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ANTONIO CANDIDO FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA (Momentos decisivos) 1° volume (1750-1836) 9? edigao 2 EDITORA ITATIAIA LIMITADA Belo Horizonte — Rio de Janeiro Copyright © 1975, by ANTONIO CANDIDO Sao Paulo FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogagao-na-fonte, Camara Brasileira do Livro, SP) Candido, Antonio, 1918- C223f Formagao da literatura brasileira: momentos decisivos. 6. ed. Belo 6.ed. Horizonte, Editora Itatiaia Ltda, 2000. ilust. (Colegdo reconquista do Brasil. 2" série; vol. 177-178) Bibliografia. Contesido. — v. 1. 1750-1836. — v.2. 1836-1880. 1. Literatura brasileira — Hist6ria crftica 1. Titulo. I. Série: Reconquista do Brasil. 2, Série; vol. 177-178. 75-0832 CDD-869.909 fndice para catélogo sistemético: 1. Literatura brasileira : Hist6ria e critica 869.909 2000 Direitos de Propriedade Literdria adquiridos pela. EDITORA ITATIAIA LTDA Belo Horizonte - Rio de Janeiro Inapresso no Brasil Printed in Brazil INDICE Preficio da 1* edigio 9 Prefacio da 2* edigdo 15 Preficio da 6* edigio 19 INTRODUCAO 1, Literatura como sistema 23 2. Uma literatura empenhada 26 3. Pressupostos 29 4, O terreno e as atitudes criticas 31 5. Os elementos de compreensio 33 6. Conceitos 36 LTragos gerais eee Al 2. Razao e imitagio 43 3. Natureza e rusticidade 53 4. Verdade e Ilustragio 61 5. A presenca do Ocidente 66 CAPITULO II - TRANSICAO LITERARIA 1 Literatura congregada.- 2... - beeen eee 3 2. Gramios e celebragdes sees 76 3, Sousa Nunes ¢ a autonomia intelectual 81 4.No limiar do novo estilo: Claudio Manuel da Costa 84 CAPITULO III - APOGEU DA REFORMA 1, Uma nova geragao . Naturalidade e individualismo de Gonzaga N 3. O disfarce épico de BasiliodaGama .... 1-1... eee ee eee 4. Poesia e musica em Silva Alvarenga e Caldas Barbosa .....-...-..-, CAPITULO IV — MUSA LITERARIA 1, O poema satirico e herdi-cémico . . 2, 0 Desertor e o Reino da Estupidez 3. Cartas Chilenas . . 4. A laicizagao da inteligéncia . 2... eee CAPITULO V - 0 PASSADISTA Santa Rita Duro... ee eee eee 1. Rotina 2. Pessoas 3. Mau gosto 4, Sensualidade e naturismo 5, Pitoresco e nativismo 6. Religiio 1. As condigdes do meio we ee 2. A nossa Aufkldrung 3. Os generos puiblicos CAPITULO VIII - RESQUICIOS E PRENUNCIOS 1. Poesia a Reboque 2. Pré Romantismo franco-brasileiro 3.0 “vagon’alma” so... 2... eee 4, Independéncia literdria . . 5.0 limbo Biografias Sumérias Notas Bibliograficas Indice de Nomes 181 184 190 195 200 205 215 225 230 253 260 267 281 285 293 307 325 A ANTONIO DE ALMEIDA PRADO Livros do Autor INTRODUGAO AO METODO CRITICO DE SILVIO ROMERO, Revista dos Tribunais, Sio Paulo, 1945, 2° edigSo: 0 METODO CRITICO DE Sil.VIO ROMERO, Faculdade de Filosofia da Universidade de Sio Paulo, Boletim nt 266, 1963. BRIGADA LIGEIRA, Martins, Séo Paulo, 1945. FICCAO E CONFISSAO, Ensaio sobre a obra de Graciliano Ramos, José Olympio, Rio, 1956. FORMACAO DA LITERATURA BRASILEIRA, (Momentos Decisivos),2 vols, EditoraItatiaia, Belo Horizonte, 1993. (0 OBSERVADOR LITERARIO, Comisso Estadual de Literatura, Sao Paulo, 1959. ‘TESE E ANTITESE, Ensaios, Companhia Editora Nacional, Sao Paulo, 1964. OS PARCEIROS DO RIO BONITO, Estudo sobre o caipira paulista e a transformagéo dos seus meios de vida, José Olympio, Rio, 1964 LITERATURA E SOCIEDADE, Estudos de Teoria Histéria Literdria, Companhia Editora Nacional, Séo Paulo, 1965. INTRODUCCION A LA LITERATURA DE BRASIL, Monte Avila Editores, Caracas, 1968, VARIOS ESCRITOS, Duas Cidades, So Paulo, 1970. ‘TERESINA ETC, Paz e Terra, Rio, 1980. Em colaboragéo: Com Anatol Rosenfeld, Décio de Almeida Prado e Paulo Emilio Sales Gomes: A PERSONAGEM DE FICCAQ, Faculdade de Filosofia da Universidade de Sao Paulo, Boletim n* 284, 1963, 2* ed., Editora Perspectiva, ‘Séo Paulo, 1968. Com José Aderaldo Castello: PRESENCA DA LITERATURA BRASILEIRA, Histéria e Antologia, 3 vols, Difusto Européia do Livro, Séo Paulo, 1964. PREFACIO DA 1* EDICAO L Cada literatura requer tratamento peculiar, em virtude dos seus problemas especifi- cos ou da relacdo que mantém com outras. A brasileira é recente, gerou no seio da portuguesa e dependeu da influéncia de mais duas ou trés para se constituir. A sua formacio tem, assim, caracteres préprios e néo pode ser estudada como as demais, mormente numa perspectiva histérica, como é 0 caso deste livro, que procura definir ao mesmo tempo o valor e a fun¢io das obras. A dificuldade esté em equilibrar os dois aspectos, sem valorizar indevidamente autores desprovidos de eficacia estética, nem menosprezar os que desempenharam papel aprecidvel, mesmo quando esteticamente secundarios. Outra dificuldade é conseguir a medida exata para fazer sentir até que ponto a nossa literatura, nos momentos estudados, constitui um universo capaz de justificar 0 interesse do leitor, — no devendo o critico subestiméa nem superestimé-ta. No primeiro caso, apagaria o efeito que deseja ter, e € justamente despertar leitores para os textos analisados; no segundo, daria a impressio errada que ela é, no todo ou em parte, capaz de suprir as necessidades de um leitor culto. Hi literaturas de que um homem néo precisa sair para receber cultura e enriquecer a sensibilidade; outras, que sé podem ocupar uma parte da sua vida de leitor, sob pena de Ihe restringirem irremediavelmente 0 horizonte. Assim, podemos imaginar um francés, um italiano, um inglés, um alem&o, mesmo um russo e um espanhol, que sé conhecam os autores da sua terra e, nao obstante, encontrem neles 0 suficiente para elaborar a visio das coisas, experimentando as mais altas emogies literarias. Se isto ja é impensavel no caso de um portugués, o que se diré de um brasileiro? A nossa literatura & galho secundério da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas... Os que se nutrem apenas delas so reconheciveis a primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto provinciano e falta do senso de proporcies. Estamos fadados, pois, a depender da experiéncia de outras letras, o que pode levar ao desinteresse e até menoscabo das nossas. Este livro procura apresentélas, nas fases formativas, de moda a combater semelhante erro, que importa em limitagio essencial da experiéncia literéria. Por isso, embora fiel ao espfrito critico, é cheio de carinho e apreco por elas, procurando despertar o desejo de penetrar nas obras como em algo vivo, indispensavel para formar a nossa sensibilidade e visio do mundo. Comparada as grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, nao outra, que nos exprime, Se nao for amada, nao revelaré a sua mensagem; e se néo a amarmos, ninguém o faré por nés. Se ndo lermos as obras que a compéem, ninguém as tomard do esquecimento, descaso ou incompreensio. Ninguém, além de nés, poderd dar vida a essas tentativas muitas vezes débeis, outras vezes fortes, sempre tocantes, em que os. homens do passado, no fundo de uma terra inculta, em meio a uma aclimacao penosa da cultura européia, procuravam estilizar para nds, seus descendentes, os sentimentos que experimentavam, as observacées que faziam, — dos quais se formaram os nossos. A certa altura de Guerra ¢ Paz, Tolstsi fala nos “ombros e bragos de Helena, sobre ‘95 quais se estendia por assim dizer o polimento que haviam deixado milhares de olhos fascinados por sua beleza”. A leitura produz efeito parecido em relacdo as obras que anima. Lidas com discernimento, revivem na nossa experiéncia, dando em compensa¢io a inteligéncia e o sentimento das aventuras do espirito. Neste caso, o espirito do Ocidente, procurando uma nova morada nesta parte do mundo. 2. Este livro foi preparado e redigido entre 1945 e 1951. Uma vez pronto, ou quase, e submetido & leitura dos meus amigos Décio de Almeida Prado, Sérgio Buarque de Holanda e, parcialmente, outros, foi, apesar de bem recebido por eles, posto de lado alguns anos e retomado em 1955, para uma revisio terminada em 1956, quanto ao primeiro volume, e 1957, quanto ao segundo. ‘A base do trabalho foram essencialmente os textos, a que se juntou apenas o necessdrio de obras informativas e criticas, pois o intuito nao foi a erudigio, mas a interpretagdo, visando 0 jufzo critico, fundado sobretudo no gosto. Sempre que me achei habilitado a isto, desinteressei-me de qualquer leitura ou pesquisa ulterior. O leitor encontrard as referéncias nas notas ou na bibliografia, distribuida segundo 08 capitulos, ao fim de cada volume. Mencionaram-se as obras utilizadas que se recomendam, excluindo-se deliberadamente as que, embora compulsadas, de nada serviram ou estéo superadas por aquelas. Nas citagdes, a obra ¢ indicada pelo titulo eo ntimero da pagina, ficando para a bibliografia os dados completos. Sempre que possivel, isto é, no caso de citagdes sucessivas da mesma obra, as indicagdes da pagina so dadas no préprio texto, entre parénteses, ou reunidas numa tnica nota, para facilitar a leitura. Como é freqiiente em trabalhos desta natureza, nao se da especificagdo bibliografica dos textos sobre os quais versa a interpretacdo; assim ndo se encontrard em nota, depois de um verso de Castro Alves, “livro tal, pagina tal”. Ascitacdes de autor estrangeiro sao apresentadas diretamente em portugués, quando. se trata de prosa. No caso mais delicado dos versos, adotowse o critério seguinte: deixar no original, sem traduzir, os castelhanos, italianos e franceses, acessiveis ao leitor médio, nos latinos e ingleses dar o original e, em nota, a tradu¢ao; dos outros, apenas a traducao. 10 Como os dados biograficos so utilizados acidentalmente, na medida em que se reputam necessdrios A interpretagdo, juntei, as indicagées bibliograficas, um rapido tragado da vida dos autores. Nisto e no mais deve haver muitos erros, cuja indicagdo aceitarei reconhecido. Nao tenho ilusdes excessivas quanto 4 originalidade, em livro de matéria tao ampla e diversa, Quando nos colocamos ante um texto sentimos, em boa parte, como os antecessores imediatos, que nos formaram, e os contemporaneos, a que nos liga a comunidade da cultura: acabamos chegando a conclusdes parecidas, ressalvada a personalidade por um pequeno timbre na maneira de apresentélas. O que € nosso mingua, ante a contribuigdo para o lugar-comum. Dizia o velho Fernandes Pinheiro, nas Postilas de Ret6rica e Poética, que “‘os homens tém quase as mesmas idéias acerca dos objetos que esto ao alcance de todos, sobre que versam habitualmente os discursos € escritos, constituindo a diferenca na expresso, ou estilo, que apropria as coisas mais comuns, fortifica as mais fracas e da grandeza as mais simples. Nem se pense que haja sempre novidades para exprimir; € uma ilusdo dos parvos ou ignorantes acreditarem que possuem tesouros de originalidade, e que aquilo que pensam, ou dizem, nunca foi antes pensado, ou dito por ninguém”’. 3. A bem dizer um trabalho como este ndo tem inicio, pois representa uma vida de interesse pelo assunto, Sempre que tive consciéncia, reconheci as fontes que me inspiraram, as informagées, idéias, diretrizes de que me beneficiei. Desejo, aqui, mencionar um tipo especial de divida em relacao a duas obras bastante superadas que, paradoxalmente, pouco ou quase nada utilizei, mas devem estar na base de muitos pontos de vista, lidas que foram repetidamente na infancia e adolescéncia. Primeiro, a Historia da Literatura Brasileira, de Silvio Romero, cuja lombada vermelha, na edigao Garnier de 1902, foi bem cedo uma das minhas fascinagées na estante paterna, tendo sido dos livros que mais consultei entre os dez e quinze anos, a busca de excertos, dados biogréficos e os saborosos julgamentos do autor. Nele estdo, provavelmente, as raizes do meu interesse pelas nossas letras. Li também muito a Pequena Historia, de Ronald de Carvalho, pelos tempos do gindsio, reproduzindoa abundantemente em provas exames, de tal modo estava impregnado das suas paginas. S6 mais tarde, j4 sem paixdo de neéfito, li a Histéria, de José Verissimo, provavel mente a melhor e, ainda hoje, mais viva de quantas se escreveram; a influéncia deste eritico, naqueles primeiros tempos em que se formam as impressdes bésicas, recebia através das virias séries dos Estudos de Literatura. 0 preparo deste livro, feito por etapas, de permeio a trabalhos doutra especialidade, no decorrer de muitos anos, obedeceu a um plano desde logo fixado, por fidelidade ao qual ll po respeitei, na revisio, certas orientagdes que, atualmente, nao teria escolhido. Haja vista a exclusio do teatro, que me pareceu recomendavel para coeréncia do plano, mas importa, em verdade, num empobrecimento, como verifiquei ao cabo da tarefa. O estudo das pecas de Magalhdes e Martins Pena, Teixeira e Sousa e Norberto, PortoAlegre e Alencar, Gongalves Dias ¢ Agrdrio de Menezes, terlam, ao contrdrio, reforgado os meus pontos de vista sobre a disposigdo construtiva dos escritores, e 0 carter sincrético, nio raro ambivalente, do Romantismo. Talvez o argumento da coeréncia tenha sido uma racionalizagao para justificar, aos meus préprios olhos, a timidez em face dum tipo de critica ~ a teatral — que nunca pratiquei e se toma, cada dia mais, especialidade amparada em conhecimentos préticos que ndo possuo. Outra falha me parece, agora, a exclusio do Machado de Assis romantico no estudo da ficgo, que nao quis empreender, como se vers, para nio seccionar uma obra cuja unidade é cada vez mais patente aos estudiosos. Caso 0 livro alcance segunda edigdo, pensarei em sanar estas e outras lacunas. No capitulo dos agradecimentos, devo iniciar por José de Barros Martins, que me cometeu a tarefa em 1945. O projeto encarava uma histéria da literatura brasileira, das origens aos nossos dias, em dois volumes breves, entre a divulgagio séria eo compéndio. Escusado dizer que, além de modificé-lo essencialmente, para realizar obra de natureza diversa, rompi todos os prazos possiveis e impossiveis, atrasando nada menos de dez anos... Mas 0 admirdvel editor e amigo se portou com uma tolerancia e compreensio que fazem jus ao mais profundo reconhecimento. Por auxilios de varia espécie, como empréstimo e oferecimento de livros, obtengéo de microfilmes e reproducses, esclarecimentos de termos, agradeco Lticia Miguel Pereira, Carlos Drumond, Edgard Carone, Egon Schaden, Joao Cruz Costa, Laerte Ramos de Carvalho, Odilon Nogueira de Matos, Olyntho de Moura, Sérgio Buarque de Holanda, A Zilah de Arruda Novaes, um agradecimento muito especial por haver dactilografado a primeira redacao em 1950 e 1951. Agradeco aos funciondrios das seguintes instituigdes: Biblioteca Central da Facuk dade de Filosofia, Ciéncias e Letras da Universidade de Sdo Paulo, notadamente ao seu Chefe, Prof. Aquiles Raspantini; Seccao de Livros Raros da Biblioteca Municipal de Sao Paulo; Secao de Livros Raros da Biblioteca Nacional; Sec¢éo de Manuscritos do Instituto Histérico e Geografico Brasileiro; Secgao de Manuscritos do Arquivo Publico Mineiro, Servico de Documentacao da Universidade de Séo Paulo; Servico de Microfilme da Biblioteca Municipal de Sao Paulo; Servico de Microfilme da Biblioteca Nacional. ‘Agradeco ainda, aos encarregados das seccdes comuns destas ¢ outras instituigdes, como a Biblioteca da Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo; Biblioteca do Instituto de Administragao da Faculdade de Ciencias Econémicas, da mesma Universi- dade; Biblioteca do Instituto de Educagdo de Sao Paulo; Gabinete Portugués de Leitura do Rio de Janeiro; Biblioteca da Secretaria do Interior do Estado de Minas Gerais; Biblioteca Municipal de Belo Horizonte; Biblioteca Publica de Florianépolis. Antonio Candido de Mello e Souza ‘Sao Paulo, agosto de 1957. 12 PS. Devo ainda agradecer As pessoas e instituicGes que me auxiliaram na obtencao das ilustracées: Olyntho de Moura; Zélio Valverde; Servico de Microfilme da Biblioteca Muni- cipal de Sao Paulo; Servico de Microfilme da Biblioteca Nacional; Divisao do Patrim6nio Histérico e Artistico Nacional, notadamente o seu ilustre chefe e eminente escritor, Rodrigo Melo Franco de Andrade, a quem devo conselho e orientagao em varios casos, Agradeco finalmente o auxilio prestado na correcao das provas pelas minhas colegas Carla de Queiroz, Maria Cecilia Queiroz de Moraes e Silvia Barbosa Ferraz. 13 PREFACIO DA 2¢ EDICAO Ao contrario do que anunciava 0 prefacio da 1* edicao, nao foi possivel acrescentar matéria nova a esta 24. A tiragem esgotou antes do tempo previsto, outras tarefas absorveram o autor. Mas ela sai revisada, com varios erros corrigidos, lapsos reparados e melhoria de redacdo nalguns trechos. Registraram-se na bibliografia certos titulos recentes, quando de natureza a completa ou alterar juizos e informagbes. Este livro foi recebido normalmente com louvores e censuras. Mas tanto num quanto noutro caso, a que parece haver interessado realmente aos criticos e noticiaristas foi a “Introducdo”, pois quase apenas ela foi comentada, favordvel ou desfavoravelmente, Esse interesse pelo método talvez seja um sintoma de estarmos, no Brasil, preferindo falar sobre a maneira de fazer critica, ou tracar panoramas esquemiticos, a fazer efetivamente critica, revolvendo a intimidade das obras e as circunsténcias que as rodeiam. Ora, o presente livro é sobretudo um estudo de obras; a sua validade deve ser encarada em funcao do que traz ou deixa de trazer a este respeito. As idéias tedricas que encerra sé aparecem como enquadramento para estudar as produgées e se ligam organicamente a este des{gnio, Tanto assim que devem ser buscadas no proprio corpo do livro, ndo na parte introdutéria, voluntariamente suméria e indicativa. No Brasil estamos de tal maneira viciados com introdugdes pomposas, que nao correspondem & realizado, que preferi uma apresentagio discreta, convidando inclusive o leitor a deixdla de lado se assim desejasse, para buscar adiante o essencial. Por isso, encarar este livro como uma espécie de vasta teoria da literatura brasileira em dois volumes, & maneira do que fizeram alguns, é passar 4 margem da contribuigéo que desejou trazer para o esclarecimento de dois dos seus periodos. Acesse propésito, desejo repisar o que diz a referida introdugao, e parece nem sempre ter sido levado em conta: jamais afirmei a inexisténcia de literatura no Brasil antes dos periodos estudados. Seria tolice pura e simples, mesmo para um ginasiano. No sentido amplo, houve literatura entre nés desde o século XVI; ralas e esparsas manifestagdes sem ressonancia, mas que estabelecem um comeco e marcam posicdes para o futuro. Elas aumentam no século XVII, quando surgem na Bahia escritores de porte; e na primeira metade do século XVII as Academias dao a vida literéria uma primeira densidade apreciavel. Mas ha varias maneiras de encarar e de estudar a literatura. Suponhamos que, para se configurar plenamente como sistema articulado, ela dependa da existéncia do 15 triangulo “autor-obrapiblico”, em interagao dinamica’, e de uma certa continuidade da tradi¢ao, Sendo assim, a brasileira nao nasce, é claro, mas se configura no decorrer do século XVII, encorpando 0 proceso formativo, que vinha de antes e continuou depois. Foi este o pressuposto geral do livro, no que toca ao problema da divisao de periodos. Procurei verificé-lo através das obras dos escritores, postas em absoluto primeiro plano, desde o meado daquele século até o momento em que a nossa literatura aparece integrada, articulada com a sociedade, pesando e fazendo sentir a sua presenca, isto é, no Ultimo quartel do século XIX. Neste sentido, tentei sugerir o segundo pressuposto atinente aos periodos, a saber, que hd uma solidariedade estreita entre os dois que estudei (Arcadismo e Romantismo), pois se a atitude estética os separa radicalmente, a vocagao histérica os aproxima, constituindo ambos um largo movimento, depois do qual se pode falar em literatura plenamente constituida, sempre dentro da hipdtese do “sistema”, acima mencionada. Este Angulo de visio requer um método que seja histérico e estético ao mesmo tempo, mostrando, por exemplo, como certos elementos da formagdo nacional (dado histérico- social) levam o escritor a escolher e tratar de maneira determinada alguns temas literdrios (dado estético). Este é 0 terceiro pressuposto geral, relativo agora & atitude metodolégica no sentido mais amplo, Nao ha nele qualquer pretensio & originalidade. E uma posicio critica bastante corriqueira, que eu proprio adotei e desenvolvi teori- camente h4 muitos anos numa tese universitéria”, Nela procurei mostrar a inviabilidade da critica determinista em geral, e mesmo da sociolégica, em particular quando se erige em método exclusive ou predominante; e procurei, ainda, mostrar até que ponto a consideragao dos fatores externos (legitima e, conforme 0 caso, indispensdvel) s6 vale quando submetida ao principio basico de que a obra é uma entidade auténoma no que tem de especificamente seu. Esta precedéncia do estético, mesmo em estudos literdrios de orientagao ou natureza histérica, leva a jamais considerar a obra como produto; mas permite analisar a sua fungao nos processos culturais. E um esforco (falivel como os outros) para fazer justica aos varios fatores atuantes no mundo da literatura. A aplicagio deste critério permitiu chegar ao quarto pressuposto fundamental do livro, referente ao papel representado pelos dois periodos em foco. A matéria € longa e se encontra difundida por toda a obra. Mas podemos, para exemplo, destacar um dos seus aspectos centrais, a saber: o movimento arcédico, ao invés de ser uma forma de alienacdo, (isto é, um desvio da atividade literdria, que deixa a sua finalidade adequada a favor duma outra, espiria, prejudicando a si mesma e & sua fungio), foi admiravel- mente ajustado a constituicao da nossa literatura. O argumento romAntico — incansa- 1. Ver Thomas Clarck Pollock. The Nature of Literature, Princeton, 1942; € Antonio Candido, “Arte e Sociedade", Boletim de Psicologia, Ano X, nts 35:36, pdg, 26-43. 2, Antonio Candido, Introdugao ao Método Critico de Sitvio Romero, Revista dos Tribunais, Sdo Paulo, 1945 (24 edigdo: Boletim n* 266, Faculdade de Filosofia da Universidade de S. Paulo, 1962). 16 velmente repisado, revigorado pelos modernistas e agora pelos nacionalistas — é que os Arcades fizeram literatura de empréstimo, submetendo-se a critérios estranhos & nossa realidade, incapazes de exprimir o local. Todavia, € preciso lembrar duas coisas: primeiro, que este modo de ver foi tomado pelos roménticos aos autores estrangeiros que nos estudaram; segundo, que eles o completavam por outro, a saber, que os arcades foram 08 seus antepassados espirituais, e que fizeram a nossa literatura, Foi neste segundo ponto de vista que me reforcei para a atitude aqui adotada. Parece-me que o Arcadismo foi importante porque plantou de vez a literatura do Ocidente no Brasil, gragas aos padrdes universais por que se regia, e que permitiram articular a nossa atividade literaria com o sistema expressivo da civilizago a que pertencemos, e dentro da qual fomos definindo lentamente a nossa originalidade, Notese que os arcades contribuiram ativamente para essa defini¢do, ao contratio do que se costuma dizer. Fizeram, com a seriedade dos artistas conscientes, uma poesia civilizada, inteligivel aos homens de cultura, que eram entio os destinatarios das obras. Comisto, permitiram que a literatura funcionasse no Brasil. E quando quiseram exprimir as particularidades do nosso universo, conseguiram elevé-las 4 categoria depurada dos melhores modelos. Assim fez Basilio da Gama, assim fez Silva Alvarenga, que foi buscar um sistema estrdfico italiano seguiu o rastro de Anacreonte, para criar uma das expressdes mais transfundidas de cor local e de sensibilidade brasileira de que hd noticia. Isto, note-se bem, nao a despeito daquelas normas e fontes, como se pensa desde o Romantismo; mas por causa delas. Graas & disciplina classica e & inspiragio t6pica entdo reinante (que unificavam as letras do Ocidente num grande organismo), tais escritores frearam ou compensaram de anteméo certos desbragamentos que seriam romanticos, devidos ao particularismo psicolégico e descritivo, Seria, alids, curioso, embora mais injusto ainda, inverter o raciocinio corrente e mostrar que 0s romanticos que poderiam ser considerados alienadores...0 que escreveram corresponde em boa parte ao que os estrangeiros esperam da literatura brasileira, isto é, um certo exotismo que refresca o ramerrao dos velhos temas. Os velhos temas, sio os problemas fundamentais do homem, que eles preferem considerar privilégio das velhas literaturas. E como dizer que devemos exportar café, cacau ou borracha, deixando a industria para quem a originou historicamente. E 0 mais picante que os atuais nacionalistas literérios acabam a contragosto nesta mesma canoa furada, sempre que levam a tese particularista as conseqiiéncias finais. Aeste problema se liga um derradeiro pressuposto do livro, que parece nao ter sido bem compreendido, naturalmente porque o expliquei mal. Quero me referir 4 definigao da nossa literatura como eminentemente interessada. Nao quero dizer que seja “social”, nem que deseje tomar partido ideologicamente. Mas apenas que é toda voltada, no intuito dos escritores ou na opiniao dos criticos, para a construgéo duma cultura valida no pais. Quem escreve, contribui e se inscreve num processo histérico de elaboragao nacional. Os arcades, sobretudo Cléudio Manuel, Duro, Basilio da Gama, Silva Al- varenga, tinham a nocdo mais ou menos definida de que ilustravam o pafs produzindo literatura; e, de outro lado, levavam 4 Europa a sua mensagem. Nao é um julgamento de valor que estabeleco, mas uma verificagdo dos fatos. Mesmo porque acho que esta participagao foi freqdientemente um empecilho, do ponto de vista estético, tanto quanto 7 foi, noutros casos, uma inestimavel vantagem. A literatura do Brasil, como a dos outros palses latino-americanos, € marcada por este compromisso com a vida nacional no seu conjunto, circunstdncia que inexiste nas literaturas dos pafses de velha cultura. Nelas, 08 vinculos neste sentido sao os que prendem necessariamente as producdes do espirito ao conjunto das produgées culturais; mas ndo a consciéncia, ou a intengio, de estar fazendo um pouco da na¢ao ao fazer literatura. Este rodeio espichado vale para mostrar os varios aspectos do método aq lotado, e da sua aplicacao. Aplicando-o, vemos como é reversivel a relacao “obra-circunstancia”, € como as consideragées histéricas, longe de desvirtuarem a interpretagao dos autores e dos movimentos, podem levar a um juizo estético mais justo. Estas coisas, afirmadas através do livro, talvez ajudassem a compreender melhor os seus intuitos se tivessem sido todas sistematizadas na introducdo. Achei que o leitor as encontraria em seu lugar; foi talvez um erro de cdlculo, que procuro remediar agora. Agrade¢o a todos os que se ocuparam deste livro, pré ou contra, menos, é claro, dois ‘ou trés que manifestaram ma vontade injuriosa. Sao Paulo, novembro de 1962, 18 PREFACIO DA 6% EDICAO Atendendo a insisténcia cordial dos Editores José de Barros Martins e Pedro Paulo Moreira, aos quais agradeco o interesse, concordei com esta nova tiragem de um livro que, antes disto, deveria sofrer uma boa revisdo, sobretudo na parte informativa. Depois da sua publicagdo, aumentou muito o conhecimento da literatura brasileira, principal mente por causa das investigagées feitas nas universidades. No entanto, como orientacdo geral e contribuicdo para o estudo de diversas correntes, momentos e autores, talvez ainda possa prestar algum servigo assim como esta. Inclusive porque nao é uma justaposigao de ensaios, mas uma tentativa de correlacionar as partes em fungdo de pressupostos e hipéteses, desenvolvidos com vistas & coeréncia do todo. Como eu nao 0 lia ha cerca de dez anos, pude sentir bem 0 efeito do tempo sobre ele, Por exemplo, no sentimentalismo da escrita de alguns trechos e na tendéncia quem sabe excessiva para avaliar, chegando a exageros de juizo. Mas apesar de tudo, é possivel que nao caiba a refuséo completa de um livro como este, feito para servir durante o tempo em que tiverem validade as informacdes e concepgdes sobre as quais se baseia. Além disso, 0 que somos é feito do que fomos, de modo que convém aceitar com serenidade o peso negativo das etapas vencidas. Pogos de Caldas, MG, agosto de 1981. 19 INTRODUCAO 1, LITERATURA COMO SISTEMA 2. UMA LITERATURA EMPENHADA 3. PRESSUPOSTOS. 4. 0 TERRENO E AS ATITUDES CRITICAS 5. OS ELEMENTOS DE COMPREENSAO 6. CONCEITOS 1 LITERATURA COMO SISTEMA" Este livro procura estudar a formacao da literatura brasileira como sintese de tendéncias universalistas e particularistas, Embora elas ndo ocorram isoladas, mas se combinem de modo vario a cada passo desde as primeiras manifestagdes, aquelas parecem dominar nas concepgdes neoclassicas, estas nas roménticas, — 0 que convida, além de motivos expostos abaixo, a dar realce aos respectivos periodos. Muitos leitores achardo que o pracesso formativo, assim considerado, acaba tarde demais, em desacordo com o que ensinam os livros de historia literéria. Sem querer contesté-los, — pois nessa matéria tudo depende do ponto de vista, — espero mostrar a viabilidade do meu. Para compreender em que sentido € tomada a palavra formagio, e porque se qualificam de decisivos os momentos estudados, convém principiar distinguindo mané- festagées literdrias, de literatura propriamente dita, considerada aqui um sistema de obras ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominan- tes duma fase. Estes denominadores so, além das caracteristicas internas, (lingua, temas, imagens), certos elementos de natureza social e psiquica, embora literariamente organizados, que se manifestam historicamente e fazem da literatura aspecto organico da civilizagéo. Entre eles se distinguem: a existéncia de um conjunto de produtores literdrios, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de publico, sem os quais a obra nao vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. © conjunto dos trés elementos da lugar a um tipo de comunicagdo inte-humana, a literatura, que aparece sob este angulo como sistema simbélico, por meio do qual as veleidades mais profundas do individuo se transformam em elementos de contacto entre os homens, e de interpretacao das diferentes esferas da realidade. * Alleitura desta “Introdugio" € dispensavel a quem ndo se interesse por questdes de orientacio critica, Podendo o Iivro set abordado diretamente pelo Capitulo 1, 23 Quando a atividade dos escritores de um dado periodo se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formacdo da continuidade literdria, — espécie de transmissdo da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. £ uma tradi¢do, no sentido completo do termo, isto é, transmissao de algo entre os homens, e 0 conjunto de elementos transmitidos, formando padrées que se impéem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais, somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradicéo nao hd literatura, como fendmeno de civilizacao, Em um livro de critica, mas escrito do ponto de vista histérico, como este, as obras nao podem aparecer em si, na autonomia que manifestam, quando abstrafmos as circunstincias enumeradas; aparecem, por forca da perspectiva escolhida, integrando em dado momento um sistema articulado e, ao influir sobre a elaboragio de outras, formando, no tempo, uma tradigao. Em fases iniciais, é freqdente ndo encontrarmos esta organiza¢do, dada a imaturidade do meio, que dificulta a formagao dos grupos, a elaboracdo de uma linguagem prépria € 0 interesse pelas obras. Isto nao impede que surjam obras de valor, ~ seja por forca da inspiracao individual, seja pela influéncia de outras literaturas. Mas elas ndo sio representativas de um sistema, significando quando muito 0 seu esbogo. Séo mani- festagébes literérias, como as que encontramos, no Brasil, em graus varidveis de isolamento e articulagdo, no periodo formativo inicial que vai das origens, no século XVI, com os autos e cantos de Anchieta, as Academias do século XVIII. Periodo importante e do maior interesse, onde se prendem as rafzes da nossa vida literdria e surgem, sem falar dos cronistas, homens do porte de Antonio Vieira e Gregério de Matos, = que poderd, alids, servir de exemplo do que pretendo dizer. Com efeito, embora tenha permanecido na tradigdo local da Bahia, ele nao existiu literariamente (em perspectiva histérica) até 0 Romantismo, q:1ando foi redescoberto, sobretudo gracas a Varnhagen; @ 56 depois de 1882 e da edigéo Vale Cabral péde ser devidamente avaliado. Antes disso, nao influiu, nao contribuiu para formar o nosso sistema literdrio, e tio obscuro Permaneceu sob 0s seus manuscritos, que Barbosa Machado, o minucioso erudito da Biblioteca Lusitana (1741-1758), ignora-o completamente, embora registre quanto Joao de Brito e Lima péde alcangar. Se desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formacao de um sistema, € preferivel nos limitarmos aos seus artifices imediatos, mais os que se vao enquadrando como herdeiros nas suas diretrizes, ou simplesmente no seu exemplo. Tratase entio, (para dar realce as linhas), de averiguar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formacio literdria. Salvo melhor jutzo, sempre provavel em tais casos, isto ocorre a partir dos meados do século XVII, adquirindo plena nitidez na primeira metade do século XIX. Sem desconhecer grupos ou linhas tematicas anteriores, nem influéncias como as de Rocha Pita e Itaparica, é com os chamados arcades mineiros, as tiltimas academias e certos intelectuais ilustrados, que surgem homens de letras formando conjuntos 24 organicos e manifestando em graus varidveis a vontade de fazer literatura brasileira. Tais homens foram considerados fundadores pelos que os sucederam, estabelecendo-se deste modo uma tradicéo continua de estilos, temas, formas ou preocupacées. J que é preciso um comeco, tomei como ponto de partida as Academias dos Seletos e dos Renascidos e os primeiros trabalhos de Claudio Manuel da Costa, arredondando, para facilitar, a data de 1750, na verdade puramente convencional. 0 leitor perceberd que me coloquei deliberadamente no angulo dos nossos primeiros romanticos e dos criticos estrangeiros que, antes deles, localizaram na fase arcddica o inicio da nossa verdadeira literatura, gracas a manifestag3o de temas, notadamente o Indianismo, que dominardo a produgio oitocentista. Esses criticos conceberam a literatura do Brasil como expressio da realidade local e, ao mesmo tempo, elemento positivo na construgo nacional. Achei interessante estudar o sentido e a validade histérica dessa velha concep¢io cheia de equivocos, que forma ponto de partida de toda a nossa critica, revendoa na perspectiva atual. Sob este aspecto, poderseia dizer que o presente livro constitu (adaptando o titulo do conhecido estudo de Benda) uma “histéria dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”. E um critério valido para quem adota orientacao histérica, sensivel as articulacdes e & dindmica das obras no tempo, mas de modo algum importa no exclusivismo de afirmar que sé assim é possivel estudélas. 25

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