmia envolveu uma aparição visível de Yahweh. Gênesis 12 é o
que se segue. Abraão e Yahweh já haviam conversado antes, face a face.
Isso também é o que aconteceu em Gênesis 12. Estamos mais
familiarizados com os três primeiros versículos:
1Então o SENHOR veio a Abrão e lhe ordenou: “Sai da tua terra, da tua
parentela e da casa de teu pai, e dirige-te à terra que te indicarei! 2Eis
que farei de ti um grande povo: Eu te abençoarei, engrandecerei teu
nome; serás tu uma bênção! 3Abençoarei os que te abençoarem,
amaldiçoarei aquele que te amaldiçoar. Por teu intermédio abençoarei
todos os povos sobre a face da terra!” (Gênesis 12:1-3).
Mas os versículos 6-7 merecem uma atenção maior:
6Abrão atravessou toda a terra até o lugar onde ficava uma árvore
sagrada chamada Carvalho de Moré, em Siquém. Naquele tempo, os
cananeus viviam nessa região. 7Então o SENHOR apareceu a Abrão e
lhe prometeu: “É à tua descendência que darei esta terra!” E Abrão

119
construiu ali um altar dedicado a Yahweh, porquanto ali o SENHOR
havia aparecido e falado com ele. (vv. 6-7).
Duas vezes nesses dois versículos nós lemos que Yahweh
apareceu a Abraão. Uma leitura atenta de Gênesis dos capítulos 12 ao
50, nos dizem que a manifestação visível é a escolha normal de Yahweh
com respeito a Abraão e seus descendentes, os patriarcas.
Isso nos traz a Gênesis 15:1-6, onde a aliança de Gênesis 12:1-3 é
repetida e ratificada por uma cerimônia pactual. A descrição da pessoa
falando para Abraão aqui é ainda mais impressionante. Notem a ênfase
em negrito:
1Passados esses acontecimentos, o SENHOR falou a Abrão, por
intermédio de uma visão: “Não temas, Abrão! Eu Sou o teu escudo; e
grande será a tua recompensa!” 2Contudo, Abrão declarou: “Ó Todo-
Poderoso SENHOR, meu Deus! De que valerá uma grande recompensa
se continuo sem filhos? Eliézer de Damasco é quem vai herdar tudo o
que tenho. 3Tu não me concedeste descendência, e por esse motivo um
dos meus servos, nascido na minha casa, será o meu herdeiro!” 4Então
imediatamente, o verbo de Yahweh lhe assegurou: “Não será Eliézer o
teu herdeiro; mas, sim, filho gerado de ti mesmo será o teu legítimo
herdeiro!” 5Então o SENHOR conduziu Abrão para fora da tenda e
orientou-o: “Olha para os céus e conta as estrelas, se é que o podes”. E
prometeu: “Será assim a tua posteridade!” 6Abrão creu no SENHOR, e
isso lhe foi creditado como justiça. 7Declarou ainda mais o SENHOR a
Abrão: “Eu Sou o SENHOR que te tirei de Ur dos caldeus, para dar-te
por herança esta terra!” (Gênesis 15:1-6).
Esse texto é fascinante. Notem que desde o início é o “Verbo de
Yahweh” que veio a Abraão numa visão. Como antes, o encontro era uma
manifestação visível de Yahweh. O Verbo aqui é algo que pode ser visto,
mas por que chama-la de visão? No versículo 4 lemos que o Verbo
“conduziu Abraão para fora” a fim de continuar a conversa. Esse não é
o tipo de linguagem que esperaríamos de Abraão se ele estivesse apenas
ouvindo um som.
Essas aparições do Verbo de Yahweh são um fundo conceitual
para a linguagem do apóstolo João em seu Evangelho com Jesus sendo
120
o Verbo. As instâncias mais conhecidas são João 1:1 (“E no início era o
Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus”) e João 1:14 (“E
o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, glória como
só a que provém do Pai, cheia de graça e verdade”). Mas João coisas
igualmente dramáticas em conexão com essa ideia que são menos
familiares.
Em João 8:56, Jesus, o Verbo encarnado, informa que seus
adversários judeus que ele apareceu a Abraão antes de sua encarnação:
“56Vosso pai Abraão muito se alegrou, pois veria o meu dia; e ele o viu
e ficou feliz.” Os judeus objetaram veementemente a essa afirmação, foi
onde netão Jesus proferiu sua famosa fala: “antes que Abraão existisse,
Eu Sou.” (João 8:58). Só Gênesis 12 e 15 nos fornecem um fundo
coerente a essa afirmação.
Espero que tenham pego o significado e a alternância. Uma vez
que o Verbo é claramente igual a e identificado como Yahweh em
Gênesis 12 e 15, então quando no Novo Testamento temos Jesus dizendo
“esse era eu”, ele está afirmando ser o Verbo do Velho Testamento, o qual
é o Yahweh visível.
Esse entendimento também está por trás das coisas que Paulo
disse sobre Abraão e Jesus. Em Gálatas 3:8, Paulo disse que o Evangelho,
que Deus justificaria as nações dos Gentios, foi pregado a Abraão. Essa
é uma clara referência ao conteúdo da aliança abrâmica, entregue
pessoalmente e visivelmente pelo Verbo.
YAHWEH VISÍVEL E INCORPORADO
O fato de o VT às vezes ter Yahweh aparecendo em forma visível
deveria estar em nosso radar. Veremos ele muito mais (deveríamos
prestar mais atenção).
Umas das minhas passagens favoritas que mostra Yahweh a ficar
visível é 1 Samuel 3, a história do então jovem que seria profeta, Samuel.
Muitos leitores estão familiarizados com ela sem dúvida. O capítulo
começa com uma afirmação encriptada, “Yahweh raramente falava
naqueles dias; e as visões haviam se escasseado muito”. O leitor fica
predisposto pelo comentário a esperar uma visão do “Verbo de Yahweh”.
121
Samuel continua ouvindo uma voz chamando seu nome enquanto ele
tenta dormir. Ele acha que essa é a voz do sacerdote Eli e vai até o ancião,
mas não era Eli quem estava falando. Depois de ouvir a voz pela terceira
vez, Eli entende que é Yahweh quem o está chamando e instrui Samuel
a responder se acontecer de novo.
Samuel volta para a cama. A narrativa continua no versículo 10:
“10Depois veio o Senhor, parou e chamou como das outras vezes:
Samuel! Samuel! Ao que respondeu Samuel: Fala, porque o teu servo
ouve.” A descrição tem Yahweh parado na frente de Samuel. Que ele está
claramente visível vem ao nosso conhecimento no final do capítulo:
19Samuel crescia, e o Senhor era com ele e não deixou nenhuma de
todas as suas palavras cair em terra. 20E todo o Israel, desde Dã até
Berseba, conheceu que Samuel estava confirmado como profeta do
Senhor. 21E voltou o Senhor a aparecer em Siló; porquanto o Senhor
se manifestava a Samuel em Siló pela sua palavra. E chegava a palavra
de Samuel a todo o Israel. (1 Samuel 3:19-21).
Fiquei impressionado quando vi essa passagem pela primeira vez
pelo que ela realmente estava dizendo. Yahweh “apareceu” a Samuel com
regularidade no versículo 21. O primeiro versículo do capítulo faz uma
clara associação entre o Verbo do Senhor e a experiência visionária, e
não um mero evento auditivo. A ideia o Verbo visível, o Yahweh visível,
em forma humana é resolvido pela linguagem “padrão”.
Algumas passagens vão além de apenas apresentar Yahweh em
forma humana visível. Gênesis 18 é talvez o exemplo mais surpreendente
onde Yahweh não é apenas visível, mas incorporado.
1Depois apareceu o Senhor a Abraão junto aos carvalhos de Manre,
estando ele sentado à porta da tenda, no maior calor do
dia. 2Levantando Abraão os olhos, olhou e eis três homens de pé em
frente dele. Quando os viu, correu da porta da tenda ao seu encontro, e
prostrou-se em terra, 3e disse: Meu Senhor, se agora tenho achado
graça aos teus olhos, rogo-te que não passes de teu servo. 4Eia, traga-
se um pouco d`água, e lavai os pés e recostai-vos debaixo da
árvore; 5e trarei um bocado de pão; refazei as vossas forças, e depois

122
passareis adiante; porquanto por isso chegastes ate o vosso servo.
Responderam-lhe: Faze assim como disseste. (Gênesis 18:1-5).
Que um desses três homens é Yahweh fica evidente desde o
primeiro versículo. Que a aparição de Yahweh e seus dois companheiros
é física nos é mostrado ao se lavar os pés deles e participar do alimento
(vv. 4-5), o que é subsequentemente feito (v. 8).
O narrador e o leitor é claro que sabem que um dos homens é
Yahweh, mas será que Abraão sabe? Ele sabe porque isso é deixado bem
claro durante a conversa que ele tem com o Yahweh incorporado. Depois
de comerem, os outros dois homens (os quais descobrimos serem anjos
em Gênesis 19) saem e vão para Sodoma. Uma vez que Abraão discerne
que a destruição de Sodoma e Gomorra é iminente, ele mostra sua
preocupação com seu sobrinho Ló, que morava em Sodoma. Se dirigindo
à figura de Yahweh, Abraão diz no versículo 25: “25Longe de ti que faças
tal coisa, que mates o justo com o ímpio, de modo que o justo seja como
o ímpio; esteja isto longe de ti. Não fará justiça o juiz de toda a terra?”
Abraão sabe que a pessoa que está diante dele é o “Juiz de toda a terra”,
uma vez que ele se dirige com esse pedido diretamente. Ele se dirige à
figura como “você” duas vezes antes do retórico questionamento que
invoca o título divino.
Como Abraão sabia que a figura que estava com ele era Yahweh?
A cronologia dos seus encontros em Gênesis nos diria que ele já havia
ouvido a voz de Yahweh antes. Esse reconhecimento aural está presente
em outras passagens envolvendo Abraão e veremos em breve. Mas
também penso que Abraão reconhecia visualmente seu visitante devido
aos seus encontros prévios.
Um exemplo final do VT de um Yahweh incorporado, o qual é o
“Verbo” é bem menos conhecido, mas não menos dramático. Em
Jeremias 1, o profeta é chamado ao serviço. Ele escreve que “O verbo de
Yahweh” veio até ele e disse: “5Antes que eu te formasse no ventre te
conheci, e antes que saísses da madre te santifiquei; às nações te dei por
profeta.”
Jeremias identifica esse Verbo como sendo o próprio Yahweh
quando ele responde: “Ah, Senhor Deus! Eis que não sei falar; porque
123
sou um menino.” (v. 6). Yahweh, o Verbo, diz a ele para não ficar com
medo, e então algo chocante acontece. Jeremias escreve no versículo 9
que Yahweh, o Verbo, “estendeu a mão, e tocou-me na boca”.
Sons não se esticam e tocam pessoas. Essa é a descrição de uma
presença física e incorporada.
SUSSURROS DE UMA DIVINDADE
Essas passagens levantam três questões.
Primeiro: uma coisa é ver Yahweh aparecer em forma humana
até o ponto da incorporação, mas qual é a lógica dessa linguagem? Em
outras palavras: por que fazer isso?
Segundo: como que, se esse Verbo era Yahweh, e o Verbo era
visível e incorporado, os judeus dos dias de Jesus deveriam ter tolerado
a noção de que Jesus era Yahweh encarnado na terra, enquanto Yahweh
ainda estava no céu? Afinal de contas, Jesus orava para o Pai, e falava do
Pai, Yahweh de Israel, na terceira pessoa. Como poderia um judeu
acomodar essa ideia “binária” que, essencialmente, ali estavam dois
Yahwehs, um invisível e no céu, e outro na terra em forma visível?
Terceiro: isso ajuda ou prejudica a articulação da Trindade do
Novo Testamento? Seria a Trindade uma ideia nova?
As respostas a essas perguntas são todas encontradas no Velho
Testamento. O que começamos a descobrir nesse capítulo são sussurros
da ideia de uma Divindade, no Velho Testamento, a Bíblia do Judaísmo.
Esses sussurros ficarão cada vez mais altos quando continuarmos.

124
CAPÍTULO 17
YAHWEH VISÍVEL E INVISÍVEL
No final do capítulo passado, notei que o “Verbo de Yahweh”
sendo uma aparição visível de Deus como homem, levantou certas
questões. Uma delas era como um judeu do primeiro século analisaria a
ideia de Jesus sendo o “Verbo feito carne”. A verdade é que temos
precedentes no Velho Testamento para Yahweh ser visível e
incorporado. Esse fenômeno deveria ter ajudado os judeus a aceitarem
pelo menos a ideia de que Deus poderia se mostrar em forma humana.
Mas a coisa é mais complicada do que isso. Quando Jesus se
dirigia a Deus na terceira pessoa, ou orava a Deus, o que quer dizer isso?
Um judeu teria sido capaz de abrir a sua mente para o que acontecia?
Como poderia Deus estar aqui (visivelmente e fisicamente) e ainda estar
no céu? Hoje, esse aparente enigma é o que afasta muitos judeus em
abraçar o cristianismo, pois fica parecendo um politeísmo para eles.
Dado esse contexto, é surpreendente como judeus do primeiro século
puderam aceitar Jesus como Yahweh e não se sentirem como se
estivessem traindo o Deus de Israel. Na verdade, esses mesmos judeus
dariam até as suas vidas ao invés de adorar outros deuses como os dos
gregos e dos romanos.
Podemos também responder certas questões sobre os leitores do
VT de antes do tempo de Jesus. Quando antigos israelitas liam as
passagens que vimos no último capítulo, será que eles imaginavam que
Yahweh estava localizado em apenas um lugar? Teria ele deixado o céu?
Ele não era mais onipresente?
A surpreendente realidade é que muito antes de Jesus e do Novo
Testamento, leitores cuidadosos do Velho Testamento não teriam se
perturbado com essa noção de, essencialmente, dois Yahwehs, um
invisível e no céu, e outro manifesto na terra numa variedade de formas
visíveis, incluindo a de um homem. Em algumas passagens, as duas
figuras de Yahweh são encontradas juntas na mesma cena. Nesse e nos
outros capítulos que se seguem, veremos que o “Verbo” era apenas uma
expressão de um Yahweh visível em forma humana.

125
O conceito de uma Divindade no VT tem muitas facetas e
camadas. Depois do nascimento do seu filho prometido, Isaac, a jornada
espiritual de Abraão incluía uma figura divina que era integral ao
pensamento israelita de uma Divindade: o Anjo de Yahweh. Embora as
melhores passagens que descrevem esse anjo como uma incorporação
visível da própria presença de Yahweh aconteçam depois do tempo de
Abraão, elas são as primeiras pistas dessa natureza durante a vida de
Abraão e dos seus filhos.
O ANJO DE YAHWEH
A história dramática de Gênesis 22, onde Abraão estava
preparado para sacrificar seu filho da aliança Isaque, é a nossa próxima
parada. É algo como uma passagem de transição. Já vimos que Abraão
já havia tido vários encontros com Yahweh. A expressão usada para
mostrar a natureza visível e física desses encontros era, até então, o
“verbo de Yahweh”. Gênesis 22 marca uma mudança na linguagem de
uma figura visível de Yahweh para “Anjo de Yahweh”.
Embora o Anjo de Yahweh apareça anteriormente a Gênesis 22
(Gên 16:7-11; 21:17), essa aparição em particular começa a ofuscar as
identidades de Yahweh e seu anjo. Gênesis 22:1-9 relata como Abraão
pegou Isaac, no bizarro mandamento de Yahweh, e o levou para o Monte
Moriá para oferecer seu filho como um holocausto. Continuamos a
história a partir do versículo 10.
10Abraão estendeu a mão e apanhou a faca para imolar seu
filho.11Entretanto, o Anjo do SENHOR o chamou do céu: “Abraão!
Abraão!” Ao que prontamente lhe respondeu Abraão: “Eis-me aqui!”
12“Não estendas a tua mão contra o rapaz!” − ordenou o Anjo “Não lhe
faças nada! Agora bem sei que temes a Deus, porquanto não me
negaste teu amado filho, teu único filho!” 13Em seguida, tendo Abraão
erguido os olhos, viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres entre
os arbustos; tomou Abraão o carneiro e o ofereceu em holocausto, em
lugar de seu filho. 14Então Abraão deu àquele lugar o nome de Yahweh-
Jireh, “O SENHOR Proverá”. Por isso até nossos dias se diz: “No monte
do SENHOR se proverá”! 15O Anjo do SENHOR bradou uma segunda
vez do céu, chamando Abraão, 16e declarou: “Juro por mim mesmo,
126
Palavra de Yahweh: porquanto me ofereceste este gesto, não me
negando teu filho amado, o teu único filho. 17Esteja convicto de que Eu
te cumularei de bênçãos, Eu te confirmarei uma posteridade tão
numerosa quanto as estrelas do céu e quanto a areia que se espalha
pelas praias do mar, e tua descendência conquistará as cidades de
todos que se levantarem contra ti. 18Por intermédio dos teus inúmeros
descendentes serão abençoadas todas as nações da terra, porquanto tu
me obedeceste!” (Gênesis 22:10-18).
A primeira coisa que notamos é que quando o anjo de Yahweh
fala com Abraão, Abraão reconhece a voz. Ele não pergunta a identidade
de quem está falando, como se a voz fosse estranha. Ele não teme estar
ouvindo a voz de outro deus. O leitor, no entanto, sabe que a fonte dela
não é Yahweh per se, mas o anjo de Yahweh. A palavra traduzida para
“anjo” aqui é a palavra hebraica mal’ak, que simplesmente quer dizer
“mensageiro”.
A próxima observação é muito importante. O Anjo fala com
Abraão no versículo 11, e também é distinguido de Deus. Mas
imediatamente depois de fazê-lo, ele recomenda que Abraão não imole
Isaque “para mim”. Aqui temos uma troca para a primeira pessoa que,
dado que o próprio Deus havia dito a Abraão para sacrificar Isaac (Gên
22:1-2), isso parece requerer que estamos vendo Yahweh a falar.
Muitos estudiosos diriam que isso é devido ao Anjo ser o porta-
voz de Yahweh, estando ali no lugar de Yahweh. Mas essa ideia só é
transmitida depois na passagem quando (v. 16) o anjo prefacia suas
palavras com “palavra de Yahweh”. O versículo 11 não tal diferença. As
palavras do texto ofuscam a distinção entre Yahweh e o anjo ao
permutar o anjo no papel da pessoa que inicialmente mandou o sacrifício
como um teste, o próprio Yahweh (Gên 22:1-2). Consequentemente, o
escritor bíblico teve a oportunidade de deixar claro que Yahweh e o anjo
eram diferentes, mas não distintos. Essa “falha” acontece em vários
outros lugares no VT e de maneira até mais proeminente. Na verdade,
isso não é uma falha. Não é uma negligência descuidada. As palavras são
projetadas para ofuscar as duas pessoas.

127
OS DEUSES DE ISAQUE E JACÓ
Gênesis 26:1-5 marca a primeira aparição visível de Yahweh a
Isaque (“E Isaque foi ... para Gerar ... e Yahweh apareceu para ele”). Isso
é um sinal para Isaque de que a aliança feita com seu pai seria
continuada através dele. Yahweh repete as palavras da aliança para
Isaque (vv. 3-4): “Eu estarei contigo e te abençoarei. Porque é a ti e à
tua raça que darei todas estas terras e manterei o juramento que fiz a
teu pai Abraão. 4Farei a tua descendência numerosa como as estrelas
do céu. Eu lhe darei todas estas terras e por tua posteridade serão
abençoadas todas as nações da terra”. Mais tarde em Gênesis 26 (vv.
23-25) Yahweh aprece novamente a Isaque. O bastão foi passado.
O filho de Isaque, Jacó, recebe a mesma aprovação divina numa
série de encontros visuais com Yahweh. A primeira instância é a bem
conhecida história da “Escada de Jacó” em Gênesis 28:10-22. Vários
detalhes da visão são importantes para continuarmos nosso raciocínio.
Jacó está a caminho de Harã (vv. 1-2), o lugar de onde o seu
ancestral Abraão havia partido anos antes sob comando de Yahweh. Jacó
está fugindo da ira de seu irmão Esaú, depois de roubar dele os direitos
de nascimento através de uma mentira (Gên 27). Estudiosos geralmente
concordam que a “escada” é provavelmente algum tipo de estrutura em
degraus que (no sonho de Jacó) conectava o céu e a terra, talvez um
zigurate. Jacó vê “anjos de Deus” subindo e descendo na estrutura, uma
indicação da presença do conselho divino. Jacó também vê o Yahweh
visível em pé ao lado dele (28:13), a mesma linguagem de Yahweh em
forma humana que notamos com Abraão. No versículo 15, Yahweh
promete proteção a Jacó e traze-lo de volta a esse lugar, a terra
prometida a Abraão. Jacó dá o nome ao lugar de Betel, “a casa de Deus”
(v. 19), e constrói um pilar para comemorar sua conversa com Yahweh
(vv. 18-19).
Jacó viu o Yahweh visível em Betel. Dado o que já vimos em
Gênesis, isso não é nada anormal. As coisas se tornam mais interessantes
em Gênesis 31, que é a história de como Jacó se tornou rico às custas do
seu tio Labão. Os rebanhos de Jacó se multiplicaram sobrenaturalmente,
apesar das tentativas de Labão em trapaceá-lo. Com a piora do
128
relacionamento entre eles, Jacó teve um sonho. As palavras são
significantes:
11O Anjo de Deus me chamou em sonho: ‘Jacó!’ Ao que eu prontamente
respondi: ‘Eis-me aqui!’ 12Então, Ele me revelou: ‘Ergue os teus olhos e
vê: todos os machos que fecundam o rebanho têm listras, são
salpicados ou malhados, pois Eu tenho observado tudo o que Labão te
está fazendo. 13Eu Sou o Deus que te apareceu em Betel, onde dedicaste
uma coluna de pedra em meu louvor e me fizeste um voto. Agora,
portanto, levanta-te, sai desta terra e retorna à tua terra natal!’” (Gên
31:11-13).
O anjo de Deus explicitamente diz a Jacó no versículo 13 que ele
era o Deus de Betel. Jacó havia visto anjos em Betel e uma única deidade,
Yahweh, o Deus de Abraão. Foi Yahweh quem prometeu proteção, e para
quem Jacó erigiu o pilar de pedra. Essa passagem mistura duas figuras.
Essa fusão nos ajuda a analisar os subsequentes encontros divinos de
Jacó.
Com o passar da vida de Jacó, ele entre e sai de problemas.
Mesmo assim Yahweh está com ele. Depois de fugir com sucesso do seu
tio Labão, Jacó aprende no curso de suas viagens que ele em breve ficará
face a face com Esaú, o irmão de quem ele roubou a bênção do seu pai
anos atrás. Na época da traquinagem de Jacó, Esaú chegou a pensar em
mata-lo, e agora Jacó está pensando se seu irmão ainda mantém tal
mágoa. Esse encontro ocorre em Gênesis 33. Mas isso é o que acontece
a Jacó no capítulo precedente que direciona nossa atenção.
Em Gênesis 32 nós aprendemos muito sobre o estado mental de
Jacó, e a lealdade de Deus a ele. Em Gênesis 32:1, Deus envia anjos para
se encontrar com ele. Dessa vez não é sonho. Mesmo assim, Jacó não
consegue deixar sua ansiedade de lado. Ele dá uns passos para subornar
Esaú, mandando presentes extravagantes na frente da caravana. Ele leva
seus filhos e suas quatro mães par ao outro lado do Jaboque, um
pequeno rio (Gên 32:22-23). Sozinho, naquela noite ele teve seu
encontro mais famoso com Deus, ou talvez mais alguém que também era
Deus. A história é assim:

129
24entretanto, ficou para trás, sozinho. Então chegou um homem que se
pôs a lutar com ele até o raiar da alvorada. 25Quando o homem
percebeu que não seria possível dominá-lo, tocou na articulação da
coxa de Jacó, de forma que lhe deslocou a coxa, enquanto lutavam.
26Então Ele declarou: “Deixai-me ir, pois já rompeu o dia!” Contudo,
Jacó lhe rogou: “Eu não te deixarei partir, a não ser que me abençoes!”
27Ao que o homem lhe inquiriu: “Qual é o teu nome?” – “Jacó”,
respondeu ele. 28Então o homem orientou-o: “Não te chamarás mais
Jacó, mas, sim, Israel, porquanto como príncipe lutaste com Deus e
com os seres humanos e prevaleceste!” 29Suplicou Jacó, prontamente:
“Dize, rogo-te, revela-me como te chamas?” Replicou o homem: “Por
que me perguntas pelo meu Nome?” E ali mesmo o abençoou! 30Então
denominou Jacó àquele lugar Peniel, “face de Deus”, porquanto
afirmou: “Vi a Deus face a face e, contudo, minha vida foi poupada”.
(Gênesis 32:24-30).
Gênesis 32:28-29 deixa aparente que o “homem” com o qual Jacó
lutava era um ser divino. O misterioso combatente, ele mesmo diz:
“lutaste com elohim”, um termo que sabemos pode ser traduzido como
“Deus” ou “um deus”. A narrativa em nenhum lugar diz que o encontro
de Jacó foi apenas uma visão. Esse elohim é tangível e corporal. Oséias
12:3-4 confirma a identidade divina do oponente de Jacó, mas então
adiciona dois detalhes surpreendentes. Notem a maneira com a qual
Oséias usa o paralelismo para expressar o seu pensamento:
3Ora, Jacó, ainda no ventre de sua mãe segurou o calcanhar de seu
irmão a fim de suplantá-lo; mais tarde, como homem lutou (hebraico:
sarah) com Deus (elohim). 4Ele lutou (hebraico: yasar) com o anjo e
recebeu a vitória; chorou e suplicou o seu favor. Em Betel encontrou a
Deus, e ali conversou com ele;
Oséias não apenas descreve o elohim que foi o oponente de Jacó
como um anjo, mas a última linha dessa citação identifica esse anjo com
Betel. Curiosamente, sabemos de Gênesis 32 que esse incidente não
aconteceu em Betel, foram nas águas de Jaboque. O comentário
inspirado de Oséias sobre o incidente não é sobre geografia. Ele está nos
dizendo que Jacó lutou com o próprio Deus, incorporado fisicamente, e
identifica Deus com o anjo que disse que era o Deus de Betel.
130
Vimos essa “confusão” de Deus com um anjo antes. Ela é
deliberada. O ponto não é que Yahweh, o Deus de Israel, seja um mero
anjo. O reverso é o que acontece. Esse anjo é Yahweh.
Temos mais uma passagem para considerarmos. A maneira como
ela funde Yahweh e o anjo é surpreendente.
Gênesis 48 descreve as palavras no leito de morte de Jacó e suas
bênçãos aos filhos de José. As passagens são direcionadas ao Deus que
apareceu a ele em Betel o qual, os leitores sabem de Gênesis 31:13, é tido
como um anjo. Está tudo preparado para o impacto na parte em negrito
abaixo (vv. 15-16):
1Algum tempo depois, disseram a José que seu pai estava doente.
Então, José foi visitá-lo, levando consigo seus dois filhos, Efraim e
Manassés. 2Assim que se anunciou a Jacó: “Eis aqui teu filho José, que
veio para junto de ti”, Israel reuniu suas forças e sentou-se no leito.
3Depois Israel declarou a José: “El-Shaddai, o Deus Todo-Poderoso, me
apareceu certa ocasião, na cidade de Luz, lá nas terras de Canaã, e ali
me abençoou, 4dizendo: ‘Eu te tornarei fecundo e te multiplicarei, Eu
farei de ti uma grande comunidade de povos e darei esta terra por
propriedade aos teus descendentes’....
14Contudo, Israel estendeu a mão direita e a colocou sobre a cabeça de
Efraim, que era o filho caçula, e a mão esquerda sobre a cabeça de
Manassés, tendo de cruzar as mãos, mesmo considerando que o
primogênito fosse Manassés. 15E abençoou a José, com as seguintes
palavras: “Que o Deus (elohim), a quem serviram meus pais Abraão e
Isaque, o Deus (elohim) que tem sido o meu Pastor em toda a minha
peregrinação pela vida, até o dia de hoje, 16o Anjo (mal’ak) que me
redimiu e salvou de todo o mal, agora abençoe estes meninos. Sejam
eles chamados pelo meu nome e pelos nomes de meus pais, Abraão e
Isaque. Que eles cresçam e se multipliquem sobre toda a face da terra!”
(Gênesis 48:1-4, 14-16).
A posição de paralelismo entre elohim e mal’ak (“anjo”) é
inquestionável. Uma vez que a Bíblia ensina de forma bem clara que
Deus é eterno e existe antes de todas as coisas, e que os anjos são seres
131
criados, o ponto desse paralelo explícito não é o de dizer que Deus é um
anjo. Por outro lado, ele afirma que esse anjo é Deus. Mas a característica
mais surpreendente é o vero (“que ele abençoe”). Em hebraico, o verbo
“abençoar” nessa passagem não está gramaticalmente no plural, o que
indicaria duas pessoas diferentes para as quais a bênção estivesse sendo
pedida para os meninos. Ao invés disso, ela está no singular, e dessa
forma telegrafa a estreita fusão dos dois seres divinos por parte do autor.
Em outras palavras, o escritor teve a clara oportunidade de distinguir o
Deus de Israel do anjo, mas ao invés disso, ele juntou as suas
identidades.
Ao deixarmos esse capítulo, as implicações do que vimos são
pesadas. As histórias dos patriarcas criam uma figura impressionante
para nós. Se existe um só Deus, um só Yahweh, então porque o escritor
funde Yahweh e o anjo em algumas passagens, mas tem o anjo se
referindo a Deus na terceira pessoa em outras? Por que ofuscar a
distinção entre Yahweh e esse anjo e mantê-los distintos? O que está
sendo comunicado?
Quando o texto bíblico faz isso, ele nos empurra a pensar se ali
estão dois Yahwehs, um invisível no céu e um visível na terra. Veremos
adiante que esse é precisamente o ponto. O Deus de Israel é Deus, mas
um mais de uma pessoa.

132
CAPÍTULO 18
O QUE TEM NUM NOME?
Vimos algumas coisas incomuns nos últimos dois capítulos.
Primeiro: Yahweh chamou Abraão num relacionamento de aliança com
ele, então ele continuou esse relacionamento com Isaque e Jacó, cujo
nome se tornou Israel. Os descendentes de Israel eram a porção da
humanidade selecionada por Yahweh.
Mas as interações entre Yahweh e os patriarcas pareciam
esquisitas. Às vezes Yahweh vem visível como “o Verbo”. Outras vezes
ele vem como um anjo, aparentemente enviado por Yahweh! E ainda
outras vezes temos só um Yahweh em forma humana sem quaisquer
rótulos descritivos. A linguagem criou questões sobre se os Israelitas
afirmavam ou negavam a onipresença, e sobre suas concepções da
identidade de Yahweh.
Nesse capítulo seremos introduzidos a outra expressão de
Yahweh. Seu uso em várias passagens deixa claro que os escritores
bíblicos concebiam os dois Yahweh, um invisível e sempre presente no
reino espiritual (“os céus”), e outro trazido para interagir com a
humanidade na terra, mais tipicamente como um homem. Que existem
dois é indicado pelas suas simultâneas presenças em algumas histórias
familiares.
A SARÇA ARDENTE
A história do êxodo do Egito realmente começa no capítulo 3 do
livro que leva esse nome. O encontro de Moisés com Deus na sarça
ardente tem sido colocado nas nossas mentes pelos professores das
escolas de domingo, ministros e, é claro, pelo épico filme de Cecil B.
DeMille, Os Dez Mandamentos. Mas existe algo que vocês nunca
notaram sobre a sarça. Hollywood certamente também perdeu isso.
1Apascentava Moisés o rebanho de Jetro – Reuel –, seu sogro,
sacerdote de Midiã. Certo dia conduzindo as ovelhas para além do
deserto chegou a Horebe, o monte de Deus. 2Ali o Anjo do Senhor se
revelou a ele, numa chama de fogo que saía do meio de uma sarça.

133
Moisés observou e eis que a sarça ardia no fogo, contudo, não era
consumida pelas chamas. 3Então pensou Moisés: “Que coisa
impressionante! Por que será que o espinheiro não se queima? Devo
chegar mais perto para contemplar essa maravilha!” 4Então o
SENHOR viu que ele deu uma volta e se aproximava para observar
melhor. E Deus o chamou do meio da sarça ardente: “Moisés, Moisés!”
Ao que ele prontamente respondeu: “Eis-me aqui!” 5Deus continuou a
dizer: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés, porque o
lugar em que estás é uma terra santa”. 6Disse mais: “Eu Sou o Deus de
teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó!” Então
Moisés cobriu o rosto, porquanto temia olhar para Deus.
O texto deixa bem claro que “o anjo de Yahweh / Senhor” estava
dentro da sarça (v. 2). Mas quando Moisés se volta para olhar a sarça (v.
3), o texto mostra Yahweh observando-o e chamando-o “do meio da
sarça” (v. 4). Ambos os Anjo, o Yahweh visível em forma humana, e o
Yahweh invisível, são personagens na cena da sarça ardente.
Interessantemente, o versículo 6 nos diz que Moisés teve medo de olhar
para Deus. Isso sugere que ele havia discernido algo a mais além do fogo
na sarça, possivelmente a forma humana do anjo. O Novo Testamento
afirma essa descrição em Atos 7:30-35. O mártir Estevão diz duas vezes
que tinha um anjo ali na sarça (vv. 30, 35).
Na conversa que se segue, Yahweh (v. 7) revela o nome de sua
aliança com Moisés: EU SOU (Êxodo 3:14). Se Yahweh está falando com
Moisés, poderíamos pensar por que a necessidade de um Anjo. Se
Yahweh é quem está falando, por que ele precisa de um mensageiro? Ou
talvez quando o escritor diz que Yahweh está falando, ele se refere ao
Anjo. Como nas passagens em Gênesis que já vimos, Êxodo 3 inclui
Yahweh e seu anjo na mesma cena como figuras distintas, mas então cria
uma ambiguidade entre eles. Eles são dois ou um? Os dois são o mesmo,
mas diferentes? O leitor está sendo preparado para algo dramático que
virá. E não precisa esperar muito.
O ANJO, O NOME, A PRESENÇA
Sabemos o que acontece depois da sarça ardente. Yahweh,
através de Moisés, liberta Israel do Egito. Moisés lidera o povo para o
134
Sinai para encontrar seu Deus, recebe a lei, e se prepara para a jornada
até a terra prometida. Existe uma conversa rápida entre Deus e Moisés
sobre essa tarefa que é habitualmente negligenciada pelos leitores da
Bíblia. Em Êxodo 23, Deus diz:
20Eis que Eu envio meu Anjo à frente de ti para que te guarde pelo
caminho e te conduza ao lugar que tenho preparado para ti. 21Respeita
a sua presença e ouve a sua voz, e não lhe sejas rebelde, porque não
perdoará a vossa transgressão, porquanto nele está o meu Nome.
22Mas se escutares fielmente a sua voz e fizeres o que te disser, então
serei inimigo dos teus inimigos e adversário dos teus adversários.
(Êxodo 23:20-22).
Existe algo estranho sobre a descrição de Deus para Moisés que
nos diz que esse não é um anjo comum. Esse anjo tem a autoridade para
perdoar pecados ou não, um status que pertence a Deus. Mais
especificamente, Deus diz a Moisés que a razão pela qual esse anjo tem
essa autoridade é porque “meu nome está nele” (v. 21).
O que essa curiosa frase significa? Moisés soube
instantaneamente. Todos aqueles que raciocinarem na história da sarça
ardente também entenderão. Quando Deus disse a Moisés que seu nome
estava no anjo, ele estava dizendo que ele estava nesse anjo, sua própria
presença ou essência. O EU SOU da sarça ardente acompanharia Moisés
e os Israelitas para a terra prometida e lutaria por eles. Só ele poderia
derrotar os deuses das nações e os descendentes dos Nephilim os quais
Moisés e Josué encontrariam lá.
Outras passagens confirmam que essa leitura está correta. Esse
anjo é Yahweh. Talvez a maneira mais fácil de se demonstrar isso é
comprar as passagens do VT sobre quem foi que levou Israel para fora
do Egito e dentro da terra prometida.
Sou Eu, Yahweh, que vos fiz subir da terra do Egito para ser o vosso
Deus: sereis, portanto, santos. Porque Eu Sou santo! (Levíticos 11:45)
35Foi a ti Israel que Ele mostrou tudo isso, para que soubesses que
Yahweh é Deus, o Único. E além dele não existe nenhum outro! 36Do
céu Ele fez que ouvisses sua voz, para te disciplinar. Na terra Ele te
135
levou a contemplar seu grande poder nas chamas, e ouviste claramente
suas palavras vindas do meio do fogo. 37E porque Ele muito amou a
teus pais, e depois deles escolheu sua descendência, Ele próprio te fez
sair do Egito por meio de sua excelsa presença e de seu magnífico
poder; 38expulsou nações maiores e mais fortes de diante de ti, com o
propósito de fazer-te entrar e tomar posse, como herança, da terra que
fora delas, como hoje se verifica. (Deuteronômio 4:35-38)
17O Eterno nosso Deus é Aquele que nos fez subir, a nós e a nossos pais,
da terra do Egito, da casa da escravidão, que fez estes sinais
portentosos diante dos nossos próprios olhos e nos guardou por todo o
Caminho que percorremos e por entre todos os povos através dos quais
passamos. 18E Yahweh, pessoalmente, expulsou de diante de nós todos
os povos pagãos, bem como os amorreus que habitavam a terra.
Portanto, nós também serviremos ao SENHOR, pois Ele é o nosso
Deus!” (Josué 24:17-18)
1O Anjo do SENHOR subiu de Guilgal a Bohim, Boquim e declarou: “Eu
vos fiz subir do Egito e vos trouxe a esta terra que Eu tinha prometido
por juramento a vossos pais. Eu ordenara: ‘Jamais quebrarei a minha
Aliança convosco. (Juízes 2:1)
Essas passagens intercambiam Yahweh, o Anjo de Yahweh e a
“presença” (panim) de Deus como a identidade do libertador divino de
Israel do Egito. Não existiam três libertadores diferentes. Eles eram
todos o mesmo. Um deles, o anjo, toma forma humana. Se
Deuteronômio 4:37 é lido à luz de Êxodo 23:20-23, então a presença e o
Anjo são co-identificados. Isso faz um bom sentido à vista do significado
do “Nome” que estava no Anjo.
O NOME
Alguns leitores com amigos judeus ou com um conhecimento
judaico, sabem que até mesmo hoje a frase “o Nome” (ha-shem) é usada
por muitos judeus no lugar do nome divino Yahweh. As passagens
bíblicas que vimos acima nos mostram que há precedente bíblico para
essa prática. Em outras passagens, “o Nome” funciona como uma
palavra substituta para Yahweh. Em várias delas, o Nome é

136
personificado, o Nome é uma pessoa. Isaías 30:27-28 é bem intenso
nesse sentido:
27Eis que o Nome de Yahweh vem de longe, ardente é a sua ira, e grave
é a sua advertência! Os seus lábios transpiram indignação e sua língua
é como um fogo devorador. 28Seu sopro é como uma torrente
impetuosa que sobe até o pescoço. Ele faz sacudir as nações na peneira
do extermínio; ele coloca na boca dos povos um freio que os conduz
para fora do Caminho.
O Nome é claramente tido como uma entidade, como o próprio
Yahweh, nesse texto. Em Salmos 20:1, 7, isso fica explícito:
1Para o mestre de música. Um salmo de Davi. Que o SENHOR te
responda no dia da angústia, que o Nome do Deus de Jacó te proteja!
7Alguns confiam em carros e outros em cavalos, mas nós confiamos no
Nome do SENHOR, o nosso Deus.
Como é que o salmista oraria para que “o Nome” viesse a proteger
alguém? Os Israelitas não iriam ter muita proteção de uma sequência de
consoantes (Y-H-W-H). O ponto do salmo é que confiar no Nome
significa confiar no próprio Yahweh, ele é o Nome.
Deuteronômio tem muito a dizer sobre o Nome, especialmente
com respeito ao Nome sendo a própria presença de Deus que irá residir
no Tabernáculo, a cidade santa e, eventualmente, no Templo.
Deuteronômio 12 é representativo (notem a ênfase em negrito):
2Devereis destruir totalmente todos os lugares nos quais as nações
pagãs que estais desalojando costumam adorar seus deuses, tanto nos
altos montes como nas colinas e à sombra de toda árvore frondosa....
4Vós, contudo, não adorareis a Yahweh, vosso Deus, do mesmo modo
como eles cultuam seus deuses. 5Pelo contrário: buscá-lo-eis somente
no lugar que Yahweh, vosso Deus, houver escolhido, dentre todas as
vossas tribos, para aí colocar o seu Nome e aí preparar a sua
habitação.... 11Então, para o lugar que Yahweh, vosso Deus, houver
escolhido como habitação do seu Nome é que transportareis tudo o que
eu vos ordenei: vossos holocaustos, vossos sacrifícios, vossos dízimos,

137
os dons das vossas mãos e todas as oferendas escolhidas que tiverdes
prometido com voto a Yahweh. (Deut 12:2, 4-5, 11).
O COMANDANTE DO EXÉRCITO DE YAHWEH
Os leitores talvez já possam ter antecipado que o anjo possuidor
do nome Yahweh, sua presença, habitação pode ser identificada pela
misteriosa figura encontrada por Josué pouco antes das guerras de
conquista. E eu concordaria. Aqui vai a passagem em Josué 5:
13Encontrando-se Josué já nas proximidades de Jericó; de repente, ao
olhar para cima, viu um homem em pé, empunhando uma espada.
Aproximou-se dele e perguntou-lhe: “És tu dos nossos ou dos nossos
adversários?” 14Então o homem lhe informou: “Não sou dos teus nem
pelejo contra ti! Venho com a responsabilidade de comandante do
exército do SENHOR!” Então Josué prostrou-se, com o rosto rente à
terra, em sinal de reverência, e lhe indagou: “Que mensagem o meu
Senhor tem para o seu servo?” 15O chefe do exército de Yahweh
respondeu a Josué: “Descalça as sandálias dos teus pés, porque o lugar
em que pisas é santo!” E assim procedeu Josué. (Josué 5:13-15).
Uma importante pista para identificar esse “homem” como o anjo
de Yahweh é a espada empunhada. A frase hebraica aqui acontece só
duas outras vezes: Números 22:23 e 1 Crônicas 21:16. Ambos
explicitamente nomeiam o Anjo de Yahweh como aquele com a “espada
empunhada”.
A conexão é óbvia em duas outras narrativas. Josué se prostra ao
homem, uma reação instintiva à presença divina. O comandante ordena
a Josué: “Descalça as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que pisas
é santo”! As palavras vêm de Êxodo 3:5, a passagem da sarça ardente. O
anjo de Yahweh estava naquela sarça.
UMA CONVERSA INTRIGANTE
O anjo de Êxodo 23:20-23 também foi com Moisés e Josué para
tomar a terra prometida. Perto da morte de Josué, no entanto, Israel
falhou em completar a tarefa. O Anjo de Yahweh apareceu em Juízes 2
trazendo notícias que ninguém queria ouvir:

138
1O Anjo do SENHOR subiu de Guilgal a Bohim, Boquim e declarou: “Eu
vos fiz subir do Egito e vos trouxe a esta terra que Eu tinha prometido
por juramento a vossos pais. Eu ordenara: ‘Jamais quebrarei a minha
Aliança convosco. 2Quanto a vós, não fareis qualquer pacto ou acordo
com os habitantes desta terra; antes, destruireis os seus altares!’
Contudo, não escutastes a minha voz. Por que fizestes isso? 3Por isso
vos asseguro: não expulsarei estes povos de diante de vós. Serão vossos
opressores, e os seus deuses serão uma cilada constante para vós!”
4Assim que o Anjo do SENHOR pronunciou essas palavras a todos os
filhos de Israel, o povo começou a lamentar em alta voz e a chorar
amargamente. (Juízes 2:1-4).
A partida do anjo de Yahweh assinalou um fim à presença regular
de Yahweh com Israel. Mas mesmo no período trevoso dos juízes, ele não
ficaria longe completamente. A chamada de Gideão em Juízes 6 inclui
uma aparição durante esse período. A passagem é longa, então os itens
importantes estão em negrito:
11O Anjo de Yahweh veio e assentou-se sob o grande carvalho que está
em Ofra, que pertencia a Ioash ben Aviézer, Joás filho de Abiezer. E
aconteceu que Guidon, Gideão, filho de Joás, estava malhando trigo
num tanque de prensar uvas, a fim de ocultá-lo dos midianitas.
12Então o Anjo do Eterno apareceu a Gideão e lhe saudou: “Yahweh
está contigo, valente guerreiro!” 13Ao que Gideão declarou: “Ai, meu
Senhor! Se Yahweh está conosco, por que nos sobrevém toda essa
calamidade? Onde estão todas as maravilhas que os nossos pais nos
contam quando afirmam: ‘Não nos fez Yahweh subir do Egito?’
Entretanto agora o SENHOR nos abandonou e nos entregou nas mãos
de Midiã!” 14Então o SENHOR olhou para Gideão e lhe ordenou: “Vai
com a força que tu tens, vai e liberta o povo de Israel das mãos de Midiã.
Ora, não Sou Eu quem te envia?” 15“Ai de mim, meu Senhor!”
Contestou-lhe Gideão. “Como posso salvar a Israel? O meu clã é o mais
pobre da tribo de Manassés, e eu sou a pessoa menos importante da
minha família!” 16Mas Yahweh lhe afirmou: “Eis que Eu estarei contigo
e tu vencerás os midianitas como se fossem um só homem!” 17Contudo,
Gideão replicou: “Se encontrei graça aos teus olhos, dá-me um sinal de
que és tu quem de fato fala comigo. 18Não te afastes daqui, rogo-te, até

139
que eu volte e traga minha oferenda e a deposite diante de ti!” E o
SENHOR respondeu: “Esperarei até que voltes.” 19Gideão foi para
casa, preparou um cabrito, e com um efá, cerca de vinte quilos, de
farinha, fez pães sem fermento. Pôs a carne num cesto e o caldo numa
panela, trouxe-os à sombra do grande carvalho e os ofereceu a Ele. 20E
o Anjo do SENHOR lhe ordenou: “Toma a carne e os pães sem fermento
e coloca-os sobre esta pedra e derrama o caldo sobre eles.” E Gideão
assim fez. 21Então o Anjo do SENHOR estendeu a ponta do cajado que
trazia em uma das mãos e tocou a carne e os pães sem fermento. Então
brotou fogo da rocha e consumiu a carne e todos os pães sem fermento,
e o Anjo do SENHOR desapareceu. 22Assim que Gideão concluiu que
realmente vira o Anjo de Yahweh, exclamou com grande temor: “Ai de
mim, ó SENHOR, meu Deus! Eis que vi o Anjo de Yahweh face a face!”
23Então o SENHOR assegurou-lhe: “A paz esteja contigo! Não temas,
porquanto não morrerás!” 24Gideão ergueu ali um altar em honra a
Yahweh e o chamou: Javé Shãlôm, O SENHOR é a nossa Paz. E até
nossos dias este altar está em Ofra, cidade que pertence às famílias de
Abiezer. (Juízes 6:11-24).
Essa é uma passagem fascinante. No versículo 11, o anjo se senta
sob o carvalho para ter a conversa. Ele faz a sua presença visível a Gideão
no versículo 12. Não há nenhuma indicação de que Gideão considere sua
presença algo estranho. A referência desconfortante que Gideão faz de
Yahweh no versículo 13 deixa claro que ele não sabe que aquele homem
é Yahweh. O leitor, no entanto, sabe, uma vez que o narrador tem
Yahweh tomando parte na conversa (vv. 14-16).
A cena é um remanescente da sarça ardente (Êxodo 3), exceto que
ambos Yahwehs têm papéis na fala. Isso serve para colocar os dois
personagens no mesmo nível para o leitor. A tática já nos é familiar,
colocar ambas as figuras no mesmo nível para ofuscar a distinção. Mas
no caso de Juízes 6, o escritor também deixa elas claramente separadas.
Que ali existem claramente duas figuras de Yahweh separadas se
torna mais dramático depois do versículo 19. Gideão pede ao homem (o
qual é logicamente o anjo de Yahweh) para esperar enquanto Gideão
prepara um alimento para ele. O estranho concorda. Quando Gideão
retorna, ele traz a comida para a árvore (v. 19). O narrador relata que o
140
Anjo de Deus a recebeu. Novamente isso é lógico, uma vez que o anjo
estava lá sentado desde o início da história.
Agora vem o mais chocante. O anjo de Yahweh queima o
sacrifício e então se vai (v.21). Mas nós aprendemos no versículo 23 que
Yahweh ainda está ali e fala com Gideão depois da partida do Anjo. O
escritor não apenas ofuscou a distinção entre as duas figuras, mas ele as
descreveu na mesma cena.
RAMIFICAÇÕES
A maneira mais familiar de processarmos o que vimos é pensar
sobre como nós falamos sobre Jesus. Os cristãos afirmam que Jesus é
uma das Pessoas. Ele é Deus. Mas noutro respeito, Jesus não é Deus, ele
não é o Pai. O Pai não é o Filho, e o Filho não é o Pai. No entanto, eles
são o mesmo em essência.
Essa teologia não se originou no Novo Testamento. Vocês agora
foram expostos às suas raízes no Velho Testamento. Existem duas
figuras de Yahweh no Velho Testamento pensando, uma invisível, e
outra visível em forma humana. O judaísmo antes do primeiro século, o
tempo de Jesus, conhecia esse ensinamento. É por isso que a antiga
teologia judaica já abraçara as duas figuras de Yahweh (os “dois
poderes”). Mas uma vez que esse ensinamento veio a envolver a
ressureição de Jesus de Nazaré, o judaísmo não poderia mais tolerá-lo.
Vermos especificamente como os escritores do Novo Testamento
reaproveitaram a teologia dos dois Yahwehs nos últimos capítulos. Por
agora, precisamos fazer uma visita ao Sinai. Yahweh precisa entregar a
lei... com a ajuda do seu anjo e do conselho divino.

141
CAPÍTULO 19
QUEM É COMO YAHWEH?
Yahweh, o Altíssimo, o Deus dos deuses, afastou-se das nações.
Ele fez a si mesmo conhecido do seu povo escolhido, sua porção terrena,
na forma de um homem. Essa revelação começou com Abração e foi
repetida a Isaque e Jacó, o filho e o neto de Abraão. O Anjo, o qual era
Yahweh em forma humana, mudou o nome de Jacó para Israel (Gên
32:27-28). Os filhos de Jacó iriam, eventualmente, se engajar numa
traição contra José, um deles mesmos, o qual iria providencialmente
colocar Israel no Egito.
Muitos leitores da Bíblia se perguntam por que Deus teria
permitido (e muito menos instruído, como em Gên 46:3-4) que Israel
fosse para o Egito. A questão se torna ainda mais intrigante dado o que
chamamos de “visão mundial de Deuteronômio 32”, onde as nações e
seus deuses ficaram irados contra Israel e Yahweh. A propensão humana
em direção ao mal parece explicar porque os egípcios temeram e depois
escravizaram os israelitas depois da morte de José, recorrendo até
mesmo ao assassinato para controlar a população (Êxodo 1-2). Existe
mais coisas aqui do que só isso.
A VOZ DA PROVIDÊNCIA
A história da deserdação das nações de Yahweh, deveria ter sido
passada oralmente através de gerações de israelitas durante a escravidão
no Egito. Todas as crianças israelitas teriam aprendido sobre Abraão,
Isaque, Jacó e José. Eles aprenderiam que a sua própria existência era o
resultado de um ato sobrenatural, uma vez que Isaque nasceu de uma
intervenção sobrenatural. Eles tinham vida por causa da vida de Isaque.
Mas a história produziu um enigma: Por que esse Deus dos
deuses nos entregou? A tradição oral teria preservado a promessa.
Yahweh enviou José ao Egito para preservar Israel da fome e havia
prometido tanto a Abraão quanto a Jacó que Ele os traria de volta à terra
que havia prometido a eles (Gên 15:13-16; 46:4).

142
Essa entrega ao Egito resolveria esse problema, e essa não era a
única questão que o ato providencial de Deus iria atingir. Os israelitas
perguntavam: Onde está Yahweh? E isso logo no início da decisão de
Deus em enviá-los para território hostil. Mas Faraó e seu povo, e todas
as nações, faziam uma pergunta diferente: “Quem é Yahweh”? (Êxodo
5:2). Eles iriam descobrir da maneira mais difícil.
A razão dessas circunstâncias que Israel passava era de que não
era suficiente que só Israel soubesse que Yahweh era o Altíssimo dentre
todos os deuses, e que Israel era a sua porção. As outras nações também
tinham que saber disso. As Escrituras deixam isso claro de que a entrega
de Israel tinha esse efeito. Israel estava no Egito precisamente para que
Yahweh pudesse entregá-la, e dessa forma fazer entender essa
mensagem teológica.
YAHWEH E OS DEUSES DO EGITO
Os gentios lá em Canaã haviam ouvido sobre o que Deus havia
feito (Josué 2:8-10; Êxodo 15:16-18; Josué 9:9). Em Midiã, Jetro, sogro
de Moisés, deixou esse impacto bem claro: “11Agora sei que Yahweh é
maior que todos os deuses, porquanto Ele os superou exatamente
naquilo de que se vangloriavam” (Êxodo 18:11). A reputação de Yahweh
dentre as nações estava ligada ao êxodo de Israel e a transplantação na
terra (Números 14:15-16; Deut 9:28; Josué 7:9; 2 Sam 7:23).
Esse fundo é que faz o evento do êxodo ser repetidamente tido
como um conflito entre Yahweh e os deuses. Faraó, como sabemos, não
respondeu aos mandamentos de Deus através de Moisés para deixar seu
povo ir embora. Em Êxodo 5:2, Faraó sarcasticamente perguntou a
Moisés: “Quem é Yahweh para que eu possa ouvir a sua voz para libertar
Israel”? Sua resposta veio numa série de pragas horríveis.
A Bíblia nos diz que as pragas foram direcionadas para os deuses
egípcios (Êxodo 12:12; Num 33:4), os elohim aos quais autoridade fora
dada por Yahweh e os quais deveriam governar o Egito em Seu nome. A
ideia não é a de que cada praga esteja relacionada a uma deidade egípcia,
só que os atos poderosos de Yahweh estavam além de poder dos deuses
do Egito e seu filho representante divino, Faraó.

143
A teologia egípcia ligava Faraó e o panteão do Egito. Desde a
quarta dinastia no Egito, o Faraó era considerado o filho do alto deus Re.
Ele era, pegando emprestado a expressão bíblica, a imagem de Re na
terra, o mantenedor da ordem cósmica estabelecida por Re e seu panteão
na criação.
Faraó era o filho de Re. Israel era explicitamente chamado de
filho de Yahweh no confronto com Faraó (Êxodo 4:23; Ose 11:1). Yahweh
e seu filho derrotariam o alto deus do Egito e seu filho. Deus contra deus,
filho contra filho, imagem contra imagem. Nesse contexto, as pragas são
uma batalha espiritual. Yahweh desfaria a ordem cósmica, lançando a
terra no caos.
A última praga em particular, a morte dos primogênitos, foi
direcionada aos deuses do Egito. Deus disse a Moisés: “12E naquela
mesma noite Eu passarei pela terra do Egito e matarei todos os
primogênitos, tanto dos homens como dos animais, e executarei Juízo
sobre todos os deuses do Egito. Eu sou Yahweh” (Êxodo 12:12).
O conflito espiritual é trazido a um foco trágico e vívido nessa
última praga. Yahweh iria agir diretamente, na forma de seu anjo, contra
os deuses e o povo do Egito. Lemos em Êxodo 12:23: “23Porque Yahweh
passará por toda a terra para matar os egípcios; e, quando vir as
marcas de sangue sobre a travessa e sobre as duas colunas laterais, Ele
passará adiante dessa porta e não permitirá que o Destruidor
(mashkhit) entre em vossas casas, para vos ferir de morte”.
Não nenhuma referência explícita ao Anjo aqui. No entanto, a
palavra traduzida como “destruidor” (mashkhit) nos dá uma pista de
quem era o destruidor. O termo mashkhit é empregado apenas em três
passagens para descrever julgamento divino: aqui em Êxodo 12:23; 2
Samuel 24:16; e 1 Crônicas 21:15. Essas últimas duas instâncias
descrevem o mesmo evento, o julgamento pelo pecado de Davi levado
pelo Anjo de Yahweh. Em 2 Samuel 24:16-17 lemos:
16Quando o Anjo estendeu a mão para destruir Jerusalém, Yahweh,
condoído, decidiu suspender sua punição ao povo, e ordenou ao Anjo
que estava destruindo a população: “Basta! Retira a tua mão agora!”
Naquele momento o Anjo do SENHOR estava próximo da eira, o
144
terreiro de malhar cereais, que pertencia Araúna, o jebuseu. 17Ao
contemplar o Anjo que estava matando o povo de Israel, exclamou Davi
a Yahweh: “Fui eu quem pecou! Só eu sou o culpado de iniquidade!
Estas pessoas não passam de ovelhas, que mal fizeram? Venha, pois,
sobre a mim a teu castigo e sobre a minha família a tua correção!”
A identificação do destruidor com o Anjo do SENHOR talvez
também é sugerida em Zacarias 12:8-10. No contexto do escatológico Dia
do SENHOR, nós lemos:
8Naquele Dia, o SENHOR defenderá os habitantes de Jerusalém, de
modo que os mais fracos deles serão tão fortes como o rei Davi, e a casa
de Davi será como Deus, como o Anjo de Yahweh diante deles! 9Naquele
Dia, tratarei de arrasar todas as nações que atacarem Jerusalém!
10Mas derramarei sobre toda a família de Davi e sobre todos os
habitantes de Jerusalém um espírito de ação de graças e de oração. Eis
que eles olharão para a minha pessoa, aquele a quem eles mesmos
traspassaram, e prantearão e se lamentarão por ele como quem chora
a perda de um filho único; e verterão lágrimas de enorme amargura
por ele, como quem chora a morte do primogênito!
A passagem claramente identifica o anjo com Yahweh, que irá
destruir todas as nações que vierem contra Jerusalém e seu povo. A
referência àqueles que sofrem como quem chora a morte do primogênito
é uma forte alusão à última praga contra o Egito e o anjo da morte.
Que o destruidor é um anjo especial de Yahweh não deveria ser
uma surpresa. Já vimos sua aparição antes para Josué como comandante
da hoste de Yahweh. Yahweh vem em forma humana para estar entre o
seu povo e lutar por eles, julgando aqueles que quiseram escravizar o seu
povo e mata-lo (Êxodo 1-2; 13-14). O Yahweh visível mais tarde faria o
mesmo a outros inimigos, como os Assírios (Isaías 37:36).
QUEM É COMO YAHWEH DENTRE OS DEUSES?
Do outro lado da travessia do Mar Vermelho, esse julgamento
terreno do Egito é claramente visto como uma vitoriosa reviravolta de
um conflito cósmico no mundo invisível. Como já vimos tantas vezes

145
antes, por trás de uma história familiar, muito se é perdido sem o
entendimento da visão mundial cósmica da antiguidade.
Após atravessar o abismo de água em terra seca, Moisés e o povo
de Israel cantava louvores ao incomparável Yahweh. Essa canção está
gravada para nós em Êxodo 15. Moisés pergunta: “Quem é como Yahweh
dentre os deuses (elim)”? A resposta à retórica pergunta é óbvia. Yahweh
é incomparável. Nenhum outro deus é como ele. Como mostrei antes, se
os outros deuses fossem considerados só conto de fadas para os
Israelitas, essa afirmação seria uma piada, ou pior, uma mentira.
Por que então que Salmos 74:12-17 descreve a travessia
envolvendo a derrota de um monstro do mar?
12No entanto, Deus é rei desde sempre, é ele quem realiza vitórias na
terra. 13Com tua força fendeste o mar, e despedaçaste, sobre as águas,
as cabeças dos monstros marinhos. 14Esmagaste as cabeças do Leviatã
e o serviste de alimento aos habitantes do deserto. 15Fizeste jorrar
fontes e torrentes, e secar rios impetuosos. 16O dia é teu, é tua a noite;
criaste a luz e o sol. 17Os limites da terra estabeleceste; verão e inverno
foram por ti determinados.
Perceberam a linguagem? Deus “fendeu o mar” e despedaçou as
cabeças dos “monstros marinhos” (tanninim) e do Leviatã (liwyatan),
dando as bestas como alimento para “os habitantes do deserto”. Deus fez
jorrar “fontes e torrentes”, dois termos frequentemente associados com
fontes de água do deserto, e secou “rios”. O que aconteceu com o mar?
Para deixar as coisas ainda mais confusas, o salmo tem um
número de alusões a Gênesis 1. No capítulo original da criação, Deus
também “dividiu as águas” (Gên 1:6-7). Virtualmente toda a linguagem
nos versículos de Salmos 74:16-17 pode ser encontrada em Gênesis 1
(Gên 1:4-5, 9-10, 14-18).
Confusos? Um antigo israelita não teria problemas em decifrar a
mensagem de Salmos 74 e reconhecer que ela liga a travessia do êxodo à
criação, e então liga ambos os eventos à destruição do monstro marinho
conhecido como Leviatã.

146
A imagem simbólica do Leviatã e o “mar” (yam) é bem conhecida
da literatura antiga de Ugarit, uma cidade-estado na Síria antiga. Das
histórias que sobreviveram de Ugarit, uma das mais famosas descreve
como Baal se tornou o rei dos deuses. Essa história é o fundo para Salmos
74.
O épico conto descreve como Baal batalha contra Yamm, uma
deidade simbolizada como uma força caótica e violenta, frequentemente
mostrada como um monstro marítimo na forma de um dragão. Na
aparência desse monstro marítimo, Yamm também é conhecido pelos
nomes de Tannun ou Litannu. A sobreposição à terminologia bíblica é
clara. Baal derrotou o mar raivoso e o monstro marítimo, recebendo
“domínio eterno” sobre os deuses. A moral da história ugarítica é que o
algo rei dos deuses (Baal) tinha o poder sobre as forças imprevisíveis da
natureza.
Gênesis 1 e 2 não fornecem a história bíblica da criação. Salmos
74 também descreve a criação, com a vitória de Yahweh sobre as forças
do caos primitivo. Yahweh trouxe ordem ao mundo, fazendo-o habitável
para a humanidade, seu povo. O ato da criação como descrito em Salmos
74 era uma teologia crucial para estabelecer a superioridade de Yahweh
sobre todos os outros deuses. Baal não era o rei dos deuses, como a
história ugarítica proclamava, e sim Yahweh.
Nem era Faraó, ou qualquer outra deidade egípcia. Ao ligar o
evento do êxodo, amansando as águas caóticas para que o povo de
Yahweh pudesse passar através delas intocados, com a história da
criação, os escritores bíblicos telegrafavam uma mensagem simples e
potente. Yahweh é o rei de todos os deles. Ele é o senhor da criação, e
não Faraó, o qual, na teologia egípcia, era responsável por manter a
ordem da criação. O mesmo Deus que a criou também mantém essa
criação, e a chama para seu serviço quando necessário.
Não é surpresa que Êxodo 15:11 tenha Moisés, do outro lado das
águas, a perguntar: Quem é como Tu dentre os deuses, Yahweh?
Ninguém no mundo antigo israelita ou seja lá quem for, teria
perdido esse soco teológico. Essas passagens não deixam
questionamentos sobre quem era o rei do reino invisível, e de que lado
147
esse rei estava. Como criador, Yahweh fez o mundo ser habitável para
toda a humanidade. Mas as nações foram abandonadas. Agora o mesmo
Deus mais uma vez era descrito subjugando as forças do caos e libertou
a sua porção, Israel, para quem ele preparou um lugar para habitar, a
terra prometida.
Mas antes de chegarem à terra, Yahweh precisava ensinar
algumas coisas para seu povo. Era hora de algumas lições teológicas num
lugar chamado Monte Sinai, a nova morada terrena de Yahweh, quartel
general do seu conselho divino.

148
CAPÍTULO 20
REEQUIPANDO O MODELO
O evento do êxodo, a libertação da escravidão do Egito, foram o
catalizador para transição de Israel de um povo para uma nação. Todo
bom comentário ou guia para a Bíblia irá mostrar isso. Mas existem mais
coisas boas acontecendo. Nos próximos três capítulos veremos que
eventos logo após o êxodo nos levam de volta ao Éden e ao entendimento
do conselho divino de formas impressionantes.
A visão edênica de Deus começou com seu anúncio de que a
humanidade era a sua imagem. Yahweh tinha filhos divinos; ele também
teria uma família divina. Gênesis nos disse que Deus tinha um conselho
divino de imagens que representavam sua autoridade num reino
invisível e participavam nesse governo. Ele também nos mostrou que
Deus planejou um conselho espelho na terra, dessa vez composto por
imagens humanas. Essas duas famílias administradores estavam juntas
em sua presença. O céu veio à terra no Éden. A humanidade foi
responsabilizada em estender a presença e o governo de Deus através de
toda a terra. Deus queria viver e governar com todos os seus filhos em
sua nova criação.
Gênesis 3-11 deixa bem claro que a humanidade falhou de forma
miserável. O livre arbítrio nas mãos de seres imperfeitos vem com um
risco. Mas o incidente em Babel, insensato e egoísta como foi, nos
mostrou que existe uma ânsia edênica no coração humano, um desejo
por uma utopia e um senso de presença divina. Mas Deus não iria
negociar a sua própria visão do Éden pela da humanidade. Ele puniu as
nações com a deserdação. Ele criaria um novo povo como sua própria
porção. Esse patrimônio começou numa aliança com Abraão e passou
através de sua família.
Deus libertou essa família da escravidão com Moisés. O Egito e
seus deuses foram derrotados. O que foi corrompido no Éden e
falsificado nos dias do dilúvio e de Babel, foi vivificado do outro lado das
águas do caos.

149
ISRAEL É MEU FILHO
A percepção de Israel é bem clara: “Meu filho primogênito é
Israel”! (Êxodo 4:22); “Fora do Egito chamei meu filho” (Ose 11:1). Como
Abraão, a porção de Yahweh (Deut 32:9), ficou sendo o novo Adão, então
Israel, a progênie coletiva de Abraão, era também o novo Adão. Adão era
o filho de Yahweh. Israel era o filho de Yahweh.
Isso pode não parecer profundo, mas é. Uma vez que você
entende que esse padrão continua através das advertências da Bíblia, a
mensagem se torna clara. Eventualmente, Deus irá se referir ao rei de
Israel como seu filho (Salmos 2:7). O último rei futuro, o messias, uma
vez que se sentará no trono de Davi, terá que ser também o filho de
Yahweh. E uma vez que nós, crentes glorificados, sentaremos também
nesse trono, compartilharemos desse governo (Apo 3:21), somos os
filhos de Deus, suas crianças. Todo crente é também um descendente de
Abraão pela fé (Gálatas 3:26-29). Somos os atuais e escatológicos filhos
de Deus. Nosso status começou com Adão, foi resgatado em Abraão, e
cumprido em Jesus, herdeiro do trono de Davi.
Essas conexões estão, na verdade, dentre as mais óbvias. Mas
existem mais coisas que se estendem dessa filiação de Israel direto à
nossa glória.
A ISRAEL CRENTE: O Conselho Terreno de Deus
Se lembram que em nossa discussão de Deuteronômio 32:8-9 eu
mencionei que o número das nações deserdadas por Yahweh no
julgamento de Babel era de setenta? Esse número é importante. As
religiões competidoras pais próximas de Israel, a adoração de El, Baal e
Asherah em Ugarit e em Canaã, diziam que seus conselhos divinos
tinham setenta filhos. Quando Yahweh deserdou as nações e as atribuiu
aos filhos de Deus, uma luva teológica foi lançada ao chão: Só Yahweh
comanda as nações e seus deuses. Os outros deuses servem a ele.
A história do êxodo segue esse soco teológico no nariz com outro.
Israel não é apenas o filho de Yahweh e a sua porção na terra, mas Israel

150
deve ser governada por um grupo especial de setenta sob Moisés e, mais
tarde, um rei israelita que será o filho entronado de Yahweh.
Logo após a travessia do mar, Moisés e Israel encontraram Jetro.
A narrativa está em Êxodo 18. Vendo as multidões, Jetro aconselha
Moisés a selecionar homens para ajudá-lo a governar as pessoas.
Nenhum número é dado nessa passagem, mas depois, em Êxodo 24, nós
lemos:
1Depois Deus ordenou a Moisés: “Sobe a Yahweh, tu, Arão, Nadab, Abiú
e setenta líderes anciãos de Israel, e adorareis de longe. 2Só Moisés se
aproximará de Yahweh; os outros não devem chegar perto, nem o povo
subirá com ele!”
9Então Moisés, Arão, Nadab, Abiú e os setenta líderes anciãos de Israel
subiram. 10Eles viram o Deus de Israel. Debaixo de seus pés havia
como um pavimento de safira, tão pura como o próprio céu.
(Êxodo 24:1-2, 9-10).
A palavras sugerem que esses setenta anciãos foram retirados de
um grupo maior, como foram os elohim do conselho de Yahweh, aos
quais foram dados ranques diferentes e tarefas diferentes. Nem todo
membro do conselho divino tinha uma patente igual. Os filhos de Deus
com autoridade sobre as nações foram atribuídos com essa tarefa, mas
eles se tornaram corruptos e foram o objeto da sentença de Salmos 82.
As correspondências são deliberadas. As setenta nações foram
colocadas sob o domínio de deuses menores no início do julgamento de
Yahweh sob as nações na Torre de Babel. O próprio reino de Yahweh está
estruturado com um único líder (Moisés por enquanto), com quem ele
fala diretamente, e um conselho de setenta. Historicamente, essa
estrutura de liderança deveria continuar até os dias de Jesus, como o
Sanhedrin Judeu, liderado pelo alto sacerdote, num número de setenta.
Estamos mais interessados na mensagem teológica. Em termos
de teologia bíblica, a imagem tem um significado diferente. Deus está
começando seu governo edênico desejado com Israel. Israel terá um
único líder terreno (eventualmente o rei messiânico, o descendente final

151
de Eva) e um conselho de setenta. O número telegrafa isso, como o reino
de Deus sendo reestabelecido na terra, as setenta nações serão
reclamadas, um processo que começou com o ministério de Jesus e
continuará até o fim dos dias.
O resultado final do reclame das nações sob Yahweh é sugerido
nas passagens que claramente se relacionam com o conselho divino.
Membros leais do conselho de Yahweh são referidos a si mesmos como
seus anciões em Isaías 24:23, um contexto que é claramente
escatológico:
21E acontecerá naquele grande Dia: Yahweh castigará os poderes em
cima nos céus, e os reis e governantes embaixo na terra. 22Eles serão
reunidos, tal qual um bando de prisioneiros condenados à mesma
masmorra, trancafiados numa prisão onde aguardarão a punição
final depois de muito tempo. 23A lua, pois, ficará humilhada, e o sol,
confuso e envergonhado, porquanto Yahweh, o SENHOR dos Exércitos
reina no monte Sião e em Jerusalém: absoluto e glorioso diante dos
seus líderes e anciãos! (Isaías 24:21-23).
Essa configuração faz sentido, dada a cena do conselho divino de
Apocalipse 4-5, onde os vinte e quatro anciãos estão ao redor do trono
de Deus. O que está sendo ensinado é profundo: os corruptos filhos de
Deus que atualmente dominam as nações serão substituídos por
membros leais da família de Deus.
Mas qual família? O Novo Testamento explica isso.
HERDEIROS DO COSMOS
Uma vez que a Igreja, o conjunto corporativo de crentes, herda as
promessas dadas a Abraão (Gálatas 3:26-29), os crentes são a
“verdadeira Israel” da qual fala o Novo Testamento. Quando herdamos
o governo das nações com Jesus no fim dos dias (Apo 3:21),
substituiremos os corruptos filhos de Deus atualmente no governo das
nações, os quais estão sob julgamento (Salmos 82). Nós já somos, mas
ainda não, o novo conselho de Yahweh na terra. O apóstolo João captura
o espírito da coisa:

152
12Mas a todos quantos o receberam, deu-lhes o direito de se tornarem
filhos de Deus, ou seja, aos que crêem no seu Nome. (João 1:12)
1Vede que imenso amor nos tem concedido o Pai, a ponto de sermos
tratados como filhos de Deus; e, em realidade, somos filhos de Deus!
Por esse motivo, o mundo não nos conhece, porquanto não conheceu a
Ele mesmo. (1 João 3:1).
Essa estrutura nos ajuda a entender o sentido de algo que Paulo
também disse. O governo das nações era tarefa de uma patente mais alta
do que a de um mensageiro (o significado da palavra anjo). O destino
dos crentes que compartilharão o trono de Jesus e o governo das nações
é o fundo da afirmação de Paulo de que os cristãos deveriam deixar que
as cortes do mundo resolvam suas disputas. Em 1 Coríntios 6:3 ele
protesta: “E mais, não sabeis vós que iremos julgar inclusive os anjos?
Quanto mais as demandas triviais desta vida!” Quando formos feitos
divinos (glorificados) na nova terra, iremos estar acima dos anjos. Os
crentes são a única e futura família, o único e futuro conselho, os únicos
e futuros governantes com Jesus sobre todas as nações. A libertação de
Israel propele essa teologia.
O aspecto divino e glorificado da família e conselho humanos de
Yahweh é telegrafado de outras maneiras.
Os filhos divinos de Deus são chamados de “estrelas da manhã”
em Jó 38:7 e “estrelas de Deus” em Isaías 14:13. A imagem do sonho de
José, onde os filhos de Jacó (Israel) são estrelas (Gên 37:9), não é
acidental. Também não é coincidência que a descendência de Abraão
seria “como as estrelas”. Mesmo essa frase falando de um número muito
grande de descendentes, essa não é a única mensagem.
Falar de estrelas é falar de divindade ou glorificação em outro
lugar. Em Apocalipse, o próprio Jesus, a estrela da manhã, e os anjos,
são identificados com uma linguagem de estrelas para denotar suas
divindades, e natureza não terrena (Apo 1:20; 22:16; 2:28). Como disse
Daniel, os justos “resplandecerão como o fulgor do firmamento ... como
estrelas, para o resto da eternidade” (Dan 12:2-3). Nossa herança das
nações com Jesus no fim dos dias (Apo 3:21) será num estado

153
glorificado, ressurreto divino. A linguagem de estrelas de Gênesis 15 tem
uma conotação escatológica.
Em Romanos, Paulo estava com isso na cabeça. Os estudiosos
têm notado com interesse essa leve mudança na linguagem de Gênesis
15, as promessas de Deus a Abraão, em Romanos 4. Em Gênesis 15:5, o
Yahweh incorporado “trouxe (Abraão) para fora e disse: “Olhe para o céu
e conte as estrelas se fores capaz”. E ele continuou: “Assim será a sua
descendência”. Paulo se refere a esse versículo duas vezes em Romanos
4.
18Abraão, crendo, esperou contra todos os prognósticos desfavoráveis,
tornando-se, assim, pai de muitas nações, como ficou registrado a seu
respeito: “Assim será a sua descendência”. (Rom 4:18).
13Porquanto, não foi pela Lei que Abraão, ou sua descendência,
recebeu a promessa de que ele havia de ser o herdeiro do mundo; ao
contrário, foi pela justiça da fé. (Rom 4:13).
Umas poucas observações estão em ordem. Para Paulo, Abraão
não havia se tornado só o pai de Israel, mas de muitas nações. O ponto
é claro e nos leva direto à sua teologia em Gálatas 3, onde todos os
crentes, judeus ou gentios, são a “semente de Abraão” (Gálatas 3:26-29).
A noção da descendência de Abraão se tornando os “herdeiros do
mundo” fala do governo das nações por essa descendência. Os corruptos
filhos de Deus de Deuteronômio 32:8 seriam substituídos por novos
filhos de Deus, crentes glorificados.
A lógica de Paulo faz sentido se os crentes são os filhos de
Yahweh, especialmente dada a mistura da humanidade com a presença
divina lá atrás no Éden. Mesmo agora nós somos “compartilhantes da
natureza divina” (2 Pedro 1:4), mas um dia seremos feitos como Jesus (1
João 3:1-3; 1 Cor 15:35-49) e governaremos com ele sobre as nações. Os
crentes, a descendência espiritual de Abraão, no final irão reverter o
deserdar das nações juntamente com a maldição da morte que se estende
desde o erro no Éden.

154
ÉDEN E SINAI
Em Gênesis, o Éden era o lar de Yahweh e o lugar de encontro do
seu conselho divino. Deus desde então mudou de endereço. O Sinai
agora era o seu domínio, e onde Israel agora se estabelecera.
Anteriormente descobrimos que o Éden era o lugar de habitação
e o quartel general do conselho divino. Lembremos que a descrição do
Éden em Gênesis era a de um jardim exuberante com quatro rios (Gên
2:10-14). O Éden também era uma montanha (Ezequiel 28:13-14), a
administrativa “cadeira dos deuses” (Ezequiel 28:2), situada no “coração
dos mares” (Ezequiel 28:2), uma descrição que reiterava a imagem de
um lugar cheio de águas do quartel general do conselho. Os deuses
viviam nos melhores e mais remotos lugares. Essa discussão anterior
mostrou algumas conexões entre o Éden e o Monte Sião. Já é hora de
darmos uma olhada nas conexões com o Sinai.
O fato de que o Éden é referido tanto como um jardim como uma
montanha em Ezequiel 28:13-14 é significante. Ele nos fornece um claro
conceito de ligação entre o Éden e a santa montanha de Deus, o Sinai.
Na verdade, já temos uma pista de que o Sinai é o lar de Deus e
um lugar de encontro. Na passagem sobre os setenta anciãos (Êxodo
24:9-11), Yahweh aparece em forma humana, assim fazendo para os
patriarcas e Moisés. Mas dessa vez os setenta anciãos terrenos estavam
ali para o encontro. A sala do conselho havia sido reservada para os
setenta de Israel.
O Sinai sendo a sala do trono de Yahweh é telegrafada de outras
maneiras. Êxodo 24 mostra que Yahweh estava sentado e que debaixo
dos seus pés havia um pavimento de pedras de safira brilhantes, “tão
pura quanto o próprio céu” (Êxodo 24:10). Novamente, a luz fala de uma
presença divina. Essa imagem é repetida em outras passagens e
aumentada para incluir fogo, fumaça, raios, trovões e sons altos (Êxodo
19:16, 18; 20:18; Deut 5:4-5, 22-26).
Todos esses elementos são encontrados em visões familiares de
Yahweh em seu trono (Isa 6; Ezeq 1; Dan 7; Sl 18). Essas passagens
empregam as mesmas imagens, esteja Yahweh no seu trono no reino
155
espiritual ou na terra. Céu e terra estão conectados. Yahweh governa
ambos.
Algumas dessas passagens têm o conselho divino, a hoste
celestial, presente. Isso é o que esperamos à vista de outras conexões
entre Éden e o Sinai. Por exemplo, na cena da sala do trono de Daniel 7
nós lemo:
9Enquanto eu, pasmo, admirava esses animais, eis que tronos foram
trazidos, e um ancião pleno de dias se assentou. Suas roupas eram
brancas como a neve; e seus cabelos alvos como a pura lã. Seu trono
estava todo envolvido por labaredas de fogo, e as rodas do trono eram
chamas ardentes. 10De diante dele, brotava e fluía um rio de fogo.
Milhares de milhares o serviam; milhões e milhões prostravam-se
diante dele. Então o Tribunal deu início ao julgamento, e todos os livros
foram abertos. (vv. 9-10).
Essa é um dos textos mais explícitos mostrando o conselho divino
no VT. Ali existem múltiplos tronos nessa cena celestial, juntos com um
trono singular ocupado pelo Ancião dos Dias, o Deus de Israel. Existe
uma clara referência ao conselho, a palavra traduzida como “tribunal”
aqui, se refere a um corpo judicial.
Existe outra passagem fascinante do Sinai que liga o conselho
divino à montanha e também a uma coisa que faz essa montanha ser bem
conhecida, o fornecimento da lei. Isso pode parecer estranho. Na minha
experiência, a maioria das pessoas tem Charlton Heston em suas mentes
quando falamos do Sinai e das leis, e não vemos nenhum anjo nessa
cena. Mas se o conselho divino não está associado com a lei, como
lidamos com esses versículos?
52Que profeta vossos antepassados não perseguiram? Assassinaram
até mesmo os que anteriormente anunciaram a chegada do Justo, do
qual agora vos tornastes traidores e homicidas. 53Vós, que recebestes
a Lei por ministração de anjos, porém não a obedecestes!” (Atos 7:52-
53)
1Por isso, é fundamental prestarmos atenção, mais ainda, às verdades
que temos ouvido, para que jamais nos desviemos delas. 2Pois, se a
156
mensagem proferida por anjos provou sua firmeza, e toda
transgressão e desobediência recebeu a devida punição, 3como nos
livraremos se desconsiderarmos tão grande salvação? Esta salvação,
tendo sido proclamada pelo Senhor, foi depois confirmada a nós pelos
que a ouviram. (Hebreus 2:1-3).
A Lei entregue por anjos? Hollywood não estava seguindo
exatamente o script bíblico certinho. Vamos deixar a cena correta no
próximo capítulo.

157
CAPÍTULO 21
A LEI DE DEUS, O CONSELHO DE DEUS
Devo admitir, é um pouco difícil ficarmos excitados com as leis
de Deus. Quantos de nós ecoaríamos os sentimentos de Paulo, de que ele
se satisfazia na lei de Deus em seu coração (Rom 7:22)? Nós certamente
não pensamos na lei como Davi o fazia:
7A lei do SENHOR é perfeita, e revigora todo o ser. As palavras que
vêm do SENHOR são dignas de confiança, e transformam os mais
humildes em sábios. 8Os preceitos do SENHOR são justos, e
proporcionam alegria ao coração. Os mandamentos do SENHOR são
cristalinos e iluminam o entendimento. (Salmos 19:7-8).
Tendemos a pensar na lei como se cada um dos seus 663
mandamentos fosse um dedão opressivo num relacionamento com
Yahweh. Tendemos a ver a lei de forma negativa, como se ela tivesse sido
dada para produzir sensações de culpa ou para frustrar os israelitas com
a impossibilidade de se agradar a Deus. Isso é errado. As leis da Torá
lidam de forma ampla com o relacionamento de uma pessoa para com
Yahweh (por exemplo: adoração, acesso ao local sagrado),
relacionamentos com israelitas afins ou de fora (ex: sexo, negócios,
propriedade), e a ligação da aliança da nação com seu Deus. A lei não
eram meios de se merecer a salvação. Um israelita teria sabido que crer
estava no coração de um relacionamento correto com Yahweh, e não
uma mera observância de uma lista do que fazer e não fazer. É claro que
alguns israelitas teriam entrado nessa onda de pensamentos errados,
particularmente depois do choque do exílio, mas não era sobre isso a
existência da lei.
Em outras palavras, o legalismo não era intrínseco à teologia
bíblica da lei. O coração da salvação na teologia bíblica, através dos dois
testamentos, é acreditar lealdade a Yahweh. Essa orientação se estende
desde o Éden e tem raízes profundas no que aconteceu no Sinai. Não é
coincidência que quando Israel, a porção de Yahweh, se encontrou com
ele no Sinai, o resultado foi uma segunda aliança envolvendo leis ligando
Israel e Yahweh em fidelidade, testemunhada pelos membros do
conselho divino de Yahweh.
158
A MONTANHA CÓSMICA: O Nascimento da Lei
No último capítulo fomos introduzidos às conexões entre o Éden
e o Sinai. Ambos eram lugares sagrados onde os filhos de Yahweh o viam
em forma humana (Gên 3:8; Êxodo 24:9-11). Terminamos nosso
raciocínio com a provocativa noção de que o conselho divino estava
presente na montanha de Deus, especificamente durante o fornecimento
da lei.
A ligação entre a lei e o conselho divino é mostrada várias vezes
no Novo Testamento, que usa o termo mais genérico “anjos” para
descrever o conselho divino. Fechei o último capítulo com duas
passagens que descreviam a lei como tendo sido “entregue pelos anjos”
(Atos 7:53) e “declarada pelos anjos” (Hebreus 2:2).
Quando cheguei pela primeira vez nesses versículos do Novo
Testamento, já havia lido muito o VT e nunca havia entendido essa ideia,
então eu naturalmente me perguntava aonde os escritores do NT
queriam me levar. Na verdade, esse é um problema espinhoso. Existem
passagens que descrevem anjos no Sinai, mas nenhuma delas
especificamente se referem à lei.
Por exemplo, Salmos 68:15-18 está assim:
15Montanha altíssima é a montanha de Basã, majestosos e escarpados
são os montes de Basã! 16Por que, ó montes de altos píncaros, olhais,
com inveja, a montanha que Deus escolheu para sua habitação, onde o
próprio SENHOR habitará para sempre? 17São os carros de Deus
milhares de milhares; incontáveis; neles o Senhor veio do Sinai para o
seu Lugar Santo. 18Subiste ao cume, levando os cativos; recebeste
dádivas dentre os homens, até mesmo dos que se rebelaram contra a
tua habitação.
Sem referência direta à lei, a ideia do NT em Atos 7 e Hebreus 2
é completamente planejada, ao menos que você esteja usando o
Septuaginta como o seu VT, a tradução grega do VT que era a Bíblia da
igreja primeva.

159
Uma segunda passagem do Sinai que é o texto chave para
conectar a lei e a hoste celestial é Deuteronômio 33:1-4. A versão do
Septuaginta tem uma multidão de seres divinos no Sinai, onde o texto
tradicional hebraico não tem. E essa não é a única divergência. Deem
uma olhada na passagem em ambas as versões, especialmente as
palavras em negrito:
Texto Hebraico Tradicional Septuaginta
(Masotérico)
Agora essa é a bênção com a qual Agora essa é a bênção com a qual
Moisés, o homem de Deus, Moisés, o homem de Deus,
abençoou os Israelitas antes de abençoou os Israelitas antes de
sua morte. Então ele disse: sua morte. Então ele disse:
“Yahweh veio do Sinai, e ele “O Senhor veio do Sinai, e ele
desceu sobre ele de Seir; ele apareceu para nós de Seir; ele se
brilhou do Monte Paran, e ele apressou do Monte Paran
veio com miríades de santos, com dez mil de Kadesh, à sua
à sua direita uma lei direita, seus anjos com ele. E
fulgurante para eles. Além ele tinha piedade de seu povo, e
disso, ele ama seu povo, todos os todos os santos estavam sob suas
santos estavam em sua mão, e ele mãos; até mesmo esses estavam
se prostraram aos seus pés, cada sob ti; e eles (o povo) receberam
um aceitando as direções de ti. suas palavras, uma lei que Moisés
Uma lei que Moisés nos instruiu, nos mandou, uma herança pelas
como uma possessão pela assembleias de Jacó.
assembleia de Jacó.

A diferença fundamental é que a versão do Septuaginta tem os


anjos no Sinai (v. 2) e o texto tradicional não tem. No versículo 3, o texto
tradicional hebraico parece sugerir que os “santos” são os israelitas que
receberão a lei. O Septuaginta tem os anjos de Deus à sua direita, a
posição de autoridade, testemunhando o fornecimento da lei a Israel.
Uma vez que os escritores do NT frequentemente usam o
Septuaginta quando se referem ao VT, podemos entender o que é
mostrado em Atos 7:52-53 e Hebreus 2:1-2.

160
No entanto, Gálatas 3;19 adiciona um detalhe surpreendente que
faz a conexão ser ainda mais dramática:
19Qual era, então, o propósito da Lei? Ora, a Lei foi acrescentada por
causa das transgressões, até que viesse o Descendente a quem se referia
a Promessa, e foi promulgada por meio de anjos, pela mão de um
mediador.
Gálatas 3:19 nos informa que havia um intermediário entre Deus,
os anjos e Israel. A maioria dos estudiosos assume que essa é uma
referência a Moisés. Outros estudiosos têm mostrado que, à luz do
próximo versículo, isso é problemático (“20Entretanto, o mediador não
representa somente um, mas Deus é um só.”). Por que Paulo sente a
necessidade de esclarecer que a singularidade de Deus não é perturbada
por esse intermediário se ele era apenas Moisés?
Existe uma outra solução, uma que explica esse comentário de
Paulo: o intermediário é Yahweh em forma humana.
Deuteronômio 33 usa uma linguagem que requer a aparência de
Yahweh em forma humana (“apareceu”; “sua direita”). Nesse
entendimento, Deuteronômio 9:9-10 atinge um novo significado. Moisés
diz:
9Subindo eu ao monte para receber as sagradas placas de pedra, as
tábuas da Aliança que o SENHOR estabelecera convosco, permaneci na
montanha quarenta dias e quarenta noites; não comi pão, nem bebi
água. 10Yahweh deu-me então as duas placas de pedra, escritas pelo
dedo de Deus. Sobre elas estavam escritas todas as palavras que
Yahweh vos proclamara do meio do fogo, quando estavas em
assembleia ao pé da montanha.
Essa linguagem agora nos é familiar, a linguagem de uma
fisicalidade humana (“dedo”) é aplicada a Yahweh. Essa é a descrição
padrão do segundo Yahweh, o Anjo. Não seria uma surpresa que o NT
fala de uma mediação angelical para a lei, pois ela foi escrita pelo Anjo
que é Deus na presença dos membros do conselho (“os santos”) e depois
dispensada à Israel através de Moisés.

161
A LEI DA ALIANÇA DO SINAI E SUAS TESTEMUNHAS
A ideia central da lei sendo “entregue” e “declarada” por anjos é
mostrada em Deuteronômio 33:1-4. Os seres divinos do conselho de
Yahweh testemunharam o acordo. Essa informação é fornecida quase
que de forma encriptada, pelo menos aos nossos olhos. Precisamos ler
com atenção e, em alguns casos, em hebraico para podermos pegar as
pistas.
Os estudiosos concordam que os eventos no Sinai depois do
êxodo estabeleceram uma aliança entre Yahweh e seu povo, Israel.
Alianças são basicamente acordos ou decretos de uma relação. A
libertação dos Israelitas por Yahweh do Egito foi incitada pelas
promessas de aliança desde o início lá atrás com Abraão, Isaque e Jacó
(Gên 12:1-3; 15:1-6; 22:18; 26:4; 27:29; 28:14). Os eventos que levaram
à milagrosa libertação do Egito, aludem às primeiras promessas (Êxodo
3:7-8; 16-22; 6:4-6; 13:5; 11). A descendência de Abraão se tornou uma
multidão no Egito (Êxodo 1:6-10) e, como Deus havia dito a Abraão
séculos antes, eles se tornaram estranhos numa terra estrangeira (Gên
15:13). Deus os havia resgatado e agora, no Sinai, configurava os termos
desse relacionamento.
A aliança entre Yahweh e Israel decretada no Sinai segue as
convenções de um tipo de aliança conhecido das antigas fontes do
Oriente Próximo. Estudiosos se referem a ela como um tratado vassalo.
Esse tipo de aliança era, em essência, um juramento de lealdade por um
inferior (o vassalo aqui é Israel) para um superior (Yahweh, quem
começou o acordo).
As estipulações básicas do relacionamento dessa aliança eram o
que conhecemos como os Dez Mandamentos (Êxodo 20), embora ajam
outras leis em Êxodo 20-30. Como foi no início, na aliança abrâmica
(Gên 15:9-10), um ritual de sacrifício foi realizado para ratificar a aliança
(Êxodo 24:3-8). Depois do ritual, seguiu-se uma refeição sacrificial entre
as partes envolvidas. Essa era a cena do conselho divino em Êxodo 24:9-
11 a qual já mostramos.
Um tratado vassalo formal no antigo Oriente Próximo,
regularmente listava uma “terceira participação” para testemunhar esse
162
decreto. Como um estudioso cita: “As testemunhas eram exclusivamente
deidades ou elementos deificados do mundo natural... Todos os deuses
relevantes a ambas as partes eram chamados como testemunhas, de
forma que não fossem deixados nenhum deus para que o vassalo pudesse
apelar pela sua proteção se ele desejasse violar esse solene juramento”.
Os deuses eram “reforçadores da aliança” nessa visão.
Os israelitas é claro não reconheceriam deuses estranhos em tal
tratado. Consequentemente a maioria dos estudiosos consideram esse
elemento ausente na narrativa do tratado no Sinai. Mas os elohim do
conselho de Yahweh não eram deuses estranhos. Eles eram a hoste as
testemunhas de Yahweh na entrega da lei, pelo menos de acordo com o
texto em hebraico por trás do Septuaginta e dos escritores do Novo
Testamento. Eles também eram, como indica a narrativa de Acabe em 1
Reis 22, os meios pelos quais Yahweh punia os apóstatas da aliança.
É precisamente esse ponto que muitos estudiosos têm falhado em
perceber um relevante jogo no texto bíblico que também sugere essa
conexão.
As tábuas da lei são frequentemente referidas em Êxodo pelo
termo ‘edut. Ela é normalmente traduzida como “testemunho” nas
Bíblias em Português. O termo é usado em paralelo com torah (“lei”) em
Salmos 19:7 e 78:5, de forma que pelo menos ela esteja falando o texto
escrito da lei. Êxodo 25:16 nos informa que Yahweh comandou Moisés a
colocar o ‘edut na arca da aliança. Na verdade, a arca foi feita para o ‘edut.
Isso explica porque a arca é também chamada de “arca do ‘edut” (Êxodo
25:22; 30:6; 26; 39:35; 40:3; 5; 21). Uma vez que a arca viajava dentro
do tabernáculo, essa estrutura de tenda móvel também era chamada de
“o tabernáculo do ‘edut” (Êxodo 38:21; Num 1:50; 53; 10:11) ou a “tenda
do ‘edut” (Num 9:15; 17:7-8; 18:2; 2 Crônicas 24:6).
O que deixa tudo isso interessante é que o termo ‘edut também
significa “testemunhas”. Na verdade, o equivalente desse plural em
Acadiano, a língua dos tratados vassalos que servia como modelo para o
tratado do Sinai em Êxodo, é um termo técnico usado exclusivamente
para as testemunhas de tais tradados.

163
Não quero sugerir que o termo não se refira às leis nas tábuas. Ao
invés disso, uma vez que as próprias tábuas ocupavam um espaço
sagrado reservado só para a presença de Yahweh (na arca dentro do
santíssimo), o termo parece significar que as tábuas da lei também eram
um tipo de procuração para os membros do conselho divino, os quais
testemunharam o evento. Em outras palavras, as tábuas da lei eram um
símbolo do próprio evento do Sinai. Elas eram lembretes de pedra de um
encontro divino com Yahweh e seu conselho, na mesma forma que os
altares e as pedras empilhadas construídas pelos patriarcas eram
lembranças de passagens que eles marcavam como encontros divinos
(Gên 12:7; 13:18; Êxodo 17:15; 24:4).
Novamente, a presença de Yahweh em sua casa (Éden, Sinais,
Tabernáculo, e eventualmente o Templo), implica, por definição, a sua
sala do trono junto com seu conselho ativo. As tábuas não continham
apenas os termos da aliança, mas eram um lembrete do evento como ele
aconteceu, com o conselho divino presente no Sinai.
A LEI E A SALVAÇÃO
Em termos simples, a aliança do Sinai continha o desejo de
Yahweh para o que ele queria que Israel fosse, em relação a ele e às
nações deserdadas. Israel era para ser teologicamente e eticamente
distinta. Essas distinções eram obrigações, e não sugestões. Israel era
para ser santa (Lev 19:2) e cumprir o propósito original de Deus do Éden
de espalhar sua influência (o governo do seu reino) através de todas as
nações.
O status de Israel como sendo a própria porção de Yahweh não
era um fim em si mesma, mas os meios pelos quais Israel levaria todas
as nações de volta à Yahweh (Deut 4:6-8; 28:9-10). Essa era a ideia por
trás da Israel sendo um “reino de sacerdotes” (Êxodo 19:6) e “uma luz
para as nações” (Isa 42:6; 49:6; 51:4; 60:3). Não é de surpreender que o
livro de Apocalipse usa a mesma linguagem sobre os crentes em
Apocalipse 5:10, uma cena do conselho divino, em conexão com o
governo de toda a terra. Toda a nação havia herdado o status e o dever
de Abraão, que através dele, e agora deles, todas as nações fossem
abençoadas (Gên 12:3).
164
Mas será que essa salvação viria com a obediência a regras? Para
responder sim a essa pergunta é não estar entendo a coisa. A salvação no
VT significava amor somente por Yahweh. A pessoa tinha que crer que
Yahweh era o Deus dos deles, confiando que esse Deus Altíssimo havia
escolhido uma aliança de relacionamento com Israel em detrimento a
todas as outras nações. A lei era como a pessoa demonstraria esse amor,
essa lealdade. A salvação não era por mérito. Só Yahweh havia iniciado
a relação. A escolha de Yahweh e a promessa da aliança tinham que ser
cridas. Uma lealdade crente de um israelita era mostrada pela fé na lei.
O centro da lei era fidelidade somente à Yahweh, acima de todos
os deuses. Adorar outros deuses era demonstrar a ausência de crença,
amor e lealdade. Fazer as obras da lei sem ter o coração alinhado
somente à Yahweh era inadequado. É por isso que a promessa da
possessão da terra prometida é repetidamente e inextrincavelmente
ligada aos dois primeiros mandamentos da Torá (isto é, ficar longe da
apostasia e da idolatria).
A história dos reis de Israel ilustra esse ponto. O Rei Davi foi
culpado de um dos maiores crimes contra a humanidade no incidente
com Betseba e Uriá o Hitita (2 Samuel 11). Ele claramente violou a lei e
merecia a morte. No entanto, sua crença em quem Yahweh era dentre
todos os deuses nunca balançou. Deus foi misericordioso com ele,
poupando-o da morte, embora seu pecado tivesse tido consequências
para o resto de sua vida. Mas não há dúvida de que Davi sempre fora um
crente em Yahweh e nunca havia adorado outro. Ainda assim, outros reis
de Israel e Judá foram deixados de lado e ambos os reinos enviados ao
exílio, pois eles adoraram outros deuses. Falhas pessoais, mesmo a da
pior espécie, não enviavam uma nação ao exílio. Mas escolher outros
deuses enviava.
O mesmo é verdade no NT. Crer no Evangelho significa acreditar
que Yahweh, o Deus de Israel, veio à terra encarnado como homem,
voluntariamente morreu na cruz como um sacrifício pelos nossos
pecados, e ressuscitou no terceiro dia. Esse é o centro da nossa fé desse
lado da cruz. Nossa crente lealdade é demonstrada pela nossa obediência
à “lei de Cristo” (1 Cor 9:21; Gal 6:2). Não podemos adorar outro. A
salvação significa ser lealmente crente a Cristo, o qual foi e é o Yahweh
165
visível. Não existe salvação em nenhum outro nome (Atos 4:12), e a fé
deve permanecer intacta (Rom 11:17-24; Heb 3:19; 10:22; 38-39). Falhas
pessoais não são a mesma coisa que trocar Jesus por outro deus, e Deus
sabe disso.
Ser lealmente crente, dessa forma, não é algo acadêmico. Por
definição ela deve ser consciente e ativa. Israel sabia que o Deus dela
havia lutado por ela e a amava, mas esse relacionamento veio com
expectativas. Quando ela embarcou para a terra prometida, Israel teria
lembretes diários e visíveis não apenas da presença de Yahweh, mas de
sua total alteridade. Ter a presença divina com você pode ser tanto
fantástico, quanto assustadora.

166
CAPÍTULO 22
DISTINÇÃO DE REINOS
Estivemos acompanhando a história de Yahweh e sua porção, os
descendentes de Abraão. Yahweh escolheu deserdar as nações em Babel.
Ele escolheu aparecer a Abração numa forma visível e humana para
iniciar uma relação de aliança. Ele escolheu reiterar essa aliança com
Isaque e Jacó, o qual ele renomeou Israel. E ele escolheu libertar Israel
do Egito.
Essas escolhas telegrafaram mensagens teológicas. Israel existia
porque Yahweh havia permitido o nascimento sobrenatural de Isaque.
Eles continuaram a existir porque Yahweh queria um povo na terra para
carrear seu próprio plano e seu próprio poder. Os elohim menores que
ele havia colocado sobre as nações deserdadas, particularmente aquelas
no Egito nesse ponto da história, não puderam frear o desejo dele. Não
há Deus como Yahweh. Seu objetivo de fazer da terra um novo Éden não
será derrubado.
Antes das pragas e do Êxodo do Egito, os descendentes de Jacó
conheciam Yahweh só por reputação e história oral. Agora eles estavam
ali naquela montanha, preparados para a jornada até a terra que ele
pegou para si mesmo, e para eles. Eles tinham as tábuas da lei, mas esse
era só o início. O Egito e seus deuses haviam sido derrotados, mas o
conflito com os deuses e suas nações estava apenas começando. Israel
precisava entender que ser a porção de Yahweh significava se separar
dos deuses e das nações que estavam preparadas para se opor a eles. O
conceito de distinção de reinos era fundamental para a visão
sobrenatural da antiga Israel.
SANTIDADE E ESPAÇO SAGRADO
Yahweh é um elohim, e não um homem mortal. Aparecer como
um ser humano era uma condescendência que habilitava as mentes
menores dos mortais a compreenderem sua presença, e viver para conta-
la. Yahweh é tão diferente que chega a ser incompreensível sem um
disfarce de algo familiar. E ainda assim para Israel, sua alteridade seria

167
necessária para permanecer uma realidade sempre presente, sentida a
todos os momentos.
O conceito de diferença estava no centro da identidade de Israel.
A diferença é o centro da santidade. O vocabulário hebraico para
santidade significa ser separado, ser outro. Mesmo sendo a ideia uma
dimensão moral relacionado à conduta, ela não é intrinsecamente sobre
moralidade. Ela fala de distinção. A identificação de Israel com Yahweh
por virtude de sua aliança com Abraão e os termos da aliança no Sinai
significavam que, como Levíticos 19:2 concisamente resume, os
Israelitas era para serem separados (“santos”) como Yahweh era
separado (“santo”).
A completa diferença de Yahweh era reforçada nas mentes dos
israelitas através da adoração e sacrifício. Yahweh não era apenas a fonte
de vida de Israel, ele era a vida. Yahweh era completo em suas perfeições.
Yahweh não era da terra, um lugar onde há morte, doenças e
imperfeição. Seu reino é sobrenatural; o nosso é o terrestre. O espaço
que ele ocupa é sagrado e transformado em algo de outro mundo em sua
presença. O espaço que nós ocupamos é “profano” ou ordinário. Yahweh
é a antítese do ordinário. Humanos precisam ser convidados e
purificados para ocupar o mesmo espaço.
Muitas leis na Torá ilustram essa visão e essa mensagem. Sendo
sacerdote ou não, homem ou mulher, as pessoas poderiam ser
desqualificadas do espaço sagrado por uma variedade de atividades e
condições. Exemplos incluem: atividade sexual, emissões corporais,
lesões físicas, contato com um cadáver e ter dado à luz.
A lógica de tais exclusões é simples, e ainda estranha às nossas
mentes modernas clínicas. O intercurso sexual, a emissão de fluidos
sexuais, descargas uterinas e a menstruação não eram considerados
impurezas anormais. Ao invés disso, o conceito era de que o corpo perdia
seus fluidos que contém, criam e suportam a vida. Aquilo que não é pleno
é associado à perda de vida, não pode entrar na presença de Yahweh até
que chegue ao status de restauração e retificação através de um ritual. O
mesmo raciocínio está por trás dos estados de impurezas ritualísticos
daqueles com lesões físicas, infectados com doenças e aqueles que
168
tocaram um cadáver, animal ou humano. A presença de Yahweh significa
vida e perfeição, e não morte e defeitos. Essas leis mantinham a
comunidade consciente da diferença de Yahweh.
Regulações que governavam a santidade da habitação de Yahweh
forneciam lições objetivas concretas sobre a distinção dos reinos. O solo
que essa habitação limitava era um espaço sagrado em relação ao povo
de Israel. A separação do reino divino era reforçada pelas leis que
permitiam ou não a proximidade de Yahweh. Essas permissões ou
proibições eram até mesmo estendidas a objetos inanimado associados
a Yahweh e sua obra.
Mesmo dentro do espaço sagrado, existiam graduações de
santidade. Quanto mais próximo da presença de Yahweh, mais santo o
solo ou o objeto em sua proximidade. Os termos que descrevem o layout
da estrutura são uma evidência dessa progressão. Da entrada adentro lá
está o pátio, o local sagrado, e o “lugar mais sagrado” (“o santíssimo”).
Os espaços sagrados dos tabernáculos vão ficando progressivamente
mais santos desde a entrada até a sala mais interna.
As progressivas “zonas de santidade” eram também
diferenciadas pelas vestimentas do sacerdote associadas a eles (Êxodo
28-29). Por exemplo: o alto sacerdote, a pessoas com acesso permitido
ao local sagrado, vestia um éfode único, um peitoral e um turbante com
a inscrição “Consagrado a Yahweh”. Quanto mais santo o lugar, mais
caro era o animal a ser sacrificado para santificar os sacerdotes quanto
eles entrassem na presença de Yahweh para os rituais (Levítico 8).
O TABERNÁCULO: O Céu na Terra
Yahweh habitar numa tenda antes da construção do templo
(muito depois, durante o tempo de Salomão) é importante para delimitar
o espaço santo. O tabernáculo (do hebraico: mishkan – “habitação”) era
o lugar onde Yahweh poderia fazer o seu nome, a sua presença, habitar.
Como morada divina, o tabernáculo também era análogo ao
Éden. Como o Éden, o tabernáculo era uma concepção cósmica, o lugar
onde o céu e a terra se encontravam, um verdadeiro microcosmo da
criação edênica, onde Deus primeiramente habitou na terra.
169
Existem muitas conexões sutis entre o Éden e o tabernáculo,
algumas delas discerníveis só no texto hebraico. Para nossos propósitos,
muitos dos mais óbvios são importantes.
Para começar, a descrição do tabernáculo como uma tenda de
habitação é significante. Mais além do mundo bíblico, as deidades e seus
conselhos eram considerados vivendo em tendas, acima de suas
montanhas cósmicas e seus jardins exuberantes. A tenda do deus ou
deuses era, como nas montanhas ou jardins exuberantes, o lugar onde o
céu e a terra se conectavam e onde os decretos divinos eram passados.
Essa era uma ideia cultural normal, talvez aparentando em como muitas
pessoas pensam sobre a igreja, a igreja é um lugar onde você espera se
encontrar com Deus, ou onde Deus pode ser encontrado.
Moisés disse para construir o tabernáculo e seus equipamentos
de acordo com o padrão mostrado a ele por Yahweh na santa Montanha
(Êxodo 25:9; 40; 26:30). A implicação é de que o tabernáculo na terra
fosse uma cópia da tenda celestial de acordo com o princípio religioso de
“assim na terra, como no céu”.
O protótipo da tenda celestial eram os próprios céus, como Isaías
40:22 nos diz (“22Ele é o que está assentado em seu trono, acima da
cúpula da terra, cujos habitantes são para ele como gafanhotos; ele é o
que estende os céus como cortina e os desenrola como tenda para nela
morar”). Esse tipo de linguagem é que mostra que a terra é referida
como escabelo de Deus (Isaías 66:1). Yahweh se senta sobre o círculo da
terra, em sua tenda celestial, em seu trono sobre as águas as quais estão
acima do “firmamento”, e descansa seus pés sobre a terra, a qual é o
estrado dos seus pés (Jó 9:8; Salmos 104:2).
Como o Éden foi o lugar onde a humanidade experimentou a
presença de Deus, assim também era o tabernáculo. Isso era
particularmente real para os sacerdotes, mas a presença de Deus
ocasionalmente se encontrava com os líderes de Israel do lado de fora do
santíssimo (Lev 9:23); Num 12:5-19; 20:6; Deut 31:15), a ocorrência
mais óbvia é a nuvem de glória (Êxodo 40:34-35).

170
A menorá (“candelabro”) no tabernáculo é uma analogia forte
com a árvore da vida no Éden. O candelabro era feito na aparência da
árvore (Êxodo 25:31-36) e era deixado diretamente fora do santíssimo.
O querubim dentro do santíssimo também era uma clara conexão
ao Éden. O querubim edênico ficou de guarda no lugar de habitação de
Deus no Éden. Sua posição sobre a tampa da arca da aliança não é
coincidência. A parte sagrada mais interna do tabernáculo era o lugar de
onde Deus iria governar Israel. O querubim forma um trono para o
Yahweh invisível. Mais tarde, quando a tenda do lugar mais sagrado foi
movida para dentro do templo, dois querubins gigantes foram instalados
dentro do trono de Yahweh, fazendo da arca o estrado dos seus pés.
E finalmente, como anotado por Beale: “A entrada do Éden era
pelo leste (Gên 3:24), a qual também era por onde as pessoas entravam
no tabernáculo e mais tarde nos templos de Israel. Gênesis 2:12 diz que
o ‘puro ouro’ e as ‘pedras de bdélio e ônix’ estavam na ‘terra de Havilá’,
aparentemente onde o Éden estava. É claro que vários itens da mobília
do tabernáculo eram feitos do ouro, como eram as paredes, e o chão do
santíssimo no Templo de Salomão (1 Reis 6:20-22).
O SACRIFÍCIO E A GEOGRAFIA CÓSMICA DE ISRAEL
Um ritual israelita em particular ilustra a distinção dos reinos.
No contexto da visão de Deuteronômio 32, que tem as nações sob
domínio de deuses menores, todo o campo de Israel era uma geografia
cósmica e espaço sagrado. Israel era identificada com Yahweh. Tanto o
povo como a terra que Yahweh determinasse pertencer aos descendentes
de Abraão era “porção” de Yahweh (Deut 4:19-20; 32:8-9).
O ritual do Dia da Expiação (Levítico 16) fornece uma
convergência fascinante dessas ideias. Parte da descrição desse ritual
acontece assim:
7Arão tomará os dois bodes e os apresentará diante do SENHOR à
entrada da Tenda do Encontro. 8E lançará sortes, mediante duas
pedras, uma com o nome de Yahweh, e a outra com o nome de Azazel.
9Arão trará o bode cuja sorte caiu ‘para Yahweh’ e o sacrificará como
oferta pelo pecado. 10Entretanto, o bode sobre o qual caiu a sorte ‘para
171
Azazel’, será apresentado vivo ao SENHOR, para se fazer com ele o rito
de expiação, a fim de ser condenado a ir para Azazel, no deserto.
Por que um dos bodes “para Azazel”? Quem ou o que é “Azazel”?
A passagem é inexplicável, ao menos que já tenha entendido as ideias
geográficas cósmicas que estamos falando.
A palavra “Azazel” no texto hebraico pode ser traduzida “o bode
que vai embora”. Essa é a justificativa para a tradução comum “bode
expiatório” em algumas traduções em português. O bode expiatório,
como apresenta algumas traduções, simbolicamente carrega os pecados
do povo para fora do campo de Israel indo para o deserto. Parece bem
simples.
No entanto, “Azazel” na verdade é um nome próprio. Em Lev
16:8, um bode é “para Yahweh”, enquanto o outro bode é “para Azazel”.
Uma vez que Yahweh é um nome próprio e os bodes são descritos da
mesma forma, o paralelismo hebraico nos informa que Azazel também é
um nome próprio. O que precisamos saber é o significado dele.
Azazel é tido como o nome de um demônio nos Pergaminhos do
Mar Morto e outros textos judaicos antigos. Na verdade, em um
pergaminho (4Q 180, 1:8), Azazel é o líder dos anjos que pecaram em
Gênesis 6:1-4. A mesma descrição aparece no livro de 1 Enoque (8:1; 9:6;
10:4-8; 13:1; 54:5-6; 55:4; 69:2).
Lembrem-se que no judaísmo intertestamentário, os rebeldes
filhos de Deus de Gênesis 6 foram aprisionados num abismo ou
profundeza no submundo. O reino de Azazel era em algum lugar no
deserto, fora dos confins do solo santo. Era um lugar associado a um mal
sobrenatural.
O Velho Testamento em si mesmo não fala que Azazel era um
demônio. Os estudiosos, no entanto, têm conectado este nome a Mote, o
deus da morte. A identificação do termo com um demônio também é
derivada da geográfica cósmica e uma associação do deserto com as
forças do caos, as quais são hostis a Deus. Isso faria sentido em vários
níveis, pois o deserto não é apenas um lugar onde a vida é proibitiva,

172
mas, como solo fora do campo de Israel e Yahweh, a fonte da vida, teria
uma clara associação com o caos.
Levítico 17:7 sugere que os israelitas viam o deserto como algo
espiritualmente sinistro: “7Não oferecerão mais sacrifícios aos ídolos
(demônios) em forma de bode, aos quais prestam culto imoral”. Não
nos é dito porque eles faziam isso, mas a colocação desse problema junto
ao ritual do bode a Azazel, sugere uma conexão conceitual. Os judeus dos
períodos posteriores certamente fazem tais conexões.
No ritual do Dia da Expiação, o bode para Yahweh, o bode que
era sacrificado, purga as impurezas causadas pelo povo de Israel e
purifica o santuário. O bode para Azazel era enviado para longe com os
pecados dos Israelitas simbolicamente colocados nele.
O ponto que devemos entender do bode para Azazel não era de
que algo era devido ao reino demoníaco, como se uma compensação
tivesse sendo paga. O bode para Azazel bania os pecados dos israelitas
para o reino do lado de fora de Israel. Por que? Porque o solo no qual
Yahweh tinha sua habitação era santo. O pecado tinha que ser
“transportado” para onde o mal estava, o território fora de Israel, sob o
controle de deuses colocados sobre as nações pagãs. O alto sacerdote não
estava sacrificando para Azazel. Ao invés disso, Azazel estava pegando o
que pertencia a ele: o pecado.
O conceito da distinção dos reinos e a geografia cósmica andam
de mãos dadas. Todos os dias a jornada da antiga Israel à terra
prometida reiterava algum ponto em relação a quem eles eram e seu
propósito na terra. O Yahweh invisível e o Yahweh visível estavam
presentes como uma nuvem e um Anjo, liderando seu povo através do
domínio de deuses hostis e seu povo para a própria terra divinamente
atribuída a Israel. Quando eles acampavam, o brilho do fogo de Yahweh
sobre o tabernáculo, o Éden retornava à terra, iluminando o campo. Eles
eram a porção de Yahweh. As forças do caos, visíveis e invisíveis,
estavam por todo lado. Poderíamos pensar que as lições objetivas
viventes seriam a garantia de uma fé quando o tempo de confrontar essas
forças viesse. Mas não foi bem assim.

173
RESUMO DA SESSÃO
O julgamento em Babel fez do mundo um lugar bem diferente.
Antes de Yahweh deserdar as nações, ele estava numa relação de aliança
com todos os descendentes de Noé. Deus disse aos filhos de Noé para
frutificar, multiplicar e se espalhar pela terra (Gên 9:1). E não é por
acidente que essas foram as palavras dadas a Adão e Eva (Gên 1:22, 28).
Os filhos de Noé deveriam expandir a família humana de Deus e executar
o objetivo original de um mundo Edênico. Babel minou tudo isso.
Em resposta, Yahweh fez das nações estrangeiras. Se o seu desejo
era muito oneroso, então eles deveriam servir outros deuses. Yahweh
transferiria o sonho Edênico para outros, um povo que ainda não existia,
mas em breve iria.
Yahweh veio até Abraão em forma humana, assim como ele fez
com Adão e Eva (Gên 3:8). O contato foi pessoal, pois o interesse era
pessoal. O governo do reino de Yahweh seria construído numa aliança
de lealdade. Ele permaneceria fiel, e começando com Abraão, todos que
desejassem participar poderiam, se eles, como Abraão, acreditassem nas
promessas da aliança e se afastassem dos outros deuses.
As promessas passariam de Abraão para Isaque e então a Jacó
(Israel). A família de Yahweh seria preservada através de José, e
libertada através de Moisés. A liberdade, é claro, foi um meio para um
objetivo. Yahweh queria o que desejava desde o início: uma junção de
suas famílias celestiais e terrenas na terra que ele veio chamar à
existência. Para esse fim ele trouxe a casa de Israel para o Sinai. Um
elemento do pacto original com Abraão teria que desaparecer. Israel era
numerosa. Mas o povo de Yahweh ainda não tinha terra e ainda tinha
que cumprir o mandamento de abençoar as nações, trazendo-os de volta
Àquele que os deixou de lado.
Faltava ainda uma tarefa. Yahweh traria Israel à Canaã, onde
essas duas promessas da aliança seriam cumpridas. Ele também viveria
entre eles nessa terra. Para esses fins, a aliança para viver na presença
de Deus, permanecendo na terra, e sendo um reino de sacerdotes foi
promulgada na presença de testemunhas, o conselho divino de Yahweh.

174
Quando seu povo foi ameaçado, seja por deuses ou por homens,
Yahweh interviria visivelmente como o Anjo numa sarça ardente, o
Nome incorporado liderando Israel através do deserto, e o Comandante
das forças de Yahweh no campo de batalha. Num conflito entre deuses e
homens, Israel era muito menor, mas tinha o Deus que precisava. Tudo
que era necessário era uma leal crença, confiar e obedecer.
O que poderia dar errado?

175
PARTE 5
CONQUISTAS E ERROS
CAPÍTULO 23
PROBLEMAS GIGANTES
Relembrando o que estudamos nos capítulos anteriores, Deus
disse a Eva que a descendência dela entraria em conflito com a da
serpente (Gên 3:15). A serpente na verdade era um ser divino, e não um
mero membro do reino animal. Enquanto a flexibilidade do significado
do termo nachash nos force a considerar um entendimento duplo (e até
triplo), uma coisa é clara: o ser divino no jardim que se rebelou contra o
desejo de Yahweh de ter humanos governando sobre um mundo Edênico
nunca é mostrado em forma humana. Diferente dos filhos de Deus em
Gênesis 6:1-4, os quais são mostrados assumindo carne humana e
capazes de coabitação, o rebelde divino no Éden não apareceu para Eva
dessa forma.
Consequentemente, a ideia de uma “semente” ou descendência
se estendendo do nachash não teria sido literal para o escritor bíblico.
Ao invés disso, a noção é metafórica ou espiritual. E isso é precisamente
o que vemos quando a frase aparece em outros lugares na Bíblia. A
metáfora é, talvez, mais clara no Novo Testamento, quando o próprio
Jesus se refere aos Fariseus como serpentes (Mateus 23:33), os quais são
“do pai deles, o diabo” (João 8:44; Apo 12:6).
Apesar da natureza metafórica da linguagem na história do Éden,
a ideia de seres divinos produzindo uma geração humana que se oporia
aos desejos de Yahweh aparece em Gênesis 6:1-4. Essa passagem então
se torna uma munição para os escritores bíblicos e suas descrições da
conquista de Canaã. Nesse e nos próximos dois capítulos, iremos
recapitular o pensamento deles em relação a essa parte da história
bíblica de Israel.
A expulsão de Adão e Eva foi seguida de uma série de episódios
que mostram os descendentes de Eva contra os filhos espirituais do
inimigo original. A oposição ao plano de Deus veio tanto em forma

176
humana quanto divina. Caim foi referenciado especificamente sob esse
entendimento (1 João 3:12 – “Caim, o qual era do diabo e violentamente
assassinou seu irmão”). Gênesis 6:1-4 explicitamente descreveu uma
transgressão dos limites do domínio entre o céu e a terra que Deus havia
observado. Então depois houve a rebelião em Babel (Gên 11:1-9).
Mais revisão: Israel renasceu como uma nação no êxodo do Egito.
Depois de receber a lei, construir o tabernáculo e estabelecer o
sacerdócio, eles saíram para a terra prometida. Logo eles chegaram na
fronteira de Canaã, onde Moisés enviou doze espias para reconhecer o
território (Num 13). Os espias retornaram com a confirmação da
abundância e o desejo da terra. No entanto, a maioria deles estava em
desespero. A terra era ocupada por pessoas em cidades muradas, e onde
algumas delas eram descendentes dos gigantes dos Nephilim.
32E puseram-se a difamar diante dos filhos de Israel a terra que
haviam observado: “A terra para a qual fomos em missão de
reconhecimento é terra que devora seus habitantes. Todos aqueles que
lá vimos são homens de grande estatura. 33Lá também vimos gigantes,
os descendentes de Enaque, diante de quem parecíamos, a nós e a eles,
gafanhotos!” (Números 13:32-33).
Entender o trauma de Israel em Números 13 é essencial para o
entendimento das subsequentes narrativas de conquista. Qualquer
israelita ou judeu vivendo depois do tempo em que a Bíblia Hebraica
havia sido completada teria processado as guerras para a terra
prometida em termos dessa passagem, uma que ela conectava a
sobrevivência de Israel como o povo de Yahweh com a derrota dos
descendentes dos Nephilim.
NEPHILIM DEPOIS DO DILÚVIO
Em nossas discussões anteriores sobre Gênesis 6:1-4, deixamos
algumas questões sem solução. Como entendemos o que está em Gênesis
6:4 de que os Nephilim estiveram na terra no tempo do dilúvio “e
também depois”. Como devemos processar a presença original deles?
Como nossa discussão anterior deixou claro, pontos de vista que
tiram o entendimento do sobrenatural da questão devem ser
177
descartados. Os eventos descritos em Gênesis 6:1-4 faziam parte da visão
sobrenatural de Israel. Não podemos ter a pretensão de achar que eles
viam as coisas como a maioria dos leitores modernos o fazem. Uma vez
que os Nephilim eram parte da visão sobrenatural de Israel e seus
descendentes se tornaram o obstáculo primário de Israel para a
conquista da terra prometida, a conquista em si deveria ser entendida
em termos sobrenaturais.
Existem duas possibilidades de abordarmos a origem dos
Nephilim em Gênesis 6:1-4 que são consistentes com o entendimento
sobrenatural dos filhos de Deus na visão israelita. A primeira e mais clara
é a que os seres divinos vieram à terra, assumiram a forma da carne
humana, coabitaram com mulheres humanas e geraram uma
descendência anormal conhecida como Nephilim. Naturalmente, essa
visão requer que enxerguemos os clãs gigantes encontrados na conquista
como descendentes físicos dos Nephilim (Num 13:32-33).
A primeira objeção a essa abordagem é o componente sexual. A
mente iluminada moderna simplesmente não pode tolerar isso. O apelo
é normalmente feito a Mateus 22:23-33 nesse sentido, sob a suposição
de que o versículo 30 ensina que os anjos não podem se engajar em
relações sexuais:
23Naquele mesmo dia, os saduceus, que pregam a inexistência da
ressurreição, aproximaram-se de Jesus com uma questão: 24“Mestre,
Moisés ensinou que se um homem morrer sem deixar filhos, seu irmão
deverá casar-se com a viúva e dar-lhe descendência. 25Entre nós havia
sete irmãos. O primeiro casou-se e morreu. Como não teve filhos,
deixou a mulher para seu irmão. 26Da mesma maneira ocorreu com o
segundo, com o terceiro, até chegar ao sétimo. 27Finalmente, após a
morte de todos, a mulher também faleceu. 28Sendo assim, na
ressurreição, de qual dos sete ela será esposa, considerando que todos
foram casados com ela?” 29Então Jesus lhes esclareceu: “Vós estais
equivocados por não conhecerdes as Escrituras nem o poder de Deus!
30Na ressurreição, as pessoas não se casam nem são dadas em
matrimônio; são, todavia, como os anjos do céu. 31E, com relação à
ressurreição dos mortos, não tendes lido o que Deus vos declarou:
32‘Eu Sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus de Jacó’? Por
178
isso, Ele não é Deus de mortos, mas sim, dos que vivem!” 33Ao ouvir
tudo isso, as multidões ficaram estupefatas com o ensino de Jesus”.
(Mateus 22:23-33).
O texto não diz que os anjos não podem ter intercurso sexual; ele
diz que eles não fazem. A razão parece ser óbvia. O contexto para o
raciocínio é a ressurreição, a qual é mostrada tanto de forma ampla como
o pós vida ou, mais precisamente, ao final, o Éden global renovado. O
ponto é claro em ambas as opções. No mundo espiritual, no reino dos
seres divinos, não há necessidade de procriação. A procriação é parte do
mundo incorporado e é necessário para a manutenção da população
física. Dessa maneira, a vida no mundo perfeito edênico também não
requereria a manutenção da espécie humana com a geração de filhos,
todos teriam um corpo ressurreto imortal. Consequentemente, não há
necessidade de sexo na ressurreição, assim como não há necessidade
disso no reino espiritual não-humano.
Mas Gênesis 6 não tem um reino espiritual ou o mundo edênico
final como seu contexto. A analogia se quebra completamente. A
passagem em Mateus é, assim sendo, inútil como um comentário de
Gênesis 6:1-4.
Apesar do errôneo uso dessa passagem do Evangelho, os cristãos
ainda tropeçam nessa opção interpretativa para Gênesis 6:1-4. O leitor
antigo não teria tipo problemas com ela. Mas para os modernos, parece
impossível que um ser divino possa assumir a forma da carne humana e
fazer o que essa passagem descreve.
A objeção é esquisita, uma vez que essa interpretação é menos
dramática do que a encarnação de Yahweh como Jesus Cristo. Como o
nascimento de Deus de uma virgem como um homem é mais aceitável?
O que não é estarrecedor sobre Jesus ter tanto uma natureza divina
quanto humana juntas? E ainda nesse raciocínio, o que não ofende a
mente científica moderna sobre Deus sair através do canal de
nascimento de uma mulher e crescer como um humano, tendo que
aprender a falar, andar, comer com uma colher, ter treinamentos básicos
e passar pela puberdade? Todas essas coisas são muito mais chocantes
do que Gênesis 6:1-4, e é isso que as Escrituras explicitamente afirmam
179
quando ela nos informa que a segunda pessoa da Divindade se tornou
um homem. Deus se tornou homem desde a concepção.
A verdade é que os cristãos afirmam a encarnação porque eles
têm que fazê-lo, ela define o cristianismo. Gênesis 6:1-4 é deixado de
lado como algo periférico. Mas crer num Deus pessoal como a Bíblia
descreve significa abraçar o sobrenatural. Para o cristão, o ponto alto da
história sobrenatural da Escritura, sua expressão mais dramática e
impensável, é a encarnação de Deus em Cristo. A noção de que os filhos
de Deus vieram à terra em forma de carne deveria ser mais palatável do
que a encarnação, uma vez que é menos espetacular sobrenaturalmente.
Não sugestão de nenhuma aparição corporal de um ser divino acontecida
através de encarnação, se tornando um verdadeiro humano. Todas essas
instâncias são menores do que a encarnação. Essa abordagem
sobrenatural em particular a Gênesis 6:1-4 é derivada de outras
passagens que claramente têm seres divinos (anjos) em forma humana
incorporada.
Por exemplo, Gênesis 18-19 deixa bem claro que o próprio
Yahweh e dois outros seres divinos se encontraram com Abraão em
forma física. Eles se alimentaram juntos (Gên 18:1-8). Gênesis 19:10 nos
informa que os dois anjos tiveram que pegar Ló fisicamente e empurrá-
lo de volta em sua casa para evitar se machucar em Sodoma, algo que
seria difícil de fazer se esses dois seres não fossem verdadeiramente
físicos.
Outro exemplo que vimos antes é Gênesis 32:22-31, onde lemos
que Jacó lutou com um “homem” (32:34), cujo texto também descreve
como sendo um elohim duas vezes (32:30-31). Oséias 12:3-4 se refere a
esse incidente e descreve o ser que lutou com Jacó como um elohim e
mal’ak (“anjo”). Essa foi uma batalha física, e deixou Jacó machucado
(32:31-32).
Enquanto aparições visuais em forma humana eram mais
comuns, o NT também descreve episódios onde anjos são melhores
entendidos com corpos. Em Mateus 4:11, anjos vêm até Jesus depois dele
ser tentado pelo diabo e “ministraram” a ele (Marcos 1:13). Com certeza
isso significa muito mais do que estarem flutuando ao redor de Jesus.
180
Anjos aparecem e falam (Mateus 28:5; Lucas 1:11-21, 30-38), ocasiões
que presumem que verdadeiras ondas de som são criadas. Se uma mera
experiência auditiva era o que estava acontecendo, poderíamos esperar
a comunicação descrita como uma visão ou sonho (Atos 10:3). Anjos
abrem portas (Atos 5:19) e tocam em discípulos para acordá-los (Atos
12:7). Esse episódio em particular é especialmente interessante, pois o
texto apresenta Pedro erroneamente pensando que o anjo era apenas
uma visão.
Existe uma segunda abordagem sobrenatural a Gênesis 6:1-4 que
toma a linguagem sexual como um eufemismo, e não de forma literal.
Nessa perspectiva, a linguagem de coabitação é usada para mostra a
ideia de seres divinos os quais são rivais de Yahweh e responsáveis por
produzir os Nephilim, e, assim sendo, responsáveis pelos clãs de
gigantes.
Essa abordagem usa o relacionamento de Yahweh com Abraão e
Sara como uma analogia. Mesmo não havendo sugestão de um
relacionamento sexual entre um Yahweh incorporado e Sara para
produzir Isaque e depois os Israelitas, não é menos verdadeiro que os
Israelitas vieram através de intervenção sobrenatural. Nesse sentido,
Yahweh é o “pai” de Israel. Os meios pelos quais Deus capacitou Abraão
e Sara para ter um filho nunca são descritos na Bíblia, mas as Escrituras
são claras de que uma intervenção divina abre a porta para a ideia de que
outros deuses rivais produziram descendentes para se opor aos filhos de
Yahweh.
Como veremos no capítulo seguinte, essa crença por parte dos
escritores bíblicos (com respeito a ambas abordagens) se tornaram o
raciocínio para o extermínio de certos grupos de pessoas em Canaã.
Sejam os clãs gigantes um resultado de uma coabitação literal, ou a
linguagem sexual seja um mero veículo para comunicar a ideia que,
como Yahweh foi responsável pela existência dos israelitas, assim os clãs
gigantes existiram devido a algum tipo de intervenção sobrenatural dos
deuses rivais.

181
Ambas abordagens, portanto, presumem que os Nephilim e os
subsequentes clãs gigantes tiveram uma origem sobrenatural, mas eles
discordam sobre os meios pelos quais estes vieram.
NEPHILIM DEPOIS DO DILÚVIO
Gênesis 6:4 claramente informa os leitores que os Nephilim
estiveram na terra antes do dilúvio “e também depois”. A frase olha lá na
frente em Números 13:33, que também diz com a mesma clareza que os
descendentes gigantes de Enaque / Anaque “vieram dos Nephilim”. Os
filhos de Anaque, os Anaquim, eram um dos clãs gigantes descritos nas
narrativas de conquista (Deut 2:10-11, 21; Josué 11:21-22; 14:12, 15). O
texto claramente os liga aos Nephilim, mas como isso é possível dada a
narrativa do dilúvio?
O problema é um daqueles que têm confundido os intérpretes
desde a antiguidade. Como mostrei no capítulo 13, alguns escritores
judeus presumiam que a resposta era a de que o próprio Noé tivesse tido
como pais um dos filhos de Deus e fosse um gigante Nephilim. Gênesis
6:9 claramente distancia Noé dos ímpios que precipitaram o dilúvio,
então essa explicação não funciona.
Existem duas alternativas para explicar a presença dos gigantes
depois do dilúvio, os quais descendem dos Nephilim gigantes: (1) o
dilúvio de Gênesis 6-8 foi uma catástrofe regional e não global; (2) o
mesmo tipo de comportamento descrito em Gênesis 6:1-4 aconteceu
novamente (ou continuou a acontecer) depois do dilúvio, produzindo
outros Nephilim, de onde os clãs gigantes descenderam.
A primeira opção, um dilúvio localizado, naturalmente depende
da coerência dos argumentos em devesa de um dilúvio local,
especialmente aqueles argumentos que lidam com as palavras no texto
bíblico que parecem sugerir que o dilúvio foi no mundo todo. Muitos
estudiosos bíblicos, cientistas e outros pesquisadores tem montado
evidências a favor dessa interpretação. Para nossos propósitos, essa
opção permitiria a sobrevivência humana em outros lugares em regiões
conhecidas pelos autores bíblicos (Gên 10), especificamente o antigo
Oriente Próximo, o Mar Mediterrâneo e o Mar Egeu.

182
A segunda opção é uma possibilidade derivada da gramática
hebraica: Gênesis 6:4 nos diz que existiam Nephilim na terra antes do
dilúvio “e também depois, quando os filhos de Deus tiveram com as
filhas dos homens”. O “quando” no versículo poderia ser traduzido
“sempre que”, dessa forma sugerindo uma repetição desses eventos pré-
diluvianos depois do dilúvio. Em outras palavras, uma vez que Gênesis
6:4 aponta lá na frente aos últimos clãs gigantes, a frase poderia sugerir
que outros filhos de Deus foram pais de mais Nephilim depois do dilúvio.
Como resultado, não houveram sobreviventes dos Nephilim originais, e
então o dilema pós-diluviano seria resolvido. Uma aparição tardia de
outros Nephilim aconteceu através dos mesmos meios como antes do
dilúvio.
Tudo isso monta o cenário para Números 13:33. O medo dos clãs
gigantes resultou numa falha espiritual que significou ficarem vagando
pelo deserto fora da terra prometida por quarenta anos.
A geração que saiu do Egito foi sentenciada a morrer fora da terra
prometida.
A nova geração sob o comando de Josué cresceria tendo que
encarar a mesma ameaça.

183
CAPÍTULO 24
O LUGAR DA SERPENTE
Em Números 13, os israelitas chegaram à fronteira de Canaã.
Moisés enviou doze espias para Canaã a fim de observar a terra e seus
moradores. Eles voltaram com as notícias de que o que Deus havia dito
era verdade, a terra “jorrava leite e mel” (Números 13:27), mas depois
disseram, “lá nós vimos os Nephilim (os filhos de Anaque, os quais
vieram dos Nephilim), e éramos para eles como gafanhotos são para
nós”.
Logo no próximo capítulo do livro de Números nos é dito que,
apesar dos milagres de sua libertação do Egito, o povo se recusou a
acreditar que Deus os ajudaria a derrotar os Anaquim (“filhos de
Anaque”). Devido à sua rebelião, Deus os sentenciou a vagar pelo deserto
por quarenta anos até que todos aqueles que não creram, morressem. Só
depois Deus os traria de volta à terra prometida (Num 14:33-35).
Quem eram os Anaquim? Eram esses gigantes uma espécie de
seres monstruosos os quais lemos na mitologia grega? Quantos deles
viviam na terra? O texto claramente os conecta aos Nephilim, mas como
exatamente eles eram conectados?
Respostas a essas perguntas só podem ser entendidas quando
colocadas diante do antigo contexto dos escritores bíblicos os quais
colocavam a narrativa do VT da história de Israel em sua forma final.
Não é acidente que, depois de todas as narrativas, esse trabalho tenha
sido finalizado no exílio na Babilônia. Os escritores bíblicos
deliberadamente conectaram os clãs gigantes inimigos que Israel iria
encarar na conquista de volta aos apóstatas da antiguidade que tinham
a Babilônia como suas raízes: os filhos de Deus e os Nephilim, e a
deserdação das nações na Torre de Babel.
Esses incidentes informam a visão sobrenatural israelita. Eles
são no coração do que está nas apostas da guerra pela terra prometida.
Israel encontraria duas forças mortais: os descendentes dos Nephilim e
o povo das nações sob domínio de deuses hostis. Os dois são as vezes

184
estão juntos na narrativa. Ambos devem ser derrotados, mas um em
particular deve ser aniquilado.
OS GIGANTES DA TRANSJORDÂNIA
Quando os quarenta anos vagando pelo deserto estava perto de
acabar, Deus direcionou Moisés para liderar a nova geração de Israelitas
(e uns poucos membros da velha geração cuja fé não havia falhado) de
volta a Canaã. Mas ao invés de atacar Canaã do Sul como antes, Deus os
trouxe para o lado de Canaã através do território leste (a
“Transjordânia”).
Isso não foi por acaso. Deuteronômio 2 continua a história.
8Assim, pois, passamos por nossos irmãos, os filhos de Esaú, que
habitam em Seir, desde o caminho da Arabá de Elate e de Eziom-Geber:
Depois nos viramos e passamos pelo caminho do deserto de
Moabe. 9Então o Senhor me disse: Não molestes aos de Moabe, e não
contendas com eles em peleja, porque nada te darei da sua terra por
herança; porquanto dei Ar por herança aos filhos de Ló. 10(Antes
haviam habitado nela os emins, povo grande e numeroso, e alto como
os anaquins; 11eles também são considerados refains como os
anaquins; mas os moabitas lhes chamam emins. 12Outrora os horeus
também habitaram em Seir; porém os filhos de Esaú os desapossaram,
e os destruíram de diante de si, e habitaram no lugar deles, assim come
Israel fez à terra da sua herança, que o Senhor lhe deu.) 13Levantai-
vos agora, e passai o ribeiro de Zerede. Passamos, pois, o ribeiro de
Zerede. 14E os dias que caminhamos, desde Cades-Barnéia até
passarmos o ribeiro de Zerede, foram trinta e oito anos, até que toda
aquela geração dos homens de guerra se consumiu do meio do arraial,
como o Senhor lhes jurara. 15Também foi contra eles a mão do
Senhor, para os destruir do meio do arraial, até os haver consumido.

16Ora, sucedeu que, sendo já consumidos pela morte todos os homens


de guerra dentre o povo, 17o Senhor me disse: 18Hoje passarás por
Ar, o limite de Moabe; 19e quando chegares defronte dos amonitas,
não os molestes, e com eles não contendas, porque nada te darei da
terra dos amonitas por herança; porquanto aos filhos de Ló a dei por
185
herança. 20(Também essa é considerada terra de refains; outrora
habitavam nela refains, mas os amonitas lhes chamam
zanzumins, 21povo grande e numeroso, e alto como os anaquins; mas
o Senhor os destruiu de diante dos amonitas; e estes, tendo-os
desapossado, habitaram no lugar deles; 22assim como fez pelos filhos
de Esaú, que habitam em Seir, quando de diante deles destruiu os
horeus; e os filhos de Esaú, havendo-os desapossado, habitaram no
lugar deles até hoje. 23Também os caftorins, que saíram de Caftor,
destruíram os aveus, que habitavam em aldeias até Gaza, e habitaram
no lugar deles.) (Deuteronômio 2:8-23).

186
Aprendemos muitas coisas significativas nessa passagem e nessa
geografia. Procedendo do Sul para o Norte, os Edomitas, Moabitas e
Amonitas não deveriam ser molestados pelos israelitas, pois Deus há
muito tempo atrás atribuiu aquela terra ao sobrinho de Abraão, Ló, e seu
neto Esaú, o irmão de Jacó. É fascinante notarmos (vv. 10-11, 19-20) que
os gigantes já haviam vivido nesses territórios antes da chegada de
Moisés, Josué e os israelitas. Esses clãs gigantes eram conhecidos dentre
os Moabitas e Amonitas como os Emim e os Zanzumim. Outros
habitantes também haviam sido expulsos: os Horeus, os Avins e os
Caftorins. Esses grupos tribais nunca foram mostrados como sendo
descomunalmente altos, embora estivessem em conexão com os clãs
gigantes em várias outras passagens. O que temos que observar aqui é
que esses clãs gigantes já haviam sido removidos da terra prometida
aos descendentes de Abraão pelos descendentes de Esaú e Ló, os quais
também eram descendentes de Abraão, como Israel (vv. 12, 21).
Esses clãs gigantes estavam relacionados aos Anaquim (vv. 10-
11), os quais eram, é claro, “dos Nephilim” (Num 13:32-33). Não nos é
dito especificamente como essa linhagem sanguínea funcionava, mas
nos é dito que uma relação existia. Adicionalmente, todos esses grupos
parecem ser mostrados como os Rephaim (vv. 11, 20), um termo que terá
mais importância ao continuarmos.
MARCHANDO PARA SIOM ... E BASÃ
Deus disse a Moisés para pedir permissão de viagem aos filhos de
Ló e Esaú para os israelitas continuarem em direção ao Norte através da
Transjordânia. Eles receberam essa permissão (Deut 2:27-29) e
passaram. Eles estavam em seu caminho sob a liderança de Deus para o
que era, na verdade, a última área sob domínio da linhagem sanguínea
dos Nephilim na Transjordânia. Moisés parecia desconhecer o objetivo
de Deus nessa parte da jornada. Deuteronômio 2 continua com Moisés
enviando uma palavra para o inimigo na mira de Deus:
26Então, do deserto de Quedemote, mandei mensageiros a Siom, rei de
Hesbom, com palavras de paz, dizendo: 27Deixa-me passar pela tua
terra; somente pela estrada irei, não me desviando nem para a direita
187
nem para a esquerda. 28Por dinheiro me venderás mantimento, para
que eu coma; e por dinheiro me darás a água, para que eu beba. Tão-
somente deixa-me passar a pé, 29assim como me fizeram os filhos de
Esaú, que habitam em Seir, e os moabitas que habitam em Ar; até que
eu passe o Jordão para a terra que o Senhor nosso Deus nos
dá. 30Mas Siom, rei de Hesbom, não nos quis deixar passar por sua
terra, porquanto o Senhor teu Deus lhe endurecera o espírito, e lhe
fizera obstinado o coração, para to entregar nas mãos, como hoje se
vê. (Deuteronômio 2:26-30).
Pegaram a última linha? Deus endureceu o coração de Siom. A
escrita é desenhada para nos fazer pensar na batalha de Deus com Faraó,
o presumido deus do Egito. Era hora de Siom ir embora. Mas por que ele
como alvo? A resposta a essa questão requer uma olhada lá atrás na
história bíblica, e então olharmos lá na frente no próximo capítulo de
Deuteronômio. Vamos primeiro voltar lá atrás, a Abraão.
Em Gênesis 15, uma das passagens onde Yahweh apareceu a
Abraão para formar uma relação de aliança com ele, Deus disse a Abraão
o seguinte num sonho:
13Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua
descendência será peregrina em terra alheia, e será reduzida à
escravidão, e será afligida por quatrocentos anos; 14sabe também
que eu julgarei a nação a qual ela tem de servir; e depois sairá com
muitos bens. 15Tu, porém, irás em paz para teus pais; em boa velhice
serás sepultado. 16Na quarta geração, porém, voltarão para cá;
porque a medida da iniqüidade dos amorreus não está ainda cheia.
(Gênesis 15:13-16).
Deus disse a Abraão que seus descendentes (o povo de Edom,
Amom, Moab e, é claro, Israel) viveriam em escravidão, mas um dia
iriam retornar à terra prometida, num tempo em que a iniquidade dos
Amoritas (amorreus) tivesse chegado ao ponto em que Deus iria julgá-
los. Por que Siom? Ele era um rei Amorita (Deut 3:2). Mas por que os
Amoritas?
O material histórico sobre os Amoritas é esparso. Amplamente, a
cultura Amorita era mesopotâmica. O termo e o povo eram conhecidos
188
dos materiais Sumérios e Acadianos séculos antes do VT e do tempo de
Moisés e dos Israelitas. A palavra para “Amorita” na verdade vem de uma
palavra suméria (“MAR.TU”’) a qual é vagamente referida à área e
população do Oeste da Suméria e Babilônia.
O uso de “Amoritas” no VT é indiscriminado. Em algumas
passagens ele é o rótulo de toda a população de Canaã (Josué 7:7). Nesse
sentido, “Amoritas” e “Cananitas” são intercambiáveis, ambos
denotando não-israelitas na terra de Canaã. Em outras passagens seu
uso é mais específico a um grupo de pessoas dentre vários em Canaã
(Gên 15:19-21).
“Cananitas” e “Amoritas” eram, dessa forma, termos genéricos
usados para descrever os inimigos de Israel. Um dos dois, os “Amoritas”
toma um tom mais sinistro no contexto da polêmica babilônica que
precede esse ponto na história de Israel. Taxar e revestir os habitantes
de Canaã com esse rótulo, levaria o leitor israelita de volta aos desastres
sobrenaturais de Gênesis 6 e 11, tendo um efeito teológico profundo.
Mas a conexão é, na verdade, mais direta do que retórica. Uma
passagem nas Escrituras especificamente conecta os Amoritas
(Cananitas) aos gigantes que eram derivados dos Nephilim. Deus diz
através do profeta Amós:
9Contudo eu destruí o amorreu diante deles, a altura do qual era como
a dos cedros, e cuja força era como a dos carvalhos; mas destruí o seu
fruto por cima, e as suas raízes por baixo. 10Outrossim vos fiz subir da
terra do Egito, e quarenta anos vos guiei no deserto, para que
possuísseis a terra do amorreu. (Amós 2:9-10).
Notem que o contexto para essa afirmação é o êxodo e a
conquista. Aqui pelo menos é dito que alguns Amoritas são
descomunalmente grandes e seria a prova para os Israelitas de que eles
descendiam dos Nephilim, e nesse caso, é claro, é o que lemos em
Números 13:32-33. Para um Israelita, tudo isso significa que a população
nativa de Canaã tinha um ponto de origem sinistro sobrenatural. Isso
não seria só uma batalha por terra. Seria uma batalha entre Yahweh e os
outros deuses, deuses que se levantaram competindo com a linhagem
sanguínea humana que eram opostas ao plano e ao povo de Yahweh.
189
Algo mais sobre os fatores de Siom nessa interpretação. Ele era
aliado a um companheiro chamado Ogue, outro rei dos Amoritas que
governava a região de Basã. Ogue era um gigante. Deuteronômio 3 nos
diz o que aconteceu depois da batalha de Israel em Siom:
1Depois nos viramos e subimos pelo caminho de Basã; e Ogue, rei de
Basã, nos saiu ao encontro, ele e todo o seu povo, à peleja, em
Edrei. 2Então o Senhor me disse: Não o temas, porque to entreguei
nas mãos, a ele e a todo o seu povo, e a sua terra; e farás a ele como
fizeste a Siom, rei dos amorreus, que habitava em Hesbom. 3Assim o
Senhor nosso Deus nos entregou nas mãos também a Ogue, rei de Basã,
e a todo o seu povo; de maneira que o ferimos, até que não lhe ficou
sobrevivente algum. 4E naquele tempo tomamos todas as suas
cidades; nenhuma cidade houve que não lhes tomássemos: sessenta
cidades, toda a região de Argobe, o reino de Ogue em Basã, 5cidades
estas todas fortificadas com altos muros, portas e ferrolhos, além de
muitas cidades sem muros. 6E destruímo-las totalmente, como
fizéramos a Siom, rei de Hesbom, fazendo perecer a todos, homens,
mulheres e pequeninos. 7Mas todo o gado e o despojo das cidades,
tomamo-los por presa para nós. 8Assim naquele tempo tomamos a
terra da mão daqueles dois reis dos amorreus, que estavam além do
Jordão, desde o rio Arnom até o monte Hermom 9(ao Hermom os
sidônios chamam Siriom, e os amorreus chamam-lhe Senir) , 10todas
as cidades do planalto, e todo o Gileade, e todo o Basã, até Salca e Edrei,
cidades do reino de Ogue em Basã. 11Porque só Ogue, rei de Basã,
ficou de resto dos refains; eis que o seu leito, um leito de ferro, não está
porventura em Rabá dos amonitas? o seu comprimento é de nove
côvados, e de quatro côvados a sua largura, segundo o côvado em uso.
(Deuteronômio 3:1-11).
Para um leitor antigo israelita com entendimento em hebraico e
uma visão mundial que incluía a ideia da oposição sobrenatural à Israel
que se conectava a eventos pré-diluvianos na Mesopotâmia, muitas
coisas nessa pequena passagem teriam saltado imediatamente.
Nenhuma delas é óbvia na tradução em português.
Primeiramente, a ligação mais imediata de volta à polêmica
Babilônia é o leito de Ogue (do hebraico: ‘eres). Suas dimensões (9x4
190
côvados/cúbitos) são precisamente aqueles do leito de culto no zigurate
chamado Etemenanki, o qual é o zigurate que a maioria dos arqueólogos
identificam como a Torre de Babel referida na Bíblia. Os zigurates
funcionavam como templos e moradas divinas. O leito anormalmente
grande no Etemenanki ficava na “casa da cama” (bit ershi). Era o lugar
onde o deus Marduk e sua esposa divina, Zarpanitu, se encontravam
anualmente para um ritual de amor, cujo propósito era o de uma bênção
divina sobre a terra.
Os estudiosos têm ficado perplexos com a correlação precisa. É
difícil não concluir que, como em Gênesis 6:1-4, também em
Deuteronômio 3, aqueles que deram os toques finais no Velho
Testamento durante o exílio na Babilônia estavam conectando Ogue e
Marduk de alguma maneira. O entendimento mais fácil é, de fato, a
estatura gigante. É dito que Ogue foi o último dos Rephaim, um termo
conectado ao gigante Anaque e outros clãs gigantes na Transjordânia
(Deut 2:11, 20). Marduk, como outras deidades da antiguidade, era
mostrado com um tamanho sobre humano. No entanto, a verdadeira
matriz de ideias na mente do autor bíblico pode ter sido derivada do jogo
de palavras baseado na mitologia babilônica.
Em segundo lugar, Deuteronômio 3 menciona o reino de Ogue
sobre a cidade de Edrei (v. 10). Josué 12:4-5, que se volta à batalha com
Ogue, se refere a ele como o rei de Basã e vivendo em Asterote e Edrei.
Esses termos: Asterote, Edrei e Basã, eram teologicamente recheados de
termos para um israelita, e até mesmo para seus vizinhos que adoravam
outros deuses.
Asterote, Edrei e os Rephaim são mencionados pelo nome nos
textos Ugaríticos. Os Rephaim de Ugarit não são descritos como
gigantes. Ao invés disso, eles são reis guerreiros mortos quase divinos os
quais habitam o submundo. Na linguagem ugarítica, a localização de
Asterote e Edrei não se soletra como Basã, mas era pronunciada e
soletrada como Batã (Bathan). O detalhe linguístico é intrigante, uma
vez que Basã / Batã, ambos também significam “serpente”, de forma que
a região de Basã era “o lugar da serpente”. Como vimos mais cedo, a
serpente divina (nachash, outra palavra traduzida) se tornou o senhor
dos mortos depois de sua rebelião no Éden. Em efeito, Basã era
191
considerado o local dos (pegando emprestado uma frase do Novo
Testamento) “portões de inferno”. Escritores judeus mais tarde
entenderam essas conexões conceituais. Sua intersecção está no coração
do porquê de livros como 1 Enoque nos ensinarem que dem6onios são,
na verdade, os espíritos dos Nephilim mortos.
E finalmente, além de Basã ser o portal para o submundo, a
região tinha outra característica sinistra identificada na passagem de
Deuteronômio 3: o Monte Hermon. De acordo com 1 Enoque 6:1-6, o
Monte Hermon foi o lugar onde os filhos de Deus de Gênesis 6 desceram
quando vieram à terra para coabitar com as mulheres humanas, o
episódio que produziu os Nephilim. Josué 12:4-5 une todas as ameaças:
“Ogue, rei de Basã, um dos remanescentes dos Rephaim, que vivia em
Asterote e em Edrei e governava sobre o Monte Hermon”.
Só o nome “Hermon” já deveria chamar a atenção dos leitores
judeus e israelitas. Em hebraico ele é pronunciado khermon. O
substantivo tem a mesma raiz do verbo que é de importância central em
Deuteronômio 3 e as narrativas das conquistas: kharam, “destruímo-las
totalmente”. Esse é um verbo distinto para guerra santa, o verbo de
exterminação. Ele possui um significado teológico profundo, um
significado explicitamente conectado aos clãs gigantes que Deus
comandou a Josué e seus exércitos a erradicarem. É a essa fase da guerra
pela terra que vamos chegar agora.

192
CAPÍTULO 25
GUERRA SANTA
O último capítulo terminou com a morte do gigante Ogue, o
último dos Rephaim (Deuteronômio 3:1-11). As batalhas de Israel na
Transjordânia nos trazem face a face com um problema que tem
perturbado os estudantes da Bíblia e especialistas há séculos: a prática
do extermínio nas guerras de conquista de Israel. A derrota de Ogue é
ilustrativa: “6E destruímo-las totalmente, como fizéramos a Siom, rei
de Hesbom, fazendo perecer a todos, homens, mulheres e pequeninos”.
(Deuteronômio 3:6).
Ogue era o senhor de Basã, a região que incluía o Monte Hermon.
Vimos que o verbo traduzido como “destruímo-las totalmente”
(kharam), compartilha as mesmas consoantes raízes (kh-r-m) como no
Monte Hermon (khermon). As guerras com Siom e Ogue prenunciavam
a lógica de kherem, o ato de destruir algo por completo, uma lógica que,
como veremos nesse capítulo, tem as linhagens sanguíneas dos Nephilim
como foco.
KHEREM E A VISÃO BÍBLICA SOBRENATURAL
A ideia de kherem é mais ampla do que a de uma guerra.
Fundamental a esse conceito é a sansão de alguma pessoa ou coisa, seja
ela proibida devido tanto a um estado amaldiçoado ou devido à exclusiva
propriedade e uso de Yahweh. Pessoas ou objetos podiam ser
consagrados à Yahweh usando esse verbo (Lev 27:28; Num 18:14; Josué
6:18; Miquéias 4:13). Nenhum outro objeto ou pessoa poderia ser
substituído para aquilo o qual foi santificado nesse sentido. A sentença
de morte por adorar outro deus foi descrita com o verbo kharam (Êxodo
22:20). Qualquer pessoa culpada por esse crime era amaldiçoada. A
sentença poderia ser revogada. Yahweh era o proprietário exclusivo
daquela vida ou coisa.
O kherem de Josué deve ser visto contra o fundo de Gênesis 6:1-
4 e ao que chamei de “visão mundial de Deuteronômio 32”: Yahweh
havia deserdado as nações, atribuindo-as ao governo de deuses menores.
Gênesis 6:1-4 é evocado pelo contato inicial de Israel com os ocupantes
193
da terra em Números 13:32-33, onde os gigantes Anaquim são descritos
como descendentes dos Nephilim. Como veremos na discussão que se
segue, essa crença está por trás das passagens de conquista que usam o
verbo kharam (“destruí-las totalmente”) para descrever a guerra de
Israel em certas ocasiões. Deuteronômio 32:8-9 é a base para o objetivo
geral da conquista. Israel é a porção eleita de Yahweh da humanidade, e
a terra de Canaã é a geografia que Yahweh, como proprietário,
especificamente atribuiu ao seu povo.
Na visão dos escritores bíblicos, Israel estava em guerra com
inimigos desovados por seres divinos rivais. As linhagens sanguíneas
Nephilim não eram como os povos das nações deserdadas. Gênesis 10
claramente lista os habitantes humanos dessas nações com suas próprias
existências pertencentes a Yahweh, pois eles descendem dos filhos de
Noé e, assim sendo, de Noé e lá atrás até Adão, o primeiro filho humano
de Yahweh. As linhagens dos Nephilim tinham um pedigree diferente.
Eles foram produzidos por outros seres divinos. Eles não pertenciam a
Yahweh, e, assim sendo, ele não tinha interessa em reivindica-los. A
coexistência não era possível com os descendentes de outros deuses.
Visto contra esse cenário, o kherem de Josué é uma guerra santa
que começou com Moisés na Transjordânia, especificamente contra os
reis gigantes amoritas / Amorreus: Siom (Deuteronômio 2:34) e Ogue
(Deuteronômio 3:6). As vidas dos inimigos de Israel deveriam ser
“destruídas totalmente” como um ato de sacrifício a Yahweh. Mas quem
é que estava na mira de Yahweh dessa vez?
ENTENDENDO O KHEREM DE JOSUÉ
Como o kherem de Josué é apresentado aos leitores? Como em
outras instâncias, temos que voltar a Números 13:32-33 para
começarmos. Uma linha especificamente é importante (está em negrito):
32Assim, perante os filhos de Israel infamaram a terra que haviam
espiado, dizendo: A terra, pela qual passamos para espiá-la, é terra
que devora os seus habitantes; e todo o povo que vimos nela são homens
de grande estatura. 33Também vimos ali os nefilins, isto é, os filhos
de Anaque, que são descendentes dos nefilins; éramos aos nossos olhos
como gafanhotos; e assim também éramos aos seus olhos.
194
O primeiro encontro de Israel com os habitantes daquela terra
envolvia os Anaquim. A notícia dos espias continha o comentário
completo de que todos os que eles viram na terra eram
descomunalmente grandes. Existem boas razões textuais para não
pegarmos essa afirmação como uma avaliação verdadeiramente literal
em termos de sua natureza compreensiva. Já havemos notado que os
escritores bíblicos algumas vezes usam extensas generalizações que não
têm a intenção de ser precisa. Por exemplo, Gênesis 15:16 e Josué 7:7 se
referem aos ocupantes das terras como “Amorreus / Amoritas”, quando
é muito claro de que ali existiam outros grupos étnicos no lugar. O termo
“Cananitas / Cananeus” também é usado da mesma forma imprecisa
(Gên 12:6; 28:1, 6).
Consequentemente, é muito mais coerente lermos a frase
indicando que os espias israelitas viram grupos de pessoas
anormalmente altas por todo lado todas as vezes que foram ao lugar.
Números 13:28-29 apoia essa leitura. Esses versículos nos dizem por
onde esses espias se aventuraram: O Neguebe, o país montanhoso, a
costa marítima e ao longo da Jordânia. O versículo 29 descreve os espias
notando que viram os Anaquim nesses lugares junto aos Amelequitas /
amelequeus, Hititas / heteus, Jebusitas / jebuseus, Amoritas / amorreus
e Cananitas / cananeus.
Esse ponto ajuda a explicar algo que se tornará aparente
enquanto continuarmos, que o lema kharam nas narrativas de conquista
é usado só para os ataques às cidades ou locais em que hajam
aglomerados de populações de clãs gigantes. Existe uma exceção, um
indiscriminado e solitário uso de kharam em Deuteronômio 7:1-2. Essa
passagem chama por um indiscriminado kherem, devido à
indiscriminada generalização em Números 13:32-33. As palavras de
Moisés em Deuteronômio 7:1-2 refletem as notícias que Moisés recebeu
quarenta anos antes. Seu significado não é o de que todos os habitantes
do lugar foram colocados sob kherem porque todos são gigantes. Seu
significado é o de que, onde é que eles fossem encontrados, as linhagens
sanguíneas dos clãs gigantes, descendentes dos Nephilim, deveriam ser
erradicadas. Quando a conquista de Canaã começou de verdade, é aí que

195
o termo é usado nas notícias das vitórias dos israelitas. Devemos
permitir que as passagens mais precisas informem as generalizações.
AS GUERRAS DE JOSUÉ
Logo depois das vitórias sobre Siom e Ogue, Moisés morreu sem
nem mesmo pisar na terra prometida. A liderança da nação passou para
Josué (Num 27:18-23; Deut 34:9), o qual foi dirigido por Deus para
espiar a terra (Josué 2), e então atravessar o Jordão desde Sitim (Josué
3-4), e renovar a aliança entre Deus e Israel (Josué 5). A conquista
começou em Jericó, um lugar no central naquela terra. Uma campanha
militar central teria efeito imediato na separação das cidades das regiões
do Norte e do Sul. Era uma estratégia de dividir e conquistar.

196
Como aconteceu em Jericó (Josué 6:18, 21), a cidade de Ai foi
“destruída totalmente” depois da falha espiritual do Israelita Achan
(Josué 8:26). Josué então foi para o Sul no país das montanhas, parte da
terra que os espias haviam observado e onde eles haviam visto os
Anaquim. A campanha do Sul é descrita em Josué 10.
28Naquele mesmo dia Josué tomou a Maqueda, e feriu-a a fio de
espada, bem como a seu rei; totalmente os destruiu com todos os que
nela havia, sem deixar ali nem sequer um. Fez, pois, ao rei de Maqueda
como fizera ao rei de Jericó. 29De Maqueda, Josué, e todo o Israel com
ele, passou a Libna, e pelejou contra ela. 30E a esta também, e a seu
rei, o Senhor entregou na mão de Israel, que a feriu a fio de espada com
todos os que nela havia, sem deixar ali nem sequer um. Fez, pois, ao seu
rei como fizera ao rei de Jericó. 31De Libna, Josué, e todo o Israel com
ele, passou a Laquis, e a sitiou, e pelejou contra ela. 32O Senhor
entregou também a Laquis na mão de Israel, que a tomou no segundo
dia, e a feriu a fio de espada com todos os que nela havia, conforme
tudo o que fizera a Libna. 33Então Horão, rei de Gezer, subiu para
ajudar a Laquis; porém Josué o feriu, a ele e ao seu povo, até não lhe
deixar nem sequer um.

34De Laquis, Josué, e todo o Israel com ele, passou a Eglom, e a


sitiaram, e pelejaram contra ela, 35e no mesmo dia a tomaram,
ferindo-a a fio de espada; destruiu totalmente nesse mesmo dia todos
os que nela estavam, conforme tudo o que fizera a Laquis. 36De Eglom,
Josué, e todo o Israel com ele, subiu a Hebrom; pelejaram contra
ela, 37tomaram-na, e a feriram ao fio da espada, bem como ao seu
rei, e a todas as suas cidades, com todos os que nelas havia. A ninguém
deixou com vida, mas, conforme tudo o que fizera a Eglom, a destruiu
totalmente, com todos os que nela havia. 38Então Josué, e todo o Israel
com ele, voltou a Debir, pelejou contra ela, 39e a tomou com o seu rei
e com todas as suas cidades; feriu-as a fio de espada, e a todos os que
nelas havia destruiu totalmente, não deixando nem sequer um. Como
fizera a Hebrom, e como fizera também a Libna e ao seu rei, assim fez
a Debir e ao seu rei.

197
40Assim feriu Josué toda aquela terra, a região montanhosa, o Negebe,
a baixada, e as faldas das montanhas, e a todos os seus reis. Não deixou
nem sequer um; mas a tudo o que tinha fôlego destruiu totalmente,
como ordenara o Senhor, o Deus de Israel: 41Assim Josué os feriu
desde Cades-Barnéia até Gaza, como também toda a terra de Gósem,
até Gibeão. 42E de uma só vez tomou Josué todos esses reis e a sua
terra, porquanto o Senhor, o Deus de Israel, pelejava por
Israel. 43Então Josué, e todo o Israel com ele, voltou ao arraial em
Gilgal. (Josué 10:28:43).
Essa passagem nos conta em cinco ocasiões que os habitantes
dessas cidades desses países montanhosos foram “destruídas
totalmente”, junto com seus comentários editoriais dizendo que Josué “a
ninguém deixou com vida”. A estratégia dos israelitas é aparente nesse
ponto. O kherem de Israel foi focado nessas regiões onde os Anaquim
eram conhecidos por viverem nessas terras (as notícias de Num 13:28-
29) e, logo, em certas cidades nessas regiões. Outras pessoas que viviam
nessas regiões e cidades estavam naturalmente sob ameaça, estando no
lugar errado na hora errada. Josué e seu exército não checavam
identidades, por assim dizer, ou entrevistavam os ocupantes para
separar os que não eram Anaquim. Quando eles chegavam num lugar
sob kherem, a intenção era a de não deixar nenhum Anaquim vivo.
Depois da invasão do país montanhoso do Sul, Josué foi para o
Norte e deu continuidade ao mesmo plano.
A campanha do Norte é descrita em Josué 11. Vários grupos de
pessoas são nomeados nas descrições que também aparecem em Num
13:28-29, onde é explicado que os doze espias israelitas haviam visto os
Anaquim (Hititas, Jebusitas e Amoritas; v. 3). O interessante é que Josué
também partiu para cima dos guerreiros perto do Monte Hermon na
região de Basã (v. 4). Mais uma vez, nos é dito que o exército de Josué “a
ninguém deixou com vida” (v. 8) e destruiu todas as cidades da região (v.
12).
As destruições parecem arbitrárias, mas não são. A lógica do
termo kherem aparece em Josué 11:21-23.

198
21Naquele tempo veio Josué, e exterminou os anaquins da região
montanhosa de Hebrom, de Debir, de Anabe, de toda a região
montanhosa de Judá, e de toda a região montanhosa de Israel; Josué
os destruiu totalmente com as suas cidades. 22Não foi deixado nem
sequer um dos anaquins na terra dos filhos de Israel; somente ficaram
alguns em Gaza, em Gate, e em Asdode. 23Assim Josué tomou toda
esta terra conforme tudo o que o Senhor tinha dito a Moisés; e Josué a
deu em herança a Israel, pelas suas divisões, segundo as suas tribos; e
a terra repousou da guerra.
Essa passagem deixa evidente que o alvo do kherem eram os
Anaquim. É crucial notarmos que essa passagem se refere ao “país
montanhoso de Judá” e o “país montanhoso de Israel”. Essa linguagem
só pode fazer sentido depois das atribuições tribais sob Josué, as quais
ainda não haviam acontecido, e depois de o país de Israel ter sido
dividido em dois sob Reoboão, um evento séculos a frente. O livro de
Josué obviamente foi escrito bem depois dos eventos que ele descreve. A
linguagem anacrônica é importante. O “país montanhoso de Judá” se
refere à campanha do Sul (Judá era o reino do Sul na monarquia dividida
depois de Reoboão). O “país montanhoso de Israel” fala da campanha do
Norte (Israel era o reino do Norte na monarquia dividida). Josué 11:21-
23 nos fala que em ambas as campanhas, o objetivo era os Anaquim.
Se isso não era uma indicação suficiente para direcionar a
atenção do leitor às linhagens sanguíneas dos Nephilim, o escritor ainda
adiciona no versículo 22, “somente em Gaza, em Gate e em Asdode”
ficaram alguns dos Anaquim. Precisamos lembrar que Golias de Gate e
seus irmãos para entendermos que o escritor de Josué está montando o
cenário para o fato de que a aniquilação dessas linhagens sanguíneas
continuaria na era de Davi.
ORIENTAÇÃO SOBRENATURAL, E NÃO BIZARRA
O objetivo dessa rápida reconstrução não é que os israelitas só
tomaram as vidas dos remanescentes dos clãs gigantes. Outros foram
certamente ceifados. O ponto é que o raciocínio para a aniquilação
kherem era a eliminação específica dos descendentes dos Nephilim.
Limpas a terra dessas linhagens sanguíneas era a motivação. Se
199
acreditamos em Números 13:28-29, os Anaquim se espalharam pela
terra de Canaã. Josué 11:21-23 deixa claro que esses eram os povos alvos
para eliminação completa, e não todos os últimos Cananeus.
De fato, a narrativa das conquistas utiliza outros verbos além de
kharam que não são necessariamente palavras para tomar vidas. Isso
indica que o kherem não era o objetivo de todas as batalhas. A figura que
surge quando todas as descrições são postas juntas era que, quando os
soldados israelitas encontravam um membro de um dos clãs gigantes ou
outros conhecidos como descendentes desses clãs, eles estavam sob
kherem. Outros podem ter sido mortos nas batalhas, mas suas vidas não
eram requeridas pela orientação sobrenatural teológica que é telegrafada
em Num 13:26-33, Deut 2-3 e Josué 11:21-23.
O tamanho descomunal desses grupos de pessoas era atribuído à
origem divina, algo que uma crença no sobrenatural precisa permitir. Se
não fosse assim, no entanto, qualquer outra desculpa para a leitura desse
texto seria uma piada ou bizarra.
O quão alto eram os gigantes bíblicos? A única medida para um
gigante que exista nos textos bíblicos é a de Golias. O texto tradicional
(Masotérico) hebraico descreve ele com “seis côvados e um palmo” (1
Sam 17:4), aproximadamente 3 metros de altura. Nos Pergaminhos do
Mar Morto, a leitura de 1 Sam 17:4 discorda e mostra Golias com quatro
côvados e um palmo, ou com 2 metros de altura. Virtualmente todos os
estudiosos consideram a leitura dos Pergaminhos do Mar Morto mais
superior e autêntica.
Trabalhos arqueológicos através do antigo Oriente Próximo
confirmam que uma altura de 2 metros, pelos padrões daqueles dias, era
um gigante. Um estudioso da cultura israelita nota que a altura média de
um antigo israelita no período patriarcal era em torno de 1,5 metros. O
famoso arqueólogo bíblico, G. Ernest Wright escreveu: “Em Gaza foram
encontrados pelos menos cem esqueletos datados de 3000 a.C. E de
várias sepulturas e depósitos existem muitos outros remanescentes do
terceiro e segundo milênios, especialmente de Megiddo, Jericó e Gaza...
Não existem remanescentes de quaisquer aborígenes de tamanho
anormal. Esse último comentário é importante, uma vez que essas áreas
200
seria onde esperaríamos encontrar moradas de clãs gigantes. Até agora
não há nenhuma evidência de esqueletos da região da Síria-Palestina
(Canaã) que se mostrem extraordinariamente grandes. Essa é a mesma
realidade para o mundo Mediterrâneo desse período do tempo bíblico.
Isso não é surpresa. Os antigos israelitas, como os outros povos
de Canaã naquele tempo, não embalsamavam seus mortos.
Consequentemente, os esqueletos humanos remanescentes dos
primeiros dois milênios a.C. não são comuns. Dos milhões de pessoas
que viviam na antiga Síria-Palestina durante esse período de dois mil
anos, uns poucos milhares de esqueletos sobreviveram. A situação no
antigo Egito é proporcionalmente melhor devido ao embalsamento. No
entanto, as pessoas que eram embalsamadas tendiam a ser membros da
classe da elite, o que significa que sua alimentação era melhor, o que
significa uma saúde melhor e crescimento otimizado. Baseado na
exumação de múmias, a altura média de um homem egípcio era entre 1,5
e 1.7 metros.
Não quero dizer com isso que não existe evidências fora da Bíblia
de pessoas descomunalmente altas em Canaã durante o período bíblico.
Um texto egípcio do período de Ramsés II, descrito por Pritchard num
capítulo intitulado “Problemas da Geografia Asiática”, especificamente
fala disso. O texto está assim:
“O vale estreito é perigoso, com Beduínos escondidos sob arbustos.
Alguns deles têm de 4 a 5 côvados (desde) seus narizes até seus
calcanhares, e rostos ferozes. Seus corações não eram brandos, e eles
não escutavam elogios”.
A figura que aparece dos textos bíblicos e da arqueologia, é que
os vestígios das linhagens dos Nephilim se espalharam por Canaã dentre
vários outros grupos de pessoas. O objetivo da conquista era o de
expulsar todos os habitantes e eliminar essas linhagens sanguíneas no
processo. Esse tipo de pensamento é estranho para nós, mas era parte de
uma visão sobrenatural dos escritores bíblicos.
Israel falhou, é claro. Se passariam séculos antes que algum tipo
de reino previsto por Moisés e Josué se levantasse. E a maioria deles foi
uma bagunça. Tendemos a processar o Velho Testamento depois de
201
Josué como um bando de genealogias com assassinatos, sexo e
escândalos jogados ali para chamar nossa atenção. Mas há muitos mais
do que isso, muito mais.
RESUMO DA SESSÃO
As guerras de conquista sob Moisés e Josué eram supostamente
para limpar a terra de linhagens sanguíneas competitivas e instalar os
próprios filhos de Yahweh, sua herança, no lugar que ele havia atribuído
a eles. O governo de Yahweh sobre a terra era para ser reconstituído em
Canaã.
Francamente, ele não se parecia nada com o Éden.
Em contraste aos idílicos inícios no Éden, a instalação de Israel
na terra foi violenta. Esses meios foram necessários para reviver a visão
original de Yahweh num mundo caído, um mundo cheio de conflitos
humanos e divinos, de imagens livres correndo atrás de suas próprias
vontades, e não a vontade do criador. Yahweh havia apenas chamado
Israel à existência na terra. Ele poderia ter agido unilateralmente como
alto soberano para ressuscitar seu governo na terra. Mas as decisões de
Yahweh no Éden original significavam que ele não iria derrubar a
liberdade humana (ou divina) de suas imagens. Yahweh havia escolhido
cumprir seus meios através de imagens leais a ele contra as imagens que
não eram. Esse compromisso com a humanidade, suas imagens originais
na terra, é uma das razões frequentemente despercebidas do porquê, que
quando a humanidade (Israel) falhou em restaurar o governo de Deus,
Deus tomou a responsabilidade para si mesmo em suas próprias mãos
se tornando humano em Jesus Cristo.
Consequentemente, num mundo governado por outros deuses os
quais se tornaram rivais hostis no início do julgamento de Yahweh em
Babel, fez com que a presença de Yahweh se tornasse mal vinda. Haveria
guerra. Haveria morte. A terra teria que ser repossuída e feita santa.
Canaã seria o posto central de Yahweh numa geografia cósmica de onde
Israel poderia cumprir sua missão. Israel seria um reino de sacerdotes,
um conduto através do qual as nações deserdadas da terra veriam a
prosperidade de Israel. Os povos adjacentes ouviriam sobre o Deus de
Israel, veriam seu poder incomparável e procurariam sua aliança de
202
amor. As nações seriam reclamadas, não pela força, mas por imagens
livres que escolherem ficar ao lado do verdadeiro deus, o criador e
Senhor de tudo.
Pelo menos esse era o plano.
Sabemos que Israel falhou no final. As sementes dessa falha
foram vistas nos eventos das conquistas. Seja por qual razão fosse, por
falta de fé ou falta de esforço, ou ambos, Israel falhou em afastar seus
inimigos. Eles deixaram vestígios das linhagens sanguíneas alvo
permanecerem na terra nas cidades Filisteias. Eles escolheram coexistir
(Juízes 1:27-36). O Yahweh visível, o anjo, faz a pergunta retórica: “Por
que vocês fizeram tal coisa”? E então anuncia a consequência: “2E,
quanto a vós, não fareis pacto com os habitantes desta terra, antes
derrubareis os seus altares. Mas vós não obedecestes à minha voz. Por
que fizestes isso? 3Pelo que também eu disse: Não os expulsarei de
diante de vós; antes estarão quais espinhos nas vossas ilhargas, e os
seus deuses vos serão por laço”. (Juízes 2:2-3). O nome do lugar onde
ele lançou essas palavras foi depois apropriadamente lembrado como
Boquim, uma palavra hebraica que significa “choro” (Juízes 2:5).
E é claro que depois disso, a história de Israel virou um sórdido
passeio de montanha russa. Lealdade a Yahweh, recusar a adorar
quaisquer outros deuses, seria o coração da salvação no Velho
Testamento. A possessão da terra está ligada à essa lealdade desde lá
atrás na aliança com Abraão (Gên 17:1-2, 8-10; 22:15-18). A aliança no
Sinai reforçou essa conexão (Lev 26; Deut 4:25-27, 39-40; 11:18-24).
Seria devido à falha a essa lealdade que Israel seria mandada para o
exílio, expulsa da terra prometida.
Mas Yahweh não desistiria inteiramente de Israel. O livro de
Juízes deixa isso claro de que ele responderia com igual consistência
tanto ao arrependimento quanto à apostasia. O Yahweh visível iria se
mostrar de tempos em tempos, como nos casos de Gideão (Juízes 6) e
Sansão (Juízes 13). Mas foi apenas com o último juiz de Israel, o fiel
Samuel, que as aparições de Yahweh se tornariam menos raras.
A monarquia de Israel sofreria através de Saul e eventualmente
floresceria com Davi e seu filho Salomão. Mas a monarquia depois se
203
desintegrou, arrastando a intenção do reino de Deus em séculos de
apostasia e guerra civil antes de terminar em julgamento divino.
O terrível final produziria lições teológicas: o Éden não poderia
vir e sobreviver sem a constante presença de Yahweh, como foi no caso
do Éden original. O reino de Deus não poderia ser construído através de
mãos humanas. Com Israel chegando aos estágios finais de falhas, Deus
anunciou através dos profetas que os planos haviam mudado. Restaurar
o Éden requereria a contínua presença de Deus nos corações de seus
filhos, e um rei ideal que permanecesse leal a Yahweh. O próprio Deus
iria suprir o segundo Adão, o filho de Davi, o servo governante perfeito.
A história do Velho Testamento depois da conquista é a história
do que deveria ter acontecido. Mas o Velho Testamento depois do livro
de Josué não deve ser lido como um obituário longo. A guerra espiritual
não terminou. Os escritores bíblicos têm mensagens para comunicar
contra o cenário de sua visão sobrenatural. As histórias dos profetas e
reis não são apenas óperas suaves bíblicas. Existe o programa de uma
realidade invisível em andamento ao mesmo tempo. O que está rolando
nesse canal irá ocupar o resto da programação do Velho Testamento.

204
PARTE 06
ASSIM DIZ O SENHOR
CAPÍTULO 26
MONTANHAS E VALES
Penetrar em Canaã se estabelecer como um estado independente
não resolveu o problema da geografia cósmica para Israel. Na verdade,
piorou ainda mais o conflito. Israel não estava apenas cercada por nações
hostis e seus deuses, mas existiam focos de resistência divina dentro
dela.
O período de Juízes e a monarquia formam um conto de batalhas
militares e espirituais. No solo, os israelitas permaneciam paralisados
pela presença dos vestígios dos Rephaim / Nephilim os quais escaparam
da aniquilação na conquista e pelas incursões de inimigos nas periferias.
Perto do final do último capítulo eu resumidamente mostrei Josué 11:21-
23, o qual nos informa que a erradicação dos Anaquim não havia sido
total. O escritor de Josué mostra nessa passagem que era sabido que
alguns Anaquim viviam em cidades as quais mais tarde se tornariam
cidades dos Filisteus, o principal inimigo de Israel durante a monarquia
unida. Espiritualmente, esses conflitos tinham apostas altas, pois eles
assinalavam a infiltração de outros deuses sugando adoradores israelitas
para seus próprios cultos. Uma vez que uma lealdade crente a Yahweh
era fundamental para uma proteção de Yahweh e permanência na terra,
a batalha espiritual era uma ameaça tão grande quanto a física.
Os livros de Juízes, Samuel e Reis claramente descrevem o
conflito militar. Essa é a parte fácil para se ver através dos olhos
modernos com um entendimento moderno. Mas além da superfície
existe uma guerra de uma natureza diferente acontecendo. Cobriremos
alguns exemplos nesse capítulo.
SOLO SAGRADO
Quando foi dito a Moisés para construir o tabernáculo e seus
equipamentos, a Bíblia nos diz que Deus revelou um padrão para o fazer
(“E irás construir o tabernáculo de acordo com esse plano, o qual foi
205
mostrado a ti na montanha” – Êxodo 26:30). Mais cedo, no capítulo 22,
discutimos como a descrição do tabernáculo se alinhava com as moradas
divinas de outros deuses, principalmente de Ugarit. Precisamos visitar
novamente o tabernáculo aqui, uma vez que sua história nos prepara
para o templo mais permanente, o lugar onde o Nome iria habitar.
A implicação de Deus pedir que Moisés seguisse um padrão
divino era de que a tenda estrutural do tabernáculo na terra fosse uma
cópia da tenda celestial, assim na terra, como no céu. O protótipo da
tenda celestial era do próprio céu, como Isaías 40:22 nos diz (22E ele o
que está assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele
como gafanhotos; é ele o que estende os céus como cortina, e o desenrola
como tenda para nela habitar”). Em outras palavras, os céus e a terra
foram concebidos como o verdadeiro tabernáculo ou templo de Yahweh.
O local da morada terrena erigido pelos Israelitas imitava a grande
habitação do cosmos.
O tabernáculo não era apenas a morada de Yahweh; ele também
era a sala do seu trono. Yahweh se senta sobre o círculo da terra, na sua
tenda celestial, no seu trono acima das águas que estão acima “do
firmamento”, e descansa seus pés sobre a terra (1”Assim diz o Senhor: O
céu é o meu trono, e a terra o escabelo dos meus pés. Que casa me
edificaríeis vós? e que lugar seria o do meu descanso”? Isaías 66:1). A
arca da aliança estava lá, o objeto sagrado associado com a presença de
Yahweh, seu Nome.
O tabernáculo viajava com Israel durante toda a jornada à terra
prometida. Uma vez que Israel penetrou na terra, a arca da aliança (e
logo, a estrutura do tabernáculo) estava situada em Betel (Juízes 20:27),
um nome que significa “casa de Deus”. Você agora já conhece Betel. Foi
lá onde Jacó teve seu encontro com Yahweh e os anjos do seu conselho
na “escada” (isto é, um zigurate; Gên 28:10-22). Foi nesse local onde os
“anjos de Deus” apareceram para ele novamente quando estava fugindo
de Esaú, seu irmão (32:1-5). Foi lá onde Jacó construiu um altar e um
pilar para comemorar a aparição do Yahweh visível (31:13; 35:1-7).
Um tempo depois o tabernáculo foi de Betel para Siló. Uma vez
que essa mudança se deu, é dito que a “casa de Deus” era Siló (Juízes
206
18:31; 1 Sam 1:24; Jer 7:12). O Velho Testamento indica que Siló se
tornou o lugar de sacrifício (Juízes 21:19; 1 Sam 1:3). Em Siló nós vemos
o encontro do menino Samuel com o Yahweh em forma física, o Verbo (1
Sam 3).
O sacerdote Eli mais tarde imprudentemente enviou a arca da
aliança para fora na batalha, e ela caiu nas mãos dos Filisteus, os quais a
levaram a Asdode e a instalaram no templo do seu deus, Dagon. Num
incidente fascinante (e engraçado) da geografia cósmica, a presença de
Yahweh destruiu a estátua de Dagon. Em 1 Samuel 5:5 temos a descrição
da reação dos sacerdotes Filisteus: “5Pelo que nem os sacerdotes de
Dagom, nem nenhum de todos os que entram na casa de Dagom, pisam
o limiar de Dagom em Asdode, até o dia de hoje”. Esse local era agora
geograficamente de Yahweh, e eles não ousavam andar ali.
Eventualmente a arca foi trazida a Jerusalém. Primeiramente,
Davi a colocou numa tenda temporária que ele fez para ela (2 Sam 6:17;
2 Cro 1:3-4), assumindo que ele mesmo fosse construir um templo para
ela.
Como o tabernáculo, o templo continha uma forte imagem
associada com o Éden. O Éden era um jardim exuberante e uma
montanha sagrada. O interior da tenda do tabernáculo continha enfeites
e decorações que evocavam as imagens do Éden. Todos esses motivos,
tendas, montanha, jardim, se veem juntos no templo, o locar fixo onde
Yahweh era considerado a habitar e ordenar a terra e os céus com seu
conselho.
O TEMPLO COMO UMA TENDA DE HABITAÇÃO CÓSMICA
Muitos leitores da Bíblia assumem que uma vez que o templo
fosse construído, o tabernáculo seria esquecido ou, talvez,
permanentemente desmontado. Na verdade, a tenda do tabernáculo,
com o santíssimo, foi movida para dentro do templo com a arca.
Lembrem-se que dentro do tabernáculo havia outra construção,
completamente coberta com cortinas, chamado hoje de local sagrado.
Essa sala era dividida em duas por um véu, onde por trás dele ficava o
santíssimo, a sala que continha a arca (Êxodo 26).
207
A parte interna no templo também tinha o mesmo tipo de
disposição da sala interna.
Existia uma grande diferença, então, entre o santuário interno do
templo e aquele do tabernáculo. A parte interna do templo tinha dois
querubins gigantes dentro dele, de pé um ao lado do outro, as pontas das
asas deles se esticavam para uma tocar a outra, dessa forma:

O efeito disso era para que as asas dos querubins formassem a


cadeira de um trono para Yahweh, e a arca fosse seu escabelo (descanso

208
para os pés). As dimensões da largura e da altura entre os querubins
podem acomodar o tamanho da tenda do santíssimo. Isso levou alguns
estudiosos a teorizar que a tenda do santíssimo fora movida para dentro
do templo, erigida debaixo e entre os querubins. No templo, a imagem
de Yahweh em seu trono e “vivendo” na antiga tenda foram ambas
preservadas.
O TEMPLO COMO UMA MONTANHA E UM JARDIM
CÓSMICOS
O Templo de Yahweh em Israel era naturalmente associado com
uma montanha cósmica para morada como no Sinai, pois ela estava
situada em Jerusalém no Monte Sião, o novo Sinai. Salmos 48 deixa isso
bem claro:
1Grande é o Senhor e mui digno de ser louvado, na cidade do nosso
Deus, no seu monte santo.
2De bela e alta situação, alegria de toda terra é o monte Sião aos lados
do Norte (lit: alturas no Norte), a cidade do grande Rei. (Salmos 48:1-
2).
Zacarias 8:3 ecoa a mesma noção: “3Assim diz o Senhor: Voltarei
para Sião, e habitarei (literalmente, “irei ao tabernáculo”; shakan) no
meio de Jerusalém; e Jerusalém chamar-se-á a cidade da verdade, e o
monte do Senhor dos exércitos o monte santo”.
Como todos aqueles que já foram a Jerusalém sabem, o Monte
Sião não é lá uma montanha. Ele também não está localizado no Norte
geográfico, na verdade ele está na parte Sul do país. Então qual é o
significado “dos lados do Norte”?
Essa descrição seria familiar aos vizinhos pagãos de Israel,
particularmente em Ugarit. Na verdade, isso foi tirado da literatura
deles. Os “lados do Norte” (do ugarítico: “os lados de tsaphon”) é o lugar
onde vivia Baal e, supostamente, governava o cosmos sob o comando do
alto deus El e o conselho divino. O salmista está roubando a glória de
Baal, restaurando-a Àquele a qual ela verdadeiramente pertence,
Yahweh. Isso é um tapa na cara teológico e literário, outra polêmica.

209
Isso explica porque a descrição parece estranha em termos da
atual geografia de Jerusalém. É por isso que Isaías e Miquéias usam
frases como “o monte da casa de Yahweh” (Isa 2:2; Miquéias 4:1). A
descrição é projetada para fazer uma observação teológica, e não uma
geográfica. Sião é o centro do cosmos, e Yahweh e seu conselho são o seu
rei e administradores, e não Baal.
O templo é também o jardim edênico, cheio de uma vegetação
exuberante e animais. A descrição da construção do templo em 1 Reis 6-
7 é explícita nesse sentido. Flores, palmeiras, ciprestes, abóboras,
querubins, leões e tomates, todos adornam o templo através de
características arquitetônicas esculpidas.
Na visão de Ezequiel do novo templo (Ezeq 40-48), ele viu um
templo construído num monte alto (40:2), cujas cortes eram decoradas
com palmeiras (40:31-34). O interior era decorado com mais palmeiras
e querubins (41:17-20). O templo-jardim de Ezequiel continha muitas
águas, como no Éden, uma vez que o rio que fluía de dentro dele dava
vida de maneira sobrenatural a todas as outras coisas (47:1-12).
Na teologia de Israel, o Éden, o tabernáculo, o Sinai e o templo
eram igualmente a morada de Yahweh e seu conselho. Os israelitas que
tinham o tabernáculo e o templo eram constantemente lembrados do
fato de que tinham o Deus do monte cósmico e o jardim cósmico vivendo
no meio deles, e eles o obedeciam, Sião se tornaria o reino dominante de
Yahweh, o qual serviria como o lugar de onde ele reagruparia as nações
deserdadas deixadas de lado em Babel para ele mesmo. Miquéias 4 fala
bem disso:
1Mas nos últimos dias acontecerá que o monte da casa do Senhor será
estabelecido como o mais alto dos montes, e se exalçará sobre os
outeiros, e a ele concorrão os povos. 2E irão muitas nações, e dirão:
Vinde, e subamos ao monte do Senhor, e à casa do Deus de Jacó, para
que nos ensine os seus caminhos, de sorte que andemos nas suas
veredas; porque de Sião sairá a lei, e de Jerusalém a palavra do Senhor.
(Miquéias 4:1-2)

210
SOLO ÍMPIO
Em total contraste com o templo, o lugar geográfico-cósmico do
pensamento de Israel onde o céu e a terra de uniam, existiam lugares
sinistros dentro de Canaã que estavam associados com os poderes das
trevas, especificamente os vestígios das linhagens dos Rephaim /
Nephilim.
Em nossa discussão anterior da conquista, chegamos até os
Rephaim. Os Rephaim eram gigantes. Deuteronômio nos informou que
os Anaquim eram considerados Rephaim (Deut 2:11), como era os
Zamzumim (Deut 2:20). Ogue de Basã “foi o que sobrou dos Rephaim”
(Deut 3:11), de forma que “Basã foi chamada de terra dos Rephaim”
(Deut 3:13).
Josué 11:22 nos diz que a conquista falhou em eliminar todos os
Anaquim, e que alguns permaneceram nas cidades Filisteias Gaza, Gate
e Asedode. A presença dos Rephaim persistiu na terra até o tempo de
Davi. O gigante Golias, que veio de Gate (1 Sam 17:4, 23), era um
descendente dos refugiados Anaquim / Rephaim. Ele tinha irmãos
também, como aprendemos em 1 Crônicas 20:
4Depois disso levantou-se guerra em Gezer com os filisteus; então
Sibecai, o husatita, matou Sipai, dos filhos do gigante; e eles ficaram
subjugados. 5Tornou a haver guerra com os filisteus; e El-Hanã, filho
de Jair, matou Lami, irmão de Golias, o giteu, cuja lança tinha a haste
como órgão de tecelão, 6Houve ainda outra guerra em Gate, onde
havia um homem de grande estatura, que tinha vinte e quatro dedos,
seis em cada mão e seis em cada pé, e que também era filho do
gigante. 7Tendo ele insultado a Israel, Jônatas, filho de Siméia, irmão
de Davi, o matou. 8Esses nasceram ao gigante em Gate; e caíram pela
mão de Davi e pela mão dos seus servos. (vv. 4-8).
Os Rephaim da Transjordânia nos dias de Moisés eram
associados não apenas a Basã, mas também a Asterote e Edrei, duas
cidades que, na literatura de Ugarit, eram consideradas como
marcadoras de um portal para o submundo. No tempo de Davi, os
Rephaim eram também associados com a morte de uma maneira mais
periférica, mas conceitualmente similar.
211
Existe quase 10 referências no VT a um lugar conhecido como
Vale dos Rephaim. Em várias ocasiões os Filisteus são descritos
acampando ali (2 Sam 5:18, 22, 23:13). Josué 15:8 e 18:16 nos dizem que
o Vale dos Rephaim se juntava a outro vale, o Vale de Hinom, também
conhecido como o Vale do Filho de Hinom. Em hebraico, "Vale de
Hinom” é ge hinnom, uma frase de onde deriva o nome gehenna.
Nos tempos do NT, gehenna se tornou uma designação para o
reino de fogo dos mortos, inferno ou Hades. A história do Vale de Hinom
foi sem dúvida parte da razão para esse pensamento. O significado da
tradução de ge hinnom em hebraico é mais parecido com “vale da
lamentação”, uma descrição entendível dados os sacrifícios de crianças
que aconteciam ali. O Vale de Hinom era o lugar onde o Rei Acaz e o Rei
Manassés sacrificaram seus próprios filhos como oferendas de fogo a
Moloque (2 Cro 28:3; 33:6). Esses sacrifícios aconteciam nos centros de
rituais chamados tophet (“lugar de queimada”), e mais tarde o Vale de
Hinom ficou sendo um lugar conhecido como Tofete (Jer 7:32; 19:6).
O significado e a identidade de Moloque (cujas consoantes
hebraicas são, m-l-k) são muito debatidos pelos estudiosos. É difícil ver
uma associação clara, no entanto, como coincidência. O nome Moloque
aparece em dois encantamentos de serpentes do ugarítico em conexão
com a cidade de Asterote (do ugarítico: ‘ttrt), o local conhecido das
narrativas bíblicas sobre Ogue (Deut 1:4; 9:10; 12:4). Outro texto
ugarítico apresenta o deus Rpu, a deidade patrona dos Rephaim, em
Asterote também. Esses textos pelo menos nos informam que existia
uma associação religiosa próxima entre Moloque e os Rephaim. Isso faz
sentido à luz da relação geográfica entre o Vale dos Rephaim e o Vale de
Hinom no VT.
O que é particularmente fascinante, ou perturbador, é que a
localização desses vales é diretamente adjacente ao lado Sul de
Jerusalém, o Monte Sião, o lugar da presença de Yahweh em seu templo.
O VALE ESPIRITUAL
Esses exemplos são apenas uma amostra da visão geográfica-
cósmica dos escritores bíblicos e suas épocas. O conflito espiritual corre
por trás de uma ampla gama de episódios e práticas do VT. O conflito
212
entre os poderes das trevas e a presença de Yahweh era algo rotineiro na
vida os antigos israelitas. Infelizmente, os escritos bíblicos estão crivados
com exemplos de israelitas sendo seduzidos ou abraçando esses poderes.
Israel desfrutava uma monarquia unida, o que significa que toas
as doze tribos eram unidas sob um mesmo rei, através dos reinos de Saul,
Davi e Salomão. A empreitada começou de forma fraca. Os israelitas
queriam um rei (1 Sam 8) e não deveria ser alguém que administraria a
retidão e traria estabilidade. Ao invés disso, houve uma rejeição à
habilidade de Yahweh em lutar pelo seu povo obediente (1 Sam 8:20). O
guerreiro divino do êxodo e das guerras contra os Anaquim havia sido
deixado de lado por, ironicamente, a pessoa mais alta do lado israelita (1
Sam 9:2). “Façamos para nós um rei como as outras nações”! Deus deu
a eles o que pediram, e eles pagaram o preço.
Eventualmente o reino se solidificou sob Davi, o homem diante
do próprio coração de Deus. Na verdade, Deus pegou ele especificamente
para a tarefa (1 Sam 16) e validou seu status com uma vitória sobre um
Rephaim (Golias) num simples combate. Deus foi tão longe que iniciou
uma aliança com Davi, declarando que só os descendentes de Davi
seriam os herdeiros legítimos de seu reinado (2 Sam 7).
Essa sucessão durou uma geração, através do reinado de
Salomão. Uma vez que Salomão morreu, o reino foi dividido em dois:
Israel (dez tribos) ao Norte e Judá (duas tribos), com sua capital em
Jerusalém. Foi apenas uma questão de tempo antes que cada um deles
sucumbiria à idolatria desleal a Yahweh. No reino do Norte, isso
aconteceu imediatamente. Jeroboão, o primeiro rei rebelde de Israel, fez
da reconstruída Siquém sua primeira cidade capital (1 Reis 12:25).
Siquém havia sido o lugar onde Josué juntou Israel antes de sua morte
para dedicar a nação ao final da conquista e permanecer pura ante
Yahweh (Josué 24). Jeroboão preparou centros de culto (1 Reis 12:26-
33) para adoração a Baal em dois lugares para marcar a extensão do seu
reino: Dan (que estava na região de Basã, perto do Monte Hermon) e
Betel (o lugar onde Yahweh apareceu aos patriarcas). O simbolismo da
batalha espiritual nessas decisões é palpável. Ninguém fiel a Yahweh
deixaria de entender a intenção do conteúdo. Dez tribos de Israel

213
estavam agora sob domínio de outros deuses. Yahweh destruiria Israel
em 722 através do Império Assírio.
Judá, o reino do Sul, ostensivamente leal a Davi e Yahweh,
também falharia. Eles também teriam reis que se afastariam de Yahweh.
A dinastia de Davi eventualmente entraria em colapso e o povo de Judá
seria mandado para o exílio em, de todos os lugares, a Babilônia.
Não devemos concluir que Deus não tentou converter os corações
do seu povo de volta a si mesmo. É precisamente por isso que ele
levantou profetas, depois de terem se encontrado com ele e seu conselho.

214
CAPÍTULO 27
ESTANDO NO CONSELHO
Sejamos honestos. Poucos leitores da Bíblia conhecem bem os
profetas, os quais, depois da conquista, ficaram quase que num segundo
plano nos tempos de Davi, Salomão e talvez alguns dos juízes. O cristão
mediano lê o material profético só quando o pastor precisa de um bom
sermão sobre pecado ou julgamento. Os profetas são apenas um bando
de fanáticos com sangue nos olhos.
A caricatura não é completamente sem fundamento, mas ela
falha em comunicar com precisão quem eram os profetas, por que Deus
os levantou e qual era a sua missão. Existia um padrão diferente na
soberania de Yahweh para escolher líderes humanos, um padrão que
incluía o conselho divino.
MAS O QUE ERA UM PROFETA?
Para diferenciar todas as implicações desse padrão, é vital que
primeiro entendamos o que significa o termo “profeta”. Prever eventos
futuros era só uma pequena parte do que as figuras proféticas faziam e
para o que foram preparadas. Os profetas eram pessoas simples que
falavam por Deus, homens e mulheres que, sob direção de Deus,
olhavam seus companheiros israelitas nos olhos e diziam a eles que
estavam sendo desleais ao Deus ao qual eles deviam sua existência e o
qual os escolheu para ter um relacionamento sobre todos os outros na
terra. Os profetas falavam para as pessoas a verdade nua e crua e
frequentemente pagavam caro por isso.
Os “clássicos profetas” (ex: Isaías, Jeremias e Ezequiel) pregaram
durante os dias da monarquia (do tempo de Saul para frente). Mas Deus
havia apontado pessoas para falar por ele há muito mais tempo do que
isso. Por exemplo, Samuel, o último dos juízes, é chamado de profeta (1
Sam 3:20). Uma vez que Samuel é uma figura transicional do tempo dos
juízes para o estabelecimento do primeiro rei de Israel, Samuel é tido
como o primeiro profeta. Na verdade, não é bem assim. Se definirmos
profetas simplesmente como porta-vozes de Deus, os profetas datam
desde lá de trás no início.
215
O PRIMEIRO PROFETA
O Éden era o lugar de habitação de Yahweh, o lugar de onde ele
governava com seu conselho. A humanidade foi criada para ser parte da
família de Deus e seu conselho governante. Isso não difícil de discernir
quando abordamos Gênesis no seu contexto antigo original, mas ver
Adão como uma figura profética requer nos movermos para fora de
Gênesis. Em Jó 15:7-8, Elifaz, um dos amigos de Jó, pergunta a Jó
algumas questões intrigantes: “7És tu, porventura, nascido primeiro
que Adão? Ou foste formado antes que todos os montes e colinas? 8Ou
apenas a ti fora revelado os princípios secretos de Deus? E só a ti
pertencem o conhecimento e a sabedoria”?
As perguntas são obviamente retóricas. Ao usar contrastes, cada
uma delas antecipa uma resposta de não. É claro que Jó não foi o
primeiro homem, Adão é quem foi. Jó não teve nenhuma audiência no
conselho de Deus (Hebraico: sod eloah), mas o contraste retórico implica
que Adão havia tido uma audiência no conselho de Deus. Isso faria
sentido, dado que Adão vivera no Éden, o locar de encontro do conselho,
e que essa era a intenção de Deus para os seres humanos serem seus
filhos terrenos membros do conselho.
Pense de volta em Gênesis 3:8, a passagem a qual já aludi antes,
na qual Yahweh se aproxima dos humanos como um homem. Quando
Adão e Eva violaram o mandamento de Deus, eles rapidamente ouviram
“o som do Senhor Deus caminhando no jardim no frescor do dia”. Essa
terminologia de “caminhar” sugere que Deus aparecera a ela em forma
humana (espíritos não “caminham”). O texto diz que Adão e Eva sabiam
que era Deus, não houve nenhuma surpresa ou choque. Essa era uma
experiência que eles já haviam tido antes. Adão e Eva estavam
familiarizados em estar na presença de Deus. Não pensamos nisso em
termos proféticos, pois ali não haviam outras pessoas. Mas uma vez que
começou a ter, Adão e Eva teriam sido os mediadores entre Deus e os
outros humanos, seus próprios filhos.
A descrição de Yahweh “caminhando” também é usada para a
presença ativa de Deus dentro do tabernáculo de Israel, criando outra
216
ligação entre o Éden, o monte cósmico e o santuário do tabernáculo.
Pode-se ler o VT em vão nas vezes onde Yahweh caminhou ao redor do
acampamento de Israel, o oposto a aparecer numa nuvem sobre o
santíssimo, e então essa descrição aqui não está mostrando literalmente
Deus de mãos dadas com os israelitas. Ao invés disso, a linguagem é
outra maneira de dizer que a morada de Yahweh estava entre os
israelitas, e onde estava a casa de Yahweh, ali estava seu conselho. Do
outro lado do véu era onde Yahweh e seu conselho poderiam ser
encontrados.
ENOQUE E NOÉ
A ideia de que “caminhar” era uma linguagem que expressava
presença dão deveria ser estranha para nós. Nós a usamos também
“quando falamos em “andar com Deus”. Nossa concepção é de uma
comunhão ou relacionamento. As Escrituras usam a frase para pelo
menos isso, mas ela também pode significar um contato mais direto com
a presença divina. E entender a noção de um “encontro com Deus” é
crucial para entender o que o porta-voz de Deus quer dizer. Quando Deus
escolhe alguém para falar por ele, representa-lo para o resto da
humanidade ou para seu próprio povo, eles precisam se encontrar
primeiro. Essa é a ideia por trás do “chamado” bíblico para a obra.
No VT, dois homens “andaram com Deus” (o mesmo verbo
hebraico é usado para descrever Deus “caminhando” acima). Ambos são
figuras proféticas: Enoque e Noé. Com certeza esses dois homens se
encontraram diretamente com Deus, embora poucos detalhes sejam
dados.
Enoque é lembrado em Gênesis 5:22, 24 e nunca conheceu a
morte. Essas passagens notam que ele andou com Deus, e Deus o pegou.
Escrituras judaicas do período de tempo entre o Velho e o Novo
Testamentos, na verdade conectam esses poucas palavras com o
conselho divino. No livro de 1 Enoque (12:1), os eventos de Gênesis 5:22,
24 servem como um trampolim para as visões de Enoque do céu e da sala
do trono de Deus. Enoque era considerado a boca de Deus pelos leitores
judeus primeiramente, pois ele era a pessoa que entregou as palavras do
julgamento de Deus aos caídos filhos de Deus depois do incidente de
217
Gênesis 6:1-4 (1 Enoque 13-16). O Novo Testamento também reporta o
que Enoque “profetizou”:
14Para estes também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão,
dizendo: Eis que veio o Senhor com os seus milhares de santos, 15para
executar juízo sobre todos e convencer a todos os ímpios de todas as
obras de impiedade, que impiamente cometeram, e de todas as duras
palavras que ímpios pecadores contra ele proferiram. (Judas 14:15).
Noé também andou com Deus, de acordo com Gênesis 6:9. Deus
falou diretamente com Noé, como já havia feito com Adão antes e muitos
profetas depois dele. Noé era o porta-voz de Deus, profetizando a
chegada do dilúvio aos seus contemporâneos, alertando-os do
julgamento vindouro (2 Pedro 2:5).
OS PATRIARCAS
O padrão de um encontro com Deus ou com os membros do
conselho divino como validação do status profético de alguém vai
ficando cada vez mais claro com os patriarcas. Como já cobrimos essa
área nos capítulos anteriores, embora não com um olhar de
entendimento de um padrão desses eventos, faremos um breve tour
aqui.
O leitor irá claramente se lembrar que Yahweh apareceu a
Abraão em várias ocasiões (Gên 12:1-7; 15:1-6; Atos 7:2-4). Existe um
detalhe nesses encontros que não mencionei antes. Em Gênesis 12:6-7,
nos é dito que Yahweh apareceu a Abraão no Carvalho de Moré, que
ficava perto de Siquém. A subsequente visita de Yahweh com Abraão
pouco antes da destruição de Sodoma e Gomorra, aconteceu num lugar
chamado de Carvalhos de Manre (Gên 18:1).
O Carvalho de Moré e os Carvalhos de Manre são o que os
estudiosos chamam de um terebinto, uma árvore sagrada que ganhou
sua reputação sagrada devido a marcar um lugar onde seres divinos
apareceram. Na verdade, o “Carvalho de Moré” literalmente significa o
“Carvalho do Professor”. A observação por trás do nome seria a de que
alguma figura divina ensinou pessoas ou dispensou informações nesse
local, o que comumente pensamos como um oráculo. Devido ao fato de
218
pensarmos neles como solo sagrado, os lugares onde Deus estava
presente, tais lugares eram considerados bons lugares para enterrar
pessoas amadas. A dispensação de conhecimento divino e decretos
divinos é claro algo que os escritores bíblicos associavam com o conselho
divino (Jó 15:7-8; 1 Reis 22:13-23). Essa conexão ficará especialmente
clara quando chegarmos aos profetas clássicos.
Enquanto Abraão ainda era pagão, Deus o havia escolhido para
ser o pai da nova herança terrena de Yahweh depois da queda de Babel,
onde as nações foram dadas aos elohim menores (Deut 32:8-9). Abraão
se tornou o condutor da verdade de Deus para as nações deserdadas. O
filho de Abraão, Isaque, desfrutou o mesmo status, e Yahweh apareceu a
ele também quando confirmou a aliança (Gên 26:1-5). Jacó teve vários
encontros divinos diretos (Gên 28:10-22; 31:11-13; 32:22-32). Ele
herdou o status de aliança profética do seu pai e do seu avô.
O padrão que emerge das sagas patriarcais é o de que quando
Deus escolhe alguém para representa-lo, essa pessoa deve primeiro se
encontrar com Deus. Por necessidade, esse encontro é com o Yahweh
visível, que pode ser discernido pelos sentidos humanos. Em muitos
casos, a entrevista para o serviço divino acontece num lugar que é
descrito como casa de Deus ou quartel general, o lugar onde o conselho
divino se encontra.
MOISÉS, JOSUÉ E OS JUÍZES
Deveria então ser óbvio que o padrão para aprovação divina do
status profético fosse verdade para Moisés. Deuteronômio 34:10 deixa
claro que Moisés era um profeta, e seus vários encontros divinos
validavam esse status (Êxodo 3:1-3; 24:15-18; 33:7-11). Para os israelitas,
o encontro divino era o que convencia as pessoas que Moisés era um
homem de Deus. Êxodo 19:9 deixa essa conexão explícita: “9Então disse
o Senhor a Moisés: Eis que eu virei a ti em uma nuvem espessa, para
que o povo ouça, quando eu falar contigo, e também para que sempre
te creia”.
A implicação é clara, as pessoas precisavam escutar e iriam
escutar a pessoa a qual fosse validada por um encontro com a presença
de Deus.
219
O encontro divino era também o que inicialmente validou Josué
como um profeta. Em Êxodo 24:13, pouco antes da descrição de como
Moisés e os anciãos de Israel compartilharam uma refeição com Yahweh
no Sinai, nós lemos: “13E levantando-se Moisés com Josué, seu
servidor, subiu ao monte de Deus”. O versículo implica que Josué foi
junto com Moisés ver Deus. Êxodo 33: 9-11 deixa o contato de Josué com
Yahweh um pouco mais claro:
9E quando Moisés entrava na tenda, a coluna de nuvem descia e ficava
à porta da tenda; e o Senhor falava com Moisés. 10Assim via todo o
povo a coluna de nuvem que estava à porta da tenda, e todo o povo,
levantando-se, adorava, cada um à porta da sua tenda. 11E falava o
Senhor a Moisés face a face, como qualquer fala com o seu amigo.
Depois tornava Moisés ao arraial; mas o seu servidor, o mancebo
Josué, filho de Num, não se apartava da tenda. (Êxodo 33:9-11).
Em Deuteronômio 31:14:23, Yahweh especificamente manda que
Moisés traga Josué à tenda do encontro, onde o próprio Deus
comissionou Josué para substituir Moisés.
OS PROFETAS CLÁSSICOS
Talvez a iniciação mais familiar de um profeta na presença de
Yahweh, e a sala do trono do seu conselho divino, seja o caso de Isaías.
Isaías 6:1-2:
1No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um
alto e sublime trono, e as orlas do seu manto enchiam o templo. 2Ao
seu redor havia serafins; cada um tinha seis asas; com duas cobria o
rosto, e com duas cobria os pés e com duas voava.
O versículo 8 deixa isso claro quando Isaías foi convocado:
8Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem
irá por nós? Então disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim.
É importante não perdermos as palavras de Isaías 6:8, a quem eu
enviarei, e quem irá por nós? Como já vimos num capítulo anterior sobre
o conselho divino, a natureza participante do governo de Deus e seu

220
conselho torna-se novamente evidente. Deus é o comissário, mas a
comissão se estende para o seu conselho divino também.
O mesmo rito divino de passagem foi experimentado por
Ezequiel numa chamada ainda mais dramática para o ministério. Ao
invés de transportar Ezequiel para a sala do trono de Yahweh, Yahweh e
os membros de sua comitiva vieram até Ezequiel (1:1-28), o qual é então
comissionado como porta-voz de Yahweh (2:1-3). Ezequiel começa seu
livro:
1Ora aconteceu no trigésimo ano, no quarto mês, no dia quinto do mês,
que estando eu no meio dos cativos, junto ao rio Quebar, se abriram os
céus, e eu tive visões de Deus.
4Olhei, e eis que um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande
nuvem, com um fogo que emitia de contínuo labaredas, e um
resplendor ao redor dela; e do meio do fogo saía uma coisa como o
brilho de âmbar.5E do meio dela saía a semelhança de quatro seres
viventes.
26E sobre o firmamento, que estava por cima das suas cabeças, havia
uma semelhança de trono, como a aparência duma safira; e sobre a
semelhança do trono havia como que a semelhança dum homem, no
alto, sobre ele.
28Como o aspecto do arco que aparece na nuvem no dia da chuva,
assim era o aspecto do resplendor em redor. Este era o aspecto da
semelhança da glória do Senhor; e, vendo isso, caí com o rosto em
terra, e ouvi uma voz de quem falava.
1E disse-me: Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo. 2Então,
quando ele falava comigo entrou em mim o Espírito, e me pôs em pé, e
ouvi aquele que me falava. 3E disse-me ele: Filho do homem, eu te
envio aos filhos de Israel, às nações rebeldes que se rebelaram contra
mim; eles e seus pais têm transgredido contra mim até o dia de hoje.
O profeta Jeremias também se encaixa nesse padrão. Vimos num
capítulo anterior que o Verbo incorporado apareceu a Jeremias para
comissionar o seu dever:

221
7Mas o Senhor me respondeu: Não digas: Eu sou um menino; porque
a todos a quem eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar dirás. 8Não
temas diante deles; pois eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor.
9Então estendeu o Senhor a mão, e tocou-me na boca; e disse- me o
Senhor: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. (Jeremias 1:7-
9).
O dramático chamado de Jeremias pelo Yahweh incorporado é
um tanto importante no livro de Jeremias, pois ele serve como base de
um verdadeiro status de profeta. O que começou nos dias de Moisés
como uma validação pública do seu chamado e do chamado daqueles que
servia a ele se tornou fixo nas mentes dos israelitas como um teste
legítimo a ser aplicado a qualquer um que afirmasse ser um vaso de
Deus. Em Jeremias 23, lemos as próprias palavras de Deus sobre falsos
profetas:
16Assim diz o Senhor dos exércitos: Não deis ouvidos as palavras dos
profetas, que vos profetizam a vós, ensinando-vos vaidades; falam da
visão do seu coração, não da boca do Senhor. 17Dizem continuamente
aos que desprezam a palavra do Senhor: Paz tereis; e a todo o que anda
na teimosia do seu coração, dizem: Não virá mal sobre vós. 18Pois
quem dentre eles esteve no concílio do Senhor, para que percebesse e
ouvisse a sua palavra, ou quem esteve atento e escutou a sua palavra?
21Não mandei esses profetas, contudo eles foram correndo; não lhes
falei a eles, todavia eles profetizaram. 22Mas se tivessem assistido ao
meu concílio, então teriam feito o meu povo ouvir as minhas palavras,
e o teriam desviado do seu mau caminho, e da maldade das suas ações.
(Jeremias 23:16-18, 21-22).
As implicações são claras: os verdadeiros profetas estiveram lá no
conselho divino de Yahweh e escutaram-no; falsos profetas não.
O teste de legitimidade do encontro direto divino para validar
aquele que afirmava falar por Deus nunca mais desapareceu em Israel.
Ele estava bem vivo nos tempos do Novo Testamento. Os próximos três
capítulos, os últimos devotados ao Velho Testamento, irão preparar as
nossas mentes para a voz humana final de Yahweh. Os profetas
falhariam em seus ministérios, num sentido de que eles não foram
222
capazes de preservar e reviver a lealdade de Israel a Yahweh. A falha de
Israel significou uma mudança na abordagem de Yahweh em reviver o
governo de seu reino. A mensagem profética mudaria o julgamento e a
redenção, mas meios seriam deliberadamente velados. Nem mesmo os
anjos leais de Deus poderiam entender exatamente o que Deus estava
tramando (1 Pedro 1:12).
Eu e você temos a vantagem da retrospectiva, mas ainda
precisamos saber o que estamos vendo.

223
CAPÍTULO 28
DISTRAÇÃO DIVINA
Estamos num estágio significante na épica saga do objetivo de
Deus pela humanidade, seu desejo em ter uma família humana com a
qual ele e sua família divina governem um novo Éden. Desde a ruptura
do Éden, Deus tem trabalhado para usar homens e mulheres para
restaurar a visão original. A manifestação mais visível desse esforço foi a
criação de uma nova família através de Abraão e Sara: Israel. Mas Israel
falhou miseravelmente na sua missão, de uma conquista incompleta à
separação da unidade das doze tribos ao colapso da dinastia de Davi no
exílio da Babilônia, o mesmo lugar no qual Yahweh decidiu deserdar as
nações e criar seu próprio povo milênios antes.
A apostasia do seu povo e seu subsequente exílio alavancou uma
mudança na abordagem de Yahweh para restaurar seu domínio sobre a
terra. Ele não poderia depender de humanos, embora ele mesmo
prometera preservar a humanidade. Ele não iria mais renunciar ao
governo de suas imagens humanas, senão ele acabaria destruindo-os.
Devido à sua criação original da humanidade como sua imagem possuir
o livre-arbítrio, seu reino tem a necessidade de incluir a humanidade
para sua recuperação e domínio, ou a visão Edênica seria destruída.
Deus entendia que só ele poderia ser confiável para completar de forma
perfeita o seu próprio desejo. Dessa forma ele deveria se tornar um
homem e, além disso, deveria habitar no coração de seus filhos. Residir
num tabernáculo ou templo não era suficiente. Ele teria que morar
dentro daqueles que escolhessem segui-lo.
A segunda parte dessas estratégias é a mais transparente. Através
do profeta Jeremias, Deus anunciou nos dias anteriores ao reino do Sul
de Judá ter sido derrubado pela Babilônia que, embora o reino de Judá
fosse destruído, ele faria uma nova aliança com seu povo (Jer 31:33):
“33“Eis, no entanto, a Aliança que celebrarei com a comunidade de
Israel passados aqueles dias”, afirma o SENHOR: “Registrarei o
conteúdo da minha Torá, Lei, na mente deles e a escreverei no mais
íntimo dos seus sentimentos: seus corações. Assim, serei de fato o Deus
deles e eles serão o meu povo!” Yahweh enviaria o seu Espírito para
224
habitar dentro do seu povo. Eles não podiam ser confiáveis com suas
liberdades, mas ele não iria erradica-la, e nem os deixaria incapacitados.
A estratégia, no entanto, é muito mais secreta. Ela irá ocupar a
nossa atenção no resto do capítulo.
ESSE NÃO É O MESSIAS QUE VOCÊS PROCURAM
Os leitores instintivamente entendem que ao falar dessa
“primeira estratégia” de Deus se tornando um homem eu estou me
referindo às profecias do Velho Testamento sobre o messias.
Pensamentos sobre Jesus naturalmente fluem em nossas mentes. Mas
isso acontecem porque temos o Novo Testamento. Temos uma
retrospectiva total. Os israelitas e os judeus no exílio não tinham isso.
Mas a desconexão é muito mais profunda do que isso.
Projetada por Deus, as Escrituras apresentam o messias em
termos de um perfil de mosaico que só pode ser discernido depois que
as peças sejam encaixadas. Paulo nos diz o porquê disso em 1 Coríntios
2:6-8. Se o plano de Deus para a missão do messias fosse algo claro, os
poderes das trevas nunca teriam matado Jesus, eles iriam saber que a
sua morte e ressurreição eram as chaves para o reclame das nações para
sempre.
Existem boas chances de vocês terem ouvido o Novo Testamento
de forma errada se o procurarem dentro do Velho Testamento centenas
de vezes. Embora possam estar surpresos em me ouvir falar que o perfil
do messias no Velho Testamento fora deliberadamente velado. Deixem-
me ilustrar.
A palavra traduzida para “messias” (mashiach) é bem comum no
VT. Ela aparece mais de trinta vezes. Ela simplesmente significa
“ungido”. Várias pessoas foram ungidas no VT, particularmente os reis,
mas a maioria deles foram inescrupulosos ou incompetentes ou as duas
coisas. Mashiach ocorre em referência a um libertador cuja aparência
seria posterior à era do VT nuns poucos lugares, e alguns deles não são
claros se esse ungido até mesmo seja um seguidor de Yahweh. E não
existe nenhum versículo no Velho Testamento mostrando um mashiach
morrendo e ressuscitando. Se você pegar Isaías 53 como exceção, ele não
225
é. A palavra mashiach não aparece nessa passagem. Isso não significa
que Isaías 53 não faça parte do perfil messiânico, ele significa que o
conteúdo de Isaías 53 é só uma peça de um quebra-cabeça bem maior.
As peças foram mantidas separadas para obscurecer a figura final.
Isso lança uma luz em certos episódios no NT, tais como o porquê
de Pedro não conseguir compreender a noção de Jesus indo para
Jerusalém para morrer. Pedro acreditava que Jesus era o messias (a
palavra para “ungido” em grego é christos, “cristo”). Quando Jesus
anunciou que ia morrer em Jerusalém, Pedro não disse: “Eu sei, eu li isso
na minha Bíblia”. Ele não podia ler isso em sua Bíblia porque nela não
havia nenhum simples versículo para essa ideia. Ao invés disso, o
conceito de um messias que morre e ressuscita deveria ser encaixado
junto a um monte de fragmentos espalhados no VT que, se forem
tomados sozinhos, não se parecem nada com um messias na mente.
Nenhum dos fragmentos revelam a figura final.
Mesmo depois da ressurreição, os discípulos tinham que manter
suas mentes abertas de forma sobrenatural para ver o messias sofredor.
O Jesus ressuscitado diz isso explicitamente em Lucas 24:
44Em seguida, Jesus lhes explicou: “São estas as palavras que Eu vos
ensinei quando ainda estava entre vós: Era necessário que se
cumprisse tudo o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos
Profetas e nos Salmos!” 45Então, se lhes abriu o entendimento para que
pudessem compreender as Escrituras.
A observação é importante: Só alguém que conhecesse o
resultado do quebra-cabeças, que conhecesse como os elementos do
mosaico messiânico se encaixariam, poderia entender as peças. Jesus
teve que capacitar os discípulos para entender o que o VT estava
simultaneamente escondendo e revelando. Não era uma questão de se
ler um versículo aqui e ali.
Infelizmente, a maioria dos cristãos de hoje não entendem a
complexidade do que Lucas 24:44-45 revela. Ao invés disso, eles
repetidamente ouvem que o Novo Testamento está incluso no Velho.
Essa é uma ideia infeliz, pois isso faz com que passagens do VT digam

226
coisas que nenhum escritor do NT sequer tenha citado que estavam lá no
Velho.
Gênesis 3:15 é um bom exemplo. Essa é a passagem onde Deus
disse à serpente (nachash) que um dos seus descendentes feriria o
calcanhar de um dos descendentes de Eva, e que um descendente de Eva
feriria a cabeça dela (da serpente). Isso é frequentemente tomado como
evidência para mostrar um messias que sofre e morre e a vitória do
messias sobre as forças do mal através da ressurreição. Mas não é assim
que o Novo Testamento cita a passagem. O versículo é verdadeiramente
aludido por Paulo em Romanos 16:20, onde ele menciona o prospecto
da serpente sendo esmagada (não apenas a sua cabeça, e não só ferida).
Mas o esmagamento não é feito por Jesus, o filho de Eva e messias
ressuscitado. Ao invés disso, Paulo apresenta Deus esmagando a
serpente sob os pés dos crentes.
A narrativa de Abraão perto de oferecer Isaque (Gên 22) é outro
exemplo. Nem mesmo nenhum autor do Novo Testamento sequer cita a
história como uma figura nem da crucificação e nem da ressurreição,
mas Isaque não morreu no incidente. Alguns veem uma alusão dessa
passagem com o batismo de Jesus, quando uma voz do céu anuncia:
“Esse é o meu filho amado, em quem me regozijo”, mas não é isso o que
a voz diz em Gênesis 22 (vejam Mateus 3:17; Marcos 1:11; Lucas 3:22).
Essas passagens do VT e outras têm sido usadas por
comentaristas modernos para falar sobre o messias e seu trabalho de
uma maneira que os autores do NT não falam. Nós não deveríamos criar
conexões onde o texto bíblico não o faz. Ao invés disso, precisamos
raciocinar mais cuidadosamente sobre o que encontraremos no texto.
O plano de Deus para redimir a humanidade, reclamar as nações
e reviver o Éden, dependia da encarnação do segundo Yahweh e sua
subsequente morte e ressurreição. A história da cruz é o catalizador
bíblico-teológico do plano de Deus para reaver tudo o que foi perdido no
Éden. Ela não poderia ser enaltecida através do VT em narrativas claras.
Ela tinha que ser expressada de maneiras criptografadas e sofisticadas
para ter certeza de que os poderes das trevas fossem enganados. E
foram. Nem mesmo os anjos conheciam o plano (1 Pedro 1:12).
227
ESCONDIDO A LUZ DO DIA
Agora quero dar a vocês uma amostra do plano secreto de Deus
para a esperança de Israel e das nações deserdadas, que na teologia
bíblica, é toda a humanidade. Iremos focar em peças simples, mas
fundamentais do mosaico messiânico que formam padrões significativos
de pensamento.
Comecemos com Adão. A descrição óbvia da sua identidade e
papel é sendo “o primeiro homem”. Mas deem uma olhada mais atenta
em Adão. Se eu perguntar: “Como Adão é tido na história bíblica”?
Outros tipos de pensamento sobre Adão começam a aparecer. Adão era
o filho de Deus. Como filho de rei (Deus), ele era da realeza. Ele foi o
governante designado pelo seu pai no Éden. Ele também foi colocado no
jardim para “trabalhar” na terra (Gên 2:15). Um lema hebraico para sua
atividade é ‘abad (consoantes: ‘bd).
Uma vez expulso do jardim, ele foi afastado do reino de Deus para
sofrer, e trabalhar no jardim se tornou uma tarefa difícil. Mas isso não é
tudo. Adão perdeu sua imortalidade terrena. Ele morreu, mas as
Escrituras são cuidadosas em mostrar que, através das genealogias, a sua
linhagem viveu, de forma cada vez mais precária até Noé, e daí até
Abraão e então Israel, e finalmente a Jesus. Sua vida eterna é garantida
pelo poder de Deus, mas seu retorno em um corpo para o novo Éden
depende da ressurreição de Cristo, “o primogênito dentre os mortos”
(Colossenses 1:18; Apocalipse 1:5).
Podemos resumir o perfil de Adão da seguinte maneira:
Adão
Filho de Deus
Rei governante
(Governa no lugar de Deus)
Servo
(‘bd)
Sofre
(Efeito do pecado)
Exílio e morte
(Cessa sua existência na terra)
Vive através dos seus descendentes
(Ressurreição contingente)

228
Agora vamos raciocinar sobre Israel. Em termos de
descendentes, os israelitas traçam sua herança de volta a Adão. Mas um
exame cuidadoso da história da nação produz similaridades marcantes
ao perfil de Adão. Deus chama a nação de sua filha (Êxodo 4:23; Oséias
11:1). Israel não é simplesmente a luz das nações (Isaías 42:6; 49:6), mas
Deus queria que Israel governasse sobre as nações (Deut 15:6; 26:19;
28:1; Rom 4:13). Isso só faz sentido dado que Deus é o governante das
nações (Salmos 22:28) e Israel sendo sua filha. Essa visão, é claro, estará
ligada à herança messiânica de Davi (Zacarias 9:9; Salmos 89:27).
Israel (corporativamente) é referida como a serva de Deus (‘ebed;
lema: ‘bd; Isaías 41:8-9; 44:1-2, 21; 45:4; 49:3). Como Adão, as
transgressões de Israel a levaram para o exílio do lugar onde a presença
divina residia (Isaías 2:6-8; Ezequiel 7-9; Jeremias 13:10). O resultado é
o sofrimento, muito tempo depois, sob poderes estrangeiros e reis
malignos. Eventualmente, Israel é exilada e cessa sua existência como
nação. Mas os profetas previram a ressurreição de Israel, mais
vividamente através da visão dos ossos secos (Ezequiel 37). A nação
renasce depois do exílio com o retorno dos seus habitantes a Judá da
Babilônia. O perfil de Israel parece familiar:
Adão Israel
Filho de Deus Filha de Deus
Rei governante A maior dentre as nações
(Governa no lugar de Deus) (O rei de Israel é o maior)
Servo Serva
(‘bd) (‘bd)
Sofre Sofre
(Efeito do pecado) (Efeito do pecado)
Exílio e morte Exílio e morte
(Cessa sua existência na terra) (Cessa sua existência na terra)
Vive através dos seus Vive através de Judá
descendentes (Ressurreição contingente)
(Ressurreição contingente)

229
Depois, Moisés. Como um israelita crente, Moisés foi um filho de
Abraão e, assim sendo, de Deus (Rom 4:11-12, 16; Gal 3:7, 23-29). Seu
status nesse sentido era especial, uma vez que ele foi apontado por Deus
como o governante-libertador da nação. Curiosamente, Yahweh diz a ele
que ele seria “como Deus / um deus (elohim) ao Faraó” e o irmão de
Moisés, Arão (Êxodo 4:16; 7:1). Seria através de Moisés, é claro, que os
sinais e milagres de Deus seriam lançados contra o Egito. Como um líder
de onde fluía o poder divino, ele seria naturalmente visto pelos israelitas
como uma figura quase divina, apesar de ser apenas um homem.
Moisés é chamado de servo de Deus (‘ebed; lema: ‘bd; Êxodo
14:31; Num 12:7; Deut 34:5; Josué 8:31). Ele sofre pelo seu pecado e é
proibido de entrar na terra prometida (Num 20:1-12; Deut 1:37; 34:4-6),
embora Deus o permita vê-la de uma distância antes de sua morte (34:4-
6). A transfiguração (Mateus 17:1-4) nos informa que Moisés viveu com
Deus, mas, como todo mundo, sua ressurreição num novo Éden era
contingente naquele que havia de vir. Agora podemos adicionar Moisés
em nossa tabela:
Adão Israel Moisés
Filho de Deus Filha de Deus Filho de Deus
Rei governante A maior dentre as Rei governante
(Governa no lugar de nações (Sobre o povo de
Deus) (O rei de Israel é o Deus)
maior)
Servo Serva Servo
(‘bd) (‘bd) (‘bd)
Sofre Sofre Sofre
(Efeito do pecado) (Efeito do pecado) (Efeito do pecado)
Exílio e morte Exílio e morte Exílio e morte
(Cessa sua existência (Cessa sua (Cessa sua
na terra) existência na terra) existência na terra)
Vive através dos seus Vive através de Vive com Deus
descendentes Judá (Ressurreição
(Ressurreição (Ressurreição contingente)
contingente) contingente)

230
Agora chegamos ao rei de Israel. Lembrem-se que Deus
prometeu a Davi uma dinastia sucessiva eterna a qual chamamos agora
de aliança davídica (2 Sam 7; Salmos 89). O cumprimento dessa
promessa falharia no VT devido à morte de Israel no exílio. Mas a
ressurreição de Israel através de Judá, a tribo de Davi, manteria a
promessa viva. Como veremos em mais detalhes depois, o cumprimento
da promessa seria inaugurado na primeira vinda de Jesus, Yahweh
encarnado. A consumação da promessa ainda é futura. Para nosso
propósito aqui, como os padrões emergem no reinado israelita
(davídico) e o filho messiânico de Davi?
Como Moisés e todos os israelitas crentes, Davi foi um filho
terreno de Yahweh. Mas aprendemos de certos Salmos que os reis da
linhagem de Davi também eram chamados de “filhos de Deus” num ato
de adoção ungida específica para o rei entronado (Salmos 2:7). O rei era
ungido de Deus (mashiach) descendente de Judá (Gên 49:10), sua
representação de governo dentre todas os filhos terrenos (Salmos 2:2).
Como com Moisés, o reinado, pela virtude da sua linguagem adotiva,
carregava com ele um aspecto quase divino (Salmos 45:6-7). Salmos
89:27 apresenta o trono de Davi como “altíssimo” (elyon) dentre todas
as nações. O último filho de Davi, como presumido, seria “um profeta
como Moisés” (Deut 18:15; Atos 3:22; 7:37).
Não foram só Adão, Moisés e Israel (corporativamente) os servos
de Deus, mas o Rei Davi também foi servo de Yahweh (‘ebed; lema: ‘bd;
2 Sam 3:18; 7:5, 8; Salmos 89:3), como foram outros reis (1 Reis 3:7; 2
Cro 32:16). Um “ramo” em particular ou braço da tribo de Judá e da
linhagem de Davi seria o servo individual que Deus usaria para trazer a
salvação a Israel (Isa 11:1; 49:5; Jer 23:5; 33:15; Zacarias 3:8; 6:12).
Como a serva corporativa Israel, esse servo individual iria sofrer e
morrer (Isaías 53:1-9), mas viveria para ver seus descendentes (Isaías
53:10), uma multidão justificada pela sua obra (Isaías 53:11).

231
A figura do messias começa a aparecer:
Adão Israel Moisés Rei/Messias
Filho de Deus Filha de Deus Filho de Deus Filho de Deus
Rei A maior Rei Rei governante
governante dentre as governante (Representa
(Governa no nações (Sobre o povo Davi e Israel;
lugar de Deus) (O rei de de Deus) governa sobre
Israel é o o povo de Deus
maior) e todas as
nações)
Servo Serva Servo Servo
(‘bd) (‘bd) (‘bd) (‘bd)
(Representa
Israel; redime
Israel, os
servos falhos)
Sofre Sofre Sofre Sofre
(Efeito do (Efeito do (Efeito do (Efeito do
pecado) pecado) pecado) pecado dos
outros – Israel
e todas as
nações)
Exílio e morte Exílio e morte Exílio e morte Exílio e morte
(Cessa sua (Cessa sua (Cessa sua Cessa sua
existência na existência na existência na existência na
terra) terra) terra) terra)
Vive através Vive através Vive com (Ressuscita
dos seus de Judá Deus pelo poder e
descendentes (Ressurreição (Ressurreição plano de Deus;
(Ressurreição contingente) contingente) todos que são
contingente) dele, de Israel
e todas as
nações, se
levantarão e
governarão
com ele)

232
A identidade e propósito do messias são irreconhecíveis em um
versículo Bíblico, e até mesmo muitos versículos Bíblicos. O perfil se
procede ao longe de trajetórias conceituais que eventualmente se juntam
num retrato. E então a pergunta de Jesus (Lucas 24:26) aos dois homens
na estrada para Emaús faz um sentido eminente: “26Porventura não
importa que o Cristo padecesse essas coisas e entrasse na sua glória”?
Sim, é claro que importa. Só que é difícil de ver isso, ao menos que você
saiba o que você está procurando. O retrato messiânico só pode ser
discernido ao se juntar centenas de termos, frases, metáforas e símbolos,
os quais eles mesmos dão um significado só quando seus padrões e
convergências são detectados.
Existem outras peças para mostrar a vocês. Elas merecem um
capítulo só para elas.

233
CAPÍTULO 29
O CAVALEIRO DAS NUVENS
Nosso último capítulo focou em apenas alguns elementos
fundamentais do mosaico messiânico do Velho Testamento. Um desses
elementos foi o reinado. Mostrei que o reinado israelita tinha um sabor
quase divino. Esse era um pensamento comum no antigo Oriente
Próximo, onde as civilizações acreditavam que o reinado era instituído
pelos deuses, e, assim sendo, o rei era um descendente dos deuses. O que
isso significava e como funcionava, variava. No caso de Israel, o rei
humano era escolhido ou adotado em seu papel como “filho de Deus”
para executar o governo de Yahweh. Esse status oficial foi legitimado a
apenas uma dinastia em Israel, a linhagem de Davi.
Embora seja claro como isso seria importante para um papel
messiânico, ele nos deixa com uma importante questão: O messias seria
realmente divino, a encarnação de Yahweh, ou ele seria meramente um
homem pensando ser divino, via adoção? Nos tempos do nascimento de
Jesus, quando Deus encarnou, os judeus eram intelectualmente
acostumados à ideia de Yahweh estar (pelo menos) em forma humana,
incluindo ser incorporado. A encarnação dá um outro passo à essa noção.
Na verdade, exista uma clara indicação do Velho Testamento de que o
governante davídico final seria Deus se tornando um homem, uma ideia
reforçada pelo Novo Testamento, particularmente numa cena em
especial.
O ENCONTRO DO CONSELHO DIVINO EM DANIEL 7
Todas as estradas parecem se encontrar no conselho divino. A
natureza divina do messias não é uma exceção. A ideia vem de uma cena
do conselho divino em Daniel 7. A cena começa (Dan 7:1-8) com uma
visão estranha. Daniel vê quatro bestas saindo do mar. A quarta besta é
a mais terrível e imponente. Aprendemos que as quatro bestas
representam quatro impérios, como foi o caso do sonho Nabucodonosor
em Daniel 2.
O que é descrito depois é significante.

234
9Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião
de dias se assentou; o seu vestido era branco como a neve, e o cabelo da
sua cabeça como lã puríssima; o seu trono era de chamas de fogo, e as
rodas dele eram fogo ardente. 10Um rio de fogo manava e saía de
diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríades de miríades
assistiam diante dele. Assentou-se para o juízo, e os livros foram
abertos.
Muitas coisas já nos chamam a atenção de cara. Primeiro,
sabemos que o Ancião de Dias é o Deus de Israel, devido à descrição do
seu trono afogueado e com rodas que se encaixam na visão de Ezequiel
1. A visão de Ezequiel também incluía uma figura humana no trono de
Deus (Ezequiel 1:26-27). Segundo, ali temos muitos tronos no céu, e não
apenas um (“postos uns tronos”). Esses tronos marcam a presença do
conselho divino. Terceiro, o conselho é chamado à sessão para decidir o
destino das bestas, impérios nacionais. A decisão do conselho de destruir
a quarta besta e remover o domínio de todas as bestas (vv. 11-12) é
importante para a escatologia, mas é periférica para nosso foco aqui.
Daniel 7:13-14 nos move para frente em nossa perseguição ao verdadeiro
messias divino. Daniel diz:
13Eu estava olhando nas minhas visões noturnas, e eis que vinha com
as nuvens do céu um como filho de homem; e dirigiu-se ao ancião de
dias, e foi apresentado diante dele. 14E foi-lhe dado domínio, e glória,
e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o
seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal,
que não será destruído.
Tem muita coisa para tirarmos daqui. Está claro no texto que o
Ancião dos Dias (o Deus de Israel) e o que é “como filho de homem” são
personagens diferentes na cena. “Filho do homem” é uma frase
frequentemente usada no VT. Ezequiel, por exemplo, é chamado de
“filho do homem” dúzias de vezes no livro de Ezequiel (Ezequiel 2:1-8).
A frase simplesmente significa “humano”, e então Daniel 7:13 descreve
alguém que parecia humano vir sobre ou junto às nuvens até o Ancião
de Dias. É essa descrição que aponta à direção de uma segunda figura
de deidade na cena. Voltamos ao conceito de duas figuras de Yahweh que
vimos antes no VT.
235
O CAVALEIRO DAS NUVENS
A primeira coisa que temos que entender é o amplo contexto
antigo para essa descrição. Já falamos bem sobre a antiga literatura de
Ugarit, o vizinho mais perto de Israel no Norte. Nos textos ugaríticos, o
deus Baal é chamado de “aquele que cavalga nas nuvens”. A descrição se
torna um título oficial de Baal, o qual todo o mundo do antigo Oriente
Próximo considerava uma deidade de patente. Para os antigos povos por
todo Mediterrâneo, israelitas ou não, o “que cavalga nas nuvens” era uma
deidade, seu status como um deus era inquestionável.
Consequentemente, qualquer figura a qual este título fosse atribuído
seria um deus.
Os escritores do VT estavam bem familiarizados com Baal. Baal
era a principal fonte de consternação sobre a propensão de Israel em
direção à idolatria. Num esforço de mostrar que Yahweh, o Deus de
Israel merecia adoração ao invés de Baal, os escritores bíblicos
ocasionalmente usavam seus estoques de descrições de Baal como
“cavaleiro das nuvens” e o direcionavam a Yahweh (adicionada ênfase
nas passagens seguintes).

26Não há outro, ó Jesurum, semelhante a Deus, que cavalga sobre o


céu para a tua ajuda, e na sua majestade sobre as mais altas nuvens.
(Deuteronômio 33:26).
32Reinos da terra, cantai a Deus, cantai louvores ao Senhor, 33àquele
que vai montado sobre os céus dos céus, que são desde a antigüidade;
eis que faz ouvir a sua voz, voz veemente. (Salmos 68:32-33).
1Bendize, ó minha alma, ao Senhor! Senhor, Deus meu, tu és
magnificentíssimo! Estás vestido de honra e de majestade, 2tu que te
cobres de luz como de um manto, que estendes os céus como uma
cortina. 3És tu que pões nas águas os vigamentos da tua morada, que
fazes das nuvens o teu carro, que andas sobre as asas do vento; 4que
fazes dos ventos teus mensageiros, dum fogo abrasador os teus
ministros. (Salmos 104:1-4).

236
1Profecia acerca do Egito. Eis que o Senhor vem cavalgando numa
nuvem ligeira, e entra no Egito; e os ídolos do Egito estremecerão
diante dele, e o coração dos egípcios se derreterá dentro de si. (Isaías
19:1).
A tática literária fazia uma afirmação teológica. O objetivo era o
de “deslocar” ou humilhar Baal e levantar Yahweh como a deidade que
legitimamente passeia nos céus observando e governando o mundo.
A única exceção ao padrão de usar esse título de deidade
inequívoco do Deus de Israel é Daniel 7:13. Ali existe uma segunda
figura, uma figura humana, que recebe essa descrição. A descrição era
conhecida através do mundo antigo como Baal. Ninguém questionava o
status de deidade de Baal. Daniel 7, entretanto descreve dois poderes no
céu, duas figuras de Yahweh, e então, em todos os outros lugares no VT,
Yahweh é o cavaleiro das nuvens.
E tão importante quanto isso, é que aquele que cavalga nas
nuvens em Daniel 7:13 recebe um reinado eterno do Ancião dos Dias.
Como já vimos no capítulo anterior, o reinado eterno pertence apenas ao
filho de Davi. Agora vimos mais desse mosaico messiânico. O último
filho de Davi, o rei messiânico, seria tanto humano (“filho do homem”),
quanto deidade (“o cavaleiro das nuvens”).
Isso é precisamente o que temos no Novo Testamento.
JESUS COMO O FILHO DO HOMEM DE DANIEL, O
CAVALEIRO DAS NUVENS
Com respeito a estudos do Novo Testamento, a frase descritiva
“filho do homem” é intensamente debatida. Uma vez que ela significa
“humano” e era um título usado para profetas no Velho Testamento,
muitos estudiosos não veem status divino ligado a ele. Esse parece ser o
caso na maioria das ocorrências descritivas de Jesus. Mas quando o
escritor do Novo Testamento cita Daniel 7:13, a história é diferente. O
fundo de Daniel 7 e a natureza divina da frase deve ser forçosamente
ignorada para evitar uma afirmação de deidade.

237
Dois versículos em Lucas fazem uma conexão clara entre o perfil
do messias sofredor (“ungido”; grego ”christos) e a frase “filho do
homem” (ênfase adicionada):
24pois, assim como o relâmpago, fuzilando em uma extremidade do
céu, ilumina até a outra extremidade, assim será também o Filho do
homem no seu dia. 25Mas primeiro é necessário que ele padeça
muitas coisas, e que seja rejeitado por esta geração. (Lucas 17:24-25).
26Porventura não importa que o Cristo padecesse essas coisas e
entrasse na sua glória? (Lucas 24:26).
Mas a passagem mais dramática em relação a Jesus como o
divino filho do homem é Mateus 26. A cena tem Jesus de pé em frente a
Caifás antes de sua condenação e crucificação:
57Aqueles que prenderam a Jesus levaram-no à presença do sumo
sacerdote Caifás, onde os escribas e os anciãos estavam reunidos. 58E
Pedro o seguia de longe até o pátio do sumo sacerdote; e entrando,
sentou-se entre os guardas, para ver o fim. 59Ora, os principais
sacerdotes e todo o sinédrio buscavam falso testemunho contra Jesus,
para poderem entregá-lo à morte; 60e não achavam, apesar de se
apresentarem muitas testemunhas falsas. Mas por fim compareceram
duas, 61e disseram: Este disse: Posso destruir o santuário de Deus, e
reedificá-lo em três dias. 62Levantou-se então o sumo sacerdote e
perguntou-lhe: Nada respondes? Que é que estes depõem contra
ti? 63Jesus, porém, guardava silêncio. E o sumo sacerdote disse- lhe:
Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho do
Deus. 64Repondeu-lhe Jesus: É como disseste; contudo vos digo que
vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo
sobre as nuvens do céu. 65Então o sumo sacerdote rasgou as suas
vestes, dizendo: Blasfemou; para que precisamos ainda de
testemunhas? Eis que agora acabais de ouvir a sua blasfêmia. 66Que
vos parece? Responderam eles: É réu de morte. (Mateus 26:57-66).
No que parece ser uma resposta encriptada para uma clara
pergunta, Jesus cita Daniel 7:13 para responder a Caifás. A reação é
rápida e inflexível. Caifás entendeu que Jesus estava afirmando ser a
figura do segundo Yahweh de Daniel 7:13, e isso era uma blasfêmia
238
intolerável. A resposta de Jesus forneceu ao alto sacerdote a acusação
que ele precisava para uma sentença de morte, mas também nos dá um
claro testemunho de Jesus como o último filho de Davi, Yahweh
encarnado, através do qual Yahweh reclamaria as nações deserdadas em
Babel.
Como na antiga conquista sob Josué, esse domínio não viria sem
conflitos. Mas dessa vez, não haveria falha no final da campanha. A
mensagem de Yahweh do mosaico messiânico para os deuses hostis
opositores à sua visão edênica global foi: “Vocês nunca saberão o que
acertou vocês”. Mas ele tinha mais uma coisa a dizer a eles antes do reino
ser lançado sob Jesus: “Vocês podem tentar e parar os meus planos, mas
todos vocês morrerão como homens”.

239
CAPÍTULO 30
PREPAREM-SE PARA MORRER
O fechamento do período do Velho Testamento foi um tempo
obscuro e desesperador. No final, o vestígio da porção de Yahweh, a
família que ele havia levantado através de Abraão depois de afastar as
nações em Babel, consistia de apenas duas tribos (Judá e Benjamin),
coletivamente conhecidas como o reino de Judá. Mas mesmo quando as
hordas da Babilônia, o exército de Nabucodonosor, desceram em
Jerusalém pela última vez, os profetas ofereceram uma faísca de
esperança. Sim, Yahweh puniria seus filhos por se virarem para outros
deuses, mas uns remanescentes sobreviveriam. O plano de Yahweh não
havia sido trocado. Ele enviaria um servo o qual garantiria sua
sobrevivência. Haveria um reino edênico, mas no futuro, e não na era
do VT.
Eu esquematizei os sinais criptografados relativos ao rei
vindouro e seu reino nos últimos dois capítulos. Daniel 7, nosso ponto
de parada no capítulo anterior sobre a natureza divina do libertador,
ligou sua aparição com essa mensagem de esperança no início do exílio:
O reino de Deus falhou no VT, mas iria ressurgir das cinzas quando o rei
divino aparecesse. Esse rei messiânico iria inaugurar um reino que iria
se espalhar pela terra e eventualmente ter sucesso na restauração do
Éden.
Essas ideias são familiares. Menos aparente, no entanto, é a
maneira com a qual o VT caracteriza o lançamento do reino de Deus
como uma guerra entre deuses e homens. Nesse capítulo quero
rapidamente mostrar essa visão. A visão mundial de Deuteronômio 32
que já estudamos muitas vezes paira longe. O reino virá. Os santos
divinos leais a Yahweh e o povo de Yahweh são seus agentes para
expandir esse reino. Mas as nações e os deuses que os governam
(“príncipes” na descrição de Daniel) irão se opor. Com o crescimento do
reino de Deus, os domínios dos poderes das trevas se encolherão e seus
deuses irão perecer no final.

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O REINO VIRÁ
Na cena do conselho divino de Daniel 7, o filho do homem, a
figura do segundo Yahweh, recebeu um reino pela eternidade. Mas é
crucial notarmos que esse reino virá só no início da decisão do conselho
em julgar as quatro bestas (quatro impérios) como é narrado na visão de
Daniel com a qual começa o capítulo. Daniel reportou:
11Então estive olhando, por causa da voz das grandes palavras que o
chifre proferia; estive olhando até que o animal foi morto, e o seu corpo
destruído; pois ele foi entregue para ser queimado pelo
fogo. 12Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia
foi-lhes concedida prolongação de vida por um prazo e mais um tempo.
13Eu estava olhando nas minhas visões noturnas, e eis que vinha com
as nuvens do céu um como filho de homem; e dirigiu-se ao ancião de
dias, e foi apresentado diante dele. 14E foi-lhe dado domínio, e glória,
e um reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o
seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal,
que não será destruído. (Daniel 7:11-14).
Uma descrição mais precisa desse reino se segue nos versículos
15-28. Precisamos observar cuidadosamente certas afirmações nessa
passagem.
15Quanto a mim, Daniel, o meu espírito foi abatido dentro do corpo, e
as visões da minha cabeça me perturbavam. 16Cheguei-me a um dos
que estavam perto, e perguntei-lhe a verdadeira significação de tudo
isso. Ele me respondeu e me fez saber a interpretação das
coisas. 17Estes grandes animais, que são quatro, são quatro reis, que
se levantarão da terra. 18Mas os santos do Altíssimo receberão o
reino e o possuirão para todo o sempre, sim, para todo o sempre.
(Daniel 7:15-18).
Nessa visão, Daniel pergunta a um dos atendentes divinos no
encontro do conselho (Daniel 7:16) sobre o significado do que ele havia
visto. Ele aprende que as bestas são reis, mas “o reino” será dado aos
“santos do Altíssimo”, os quais nunca perderão a possessão dele.

241
Dois itens são importantes. Primeiro, a interpretação é
interessante porque, nos versículos 13-14, foi o divino filho do homem
quem recebe um reino eterno do Altíssimo. Logo temos dois recebedores
desse reino eterno: o filho do homem e os santos do Altíssimo. Temos
que continuar lendo para discernir quem são os santos. Segundo, os
versículos 13-14 não descrevem quaisquer conflitos antes do filho do
homem receber o reino, só que as quatro bestas foram julgadas antes do
reino ter sido dado. Podemos concordar com Daniel de que mais
informações são necessárias. Ele então pergunta ao atendente:
19Então tive desejo de conhecer a verdade a respeito do quarto animal,
que era diferente de todos os outros, sobremodo terrível, com dentes de
ferro e unhas de bronze; o qual devorava, fazia em pedaços, e pisava
aos pés o que sobrava; 20e também a respeito dos dez chifres que ele
tinha na cabeça, e do outro que subiu e diante do qual caíram três, isto
é, daquele chifre que tinha olhos, e uma boca que falava grandes coisas,
e parecia ser mais robusto do que os seus companheiros. 21Enquanto
eu olhava, eis que o mesmo chifre fazia guerra contra os santos, e
prevalecia contra eles, 22até que veio o ancião de dias, e foi executado
o juízo a favor dos santos do Altíssimo; e chegou o tempo em que os
santos possuíram o reino. (Daniel 7:19-22).
A cronologia dos eventos toma uma forma melhor aqui. A quarta
besta, obviamente antes de sua morte no versículo 11, faz guerra contra
os santos e os vence. Isso faz com que o Altíssimo haja em favor deles, e
então eles tomam possessão do reino, algo que precisa vir depois da
destruição da quarta besta. A interpretação e a cronologia são reiteradas
no que se segue:
23Assim me disse ele: O quarto animal será um quarto reino na terra,
o qual será diferente de todos os reinos; devorará toda a terra, e a
pisará aos pés, e a fará em pedaços. 24Quanto aos dez chifres, daquele
mesmo reino se levantarão dez reis; e depois deles se levantará outro,
o qual será diferente dos primeiros, e abaterá a três reis. 25Proferirá
palavras contra o Altíssimo, e consumirá os santos do Altíssimo;
cuidará em mudar os tempos e a lei; os santos lhe serão entregues na
mão por um tempo, e tempos, e metade de um tempo. 26Mas o
tribunal se assentará em juízo, e lhe tirará o domínio, para o destruir e
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para o desfazer até o fim. 27O reino, e o domínio, e a grandeza dos
reinos debaixo de todo o céu serão dados ao povo dos santos do
Altíssimo. O seu reino será um reino eterno, e todos os domínios o
servirão, e lhe obedecerão. 28Aqui é o fim do assunto. Quanto a mim,
Daniel, os meus pensamentos muito me perturbaram e o meu
semblante se mudou; mas guardei estas coisas no coração. (Daniel
7:23-28).
A referência à quarta besta “(consumirá) os santos do Altíssimo”
(v. 25) se volta à vitória sobre os santos no versículo 21. O inimigo (esse
“pequeno chifre”) derrota os santos. Em resposta, o conselho divino
(“corte”) entra em sessão, a assembleia que Daniel está assistindo, para
lidar com (destruir) a quarta besta. O resultado desse encontro no
versículo 27 é que o reino é dado para “a nação (povo) dos santos do
Altíssimo”. Interessantemente, mais cedo o reino foi dado aos “santos do
Altíssimo” (vv. 18, 22) e antes disso (v. 14) ao divino filho do homem.
A passagem é clara em uma coisa, antes do reino eterno ser
recebido, a quarta besta é destruída. Ele é menos claro em termos de
quem é que herda o reino. Temos três candidatos: o filho do homem, os
santos do Altíssimo e os povos dos santos do Altíssimo.
OS SANTOS DO ALTÍSSIMO
No capítulo anterior, eu resumidamente mostrei a natureza
paralela da visão de Daniel 2 com essa visão em Daniel 7. O reino
recebido por essas três partes é o reino de Daniel 2:44-45 “não feito por
mãos humanas” e que nunca será destruído, o reino de Deus.
Os leitores e estudiosos da Bíblia é claro que argumentam sobre
a melhor maneira de se identificar o quarto reino. Daniel 2:44 faz uma
identificação com Roma bem óbvia, na qual o reino de Deus aparece
inaugurado na vinda de Jesus durante o Império Romano, e ainda no
processo de vinda.
A descrição desse reino possui aspectos tanto divinos quanto
terrenos. Isso é exatamente o que esperaríamos, uma vez que o objetivo
de Deus de reviver o Éden global envolve pessoas, mas é um governo

243
sobrenatural. Considerar a identidade dos “santos” nos ajuda a enxergar
de uma nova maneira.
A frase “santos” é uma tradução do hebraico qedoshim (ou
qedoshin no caso do Aramaico em Daniel 7). O termo pode se referir aos
membros do conselho divino no céu (Salmos 89:5-7). No entanto, o
termo também pode se referir a pessoas. Muitas vezes em Levítico o povo
é referido coletivamente como qedoshim. Isso mais uma vez não é
novidade, uma vez que as imagens do sacerdócio, do tabernáculo e o
templo, criam uma analogia ao espaço sagrado da sala do trono de Deus
e àqueles que tem acesso a Yahweh no céu, sua família divina, o conselho
divino.
A gama de uso do termo qedoshim nos ajuda a entender os
“santos” de Daniel 7. A frase se refere tanto aos seguidores humanos de
Yahweh quanto aos membros do seu conselho divino. Ambas as famílias
governam junto com Yahweh no reino eterno, junto com Yahweh em
forma humana, o filho do homem, o Cristo ressuscitado. Veremos mais
como isso funciona nos capítulos vindouros, mas aqui vai uma prévia:
O reino de Deus é renascido na primeira vinda de Jesus. Sua
chegada marca o início do fim do governo das trevas e o início do reclame
de Yahweh pelas nações governadas por outros deuses. Jesus é o filho do
homem, e o reino é dele. Governando com ele estarão os santos do
conselho de (e ele) Yahweh.
Notem em Daniel 7:27 que o reino é dado ao povo dos santos do
Altíssimo, mas ele ainda é referido como o reino de Deus (“seu reino”).
Essa é uma referência sutil à junta governamental no reino de Deus. A
nação / povo dos santos se refere aos seguidores humanos de Yahweh
alinhados com ele e seu conselho. Como veremos nos últimos capítulos,
na teologia do Novo Testamento, todos os crentes, judeus ou gentios, são
o povo de Deus, tendo herdado as promessas da aliança com Abraão (Gal
3:7-9, 23-29). A linguagem do reino de Daniel 7 nos informa que todas
as nações que foram uma vez deserdadas e governadas por deuses
corruptos, estarão sujeitas tanto a Deus quanto ao seu povo. É por isso
que o livro de Apocalipse diz isso sobre os crentes: “26Ao que vencer, e
ao que guardar as minhas obras até o fim, eu lhe darei autoridade
244
sobre as nações ... 21Ao que vencer, eu lhe concederei que se assente
comigo no meu trono”. (Ap 2:26; 3:21).
UMA GUERRA VINDOURA DE DEUSES E HOMENS
O triunfo do reino de Deus não virá antes de um conflito final
conhecido nas Escrituras como o dia do Senhor. As palavras de Zacarias
14 são claras:
1Eis que vem um dia do Senhor, em que os teus despojos se repartirão
no meio de ti. 2Pois eu ajuntarei todas as nações para a peleja contra
Jerusalém; e a cidade será tomada, e as casas serão saqueadas, e as
mulheres forçadas; e metade da cidade sairá para o cativeiro mas o
resto do povo não será exterminado da cidade. 3Então o Senhor sairá,
e pelejará contra estas nações, como quando peleja no dia da batalha.
4Naquele dia estarão os seus pés sobre o monte das Oliveiras, que está
defronte de Jerusalém para o oriente; se o monte das Oliveiras será
fendido pelo meio, do oriente para o ocidente e haverá um vale muito
grande; e metade do monte se removerá para o norte, e a outra metade
dele para o sul. 5E fugireis pelo vale dos meus montes, pois o vale dos
montes chegará até Azel; e fugireis assim como fugistes de diante do
terremoto nos dias de uzias, rei de Judá. Então virá o Senhor meu Deus,
e todos os santos com ele. (Zacarias 14:1-5).
Yahweh virá com seu exército celestial no dia do Senhor para
desarmar e derrotar os poderes sobrenaturais. Isaías diz a mesma coisa:
21Naquele dia o Senhor castigará os exércitos do alto nas alturas, e os
reis da terra sobre a terra. 22E serão ajuntados como presos numa
cova, e serão encerrados num cárcere; e serão punidos depois de
muitos dias. 23Então a lua se confundirá, e o sol se envergonhará, pois
o Senhor dos exércitos reinará no monte Sião e em Jerusalém; e perante
os seus anciãos manifestará a sua glória. (Isaías 24:21-23).
Yahweh irá governar perante seu conselho, aqui chamado de
anciãos, tendo punido tanto seus inimigos humanos (“reis da terra”)
quanto seus inimigos sobrenaturais (“os exércitos do alto nas alturas”),
para reestabelecer seu governo em sua morada terrena, o Monte Sião.

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O que a punição dos deuses ocasiona? Para isso nós voltamos ao
Salmos 82, onde temos a nossa primeira exposição do conselho de
Yahweh nesse livro. Nos primeiros versículos do salmo, Yahweh está no
conselho para acusar seus filhos divinos de corrupção. Ao invés de
governar as nações com justiça, os deuses que receberam as nações
deserdadas depois do incidente de Babel, afastaram as pessoas para
longe do Altíssimo. O tempo deles chega ao clímax do reino quando
Yahweh reclama as nações deles. Os versículos finais mostram o destino
deles. O Deus de Israel fala:
6Eu disse: Vós sois deuses, e filhos do Altíssimo, todos vós. 7Todavia,
como homens, haveis de morrer e, como qualquer dos príncipes, haveis
de cair. (Salmos 82:6-7).
O salmista então exclama:
8Levanta-te, ó Deus, julga a terra; pois a ti pertencem todas as nações.
(Salmos 82:8).
O governo dos deuses acabará quando o Altíssimo reclamar as
nações que ele uma vez deserdou. Daniel 7 deixa claro que as famílias
divinas e humanas leais a Yahweh compartilharão esse governo.
A FUTURA REPOSSESSÃO DAS NAÇÕES
O Dia do Senhor é um tempo de julgamento, mas também é tido
nas Escrituras como um tempo de regozijo para o povo de Yahweh.
Quando o governo dos deuses começar a desmoronar, Yahweh chamará
os seus de dentre as nações. Isaías 66, uma passagem que tem um papel
crucial na explicação da explosão do evangelho após a ressurreição,
descreve o julgamento e a esperança pairando num tempo futuro ao
período do Velho Testamento:
18Pois eu conheço as suas obras e os seus pensamentos; vem o dia em
que ajuntarei todas as nações e línguas; e elas virão, e verão a minha
glória. 19Porei entre elas um sinal, e os que dali escaparem, eu os
enviarei às nações, a Társis, Pul, e Lude, povos que atiram com o arco,
a Tubal e Javã, até as ilhas de mais longe, que não ouviram a minha
fama, nem viram a minha glória; e eles anunciarão entre as nações a

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minha glória. 20E trarão todos os vossos irmãos, dentre todas as
nações, como oblação ao Senhor; sobre cavalos, e em carros, e em
liteiras, e sobre mulas, e sobre dromedários, os trarão ao meu santo
monte, a Jerusalém, diz o Senhor, como os filhos de Israel trazem as
suas ofertas em vasos limpos à casa do Senhor. 21E também deles
tomarei alguns para sacerdotes e para levitas, diz o Senhor. 22Pois,
como os novos céus e a nova terra, que hei de fazer, durarão diante de
mim, diz o Senhor, assim durará a vossa posteridade e o vosso
nome. (Isaías 66:16-22).
Tão incrível quanto parece, as pessoas das nações deserdadas
retornarão a Yahweh, lá as que estão sob o domínio dos seus deuses.
Onde Israel falhou nessa missão como um reino de sacerdotes (Êxodo
19:6), o próprio Yahweh terá sucesso. Ele será o agente da sua própria
missão. Essa é a história de como o Éden renascerá, uma história
narrada no Novo Testamento.
Terei mais a dizer sobre o conflito final. Existem outras conexões
incríveis com o entendimento do conselho divino na escatologia. Mas
não temos que esperar até o fim dos tempos para conectar o Novo
Testamento à visão sobrenatural do Velho Testamento. Nesse sentido, o
Novo Testamento acerta em cheio.
RESUMO DA SESSÃO
A história da monarquia de Israel é muito mais do que a batalha
de Davi com Golias, sua guerrilha com Saul, a atração impulsiva com
Batseba e o acúmulo de sabedoria e esposas do seu filho Salomão.
Tendemos a nos fixar em Saul, Davi e Salomão, pois isso é o que essa é a
exposição normal dos livros de Samuel até Malaquias. Mas há muito
mais nesses livros do Velho Testamento, quase metade da Bíblia, do que
só histórias de reis.
Por mais intrigantes que fossem os reis de Israel, os homens que
escreveram a história da monarquia não tinham como alvo a produção
de biografias. A mensagem deles era primariamente teológica. Eles
tinham uma história para contar, sobre uma causa e efeito espirituais da
falha de Israel, a ira de Deus e o plano de Yahweh para prevenir que o
objetivo edênico original de Yahweh não virasse um legado de cinzas.
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Os livros históricos e escritos dos profetas operam dentro de um
escopo duma visão sobrenatural dos escritores bíblicos. As nações ainda
estavam sob o domínio de deuses estranhos hostis. Israel estava em
constante conflito com nações inimigas. No tempo dos juízes, a apostasia
espiritual e moral prevaleciam. Todo mundo fazia o que era certo aos
seus próprios olhos. A falha da conquista produziu, ao invés de um
governo edênico renascido de Deus, algo parecido com o Oeste
Americano sem lei.
A anarquia culminou na demanda por um rei. A escolho veio
muito cedo e com um motivo errado. Mas Yahweh havia começado a
planejar o levantamento de Davi muito antes dele nascer, através do
ministério de Samuel, o último juiz, assim como um sacerdote, um
profeta e reis ungidos. Davi eventualmente se levantou para a
proeminência, mas o conflito fraterno entre Saul (escolhido por
israelitas rebeldes para esse cargo) e Davi (escolhido por Yahweh pelo
seu coração) foi um emblema de uma guerra espiritual invisível para a
terra e o povo. Os vestígios dos Rephaim persistiam, e a arca da aliança
e o tabernáculo estavam em lugares separados, dividindo o sacerdócio.
Os pontos da crise foram eventualmente resolvidos. Os homens
de Davi eliminaram os irmãos de Golias. Salomão reuniu a arca e o
tabernáculo depois da construção do templo (2 Cro 5:1-14). A terra
prometida a Abraão veio sob o governo e jurisdição de Salomão (1 Reis
4:21; Gên 15:18). Então tudo desmoronou logo depois da morte de
Salomão.
Duas coisas aconteceram durante a as espirais das duas mortes
dos dois reinos de Israel e Judá. Yahweh chamou profetas, certificou-os
de sua presença e poder através de encontros divinos, e decretou uma
nova aliança, uma nova solução para o reestabelecimento do governo
Edênico. Na mais amarga das ironias, a Babilônia iria engolir a herança
de Yahweh. O jogo parecia estar completamente virado. Mas as
aparências podem enganar.
A verdadeira ironia, como profetas como Jeremias, Ezequiel e
Habacuque informaram a todos que quiseram ouvir, era que a Babilônia
foi uma ferramenta de Yahweh. Até mesmo quando Judá dava seu último
248
suspiro, Yahweh estava montando as circunstâncias para um reino
eterno que não seria contido numa geografia. Ele seria governado por
um homem que também era Deus, e cuja identidade deveria ser
escondida tempo bastante para que ele morresse e ressuscitasse, de
forma que a maldição do pecado pudesse ser vencida, o senhor dos
mortos deveria perder a sua autoridade, e a vida eterna do Éden se
espalhar pela terra.
Tudo isso aparece na teologia do Novo Testamento. Os
estudiosos há muito tempo pensam nessa narrativa em duas frases: o
reino preparado, e o reino ainda não.

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PARTE 7
O REINO PREPARADO
CAPÍTULO 31
QUEM IRÁ POR NÓS?
A chegada de Jesus, o messias de Israel, é o suporte sobre o qual
o plane de Deus de restauração do Éden se inclina para ser realizado. Ele
é o centro do épico bíblico. Mesmo que alguém leia a Bíblia desde o
começo e tem que passar por três quartos dela antes de encontra-lo, ele
esteve escondido nas sombras o tempo todo. Não, Jesus não era um
homem terrena antes de nascer. Ao invés disso, ele era o Yahweh, o
visível, segundo Yahweh, que fez parte da história bíblica na forma de
um homem desde o Éden.
É esse segundo personagem que iria, quatrocentos anos depois
de se fechar o período do Velho Testamento, nascer da Virgem Maria
como um homem humano que conhecemos como Jesus de Nazaré. Ele
teve que se tornar um homem para garantir que a humanidade, a
imagem de Deus, não foi apagada da visão Edênica devido à sua fraqueza
mortal e propensão invariável a usar seu livre arbítrio para tentar ganhar
autonomia de Deus.
Uma realização Edênica sem a participação humana significaria
que o nachash sairia vencedor, a abolição da humanidade como a
imagem de Deus. Deus não precisou mudar seu plano em resposta à
fraqueza humana ou a uma egocêntrica rebelião de um membro do
conselho divino. Ele não precisava remover a humanidade ou a liberdade
da humanidade, e com ela, a sua imagem, para cumprir o que ele queria.
Um ser onisciente e todo poderoso não precisa trapacear. Ele sabe a
melhor maneira de vencer, e a melhor maneira de obscurecer a visão dos
seus oponentes.
Nós já incluímos Jesus em certos aspectos da visão
sobrenaturalista e teológica do Velho Testamento. Já vimos que ele está
classificado num ranque único dentre os filhos divinos de Deus do
conselho de Yahweh. Já falamos sobre o fundo que o Velho Testamento

250
dá a Jesus como o Verbo e Aquele que vem nas nuvens. Mas esses itens
são só um arranhão na superfície.
Nesse capítulo, nosso objetivo é cumprir duas coisas.
Preencheremos com mais algumas peças o mosaico messiânico ao
notarmos mais conexões entre Jesus e a figura do segundo Yahweh, e
então dar uma breve olhada no papel do conselho divino no começo do
ministério público de Jesus.
JESUS COMO O NOME
Num capítulo anterior, aprendemos sobre o Anjo de Yahweh, no
qual estava o Nome, outro termo para a essência e presença de Yahweh
(Êxodo 23:30-23). O Novo Testamento aplica esse conceito a Jesus em
várias passagens. Por exemplo em João 17, na famosa oração no jardim
do Getsêmani, Jesus diz:
5Agora, pois, glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela
glória que eu tinha contigo antes que o mundo existisse. 6Manifestei o
teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus, e tu mos
deste; e guardaram a tua palavra. 11Eu não estou mais no mundo;
mas eles estão no mundo, e eu vou para ti. Pai santo, guarda-os no teu
nome, o qual me deste, para que eles sejam um, assim como
nós. 12Enquanto eu estava com eles, eu os guardava no teu nome que
me deste; e os conservei, e nenhum deles se perdeu, senão o filho da
perdição, para que se cumprisse a Escritura. 25Pai justo, o mundo não
te conheceu, mas eu te conheço; conheceram que tu me enviaste; 26e
eu lhes fiz conhecer o teu nome, e lho farei conhecer ainda; para que
haja neles aquele amor com que me amaste, e também eu neles
esteja. (João 17:5-6, 11-12, 25-26).
Quanto Jesus diz a Deus o Pai que ele revelou o nome de Deus
para os discípulos (João 17:6), ele não está falando sobre dizer aos
discípulos qual era o nome de Deus. Eles podiam ler seus Velhos
Testamentos e ver isso em milhares de lugares (como em Êxodo 3:1-14).
Revelar o nome de Deus para eles significava mostrá-los quem era Deus
e como ele era. Ele fez isso vivendo entre eles como um homem. Jesus
era Deus entre eles. Ele era a encarnação da essência de Deus (Hebreus
1:3).
251
A noção de fazer Deus ser conhecido ao revelar o seu nome
também nos leva de volta ao Anjo de Yahweh no Velho Testamento.
Lembrem-se que o Anjo de Yahweh era Yahweh em forma humana, o
“nome” de Yahweh ou sua presença residia naquele Anjo (Êxodo 23:20-
23). João se usa dessa linguagem em sua apresentação de Jesus como
Deus. Quando Jesus disse que ele “os guardava no teu nome”, ele quer
dizer que ele guardava aqueles seguidores que o Pai deu a ele por meios
do próprio poder e presença de Deus, o Nome, agora encarnado em
Jesus.
Sobre isso é importante ver que, assim como “o Nome” era outra
expressão para Yahweh, “o Nome” era usado para se referir a Jesus. Por
exemplo, em romanos 10 nós lemos:
9Porque, se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu
coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, será
salvo; 10pois é com o coração que se crê para a justiça, e com a boca
se faz confissão para a salvação. 11Porque a Escritura diz: Ninguém
que nele crê será confundido. 12Porquanto não há distinção entre
judeu e grego; porque o mesmo Senhor o é de todos, rico para com todos
os que o invocam. 13Porque: Todo aquele que invocar o nome do
Senhor será salvo. (Romanos 10:9-13).
O que é importante notarmos aqui é que a citação do versículo 13
vem de Joel 2:32. Nesse texto do VT nós lemos: “32E há de ser que todo
aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; pois no monte Sião e
em Jerusalém estarão os que escaparem, como disse o Senhor, e entre
os sobreviventes aqueles que o Senhor chamar”. O apóstolo Paulo
definitivamente liga o “confessar que Jesus é o Senhor” no versículo 9
com a afirmação do profeta do VT. Isso acontece muitas vezes,
especialmente nos escritos de Paulo. O Nome e Yahweh eram
intercambiáveis na teologia Israelita, de maneira que confiar no “nome
de Yahweh” significava confiar em Yahweh. Da mesma maneira, confiar
no nome do Senhor, o qual é Yahweh na citação do VT, é a mesma coisa
que confessar que Jesus é o Senhor.

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JESUS COMO O ANJO DE YAHWEH
A identificação de Jesus e o Anjo que é o Yahweh visível pela
virtude da incorporação do Nome está explícita em Judas 5:
5Ora, quero lembrar-vos, se bem que já de uma vez para sempre
soubestes tudo isto, que, havendo o Senhor salvo um povo, tirando-o da
terra do Egito, destruiu depois os que não creram.
Esse pequeno versículo mostra Jesus libertando os israelitas do
Egito. As referências são a Êxodo 23:20-23 (Juízes 2:1-2), onde o Anjo
do Senhor, no qual está o nome, vai diante de Israel na procissão para
fora do Egito. A referência à destruição poderia ser à morte dos egípcios,
mas é mais como no pós Sinais, onde o julgamento dos inimigos de
Yahweh durante as andanças no deserto e a conquista (Josué 5:13-15)
resultaram na destruição dos que não creram.
O CONSELHO ESTÁ EM SESSÃO
Nós frequentemente pensamos no começo do ministério e missão
de Jesus como algo quieto e mundano. Não é bem assim. Um dia no
ministério do Yahweh encarnado era um assalto espiritual sobre as
forças das trevas para reclamar o que por direito pertencia a ele, seu Pai,
o Yahweh invisível, e aqueles seres humanos os quais eram parte da
família do conselho divino. Os Evangelhos são muito mais do que uma
dissertação ponto-a-ponto.
Todos nós já lemos sobre o batismo de Jesus antes, talvez dúzias
de vezes, mas com certeza deixamos passar o contexto del. O evangelho
de João (João 1:19-23, 29-31) descreve dessa forma:
19E este foi o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram de
Jerusalém sacerdotes e levitas para que lhe perguntassem: Quem és
tu? 20Ele, pois, confessou e não negou; sim, confessou: Eu não sou o
Cristo. 21Ao que lhe perguntaram: Pois que? És tu Elias? Respondeu
ele: Não sou. És tu o profeta? E respondeu: Não. 22Disseram-lhe,
pois: Quem és? Para podermos dar resposta aos que nos enviaram; que
dizes de ti mesmo? 23Respondeu ele: Eu sou a voz do que clama no
deserto: Endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías.

253
29No dia seguinte João viu a Jesus, que vinha para ele, e disse: Eis o
Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. 30este é aquele de
quem eu disse: Depois de mim vem um varão que passou adiante de
mim, porque antes de mim ele já existia. 31Eu não o conhecia; mas,
para que ele fosse manifestado a Israel, é que vim batizando em água.
(João 1:19-23, 29-31)
O que é impressionante é a passagem citada por João Batista. Ele
se identifica como a voz anônima de Isaías 40:3 que anunciou a chegada
de Yahweh. O significado é obscurecido nas traduções em português:
1Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. 2Falai benignamente
a Jerusalém, e bradai-lhe que já a sua malícia é acabada, que a sua
iniqüidade está expiada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor,
por todos os seus pecados. 3Eis a voz do que clama: Preparai no deserto
o caminho do Senhor; endireitai no ermo uma estrada para o nosso
Deus. 4Todo vale será levantado, e será abatido todo monte e todo
outeiro; e o terreno acidentado será nivelado, e o que é escabroso,
aplanado. 5A glória do Senhor se revelará; e toda a carne juntamente
a verá; pois a boca do Senhor o disse. (Isaías 40:1-5).
Em Isaías 40:1 vemos que Deus é quem fala. Ele determina
quatro mandamentos, os quais coloquei em negrito. Todos os quatro
mandamentos estão gramaticalmente no plural em hebraico. Isso
significa que Yahweh está comandando um grupo. O grupo não pode ser
os israelitas ou uma Israel coletiva, uma vez que é Israel a quem Yahweh
está mandando o grupo confortar, falar e bradar. Vocês já deveriam
saber a identidade do grupo por agora: o conselho divino.
O contexto de Isaías 40 é um novo começo para Israel. Judá, a
remanescente das duas tribos, passou setenta anos de cativeiro na
Babilônia. Deus os trouxe de volta do exílio à terra. No entanto, e isso é
frequentemente despercebido, as outras dez tribos nunca saíram do
exílio. Elas se perderam, se espalharam por dentre as nações deserdadas.
Mas a chegada do messias resultará na redenção de todas as tribos.
Yahweh trará seus filhos de todas as tribos e nações, sejam os literais
descendentes de Abraão ou não.

254
Em resposta aos mandamentos em Isaías 40:1-2, uma só resposta
veio:
3Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor;
endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus. (Isaías 40:3).
É esse versículo que constitui a resposta de João Batista aos
sacerdotes e aos levitas. Em Isaías 40:3, o membro do conselho que
responde não é identificado. Anteriormente, em Isaías 6:8, quando
Yahweh pergunta: “A quem enviarei, e quem irá por nós”? Isaías, o
profeta, responde: “Eis-me aqui, envia-me a mim”! Mas isso foi séculos
antes. Esse diálogo em Isaías 40 também nos traz à mente a cena do
conselho divino de 1 Reis 22, onde um membro do conselho dá um passo
à frente com um plano para derrotar Acabe.
Com a chegada do messias, o apóstolo João mostra João Batista
no papel em Isaías. Como o profeta da antiguidade, João Batista esteve
“de pé no conselho” (Jeremias 23:16-22) e respondeu ao chamado. Para
um judeu familiarizado com o VT, o padrão não passaria despercebido.
Como aconteceu no tempo de Isaías, o conselho de Yahweh teve que se
encontrar em relação ao destino de uma Israel apóstata. Isaías foi
enviado para uma nação espiritualmente cega e surda. O chamado de
João Batista diz ao leitor que o conselho divino de Yahweh estava
novamente em sessão, só que dessa fez o objetivo era o de lançar o reino
de Deus com o segundo Yahweh, agora encarnado, com seu principal
homem.
O YAHWEH ENCARNADO LEVANDO A UM NOVO ÊXODO
A descrição do batismo de Jesus descortinou um novo drama,
para aqueles que sabiam o que estavam lendo. A narrativa de Marcos do
batismo (Marcos 1:9-11) fornece alguns pensamentos chave que
conectam a visão do VT que temos estudado:
9E aconteceu naqueles dias que veio Jesus de Nazaré da Galiléia, e foi
batizado por João no Jordão. 10E logo, quando saía da água, viu os
céus se abrirem, e o Espírito, qual pomba, a descer sobre ele; 11e
ouviu-se dos céus esta voz: Tu és meu Filho amado; em ti me comprazo.

255
Aqui temos dois itens nessa passagem cuja importância não é
clara na tradução para o português.
Primeiro, Marcos mostra que os céus “se abriram” e isso é
significante. A palavra grega é schizo. A escolha de Marcos para esse
termo em conexão com o batismo da água de Jesus chamou a atenção
dos estudiosos, devido o uso de schizo no Septuaginta, a tradução grega
do VT usada por Jesus e os apóstolos. Não é por coincidência que schizo
é o verbo usado em Êxodo 14:21 para descrever a miraculosa abertura do
mar.
Pense de volta em nossa discussão sobre o evento do êxodo. A
libertação do Egito foi uma vitória sobre os deuses hostis. Em Êxodo
15:11, Moisés faz a retórica pergunta: “Quem é como Yahweh dentre os
deuses”? A resposta foi um óbvio: ninguém. O evento do êxodo foi a
libertação de um exílio. Yahweh levou seu povo para fora do Egito para
reconstituí-los como uma nação e reestabelecer seu reino edênico na
terra.
Marcos queria que seus leitores vissem que um novo evento de
êxodo estava acontecendo. O reino de Deus está de volta, e dessa vez ele
não falhará, pois está sendo liderado pelo Yahweh visível, agora
encarnado como Jesus de Nazaré. A imagem fica ainda mais
impressionante quando adicionamos o fator de Judas 5, uma passagem
que já vimos anteriormente nesse capítulo. Judas mostra Jesus
liderando um povo para fora do Egito. A referência ao Yahweh visível,
o qual era Yahweh em forma humana, que trouxe Israel para fora do
Egito até a terra prometida (Juízes 2:1-2; Êxodo 23:20-23).
Segundo, Marcos 1:11 mostra a voz de Deus do céu pronunciando:
“Tu és meu filho amado; em ti me comprazo”. Tendemos a pensar nessa
declaração como algo sentimental, ou talvez algum símbolo verbal de
afeição. É muito mais do que isso. Quando Deus se refere a Jesus como
seu “amado”, ele está afirmando o reinado de Jesus, seu estado legítimo
como o herdeiro do trono de Davi.
O termo chave é “amado”. Estudiosos têm notado que o termo foi
o usado para Salomão, o herdeiro original do trono de Davi. É difícil
discernir isso na tradução em português, pois o termo hebraico veio
256
traduzido como um nome próprio: Jedidias. Salomão é referido como
um “Jedidias” em 2 Samuel 12:24-25:
24Então consolou Davi a Bate-Seba, sua mulher, e entrou, e se deitou
com ela. E teve ela um filho, e Davi lhe deu o nome de Salomão. E o
Senhor o amou; 25e mandou, por intermédio do profeta Natã, dar-lhe
o nome de Jedidias, por amor do Senhor.
Notem as palavras. “Jedidias” é um nome ou termo que Natã
disse a Davi que o Senhor queria que fosse dado a Salomão. O nome em
hebraico é yediydyahu e está relacionado a dawid / dawiyd, o nome
próprio de “Davi”, o qual também significa “amado”. Usado por
Salomão, o termo se junta a um título que marcou Salomão como o
legítimo herdeiro do trono da aliança davídica. A mesma mensagem é
telegrafada com respeito a Jesus. A própria voz de Deus anuncia: Esse é
o rei, o legítimo herdeiro do trono de Davi.
A história do NT, então, começa com uma revisita dramática do
chamado de Yahweh ao conselho divino para enviar alguém para
anunciar o aparecimento de Yahweh no homem Jesus de Nazaré. Isso se
tornará evidente a amigos e inimigos, humanos e divinos. A estratégia
por trás da aparição do rei, no entanto, está camuflada. Já haviam se
passado quase quinhentos anos desde o retorno de Judá do exílio. A
emergência de Jesus, nascido e crescido na obscuridade, da água lança
uma batalha de inteligência que junta ambos os reinos divino e humano.

257
CAPÍTULO 32
DOMÍNIO EMINENTE
No capítulo anterior nós vimos que a chegada de João Batista e
Jesus, o messias, aparecem contra o fundo de uma passagem do
conselho divino encontrada em Isaías 40. Enquanto os episódios do
aparecimento de João e o batismo de Jesus são familiares, a montagem
teológica fornecida por Isaías é fácil de se passar despercebida.
O contexto sobrenatural das ações e dizeres de Jesus também
passam frequentemente despercebidos. Temos espaço para
compartilhar só alguns exemplos. O cenário cósmico do conselho divino
do VT ao qual vocês agora estão acostumados irá fazer tudo isso bem
entendível. Mesmo sendo frequentemente ensinados dessa maneira, os
Evangelhos são muito mais do que o relatório de uma viagem ponto-a-
ponto. Considerem esse capítulo uma cura.
ESSE É O MUNDO DO MEU PAI
No último capítulo vimos como os Evangelhos mostraram o
batismo de Jesus como um novo êxodo. O êxodo, é claro, foi o precursor
para o reavivamento do reino de Deus na terra prometida. Israel dançava
enquanto Moisés cantava: “Quem é como Yahweh dentre os deuses”?
Como Moisés liderou Israel através de um caos de águas e um solo ímpio
de outros deuses, assim também Jesus, “o profeta como Moisés” (Atos
3:22; 7:37), primeiro veio através das águas (seu batismo) antes de
lançar o seu reino.
Essa missão não era só sobre uma simples terra ou povo de Israel,
o qual foi criado por Yahweh depois de consignar as nações existentes ao
domínio de deuses menores em Babel. A chegada do Yahweh encarnado
foi o início do reclame dessas nações também. Mas os deuses das trevas
não iriam render seus domínios sem uma luta, e a batalha começou tão
rápido que Jesus mal teve tempo de se secar.
Os escritores do Evangelho nos falam sobre o evento que
imediatamente se seguiu ao batismo de Jesus, que foi a sua jornada no
deserto para ser tentado pelo diabo sob a direção do Espírito Santo

258
(Mateus 4:1; Marcos 1:12; Lucas 4:1-13). Pense sobre a localização: o
deserto. O termo obviamente se refere a um lugar literal, mais
precisamente o deserto da Judéia (Mateus 3:1), mas isso também era
uma metáfora para solo ímpio.
Já vimos essa ideia particular antes. Conceitualmente, o deserto
era onde os israelitas acreditavam que viviam “demônios do deserto”,
incluindo Azazel. O material de Azazel é especialmente importante, pois,
como já mostrei numa discussão anterior, a prática judaica do ritual do
Dia da Expiação nos dias de Jesus incluía levar o bode “para Azazel” no
deserto fora de Jerusalém e puni-lo jogando-o de um penhasco para que
ele não retornasse. O deserto era um lugar associado com algo
demoníaco, então não é de surpreender que é nesse lugar onde Jesus se
encontra com o diabo.
Mas porque o Espírito compeliria Jesus para ir ao deserto para
encarar o diabo? A resposta nos leva de volta ao capítulo anterior e a
“apresentação de Jesus” nos Evangelhos de seu batismo e reavivamento
do reino de Deus como um novo evento de êxodo. No VT, Israel, a filha
de Deus (Êxodo 4:23), passou através do mar (Êxodo 14-15) e então se
aventurou no deserto a caminho de Canaã para reestabelecer o reino de
Yahweh. Mas a fé e a lealdade a Yahweh falharam (Juízes 2:11-15). Eles
foram eventualmente seduzidos por poderes divinos hostis
(“demônios”), cujo domínio era o deserto (Deuteronômio 32:15-20).
Jesus, o messiânico filho de Deus e representante real da nação, teria
sucesso onde Israel falhou. Como nota R. T. France:
A chave mais significante para se entender essa história é
encontrar três citações escriturais de Jesus. Todas vêm de
Deuteronômio 6-8, a parte em que Moisés se dirige aos israelitas antes
de sua entrada em Canaã, na qual ele os relembra dos quarenta anos
de experiência no deserto. Esse foi um tempo de preparação e provas
da fé em seu Deus. Ele os colocou deliberadamente através de um tempo
de privações como um processo educativo. Eles aprenderam, ou
deveriam ter aprendido, o que significa viver em confiança e
obediência a Deus... Agora outro “Filho de Deus” está no deserto, dessa
vez por quarenta dias ao invés de quarenta anos, como uma
preparação para a entrada no chamado divino. Lá no deserto ele
259
também encarou os mesmos testes, e ele aprendeu as lições que Israel
tão imperfeitamente compreendeu. Seu Pai o está testando na escola da
privação, e sua triunfante rejeição às tentações do diabo irão certificar
que a ligação filial pode sobreviver no nascer do conflito que surgirá a
frente. A ocupação de Israel da terra prometida foi, na melhor das
hipóteses, um falho cumprimento das esperanças para as quais eles
vieram ao Jordão, mas esse novo “Filho de Deus” não falhará e o novo
êxodo (o qual há vimos inúmeras alusões no capítulo 2) terá sucesso.
“Onde a antiga Israel balançou e caiu, Cristo, a nova Israel, estaria
firme... A história do teste do deserto é, dessa forma, uma apresentação
tipológica elaborada do próprio Jesus sendo a verdadeira Israel, o
“Filho de Deus” através do qual o propósito de redenção de Deus para
o seu povo estará agora finalmente para chegar ao seu cumprimento”.
Na primeira tentação de Jesus, Satanás tentou seduzi-lo
satisfazendo sua fome ao transformar pedras em pães. O problema da
fome foi, é claro, um assunto importante nas andanças de Israel no
deserto a caminho de Canaã. Jesus responde citando Deuteronômio 8:3,
que se lê em contexto: “3Sim, ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te
sustentou com o maná, que nem tu nem teus pais conhecíeis; para te
dar a entender que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai
da boca do Senhor, disso vive o homem”. Jesus está mostrando que a
lealdade dele era ao Yahweh invisível apenas; ele não obedeceria a
ninguém mais.
A segunda tentação foi como a primeira. Satanás desfiou Jesus a
pular do alto do templo para provar que ele era o filho de Deus, e os anjos
de Deus iriam protege-lo. Jesus cita Deuteronômio 6:16, o qual
novamente está no contexto de obediência apenas a Yahweh: “16Não
tentareis o Senhor vosso Deus, como o tentastes em
Massá. 17Diligentemente guardarás os mandamentos do Senhor teu
Deus, como também os seus testemunhos, e seus estatutos, que te
ordenou”.
A última tentação veio no final, e ela vai direto na missão final de
Jesus, o reclame das nações que são legitimamente de Yahweh:

260
8Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe
todos os reinos do mundo, e a glória deles; 9 e disse-lhe: Tudo isto te
darei, se, prostrado, me adorares. (Mateus 4:8-9).
Satanás ofereceu a Jesus as nações que foram deserdadas por
Yahweh em Babel. Vindo do “governante desse mundo” (João 12:31), a
oferta não era vazia. Como o rebelde original, o nachash de Gênesis 3
(Apo 12:9) tinha, nos tempos do Novo Testamento, alcançado o status de
líder da oposição a Yahweh. Isso era parte da lógica de atribuir o termo
satanás a ele como um nome pessoal próprio. Lembrem-se também que
o nachash foi mandado para baixo ao ‘erets, um termo que não só se
referia à “terra”, mas também ao reino dos mortos, o Sheol. O “rebelde
original”, cujo domínio se tornou a terra/Sheol, nachash/Satanás era
percebido pela teologia do Segundo Templo e do Novo Testamento como
a autoridade primária sobre todos os outros rebeldes e seus domínios.
Consequentemente, sua liderança sobre os deuses que governavam as
nações na visão de Deuteronômio 32 do Velho Testamento já era
presumida.
Se Jesus tivesse aceitado, teria sido um reconhecimento da
permissão que Satanás precisava para possuir as nações. E não foi
assim. Satanás presumia ter poder e propriedade de algo que, em última
instância, não era dele, mas de Deus. A mensagem por trás da resposta
de Jesus é clara: Yahweh irá tomar as nações de volta pelos seus próprios
meios e no seu tempo. Ele não precisa que elas sejam dadas numa
barganha. Jesus era leal ao seu Pai. Uma vez que o reclame das nações
estava conectado com a salvação e a redenção dos efeitos da queda no
Éden, aceitar a oferta de Satanás teria destruído a necessidade da
expiação da cruz.
O JOGO COMEÇA
Imediatamente depois do seu confronto, Jesus “retornou no
poder do Espírito para a Galiléia”, onde ele pregou nas sinagogas da
região e foi rejeitado por aqueles de sua própria cidade de Nazaré (Lucas
4:14-15). Mateus e Marcos nos dizem que Jesus saiu de Nazaré e foi
morar em Cafarnaum (Mateus 4:12-16). Em Cafarnaum, ele começou
seu ministério com uma simples, mas apropriada mensagem:
261
“Arrependam-se, pois o reino dos céus está perto” (Mateus 4:17). Jesus
então fez duas coisas: chamou seus primeiros discípulos (Pedro, André,
Tiago e João) e curou um homem possuído pelo demônio (Marcos 1:16-
28; Lucas 4:31-5:11). Que comece a guerra santa.
Parece difícil de acreditar, mas esse evento foi a primeira vez em
toda a Bíblia que lemos sobre um demônio sendo expulso de uma pessoa.
Nenhum evento como esse é gravado no Velho Testamento. A derrota de
demônios, caindo sob os calcanhares da vitória de Jesus sobre as
tentações de Satanás, marca o início do reestabelecimento do reino de
Deus sobre a terra. O próprio Jesus fez essa conexão absolutamente
explícita: “20Mas, se é pelo dedo de Deus que eu expulso os demônios,
logo é chegado a vós o reino de Deus”. E uma vez que os elohim menores
que estão sobre as nações são tidos como demônios Velho Testamento,
as implicações para o nosso estudo são claras: O ministério de Jesus
marcou o início da recuperação das nações e a derrota dos seus elohim.
Na narrativa de Lucas, Jesus prega, cura, e expulsa mais
demônios depois do seu exorcismo inicial. Ele também junta mais
discípulos. Em Lucas 9, Jesus junta seus doze discípulos e dá a eles o
poder e a autoridade sobre os demônios, expulsando-os para proclamar
o reino de Deus (9:1-6). A telegrafia simbólica de se escolher doze
discípulos (um para corresponder a cada tribo de Israel; o domínio de
Yahweh) é evidente.
Se a intenção não fosse clara o bastante, no próximo capítulo
Jesus faz algo dramático ao anunciar a todos que entendiam a geografia
cósmica de Babel o que realmente estava acontecendo:
1Depois disso designou o Senhor outros setenta, e os enviou adiante de
si, de dois em dois, a todas as cidades e lugares aonde ele havia de ir.
(Lucas 10:1).
Jesus enviou setenta discípulos. O número não é acidental.
Setenta é o número das nações listadas em Gênesis 10 que foram
deserdadas em Babel. Os setenta “retornaram com alegria” (Lucas 10:17)
e anunciaram a Jesus: “Senhor, em teu nome, até os demônios se nos
submetem”! A resposta de Jesus é clara: “Eu via Satanás, como raio,
cair do céu”. (10:18). As implicações são claras: O ministério de Jesus é
262
o começo do fim de Satanás e dos deuses das nações. A grande
reviravolta está a caminho.
PONTO ZERO: Os Portões do Inferno
As batalhas espirituais contra os poderes das trevas estão
evidentes através do ministério de Jesus. Uma das mais dramáticas está
descrita em Mateus 16:13-20. Jesus vai com seus discípulos ao distrito
de Cesaréia de Filipe. No caminho ele faz a famosa pergunta: “Que dizem
que sou”? E Pedro responde: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Jesus
elogia Pedro:
Abençoado sejas Simão Barjonas! Pois não foi a carne e o sangue que o
revelaram, mas meu Pai que está no céu. E digo a ti, tu és Pedro, e sobre
essa rocha edificarei a minha igreja, e nem mesmo os portões do
inferno prevalecerão contra ela. (Mateus 16:17-18).
Essa passagem está dentre as mais controversas da Bíblia, pois
ela é um ponto focal do debate entre Católicos Romanos, os quais a
referenciam para argumentar que a passagem faz de Pedro o líder da
igreja original (e, dessa forma, o primeiro Papa) e aqueles que se opõem
à ideia. Na verdade, há algo muito mais cósmico acontecendo aqui. A
localização do incidente, Cesaréia de Filipe, e a referência aos “portões
do inferno” fornece o contexto para a “pedra” da qual Jesus está falando.
A localização de Cesaréia de Filipe deveria ser familiar às
primeiras discussões sobre as guerras contra os clãs gigantes.

263
Cesaréia de Filipe era adjacente ao Rio Farpar. Notando essa
geografia, podemos ver exatamente onde Jesus estava quando ele lançou
as famosas palavras “essa pedra” e os “portões do inferno” a Pedro.

264
As coisas não haviam mudado muito nos dias de Jesus, pelo
menos em termos de controle espiritual. Vocês já devem ter notado
nesses mapas, que Cesaréia de Filipe também era chamada de “Banias /
Panias”. O historiador da igreja primeva Eusébio escreveu: “Até hoje o
monte em frente a Panias e o Líbano é conhecido como Hermon e ele é
respeitado pelas nações como um santuário”.
O local era famoso no mundo antigo como um centro de adoração
a Pan e por um templo ao alto deus Zeus, considerado nos dias de Jesus
como estando encarnado em Augusto César. Como escreveu uma
autoridade:

265
Mais de vinte templos sobreviveram no Monte Hermon e suas
redondezas. Esse é um número sem precedentes em comparação com
outras regiões da costa fenícia. Eles parecem ser antigos locais de culto
da população do Monte Hermon e representam o conceito Canaanita /
Fenício de centros dedicados a cultos abertos ao ar, evidentemente, aos
deuses celestiais.
A referência na citação para “deuses celestiais” leva nossas
mentes de volta às “hostes celestiais”, os filhos de Deus aos quais foi
colocada autoridade sobre as nações em Babel (Deut 32:8-9) e que não
deveriam ser adorados pelos israelitas (Deut 4:19-20; 17:3; 29:25).
A base para a contenção do Catolicismo de que a Igreja é
construída sob a liderança de Pedro é que o seu nome significa “pedra”.
É claro que temos um jogo de palavras acontecendo na confissão de
Pedro, mas sugiro que aqui existe também um importante duplo
entendimento: a “pedra” se refere à localização da montanha onde Jesus
faz a afirmação. Quando vista desta perspectiva, Pedro confessa Jesus
como o Cristo, o Filho do Deus vivo, “nessa pedra” (essa montanha, o
Monte Hermon). Por que? Esse lugar era considerado os “portões do
inferno”, o portão para reino dos mortos nos tempos do Velho
Testamento.
A mensagem teológica não poderia ser mais dramática. Jesus
disse que construiria sua igreja, e os “portões do inferno” não
prevaleceriam contra ela. Frequentemente pensamos nessa frase como
se o povo de Deus estivesse numa postura de ter que bravamente se
defender de Satanás e seus demônios. Isso está errado. Portões são
estruturas de defesa, e não armas de ataque. O reino de Deus é o
agressor. Jesus começa do ponto zero na geografia cósmica de ambos os
testamentos para anunciar a grande reviravolta. São os portões do
inferno que estão sob assalto, e eles não aguentarão ir contra a Igreja. O
inferno será um dia a tumba de Satanás.
ATORMENTANDO O INIMIGO
É difícil de imaginar, mas o conflito faz mais um buraco depois
da confissão de Pedro.

266
O Monte Hermon, como os leitores se lembram, era o lugar onde,
na literatura judaica tal como o livro de 1 Enoque, os filhos de Deus de
Gênesis 6:1-4 escolheram lançar sua rebelião contra Yahweh. Jesus tinha
mais uma afirmação para fazer aos seus inimigos invisíveis.
Mateus, Marcos e Lucas, todos concordam que o próximo evento
no ministério de Jesus depois da confissão de Pedro foi a transfiguração:
2Seis dias depois tomou Jesus consigo a Pedro, a Tiago, e a João, e os
levou à parte sós, a um alto monte; e foi transfigurado diante
deles; 3as suas vestes tornaram-se resplandecentes, extremamente
brancas, tais como nenhum lavandeiro sobre a terra as poderia
branquear. 4E apareceu-lhes Elias com Moisés, e falavam com
Jesus. 5Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Mestre, bom é
estarmos aqui; faça-mos, pois, três cabanas, uma para ti, outra para
Moisés, e outra para Elias. 6Pois não sabia o que havia de dizer,
porque ficaram atemorizados. 7Nisto veio uma nuvem que os cobriu,
e dela saiu uma voz que dizia: Este é o meu Filho amado; a ele
ouvi. 8De repente, tendo olhado em redor, não viram mais a ninguém
consigo, senão só a Jesus. (Marcos 9:2-8).
Nós já aprendemos o significado da palavra “amado” com
respeito a Jesus, de que ele é um título divinamente afixado que marca o
direito de herdar o trono de Davi e, assim sendo, o reino de Deus na terra.
Nosso foco aqui é no evento em si mesmo.
Na tradição da igreja primeva, a localização do monte da
transfiguração era tida como tendo acontecido no Monte Tabor. As
primeiras testemunhas dessa tradição são do Século IV d.C. Os próprios
Evangelhos não dão nenhum nome, e logo, essa tradição não tem
precedente bíblico. O Monte Hermon é também muito mais alto do que
o Tabor (2590 metros contra 562 metros), o qual se encaixa melhor à
descrição de um “alto monte” por Marcos (e em Mateus 17:1). Alguns
estudiosos ainda mantém a identificação do Tabor, mas a maioria vem a
concordar que a proximidade de Cesaréia de Filipe ao Monte Hermon e
as associações simbólicas religiosas e suas relações, faz do Monte
Hermon a escolha lógica para a transfiguração.

267
A imagem é impressionante. Já vimos que a tradição judaica
sobre a descida dos Sentinelas, os filhos de Deus de Gênesis 6:1-4, é
informada pelos escritos de Pedro e Judas. Agora vemos que a
transfiguração de Jesus toma lugar na mesma localização identificada
por essa tradição. Jesus escolhe o Monte Hermon para revelar a Pedro,
Tiago e João exatamente quem ele é, a essência glorificada incorporada
de Deus, o Nome divino feito visível pela encarnação. O significado é
claro: Estou colocando os poderes hostis do mundo invisível em alerta.
Eu vim à terra para tomar de volta o que é meu. O reino de Deus está
aqui.
A narrativa da confissão de Pedro aos pés do Monte Hermon e a
revelação da transfiguração em seus picos ímpios marcam uma transição
chave na vida de Jesus, particularmente na maneira como o Evangelho
de Marcos a apresenta. Depois de jogar fora suas luvas na transfiguração,
ele começa a ir em direção a Jerusalém para sua morte. Um estudioso
coloca dessa forma:
Marcos não apenas apresenta uma narrativa provável historicamente
e consistente dos movimentos de Jesus durante as últimas semanas ou
meses de sua vida ... na verdade existem boas razões para aceitar a
narrativa como historicamente correta. O quão longo durou esse
período não pode ser determinado. Mas ele começa com a Confissão de
Pedro perto de Cesaréia de Filipe e uma convicção praticamente
simultânea ou anúncio da parte de Jesus de que ele não esperaria tal
reconhecimento das multidões ou das autoridades, mas que ele deveria
aparecer em Jerusalém e ali, de alguma forma, sofrer as angústias dos
últimos dias antes da vinda do reino de Deus.
O inimigo sabe quem é Jesus, mas, como notamos antes, as forças
das trevas não conhecem o plano. Jesus atormentou eles em ação, um
ato que eles queriam. Ele deu a ales a corda, e eles irão avidamente se
enforcar nela. Jesus irá para Jerusalém para beber o cálice do Pai como
planejado para ele. Mas o instrumento da morte seria o catalizador que
lançará o reino de Deus com toda sua força.

268
CAPÍTULO 33
UMA MORTE BENÉFICA
Nos tempos dos eventos na região conhecida nos dias do Velho
Testamento como Basã, a confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe e a
transfiguração no Monte Hermon, Jesus sabia que a hora de sua morte
estava chegando rápido. Ele havia provocado um confronto com um mal
inteligente de várias maneiras ao longo dos anos do seu ministério, mas
o que ele fez e disse naqueles dois lugares foram especialmente
desafiadores. O movimento foi calculado.
OS TOUROS DE BASÃ
Todos os quatro Evangelhos descrevem a crucificação de Jesus
com variados graus de detalhe. Uma das mais minuciosas descrições é a
de Mateus:
35Então, depois de o crucificarem, repartiram as vestes dele, lançando
sortes, [para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Repartiram
entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica deitaram
sortes.] 36E, sentados, ali o guardavam. 37Puseram-lhe por cima
da cabeça a sua acusação escrita: ESTE É JESUS, O REI DOS JUDEUS.
38Então foram crucificados com ele dois salteadores, um à direita, e
outro à esquerda. 39E os que iam passando blasfemavam dele,
meneando a cabeça 40e dizendo: Tu, que destróis o santuário e em
três dias o reedificas, salva-te a ti mesmo; se és Filho de Deus, desce da
cruz. 41De igual modo também os principais sacerdotes, com os
escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: 42A outros salvou; a si
mesmo não pode salvar. Rei de Israel é ele; desça agora da cruz, e
creremos nele; 43confiou em Deus, livre-o ele agora, se lhe quer bem;
porque disse: Sou Filho de Deus. 44O mesmo lhe lançaram em rosto
também os salteadores que com ele foram crucificados. 45E, desde a
hora sexta, houve trevas sobre toda a terra, até a hora nona. 46Cerca
da hora nona, bradou Jesus em alta voz, dizendo: Eli, Eli, lamá
sabactani; isto é, Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?
(Mateus 27:35-46).

269
Muitos leitores saberão que Mateus tem Salmos 22 em sua
descrição. Os paralelos são impossíveis de não serem percebidos:

Mateus 27 Salmos 22
repartiram as vestes dele, 18Repartem entre si as minhas
lançando sortes (v. 35) vestes, e sobre a minha túnica
lançam sortes. (v. 18)
E os que iam passando 7Todos os que me vêem zombam
blasfemavam dele, meneando a de mim, arreganham os beiços e
cabeça ... 41De igual modo meneiam a cabeça ... Eles me
também os principais sacerdotes, olham e ficam a mirar-me. (vv. 7,
com os escribas e anciãos, 17)
escarnecendo (vv. 39, 41)
46Cerca da hora nona, bradou 1Deus meu, Deus meu, por que
Jesus em alta voz, dizendo: Eli, me desamparaste? (v. 1).
Eli, lamá sabactani; isto é, Deus
meu, Deus meu, por que me
desamparaste? (v. 46)

E para complementar as claras conexões entre Mateus e Salmos


22, os estudiosos há muito tempo têm notado que os elementos de
Salmos 22 parecem descrever feridas e condições congruentes com a
crucificação:

 Como água me derramei, e todos os meus ossos se


desconjuntaram (v. 14).
 A minha força secou-se como um caco (v. 15).
Menos aparentes são algumas conexões sob a superfície ao
entendimento do conselho divino e seu contexto de guerra santa
cósmica. Se você ler todo o Salmo 22 nesse ponto de nossa jornada, o
versículo 12 pularia da página sem dúvidas: “Muitos touros me cercam;
fortes touros de Basã me rodeiam”.
FORTES TOUROS DE BASÃ?
Agora já sabemos que Basã carrega um monte de bagagem teológica.
Ela é a versão do Velho Testamento dos portões do inferno, o portal para
o reino do submundo dos mortos. Era conhecida como “o lugar da
270
serpente” fora da Bíblia. Está associada ao Monte Hermon, o lugar onde
os judeus acreditavam que os filhos de Deus de Gênesis 6:1-4 desceram.
Raciocinem, se você quer conjurar imagens de demônios e da morte,
você iria se referir a Basã. Se é verdade que os elementos de Salmos 22
prefiguram a crucificação, faz sentido que a referência a Basã seria parte
disso. Mas ainda precisamos de mais contexto para entender isso.
Na discussão anterior sobre Basã, eu resumidamente mostrei a
presença de um lugar de culto em Dan localizado dentro da região Norte.
O local era infame em respeito à adoração idólatra de Samaria, um reino
renegado do Norte das dez tribos de Israel, o qual legou a dinastia de
Davi depois que Salomão morreu. Essa confederação e reino rival foi
montado por Jeroboão (1 Reis 12:25-33). Então, a adoração de outros
deuses, deuses diferentes de Yahweh que eram chamados de demônios
(shedim), eram parte da identidade de Basã.
Isso nos ajuda a processar Amós 4, onde os “bovinos de Basã”
também aparecem:
1Ouvi esta palavra, vós, vacas de Basã, que estais no monte de
Samária, que oprimis os pobres, que esmagais os necessitados, que
dizeis a vossos maridos: Dai cá, e bebamos.
2Jurou o Senhor Deus, pela sua santidade, que dias estão para vir sobre
vós, em que vos levarão com anzóis, e aos que sairdes por último com
anzóis de pesca. (Amós 4:1-2).
Uma vez que as “vacas de Basã” estão falando aos seus “maridos”,
os estudiosos concordam universalmente que Amós está
especificamente se dirigindo às mulheres das classes superiores do Norte
de Israel as quais eram idólatras dos bezerros dourados de Basã. Eu não
discordo disso necessariamente, mas aqui existem mais do que palavras.
Amós poderia estar se dirigindo a sacerdotisas do templo que
serviam aos deuses juntamente com sacerdotes homens. Também é bem
possível que as vacas de Basã sejam próprias deidades na forma de
ídolos. Essa possibilidade é reforçada ao notarmos os seus crimes:
“oprimir os pobres (dallim)” e “esmagar os necessitados (ebyonim)”.
Essas mesmas duas palavras hebraicas são usadas no Salmos 82, onde
271
os elohim corruptos são acusados dos exatos mesmos crimes (Salmos
82:3-4).
Para nossos propósitos, o que temos certeza sobre Basã é que ela
tem associações seguras com poderes demoníacos. Embora Salmos 22
não seja originalmente messiânica em seu foco, Mateus a utiliza para
fixar essa associação. A implicação é de que Jesus, no momento de sua
agonia e morte, foi cercado pelos “touros de Basã”, os demoníacos
elohim que haviam sido os inimigos de Yahweh e seus filhos há milênios.
A QUEDA DE BASÃ
Basã foi o ponto zero para o Velho Testamento quanto à geografia
demoníaca. Mas por toda escuridão conjurada pelo termo, as referências
a “Basã” no Velho Testamento não totalmente sinistras. Salmos 68:15-
23 descreve um tempo quando Yahweh teve domínio sobre Basã.
15Monte de Deus é o monte de Basã; monte de cimos numerosos é o
monte de Basã!
16Por que estás, ó monte de cimos numerosos, olhando com inveja o
monte que Deus desejou para sua habitação? Na verdade, o Senhor
habitará nele eternamente. 17Os carros de Deus são miríades,
milhares de milhares. O Senhor está no meio deles, como em Sinai no
santuário. 18Tu subiste ao alto, levando os teus cativos; recebeste dons
dentre os homens, e até dentre os rebeldes, para que o Senhor Deus
habitasse entre eles.
A primeira coisa que chama nossa atenção nessa passagem é que
o infame Monte Basã é chamado de “monte de Deus” (68:15). A frase
“monte de Deus” é, na verdade, “monte dos elohim” (har elohim) em
hebraico. Isso significa que ele pode ser traduzido tanto como “monte de
Deus” ou “monte dos deuses”.
Essa última faz mais sentido do que a anterior no contexto da
própria observação de que os dois montes na passagem, Basã e Sinai, são
rivais no início do Salmo. O monte dos deuses (Basã) “olha com inveja”
para o monte de Yahweh, o monte Sinai. Deus quis o Sinai para sua
morada, e o salmista pergunta a Basã: “Por que a inveja”? Isso faria
pouco sentido se Basã já estivesse sob autoridade de Yahweh.
272
O salmista tenta fazer uma associação de contraste. No Velho
Testamento, o Sinai é firmemente associado a Yahweh e Israel. Basã é o
polo oposto do Sinai. Ele simboliza solo ímpio.
O resto salmo descreve um assalto a Basã por Yahweh e seu
exército santo. Sabemos que a descrição se refere à guerra espiritual,
uma vez que não há tal conflito de israelitas no Velho Testamento, e
também porque o versículo 17 claramente fala de um exército divino.
Yahweh, o guerreiro divino, irá um dia derrubar as fortalezas de Basã.
Ele liderará um comboio de cativos para baixo da montanha (v. 18).
TOMANDO PRISIONEIROS
Salmos 68:18, onde Yahweh lidera uma hoste de cativos, pode
soar familiar. Paulo cita o versículo em Efésios 4:

Salmos 68:18 Efésios 4:8


18Tu subiste ao alto, levando os 8Por isso foi dito: Subindo ao
teus cativos; recebeste dons alto, levou cativo o cativeiro, e
dentre os homens, e até dentre os deu dons aos homens.
rebeldes, para que o Senhor Deus
habitasse entre eles.

Se derem uma olhada de perto, existe um problema na citação.


Para Paulo, Salmos 68:18 era sobre Jesus subindo ao alto dando dons
para a humanidade. Jesus é, de alguma forma, o cumprimento de Salmos
68. Mas o texto do Velho Testamento tem Deus ascendendo e recebendo
dons.
Reconciliar esse conflito de ideias requer pegarmos algum
contexto primeiro.
Salmos 68 nos dá uma descrição padrão de conquista, conhecida
de outros textos antigos e até mesmo das esculturas e iconografias
antigas. O capitão vitorioso do exército lidera os inimigos cativos atrás
dele; eles são as recompensas humanas de guerra.
Quando Paulo cita Salmos 68:18 em Efésios 4:8, ele faz isso
pensando em Jesus. Parte da confusão sobre como interpretar o que
273
Paulo está dizendo é que muitos comentaristas têm assumido que os
cativos são seres libertados em Efésios 4. Esse não é o caso. A ideia
contradiz completamente uma imagem bem entendida do Velho
Testamento. Não existe libertação; existe uma conquista.
As palavras de Paulo identificam Jesus com Yahweh. Em Salmos
68:18 é Yahweh quem foi descrito como o conquistador da fortaleza
demoníaca. Para Paulo é Jesus, o segundo Yahweh encarnado, rodeado
pelos elohim demoníacos, “touros de Basã”, cumprindo a imagem de
Salmos 68. Jesus coloca os deuses malignos “a uma vergonha total” ao
“triunfar sobre eles (na cruz)” (Col 2:15). Salmos 68:18 e Efésios 4:8
estão de acordo se vermos isso como uma conquista e não uma
libertação.
Mas e sobre o problema do “receber” e do “dar”? As palavras de
Paulo não negam que era uma conquista. O que ele faz é apontar o
resultado da conquista.
No mundo antigo, o conquistador iria exibir os cativos e
demandar os tributos para si mesmo. Jesus é o conquistador de Salmos
68, e as recompensas, então, legalmente pertencem a ele. Mas as
recompensas também são distribuídas depois da conquista. Paulo sabe
disso. Ele cita Salmos 68:18 para nos mostrar que depois que Jesus
conquistou seus inimigos demoníacos, ele distribuiu os benefícios da
conquista com seu povo, os crentes. Especificamente, os beneficiários
são os apóstolos, profetas, evangelistas, pastores e professores (Efésios
4:11).
Mas de onde Paulo tirou essa ideia? Ele se explica em Efésios 4:9-
10.
Salmos 68:18 Efésios 4:8
18Tu subiste ao alto, levando os teus 8Por isso foi dito: Subindo ao alto, levou
cativos; recebeste dons dentre os cativo o cativeiro, e deu dons aos homens.
homens, e até dentre os rebeldes, para (Ao dizer: “Subindo”, o que isso significa
que o Senhor Deus habitasse entre eles. a não ser que ele também desceu até as
regiões mais baixas, a terra? Ele que
desceu é aquele que também ascendeu
muito acima de todos os céus, para que se
cumprissem todas as coisas).

274
A conquista de Cristo resultou numa dispensação de dons para
seu povo depois de subir (em conquista) no versículo 8. Mas essa
ascensão foi acompanhada de uma descida (“às regiões mais baixas”).
A lógica de Paulo não de todo clara, pelo menos de início. Do que
ele está falando que subiu e desceu? O texto não deixa claro a ordem dos
eventos, ou até mesmo se havia uma ordem desejada.
A chave para entendermos o pensamento de Paulo é a descida.
Existem duas possíveis explicações. A visão mais comum é que, em sua
morte, Jesus desceu às regiões mais baixas da terra. Esse é o sentido das
palavras de Efésios 4:9 e muitas traduções. Nesse caso, a linguagem fala
tanto da sepultura quando do Sheol cósmico, o submundo. Isso é
possível, uma vez que em outro lugar no Novo Testamento nós lemos
que Jesus desceu até o submundo para confronta os “espíritos em
prisão”, os transgressores originais filhos de Deus de Gênesis 6 (1 Pedro
3: 18-22). Mas essa visita pode não ser o que Paulo deseja mostrar aqui.
A segunda visão é refletida na JFA Atualizada, que é a tradução
que uso para Efésios 4. Notem que ao invés de “partes baixas da terra” a
JFA insere uma vírgula: “Ora, isto - ele subiu - que é, senão que também
desceu”. O efeito da vírgula é de que Jesus desceu às “partes mais baixas,
(em outras palavras) a terra”. Essa opção se encaixa melhor no contexto
(os dons são dados às pessoas as quais, é claro, estão na terra) e tem
outras vantagens literárias. Se essa opção é a correta, então a descida dos
versículos 9-10 não se refere ao tempo de Jesus na sepultura, mas ao
invés disso, ao Espírito Santo vindo à terra depois de ascensão
conquistadora de Jesus no dia de Pentecostes.
JESUS E O ESPÍRITO
Essa visão faz sentido no que a ascensão (vitória) se referiria à
ressurreição, e a descida falaria da subsequente vinda do Espírito em
Pentecostes. Ambos são triunfantes. Mas isso levanta uma pergunta
óbvia: Paulo está confundindo Jesus com o Espírito?
Talvez deveríamos é perguntar: O Espírito é Jesus de alguma
forma? A pergunta parece estranho, mas é o equivalente a perguntar se
o homem Jesus é Deus de alguma forma. A resposta, como vimos nos
275
capítulos anteriores, é que Jesus é o segundo Yahweh, o Yahweh
incorporado do Velho Testamento. Mas Jesus não é o “Pai” Yahweh.
Assim ele é, mas não é Yahweh. Acontece a mesma coisa com o Espírito.
O Espírito é Yahweh, e dessa forma ele também é Jesus, mas não
encarnado ou incorporado. O Espírito é, mas não é Jesus, assim como
Jesus é, mas não é Yahweh o Pai. O mesmo tipo de ideia “dois Yahwehs”
do Velho Testamento é encontrada no NT com respeito a Jesus e o
Espírito. Essa é a fonte da teologia Trinitária.
Vista contra esse fundo, a ideia de que Jesus e o Espírito podem
ser identificados um com o outro não é tão estranha. Na verdade, ela nos
ajuda a fazer sentido de algumas coisas que os escritores do NT dizem
sobre o Espírito.
Está claro que Jesus e o Espírito são pessoas diferentes. Isso fica
claro em passagens sobre o batismo de Jesus (Mateus 3:16), sua tentação
(Mateus 4:1), e outras passagens (Mateus 28:18; Atos 7:55). Jesus
também diz que ele e o Pai enviariam o Espírito (João 14:26; 15:26;
Lucas 24:49). O Espírito viria, habitaria e daria poder aos crentes. Os
eventos de Pentecostes em Atos 2 marcam a chegada do Espírito.
Mas o NT também identifica o Espírito com Jesus:
6Atravessaram a região frígio-gálata, tendo sido impedidos pelo
Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia; 7e tendo chegado diante
da Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de Jesus não lho
permitiu. (Atos 16:6-7)
9Vós, porém, não estais na carne, mas no Espírito, se é que o Espírito
de Deus habita em vós. Mas, se alguém não tem o Espírito de Cristo,
esse tal não é dele. 10Ora, se Cristo está em vós, o corpo, na verdade,
está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da
justiça. (Romanos 8:9-10)
19porque sei que isto me resultará em salvação, pela vossa súplica e
pelo socorro do Espírito de Jesus Cristo (Filipenses 1:19)
4mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido debaixo de lei, 5para resgatar os que estavam debaixo

276
de lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. 6E, porque sois filhos,
Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que clama:
Aba, Pai. (Gálatas 4:4-6)
10Desta salvação inquiririam e indagaram diligentemente os profetas
que profetizaram da graça que para vós era destinada, 11indagando
qual o tempo ou qual a ocasião que o Espírito de Cristo que estava neles
indicava, ao predizer os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a
glória que se lhes havia de seguir. (1 Pedro 1:10-11)
A citação de Paulo direciona nossa atenção a dois importantes
caminhos. Primeiro, o sacrifício de Jesus na cruz não apenas significou
a queda de Basã, o emblema dos poderes cósmicos do mal, mas ela
também engatilhou os poderes dados à Igreja através dos dons do
Espírito. Segundo, essa vitória e doação de poder também tem algo a ver
com Pentecostes.
O raciocínio de Paulo sobre Pentecostes em Efésios 4 é um bom
entendimento. Ao falar dele, o que aconteceu em Pentecostes não pode
ser entendido sem uma geografia cósmica, a visão de Deuteronômio 32.
Como nas narrativas do Evangelho, existe muito mais por trás de Atos 2
do que poderíamos presumir.

277
CAPÍTULO 34
INFILTRAÇÃO
O Dia de Pentecostes é um evento lembrado por milhões de
cristãos todos os anos. Embora Atos 2 é uma das passagens mais
familiares no Novo Testamento fora dos Evangelhos, o que a passagem
descreve ter acontecido naquele dia definitivamente soa estranho.
1Ao cumprir-se o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo
lugar. 2De repente veio do céu um ruído, como que de um vento
impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. 3E lhes
apareceram umas línguas como que de fogo, que se distribuíam, e sobre
cada um deles pousou uma. 4E todos ficaram cheios do Espírito
Santo, e começaram a falar noutras línguas, conforme o Espírito lhes
concedia que falassem. 5Habitavam então em Jerusalém judeus,
homens piedosos, de todas as nações que há debaixo do
céu. 6Ouvindo-se, pois, aquele ruído, ajuntou-se a multidão; e estava
confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua. 7E
todos pasmavam e se admiravam, dizendo uns aos outros: Pois quê!
não são galileus todos esses que estão falando? 8Como é, pois, que os
ouvimos falar cada um na própria língua em que nascemos? 9Nós,
partos, medos, e elamitas; e os que habitamos a Mesopotâmia, a Judéia
e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, 10a Frígia e a Panfília, o Egito e as
partes da Líbia próximas a Cirene, e forasteiros romanos, tanto judeus
como prosélitos, 11cretenses e árabes - ouvímo-los em nossas línguas,
falar das grandezas de Deus. 12E todos pasmavam e estavam
perplexos, dizendo uns aos outros: Que quer dizer isto? 13E outros,
zombando, diziam: Estão cheios de vinho.
Essa descrição dos eventos de Pentecostes está polvilhada de
imagens do conselho divino e possui conexões seguras à visão
sobrenatural de Deuteronômio 32 da qual já falamos. Revelar essas
características é algo central para o entendimento do que aconteceu em
Atos 2 e o papel que possui no plano de Yahweh para reclamar as nações
e restaurar o Éden.

278
COMISSIONAMENTO DIVINO
Os primeiros dois pontos da descrição que merecem atenção são
o “vento impetuoso” e as “línguas de fogo, que se distribuíram”. Ambas
são imagens no VT associadas com a presença de Deus, os discípulos
estão sendo comissionados por Deus em seu conselho como os profetas
de antigamente.
O turbilhão de vento é familiar nos encontros divinos de Elias (2
Reis 2:1, 11) e Jó (Jó 38:1; 40:6). O comissionamento divino de Ezequiel
também tem o Yahweh entronado vindo com um grande vento (Ezequiel
1:4). A ocorrência dessa ventania é frequentemente acompanhada pela
imagem de uma tempestade, a qual também pode incluir fogo (Isaías
30:30). Tendo o “vento” como um elemento descrevendo a presença de
Deus faz sentido, dado a palavra hebraica traduzida como “vento” e que
também pode ser usada para “espírito / Espírito” (ruach).
O comissionamento de Ezequiel é particularmente instrutivo,
uma vez que Yahweh não apenas vem com um vento, mas com junto com
o vento há um “brilho de fogo” (Ezequiel 1:4). Fogo com labaredas é um
elemento familiar nas cenas da sala do trono do conselho divino (Isa 6:4,
6; Dan 7:9). Ele é especialmente proeminente nas aparições do Sinai
(Êxodo 3:2; 19:18; 20:18; Isa 4:5). O fogo no VT era um identificador da
presença de Deus, uma manifestação visível da glória e essência de
Yahweh. Ele também era uma maneira de se descrever seres divinos a
serviço de Deus (Juízes 13:20; Salmos 104:4).
O vento e o fogo em Atos significavam aos leitores informados
pelas cenas do conselho divino de que os seguidores de Jesus ali juntos
estavam sendo comissionados por um encontro divino. Eles estavam
sendo escolhidos para pregar as boas novas da obra de Jesus. O fogo os
conecta com a sala do trono. As línguas são emblemáticas do ministério
para o qual falarão.
VOLTANDO A BABEL
Numa primeira vista parece não haver muita coisa na descrição
de Pentecostes que se relaciona ao incidente em Babel que tinha grande

279
importância cósmica-geográfica e teológica no VT. Essa primeira vista
pode estar enganada.
Existem dois termos chave na passagem que a conecta de volta à
Babel de uma forma indiscutível. As línguas de fogo foram “distribuídas”
(do grego: diamerizo), e o povo, composto por judeus de todas as nações,
é dito que ficaram “confusos” (do grego: suncheo).
O segundo termo suncheo (v. 6), é a mesma palavra usada na
versão do Septuaginta da história de Babel em Gênesis 11:7: “7Eia,
desçamos e confundamos (grego: suncheo) ali a sua linguagem, para
que não entenda um a língua do outro”. A multiplicidade das nações
representadas em Pentecostes é outra ligação com Babel. Cada nação
tinha um idioma nacional. Mais importante ainda é que todas essas
nações referidas em Atos 2:9-11 haviam sido deserdadas por Yahweh
quando elas foram dividias.
A outra palavra importante (diamerizo; v. 3) também é usada no
Septuaginta, mas não em Gênesis 11. Ela é encontrada exatamente onde
poderíamos esperar, se estiverem raciocinando nos termos geográfico-
cósmicos de Deuteronômio 32:8 (Septuaginta: 8Quando o Altíssimo
dava às nações a sua herança, quando separava (diamerizo) os filhos
dos homens, estabeleceu os termos dos povos conforme o número dos
filhos de Israel.) Essa é uma forte indicação de que Lucas está se
referindo ao Septuaginta, e especificamente à história da Torre de Babel
em Gênesis 11 e Deuteronômio 32:8-9, para descrever os eventos em
Pentecostes. O que aconteceu ali tem alguma relação com o que
aconteceu em Babel, mas o que é?
Em Pentecostes, as línguas foram “distribuídas” (diamerizo)
entre os discípulos ao serem comissionados a pregar as boas novas às
multidões em Pentecostes. Como os judeus estavam reunidos em
Jerusalém para a celebração ouviram e abraçaram as novas de Jesus e
sua ressurreição, os judeus que aceitaram Jesus como messias levariam
essa mensagem de volta países onde viviam, as nações. A deserdação em
Babel estava para ser consertada pela mensagem de Jesus, o segundo
Yahweh encarnado, e seu Espírito. As nações novamente seriam dele.

280
INDO PARA TODA A TERRA
O mais impressionante sobre Atos 2 é a parte que as pessoas
pulam: a lista das nações. Para entender o que a lista de Lucas mostra,
temos que voltar à Gênesis 11 novamente. Aqui vai um mapa das nações
listadas em Gênesis 10 e que foram dividias em Gênesis 11:

O que estamos vendo aqui? A chave do raciocínio para


entendermos é que a “Tabela das Nações” em Gênesis representa o
mundo conhecido no tempo em que ela foi escrita. O VT é um produto
do ambiente do antigo Oriente Próximo no qual os escritores bíblicos
viviam. Não existe nenhuma referência nele (ou em quaisquer outros
lugares na Bíblia) de lugares como a China, América do Sul, América do
Norte ou Austrália. Isso significa que a descrição do VT das nações
deserdadas em Gênesis 11 e Deuteronômio 32:8-9 é baseada nas nações
conhecidas nos tempos bíblicos. A Tabela das Nações lista as nações
conhecidas de leste a oeste, desde o Leste da Mesopotâmia até Tarshish
(Gên 10:4), o ponto ocidental mais remoto. O que havia além de
Tarshish, que é o que chamamos hoje de Estreito de Gibraltar, era um
completo mistério para os escritores bíblicos.

281
A lista das nações em Atos 2 não é meramente uma reconstrução
de todos os nomes em Gênesis 10. Muitos nomes são diferentes. Uma
breve observação da lista, no entanto, revela que ela não se correlaciona
com a Tabela das Nações e sua significância com a geografia cósmica.
Primeiramente, o livro de Atos fala sobre a dispersão do
evangelho para o mundo conhecido naquele tempo. O livro começa com
a afirmação em Atos 1:8 de que os discípulos os quais se encontraram
com o Espírito serão as testemunhas de Jesus para o mundo conhecido:
“8Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-me-
eis testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia e
Samária, e até os confins da terra”. Os “confins da terra” nos dias de
Lucas, e é claro também do apóstolo Paulo, era a extensão do Império
Romano.

Isso nos leva a uma segunda e importante observação: em termos


de cobertura geográfica, o alcance do evangelho narrado no livro de
Atos constitui uma varredura de leste a oeste através do mundo
conhecido. Entender isso requer uma inspeção atenciosa das nações
listadas em Atos 2:9-11 no evento de Pentecostes:

282
9Nós, partos, medos, e elamitas; e os que habitamos a
Mesopotâmia, a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, 10a Frígia e a
Panfília, o Egito e as partes da Líbia próximas a Cirene, e forasteiros
romanos, tanto judeus como prosélitos, 11cretenses e árabes - ouvímo-
los em nossas línguas, falar das grandezas de Deus.
Existe um importante padrão da lista das nações em Atos 2
conectado com a chegada do Espírito e o comissionamento dos
discípulos.
A lista começa com os “partos, medos, elamitas e aqueles que
habitam na Mesopotâmia” (2:9). A literatura judaica do período
intertestamentário nos diz que existia uma população judaica na Partia
(= Pérsia) naquele tempo (1 Macabeus 15:15-22). Esses eram judeus que
migraram para a Pérsia depois de escolherem não retornar à Jerusalém
depois dom fim do exílio. Os Medos eram conhecidos do VT numa
conexão onde as dez tribos do Norte de Israel haviam sido deportadas
pelos Assírios (2 Reis 17:6; 18:11). Os Persas (Partos) e os Medos são
mencionados juntos no VT (Ester 1:19; Dan 5:28; 6:8, 12, 15), e os reis
283
da Media são mencionados com os Elamitas também (Jer 25:25). A lista
de Atos, então, começa nos pontos mais longínquos do leste, onde
existiam populações judaicas, e então vai progredindo em direção
oeste.
Depois de ir para o oeste através da Mesopotâmia, a lista
naturalmente se divide nas direções Sul e Norte, seguindo a terra quando
ela se separa no Mar Mediterrâneo. A parte Sul se estende através da
Judéia e da Arábia. A Ilha de Creta também é mencionada. Paulo leva o
evangelho a ambos os lugares (Tito 1:5; Gálatas 1:15-17). Na maioria das
vezes, as viagens missionárias de Paulo seguiam pela parte Norte através
da Ásia Menor e Grécia. Mas existiam pessoas em Pentecostes das
nações da parte Sul. Sabemos que o evangelho seguiu o Nilo abaixo até a
Etiópia (Atos 8:26-40) e deu frutos em Cirene (Atos 11:20; 13:1).
A lista continua se movendo em direção oeste até Roma. Ao
começar no leste, onde existiam povos judeus devido ao exílio, e se
movendo para oeste, a lista de Pentecostes confirma a estratégia de
evangelismo de Deus articulada por Paulo, o qual disse que o evangelho
era para os judeus em primeiro lugar, e depois aos gentios (Rom 1:16).
Três mil judeus vieram a crer em Jesus como resultado dos eventos de
Pentecostes (Atos 2:41), e aqueles três mil judeus convertidos voltaram
às suas terras natais depois da peregrinação de Pentecostes. Esses novos
discípulos foram as sementes do evangelho, o plano de Yahweh para
reclamar as nações.
O livro de Atos termina em Roma, o destino do prisioneiro Paulo
a caminho para apelar à César. A narrativa de Lucas, no entanto, tem
Roma como sua progressão mais ocidental. Mas reverter a deserdação
das nações requereria ir mais longe que Roma. A parte mais ocidental na
Tabela das Nações era Tarshish. Será que o padrão de reversão iniciado
em Pentecostes incluía Tarshish? Impressionantemente, sim.
PRECISO IR À ESPANHA
O Novo Testamento e as tradições da igreja primeva sugerem que
Paulo fora libertado de sua prisão e foi mais longe antes de ter ficado sob
custódia dos romanos pela segunda e última vez. Na verdade, Paulo disse
às pessoas que ele deveria ir para a Espanha depois de sua prisão romana
284
mencionada em Atos. Em sua carta aos Romanos, Paulo disse duas vezes
a eles que ele queria ir para a Espanha (Rom 15:24, 28):
22Pelo que também muitas vezes tenho sido impedido de ir ter
convosco; 23mas agora, não tendo mais o que me detenha nestas
regiões, e tendo já há muitos anos grande desejo de ir visitar-
vos, 24eu o farei quando for à Espanha; pois espero ver-vos de
passagem e por vós ser encaminhado para lá, depois de ter gozado um
pouco da vossa companhia. 25Mas agora vou a Jerusalém para
ministrar aos santos. 26Porque pareceu bem à Macedônia e à Acaia
levantar uma oferta fraternal para os pobres dentre os santos que
estão em Jerusalém. 27Isto pois lhes pareceu bem, como devedores
que são para com eles. Porque, se os gentios foram participantes das
bênçãos espirituais dos judeus, devem também servir a estes com as
materiais. 28Tendo, pois, concluído isto, e havendo-lhes consignado
este fruto, de lá, passando por vós, irei à Espanha. (Romanos 15:22-
28).
Por que a Espanha é importante para nós, e por que Paulo queria
muito ir para lá? Nos dias de Paulo, a Espanha estava onde era
Tarshish. Tarshish era uma colônia Fenícia que depois se transformou
na Espanha.
A importância é profunda: Paulo estava convencido de que a
missão da sua vida como apóstolo aos gentios, as nações deserdadas, só
terminaria quando ele fosse à Espanha. Por mais incrível que isso
pareça, Paulo tinha consciência de que sua missão para Jesus
verdadeiramente envolvia espalhar o evangelho para a parte mais
ocidental do mundo conhecido, Tarshish, de maneira que a deserdação
em Babel pudesse ser revertida.
A PLENITUDE DOS GENTIOS
Paulo mostrou essa crença em Romanos 11, mesmo antes de ter
dito aos seus leitores que queria ir para a Espanha (Romanos 15:24, 28).
Discernir isso requer observar como Paulo está lidando com certas
passagens do VT sobre o reclame das nações, os gentios.

285
25Porque não quero, irmãos, que ignoreis este mistério (para que não
presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre
Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado; 26e assim todo o
Israel será salvo, como está escrito: Virá de Sião o Libertador, e
desviará de Jacó as impiedades; 27e este será o meu pacto com eles,
quando eu tirar os seus pecados. (Romanos 11:25-27).
Paulo diz: “Quero que vocês entendam esse mistério”. Que
mistério? Que a própria porção de Deus e seu filho, Israel, endureceu seu
coração. Por quanto tempo? “Até que a plenitude dos gentios haja
entrado”. Por que é importante que essa inclusão dos gentios aconteça?
“Assim todo o Israel será salvo”. Paulo inclui as pessoas das nações
deserdadas em Israel, a família de Yahweh. Essa reunião familiar só
acontecerá quando “o libertador vier de Sião”.
Mas por que Paulo ligaria a “o número total de gentios” com a
Espanha (Tarshish)? Por que ele acreditava que sua vida e ministério não
terminariam até que ele fosse para lá? Porque ele conhecia Isaías 66:15-
23. A passagem tem várias correlações com os eventos em Pentecostes,
e não apenas a respeito de Atos 2, mas outras passagens também.
(Lembrem-se que no último capítulo, vimos como Salmos 68, incluindo
a conquista de Basã, foi citada por Paulo em Efésios 4 sobre a vitória de
Jesus e a chegada do Espírito em Pentecostes). Listei essas correlações
na tabela abaixo e inseri notas de rodapé para guiar nossa leitura.

Isaías 66:15-23 Outras Passagens e Notas


15Pois, eis que o Senhor virá com fogo, 2De repente veio do céu um ruído,
e os seus carros serão como o como que de um vento impetuoso,
torvelinho, para retribuir a sua ira com e encheu toda a casa onde estavam
furor, e a sua repreensão com chamas sentados. 3E lhes apareceram umas
de fogo.
línguas como que de fogo, que se
16Porque com fogo e com a sua espada distribuíam, e sobre cada um deles
entrará o Senhor em juízo com toda a pousou uma. (Atos 2:2-3).
carne; e os que forem mortos pelo
Senhor serão muitos. 15Monte grandíssimo é o monte de
Basã; monte de cimos numerosos é o
monte de Basã! 16Por que estás, ó

286
monte de cimos numerosos, olhando
com inveja o monte que Deus desejou
para sua habitação? Na verdade o
Senhor habitará nele eternamente.
17Os carros de Deus são miríades,
milhares de milhares. O Senhor está
no meio deles, como em Sinai no
santuário. 18Tu subiste ao alto,
levando os teus cativos; recebeste
dons dentre os homens, e até dentre
os rebeldes, para que o Senhor Deus
habitasse entre eles. (Salmos 68:15-
18).
18Pois eu conheço as suas obras e os seus 5Habitavam então em Jerusalém
pensamentos; vem o dia em que judeus, homens piedosos, de todas
ajuntarei todas as nações e línguas; e as nações que há debaixo do céu.
elas virão, e verão a minha glória. 6Ouvindo-se, pois, aquele ruído,
ajuntou-se a multidão; e estava
confusa, porque cada um os ouvia
falar na sua própria língua. (Atos
2:5-6).
19Porei entre elas um sinal, e os que dali Capadócia, o Ponto e a Ásia, 10a
escaparem, eu os enviarei às nações, a Frígia e a Panfília, o Egito e as partes
Társis, Pul, e Lude, povos que atiram da Líbia próximas a Cirene. (Atos
com o arco, a Tubal e Javã, até as ilhas 2:9-10).
de mais longe, que não ouviram a minba
fama, nem viram a minha glória; e eles
anunciarão entre as nações a minha
glória.
20E trarão todos os vossos irmãos,
dentre todas as nações, como oblação
ao Senhor; sobre cavalos, e em carros, e
em liteiras, e sobre mulas, e sobre
dromedários, os trarão ao meu santo
monte, a Jerusalém, diz o Senhor,
como os filhos de Israel trazem as suas
ofertas em vasos limpos à casa do
Senhor. 21E também deles tomarei Veja a missão de Paulo como apóstolo
alguns para sacerdotes e para levitas, diz dos gentios.
o Senhor.

22Pois, como os novos céus e a nova


terra, que hei de fazer, durarão diante de
mim, diz o Senhor, assim durará a vossa
posteridade e o vosso nome. 23E
acontecerá que desde uma lua nova até a
287
outra, e desde um sábado até o outro,
virá toda a carne a adorar perante
mim, diz o Senhor.

Por que Paulo queria ir para a Espanha (Társis)? Paulo via seu
ministério como o cumprimento da profecia de Isaías 66, onde Yahweh
pegaria pessoas de todas as nações para serem seus filhos. Paulo
acreditava que ele era o instrumento para trazer a “plenitude dos
gentios” que resultaria em todos os verdadeiros Israelitas, aqueles que
criam em Jesus, sendo salvos (Romanos 11:25-27). Társis é listada em
Isaías 66, mas não está representada nos nomes em Pentecostes. O
ponto mais longínquo ocidental na lista de Pentecostes é Roma (Atos
2:10). Paulo sabia que a Espanha (Társis) era parte da missão de Isaías
66. Ele precisava da Espanha para que a “oferta dos gentios se tornasse
aceitável e santificada pelo Espírito Santo” (Romanos 15:16).
E foi assim que uma sala cheia de judeus, comissionados
diretamente pelo Espírito, saíram e começaram o processo através do
qual as nações deserdadas seriam trazidas de volta à família de Yahweh.
Pentecostes marcou o início de uma marcha imparável através do
mundo conhecido, e nosso mundo, um mundo que eles não conheciam,
que culminaria num Éden global.

288
CAPÍTULO 35
FILHOS DE DEUS, A SEMENTE DE ABRAÃO
Devotamos muito espaço descrevendo o plano de Deus para
reclamar as nações deserdadas e restaurar o seu governo. Vamos revisar:
a intenção original de Yahweh era a de que toda a humanidade fosse sua
família terrena, governando em cooperação com ele e sua família
celestial. O Velho Testamento descreve a ruína do desejo de Yahweh
através de séries de rebeliões primitivas. Mas o objetivo original não foi
destruído, só adiado. Depois da rebelião em Babel, Yahweh deixou de
lado as nações e chamou Abraão para começar uma nova.
Mesmo quando Yahweh começou seu plano de reinado com esse
único homem e sua esposa, haviam pistas de que as nações não haviam
sido esquecidas, na verdade, Deus disse que através de Abraão, todas as
nações seriam abençoadas (Gên 12:3). O ponto central dessa bênção
seria o último filho de Abraão, o messias. Depois de sua ressurreição, o
Espírito prometido por Jesus, e pelos profetas de antigamente, veio a
Pentecostes e começou a grande reviravolta. O evangelho foi levado para
todas as nações do mundo conhecido, transformando homens e
mulheres mantidos como reféns de outros deuses em filhos e filhas de
Yahweh.
SE VOCÊ É DE CRISTO, VOCÊ É DA SEMENTE DE ABRAÃO
Vimos no capítulo anterior que Paulo entendia o plano de
infiltração de Deus no início de Pentecostes e, uma vez confrontado por
Jesus na estrada para Damasco, seu próprio papel nesse plano. Em suas
cartas ele se refere a isso como um ministério, a via pela qual Deus
poderia fazer um gentio, um membro das nações deserdadas, se tornar
um membro da família que ele havia começado com Abraão. Ao invés de
seres deserdados por Yahweh, os gentios eram agora coerdeiros do
verdadeiro Deus. A carta de Paulo para a igreja dos gentios
predominantemente em Éfeso é um exemplo:
1Por esta razão eu, Paulo, o prisioneiro de Cristo Jesus por amor de vós
gentios... 2Se é que tendes ouvido a dispensação da graça de Deus,
que para convosco me foi dada; 3como pela revelação me foi
289
manifestado o mistério, conforme acima em poucas palavras vos
escrevi, 4pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha
compreensão do mistério de Cristo, 5o qual em outras gerações não
foi manifestado aos filhos dos homens, como se revelou agora no
Espírito aos seus santos apóstolos e profetas, 6a saber, que os gentios
são co-herdeiros e membros do mesmo corpo e co-participantes da
promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho. (Efésios 3:1-6).
A mensagem de Paulo à igreja na Gálata também foi dramática:
6Assim como Abraão creu a Deus, e isso lhe foi imputado como
justiça. 7Sabei, pois, que os que são da fé, esses são filhos de
Abraão. 8Ora, a Escritura, prevendo que Deus havia de justificar pela
fé os gentios, anunciou previamente a boa nova a Abraão, dizendo: Em
ti serão abençoadas todas as nações. 9De modo que os que são da fé
são abençoados com o crente Abraão.... 26Pois todos sois filhos de Deus
pela fé em Cristo Jesus. 27Porque todos quantos fostes batizados em
Cristo vos revestistes de Cristo. 28Não há judeu nem grego; não há
escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois
um em Cristo Jesus. 29E, se sois de Cristo, então sois descendência de
Abraão, e herdeiros conforme a promessa. (Gálatas 3:6-9, 26-29).
Em Cristo, os crentes são os “filhos de Deus”. A linguagem da
herança é bem clara. Ela deriva de e avança na ideia do Velho
Testamento de que os humanos foram feitos para estar na família de
Deus desde sempre. Não é coincidência que os escritores do NT
repetidamente descrevem a salvação dentro da família de Yahweh com
palavras como: “adoção”, “herdeiros” e “herança” para descrever o que a
Igreja realmente é, a família divina-humana reconstituída de Deus. O
destino de um crente é o de se tornar o que Adão e Eva originalmente
eram: imortais, imagens glorificadas de Deus, viver na presença de Deus
como seus filhos. A mensagem teológica é inequívoca no contexto da
épica história que estudamos no Velho Testamento:
11Veio para o que era seu, e os seus não o receberam. 12Mas, a todos
quantos o receberam, aos que crêem no seu nome, deu-lhes o poder de
se tornarem filhos de Deus; 13os quais não nasceram do sangue, nem

290
da vontade da carne, nem da vontade do varão, mas de Deus. (João
1:11-13).
1Vede que grande amor nos tem concedido o Pai: que fôssemos
chamados filhos de Deus; e nós o somos. Por isso o mundo não nos
conhece; porque não conheceu a ele. 2Amados, agora somos filhos de
Deus, e ainda não é manifesto o que havemos de ser. Mas sabemos que,
quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele; porque assim
como é, o veremos. (1 João 3:1-2).
4mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho, nascido de
mulher, nascido debaixo de lei, 5para resgatar os que estavam
debaixo de lei, a fim de recebermos a adoção de filhos. 6E, porque sois
filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que
clama: Aba, Pai. 7Portanto já não és mais servo, mas filho; e se és
filho, és também herdeiro por Deus. (Gálatas 4:4-7).
15Porque não recebestes o espírito de escravidão, para outra vez
estardes com temor, mas recebestes o espírito de adoção, pelo qual
clamamos: Aba, Pai! 16O Espírito mesmo testifica com o nosso
espírito que somos filhos de Deus; 17e, se filhos, também herdeiros,
herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo; se é certo que com ele
padecemos, para que também com ele sejamos glorificados. (Romanos
8:15-17).
4como também nos elegeu nele antes da fundação do mundo, para
sermos santos e irrepreensíveis diante dele em amor; 5e nos
predestinou para sermos filhos de adoção por Jesus Cristo, para si
mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade. (Efésios 1:4-5).
Estamos acostumados, é claro, a pensarmos na Igreja como o
“corpo de Cristo”. E isso certamente está certo. Mas esse termo nos
mostra a metáfora da família. A ideia da Igreja sendo “o corpo de Cristo”
reflete a verdade que está através da encarnação física de Cristo, sua
morte física, e a ressurreição física que os crentes, judeus ou gentios, se
tornam membros da família de Deus. Citando Paulo mais uma ver: “6a
saber, que os gentios são co-herdeiros e membros do mesmo corpo e co-
participantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho”.
(Efésios 3:6).
291
É Cristo quem funde os filhos escolhidos de Deus da linha de
Abraão aos filhos de Deus chamados das nações. Seu trabalho na cruz é
onde os exilados e os deserdados se encontram, formando uma nova
entidade. Mas esse é só um aspecto de quem nós somos.
AUTORIDADE HERDADA: Uma Participação nos Negócios da
Família
Os crentes são mais do que a família de Deus. Sermos “os filhos
de Deus” também significa sermos membros do governo de Deus, seu
conselho. Os crentes possuem um propósito divinamente apontado.
Adão e Eva deveriam ter supostamente transformado todo o mundo no
Éden, para espalhar o governo de Deus de maneira que pudéssemos nos
regozijar no amor de Deus, nosso Pai. E isso não mudou.
Lembrem-se que, no pensamento israelita antigo, a casa de Deus
não era só aonde sua família vivia, mas também onde o conselho se
encontrava. O lugar era um só e o mesmo, e os membros eram os
mesmos. E assim está no Novo Testamento. Enquanto os escritores do
NT empregam termos familiares para descrever a Igreja, também não é
coincidência eles usarem a terminologia do VT que nos associaria ao
conselho divino. Efésios 5:1:5, 11-19 é um lugar para começarmos:
5e nos predestinou para sermos filhos de adoção por Jesus Cristo, para
si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade... 11nele, digo, no qual
também fomos feitos herança, havendo sido predestinados conforme o
propósito daquele que faz todas as coisas segundo o conselho da sua
vontade, 12com o fim de sermos para o louvor da sua glória, nós, os
que antes havíamos esperado em Cristo; 13no qual também vós, tendo
ouvido a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação, e tendo
nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da
promessa, 14o qual é o penhor da nossa herança, para redenção da
possessão de Deus, para o louvor da sua glória. 15Por isso também eu,
tendo ouvido falar da fé que entre vós há no Senhor Jesus e do vosso
amor para com todos os santos, 16não cesso de dar graças por vós,
lembrando-me de vós nas minhas orações, 17para que o Deus de nosso
Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria e de
revelação no pleno conhecimento dele; 18sendo iluminados os olhos
292
do vosso coração, para que saibais qual seja a esperança da sua
vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos, 19e
qual a suprema grandeza do seu poder para conosco, os que cremos,
segundo a operação da força do seu poder.
A tradução em português obscurece uma importante conexão do
VT de volta ao conselho divino. A palavra para “santos” no versículo 18
(e em outros lugares no NT) é hagioi, que significa “sagrados”. Paulo diz
aos Efésios que os crentes têm uma herança gloriosa entre os sagrados.
Já discutimos o termo “sagrados” no VT antes. Ele é usado para
seres divinos no conselho divino de Yahweh (Jó 5:1; 15:15; Sl 89:5-7;
Zacarias 14:5). O termo hebraico é qedoshim. O Septuaginta, a tradução
grega do VT usada pelos escritores do NT, traduz esse termo com hagioi,
a mesma palavra que está em Efésios 1:18. Também vimos antes que o
VT usa qedoshim para pessoas, especificamente os israelitas crentes,
aqueles que não adoravam outros deuses trazendo o desastre do exílio
(Sl 16:3; 34:8; Lev 26:14-33).
Já vimos anteriormente, no capítulo 30, que ambos os usos se
juntam de forma crucial num capítulo, em Daniel 7. O capítulo mostra a
figura do segundo Yahweh em forma humana, o filho do homem,
recebendo um reino eterno do Ancião dos Dias entronado. O reino
também foi dado aos sagrados, tanto divinos quanto humanos (Dan
7:22, 27). A passagem mostra o acontecimento de uma junta governando
o reino de Deus.
Paulo ecoa isso através de sua carta aos Efésios quando ele diz
que temos uma herança dentre os sagrados. Não somos apenas herdeiros
e filhos da família divina de Deus, mas herdamos o direito de governar e
reinar com Jesus. Paulo descreveu a herança de nosso reino em
Colossenses 1:11-13. Ele ora para os leitores sejam
11corroborados com toda a fortaleza, segundo o poder da sua glória,
para toda a perseverança e longanimidade com gozo; 12dando
graças ao Pai que vos fez idôneos para participar da herança dos
santos na luz, 13e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou
para o reino do seu Filho amado; 14em quem temos a redenção, a
saber, a remissão dos pecados.
293
Uma vez que as nações foram restauradas a Yahweh através do
evangelho, os crentes irão substituir os seres divinos que atualmente
dominam as nações e governarão no lugar deles como filhos de Yahweh
e co-governantes. Como Paulo escreveu em outro lugar, os crentes irão
“julgar os anjos” (1 Coríntios 6:3). O apóstolo João é direto em
Apocalipse 2:
25mas o que tendes, retende-o até que eu venha. 26Ao que vencer, e
ao que guardar as minhas obras até o fim, eu lhe darei autoridade
sobre as nações, 27e com vara de ferro as regerá, quebrando-as do
modo como são quebrados os vasos do oleiro, assim como eu recebi
autoridade de meu Pai; 28também lhe darei a estrela da manhã.
(Apocalipse 2:25-28).
O poder dessa mensagem é encontrado na citação de João (v. 27)
de Salmos 2, a qual descreve o reino do messias. Antes de apresentar seu
rei messiânico: “e com vara de ferro as regerá”, Yahweh diz a ele:
“7Falarei do decreto do Senhor; ele me disse: Tu és meu Filho, hoje te
gerei. 8Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e as extremidades
da terra por possessão” (Salmos 2:7-8). Jesus, o messias, herda o reino
eterno, e então o compartilha com seus filhos, “aqueles que forem
vencedores” até o seu retorno. João nos diz diretamente no seu próximo
capítulo (Apocalipse 3:21) que aqueles que vencerem, governarão e
reinarão com Jesus:
20Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz, e abrir a
porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei, e ele comigo. 21Ao que
vencer, eu lhe concederei que se assente comigo no meu trono, como
também venci e me sentei com meu Pai em seu trono. (Apocalipse 3:20-
21).
O destino do crente não é apenas um lugar na casa de Deus, mas
dominar com Jesus “entre os sagrados” (Efésios 1:18).
NT: em inglês, as palavras “saints” e “holy ones” são traduzidas para o
português da mesma forma, como “santos”. Mas “holy ones” em inglês
é algo ainda mais especial e, por isso, tomei a liberdade para traduzir
como “sagrados”, tentando denotar algo acima de “santos”.

294
A ESTRELA DA MANHÃ
Apocalipse 2:28, citado acima, tem uma frase incomum na
passagem. Àquele que vencer, Jesus diz: “lhe darei a estrela da manhã”.
Essas palavras estranhas reforçam a ideia de nossa junta governamental
com Jesus sobre as nações.
A frase “estrela da manhã” nos leva de volta mais uma vez ao
Velho Testamento, que às vezes usa terminologias astrais para descrever
seres divinos. Jó 38:7 é o melhor exemplo (“quando juntas cantavam as
estrelas da manhã, e todos os filhos de Deus bradavam de júbilo”).
Estrelas são brilhantes e, na visão mundial dos antigos, seres divinos
viventes, uma vez que eles se moviam no céu e estavam além do reino
humano.
A linguagem de estrela da manhã em Apocalipse 2:28 é
messiânica, ela se refere a um ser divino que viria de Judá. Sabemos
disso ao considerarmos duas outras passagens em sequência.
Em Números 24:17, lemos na profecia que “uma estrela saiu de
Jacó, e um cetro nascerá de Israel”. Números 24:17 era considerado
messiânico no judaísmo, completamente conhecido dos escritores do
NT. Em outras palavras, leitores letrados dos escritos do João teriam
conhecido a referência da estrela da manhã não apenas sobre o seu
brilho literal. Era sobre o surgimento do reino de Deus retornando sob
seu messias. Mais tarde, no livro de Apocalipse, o próprio Jesus se refere
à sua posição messiânica com a linguagem da estrela da manhã: “16Eu,
Jesus, enviei o meu anjo para vos testificar estas coisas a favor das
igrejas. Eu sou a raiz e a geração de Davi, a resplandecente estrela da
manhã”. (Apocalipse 22:16).
As palavras de Apocalipse 2 são especialmente poderosas quando
lidas contra esse fundo. Jesus não apenas diz que ele é a estrela da manhã
messiânica em Apocalipse 22:16, mas quando ele diz: “lhes darei (aos
vencedores) a estrela da manhã” (Apocalipse 2:28), ele nos garante a
autoridade de governar com ele.
Por mais dramáticos que esses pensamentos sejam, veremos um
que supera todos eles no próximo capítulo. Não somos apenas os filhos
295
de Deus e seus co-governantes com seu Filho. Somos os irmãos de Jesus,
e cada um de nós se encontrará no conselho com ele ao nosso lado.

296
CAPÍTULO 36
MENORES QUE OS ELOHIM
O último capítulo nos deixou com um pensamento que muda
nossas vidas: nós somos os filhos de Deus, destinados a substituir os
desleais e derrotados filhos de Deus que agora governam as nações. Os
seguidores que creem em Jesus Cristo são o cumprimento do plano de
Deus para que a humanidade se junte ao conselho familiar divino e
restaure o Éden.
Mas essa não é a história toda. Fomos feitos como Ele (1 João 3:1-
3). Nos tornaremos divinos. Nesse capítulo irei desdobrar isso em mais
detalhes, explicando o que isso significa e o que não significa, começando
com nossa introdução ao conselho divino após a morte, ou em vida se
estivermos vivos quando Jesus voltar.
JESUS, ANJOS E NÓS
Nenhuma outra passagem no Novo Testamento é tão poderosa
nessa teologia de conselho divino quanto a de Hebreus 1-2. Quando você
compreende essa visão sobre o conselho divino, esses capítulos
explodem. Vocês reconhecerão vários termos e ideias que já cobrimos
até aqui.
Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras,
aos pais, pelos profetas, a nós falou-nos nestes últimos dias pelo Filho,
A quem constituiu herdeiro de tudo, por quem fez também o mundo. O
qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua
pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder,
havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-
se à destra da majestade nas alturas;Feito tanto mais excelente do que
os anjos, quanto herdou mais excelente nome do que eles. Hebreus 1:1-
4
Jesus está acima de todas as coisas, pois Ele é Yahweh, feito carne para
prover uma maneira segura de restaurar o lugar da humanidade em
posição de governo num Éden global. Ele é superior aos anjos (v. 4). O
escritor explica nos versículos 5 e 6:

297
Porque, a qual dos anjos disse jamais: Tu és meu Filho, Hoje te gerei?
E outra vez: Eu lhe serei por Pai, E ele me será por Filho? E outra vez,
quando introduz no mundo o primogênito, diz:E todos os anjos de Deus
o adorem. Hebreus 1:5,6
Jesus é superior aos anjos, pois ele foi “gerado” como o filho de
Deus. O termo é antiquado e raramente usado no português moderno.
Ele tem um amplo número de significados, desde procriação a um mais
ambíguo de “trazido aqui”. Referente a Jesus, o termo não pode ser
usado como para um ser criado em algum ponto no tempo. Jesus é o
próprio Yahweh em forma humana, uma ideia que é derivada do Velho
Testamento.
A melhor forma de entender esse termo é o “trazido aqui” no
sentido de revelado de forma única, e dessa forma, a completa
encarnação de Yahweh. Jesus é o único filho divino que merece
adoração, pois ele é a essência incriada de Yahweh num corpo humano,
agora ressuscitado dos mortos.
Devido à falha de Israel no curso das tentativas de Deus de
reviver seu plano e governo edênicos, vemos que Ele adotou uma nova
estratégia que não iria falhar. O Velho Testamento conhece isso como a
nova aliança (Jeremias 31:31-33), uma aliança na qual o Espírito iria
instilar o governo de Deus nos corações dos crentes. Deus só dependeria
de Si mesmo.
Devido ao fato de o plano original de Deus incluir a participação
humana, a humanidade não poderia simplesmente ser deixada de lado.
A solução seria se tornar homem e precisar fazer o que fosse necessário
para inaugurar um novo Éden. E assim Ele fez. O próprio Deus se tornou
homem em Jesus de Nazaré. Sua morte e ressurreição foram o
catalizador. É por isso que Jesus, na Última Ceia, se referiu à nova
aliança em termos de seu corpo e sangue. O resultado da obediência de
Jesus até a morte, ressurreição e a chegada do Espírito é explicada pelo
escritor de Hebreus, que usa o plano de Deus para explicar a distinção
entre Jesus e os anjos:
E, quanto aos anjos, diz: Faz dos seus anjos espíritos, E de seus
ministros labareda de fogo. Mas, do Filho, diz: Ó Deus, o teu trono
298
subsiste pelos séculos dos séculos; Cetro de eqüidade é o cetro do teu
reino. Amaste a justiça e odiaste a iniqüidade; por isso Deus, o teu Deus,
te ungiu Com óleo de alegria mais do que a teus companheiros. E: Tu,
Senhor, no princípio fundaste a terra, E os céus são obra de tuas mãos.
Eles perecerão, mas tu permanecerás; E todos eles, como roupa,
envelhecerão, E como um manto os enrolarás, e serão mudados. Mas
tu és o mesmo, E os teus anos não acabarão. E a qual dos anjos disse
jamais: Assenta-te à minha destra, Até que ponha a teus inimigos por
escabelo de teus pés? Não são porventura todos eles espíritos
ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de
herdar a salvação? Hebreus 1:7-14
Perceberam as diferenças? Jesus herda o governo e o domínio, os
anjos não. Anjos são “espíritos de ministração” os quais servem aos
crentes humanos que herdaram a salvação e são adotados para a família
de Yahweh.
Coloque isso contra o que aprendemos no capítulo anterior, isso
é bombástico. Nós somos os unidos à Cristo, não os anjos. Nós somos
aqueles que receberão a estela da manhã, a credencial para governar,
dados pelo próprio Jesus. Nós somos aqueles que serão colocados sobre
as nações. Para ecoar Paulo mais uma vez: Não entenderam que irão
julgar os anjos? (1 Coríntios 6:3).
O escritor de Hebreus entendeu.
JESUS, NOSSO IRMÃO NO CONSELHO
Hebreus 2 desenvolve sobre a superioridade de Cristo e suas
implicações para os crentes.
Portanto, convém-nos atentar com mais diligência para as coisas que
já temos ouvido, para que em tempo algum nos desviemos delas.
Porque, se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda a
transgressão e desobediência recebeu a justa retribuição, Como
escaparemos nós, se não atentarmos para uma tão grande salvação, a
qual, começando a ser anunciada pelo Senhor, foi-nos depois
confirmada pelos que a ouviram; estificando também Deus com eles,

299
por sinais, e milagres, e várias maravilhas e dons do Espírito Santo,
distribuídos por sua vontade? Hebreus 2:1-4
A palavra falada pelos anjos foi “toda a transgressão e
desobediência recebeu a justa retrubuição”? É claro, o conselho divino
estava lá no Sinai testemunhando a entrega da Lei. Sinias, maravilhas,
milagres e as distribuições do Espírito Santo? Lembram-se de
Pentecostes e a conquista de Bashan? Paulo viu a chegada do Espírito
em Pentecostes como o cumprimento da derrota de Bashan, que
simbolizava as forças da escuridão (Efésios 4:8-10).
A chegada do Espírito de Pentecostes foi, com certeza, o
lançamento do reclame das nações. Hebreus 2: 5-8 nos fala da chegada
final dessa repossessão e governo dessas naçòes pelos crentes, a quem o
preeminente Cristo deu a autoridade:
Porque não foi aos anjos que sujeitou o mundo futuro, de que falamos.
Mas em certo lugar testificou alguém, dizendo:Que é o homem, para
que dele te lembres?Ou o filho do homem, para que o visites? Tu o fizeste
um pouco menor do que os anjos,De glória e de honra o coroaste,E o
constituíste sobre as obras de tuas mãos; Todas as coisas lhe sujeitaste
debaixo dos pés.Ora, visto que lhe sujeitou todas as coisas, nada deixou
que lhe não esteja sujeito. Mas agora ainda não vemos que todas as
coisas lhe estejam sujeitas. Hebreus 2:5-8
Notem que Hebreus é claro, a Terra não foi criada para estar
sujeita aos membros da família divina de Deus, mas à sua família
humana. O conselho estava com Deus no Éden, e então o céu e a terra
deveriam estar transpostos, mas a tarefa de administrar o bom mundo
de Deus era nossa. E isso apesar do fato de sermos seres menores
quando comparados à família divina do conselho de Deus.
O Velho Testamento citado em Hebreus 2: 6-8 é Salmos 8: 4-6.
Lemos em Hebreus que a humanidade foi criada “um pouco abaixo que
os elohim”. E era assim no Éden. Os humanos eram menores que os
elohim, mas o plan ode Deus era o de elevar a humanidade para ser
incluída em Sua família, e tomar conta do domínio da nova terra de
Deus.

300
Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito
um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão da morte, para
que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos. Hebreus 2:9
O segundo Yahweh de Hebreus 1, que é a essência de Yahweh,
encarnou como homem para experimentar a morte por todos nós. E uma
vez que ele se tornou homem, nós somos seus irmãos. Algum dia, Jesus
irá nos apresentar ao conselho, sem vergonha de nossa condição
humana. Ele se tornou o que somos para que nós pudéssemos nos tornar
o que ele é.
Porque convinha que aquele, para quem são todas as coisas, e mediante
quem tudo existe, trazendo muitos filhos à glória, consagrasse pelas
aflições o príncipe da salvação deles. Porque, assim o que santifica,
como os que são santificados, são todos de um; por cuja causa não se
envergonha de lhes chamar irmãos, Dizendo:Anunciarei o teu nome a
meus irmãos,Cantar-te-ei louvores no meio do conselho. E outra vez:
Porei nele a minha confiança. E outra vez: Eis-me aqui a mim, e aos
filhos que Deus me deu. E, visto como os filhos participam da carne e
do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela
morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo; E
livrasse todos os que, com medo da morte, estavam por toda a vida
sujeitos à servidão. Hebreus 2:10-15
Esse texto é incrível. O versículo 10 fala de Jesus como co-criador
de Deus, e mesmo assim ele se tornou humano. Esse mesmo Jesus
trouxe muitos filhos para dentro da família divina. Longe de se
envergonhar perante os elohim de seu próprio conselho ao se tornar
humano, se tornando menor por pouco tempo, Jesus se revela nele.
Estando no conselho (“no meio da assembleia/conselho/congregação”)
ele nos representa: Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu.
Estamos todos juntos agora, para sempre. E esse era o plano desde o
início:
Porque, na verdade, ele não tomou os anjos, mas tomou a descendência
de Abraão. Por isso convinha que em tudo fosse semelhante aos irmãos,
para ser misericordioso e fiel sumo sacerdote naquilo que é de Deus,

301
para expiar os pecados do povo. Porque naquilo que ele mesmo, sendo
tentado, padeceu, pode socorrer aos que são tentados. Hebreus 2:16-18
SEREMOS COMO ELE
Se juntar à família divina de Deus está intrinsecamente ligado ao
conceito do Novo Testamento de se tornar como Jesus, tornando-se
divino. O termo acadêmico que descreve esse ponto da teologia bíblica
se chama “theosis”. Como escreveu um teólogo evangélico uma vez:
“A ideia de divinização, da natureza humana redimida que de alguma
forma participará do mesmo tipo de vida de Deus, é encontrado de forma
surpreendentemente extensa na história Cristã, embora ela seja
praticamente desconhecida da maioria dos Cristãos (e até mesmo de
muitos teólogos) no ocidente”.
O conceito de “theosis” possui raízes bíblicas fortes, e se estende
desde o entendimento da existência do conselho divino, especificamente
o aspecto do objetivo original edênico de ter humanos se juntando à
família divina. No início, Deus fez os humanos a Sua imagem, para
sermos como Ele, e morarmos com Ele. Ele nos fez como Suas imagens
divinas e veio à terra para unir Suas famílias, elevando a humanidade
para compartilhar sua vida divina em um novo mundo.
A mensagem da “theosis” é essa, de que em Cristo, seremos
transformados para sermos como Ele, a imagem perfeita de Deus. O
Espírito, o qual já vimos mais cedo em nosso estudo, “é e não é” Jesus,
pois está de conformidade com a própria imagem de Jesus. As Escrituras
são claras ao afirmar que a imortalidade como humanos divinizados são
o destino dos crentes, e que nossas atuais vidas em Cristo são um
processo para nos tornarmos o que realmente somos:
Porque os que dantes conheceu também os predestinou para serem
conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito
entre muitos irmãos. Romanos 8:29
Ora, o Senhor é o Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há
liberdade. Mas todos nós, com rosto descoberto, refletindo como um

302
espelho a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória
na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor. 2 Coríntios 3:17,18
Amados, agora somos filhos de Deus, e ainda não é manifestado o que
havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar, seremos
semelhantes a ele; porque assim como é o veremos. 1 João 3:2
Graça e paz vos sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de
Jesus nosso Senhor; Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que
diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos
chamou pela sua glória e virtude; Pelas quais ele nos tem dado
grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas fiqueis
participantes da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que
pela concupiscência há no mundo. 2 Pedro 1:2-4
Semeia-se corpo natural, ressuscitará corpo espiritual. Se há corpo
natural, há também corpo espiritual. Assim está também escrito: O
primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em
espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o natural;
depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo
homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os
terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais.
E, assim como trouxemos a imagem do terreno, assim traremos
também a imagem do celestial. E agora digo isto, irmãos: que a carne
e o sangue não podem herdar o reino de Deus, nem a corrupção herdar
a incorrupção. Eis aqui vos digo um mistério: Na verdade, nem todos
dormiremos, mas todos seremos transformados; Num momento, num
abrir e fechar de olhos, ante a última trombeta; porque a trombeta
soará, e os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos
transformados. Porque convém que isto que é corruptível se revista da
incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade.
E, quando isto que é corruptível se revestir da incorruptibilidade, e isto
que é mortal se revestir da imortalidade, então cumprir-se-á a palavra
que está escrita: Tragada foi a morte na vitória. 1 Coríntios 15:44-54
E então foi assim quando o plano original de Deus foi arruinado
pela rebelião, Deus não destruiu a humanidade, mas prometeu que, um
dia, um ser humano iria reverter a queda. Quando ele teve que deserdar
303
a humanidade em Babel, ele não abandonou a raça humana. Ao invés
disso, ele foi tão “cuidadoso com os descendentes de Abraão” (Hebreus
2:16) que ele se tornou homem.

304
CAPÍTULO 37
ISSO SIGNIFICA GUERRA
Nos últimos capítulos, nós devotamos atenção à inauguração do
reino de Deus. O plano de Yahweh de reviver o programa edênico foi
lançado como parte de sua nova aliança se tornando homem para
garantir o sucesso onde Israel falhou. O bom governo de Yahweh iria se
espalhar pelo globo como foi o intuito original.
Seria um erro, no entanto, presumir que os deuses das nações
não iriam resistir, ou que viriam essa resistência como algo sem sentido.
Não era essa a visão espiritual que o mundo do Novo Testamento nos
apresenta.
Embora tendo seus domínios sido dados por Yahweh, os elohim
governaram de maneira corrupta e não mantiveram lealdade ao
Altíssimo. Ao invés disso, eles abraçaram sua própria adoração, a qual
deveria ser dada apenas a Yahweh (Deut 17:3; 29:25).
Embora Yahweh tivesse dito a esses elohim que eles morreriam
como homens (Salmos 82:6-8), que Ele iria tirar deles a sua
imortalidade, não há indicações de que essa ameaça tenha gerado
oposição a Yahweh. O Novo Testamento deixa claro que, uma vez que os
poderes das trevas entenderam que eles foram derrotados pela
crucificação e ressurreição, surgiu uma sensação de que o tempo do
julgamento deles havia começado (Apocalipse 12:12).
O julgamento contra os elohim no encontro do conselho divino
em Salmos 82 foi conectado à recuperação das nações (Salmos 82:8;
“Levanta-te ó Deus, julgue a terra, pois Tu possuis todas as nações”).
Por mais longo que tenha sido o tempo que isso tenha sido revelado e
desagradado, a batalha iria continuar. E desde que Yahweh ligou essa
recuperação com a participação humana, as forças das trevas tinham
boas razões para supor que eles poderiam arrastar uma longa guerra
contra Yahweh. Yahweh viveu no meio do seu povo nos dias de Moisés e
na monarquia, e eles se afastaram Dele.

305
O Novo Testamento descreve uma batalha espiritual no mundo
invisível no início da inauguração do reino de Deus. Entendendo toda a
figura do conflito e sua correlação com o conselho divino no Velho
Testamento é o objetivo desse capítulo.
OS COMBATENTES INVISÍVEIS: Terminologia Geral
Vimos mais cedo que a Bíblia Hebraica usa o termo elohim para
falar sobre quaisquer habitantes do mundo espiritual. O mundo em si
mesmo não apresenta nenhuma diferença dentre os seres que habitam
esse reino, embora certamente há uma hierarquia presente. Yahweh, por
exemplo, é um elohim, mas nenhum outro elohim é Yahweh. Mesmo
assim, o termo elohim nos fala muito pouco sobre como o leitor da
antiguidade poderia perceber a ordem existente nesse reino invisível.
Isso também acontece com certos termos em grego que são usados no
Novo Testamento.
Quando o sujeito da batalha espiritual se apresenta, a maioria dos
estudantes das Escrituras pensam em anjos e demônios. Esses termos
são muito amplos e não nos dão muita luz sobre como os escritores do
Novo Testamento imaginavam as hierarquias e os poderes do mundo
invisível.
Existem aproximadamente 175 referências a anjos no NT
(aggelos/angelos). Como na sua contraparte hebraica (mal’ak), o termo
significa “mensageiro”. Fundamentalmente, o termo descreve uma
tarefa realizada por um ser divino, e não o que um ser divino é.
O uso do termo angelos aumentou no período do Segundo
Templo e através do NT o seu significado se tornou mais genérico,
semelhante a daimonion. Isso significa que, ele pode ser encontrado em
ocasiões fora do contexto da entrega de uma mensagem, como na
descrição de um grupo de seres divinos, como temos em Lucas 15:10.
A amplitude da semântica do uso desse termo é mostrada em
Hebreus 1:4-5; 2:7-9. Nessa segunda passagem, a palavra angelos é
usada quando o escritor cita Salmos 8:4-6, de maneira que temos
Hebreus 2:7 descrevendo a humanidade como sendo “um pouco menor
que os anjos”, e onde temos o texto em hebraico de Salmos 8:5 nos
306
dizendo que a humanidade é “um pouco menor que os elohim”.
Enquanto o texto em hebraico original pode significar que a humanidade
foi criada “um pouco menor que Deus (elohim)”, a tradução grega usada
pelo escritor de Hebreus (o Septuaginta), interpretou elohim como
plural, e traduziu a palavra com angeloi (“anjos”). Isso nos mostra que
angelos se tornou uma palavra apropriada para descrever de forma geral
um membro do reúno sobrenatural, assim como elohim é usada no Velho
Testamento.
Os dois termos gregos traduzidos como “demônio” no NT são
daimon e daimonion. Nossa palavra “demônio” é, na verdade, uma
transliteração do grego, e não uma tradução. Na literatura grega clássica,
a qual precedeu o tempo do NT, o termo daimon descreve quaisquer
seres divinos, independentemente de sua natureza (boa ou má). Um
daimon pode ser um deus ou uma deusa, alguns como menos poder
divino, ou o espírito de um ser humano morto. Dessa maneira, é
semelhante ao hebraico elohim em seu significado genérico.
O NT se mantém em silêncio sobre a origem dos demônios. Não
há nenhuma passagem que descreva a rebelião primeira antes do Éden,
onde os anjos caíram e se tornaram demônios. A origem dos demônios
em textos fora da Bíblia (como Enoque 1) é atribuída aos eventos de
Gênesis 6:1-4. Quando um Nephilim era morto nesses textos, seu
espírito sem corpo era considerado um demônio. Esses demônios então
vagam pela Terra para possuir humanos. O NT não abraça essa crença
de forma explícita, embora haja traços dessa noção, tais como a
possessão de humanos por demônios (implicando o esforço para ser re-
incorporado).
E não é surpresa que, no NT, os termos daimon e daimonion são
quase sempre usados de maneira negativa. Isso é, eles se referem ao mal,
poderes sinistros. Isso é devido ao uso desses termos no Septuaginta,
embora a influência do Judaísmo do Segundo Templo pode ser um fator.
Os tradutores do Septuaginta usaram daimon uma vez (Isaías 65:11)
para um deus estranho. Daimonion aparece nove vezes para se referir a
ídolos (Salmos 96:5; Septuaginta: 95:5) e deuses estranhos das nações
que Israel não adorava (Salmos 91:6; Septuaginta: 90:6).

307
No NT, o verbo que se equivale a esses substantivos (daimonao,
daimonizomai) se referem a ser possuído por um daimon e sempre de
maneira negativa. Daimonion aparece em paralelo a “espírito imundo”
em várias passagens (Lucas 8:29; 9:42; 4:33).
E o mais estranho é que em só um versículo da Bíblia menciona
Satanás e os demônios juntos: E, se também Satanás está dividido
contra si mesmo, como subsistirá o seu reino? Pois dizeis que eu expulso
os demônios por Belzebu. (Lucas 11:18). O versículo deixa de maneira
bem forte que Satanás possui autoridade sobre os demônios, mas não
deixa claro se todos os demônios estão sob sua autoridade ou como essa
autoridade apareceu. O VT se mantém em silêncio sobre esse problema,
uma vez que o substantivo satanás não era um nome próprio e não era
usado ao se referir ao inimigo no jardim.
OBSERVAÇÒES SOBRE O VOCABULÁRIO DE PAULO
A mesma ambiguidade em sobre a relação entre Satnás e outros
seres divinos hostis a Deus é encontrada nos escritos de Paulo. Uma vez
que Paulo menciona a postura contra as táticas do demônio da mesma
forma que lista outros termos para inimigos sobrenaturais, Efésios 6:11-
12 nos informa que existe uma relação, mas não a descreve de forma
específica.
Passagens similares que muitos leitores da Bíblia presumem
serem claras sobre esse assunto, na verdade não são. Por exemplo, 2
Coríntios 4:4 se refere ao “deus deste século” que está cegando a
humanidade. Quase todos os estudiosos identificam essa figura como
Satanás, mas esse nome não aparece no versículo ou no contexto.
Adicionalmente, a frase “deus deste século” pode se referir ao próprio
Deus. É possível que o versículo venha de Isaías 6:9-10 (Septuaginta),
onde é Deus quem cega os olhos daqueles que não creem.
Efésios 2:2 fala sobre “o príncipe das potestades do ar”, outro
versículo associado a Satanás e que, sob exame minuscioso, não inclui
quaisquer referências a esse nome ou a demônios.
É difícil sabermos precisamente o que Paulo está pensando aqui.
Relembrem de nossa discussão anterior sobre o rebelde original em
308
Gênesis 3 o qual foi lançado à “terra” (Hebraico: erets, um tremo que
pode se referir ao solo ou ao Sheol). Seria entendível vermos esse rebelde
divino particular como senhor (o primeiro a se rebelar e sua autoridade)
da terra. Esse senhorio poderia até mesmo ter se extendido ao “ar” (os
céus), uma vez que o espaço era considerado pela cosmologia israelita
antiga como um domnínio abaixo de Deus, e que estava acima das águas
da terra (Jó 22:13, Amós 9:6, Salmos 29:10 e 148:4).
No entanto, se Paulo estava pensando mais em termos da
cosmologia greco-romana, essa exlplicação é falha, uma vez que o ar era
“a região abaixo da lua e acima da terra”. A ideia de Paulo usar um fundo
gerco-romano para essa frase pode ter suporte em outra termo usado por
Paulo em outro lugar: stoicheia. Esse lema grego pode se referir a uma
das quatro coisas: 1) princípios básicos do ensino religioso (lei); 2)
substâncias rudimentares do mundo físico; 3) deidades astrais (mitos
astrológicos); 4) seres espirituais de forma geral. Uma vez que esse
termo é fortemente enraizado no pensamento cosmológico grego-
romano, parece que a referência de Paulo quanto ao “ar” é a que ele usa
em Efésios.
PAULO E O MUNDO DE DEUTERONÔMIO 32
Os escritos de Paulo revelam uma consciência cósmica-
geográfica do mundo que temos discutido ao longo desse livro.
Uma instância de daimonion no Septuaginta é particularmente
importante quando exploramos a linguagem de Paulo. O termo é usado
em Deuteronômio 32:17 para traduzir os “demônios” (do hebraico:
shedim), os quais são chamados de elohim no mesmo versículo, os quais
seduziram os israelitas. A referência é importante à luz do alerta de Paulo
sobre o relacionamento com demônios (daimonion) em 1 Coríntios
10:20-21 ao comerem carne sacrificada a ídolos. Nessa passagem, Paulo
cita Deuteronômio 32:17. A implicação clara é que Paulo considera esses
seres reais e perigosos. É por isso que, em sua discussão anterior sobre o
problema de se comer tais alimentos, ele reconhecia que ali existiam
outros deuses (theoi) e senhores dentre o povo que não pertencia a
Yahweh e Jesus (1 Cor 8:1-6). Paulo tinha plena consciência da existência
do conselho divino que tinham as nações sob comando dos elohim
309
menores e os considerava uma ameaça aos crentes, assim como foram a
Israel.
Tomando os comentários de Paulo tanto em Coríntios 8 e 10
juntos (pois o sujeito do assunto é o mesmo), nos ajuda a ver que, para
Paulo, existia uma sobreposição entre as palavras daimonion e theos
(“deus”). A palavra theos era usada para seres de alta patente espiritual
que tinham autoridade tanto para os panteões e domínios geográficos na
Terra. A palavra theos, então, possui uma sobreposição conceitual com
os seres que foram colocados sobre as nações.
O vocabulário do apóstolo mais tarde deixa claro que ele entendia
e presumia a visão mundial de Deuteronômio 32:

 “governantes” (archonton ou archon)


 “principados” (arche)
 “potestades” / “autoridades” (exousia)
 “potestades” (dynamis)
 “domínios” / “senhores” (kyrios)
 “tronos” (thronos)
 “governantes do mundo” (kosmokrator)
Esses nomes têm alguma coisa em comum, eles são usados tanto
no NT quando em outras literaturas gregas para denotar autoridade e
domínio geográficos. As vezes esses termos são usados para humanos,
mas em muitas instâncias eles demonstram que Paulo tinha seres
espirituais em mente. Pesquisaremos resumidamente a terminologia de
Paulo.
Umas das passagens do VT que vimos que junto com
Deuteronômio 32:8-9 nos faz entender a decisão de Yahweh em colocar
as nações sob a autoridade dos deuses menores foi Daniel 10. Nessa
passagem nós vimos que existiam seres divinos sobre as nações,
chamados de “príncipes” (sar / sarim) por Daniel, e que o Septuaginta
se refere a Miguel como um dos chefes archonton ou archon,
dependendo do manuscrito usado como evidência.

310
Efésios 6:12 inclui os nomes listados acima: “Nossa luta não é
contra carne e sangue, mas contra os governantes (arche), contra as
autoridades (exousia), contra os governantes desse mundo
(kosmokrator) da escuridão, contra as forças espirituais (pneumatikos)
da maldade nos lugares celestiais”.
Paulo se refere a esses seres hostis no reino invisível mais cedo
em Efésios. Ele escreveu que Deus levantou Jesus dos mortos e “O
assentou à sua direita nos lugares celestiais, muito acima dos
governantes (arche) e autoridades (exousia) e potestades (dynamis) e
domínios (kyrios) (Efésios 1:20-21). Foi só depois que Cristo se levantou
que o plano de Deus ficou “conhecido pelos arche e exousia nos lugares
celestiais” (Efésios 3:10). Essas forças cósmicas são os “governantes
(arche) e as autoridades (exousia) desarmados e colocados
envergonhados perante a cruz (Col 2:15). Se esses “governantes”
(archonton) soubessem que a morte do messias fosse necessária para o
sucesso do plano de Deus, eles nunca teriam crucificado Jesus (1 Cor
2:8).
A referência a “domínios” em Efésios 1:21 (kyrios; plural:
kuriotes) é relacionada à palavra que Paulo usa para descrever como os
crentes tinham muitos deuses (theoi) e “senhores” (kurioi), mas para os
crentes só existe um Deus, Yahweh, e um Senhor, Jesus (1 Cor 8:5). Esses
deuses e senhores são considerados reais por Paulo e são uma ameaça
aos crentes (1 Cor 10:20-21).
A figura então que emerge do NT possui tantos pontos bem claros
como ambíguos.
É claro que Satanás é o líder de pelo menos algumas das
potestades das trevas. Como rebelde original, ele possui a primeira
patente (ou pior) em termos de exemplo nas mentes dos antigos leitores.
O fato de que ele é o único que confrontou Jesus no deserto, uma história
que já falamos mais cedo, e ofereceu a Ele os reinos do mundo, é bem
sugestivo. A falta da descrição clara de uma hierarquia deixa a
possibilidade de existirem agendas que se competem entre si no mundo
invisível, mesmo onde exista um objetivo comum de oposição a Yahweh
e seu povo.
311
Um segundo ponto de relativa claridade é quando Paulo dá uma
passada na visão de Deuteronômio 32. Isso não deveria ser nenhuma
surpresa, dado o conhecimento de Paulo do VT. O mundo no qual o novo
reino de Deus inaugurado, agora estava se espalhando com uma parte
dominada por poderes divinos invisíveis transparentemente descritos
no vocabulário de governos geográficos. Não nos é dito como os termos
se relacionam uns com os outros a precisão do significado duma
hierarquia, mas a mensagem de uma geografia cósmica é mostrada de
forma bem clara.
OS “GLORIOSOS” EM PEDRO E JUDAS
2 Pedro 2:10 e Judas 8 se referem aos “gloriosos/dignidades”
(doksas). O termo provavelmente se refere a seres divinos do conselho,
próximos à presença gloriosa de Deus, desde o período do Segundo
Templo os textos descrevem tais seres. Essas passagens em 2 Pedro e
Judas falam de (humanos) blasfemos que rogam contra os gloriosos. A
passagem de 2 Pedro ainda nota que os anjos, embora maiores do que
esses humanos blasfemos, não ousariam fazer tal coisa. O vocabulário
sugere alguma distinção entre anjos e “gloriosos” em patentes (e talvez
poder). Por exemplo, 2 Enoque 21:3 identifica Gabriel amplamente
descrito como um arcanjo na Bíblia e em outros textos do período do
Segundo Templo, como um dos “gloriosos do Senhor”.
Lembrem-se que, em termos da hierarquia do conselho divino do
VT, “anjos” denotariam uma tarefa ou trabalho de nível mais baixo (de
transmitir uma mensagem como um mensageiro), bem diferente da
tarefa de governar uma região geográfica, algo que foi atribuído aos
“filhos de Deus” em Deuteronômio 32. Em outras palavras, no mundo
espiritual, assim como no mundo humano, enquanto seres divinos
(salvos pelo único Yahweh) são todos da mesma “espécie”, alguns têm
patentes mais altas do que outros. A metáfora da “habitação” discutida
no capítulo 3 é ilustrativa. Mesmo a administração do faraó podendo ter
milhares de pessoas, sempre havia um círculo interno de indivíduos que
possuíam um acesso maior, status e poderes delegados.
Consequentemente, “gloriosos” são nomeados assim devido ao seu
acesso mais próximo da glória de Deus.

312
LUGAR SAGRADO E DISTINÇÃO DE REINOS
O NT nos mostra a vida cristã, e até mesmo a existência cristã,
lidando com uma batalha no campo espiritual. Mas muitas vezes não
captamos a mensagem.
Espaços sagrados e distinção de reinos não são conceitos apenas
no VT. Falamos muito sobre esses dois conceitos em capítulos anteriores
em relação ao tabernáculo de Israel e o templo. Mas a linguagem do NT
sobre eles, levam o leitor em direções fascinantes. Acreditem ou não,
você é um espaço sagrado.
Paulo em particular se refere ao crente como o lugar onde Deus
agora faz Seu tabernáculo, somos o templo de Deus, tanto
individualmente como corporativamente. Isso fica mais transparente
nas traduções em português nas duas passagens onde Paulo fala aos
Coríntios, “Vocês são o templo de Deus” (1 Cor 3:16), e, “Seu corpo é o
templo do Espírito Santo” (1 Cor 6:19). A primeira fala da igreja
corporativamente como templo; a segunda é focada em cada crente
individualmente. Paulo também retransmite a mesma mensagem:
Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas
concidadãos dos santos, e da família de Deus; Edificados sobre o
fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a
principal pedra da esquina; No qual todo o edifício, bem ajustado,
cresce para templo santo no Senhor. No qual também vós juntamente
sois edificados para morada de Deus em Espírito. Efésios 2:19-22
Somos o lugar onde Deus habita, a mesma presença que enchia o
templo no VT.
O mesmo conceito é menos óbvio em outras passagens. Por
exemplo, enquanto a maioria dos cristãos já ouviram falar do
tabernáculo, a maioria nunca discerniu que Paulo transfere a linguagem
do tabernáculo para o crente a fim de especificar puntualmente que a
mesma presença que demarcava o solo santo no acampamento de Israel,
agora habita no crente. Em 2 Coríntios o apóstolo escreve:

313
Porque sabemos que, se a nossa casa terrestre deste tabernáculo
se desfizer, temos de Deus um edifício, uma casa não feita por mãos,
eterna, nos céus. E por isso também gememos, desejando ser revestidos
da nossa habitação, que é do céu; 2 Coríntios 5:1,2
Paulo compara o corpo do crente, o qual ele chama de templo de
Deus em sua primeira carta aos Coríntios (1 Cor 6:19), a uma tenda. A
palavra grega traduzida como “tenda” é skenos, um termo muito
próximo relacionado a skene, que é usado em 2 Coríntios 5:1-4 para o
tabernáculo de Israel, e o qual é usado no Septuaginta para tabernáculo
(como em Êxodo 29:4).
As implicações são impressionantes. Todos nós já ouvimos o
versículo onde Jesus diz: “Onde dois ou três se juntarem em meu nome,
ali estarei no meio deles” (Mateus 18:20). Mas coloquem isso no
contexto dessa outra linguagem do NT, o qual, por outra vez, é
informado pelas imagens do tabernáculo e do templo do VT, e temos isso
significando que quem quer que sejam os crentes ou onde eles estejam,
o solo espiritual que eles ocuparem é santificado mesmo em meio aos
poderes das trevas.
Se pudéssemos ver com os olhos espirituais, veríamos um mundo
de trevas pipocado com as luzes da presença de Yahweh, se espalhando
para se encontrarem umas com as outras, inexoravelmente
pressionando e se espalhando para tomar de volta o solo das nações
deserdadas do inimigo. É claro que veríamos também essas luzes
cercadas pelas trevas.
A imagem requer perspectiva. Num tempo, não muito distante,
existia uma luz, fazendo seu caminho através dos domínios dos deuses
hostis. Essa luz quase se apagou, se dispersou para todas as partes do
mundo conhecido em pequenas partes. Mas então outra solitária, mas
grande luz brilhou na escuridão (Isa 60:1; Mat 4:16). Essa luz iria
transformar as trevas em luz (Isa 42:16), e as nações seriam dadas a ela
(Isa 60:1-3).
A pintura da guerra espiritual do NT não esconde a tarefa do
leitor. O povo de Deus, o qual é o Seu Nome, a presença de Yahweh, estão
cercados, como já foram outrora. Os apóstolos entendiam isso, mas não
314
deixaram isso descer ao coração. Não haverá redenção de solo sagrado
em meio a escuridão. Algumas das coisas que eles ensinaram aos
primeiros crente a observarem é o fato de comemorarem o conflito
invisível que acontece ao redor deles. Todo mundo tem que escolher um
lado.

315
CAPÍTULO 38
ESCOLHENDO LADOS
Qualquer veterano que já tenha passado por uma guerra te dirá
que a guerra é uma coisa horrível. Colocado em tal conflito, você tem que
escolher um lado. Muitas pessoas do mundo moderno, particularmente
em países desenvolvidos, gostam de pensar que a diplomacia e a
neutralidade proporcionam um caminho mais iluminado. Mas algumas
guerras, e alguns inimigos, não oferecem essa opção. Quando um
inimigo só quer a sua derrota e aniquilação, a neutralidade é a escolha
da morte.
A guerra que acontece no reino invisível pelas almas dos
humanos que são a imagem de Yahweh é esse tipo de guerra. A
neutralidade não é uma opção. Vimos nos escritos de Paulo de forma
particular, que o avanço do governo do reino de Yahweh foi entendido
como uma grande guerra colocando Ele contra seres divinos hostis. O
conflito espiritual é mostra de maneira mais dramática em dois locais
incomuns.
O BATISMO COMO GUERRA SANTA
Em 1 Pedro 3:14-22, temos uma das passagens mais complexas
do NT. Colocada contra o fundo do entendimento do conselho divino, no
entanto, ela fica bem compreensível.
Mas também, se padecerdes por amor da justiça, bem-
aventurados sereis; e não temais as suas ameaças, nem vos
turbeis; 15antes santificai em vossos corações a Cristo como Senhor;
e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a
todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em
vós; 16tendo uma boa consciência, para que, naquilo em que falam
mal de vós, fiquem confundidos os que vituperam o vosso bom
procedimento em Cristo. 17Porque melhor é sofrerdes fazendo o bem,
se a vontade de Deus assim o quer, do que fazendo o mal. 18Porque
também Cristo morreu uma só vez pelos pecados, o justo pelos injustos,
para levar-nos a Deus; sendo, na verdade, morto na carne, mas
vivificado no espírito; 19no qual também foi, e pregou aos espíritos
316
em prisão; 20os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a
longanimidade de Deus esperava, nos dias de Noé, enquanto se
preparava a arca; na qual poucas, isto é, oito almas se salvaram
através da água, 21que também agora, por uma verdadeira figura -
o batismo, vos salva, o qual não é o despojamento da imundícia da
carne, mas a indagação de uma boa consciência para com Deus, pela
ressurreição de Jesus Cristo, 22que está à destra de Deus, tendo
subido ao céu; havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as
potestades. (1 Pedro 3:14-22)
O tema geral de 1 Pedro é que os cristãos devem resistir à
perseguição e perseverar na fé. Isso fica muito claro nessa passagem.
Mas e o batismo, a arca, Noé e os espíritos em prisão? E será que esse
texto nos diz que o batismo nos salva?
Para entendermos o que Pedro está pensando, temos que
entender um conceito chamado pelos estudiosos de tipos e tipologia.
Tipologia é um tipo de profecia. Todos nós estamos familiarizados com
as profecias preditivas verbais, quando um profeta anuncia que algo
estará para acontecer no futuro. Algumas vezes isso “sai do nada”, onde
Deus impressiona os pensamentos da mente do profeta e então o profeta
escreve. A profecia é lançada. Já os Tipos agem de forma diferente.
Um tipo é basicamente uma profecia calada. É um evento, pessoa
ou instituição que prenuncia alguma coisa que virá, mas que ainda não
foi revelada até depois do fato. Por exemplo, em Romanos 5:14, Paulo
nos diz que Adão foi um tipo de Cristo. Essa palavra grega significa
“como” ou “marca” ou tipo, e é daí que vem a tipologia. Paulo estava
dizendo que, de alguma forma, Adão prenunciou ou ecoou algo sobre
Jesus. No caso de Adão, em que algo em seu ato (pecado) teve um efeito
sobre toda a humanidade. Assim como Adão, Jesus fez algo que teria um
impacto em toda a humanidade, sua morte e ressurreição. Outro
exemplo seria a Páscoa, uma vez que ela prenunciou a crucificação de
Jesus, o qual era chamado de “cordeiro de Deus”. O que temos que
entender é que existia uma conexão análoga entre o tipo (Adão) e seu eco
(Jesus), chamado de antítipo pelos estudiosos.

317
Pedro usa a tipologia em 1 Pedro 3:14-22. Especificamente, ele
assume que o grande dilúvio de Gênesis 6-8, e especificamente os filhos
de Deus no evento de Gênesis 6:1-4, tipificaram ou prenunciaram o
evangelho da ressurreição. Para Pedro, esses eventos são comemorados
durante o batismo. Isso precisa de uma explicação melhor, uma vez que
os pontos de correlação não são aparentes.
Num capítulo anterior vimos as conexões entre Gênesis 6:1-4 e
as epístolas de 2 Pedro e Judas. Descobrimos que 2 Pedro e Judas
comunicaram algo sobre o dilúvio e os filhos de Deus que não são
encontrados em Gênesis, mas que vieram do livro do Segundo Templo
de 1 Enoque. Especificamente, 1 Enoque 6-15 descreve como os filhos de
Deus (chamados de “Sentinelas” nesse antigo livro), os quais cometeram
ofensas de Gênesis 6:1-4 foram presos sob a Terra pelo que fizeram. Essa
prisão está por trás da referência aos “espíritos em prisão” em 1 Pedro
3:19.
Lembrem-se que a prisão para a qual os seres divinos rebeldes
foram mandados é referida como Tártaro em 2 Pedro 2:4-5. Esse temo
grego também é traduzido como “inferno” ou “Hades” em português,
mas essas traduções são um pouco erradas. É claro que o Tártaro não
tem uma geografia literal. Essa é uma linguagem do reino espiritual. O
Tártaro é uma parte do submundo (o bíblico Sheol), um lugar concebido
dentro da Terra pois, nas experiências antigas, esse era o lugar para onde
iam os mortos, eles eram enterrados. Falando de modo geral, o
submundo não é o inferno; ele é o pós vida, o lugar reino para onde vão
os mortos. Esse “lugar” possui sua própria “geografia”. Alguns
experimentam a vida eterna com Deus no reino espiritual; outros não.
Na história de 1 Enoque, os Sentinelas apelam pela sua sentença
e pedem a Enoque, o profeta bíblico que nunca morreu (Gênesis 5:21-
24), para interceder por eles perante Deus (1 Enoque 6:4). Deus rejeita
a petição deles e Enoque tem que retornar até os Sentinelas presos e dar
a eles a má notícia (1 Enoque 13:1-3; 14:4-5). O que temos que entender
aqui é que Enoque visita o mundo espiritual na “parte ruim da cidade”,
onde os Sentinelas rebeldes estão sendo mantidos.

318
Como no caso de 2 Pedro 2:4 e sua menção sobre os seres presos
no Tártaro, essa história de 1 Enoque estava na mente de Pedro em 1
Pedro 3. Ela é a chave para entendermos o que ele diz.
Pedro viu uma analogia teológica entre os eventos de Gênesis 6 e
o evangelho e a ressurreição. Em outras palavras, ele considerou os
eventos de Gênesis 6 como sendo o tipo ou precursor dos eventos e ideias
do NT.
Assim como Jesus foi o segundo Adão para Paulo, Jesus é o
segundo Enoque para Pedro. Enoque desceu até os anjos caídos presos
para anunciar sua destruição. Em 1 Pedro 3:14-22 vemos Jesus descendo
até esses mesmos “espíritos em prisão” para dizer a eles que eles ainda
estavam derrotados, apesar da crucificação. O plano de salvação de
Deus e seu reinado não deram errado, na verdade, estava acontecendo
segundo o planejado. A crucificação, na verdade, significa vitória sobre
todas as forças demoníacas que se opõem a Deus. A declaração dessa
vitória é o motivo pelo qual em 1 Pedro 3:14-22 termina com Jesus se
levantando de dentre os mortos e se colocando à direita de Deus, acima
de todos os anjos, autoridades e potestades. A mensagem é bem
deliberada e possui a visão sobrenatural de Gênesis 6:1-4 em seu centro.
Então como isso se relaciona com o batismo? Nosso foco para
responder essa pergunta são dois termos no versículo 21, onde o batismo
é “uma indagação para uma boa consciência com Deus, através da
ressurreição de Jesus Cristo”.
As duas palavras destacadas necessitam de uma consideração à
luz do entendimento do conselho divino. A palavra traduzida como
“indagação” (eperotema) no versículo 21 é melhor entendida como
“sinal” aqui, um significado que ela tem em outro lugar. Da mesma forma
a palavra “consciência” (suneidesis), não se refere a uma voz interior de
certo e errado nesse texto. Ao invés disso, a palavra se refere à disposição
de lealdade da pessoa, um uso que também é encontrado em outros
contextos da literatura grega.
O batismo, então, não é o que produz a salvação. Ele “salva”
porque reflete a decisão de um coração: um sinal de lealdade ao Salvador
que se levantou dos mortos. Em efeito, o batismo na teologia do NT é
319
um juramento de lealdade, um aval público mostrando quem é que está
do lado do Senhor na batalha cósmica entre o bem e o mal. E mais, ele
também uma lembrança visceral para os anjos caídos derrotados. Todo
batismo é uma reiteração de sua destruição no surgimento do evangelho
e do reino de Deus. Os primeiros cristãos entendiam a tipologia dessa
passagem e sua ligação lá atrás com os anjos caídos de Gênesis 6. As
primeiras fórmulas batismais incluíam a renúncia a Satanás e seus anjos
por essa razão. O batismo era, e ainda é, uma batalha espiritual.
RENOVANDO NOSSO VOTO
O segundo rito histórico cristão, onde temos a “Ceia do Senhor”
ou Comunhão, também possui associações com o conselho divino, e mais
uma vez, elas não são tão óbvias. Dessa vez temos que começar em 1
Coríntios 8:1-6
No que se refere aos alimentos sacrificados aos ídolos,
reconheço, como dizeis, que “todos nós temos pleno conhecimento”.
Porém, esse tipo de conhecimento produz orgulho, mas o amor nos faz
crescer na fé. 2A pessoa que imagina conhecer alguma coisa, ainda não
tem a sabedoria que necessita. 3Todavia, quem ama a Deus, este é
conhecido por Deus. 4Portanto, no que se refere à comida sacrificada
a ídolos, temos pleno conhecimento de que o ídolo não tem o menor
significado no mundo e que só existe um Deus! 5Pois, ainda que haja os
chamados deuses, quer no céu, quer na terra – como de fato há muitos
deuses e senhores – 6para nós, contudo, há um único Deus, o Pai, de
quem tudo procede e para quem vivemos; em um só Senhor, Jesus
Cristo, por intermédio de quem tudo o que há veio a existir, e por meio
de quem também vivemos.
Em 1 Coríntios 8, Paulo estava escrevendo se era permitido
comer alimentos sacrificados a ídolos. Ele decidiu que isso era
permitido, pois um “ídolo não é nada” (8:4) e que as pessoas não seriam
melhores se comessem ou se abstivessem (8:8). No entanto, ele alertou
que os crentes que não possuem tal conhecimento devem se abster (8:9).
Embora Paulo baseie sua decisão no fato de que os ídolos não são
nada, seus comentários nos versículos 4-6 nos dizem que ele sabia das

320
entidades que estavam por trás deles eram reais. Ele conhecia seu Velho
Testamento.
Mais cedo em nossos estudos quando introduzimos o conselho
divino, notei que o shema de Deuteronômio 6:4, o credo teológico de
Israel, foi escrito de tal maneira que a existência dos outros deuses não
era negada (“O Senhor nosso Deus é único”). As palavras de Paulo em 1
Coríntios 8 tinham o mesmo sentido. Na verdade, a maioria dos
estudiosos acreditam que Paulo tinha especificamente o shema em
mente.
O livro de Deuteronômio, onde acontece o shema, é claro que
possui várias referências a outros deuses como entidades reais,
considerando-os como demônios (Deut 32:17). Se o escritor de
Deuteronômio não acreditasse realmente na existência de outros deuses,
então ele deveria também negar a existência de demônios. O escritor
sabia que existiam outros deuses reais, e assim sendo o shema era o de
demandar lealdade a Yahweh (“nosso Deus”), sem negar a existência de
outros deuses.
Podemos ter certeza que Paulo estava pensando nas entidades
demoníacas de Deuteronômio 32:17 com respeito a esse assunto, uma
vez que ele cita esse versículo em 1 Coríntios 10:14-22.
Por isso, meus amados irmãos, fugi da idolatria. 15Falo isso a
pessoas sensatas; julgai vós mesmos o que estou afirmando. 16Não é
verdade que o cálice da bênção que abençoamos é a comunhão do
sangue de Cristo? Acaso o pão que partimos não é nossa participação
no Corpo de Cristo? 17Como há somente um pão, nós, que somos
muitos, somos um só corpo, pois todos participamos de um único pão.
18Observai o povo de Israel: porventura os que comem dos sacrifícios
não são participantes do altar? 19Sendo assim, o que estou querendo
dizer? Será que o sacrifício oferecido a um ídolo significa alguma coisa?
Ou o ídolo tem algum valor? 20Não! Quero enfatizar que o que os
pagãos sacrificam é oferecido, isto sim, aos demônios e não a Deus. E
não quero que tenhais qualquer comunhão com os demônios. 21Não
podeis beber do cálice do Senhor e do cálice dos demônios. Não podeis
participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios. 22Ou
321
desejamos provocar os ciúmes do Senhor? Porventura somos mais
fortes do que Ele?
Para Paulo, os deuses pagãos eram demônios. Isso faz um sentido
perfeito quando consideramos o entendimento de Deuteronômio 32:17,
que faz exatamente a mesma conexão. O interessante é que Paulo não é
completamente categórico, pois ele permite que a comida vendida no
mercado possa ser comida (1 Cor 10:25), mas teme “provocar os ciúmes
de Deus” sob outras circunstâncias. Essa frase é uma pista importante,
pois ela foi tirada de Deuteronômio 32:16, justamente o versículo
anterior ao 32:17, onde os deuses são chamados de demônios:
Entretanto, Ieshurun, Israel, meu amado, fortalecendo-te
desferiste coices; ficaste robusto e corpulento, te tornaste gordo, muito
pesado e farto de comida. Desprezaste a Deus, que o fez e rejeitaste a
Rocha, que é o teu Salvador! 16Com seus deuses estranhos provocaram
ciúmes em Deus, com seus ídolos abomináveis o deixaram irado.
17Sacrifícios ofereceram aos demônios, não a Deus; a seres que não
têm o poder de Deus, a deuses desconhecidos, divindades que surgiram
recentemente, às quais jamais vossos antepassados prestaram
adoração.
Fica bem claro que Paulo estava preocupado sobre o sacrifício a
demônios com respeito a todo o problema de alimentos sacrificados a
ídolos. O alimento em si não era realmente o problema; estar envolvido
no sacrifício sim. Aparentemente algumas pessoas da igreja de Corinto
iam além de apenas comer o alimento, chegando a participar dos rituais,
e desde que um ídolo era apenas um pedaço de madeira ou pedra, sua
participação não ofenderia Deus. Paulo tinha que ensiná-los que isso não
era verdade, e usou a Mesa do Senhor como uma analogia (1 Cor 10:14-
18).
Para Paulo não existia posição neutra. A participação na Mesa do
Senhor significava solidariedade e lealdade a Yahweh. A Ceia do Senhor
comemorava não apenas a morte de Jesus (1 Cor 11:23-26), mas a relação
de aliança de Yahweh com seus participantes. Violar o relacionamento
participando de sacrifícios a outros deuses era estar conivente e ao lado
dos deuses das nações.
322
ENTREGUES A SATANÁS
O batismo e a Ceia do Senhor eram rituais de aliança. A família
de Yahweh era para se manter como um todo fiel a Yahweh, e esses
rituais expressavam essa fidelidade. Esse contexto nos ajuda a entender
uma controvérsia numa frase em 1 Coríntios 5.
Dentro da Igreja, de vez em quando haviam lapsos de fidelidade
quando membros da “casa da fé” (Gálatas 6:10) transgrediam os limites
morais e doutrinários colocados por Yahweh. Em tais casos, Paulo dizia
diretamente aos crentes para removerem membros familiares amigos
que não se arrependiam dentro da Igreja (1 Coríntios 5:9-13). Mais
especificamente, Paulo mandava que esses desleais fossem “entregues
(jogados) ... a Satanás”. Mais tarde Paulo explica que o objetivo dessa
decisão era para “a destruição da carne, de forma que o espírito pudesse
ser salvo no dia do Senhor”.
O que Paulo queria dizer com essas frases? Com respeito à
“destruição da carne”, Paulo frequentemente usa a palavra “carne”
(sarkos) se referindo ao corpo físico, mas as vezes ele se utiliza dela para
se referir a um autoengano ao se confiar em suas próprias obras para ter
o mérito do favor de Deus, uma maneira ímpia de vida. Uma vez que não
há indicação de que alguém expulso da igreja iria morrer imediatamente
depois como resultado, esse segundo uso faz um sentido maior em 1
Coríntios 5. Paulo está insistindo que a pessoa não arrependida seja
retirada da igreja para viver seu pecado e aguente as consequências desse
comportamento. Uma vez que a salvação não é baseada de maneira
nenhuma em méritos humanos, o crente errante deveria ser salvo no
final, mas cuidados deveriam ser tomados para se evitar um
comportamento pecaminoso autodestrutivo e levar outros crentes a se
afastarem.
Mas e sobre ser “entregue a Satanás”? Lembrem-se que os
Israelitas viam sua terra como solo sagrado e o território das nações não
israelitas eram controlados por deuses demoníacos. Israel era solo
sagrado, pois era lá que residia a presença de Yahweh. O oposto era
verdade em todos os outros lugares.

323
No último capítulo, vimos que a reunião de crentes era vista da
mesma maneira. A presença de Deus não era mais no templo em
Jerusalém, mas no templo que é o corpo de Cristo (1 Cor 3:16-17). A
igreja de Corinto era, dessa forma, “solo sagrado”; fora daquela reunião
estava o reino demoníaco. Ser expulso da igreja era ser confiado ao reino
de Satanás.
A guerra espiritual surgida pela inauguração do reino de Deus
não deixou campo neutro. Assim como Moisés disse: “Quem está do lado
do SENHOR”? (Êxodo 32:26) no despertar da adoração ao bezerro de
ouro, então essa pergunta é feita para todas as pessoas de hoje. Não há
salvação em outro nome que não seja pelo nome de Jesus, o qual fora e
é o Nome, a presença de Yahweh, que habitou na terra (João 1:14) em
carne para a salvação das nações.
RESUMO DA SESSÃO
O reino de Deus já uma realidade presente, mas ele ainda não
está em sua plenitude. João Batista o anunciou. Ele introduziu seu rei.
Jesus pregou sua chegada e demonstrou como a vida no mundo edênico
de Deus poderia e seria: sem doenças, sem enfermidades, sem oposição
demoníaca.
Muitas pessoas pensam no NT como uma narração sobre a vida
de Jesus e dos apóstolos, polvilhados com uma coleção de cartas
enviadas por Paulo a igrejas de nomes estranhos. Quando seguimos
esses homens e suas vidas e lemos as suas correspondências, o NT fica
muito maior.
O NT marca o renascimento de uma batalha de milhares de anos
em andamento. O povo de Deus foi isolado e ficou sob governo
estrangeiro. A presença divina dos dias de Moisés, Davi, Salomão e dos
profetas não era mais do que uma memória. Quando anjos visitaram
Maria e Zacarias para anunciar os nascimentos de Jesus e João, séculos
de silêncio divino se quebraram. Trinta anos depois, a Judéia iria
explodir. O conflito espiritual invisível estava ainda mais volátil.
Cada Capítulo no NT lida de forma pesada com assuntos do VT.
Jesus se foi, mas está presente, assim como Yahweh estava no céu
324
invisível, mas ainda na terra em forma humana. A semente de Abraão,
espalhada pelos ventos do exílio, voltou a funcionar como grupos de
células espirituais secretamente plantadas em todas as nações sob o
domínio de deuses maus. O reino se espalhou devagar, mas sem cessar,
um novo crente de cada vez. Cada igreja era um novo pacote de
resistência, cada batismo outra mostra de aliança com o Altíssimo, cada
celebração à Ceia do Senhor uma negação ao relacionamento com os
mestres menores e a proclamação do sucesso do misterioso plano de
Yahweh.
As linhas foram desenhadas. Os lances são altos. O inimigo está
desesperado. A plenitude dos gentios virá, e toda Israel será salva, e o
Salvador virá da Sião celestial. É só uma questão de tempo.

325
PARTE 08
O REINO AINDA NÃO
CAPÍTULO 39
VEREDITO FINAL
Chegamos a um lugar na nossa linha de história divina onde o
presente deve dar lugar ao futuro. Muitos especialistas na Bíblia e
estudantes têm proposto todo tipo de coisas para interpretar o que a
Bíblia diz sobre o fim dos tempos, mas qualquer coisa com precisão
aproximada não é possível.
A razão para isso é simples. As profecias do Velho Testamento
para a solução messiânica de salvação da humanidade e restauração do
Éden foram deliberadamente criptografadas. Assim também acontece
com as profecias que ainda vão se cumprir. O texto bíblico é crivado de
ambiguidades que minam as certezas dos sistemas escatológicos
modernos. Os escritores do Novo Testamento que falam sobre o
cumprimento de profecias nem sempre interpretavam o Velho
Testamento de forma literal. A maior parte é comunicada através de
metáforas construídas por uma visão do antigo Oriente Próximo.
Consequentemente, nossas expectativas modernas sobre como uma
determinada profecia irá “funcionar” são intrinsecamente inseguras.
Ao invés de oferecer outro sistema especulativo sobre o fim dos
tempos, meu objetivo nos próximos três capítulos é mostra-los como a
visão cósmica-geográfica do conselho divino que temos explorado
ilumina de forma significante em como essa longa guerra contra Yahweh
termina. Como em tudo mais na teologia bíblica, o que acontece no
mundo invisível é que constrói o raciocínio.
Embora a história do reino da Bíblia seja raramente ensinada
com isso em mente, o conselho divino atua num papel importante
através do desenrolar dessa história. O padrão escritural é que, quando
Deus se prepara para agir de maneira estratégica para propelir seu reino
em frente, o conselho divino é parte da tomada dessa decisão. O conselho
é o veículo através do qual Deus entrega seus decretos. O propósito desse

326
capítulo em particular é dar uma olhada de volta no papel do conselho
em descortinar os propósitos de Deus e seu encontro final, quando Deus
se mover para iniciar a consumação do seu plano de restaurar o Éden às
custas dos poderes hostis das trevas.
ÉDEN, BABEL, SINAI E ISRAEL: Atos no Conselho e Falha
Humana
Desde o início do drama humano revelado nas Escrituras, o
conselho divino de Yahweh esteve em cena. Vimo no começo de nossa
jornada que Yahweh anunciou sua vontade de criar a humanidade:
Façamos o homem a nossa imagem e semelhança (Gên 1:26). Yahweh
criara a humanidade a sua imagem, como ele havia criado sua família
divina, de forma que eles pudessem participar na administração dos seus
negócios. Nesse caso, isso significa espalhar sua influência e as
maravilhas do Éden através do resto da terra. A humanidade deveria
multiplicar a imagem de Deus através da procriação (Gên 1:27-28; 5:1)
para administrar o vasto planeta e suas formas de vida.
As imagens humanas originais falharam. Yahweh e seu conselho
depois aparecem no desastroso evento em Babel. Yahweh desce para
observar a desobediência das suas imagens humanas (Gên 11:6). Ele
poupou alguns remanescentes depois do grande dilúvio e repetiu as
instruções dadas a Adão e Eva (Gên 9:1). Mas ao invés de se espalharem
pela terra, a humanidade se congregou em Babel (Babilônia). Ao invés
de levarem a influência e a sabedoria de Yahweh para o mundo, eles
buscaram trazer Yahweh até eles mesmos.
Em resposta, Yahweh disse ao seu conselho, desçamos e
confundamos suas línguas (Gên 11:7), e assim o fizeram. Ele também
decidiu parar de trabalhar com a humanidade. Uma vez que as pessoas
se dispersaram, Yahweh os deserdou, colocando-os sob a autoridade de
elohim menores (Deut 32:8-9). Ele iria agora criar seu próprio povo de
um homem e sua esposa que eram muito velhos para terem um filho,
Abraão e Sara. Israel seria a porção de Yahweh no planeta (Deut 32:9).
Através dos descendentes de Abraão, o resto das nações seriam
abençoados (Gên 12:1-3).

327
Os Israelitas sofreram no Egito sob uma dura escravidão. Deus
levantou Moisés para libertá-los e para ser seu agente de poder divino
contra os deuses do Egito. Depois de liderar seu povo de volta ao Monte
Sinai, Yahweh e seu conselho deu as leis à nova nação. Tudo o que foi
deixado para se fazer até esse ponto era leva-los para a terra que ele havia
prometido a eles. Para esse fim, Yahweh foi com eles em forma humana
visível, o Anjo, no qual estava o Nome. Mas Israel falhou.
Em vários momentos na história da breve monarquia de Israel, o
conselho é visto em rápidas aparições. Eles estiveram ali quando
profetas foram comissionados para incitar lealdade a Yahweh e alertar
sobre punição devido a rebelião (Isa 6:1-7); Ezequiel 1; Jer 1; 23:21-22).
O profeta Miquéias abre as cortinas do céu, onde vemos Yahweh e sua
assembleia de seres divinos decidindo o destino de Acabe (1 Reis 22:13-
28). Israel, no final, falhará mais uma vez. Yahweh então os enviou, de
todos os lugares, à Babilônia como punição.
NEM TODOS ESTÃO PERDIDOS
O conselho ressurge depois do exílio em três cenas significantes
que já olhamos antes.
Enquanto estava no exílio, o profeta Daniel teve uma visão de
uma cena do conselho divino. A visão está gravada em Daniel 7. Como já
estudamos bem anteriormente, Daniel vê o entronado Deus de Israel (o
“Ancião dos Dias”) junto a múltiplos tronos (Dan 7:9). A corte divina está
presente, dessa vez para decidir o destino futuro dos impérios terrenos
(Dan 7:9-12), mostrados através de quatro bestas (Dan 7:1-8).
Uma vez que a decisão é tomada, de que a quarta besta deve ser
destruída e as outras bestas terem seus domínios diminuídos enquanto
esperam a sua destruição, uma segunda figura de Yahweh aparece, vindo
sobre as nuvens (Dan 7:13). Deus dá ao divino “filho do homem” domínio
eterno sobre todas as “pessoas, ... nações, e línguas” (Dan 7:14). O rei
ungido compartilha seu domínio com os “santos do Altíssimo” e “as
nações dos santos do Altíssimo” (Dan 7:22, 27). Embora tenha
acontecido no lugar do exílio do povo, na Babilônia, a visão comunica
uma vitória final de Deus e seu reclame de todas as nações através desse
filho do homem.
328
A cena de Salmos 82 não é tão clara quanto a telegrafada em
Daniel 7, mas a maioria dos estudiosos a coloca durante o exílio. Como
mostrei mais cedo, quando as nações da terra são tomadas de volta por
Yahweh, os elohim menores dessas nações serão substituídos pelo
conselho reconstituído de Yahweh, seus filhos e filhos terrenos feitos
divinos e colocados sobre as nações. Esses deuses que receberam suas
autoridades sobre as nações de Yahweh, mas que afastaram as pessoas
do Altíssimo, terão sua autoridade retirada em Salmos 82. Os próprios
deuses “morrerão como homens” quando Yahweh reclamar o que é dele
(Salmos 82:6-8).
Os membros do conselho divino que ainda são leais a Yahweh
vêm à visão mais uma vez no final do exílio de Judá. Com o perdão dos
pecados da dinastia davídica e seu povo, Yahweh direciona seu conselho
numa série de comandos no plural:
1Consolai, consolai o meu povo, diz o vosso Deus. 2Falai benignamente
a Jerusalém, e bradai-lhe que já a sua malícia é acabada, que a sua
iniqüidade está expiada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor,
por todos os seus pecados. (Isaías 40:1-2).
O contexto de Isaías 40 é o de um novo começo para Israel. Deus
está agindo para trazer uma transição no status de Israel. Ele deve
retornar a Sião e esperar pelo rei vindouro. Uma voz dentro do conselho
então clama (mais uma vez, os comandos estão no plural):
3Eis a voz do que clama: Preparai no deserto o caminho do Senhor;
endireitai no ermo uma estrada para o nosso Deus. (Isaías 40:3).
Uma voz solitária responde ao chamado em Isaías 40:6. O fato
dos escritores do Evangelho citarem essa passagem com respeito a João
Batista e sua mensagem, conecta a vinda do rei com o messias, Jesus de
Nazaré.
Com a chegada de Jesus, a restauração do reino está inaugurada.
Ela foi formalizada no batismo de Jesus, o início do seu ministério
público, e feita irreversível na crucificação e ressurreição. O filho divino
e servo teve sucesso, e sucederá, onde Israel, a filho corporativa e serva
humana de Deus, falhara.
329
O governo de Yahweh sobre a terra está progredindo e avançando
contra os poderes invisíveis das trevas e a humanidade sendo escrava
desses poderes. O reino tem um objetivo claro: o reclame das nações e
restauração do Éden numa escala global. O resultado do alcance desse
objetivo será o cumprimento da intenção original de Deus em ter uma
família-conselho de imagens humanas e divinas. A humanidade se
tornará divina e substituirá esses elohim menores sobre as nações sob a
autoridade do singular filho divino, Jesus ressuscitado.
Vivemos nesse período de avanço. Já estamos no reino de Deus,
mas ainda não. Nossos corpos são tabernáculos terrenos para a glória
que ainda iremos experimentar. Estamos no processo de nos tornarmos
o que somos, filhos humanos divinos e participantes do conselho de
Yahweh.
Quando Deus mais uma vez se mover para iniciar a fase final do
seu plano, o conselho novamente se reunirá. Podemos ver o que ainda
está para acontecer quando lemos Apocalipse 4-5.
OS ANCIÕES DE YAHWEH EM CONSELHO
Os estudiosos há muito tempo têm identificado a visão de João
em Apocalipse 4-5 como uma cena do conselho divino. Um especialista
no Novo Testamento no livro de Apocalipse escreveu:
O foco da visão do trono é Deus entronado em sua corte celestial
cercado por uma variedade de seres angelicais ou deuses menores
(anjos, arcanjos, serafins, querubins) os quais funcionam como
cortesãos. Todas essas descrições de Deus entronado no meio de sua
corte celestial são baseadas na antiga concepção do conselho divino ou
assembleia encontrados na Mesopotâmia, Ugarit e Fenícia, assim
como em Israel.
Dado o campo que cobrimos até agora, a descrição da visão de
João nos será familiar:
1Depois destas coisas, olhei, e eis que estava uma porta aberta
no céu, e a primeira voz que ouvira, voz como de trombeta, falando
comigo, disse: Sobe aqui, e mostrar-te-ei as coisas que depois destas

330
devem acontecer. 2Imediatamente fui arrebatado em espírito, e eis
que um trono estava posto no céu, e um assentado sobre o trono; 3e
aquele que estava assentado era, na aparência, semelhante a uma
pedra de jaspe e sárdio; e havia ao redor do trono um arco-íris
semelhante, na aparência, à esmeralda. 4Havia também ao redor do
trono vinte e quatro tronos; e sobre os tronos vi assentados vinte e
quatro anciãos, vestidos de branco, que tinham nas suas cabeças
coroas de ouro. 5E do trono saíam relâmpagos, e vozes, e trovões; e
diante do trono ardiam sete lâmpadas de fogo, as quais são os sete
espíritos de Deus; 6também havia diante do trono como que um mar
de vidro, semelhante ao cristal; e ao redor do trono, um ao meio de
cada lado, quatro seres viventes cheios de olhos por diante e por
detrás; 7e o primeiro ser era semelhante a um leão; o segundo ser,
semelhante a um touro; tinha o terceiro ser o rosto como de homem; e
o quarto ser era semelhante a uma águia voando. 8Os quatro seres
viventes tinham, cada um, seis asas, e ao redor e por dentro estavam
cheios de olhos; e não têm descanso nem de noite, dizendo:
Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o Todo-Poderoso, aquele que era,
e que é, e que há de vir.
(Apocalipse 4:1-8).
Essa tríade de adoração nos leva de volta a Isaías 6:3, uma cena
óbvia do conselho divino. Outros pontos de similaridade a outras visões
do conselho incluem as criaturas (descrição dos querubins de Ezequiel
1; 10); asas nas criaturas (serafins de Isaías 6); Deus entronado (Isaías
6; Ezequiel 1; Daniel 7), múltiplos tronos (Daniel 7); as pedras preciosas,
cores, e um mar de vidros (Ezequiel 1); espíritos divinos (1 Reis 22). A
visão de João, de fato, combina as características anteriores do conselho
divino com essa visão.
Deus está cercado por vinte e quatro anciãos entronados. A
identificação desses anciãos já produziu muitos debates. Já foi proposto
que esses vinte e quatro são:

 Seres celestiais, sejam contrapartes cósmicas das vinte e quatro


divisões sacerdotais de Israel ou representantes divinos das doze
tribos de Israel e os doze apóstolos;
331
 Crentes humanos glorificados representando todos os crentes;
 Crentes do Velho Testamento (Hebreus 11); ou
 Membros não-humanos do conselho divino.
A descrição da cena em Apocalipse 5, distingue os anciãos dos
anjos (Apocalipse 5:11) e especificamente mostra os anciãos, e não os
anjos, bem próximos ao trono que está ao redor de Deus como um
conselho, uma imagem semelhante a Daniel 7. Nosso estudo no capítulo
35 sobre a divinização de humanos depois da morte ou ressurreição, faz
com que seja possível que os anciãos sejam humanos feitos divinos. No
entanto, a inclusão de mártires na cena de Apocalipse 6:9-11 parece
requerer que os anciãos sejam também diferentes dos crentes
glorificados. Mesmo sendo verdade que ambos os anciãos e os mártires
sejam descritos em mantos brancos (Apocalipse 4:4; 6:11), os mártires
recebem seus mantos depois da descrição dos anciãos, e não são
referidos como sendo anciãos quando isso acontece.
Em um nível, a identificação dos anciãos como humanos é bem
consistente com outros materiais do conselho divino que já estudamos,
particularmente a apresentação dos crentes glorificados por Jesus no
conselho divino (Hebreus 1-2). Ao contrário, identifica-los como divinos
não exclui a presença humana no conselho. Céu e terra, divinos e
humanos, não são facilmente separados quando falamos de conselho
divino e o plano de restauração do Éden de Deus.
O significado interpretativo de vermos os anciãos como membros
divinos do conselho de Yahweh é que tal entendimento se encaixa com
as cenas do conselho divino do Velho Testamento envolvendo o
julgamento das nações e seus deuses.
A escolha de “anciãos” para descrever o conselho é derivada de
Isaías 24:23, uma passagem que, não coincidentemente, é apocalíptica
em seu gênero, como o livro de Apocalipse.
21Naquele dia o Senhor castigará os exércitos do alto nas alturas, e os
reis da terra sobre a terra. 22E serão ajuntados como presos numa
cova, e serão encerrados num cárcere; e serão punidos depois de
muitos dias. 23Então a lua se confundirá, e o sol se envergonhará, pois

332
o Senhor dos exércitos reinará no monte Sião e em Jerusalém; e perante
os seus anciãos manifestará a sua glória. (Isaías 24:21-23).
Isaías 24:23 descreve um julgamento apocalíptico sobre os
inimigos divinos de Yahweh e os reis da terra alinhados a eles. Quando
o julgamento chega ao final, Yahweh será glorificado “perante os seus
anciãos”. Os estudiosos que se focaram nessa linguagem incomum de
Isaías, dão atenção às características divinas dos anciãos por meio de
duas trajetórias: (1) passagens comparativas sobre os anciãos no Velho
Testamento para estabelecer que esse termo especificamente se refere a
membros seletos de uma casa real; e (2) similaridades nas descrições dos
anciãos em Apocalipse 4-5 e aqueles seres divinos em outras cenas do
conselho celestial.
O propósito do encontro do conselho é tríplice: (1) a exaltação do
cordeiro que foi imolado (Apocalipse 4:11; 5:11-12); (2) celebrar a vitória
do Cordeiro (Apocalipse 5:1-5), um evento que fará dos seus seguidores
“um reino e sacerdotes do nosso Deus, e eles reinarão na terra”
(Apocalipse 5:10); e (3) a abertura dos sete selos (Apocalipse 6). A cena
em Apocalipse 4-6 lança o julgamento final de Yahweh sobre a terra
descrito em Isaías 24:23, o último acontecimento que se alinha com
Daniel 7, onde o filho do homem obtém domínio eterno e compartilha-o
com os santos e as pessoas santas leais a ele e Yahweh.
Apocalipse 4-6 monta o cenário para a confrontação final entre
Yahweh e seu povo de um lado, e os poderes das trevas e aqueles sob seu
domínio do outro. Como veremos nos próximos dois capítulos, o
engajamento não é só pelas almas da humanidade e as nações da terra,
mas pelo domínio do próprio reino invisível.

333
CAPÍTULO 40
O INIMIGO DO NORTE
A saga épica da Bíblia começou com a intenção original de Deus
em governar a sua nova criação através das imagens humanas, tudo isso
estando presente com suas imagens celestiais. O céu havia vindo à terra.
Vimos como tudo isso deu errado no início da decisão de Deus em
garantir a liberdade às suas imagens, tanto divinas quanto humanas. A
decisão foi necessária, pois a criatura não poderia ser realmente como o
criador sem compartilhar o seu atributo, a habilidade de
verdadeiramente exercer o livre arbítrio e escolher entre a lealdade e a
rebelião.
O que parece para nós ser um plano longo e lento para restaurar
aquilo que caiu era igualmente necessário. Parece que seria só Deus dar
um passo depois da queda e eliminar o livre arbítrio e os rebeldes
humanos e divinos que abusaram dele. O Éden poderia ser realizado e
tudo ficaria bem. Mesmo isso produzindo o final desejado, o significado
original, a livre participação na criação de Deus pelos agentes de Deus
com livre-arbítrio, projetados para serem como ele, teria sido
abandonado, se mostrando uma ideia cheia de erros e uma falha
espetacular. Uma resolução como essa não se encaixa (ou é desejada)
para o Deus da Bíblia. O objetivo original de Deus deve vir da maneira
como ele quer.
A geografia da terra, como muitos historiadores já apontaram, é
uma parte chave para o destino humano. Para os israelitas antigos, a
geografia tinha qualidades literais e sobrenaturais. Até esse ponto, nosso
estudo de ambos os aspectos tem sido orientado por dois fatores: (1) a
visão cósmica-geográfica que apareceu no incidente em Babel (Deut
32:8-9), onde Yahweh deserdou as nações e decidiu levantar seu próprio
povo de Abraão; e (2) a região de Basã, a região mais ao Norte da terra
prometida. Nesse capítulo, vamos nos focar no segundo aspecto, uma vez
que lá existia, no pensamento israelita, uma ameaça psicológica e
sobrenatural das terras do Norte. Esses medos eram interligados, no
pensamento antigo, com o grande inimigo escatológico conhecido como
o anticristo.
334
O NORTE GEOGRÁFICO LITERAL: Prenúncio da Desgraça
Por estar assentada ao leste do Mar Mediterrâneo, Canaã se
encontrava espremida entre as terras das civilizações do antigo Oriente
Próximo que lutariam pelo controle de toda a região: Egito e
Mesopotâmia. Canaã, e, assim sendo, o povo de Israel, se encontraria
sendo invadida pelo Norte e pelo Sul por exércitos estrangeiros se
movendo. Ela seria ocupada como uma zona de “para-choques” entre as
forças competidoras.
A Bíblia narra alguns desses incidentes. Mas as incursões mais
dramáticas dentro de Canaã sempre vieram do Norte. Em 722 a.C., a
Assíria conquistou dez tribos do reino israelita do Norte e os deportou a
muitos cantos do seu império. Numa série de três invasões de 605 a 586
a.C, a Babilônia destruiu o reino do Sul, deixando só duas tribos, Judá e
Benjamin. Tanto a Assíria quando a Babilônia invadiram Canaã pelo
Norte, uma vez que elas eram ambas da região da Mesopotâmia. O
trauma dessas invasões se tornou um fundo conceitual para as
descrições do julgamento final escatológico das nações deserdadas

335
(Sofonias 1:14-18; 2:4-15; Amós 1:13-15; Joel 3:11-12; Miquéias 5:15) e
seus líderes divinos (Isaías 34:1-4; Salmos 82).
É difícil superar o trauma da invasão babilônica. As tribos do
Norte, também, haviam conhecido um destino horrível, o resultado que
ficou bem conhecido para os ocupantes do reino de Judá. Mas Judá era
a tribo de Davi, e Jerusalém o lar do templo de Yahweh. Assim sendo, o
chão era sagrado e/ou também o reino de Judá, e certamente nunca
seriam tomados pelo inimigo. Mas inviolabilidade de Sião virou um
mito. Jerusalém e seu templo foram destruídos por Nabucodonosor em
586 a.C. O incidente trouxe não apenas desolação física, mas uma
devastação psicológica e teológica.
A destruição do templo de Yahweh e, consequentemente, seu
trono, teriam sido entendidos contra um fundo de batalha espiritual
pelos povos antigos. Os babilônios e as outras civilizações teriam
presumido que os deuses da Babilônia haviam finalmente derrotado
Yahweh, o Deus de Israel. Muitos israelitas teriam pensado a mesma
coisa, ou que Deus havia esquecido eles e suas promessas de aliança
(Salmos 89:38-52). Ou Deus era mais fraco do que os deuses da
Babilônia ou ele havia desistido de suas promessas.
Profetas como Ezequiel, Daniel e Habacuque, levantados por
Deus durante o exílio, tinham uma perspectiva diferente. Yahweh havia
convocado exércitos estrangeiros sob o controle de outros deuses para
punir o seu próprio povo. Yahweh estava no controle. A deslealdade
espiritual foi o que levou àquela situação.
O SINISTRO E SOBRENATURAL NORTE
A palavra “Norte” em hebraico é tsaphon (ou zaphon em algumas
transliterações). Ela se refere a um dos pontos cardeais. Mas devido ao
que os israelitas acreditavam existir no Norte, a palavra veio a significar
algo mais sobrenatural.
O exemplo mais óbvio é Basã. Já devotamos muito estudo à
conexão desse lugar com o reino dos mortos e com as populações de clãs
gigantes como os Rephaim, cujos ancestrais eram considerados
derivados de seres divinos inimigos. Basã também era associada com o
336
Monte Hermon, o lugar onde, segundo a teologia judaica, os rebeldes
filhos de Deus de Gênesis 6 desceram de forma infame para cometer seu
ato de traição.
Mas havia algo além de Basã, mais ao Norte, que todos os
israelitas associavam com outros deuses hostis a Yahweh. Lugares como
Sidônia, Tiro, Ugarit estavam além das fronteiras do Norte de Israel. A
adoração a Baal era algo central nesses lugares. Essas cidades da Fenícia
e da Síria eram o lar de Baal. O fato de o centro da adoração a Baal estar
logo ali cruzando a fronteira, foi um fator contribuinte na apostasia do
reino do Norte de Israel.
Especificamente, a casa de Baal era um monte, conhecido agora
como Jebel al-Aqra’, situado ao Norte de Ugarit. Nos tempos antigos ele
era simplesmente conhecido como Tsaphon (“Norte”; Tsapanu em
Ugarítico). Era um monte divino, o lugar onde Baal tinha seu conselho
como o governante dos deuses do panteão canaanita. O lugar de Baal era
tido como estando “nas alturas do Tsapanu / Zaphon”.
Baal era superado apenas por El na religião canaanita. No
entanto, Baal governava todos os negócios de El, o que explica porque
Baal era chamado de “rei dos deuses” e “altíssimo” em Ugarit e outros
lugares. Nos textos ugaríticos, Baal é o “senhor de Zaphon” (ba’al
tsapanu). Ele é também chamado de “príncipe” (zbl em ugarítico). Outro
título de Baal é “príncipe, senhor do submundo” (zbl ba’al ‘arts). Essa
conexão ao reino dos mortos é claro que se encaixa com nossos estudos
dos temas associados com a figura da serpente de Gênesis 3. Não é de
surpreender que zbl ba’al se transforma em Baal Zebul (Belzebu) e Baal
Zebub, títulos associados com Satanás na literatura judaica mais tardia
e ao Novo Testamento.
Resumindo, quando um israelita pensava no Norte em termos
teológicos, ele ou ela pensavam em Basã, Monte Hermon e Baal. Mais
tarde os judeus fariam conexões ao grande adversário de Gênesis 3.
Esse fundo nos ajudará a entender como os judeus que viviam
nas últimas partes do período do Velho Testamento e no período do
Segundo Templo e na era do Novo Testamento raciocinavam sobre o fim
dos tempos, o tempo do julgamento final de Deus do mal e a restauração
337
final do seu governo. Mas para isso, precisamos começar com o conceito
de exílio.
AINDA NO EXÍLIO
Um dos grandes enganos do estudo bíblicos é o de que o retorno
dos judeus da Babilônia em 539 a.C. e nos anos seguintes, resolveu o
problema do exílio israelita. Não resolveu. O profeta havia vista o
retorno de todas as doze tribos de onde elas haviam sido dispersadas.
Isso não aconteceu em 539 a.C. ou qualquer outro tempo passado no
Velho Testamento.
Jeremias 23:1-8 é um dos claros exemplos dessa expectativa:
1Ai dos pastores que destroem e dispersam as ovelhas do meu pasto, diz
o Senhor. 2Portanto assim diz o Senhor, o Deus de Israel, acerca dos
pastores que apascentam o meu povo: Vós dispersastes as minhas
ovelhas, e as afugentastes, e não as visitastes. Eis que visitarei sobre
vós a maldade das vossas ações, diz o Senhor. 3E eu mesmo recolherei
o resto das minhas ovelhas de todas as terras para onde as tiver
afugentado, e as farei voltar aos seus apriscos; e frutificarão, e se
multiplicarão. 4E levantarei sobre elas pastores que as apascentem,
e nunca mais temerão, nem se assombrarão, e nem uma delas faltará,
diz o Senhor. 5Eis que vêm dias, diz o Senhor, em que levantarei a Davi
um Renovo justo; e, sendo rei, reinará e procederá sabiamente,
executando o juízo e a justiça na terra. 6Nos seus dias Judá será salvo,
e Israel habitará seguro; e este é o nome de que será chamado: O
SENHOR JUSTIÇA NOSSA.
7Portanto, eis que vêm dias, diz o Senhor, em que nunca mais dirão:
Vive o Senhor, que tirou os filhos de Israel da terra do Egito; 8mas:
Vive o Senhor, que tirou e que trouxe a linhagem da casa de Israel da
terra do norte, e de todas as terras para onde os tinha arrojado; e eles
habitarão na sua terra.
O versículo 3 é explícito, Yahweh promete trazer de volta seu
povo de todos os lugares para onde eles fugiram. Ambos os reinos, Judá
e Israel, um dia serão trazidos de volta à terra (v. 6). A nota específica de
que “a casa de Israel” retornará da “terra do Norte” e “todas as terras”
338
para onde foram dispersados é uma referência ambígua ao primeiro
cativeiro das dez “tribos perdidas” de Israel.
Outras passagens são claras nesse sentido também. Em Ezequiel
37, a famosa visão dos ossos secos, diz Yahweh:
16Tu, pois, ó filho do homem, toma um pau, e escreve nele: Por Judá e
pelos filhos de Israel, seus companheiros. Depois toma outro pau, e
escreve nele: Por José, vara de Efraim, e por toda a casa de Israel, seus
companheiros; 17e ajunta um ao outro, para que se unam, e se tornem
um só na tua mão. 18E quando te falarem os filhos do teu povo,
dizendo: Porventura não nos declararás o que queres dizer com estas
coisas? 19Tu lhes dirás: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu tomarei
a vara de José, que esteve na mão de Efraim, e as das tribos de Israel,
suas companheiras, e lhes ajuntarei a vara de Judá, e farei delas uma
só vara, e elas se farão uma só na minha mão. 20E os paus, sobre que
houveres escrito, estarão na tua mão, perante os olhos deles. 21Dize-
lhes pois: Assim diz o Senhor Deus: Eis que eu tomarei os filhos de Israel
dentre as nações para onde eles foram, e os congregarei de todos os
lados, e os introduzirei na sua terra. (Ezequiel 37:16-21).
Novamente, tanto Israel quanto Judá são mencionadas, e o povo
de Yahweh será juntado de todas as nações (notem o plural) para onde
foram dispersados.
Isso significa que os judeus que viviam nos tempos de Jesus viam
a nação estando ainda no exílio. Dez das tribos ainda não haviam
retornado (e muitos judeus ainda haviam ficado na Babilônia mesmo
quando tiveram chance). Yahweh iria libertá-los? Será que os poderes
das trevas haviam finalmente vencido?
LIBERTAÇÃO... E OPOSIÇÃO
Parte da razão porque os judeus esperavam um libertador militar
no seu messias é a de que os profetas haviam ensinado que a reunião de
todas as tribos de Israel e Judá viriam de mãos dadas com a aparição do
grande rei-pastor messiânico. Ezequiel 37, a passagem que acabamos de
ler que descreve a restauração de todas as tribos, adiciona mais um
elemento:
339
24Também meu servo Davi reinará sobre eles, e todos eles terão um
pastor só; andarão nos meus juízos, e guardarão os meus estatutos, e
os observarão. 25Ainda habitarão na terra que dei a meu servo Jacó,
na qual habitaram vossos pais; nela habitarão, eles e seus filhos, e os
filhos de seus filhos, para sempre; e Davi, meu servo, será seu príncipe
eternamente. 26Farei com eles um pacto de paz, que será um pacto
perpétuo. E os estabelecerei, e os multiplicarei, e porei o meu santuário
no meio deles para sempre. (Ezequiel 37:24-26).
Em termos de teologia bíblica, essa expectativa foi cumprida na
inauguração do reino de Deus em Pentecostes. Não só o reclame das
nações deserdadas havia sido lançado nesse evento, mas foi cumprida
através da peregrinação de judeus de todas as nações as quais haviam
deixado em exílio, agora convertidas à fé em Jesus, o Yahweh
encarnado, e agora herdeiros do Espírito e das promessas da nova
aliança.
Como disse Paulo em Gálatas 3, todo aquele que seguisse a
Cristo, era um verdadeiro descendente de Abraão, seja gentio ou judeu.
Judeus de todas as nações do exílio haviam retornado à terra para servir
como catalizadores para uma reunião ainda maior, a missão apostólica
da Grande Comissão. Em Efésios 4, Paulo pegou Pentecostes como a
derrota de Basã, a região do Norte, o ponto zero da batalha espiritual no
pensamento israelita. Se pensarmos apenas em termos de Pentecostes,
seria como se o lorde trevoso dos mortos (Baal Zebul), identificado como
Satanás naquela época, fora derrotado.
Mas essa seria uma conclusão prematura. Isso também não
funcionaria com o que se segue em Ezequiel 37 na profecia da libertação
do exílio e o rei pastor vindouro. No início de todas essas boas novas,
problemas viriam, e do Norte.
GOG, MAGOG E BASÃ
A descrição profética em Ezequiel 38-39 da invasão de “Gog, da
terra de Magog” (Ezequiel 38:1-3, 14-15) é bem conhecida e é objeto de
muitas disputas interpretativas, tanto de forma escolástica quanto
caprichosa. Um dos pontos sólidos é de que Gog virá das “alturas do
Norte” (38:15; 39:2). Enquanto muitos estudiosos têm focado nos
340
aspectos geográficos literais dessas frases, poucos têm dado uma atenção
séria às suas associações mitológicas nas religiões de Ugarit / Canaã com
Baal, o senhor dos mortos.
Um leitor da antiguidade esperaria uma invasão vinda do Norte,
mas teria entendido que essa era uma invasão sobrenatural em seu
contexto. Em outras palavras, a linguagem de Ezequiel não é
simplesmente sobre um invasor humano ou exércitos humanos. Um
leitor da antiguidade também teria percebido que essa invasão viria num
tempo quando as tribos estivessem unidas e habitando em paz e
segurança dentro da terra prometida, em outras palavras, uma vez que o
período do exílio tivesse acabado.
A batalha de Gog e Magog seria algo esperado depois do início do
plano de Yahweh em reclamar as nações e, assim sendo, juntar seus
filhos, gentios ou judeus, dessas nações. A invasão de Gog seria a
resposta do mal sobrenatural contra o messias e seu reino. Isso, na
verdade, é precisamente o que é mostrado em Apocalipse 20:7-10.
Gog teria sido percebido tanto como uma figura com poderes
dados pelo mal sobrenatural ou uma figura maligna quase divina do
mundo sobrenatural inclinada a destruir o povo de Deus. Por essa razão,
Gog é tido por muitos estudiosos bíblicos como um modelo da figura do
anticristo no Novo Testamento.
Enquanto Magog e “as alturas do Norte” não são definidos
precisamente na profecia de Gog, o ponto não é sobre uma geografia
literal per se. Ao invés disso, é o fundo sobrenatural da ideia de todo o
“inimigo do Norte” que faz qualquer referência geográfica importante. É
claro que os antigos judeus esperariam que o reino reconstituído de
Yahweh seria destruído por um inimigo do Norte, como já havia sido.
Mas os antigos judeus também pensariam em termos sobrenaturais. Um
inimigo sobrenatural no fim dos tempos seria esperado vir do trono da
autoridade de Baal, o reino sobrenatural do submundo dos mortos,
localizado nas alturas do Norte. Gog é explicitamente descrito em tais
termos. Mas há outra trajetória similar no pensamento do antigo
judaísmo e da igreja primeva que tem sido notado pelos estudiosos: O
anticristo viria da tribo de Dan, localizada em Basã.
341
O coração dessa ideia emerge de Gênesis 49, parte do mosaico
messiânico. O direito de governar Israel está ligado à tribo de Judá, e
aquele que segurar o seu cetro é um “leão” (Gên 49:9-10). Em contraste
a isso (Gên 49:17), Dan é referida como uma serpente, uma imagem
compatível com Basã, a qual “julga” seu próprio povo. Deuteronômio
33:22 discorre sobre esse assunto: “22De Dã disse: Dã é cachorro de
leão, que salta de Basã”. Dan é um ativista inferior, que irá atacar de
Basã. Dan é, então, um “infiltrado forasteiro”, um inimigo do povo de
Yahweh. Aqueles que interpretam essas referências nesse sentido,
rapidamente concluem que Dan é omitida da lista das tribos que
compõem os 144.000 crentes de Apocalipse 7.
Minha intenção não é argumentar por uma visão específica do
anticristo. Todos os sistemas escatológicos são especulativos sobre
muitos assuntos. O ponto é que a visão sobrenatural da antiga Israel e
do judaísmo devem informar nosso próprio raciocínio. O inimigo
cósmico do Norte sobrenatural, onde o conselho do mal planeja contra o
conselho de Yahweh, era uma parte sólida da visão dos escritores
bíblicos, especialmente quando ela se torna o nosso próximo foco: o
Armageddon.

342
CAPÍTULO 41
O MONTE DA ASSEMBLÉIA
Mesmo as pessoas que nunca estudaram a Bíblia já ouviram falar
do Armageddon. Todos aqueles que nem mesmo leram sobre o termo
não têm dúvidas de que quando o leem, sabem que ele se refere a uma
batalha que acontecerá em Megiddo, o homônimo geográfico presumido
para o termo Armageddon. Uma pesquisa posterior talvez detecte o fato
de que em Zacarias 12:11, o lugar chamado “Megiddo” é soletrado (em
hebraico) com um “n” no final, juntando a associação entre o lugar e o
termo Armageddon.
Por mais coerente que tudo isso pareça, está errado. Como
veremos nesse capítulo, identificar Armageddon com Megiddo é falho.
Com respeita à própria palavra, a descrição escritural do evento, e os
conceitos sobrenaturais ligados a ambos os elementos, o entendimento
normativo de Armageddon é demonstrativamente falho.
O SINGNIFICADO DE “ARMAGEDDON”
Os problemas para a identificação tradicional começam com o
próprio termo. Em Apocalipse 16:12-16 nós lemos:
12O sexto anjo derramou a sua taça sobre o grande rio Eufrates; e a
sua água secou-se, para que se preparasse o caminho dos reis que vêm
do oriente. 13E da boca do dragão, e da boca da besta, e da boca do
falso profeta, vi saírem três espíritos imundos, semelhantes a
rãs. 14Pois são espíritos de demônios, que operam sinais; os quais vão
ao encontro dos reis de todo o mundo, para os congregar para a
batalha do grande dia do Deus Todo-Poderoso. 15(Eis que venho como
ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia, e guarda as suas vestes,
para que não ande nu, e não se veja a sua nudez.) 16E eles os
congregaram no lugar que em hebraico se chama Armageddon.
João, o autor de Apocalipse, nos diz explicitamente que
“Armageddon” é um termo hebraico. João faz isso em parte porque o
livro de Apocalipse está escrito em Grego. Existe algo sobre a palavra

343
grega traduzida de “Armageddon” que requer, para os leitores gregos,
uma explicação de que o termo foi trazido ao versículo do hebraico.
Aqueles que podem ler grego, ou pelo menos conhecem o
alfabeto, notarão que o termo grego (Harmagedon) seria transliterado
para os caracteres em português como h-a-r-m-a-g-e-d-o-n. Se você não
sabe grego, você vai se perguntar de onde o “h” no início da transliteração
vem. O “h” no começo do termo corresponde à apóstrofe sobrescrita
antes do “A” maiúsculo nas letras gregas, o que é conhecido como uma
respiração áspera em grego. A linguagem grega não tem a letra “h” e
então se usa dessa marca para mostrar esse som.
Como resultado, o termo correto (hebraico) que João usa para
descrever a batalha clímax do fim dos tempos é Harmagedon. Esse
soletrar se torna significante quando tentamos discernir o que esse
termo hebraico significa. A primeira parte do termo (har) é fácil. O
hebraico har significa “montanha / monte”. Nosso termo é então
divisível em har-magedon, “Monte (de) magedon”. A pergunta é: o que
é magedon?
Duas opções históricas têm sido oferecidas para responder a essa
pergunta. A primeira é a tradicional “Megiddo”, que mencionei no início.
O significado da frase seria o “Monte de Megiddo”. Muitos estudiosos
bem versados na Bíblia aceita essa frase depois de ver as fotos de
Megiddo, como essa abaixo:

344
O problema é que isso é uma previsão arqueológica, um monte
artificial criado por camadas sucessivas de construções e ocupações há
milênios. Essa não é uma formação natural. Isso não é uma montanha,
e ali não existem montanhas em toda a região. A fotografia mostra
apenas o quão plana é, na verdade, a área de Megiddo.
Apocalipse 19:11-21 nos informa claramente que quando Jesus
votar em corpo à terra, ele o fará para acabar com o conflito do
Armageddon e derrotar a besta, o anticristo. De acordo com 16:16, esse
evento clímax ocorrerá no Armageddon. Estudantes da profecia bíblica
acharão esses versículos bem familiares.
Agora vamos dar uma olhada em Zacarias 12:9-11, lembrando
que 12:11 é o versículo que mencionei no início desse capítulo, onde
encontramos o hebraico para “Megiddo” soletrado com um n no final. Se
lermos 12:11 em contexto, veremos que o Armageddon não pode ser em
Megiddo, pois o n que aparece no final desse versículo prova que o termo
aponta para uma cidade:
9E naquele dia, tratarei de destruir todas as nações que vierem contra
Jerusalém.
10Mas sobre a casa de Davi, e sobre os habitantes de Jerusalém,
derramarei o espírito de graça e de súplicas; e olharão para aquele a
quem traspassaram, e o prantearão como quem pranteia por seu filho
único; e chorarão amargamente por ele, como se chora pelo
primogênito. 11Naquele dia será grande o pranto em Jerusalém,
como o pranto de Hadade-Rimom no vale de Megidom (Megiddo)”.
(Zacarias 12:9-11).
Está bem claro que o último conflito acontece em Jerusalém, e
não em Megiddo. Megiddo é mostrado apenas para comparar o terrível
luto que se resultará. Zacarias 12 não apenas coloca o lugar da batalha
final onde as nações viram o Cristo nascido e transpassado em
Jerusalém, mas o versículo 11 nos diz explicitamente que Megiddo é um
vale, e não uma montanha!
Então aonde isso nos deixa? Será que magedon nos aponta a
Jerusalém? Parece que sim, à luz de (1) o termo har-magedon, que

345
descreve a batalha final, e (2) Zacarias 12:9-11, que deixa claro que o
conflito acontece em Jerusalém.
O MONTE SOBRENATURAL DA ASSEMBLÉIA
Na verdade, magedon realmente aponta para Jerusalém, e de
uma forma especialmente dramática. Har-magedon é Jerusalém. A
chave é se lembrar que o termo deriva do hebraico.
Para aqueles que não conhecem hebraico, “Megiddo” parece uma
explicação óbvia para magedon, uma vez que ambas as palavras têm m-
g-d. Mas em hebraico existem, na verdade, duas letras que são
transliteradas com “g” em grego (e nas traduções em português). Aqui
estão as letras hebraicas por trás de “Megiddo”:
mem - gimel - daleth
M - G - D
A mesma “m-g-d” pode ser representada de outra forma, com
uma letra hebraica diferente no meio:
mem - ‘ayin - daleth
M - ’ - D
Nem em grego e nem em português temos a letra (outra que não
seja o “g”) que se aproxima do som de ‘ayin. É por isso que ela é
representada na transliteração acadêmica como uma apóstrofe de trás
para frente. O som da letra ‘ayin é feito no final da garganta e soa similar
a um forte “g”. Talvez o melhor exemplo de uma palavra hebraica que
começa com a letra ‘ayin em hebraico, mas é representada pelo “g” na
transliteração em português seja “Gomorra” (‘amorah). Essa palavra
familiar não é soletrada com o “g” hebraico (gimel) como o “g” em
“Megiddo”. Ela é soletrada com ‘ayin.
Isso significa que a frase hebraica por trás da transliteração grega
de João do nosso misterioso termo hebraico é, na verdade, h-r-m-’-d.
Mas o que isso significa? Se a primeira parte (h-r) é a palavra hebraica
har (“montanha”), existem algum har m-’-d em hebraico no Velho
Testamento?
346
Existe, e é impressionante quando o consideramos à luz da
batalha do “Armageddon” e o que raciocinamos no capítulo anterior
sobre o Norte sobrenatural e o anticristo.
A frase em questão existe na Bíblia Hebraica como har mo’ed.
Incrivelmente, ela é encontrada em Isaías 14:13, uma passagem que
muitos leitores imediatamente reconhecerão:
12Como caíste do céu, ó estrela da manhã, filha da alva! como foste
lançado por terra tu que prostravas as nações! 13E tu dizias no teu
coração: Eu subirei ao céu; acima das estrelas de Deus exaltarei o meu
trono; e no monte da congregação (har mo’ed) me assentarei, nas
extremidades do norte (Zaphon); 14subirei acima das alturas das
nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. 15Contudo levado serás ao
Seol, ao mais profundo do abismo. (Isaías 14:12-15).
Voltando no capítulo 11, nós vimos que a frase har mo’ed foi um
dos termos usados para descrever o lugar de habitação de Yahweh e seu
conselho divino, a montanha cósmica. A frase obviamente seria
preenchida com significado teológico para qualquer um que soubesse
hebraico e o Velho Testamento bem. Mas por que o lugar de habitação
de Yahweh seria chamado de “extremidades de Zaphon”? Nós já não
aprendemos no último capítulo que lá era o lugar de habitação de Baal?
Lembrem-se que, em Salmos 68:15-16, Yahweh desejou o “Monte
de Basã” para si mesmo, o seja, ele queria derrotar as forças das trevas e
clamar sua costumeira estadia para si mesmo. O mesmo é verdadeiro
para Zaphon. Vejam o que temos em Salmos 48:
1Grande é o Senhor e mui digno de ser louvado, na cidade do nosso
Deus, no seu monte santo. 2De bela e alta situação, alegria de toda
terra é o monte Sião aos lados do norte (literalmente, “as alturas do
Norte”), a cidade do grande Rei.
Salmos 48 faz uma grande afirmação teológica. Ele retira Baal de
sua habitação e afasta de lá seu conselho e propriedade. O salmista
mostra Yahweh governando o cosmos e os negócios da humanidade, e
não Baal. Salmos 48 é uma punhalada na cara de Baal.

347
Assim também é Isaías 14.
Ambas passagens são exemplos de livro de como os escritores
bíblicos adotam e depois redirecionam o material encontrado na
literatura de outras culturas (pagãs), nesse caso, Ugarit, para exaltar
Yahweh e zombar de deuses menores. A Bíblia Hebraica tem muitos
exemplos, mas eles só são óbvios para um leitor de hebraico que está
informado pela visão antiga dos escritores bíblicos.
O resultado no caso do Armageddon é dramático. Quando João
se utiliza dessa frase hebraica antiga, ele quer mostrar a batalha clímax
em Jerusalém. Por que? Porque Jerusalém é uma montanha, o Monte
Sião. E se Baal e os deuses das outras nações não gostam de Yahweh
afirmar ser o Altíssimo e afirmar governar o cosmos das alturas de
Zaphon / Monte Sião, eles podem tentar fazer algo sobre isso.
E é claro que eles tentarão. O Armageddon é sobre como as
nações ímpias, com poderes do anticristo, com poderes do príncipe das
trevas, o senhor (ba’al) dos mortos, o príncipe Baal (zbl ba’al), Belzebu,
que fará seu último e desesperado esforço para derrotar Jesus no lugar
onde Yahweh reúne seu conselho, o Monte Sião, em Jerusalém.
Apocalipse e Zacarias concordam. O Armageddon é uma batalha por
todos os domínios terrenos e sobrenaturais em Jerusalém. Megiddo não
se encaixa nesse perfil de maneira nenhuma.
UMA BATALHA DE DEUSES E HOMENS: Outra Conexão com
Zacarias
Zacarias 12:9-11 não é a única passagem no livro do Velho
Testamento que é um fator no evento do Armageddon. Mais cedo, no
capítulo 30, vimos que Zacarias profetizou a vinda de Yahweh com seus
santos, outros seres divinos do seu conselho, no conflito final contra o
maligno em todas as nações que se mantivessem contra sua liderança:
3Então o Senhor sairá, e pelejará contra estas nações, como quando
peleja no dia da batalha. 4Naquele dia estarão os seus pés sobre o
monte das Oliveiras, que está defronte de Jerusalém para o oriente; se
o monte das Oliveiras será fendido pelo meio, do oriente para o ocidente
e haverá um vale muito grande; e metade do monte se removerá para
348
o norte, e a outra metade dele para o sul. 5E fugireis pelo vale dos
meus montes, pois o vale dos montes chegará até Azel; e fugireis assim
como fugistes de diante do terremoto nos dias de uzias, rei de Judá.
Então virá o Senhor meu Deus, e todos os santos com ele. (Zacarias
14:3-5).
Yahweh é mostrado com aparência humana nessa passagem
(“seus pés estarão sobre o monte das Oliveiras”). João se usa dessa
passagem e sua imagem de um Yahweh humano em Apocalipse 19:11-16,
no clímax do Armageddon:
11E vi o céu aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava montado nele
chama-se Fiel e Verdadeiro; e julga a peleja com justiça. 12Os seus
olhos eram como chama de fogo; sobre a sua cabeça havia muitos
diademas; e tinha um nome escrito, que ninguém sabia sabia senão ele
mesmo. 13Estava vestido de um manto salpicado de sangue; e o nome
pelo qual se chama é o Verbo de Deus. 14Seguiam-no os exércitos que
estão no céu, em cavalos brancos, e vestidos de linho fino, branco e
puro. 15Da sua boca saía uma espada afiada, para ferir com ela as
nações; ele as regerá com vara de ferro; e ele mesmo é o que pisa o
lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso. 16No manto,
sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis e Senhor dos senhores.
O Yahweh encarnado tem o Nome do Altíssimo. Ele é o Verbo de
Deus em forma humana. Ele é acompanhado pelos exércitos do céu. A
linguagem é obviamente derivada da frase do Velho Testamento “Senhor
das hostes”, a qual se refere a seres divinos.
Abordagens tradicionais escatológicas reconhecem que Jesus
retorna com um exército (“angelical”) divino, mas a divinização dos
filhos terrenos de Deus e sua entrada no conselho da família de Yahweh
são frequentemente negligenciados, devido à infeliz tradução de hagioi
(“sagrados”) como “santos”. Os exércitos celestiais que testemunham a
derrota do anticristo e suas hordas são a combinação dos elohim de
Yahweh e os humanos feitos divinos:
31Quando, pois vier o Filho do homem na sua glória, e todos os anjos
com ele, então se assentará no trono da sua glória. (Mateus 25:31).

349
13para vos confirmar os corações, de sorte que sejam irrepreensíveis
em santidade diante de nosso Deus e Pai, na vinda de nosso Senhor
Jesus com todos os seus santos. (1 Tessalonicenses 3:13).
7e a vós, que sois atribulados, alívio juntamente conosco, quando do
céu se manifestar o Senhor Jesus com os anjos do seu poder em chama
de fogo (2 Tessalonicenses 1:7).
14Para estes também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão,
dizendo: Eis que veio o Senhor com os seus milhares de santos, 15para
executar juízo sobre todos e convencer a todos os ímpios de todas as
obras de impiedade, que impiamente cometeram, e de todas as duras
palavras que ímpios pecadores contra ele proferiram. (Judas 14-15).
Finalmente, existe uma adição sutil à descrição do retorno
triunfante de Jesus em Apocalipse 19: “Ele as regerá com vara de ferro”
(v. 15). A linguagem vem de Salmos 2:2, a qual João citou anteriormente,
em Apocalipse 2:26-28, para se referir aos crentes humanos feitos
divinos na ressurreição após a vida, os quais governarão e reinarão com
Jesus sobre as nações:
26 Ao que vencer, e ao que guardar as minhas obras até o fim, eu lhe
darei autoridade sobre as nações, 27e com vara de ferro as regerá,
quebrando-as do modo como são quebrados os vasos do oleiro, assim
como eu recebi autoridade de meu Pai;28também lhe darei a estrela da
manhã. (Apocalipse 2:26-28).
A implicação, é claro, é que os exércitos celestiais que retornarem
com Cristo serão mais do que apenas membros não humanos do
conselho divino. A hoste incluirá crentes os quais foram exaltados a
serem membros, retornaram para substituir os deuses das nações.
Cristãos, vocês sabem quem são? O dia virá em que os elohim morrerão
como homens, e vocês julgarão os anjos (1 Coríntios 6:3).

350
CAPÍTULO 42
DESCREVENDO O INDESCRITÍVEL
Num passado distante, deus deserdou as nações da terra como
suas famílias co-governantes, o projeto edênico original, e com isso
resolveu criar uma nova família de Abraão (Deuteronômio 32:8-9). As
nações deserdadas foram colocadas sob a autoridade de elohim menores,
filhos divinos de Deus. Quando eles se tornaram corruptos, foram
sentenciados à mortalidade (Salmos 82:6-8). O Velho Testamento é
basicamente uma narrativa da longa guerra entre Yahweh e os deuses, e
entre os filhos de Yahweh e as nações, para reestabelecer o projeto
original do Éden.
A vitória no Armageddon do retorno do Yahweh encarnado sobre
a Besta (anticristo), que dirigiu as nações a cidade santa de Yahweh é o
evento que fará desabar os elohim de seus tronos. Esse é o dia de
Yahweh, o tempo em que tudo que é maligno será julgado e quando
aqueles que creem e vencem, substituirão os filhos desleais de Deus. O
reino está preparado para sua realização plena terrena, sob um conselho
divino reconstituído cujos membros incluem crentes glorificados. A
grande massa da humanidade crente experimentará um novo mundo
edênico num estado ressurreto celestial.
O que foi arruinado pela queda será restaurado, e feito
irreversível, pela encarnação de Yahweh, sua morte ungida e sua
ressurreição. Mas tudo isso é relativamente fácil de falar, quando
comparado a passagens que lidam com o que virá por último e
permanecerá para sempre.
Como você descreveria o indescritível? Paulo respondeu esse
problema de forma clara. Eu ainda gosto a Versão do Rei James de seus
sentimentos pelo seu ritmo, quase que com uma qualidade lírica:
9No entanto, como está escrito: “Olho algum jamais viu, ouvido algum
nunca ouviu e mente nenhuma imaginou o que Deus predispôs para
aqueles que o amam”. (1 Coríntios 2:9).

351
Bem verdade. Mas nesse último capítulo, quero tentar e
esquematizar o que os escritores bíblicos pensavam quando escreviam
sobre os corpos celestiais dos crentes ressurretos e o estado eterno do
novo Éden.
CARNE CELESTIAL
Devotamos uma boa dose de atenção para demonstrar o uso das
terminologias no Novo Testamento de filiação, família e adoção para os
crentes (Gal 3:7-9, 23-28; João 1:11-12; 1 João 3:1-3; 2 Pedro 1:2-4; Gal
4:4-6; Rom 8:15-23; Efésios 1:4-5). A lógica dessa linguagem deveria ser
bem evidente por agora. Nas eras passadas, os filhos divinos de Deus
assistiram Yahweh criando o mundo (Jó 38:7-8). Yahweh então
anunciou ao seu conselho a sua intenção em criar humanos os quais
seriam suas imagens, um status que seus filhos divinos também
compartilhavam (Gên 1:26-27). Fomos projetados para sermos reflexos
incorporados de Deus. Esse ponto da teologia bíblica estava no centro
de umas das mais extensas narrativas de Paulo sobre o que nós seremos
no novo Éden, um lugar que não podemos ir até que morramos em Cristo
e formos ressuscitados por ele. Ele escreveu em 1 Coríntios 15:
35Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? E com que
qualidade de corpo vêm? 36Insensato! o que tu semeias não é
vivificado, se primeiro não morrer. 37E, quando semeias, não semeias
o corpo que há de nascer, mas o simples grão, como o de trigo, ou o de
outra qualquer semente. 38Mas Deus lhe dá um corpo como lhe
aprouve, e a cada uma das sementes um corpo próprio. 39Nem toda
carne é uma mesma carne; mas uma é a carne dos homens, outra a
carne dos animais, outra a das aves e outra a dos peixes. 40Também
há corpos celestes e corpos terrestres, mas uma é a glória dos celestes e
outra a dos terrestres. 41Uma é a glória do sol, outra a glória da lua
e outra a glória das estrelas; porque uma estrela difere em glória de
outra estrela. 42Assim também é a ressurreição, é ressuscitado em
incorrupção. 43Semeia-se em ignomínia, é ressuscitado em glória.
Semeia-se em fraqueza, é ressuscitado em poder. 44Semeia-se corpo
animal, é ressuscitado corpo espiritual. Se há corpo animal, há também
corpo espiritual. 45Assim também está escrito: O primeiro homem,
Adão, tornou-se alma vivente; o último Adão, espírito
352
vivificante. 46Mas não é primeiro o espiritual, senão o animal; depois
o espiritual. 47O primeiro homem, sendo da terra, é terreno; o
segundo homem é do céu. 48Qual o terreno, tais também os terrenos;
e, qual o celestial, tais também os celestiais. 49E, assim como
trouxemos a imagem do terreno, traremos também a imagem do
celestial. 50Mas digo isto, irmãos, que carne e sangue não podem
herdar o reino de Deus; nem a corrupção herda a incorrupção. 51Eis
aqui vos digo um mistério: Nem todos dormiremos mas todos seremos
transformados, 52num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som
da última trombeta; porque a trombeta soará, e os mortos serão
ressuscitados incorruptíveis, e nós seremos transformados. 53Porque
é necessário que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade
e que isto que é mortal se revista da imortalidade. (1 Coríntios 15:35-
53).
Essa passagem gera várias questões. A mais fundamental é, sem
dúvida, o que Paulo quer dizer quando fala de algum tipo de “corpo
celestial” (v. 40) que é “espiritual” (pneumatikos; v. 44) e imortal (vv.
52-53). Seja o que ele queria dizer com essa linguagem, ela é importante
para todo o crente, uma vez que eles “também terão a imagem do homem
(segundo) celestial” (vv. 45-49).
Na verdade, há um bom número de atenção dos estudiosos a
esses pensamentos de Paulo em 1 Coríntios 15. No antigo mundo
Helenístico Greco-Romano de Paulo, havia uma crença de que os mortos
depois da vida tinham corpos que não eram de carne e sangue, mas eram
compostos por “uma substância fina e pura”. Muitas pessoas nessa época
se referiam a essa substância como aether, e acreditavam que as estrelas
também eram compostas por ela. Isso explica em parte a propensão dos
escritores extra bíblicos a afirmarem que os mortos após a vida se
tornavam estrelas ou como estrelas. Uma vez que eles aprendiam que as
estrelas eram membros divinos do reino dos deuses, a ideia faz sentido
em seu próprio contexto. O pensamento de Paulo, no entanto,
transcende essa equação.
Paulo não dependia do paganismo Greco-Romano para
raciocinar sobre a imortalidade celestial. O Velho Testamento contém
cernes dessa ideia, e a maioria das obras literárias dos judeus do período
353
do Segundo Templo lidam com o assunto. Daniel 12:2-3 liga a vida
ressurreta aos céus (e estrelas) sem especular sobre a natureza da
existência ressurreta:
2E muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão, uns para a
vida eterna, e outros para vergonha e desprezo eterno. 3Os que forem
sábios, pois, resplandecerão como o fulgor do firmamento; e os que
converterem a muitos para a justiça, como as estrelas sempre e
eternamente.
O Novo Testamento contém um pensamento similar. Mateus
13:43 diz: “43Então os justos resplandecerão como o sol, no reino de seu
Pai. Quem tem ouvidos, ouça”. O raciocínio da analogia celestial é
aparentemente que o corpo do crente será como o de Jesus, uma vez que
a aparição de Jesus na transfiguração é descrita em termos similares: “2e
foi transfigurado diante deles; o seu rosto resplandeceu como o sol, e
as suas vestes tornaram-se brancas como a luz” (Mateus 17:2). As
fontes judaicas do Segundo Templo descrevem a mesma ideia com
respeito aos justos ressurretos.
No final, esse tipo de linguagem celestial está tentando telegrafar
uma simples mas profunda ideia. Na vida eterna com Deus, os crentes
terão o mesmo tipo de corpo que Jesus teve depois da ressurreição. Nos
identificaremos com o Jesus ressurreto corporalmente, assim como
atualmente nos identificamos Espiritualmente: “17Mas, o que se une ao
Senhor é um só espírito com ele”. (1 Coríntios 6:17).
Em nossa linguagem moderna, poderíamos dizer que o corpo de
Cristo tinha, depois da ressurreição, seu corpo terreno, curado e
transformado numa forma material sem as limitações da existência
humana terrestre. Ele era um “corpo glorificado” (Filipenses 3:21), da
terra e não terreno. Essa transformação da ressurreição é o final, a
expressão literal inimaginável de estarmos em conformidade à imagem
de Cristo (2 Coríntios 3:18). Como descreve um estudioso:
Estarmos em conformidade ao corpo Glorificado de Cristo é um
paralelo evidente a nos tornarmos “a mesma imagem” como um ser
divino (2 Coríntios 3:18). Então, essa corporeidade luminosa de Deus,
conhecida na Bíblia Hebraica foi garantida aos convertidos de Paulo
354
através de sua participação em Cristo. Eles foram assimilados ao super
corpo do Cristo divino. Eles compartilham a realidade do corpo divino
de Cristo, o qual garante a participação deles nos atributos de Cristo
de incorruptibilidade e imortalidade.
ESPAÇO GLOBAL SAGRADO
O livro de Apocalipse frequentemente descreve os crentes como
aqueles que “venceram” os assaltos do mal descritos no livro ao manter
a sua fé em Cristo, o Cordeiro de Deus, o qual é o início e o fim. Em seis
ocasiões, o termo é usado em conjunção com a recompensa da vida
eterna. As imagens invocadas são inequívocas, como se tivessem sido
tiradas das descrições do espaço sagrado do Velho Testamento, primeiro
o Éden, então depois a Arca e o Tabernáculo, depois a morada celestial
habitada pelo novo e alto sacerdote ressuscitado, o próprio Jesus. Viver
no novo Éden significa ocupar o espaço sagrado reservado por Deus e
sua família-conselho.
Em Apocalipse 2:7, 11, Jesus disse àqueles que conquistam: “Ao
que vencer, dar-lhe-ei a comer da árvore da vida, que está no paraíso
de Deus... O que vencer, de modo algum sofrerá o dado da segunda
morte”. A referência à árvore da vida é claramente edênica. Apocalipse
2:11 é menos transparente, mas também ecoa o Éden. A primeira morte
se refere à morte física, trazida pelo pecado de Adão e expulsão do Éden.
Uma vez que todos os humanos, crentes e não crentes, são ressuscitados
antes do julgamento, a segunda morte é o julgamento final (Apocalipse
21:8). Aqueles que continuarem a viver com Deus, o farão num novo
mundo edênico.
Apocalipse 2:17 nos diz que aqueles que conquistarem, receberão
o “maná escondido” e “uma pedra branca, e na pedra um novo nome
escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe”. Maná, é
claro, era um alimento sobrenatural enviado durante as andanças no
deserto (Êxodo 16). Ele era pão do céu, uma analogia a Jesus como a
fonte da vida eterna (João 6:31-58). Ele estava “escondido” no sentido
de que estava reservado só para aqueles que haviam crido até o final. Um
pode de maná foi colocado “perante o Senhor” na arca da aliança no
santíssimo (Êxodo 16:33; Hebreus 9:4). De acordo com os escritos do
355
Segundo Templo, o maná era considerado o alimento dos anjos e dos
filhos de Deus.
O significado da pedra branca não é completamente certo.
Baseado em paralelos encontrados na literatura judaica do período
Segundo Templo, as pedras brancas eram um símbolo de absolvição
legal ou um símbolo de filiação dentre os justos. O significado é, então,
bem similar aos crentes conquistadores recebendo vestes brancas
mostrado em Apocalipse 3:5, que diz: “O que vencer será assim vestido
de vestes brancas, e de maneira nenhuma riscarei o seu nome do livro
da vida; antes confessarei o seu nome diante de meu Pai e diante dos
seus anjos”. Como vimos no capítulo 36, Jesus na verdade nos introduz
ao conselho. Uma pedra branca e uma veste branca eram sinais de
filiação à família de Deus.
Apocalipse 3:12 discorre sobre o templo. Jesus disse: “A quem
vencer, eu o farei coluna no templo do meu Deus, donde jamais sairá;
e escreverei sobre ele o nome do meu Deus, e o nome da cidade do meu
Deus, a nova Jerusalém, que desce do céu, da parte do meu Deus, e
também o meu novo nome”. A linguagem é parecida com as passagens
de 1 Coríntios 3:16; 6:19, mas são impressionantes. O templo de Yahweh
era um espaço sagrado, e somos parte desse templo. Como aprendemos
do Velho Testamento, o templo era a morada do Nome, a presença de
Yahweh, e agora portamos esse Nome.
Apocalipse 21:7 é a ligação mais explícita entre a filiação divina,
a conquista do mal e as nações: “Aquele que vencer herdará estas coisas;
e eu serei seu Deus, e ele será meu filho”. Uma “herança” é claro que é
algo que é herdado. Israel era a herança de Yahweh, sua porção
(Deuteronômio 32:9). Somos parte disso (Gal 3:26-29) e também a
governaremos como filhos e filhas desse conselho real e morada divina.
A herança do crente é dominar com Cristo e Deus.
REVERSÃO DAS MALDIÇÕES
A imagem do Éden no final do livro de Apocalipse é óbvia, pois
só pode haver um contexto para a árvore da vida:

356
E mostrou-me o rio da água da vida, claro como cristal, que procedia
do trono de Deus e do Cordeiro. 2No meio da sua praça, e de ambos
os lados do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando
seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a cura das
nações. 3Ali não haverá jamais maldição. Nela estará o trono de Deus
e do Cordeiro, e os seus servos o servirão.
Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestes [no sangue do
Cordeiro] para que tenham direito à arvore da vida, e possam entrar
na cidade pelas portas.
e se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia,
Deus lhe tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade santa, que
estão descritas neste livro. (Apocalipse 22:1-3, 14, 19).
Notem que a árvore da vida é especialmente conhecida como “a
cura das nações”, uma clara referência ao reclame das nações que foram
dadas a deuses menores em Babel (Deut 32:8). O efeito também é
descrito: “Ali não haverá jamais maldição”. As maldições sobre a terra e
a humanidade trazidas pela queda são revertidas. As outras duas
referências à árvore da vida naturalmente ligam a vida eterna do crente
a estar presente no Éden, o lugar onde Deus, a fonte de toda a vida,
habita.
O Velho Testamento alude à reversão da maldição e à chegada do
reino global de formas impressionantes que ecoam as condições
edênicas:

 Todos aqueles antes doentes ou deficientes serão restaurados à


cura completa (Isa 29:18-19; 30:26; Miq 4:6-7).
 Todos se regozijarão na abundância de leite, mel, frutas e
benesses (Isa 4:2; 7:21-22; 25:6-9; 30:23-24; Joel 3:18; Amós
9:13-15).
 Haverá paz em toda a criação (Oseas 2:18; Isa 11:1-10; Ezequiel
34:25-28); e toda Israel (Isa 10:20; 52:6; Ezequiel 39:22).
 Todas as nações (Isa 19:19-25; Ezequiel 38:23) saberão que
Yahweh é Deus.

357
NÃO MAIS O MAR
Um dos meus versículos favoritos da Bíblia é Apocalipse 21:1. João
escreve:
E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já se foram o
primeiro céu e a primeira terra, e o mar já não existe.
No mundo antigo, o mar era algo pavoroso. Ele era imprevisível
e indomável. Era um lugar sobre o qual os humanos não podiam viver.
Consequentemente, o mar era frequentemente usado como uma
metáfora para o caos, destruição e morte. O poder e caos sem limites do
mar era simbolizado tanto no VT numa ampla gama de literaturas do
antigo Oriente Próximo, seja como um dragão ou um monstro marinho,
chamado de Leviatã e Raabe (Salmos 74:14; 89:10).
As imagens do mar mostram essas ideias desde o início da Bíblia.
As águas do abismo primitivo (Gên 1:2) tiveram que ser acalmadas e
domadas por Deus. A derrota dos deuses do Egito aconteceu quando o
mar obedeceu ao seu Criador (Êxodo 14). Jesus andou sobre o mar e
instantaneamente o trouxe à submissão. Para as mentes antigas, esses
incidentes simbolizavam poder sobre o caos e tudo que podia trazer
injúrias e morte à humanidade. A ausência do caso significava que tudo
estava em perfeita e divina ordem, calmo.
É por isso que Apocalipse termina dessa forma, com Deus
retornando para permanentemente morar com sua família na nova terra.
Quando o Éden chegar, não haverá mais o mar. Tudo o que foi
originalmente desejado pela visão do Éden global de Deus acontecerá. O
Éden final não morrerá. As escolhas das imagens com livre arbítrio de
Deus que obstruíram o plano de Deus foram resolvidas. Todas as
imagens, humanas e divinas, que habitarem no novo Éden, escolherem
corretamente, eles creram que Yahweh é o Deus dos deuses e que o
caminho dele é o melhor. Seus desejos se alinharam com o desejo dele.
O “preparado, mas ainda não” foi realizado. O “ainda não” deu lugar ao
agora e para sempre.

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EPÍLOGO
Quando começamos nossa jornada, compartilhei com vocês
minha própria experiência de me aventurar na mente dos antigos
israelitas, judeus e cristãos do primeiro século e como isso foi possível
olhando a Bíblia como nunca havia feito antes. Isso me ruiu de uma
forma agradável. Mas só posso dizer isso com retrospectiva. Na época
dessa experiência, eu já lecionava em nível universitário e foi do meio de
um dos mais respeitados programas da Bíblia Hebraica dos EUA, E
ainda assim, eu não pensava claramente sobre as Escrituras. Eu não
havia visto muito do que escrevi nesse livro. Fui cegado pela tradição e
pela minha própria predileção em manter certas coisas na periferia
quando elas vinham na Bíblia. Foi o tempo mais difícil na minha vida ter
que agitar tudo isso, ter que repensar e reavaliar o que eu acreditava. Isso
requereu minha auto humilhação, algo que não vem fácil para um
acadêmico.
O entendimento de que eu precisava ler a Bíblia como uma
pessoa pré-moderna a qual abraçava o sobrenatural, o mundo invisível,
iluminava seu conteúdo mais do que qualquer coisa na minha vida
acadêmica. Uma questão que vinha me fazendo ao longo dos anos
quando comecei a compartilhar esses pensamentos que agora são parte
desse livro era uma que fazia a mim mesmo: Por que eu nunca ouvi falar
dessas coisas antes? Isso me deixava atônito, pois poderia me sentar por
anos em pregações bíblicas e ensinamentos e nunca ninguém havia me
alertado sobre a importância e as verdades excitantes que
acompanhamos aqui.
Aprendi que a resposta a essa pergunta era complexa. Ao invés
de reclamar dela, Deus me provocou a fazer algo sobre isso. A maioria
das pessoas não vão aprender Grego e Hebraico (e outras línguas
mortas) como parte de seu estudo das Escrituras. A maioria não vai
perseguir um PhD em estudos bíblicos, onde eles irão encontrar estudos
de alto nível que irão força-los a pensar sobre o que o texto bíblico
verdadeiramente tem a dizer e por que ele diz tal coisa em seu próprio
contexto antigo, completamente removido de quaisquer tradições
modernas. Mas todos desejam absorver algum benefício dessas
disciplinas. E dessa forma isso se tornou a minha ambição, passar esses
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dados e sintetizá-los para que mais pessoas pudessem experimentar o
suspense de redescobrir a visão sobrenatural da Bíblia, de ler a Bíblia de
novo pela primeira vez.
The Unseen Realm (O Reino Invisível) é o primeiro passo nesse
esforço. Se você for como eu, o que você leu aqui será material para se
pensar por algum tempo. E a verdade dita, é que esse é apenas um ponto
de início. Minha esperança é que o livro o tenha alertado para alguns
princípios extremamente importantes que listei abaixo: estratégias para
a procura de ideias bíblico-teológicas que correm através das Escrituras.
Essa é a minha pequena lista de princípios de pesquisa que, mesmo que
aparentem ser auto evidentes, preciso ser constantemente lembrado
delas.
1. Deixe a Bíblia ser o que ela é, e esteja aberto à noção de
que o que ela diz sobre o mundo invisível pode ser real.
Os escritores certamente sabiam que era. Sugiro que essa seja
uma boa estratégia hermenêutica para captar de forma firme,
que os autores bíblicos, não são nós enquanto procuravam
entender seus pensamentos. Isso não é apenas extremamente
importante, mas criticamente importante ler as Escrituras como
foram escritas.
2. O conteúdo da Bíblia precisa fazer sentido em seu
próprio contexto, mesmo que não faça sentido para
nós. Não posso pensar em nada a não ser nossos raciocínios de
Gênesis 6:1-4. Essa passagem diz o que ela diz, pois o que ela
mostra a visão mundial do escritor. Tentar dar um ar mais
“racional” (isto é, não sobrenatural) ao seu significado para
deixa-la mais palatável num contexto diferente é a mesma coisa
que apagar o seu alvo desejado. Mesmo se algumas passagens das
Escrituras não fizerem sentido em nosso mundo, e se fazemos
careta com o que elas dizem, mudar o contexto delas para
remover o nosso desconforto não parece ser um método
hermenêutico.
3. Como os escritores bíblicos ligam as passagens para
interpretação deveriam guiar a nossa própria atenção
na Bíblia. No jargão acadêmico, isso é referido como

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intertextualidade. Ele é importante para entendermos o que o
escritor bíblico estava pensando e fazendo. É como as ideias são
tratadas através do cânone. A maioria de nossa exegese envolve
fragmentar passagens e versículos em suas partes constituintes,
onde os escritores bíblicos estavam criando conexões entre os
textos. Uma vez que a Bíblia é, inevitavelmente, algo como um
artefato para nós, temos que ter cuidado e atenção às suas partes.
Mas muito frequentemente só analisamos as peças de forma
isolada e falhamos em observar como elas são encaixadas a
outras peças. Aprender a prestar atenção à intertextualidade é
seguir uma trilha de miolos de pão inspiradas para onde ela quer
levar.
4. Como os escritores do Novo Testamento redirecionam
o Velho Testamento é crítico para a interpretação
bíblica. Em outras palavras, o Septuaginta é um grande
negócio. Ele faz um bom trabalho em nos lembrar que o Novo
Testamento é um comentário inspirado no Velho Testamento
quando falhamos em discernir que Bíblia eles estavam usando
(mais frequentemente do que imaginamos).
5. Significado metafórico não é “menos real” do que o
significado literal (mesmo que seja definido). Gostemos
ou não, os escritores bíblicos não eram obcecados pelo
literatismo da maneira que achamos. Francamente, vim a
acreditar que todo seminário e programa de escola de graduação
em estudos bíblicos devem pedir um curso de métodos
hermenêuticos dos escritores bíblicos e do judaísmo do primeiro
século. Seria uma chamada para despertar. Escritores bíblicos
regularmente empregam metáforas conceituais em seus escritos
e pensamento. É porque eles são humanos. Metáforas
conceituais se referem à maneira com que usamos um termo
concreto ou ideia para comunicar ideias abstratas. Se nos
casamos com o significado concreto (“literal”) das palavras,
estaremos perdendo o ponto que o escritor deseja mostrar em
muitos casos. Se eu usar a palavra “Vegas” e todos vocês
pensarem em sua latitude e longitude, vocês não estarão
seguindo meu significado. As palavras bíblicas podem carregar

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um monte de coisas que transcendem seu sentido concreto. A
inspiração não imuniza a linguagem de fazer o que ela faz.
Finalmente, minha oração para os leitores é de que Deus usará esse
livro em sua vida na forma que ele tem usado o seu conteúdo na minha
própria jornada espiritual: se maravilhar na intrincada narrativa bíblica,
ser abençoado pelo amor de Deus pelos seus filhos humanos, e levar o
conhecimento do mundo invisível na herança da salvação (Hebreus
1:14).

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