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DOS 5 I Ê
E
Numa revisão critica da bibliografia sobre o chamado
m 1914 foi publicado 'profetismo tupi-guarani', as obras 'clássicas' são sociológicas. O discurso
recolocadas - sem desconhecer seu porte cientifico -
no Zeitscb rift für nos contextos intelectuais que as produziram e que predomina sobre o es-
Ethnologie o ensaio determinaram preocupações cientificas, aproches quema ritual, a represen-
metodológicos e conclusões explicativas. O artigo
de Nimuendajú sobre o examina as duas grandes linhas interpretativas elabo- tação sobre a instituição,
conjunto mítico da Criação radas pela tradição antropológica: a que pressupõe a o tempo cósmico-esca-
existência de um 'misticismo' endógeno tupi-guarani e
e da Destruição do Mundo a que define o fenômeno em termos de reação à situa- tológico sobre o espaço
na religião dos Apapocuva, ção de contacto. Uma e outra dependem menos de social Ubtd., XXX).
evidências documentais do que de posições teórico-
o grupo guarani estudado metodológicas caracteristicas de especificas escolas Ilá, a meu ver, ou-
pelo etnólogo alemão en- antropológicas. São analisados, também, os funda- tras marcas deixadas pelo
mentos do 'discurso de autoridade', estabelecido pelo
tre 1905 e 1907. Com este cruzamento das fontes historiográficas com as informa- recorte inaugural que fize-
ensaio, entram na literatu- ções etnográficas. Este cruzamento leva a um trata- ram escola. Após a fasci-
mento forçoso dos dados, pois explica a cultura
ra etnológica o tema da tupinambá do início da colonização pela cultura guarani nante descrição do trágico
Terra sem Mal, o da mi- modema, pressupondo uma única 'cultura tupi-guarani', destino da última migração
imóvel nos séculos, que mantém o núcleo irredutivel
gração profética e, mais do seu 'ser" no Mito da Terra sem Mal. "mística" dos Apapocuva,
geral, o que foi chamado Nimuendajú levanta a hi-
de" c a t a cl is m o Io g ia" • Doutoranda em Ciências Sociais, do IFCH/Unicamp. pótese de que a mola pro-
guarani: uma cosmologia- pulsora das migrações dos
escatologia que prevê para um futuro mais antigos Tupinarnbá, descritos pelos cronistas
ou menos próximo um cataclismo cósmico do em permanente movimentação no litoral no
qual, porém, é possível escapar alcançando início do século XVI, não seria a força de
em vida - assim como narra o mito do xamã expansão bélica, mas urna razão religiosa, a
Guyraypoty - o Paraíso. Desde então, o dis- mesma dos Apapocuva: a busca da Terra sem
curso "religioso", o "misticismo", o "pessimis- Mal (Ibid.:10S).
mo" como fundamento da filosofia da história A partir daí, articulando os dados
tupi-guarani, se tornaram alguns entre os as- etnográficos sobre os Guarani modernos com
suntos favoritos da investigação etnológica. as fontes do século XVI e XVII, Métraux
Na introdução à edição brasileira do 0927; 1979 [1928]) tentou recompor o qua-
livro de Nimuendajú (987), Eduardo Vivei- dro da cultura tupinambá da época colonial,
ros de Castro observa que a marca deixada pressupondo a substancial identidade entre
por seu recorte inaugural foi tão forte que as duas sociedades.
mesmo suas lacunas fizeram escola. Com Este "pecado original" parece percorrer
efeito, a produção etnológica sobre os todos os estudos "clássicos" sobre estes gru-
Guarani tem-se concentrado na compilação pos; até nos trabalhos dedicados especifica-
e exegese de mitos, cantos, enfim, sobre o mente aos Tup ína mbá (Fernandes, 1963,
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guarani do Paraguai e sul do Brasil, registrado MÉTRAUX, NIMUENDAJÚ, FERNANDES E SCHADEN: OS
a partir do começo deste século; ESTUDOS PIONEIROS
2) a definição do "mito da Terra sem
Mal" e do conseqüente "messianismo", ou Métraux foi o primeiro antropólogo a uti-
"profetismo", como um sistema cosmológico lizar os relatos de missionários e viajantes dos
intrínseco à cultura tupi-guarani como um todo, séculos XVI e XVII para a reconstituição das
preexistente à conquista e mantido intacto, "migrações históricas" dos Tupinambá, por um
como núcleo irredutível do "ser" cultural tupi- lado, e de sua religião, por outro. A aborda-
guarani, ao longo dos séculos de história de gem de Métraux insere-se na tradição das gran-
contacto. des hipóteses dos americanistas da época
Isso remete à questão do uso das fon- (Rivet , ordenskibld), voltada para a
tes: se Métraux e Fernandes utilizaram possi- reconstítuíção das rotas migratórias dos grupos
velmente de uma forma instrumental as fontes tupi-guarani, a distribuição territorial dos ele-
documentais dos séculos XVI e XVII, muitos mentos culturais específicos, a sua classifica-
autores da década de 60 e 70 utilizaram cer- ção. As migrações revestem grande interesse
tamente de uma forma instrumental as fontes para o aproche difusionista do autor (mais cla-
de Métraux, bem como as informações ro no texto sobre a civilização material dos
etnográfícas de Nimuendajú e Schaden. tupi-guarani, de 1928), visando uma compara-
Finalmente, as contribuições da década ção que possa reconstituir as unidades cultu-
de 80 e 90, que inauguram o questionamento rais maiores dos grupos tupi-guaraní.
profundo tanto da identidade entre movimen- O sentido desta comparação está claro:
tos tupinambá e movimentos guarani, quanto quando as fontes antigas não permitem co-
da suposta anterioridade do "misticismo tupi- nhecer completamente as crenças e os ritos
guarani" à chegada dos brancos, apresentam dos Tupinambá,
novas indicações metodológicas para o estu-
do destes fenômenos, em particular, uma op- Tais lacunas são, em parte, preen-
ção especificamente etno-histórica. chidas pelos estudos de Nimuendajú. Este
Não serão examinados aqui em detalhe sábio estudou profundamente a mitologia
as contribuições recentes: apenas, tentar-se-à dos apapocuva e tembé, considerados os der-
identificar suas sugestões mais estimulantes. radeiros rebentos da borda migratória dos
Apesar das diferenças de aproche entre estes tupinambá. São de fato surpreendentes as
trabalhos, relativamente às problemáticas nas analogias existentes entre os ritos e a mi-
quais se inserem, todos eles apontam para a tologia dos apapocuoa e dos tembé e os ri-
necessidade de um cuidado maior na adoção tos e a mitologia dos seus remotos ancestrais,
dos estereótipos consagrados pela tradição de modo a permitir que aqueles expliquem
etnológica. Da mesma forma, alguns dentre ou completem os antigos textos (Métraux,
eles sugerem a necessidade de estudar estes 1979: XXXV).
sistemas culturais em sua especificidade e
historicidade, isto é, relativizando mitos, ritu- Por essa via, Métraux procura elemen-
ais e personagens religiosas em face de seu tos culturais especificas dos Apapocuva que,
contexto cultural, dialogando com as contin- para ele, são próprios dos tupi-guarani, o que
gências históricas que possivelmente contri- interessa, com efeito, são as semelhanças que
buíram para determinar uma ou outra escolha constituem a prova da "unidade cultural des-
cultural. sas tribos em seus antigos tempos" (ibid.). A
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de uma migração à Terra sem Mal. Assim são Assim, migrações tupinambá do litoral
as descrições de Nóbrega 0954 [1549]: 150), norte até o Peru no século XVI, revoltas
ou do jesuíta anônimo da "Informação do Bra- guarani no Paraguai espanhol da mesma épo-
sil" (que é, de fato, Anchieta, 1844 [1584]: ca, êxodos apapocuva do século XIX: tudo
440), ou de Léry 0980 [1578]: 209-210), ou isso, para Métraux, é "Terra sem Mal". Caraíbas
de Cardim 0978 [1625]: 102).3 tupinambá, xamãs guarani, chefes portugue-
Vale aqui ressaltar que este tipo de aná- ses ou mamelucos das mais diversas épocas:
lise, como vimos, é funcional para a defini- todas essas personagens são "messias". A com-
ção do mito da Terra sem Mal como um paração de Métraux procura as semelhanças,
conjunto cultural característico da cultura tupi- explicativas de uma unidade e uni cidade cul-
guarani, e é conseqüente em relação à afir- tural, e negligencia as diferenças, reveladoras
mação com que o autor apresenta os dados: de processos históricos, desencadeados pelas
diferentes modalidades de impacto colonial
"Apresença de mito idêntico entre tri- (evangelização, exploração econômica, escra-
bos há séculos insuladas é prova suficiente vidão, epidemias), nas diferentes regiôes, nas
em favor de sua antigüidade. Os textos que diferentes épocas, junto a diferentes grupos.
agora vão ser examinados não deixam sub- Com La religion des tupinamba, nasce
sistirnenhuma dúvida a esse respeito; atestam, um dos maiores "mitos de origem" da etnologia
além disso, que as aspirações messiânicas religiosa da América do Sul: o mito da Terra
dos tupi, assim como as respectivas lendas sem Mal e do "rnessianismo" como elemen-
básicas,pertencem às primitivas noções re- tos característicos da cultura tupi-guarani, O
ligiosasde todos os indígenas da família em arcabouço metodológico que circunscreve esse
espécie.São os fatos modernos suficientemen- mito consiste em explicara cultura tupinambá
te claros para dar idéia do alcance e significa- pela cultura guarani moderna, e considerar,
ção dos antigos textos referentes aos ao mesmo tempo como "pressuposto" e como
fenômenos da mesma ordem". (Métraux, "conseqüência", a segunda como derivada da
1979: 180-181, grifo meu). primeira'.
As fontes antigas estão também à base
Portanto, apesar das observações finais das duas grandes obras de Florestan Fernandes:
do capítulo, relativas à influência sobre o A organização social dos tupinambá 0963
"messianismo" da situação de "aculturação", [1949]) e A/unção social da guerra na socie-
as "aspirações messiânicas" existem ab origi- dade tupinambá 0970 [1952])6.
ne na cultura tupi-guarani e constituem seu Também nos trabalhos de Fernandes,
traço distintivo, assim como a antropofagia ri- como nos de Métraux, a escolha teórico-
tual". A presença entre os Tupinambá (am- metodológica, no caso a funcionalista, acaba
plamente demonstrada pelos cronistas) de uma por determinar a maneira de tratar as fontes e
cosmogonia de tipo "apocalíptico", que pro- de considerar os materiais. Com efeito, a con-
jeta a possibilidade de uma destruição da Ter- clusão dos dois trabalhos é que tanto a orga-
ra no futuro, além do que no passado mítico, nização social (fundada no sistema de
é suficiente para comprovar também a exis- parentesco), quanto a organização "ecológi-
tência do "rnessianismo". As fontes não ates- ca" (definida pela exploração, distribuição e
tam uma relação tão automática, mas aí estão consumo dos recursos naturais), quanto o con-
os dados dos Guarani modernos para "preen- junto "guerra-captura-antropofagia" estavam
cher as lacunas". determinadas pelo sistema religioso, eram -
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desempenhada em uma estrutura social Não se pode, no entanto, afirmar que
integradora 7 . lo messianismoJ seja condicionado sempre e
Os trabalhos de Egon Schaden 0969 unicamente por fenômenos desenvolvidos no
[1964]; 1974 [1962]; 1989 [1959]) sobre os interior da própria cultura nativa. É por essa
Guarani inserem-se na problemática relativa à razão que discordamos de Métraux, quando
"aculturação" e à "mudança cultural", caracte- invoca o caráter anticristão e antieuropeu dos
rística da investigação etnológica brasileira nas movimentos místicos provocados pelos mes-
décadas de 50 e 60. Por isso, a leitura do sias como argumento a favor da origem pu-
"rnessíanísmo" é feita nesses termos. Por isso, ramente indígena desses últimos. A nosso ver,
também, a interpretação deste conjunto mítico- as manifestações xenófobas, que constituem
profético articula a idéia de reação aos proces- um aspecto quase geral do messianismo, de-
sos de desintegração cultural à do caráter natioo vem-se principalmente a uma situação de
do messianismo, oscilando, nos diferentes en- desequilíbrio provocado pelo contato com a
saios, entre o primeiro e o segundo fator como civilização ocidental (Schaden, 1989: 58).
predominantes. Na análise dos movimentos,
portanto, é necessário levar em conta Esta aparente contradição se explica,
talvez, com o fato de que justamente a idéia
... a presença eventual de dois fatores: de aculturação e de mudança proporciona,
em primeiro lugar, os decorrentes do estado nos trabalhos de Schaden, maior atenção aos
de deprivation, ou penúria cultural, que se processos históricos de transformação cultu-
instala durante a crise aculturativa, da qual é ral, e às especificidades das diferentes con-
carateristico, em segundo, a existência, na cul- junturas vividas pelos grupos indígenas em
tura nativa, de uma certa categoria de elemen- contato colonial. Schaden é o primeiro a evi-
tos míticos e religiosos indispensáveis à denciar alguns elementos, ligados às
formação de um clima sociopsíquico propício especificidades históricas das formas do
à eclosão do movimento. A distinção entre fa- messianismo, a saber:
tores "exôgenos" e "endôgenos" no messianismo a) a não necessidade de uma ligação
(...) se afigura, de fato, fundamental para a necessária entre o mito do cataclismo futuro e a
análise do problema. (Schaden, 1%9: 246) idéia da "idade de ouro". Na Mitologia heróica,
ele postula a possibilidade de que essa ligação,
Nalguns momentos, o autor parece pri- presente no mito apapocuva, seja uma "forma-
vilegiar os fatores endógenos: ção secundária", específica apenas dessa tribo
e ausente em outras tribos da mesma família
o essencial do que acaba de ser dito é lingüística (Schaden,1989: 50).
que o messianismo guarani não remonta em b) a dupla presença do branco neste con-
suas origens primeiras a nenhuma condição junto rnítíco-profético, como entidade provo-
de anomia (ou talvez melhor: disnomia) so- cadora de desequilíbrio cultural, e como
cial, nem tampouco a manifestações de de- presença aculturadora, introdutora de elemen-
sintegração cultural. A sua origem se explica tos cristãos na "mitologia heróica'", devida à
perfeitamente por motivos de ordem religio- maciça presença jesuítica nos séculos XVII e
sa (Ibid.: 247). XVIII (Schaden, 1974: 184).
c) a noção de "transformação dos mi-
Em outros textos, ele aponta para os tos" (Schaden, 1974: 175), ou seja, a idéia de
fatores "exógenos": que as manifestações messiânicas, assim como
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onde as fontes antigas falam em Terra sem Solução caracteristicamente primiti-
Mal? Qual é o mito "reeditado" por estas pre- va, permite supor que qualquer outra crise
gações? Como podem os movimentos coloni- de graves conseqüências internas também
ais (notadamente os Tupinambá de utilizaria do mesmo recurso a fim de saná-
Pernambuco, Maranhão e Bahia) ter-se inspi- Ia. Ou, noutras palavras, que se neste caso
rado no mito de Nanderuvuçu, que é registra- a crise foi produto do contato com os bran-
do apenas junto aos Apapocuva da região cos, este contato se coloca nos eventuais fa-
entre São Paulo, Paraná e Mato Grosso, no tores de desorganização e desestruturaçâo
século XX? A mistura das fontes, funcional que podem ter como resultado um movimento
para um projeto explicativo globalizante, che- messiânico, nâo aparecendo como impres-
ga aqui às suas últimas conseqüências: as fi- cindível para a produção deste (Pereira de
nalidades teóricas acabam determinando o Queiroz, 1977: 203).
tratamento das informações.
O objetivo da autora é a procura de ca- Uma afirmação que lembra muito a de
tegorias classificatórias dos movimentos, no Florestan Fernandes citada acima. E também,
interior de uma visão sociológica que visa a como em Fernandes, há certa contradição en-
desvendar a função desempenhada pela ação tre a idéia de "solução nativa a problemas
messiânica "relativamente à estrutura e orga- nativos" e "modalidades de contato".
nização social das sociedades globais às quais Com efeito, nas diferenciações que pro-
se vincula" (Pereira de Queiroz, 1977:44). Por- põe entre movimentos (entre os "puros" e os
tanto, as migrações tupinambá dos séculos XVI "sincréticos", ou entre os antigos e os moder-
e XVII são classificadas, junto às guarani dos nos), a autora remete sempre - de acordo
séculos XIX e XX, em um único tipo: os mo- com sua posição teórica - ao tipo de socieda-
vimentos "puros", ou seja, inteiramente nati- de com a qual os aborígenes estavam em con-
vos, na medida em que visam a solucionar tato". Não se resolve, portanto, a contradição
uma anomia interna à tribo, mediante uma entre a suposta preexistência do conjunto
reconfirmação da antiga estrutura. Eles são, mítico-profético da "Terra sem Mal" em rela-
portanto, "reformistas". Este tipo está diferen- ção à chegada dos brancos, e o fato de que as
ciado dos movimentos do "tipo" Santidade" sociedades indígenas protagonistas dos movi-
(ver mais adiante) que, apesar de serem lide- mentos estavam, de diferentes maneiras, em
rados por caraibas, nascem das relações de contato com os europeus.
dominação/subordinação, utilizam formas re- Ao tentar diferenciar os movimentos
ligiosas sincréticas e apresentam soluções "re- puros tupinambá dos movimentos do tipo
volucionárias" . Santidade, a autora remete às formas de re-
Ao constatar que elementos e condições lação colonial, ao tipo de contato. Os movi-
.das migrações tupi-guarani (mitologia, forma mentos puros decorreriam de uma fase da
do movimento, ritmo, estrutura dos grupos, colonização em que o contato se dá numa
importância do sistema familiar) são inteira- forma de igualdade, mediante alianças; os
mente nativos, sem que haja processo de outros se dariam em situação colonial de do-
sincretismo com elementos da civilização oci- minação/subordinação. Nota-se aqui a influ-
dental, Pereira de Queiroz, endossa a hipóte- ência de uma certa sociologia "dinamista" (o
se de Nimuendajú e Métraux, de que havia termo "situação colonial" é de Balandier) que
movimentos tupinambá anteriormente à che- pareceria abrir para a análise das diferenças
gada dos brancos: culturais e históricas:
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Todos os autores concordam em dizer mesmo ao longo de cinco séculos de história
que o messianismo (na específica forma das colonial.
migrações) é um produto original tupi-guarani. Uma exemplificação reveladora desta
Por outro lado, eles apontam (ambiguamente) posição encontra-se em René Ribeiro, o qual
para o possível estado de deprivation devido afirma que, no movimento da Santidade,
ao choque cultural. A superação dessa con-
tradição está em dizer que a migração é uma ... os líderes não só prometiam levá-
"solução nativa a problemas nativos" (proble- Ias à Terra sem Mal, como acenavam-Ihes
mas "ecológicos" para Florestan, problemas com a libertação do jugo jesuítico, a res-
de "anemia interna" para Maria Isaura): os tauração de seus ritos e tradições e a volta
europeus constituem assim um problema "aci- de um tempo de abundância e esplendor
dental", resolvido de uma forma tradicional. (Ribeiro,1982: 223).
Se nos colocarmos de outro ponto de
vista, o histórico-religioso (que tentarei Ora, mesmo deixado de lado o uso ile-
explicitar mais adiante) as coisas adquirem gítimo da expressão "Terra sem Mal" para os
outra dimensão e o problema não é mais se o Tupinambá, há aí outros dois erros históricos.
messianismo tupi-guarani seria ou não anteri- A documentação sobre o movimento da San-
or aos brancos; mas sim: como, nas diferentes tidade prova, em primeiro lugar, que esta não
situações de contato, em diferentes épocas, levou de forma alguma a um êxodo "místico";
frente a diferentes problemas sociais e histó- em segundo lugar, que o movimento não pre-
ricas, as culturas tupinambá e guarani elabo- gava uma volta à antiga religião, mas cons-
raram respostas originais? Como os conjuntos truiu uma religião nova, conciliadora de
mítico-rituais foram relidos e re-significados horizontes religiosos múltiplos: o dos índios,
para continuar a dar sentido ao mundo? o dos escravos negros, o dos mamelucos, o
Nesta perspectiva, a presença dos bran- dos colonos, pois foram estes também, como
cos não pode ser percebida apenas como mostra Ronaldo Vainfas (ver mais adiante), os
desencadeadora de reações ou resistências, adeptos da Santidade. Evidentemente, para Ri-
vistas em termos de volta aos costumes nati- beiro, todos os movimentos tupi-guarani têm
vos, mas como uma realidade nova que obri- que buscar, necessariamente, a Terra sem Mal.
ga os diferentes grupos, com diferentes Maria Isaura ainda diferenciava tipos, já Ribei-
modalidades, a reconstruir simbolicamente, ro, no interior de seu quadro c1assificatório,
mas também historicamente] o mundo. O que modifica arbitrariamente o dado histórico, mos-
foi chamado de "messianismo tupi-guarani" trando a periculosidade das tipologias pré-
pode ser um produto original sem deixar de constituídas.
ser causado pelo choque cultural: esta é a No início dos anos 60, a sociologia e a
tese proposta aqui. A chave de leitura é a antropologia se tornam portadoras de instân-
especificidade histórica e cultural, sem por cias de mobilização ético-política frente à
isso cair em um relativismo absoluto. Nesse "descolonização" e ao início do diálogo
sentido, parece totalmente inviável a posição intercultural. O texto de Lanternari, sobre os
metodológica que explica o passado de al- Movimentos religiosos de liberdade e salvação
guns grupos com o presente de outros, pres- dos povos oprimidos é um bom exemplo des-
supondo a "cultura nativa" imobilizada em uma te engajamento político e cultural que des-
dimensão atemporal onde o discurso mítico vendava e denunciava as insuficiências e
(a "não-história") permanece idêntico a si contradições internas ao Ocidente, à luz de
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oridade ou a posterioridade do profetismo ao laridade que deve ser verificada e definida ade-
contato colonial) aparecem fortemente deter- quadamente. Não é correto, ao contrário, dar
minadas, respectivamente, pelo difusionismo, por demostrada uma origem autônoma eplu-
pelo funcionalismo, pela teoria da aculturação ral de uma construção tão específica,para po-
e pela categorização sociológica. No caso de der afirmar opleno título de "culturascriativas"
Lanternari, a opção parece mais difícil de para sociedades remotas. Além de não ser opor-
reconduzir à teoria informadora de seus tra- tuno metodologicamente, talprocedimento não
balhos, pois esta teoria - a histórico-religiosa permite aquisições originais: com efeito, pelo
- tem sua preocupação fundamental na próprio fato de responder a específicas reali-
especificidade histórico-cultural das diferen- dades, tais sociedades não podem não ter sido
tes manifestações religiosas. Por isso, torna- originalmente criativas. (Mazzoleni,1993:50).
se quase inexplicável a aceitação acrítica de
Lanternari das hipóteses da anterioridade do Nesta linha, Mazzoleni observa também
messianismo tupinambá ao impacto colonial, que, ao reconsiderar hoje a literatura etnológica
bem como sua substancial identificação com sobre os messianismos, produzida nos anos
a religião dos Guarani modernos. sessenta e setenta, sobressaem claramente as
Um hipótese interessante é a de Gilber- sugestões ideológicas dos autores. Nesse sen-
to Mazzoleni (993), em seu trabalho sobre tido, os movimentos têm sido considerados
os movimentos proféticos brasileiros, indíge- em função de estratégias e objetivos políticos
nas e "rústicos" (ver adiante). Mais do que à totalmente internos ao Ocidente e totalmente
impostação científica, Mazzoleni atribui a ati- estranhas ao campo de investigação. Assim,
tude de Lanternari à opção política, apontada na ênfase polêmica que o ideólogo ocidental
acima, característica da posição de muitos es- produzia em favor das culturas orais
tudiosos na época. Com efeito, a atribuição ameaçadas de extinção, chegava-se, às ve-
aos Tupinambá de um conjunto messiânico zes, a paradoxos mais ou menos conscientes
"original" seria instrumental à recuperação da (Ibid.: 51).
dignidade e da cri atividade cultural dos po- Para o estudioso italiano, é esse o caso
vos "de interesse etnológico", contra uma in- da famosa contribuição de Hélene Clastres ao
terpretação "reacionária" que via neles apenas estudo do profetismo tupi-guarani. Terre sans
objetos de uma história alheia. Na tese de um Mal 0978 [1975]).
messianismo indígena original estão implíci-
tos, por uma lado, a crítica ao ocidente apon-
tada acima e, por outro, o pressuposto de A VOCAÇÃO ANARQUISTA DA ANTROPOLOGIA DOS ANOS
que um instituto tão fundamental e complexo SETENTA: OS CLASTRES
quanto o profetismo não é prerrogativa ex-
clusiva de um único horizonte cultural, consi- Muito já foi escrito, a favor ou contra
derado como "hegemônico". Frente a isso, este ensaio intrigante. Apesar de uma séria
Mazzoleni observa: crítica à tese central do livro, Eduardo Vivei-
ros de Castro o considera o esforço interpre-
Se admitimos a possibilidade de que um tativo mais importante, a contribuição decisiva
instituto tão particular (ou seja, articulado, à compreensão da filosofia e da cosmologia
totalizante e específico ao mesmo tempo) pos- guarani, entendendo com isso a "visão tupi-
sa surgir autonomamente em contextos tão guarani do Homem" (Viveiros de Castro, 1984-
diferentes (...) então, é justamente esta singu- 85: 19). Outros autores apontam para o recorte
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e suas leis, projetando a única possibilidade do claro a propósito da famosa migração para
"ser" cultural e físico num espaço que abole as Chachapoyas, de 1539. Já vimos que Gandavo
regras do viver social, junto com as regras do é o único cronista que atribui esta migração à
viver tout court. Longe de ser um messianismo, busca da imortalidade, enquanto os outros fa-
que tenta frear a desorganização social, o zem dela uma fuga frente aos portugueses. O
profetismo tupi-guarani a promove. (H. Clastres, que era uma indicação em Métraux se torna
1978: 60) A migração tupinambá (não está men- um postulado em Clastres:
cionada a apapocuva) é a escolha suicida de A observação de Gandavo, de que os Ín-
uma sociedade, no auge de sua potência, que dios não possuíam terras cultivadas14, é par-
opta pela autodestruição, como preço a pagar cialmente errônea, na medida em que esseautor
para a liberdade de "ser como os deuses" (Ibid: vê a causa ocasional das migrações naquilo que
68 e passim) é mais propriamente a sua conseqüência. ( ..)
Para sustentar essa tese, embora H. Notemos, em todo caso, que a ausência de agri-
Clastres proponha que o ponto de partida não cultura prova que Gandavo não se enganou a
sejam mais os modernos Guarani, mas os an- respeitoda causa final dessa migração. Quanto
tigos Tupi, ela comete os mesmos erros dos à outra razão adiantada pelos cronistas espa-
outros autores. Por exemplo, ela utiliza o ter- nhóis (fugir da sertndão) é inaceitável, porque
mo Terra sem Mal (yry maran'ey) que per- não tem a menor consideração pela história.
tence ao universo religioso dos Guarani Com efeito, devemos recordar que nessa data
modernos - ao invés de "terra onde não se não sepode praticamente falar em colonização
morre", ou "terra bonita", ou "terra dos mor- (H. Clastres,1978:62)
tos", da qual falam os cronistas. Também é
utilizado o termo Caraí ou (que se encontra Então, Clastres aceita a interpretação,
nas fontes relativas aos antigos Guarani) a pro- embora "parcialmente errônea" de um cro-
pósito dos antigos Tupinambá, ao invés do nista, e rejeita todos os outros na base de
termo usado pelos cronistas: Caraíba. Claro, uma evidência histórica que precisaria de
trata-se de detalhes; mas se para a autora é informações mais precisas, sobretudo por-
um erro metodológico identificar Tupi anti- que dessa migração, como reconhece a pró-
gos e Guarani modernos", evidentemente não pria H. Clastres, não se pode identificar o
o é unificar Tupi e Guarani antigos em uma ponto de partida. Além disso, persiste a am-
única cultura tupi-guarani, para a qual bigüidade encontrada acima: talvez seja ver-
dade que nessa época não se possa ainda
a Terra sem Mal foi o núcleo em volta falar em colônia; mas nada podemos dizer
do qual gravitava o pensamento religioso (. ..) sobre os efeitos que a simples presença do
De modo que, mesmo na falta de movimen- branco (mesmo quando ainda não escravista)
tos migratórios, a crença na existência de uma teve na Weltanschauung indígena, e sobre
morada da imortalidade, acessível aqui e ago- as categorias de pensamento que essa pre-
ra, é um dado incontestável da cultura tupi- sença afetou.
guarani CH. Clastres, 1978: 56). Muitos dos antigos cronistas explicam a
chegada recente dos Tupinambá ao litoral com
Tal afirmação é sintomática do pensa- a "reputação de fertilidade e abundância des-
mento de H. Clastres, que pressupõe as anti- sa província". No intento de mostrar sua tese,
gas migrações tupinambá como sendo todas Clastres opera uma ousada identificação en-
de caráter profético. Este procedimento está tre "terra fértil" e "terra sem mal":
POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLASSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 59
1988: 46ss.; Fausto, 1992: 386; Viveiros de Voltando ao texto de Hélene Clastres,
Castro, 1984-85: 18-19; Monteiro, 1992: 478) a autora alude várias vezes à complexidade
Toda a construção teórica, portanto, deve ser da organização social tupi-guarani, única en-
ainda demonstrada. tre os povos da Floresta Tropical: hierar-
Note-se de passagem que o trabalho de quização da chefia, submissão dos vencidos,
Pierre Clastres é um exemplo típico daquela etc., documentada pelos cronistas. Daí a afir-
mistura entre grupos guarani contemporâne- mação, freqüentemente repetida (H. Clastres,
os (Mbya: os Mbüa de Schaden) e antigos 1978: 45, 59, 78), de que mudanças pro-
Tupinambá e Guarani. A justificativa de fundas estavam sendo produzidas nas soci-
Clastres para essa posição metodológica é fi- edades tupi-guarani no século XVI, a um
losoficamente forte, mas continua etno-hísto- passo do surgimento do estado, desencade-
ricamente frágil: ele parte do pressuposto de ando o conflito entre poder político e po-
que os Mbya, pequenos bandos que sobrevi- der religioso .
vem nas matas do este paraguaio, consegui-
ram conservar sua identidade tribal "contra De modo que (exceto se admitíssemos
todas as circunstâncias e provações de seu que este conjunto coerente que é a Terra sem
passado". Esta identidade reside, assim como Mal pudesse ter surgido bruscamente e ao
para os Tupinambá e Guarani do século XVI: mesmo tempo, em todas a sociedades tupis-
guaranis, coincidindo com a chegada dos eu-
(. ..) na convicção dos Índios de que ropeus) somos levados a formular a hipótese
seu destino está ordenado pela promessa dos de que oprofetismo gerou-se na medida exa-
antigos deuses: que vivendo sobre a terra má, ta em que as sociedades se transformavam e
yry mba'é megua, no respeito às normas, eles ampliavam, como a contrapartida crítica e
receberão daqueles lá do alto os sinais favo- negadora das transformações políticas e soci-
ráveis à abertura do caminho que, além do ais que se inauguravam. (H. Clastres,1978:59-
temor do mar, os levará à terra eterna. (P. 60, grifo da autora).
Clastres, 1978:112).
Já foi apontada acima a confusão, per-
Observamos que o mba 'é megua é, para manente nos estudiosos, entre as concepções
os Apapocuva, de Nimuendajú, o cataclismo cosmológicas tradicionais sobre a "terra da
cósmico previsto pelo mito e do qual os índi- imortalidade" e os movimentos proféticos em
os deviam escapar mediante a migração para busca dessa terra. Em Hélene Clastres, a con-
a Terra sem Mal. Supondo que ambas as tra- fusão se repete e se complica. Para a autora,
duções estejam corretas, descobrimos uma pro- não é plausível que o conjunto da Terra sem
funda mudança de sentido do rnba 'é megua Mal possa ter surgido ao mesmo tempo em
em meio século: de uma eventualidade futu- todas a sociedades, em relação à chegada dos
ra a uma realidade imanente e inevitável. Se brancos. Seria plausível, ao contrário, que ele
em poucos anos houve uma transformação tenha surgido como reação às transformações
semântica tão radical, como podemos pensar políticas internas. Mas quais são as fontes
na "constância capaz de atravessar a história (além das hipótese de Pierre Clastres) que
sem parecer afetada por essa", entre os antigos atestam a presença desse conflito entre polí-
agricultores guerreiros e os bandos contem- tico e religioso, portador de transformações,
porâneos de caçadores, ao longo de cinco surgido no mesmo momento em todas as so-
séculos de conquista e evangelização? ciedades tupi-guarani?
POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 61
sistemas simbólicos que se estavam defron- sem Mal), outra unicamente política (a resis-
tando no Guairá do século XVI. Guiravera tência aos espanhóis ou aos portugueses)
acaba por "reconhecer" uma superioridade má- (Ibíd.: 60). Mas se mudarmos de perspectiva
gica do interlocutor e se converte (não pode- e, ao invés de categorias lógicas em oposi-
mos esquecer que os jesuítas, e especialmente ção, observarmos dinâmicas históricas concre-
Montoya, foram os principais "tradutores", em tas, como o processo de evangelização do
termos guarani, da palavra cristã). Antes dis- Guairá, e admitirmos a capacidade nativa de
so, porém, há momentos de conflito em que se inserir estrategicamente nessas dinâmicas,
o karaí ameaça e chega a atacar a recém- as atuações de Guiravera, Montoya e Taiaoba
nascida missão do Guairá, enquanto o chefe adquirem uma profundidade e um sentido di-
local Taiaoba se batiza e defende o jesuíta. ferentes.
Aqui também, Hélene Clastres afirma que
o episódio não pode ser comparado com um
messianismo, e nisso pode-se concordar com As CONTRIBUiÇÕES DOS ANOS OITENTA E NOVENTA: AS
ela, mas não se pode concordar com a idéia PESQUISAS HISTÓRICAS
de que ele
A antropologia política dos Clastres exer-
... em compensação, ilumina muito ceu grande influência na década de 70; a partir
bem as rivalidades políticas que opunham dos anos 80, porém, começaram a ser questi-
morubixabase caraís.Não apenas Taiaoba não onados o uso arbitrário de algumas teorias
manifestou a mínima veleidade de resistên- demográficas, a visão "filosófica" da
cia à penetração jesuítica como, desde o co- cosmologia tupi-guarani e, sobretudo, a es-
meço, viu nos padres possíveis aliados contra cassa atenção aos processos históricos. Para-
os caraís, já que estava consciente que sua lelamente, iniciou a ser produzida uma
escolha implicava uma declaração de guerra literatura nova e diferente, de corte
contra estes; isto sem dúvida, porque o poder historiográfico, voltada justamente para a
do chefe de província já andava algo enfra- reconstituição dos processos vivenciados pe-
quecido, enquanto o dos caraís tendia, pelo los diferentes grupos tupi e guaraní.
contrário, a afirmar-se. A relativa abundân- A obra de Bartomeu Meliá é a pesqui-
cia de chefes-profetas significaria que, nessa sa mais cuidadosa sobre a etno-história guarani,
região, o processo de transformação do po- pesquisa que se baseia principalmente na
der (. ..) já estivesse em andamento? Esta é análise atenta da primeira documentação
somente uma hipótese, mas permitiria vis- jesuítica. Deve-se principalmente ao padre
lumbrar uma lógica por trás desses aconteci- Meliá a crítica mais fundamentada à interpre-
mentos. CH. Clastres, 1978: 78) tação "clássica" de Métraux, bem como ao
aproche moderno de Hélene Clastres, ao mito
Se a lógica é apenas a de uma antropo- da Terra sem Mal.
logia política que procura no "poder" a razão O ponto de partida de Meliá é que en-
primeira e última dos fenômenos culturais, a tre os Guarani "históricos" e os atuais ocorre
interpretação não pode ser senão esta, e a um longo processo de mudança cultural, pro-
análise deve necessariamente utilizar-se de fundamente marcada pela colonização e pela
dicotomias irredutíveis, que remetem a reali- evangelização jesuítica. Em um ensaio de 1981
dades "objetivamente" opostas: uma exclusi- (reeditado em 1988), o autor desvenda - me-
vamente religiosa e profética (a busca da Terra diante simples análise filológica - um dos
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Meliá, portanto, não renuncia à possibi- decir, se orientaba a crear cultura en todos
lidade de reconhecer o núcleo irredutível do Ias ordenes. político, económico y religioso
"modo de ser" guarani: este modo de ser, (Meliá, 1988: 204)
porém, é reconstituído historicamente, a par-
tir da análise e da comparação rigorosa das A problemática levantada por Meliá re-
fontes. flete uma mudança no interior das investiga-
Dessa forma, Meliá descobre que o ções etnológicas relativas aos tupi-guarani. A
"modo de ser" guarani (o teko, testemunhado partir da obra do padre jesuíta, entre as preocu-
seja pela documentação antiga, seja na pações dos pesquisadores não se encontra mais
etnografia atual), remete a duas categorias a de provar ou desmentir a suposta anteriorida-
fundamentais: a espacialidade e a tradição. É de do messianismo à chegada dos europeus. O
no interior dessas categorias que se pode ler que interessa, agora, é determinar as modalida-
significativamente o instituto cultural da "mi- des históricas com que os grupos tupi e guarani
gração", ao longo da "aventura semântica" elaboraram maneiras específicas de construir sen-
mencionada. tido, no interior de processos diferenciados.
Com isso, toma-se definitivamente dis- A preocupação de determinar mais cla-
tância de Hélene Clastres, bem como da soci- ramente as instâncias do processo catequético
ologia e da antropologia anteriores que, como na formação do conjunto mítico-ritual dos
vimos, construíram o Mito da Terra sem Mal: Guarani está na base do trabalho de Judith
Shapiro (987), por exemplo. Neste breve,
Sin embargo, Ia documentación ma- mas interessante artigo, a autora mostra como,
nejada no permite deducir, por 10 que se desde os primeiros contatos no século XVI,
refiere a Ias guaraní de esa época ta de até as propostas da igreja progressista con-
Montoyal, que "todo el pensamiento y Ia temporânea, o trabalho missionário foi uma
prâctica religiosa de Ias Índios gravitan en permanente obra de "tradução" da ideologia
torno de Ia Tierra sin Mal (Meliá, 1988: 107). cristã nos termos cosmológicos tupi-guarani.
Tal cosmologia, dessa maneira, tornou-se
Entre as interessantes propostas de desde o começo, o instrumento da edificação
Meliá, há a idéia clara de que, entre Guarani do projeto eclesiástico
e brancos, houve um encontro, e uma "tradu- Por outro lado, a necessidade de devol-
ção" recíproca, de horizontes culturais, onde ver ao conjunto da Terra sem Mal, que per-
particularmente um, o jesuíta, era um hori- tence aos Guarani modernos, seu caráter de
zonte utópico. Essa idéia, que já tinha sido resultado de um processo, lógico e histórico,
proposta por Maxime Haubert (969), ganha é o ponto de partida metodológico de uma
nova profundidade em Meliá, que nos con- pesquisa minha de 1981 Y Mediante a com-
.duz para dentro do cotidiano das reducciones, paração entre a cosmogonia tupinambá e a
o "lugar" das utopias jesuíticas, onde se "cataclismologia" dos Guarani contemporâne-
redefiniam as categorias de tempo e espaço os, o trabalho tentou devolver aos diferentes
dos índios, construindo assim o espaço de uma grupos e às diferentes épocas os elementos
novo "modo de ser", tanto das missionários culturais que, desde Métraux, foram confun-
quanto dos Guarani: didos em um único conjunto. Da mesma for-
ma, relacionando a mitologia com o ritual
Ia reducción, como nuevo produto es- pertencente aos grupos distintos e remeten-
pacial, producia un nuevo modo de ser, es do esta relação às específicas contingências
POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 65
Finalmente, as idéias de Meliá, que já escatologias", como quer Hélene Clastres; é
foram de Maxime Haubert, sobre o "encontro algo mais profundo, que remete, mais uma
de horizontes", entre Guarani e jesuítas, en- vez, à história e às experiências:
contram-se no estimulante artigo de Eduardo
Viveiros de Castro (992), sobre a "inconstância A explicação para a receptividade (in-
da alma selvagem", e, sobretudo, no livro de constante ...) ao discurso europeu não me pa-
Ronaldo Vainfas O 995) sobre a "Santidade de rece dever ser procurada apenas ou
]aguaripe" . principalmente no plano dos conteúdos ideo-
O texto de Viveiros de Castro procura lógicos, mas naquele das formas de relação
determinar as razões culturais da "inconstância" com a cultura e a tradição, de um lado, e na-
dos Tupinambá (tão sedentos de receber a quele das estruturas sociais e cosmológicasglo-
catequese e tão rápidos em esquecê-Ia e vol- bais, de outro. Uma cultura não é um "sistema
tar às práticas pagãs), da qual se queixam os de crenças", mas - já que deve ser algo - um
missionários, nos documentos antigos. conjunto de estruturações potenciais da expe-
Aqui também, as fontes são relidas não riência, capaz de suportar conteúdos tradici-
para recuperar um "ser" tupinambá originá- onais variados e de absorver novos: é um
rio, e sim para recompor o quadro multifa- dispositivo "culturante" de processamento de
cetado que opunha dialeticamente um "ser crenças (Viveirosde Castro, 1992:33)
tupinambá" a um "ser europeu", onde um e
outro codificavam a alteridade antropológica Atrás dessa afirmação, está a denúncia
nos termos de seus respectivos patrimõnios do autor contra uma antropologia incapaz de
culturais. Eis, então, que, enquanto para os perceber as culturas como algo dinâmico:
evangelizadores os Tupinambá são "homens
de cera, prontos para receber uma forma (. ..), Nossa idéia de cultura desenha uma
vácuo religioso clamando por ser preenchi- paisagem antropológica povoada de estátu-
do" (Viveiros de Castro, 1992: 27), nos as de mármore, não de estátuas de murta.
Tupinambá aparece o "desejo de ser outro, Acreditamos que toda sociedade tende a per-
mas segundo os próprios termos" (Ibid.: 26). severar no seu próprio ser (...) Mas sobretu-
E esses termos remetem à cosmologia tupi, do cremos que o ser de uma sociedade é seu
que ao fundar a disjunção entre homens e perseverar: a memória e a tradição são o
heróis, funda a mortalidade, mas, ao mesmo mármore identitário de que é feita a cultu-
tempo, considera uma e outra como algo não ra. (Ibid.: 26-27).
definitivo.
Daí o apelido de Caraíba, ou Maíra, Finalmente, também a última pesquisa
dado aos missionários, errantes "senhores da sobre o "rnessianismo" tupinambá coloca-se
fala" como os grandes xamãs, poderosos como na linha das investigações que procura en-
as personagens míticas, já que os europeus tender, por um lado, a especificidade de cada
"vieram partilhar um espaço que já estava manifestação, e por outro, as modalidades do
povoado pelas figuras tupi da alteridade: deu- "encontro de horizontes", que possivelmente
ses, afins, inimigos, cujos atributos se definiram esta especificidade. Trata-se do tra-
íntercomunicavam" (Ibid.: 32). Daí, também balho histórico de Ronaldo Vainfas sobre a
o encontro entre mensagem apocalíptica cris- "Santidade de ]aguaripe", de 1585.
tã e tema nativo da catástrofe cósmica. Mas O olhar histórico de Vainfas permite uma
não se trata apenas de "convergências de crítica punctual e convincente às interpreta-
POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA ·CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 67
ões dos Guarani das haciendas do século tradas no caminho. Por isso, alguns dentre eles
XVII; Oberá não é Viarazu, nem Guiravera, foram guias da expedição de Pedra de Ursua para
apesar de serem todos "grandes pajés' ou o Amazonas, em 1560, em busca do Eldorado.
Karais, ou Caraibas, as migrações apapocuva A releitura contextualizada das fontes antigas so-
não são a Santidade de ]aguaripe. É preciso bre o "profetísmo tupi-guarani" é objeto de outro
fazer clareza, como sugere também, com trabalho meu (Pompa, 1997).
outra perspectiva, Isabelle Silva (997), re- A este respeito, remeto à intuição de Ronaldo
metendo cada elemento cultural a seu con- Vainfas sobre o caráter de "rito", e não apenas de
texto histórico específico, e relacionando-o "movimento" da Santidade de ]aguaripe (Vainfas,
com outros elementos pertinentes. Por isso, 1995: 51), bem como às recentíssimas observa-
torna-se indispensável a releitura das fon- ções de Isabelle Silva 0995: 65-70), nas páginas
tes, para desvendar as dinâmicas culturais, desta revista.
as escolhas funcionais, as estratégias indi- "Os movimentos messiânicos representam, pois, um
viduais e coletivas produzidas nas diferen- fenômeno particular de aculturação. Ocorre no mo-
tes situações. mento crítico em que determinada população se
Estas últimas indicações declaram expli- sente incapaz de suster a ruína ameaçadora e an-
citamente a inutilidade interpretativa e a defi- gustiante" (Métraux, 1979: 195). É a partir destas
nitiva renúncia metodológica aos rótulos observações que Eduardo Viveiros de Castro pode
c1assificatórios e generalizantes que marcaram, afirmar que Métraux "termina por tomá-Ias (os
quase desde o começo, o estudo desses movi- movimentos) como reação à conquista européia"
mentos e que construíram esse incrível objeto (Viveiros de Castro, 1985: 9). Pelo que foi exposto
antropológico denominado "Terra sem Mal". até aqui não se pode concordar com Viveiros de
Castro. A aparente contradição entre as duas afir-
Agradeço a Eduardo Diatahy B. de mações de Métraux, em um mesmo capítulo, deve-
Menezes pela cuidadosa leitura e pela revi- se ao fato de que a segunda refere-se a uma série
são deste texto. de movimentos de aberta revolta contra os espa-
nhóis entre os Guarani (o de Oberá e o de
Yaguariguay, citados por Lozano, o de ]uan Cuara,
NOTAS citado por Dei Techo), entre os Chiriguano (como
o de Apiawaiki, de 1892, citado por Bernardino de
De acordo com as fontes de Métraux (principal- Nino) e entre os Guarayos da Bolívia (de 1799,
mente os textos publicados por ]imenez de Ia Es- citado por Cardús), Esses movimentos, assim como
pada em Madrid, entre 1881 e 1897, sob o título outros mais recentes, como os dos "Cristas"do Rio
de Relaciones Geográficas de Indias), esta migra- Negro, sempre citados por Métraux, incluem o bran-
ção teria levado cerca de dez mil índios a deixar o co, pois o prevêem no plano cosmológico
litoral brasileiro, rumo ao ocidente. Os trezentos (freqüentemente os "messias" se dizem Cristo e
remanescentes da marcha chegaram, dez anos mais utilizam símbolos católicos) e o identificam como
tarde, à cidade de Chachapoyas, no Peru. Os cro- inimigo no plano histórico. Neste caso, evidente-
nistas assinalam como sua causa o insaciável de- mente, Métraux deve falar em reação ao branco.
sejo de guerras e de aventuras. O acontecimento Quanto ao termo aculturação, deve-se notar que
provocou muita impressão nos espanhóis que aco- Métraux utiliza esta expressão no prefácio à edição
lheram os migrantes, sobretudo porque estes brasileira de sua obra, publicada muitos anos de-
últimos teriam narrado acerca de regiões fabulo- pois da primeira edição francesa. O capítulo relati-
samente ricas em ouro e pedras preciosas encon- vo ao "mito da Terra sem mal" apresenta-se
nexão com o sistema guerreiro da sociedade são traduções minhas dos originais italianos.
tupinambá. Com relação a seis problemas, é pos- 13 Contudo, esta identificação é feita claramente
sível isolar trinta e nove tópicos distintos. (Ibid.: quando, para mostrar a importância de Tupã na
208). Tal procedimento é, no mínimo, um tanto cosmologia tupínambá, a autora recorre à compa-
artificial: o ponto de partida para reconstituir um ração com os Guayaqui (visitados por ela e por
"sistema integrado" como o da guerra na socieda- Pierre Clastres na década de sessenta), para os
de Tupinambá acaba por ser uma absoluta frag- quais a personagem mais importante é Chono, o
mentação das fontes e sua recomposição em trovão. A comparação justifica-se, para a autora,
unidades arbitrárias. Tal arbitrariedade, observa E. "pois os Guayaqui nunca estiveram em contato
Viveiros de Castro 0984-85: 19, n. 3) é em tudo com os brancos" (H. Clastres, 1978:28).
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14 Esta falta de agricultura é inferida por Clastres das BIBLIOGRAFIA
palavras de Gandavo que citamos anteriormente.
A partir delas, a autora sustenta que durante a vi-
FONTES ANTIGAS
agem de dez anos (que, como vimos, contrasta
com a informação de Gandavo) os Tupinambá
nunca pararam para cultivar. D'Abbeville, Claude, OFM - História da _ r -
15 "É muito provável, como sugere Métraux, que são dos Padres Capuchinhos na Ilha de
migrações semelhantes (. ..) tenham aconteci- Maranbão e terras circunvizinhas. Sã
do antes da chegada dos europeus: sem dúvi- Paulo - Belo Horizonte: Edusp/Itatiaía
da, essa hipótese não poderá nunca ser 1975 (Histoire de Ia Mission des Pere
demonstrada: contudo, a mera existência de Capucins en l'Isle de Maragnon et terres
Karai, atestada já pelos primeiros observado- crcumvoisines. Paris, Huby, 1614)
res, basta para torná-Ia muito plausível" Anchieta, José de, SJ "Enformação do Brasi;
(Clastres, 1978: 56). Por que a presença do e de suas capitanias. 1584", Revista do Ins-
Karai é sintoma, em si mesmo, da migração tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, \1,
para a Terra sem Mal? Porque o postulado de 1844, pp. 412-444.
Clastres é o da ligação indissolúvel e prioritária Cardím, Pe. Fernão, SJ - Tratados da terra e
entre essas personagens e aquele complexo gente do Brasil. São Paulo: Cia. Editora .a-
mítico-ritual, como se o próprio surgimento do cional, 1978 (1625)
grande xamã fosse, em si, o anúncio do colap- D'Evreux, Yves, OFM - Viagem ao Norte do
so social tupinambá. Sobre o mesmo postulado Brasil. Tradução do Dr. César Augusto
se basearam também as conclusões (diferentes)
Marques (1874). Rio de Janeiro: Livraria
de Métraux e Schaden. Poderíamos perguntar
Leite Ribeiro, 1929 (Voyage dans le nord
até que ponto a base desse postulado está na
du Brésil, Paris, Franck , 1864, Publié
tradução "etnocêntrica" feita pelos cronistas da
d'aprés l'exemplaire unique conservé à Ia
personagem do Caraiba com o termo "profeta".
Bibliothéque Imperíale de Paris)
16 Em um trabalho posterior (Meliá, 1989), o autor
Gandavo, Pero de Magalhães - Tratado da ter-
retoma e desenvolve esta relação, sublinhando a
ra do Brasil - História da província de San-
complexa trama de significações cosmológicas à
ta Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. (P
qual remete a idéia de "terra" entre os Guarani.
publicação do Tratado: 1826; 1a publ. da
17 A publicação "marginal" (o arquivo histórico da
História: 1576)
ordem dos jesuítas) do trabalho de Meliá, sobre o
"modo de ser" guarani, não o tornava de fácil aces- Léry, Jean de - Viagem à terra do Brasil. Belo
so; meu artigo saiu no mesmo ano, sem que ti- Horizonte: Itatiaia, 1980. (Histoire d'un
vesse conhecimento da obra do padre Meliá. voyage faict en Ia terre du Brésil (578), La
Mesmo assim, há algumas interessantes conver- Rochelle, A. Chuppin, 1580)
gências, sinal da mencionada mudança nas preo- Nóbrega, Manuel da, SJ - «Informação das
cupações etnológicas. terras do Brasil" (carta aos padres e ir-
18 Este trabalho, de fato, constitui-se como mais um mãos de Coimbra; Bahia, agosto (?) de
capítulo de um diálogo estabelecido com G. 1549) in. Leite, Serafim, SJ: Cartas dos
Mazzoleni, desde a orientação de minha tesi di Primeiros jesuítas no Brasil 0538-1553).
laurea, em 1980. São Paulo, Comissão do IV centenário
19 Do grego j.!u80C; (mito) e 1tOtT]C>tC; (construção) = da Cidade de São Paulo, 1954, vol. I,
geração de mitos. pp. 145-154.
POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 71
SI /UFC