You are on page 1of 14
TEMAS EM DEBATE BIOGRAFIA DE UMA REVOLTADA: ERCILIA NOGUEIRA COBRA Maria Lo De Fundagdo Caros io Barros Mott ’agas ¢ do jornal Mulherio fe vasto material ern Cad. Pesq., Sao Paulo (58): 89-104, agosto 1986 Ercilia Nogueira Cobra 6 uma escritora paulista ‘que, nos anos 20, escreveu dois livros ~ Virginidade An- 1-Hygienica e Virginidade Inutil ~ onde, entre outras coi- sas, defende a liberdade sexual da mulher. Embora nesses livros a autora combata a prostituigao ela fo! obrigade a viver desta atividade pelo menos durante parte de sua vida, Entre os anos 34 e 38, em Caxias do Sul, era proprietéria de uma casa de mulheres. No fichério de autores das bibliotecas Nacional (Rio de Janeiro) e Municipal Mério de Andrade (Sao Paulo) nao hé referéncia a0 nome de Ercilia Nogueira Cobra, Ai ndo podem ser encontrados as seus livros, Mesmo 0s trabalhos que se preocupam com a hist6ria da mulher brasileira e a do movimento feminista no Brasil, incluindo-se af as biografias de mulheres que participaram de alguma forma desse movimento, no fizeram, até bem pouco tempo, qualquer tipo de refe- roncia seje a vida, seja a obra da escritora. Uma resenha da Revista do Brasil de julho de 1924 “seu trabalho se caracteriza por muita pessoali- dade: pensa por si e diz 0 que pensa em linguagem rua com uma coragem, que se néo encontra nos ar raiais do outro sexo”, um verbete no Dicionério de Au- tores Paulsias de Luiz Correia de Melo (1954) que praticamente transcrito na integra no dicionério de Raimundo de Menezes “Nasceu em Séo Paulo, Foz seus estudos na terra natal. Mudou-se para o Rio Grande do Sul, Romancista de feicdo emancipadora” ¢ or Gitimo, uma citagdo na Histéria da Inteligéncia do Brasil de Wilson Martins (1979), séo as Gnicas referén- cias bio-bibliogrdficas encontradas, até agora, sobre a escritora’. ‘Adalzira Bittencourt, em sou Mulheres @ Livros (levantamento de livros escritos por mulheres brasi- leiras, publicado em 1948) chega a citar Noemia Cobra Leite ~ ira de Ercilia ~ cuja producao literéria foi ati~ va, mas restrita quase que exclusivamente a artigos ¢ poemas publicados em jornais e, silencia sobre Erci- lia, Conversando com um socidlogo sobre 0 objetivo de escrever uma biografia da escritora, ele argumen- tou que nao via maior importéncia num estudo sobre a vida de Ercilia, pois a atividade dela restringia-se 3 publicagdo de dois livros desconhecidos. Em outra casio, tentando obter uma entrevista com Jovina Pessoa, nica mulher que tenho noticias, que leu Vir- ginidade Ant-Hygienica quando da sua primeira edicéo, recebi uma negativa, Esta senhora, revoltada com a situagdo desastrosa da nossa politica econdmico-social ‘me disse que seria um absurdo um estudo sobre Erci- lia naqueles dias (1981), quando outras coisas precisa~ vam ser resolvidas com urgéncia. Tanto uma quanto outra afirmacao me deixaram aténita, pois acreditava que a importancia de uma pesquisa sobre a vida e a obra de Ercilia fosse inques- tiondvel. Primeiro, porque ela denuncia, em uma &po- a pioneita, a situacdo de opresséo social e sexual vi- vida pela mulher; segundo porque 0 estudo de sua trajetéria fornece elementos para a recuperagéo da histéria social brasileira nas primeiras décadas do sé- culo XX; ¢ finalmente, porque para mim, leitora dos li- vros de Ercilia, quase 60 anos apés a publicag3o dos mesmos, eles foram de grande importéncia para a re- flexao sobre a minha condicao de mulher, a0 contes- tarem 0 modelo tradicional de comportamento im- 90 Posto a0 nosso sexo e oferecerem uma outra opgso ‘além daquela de mae e esposa. Claudia, personage principal de Virginidade Inutil ao se rebelar contra os padrées de comportamento enfrentou situacdes diff eis, saindo porém enriquecida da experiéncia o que, sem diivida, é um alivio para a maioria de nés mulhe- Fes cuja ameaga de uma infelicidade ~ trdgica, atroz © imperativa ~ paira sobre nossas cabecas sempre que ‘ousamos tentar outros caminhos, Posso dizer ainda que com a leitura de Virginida- de Inuti consegui aprender uma nova dimensao da sexualidade, ou seje, que “o sexo ndo tem sexo”. O razer sexual pode ser obtido nao importando 0 sexo do parceiro sem que para isso seja obrigatoriamente doente ou culposo e dividido nas categorias homosse- xual e heterossexual, Nome de rua, de prédio ou de cidade séo algu- mas das maneiras que se tem para homenagear pes- 80a8 tidas como famosas e cuja recordacdo acredita-se mereca ser perpetuada. A biografia também, Mas ho- menagem, em geral, cheira mofo ~ flores mortas es- quecidas em um busto em praca publica ~ ou causam bocejos, lembrando discursos laudatérios e sem fim. Mesmo sabendo desses riscos, nos quais espero nao air, gostaria que este artigo tivesse esse cardter. ‘Também, ao tentar tirar escritora do esqueci- mento talvez as criangas do ano 2000 tenham uma praca ~ com escorregador, balanca e tanque de areia ~ chamada Ercilia Nogueira Cobra e as mées e os pais e elas mesmas vivam numa sociedade onde a pelavra feminista nao sé tenha perdido sua conotacdo pejora- tiva como, apenas, qualifique a luta empreendida pelas mulheres, no passado, pela conquista de sua dignida- de como seres humanos. DESCOBRINDO A OBRA 5 livros Viginidade Anti-Hygienica possui como subtitulo “preconceitos € convengdes hypécritas” foi publicado pela primeira vez em 1924 quando Ercilia tinha 33 anos’, Este livrinho que mais parece um catecismo por seu tamanho mindisculo {13 cm x 9 cm), tem uma capa branca cortada por uma tarja vermelha onde se en- contra escrito “a autora articula neste livro um verda- deiro libelo contra 0 egofsmo dos homens e diz, em linguagem crua, o que talvez todos pensem”. Nao sei se este resumo foi escrito por Ercilia ou pelo editor mas d4, de maneira exata, 0 tom do "Susan Besse refere-se 8 escritora om sua tese de douto- Famento (1883) "O impacto do capitalismo nas mulheres, fom So Paulo 1917-1937)". A cla, meu muito obtigado, or ter cedido 0 xerox, da edigo de 1927, de Vignidade Inat. Por ordem de publicacso: Viinidade AntiHygienica. S60 Paulo, Montero Lobate, 1924, Vigiidade In Slspu ee 38 ators, 1327, Vraingade AneHypenica siupu ®6. <8 autora, sd. Viginidade inutl 0 Ani-Hyenica, 4822; Viginidade Inui e Anttigionca, Pris, Societé OFEGi: tions Oeuvres des Maltres Céllbres, sc. Cad. Pesa. (58) agosto 1986 ensaio, A linguagem erus eu screscentarie, ainda, elo- Uente @ irade, Algumas vezes tem-se 8 improssSo. {ue 2s frases ndo foram escritas mes gritadas, sequin- ddo.0 ritmo da revolta do autora contra os indmeros preconceites que no s6 martirizavam como também destruiom @ existincia feminina, Nas 116 pigines que compdem esta primeira eciggo encontremos expressées em portugues vulgar 20 lado de trechos de autores franceses ctados no ori- ginal, Numa destes citapbes Ercilia affrma que tendo due tratar de “assuntos escabrosos” e nio encontran- do em autor nacional nada que se relacione com 0 que fla vai dizer, € obrigade, para justfear a sua opinigo, a recorrer “a uma das malores, senéo maior gl6ri lic teréria da Franca moderna ~ Anatole France” (p, 143)", fo lado de legitimar seus argumontos, aredito exist uma outa razdo para a autora utilizar com tanta fro- aiuéncia as citagées desse, como de outros autores, em francis: 0 conteddo “escabroso” se dil quando fala- do numa lingua tida como culta, Nao se espere, partanto, ums obra de qualidade igual do comero 20 fim, nem capftulos seguindo um plano rigido, Duas questbes, todavia, parecem centra- lizar o empreitede da escritora: a do preconceito da inferoridade intelectual da mulher © a de ciferenca da ‘oral sexual para 0s sexo, prinipalmente no que se felere ® obrigecso da mulher se conserver virgem apés a puberdade e de e6 ter direito 3 maternidade quando autorieada pela sociedade pele igre. Confrontando © comportamento humano com 0 das demais espécies animais, Ecilaafiema que 0 ho- mem & produto do melo e da educacSo, Conclui que 8 inferioridade intelectual da mulher s6 poderia ser pro- vada se ela fosse educada em condiggo de igualdade com a do homem, A maneira pela qual vinha sendo dada a educagio 20 sexo feminino era errade, Esta educagao de “lor de estufa”, que nao a preparava pera 0 trabalho profissional,tinha sequelas fates pols resultava ndo sé na degenerescéncia da raga‘, como nia situagao. de inferioridade intelectual ©. social da mulher ~ gerando, por sue vez, criaturas infantis, de- pendentes, sem o menor senso prético~ além de ter 8 prostituiggo como uma des suas principals consequén- ties. “E extranham 0 nervosismo das mulheres. .. E boquiabrem-se admirados, diante da falta 2 tino prético das thas de Eva, Plantam flores de estufa e querem cofher frux tos vulgares de alimentacao! Querem que uma menina anémica, resultado de uma reclusdo de anos e anos em colégios com- pletamente leigos em coisas préticas, entre para 0 ‘mundo @ seja capaz de compreender a engrenagem lerra-a-terra e complicadissima da vida. E admiram-se da fullidade da mulher! E rient-se da infantiidade com que ola se Jambuza de pinturas. Obrigam a mulher a permanecer menor du- rante toda a vida por falta de uma instrugao que a faga conhecer 0 mundo (....) ‘Mas, se jd esté mais que provado que o ofre- bro nao tem sexo e que 0 ingividuo humano 6 um produto do meio e da educagao, como exigir menta- lidade consciente de um ser cujo cérebro & imbecil- Biograffa de uma revoltada: Ercila Nogueira Cobra Zado paulatinamente, mercé de uma educagao que ‘obedece aos mais estipidos preconceitos?” (p. 154-5), Partidéria do amor-livre, defende a liberdade se- xual com energia surpreendente. Denuncia a dupla moral sexual que estigmatiza a mulher ~ € no 0 ho- mem — que tem rela¢a0 sexual fora do casamento. ‘As mulheres que nao conseguiram um marido, por nao possuirem um dote ou por nao se submete- fem a um casamento por interesse, nao tém o dirsito de satisfazer suas necessidades sexuais. Dever per- manecer virgens pelo resto da vida ou utilizar suceda ‘neos € ainda sao ridicularizadas como solteironas. Isso 6 injusto pois o prazer sexual para a mulher, como para 0 homem, é to importante quanto 0 estémago. © amor-livre, para Ercilia, parece sinénimo de liberdade sexual e, nao, amor entre seres livres e, amor, é 0 sentimento que nasce a partir da atracao fi- sica, sendo que quase sempre nao é recfproco. O ca- samento como estava instituido, afirma a autora, era uma coisa barbara pois baseava-se no dote, um con- trato de compra e venda, além de ser feito as escuras: entregava-se uma moca 2 um homer que apenas co- nhecia de vista sem the dar a possibilidade de trocar, caso apés “provado”, nao fosse do seu agrado! “Sim, senhores! Os homens, no al de con ‘soguirem um moio prético de dominar a mulher, co- locamihe a honra entre as pernas, perto do nus, num lugar que, quando bem lavado, néo digo que 1ndo seja limpo e até delicioso para certos misieres, ‘mas que nunca, jamais poderd ser séde de uma cconsciéncia, ‘Nuncalt! Néo se controlam sensagées fisicas. ‘Nao se pode colocar a honra, uma coisa abs- trata, ideal, no lugar menos nobre do animal racio- ral. Seria absurdo! Seria ridfculo, se néo fosse perverso. ‘A muther néo pensa com a vagina nem com 0 utero. Com estes érgdos ela sente sensagdes agra- dabilissimas 6 verdade. Com estes érgéos, quando (os faz funcionar, ela goza os prazeres inicos que dao forcas ao individuo para suportar as tnstezas a vida. Por meio destes 6rgaos ela desfalece de prazer, mas justamente porque sdo séde de sensa- (908s ffsicas sobre oles ndo pode pesar lei nenhuma alheia a loi da natureza" (p. 167). Virginidade Inuti, novella de uma revotiada, editado fem 1927, tem @ mesma capa branca, amarelada pelo tempo, que o ensaio de 1924. A linguagem continua panfletéria deixando porém transparecer uma Ercilia irdnica e chistosa, A temética também € a mesma sé ‘Todas as citagBes dos livros de Ercilie, contidas neste arti= 90, forem tirades da edicao da Societé d'Editions Oeuvres des Maitres Célbres, Esta questo fol amplamente discutida por Tito Livie de Castro em A muherea sociogénia. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1893. ot

You might also like