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Acesso à educação e à produção

de saberes – direitos da mulher


Ângela Maria Freire de Lima e Souza*
Tereza Cristina Pereira Carvalho Fagundes**

Resumo Abstract

Trata-se de um artigo que analisa o processo de entrada das The analysis of gender-related impacts on education and
mulheres no mundo do saber, através da formalização de sua professional activities of female scientists comprised the main
educação, enfatizando a relevância de sua identidade de gênero objective of this article. The theoretical approach of the proposed
nesse processo; analisa, ainda, a presença feminina no mundo da theme involved a historical and philosophical study of gender as
Ciência, as características do pensamento científico que afasta- a category of analysis, women’s education in Brazil and Modern
ram historicamente as mulheres do campo do conhecimento e o Science, in light of the feminist theory regarding the dominant
viés androcêntrico nos sistemas de Ciência e Tecnologia, com model for construction and destination of knowledge.
repercussões na visibilidade social do conhecimento científico
Key words: woman, gender, education, science.
por elas produzidos.

Palavras-chave: mulher, gênero, educação, ciência.

INTRODUÇÃO visão dos espaços masculinos e femininos e se con-


figura como elemento fundador da identidade das
As discussões e análises sobre os Direitos Hu- mulheres e – porque não dizer – também dos ho-
manos continuam ocupando um papel de destaque mens. A dominação masculina pode ser definida
no mundo contemporâneo, uma vez que, em sua como o arquétipo da violência simbólica, ou seja,
plenitude, tais direitos nunca se constituíram em rea- todo poder que consegue impor significados e torná-
lidade para uma grande parcela da humanidade, ao los legítimos; o sexismo é essencialista, na medida
longo de sua História. Nesse contexto, importa des- em que a dominação do macho é vista, por homens
tacar a história das mulheres, marcada pelo que se e mulheres, através de uma avaliação distorcida da
pode chamar de dominação masculina, que é uma realidade, como a ordem natural das coisas. As mu-
forma particular de violência que se expressa na di- lheres entram nessa dialética como objetos, não
como sujeitos, e os homens detêm um excedente
simbólico de valoração, que lhes confere autorida-
* Doutora em Educação. Professora Adjunto IV. Membro do Programa de de. Neste contexto, considerando ainda a associa-
Educação Sexual – PROEDSEX, Departamento de Biologia/Instituto de
Biologia, do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM
ção histórica entre saber e poder, pode-se vislum-
– e do Grupo de Estudos em Filosofia, Gênero e Educação – GEFIGE - brar as razões pelas quais as mulheres vêm sendo
PPGE/UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. angelfls@ufba.br
afastadas do campo do conhecimento, tanto no que
** Doutora em Educação. Professor Participante Especial (PROPAP). Lí-
der dos Grupos de Pesquisa (CNPq): Programa de Educação Sexual - se refere à sua aquisição, como também no que tan-
PROEDSEX – Departamento de Biologia/Instituto de Biologia e Grupo de
Estudos em Filosofia, Gênero e Educação – GEFIGE – PPGE/UNIVERSI-
ge à sua produção. Reflexões como essas constitu-
DADE FEDERAL DA BAHIA. tcrispf@ufba.br em o cerne do artigo que ora se apresenta.

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ACESSO À EDUCAÇÃO E À PRODUÇÃO DE SABERES – DIREITOS DA MULHER

Este artigo se insere, pois, no objetivo maior da educação da mulher (Sophie) tendo como parâ-
desta publicação, que consiste em vir a ser um ins- metro aquela destinada ao homem (Émile), admi-
trumento capaz de fornecer subsídios para uma re- tindo que a educação feminina devia ser análoga à
flexão crítica sobre as diferentes dimensões que masculina. Para Rousseau (1973), a mulher devia
envolvem a temática Direitos Humanos, em especi- agradar o homem, ser-lhe útil, fazer-se amada e
al, os Direitos da Mulher à Educação e à Produção estimada; educar o homem quando jovem, cuidá-lo
de Saberes. quando adulto, consolá-lo, fazer-lhe a vida agradá-
vel e doce. E, ainda mais, que os deveres femininos
A MULHER E O ACESSO À EDUCAÇÃO de todas as épocas deveriam ser ensinados às me-
ninas desde a mais tenra idade.
Educação diferenciada para A primeira escola para Essa foi uma forma de educa-
homens e mulheres tem sido uma meninas foi, então, ção da mulher que perdurou por
constante na história da humani- fundada pela Companhia muito tempo e em diferentes socie-
dade, tanto por parte da família de Jesus, embora restrita dades.
quanto de outras instituições soci- ao ensino das boas Confrontando com esses prin-
ais voltadas para a sua educação. maneiras, prendas cípios, e embasada pelos ideais da
O mundo público, o saber, a aven- domésticas e catequese Revolução Francesa, Mary Wolls-
tura, o domínio e a conquista de tonecraft (1996), no século XVIII,
novos horizontes têm sido accessíveis aos ho- defendeu a tese de que as mulheres tinham de ter
mens, desde crianças, enquanto as mulheres con- os mesmos direitos à educação concedidos aos
vivem com uma série de restrições que visam à homens, entendendo que o ser humano compreen-
manutenção do que à sua natureza é atribuído: dia o sexo masculino e o sexo feminino.
temperamento dócil, subserviência, submissão, Em sua obra, concluída em 1792, em Londres –
fraqueza, circunscrição ao espaço doméstico etc. Vindication of the Rights of Woman (texto revolucio-
A partir do século XV, segundo Tosi (1998), gra- nário que logo alcançou toda a Europa e Estados
ças a uma polêmica, conhecida como a Querelle Unidos), Wollstonecraft (1996) contrapôs-se às gran-
des Femes, iniciada por Christine de Pizan, na des correntes de pensamento, que se constituíam,
França, o direito à educação tornou-se uma reivin- também, correntes de tensão social de sua época e
dicação primordial das mulheres. Opondo-se, radi- de seu país, afirmando que a força corporal era a
calmente, à misoginia reinante, Christine advogou única base sólida (e devida à natureza) sobre a
a co-educação que possibilitaria às mulheres a qual se fundamentava a superioridade masculina;
aprendizagem e a compreensão de todas as ciên- todos os demais argumentos que, historicamente,
cias e do intelecto. Também Poulain de la Barre, colocaram as mulheres numa posição inferior aos
um pensador do século XVII (autor de obras polê- homens tinham raízes culturais, socialmente cons-
micas para a época, tais como De l´égalité des deux truídas, refutando a tese de serem devidas à ‘natu-
sexes, De léducation des dames pour la conduite reza’ ou à chamada ‘essência feminina’. Com esta
de l´ésprit dans les sciences et dans les moeurs e convicção, os direitos das mulheres, por ela reivin-
De léxcellence des hommes contre l´égalité des dicados, foram: não ser subjugada aos homens, ter
sexes), defendeu a noção de igualdade entre os acesso ao conhecimento e, por conseqüência, à
sexos e a necessidade das mulheres terem as educação ao mundo público e ao poder.
mesmas possibilidades de estudo que os homens No Brasil, o processo educacional para ambos os
para desenvolverem as mesmas habilidades e po- sexos teve origem com os jesuítas da Companhia de
derem se sobressair nas mesmas carreiras (COBO, Jesus, dirigidos pelo Pe. Manoel da Nóbrega, vindo
1995). de Portugal com Tomé de Souza, em 1549.
Fortes barreiras nesse sentido se erguiam. Jean A primeira escola para meninas foi, então, fun-
Jacques Rousseau, marcante pensador iluminista, dada pela Companhia de Jesus, embora restrita ao
por exemplo, ao escrever O Emílio, em 1762, tratou ensino das boas maneiras, prendas domésticas e

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ÂNGELA MARIA FREIRE DE LIMA E SOUZA, TEREZA CRISTINA PEREIRA CARVALHO FAGUNDES

catequese. Nessa época, havia também “[...] se- Além do número reduzido de escolas destina-
nhoras portuguesas e francesas ensinando costura das à instrução feminina, ainda havia confusão nos
e bordado, religião e rudimentos de aritmética e de métodos e nas doutrinas seguidas pelas professo-
língua nacional às moças que recebiam em suas ras, inclusive porque essas não eram qualificadas
casas como pensionistas” (SAFFIOTI, 1976, p. para a função que exerciam. Para Floresta (1989b),
191). esse descaso reduzia ainda mais o processo de
Em meados do século XIX – 1832 –, a partir da educação da mulher. Somava-se a esse fato a defi-
assimilação das concepções de Wollstonecraft, ciência dos conteúdos, dos livros utilizados, da ins-
Nísia Floresta, no Brasil, cria um novo texto reivin- peção dos estabelecimentos de ensino, a pouca
dicando direitos femininos adequados ao cenário freqüência e assiduidade dos alunos, bem como o
nacional (FLORESTA, 1989a). Precursora do femi- acirramento das diferenças devidas às distintas
nismo, Nísia Floresta denunciou que a superiorida- classes sociais, uma vez que havia mais chances
de masculina decorria apenas da força física dos de escolarização para quem pertencia às classes
homens e estava apoiada nas diferenças anatômi- mais favorecidas.
cas existentes nos corpos dos homens e das mu- Na visão de Saffioti (1976, p. 188), a mulher no
lheres. Condenava, em especial, a idéia absurda de Brasil Colônia era “[...] um ser sedentário, submisso,
que as mulheres não precisavam aprender porque religioso e de restrita participação cultural”. Com a
eram excluídas dos cargos públicos, em que se fa- Constituição Brasileira de 1823, desencadeou-se a
zia necessário o conhecimento/saber. Para ela: formalização da educação para o sexo feminino –
Lei de 15/10/1827.
[...] a virtude e a felicidade são tão indispensáveis na vida Foram criadas, então, as escolas de primeiras
privada como na pública, e a ciência é um meio necessário
para se alcançar uma e outra. É por ela que se consegue a
letras, chamadas pedagogias, em todas as cida-
exatidão do pensamento, a pureza da expressão, a justeza des, vilas e lugarejos mais populosos do Império,
das ações; sem ela não se pode jamais ter um verdadeiro em cumprimento ao determinado pela constituição.
conhecimento de si mesmo; é ela que nos põe em estado de
Para fazê-las funcionar, foram também nomeadas
distinguir o bem do mal, o verdadeiro do falso [...] Além dis-
so, seja-me permitido notar o círculo vicioso em que esse mestras de meninas que, no julgamento do presi-
desprezível modo de pensar tem colocado os homens sem o dente de cada província, se mostrassem dignas de
perceberem. Por que a ciência nos é inútil? Porque somos tal ensino, bem como das artes de coser e de bor-
excluídas dos cargos públicos; e por que somos excluídas
dar. O ensino da aritmética foi restrito às quatro
dos cargos públicos? Porque não temos ciência (FLORES-
TA, 1989a, p. 51-52). operações e houve exclusão da geometria, confi-
gurando-se o mínimo em matéria de instrução. As
Apesar de Floresta (1989a) gritar pelos direitos mulheres que ensinavam as meninas eram tam-
das mulheres à educação, para as meninas, as bém menos capazes e, acrescente-se, menos re-
oportunidades educacionais permaneciam limita- muneradas do que os homens que instruíam os
das e aquém daquelas proporcionadas aos meni- meninos (HAHNER, 1981).
nos. Ela própria fez uma análise da desproporção A inadequação dessas escolas estimulou a cria-
que havia entre as oportunidades de acesso à es- ção de escolas especializadas na formação de pro-
cola Primária no Brasil, quanto ao sexo e quanto à fessores – as Escolas Normais. A primeira foi em
responsabilidade do governo brasileiro para com a Niterói, em 1835, a segunda, em 1936, na Bahia –
educação pública: a Escola Normal da Bahia, hoje Instituto Central de
Educação Isaías Alves – ICEIA – e, a terceira, em
Pelo Quadro Demonstrativo do Estado da Instrução Primária
São Paulo, dez anos depois.
e Secundária das Províncias do Império e do Município da
Corte: no ano de 1852, vê-se que a estatística dos alunos Dessa forma, na segunda metade do século XIX,
que freqüentaram todas as aulas [escolas] públicas monta a cresceram as oportunidades educacionais para as
55.500, número tão limitado a nossa população, e que, neste mulheres, com o aumento de escolas para meninas
número, apenas 8.443 alunas se compreendem (FLORESTA,
1989b, p. 81).
e a criação das Escolas Normais, embora muitas
jovens ainda continuassem a receber, por muitos

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ACESSO À EDUCAÇÃO E À PRODUÇÃO DE SABERES – DIREITOS DA MULHER

anos, uma “[...] instrução sumária, em casa ou em dial, cursaram com a redistribuição industrial de
escolas particulares [...]”, algumas das quais orien- mão-de-obra feminina e um certo avanço das mu-
tadas por religiosos e, outras, dirigidas por estran- lheres em carreiras intelectuais e liberais. Esse
geiras (HAHNER, 1981, p. 31). avanço não significou alteração importante na con-
Mas a entrada das mulheres na educação foi in- dição feminina frente ao trabalho, na sua essência;
tensificada somente no século XX e se deu atrela- em nome das disposições diferenciadas entre ho-
da à sua inserção, também, no mundo do trabalho. mens e mulheres, já naquela época os homens
Entretanto, como analisa Lagràve (1991, p. 507), eram canalizados para profissões tidas como mais
essa entrada foi “[...] eivada de uma desigualdade ativas e que exigiam raciocínio abstrato e lógico,
das possibilidades escolares e da deixando para as mulheres o exer-
não miscibilidade das profissões”. Mas a entrada das cício de funções consideradas mais
O encaminhamento de homens mulheres na educação leves, como ser professora, enfer-
e mulheres para a profissionaliza- foi intensificada somente meira e secretária.
ção parece ter sido marcado des- no século XX e No Brasil houve incremento à
de sempre por uma ideologia de se deu atrelada à sua escolarização das mulheres em
gênero – homens são induzidos inserção, também, no nível superior com a criação das
ao trabalho para suprir as neces- mundo do trabalho Faculdades de Filosofia, Ciências
sidades da família, fora de casa, e Letras. O objetivo dessas esco-
enquanto mulheres são estimuladas a ficarem no las consistia em formar professores para o ensino
espaço privado, desempenhando atividades do- secundário e preparar pessoas para exercer altas
mésticas e cuidando dos filhos. A culpa referida por atividades culturais de ordem desinteressada. Eli-
muitas mulheres, ao deixarem os filhos em casa zete Passos (1999), estudando as relações de gê-
para trabalhar, inspirou a análise de Lagràve (1991, nero na Faculdade de Filosofia da UFBA, analisou
p. 506) para quem “[...] os homens fazem carreiras, a expressão “de ordem desinteressada” como defi-
as mulheres abandonam o lar”. Assim, resta às mu- nidora das bases da divisão sexual do trabalho;
lheres o exercício profissional compatível com as ocupações masculinas voltadas para a produção
suas obrigações domésticas. de bens, para o sustento da família, para responder
Nesse contexto, a maioria das mulheres conti- às necessidades concretas do mundo, e as ocupa-
nuava se vinculando a profissões ditas adequadas ções femininas colocadas na esfera da improdutivi-
à sua identidade de gênero, e menos valorizadas dade, da periferia, do desapego material, da doa-
socialmente, quando confrontadas com profissões ção, da solidariedade, do servir e do não-profissio-
ditas masculinas. Há, inclusive, uma situação de nalismo.
abandono silencioso por parte dos homens, de pro- Trata-se de uma análise que harmoniza com a
fissões que vão progressivamente sendo ocupadas de Lagràve (1991, p. 523), ao admitir que:
pelas mulheres, como foi o caso do magistério, no
Brasil, assim como em outras partes do mundo. O A escola quer ser emancipadora quando é conservadora,
afastamento do homem, nesse caso, é visto de for- no sentido em que inventa novas áreas que, ao abrigo de
uma diversificação de saberes, instauram ‘opções’ destina-
ma distorcida. O seu distanciamento da função de das a manter o afastamento das diferenças entre rapazes e
professor das primeiras letras, no Brasil, por exem- raparigas.
plo, foi atribuído aos baixos salários pagos ao ma-
gistério e ao crescente processo de fiscalização do Depreende-se, pois, que sob efeito da domina-
Estado a essas escolas, que dificultava ao homem ção masculina, a escola reproduz as diferenças so-
a concomitante administração de seus bens e de ciais entre os gêneros, historicamente construídas,
suas terras. e modela a mentalidade das mulheres de tal modo
As transformações na classe operária, com au- que elas fazem a opção ou escolhem áreas e cur-
mento do trabalho assalariado e desenvolvimento sos feminizados.
no setor de serviços, após a Primeira Guerra Mun-

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ÂNGELA MARIA FREIRE DE LIMA E SOUZA, TEREZA CRISTINA PEREIRA CARVALHO FAGUNDES

Na educação superior, que não escapa a essa Entende-se, dessa forma, que a educação da
lógica de divisão sexual de gênero, nota-se que, mulher configura-se, ainda, como o potencial de
embora se tenha um número crescente de mulhe- mudança social e política capaz de promover a eqüi-
res que se dirigem a profissões liberais como medi- dade entre os gêneros, desde a época em que as
cina, direito, engenharia e arquitetura, a escolha primeiras normalistas levantaram questões sobre
das funções inerentes a essas profissões ainda é discriminação da mulher até o feminismo popular
aquela mais voltada ao que tradicionalmente lhes dos anos 80 do século passado, quando as mulhe-
foi inculcado sobre carreiras mais adequadas à res de classes menos favorecidas aprenderam a
identidade feminina: médicas pediatras e ginecolo- ler, a reivindicar melhores condições de vida e, atu-
gistas, que cuidam de crianças e almente, a articular sua crítica com
mulheres, advogadas que atendem Após 1975 – consciência de gênero (FAGUN-
à Vara de Família, engenheiras ci- o Ano Internacional das DES, 2001). Mas, por outro lado,
vis e arquitetas que cuidam de cons- Mulheres –, expandiram-se se no início do século XX havia o
truir e decorar casas, residências reivindicações e tomadas recorrente discurso da dominação
e lares. de posição nacionais masculina incitando as mulheres
Quanto ao exercício do magis- e internacionais a favor para o lar, no final do século conti-
tério no ensino superior, nos últi- da igualdade de nuou em evidência uma domina-
mos anos, também as mulheres oportunidades ção mascarada pelo discurso de
chegam a ser maioria em muitas educacionais e de igualdade de oportunidades de
áreas. Ser professora em quais- trabalho entre os gêneros educação e de trabalho.
quer dos níveis de ensino configu- Na realidade, tem-se, até o pre-
ra-se como uma garantia de estabilidade emocional, sente, um pequeno número de mulheres visíveis
analisa Passos (1997b), porque possibilita, na civi- no poder, enquanto a grande maioria não chegou
lização ocidental, a conciliação do mundo do traba- ao desejado e socialmente justo: as mulheres ain-
lho com atividades domésticas, tais como levar e da lutam pela possibilidade de se igualar aos ho-
trazer filhos da escola, fazer compras, administrar a mens. Entretanto, por vezes, vivem sob o seu jugo,
rotina da casa etc. Mas, quando se procura o exer- em espaços e lugares freqüentemente por eles de-
cício de funções de comando, direção e poder, mui- limitados.
to marcadamente estão os homens a liderarem em Certamente, uma das instâncias de poder mais
número e em importância social. significativas no mundo moderno é aquela associa-
Após 1975 – o Ano Internacional das Mulheres – , da à produção de saberes. Inseridas em um mundo
expandiram-se reivindicações e tomadas de posi- profundamente androcêntrico, mulheres intelectu-
ção nacionais e internacionais a favor da igualdade ais e cientistas experienciam uma luta marcada
de oportunidades educacionais e de trabalho entre pela invisibilidade, num ambiente construído pelos
os gêneros. Parece ilusória, contudo, essa igualda- homens, para os homens e por eles manipulado.
de. As novas gerações ainda se orientam para áre- Sobre este tema, de fundamental importância para
as já feminizadas. Mesmo quando a escolha muda a agenda feminista, discutir-se-á a seguir.
seus critérios, privilegiando, outrora, a área de hu-
manas e, hoje, a de exatas, mulheres e homens AS MULHERES E A CIÊNCIA
com o mesmo diploma não têm as mesmas oportu-
nidades de trabalho. Voltando a Lagràve (1991, p. Em uma primeira abordagem da problemática
532), em sua análise sobre educação da mulher e que envolve as mulheres e a Ciência, algumas evi-
trabalho feminino, “[...] os discursos que se com- dências são imediatamente reconhecidas: por exem-
prazem com a progressão numérica das mulheres plo, o número de mulheres que trabalham em ciên-
licenciadas dissimulam a desvalorização dos diplo- cias nos mais diversos países e em diferentes áre-
mas obtidos pelas raparigas e a sua menorização as de conhecimento é, e sempre foi, muito menor
profissional”. que o número de homens.

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ACESSO À EDUCAÇÃO E À PRODUÇÃO DE SABERES – DIREITOS DA MULHER

Considerando-se a questão numérica, muitos Por ocasião de um dos acontecimentos mais im-
registros apontam para uma disparidade nesse cam- portantes do final do século passado, a IV Confe-
po. Tosi (1998) mostrava, na década de 80 do sé- rência Mundial de Mulheres, realizada em Pequim,
culo passado, a trajetória das mulheres na história em 1995, e promovida pela Organização das Na-
da Ciência desde a antiguidade até o mundo mo- ções Unidas, ficou evidente que em diversos paí-
derno, evidenciando que, a despeito de sua pre- ses, mesmo aqueles mais industrializados, a pro-
sença, ainda que limitada, foram sempre discrimi- porção de mulheres que se dedicam à pesquisa
nadas. É muito comum encontrá-las associadas a científica é muito baixa. Por outro lado, numa pes-
bruxarias, encantos, tratamentos com ervas e re- quisa realizada no Rio de Janeiro, em 1994, obser-
zas, em indício claro de que seus saberes nada ti- vou-se que apenas 5 entre 100 cientistas da área
nham de científico. das Exatas eram mulheres, enquanto estas constitu-
Ainda que, no Brasil, no final dos anos 80, a em esmagadora maioria nas faculdades que for-
mulher representasse 1/3 da força produtora do co- mam profissionais em carreiras consideradas tipica-
nhecimento científico, na análise de Goulart (1991) mente femininas, como Nutrição, Enfermagem, Pe-
evidenciavam-se diferenças marcantes em relação dagogia e outras (TABAK, 1995).
ao campo de conhecimento, com presença femini- Quando se ascende de graduados para mestres
na significativa nas áreas de ciências biológicas, e, desses, para doutores, a presença de mulheres
humanas, letras e artes, e insuficiente em engenha- no meio acadêmico decresce sensivelmente, além
ria, ciências exatas e agrárias. Estes dados foram de se observar pequena presença feminina em po-
corroborados em outro estudo (AZEVEDO et al., sições de liderança científica e postos de comando
1989), que analisou o desempenho de mulheres ci- de decisões políticas (GOULART, 1991). Ao tempo
entistas no Brasil, a partir dos registros do CNPq, em que a autora realizou a pesquisa, no CNPq e
Finep e Selap/CNPq, com base no período com- FINEP, as assessorias científicas femininas eram
preendido entre 1987 e 1988. de cerca de 17%. Os órgãos de financiamento bra-
Embora no decorrer dos anos 90 esta situação sileiros, a não ser mais recentemente, como a CA-
tenha se modificado, em termos numéricos, ainda PES, nunca tiveram mulheres ocupando quaisquer
persiste a destinação preferencial das mulheres de suas posições de presidência. Além disso, as
para os cursos que, de algum modo, reproduzem mulheres publicavam bem menos do que os homens
no mundo do trabalho os estereótipos de gênero ao longo de suas carreiras, comparando-se idade,
que determinam para a mulher o cuidado a mater- instituição de origem e campo de trabalho (GOU-
nagem e demais tarefas tipificadas como femini- LART, 1991, p. 37).
nas, como se discutiu anteriormente. Há três anos, o estudo de Plonski e Saidel (2001)
No que se refere à formação de mulheres cien- relatou alguns dados interessantes: 42% dos pes-
tistas, é importante lembrar que o modelo hegemô- quisadores cadastrados no Diretório dos Grupos
nico de Ciência, marcado fortemente por um viés de Pesquisa mantidos pelo CNPq são de mulheres,
androcêntrico, tanto no que tange a procedimentos com idade média de 42 anos; elas representavam,
considerados legítimos, quanto no que se refere na época, 51% dos pesquisadores com idade entre
aos objetivos e usos dos produtos do conhecimen- 25 e 29 anos, mas apenas 28% na faixa etária de
to acumulado, conforme afirma Harding (1996), é 60 anos ou mais. As mulheres eram maioria nos
fielmente reproduzido na academia, de modo que cursos de especialização (55%), mas constituíam
os cursos de graduação que formam cientistas es- minoria com o doutorado (35%); este último dado
tão impregnados de valores falocêntricos, muitas explica a sua presença modesta na coordenação
vezes expressos no campo simbólico, no uso de de grupos de pesquisa. Os autores também desta-
metáforas sexuais, por exemplo (KELLER, 1996). cavam como bastante consistente a distribuição di-
Em países do Terceiro Mundo, a participação da ferenciada de homens e mulheres nas diferentes
mulher na pesquisa científica ainda é pequena, áreas de conhecimento: elas eram a maioria nas
mesmo considerando os avanços mais recentes. humanidades e saúde, enquanto os homens domi-

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ÂNGELA MARIA FREIRE DE LIMA E SOUZA, TEREZA CRISTINA PEREIRA CARVALHO FAGUNDES

navam as engenharias, ciências exatas e agrono- micos?) e, certamente, estão associados ao exercí-
mia. Os homens graduados se lançavam imediata- cio de poder na comunidade científica.
mente no mercado de trabalho competitivo ou, se Os fatores citados podem estar na gênese da
ficavam no meio acadêmico, buscavam os graus inferioridade numérica das mulheres no meio cien-
mais elevados da carreira, enquanto as mulheres se tífico, mas também podem estar associados à sua
concentravam nas humanidades e educação, bus- invisibilidade: atualmente, muitas mulheres estão
cando tempo integral nas instituições de ensino. presentes nos laboratórios e instituições de pesqui-
Os dados mais recentes no site oficial do CNPq sa, sempre em posições hierárquicas inferiores.
(LARCHER, 2003, p. 1), apontam que as mulheres Entre biólogas, por exemplo, há relatos em que
“podem festejar uma participação elas admitem assumir todas as ta-
equânime à dos homens”. Num É, portanto, evidente refas e procedimentos de um de-
universo de 68 mil pesquisadores o crescimento da terminado trabalho científico, mas
que receberam bolsas em 2002, ocupação das mulheres ocupam o papel meramente técni-
as mulheres são quase 34 mil, re- no campo da Ciência e co, por mais qualificada que seja,
presentando 49,6% dos esforços Tecnologia, numa seguindo a “orientação” do chefe do
do CNPq em capacitação de pes- perspectiva muito laboratório, geralmente um homem
soal. Outros dados do próprio ór- favorável do ponto de (LIMA; SOUZA, 2003). Por outro
gão apontam para uma realidade vista numérico. No lado, os papéis das mulheres na
um pouco diferente: nas Ciências entanto, é marcante a sociedade continuam sendo basi-
Exatas e da Terra, os homens res- permanência das mulheres camente os mesmos, sendo desti-
pondem por 69% da produção ci- em campos do nadas a elas as tarefas domésticas
entífica e, em Engenharia de Com- conhecimento e a educação dos filhos, embora
putação, este percentual chega a tradicionalmente ligados tenham que estar no mercado, em
75%. Em Letras e Artes, as mu- à identidade feminina pé de igualdade com os homens no
lheres representam 68% dos pes- que tange a responsabilidades e
quisadores, em Ciências Humanas, 60% e, em jornada de trabalho.
Saúde, 58%. Outra informação do CNPq destaca Constatações como estas exigem uma reflexão,
um dado interessante: as mulheres somam, hoje, numa perspectiva de gênero, sobre as característi-
40% de grupos de pesquisa, destacando-se como cas do mundo científico, especialmente seus valo-
líderes mais jovens, entre 24 e 35 anos. No entan- res, seus objetivos sua mentalidade.
to, as mulheres coordenam apenas 25 dos 206 pro- Concorda-se com Hubbard (1993), para quem as
gramas apoiados pelo Programa de Apoio a Núcle- mulheres devem intervir na natureza e no conteúdo
os de Excelência – PRONEX. político do trabalho científico e questionar a maneira
É, portanto, evidente o crescimento da ocupa- de como a ciência é ensinada e comunicada ao pú-
ção das mulheres no campo da Ciência e Tecnolo- blico; as mulheres têm de expor a falsidade da obje-
gia, numa perspectiva muito favorável do ponto de tividade e da neutralidade científicas e, acima de
vista numérico. No entanto, é marcante a perma- tudo, construir uma Ciência mais respeitosa em rela-
nência das mulheres em campos do conhecimento ção às pessoas e à Natureza, com base nos sabe-
tradicionalmente ligados à identidade feminina, como res que construíram ao longo do tempo.
Ciências Humanas, Artes e Saúde (o que remete Assume-se neste artigo que o mundo científico
aos papéis de gênero ligados ao cuidado e mater- reproduz as práticas sociais que discriminam as
nagem) e sua exclusão nas áreas matemáticas. mulheres, negando-lhes o exercício pleno de seus
Também impressiona a baixa participação das mu- direitos e talentos; a condição da mulher em labora-
lheres como coordenadoras dos chamados “grupos tórios de pesquisa ou mesmo a sua invisibilidade
de excelência”, cujo sentido é, no mínimo, questio- se apóia na sua subordinação aos homens, consa-
nável (quem define o que é excelência? O merca- grada e reforçada de modos os mais diversos. Tal
do? A sociedade civil? Os grandes grupos econô- subordinação tem raízes profundas, que envolvem

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ACESSO À EDUCAÇÃO E À PRODUÇÃO DE SABERES – DIREITOS DA MULHER

a própria história da humanidade e a construção cultura, não se restringindo ao âmbito biológico


das identidades feminina e masculina ao longo dos (KELLER, 1996). Como estas categorias são cons-
séculos. É, portanto, urgente a produção teórica, os truídas ao mesmo tempo, as interrelações se esta-
diagnósticos de realidades e o desenvolvimento de belecem e são facilmente detectáveis: em Ciência,
estratégias que possibilitem a efetiva participação interessam os fatos observados, as interpretações
feminina em níveis decisórios no meio científico. que se impõem e os usos a que se destinam os
Nesse sentido, tem sido de fundamental impor- seus produtos. A questão que emerge aqui é: quem
tância a inclusão nas universidades de núcleos de efetivamente define esses parâmetros? A História
estudos sobre a mulher, a exemplo do NEIM – Nú- tem mostrado que são os homens, brancos e oriun-
cleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher/ dos das classes economicamente mais favorecidas.
UFBA, que possibilitam a busca da superação das As considerações expostas evidenciam um for-
assimetrias de gênero no mundo acadêmico; Costa te viés androcêntrico no modo hegemônico de
e Sardenberg (1994, p. 388) destacam as indaga- produzir conhecimento. Há, neste modelo, uma
ções em torno das quais devem se debruçar as es- associação entre agressividade e impulso científi-
tudiosas: co e uma dialética sexual explícita: homens seri-
am mais adequados para fazer ciência, enquanto
[...] a conquista e a legitimação de um espaço de reflexão e
as mulheres, sempre associadas à Natureza, são
ação específico; b) a disseminação da produção de conhe-
cimento e incorporação de uma perspectiva feminista de objeto e não sujeito do conhecimento. McGrayne
gênero na produção e transmissão dos saberes científicos; (1994, p. 13) ilustra muito bem esta discriminação,
e por último, mas certamente não menos importante, c) as ao relatar a situação feminina no meio científico,
contribuições e perspectivas dessa práxis para o avanço do
no seu livro “Mulheres que ganharam o Prêmio
projeto feminista na sociedade mais abrangente e, em par-
ticular, na transformação do cotidiano da própria vida aca- Nobel em Ciências”:
dêmica.
Muitas delas venceram enormes obstáculos. Foram confina-
Nesta perspectiva, e em meio às discussões so- das em porões de laboratórios ou em sótão de escritórios.
Esconderam-se atrás de pilastras para assistir a conferênci-
bre a condição feminina e seu enorme ímpeto a as científicas. Por muito tempo, trabalharam como voluntári-
partir da década de 60 do século passado, se esta- as em universidades dos Estados Unidos, sem remunera-
beleceu o interesse sobre a ausência de mulheres ção, até um período tão recente como o final dos anos 50. A
Ciência era considerada árdua, rigorosa e lógica; as mulhe-
na história do pensamento científico. A discussão
res deveriam ser meigas, fracas, ilógicas. Como conseqüên-
feminista sobre Ciência e Tecnologia ocorre a partir cia, mulheres cientistas eram, por definição, seres anormais.
de uma crítica bastante difundida: Harding (1996)
afirma que, de uma forma ou de outra, as preocu- É neste contexto que se impõe uma questão de
pações quanto à Ciência Moderna são evocadas alta relevância: de que maneira o feminismo, como
por movimentos ambientalistas, pela paz, pelos di- uma filosofia política, tem contribuído para se pen-
reitos dos trabalhadores, da esquerda, pelos direitos sar as formas de produção de conhecimento e as
dos animais e também pelos movimentos anti-ra- conseqüências dos novos saberes e tecnologias
cistas e antiimperialistas no Ocidente e no Terceiro para as sociedades modernas?
Mundo. Tais preocupações dizem respeito aos mo- As teóricas feministas vêm afirmando que as
dos de produção do conhecimento, às agendas e escolas filosóficas que norteiam o pensamento ci-
às conseqüências do trabalho científico, cujo im- entífico não são neutras, do ponto de vista de gê-
pacto sobre nossa sociedade e sobre as gerações nero. As questões que emergem desse fato não se
futuras constitui um tema de importância indiscutí- restringem à menor participação feminina na histó-
vel para as diversas áreas de conhecimento. ria da ciência, mas, principalmente, se manifestam
A Ciência, que pode ser definida como um corpo na rejeição de princípios e métodos válidos para a
de conhecimento associado a um conjunto de práti- experiência humana, precisamente por estarem as-
cas, é claramente um construto social; do mesmo sociados ao feminino, como a subjetividade, o cor-
modo, masculino e feminino são definidos por uma po e a emoção, entre outros.

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ÂNGELA MARIA FREIRE DE LIMA E SOUZA, TEREZA CRISTINA PEREIRA CARVALHO FAGUNDES

Na perspectiva de entender e erradicar estas forço integrado do coração, mão e mente [...] (KEL-
posturas epistemológicas, Lima (2001) afirma que LER, 1991, p. 63).
a crítica feminista à Ciência deve se apoiar na Essas idéias se confrontavam fortemente à di-
análise inter-relacionada de três processos dife- cotomia mente/corpo, que caracteriza o pensamen-
rentes: o simbolismo de gênero, a estrutura de gê- to científico emergente; enquanto os filósofos da
nero e a identidade de gênero. Por simbolismo de nova Ciência, fundamentados na filosofia ascética,
gênero se entende todo um universo que inclui as consideravam uma exigência da alienação do cor-
metáforas, imagens históricas, mitológicas ou po para o alcance do conhecimento, os alquimistas
contemporâneas, que utilizam as diferenças de ensinavam exatamente o oposto: o coito, a fusão do
base biológica, por exemplo, para masculino e do feminino, a conjun-
significar as assimetrias entre A estrutura de gênero ção entre mente e matéria eram
homens e mulheres na socieda- se evidencia na essenciais a esse propósito; con-
de, além de alimentar a idéia de organização das trariamente à idéia de dominação,
dominação do masculino sobre o atividades sociais, eles propunham a cooperação.
feminino. A estrutura de gênero como a divisão Nesse contexto, as mulheres,
se evidencia na organização das do trabalho, sendo que sempre relacionadas à Natureza,
atividades sociais, como a divi- o masculino é sempre às questões do corpo e da sexuali-
são do trabalho, sendo que o mais valorizado dade, esta última implícita no pen-
masculino é sempre mais valori- que o feminino samento hermético, tinham maior
zado que o feminino, e o valor aproximação com essa tradição,
que se atribui a uma determinada atividade está sendo, por isso, identificadas como bruxas, se tor-
associado a quem a executa: no caso da atividade nando alvo de perseguição, pagando com a vida
científica, o cientista tem mais prestígio que a ci- sua pretensão ao saber destinado aos homens na
entista. Quanto à identidade de gênero, pode-se nova ordem que se estabelecia.
dizer que é constituída de uma noção de individu- Essa associação entre o conhecimento femini-
alidade como sendo masculina, feminina ou am- no e bruxaria é fortemente arraigado no pensamen-
bivalente, principalmente quando vivenciada no to ocidental. Os saberes que as mulheres acumula-
comportamento e na percepção de si mesmo. É o ram por força de sua relação com os elementos da
elemento fundamental na organização das atitu- natureza, como ervas e produtos animais, em de-
des em relação a papéis sexuais, embora relacio- corrência dos afazeres relacionados à alimentação
nada ao sexo biológico, não coincidindo obrigato- da família e o cuidado com os doentes, desde a
riamente com ele (SILVA, 1986). mais remota antiguidade, são, até hoje, atribuídos
Nesse sentido, é fundamental uma abordagem a poderes mágicos e rezas. Freqüentemente a Ci-
histórica, que articule as três dimensões citadas, ência oficial “descobre” a eficácia de uma determi-
numa análise que se pretenda satisfatória da ques- nada erva no tratamento de uma doença; então, e
tão de gênero na Ciência. somente então, o conhecimento é legitimado, não
Para Keller (1991), não se pode compreender o importando por quanto tempo ela vinha sendo utili-
desenvolvimento da Ciência Moderna sem atentar zada, com sucesso, pelas mulheres “benzedeiras”,
para o papel que desempenharam as metáforas de bruxas etc.
gênero na formação de um conjunto de valores, Deixando a perspectiva histórica e enfocando
propósitos e metas que a Ciência encarna. Tam- a questão epistemológica, Harding (1998) levanta,
bém não se pode negligenciar as lutas que se tra- a partir da análise do que ela considera os melho-
varam na Inglaterra do século XVII, entre os defen- res estudos feministas em Ciências Sociais, três
sores dessa “nova Ciência” e outras vertentes, características presentes nesses trabalhos que,
como a tradição hermética, para a qual “a natureza embora não se constituam um método, pelo me-
material se acha em um estado difuso junto com o nos têm conseqüências para a seleção de méto-
espírito [...] seu entendimento exige a união e o es- dos de investigação: a experiência das mulheres

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ACESSO À EDUCAÇÃO E À PRODUÇÃO DE SABERES – DIREITOS DA MULHER

como novo recurso empírico, o desenvolvimento REFERÊNCIAS


de pesquisas a partir dos questionamentos das
mulheres e com resultados revertidos a seu favor AZEVÊDO, Eliana S. et al. A mulher cientista no Brasil. Dados
e situar a investigadora no mesmo plano crítico do sobre sua presença e contribuição. Ciência e Cultura, v. 41, n. 3,
objeto de estudo. p. 275-283, mar. 1989.

Em outra análise, mais recente, Harding (1996) COBO, R. Fundamentos del patriarcado moderno. Jean Jacques
denomina três tipos de abordagens metodológicas: Rousseau. Madri: Cátedra, 1995.
o empirismo feminista, que sustenta que o sexismo
COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Cecília Maria
e androcentrismo são vieses sociais corrigíveis, Bacellar. Teoria e práxis feministas na academia. Os núcleos de
mediante a observação rigorosa dos métodos cien- estudos sobre a mulher nas Universidades brasileiras. Estudos
Feministas. v. 2, n. Especial, 1994.
tíficos vigentes; o ponto de vista feminista, que sus-
tenta que a posição dominante dos homens na vida GOULART, Marília O. F. Mulher na ciência e na tecnologia: en-
social se traduz em um conhecimento parcial e cantos e desencantos. In: LIMA, Nádia R. L. B. et al. Mulher e ci-
ência. Maceió: EDUFAL, 1991.
distorcido da realidade e que a situação das mulhe-
res lhes permitiriam uma visão mais verdadeira e FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho. Pedagogia – es-
menos distorcida dessa mesma realidade; e o pós- colha marcada pelo gênero. 2001. Tese (Doutorado em Educa-
ção) – Faculdade de Educação, Universidade Federal da Bahia,
modernismo feminista, que nega os pressupostos
Salvador.
das outras duas perspectivas e comporta um pro-
fundo ceticismo a respeito de enunciados univer- FLORESTA, Nísia. Direito das mulheres e injustiça dos homens.
4. ed. atual. Com introdução, notas e pós-fácio de Constância
sais, propondo investigar as identidades fragmen- Lima Duarte. São Paulo: Cortez, 1989a.
tadas das sociedades atuais.
______. Opúsculo humanitário. ed. atual. Com estudo introdutó-
Acentua-se que essas diferentes abordagens
rio e notas de Peggy Sharp-Valadares. São Paulo: Cortez,
trazem em si mesmas dificuldades e contradições 1989b.
que são muito difíceis de serem superadas. Para
HANNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e polí-
Harding (1996), essas dificuldades se originam na
ticas: 1850- 1937. São Paulo: Brasiliense, 1981.
própria desordem presente nos discursos episte-
mológicos desde a década de 60 do século passa- HARDING, Sandra. Ciencia y feminismo. Tradução de Palo
Manzano. Madrid: Morata, 1996.
do. Do ponto de vista deste artigo, essas dificulda-
des não paralisam a pesquisa feminista, mas tra- ______. Existe un método feminista?. In: BARTRA, Eli (Comp.)
zem sempre a possibilidade de aprofundamento das Debates en torno a una metodología feminista. México, D.F:
Universidad Autonoma Metropolitana, 1998.
questões que habitam o universo feminino, especi-
almente quando confrontado com a realidade do HUBBARD, Ruth. Algumas idéias sobre a masculinidade das Ci-
ências Naturais. In: GERGEN, Mary. (Ed). O Pensamento Femi-
mundo da Ciência.
nista e a Estrutura do Conhecimento. Rio de Janeiro: Rosa dos
As discussões trazidas aqui extrapolam as pre- Tempos; Brasília: Edunb, 1993. p. 21-36.
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LAGRÀVE, Rose Marie. Uma emancipação sob tutela. Educação
sóficas e à legitimidade e eficácia dos modos de
e trabalho das mulheres no século XX. In: DUBBY, G; PERROT,
produção de conhecimento no âmbito da Acade- M. (Org.). História das mulheres. O século XX. Porto:
mia. A inserção efetiva das mulheres nos sistemas Afrontamento/ São Paulo: Melhoramentos, 1991. v. 5. p. 505- 543.
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precisamente, aos marcos sociais que definem Valência: IVEI, Edicions Alfons el Magnanim, 1991.
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