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Gordurinhas (tecido adiposo)  a escada do amor

1- Platão e o tutano vital;

Um clássico, no fim das contas, talvez seja isso: uma obra capaz de tocar os
corações e as mentes de homens e mulheres de diferentes épocas, com diferentes
culturas e configurações existenciais. Não só tocá-los, mas trazer-lhes um senso de
orientação, aproximar-lhes do sentido da vida. Como é possível que um clássico
ultrapasse as barreiras do tempo e das culturas e continue dizendo algo que importa? A
razão disso, a meu ver, é que o clássico transmite algo de universal. Mas talvez
transmitir não seja a palavra mais exata; um clássico desperta a lei íntima que está
inscrita no coração de todo homem, desde o princípio dos tempos. É por isso que, à luz
dos clássicos, eu me reconecto mais a mim mesmo, eu des-cubro minha intimidade;
também é por isso que, à luz dos clássicos, os homens reconhecem-se uns aos outros,
pois contemplam realidade comum: os valores fundamentais, alicerces de sua
humanidade. Por essa razão, os clássicos chegaram até aqui: comoveram e despertaram
nossos antepassados ao ponto de serem preservados como tesouros. Trouxeram, e
continuam trazendo, “a palavra essencial no tempo”.

Ao longo desses sete anos de leitura e ruminação dos diálogos platônicos em


busca do sentido da vida, ou, sejamos francos, em busca de superar minha ignorância
perante a existência. Não posso dizer que Platão me enganou nessa busca. Lição
platônica número um: minha ignorância é incurável, pois ela é parte constitutiva do ser
humano. Mas, para além dessa paulada inicial (que, a depender do cidadão, pode ser
cruel ou libertadora), Platão ensina um caminho. Um caminho que vem sendo trilhado
por ignorantes como eu, a milhares de anos: a Filosofia.

Além do mais, a maioria dos clássicos foi escrito por pessoas já mortas. Por um
lado isso é fúnebre, por outro é uma possibilidade fascinante: ler os clássicos é
conversar com mortos! Na medida em que respondo àquilo que leio, estou conversando
com o texto; na medida em que o autor do texto já está morto, estou conversando com
mortos! Dos mortos que venho conversando, Platão é um dos meus favoritos. Afinal de
contas, ele me apresentou Sócrates.

Os diálogos de Platão despertam minha responsabilidade, ou seja, minha


capacidade pessoal de resposta: ao texto, à mim mesmo, à vida. Sim, falo dessa
misteriosa voz da consciência, do timbre de nossos diálogos conosco mesmos, dessa
chama frágil que vela nosso interior, desse lusco-fusco pelo qual enxergamos a vida.

Em relação à burrice perante a existência, Platão não traz afagos: ela é incurável. A
ignorância humana é incurável. Contudo, é possível adotar duas atitudes. Reconhecer ou
não essa ignorância. É possível permanecer um ignorante, sem aguniar-se muito com
isso. É possível adotar a atitude do filósofo, amar a Sabedoria ( aqui podemos lembrar
de Pitágoras, a sabedoria é um atributo do Ser Supremo, Deus). e as três dimensões na
qual ela se apresenta: a Beleza, a Bondade e a Justiça. Assim que adota a atitude de
amante da sabedoria, o filósofo estará a caça dos sinais (esses sinais do Ser desse Ser
Supremo, estará a caça dos sinais da Beleza.

2- Platão, médico da pólis

Aplicação

Aqui os objetivos de Platão podem ficar um pouco abstratos, dificultando o


entendimento. No entanto, se seguirmos o filósofo em sua exposição da República
talvez fique mais fácil compreender seu projeto. Platão compara a cidade ao indíviduo,
se seguirmos essa comparação, entendendo que a ação do indivíduo é como a política,
será preciso reconhecer que, para que haja uma mudança de hábito, será preciso que ele
pare e examine os pensamentos que sustentam aquela linha de ação, de modo a que,
modificando suas redes de pensamento, ele possa modificar suas ações. Do mesmo
modo, na pólis, é preciso que o filósofo, responsável pelo pensamento da cidade (ou
seja, responsável por formar a consciência intelectual da cidade). É preciso que o
pensamento da pólis mude para que, então, a ação da pólis mude. A ação política
decadente a que Platão assistia era resultado do pensamento sofístico que dominava seu
tempo. Era preciso, portanto, inaugurar, fundar, um novo tipo de pensamento, um novo
tipo de intelectualidade: a filosofia.
Já que tratamos aqui de uma escada, cito abaixo cinco degraus que considero
essenciais e que perfazem o caminhar nessa ascensão amorosa em busca da sabedoria:

1- A fonte da sabedoria existe e está para além e acima de si;


2- É preciso um esforço de ascese para acessar essa fonte;
3- A verdade só pode ser vivenciada pela consciência individual e por aquilo que
há de melhor nela: a capacidade teórica, contemplativa, o Apex mentis, a ponta
fina do espírito;
4- A vivência da verdade é 1- limitada, no sentido de nunca ser plena e absoluta;
2- mística, no sentido de não ser redutível à racionalidade discursiva e 3-
instável, no sentido de ocorrer, sob o ponto e vista da duração, em momentos
privilegiados dados ao homem encarnado.
5- A melhor maneira de manter-se fiel à vivência da verdade é descer, ou seja,
doar-se através de alguma forma concreta de auto-sacrifício em prol do Bem.

Qual é a martelada que finalmente quebra a pedra dura da ignorância? A centésima


primeira, a trigésima...? Ou ainda, qual o galho que, unido a um feixe com outros
galhos, torna o feixe inquebrantável? O trigésimo, o centésimo...? Ainda mais: qual
a boa ação concreta que, realizada, consolida um caráter bom? A décima, a
vigésima...? Também assim, o filósofo só poderá consolidar-se enquanto tal após
reiteradas, e inumeráveis, viagens metafísicas, habituando-se a viver entre os dois
mundos, aprendendo a no paradoxo que o compõe: sua ignorância intransponível e a
possibilidade alvíssima da sabedoria. Ele é filósofo na medida em que, ascendendo,
contemplando e descendo, está amando e sendo fiel ao chamado da Verdade.

Não se trata da autenticidade de botequim, desejo de brilho, vaidade. A autenticidade


necessária ao filósofo é conquistada através do esforço em conhecer a si mesmo. Não é
difícil encontrar imagens sedutoras retratando o autoconhecimento; por exemplo: um
belo barco pujante e gracioso, a navegar em águas caribenhas em dia de sol e céu claro.
Acontece que, como diria meu pai, para iniciar a navegação do autoconhecimento é
preciso descer aos porões do navio. Dificilmente se encontrará pôneis, arco-íris e
ursinhos carinhosos; o porão é onde estão lacraias, ratos, baratas e toda sorte de bichos
peçonhentos. O navio sou eu mesmo, e o porão também. E todos aqueles bichos podem
resumir-se numa só criatura: o falsário que há em mim. O esforço de ascensão significa
transformar esse farsante em alguém minimamente autêntico, ou seja, em alguém
minimante afinado à Verdade. Para reconhecer a Verdade que está além de si, é preciso
condenar a mentira que há dentro de si. Do contrário, toda “produção filosófica”,
“produção intelectual”, correrá o risco de ser apenas uma intelectualização, uma
justificação consciente ou inconsciente, de uma mentira íntima. Como já dizia a cantora
Marinês: “é condenar a mentira/ pra se poder caminhar”. A polaridade mentira-verdade
está dentro do próprio indivíduo, o filósofo é aquele que se esforça, reiteradamente, por
condenar a mentira e aproximar-se da verdade. Lembremo-nos da escada e da caverna:
há um patamar inferior e um superior.

A partir dessa dualidade, a ascensão pode ser compreendida: ela é o liame entre
o patamar inferior e o superior, os limites materiais e o Sol espiritual, o mentiroso e o
autêntico. A ascensão pode ser entendida como o sacrifício do ego-farsante, em busca
de acessar o eu-verdadeiro. Os degraus da escada são porções suportáveis de esforço, ou
seja, porções suportáveis de sacrifício.

Negação essa que ganha o caráter de sacrifício, pois o filósofo abre mão,
voluntariamente, de uma vida superior e aceita viver uma vida inferior. Aliás, é
precisamente por esse motivo, isto é, por conhecerem uma realidade infinitamente
superior àquela da caverna, com suas riquezas materiais e suas intrigas políticas, que
o filósofo será capaz de bem administrar a pólis. Pois o filósofo irá ao serviço
público, tendo sacrificado uma vida superior (i.e. a vida contemplativa), com o
espírito de serviço e doação abnegada. Por essa razão é que Sócrates diz:

Se descobrires uma vida melhor do que governar, para os que devem


governar, podes conseguir um Estado bem administrado. Pois só nesse
mandarão aqueles que são realmente ricos, não em dinheiro, mas naquilo em
que deve abundar quem é feliz - uma vida boa e sensata. Se, porém, os
mendigos e os esfomeados de bens pessoais entram nos negócios públicos,
pensando que é daí que devem arrebatar o seu benefício, não é possível que
seja bem administrado. Efetivamente, gera-se a disputa pelo poder, e uma
guerra dessas, doméstica e interna, deita-os a perder, a eles e ao resto da
cidade 1.

Topo-logia filosófica

A redenção da pólis está na ação individual daquele que ascende e re-conhece o


Sol espiritual, a ideia do Bem, e de lá desce, em busca de retificar a realidade material
correspondente ao seu círculo de ação (seja seu quarto, seja seu país). Ele desce em
busca de encarnar, o melhor que puder (e sempre de maneira insuficiente), o Bem.
Através de sua ação desinteressada o Bem desce.

1
Rep., 520 e – 521 a.

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