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BH/UFC

DOS 5 I Ê

o MITO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA


"CLÁSSICA" SOBRE O PROFETISMO TUPI-GUARANI

INTRODUÇÃO CRISTINA POMPA * discurso religioso guarani,


deixando de lado suas
RESUMO
condições e implicações

E
Numa revisão critica da bibliografia sobre o chamado
m 1914 foi publicado 'profetismo tupi-guarani', as obras 'clássicas' são sociológicas. O discurso
recolocadas - sem desconhecer seu porte cientifico -
no Zeitscb rift für nos contextos intelectuais que as produziram e que predomina sobre o es-
Ethnologie o ensaio determinaram preocupações cientificas, aproches quema ritual, a represen-
metodológicos e conclusões explicativas. O artigo
de Nimuendajú sobre o examina as duas grandes linhas interpretativas elabo- tação sobre a instituição,
conjunto mítico da Criação radas pela tradição antropológica: a que pressupõe a o tempo cósmico-esca-
existência de um 'misticismo' endógeno tupi-guarani e
e da Destruição do Mundo a que define o fenômeno em termos de reação à situa- tológico sobre o espaço
na religião dos Apapocuva, ção de contacto. Uma e outra dependem menos de social Ubtd., XXX).
evidências documentais do que de posições teórico-
o grupo guarani estudado metodológicas caracteristicas de especificas escolas Ilá, a meu ver, ou-
pelo etnólogo alemão en- antropológicas. São analisados, também, os funda- tras marcas deixadas pelo
mentos do 'discurso de autoridade', estabelecido pelo
tre 1905 e 1907. Com este cruzamento das fontes historiográficas com as informa- recorte inaugural que fize-
ensaio, entram na literatu- ções etnográficas. Este cruzamento leva a um trata- ram escola. Após a fasci-
mento forçoso dos dados, pois explica a cultura
ra etnológica o tema da tupinambá do início da colonização pela cultura guarani nante descrição do trágico
Terra sem Mal, o da mi- modema, pressupondo uma única 'cultura tupi-guarani', destino da última migração
imóvel nos séculos, que mantém o núcleo irredutivel
gração profética e, mais do seu 'ser" no Mito da Terra sem Mal. "mística" dos Apapocuva,
geral, o que foi chamado Nimuendajú levanta a hi-
de" c a t a cl is m o Io g ia" • Doutoranda em Ciências Sociais, do IFCH/Unicamp. pótese de que a mola pro-
guarani: uma cosmologia- pulsora das migrações dos
escatologia que prevê para um futuro mais antigos Tupinarnbá, descritos pelos cronistas
ou menos próximo um cataclismo cósmico do em permanente movimentação no litoral no
qual, porém, é possível escapar alcançando início do século XVI, não seria a força de
em vida - assim como narra o mito do xamã expansão bélica, mas urna razão religiosa, a
Guyraypoty - o Paraíso. Desde então, o dis- mesma dos Apapocuva: a busca da Terra sem
curso "religioso", o "misticismo", o "pessimis- Mal (Ibid.:10S).
mo" como fundamento da filosofia da história A partir daí, articulando os dados
tupi-guarani, se tornaram alguns entre os as- etnográficos sobre os Guarani modernos com
suntos favoritos da investigação etnológica. as fontes do século XVI e XVII, Métraux
Na introdução à edição brasileira do 0927; 1979 [1928]) tentou recompor o qua-
livro de Nimuendajú (987), Eduardo Vivei- dro da cultura tupinambá da época colonial,
ros de Castro observa que a marca deixada pressupondo a substancial identidade entre
por seu recorte inaugural foi tão forte que as duas sociedades.
mesmo suas lacunas fizeram escola. Com Este "pecado original" parece percorrer
efeito, a produção etnológica sobre os todos os estudos "clássicos" sobre estes gru-
Guarani tem-se concentrado na compilação pos; até nos trabalhos dedicados especifica-
e exegese de mitos, cantos, enfim, sobre o mente aos Tup ína mbá (Fernandes, 1963,

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1970) ou aos Guarani (Schaden, 1959, 1962), estudos e aponta, na linha das contribui-
os autores não deixam de recorrer, para ex- ções mais recentes, para diferentes hipóte-
plicar aspectos de uma cultura, aos dados da ses de trabalho. Por isso, a crítica às obras
outra, pressupondo uma única e imutável "cul- "clássicas" deixa às vezes de lado as
tura tupi-guarani". indubitáveis e importantes aquisições, para
Os trabalhos sobre o "messianismo" ou indicar principalmente alguns problemas,
o "profetismo" tupi-guarani da década de 60, notadamente aqueles que dizem respeito à
característicos de um interesse científico para historicidade dos movimentos. Não se quer
a religiosidade nativa ou "nativista" em época aqui, é claro, desconhecer a validade e o
de "descolonízação", não precisaram mais pro- porte científico dessas obras, mas apenas
curar dados etnográficos e fontes históricas, recolocá-Ias no interior dos contextos inte-
limitando-se às citações dos trabalhos pionei- lectuais em que se produziram, contextos
ros. É este o caso das classificações sociológi- que determinaram preocupações científicas
cas de M. Isaura Pereira de Queiroz, René e abordagens metodológicas, bem como
Ribeiro, Vittorio Lanternari. Com estes auto- conclusões explicativas.
res, além da substancial identidade entre os Em primeiro lugar, são discutidas as duas
conjuntos histórico-religiosos tupinambá e tendências fundamentais que, a partir dos estu-
guarani, codifica-se também outro topos ideo- dos pioneiros de Nimuendajú 6 Métraux, de um
lógico: o da preexistência do sistema lado, Florestan Femandes de outro, foram acom-
cosmogônico-apocalíptico da "Terra sem Mal" panhando os "movimentos messiân icos"
à chegada dos brancos. Esta especulação aca- tupinambá. A primeira, mais aceita pelos estu-
ba por se tornar um "dado" objetivo nas teses diosos, pressupõe a existência de um "misticis-
de Pierre' e Hélene Clastres, fascinantes para mo" endôgeno tupi-guarani, que nada deve ao
os cultores de uma certa antropologia política contacto intercultural; a segunda prefere uma
que exerceu uma ampla influência na década definição do "profetismo" tupinambá em ter-
de 70, mas problemáticas do ponto de vista mos de reação à situação de contacto. Veremos
etno-histórico. que tanto uma quanto outra dependem menos
O presente trabalho consiste, pois, numa de evidências documentais do que de posições
revisão crítica da bibliografia clássica sobre o teórico-metodológicas características de especí-
chamado "messianismo tupi-guarani", a partir ficas correntes e escolas antropológicas.
de um enfoque diferente: a perspectiva his- Em segundo lugar, são analisados os fun-
tórica presente nas contribuições dos anos '80 damentos do duplo "discurso de autoridade",
e '90, que oferece sugestões metodológicas estabelecido pela "prova" das fontes
significativas para uma abordagem mais com- historiográficas e das informações etnográficas.
pleta dos movimentos em pauta. A partir deste discurso, as hipóteses dos pri-
Dada a amplitude do assunto, o recorte meiros etnógrafos tornaram-se dados objeti-
temático escolhido privilegia os movimentos vos para autores posteriores, pelo menos em
tupinambá dos séculos XVI e XVII. Contudo, dois pontos básicos, a saber:
não é possível deixar de lado, na análise, a 1) a substancial identificação, no que
bibliografia relativa ao conjunto da Terra sem diz respeito aos chamados "movimentos pro-
Mal dos Guarani do século XIX e XX, em féticos", de dois conjuntos histórico-culturais
virtude do "pecado original" apontado acima. distintos: o tupinambá da época colonial, ob-
Basicamente, o artigo discute alguns servado pelos cronistas no litoral de Rio de
temas elaborados ao longo da história dos Janeiro, Bahia, Pernambuco e Maranhão, e o

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guarani do Paraguai e sul do Brasil, registrado MÉTRAUX, NIMUENDAJÚ, FERNANDES E SCHADEN: OS
a partir do começo deste século; ESTUDOS PIONEIROS
2) a definição do "mito da Terra sem
Mal" e do conseqüente "messianismo", ou Métraux foi o primeiro antropólogo a uti-
"profetismo", como um sistema cosmológico lizar os relatos de missionários e viajantes dos
intrínseco à cultura tupi-guarani como um todo, séculos XVI e XVII para a reconstituição das
preexistente à conquista e mantido intacto, "migrações históricas" dos Tupinambá, por um
como núcleo irredutível do "ser" cultural tupi- lado, e de sua religião, por outro. A aborda-
guarani, ao longo dos séculos de história de gem de Métraux insere-se na tradição das gran-
contacto. des hipóteses dos americanistas da época
Isso remete à questão do uso das fon- (Rivet , ordenskibld), voltada para a
tes: se Métraux e Fernandes utilizaram possi- reconstítuíção das rotas migratórias dos grupos
velmente de uma forma instrumental as fontes tupi-guarani, a distribuição territorial dos ele-
documentais dos séculos XVI e XVII, muitos mentos culturais específicos, a sua classifica-
autores da década de 60 e 70 utilizaram cer- ção. As migrações revestem grande interesse
tamente de uma forma instrumental as fontes para o aproche difusionista do autor (mais cla-
de Métraux, bem como as informações ro no texto sobre a civilização material dos
etnográfícas de Nimuendajú e Schaden. tupi-guarani, de 1928), visando uma compara-
Finalmente, as contribuições da década ção que possa reconstituir as unidades cultu-
de 80 e 90, que inauguram o questionamento rais maiores dos grupos tupi-guaraní.
profundo tanto da identidade entre movimen- O sentido desta comparação está claro:
tos tupinambá e movimentos guarani, quanto quando as fontes antigas não permitem co-
da suposta anterioridade do "misticismo tupi- nhecer completamente as crenças e os ritos
guarani" à chegada dos brancos, apresentam dos Tupinambá,
novas indicações metodológicas para o estu-
do destes fenômenos, em particular, uma op- Tais lacunas são, em parte, preen-
ção especificamente etno-histórica. chidas pelos estudos de Nimuendajú. Este
Não serão examinados aqui em detalhe sábio estudou profundamente a mitologia
as contribuições recentes: apenas, tentar-se-à dos apapocuva e tembé, considerados os der-
identificar suas sugestões mais estimulantes. radeiros rebentos da borda migratória dos
Apesar das diferenças de aproche entre estes tupinambá. São de fato surpreendentes as
trabalhos, relativamente às problemáticas nas analogias existentes entre os ritos e a mi-
quais se inserem, todos eles apontam para a tologia dos apapocuoa e dos tembé e os ri-
necessidade de um cuidado maior na adoção tos e a mitologia dos seus remotos ancestrais,
dos estereótipos consagrados pela tradição de modo a permitir que aqueles expliquem
etnológica. Da mesma forma, alguns dentre ou completem os antigos textos (Métraux,
eles sugerem a necessidade de estudar estes 1979: XXXV).
sistemas culturais em sua especificidade e
historicidade, isto é, relativizando mitos, ritu- Por essa via, Métraux procura elemen-
ais e personagens religiosas em face de seu tos culturais especificas dos Apapocuva que,
contexto cultural, dialogando com as contin- para ele, são próprios dos tupi-guarani, o que
gências históricas que possivelmente contri- interessa, com efeito, são as semelhanças que
buíram para determinar uma ou outra escolha constituem a prova da "unidade cultural des-
cultural. sas tribos em seus antigos tempos" (ibid.). A

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comparação, portanto, seja entre as fontes an- fornecem seguras motivações religiosas
tigas, seja entre estas e os dados etnográficos (D'Abbeville, 1975 [1614]: 252; d'Évreux, 1929
atuais, é funcional ao preciso desenho de [1874]: 351-352). De outras migrações
reconstituir unidades. A partir dos dados rela- conduzidas por grandes "feiticeiros", os
tivos às migrações "místicas" dos Apapocuva Caraíba (como a mais antiga, de 1539, a de
do século XIX e XX, e de sua mitologia 1605 no Maranhão, ou a de 1562 na Bahia),
apocalíptico-escatológíca, com a ajuda de al- as fontes citadas por Métraux fazem buscas
gumas crônicas, pode ser reconstituído o ho- de novas terras ou fugas frente aos portugue-
rizonte das migrações "históricas" tupinambá, ses, sem mencionar o objetivo do "Paraíso
que seriam, em sua maioria, fruto da "crença Terrestre". Sobre a migração de 15391, ape-
obstinada na existência de um Paraíso terres- nas Gandavo afirma:
tre" (Métraux, 1927: 36).
Definitivamente esc1arecedor do proce- "Os quaes como nam tenham fazen-
dimento de Métraux é o seguinte trecho: das que os detenham em suas patrías e seu
intento nam seja outro senam buscar sempre
"Pormenores, freqüentes vezes obscu- terras novas, afim de lhes parecer que acharão
ros, fornecidos a respeito do assunto pelos nellas immortalidade e o descanço perpetuo"
antigos cronistas, tomam-se mais compreensí- (apud Métraux, 1927: 21).
veis quando os comparamos aos acontecimen-
tos, relativamente recentes, que se produziram Não é possível mostrar aqui o contexto
no seio de alguns grupos guarani do Paraguai do qual Métraux extrai a frase citada (o capítu-
e do sul do Brasil. Pode se empreender o estu- lo da História da província de Santa Cruz, de
do dos movimentos messiânicos dos 1576, intitulado "Das grandes riquezas que se
tupinambá partindo-se do conhecido para o esperam da terra do sertão")". Vale a pena,
desconhecido, isto é, do exame dos fatos con- porém, lembrar que Gandavo não menciona o
temporâneos para a interpretação dos velhos líder da marcha, Viarazu ou Curaraci nas fon-
textos." (Métraux, 1979: 176, grifo meu) tes espanholas, que, por sinal, era um chefe e
não um xamã; que Gandavo não fornece a
Uma primeira comparação entre tribos data da migração, nem o número de partici-
contemporâneas estudadas pelos etnógrafos pantes, enquanto outras fontes falam entre dez
(Apapocuva e Te m bé visitados por mil e treze mil índios; que ele não releva a
Nimuendajú, Chiriguano descritos por presença de dois portugueses acompanhando
Nordenskiold) mostra a difusão (e portanto a Viarazu, como os outros autores; que esta fon-
antigüidade) de um idêntico Mito do Paraíso, te, finalmente, discorda das outras quanto à
que Métraux já define, tomando a expressão duração da viagem, pois em Gandavo ela é de
registrada apenas entre os Apapocuva, mito pouco mais do que dois anos e para os demais
da "Terra sem Mal". de cerca dez anos. Poder-se-ia perguntar se as
A partir daí, os "velhos textos" são in- fontes estão falando da mesma coisa, e por
terpretados de maneira unívoca, apenas en- que Métraux utiliza justamente esta para sus-
quanto confirmam a tese de que todas as tentar sua argumentação.
migrações tupinambá são de origem religio- Os numerosos outros documentos cita-
sa. De fato, das numerosas migrações dos por Métraux, a bem ver, descrevem ceri-
tupinambá, pré- e pós-coloniais, apenas de mônias envolvendo os grandes feiticeiros e
uma - a de 1609 no Maranhão - os cronistas não o que ele chama "sintomas precursores"

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de uma migração à Terra sem Mal. Assim são Assim, migrações tupinambá do litoral
as descrições de Nóbrega 0954 [1549]: 150), norte até o Peru no século XVI, revoltas
ou do jesuíta anônimo da "Informação do Bra- guarani no Paraguai espanhol da mesma épo-
sil" (que é, de fato, Anchieta, 1844 [1584]: ca, êxodos apapocuva do século XIX: tudo
440), ou de Léry 0980 [1578]: 209-210), ou isso, para Métraux, é "Terra sem Mal". Caraíbas
de Cardim 0978 [1625]: 102).3 tupinambá, xamãs guarani, chefes portugue-
Vale aqui ressaltar que este tipo de aná- ses ou mamelucos das mais diversas épocas:
lise, como vimos, é funcional para a defini- todas essas personagens são "messias". A com-
ção do mito da Terra sem Mal como um paração de Métraux procura as semelhanças,
conjunto cultural característico da cultura tupi- explicativas de uma unidade e uni cidade cul-
guarani, e é conseqüente em relação à afir- tural, e negligencia as diferenças, reveladoras
mação com que o autor apresenta os dados: de processos históricos, desencadeados pelas
diferentes modalidades de impacto colonial
"Apresença de mito idêntico entre tri- (evangelização, exploração econômica, escra-
bos há séculos insuladas é prova suficiente vidão, epidemias), nas diferentes regiôes, nas
em favor de sua antigüidade. Os textos que diferentes épocas, junto a diferentes grupos.
agora vão ser examinados não deixam sub- Com La religion des tupinamba, nasce
sistirnenhuma dúvida a esse respeito; atestam, um dos maiores "mitos de origem" da etnologia
além disso, que as aspirações messiânicas religiosa da América do Sul: o mito da Terra
dos tupi, assim como as respectivas lendas sem Mal e do "rnessianismo" como elemen-
básicas,pertencem às primitivas noções re- tos característicos da cultura tupi-guarani, O
ligiosasde todos os indígenas da família em arcabouço metodológico que circunscreve esse
espécie.São os fatos modernos suficientemen- mito consiste em explicara cultura tupinambá
te claros para dar idéia do alcance e significa- pela cultura guarani moderna, e considerar,
ção dos antigos textos referentes aos ao mesmo tempo como "pressuposto" e como
fenômenos da mesma ordem". (Métraux, "conseqüência", a segunda como derivada da
1979: 180-181, grifo meu). primeira'.
As fontes antigas estão também à base
Portanto, apesar das observações finais das duas grandes obras de Florestan Fernandes:
do capítulo, relativas à influência sobre o A organização social dos tupinambá 0963
"messianismo" da situação de "aculturação", [1949]) e A/unção social da guerra na socie-
as "aspirações messiânicas" existem ab origi- dade tupinambá 0970 [1952])6.
ne na cultura tupi-guarani e constituem seu Também nos trabalhos de Fernandes,
traço distintivo, assim como a antropofagia ri- como nos de Métraux, a escolha teórico-
tual". A presença entre os Tupinambá (am- metodológica, no caso a funcionalista, acaba
plamente demonstrada pelos cronistas) de uma por determinar a maneira de tratar as fontes e
cosmogonia de tipo "apocalíptico", que pro- de considerar os materiais. Com efeito, a con-
jeta a possibilidade de uma destruição da Ter- clusão dos dois trabalhos é que tanto a orga-
ra no futuro, além do que no passado mítico, nização social (fundada no sistema de
é suficiente para comprovar também a exis- parentesco), quanto a organização "ecológi-
tência do "rnessianismo". As fontes não ates- ca" (definida pela exploração, distribuição e
tam uma relação tão automática, mas aí estão consumo dos recursos naturais), quanto o con-
os dados dos Guarani modernos para "preen- junto "guerra-captura-antropofagia" estavam
cher as lacunas". determinadas pelo sistema religioso, eram -

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de fato - instrumentum religionis (Fernandes, ... em última análise ele não represen-
1970: 364). É a religião, afinal, o lugar do ta somente uma resposta ao branco: mas pri-
"ser" tupinambá, sendo os demais domínios mariamente às próprias condições
do social apenas meios de expressão dela. insuportáveis de vida. Deve-se admitir, em vis-
Mas essa religião, que engloba relações ta disto, que aconteceria a mesma coisa em
funcionais entre os outros domínios, não é outras situações da vida tribal, sem interven-
uma religião "rnessiânica", ou melhor, o ção do branco; entre outras, quando o equi-
messianismo faz sentido apenas enquanto fun- líbrio biótico se rompesse de modo muito
ciona como instrumento de controle social e desfavorável (Femandes, 1963: 105-106).
de orientação carismática da eunomia do gru-
po. Com efeito, as mesmas fontes antigas de No aproche funcionalista, entre os dois
Métraux (D'Évreux, Léry, Thevet, Nóbrega, tipos de migração não parece haver uma di-
e, principalmente, Soares de Souza, etc.) são ferença de qualidade, e sim de intensidade:
utilizadas para mostrar como as migrações ambos são compreensíveis nos termos de um
tupinambá eram uma técnica de restituição sistema tecnológico. Os fatores religiosos, as-
do equilíbrio biótico quebrado pela ocupação sim como as sanções morais corresponden-
destrutiva, e, ao mesmo tempo, traduziam-se tes, constituem formas específicas de controle
socialmente na intensificação dos laços de so- social. Dessa maneira, a ação coletiva das mi-
lidariedade intragrupal e tribal (Fernandes, grações para restabelecer o equilíbrio biótico
1963: 98ss). adquire um força especial: a formidável força
Análoga função de conseguir a eunomia de expansão dos Tupinambá. Trata-se do exa-
desempenharam as grandes migrações, algu- me de uma sociedade que funciona: neste
mas das quais - admite Fernandes, na base sentido, e apenas neste, é lido, em pouquís-
de Nimuendajú - "estavam de fato ligados à simas linhas, o "messianismo" tupinambá.
crença na Terra sem Mal". Frente à consciên- Sobre as "migrações", Fernandes afirma
cia de condições insatisfatórias de vida - ao contrário de Métraux - existirem "ape-
(desequilíbrio biótico ou depriuation determi- nas dados esparsos, não susceptíveis de apro-
nada pelo impacto colonial) mitos tribais e veitamento sistemático" (Fernandes, 1963:
papel do pajé constituíam as condições de 110). É obvio que o diferente tratamento dado
desenvolvimento do messianismo como meio às fontes pelos dois autores depende da di-
de redenção coletiva. versa posição teórico-metodológica, uma pro-
O autor identifica dois tipos de migra- curando rastos de um percurso de difusão,
ção: aquelas com fixação em áreas dentro outro querendo descobrir mecanismos de fun-
do território sujeito ao domínio do grupo lo- cionamento. Por isso, enquanto o interesse
calou tribal, e aquelas de conquista, que de Métraux concentra-se na "cultura materi-
invadem territórios pertencentes a outras tri- al", nas "migrações", na "religião" e princi-
bos, com deslocação parcial ou total dos pri- palmente na "mitologia", reconstituídas com
mitivos grupos de população. Sendo a ajuda dos dados modernos; a pesquisa de F.
justamente estas últimas, as maiores, as que Fernandes aponta para o "sistema de paren-
parecem ter o caráter "messiânico", conclui- tesco", os "grupos locais", as "formas de con-
se que "as próprias condições de contato pro- trole social". Assim, suas fontes são recortadas,
vocaram a emergência de revivals religiosos conforme sua capacidade de fornecer elemen-
e de movimentos messiânicos" (Fernandes, tos para uma explicação "técnica" dos fenô-
1963: 110). Mas, menos sociais, em termos da função por eles

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desempenhada em uma estrutura social Não se pode, no entanto, afirmar que
integradora 7 . lo messianismoJ seja condicionado sempre e
Os trabalhos de Egon Schaden 0969 unicamente por fenômenos desenvolvidos no
[1964]; 1974 [1962]; 1989 [1959]) sobre os interior da própria cultura nativa. É por essa
Guarani inserem-se na problemática relativa à razão que discordamos de Métraux, quando
"aculturação" e à "mudança cultural", caracte- invoca o caráter anticristão e antieuropeu dos
rística da investigação etnológica brasileira nas movimentos místicos provocados pelos mes-
décadas de 50 e 60. Por isso, a leitura do sias como argumento a favor da origem pu-
"rnessíanísmo" é feita nesses termos. Por isso, ramente indígena desses últimos. A nosso ver,
também, a interpretação deste conjunto mítico- as manifestações xenófobas, que constituem
profético articula a idéia de reação aos proces- um aspecto quase geral do messianismo, de-
sos de desintegração cultural à do caráter natioo vem-se principalmente a uma situação de
do messianismo, oscilando, nos diferentes en- desequilíbrio provocado pelo contato com a
saios, entre o primeiro e o segundo fator como civilização ocidental (Schaden, 1989: 58).
predominantes. Na análise dos movimentos,
portanto, é necessário levar em conta Esta aparente contradição se explica,
talvez, com o fato de que justamente a idéia
... a presença eventual de dois fatores: de aculturação e de mudança proporciona,
em primeiro lugar, os decorrentes do estado nos trabalhos de Schaden, maior atenção aos
de deprivation, ou penúria cultural, que se processos históricos de transformação cultu-
instala durante a crise aculturativa, da qual é ral, e às especificidades das diferentes con-
carateristico, em segundo, a existência, na cul- junturas vividas pelos grupos indígenas em
tura nativa, de uma certa categoria de elemen- contato colonial. Schaden é o primeiro a evi-
tos míticos e religiosos indispensáveis à denciar alguns elementos, ligados às
formação de um clima sociopsíquico propício especificidades históricas das formas do
à eclosão do movimento. A distinção entre fa- messianismo, a saber:
tores "exôgenos" e "endôgenos" no messianismo a) a não necessidade de uma ligação
(...) se afigura, de fato, fundamental para a necessária entre o mito do cataclismo futuro e a
análise do problema. (Schaden, 1%9: 246) idéia da "idade de ouro". Na Mitologia heróica,
ele postula a possibilidade de que essa ligação,
Nalguns momentos, o autor parece pri- presente no mito apapocuva, seja uma "forma-
vilegiar os fatores endógenos: ção secundária", específica apenas dessa tribo
e ausente em outras tribos da mesma família
o essencial do que acaba de ser dito é lingüística (Schaden,1989: 50).
que o messianismo guarani não remonta em b) a dupla presença do branco neste con-
suas origens primeiras a nenhuma condição junto rnítíco-profético, como entidade provo-
de anomia (ou talvez melhor: disnomia) so- cadora de desequilíbrio cultural, e como
cial, nem tampouco a manifestações de de- presença aculturadora, introdutora de elemen-
sintegração cultural. A sua origem se explica tos cristãos na "mitologia heróica'", devida à
perfeitamente por motivos de ordem religio- maciça presença jesuítica nos séculos XVII e
sa (Ibid.: 247). XVIII (Schaden, 1974: 184).
c) a noção de "transformação dos mi-
Em outros textos, ele aponta para os tos" (Schaden, 1974: 175), ou seja, a idéia de
fatores "exógenos": que as manifestações messiânicas, assim como

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as representações cataclísmicas, variam e são que permitam definir uma "sociologia do
reinterpretadas conforme as novas e diferen- messianismo" global, capaz de dar conta das
tes circunstâncias (Schaden, 1969: 249-250). mais variadas manifestações, nas mais variadas
Schaden distingue em seu trabalho di- épocas, nos mais variados grupos étnicos e
ferentes formas de representar a Terra sem sociais.
Mal entre os três grupos guarani por ele estu- Tais critérios levam a autora a arrolar num
dados (os - andeva, os Mbüá e os Kayová), e único rótulo (os "movimentos liderados por
propõe estudá-Ias separadamente, pois dife- caraibas') os movimentos descritos por Nimuen-
rentes são as situações históricas por que pas- dajú, Métraux e Schaden (Pereira de Queiroz,
saram os três subgrupos guarani. Se isto é 1977: 185-208), aliás, o que é descrito é um
válido para os Guarani contemporâneos, a su- único movimento, liderado por um único che-
gestão parece ainda mais válida para os ie-pajé-caraioa, com um único horizonte mi-
Tupinambá e Guarani dos séculos XVI e XVII: tológico de dilúvio-incêndio-fim do mundo: um
Schaden sugere maior atenção ao devir histó- "tipo ideal" weberiano, abstraído de qualquer
rico de cada grupo, à especificidade de cada contexto histórico e lançado no universo abs-
solução messiânica. Mas a pesquisa antropo- trato do presente sociológico, onde
lógica sobre os "movimentos tupi-guarani" não
parece ter prestado muita atenção, a não ser (. ..) os líderes (guarani)
encarnam
nos últimos anos, a essa sugestão. uma divindade mítica tribal. Recebendo um
sonho ou uma inspiração da divindade,
anunciam o fim do mundo, incitam os com-
A SOCIOLOGIA DOS ANOS SESSENTA: PEREIRA DE ponentes da tribo a dançar, a fim de alcan-
QUEIROZ E LANTERNARI çar a Terra sem Males. Agemcomo os caraíbas
que Anchietae Nóbrega descrevem a pregar
A preocupação com os fatores "exóge- de aldeia em aldeia (...) incitando os índios a
nos" e "endógenos" encontra-se também na seguirem para a Terra sem Males.E, nesta ati-
extensa obra de Maria Isaura Pereira de vidade, reeditam os mitos. Assim, enquanto
Queiroz, que utiliza porém a oposição alguns movimentos seguem o mito de
endógeno/exógeno num sentido muito mais Nanderuvuçu, que inspirou principalmente
restrito do que em Schaden. Com efeito, re- os movimentos da época colonial, outros-
metendo ao conceito de "causalidade inter- os do século XIX notada mente - seguem o
na" e "causalidade externa" de Bastide mito de Guyraypoty (Pereirade Queiroz, 1977:
(956)9, a autora refere-se apenas às "cau- 192; grifo meu).
sas estruturais" dos messianismos e define
estes últimos em termos de "reforma" ou o ponto
de chegada, que é na verdade
"revolução". um ponto de partida, um pressuposto, é que
A leitura dos movimentos tupi-guarani in- "o mito da Terra sem Mal funcionava tal e
sere-se no quadro de uma comparação plane- qual, sem mudanças nem inovações" (Ibid.:
tária, movida por preocupações totalizantes. 206). Mas, analisando melhor as fontes (o que
Esse método comparativo, orientado por crité- Pereira de Queiroz não faz, limitando-se a
rios tipológicos e classificatórios, está voltado citar Métraux), poder-se-ia perguntar: onde
- como no caso de Métraux - para a identifi- Nóbrega e Anchieta dizem que os caraibas
cação de semelhanças, homogeneidades. Ma- incitavam os índios a seguirem para a Terra
ria Isaura Pereira de Queiroz procura categorias sem Mal, anunciando o fim do mundo? Aliás,

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAl': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 51
onde as fontes antigas falam em Terra sem Solução caracteristicamente primiti-
Mal? Qual é o mito "reeditado" por estas pre- va, permite supor que qualquer outra crise
gações? Como podem os movimentos coloni- de graves conseqüências internas também
ais (notadamente os Tupinambá de utilizaria do mesmo recurso a fim de saná-
Pernambuco, Maranhão e Bahia) ter-se inspi- Ia. Ou, noutras palavras, que se neste caso
rado no mito de Nanderuvuçu, que é registra- a crise foi produto do contato com os bran-
do apenas junto aos Apapocuva da região cos, este contato se coloca nos eventuais fa-
entre São Paulo, Paraná e Mato Grosso, no tores de desorganização e desestruturaçâo
século XX? A mistura das fontes, funcional que podem ter como resultado um movimento
para um projeto explicativo globalizante, che- messiânico, nâo aparecendo como impres-
ga aqui às suas últimas conseqüências: as fi- cindível para a produção deste (Pereira de
nalidades teóricas acabam determinando o Queiroz, 1977: 203).
tratamento das informações.
O objetivo da autora é a procura de ca- Uma afirmação que lembra muito a de
tegorias classificatórias dos movimentos, no Florestan Fernandes citada acima. E também,
interior de uma visão sociológica que visa a como em Fernandes, há certa contradição en-
desvendar a função desempenhada pela ação tre a idéia de "solução nativa a problemas
messiânica "relativamente à estrutura e orga- nativos" e "modalidades de contato".
nização social das sociedades globais às quais Com efeito, nas diferenciações que pro-
se vincula" (Pereira de Queiroz, 1977:44). Por- põe entre movimentos (entre os "puros" e os
tanto, as migrações tupinambá dos séculos XVI "sincréticos", ou entre os antigos e os moder-
e XVII são classificadas, junto às guarani dos nos), a autora remete sempre - de acordo
séculos XIX e XX, em um único tipo: os mo- com sua posição teórica - ao tipo de socieda-
vimentos "puros", ou seja, inteiramente nati- de com a qual os aborígenes estavam em con-
vos, na medida em que visam a solucionar tato". Não se resolve, portanto, a contradição
uma anomia interna à tribo, mediante uma entre a suposta preexistência do conjunto
reconfirmação da antiga estrutura. Eles são, mítico-profético da "Terra sem Mal" em rela-
portanto, "reformistas". Este tipo está diferen- ção à chegada dos brancos, e o fato de que as
ciado dos movimentos do "tipo" Santidade" sociedades indígenas protagonistas dos movi-
(ver mais adiante) que, apesar de serem lide- mentos estavam, de diferentes maneiras, em
rados por caraibas, nascem das relações de contato com os europeus.
dominação/subordinação, utilizam formas re- Ao tentar diferenciar os movimentos
ligiosas sincréticas e apresentam soluções "re- puros tupinambá dos movimentos do tipo
volucionárias" . Santidade, a autora remete às formas de re-
Ao constatar que elementos e condições lação colonial, ao tipo de contato. Os movi-
.das migrações tupi-guarani (mitologia, forma mentos puros decorreriam de uma fase da
do movimento, ritmo, estrutura dos grupos, colonização em que o contato se dá numa
importância do sistema familiar) são inteira- forma de igualdade, mediante alianças; os
mente nativos, sem que haja processo de outros se dariam em situação colonial de do-
sincretismo com elementos da civilização oci- minação/subordinação. Nota-se aqui a influ-
dental, Pereira de Queiroz, endossa a hipóte- ência de uma certa sociologia "dinamista" (o
se de Nimuendajú e Métraux, de que havia termo "situação colonial" é de Balandier) que
movimentos tupinambá anteriormente à che- pareceria abrir para a análise das diferenças
gada dos brancos: culturais e históricas:

52 REVISTADE CltNCIAS SOCIAIS V.29 N. 1/2 1998


A explicação poderia estar no fato de tupi e guarani, a respeito de sua suposta in-
não terem tomado uma forma única as re- dependência ou, ao contrário, dependência
lações inauguradas pelos portugueses. (Pe- do contato com a civilização ocidental. Schaden
reira de Queiroz, 1977: 207). parece quase chegar a desvendar este equí-
voco, muito claro em Pereira de Queiroz,
Mas em Maria Isaura Pereira de Queiroz Métraux e Fernandes e até, em certa medida,
a diferenciação nunca é histórica, e sim soci- em Nimuendajú.
ológica. Uma boa exemplificação disso é quan- O equívoco consiste na ambigüidade
do - apesar de classificar em um único "tipo" com que, tanto na análise dos fatos tupinambá
os movimentos entre as tribos indígenas da antigos quanto na dos Guarani modernos (e,
época colonial e os dos Guarani atuais - des- em medida maior, quando as duas culturas
cobre-se uma "pequena diferença" entre eles. são confundidas e integradas uma na outra), é
Os primeiros entraram em contato com a so- considerado o problema contato, que oscila
ciedade colonial que se formava no Brasil, e entre a explicação causal das migrações (a
não com parte dela; os segundos, ao contrá- deprivation) e a modalidade de expressão
rio, entram em contato não com a sociedade messiânica. Em outros termos, nunca está cla-
global, mas com uma parcela que é a socie- ro, nos autores, quando o branco é considera-
dade "rústica". Esta diferença, porém, é anu- do motivo da eclosão do messianismo e quando
lada pela classificação sociológica: é visto em termos de aporte cultural ao messia-
nismo, ou seja, de sincretismo.
No entanto, tanto a sociedade glo- Com efeito, uma coisa é dizer que a
bal da época do descobrimento quanto esta mitologia apocalíptica, ou a relação entre gran-
sociedade rústica são estruturadas da mes- de xamã e herói mítico, ou a crença na exis-
ma maneira, isto é, por grupos de família tência de uma terra da imortalidade preexistem
regidos por sistemas de parentesco. Aque- à chegada dos europeus e constituem ele-
la diferença deixa, portanto, de ter impor- mentos distintivos das culturas tupinambá e
tância, tanto mais que nos dois casos os guaraní. Outra coisa é dizer que também a
grupos étnicos se mantêm no mesmo ní- migração em busca desta famosa Terra, sob o
vel (Ibid: 208). signo do sagrado e do mítico, nada deve ao
contato e é preexistente a este.
Encontramos aqui também a compara- O fato das migrações "místicas" não
ção voltada para a busca de semelhanças. apresentarem uma explícita referência aos
Dessa maneira, a identificação de diferenças brancos (na forma de rituais sincréticos ou
não remete a concretas situações culturais nas formas das profecias que anunciam a des-
mas, a partir da concretude histórica, cons- truição dele, como acontece em outros movi-
trói tipos ideais abstratos. As especificidades mentos tupi e guarani da época colonial) levou
históricas e culturais desaparecem, engolidas os autores a pensar que estas fossem também
pelas "categorias", que ignoram a dimensão um instituto cultural nativo, anterior aos bran-
temporal. cos. Essa posição vem da dificuldade, típica
Neste ponto, talvez valha a pena abrir da época das obras "clássicas" mas também
um parêntese e antecipar alguma conclusão. difundida hoje em dia, em pensar as culturas
O próprio material analisado até aqui nativas como algo em processo, em perma-
salienta a existência e a persistência de um nente tensão dinâmica entre sistemas simbó-
equívoco nas interpretações dos movimentos licos e contingências históricas.

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 53
Todos os autores concordam em dizer mesmo ao longo de cinco séculos de história
que o messianismo (na específica forma das colonial.
migrações) é um produto original tupi-guarani. Uma exemplificação reveladora desta
Por outro lado, eles apontam (ambiguamente) posição encontra-se em René Ribeiro, o qual
para o possível estado de deprivation devido afirma que, no movimento da Santidade,
ao choque cultural. A superação dessa con-
tradição está em dizer que a migração é uma ... os líderes não só prometiam levá-
"solução nativa a problemas nativos" (proble- Ias à Terra sem Mal, como acenavam-Ihes
mas "ecológicos" para Florestan, problemas com a libertação do jugo jesuítico, a res-
de "anemia interna" para Maria Isaura): os tauração de seus ritos e tradições e a volta
europeus constituem assim um problema "aci- de um tempo de abundância e esplendor
dental", resolvido de uma forma tradicional. (Ribeiro,1982: 223).
Se nos colocarmos de outro ponto de
vista, o histórico-religioso (que tentarei Ora, mesmo deixado de lado o uso ile-
explicitar mais adiante) as coisas adquirem gítimo da expressão "Terra sem Mal" para os
outra dimensão e o problema não é mais se o Tupinambá, há aí outros dois erros históricos.
messianismo tupi-guarani seria ou não anteri- A documentação sobre o movimento da San-
or aos brancos; mas sim: como, nas diferentes tidade prova, em primeiro lugar, que esta não
situações de contato, em diferentes épocas, levou de forma alguma a um êxodo "místico";
frente a diferentes problemas sociais e histó- em segundo lugar, que o movimento não pre-
ricas, as culturas tupinambá e guarani elabo- gava uma volta à antiga religião, mas cons-
raram respostas originais? Como os conjuntos truiu uma religião nova, conciliadora de
mítico-rituais foram relidos e re-significados horizontes religiosos múltiplos: o dos índios,
para continuar a dar sentido ao mundo? o dos escravos negros, o dos mamelucos, o
Nesta perspectiva, a presença dos bran- dos colonos, pois foram estes também, como
cos não pode ser percebida apenas como mostra Ronaldo Vainfas (ver mais adiante), os
desencadeadora de reações ou resistências, adeptos da Santidade. Evidentemente, para Ri-
vistas em termos de volta aos costumes nati- beiro, todos os movimentos tupi-guarani têm
vos, mas como uma realidade nova que obri- que buscar, necessariamente, a Terra sem Mal.
ga os diferentes grupos, com diferentes Maria Isaura ainda diferenciava tipos, já Ribei-
modalidades, a reconstruir simbolicamente, ro, no interior de seu quadro c1assificatório,
mas também historicamente] o mundo. O que modifica arbitrariamente o dado histórico, mos-
foi chamado de "messianismo tupi-guarani" trando a periculosidade das tipologias pré-
pode ser um produto original sem deixar de constituídas.
ser causado pelo choque cultural: esta é a No início dos anos 60, a sociologia e a
tese proposta aqui. A chave de leitura é a antropologia se tornam portadoras de instân-
especificidade histórica e cultural, sem por cias de mobilização ético-política frente à
isso cair em um relativismo absoluto. Nesse "descolonização" e ao início do diálogo
sentido, parece totalmente inviável a posição intercultural. O texto de Lanternari, sobre os
metodológica que explica o passado de al- Movimentos religiosos de liberdade e salvação
guns grupos com o presente de outros, pres- dos povos oprimidos é um bom exemplo des-
supondo a "cultura nativa" imobilizada em uma te engajamento político e cultural que des-
dimensão atemporal onde o discurso mítico vendava e denunciava as insuficiências e
(a "não-história") permanece idêntico a si contradições internas ao Ocidente, à luz de

54 REVISTA DE C'tNCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


mundos culturais novos, no momento em que Esta especificidade histórico-cultural
estes últimos tomavam consciência de si. que é analisada em detalhe pelo autor nos
O interesse do etnólogo italiano é histórico trabalhos sobre os cargo-cults da Melanésia
e sociológico, com uma opção específica para (Lanternari, 1976), ou sobre os processos de
o estudo da "descolonização" em termos de descolonização (Lanternari, 1972), evidenci-
"libertação". Para ele, um nexo fundamental ando a relação dinâmica que se estabelece
liga os "cultos de libertação" às experiências entre a "religião do retorno", presente no
coloniais e às exigências de emancipação po- patrimônio tradicional de algumas tribos, e a
lítica e social. Estes movimentos, portanto, não dinâmica profética. Os temas míticos mais
podem ser compreendidos completamente a susceptíveis de uma reelaboração em chave
não ser tentando determinar historicamente sua profético-messiânica são aqueles que pre-
origem e seu desenvolvimento. Os movimen- vêem a volta do herói desaparecido, ou dos
tos religiosos de liberação e salvação dos po- mortos, ou dos espíritos.
vos coloniais podem ser analisados apenas Esta observação nos traz logo à memó-
ria o caso dos mitos tupinambá relatados por
remetendo de forma sistemática as ma- Thevet e Nóbrega, a respeito do herói Sumé
nifestações religiosas às condições históricas (encontrado também por Montoya na mitolo-
concretas: condições que se identificam com gia dos antigos Guarani e não assinalado en-
as experiências existenciais às quais a socie- tre os Guarani modernos) que, com um vôo
dade está ligada no momento histórico consi- prodigioso, alcançou algum lugar, além-mar.
derado e com as exigências culturais, Infelizmente, apesar de ser extremamen-
induzidas por aquelas experiências no mes- te promissora, esta hipótese de trabalho não
mo momento. Experiências e exigências estão é utilizada para a análise dos movimentos tupi-
na base de qualquer manifestação e transfor- guarani. Lanternari acolhe, poder-se-ia dizer,
mação religiosa. (Ianternari, 1977: 8)12 "acriticarnente", as idéias de imuendajú e
Métraux (que Pereira de Queiroz limita-se a
Os fatores que determinam os movimen- qualificar como "hipótese") sobre a preexis-
tos podem ser de origem interna e externa, tência dos profetismos tupi-guarani ao conta-
ou, como diz o próprio autor, "endógenos" e to cultural com os brancos e as transforma em
"exógenos". Voltam aqui as preocupações de "dado" objetivo:
Schaden e de Maria Isaura, mas a posição de
Lanternari parece diferente: Os Índios do Brasil, especialmente os
tupi-guarani, oferecem um dos mais interes-
Na realidade, não há movimento de ori- santes exemplos de continuidade e persistên-
gem "externa" em que não estejam imbrica- cia do surgimento e da renovação de
dos motivos de crise de origem interna, movimentos messiãnicos, da época pré-colo-
enquanto a nenhuma formação profética de nial à era colonial, até hoje: sempre na base
origem "interna" faltam repercussões decisi- de mitos messiânicos originários. (Lantemari,
vas para o exterior. De resto, basta pensar que 1977: 173).
qualquer golpe externo gera crise, visto que
põe internamente a sociedade frente à alter- Já tentei reconduzir às específicas linhas
nativa de uma escolha entre uma via tradicio- teóricas as interpretações de Mé tr a ux ,
nal, já superada pelosfatos, e uma nova via, a Fernandes, Schaden e Pereira de Queiroz, cujas
elaborar no seio da própria cultura. (Ibid.: 295) opções para uma ou outra hipótese (a anteri-

POMPA, CRISTINA. O MiTO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLASSICA" SOBRE O ••. P. 44 A 72 55
oridade ou a posterioridade do profetismo ao laridade que deve ser verificada e definida ade-
contato colonial) aparecem fortemente deter- quadamente. Não é correto, ao contrário, dar
minadas, respectivamente, pelo difusionismo, por demostrada uma origem autônoma eplu-
pelo funcionalismo, pela teoria da aculturação ral de uma construção tão específica,para po-
e pela categorização sociológica. No caso de der afirmar opleno título de "culturascriativas"
Lanternari, a opção parece mais difícil de para sociedades remotas. Além de não ser opor-
reconduzir à teoria informadora de seus tra- tuno metodologicamente, talprocedimento não
balhos, pois esta teoria - a histórico-religiosa permite aquisições originais: com efeito, pelo
- tem sua preocupação fundamental na próprio fato de responder a específicas reali-
especificidade histórico-cultural das diferen- dades, tais sociedades não podem não ter sido
tes manifestações religiosas. Por isso, torna- originalmente criativas. (Mazzoleni,1993:50).
se quase inexplicável a aceitação acrítica de
Lanternari das hipóteses da anterioridade do Nesta linha, Mazzoleni observa também
messianismo tupinambá ao impacto colonial, que, ao reconsiderar hoje a literatura etnológica
bem como sua substancial identificação com sobre os messianismos, produzida nos anos
a religião dos Guarani modernos. sessenta e setenta, sobressaem claramente as
Um hipótese interessante é a de Gilber- sugestões ideológicas dos autores. Nesse sen-
to Mazzoleni (993), em seu trabalho sobre tido, os movimentos têm sido considerados
os movimentos proféticos brasileiros, indíge- em função de estratégias e objetivos políticos
nas e "rústicos" (ver adiante). Mais do que à totalmente internos ao Ocidente e totalmente
impostação científica, Mazzoleni atribui a ati- estranhas ao campo de investigação. Assim,
tude de Lanternari à opção política, apontada na ênfase polêmica que o ideólogo ocidental
acima, característica da posição de muitos es- produzia em favor das culturas orais
tudiosos na época. Com efeito, a atribuição ameaçadas de extinção, chegava-se, às ve-
aos Tupinambá de um conjunto messiânico zes, a paradoxos mais ou menos conscientes
"original" seria instrumental à recuperação da (Ibid.: 51).
dignidade e da cri atividade cultural dos po- Para o estudioso italiano, é esse o caso
vos "de interesse etnológico", contra uma in- da famosa contribuição de Hélene Clastres ao
terpretação "reacionária" que via neles apenas estudo do profetismo tupi-guarani. Terre sans
objetos de uma história alheia. Na tese de um Mal 0978 [1975]).
messianismo indígena original estão implíci-
tos, por uma lado, a crítica ao ocidente apon-
tada acima e, por outro, o pressuposto de A VOCAÇÃO ANARQUISTA DA ANTROPOLOGIA DOS ANOS
que um instituto tão fundamental e complexo SETENTA: OS CLASTRES
quanto o profetismo não é prerrogativa ex-
clusiva de um único horizonte cultural, consi- Muito já foi escrito, a favor ou contra
derado como "hegemônico". Frente a isso, este ensaio intrigante. Apesar de uma séria
Mazzoleni observa: crítica à tese central do livro, Eduardo Vivei-
ros de Castro o considera o esforço interpre-
Se admitimos a possibilidade de que um tativo mais importante, a contribuição decisiva
instituto tão particular (ou seja, articulado, à compreensão da filosofia e da cosmologia
totalizante e específico ao mesmo tempo) pos- guarani, entendendo com isso a "visão tupi-
sa surgir autonomamente em contextos tão guarani do Homem" (Viveiros de Castro, 1984-
diferentes (...) então, é justamente esta singu- 85: 19). Outros autores apontam para o recorte

56 REVISTA DE CltNCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


"reducionísta" e para a exagerada "desenvol- tigmatizando a atitude, até então freqüente,
tura" no uso de fontes, que torna a interpreta- de explicar o passado com o presente e, ao
ção "unívoca" no sentido de uma antropologia mesmo tempo, chamando a atenção para as .
política (Meliá, 1988; Fausto 1992; Monteiro, diferenças históricas e culturais que separam
1992; Mazzoleni, 1993). os dois contextos em que o fenômeno "mi-
Não quero aqui retomar o percurso de gração" se construiu. Neste sentido, extrema-
Hélene Clastres, nem todas as críticas que a mente interessante é a releitura das fontes,
esse percurso foram feitas. Apenas, como para na tentativa de desvendar o olhar etnocêntrico
os outros autores, tentarei ver qual pode ser que as informava: mais do que as crenças
o "pressuposto" epistemológico (ou ideológi- indígenas, diz a autora, elas revelam o
co) de suas conclusões científicas, qual é a "teocentrismo" dos conquistadores. Da rica
relação estabele cida entre Tupinambá e mitologia indígena, os cronistas retiveram só
Guarani, no que diz respeito ao conjunto os temas familiares, os que podiam ser inter-
mítico-profético da "Terra sem Mal", e como pretados nos termos da "verdadeira religião"
são trabalhadas as fontes a fim de demonstrar (H. Clastres, 1978: 22 e passim).
a tese central do livro . Do mesmo modo, é criticada a leitura
Logo na «Introdução», as críticas de "deformada" de Métraux, não apenas por-
Clastres às duas "trilhas" interpretativas se- que esta descontextualiza o profetismo
guidas pela literatura etnológica apontam para reconstituindo uma cultura antiga com ele-
o erro metodológico destas e apresentam um mentos de uma contemporânea, mas tam-
proposta diferente: bém porque, a partir da personagem do
"profeta", identifica como "rnessiânicas" si-
Ambos procedem do mesmo aprocbe da tuações muito diferentes, como no caso da
história dessas culturas: pelo avesso, recons- revolta de Oberá ou do episódio de
truindo o passado dos Tupi-Guarani a partir Guiravera (Ibid.: 70-79).
do que hoje se sabe, ou se acredita saber, acer- A partir dessa crítica histórica, esperarí-
ca de sua religião. Propor o problema nesses amos uma análise atenta das fontes e uma
termos acaba por esquioá-lo porque consiste em recontextualização punctual dos conjuntos
já pressupor a sua solução. Por isso devemos mítico-rituais: pelo menos uma distinção en-
mudar de ótica: assumimos a posição inversa e tre cultura e história dos Guarani do século
optamos por retomar a história a partir de seus XVI, dos Tupinambá do século XVI e XVII,
primórdios. Para isso, dispúnhamos de um fio dos Guarani do século XIX e XX. Mas não é
condutor: os guaranis falam hoje da Terra sem esta a intenção da autora que, de fato, aos a
Mal - ora, trata-se de um tema muito antigo, priori que ela imputa a Métraux ou a Schaden,
cuja presença já era atestada no século XVI en- substitui seus próprios (os mesmos de Pierre
tre todos os tupi-guarani. Nossa primeira tarefa Clastres e de uma "antropologia política" com
é, portanto, tentar descobrir que significado ele vocação anarco-libertária), que acabam por in-
tinha naquele momento, inserido num contex- validar suas intuições brilhantes.
to histórico e cultural que não é o de hoje. CH. Com efeito, a busca da Terra sem Mal é
Clastres,1978:12-13,grifo meu). outro aspecto daquela "luta contra o Estado" e
contra o Poder, travada pelos povos guarani da
Não se pode não concordar com essa selva, da qual fala Pierre Clastres 0978 [1974]),
proposta, que à primeira vista repõe o pro- aliás, é a radicalização dessa luta: é a escolha
blema em termos historicamente corretos, es- filosófica de uma cultura que anula a sociedade

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLASSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 57
e suas leis, projetando a única possibilidade do claro a propósito da famosa migração para
"ser" cultural e físico num espaço que abole as Chachapoyas, de 1539. Já vimos que Gandavo
regras do viver social, junto com as regras do é o único cronista que atribui esta migração à
viver tout court. Longe de ser um messianismo, busca da imortalidade, enquanto os outros fa-
que tenta frear a desorganização social, o zem dela uma fuga frente aos portugueses. O
profetismo tupi-guarani a promove. (H. Clastres, que era uma indicação em Métraux se torna
1978: 60) A migração tupinambá (não está men- um postulado em Clastres:
cionada a apapocuva) é a escolha suicida de A observação de Gandavo, de que os Ín-
uma sociedade, no auge de sua potência, que dios não possuíam terras cultivadas14, é par-
opta pela autodestruição, como preço a pagar cialmente errônea, na medida em que esseautor
para a liberdade de "ser como os deuses" (Ibid: vê a causa ocasional das migrações naquilo que
68 e passim) é mais propriamente a sua conseqüência. ( ..)
Para sustentar essa tese, embora H. Notemos, em todo caso, que a ausência de agri-
Clastres proponha que o ponto de partida não cultura prova que Gandavo não se enganou a
sejam mais os modernos Guarani, mas os an- respeitoda causa final dessa migração. Quanto
tigos Tupi, ela comete os mesmos erros dos à outra razão adiantada pelos cronistas espa-
outros autores. Por exemplo, ela utiliza o ter- nhóis (fugir da sertndão) é inaceitável, porque
mo Terra sem Mal (yry maran'ey) que per- não tem a menor consideração pela história.
tence ao universo religioso dos Guarani Com efeito, devemos recordar que nessa data
modernos - ao invés de "terra onde não se não sepode praticamente falar em colonização
morre", ou "terra bonita", ou "terra dos mor- (H. Clastres,1978:62)
tos", da qual falam os cronistas. Também é
utilizado o termo Caraí ou (que se encontra Então, Clastres aceita a interpretação,
nas fontes relativas aos antigos Guarani) a pro- embora "parcialmente errônea" de um cro-
pósito dos antigos Tupinambá, ao invés do nista, e rejeita todos os outros na base de
termo usado pelos cronistas: Caraíba. Claro, uma evidência histórica que precisaria de
trata-se de detalhes; mas se para a autora é informações mais precisas, sobretudo por-
um erro metodológico identificar Tupi anti- que dessa migração, como reconhece a pró-
gos e Guarani modernos", evidentemente não pria H. Clastres, não se pode identificar o
o é unificar Tupi e Guarani antigos em uma ponto de partida. Além disso, persiste a am-
única cultura tupi-guarani, para a qual bigüidade encontrada acima: talvez seja ver-
dade que nessa época não se possa ainda
a Terra sem Mal foi o núcleo em volta falar em colônia; mas nada podemos dizer
do qual gravitava o pensamento religioso (. ..) sobre os efeitos que a simples presença do
De modo que, mesmo na falta de movimen- branco (mesmo quando ainda não escravista)
tos migratórios, a crença na existência de uma teve na Weltanschauung indígena, e sobre
morada da imortalidade, acessível aqui e ago- as categorias de pensamento que essa pre-
ra, é um dado incontestável da cultura tupi- sença afetou.
guarani CH. Clastres, 1978: 56). Muitos dos antigos cronistas explicam a
chegada recente dos Tupinambá ao litoral com
Tal afirmação é sintomática do pensa- a "reputação de fertilidade e abundância des-
mento de H. Clastres, que pressupõe as anti- sa província". No intento de mostrar sua tese,
gas migrações tupinambá como sendo todas Clastres opera uma ousada identificação en-
de caráter profético. Este procedimento está tre "terra fértil" e "terra sem mal":

58 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


Issopode ser interpretado de duas ma- gem em busca da "Terra sem Mal". Ao con-
neiras diferentes que, aliás, não se excluem trário, as fontes afirmam que estas cerimônias
em absoluto: razões ecológicas e econômicas eram periódicas, e que, depois delas, os gran-
induziram os Índios a procurarem novos des xamãs deixavam as aldeias e voltavam
habitat's, talvez (mas haveria que demonstrá- para o mato.
10), para atender às suas necessidades. Ra- Por outro lado, mesmo pressupondo as
zões de ordem mítica, porém, puderam grandes cerimônias como "sintomas" da mi-
associar a rica terra (ou assim suposta) do gração e os discursos dos Caraibas como
litoral à Terra sem Mal (H. Clastres,1978:59), descrição da (não)vida futura na Terra sem
Mal, Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro
Uma identificação surpreendente, pois (985) observam brilhantemente que nesses
se na filosofia tupi-guarani a Terra sem Mal discursos se mantém o núcleo irredutível da
é justamente o lugar onde se anulam as re- reprodução cultural e física tupinambá: a vin-
gras da sociedade (o trabalho, as relações de gança. De fato, os "profetas" não negam a
troca matrimonial, a alternância vida/morte), guerra e o canibalismo, fundamentos do ser
isto é, é o lugar de destruição programática social tupinambá, mas o exasperam, anunci-
da própria sociedade (o Mal), não se com- ando que os índios capturarão e comerão
preende como ela pudesse adquirir esta muitos inimigos.
conotação de "fertilidade", pressuposto da- Mais uma vez assistimos, portanto, a um
quela produção agrícola que o profetismo tratamento forçado das fontes, utilizadas ape-
justamente quer anular. nas enquanto funcionais para a demonstração
Mas é assim que se constroem os dados de uma tese pré-constituída. A partir desses
objetivos. o mito da Terra sem Mal como con- "dados objetivos", se chega à tese, que na
junto intrínseco à cultura tupí-guarani, que verdade é o ponto de partida, segundo a qual
pressupõe a possibilidade de alcançar, aqui e a razão "interna" do profetismo tivesse ori-
agora, a imortalidade, sem passar pela prova gem em uma insanável contradição entre po-
da morte. Este "aqui e agora" é outro dado der político e poder religioso (entre chefes e
inferido a partir das famosas descrições de Caraibasy>.
óbrega e Léry a respeito das graI)de ceri- É essa também a tese de Pierre Clastres
mônias dos Caraíbas, na qual estes últimos que, trabalhando a "hipótese forte" da
convidavam os índios a não trabalharem, pois demografia sul-americana (P. Clastres,1978: 56-
os alimentos cresceriam sozinhos, as flechas 70), propõe para os tupi-guarani uma popu-
caçariam sozinhas no mato, as velhas se tor- lação muito maior do que aquela calculada
nariam moças, as mulheres casariam com quem pela dernografia tradicional: a partir daí, o autor
quisessem, etc. deduz que na época da chegada dos euro-
Noutros trabalhos (Pompa, 1981: 62-68; peus as sociedades tupi-guarani estavam
:Q97:19-29), tentei mostrar que esta é, para vivenciando o nascimento do poder político,
=. s os efeitos, uma "grande festa" de reno- o dos chefes, contra o qual a sociedade "igua-
"'::0, que inaugura uma temporânea "inver- litária" se insurgia, por meio de seus grandes
a ordem", ritualizada e controlada, xamãs. Vários autores sucessivos, porém, afir-
- zional para um restabelecimento da mes- mam que essa hipótese dernográfíca, e, por-
=: em. De fato, nem da descrição de Léry, tanto, sua conseqüência "política", apresenta
da de óbrega é possível deduzir que sérios problemas, devido à falta de rigor com
raibas convidassem os índios para a via- que o autor trabalha os dados históricos (Meliá,

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLASSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 59
1988: 46ss.; Fausto, 1992: 386; Viveiros de Voltando ao texto de Hélene Clastres,
Castro, 1984-85: 18-19; Monteiro, 1992: 478) a autora alude várias vezes à complexidade
Toda a construção teórica, portanto, deve ser da organização social tupi-guarani, única en-
ainda demonstrada. tre os povos da Floresta Tropical: hierar-
Note-se de passagem que o trabalho de quização da chefia, submissão dos vencidos,
Pierre Clastres é um exemplo típico daquela etc., documentada pelos cronistas. Daí a afir-
mistura entre grupos guarani contemporâne- mação, freqüentemente repetida (H. Clastres,
os (Mbya: os Mbüa de Schaden) e antigos 1978: 45, 59, 78), de que mudanças pro-
Tupinambá e Guarani. A justificativa de fundas estavam sendo produzidas nas soci-
Clastres para essa posição metodológica é fi- edades tupi-guarani no século XVI, a um
losoficamente forte, mas continua etno-hísto- passo do surgimento do estado, desencade-
ricamente frágil: ele parte do pressuposto de ando o conflito entre poder político e po-
que os Mbya, pequenos bandos que sobrevi- der religioso .
vem nas matas do este paraguaio, consegui-
ram conservar sua identidade tribal "contra De modo que (exceto se admitíssemos
todas as circunstâncias e provações de seu que este conjunto coerente que é a Terra sem
passado". Esta identidade reside, assim como Mal pudesse ter surgido bruscamente e ao
para os Tupinambá e Guarani do século XVI: mesmo tempo, em todas a sociedades tupis-
guaranis, coincidindo com a chegada dos eu-
(. ..) na convicção dos Índios de que ropeus) somos levados a formular a hipótese
seu destino está ordenado pela promessa dos de que oprofetismo gerou-se na medida exa-
antigos deuses: que vivendo sobre a terra má, ta em que as sociedades se transformavam e
yry mba'é megua, no respeito às normas, eles ampliavam, como a contrapartida crítica e
receberão daqueles lá do alto os sinais favo- negadora das transformações políticas e soci-
ráveis à abertura do caminho que, além do ais que se inauguravam. (H. Clastres,1978:59-
temor do mar, os levará à terra eterna. (P. 60, grifo da autora).
Clastres, 1978:112).
Já foi apontada acima a confusão, per-
Observamos que o mba 'é megua é, para manente nos estudiosos, entre as concepções
os Apapocuva, de Nimuendajú, o cataclismo cosmológicas tradicionais sobre a "terra da
cósmico previsto pelo mito e do qual os índi- imortalidade" e os movimentos proféticos em
os deviam escapar mediante a migração para busca dessa terra. Em Hélene Clastres, a con-
a Terra sem Mal. Supondo que ambas as tra- fusão se repete e se complica. Para a autora,
duções estejam corretas, descobrimos uma pro- não é plausível que o conjunto da Terra sem
funda mudança de sentido do rnba 'é megua Mal possa ter surgido ao mesmo tempo em
em meio século: de uma eventualidade futu- todas a sociedades, em relação à chegada dos
ra a uma realidade imanente e inevitável. Se brancos. Seria plausível, ao contrário, que ele
em poucos anos houve uma transformação tenha surgido como reação às transformações
semântica tão radical, como podemos pensar políticas internas. Mas quais são as fontes
na "constância capaz de atravessar a história (além das hipótese de Pierre Clastres) que
sem parecer afetada por essa", entre os antigos atestam a presença desse conflito entre polí-
agricultores guerreiros e os bandos contem- tico e religioso, portador de transformações,
porâneos de caçadores, ao longo de cinco surgido no mesmo momento em todas as so-
séculos de conquista e evangelização? ciedades tupi-guarani?

60 REVISTA DE CIIÔNCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


Para documentar esse conflito, Hélene cursos, sua maneira de viver, as marcas de
Clastres recorre a dois episódios, o de Oberá respeito que exigia dos outros eram de um
e o de Guiravera, relatados pelos cronistas e karaí) para só considerar os acontecimen-
interpretados por Métraux como exemplos tí- tos: estes são apenas lutas por prestígio, con-
picos do "messianisrno tupí-guarani". Vale flitos políticos, rivalidades entre chefes, ou
apenas assinalar que esses episódios não são entre chefes e profeta. Nisso tudo não existe
tirados das crônicas dos Tupinambá (dos quais, sombra de uma preocupação religiosa ... (H.
por sinal, Clastres utiliza as mesmas citações Clastres, 1978: 73)
que Métraux), mas das dos antigos Guarani,
que, como ela própria afirma, nunca viajaram Por que deveríamos fazer abstração da
para a Terra sem Mal. dimensão religiosa que é justamente o que
A revolta de Oberá ocorreu em 1579 na confere a Oberá sua peculiaridade? Por que,
região de Asunción, submetida pelos espanhóis ao contrário, não analisar esta peculiaridade
ao regime da encomienda. Trata-se de uma para descobrir o que a cultura faz, a cada
verdadeira revolta contra os espanhóis, vez, de seus institutos, frente a situações his-
conduzida por um índio batizado que se apre- tóricas específicas? A história de Oberá,
sentava com todos os caracteres do karaí, o recolocada em seu contexto (o de uma região
homem-deus. Sua pregação não fazia alusões já submetida ao regime da encomienda), mostra
à Terra sem Mal; pelo contrário, ele mandava a criatividade cultural e a determinação polí-
os Guaranis abandonarem o trabalho para os tica de grupos que se opõem à dominação
espanhóis e pegarem em armas contra os opres- nos termos que sua tradição religiosa
sores, numa guerra em que eles estariam pro- (revisitada) oferece.
tegidos magicamente. Nesta guerra, Oberá É por isso, acredito, que Bartomeu
contou primeiramente com o apoio de um chefe Meliá define a história de Oberá como uma
local, Tapui-Guaçu que, porém, abandonou-o resposta profética à dominação colonial
em seguida para se aliar aos espanhóis, come- (Meliá, 1988: 30-41). Esta definição, elabo-
çando a desconfiar que Oberá não fosse um rada em termos de "revolta", e não de mi-
grande karaí mas apenas um pajé comum. gração mística, é a mais clara demonstração
É este um exemplo típico das comple- de que o universo religioso tupi-guarani não
xas relações de aliança e conflito que se esta- permaneceu idêntico a si mesmo durante
beleciam entre os grupos tupis-guaranis nas séculos, enraizado no núcleo constitutivo da
situações de guerra (cf. Monteiro, 1992; e "busca da Terra sem Mal", mas se transfor-
Fausto, 1992). Justamente, H. Clastres aponta mou no tempo e conforme às circunstâncias.
para a grande diferença, não notada por Evidentemente, quem está procurando mos-
Métraux, entre as migrações proféticas trar exatamente esta permanência não pode
tupinambá e guarani e esse episódio: Oberá examinar a figura de Oberá a não ser "fa-
não convida os adeptos à busca da Terra sem zendo abstração" de seu caráter religioso.
Mal, mas os incita à revolta. Nesta base, po- Outro acontecimento atribuído por
rém, Clastres considera esses acontecimentos Métraux ao "messianismo" tupi-guarani e por
como "políticos", exemplo do conflito entre H. Clastres ao conflito entre religioso e políti-
profeta e chefe: co é o que opõe o karaí Guiravera e o jesuíta
Montoya. Trata-se, a meu ver, de um dos
Façamos abstração do que se refere à exemplos mais interessantes do encontro e
personagem de Oberá (seus gestos, seus dis- da "tradução", nos termos recíprocos, dos dois

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 61
sistemas simbólicos que se estavam defron- sem Mal), outra unicamente política (a resis-
tando no Guairá do século XVI. Guiravera tência aos espanhóis ou aos portugueses)
acaba por "reconhecer" uma superioridade má- (Ibíd.: 60). Mas se mudarmos de perspectiva
gica do interlocutor e se converte (não pode- e, ao invés de categorias lógicas em oposi-
mos esquecer que os jesuítas, e especialmente ção, observarmos dinâmicas históricas concre-
Montoya, foram os principais "tradutores", em tas, como o processo de evangelização do
termos guarani, da palavra cristã). Antes dis- Guairá, e admitirmos a capacidade nativa de
so, porém, há momentos de conflito em que se inserir estrategicamente nessas dinâmicas,
o karaí ameaça e chega a atacar a recém- as atuações de Guiravera, Montoya e Taiaoba
nascida missão do Guairá, enquanto o chefe adquirem uma profundidade e um sentido di-
local Taiaoba se batiza e defende o jesuíta. ferentes.
Aqui também, Hélene Clastres afirma que
o episódio não pode ser comparado com um
messianismo, e nisso pode-se concordar com As CONTRIBUiÇÕES DOS ANOS OITENTA E NOVENTA: AS
ela, mas não se pode concordar com a idéia PESQUISAS HISTÓRICAS
de que ele
A antropologia política dos Clastres exer-
... em compensação, ilumina muito ceu grande influência na década de 70; a partir
bem as rivalidades políticas que opunham dos anos 80, porém, começaram a ser questi-
morubixabase caraís.Não apenas Taiaoba não onados o uso arbitrário de algumas teorias
manifestou a mínima veleidade de resistên- demográficas, a visão "filosófica" da
cia à penetração jesuítica como, desde o co- cosmologia tupi-guarani e, sobretudo, a es-
meço, viu nos padres possíveis aliados contra cassa atenção aos processos históricos. Para-
os caraís, já que estava consciente que sua lelamente, iniciou a ser produzida uma
escolha implicava uma declaração de guerra literatura nova e diferente, de corte
contra estes; isto sem dúvida, porque o poder historiográfico, voltada justamente para a
do chefe de província já andava algo enfra- reconstituição dos processos vivenciados pe-
quecido, enquanto o dos caraís tendia, pelo los diferentes grupos tupi e guaraní.
contrário, a afirmar-se. A relativa abundân- A obra de Bartomeu Meliá é a pesqui-
cia de chefes-profetas significaria que, nessa sa mais cuidadosa sobre a etno-história guarani,
região, o processo de transformação do po- pesquisa que se baseia principalmente na
der (. ..) já estivesse em andamento? Esta é análise atenta da primeira documentação
somente uma hipótese, mas permitiria vis- jesuítica. Deve-se principalmente ao padre
lumbrar uma lógica por trás desses aconteci- Meliá a crítica mais fundamentada à interpre-
mentos. CH. Clastres, 1978: 78) tação "clássica" de Métraux, bem como ao
aproche moderno de Hélene Clastres, ao mito
Se a lógica é apenas a de uma antropo- da Terra sem Mal.
logia política que procura no "poder" a razão O ponto de partida de Meliá é que en-
primeira e última dos fenômenos culturais, a tre os Guarani "históricos" e os atuais ocorre
interpretação não pode ser senão esta, e a um longo processo de mudança cultural, pro-
análise deve necessariamente utilizar-se de fundamente marcada pela colonização e pela
dicotomias irredutíveis, que remetem a reali- evangelização jesuítica. Em um ensaio de 1981
dades "objetivamente" opostas: uma exclusi- (reeditado em 1988), o autor desvenda - me-
vamente religiosa e profética (a busca da Terra diante simples análise filológica - um dos

62 REVISTADE CltNCIAS SOCIAIS V.29 N. 1/2 1998


"pecados originais" apontados acima: a iden- impacto cultural com o Ocidente colonizador
tificação do Mito da Terra sem Mal como algo e evangelizador.
irredutivelmente "guarani" desde a época pré- Trata-se, a bem ver, de outro exemplo
colombiana até hoje. da mesma "aventura semântica" (Meliá, 1988:
17-29) vivida pelo termo karaí entre os
En el Tesoro de Montoya Ia expresión Guarani e Caraíba entre os Tupinambá: da
yry marane y aparece traducida como "suelo designação do grande xamã, o termo passou
intacto, que no ba sido edificado", y ka'a a indicar espanhóis e portugueses. Ou seja, o
marane'y como "monte donde no ban saca- que fazia sentido dentro de um sistema de
do paios, ni se ha traqueado ". Estas significação tradicional passa a construir sig-
acepciones indican uno uso ecológico y nificativamente o "novo" mundo, determina-
económico, que dista bastante dei significa- do pelas novas contingências históricas e pela
do religioso y místico de "tierra sin mal" con presença de uma alteridade antropológica. E
que reaparece Ia expresión yvy marane'y o processo de reconstituição semântica é du-
entre Ias guarani actuales (. ..). Si yvy plo: os conquistadores também, e especial-
marane y en su acepción mas antigua regis- mente os jesuítas, precisam "reduzir" o Guarani
trada documentalmente es simplemente un às suas categorias.
suelo oirgen, su búsqueda económica puede A comparação à qual Meliá submete as
haber sido et motivo principal de muchos de fontes documentais é bem diferente da que vi-
los desplazamientos de los guaraní. La his- mos em Métraux, Schaden, Pereira de Queiroz
tória semántica de yvy marane'y, de suelo e, de certa forma, Clastres. O objetivo é o mes-
uirgen hasta "Tierra sin Malrprobablemente mo, ou seja, "reconstituir a etnologia guarani",
no está desligada de Ia história colonial que mas o procedimento é outro, aliás, são dois:
los guarani han tenido que soportar.
En Ia busqueda de un suelo donde po- ... uno consiste en Ia lectura atenta de
der vivir su modo de ser auténtico, los guaraní Ias mismas fuentes, comparando textos aná-
pueden haber becbo cristalizar tanto sus logos, analizando Ias divergencias, intentan-
antiguas aspiraciones religiosas quanto Ia do desideologizar los trazos más prejuzgados,
conciencia de los nuevos conjlictos históricos. ualorando Ia mayor o menor autenticidad de
Yry marane'y se convertía en "tierra sin Mal", los diversos autores, a fin de reencontrar Ias
tierra física, como en su acepción antigua, y constantes de Ia visión que Iasjesuitas bajan
a Ia vez tierra mística, después de tanta podido tener de Ias guarani. Con el otro se
migraciôn frustrada. (Meliá, 1988: 107-108) intenta semantizar distintamente los elemen-
tos suministrados por Ia documentación
De novo os motivos "ecológicos" de jesuítica segün Ia totalidad cultural de los
Florestan, aliás, citado por Meliá; mas sugere- guarani actuales. No se trata de buscar sim-
se aqui a existência de um processo de trans- ples coincidencias ni de superponer rasgos
formação histórica que levou a uma mudança semejantes, ya que entre los guarani actuales
semântica. da linguagem guarani, de ecológi- e los históricos media un largo processo de
ca a mística." Pressupõe-se assim algo nunca interferencias exteriores que ha producido
_ nsiderado até então: a possibilidade de que cambios significativos; sino de procurar Ias
-- grupos Tupi e Guarani possam ter "repen- categorias fundamentales para una
. ~o- seus sistemas de significação e "trans- reestructuración semántica que sea autenti-
_ ado" seu universo cultural a partir do camente guarani. (Meliá, 1988: 100).

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLASSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 63
Meliá, portanto, não renuncia à possibi- decir, se orientaba a crear cultura en todos
lidade de reconhecer o núcleo irredutível do Ias ordenes. político, económico y religioso
"modo de ser" guarani: este modo de ser, (Meliá, 1988: 204)
porém, é reconstituído historicamente, a par-
tir da análise e da comparação rigorosa das A problemática levantada por Meliá re-
fontes. flete uma mudança no interior das investiga-
Dessa forma, Meliá descobre que o ções etnológicas relativas aos tupi-guarani. A
"modo de ser" guarani (o teko, testemunhado partir da obra do padre jesuíta, entre as preocu-
seja pela documentação antiga, seja na pações dos pesquisadores não se encontra mais
etnografia atual), remete a duas categorias a de provar ou desmentir a suposta anteriorida-
fundamentais: a espacialidade e a tradição. É de do messianismo à chegada dos europeus. O
no interior dessas categorias que se pode ler que interessa, agora, é determinar as modalida-
significativamente o instituto cultural da "mi- des históricas com que os grupos tupi e guarani
gração", ao longo da "aventura semântica" elaboraram maneiras específicas de construir sen-
mencionada. tido, no interior de processos diferenciados.
Com isso, toma-se definitivamente dis- A preocupação de determinar mais cla-
tância de Hélene Clastres, bem como da soci- ramente as instâncias do processo catequético
ologia e da antropologia anteriores que, como na formação do conjunto mítico-ritual dos
vimos, construíram o Mito da Terra sem Mal: Guarani está na base do trabalho de Judith
Shapiro (987), por exemplo. Neste breve,
Sin embargo, Ia documentación ma- mas interessante artigo, a autora mostra como,
nejada no permite deducir, por 10 que se desde os primeiros contatos no século XVI,
refiere a Ias guaraní de esa época ta de até as propostas da igreja progressista con-
Montoyal, que "todo el pensamiento y Ia temporânea, o trabalho missionário foi uma
prâctica religiosa de Ias Índios gravitan en permanente obra de "tradução" da ideologia
torno de Ia Tierra sin Mal (Meliá, 1988: 107). cristã nos termos cosmológicos tupi-guarani.
Tal cosmologia, dessa maneira, tornou-se
Entre as interessantes propostas de desde o começo, o instrumento da edificação
Meliá, há a idéia clara de que, entre Guarani do projeto eclesiástico
e brancos, houve um encontro, e uma "tradu- Por outro lado, a necessidade de devol-
ção" recíproca, de horizontes culturais, onde ver ao conjunto da Terra sem Mal, que per-
particularmente um, o jesuíta, era um hori- tence aos Guarani modernos, seu caráter de
zonte utópico. Essa idéia, que já tinha sido resultado de um processo, lógico e histórico,
proposta por Maxime Haubert (969), ganha é o ponto de partida metodológico de uma
nova profundidade em Meliá, que nos con- pesquisa minha de 1981 Y Mediante a com-
.duz para dentro do cotidiano das reducciones, paração entre a cosmogonia tupinambá e a
o "lugar" das utopias jesuíticas, onde se "cataclismologia" dos Guarani contemporâne-
redefiniam as categorias de tempo e espaço os, o trabalho tentou devolver aos diferentes
dos índios, construindo assim o espaço de uma grupos e às diferentes épocas os elementos
novo "modo de ser", tanto das missionários culturais que, desde Métraux, foram confun-
quanto dos Guarani: didos em um único conjunto. Da mesma for-
ma, relacionando a mitologia com o ritual
Ia reducción, como nuevo produto es- pertencente aos grupos distintos e remeten-
pacial, producia un nuevo modo de ser, es do esta relação às específicas contingências

64 REVISTA DE CII:NCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


históricas (que levaram a formas diferencia- mal": tema que teria sua antecipação no que
das de contato com os ocidentais), identifica- os missionários e cronistas escreveram sobre
ram-se diferentes percursos culturais, ao longo a idéia do iminente fim do mundo nas mito-
da história dos Tupinambá e dos Guarani. Es- logias indígenas desde o século XVI. Mas o
ses percursos vão das "migrações místicas", fato de que os tupinambá de então, assim
aos ataques armados contra as fazendas, à como os guarani modernos, viviam na con-
constituição de religiões "sincréticas", à ab- vicção (respaldada por seu corpus mítico) do
sorção "para si" dos elementos da evange- próximo fim "desta terra ", não implica abso-
lização, até a "tanatomania". A originalidade lutamente na presença de um "movimento
das culturas tupi e guarani, longe de residir messiânico". Bastaria aqui lembrar que a vi-
numa ideologia profética que mantém crista- são "periôdica" (ou seja por eras ou idades)
lizado um conjunto de significantes ao longo existente em muitas mitologias não gerou ime-
dos séculos, consiste, ao contrário, em atri- diatamente um "movimento rnessiânico". Um
buir a estes significantes novos significados, corpus mítico, de resto, não é um repertório
frente à exigência de construir e reconstruir fóssil que nos documenta historicamente um
incessantemente seu ser cultural. passado longínquo, mas antes uma bagagem
A partir de algumas das hipóteses conti- cultural que vem se enriquecendo, justamente
das no trabalho mencionado, Gilberto Mazzoleni para ser sempre atual, e responder aos even-
(993) desenvolveu suas observações sobre tos dos quais uma comunidade orientada pela
os "messias" do Brasil. O texto realiza uma mitopoiese? tem que dar conta. Daí as ver-
leitura crítica das obras mais significativas so- sões míticas sempre novas, para responder
bre o "profetísmo tupi-guarani", no interior de às inesperadas contingências de uma reali-
uma visão historicista que enfatiza a orienta- dade complexa e mutâuel. e entre elas, a
ção "política" dessas obras, como no caso men- chegada dos missionários e cronistas euro-
cionado de Lantemari (cf. supra). Por outro lado, peus (Mazzoleni, 1993: 21-22).
_1azzoleni desvenda uma contradição, à qual
não escapam os próprios antropólogos, que A tese central do livro, pois, é uma pro-
consiste na aplicação de categorias formadas posta totalmente nova para os movimentos
no decorrer da história do Ocidente (como a tupinambá: a da "releitura", a partir da
e "profeta", ou de "messias"), na leitura de cosmogonia nativa, dos conteúdos proféticos
atos culturais alheios, como os tupi-guarani e, da pregação cristã:
ao mesmo tempo, definir estes mesmos fatos
como algo intrinsecamente "nativo". Os primeiros (incertos e fragmentári-
Nessa direção, o autor italiano apresen- os) testemunhos destas pregações nos dizem
:.a algumas reflexões que, justamente por le- como - no desenvolvimento do impacto colo-
varem a marca da visão historicista, contribuem nizador- determinou-se primeiramente uma
. ara uma formulação do problema em dife- reação indígena inspirada pelas instituições
rentes termos. Algumas dessas reflexões, por xamanísticas e pelos instrumentos müico-ri-
sua vez, voltam na impostação do presente tuais tradicionais, em seguida, com a absor-
artigo"; por exemplo a seguinte: ção progressiva (e original) do novo horizonte
judaico-cristão, determinou-se o aparecimen-
Métraux funda sua hipótese no fato de to de novos chefes carismáticos, que se refe-
que atualmente encontra-se entre os guarani riam explicitamente ao parâmetro messiânico
apresença do tema mítico-ritual da "terrasem clássico (Mazzoleni, 1993:21).

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 65
Finalmente, as idéias de Meliá, que já escatologias", como quer Hélene Clastres; é
foram de Maxime Haubert, sobre o "encontro algo mais profundo, que remete, mais uma
de horizontes", entre Guarani e jesuítas, en- vez, à história e às experiências:
contram-se no estimulante artigo de Eduardo
Viveiros de Castro (992), sobre a "inconstância A explicação para a receptividade (in-
da alma selvagem", e, sobretudo, no livro de constante ...) ao discurso europeu não me pa-
Ronaldo Vainfas O 995) sobre a "Santidade de rece dever ser procurada apenas ou
]aguaripe" . principalmente no plano dos conteúdos ideo-
O texto de Viveiros de Castro procura lógicos, mas naquele das formas de relação
determinar as razões culturais da "inconstância" com a cultura e a tradição, de um lado, e na-
dos Tupinambá (tão sedentos de receber a quele das estruturas sociais e cosmológicasglo-
catequese e tão rápidos em esquecê-Ia e vol- bais, de outro. Uma cultura não é um "sistema
tar às práticas pagãs), da qual se queixam os de crenças", mas - já que deve ser algo - um
missionários, nos documentos antigos. conjunto de estruturações potenciais da expe-
Aqui também, as fontes são relidas não riência, capaz de suportar conteúdos tradici-
para recuperar um "ser" tupinambá originá- onais variados e de absorver novos: é um
rio, e sim para recompor o quadro multifa- dispositivo "culturante" de processamento de
cetado que opunha dialeticamente um "ser crenças (Viveirosde Castro, 1992:33)
tupinambá" a um "ser europeu", onde um e
outro codificavam a alteridade antropológica Atrás dessa afirmação, está a denúncia
nos termos de seus respectivos patrimõnios do autor contra uma antropologia incapaz de
culturais. Eis, então, que, enquanto para os perceber as culturas como algo dinâmico:
evangelizadores os Tupinambá são "homens
de cera, prontos para receber uma forma (. ..), Nossa idéia de cultura desenha uma
vácuo religioso clamando por ser preenchi- paisagem antropológica povoada de estátu-
do" (Viveiros de Castro, 1992: 27), nos as de mármore, não de estátuas de murta.
Tupinambá aparece o "desejo de ser outro, Acreditamos que toda sociedade tende a per-
mas segundo os próprios termos" (Ibid.: 26). severar no seu próprio ser (...) Mas sobretu-
E esses termos remetem à cosmologia tupi, do cremos que o ser de uma sociedade é seu
que ao fundar a disjunção entre homens e perseverar: a memória e a tradição são o
heróis, funda a mortalidade, mas, ao mesmo mármore identitário de que é feita a cultu-
tempo, considera uma e outra como algo não ra. (Ibid.: 26-27).
definitivo.
Daí o apelido de Caraíba, ou Maíra, Finalmente, também a última pesquisa
dado aos missionários, errantes "senhores da sobre o "rnessianismo" tupinambá coloca-se
fala" como os grandes xamãs, poderosos como na linha das investigações que procura en-
as personagens míticas, já que os europeus tender, por um lado, a especificidade de cada
"vieram partilhar um espaço que já estava manifestação, e por outro, as modalidades do
povoado pelas figuras tupi da alteridade: deu- "encontro de horizontes", que possivelmente
ses, afins, inimigos, cujos atributos se definiram esta especificidade. Trata-se do tra-
íntercomunicavam" (Ibid.: 32). Daí, também balho histórico de Ronaldo Vainfas sobre a
o encontro entre mensagem apocalíptica cris- "Santidade de ]aguaripe", de 1585.
tã e tema nativo da catástrofe cósmica. Mas O olhar histórico de Vainfas permite uma
não se trata apenas de "convergências de crítica punctual e convincente às interpreta-

66 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v.29 N. 1/2 1998


ções que - a partir de Métraux - codificaram as do próprio Vainfas, que funcionava nas duas
o caráter puramente indígena, independente direções, pois, segundo Vainfas, foi nas mis-
do contato colonial, do "messianismo tupi", e sões que os Tupinambá e os jesuítas construí-
inseriram a "Santidade" nesse esquema. ram o "catolicismo tupinambá" e teceram,
A "Santidade" é recolocada por Vainfas juntos, a teia da Santidade.
em seu contexto histórico e cultural: o litoral E essa circulação de olhares e de leitu-
brasileiro do final do século XVI, quando a ras não é apenas bilateral (índios-jesuítas),
introdução da lavoura canavieira, os massa- mas é multivocal. No processo de definição
cres, a escravidão, a catequese e as epidemi- da Santidade, estão outros atores: os
as delineavam o quadro daquela que Balandier mamelucos, expressão da ambívalência cul-
chamou de "situação colonial". Nessa situa- tural e espelho da própria fluidez da situa-
ção, o movimento não levou a migrações "mís- ção colonial, homens e mulheres brancos,
ticas", mas elaborou uma nova religião, com portugueses e brasileiros, cristãos velhos e
conteúdo fortemente anticristão mas com sím- cristãos novos. A Santidade seria, portanto,
bolos às vezes cristãos, cujos adeptos não fo- uma formação híbrida, pois os colonos tam-
ram apenas índios, e sim mamelucos, colonos, bém inscreveram o catolicismo na mitologia
escravos. tupi, a ponto de despertar nela a religiosida-
O que interessa é mostrar a transfor- de popular lusitana, embebida de magia. Tudo
mação do conjunto mítico-ritual tradicional, isso representado no "Teatro da Inquisição",
entre cosmogonia e apocalipse e mais, em onde um outro olhar se acrescenta aos de-
geral, o dinamismo da cultura tupi que, lon- mais: o do Inquisidor, em busca de formas
ge de permanecer idêntica a si mesma, re- "familiares" de heresia ou de bruxaria, que
viu seus conjuntos simbólicos e os reutilizou não encontra na idolatria tropical.
em função da resistência anticolonial. Poder-se-ia imputar ao historiador uma
O mérito principal de Vainfas é o de ter excessiva confiança em aceitar, às vezes
desvendado o papel da evangelização na cons- acriticamente, as conclusões de certos antro-
trução simbólica da Santidade. Com Fausto pólogos - como quando, influenciado por H.
0992: 386), ele recusa a definição simplória Clastres 0978: 49-50) -, acaba por admitir
de "sincretismo", que acaba por tornar que nas festas da Santidade falava-se na "pro-
incompreensível o sutil e multifacetado tra- messa da nova terra" (Vainfas, 1995: 60-61),
balho cultural de produção de símbolos, fru- o que não está nas fontes. Contudo, Vainfas
tos de leituras cruzadas e de traduções da trabalha com a historicidade e a especificidade
alteridade étnica e cultural em termos famili- de um movimento definido e nos devolve
ares: do catolicismo para o tupi, do tupi para um exemplo da teia de significações
o catolicismo. Seria esse o sentido profundo tridimensional em que negros, colonos, jesuí-
da utilização jesuítica, no trabalho cotidiano tas, Tupi e inquisidores "tornavam familiares"
de catequese, de termos como Tupã, ou karaí, alteridades culturais.
ou Tupanaçu. Seria esse o sentido profundo Finalizando, os trabalhos dos anos 80
do "batismo ao avesso", dos nomes de santo e, principalmente, dos anos 90, apontam
juntos aos nomes tradicionais, da igreja, do todos para uma mesma direção: a recupera-
ídolo cultuado na Santidade. ção da historicidade das manifestações reli-
Linguagens, traduções: uma "colonização giosas até então arroladas no rótulo de
do imaginário", para usar as palavras de "rnessianismo tupi-guarani". As migrações
Gruzinski, um "processo aculturador", para usar tupinambá do século XVI não são as rebelí-

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA ·CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 67
ões dos Guarani das haciendas do século tradas no caminho. Por isso, alguns dentre eles
XVII; Oberá não é Viarazu, nem Guiravera, foram guias da expedição de Pedra de Ursua para
apesar de serem todos "grandes pajés' ou o Amazonas, em 1560, em busca do Eldorado.
Karais, ou Caraibas, as migrações apapocuva A releitura contextualizada das fontes antigas so-
não são a Santidade de ]aguaripe. É preciso bre o "profetísmo tupi-guarani" é objeto de outro
fazer clareza, como sugere também, com trabalho meu (Pompa, 1997).
outra perspectiva, Isabelle Silva (997), re- A este respeito, remeto à intuição de Ronaldo
metendo cada elemento cultural a seu con- Vainfas sobre o caráter de "rito", e não apenas de
texto histórico específico, e relacionando-o "movimento" da Santidade de ]aguaripe (Vainfas,
com outros elementos pertinentes. Por isso, 1995: 51), bem como às recentíssimas observa-
torna-se indispensável a releitura das fon- ções de Isabelle Silva 0995: 65-70), nas páginas
tes, para desvendar as dinâmicas culturais, desta revista.
as escolhas funcionais, as estratégias indi- "Os movimentos messiânicos representam, pois, um
viduais e coletivas produzidas nas diferen- fenômeno particular de aculturação. Ocorre no mo-
tes situações. mento crítico em que determinada população se
Estas últimas indicações declaram expli- sente incapaz de suster a ruína ameaçadora e an-
citamente a inutilidade interpretativa e a defi- gustiante" (Métraux, 1979: 195). É a partir destas
nitiva renúncia metodológica aos rótulos observações que Eduardo Viveiros de Castro pode
c1assificatórios e generalizantes que marcaram, afirmar que Métraux "termina por tomá-Ias (os
quase desde o começo, o estudo desses movi- movimentos) como reação à conquista européia"
mentos e que construíram esse incrível objeto (Viveiros de Castro, 1985: 9). Pelo que foi exposto
antropológico denominado "Terra sem Mal". até aqui não se pode concordar com Viveiros de
Castro. A aparente contradição entre as duas afir-
Agradeço a Eduardo Diatahy B. de mações de Métraux, em um mesmo capítulo, deve-
Menezes pela cuidadosa leitura e pela revi- se ao fato de que a segunda refere-se a uma série
são deste texto. de movimentos de aberta revolta contra os espa-
nhóis entre os Guarani (o de Oberá e o de
Yaguariguay, citados por Lozano, o de ]uan Cuara,
NOTAS citado por Dei Techo), entre os Chiriguano (como
o de Apiawaiki, de 1892, citado por Bernardino de
De acordo com as fontes de Métraux (principal- Nino) e entre os Guarayos da Bolívia (de 1799,
mente os textos publicados por ]imenez de Ia Es- citado por Cardús), Esses movimentos, assim como
pada em Madrid, entre 1881 e 1897, sob o título outros mais recentes, como os dos "Cristas"do Rio
de Relaciones Geográficas de Indias), esta migra- Negro, sempre citados por Métraux, incluem o bran-
ção teria levado cerca de dez mil índios a deixar o co, pois o prevêem no plano cosmológico
litoral brasileiro, rumo ao ocidente. Os trezentos (freqüentemente os "messias" se dizem Cristo e
remanescentes da marcha chegaram, dez anos mais utilizam símbolos católicos) e o identificam como
tarde, à cidade de Chachapoyas, no Peru. Os cro- inimigo no plano histórico. Neste caso, evidente-
nistas assinalam como sua causa o insaciável de- mente, Métraux deve falar em reação ao branco.
sejo de guerras e de aventuras. O acontecimento Quanto ao termo aculturação, deve-se notar que
provocou muita impressão nos espanhóis que aco- Métraux utiliza esta expressão no prefácio à edição
lheram os migrantes, sobretudo porque estes brasileira de sua obra, publicada muitos anos de-
últimos teriam narrado acerca de regiões fabulo- pois da primeira edição francesa. O capítulo relati-
samente ricas em ouro e pedras preciosas encon- vo ao "mito da Terra sem mal" apresenta-se

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profundamente modificado e ressente-se de toda a semelhante à das "tábuas" dos "traços" elaboradas
discussão sobre o problema da "aculturação", de- por Métraux em seu texto sobre a cultura materi-
senvolvida pelas ciências sociais neste intervalo. al tupinambá (Métraux, 1928).
Os dados de imuendajú sobre o xamanismo 8 Já Nimuendajú, apesar de sua teoria "nativa" do
apapocuva constituem também o pressuposto dos messianismo, apontava para alguns motivos des-
trabalhos de Métraux sobre os "profetas", aqueles se aparte cristão ao conjunto mítico-ritual
que ele chama les bommes-dieux (Métraux, 1967, apapocuva, como no caso da cruz e do batismo.
capo I e IlI). 9 Esta terminologia vem do pensamento da socio-
O suporte das etnografias modernas é utilizado logia "dinamista' francesa, bastante influente na
raramente por Fernandes, mesmo porque nelas época no Brasil, pela mediação de Bastide.
não há informações relativas à guerra, que é seu 10 Cf. Vainfas (985) e Silva (995).
alvo de interesse. Contudo, sobretudo no que diz 11 Esta posição funda-se no pressuposto de que os
respeito ao conjunto religioso e ao estatuto do movimentos messiânicos se desenvolvem sempre
pajé, o autor remete aos estudos modernos, com em sociedades cuja estrutura é regida pelo siste-
afirmações como esta: "Tais aspectos da questão ma' de parentesco. A partir daí, a análise visa a
poderão ser melhor apreendidos nas descrições descobrir que tipo de sociedade os movimentos
de etnólogos contemporâneos (veja-se particu- pretendem construir. Se dá, assim, a seguinte
larmente Curt Nimuendajú, Leyenda de Ia tipologia geral:
Creación)" (Fernandes, 1963: 343 n. 154). 1. movimentos que dizem respeito à formação de
Em um trabalho sobre a contribuição etnográfica sociedades globais e que pretendem retomar à
dos cronistas, F. Fernandes explica seu método, antiga organização;
que consiste em: 1) a aplicação da estatística à 2. movimentos que dizem respeito à configuração
comparação do conteúdo das fontes; 2) a compa- interna de sociedades globais, ora reagindo contra
ração qualitativa do conteúdo das fontes. A pri- processos de mudança social (revolucionários), ora
meira permite determinar a) a freqüência das reagindo contra processos de anomia (reformistas);
informações discriminadas por tópicos gerais, b) a 3. movimentos que dizem respeito ao mesmo tem-
extensão da variedade de informações fornecidas po à formação e à configuração de sociedades glo-
pelas mesmas fontes, sobre cada tópico geral; a bais, pretendendo subverter a estrutura hierárquica
segunda conduz à sistematização dos dados dis- interna (movimentos revolucionários).
poníveis e à indicação das principais possibilida- Os movimentos "primitivos" brasileiros (divi-
des de aproveitamento científico das mesmas didos entre tipos "puros" e de Santidade, estão
(Fernandes, 1975: 210-215), Dessa forma, o au- variarnente distribuídos nessas categorias. (Perei-
tor chega a analisar noventa e três problemas - ra de Queiroz, 1977: 152, 330 e passim)
exceção feita aos aspectos ergológicos - em co- 12 As citações de Lantemari,bem como as de Mazzoleni

nexão com o sistema guerreiro da sociedade são traduções minhas dos originais italianos.
tupinambá. Com relação a seis problemas, é pos- 13 Contudo, esta identificação é feita claramente
sível isolar trinta e nove tópicos distintos. (Ibid.: quando, para mostrar a importância de Tupã na
208). Tal procedimento é, no mínimo, um tanto cosmologia tupínambá, a autora recorre à compa-
artificial: o ponto de partida para reconstituir um ração com os Guayaqui (visitados por ela e por
"sistema integrado" como o da guerra na socieda- Pierre Clastres na década de sessenta), para os
de Tupinambá acaba por ser uma absoluta frag- quais a personagem mais importante é Chono, o
mentação das fontes e sua recomposição em trovão. A comparação justifica-se, para a autora,
unidades arbitrárias. Tal arbitrariedade, observa E. "pois os Guayaqui nunca estiveram em contato
Viveiros de Castro 0984-85: 19, n. 3) é em tudo com os brancos" (H. Clastres, 1978:28).

POMPA, CRISTINA. O MITO DO 'MITO DA TERRA SEM MAL': A LITERATURA "CLÁSSICA" SOBRE O ... P. 44 A 72 69
14 Esta falta de agricultura é inferida por Clastres das BIBLIOGRAFIA
palavras de Gandavo que citamos anteriormente.
A partir delas, a autora sustenta que durante a vi-
FONTES ANTIGAS
agem de dez anos (que, como vimos, contrasta
com a informação de Gandavo) os Tupinambá
nunca pararam para cultivar. D'Abbeville, Claude, OFM - História da _ r -
15 "É muito provável, como sugere Métraux, que são dos Padres Capuchinhos na Ilha de
migrações semelhantes (. ..) tenham aconteci- Maranbão e terras circunvizinhas. Sã
do antes da chegada dos europeus: sem dúvi- Paulo - Belo Horizonte: Edusp/Itatiaía
da, essa hipótese não poderá nunca ser 1975 (Histoire de Ia Mission des Pere
demonstrada: contudo, a mera existência de Capucins en l'Isle de Maragnon et terres
Karai, atestada já pelos primeiros observado- crcumvoisines. Paris, Huby, 1614)
res, basta para torná-Ia muito plausível" Anchieta, José de, SJ "Enformação do Brasi;
(Clastres, 1978: 56). Por que a presença do e de suas capitanias. 1584", Revista do Ins-
Karai é sintoma, em si mesmo, da migração tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, \1,
para a Terra sem Mal? Porque o postulado de 1844, pp. 412-444.
Clastres é o da ligação indissolúvel e prioritária Cardím, Pe. Fernão, SJ - Tratados da terra e
entre essas personagens e aquele complexo gente do Brasil. São Paulo: Cia. Editora .a-
mítico-ritual, como se o próprio surgimento do cional, 1978 (1625)
grande xamã fosse, em si, o anúncio do colap- D'Evreux, Yves, OFM - Viagem ao Norte do
so social tupinambá. Sobre o mesmo postulado Brasil. Tradução do Dr. César Augusto
se basearam também as conclusões (diferentes)
Marques (1874). Rio de Janeiro: Livraria
de Métraux e Schaden. Poderíamos perguntar
Leite Ribeiro, 1929 (Voyage dans le nord
até que ponto a base desse postulado está na
du Brésil, Paris, Franck , 1864, Publié
tradução "etnocêntrica" feita pelos cronistas da
d'aprés l'exemplaire unique conservé à Ia
personagem do Caraiba com o termo "profeta".
Bibliothéque Imperíale de Paris)
16 Em um trabalho posterior (Meliá, 1989), o autor
Gandavo, Pero de Magalhães - Tratado da ter-
retoma e desenvolve esta relação, sublinhando a
ra do Brasil - História da província de San-
complexa trama de significações cosmológicas à
ta Cruz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1980. (P
qual remete a idéia de "terra" entre os Guarani.
publicação do Tratado: 1826; 1a publ. da
17 A publicação "marginal" (o arquivo histórico da
História: 1576)
ordem dos jesuítas) do trabalho de Meliá, sobre o
"modo de ser" guarani, não o tornava de fácil aces- Léry, Jean de - Viagem à terra do Brasil. Belo
so; meu artigo saiu no mesmo ano, sem que ti- Horizonte: Itatiaia, 1980. (Histoire d'un
vesse conhecimento da obra do padre Meliá. voyage faict en Ia terre du Brésil (578), La
Mesmo assim, há algumas interessantes conver- Rochelle, A. Chuppin, 1580)
gências, sinal da mencionada mudança nas preo- Nóbrega, Manuel da, SJ - «Informação das
cupações etnológicas. terras do Brasil" (carta aos padres e ir-
18 Este trabalho, de fato, constitui-se como mais um mãos de Coimbra; Bahia, agosto (?) de
capítulo de um diálogo estabelecido com G. 1549) in. Leite, Serafim, SJ: Cartas dos
Mazzoleni, desde a orientação de minha tesi di Primeiros jesuítas no Brasil 0538-1553).
laurea, em 1980. São Paulo, Comissão do IV centenário
19 Do grego j.!u80C; (mito) e 1tOtT]C>tC; (construção) = da Cidade de São Paulo, 1954, vol. I,
geração de mitos. pp. 145-154.

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