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A

ILHA DOS PINGUINS


E OUTRAS HISTÓRIAS



Anatole France

Título original: L'Île des Pingouins
Tradução de Sampaio Marinho
Tradução cedida por Publicações Europa–América, Lda.
Prémio Nobell, 1921




Livro I – AS ORIGENS

I – Vida de São Maèl


Maèl, oriundo de uma família real da Câmbria, foi mandado aos nove anos para a Abadia de Yvern, a
fim de aí estudar as letras sagradas e profanas. Aos catorze anos renunciou à sua herança e fez voto de
servir o Senhor. Repartia as suas horas, segundo a regra, entre o canto dos hinos, o estudo da gramática
e a meditação das verdades eternas.
Um perfume celeste depressa revelou no claustro as virtudes deste religioso. E, quando o bem–
aventurado Gal, abade de Yvern, passou deste mundo para o outro, o jovem Maèl sucedeu–lhe no
governo do mosteiro. Fundou aí uma escola, uma enfermaria, uma casa de hóspedes, uma forja, oficinas
de toda a espécie, estaleiros para a construção de navios, e obrigou os religiosos a arrotear as terras em
volta. Cultivava com as suas mãos o jardim da abadia, trabalhava os metais, instruía os noviços, e a sua
vida deslizava suavemente como um rio que reflecte o céu e fecunda os campos.
Ao cair do dia, este servidor de Deus tinha o costume de se sentar na falésia, no sítio a que ainda hoje se
chama a cadeira de São Maèl. A seus pés, as rochas, semelhantes a dragões negros, cobertos de algas
verdes e sargaços ruivos, opunham à espuma das vagas os seus peitorais monstruosos. Via o Sol descer
no oceano como uma hóstia vermelha que tingia com o seu sangue glorioso as nuvens do céu e a crista
das ondas. E o santo homem via nisso a imagem do mistério da Cruz, pelo qual o sangue divino cobriu a
terra de uma púrpura real. Ao largo, uma linha de um azul carregado marcava as costas da ilha de Gad,
onde Santa Erigida, que recebera o véu de São Maio, governava um mosteiro de mulheres.
Ora, Erigida, a par dos méritos do venerável Maèl, mandou–lhe pedir, como um rico presente, uma obra
das suas mãos, Maèl fundiu para ela uma sineta de bronze e, quando a terminou, benzeu–a e lançou–a
ao mar. E a sineta foi tocar até à costa de Gad, onde Santa Erigida, prevenida pelo som do bronze nas
águas, a recolheu piedosamente e, seguida das freiras, a levou em solene procissão, ao canto dos salmos,
para a capela do convento.

Assim, o santo homem Maèl ia de virtudes em virtudes. Já tinha percorrido dois terços do caminho da
vida e esperava chegar suavemente ao seu fim terrestre no meio dos seus irmãos espirituais, quando
soube por um sinal evidente que a sabedoria divina havia decidido outra coisa e o Senhor o chamava
para trabalhos menos tranquilos, mas não menores em mérito.

II – Vocação Apostólica de São Maèl


Um dia, quando se dirigia, meditando, para o fundo de uma enseada a que rochedos emergindo do mar
faziam um dique selvagem, viu uma pia de pedra que flutuava como uma barca sobre as águas.
Fora numa tina assim que São Guirec, o grande São Colomban e muitos outros religiosos da Escócia e
da Irlanda tinham ido evangelizar a Armórica. Noutros tempos também, Santa Avoye, vinda de
Inglaterra, subia o rio de Auray num almofariz de granito rosado, onde mais tarde se meteriam as
crianças para as tornar fortes; São Vouga passava de Hibérnia para a Cornualha por um rochedo cujos
fragmentos, conservados em Penmarch, curariam da febre os peregrinos que aí encostassem a cabeça;
São Sansão desembarcava na baía do monte Saint–Michel numa tina de granito a que viria a chamar–se
a escudela de São Sansão. Foi por isso que, à vista daquela pia de pedra, o santo homem Maèl
compreendeu que o Senhor o destinava ao apostolado dos pagãos que ainda povoavam a costa e as ilhas
dos Bretões.
Entregou o seu cajado ao santo homem Budoc, investindo–o assim no governo da abadia. Depois,
munido de um pão, de um barril de água doce e do livro dos Santos Evangelhos, entrou na pia de pedra,
que o levou suavemente até à ilha de Hoedic.
Esta é perpetuamente batida pelos ventos. Homens pobres pescam aí o peixe entre as fendas dos
rochedos e cultivam penosamente legumes em hortas cheias de areia e seixos, abrigados por muros de
pedras secas e sebes de tamargueira. Uma bela figueira erguia–se numa concavidade da ilha e estendia
largamente os seus ramos. Os habitantes da ilha adoravam–na.
E o santo homem Maèl disse–lhes:
– Adorais essa árvore porque é bela. Portanto, sois sensíveis à beleza. Ora, eu venho revelar–vos a
beleza oculta.
E ensinou–lhes o Evangelho. E, depois de os ter instruído, batizou–os com sal e água.
As ilhas do Morbihan eram em maior número nesse tempo do que atualmente. Com efeito, desde essa
altura, muitas afundaram–se no mar. São Maèl evangelizou sessenta.
Depois, na sua pia de granito, subiu o rio de Auray. E, após três horas de navegação, desembarcou
diante de uma casa romana. Do telhado elevava–se um ligeiro fumo.
O santo homem franqueou a entrada, na qual um mosaico representava um cão, de músculos tensos e
goelas arreganhadas. Foi acolhido por dois velhos esposos, Marcus Combabus e Valeria Moerens, que
viviam ali do produto das suas terras. Em torno do pátio interior reinava um pórtico cujas colunas
estavam pintadas de vermelho desde a base até meia altura. Uma fonte, de conchas encostava–se ao
muro e, sob o pórtico, erguia–se um altar, com um nicho onde o dono da casa dispusera pequenos ídolos
de terracota, branqueados com água de cal. Uns representavam crianças aladas, outros Apoio ou
Mercúrio e vários tinham a forma de uma mulher nua que arrepelava os cabelos. Mas o santo homem
Maèl, observando essas figuras, descobriu entre elas a imagem de uma jovem mãe com um filho no
regaço.
Disse imediatamente, apontando para a imagem:
– Esta é a Virgem, mãe de Deus. O poeta Virgílio anunciou–a em carmes sibilinos, antes que ela tenha
nascido, e, com voz angélica, cantou Jam redit et virgo. E fizeram–se dela, na gentilidade, figuras
proféticas como esta que colocaste, ó Marcus, no altar. E sem dúvida ela protegeu os teus módicos lares.
É assim que aqueles que observam exatamente a lei natural se preparam para o conhecimento das
verdades reveladas.
Marcus Combabus e Valeria Moerens, instruídos por este discurso, converteram–se à fé cristã.
Receberam o batismo com a sua jovem liberta, Caelia Avitella, que lhes era mais querida do que a luz
dos olhos. Todos os seus colonos renunciaram ao paganismo e foram baptizados no mesmo dia.
Marcus Combabus, Valeria Moerens e Caelia Avitella levaram desde então uma vida cheia de méritos.
Morreram no Senhor e foram admitidos no cânone dos santos.
Durante mais trinta e sete anos, o bem–aventurado Maèl evangelizou os pagãos do interior das terras,
Ergueu duzentas e dezoito capelas e setenta e quatro abadias.

Ora, certo dia, na cidade de Vannes, onde anunciava o Evangelho, soube que os monges de Yvern se
tinham esquecido, na sua ausência, da regra de São Gal. Imediatamente, com o zelo da galinha que
reúne os pintos, foi ter com os seus filhos extraviados. Contava então noventa e sete anos; o corpo
curvara–se, mas os braços continuavam ainda robustos e a sua palavra espalhava–se abundantemente
como a neve no Inverno, no fundo dos vales.
O abade Budoc restituiu a São Maèl o cajado de freixo e pô–lo ao corrente do infeliz estado em que se
encontrava a abadia. Os religiosos desentenderam–se quanto à data em que convinha celebrar a festa da
Páscoa. Uns defendiam o calendário romano, outros o calendário grego, e os horrores de um cisma
cronológico dilaceravam o mosteiro.
Reinava ainda outra causa de desordens. As religiosas da ilha de Gad, tristemente esquecidas da sua
virtude principal, vinham a todo o momento de barca até à costa de Yvern. Os religiosos recebiam–nas
no edifício dos hóspedes e resultavam daí escândalos que enchiam de desolação as almas piedosas.
Tendo terminado este fiel relatório, o abade Budoc concluiu nestes termos:
– Desde a chegada dessas monjas, foi–se a inocência e o repouso dos nossos monges.
– Também me parece – respondeu o bem–aventurado Maèl. – Com efeito, a mulher é uma armadilha
habilmente construída: é–se apanhado assim que se a fareja. Ai de mim!, o delicioso atractivo dessas
criaturas exerce–se de longe ainda mais poderosamente do que de perto! Inspiram tanto mais o desejo
quanto menos o satisfazem. Daí este verso de um poeta a uma delas: Presente, perco–vos; ausente,
encontro–vos.
"Por isso vemos, meu filho, que as blandícias do amor carnal são mais poderosas sobre os solitários e os
religiosos do que sobre os homens que vivem no século. O demônio da luxúria tentou–me toda a vida de
diversas maneiras e as mais rudes tentações não me vieram do encontro de uma mulher, mesmo bela e
perfumada. Vieram–me da imagem de uma mulher ausente. Ainda agora, cheio de dias e a atingir os
noventa e oito anos, sou muitas vezes induzido pelo Inimigo a pecar contra a castidade, pelo menos em
pensamento. À noite, quando tenho frio na minha cama e se entrechocam com um ruído surdo os meus
velhos ossos gelados, ouço vozes que recitam o segundo versículo do terceiro livro dos Reis: Dixerunt
ergo á servi sui: Quaeramus domino nostro regi adolescentulam virginem, et stet coram rege etfoveat
eum, dormi atque in sinu suo, et cakfaciat dominum nostrum regem. E o Diabo mostra–me uma criança
na sua primeira flor, que me diz: "Sou o teu Abisag; sou a tua Sunamita. O meu senhor, dá–me um lugar
na tua cama."
"Acredita–me – acrescentou o ancião –, não é sem um particular socorro do Céu que um religioso pode
conservar a sua castidade de facto e de intenção.
Dispondo–se imediatamente a restabelecer a inocência e a paz no mosteiro, corrigiu o calendário
segundo os cálculos da cronologia e da astronomia e fê–lo aceitar por todos os religiosos; reenviou as
filhas pecadoras de Santa Erigida para o seu mosteiro; mas, longe de as expulsar brutalmente, mandou–
as conduzir ao seu navio, com cantos de salmos e litanias.
– Respeitemos nelas – dizia ele – as filhas de Brígida e as noivas do Senhor. Evitemos imitar os fariseus
que fingem desprezar as pecadoras. Deve–se humilhar estas mulheres no seu pecado, e não na sua
pessoa, e envergonhá–las pelo que fizeram, e não pelo que são: é que elas são criaturas de Deus.
E o santo homem exortou os seus religiosos a observarem fielmente a regra da sua ordem:
– Quando não obedece ao leme – disse–lhes ele –, o navio obedece ao escolho.

III – A Tentação de São Maèl



O bem–aventurado Maèl mal tinha restituído a ordem na abadia de Yvern quando soube que os
habitantes da ilha de Hoedic, os seus primeiros catecúmenos, e, de todos, os mais caros ao seu coração,
tinham regressado ao paganismo e suspendiam coroas de flores e faixas de lã nos ramos da figueira
sagrada.
O barqueiro que trazia essas dolorosas notícias exprimiu o receio de que em breve esses homens
extraviados destruíssem pelo ferro e o fogo a capela erguida na costa da sua ilha.
O santo homem resolveu visitar sem demora os seus filhos infiéis, a fim de reconduzi–los à fé e impedir
que se entregassem a violências sacrílegas. Quando se dirigia para a baía selvagem onde estava
ancorada a sua pia de pedra, voltou os olhos para os estaleiros que fundara há trinta anos, no fundo
dessa baía, para a construção de navios, e que, nesse momento, estavam cheios dos ruídos das serras e
dos martelos.
Nessa altura, o Diabo, que nunca se cansa, saiu dos estaleiros, aproximou–se do santo homem, sob a
figura de um religioso de nome Sansão, e tentou–o nestes termos:
– Meu padre, os habitantes da ilha de Hoedic cometem a toda a hora pecados. Cada instante que passa
afasta–os de Deus. Em breve porão a ferro e fogo a capela que ergueste com as tuas mãos veneráveis na
costa da ilha. O tempo urge. Não achas que a tua pia de pedra te levaria mais depressa até eles, se
estivesse aparelhada como uma barca e provida de um leme, um mastro e uma vela? É que assim serias
empurrado pelo vento. Os teus braços ainda são robustos e aptos a governar uma embarcação. Seria
bom pôr também uma roda de proa cortante na frente da vossa pia apostólica. És suficientemente sábio
para não teres tido já a ideia.
– É verdade que o tempo urge – respondeu o santo homem. – Mas agir como dizes, meu filho Sansão,
não seria tornar–me semelhante a esses homens de pouca fé, que não confiam no Senhor? Não seria
desprezar os dons d'Aquele que me enviou a tina de pedra sem aparelhagem nem velame?
A esta pergunta, o Diabo, que é um grande teólogo, respondeu com outra pergunta:
– Meu padre, é louvável esperar, de braços cruzados, que venha o socorro do alto e pedir tudo Àquele
que pode tudo, em vez de agir por prudência humana e ajudar–se a si mesmo?
– Não, com certeza – respondeu o santo ancião Maèl –, e é tentar Deus deixar de agir por prudência
humana.
– Ora – insistiu o Diabo –, a prudência não é, neste caso, aparelhar a tina?
– Seria prudência se não se pudesse chegar de outra maneira.
– Eh!, eh!, a tua tina é assim tão rápida?
– É–o tanto quanto apraz a Deus.
– Como o sabes? Avança como a mula do abade Budoc. É um autêntico tamanco. É–te proibido torná–
la mais rápida?
– Meu filho, a clareza ornamenta as tuas palavras, mas são excessivamente incisivas. Considera que
essa tina é milagrosa.
– Assim é, meu padre. Uma pia de granito que flutua na água como uma rolha de cortiça é uma pia
miraculosa. Não há dúvida. Que decides?
– É grande o meu embaraço. Convirá aperfeiçoar por meios humanos e naturais uma tão miraculosa
máquina?
– Meu padre, se perderes o pé direito e Deus to restituir, esse pé será miraculoso?
– Sem dúvida, meu filho.
– Calçá–lo–ias?
– Com certeza.
– Pois bem, se achas que se pode calçar com um sapato natural um pé miraculoso, deves achar também
que se pode pôr aprestos naturais numa embarcação miraculosa.
Isto é claro. Ai!, porque hão–de os mais santos homens ter as suas horas de fraqueza e trevas? És o mais
ilustre dos apóstolos da Bretanha, poderias realizar obras dignas de louvor eterno... Mas o espírito é
lento e a mão preguiçosa! Adeus, meu padre! Viaja sem pressa e, quando finalmente te aproximares das
costas de Hoedic, verás fumegar as ruínas da capela erguida e consagrada pelas tuas mãos. Os pagãos
tê–la–ão queimado juntamente com o pobre diácono que lá deixaste e que será grelhado como um
chouriço.
– A minha perturbação é extrema – disse o servidor de Deus, limpando com a manga a testa inundada
de suor. – Mas diz–me, meu filho Sansão, não é um trabalho fácil aparelhar esta pia de pedra. E não
será, se empreendermos tal obra, perder tempo, em vez de o ganhar?
– Ah, meu padre – exclamou o Diabo –, fá–lo–emos numa volta de ampulheta. Encontraremos os
aprestos necessários no estaleiro que fundaste nestas costas e nos armazéns abundantemente abastecidos
graças aos teus cuidados. Eu próprio montarei todas as peças navais. Antes de ser monge, fui marinheiro
e carpinteiro; trabalhei em muitas outras profissões. Mãos à obra!
Sem perda de tempo, arrasta o santo homem para um barracão cheio das coisas necessárias à navegação.
– Encarrega–te disto, meu padre!
E atira–lhe para as costas a vela, o mastro, a carangueja e a retranca.
Depois, carregando ele próprio uma roda de proa e um leme, com a madre e a barra, e pegando num
saco de carpinteiro cheio de ferramentas, corre para a praia, puxando pela sotaina o santo homem
curvado, a suar e ofegante, sob o fardo da vela e dos madeiros.

IV – Navegação de São Maèl no Oceano de Gelo


O Diabo, tendo–se arregaçado até às axilas, arrastou a pia para a areia e aparelhou–a em menos de uma
hora.
Logo que o santo homem Maèl embarcou, a pia, com todas as velas desfraldadas, fendeu as águas com
tal velocidade que em breve a costa desapareceu de vista. O ancião rumava ao sul para dobrar o cabo
Land's End. Mas uma corrente irresistível impelia–o para sudoeste. Ladeou a costa meridional da
Irlanda e virou bruscamente para o setentrião. À noite, o vento refrescou. Em vão Maèl tentou recolher
a vela. A tina deslizava perdidamente para os mares fabulosos.
À claridade da Lua, as gordas sereias do Norte, de cabelos de cânhamo, vieram erguer à volta dele as
suas gargantas brancas e as ancas rosadas; e, fustigando com as caudas de esmeralda a vaga espumante,
cantaram em cadência:

Para onde corres, bom Maèl,
Na tua pia perdida?

A tua vela está inchada
Como o seio de Juno
Quando dele jorra a Via Láctea.

Seguiram–no durante algum tempo, sob as estrelas, com os seus risos harmoniosos. Mas a tina
deslizava, cem vezes mais rápida do que o navio vermelho de um viquingue.
E as porcelanas, surpreendidas no voo, deitavam as patas aos cabelos do santo homem.
Em breve se levantou uma tempestade, cheia de sombra e gemidos, e a pia, impelida por um vento
furioso, voou como uma gaivota por entre a bruma e as ondas.
Após uma noite de três vezes vinte e quatro horas, as trevas dissiparam–se subitamente. E o santo
homem descobriu no horizonte uma costa mais brilhante do que o diamante. Essa costa aumentou
rapidamente, e em breve, à luz glacial de um Sol inerte e baixo, Maèl viu erguer–se por cima das águas
uma cidade branca, de ruas mudas, que, mais vasta do que a Tebas das cem portas, estendia a perder de
vista as ruínas do seu fórum de neve, dos seus palácios de gelo, dos seus arcos de cristal e dos seus
obeliscos irisados.
O oceano estava coberto de gelos flutuantes, em redor dos quais nadavam homens marinhos de olhar
selvagem e doce. E Leviatã passou, lançando uma coluna de água até às nuvens.
Contudo, num bloco de gelo que flutuava ao lado da pia de pedra, estava sentada uma ursa branca, com
o filhote nos braços, e Maèl ouviu–a murmurar suavemente este verso de Virgílio: Incipe, parvepuer.
E o velho, cheio de tristeza e perturbação, chorou.
A água doce tinha, ao gelar, feito rebentar o barril que a guardava. E, para matar a sede, Maèl chupava
os caramelos de gelo. E comia o pão molhado em água salgada.
A barba e os cabelos partiam–se como vidro. A sotaina, coberta por uma camada de gelo, cortava–lhe a
cada movimento as articulações dos membros. As vagas monstruosas elevavam–se e as suas mandíbulas
espumantes escancaravam–se para o ancião. Vinte vezes os vagalhões encheram a embarcação. E o livro
dos Santos Evangelhos, que o apóstolo guardava preciosamente numa capa de púrpura, marcada com
uma cruz de ouro, foi engolido pelo oceano.

Ora, ao terceiro dia, o mar serenou. E eis que, com um horrível clamor do céu e das águas, uma
montanha de uma brancura deslumbrante, com trezentos pés de altura, avançou para a tina de pedra.
Maèl tenta evitá–la; a barra do leme parte–se nas suas mãos. Para retardar a marcha em direção ao
escolho, procura rizar as velas.
Mas, quando se esforça por atar os rizes, o vento arranca–lhos e as filaças, escapando–se, queimam–lhe
as mãos. E vê três demônios com asas de pele negra, providas de ganchos, que, suspensos, no cordame,
sopram contra a vela.
Compreendo por esta visão que o Inimigo o governou em todas as coisas, arma–se com o sinal da Cruz.
Logo uma ventania furiosa, cheia de soluços e uivos, ergue a pia de pedra, apodera–se da mastreação,
com toda a vela, arranca o leme e a roda de proa.
E a pia foi à deriva pelo mar calmo. O santo homem, ajoelhando–se, deu graças ao Senhor, que o tinha
livrado das ciladas do Demônio. Então reconheceu, sentada num bloco de gelo, a ursa mãe, que tinha
falado na tempestade. Apertava contra o seio o filho bem–amado e tinha na mão um livro cor de
púrpura marcado com uma cruz de ouro. Acostando à pia de granito, saudou o santo homem com estas
palavras: Pax tibi, Maèl.
E estendeu–lhe o livro.
O santo homem reconheceu o seu evangeliário e, cheio de espanto, cantou no ar tépido um hino ao
Criador e à criação.

V – Batismo dos Pinguins


Depois de ter andado uma hora à deriva, o santo homem desembarcou numa praia estreita, cercada por
montanhas a pique. Marchou ao longo da costa, durante um dia e uma noite, contornando os rochedos,
que formavam uma muralha intransponível. E certificou–se assim de que era uma ilha redonda, no meio
da qual se erguia uma montanha coroada de nuvens. Respirava com alegria o fresco hálito do ar
húmido. A chuva caía, e essa chuva era tão doce que o santo homem disse ao Senhor:
– Senhor, eis a ilha das lágrimas, a ilha da contrição.
A praia estava deserta. Extenuado de fadiga e fome, sentou–se numa pedra, em cujas covas se viam
ovos amarelos, com manchas negras e grandes, como ovos de cisne.
Mas não lhes tocou, dizendo:
– As aves são os louvores vivos de Deus. Não quero que por minha causa falte um só desses louvores.
E mastigou líquenes arrancados das concavidades das pedras.
O santo homem havia dado quase inteiramente a volta à ilha sem encontrar habitantes, quando chegou a
um vasto circo formado por rochas ruivas e encarnadas, cheias de cascatas sonoras, e cujos cimos se
azulavam nas nuvens.
A reverberação dos gelos polares tinha queimado os olhos do velho. Contudo, uma débil luz filtrava–se
ainda por entre as pálpebras inchadas. Distinguiu formas animadas que se aglomeravam em patamares
sobre as rochas, como uma multidão de homens nas bancadas de um anfiteatro. E, ao mesmo tempo, os
seus ouvidos, ensurdecidos pelos longos ruídos do mar, ouviram débeis vozes. Julgando que fossem
homens que viviam ali segundo a lei natural e que o Senhor o tinha enviado para lhes ensinar a lei
divina, evangelizou–os.
Subindo para uma alta pedra no meio do circo selvagem, disse–lhes:
– Habitantes desta ilha, embora sejais de pequena estatura, pareceis menos um bando de pescadores e
marinheiros do que o senado de uma sábia república. Pela vossa gravidade, o vosso silêncio, a vossa
tranquila compostura, formais neste rochedo selvagem uma asembleia comparável aos senadores
romanos, deliberando no templo da Vitória, ou aos filósofos de Atenas, discutindo nos bancos do
Areópago. Sem dúvida, não possuís nem a sua ciência nem o seu génio; mas talvez, aos olhos de Deus,
sejais superiores a eles. Ao percorrer as praias da vossa ilha, não descobri nenhuma imagem de
assassínio, nenhum sinal de carnificina, nem cabeças nem cabeleiras de inimigos suspensas de uma alta
estaca ou pregadas nas portas das aldeias. Parece–me que não tendes artes e não trabalhais os metais.
Mas os vossos corações são puros e as vossas mãos inocentes. E a verdade entrará facilmente nas vossas
almas.
Ora, o que tinha tomado por homens de pequena estatura, mas de porte solene, eram pinguins que a
Primavera reunia e que estavam dispostos por casais nos degraus naturais da rocha, de pé na majestade
dos seus grandes ventres brancos. Por momentos, agitavam como braços as pontas das asas e soltavam
gritos pacíficos. Não receavam os homens, porque não os conheciam e nunca tinham recebido ofensa
deles; e havia naquele religioso uma doçura que tranquilizava os animais mais medrosos e agradava
extremamente àqueles pinguins. Voltavam para ele, com curiosidade amiga, os pequenos olhos
redondos prolongados para a frente por uma mancha branca oval, que emprestava ao seu olhar qualquer
coisa de bizarro e humano.
Impressionado com o seu recolhimento, o santo homem ensinou–lhes o Evangelho:
– Habitantes desta ilha, o dia terrestre que acaba de se levantar sobre as vossas rochas é a imagem do
dia espiritual que se ergue nas vossas almas. É que eu trago–vos a luz interior; trago–vos a luz e o calor
da alma. Assim como o Sol faz derreter os gelos das vossas montanhas, Jesus Cristo fará derreter os
gelos dos vossos corações.
Assim falou o ancião. Como, por toda a parte na natureza, a voz chama a voz, como tudo o que respira à
luz do dia ama os cantos alternados, os pinguins responderam ao velho com os sons das suas goelas. E a
sua voz era meiga, porque estavam na estação do amor.
E o santo homem, persuadido de que pertenciam a qualquer povo idólatra e aderiam, na sua linguagem,
à fé cristã, convidou–os a receber o batismo.
– Penso – disse–lhes ele – que vos banhais frequentemente. Com efeito, todas as covas destas rochas
estão cheias de água pura e eu vi há pouco, quando me dirigia para a vossa assembléia, alguns de vós
mergulhados nessas banheiras naturais. Ora, a pureza do corpo é a imagem da pureza espiritual.
E ensinou–lhes a origem, a natureza e os efeitos do batismo.
– O batismo – disse–lhes – é Adoção, Renascimento, Regeneração, Iluminação.
E explicou–lhes sucessivamente cada um destes pontos.
Depois, tendo benzido previamente a água que caía das cascatas e recitado os exorcismos, batizou
aqueles que acabava de instruir, derramando na cabeça de cada um deles uma gota de água pura e
pronunciando as palavras consagradas.
E assim batizou as aves durante três dias e três noites.

VI – Uma Assembléia no Paraíso


Quando o batismo dos pinguins foi conhecido no Paraíso, não causou nem alegria nem tristeza, mas
uma extrema surpresa. O próprio Senhor estava embaraçado.
Reuniu uma assembleia de clérigos e doutores e perguntou–lhes se achavam válido aquele batismo.
– É nulo – disse São Patrick.
– É nulo porquê? – perguntou São Gal, que tinha evangelizado a Cornualha e formado o santo homem
Maèl nos trabalhos apostólicos.
– O sacramento do batismo – respondeu São Patrick – é nulo quando é ministrado a aves, como o
sacramento do casamento é nulo quando é ministrado a um eunuco.
Mas São Gal:
– Que relação pretende estabelecer entre o batismo de uma ave e o casamento de um eunuco? Não há
nenhuma. O casamento é, por assim dizer, um sacramento condicional, eventual. O padre abençoa
antecipadamente um acto; é evidente que, se o acto não é consumado, a bênção fica sem efeito. Isto
salta aos olhos. Conheci na terra, na cidade de Antrim, um homem rico chamado Sadoc, que vivia em
concubinato com uma mulher, fê–la mãe de nove filhos. Na velhice, cedendo às minhas repreensões,
consentiu em desposá–la e eu abençoei a sua união. Infelizmente, a avançada idade de Sadoc impediu–o
de consumar o casamento. Pouco tempo depois, perdeu todos os seus bens e Germaine (era o nome da
mulher), não se sentindo com forças para suportar a indigência, pediu a anulação de um casamento que
não tinha realidade. O papa aceitou o seu pedido, porque era justo. Eis quanto ao casamento. Mas o
batismo é conferido sem restrições nem reservas de qualquer espécie. Não há dúvida: foi um
sacramento que os pinguins receberam.
Chamado a dar a sua opinião, o papa São Dâmaso exprimiu–se nestes termos:
– Para saber se um batismo é válido e produzirá as suas consequências, isto é, a santificação, deve–se
considerar quem o ministra, e não quem o recebe. Com efeito, a virtude significante deste sacramento
resulta do acto exterior pelo qual é conferido, sem que o batizado coopere na sua própria santificação
por nenhum acto pessoal; se fosse de modo diferente, não o administraríamos aos recém–nascidos. E
não é necessário, para batizar, preencher nenhuma condição particular; não é necessário estar em estado
de graça; basta ter a intenção de fazer o que faz a Igreja, pronunciar as palavras consagradas e observar
as formas prescritas. Ora, não podemos duvidar de que o venerável Maèl tenha procedido nestas
condições. Portanto, os pinguins estão batizados.
– Acha que sim? – perguntou São Guénolé. – E que julga que é o batismo? O batismo é o processo da
regeneração pelo qual o homem nasce da água e do espírito, porque, tendo entrado na água coberto de
crimes, sai dela neófito, criatura nova, abundante em frutos de justiça; o batismo é o germe da
imortalidade; o batismo é o penhor da ressurreição; o batismo é o enterramento com Cristo na sua morte
e a comunhão à saída do sepulcro. Não é um dom a proporcionar a aves. Raciocinemos, meus padres. O
batismo apaga o pecado original; ora, os pinguins não foram concebidos no pecado; redime todos os
castigos do pecado; ora, os pinguins não pecaram; produz a graça e o dom das virtudes, unindo os
cristãos a Jesus Cristo, como os membros ao chefe, e isto significa que os pinguins não podem adquirir
as virtudes dos confessores, das virgens e das viúvas, receber graças e unir–se a...
São Dâmaso não o deixou acabar:
– Isso prova – disse ele vivamente – que o batismo era inútil; isso não prova que não seja efetivo.
– Mas, nesse caso – replicou São Guénolé –, batizar–se–ia em nome do Pai, do Filho e do Espírito, por
aspersão ou imersão, não só uma ave ou um quadrúpede, mas também um objeto inanimado, uma
estátua, uma mesa, uma cadeira, etc. Esse animal seria cristão; esse ídolo, essa mesa seriam cristãos! É
absurdo!
Santo Agostinho tomou a palavra. Gerou–se um grande silêncio.
– Vou – disse o ardente bispo de Hipona – demonstrar–lhes, por um exemplo, o poder das fórmulas.
Trata–se, é certo, de uma operação diabólica. Mas, se é coisa assente que fórmulas ensinadas pelo Diabo
têm efeito sobre animais privados de inteligência ou mesmo sobre objetos inanimados, como duvidar
ainda que o efeito das fórmulas sacramentais não se estende aos espíritos dos brutos e à matéria inerte?
Eis um exemplo:
"Havia, no meu tempo, na cidade de Madaura, pátria do filósofo Apuleio, uma feiticeira a quem bastava
queimar num tripé, com certas ervas e pronunciando certas palavras, alguns cabelos cortados da cabeça
de um homem para atrair imediatamente esse homem à sua cama. Ora, um dia em que ela queria obter
dessa maneira o amor de um mancebo, queimou, enganada pela sua serva, em vez dos cabelos do
adolescente, pêlos arrancados a um odre de pele de bode, que pendia da loja de um taberneiro. E, à
noite, o odre cheio de vinho saltou através da cidade até à porta da feiticeira. O facto é autêntico. Tanto
nos sacramentos como nos feitiços, é a forma que opera. O efeito de uma fórmula divina não poderia ser
menor, em força e em extensão, do que o efeito de uma fórmula infernal.
Tendo falado desta maneira, o grande Agostinho sentou–se, no meio de aplausos.
Um bem–aventurado, de idade avançada e aspecto melancólico, pediu a palavra. Ninguém o conhecia.
Chamava–se Probus e não estava inscrito no cânone dos santos.
– Que a companhia me queira desculpar – disse ele. – Não tenho auréola e foi sem clamor que ganhei a
beatitude eterna. Mas, depois do que acaba de vos dizer o grande Santo Agostinho, julgo a propósito
contar–vos uma cruel experiência que tive quanto às condições necessárias para a validade de um
sacramento. O bispo de Hipona tem muita razão ao dizer: "Um sacramento depende da forma". A sua
virtude está na forma; o seu vício está na forma. Escutai, confessores e pontífices, a minha lamentável
história. Eu era padre em Roma, durante o principado do imperador Gordiano. Sem me recomendar
como vós por méritos singulares, exercia o sacerdócio com piedade. Servi durante quarenta anos a
Igreja de Santa Modesta, fora de Portas. Os meus hábitos eram regulares. Ia todos os sábados ter com
um taberneiro de nome Barjas, que habitava com as suas ânforas na porta Capena, e comprava–lhe o
vinho que consagrava ao longo da semana. Não deixei, durante esse longo espaço de tempo, de celebrar
todas as manhãs o santíssimo sacrifício da missa. Contudo, não tinha alegria e era com o coração cheio
de angústia que pedia junto aos degraus do altar: "Porque estás triste, alma minha, e porque me
perturbas?".
“Os fiéis que eu convidava para a sagrada mesa davam–me motivos de aflição, porquanto, tendo ainda,
por assim dizer, na língua a hóstia administrada pelas minhas mãos, caíam no pecado, como se o
sacramento não tivesse força nem eficácia sobre eles. Cheguei finalmente ao termo das minhas
provações terrestres e, tendo adormecido no Senhor, acordei na morada dos eleitos. Soube então, pela
boca do anjo que me transportara, que o taberneiro Barjas, da porta Capena, vendia como vinho uma
decocção de raízes e cascas, na qual não entrava uma gota do sumo da uva, e que eu não podia
transmudar essa vil beberagem em sangue, visto que não era vinho e só o vinho se transforma no sangue
de Jesus Cristo; por conseguinte, todas as minhas consagrações eram nulas e, sem sabermos, os meus
fiéis e eu estávamos há quarenta anos privados do sacramento da eucaristia e excomungados de facto. A
esta revelação, fui dominado por um assombro tão grande que ainda hoje o sinto nesta morada de
beatitude. Percorro–a incessantemente em toda a sua extensão sem encontrar um só dos cristãos que
admiti outrora à sagrada mesa na basílica da bem–aventurada Modesta.
"Privados do pão dos anjos, abandonaram–se, sem força, aos vícios mais abomináveis e foram todos
para o Inferno. Apraz–me pensar que o taberneiro Barjas foi condenado às penas eternas. Há nestas
coisas uma lógica digna do autor de toda a lógica. Não obstante, o meu exemplo prova que às vezes é
lamentável que, nos sacramentos, a forma prevaleça sobre o fundo. Pergunto humildemente: a sabedoria
eterna não poderia remediar isso?
– Não – respondeu o Senhor. – O remédio seria pior do que o mal. Se nas regras da salvação, o fundo
prevalecesse sobre a forma, seria a ruína do sacerdócio.
– Ai!, meu Deus – suspirou o humilde Probus –, acreditai na minha triste experiência: enquanto os
vossos sacramentos se reduzirem a fórmulas, a vossa justiça deparará com obstáculos terríveis.
– Sei isso melhor do que tu – replicou o Senhor. – Vejo com o mesmo olhar os problemas actuais, que
são difíceis, e os problemas futuros, que não o serão menos. Assim, posso anunciar–vos que, quando o
Sol tiver girado mais duzentas e quarenta vezes à volta da terra...
– Sublime linguagem! – exclamaram os anjos.
– E digna do Criador do mundo – responderam os pontífices.
– É – continuou o Senhor – uma maneira de dizer em relação com a minha velha cosmogonia e da qual
não me desfarei sem que isso afecte a minha imutabilidade...
"Portanto, quando o Sol tiver girado mais duzentas e quarenta vezes à volta da terra, não haverá em
Roma um único clérigo que saiba latim. Ao cantar as litanias nas igrejas, invocar–se–ão os santos
Orichel, Roguei e Totichel, que são, como sabeis, diabos, e não anjos. Muitos ladrões, desejando
comungar, mas receando ser obrigados, para obterem o perdão, a entregar à Igreja os objetos furtados,
confessar–se–ão a padres errantes, que, não sabendo nem italiano nem latim e falando apenas o dialeto
da sua aldeia, irão, pelas cidades e vilas, vender a vil preço, muitas vezes por uma garrafa de vinho, a
remissão dos pecados. Naturalmente, não teremos de nos preocupar com essas absolvições a que faltará
a contrição para serem válidas; mas poderá suceder que os batismos nos causem também embaraços. Os
padres tornar–se–ão a tal ponto ignorantes que batizarão as crianças in nomine pátria et filia et spiríta
sancta, como Louis de Potter sentirá prazer em relatá–lo no tomo III da sua Histoire philosophique,
politique et critique du christianisme. Será uma questão árdua decidir quanto à validade de tais
batismos; porque, enfim, embora eu me acomode para os meus textos sagrados a um grego menos
elegante do que o de Platão e a um latim que não ciceronize muito, não poderei admitir como fórmula
litúrgica uma pura algaravia. E treme–se, quando se pensa que se irá proceder com esta inexatidão sobre
milhões de recém–nascidos. Mas voltemos aos nossos pinguins.
– As vossas divinas palavras, Senhor, já nos levaram a isso – disse São Gal. – Nos sinais da religião e
nas regras da salvação, a forma prevalece necessariamente sobre o fundo e a validade de um sacramento
depende unicamente da sua forma. Toda a questão está em saber se sim ou não os pinguins foram
baptizados segundo as formas.
Ora, a resposta não deixa dúvidas.
Os padres e os doutores chegaram a acordo e a sua perplexidade tornou–se ainda mais cruel.
– O estado de cristão – disse São Corneille – tem graves inconvenientes para um pinguim. Temos assim
aves que se vêem obrigadas a tratar da sua salvação. Como o conseguirão? Os costumes das aves são,
em muitos pontos, contrários aos mandamentos da Igreja. E os pinguins não têm motivo para mudar.
Quero dizer que não são suficientemente racionais para o fazerem.
– Não podem – disse o Senhor. – Os meus decretos não lho permitem.
– Todavia – prosseguiu São Corneille –, pela virtude do batismo, as suas ações deixam de ser
indiferentes. Doravante serão boas ou más, suscetíveis de mérito ou demérito.
– É assim mesmo que a questão se põe – disse o Senhor.
– Só vejo uma solução – disse Santo Agostinho. – Os pinguins irão para o Inferno.
– Mas não têm alma – observou Santo Ireneu.
– É lamentável – suspirou Tertuliano.
– Sem dúvida – apoiou São Gal. – E reconheço que o santo homem Maèl, meu discípulo, criou, com o
seu zelo cego, grandes dificuldades teológicas ao Espírito Santo e provocou a desordem na economia
dos mistérios.
– É um velho tonto – exclamou, encolhendo os ombros, Santo Adjutor de Alsácia.
Mas o Senhor, lançando a Adjutor um olhar de censura, disse:
– Permita–me: o santo homem Maèl não tem, como você, meu bem–aventurado, a ciência infusa. Não
me vê. É um velho cheio de enfermidades; está meio surdo e quase cego. É demasiado severo para com
ele. Contudo, reconheço que a situação é embaraçosa.
– Não é, felizmente, senão uma desordem passageira – disse Santo Ireneu. – Os pinguins estão
batizados, os seus ovos não o estarão e o mal acabará com a geração atual.
– Não fale assim, meu filho Ireneu – disse o Senhor. –As regras que os físicos estabelecem na terra
sofrem exceções, porque são imperfeitas e não se aplicam exatamente à natureza. Mas as regras que eu
estabeleço são perfeitas e não sofrem qualquer exceção. É preciso decidir da sorte dos pinguins
batizados, sem infringir nenhuma lei divina e de acordo com o Decálogo, assim como com os
mandamentos da Igreja.
– Senhor – disse São Gregório Nazianzeno –, dai–lhes uma alma imortal.
–Ai!, Senhor, que fariam dela? – suspirou Lactando. – Não têm uma voz harmoniosa para cantar os
vossos louvores. Não saberiam celebrar os vossos mistérios.
– Sem dúvida – disse Santo Agostinho –; não observarão a lei divina.
– Não o poderão fazer – disse o Senhor.
– Não o poderão fazer – repetiu Santo Agostinho, – E se, na Vossa sabedoria, Senhor, lhes infundirdes
uma alma imortal, arderão eternamente no Inferno, em virtude dos vossos adoráveis decretos. Será
assim restabelecida a ordem augusta, perturbada por esse velho Câmbrico.
– Propões–me, filho de Mônica, uma solução correta – disse o Senhor – e que está de acordo com a
minha sabedoria. Mas não satisfaz a minha clemência. E, embora imutável por essência, à medida que
perduro vou–me inclinando mais para a brandura. Esta mudança de caráter é sensível a quem lê os meus
dois Testamentos.
Como a discussão se prolongasse sem trazer muita luz e os bem–aventurados se mostrassem inclinados
a repetir sempre a mesma coisa, foi decidido consultar Santa Catarina de Alexandria. Era o que se fazia
geralmente nos casos difíceis. Santa Catarina tinha confundido, na terra, cinquenta doutores muito
sapientes. Conhecia a filosofia de Platão, assim como as Santas Escrituras, e não lhe faltava retórica.

VII – Uma Assembléia no Paraíso (Continuação
e Fim)


Santa Catarina dirigiu–se para a assembléia, com a cabeça cingida por uma coroa de esmeraldas, safiras
e pérolas e envergando um vestido de fazenda de ouro.
Levava ao lado uma roda chamejante, imagem daquela cujos clamores tinham impressionado os seus
perseguidores. Tendo–a o Senhor convidado a falar, exprimiu–se nestes termos: – Senhor, para resolver
o problema que vos dignais apresentar–me, não estudarei os costumes dos animais em geral nem os das
aves em particular. Apenas farei notar aos doutores, confessores e pontífices, reunidos nesta assembléia,
que a separação entre o homem e o animal não é completa, visto que há monstros que procedem de um
e outro ao mesmo tempo: Tais são as quimeras, metade ninfas e metade serpentes, as três górgonas, os
caprípedes; tais são as cilas e as sereias que cantam no mar. Têm busto de mulher e cauda de peixe. Tais
são também os centauros, homens até à cintura e cavalos quanto ao resto. Nobre raça de monstros. Um
deles, como não ignorais, conseguiu, guiado unicamente pelas luzes da razão, chegar à beatitude eterna,
e vedes às vezes, nas nuvens douradas, empinar–se o seu peito heróico. O centauro Quíron mereceu,
pelos seus trabalhos terrestres, compartilhar a morada dos bem–aventurados: foi o educador de Aquiles;
e este jovem herói, ao sair das mãos do centauro, viveu dois anos, vestido à maneira de uma jovem
virgem, entre as filhas do rei Licomedes. Compartilhou os seus jogos e a sua cama sem as deixar
suspeitar um momento de que não era uma jovem virgem como elas. Quíron, que o havia nutrido de tão
bons costumes, é, com o imperador Trajano, o único justo que obteve a glória celeste observando a lei
natural. E, no entanto, era apenas meio homem.
"Julgo ter provado por este exemplo que basta possuir algumas partes de homem, contanto que sejam
nobres, para atingir a beatitude eterna. E o que o centauro Quíron conseguiu obter sem ser regenerado
pelo batismo, como não o mereceriam pinguins, depois de terem sido batizados, se se tornassem metade
pinguins e metade homens? É por isso que vos suplico, Senhor, que concedais aos pinguins do velho
Maèl uma cabeça e um busto humanos, a fim de que possam louvar–vos dignamente, e lhe
proporcioneis uma alma imortal, mas pequena.
Assim falou Catarina, e os padres, os doutores, os confessores, os pontífices, soltaram um murmúrio de
aprovação.
Mas Santo António, eremita, levantou–se e, estendendo para o Todo–Poderoso dois braços nodosos e
vermelhos, clamou:
– Não façais isso, Senhor meu Deus! Em nome do Vosso Santo Paracleto, não façais isso!
Falava com tanta veemência que a longa barba branca se lhe agitava no queixo como a cevadeira vazia
na boca de um cavalo esfomeado.
– Senhor, não façais isso. Aves de cabeça humana já existem. Santa Catarina não imaginou nada de
novo.
– A imaginação reúne e compara; nunca cria – replicou secamente Santa Catarina.
– ... Isso já existe – prosseguiu Santo António, que não queria atender a nada. – Chamam–se as harpias
e são os mais incongruentes animais da criação. Um dia, no deserto, recebi, para cear, São Paulo, abade,
e pus a mesa à entrada da minha cabana, por baixo de um velho sicômoro. As harpias decidiram ir
sentar–se nos ramos; ensurdeceram–nos com os seus gritos agudos e defecaram sobre todos os
alimentos. A importunidade desses monstros impediu–me de ouvir os ensinamentos de São Paulo,
abade, e comemos excremento de ave com o nosso pão e as nossas alfaces. Como se pode acreditar que
as harpias vos louvarão dignamente, Senhor?
"Certamente, nas minhas tentações, vi muitos seres híbridos, não só mulheres–serpentes e mulheres–
peixes, mas seres compostos ainda com mais incoerência, como homens cujo corpo era feito de uma
panela, um sino, um relógio, um aparador cheio de comida e louça ou mesmo uma casa com portas e
janelas, pelas quais se viam pessoas ocupadas em trabalhos domésticos. A eternidade não chegaria se
tivesse de descrever todos os monstros que me assaltaram na minha solidão, desde as baleias
aparelhadas como navios até à chuva de bestíolas vermelhas que transformavam em sangue a água da
minha fonte. Mas nenhum era tão nojento como essas harpias que queimaram com os seus excrementos
as folhas do meu belo sicômoro.
– As harpias – observou Lactando – são monstros fêmeas com corpo de ave. Têm de uma mulher a
cabeça e o peito. A sua indiscrição, impudência e obscenidade provêm da sua natureza feminina, como
o demonstrou o poeta Virgílio na Eneida. Participam da maldição de Eva.
– Deixemos a maldição de Eva – disse o Senhor. – A segunda Eva resgatou a primeira.
Paulo Orósio, autor de uma história universal que Bossuet imitaria mais tarde, levantou–se e suplicou ao
Senhor:
– Senhor, ouvi a minha prece e a de António. Não fabriqueis mais monstros à semelhança dos
centauros, sereias e faunos, caros aos Gregos ajuntadores de fábulas. Não tirareis disso qualquer
satisfação. Essas espécies de monstros têm inclinações pagãs e a sua dupla natureza não os predispõe à
pureza dos costumes.
O suave Lactando replicou nestes termos:
–Aquele que acaba de falar é certamente o melhor historiador que existe no Paraíso, visto que Heródoto,
Tucídides, Políbio, Tito Lívio, Veleio Patérculo, Cornélio Nepos, Suetónio, Manethou, Diodoro da
Sicília, Díon Cássio, Lamprídio, são privados da vista de Deus, e Tácito sofre no Inferno os tormentos
devidos aos blasfemos. Mas parece que Paulo Orósio está longe de conhecer tão bem os céus como a
terra. Com efeito, não pensa que os anjos, que derivam do homem e da ave, são a própria pureza.
– Estamos a divagar – disse o Eterno. – Que vêm fazer aqui esses centauros, harpias e anjos? Trata–se
de pinguins.
– Assim é, Senhor. Trata–se de pinguins – declarou o decano dos cinquenta doutores confundidos na sua
vida mortal pela virgem de Alexandria – e ouso exprimir a opinião de que, para fazer cessar o escândalo
que inquieta os céus, é preciso, como propõe Santa Catarina, que nos confundiu, conceder aos pinguins
do velho Maèl a metade de um corpo humano, com uma alma eterna proporcional a essa metade.
A estas palavras, ergueu–se na assembléia um grande rumor de conversas particulares e disputas
doutorais. Os padres gregos contestavam com os latinos veementemente a substância, a natureza e as
dimensões da alma que convinha dar aos pinguins.
– Confessores e pontífices – gritou o Senhor –, não imiteis os conclaves e os sínodos da terra. E não
transporteis para a Igreja triunfante as violências que perturbam a Igreja militante. Com efeito, a
verdade: em todos os concílios, realizados sob a inspiração do meu Espírito, na Europa, na Ásia, na
África, os padres arrancaram a barba e os olhos aos padres. Todavia, foram infalíveis, porque eu estava
com eles.
Restabelecida a ordem, o velho Hermas levantou–se e pronunciou estas palavras:
– Louvar–vos–ei, Senhor, por terdes feito nascer Safira, minha mãe, entre o vosso povo, no dia em que
o orvalho do céu refrescava a terra no trabalho do seu Salvador. E louvar–vos–ei, Senhor, por me terdes
permitido ver com os meus olhos mortais os apóstolos do vosso divino Filho. E falarei nesta ilustre
assembleia porque vós quisestes que a verdade saísse da boca dos humildes, e direi: transformai esses
pinguins em homens. É a única determinação adequada à vossa justiça e à vossa misericórdia.
Vários doutores pediam a palavra; outros tomavam–na. Ninguém escutava e todos os confessores
agitavam tumultuosamente as suas palmas e coroas.
O Senhor, com um gesto da mão direita, serenou as querelas dos seus eleitos:
– Não deliberemos mais – disse ele. – A opinião expressa pelo bom velho Hermas é a única conforme
aos meus desígnios eternos. Essas aves serão transformadas em homens. Prevejo vários inconvenientes.
Muitos desses homens praticarão actos condenáveis que não cometeriam como pinguins. Certamente, a
sua sorte, devido a esta transformação, será muito menos invejável do que seria sem o batismo e a
incorporação na família de Abraão. Mas é preciso que a minha presciência não interfira no seu livre–
arbítrio. A fim de não causar dano à liberdade humana, ignoro o que sei, volto a pôr sobre os olhos os
véus que rasguei e, na minha cega clarividência, deixo–me surpreender pelo que previ.
E logo, chamando o arcanjo Rafael, disse–lhe:
– Vai procurar o santo homem Maèl; informa–o do seu equívoco e diz–lhe que, em meu Nome,
transforme esses pinguins em homens.

VIII – Metamorfose dos Pinguins


Tendo o arcanjo descido à ilha dos pinguins, encontrou o santo homem adormecido na cova de uma
rocha, no meio dos seus novos discípulos. Pôs–lhe a mão no ombro e, acordando–o, disse, numa voz
suave:
– Maèl, não temas!
E o santo homem, deslumbrado por uma luz viva, embriagado por um delicioso odor, reconheceu o anjo
do Senhor e prosternou–se com a fronte contra a terra.
E o anjo disse ainda:
– Maèl, conhece o teu erro: julgando batizar filhos de Adão, batizaste aves; e eis que por tua causa
pinguins entraram na Igreja de Deus.
A estas palavras, o velho ficou assombrado.
E o anjo continuou:
– Levanta–te, Maèl, arma–te com o Nome poderoso do Senhor e diz a essas aves: "Sede homens!".
E o santo homem Maèl, tendo chorado e rezado, armou–se com o Nome poderoso do Senhor e disse às
aves:
– Sede homens!
Imediatamente os pinguins se transformaram. A sua fronte alargou–se e a cabeça arredondou–se em
forma de zimbório, como Santa Maria Rotunda na cidade de Roma. Os seus olhos ovais abriram–se
mais para o universo; um nariz carnudo preencheu as duas fendas das suas narinas; o bico transformou–
se em boca e dessa boca saiu a palavra; o pescoço diminuiu e engrossou; as asas tornaram–se braços e
as patas pernas; uma alma inquieta habitou–lhes o peito.
Contudo, mantinham alguns vestígios da primitiva natureza. Tinham propensão para olhar de lado;
balançavam–se nas coxas demasiado curtas; o corpo continuava coberto de uma fina penugem.
E Maèl deu graças ao Senhor por ter incorporado esses pinguins na família de Abraão.
Mas afligiu–se à ideia de que, em breve, deixaria aquela ilha para nunca mais voltar e que, longe dele,
talvez a fé dos pinguins perecesse por falta de cuidados, como uma planta demasiado nova e tenra. E
lembrou–se de transportar a sua ilha para as costas da Armórica.
"Ignoro os desígnios da eterna Sabedoria", disse para consigo. "Mas, se Deus quer que a ilha seja
transportada, quem poderá impedir que o seja?"
E o santo homem teceu com o linho da sua estola uma corda muito fina, com quarenta pés de
comprimento. Atou uma ponta da corda em redor do cume de uma rocha que furava a areia da praia e,
segurando na mão a outra ponta da corda, entrou na pia de pedra.
A pia deslizou pelo mar e rebocou a ilha dos Pinguins. Após nove dias de navegação, atracou felizmente
às costas dos Bretões, levando a ilha consigo.

Livro II – OS TEMPOS ANTIGOS

I – Os Primeiros Véus


Nesse dia, São Maèl sentou–se à beira do oceano, numa pedra que lhe pareceu ardente. Pensou que o sol
a tinha aquecido e deu graças ao Criador do mundo, não sabendo que o Diabo acabava de descansar ali.
O apóstolo esperava os monges de Yvern, encarregados de trazerem uma carga de tecidos e peles para
vestir os habitantes da ilha de Alça.
Em breve viu desembarcar um religioso de nome Magis, que transportava uma arca às costas. Este
religioso gozava de grande reputação de santidade.
Quando se aproximou do velho, pôs a arca no chão e disse, limpando a testa com as costas da mão:
– Ora bem, meu padre, quer vestir estes Pinguins?
– Nada é mais necessário, meu filho – respondeu o ancião. – Desde que foram incorporados na família
de Abraão, estes Pinguins participam da maldição de Eva e sabem que estão nus, o que antes
ignoravam. E é tempo de os vestir, pois começam a perder a penugem que lhes restava depois da sua
metamorfose.
– É verdade – disse Magis, passeando o olhar pela praia, onde se viam os Pinguins ocupados em pescar
camarões, apanhar mexilhões, a cantar ou a dormir –, estão nus. Mas não acha, meu padre, que seria
melhor deixá–los nus? Para que vesti–los? Assim que começarem a usar roupas e ficarem sujeitos à lei
moral, sentirão um orgulho imenso, uma baixa hipocrisia e uma crueldade supérflua.
– É possível, meu filho – suspirou o ancião –, que concebas tão mal os efeitos da lei moral a que os
próprios gentios se submetem?
– A lei moral – replicou Magis – obriga os homens que são animais a viverem diferentemente dos
animais, o que os contraria, sem dúvida, mas também os lisonjeia e tranquiliza; e, como são orgulhosos,
cobardes e ávidos de alegria, sujeitam–se de boa vontade a submissões de que tiram vaidade e nas quais
fundamentam não só a segurança presente, mas também a esperança da felicidade futura. É este o
princípio de toda a moral... Mas não divaguemos. Os meus companheiros vão descarregar nesta ilha o
seu fornecimento de tecidos e peles. Pense, meu padre, enquanto ainda é tempo! É uma
responsabilidade vestir os Pinguins. Presentemente, quando um pinguim deseja uma pinguina, sabe
precisamente o que deseja e os seus apetecimentos são limitados por um conhecimento exato do objeto
que cobiça. Neste momento, na praia, dois ou três casais de pinguins fazem amor ao sol. Veja com que
simplicidade Ninguém presta atenção e mesmo os que o fazem não parecem excessivamente ocupados
com isso. Mas, quando as pinguinas se cobrirem de véus, o pinguim não compreenderá tão claramente o
que o atrai para elas. Os seus desejos indeterminados expandir–se–ão por toda a espécie de sonhos e
ilusões; finalmente, meu padre, conhecerá o amor e as suas loucas dores. E, entretanto, as Pinguinas,
baixando os olhos e mordendo os lábios, dar–se–ão ares de quem esconde sob os véus um tesouro!...
Lamentável!
"O mal será tolerável enquanto estes povos continuarem a ser rudes e pobres; mas espere um milhar de
anos e verá com que terríveis armas terá armado, meu padre, as filhas de Alça. Se mo permite, posso
dar–lhe uma ideia antecipada. Tenho algumas roupas nesta arca. Peguemos ao acaso numa dessas
pinguinas que os pinguins parecem desdenhar e vistamo–la o melhor que pudermos.
"Eis precisamente uma que vem na nossa direção. Não é nem mais bonita nem mais feia do que as
outras; é nova. Ninguém olha para ela. Caminha indolentemente pela falésia, com um dedo no nariz e
coçando as costas até às ancas. Não lhe escapa, meu padre, que ela tem os ombros estreitos, os seios
caídos, o ventre inchado e amarelo, as pernas curtas. Os joelhos, que tendem para o vermelho, rangem a
cada passo que ela dá e parece que tem, em cada articulação das pernas, uma pequena cabeça de
macaco. Os pés, inchados e cheios de veias, prendem–se à rocha com quatro dedos em forma de
ganchos, enquanto os dedos grandes se erguem do caminho como as cabeças de duas serpentes plenas
de prudência. Concentra–se na marcha; todos os seus músculos estão interessados nesse trabalho e,
porque os vemos funcionar a descoberto, ficamos com a ideia de que se trata mais de uma máquina de
andar que de uma máquina de fazer amor, embora ela seja visivelmente uma e outra e contenha em si
mesma vários outros mecanismos. Ora bem, venerável apóstolo, veja o que se vai passar.
A estas palavras, o monge Magis alcança com três saltos a mulher pinguina, apanha–a, leva–a encolhida
debaixo do braço, de cabeleira rastejante, e atira–a, apavorada, aos pés do santo homem Maèl.
E, enquanto ela chora e suplica que não lhe faça mal, retira da arca um par de sandálias e ordena–lhe
que as calce.
– Apertados nos cordões de lã, os seus pés – observou ele ao velho – parecerão mais pequenos. As
solas, com dois dedos de altura, alongar–lhe–ão elegantemente as pernas e o peso que elas suportam
será valorizado.
Enquanto atava as sandálias, a pinguina lançou para a arca aberta um olhar curioso e, vendo que estava
cheia de jóias e adornos, sorriu por entre as lágrimas.
O monge puxou–lhe os cabelos para a nuca e coroou–os com um chapéu de flores. Rodeou–lhe os
punhos com pulseiras de ouro e, obrigando–a a pôr–se de pé, passou–lhe entre os seios e o ventre uma
faixa de linho, alegando que o peito adquiriria uma nova altivez e os flancos se arredondariam, para
glória das ancas.
Com a ajuda de alfinetes que tirava um a um da boca, ajustava–lhe a faixa:
– Pode apertar mais – disse a pinguina.
Quando conseguiu, com muita aplicação e cuidados, conter assim as partes moles do busto, cobriu todo
o corpo com uma túnica cor–de–rosa, que lhe vincava languidamente as linhas.
– Assenta bem? – perguntou a pinguina.
E, inclinando o tronco, com a cabeça de lado e o queixo no ombro, observava com olhar atento o seu
novo vestuário.
Tendo–lhe Magis perguntado se não achava que o vestido estava um pouco comprido, respondeu com
firmeza que não, que o altearia.
De seguida, puxando com a mão esquerda a saia por detrás, apertou–a obliquamente por cima dos
flancos, tomando a precaução de descobrir apenas os calcanhares. Depois, afastou–se em passadas
lentas, balançando as ancas.
Não voltava a cabeça; mas, ao passar perto do riacho, mirou–se nele pelo canto do olho.
Um pinguim que a encontrou por acaso, parou surpreendido, e, arrepiando caminho, pôs–se a segui–la.
Quando caminhava pela praia, pinguins que voltavam da pesca aproximaram–se dela e, tendo–a
contemplado, seguiram–na também. Os que estavam deitados na areia levantaram–se e juntaram–se aos
outros.
Sem interrupção, à sua aproximação, desciam dos atalhos da montanha, saíam das fendas das rochas,
emergiam do fundo das águas outros pinguins que engrossavam o cortejo.
E todos, homens maduros de ombros robustos, de peito peludo, ágeis adolescentes, velhos que sacudiam
as numerosas pregas da sua carne rosada, de pêlos brancos, ou arrastavam as pernas mais magras e
secas do que o cajado de zimbro que constituía uma terceira, comprimiam–se, ofegantes, e exalavam
um odor acre de respirações roucas. Contudo, ela continuava tranquila e parecia não ver nada.
– Meu padre – disse Magis –, veja como todos eles caminham de nariz apontado para o centro esférico
dessa jovem donzela, agora que esse centro está forrado de cor–de–rosa. A esfera inspira as meditações
dos geômetras pelo número das suas propriedades; quando deriva da natureza física e viva, adquire
qualidades novas. E, para que o interesse dessa figura fosse plenamente revelado aos pinguins, foi
necessário que, deixando de a ver distintamente com os olhos, eles fossem levados a representá–la em
espírito. Eu próprio sinto–me, neste momento, irresistivelmente atraído para essa pinguina. É que a saia
restituiu–lhe o eu essencial e, simplificando–o com magnificência, reveste–o de um carácter sintético e
geral e só deixa aparecer a sua ideia pura, o princípio divino, que sei eu! Mas parece–me que, se a
abraçasse, teria nas minhas mãos o firmamento das volúpias humanas. É verdade que o pudor comunica
às mulheres um atractivo irresistível. A minha perturbação é tão grande que em vão tentaria ocultá–la.
Disse e, arregaçando horrivelmente a sotaina, corre para a cauda dos pinguins, empurra–os, ultrapassa–
os, calca–os aos pés, esmaga–os, alcança a filha de Alça, agarra–a a plenas mãos pelo globo rosado que
um povo inteiro cobre de olhares e desejos e que subitamente desaparece, nos braços do monge, numa
gruta marinha.
Então os Pinguins julgaram que o Sol se tinha apagado. E o santo homem Maèl soube que o Diabo tinha
tomado o aspecto do monge Magis para cobrir de véus a filha de Alça. Estava perturbado na carne e a
sua alma estava triste. Voltando a passos lentos para o seu retiro, viu pequenas pinguinas de seis a sete
anos, de peito chato e coxas magras, que tinham feito cintas de algas e sargaços e percorriam a praia,
observando se os homens não as seguiam.

II – Os Primeiros Véus (Continuação e Fim)


O santo homem Maèl sentia uma profunda aflição por ver que os primeiros véus dados a uma filha de
Alça tinham traído o pudor pinguim, em vez de o servir. Nem por isso deixou de persistir no seu
propósito de ofertar roupas aos habitantes da ilha milagrosa. Tendo–os convocado para a praia,
distribuiu–lhes o vestuário que os religiosos de Yvern haviam transportado. Os pinguins receberam
túnicas curtas e calções, as pinguinas vestidos compridos.
Mas não faltou muito para que esses vestidos causassem o efeito que tinha causado o primeiro. Não
eram tão bonitos, o corte era rude e sem arte, e pouca atenção lhes era dispensada, visto que todas as
mulheres os usavam. Como preparavam as refeições e trabalhavam nos campos, não levou muito tempo
que ostentassem corpetes sebosos e saiotes sórdidos. Os pinguins massacravam com trabalho as suas
infelizes companheiras, que se assemelhavam a animais de carga. Ignoravam as perturbações do
coração e a desordem das paixões. Os seus costumes eram inocentes. O incesto, muito frequente,
revestia–se de uma simplicidade rústica e, se a embriaguez impelia um mancebo a violar a avó, no dia
seguinte já não pensava nisso.

III – A Delimitação dos Campos e a Origem da
Propriedade


A ilha não conservava o seu áspero aspecto de antigamente, quando, no meio dos gelos flutuantes,
abrigava num anfiteatro de rochas um povo de aves. O seu pico coberto de neve tinha–se abaixado e
subsistia apenas uma colina, do alto da qual se descobriam as costas da Armórica, cobertas por uma
bruma eterna, e o oceano semeado de sombrios escolhos, semelhantes a monstros que se erguiam do
abismo.
As suas costas eram agora muito extensas e profundamente recortadas e o seu aspecto lembrava uma
folha de amoreira. Cobriu–se subitamente de uma erva salgada, agradável para os rebanhos, de figueiras
antigas e carvalhos augustos. O facto é atestado por Beda, o Venerável, e vários outros autores dignos
de fé.
Ao norte, a costa formava uma baía profunda, que veio a tornar–se um dos mais ilustres portos do
universo. A leste, ao longo de uma costa rochosa batida por um mar espumante, estendia–se uma
charneca deserta e perfumada. Era a praia das Sombras, onde os habitantes da ilha nunca se
aventuravam com medo das serpentes aninhadas nas concavidades dos rochedos e receio de aí
encontrarem as almas dos mortos, semelhantes a chamas lívidas. Para sul, pomares e bosques ladeavam
a tépida baía dos Mergulhões. Nesta praia afortunada, o velho Maèl construiu uma igreja e um mosteiro
de madeira. A oeste, dois ribeiros, o Clange e a Surelle, regavam os férteis vales das Dalles e dos
Dombes.

Ora, numa manhã de Outono, o bem–aventurado Maèl, que passeava pelo vale do Clange na companhia
de um religioso de Yvern, de nome Bulloch, viu passar pelos caminhos grupos de homens rudes,
carregados de pedras. Ao mesmo tempo, ouviu de todos os lados gritos e lamentos que subiam do vale
para o céu tranquilo.
E disse a Bulloch:
– Observo com tristeza, meu filho, que os habitantes desta ilha, desde que se tornaram homens, agem
com menos sabedoria do que dantes. Quando eram aves, só discutiam na estação dos amores. E agora
discutem a todo o momento; provocam discussões tanto no Verão como no Inverno. Como estão longe
da serena majestade que, espalhando–se pela assembléia dos Pinguins, a tornava semelhante ao senado
de uma sábia república!
"Olha, meu filho Bulloch, para as bandas da Surelle. Há precisamente no fresco vale uma dúzia de
homens pinguins, ocupados em espancar–se uns aos outros com enxadas e picaretas, quando seria
melhor que trabalhassem a terra. Contudo, mais cruéis do que os homens, as mulheres rasgam com as
unhas o rosto das inimigas. Ai!, meu filho Bulloch, porque se massacram assim?
– Por espírito de associação, meu padre, e previsão do futuro – respondeu Bulloch. – É que o homem é
por essência previdente e sociável. É este o seu caráter. Não se pode conceber sem uma certa
apropriação das coisas. Estes Pinguins que vedes, mestre, apropriam–se das terras.
– Não podiam apropriar–se delas com menos violência? – perguntou o ancião. – Enquanto combatem,
trocam injúrias e ameaças. Não pensam as palavras. São irritadas, a julgar pelo tom.
– Acusam–se reciprocamente de roubo e usurpação – respondeu Bulloch. – É esse o sentido geral dos
seus discursos.
Nesse momento, o santo homem Maèl, juntando as mãos, soltou um grande suspiro:
– Não vês, meu filho, aquele furioso que corta com os dentes o nariz do adversário aterrado e aquele
outro que esmaga a cabeça de uma mulher com uma enorme pedra?
– Vejo–os – respondeu Bulloch. – Criam o direito; fundam a propriedade; estabelecem os princípios da
civilização, as bases das sociedades e os alicerces do Estado.
– Como assim? – inquiriu o velho Maèl.
– Delimitando os seus campos. É a origem de toda a polícia. Os seus Pinguins, ó mestre, desempenham
a mais augusta das funções. A sua obra será consagrada através dos séculos pelos legistas, protegida e
confirmada pelos magistrados.
Enquanto o monge Bulloch pronunciava estas palavras, um grande pinguim de pele branca, com pêlos
ruivos, descia até ao vale com um tronco de árvore às costas. Aproximando–se de um pequeno pinguim,
todo queimado pelo sol, que regava as suas alfaces, gritou–lhe:
– O teu campo é meu!
E, tendo proferido esta prepotente frase, bateu com a sua moca na cabeça do pequeno pinguim, que caiu
morto na terra cultivada pelas suas mãos.
A este espetáculo, o santo homem Maèl estremeceu da cabeça aos pés e verteu abundantes lágrimas.
E, numa voz abafada pelo horror e o medo, dirigiu ao Céu esta prece: "Meu Deus, meu Senhor, ó tu, que
recebeste os sacrifícios do jovem Abel, tu, que amaldiçoaste Caim, vinga, Senhor, este inocente pinguim
imolado no seu campo e faz sentir ao assassino o peso do teu braço. Há crime mais odioso, há mais
grave ofensa à tua justiça, ó Senhor, do que este assassínio e este roubo?
– Notai, meu padre – disse Bulloch com suavidade –, que aquilo a que chamais o assassínio e o roubo é,
com efeito, a guerra e a conquista, fundamentos sagrados dos impérios e fontes de todas as virtudes e de
todas as grandezas humanas. Considerai sobretudo que, ao condenardes o grande pinguim, atacais a
propriedade na sua origem e no seu princípio. Não me será difícil demonstrá–lo. Cultivar a terra é uma
coisa, possuir a terra é outra. E estas duas coisas não se devem confundir. Em matéria de propriedade, o
direito do primeiro ocupante é incerto e mal assente. O direito de conquista, pelo contrário, repousa em
bases sólidas. E é o único respeitável, porque é o único que se faz respeitar. A propriedade tem como
única e gloriosa origem a força. Nasce e mantém–se pela força. Nisto é augusta e só cede a uma força
maior. Por isso é justo dizer que quem possui é nobre. E esse grande homem ruivo, ao atacar um
agricultor para lhe tirar o campo, acaba de fundar no mesmo instante uma mui nobre casa nesta terra.
Quero felicitá–lo por isso.
Tendo falado assim, Bulloch aproximou–se do grande pinguim, que, de pé junto do rego ensanguentado,
se apoiava à sua moca. E, inclinando–se até ao chão, disse–lhe:
– Senhor Greatauk, príncipe muito temido, venho prestar–vos homenagem como ao fundador de um
poder legítimo e de uma riqueza hereditária. Enterrado no vosso campo, o crânio do vil pinguim por vós
abatido atestará para sempre os direitos sagrados da vossa posteridade sobre esta terra por vós
enobrecida. Felizes os vossos filhos e os filhos dos vossos filhos! Serão Greatauk, duques do Skull, e
dominarão na ilha de Alça.
Depois, erguendo a voz e voltando–se para o santo velho Maèl:
– Meu padre, abençoai Greatauk, pois todo o poder vem de Deus.
Maèl permanecia imóvel e mudo, de olhos levantados para o céu: experimentava uma dolorosa
incerteza em julgar a doutrina do monge Bulloch. Contudo, essa doutrina é que devia prevalecer nas
épocas de alta civilização. Bulloch pode ser considerado o criador do direito civil na Pinguínia.
IV – A Primeira Assembléia das Cortes da
Pinguínia


– Meu filho Bulloch – disse o velho Maèl –, devemos proceder ao recenseamento dos Pinguins e
inscrever o nome de cada um deles num livro.
– Nada mais urgente – respondeu Bulloch. – Não pode haver boa polícia sem isso.
Imediatamente, o apóstolo, com o concurso de doze religiosos, mandou proceder ao recenseamento do
povo. E o velho Maèl disse em seguida:
– Agora que temos o registo de todos os habitantes, convém, meu filho Bulloch, lançar um imposto
justo, a fim de ocorrer às despesas públicas e à conservação da abadia. Cada um deve contribuir
segundo os seus meios. Por isso, meu filho, convoca os Antigos de Alça e, de acordo com eles,
estabeleceremos o imposto.
Os Antigos, tendo sido convocados, reuniram–se, em número de trinta, no pátio do mosteiro de
madeira, debaixo do grande sicômoro. Foram as primeiras Cortes da Pinguínia.
Três quartas partes eram constituídas por grandes lavradores da Surelle e do Clange. Greatauk, como o
mais nobre dos Pinguins, sentou–se na pedra mais alta.
O venerável Maèl instalou–se no meio dos seus religiosos e pronunciou estas palavras:
– Meus filhos, o Senhor dá e retira as riquezas aos homens, quando lhe apraz. Ora, reuni–vos para
lançar sobre o povo uma contribuição, a fim de ocorrer às despesas públicas e ao sustento dos
religiosos. Acho que estas contribuições devem ser proporcionais à riqueza de cada um. Portanto,
aquele que tem cem bois pagará dez; o que tem dez pagará um.
Quando o santo homem acabou de falar, Morio, agricultor em Anis–sur–Clange, um dos homens mais
ricos entre os Pinguins, levantou–se e disse:
– Ó Maèl, meu padre, acho que é justo que cada um contribua para as despesas públicas e os gastos da
Igreja. No que me diz respeito, estou disposto a renunciar a tudo quanto possuo no interesse dos meus
irmãos pinguins e, se necessário, até daria alegremente a camisa. Todos os Antigos do povo estão
prontos, como eu, a fazer o sacrifício dos seus bens; e ninguém duvidará da sua dedicação absoluta ao
país e à religião. Portanto, deve–se considerar unicamente o interesse público e fazer o que ele ordena.
Ora, o que ele ordena, ó meu padre, o que ele exige, é que não se peça muito àqueles que têm muito;
porque então os ricos seriam menos ricos e os pobres mais pobres. Os pobres vivem da fortuna dos
ricos; é por isso que essa fortuna é sagrada. Não lhe toqueis: seria perversidade gratuita. Não tirareis
grande proveito do que arrebatardes aos ricos, dado que não são muito numerosos; e privar–vos–eis,
pelo contrário, de todos os recursos, mergulhando o país na miséria. Ao passo que, se pedirdes um
pouco de ajuda a cada habitante, sem olhar à sua fortuna, recolhereis o suficiente para as necessidades
públicas e não precisareis de indagar acerca do que possuem os cidadãos, que considerariam qualquer
inquérito dessa natureza como um odioso vexame. Sobrecarregando toda a gente por forma igual e
suave, poupareis os pobres, visto que lhes deixareis a fortuna dos ricos. E como seria possível
proporcionar o imposto à riqueza? Ontem eu tinha duzentos bois; hoje tenho sessenta, amanhã terei
cem. Clunic tem três vacas, mas são magras; Nicclu só tem duas, mas são gordas. Entre Clunic e Nicclu,
qual é o mais rico? Os sinais da opulência são enganadores. O que é certo é que toda a gente bebe e
come. Tributai as pessoas de acordo com o que consomem. Será essa a sabedoria e será essa a justiça.
Assim falou Morio, por entre os aplausos dos Antigos.
– Peço que este discurso seja gravado em tábuas de bronze – gritou o monge Bulloch. – Foi feito para o
futuro; daqui a mil e quinhentos anos, os melhores entre os Pinguins não falarão de modo diferente.
Os Antigos continuavam a aplaudir, quando Greatauk, com a mão no punho da espada, fez esta breve
declaração:
– Como nobre, não contribuirei; com efeito, contribuir é ignóbil. A canalha que pague.
Com esta opinião, os Antigos separaram–se em silêncio.
Como em Roma, procedeu–se ao recenseamento de cinco em cinco anos; e viu–se, por este meio, que a
população aumentava rapidamente. Embora as crianças morressem com maravilhosa fartura e as fomes
e as pestes despovoassem com perfeita regularidade aldeias inteiras, novos pinguins, cada vez mais
numerosos, contribuíam com a sua miséria privada para a prosperidade pública.

V – As Bodas de Kraken e Orberose


Nesse tempo, vivia na ilha de Alça um homem pinguim de braço robusto e espírito subtil. Chamava–se
Kraken e tinha a sua casa na Praia das Sombras, onde os habitantes da ilha nunca se aventuravam, com
medo das serpentes aninhadas nas concavidades das rochas e receio de encontrarem aí as almas dos
pinguins mortos sem batismo, que, semelhantes a chamas lívidas e soltando prolongados gemidos,
erravam de noite pela praia desolada. Com efeito, era crença comum, mas sem provas, que, entre os
Pinguins transformados em homens pela prece do bem–aventurado Maèl, alguns não tinham recebido o
batismo e vinham depois da morte chorar no meio da tempestade.
Kraken habitava, na costa selvagem, uma caverna inacessível. Entrava–se por um subterrâneo natural
com cem pés de comprimento, ao fundo do qual se erguia uma grossa porta de madeira.

Ora, certa noite, quando Kraken caminhava pelo campo deserto, encontrou casualmente uma jovem
pinguina, cheia de graça. Era a mesma que, outrora, o monge Magis tinha vestido com as suas próprias
mãos e que fora a primeira a usar pudicos véus. Como recordação do dia em que a multidão
maravilhada dos pinguins a vira fugir gloriosamente no seu vestido cor de aurora, essa virgem recebera
o nome de Orberose{1}.
Ao ver Kraken, soltou um grito de medo e deitou a correr, para o evitar. Mas o herói agarrou–a pelos
véus que flutuavam atrás dela e dirigiu–lhe estas palavras:
– Virgem, diz–me o teu nome, a tua família, a tua terra. Contudo, Orberose continuava a olhar para
Kraken com medo.
– É a si que eu vejo, senhor – perguntou ela a tremer –, ou é a sua alma indignada?
Falava assim porque os habitantes de Alça, não tendo notícias de Kraken desde que ele habitava na
praia das Sombras, julgavam–no morto e no meio dos demônios da noite.
– Deixa de recear, filha de Alça – respondeu Kraken. – Aquele que te fala não é uma alma errante, mas
um homem cheio de força e poder. Em breve possuirei grandes riquezas.
E a jovem Orberose perguntou:
– Como pensas adquirir grandes riquezas, ó Kraken, sendo filho dos Pinguins?
– Pela minha inteligência – respondeu Kraken.
– Eu sei – disse Orberose – que, no tempo em que vivias connosco, eras famoso pela tua destreza na
caça e na pesca. Ninguém te igualava na arte de apanhar o peixe numa rede ou cravar de flechas as
rápidas aves.
– Isso não passava de uma indústria vulgar e laboriosa, ó rapariga. Descobri o meio de conseguir sem
fadiga grandes bens. Mas diz–me quem és.
– Chamo–me Orberose – respondeu a jovem.
– Como te encontras tão longe de casa, em plena noite?
– Kraken, não foi sem a vontade do Céu.
– Que queres dizer, Orberose?
– Que o Céu, ó Kraken, me pôs no teu caminho, ignoro por que razão.
Kraken contemplou–a demoradamente num sombrio silêncio. Depois, disse com doçura:
– Orberose, vem a minha casa, é a do mais engenhoso e corajoso dos filhos dos Pinguins. Se consentires
em seguir–me, farei de ti a minha companheira.
Então, baixando os olhos, ela murmurou:
– Seguir–vos–ei, senhor.

Foi assim que a bela Orberose se tornou a companheira do herói Kraken. Este himeneu não foi
celebrado por cantos e tochas, porque Kraken não consentiu em mostrar–se ao povo dos Pinguins; mas,
escondido na sua caverna, alimentava grandes projetos.

VI – O Dragão de Alça

"Fomos em seguida visitar o Museu de História Natural... O conservador mostrou–nos uma
espécie de fardo empalhado que nos disse encerrar o esqueleto de um dragão: prova, acrescentou,
de que o dragão não é um animal fabuloso."
Mémoires dejacques Casanova, Paris, 1843, t. IV, pp. 404–405.


Entretanto, os habitantes de Alça entregavam–se aos trabalhos da paz. Os da costa setentrional iam em
barcos pescar peixes e mariscos. Os agricultores dos Dombes cultivavam a aveia, o centeio e o trigo. Os
ricos pinguins do vale das Dalles criavam animais domésticos e os da baía dos Mergulhões cultivavam
os seus pomares.
Mercadores de Port–Alca faziam comércio de peixes salgados com a Armórica. E o ouro das duas
Bretanhas, que começava a introduzir–se na ilha, facilitava as trocas.
O povo pinguim gozava, numa tranquilidade profunda, o fruto do seu trabalho, quando, de repente, um
rumor sinistro correu de aldeia em aldeia. Soube–se em toda a parte, ao mesmo tempo, que um horrível
dragão tinha devastado duas quintas na baía dos Mergulhões.
Poucos dias antes, a virgem Orberose havia desaparecido. A sua ausência não causou imediatamente
inquietação porque já tinha sido várias vezes raptada por homens violentos e cheios de amor. E os
sábios não se admiravam, considerando que essa virgem era a mais bela das pinguinas. Observava–se
até que ela ia por vezes ao encontro dos seus raptores, dado que ninguém pode escapar ao seu destino.
Mas desta vez, não a vendo voltar, receava–se que o dragão a tivesse devorado.
Por isso, os habitantes do vale das Dalles em breve se aperceberam de que o dragão não era uma fábula
contada por mulheres ao redor das fontes. Com efeito, uma noite, o monstro devorou na aldeia de Anis
seis galinhas, um carneiro e uma criancinha órfã, o pequeno Elo. Dos animais e da criança não se
encontrou nada na manhã do dia seguinte.
Imediatamente, os Antigos da aldeia reuniram–se na praça pública e sentaram–se no banco de pedra
para decidir o que era conveniente fazer nestas terríveis circunstâncias.
E, tendo convocado todos os pinguins que haviam visto o dragão durante a noite sinistra, perguntaram–
lhes:
– Não observastes a sua forma e os seus hábitos? E cada um respondeu por seu turno:
– Tem garras de leão, asas de águia e cauda de serpente.
– Tem as costas eriçadas de espinhos.
– Todo o seu corpo está coberto de escamas amareladas.
– O seu olhar fascina e fulmina. Vomita chamas.
– Empesta o ar com o seu hálito.
– Tem cabeça de dragão, garras de leão, cauda de peixe.
E uma mulher de Anis, que passava por sã de espírito e julgamento, e a quem o dragão apanhara três
galinhas, depôs desta maneira:
– Tem a forma de um homem. A prova é que pensei que fosse o meu homem e disse–lhe: "Vem–te
deitar, grande estúpido".
Outros diziam:
– Tem a forma de uma nuvem.
– Parece–se com uma montanha.
E, finalmente, chegou um jovem e disse:
– Vai o dragão tirar a cabeça no celeiro para dar um beijo à minha irmã Minnie.
E os Antigos voltaram a perguntar aos habitantes:
– Qual é o tamanho do dragão? E foi–lhes respondido:
– É grande como um boi.
– Como os grandes navios de comércio dos Bretões.
– Tem a estatura de um homem:
– É mais alto do que a figueira debaixo da qual estais sentados.
– É grande como um cão.
Interrogados finalmente acerca da cor, os habitantes disseram:
– Vermelho.
– Verde.
– Azul.
– Amarelo.
– A cabeça é de um verde bonito; as asas são de um laranja vivo, com laivos rosados, as extremidades
de um cinzento de prata; a garupa e a cauda raiadas de manchas castanhas e rosadas, o ventre de um
amarelo vivo, salpicado de negro.
– A cor? Não tem cor.
– É cor de dragão.
Depois de terem ouvido estes testemunhos, os Antigos ficaram indecisos quanto ao que havia a fazer.
Uns propunham que se espiasse o dragão, a fim de o surpreender e abater com um sem–número de
flechas. Outros, considerando que era inútil opor–se pela força a um monstro tão poderoso,
aconselhavam que se tentasse amansá–lo com oferendas.
– Paguemos–lhe tributo – disse um deles, que passava por sábio. – Poderemos torná–lo propício dando–
lhe presentes agradáveis, fruta, vinho, cordeiros, uma jovem virgem.
Outros, por último, eram de opinião que se envenenassem as fontes onde ele tinha por costume beber ou
que fosse queimado na sua caverna.
Mas nenhuma destas opiniões prevaleceu. Discutiu–se longamente e os Antigos separaram–se sem
terem tomado nenhuma resolução.

VII – O Dragão de Alça (Continuação)


Durante todo o mês dedicado pelos Romanos ao seu falso deus Marte, ou Mavorte, o dragão devastou as
quintas das Dalles e dos Dombes, levou cinquenta carneiros, doze porcos e três rapazinhos. Todas as
famílias estavam de luto e a ilha enchia–se de lamentações. Para conjurar o flagelo, os Antigos das
infelizes aldeias que o Clange e a Surelle banham decidiram reunir–se e ir pedir auxílio ao bem–
aventurado Maèl.

No quinto dia do mês cujo nome, entre os Latinos, significa abertura, porque abre o ano, dirigiram–se
em procissão ao mosteiro de madeira que se erguia na costa meridional da ilha.
Introduzidos no claustro, fizeram ouvir soluços e gemidos. Comovido com os seus queixumes, o velho
Maèl, deixando a sala onde se entregava ao estudo da astronomia e à meditação das Escrituras, desceu
até eles, apoiado ao seu bordão pastoral. À sua chegada, os Antigos, prosternados, estenderam ramos
verdes. E alguns deles queimaram ervas aromáticas.
E o santo homem, tendo–se sentado perto da fonte claustral, debaixo de uma figueira antiga, pronunciou
estas palavras:
– Ó meus filhos, posteridade dos Pinguins, porque chorais e gemeis? Porque estendeis para mim esses
ramos suplicantes? Porque fazeis subir para o céu o fumo dos aromas? Esperais que eu desvie das
vossas cabeças alguma calamidade? Porque me implorais? Estou disposto a dar a vida por vós. Dizei o
que esperais do vosso pai.
A estas perguntas, o primeiro dos Antigos respondeu:
– Pai dos filhos de Alça, ó Maèl, falarei por todos. Um dragão horrível devasta os nossos campos,
despovoa os nossos estábulos e encerra no seu antro a flor da nossa juventude. Devorou a criança Elo e
sete rapazinhos; esmagou entre os dentes esfomeados a virgem Orberose, a mais bela das pinguinas.
Não há aldeia onde não sopre o seu hálito envenenado e que ele não encha de desolação.
"Perante este temível flagelo, vimos, ó Maèl, pedir–te, como o mais sábio, que providencies pela
salvação dos habitantes desta ilha, a fim de que a raça antiga dos Pinguins não se extinga.
– Ó primeiro dos Antigos de Alça – replicou Maèl –, o teu discurso mergulha–me numa profunda
aflição e gemo à ideia de que esta ilha está sujeita aos furores de um terrível dragão. Tal facto não é
único e há nos livros várias histórias de dragões ferocíssimos. Estes monstros encontram–se
principalmente nas cavernas, junto às águas e de preferência entre os povos pagãos. É possível que
alguns de vós, embora tendo recebido o santo batismo e apesar de incorporados na família de Abraão,
tenham adorado ídolos, como os antigos Romanos, ou suspendido imagens, tabuinhas votivas, faixas de
lã e grinaldas de flores nos ramos de qualquer árvore sagrada. Ou então as pinguinas dançaram em redor
de uma pedra mágica e beberam água das fontes habitadas pelas ninfas. Se assim foi, julgo que o
Senhor enviou esse dragão para punir todos pelos crimes de alguns e a fim de vos induzir, ó filhos dos
Pinguins, a exterminar do meio de vós a blasfêmia, a superstição e a impiedade. Por isso vos indicarei,
como remédio para o grande mal que suportais, que procureis cuidadosamente a idolatria nas vossas
casas e a extirpeis. Acho que também será eficaz rezar e fazer penitência.
Assim falou o santo ancião Maèl. E os Antigos do povo pinguim, tendo–lhe beijado os pés, voltaram
para as suas aldeias com melhor esperança.

VIII – O Dragão de Alça (Continuação)


Seguindo os conselhos do santo homem Maèl, os habitantes de Alça esforçaram–se por extirpar as
superstições que haviam germinado entre eles. Velaram para que as raparigas não fossem dançar em
redor da árvore das fadas, pronunciando encantamentos. Proibiram severamente as jovens mães de
esfregar os seus bebés, para os tornar fortes, nas pedras dos campos. Um velho dos Dombes, que
anunciava o futuro sacudindo grãos de cevada numa peneira, foi lançado a um poço.
Contudo, o monstro continuava a devastar todas as noites os galinheiros e os estábulos. Os camponeses,
amedrontados, barricavam–se nas suas casas. Uma mulher grávida que, por uma trapeira, viu à luz do
luar a sombra do dragão no caminho azul ficou tão assustada que pariu antes de tempo.
Nesses dias de provação, o santo homem Maèl meditava sem cessar na natureza dos dragões e nos
meios de combatê–los. Após seis meses de estudos e preces, pareceu–lhe ter encontrado o que
procurava. Uma noite, quando passeava à beira–mar, na companhia de um jovem religioso chamado
Samuel, exprimiu–lhe o seu pensamento nestes termos:
– Estudei longamente a história e os costumes dos dragões, não para satisfazer uma vã curiosidade, mas
a fim de descobrir exemplos a seguir nas conjunturas presentes. E é esta, meu filho Samuel, a utilidade
da história.
"É um facto constante que os dragões são de uma vigilância extrema Nunca dormem. Por isso os vemos
muitas vezes utilizados para guardar tesouros. Um dragão guardava na Cólquida o velo de ouro que
Jasão lhe conquistou. Um dragão vigiava as maçãs de ouro do jardim das Hespérides. Foi morto por
Hércules e transformado por Juno numa estrela do céu. O facto está relatado nos livros; se é verdadeiro,
produziu–se por magia, visto que os deuses dos pagãos são, na realidade, diabos. Um dragão proibia os
homens rudes e ignorantes de beberem na fonte de Castália. Deve–se recordar também o dragão de
Andrómeda, que foi morto por Perseu.
"Mas deixemos as fábulas dos pagãos, onde o erro anda sempre de mãos dadas com a verdade.
Encontramos dragões nas histórias do glorioso arcanjo Miguel, dos Santos Jorge, Filipe, Tiago Maior e
Patrício, das santas Marta e Margarida. E é nestas narrativas, dignas de todo o crédito, que devemos
procurar reconforto e conselho.
"A história do dragão de Sileno oferece–nos preciosos exemplos. Fica sabendo, meu filho, que, à beira
de um grande lago, nesta cidade, habitava um dragão terrível que se aproximava às vezes das muralhas
e envenenava com o seu hálito todos os que moravam nos subúrbios. E, para não serem devorados pelo
monstro, os habitantes de Sileno entregavam–lhe todas as manhãs um dos seus. Tirava–se a vítima à
sorte. A sorte, após cem outras, designou a filha do rei.
"Ora, São Jorge, que era tribuno militar, passando pela cidade de Sileno, soube que a filha do rei
acabava de ser conduzida ao feroz animal. Montou imediatamente a cavalo e, armado com a sua lança,
correu ao encontro do dragão, que alcançou no momento em que o monstro ia devorar a virgem real. E,
quando São Jorge lançou por terra o dragão, a filha do rei atou o cinto em redor do pescoço da besta,
que a seguiu como um cão que se leva pela trela.
"Isto é para nós um exemplo do poder das virgens sobre os dragões. A história de Santa Marta fornece–
nos uma prova ainda mais segura. Conheces esta história, meu filho Samuel?
– Sim, meu pai – respondeu Samuel. E o bem–aventurado Maèl prosseguiu:
– Havia numa floresta, nas margens do Ródano, entre Arles e Avinhão, um dragão meio quadrúpede e
meio peixe, maior do que um boi, com dentes agudos como chifres e grandes asas nas costas. Afundava
os barcos e devorava os passageiros. Ora, Santa Marta, a pedido do povo, foi à procura do dragão, que
encontrou ocupado a devorar um homem; passou–lhe o cinto em redor do pescoço e conduziu–o
facilmente para a cidade.
"Estes dois exemplos induzem–me a pensar que convém recorrer ao poder de uma virgem para vencer o
dragão que semeia o medo e a morte na ilha de Alça.
"Por isso, meu filho Samuel, cinge os teus rins e vai, peço–te, com dois dos teus companheiros, por
todas as aldeias desta ilha e apregoa por toda a parte que só uma virgem poderá libertar a ilha do
monstro que a despovoa.
"Entoarás cânticos e salmos e dirás: ""Ó filhos dos Pinguins, se há entre vós uma virgem puríssima, que
se levante e, armada com o sinal da cruz, vá combater o dragão!"
Assim falou o ancião, e o jovem Samuel prometeu obedecer. No dia seguinte, cingiu os rins e partiu
com os dois dos seus companheiros para anunciar aos habitantes de Alça que só uma virgem era capaz
de libertar os Pinguins dos furores do dragão.

IX – O Dragão de Alça (Continuação)


Orberose amava o marido, mas não amava só a ele. À hora em que Vênus se acende no céu pálido,
enquanto Kraken ia espalhando o terror nas aldeias, ela visitava, na sua casa rolante, um jovem pastor
das Dalles, de nome Marcel, cuja forma graciosa se aliava a um infatigável vigor. A bela Orberose
compartilhava com prazer a cama aromática do pastor. Mas, em vez de se dar a conhecer pelo que era,
usava o nome de Erigida e dizia–se filha de um jardineiro da baía dos Mergulhões. Quando, saída com
pena dos seus braços, caminhava através dos prados enevoados em direção à praia das Sombras, se por
acaso encontrava algum camponês atrasado, logo desprendia os seus véus como grandes asas e clamava:
– "Transeunte, baixa os olhos para não teres de dizer: Ai de mim!, ai!, infeliz que sou, porque vi o anjo
do Senhor."
O trêmulo aldeão caía de joelhos, com a fronte contra o chão.
E alguns diziam, na ilha, que, de noite, passavam pelos caminhos anjos e que quem os via morria.
Kraken ignorava os amores de Orberose e Marcel, porque era um herói e os heróis nunca penetram nos
segredos das suas mulheres. Mas, embora ignorando esses amores, Kraken experimentava as suas
preciosas vantagens. Encontrava cada noite a sua companheira mais sorridente e mais bela, respirando,
exalando volúpia e perfumando o leito conjugal com um delicioso odor a funcho e a verbena. Ela amava
Kraken com um amor que nunca se tornava importuno nem inquieto, porque não o descarregava apenas
sobre ele.
E a feliz infidelidade de Orberose em breve salvaria o herói de um grande perigo e garantiria para
sempre a sua fortuna e glória. Com efeito, tendo visto passar ao crepúsculo um boieiro de Belmont, que
aguilhoava os seus bois, ela pôs–se a amá–lo mais do que tinha amado o pastor Marcel. Era corcunda,
os ombros subiam–lhe acima das orelhas, o corpo balançava sobre pernas desiguais; os olhos turvos
lançavam chispas selvagens por baixo dos cabelos emaranhados. Da sua garganta saía uma voz rouca e
risos estridentes; cheirava a estábulo. Contudo, achava–o belo. "Este, como diz Gnáton, amou uma
planta, aquele um rio, aqueloutro um animal."

Ora, um dia em que, num celeiro da aldeia, suspirava estendida e acalmada nos braços do boieiro,
subitamente sons de trompa, rumores, ruídos de passos, surpreenderam os seus ouvidos; olhou pela
trapeira e viu os habitantes reunidos na praça do mercado, em redor de um jovem religioso, que, em
cima de uma pedra, pronunciou com voz clara estas palavras:
– Habitantes de Belmont, o abade Maèl, nosso venerado pai, manda–vos dizer pela minha boca que nem
a força dos braços nem o poder das armas prevalecerão contra o dragão; mas a besta será vencida por
uma virgem. Portanto, se houver entre vós uma virgem que não ofereça dúvidas e absolutamente intacta,
que se levante e vá ao encontro do monstro; e, quando o descobrir, passar–lhe–á o seu cinto à volta do
pescoço e conduzi–lo–á tão facilmente como se fosse um cachorro.
E o jovem religioso, tendo lançado a cogula pela cabeça, foi levar a outras aldeias a mensagem do bem–
aventurado Maèl.
Já estava longe quando, acocorada na palha amorosa, com uma das mãos no joelho e o queixo na outra
mão, Orberose meditava ainda no que acabava de ouvir.
Embora receasse muito menos para Kraken o poder de uma virgem do que a força dos homens armados,
não se sentia tranquila com a mensagem do bem–aventurado Maèl; um instinto vago e seguro, que
dirigia o seu espírito, advertia–a de que Kraken não podia continuar a ser dragão em segurança.
Perguntou ao boieiro:
– Meu querido, que pensas do dragão? O rústico abanou a cabeça:
– É certo que, nos tempos antigos, havia dragões que devastavam a terra; e havia–os da grossura de uma
montanha. Mas já não aparecem e creio que o que aqui se toma por um monstro coberto de escamas são
piratas ou mercadores que levaram para o seu navio a bela Orberose e as mais belas crianças de Alça. E,
se um desses salteadores tentar roubar os meus bois, saberei, por força ou por manha, impedi–lo de me
fazer mal.
Esta frase do boieiro aumentou as apreensões de Orberose e reanimou a sua solicitude para com um
marido que amava.

X – O Dragão de Alça (Continuação)


Os dias passaram e nenhuma donzela se levantou na ilha para ir combater o monstro. E, no mosteiro de
madeira, o velho Maèl, sentado num banco, à sombra de uma figueira antiga, na companhia de um
religioso cheio de piedade chamado Regimental, perguntava–se com inquietação e tristeza como era
possível não se encontrar em Alça uma única virgem capaz de vencer a besta.
Suspirou e o irmão Regimental suspirou também. Nesse momento, o jovem Samuel, que atravessava o
jardim, foi chamado pelo velho Maèl, que lhe disse:
– Voltei a meditar, meu filho, nos meios de destruir o dragão que devora a flor da nossa juventude, dos
nossos rebanhos e das nossas colheitas. A este propósito, a história dos dragões de São Riok e São Pol
de Léon parece–me particularmente instrutiva. O dragão de São Riok tinha seis toesas de comprimento;
a cabeça era de galo e basilisco, o corpo de boi e serpente; devastava as margens do Elorn, no tempo do
rei Bristoco. São Riok, com dois anos de idade, levou–o pela trela até ao mar, onde o monstro se afogou
sem resistência. O dragão de São Pol, com sessenta pés de comprimento, não era menos terrível. O
bem–aventurado apóstolo de Léon atou–o com a sua estola e deu–o a conduzir a um jovem senhor de
grande pureza. Estes exemplos provam que, aos olhos de Deus, um donzel é tão agradável como uma
donzela. O Céu não faz diferença. Por isso, meu filho, se tens confiança em mim, iremos os dois à praia
das Sombras; chegados à caverna do dragão, chamaremos o monstro em alta voz e, quando ele se
aproximar, eu atarei a minha estola à volta do seu pescoço e tu levá–lo–ás pela trela até ao mar, onde ele
não deixará de se afogar.
A este discurso do ancião, Samuel baixou a cabeça e não respondeu.
– Parece que hesitas, meu filho – disse Maèl.
O irmão Regimental, contrariamente ao seu hábito, tomou a palavra sem ser interrogado.
– Hesitar–se–ia por menos – disse ele. – São Riok só tinha dois anos quando venceu o dragão. Quem
nos garante que nove ou dez anos mais tarde conseguiria fazer o mesmo? Note, meu padre, que, o
dragão que devasta a nossa ilha devorou o pequeno Elo e quatro ou cinco outros rapazinhos. O irmão
Samuel não é tão presunçoso que se julgue aos dezanove anos mais inocente do que eles aos doze e
catorze.
"Ai! – acrescentou o monge gemendo –, quem se pode gabar de ser casto neste mundo, onde tudo nos
dá o exemplo e o modelo do amor; onde tudo, na natureza, animais e plantas, nos mostra e aconselha os
voluptuosos amplexos? Os animais unem–se ardentemente segundo os seus costumes; mas os diversos
himeneus dos quadrúpedes, das aves, dos peixes e dos répteis estão longe de igualar em graça as
núpcias das árvores. Tudo o que os pagãos, nas suas fábulas, imaginaram como impudicícias
monstruosas é ultrapassado pela mais simples flor dos campos e, se conhecesse as fornicações dos lírios
e das rosas, afastaria dos altares esses cálices de impureza, esses vasos de escândalo.
– Não fale assim, irmão Regimental – respondeu o velho Maèl. – Sujeitos à lei natural, os animais e as
plantas são sempre inocentes. Não têm alma para salvar, ao passo que o homem...
– Tem razão – replicou o irmão Regimental. – Isso é outro cantar. Mas não mande o jovem Samuel ao
dragão: o dragão comê–lo–ia. Há cinco anos que Samuel não está em estado de espantar os monstros
pela sua inocência. No ano do cometa, o Diabo, para o seduzir, pôs um dia no seu caminho uma leiteira
que arregaçava o saiote para atravessar um vau. Samuel foi tentado; mas venceu a tentação. O Diabo,
que não se cansa, mandou–lhe, em sonho, a imagem dessa rapariga. A sombra fez o que o corpo não
pudera fazer: Samuel sucumbiu. Ao despertar, inundou de lágrimas a cama profanada. Ai!, o
arrependimento não lhe restituiu a inocência!
Ao ouvir este relato, Samuel perguntava a si mesmo como é que o seu segredo podia ter sido
descoberto, pois não sabia que o Diabo havia tomado a aparência do irmão Regimental para perturbar
no coração os monges de Alça.
E o velho Maèl refletia e perguntava–se com angústia:
"Quem nos livrará do dente do dragão? Quem nos preservará do seu hálito? Quem nos salvará do seu
olhar?"

Entretanto, os habitantes de Alça começavam a ganhar coragem. Os lavradores dos Dombes e os
boieiros de Belmont juravam que, contra um animal feroz, valeriam mais que uma rapariga e gritavam,
batendo nos músculos dos braços: "Venha o dragão!". Muitos homens e mulheres tinham–no visto. Não
se entendiam quanto à sua forma e aspecto, mas todos agora concordavam em dizer que não era tão
grande como tinham julgado e que a sua altura não ultrapassava em muito a de um homem.
Organizava–se a defesa: ao tombar do dia, sentinelas postavam–se à entrada das aldeias, prontas a dar o
alarme; companhias armadas de forquilhas e foices guardavam de noite os parques onde estavam
fechados os animais. Certa vez, na aldeia de Anis, audaciosos agricultores surpreenderam–no a saltar o
muro de Morio; armados de manguais, foices e forquilhas, perseguiram–no e começaram a cercá–lo.
Um deles, homem valente e sempre alerta, julgou tê–lo picado com a sua forquilha; mas escorregou
num charco e deixou–o escapar. Os outros tê–lo–iam sem dúvida apanhado, se não se demorassem a
agarrar os coelhos e as galinhas que ele largava na sua fuga.
Estes agricultores declararam aos Antigos da aldeia que o monstro lhes parecia de forma e proporções
bastante humanas, com exceção da cabeça e da cauda, que eram realmente assustadoras.

XI – O Dragão de Alça (Continuação)

Nesse dia, Kraken regressou à caverna mais cedo do que o habitual. Tirou da cabeça a máscara de foca
encimada por dois chifres de boi e cuja viseira estava provida de ganchos formidáveis. Atirou para cima
da mesa as luvas munidas de garras horríveis: eram bicos de aves marinhas. Desafivelou o cinto, do
qual pendia uma comprida cauda verde com pregas sinuosas. Depois, ordenou ao seu pajem Elo que lhe
tirasse as botas e, como a criança não o conseguisse assaz depressa, atirou–a com um pontapé para o
outro lado da gruta.
Sem olhar para a bela Orberose, que fiava lã, sentou–se diante da lareira, onde assava um carneiro, e
murmurou:
– Ignóbeis Pinguins!... Não há ofício pior do que fazer de dragão.
– Que diz o meu senhor? – perguntou a bela Orberose.
– Já ninguém me teme – prosseguiu Kraken. – Antigamente, tudo fugia à minha aproximação. Metia no
meu saco galinhas e coelhos; caçava carneiros e porcos, vacas e bois. Agora, esses rústicos estão de
sentinela, vigiam. Há pouco, na aldeia de Anis, perseguido por agricultores armados de manguais,
foices e forquilhas arrogantes, tive de largar galinhas e coelhos, meter a cauda debaixo do braço e dar às
de vila–diogo. Ora, pergunto, fica bem a um dragão da Capadócia fugir como um ladrão, com o rabo
entre as pernas? Ainda por cima, embaraçado com espinhos, chifres, ganchos, garras, escamas, escapei
com grande dificuldade a um bruto que me espetou meia polegada da sua forquilha na nádega esquerda.
E, dizendo isto, levava com solicitude a mão ao sítio ofendido. E, após alguns instantes de amargas
meditações:
– Que idiotas, esses Pinguins! Estou farto de soprar chamas ao nariz de tais imbecis. Orberose, estás a
ouvir?...
Tendo assim falado, o herói levantou nas mãos a terrível máscara e contemplou–a longamente num
sombrio silêncio. Depois, pronunciou rapidamente estas palavras:
– Fiz esta máscara com as minhas mãos, em forma de cabeça de peixe, com a pele de uma foca. Para a
tornar mais formidável, pus–lhe chifres de boi e armei–a com uma queixada de javali; pendurei–lhe
uma cauda de cavalo pintada de cinábrio. Nenhum habitante desta ilha suportava a sua vista, quando eu
a punha até aos ombros no crepúsculo melancólico. À sua aproximação, mulheres, crianças, mancebos,
velhos, fugiam desvairados e eu levava o medo a toda a raça dos Pinguins. Devido a que conselhos este
povo insolente, abandonando os primeiros terrores, ousa agora olhar de frente esta carranca horrível e
perseguir esta crina horrenda?
E, arremessando a máscara para o chão rochoso, Kraken clamou:
– Morre, máscara enganadora! Juro por todos os demônios de Armor que nunca mais te porei na cabeça.
E, feito este juramento, calcou aos pés a máscara, as luvas, as botas e a cauda de pregas sinuosas.
– Kraken – disse a bela Orberose –, permitis que a vossa criada use de artifício para salvar a vossa
glória e os vossos bens? Não desprezeis a ajuda de uma mulher. Tendes necessidade dela, dado que
todos os homens são imbecis.
– Mulher – perguntou Kraken –, quais são os teus desígnios? E a bela Orberose informou o marido de
que os monges iam pelas cidades e pelos campos, ensinando aos habitantes a melhor maneira de
combater o dragão; que, segundo as suas instruções, a besta seria vencida por uma virgem e, se uma
donzela passasse o seu cinto à volta do pescoço do dragão, conduzi–lo–ia tão facilmente como se fosse
um cachorro.
– Como sabes que os monges ensinam essas coisas? – perguntou Kraken.
– Meu amigo – respondeu Orberose –, não interrompais palavras solenes com uma pergunta frívola...
"Se", acrescentaram esses religiosos, "houver em Alça uma virgem puríssima, que se levante!" Ora, eu
decidi, Kraken, responder ao seu apelo. Irei ter com o santo ancião Maèl e dir–lhe–ei: "Sou a virgem
designada pelo Céu para vencer o dragão".
A estas palavras, Kraken gritou:
– Como podes ser essa virgem puríssima? E porque me queres combater, Orberose? Perdeste o juízo?
Fica sabendo que não me deixarei vencer por ti!
– Antes de vos irritardes, não seria melhor tentardes compreender? – suspirou a bela Orberose, com um
desprezo profundo e suave.
E expôs os seus subtis propósitos.

Enquanto a escutava, o herói permanecia pensativo. E, quando ela acabou de falar, disse:
– Oberose, o teu ardil é enorme. E, se os teus propósitos se realizarem segundo as tuas previsões, tirarei
daí grandes vantagens. Mas como podes ser a virgem designada pelo Céu?
– Não te preocupes, Kraken – replicou ela –, e vamo–nos deitar. No dia seguinte, na caverna perfumada
pelo odor das gorduras,
Kraken entrançava uma disforme carcaça de vime e cobria–a com peles horrivelmente eriçadas,
escamosas e esquálidas. Numa das extremidades da carcaça, a bela Orberose coseu a cimeira feroz e a
viseira hedionda, que Kraken usava nas suas devastadoras correrias, e, na outra ponta, pregou a cauda
de pregas sinuosas, que o herói costumava arrastar atrás de si. E, quando a obra ficou pronta, ensinaram
o pequeno Elo e as outras cinco crianças, que os serviam, a introduzir–se nela, a fazê–la mover–se, a
soprar em trompas e a queimar estopa, a fim de lançar chamas e fumo pelas goelas do dragão.

XII – O Dragão de Alça (Continuação)


Orberose, tendo envergado um vestido de burel e cingido uma corda grosseira, dirigiu–se ao mosteiro e
pediu para falar com o bem–aventurado Maèl. E, porque era proibido às mulheres entrar no recinto do
mosteiro, o ancião saiu para fora de portas, segurando na mão direita o báculo pastoral e apoiando–se
com a esquerda no ombro do irmão Samuel, o mais novo dos seus discípulos.
Perguntou:
– Mulher, quem és tu?
– Sou a virgem Orberose.
A esta resposta, Maèl ergueu para o céu os braços trêmulos.
– Dizes a verdade, mulher? É facto averiguado que Orberose foi devorada pelo dragão. E eu vejo e ouço
Orberose! Não seria que tu, ó minha filha, te armaste nas entranhas do monstro com o sinal da cruz e
saíste intacta das suas goelas? É o que me parece mais provável.
– Não te enganas, meu padre – respondeu Orberose. – Foi precisamente o que me aconteceu. Por isso,
logo que saí das entranhas da besta, refugiei–me num ermitério, na praia das Sombras. Vivia aí na
solidão, entregando–me à oração e à meditação e realizando austeridades inauditas, quando soube por
revelação celeste que só uma donzela podia vencer o dragão e que essa donzela era eu.
– Mostra–me um sinal da tua missão – disse o velho.
– O sinal sou eu própria – respondeu Orberose.
– Não ignoro o poder daquelas que puseram um sinete na sua carne – replicou o apóstolo dos Pinguins.
– Mas és realmente o que dizes?
– Vê–lo–ás na prática – respondeu Orberose.
O monge Regimental, tendo–se aproximado, disse:
– Será essa a melhor prova. O rei Salomão disse: "Há três coisas difíceis de conhecer e uma quarta
impossível: são a marca da serpente na pedra, da ave no ar, do navio na água, do homem na mulher".
Considero impertinentes as matronas que pretendem ensinar em tais matérias o mais sábio dos reis. Meu
padre, acreditai–me, não as consulteis a propósito da piedosa Orberose. A sua opinião não vos deixará
mais esclarecido do que antes. A virgindade é não menos difícil de provar do que de conservar. Plínio
ensina–nos, na sua História, que os seus sinais são imaginários ou incertos{2}. Aquela que traz em si as
catorze marcas da corrupção é pura aos olhos dos anjos e, pelo contrário, aquela que, inspeccionada
pelas matronas com o dedo e os olhos, folha por folha, for reconhecida intacta, sabe–se devedora dessas
boas aparências aos artifícios de uma sábia perversidade. Quanto à pureza da santa moça aqui presente,
poria a mão no fogo por ela.
Falava assim porque era o Diabo. Mas o velho Maèl não o sabia. Perguntou à piedosa Orberose:
– Minha filha, como fareis para vencer um animal tão feroz como aquele que vos devorou?
A virgem respondeu:
– Amanhã, ao nascer do Sol, ó Maèl, convocarás o povo para a colina, diante da desolada gândara que
se estende até à praia das Sombras, e velarás para que nenhum homem pinguim fique a menos de
quinhentos passos das rochas, pois seria imediatamente envenenado pelo hálito do monstro. E o dragão
sairá das rochas e passar–lhe–ei um cinto pelo pescoço e conduzi–lo–ei pela trela como um cão dócil.
– Não te farás acompanhar por um homem corajoso e cheio de piedade, que matará o dragão? –
perguntou Maèl.
– Tu o disseste, ó Maèl: entregarei o monstro a Kraken, que o decapitará com a sua faiscante espada. É
preciso que saibas que o nobre Kraken, que julgávamos morto, voltará para o meio dos Pinguins e
matará o dragão. E do ventre da besta sairão as criancinhas que devorou.
– O que me anuncias, ó virgem – clamou o apóstolo –, parece–me prodigioso e acima do poder humano.
–Assim é – replicou a virgem Orberose. – Mas sabe, ó Maèl, que me foi revelado que, como prêmio da
sua libertação, o povo pinguim deverá pagar ao cavaleiro Kraken um tributo anual de trezentos frangos,
doze carneiros, dois bois, três porcos, mil e oitocentas medidas de trigo e os legumes da estação; e além
disso, as crianças que saírem do ventre do dragão serão dadas e deixadas ao dito Kraken para o servirem
e lhe obedecerem em todas as coisas.
"Se o povo pinguim faltar aos seus compromissos, um novo dragão desembarcará na ilha, mais terrível
do que o primeiro. Tenho dito.

XIII – O Dragão de Alça (Continuação e Fim)


O povo dos Pinguins, convocado pelo velho Maèl, passou a noite na praia das Sombras, no limite que o
santo homem tinha traçado, a fim de que nenhum dos Pinguins fosse envenenado pelo sopro do
monstro.
Os véus da noite cobriam ainda a terra, quando, precedido de um mugido rouco, o dragão mostrou nas
rochas da praia a sua forma indistinta e portentosa. Rastejava como uma serpente e o seu corpo sinuoso
parecia ter quinze pés de comprimento. À sua vista, a multidão recua de medo. Mas logo todos os
olhares se voltam para a virgem Orberose, que, aos primeiros alvores da alba, avança vestida de branco
pela urze rosada. Com passo intrépido e modesto, caminha em direção à besta, que, soltando urros
medonhos, escancara as goelas incendiadas. Um grito imenso de terror e piedade eleva–se do meio dos
Pinguins. Mas a virgem, desafivelando o cinto de linho, passa–o pelo pescoço do dragão, que leva pela
trela, como um cão fiel, entre as aclamações dos espectadores.
Percorreu já uma grande parte da gândara, quando aparece Kraken armado de uma espada faiscante.
O povo, que o julgava morto, solta gritos de surpresa e alegria.
O herói lança–se sobre a besta, derruba–a e, com a grande espada, abre–lhe o ventre, de onde saem, em
camisa, de cabelos encaracolados e mãos juntas, o pequeno Elo e as outras cinco crianças que o monstro
havia devorado.
Atiram–se imediatamente aos joelhos da virgem Orberose, que os toma nos braços e lhes diz ao ouvido:
"Ireis pelas aldeias e direis: "Somos pobres criancinhas que o dragão devorou e saímos em camisa do
seu ventre." Os habitantes dar–vos–ão com abundância tudo o que desejardes. Mas, se falardes de
maneira diferente, só recebereis piparotes e palmadas. Ide!"
Vários pinguins, vendo o dragão desventrado, precipitavam–se para o fazer em pedaços, uns por um
sentimento de fúria e vingança, outros a fim de se apoderarem da pedra mágica, chamada dracontite,
engendrada na sua cabeça; as mães das crianças ressuscitadas corriam a abraçar os filhinhos. Mas o
santo homem Maèl deteve–os, avisando–os de que não eram suficientemente santos para se
aproximarem do dragão sem perigo de morte.
E logo o pequeno Elo e as outras cinco crianças se dirigiram ao povo e disseram:
– Somos as pobres criancinhas que o dragão devorou e saímos em camisa do seu ventre.
E todos os que os ouviam diziam, beijando–as:
– Crianças benditas, dar–vos–emos em abundância tudo o que desejardes.
E a multidão do povo separou–se, cheia de alegria, entoando hinos e cânticos.
Para comemorar esse dia em que a Providência libertou o povo de um cruel flagelo, foram instituídas
procissões, nas quais se passeava o simulacro de um dragão acorrentado.
Kraken cobrou o tributo e tornou–se o mais rico e mais poderoso dos Pinguins. Em sinal da sua vitória,
a fim de inspirar um terror salutar, usava na cabeça uma crista de dragão e costumava dizer ao povo: –
Agora que o monstro está morto, sou eu o dragão.
Orberose continuou a rodear por muito tempo, com os seus generosos braços, o pescoço dos boieiros e
dos pastores, que comparava aos deuses. E, quando perdeu a beleza, consagrou–se ao Senhor.
Objeto da veneração pública, foi admitida, após a morte, no cânone dos santos e tornou–se a celeste
padroeira da Pinguínia.
Kraken deixou um filho, que usou, como o seu pai, a crista do dragão e foi, por isso, denominado
Draco. Fundou a primeira dinastia real dos Pinguins.

Livro III – A IDADE MÉDIA E O
RENASCIMENTO

I – Brian, o Piedoso, e a Rainha Glamorgane


Os reis de Alça descendentes de Draco, filho de Kraken, usavam na cabeça uma horrível crista de
dragão, insígnia sagrada cuja simples vista inspirava aos povos veneração, terror e amor. Estavam
perpetuamente em luta, quer com os seus vassalos e súbditos, quer com os príncipes das ilhas e dos
continentes vizinhos.
Os mais antigos desses reis deixaram apenas um nome. Ainda não sabemos nem pronunciá–lo nem
escrevê–lo. O primeiro Draconida cuja história se conhece é Brian, o Piedoso, afamado pela sua astúcia
e coragem nas guerras e caçadas.
Era cristão, amava as letras e favorecia os homens votados à vida monástica. Na sala do seu palácio,
onde, das traves enegrecidas, pendiam as cabeças, as armações e os chifres dos animais selvagens, dava
festins para os quais eram convidados todos os tocadores de harpa de Alça e das ilhas vizinhas, e ele
próprio cantava os louvores dos heróis. Justo e magnânimo, mas inflamado por um ardente amor da
glória, não podia impedir–se de condenar à morte os que cantassem melhor do que ele.
Tendo os monges de Yvern sido expulsos pelos pagãos que devastavam a Bretanha, o rei Brian chamou–
os para o seu reino e mandou construir para eles, perto do seu palácio, um mosteiro de madeira. Todos
os dias se dirigia, com a rainha Glamorgane, sua esposa, à capela do mosteiro, assistia às cerimônias
religiosas e entoava hinos.
Ora, entre os monges, havia um religioso de nome Oddul que, na flor da idade, se adornava de ciência e
virtudes. O Diabo votou–lhe grande despeito e procurou por várias vezes induzi–lo em tentação. Tomou
várias formas e mostrou–lhe alternadamente um cavalo de guerra, uma jovem virgem, uma taça de
hidromel; depois, obrigou–o a agitar dois dados num fritilo e disse–lhe:
– Queres jogar comigo os reinos deste mundo contra um dos cabelos da tua cabeça?
Mas o homem do Senhor, armado com o sinal da cruz, repeliu o Inimigo. Vendo que não conseguia
seduzi–lo, o Diabo imaginou para o perder um hábil artifício.

Numa noite de Verão, aproximou–se da rainha, adormecida na sua cama, apresentou–lhe a imagem do
jovem religioso que ela via todos os dias no mosteiro de madeira e pôs um feitiço nessa imagem. Logo
o amor entrou como um veneno subtil nas veias de Glamorgane. E o desejo de se relacionar com Oddul
consumia–a. Arranjava a todo o momento pretextos para o atrair a si. Pediu–lhe várias vezes que
instruísse os seus filhos na leitura e no canto.
– Confio–lhos – disse ela. – E seguirei as lições que lhes der, a fim de me instruir também. Com os
filhos, ensinará a mãe.
Mas o jovem religioso desculpava–se, ora porque não era um mestre suficientemente sábio, ora porque
o seu estado lhe proibia o contacto com mulheres. Esta recusa irritou os desejos de Glamorgane. Um dia
em que suspirava na cama, tendo–se o seu mal tornado intolerável, mandou chamar Oddul ao quarto.
Ele acorreu por obediência,
mas ficou de olhos baixos à entrada da porta. Notando que não a olhava, ela sentia impaciência e dor.
– Vê – disse–lhe –, já não tenho forças, uma sombra tapa–me os olhos. O meu corpo está febril e
gelado.
E, como ele se calasse e não fizesse um movimento, chamou–o com voz suplicante:
– Vem até junto de mim, vem!
E, com os braços estendidos, que o desejo alongava, tentou agarrá–lo e atraí–lo a si.
Mas ele recuou, censurando–lhe a imprudência.
Então, possuída de raiva e receando que Oddul divulgasse a vergonha em que caíra, decidiu perdê–lo,
para não ser perdida por ele.
Num tom lacrimoso que ressoou por todo o palácio, chamou por socorro, como se realmente corresse
grande perigo.
As servas acorreram, viram o jovem monge que fugia e a rainha que puxava sobre si a roupa da cama;
todas juntas, desataram a clamar em altos gritos. E quando, atraído pelo barulho, o rei Brian entrou no
quarto, Glamorgane, mostrando–lhe os cabelos desfeitos, os olhos brilhantes de lágrimas e o peito que,
na fúria do seu amor,
dilacerara com as unhas, disse:
– Vede, meu senhor e meu esposo, a marca dos ultrajes que sofri. Impelido por um desejo infame,
Oddul aproximou–se de mim e tentou violentar–me.
Ao ouvir estas queixas, ao ver aquele sangue, o rei, dominado pela raiva, ordenou aos seus guardas que
se apoderassem do jovem religioso e o queimassem vivo diante do palácio, sob os olhares da rainha.
Informado desta aventura, o abade de Yvern foi ter com o rei e disse–lhe:
– Rei Brian, conhecei por este exemplo a diferença entre uma mulher cristã e uma mulher pagã.
Lucrécia romana foi a mais virtuosa das princesas idólatras; contudo, não teve forças para se defender
dos ataques de um jovem efeminado e, confusa por causa da sua fraqueza, mergulhou no desespero, ao
passo que Glamorgane resistiu vitoriosamente aos assaltos de um criminoso enraivecido e possuído pelo
mais terrível dos demônios.

Entretanto, Oddul, na prisão do palácio, esperava o momento de ser queimado vivo. Mas Deus não
permitiu que o inocente perecesse. Enviou–lhe um anjo, que, tendo tomado a forma de uma serva da
rainha, de nome Gudrune, o tirou da prisão e o conduziu ao quarto que ocupava essa mulher de quem
tinha a aparência.
E o anjo disse ao jovem Oddul:
– Amo–te porque és ousado.
E o jovem Oddul, julgando ouvir Gudrune, respondeu, de olhos baixos:
– Foi pela graça do Senhor que resisti às violências da rainha e enfrentei a ira dessa mulher poderosa.
E o anjo perguntou:
– Como? Não fizeste aquilo de que a rainha te acusa?
– Na verdade, não, não fiz – respondeu Oddul, com a mão sobre o coração.
– Não fizeste?
– Não, não fiz. A simples ideia de semelhante acção enche–me de horror.
– Nesse caso – clamou o anjo –, que fazes aqui, espécie de linguiça{3}?
E abriu a porta, para favorecer a fuga do jovem religioso.
Oddul sentiu–se violentamente empurrado para fora. Mal tinha chegado à rua, uma mão despejou–lhe
um penico sobre a cabeça; e ele pensou:
"Os teus desígnios são misteriosos, Senhor, e os teus caminhos impenetráveis."

II – Draco, o Grande


TRASLADAÇÃO DAS RELÍQUIAS DE SANTA ORBEROSE

A posteridade direta de Brian, o Piedoso, extinguiu–se por volta do ano 900, na pessoa de Collic de
Nariz Curto. Um primo deste príncipe, Bosco, o Magnânimo, sucedeu–lhe e teve o cuidado, para
garantir o trono, de assassinar todos os seus parentes. Saiu dele uma longa linhagem de poderosos reis.
Um deles, Draco, o Grande, alcançou grande fama como homem de guerra. Foi muitas mais vezes
batido do que os outros. É por esta constância na derrota que se reconhecem os grandes capitães. Em
vinte anos, incendiou mais de cem mil lugarejos, burgos, subúrbios, cidades, bairros e universidades.
Levava o fogo indiferentemente às terras inimigas e ao seu próprio domínio. Costumava dizer, para
explicar a sua conduta:
"Guerra sem incêndio é como tripas sem mostarda: é uma coisa insípida."
A sua justiça era rigorosa. Quando os camponeses que mandava prender não podiam pagar o resgate,
mandava–os enforcar numa árvore e, se alguma infeliz mulher intercedia a favor do marido insolúvel,
arrastava–a pelos cabelos, presos à cauda do cavalo. Viveu como soldado, sem moleza.
Reconhece–se que os seus costumes eram puros. Não só não permitiu que o seu reino fosse afetado na
sua glória hereditária; mas também defendeu valentemente, mesmo nos reveses, a honra do povo
pinguim.

Draco, o Grande, mandou trasladar para Alça as relíquias de Santa Orberose.
O corpo da bem–aventurada tinha sido enterrado numa gruta da praia das Sombras, ao fundo de uma
gândara perfumada. Os primeiros peregrinos que a foram visitar foram os rapazes e as raparigas das
aldeias vizinhas. Dirigiam–se lá de preferência aos pares, à noite, como se os piedosos desejos
procurassem, naturalmente, para se satisfazerem, a sombra e a solidão. Votavam à santa um culto
fervoroso e discreto, cujo mistério pareciam ciosos de guardar; não gostavam de apregoar demasiado
alto as sensações que aí experimentavam; mas surpreendiam–nos a murmurar uns aos outros as palavras
de amor, delícias e encantamento, que aliavam ao nome santo de Orberose; uns suspiravam que ali se
esquecia o mundo; outros diziam que se saía da gruta calmo e sereno; as raparigas evocavam entre si as
delícias que as haviam penetrado.
Tais foram as maravilhas que operou a virgem de Alça na aurora da sua gloriosa eternidade: tinham a
doçura e o vago da alvorada. Em breve o mistério da gruta, como um perfume subtil, se espalhou pela
região; foi para as almas puras um tema de alegria e edificação, e os homens corruptos tentaram em vão
desviar, pela mentira e a calúnia, os fiéis das fontes de graça que corriam do túmulo da santa. A Igreja
providenciou para que essas graças não ficassem reservadas a alguns dos seus filhos, mas se
estendessem a toda a cristandade pinguim. Religiosos instalaram–se na gruta, construíram um mosteiro,
uma capela, uma pousada na praia, e os peregrinos começaram a afluir.
Como fortalecida por uma mais longa permanência no Céu, a bem–aventurada Orberose realizava agora
milagres maiores a favor dos que iam depor as suas oferendas no seu túmulo; dava esperanças às
mulheres até então estéreis, povoava de sonhos os velhos ciumentos para os tranquilizar acerca da
fidelidade das suas jovens mulheres injustamente suspeitas, mantinha afastadas da região as pestes, as
epizootias, as fomes, as tempestades e os dragões da Capadócia.
Mas, durante as perturbações que desolaram o reino no tempo do rei Collic e dos seus sucessores, o
túmulo de Santa Orberose foi despojado das suas riquezas, o mosteiro incendiado, os religiosos
dispersos; o caminho durante tanto tempo calcado por muitos peregrinos desapareceu sob o tojo, a urze
e o cardo azul das areias.

Há cem anos que o milagroso túmulo não era visitado pelas víboras, as doninhas e os morcegos, quando
a santa apareceu a um camponês da vizinhança chamado Momordic.
"Sou a virgem Orberose", disse–lhe ela; "escolhi–te para restaurares o meu santuário. Avisa os
habitantes destas regiões de que, se esquecerem a minha memória e deixarem o meu túmulo sem honras
e riquezas, um novo dragão virá devastar a Pinguínia."
Clérigos sapientíssimos fizeram um inquérito acerca desta aparição, que consideraram verdadeira, não
diabólica, mas totalmente celeste, e notou–se mais tarde que na França, em circunstâncias análogas,
Santa Foy e Santa Catarina tinham agido de igual modo e mantido uma linguagem semelhante.
O mosteiro foi restaurado e os peregrinos voltaram a afluir. A virgem Orberose operava milagres cada
vez maiores. Curava diversas doenças muito perniciosas, nomeadamente o pé aleijado, a hidropisia, a
paralisia e a epilepsia. Os religiosos, guardas do túmulo, gozavam de uma invejável opulência, quando a
santa, aparecendo ao rei Draco, o Grande, lhe ordenou que a reconhecesse como padroeira celeste do
reino e trasladasse os seus preciosos restos para a catedral de Alça.
Consequentemente, as cheirosas relíquias da virgem foram levadas com grande pompa para a igreja
metropolitana e depositadas, no meio do coro, num relicário de ouro e esmalte, ornado de pedras
preciosas.
O cabido registou os milagres operados pela intervenção da bem–aventurada Orberose.
Draco, o Grande, que nunca tinha deixado de defender e exaltar a fé cristã, morreu com sentimentos da
mais viva piedade, deixando grandes bens à Igreja.

III – A Rainha Crucha


Terríveis desordens seguiram–se à morte de Draco, o Grande. Tem–se com frequência acusado de
fraqueza os sucessores deste príncipe. E é verdade que nenhum deles seguiu, mesmo de longe, o
exemplo desse valoroso antepassado.
O seu filho Chum, que era coxo, não cuidou de aumentar o território dos Pinguins. Bolo, filho de Chum,
pereceu assassinado pelos guardas do palácio, aos nove anos de idade, no momento em que subia ao
trono. O seu irmão Gun sucedeu–lhe. Tinha apenas sete anos e deixou–se governar pela mãe, a rainha
Crucha.
Crucha era bela, instruída, inteligente, mas não sabia resistir às paixões.
Eis em que termos o venerável Taipa se exprime, na sua crônica, a propósito desta ilustre rainha:
"A rainha Crucha, pela beleza do rosto e superioridade do porte, não desmerece nem de Semíramis, de
Babilônia, nem de Pentesileia, rainha das Amazonas, nem de Salomé, filha de Herodes. Mas apresenta
na sua pessoa certas singularidades que podem ser consideradas belas ou desgraciosas, consoante as
opiniões contraditórias dos homens e os juízos do mundo. Tem dois chifres na testa, que dissimula com
os abundantes caracóis da sua cabeleira dourada; tem um olho azul e outro preto, o pescoço inclina–se
para a esquerda, como o de Alexandre da Macedônia, seis dedos na mão direita e uma cabecinha de
macaco por baixo do umbigo.
"O seu porte é majestoso e o trato afável. É magnífica nos dispêndios, mas nem sempre sabe submeter a
razão ao desejo.
"Um dia, tendo notado nas cavalariças do palácio um jovem palafreneiro de grande beleza, sentiu–se
imediatamente apaixonada por ele e confiou–lhe o comando dos exércitos.
O que se deve louvar sem reserva nesta grande rainha é a abundância das dádivas que fez às igrejas,
mosteiros e capelas do reino, e especialmente à Santa Casa de Beargarden, onde, pela graça de Deus,
professei aos catorze anos. Encomendou missas para o descanso da sua alma em tão grande número que
todos os padres, na Igreja pinguim, estão, por assim dizer, transformados em círios acesos voltados para
o céu, a fim de atraírem a misericórdia divina sobre a augusta Crucha."
Pode–se, por estas linhas e algumas outras com que enriqueci o meu texto, aquilatar do valor histórico e
literário das Gesta Pinguinorum. Infelizmente, esta crônica acaba abruptamente no terceiro ano do
reinado de Draco, o Simples, sucessor de Draco, o Fraco. Chegado a este ponto da minha história,
deploro a perda de um guia amável e seguro.

Durante os dois séculos que se seguiram, os Pinguins mergulharam numa anarquia sangrenta. Todas as
artes pereceram. No meio da ignorância geral, os monges, à sombra do claustro, entregavam–se ao
estudo e copiavam com infatigável zelo as Santas Escrituras. Como o pergaminho era raro, raspavam os
antigos manuscritos para aí transcreverem a palavra divina. Viu–se assim florir, como uma moita de
rosas, as Bíblias na terra pinguim.
Um religioso da ordem de São Bento, Ermold, o Pinguim, apagou sozinho quatro mil manuscritos
gregos e latinos, para copiar quatro mil vezes o Evangelho de São João.
Foram assim destruídas em grande número as obras–primas da poesia e da eloquência antigas. Os
historiadores são unânimes em reconhecer que os conventos pinguins foram o refúgio das letras na
Idade Média.

As guerras seculares dos Pinguins e dos Marsuínos enchem o fim deste período. É extremamente difícil
conhecer a verdade sobre estas guerras, não porque faltem os relatos, mas porque há vários. Os cronistas
marsuínos contradizem em todos os pontos os cronistas pinguins. E, além disso, os Pinguins
contradizem–se entre si, tal como os Marsuínos. Descobri dois cronistas que estão de acordo; mas um
copiou o outro. Só um facto é certo, é que os massacres, as violações, os incêndios e as pilhagens se
sucederam sem interrupção.

No tempo do infeliz príncipe Bosco IX, o reino esteve a dois dedos da ruína. À notícia de que a armada
marsuína, composta por seiscentos grandes navios, estava à vista de Alça, o bispo ordenou uma
procissão solene. O Cabido, os magistrados eleitos, os membros do Parlamento e os lentes da
Universidade foram à catedral, buscar o relicário de Santa Orberose e passearam–no por toda a cidade,
seguidos do povo inteiro, que entoava hinos. A santa padroeira da Pinguínia não foi invocada em vão;
no entanto, os Marsuínos sitiaram a cidade ao mesmo tempo por terra e por mar, tomaram–na de assalto
e, durante três dias e três noites, mataram, pilharam, violaram e incendiaram, com a indiferença que o
hábito engendra.

É muito para admirar que, durante essas longas épocas de ferro, a fé se tenha mantido intacta entre os
Pinguins. O esplendor da verdade deslumbrava então as almas que não estavam corrompidas por
sofismas. É o que explica a unidade das crenças. Uma prática constante da Igreja contribuiu sem dúvida
para manter esta feliz comunhão dos fiéis: queimava–se imediatamente todo o pinguim que pensasse de
maneira diferente dos outros.

IV – As Letras – Johannes Taipa


Foi durante a menoridade do rei Gun que Johannes Taipa, religioso de Beargarden, compôs, no mosteiro
onde tinha professado aos onze anos e do qual nunca saíra um único dia da sua vida, as suas célebres
crônicas latinas em doze livros De Gestis Pinguinorum.
O mosteiro de Beargarden ergue as suas altas muralhas no cume de um pico inacessível. Em redor
descobrem–se apenas os cimos azuis dos montes, cortados pelas nuvens.
Quando empreendeu a redação das Gesta Pinguinorum, Johannes Taipa era já velho. O bom monge teve
o cuidado de nos avisar disso no seu livro. "A minha cabeça perdeu há muito", diz ele, "o ornato dos
seus caracóis louros e o meu crânio tornou–se semelhante a esses espelhos de metal convexos, que as
damas pinguins consultam com tanto estudo e cuidados. A minha estatura, naturalmente baixa, reduziu–
se e recurvou–se com os anos. A minha barba branca aquece–me o peito."
Com encantadora ingenuidade, Taipa informa–nos de certas circunstâncias da sua vida e de alguns
traços do seu caráter. "Oriundo", diz–nos ele, "de uma família nobre e destinado desde a infância ao
estado eclesiástico, ensinaram–me a gramática e a música. Aprendi a ler sob a disciplina de um mestre
que se chamava Amicus e que seria melhor que se chamasse Inimicus. Como não conseguia facilmente
aprender as letras, chicoteava–me violentamente com varas, de modo que posso dizer que me imprimiu
o alfabeto a traços dolorosos nas nádegas."
Mais adiante, Taipa confessa a sua inclinação natural para a volúpia. Eis em que expressivos termos:
"Na minha mocidade, o ardor dos sentidos era tal que, à sombra dos bosques, tinha a sensação de ferver
numa panela, mais do que de respirar o ar fresco. Evitava as mulheres. Em vão, visto que bastava um
guizo ou uma garrafa para as evocar".
Enquanto redigia a sua crônica, uma guerra terrível, simultaneamente estrangeira e civil, devastava a
terra pinguim. Os soldados de Crucha, chegados para defender o mosteiro de Beargarden contra os
bárbaros marsuínos, implantaram–se aí em força. A fim de o tornar inexpugnável, abriram seteiras nas
muralhas e arrancaram da igreja a cobertura de chumbo para fazer balas de funda. Acendiam, à noite,
nos pátios e claustros grandes fogueiras onde assavam bois inteiros, espetados nos velhos abetos da
montanha; e, reunidos à volta das chamas, no meio do fumo carregado de um odor a resina e gordura,
esvaziavam os tonéis de vinho e cerveja. Os cantos, as blasfêmias e o barulho das suas disputas cobriam
o som dos sinos matinais.
Finalmente, tendo os Marsuínos atravessado os desfiladeiros, puseram cerco ao mosteiro. Eram
guerreiros do Norte, vestidos e armados de cobre. Encostavam às faces da rocha escadas de cento e
cinquenta toesas, que, no meio da sombra e da tempestade, se quebravam sob o peso dos corpos e das
armas e precipitavam cachos de homens nos barrancos e precipícios; ouvia–se, no meio das trevas,
descer um prolongado uivo e o assalto recomeçava. Os Pinguins derramavam rios de pez ardente sobre
os assaltantes, que ardiam como tochas. Sessenta vezes os Marsuínos furiosos tentaram a escalada;
sessenta vezes foram repelidos.

Há dez meses que mantinham o mosteiro sitiado, quando, no dia santo da Epifania, um pastor do vale
lhes ensinou um caminho secreto pelo qual escalaram a montanha, penetraram nos subterrâneos da
abadia, espalharam–se pelos claustros, as cozinhas, a igreja, as salas capitulares, a biblioteca, a
lavandaria, as celas, os refeitórios, os dormitórios, incendiaram as dependências, mataram e violaram
sem olhar à idade nem ao sexo. Os Pinguins, acordados em sobressalto, corriam às armas; com os olhos
velados de sombra e espanto, feriam–se uns aos outros, enquanto os Marsuínos disputavam entre si, à
machadada, os vasos sagrados, os turíbulos, os candelabros, as dalmáticas, os relicários, as cruzes de
ouro e pedrarias.
O ar estava carregado de um odor acre a carne queimada; os gritos de morte e os gemidos elevavam–se
do meio das chamas e, ao lado dos tetos que ruíam, milhares de monges corriam como formigas e
precipitavam–se para o vale. Entretanto, Johanes Taipa escrevia a sua crônica. Os soldados de Crucha,
tendo–se retirado à pressa, taparam com blocos de rocha todas as saídas do mosteiro, a fim de fecharem
os Marsuínos nas dependências incendiadas. E para esmagar o inimigo sob o desabamento das pedras
de cantaria e dos lanços de muralha, utilizaram como arietes os troncos dos mais antigos carvalhos. Os
vigamentos em brasa ruíam com um fragor de trovão e os arcos sublimes das abóbadas das naves caíam
sob o choque das árvores gigantes, balançadas por seiscentos homens. Em breve não ficou da rica e
vasta abadia senão a cela de Johannes Taipa, suspensa por um maravilhoso acaso dos destroços de uma
empena fumegante. O velho cronista continuava a escrever.
Esta admirável contenção de espírito pode, todavia, parecer excessiva num analista que se esforça por
relatar os factos acontecidos no seu tempo. Mas, por muito distraído e desprendido que se esteja das
coisas circundantes, sente–se a sua influência. Consultei o manuscrito original de Johannes Taipa na
Biblioteca Nacional, onde se conserva, Fonds Ping. K.L. 6, 12 390 Quater. É um manuscrito de
pergaminho com 628 folhas. A caligrafia é extremamente confusa; as letras, em vez de seguirem uma
linha reta, escapam–se em todas as direções, entrechocam–se e caem umas sobre as outras, numa
desordem ou, melhor dizendo, num tumulto horrível. São tão mal desenhadas que a maior parte das
vezes é impossível não só reconhecê–las, mas até distingui–las dos borrões de tinta que aí abundam.
Estas páginas inestimáveis ressentem–se assim das perturbações no meio das quais foram escritas. A sua
leitura é difícil. Pelo contrário, o estilo do religioso de Beargarden não revela a mínima emoção.
O tom das Gesta Pinguinorum nunca se afasta da simplicidade. A narrativa é rápida e de uma concisão
que vai às vezes até à secura. As reflexões são raras e geralmente judiciosas.

V – As Artes - Os Primitivos da Pintura Pinguim


Os críticos pinguins afirmam à porfia que a arte pinguim se distinguiu desde o seu aparecimento por
uma originalidade forte e deliciosa e que em vão se procuraria noutra parte as qualidades de graça e
razão que caracterizam as suas primeiras obras. Mas os Marsuínos pretendem que os seus artistas foram
sempre os iniciadores e os mestres dos Pinguins. É difícil julgar, porque os Pinguins, antes de
admirarem os seus pintores primitivos, destruíram–lhes todas as obras.
Nunca será de mais lamentar esta perda. Pela minha parte, sinto–a com cruel vivacidade, porquanto
venero as antiguidades pinguins e tenho o culto dos primitivos.
São deliciosos. Não digo que são todos semelhantes; não seria verdade; mas têm características comuns
que se encontram em todas as escolas; quero dizer, fórmulas de que não saem e qualquer coisa de
acabado, dado que o que sabem sabem–no bem. Pode–se felizmente fazer uma ideia dos primitivos
pinguins através dos primitivos italianos, flamengos, alemães e dos primitivos franceses, que são
superiores a todos os outros; como diz M. Gruyer, têm mais lógica, sendo a lógica uma qualidade
especialmente francesa. Mesmo que se tente negá–lo, é preciso, pelo menos, reconhecer à França o
privilégio de ter ainda primitivos quando as outras nações já não os tinham. A exposição dos primitivos
franceses no pavilhão de Marsan, em 1904, continha vários pequenos painéis contemporâneos dos
últimos Valois e de Henrique IV.
Viajei muito para ver os quadros dos irmãos Van Eyck, de Memling, de Rogier van der Weyden, do
mestre da morte de Maria, de Ambrogio Lorenzetti e dos antigos Ombrios.
Não foram, porém, Bruges, Colónia, Sena, Perúsia, que acabaram a minha iniciação; foi na cidadezinha
de Arezzo que me tornei um adepto consciente da pintura ingênua.
Vai isso há dez ou mais anos. Nessa época de indigência e simplicidade, os museus municipais, sempre
fechados, abriam–se sempre para os Forestieri. Uma noite, à luz da vela, uma velha mostrou–me, por
meia lira, o sórdido museu de Arezzo e aí descobri uma pintura de Margaritone, um São Francisco, cuja
piedosa tristeza me fez chorar. Fiquei profundamente comovido; Margaritone de Arezzo tornou–se,
desde esse dia, o meu mais querido primitivo.
Imagino os primitivos pinguins de acordo com as obras deste mestre. Portanto, não se considerará
supérfluo que eu lhe preste aqui alguma atenção, se não quanto ao pormenor das suas obras, pelo menos
no seu aspecto mais geral e, por assim dizer, mais representativo.
Possuímos cinco ou seis quadros assinados por ele. A sua obra capital, conservada na National Gallery
de Londres, representa a Virgem sentada num trono e com o Menino Jesus ao colo. O que
imediatamente impressiona, quando se contempla esta figura, são as proporções. O corpo, desde o
pescoço, até aos pés, tem apenas duas vezes a altura da cabeça; por isso parece extremamente curto e
atarracado. Esta obra não é menos notável pela pintura do que pelo desenho. O grande Margaritone
possuía apenas um pequeno número de cores e utilizava–as em toda a sua pureza, sem nunca romper os
tons. Resulta daí que o seu colorido oferece mais vivacidade do que harmonia.
As faces da Virgem e as do Menino são de um belo vermelhão que o velho mestre, devido a uma
preferência ingênua pelas definições claras, dispôs em cada rosto em duas circunferências tão exatas
que parecem traçadas a compasso.
Um sábio crítico do século xviii, o abade Lauzi, tratou as obras de Margaritone com profundo desdém.
"Não passam", disse ele, "de grosseiras borradelas. Nesses desafortunados tempos, não se sabia nem
desenhar, nem pintar." Tal era a opinião comum desses peritos empoados. Mas o grande Margaritone e
os seus contemporâneos em breve seriam vingados de um tão cruel desprezo. Apareceu no século xix,
nas aldeias bíblicas e nos cottages reformados da piedosa Inglaterra, uma multidão de pequenos Samuel
e de pequenos São João, encaracolados como cordeiros, que se tornaram, por volta de 1840 e 1850,
sábios de lunetas e instituíram o culto dos primitivos.
O eminente teórico do pré–rafaelismo, Sir James Tuckett, não receia situar a madona da National
Gallery no número das obras–primas da arte cristã. "Ao dar à cabeça da Virgem", diz Sir James Tuckett,
"um terço da altura total da figura, o velho mestre chamou e prendeu a atenção do espectador às partes
mais sublimes da pessoa humana e nomeadamente aos olhos, que se consideram de bom grado órgãos
espirituais.
Nesta pintura, o colorido conspira com o desenho para provocar uma impressão ideal e mística. O
vermelhão das faces não lembra o aspecto natural da pele; antes parece que o velho mestre aplicou nos
rostos da Virgem e do Menino as rosas do Paraíso."
Vê–se brilhar nesta crítica, por assim dizer, um reflexo da obra que exalta; contudo, o seráfico esteta de
Edimburgo, Mac Silly, exprimiu de modo ainda mais sensível e mais penetrante a impressão provocada
no seu espírito pela visão desta pintura primitiva. "A madona de Margaritone", diz o venerado Mac
Silly, "atinge o objetivo transcendente da arte; inspira aos espectadores sentimentos de inocência e
pureza; torna–os semelhantes às criancinhas. E isto é tão verdade que, com sessenta e seis anos, depois
de ter tido a alegria de a contemplar durante três horas seguidas, senti–me subitamente transformado
numa tenra criança de mama. Enquanto um cabriole me conduzia através de Trafalgar Square, agitava o
estojo das minhas lunetas, como um guizo, rindo e chilreando. E, quando a criada da pensão familiar me
serviu a refeição, verti colheradas de sopa no ouvido com a ingenuidade dos primeiros anos.
"É por estes efeitos", acrescenta Mac Silly, "que se reconhece a excelência de uma obra de arte."
Margaritone, segundo relata Vasari, morreu com setenta e sete anos, "lamentando ter vivido o suficiente
para ver surgir uma nova arte e a fama coroar novos artistas".
Estas linhas, que traduzo literalmente, inspiraram a Sir James Tuckett as páginas mais suaves, talvez, da
sua obra. Fazem parte do Breviário dos Estetas; todos os pré–rafaelistas as sabem de cor. Quero deixá–
las aqui como o mais precioso ornamento deste livro: Reconhece–se que não se escreveu nada mais
sublime desde os profetas de Israel.


A VISÃO DE MARGARITONE

Margaritone, carregado de anos e trabalhos, visitava um dia o estúdio de um jovem pintor recentemente
estabelecido na cidade. Reparou numa madona ainda com a tinta fresca que, embora severa e rígida,
graças a uma certa exatidão nas proporções e a uma mistura assaz diabólica de sombras e luzes, não
deixava de assumir relevo e um certo ar de vida. Com esta visão, o ingênuo e sublime obreiro de Arezzo
descobriu com horror o futuro da pintura.
Murmurou, com a fronte entre as mãos:
"Quantas vergonhas esta figura me faz pressentir! Descubro nela o fim da arte cristã, que pinta as almas
e inspira um ardente desejo do Céu. Os pintores futuros não se limitarão, como este, a perpetuar num
mural ou num painel de madeira a matéria maldita de que são formados os nossos corpos: celebrá–la–ão
e glorificá–la–ão. Revestirão as suas figuras das perigosas aparências da carne; e essas figuras parecerão
pessoas naturais; ver–se–ão os seus corpos; as suas formas aparecerão através das roupas. Santa
Madalena terá seios, Santa Marta um ventre, Santa Bárbara coxas, Santa Inês nádegas (buttocks); São
Sebastião revelará a sua graça adolescente e São Jorge exibirá sob a armadura as riquezas musculares de
uma virilidade robusta; os apóstolos, os confessores, os doutores e o próprio Deus Padre parecerão
mendigos, como você e eu; os anjos ostentarão uma beleza, equívoca, ambígua, misteriosa, que
perturbará os corações. Que desejo do Céu inspirarão semelhantes representações? Nenhum; mas
aprender–se–á a apreciar as formas da vida terrestre. Onde irão parar os pintores nas suas indiscretas
pesquisas? Não pararão. Acabarão por mostrar homens e mulheres nus como os ídolos dos Romanos.
Haverá uma arte profana e uma arte sagrada, e a arte sagrada não será menos profana do que a outra.
"Para trás, demónios!", clamou o velho mestre.
Com efeito, numa visão profética, descobria os justos e os santos semelhantes a atletas melancólicos;
descobria os Apolos a tocar violino, no cume florido, no meio das Musas de túnicas ligeiras; descobria
as Vênus deitadas debaixo dos escuros mirtos e as Danaides expondo à chuva dourada os seus
deliciosos flancos: descobria os Jesus nas colunatas, entre os patrícios, as damas louras, os músicos, os
pajens, os negros, os cães e os papagaios; descobria, numa confusão inextricável de membros humanos,
asas abertas e tapeçarias esvoaçantes, as Natividades tumultuosas, as Santas Famílias opulentas, as
Crucificações enfáticas; descobria as Santas Catarina, as Santas Bárbara; as Santas Inês, humilhando as
patrícias pela sumptuosidade dos seus veludos, dos seus brocados, das suas pérolas e pelo esplendor do
seu peito; descobria as Auroras espalhando as suas rosas e a multidão das Dianas e Ninfas
surpreendidas nuas junto às umbrosas fontes. E o grande Margaritone morreu sufocado por este
pressentimento horrível do Renascimento e da escola de Bolonha.

VI – Marbode


Possuímos um precioso documento da literatura pinguim do século XV. É o relato de uma viagem aos
Infernos, empreendida pelo monge Marbode, da Ordem de São Bento, que professava pelo poeta
Virgílio uma admiração fervorosa. Este relato, escrito em latim bastante bom, foi publicado por M. du
Cios des Lunes. Aparece aqui traduzido pela primeira vez. Julgo prestar um favor aos meus
compatriotas ao dar–lhes a conhecer estas páginas, que; sem dúvida, não são únicas no seu gênero na
literatura latina da Idade Média. Entre as ficções que se lhe podem comparar citaremos A Viagem de
São Brendan, a Visão de Alberico, o Purgatório de São Patrício, descrições imaginárias da suposta
morada dos mortos, como a Divina Comédia, de Dante Alighieri.
Das obras compostas sobre este tema, o relato de Marbode é um dos mais tardios, mas não é o menos
singular.


A DESCIDA DE MARBODE AOS INFERNOS

No ano mil quatrocentos e cinquenta e três da encarnação do Filho de Deus, poucos dias antes de os
inimigos da cruz entrarem na cidade de Helena e do grande Constantino, foi–me dado a mim, irmão
Marbode, religioso indigno, ver e ouvir o que ninguém tinha ainda ouvido ou visto. Compus dessas
coisas um relato fiel, a fim de que a sua memória não pereça comigo, pois o tempo do homem é curto.
No primeiro dia de Maio do dito ano, à hora de vésperas, na abadia de Corrigan, sentado numa pedra do
claustro, perto da fonte coroada de rosas bravas, estava a ler, como era meu hábito, um canto qualquer
do poeta que mais aprecio, Virgílio, que descreveu os trabalhos da terra, os pastores e os chefes. A noite
suspendia as dobras da sua púrpura nos arcos do claustro e eu murmurava em tom comovido os versos
que mostram como Dido, a Fenícia, arrasta sob os mirtos dos Infernos a sua ferida ainda fresca. Nesse
momento, o irmão Hilário passou perto de mim, seguido do irmão Jacinto, o guarda–portão.
Alimentado em épocas bárbaras, antes da ressurreição das Musas, o irmão Hilário não é iniciado na
sabedoria antiga; todavia, a poesia do Mantuano lançou, como um facho subtil, alguns clarões na sua
inteligência.
– Irmão Marbode – perguntou –, esses versos que suspira assim, de peito inchado e olhos brilhantes,
pertencem a essa grande Eneida, da qual não tira os olhos de manhã à noite?
Respondi–lhe que lia de Virgílio como o filho de Anquises viu Dido semelhante à Lua atrás da
folhagem{4}.
– Irmão Marbode – replicou –, estou certo de que Virgílio exprime sempre sábias máximas e
pensamentos profundos. Mas os cantos que modulou na flauta siracusana têm um sentido tão belo e uma
tão alta doutrina que se fica deslumbrado.
– Tenha cuidado, meu padre – avisou o irmão Jacinto num tom emocionado. – Virgílio era um mágico
que realizava prodígios com a ajuda dos demônios. Foi assim que furou uma montanha perto de
Nápoles e fabricou um cavalo de bronze que tinha o poder de curar todos os cavalos doentes. Era
necromante e ainda se mostra, numa certa cidade da Itália, o espelho no qual fazia aparecer os mortos.
E, no entanto, uma mulher enganou esse grande feiticeiro. Uma cortesã napolitana convidou–o da sua
janela a subir até ela no cesto que servia para içar as provisões; e deixou–o toda a noite suspenso entre
dois andares.
Sem parecer ter ouvido este discurso, o irmão Hilário replicou: – Virgílio é um profeta; é um profeta,
que deixa muito atrás de si as Sibilas, com os seus carmes sagrados, e a filha do rei Príamo e o grande
adivinho das coisas futuras, Platão de Atenas. Encontrará no quarto dos seus cantos siracusanos o
nascimento de Nosso Senhor anunciado numa linguagem que parece mais do céu do que da terra{5}.
"No tempo dos meus estudos, quando li pela primeira vez: jam re dit et virgo, senti–me mergulhado
num encanto infinito; mas logo experimentei uma viva dor à ideia de que, privado para sempre da
presença de Deus, o autor deste canto profético, o mais belo que saiu de lábios humanos.
O irmão Marbode, por uma estranha inadvertência, substitui a imagem criada pelo poeta por uma
imagem muito diferente.
Penava, entre os gentios, nas trevas eternas. Esta ideia cruel nunca mais me largou. Perseguia–me nos
estudos, nas orações, nas meditações e nos trabalhos ascéticos.
Ao pensar que Virgílio estava privado da vista de Deus e que talvez sofresse até no Inferno a sorte dos
réprobos, não podia sentir nem alegria nem descanso e chegava a gritar várias vezes por dia, de braços
estendidos para o céu:
""Revelai–me, Senhor, o destino que reservastes àquele que cantou na terra como os anjos cantam nos
céus!"
"As minhas angústias cessaram alguns anos depois, quando li num livro antigo que o grande apóstolo
que chamou os gentios à Igreja de Cristo, São Paulo, tendo ido a Nápoles, santificou com as suas
lágrimas o túmulo do príncipe dos poetas{6}. Isso levou–me a acreditar que Virgílio, como o imperador
Trajano, foi admitido no Paraíso por ter tido, no erro, o pressentimento da verdade. Não é forçoso
acreditar nisto, mas sinto prazer em persuadir–me de que assim foi.
Tendo assim falado, o velho Hilário desejou–me a paz de uma santa noite e afastou–se, com o irmão
Jacinto.

Retomei o delicioso estudo do meu poeta. Enquanto, de livro na mão, meditava como aqueles que o
amor fez perecer de um mal cruel seguem os caminhos secretos no fundo da floresta de mirtos, o reflexo
das estrelas veio misturar–se, tremendo, às rosas bravas desfolhadas na água da fonte claustral. De
repente, a claridade, os perfumes e a paz do céu desapareceram. Um monstruoso Bóreas, carregado de
sombra e borrasca, abateu–se sobre mim, mugindo, levantou–me e levou–me como um argueiro de
palha por cima dos campos, das cidades, dos rios, das montanhas, através das nuvens trovejantes,
durante uma noite feita de uma longa série de noites e dias.
E quando, após esta constante e cruel raiva, o furacão se acalmou finalmente, encontrei–me, longe do
meu país natal, no fundo de um vale cercado de ciprestes. Então, uma mulher de uma beleza selvagem e
arrastando longos véus aproximou–se de mim. Pôs–me a mão esquerda no ombro e, levantando o braço
direito para um carvalho de espessa folhagem, disse–me:
– Olha!
Imediatamente, reconheci a Sibila que guarda o bosque sagrado do Averno e distingui, entre os ramos
frondosos da árvore que o seu dedo apontava, o ramo de ouro agradável à bela Prosérpina.
Tendo–me posto de pé, clamei:
– Assim, ó Virgem profética, tendo adivinhado o meu desejo, satisfizeste–o. Revelaste–me a árvore que
tem a vara resplandecente sem a qual ninguém pode entrar vivo na morada dos mortos. E é verdade que
eu desejava ardentemente conversar com a sombra de Virgílio.
Dito isto, arranquei do tronco antigo o ramo de ouro e dirigi–me sem medo para o golfo fumegante que
conduz às margens lamacentas do Estige, onde as sombras rodopiam como folhas mortas. À vista do
ramo consagrado a Prosérpina, Caronte aceitou–me na sua barca, que gemeu com o meu peso, e
desembarquei na praia dos mortos, acolhido pelos uivos silenciosos do triplo Cérbero. Fingi atirar–lhe a
sombra de uma pedra e o inútil monstro fugiu para o seu antro.
Aí vagiam entre juncos as crianças cujos olhos se abriram e fecharam ao mesmo tempo à suave luz do
dia; aí, ao fundo de uma caverna sombria, Minos julga os humanos. Penetrei no bosque de mirtos onde
se arrastam languidamente as vítimas do amor, Fedro, Prócris, a triste Erifila, Evadne, Pasífae, Laodafia
e Cénis, e Dido, a Fenícia; depois atravessei os campos poeirentos destinados aos guerreiros ilustres.
Além, abrem–se duas estradas: a da esquerda conduz ao Tártaro, morada dos ímpios.
Tomei a da direita, que leva ao Eliseu e às moradas de Dis. Tendo suspenso o ramo sagrado na porta da
deusa, cheguei a campos amenos, inundados de uma luz purpúrea. As sombras dos filósofos e poetas
conversavam gravemente. As Graças e as Musas formavam na relva graciosos coros. Acompanhando–
se com a sua lira rústica, Homero cantava. Tinha os olhos fechados, mas os lábios soltavam imagens
divinas. Vi Sólon, Demócrito e Pitágoras, que assistiam, na pradaria, aos jogos dos mancebos, e
apercebi, através da folhagem de um velho loureiro, Hesíodo, Orfeu, o melancólico Eurípedes e a
máscula Safo. Passei e reconheci, sentado à beira de um fresco riacho, o poeta Horácio, Vário, Galo e
Licóris. Um pouco afastado, Virgílio, apoiado ao tronco de uma obscura azinheira, pensativo,
contemplava os bosques. De alta estatura e silhueta fina, tinha a tez bronzeada, o ar rústico, o aspecto
descuidado, a aparência inculta, que, em vida, lhe escondia o gênio. Saudei–o piedosamente e fiquei
muito tempo sem palavras.
Finalmente, quando a voz conseguiu sair da minha garganta cerrada, exclamei:
– Ó tu, tão caro às Musas ausonianas, honra do nome latino, Virgílio, foi através de ti que senti a beleza;
foi através de ti que conheci a mesa dos deuses e o leito das deusas. Aceita os louvores do mais humilde
dos teus adoradores.
– Levanta–te, estrangeiro – respondeu–me o poeta divino. – Reconheço que estás vivo pela sombra que
o teu corpo projeta na relva, nesta noite eterna. Não és o primeiro humano que desceu antes da morte a
estas paragens, embora entre nós e os vivos as relações sejam difíceis. Mas deixa de me louvar: não
aprecio os elogios; os confusos rumores da glória sempre ofenderam os meus ouvidos. Por isso,
deixando Roma, onde era conhecido dos ociosos e curiosos, trabalhei na solidão da minha querida
Parténope. Além disso, para apreciar os teus louvores, não tenho a certeza de que os homens do teu
século compreendam os meus versos. Quem és tu?
– Chamo–me Marbode, do reino de Alça. Professei na abadia de Corrigan. Leio os teus poemas de dia e
leio–os de noite. Foi a ti que vim ver nos Infernos: estava impaciente por saber qual é a tua sorte. Na
terra, os doutos discutem muito o assunto. Uns sustentam como extremamente provável que, tendo
vivido sob o poder dos demônios, estejas a arder agora nas chamas inextinguíveis; outros, mais
avisados, não se pronunciam, considerando que tudo o que se diz dos mortos é incerto e cheio de
mentiras; vários, não realmente dos mais hábeis, defendem que, por teres levantado o tom das Musas
silicianas e anunciado que uma nova progenitura desceria dos céus, foste admitido, como o imperador
Trajano, a gozar no paraíso cristão a beatitude.
– Vês que não é assim – respondeu a sombra, sorrindo.
– Com efeito, ó Virgílio, encontro–te entre os heróis e os sábios, nestes Campos Elísios que tu mesmo
descreveste. Portanto, contrariamente ao que alguns julgam na Terra, ninguém te veio procurar da parte
d'Aquele que reina lá em cima?
Após um longo silêncio:
– Não te esconderei nada. Ele mandou–me chamar; um dos seus mensageiros, um homem simples, veio
dizer–me que me esperavam e que, embora eu não estivesse iniciado nos seus mistérios, em
consideração pelos meus cantos proféticos, estava–me reservado um lugar entre os da nova seita. Mas
recusei–me a aceitar o convite; não me apetecia mudar de lugar. Não é que eu compartilhe a admiração
dos Gregos pelos Campos Elísios e goze aí as alegrias que fazem perder a Prosérpina a recordação da
sua mãe. Eu próprio nunca acreditei muito no que disse na minha Eneida. Instruído pelos filósofos e os
físicos, tinha um justo pressentimento da verdade. A vida nos Infernos é extremamente diminuta; não se
sente nem prazer nem dor; é–se como se não se fosse. Os mortos não têm existência senão a que lhes
emprestam os vivos. Preferi todavia ficar.
– Mas que razão dás, Virgílio, para uma tão estranha recusa?
– Dei–as excelentes. Disse ao enviado de Deus que não merecia a honra que me concedia e que davam
aos meus versos um sentido que não tinham. Com efeito, não traí na minha quarta écloga a fé dos meus
antepassados. Só judeus ignorantes puderam interpretar a favor de um deus bárbaro um canto que
celebra o retorno da idade de ouro, anunciada pelos oráculos sibilinos. Desculpei–me, portanto, de não
poder ocupar um lugar que me era destinado por erro e ao qual não me considerava com direito. Depois,
aleguei o meu humor e os meus gostos, que não se harmonizam com os costumes dos novos céus.
– Não sou insociável – disse eu a esse homem. – Demonstrei em vida um temperamento manso e fácil.
Embora a simplicidade extrema dos meus hábitos levasse a acusarem–me de avareza, não guardava
nada só para mim; a minha biblioteca estava aberta a todos e conformei a minha conduta a esta bela
frase de Eurípides: "Tudo deve ser comum entre amigos." Os louvores que me maçavam quando os
recebia, tornavam–se–me agradáveis quando se dirigiam a Vário ou a Macer. Mas, no fundo, sou rústico
e selvagem, comprazo–me na sociedade dos animais; dediquei–me tanto a observá–los, preocupava–me
tanto com eles que passei, não inteiramente sem motivo, por um óptimo veterinário. Disseram–me que
as pessoas da vossa seita consideravam ter uma alma imortal, mas recusavam–na aos animais: é um
contra–senso que me leva a duvidar da sua razão. Gosto dos rebanhos e talvez um pouco de mais do
pastor. Isso não seria bem visto por vós. Há uma máxima à qual me esforcei por acomodar as minhas
acções: nada em demasia. Mais ainda que a minha débil saúde, a minha filosofia ensinou–me a utilizar
as coisas com moderação. Sou sóbrio: uma alface e algumas azeitonas, com uma gota de falerno,
compunham toda a minha alimentação. Frequentei moderadamente a cama das mulheres estrangeiras;, e
não me demorei mais do que o devido a ver, na taberna, dançar, ao som do crótalo, a jovem Síria{7}.
“Mas, se refreei os meus desejos, foi para satisfação minha e por disciplina: temer o prazer e evitar a
volúpia ter–me–ia parecido o mais abjeto ultraje que se poderia fazer à natureza. Garantem–me que,
durante a sua vida, alguns dos eleitos do teu Deus se abstinham de alimentos e evitavam as mulheres
por amor da privação e se expunham voluntariamente a inúteis sofrimentos. Recearia encontrar esses
criminosos, cujo frenesim me causa horror. Não se deve exigir a um poeta que se prenda demasiado
estritamente a uma doutrina física e moral; sou romano, aliás, e os Romanos não sabem como os Gregos
desenvolver subtilmente especulações profundas; quando adoptam uma filosofia, é sobretudo para
extraírem dela vantagens práticas. Síron, que gozava entre nós de grande fama, ao ensinar–me o sistema
de Epicuro libertou–me dos vãos terrores e desviou–me das crueldades que a religião imagina para os
homens ignorantes; aprendi com Zenão a suportar com constância os males inevitáveis; abracei as
ideias de Pitágoras acerca das almas dos homens e dos animais, que são, umas e outras, de essência
divina, o que nos convida a olharmo–nos sem orgulho e sem vergonha. Aprendi com os Alexandrinos
como a terra, a princípio mole e dúctil, endureceu à medida que Nereu se retirava para cavar as suas
úmidas moradas; como, insensivelmente, se formaram as coisas; de que maneira, caindo das nuvens
alijadas, as chuvas alimentam as florestas silenciosas e por que progresso, finalmente, raros animais
começaram a errar pelas montanhas sem nome. Já não poderia habituar–me à vossa cosmogonia, mais
feita para os cameleiros das areias da Síria do que para um discípulo de Aristarco de Samos. E que seria
de mim na morada da vossa beatitude, se não encontro lá os meus amigos, os meus antepassados, os
meus mestres e os meus deuses, e se não me é dado ver lá o filho augusto de Reia, Vénus, do doce
sorriso, mãe das Eneiades, Pá, as jovens Dríades, os Silvanos e o velho Sileno, besuntado por Eglé com
púrpura das amoras?
"Eis as razões que eu pedi a esse homem simples que apresentasse ao sucessor de Júpiter.
– E desde então, ó grande sombra, nunca recebeste mensagens?
– Não recebi nenhuma.
– Para se consolar da tua ausência, Virgílio, têm três poetas: Comodiano, Prudêncio e Fortunato, que
nasceram, os três, em dias tenebrosos em que já não se sabia nem a prosódia nem a gramática. Mas,
diz–me, nunca recebeste, ó Mantuano, outras notícias do Deus de quem recusaste tão deliberadamente a
companhia?
– Nunca, que me recorde.
– Não me disseste que eu não era o primeiro que, tendo descido vivo a estas moradas, se apresentou
diante de ti?
– Ainda bem que mo lembras. Há século e meio, tanto quanto me parece (é difícil às sombras contar os
dias e os anos), fui perturbado na minha profunda paz por um estranho visitante. Quando vagueava sob
as lívidas folhagens que ladeiam o Estige, vi erguer–se na minha frente uma forma humana mais opaca
e sombria do que a dos habitantes destas margens: reconheci um ser vivo. Era alto, magro, de nariz
aquilino, queixo pontiagudo, faces cavadas; os olhos negros lançavam chamas; uma carapuça
encarnada, cercada por uma coroa de louros, cingia–lhe as têmporas descarnadas. Os ossos furavam–lhe
a túnica apertada e castanha que lhe descia até aos calcanhares. Saudou–me com uma deferência que um
ar de selvagem altivez salientava e dirigiu–me a palavra numa língua mais incorreta e obscura que a dos
Gauleses com que o divino Júlio encheu as legiões e a cúria. Acabei por compreender que tinha nascido
perto de Fésules, numa colônia etrusca fundada por Sila nas margens do Arno, e que se tornou próspera;
que tinha recebido honras municipais, mas que, tendo–se verificado discórdias sangrentas entre o
senado, os cavaleiros e o povo, participara nelas impetuosamente, e agora, vencido, proscrito, arrastava
pelo mundo um longo exílio. Pintou–me a Itália dilacerada por mais discórdias e guerras do que no
tempo da minha mocidade e suspirava pela vinda de um novo Augusto. Lamentei as suas desgraças,
lembrando–me do que eu próprio tinha suportado.
"Uma alma audaciosa agitava–o incessantemente e o seu espírito alimentava grandes ideias, mas
manifestava, infelizmente, pela sua rudeza e ignorância o triunfo da barbaria. Não conhecia nem a
poesia, nem a ciência, nem sequer a língua dos Gregos e não possuía, acerca da origem do mundo e da
natureza dos deuses, nenhuma tradição antiga. Recitava gravemente fábulas que, no meu tempo, em
Roma, teriam feito rir as criancinhas que ainda não pagam para ir ao banho. O vulgo acredita facilmente
nos monstros. Os Etruscos, particularmente, povoaram os Infernos de demônios, semelhantes aos
sonhos de um doente. Que as imaginações da sua infância não os abandonaram ao fim de tantos séculos,
é o que explicam suficientemente a continuação e os progressos da ignorância e da miséria: mas que um
dos seus magistrados, cujo espírito se eleva acima da média comum, compartilhe as ilusões populares e
se assuste com esses demônios horrendos que, no tempo de Porsena, os habitantes dessa terra pintavam
nas paredes dos seus túmulos, eis o que pode entristecer um sábio. O meu etrusco recitou–me versos
compostos por ele num dialeto novo, a que chamava língua vulgar, e cujo sentido eu não conseguia
apreender. Os meus ouvidos ficaram mais surpreendidos do que encantados ao ouvirem que, para
marcar o ritmo, repetia a intervalos regulares três ou quatro vezes o mesmo som. Este artifício não me
parece engenhoso; mas não compete aos mortos julgar as novidades.
"De resto, que este colono de Sila, nascido em tempos desafortunados, faça versos desarmoniosos, que
seja, se é possível, tão mau poeta como Bávio e Mévio, não será por isso que o censurarei; tenho contra
ele agravos que me afectam mais. Coisa francamente monstruosa e quase inacreditável!, esse homem,
tendo voltado à Terra, espalhou a meu respeito odiosas mentiras; afirmou, em várias passagens dos seus
bárbaros poemas, que eu lhe tinha servido de companheiro no moderno Tártaro, que não conheço;
divulgou insolentemente que eu tinha considerado os deuses de Roma como deuses falsos e mentirosos
e afirmado como Deus verdadeiro o atual sucessor de Júpiter. Amigo, quando, de regresso à doce luz do
dia, voltares a ver a tua pátria, desmente estas fábulas abomináveis; diz ao teu povo que o cantor do
piedoso Eneias nunca incensou o Deus dos Judeus.
"Garantem–me que o seu poder declina e que se reconhece, por sinais evidentes, que a sua queda está
próxima. Esta notícia dar–me–ia alguma alegria se fosse possível alegrar–nos nestas paragens onde não
se sente nem medos nem desejos.
Disse, e, com um gesto de adeus, afastou–se. Contemplei a sua sombra, que desliza pelos asfódelos sem
lhes curvar os caules; vi que se tornava mais ténue e mais vaga à medida que se afastava de mim;
desvaneceu–se antes de chegar ao bosque de loureiros sempre verdes. Então, compreendi o sentido
destas palavras: "Os mortos não têm vida senão a que lhe emprestam os vivos", e encaminhei–me,
pensativo, através da pálida pradaria, para a porta de chifre.
Afirmo que tudo o que se encontra neste escrito é verdadeiro{8}.

VII – Sinais na Lua


Quando a Pinguínia estava ainda mergulhada na ignorância e na barbaria, Gilles Loisellier, monge
franciscano, conhecido pelos seus escritos sob o nome de Egídio Aucupis, entregava–se com infatigável
ardor ao estudo das letras e das ciências. Consagrava as noites à matemática e à música, à que chamava
as duas irmãs adoráveis, filhas harmoniosas do Número e da Imaginação. Era versado na medicina e na
astrologia. Dizia–se que praticava a magia e parece certo que operava metamorfoses e descobria coisas
ocultas.
Os religiosos do seu convento, tendo encontrado na sua cela livros gregos que não podiam ler,
supuseram que se tratava de formulários de bruxaria e denunciaram como feiticeiro o seu irmão
demasiado sábio. Egídio Aucupis fugiu e alcançou a ilha da Irlanda, onde viveu trinta anos entregue ao
estudo. Ia de mosteiro em mosteiro, em busca dos manuscritos gregos e latinos aí encerrados, e
copiava–os. Estudava também a física e a alquimia. Adquiriu uma ciência universal e descobriu
nomeadamente segredos sobre os animais, as plantas e as pedras. Surpreenderam–no um dia fechado
com uma mulher muito bela que cantava ao som do alaúde e que, mais tarde, se descobriu ser uma
máquina que ele construíra com as suas mãos.
Atravessava frequentemente o mar da Irlanda para se dirigir ao país de Gales e aí visitar as livrarias dos
mosteiros. Durante uma dessas travessias, estando uma noite no convés do navio, viu sob as águas dois
esturjões que nadavam a par. Tinha o ouvido apurado e conhecia a linguagem dos peixes. Ora, ouviu
que um dos esturjões dizia ao outro:
"O homem que desde há muito se via na Lua, carregando molhos de lenha às costas, caiu ao mar."
E o outro esturjão disse, por seu turno:
"E ver–se–á no disco de prata a imagem de dois amantes que se beijam na boca."

Alguns anos mais tarde, tendo regressado ao seu país, Egídio Aucupis encontrou as letras antigas
restauradas, as ciências glorificadas. Os costumes suavizavam–se; os homens já não perseguiam com
ultrajes as ninfas das fontes, bosques e montanhas; colocavam nos jardins as imagens das Musas e das
Graças decentes e prestavam à Deusa de lábios de ambrósia, volúpia dos homens e dos deuses, as
antigas honras. Reconciliavam–se com a natureza; calcavam aos pés os vãos terrores e erguiam os olhos
ao céu sem receio de aí lerem, como antigamente, sinais de cólera e ameaças de condenação. A este
espetáculo, Egídio Aucupis evocou o que tinham anunciado os dois esturjões do mar de Erin.

Livro IV – OS TEMPOS MODERNOS –
TRINCO

I – A Ruça


Egídio Aucupis, o Erasmo dos Pinguins, não se tinha enganado; a sua época foi a do livre exame. Mas
este grande homem tomava por doçura de costumes as elegâncias dos humanistas e não previa os efeitos
do despertar da inteligência nos Pinguins, que ocasionou a reforma religiosa: os católicos – tais foram
os primeiros progressos da liberdade de pensamento. Os católicos venceram na Pinguínia. Mas o
espírito de análise tinha, sem o saberem, entrado neles; associavam a razão à crença e pretendiam
despojar a religião das práticas supersticiosas que a desonravam, como mais tarde as catedrais foram
libertadas das quitandas que os sapateiros, vendilhões e regateiros aí haviam instalado. A palavra lenda,
que a princípio indicava o que o fiel deve ler, em breve implicou a ideia de fábulas piedosas e contos
pueris.
Os santos e as santas tiveram de suportar este estado de espírito. Um humilde cônego, aliás muito sábio,
austero e áspero, chamado Pinceteau, assinalou um tão grande número como indignos de serem
festejados que o cognominaram de destruidor de santos. Ele não acreditava que a oração de Santa
Margarida, aplicada em cataplasma no ventre das mulheres, acalmasse as dores do parto.
A venerável padroeira da Pinguínia não escapou à sua crítica severa. Eis o que disse a seu respeito nas
suas Antiguidades de Alça:
"Nada mais incerto do que a história e até a existência de Santa Orberose. Um velho cronista anônimo,
o religioso dos Dombes, relata que uma mulher chamada Orberose foi possuída pelo Diabo numa
caverna onde, ainda no seu tempo, os rapazinhos e as pequenas desavergonhadas iam, à maneira de
jogo, brincar ao Diabo e à bela Orberose. Acrescenta que essa mulher se tornou a concubina de um
horrível dragão que devastava a região. Isto não é muito plausível, mas a história de Orberose, tal como
foi contada depois, não parece muito mais digna de fé.
"A vida desta santa pelo abade Simplicíssimo é trezentos anos posterior aos pretensos acontecimentos
que relata; o autor revela–se excessivamente crédulo e falho de toda a crítica."

A suspeita recaiu também sobre as origens sobrenaturais dos Pinguins. O historiador Ovídio Capito
chegou ao ponto de negar o milagre da sua transformação. Começa assim os seus Anais da Pinguínia:
"Uma densa obscuridade envolve esta história e não é exagero dizer que é feita de fábulas pueris e
contos populares. Os Pinguins pretendem–se descendentes das aves batizadas por São Maèl e que Deus
transformou em homens por intercessão desse glorioso apóstolo. Ensinam que, situada inicialmente no
oceano Glacial, a sua ilha, flutuante como Delos, tinha ido ancorar nos mares amados do céu, de que é
hoje a rainha. Suponho que este mito significa as antigas migrações dos Pinguins."

No século seguinte, que foi o dos filósofos, o ceticismo tornou–se mais agudo: basta–me como prova
esta passagem célebre do Ensaio Moral:
"Vindos não se sabe de onde (dado que, enfim, as suas origens não são claras), sucessivamente
invadidos e conquistados por quatro ou cinco povos do Sul, do Poente, do Nascente, do Setentrião;
cruzados, mestiçados, amalgamados, misturados, os Pinguins elogiam a pureza da sua raça, e têm razão,
pois se tornaram uma raça pura. Esta mistura de todas as humanidades, vermelha, negra, amarela,
branca, cabeças redondas, cabeças alongadas, formou, com o decorrer dos séculos, uma família humana
suficientemente homogénea e reconhecível por certas características devidas à comunidade da vida e
dos costumes.
"Esta ideia, segundo a qual pertencem à mais bela raça do mundo e constituem a mais bela família,
inspira–lhes um nobre orgulho, uma coragem indomável e o ódio do gênero humano.
"A vida de um povo não é senão uma sequência de misérias, crimes e loucuras. Isto é verdade para a
nação pinguim e para todas as nações. Salvo isso, a sua história é admirável de uma ponta à outra."

Os dois séculos clássicos dos Pinguins são assaz conhecidos para que insista neles; mas o que não tinha
sido suficientemente observado é como os teólogos racionalistas, incluindo o cônego Princeteau,
originaram os incrédulos do século seguinte. Os primeiros serviram–se da razão para destruir tudo o que
na religião não lhes parecia essencial; apenas deixaram intactos os artigos de fé estrita; os seus
sucessores intelectuais, instruídos por eles no uso da ciência e da razão, fizeram–no contra o que restava
de crenças; a teologia racional engendrou a filosofia natural.
É por isso que (se me é permitido passar dos Pinguins de outrora ao Sumo Pontífice que governa hoje a
Igreja universal) é forçoso admirar a sabedoria do papa Pio X, que condena os estudos de exegese como
contrários à verdade revelada, funestos à boa doutrina teológica e mortais para a fé. Se há religiosos que
lhe oponham os direitos da ciência, são doutores perniciosos e mestres pestilentos, e se algum cristão os
aprova, a não ser que seja um pateta, juro que é protestante.

No fim do século dos filósofos, o antigo regime da Pinguínia foi destruído completamente, o rei
condenado à morte, os privilégios da nobreza abolidos e a república proclamada no meio das
perturbações de uma guerra terrível. A assembléia que então governava a Pinguínia ordenou que todas
as obras de metal contidas nas igrejas fossem fundidas. Os patriotas violaram os túmulos dos reis.
Conta–se que, num caixão aberto, Draco, o Grande, apareceu negro como o ébano e tão majestoso que
os violadores fugiram aterrados. Segundo outros testemunhos, esses homens grosseiros meteram–lhe
um cachimbo na boca e ofereceram–lhe, por escárnio, um copo de vinho.

Ao décimo sétimo dia do mês da flor, o relicário de Santa Orberose, posto há sete séculos, na Igreja de
São Maèl, à veneração do povo, foi transportado para o município e entregue a peritos designados pela
comuna; era de cobre dourado, em forma de nave, todo coberto de esmaltes e ornado de pedrarias que
foram consideradas falsas.
Previamente, o Cabido tinha–lhe retirado os rubis, as safiras, as esmeraldas; grandes bolas de cristal de
rocha, e substituíra–os por bocados de vidro.
Continha apenas um pouco de pó e velhos panos que foram lançados numa grande fogueira, na Place de
Greve, acesa para consumir as relíquias dos santos. O povo dançava em redor, entoando canções
patrióticas.
À entrada da sua quitanda, pegada ao município, o Ruço e a Ruça contemplavam esta dança de furiosos.
O Ruço tosquiava os cães e capava os gatos; frequentava as tabernas.
A Ruça era empalhadora e alcoviteira; não lhe faltava bom senso.
– Estás a ver, Ruço – disse ela ao marido –, estão a cometer um sacrilégio. Hão–de arrepender–se.
– Não percebes nada, mulher – replicou o Ruço. – Tornaram–se filósofos e, quando se é filósofo, é para
toda a vida.
– Digo–te, Ruço, que lamentarão, cedo ou tarde, o que fazem hoje. Maltratam os santos que não os
assistiram suficientemente; mas nem por isso as codornizes lhes cairão já assadas no bico; ficarão tão
indigentes como antes e, quando se cansarem da penúria, voltarão a ser devotos. Chegará um dia, e mais
cedo do que se julga, em que a Pinguínia recomeçará a honrar a sua bendita padroeira. Ruço, seria
prudente guardar para esse dia, na nossa casa, no fundo de um velho frasco, um punhado de cinzas,
alguns ossos e farrapos. Diremos que são as relíquias de Santa Orberose, que salvámos das chamas com
perigo da nossa vida. Ou eu me engano muito ou tiraremos honra e proveito desta recolha. Esta boa
ação poderá fazer que, na velhice, o senhor cura nos encarregue de vender os círios e alugar as cadeiras
na capela de Santa Orberose.
Nesse mesmo dia, a Ruça levou para casa algumas cinzas e ossos carcomidos e meteu–os num boião de
compota, que guardou em cima do armário.

II – Trinco


A Nação soberana tinha–se apoderado das terras da nobreza e do clero para as vender a baixo preço aos
burgueses e camponeses. Os burgueses e camponeses acharam que a revolução era boa para adquirir
terras e má para as conservar.
Os legisladores da República fizeram leis terríveis para defesa da propriedade e decretaram a morte
contra quem quer que propusesse a partilha dos bens. Mas isso não serviu de nada à República. Os
camponeses, tornados proprietários, recordavam que ela, ao enriquecê–los, levara a perturbação às
fortunas e desejavam o advento de um regime mais respeitoso da riqueza dos particulares e mais capaz
de assegurar a estabilidade das novas instituições.
Não tiveram de esperar muito. A República, como Agripina, trazia nos flancos o seu assassino.
Tendo grandes guerras a travar, criou as forças militares que deviam salvá–la e destrui–la. Os
legisladores pensavam conter os generais pelo terror dos suplícios; mas, se cortaram algumas vezes a
cabeça aos soldados infelizes, não podiam fazer o mesmo aos soldados felizes que gozavam da
vantagem de salvá–la.
No entusiasmo da vitória, os Pinguins regenerados entregaram–se a um dragão mais terrível do que o
das suas fábulas, o qual, como uma cegonha no meio das rãs, durante catorze anos os devorou com
insaciável apetite.
Meio século após o reinado do novo dragão, um jovem marajá da Malásia, chamado Djambi, desejoso
de se instruir viajando, como o cita Anacársis, visitou a Pinguínia e fez da sua estada um interessante
relato, cuja primeira página é a seguinte:


VIAGEM DO JOVEM DJAMBI À PINGUÍNIA

Após noventa dias de navegação, desembarquei no vasto e deserto porto dos Pinguins filomáticos e
dirigi–me através dos campos incultos até à capital em ruínas.
Cercada de muralhas, cheia de casernas e arsenais, tinha um ar parcial e desolado. Nas ruas, homens
raquíticos e curvados arrastavam com orgulho velhos uniformes e armas enferrujadas:
– Que deseja? – perguntou–me rudemente, à porta da cidade, um militar cujos bigodes ameaçavam o
céu.
– Senhor – respondi –, venho, como curioso, visitar esta ilha.
– Não é uma ilha – replicou o soldado.
– O quê! – exclamei. – A ilha dos Pinguins não é uma ilha?
– Não, senhor, é uma ínsula. Outrora chamava–se ilha, mas há um século que, por decreto, tem o nome
de ínsula. É a única ínsula de todo o universo. Tem passaporte?
– Aqui está.
– Vá pôr–lhe o visto ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Um guia coxo, que me conduzia, parou
numa vasta praça.
– A ínsula – disse ele – deu à luz, como não ignora, o maior gênio do universo, Trinco, cuja estátua vê
na sua frente; o obelisco que se ergue à sua direita comemora o nascimento de Trinco; a coluna à sua
esquerda ostenta, no cume, Trinco, cingido com um diadema. Pode ver daqui o arco de triunfo dedicado
à glória de Trinco e da família.
– Que fez Trinco de extraordinário? – perguntei.
– A guerra.
– Isso nada tem de extraordinário. Nós, Malaios, fazemo–la constantemente.
– É possível, mas Trinco é o maior homem de guerra de todos os países e de todos os tempos. Nunca
existiu um conquistador tão grande como ele. Quando atracou no nosso porto, viu, a leste, uma ilha
vulcânica, em forma de cone, de medíocre extensão, mas famosa pelos seus vinhos, Ampelóforo, e, a
oeste, uma ilha mais espaçosa, que ergue para o céu uma comprida fileira de dentes aguçados; por isso
lhe chamam Queixada–do–Cão. É rica em minas de cobre. Eram nossas antes do reinado de Trinco; a
isso se limitava o nosso império. Trinco estendeu a dominação pinguim ao arquipélago das Turquesas e
ao Continente Verde, submeteu a sombria Marsuínia, cravou os seus estandartes nos gelos do pólo e nas
areias ardentes do deserto africano. Recrutava tropas em todos os países conquistados e, quando os seus
exércitos desfilavam, atrás dos nossos fuzileiros filomáticos e dos nossos granadeiros insulares, dos
hussardos e dos dragões, dos artilheiros e dos soldados de trem, viam–se guerreiros amarelos,
semelhantes, nas suas armaduras azuis, a crustáceos de pé sobre as caudas; homens vermelhos
enfeitados com penas de papagaios, tatuados de figuras solares e genésicas, fazendo tilintar nas costas
uma aljava de flechas envenenadas; negros completamente nus, armados com os seus dentes e unhas;
pigmeus montados em gruas; gorilas, suspensos de um tronco de árvore, conduzidos por um velho
macho que ostentava no peito peludo a cruz da Legião de Honra. E todas estas tropas, postas sob os
estandartes de Trinco graças a um patriotismo ardente, voavam de vitória em vitória. Durante trinta anos
de guerras, Trinco conquistou metade do mundo conhecido.
– O quê! – exclamei. – Possuís metade do mundo?
– Trinco conquistou–o e perdeu–o. Tão grande nas derrotas como nas vitórias, devolveu tudo o que
tinha conquistado. Deixou mesmo que lhe tirassem as duas ilhas que possuíamos antes dele,
Ampelóforo e Queixada–do–Cão. Deixou a Pinguínia pobre e despovoada. A flor da ínsula pereceu nas
suas guerras. Quando da sua queda, só havia na nossa pátria corcundas e coxos, dos quais descendemos.
Mas deu–nos a glória.
– Fê–la pagar caro!
– A glória nunca se paga demasiado caro – replicou o meu guia.

III – Viagem ao Doutor Obnubile


Após uma sucessão de vicissitudes inauditas, cuja lembrança se perdeu em grande parte pela injúria do
tempo e o mau estilo dos historiadores, os Pinguins estabeleceram o governo dos Pinguins por eles
mesmos. Elegeram uma dieta ou assembleia e investiram–na do privilégio de nomear o chefe do Estado.
Este, escolhido entre os simples Pinguins, não usava na fronte a formidável crista do monstro e não
exercia sobre o povo uma autoridade absoluta. Ele próprio estava sujeito às leis da nação. Não lhe
davam o título de rei; um número ordinal não se seguia ao seu nome. Chamava–se Paturle, Janvion,
Truffaldin, Coquenpot, Bredouille. Estes magistrados não faziam a guerra. Não tinham roupas para isso.
O novo Estado recebeu o nome de coisa pública ou república. Os seus partidários chamavam–se
republicanistas ou republicanos. Também lhes chamavam coisardos e às vezes pulhas; mas este último
epíteto era usado no mau sentido.
A democracia pinguim não se governava por si mesma; obedecia a uma oligarquia financeira que
manipulava a opinião através dos jornais e tinha na mão os deputados, os ministros e o presidente.
Dispunha soberanamente das finanças da república e dirigia a política externa do país.
Os impérios e os reinos mantinham nesse tempo exércitos e armadas enormes; obrigada, para a sua
segurança, a fazer como eles, a Pinguínia sucumbia ao peso dos armamentos.
Toda a gente deplorava ou fingia deplorar uma tão dura necessidade; contudo, os ricos, os comerciantes
e negociantes sujeitavam–se a isso de bom grado, por patriotismo e porque contavam com os soldados e
marinheiros para defenderem os seus bens e conseguirem no exterior mercados e territórios; os grandes
industriais entregavam–se ao fabrico de canhões e navios, por zelo, para a defesa nacional e a fim de
obterem encomendas. Entre os cidadãos de condição média e de profissões liberais, uns resignavam–se,
sem se lamentar, a este estado de coisas, cientes de que duraria sempre; outros esperavam
impacientemente o seu fim e pensavam levar as potências ao desarmamento simultâneo.

O ilustre professor Obnubile pertencia ao número dos últimos.
"A guerra", dizia ele, "é uma barbaria que o progresso da civilização fará desaparecer. As grandes
democracias são pacíficas e o seu espírito em breve se imporá aos próprios autocratas."
O professor Obnubille, que levava há sessenta anos uma vida solitária de recluso, no seu laboratório,
onde não penetravam os ruídos do exterior, resolveu observar por si mesmo o espírito dos povos.
Começou os seus estudos pela maior das democracias e embarcou para a Nova Atlântida.
Após quinze dias de navegação, o seu paquete entrou de noite na doca de Titanport, onde atracavam
milhares de navios. Uma ponte de ferro, lançada por cima das águas, resplandecente de luzes, estendia–
se entre dois cais tão distantes um do outro que o professor Obnubile julgou navegar nos mares de
Saturno e ver o maravilhoso anel que cerca o planeta do Velho. E essa imensa ponte de trasbordo
carregava mais da quarta parte das riquezas do mundo. O sábio pinguim, tendo desembarcado, foi
servido num hotel de quarenta e oito andares por autómatos, depois tomou a grande via férrea que
conduz a Gigantópolis, capital da Nova Atlântida. Havia no comboio restaurantes, salas de jogos, arenas
atléticas, um escritório de correspondência comercial e financeira e a tipografia de um grande jornal que
o doutor não pôde ler, porque não conhecia a língua dos Novos Atlantas. O comboio atravessava, nas
margens dos grandes rios, cidades industriais que escureciam o céu com o fumo das suas fornalhas:
cidades negras de dia, cidades rubras de noite, cheias de clamores à luz do Sol e de clamores na sombra.
"Eis", pensava o doutor, "um povo demasiado preocupado com a indústria e o comércio para fazer a
guerra: Estou, a partir de agora, certo de que os Novos Atlantas seguem uma política de paz. Com
efeito, é um axioma admitido por todos os economistas que a paz exterior e a paz interior são
necessárias ao progresso do comércio e da indústria."
Ao percorrer Gigantópolis, confirmou esta opinião. As pessoas seguiam pelas ruas num tão grande
movimento que derrubavam tudo o que se encontrava na sua passagem.
Obnubile, várias vezes atirado ao chão, aprendeu a comportar–se melhor: após uma hora de corrida,
também atirou ao chão um atlanta.
Tendo chegado a uma grande praça, viu o pórtico de um palácio de estilo clássico cujas colunas
coríntias erguiam a setenta metros acima do estilóbato os seus capitéis de acanto arborescente.
Enquanto o admirava, imóvel, de cabeça inclinada, um homem de aparência modesta abordou–o e
disse–lhe em pinguim:
– Vejo pela sua roupa que é da Pinguínia. Conheço a sua língua; sou intérprete ajuramentado. Este
palácio é o do Parlamento. Neste momento, os deputados das Cortes deliberam. Quer assistir à sessão?
Introduzido numa tribuna, o doutor mergulhou o olhar na multidão dos legisladores que se sentavam em
poltronas de junco, com os pés em cima das mesas.
O presidente levantou–se e murmurou, mais do que articulou, no meio da desatenção geral, as fórmulas
seguintes, que o intérprete logo traduziu para o doutor:
"Tendo a guerra para a abertura dos mercados mongóis terminado a contento das Cortes, proponho que
se mande a conta à comissão de finanças...
"Não há oposição?...
"A proposta está aprovada.
"Tendo a guerra para a abertura dos mercados da Terceira–Zelândia terminado a contento das Cortes,
proponho que se mande a conta à comissão de finanças...
"Não há oposição?...
"A proposta está aprovada."
– Terei ouvido bem? – perguntou o professor Obnubile. – Como? Vocês, um povo industrial, meteram–
se em todas essas guerras?
– Sem dúvida – respondeu o intérprete. – São guerras industriais. Os povos que não têm comércio nem
indústria não são obrigados a fazer a guerra; mas um povo de comerciantes é forçado a uma política de
conquistas. O número das nossas guerras aumenta necessariamente com a nossa actividade produtora.
Sempre que uma das nossas indústrias não consegue escoar os seus produtos, é preciso que uma guerra
lhe abra novos mercados. Por isso tivemos este ano uma guerra de carvão, uma guerra de cobre, uma
guerra de algodão. Na Terceira–Zelândia matámos dois terços dos habitantes, a fim de obrigarmos os
restantes a comprar–nos guarda–chuvas e suspensórios.
Nesse momento, um homem gordo, que estava sentado no centro da assembleia, subiu à tribuna.
"Reclamo", disse ele, "uma guerra contra o governo da república de Esmeralda, que disputa
insolentemente aos nossos porcos a hegemonia dos presuntos e dos chouriços em todos os mercados do
universo."
– Quem é aquele legislador? – perguntou o doutor Obnubille.
– É um negociante de porcos.
"Não há oposição?" perguntou o presidente. "Ponho a proposta a votação."
A guerra contra a república de Esmeralda foi votada por braço erguido e por grande maioria.
– Como? – disse Obnubile ao intérprete. – Votaram uma guerra com esta rapidez e esta indiferença?...
– Oh!, é uma guerra sem importância, que custará apenas oito milhões de dólares!
– E homens...
– Os homens estão incluídos nos oito milhões de dólares. Então o doutor Obnubile pôs a cabeça entre as
mãos e meditou amargamente:
"Visto que a riqueza e a civilização comportam tantas causas de guerras como a pobreza e a barbaria,
visto que a loucura e a maldade dos homens são incuráveis, resta uma boa acção a praticar. O sábio
juntará dinamite suficiente para fazer explodir este planeta. Quando rolar em pedaços através do espaço,
verificar–se–á uma melhoria imperceptível no universo e será dada satisfação à consciência universal,
que aliás não existe."

Livro V – OS TEMPOS MODERNOS –
CHATILLON

I – Os Reverendos Padres Agaríc e Comemuse


Todos os regimes provocam descontentes. A república ou coisa pública começou por fazê–los entre os
nobres despojados dos seus antigos privilégios e que voltavam os olhos cheios de desgosto e esperança
para o último dos Draconidas, o príncipe Crucho, ornado com as graças da juventude e as tristezas do
exílio. Causou também descontentes entre os pequenos comerciantes, que, por causas económicas muito
profundas, já não ganhavam a vida e pensavam que a culpa era da república, que a princípio tinham
adorado e da qual se afastavam cada vez mais.
Tanto cristãos como judeus, os financeiros tornavam–se, pela sua insolência e cupidez, o flagelo do
país, que roubavam e aviltavam, e o escândalo de um regime que não pensavam nem em destruir nem
em manter, certos como estavam de operar sem obstáculos sob todos os governos. Todavia as suas
simpatias iam para o poder mais absoluto, como o melhor armado contra os socialistas, os seus
adversários desprezíveis, mas ardentes. E, assim como imitavam os hábitos dos aristocratas, imitavam
também os seus sentimentos políticos e religiosos. Sobretudo as suas mulheres, inúteis e frívolas,
amavam o príncipe e sonhavam frequentar a corte.
A república, porém, tinha partidários e defensores. Se não lhe era permitido acreditar na fidelidade dos
seus funcionários, podia contar com a dedicação dos trabalhadores manuais, a quem não tinha aliviado a
miséria e que, para a defenderem nos dias de perigo, saíam em chusma das pedreiras e dos ergástulos e
desfilavam longamente, lívidos, negros, sinistros. Teriam morrido todos por ela: deu–lhes esperança.

Ora, sob o principado de Teodoro Formoso, vivia num arrabalde tranquilo da cidade de Alça um monge
chamado Agaric, que instruía as crianças e fazia casamentos. Ensinava na sua escola a piedade, a
esgrima e a equitação dos jovens filhos das famílias antigas, ilustres pelo nascimento, mas despojados
tanto dos seus bens como dos privilégios. E, quando chegavam à idade, casava–os com as raparigas da
casta opulenta e desprezada dos financeiros.
Alto, magro, negro, Agaric passeava sem descanso, de breviário na mão, pelos corredores da escola e os
arruamentos do quintal, pensativo e com a fronte vincada pelas preocupações. Não limitava os seus
cuidados a inculcar nos alunos doutrinas absconsas e preceitos mecânicos e a dar–lhes em seguida
mulheres legítimas e ricas. Tinha desígnios políticos e perseguia a realização de um plano gigantesco. A
ideia da sua ideia, a obra da sua obra era derrubar a república.
Não era movido por interesse pessoal. Considerava o estado democrático contrário à santa sociedade a
que pertencia de corpo e alma. E todos os monges seus irmãos pensavam de igual modo. A república
estava em lutas perpétuas com a congregação dos monges e a assembleia dos fiéis. Sem dúvida, era uma
empresa difícil e perigosa conspirar a morte do novo regime.
Pelo menos, Agaric estava em condições de organizar uma conjura temível. Nessa época, em que os
religiosos dirigiam as castas superiores dos Pinguins, este monge exercia sobre a aristocracia de Alça
uma influência profunda.
A juventude, que ele tinha formado, só esperava o momento de marchar contra o poder popular. Os
filhos das antigas famílias não cultivavam as artes e não praticavam o comércio. Eram quase todos
militares e serviam a república. Serviam–na, mas não a amavam; tinham saudades da crista do dragão. E
as belas judias compartilhavam as suas saudades, a fim de que as tomassem por nobres cristãs.
Num dia de Julho, ao passar por uma rua do arrabalde que acabava em campos poeirentos, Agaric ouviu
lamentos que subiam de um poço musgoso, abandonado pelos hortelãos.
E, quase imediatamente, soube por um sapateiro das redondezas que um homem mal vestido, tendo
gritado: "Viva a coisa pública!", fora lançado, por oficiais de cavalaria que passavam, ao poço, onde a
lama lhe subia acima das orelhas. Agaric dava de bom grado a um facto particular uma significação
geral. Do empoçamento daquele coisardo induziu uma grande fermentação de toda a casta aristocrática
e militar e concluiu que era a altura de agir.
No dia seguinte, foi visitar, ao fundo do bosque dos Conils, o bom padre Cornemuse. Encontrou o
religioso a um canto do seu laboratório, entretido a examinar minuciosamente um licor dourado.
Era um homenzinho gordo e baixo, colorido de vermelhão, de crânio preciosamente luzidio. Os olhos,
como os das cobaias, tinham pestanas de rubis. Cumprimentou graciosamente o visitante e ofereceu–lhe
um cálice de licor de Santa Orberose, que fabricava e cuja venda lhe proporcionava imensas riquezas.
Agaric fez com a mão um gesto de recusa. Depois, firme nos seus compridos pés e apertando contra o
ventre o melancólico chapéu, ficou silencioso.
– Tenha o incômodo de sentar–se – disse–lhe Cornemuse.
Agaric sentou–se num mocho manco e continuou mudo. Então, o religioso dos Conils:
– Dê–me, por favor, notícias dos seus jovens alunos. Essas caras crianças pensam bem?
– Estou muito satisfeito – respondeu o magíster. – O que importa é ser alimentado nos princípios. É
preciso pensar bem antes de pensar. É que depois é demasiado tarde... Encontro à minha volta grandes
motivos de consolação. Mas vivemos numa triste época.
– Ai! – suspirou Cornemuse.
– Atravessamos maus dias...
– Horas de provação.
– Contudo, Cornemuse, o espírito público não está tão completamente estragado como parece.
– É possível.
– O povo está cansado de um Governo que o arruina e não faz nada por ele. Todos os dias rebentam
novos escândalos. A república afunda–se na vergonha. Está perdida.
– Deus o ouça!
– Cornemuse, que pensa do príncipe Crucho?
– É um mancebo amável e, ouso dizê–lo, o digno rebento de um tronco augusto. Lamento que tenha de
suportar, em tão tenra idade, as dores do exílio. Para o exilado, a Primavera não tem flores, o Outono
não tem frutos. O príncipe Crucho pensa bem; respeita os padres; pratica a nossa religião; faz um
grande consumo dos meus pobres produtos.
– Cornemuse, em muitos lares, ricos ou pobres, deseja–se o seu regresso. Acredite–me, ele há–de voltar.
– Oxalá eu não morra antes de ter lançado a minha capa aos seus pés! – suspirou Cornemuse.
Vendo–o com estes sentimentos, Agaric pintou–lhe o estado dos espíritos tal como ele mesmo o
imaginava. Mostrou–lhe os nobres e os ricos irritados contra o regime popular, o exército recusando–se
a beber novos ultrajes, os funcionários dispostos a trair, o povo descontente, a insurreição já trovejante e
os inimigos dos monges, os sequazes do poder, atirados aos poços de Alça. Concluiu que era o
momento de dar um grande golpe.
– Podemos – clamou – salvar o povo pinguim, podemos libertá–lo dos tiranos, libertá–lo de si mesmo,
restaurar a crista do Dragão, restabelecer o antigo Estado, o bom Estado, para honra da fé e exaltação da
Igreja. Podemos, se quisermos. Possuímos grandes riquezas e exercemos secretas influências; por meio
dos nossos jornais crucíferos e fulminantes, comunicamos com todos os eclesiásticos das cidades e dos
campos e insuflamos–lhes o entusiasmo que nos arrebata, a fé que nos devora. Eles abrasarão os seus
penitentes e os seus fiéis. Disponho dos mais altos chefes do exército; tenho entendimentos com a gente
do povo; dirijo, sem que o saibam, os negociantes de guarda–chuvas, os vendedores de vinho, os
caixeiros–viajantes de novidades, os ardinas, as meninas galantes e os polícias. Temos mais gente do
que a necessária. Que esperamos? Actuemos!
– Que pensa fazer? – perguntou Cornemuse.
– Organizar uma vasta conjura, derrubar a república, pôr Crucho no trono dos Draconidas.
Cornemuse passou várias vezes a língua pelos lábios. Depois disse com unção:
– Sem dúvida que a restauração dos Draconidas é desejável; e, pela minha parte, desejo–a de todo o
coração. Quanto à república, sabe o que penso... Mas não seria melhor abandoná–la à sua sorte e deixá–
la morrer dos vícios da sua constituição? Sem dúvida, o que propõe, caro Agaric, é nobre e generoso.
Seria belo salvar este grande e desgraçado país, restabelecê–lo no seu primitivo esplendor. Mas pense:
somos cristãos antes de sermos Pinguins. E temos de ter o cuidado de não comprometer a religião em
empresas políticas. Agaric replicou vivamente:
– Não tenha medo. Manipularemos todos os fios da conspiração, mas ficaremos na sombra. Não
seremos vistos.
– Como moscas no leite – murmurou o religioso dos Conils. E, fixando no companheiro as finas
pestanas de rubis:
– Tenha cuidado, meu amigo. A república talvez seja mais forte do que parece. É possível também que
reforcemos as suas forças ao tirá–la da mole quietude em que atualmente repousa. A sua malícia é
grande: se a atacarmos, defender–se–á. Faz más leis que não nos atingem muito; quando tiver medo, fá–
las–á terríveis contra nós. Não nos comprometamos impensadamente numa aventura onde podemos
deixar as penas. Acha que a ocasião é boa; não o creio, e vou–lhe dizer porquê. O regime atual ainda
não é conhecido por toda a gente e não o é, diga–se de passagem, por ninguém. Proclama que é a coisa
pública, a coisa comum. O popular acredita nele e mantém–se democrata e republicano. Mas paciência!
Esse mesmo povo exigirá um dia que a coisa pública seja realmente a coisa do povo. Não preciso de lhe
dizer como tais pretensões me parecem insolentes, desregradas e contrárias à política extraída das
Escrituras. Mas o povo tê–las–á e fá–las–á valer e será o fim do regime atual. Esse momento não pode
tardar muito. É então que deveremos agir no interesse do nosso augusto corpo!
“Esperemos! Quem nos apressa? A nossa existência não está em perigo. Não no–la tornam
absolutamente intolerável. A república recusa–nos respeito e submissão; não presta aos padres as honras
que lhes deve. Mas deixa–nos viver. E é tal a excelência do nosso estado que, para nós, viver é
prosperar. A coisa pública é–nos hostil, mas as mulheres reverenciam–nos. O penitente Formoso não
assiste à celebração dos nossos mistérios; mas vi a mulher e as filhas aos meus pés. Compram os meus
frascos por atacado. Não tenho clientes melhores, mesmo na aristocracia. Digamo–lo francamente: não
há no mundo um país que, para os padres e os monges, valha a Pinguínia. Em que outra terra
conseguiríamos vender, em tão grande quantidade e por tão alto preço, a nossa cera virgem, o nosso
forte incenso, os nossos rosários, os nossos escapulários, as nossas águas bentas e o nosso licor de Santa
Orberose? Que outro povo pagaria, como os Pinguins, cem escudos de ouro por um gesto da nossa mão,
um som da nossa boca, um movimento dos nossos lábios? No que me diz respeito, ganho mil vezes
mais, nesta doce, fiel e dócil Pinguínia, a extrair a essência de uma molhada de serpão do que a
esfalfar–me a pregar durante quarenta anos a remissão dos pecados nos Estados mais populosos da
Europa e da América. De boa–fé, a Pinguínia será mais feliz quando um comissário da polícia me vier
pôr fora daqui e levar para um piróscafo de partida para as ilhas da Noite?
Tendo assim falado, o religioso dos Conils levantou–se e conduziu o seu hóspede a um vasto barracão
onde centenas de órfãos, vestidos de azul, embalavam garrafas, pregavam caixas, colavam etiquetas. Os
ouvidos eram ensurdecidos pelo barulho dos martelos misturados ao surdo estrondo dos pacotes sobre
os trilhos.
– É aqui que se faz a expedição – disse Cornemuse. – Obtive do governo uma linha férrea através do
bosque e uma estação à minha porta. Encho todos os dias três vagões com o meu produto. Como vê, a
república não matou todas as crenças.
Agaric fez um último esforço para comprometer o sábio destilador na conspiração. Mostrou–lhe o êxito
feliz, rápido, certo, retumbante.
– Não quer concorrer para isso? – acrescentou. – Não quer tirar o seu rei do exílio?
– O exílio é doce para os homens de boa vontade – replicou o religioso dos Conils. – Se quiser acreditar
em mim, caríssimo irmão Agaric, renunciará por enquanto ao seu projeto. Quanto a mim, não tenho
ilusões. Sei o que me espera. Que eu entre ou não na conjura, se você perder, pagarei também.
O padre Agaric despediu–se do amigo e voltou satisfeito para a sua escola. "Cornemuse", pensava ele,
"não podendo impedir a conspiração, há–de querer que ela triunfe e dará dinheiro." Agaric não se
enganava. Com efeito, era tão grande a solidariedade dos padres e monges que os actos de um deles
comprometia todos os outros. Era isso, ao mesmo tempo, o melhor e o pior do seu negócio.

II – O Príncipe Crucho


Agaric resolveu ir ter imediatamente com o príncipe Crucho, que o honrava com a sua familiaridade.
Ao crepúsculo, saiu da escola pela porta das traseiras, disfarçado de negociante de bois, e embarcou no
São Maèl.
No dia seguinte desembarcou na Marsuínia. Era nessa terra hospitaleira, no castelo de Chitterlings, que
Crucho comia o pão amargo do exílio.
Agaric encontrou–o na estrada, de automóvel, a cento e trinta à hora, com duas donzelas. Ao vê–lo, o
monge agitou o seu guarda–chuva encarnado e o príncipe parou a máquina.
– É você, Agaric? Suba! Já somos três, mas apertar–nos–emos um pouco. Levará uma destas donzelas
ao colo.
O piedoso Agaric subiu.
– Quais as novidades, meu velho padre? – perguntou o jovem príncipe.
– Grandes novidades – respondeu Agaric. – Posso falar?
– Pode. Não tenho segredos para estas duas donzelas.
– Senhor, a Pinguínia reclama–vos. Não sereis surdo ao seu apelo. Agaric descreveu o estado dos
espíritos e expôs o plano de uma vasta conspiração.
– Ao meu primeiro sinal – disse ele – todos os vossos partidários se revoltarão ao mesmo tempo. Com a
cruz na mão e a sotaina arregaçada, os vossos veneráveis religiosos conduzirão a multidão em armas ao
palácio de Formoso. Levaremos o terror e a morte aos vossos inimigos. Como prémio dos nossos
esforços, apenas vos pedimos, senhor, que não os torneis inúteis. Suplicamos–vos que vos senteis no
trono que vamos preparar.
O príncipe respondeu simplesmente:
– Entrarei em Alça num cavalo verde.
Agaric tomou nota desta enérgica resposta. Embora tivesse, contrariamente aos seus hábitos, uma
donzela ao colo, exortou com sublime elevação de alma o jovem príncipe a ser fiel aos seus deveres
reais.
– Senhor – clamou, vertendo lágrimas –, recordar–vos–eis um dia de que foste tirado do exílio,
restituído ao vosso povo, posto no trono dos vossos antepassados pela mão dos vossos monges e
coroado pelas suas mãos com a crista augusta do Dragão. Rei Crucho, que possais igualar em glória o
vosso avô Draco, o Grande!"
O jovem príncipe atirou–se, comovido, ao seu salvador, para o abraçar; mas não conseguiu chegar até
ele senão através de duas espessuras de donzelas, a tal ponto estavam apertados nessa viatura histórica.
– Meu velho padre – disse ele –, gostaria que a Pinguínia inteira fosse testemunha deste abraço.
– Seria um espetáculo reconfortante – disse Agaric.
Entretanto, o automóvel, atravessando como um furacão aldeias e vilas, esmagava sob os pneus
galinhas, patos, perus, gansos, galinhas–da–índia, gatos, cães, porcos, crianças, agricultores e
camponesas.
E o piedoso Agaric ruminava em espírito os seus grandes projetos. A sua voz, erguendo–se à retaguarda
da donzela, exprimiu este pensamento:
– Vai ser preciso dinheiro, muito dinheiro.
– Isso é consigo – respondeu o príncipe.
Mas já o portão do parque se abria diante do formidável automóvel.

O jantar foi sumptuoso. Bebeu–se à crista do Dragão. Toda a gente sabe que um copo fechado é sinal de
soberania. Por isso, o príncipe Crucho e a princesa Gudrune, sua esposa, beberam por copos cobertos
como cibórios. O príncipe mandou encher várias vezes o seu com vinhos tintos e brancos da Pinguínia.
Crucho tinha recebido uma instrução verdadeiramente principesca: distinguia–se na locomoção
automóvel, mas também não ignorava a história. Diziam–no muito versado nas antiguidades e
ilustrações da sua família; e deu, com efeito, à sobremesa, uma prova notável dos seus conhecimentos
neste campo. Como se falasse de diversas particularidades singulares observadas em mulheres célebres,
disse:
– É perfeitamente verdade que a rainha Crucha, cujo nome uso, tinha uma cabecinha de macaco por
baixo do umbigo.

Agaric teve, durante o serão, uma conversa decisiva com três velhos conselheiros do príncipe. Decidiu–
se pedir fundos ao sogro de Crucho, que desejava ter um genro rei, a várias damas judias, impacientes
por entrarem na nobreza, e, finalmente, ao príncipe regente dos Marsuínos, que havia prometido o seu
apoio aos Draconidas, pensando enfraquecer, com a reposição de Crucho, os Pinguins, inimigos
hereditários do seu povo.
Os três velhos conselheiros distribuíram entre si os três primeiros cargos da corte, camareiro, senescal e
saquitário, e autorizaram o religioso a distribuir os outros cargos de acordo com os interesses do
príncipe.
– É preciso recompensar as dedicações – afirmaram os três velhos conselheiros.
– E as traições – disse Agaric.
– É justíssimo – replicou um deles, o marquês das Setechagas, que tinha experiência das revoluções.
Dançou–se. Depois do baile, a princesa Gudrune rasgou o seu vestido verde para fazer rosetas; ela
própria coseu um bocado no peito do monge, que verteu lágrimas de comoção e reconhecimento.
M. de Plume, escudeiro do príncipe, partiu nessa mesma noite à procura de um cavalo verde.

III – O Conciliábulo


De regresso à capital da Pinguínia, o reverendo padre Agaric comunicou os seus projetos ao príncipe
Adélestan dos Boscenos, de quem conhecia os sentimentos draconianos.
O príncipe pertencia à mais alta nobreza. Os Torticol dos Boscenos remontavam a Brian, o Piedoso, e
tinham ocupado no tempo dos Draconidas os mais altos cargos do reino. Em 1179, Filipe Torticol,
grande almirante da Pinguínia, bravo, fiel, generoso, mas vingativo, entregou o porto da Calheta e a
frota pinguim aos inimigos do reino, por suspeitar que a rainha Crucha, de quem era amante, o
enganava com um criado da cavalariça. Foi esta grande rainha que deu aos Boscenos o caldeirão de
prata que usam nas suas armas. Quanto à sua divisa, remonta apenas ao século xvi; a origem é a
seguinte: numa noite de festa, misturado com a multidão de cortesãos que, comprimidos no jardim do
rei, contemplavam o fogo–de–artifício, o duque João dos Boscenos aproximou–se da duquesa de Skull e
meteu a mão por baixo da saia desta dama, que não se queixou.
O rei, que vinha a passar, surpreendeu–os e limitou–se a dizer: "Assim nos encontramos".
Estas três palavras tornaram–se a divisa dos Boscenos.

O príncipe Adélestan não tinha degenerado dos seus antepassados; guardava ao sangue dos Draconidas
uma inalterável fidelidade e o que mais desejava era a reposição do príncipe Crucho, presságio, aos seus
olhos, da restauração da sua fortuna arruinada. Por isso entrou de bom grado na ideia do reverendo
padre Agaric. Associou–se imediatamente aos projetos do religioso e apressou–se a pô–lo em contacto
com os mais ardentes e os mais leais realistas das suas relações, o conde Cléna, M. De la Trumelle, o
visconde Olive, M. Bigourd. Reuniram–se uma noite na casa de campo do duque de Ampoule, duas
léguas a leste de Alça, a fim de examinarem os modos e os meios.
M. de la Trumelle pronunciou–se pela ação legal:
– Devemos manter–nos na legalidade – disse ele, em resumo. – Somos homens de ordem. Será por uma
propaganda infatigável que chegaremos à realização das nossas esperanças. É preciso modificar o
espírito do país. A nossa causa triunfará porque é justa.
O príncipe dos Boscenos exprimiu uma opinião contrária. Pensava que, para triunfar, as causas justas
têm necessidade da força, muito mais do que as causas injustas.
– Na situação presente – disse ele com serenidade – impõem–se três meios de ação: recrutar os moços
de talho, corromper os ministros e raptar o presidente Formoso.
– Raptar Formoso seria um erro – objetou M. de la Trumelle. – O presidente está conosco.
Que um dracófilo propusesse que se deitasse a mão ao presidente Formoso e outro dracófilo o tratasse
como amigo era o que explicavam a atitude e os sentimentos do chefe da coisa comum. Formoso
mostrava–se favorável aos realistas, cujas maneiras admirava e imitava. Todavia, se sorria quando lhe
falavam da crista do Dragão, era com a ideia de a pôr na cabeça. O poder soberano causava–lhe inveja,
não porque se sentisse capaz de o exercer, mas porque gostava de exibir–se. Segundo a forte expressão
de um cronista pinguim "era um pavão".
O príncipe dos Boscenos manteve a sua proposta de marchar à mão armada contra o palácio de Formoso
e a Câmara dos Deputados.
O conde Cléna foi ainda mais enérgico:
– Para começar – disse ele –, degolemos, estripemos, esmaguemos o crânio dos republicanos e de todos
os coisardos do Governo. Depois, ver–se–á.
M. de laTrumelle era um moderado. Os moderados opõem–se sempre moderadamente à violência.
Reconheceu que a política do senhor Conde Cléna era inspirada por um nobre sentimento, era generosa,
mas objectou timidamente que talvez não estivesse de acordo com os princípios e apresentasse certos
perigos. Finalmente, ofereceu–se para a discutir.
– Proponho – acrescentou – que se redija um apelo ao povo. Façamos saber quem somos. Por mim,
respondo que não meterei o meu estandarte ao bolso.
M. Bigourd tomou a palavra:
– Meus senhores, os Pinguins estão descontentes com a ordem nova, porque tiram proveito dela e é
próprio dos homens queixarem–se da sua condição. Mas, ao mesmo tempo, os Pinguins têm medo de
mudar de regime, porque as novidades assustam. Não conheceram a crista do Dragão; e, se por vezes
afirmam que têm saudades dela, não se deve acreditar nisso: em breve se veria que o disseram sem
refletir e de mau humor. Não tenhamos ilusões quanto aos seus sentimentos a nosso respeito. Não
gostam de nós. Odeiam a aristocracia, simultaneamente, por ignóbil inveja e por um generoso amor da
igualdade. E estes dois sentimentos reunidos são muito fortes num povo. A opinião pública não está
contra nós porque nos ignora. Mas, quando souber o que queremos, não nos seguirá. Se dermos a
entender que pretendemos destruir o regime democrático e reabilitar a cabeça do Dragão, quais serão os
nossos partidários? Os moços de talho e os pequenos lojistas de Alça. E mesmo esses lojistas,
poderemos contar com eles até ao fim? Estão descontentes, mas são coisardos no fundo dos corações.
Desejam mais vender as suas más mercadorias do que rever Crucho. Agindo a descoberto,
provocaremos o medo.
"Para que nos achem simpáticos e nos sigam, é preciso que se julgue que nós queremos não derrubar a
república, mas, pelo contrário, restaurá–la, limpá–la, purificá–la, orná–la, enfeitá–la, decorá–la,
perfumá–la, torná–la, enfim, magnífica e encantadora. Por isso, devemos agir por nós mesmos. Sabe–se
que não somos favoráveis à ordem atual. Temos de nos dirigir a um amigo da república e, ainda melhor,
a um defensor deste regime. Apenas teremos o embaraço da escolha. Convirá preferir o mais popular e,
se ouso dizê–lo, o mais republicano. Conquistá–lo–emos por lisonjas, presentes e sobretudo promessas.
As promessas custam menos do que os presentes e valem muito mais. Nunca se dá tanto como quando
se dão esperanças. Não é necessário que seja muito inteligente. Eu preferiria até que não tivesse espírito.
Os imbecis têm na velhacaria graças inimitáveis. Acreditem, senhores, façam derrubar a coisa pública
por um coisardo da coisa. Sejamos prudentes! A prudência não exclui a energia. Se tiverem necessidade
de mim, estarei sempre ao vosso dispor.
Este discurso não deixou de impressionar os ouvintes. O espírito do piedoso Agaric revelou–se
particularmente afectado. Mas cada um pensava sobretudo em garantir honras e benefícios. Organizou–
se um Governo secreto, do qual todas as pessoas presentes foram nomeadas membros efetivos. O duque
de Ampoule, que era a grande capacidade financeira do partido, ficou adstrito às receitas e encarregado
de centralizar os fundos de propaganda.
A reunião aproximava–se do fim quando retiniu nos ares uma voz rústica, que cantava ao tom de uma
velha ária:

Boscenos é um grande porco;
Vão fazer dele chouriços,
Salsichas e presunto
Para a consoada dos pobres diabos.

Era uma canção conhecida, há duzentos anos, nos arrabaldes de Alça. O príncipe dos Boscenos não
gostava de a ouvir. Desceu à praça e, vendo que o cantor era um operário que colocava ardósias na
cumeada da igreja, pediu–lhe delicadamente que cantasse outra coisa.
– Canto o que me apetecer – respondeu o homem.
– Meu amigo, para me ser agradável...
– Não me apetece ser–lhe agradável.
O príncipe dos Boscenos era geralmente calmo, mas irascível e de uma força pouco comum.
– Patife, desce ou subo eu – gritou, num tom formidável.
E como o operário, a cavalo na crista, não se movesse, o príncipe subiu vivamente pela escada da torre
até ao telhado e atirou–se ao cantor, que, atingido por um murro, foi parar com os queixos deslocados a
uma goteira. Nesse momento, sete ou oito carpinteiros que trabalhavam nas águas–furtadas, alertados
pelos gritos do companheiro, colaram os narizes às trapeiras e, vendo o príncipe na cumeada,
precipitaram–se para ele por uma escada estendida sobre a ardósia, alcançaram–no à entrada da torre e
obrigaram–no a descer, de cabeça para baixo, os cento e trinta e sete degraus da escada de caracol.

IV – A Viscondessa Olive


Os Pinguins possuíam o primeiro exército do mundo. Os Marsuínos também. E o mesmo acontecia com
os outros povos da Europa. O que não era para surpreender, por muito pouco que se pensasse nisso.
Com efeito, todos os exércitos são os melhores do mundo. O segundo exército do mundo, se houvesse
algum, achar–se–ia numa situação de inferioridade notória; teria a certeza de ser derrotado. Seria
necessário dispensá–lo imediatamente. Por isso, todos os exércitos são os melhores do mundo.
Foi o que compreendeu, na França, o ilustre coronel Marchand quando, interrogado por jornalistas
acerca da Guerra Russo–Japonesa antes da passagem do Yalu, não hesitou em classificar o exército
russo e o japonês como os melhores do mundo. E note–se que, pelo facto de sofrer os mais terríveis
reveses, um exército não deixa de ser o melhor do mundo. Com efeito, se é certo que os povos assacam
as suas vitórias à inteligência dos generais e à coragem dos soldados, atribuem sempre as derrotas a uma
inexplicável fatalidade. Ao invés, as frotas são classificadas pelo número dos seus barcos. Há uma
primeira, uma segunda, uma terceira e assim por diante. Por isso, não subsiste nenhuma incerteza
quanto ao resultado das guerras navais.
Os Pinguins possuíam o primeiro exército e a segunda frota do mundo. Essa frota era comandada pelo
famoso Chatillon, que tinha o título de almirante ahr, e por abreviatura de almirante. É esta palavra que,
infelizmente corrompida, ainda hoje designa, em várias nações europeias, o mais alto posto dos
exércitos do mar. Mas, como entre os Pinguins havia um único almirante, atribuía–se a este posto um
prestígio singular.
O almirante não pertencia à nobreza; filho do povo, o povo amava–o; e sentia–se lisonjeado por ver
coberto de honras um homem saído dele.
Chatillon era belo; era feliz; não pensava em nada. Nada alterava a limpidez do seu olhar.
O reverendo padre Agaric, cedendo às razões de M. Bigourd, reconheceu que o atual regime só podia
ser destruído por um dos seus defensores e lançou os olhos para o almirante Chatillon. Foi pedir uma
grande soma de dinheiro ao seu amigo, o reverendo padre Cornemuse, que lha entregou com um
suspiro. E, com esse dinheiro, pagou a seiscentos moços de talho de Alça para correrem atrás do cavalo
de Chatillon gritando: "Viva o almirante!".
Chatillon não podia agora dar um passo sem ser aclamado.
A viscondessa Olive solicitou–lhe uma entrevista secreta. Recebeu–a no Almirantado, num pavilhão
ornado de âncoras, dardos e granadas.
Estava discretamente vestida de cinzento–azulado. Um chapéu de rosas coroava–lhe a bonita cabeça
loura. Atrás do véu, os seus olhos brilhavam como safiras. Não havia na nobreza mulher mais elegante
do que esta, que descendia da finança judaica. Era alta e bem feita; a sua figura era a do ano; o busto, o
da estação.
– Almirante – disse ela numa voz deliciosa –, não posso esconder–lhe a minha emoção... É natural...
diante de um herói...
– É muito amável. Diga–me, senhora Viscondessa, a que devo a honra da sua visita.
– Há muito que desejava vê–lo, falar–lhe... Por isso, encarreguei–me de bom grado de uma missão junto
de si.
– Queira fazer o favor de sentar–se.
– Como é calmo aqui!
– Com efeito, é bastante tranquilo.
– Ouve–se cantar as aves.
– Queira sentar–se, minha senhora. E ofereceu–lhe uma poltrona.
Ela ocupou uma cadeira do lado oposto.
– Almirante, venho até si encarregada de uma missão muito importante, uma missão...
– Queira explicar–se.
– Almirante, nunca viu o príncipe Crucho?
– Nunca. Ela suspirou.
– É esse o mal. Ele gostaria tanto de o ver! Estima–o e aprecia–o. Tem o seu retrato na mesa de
trabalho, ao lado da princesa sua mãe. Que pena que não o conheça! É um príncipe encantador e que
sabe agradecer o que fazem por ele! Será um grande rei. É que há–de ser rei, não duvide. Voltará e mais
cedo do que se pensa... O que tenho a dizer–lhe, a missão que me foi confiada refere–se precisamente
a...
O almirante levantou–se:
– Nem mais uma palavra, minha senhora. Tenho a estima, tenho a confiança da República. Não a trairei.
E porque havia de traí–la? Fui cumulado de honras e de dignidades.
– As suas honras, as suas dignidades, meu caro almirante, permita–me que lho diga, estão muito longe
de igualar os seus méritos. Se os seus serviços fossem recompensados, seria almirantíssimo e
generalíssimo, comandante supremo das tropas de terra e mar. A república é muito ingrata para consigo.
– Todos os Governos são mais ou menos ingratos.
– Sim, mas os coisardos têm ciúmes de si. Essa gente receia todas as superioridades. Não suporta os
militares. Odeia tudo o que diz respeito à marinha e ao exército. Tem medo de si.
– É possível.
– É gente miserável. Perde o país. Não quer salvar a Pinguínia?
– Como?
– Varrendo todos esses patifes da coisa pública, todos os coisardos.
– Que está a propor–me, minha senhora?
– Que faça o que se fará certamente. Se não for você, será outro. O generalíssimo, para não falar senão
dele, está disposto a atirar todos os ministros, todos os deputados e todos os senadores ao mar e a
chamar o príncipe Crucho.
– Ah!, o canalha, o crápula! – clamou o almirante.
– O que ele faria contra si, faça–o contra ele. O príncipe saberá reconhecer os seus serviços. Dar–lhe–á
a espada de condestável e uma magnífica doação. Entretanto, fui encarregada de lhe entregar um penhor
da sua real amizade.
Ao pronunciar estas palavras, tirou do seio uma roseta verde.
– Que vem a ser isso? – perguntou o almirante.
– É Crucho que lhe manda as suas cores.
– Quer fazer–me o favor de as devolver?
– Para serem oferecidas ao generalíssimo, que as aceitará!.... Não, meu caro almirante, deixe–me
colocá–las no seu glorioso peito.
Chatillon afastou suavemente a jovem mulher. Mas há alguns minutos já que a achava extremamente
bonita; e sentiu aumentar ainda mais essa impressão quando dois braços nus e as palmas rosadas de
duas delicadas mãos o afloraram. Quase imediatamente, cedeu. Olive demorou–se a prender a fita.
Depois, quando terminou, saudou Chatillon com uma grande reverência, dando–lhe o título de
condestável.
– Fui ambicioso como os camaradas – respondeu o homem de mar–, não o nego; talvez o seja ainda;
mas, palavra de honra, ao vê–la, o único desejo que formulo é uma cabana e um coração.
Ela fez incidir sobre ele os raios encantadores das safiras que brilhavam sobre as suas pálpebras.
– Também pode ter isso... Que faz, almirante?
– Procuro o coração.
Ao sair do pavilhão do Almirantado, a viscondessa foi imediatamente prestar contas, ao reverendo
padre Agaric, da sua visita.

V – O Príncipe dos Boscenos


De manhã à noite, os jornais a soldo dos Dracófilos publicavam os louvores de Chatillon e cobriam de
vergonha e opróbrio os ministros da república.
Apregoava–se o retrato de Chatillon nas avenidas de Alça. Os jovens sobrinhos de Rémus, que
transportam figuras de gesso à cabeça, vendiam, junto às pontes, os bustos de Chatillon.
Chatillon, percorria todas as noites, no seu cavalo branco, o prado da Rainha, frequentado pela gente
elegante. Os Dracófilos postavam à passagem do almirante uma multidão de pinguins necessitados, que
cantavam: "Queremos Chatillon". A burguesia de Alça votava uma profunda admiração ao almirante.
As damas do comércio murmuravam: "É belo". As mulheres elegantes, nos seus automóveis em marcha
lenta, atiravam beijos de passagem, no meio dos hurras de um povo em delírio.

Um dia, quando entrava numa tabacaria, dois pinguins, que introduziam cartas no marco do correio,
reconheceram Chatillon e gritaram a plenos pulmões: "Viva o almirante! Abaixo os coisardos!". Todos
os transeuntes pararam diante da loja. Chatillon acendeu o charuto sob os olhares de uma multidão
compacta de cidadãos desvairados, que agitavam os chapéus e proferiam aclamações. A multidão não
cessava de aumentar; toda a cidade, marchando atrás do seu herói, acompanhou–o, entoando hinos, até
ao pavilhão do Almirantado.
O almirante tinha um velho camarada de armas cuja folha de serviços era soberba, o vice–almirante
Volcanmoule, que alardeava uma feroz independência, frequentava os partidários de Crucho e os
ministros da república e dizia a uns e outros as suas verdades. M. Bigourd pretendia maldosamente que
ele dizia a uns as verdades dos outros. Com efeito, tinha cometido várias vezes indiscrições deploráveis,
nas quais as pessoas se divertiam a ver a liberdade de um soldado alheio às intrigas. Ia todos os dias a
casa de Chatillon, a quem tratava com a rudeza de um irmão de armas.
– Muito bem, meu velho pato, tornaste–te popular – dizia–lhe. – Vendem a tua cara em fornos de
cachimbo e em garrafas de licor e todos os bêbedos de Alça arrotam o teu nome nos ribeiros...
Chatillon, herói dos Pinguins! Chatillon, defensor da glória e do poder pinguins! Quem o diria? Quem o
acreditaria?
E ria–se com um riso estridente. Depois, mudando de tom:
– A sério, não estás um pouco surpreendido com o que te acontece?
– Claro que não! – respondia Chatillon.
E o leal Volcanmoule saía, batendo com as portas.

Entretanto, Chatillon tinha alugado, para receber a viscondessa Olive, um pequeno rés–do–chão ao
fundo do pátio, no nº 18 da Rue Johannes–Talpa. Viam–se todos os dias. Amava–a apaixonadamente.
Na sua vida marcial e neptuniana, tinha possuído montes de mulheres, vermelhas, pretas, amarelas ou
brancas, e algumas belíssimas; mas, antes de ter conhecido esta, não sabia o que é uma mulher. Quando
a viscondessa Olive lhe chamava seu amigo, o seu doce amigo, sentia–se no céu e parecia–lhe que as
estrelas se lhe agarravam aos cabelos.
Ela entrava um pouco atrasada, colocava o saquinho de mão em cima da mesinha e dizia, com
recolhimento:
– Deixe–me ficar assim nos seus joelhos.
E dizia–lhe coisas inspiradas pelo piedoso Agaric; e intervalava–as com beijos e suspiros. Pedia–lhe que
afastasse determinado oficial, que desse um comando a outro, que mandasse a esquadra para aqui ou
para ali.
E exclamava na altura própria:
– Como é jovem, meu amigo!
E ele fazia tudo o que ela queria, porque era simples, porque desejava usar a espada de condestável e
receber uma rica doação, porque não lhe desagradava praticar aquele duplo jogo, porque tinha
vagamente a ideia de salvar a Pinguínia, porque estava apaixonado.
Essa mulher deliciosa levou–o a desguarnecer de tropas o porto da Calheta, onde devia desembarcar
Crucho. Tinha–se assim a certeza de que o príncipe entraria sem obstáculo na Pinguínia.

O piedoso Agaric organizava reuniões públicas, a fim de alimentar a agitação. Os Dracófilos presidiam
todos os dias a uma, duas ou três, num dos trinta e seis distritos de Alça, de preferência nos bairros
populares. Queriam conquistar as pessoas de baixa condição, que são o maior número.
A 4 de Maio, nomeadamente, realizou–se uma belíssima reunião no velho mercado dos cereais, no
centro de um populoso arrabalde cheio de donas de casa sentadas na soleira das portas e crianças a
brincar aos ribeiros. Assistiram duas mil pessoas, na estimativa dos republicanos, e seis mil, segundo os
Dracófilos. Reconhecia–se na assistência a flor da sociedade pinguim, o príncipe e a princesa dos
Boscenos, o conde Cléna, M. de la Trumelle, M. Bigourd e algumas ricas damas israelitas.
O generalíssimo do exército nacional apresentara–se de uniforme. Foi aclamado.
A mesa constituiu–se laboriosamente. Um homem do povo, um operário, mas que pensava bem, o
senhor Rauchin, secretário dos sindicatos amarelos, foi chamado a presidir, entre o conde Cléna e o
senhor Michaud, magarefe.
Em vários discursos eloquentes, o regime que a Pinguínia escolhera livremente recebeu os nomes de
esgoto e latrina. O presidente Formoso foi poupado. Não se falou nem de Crucho nem dos padres.
A reunião era contraditória; um defensor do Estado moderno e da república, homem de profissão
manual, apresentou–se.
– Meus senhores – disse o presidente Rauchin–, anunciámos que a reunião seria contraditória. Só temos
uma palavra; não somos como os nossos contraditores, somos honestos. Dou a palavra ao contraditor.
Só Deus sabe o que vão ouvir! Meus senhores, peço–lhes que contenham o melhor que puderem a
expressão do vosso desprezo, do vosso nojo e da vossa indignação.
– Meus senhores... – disse o contraditor.
Imediatamente foi derrubado, calcado aos pés pela multidão indignada e os seus restos irreconhecíveis
atirados para fora da sala.
O tumulto rugia ainda quando o conde Cléna subiu à tribuna. Às vaias sucederam–se as aclamações e,
quando o silêncio se restabeleceu, o orador pronunciou estas palavras:
– Camaradas, vamos ver se têm sangue nas veias. Trata–se de degolar, estripar, rebentar o crânio aos
coisardos.
Este discurso desencadeou uma tão grande trovoada de aplausos que o velho barracão tremeu e uma
espessa poeira, saída das sórdidas paredes e das traves carunchosas, envolveu a assistência nas suas
acres e sombrias nuvens.
Votou–se uma ordem do dia que difamava o Governo e aclamava Chatillon. E os assistentes saíram a
cantar o hino libertador: "Queremos Chatillon".

O velho mercado tinha por única saída uma comprida rua, sufocada entre barracões de recolha de
ónibus e armazéns de carvão. Não havia luar; caía um chuvisco frio.
Os polícias, em grande número, fechavam a rua ao nível do arrebalde e obrigavam os Dracófilos a
dispersar–se em pequenos grupos. Eram as ordens que tinham recebido do seu chefe, que se esforçava
por quebrar o ímpeto de uma multidão delirante.
Os Dracófilos mantidos na rua marcavam o passo cantando: "Queremos Chatillon". Em breve,
impacientes com essa lentidão de que desconheciam a causa, começaram a empurrar os que estavam à
frente. Este movimento, propagado ao longo da rua, atirava os que haviam saído em primeiro lugar
contra os largos peitos dos polícias. Estes não odiavam os Dracófilos; mas é natural resistir à agressão e
opor violência à violência; os homens fortes são levados a servir–se da sua força. Por isso os polícias
recebiam os Dracófilos a pontapés das suas botas ferradas. Resultavam daí bruscos recuos. As ameaças
e os gritos misturavam–se aos cantos.
"Assassinos! Assassinos!...", "Queremos Chatillon!", "Assassinos! Assassinos!"
E, na sombria rua: "Não empurrem", diziam os mais prudentes. Entre estes, dominando com o seu alto
porte a multidão agitada, desdobrando entre os membros pisados e as costelas deslocadas os seus largos
ombros e os pulmões robustos, sereno, inabalável, plácido, erguia–se nas trevas o príncipe dos
Boscenos. Esperava, indulgente e calmo. Contudo, processando–se a saída a intervalos regulares por
entre as filas de polícias, os cotovelos, à volta do príncipe, começaram a imprimir–se menos
profundamente nos peitos; voltava–se a respirar.
– Como vêem, acabaremos por sair – disse esse bom gigante, com um terno sorriso. – Paciência, que
temos tempo...
Tirou um charuto do estojo, levou–o aos lábios e riscou um fósforo. De súbito, viu à claridade da chama
a princesa Ana, sua mulher, desmaiada nos braços do conde Cléna. Atirou–se a eles e desancou–os à
bengalada, a eles e às pessoas em redor. Desarmaram–no a custo. Mas não conseguiram separá–lo do
seu adversário. E, enquanto a princesa desmaiada passava, de braço em braço, por cima da multidão
excitada, e curiosa, até à sua viatura, os dois homens entregavam–se a uma luta raivosa. O príncipe dos
Boscenos perdeu o chapéu, a luneta, o charuto, a gravata, a carteira atulhada de cartas íntimas e de
correspondência política; perdeu até as milagrosas medalhas que havia recebido do bom padre
Cornemuse. Mas descarregou no ventre do seu adversário um murro tão formidável que o desgraçado
atravessou uma grade de ferro e entrou de cabeça, por uma porta envidraçada, num armazém de carvão.
Atraídos pelo ruído da luta e pelos clamores dos assistentes, os polícias atiraram–se ao príncipe, que
lhes opôs uma furiosa resistência. Estendeu três arquejantes aos seus pés, obrigou mais sete a fugirem,
de queixos partidos, a cabeça rachada, as orelhas arrancadas, as clavículas deslocadas, as costelas
metidas dentro. Acabou, porém, por cair e foi arrastado coberto de sangue, desfigurado, de roupas em
farrapos, para a esquadra próxima, onde passou a noite a pular e a rugir.
Até ser dia, grupos de manifestantes percorreram a cidade cantando: "Queremos Chatillon" e partindo
os vidros das casas habitadas pelos ministros da coisa pública.

VI – A Queda do Almirante


Essa noite marcou o apogeu do movimento dracófilo. Os monárquicos já não duvidavam do triunfo. Os
mais categorizados enviavam ao príncipe Crucho felicitações por telégrafo. As damas bordavam–lhe
lenços e pantufas. M. de Plume descobrira o cavalo verde.
O piedoso Agaric compartilhava a esperança comum. Todavia, continuava a procurar partidários para o
pretendente.
"É preciso", dizia ele, "atingir as camadas mais fundas."
Com este propósito, aliou–se a três sindicatos operários.
Nessa época, os trabalhadores já não viviam, como no tempo dos Dracónidas, sob o regime das
corporações. Eram livres, mas não tinham o salário garantido. Depois de terem durante muito tempo
vivido isolados uns dos outros, sem ajuda e sem apoio, constituíram–se em sindicatos. Os cofres desses
sindicatos estavam vazios, porquanto os sindicalizados não tinham por costume pagar as quotas. Havia
sindicatos com trinta mil membros; havia–os com mil, quinhentos, duzentos. Alguns contavam apenas
dois ou três membros ou até um pouco menos. Mas, como as listas dos aderentes não eram publicadas,
não se tornava fácil distinguir os grandes sindicatos dos pequenos.
Após sinuosas e tenebrosas diligências, o piedoso Agaric foi posto em contacto, numa sala do Moinho
da Massa, com os camaradas Dagobert, Trone e Bellafille, secretários de três sindicatos profissionais,
contando o primeiro catorze membros, o segundo vinte e quatro e o terceiro um só. Agaric revelou,
nesta entrevista, uma habilidade extrema.
– Meus senhores – disse ele –, não temos, em muitos aspectos, as mesmas ideias políticas e sociais; mas
há pontos sobre os quais nos podemos entender. Temos um inimigo comum. O Governo explora–os e
zomba de vocês. Ajudem–nos a derrubá–lo; fornecer–lhes–emos, tanto quanto possível, os meios; e
poderão, além disso, contar com o nosso reconhecimento.
– Entendido. Venha a massa – disse Dagobert.
O reverendo padre pôs em cima da mesa um saco, que lhe entregara, de lágrimas nos olhos, o destilador
dos Conils.
– Apertemos as mãos – disseram os três companheiros.
Assim foi selado este pacto solene.

Logo que o monge partiu, levando a alegria de ter conquistado para a sua causa as massas mais fundas,
Dagobert, Trone e Balafille assobiaram às mulheres, Amélia, Rainha e Matilde, que, na rua, esperavam
o sinal, e os seis, de mãos dadas, dançaram à roda do saco, cantando:

Tenho dinheiro do bom;
Tu não o terás, Chatillon!
Hu!, hu!, que cachola!

E encomendaram uma saladeira de vinho quente.
À noite, foram os seis de taberna em taberna, entoando a sua nova canção. Esta agradou, dado que os
agentes da polícia secreta informaram que aumentava de dia para dia o número dos operários que
cantavam nos arrabaldes:

Tenho dinheiro do bom;
Tu não o terás, Chatillon!
Hu!, hu!, que cachola!

A agitação dracófila não se propagara às províncias. O piedoso Agaric procurava o motivo, sem
conseguir descobri–lo, quando o velho Cornemuse lho veio revelar.
– Tenho provas – suspirou o religioso dos Conils – de que o tesoureiro dos Dracófilos, o duque de
Ampoule, comprou imóveis na Marsuínia com os fundos que recebeu para a propaganda.
O partido carecia de dinheiro. O príncipe dos Boscenos tinha perdido a carteira numa rixa e estava
reduzido a penosos expedientes, que repugnavam ao seu caráter impetuoso. A viscondessa Olive
custava muito caro. Cornemuse aconselhou que se limitassem as mensalidades desta dama.
– É–nos muito útil – objectou o piedoso Agaric.
– Sem dúvida – replicou Cornemuse. – Mas, arruinando–nos, prejudica–nos.
Um cisma dilacerava os Dracófilos. A desinteligência reinava nos seus conselhos. Uns queriam que, fiel
à política de M. Bigourd e do piedoso Agaric, se levasse até ao fim o propósito de reformar a república;
os outros, cansados de uma longa sujeição, estavam decididos a aclamar a crista do Dragão e juravam
vencer com esse sinal.
Estes alegavam a vantagem das situações claras e a impossibilidade de continuar a fingir. De facto, o
público começava a perceber para onde tendia a agitação e que os partidários do almirante queriam
destruir até aos alicerces a coisa comum.
Espalhava–se o rumor segundo o qual o príncipe desembarcaria na Calheta e faria a sua entrada em
Alça montado num cavalo verde.
Estes rumores exaltavam os monges fanáticos, encantavam os fidalgos pobres, alegravam as ricas
damas judias e enchiam de esperança o coração dos pequenos comerciantes.
Mas muito poucos estavam dispostos a comprar esses benefícios à custa de uma catástrofe social e da
ruína do crédito público; e eram ainda menos numerosos os que se dispunham a arriscar na aventura o
seu dinheiro, o descanso, a liberdade ou somente uma hora dos seus prazeres. Pelo contrário, os
operários estavam prontos, como sempre, a dar um dia de trabalho à república; uma surda resistência
crescia nos arrabaldes.
– O povo está conosco – dizia o piedoso Agaric.
Contudo, à saída das oficinas, homens, mulheres, crianças, gritavam em uníssono:

Abaixo Chatillon!
Hu!, hu!, que cachola!

Quanto ao Governo, revelava a fraqueza, a indecisão, a moleza, a incúria habituais a todos os Governos
e de onde nunca nenhum saiu senão para se lançar no arbitrário e na violência. Em três palavras, não
sabia nada, não queria nada, não podia nada. Formoso, no fundo do palácio presidencial continuava
cego, mudo, surdo, enorme, invisível, cozido ao seu orgulho como a um edredão.
O conde Olive aconselhou que se fizesse um último apelo de fundo e se tentasse um grande golpe,
enquanto Alça fermentava ainda.
Uma comissão, executiva, que se elegera a si mesma, decidiu assaltar a Câmara dos Deputados e
ponderou na forma e nos meios.

A aventura foi marcada para 28 de Julho. Nesse dia, o Sol ergueu–se radioso por cima da cidade. Diante
do palácio legislativo, as donas de casa passavam com as suas cestas, os vendedores ambulantes
apregoavam pêssegos, pêras e uvas e os cavalos de fiacre, com o nariz na cevadeira, mastigavam a sua
aveia. Ninguém suspeitava de nada; não porque o segredo tivesse sido guardado, mas porque a notícia
só deparara com incrédulos. Ninguém acreditava numa revolução, de onde se podia concluir que
ninguém a desejava. Por volta das duas horas, os deputados começaram a passar, raros, despercebidos,
pela pequena porta do palácio. Às três horas, alguns grupos de homens mal vestidos começaram a
aparecer.
Às três horas e meia, massas negras, vindas da ruas adjacentes, espalharam–se pela Praça da Revolução.
Este vasto espaço em breve foi submergido por um oceano de chapéus de feltro e a multidão dos
manifestantes, sem cessar aumentada pelos curiosos, tendo transposto a ponte, projectava a sua massa
sombria nas paredes do recinto legislativo. Gritos, urros, canções, subiam para o céu sereno. "Queremos
Chatillon! Abaixo os deputados! Abaixo a república! Morte aos coisardos!" O batalhão sagrado dos
Dracófilos, comandado pelo príncipe dos Boscenos, entoou o cântico augusto:

Viva Crucho,
Valente e sábio Cheio de coragem Desde o berço!

Do outro lado do muro, só o silêncio respondia.
Esse silêncio e a ausência de guardas encorajavam e assustavam ao mesmo tempo a multidão. De
súbito, uma voz formidável gritou:
"Ao assalto!"
E viu–se o príncipe dos Boscenos que erguia por cima do muro armado de pontas e lanças de ferro a sua
forma gigantesca. Os companheiros lançaram–se atrás dele e o povo seguiu–os. Uns batiam no muro
para abrir buracos, outros tentavam dessoldar as lanças e arrancar as pontas. Estas defesas tinham
cedido em alguns pontos.
Alguns invasores já escalavam a empena desguarnecida. O príncipe dos Boscenos agitava uma imensa
bandeira verde. De repente, a multidão oscilou e soltou um prolongado grito de terror. A polícia e os
carabineiros da República, irrompendo ao mesmo tempo por todas as saídas do palácio, formavam em
coluna sob o muro por instantes desprotegido. Após um longo minuto de expectativa, ouviu–se um
ruído de armas e a polícia, de baionetas em riste, carregou sobre a multidão.
Um instante depois, na praça deserta, juncada de bengalas e chapéus, reinava um silêncio sinistro. Duas
vezes ainda os Dracófilos tentaram reorganizar–se, duas vezes foram repelidos. O motim estava
dominado.
Mas o príncipe dos Boscenos, de pé no muro do palácio inimigo, de estandarte na mão, repelia o assalto
de uma brigada inteira. Derrubava todos os que se aproximavam.
Finalmente, sacudido, desenraizado, caiu sobre uma lança de ferro e aí ficou espetado, continuando a
agarrar o estandarte dos Dracónidas.

No dia seguinte, os ministros da República e os membros do Parlamento resolveram tomar medidas
enérgicas. Em vão, desta vez, o presidente Formoso tentou iludir as responsabilidades. O Governo
examinou a questão de destituir Chatillon dos seus postos e dignidades e levá–lo ao Supremo Tribunal
como amotinador, inimigo do bem público, traidor, etc.
A esta notícia, os velhos camaradas de armas do almirante, que ainda na véspera o perseguiam com as
suas adulações, não esconderam a alegria. Chatillon, porém, continuava a gozar de popularidade na
burguesia de Alça e ouvia–se ainda retinir nas avenidas o hino libertador: "Queremos Chatillon."
Os ministros estavam embaraçados. Tencionavam levar Chatillon ao Supremo Tribunal. Mas não
sabiam nada; mantinham–se na total ignorância reservada aos que governam os homens. Sentiam–se
incapazes de apresentar contra Chatillon provas de culpabilidade. Limitavam–se a fornecer à acusação
as mentiras ridículas dos seus espiões.
A participação de Chatillon na conjura, as suas relações com o príncipe Crucho, constituíam o segredo
de trinta mil dracófilos. Os ministros e os deputados tinham suspeitas e até certezas; não tinham provas.
O procurador da República dizia ao ministro da Justiça: "De pouco preciso para intentar um processo
político, mas não tenho absolutamente nada; não chega". O caso não avançava. Os inimigos da coisa
rejubilavam.

Na manhã de 18 de Setembro, correu a notícia em Alça de que Chatillon tinha fugido. A emoção, a
surpresa eram gerais. Duvidava–se, ninguém conseguia compreender.
Eis o que se tinha passado:
Um dia em que se encontrava, como por acaso, no gabinete de M. Barbotan, ministro da Administração
Interna, o bravo vice–almirante Volcanmoule disse, com a sua franqueza habitual:
– Senhor Barbotan, os seus colegas não me parecem muito espertos; vê–se que nunca comandaram no
mar. Esse imbecil do Chatillon causa–lhes um cagaço dos diabos.
O ministro, em sinal de contestação, fendeu com a sua faca de papel o ar a toda a largura do gabinete.
– Não ria – replicou Volcanmoule. – Não sabe como se desembaraçar de Chatillon. Não ousa levá–lo ao
Supremo Tribunal porque não tem a certeza de reunir provas suficientes. Bigourd defendê–lo–á e
Bigourd é um hábil advogado... Tem razão, senhor Barbotan, tem razão. Este processo seria perigoso...
– Ah!, meu amigo – disse o ministro, num tom desprendido –, se soubesse como estamos tranquilos...
Recebo dos meus prefeitos as mais animadoras notícias. O bom senso dos Pinguins condenará as
intrigas de um soldado revoltado. Pode supor por um momento que um grande povo, um povo
inteligente, laborioso, amante das instituições liberais que...
Volcanmoule interrompeu–o com um grande suspiro:
– Ah!, se eu tivesse tempo, tirá–lo–ia de dificuldades; escamotear–lhe–ia o meu Chatillon como se fosse
uma bolinha. Mandá–lo–ia com um piparote para a Marsuínia!
O ministro apurou o ouvido.
– Seria rápido – prosseguiu o homem de mar. – Num abrir e fechar de olhos, livrá–lo–ia desse animal...
Mas, neste momento, tenho outros cães a chicotear... Perdi uma grande soma ao bacará. Tenho de
arranjar dinheiro. A honra acima de tudo, que diabo!...
O ministro e o vice–almirante olharam–se por instantes em silêncio. Depois, Barbotan disse, com
autoridade.
– Vice–almirante Volcanmoule, desembarace–nos de um soldado rebelde. Prestará um grande serviço à
Pinguínia e o ministro da Administração Interna garantir–lhe–á os meios de pagar as suas dívidas de
jogo.

Nessa mesma noite, Volcanmoule apresentou–se diante de Chatillon e contemplou–o durante muito
tempo, com uma expressão de dor e mistério.
– Porque fazes essa cara? – perguntou o almirante, inquieto. Então Volcanmoule disse–lhe, com máscula
tristeza:
– Meu velho irmão de armas, está tudo descoberto. Há meia hora que o Governo sabe tudo.
A estas palavras, Chatillon caiu redondo. Volcanmoule continuou:
– Podes ser preso de um momento para o outro. Aconselho–te a fugir.
E, olhando para o relógio:
– Nem um minuto a perder.
– Posso ao menos passar por casa da viscondessa Olive?
– Seria uma loucura – respondeu Volcanmoule, que lhe estendeu um passaporte e óculos azuis e lhe
recomendou coragem.
– Tê–la–ei – disse Chatillon.
– Adeus, velho irmão!
– Adeus e obrigado! Salvaste–me a vida...
– É possível.
Um quarto de hora depois, o bravo almirante tinha deixado a cidade de Alça.
Embarcou de noite, na Calheta, num velho cúter, e rumou para a Marsuínia. Mas, a oito milhas da costa,
foi capturado por um aviso que navegava sem luzes, sob o pavilhão da rainha das Ilhas Negras. Há
muito que esta rainha nutria por Chatillon um amor fatal.

VII – Conclusão


Nunc est bibendum. Liberto dos seus temores, feliz por ter escapado a um tão grande perigo, o Governo
resolveu celebrar com festas populares o aniversário da regeneração pinguim e da implantação da
República.
O presidente Formoso, os ministros, os membros da Câmara e do Senado estavam presentes à
cerimônia.
O generalíssimo dos exércitos pinguins compareceu em grande uniforme. Foi aclamado.
Precedidas pela bandeira negra da miséria e pela bandeira vermelha da revolta, desfilaram as delegações
de operários, selvagens e tutelares.
Presidente, ministros, deputados, funcionários, chefes da magistratura e do exército, em seu nome e em
nome do povo soberano, renovaram o antigo juramento de viverem livres ou morrerem. Era uma
alternativa a que aderiam resolutamente. Mas preferiam viver livres. Houve jogos, discursos e cantos.
Depois da partida dos representantes do Estado, a multidão dos cidadãos deslizou em vagas lentas e
serenas, gritando: "Viva a república! Viva a liberdade! Hu!, hu!, que cachola!".
Os jornais assinalaram apenas um facto lamentável nesse belo dia. O príncipe dos Boscenos fumava
tranquilamente um charuto no prado da Rainha quando por ali desfilou o cortejo do Estado. O príncipe
aproximou–se da viatura dos ministros e disse, numa voz retumbante: "Morte aos coisardos!". Foi
imediatamente agarrado pelos agentes da polícia, aos quais opôs a mais desesperada resistência. Abateu
um monte deles; mas sucumbiu ao número e foi arrastado, contuso, esfolado, inchado, golpeado,
irreconhecível, enfim, aos próprios olhos de uma esposa, pelas ruas alegres, até ao fundo de uma escura
prisão.
Os magistrados instruíram curiosamente o processo de Chatillon. Descobriu–se no pavilhão do
Almirantado cartas que revelavam a mão do reverendo padre Agaric na conjura.
Imediatamente a opinião pública se levantou contra os monges; e o Parlamento votou, umas atrás das
outras, uma dúzia de leis que restringiam, diminuíam, limitavam, delimitavam, suprimiam, cortavam e
cerceavam os seus direitos, imunidades, isenções, privilégios e rendimentos e lhes criavam
incapacidades múltiplas e dirimentes.
O reverendo padre Agaric suportou com constância o rigor das leis pelas quais era particularmente
visado, atingido, ferido, e a estrondosa queda do almirante, de que era a causa primeira. Longe de se
submeter à má sorte, olhava–a como uma estranha de passagem. Formava novos projetos políticos, mais
audaciosos do que os primeiros.

Quando amadureceu suficientemente os seus intuitos, dirigiu–se uma manhã para o bosque dos Conils.
Um melro assobiava numa árvore, um pequeno ouriço–cacheiro atravessava num passo enfadonho o
atalho pedregoso. Agaric caminhava a grandes passadas, pronunciando frases entrecortadas.
Chegado à entrada do laboratório onde o piedoso industrial tinha, ao longo de tão belos anos, destilado
o licor dourado de Santa Orberose, encontrou o local deserto e a porta fechada. Tendo dado a volta ao
edifício, descobriu nas traseiras o venerável Cornemuse, que, de sotaina arregaçada, subia por uma
escada encostada à parede.
– É você, caro amigo? – perguntou–lhe. – Que faz aí?
– Vou para casa, como vê – respondeu com voz débil o religioso dos Conils, lançando a Agaric um
olhar dorido.
As suas pupilas vermelhas já não imitavam o brilho triunfal do rubi; lançavam clarões sombrios e
perturbadores. O rosto havia perdido a plenitude feliz. A calva polida já não seduzia os olhares; um suor
abundante e manchas inflamadas alteravam–lhe a inestimável perfeição.
– Não compreendo – disse Agaric.
– Pois é fácil de compreender. E está a ver aqui as consequências da sua conjura. Visado por uma
multidão de leis, iludi o maior número. Algumas, porém, atingiram–me. Esses homens vingativos
fecharam os meus laboratórios e os meus armazéns, confiscaram as minhas garrafas, os meus
alambiques e as minhas retortas; selaram–me a porta. Por isso, agora, tenho de entrar pela janela. A
custo consigo extrair secretamente, de vez em quando, o suco das plantas, com aparelhos que o mais
humilde dos destiladores de vinho rejeitaria.
– É a perseguição – disse Agaric. – Atinge–nos a todos. O religioso dos Conils passou a mão pela fronte
desolada:
– Bem lhe tinha dito, irmão Agaric; bem lhe tinha dito que a sua aventura recairia sobre nós.
–A nossa derrota é momentânea – replicou vivamente Agaric. – Tem causas unicamente acidentais;
resulta de meras contingências. Chatillon era um imbecil; afogou–se na sua própria inépcia. Ouça–me,
irmão Cornemuse. Não temos um momento a perder. É preciso libertar o povo pinguim, é preciso
desembaraçá–lo dos seus tiranos, salvá–lo de si mesmo, restaurar a crista do Dragão, restabelecer o
antigo Estado, o bom Estado, para honra da religião e exaltação da fé católica. Chatillon era um mau
instrumento; quebrou–se–nos nas mãos. Procuremos, para o substituir, um instrumento melhor. Tenho o
homem por quem a ímpia democracia será destruída. É um civil, é Gomoru. Os Pinguins são doidos por
ele. Já traiu o seu partido por um prato de arroz. Eis o homem de que precisamos!
No começo deste discurso, o religioso dos Conils tinha entrado pela janela e retirado a escada.
– Estou a ver – respondeu ele, com o nariz entre os caixilhos.
– Não terá descanso enquanto não fizer que nos expulsem a todos desta bela, amena e doce terra da
Pinguínia. Boa noite, Deus o guarde!
Agaric, especado diante da parede, exortou o seu muito caro irmão a escutá–lo um momento:
– Atente melhor no seu interesse, Cornemuse! A Pinguínia é nossa. Que nos é preciso para a conquistar?
Mais um esforço... mais um leve sacrifício de dinheiro e...
Mas, sem ouvir mais, o religioso dos Conils retirou o nariz e fechou a janela.

Livro VI – OS TEMPOS MODERNOS – O
CASO DAS OITENTA MIL MEDAS DE FENO


I – O General Greatauk, Duque do Skull


Pouco tempo após a fuga do almirante, um judeu de condição medíocre, chamado Pyrot, cioso de
conviver com a aristocracia e desejoso de servir o seu país entrou para o exército dos Pinguins. O
ministro da Guerra, que era então Greatauk, duque do Skull, não o suportava: censurava–lhe o zelo, o
nariz adunco, a vaidade, o gosto pelo estudo, os lábios grossos e a conduta exemplar. Sempre que se
procurava o autor de uma falta, Greatauk dizia:
"Deve ser Pyrot!"

Uma manhã, o general Panther, chefe do Estado–Maior, informou Greatauk de um caso grave. Oitenta
mil medas de feno, destinadas à cavalaria, tinham desaparecido; não havia vestígios.
Greatauk exclamou espontaneamente:
– Deve ter sido Pyrot quem as roubou! Ficou algum tempo pensativo e disse:
– Quanto mais penso, mais me persuado de que Pyrot roubou essas oitenta mil medas de feno. E estou
certo de que as surripiou para as vender a baixo preço aos Marsuínos, nossos inimigos declarados.
Infame traição!
– Tem razão – concordou Panther. – Só nos resta prová–lo. Nesse mesmo dia, ao passar por um quartel
de cavalaria, o príncipe dos
Boscenos ouviu couraceiros que cantavam, enquanto varriam o pátio:

Boscenos é um grande porco;
Vão fazer dele chouriços,
Salsichas e presunto
Para a consoada dos pobres diabos.

Pareceu–lhe contrário a toda a disciplina que soldados cantassem esse estribilho, ao mesmo tempo
doméstico e revolucionário, que jorrava, nos dias de sedição, da garganta dos operários galhofeiros.
Deplorou a decadência moral do exército e pensou com um amargo sorriso que o seu velho camarada
Greatauk, chefe desse exército decadente, o entregasse ignobilmente aos rancores de um governo
antipatriota. E prometeu a si mesmo metê–lo na ordem, dentro de pouco tempo.
"Esse patife do Greatauk", dizia para consigo, "não será muito tempo ministro."
O príncipe dos Boscenos era o mais irreconciliável adversário da democracia moderna, do livre–
pensamento e do regime que os Pinguins tinham livremente escolhido.
Nutria contra os Judeus um ódio vigoroso e leal e trabalhava em público, em segredo, noite e dia, na
restauração do sangue dos Dracónidas. O seu realismo ardente exaltava–se ainda mais quando pensava
nos seus assuntos privados, cuja má situação piorava de hora em hora; com efeito, parecia–lhe que só
ficaria livre de dificuldades pecuniárias com a entrada do herdeiro de Draco, o Grande, na cidade de
Alça.
De regresso ao seu palacete, o príncipe tirou do cofre um maço de velhas cartas, correspondência
privada, muito secreta, que recebera de um empregado infiel e da qual resultava que o seu velho
camarada Greatauk, duque do Skull, tinha trapaceado nos abastecimentos e recebido de um industrial,
de nome Maloury, uma gratificação, que não era enorme e cuja modicidade até não contribuía para
desculpar o ministro que a aceitara.
O príncipe releu essas cartas com amarga volúpia, voltou a guardá–las cuidadosamente no cofre e
correu ao Ministério da Guerra. Era de caráter decidido. Ao ser informado de que o ministro não
recebia, derrubou os contínuos, lançou por terra as ordenanças, calcou aos pés os empregados civis e
militares, arrombou as portas e penetrou no gabinete de Greatauk, espantado.
– Falemos pouco, mas falemos bem – disse–lhe. – És um velho crápula. Mas isso ainda é o menos.
Pedi–te que cortasses as orelhas ao general Monchin, a alma danada dos coisardos; não quiseste. Pedi–
te que desses um comando ao general dos Clapiers, que trabalha para os Dracónidas e com quem me
comprometi pessoalmente; não quiseste. Pedi–te que transferisses o general Tandem, que comanda em
Port–Alca, que me roubou cinquenta luíses ao bacará e me algemou quando fui levado ao Supremo
Tribunal como cúmplice do almirante Chatillon; não quiseste. Pedi–te o fornecimento da aveia e do
farelo; não quiseste. Pedi–te uma missão secreta na Marsuínia; não quiseste. E, não contente em me
opores uma invariável recusa, apontaste–me aos teus colegas do Governo como um indivíduo perigoso
que é preciso vigiar, e devo–te o ter sido apanhado pela polícia, velho traidor! Não te peço mais nada e
só tenho uma coisa a dizer: desaparece, estamos fartos de te ver! Aliás, para te substituir, imporemos à
tua porca coisa pública um dos nossos. Sabes que sou homem de palavra. Se dentro de vinte e quatro
horas não tiveres apresentado a tua demissão, publico nos jornais o processo Maloury. Mas Greatauk,
cheio de calma e serenidade:
– Acalma–te, idiota. Estou a mandar um judeu para a cadeia. Entrego Pyrot à justiça como culpado de
ter roubado oitenta mil medas de feno.
O príncipe dos Boscenos, cujo furor caiu como um véu, sorriu.
– É verdade?...
– Verás.
– Os meus parabéns, Greatauk. Mas como contigo é sempre preciso tomar precauções, vou já divulgar a
boa nova. Poderá ler–se esta noite, em todos os jornais de Alça, a prisão de Pyrot...
E murmurou, enquanto se afastava:
"Esse Pyrot! Bem me parecia que acabaria mal!"
Um instante depois, o general Panther apresentou–se a Greatauk.
– Senhor Ministro, venho examinar o caso das oitenta mil medas de feno. Não há provas contra Pyrot.
– Encontrem–nas – respondeu Greatauk –, a justiça assim o exige. Mandem prender imediatamente
Pyrot.

II – Pyrot


Toda a Pinguínia soube com horror do crime de Pyrot; ao mesmo tempo, experimentava–se uma espécie
de satisfação ao verificar–se que esse desvio, complicado de traição e confinando com o sacrilégio,
tinha sido cometido por um insignificante judeu. Para se compreender este sentimento, deve–se
conhecer a posição da opinião pública relativamente aos grandes e pequenos judeus. Como já tivemos a
oportunidade de dizer nesta história, a casta financeira, universalmente detestada e soberanamente
poderosa, compunha–se de cristãos e judeus. Os judeus que dela faziam parte, e aos quais o povo votava
todo o seu ódio, eram os grandes judeus; possuíam imensos bens e detinham, dizia–se, mais um quinto
da riqueza pinguim. Para além desta casta temível, havia uma multidão de pequenos judeus de condição
medíocre, que não eram mais amados do que os grandes e eram muito menos temidos. Em todo o
Estado policiado, a riqueza é coisa sagrada; nas democracias, é a única coisa sagrada.
Ora, o Estado pinguim era democrático; três ou quatro companhias financeiras exerciam um poder mais
vasto, e sobretudo mais efetivo e contínuo, do que o dos ministros da República, sobre pequenos
senhores que elas governavam secretamente, que obrigavam, por intimidação ou corrupção, a favorecê–
las à custa do Estado e que destruíam por meio das calúnias da imprensa, quando teimavam em ser
honestos. Apesar do segredo dos cofres, divulgava–se o suficiente para indignar o país, mas os
burgueses pinguins, dos maiores aos menores, concebidos e paridos no respeito do dinheiro, e porque
todos tinham fortuna, muita ou pouca, sentiam fortemente a solidariedade dos capitais e compreendiam
que a pequena riqueza só é garantida pela segurança da grande. Por isso concebiam tanto pelos
milionários israelitas como pelos milionários cristãos um respeito religioso e, porque neles o interesse
era mais forte do que a aversão, receavam tanto como a morte tocar num cabelo que fosse desses
grandes judeus que detestavam. Para com os pequenos, sentiam–se menos discretos e, quando viam um
destes no chão, calcavam–no. Foi assim que a nação inteira soube com feroz contentamento que o
traidor era judeu, mas pequeno. Podia vingar–se nele de todo o Israel, mas sem recear comprometer o
crédito público.
Que Pyrot tivesse roubado as oitenta mil medas de feno, ninguém duvidou, porque a ignorância em que
se estava quanto a este caso não permitia a dúvida, que tem necessidade de motivos, porquanto não se
duvida sem razões, assim como não se acredita sem razões. Ninguém duvidou, porque era repetida por
toda a parte, e, para o público, repetir é provar.
Ninguém duvidou, porque se desejava que Pyrot fosse culpado, e acredita–se no que se deseja, e
porque, enfim, a faculdade de duvidar é rara entre os homens; um pequeníssimo número de espíritos
transportam em si os germes, que não se desenvolvem sem cultura. Ela é singular, requintada, filosófica,
imoral, transcendente, monstruosa, cheia de malignidade, prejudicial às pessoas e aos bens, contrária à
polícia dos Estados e à prosperidade dos impérios, funesta à humanidade, destruidora dos deuses,
odiada pelo céu e pela terra. A multidão dos Pinguins ignorava a dúvida: acreditou na culpabilidade de
Pyrot e essa crença tornou–se imediatamente um dos principais artigos da sua fé nacional e uma das
verdades essenciais do seu símbolo patriótico.
Pyrot foi julgado em segredo e condenado.
O general Panther foi logo informar o ministro da Guerra do resultado do processo.
– Felizmente – disse ele –, os juízes tinham uma certeza, dado que não havia provas.
– Provas – murmurou Greatauk–, provas, que é que isso prova? Só há uma prova segura, irrefutável: a
confissão do culpado. Pyrot confessou?
– Não, meu general.
– Confessará: tem de o fazer. Panther, é preciso convencê–lo; diga–lhe que é no seu interesse. Prometa–
lhe que, se confessar, obterá favores, uma redução da pena, o perdão; prometa–lhe que, se confessar, a
sua inocência será reconhecida; será condecorado. Apele para os seus bons sentimentos. Que confesse
por patriotismo, pela bandeira, pela ordem, por respeito à hierarquia, por intimação especial do ministro
da Guerra, militarmente... Mas diga–me, Panther, ele ainda não confessou? Há confissões tácitas; o
silêncio é uma confissão.
– Mas, meu general, ele não se cala; grita como um possesso que está inocente.
– Panther, as confissões de um culpado resultam às vezes da veemência das suas negativas. Negar
desesperadamente é confessar. Pyrot confessou; precisamos de testemunhas da sua confissão, a justiça
exige–o.

Havia na Pinguínia ocidental um porto de mar chamado Calheta, formado por três pequenas enseadas,
outrora frequentadas pelos navios, agora assoreados e desertas; lagunas cobertas de bolores estendiam–
se ao longo das costas baixas, exalando um cheiro empestado e a febre pairava sobre as águas
estagnadas. Erguia–se aí, à beira–mar, uma torre quadrada, semelhante ao antigo Campanile de Veneza,
em cujo flanco, perto do cume, na ponta de uma corrente presa a uma trave transversal, pendia uma
jaula gradeada, onde, no tempo dos Dracónidas, os inquisidores de Alça metiam os clérigos heréticos.
Nessa jaula, vazia há trezentos anos, foi encerrado Pyrot, guardado por sessenta esbirros, que, instalados
na torre, não o perdiam de vista nem de dia nem de noite, espiando as suas confissões para fazerem um
relatório ao ministro da Guerra, dado que, escrupuloso e prudente, Greatauk queria confissões e mais
confissões. Greatauk, que passava por um imbecil, era, na realidade, cheio de sabedoria e de uma rara
prevenção.
Entretanto, Pyrot, queimado pelo sol, devorado pelos mosquitos, batido pela chuva, a saraiva e a neve,
gelado de frio, sacudido furiosamente pela tempestade, obcecado pelos grasnidos sinistros dos corvos
empoleirados na sua jaula, escrevia a sua inocência em bocados da camisa, com um palito molhado em
sangue. Estes farrapos perdiam–se no mar ou caíam nas mãos dos carcereiros. Alguns, porém, chegaram
aos olhos do público. Mas os protestos de Pyrot não comoviam ninguém, visto que as suas confissões
tinham sido divulgadas.

III – O Conde de Maubec da Dentdulynx


Os costumes dos pequenos judeus nem sempre eram puros; a maior parte das vezes, não recusavam
nenhum dos vícios da civilização cristã, mas conservavam da época patriarcal o reconhecimento dos
laços de família e a dedicação aos interesses da tribo. Os irmãos, meio–irmãos, tios, tios–avós, primos e
segundos primos, sobrinhos, e segundos sobrinhos, agnatos e cognatos de Pyrot, em número de
setecentos, a princípio abatidos pelo golpe que ferira um dos seus, fecharam–se nas suas casas,
cobriram–se de cinza e, abençoando a mão que os castigava, durante quarenta dias entregaram–se a um
jejum austero. Depois tomaram um banho e decidiram fazer, sem descanso, à custa de todas as fadigas,
através de todos os perigos, a demonstração de uma inocência de que não duvidavam.
E como poderiam duvidar? A inocência de Pyrot revelava–se–lhes como se revelava o seu crime à
Pinguínia cristã; é que estas coisas, mantendo–se ocultas, revestiam–se de um caráter místico e
adquiriam a autoridade das verdades religiosas. Os setecentos Pyrots meteram mãos à obra com tanto
zelo como prudência e procederam secretamente a aprofundadas investigações.
Estavam em toda a parte; não eram vistos em nenhuma parte; dir–se–ia que, como o piloto de Ulisses,
caminhavam livremente por baixo da terra. Penetraram nas repartições da Guerra, abordaram,
disfarçados, os juízes, os meirinhos, as testemunhas do caso. Foi então que se revelou a sabedoria de
Greatauk: as testemunhas não sabiam nada, os juízes, os meirinhos, não sabiam nada. Emissários
chegaram até Pyrot e interrogaram–no ansiosamente na sua jaula, entre os ruídos do mar e o grasnar
rouco dos corvos.
Foi em vão: o condenado não sabia nada. Os setecentos Pyrots não podiam destruir as provas da
acusação, porque não podiam conhecê–las, e não podiam conhecê–las porque não existiam. A
culpabilidade de Pyrot era indestrutível pelo seu próprio nada. E foi com legítimo orgulho que
Greatauk, exprimindo–se como verdadeiro artista, disse um dia ao general Panther: "Este processo é
uma obra–prima: é feito de nada". Os setecentos Pyrots desesperavam de vir a esclarecer este tenebroso
caso quando de repente descobriram, por uma carta roubada, que as oitenta mil medas de feno nunca
tinha existido, que um fidalgo dos mais distintos, o conde de Maubec, as tinha vendido ao Estado,
recebera o preço delas, mas nunca as entregara, dado que, descendente dos mais ricos proprietários
rurais da Dentdulynx, outrora possuidores de quatro ducados, seiscentos e doze marquesados, baronias e
vidamias, não possuía em terras a largura da mão e ser–lhe–ia impossível ceifar o que quer que fosse
nos seus domínios. Quanto a conseguir uma palhinha de um proprietário ou de qualquer comerciante,
nada feito, pois toda a gente, com excepção dos ministros do Estado e dos funcionários do Governo,
sabia que era mais fácil extrair óleo de uma pedra do que arrancar um cêntimo a Maubec.
Os setecentos Pyrots, tendo procedido a um inquérito minucioso aos recursos financeiros do conde de
Maubec da Dentdulynx, constataram que este fidalgo tirava os seus principais rendimentos de uma casa
onde damas generosas davam a todo o bicho–careta dois presuntos por uma linguiça.
Denunciaram–no publicamente como culpado do roubo das oitenta mil medas de feno, pelo qual um
inocente tinha sido condenado e metido na jaula.
Maubec era de uma ilustre família, ligada aos Dracónidas. Não há nada que as democracias estimem
mais do que a nobreza de nascimento. Maubec tinha servido no exército pinguim e os Pinguins, desde
que eram todos soldados, amavam o seu exército até à idolatria. Maubec tinha, nos campos de batalha,
recebido a cruz, que é o símbolo da honra entre os Pinguins e que eles preferem até ao leito das esposas.
Toda a Pinguínia se declarou a favor de Maubec e a voz do povo, que começava a rosnar, exigiu
castigos severos contra os setecentos Pyrots caluniadores.
Maubec era fidalgo: desafiou os setecentos Pyrots à espada, ao sabre, à pistola, à carabina, à paulada.
"Porcos judeus", escreveu–lhes numa carta famosa, "crucificastes o meu Deus e quisestes arrancar–me a
pele; previno–vos de que não serei tão cobarde como ele e vos cortarei as mil e quatrocentas orelhas.
Recebei o meu pé nos vossos setecentos traseiros."
O chefe do Governo era então um campônio chamado Robin Meloso, homem brando com os ricos e os
poderosos e duro com os pobres, sem coragem e interesseiro. Mediante uma declaração pública, ficou
por fiador da inocência e da honra de Maubec e enviou os setecentos Pyrots aos tribunais correcionais,
que os condenaram, como difamadores, a penas aflitivas, a enormes multas e a todas as indemnizações e
juros que a sua inocente vítima exigia.
Dir–se–ia que Pyrot ficaria para sempre encerrado na jaula onde se empoleiravam os corvos. Contudo,
porque todos os Pinguins queriam saber e provar que esse judeu era culpado, nem todas as provas que
se apresentavam eram boas e havia–as contraditórias. Os oficiais do Estado–Maior mostravam–se
zelosos e alguns careciam de prudência.
Ao passo que Greatauk mantinha um admirável silêncio, o general Panther manifestava–se em
inesgotáveis discursos e demonstrava todas as manhãs, nos jornais, a culpabilidade do condenado.
Talvez fosse melhor não dizer nada: ela era evidente; a evidência não se demonstra. Tantos raciocínios
perturbavam os espíritos; a fé, sempre viva, tornava–se menos serena. Quantas mais provas se dava à
multidão, mais ela exigia.
Todavia, o perigo de provar de mais não teria sido grande se não houvesse na Pinguínia, como há, aliás,
em toda a parte, espíritos formados na livre análise, capazes de estudar uma questão difícil e propensos
à dúvida filosófica. Eram poucos; nem todos estavam dispostos a falar; o público não estava de modo
nenhum preparado para os ouvir. Portanto, só deparariam com surdos. Os grandes judeus, todos os
milionários israelitas de Alça, quando se lhes falava de Pyrot, diziam: "Não conhecemos esse homem";
mas pensavam em salvá–lo. Mantinham a prudência a que os ligava a fortuna e desejavam que outros
fossem menos tímidos. O seu desejo viria a realizar–se.

IV – Colomban


Algumas semanas após a condenação dos setecentos Pyrots, um homenzinho míope, enrugado, peludo,
saiu uma manhã de casa com um frasco de cola, uma escada e um molho de papéis e foi pelas ruas,
colando nas paredes cartazes onde se lia em grandes caracteres: Pyrot está inocente, Maubec é culpado.
O seu ofício não era colar papéis; chamava–se Colomban; autor de cento e sessenta volumes de
sociologia pinguim, contava–se entre os mais laboriosos e estimados escritores de Alça.
Depois de ter refletido bastante, não duvidando já da inocência de Pyrot, anunciava–a da maneira que
lhe parecia mais relevante. Afixou sem obstáculo alguns cartazes nas ruas pouco frequentadas; mas,
chegado aos bairros populosos, sempre que subia a escada, os curiosos amontoados em baixo, mudos de
surpresa e indignação, lançavam–lhe olhares ameaçadores que ele suportava com a calma que conferem
a coragem e a miopia. Enquanto à sua retaguarda os porteiros e lojistas arrancavam os cartazes, ele ia
arrastando os seus apetrechos seguido pelos rapazinhos, que, com o cestinho debaixo do braço e a
sacola às costas, não tinham pressa de chegar à escola: e afixava aplicadamente. Às indignações mudas
juntavam–se agora contra ele os protestos e os murmúrios. Mas Colomban não se dignava ver nem
ouvir. Quando colava, à entrada da Rua de Santa Orberose, um dos seus quadrados de papel com a
inscrição: Pyrot está inocente, Maubec é culpado, a multidão amotinada deu sinais da mais violenta
cólera.
"Traidor, ladrão, celerado, canalha!", gritava–se. Uma dona de casa, abrindo a janela, despejou–lhe uma
caixa de lixo na cabeça; um cocheiro de fiacre fez–lhe saltar com uma chicotada o chapéu para o outro
lado da rua, por entre as aclamações da multidão vingada; um moço de talho fê–lo cair, com a cola, o
pincel e os cartazes, do alto da escada, na valeta, e os Pinguins ufanos sentiram então a grandeza da
pátria. Colomban levantou–se coberto de imundícies, ferido no cotovelo e no pé, tranquilo e resoluto.
"Desprezíveis brutos", murmurou, encolhendo os ombros.
Depois pôs–se de gatas na valeta, para procurar o monóculo, que tinha perdido na queda. Viu–se então
que tinha o casaco rasgado desde a gola até às abas e as calças profundamente desmembradas. A
animosidade da multidão aumentou.
Do outro lado da rua ficava a grande mercearia Santa Orberose. Alguns patriotas tiraram da montra tudo
o que encontraram à mão e bombardearam Colomban com laranjas, limões, boiões de compota, pastas
de chocolate, garrafas de licor, latas de sardinhas, tarros de pasta de fígado, presunto, aves, embalagens
de óleo e sacos de feijão.
Coberto de restos alimentares, contuso e esfarrapado, coxo, cego, desatou a fugir perseguido por
marçanos, aprendizes de padeiro, vagabundos, burgueses, garotos, cujo número aumentava cada vez
mais e que gritavam: "À água! À morte o traidor! À água!". Esta torrente de humanidade vulgar rolou
ao longo das avenidas e engolfou–se na Rua de São Maèl. A polícia cumpria o seu dever: de todas as
ruas adjacentes chegavam agentes, que, com a mão esquerda na bainha do sabre, se punham em passo
de corrida à frente dos perseguidores. Estendiam já mãos enormes para Colomban, quando ele lhes
escapou subitamente, caindo, por um buraco aberto, no fundo de um esgoto.
Passou aí a noite, sentado nas trevas, junto das águas lamacentas, entre as ratazanas úmidas e gordas.
Pensava na sua tarefa; o seu coração dilatado enchia–se de coragem e compaixão. E, quando a alvorada
pôs um pálido raio de luz junto do respiradouro, levantou–se e disse, falando consigo mesmo:
"Adivinho que a luta vai ser rude."

Sem perda de tempo, compôs um memorial onde expunha claramente que Pyrot não podia ter roubado
ao Ministério da Guerra oitenta mil medas de feno que nunca tinham entrado, visto que Maubec nunca
as fornecera, embora tivesse recebido o dinheiro. Colomban fez distribuir este memorial pelas ruas de
Alça. O povo recusava–se a lê–lo e rasgava–o raivosamente. Os lojistas mostravam o punho aos
distribuidores, que fugiam, perseguidos à vassourada pelas fúrias domésticas. As cabeças esquentaram–
se e a efervescência durou todo o dia. À noite, bandos de homens selvagens e andrajosos percorriam as
ruas gritando: "Morte a Colomban!". Patriotas arrancavam aos distribuidores maços inteiros do
memorial, que queimavam nas praças públicas, e faziam à volta dessas alegres fogueiras desvairadas
danças de roda com raparigas arregaçadas até ao ventre.
Os mais ardentes foram partir os vidros das janelas da casa onde Colomban vivia, há quarenta anos, do
seu trabalho, na doçura de uma paz profunda.
As Câmaras excitaram–se e perguntaram ao chefe do Governo que medidas contava tomar para reprimir
os odiosos atentados cometidos por Colomban contra a honra do exército nacional e a segurança da
Pinguínia. Robin Meloso atacou a ímpia audácia de Colomban e anunciou, por entre os aplausos dos
legisladores, que esse homem seria levado aos tribunais para prestar contas pelo seu infame libelo.
O ministro da Guerra, chamado à tribuna, apresentou–se transfigurado. Já não tinha o ar, como outrora,
de um pato sagrado das cidadelas pinguins; agora, de pescoço esticado, o bico adunco, parecia o abutre
simbólico agarrado ao fígado dos inimigos da pátria.
No silêncio augusto da assembleia, pronunciou unicamente estas palavras:
"Juro que Pyrot é um celerado."
Esta frase de Greatauk, divulgada por toda a Pinguínia, aliviou a consciência pública.

V – Os Reverendos Padres Agaric e Comemuse


Colomban suportava com surpresa e doçura o peso da reprovação geral; não podia sair de casa sem ser
apedrejado; por isso, não saía; escrevia no seu escritório, com magnífica teimosia, novos memoriais a
favor do enjaulado inocente. Contudo, entre os poucos leitores que encontrou, alguns, uma dúzia,
deixaram–se impressionar pelas suas razões e começaram a duvidar da culpabilidade de Pyrot. Falaram
disso aos que os rodeavam, esforçaram–se por espalhar à sua volta a luz que lhes brotava nos espíritos.
Um deles era amigo de Robin Meloso, a quem confiou as suas perplexidades, e que, a partir de então, se
recusou a recebê–lo. Outro pediu, em carta aberta, explicações ao ministro da Guerra; um terceiro
publicou um panfleto terrível: tratava–se de Kerdanic, o mais temido dos polemistas.
O público ficou estupefacto. Dizia–se que estes defensores do traidor eram pagos pelos grandes judeus;
passaram a chamar–lhes pyrotinos e os patriotas juraram exterminá–los. Havia apenas mil ou mil e
duzentos pyrotinos na vasta república; imaginava–se vê–los em toda a parte; receava–se encontrá–los
nas esplanadas, nas assembléias, nas reuniões, nos salões mundanos, à mesa de família, no leito
conjugal. Metade da população suspeitava da outra metade. A discórdia grassou em Alça.

Ora, o padre Agaric, que dirigia uma grande escola de jovens nobres, seguia os acontecimentos com
ansiosa atenção. As desgraças da Igreja pinguim não o tinham abatido; continuava fiel ao príncipe
Crucho e conservava a esperança de repor no trono da Pinguínia o herdeiro dos Dracónidas. Pareceu–
lhe que os acontecimentos que se verificavam ou se preparavam no país, o estado de espírito de que
seriam ao mesmo tempo efeito e causa e as perturbações o seu resultado necessário, poderiam,
dirigidos, conduzidos, virados e revirados com a sabedoria profunda de um religioso, abalar a república
e dispor os Pinguins a apoiar o príncipe Crucho, cuja piedade prometia consolações aos fiéis.
Enterrando o seu largo chapéu preto, cujas abas se assemelhavam às asas da Noite, dirigiu–se para o
bosque dos Conils, em direção à fábrica onde o seu venerável amigo, o padre Cornemuse, destilava o
licor higiênico de Santa Orberose. A indústria do bom monge, tão cruelmente atingida no tempo do
almirante Chatillon, erguia–se das ruínas. Ouviam–se os comboios de mercadorias rolar através dos
bosques e viam–se nos barracões centenas de órfãos azuis a embalar garrafas e a pregar caixotes.
Agaric encontrou o venerável Cornemuse diante dos fornos, no meio das retortas. As pupilas giratórias
do ancião tinham reencontrado o brilho dos rubis; o pêlo do crânio tornara–se suave e precioso. Agaric
começou por felicitar o velho destilador pela actividade que renascia nos seus laboratórios e nas
oficinas.
– Os negócios voltam a prosperar. Dou graças a Deus – respondeu o ancião dos Conils. – Ai!, estavam
muito em baixo, irmão Agaric! Você viu a desolação desta empresa. Não digo mais nada.
Agaric voltou a cabeça.
– O licor de Santa Orberose – prosseguiu Cornemuse – triunfa de novo. Nem por isso a minha indústria
deixa de ser incerta e precária. As leis de ruína e desolação que a atingiram não foram revogadas; estão
apenas suspensas...
E o religioso dos Conils ergueu para o céu as pupilas de rubis. Agaric pôs–lhe a mão no ombro:
– Que espetáculo, Cornemuse, nos oferece a infeliz Pinguínia! Por toda a parte a desobediência, a
independência, a liberdade! Vemos levantar–se os orgulhosos, os soberbos, os homens de revolta.
Depois de terem desafiado as leis divinas, erguem–se contra as leis humanas, o que prova que, para ser
um bom cidadão, é preciso ser um bom cristão. Colomban procura imitar Satã. Um grande número de
criminosos seguem o seu exemplo funesto; querem, na sua raiva, quebrar todos os freios, romper todos
os jugos, libertar–se dos laços mais sagrados, escapar às mais salutares sujeições. Batem na própria
pátria para se fazerem obedecer. Mas hão–de sucumbir à animadversão, ao vitupério, à indignação, ao
furor, à execração e à abominação públicas. Eis o abismo onde os conduziu o ateísmo, o livre–
pensamento, a livre–análise, a pretensão monstruosa de julgarem por eles mesmos, de terem opinião
própria.
– Sem dúvida, sem dúvida – replicou o padre Cornemuse, abanando a cabeça. – Mas confesso–lhe que a
preocupação de destilar dos simples me impediu de seguir os negócios públicos. Apenas sei que se fala
muito de um certo Pyrot. Uns sustentam que é culpado, outros afirmam que está inocente, e eu não sei
bem os motivos que levam uns e outros a ocupar–se de um caso que não lhes diz respeito.
O piedoso Agaric perguntou vivamente:
– Não duvida do crime de Pyrot?
– Não posso duvidar, caríssimo Agaric – respondeu o religioso dos Conils. – Seria contrário às leis do
meu país, que devemos respeitar enquanto não se opuserem às leis divinas. Pyrot é culpado, visto que
foi condenado. Quanto a dizer mais a favor ou contra a sua culpabilidade, seria substituir pela minha
autoridade a dos juízes, e nessa não cairei eu. Aliás, é inútil, visto que Pyrot foi condenado. Se não foi
condenado por ser culpado, é culpado porque foi condenado; vem a dar no mesmo. Creio na sua
culpabilidade, como todo o bom cidadão deve crer; e acreditarei nela enquanto a justiça constituída me
ordenar que acredite, porquanto não compete a um particular, mas ao juiz, proclamar a inocência de um
condenado. A justiça humana é respeitável, mesmo nos erros inerentes à sua natureza falível e limitada.
Esses erros nunca são irreparáveis; se os juízes não os repararem na Terra, Deus repará–los–á no Céu.
Aliás, tenho grande confiança nesse general Greatauk, que me parece mais inteligente, sem ter ar disso,
do que todos os que o atacam.
– Muito caro Cornemuse – gritou o padre Agaric –, o caso Pyrot, levado ao ponto onde soubermos
conduzi–lo com a ajuda de Deus e os fundos necessários, causará o maior bem. Porá a nu os vícios da
república anticristã e disporá os Pinguins a restaurar o trono dos Dracónidas e as prerrogativas da Igreja.
Mas para isso é preciso que o povo veja os levitas na primeira fila dos seus defensores. Marchemos
contra os inimigos do exército, contra os insultadores dos heróis, e toda a gente nos seguirá.
– Toda a gente será de mais – murmurou, abanando a cabeça, o religioso dos Conils. –Vejo que os
Pinguins têm vontade de contender. Se nos metermos na sua contenda, reconciliar–se–ão à nossa custa e
pagaremos as despesas da guerra. Por isso, acredite–me, caríssimo Agaric, não comprometa a Igreja
nessa aventura.
– Conhece a minha energia; conhecerá a minha prudência. Não comprometerei nada... Muito caro
Cornemuse, de si só quero os fundos necessários para a nossa entrada em campanha.
Durante muito tempo, Cornemuse recusou–se a subsidiar uma empresa que considerava funesta. Agaric
foi alternadamente patético e terrível. Finalmente, cedendo às súplicas, às ameaças, Cornemuse,
arrastando os pés e de cabeça baixa, alcançou a sua austera cela, onde tudo revelava a pobreza
evangélica. Na parede caiada de branco, sob um ramo de buxo benzido, estava embutido um cofre.
Abriu–o suspirando e tirou um pequeno maço de valores, que, de braço dobrado e mão estendida,
estendeu ao piedoso Agaric.
– Não duvide, caríssimo Cornemuse – disse este, metendo os papéis no bolso da batina –, este caso
Pyrot foi–nos mandado por Deus para glória e exaltação da Igreja da Pinguínia.
– Oxalá tenha razão! – suspirou o religioso dos Conils.
E, uma vez só no laboratório, contemplou com os seus olhos esquisitos e uma tristeza inefável os fornos
e as retortas.

VI – Os Setecentos Pyrots


Os setecentos Pyrots inspiravam ao público uma aversão crescente. Todos os dias, nas ruas de Alça,
dois ou três eram espancados; um deles foi açoitado publicamente; outro, atirado ao rio; um terceiro,
coberto de pez, rolado em penas e passeado pelas avenidas através de uma multidão hílare; um quarto
ficou com o nariz cortado por um capitão de dragões. Já não ousavam mostrar–se no seu círculo, no
tênis, nas corridas; dissimulavam–se para ir à Bolsa. Nestas circunstâncias, pareceu urgente ao príncipe
dos Boscenos refrear–lhes a audácia e reprimir–lhes a insolência. Tendo–se, para o efeito, reunido ao
conde Cléna, a M. de la Trumelle, ao visconde Olive, a M. Bigourd, fundou com eles a grande
associação antipyrots, a que deram a sua adesão centenas de milhares de cidadãos, companhias de
soldados, regimentos, brigadas, divisões, corpos de exército, as cidades, os distritos, as províncias.
Por esta altura, o ministro da Guerra, indo ter com o seu chefe do Estado–Maior; viu com surpresa que o
vasto aposento onde trabalhava o general Panther, ainda há pouco inteiramente despido, albergava agora
contra as paredes, desde o soalho até ao teto, em fundos armários, uma tripla e quádrupla fila de dossiês
de todos os formatos e cores, arquivos repentinos e monstruosos, que atingiram em alguns dias o
volume dos cartórios seculares.
– Que é isto? – perguntou o ministro, espantado.
– Provas contra Pyrot – respondeu com patriótica satisfação o general Panther. – Não as tínhamos
quando o condenámos: desforrá–mo–nos depois.
A porta estava aberta. Greatauk viu desembocar do patamar uma longa fila de moços de fretes, que
vinham descarregar na sala os seus pesados rolos de papéis, e notou que o ascensor subia a custo,
retardado pelo peso dos dossiês.
– Que significa isto? – inquiriu.
– São novas provas contra Pyrot que nos chegam – respondeu Panther. – Pedi–as a todos os cantões da
Pinguínia, a todos os estados–maiores e a todas as cortes da Europa; encomendei–as a todas as cidades
da América e da Austrália e a todas as feitorias da África. Espero alguns fardos de Brema e um
carregamento de Melburne.
E Panther fitou no ministro o olhar tranquilo e radiante de um herói. Greatauk, porém, de monóculo no
olho, contemplava aquele amontoado de papéis com menos satisfação do que inquietude.
– Muito bem – disse ele –, muito bem! Mas receio que se tire ao caso Pyrot a sua bela simplicidade. Era
límpido: como o cristal de rocha, o seu valor estava na transparência. Em vão se procuraria aí, à lupa,
uma falha, uma mancha, o mínimo defeito. Ao sair das minhas mãos, era puro como o dia: era o próprio
dia. Dou–lhe uma pérola e faz dela uma montanha. Em suma, receio que, querendo fazer o melhor, fez o
pior. Provas! Sem dúvida que é bom ter provas, mas talvez seja melhor não as ter. Já lhe disse, Panther:
só há uma prova irrefutável, a confissão do culpado (ou do inocente, tanto faz!). Tal como eu o tinha
organizado, o caso Pyrot não se prestava à crítica, não tinha um ponto por onde pudesse ser atacado.
Desafiava os golpes; era invulnerável porque era invisível. Agora dá um enorme poder à discussão.
Aconselho–o, Panther, a servir–se com reserva dos seus dossiês. Ficar–lhe–ei, sobretudo, reconhecido
se moderar as suas comunicações aos jornalistas. Você fala bem, mas fala de mais. Diga–me, Panther,
entre essas peças há algumas falsas?
Panther sorriu:
– Há algumas adaptadas.
– É o que eu queria dizer. Há algumas adaptadas, tanto melhor! São as boas. Como provas, geralmente
as peças falsas valem mais do que as verdadeiras, em primeiro lugar porque foram feitas
propositadamente para as necessidades da causa, por encomenda e medida, e, finalmente, porque são
exatas e justas. São preferíveis também porque transportam os espíritos a um mundo ideal e desviam–
nos da realidade que, neste mundo, infelizmente!, nunca se apresenta sem mistura... Todavia, eu
preferiria, Panther, que não houvesse provas.

O primeiro ato da associação dos antipyrots foi convidar o Governo a levar imediatamente a um tribunal
de justiça, como culpados de alta traição, os setecentos Pyrots e os seus cúmplices. O príncipe dos
Boscenos, encarregado de apresentar o convite em nome da associação, compareceu diante do
Conselho, reunido para o receber, e exprimiu o voto de que a vigilância e a firmeza do Governo se
erguessem à altura das circunstâncias. Apertou a mão a cada um dos ministros e, ao passar pelo general
Greatauk, soprou–lhe ao ouvido:
– Porta–te bem, crápula, ou publico o processo Maloury! Alguns dias depois, por voto unânime das
Câmaras, emitido sobre um projeto favorável do Governo, a associação dos antipyrots foi reconhecida
de utilidade pública. Imediatamente, a associação enviou à Marsuínia, ao castelo de Chitterlings, onde
Crucho comia o pão amargo do exílio, uma delegação encarregada de garantir ao príncipe o amor e a
dedicação dos liguistas antipyrots.
Entretanto, os pyrotinos cresciam em número; havia agora dez mil. Tinham, nas avenidas, os seus cafés
privativos. Os patriotas tinham os deles, mais ricos e mais vastos; todas as noites, de uma esplanada a
outra, jorravam os copos de cerveja, os pires, as caixas de fósforos, as garrafas, as cadeiras e as mesas;
as vitrinas voavam em estilhaços; a sombra, confundindo os golpes, corrigia a desigualdade do número
e as brigadas negras terminavam em luta, calcando indiferentemente os combatentes de ambos os lados
com as suas solas de pregos afiados.

Numa dessas gloriosas noites, quando o príncipe dos Boscenos saía, acompanhado por alguns patriotas,
de um cabaré em voga, M. de la Trumelle, indicando–lhe um homenzinho de binóculo, barbudo, sem
chapéu, só com uma manga no casaco, e que se arrastava penosamente pelo passeio juncado de
destroços, disse:
– Veja! É Colomban!
Além da força, o príncipe tinha a brandura; todo ele era mansidão; mas, ao nome de Colomban, o
sangue esquentou–se–lhe. Atirou–se ao homenzinho de binóculo e derrubou–o com um murro no nariz.
M. de la Trumelle descobriu então que, enganado por uma semelhança imerecida, tomara por Colomban
o senhor Bazile, antigo solicitador, secretário da associação dos antipyrots, patriota ardente e generoso.
O príncipe dos Boscenos era dessas almas antigas que nunca torcem; contudo, sabia reconhecer os seus
erros.
– Senhor Bazile – disse ele, tirando o chapéu –, se lhe alorei o rosto, desculpar–me–á e compreenderá,
aprovar–me–á, que digo?, cumprimentar–me–á, congratular–se–á e felicitar–me–á, quando souber a
causa deste gesto. Confundi–o com Colomban.
O senhor Bazile, tapando com o lenço as narinas esguichantes e apoiando–se no cotovelo do braço sem
manga, respondeu secamente:
– Não, senhor, não o felicitarei, não me congratularei, não o cumprimentarei, não o aprovarei, porque a
sua acção era, pelo menos, supérflua; era, digamos, super–rogatória. Já me tinham tomado três vezes
esta noite, por Colomban e tratado como ele merece. Os patriotas meteram–lhe, em mim, as costelas
dentro e partiram–lhe os rins, e eu pensava, senhor, que já chegava.
Mal tinha acabado este discurso, os pyrotinos apareceram em bando, e, enganados, por seu turno, por
aquela semelhança insidiosa, julgaram que os patriotas espancavam Colomban. Caíram a golpes de
bengala ferrada e nervos de bois sobre o príncipe dos Boscenos e os seus companheiros, que deixaram
como mortos na praça, e, apoderando–se do solicitador Bazile, levaram–no em triunfo, apesar dos seus
protestos indignados, aos gritos de "Viva Colomban! Viva Pyrot!", ao longo das avenidas, até que a
brigada negra, lançada em sua perseguição, os cercou, lançou por terra, arrastou indignamente para a
esquadra, onde o solicitador Bazile foi, sob o nome de Colomban, calcado por grossas solas com um
sem–número de pregos.

VII – Bidault–Coquille e Maniflore – Os
socialistas


Ora, enquanto um vento de cólera e ódio soprava em Alça, Eugênio Bidault–Coquille, o mais pobre e o
mais feliz dos astrônomos, instalado numa velha bomba de incêndios do tempo dos Dracónidas,
observava o céu através de um óculo e registava fotograficamente em placas deterioradas as passagens
de estrelas cadentes. O seu gênio corrigia os erros dos instrumentos e o seu amor pela ciência triunfava
da depravação dos aparelhos. Observava, com inextinguível ardor, aerólitos, meteoritos e bólidos, todos
os destroços ardentes, todas as poeiras inflamadas que atravessam a velocidade vertiginosa a atmosfera
terrestre, e recolhia, como preço das suas vigílias de estudo, a indiferença do público,a ingratidão do
Estado e a animosidade das corporações de sábios. Mergulhado nos espaços celestes, ignorava os
acidentes verificados à superfície da Terra; nunca lia os jornais e, enquanto passeava pela cidade, com o
espírito cheio dos asteróides de Novembro, viu–se mais de uma vez no lago de um jardim público ou
debaixo das rodas de um autocarro.
Altíssimo de estatura e de pensamento, tinha um respeito de si mesmo e dos outros que se manifestava
tanto por uma fria delicadeza como por uma sobrecasaca preta finíssima e uma cartola, o que lhe dava
um aspecto macilento e sublimado. Tomava as refeições num pequeno restaurante desdenhado por todos
os clientes menos espiritualistas que ele, onde agora só se via o seu guardanapo, metido numa argola de
buxo, no desolado armário. Foi nesta baiúca que, uma noite, o memorial de Colomban a favor de Pyrot
lhe caiu sob os olhos; leu–o ao mesmo tempo que partia avelãs ocas e, de repente, exaltado de espanto,
admiração, horror e piedade, esqueceu as quedas de meteoros e as chuvas de estrelas e viu unicamente o
inocente balançado pelos ventos na sua jaula, onde se empoleiravam os corvos.
Esta imagem não mais o largou. Há oito dias que andava obcecado pelo condenado inocente, quando, ao
sair da baiúca, viu uma multidão de cidadãos engolfar–se num recinto de dança onde se realizava uma
reunião pública. Entrou; a reunião era contestataria; havia gritos, injúrias, pancadaria na sala cheia de
fumo. Os pyrots e os antipyrots falavam, alternadamente aclamados e vaiados. Um entusiasmo obscuro
e confuso dominava os assistentes. Com a audácia dos homens tímidos e solitários, Bidault–Coquille
saltou para o estrado e falou durante três quartos de hora. Falou muito depressa, sem ordem, mas com
veemência e toda a convicção de um matemático místico. Foi aclamado. Quando desceu do estrado,
uma mulher alta, sem idade, toda de vermelho, com heróicas plumas no chapéu imenso, atirou–se a ele,
ao mesmo tempo ardente e solene, beijou–o e disse–lhe:
– Como é bonito!
Ele pensou, na sua simplicidade, que devia haver naquilo qualquer coisa de verdade.
Ela declarou–lhe que vivia unicamente para a defesa de Pyrot e no culto de Colomban. Achou–a
sublime e considerou–a bela.
Tratava–se de Maniflore, uma velha mundana pobre, esquecida, fora de uso e que se tornara de repente
uma grande cidadã.
Ela não o largou mais. Viveram juntos horas inimitáveis nas tascas e nos quartos alugados
transfigurados, nas redações, nas salas de reuniões e conferências. Como era idealista, ele persistia em
considerá–la adorável, embora ela lhe tivesse dado amplamente a oportunidade de se aperceber de que
não tinha encantos em nenhum sítio e de nenhuma maneira. Apenas conservava da antiga beleza a
certeza de agradar e uma altiva segurança em exigir homenagens. Contudo, deve–se reconhecer, o caso
Pyrot, fecundo em prodígios, revestia Maniflore de uma espécie de majestade cívica e transformava–a,
nas reuniões populares, num símbolo augusto da justiça e da verdade.
A nenhum antipyrot, a nenhum defensor de Greatauk, a nenhum amigo do sabre, Bidault–Coquille e
Maniflore inspiravam a mínima ponta de ironia e alegria. Os deuses, na sua cólera, haviam recusado a
esses homens o dom precioso do sorriso. Acusavam gravemente a cortesã e o astrónomo de
espionagem, traição, conjura contra a pátria.
Bidault–Coquille e Maniflore medravam a olhos vistos sob a injúria, o ultraje e a calúnia.

Há muitos meses que a Pinguínia estava dividida em dois campos e, o que pode parecer estranho à
primeira vista, os socialistas não tinham ainda tomado partido. Os seus grupos compreendiam quase
tudo o que o país contava de trabalhadores manuais, força dispersa, confusa, quebrada, partida, mas
formidável. O caso Pyrot lançou os principais chefes dos grupos num singular embaraço: não desejavam
pôr–se ao lado dos financeiros mais do que ao lado dos militares. Olhavam os grandes e os pequenos
judeus como adversários irredutíveis. Os seus princípios não estavam em jogo, os seus interesses não
estavam comprometidos neste caso. Contudo, sentiam, na sua maioria, quanto se tornava difícil manter–
se estranho às lutas em que se lançava a Pinguínia inteira.
Os principais deles reuniram–se na sede da sua federação, na Rua da Cauda–do–Diabo–São Maèl, para
discutirem a conduta que lhes convinha adoptar nas conjunturas presentes e nas eventualidades futuras.
O camarada Phoenix foi o primeiro a usar da palavra:
– O mais odioso e o mais cobarde dos crimes – disse ele –, um crime judiciário, foi cometido. Juízes
militares, obrigados ou enganados pelos seus chefes hierárquicos, condenaram um inocente a uma pena
infamante e cruel. Não digam que a vítima não é dos nossos; que pertence a uma casta que foi e será
sempre nossa inimiga. O nosso partido é o partido da justiça social; não há iniquidade que lhe seja
indiferente.
"Que vergonha para nós se deixássemos um radical, Kerdanic, um burguês, Colomban, e alguns
republicanos moderados serem os únicos a perseguir os crimes do sabre. Se a vítima não é dos nossos,
os seus carrascos são também os carrascos dos nossos irmãos, e Greatauk, antes de castigar um militar,
mandou fuzilar os nossos camaradas grevistas.
"Companheiros, mediante um grande esforço intelectual, moral e material, arrancareis Pyrot ao suplício;
e, realizando esta acção generosa, não vos desviareis da tarefa libertadora e revolucionária que
assumistes, dado que Pyrot se tornou o símbolo do oprimido e todas as iniquidades sociais se
equivalem; ao destruir uma, enfraquece–se todas as outras.
Quando Phoenix acabou, o camarada Sapor falou nestes termos:
–Aconselham–nos a que abandonemos a nossa tarefa para desempenharmos uma outra que não nos diz
respeito. Para quê participar num conflito onde, de qualquer lado que estejamos, só encontraremos
adversários naturais, irredutíveis, necessários? Os financeiros não nos são tão odiosos como os
militares? Que cofre vamos salvar: o dos Emboca–Bolas do Banco ou o dos Videirinhos da Desforra?
Que absurda e criminosa generosidade nos faria voar em socorro dos setecentos Pyrots que
encontraremos sempre diante de nós na guerra social?
"Propõem–nos que façamos de polícia junto dos nossos inimigos e restabeleçamos entre eles a ordem
que os seus crimes perturbaram. A magnanimidade levada a este extremo muda de nome.
"Camaradas, há um grau em que a infâmia se torna mortal para uma sociedade; a burguesia pinguim
sufoca na sua infâmia e pedem–nos que a salvemos, que tornemos o ar respirável à sua volta. É troçar
de nós.
"Deixemo–la rebentar e contemplemos com um nojo cheio de alegria as suas últimas convulsões,
lamentando apenas que tenha tão profundamente corrompido o chão em que prosperou, de tal modo que
só encontraremos lama envenenada para lançar os alicerces de uma sociedade nova.
Tendo Sapor terminado o seu discurso, o camarada Lapersonne pronunciou estas poucas palavras:
– Phoenix apela para que socorramos Pyrot, pela simples razão de que Pyrot está inocente. Parece–me
que é uma razão muito má. Se Pyrot está inocente, comportou–se como bom militar e sempre
desempenhou conscienciosamente o seu ofício, que consiste principalmente em disparar contra o povo.
Isto não é um motivo para que o povo tome a sua defesa, enfrentando todos os perigos. Quando me
demonstrarem que Pyrot é culpado e roubou o feno do exército, marcharei a seu lado.
O camarada Larrivée tomou em seguida a palavra:
– Não sou da opinião do meu amigo Phoenix; também não sou da opinião do meu amigo Sapor; não
creio que o partido deva abraçar uma causa quando nos dizem que essa causa é justa. Receio que haja
nisso um deplorável abuso de palavras e um perigoso equívoco. É que a justiça social não é a justiça
revolucionária. As duas estão em perpétuo antagonismo: servir uma é combater a outra. Quanto a mim,
a minha escolha está feita: sou pela justiça revolucionária contra a justiça social. Digo que, quando a
sorte favorável nos proporciona um caso como este, seria preciso sermos imbecis para não tirarmos
proveito dele.
"Como? É–nos oferecida a oportunidade de desferir no militarismo golpes terríveis, talvez mortais. E
querem que eu cruze os braços? Aviso–os, camaradas: não sou um faquir; nunca serei do partido dos
faquires; se há aqui faquires, que não contem comigo para lhes fazer companhia. Olhar para o umbigo é
uma política sem resultados, que nunca praticarei.
"Um partido como o nosso deve afirmar–se incessantemente; deve provar a sua existência por uma ação
contínua. Interviremos no caso Pyrot, mas interviremos revolucionariamente; exerceremos uma ação
violenta... Parece–lhes que a violência seja um processo velho, uma invenção ultrapassada, que deve ser
posta de parte com as diligências, o prelo manual e o telégrafo aéreo? Estão enganados. Hoje, como
ontem, não se consegue nada a não ser pela violência; é o instrumento eficaz; só basta saber servir–se
dele. Qual será a nossa ação? Eu digo–lhes: será excitar as classes dirigentes umas contra as outras, pôr
o exército à bulha com a finança, o Governo com a magistratura, a nobreza e o clero com os Judeus,
levá–los, se possível, a destruir–se; alimentar esta agitação é o que enfraquece os Governos como a
febre esgota os doentes.
"O caso Pyrot, por muito pouco que saibamos servir–nos dele, apressará em dez anos o crescimento do
Partido Socialista e a emancipação do proletariado através do desarmamento, da greve geral e da
revolução.
Tendo cada um dos chefes dos partidos exprimido assim a sua opinião, a discussão não se prolongou
sem vivacidade; os oradores, como sucede sempre neste caso, reproduziram os argumentos que já
haviam apresentado e expuseram–nos com menos ordem e moderação do que da primeira vez.
Discutiu–se longamente e ninguém mudou de opinião. Mas essas opiniões, em última análise,
reduziam–se a duas, a de Sapor e Lapersonne, que aconselhavam a abstenção, e a de Phoenix e
Larrivée, que queriam intervir. Mesmo estas duas opiniões contrárias confundiam–se num ódio comum
aos chefes militares e à sua justiça e numa crença comum na inocência de Pyrot. A opinião pública não
se enganou muito ao considerar todos os chefes socialistas como pyrotinos muito perniciosos.
Quanto às massas profundas em nome das quais falavam, e que representavam tanto como a palavra
pode representar o inexprimível, quanto aos proletários, enfim, de quem é difícil conhecer o pensamento
que não se conhece a si mesmo, parece que o caso Pyrot não lhes interessava. Era para eles demasiado
literário, de um gosto demasiado clássico, com um tom de alta burguesia e alta finança que não lhes
agradava.
VIII – O Processo Colomban


Quando o processo Colomban foi aberto, os pyrotinos não eram muito mais de trinta mil; mas havia–os
por toda a parte, mesmo entre os padres e os militares.
O que mais os prejudicava era a simpatia dos grandes judeus. Pelo contrário, deviam ao seu fraco
número vantagens preciosas e, em primeiro lugar, contar entre eles menos imbecis do que os seus
adversários, que estavam cheios deles. Constituindo uma ínfima minoria, entendiam–se facilmente,
agiam com harmonia, não eram tentados a dividir–se e a contrariar os seus esforços; cada um sentia a
necessidade de trabalhar bem e fazia–o tanto melhor quanto mais em relevo estava.
Enfim, tudo lhes permitia pensar que ganhariam novos aderentes, ao passo que os seus adversários,
tendo reunido inicialmente as multidões, começavam a diminuir.
Posto perante os seus juízes, em audiência pública, Colomban notou imediatamente que esses juízes não
eram curiosos. Assim que abria a boca, o presidente ordenava–lhe que se calasse, no interesse superior
do Estado. Pela mesma razão, que é a razão suprema, as testemunhas de defesa não foram ouvidas. O
general Panther, chefe do Estado–Maior, apresentou–se no tribunal de grande uniforme e com todas as
suas condecorações. Depôs nos seguintes termos:
– O infame Colomban pretende que não temos provas contra Pyrot. Mentiu: temo–las; guardo nos meus
arquivos setecentos e trinta e dois metros quadrados delas, que, com quinhentos quilos de cada vez,
fazem trezentos e setenta mil quilos.
Este oficial superior procedeu em seguida, com elegância e facilidade, a um cômputo dessas provas.
– Há–as de todas as cores e matizes – disse ele em resumo –; há–as de todos os formatos: vaso, coroa,
escudo, cacho, pombal, águia, etc. A mais pequena tem menos de um milímetro quadrado; a maior mede
setenta metros de comprimento por zero metros e noventa de largura.
A esta revelação, o auditório estremeceu de horror.
Greatauk fez também o seu depoimento. Mais simples e talvez mais alto, vestia um velho casaco
cinzento e tinha as mãos juntas atrás das costas.
– Deixo – disse ele, com calma e em tom pouco elevado –, deixo ao senhor Colomban a
responsabilidade de um acto que levou o nosso país a dois dedos da sua perda. O caso Pyrot é secreto;
deve continuar secreto. Se fosse divulgado, os males mais cruéis, guerras, pilhagens, devastações,
incêndios, massacres, epidemias, cairiam imediatamente sobre a Pinguínia. Considerar–me–ia culpado
de alta traição se pronunciasse uma palavra mais. Algumas pessoas conhecidas pela sua experiência
política, entre outras M. Bigourd, consideraram o depoimento do ministro da Guerra mais hábil e de
maior alcance do que o do seu chefe do Estado–Maior.
O testemunho do coronel de Boisjoli causou grande impressão:
– Certa noite, no Ministério da Guerra – disse este oficial –, o adido militar de uma potência vizinha
confiou–me que, tendo visitado as cavalariças do seu soberano, admirara um feno macio e perfumado,
de uma bonita cor verde, o mais belo que jamais vira. "De onde provinha?", perguntei–lhe. Não me
respondeu; mas a origem não me ofereceu dúvidas. Era o feno roubado por Pyrot. Essas qualidades de
verdura, macieza e aroma são as do nosso feno nacional. A forragem da potência vizinha é cinzenta,
quebradiça; range debaixo da forquilha e cheira a pó. Que cada um tire as conclusões.
O tenente–coronel Hastaing apresentou–se, para dizer ao tribunal, no meio dos apupos, que não
considerava Pyrot culpado. Foi imediatamente preso pela polícia e atirado para uma masmorra, onde,
alimentado de víboras, sapos e vidro moído, permaneceu insensível, tanto às promessas como às
ameaças.
O meirinho chamou:
– O conde Pedro Maubec da Dentdulynx.
Fez–se um grande silêncio e viu–se avançar para a barra do tribunal um fidalgo magnífico e andrajoso,
cujos bigodes ameaçavam o céu e cujas pupilas ruivas lançavam chispas.
Aproximou–se de Colomban e, lançando–lhe um olhar de inefável desprezo, disse:
– O meu depoimento é este: "Merda!".
A estas palavras, toda a sala rompeu em aplausos entusiastas e se pôs de pé, impulsionada por um
desses transportes que exaltam os corações e impelem as almas a ações extraordinárias. Sem acrescentar
mais nada, o conde Maubec da Dentdulynx retirou–se.
Deixando com ele o pretório, todos os assistentes o seguiram em cortejo. Prostrada aos seus pés, a
princesa dos Boscenos abraçava–lhe apaixonadamente as coxas; ele seguia, impassível e taciturno, sob
uma chuva de lenços e flores. A viscondessa Olive, agarrada ao seu pescoço, não pôde ser despegada e
o calmo herói levou–a flutuante sobre o seu peito como uma estola.
Quando a audiência que ele fizera suspender recomeçou, o presidente chamou os peritos.
O ilustre perito em escritas, Vermillard, expôs o resultado das suas investigações.
– Tendo estudado atentamente – disse ele – os papéis apreendidos em casa de Pyrot, nomeadamente os
seus livros de despesas e as suas faturas de lavandaria, reconheci que, sob uma banal aparência,
constituem um criptograma impenetrável cuja chave, no entanto, descobri. A infâmia do traidor
transparece em cada linha. Nesse sistema de escrita, as palavras "Três copos de cerveja e vinte francos
para Adélia" significam. "Entreguei trinta mil medas de feno a uma potência vizinha." A partir destes
documentos, pude mesmo determinar a composição do feno entregue por este oficial: com efeito, as
palavras camisa, colete, cuecas, lenços de bolso, colarinhos, aperitivo, tabaco, charutos, querem dizer
trevo, poa, luzerna, pimpinela, aveia, joio, fluva cheirosa e fléolo dos prados. E eram precisamente estas
as plantas aromáticas que compunham o feno odorífero fornecido pelo conde Maubec à cavalaria
pinguim. Deste modo, Pyrot anotava os seus crimes numa linguagem que considerava indecifrável.
Fica–se confundido com tanta astúcia, aliada a tanta inconsciência.
Colomban, reconhecido culpado sem circunstâncias atenuantes, foi condenado ao máximo da pena. Os
jurados assinaram logo um recurso em forma.

Na praça do Tribunal, à beira do rio cujas margens tinham visto doze séculos de uma grande história,
cinquenta mil pessoas esperavam tumultuosamente o resultado do processo. Aí se agitavam os
dignitários da associação dos antipyrots, entre os quais se notavam o príncipe dos Boscenos, o conde
Cléna, o visconde Olive, M. de la Trumelle; aí se comprimiam o reverendo padre Agaric e os
professores da escola de São Maèl, com todos os seus alunos; aí, o monge Douillard e o generalíssimo
Caraguel, abraçados, formavam um grupo sublime, e via–se acorrer pela Ponte Velha as damas do
mercado e dos lavadouros, com espetos, pás, tenazes, batedores de roupa e caldeiras de lixívia; diante
das portas de bronze, nos degraus, estava reunido tudo o que Alça contava de defensores de Pyrot,
professores, publicistas, operários, uns conservadores, outros radicais ou revolucionários, e
reconheciam–se, pelo desmazelo das roupas e a rudeza do aspecto, os camaradas Phoenix, Larrivée,
Lapersonne, Dagobert e Varambille.
Metido na sua sobrecasaca fúnebre e tendo na cabeça o cerimonioso chapéu, Bidault–Coquille invocava
a favor de Colomban e do coronel Hastaing as matemáticas sentimentais.
No degrau mais alto resplandecia, sorridente e feroz, Maniflore, cortesã heróica, ciosa de merecer, como
Leena, um monumento glorioso ou, como Epícaris, os louvores da história.
Os setecentos pyrots, disfarçados de vendedores de limonada, bufarinheiros, apanhadores de priscas e
antipyrots, erravam em torno do vasto edifício.
Quando Colomban apareceu, ergueu–se um tão alto clamor que, atingidos pela comoção do ar e da
água, os pássaros caíram das árvores e os peixes subiram de barriga para cima à superfície do rio.
Gritava–se de todos os lados:
"À água, Colomban! À água!, à água!" Alguns gritos sobrepunham–se: "Justiça e verdade!" Ouviu–se
até uma voz vociferar: "Abaixo o exército!"
Foi o sinal de uma terrível contenda. Os combatentes caíam aos milhares e formavam com os corpos
amontoados outeiros ululantes e móveis, sobre os quais novos lutadores se agarravam pelo pescoço. As
mulheres, ardentes, desgrenhadas, pálidas, de dentes cerrados e unhas frenéticas, atiravam–se ao homem
com transportes que lhes punham no rosto, à luz da praça pública, uma expressão deliciosa que até
então só pudera ser surpreendida na sombra dos reposteiros, na cova dos travesseiros. Prepararam–se
para agarrar Colomban, mordê–lo, estrangulá–lo, esquartejá–lo, despedaçá–lo e disputar os seus restos,
quando Maniflore, alta, casta na sua túnica vermelha, se ergue, serena e terrível, diante dessas fúrias,
que recuam, apavoradas. Colomban parecia salvo; os seus partidários conseguiram abrir–lhe caminho
através da praça do Tribunal e metê–lo num fiacre estacionado à esquina da Ponte Velha. Já o cavalo
corria a galope, mas o príncipe dos Boscenos, o conde Cléna, M. de la Trumelle, atiraram o cocheiro
abaixo do assento; depois, fazendo recuar o animal e rolar as rodas grandes à frente das pequenas,
encostaram a carruagem ao parapeito da ponte, de onde a precipitaram no rio, por entre os aplausos da
multidão em delírio. Com um marulho sonoro e fresco, a água subiu em repuxo; depois viu–se apenas
um ligeiro redemoinho à superfície faiscante do rio.
Quase imediatamente, os camaradas Dagobert e Varambille, ajudados por setecentos pyrots disfarçados,
atiraram o príncipe dos Boscenos, de cabeça para a frente, para um barco de lavadeiras, onde mergulhou
de modo lamentável.

A noite serena desceu sobre a praça do Tribunal e lançou sobre os horríveis destroços que a juncavam o
silêncio e a paz. Entretanto, a três quilómetros a jusante, debaixo de uma ponte, agachado, a escorrer
água, ao lado de um velho cavalo estropiado, Colomban meditava na ignorância e na injustiça das
multidões.
"O caso", dizia para consigo, "é ainda mais difícil do que julgava. Prevejo novas dificuldades."
Levantou–se, aproximou–se do infeliz animal:
"Que lhes tinhas feito, pobre amigo? Foi por minha causa que te trataram tão cruelmente."
Abraçou o desafortunado bicho e depôs um beijo na estrela branca da sua fronte. Depois, puxou–o pela
rédea e, coxeando, levou–o a coxear através da cidade adormecida até à sua casa, onde o sono lhes fez
esquecer os homens.

IX – O Padre Douillard


Na sua infinita mansidão, por sugestão do pai comum dos fiéis, os bispos, cônegos, curas, vigários,
abades e priores da Pinguínia decidiram celebrar um serviço solene na catedral de Alça, para obterem da
misericórdia divina que se dignasse pôr fim às perturbações que dilaceravam uma das mais nobres terras
da cristandade e conceder ao arrependimento da Pinguínia o perdão dos seus crimes para com Deus e os
ministros do culto.

A cerimônia realizou–se a 15 de Junho. O generalíssimo Caraguel encontrava–se na bancada reservada,
rodeado pelo seu estado–maior. A assistência era numerosa e brilhante; segundo a expressão de M.
Bigourd, era ao mesmo tempo uma multidão e uma elite. Notava–se na primeira fila M. de la
Berthoseille, camareiro de Sua Alteza o Príncipe Crucho. Perto da cátedra onde devia subir o reverendo
padre Douillard, da Ordem de São Francisco, viam–se de pé, numa atitude recolhida, de mãos cruzadas
sobre as mocas, os grandes dignitários da associação dos antipyrots, o visconde Olive, M. de la
Trumelle, o conde Cléna, o duque Ampoule, o príncipe dos Boscenos. O padre Agaric ocupava a abside
com os professores e os alunos da escola de São Maèl. O transepto e a nave lateral da direita estavam
reservados aos oficiais e soldados de uniforme, como os mais honrosos, visto que foi para esse lado que
o Senhor inclinou a cabeça ao expirar na cruz. As damas da aristocracia, e entre elas a condessa Cléna, a
viscondessa Olive, a princesa dos Boscenos, ocupavam as tribunas. Na imensa nave e na praça do Adro
comprimiam–se vinte mil religiosos de todas as ordens e trinta mil leigos.
Após a cerimônia expiatória e propiciatória, o reverendo padre Douillard subiu ao púlpito. O sermão
tinha sido dado inicialmente ao reverendo padre Agaric; mas, considerado, apesar dos seus méritos,
abaixo das circunstâncias pelo zelo e a doutrina, foi preferido o eloquente capuchinho que há seis meses
pregava nas casernas contra os inimigos de Deus e da autoridade.
O reverendo padre Douillard, tomando como texto Deposuit potentes de sede, demonstrou que todo o
poder temporal tem Deus por princípio e fim e que se perde e corrompe quando se desvia do caminho
que a Providência lhe traçou e do objetivo que lhe determinou.
Aplicando estas regras sagradas ao governo da Pinguínia, traçou um quadro terrível dos males que os
senhores do país não tinham sabido nem prever nem evitar.
– O primeiro autor de tantas misérias e vergonhas – disse ele – conhecei–lo de mais, meus irmãos. É um
monstro cujo nome anuncia providencialmente o destino, porquanto vem do grego pyros, que quer dizer
fogo; a sabedoria divina, que às vezes é filóloga, lembra–nos por esta etimologia que um judeu
acenderia a fogueira na terra que o acolhera.
Mostrou a pátria perseguida pelos perseguidores da Igreja, clamando no seu calvário: "Ó dor!, ó glória!
Crucificam–me os que crucificaram o meu Deus!".
A estas palavras, um prolongado frêmito agitou o auditório. O poderoso orador provocou ainda mais
indignação ao recordar o orgulhoso Colomban, mergulhado, negro de crimes, no rio cujas águas não
conseguirão lavá–lo. Lembrou todas as humilhações, todos os perigos da Pinguínia para dirigir uma
censura ao presidente da República e ao seu primeiro–ministro.
– Este ministro – disse ele –, que cometeu uma cobardia degradante não exterminando os setecentos
Pyrots, com os seus aliados e defensores, como Saul exterminou os Filisteus em Gabaon, tornou–se
indigno de exercer o poder que Deus lhe delegara e todo o bom cidadão pode e deve, doravante, insultar
a sua desprezível soberania. O Céu considerará favoravelmente os que o desprezarem. Deposuit
potentes de sede. Deus deporá os chefes pusilânimes e porá no seu lugar os homens fortes que apelarem
para Ele. Previno–vos, meus senhores; previno–vos, oficiais, suboficiais, soldados que me escutais;
previno–o, generalíssimo dos exércitos pinguins, a hora chegou! Se não obedecerdes às ordens de Deus,
se não depuserdes em seu nome os senhores indignos, se não constituirdes na Pinguínia um governo
religioso e forte, Deus não deixará de destruir o que condenou, não deixará de salvar o seu povo. Salvá–
lo–á, na vossa falta, por um humilde artesão ou por um simples cabo. A hora passará em breve.
Apressai–vos!
Excitados por esta ardente exortação, os sessenta mil assistentes levantaram–se, arrebatados; jorraram
gritos: "Às armas! Às armas! Morte aos Pyrots! Viva Crucho!", e todos, monges, mulheres, soldados,
fidalgos, burgueses, lacaios, sob o braço sobre–humano levantado na cátedra da verdade para os
abençoar, entoando o hino: Salvemos a Pinguínia!, saíam impetuosamente da basílica e precipitaram–se,
pelos cais do rio, para a Câmara dos Deputados.
Sozinho na nave deserta, o sábio Cornemuse, erguendo os braços ao Céu, murmurou, numa voz
entrecortada:
"Agnosco fortunam ecdesiae pinguicanae! Estou mesmo a ver onde tudo isto nos levará."

O assalto da santa multidão ao palácio legislativo foi repelido. Vigorosamente carregados pelas brigadas
negras e pelos guardas de Alça, os assaltantes fugiam desordenadamente quando os camaradas, vindos
dos arrabaldes, com Phoenix, Dagobert, Lapersonne e Varambille à cabeça, se lançaram sobre eles e
acabaram de desbaratá–los. Os senhores de la Trumelle e de Ampoule foram arrastados para a esquadra.
O príncipe dos Boscenos, depois de ter lutado como um valente, caiu, de cabeça rachada, na rua
ensanguentada.
No entusiasmo da vitória, os camaradas, acompanhados por inúmeros bufarinheiros, percorreram,
durante toda a noite, as avenidas, levando Maniflore em triunfo e partindo as montras dos cafés e os
vidros dos candeeiros aos gritos de: "Abaixo Crucho! Viva a social!". Os antipyrots passavam, por seu
turno, derrubando as bancas dos jornais e as colunas de publicidade.
Espetáculos que a fria razão não poderia aplaudir e próprios da aflição dos vereadores, preocupados
com o bom policiamento dos caminhos e das ruas; mas o que era mais triste para as pessoas sensíveis
era o aspecto desses tartufos que, com medo dos golpes, se punham a igual distância dos dois campos e,
a tal ponto egoístas e cobardes que se deixavam ver, queriam que se admirasse a generosidade dos seus
sentimentos e a nobreza da sua alma; esfregavam os olhos com cebolas, faziam uma boca de marmota,
assoavam–se ruidosamente, arrancavam sons das profundezas do ventre e gemiam: "Ó Pinguins, parai
com essas lutas fratricidas, cessai de dilacerar o peito da vossa mãe!", como se os homens pudessem
viver em sociedade sem disputas e querelas e como se as discórdias civis não fossem as condições
necessárias da vida nacional e do progresso dos costumes, poltrões hipócritas que propunham
compromissos entre o justo e o injusto, ofendendo assim o justo nos seus direitos e o injusto na sua
coragem. Um deles, o rico e poderoso Machimel, belo de cobardia, erguia–se sobre a cidade como um
colosso de dor; as lágrimas formavam a seus pés lagos piscosos e os seus suspiros faziam soçobrar as
barcas dos pescadores.

Durante essas noites agitadas, no topo da sua bomba de incêndio, sob o céu sereno, enquanto as estrelas
cadentes eram registadas nas placas fotográficas, Bidault–Coquille exultava intimamente. Combatia
pela justiça; amava, era amado com um amor sublime. A injúria e a calúnia exaltavam–no. Via–se a sua
caricatura, com a de Colomban, Kerdanic e do coronel Hastaing, nas bancas dos jornais; os antipyrots
divulgavam que ele tinha recebido cinquenta mil francos dos grandes financeiros judeus. Os repórteres
das folhas militaristas consultavam acerca do seu valor científico os sábios oficiais, que lhe recusavam o
conhecimento dos astros, contestavam as suas observações mais sólidas, negavam as suas descobertas
mais evidentes, condenavam as suas hipóteses mais engenhosas e fecundas. Sob os golpes lisonjeiros do
ódio e da inveja, ele exultava.
Contemplando a seus pés a imensidade negra rasgada por uma multidão de luzes, sem pensar em tudo o
que uma noite de grande cidade encerra de sonos pesados, de insônias cruéis, de sonhos vãos, de
prazeres estragados e de misérias infinitamente diversas, dizia para consigo:
"É nesta enorme cidade que o justo e o injusto travam batalha." E, substituindo a realidade múltipla e
vulgar por uma poesia simples e magnífica, via o caso Pyrot sob o aspecto de uma luta dos bons e dos
maus anjos; esperava o triunfo eterno dos Filhos da Luz e felicitava–se por ser um Filho do Dia que
lançava por terra os Filhos da Noite.

X – O Conselheiro Chaussepied


Cegos até então pelo medo, imprudentes e estúpidos, os republicanos, perante os bandos do capuchinho
Douillard e os partidários do príncipe Crucho, abriram os olhos e compreenderam finalmente o
verdadeiro sentido do caso Pyrot. Os deputados, que há dois anos, os gritos das multidões patriotas
faziam empalidecer, não se tornaram mais corajosos, mas mudaram de cobardia e atribuíram ao
ministério Robin Meloso as culpas das desordens que eles próprios haviam favorecido pela sua
complacência e cujos autores tinham felicitado várias vezes, tremendo; acusavam–no de ter posto em
perigo a República pela sua fraqueza, que era a deles, e por complacências que eles lhe haviam imposto;
alguns começavam a duvidar se o seu interesse não estaria em acreditar na inocência de Pyrot, em vez
de na sua culpabilidade, e, a partir de então, experimentaram angústias cruéis à ideia de que esse infeliz
podia não ter sido condenado justamente e expiava na sua jaula aérea os crimes de outro. "Não consigo
dormir!", dizia confidencialmente a alguns membros da maioria o ministro Guillaumette, que aspirava a
substituir o seu chefe.
Estes generosos legisladores derrubaram o gabinete e o presidente da República nomeou para o lugar de
Robin Meloso um sempiterno republicano, de barba florida, chamado La Trinité, que, como a maior
parte dos Pinguins, não compreendia uma palavra do caso, mas achava que, na realidade, metia monges
a mais.
O general Greatauk, antes de deixar o Ministério, fez as suas últimas recomendações ao chefe do
Estado–Maior, Panther.
– Eu parto e você fica – disse ele, apertando–lhe a mão.
– O caso Pyrot é meu filho; confio–lho; é digno do seu amor e cuidados; é belo. Não esqueça que a sua
beleza procura a sombra, se apraz no mistério e deseja ficar encoberto. Evite ofender–lhe o pudor. Já
demasiados olhares indiscretos lhe profanaram os encantos... Panther, desejou provas e conseguiu–as.
Tem muitas; tem de mais. Prevejo intervenções importunas e curiosidades perigosas. No seu lugar,
destruiria todos esses dossiês. Acredite–me, a melhor prova é a que não existe. Esta é a única que não se
discute.
Infelizmente, Panther não compreendeu a sabedoria dos seus conselhos. O futuro viria a dar inteira
razão à clarividência de Greatauk. Logo que entrou para o Ministério, La Trinité pediu o dossiê do caso
Pyrot. Peniche, seu ministro da Guerra, recusou–lho em nome do interesse superior da defesa nacional,
confiando–lhe que esse dossiê, à guarda do general Panther, constituía por si só o mais vasto arquivo do
mundo. La Trinité estudou o processo como pôde e, sem o penetrar a fundo, concluiu pela sua
irregularidade. Então, de acordo com os seus direitos e prerrogativas, ordenou a sua revisão.
Imediatamente Peniche, seu ministro da Guerra, o acusou de insultar o exército e trair a pátria e lhe
atirou com a sua pasta à cabeça. Foi substituído por um segundo, que fez a mesma coisa, e ao qual
sucedeu um terceiro, que imitou estes expulsos, e os seguintes, até setenta, comportaram–se como os
seus predecessores, e o venerável La Trinité gemeu ao peso das belicosas pastas. O septuagésimo
primeiro ministro da Guerra, Van Julep, manteve–se no cargo; não porque estivesse em desacordo com
tantos e tão nobres colegas, mas porque fora encarregado por eles de trair generosamente o seu
presidente do Conselho, de cobri–lo de opróbrio e vergonha e de transformar a revisão em glória de
Greatauk, em satisfação dos antipyrots, em proveito dos monges e para a reposição do príncipe Crucho.
O general Van Julep, dotado de altas virtudes militares, não tinha um espírito suficientemente arguto
para aplicar os processos subtis e os métodos requintados de Greatauk. Pensava, como o general
Panther, que eram necessárias provas tangíveis contra Pyrot, que estas nunca seriam de mais, nunca
seriam suficientes. Exprimiu estes pensamentos ao seu chefe do Estado–Maior, que os perfilhava
inteiramente.
– Panther – disse ele –, chegámos ao momento em que vamos precisar de provas abundantes e
superabundantes.
– Basta, meu general – respondeu Panther. – Vou completar os meus dossiês.

Seis meses mais tarde, as provas contra Pyrot enchiam dois andares do Ministério da Guerra. O soalho
ruiu sob o peso dos dossiês e as provas esmagaram na sua queda dois chefes de serviço, catorze chefes
de gabinete e sessenta expedicionários que trabalhavam, no rés–do–chão, na transformação das polainas
dos caçadores. Foi preciso escorar as paredes do vasto edifício. Os transeuntes viam com assombro
enormes traves, monstruosas escoras, que, erguidas obliquamente contra a altiva fachada, que se
apresentava desconjuntada e oscilante, obstruíam a rua, impediam a circulação dos carros e dos peões e
constituíam para os autocarros um obstáculo contra o qual esbarravam com os seus passageiros.
Os juízes que tinham condenado Pyrot não eram propriamente juízes, mas militares. Os juízes que
tinham condenado Colomban eram juízes, mas pequenos juízes, que usavam uma blusa comprida e
negra como varredores de sacristia, pobres diabos de juízes, juizecos famélicos. Acima deles
imperavam grandes juízes, que usavam por cima da toga vermelha a samarra de arminho. Estes,
famosos pela ciência e doutrina, compunham um tribunal cujo nome terrível exprimia o poder.
Chamavam–lhe o Tribunal de Cassação ou Supremo Tribunal, para dar a entender que era o martelo
suspenso sobre as decisões e acórdãos de todas as outras jurisdições.
Ora, um desses grandes juízes vermelhos do tribunal supremo, de nome Chaussepied, levava então, num
arrabalde de Alça, uma vida modesta e tranquila. A sua alma era pura, o coração honesto, o espírito
justo.
Quando acabava de estudar os seus processos, tocava violino e cultivava jacintos. Jantava ao domingo
em casa das suas vizinhas, as Meninas Helbivore. A sua velhice era sorridente e robusta e os amigos
elogiavam a amenidade do seu caráter.
Há alguns meses, porém, que se mostrava irritável e rabugento e, se abria um jornal, a cara rosada e
cheia enchia–se de rugas dolorosas e reflectia uma cólera sombria.
Pyrot era a causa. O conselheiro Chaussepied não podia compreender que um oficial tivesse cometido
uma ação tão negra como a de entregar oitenta mil medas de feno a uma nação vizinha e inimiga; e
concebia ainda menos que o celerado tivesse encontrado defensores oficiosos na Pinguínia. A ideia de
que havia na sua pátria um Pyrot, um coronel Hastaing, um Colomban, um Kerdanic, um Phoenix,
estragava–lhe os jacintos, o violino, o céu e a terra, toda a natureza e os jantares em casa das Meninas
Helbivore.
Ora, tendo o processo Pyrot sido apresentado pelo ministro da Justiça ao Supremo Tribunal, foi ao
conselheiro Chaussepied que coube examiná–lo e descobrir–lhe os vícios, no caso de os haver. Embora
íntegro e probo tanto quanto se pode ser e moldado por um longo hábito para exercer a magistratura
sem ódio nem favor, esperava encontrar nos documentos que lhe seriam submetidos as provas de uma
culpabilidade certa e de uma perversidade tangível. Após longas dificuldades e as recusas reiteradas do
general Von Julep, o conselheiro Chaussepied conseguiu que lhe fossem facultados os dossiês.
Numerados e rubricados, eram em número de catorze milhões seiscentos e vinte e seis mil trezentos e
doze. Ao estudá–los, o juiz ficou primeiramente surpreendido, depois espantado, em seguida estupefato,
maravilhado e, por assim dizer, assombrado. Encontrava nos dossiês prospectos de lojas de novidades,
jornais, gravuras de modas, sacos de mercearia, velhas correspondências comerciais, cadernos
escolares, papel de embrulho, lixa para raspar o soalho, cartas de jogar, desenhos em tamanho natural,
seis mil exemplares da Chave dos Sonhos, mas nem um só documento em que se falasse de Pyrot.

XI – Conclusão


O processo foi arquivado e Pyrot desceu da sua jaula. Os antipyrots não se deram por vencidos. Os
juízes militares voltaram a julgar Pyrot. Greatauk, neste segundo caso, mostrou–se superior a si mesmo.
Obteve uma segunda condenação; obteve–a ao declarar que as provas comunicadas ao Supremo
Tribunal não valiam nada e que não tinham sido apresentadas as boas, que deviam permanecer secretas.
Na opinião dos peritos, nunca demonstrara tanta habilidade. Ao sair da audiência, quando atravessava,
no meio dos curiosos, com passo tranquilo e as mãos atrás das costas, o vestíbulo do tribunal, uma
mulher vestida de vermelho, com o rosto tapado com um véu negro, atirou–se a ele e, brandindo uma
faca de cozinha, gritou:
– Morre, celerado!
Era Maniflore. Antes que os assistentes tivessem compreendido o que se passava, o general agarrou–lhe
o punho e, com aparente suavidade, apertou–lho com tanta força que a faca caiu da mão magoada.
Então, apanhou–a e estendeu–a a Maniflore.
– Minha senhora – disse ele inclinando–se –, deixou cair um utensílio doméstico.
Não pôde evitar que a heroína fosse levada para a esquadra; mas mandou–a libertar imediatamente e,
mais tarde, usou de toda a sua influência para abafar o processo.

A segunda condenação de Pyrot foi a última vitória de Greatauk.
O conselheiro Chaussepied, que outrora tinha amado tanto os soldados e apreciado a sua justiça, agora,
irritado contra os juízes militares, anulava–lhes todas as sentenças, quebrando–as como um macaco
quebra avelãs. Reabilitou Pyrot pela segunda vez; se fosse preciso, reabilitá–lo–ia quinhentas vezes.
Furiosos por terem sido cobardes e se terem deixado enganar e ridicularizar, os republicanos voltaram–
se contra os monges e os curas; os deputados fizeram contra eles leis de expulsão, separação e
espoliação. Aconteceu o que o padre Cornemuse tinha previsto. Este bom religioso foi expulso do
bosque dos Conils. Os agentes do fisco confiscaram–lhe os alambiques e as retortas e os liquidatários
dividiram entre si as garrafas do licor de Santa Orberose. O piedoso destilador perdeu os três milhões e
quinhentos mil francos de rendimento anual que lhe proporcionavam os seus humildes produtos. O
padre Agaric seguiu o caminho do exílio, abandonando a sua escola a mãos laicas, que a deixaram
deteriorar–se. Separada do Estado que a alimentava, a Igreja da Pinguínia secou como uma flor cortada.
Vitoriosos, os defensores do inocente massacraram–se entre si e encheram–se reciprocamente de
ultrajes e calúnias. O veemente Kerdanic atirou–se a Phoenix, disposto a devorá–lo. Os grandes judeus
e os setecentos Pyrots afastaram–se com desprezo dos camaradas socialistas, a quem ainda há pouco
imploravam humildemente auxílio. "Já não vos conhecemos", diziam eles; "deixai–nos em paz com a
vossa justiça social. A justiça social é a defesa das riquezas."
Eleito deputado e nomeado chefe da nova maioria, o camarada Larrivée foi alçado pela Câmara e pela
opinião pública à presidência do Conselho. Revelou–se enérgico defensor dos tribunais militares que
tinham condenado Pyrot. Como os seus antigos camaradas socialistas reclamassem um pouco mais de
justiça e liberdade para os funcionários do Estado e os trabalhadores manuais, combateu as suas
propostas num eloquente discurso:
– A liberdade – disse ele – não é o desregramento. Entre a ordem e a desordem, a minha escolha está
feita: a revolução é a impotência; o progresso não tem inimigo mais terrível do que a violência. Não se
consegue nada pela violência. Meus senhores, aqueles que, como eu, querem reformas devem aplicar–se
antes do mais a curar esta agitação que enfraquece os Governos como a febre esgota os doentes. É
tempo de tranquilizar as pessoas honestas.
Este discurso foi abafado por aplausos. O governo da República continuou sujeito ao controlo das
grandes companhias financeiras, o exército consagrado exclusivamente à defesa do capital, a marinha
destinada unicamente a fornecer encomendas aos metalúrgicos; recusando–se os ricos a pagar a sua
justa parte dos impostos, os pobres, como no passado, pagaram por eles.
Entretanto, do alto da sua velha bomba de incêndio, sob a assembléia dos astros da noite, Bidault–
Coquille contemplava com tristeza a cidade adormecida. Maniflore tinha–o deixado; devorada pela
necessidade de novas dedicações e novos sacrifícios, fora–se embora na companhia de um jovem
búlgaro, para levar a Sofia a justiça e a vingança. Ele não a lamentara, tendo–a considerado, após o
caso, menos bela de forma e pensamento do que havia imaginado a princípio. As suas impressões
tinham–se modificado no mesmo sentido acerca de muitas outras formas e muitos outros pensamentos.
E, o que para ele era mais cruel, julgava–se a si mesmo menos grande, menos belo do que tinha
imaginado.
E pensava:
"Julgavas–te sublime, quando só possuías candura e boa vontade. De que te orgulhavas, Bidault–
Coquille? De teres sido dos primeiros a saber que Pyrot estava inocente e Greatauk era um celerado?
Mas três quartas partes daqueles que defendiam Greatauk contra os ataques dos setecentos Pyrots
sabiam–no melhor do que tu. A questão não era essa. De que te mostravas então tão orgulhoso? De teres
ousado dizer o que pensavas? Isso é coragem cívica, e esta, como a coragem militar, é um mero efeito
da imprudência. Foste imprudente. Está bem, mas não há motivo para te vangloriares. A tua
imprudência era pequena; expunha–te a perigos medíocres; não arriscavas a cabeça. Os Pinguins
perderam a altivez cruel e sanguinária que emprestava outrora às suas revoluções uma grandeza trágica:
é o fatal efeito do enfraquecimento das crenças e dos caracteres. Por teres revelado num ponto particular
um pouco mais de clarividência do que o vulgar, deves ser olhado como um espírito superior?
“Receio bem, pelo contrário, que tenhas dado provas; Bidault–Coquille, de uma grande ininteligência
das condições do desenvolvimento intelectual e moral dos povos. Imaginavas que as injustiças sociais
se enfiavam como pérolas e que bastava tirar uma para desbagoar todo o colar. É uma concepção muito
ingénua. Gabavas–te de restabelecer de repente a justiça no teu país e em todo o universo. Foste um
bom homem, um espiritualista honesto, sem muita filosofia experimental. Mas olha para dentro de ti e
reconhecerás que tiveste a tua malícia e que, na tua ingenuidade, não te faltava manha. Julgavas fazer
um bom negócio moral. Dizias para contigo: "Eis–me justo e corajoso de uma vez para sempre. Poderei
descansar em seguida na consideração pública e no louvor dos historiadores." E, agora que perdeste as
ilusões, agora que sabes que é duro reparar os erros e que é preciso recomeçar sempre, voltas para os
teus asteróides. Tens razão; mas volta modestamente, Bidault–Coquille!".

Livro VII – OS TEMPOS MODERNOS –
MADAME CERES



Só as coisas extremas são suportáveis.
Conde Robert de Montesquieu

I – O Salão de Madame Clarence


Madame Clarence, viúva de um alto funcionário da República, gostava de receber: reunia todas as
quintas–feiras amigos de condição modesta e que apreciavam conversar. As damas que frequentavam a
sua casa, muito diferentes em idade e situação, tinham todas falta de dinheiro e todas haviam sofrido
muito. Via–se ali uma duquesa que parecia uma cartomante e uma cartomante que parecia uma duquesa.
Madame Clarence, bastante bela para manter velhas ligações, já não o era bastante para arranjar outras
novas e gozava de uma tranquila consideração. Tinha uma filha muito bonita e sem dote, que causava
medo aos convidados; é que os Pinguins receavam como o fogo as meninas pobres. Eveline Clarence
apercebia–se da sua reserva, compreendendo a causa, e servia–lhes o chá com um ar de desprezo. Aliás,
aparecia pouco nas recepções, só conversava com as senhoras ou com os rapazes muito jovens; a sua
presença breve e discreta não incomodava os conversadores, que pensavam que, sendo uma rapariga,
não compreendia, ou que, tendo vinte e cinco anos, podia ouvir tudo.
Assim, numa quinta–feira, falava–se do amor no salão de Madame Clarence; as senhoras falavam dele
com altivez, delicadeza e mistério; os homens com indiscrição e fatuidade; cada um interessava–se pelo
que dizia. Esbanjou–se muito espírito; foram lançadas brilhantes apóstrofes e vivas réplicas. Mas,
quando o professor Haddock se pôs a discorrer, espantou toda a gente.
– Passa–se com as nossas ideias sobre o amor o mesmo que com o resto – disse ele –; assentam em
hábitos anteriores cuja recordação se apagou. Em matéria de moral, as normas que perderam a sua razão
de ser, as obrigações mais inúteis, as violências mais perniciosas e cruéis, são, por causa da sua
antiguidade profunda e do mistério da sua origem, as menos cautelosas e menos contestáveis, as menos
analisadas, as mais veneradas, as mais respeitadas e as que não se pode transgredir sem incorrer nas
mais severas censuras. Toda a moral relativa às relações dos sexos se fundamenta no princípio segundo
o qual a mulher, uma vez adquirida, pertence ao homem, é dele como o seu cavalo e as suas armas. E,
quando isto deixa de ser verdadeiro, resultam daí absurdos, tais como o casamento ou o contrato de
venda de uma mulher a um homem, com cláusulas restritivas do direito de propriedade, introduzidas em
consequência do enfraquecimento gradual do possuidor.
"A obrigação imposta a uma rapariga de oferecer a virgindade ao esposo vem dos tempos em que as
raparigas eram isoladas assim que se tornavam núbeis; é ridículo que uma rapariga que se case aos vinte
e cinco ou trinta anos esteja sujeita a esta obrigação. Dir–me–ão que é um presente que agradará ao
marido, se conseguir arranjá–lo; mas vemos a todo o momento homens que procuram mulheres casadas
e se contentam em possuí–las como as encontram.
"Ainda hoje o dever das raparigas é determinado, na moral religiosa, pela velha crença de que Deus, o
mais poderoso dos chefes guerreiros, é polígamo, que reserva para si todas as virgindades e ninguém
pode possuir senão o que ele deixou. Esta crença, cujos vestígios subsistem nas várias metáforas da
linguagem mística, perdeu–se na maioria dos povos civilizados; contudo, domina ainda a educação das
raparigas, não só entre os nossos crentes, mas também entre os nossos livres–pensadores, que, quase
sempre, não pensam livremente pela simples razão de que não sabem pensar.
"Ajuizado quer dizer sábio. Diz–se que uma rapariga é ajuizada quando não sabe nada. Cultiva–se a sua
ignorância. Apesar de todos os cuidados, as mais ajuizadas sabem, pois, que se não lhes pode esconder
nem a sua natureza, nem os seus próprios estados, nem as suas próprias sensações. Mas sabem mal,
sabem de través. É tudo o que se obtém mediante uma cultura atenta...
– Senhor – disse bruscamente, com um ar sombrio, José Boutourlé, tesoureiro–pagador–geral de Alça –,
acredite: há raparigas inocentes, inteiramente inocentes, e é uma grande desgraça. Conheci três;
casaram–se: foi horrível. Uma, quando o marido se aproximou dela, saltou da cama, aterrorizada, e
gritou pela janela: "Socorro! O senhor endoideceu!". Outra foi encontrada, na manhã da noite de
núpcias, em camisa, dentro do guarda–vestidos, e recusava–se a sair. A terceira teve a mesma surpresa,
mas suportou tudo sem se queixar. Porém, algumas semanas após o casamento, murmurou ao ouvido da
mãe: "Passaram–se entre o meu marido e eu coisas inauditas, coisas que não se pode imaginar, coisas de
que nem a si ouso falar". Para não perder a alma, confiou–as ao confessor e foi ele quem lhe disse,
talvez um pouco decepcionado, que essas coisas não eram extraordinárias.
– Notei – continuou o professor Addock – que os Europeus, em geral, e os Pinguins, em particular, além
dos desportos e do automobilismo, não se ocupam de nada tanto como do amor. É dar muita
importância àquilo que tem pouca.
– Então, senhor – clamou Mme Crémeur, sufocada –, quando uma mulher se entrega, totalmente, acha
que é sem importância?
– Não, minha senhora, isso pode ter a sua importância – respondeu o professor Haddock –, mas falta
saber se, ao entregar–se, ela oferece um pomar delicioso ou um canteiro de cardos e dentes–de–leão.
Além disso, não se abusa um pouco dessa palavra entregar–se? No amor, a mulher empresta–se mais do
que se entrega. Veja a bela MmePensée...
– É a minha mãe – disse um rapaz alto e louro.
– Respeito–a muito, senhor – replicou o professor Haddock. – Não receie que eu diga a seu respeito o
que quer que seja de ofensivo. Mas permita–me que lhe diga que, geralmente, a opinião dos filhos a
respeito das mães é falsa: não pensam suficientemente que uma mãe só é mãe porque amou e pode
voltar a amar. No entanto, é assim e seria lamentável que fosse de outro modo. Notei que as raparigas,
pelo contrário, não se enganam quanto à faculdade de amar das suas mães nem quanto ao emprego que
fazem disso: são rivais; nada lhes escapa.
O insuportável professor falou ainda durante muito tempo, juntando as inconveniências às faltas de tato,
as impertinências às incivilidades, acumulando as incongruências, desprezando o que é respeitável,
respeitando o que é desprezível; mas ninguém o escutava.

Entretanto, no seu quarto de uma simplicidade sem graça, no seu quarto triste de não ser amada, e que,
como todos os quartos de raparigas, tinha a frieza de um local de espera, Eveline Clarence consultava
anuários de clubes e catálogos de obras para adquirir aí o conhecimento da sociedade. Certa de que a
sua mãe, confinada num mundo intelectual e pobre, não saberia nem valorizá–la nem exibi–la, decidira–
se a procurar ela mesma o meio favorável à sua mudança de vida, ao mesmo tempo obstinada e calma,
sem sonhos, sem ilusões, não vendo no casamento senão uma entrada no jogo e uma licença de
circulação, e conservando a mais lúcida consciência dos acasos, das dificuldades e das probabilidades
do seu empreendimento.
Possuía meios para agradar e uma frieza que lhe permitia dominá–los. A sua fraqueza era não poder
olhar sem deslumbramento tudo o que tinha um ar aristocrático.
Quando ficou sozinha com a mãe:
– Mamã, amanhã iremos ao retiro do padre Douillard.

II – A Obra de Santa Orberose


O retiro do reverendo padre Douillard reunia, todas as sextas–feiras, às nove horas da noite, na
aristocrática Igreja de São Maèl, a elite da sociedade de Alça. O príncipe e a princesa dos Boscenos, o
visconde e a viscondessa Olive, Mme Bigourd, M. e Mme de la Trumelle não faltavam a nenhuma
sessão; via–se ali a flor da aristocracia e as belas baronesas judias faziam gala do seu luxo, visto que as
baronesas judias de Alça eram cristãs.
Esse retiro tinha por objeto, como todos os retiros religiosos, proporcionar à gente de sociedade um
pouco de recolhimento para pensar na sua salvação; destinava–se também a atrair sobre tão nobres e
ilustres famílias a bênção de Santa Orberose, que ama os Pinguins. Com um zelo verdadeiramente
apostólico, o reverendo padre Douillard prosseguia na realização da sua obra: restabelecer Santa
Orberose nas suas prerrogativas de padroeira da Pinguínia e consagrar–lhe, numa das colinas que
dominam a cidade, uma igreja monumental. Um triunfo prodigioso tinha coroado os seus esforços e,
para a realização dessa empresa nacional, reunia mais de cem mil aderentes e mais de vinte milhões de
francos.
É no coro de São Maèl que se ergue, reluzente de ouro, flamejante de pedrarias, rodeado de círios e
flores, o novo relicário de Santa Orberose.
Eis o que se lê na História dos Milagres da Padroeira de Alça, pelo abade Plantam:
"O antigo relicário foi fundido durante o Terror e os preciosos restos da santa lançados a uma fogueira
acesa na Place de Greve; mas uma pobre mulher, de grande piedade, chamada Ruça, foi de noite, com
perigo da própria vida, recolher no braseiro os ossos calcinados e as cinzas da bem–aventurada;
conservou–os num boião de compota e, quando do restabelecimento do culto, levou–os ao venerável
cura de São Maèl. A dama Ruça acabou piedosamente os seus dias no cargo de vendedora de círios e
alugadora de cadeiras na capela da santa."
É certo que, desde o declínio da fé à época do padre Douillard, o culto de Santa Orberose, esquecido há
trezentos anos por causa da crítica do cónego Princeteau e do silêncio dos doutores da Igreja,
ressuscitava e rodeava–se de mais pompa, mais esplendor e mais fervor do que nunca. Agora, os
teólogos não riscavam nem um jota da lenda; consideravam verídicos todos os factos relatados pelo
abade Simplicíssimo e professavam nomeadamente, com fé nesse religioso, que o Diabo, tendo tomado
a forma de um monge, levara a santa para uma caverna e lutara com ela até que ela triunfara dele. Não
se preocupavam nem com lugares nem com datas; não faziam exegese e recusavam–se a conceder à
ciência o que lhe concedia outrora o cónego Princeteau: sabiam muito bem onde isso levava,
A igreja resplandecia de luzes e flores. Um tenor da ópera entoava o célebre cântico de Santa Orberose:

Virgem do Paraíso,
Vem, vem na noite morena
E sobre nós resplandece Como a Lua.

Mlle Clarence pôs–se ao lado da mãe, à frente do visconde Cléna, e ficou muito tempo ajoelhada no seu
genuflexório, visto que a atitude da oração é natural nas virgens prudentes e faz realçar as formas.
O reverendo padre Douillard subiu ao púlpito. Era um orador poderoso, sabia sensibilizar, surpreender,
comover.
As mulheres apenas lamentavam que ele verberasse os vícios com rudeza excessiva, em termos crus que
as faziam corar. Nem por isso o amavam menos.
Tratou, no seu sermão, da sétima provação de Santa Orberose, que foi tentada pelo dragão que ia
combater. Mas sucumbiu e desarmou o monstro.
O orador demonstrou sem dificuldade que, com a ajuda de Santa Orberose e fortes com as virtudes que
ela nos inspira, venceremos também os dragões que nos atacam, dispostos a devorar–nos, o dragão da
dúvida, o dragão da impiedade, o dragão do esquecimento dos deveres religiosos. Daí tirou a prova de
que a devoção a Santa Orberose era uma obra de regeneração social e concluiu com um ardente apelo
"aos fiéis desejosos de serem os instrumentos da misericórdia divina, ciosos de se tornarem os esteios e
os alimentadores da obra de Santa Orberose e de lhe fornecerem todos os meios de que ela tem
necessidade para se desenvolver e dar os seus frutos salutares{9}".
À saída da cerimónia, o reverendo padre Douillard ficava na sacristia, à disposição dos fiéis desejosos
de obterem esclarecimentos acerca da obra ou de oferecerem a sua contribuição. Mlle Clarence tinha
uma palavra a dizer ao reverendo padre Douillard; o visconde Cléna também; a multidão era numerosa;
fazia–se bicha. Por um acaso feliz, o visconde Cléna e Mlle Clarence viram–se um contra o outro,
talvez um pouco apertados. Eveline tinha distinguido esse jovem elegante, quase tão conhecido como o
seu pai no mundo dos desportos. Cléna tinha–a notado e, como lhe parecia bonita, cumprimentou–a,
desculpou–se e fingiu julgar que já havia sido apresentado a essas senhoras, mas não se lembrava onde.
Elas fingiram igualmente.

Na semana seguinte, ele apresentou–se em casa de Mme Clarence, que considerava um tanto
alcoviteira, o que não lhe desagradava, e, revendo Eveline, reconheceu que não se tinha enganado e que
ela era extremamente bonita.
O visconde Cléna possuía o mais belo automóvel da Europa. Durante três meses, passeou nele as damas
Clarence, todos os dias, pelas colinas, planícies, bosques e vales; percorreu com elas os sítios pitorescos
e visitou os castelos. Disse a Eveline tudo o que se pode dizer e fez o melhor que pôde. Ela não lhe
escondeu que o amava, que o amaria sempre e só o amaria a ele.
Ficava ao seu lado, palpitante e grave. Ao abandono de um amor fatal, fazia suceder, quando necessário,
a defesa invencível de uma virtude consciente do perigo.
Ao fim de três meses, depois de a ter feito subir, descer, subir e descer de novo, e passeado durante as
inúmeras avarias, conhecia–a como ao volante do seu carro, mas só isso. Combinava as surpresas, as
aventuras, as paragens súbitas no fundo das florestas e diante dos cabarés nocturnos, e não ia mais
longe. Dizia para consigo que era uma estupidez e, furioso, voltando a metê–la no automóvel, lançava–
se raivosamente a cento e vinte à hora, pronto a atirá–la para um fosso ou a esmagá–la com ele contra
uma árvore.

Um dia, indo buscá–la a casa para uma excursão, achou–a ainda mais deliciosa do que julgara e mais
irritante; atirou–se a ela como o furacão aos juncos do pântano.
Ela cedeu com adorável fraqueza e vinte vezes esteve prestes a vergar, arrancada, quebrada, ao sopro da
tempestade, e vinte vezes se endireitou, flexível e fustigante, e, após tantos assaltos, dir–se–ia que
apenas um ligeiro sopro passara pelo seu caule encantador; sorria, como disposta a oferecer–se à mão
ousada. Então, o seu infeliz agressor, desvairado, enraivecido, meio louco, foge para não a matar,
engana–se na porta, penetra no quarto de dormir onde Mine Clarence punha o chapéu diante do espelho
do guarda–vestidos, agarra–a, atira–a para cima da cama e possui–a antes que ela se aperceba do que se
passa.
No mesmo dia, Eveline, que procedia ao seu inquérito, soube que o visconde Cléna estava crivado de
dívidas, vivia do dinheiro de uma velha esgrouviada e lançava as novas marcas de um fabricante de
automóveis. Separaram–se de comum acordo e Eveline recomeçou a servir de má vontade o chá aos
convidados da sua mãe.

III – Hipólito Ceres


No salão de Mme Clarence falava–se do amor; e diziam–se coisas deliciosas.
– O amor é sacrifício – suspirou Mme Crémeur.
– Acredito – replicou vivamente M. Boutourlé.
Mas o professor Haddock depressa exibiu a sua fastidiosa insolência:
– Parece–me – disse ele – que as Pinguinas se dão grandes ares de importância desde que, por obra de
São Maèl, se tornaram vivíparas. Ora, não têm de que se orgulhar: é uma condição que compartilham
com as vacas e as porcas e até com as laranjeiras e os limoeiros, visto que as sementes destas plantas
germinam no pericarpo.
– A importância das Pinguinas não remonta tão longe – replicou M. Boutourlé. – Data do dia em que o
santo apóstolo lhes deu roupas; e mesmo essa importância, durante muito tempo contida, só se
manifestou com o luxo do trajo e numa pequena zona da sociedade. Com efeito, basta deslocar–se a
duas léguas de Alça, ao campo, durante a ceifa, e ver–se–á se as mulheres são amaneiradas e se dão ares
de importância.
Nesse dia, o senhor Hipólito Ceres fez–se anunciar; era deputado por Alça e um dos mais jovens
membros da Câmara; diziam–no filho de um taberneiro, mas ele era advogado, bem falante, robusto,
volumoso, arrogante e passando por hábil.
– Senhor Ceres – disse–lhe a dona da casa –, representa o mais belo cantão de Alça.
– E que todos os dias se embeleza, minha senhora.
– Infelizmente, já não se pode circular – observou M. Boutourlé.
– Porquê? – perguntou o senhor Ceres.
– Por causa dos automóveis, ora!
– Não diga mal – replicou o deputado –, é a nossa grande indústria nacional.
– Eu sei, senhor. Os Pinguins de hoje fazem–me pensar nos Egípcios de antigamente. Os Egípcios,
segundo diz Taine, a partir de Clemente da Alexandria, cujo texto aliás alterou, os Egípcios adoravam
os crocodilos que os devoravam; os Pinguins adoram os automóveis que os esmagam. Não há dúvida de
que o futuro pertence à besta de metal. Não se voltará ao fiacre como não se voltou à diligência. E
acaba–se o longo martírio do cavalo. O automóvel, que a cupidez frenética dos industriais lançou como
um carro de Jagernat sobre os povos aturdidos e que só os ociosos e os petulantes consideravam de uma
elegância imbecil e funesta, depressa desempenhará a sua função necessária e, pondo a sua força ao
serviço de todo o povo, comportar–se–á como monstro dócil e laborioso. Mas, para que, deixando de
causar dano, se torne benéfico, será preciso construir estradas adequadas à sua velocidade, calçadas que
ele não possa esburacar com os seus ferozes pneus e evitem que atire a poeira envenenada para os peitos
humanos. Essas novas estradas devem ser proibidas aos veículos de menor velocidade, assim como a
todos os animais; devem–se construir garagens e passadiços, enfim, criar a ordem e a harmonia na
rodoviária futura. Tal é o voto de um bom cidadão.
Mme Clarence desviou a conversa para os embelezamentos do cantão representado pelo senhor Ceres,
que deixou transparecer o seu entusiasmo pelas demolições, perfurações, construções, reconstruções e
outras futuras operações.
– Atualmente constrói–se de maneira admirável – disse ele –; por toda a parte se erguem majestosas
avenidas. Onde já se viu algo mais belo do que os pilares das nossas pontes e os zimbórios dos nossos
hotéis?
– Esquece–se desse grande palácio coberto por um imenso sino em forma de melão – rosnou com surda
raiva o senhor Daniset, velho amador de arte. –Admiro a que grau de fealdade pode chegar uma cidade
moderna. Alça americaniza–se; por toda a parte se destrói o que restava de livre, de imprevisto, de
proporcionado, de moderado, de humano, de tradicional; por toda a parte se destrói essa coisa
encantadora, um velho muro por cima do qual passam ramos; por toda a parte se suprime um pouco de
ar e de dia, um pouco de natureza, um pouco de recordações que restavam ainda, um pouco dos nossos
pais, um pouco de nós mesmos, e erguem–se casas horríveis, enormes, infames, cobertas à vienense de
zimbórios ridículos ou condicionados à arte nova, sem molduras nem perfis, com galerias sinistras e
cumeadas burlescas, e estes monstros diversos sobem acima dos telhados circundantes, sem vergonha.
Vêem–se rastejar pelas fachadas, com uma flacidez repugnante, protuberâncias bulbosas: chamam–lhes
os motivos da arte nova. Vi a arte nova noutros países, não é tão má: tem simplicidade, fantasia. É entre
nós que, por um triste privilégio, se pode contemplar as arquitecturas mais feias, as mais recentemente e
as mais diversamente feias; invejável privilégio!
– Não receia – perguntou severamente o senhor Ceres –, não receia que essas críticas amargas possam
desviar da nossa capital os estrangeiros que a ela afluem de todos os pontos do mundo e aí deixam
bilhões?
– Tranquilize–se – respondeu o senhor Daniset. – Os estrangeiros não vêm admirar os nossos edifícios;
vêm ver as nossas mundanas, os nossos costureiros e os nossos bailaricos de taberna.
– Temos o mau hábito – suspirou o senhor Ceres – de nos caluniarmos.
Mme Clarence considerou, como anfitriã perfeita, que era tempo de voltar ao amor e perguntou a M.
Jumel o que pensava do livro recente onde o senhor Léon Blum se queixa...
– ... Que um costume impensado – concluiu o professor Haddock –, prive as meninas da sociedade de
fazerem o amor que fariam com prazer, enquanto as mulheres mercenárias até fazem de mais e sem
gosto. É deplorável, com efeito; mas que o senhor Léon Blum não se aflija demasiado; se o mal é tal
como ele diz na nossa pequena sociedade burguesa, posso–lhe garantir que, em qualquer outra parte,
veria um espectáculo mais consolador. No povo, no vasto povo das cidades e dos campos, as raparigas
não se privam de fazer amor.
– Isso é desmoralização, senhor! – disse Mine Crémeur.
E celebrou a inocência das raparigas em termos cheios de pudor e graça. Era encantador!
As opiniões do professor Haddock sobre o mesmo assunto foram, pelo contrário, penosas de ouvir:
– As raparigas de sociedade – disse ele – são guardadas e vigiadas; aliás, os homens não as querem, por
honestidade, por medo de responsabilidades terríveis e porque a sedução de uma rapariga não os
honraria. Além disso, não se sabe o que se passa, pela simples razão de que o que está escondido não se
vê. Condição necessária à existência de toda a sociedade. As meninas de sociedade seriam mais fáceis
que as mulheres se fossem tão solicitadas como elas, e isso por duas razões: têm mais ilusões e a sua
curiosidade não está satisfeita. As mulheres foram na maioria dos casos tão mal iniciadas pelo marido
que não têm coragem para recomeçar imediatamente com outro. Eu, que vos falo, encontrei várias vezes
este obstáculo nas minhas tentativas de sedução.
No momento em que o professor Haddock acabava de expor estas desagradáveis opiniões, Mlle Eveline
entrou no salão e serviu o chá regularmente, com uma expressão de tédio que emprestava um encanto
oriental à sua beleza.
– Eu – disse Hipólito Ceres, fitando–a –, proclamo–me o defensor das donzelas.
"É um imbecil", pensou a rapariga.
Hipólito Ceres, que nunca tinha posto os pés fora do seu mundo político, eleitores e eleitos, achou o
salão de Mine Clarence muito distinto, a dona de casa requintada, a sua filha estranhamente bela;
tornou–se assíduo junto delas e fez a corte a uma e outra. Mine Clarence, a quem as atenções
sensibilizavam, achava–o agradável.
Eveline não lhe demonstrava nenhuma benevolência e tratava–o com uma altivez e desdéns que ele
tomava por maneiras aristocráticas e distintas, e admirava–a ainda mais por isso.
Este homem bem relacionado esforçava–se por lhe agradar e às vezes conseguia–o. Arranjava–lhe
bilhetes para as sessões importantes e camarotes na ópera. Forneceu a Mlle Clarence várias
oportunidades de se distinguir muito vantajosamente, e em particular numa festa campestre, que,
embora dada por um ministro, foi considerada realmente mundana e valeu à República o seu primeiro
êxito junto da sociedade elegante.
Nessa festa, Eveline, muito notada, atraiu nomeadamente a atenção de um jovem diplomata de nome
Roger Lambilly, que, supondo que ela pertencia a um mundo fácil, lhe marcou encontro na sua casa de
solteiro. Ela achava–o belo e julgava–o rico: foi a casa dele. Um pouco emocionada, quase perturbada,
pouco faltou para ser vítima da sua coragem e só evitou a derrota mediante uma manobra ofensiva,
audaciosamente executada. Foi a maior loucura da sua vida de rapariga.
Tendo entrado na intimidade dos ministros e do presidente, Eveline contribuía com afetações de
aristocracia e piedade que lhe granjearam a simpatia das altas personalidades da república anticlerical e
democrática. O senhor Hipólito Ceres, vendo que ela triunfava e o honrava, amava–a ainda mais, ficou
perdidamente apaixonado.
Então, ela começou, apesar de tudo, a observá–lo com interesse, curiosa de ver se a coisa aumentava.
Parecia–lhe sem elegância, sem delicadeza, mal–educado, mas ativo, expedito, cheio de recursos e não
muito enfadonho. Continuou a rir–se dele, mas também se preocupava.

Um dia quis pôr os seus sentimentos à prova.
Era em período eleitoral, quando ele solicitava, como sói dizer–se, a renovação do seu mandato. Tinha
um concorrente pouco perigoso, a princípio, sem meios oratórios, mas rico, e que ganhava, dizia–se,
votos todos os dias. Hipólito Ceres, banindo do seu espírito tanto a bronca tranquilidade como os loucos
alarmes, redobrava de vigilância. O seu principal meio de acção eram as reuniões públicas, onde
demolia, à força de pulmões, a candidatura rival. O seu grupo de apoio realizava grandes sessões
contestatárias ao sábado à noite e ao domingo, às três horas em ponto da tarde. Ora, um domingo, tendo
ido visitar as senhoras Clarence, encontrou a Eveline sozinha no salão. Estava a conversar com ela há
vinte e cinco minutos quando, olhando para o relógio, viu que eram três horas menos um quarto. A
rapariga mostrou–se amável, irritante, graciosa, inquietante, cheia de promessas. Ceres, enternecido
levantou–se.
– Só mais um momento! – disse–lhe ela, num tom premente e suave que o fez cair de novo na cadeira.
Demonstrou–lhe interesse, abandono, curiosidade, fraqueza. Ele corou, – empalideceu e, uma vez mais,
levantou–se.
Então, para o reter, fitou–o com uns olhos cujo cinzento se tornava turvo e aguado, e, de peito
palpitante, não voltou a falar. Vencido, perdido, aniquilado, ele caiu–lhe aos pés; depois, tendo olhado
de novo para o relógio, deu um salto e praguejou horrivelmente:
– P...! Quatro horas menos cinco! Tenho de me pôr a andar. E correu sem perda de tempo para a escada.
A partir de então, ela sentiu por ele uma certa estima.

IV – O Casamento de um Homem Político


Ela não o amava muito, mas queria que ele a amasse. Por outro lado, era muito reservada, não só por
causa da sua pouca inclinação: com efeito, nas coisas do amor, há as que se fazem com indiferença, por
distração, por instinto de mulher, por costume e espírito tradicional, para experimentar o próprio poder e
descobrir com satisfação os seus efeitos. O motivo da sua prudência é que ela o sabia um "malandro",
capaz de se aproveitar das suas familiaridades e de em seguida lhas censurar grosseiramente, se ela não
as continuasse.
Dado que ele era, por profissão, anticlerical e livre–pensador, parecia–lhe bem afetar na sua presença
maneiras devotas, mostrar–se com devocionários forrados a marroquim vermelho, de grande formato,
como as Quinzenas da Páscoa da rainha Maria Leczinska e da delfina Maria Josefa; e punha–lhe
constantemente diante dos olhos as subscrições que recolhia com vista a assegurar o culto nacional de
Santa Orberose. Eveline não agia assim para o arreliar, por malícia, nem por espírito de contradição,
nem mesmo por petulância, embora tivesse alguma; afirmava–se, compunha uma atitude, engrandecia–
se e, para excitar a coragem do deputado, rodeava–se de religião, como Brunhild, para atrair Sigurd, se
envolvia em chamas. A sua audácia triunfou. Ele achou–a mais bela assim. O clericalismo era, aos seus
olhos, uma elegância.
Reeleito por enorme maioria, Ceres entrou numa Câmara que se inclinava mais para a esquerda, mais
avançada do que a anterior e, segundo parecia, mais ardente nas reformas. Tendo–se apercebido logo de
que um tão grande zelo escondia o medo da mudança e um desejo sincero de não fazer nada, prometeu a
si mesmo seguir uma política que correspondesse a essas aspirações. Logo no início da sessão,
pronunciou um grande discurso, habilmente concebido e bem ordenado, sobre a ideia de que todas as
reformas devem ser adiadas o mais possível; mostrou–se caloroso, mesmo fogoso, tendo por princípio
que o orador deve recomendar a moderação com extrema veemência.
Foi aclamado pela assembléia. Na tribuna presidencial, as senhoras Clarence escutavam–no; Eveline
estremecia contra vontade com o solene ruído dos aplausos. Na mesma bancada, a bela Mine Pensée
vibrava com aquela voz máscula.
Assim que desceu da tribuna, Hipólito Ceres, sem perder tempo a mudar de camisa, enquanto as mãos
batiam e se exigia a divulgação do discurso, foi cumprimentar as senhoras Clarence à tribuna. Eveline
descobriu nele a beleza do êxito e, enquanto, inclinado para as damas, ele recebia com ar modesto os
seus cumprimentos, a que se juntava um grão de fatuidade, ao mesmo tempo que enxugava o pescoço
com o lenço, a rapariga, lançando um olhar de soslaio para Mme Pensée, viu que ela respirava com
embriaguez o suor do herói, ofegante, de pálpebras pesadas, a cabeça atirada para trás, prestes a
desfalecer. Logo Eveline sorriu ternamente ao senhor Ceres.
O discurso do deputado de Alça teve grande repercussão. Nas "esferas" políticas foi considerado muito
hábil. "Acabamos de ouvir finalmente uma linguagem honesta", escrevia o grande jornal moderado. "É
todo um programa!", dizia–se na Câmara. Todos concordavam em reconhecer nele um enorme talento.
Hipólito Ceres impunha–se agora como chefe aos radicais, socialistas, anticlericais, que o nomearam
presidente do seu grupo, o mais importante da Câmara. Estava designado para uma pasta, na próxima
combinação ministerial.
Após uma longa hesitação, Eveline Clarence aceitou a ideia de se casar com o senhor Hipólito Ceres.
Para o seu gosto, o grande homem era um pouco vulgar; nada provava ainda que ele viesse a atingir um
dia o ponto em que a política proporciona grandes somas de dinheiro; mas ela entrava nos seus vinte e
sete anos e conhecia suficientemente a vida para saber que não se deve ser demasiado esquisito nem
mostrar–se demasiado exigente.
Hipólito Ceres era célebre. Hipólito Ceres era feliz. Tornara–se outro; a elegância das roupas e das
maneiras aumentava terrivelmente; usava luvas brancas com excesso; agora, homem de sociedade em
demasia, levava Eveline a pensar se não seria melhor sê–lo menos. Mme Clarence acolheu
favoravelmente o noivado, tranquila quanto ao futuro da filha e satisfeita por ter todas as quintas–feiras
flores para o seu salão.
A celebração do casamento, porém, causou dificuldades. Eveline era piedosa e queria receber a bênção
da Igreja. Hipólito Ceres, tolerante mas livre–pensador, só admitia o casamento civil. Houve a este
propósito discussões e até cenas pungentes. A última desenrolou–se no quarto da rapariga, quando
redigiam as cartas de convite.
Eveline declarou que, se não passasse pela Igreja, não se consideraria casada. Falou de romper com
tudo, ir para o estrangeiro com a mãe ou retirar–se para um convento.
Depois fez–se terna, fraca, suplicante; gemeu. E tudo gemia com ela no seu quarto virginal, a
caldeirinha de água benta e o ramo de buxo por cima da cama branca, os livros de devoção na pequena
estante e, no armário do fogão, a estatueta branca e azul de Santa Orberose, acorrentando o dragão da
Capadócia. Hipólito Ceres estava enternecido, amolecido, derretido.
Bela na sua dor, os olhos brilhantes de lágrimas, os pulsos cingidos por um rosário de lápis–lazúli e
como acorrentada pela sua fé, lançou–se aos pés de Hipólito e abraçou–lhe os joelhos, exangue,
desgrenhada.
Ele quase cedeu; balbuciou:
– Um casamento religioso, um casamento na igreja, ainda poderá ser digerido pelos meus eleitores; mas
o meu grupo de apoio não o engolirá tão facilmente... Enfim, falar–lhes–ei... da tolerância, das
necessidades sociais... Todos eles mandam as filhas ao catecismo... Quanto à minha pasta, irra!, creio
bem, minha querida, que vamos afogá–la em água benta.
A estas palavras, ela levantou–se, grave, generosa, resignada, vencida por seu turno.
– Meu amigo, não insisto mais.
– Então, nada de casamento religioso! É melhor assim, muito melhor!
– Sim! Mas deixe–me tratar do caso. Vou tentar arranjar as coisas a contento de ambos.

Foi ter com o reverendo padre Douillard e expôs–lhe a situação. Mais do que esperava, ele mostrou–se
acomodatício e fácil.
– O seu esposo é um homem inteligente, um homem de ordem e razão: virá até nós. Você santificá–lo–
á; não foi em vão que Deus lhe concedeu a graça de uma esposa cristã. A Igreja nem sempre exige para
as suas bênçãos nupciais as pompas e o brilho das cerimônias. Agora, que é perseguida, a sombra das
criptas e os desvios das catacumbas convêm às suas festividades. Menina, quando tiver cumprido as
formalidades civis, venha aqui, à minha capela particular, em trajo de passeio, com o senhor Ceres;
casá–los–ei observando a mais absoluta discrição. Obterei do arcebispo as dispensas necessárias e todas
as facilidades no que respeita aos banhos, ao atestado de desobriga, etc.
Hipólito, embora achasse a combinação um tanto perigosa, aceitou, no fundo bastante lisonjeado:
– Irei de casaco – disse ele.
E foi de sobrecasaca, com luvas brancas e sapatos de verniz, e fez as genuflexões.
"Quando as pessoas são educadas!..."

V – O Gabinete Visire


O casal Ceres, de uma modéstia decente, instalou–se num assaz bonito apartamento de uma casa nova.
Ceres adorava a mulher com franqueza e tranquilidade, embora frequentemente retido pela comissão do
orçamento e trabalhando mais de três noites por semana no seu relatório sobre o orçamento dos
correios, de que queria fazer um monumento. Eveline achava–o "rude" e não lhe desagradava.
O pior da situação é que não tinham muito dinheiro; tinham até muito pouco. Os servidores da
República não enriquecem ao seu serviço tanto quanto se julga. Desde que o soberano já não existe para
dispensar favores, cada um apanha o que pode e as suas depredações, limitadas pelas depredações de
todos, ficam reduzidas a modestas proporções. Daí essa austeridade de costumes que se nota nos chefes
da democracia. Só podem enriquecer nos períodos de grandes negócios e são alvos então da inveja dos
colegas menos favorecidos. Hipólito Ceres: previa para breve um período de grandes negócios; era
daqueles que preparavam o seu advento; entretanto, suportava dignamente uma pobreza que Eveline
partilhava e com a qual sofria menos do que se poderia esperar. Estava em relações constantes com o
reverendo padre Douillard e frequentava a capela de Santa Orberose, onde encontrava uma sociedade
séria e pessoas capazes de lhe valerem.
Sabia escolhê–las e só dava a sua confiança àqueles que a mereciam. Tinha adquirido experiência desde
os seus passeios de automóvel com o visconde Cléna e, sobretudo, compenetrara–se do valor de uma
mulher casada.
O deputado começou por inquietar–se com essas práticas piedosas que os pequenos jornais
demagógicos escarneciam; mas depressa se tranquilizou ao ver à sua volta todos os chefes da
democracia aproximarem–se alegremente da aristocracia e da Igreja.
Estava–se num desses períodos (que se repetiam frequentemente) em que as pessoas se apercebiam de
que tinham ido longe de mais. Hipólito Ceres reconhecia–o moderadamente.
A sua política não era uma política de perseguição, mas uma política de tolerância. Tinha exposto as
bases no seu magnífico discurso sobre a preparação das reformas.
O Ministério era tido por demasiado avançado; apoiando projetos considerados perigosos para o capital,
tinha contra si as grandes companhias financeiras e, por conseguinte, os jornais de todas as opiniões.
Vendo o perigo aumentar, o gabinete abandonou os seus projetos, o seu programa, as suas opiniões, mas
tarde de mais: um novo Governo estava pronto, a uma pergunta insidiosa de Paulo Visire, logo
transformada em interpelação, e um belíssimo discurso de Hipólito Ceres, caiu.
O presidente da República escolheu para formar um novo gabinete esse mesmo Paulo Visire, que, ainda
muito novo, tinha sido duas vezes ministro, homem encantador, frequentador das salas de dança e dos
bastidores dos teatros, muito artista, muito mundano, espirituoso, de uma inteligência e de uma
vivacidade maravilhosas. Tendo Paulo Visire constituído um Ministério destinado a marcar um tempo
de espera e a tranquilizar a opinião alarmada, Hipólito Ceres foi convidado a fazer parte.
Os novos ministros, todos pertencentes aos grupos da maioria, representavam as opiniões mais diversas
e opostas, mas eram todos moderados e resolutamente conservadores{10}.
Manteve–se o ministro dos Negócios Estrangeiros do antigo gabinete, homenzinho escuro de nome
Crombille, que trabalhava catorze horas por dia no delírio das grandezas, silencioso, escondendo–se dos
seus próprios agentes diplomáticos, terrivelmente inquietante, sem inquietar ninguém, dado que a
imprevidência dos povos é infinita e a dos governantes legal.
Para as Obras Públicas foi um socialista, Fortunato Lapersonne. Era então um dos costumes mais
solenes, mais severos, mais rigorosos e, atrevo–me a dizê–lo, mais terríveis e mais cruéis da política pôr
num Ministério destinado a combater o socialismo um membro do Partido Socialista, a fim de que os
inimigos da fortuna e da propriedade tivessem a vergonha e a amargura de serem atacados por um dos
seus e não pudessem reunir–se uns com os outros sem procurarem com o olhar aquele que os castigaria
no dia seguinte. Só uma ignorância profunda da alma humana permitiria acreditar que seria difícil
encontrar um socialista para ocupar essas funções.
O cidadão Fortunato Lapersonne entrou no gabinete Visire por vontade própria, sem qualquer
constrangimento; e teve aprovadores mesmo entre os seus antigos amigos, tal era o prestígio que o
poder exercia entre os Pinguins!
O general Bonacheirão recebeu a pasta da Guerra; passava por ser um dos mais inteligentes generais do
exército; mas deixava–se dominar por uma mulher galante, a senhora Baronesa de Bildermann, que,
bela ainda na idade das intrigas, entrara ao serviço de uma potência vizinha e inimiga.
O novo ministro da Marinha, o respeitável almirante Viveiro das Moreias, reconhecido geralmente
como excelente marinheiro, revelava uma piedade que seria considerada excessiva num Ministério anti–
clerical, se a República laica não tivesse reconhecido a religião de utilidade marítima. Seguindo as
instruções do reverendo padre Douillard, seu diretor espiritual, o respeitável almirante Viveiro das
Moreias consagrou as tripulações da frota a Santa Orberose e fez compor por bardos cristãos cânticos
em honra da virgem de Alça que substituíram o hino nacional nas charangas da marinha de guerra.
O Ministério Visire declarou–se nitidamente anticlerical, mas respeitador das crenças; afirmou–se
prudentemente reformista. Paulo Visire e os seus colaboradores queriam reformas e era para não
comprometer as reformas que as não propunham; com efeito, eram homens verdadeiramente políticos e
sabiam que as reformas ficam comprometidas logo que são propostas. Este Governo foi bem acolhido,
tranquilizou a gente honesta e fez subir os rendimentos.
Anunciou a encomenda de quatro couraçados, perseguições aos socialistas e manifestou a sua intenção
formal de recusar qualquer imposto inquisitorial sobre os lucros.
A escolha do ministro das Finanças, Terrasson, foi particularmente aprovada pela grande imprensa.
Terrasson, velho ministro famoso pelas suas operações na Bolsa, autorizava todas as esperanças dos
financeiros e fazia prever um período de grandes negócios. Depressa se encheriam com o leite da
riqueza as três mamas das nações modernas: o açambarcamento, o agiotismo e a especulação
fraudulenta. Já se falava de empresas remotas, de colonização, e os mais ousados lançavam nos jornais
um projeto de protetorado militar e financeiro sobre a Nigrícia.
Sem ter mostrado ainda quanto valia, Hipólito Ceres era considerado um homem de valor; os homens de
negócios estimavam–no. Felicitavam–no de todas as partes por ter rompido com os partidos extremistas,
os homens perigosos, por se mostrar consciente das responsabilidades governamentais.
A senhora Ceres era a única a brilhar entre todas as damas do Ministério. Crombille secava no celibato;
Paulo Visire fizera um casamento rico, no grande comércio do Norte, com uma pessoa distinta, Mlle
Blampignon, estimada, simples, sempre doente, que por causa da saúde passava a maior parte do tempo
em casa da mãe, no fundo de uma remota província. As outras ministras não tinham nascido para
encantar os olhares; e sorria–se ao ler que Mine Labillette tinha aparecido no baile da Presidência com
um chapéu de aves–do–paraíso. A senhora almiranta Viveiro das Moreias, de boa família, mais larga do
que alta, de rosto sanguíneo, voz de bufarinheiro, fazia as suas próprias compras. A generala
Bonacheirão, esguia, seca, borbulhenta, insaciável de jovens oficiais, perdida por deboches e crimes, só
conseguia a consideração à força de fealdade e insolência.
A senhora Ceres era o encanto do Ministério e a sua pessoa respeitável. Jovem, bela, irrepreensível,
aliava, para seduzir a elite social e as multidões populares, à elegância do vestuário a pureza do sorriso.
Os seus salões foram invadidos pela grande finança judaica. Organizava os mais elegantes garden–
parties da República; os jornais descreviam as suas toilettes e os grandes costureiros não lhas faziam
pagar. Ia à missa, protegia contra a animosidade popular a capela de Santa Orberose e fazia nascer nos
corações aristocráticos a esperança de uma nova concordata.
Cabelos de ouro, pupilas de um cinzento de linho, flexível, esbelta, de cintura redonda, era realmente
bonita; gozava de excelente reputação, que manteria intacta mesmo em flagrante delito, a tal ponto se
mostrava sagaz, calma e senhora de si mesma.
A sessão acabou com uma vitória do gabinete, que rejeitou, com os aplausos quase unânimes da
Câmara, a proposta de um imposto inquisitorial, e com um triunfo da senhora Ceres, que organizou
festas para três reis de passagem.

VI – O Sofá da Favorita


O presidente do Conselho convidou, durante as férias, o senhor e a senhora Ceres a passarem quinze
dias na montanha, num pequeno castelo que alugara para a estação e que habitava sozinho. A saúde
francamente deplorável da senhora Paulo Visire não lhe permitia acompanhar o marido: ficava com os
pais no fundo de uma província setentrional.
O castelo tinha pertencido à amante de um dos últimos reis de Alça; o salão conservava os móveis
antigos e ainda aí se via o sofá da favorita. A região era encantadora; uma bonita ribeira azul, a Aiselle,
corria junto à colina que o castelo dominava. Hipólito Ceres gostava de pescar à linha; descobria,
enquanto se entregava a esta ocupação monótona, as suas melhores combinações parlamentares e as
mais felizes inspirações oratórias. A truta abundava na Aiselle; pescava–a de manhã à noite, num barco
que o presidente do Conselho se apressara a pôr à sua disposição.
Entretanto, Eveline e Paulo Visire passeavam pelo jardim, conversavam no salão. Eveline, embora
reconhecesse a sedução que ele exercia nas mulheres, ainda não lhe tinha revelado senão uma garridice
intermitente e superficial, sem intenções profundas e reservadas. Ele era um perito e sabia–a bonita; a
Câmara e a ópera ocupavam–lhe todos os ócios, mas, no pequeno castelo, os olhos de um cinzento de
linho e a cintura redonda de Eveline valorizavam–se aos seus olhos. Um dia em que Hipólito Ceres
pescava na Aiselle, fê–la sentar–se junto dele no sofá da favorita. Através das fendas dos cortinados,
que a protegiam do calor e da luz de um dia ardente, longos raios dourados atingiam Eveline como as
flechas de um Amor escondido. Por baixo da musselina branca, todas as suas formas, simultaneamente
arredondadas e afusadas, lhe desenhavam a graça e a juventude. Tinha a pele húmida e fresca e cheirava
a feno ceifado. Paulo Visire mostrou–se tal como o momento o exigia; ela não se recusou aos jogos de
acaso e sociedade. Pensara que aquilo seria nada ou pouca coisa: enganara–se.
"Havia", diz a célebre balada alemã, "na praça da cidade, do lado do sol, contra a parede onde trepava a
glicínia, uma bonita caixa de correio, azul como os ocianos, sorridente e tranquila.
"Todo o dia chegavam até ela, nos seus grossos sapatos, pequenos comerciantes, ricos rendeiros,
burgueses, o cobrador e os polícias, que lhe metiam cartas de negócios, faturas, notificações e
intimações para pagamento dos impostos, relatórios aos juízes do tribunal e convocações de recrutas:
ela continuava sorridente e tranquila.
"Alegres ou preocupados, dirigiam–se para ela jornaleiros ou moços de lavoura, criadas e amas,
empregados de escritório, donas de casa com o filhinho nos braços; metiam–lhe participações de
nascimentos, casamentos e morte, cartas de noivos e noivas, cartas de esposos e esposas, de mães para
os filhos, de filhos para as mães: ela continuava sorridente e tranquila.
"Ao crepúsculo, rapazes e raparigas deslizavam furtivamente até ela e metiam–lhe cartas de amor, umas
molhadas de lágrimas que faziam esborratar a tinta, outras com um pequeno círculo para indicar o sítio
do beijo, e todas muito compridas: ela continuava sorridente e tranquila.
"Os ricos negociantes chegavam pessoalmente, por prudência, à hora da tiragem, e metiam–lhe cartas
registadas, cartas com cinco lacres vermelhos, cheias de notas de banco ou cheques sobre os grandes
estabelecimentos financeiros do Império: ela continuava sorridente e tranquila.
"Mas um dia, Gaspar, que ela nunca vira e não conhecia nem de Eva nem de Adão, meteu–lhe um
bilhete de que não se sabia nada, a não ser que estava dobrado em forma de acento circunflexo. Logo a
bonita caixa do correio perdeu as estribeiras. Desde então, não pára quieta: percorre as ruas, os campos,
os bosques; cingida de hera e coroada de rosas. Anda continuamente por montes e vales; o guarda
florestal surpreende–a nos trigais, nos braços de Gaspar, e a beijá–lo na boca."
Paulo Visire readquirira toda a sua liberdade de espírito. Eveline continuava estendida no divã da
favorita, num delicioso espanto.
O reverendo padre Douillard, excelente em teologia moral, e que, no meio da decadência da Igreja,
mantinha os princípios, ensinava com razão, de acordo com a doutrina dos Doutores, que, se uma
mulher comete um grande pecado ao entregar–se por dinheiro, comete um muito maior ao entregar–se
por nada; com efeito, no primeiro caso, atua para conservar a vida e às vezes não só tem desculpa, mas
perdão, e é digna da graça divina, visto que, enfim, Deus proíbe o suicídio e não quer que as suas
criaturas, que são os seus templos, se destruam a si mesmas; por outro lado, entregando–se para viver,
continua humilde e não sente prazer, o que diminui o pecado. Mas uma mulher que se entrega por nada
peca com volúpia, exulta na falta. O orgulho e as delícias de que reveste o seu crime aumentam–lhe o
peso mortal.
O exemplo da senhora Hipólito Ceres revelaria a profundidade destas verdades morais. Descobriu que
tinha sentidos; até aí não se apercebera disso; bastou um segundo para chegar a essa descoberta, para
lhe transformar a alma e perturbar a vida. A princípio foi como um encantamento por ter aprendido a
conhecer–se. Na filosofia antiga não há um preceito cujo cumprimento proporcione prazer ao moral,
dado que ninguém sente muita satisfação em conhecer a própria alma; o mesmo não se passa com a
carne, onde nos podem ser reveladas fontes de volúpia. Ela dedicou imediatamente ao seu revelador
uma gratidão igual à dádiva e concluiu que aquele que tinha descoberto os abismos celestes era o único
a possuir a sua chave. Era um erro e não podia encontrar outros que tivessem também a chave de ouro?
É difícil dizê–lo; e o professor Haddock, quando os factos foram divulgados (o que não tardou, como
vamos ver), tratou disso sob o ponto de vista experimental, numa revista científica e especializada, e
concluiu que as probabilidades que tinha a senhora C... de encontrar a exata equivalência do senhor V.,
eram nas proporções de 3,05 para 975 008. O que equivale a dizer que não o encontraria. Sem dúvida
que ela teve a intuição disso, dado que se enamorou perdidamente.
Relatei estes fatos com todas as circunstâncias que me parecem dever chamar a atenção dos espíritos
meditativos e filosóficos. O sofá da favorita é digno da majestade da história; aí se decidiram os
destinos de um grande povo; que digo?..., aí se cumpriu um acto cuja retumbância se estenderia às
nações vizinhas, amigas ou inimigas, e a toda a humanidade. Com demasiada frequência, os
acontecimentos desta natureza, embora de consequências infinitas, escapam aos espíritos superficiais, às
almas ligeiras que assumem inconsideradamente a tarefa de escrever a história. Por isso, as forças
secretas dos acontecimentos mantêm–se ocultas para nós, a queda dos impérios, a transmissão dos
poderes espantam–nos e são–nos incompreensíveis, por não termos descoberto o ponto imperceptível,
tocado a roda secreta que, posta em movimento, tudo abalou e tudo derrubou.
O autor desta grande história sabe melhor do que ninguém quais são os seus defeitos e as suas
insuficiências, mas pode garantir que manteve sempre a moderação, a seriedade, a austeridade que
convém à exposição dos negócios de Estado, e nunca se afastou da gravidade que exige o relato das
ações humanas.

VII – As Primeiras Consequências


Quando Eveline confiou a Paulo Visire que nunca tinha sentido nada semelhante, ele não acreditou.
Tinha prática das mulheres e sabia que dizem de bom grado essas coisas aos homens para os enamorar
ainda mais. Assim, a sua experiência, como acontece por vezes, fê–lo desconhecer a verdade. Incrédulo,
mas apesar de tudo lisonjeado, em breve sentiu por ela amor e qualquer coisa mais. Esta situação
pareceu de começo favorável às suas faculdades intelectuais; Visire pronunciou na capital do seu distrito
um discurso cheio de graça, brilhante, feliz, que foi considerado a sua obra–prima.
O regresso foi sereno; apenas, na Câmara, alguns rancores isolados, algumas ambições ainda tímidas
levantaram a cabeça. Um sorriso do presidente do Conselho bastou para dissipar essas sombras. Ela e
ele viam–se duas vezes por dia e escreviam–se no intervalo. Ele estava habituado às ligações íntimas,
era sagaz e sabia dissimular; mas Eveline revelava uma imprudência louca; mostrava–se com ele nos
salões, no teatro, na Câmara e nas embaixadas; ostentava o seu amor no rosto, em toda a sua pessoa, nos
úmidos clarões do olhar, no sorriso lânguido dos lábios, na palpitação do seio, na moleza das ancas, em
toda a sua beleza avivada, irritada, apaixonada. Depressa o país inteiro soube da sua ligação; as cortes
estrangeiras estavam ao corrente; apenas o presidente da República e o marido de Eveline continuavam
a ignorá–la.
O presidente soube–a no campo através de um relatório de polícia metido, não se sabe como, na sua
mala.
Hipólito Ceres, sem ser nem muito delicado nem muito perspicaz, notava que qualquer coisa tinha
mudado no seu lar: Eveline, que há pouco ainda se interessava pelos seus problemas e lhe demonstrava,
se não ternura, pelo menos uma boa amizade, agora só lhe mostrava indiferença e repulsa.
Sempre tivera períodos de ausência, devido às visitas prolongadas à obra de Santa Orberose; agora,
saindo logo de manhã e passando todo o dia fora, sentava–se à mesa às nove horas da noite, com uma
cara de sonâmbula. O marido achava isso ridículo; contudo, talvez nunca viesse a saber; uma ignorância
profunda das mulheres, uma densa confiança no seu mérito e na sua fortuna talvez lhe tivessem
continuado a ocultar a verdade, se os dois amantes, por assim dizer, não o houvessem forçado a
descobri–la.
Quando Paulo Visire ia a casa de Eveline e a encontrava sozinha, diziam, beijando–se: "Aqui não! Aqui
não!" e logo afetavam um para com o outro uma extrema reserva.
Era a sua regra inviolável. Ora, um dia, Paulo Visire dirigiu–se a casa do seu colega Ceres, com quem
tinha marcado um encontro; foi Eveline que o recebeu: o ministro dos Correios estava retido no "seio"
de uma comissão.
"Aqui não!", disseram, sorrindo, os amantes.
Disseram–no boca com boca, entre abraços, enlaces e genuflexões. Diziam–no ainda quando Hipólito
Ceres entrou no salão.
Paulo Visire recuperou a presença de espírito, declarou à senhora Ceres que renunciava a tirar–lhe o
argueiro que tinha no olho. Com esta atitude, não enganava o marido, mas protegia a saída.
Hipólito Ceres ficou aniquilado. A conduta de Eveline parecia–lhe incompreensível; perguntava–lhe os
motivos.
– Porquê?, porquê? – repetia sem cessar. – Porquê?
Ela negou tudo, não para o convencer, dado que os tinha visto, mas por comodidade e bom gosto e para
evitar as explicações penosas.
Hipólito Ceres sofria todas as torturas do ciúme. Confessava–o a si mesmo; dizia: "Sou um homem
forte; tenho uma couraça; mas a ferida é por dentro: é no coração".
E, voltando–se para a mulher, resplandecente de volúpia e bela no seu crime, contemplava–a
dolorosamente e dizia–lhe:
– Não o devias ter feito com ele.
E tinha razão. Eveline não devia ter amado no seio do Governo.
Sofria tanto que pegou no revólver, gritando: "Vou matá–lo!". Mas pensou que um ministro dos
Correios e Telégrafos não pode matar o presidente do Conselho e voltou a guardar o revólver na gaveta
da mesinha–de–cabeceira.

As semanas passavam sem que os seus sofrimentos se acalmassem.
Todas as manhãs afivelava por cima da ferida a sua couraça de homem forte e procurava no trabalho e
nas honras a paz que lhe faltava. Inaugurava todos os domingos bustos, estátuas, fontanários, poços
artesianos, hospitais, dispensários, vias férreas, canais, mercados, esgotos, arcos de triunfo, praças e
matadouros, e pronunciava discursos arrebatados. A sua ardente actividade devorava os arquivos; em
oito dias mudou catorze vezes a cor dos selos de correio. Entretanto, acometiam–no raivas de dor e fúria
que o enlouqueciam; durante dias inteiros, a razão abandonava–o. Se tivesse um emprego numa
administração privada, ter–se–ia notado logo; mas é muito mais difícil reconhecer a demência ou o
delírio na administração dos negócios de Estado. Nessa época, os funcionários do Governo formavam
associações e federações, no meio de uma efervescência que alarmava o Parlamento e a opinião; os
carteiros distinguiam–se entre todos pelo seu ardor sindicalista.
Hipólito Ceres deu a conhecer, por circular, que a sua ação era estritamente legal. No dia seguinte,
lançou uma segunda circular, que proibia como ilegal qualquer associação dos funcionários do Estado.
Demitiu cento e oitenta carteiros, reintegrou–os, censurou–os e gratificou–os. No Conselho de Ministros
estava sempre a ponto de explodir; apenas a presença do chefe do Estado o continha nos limites das
conveniências e, como não ousava atirar–se ao pescoço do seu rival, cumulava de invectivas, para se
aliviar, o chefe respeitado do exército, o general Bonacheirão, que não as ouvia, surdo e ocupado na
composição de versos para a senhora Baronesa de Bildermann.
Hipólito Ceres opunha–se indistintamente a tudo o que propunha o senhor Presidente do Conselho.
Enfim, estava louco. Só uma faculdade escapava ao desastre do seu espírito: restava–lhe o senso
parlamentar, o tato das maiorias; o conhecimento profundo dos grupos, a segurança das marcações de
ponto.

VIII – Novas Consequências


A sessão terminava na calma e o Ministério não descobria, nos bancos da maioria, nenhum sinal
funesto. Via–se, no entanto, através de certos artigos dos grandes jornais moderados, que as exigências
dos financeiros judeus e cristãos aumentavam todos os dias, que o patriotismo dos bancos reclamava
uma expedição civilizadora à Nigrícia e que o monopólio do aço, cheio de ardor em proteger as nossas
costas e defender as nossas colónias, exigia freneticamente couraçados e mais couraçados.
Corriam rumores de guerra: esses rumores apareciam todos os anos com a regularidade dos ventos
alísios; as pessoas sérias não lhes davam ouvidos e o Governo podia deixá–los extinguir–se por si
mesmos, a não ser que viessem a engrossar e a expandir–se, porque então o país ficaria alarmado. Os
financeiros não queriam senão guerras coloniais; o povo não queria guerra de espécie nenhuma; gostava
que o Governo mostrasse altivez, e até arrogância; mas, à mínima suspeita de que se preparava um
conflito europeu, a sua violenta emoção depressa se apoderaria da Câmara. Paulo Visire não estava
inquieto; a situação europeia, na sua opinião, era tranquilizadora.
Apenas estava irritado com o silêncio maníaco do seu ministro dos Negócios Estrangeiros. Este gnomo
chegava ao Conselho com uma pasta maior do que ele, a abarrotar de documentos, não dizia nada,
recusava–se a responder a todas as perguntas, mesmo às que lhe fazia o respeitável presidente da
República, e, farto de um trabalho pertinaz, adormecia por instantes na sua poltrona e só se lhe via a
poupazinha negra por cima da coberta verde da mesa.
Entretanto, Hipólito Ceres voltava a ser um homem forte; entregava–se, na companhia do seu colega
Lapersonne, a frequentes pândegas com coristas; viam–nos entrar, de noite, em cabarés em voga, no
meio de mulheres encapuzadas, que eles dominavam com a sua grande estatura e os seus chapéus
novos, e em breve se contaram entre as figuras mais simpáticas da doce vida. Divertiam–se; mas
sofriam. Fortunato Lapersonne tinha também a sua ferida por baixo da couraça; a mulher, uma jovem
modista que ele roubara a um marquês, fora viver com um motorista. Continuava a amá–la; não se
consolava com a sua perda e, muitas vezes, num gabinete particular, no meio das raparigas que riam
enquanto comiam camarões, os dois ministros, trocando um olhar cheio das suas dores, enxugavam uma
lágrima.
Hipólito Ceres, embora ferido no coração, não se deixava abater. Tinha jurado vingar–se.
A senhora Paulo Visire, que, devido à sua deplorável saúde, continuava em casa dos pais, no fundo de
uma triste província, recebeu uma carta anônima, especificando que o senhor Paulo Visire, que casara
sem um tostão, comia com uma mulher casada, E... C... (descubra!), o dote da senhora Paulo, dava a
essa mulher automóveis de trinta mil francos, colares de pérolas de oitenta mil e corria para a ruína, a
desonra e o aniquilamento. A senhora Paulo Visire leu, teve um ataque de nervos e estendeu a carta ao
seu pai.
– Vou esfregar as orelhas ao teu marido – disse o senhor Blampignon –; é um malandro que, se não nos
acautelarmos, te deixará na miséria. Apesar de ser presidente do Conselho, não me mete medo.
Ao sair do comboio, o senhor Blampignon apresentou–se no Ministério do Interior e foi recebido
imediatamente. Entrou furioso no gabinete do presidente.
– Preciso de lhe falar, senhor! E brandiu a carta anônima.
Paulo Visire acolheu–o com um sorriso.
– Seja bem–vindo, meu caro pai. Ia escrever–lhe... Sim, para lhe anunciar a sua nomeação para o grau
de oficial da Legião de Honra. Mandei assinar o alvará esta manhã.
O senhor Blampignon agradeceu profundamente ao genro e queimou no fogão a carta anônima.
De regresso à sua casa da província, encontrou a filha irritada e abatida.
– Pois bem, estive com o teu marido; é encantador. Simplesmente, não sabes prendê–lo.
Por essa altura, Hipólito Ceres soube por um jornaleco de escândalos (é sempre pelos jornais que os
ministros tomam conhecimento dos negócios de Estado) que o presidente do Conselho jantava todas as
noites em casa de Mlle Lysiane, das Folies Drama tiques, cujo encanto parecia tê–lo vivamente
impressionado. A partir de então, Ceres experimentava um sombrio prazer em observar a sua mulher.
Ela entrava todas as noites muito atrasada, para jantar ou vestir–se, com um ar de fadiga feliz e a
serenidade do prazer consumado.
Pensando que ela não sabia nada, mandava–lhe bilhetes anônimos. Ela lia–os à mesa, na frente dele, e
ficava enlanguescida e sorridente.
Persuadiu–se então de que ela não ligava importância a esses avisos demasiado vagos e que, para a
inquietar, era preciso fornecer–lhe dados concretos, pô–la em condições de verificar a infidelidade e a
traição.
Tinha no Ministério agentes seguríssimos, encarregados de investigações secretas que interessavam à
defesa nacional e que precisamente vigiavam então espiões que uma potência vizinha e inimiga fizera
introduzir nos correios e telégrafos da República. O senhor Ceres ordenou–lhes que suspendessem as
investigações e descobrissem onde, quando e como o senhor Ministro do Interior se encontrava com
Mlle Lysiane. Os agentes cumpriram fielmente a sua missão e informaram o ministro de que tinham
surpreendido várias vezes o senhor Presidente do Conselho com uma mulher, mas que não era Mlle
Lysiane. Hipólito Ceres não lhes perguntou mais nada. Fez bem. Os amores de Paulo Visire e Lysiane
eram apenas um álibi imaginado por Paulo Visire, para satisfação de Eveline, importunada com a sua
glória e que suspirava pela sombra e o mistério.
Não eram seguidos unicamente pelos agentes do Ministério dos Correios: eram–no também pelos do
prefeito da Polícia e mesmo pelos do Ministério do Interior, que se disputavam o cuidado de os
proteger; eram–no ainda pelos de várias agências realistas, imperialistas e clericais, pelos de oito ou dez
serviços de chantagem, por alguns polícias amadores, por uma multidão de repórteres e por uma chusma
de fotógrafos, que, onde quer que abrigassem os seus amores errantes, grandes hotéis, pequenos hotéis,
câmaras municipais, casas de campo, apartamentos privados, castelos, museus, palácios, bordéis,
apareciam à sua chegada e os espiavam na rua, nas casas circunvizinhas, nas árvores, em cima das
paredes, nas escadas, nos patamares, nos telhados, nos apartamentos contíguos, nas chaminés. O
ministro e a sua amiga viam com espanto, em redor do quarto de dormir, as verrumas furar as portas e
as janelas, os berbequins fazer buracos nas paredes. Tinha–se conseguido, à falta de melhor, um
negativo da senhora Ceres em camisa, a abotoar as botinas.
Paulo Visire, enervado, irritado, perdia por momentos o bom humor e a compostura; chegava furioso ao
Conselho e cobria também de invectivas o general Bonacheirão, corajoso na linha de fogo, mas que
deixava que a indisciplina se estabelecesse nos exércitos, e enchia de sarcasmos também o venerável
almirante Viveiro das Moreias, cujos navios se afundavam sem causa aparente.
Fortunato Lapersonne escutava–o, trocista, de olhos muito redondos, e resmungava entre dentes:
– Não lhe basta tirar a mulher a Hipólito, tira–lhe também os tiques.
Estes impropérios, conhecidos pelas indiscrições dos ministros e pelas queixas dos dois velhos chefes,
que anunciavam que atirariam a sua pasta à cara daquele safardana e que não o faziam, longe de
causarem dano ao feliz chefe do gabinete, produziam o melhor efeito sobre o Parlamento e a opinião,
que viam nisso as marcas de uma viva solicitude para com o exército & a marinha nacionais. O
presidente do Conselho recolheu a aprovação geral.
Às felicitações dos grupos e das personalidades notáveis, respondia com firme simplicidade:
– São os meus princípios!
E mandou meter na cadeia sete ou oito socialistas.
Encerrada a sessão, Paulo Visire, cansadíssimo, foi para águas. Hipólito Ceres recusou–se a deixar o seu
Ministério, onde se agitava tumultuosamente o sindicato das meninas telefonistas. Fulminou–as com
inaudita violência, porquanto se tinha tornado misógino. Ao domingo, ia para os subúrbios pescar à
linha com o seu colega Lapersonne, que levava o seu chapéu de forma, que não largava desde que se
tornara ministro. E os dois, esquecendo os peixes, lamentavam–se da inconstância das mulheres e
confundiam os seus desgostos.
Hipólito continuava a gostar de Eveline e a sofrer. Contudo, a esperança voltara–lhe ao coração.
Mantinha–a separada do amante e, pensando poder recuperá–la, envidou todos os esforços, usou de toda
a sua habilidade, mostrou–se sincero, cortês, afectuoso, dedicado, discreto; o coração ensinava–lhe
todas as delicadezas. Dizia à infiel coisas encantadoras e comoventes e, para a enternecer, confessava–
lhe tudo o que tinha sofrido.
Apertando o cinto contra o ventre, dizia–lhe:
– Vê como emagreci.
Prometia–lhe tudo o que pensava que podia lisonjear uma mulher, festas campestres, chapéus, jóias.
Por vezes, julgava tê–la comovido. Ela já não lhe mostrava uma fisionomia insolentemente feliz;
separada de Paulo, a sua tristeza tingia–se de doçura; mas, sempre que ele fazia um gesto para a
reconquistar, recusava–se, feroz e sombria, cingida pela sua falta como por uma cintura de ouro.
Ele não se cansava, fazia–se humilde, suplicante, digno de lástima. Um dia foi ter com Lapersonne e
disse–lhe, com lágrimas nos olhos:
– Fala–lhe tu!
Lapersonne desculpou–se, não considerando a sua intervenção eficaz, mas deu conselhos ao amigo.
– Dá–lhe a entender que a menosprezas, que amas outra, e ela voltará para ti.
Hipólito, tentando este meio, mandou publicar nos jornais que o encontravam a toda a hora em casa de
Mlle Guinaud, da ópera. Regressava tarde ao lar ou não regressava; fingia, diante de Eveline, as
aparências de uma alegria interior impossível de conter; durante o jantar, tirava do bolso uma carta
perfumada e simulava ler deliciado e os seus lábios pareciam beijar, num sonho, lábios invisíveis. Não
adiantou. Eveline nem sequer se apercebia desta manobra. Insensível a tudo o que a rodeava, só saía da
sua letargia para pedir alguns luíses ao marido; e, se ele não lhos dava, lançava–lhe um olhar de repulsa,
disposta a exprobrar–lhe a vergonha que ela lhe fazia passar perante toda a gente. Desde que começara a
amar, gastava muito em roupas; precisava de dinheiro e só o marido lho podia dar: era fiel.
Ele perdeu a paciência, enraiveceu–se, ameaçou–a com o revólver. Um dia, disse na frente dela a Mme
Clarence:
– Felicito–a, minha senhora; educou a sua filha como uma rameira.
– Leve–me consigo, mamã – pediu Eveline. – Quero divorciar–me!
Ele amava–a mais ardentemente do que nunca.
Na sua raiva ciumenta, suspeitando, não sem verossimilhança, que ela mandava e recebia cartas, jurou
interceptá–las, restabeleceu o gabinete negro, lançou a perturbação nas correspondências privadas,
suspendeu as operações da Bolsa, fez esquecer as entrevistas amorosas, provocou ruínas, contrariou
paixões, causou suicídios. A imprensa independente acolheu as queixas do público e defendeu–as com
toda a indignação. Para justificar estas medidas arbitrárias, os jornais ministeriais falaram, por palavras
encobertas, de conjura, de perigo público, e deram a entender que se tratava de uma conspiração
monárquica. Folhas menos bem informadas deram informações mais precisas, anunciaram a apreensão
de cinquenta mil espingardas e o desembarque do príncipe Crucho.
A emoção aumentava no país; os órgãos republicanos exigiam a convocação imediata das Câmaras.
Paulo Visire regressou a Paris, reuniu os colegas, procedeu a um importante conselho de Gabinete e fez
saber pelas suas agências que tinha sido efectivamente urdida uma conjura contra a representação
nacional, que o Presidente do Conselho a controlava e tinha sido instaurado um inquérito judicial.
Ordenou imediatamente a prisão de trinta socialistas e, enquanto o país inteiro o aclamava como um
salvador, conduzia furtivamente Eveline para um pequeno hotel, perto da estação do Norte, onde
ficaram até à noite. Depois da sua partida, a criada do hotel, ao mudar os lençóis da cama, viu sete
pequenas cruzes traçadas com um gancho de cabelo, perto da cabeceira, na parede da alcova.
Foi tudo o que Hipólito Ceres conseguiu como prêmio dos seus esforços.

IX – As Ùltimas Consequências


O ciúme é uma virtude das democracias que as protege contra os tiranos. Os deputados começavam a
invejar a chave de ouro do presidente do Conselho. Há um ano que o seu domínio sobre a bela senhora
Ceres era conhecido por todo o universo; a província, onde as notícias e as modas só chegam após uma
revolução completa da Terra em redor do Sol, tomava finalmente conhecimento dos amores ilegítimos
do Gabinete. A província conserva costumes austeros; as mulheres são mais virtuosas do que as da
capital. Alegam–se diversas razões: a educação, o exemplo, a simplicidade da vida. O professor
Haddock pretende que a sua virtude se deve exclusivamente ao calçado de tacão baixo. "Uma mulher",
diz ele num sábio artigo da Revista Antropológica, "uma mulher não produz num homem civilizado
uma sensação nitidamente erótica senão quando o seu pé faz com o chão um ângulo de vinte e cinco
graus. Se o ângulo for de trinta e cinco graus, a impressão erótica que se desprende do sujeito agudiza–
se. Com efeito, da posição dos pés no chão depende, na posição de pé, a situação respectiva das
diferentes partes do corpo e, nomeadamente, da bacia, assim como as relações recíprocas e o jogo dos
rins e das massas musculares que guarnecem posterior e superiormente a coxa.
Ora, como todo o homem civilizado sofre de perversão genésica e não atribui uma ideia de volúpia
senão às formas femininas (pelo menos na posição de pé) dispostas nas condições de volume e
equilíbrio comandadas pela inclinação do pé que acabamos de determinar, resulta daí que as senhoras da
província, que usam tacões baixos, são pouco requestadas (pelo menos na posição de pé) e conservam
facilmente a virtude." Estas conclusões não foram geralmente adoptadas. Objetou–se que, na própria
capital, sob a influência das modas inglesas e americanas, o uso dos tacões baixos introduziu–se sem
provocar os efeitos assinalados pelo sábio professor; aliás, a diferença que se pretende estabelecer entre
os costumes da metrópole e os da província é, talvez, ilusória e, se existe, deve–se aparentemente ao
facto de as grandes cidades oferecerem ao amor vantagens e facilidades que as pequenas não têm. Seja
como for, a província começou a murmurar contra o presidente do Conselho e a escandalizar–se.
Ainda não era um perigo, mas podia vir a sê–lo.
Por enquanto, o perigo não estava em nenhuma parte e estava em toda a parte. A maioria continuava
firme, mas os líderes tornavam–se exigentes e morosos. Talvez Hipólito
Ceres nunca tivesse sacrificado os seus interesses à vingança. Mas, pensando que podia doravante, sem
comprometer a sua própria fortuna, contrariar secretamente a de Paulo Visire, esforçava–se por criar,
com arte e medida, dificuldades e perigos ao chefe do Governo. Longe de igualar o seu rival pelo
talento, o saber e a autoridade, ultrapassava–o em habilidade nas manobras de bastidores. Os mais
argutos parlamentares atribuíam à sua abstenção as recentes fraquezas da maioria. Nas comissões,
falsamente imprudente, acolhia sem desfavor pedidos de créditos que sabia que o presidente do
Conselho não poderia subscrever. Um dia, a sua imperícia calculada provocou um brusco e violento
conflito entre o ministro do Interior e o relator do orçamento desse departamento. Então Ceres deteve–
se, aterrado. Teria sido perigoso para ele derrubar demasiado cedo o Ministério. O seu ódio engenhoso
encontrou uma saída por vias travessas. Paulo Visire tinha uma prima pobre e galante que usava o seu
nome. Ceres, lembrando–se a propósito dessa menina Céline Visire, lançou–a na doce vida,
proporcionou–lhe ligações com homens e mulheres estranhas e conseguiu–lhe contratos em cafés–
concertos. Em breve, instigada por ele, ela representou em Eldorados pantomimas unissexuais, no meio
de assuadas.

Numa noite de Verão, executou, num palco dos Campos Elísios, perante uma multidão tumultuosa,
danças obscenas, ao som de uma música endiabrada que se ouvia nos jardins onde o presidente de
República dava uma festa a alguns reis. O nome de Visire, associado a estes escândalos, cobria as
paredes da cidade, enchia os jornais, voava em folhas com vinhetas libertinas pelos cafés e os bailes,
explodia nas avenidas em letras de fogo.
Ninguém considerou o presidente do Conselho responsável pela indignidade da sua parente; mas fazia–
se uma má ideia da sua família e o prestígio do homem de Estado ficou diminuído.
Seguiu–se quase imediatamente um alerta assaz vivo. Um dia, na Câmara, a uma simples pergunta, o
ministro da Instrução Pública e dos Cultos, Labillette, que sofria do fígado e a quem as pretensões e as
intrigas do clero começavam a exasperar, ameaçou fechar a capela de Santa Orberose e falou sem
respeito da virgem nacional.
A direita ergueu–se em peso, indignada; a esquerda pareceu apoiar, contrariada, o temerário ministro.
Os chefes da maioria não estavam interessados em atacar um culto popular que rendia trinta milhões por
ano ao país: o mais moderado dos homens da direita, M. Bigourd, transformou a pergunta em
interpelação e pôs o Gabinete em perigo. Felizmente, o ministro das Obras Públicas, Fortunato
Lapersone, sempre consciente das obrigações do poder, soube reparar, na ausência do presidente do
Conselho, a imperícia e a inconveniência do seu colega dos Cultos. Subiu à tribuna para testemunhar o
respeito do Governo à celeste padroeira do país, consoladora de tantos males que a ciência se confessa
incapaz de aliviar.
Quando Paulo Visire, arrancado finalmente aos braços de Eveline, apareceu na Câmara, o Ministério
estava salvo; mas o presidente do Conselho viu–se obrigado a dar importantes satisfações à opinião das
classes dirigentes; propôs ao Parlamento a construção de seis couraçados e reconquistou assim as
simpatias do aço; voltou a garantir que o imposto de renda não seria obrigatório e mandou prender
dezoito socialistas.
Em breve se veria a braços com dificuldades mais temíveis. O chanceler do império vizinho, num
discurso sobre as relações externas do seu soberano, introduziu, no meio de exposições sumárias e
engenhosas e de opiniões profundas, uma alusão maligna às paixões amorosas em que se inspirava a
política de um grande país. Esta ferroada, acolhida com sorrisos pelo Parlamento imperial, não podia
senão irritar uma república suspeitosa. Despertou a suscetibilidade nacional, que censurou o ministro
enamorado; os deputados arranjaram um pretexto frívolo para testemunhar o seu descontentamento.
Acerca de um incidente ridículo: tendo uma subprefeita ido dançar ao Moulin–Rouge, a Câmara
obrigou o Ministério a empenhar a sua responsabilidade e por poucos votos não caiu. Na opinião geral,
nunca Paulo Visire se mostrara tão fraco, tão mole, tão sem brilho como nessa deplorável sessão.
Compreendeu que não conseguiria manter–se senão por um golpe de alta política e decidiu a expedição
da Nigrícia, reclamada pela alta finança, a grande indústria, e que garantia concessões de florestas
imensas a sociedades de capitalistas, um empréstimo de oito bilhões aos estabelecimentos de crédito,
promoções e condecorações aos oficiais de terra e mar. Surgiu um pretexto: uma injúria a vingar, uma fé
a recuperar. Seis couraçados, catorze cruzadores e dezoito transportes penetraram na foz do rio dos
Hipopótamos; seiscentas pirogas opuseram–se em vão ao desembarque das tropas. Os canhões do
almirante Viveiro das Moreias causaram um efeito fulminante sobre os negros, que ripostaram com
revoadas de flechas, e, apesar da sua coragem fanática, foram completamente derrotados. Esquentado
pelos jornais a soldo dos financeiros, o entusiasmo popular explodiu. Só alguns socialistas protestaram
contra esse empreendimento bárbaro, equívoco e perigoso; foram imediatamente presos.
No momento em que o Ministério, apoiado pela riqueza e caro agora aos simples, parecia inabalável,
Hipólito Ceres, iluminado pelo ódio, era o único a ver o perigo e, contemplando o seu rival com
sombria alegria, murmurava entre dentes:
"Está perdido, ó pirata!"

Enquanto o país se embriagava de glória e negócios, o império vizinho protestava contra a ocupação da
Nigrícia por uma potência europeia e esses protestos, sucedendo–se a intervalos cada vez mais curtos,
tornavam–se cada vez mais vivos. Os jornais da República azafamada dissimulavam todas as causas de
inquietação; mas Hipólito Ceres sentia a ameaça crescer e, resolvido finalmente a arriscar tudo para
perder o seu inimigo, mesmo a sorte do Ministério, trabalhava na sombra.
Encarregou homens da sua confiança de escreverem e inserirem nos jornais oficiosos artigos que,
parecendo exprimir o pensamento de Paulo Visire, atribuíam ao chefe do Governo intenções belicosas.
Ao mesmo tempo que despertavam um eco terrível no estrangeiro, esses artigos alarmavam a opinião de
um povo que amava os soldados, mas não amava a guerra. Interpelado sobre a política externa do
Governo, Paulo Visire fez uma declaração tranquilizadora, prometeu manter uma paz compatível com a
dignidade de uma grande nação; o ministro dos Negócios Estrangeiros, Crombille, leu uma declaração
inteiramente ininteligível, visto que estava redigida em linguagem diplomática; o Ministério obteve uma
forte maioria.
Mas os rumores de guerra não cessaram e, para evitar uma nova e perigosa interpelação, o presidente do
Conselho distribuiu pelos deputados oitenta mil hectares de florestas na Nigrícia e mandou prender
catorze socialistas. Hipólito Ceres vagueava pelos corredores, sombrio, e confiava aos deputados do seu
grupo que se esforçava por fazer prevalecer no Conselho uma política pacífica e que esperava ser bem
sucedido.
De dia para dia, os sinistros rumores aumentavam, penetravam no público, semeavam o mal–estar e a
inquietação. O próprio Paulo Visire começava a ter medo. O que o perturbava era o silêncio e a ausência
do ministro dos Negócios Estrangeiros. Crombille deixara de comparecer no Conselho; levantando–se
às cinco horas da manhã, trabalhava dezoito horas no seu gabinete e caía esgotado no cesto dos papéis,
de onde os contínuos o retiravam juntamente com os documentos que iam vender aos adidos militares
do império vizinho.
O general Bonacheirão acreditava que estava iminente uma entrada em campanha; preparava–se para
ela. Longe de temer a guerra, desejava–a e confiava as suas generosas esperanças à baronesa de
Bildermann, que avisava a nação vizinha que, a seu conselho, procedia a uma rápida mobilização.
O ministro das Finanças, sem o querer, precipitou os acontecimentos. Nessa altura, jogava na baixa:
para causar o pânico, fez correr na Bolsa o boato de que a guerra era inevitável. O imperador vizinho,
enganado por esta manobra e receando ver o seu território invadido, mobilizou as suas tropas a toda a
pressa. A Câmara, apavorada, derrubou o Ministério Visire por enorme maioria (oitocentos e catorze
votos contra sete e vinte e oito abstenções). Era demasiado tarde; no mesmo dia da queda, a nação
vizinha e inimiga chamava o seu embaixador e lançava oito milhões de homens contra a pátria da
senhora Ceres; a guerra tornou–se universal e todo o mundo ficou afogado num mar de sangue.


APOGEU DA CIVILIZAÇÃO PINGUIM

Meio século após os acontecimentos que acabamos de narrar, a senhora Ceres morreu, rodeada de
respeito e veneração, com setenta e nove anos de idade e desde há muito viúva do homem de Estado de
quem usava dignamente o dome. As suas exéquias modestas e recolhidas foram seguidas pelos órfãos
da paróquia e pelas irmãs da Sagrada Mansidão.
A defunta deixava todos os bens à Obra de Santa Orberose. – Ai! – suspirou o reverendo Monnoyer,
cónego de São Maèl, ao receber este piedoso legado –, já era tempo que uma generosa fundadora
acorresse às nossas necessidades. Os ricos e os pobres, os sábios e os ignorantes afastam–se de nós. E,
quando nos esforçamos por chamar à razão as almas transviadas, ameaças, promessas, doçura,
violência, nada nos sai bem. O clero da Pinguínia geme no meio da desolação; os nossos curas de
aldeia, obrigados, para sobreviverem, a exercer os mais vis ofícios, vivem na miséria e comem sobejos.
Nas nossas igrejas em ruínas, a chuva do céu cai sobre os fiéis e ouve–se, durante os santos ofícios, cair
as pedras das abóbadas. O campanário da catedral desequilibra–se e acabará por ruir. Santa Orberose foi
esquecida pelos Pinguins, o seu culto abolido, o seu santuário abandonado. No seu relicário, despojado
do ouro e das pedrarias, a aranha tece silenciosamente a sua teia.
Ouvindo estes lamentos, Pedro Mille, que aos noventa e oito anos não tinha perdido nada da sua força
intelectual e moral, perguntou ao cónego se não achava que Santa Orberose sairia um dia desse
injurioso esquecimento.
– Não ouso esperá–lo – suspirou o senhor Monnoyer. – É pena! – replicou Pedro Mille. – Orberose é
uma figura encantadora; a sua lenda tem graça. Descobri há dias, por acaso, um dos seus mais bonitos
milagres, o milagre de João Violle. Gostaria de ouvi–lo, senhor Monnoyer?
– Ouvi–lo–ei de boa vontade, senhor Mille.
– Ei–lo, tal como o encontrei num manuscrito do século XVI:
"Cecília, mulher de Nicolau Gaubert, ourives no Pont–au–Change, depois de ter levado durante longos
anos uma vida honesta e casta, enamorou–se de João Violle, o pequeno pajem da senhora condessa de
Maubec, que habitava no palacete do Pavão, Place de Greve. Ele ainda não tinha dezoito anos; era
gracioso de corpo e de fisionomia. Não podendo vencer o seu amor, Cecília decidiu satisfazê–lo. Atraiu
o pajem a sua casa, fez–lhe toda a espécie de carícias, deu–lhe guloseimas e, finalmente, fez o que
pretendia com ele.
"Ora, um dia em que estavam deitados juntos na cama do ourives, o mestre Nicolau regressou para casa
mais cedo do que o habitual. Encontrou o ferrolho corrido e ouviu, através da porta, a sua mulher, que
suspirava: "Meu coração! Meu anjo! Meu ratão!". Desconfiando que ela se tinha fechado com um
galante, desfechou grandes pancadas na porta e pôs–se a gritar: "Prostituta, rameira, devassa, vadia, abre
para que eu te arranque o nariz e as orelhas!". Perante este perigo, a esposa do ourives voltou–se para
Santa Orberose e prometeu–lhe uma grande vela se a livrasse de apuros, a ela e ao pequeno pajem, que
morria de medo, completamente nu na ruela.
"A santa atendeu a súplica. Transformou imediatamente João Violle em rapariga. Vendo isto, Cecília, já
tranquila, pôs–se a gritar ao marido: "Oh!, bruto maldito, malvado ciumento! Fala delicadamente, se
queres que te abra!". E, assim resmungando, corria para o guarda–vestidos e atirava uma velha capa de
capuz, um espartilho de baleia e uma comprida saia cinzenta, com que vestia à pressa o pajem
metamorfoseado. Depois, quando terminou: "Catarina, minha amiga, Catarina, meu gatinho", disse em
voz alta, "vai abrir ao teu tio: ele é mais estúpido do que mau e não te fará mal." O rapaz, transformado
em rapariga, obedeceu. Mestre Nicolau, tendo entrado no quarto, deparou com uma jovem virgem que
não conhecia e com a sua boa mulher na cama. "Grande idiota", disse–lhe esta, "não te espantes com o
que vês. Quando acabava de me deitar por causa de uma dor de barriga, recebi a visita de Catarina, a
filha da minha irmã Joana de Palaiseau, com quem estávamos zangados há quinze anos. Meu homem,
beija a nossa sobrinha, ela bem o merece." O ourives abraçou Violle, cuja pele lhe pareceu macia; e a
partir desse momento não desejou nada tanto como ficar um momento sozinho com ela, a fim de a
beijar à vontade. Foi por isso que, sem tardar, a levou para a sala de baixo, com o pretexto de lhe
oferecer vinho e nozes, e, mal chegou lá abaixo, começou a acariciá–la muito amorosamente. O bom
homem não teria ficado por ali se Santa Orberose não tivesse inspirado à sua honesta mulher a ideia de
ir surpreendê–lo. Encontrou–o com a falsa sobrinha sentada nos joelhos, chamou–lhe devasso,
esbofeteou–o e obrigou–o a pedir–lhe perdão. No dia seguinte, Violle voltou à forma primitiva."
Tendo ouvido esta história, o venerável cônego Monnoyer agradeceu a Pedro Mille por lha ter contado e
pegando na pena, pôs–se a redigir os prognósticos dos cavalos vencedores nas próximas corridas. É que
ele tinha a seu cargo a escrita de um bookmaker.
Entretanto, a Pinguínia vangloriava–se da sua riqueza. Aqueles que produziam as coisas necessárias à
vida tinham falta delas; aqueles que não as produziam tinham–nas com fartura. "Tratava–se", como
dizia um membro do Instituto, "de inelutáveis fatalidades económicas." O grande povo pinguim já não
tinha nem tradições, nem cultura intelectual, nem artes. Os progressos da civilização manifestavam–se
pela indústria assassina, a especulação infame, o luxo odioso. A sua capital revestia–se, como todas as
grandes cidades de então, de um carácter cosmopolita e financeiro: reinava nele uma fealdade imensa e
regular. O país gozava de uma tranquilidade completa.
Era o apogeu.

Livro VIII – OS TEMPOS FUTUROS – A
HISTÓRIA SEM FIM


Não tinham visto que eram anjos.
Liber Terriinlis.

"Estamos no começo de uma química que se ocupará das mudanças causadas, por um corpo que
contém uma tão grande quantidade de energia concentrada como nunca tivemos nenhuma à
nossa disposição."
Sir William Ramsay.

As casas nunca eram consideradas suficientemente altas; aumentavam–nas sem cessar e construíam–se
outras com trinta a quarenta andares, onde se sobrepunham escritórios, armazéns, agências bancárias,
sedes de sociedades; e cavavam–se no solo, cada vez mais profundamente, caves e túneis.
Quinze milhões de homens trabalhavam na cidade gigante, à luz das lanternas, que espalhavam o seu
brilho de dia e de noite. Nenhuma claridade do céu atravessava os fumos das fábricas que rodeavam a
cidade; mas via–se por vezes o disco vermelho de um Sol sem raios deslizar num firmamento negro,
sulcado de pontes de ferro, de onde caía uma chuva eterna de fuligem e escórias. Era a mais industrial
de todas as cidades do mundo e a mais rica. A sua organização parecia perfeita; nada subsistia das
antigas formas aristocráticas ou democráticas das sociedades; tudo estava subordinado aos interesses
dos monopólios. Formou–se neste meio aquilo a que aos antropólogos chamam o tipo do
multimilionário. Eram homens ao mesmo tempo enérgicos e fracos, capazes de uma grande força de
combinações mentais, e que forneciam um longo trabalho de escritório, mas cuja sensibilidade padecia
de perturbações hereditárias que aumentavam com a idade.
Como todos os verdadeiros aristocratas, como os patrícios da Roma republicana, como os lordes da
velha Inglaterra, esses homens poderosos afetavam uma grande severidade de costumes. Eram os
ascetas da riqueza: nas assembléias dos monopólios apareciam rostos glabros, faces cavadas, olhos
pisados, frontes enrugadas. O corpo mais seco, a tez mais amarela, os lábios mais áridos, o olhar mais
inflamado do que os velhos monges espanhóis, os multimilionários entregavam–se com inextinguível
ardor às austeridades da banca e da indústria. Alguns, recusando todas as alegrias, todos os prazeres,
todo o repouso, consumiam a sua miserável vida numa sala sem ar nem luz, mobilada unicamente com
aparelhos elétricos, aí comiam ovos e bebiam leite, dormiam numa cama de campanha. Sem outra
ocupação além de premir com o dedo um botão de níquel, esses místicos, que amontoavam riquezas de
que nem sequer viam os sinais, adquiriam a vã possibilidade de satisfazerem desejos que nunca
experimentariam.
O culto da riqueza teve os seus mártires. Um desses multimilionários, o famoso Samuel Box, preferiu
morrer a ceder a mínima parcela da sua fortuna. Um dos seus operários, vítima de um acidente de
trabalho, vendo que lhe recusavam uma indenização, fez valer os seus direitos perante os tribunais, mas
desesperado por intransponíveis dificuldades da justiça, caído numa cruel indigência, reduzido ao
desespero, conseguiu, à força de astúcia e audácia, pôr o patrão ao alcance do seu revólver, ameaçando–
o de lhe estourar os miolos se não lhe valesse: Samuel Box não acedeu e deixou–se matar por uma
questão de princípio.
O exemplo é seguido quando vem de cima. Aqueles que possuíam poucos capitais (e era, naturalmente,
o maior número) imitavam as ideias e os costumes dos multimilionários para se confundirem com eles.
Todas as paixões que prejudicam o aumento ou a conservação dos bens eram consideradas desonrosas;
não se perdoava nem a moleza, nem a preguiça, nem o gosto das pesquisas desinteressadas, nem o amor
das artes nem, sobretudo, a prodigalidade; a compaixão era condenada como uma fraqueza perigosa.
Ao passo que a inclinação para a volúpia provocava a reprovação pública, desculpava–se, pelo
contrário, a violência de um apetite brutalmente saciado: com efeito, a violência parecia menos
prejudicial aos costumes, como manifestadora de uma das formas da energia social. O Estado assentava
firmemente em duas grandes virtudes públicas: o respeito pelo rico e o desprezo pelo pobre. As almas
fracas, a quem o sofrimento humano ainda perturbava, não tinham outro recurso senão refugiar–se
numa hipocrisia que não se podia censurar, visto que contribuía para manter a ordem e a solidez das
instituições.
Assim, entre os ricos, todos eram devotados à sociedade ou pareciam sê–lo; todos davam o exemplo, se
bem que nem todos o seguissem. Alguns sentiam cruelmente o rigor da sua condição; mas aceitavam–
na por orgulho ou por dever. Alguns tentavam escapar–lhe por momentos, secretamente e por meio de
subterfúgios. Um deles, Eduardo Martin, presidente do monopólio dos ferros, vestia–se às vezes de
pobre, ia mendigar o seu pão e fazia–se maltratar pelos transeuntes.
Um dia, quando estendia a mão à caridade numa ponte, teve uma discussão com um mendigo autêntico
e, tomado de invejosa fúria, estrangulou–o.
Como utilizavam toda a sua inteligência nos negócios, não procuravam os prazeres do espírito. O teatro,
que tinha sido muito florescente noutros tempos, reduzia–se agora à pantomima e às danças cómicas. As
próprias peças com mulheres eram abandonadas; perdera–se o gosto das formas bonitas e das toilettes
brilhantes; preferiam–se as cambalhotas dos palhaços e a música dos Negros e o entusiasmo só
transparecia quando se viam desfilar no palco diamantes ao pescoço das figurantes e barras de ouro
levadas em triunfo.
As damas da riqueza estavam tão sujeitas como os homens a uma vida respeitável. Segundo uma
tendência comum a todas as civilizações, o sentimento público fazia delas símbolos; deviam representar,
pelo seu fausto austero, a grandeza da fortuna e a sua intangibilidade. Os velhos hábitos de galantaria
tinham sido reformados; mas aos amantes mundanos de outrora sucediam surdamente robustos
massagistas ou algum criado de quarto. Todavia, os escândalos eram raros: uma viagem ao estrangeiro
dissimulava–os quase todos e as princesas dos monopólios continuavam a ser objecto da consideração
geral.
Os ricos constituíam uma pequena minoria, mas os seus colaboradores, que eram todo o povo, eram–lhe
inteiramente afetos ou estavam inteiramente sujeitos a eles.
Formavam duas classes, a dos empregados de comércio e bancários e a dos operários das fábricas. Os
primeiros forneciam um trabalho enorme e recebiam grandes ordenados.
Alguns conseguiam fundar estabelecimentos; o aumento constante da riqueza pública e a mobilidade
das fortunas privadas autorizavam todas as esperanças dos mais inteligentes ou dos mais audaciosos.
Poder–se–ia, sem dúvida, descobrir na multidão imensa dos empregados, engenheiros ou contabilistas,
um certo número de descontentes e irritados; mas essa sociedade tão poderosa tinha imprimido, mesmo
no espírito dos adversários, a sua forte disciplina. Os próprios anarquistas mostravam–se laboriosos e
regulares.
Quanto aos operários, que trabalhavam nas fábricas, nos arredores da cidade, a sua decadência física e
moral era profunda; simbolizavam o tipo do pobre determinado pela antropologia. Embora o
desenvolvimento de certos músculos, devido à natureza particular da sua actividade, pudesse enganar
quanto às suas forças, apresentavam os sinais concretos de uma mórbida debilidade. De estatura baixa,
cabeça pequena, peito estreito, distinguiam–se ainda das classes abastadas por uma série de anomalias
psicológicas, e nomeadamente pela assimetria frequente da cabeça ou dos membros. E estavam
condenados a uma degenerescência gradual e contínua, dado que dos mais robustos o Estado fazia
soldados, cuja saúde não resistia muito tempo às prostitutas e aos taberneiros que cercavam os quartéis.
Os proletários revelavam–se cada vez mais débeis de espírito.
O enfraquecimento contínuo das suas faculdades intelectuais não se devia apenas ao seu gênero de vida;
resultava também de uma seleção metódica operada pelos patrões.
Estes, considerando os operários de cérebro demasiado lúcido como mais aptos a formular
reivindicações legítimas, esforçavam–se por eliminá–los por todos os meios possíveis e contratavam de
preferência os trabalhadores ignaros e pouco inteligentes, incapazes de defenderem os seus direitos, mas
ainda bastante inteligentes para desempenharem a sua tarefa, que máquinas aperfeiçoadas tornavam
extremamente fácil.
Por isso, os proletários não sabiam tentar nada com vista a melhorar a sua sorte. Apenas conseguiam,
por meio de greves, manter o nível dos seus salários. Mesmo este meio começava a escapar–lhes. A
intermitência da produção, inerente ao regime capitalista, causava tais crises de desemprego que, em
vários ramos de indústria, logo que a greve era declarada, os desempregados ocupavam o lugar dos
grevistas. Enfim, esses miseráveis produtores continuavam mergulhados numa sombria apatia que nada
animava, que nada exasperava. Eram para o Estado social instrumentos necessários e bem adaptados.
Em resumo, esse Estado social parecia o mais bem ordenado que já se tinha visto, pelo menos na
humanidade, porquanto o das abelhas e das formigas é incomparável quanto à estabilidade; nada podia
fazer prever a ruína de um regime alicerçado no que há de mais forte na natureza humana, o orgulho e a
cupidez. Contudo, os observadores atentos descobriam motivos vários de inquietação. Os mais certos,
se bem que os menos aparentes, eram de ordem económica e consistiam na superprodução, sempre
crescente, que provocava as demoradas e cruéis crises de desemprego, a que os industriais reconheciam,
é verdade, a vantagem de quebrar a força operária, opondo os sem trabalho aos trabalhadores. Uma
espécie de perigo mais sensível resultava do estado fisiológico de quase toda a população. "A saúde dos
pobres é o que pode ser", diziam os higienistas; "mas a dos ricos deixa a desejar." Não era difícil
descobrir as causas. O oxigênio necessário à vida faltava na cidade; respirava–se um ar artificial; os
monopólios da alimentação, realizando as mais ousadas sínteses químicas, produziam vinhos, carne,
leite, fruta, legumes artificiais. O regime que impunham provocava perturbações nos estômagos e nos
cérebros. Os multimilionários ficavam calvos aos dezoito anos; alguns traíam por momentos uma
perigosa fraqueza de espírito; doentes, inquietos, davam somas enormes a feiticeiros ignaros e via–se
manifestar–se subitamente na cidade a fortuna médica ou teológica de algum ignóbil banheiro
transformado em terapeuta ou profeta. O número dos alienados aumentava a todo o momento; os
suicídios multiplicavam–se no mundo da riqueza e muitos eram acompanhados de circunstâncias
atrozes e bizarras, que revelavam uma perversão inaudita da inteligência e da sensibilidade.
Outro sintoma funesto atacava fortemente o comum dos espíritos. A catástrofe, doravante periódica,
regular, entrava nas previsões, e tomava nas estatísticas um lugar cada vez maior. Todos os dias
rebentavam máquinas, saltavam casas, comboios a abarrotar de mercadorias despenhavam–se numa
avenida, demolindo prédios inteiros, esmagando várias centenas de transeuntes e, através do solo aluído,
pulverizavam dois ou três andares de oficinas e estaleiros onde trabalhavam numerosas equipas.
Na parte sudoeste da cidade numa colina que conservara o seu antigo nome de Forte São Miguel,
estendia–se uma praça pública onde velhas árvores alongavam ainda por cima dos relvados os seus
braços esgotados. Na vertente norte, engenheiros paisagistas tinham construído uma cascata, grutas, um
ribeiro, um lago, ilhas. Desse lado descobria–se toda a cidade, com as suas ruas, as avenidas, as praças,
a multidão dos telhados e dos zimbórios, as vias aéreas, os ajuntamentos de homens cobertos de silêncio
e como encantados pelo afastamento. Essa praça pública era o local mais salubre da capital: os fumos
não escondiam o céu e as crianças iam para lá brincar.
No Verão, alguns empregados dos escritórios e laboratórios vizinhos, depois do almoço, descansavam
ali um momento, sem perturbarem a tranquila solidão.

Foi assim que, num dia de Junho, por volta do meio–dia, uma telegrafista, Carolina Meslier, foi sentar–
se num banco, na extremidade do terraço do Norte. Para refrescar os olhos com um pouco de verdura,
voltava as costas para a cidade. Morena, de pupilas ruivas, robusta e plácida, Carolina aparentava vinte
e cinco a vinte e oito anos. Quase imediatamente, um empregado no monopólio da eletricidade, Jorge
Claro, sentou–se ao lado dela. Louro, magro, esbelto, tinha feições de uma finura feminina; não era
muito mais velho do que ela e parecia mais novo. Encontrando–se quase todos os dias nesse lugar,
sentiam simpatia um pelo outro e gostavam de conversar. Contudo, a sua conversa nunca tinha nada de
terno, de afetuoso nem de íntimo. Carolina, embora tivesse tido, no passado, de se arrepender da sua
confiança, poderia talvez revelar mais abandono; mas Jorge Claro mostrava–se sempre extremamente
reservado, tanto nas palavras como nas maneiras; não cessava de dar ao diálogo um caráter puramente
intelectual e de o manter nas ideias gerais, abordando, aliás, todos os assuntos com a mais áspera
liberdade.
Falava–lhe de bom grado da organização da sociedade e das condições do trabalho.
– A riqueza – dizia ele – é uma das formas de viver feliz; fizeram dela o fim único da existência.
E este estado de coisas parecia a ambos monstruoso.
Voltavam incessantemente a certos assuntos científicos que lhes eram familiares.
Nesse dia, trocaram impressões acerca da evolução da química.
– Desde o momento – disse Claro – em que se viu o rádio transformar–se em hélio, deixou–se de
afirmar as imutabilidades dos corpos simples; foram assim suprimidas todas as velhas leis das relações
simples e da conservação da matéria.
– No entanto – disse ela –, há leis químicas.
Com efeito, sendo mulher, tinha necessidade de acreditar. Ele retorquiu molemente:
– Agora, que se pode conseguir rádio em quantidades, suficiente, a ciência possui incomparáveis meios
de análise; a partir de agora, entrevê–se, naquilo a que se chama os corpos simples, compostos de uma
riqueza extrema e descobrem–se na matéria energias que parecem aumentar na razão da sua própria
tenuidade.
Ao mesmo tempo que conversavam, atiravam migalhas de pão aos pássaros; crianças brincavam à sua
volta. Passando de um assunto a outro:
– Esta colina, na época quaternária – disse Claro –, era habitada por cavalos selvagens. No ano passado,
quando abriam condutas de água, descobriram uma espessa camada de ossos de hemíonos.
Ela quis saber se, nessa recuada época, o homem já tinha aparecido.
Ele disse–lhe que o homem caçava o hemíono antes de tentar domesticá–lo.
– O homem – acrescentou – foi primeiramente caçador, depois tornou–se pastor, agricultor, industrial...
E estas diversas civilizações sucederam–se através de uma espessura de tempo que o espírito não pode
conceber.
Olhou para o relógio.
Carolina perguntou se já eram horas de voltar para o escritório.
Respondeu que não, que eram apenas meio–dia e meia hora.
Uma rapariguinha fazia pastéis de areia junto do seu banco; um rapazinho de sete ou oito anos passou
pela frente deles dando cambalhotas. Enquanto a mãe cosia num banco próximo, ele brincava sozinho
ao cavalo fugido e, com o poder de ilusão de que são capazes as crianças, imaginava ser ao mesmo
tempo o cavalo e aqueles que o perseguiam e aqueles que fugiam assustados diante dele. Ia–se
deslocando e gritando: "Parem! Hu! Hu! Este cavalo é terrível, tomou o freio nos dentes".
Carolina fez esta pergunta:
– Acha que os homens eram felizes antigamente? O companheiro respondeu–lhe:
– Sofriam menos quando eram mais novos. Faziam como este rapazinho: brincavam; brincavam às
artes, às virtudes, aos vícios, ao heroísmo, às crenças, às volúpias, tinham ilusões que os divertiam.
Faziam barulho; entre tinham–se. Mas agora...
Interrompeu–se e voltou a olhar para o relógio.
A criança que corria bateu com o pé no balde da rapariguinha e estendeu–se ao comprido na areia. Ficou
por instantes imóvel, depois levantou–se, apoiando–se nas palmas das mãos; a testa inchou–lhe, a boca
alargou–se e subitamente desatou a soluçar. A mãe acorreu, mas Carolina tinha–o levantado do chão e
limpava–lhe os olhos e a boca com o seu lenço. A criança continuava a soluçar; Claro pegou–lhe ao
colo:
– Vá, não chores, meu menino! Vou contar–te uma história: "Um pescador, tendo lançado as redes no
mar, pescou um pequeno vaso de cobre fechado; abriu–o com o seu canivete. Saiu dele um fumo que se
ergueu até às nuvens, e esse fumo, comprimindo–se, formou um gigante que espirrou tão fortemente,
tão fortemente, que o mundo inteiro ficou reduzido a pó..."
Claro deteve–se, soltou uma risada seca e bruscamente entregou a criança à mãe. Depois olhou de novo
para o relógio e, ajoelhado no banco, com os cotovelos no encosto, contemplou a cidade.
A perder de vista, a multidão das casas erguia–se na sua minúscula enormidade.
Carolina voltou os olhos na mesma direção.
– Como o tempo está bom! – exclamou. – O Sol brilha e transforma em ouro os fumos do horizonte. O
que há de mais penoso na civilização é ficar privado da luz do dia.
Ele não respondeu; o seu olhar continuava fixo num ponto da cidade.
Após alguns segundos de silêncio, viram, a cerca de três quilômetros de distância, para além do rio, no
bairro mais rico, elevar–se uma espécie de nevoeiro trágico.
Um momento depois, uma detonação chegou até eles, enquanto subia para o céu puro uma árvore de
fumo. E pouco a pouco o ar enchia–se de um imperceptível zumbido formado pelos clamores de vários
milhares de homens. Gritos soavam muito próximos da praça pública.
– Que foi que explodiu?
O assombro era grande; com efeito, embora as catástrofes fossem frequentes, nunca se tinha visto uma
explosão tão violenta e cada um apercebia–se de uma terrível novidade.
Tentava–se definir o local do sinistro; nomeavam–se bairros, ruas, edifícios diversos, clubes, teatros,
armazéns. Os esclarecimentos topográficos precisaram–se, fixaram–se.
– Foi o monopólio do aço que explodiu. Claro guardou o relógio no bolso.
Carolina fitava–o com aplicada atenção e os seus olhos enchiam–se de espanto.
Finalmente, murmurou–lhe ao ouvido:
– Você sabia? Estava à espera?... Foi você que... Ele respondeu, muito calmo:
– É preciso que esta cidade pereça.
Ela retorquiu, com sonhadora suavidade:
– É o que eu penso também.
E regressaram ambos, tranquilamente, ao trabalho.

A partir desse dia, os atentados anarquistas sucederam–se durante uma semana, sem interrupção. As
vítimas foram em grande número; pertenciam quase todas às classes pobres. Estes crimes suscitavam a
reprovação pública. Foi entre a criadagem, os estalajadeiros, os empregados subalternos e naquilo que
os monopólios deixavam subsistir do pequeno comércio que a indignação rebentou mais vivamente.
Ouviam–se nos bairros populosos as mulheres reclamar suplícios inusitados para os dinamitadores.
(Designavam–nos por este antigo nome, que lhes assentava mal, dado que, para esses químicos
desconhecidos, a dinamite era uma matéria inocente, boa unicamente para destruir formigueiros, e eles
consideravam um jogo pueril fazer explodir a nitroglicerina por meio de um detonador de fulminato de
mercúrio.) Os negócios cessaram bruscamente e os menos ricos foram os primeiros a sentir–se
atingidos. Falavam de fazer justiça por suas mãos sobre os anarquistas. Contudo, os operários das
fábricas mantinham–se hostis ou indiferentes à acção violenta. Ameaçados, devido à diminuição dos
negócios, com um próximo desemprego, ou mesmo com um lock–out alargado a todas as oficinas,
tiveram de responder à Federação dos Sindicatos, que propunha a greve geral como o mais poderoso
meio de actuar sobre os patrões e a ajuda mais eficaz aos revolucionários; todas as corporações de
ofícios, com excepção dos douradores, se recusaram a parar o trabalho.
A polícia fez numerosas prisões. Tropas chamadas de todos os pontos da Confederação nacional
guardaram os imóveis dos monopólios, as mansões dos multimilionários, as repartições públicas, os
bancos e os grandes armazéns. Passou–se uma quinzena sem uma única explosão. Concluiu–se que os
dinamitadores, uma meia dúzia, muito provavelmente, talvez menos ainda, estavam todos mortos,
presos, escondidos ou em fuga. A confiança voltou; voltou primeiramente aos mais pobres. Duzentos ou
trezentos mil soldados, aboletados nos bairros populosos, incrementaram o comércio; gritou–se "Viva o
exército!"
Os ricos, que se haviam alarmado menos depressa, serenavam mais lentamente. Mas, na Bolsa, o grupo
que jogava na alta de valores semeou notícias otimistas e, mediante um poderoso esforço, travou a
baixa; os negócios recomeçaram.
Os jornais de grande tiragem secundaram o movimento; demonstraram, com patriótica eloquência, que
o intangível capital se ria dos assaltos de alguns cobardes criminosos e que a riqueza pública prosseguia,
a despeito das inúteis ameaças, na sua serena ascensão; eram sinceros e ganhavam com isso. Os
atentados foram esquecidos, foram negados. No domingo, nas corridas, as tribunas encheram–se de
mulheres carregadas, vergadas ao peso de pérolas e diamantes. Viu–se, com alegria, que os capitalistas
não tinham sofrido. Os multimilionários foram aclamados durante a pesagem.
No dia seguinte, a estação do Sul, o monopólio do petróleo e a prodigiosa igreja construída à custa de
Thomas Morcellét explodiram; trinta casas arderam; um começo de incêndio declarou–se nos estaleiros.
Os bombeiros foram admiráveis de dedicação e coragem. Manobravam com precisão automática as suas
compridas escadas de ferro e subiam até ao trigésimo andar das casas para arrancarem às chamas alguns
infelizes. Os soldados fizeram com zelo o serviço de ordem e receberam uma dupla ração de café. Mas
estes novos sinistros desencadearam o pânico. Milhões de pessoas, que queriam partir imediatamente
levando o seu dinheiro, comprimiam–se nos grandes estabelecimentos de crédito, que, depois de terem
pago durante três dias, fecharam as caixas sob o ribombar da assuada. Uma multidão de fugitivos,
carregada de bagagens, ocupava as estações e tomava os comboios de assalto. Muitos, que tinham
pressa de se refugiar nas caves com provisões de víveres, precipitavam–se para as mercearias e as lojas
de comestíveis, guardadas pelas baionetas dos soldados. Os poderes públicos demonstraram energia.
Fizeram–se novas prisões; milhares de mandatos foram passados contra os suspeitos.

Durante as três semanas que se seguiram, não se verificou nenhum sinistro. Correu o boato de que
tinham sido encontradas bombas na sala da Ópera, nas caves da Câmara Municipal e junto a uma coluna
da Bolsa. Mas logo se soube que eram latas de conservas colocadas por brincalhões ou loucos. Um dos
inculpados, interrogado pelo juiz de instrução, declarou–se o principal autor das explosões, que haviam
custado a vida, dizia ele, a todos os seus cúmplices. Esta confissão, publicada pelos jornais, contribuiu
para tranquilizar a opinião pública. Foi só no fim da instrução do processo que os magistrados se
aperceberam de que estavam na presença de um simulador inteiramente estranho a todos os atentados.
Os peritos designados pelos tribunais não descobriram nenhum fragmento que lhes permitisse
reconstituir o engenho utilizado na obra de destruição. Segundo as conjecturas, o novo explosivo
emanava do gás que se desprende do rádio; e supunha–se que ondas elétricas, provocadas por um
oscilador de tipo especial, propagando–se através do espaço, causavam a detonação; mas os químicos
mais hábeis não conseguiam dizer nada de preciso nem de exacto. Um dia, finalmente, dois agentes da
polícia, quando passavam diante do Hotel Meyer, encontraram no passeio, perto de um respiradouro,
um ovo de metal branco, munido de uma cápsula numa das extremidades; apanharam–no com
precaução e, por ordem do seu chefe, levaram–no ao laboratório municipal. Assim que os peritos se
reuniram para o examinar, o ovo explodiu, fazendo ruir o anfiteatro e a cúpula. Todos os peritos
pereceram e com eles o general de artilharia Collin e o ilustre professor Tigre.
A sociedade capitalista não se deixou abater por este novo desastre. Os grandes estabelecimentos de
crédito reabriram as portas, anunciando que fariam os pagamentos, parte em ouro, parte em títulos do
Estado. A Bolsa dos valores e a das mercadorias, apesar da paragem total das transações, decidiu não
suspender as suas sessões.
Entretanto, tinha–se encerrado a instrução dos processos respeitantes aos primeiros acusados. Talvez as
provas reunidas contra eles tivessem parecido, noutras circunstâncias, insuficientes; mas o zelo dos
magistrados e a indignação pública completavam–nas. Na véspera do dia fixado para os debates, o
Palácio de Justiça foi pelos ares: morreram oitocentas pessoas, sendo muitas delas juízes e advogados. A
multidão, furiosa, invadiu as prisões e linchou os prisioneiros. A tropa enviada para restabelecer a
ordem foi recebida à pedrada e a tiros de revólver; vários oficiais foram atirados abaixo dos cavalos e
calcados aos pés. Os soldados abriram fogo; houve numerosas vítimas. A força pública conseguiu
restabelecer a tranquilidade. No dia seguinte, explodiu o banco.
Viram–se então coisas espantosas. Os operários das fábricas, que se tinham recusado a entrar em greve,
precipitavam–se em chusma para a cidade e punham fogo às casas.
Regimentos inteiros, comandados pelos seus oficiais, juntaram–se aos operários incendiários,
percorreram com eles a cidade entoando hinos revolucionários e foram buscar às docas toneladas de
petróleo para alimentar o fogo. As explosões não paravam.

Uma manhã, de repente, uma árvore monstruosa, um fantasma de palmeira com três quilômetros de
altura, ergueu–se no recinto do palácio gigante dos Telégrafos, logo aniquilado.
Enquanto metade da cidade ardia, na outra metade a vida prosseguia com regularidade. Ouviam–se, de
manhã, tilintar nos carros dos leiteiros as latas de folha.
Numa avenida deserta, um velho cantoneiro, sentado contra uma parede, com a sua garrafa entre as
pernas, mastigava lentamente bocados de pão com um pouco de guisado.
Os presidentes dos monopólios continuavam quase todos no seu posto. Alguns cumpriram o seu dever
com uma simplicidade heróica. Rafael Box, o filho do multimilionário mártir, foi pelos ares quando
presidia à assembléia geral do monopólio dos açúcares. Fizeram–lhe um funeral magnífico; o cortejo
teve de transpor por seis vezes os escombros ou atravessar por tábuas as calçadas aluídas.
Os auxiliares normais dos ricos, caixeiros, empregados, corretores, agentes, mantiveram–lhes uma
fidelidade inquebrantável. Na data aprazada, os contínuos sobreviventes do banco sinistrado foram
apresentar as suas letras de câmbio; por ruas arruinadas, nos prédios fumegantes, e vários, para
efectuarem os seus recebimentos, sucumbiram nas chamas.
Não obstante, não podia haver ilusões: o inimigo invisível era senhor da cidade. Agora, o ruído das
detonações reinava, contínuo como o silêncio, apenas perceptível e de inultrapassável horror. Estando
os aparelhos de iluminação destruídos, a cidade ficava toda a noite mergulhada na escuridão e
cometiam–se violências de uma monstruosidade inaudita. Só os bairros populosos, menos atingidos, se
defendiam ainda. Voluntários da ordem faziam patrulhas; fuzilavam os ladrões e esbarrava–se a cada
esquina de rua com um corpo tombado numa poça de sangue, com os joelhos dobrados, as mãos atadas
atrás das costas, um lenço na cara e um dístico no ventre.
Tornava–se impossível varrer os escombros e enterrar os mortos. Depressa o fedor exalado pelos
cadáveres se tornou insuportável. Houve epidemias que causaram inúmeras mortes e deixaram os
sobreviventes débeis e apalermados. A fome levou quase tudo o que restava. Cento e quarenta e um dias
após o primeiro atentado, na altura em que chegavam seis corpos de exército com artilharia de
campanha e artilharia de cerco, à noite, no bairro mais pobre da cidade, o único ainda de pé, mas
rodeado agora por uma cintura de fogo e fumo, Carolina e Claro, no telhado de uma alta casa, davam–se
as mãos e olhavam. Cantos alegres subiam da rua, onde a multidão, enlouquecida, dançava.
– Amanhã estará acabado – disse o homem – e será melhor assim.
A mulher, de cabelos em desalinho, o rosto brilhante devido aos reflexos do incêndio, contemplava com
piedosa alegria o círculo de fogo que se apertava em redor deles:
– Será melhor assim – repetiu ela.
E, lançando–se nos braços do destruidor, deu–lhe um beijo apaixonado.

As outras cidades da Federação sofreram também perturbações e violências, depois a ordem foi
restabelecida. Introduziram–se reformas nas instituições; verificaram–se grandes mudanças nos
costumes; mas o país nunca se recompôs inteiramente da perda da sua capital e não recuperou a antiga
prosperidade. O comércio, a indústria definharam; a civilização abandonou essas regiões que durante
tanto tempo preferira a todas as outras. Tornaram–se estéreis e insalubres; o território que tinha
alimentado tantos milhões de homens transformou–se num deserto. Na colina do Forte São Miguel os
cavalos selvagens pastavam a erva fértil.
Os dias deslizavam como a linfa das fontes e os séculos gotejaram como a água na extremidade das
estalactites. Apareceram caçadores para a caça ao urso nas colinas que cobriam a cidade esquecida;
pastores levaram para lá os seus rebanhos; agricultores enterraram aí a charrua; hortelãos cultivaram
alfaces em recintos cercados e enxertaram pereiras. Não eram ricos; não tinham artes; um pé de vinha
antiga e moitas de rosas revestiam as paredes da sua cabana; uma pele de cabra cobria os seus membros
morenos; as mulheres vestiam–se com a lã que tinham fiado. Os cabreiros modelavam no barro
pequenas figuras de homens e animais ou entoavam canções sobre a rapariga que acompanha o
namorado até ao bosque e sobre as cabras que pastam enquanto os pinheiros marulham e a água
murmura. O dono irritava–se contra os escaravelhos que lhe comiam os figos; imaginava armadilhas
para defender as suas galinhas da raposa de cauda peluda e servia vinho aos seus vizinhos, dizendo:
– Bebam! As cigarras não me estragaram a vindima; quando chegaram, já as vides estavam secas.
Depois, no decorrer dos tempos, as aldeias fartas de bens, os campos cheios de trigo, foram pilhados,
devastados por invasores bárbaros. O país mudou várias vezes de senhores. Os conquistadores
construíram castelos nas colinas; as culturas multiplicaram–se; moinhos, forjas, fábricas de curtumes,
fiações, começaram a aparecer; abriram–se estradas através dos bosques e dos pântanos; o rio cobriu–se
de barcos. As aldeias transformaram–se em grandes burgos e, reunidas umas às outras, formaram uma
cidade que se protegeu com fossos profundos e altas muralhas. Mais tarde, capital de um grande Estado,
viu–se apertada nos seus muros doravante inúteis e que transformou em verdes esplanadas.
Enriqueceu–se e cresceu desmedidamente. As casas nunca eram consideradas suficientemente altas;
aumentavam–nas a todo o momento e construíam outras com trinta e quarenta andares, onde se
sobrepunham escritórios, armazéns, agências de bancos, sedes de sociedades, e abriam–se no solo, cada
vez mais profundamente, caves e túneis.
Quinze milhões de homens trabalhavam na cidade gigante.
{1}
Orbe, poético, globo, falando dos corpos celestes. Por extensão, toda a espécie de corpos globulares." (Litiré.)
{2}
Procuramos em vão esta frase na História Natural de Plínio: (N. do E. fr.)
{3}
O cronista pinguim que relata o facto emprega esta expressão: Species mductilis. Traduzi à letra.
{4}
O texto diz: .. qualem primo qui surgere mense Aut videt aut vidisse putat per nubila limam.
{5}
Três séculos antes da época em que vivia o nosso Marbode, cantava–se nas igrejas, no dia de Natal.
{6}
Maro, vates gentilium, Da Christo Testtmonium. Ad Maronis Mausoleum Ductusudit super eum Piae rocem lacrymae Quem te, inquit,
reddidissem, Si te vivum invenissem Poetarum maxime!
{7}
Esta frase parece indicar que, a fazer fé em Marbode, a Copla seria de Virgílio.
{8}
Há no relato de Marbode uma passagem muito digna de nota, é aquela onde o religioso de Corrigan descreve Ahghieri tal como hoje o
imaginamos. As miniaturas pintadas num velhíssimo manuscrito da Divina Comédia, o Codex venetianus, representam o poeta sob o
aspecto de um homenzinho gordo, vestido com uma túnica curta de abas até ao ventre. Quanto a Virgílio, usa ainda, nos painéis do século
XVI, a barba filosófica. Também não seria de esperar que tanto Marbode como Virgílio conhecessem os túmulos etruscos de Chiusi e
Corneto, onde há, com efeito, pinturas cheias de diabos horríveis e burlescos, muito semelhantes aos de Orcagna. Não obstante, a
autenticidade da Descida de Marbode aos Infernos é incontestável: M. du Cios des Lúnes provou–o solidamente; duvidar dela seria
duvidar da paleografia.
{9}
Cf. J. Ernest–Charles: Lê Censeur, Maio–Agosto, 1907, p. 562.
{10}
Tendo este Ministério exercido uma acção importante nos destinos do país e do mundo, achamos que devemos dar a sua composição:
Interior e Presidência do Conselho, Paulo Visire; Justiça, Pedro Bode; Negócios Estrangeiros, Vítor Crombille; Finanças, Terrasson,
Instrução Pública, Labillette; Comércio, Correios e Telégrafo, Hipólito Ceres; Agricultura, Aulac; Obras Públicas, Lapersonne; Guerra,
general Bonacheirão; Marinha, almirante Viveiro das Moreias.

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