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J. S.

VALLEJO

O Vale

Primeira Edição

São Paulo
2017
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Agradecimentos:

À minha incansável esposa que é sempre a primeira a ler meus escritos e a me motivar a
escrever.

Aos meus filhos e noras. Essas histórias são para vocês e para meus netos. Espero que leiam,
gostem e contem para eles.

Aos leitores do manuscrito que opinaram e me auxiliaram a perceber detalhes que ajudaram
na composição final. Quero lembrar especialmente da Niára, Fran e Gabriel. Sou muito grato
a vocês.
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“As grandes inteligências sorrirão talvez dessa minha fé.

Eu me vingo sorrindo sinceramente da fé nas grandes inteligências.”


JOSUÉ DE CASTRO
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O Vale

O Vale era um lugar indescritível. Muitos já tentaram destacar suas belezas significantes, mas não
há palavras suficientes para descrevê-lo. Sua enorme extensão permitia a todos terem seu espaço sem
conflitos ou disputas desnecessárias.

Um calmo rio serpenteava, mansamente, seu trajeto como que querendo dizer que desejava abraçar
a todos, saciando a sede deles e regando suas terras. Sua largura e profundidade favoreciam todas
espécies de peixes.

O sol vinha sempre na medida certa. Ele alcançava o Vale com seus revigorantes raios matutinos,
iluminando belezas que a noite ocultava. Sem desconsiderar, contudo, que naquele lugar paradisíaco, a
noite também oferecia seus atrativos. Algumas flores somente abriam suas pétalas regadas aos raios do
luar e os pássaros noturnos tinham brilhos especiais. O conjunto da flora e fauna, noturna ou diurna,
provia o vale de um ambiente ímpar.

As montanhas ao longe, de uma grandiosidade inebriante com seus cumes sempre cobertos de neve,
parecendo enormes colossos de rocha, ostentando uma altura intransponível, compunham um quadro
que ninguém se cansava de observar.

O vale era preenchido por uma floresta com tantas variedades de árvores e plantas que supriam,
suficientemente, todos os habitantes e permitiam a sobrevivência de uma rica fauna.

Os pássaros eram muitos, de diversas espécies e tamanhos. Uns mais coloridos do que outros. Mas
todos produziam lindas músicas exaltando a natureza e seu criador.

Nessa época do ano, as flores começavam a dar lugar aos frutos. Estava chegando a época de comer
os frutos especiais. É verdade que havia frutos o ano inteiro, mas os das estações eram muito mais tenros
e saborosos.

Viver ao longo desse rio e rodeado por essa mata deslumbrante oferecia uma riqueza de alimentos
que, com certeza, não seriam encontrados em nenhum outro lugar.

Quase todos que ali habitavam tinham vindo de outros lugares. Distantes ou perto, o certo é que seus
lugares de origem não tinham os atrativos e nem poderiam ser comparados ao Vale, resultando na
permanência dos que por ali passavam, acarretando no esquecimento, consciente ou não, de suas
localidades de nascimento pelo poder de atração que tinha naquele lugar.
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Se fosse possível uma comparação, a principal razão de não existir nenhum desejo de querer sair
dali, seria, principalmente, pelas dificuldades de outrora e por considerarem tenebrosas suas raízes
geográficas. Lembranças tristes de lugares ruins que deveriam ser enterradas em enormes baús trancados
e impossíveis de serem abertos.

Desde que o Vale fora encontrado pela primeira vez, em tempos tão remotos que eram impossíveis
de mensurar, percebeu-se não haver outro lugar igual. Somente ele poderia fornecer o que todos
buscavam ansiosamente. A vida naquele ambiente era a concretização do amor, da verdade, da paz, da
felicidade e de tantos outros adjetivos positivos que se possa mencionar.

O Vale oferecia uma quantidade abundante de Ornus. Essa árvore oferecia uma madeira firme,
perfumada e levemente escurecida. Era uma madeira fácil de trabalhar, por isso as casas de todos os
moradores do lugar eram feitas com essa madeira. Ela isolava bem a temperatura da casa, deixando-a
sempre aconchegante. Cada casa tinha um estilo diferente, retratando as características pessoais de cada
família, tornando-as muito bonitas e especiais, sem competição ou comparação. Os tamanhos diferentes
das casas tinham a ver com a quantidade de seus moradores e não com ostentação.

A comunhão era real e verdadeira. Ninguém, realmente ninguém, tinha necessidade de nada. Todos
aprenderam a compartilhar tudo o que tinham.

Aqueles que gostavam de agricultura plantavam o que mais gostavam e, na colheita, distribuíam o
que sobrava com todos os demais.

Até quem só plantava flores recebia sua parte na divisão e também levava vasos de flores para os
demais.

Quem criava ovelhas e bois, quando matava para ter carne para si, também separava vários pedaços
menores para poder distribuir a quem não tinha como produzir carne.

Diversos artistas e artesãos produziam diferentes artefatos para ornamentação e os levavam ao bazar
disponibilizando para quem quisesse.

Outros profissionais como carpinteiros, marceneiros e pintores circulavam pela praça participando
das conversas e buscando alguém que pudessem ajudar.

Sem exagero nenhum, ali existia uma sociedade perfeita.

*
Anan olhava para longe. Admirava o horizonte. Sua casa ficava no alto de uma das montanhas, na
região do alto do rio e, dali, ele podia ver além do Vale. Havia uma grande área, até perder de vista, de
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uma terra praticamente deserta. Não havia nada de atrativo naquela imensidão ressequida para quem
habitava no Vale. Mas algo no coração de Anan não estava em paz. O Vale não o satisfazia. Ele adorava
passar tempo sentado na varanda olhando para aquele deserto. Em seu coração havia a certeza de que
em noites límpidas e sem a claridade da lua seria capaz de enxergar luzes no horizonte, na direção do
pôr-do-sol. Luzes que o inquietavam e que o intrigavam.

Cada vez que recebia a visita de amigos, levava-os para seu local preferido e ficava contando histórias
acerca do que conseguia ver e também do que imaginava existir além do horizonte. Com o passar do
tempo, esse local se tornou especial para muitos amigos. Eles iam quase toda noite, ficavam tomando
chá e conversando sobre o que haveria além do que seus olhos conseguiam captar. Logo, todos eles eram
capazes de afirmar terem visto luzes próximas da linha do horizonte. Ainda que, de fato, não tivessem
visto nada além de trevas noturnas, a convicção das palavras de Anan os convencia de que estavam, de
fato, vislumbrando algo.

Levado pela curiosidade, Anan decidiu descer a montanha onde estava sua casa e medir a distância
até onde a mata acabava e iniciava o deserto. Quem sabe assim teria uma ideia da distância que aquelas
luzes estavam.

Decidido, desceu pela lateral de sua casa. Inicialmente seguiu pelo caminho onde Safye mantinha
sua pequena plantação de ervas para chá. Atravessou essa primeira parte, usando um enorme facão,
começando a abrir uma trilha em meio à mata. Não pretendia ser um caminho a ponto de as pessoas do
Vale iniciarem um trânsito por ali, mas apenas uma passagem para ele. Esperava chegar até à beira do
deserto antes do sol estar no alto do céu.

Entretanto, tudo mudou para Anan quando, numa pausa para matar a sede na beira de um pequeno
riacho, sem nenhuma pretensão, ficou examinando a encosta da montanha que estava contornando e,
com muito espanto, visualizou a entrada de uma caverna escondida por uma vasta vegetação. Receoso
do que poderia encontrar, retirou a vegetação com muito cuidado. Depois de um tempo maior do que
esperava ter durado e com ferida nas mãos devido aos espinhos, conseguiu abrir passagem para entrar
na caverna.

A caverna era esplêndida. Sua extensão e altura eram inexplicáveis. Uma fonte minava a cerca de
uns três metros de altura, criando uma pequena e atrativa cachoeira. Curiosamente o riacho produzido
pela fonte corria para dentro da caverna. Porém, ele não conseguiria ir muito adiante, pois a claridade
que invadia a caverna não tinha força suficiente e rapidamente deixava o ambiente escuro demais. Diante
da impossibilidade de avançar caverna adentro, planejou voltar no dia seguinte com uma tocha. Ao sair,
não sabe o real motivo mas, como que instintivamente, escondeu a entrada da caverna com arbustos e
foi para casa.

Chegando em casa, Safye já estava preparando uma janta que cheirava muito bem. Deu-lhe um beijo
e tentou agir o mais naturalmente possível. Lavou-se e sentou-se no seu local preferido na varanda da
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casa. Como com a luz do dia não conseguia ver muito longe no horizonte, pegou um livro com as antigas
palavras e começou a lê-lo. Parou um momento e procurou o outro livro, aquele que continha as novas
palavras, mas não o encontrava. Foi até a sala da casa e não o viu, quando ia perguntar a sua esposa se
ela vira o livro encontrou-o em cima da mesa da cozinha. Safye deveria estar lendo enquanto preparava
o jantar.

Ela viu que ele entrou e sabia o que ele procurava. Anan gostava sempre de comparar as palavras
antigas com as novas. Por vezes, ficava admirado com a beleza das novas palavras, contudo, outras
vezes, e essas eram a maioria das vezes, ficava indignado com algumas diferenças entre elas e com o
desprezo das pessoas do Vale pelas palavras antigas.

Toda vez que mencionava essas discordâncias, sempre ouvia as mesmas respostas: “O mais
importante é o que as novas palavras dizem”. “Devemos interpretar as antigas pelas novas”. Esse
comportamento de descaso para com assuntos tão relevantes deixava Anan mito irritado.

Safye virou-se e lhe disse que poderia levar o livro, pois agora não daria mais para ela ler.

Anan pegou-o e voltou para o seu cantinho sagrado.

Quando abriu o livro das palavras antigas, buscou novamente a parte que narrava a vida do primeiro
patriarca. Ele era o ancião mor, o grande exemplo para toda a comunidade do Vale. Sua fé e
desprendimento eram inquestionáveis. Porém, naquele final de tarde, ao reler a história que já conhecia
de cor, deteve-se na parte onde o patriarca faz questão de adquirir uma propriedade. Leu, releu, e o texto
insistia em dizer que: “Assim, o campo e a caverna que nele há foram transferidos ao patriarca como
propriedade”. E, então, como se uma voz em alto e bom som falasse à sua mente, iluminando seu
pensamento e fazendo-o perceber algo que nunca lhe havia chamado à atenção mas que agora estava
claro o suficiente para entender seu achado anterior: a caverna. Se o patriarca pôde ter uma propriedade,
ele também o poderia.

Ele não sabia o que havia naquela caverna, mas as palavras antigas estavam lhe dizendo que, a
caverna e o que existia nela, eram propriedades dele, somente dele.

Durante o jantar, Anan contou a Safye o que encontrara. Falou todos os detalhes da descoberta, de
como tinha sido difícil chegar até à entrada da caverna e de como a vegetação era fechada. Contou
também da cachoeira e do pequeno regato que corria para dentro da caverna. Com muita excitação,
expôs sua impressão de que aquele riacho tinha de ter uma saída, pois, caso contrário a caverna estaria
cheia de água. Concluiu dizendo que, na manhã seguinte, seguiria o curso do riacho até encontrar a
saída.

Safye ficou igualmente curiosa. Não saberia dizer se foi pela empolgação da narrativa ou se por
simples curiosidade, mas estava certa de uma coisa: ela também queria explorar essa caverna e descobrir
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o que havia lá dentro. Decidiu, então, não comparecer ao Encontro de Trocas no dia seguinte para poder
ir ver essa tal caverna.

Assim que terminaram de comer, foram para a varanda como era de costume. Aos poucos, chegaram
alguns amigos para o momento do compartilhar as antigas palavras. Tudo estava normal, mas Anan e
Safye sentiam cada palavra como suspeita de que os outros haviam descoberto sobre a caverna. Era
evidente que nada sabiam, entretanto, o temor de terem de compartilhar de sua descoberta fazia com que
os mais simples comentários sobre qualquer assunto os deixassem preocupados. Estavam lutando
violentamente em seus pensamentos para não deixarem escapar algo que os denunciasse.

Quando um dos amigos disse que estava curioso para saber onde o riacho que passava defronte à sua
casa ia desaguar, Anan ficou branco como a neve e não conseguiu controlar a fala, gaguejando algo
como pretendendo dissuadir essa ideia do amigo.

Outro amigo, para desespero de Anan e Safye, continuou o assunto do riacho, dizendo que, de onde
viera, havia muitas cavernas escondidas nas montanhas e que ali no Vale deveria ter algumas também,
só faltava serem encontradas.

Anan interveio dizendo que as pessoas estavam naquele Vale há tempo suficiente para terem
descoberto cavernas se elas realmente existissem. E, como até aquele momento, nenhuma havia sido
encontrada, então era prova de que não existiam.

Safye se levantou e foi até a cozinha buscando disfarçar sua surpresa por ter visto que Anan mentira
sobre existirem cavernas na região. Era a primeira vez, desde que ela o conhecera, que vira seu esposo
falar algo que não era verdade.

Depois de lerem e conversarem sobre as antigas palavras, fizeram uma prece e os amigos se
despediram desejando uma noite tranquila e prometendo se verem no Encontro de Trocas no dia
seguinte. Dessa vez, Anan e Safye não responderam confirmando a presença.

Após todos saírem, o casal anfitrião ficou alguns instantes olhando para o horizonte. Contudo, nuvens
de tempestade estavam se aproximando e desistiram de buscar algum sinal das luzes que tanto
chamavam à atenção de Anan. Resignados, foram se deitar.

Ambos quase não conseguiram dormir à noite. Estavam ansiosos demais para explorar a caverna e
saber o que descobririam escondido em suas profundezas.

*
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No centro do Vale, o Encontro de Trocas e o Bazar estavam a todo vapor. Desde o início do Vale,
seus moradores traziam o excesso do que plantavam para distribuir entre os demais. A princípio era algo
bem desorganizado. Com o tempo, os moradores começaram a trazer esteiras de pano, escolhiam um
lugar no caminho principal da praça e colocavam o que tinham a oferecer sobre essas esteiras. Não havia
a obrigação nem a posse do espaço, cada um, simplesmente, colocava sua esteira ao lado da esteira de
quem chegara antes.

Após algum tempo de funcionamento do Encontro de Trocas, alguém que não tinha a habilidade de
plantar, resolveu trazer seu artesanato para presentear aqueles que o estavam oferecendo alimento. Como
o centro da praça já estava tomado pelo Encontro de Trocas, esse alguém escolheu um espaço ali na
praça mesmo, próximo ao centro mas em outro caminho e estendeu sua esteira e colocou seu artesanato.
Vários outros moradores, que também não sabiam plantar, viram ali uma oportunidade e o espaço
cresceu. Para diferenciar do local onde trocavam alimentos, chamaram esse espaço de Bazar.

Pessoas de todos os recantos do Vale vinham até a praça trocar suas mercadorias. A praça, na
verdade, era um grande jardim que foi ornamentado por todos. Cada morador do Vale trouxe flores e
plantas e juntos criaram o que muitos chamavam de a “obra prima da comunhão”.

Desde os primeiros moradores do Vale, aquele espaço fora reservado para o Encontros de Trocas.
No início era apenas um lindo campo gramado, mas logo alguém começou a plantar uma flor, enquanto
fazia isso, outro morador veio ajudar, conversaram sobre como aquele lugar ficaria lindo todo florido e
saíram de lá contando para os demais sobre essa conversa e, já no dia seguinte, quase todos os moradores
estavam tão empenhados em criar um lindo jardim que até se esqueceram de trazer os produtos para a
troca.

Na medida em que o Vale crescia em número de moradores, os mais recentes também traziam sua
contribuição para ampliar esse jardim. Por isso ele não parava de crescer. Caminhos largos foram
desenhados entre as flores ligando as várias áreas para trocas.

No Bazar, cada família trazia aquilo que produzia. Tinha a área dos agricultores, dos criadores de
animais, dos produtores de leite e queijo, dos artesãos, dos ferreiros, entre outras áreas menores. À
medida que chegavam ao jardim, estendiam no chão suas lindas esteiras feitas de tecidos coloridos e,
sobre eles, colocavam o que haviam trazido.

A prática era deixar tudo ali exposto e sair em busca do que precisava. No final da manhã, todos já
estavam com suas esteiras de pano quase vazias e traziam nas mãos o que haviam trocado com outros.
Juntavam suas coisas e cada um ia para sua casa com aquilo que fora trocado e que era de sua
necessidade.

Não havia uma troca formal. Qualquer um poderia pegar do que estava nas esteiras, na quantidade
que desejasse. Ninguém tinha o ímpeto de acumular coisas, já era uma alegria poderem pegar o que
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necessitavam, de forma a que não houvesse falta de algo essencial e que nada fosse desperdiçado. Todos
pegavam somente o que precisavam para aquele dia.

Esse gesto era consequência da felicidade em também compartilharem momentos de descontração,


companheirismo e ajuda mútua. Era sempre um momento de celebração e comunhão. Os pontos
principais no Encontro de Trocas e no Bazar eram estarem juntos e repartirem para que não houvesse
nenhum necessitado.

Por isso, essa atitude não gerava qualquer desconfiança ou temor, para tanto, não havia necessidade
de alguém vigiar a esteira. Na verdade, ao invés de vigiar, cada um deixava sua esteira exposta e buscava
nas demais esteiras apenas aquilo que lhes estava faltando. As esteiras e tudo o que estava exposto era
de todos e havia para todos. Tudo era comum.

Era costume gastarem tempo conversando sobre o que porventura tivesse ocorrido desde o último
Encontro no dia anterior. O Vale, por ser muito tranquilo, sem agitação e ansiedade, raramente trazia
algum acontecimento novo. O importante, de fato, era o tempo gasto na conversa, na comunhão.

Durante o decurso do Encontro, muitos perceberam a ausência de Anan e Safye e começaram a


comentar entre si. Não era comum alguém do Vale não ir à praça. Mesmo quem não precisava de nada,
ia ao jardim para levar o que tinha para dispor aos demais e para conversar. Estar em comunhão sempre
era muito mais importante do que as trocas em si. Sendo assim, muitos ficaram preocupados com a
possibilidade de estarem doentes, pois jamais haviam faltado a algum Encontros de Troca anteriormente.
Mas, como ouviram dizer que, na noite anterior, alguns amigos haviam participado de um encontro de
comunhão na casa deles e que estavam bem, todos acabaram se tranquilizando.

*
Em menos de uma hora de caminhada e após uma pequena escalada, chegaram à caverna. Anan
examinou bem o lugar e certificou-se de que tudo estava exatamente como havia deixado no dia anterior.
Retirou a vegetação o suficiente para os dois passarem e voltou a cobrir a entrada da caverna com a
folhagem. Acenderam as duas tochas que haviam trazido e, com a luz iluminando, puderam ver a beleza
daquele salão natural.

Não haviam marcas de que algum ser humano pudesse ter estado ali alguma vez e também não
haviam rastros de animais. O temor da caverna ser um esconderijo de ursos ou de qualquer outro tipo
de animais ferozes foi-se embora.

Safye ficou enebriada com a cachoeira. Era como Anan havia descrito. Porém, ao vê-la, parecia muito
mais linda. Um pequeno lago era formado por águas que pareciam ter sido desprezadas pela imensa
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cachoeira, como se ela dissesse não necessitar de toda água que continha. Naquele espaço de bela
natureza, não havia escassez ou sequidão.

Ao chegar ao chão, a água mostrava uma limpidez tamanha que se podia ver o fundo. Embora fosse
raso, com não mais do que uns cinquenta centímetros de profundidade, a limpedez da água era tamanha
que, mesmo que o lago tivesse vários metros de profundidade, seu fundo ainda seria cristalino e poderia
ser visto e apreciado.

Safye estava tão deslumbrada com tamanha beleza do lugar que Anan teve de despertá-la como de
um sonho, chamando-a para seguirem adiante.

O riacho seguia pelo único caminho possível além da entrada da caverna, fluindo através de uma
passagem em forma de túnel, revelando um trabalho de séculos daquele pequeno filete de água
escavando os interiores da montanha. Ter esse único caminho era muito bom, pois facilitaria a
exploração.

Seguir seu curso, a princípio, não foi nada fácil. Ele descia por uma ribanceira íngreme, como que
em um grande barranco. Tomando todo cuidado para não escorregarem, Anan e Safye quase deslizaram
pelos cerca de cinco metros que os separavam do hall de entrada da caverna para o próximo nível.

Depois de uma descida sem maiores problemas, apenas pequenos sustos com os leves escorregões,
eles chegaram a uma área plana. Felizmente estavam com tochas na mão considerando a imensidão
daquela caverna escura, pois o pequeno riacho formava uma enorme lagoa, tão profunda que, apesar da
limpidez cristalina da água, não conseguiam enxergar o fundo. Com pequeno descuido teriam caído ali.
Isso seria um enorme problema, principalmente para Safye que não sabia nadar.

O susto fez com que ambos ficassem estáticos por alguns instantes. Quando se recuperaram um pouco
do baque, examinaram com maior atenção o ambiente. A lagoa era bem larga, cobria quase toda aquela
câmara dentre as várias existentes na caverna. Mesmo não sendo um salão muito amplo, aparentando
algo em torno de uns trinta metros quadrados, exalava algo de deslumbrante. As paredes tinham uma
coloração estranha, talvez pelo efeito das tochas.

Perceberam pequenas saliências na parede. Aproximaram-se delas, sentiram-nas com as mãos, mas
perceberam serem apenas as imperfeições comuns às rochas.

Contornaram a lagoa e encontraram três saídas do riacho. A situação ficava então mais complicada.
Ficou evidente que a exploração não seria mais algo tão simples como imaginavam. Decidiram explorar
cada braço por vez. Iniciaram pelo primeiro braço à esquerda e seguiriam a ordem dos braços até
explorarem todos os recantos daquela caverna.

Dessa vez a descida era bem suave. A água que descia era quase um filete, mas de fluxo constante.
O caminho seguia por um túnel razoavelmente espaçoso para uma pessoa caminhar em pé. Andaram
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por muito mais tempo do que esperavam. Calcularam quase três horas de caminhada, até chegarem a
um enorme salão onde o filete se transformava em outro pequeno lago, mas sem nenhuma saída aparente.

Novamente examinaram, cuidadosamente, o lugar. Não havia nada de interessante por ali. Toda a
parede era lisa, como que lixada à mão. Instintivamente passaram as mãos nas paredes como quem
buscava algo. Quem sabe essas paredes escondessem algo valioso ou alguma passagem escondida? Mas
nada havia.

Restava, a aquele lugar, servir apenas de um bom abrigo em caso de inverno ou verão muito intensos.
Porém, como isso nunca acontecera no Vale, além de desnecessário, preservar esse lugar seria um
despropósito. Uma perda de tempo e de energia.

Subiram o caminho de volta em silêncio. Provavelmente evitando falar ao outro o temor de terem de
despender esforço semelhante nas outras vertentes do riacho e, por fim, alcançarem o mesmo resultado
decepcionante. Essa frustração os incomodava, pois parecia estar se tornando algo corriqueiro e não era
isso o que esperavam conquistar.

Quando chegaram ao grande lago, debateram se iriam imediatamente para o outro caminho ou se
deixariam para o dia seguinte. Safye demonstrou evidente falta de vontade em prosseguir. Ela se sentia
cansada e desanimada. Anan ponderou que, pelo tempo que ele imaginava terem passado dentro da
caverna, já deveria ser por volta da hora nona. Insistir na empreitada naquele momento poderia levar a
que voltassem tarde da noite para casa e, com isso, abrir uma brecha para os outros questionarem sobre
a demora deles, pois, certamente, logo mais alguns amigos os estariam visitando.

Decidiram, então, voltar para casa e retornar à exploração no dia seguinte. Muito provavelmente o
ânimo seria outro depois do descanso da noite.

O caminho para casa foi silencioso. Não apenas pela dificuldade da caminhada, mas também pela
frustração de nada encontrarem e da incerteza se valeria a pena continuarem a expedição. A fome tomava
conta de seus corpos, enfraquecendo os movimentos e a repetição da sensação de vazio que já haviam
sentido anteriormente, estava tornando tudo mais difícil.

Chegaram em casa já no final da tarde. Safye esquentou a mesma comida da noite anterior e ambos
a devoraram com avidez.

Naquela noite, a chegada dos amigos trouxe novamente a preocupação de não falarem nada que
pudesse gerar suspeitas acerca da descoberta.

Anan leu o texto registrado nas palavras antigas que havia meditado no dia anterior e colocou em
discussão para que os amigos dissessem o que entendiam sobre o que estava escrito.

Todos falaram muitas coisas, a maioria vagava por interpretações espiritualizantes do texto, mas
nenhum percebeu a questão da propriedade como algo pessoal do patriarca que era o que Anan esperava
que eles enxergassem.
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Com isso, ele precisou de muito esforço para não deixar transparecer sua insatisfação com a não
compreensão de um princípio tão básico e que, para ele, era um erro de imensa gravidade e um descaso
para com a revelação ali contida, além de ser uma verdadeira desfeita diante de uma evidente verdade
registrada num dos livros sagrados que todos aceitavam e, com fé, procuravam praticar.

Não era possível que, apenas Anan pudesse ver tão claramente o que antes lhe fora revelado como
verdade. Dá-se a impressão de que todos estavam cegos e sendo enganados. Anan não se sentia assim,
ao contrário, tinha certeza de que sua descoberta era uma revelação sobrenatural.

Não percebendo as intenções de Anan escondidas em sua insistência em convencer a todos de que
sua interpretação da passagem citada era a correta, o assunto foi sendo colocado de lado por todos e
Anan não conseguiu retomar a discussão da forma como almejava.

Alguns dos amigos mais antigos criou coragem e disse a eles que estavam sentindo falta da presença
deles no Encontro de Trocas. Safye gelou completamente, ela não sabia o que responder. Levantou-se e
foi mexer em algo no fogão. Felizmente Anan respondeu argumentando que o Encontro de Trocas era
para que todos pudessem buscar o que necessitavam e, como ele e Safye não estavam precisando de
nada, preferiram descansar um pouco mais.

Ninguém perguntou mais nada, mas todos acrescentaram que o Encontro de Trocas não era somente
para buscar o que se necessitava, mas também era uma oportunidade para ofertarem algo que tinham em
disponibilidade para aqueles que não tinham. Entretanto, como Anan e Safye não responderam a esse
comentário o assunto não mais continuou.

Quando a sensação era de que já estava tarde, sem que ninguém mencionasse a hora, simplesmente
os visitantes se levantaram, se despediram e foram cada um para suas casas.

Quando todos saíram, Anan e Safye tinham uma expressão de alívio no rosto. Enfim, haviam
conseguido passar ilesos pelas perguntas curiosas e preocupadas dos amigos sem revelarem seu precioso
segredo. E ainda tiveram a certeza de que ninguém os havia visto indo ou voltando da caverna.

*
Barjo iniciou a reunião dos Doze com a nova prece matinal e todos participaram dela, repetindo em
conjunto as palavras, exatamente como se encontram registradas no livro das novas palavras. Ao seu
término, espontaneamente, um por vez comentou o que lembrou naquela semana das palavras que se
destacaram na leitura do livro do Mestre. Debateram entre si o que essas palavras queriam dizer e como
se aplicavam ao dia a dia.
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Após a reflexão, discutiram os detalhes da próxima Festa do Amor. Mesmo todos desejando que
houvesse mais espontaneidade na vida da comunidade, não escapavam de alguma programação.

Como o número de pessoas habitando o Vale vinha aumentando a cada dia, estava ficando mais
difícil se reunirem numa única casa. Nas últimas vezes, dividiram-se em dois grupos, mas ainda assim
tinha gente demais para alojarem em apenas dois locais.

Poucos perceberam que havia uma tensão entre os dois. Barjo e Thya eram líderes naturais. A divisão
em dois grupos permitiria que eles atuassem com liberdade e, até, saciassem seus egos que, embora
todos tentassem anulá-los, eles estão sempre presentes, firmes e fortes, para exigirem seus direitos.
Controlar o orgulho e a soberba era um exercício constante durante as reuniões da comunidade e um
desafio a ser vencido, principalmente pela liderança.

Entretanto, eles se remexiam de forma estranha e, apesar de buscarem disfarçar seus sentimentos
interiores, suas insatisfações e suas discordâncias em muitos assuntos da vida no Vale, incluindo o fato
iminente da necessidade de gerar outros grupos a fim de facilitar as reuniões, suas expressões faciais
involuntárias acabavam lhes denunciando.

Diziam eles que, terem mais grupos poderia criar um sentimento de divisão no Corpo do Vale,
poderiam surgir partidos internos, comentários de que tal grupo é melhor do que outro, de que em tal
grupo aconteceu algo maravilhoso e nos demais não. Com certeza, esse sentimento de divisão e
questionamentos estava tirando a paz dos Doze. Era preciso evitar a ideia de que a Graça era maior sobre
alguns deles e não sobre todos. Contudo, mesmo que isso fosse possível, a organização de dois grupos,
concretizada alguns anos antes, já havia criado essa situação que eles queriam evitar.

Muitas ideias surgiram, mas por fim concordaram que, desta vez, deveriam promover a Festa do
Amor em quatro lugares diferentes. Além dos grupos já liderados por Barjo e Thya, haveriam mais dois.
Os escolhidos para dirigirem esses novos grupos foram Lomay e Thadd.

Definiram então que o grupo do alto do rio seria dirigido por Barjo, o grupo do rio abaixo seria
dirigido por Thya, o grupo do nascente quem dirigiria seria Lomay e Thadd ficaria responsável pelo
grupo do poente.

No Encontro de Trocas do dia seguinte, avisariam a todos acerca da decisão, dos locais e dos líderes
de cada grupo. Informariam também que a troca no dia da festa seria de produtos para a Festa do Amor.

Tudo resolvido, entoaram um dos cânticos novos e cada um foi para a sua casa.

*
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Ao primeiro raio de sol, Anan e Safye se levantaram. Comeram com rapidez um pedaço de pão com
um chá de folhas de oliveira e, antes de saírem, Anan pegou mais duas tochas de reserva, uma corda de
cipó, um martelo, algumas estacas de madeira e uma pequena ferramenta de cavar. Safye preparou um
pequeno lanche com o pão, o chá e acrescentou algumas tâmaras. Examinando se tudo estava certo,
saíram rumo ao grande desafio que lhes estava proposto para o dia de hoje.

Como a casa deles estava no extremo do Vale, ou porque ainda era muito cedo, não se sabe ao certo,
não encontraram ninguém no caminho. Na verdade era exatamente isso o que desejavam. Não sabiam o
porquê, mas não queriam ninguém especulando sobre essa caverna.

A caminhada até a caverna pareceu mais curta. Provavelmente andaram mais rápido, movidos pela
ansiedade. Mesmo não sabendo o que iriam encontrar, havia a expectativa de alguma descoberta que
valesse a pena todo o esforço.

Antes de abrirem a passagem, retirando a folhagem que ocultava a entrada da caverna, por instinto,
examinaram tudo ao redor e, até onde a vista alcançava, não viam nenhum sinal da presença de outras
pessoas que não fossem eles. Entraram e cobriram novamente para esconder a entrada da caverna de
qualquer curioso que porventura passasse por perto.

Passaram rapidamente pelo hall de entrada e pelo primeiro nível abaixo. Desconsideraram o braço
formado pelo curso da água mais à esquerda, pois já o tinham explorado no dia anterior e dirigiram-se
ao veio mais ao meio.

O caminho que se descortinou era um pouco mais estreito do que o caminho mais à esquerda e as
pedras do chão e das paredes eram bem mais lisas, mas a descida mostrou-se, pelo menos inicialmente,
mais tranquila.

Após um percurso que calcularam ter aproximadamente uns quinhentos metros em leve e
escorregadia descida, surgiu uma rampa bem inclinada, tinha quase dois metros de altura. Não era uma
altura exagerada, mas um descuido e, certamente, teriam se machucado, talvez até gravemente.

A maior preocupação de Anan e Safye em não se machucarem era para não terem de pedir socorro a
alguém do Vale e, assim, terem de revelar esse pequeno segredo que, esperavam, permanecesse somente
entre eles.

Desceram a rampa e se depararam com um enorme salão. Desta vez era algo, realmente grandioso.
Possuía cerca de uns cem metros quadrados. O riacho se tornava mais raso e se alargava, mas não parava
ali. Não havia nenhum lago. Somente o curso do riacho. As paredes continuavam bem lisas. Nem uma
saliência sequer podia ser percebida. O único detalhe em toda a área era que o riacho desaparecia por
uma pequena passagem que mal caberia uma criança engatinhando.

Anan abaixou-se com a tocha nas mãos e não conseguiu enxergar o fim do pequeno túnel. Enfiou
seu braço pela abertura e sentiu que era, realmente, como um buraco tubular e que ia diminuindo de
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tamanho. Até onde seu braço alcançava, não havia mudança na forma arredondada e contínua como essa
passagem se apresentava.

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