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O Deus da Água

Conversas com Ogotemmeli

Por Marcel Griaule


(prefácio, jornada 1 e jornada 6)

Tradução de Ana Isabel Afonso

(título original: Dieu d’eau: entretiens avec Ogotemmeli, Paris, 1948)


Prefácio
A primeira estadia de Marcel Griaule entre os Dogon foi efectuada em 1931: o
itinerário da missão Dakar-Djibouti passava pelas falésias de Bandiagara, região
praticamente desconhecida na época, considerada selvagem e até mesmo perigosa. Este
contacto inicial acabou por ser decisivo. Mal tinha chegado a Sanga, a missão assistia já
ao prodigioso espectáculo das cerimónias fúnebres de um caçador. Desde então, foram
produzidos toda uma série de trabalhos, cuja lista é bem conhecida, na sequência de
pesquisas de vários meses empreendidas no terreno por Marcel Griaule e os seus
colaboradores, até 1939. A guerra viria interromper estes trabalhos e apenas em 1946 foi
possível realizar uma nova missão. Segundo o eminente etnólogo, este regresso ao
terreno permitiria, naturalmente, recolher novas informações, mas o seu principal
objectivo era o de verificar, e se possível confirmar, os conhecimentos adquiridos que
eram já consideráveis, tendo em mente o estado da investigação etnológica de então. Os
Dogon levaram-no, contudo, a enveredar por outro caminho, e a partir da voz do velho
caçador cego, acabaria por reestruturar totalmente a perspectiva da sua pesquisa. Vindo
ao encontro dos trabalhos anteriormente empreendidos, estas revelações clarificavam-nos
com um novo olhar e condicionaram a abordagem, não só da cultura Dogon, como
também das outras culturas vizinhas, numa óptica completamente diferente.
Para apreciar o justo valor de Dieu d’eau, é indispensável situá-lo em relação à
data da sua publicação (1948) e ao seu contexto. Uma apresentação deliberadamente não
científica, correspondia ao desejo expresso pelo autor de «levar aos olhos de um público
não especializado e sem a bagagem científica habitual, um trabalho que habitualmente
estava reservado, exclusivamente, aos eruditos». Daí a ausência de referências, e também
a ausência dos textos Dogon originais - um aspecto que poderá lamentar-se, mas que teria
dado um cunho totalmente diverso a esta obra. Marcel Griaule estava tão impressionado
com a riqueza e complexidade organizada das concepções que acabavam de lhe ser
reveladas que desejava poder dar-lhes uma difusão comparável à dos mitos da
Antiguidade. Com a revalorização das culturas africanas, pouco conhecidas e mesmo
desprezadas, queria também homenagear o velho homem que tinha sido o primeiro a ter a
coragem de revelar ao mundo Branco «uma cosmogonia tão rica como a de Hesíodo»,
com a vantagem adicional de estar viva.
Este duplo objectivo foi atingido. Inúmeros não-especialistas leram Dieu D’eau
com entusiasmo e o nome de Ogotemmêli tornou-se para muitos o símbolo da sabedoria
africana.
Mas este livro não tem apenas o mérito da vulgarização nem o exclusivo interesse
de homenagear as culturas africanas. A reedição que actualmente se impõe, deve-se ao
facto dele continuar a poder considerar-se uma obra revolucionária, ao nível da
descoberta etnológica. É a ele que devemos interpretações essenciais, que se tornaram
clássicas, hoje em dia, mas que, na época da sua publicação, não eram de todo evidentes.
Apenas citaremos as mais importantes:
1) A importância do mito e da cosmogonia na cultura. Alguns criticam Marcel
Griaule por ter orientado o rumo dos seus trabalhos seguindo uma perspectiva demasiado
exclusivista do mito e de ver nele a justificação de todas as instituições Dogon; esta
descoberta foi essencial. Seja qual for o lugar que lhe queiramos atribuir na cultura, não
se pode hoje ignorar o mito africano nem reduzi-lo a fragmentos desgarrados.
2) O pensamento simbólico. A rede imensa, complexa e lógica, das
correspondências simbólicas que explicam o mundo, aparece pela primeira vez em Dieu
D’eau. A interpretação simbólica dos números, em particular o valor sexuado atribuído a
3 e a 4, bem como o significado de 7 em relação ao casamento e à palavra, tornaram-se
clássicos. O mesmo sucedeu com o significado simbólico das técnicas, a sua importância
cultural e a ideia de um desenvolvimento técnico da humanidade que acompanha o da
palavra.
3) As noções que dizem respeito à pessoa. Encontramos em Dieu D’eau a
expressão do problema fundamental da dualidade do ser humano, explicando, por um
lado, a importância social dos gémeos e, por outro lado, as instituições da circuncisão e
da excisão, remédios encontrados pela sociedade para mediar a ambivalência original e
assegurar a fecundidade do ser. A importância do conflito édipiano como fonte de
desequilíbrios individuais e sociais, que posteriormente daria lugar a desenvolvimentos
tão importantes, aparecia já claramente neste livro.
4) A Palavra. Ao longo de Dieu D’eau, a civilização Dogon aparecia como uma
civilização do Verbo. A natureza da palavra, a sua origem divina, o seu papel
simultaneamente metafísico e social, as suas relações com os elementos do cosmos e os
da pessoa, constituíam outros tantos dados novos e originais que chamavam a atenção dos
investigadores sobre a importância dessas noções nas culturas tradicionais.
Com a releitura atenta deste pequeno livro, apercebemo-nos, assim, que todos os
problemas posteriormente desenvolvidos por Marcel Griaule ou pelos seus colaboradores,
ou retomados por outros autores em culturas diferentes, ali se encontravam já formulados.
Mas Dieu D’eau, no caminho da descoberta africanista, e na própria obra do seu
autor, corresponde apenas a uma etapa, a um estádio de iniciação, como os próprios
Dogon o quiseram. Depois dele chegar-se-ia mais longe, como o atestam todos os
trabalhos que se lhe seguiram e, sobretudo, esse monumental Renârd Pâle, que para
Marcel Griaule constituía um somatório do mito e da cultura Dogon, que a morte
prematura o impediu de concluir e sobre o qual Germaine Dieterlen acaba de publicar o
primeiro volume. A sua leitura permite avaliar o caminho percorrido. Ogotemmêli, tal
como o próprio Marcel Griaule, «deixou o rasto das palavras vivas que permitirão a
outros retomar o fio das revelações».
Maio de 1966
Geneviève Calame-Griaule.
Segunda Jornada
Primeira palavra e a saia de fibras

Ogotemmêli sentou-se no degrau, puxou da sua caixa de rapé de pele rígida e


depositou um pó amarelado sobre a língua, dizendo:
- O tabaco estimula o espírito.
E embrenhou-se na decomposição do sistema do mundo, pois era necessário
começar pelo início das coisas.
Ogôtomeli repeliu, como pormenor sem interesse, a formação dos catorze
sistemas solares de que o povo fala, em terras planas e circulares, empilhadas. Ele apenas
queria tratar do sistema solar útil. Consentiu em considerar as estrelas, embora elas
desempenhassem um papel secundário:
- É certo que ao longo dos tempos as mulheres desprendiam as estrelas para dar
aos seus filhos. Eles espetavam-nas num fuso e faziam girar esses piões de fogo para
mostrar como funcionava o mundo. Mas isso não passava de um jogo.
As estrelas provinham de bolinhas de terra lançadas no espaço pelo deus Amma,
deus único. Tinha criado o sol e a lua com uma técnica mais complicada que, embora não
fosse a primeira conhecida dos homens, era a primeira atestada por deus: a olaria. O sol é,
de uma certa maneira, uma peça de barro levada ao forno de uma só vez, rodeada de uma
espiral de cobre vermelho de oito voltas. A lua tem igual forma e o seu cobre é branco.
Ela só é aquecida por quartos. Sobre o seu movimento, virão depois as explicações. Por
enquanto, devem-se traçar as grandes linhas de um cenário e centrarmo-nos nos actores.
Ainda assim, Ogotemmêli quis dar uma ideia da grandeza do sol:
- Alguns acham-no grande como um acampamento, o que lhe daria trinta
braçadas1 (coudées ?). Na realidade, é maior, pois ultrapassa em superfície a região de
Sanga.
E, após alguma hesitação, acrescentou:

1
N.T. No original coudée (1 coudée = 52,56 cm).
- Talvez maior ainda.
Não se quis deter sobre as dimensões da lua e nem chegou a dá-las. A lua tinha
apenas um papel mediano. Lá voltaremos. Contudo, assinalou que, enquanto os Negros
eram criaturas da luz, extraídas a sol aberto, os Brancos haviam sido criados ao luar e daí
o seu aspecto larvar.
Dizendo isto, Ogotemmêli cuspiu o seu tabaco. Não tinha nada contra os brancos.
Mas também não dizia que lhe agradavam. Abandonava-os ao seu destino, nas terras do
norte.
Tendo, então, o deus Amma pegado num bocado de argila, apertou-o na mão e
atirou-o, como tinha feito com os astros. A argila espalha-se, atinge o norte na parte de
cima, alonga-se para sul, na parte de baixo, embora tudo se passe na horizontal.
- A terra está deitada, mas o norte está em cima.
Ela estende-se para oriente e ocidente, separando os seus membros como um feto
no útero. É um corpo, quer dizer, uma coisa cujos membros se separaram de uma parte
central.
E este corpo é feminino, orientado para nordeste, estendido no chão, com a cara
virada para o céu. Um formigueiro é o seu sexo, uma termiteira o seu clitoris. Amma está
só, quer unir-se a esta criatura e aproxima-se dela.
E é então que se produz a primeira desordem do Universo.
Ogotemmêli calou-se. Mãos cruzadas sobre a cabeça, perscrutava os vários sons
chegados dos pátios e terraços. Deteve-se na origem das calamidades, na primordial falta
de jeito de Deus.
- Se me ouvissem, eu teria um boi de multa!
Quando Deus se aproxima, a termiteira ergue-se, barra a passagem e mostra a sua
masculinidade. Assemelha-se ao sexo estrangeiro, a união não se pode consumir.
Mas Deus é todo-poderoso. Abate a termiteira rebelde e une-se à terra excisada.
Mas o incidente original marcara para sempre o seguimento das coisas: da união
defeituosa nasceu, em vez dos gémeos previstos, um ser único, o Thos Aureus, o chacal,
símbolo das dificuldades de Deus.
Ogotemmêli falava cada vez mais baixo. E não era por causa dos ouvidos das
mulheres. Outros tímpanos, imateriais, poderiam vibrar com estas palavras. O Branco e o
seu assistente negro, o sargento Koguem, debruçavam-se sobre o velhote como perante
assombrosos complots.
Mas como se chegava aos gestos benéficos de Deus, o tom voltou ao normal.
Deus teve mais relações com sua mulher e, dessas vezes, nada veio perturbar a
sua união, pois a excisão tinha feito desaparecer a causa da primeira desordem. A água,
semente divina, penetrou, então, no seio da terra e a geração prosseguiu o ciclo regular da
gemiparidade. Dois seres foram modelados.
- Deus criou-os como água. Eles eram verdes, em forma de pessoa e serpente. Da
cabeça até aos rins, eram humanos; em baixo eram serpentes.
Os olhos vermelhos estavam fendidos, como os dos homens e a sua língua
bifurcada como a dos répteis. Os braços, leves, não tinham articulações. Todo o seu corpo
era verde e liso, escorregadio como a superfície da água, guarnecido de pelos curtos e
verdes, anunciando vegetações e germinações.
Estes génios, chamados Nomo, eram, pois, dois produtos homogéneos de Deus,
de essência divina como ele, concebidos sem aventuras e desenvolvidos segundo as
regras na terra matricial. O seu destino conduziu-os ao céu onde receberam ordens de seu
pai. Não que Deus lhes tivesse de ensinar a Palavra, essa coisa indispensável a todos os
seres, como ao sistema universal: o par tinha nascido perfeito; pelos seus oito membros, o
seu número era oito, símbolo da palavra.
Ele possuía também a essência de Deus, visto ser feito da sua semente, que é ao
mesmo tempo, o suporte, a forma e a matéria da força vital do mundo, fonte de
movimento e de perseverança no ser. E esta força é a água. O par está presente em
qualquer água, é a água, a dos mares, dos confins, das correntes, das trovoadas, da concha
que se bebe.
Ogotemmêli empregava indiferenciadamente os termos «água» e «Nômo».
- Se não fosse graças ao Nômo, dizia ele, não se poderia mesmo criar a terra,
porque a terra foi amassada e foi pela água (pelo Nômo) que ela recebeu a vida.
- Que vida é que há na terra? - perguntou o Branco.
- A força vital da terra é a água. Deus moldou a terra com a água. Do mesmo
modo, fez o sangue com a água. Até na pedra existe essa força, pois a humidade está em
tudo.
Mas, embora Nômo seja a água, ele também produz o cobre. No céu coberto
vêem-se materializar raios de sol sobre o horizonte brumoso; estes raios, excrementos dos
génios, são de cobre e de luz. E são também de água, já que suportam a humidade
terrestre no seu caminho ascendente. O par produz luz porque também é luz.
Ogôtoméli procurava, desde há algum tempo, algo na poeira. Acabou por recolher
várias pedrinhas. Com um gesto rápido, lançou-as no pátio, sobre os seus dois
interlocutores que não chegaram mesmo a baixar a cabeça. Os projécteis caíram mesmo
no lugar onde acabava de cantar, alguns segundos antes, o galo de Hogon.
- O galo é um temporal, destrói as conversas.
E como o animal voltasse a cantar do outro lado do muro, Ogôtomeli enviou
Koguem atirar-lhe um pau. Logo que Koguem voltou, ele perguntou-lhe se o galo tinha
saído dos limites do bairro de Tabda.
- Está no campo do Hogon, disse Koguem, a ser vigiado por quatro crianças.
- Está bem, disse Ogôtomeli com um ligeiro sorriso, que ele faça bom proveito:
disseram-me que ele será comido na próxima Cerveja-dos-Gémeos.
Voltou ao assunto dos Génios Nômo, do Nômo, como ele dizia mais
frequentemente, pois esse par de gémeos representava a união perfeita, ideal.
O Nômo, do alto do céu, viu sua mãe, a Terra, nua e desprovida de palavra, o que,
sem dúvida, era a consequência do primeiro incidente ocorrido aquando das relações com
o Deus Amma. Era preciso pôr fim a tal desordem. O Nômo desceu sobre a Terra,
trazendo fibras retiradas de plantas já criadas nas regiões celestes. Ele separou dez
punhados correspondendo aos seus dez dedos e torceu cinco que colocou à frente e cinco
para trás. Ainda hoje, os homens mascarados trazem estes acessórios torcidos,
pendurados até aos pés.

Mas o papel deste fato não era apenas de pudor. Era o de apresentar ao mundo
terrestre o primeiro acto de ordenamento universal e o signo helicoidal que se projecta
sobre um plano na forma de uma linha quebrada serpenteante.
As fibras, com efeito, caíam em torcidos, símbolo dos tornados, dos meandros das
correntes, dos turbilhões das águas e dos ventos, da deslocação ondulante dos répteis.
Lembravam igualmente as espirais de oito voltas do sol sugador de humidade. E elas
próprias eram um caminho de água que havia engolido as frescuras das plantas celestes.
Estavam cheias da essência de Nômo, eram o próprio Nômo, em movimento, como bem
indica a linha ondulada que se pode prolongar até ao infinito.
Mas Nômo, quando fala, liberta como qualquer ser um bafo morno transmissor de
verbo, sendo ele próprio verbo. E este bafo sonoro, como qualquer líquido, move-se
sobre uma linha helicoidal. Os torcidos do vestuário constituíam, portanto, um caminho
privilegiado para a mensagem que o génio queria revelar à Terra. Ele encantava as suas
mãos tocando-as nos lábios enquanto entretecia. Deste modo, a sua palavra húmida
rodopiava com as tranças húmidas; a revelação espiritual impregnando a transmissão da
técnica.
Através destas fibras repletas de água e de palavras, Nômo estava continuamente
presente perante o sexo da sua mãe.
Vestida desta forma, a Terra tinha uma língua, a primeira deste mundo, o mais
frustre de todos os tempos. Sintaxe elementar, verbo raro, vocabulário sem graça. As
palavras eram sopros pouco diferenciados mas que, no entanto, transmitiam força. No seu
estado puro, a palavra sem nuances adequava-se aos grandes trabalhos do início das
coisas.
A meio de uma palavra, Ogotemmêli soltou um grito forte: respondia à divisa de
caça lançada através da chanfradura do muro pela face prudente de Akoundyo, presbítero
das mulheres que morrem durante o parto e dos nados-mortos.
Akoundyo cospe primeiro para o lado, com o olhar fixo no grupo dos homens.
Usava um barrete frígio, de cor avermelhada, que lhe tapava as orelhas e tinha uma ponta
revirada em bico sobre o nariz, à maneira chamada de «vento que sopra». Bochechas
salientes, dentes brilhantes, declama congratulações que são prontamente retorquidas
pelo velho. As fórmulas alternadas assumem um primeiro nível de exaltação.

- Que Deus! exclama Ogotemmêli, que Deus amaldiçoe quem não te adora em
Ogol-de-Baixo!
A agitação cresce no coração de Akoundyo atingindo o auge das réplicas.
- Que Deus! - exulta por fim o cego - Que Deus me amaldiçoe a mim próprio se
eu não te adoro!
Os quatro homens respiraram de alívio e gracejaram sobre a particular magreza da
caça no vale de I. Por fim, Akoundyo afastou-se, declarando num francês de atirador, que
ia «partir ao encalço da toca do porco-espinho», animal astuto e estimado.
Voltamos à Palavra. O seu papel era de organização: assim, ela era uma coisa boa;
contudo, provocava desde logo a desordem.
Com efeito, o chacal, filho iludido e ludibriador de Deus, desejava possui-la e
deitou a mão às fibras que a transportavam, isto é, às roupas da sua mãe. Por sua vez, ela
resistiu pois esse era um gesto incestuoso. Escondeu-se no seu próprio seio, no
formigueiro, disfarçando-se de formiga. Mas o chacal perseguiu-a. Outrora não havia no
mundo mais nenhuma mulher para desejar. O buraco que ela abriu não era
suficientemente profundo e finalmente teve de se considerar vencida. Deste modo foram
configuradas as lutas equilibradas entre homens e mulheres que assim terminam com a
vitória masculina.
O incesto teve importantes consequências: primeiro deu a palavra ao Chacal, o
que deveria permitir-lhe, para a eternidade, revelar aos adivinhos vindouros os desígnios
de Deus.
Além disso, ele foi a causa da aparição do sangue menstrual que tingiu as fibras.
O estado da terra, que se tornara impura, era incompatível com o reino de Deus. Este
afastou-se da esposa e resolveu criar directamente os seres vivos. Tendo modelado uma
matriz em barro, colocou-a sobre a terra e, das alturas do céu, cobriu-a com um bola
atirada no espaço. Fez o mesmo para o sexo masculino: tendo-o pousado no solo, lançou
uma esfera que se lhe fixou em cima.
Logo de seguida as duas massas organizaram-se; a sua vida desenvolveu-se; os
membros separaram-se do núcleo, os corpos apareceram, fazendo surgir das glebas um
casal humano.

Foi então que os dois Nommo entraram em cena para a realização de novas
tarefas. Previram que a regra fundamental dos nascimentos duplos ia ser abolida,
podendo daí resultar erros comparáveis aos do Chacal que havia nascido único, uma vez
que é devido à sua solidão que o primeiro filho de Deus age desta forma.
- Por causa de ter nascido único, dizia Ogotemmêli, o Chacal fez coisas que a
boca nem pode dizer.
O génio desenhou no chão duas silhuetas sobrepostas, duas almas, sendo uma
macho e a outra fêmea. O homem alongou-se então sobre as suas sombras e envolveu as
duas. O mesmo foi feito para a mulher.
Deste modo, cada ser humano, desde a origem, nasceu de duas almas de sexos
diferentes, ou melhor dizendo, de dois princípios que correspondiam a duas pessoas
distintas no interior de cada um. Para o homem, a alma feminina sediou-se no prepúcio.
Para a mulher, a alma masculina foi suportada pelo clítoris.
Mas a presciência dos Nommo alertaram-nos de forma clara para os
inconvenientes deste último recurso. A vida dos homens não podia instalar-se a partir
destes seres duplos. Era necessário decidir cada um deles pelo sexo para o qual estava
melhor preparado.
Foi assim que os Nommo circuncisaram o homem, anulando-lhe dessa forma toda
a feminilidade do prepúcio. Mas este metamorfoseou-se num animal que não é «nem
serpente, nem insecto, mas que é classificado com as serpentes».
Este animal tem o nome de nay. Tratar-se-ia de uma espécie de lagarto preto e
branco como a cobertura dos mortos. O seu nome significa também «quatro», número
feminino e «sol», entidade feminina.
O nay simbolizava a dor da circuncisão e a necessidade em que o homem se
encontrava de também ele sofrer no seu sexo, tal como a mulher.
Depois o homem uniu-se à sua companheira. Mais tarde ela engravidou dos dois
primeiros filhos de uma série de oito que viriam a ser os antepassados do povo Dogon.
Nesse momento, o sofrimento do parto concentrara-se no seu clítoris que, excisado por
uma mão invisível, separara-se dela e distanciara-se, metamorfoseado em escorpião. A
bolsa e o ferrão simbolizam o órgão; o veneno constitui a água e o sangue a dor.
Ao regressar através do campo coberto de milho, o europeu interroga-se sobre o
sentido de todas estas danças e contra-danças, de todos estes incidentes do pensamento
mítico:
Um Deus falha a sua primeira criação;
As coisas são restabelecidas mediante a excisão da terra e depois pelo nascimento
de uma parelha de génios, engenhosos e engenheiros do mundo, que trazem uma primeira
palavra;
Um incesto destrói a ordem e compromete os nascimentos dos gémeos;
A ordem é restabelecida pela criação de um casal humano; a gemiparidade é
substituída por uma alma dupla (Porquê a gemiparidade?);
Mas esta alma dupla é um perigo: um homem deve ser homem e uma mulher,
mulher. Circuncisão e excisão repõem, por sua vez, as coisas na ordem. (Mas porquê este
nay, porquê este escorpião?).
As respostas viriam só mais tarde. Elas inscrever-se-iam no imenso edifício que o
cego fazia emergir, a pouco e pouco, das brumas milenárias.
Mesmo por cima das cabeças do europeu e Koguem, as violáceas maçarocas de
milho destacavam-se sob o cinzento do céu. Os dois atravessavam então um campo de
espigas densas, que desafiavam as alturas, imóveis à brisa. Quando o milho cresce pouco,
está ralo, se as espigas são fracas ele agita-se aos mais leves sopros e ruídos. Os campos
pouco férteis são sonoros. Pelo contrário a seara da abundância pesa ao vento e dá-se em
silêncio.
SEXTA JORNADA
A terceira palavra, a descida do celeiro de terra batida e a morte

Ogotemmêli não tinha situado, no seu sistema, o escorpião e o nay. Colocara-os


sob o celeiro, no círculo que simbolizava o sol.
O antepassado construtor havia reunido no eirado as ferramentas e os mecanismos
de uma forja, pois o seu futuro papel seria o de ensinar aos homens a tecnologia do ferro
para lhes permitir o cultivo dos campos.
O fole era feito de duas vasilhas de barro cru, triturado com o pêlo da ovelha
branca; estas vasilhas estavam ligadas uma à outra como dois gémeos: a sua larga
abertura era fechada com uma pele. De cada uma delas saía um canal de barro que
chegava até à agulheta.
A marreta tinha a forma de uma grande canela de tear, de ferro, cónica numa das
extremidades e quadrangular na outra. A bigorna, de forma comparável, era fixa a uma
travessa de madeira.
O antepassado Ferreiro estava armado com um arco de ferro e flechas de fuso.
Lançou uma delas para o eirado do celeiro, ao centro do círculo que representava a lua e
envolveu a base com um longo fio da Virgem que formou uma bobine. Deste modo, todo
o edifício se converteu numa gigantesca cornucópia. Pegando numa segunda flecha, à
qual ligou a outra extremidade do fio, lançou-a para abóbada celeste para servir de ponto
de referência.
O que iria descer era um conjunto de símbolos:
À primeira vista, o celeiro maravilhoso era o sistema do mundo ordenado,
classificado em categorias de seres.
Era constituído pelo cesto entrançado que o seu construtor havia imitado e cuja
unidade de volume seria feita pelos homens. A unidade de comprimento era dada pelo
encaixe, ou pelo contra-degrau das escadas, ou seja, uma braçada. A unidade de
superfície correspondia à plataforma de oito braçadas de lado. As duas figuras
geométricas fundamentais manifestavam-se pela plataforma quadrada e pelo círculo de
base que, no cesto, é, na realidade, a sua abertura.
Representava o celeiro modelo, no qual os homens iriam armazenar as suas
colheitas.
Deste modo, era a realização ideal e acabada da actividade do formigueiro que,
aliás, já tinha servido de modelo aos homens na transformação das suas habitações
subterrâneas.
Era constituído pela cornucópia, rebarba da flecha que o Ferreiro tinha disparado
para a plataforma e que servia de eixo para rebobinar o fio descendente.
Simbolicamente, corresponde ao ferro de desfiar o algodão, lançadeira bi-
troncónica cujo perfil é semelhante ao da marreta do ferreiro.
Era representado pela parte de cima da marreta. Segundo a crença popular, o
Ferreiro trouxe as sementes aos homens precisamente na marreta.
Era também representado pela bigorna quadrangular, fêmea, fabricada à imagem
da marreta que era o macho.
A imagem que a marreta reproduzia tratava-se da mão espalmada de Nommo.
E esta mesma marreta era também o símbolo da parte de cima do corpo de
Nommo: as duas faces opostas correspondendo ao peito e às costas; as outras duas aos
braços.
Representava, no fundo, o próprio corpo da feminilidade do Ferreiro que, como
todos os seres, era duplo.
Tudo se encontrava a postos para a partida. Mas faltava o lume da forja. O
antepassado entrou na oficina dos grandes Nommo que são os ferreiros celestiais e roubou
um pedaço de sol, em forma de brasa e de ferro incandescente. Conseguiu-o com a ajuda
de um pé-de-cabra, cuja extremidade recurvada era rematada por uma fenda aberta como
uma boca. Tendo perdido as brasas pelo caminho, voltou para trás para as recuperar,
lançando-se pelo edifício adentro, onde com o seu desassossego não conseguiu encontrar
a saída. Deu várias vezes a volta antes de atingir os degraus e conseguir chegar à
plataforma, onde escondeu o seu furto numa das peles do fole, dizendo:
- Gouyo!?? Guiô!
Que quer dizer «roubado».
Este substantivo, entrou posteriormente para o vocabulário dogon e significa
celeiro, evocando que sem o fogo da forja, sem o ferro das enxadas, não haveria colheitas
para guardar.
Não perdendo um instante, o Ferreiro lançou o tronco-de-cone-pirâmide ao longo
de um arco-íris. Sem que o edifício rodasse sobre si próprio, o fio desenrolou-se como
uma serpentina, à imagem do trajecto da água.
Com a sua marreta e o seu arco na mão, o Ferreiro mantinha-se de pé, pronto a
defender-se contra o espaço. Mas o ataque foi tremendo: envolto num ruído de
tempestade, um tição lançado pelo Nommo fêmea atingiu a plataforma. O Ferreiro, para
se proteger, agarrou numa das peles de fole e agitou-a por cima da sua cabeça, criando,
assim, um escudo. A pele, dado que tinha recebido o pedaço de sol, tornou-se substância
solar e o fogo celestial não produzia efeito sobre ela. Depois, com a água do seu duplo, o
antepassado conseguiu extinguir a madeira incandescente que incendiava o edifício. Esta
madeira, designada bazu devia estar na origem do culto do fogo fêmea.
Uma outra investida sucedeu a primeira, desta vez lançada pelo Nommo macho.
Mas não teve repercussões. O Ferreiro extinguiu o segundo tição, designado anaquiê,
sobre o qual seria fundado, mais tarde, o culto do fogo macho.
O edifício prosseguiu, assim, o seu percurso ao longo do arco-íris. A única
diferença é que seguia mais depressa, devido ao impulso dado pelos raios.
Sobre a plataforma, o Ferreiro havia retomado o seu lugar, mas estava cansado de
segurar a marreta, apertada entre os seus dedos, e resolveu pousá-la nos braços
estendidos, ligeiramente inclinados para a frente. Quanto à bigorna, trazia-a a tiracolo,
presa por uma tira de couro que lhe rodeava o pescoço e vinha cair atrás das costas,
passando por cima dos ombros. O toro de madeira na qual o ferro estava pregado tocava-
lhe já nas pernas.
Nesta escalada, o antepassado detinha ainda a qualidade de génio da água e o seu
corpo, apesar de ter preservado uma aparência humana, dado que se tratava de um
homem regenerado, possuía quatro membros flexíveis como serpentes, à imagem dos
braços dos grande Nommo.

O sol aproximava-se rapidamente e o antepassado mantinha-se de pé, com os


braços à frente, segurando a marreta e a bigorna, transversalmente entre os membros.
Mas eis que é desferido o impacto final, produzindo-se na extremidade do arco-íris, no
ponto em que tocava a terra. O choque dispersou então, numa nuvem de poeira, os
animais, os vegetais e os homens repartidos pelos degraus.
Quando o ambiente acalmou, o Ferreiro ainda se encontrava sobre a plataforma,
de pé, face voltada para norte, com as suas ferramentas na mesma posição. Mas durante o
impacto, a marreta e a bigorna tinham-lhe ferido os braços e as pernas, na zona
correspondente aos cotovelos e aos joelhos, que até então não possuía. Recebia assim as
articulações inerentes à nova forma humana que iria reproduzir-se na terra e que era
destinada ao trabalho.
- E face ao trabalho, o seu braço mirrou.
Com efeito, os membros flexíveis não se adequavam às tarefas da forja e dos
campos. Para malhar o ferro em brasa e para cavar a terra, era necessário aliviá-lo do
antebraço.
Ao entrar em contacto com o chão, o antepassado estava pronto para a sua obra
civilizadora. Desceu pela escada setentrional e circunscreveu um terreno quadrado com
dez vezes oito braçadas de lado, orientado como a plataforma sobre a qual desceu e que
correspondia à dimensão da unidade de parcela.
Este terreno foi dividido em 80 vezes 80 quadrados de uma braçada que foram
distribuídos pelas oito famílias descendentes dos antepassados e que tinham prosseguido
o seu destino na terra. Construíram-se oito casas de morada, ao longo da mediatriz norte-
sul do quadrado, com o barro ao qual se misturou o tição roubado do celeiro. A norte
desta linha, implantou-se a forja.
- Tinha-se também espalhado tição celestial sobre o campo, disse Ogotemmêli.
Desta forma o solo ficou purificado. E mais tarde, quando o arroteamento se alargou, a
impureza da terra afastou-se.
O cego continuava a insistir nesta questão da impureza do solo, como causa da
desordem inicial:

- Antigamente, no momento da criação, a terra era pura. A bola lançada por Deus
era de barro puro. Mas a falta cometida pelo Chacal poluiu a terra, o que produziu grande
desordem no mundo. Foi por isso que Nommo teve que o vir reorganizar. A terra que saiu
dos céus e que desceu era uma terra pura. Para o local onde caiu, transferiu toda esta
pureza, bem como para todos os locais arroteados. Em todos os sítios onde vingou a
cultura, afastou-se a impureza.
Mas a renovação da terra não era a única obra a realizar.
- O celeiro veio cheio de alimentos novos. Eram destinados à regeneração, à
modernização dos homens.
Só que o início destas tarefas veio a ser marcado por outros acontecimentos.
O Ferreiro ex-Nommo, não se aguentava no trabalho de monitor. O seu papel era,
aliás, sobretudo o de um técnico, pelo que requeria outros conhecimentos.
Imediatamente a seguir ao Ferreiro, primeiro antepassado, logo os outros sete
desceram também. O antepassado dos sapateiros, o antepassado dos trovadores, seguiram
um fio. Cada um deles possuía, as suas próprias ferramentas ou atributos. Os outros
vieram depois, segundo um certo escalonamento.
Foi então que se produziu o incidente que iria orientar a reorganização:
O oitavo antepassado, quebrando a regra de prioridade, desceu antes do Sétimo,
Mestre da Palavra. Este, enraivecido, virou-se contra os outros assim que chegou ao chão
e, sob a forma de uma grande serpente, precipitou-se no celeiro para apanhar as sementes.
Segundo uma outra versão, ele mordeu a pele do fole já instalado na forja para
dispersar as sementes que ali haviam sido depositadas.
De acordo com outras versões ainda, ele havia descido ao mesmo tempo que o
Ferreiro. Sob a forma do próprio celeiro tinha apanhado do chão o corpo de uma grande
serpente tendo-se instaurado forte discussão entre os dois génios.
Seja como for, o Ferreiro, quer para se desembaraçar de um adversário quer para
seguir os grandes desígnios de Deus, aconselhou os homens a matarem a serpente e a
comerem o seu corpo, confiando-lhe a cabeça.
Segundo outros, afirmou Ogotemmêli, que atribuía a máxima importância a este
revés da história do mundo, querendo expor escrupulosamente a atitude dos génios,
segundo outros, o Ferreiro, ao chegar à terra, encontrou os homens das oito famílias e
instalou a sua oficina perto deles. Como tinha pousado as peles do fole, a serpente grande
surgiu, precipitou-se sobre elas e dispersou o milho todo à volta. Os homens, tendo
reparado neste intruso, surpreendidos pelo seu gesto, mataram-no. O Ferreiro agradeceu-
lhes, deu-lhes o corpo para o comerem e guardou a cabeça.
Já no que toca à sequência dada a esta matança toda a gente corroborava:
- Quando estava na posse da cabeça, o Ferreiro levou-a até à pedra que lhe servia
de apoio para malhar o ferro, fez um buraco, enterrou-a e cobriu-a com a pedra.
- Então, perguntou o Europeu, o Sétimo Nommo-antepassado encontra-se em
todas as forjas que hoje existem?
- Sim, respondeu o cego, todo o ferreiro, quando trabalha, está por assim dizer
sentado sobre a cabeça da serpente.
Mas ainda havia mais labirintos a percorrer sobre este mistério.
O Nommo-antepassado número Sete foi morto pelos homens sob a sua forma de
serpente, tendo a sua cabeça sido enterrada. Mas pode também considerar-se que ele era o
celeiro caído dos céus, que foi quebrado e dividido, que a argila das paredes se
disseminou no terreno primordial, misturada com a das casas, que na altura das
sementeiras as sementes do seu ventre fugiram para o solo. Pode dizer-se que o Sétimo
foi morto e destruído e inumado como Serpente, como celeiro, como sementes.
- E porquê ele?
- Porque ele era o Mestre da Palavra.
- E porque é que era ele que tinha que morrer?
Ogotemmêli não respondeu directamente.
Tinha colocado o seu bastão sobre os joelhos dobrados e tocando-lhe no queixo;
mãos nas bochechas, mergulhado na sua escuridão.
- Ele foi morto em meados de Novembro, disse.
O Europeu fez uma pausa. O silêncio do seu interlocutor estava carregado de
promessas. E lembrava-se que na antevéspera, à pergunta: «O que há no celeiro?», o
velho homem respondera: «vôlô!» o que significa: «Nada!».

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