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ALFRED OPITZ
coordenador
Capa: Hein Semke, aguarela, 58x80cm.
ln Ein Versuch: Baum (O Livro da Árvore) 1978, pág. 33. Edição: Lisboa, ACARTE, 1995.
Fotografia de Mário de Oliveira.

Copyright © UNIVERSIDADEABERTA-1998
Palácio Ceia• Rua da Escola Politéénica, 147
1250 Lisboa

DL: 120 981/98


ISBN: 972-674-239-0
Alfred Opitz
Manuela Ribeiro Sanches
Fernando Clara

SOCIEDADE E CULTURA ALEMÃS

Universidade Aberta
1998
Sociedade e Cultura Alemãs

Prefácio

I. ÁREAS CIENTÍFICAS E PERSPECTIVAS TEÓRICAS

1. Sociedade e Cultura Alemãs: dimensão histórica e episte-


mológica
22 História cultural (Kulturgeschichte)
25 História social (Sozialgeschichte)
26 História da sociedade (Gesellschaftsgeschichte)
28 Perspectivas Teóricas
28 Ciência cultural (Kulturwissenschaft)

33 Teoria cultural ( Kulturtheorie)

37 Crítica cultural ( Kulturkritik)

39 O conceito de cultura: definições

II. CONCEITOS DE CULTURA

1. Kultur e Zivilisation
51 Cultura
51 Cultura e realidade intelectual

51 Cultura nacional

52 Sentido antropológico: particular e universal

53 A etimologia da palavra cultura


(

54 Cultura: o emergir da noção antropológica

56 Civilização

57 Civilização e Europa

57 A etimologia da palavra civilização

59 Civilização, cultura e identidade nacional

60 Civilização e imperialismo

61 A oposição Kultur/Zivilisation

61 ~ evolução na Alemanha entre os séculos XVIII e XX

68 A evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation e a história do


espaço cultural alemão

5
71 Cultura nacional e multiculturalismo
71 A reinvenção da tradição
72 A revisão da história
73 A Alemanha multicultural
74 Cultura essência e reinvenção

2. Bildung e Erfahrung: pedagogia, cosmopolitismo, inter-


culturalidade
81 A noção de Bildung
81 Dificuldades na definição de Bildung
82 Origens e usos da noção de Bildung
84 A secularização do conceito de Bildung no século XVIII
89 O (Re)Nascimento da Pedagogia
89 A educação na Europa em meados do século XVIII
92 O (Re)Nascimento da pedagogia
95 A noção de Bildung e a reforma do sistema educativo alemão
97 Bildung e Erfahrung: viagens, cosmopolitismo e interculturalidade

98 Bildung e Erfahrung

100 A viagem como corolário da educação


102 A descoberta da Europa

III. ESPAÇOS

1. «So weit die Deutsche Zunge klingt»: nação, língua e


território
111 Da nação ao nacionalismo
111 Questões prévias

. 112 O conceito de nação

113 Da nação ao nacionalism(


117 Um conceito europeu
118 As nações alemãs
118 Estados e territórios

6
121 Sprachnation/Kulturnation: A comunidade da língua e da cultura

123 A nação alemã

123 Língua, cultura e sociedade

126 História e Política

127 Pedagogia política

2. Aujklarung e modernidade
137 Conceito de Aufklarung

140 Luzes e século XVIII


'
142 Luzes e Aujkliirung(en)

143 A sociedade na Alemanha do século XVIII

143 Nação atrasada?

147 A «Alemanha» no século XVIII - Geografia política, sociedade, economia


e cultura

150 A burguesia na «Alemanha» do século XVIII

151 Aufkliirung(en)

153 Fases da Aujkliirung

153 A primeira fase da Aujkliirung (Frühaujkliirung) (1680-1750)

154 A alta Aufkliirung (Hochaujkliirung) (1750- 1770)

155 A Spiitaujkliirung ( 1770-1789)

156 A contra-cultura burguesa

156 O emergir de uma consciência nacional?

158 Identidade europeia e colonialismo

160 O Pacífico: ciência do Homem e mito

161 Viagem e utopia

162 As Luzes e a dialéctica da emancipação e da opressão: selvagens,


mulheres, crianças, loucos e judeus

3. A formação do espaço público


171 A contra-cultura burguesa

171 O tempo

7
172 O espaço

173 Público e privado

173 Espaço público e iniciativa privada

174 A sociedade de corte e a representação

174 Divisão do trabalho e delegação do poder

175 Espaço público e afirmação da contra-cultura burguesa

177 Órgãos do espaço público

177 A transição

179 A formação do espaço público na Alemanha do século XVIII

185 A reorganização do espaço e dos papéis sociais

185 A cisão entre o espaço do trabalho e da família: a burguesià

185 Divisão do trabalho e família

186 A redistribuição do espaço doméstico e a intimidade

188 Espaço doméstico

188 A divisão de trabalho na família burguesa: homens, mulheres e crianças

191 Espaço público e subjectividade

192 Sociedades secretas

194 O novo público: teatro e música

195 Conclusão

4. Natureza romântica e identidade nacional


203 A natureza como universo simbólico: o exemplo dos Alpes

206 Dimensão religiosa e moral da natureza transcendente

208 Paisagem romântica e identidade nacional alemã

210 O Reno como cenário romântico

211 A floresta alemã

213 A natureza burguesa e os seus es~os específicos

214 O espectáculo da natureza no Panorama

216 Espaços naturais recriativos no século XIX

217 A natureza compensatória

8
IV. TEMPOS

1. A Alemanha de 1815 a 1848


229 Periodização e perspectivações historiográficas
231 Evolução das estruturas políticas e da identidade nacional
236 Crescimento demográfico e liberalização económica
238 Abertura cultural e comunicação pública
243 A dupla Revolução Alemã

2. A Alemanha Guilhermina
251 A Alemanha guilhermina: a unificação tardia e a «via específica alemã»

.- ~ 254 A economia na era guilhermina


255 As classes
256 O poder político
257 A unificação
259 Estruturas políticas do II Reich
261 A vida cultural
261 Ensino
263 Vida quotidiana: a família
265 Vida quotidiana, mentalidades: «A condição feminina»
268 A «questão judaica»
272 O colonialismo alemão (1884-1914) I

276 A Alemanha entre a modernidade e o autoritarismo conservador

3. Emigração, Exotismo, Escapismo: do antimodernismo às


vanguardas artísticas - tendências centrífugas na Alemanha
oitocentista
/
285 A migração interna
286 A emigração
287 O exotismo
289 Tendências antimodernistas
292 Movimentos reformistas e vanguarda artística

9
4. Os Anos Vinte
303 Entre o Leste e Oeste: O regresso da Kultur

307 O pós-guerra e as tensões sociais: o exemplo soviético e a democracia


ocidental

309 1923-1929/1930: a estabilidade emprestada ou a vitória daZivilisation?


310 1930-1933: o regresso da Kultur?

311 Para além do bem e do mal


312 A civilização e as massas

314 Bauhaus: arte e técnica


315 Cinema: entre a vanguarda e a massificação
320 A vitória da Zivilisation?

5. Da Apoteose da Superioridade Germânica à Rendição


Incondicional
329 Multiculturalismo e «pureza rácica»
329 A historiografia sobre o 111 Reich
330 A Alemanha e a «via específica». A continuidade histórica e o nacional-
socialismo
331 Modernidade e nacional-socialismo
336 Os factos
336 Os antecedentes
337 Entre 1933 e 1934: conquista e consolidação do poder
340 Entre 1934 e 1939: Os anos da consolidação
344 Entre 1939-1945: o tempo da guerra
348 Exílio, emigração e resistência
350 A «solução final»

6. A Alemanha contemporânea
359 O pós-guerra

360 Migrações e modificações sociais


361 Evolução económica
362 Reconstrução do sector administrativo e público

10
364 A divisão alemã

365 As duas Alemanhas

366 Os anos 50
368 Os anos 60

368 Relações com a RDA

368 Reforma do sistema educativo

369 O fim da era Adenauer

370 O movimento estudantil (Studentenbewegung)

373 Mudanças, reformas e crises (1969-1989)


376 Desintegração do Pacto de Varsóvia e reunificação alemã

378 A RDA - 40 anos de socialismo alemão


...
~
381 A Alemanha reunificada

7. A Alemanha na Europa
390 A Europa: evolução histórica e espaço comunitário
390 A constituição do espaço cultural europeu

392 A Europa comunitária

394 A identidade alemã e a Europa na era da globalização


395 A globalização económica

397 A globalização mediática

402 Identidade e diferença na sociedade multicultural europeia

- Bibliografia

11
PREFÁCIO

A recente valorização de cadeiras culturais nos curricula universitários das áreas de Línguas e
Literaturas Modernas justifica uma reflexão prévia sobre a disciplina que aqui é designada de Sociedade
e Cultura Alemãs. Esta disciplina baseia-se teórica e institucionalmente nas ciências culturais e, por
isso mesmo, ultrapassa a mera transmissão de informações sobre a história, a sociedade e a cultura
alemãs.
No ensino do alemão para estrangeiros, recentemente designado comoDeutsch als Fremdsprache
(DaF), os conhecimentos básicos sobre as instituições e a vida actual na Alemanha eram tradi-
cionalmente apresentados sob a etiqueta de Landeskunde. No entanto, a Landeskunde não se deve
confundir, como parte do ensino da língua no ensino secundário e nos primeiros anos da faculdade,
com uma área curricular (os estudos culturais) que pretende, apesar da sua orientação interdisciplinar,
uma autonomia científica, com métodos e objectivos bem determináveis e um enquadramento teórico
próprio.
A concepção deste Manual contempla, assim, duas linhas directrizes: evidenciar resumidamente
a construção social de uma zona específica de conhecimentos (com os seus métodos, conceitos e
instituições próprios) e apresentar diversos conjuntos fenomenológicos que surgem durante a evolu-
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ção histórica da cultura alemã a partir do século XVIII.
A concentração temporal nas épocas daAufklarung até ao fim do século XX impõe-se por várias
razões. Por um lado, não se justifica do ponto de vista pedagógico uma única cadeira anual que
condense a história sócio-cultural alemã na sua totalidade. Por outro lado, a Aufklarung define e
antecipa já os principais problemas políticos e sociais que afectam a Alemanha actual, e os dois
últimos séculos revelam, apesar de um percurso histórico bastante conturbado, uma continuidade que
ajuda a explicar o tempo presente.
O Manual é constituído por quatro unidades temáticas básicas: as áreas científicas, os conceitos
essenciais na área da sociedade e cultura alemãs, os espaços e os tempos mais característicos da sua
história social e cultural.
Assim, a parte introdutória (parte I) apresenta as várias áreas científicas e os principais paradigmas
teóricos das ciências culturais que abrangem actualmente uma série de disciplinas concorrentes
e complementares. Na segunda parte (parte II) são definidos os três conceitos-chave (Kultur
- Zivilisation - Bildung) que apontam para aspectos histórica e ideologicamente específicos da
Alemanha e para a sua identidade tradicionalmente problemática.
"
13
Os onze capítulos seguintes (parte III e IV) exemplificam esta especificidade da cultura alemã
através de núcleos temáticos representativos desde a Aujklarung à Alemanha actual numa Europa
em plena mudança. Em face da riqueza duma possível fenomenologia cultural e social do espaço
alemão, os capítulos e exemplos apresentados são extremamente selectivos. A música e o cinema, por
exemplo, serão só tratados pontualmente e a cultura popular e quotidiana não pode ocupar o lugar que
corresponde à sua importância. Neste sentido, o Manual proporciona uma base de trabalho que permite
a familiarização com aspectos representativos da cadeira bem como o aprofundamento, com o apoio
da bibliografia geral, do estudo dum domínio que se impõe cada vez mais no perfil curricular dos
Estudos Alemães no estrangeiro.
Os capítulos sobre os núcleos temáticos representativos têm, ao nível da leitura e do estudo, uma
certa autonomia. Mas como pressupõem as perspectivas teóricas esboçadas na introdução, recomenda-se
/
a releitura do primeiro capítulo (I.1.3) de modo a aprofundar, com base nos conhecimentos adquiridos
ao longo do manual, os conceitos e pressupostos analíticos que orientam o entendimento dos aspectos
essenciais da sociedade e cultura alemãs.
As iniciais no fim da cada capítulo indicam o respectivo autor, o último capítulo (IV7) tal como
a bibliografia são da responsabilidade comum dos três autores.

A. O.

14
,,

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I. AREAS CIENTIFICAS E PERSPECTIVAS TEORICAS
1

1
I

1
1. Sociedade e Cultura Alemãs: dimensão histórica
e epistemológica
/
Resumo

Neste capítulo, define-se a área de estudos «sociedade e cultura alemãs» e


caracterizam-se as diversas disciplinas existentes no domínio da historiografia
cultural.

Indicam-se as principais perspectivas teóricas e as recentes definições do


conceito de cultura tal como os respectivos paradigmas analíticos que
permitem uma abordagem operacional do objeclode estudo.

Objectivos

• Distinguir as várias ciências sociais na área da cultura e os seus


objectivos.

• Entender a dimensão específica duma teoria cultural moderna.

• Entender as razões e as implicações da actual reestruturação científica


na área curricular da cultura.

• Assimilar um conceito abrangente e operacional de cultura que


permita estudar a realidade sócio-cultural alemã, de acordo com as
premissas teóricas apresentadas.

19
Definir uma área de estudos como a de sociedade e cultura alemãs não é
fácil porque cada termo em si já se revela, historicamente e no contexto da
discussão actual, bastante problemático. O conceito de cultura conheceu,
só durante os dois últimos séculos, uma série de definições controversas, e a
própria área da cultura diferenciou-se, no século XX, num número cres-
cente de disciplinas académicas. Mesmo as tentativas mais recentes de es-
tabelecer uma base consensual para as Kulturwissenschaften (ciências cul-
turais) ainda não conseguiram ultrapassar divergências básicas no que diz
respeito ao próprio objecto de reflexão e de estudo.

Por outro lado, o termo sociedade, em aparência tão simples como corrente,
ganha também, se o examinarmos de mais perto, na sua maior ou menor
exclusividade, uma ambiguidade fundamental que se verifica já durante a
Au.fklarung nas definições restritivas da sociedade civil (cf. Cap. III.2.8).
A definição moderna do conceito, que apresenta, de acordo com a filosofia
hegeliana, a sociedade como zona intermediária entre o poder e o cidadão,
coloca problemas epistemológicos que afectam directamente as ciências
sociais e nomeadamente o desenvolvimento institucional da historiografia
na Alemanha oitocentista (cf. Cap. I.1-3).

Em último lugar, o adjectivo alemão não corresponde - e nunca corres-


pondeu - a uma divisão estatal - a RFA, a Áustria e a Suíça alemã não
apresentam nem uma homogeneidade linguística (cf. Cap. III.1)- nem tão
pouco uma unidade cultural, e a República Federal daAlemanha é composta,
desde 1991, por dois Estados que se mantiveram durante mais de 40 anos em
confrontação política e sócio-cultural (a «guerra fria» entre dois blocos
militares e económicos), cujas sequelas continuam ainda a dificultar a
integração das duas Alemanhas.

As peripécias da história alemã recente não deixam de lembrar que a


...... «Alemanha» sempre abrangeu uma variedade de espaços políticos, sociais
e culturais diferentes que, além de mais, deve muito não só à cultura clássica,
mas também às culturas italiana, francesa, inglesa e, na segunda metade
deste século, americana. Por outro lado, iniciou-se, com a integração euro-
peia, um processo económico-social que veio e, decerto, irá alterar profun-
damente as chamadas tradições «nacionais» e cujas consequências, para
além da uniformização económica e administrativa; são ainda bastante
imprevisíveis.

A complexidade dos conceitos de sociedade e cultura corresponde a uma


diversificação das disciplinas historiográficas que se podem distribuir em
dois grupos antagónicos, caracterizados como Ereignisgeschichte (que
contempla sobretudo acontecimentos isolados, importantes decisões políti-
cas e personalidades eminentes da história sócio-cultural) e como Struktur-
geschichte (que analisa estruturas e processos gerais).

21
A historiografia alemã do século XIX é dominada pela Ereignisgeschichte
que se debruça principalmente sobre a história política. Na tradição do
idealismo do Estado, consagrado na filosofia de Georg Wilhelm Friedrich
Hegel (1770-1831 ), os historiadores privilegiaram a dimensão política e
nacional, considerando o Estado como sujeito e centro do processo histórico.
As clivagens que se verificam, desde o fim do século XVIII, entre o Estado
e uma sociedade em plena evolução, acabaram por dissociar também o objecto
da historiografia que se dividiu em escolas e tendências divergentes. Assim,
em oposição à corrente da história política numa perspectiva nacionalista,
articularam-se, durante a segunda metade do século XIX, disciplinas como a
história social e a história cultural que privilegiam o estudo duma zona
intermediária entre o indivíduo e o estado, a sociedade civil segundo Hegel.
A partir da dupla revolução dos anos 40 (cf. Cap. IV.1), esta zona ganha,
através do conceito de «sociedade» uma autonomia social e emancipatória,
já que representa, face ao imobilismo das estruturas estatais, as forças
dinâmicas da evolução histórica.

Este conceito de «sociedade» era integrativo e abrangente no sentido de


incluir aspectos políticos, económicos, sociais e culturais, pelo que necessi-
tava, tendo em conta as ciências sociais emergentes, de uma metodologia e
uma perspectivàção historiográfica diferentes. É desta diferenciação crítica
da sociedade que surgem também a teoria socialista de Karl Marx ( 1818-
1883) e Friedrich Engels (1820-1895) e a sociologia alemã moderna que
deve impulsos decisivos a Max Weber ( 1864-1920) e Georg Simmel (1858-1918).

Por outro
,
lado, o contexto do recém-formado
'
Reich ( 1871) e do seu conserva-
darismo favoreceu de novo os conceitos"idealistas de liberdade, Estado e per-
'
sonalidade, relegando-se as tendências de reforma e de democratização para
segundo plano. Assim, as correntes reformistas, acusadas de materialismo e
comunismo, foram marginalizadas política e socialmente. Esta marginalização
afectou também a história cultural oitocentista que integrava ainda a economia
e a psicologia social na sequência da perspectiva emancipatória daAujkliirung.

1.1 História cultural (Kulturgeschichte)

A história cultural surge em simultâneo com o moderno conceito .de cultura


no contexto duma história dinâmica e progressiva que se afirma, na
Alemanha, nos anos 80 do século XVIII. Já em 1782, o historiador e filólogo
Johann Christoph Adelung (1732-1806) publica Versuche einer Geschichte
der Cultur des menschlichen Geschlechts e, pouco depois, Johann Gottfried
Herder (1744-1803) apresenta a sua versão universal da evolução histórica
da humanidade (cf. Cap. II.1).

22
Directamente ligadas ao pretendido telas do próprio processo histórico, a
cultura e as suas manifestações nas várias épocas e sociedades revestem-se
duma função ideológica cujo impacto se revelou, no caso alemão, ao longo
dos dois últimos séculos bastante complexo e problemático. Dado que o
conceito de ideologia é actualmente um dos conceitos mais controversos nas
ciências sociais e humanas, impõe-se uma breve clarificação.

Historicamente, e na sequência da teoria crítica de Marx e Engels (Die


deutsche ldeologie, 1845), ideologia significa uma maneira errada e defor-
mada de pensar (cf. Payne 1996: 252-256). Esta definição implica ainda
um saber «correcto» e uma realidade objectiva, aberta à análise crítica. Este
realismo ontológico, porém, já não corresponde ao relativismo das actuais
ciências cognitivas.

Nas definições mais recentes, que surgem sobretudo no contexto do estru-


turalismo francês, entende-se por ideologia um conjunto de opiniões e
atitudes dum grupo ou duma classe social (uma Weltanschauung) ou, numa
perspectiva mais pragmática, o medium mais ou menos consciente dum
comportamento habitual. Uma outra vertente crítica (Foucault, Pêcheux)
estuda a inscrição do poder social na linguagem e nas instituições que
desenvolvem os respectivos discursos.

Nestas definições, ideologia torna-se quase sinónimo de cultura, o que leva


a uma certa imprecisão conceptual. Em face desta imprecisão, é conveniente
a redução do conceito a uma perspectiva funcionalista. Por conseguinte, o
termo de «ideologia», tal como será utilizado neste manual, significa um
conjunto de ideias, valores e atitudes ligados a determinados interesses
de poder. Falamos de ideologia quando se trata de manter um poder polít'ico
e económico estabelecido ou de conquistar esse poder contra um outro grupo
ou uma outra classe social.

Esta definição permite distinguir a dimensão fenomenológica (os artefactos


e os rituais a eles associados), a dimensão ideológica (os interesses sócio-
-económicos que levam à produção e à distribuição destes artefactos) e a
dimensão estrutural (o funcionamento da ideologia num determinado
contexto histórico).

A história cultural, que em finais do século XIX se concentra na história da


civilização e da evolução interna dos povos com as suas principais ideias e
manifestações, vira-se, a partir de 1900, para uma história das artes e das
ideias, produzindo nesta área programas de investigação e publicações que,
até hoje, e já longe da visão sintética inicial, constróem a cultura como
domínio autónomo.

Um exemplo disso é aKulturgeschichte der Neuzeit (3 vols., München, 1927-


-1931) do escritor austríaco Egon Friedell (1878-1938) que se suicidou

23
quando os nacional-socialistas ocuparam a Áustria. A sua obra, confiscada e
destruída pela Gestapo, foi reeditada repetidas vezes depois da guerra, e a
introdução «Was ist und zu welchem Ende studiert man Kulturgeschichte?»
ilustra bem (e não só com a alusão à famosa lição inaugural de Schiller em
Jena de Maio de 1789) as aporias da história cultural tradicional de cariz
idealista.

Friedell parte do princípio goetheano que os factos escondem sempre uma


ideia e que, por isso, a própria historiografia é basicamente tendenciosa e
valorativa. A causalidade histórica não passa duma ilusão:

Wir kennen die wahren Krafte nicht, die unsere Entwicklung geheimnis-
voll vorwartstreiben ; wir konnen einen tiefen Zusammenhang nur ahnen ,
niemals lückenlos beschreiben. (Friedell 1954: I, 11)

Por outro lado, Friedell afirma que cada época constrói a sua imagem espe-
cífica do passado e a história é uma permanente reinterpretação deste passado.
Assim, falar do passado é falar de nós: «Wir konnen nie von etwas anderem
reden, etwas anderes erkennen ais uns selbst» (ib.: 17).

Esta perspectiva bastante moderna - a autoreferencialidade do discurso


historiográfico - remete, porém, para uma hierarquia tradicional das áreas
culturais que vai, partindo da economia, da sociedade e do estado e passando
pelos costumes, a ciência, a arte e a filosofia, culminar na religião. Esta
perspectivação historiográfica no sentido do valor supremo da religião explica
também o culto do génio, dos grandes homens que representam uma época
e o seu espírito, a sua «alma». Para Friedell, a cultura é ainda um grande
todo orgânico e os historiadores aparecem como os secretários do Weltgeist
hegeliano.

As consequências desta perspectiva são evidentes; ela implica uma selecti-


vidade extrema que exclui do horizonte histórico tanto as culturas populares
e marginais como a cultura industrial. Estas limitações são compreensíveis
já que a área excluída está, nesta época, ainda ocupada, em grande parte, por
uma disciplina chamada Volkskunde que se estabeleceu nos finais do século
XIX, com uma forte carga ideológica, para estudar as manifestações
«naturais» do povo e da sua «alma». Uma pré-forma de antropologia e
etnologia regional - a palavra aparece pela primeira vez nos anos 80 do
século XVIII neste sentido - , a Volkskunde estuda as artes, costumes e a
literatura populares, mas igualmente tradições, crenças e superstições. Ligada
durante muito tempo a uma Germanística de tendência nacionalista, a
Volkskunde procedeu entretanto a uma revisão teórica numa perspectiva mais
moderna e isenta da ideologia organicista e nacionalista do século passado.
Como disciplina que existe actualmente em 25 universidades alemãs,
austríacas e suíças, por vezes já com a designação de Ciência Cultural

24
Empírica ou Etnologia Europeia, debruça-se sobre as culturas das várias
classes e grupos sociais. Neste sentido, ao investigar principalmente as re-
lações sociais na sua evolução histórica, cobre uma área que a antropologia
social explora para o tempo presente.

Por outro lado, a própria história foi, na segunda metade do século XX,
objecto duma importante mudança de paradigma, que levou, entre outras
coisas, a uma valorização do papel do indivíduo na construção do mundo
social e a uma maior atenção à dependência da historiografia de esquemas
narrativos e retóricos que organizam e estruturam a contingência factual.
Das posições antagónicas nesta discussão ainda vigente, que deve muito à
historiografia francesa moderna, destaca-se uma perspectiva dialéctica que
considera tanto a construção discursiva do fenómeno social como a cons-
trução social do discurso.

A revisão da história cultural acompanha esta mudança de paradigmas da


historiografia geral (cf. Hansen 1993). Nesta perspectiva, a história cultural
actual é mais um alargamento da história social do que a continuação da
história cultural tradicional. Ao estudar as representações do tempo passado
e presente e as projecções do futuro , tal como as legitimações variáveis do
agir e os diferentes tipos da elaboração de identidade, a nova Kulturgeschichte
(cf. Vierhaus/Chartier 1995) ganhou uma autonomia epistemológica que se
integra perfeitamente na transdisciplinaridade das ciências sociais modernas.

1.2 História social (Sozialgeschichte)

Surgindo na sequência das mudanças económicas do século XIX e do


«movimento social» que se dinamizou em face da incapacidade de o Estado
absolutista reagir à transformação acelerada da sociedade, a história social
analisa em primeiro lugar a estratificação social e as diversas formas de
interacção ao nível das classes, grupos e associações profissionais que determi-
nam e modificam a realidade social. Tradicionalmente assimilada à história
económica, a história social alemã começou a autonomizar-se durante a
segunda metade do século XX, sem por isso ganhar a importância institucio-
nal que adquiriu nos Estados Unidos e na França.

Com o fim do nacionalismo idealista e a experiência da ditadura fascista,


estava preparado o terreno para uma mudança de paradigma que, com a
rápida evolução da sociologia e das ciências políticas na RFA, criou as condi-
ções para uma história social moderna que começou por definir-se como
história estrutural ao analisar as condições e as possibilidades das activi-
dades sociais e a evolução das várias classes, camadas e grupos sociais. Com
esta orientação, são focados duma maneira sistemática fenómenos importantes

25
como, por exemplo, a família e a educação, as condições de trabalho e os
tempos livres, as mentalidades e a mobilidade social, a emancipação das
mulheres e o turismo.

A recente história social opera principalmente em três perspectivas:

• uma perspectiva histórica, que descreve a evolução da semântica


histórica;

• uma perspectiva biográfica, que reconstitui vidas individuais típicas


dum grupo social ou duma época e;

• uma perspectiva estatística, que fornece dados concretos sobre a vida


privada, a educação, etc.

Hoje em dia, existe já uma teorização elaborada que distingue a história


social da história económica, na sequência de um processo geral de dife-
renciação que abrangeu todas as ciências historiográficas (cf. Wehler 1973).
A diversificação das perspectivas corresponde ao pluralismo actual das
maneiras de viver e à dissolução geral das periodizações e normas tradicionais
(cf. Schulze 1994). Em vez de uma história, coexistem uma série de histórias,
da história do quotidiano e da micro-história aos gender studies: «Alle diese
Geschichten berühren und überschneiden sich vielfach, keine von ihnen kann
den Anspruch durchsetzen, lntegrationswissenschaft zu sein , alle sind
Aspektwissenschaften» (Hardtwig 1994b: 26). Surgiu, no entanto, uma escola
historiográfica que mantém precisamente a pretensão duma abordagem
integrativ,a.

1.3 História da sociedade (Gesellschaftsgeschichte)

Em face da progressiva diversificação teórica e institucional das ciências


historiográficas, fez-se sentir a necessidade duma interpretação abrangente,
duma história geral , integrando a economia, o Estado, a vida cultural e so-
cial. É nesta perspectiva que se perfilou a história da sociedade, represen-
tada na Alemanha principalmente por Hans-Ulrich Wehler e a escola de
Bielefeld, cujo obra monumental Deutsche Gesellschaftsgeschichte (em 4
volumes) é uma síntese impressionante que permite compreender a socie-
dade e cultura alemãs na sua complexidade e na interdependência dos secto-
res tratados, sectores esses que, anteriormente, eram concebidos e tratados
separadamente.

A história da sociedade propõe uma síntese do sistema que resulta da inter-


acção de três domínios: o poder político, a economia e a cultura.
..
26
&

A distinção entre estes três domínios é pragmática no sentido de permitir o


trabalho analítico e descritivo sobre uma determinada realidade. Ao
estabelecer eixos contínuos e interdependentes, é possível destacar uma
«estrutura social» que se manifesta a todos os níveis da vida social e individual
e cuja evolução ao longo das épocas pode ser evidenciada.

Esta perspectiva distancia-se claramente do conceito tradicional de


«sociedade» que , a partir de Hegel, determina uma esfera sócio-económica
entre o Estado e o indivíduo que, com o advento da burguesia, entra em
oposição com a organização do Estado. Ao pensar três dimensões autóno-
mas e interdependentes, a história da sociedade ganha uma flexibilidade que
permite tanto estudos de pormenor nos sectores mais variados como uma
síntese global da evolução histórica. Contudo, a história da sociedade está
perfeitamente consciente da relatividade de qualquer epistemologia:

Menschliches Wissen in den Humanwissenschaften bleibt Partialerkennt-


nis, die an bestimmte Erkenntnisabsichten oder an «Kulturwertideen»
(Weber) gebunden ist und sich mit dem Wandel dieser Ideen selber wieder
verandert. (Wehler 1987: 7)

Na interacção entre poder, economia e cultura, a história da sociedade trata


principalmente de três aspectos essenciais que marcaram não só o passado e
o presente, mas determinarão ainda o futuro da sociedade alemã. São eles:

1.º o desenvolvimento do capitalismo industrial que transformou um país


feudal e rural num moderno Estado industrializado. Na Alemanha esta
transição situa-se nos anos 40 do século XIX;

2.º a formação de classes sociais e dum Estado centralizado e burocrati-


zado e;

3.º em termos culturais, uma racionalização geral que inclui a seculariza-


ção das tradições metafísicas e o desenvolvimento das ciências, um pro-
cesso acelerado pelo modelo inglês e pela influência da Revolução
Francesa e das invasões francesas .

Um aspecto bastante controverso do trabalho de Wehler é a teoria do


Sonderweg alemão (cf. Cap. IV.2.1 ), a via específica dum país que não
conheceu, como a Inglaterra, a América do Norte e a França, uma revolução
política bem sucedida, que realizou a revolução industrial tardiamente e só
conseguiu, em 1871, a unificação territorial a troco da exclusão dum impor-
tante território de língua e tradições alemãs, a Áustria. Neste sentido, a história
da sociedade dá um contributo importante para entender melhor a evolução
dessa estrutura complexa e controversa a que se chama tradicionalmente a
«Alemanha».

27
Neste momento, a história da sociedade pode ser considerada um paradigma
particularmente funcional na medida em que permite fazer convergir a histó-
ria económica e social, por um lado, e a história política e cultural, por outro.

Os principais pressupostos e ambições da história da sociedade deixam-se


resumir muito globalmente da maneira seguinte: qualquer conhecimento nas
ciências sociais e humanas está ligado a interesses específicos e a ideias
directrizes. Por sua vez, estes interesses estão sujeitos a uma permanente
mudança. Já que uma reconstrução total do passado é impossível, qualquer
abordagem teórica e teminológica tem de reduzir e simplificar uma com-
plexidade contingente que nunca é idêntica às suas representações. No entanto,
a historiografia pode, no relacionamento das dimensões centrais do poder
político, da economia e da cultura, destacar as grandes linhas do processo
histórico que se reflectem em todos os sectores da sociedade e da vida privada.
Assim, uma história social estrutural consegue caracterizar influências e
dependências que determinam e modificam tanto a vida das colectividades
como os destinos individuais.

1.2 Perspectivas Teóricas

A progressiva diversificação das ciências sociais e culturais produziu um


pluralismo analítico que se manifesta tanto ao nível da teoria e da crítica
cultural quanto ao nível do próprio conceito de cultura. Em face das
numerosas teorias e tendências sucessivas e concorrentes, os capítulos
seguintes limitam-se a indicar a configuração actúal dos estudos culturais na
Alemar1ha e alguns aspectos típicos da tradição alemã que se mostrou
particularmente produtiva tanto no que respeita à valorização ideológica como
à contestação radical do processo cultural. Finalmente, serão apresentadas
várias definições operacionais do conceito de cultura que permitem enquadrar
teoricamente o estudo concreto da vida social e cultural alemã na sua dimensão
histórica e actual.

1.2.1 Ciência cultural (Kulturwissenschaft)

Desde a reunificação que se tem vindo a assistir na Alemanha a uma acesa


discussão pública sobre a definição e a relevância social das ciências na área
da cultura. O termo tradicional Geisteswissenschaften remonta, segundo
Gadamer (1986: 1), à tradução do conceito demora! sciences de John Stewart
Mill ( 1806-1873) e acentua inicialmente a analogia entre estas ciências e as
ciências naturais. O termo (o equivalente dos liberal arts na Inglaterra e das

28
humanities nos Estados Unidos) viria, no entanto, a ganhar conotações eli-
tis-tas e até nacionalistas.Assim, alnternationale Zeitschriftfür Philosophie
der Kultur mudou em 1935 o seu nome para Zeitschrift für Deutsche
Kulturphilosophie. Os editores, entre eles Hermano Glockner, o editor da
Jubiléiumsausgabe ( 1927-1929) das obras de Hegel, salientam aquilo que o autor
chama de «geistige[n] Umbruch unsererTage» na base das eternas forças do
«Volkstum» alemão: «Echte Kultur ist immer der Ausdruck eines schõpferischen
Gemeingeistes»; e ainda: «Diese neue Haltung der Geisteswissenschaften
bestimmt die neue Richtung der Zeitschrift» (n.º 1, 1935, pp. 1-2).

Dadas estas conotações duvidosas, o termo Geisteswissenschaften perdeu


grande parte do seu prestígio tradicional. Daí, e tendo em conta o actual
contexto intercultural da vida académica, a necessidade duma reorientação
que, curiosamente, não contemplou a terminologia utilizada em França
(sciences humaines e daí ciências humanas em Portugal), mas recorreu ao
conceito de cultura que parece mais compatível com os respectivos sectores
nos países anglo-americanos. Por outro lado, a discussão alemã situa-se nitida-
mente na sequência da crise geral das ciências sociais tal como foi discutida
já a partir de 1970 sobretudo na França e nos Estados Unidos.

Esta crise tem várias razões. O idealismo subjacente à separação tradicional


entre ciências naturais e ciências do «espírito» tornou-se obsoleto, e as
pretensões universalistas do paradigma sociológico dos anos 70 perderam
igualmente a sua credibilidade. O declínio do projecto ocidental duma civi-
lização progressista e universalista, tal como as limitações das teorias glo-
bais de Marx a Weber e Luhmann , prepararam uma nova atitude científica
face à complexidade contingente do real. Por outro lado, a omnipresença de
influências e poderes culturais chama a atenção para a mudança de valores e
mentalidades e para a situação do indivíduo moderno face a um sentimento
fundamental de insegurança que, segundo Bõhme, caracteriza o trabalho
cultural desde o início:

Denn das ist eine Fundamentalerfahrung, die der «Kultur» zugrundeliegt:


alles ist ephemer, flüchtig, «dem Taglichen unterworfen», zeitlich vom
Tode und raumlich vom Kollaps der gemeinschaftlichen Topographien
bedroht. (Bohme 1996: 59)

A nível institucional, verifica-se uma consciência crescente de que as


delimitações das disciplinas académicas são artificiais e contingentes (os
estudos germanísticos, romanísticos e anglísticos só se estabeleceram na
segunda metade do século XIX, a psicologia durante a segunda guerra
.~ mundial). O conceito de cultura, suficientemente difuso e flexível, e por isso
compatível com a tendência internacional da interdisciplinaridade, permite
também continuar uma tradição crítica e relativista europeia, tal como a
representam na Alemanha certos aspectos da filosofia de Herder que

29
ganharam, com a globalização sócio-cultural (cf. Cap. IV.7), uma nova
actualidade.

Nesta perspectiva, a reestruturação das disciplinas tradicionais no sen-


tido da internacionalização e modernização tenta dar a devida atenção à
importância da revolução mediática e à perda progressiva da predominância
do livro e da imprensa escrita. As ciências culturais permitem integrar os
novos media numa base comum constituída principalmente pela antropo-
logia histórica, as ciências cognitivas e as ciências da comunicação. As fun-
ções principais desta área científica que nos anos 70 ainda eram atribuídas
à sociologia, consistem, por um lado, em proporcionar conhecimentos para
o poder político (Herrschaftswissen) e, por outro, numaAujkliirung empírica
e na constituição de sentido numa sociedade em crise. Assim, em vez das
disciplinas tradicionais, começam a instituir-se novas formas de produção
de saberes e conhecimentos, organizadas tematicamente e não por disciplinas.
Neste sentido, uma ciência cultural é, no entendimento actual, algo diferente
da interdisciplinaridade ou transdisciplinaridade tradicional. Implica um novo
quadro teórico e metodológico, que pode utilizar perspectivas e métodos das
várias disciplinas tradicionais, mas numa base própria.

Um exemplo desta reorganização teórica e institucional é a Kulturwissen-


schaftliche Fakultiit da Europa-Universitiit Viadrina em Frankfurt/Oder que
integra a filosofia e a história cultural, as ciências sociais numa perspectiva
comparatista, as ciências literárias e a linguística. O curriculum desta
faculdade já não é organizado por disciplinas, mas por núcleos temáticos
interdisciplinares (como «Cidade - Região - Cultura» ou «Retórica -
Direito - Instituições») que proporcionam uma formação polivalente. Os
futuros diplomados em ciências culturais devem igualmente conhecer três
línguas estrangeiras e efectuar estágios no país e no estrangeiro.

Nesta perspectiva, constituiu-se, durante os últimos anos, também em várias


outras universidades alemãs um grupo de disciplinas com a designação de
ciências culturais da comunicação (Medienkulturwissenschaften) que já
originou uma série de novos cursos que tentam adaptar a formação académica
a um mercado de trabalho em plena evolução. Estes cursos são essencialmente
transdisciplinares. A transdisciplinaridade implica, neste co_n texto , um
conceito operacional de cultura para a área estudada. Tal como a interdis-
ciplinaridade, esta orientação pressupõe uma disciplinaridade bem definida
que permita, depois, perspectivar o objecto de estudo de acordo com as
metodologias de outras disciplinas.

Nas ciências culturais dominam actualmente duas correntes metodológicas,


a semiótica e a hermenêutica estrutural. Para a semiótica, é de assinalar o
impacto das Mythologies (1957) de Roland Barthes (1915-1980), um livro

30
que, ao transformar a publicidade e a imprensa em objectos de análise
semiótica, criou novos campos de investigação e interpretação.

Na Alemanha, o historiador da arte Aby Warburg (1866-1929) já tinha


esboçado, nos anos 20, um grande programa de investigação sobre a
memória colectiva que incluía também materiais da vida quotidiana como
anúncios publicitários, selos, fotografias etc., organizados em sequências
simbólicas que documentavam a função estabilizadora da memória cultural.
A importância do símbolo na expressão e na orientação das manifestações
culturais levou Warburg ao projecto dum vasto atlas iconográfico cujos painéis
temáticos deviam evidenciar a continuidade da produção e utilização social
de mitos e símbolos.

Enquanto Barthes insiste bastante na função ideológica (no sentido tra-


dicional) das representações analisadas, o que pressupõe ainda um saber
objectivo e uma verdade transcendente, a semiótica mais recente tende
a abandonar a perspectiva crítica em favor duma perspectiva funcionalista
não valorativa. Isto porque a crítica ideológica seria ainda, na sua pretensa
objectividade, uma consequência de uma visão teleológica da história, que
pressupunha o acesso da ciência a uma realidade ontológica. A teorização
actual já renunciou a esta pretensão para optar por um relativismo fun-
cionalista.

Na sua definição da semiótica cultural, Posner ( 1993) distingue três áreas de


abordagem analítica: a área social (a sociedade com as suas instituições), a
área material (a civilização e os seus artefactos) e a área mental (as
mentalidades e as suas convenções). Os artefactos podem ser momentâneos
(ruídos, gestos, etc.) ou permanentes; se estes últimos têm um significado
codificado, trata-se dum texto, se servem um determinado objectivo concreto,
são instrumentos (que podem também adquirir uma função simbólica
secundária).

No entendimento de Posner, os comportamentos culturais são essencialmente


processos semióticos baseados em convenções, o que dá da cultura uma
imagem de um sistema concêntrico de esferas semióticas. A modificação
das fronteiras entre estas esferas («das Ausserkulturelle» - «das Gegen-
kulturelle» - «das peripher Kulturelle» - «das zentral Kulturelle») constitui
um permanente processo de aumento e redução de realidade(Kulturwandel),
de inclusão e exclusão de elementos dasemiosis na construção das identidades
indivi-duais e colectivas (cf. a este respeito Baumhauer 1982).

A hermenêutica estrutural, ou reconstrutiva, representada na Alemanha,


entre outros, pelos sociólogos Ronald Hitzler e Ulrich Oevermann, condensa
uma série de teorizações que surgiram nas ciências sociais durante as duas
últimas décadas. Os princípios básicos desta teorização podem-se resumir,

31
muito globalmente, da maneira seguinte. Contrariamente à hermenêutica
intuitiva tradicional, a teoria reconstrutiva distingue vários níveis :

• o mundo subjectivo (afectos, emoções e motivações, ideias, etc.), )


por princípio inacessível;

• as acções e manifestações individuais e colectivas, igualmente


fechadas à abordagem científica. Neste sentido, a realidade é
metodologicamente inatingível;

• os vestígios (Spuren) ou protocolos que estas acções e manifestações


deixam, o único nível directamente aberto ao tratamento analítico;

• as estruturas latentes de significados e sentidos que se manifestam


em vestígios concretos e protocolos.

Este último nível constitui o objecto final da reconstrução hermenêutica,


uma construção hipotética das bases dum mundo que pode ser pensado e
vivido, mas que está fora do alcance da percepção sensorial.

Esta distinção rigorosa de níveis e a subsequente redução do campo cientí-


fico permitem ultrapassar uma série de dicotomias tradicionais, como corpo/
alma, subjectivo/objectivo, etc. Particularmente importante nesta teoria é a
definição de texto e protocolo, sendo textos todas as formas expressivas da
prática humana, e protocolo a forma concreta, material do texto, desde os
media à ordenação da paisagem urbana e rural.

A realidade passada torna-se unicamente acessível através destes vestígios


ou protocolos, já que uma reconstrução directa dos acontecimentos é
impossível. Por isso, o olhar analítico tem de dar a devida importância a
cada pormenor para reconstruir a lógica atrás dos textos. Textos e protocolos
remetem para uma prática vivencial e, assim, para uma subjectividade produ-
tiva. Desta maneira, a realidade aparece no momento efémero da experiência
prática; as ciências sociais trabalham só com as objectivações desta realidade:

Die methodisch kontrollierte Rekonstruktion von erfahrbarer Wirklichkeit


findet also ihre prinzipielle Grenze an der Dijferenz von Protokoll und
protokollierter Wirklichkeit. Ein direkter Zugang zur protokollierten
Wirklichkeit selbst ist methodologisch prinzipiell nicht mõglich, vielmehr
dem Hier und Jetzt der Lebenspraxis vorbehalten. (Oevermann 1995: 132)

Este rigor não nega a unidade dialéctica de prática vivencial e forma expres-
siva (protocolo), mas impede, ao definir claramente os limües da reconstrução
hermenêutica, a projecção duma compreensão intuitiva como modelo cien-
tífico. O facto de supor, por razões funcionais evidentes, comportamentos e
reacções idênticas do outro na comunicação corrente, não significa que uma
acção e a sua interpretação pelos outros sejam efectivamente idênticas.

32
A hermenêutica estrutural é aplicada sobretudo na interpretação de arte- \
factos culturais e na reconstrução histórica de mundos e práticas vivenciais.
Este trabalho reconstrutivo é compatível com a reorientação e actualização
recente das ciências literárias que privilegiam a contextualização sócio-
-cultural dos fenómenos literários e a estética da recepção.

O carácter simbólico de grande parte das manifestações culturais leva a cons-


tituir a interligação de factores mediáticos, sociais e históricos como base de
várias disciplinas específicas que estudam as diversas formas da mediatização
cultural. Ao sintetizar novas perspectivas, tais como as que aparecem, por
exemplo, na história do quotidiano, da vivência e das mentalidades, na micro-
-história e na antropologia histórica, o objecto principal da ciência cultural
pode ser identificado com o conceito deLebenswelt que, a partir da filosofia
de Edmund Husserl ( 1859-1938), ganhou um significado relevante para esta
área curricular. O mundo da vida engloba tudo o que possui coerência
significativa e continuidade: as objectivações mentais na linguagem e nos
símbolos, em obras e instituições, mas também nos comportamentos e estilos
de vida, nas visões do mundo e ideias directrizes. Lebenswelté uma realidade
social determinada pelo espaço e pelo tempo, em que existem normas e
instituições tradicionais em permanente evolução:

Lebenswelt ist gesellschaftlich konstituierte, kulturell ausgeformte, sym-


bolisch gedeutete Wirklichkeit. Sie ist nicht statisch, sondem dem Wandel
durch auBere Einwirkungen und innere Entwicklung unterworfen. Sie kann
sich erweitern oder erstarren, sie kann aufbrechen oder zerstõrt werden :
sie ist geschichtlich. (Vierhaus/Chartier 1995: 14)

O conceito permite conciliar métodos de análise estrutural com métodos


fenomenológicos. A reconstrução de mundos vivenciais diferentes, mesmo
se implica uma redução sob vários aspectos, que a teoria deve reflectir e
assumir, impõe-se como objectivo principal dos actuais estudos culturais na
base dum vasto leque de metodologias e perspectivas teóricas que diversi-
ficam cada vez mais esta área científica aberta às recentes evoluções sociais
e tecnológicas.

1.2.2 Teoria cultural (Kulturtheorie)

Em face da complexa história da teoria cultural, que abrange todas as ciências


sociais e humanas, este capítulo limita-se a focar um aspecto fundamental
de qualquer teorização sócio-cultural, isto é, a relação entre natureza (exterior
e interior) e cultura (como fenómeno social). Este aspecto determina não só
a definição material (o que faz parte da cultura) do conceito, como também


33
a sua vertente formal (o modo como funciona a produção e difus;(i) dos
artefactos considerados culturais).

A relação entre estrutura e função dos elementos concretos duma cultura


tem sido objecto, ao longo da história, de interpretações diferentes (cf.
Cap. II). Assim, a cultura pode ser considerada como conjunto histórico de
determinados artefactos e práticas, ou como totalidade sistémica que subjaz
a qualquer actividade sócio-cultural.

Nas teorias culturais do século XX prevalece a ideia dum sistema simbólico


que se manifesta nas mais variadas representações de sentido e sequências
de significados concretos. Nos últimos anos, foram reforçados os aspectos
semióticos e sistémicos da teoria cultural, o que permite o afastamento da
teoria da teleologia histórica que predominava em todas as ciências sociais
desde aAujkléirung. A semiótica tornou-se funcionalista no sentido descritivo
e não normativo e a teoria sistémica permite uma fenomenologia cultural
abrangente e, a partir daí, a análise das condições da produção de sentido
sem a necessidade de ontologizar representações culturais. Numa fase mais
recente das ciências sociais, que já ultrapassou a dicotomia entre função e
estrutura, considera-se cultura como um sistema cognitivo que cria e reproduz
permanentemente o seu próprio conteúdo.

Um problema essencial, que a crítica cultural (cf. capítulo seguinte) não dei-
xou de recordar repetidamente, é a articulação entre a teoria cultural e a ideia
dum subconsciente individual e colectivo que revelou ser um dos elementos
mais corrosivos do projecto de uma totalidade sócio-cultural característica
da modernidade. Já Nietzsche se mostra convencido, em Morgenrothe, que
ignoramos as verdadeiras razões das nossas acções: «Noch immer lebt der
uralte Wahn, dass man wisse, ganz genau wisse, wie das menschliche Handeln
zu Stande komme, in jedem Palie» ( 1980: III, 108). Para o filósofo alemão as
aparências nunca correspondem às motivações profundas desconhecidas;
saber e agir não têm uma relação causal inteligível. O cepticismo de Nietzsche
é uma reacção à instrumentalização do conceito de «segunda natureza» que,
a partir da época entre a Aujkléirung e o Romantismo, promete um homem
novo e um paraíso terrestre e que, com a realidade histórica do século XIX,
se mostra cada vez mais longe de poder cumprir as suas promessas .
A antinomia da primeira natureza e da segunda (cultural) domina, no
entanto, a teoria cultural de Nietzsche a Freud e a sua escola, até hoje.

Para Sigmund Freud (1856-1939), a cultura articula-se em duas vertentes,


na dominação das forças da natureza exterior e na dominação dos instintos e
desejos individuais. Assim, o processo cultural tem três funções: proteger o
ser humano contra uma natureza poderosa e perigosa, proporcionar prazer e
regular as reacções sociais. Os prazeres, porém, que a cultura pode pro-
porcionar, são para Freud compensações (Ersatzbefriedigungen) e ilu-

34
sões; Freud fala até do efeito das obras de arte como duma anestesia suave.
O prazer pleno e mais intenso só vem da satisfação das pulsões selvagens,
\
não controladas. Esta natureza instintiva primária apresenta-se para Freud
sob dois aspectos: a líbido erótica e o desejo de agredir, destruir, matar e
morrer. A cultura não passa dum mecanismo para controlar e dominar estes
instintos; o preço da segurança que proporciona é uma perda de prazer e
felicidade. Neste sentido, toda a cultura está baseada na renuncia às pulsões
(Triebverzicht), e por isso, Freud pode falar do «fatídico processo cultural»
cuja problemática seria inerente e sem solução possível.

Além de pressupor - de modo fortemente especulativo - a existência de


uma natureza pulsional, anterior e exterior a qualquer vida social, a teoria
freudiana reduz a cultura a uma mera função reguladora e a uma sublimação
necessária de pulsões básicas e socialmente inaceitáveis. O trabalho cultural
resume-se no esforço de sublimar e controlar esta luta eterna entre Eros e a
Morte. Por outro lado, Freud «naturaliza» igualmente a participação diver-
gente dos dois sexos no trabalho cultural. O homem tem de distribuir a sua
líbido: «Was er für kulturelle Zwecke verbraucht, entzieht er grõBtenteils
den Frauen und dem Sexualleben ( ...)». Desta maneira, a mulher, pouco
capaz de sublimação, vê-se relegada para segundo plano pela cultura
e considera-a, por isso, com uma certa hostilidade (1994: 41, 63, 69).
Curiosamente, este sexismo oitocentista corresponde à convicção euro-
centrista tradicional de que a liderança do género humano cabe às «grandes
nações de raça branca» (Freud 1994: 136).

Na sequência das metáforas organicistas, a teoria freudiana estabelece um


paralelismo entre a constelação psíquica individual ([eh/ego -Es/id- Über-
-lch/super-ego) e a evolução histórica; o super-ego duma época cultural
encarna nos grandes lideres e nos códigos éticos dominantes. O desen-
volvimento conflituoso das instâncias constitutivas da identidade pode gerar
neuroses a nível individual e, a nível colectivo, guerras e fenómenos como o
fascismo e o genocídio.

O princípio do retorno da natureza reprimida remete para a ambiguidade


do processo cultural , tão repressivo quanto gratificante, e nunca à
altura dum prazer selvagem nitidamente idealizado. No entanto, Freud
não considera, na sua visão dicotómica, que a cultura, além de controlar,
produz também agressividade e destruição; a separação de natureza e cul-
tura não permite reconhecer o modo como as pulsões e comportamentos
destrutivas são um produto da sociedade. Ao propor um modelo uni-
versal para a evolução do indivíduo e da sociedade, a teoria freudiana
tende a reduzir as realizações culturais a meros efeitos de sublimação e
peca por não considerar suficientemente os aspectos históricos da consti-
tuição de subjectividade. Com Nietzsche e Freud, porém, o conceito român-

35

- .
tico duma harmonia utópica (aquém da reflexão crítica e dissociativa),
e sobretudo as suas actualiz,ções ideológicas nas várias formas de evasão
que a cultura oitocentista proporcionou, perdem definitivamente a sua
credibilidade.

Neste sentido, a teoria crítica da Escola de Frankfurt continua não só as


linhas críticas de Hegel e Marx, mas também as dissociações de Nietzsche e
Freud. Esta escola tenta principalmente revelar a pseudo-naturalidade
da cultura e da sociedade, tal como se manifesta nas maneiras de agir e
pensar. A famosa Dialektik der Aufklarung (escrita entre 1942 e 1944,
em plena guerra mundial, e publicada em 1947), mostra a progressiva
auto-destruição da Aufklarung e a instrumentalização da razão numa
comercialização total do mundo. É de salientar, nesta obra, o capítulo sobre
a Kulturindustrie que afirma que a cultura, sob a lei da troca (Tauschgesetz),
se confunde com a publicidade, um processo que atingiu entretanto um nível
de interpenetração total. O sponsoring, sem o qual as principais instituições
culturais já não podem sobreviver, é a manifestação mais visível desta de-
pendência económica da cultura.

A problematização da diferença entre natureza e cultura, que é um dos


pressupostos da teoria crítica, é assumida plenamente nas análises dos
estruturalistas franceses Michel Foucault e Claude Lévi-Strauss, como tam-
bém na teoria sistémica do sociólogo alemão Niklas Luhmann. Segundo
Foucault, que lamenta em 1983 não ter conhecido mais cedo os trabalhos da
Escola de Frankfurt (Rath 1994: 138), as ciências humanas consolidaram
conceitos de auto-estilização e auto-imposição da subjectividade moderna.
Neste sentido, Foucault estuda, nos seus vários livros, a transformação de
seres humanos em sujeitos, com todas as hipóstases e ilusões ligadas a este
conceito. Nesta perspectiva, com a Revolução Francesa, começam a desapare-
cer as esperanças numa nova «natureza» como futura totalidade das condi-
ções humanas e aparecem os mecanismos sociais de constituição de sentido
(cultura, arte, educação, progresso, etc.) que não são mais do que tantas
outras maneiras de repelir uma contingência que é o próprio destino da
modernidade.

Assim, os conceitos de natureza nas várias áreas da vida social (medicina,


direito, pedagogia, etc.) podem ser vistos como possibilidades de modelar e
dominar os instintos, o que implica que as maneiras de pensar e de agir
individuais e colectivas têm de ser interpretadas a vários níveis. Ainda se
discute, em que medida o inconsciente, uma entidade inacessível, mas
considerada responsável por grande parte das nossas decisões, pode e deve
assumir uma responsabilidade social. Está assente, porém, a importância de
mecanismos e dependências desconhecidos nas produções intelectuais e
artísticas, nas representações mentais e práticas sociais.

36
Recentemente, a investigação na área da etnopsicanálise (Mario Erdheim
1994) e dos estudos culturais (Peter Gay 1996) tem-se debruçado sobre a
questão de saber se os efeitos negativos da cultura (glorificação e mitifica-

ção da guerra, da destruição, da violência e da exploração) podem ser atri-
buídos a uma natureza (reprimida) ou se devem ser considerados como efeitos
da própria cultura. O anti-semitismo, por exemplo, é um fenómeno essencial-
mente cultural, que não pode ser explicado por uma necessidade «natural»
de defender um território ou uma espécie, e a história conhece ainda muitos
conflitos sangrentos em nome duma cultura que se considera superior. São
estas as perguntas principais com as quais se confronta uma teoria cultural
moderna aquém das esperanças utópicas do início dos tempos modernos .

1.2.3 Crítica cultural (Kulturkritik)

A crítica cultural, tal como se estabelece na época das Luzes, enquanto crítica
de representações colectivas e práticas sociais redutoras, pode recorrer a
uma tradição filosófica antiga. Desde os filósofos cínicos da antiguidade
clássica a Thomas Hobbes e Samuel Swift na Inglaterra e Rousseau e Voltaire
em França, destaca-se uma corrente corrosiva que põe em dúvida o próprio
processo cultural e os seus valores normativos. O optimismo do progresso
tecnológico e científico consegue, durante o século XIX, silenciar esta crítica,
até Nietzsche propor uma revalorização radical de todos os valores tradicionais
em face de uma história cada vez mais decadente:

Unsere ganze europaische Cultur bewegt sich seit langem schon mit einer
Tortur der Spannung, die von Jahrzehnt zu Jahrzehnt wachst, wie auf eine
Katastrophe los: unruhig, gewaltsam, überstürzt: wie ein Strom, der ans
Ende will, der sich nicht mehr besinnt, der Furcht davor hat, sich zu
besinnen. (Nietzsche 1980: XIII, 189)

Depois da Primeira Guerra Mundial, este pessimismo cultural generaliza-


-se. Pensadores conservadores e profetas do apocalipse projectam cenários
que tiveram um grande impacto na opinião pública e contribuiram para um
clima de insegurança que facilitou a ascensão do nacional-socialismo. É de
mencionar, neste contexto, sobretudo Oswald Spengler (1880-1936) com a
sua obra Der Untergang desAbendlandes (l.º vol. 1918, 2.º vol. 1922), cujo
título, que concentra medos e apreensões bastante populares no fim da
primeira guerra mundial, se tornou quase proverbial na discussão ideológica
do século XX. Este esboço duma «morfologia da história mundial», reeditado
ao longo de todo o século, apresenta as grandes culturas como «seres vivos
superiores», organismos com uma duração de mais ou menos 1000 anos,
sendo o estado da «civilização» o prelúdio do fim da cultura ocidental.
t
37

- ,
O escritor e jornalista Theodor Lessing ( 1812-1933) que desenvolve , em
Die ve,fluchte Kultur de 1921, a antinomia entre vida e espírito, define a
cultura como uma máquina cruel e implacável , e o espírito e a razão como a
verdadeira fera e a potência destrutiva por excelência. Ao caracterizar a
pólvora e a tipografia como «invenções satânicas do espírito alemão», Lessing
transforma a história numa sequência de equívocos permanentes entre o
espírito e a vida. A ideia do progresso, representada por Hegel, Darwin e
Marx, é submetida a uma crítica radical que vê no conhecimento uma mera
atribuição retrospectiva de sentido. De facto, a cultura transforma a vida real
num inferno, um renascimento só poderá vir do Oriente. O panfleto de
Lessing, que insiste particularmente nos aspectos ecológicos da destruição
cultural, é o último sonho de uma nova inocência, duma natureza harmoniosa
e duma vida originária e feliz à beira da catástrofe universal: «Die Sintflut
wachst. Europa stirbt an Worten , Werken, Werten» (1921: 34 ).

Nos finais do século XX, este pessimismo cultural é actualizado pelo poli-
tólogo americano Samuel P. Huntington, cujo controverso artigo «The Clash
of Civilizations» de 1993 (transformado em livro e publicado em 1996), que
põe mais uma vez em dúvida o universalismo europeu, foi largamente
discutido naAlemanha. Distinguindo sete grandes culturas (chinesa,japonesa,
hindu, islâmica, latino-americana, africana e ocidental), Huntington prevê
importantes conflitos interculturais nos quais a cultura ocidental corre o risco
de perder a sua identidade e a sua importância tradicionais. Apresentando
uma extensa documentação, Huntington tenta provar que o mundo não-
-ocidental consegue modernizar-se e adaptar tecnologias actuais sem, por
isso, adaptar os valores e instituições da tradição ocidental. Trata-se de uma
teoria pouca precisa, mas muito eficaz ao nível da discussão pública, com
uma certa nostalgia da antiga importância do Ocidente, que reflecte o vazio
do pós-imperialismo e a dissociação progressiva da identidade ocidental em
face de evoluções que ultrapassam e negam os esquemas tradicionais.

Neste sentido, as publicações de Huntington e toda a discussão sobre o


antagonismo cultural são o sintoma duma crise que se condensa na questão
do universalismo que dominou a história europeia dos últimos séculos. Em
que medida uma cultura, que inventou e praticou as atrocidades mais
devastadoras da história da humanidade, tem ainda o direito de dar lições a
outras civilizações? É esta a perspectiva de Walter Benjamin que afirmou
nos anos 30: «Es ist niemals ein Dokument der Kultur, ohne zugleich ein
solches der Barbarei zu sein» ( 1980: I, 2, 696).

Na Alemanha, esta questão reflectiu-se muito concretamente numa discus-


são política acesa sobre a participação activa de forças militares alemãs nas
missões das Nações Unidas . Em causa está, além da identidade problemática
da Alemanha em face da sua história recente, a posição da cultura ocidental ,

38
os seus valores positivos (os direitos humanos, o estado de direito, etc.) e as
suas práticas imperialistas.

Na área académica, estas preocupações reflectem-se na investigação de


fenómenos interculturais, área essa que nos últimos anos tem sido influen-
ciada, entre outros, pelos trabalhos do comparatista árabe-americano Edward
W. Said, nomeadamente o seu estudo sobre o orientalismo (Orientalism,
London/NewYork, 1978, trad. alemã: Frankfurt a. M./Berlin, 1981). Neste
contexto é de mencionar também a Germanística Intercultural que, desde os
anos 70, se interroga sobre a produção e a função social da alteridade
(cf. Wierlacher 1993). Neste sentido, verifica-se uma abertura de perspectivas
na investigação e na própria política cultural das nações mais industrializadas
que atribui à crítica cultural um papel central na definição de uma identidade
diferente e moderna da Europa.

1.3 O conceito de cultura: definições

Na tradição alemã, o conceito de cultura tem uma história particularmente


rica e controversa (cf. cap. seguinte). Na perspectiva pragmática dos estudos
da sociedade e cultura alemãs, convém, antes de mais, delimitar uma definição
que permita constituir o próprio objecto de estudo.

A definição de cultura que Klaus P. Hansen defende nas suas recentes publi-
cações sobre a Kulturwissenschaft ( 1993, 1995), insiste, na sequência de E. B.
Tylor (1871), na aquisição social de saberes e comportamentos. O autor
recorre igualmente a Max Weber que estabeleceu a sociologia como ciência cul-
tural ao insistir no carácter cultural de todas as manifestações da vida humana
desde que se reportem a ideias de valor (Wertideen). Considerando, no sentido
etimológico da palavra, a cultura como transformação da natureza exterior e inte-
rior pelo trabalho segundo as normas da tradição, Hansen opõe a natureza bio-
lógica à cultura do contexto de socialização. Assim, apenas fenómenos que
não servem fins materiais fazem parte da cultura: «Nur das Geburtstagfeiern,
aber nicht das Ziihneputzen; nur das Frühstücken, aber nicht die bei ihm
statthabende Erniihrung im biologischen Sinne» (Hansen 1995: 119).

Esta antinomia tradicional é problemática porque a natureza biológica do


ser humano manifesta-se sempre como culturalmente formada. Mesmo as
actividades mais «naturais» como comer, dormir e procriar mostram
sincrónica e diacronicamente uma grande diversidade que relega a função
biológica e reprodutiva para um papel secundário: «Menschliche Natur ist
nirgends ais voraussetzungslose, ungesellschaftliche, reine Natur gegeben»
(Rath 1994: 7). O que é «natural», o que faz ou não parte da natureza,
depende do contexto histórico e está sujeito à mudança, como documentam,
/

39
por exemplo, os estudos de Norbert Elias sobre as maneiras e costumes sociais
e a história da paisagem e dos espaços naturais (cf. Cap. III.4 ).

Por outro lado, ao excluir a economia, o Estado e a política do domínio


cultural, Hansen ignora que os símbolos e rituais ligados às instituições esta-
tais (bandeiras, visitas oficiais, cerimónias comemorativas, etc.) fazem parte
integral do poder político. A economia também tem aspectos profundamente
irracionais que se tornam cada vez mais evidentes. Esta importância da
dimensão simbólica e mítica da produção material evidenciou-se sobretudo
depois do fracasso total do «racionalismo» da economia planificada de cariz
socialista, que, aliás, era acompanhada duma permanente mitificação e
valorização simbólica.A questão crucial levantada pela definição de Hansen
é a de se saber se podemos considerar a dimensão cultural como uma dimensão
«suplementar» atribuída às actividades económicas, sociais e políticas ou se
temos de partir de uma perspectiva dialéctica: valores, tradições etc. criam e
desenvolvem actividades económicas, políticas e sociais, e estas práticas
precisam da dimensão simbólica para se manter e se desenvolver. Na prática,
e mesmo do ponto de vista histórico, parece impossível separar estas
dimensões. Assim o etnólogo Clifford Geertz propõe que se considere a
cultura e a estrutura social como abstracções diferentes a partir dos mesmos
fenómenos:

Kultur ist das Geflecht von Bedeutungen, in denen Menschen ihre Er-
fahrung interpretieren und nach denen sie ihr Handeln ausrichten . Die
soziale Struktur ist die Form, in der sich das Handeln manifestiert, das
tatsachlich existierende Netz der sozialen Beziehungen. (Geertz 1987: 99)

O próprio Hansen sublinha que o ser humano produz significados. Por isso,
a história deve incidir não sobre os objectos, mas sim sobre a mudança dos
seus significados. Esta história dos significados, fortemente influenciada pela
histoire des mentalités desenvolvida na França desde os anos 30, permite
definir a cultura como um sistema de estandardizações que abrangem as
interacções sociais e a comunicação, mas também os pensamentos e
sentimentos individuais. A cultura produz e determina ideias, sensações e
afectos, criando, assim, uma realidade específica. Na socialização do indiví-
duo (família, escola, meio ambiente) intemalizam-se as normas que orientam
o nosso agir, pensar e sentir, sendo a comunicação e a imitação os principais
veículos desta aprendizagem. Este carácter colectivo dos fenómenos culturais
é ainda entendido por Hansen na senda de Tylor. Convém, no entanto, adoptar
uma perspectiva mais dialéctica, já que mesmo as manifestações e variantes
possíveis da individualidade fazem parte dum repertório colectivo que, por
seu lado, se modifica também através de inovações individuais.

No que diz respeito aos mecanismos do processo cultural, Hansen distingue


três níveis: 1.º os signos e símbolos, 2.º as instituições e 3.º o saber colectivo

40
e as mentalidades. O autor destaca historicamente três conceitos principais
de cultura que se prendem com uma maior ou menor insistência na função
ou na substância da cultura:

1) O conceito instrumental de cultura, presente sobretudo na antro-


pologia tradicional, que considera os fenómenos culturais como deter-
minados por necessidades biológicas: a cultura garante a sobrevivência
da espécie humana. Esta definição, porém, implica uma relação causal
simplista e ignora completamente a interacção dialéctica entre
indivíduo e contexto histórico-cultural.

2) O conceito substancial de cultura que, desde Herder e até hoje, consi-


dera a cultura como entidade ontológica, como substância permanente
e independente das diversas manifestações contextuais.

3) O conceito semiótico que, desde os anos 70, descreve a cultura como


universo de acções simbólicas. Nesta perspectiva, o ser humano
aparece como objecto e sujeito da cultura que transforma uma
contingência indiferente num conjunto coerente de significados. Este
conceito, que prevalece também na etnologia moderna, encontra-se
concentrado na definição de Clifford Geertz que considera a cultura
como um sistema simbólico que pretende criar nos homens
disposições e motivações fortes, globais e duráveis, envolvendo ideais/
representações com uma tal aura de facticidade que as disposições e
motivações parecem corresponder totalmente à realidade (cf. Geertz
1987: 48).

Central em todas estas definições actuais de cultura é o conceito de repre-


sentação que permite, segundo Chartier, delimitar e ligar três áreas funda-
mentais:

• as representações colectivas que, no interior dos indivíduos, repro-


duzem as divisões do mundo social e organizam os esquemas de
percepção e de apreciação que permitem classificar, julgar e agir;

• as formas de expressão do ser social e do poder político que se


manifestam nos signos e nas «performances» simbólicas (imagens,
rituais, estilizações da vida);

• a condensação duma identidade ou dum poder garante de continui-


dade e estabilidade num representante individual ou colectivo
(Vierhaus/Chartier 1995: 49-50, cf. também a introdução em Chartier
1988).

Estas definições podem ser completadas pelas considerações «com-


portamentais» de Kroeber/Kluckhohn (cf. Baumhauer 1982: 8 e segs.), para

41
os quais a cultura consiste em modelos implícitos e explícitos de
comportamentos e para comportamentos, adquiridos e transmitidos através
de símbolos e na sua materialização em artefactos. Os sistemas culturais
são, assim, resultado de acções e condicionam, ao mesmo tempo, futuras
acções; a interacção entre indivíduo e grupo social é reactiva e criativa. Ao
longo da história, os esquemas culturais são adquiridos, modificados e
substituídos por outros. Os autores distinguem vários níveis de culture
patteming: os modelos básicos e sistémicos que prevalecem durante milhares
de anos, os modelos secundários mais instáveis que incluem organizações
formais e sistemas de pensamento, e, acima de tudo, os modelos universais
que fornecem o quadro geral para as diferentes culturas e a sua respectiva
produção de valores e símbolos. No interior de cada cultura, podem-se
destacar ainda os modelos genéricos que caracterizam a simbolização, os
patterns of patterns.

O historiador vê-se, assim, confrontado com uma permanente reconstru-


ção colectiva da realidade material, social e espiritual. Considerada como
complexidade organizada de práticas e sistemas simbólicos, sancionados por
um grupo social ou uma sociedade inteira, a cultura tanto resulta dainteracção
e da comunicação como as determina. Esta definição é compatível com a
perspectiva sistémica de Luhmann que propõe a substituição do termo
«cultura» pelo de «complexo simbólico-semântico». Para Luhmann, a cultura
é um arsenal de temas possíveis para a comunicação, utilizados nos vários
sistemas de interacção:

Kultur ist kein notwendig normativer Sinngehalt, wohl aber eine Sinnfest-
legung (Reduktion), die es ermõglicht, in themenbezogener Kommunika-
tion passende und nichtpassende Beitrage oder auch korrekten bzw. in-
korrekten Themengebrauch zu unterscheiden. (Luhmann 1985: 224-225)

Pare resumir as definições citadas numa síntese operacional, podemos dizer


que são essenciais os aspectos seguintes para a abordagem analítica duma
determinada cultura:

• A realidade é uma construção social, uma projecção considerada


como «natural» e «objectiva». O real, a contingência vivencial e
factual, estão para além da representação e simbolização culturais.

• História cultural e teoria cultural devem basear-se numa extensa feno-


menologia dos processos e artefactos que constituem uma cultura,
para descrever depois a mudança dos significados em determinados
contextos sociais e históricos.

• O significado e a função dos elementos culturais não tem existência


objectiva, mas resultam dum contexto comunicacional concreto que
a análise pode reconstruir. Mesmo os símbolos mais convencionais

42
podem, na mesma época, aparecer em contextos muito divergentes e
vestir assim significados variáveis. Esta variabilidade problematiza,
como é óbvio, qualquer «dicionário» de símbolos como também a
semântica histórica tradicional que tenta «fixar» significados fora do
seu contexto concreto.

Estas premissas evitam a redução dos estudos culturais a uma acumulação


de saberes enciclopédicos e permitem tanto analisar a produção social de
sentidos (e a respectiva materialização em artefactos) quanto salientar a
importância destes processos ao nível concreto e individual. Neste equilí-
brio precário entre fenomenologia descritiva e contextualização funcio-
nalista reside o objectivo principal das ciências culturais que pretendem
reconstruir - e entender, assim, pelo menos parcialmente - realidades
vivenciais alheias e diferentes.

Bibliografia aconselhada

Para o conceito de «cultura» e a área das ciências culturais, pode consultar-


-se o artigo deBausinger (1980) e o livro de Hansen (1995), ambos destinados
a um público estudantil. Os estudos reunidos por Schulze (1994) informam
sobre a discussão actual na área da historiografia, enquanto Chartier ( 1988)
tematiza a história cultural. A teorização recente na sociologia cultural
encontra-se, entre outras, nas publicações da série suhrkamp taschenbücher
wissenschaft (p. ex. Müller-Dohm 1995). Para uma informação rápida e
sucinta sobre os principais tópicos e teorias nas ciências sociais e culturais
recomenda-se o dicionário de Paynes (1996).

Actividades propostas
\ • Resumir os principais aspectos da definição seguinte de cultura
(Vierhaus/Chartier 1995: 16-17):

Für das Gesamt der Weisen lebensweltlicher Wirklichkeitserfahrung


und -gestaltung, der symbolischen Wirklichkeitsdeutungen, Kommu-
nikationsformen, Produktionsweisen und Machtverhaltnisse bietet sich
der Begriff Kultur an. Modeme Kulturgeschichte tendiert zur «histoire
totale» von konkreten Lebenswelten ( ... ). Kulturgeschichtliche
Forschung in diesem Sinne, die vergangene komplexe Lebenswelten
rekonstruiert, hat es mit Wirklichkeiten zu tun, die Ergebnisse sozialer
Praxis, also geschichtlich und das heiBt auch immer schon von den
,.

43
Handelnden und durch Überlieferung interpretiert sind. Also nicht
allein mit sozialen Zustanden und Prozessen, sondem auch deren raum-
und zeitbedingten Deutungen. /
• Comentar a antinomia cultura - natureza na definição seguinte de
Sigmund Freud (1994: 116-117):

Unsere Kultur ist ganz allgemein auf der Unterdrückung von Trieben
aufgebaut. Jeder einzelne hat ein Stück seines Besitzes, seiner
Machtvollkommenheit, der aggressiven und vindikativen Neigungen
seiner Persõnlichkeit abgetreten; aus diesen Beitragen ist der
gemeinsame Kulturbesitz an materiellen und ideellen Gütern
entstanden. AuBer der Lebensnot sind es wohl die aus der Erotik
abgeleiteten Familiengefühle, welche die einzelnen Individuen zu
diesem Verzicht bewogen haben. Der Verzicht ist ein im Laufe der
Kulturentwicklung progressiver gewesen; die einzelnen Fortschritte
desselben wurden von der Religion sanktioniert; das Stück Trieb-
befriedigung, auf das man verzichtet hatte, wurde der Gottheit zum
Opfer gebracht; das so erworbene Gemeingut für «heilig» erklart. Wer
kraft seiner unbeugsamen Konstitution diese Triebunterdrückung nicht
mitmachen kann, steht der Gesellschaft ais «Verbrecher», ais «outlaw»
gegenüber, insofem nicht seine soziale Position und seine hervor-
ragenden Fahigkeiten ihm gestatten, sich in ihr als groBer Mann, ais
«Held» durchzusetzen.
A. O.

44
'
li

II. CONCEITOS DE CULTURA


\

,.
/

1. Kultur e Zivilisation
1

Resumo

Definem-se em diversas acepções os termos «cultura» e civilização», partin-


do-se da sua utilização na linguagem quotidiana para a seguir se delimitar o
campo semântico das palavras, com particular destaque para o espaço cul-
tural alemão, em correlação com o seu uso em outras línguas europeias.
Avalia-se a influência que a situação histórica terá tido nesse processo, bem
como a relação entre a mesma e a identidade nacional, à luz da globalização
e multiculturalidade.

Objectivos

• Dominar os conceitos de «cultura» e «civilização» nas suas diferentes


acepções, tendo em conta as alterações semânticas, verificadas no
espaço e no tempo.

• Associar a evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation com


a evolução de vocábulos afins no contexto europeu e com a história
do espaço cultural alemão.

• Problematizar as noções tradicionais de cultura nacional e história, à


luz da realidade contemporânea, tendo em conta as manifestações
multiculturais nas sociedades contemporâneas.

49
1.1 Cultura

A utilização das palavras cultura e civilização na linguagem corrente


esconde as inúmeras implicações de ordem histórica, social e política que as
mesmas envolvem, bem como uma série de factores particulares, consoante
o grupo que as utiliza.

Assim, quando se analisa as acepções em que a palavra cultura é actual-


mente utilizada em Português, facilmente se apreende as inúmeras contra-
dições e ambiguidades inerentes à sua utilização.

1.1.1 Cultura e realidade intelectual

Quando se fala, por exemplo, de um Ministério da Cultura, ao mesmo asso-


ciam-se domínios relacionados com a intervenção artística, literária, filo-
sófica, isto é, com o mundo predominantemente intelectual, a que as huma-
nidades se encontram associadas, por oposição ou em complemento à ciência
e à tecnologia, que, frequentemente, se encontram sob uma tutela diferente.

É também um pouco neste sentido que se fala de uma camada culta, de uma
«pessoa culta»: são, no primeiro caso, por exemplo ou sobretudo, os inte-
lectuais, a quem nos estamos habitualmente a referir, enquanto que, no
segundo, o sentido é mais amplo e difuso. Uma «pessoa culta» tanto pode
ser um especialista, como um auto-didacta, embora possa haver especialistas
que não são «cultos». Esta concepção de cultura remete fundamentalmente
para uma cultura de elite a que se opõe implicitamente a cultura popular
e a cultura de massas.

1.1.2 Cultura nacional

Mas a palavra cultura adquire um carácter particular, noutro contexto, a


saber, quando surge associada a uma realidade nacional, remetendo, neste
caso, prioritariamente, para as realizações dentro de um determinado terri-
tório histórica e geograficamente delimitado. O carácter universal só é
recuperado, quando se proclama a universalidade dos valores helénicos,
portugueses, ocidentais etc.

Esta estreita associação manifesta-se em designações como «história da


cultura», «cultura portuguesa» ou «cultura alemã». Saliente-se que, no
espaço francófono ou anglófono, a área foi tradicionalmente designada de

51
civilisation allemande ou German civilization. Contudo, tais designações e
associações não só surgem extremamente vagas, como, por si só, pouco
indicam acerca do real conteúdo que as disciplinas oferecem: analisar-se-á,
no âmbito das mesmas, temas relacionados predominantemente com as
realizações artísticas e intelectuais ou tomar-se-á em consideração outros
elementos como factores de ordem política, histórica, social e económica?
Qual o papel ocupado pela cultura popular e de massas nessas disciplinas?

A resposta a esta questão depende essencialmente do modo como se entende


as relações entre a realidade intelectual ou simbólica e a esfera económica
ou material, isto é, se estas são entendidas numa relação de reciprocidade,
interpenetrando-se mutuamente, se de causalidade (uma sendo resultado da
outra, a economia determinando o plano teórico ou este sendo o motor
essencial) ou ainda como realidades independentes.

Mas existe ainda uma outra questão central, a saber, qual o tipo de associa-
ção a estabelecer entre uma «nação» e a sua cultura. Se a estabilidade geo-
gráfica parece oferecer algumas garantias quanto à cultura «portuguesa», tal
sucede, apenas, à primeira vista. Será que a cultura portuguesa, antes do
século XVI, deverá ser integrada numa cultura ibérica mais ampla? E o que
sucede com a cultura lusófona das antigas colónias? Como classificar a cultura
produzida por portugueses no Brasil antes da independência?

A questão também se levanta no que respeita ao espaço cultural alemão,


dada a complexa história da geografia política dos territórios de expressão
alemã. Estar-se-á apenas a falar da cultura dos habitantes da actual RFA,
reunificada depois de 1990? Incluir-se-á outros povos germanófonos? Mas
que dizer das minorias que durante muito tempo viveram dentro das frontei-
ras do Sacro Império Romano-Germânico até à sua extinção em 1806?
E que tratamento conferir às vastas camadas de imigrados que actualmente
constituem uma importante parte da sociedade civil alemã, austríaca ou suíça?

Este tema a que se regressará, noutro contexto, serve, de momento, apenas


para problematizar a associação por vezes irreflectida entre «cultura» e
«nação».

1.1.3 Sentido antropológico: particular e universal

A moderna antropologia cultural introduziu uma noção de cultura que mere e


também ampla difusão nos meios científicos: cultura será tudo aquilo
produzido pelo Homem, enquanto ser dotado da capacidade material de
fabricar e transmitir utensílios, bem como da faculdade da linguagem.

52
Assim desaparece a distinção entre a cultura de elite (dita superior) e a
cultura popular e a de massas (dita inferior) , deixando simultaneamente
de fazer sentido a associação entre uma determinada nação e uma cultura.

A cultura é assim uma manifestação universal que assume formas e mani-


festações diferentes, consoante os grupos que a produzem e a transmitem.

Assim, reconhece-se em cada grupo o modo como essas manifestações


culturais são organizadas, material e simbolicamente de forma específica ou
particular.

1.1.4 A etimologia da palavra cultura

A palavra cultura, originária do Latim, tanto remetia para processos mate-


. riais - patentes ainda em determinados vocábulos nossos contemporâneos,
como cultura do trigo, do algodão, agricultura-, como intelectuais, tal
como em Cícero, que utilizou a expressão «collere animi» (cultivar/domes-
ticar/afinar os espíritos). Implícita está a noção de que a cultura trabalha a
matéria-prima oferecida pela natureza fora e dentro do homem.

Por outro lado, a etimologia remete ainda para a palavra cultus, associando-
-se a manifestações de carácter predominantemente simbólico.

Este duplo significado - material e intelectual - manter-se-á até meados


do século XVIII, sobretudo em inglês e em alemão, confundindo-se a sua
utilização com o termo civilização (em francês a palavra civilisation será
sempre privilegiada).

A crença num processo de domesticação de um estado natural ou «sel-


vagem», conducente ao estádio de liberdade, pressupõe a interacção entre
o domínio material e simbólico: a cultura e a civilização coincidem com
o processo de aperfeiçoamento que conduz em última instância às Luzes.

O século XIX conhecerá a gradual tendência para associar o termo cultura


a fenómenos predominantemente intelectuais, tendência que se verifica, por
exemplo, nos autores de expressão alemã, ao consagrarem, entre outras, a
oposição entre uma história predominantemente intelectual - Kulturge-
schichte - e uma história política -Politikgeschichte. Ao contrário do que
uma ideia muito vulgarizada (Elias 1976) pretende, tal evolução far-se-á,
contudo, também igualmente sentir em autores de expressão inglesa,
sobretudo a partir do século XIX.

A cultura assim entendida remete para uma concepção humanista de uma


tradição que funda uma identidade nacional na diferença que demarca uma

53
sociedade de outras, baseando-se sobretudo num conjunto de ideias onde se
reflecte a excelência de um povo, a superioridade da sua camada intelectual.
Este conceito ainda actualmente em uso tenderá a exprimir a crescente cisão
entre uma chamada cultura superior ou de elite e uma inferior ou popular
(Arnold 1993).

Contudo, o interesse por esta última também se virá a fazer sentir no século
XIX, assistindo-se ao emergir dos primeiros estudos etnográficos: seguindo
uma tradição iniciada fundamentalmente por Johann Gottfried Herder
(1744-1803), os românticos alemães, nomeadamente os Irmãos Grimm
(Ludwig Karl Grimm, 1785-1863, e Wilhelm Karl Grimm, 1786-1859) e
Clemens Brentano ( 1778-1842), lançam, no século XIX, as bases da futura
Volkskunde, claramente separada da Kulturgeschichte. Tal divisão entre uma
cultura predominantemente intelectual e o domínio dos artefactos quotidianos
e de utilidade material, reproduz e consagra a divisão do trabalho (intelectual
e manual) que a Revolução Industrial viera a acentuar de forma renovada.
É também a industrialização a responsável pelo interesse crescente por formas
de cultura popular, cujo desaparecimento se receia e que postula a existência
de culturas «puras» ou «originais» cujo legado deverá ser preservado.

A moderna antropologia cultural herdou tal tradição, na sua atenção ao local


e ao tradicional, com os méritos daí advenientes, embora, por vezes, a ela se
associe a hipostasiação e o uso propagandístico do «folclore».

1.1.5 Cultura: o emergir da noção antropológica

Herder pode ser considerado um precursor do relativismo cultural, assente


na diferença, ao defender as diferentes culturas como unidades orgânicas e
auto-suficientes, dotadas de autonomia e legitimando-se a partir de um centro
próprio, definindo-se a partir das suas próprias regras internas contra as
pretensões totalizantes do universalismo eurocêntrico das Luzes.

As Luzes, associadas a civilização, passam consequentemente a ser encaradas


não como garantia ou momento num processo de aperfeiçoamento, mas como
instrumento de destruição.

Será também por influência alemã que o termo cultura recuperará uma carga
semântica mais ampla, incluindo de novo aspectos materiais e políticos, como
é o caso do historiador G. F. Klemm. Este, mantendo a acepção vulgarizada
ao longo do século XVIII, descreverá na sua Allgemeine Kulturgeschichte
der Menschheit (1843-1845) a evolução da humanidade desde um estádio
«selvagem» até à liberdade, mediante um processo de domesticação, com

54
!H

evidentes afinidades com o significado da palavra civilização ao longo do


século XVIII.

Edward BurnettTylor adoptará o termo culture na sua obra Primitive Culture


( 1871 ), para dotar a palavra de uma conotação eminentemente antropológica,
por oposição às restantes acepções.

Culture or civilization, taken in its wide ethnographic sense, is that com-


plex whole which includes knowledge, belief, art, morais, law, custom,
and any other capabilities and habits acquired by man as a member of
society. (Tylor 1976:1)

Este novo conceito inclui toda uma série de manifestações quotidianas,


enquanto transmissíveis de geração em geração, mas não abdica da palavra
civilização, indicando um pressuposto evolucionista que trai o modelo
eurocêntrico, segundo o qual as diferentes culturas «primitivas» serão
interpretadas e hierarquizadas.

Mas será em Herder que Franz Boas (1858-1942) se inspirará ao propor 1 Evolucionismo - corrente

mais uma vez o plural da palavra, bem como ao defender contra o evolu- predominante na antropologia
e no pensamento do século
cionismo1, a possibilidade de cada cultura ser capaz de invenções indepen- XIX em geral, segundo a qual
dentes, reagindo a diferentes estímulos e combinando-os de maneira dife- a humanidade se encontraria
toda ela submetida a idêntico
renciada. Boas inaugurará, assim, a corrente difusionista 2, menos hierar- processo de evolução, porque
quizante do que a versão proposta pelos evolucionistas, a que Edward Tylor participando de uma única
espécie , pelo que todo o
ainda se encontra intimamente ligado, contribuindo assim para a diluição da processo de desenvolvimento
oposição entre os termos cultura e civilização (Stocking 1982: 195-233) e cultural se faria a partir da
influência e transmissão de
para a aceitação da ideia do relativismo cultural nos estudos antropológicos. um modelo , que explicaria
afinidades e paralelismos nos
mitos e costumes. O facto de
Embora não seja a conotação que a palavra possui na linguagem quotidiana, a «civilização europeia» e de
a palavra cultura adquiriu assim um significado universal, na medida em a «raça» caucasiana terem
sido aquelas que suposta-
que apenas o Homem, enquanto ser dotado da capacidade da linguagem e mente teriam alcançado mais
assim de produzir símbolos, é capaz de criar cultura. feitos e influência, colocava-
as no topo de uma hierarquia
civilizacional de que Tylor
Tal entendimento de cultura passou a permitir uma abordagem em termos de ainda é adepto.
igualdade de todas as manifestações culturais, desde a cultura ocidental, 2 Difusionismo - corrente
à da Melanésia, dos ameríndios ou dos aborígenes da Austrália, recusando antropológica que defende
exactamente o oposto: a saber,
simultaneamente qualquer relação de causalidade entre determinadas
todas as culturas são dotadas
características físicas (as «raças») e uma hierarquia correspondente de cul- da capacidade de invenção,
turas. Assim, surgiria gradualmente reforçada a noção do valor idêntico de pelo que as afinidades entre
culturas tanto poderão ser
todas as manifestações culturais, produto de uma constante interacção e herdadas como resultado de
miscigenação, de que a noção de evolução ou de progresso está ausente. contactos e de migrações. Tal
posição surge esboçada por
Boas , na sua defesa das
A consagração desta noção de cultura viria a reforçar-se com a era pós- culturas, assim contribuindo
para a abolição do mito de
-colonial, permitindo um olhar renovado sobre a riqueza de manifestações uma suposta superioridade
culturais de sociedades anteriormente tidas por «primitivas». «rác ica».

55
Se é problemática a associação irreflectida entre uma cultura e uma
nação, o mesmo sucede no que respeita às etnias: a cultura não tem de
ser vista como um corpo ou organismo vivo que organiza esse mesmo
grupo e que tende a desaparecer, quando se dá uma situação de ruptura. Ela
é antes o resultado de inúmeros estímulos e de respostas aos mesmos, sendo
assim impossível falar de culturas «puras» ou «originais» (Clifford 1988:
234-235).

1.2 Civilização

Quando se fala de um país «civilizado», tal conceito surge habitualmente


associado a um certo bem-estar social, à existência de instituições políticas
que garantem a estabilidade e a representatividade dos cidadãos, por oposição
a outras sociedades onde esse viver pacífico é impedido ou por costumes
«selvagens» ou «bárbaros». O termo pode também indicar uma certa supe-
rioridade institucional, política e histórica, segundo este princípio.

Todas as sociedades poderão possuir a sua cultura, mas nem todas consti-
tuem uma civilização, isto é, não são portadoras de valores universalmente
transmissíveis. Assim, a cultura aborígene poderá ter as suas manifestações
de interesse meramente etnológico, mas não pode aspirar a fazer parte das
manifestações culturais de sociedades que merecem o epíteto de civiliza-
ções, como será o caso da suméria, egípcia, helénica, romana, renascentista,
europeia, ocidental, chinesa ou árabe.

Tal como a palavra cultura, a designação civilização também é frequen-


temente associada a uma realidade nacional. É assim que se fala de civili-
zação francesa ou inglesa. Mas tal associação não invalida o elemento
normativo anteriormente referido. As nações «civilizadas» são aquelas que
constituem manifestações de um processo em que as mesmas teriam atin-
gido um determinado grau de aperfeiçoamento. Assim, só as nações
«civilizadas» podem constituir um legado universal para a humanidade, algo
que as comunidades ditas «primitivas» ou «selvagens», «menos desen-
volvidas» ou «bárbaras» não estariam em condições de fazer.

Quando utilizada como adjectivo, a palavra «civilizado» remete, sobretudo,


para a ideia de cortesia, de polimento, de boas-maneiras que impedem a
agressão no quotidiano, desde os transportes públicos, à maneira de estar à
mesa, em suma ao modo de se comportar em sociedade.

Tanto num caso como no outro, a palavra civilização possui uma compo-
nente claramente normativa: quando se fala do homem «civilizado» encon-

56
,:-·

tra-se implícito um termo oposto, o «selvagem», o «bárbaro». Este dualismo


não só serve como modo de avaliar, valorizar um outro diferente e
implicitamente inferior, mas cumpre uma função identificadora essencial :
o outro diferente ou inferior, porque «bárbaro», «selvagem» ou «primitivo»,
constitui um ponto de referência comum para aquele que assim nomeia e
rejeita.

Ao designar um comportamento inadequado do ponto de vista das regras


por que uma comunidade, país ou grupo social se rege, a designação
«civilizado» aponta simultaneamente para a interacção social. A civiliza-
ção diz respeito não tanto a um indivíduo ou a um país, como à sociedade
em que aquele se insere ou a que este se reporta: ser-se ou não «civilizado»
depende não só da aceitação e interiorização dessas normas, mas igual-
mente da adequação entre as mesmas e a sociedade.

1.2.1 Civilização e Europa

Se tomámos até ao momento em consideração as conotações que a palavra


civilização tem, actualmente, em português, isto não invalida que as mes-
mas não tenham significados muito semelhantes noutras línguas europeias
como o francês e o inglês, traindo toda uma série de pressupostos, por sua
vez, influenciados e moldados pelo percurso histórico europeu e dos vários
grupos que compõem o Velho Continente. Mais ainda: se a palavra
«civilizado» passou a designar preferencialmente, sobretudo a partir do
século XVIII, os habitantes europeus, tal norma remete implicitamente para
o modo como a auto-consciência da Europa se foi construindo, por oposição
ao mundo não-europeu.

1.2.2 A etimologia da palavra civilização

A palavra civilização remete, etimologicamente, para o espaço urbano,


indicando um processo de aperfeiçoamento, não tanto em oposição a uma
natureza inculta, mas, sobretudo à barbárie, diferente ou estranha.

Note-se que a Antiguidade grega, porque indiferente aos que falavam


outra língua que não o grego, se recusava a conferir a esses forasteiros
3 Record e -s e que a palavra
o direito de cidadania 3 . Vedando-se-lhe o acesso ao ágora, vedava-se- «bárb aro » pretendia repro-
-lhe o caminho que conduziria ao uso da palavra perante os iguais, à duzir, em Grego, através de
uma onomatopeia, a ininte-
racionalidade, à participação nos destinos políticos e nas vantagens ligibilidade da s línguas
materiais que decorriam do facto de se ser homem e livre. O escravo e a forasteiras.

57
mulher ver-se-ão reduzidos ao mero estatuto de reprodutores, inca-
pazes de operar a associação criadora e criativa entre o domínio da pala-
vra e da racionalidade ou da política - e do mundo material ou da
economia.

Com o advento da expansão romana e da formação do império, o mesmo


reunirá as condições essenciais para não se limitar a propagar a igualdade
dos seus membros, ignorando ou ostracizando os diferentes, iniciando um
processo de assimilação de novos cidadãos, desde que unidos a Roma pela
língua, os deuses, os valores.

A igualdade potencial em breve surgirá associada a um gesto imperialista


que, rejeitando as culturas diferentes, exige a imposição de uma norma que
lhe permita dominar. A palavra incluirá aspectos materiais, políticos,
económicos, para além das realizações artísticas e filosóficas, uma vez que a
civilização não funda uma mera identidade cultural, como sucedia com a
Hélade, mas se revê na materialização da sua superioridade do ponto de
vista técnico, jurídico, político.

Esta abrangência do conceito de civilização encontramo-la na expres-


são civilisation em francês, implicando não só um processo de aperfei-
çoamento, no século XVIII, intimamente associado às Luzes, como um
processo universal. Em inglês, a palavra civilization tem as mesmas
conotações, indicando, tal como em francês, um processo de progresso
universal.

As razões de ser desta evolução semântica encontramo-las, em parte, na


difusão e imposição dos valores e costumes destas sociedades, sobretudo a
partir do século XVIII, em todo o mundo, isto é através do seu passado
imperial e imperialista.

De termo relativamente neutro, uma vez que implica a superioridade da


cidade sobre o campo, invocando para o efeito, todo o processo de cristia-
nização e pacificação ocorrido durante a Idade Média, com recurso à tra-
dição clássica por via da cultura urbana, a palavra «civilização» evolui,
sobretudo durante o século XVIII, para a noção implícita da superioridade
da Europa das Luzes.

A civilização, pese embora a sua crença no progresso e na possibilidade de


todos os homens a ela aderirem, pressupõe um modelo ou norma: o modelo
do racionalismo ocidental, em estreita associação com o expansionismo
colonial inglês e francês.

58
1.2.3 Civilização, cultura e identidade nacional

A utilização dos termos civilização ou cultura pode adquirir conotações


distintas, consoante as comunidades linguísticas, que, por sua vez, são inse-
paráveis de um determinado percurso, num determinado mome~to e espaço,
numa constelação histórica particular. _,,

Assim, quando um Alemão fala de Zivilisation ele remete implicita-


mente para algo de radicalmente diferente do que um Inglês quando
utiliza a palavra civilization; por sua, vez a palavra francesa civilisation
possui uma familiaridade que não encontra uma reacção semelhante em
alemão.

Norbert Elias (1976) teve ocasião de chamar a atenção para o modo como,
ainda nos anos trinta do nosso século, esse entendimento das palavras possuía
a faculdade de reflectir aquilo que o sociólogo designa de auto-consciência
de um povo.

( ...) wenn man prüft, welches eigentlich die allgemeine Funktion des Be-
griffs «Zivilisation» ist, und um welcher Gemeinsamkeit willen man alle
diese verschiedenen menschlichen Haltungen und Leistungen gerade als
«zivilisiert» bezeichnet, findet man zunachst etwas sehr Einfaches: dieser
Begriffbringt das SelbstbewuBtsein desAbendlandes zumAusdruck. Man
konnte auch sagen: das NationalbewuBtsein. Es faBt alles zusammen, was
die abendlandische Gesellschaft der letzten zwei oder drei Jahrhunderte
vor früheren oder vor «primitiveren» zeitgenossischen Gesellschaften voraus
zu haben glaubt. Durch ihn sucht die abendlandische Gesellschaft zu
charakterisieren, was ihre Eigenart ausmacht, und worauf sie stolz ist: den
Stand ihrer Technik, die Art ihrer Manieren, die Entwicklung ihrer
wissenschaftlichen Erkenntnis oder ihrer Weltanschauung und vieles andere
,.,. mehr. (Elias 1976: I, 1-2)
1
Se para um Francês ou um Inglês seria mais evidente falar da sua civiliza-
ção, o Alemão orgulhar-se-ia da sua cultura. Nesta forma de falar encon-
trar-se-ia cristalizada toda a experiência recente desses espaços: a civiliza-
ção francesa ou britânica não se esgotaria na sua arte, pensamento e filo-
sofia, mas incluiria aspectos chamados materiais como a política, a organi-
zação económica, costumes e usos. O Inglês orgulha-se tanto de Shakespeare
como das suas instituições políticas, ou da sua marinha; o Francês preza
tanto o seu Voltaire ou Proust como a sua culinária, a sua alta costura; o
Alemão pode amar secretamente os seus costumes, mas define-os por
comparação, por exemplo, ou com o parlamentarismo britânico ou com o
requinte francês. Há contudo um domínio, em que sente que a sua supe-
rioridade poderá ser incontestada: o das suas grandes realizações no domí-
nio da literatura, da filosofia, da música. Se se pode discutir quais os hábitos

59

- '
culinários mais requintados, sabe-se ou receia-se que a França encontre maior
eco em observador mais distante; se se remeter para o mérito da experiência
política, a admiração será relativa. Mas Goethe, Kant ou Beethoven poderão
sempre rivalizar com o que de melhor a Europa produziu.

l .2.4 Civilização e imperialismo -------


Aquilo para o que pretendemos chamar a atenção não é a justeza destas
afirmações, mas antes para um consenso europeu raras vezes questionado e
que, longe de representar uma espécie de verdade absoluta, remete antes
para o passado específico dessas diferentes realidades.

Admitir ou pressupor que existe uma via política, uma regra de convívio ou
normas de comportamento em sociedade, costumes que são mais facilmente
universalizáveis não tem que ser associado com a sua superioridade efectiva,
mas antes com relações específicas de poder.

Se a palavra civilização foi consagrada em inglês e em francês , isto prende-


-se com o facto de, exactamente no século XVIII, os dois países terem ocupado
o lugar hegemónico em termos europeus e não-europeus. O carácter normativo
do termo civilização, embora não excluísse um processo de aperfeiçoamento
que todos os homens poderiam mais cedo ou mais tarde protagonizar,
implicava a ideia de um modelo, modelo esse aplicado na prática a todos os
países por eles colonizados.

O facto de, em breve, se passar a utilizar a expressão , ac rescentando -


-se-lhe um adjectivo que remetia para uma determinada realidade nacio-
nal, retirar-lhe-ia a problemática universalidade, ao mesmo tempo que
dava corpo a uma normatividade sustentada por uma potência domin ante.
A excelência de uma determinada civilização seja da britânica, da fran -
cesa, da chinesa ou da árabe não pode nunca ser dissociada das suas
capacidades expansionistas, do processo de difusão e de opressão que as
acompanhou.

No espaço de expressão cultural alemã verificaram-se igualmente evoluções


semânticas, embora diferentes por razões que se prendem com o seu percurso
particular, este por sua vez também determinado pelas relações que foi
estabelecendo com outras sociedades.

60
<

1.3 A oposição Kultur/Zivilisation

1.3.1 A evolução na Alemanha entre os séculos XVIII e XX

A história da evolução semântica dos termos Kultur e Zivilisation remete


claramente para a história específica do espaço cultural alemão e para a
complexa questão da sua identidade nacional.

Em autores do século XVIII (Adelung, Christian Daniel Voss), a palavra


Kultur aponta para um conjunto de fenómenos políticos, económicos, artís-
ticos e filosóficos, à semelhança do que sucede, em inglês, com a palavra
culture que surge associada à indústria e à chamada esfera das carências, isto
é, das relações de interdependência que se geram numa sociedade determinada
pela divisão do trabalho, por oposição a uma sociedade de privilégios, em
que a reciprocidade dos serviços e a hereditariedade dos papéis se encontra
fixada de antemão.

Assim Christian Daniel Voss associa Kultur ao «aumento da indús-


tria» ( « Vermehrung der Industrie») e à disponibilização de um maior
número de forças produtivas («Summe produktiver Krafte» apud Garber
1992: 413). Aufklarung e Kultur identificam-se. O mesmo sucede com
Adelung que define Kultur como a superação de um estádio de animalidade
e como a difusão da Aufklarung, com o equivalente refinamento do gosto e
o desenvolvimento dos elementos intelectuais no homem (Garber 1992:
411-412) .

.. Assim, durante o século XVIII, tanto em alemão como em inglês, os termos


Kultur/culture/cultivation e Zivilisation/civilization confundem-se e
r . contaminam-se frequentemente.

Este é o caso de Moses Mendelssohn (1729-1786) no seu texto «Über die


Frage. Was heiBt aufklaren?» (Mendelssohn 1986): a Bildung divide-se em
Kultur e Aufklarung, remetendo a última para o Homem, num plano
predominantemente teórico e individual, a Kultur diz respeito ao domínio
prático, pensando-se o ser humano enquanto ser inserido na sociedade civil.
Contudo, o facto de a Aufklarung dela aparecer demarcada, aponta já para
uma futura dicotomia.

Die Worte Aufklarung, Kultur, Bildung sind in unserer Sprache noch neue
Ankê:immlinge. Sie gehê:iren vor der Hand bloB zur Büchersprache. Der
gemeine Haufe vestehet sie kaum. Sollte dieses ein Beweis sein, daB auch
die Sache bei uns noch neu sei? Ich glaube nicht. Man sagt von einem
gewissen Volke, daB es kein bestimmtes Wort für Tugend, keines für
Aberglauben habe; ob man ihm gleich ein nicht geringes MaB von beiden
mit Recht zuschreiben darf.

61
Indessen hat der Sprachgebrauch, der zwischen diesen gleichbedeutenden
Wortern einen Unterschied angeben zu wollen scheint, noch nicht
Zeit gehabt, die Grenzen derselben festzusetzen. Bildung, Kultur und
Aufklarung sind Modifikationen des geselligen Lebens; Wirkungen des
FleiBes und der Bemühungen der Menschen ihren geselligen Zustand zu
verbessem.
J e mehr der gesellige Zustand eines Volks durch Kunst und FleiB mit der
Bestimmung des Menschen in Harmonie gebracht worden; desto mehr
Bildung hat dieses Volk.
Bildung zerfallt in Kultur und Aufklarung. Jene scheint mehr auf das
Praktische zu gehen: auf Güte, Feinheit und Schõnheit in Handwerken,
Künsten und Geselligkeitssitten (objektive); auf Fertigkeit, FleiB und
Geschicklichkeit in jenen Neigungen, Triebe und Gewohnheiten in diesen
(subjektive). ( ... ) Aufkldrung hingegen scheinet sich mehr auf das Theo-
retische zu beziehen. Auf vemünftige Erkenntnis (obj.) und Fertigkeit (subj .)
zum vernünftigen Nachdenken, über Dinge des menschlichen Lebens, nach
MaBgebung ihrer Wichtigkeit und ihres Einflusses in die Bestimmung des
Menschen.
Ich setze allezeit die Bestimmung des Menschen ais MaB und Ziel aller
unserer Bestrebungen und Bemühungen, ais einen Punkt, worauf wir
unsere Augen richten müssen, wenn wir uns nicht verlieren wollen.
Eine Sprache erlanget Aufklarung durch die Wissenschaften und erlanget
Kultur durch gesellschaftlichen Umgang, Poesie und Beredsamkeit. Durch
jene wird sie geschickter zu theoretischem, durch diese zu praktischem
Gebrauche. Beides zusammen gibt einer Sprache die Bildung.
Kultur im AuBerlichen heiBt Politur. Hei] der Nation, deren Politur
Wirkung der Kultur und Aufklarung ist; deren auBerliche Glanz und
Geschliffenheit innerliche, gediegene Echtheit zum Grunde hat. (Mendelssohn
1986: 3-4)

Aquilo que caracteriza este entendimento de Kultur é o modo como na


Alemanha de finais do século XVIII se passa a interpretar o processo que
conduz às Luzes e ao progresso a partir da dedução histórico-genética das
suas condições materiais e intelectuais.

Assinale-se mais uma vez que a palavra Kultur ainda se identifica com aquilo
que, mais tarde, será designado de civilização.

A oposição entre Kultur e Zivilisation será anunciada por Immanuel Kant


( 1724-1804 ), ao afirmar que o progresso da humanidade se faz por uma via
que conduz da civilização, à moralização, através da cultura. Retomando a
crítica da civilização iniciada por Jean Jacques Rousseau ( 1712-1778), Kant
indaga das razões de mal-estar na mesma, para opor o estádio de cultura ao
de civilização.

62
( ... ) Rousseau hatte so Unrecht nicht, wenn er den Zustand der Wilden
vorzog, so bald man namlich diese letzte Stufe, die unsere Gattung noch
zu ersteigen hat, weglaBt. Wir sind im hohen Grade durch Kunst und
Wissenschaftkultiviert. Wir sindzivilisiert, bis zum Überlastigen, zu allerlei
gesellschaftlicher Artigkeit und Anstandigkeit. Aber, uns schon für
moralisiert zu halten, daran fehlt noch sehr viel. Denn die Idee der Morali-
tat gehõrt noch zur Kultur; der Gebrauch dieser Idee aber, welcher nur auf
das Sittenahnliche in der Ehrliebe und der auBeren Anstandigkeit hin-
auslauft, macht bloB die Zivilisierung aus. So lange aber Staaten alle ihre
Krafte auf ihre eiteln und gewaltsamen Erweiterungsabsichten verwenden,
und so die langsame Bemühung der inneren Bildung der Denkungsart ihrer
Bürger unaufhõrlich hemmen, ihnen selbst auch alle Unterstützung in dieser
Absicht entziehen, ist nichts von dieser Art zu erwarten; weil dazu eine
lange innere Bearbeitungjedes gemeinen Wesens zur Bildung seiner Bürger
erfordert wird. Alles Gute aber, das nicht auf moralisch-gute Gesinnung
gepfropft ist, ist nichts als lauter Schein und schimrnemdes Elend. ln diesem
Zustande wird wohl das menschliche Geschlecht verbleiben, bis es sich,
auf die Art wie ich gesagt habe, aus dem chaotischen Zustande seiner
Staatsverhaltnisse herausgearbeitet haben wird. (Kant 1991: 44-45)

Mas sublinhe-se que esta hierarquia não exclui nenhum desses momentos.
São três planos distintos, é certo, contribuindo todos eles para esse pro-
gresso que a filosofia da história pode interpretar.

Herder, por sua vez, irá chamar a atenção para as culturas específicas e para
a necessidade de às mesmas se conferir voz adequada, também por oposição
à civilização superficial e destruidora, designadamente ao modo como todas
elas dependem de uma totalidade que é a essência da humanidade. Mas note-se
também que, mais uma vez, a palavra Kultur é associada a domínios políticos,
,,íl materiais.

Mit Wissenschaften und Künsten ziehet sich also eine neue Tradition durchs
Menschengeschlecht, an deren Kette nur wenigen Glücklichen etwas Neues
anzureihen vergõnnt war; die andem hangen an ihr wie treufleiBige Sklaven
und ziehen mechanisch die Kette weiter. Wie dieser Zucker und Mohren-
trank durch manche bearbeitende Hand ging, eh er zu mir gelangte und ich
kein andres Verdienst habe, als ihn zu trinken: so ist unsre Vemunft und
Lebensweise, unsre Gelehrsamkeit und Kunsterziehung, unsre Kriegs- und
Staatsweisheit ein ZusammenfluB fremder Erfindungen und Gedanken,
die ohn' unser Verdienst aus aller Welt zu uns kamen und in denen wir uns
von Jugend auf baden oder ersaufen.
Eitel ist also der Ruhm so manches Europaischen Põbels, wenn er in dem,
was Aufklarung, Kunst und Wissenschaft heiBt, sich über alie drei Welt-
teile setzt, und wie jener Wahnsinnige die Schiffe im Hafen, alie Erfin-
dungen Europa's aus keiner Ursache für die Seinen halt, als weil er im
ZusammenfluB dieser Erfindungen und Traditionen geboren worden .Arm-

63
seliger, erfandest du etwas von diesen Künsten? Denkst du etwa bei allen
deinen eingesognen Traditionen? DaB du jene brauchen gelernt hast, ist
die Arbeit einer Maschine: daB du den Saft der Wissenschaft in dich zie-
hest, ist das Verdienst des Schwammes, der nun eben auf dieser feuchten
Stelle gewachsen ist. Wenn du dem Otahiten ein Kriegsschiff zulenkst
und auf den Hebriden eine Kanone donnerst, so bist du wahrlich weder
klüger noch geschickter, als der Hebride und der Otahite, der sein Boot
künstlich lenkt und sich dasselbe mit eigner Hand erbaute. Eben dies wars,
was alle Wilden dunkel empfanden, sobald sie die Europaer naher kennen
lernten. ln der Rüstung ihrer Werkzeuge dünkten sie ihnen unbekannte,
hõhere Wesen, vor denen sie sich beugten, die sie mit Ehrfurcht griiBten;
sobald sie sie verwundbar, sterblich, krankhaft und in sinnlichen Übungen
schwacher als sich selbst sahen, fürchteten sie die Kunst und erwürgten
den Mann, der nichts weniger als mit seiner Kunst Eins war. Auf alle Kultur
Europa's ist dies anwendbar. Darum, weil die Sprache eines Volks, zumal
in Büchern, gescheut und fein ist: darum ist nicht jeder fein und gescheut,
der diese Bücher leset und diese Sprache redet. Wie er sie lieset? wie er sie
redet? das ware die Frage; und auch dann dachte und sprache er immer
doch nur nach: er folgt den Gedanken und der Bezeichnungskraft eines
andem. Der Wilde der in seinem engern Kreise eigentümlich denkt
und sich in ihm wahrer, bestimmter und nachdriicklicher ausdriickt, Er,
der in der Sphare seines wirklichen Lebens Sinne und Glieder, seinen
praktischen Verstand und seine wenigen Werkzeuge mit Kunst und
Gegenwart des Geistes zu gebrauchen weiB ; offenbar ist er, Mensch gegen
Mensch gerechnet, gebildeter als jene politische oder gelehrte Maschine,
die wie ein Kind auf einem sehr hohen Geriist steht, das aber leider fremde
Hande, ja das oft die ganze Mühe der Vorwelt erbaute. (Herder 1989:
358-359)

Aqui ecoa o grito de revolta de um espaço de língua alemã até certo ponto
colonizado, economicamente pela Grã-Bretanha, política, literária e artisti-
camente pela França. O direito à diferença implícito na definição de Herder
dá conta do posicionamento do território alemão em meados do século XVIII.

Assim, a distinção entre Kultur e Zivilisation não é essencial. Mesmo


Wilhelm von Humboldt (1767-1835), ao distinguir as duas, não faz dessa
oposição algo de central, mas destaca antes a Bildung em confronto com as
mesmas (cf. Cap. 11.2).

Die Civilisation ist die Vermenschlichung der Võlker in ihren ausseren


Einrichtungen und Gebrauchen und der darauf Bezug habenden innren
Gesinnung. Die Cultur fügt dieser Veredlung des gesellschaftlichen
Zustandes Wissenschaft und Kunst hinzu. Wenn wir aber in unsrer Sprache
Bildung sagen, so meinen wir damit etwas zugleich Hi:iheres und mehr
Innerliches, nemlich die Sinnesart, die sich aus der Erkenntnis und dem
Gefühle des gesamten geistigen und sittlichen Strebens harmonisch auf
die Empfindung und den Charakter ergiesst. (Humboldt 1988 : 401)

64
A identificação entre ambos os termos persistirá ao longo do século XIX.
Os dicionários contemporâneos são prova disso: embora o GrojJes
Konversationslexikon diferencie as palavras, à Kultur ainda é associado o
domínio da indústria, da arte e do saber. O Brockhaus fala de Kultur no
mesmo sentido que de Zivilisation, associando aos dois termos um processo
de aperfeiçoamento a nível tecnológico, teórico, político, moral. Aquilo que
se pode verificar é, com efeito, não predomina ainda um conceito de Kultur
adverso à realidade política, social e económica (Breuer 1995: 188).

O mesmo se aplica à maior parte dos autores do século XIX e inícios do


século XX, tais como Max Weber, que analisa a correlação dos fenómenos
económicos e religiosos como é o caso paradigmático deDie Protestantische
Ethik und der Geist des Kapitalismus (Weber 1972).

Georg Simmel não utilizará a palavra Zivilisation, recorrendo antes à oposição


entre cultura objectiva e subjectiva (Simmel 1987). Se a primeira não
pode passar sem a segunda, que a institucionaliza e a torna possível, a sua
exterioridade ao indivíduo manifesta também a separação do mesmo. Toda a
cultura subjectiva depende da objectiva, mas esta mais não é que o resultado
da primeira, numa relação de permanente interdependência e acção recíproca,
se bem que a objectiva possua o estigma de uma herança cultural cristalizada
que pode impedir, por vezes, a livre expressão da cultura subjectiva.

Será só em finais do século XIX, que as tendências que se adivinham em


Kant e Humboldt evoluirão no sentido de opor claramente os dois termos.
Kultur passará a designar os elementos teóricos, filosóficos, artísticos, a que
a noção de progresso será estranha, fixando -se na diferença local dessas
manifestações, enquanto resultados.

Segundo Breuer (1995), a oposição surge apenas nos anos 70, em figuras
marginais ao mundo oficial da cultura: Friedrich Nietzsche ( 1844-1900) e
Paul de Lagarde (pseudónimo deAnton Bõtticher 1827-1891) começam por
denunciar a Zivilisation, manifesta na falsa Bildung que as instituições
universitárias alemãs começam a oferecer, para reaparecer em Richard Wagner
( 1813-1883) como o mundo da guerra e do materialismo. É também Nietzsche
que, em Zur Genealogie der Moral, falará da artificialidade da Zivilisation,
patente nas estruturas políticas, no conforto, na técnica, no Estado seus
contemporâneos, ao que oporá a vitalidade e naturalidade da Kultur.

Mas esta oposição não transforma a Kultur num equivalente de uma essência
especificamente alemã, como virá a suceder mais tarde nos círculos em torno
de Stefan George (1868-1933), em Ludwig Klages (1872-1956) ou em Hugo
von Hofmannsthal (1874-1929). A mudança coincide, grosso modo, com a
primeira guerra mundial. É nessa altura que esses mesmos círculos associarão,
de um modo mais ou menos veemente, a Zivilisation ou à superficialidade

65
francesa, ou à anglo-saxónica, sobretudo à norte-americana, correspondendo
a barbárie incapaz de qualquer progresso à Europa Oriental, nomeadamente,
à Rússia. Ao mesmo tempo identificam a Kultur, ou com a herança helénica
de que só os alemães serão os verdadeiros herdeiros, ou com uma barbárie
criadora, contra o espírito da modernidade dominado pelo capitalismo, pelo
protestantismo e pelo racionalismo (Breuer 1995: 201 e segs.).

Será nesta linha que Oswald Spengler em Der Untergang des Abendlandes
(1918-1922) verá naZivilisation o estádio esclerosado de umaKultur entrada
em decadência, assim apontando implicitamente para as ressonâncias
ideológicas que a oposição continha.

A oposição entre Zivilisation e Kultur, com as suas conotações pejorativas,


reflectir-se-á na oposição entre Dichter e Literal, consagrada pelo jovem
Thomas Mann ( 1875-1955), em que o primeiro é o fiel seguidor da cultura
autónoma de raízes eminentemente germânicas - a Kultur - , enquanto
que o segundo reproduz a cristalização em modelos alheios e cosmopolitas
- a Zivilisation - (Mann 1956), posição que o escritor reverá mais tarde.

O conceito de Kultur viria de resto a assumir um significado diferente


durante o lIIReich e no pós-guerra, face à apropriação crítica dessa tradição .
Autores de inspiração marxista, como Theodor W. Adorno ( 1903-1969), Max
Horkheimer (1895-1973) ou Herbert Marcuse (1898-1979), chamariam a
atenção para a importância da associação entre essa esfera pretensamente
independente dos domínios económico, social e político, mas salvaguardando
a respectiva tradição iluminista e crítica.

Marcuse oporia Kultur a Zivilisation, sublinhando agora a dimensão utópica


da primeira (Marcuse 1965). O pessimismo cultural de um Marcuse no seu
livro Eros and civilization (Marcuse 1955) ou ainda os ataques à cultura de
massas e aos efeitos perniciosos da mesma por Adorno e Horkheimer
(Horkheimer/Adorno 1971) são tanto expressão dessa posição, como uma
manifestação crítica face à sociedade capitalista e liberal.

A evolução semântica operada depois de 45 revela, mais uma vez, as vicis-


situdes da Alemanha, confrontada ou com a perseguição movida a uma
intelligentsia judaica que, pese embora o exílio, nunca se conseguiria identi-
ficar com a sociedade de acolhimento, incapaz de abdicar de uma separação
entre cultura de elite e de massas, o que não impediria, porém, um diagnós-
tico particularmente interessante dos mecanismos de manipulação de massas,
seja na sociedade nazi, seja na norte-americana. Sublinhe-se que este dia-
gnóstico pressupôs uma atenção particular sobre determinados fenómenos
da cultura de massas e da indústria da cultura nos EUA, onde as mesmas já
conheciam um desenvolvimento bastante superior ao europeu. Contudo, há
que reconhecer a influência latente das posições referidas anteriormente: )

66
a desconfiança perante a modernidade, os perigos da moderna racionalidade,
embora agora contrabalaçados pela herança marxista e freudiana.

Por sua vez, Norbert Elias, socorrendo-se da teoria psicanalítica de Sigmund


Freud, advogaria que a civilização seria um processo ao longo do qual
uma sociedade aprenderia a usar de um crescente auto-controle (Elias 1976).
Claro que sociedades onde esse processo se iniciou prematuramente, em
estreita associação com a criação de um aparelho de Estado centralizado,
como seria o caso da Inglaterra e da França, teriam avançado mais do que a
Alemanha, onde a unificação tardia, sob hegemonia da nobreza prussiana,
teria retardado esse processo, o que explicaria a ascensão de Hitler ao poder
e o carácter da barbárie nazi.A evolução da carga semântica deKultur reflecte,
segundo Norbert Elias, o estatuto predominantemente teórico da burguesia
alemã, tradicionalmente afastada do poder político. O certo é que, ainda
segundo Elias, de uma concepção eminentemente associada a princípios uni-
versalistas e humanistas, a palavra teria evoluído para um conceito que
pretende sublinhar a diferença, substituindo-se a oposição social por uma
oposição nacional.

Enquanto que Zivilisation remete para uma herança universal, euro-


peia, comum a todos os homens e sociedades, a evolução semântica de
Kultur, levava a que à mesma se associasse não só a recusa de factores de
ordem não meramente espiritual, como o termo passasse gradualmente
a integrar elementos nacionalistas e xenófobos, culminando a evolução
na célebre oposição dos dois conceitos em vésperas da e durante a pri-
meira guerra mundial. Assim se explica que Elias tenha recuperado, no
espaço linguístico alemão, um termo com uma conotação cada vez mais
questionável.

Com efeito, a predominância da palavra cultura na maior parte das línguas


continua a fazer-se sentir, pelos motivos anteriormente assinalados. Por
outro lado, a teoria civilizacional de Elias contempla apenas um modelo
estreitamente associado à emergência do moderno estado ocidental,
absolutizando categorias como a da auto-contenção das pulsões, segundo o
modelo freudiano, que reproduz os estereótipos face aos «selvagens», com
alguns séculos de história.

Com efeito, a experiência pós-colonial e o pós-guerra, viriam a reforçar a


necessidade de se questionar os modelos predominantemente eurocêntricos.
Da associação quase imediata entre cultura e nação passou-se à constatação
e defesa ou debate sobre a coabitação de uma multiplicidade cultural
e étnica dentro de um mesmo espaço nacional. A importância dada ao
multiculturalismo viria assim a reforçar-se nos últimos tempos: a forma de
as culturas coabitarem e comunicarem entre si revela uma evolução semântica

67
da palavra cultura, que na senda da antropologia cultural, tende a tratar as
diferentes manifestações culturais em termos de igualdade.

1.3.2 A evolução semântica das palavras Kultur e Zivilisation e a


história do espaço cultural alemão

Que leitura extrair desta evolução? Olhada com a devida atenção, a mesma
dá conta de complexos processos, fundamentais para a compreensão da
história da sociedade alemã e para o modo como a identidade cultural alemã
se foi definindo ao longo desse espaço de tempo.

A ausência de demarcação entre os dois conceitos em alguns autores do


século XVIII revela a importância de ambos os domínios para uma burguesia,
que em alguns estados alemães atingia um desenvolvimento económico e
político comparável, se bem que menos generalizado, ao das suas congéneres
inglesa ou holandesa.

A alteração introduzida por Kant, ao diferenciar as esferas da civilização,


da cultura e da moralidade, embora apontando para a evolução posterior,
vê nessas três modalidades, outras tantas fases num processo que garante o
progresso do género humano, progresso esse que a filosofia da história de
Herder virá a questionar.

Em Herder ecoa a revolta social da burguesia alemã, contra os modelos da


corte francesa, mas simultaneamente a recusa de se ver o local submetido à
hegemonia cultural e imperial das nações dominantes. A história garante
ainda a educação do género humano, mas o modelo eurocêntrico (a Zivili-
sation) é agora questionado, adquirindo a particularidade regional uma
importância decisiva.

Mas se a importância dada ao local, à diferença, constitui o elemento fun-


damental do contributo herderiano, que viria a influenciar o conceito antropo-
lógico de culturas, tal como Boas o viria a propor, tal ênfase levaria a que a
diferença, erigida em fundamento do futuro nacionalismo alemão,
transformasse essa mensagem humanista e tolerante num panfleto xenófobo
(cf. Cap. III.1.3).

Norbert Elias (1976) interpreta a diferenciação de Kant entre civilização,


cultura e moralidade como a manifestação de uma cisão correspondente à
situação da burguesia letrada na Alemanha. Esta, partilhando, embora, dos
ideais cosmopolitas das Luzes, tenderia, devido à impossibilidade de participar
directamente nas decisões económicas e políticas - dado tratar-se de uma
burguesia letrada, eminentemente dependente a nível económico, social e

68
político da corte onde prestava serviço - a distanciar-se do domínio predo-
minantemente material para fixar a carga semântica de Kultur no campo
intelectual como o domínio privilegiado onde podia utilizar a sua influência
e possível contrapoder.

Esta interpretação faz certamente sentido no que respeita a alguns Estados


alemães, designadamente o Grão-Ducado de Weimar, onde Johann Wolf-
gang von Goethe (1749-1832) e Friedrich Schiller (1759-1805) contribuíram
decisivamente para a introdução de um conceito de cultura individualizado,
inspirado nos modelos da Antiguidade clássica, conceito esse que reapa-
recerá igualmente no de Bildung, tal como defendido por W. von Humboldt.
Contudo, também é verdade que a interpretação de Elias ainda se atém
excessivamente a uma imagem monolítica de uma Alemanha atrasada, que
a recente historiografia viria a desmentir, ao recorrer a uma análise mais
regionalizada e diferenciada do passado.

Com efeito, as oscilações semânticas e a convergência ou contaminação dos


seus significados não são - como Elias o pretende - exclusivas do espaço
cultural alemão.

A língua inglesa conhece as mesmas oscilações, deixa-se influenciar


pela evolução contraditória e extremamente complexa noutros idiomas.
A excelência da «civilização» britânica é associada a um mito nacional,
sobretudo a partir do século XIX, e consagrada significativamente por John
Stuart Mill (1806-1873) em 1830 em On the Constitution of Church and
State, em polémica com os que, como Coleridge-inspirando-se em autores
alemães - opunham culture/cultivation a civilization. Esta pressupõe, apesar
das suas contradições e elementos menos positivos, um aperfeiçoamento
geral que não invalida que o defensor da liberdade a recuse aos povos
colonizados. A associação entre nação e civilização conterá os mesmos
elementos xenófobos que se adivinham na oposição da Kultur alemã à
Zivilisation universal.

No entanto, enquanto que a Grã-Bretanha e a França conhecem ao longo


de todo o século XVIII a confirmação do seu papel hegemónico e impe-
rialista, a Alemanha permanecerá um aglomerado de territórios sujeitos
aos jogos de interesses das grandes potências. A grande alteração dar-se-á
com a invenção da identidade alemã durante o século XIX.

Em 1871, assistir-se-á à unificação da Alemanha sob a hegemonia prussiana


(cf. Cap. IV2). Os ideais unitários de democratas e liberais alemães eram
assim substituídos por um regime autocrático, que só vencera mediante o
recurso à guerra contra a França, prenunciando assim a futura dicotomia
Kultur/Zivilisation em vésperas de 1914, como já acima foi referido.

69

J
Se tal solução levará à aliança da burguesia com a nobreza, face ao receio
gerado pelas reivindicações crescentes da classe operária emergente,
também é verdade que as raízes desse nacionalismo virado para a diferença,
esquecendo a mensagem cosmopolita e universalista do nacionalismo
francês e da sua definição de cidadania, remontam ao período da ocupação
napoleónica.

Incapazes de enfrentar o inimigo, os territórios alemães ver-se-ão obrigados


a sucumbir: a Prússia conhece a humilhação em Jena/Auerstedt, o Impera-
dor depõe a coroa. Napoleão intervém, tudo fazendo para aproximar os terri-
tórios alemães do modelo racionalizado que dera à França, unindo princi-
pados ínfimos em unidades mais vastas, impondo o seu código nos pro-
tectorados sob influência directa ou um modelo cartista nas zonas sob
influência indirecta, maioritariamente situadas a sul. O particularismo dos
príncipes sucumbe face ao poder da levée en masse: a Liga Renana constitui
uma associação de principados dispostos a colaborar, desde que mantenham
a sua autonomia territorial.

Será a Prússia, mais racionalizada e com maior poder militar, que extrairá a
lição mais adequada da derrota. Reformando a sua economia, democrati-
zando o serviço militar e o ensino, conseguirá em breve recuperar o poder
perdido, sem pôr em causa o poder da classe nobre dominante. Misto de
restauração e reforma, será o Estado alemão mais apto a catalisar e a chamar
a si o descontentamento real que as populações sentem sob a ocupação.
O nacionalismo alemão nasce contra o inimigo comum, a França e o herdeiro
das Luzes e da Revolução, Napoleão. Fichte oporá à hegemonia francesa um
conceito de nacionalismo fundado no local, nas raízes, naquilo que distingue
os alemães, a língua, a etnia, a história comuns. Toda a miscigenação de
culturas é entendida como traição a um princípio mítico de uma unidade
originária que os alemães partilharão por excelência. É aqui que radica, mais
uma vez, a associação entre Kultur, a vida, o originário, por oposição à
Zivilisation cosmopolita, artificial e derivada, tal como a língua francesa o é.

Assim, transfigurada pelo nacionalismo crescente, a oposição ganhará tra-


ços renovados. A fraqueza dos alemães é transformada em força, o direito à
diferença em breve dará origem à tentação da expansão em nome dos ideais
a ela associados: o nacionalismo toma-se expansionista. E a Prússia saberá
servir-se desse ideário, no momento em que, afastado o perigo de a unificação
anular a sua hegemonia, já a tiver garantida. A unificação de 1871 dá-se
contra o inimigo comum, a França, reforçando-se os traços xenófobos face à
Zivilisation francesa, ecos que voltarão a ecoar em 1918 e, sob a forma da
descriminação e exterminação racial, em 1933.

Quando a burguesia alemã, que se vira gradualmente afastada do centro do


poder, se aproxima do mesmo, após 1871, fá-lo abdicando do seu ideal

70
emancipatório e humanista do século XVIII, para, interiorizando os valores
militaristas e belicistas da grande nobreza prussiana, erigir a sua herança de
Kultur num instrumento de nacionalismo xenófobo. Alguns filósofos man-
tinham-se à margem, mas a maior parte da burguesia académica fazia frente
comum com o regime instituído. A aliança entre o poder e o ensino já era
clássica, mas depois de 1871 e com a crescente industrialização, o poder do
capital industrial passou a associar-se com o da investigação de ponta, sendo
esta aliança entre o poder e o saber levada até às últimas consequências no
III Reich (cf. Caps. IV.3 e IV.5).

A reacção a esta situação não deixa de revelar as suas ambiguidades. É na


recusa crítica e elitista da modernidade que os defensores de uma Kultur essen-
cialmente germânica se irão basear para promover no período da primeira
guerra mundial um ideal de superioridade que, associado ao culto carismá-
tico das grandes personalidades, ressurgirá e se consolidará depois de 1933.

Mas que essa tradição não pode ser lida unilateralmente provam-no a apro-
priação crítica dessa mesma tradição no pós-guerra: o certo é que mais do que
nunca a sociedade alemã ficou, a partir de então, sujeita à influência ocidental,
tendo sido esse o modelo que vingou depois da unificação em 1990.

Contudo, seria exactamente esse mesmo modelo que iria assistir a uma
revisão crítica, mesmo pelos países que até então se haviam auto-proclamado
os defensores dos ideais da civilização ocidental.

1.4 Cultura nacional e multiculturalismo

1.4.1 A reinvenção da tradição

Confrontados com a catástrofe da segunda guerra mundial, mesmo os ven-


cedores, sobretudo as gerações mais novas, particularmente activas nos
movimentos de contestação à ordem vigente nos anos 60, seja na Europa,
seja naAmérica, (sobretudo durante a guerra do Vietname) questionaram-se
sobre os fundamentos da sua cultura ou civilização.

Acrescente-se, contudo, que tal orientação tem tido particular ressonância


na prática e investigação anglo-saxónica, seja em função de uma herança
imperial, caso do Reino Unido, seja em função de uma multiculturalidade
que existe, pesem embora todos os esforços de assimilação, como é o caso
dos EUA, do Canadá e da Austrália.

É esta evolução que se reflecte na política multicultural, nas reflexões e


práticas sobre a coabitação entre culturas e formas de as mesmas comu-

71
nicarem entre si. Tal entendimento da palavra cultura ignora um estatuto de
superioridade entre as diferentes realidades culturais, ciente da importância
que todo o fenómeno de transmissão de cultura tem para a realidade social
e histórica dos seus diferentes representantes. A importância dada às
particularidades étnicas decorre, de resto, de uma evolução, que, nos anos
60, colocaria a tónica na diferença, em prol dos direitos de maiorias ou
minorias durante muito tempo silenciadas (caso das mulheres, dos não-
-europeus, autóctones) . A ideologia do melting pot passou a ser contestada:
o modelo assimilacionista passou a ser visto não como um modo de se
assegurar a igualdade, mas antes como a perversão do mesmo.

1.4.2 A revisão da história

A historiografia passou a ser vista de forma céptica, na medida em que a


mesma se fizera em termos predominantemente nacionais e etnocêntricos.
Países colonizadores como a Grã-Bretanha ou a França passaram a inter-
rogar-se sobre os povos anteriormente silenciados, nos EUA, tratava-se de
minorias étnicas, subjugadas pelo ideário do homem protestante e branco:
tais revisões constituíram o eco dos movimentos pelos direitos cívicos dos
negros, ameríndios. Reivindicou-se o direito à diferença, insinuando-se a
perspectiva do relativismo cultural entre aqueles que operavam a revisão da
historiografia.

Tal reflexão assumiria tónicas diferenciadas , consoante a experiência dos


respectivos espaços culturais: na Grã-Bretanha, Holanda ou França tratava-
-se, mais uma vez, de reflectir sobre as consequências de um passado imperial,
na RFA sobre a coabitação, num país que nunca se vira como sociedade de
imigração intensiva, com elementos de etnias mais ou menos familiares,
desde os italianos, aos espanhóis, aos portugueses, aos turcos ou aos
jugoslavos. Redescobriu-se, simultaneamente, os regionalismos, abafados
ou silenciados por um estado-nação mais ou menos nivelador.

1.4.3 A Alemanha multicultural

Também na Alemanha, as correntes multiculturalistas, isto é aquelas que


privilegiam o direito à coabitação entre diferentes etnias, sem que as mes-
mas tenham de abdicar da sua especificidade, têm vindo a ganhar terreno,
tornando cada vez mais necessário um olhar renovado sobre as tradicionais
definições de cultura. O facto de a tradição alemã, sobretudo desde o século

72
XIX, apontar para um nacionalismo cada vez mais étnico e fechado, decorre
de uma evolução histórica particularmente acidentada. Mais do que nunca
esse nacionalismo foi uma construção, tanto mais necessária, quanto a
identidade alemã estava longe de se encontrar consolidada.

Para compreendermos este tema e o articularmos com uma série de questões


e problemas em debate convirá recordar os seguintes aspectos:

a) O III Reich defendeu a sua soberania e a sua política de expansão


através de um nacionalismo eminentemente étnico, acrescido de
teorias pseudo-científicas de uma pretensa «raça alemã» que deveria
ser purificada de todos os elementos a ela estranhos. O facto de a
ideia não possuir qualquer fundamento histórico ou científico é
irrelevante, uma vez que foi nela que os nacional-socialistas fun-
damentaram as suas políticas.

b) Com o fim da segunda guerra não só a identidade alemã voltou a


sofrer um profundo abalo, como as necessidades do pós-guerra
levaram a que a Alemanha recebesse de bom grado mão-de-obra
estrangeira, provinda predominantemente do Sul da Europa (Itália,
Espanha, Grécia, Portugal) e da Turquia e Jugoslávia, para citar
as mais importantes fontes de imigração. A estadia temporária,
que o termo Gastarbeiter pretendia reproduzir, transformar-se-ia
numa estadia definitiva, existindo actualmente já uma terceira
geração dentro das comunidades de imigrantes. Tal realidade viria
a entrar em conflito com a noção de nação alemã, não só a nível
jurídico, como a nível prático. O certo é que estas comunidades,
mais ou menos assimiladas, mais ou menos integradas, trariam
um novo colorido ao espaço cultural alemão, influenciando o seu
1 quotidiano e a sociedade em geral.

c) Se esta situação era vulgar e quotidiana na RFA, já o mesmo não


sucedia na ex-RDA, onde o carácter fechado da sua economia
dificultou as trocas de bens, de ideias e de pessoas. Contudo, há
que assinalar que tanto um como o outro território não possuíam
uma tradição imigratória, ao contrário da França ou dos EUA,
questão que, dada a definição essencialmente étnica da cidadania
segundo a Constituição Federal, levanta inúmeros problemas
quanto ao estatuto jurídico desses «estrangeiros» que, há gerações,
vivem em território alemão. Parece, portanto, evidente que o
conceito de cidadania em vigor não se adequa às novas exigências
e realidade migratória.

73
I .4.4 Cultura essência e reinvenção

Tal evolução leva a repensar a interpretação da cultura alemã e de outras


culturas nacionais, numa perspectiva essencialista - como se a identidade
étnica, cultural ou nacional tivessem de constituir um absoluto originário ou
um núcleo puro. A identidade cultural passa antes a ser vista como o resultado
de uma interacção permanente entre diferentes realidades culturais, que assim
se vão redefinindo e reinventando.

O estudo de uma cultura nacional terá de tomar em consideração essa


multiplicidade de perspectivas, sob pena de impossibilitar uma hermenêu-
tica das realidades contemporâneas, divididas entre uma crescente globali-
zação e miscigenação e a consequente necessidade de redefinir a sua diferença
específica.

Bibliografia aconselhada

Para uma súmula da evolução do conceitos deKultur e Zivilisation recomenda-


-se a leitura da Introdução da I Parte de Elias 1976, complementada pela
consulta de Williams 1988 e Enciclopédia Einaudi 1985.

Actividades propostas

• Consulte um dicionário francês, português e alemão e verifique


o que consta das rubricas «cultura» e «civilização», «culto» e
«civilizado»; articule os dados obtidos com o conteúdo desta
unidade.

• Leia o seguinte texto de Thomas Mann e comente:

Der Unterschied von Geist und Politik enthalt den von Kultur und
Zivilisation, von Seele und Gesellschaft, von Freiheit und Stimmrecht,
von Kunst und Literatur; und Deutschtum, das ist Kultur, Seele,
Freiheit, Kunst und nicht Zivilisation, Gesellschaft, Stimmrecht,
Literatur. Der Unterschied von Geist und Politik ist, zum weiteren
Beispiel, der von kosmopolitisch und international. Jener Begriff
entstammt der kulturellen Sphare der Zivilisation und Demokratie
und ist etwas ganz anderes. International ist der demokratische
Bourgeois, moge er überall auch noch so national sich drapieren; der
Bürger ( ... ) ist kosmopolitisch, denn er ist deutsch, deutscher ais

74
·,. Fürsten und «Volk»: dieser Mensch der geographischen, sozialen und
seelischen «Mitte» war immer und bleibtTrager deutscher Geistigkeit,
Menschlichkeit undAnti-Politik. (Thomas Mann, Betrachtungen eines
Unpolitischen, « Vorrede»)

M.R.S.

,,

75
2. Bildung e Erfahrung: pedagogia, cosmopolitismo,
interculturalidade
Resumo
.j.

Face à especificidade do conceito de Bildung (que desempenhou, e desem-


penha ainda hoje, um papel fundamental na cultura alemã), proporciona-se
uma panorâmica histórica da noção de Bildung, das suas origens e fixação
durante o século XVIII, e do seu posterior desenvolvimento.

É ainda dado relevo às repercussões europeias deste conceito, nomeada-


mente as que têm a ver com o (re)nascimento de um pensamento pedagó-
gico e com o subsequente surgimento de um espaço europeu, cosmopolita e
intercultural.

Objectivos

• Identificar os diferentes usos da noção de Bildung, bem como o pro-


cesso de desenvolvimento e fixação do sentido do mesmo conceito.

• Relacionar a noção de Bildung com o surgimento e desenvolvimento


da pedagogia na Europa e, mais especificamente, nos espaços de
língua alemã.

• Compreender a importância que as noções de Bildung e Erfahrung


têm para a formação de um espaço (intercultural) europeu.

79
.• 2.1 A noção de Bildung
I
2.1.1 Dificuldades na definição de Bildung

Uma das primeiras dificuldades que se nos deparam quando procuramos


entender ou explicar o termo alemão Bildung é exactamente a da sua tradu-
ção para a língua portuguesa.

Os dicionários de alemão-português referem normalmente como equivalen-


tes da palavra alemãBildung os termos portugueses «formação, constituição,
cultura, criação, forma, desenvolvimento, instrução, educação». Remete-se
assim para o contexto específico (textual e epocal) em que a palavra ocorre
a decisão de a traduzir por cada uma das variantes acima mencionadas .
O mesmo, de resto, acontece noutras línguas europeias, nomeadamente no
castelhano, no francês e no inglês.

Tal como acontece com a palavra portuguesa «saudade», se partirmos agora


da perspectiva inversa (isto é, do português para uma língua estrangeira), a
variedade da escolha que os dicionários nos proporcionam, juntamente com
a ambiguidade que é inerente a essa mesma escolha, são de novo um sintoma
claro, não tanto da intraduzibilidade do conceito em causa, mas sim da
especificidade desse conceito no âmbito da cultura em que ele se desenvolveu
e de onde ele é originário.

O termo alemão Bildung remete pois para uma noção que é específica da
língua e cultura alemãs.

A atestar essa especificidade e, simultaneamente, a importância e a riqueza


deste conceito no âmbito da história cultural alemã estão ainda as diversas
palavras compostas criadas a partir de Bildung. Refiram-se, a título de
exemplo, dois termos surgidos no século XVIII:

• Bildungsroman, que no português é habitualmente traduzido por


«romance de formação» e que corresponde a um tipo de romance
que acompanha e descreve a formação e a evolução de um indivídup
(normalmente do sexo masculino) até à sua maturidade, sendo
especialmente destacadas as vertentes social, psicológica e cultural
desse percurso evolutivo; Wilhelm Meisters Lehrjahre (1795) de
Goethe pode ser visto como o exemplo e modelo deste tipo de romance
alemão característico de finais do século XVIII (veja-se p. ex. Beutin
- 1992: 169esegs.).

• Bildungsbürgertum, palavra que no português é habitualmente tra-


duzida por «burguesia culta», «letrada» ou «esclarecida» e que, ao
contrário do que o termo «burguesia» aqui parece indiciar, remete
mais para uma esfera do privado, onde se sublinham as virtudes morais

81
da vida familiar, do que propriamente para o sentido de «classe social»
que entretanto o termo adquiriu (cf. igualmente Beutin 1992: 136).

Em termos muito gerais, dir-se-ia pois que a noção de Bildung aponta para
um núcleo semântico que se adivinha complexo e que tem no seu centro a
educação: Bildung remete tanto para o processo de educação e formação (o
caso de Bildungsroman), como para o resultado desse processo (o caso de
Bildungsbürgertum ).

Sublinhe-se ainda que a palavra pode ser utilizada nestes dois sentidos
- enquanto processo e enquanto resultado - e aplicada, quer ao indivíduo,
quer à comunidade ou à colectividade dos indivíduos. Bildung implica pois
uma forma interior (de formação individual, psicológica, de desenvol vi-
mento pessoal) e uma forma exterior (de educação colectiva, social).

2.1.2 Origens e usos da noção de Bildung

Muito embora seja durante o século XVIII que o conceito deBildung adquire
o seu significado actual e corrente, a verdade é que este termo surge bastante
mais cedo na língua alemã, num contexto bem determinado.

Durante a Idade Média, e no âmbito do pensamento religioso, palavras como


Bild, bilden e Bildung remetem para um significado específico que está
directamente ligado ao passo do Génesis (1, 26-27) em que se afirma que
Deus criou o homem «à sua imagem e semelhança»:

Und Gott spr:ich: Lasset uns den Menschen machen nach unserm Bild und
Gleichnis ( ... ). Und Gott schuf den Menschen zu seinem Bild; zum Bilde
Gottes schuf er ihn, als Mann und Weib schuf er sie.

Nesta acepção inicial o termo é utilizado quer como sinónimo de «imagem»


- Bild, Abbild, Ebenbild (imago)-, quer como sinónimo de «cópia» ou
«imitação» - Nachbildung, Nachahmung (imitatio).

Possivelmente mais importante (e determinante para o sentido actual do


termo) do que este passo do Génesis é, porém, o eco que dele faz Paulo no
Novo Testamento (2.ª Epístola aos Coríntios, 3, 18, sublinhados nossos):

Nun aber spiegelt sich in uns allen des Herm Herrlichkeit mit aufgedecktem
Angesicht, und wir werden verwandeltin dasselbige Bild, von einer Klarheit
zur andem, ais vom Geist des Herrn .

Não se trata já aqui de o homem ter sido criado por Deus à sua imagem e
semelhança, não se trata já aqui de o homem ser uma mera e passiva imita-
ção de Deus; trata-se, sim, de o homem (cópia) se poder activamente

82
aproximar de Deus (original) através de um longo caminho de desenvolvi-
mento e aperfeiçoamento interiores. Isto é, se cada indivíduo foi criado à
imagem de Deus, então, um adequado e correcto aproveitamento das
potencialidades individuais tornará possível, através de um processo demeta-
mo,fose e transformação (verwandeln) interiores, a aproximação a Deus.

O termo Bildung (e naturalmente também bilden/sich bilden) é então aqui


utilizado quer no sentido de Gestalt (forma), quer, principalmente, no sentido
de Gestaltung (formatio, formação, transformação) .

Ora é precisamente esta última vertente do conceito, uma vertente clara-


mente mais dinâmica e activa, que a mística religiosa medieval alemã
desenvolve e que se prolonga até aos círculos pietistas do século XVIII
(cf. Rauhut 1953: 88 e Vierhaus 1972: 509 e segs.).

Coménio (1592-1670), o humanista pedagogo nascido na Morávia que


ficou conhecido como o «Bacon da pedagogia» ou o «Galileu da educação»,
ilustra de uma forma exemplar esta nova perspectiva na suaDidáctica Magna,
publicada em 1657 (Coménio 1996: 102-104; vejam-se também as pp. 32-
-33 da tradução alemã da obra indicada na bibliografia):

É evidente que todo o homem nasce apto para adquirir conhecimento das
coisas: primeiro, porque é imagem de Deus. Com efeito, a imagem, se é
perfeita, apresenta necessariamente os traços do seu arquétipo, ou então
não será uma imagem.( ... )
Não é necessário, portanto, introduzir nada no homem a partir do exterior,
mas apenas fazer germinar e desenvolver as coisas das quais ele contém o
gérmen em si mesmo e fazer-lhe ver qual a sua natureza.

Esta noção de desenvolvimento interior e pessoal de cada indivíduo para e


em direcção a Deus tornar-se-á pois determinante no que diz respeito à
especificidade da noção de Bildung no espaço de língua alemã, repercu-
tindo-se, posteriormente, durante o processo de secularização do conceito:
termos como «indivíduo», «desenvolvimento e aperfeiçoamento pessoal»
ou «transformação interior» fazem agora parte das palavras-chave sem as
quais não seria possível definir Bildung.

Embora a obra acima referida de Coménio seja a vários títulos precursora' 1 Veja-se por exemplo o elogio

que Herder lhe faz nas suas


- nomeadamente no que diz respeito à progressiva deslocação do conceito Briefe zu Beforderung der
de Bildung do plano do religioso para o plano do pedagógico - , a secula- Humanitiit ( «57. Brief» in:
Herder 1991: 294-301 ).
rização do conceito (e portanto o seu alargamento e aplicação a outras
esferas que não as exclusivamente religiosas) ocorre fundamentalmente
durante o século XVIII.

Papel decisivo, terá tido a este respeito a tradução alemã da obra de


Shaftesbury (1671-1713) , Soliloquy or Advice to an Author, tradução essa

83
que foi publicada em Magdeburg e Leipzig em 1738. Ao longo de toda a
tradução os termos to form,formation e inward f orm são sempre traduzidos
por bilden, Bildung e innere Bildung. Contudo, os termos já não se referem
aqui à esfera do religioso, mas sim à esfera do moral, do estético e do peda-
gógico. Assiste-se portanto a um crescimento, a um transbordar do conceito,
como Bollenbeck refere com razão ao mesmo tempo que salienta a
importância e influência de Shaftesbury em todo este processo (Bollenbeck
1994: 116):

Entscheidend ist Shaftesburys Beitrag zum Bedeutungszuwachs des


Bildungsbegriffs. Mit der groBen Wirkung seines Denkens erhalt die
mystisch-pietistische Vorstellung von «bilden» bzw. «Bildung» eine
moralisch-asthetische Bedeutung. «Bildung» wird so sakularisiert und in
eine verweltliche Frõmmigkeit eingeweiht.

2.1.3 A secularização do conceito de Bildung no século XVIII

O processo de secularização do conceito de Bildung ou, talvez melhor e


mais exactamente, o conceito resultante desse longo processo é de tal modo
importante para a história da cultura alemã que o filósofo Hans-Georg
Gadamer não hesita mesmo em ver na noção deBildung «o maior pensamento
do século XVIII», que está na origem das ciências sociais e humanas, e
cujos efeitos e repercussões se prolongam, assim, muito para além do século
XVIII (Gadamer 1986: 15):

Der Begriff der Bildung ( ... ) war wohl der groBte Gedanke des 18. Jahr-
hunderts, und eben dieser Begriff bezeichnet das Element, in dem die
Geisteswissenschaften des 19. Jahrhundert leben ( ... ).

2 Sobre a distinção entre Haverá porém que acrescentar que «secularização» não é sinónimo de
Kulm r, Bildung e Aufkldrung imediata «vulgarização» ou «divulgação» do conceito aqui em causa.
vejam-se também os capítulos
11.1 («Kultur e Zivilisation»)
e 111.2 ( «A ufkldrung e moder-
Na verdade, tal como Moses Mendelssohn nota logo no início do seu artigo
nidade ») deste Manual. Na intitulado «Über die Frage: was heiBt aufklaren?», publicado no número de
perspectiva de Mendelssohn
estas três noções estão intima-
Setembro de 1784 da revista Berlinische Monatsschrift (Mendelssohn 1986: 3),
mente ligadas, sendo contudo
Bildung o conceito central a Die Worte Aujkldrung, Kultur, Bildung sind in unsrer Sprache noch neue
partir do qual os outros dois Ankommlinge. Sie gehoren vor der Hand blo/3 zur Büchersprache. Der
derivam (Mendelssohn 1986:
4, sublinhados no original): gemeine Haufe versteht sie kaum. 2
«Je mehr der gesellige
Zustand eines Volks durch O que a frase de Mendelssohn deixa claramente transparecer é que aqueles
Kunst und FleiB mit der Be-
stimmung des Menschen in termos são apenas usados e entendidos no seu novo sentido específico por
Harmonie gebracht worden, uns quantos letrados, especialmente por aqueles que têm contacto com obras
desto mehr Bildung hat dieses
Volk. Bildung zerfallt in provenientes do estrangeiro. E estrangeiro significa, para a Alemanha da
Kultur und Aufkldrung». época, Inglaterra e França.

84
Ora são precisamente estes dois países que mais contribuirão (e que
maior influência virão a ter) na fixação do conceito de Bildung. Essa fixa-
ção ocorre fundamentalmente na esfera das novas preocupações peda-
gógicas que começam a surgir em Inglaterra (com nomes como Bacon,
Locke e Shaftesbury) e posteriormente na França (com autores como
Rousseau) .

No caso de Rousseau, que possivelmente será dos autores mencionados aquele


que mais directamente influenciou o pensamento alemão da época, convirá
distinguir três noções-chave da sua filosofia que se revelam importantes para
a discussão e formação do conceito que aqui nos ocupa.

Trata-se, em primeiro lugar, da ideia de que a capacidade ou faculdade de


aperfeiçoamento - a perfectibilidade (perfectibilité) - é característica
específica do género humano; esta faculdade é de resto, no entender de
Rousseau, a característica que melhor permite diferenciar o homem do animal
(Rousseau 1984: 102-103 ; 298 e segs.). Ora, como facilmente se constata,
esta ideia de perfectibilidade é análoga e complementar da noção de
aperfeiçoamento pessoal e desenvolvimento interior que se verificava já nos
círculos religiosos pietistas alemães.

Trata-se, em segundo lugar, de uma ideia que é, de alguma forma, conse-


quência da anterior: ao eleger a perfectibilidade como a característica que
permite distinguir o homem do animal, Rousseau instala também uma cisão
(que considera inultrapassável) no próprio homem - entre natureza, por
um lado, e cultura, por outro. O homem «natural» (leia-se: o homem na
natureza) é um homem livre, o homem «civil» (leia-se: o homem na socie-
dade e na cultura, submetido portanto às regras da vida com outros homens)
é um escravo. Não surpreende pois que logo a iniciar o seu ensaio Émile ou
de l 'Éducation (publicado em 1765) Rousseau advirta (1966: 38) «( ... ) il
faut opter entre faire un homme ou un citoyen: car on ne peut faire à la fois
l' un et l'autre», já que natureza e cultura não são, do seu ponto de vista,
conciliáveis na espécie humana 3 • 3 Veja-se Rousseau 1984: 264

e segs. e 304 e segs. sobre a


dicotomia natureza/cultura,
E trata-se, em terceiro e último lugar, da importância que Rousseau atribui e especialmente sobre as
diferenças entre o homem
àquilo a que hoje poderíamos chamar experiência pessoal e ao papel de «natural» e o homem «civil »
relevo que essa mesma experiência desempenha durante os processos de (ou «homme policé» como
Rousseau também lhe chama).
assimilação (educação) e produção do conhecimento. Num argumento que é
profusamente repetido ao longo do seu Émile, Rousseau recomenda (1966:
215, sublinhados nossos):

Dans les premieres opérations de l'esprit, que les sens soient toujours ses
guides [d'Émile]: point d' autre livre que lemonde, point d' autre instruction
que les faits.

85
A recepção alemã destas três noções-chave de Rousseau - «p~rfectibili-
dade», «dicotomia natureza/cultura» e «experiência» - revelar-se,-á extra-
ordinariamente produtiva.

Em termos muito gerais dir-se-ia que aAlemanha do século XVIII considera


este conceito de perfectibilidade de Rousseau pertinente e válido, mas
transforma-o, adapta-o, reformula-o.

Em primeiro lugar, acentua-se o carácter individual e interior da noção de


perfectibilidade: a perfectibilidade poderá ser uma característica específica
universal da espécie humana, mas a verdade é que se entende agora (por
influência dos círculos religiosos pietistas) dever sublinhar que ela é essen-
cialmente uma característica específica individual, de cada um dos indiví-
duos da espécie humana. Paralelamente destaca-se no mesmo conceito de
perfectibilidade o que ele tem de processo, de devir, de aperfeiçoamento
interior e pessoal.

Por outro lado, uma vez que se trata de um processo patente em cada um dos
indivíduos da espécie humana (e que faz por conseguinte parte da natureza
de cada um deles), trata-se sem dúvida também de uma capacidade uni-
versal, naturalmente característica de toda a espécie humana, pelo que não
faz qualquer sentido falar de uma dicotomia natureza/cultura. Ao contrá-
rio, considera-se que a perfectibilidade não é a característica que distingue
4 Vejam-se também as passa-
(e por conseguinte separa) o homem «natural» do «civil», mas sim, precisa-
gens de Herder e BIumenbach
citadas por Voss kamp 1993: mente, a característica que, no homem, une natureza e cultura, e que se
197 ; Blumenbach refere- se constitui assim como a força centrípeta que proporciona unidade e uni-
mesmo a um Bildungstrieb
(Nisus formativus) inato e de versalidade a toda a espécie humana. Dito de outro modo: a capacidade
carácter universal. de aperfeiçoamento é uma das características específicas da natureza
5 Veja-se a de finição de humana e a cultura é tida justamente como o resultado ou produto dessa
Aufkliirung que abre o seu capacidade4 •
célebre ensaio «Beantwortung
de r Frage: Was ist Auf-
klarung ?» publicado no Ultrapassada esta cisão «natureza/cultura», tal como ela era entendida e
núm e ro de Dezembro de
defendida por Rousseau, também as dicotomias valorativas que lhe eram
1784 da revista Berlinische
Monatsschrift, a que já acima subsequentes (do tipo homem «natural», «bom» e «livre» versus homem
aludimos (Kant 1986: 9). O
«social», «mau» e «escravo» das regras sociais) deixam de fazer qualquer
facto de nos referirmos aqui a
uma definição de Aujkldrung sentido. O caminho fica assim aberto para Kant poder proclamar a autonomia
(e não de Bildung) não causa
de cada um dos indivíduos que constituem a espécie humana, e portanto
problemas de maior, sobre-
tudo face à complemen- também, a fundamental liberdade da espécie humana no que diz respeito à
taridade e contiguidade dos
auto-determinação do seu próprio destino 5•
conceitos já atrás mencio-
nada. No que diz respeito à
liberdade e autonomia que o Como se depreende, o conceito de Bildung assim reformulado é cada vez
homem tem para determinar o
seu próprio destino, deve no
mais entendido como processo e menos como resultado: trata-se de um
entanto sublinhar-se que essa processo, simultaneamente individual e universal, que se baseia nos
liberdade é, na perspectiva de
Kant, condicionada pelo uso
princípios da autonomia, da liberdade e da auto-determinação do sujeito,
regulador da Razão. e que tem por objectivo o desenvolvimento (leia-se aperfeiçoamento) da

86
humanidade, já não para e em direcção a Deus, mas sim para e em direcção
à própria humanidade, em que as preocupações iniciais de ordem religiosa
são substituídas por outras de ordem, ética, estética e pedagógica.

Para o caso alemão, os dois nomes que se revelam sem dúvida importantes
na fixação do sentido actual da palavra são Johann Gottfried Herder e Wilhelm
von Humboldt.

Não deixa de ser interessante notar que tanto Herder como Humboldt pla-
neiam, cada um, uma obra que se lhes afigura simultaneamente grandiosa e
necessária - uma história universal da formação da humanidade.

Herder refere-se-lhe como projecto já em 1769, no diário da sua viagem a


França (Herder 1976: 17):

Welch ein Werk über das Menschliche Geschlecht! den Menschlichen Geist!
die Cultur der Erde! aller Raume! Zeiten ! Volker! (... ) Universalgeschichte
der Bildung der Welt!

O projecto, porém, nunca seria cumprido, ou melhor, foi sendo parcial e


fragmentariamente realizado ao longo de toda a vida de Herder, com a
publicação de diversas obras, de entre as quais é justo destacar as ldeen zur
Philosophie der Geschichte der Menschheit (1784), Briefe zu Beforderung
der Humanitat (1793) e Auch eine Philosophie der Geschichte zur Bildung
der Menschheit, esta última publicada em 1774 e a que adiante nos referi-
remos com mais detalhe 6 • 6 Veja-se o posfácio de J. M.
Justo ( 1995) à tradução por-
O mesmo entusiasmo, a mesma grandiosidade de projecto se pressente tuguesa de sta obra, espe-
cialmente as pp. 155 e segs .
também em Humboldt, num manuscrito que data possivelmente de 1795 e
que tem precisamente o título de «Theorie der Bildung des Menschen»
(Humboldt 1980a: 234):

Es ware ein grosses und trefliches Werk zu liefem, wenn jemand die eigen-
thümlichen Fahigkeiten zu schildern untemahme, welche die verschiedenen
Facher der menschlichen Erkenntniss zu ihrer glücklichen Erweiterung
voraussetzen; den achten Geist, in dem sie einzeln bearbeitet, und die
Verbindung, in die sie alle mit einander gesetzt werden müssen, um die
Ausbildung der Menschheit, ais ein Ganzes, zu vollenden.

Mas há diferenças nesta noção de Bildung. Essas diferenças não resultam


tanto da introdução de elementos novos no núcleo central de significados
que compõem a noção de Bildung, mas sim de uma re-combinação dos
elementos já existentes, ou seja, de umafundamental mudança de perspectiva,
que a partir de agora se consolidará como constitutiva do conceito aqui em
questão (Humboldt 1980a: 235, sublinhados nossos):

Im Mittelpunkt aller besonderen Arten der Thatigkeit nemlich steht der


Mensch, der( ...) nur die Krafte seiner Natur starken und erhohen, seinem

87
Wesen Werth und Dauer verschaffen will. Da jedoch die blosse Kraft einen
Gegenstand braucht ( ... ), und die blosse Form, der reine Gedanke, einen
Stoff, in dem sie, sich darin auspragend, fortdauem kõnne, so bedarf der
Mensch einer Welt ausser sich.

De alguma forma poderá parecer que se retomam aqui os argumentos de


Rousseau, que apontavam no sentido de dar à experiência pessoal (mais do
que aos livros, quer dizer, à alegada experiência de terceiros) um papel rele-
vante durante o processo de educação e formação do indivíduo. Contudo
deve sublinhar-se que já não há qualquer dicotomia do tipo natureza/cultura,
homem «natural»/homem «civil», sujeito/mundo.

Ao contrário, a importância que Humboldt aqui atribui ao mundo exterior é


a importância da experiência do sujeito no mundo, de modo que o que
está implícito na noção de Bildung - a evolução, o desenvolvimento e a
transformação do indivíduo - é um processo que se vai realizando ao longo
de um eixo homem/mundo, processo esse cujos resultados são tanto melhores
quanto maior for a diversidade da experiência proporcionada pela interacção
indivíduo(s )-mundo.

A dicotomia natureza/cultura transforma-se portanto em Humboldt numa


complexa relação de complementaridade, de interdependência e de interacção
homem/mundo/humanidade, em que se conciliam e se combinam harmonica-
mente o particular (constituído pela liberdade e auto-determinação do indi-
'Veja-seVosskamp 1993: 199 víduo) e o universal (constituído pelo inexorável destino da humanidade)7.
quando cita Humboldt.
Bildung impõe-se pois, no século XVIII alemão, como o conceito genérico
( Oberbegriff) que abarca e simultaneamente transcende as noções de cultura
e civilização (Humboldt 1988: 401):

Die Civilisation ist die Vermenschlichung der Võlker in ihren ausseren


Einrichtungen und Gebrauchen und der darauf Bezug habenden innren
Gesinnung. Die Cultur fügt dieser Veredlung des gesellschaftlichen
Zustandes Wissenschaft und Kunst hinzu. Wenn wir aber in unsrer Sprache
Bildung sagen, so meinen wir damit etwas zugleich Hõheres und mehr
lnnerliches, nemlich die Sinnesart, die sich aus der Erkenntnis und dem
Gefühle des gesamten geistigen und sittlichen Strebens harmonisch auf
die Empfindung und den Charakter ergiesst.

Em suma, o que fica da noção de Bildung, tal como ainda hoje é entendida
no espaço de língua alemã, são quatro núcleos de significado que se afigu-
ram fundamentais, na medida em que se constituem como os elementos
estáveis de um conceito que apresenta inúmeras variações ao longo dos tempos
(cf. Vosskamp 1993: 190 e Pleines 1989: 7 e segs.):

1. Individualidade: o princípio basilar em que assenta a definição de


Bildung é o de que cada sujeito é único e tem o potencial (e por

88
, conseguinte também a liberdade e a autonomia) para se desenvolver
em função da sua própria individualidade, isto é, em função das
capacidades que lhe são específicas; esta será porventura a componen-
te mais intraduzível do conceito (cf. Bollenbeck 1994: 112).

2. Educação: o termo Bildung remete naturalmente para educação e for-


mação (Ausbildung), muito embora não possa ser definido exclusiva-
mente por estas duas palavras; Bildung não significa apenas o desen-
volvimento do sujeito no mundo,face ao mundo ou para o mundo,
mas sim, também, o desenvolvimento pessoal do sujeito por si e para
si, ou seja, no âmbito da sua própria individualidade; trata-se neste
sentido de um permanente processo de formação (leia-se: «que dá
forma») simultaneamente interior (indivíduo) e exterior (mundo);
o termo remete, por outro lado, tanto para o processo de educação e
formação em si, como para o resultado desse mesmo processo.

3. Desenvolvimento: como vimos, inerente à noção de Bildung está


sempre a noção de processo, desenvolvimento, evolução e/ou pro-
gresso; os objectivos desse percurso evolutivo, de resto um percurso
sempre inacabado e inacabável, são de ordem ética, estética e peda-
gógica, e não (como sucedia inicialmente nos círculos pietistas) de
ordem religiosa.

4. Universalidade: tendo embora a componente individual um peso


significativo e determinante na definição do conceito, a verdade é
que a noção de Bildung é também, simultaneamente, uma noção
universal; o desenvolvimento educacional e formativo de cada um
dos indivíduos, quer se trate de um desenvolvimento exterior (no
mundo), quer se trate de um desenvolvimento interior (aperfei-
çoamento e formação individual), é característica universal de toda a
espécie humana; assim como o indivíduo determina a comunidade
em que vive ao mesmo tempo que é determinado por ela, também a
Bildung individual determina e é determinada pelaBildung universal.

2.2 O (Re)Nascimento da Pedagogia

2.2. I A educação na Europa em meados do século XVIII

Naturalmente que num contexto histórico e de mentalidades como o que


acima fica delineado, em que as noções de Bildung, Kultur e Aufklarung
desempenham um papel primordial, a educação e, de uma forma geral, os
temas de âmbito pedagógico não poderiam deixar de estar no centro das
atenções.

89
Muito embora não se pretenda fazer aqui uma história da educação, a ver-
dade é que se afigura necessário recordar alguns traços característicos e
princípios (muito gerais) da educação dos clássicos - gregos e romanos
- , uma vez que são os próprios autores alemães que para eles directamente
remetem. Aliás, ao longo da reflexão e discussão em torno do conceito de
Bildung muitas vezes se recorre à noção grega de «paideia» (educação,
formação, cultura), justamente para iluminar (e diferenciar) o conceito alemão
a que temos vindo a aludir.

As culturas clássicas - especialmente a cultura grega - têm por conse-


guinte um peso e uma influência determinantes naAlemanha do século XVIII.
Humboldt dá bem conta desse peso e dessa influência quando escreve ( 1986:
65): «Die Griechen sind uns nicht bloss ein nützlich historisch zu kennen
8 De resto , o termo «pe da- Volk, sondem ein Ideal.( ... ) Sie sind für uns, was ihre Gõtter für sie waren» 8 .
gogia» ( Péidago gik) é um
neo logi smo arcaico, prove -
ni e nte do grego antigo - No que diz respeito à educação, convirá em primeiro lugar referir que a
onde o termo «pedagogo » se instituição «Escola», tal como a conhecemos hoje (isto é, enquanto sistema
referia ao escravo que
acompanhava a criança nobre público de educação), é uma instituição relativamente recente, que só
à escola - e que se fi xa defi- começa a existir em meados do século XVIII.
niti va mente nas línguas
ocidentais precisamente no
sécul o XV III . É certo que na Grécia Antiga existiam escolas, mas tratava-se essen-
cialmente de escolas privadas, frequentadas exclusivamente por jovens
do sexo masculino pertencentes às classes superiores. As escolas fundadas
pelos filósofos - a Academia de Platão, ou o Liceu de Aristóteles - são
exemplos do tipo de centros de educação e formação frequentados pelos
jovens gregos. Esparta constituía uma excepção, já que o Estado se encar-
regava da educação de todas as crianças.

Com a expansão do império helénico, porém, a civilização grega passou a


viver cada vez mais do comércio e a depender assim em grande parte da
alfabetização da população, de modo que a partir do ano 300 a. C. quase
todos os filhos e (agora também) filhas dos cidadãos livres recebiam uma
educação básica, que lhes permitisse ler e escrever.

A alfabetização era também a preocupação fundamental para Roma, onde a


educação continuava a ser um privilégio, não apenas dos cidadãos livres,
mas também das classes mais altas.

Durante a Idade Média a (in)formação recolhe aos conventos ou às uni-


versidades (que dependiam directamente da Igreja). No entanto a educação
baseava-se agora numa estrutura disciplinar mais complexa e rígida. Para
além da Teologia (matéria a que, por motivos óbvios, cabia um papel central
nas instituições de ensino da época), o estudante tinha um curriculum a
cumprir que era composto pelas sete artes liberais: numa primeira fase
(Trivium) deveriam ser assimiladas a Gramática, a Retórica e a Dialéctica; e

90

-
t

numa segunda fase (Quadrivium) a Aritmética, a Geometria, a Música e a


Astronomia (cf. Gudjons 1995: 75 e segs.).

Na Renascença dá-se uma viragem fundamental. Como refere Blankertz, o


Humanismo renascentista (Blankertz 1982: 18-19)

( ... ) griff auf die Werte der Antike (Kunst, Literatur, Philosophie, Lebens-
gefühl) ( ... ) zurück. Dadurch wurde überall in Europa das Bedürfnis nach
einer nicht mehr theologisch überformten, sondem rein weltlichen Bildung
gefõrdert.

Ficava assim aberto o caminho para uma futura secularização da área edu-
cacional, secularização essa que só viria efectivamente a concretizar-se nas
últimas décadas do século XVIII.

Como desta panorâmica muito geral sobre a educação se depreende, a Escola


- e o termo só pode ser usado aqui metafórica e eufemisticamente -parece
ser o local onde se preserva (mais do que se distribui) informação e conhe-
cimento. A Igreja e a Universidade da Idade Média são aliás paradigmáticas
no que respeita a esta fundamental função de guardiãs da informação e do
conhecimento.

Ora esta dupla limitação das instituições de ensino - o facto de ( 1) a escola


estar apenas ao alcance das camadas sociais mais elevadas e (2) ser o local
de preservação (mais do que de distribuição) do conhecimento - é pro-
fundamente contrária às ideias iluministas do século XVIII. Mais: esta dupla
limitação é evidentemente incompatível com as teses emancipatórias e 9 No caso da Alemanha a
universalistas que decorrem dos próprios conceitos de Bildung, Kultur e implementação da escolari-
dade obrigatória(Schulpjlicht)
Aufklarung. começa já no século XVII.
Em 1619 é introduzida em
Weimar, em 1642 em Sachsen-
Assim, as transformações e reformas que se verificam na área da educação Coburg-Gotha, em 1649 em
na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX (reformas Württemberg, em 1662 em
Brandenburg e em 1717 e
essas que adiante analisaremos com mais detalhe), poder-se-iam resumir em 1763 na Prússia. As decisões
duas palavras: secularização e distribuição. de introduzir por decreto a
escolaridade obrigatória não
têm no entanto consequências
Em termos genéricos dir-se-ia que se passa de um paradigma educacional práticas imediatas, de modo
que vê na escola o local de preservação do conhecimento para um para- que estas datas não devem
portanto ser lidas como os
digma educacional que olha para a escola como o local onde se procede à momentos a partir dos quais é
distribuição do conhecimento. efectivamente introduzida a
escolaridade obrigatória. Na
realidade , o processo de
Assiste-se então à criação das primeiras escolas públicas (o Estado implementação de um sistema
público e universal de ensino
substitui-se portanto à Igreja), a educação, lenta mas progressivamente, foi um processo moroso , que
torna-se obrigatória para todas as camadas populacionais 9 e são publi- se foi concretizando pro-
gressiva e lentamente ao
cados os primeiros manuais totalmente custeados e financiados pelo longo dos séculos XIX e XX
Estado. (cf. Blankertz 1982: 59).

91
2.2.2 O (Re)Nascimento da pedagogia

Ao desenvolvimento, implementação e consolidação de um sistema educa-


tivo como este - sistema que, sublinhe-se, numa fase inicial se viu ainda
consideravelmente limitado, quer em termos sociais (às classes mais altas),
quer em termos geográficos (no caso alemão a escolaridade obrigatória é
implementada em apenas alguns Estados) - não são alheias as preocupa-
ções e os postulados da Filosofia da época.

Já anteriormente ficou referido o papel precursor de Coménio no que diz


respeito à progressiva deslocação do conceito de Bildung do plano do reli-
gioso para o plano do pedagógico. Interessa agora analisar com algum deta-
lhe o modo como progressivamente esse «plano do pedagógico» se emancipa
da Filosofia e se constitui como área temática específica e autónoma,
reconhecida de resto como tal pela Academia, que em 1779 entrega a Ernst
Christian Trapp (17 45-1818) a primeira cátedra de Pedagogia (Lehrstuhl
für Piidagogik), na Universidade de Halle (cf. Blankertz 1982: 28).

Coménio, no capítulo IV da sua Didáctica Magna que tem significativa-


mente o título «O Homem tem necessidade de ser formado para que se tome
Homem», já havia chamado a atenção para a especificidade e importância
do tema em questão (1996: 119):

( ... ) a natureza dá as sementes do saber, da honestidade e da religião, mas


não dá propriamente o saber, a virtude e a religião; estas adquirem-se orando,
aprendendo, agindo. Por isso, e não sem razão, alguém definiu o homem
um «animal educável», pois não pode tomar-se homem a não ser que se
eduque.

Mas, ao contrário do que sucedia (e sucedera) anteriormente, Coménio


entende que a educação, essa árdua tarefa de «ensinar o homem a agir como
homem», é um processo que envolve um método e um programa espe-
cíficos. Esse método e esse programa ficam explícitos no longo subtítulo
da sua Didáctica Magna que a seguir se transcreve parcialmente (Coménio
1996: 43):

Tratado da Arte Universal de Ensinar Tudo a Todüli


ou
Processo seguro e excelente de instituir, em todas as comunidades de
qualquer Reino cristão, cidades e aldeias, escolas tais que toda a juven-
tude de um e de outro sexo, sem exceptuar ninguém em parte alguma,
possa ser formada nos estudos, educada nos bons costumes, impregnada
de piedade, e, desta maneira, possa ser nos anos da puberdade, instruída
em tudo o que diz respeito à vida presente e à futura, com agrado e com
solidez.

92
Deste subtítulo convirá reter três aspectos que se revelarão os verdadeiros
alicerces da futura Pedagogia:

• saliente-se em primeiro lugar que se trata de um programa duplamente


universalista: pretende-se «ensinar tudo» (ou seja, qualquer tipo de
conteúdo) «a todos( ... ) sem exceptuar ninguém» (quer dizer, a qual-
quer tipo de pessoa independentemente da sua proveniência ou
situação social);

• saliente-se em segundo lugar o carácter prático e utilitário da educa-


ção assim entendida: a instrução deve dizer «respeito à vida presente
e à futura»;

• e sublinhe-se, por fim, os termos <~uventude» e «puberdade» (por


oposição a idade adulta) que indiciam já uma mudança radical de
atitude no que diz respeito às concepções da criança vigentes durante
a Idade Média (em que esta era vista como um pequeno adulto).
Deduz-se pois que o método de ensino deverá ser adaptado à idade
da criança e estar em conformidade com as suas capacidades de
aprendizagem à medida que o jovem evolui para a idade adulta
(cf. Gudjons 1995: 81).

Durante todo o século XVIII são inúmeras as obras e os autores que se


debruçam especificamente sobre a educação, um século que por isso mesmo
foi considerado «o Século da Pedagogia» (cf. Gudjons 1995: 82). E nem
mesmo Kant parece ter ficado imune ao tema e à moda, que entretanto se
tinha instalado, de escrever um tratado sobre a educação, já que lhe dedicou
também uma pequena obra (Über Padagogik, 1803) onde ecoam ainda os
princípios definidos por Coménio: «Der Mensch kann nur Mensch werden
durch Erziehung» (Kant 1988b: 699).

Porém, de entre os muitos autores que se debruçam sobre a educação, conviria


destacar Locke , com o seu Some Thoughts concerning Education, publicado
em 1693, e Rousseau, com Émile ou de l 'Éducation, publicado em 17 62, na
medida em que se trata, em ambos os casos, àe autores e obras influentes no
pensamento pedagógico alemão.

Em termos gerais dir-se-ia que, tanto Locke como Rousseau, repetem e se


baseiam nos argumentos , programa e método de Coménio: a educação
deverá ser universal, prática, utilitária e, tanto o método, como os
conteúdos, deverão ir sendo sucessivamente adaptados às diferentes fases
e idades da criança e do jovem.

Mas , no que diz respeito ao acentuar da diferença desta nova concepção da


criança, Rousseau é particularmente crítico, incisivo e, acima de tudo, bastante
mais explícito que os seus antecessores (Rousseau 1966: 32):

93
On ne connait point l'enfance ( ... ). Les plus sages s'attachent à ce qu'il
importe aux hommes de savoir, sans considérer ce que les enfants sont en
état d' apprendre. Ils cherchent toujours l'homme dans l'enfant, sans penser
à ce qu'il est avant que d'être homme.

Ora esta nova concepção da criança enquanto criança - e já não enquanto


pequeno adulto - constitui porventura o aspecto mais visivelmente revolu-
cionário das novas ideias pedagógicas , na medida em que implicará
mudanças e reformas (muitas vezes radicais) em áreas tão diversas como as
do vestuário, alimentação, cuidados de saúde, literatura e cultura (cf. Becher
1990).

Tome-se aqui como exemplo o caso da leitura e, mais genericamente, da


literatura.

Já Locke havia assinalado a lacuna existente no que concerne as leituras


da infância. Numa fase inicial, e à falta de livros mais apropriados, as crian-
ças deveriam ler as Fábulas de Esopo (cf. Locke 1996: §§156-157). Mas
numa fase posterior (em que o jovem domina já a técnica da leitura mas
não entrou ainda na idade adulta) o problema do vazio continuava a colo-
car-se, daí que Locke faça um apelo que é simultaneamente uma recomen-
dação:

Die zweite Empfehlung Lockes ( ... ), daB «leichte, vergnügliche Bücher»,


die den Fahigkeiten und der Fassungskraft der Kinder angemessen sein
müBten, geschrieben und verbreitet werden sollten, fand in Deutschland
groBe Resonanz. (Beutin 1992: 150)

Maior ressonância ainda encontraram os apelos e as sugestões de Rousseau


na Alemanha do século XVIII. E isto em virtude da radicalidade discursiva
deste autor francês.

Depois de se render à evidência da necessidade de aprender a ler, mas não


sem que antes se sinta uma vez mais obrigado a reafirmar a sua profissão de
fé numa educação «natural» baseada na «experiência» («Je hais les livres;
ils n'apprennent qu'à parler de ce qu'on ne sait pas»), Rousseau escreve
(1966: 238-239):

Puisqu' il nous faut absolument des livres, il en existe un qui fournit, à


mon gré, le plus heureux traité d' éducation naturelle. Ce livre sera !e premier
que lira mon Emile (... ). II sera !e texte auquel tous nos entretiens sur les
sciences naturelles ne serviront que de commentaire. li servira d' épreuve
durant nos progres à l'état de notre jugement ( ... ). Quel est donc ce
merveilleux livre? Est-ceAristote? est-ce Pline? est-ce Buffon? Non; c'est
Robinson Crusoé.

94
Esta última sugestão foi levada à letra por inúmeros autores de diversos
países, nomeadamente por Joachim Heinrich Campe ( 1746-1818), preceptor
dos irmãos Humboldt (Alexander e Wilhelm) e autor de inúmeras obras
destinadas à infância, de entre as quais se destaca justamente um Robinson
Crusoe adaptado para crianças (Robinson der lüngere, Hamburg 1779) que
conheceu um êxito editorial assinalável , tendo sido sucessivamente reeditado
até finais do século XIX (cf. Beutin 1992: 152).

Re sultante das novas preocupações pedagógicas, assim se inaugurou


pois um novo género literário - a literatura infantil e juvenil ( Kinder- und
Jugendliteratur) - que conheceria, a partir da segunda metade do século
XVIII, um crescimento deveras impressionante e que tem, ainda hoje, uma
quota-parte muito significativa na produção livreira mundial.

2.2.3 A noção de Bildung e a reforma do sistema educativo alemão

Em finais do século XVIII estão definitivamente criadas as condições neces-


sárias para que tenha lugar uma reforma profunda e (mais) alargada do sistema
educacional alemão.

Essas condições são:

• o facto de a noção de Bildung, e especialmente as teses emancipató-


rias e universalistas que lhe são inerentes, conhecerem progres-
sivamente maior divulgação;

• o alargamento de um espaço público (burguês) onde cada vez mais


são discutidos os temas educacionais, que entretanto conheciam um
processo de secularização irreversível;

• as reformas (e, acima de tudo, a necessidade de reformas) de ordem


jurídica que, após a Revolução Francesa, os Estados europeus se esfor-
çam por fazer, no sentido de garantirem a sua sobrevivência na nova
ordem mundial que se desenhava.

O caso da Prússia é a vários títulos paradigmático. A promulgação em 1794


do Allgemeines Landrecht für die Preussischen Staaten institui uma nova (e
moderna) relação jurídica entre o Estado, o soberano e o súbdito/cidadão
que é, apesar de tudo, «ambivalente» no entender de Bollenbeck ( 1994: 168).
O Estado absolutista (e, no caso da Prússia, de tendência ainda feudalizante)
só ficaria definitivamente desmantelado com as reformas que se lhe seguiram
a partir de 1807: referimo-nos às reformas do exército, do aparelho estatal e,
fundamentalmente, do sistema educativo (cf. Botzenhart 1985 : 45 e segs.).

95
Embora sejam muitos, na época, os autores a reflectir sobre a educação,
diversas as suas perspectivas e igualmente variadas as suas propostas e
programas - como Bollenbeck afirma, «das Bildungsideal laBt sich ( .. .)
nicht auf einen Nenner bringen» (Bollenbeck 1994: 166) - , a verdade é
que, no que diz respeito a esta reforma do sistema educativo da Prússia, faz
todo o sentido voltar a referir o nome de Humboldt.

De facto, é precisamente Wilhelm von Humboldt que, na qualidade de chefe


de uma recém-criada Sektion Jür den Cultus, offentlichen Unterricht und
Medizinalwesen do Ministério Prussiano do Interior lidera e arquitecta, a
partir de 1809, as reformas educativas daquele Estado alemão.

Essas reformas ou, talvez melhor, os princípios orientadores dessas refor-


mas, surgem por conseguinte in nuce nos seus escritos sobre a noção de
Bildung e num ensaio (provavelmente escrito em 1792, mas cuja publicação
integral só foi feita postumamente) que tem o título significativo de «Ideen
zu einem Versuch, die Granzen der Wirksamkeit des Staats zu bestimmen».

Convirá recordar aqui que, na perspectiva deste autor, a noção de Bildung


apontava para um processo evolutivo complexo que se ia realizando ao
longo de um eixo interactivo homem/mundo, processo esse cujos resultados
eram tanto melhores quanto maior fosse a diversidade da experiência
proporcionada pela interacção indivíduo(s)-mundo. As componentes
essenciais desta noção de Bildung eram pois o mundo (cf. supra: «( ... ) so
bedarf der Mensch einer Welt ausser sich»), a variedade de situações
proporcionadas pela interacção homem/mundo e a liberdade que justamente
permitisse ao homem a maior variedade possível dessas situações.

No referido ensaio sobre os limites da acção do Estado a tónica é posta agora


na liberdade (Humboldt 1980b: 64):

Der wahre Zwek des Menschen ist die hõchste und proportionirlichste
Bildung seiner Krafte zu einem Ganzen. Zu dieser Bildung ist Freiheit die
erste, und unerlassliche Bedingung. Allein ausser der Freiheit erfordert
die Entwikkelung der menschlichen Krafte noch etwas andres, obgleich
mit der Freiheit eng verbundenes, Mannigfaltigkeit der Situationen.

Daí que a primeira grande conclusão (leia-se também: recomendação) do


ensaio seja (Humboldt 1980b: 90, sublinhados no original):

der Staat enthalte sich aller Sorgfalt für den positiven Wohlstand der Bürger,
und gehe keinen Schritt weiter, ais zu ihrer Sicherstellung gegen sich selbst,
und gegen auswartige Feinde nothwendig ist; zu keinem andren Endzwekke
beschranke er ihre Freiheit.

O Estado constitui, no entender de Humboldt, um factor indesejável de uni-


formização (Einformigkeit, cf. ib.: 71) da sociedade, daí que a acção do

96
Governo tenha de ser limitada, para proporcionar ao indivíduo um correcto
e produtivo desenvolvimento das suas faculdades.

A educação pública só poderia então, também, ser entendida como um modo


coercivo de o Estado impor ao indivíduo uma certa forma social, unifor-
mizando gradualmente deste modo a própria sociedade (Humboldt 1980b:
107): «Jede offentliche Erziehung ( ... ), da immer der Geist der Regierung in
ihr herrscht, giebt dem Menschen eine gewisse bürgerliche Form»'º. 'º Veja-se a este respeito todo
o capítulo VI («Über offentliche
Não deixa por isso de ser paradoxal que seja justamente Humboldt, no Staatserziehung») do referido
ensaio (Humboldt 1980 b:
exercício do cargo público governamental acima referido (que correspon- 103-109).
deria hoje, sensivelmente, ao de Ministro da Educação), a instituir um sis-
tema educativo público, cuja longevidade se revelaria surpreendente.

Nos escassos 16 meses que ocupou o cargo ( 1809-181 O) e em conjunto com


os seus colaboradores - nomeadamente Johann Wilhelm Silvem, que
permaneceu no Ministério até 1819-, Humboldt fundou a Universidade de
Berlin e lançou as bases de um sistema educativo que ainda hoje prevalece
na Alemanha (cf. Blankertz 1982: 116 e segs.).

Muito resumidamente, a reforma arquitectada por Humboldt assenta nos


seguintes princípios basilares:

1. dar prioridade a uma educação universal, de índole geral e generalista


(Bildung), em detrimento de uma formação específica e profis-
sionalizante (Ausbildung, Berufsausbildung);

2. lançamento de um sistema uniforme de ensino (escalonado em


três níveis) que se adapte às diferentes fases etárias do jovem:
escola, liceu, universidade (Elementarunterricht, Schulunterricht,
Unive rsitiitsunterricht);

3. limitar a acção do Estado por forma a que este assuma, na educação,


o simples papel de «espectador» ou «guarda-noctumo» (Nachtwiichter
na expressão original; cf. Gudjons 1995: 93);

4. promover o desaparecimento e a eliminação da atitude/mentalidade


de súbdito (Untertan).

2.3 Bildung e Erfahrung: viagens, cosmopolitismo e intercultu-


ralidade

Vimos anteriormente como a discussão em tomo da noção de Bildung teve


consequências e efeitos práticos imediatos no espaço cultural alemão e
também, mais genericamente, europeu: o nascimento de um novo género

. 97
literário - a literatura infantil e juvenil - e o surgimento de um sistema
público de educação são duas dessas consequências a que aqui foi dado o
devido destaque (muitas outras haveria ainda que referir).

De seguida procurar-se-á ver como o mesmo conceito de Bildung, agora em


articulação com o de Erfahrung (a que já no início fizemos referência), são
determinantes na construção da identidade de um espaço europeu, cosmo-
polita e intercultural.

2.3.1 Bildung e Erfahrung

Com a publicação, em 1774, de Auch eine Philosophie der Geschichte zur


Bildung der Menschheit começa a tomar forma, no pensamento de Herder,
um«( ... ) distanciamento crítico face a uma concepção finalista, fechada sobre
si própria, auto-satisfeita e estática de 'Aufk.larung' » (Justo 1995: 158).

11 Vejam-se as «Notas à Tra- Esse distanciamento é desde logo notório no título da obra de Herder 11 , que
dução » que acompanham a
edi ção portugu es a da obra,
remete para um ensaio de Voltaire publicado em 1765, sob o pseudónimo de
pp. 128-130. Abade Bazin, intitulado Philosophie de l'Histoire. E há ainda diversas
passagens em que essa atitude de distanciamento crítico transparece com
grande clareza. Um exemplo: «Die sogennante Aujklarung und Bildung der
Welt hat nur einen schmalen Streif des Erdballs berührt und gehalten» (Herder
1990: 89).

Porém, em alguns passos deAuch eine Philosophie der Geschichte torna-se


particularmente óbvio que essa crítica se apoia em argumentos que têm a
sua origem no empirismo inglês, onde a noção de experiência -Erfahrung
- desempenha um papel fundamental.

Embora se trate de uma citação relativamente longa, julgamos que vale a


pena dar a palavra a Herder quando, a propósito da educação, se refere
criticamente a uma noção de Bildung que parece não contemplar o contacto
com o mundo exterior (Herder 1990: 66-68):

Es gab ein Zeitalter, wo die Kunst der Gesetzgebung für das einzige Mittel
galt, Nationen zu bilden, und dies Mittel auf die sonderbarste Art
angegriffen, nur meist eine allgemeine Philosophie der Menschheit, ein
Kodex der Vernunft, der Humanitat - was weiB ich mehr? werden
sollte (...)
Es war eine Zeit, da die Errichtung von Akademien, Bibliotheken, Kunst-
salen, Bildung derWelt hieB-vortrefflich! dieseAkademie ist der Name
des Hofes, das würdige Prytaneum verdienter Manner, eine Unterstützung
kostbarer Wissenschaften, ein vortrefflicher Saal am Geburtsfeste der

98
Monarchen. - Aber was die nun zur Bildung des Landes, der Leute, der
Untertanen tue? ( ... )
Es war eine Zeit, da alies auf Erziehung stürmte - und die Erziehung
wurde gesetzt in schone Realkenntnisse, Unterweisung, Aufklarung,
Erleichterung ad capturo und ja in frühe Verfeinerung zu artigen Sitten.

Ora o que de todas estas tentativas resultou não foi um progresso efectivo,
um desenvolvimento prático, enfim, um avanço do mundo e da humanidade,
mas sim«( ... ) ein Lehrbuch der Erziehung, wie wir tausend haben! ein Kodex
guter Regeln, wie wir noch Millionen haben werden, und die Welt wird
bleiben, wie sie ist» (Herder 1990: 68).

Feito o diagnóstico da situação, a solução proposta por Herder na sua


exortação final não pode deixar de recordar os argumentos de Rousseau
que apontavam no sentido de privilegiar uma educação baseada na experiên-
cia em detrimento da «cultura livresca» (Herder 1990: 69, sublinhados
nossos):

Wenn meine Stimme (... ) Macht und Raum hatte, wie würde ich allen, die
an der Bildung der Menschheit würken, zurufen: nicht Allgemeinorter von
Verbesserung! Papierkultur! womoglich Anstalten - tun! LaBt die reden
und ins Blaue des Himmels hineinbilden, die das Unglück haben, nichts
anders zu konnen.

Trata-se, de facto, de um passo onde as críticas às Luzes são particularmente


incisivas. Dessas críticas convirá reter dois aspectos que na perspectiva de
Herder estão interligados.

Refira-se, em primeiro lugar, a crítica que tem a ver com o carácter limitado,
limitativo e limitador da Aufklarung tal como havia sido entendida e
praticada até aí: tanto a educação como as Luzes atingiram apenas uma
pequena faixa do globo terrestre, não tendo por isso a característica
universalidade que tanto apregoam; assim, tanto a noção de Bildung como a
deAufkliirung, não passam de boas intenções, cujos resultados práticos ficam
muito aquém das promessas feitas e das expectativas geradas (a crítica é
aqui especialmente dirigida à historiografia de cariz euro e etnocêntrico
proposta por Voltaire).

E trata-se, em segundo lugar, de verificar agora que não é possível falar de


uma Bildung (ou de uma Aufkliirung) verdadeiramente universal a não
ser que com esta noção se articule uma outra - a de Erfahrung. De
facto, no entender de Herder, não é possível falar de uma sem outra - a
própria ideia de uma educação sem experiência (e sem experimentação) é
umacontradictio in adiecto-, daí que as duas noções sejam interdependentes
e se encontrem estreitamente interligadas.

99
2.3 .2 A viagem como corolário da educação

Ao contrário do que acontecera em séculos anteriores, em que a educação e


a formação, quer dizer, a transmissão do saber era feita através dos livros
(sendo que a autoridade da escrita não era passível de ser questionada) , a
partir de finais do século XVII, e especialmente com a crescente influência
dos filósofos empiristas ingleses (nomeadamente Newton, Bacon e Locke),
desenvolve-se progressivamente a ideia que há essencialmente duas vias para
o conhecimento: uma que passa naturalmente pelos livros e pela leitura de
obras consagradas pela tradição e outra que, pela primeira vez, concede à
experiência individual e à experimentação um papel de relevo na construção
e transmissão do conhecimento.

A experiência do e no mundo torna-se simultaneamente o ponto de partida


do saber (o mundo é o local onde se devem recolher os dados que farão
eventualmente parte do saber constante dos livros) e o ponto de chegada do
mesmo (é pelo mundo que se deve aferir a validade das teorias e das hipóteses
formuladas nos livros).

Assim também no que diz respeito à educação: a realização e a consolidação


efectiva de uma formação educativa e individual, que aspira a ser universal,
só poderia portanto ser feita através da experiência, isto é, no duplo confronto
com o mundo atrás referido.

Não surpreende pois que sejam justamente os autores ingleses a destacar o


papel que a viagem por países estrangeiros deverá ter na educação, enquanto
forma ideal de adquirir e consolidar experiência e de, assim, pôr à prova o
12 A propósito do carácter edu-
conhecimento humano 12 •
cativo e formativo da viagem
vejam-se Elkar 1987, Bõdeker
1986 e Stagl 1987: 368 e segs. Locke dedica-lhe um dos parágrafos finais do seu ensaio Some Thoughts
concerning Education, onde é peremptório ao afirmar: «The last part usually
in education is travel, which is commonly thought to finish the work and
complete the gentleman» (Locke 1996: §212); e já Bacon, antes dele, havia
chamado a atenção para o papel específico, e simultaneamente multifacetado,
que a viagem poderia (e deveria) desempenhar no decorrer da vida: «Travel
in the younger sortis a part of education; in the elder, a part of experience»
(Bacon 1985: 113).

Como seria de esperar, também Rousseau dedica todo o último capítulo do


seu ensaio sobre a educação às viagens (Rousseau 1966: 590-629). E Kant,
que quase nunca saiu da sua Kõnigsberg natal, dá bem conta da importância
que a viagem entretanto adquirira ao afirmar, de uma forma que se poderá
considerar emblemática para todo o século XVIII: «Zu den Mitteln der
Erweiterung der Anthropologie im Umfange gehõrt das Reisen; sei es auch
nur das Lesen der Reisebeschreibungen» (Kant 1988a: 400).

100
No culminar do percurso educacional clássico surge então, agora, a viagem
por países estranhos e estrangeiros como a forma privilegiada de consolidar
e adquirir conhecimentos e Welterfahrung . Na Inglaterra o Grand Tour
transforma-se numa verdadeira instituição (cf. Bausinger 1991 e Hibbert
1974): a viagem a Itália e a França (e muito mais raramente a Espanha),
outrora obrigatória para os jovens oriundos das classes aristocráticas, vulga-
riza-se, a partir da segunda metade do século XVIII, entre a nascente classe
média burguesa.

Cerca de um século mais tarde (por volta de 1880) o fenómeno adquirira


proporções tais que Eça de Queiroz o considera digno de registo, um registo
naturalmente irónico e sarcástico. Numa das suas cartas de Inglaterra, em
que procede à inventariação das instituições características da «velhaAlbion»,
escreve aquele autor (Queiroz s/d: 23-24):

Temos ainda a Travelling-Season , a estação das viagens, quando o famoso


touriste inglês faz a sua aparição no continente. Nesta época (Setembro e
Outubro) todo o inglês que se respeita (ou que não podendo em consciência
respeitar-se pretende ao menos que o seu vizinho o respeite) prepara umas
dez ou doze malas e parte para os países do sol, do vinho e da alegria.
Os anjos ( ... ) devem assistir então do seu terraço azul a um espectáculo
bem divertido: toda a Inglaterra fervilhando no porto de Dover - e daí
sucessivamente partirem longos formigueiros de touristes, riscando de
linhas escuras o continente, indo alastrar os vales do Reno, negrejando
pelas neves dos Alpes acima, serpenteando pelos vergéis da Andalu-
zia, atulhando as cidades da Itália, inundando a França! Tudo isto são
ingleses.

A verdade, porém, é que nem «tudo isto são ingleses». Na realidade, grande
parte dos viajantes são também alemães, franceses ou italianos. A viagem
tinha-se vulgarizado entre a Europa culta e esclarecida. E desse movimento
de vulgarização e de valorização dos benefícios (culturais e educacionais)
da viagem haveria de resultar o turismo dos nossos dias.

Aliando duas expressões-chave do Iluminismo tardio -Bildung e E,fahrung


- a viagem constituía pois uma área de profundo consenso na mentalidade
da época. Regressado de França, o próprio Herder reconheceria e defini-
ria em 1769 de uma forma quase aforística o valor da viagem, salientando,
ao mesmo tempo, essa interessante e estreita relação entre experiência
e educação: «Wie anders lernt man die Welt kennen; je weiter man in sie
tritt: jeder Schritt ist Erfahrung; und jede Erfahrung bildet» (apud Bõdeker
1986: 95).

101
----- 2.3.3 A descoberta da Europa

Em relação aos séculos anteriores, como observa Paul Hazard (1983: 401),
nomeadamente em relação ao século XVII, «a viagem [tinha, no entanto,
mudado] de carácter; não era já o capricho de um original demasiado curioso,
mas uma aprendizagem, um trabalho, o complemento de uma educação( ... )».

Como vimos, esta «mudança de carácter» é o reflexo directo de uma nova


mentalidade científica e pedagógica que modernamente se alicerça num
relacionamentodirecto entre o indivíduo e o mundo. Do ponto de vista peda-
gógico, o interesse que a viagem oferecia era precisamente o de expor o
indivíduo às mais variadas situações e diferentes experiências. E que melhor
espaço haveria para ilustrar e exemplificar a diversidade e variedade do mundo
do que justamente a Europa?

Cerca de dois séculos depois de ter descoberto o Novo Mundo, a Europa


viajava agora pela Europa à descoberta da Europa. Tratava-se de uma espécie
de peregrinação interior em busca da própria identidade, isto é, em busca
das semelhanças e das diferenças de realidades muito diversas que subitamente
se descobrem (re)unidas no centro geográfico do novo Mapa Mundi mental
(cf. Chaunu 1982: 35 e segs). E tratava-se também, afinal, de uma viragem
para si própria, fundamental e simultaneamente limitadora (como adiante
veremos).

Os habitantes da Europa tomavam definitivamente posse do seu domínio .


A nova filosofia mercantilista, o consequente aumento das trocas comerciais
entre os vários países europeus e o rápido desenvolvimento das vias de
comunicação possibilitam a vulgarização, ou, talvez melhor, a trivialização
da viagem.

À moda de viajar rapidamente se sucede uma outra, que se constitui por-


ventura como um dos traços mais característicos da vida literária dos séculos
XVIII e XIX - a da literatura de viagens (veja-se Beutin 1992: 185).

A literatura de viagens europeia desta época apresenta-se, muito possivel-


mente, como um dos locais privilegiados (mais interessantes e mais produti-
vos) para assistir à complexa construção de uma identidade europeia. Do
que se tratava agora não era exactamente de assinalar a fundamental unidade
do espaço europeu. Essa já fora entrevista por Rousseau (1966: 612-613):

Toutes les capitales se ressemblent, tous les peuples s'y mêlent, toutes les
moeurs s'y confondent; ce n'est pas là qu'il faut aller étudier les nations .
Paris et Londres ne sont à mes yeux que la même ville. ( ... ) C' est dans les
provinces reculées, ou il y a moins de mouvement, de commerce, ou les
étrangers voyagent moins ( ... ), qu' il faut aller étudier le génie et les moeurs
d' une nation.

102
Do que se tratava agora, como daqui se depreende, era de descobrir a
diversidade nacional e regional dentro da crescente uniformização que a
Europa (cada vez mais cosmopolita) começava a conhecer. A hierarquia de
nações, culturas e valores que daí resulta é, no entanto , uma hierarquia
profundamente eurocêntrica e, por conseguinte, limitada.

Todas as comparações, que estes viajantes constante e permanentemente


fazem, dizem apenas respeito à própria Europa. O outro mundo - o mundo
não-europeu - é o espaço da alteridade radical, da diferença tantas vezes
incompreensível, por isso mesmo, frequentemente apelidada de «bárbara»
ou «primitiva». E muito embora este outro mundo, só raramente seja nomeado
na literatura de viagens europeia a que nos temos vindo a referir, a verdade
é que é sobre o seu pano de fundo (por contraste e oposição a ele) que aqui
se joga a questão fundamental da identidade europeia (cf. Cap. III.2,
«Aufkliirung e modernidade»).

À medida que os habitantes da Europa iam tomando posse do seu domínio,


iam transformando também esse domínio. Se o que se buscava era a diversi-
dade regional e nacional, então, a variedade das línguas que se falavam na
Europa proporcionava, sem dúvida, um bom ponto de partida para redefinir
e repensar a identidade europeia.

É neste sentido que se devem entender uma série de fenómenos que, a partir
da segunda metade do século XVIII, parecem alastrar e generalizar-se por
toda a Europa:

• refira-se em primeiro lugar o progressivo abandono do Latim nas


universidades e a sua substituição pelas línguas nacionais;

• destaque-se também o súbito incremento na publicação de traduções;


vale a pena ler a este respeito o notável texto de Friedrich Nicolai
(1988) - que tem significativamente o título de «Übersetzungsfabriken»
- em que é feito um retrato irónico e mordaz das práticas verdadei-
ramente «industriais» e «comerciais» dos editores e dos gabinetes de
tradução da época, práticas essas onde não faltam nem a especialização
do trabalho, nem a sub-contratação de mão-de-obra barata;

• e saliente-se, por fim, a proliferação de métodos e gramáticas para o


ensino de uma língua estrangeira (especialmente o inglês e o francês),
que a médio prazo fará parte dos curricula escolares públicos
(cf. Kimpel 1985).

É pois na língua e na cultura que se começa progressivamente a desenhar um


espaço supranacional europeu, que se caracteriza justamente por ser um
espaço comummente dominado pela diferença: o espaço intercultural e
cosmopolita da Europa.

103
Bibliografia aconselhada

Para uma panorâmica generalista, mas nem por isso menos aprofundada, do
conceito Bildung vejam-se Vosskamp 1993, Bollenbeck 1994 e Pleines 1989;
os textos de Herder 1990 e Humboldt 1980a constituem, por seu turno, fontes
primárias extraordinariamente importantes relativamente a esta temática. No
que diz respeito à pedagogia e à educação consultem-se Blankertz 1982,
Coménio 1996 e Humboldt 1980b (especialmente o capítulo «Über õffent-
liche Staatserziehung» ). Finalmente, sobre o cosmopolitismo do século XVIII
e as suas diversas manifestações, vejam-se Hazard 1983, Chaunu 1982 e
Bausinger 1991.

Actividades propostas

• Releia o capítulo e tente caracterizar em poucas palavras a especifici-


dade da noção de Bildung.

• Depois de ler o ensaio de Bacon ( 1985) e o último capítulo de Hazard


1983 («A Europa e a falsa Europa») compare as noções de «viagem»
(os seus objectivos e utilidade funcional) veiculadas em ambos os
textos.

FC.

104
III. ESPAÇOS
l. «So weit die Deutsche Zunge klingt»: nação, língua
e território
Resumo

Proporciona-se uma panorâmica histórica dos conceitos de «nação» e de


«nacionalismo», em especial a partir de finais do século XVIII.

Analisa-se a formação da «nação alemã», dando particular destaque aos


argumentos - comunidade de língua e de cultura - que estiveram na base
da construção da identidade nacional daquele país.

Objectivos

• Identificar os conceitos de «nação», «nacional» ou «nacionalismo»


nas suas várias acepções, bem como na sua evolução histórica.

• Entender a forma como de uma identidade nacional atomizada («as


nações alemãs») se procedeu à construção de uma identidade nacional
do espaço alemão («a nação alemã»).

• Compreender a importância que a cultura, a língua e a história têm


nesse processo de construção da identidade nacional alemã.

109
1.1 Da nação ao nacionalismo

1.1.0 Questões prévias

Termos como «nação», «nacional» ou «nacionalismo» entraram hoje em


desuso e em descrédito no vocabulário político da Europa ocidental e as
razões são fáceis de descortinar.

Trata-se, em primeiro lugar, de razões que estão directamente relacionadas


com a história europeia mais recente, nomeadamente as guerras, a violência,
a devastação e os excessos políticos de má memória que a Europa conheceu
durante a primeira metade do século XX, precisamente na sequência do
exacerbar daqueles sentimentos nacionalistas.

A título de exemplo do uso e abuso destes termos e da sua importante


componente político-ideológica, recorde-se, no caso português, a conhecida
fórmula que até 1974 deveria obrigatoriamente encerrar todo e qualquer
documento público - «A bem da Nação» - , refira-se ainda que o
Parlamento, a actual «Assembleia da República», tinha durante o Estado
Novo a designação oficial de «Assembleia Nacional» e sublinhe-se, por fim,
que o partido único que então governava o país se chamava significativamente
«União Nacional».

No caso alemão os termos - e os sentimentos - são bem mais problemá-


ticos e radicais: a palavra «Nationalismus», por exemplo, tem frequente-
mente um sentido pejorativo, remetendo para uma ideologia política extre-
mista, violenta, exacerbada e intolerante, a ideologia propagada pelo partido
nacional-socialista alemão, que foi responsável directa pelos acontecimentos
que levaram à II Guerra Mundial (cf. Alter 1985: 11-12).

Por outro lado, o menor uso que os termos «nação», «nacional» e


«nacionalismo» hoje conhecem tem também a ver, pelo menos em parte,
com outra questão: a da ambiguidade que lhes é inerente uma vez que se
constituem no plano de uma lógica paradoxal da identidade. Quando digo
«eu» excluo assim todos os outros do horizonte de referências para as quais
a palavra «eu» remete e, no entanto, cada um dos outros pode também dizer
«eu». Paradoxalmente «eu» podem ser muitos. Do mesmo modo, podemos
usar uma única expressão - por exemplo, «cultura nacional» - e remeter
para realidades tão diversas como sejam a cultura portuguesa, francesa,
chinesa, senegalesa ou tailandesa.

Assim, à semelhança do que sucede com inúmeros conceitos mais abstractos,


os termos «nação», «nacional» ou «nacionalismo», tal como o pronome
pessoal «eu», dependem sempre daperspectiva ou do ponto de vista de quem
os diz e do contexto para o qual remetem. E esta dependência da perspectiva
e do contexto - que no caso aqui em apreciação é de um grau extremo -

111
torna os termos falhas de sentido, ambíguos e, por isso, muitas vezes
inadequados do ponto de vista da economia da língua.

Por razões que têm naturalmente mais a ver com os motivos históricos acima
apontados, a tendência, hoje, é para falar de «países». No entanto, quando os
termos não estão especificamente conotados com um projecto político-
-ideológico, ou quando a ambiguidade que lhes é inerente se dissolve em
face dos destinatários e do carácter claramente local (e para uso interno) da
informação veiculada, os termos continuam a ser usados. Exemplo disso
mesmo são expressões correntes como «selecção nacional» («National-
mannschaft») ou «feriado nacional» ( «Nationalfeiertag » ).

1.1.1 O conceito de nação

Independentemente das suas actuais limitações e conotações, a verdade é


que os conceitos que têm vindo a ser referidos e o contexto em que eles
surgem desempenham um papel de extraordinária importância na constru-
ção da identidade alemã, pelo que se torna necessário observá-los na sua
génese e evolução, primeiro num âmbito mais alargado europeu e, poste-
riormente, no contexto mais específico do espaço alemão.

O conceito de «nação», tal como hoje o entendemos, tem a sua origem nos
finais do século XVIII. A Revolução Francesa teve uma importância e uma
influência decisivas, tanto na fixação como na consolidação, em termos
modernos, do conceito em causa.

Convirá no entanto salientar que a palavra «nação» já era anteriormente uti-


lizada na grande maioria das línguas europeias ocidentais. Numa fase ini-
cial, a partir do século XIV, «nação» - natio, do latim nasci (nascer) -
apontava para a origem comum de um grupo de indivíduos e aplicava-se a
uma comunidade étnica ou aos habitantes oriundos de uma mesma região;
porém, sublinhe-se, uma natio não envolvia nesta primeira fase qualquer
tipo de forma organizacional política. Só posteriormente é que a palavra
começa a ocorrer num âmbito e contexto claramente políticos. De facto, a par-
tir do século XVII o termo «nação» remete também para os nobres que
tinham um estatuto político (de representação) junto da coroa - a «nação
francesa», por exemplo, referia-se exclusivamente ao clero e à aristocracia fran-
cesa que tinham acesso directo ao monarca (cf. Schulze 1995: 112-113 e 117).

O que daqui interessa reter é que em meados do século XVIII o termo «nação»
é utilizado em dois sentidos diferentes que não se encontram directamente
relacionados entre si: «nação» tanto remete para as origens comuns de um
grupo de indivíduos, como para a função social e política de representação.

112
Claramente adaptada à realidade política alemã da época, a definição que
Adelung dá do conceito, no seu Deutsches Worterbuch de 1776, é ainda
paradigmática no que diz respeito à inexistência de uma relação entre a
«nação» e o «Estado» ou o poder político:

Nation, die eingebornen Einwohner eines Landes, so fern sie einen


gemeinschaftlichen Ursprung haben, eine gemeinschaftliche Sprache reden,
und in etwas engerem Sinne auch durch eine ausgezeichnete Denk- und
Handlungsweise oder den Nationalgeist sich von andem Võlkerschaften
unterscheiden, sie mõgen übrigens einen einigen Staat ausmachen, oder in
mehrere verteilt sein. (apud Schulze 1995: 170)

De algum modo estão já aqui in nuce as componentes essenciais do con-


ceito: língua, território e origem comuns. Mas a Revolução Francesa haveria
ainda de o transformar radicalmente, especialmente no que diz respeito à
fundamental unidade da componente política que, em Adelung, é conside-
rada irrelevante.

De facto, as mudanças que a Revolução Francesa imprime ao conceito são


mudanças de natureza essencialmente política: ao contrário do que sucedia
no passado, depois de 1789 o termo «nação» passa a designar específica e
directamente o terceiro estado, ou seja, o povo (a integração da aristocracia
e do clero na nação fica assim condicionada à aceitação, por parte destes, do
princípio da igualdade de todos os cidadãos perante a lei); simultaneamente
entende-se que a «nação» se afirma, se realiza e se espelha no Estado que,
desse modo, se torna componente essencial do conceito, na medida em que
lhe confere unidade formal (cf. Schulze 1995: 168-169).

Uma nação é agora, modernamente, constituída por uma comunidade de


indivíduos, quer dizer, um povo, que partilha uma mesma língua, e que tem
usos e costumes, um passado e um território comuns, comunidade essa
que se encontra reunida e enquadrada em torno de uma forma organizacional
de cariz político - o Estado.

1.1.2 Da nação ao nacionalismo

Das componentes acima mencionadas há duas que se revelarão especial-


mente importantes e produtivas, no que diz respeito à construção de uma
identidade nacional alemã. Por isso, mas também porque ambas desempe-
nham um papel fundamental no processo de ideologização do conceito de
«nação», isto é, na sua transformação em «nacionalismo», ser-lhes-á aqui
dado o devido relevo: trata-se dos argumentos que tomam a língua e o passado
histórico comuns como os factores de união e unidade das nações.

113
Convirá começar por sublinhar que, relativamente à questão da língua, não
se trata exactamente de um argumento novo. De facto, a primeira onda de
nacionalismos europeus - que ocorre no final da Idade Média e em que se
assiste ao nascimento de Estados-Nações como a França, Inglaterra, Portugal,
Espanha e Suécia (cf. Alter 1985: 27) - apoia-se com frequência no
argumento de que a uma língua deve «naturalmente» corresponder uma
1 O termo «nacionalismo» só unidade nacional e política fundamental 1.
pode ser usado em relação a
esta época com algumas
cautelas. De facto não se trata
Neste sentido, não será descabido afirmar que o Estado nasce ao mesmo
exactamente de «naciona- tempo que a Nação. O caso espanhol- com a língua castelhana a servir de
lismo» no sentido actual e
moderno do termo, na medida
traço e argumento da unidade nacional - e o caso português são, a este
em que lhe falta, pelo menos , título, exemplares.
uma componente essencial: a
consciência e o sentimento de
perten ça a uma nação por
Quando em 1492 Antonio de Nebrija (1441-1522) escreve a primeira Gra-
parte dos indi víduo s que a mática da Língua Castelhana (que lhe havia sido significativamente enco-
formam (c f. Sc hulze 1985:
109 -111 e 16 9, nom eada-
mendada pela Rainha Isabel, a Católica), dá conta, no prólogo, daquela que
mente quando cita a célebre foi a sua preocupação em fixar e normalizar o castelhano como língua franca
conferência de Ernest Renan
intitulada «Qu'est-ce qu ' une
(e factor de unidade) da «grande nação espanhola» (repare-se como se está
Nation~ » e proferida na perante uma situação em que a língua determina a nação ao mesmo tempo
Universidade de Paris em
1882).
que a nação- ou seja, o seu mais alto representante: a Rainha-determina
a língua- leia-se: encomenda a gramática). Mas Nebrija faz mais: ao afirmar
que «siempre la lengua fue compafiera del imperio» está a enveredar por um
tipo de raciocínio argumentativo que apresenta a língua não apenas como
factor determinante da unidade nacional, mas também como traço de união,
progresso e desenvolvimento da Nação, do Estado e do Império.

O mesmo raciocínio haveria de ser repetido e explicado com uma frequên-


cia digna de nota por diversos gramáticos, nomeadamente pelos portugueses
João de Barros (1496-1570) e Fernão de Oliveira (1507-1581). Este último
é particularmente explícito quando afirma na primeira gramática da língua
portuguesa publicada em 1536 (Oliveira 1975: 42):

O estado da fortuna pode conceder ou tirar favor aos estudos liberais e


2 Este tipo de argumento, que esses estudos fazem mais durar a glória da terra em que florescem. Porque
se pode considerar político e
nacionalista avant la lettre, Grécia e Roma só por isto ainda vivem, porque quando senhoreavam o
não surge nas primeiras Mundo mandaram a todas as gentes a eles sujeitas aprender suas línguas e
gramáticas alemãs que são
significativamente escritas em
em elas escreviam muitas boas doutrinas, e não somente o que entendiam
latim (cf. Stedje 1996: 127). escreviam nelas, mas também trasladavam para elas todo o bom que liam
Desde o século XVI até ao em outras. E desta feição nos obrigaram a que ainda agora trabalhemos em
século XVIII a grande preo-
cupação dos gramáticos aprender e apurar o seu, esquecendo-nos do nosso. Não façamos assim,
alemães e os grandes temas mas tomemos sobre nós agora que é tempo e somos senhores, porque
das reflexões que tinham por
objecto a língua alemã eram
melhor é que ensinemos a Guiné que sejamos ensinados de Roma ( ... ). 2
invariavelmente a defesa
dessa mesma língua, da sua Este argumento, de resto, sobreviveu até aos dias de hoje, encontrando porven-
pureza, beleza e correcção
(cf. Wolff 1994: 131 e 142 e
tura uma das suas formas mais apuradas no conhecido aforismo de Bernardo
segs.). Soares, o semi-heterónimo pessoano: «minha pátria é a língua portuguesa».

114
Sublinhe-se, no entanto, que se trata de uma lógica argumentativa de índole
profundamente renascentista que se vai consolidando ao longo do tempo e
simultaneamente transformando o mapa político da Europa. Em 1601, por
exemplo, quando Henrique IV de França se vê obrigado a explicar aos
habitantes da cidade de Buguey a sua integração na coroa francesa, é deste
modo que defende o seu ponto de vista (o episódio é relatado por Coulmas
1985: 48 e Ortega y Gasset 1985: 85):

Il était «raisonnable» que, «puisque» vous parlez naturellement !e français,


vous fussiez sujets au roi de France. Je veux bien que la langue espagnole
demeure a I'Espagne, l' allemande a l' Allemagne, mais la française doit
estre à moi.

A língua transforma-se pois num meio para atingir um objectivo político:


o da unidade da nação consubstanciada no poder político de um Estado. De
facto, como refere Peter Alter (1985 : 65),

Die Sprache ist das auBere, sichtbare Zeichen all jener Merkmale, die eine
Nation von der anderen unterscheiden. Sie ist der wichtigste Prüfstein, der
das Vorhandensein einer Nation beweist und das Anrecht auf den eigenen
Staat begründet.

Ora o que aqui interessa justamente salientar é o processo de ideologização


a que o conceito de nação estava a ser submetido: no início é o elemento «lín-
gua» que se utiliza para sublinhar o que há de comum nos indivíduos que
fazem parte de uma nação; posteriormente é ainda ao argumento «língua»
que se recorre no sentido de justificar o direito à edificação de um Estado
moderno; e, finalmente, considera-se que a «língua» é o factor que proporciona
a unidade necessária ao desenvolvimento e prosperidade futura de um Império.

É, pois, através da língua que a nação se constitui como Estado e é ainda


pela língua que o Estado, transformado em Império, assegura a sua unidade
fundamental.

O mesmo sucede no que diz respeito à História, ou seja, em relação ao uso


que se faz do argumento que funda a nação na partilha da memória de um
passado comum. Especialmente na segunda fase dos nacionalismos europeus
- a partir de finais do século XVIII- a reconstrução de um passado glorioso
comum é uma das marcas ineludíveis do processo de ideologização a que o
conceito de «nação» estava a ser progressivamente submetido. Como refere
Coulmas (1985: 46)

Eine Vergangenheit wird ( ... ) partiell rekonstruiert, um die Gegenwart ais


rationale Fortsetzung erscheinen zu lassen und einer Nation die Rolle des
bewuBt handelnden Subjekts der Geschichte zu geben. Die in der Vergan-
genheit begründete Authentizitat wird von nationalistischen Bewegungen
betont, um das Ziel der Einigkeit und Unabhangigkeit zu legitimieren .

115
Esta reconstrução do passado histórico com o objectivo de glorificar a nação
e legitimar o presente é particularmente evidente na mitificação dos ditos
«heróis fundadores» das nações europeias, na sua maioria chefes tribais que
resistiram ao poderio de Roma, como é o caso de Hermano ou Armínio (o
príncipe dos Queruscos) para a Alemanha, Vercingetorix (o chefe gaulês)
para a França, ou Viriato para os países ibéricos (cf. Schulze 1995: 108 e
segs.).

Alicerçado nos argumentos «naturais» da partilha de uma língua e de um


passado histórico comuns, o nacionalismo transforma-se assim numa ideo-
logia política avant la lettre, numa verdadeira religião , especialmente
durante o século XIX, época em que, na fórmula do historiador alemão
Thomas Nipperdey, o religioso é secularizado e o nacional sacralizado
(cf. Alter 1985: 15).

Do ponto de vista político deverá entretanto sublinhar-se que, na sequên-


cia da Revolução Francesa, por um lado, e da discussão em torno dos
argumentos «naturais» da partilha de uma língua e de um passado histó-
rico comuns, por outro, o nacionalismo apresenta duas características
que, sendo constitutivas do conceito, são simultaneamente responsáveis
pela sua flexibilidade e longevidade, isto é, pelo seu sucesso em termos
mundiais .

No que diz respeito à sua flexibilidade refira-se, em primeiro lugar, que o


nacionalismo é intrinsecamente paradoxal (tal como, de resto, a própria
lógica da identidade em que se baseia): por um lado implica a uniformiza-
ção da nação através da língua e da história (e isso é particularmente óbvio
no caso da Alemanha, que adiante analisaremos em pormenor); mas, por
outro lado, os nacionalismos europeus são também, na sua essência e ori-
gem, movimentos emancipatórios e anti-discriminatórios, ou seja, ver-
dadeiras apologias do direito à diferença e auto-determinação dos povos
(cf. Coulmas 1985: 43 e 58).

Em segundo lugar, e no que respeita à longevidade do conceito, deve


salientar-se que o nacionalismo se constitui como uma espécie de «grau
zero» de todas as outras ideologias (e utopias) políticas que, por seu
turno, se apresentam como propostas de futuros caminhos para uma socie-
dade que se encontra já fundamentalmente unida ao nível da língua e da
história.

Inaugurando um espaço sobre o qual as outras ideologias políticas assen-


tam, do qual dependem e onde encontram o ambiente próprio para se desen-
volverem, o nacionalismo surge assim como um princípio consensualmente
universal, como o factor que «naturalmente» empresta unidade e coesão a
qualquer sociedade.

116
1.1.3 Um conceito europeu

O nacionalismo é, como se verifica, um conceito flexível. E é precisamente


essa sua flexibilidade que lhe assegura longevidade e operacionalidade em
termos universais.

Se numa primeira fase o conceito de identidade nacional se jogou essencial-


mente no âmbito de argumentos que tinham a ver com a língua, numa se-
gunda fase será o elemento histórico que conhecerá algum destaque e, mais
tarde, o elemento étnico que, consagrado na noção de raça oriunda das teorias
evolucionistas, justificará muitas das acções dos Estados e das Nações
europeias, dentro e fora da Europa.

Em todo o caso, o que interessa aqui sublinhar é que, qualquer que seja
o entendimento do que é uma nação, quer dizer, acentue-se a unidade nacio-
nal a partir de argumentos religiosos, étnicos, linguísticos ou históricos, o
conceito de nação é um conceito essencialmente europeu.

Como refere Ortega y Gasset, toda a consciência de nacionalidade «( .. .)


supone otras nacionalidades en torno, que se han ido formando a la par que
la propria y con las que convive enforma de permanente comparación»
(Ortega y Gasset 1985: 75), e esse estado de «permanente comparação» é
particularmente favorecido na Europa, um espaço comum de convívio pro-
fundamente marcado pelas diversidades linguísticas, históricas, religiosas e
étnicas.

Nado e criado na Europa, com a expansão europeia (que ocorre a partir de


finais do século XV e mais sistematicamente durante todo o século XVIII) o
nacionalismo haveria, porém, de constituir um caso de sucesso, também em
termos universais. Com efeito, «der Nationalismus breitete sich mit der
Expansion der modernen Zivilisation über die ganze Welt aus» (Eisenstadt
1991: 33), constituindo um modo caracteristicamente europeu de encarar a
organização da sociedade. A essa expansão não é alheia a flexibilidade
operacional do conceito de «nação», que permite a sua adaptação a qualquer
tipo de sociedade (mesmo àquelas cujo sistema e lógica organizacional
originais pouco tinham a ver com os argumentos fundadores das nações
europeias).

Assim, o mundo que conhecemos hoje é histórica e politicamente moldado


e determinado por este conceito de nação oriundo do espaço europeu. Neste
contexto não surpreende, pois, que a instituição onde se reúnem os
representantes dos Estados da maior parte dos países do mundo se chame
precisamente «Organização das Nações Unidas».

117
1.2 As nações alemãs

1.2.1 Estados e territórios

No âmbito dos movimentos nacionalistas europeus, da sua história e desen-


volvimento até aos dias de hoje, a Alemanha constitui indubitavelmente um
caso sui generis.

Na segunda metade do século XVIII, o território a que nos habituámos a


chamar «Alemanha» é, em traços muito largos, um espaço definido e marcado
pela existência de duas forças que actuam simultaneamente, mas em sentidos
opostos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma força que actua no sentido da
dispersão política do território alemão; e trata-se, em segundo lugar de uma
força que actua no sentido da união cultural e linguística daquele mesmo espaço.

O vigor da força que actua no sentido da dispersão política do território


manifesta-se claramente no mapa da Alemanha de meados do século XVIII
que a seguir se reproduz (Boockmann/Schilling 1990: 265):

Deutschland 1763

Reichsgrenze

Kgl.preuJlische Lãnder

Habsburgiscbe Lãnder

118
Trata-se de um espaço territorial atomizado, medievalmente dividido em
Estados de dimensão muito desigual (muitas vezes são apenas pequenos
Estados-Cidade), de entre os quais se destaca uma Prússia que não esconde
o seu desejo de hegemonia. São mais de 360 os Estados autónomos que se
encontram, na época, formalmente agregados em torno do Sacro Império
Romano-Germânico (cf. Scheidl 1993: 7).

O lado caricatural desta atomização do espaço em que a língua alemã é, por


assim dizer, considerada língua franca fica bem patente em diversos passos
da comédiaLeonce und Lena, de Georg Büchner ( 1813-1837), nomeadamente
num (2.º Acto, Cena 1) em que Valerio, uma das personagens, se queixa ao
Príncipe Leonce do cansaço resultante de uma longa caminhada de apenas
meio dia em que ambos teriam atravessado nada mais nada menos do que
uma dúzia de Principados, meia dúzia de Grão-Ducados e um par de Reinos
(Büchner 1976: 97-98):

( ...) Wir sind schon durch ein Dutzend Fürstenthümer, durch ein halbes
Dutzend GroBherzogthümer und durch ein paar Kõnigreiche gelaufen und
das in der grõBten Uebereilung in einem halben Tag ( ...).

Por muito grotesco que este estado de atomização política possa parecer, a
verdade é que se trata de uma situação que perdurou até à ocupação napo-
leónica e que, por conseguinte, haveria de marcar profundamente a ideia de
«nação alemã», acentuando a vertente regionalista da mesma. Aliás, importa
referir que só depois de 1500 - e na sequência da descoberta em 1455 do
texto de Tácito sobre a Alemanha (Germania), que naturalmente constitui
um elemento decisivo para a legitimação histórica da fundamental unidade
alemã- é que, em vez de «deutschen Landen» («países alemães»), se passa
a designar o espaço alemão por «Deutschland» (cf. Schulze 1995: 142).

Porém, a par desta atomização hierárquica e territorial, assiste-se a uma


força e uma vontade tendencialmente unificadoras desse mesmo espaço
alemão. Apoiadas historicamente pelo uso de uma mesma língua e pelo
mito de uma unidade política outrora existente, essas tendências unifi-
cadoras têm origem e encontram igualmente um eco significativo na soli-
dariedade crescente demonstrada por uma classe, também ela socialmente
a crescer, que é frequentemente designada de «burguesia esclarecida»
(Bildungsbürgertum).

Acrescente-se, no entanto, que esta burguesia esclarecida e nacionalista é


simultaneamente cosmopolita e está especialmente atenta ao que se passa na
Europa, nomeadamente à França pós-revolucionária, assistindo interessada
ao desenrolar dos acontecimentos franceses numa primeira fase, e desiludida
(leia-se também traída) numa segunda fase, por força das invasões napo-
leónicas que não pouparam o espaço territorial alemão.

119
Finalmente, resta sublinhar, como o faz Madame de Stael (Anne-Louise-
-Germaine Necker de Stael, 1766-1817) numa obra publicada em 181 O e
que se haveria de revelar importante na discussão pública da identidade alemã
e extraordinariamente influente na projecção europeia da Alemanha - De
l 'Allemagne - , que «L' Allemagne, par sa situation géographique, peut être
considérée comme le coeur d'Europe» (Stael 1968: I, 41).

Resumindo, dir-se-ia pois que a Alemanha de finais do século XVIII se


confronta problematicamente consigo mesma no centro do espaço político
europeu, enquanto território mal definido e carente de um poder centrali-
zado e forte, rodeado por potências altamente hierarquizadas como a Rús-
sia, a Inglaterra e a França.

Os testemunhos desse complexo e problemático confronto abundam na


literatura de língua alemã da época:

ln seinem Aufsatz «Über teutschen Patriotismus» (1793) fragte Wieland


in bezug auf die Deutschen: «Wer sind sie? Wer zeigt, wer nennt sie uns?»
Er kann sich nicht entsinnen, so hie/3 es weiter, «das wort Teutsch oder
Deutsch ( ... ) jemals ehrenhalber nennen gehort zu haben». Vier Jahre spater
stellen Goethe und Schiller in ihrem Xenienalmanach auf das Jahr 1797
ahnliche Fragen: «Deutschland? Aber wo liegt es? Ich wei/3 das Land nicht
zu finden. Wo das gelehrte beginnt, hort das politische auf» . (Johnston
1990: 11)

Na verdade, e a julgar pelo que acima fica dito, dir-se-ia que a Alemanha
não existia nem nunca existiu (cf. Barrento 1989: I, 27 e segs. ). No entanto,
os passos acima citados de Wieland, Goethe e Schiller deverão ser objecto
de uma reflexão mais atenta.

Por muito consensual que fosse na Europa da época o conceito de «nação» a


verdade é que importa não esquecer que o século XVIII é o século da crítica.
Também da crítica ao nacionalismo. Tanto mais no caso da Alemanha, um
espaço profunda e tradicionalmente marcado pela divisão política, territorial
e confessional.

Neste contexto não surpreende, pois, que as críticas mais radicais ao


nacionalismo sejam justamente provenientes do espaço de língua alemã.
É, por exemplo, o que sucede numa obra que teve a sua primeira edição em
1758 - Vom Nationalstolz- (que conheceu um sucesso editorial invulgar
e foi objecto de inúmeras polémicas), onde o médico e escritor suíço Johann
Georg Zimmermann ( 1728-1795) afirma lapidar: «Die Liebe des Vaterlands
ist freilich in vielen Fallen nicht mehr als die Liebe eines Esels für seinen
Stall» (Zimmermann 1980: 80).

Sublinhe-se no entanto que a crítica subjacente aos excertos acima transcri-


tos de Wieland, Goethe e Schiller não é tão fundamentalista nem tão radical

120
como à primeira vista se poderia supor, quer dizer, não se refere ao conceito
de «nacionalismo» em abstracto, mas sim à aplicabilidade e à utilidade do
conceito de «nação» no caso específico da Alemanha. De facto, o termo
«nacionalismo» tem, no contexto alemão da época, um sentido frequen-
temente pejorativo, semelhante ao que hoje tem a palavra «chauvinismo»
(cf. Dann 1991 : 57), por oposição a «patriotismo» ou «amor pela pátria».
Estes últimos sentimentos e valores, de pendor claramente positivo e morali-
zante, eram aqueles que o burguês nutria pela região de onde era oriundo,
pelo seu Estado e pelo seu soberano. Para a Alemanha da época a pátria
(Vaterland) era portanto bem diferente da nação (Nation):

Mit « Vaterland» war dabei zunachst noch nicht die Summe der einzelnen
deutschen Territorien, sondem haufig nur einer der jeweiligen Kleinstaaten
gemeint. (Giesen/Junge 1991: 273)

Neste patriotismo de carácter local estão as raízes do tradicional regiona-


lismo alemão, que se prolonga, de resto, até aos dias de hoje 3 • 3 De facto, e por motivos que

obviamente têm também a ver


co m os aco ntec ime ntos da
À impossibilidade, e em grande parte também à indesejabilidade, de uma hi stória e uropeia deste séc ulo
união política contrapunha-se, no entanto, uma fundamental unidade cultu- (nomeadamente as duas
Guerras Mundiais) , ainda
ral da Alemanha, como Schiller e Goethe observam no passo atrás transcrito hoje , na Ale manha, o indi-
das suas Xénias. A nação alemã haveria pois de ser construída com base víduo se tende a identificar
mais com o Estado (Land) ou
nessa comunidade de cultura.
a região onde nasce u do que
com a comp lexa e probl e-
mática cidadania alemã. Sobre
as difi culdades inerentes a este
«ser-se alemão» vej am-se por
exe mplo as antologia s de
1.2.2 Sprachnation/Kultumation: A comunidade da língua e da cultura Nünning/Nünning (1994) e
Longerich (1990).

De um ponto de vista cultural não deixa de ser interessante notar que, tendo
tido a Alemanha a importância que teve na Reforma através da figura de
Lutero4, acabou por inesperadamente adiar o seu «despertar cultural» 4 O caso de Lutero é, neste
contexto, especialmente inte-
precisamente até ao século XVIII. ressante uma vez que acaba
por se tornar paradigmático
Ora uma burguesia activa, erudita e culturalmente empenhada como era a da complexa e contraditória
identidad e nacional alemã.
alemã, não poderia deixar de ver este atraso como consequência directa e É que Lutero, com a sua tra-
exemplarmente negativa da atomizada e feudal estrutura política do território. dução da Bíblia, é simultanea-
mente responsável pela fixa-
Na realidade, e tal como Madame de Stael escreve na obra a que já acima se ção e uniformi zação da língua
fez referência (Stael 1968: I, 55): alemã e pela introdu ção de
novas fissuras confessionais
que resultam, em termos polí-
L' Allemagne était une fédération aristocratique: cet empire n' avait point tico s, numa maior e mai s
un centre commun de lumieres et d'esprit public ; il ne formait pas une acentuada di visão dos terri-
nation compacte, et le lien manquait un faisceau . tórios alemães.

Esse elo de união encontrá-lo-ia a Alemanha, em termos sociais, na bur-


guesia e, em termos culturais, exactamente na língua que es1;a burguesia
falava e muito em particular na literatura que essa mesma burguesia pro-

121
duzia e consumia nas diversas «sociedades de leitura» (Lesegesellschaften),
que se multiplicam a uma velocidade vertiginosa durante o século XVIII
(cf. Dülmen 1986: 82 e segs.; 150 e segs.), facto, aliás, que ilustra bem o
vigor e o poder de uma classe que, do ponto de vista sociológico, apresenta
um grau de coesão assinalável e se vai progressivamente impondo na
sociedade em virtude da sua formação universitária especializada (cf. Schulze
1995: 145 e segs.).

As pátrias alemãs dão assim lugar à nação alemã. Não se trata porém, ainda,
de uma «nação alemã» unida em torno de um mesmo Estado, mas sim de
uma «nação alemã» reunida em torno de uma mesma língua e cultura
(Kulturnation ).

É a este respeito exemplar um poema - «Des Deutschen Vaterland» - que


Ernst Moritz Arndt (1769-1860), escreve no ano de 1813. Depois de se
revelarem infrutíferas as tentativas de definir política e territorialmente a
Alemanha, o autor conclui (apud Ulmer 1990: 23):

Was ist des Deutschen Vaterland?


So nenne mir das groBe Land!
So weit die Deutsche Zunge klingt
Und Gott im Himmel Lieder singt,
Das soll es sein !

O espaço alemão toma uma forma diferente: as fronteiras políticas e geográ-


ficas diluem-se para darem lugar às fronteiras linguísticas, históricas e cul-
turais, facto extraordinariamente importante, que justifica muitas das futu-
ras iniciativas e incursões alemãs no espaço europeu.

Convirá no entanto sublinhar que, tal como sucedera na primeira fase dos
nacionalismos europeus, os argumentos da partilha de uma mesma língua e
de um mesmo percurso histórico só com muita dificuldade se aplicam ao
caso alemão.

No que diz respeito à história, se é certo que os territórios de expressão


alemã partilham um passado histórico comum, deve acrescentar-se que se
5 Refira-se aliás que o termo
«alemão» (deutsch) terá sur- trata de um passado repleto de conflitos, guerras internas e dissensões das
gido na Baviera por volta do mais diversas (por motivos confessionais, pela política de alianças com as
século VIII e significava «lín-
gua popular» (Volkssprache).
potências europeias, etc.).
Porém, esta língua falada pelo
povo não era de forma No que diz respeito ao argumento da partilha de uma mesma língua, a ver-
nenhuma uma língua uni-
forme e homogénea, «sondem
dade é que uma observação mais atenta da Alemanha da época não pode
eine Vielfalt von germanischen deixar de constatar uma realidade bem diferente: de facto, o espaço alemão
Stammesdialekten, die sich
vom gelehrten Latein der
é um espaço onde não só se falam inúmeros dialectos regionais - muitos
Kirche wie von den dos quais sobrevivem ainda hoje como sejam o Frísio (Friesisch), o baixo-
romanischen und slawischen
SprachenEuropas unterschieden»
-alemão (Plattdeutsch), o Suabo (Schwii.bisch) ou o Bávaro (Bayerisch) 5
(Schulze 1995 : 115). - , como também é um espaço profundamente marcado por divisões de

122
cariz sócio-linguístico (as classes mais altas usam entre si o francês como
língua franca e de cultura). A atestar - de uma forma evidentemente cari-
catural - este plurilinguismo da nobreza alemã está a conhecida anedota
sobre Frederico II da Prússia ( 1712-1786), de quem se dizia que falava
espanhol com Deus, francês em sociedade, italiano na intimidade e alemão
com cavalos e soldados.

1.3 A nação alemã

Os mitos, como se sabe, criam realidades a partir do nada. Reorganizam o


diverso, o disperso ou o disforme, emprestam-lhes unidade e, desse modo,
sentido e forma. Os argumentos míticos de uma sociedade unida pela parti-
lha de uma língua e de uma memória histórica comuns, por muito inade-
quados que a posteriori possam parecer, não constituem a este título excepção.

Tal como acontecera com a primeira vaga de nacionalismos europeus e tal


como acontecia na França pós-revolucionária - onde a um inventário
exaustivo dos dialectos falados nas províncias rapidamente se sucedeu a
proibição dos mesmos, conseguindo-se assim por decreto a uniformização
da língua francesa (cf. Coulmas 1985: 30) - a construção da nação alemã
iria pois percorrer os caminhos já conhecidos, nomeadamente utilizando os
argumentos que apontavam para a «natural» unidade de uma sociedade que
partilha a mesma língua e cultura, e se revê num passado histórico comum.

No entanto, por força da especificidade do caso alemão, sob a influência do


pensamento do século XVIII e face aos desenvolvimentos da história euro-
peia mais recente (revolução e invasões francesas), esses argumentos have-
riam de ser agora revistos a uma outra luz, pensados a partir de uma outra
perspectiva.

1.3.1 Língua, cultura e sociedade

À semelhança do que sucedera no Renascimento, durante a primeira fase


dos nacionalismos europeus, a questão da língua (e mais genericamente da
linguagem) é também uma questão central para o pensamento do século
XVIII. Mas, diferentemente do que sucedera naquela época, a mesma questão
já não se equaciona agora em função do binómio latim/línguas vulgares. Ao
século XVIII interessa menos a discussão sobre a «pureza» das línguas, sobre
o maior ou menor afastamento das línguas vulgares em relação ao latim
- que entretanto caía progressivamente em desuso nas universidades-, do

123
que a investigação sobre a diversidade das línguas e a origem da linguagem,
estes sim, os verdadeiros centros das atenções setecentistas.

Correndo embora o risco de uma generalização e de uma simplificação


excessivas, poder-se-ia contudo afirmar que o debate em torno da origem da
linguagem oscilava entre aqueles que defendiam a origem divina daquela
faculdade humana e aqueles que se inclinavam para a origem humana da
mesma. No que diz respeito à diversidade das línguas, as explicações que
ocorriam e as hipóteses que se colocavam eram de índole muito variada,
valendo a pena destacar de entre elas (porventura por ser uma das mais
divulgadas desde a Antiguidade Clássica) a tese que explicava essa diver-
sidade em função de factores climatéricos. A língua falada numa região
seria directamente influenciada pelo clima dessa mesma região, de modo
que a diferenças climáticas corresponderiam necessariamente, também, entre
outras, diferenças linguísticas.

Na sequência de Montesquieu (que é um dos grandes divulgadores destas


teorias na Europa do século XVIII), Rousseau pode ser tomado aqui como
exemplo daqueles que à época defendiam esta última posição. Já em 1755,
no seu Discours sur l'origine et les Fondements de l'Inégalité parmi les
Hommes, este autor chamava a atenção para a importância e influência que
o clima teria no desenvolvimento diverso da espécie humana (cf. Rousseau
1984: 116 e segs., 158 e 324) e no Essai sur ['origine des Langues, escrito
entre 1753 e 1761 e que conheceu a primeira edição, póstuma, em 1781,
retoma e desenvolve a mesma tese aplicando-a agora à origem e diversidade
das línguas (cf. Rousseau 1990: 89 e segs.).Assim, no Norte, onde a natureza
é ávara e as necessidades se sobrepõem às paixões, a primeira palavra a ser
pronunciada por boca humana teria sido «aide,z-moi», enquanto que no Sul,
onde a natureza é pródiga e as paixões dominam, essa primeira palavra teria
6 Esta antinomia Norte-Sul sido «aimez-moi»6 .
constitui aliás a base de uma
tipologia nacional que se
generaliza por toda a Europa
É justamente neste quadro de ideias e neste contexto de mentalidades (que
a partir do século XVIII e que aqui ficam traçados de uma forma necessariamente muito breve) que surge
tem um papel de relevo na
em 1772 o Ensaio sobre a Origem da Linguagem, de Herder. Trata-se de um
produção literária, nomea-
damente na literatura de ensaio que no ano anterior havia sido premiado pela Academia das Ciências
viagens.
de Berlim e que procurava responder à questão posta a concurso em 1769
pela mesma Academia sobre as «possibilidades» e os «meios da invenção
humana da linguagem».

A frase que abre o Ensaio de Herder constitui sem dúvida uma resposta revo-
lucionária e, de algum modo também, provocatória às questões colocadas,
ao mesmo tempo que assinala um ponto importante de viragem no que diz
respeito à reflexão sobre a linguagem que se vinha fazendo na época: « Schon
als Tier hat der Mensch Sprache» (Herder 1966: 5). Se a linguagem era, na
perspectiva de Herder, uma faculdade humana, uma capacidade anterior e,

124
fundamentalmente, interior à própria espécie humana, então (e ao contrário
do que sucedia por exemplo com Rousseau), a diversidade das línguas não
poderia ser explicada por factores externos, climatéricos ou outros, mas sim
apenas por factores internos (Herder 1966: 108-109, sublinhados no original):

Er [der Mensch] ist kein Rousseauscher Waldmann: er hat Sprache. Er ist


kein Hobbesischer Wolf: er hat eine Familiensprache. Er ist aber auch in
andem Verhaltnissen kein unzeitiges Lamm. Er kann sich also entgegen-
gesetzte Natur, Gewohnheit und Sprache bilden - kurz: Der Grund von
dieser Verschiedenheit so naher kleiner Volker in Sprache, Denk- und
Lebensart ist - gegenseitiger Familien- und Nationalhaj] .

A língua é pois entendida como um código, fechado aos inimigos e aberto


aos indivíduos solidários, a mais humana e por isso a principal das fronteiras
entre os homens que, além do mais, eles próprios criaram.

,. A esta visão fragmentária da realidade linguística e humana, Herder contra-


punha no entanto uma ordem e uma unidade que poderiam ser igualmente
observáveis:

So wie nach aller Wahrscheinlichkeit das menschliche Geschlecht ein


progressives Ganzes von einem Ursprunge in einer groBen Haushaltung
ausmacht, so auch alie Sprachen, und mit ihnen die ganze Kette der Bildung.
(Herder 1966: 104, sublinhados no original)

Em termos muito gerais dir-se-ia pois que as línguas se tinham progressiva-


mente modificado e afastado dessa origem comum, modificação e afasta-
mento esses a que não é alheia a vontade dos próprios indivíduos que for-
mam e fazem parte da comunidade. Deste modo se verificava ainda o
carácter «interior» da língua, isto é, o papel determinante que o indivíduo
tem na formação e transformação de uma língua, ao mesmo tempo que se
sublinha a estreita relação existente entre língua e cultura, ou seja, confir-
mava-se por último o papel determinante que a língua tem na formação e 7 Profundamente influenciado
transformação do indivíduo, na medida em que esta lhe fornece desde o por Herder, Humboldt escre-
veria mais tarde que não é
início o quadro lógico-mental e as próprias palavras com que expressa os possível pensar um sem o
seus pensamentos. Dito de outro modo: tanto é o homem que cria a língua outro: «Die Geisteseigen-
thümlichkeit und die Sprach-
como é a língua que cria o homem7 . gestaltung eines Volkes stehen
in solcher lnnigkeit der Ver-
Esta complexa e rica relação entre indivíduo, social, língua e cultura, é a schmelzung in einander, dass,
wenn die eine gegeben ware,
base da filosofia de Herder, e sem ela dificilmente se poderia compreender o die andre müsste vollstandig
seu pensamento político: aus ihr abgeleitet werden
konnen. ( ... ) Die Sprache ist
gleichsam die ausserliche
Herder's central política! idea lies in the assertations that the proper
Erscheinung des Geistes der
foundation of a sense of collective political identity is not the acceptance Volker; ihre Sprache ist ihr
of a common sovereign power, but the sharing of a common culture. For Geist und ihr Geist ihre
Sprache, man kann sich beide
the former is imposed from outside, whilst the latter is the expression of nie identisch genug denken»
an inner consciousness. (Barnard 1969: 7) (Humboldt 1988: 414-415).

125
A comunidade não se funda portanto com base num «contrato negociado»
(como Rousseau sustentava no seu Contrato Social), tem a sua origem, isso
sim, numa vontade, num desejo natural expresso por uma comunidade de
indivíduos, talvez melhor, por cada um deles, que partilham historicamente
uma mesma língua e cultura.

l.3.2 História e Política

Na Alemanha de finais do século XVIII e inícios do século XIX a reflexão


sobre a lingua(gem) não é - nem pode ser considerada - uma reflexão
puramente académica, isto é, desinteressada do ponto de vista político. Na
realidade, trata-se quase sempre de uma reflexão que se inscreve sobre um
pano de fundo dominado por preocupações políticas e nacionalistas.

Essas preocupações tornam-se porventura mais claras ainda no caso de


Wilhelm von Humboldt, seja pela sua participação activa na vida política
alemã, seja pela sua proximidade em relação ao poder político prussiano
(cf. supra o Cap. II.2, « Bildung e Erfahrung »).

É assim que em 1813, no ano em que as tropas francesas abandonam derro-


tadas o território alemão, se vêem de novo transportar para o campo político
os argumentos que apontavam para a «natural» unidade política de um povo
que partilha a mesma língua e cultura, e se revê num passado histórico comum.
Numa longa carta sobre a futura constituição alemã enviada ao seu amigo e
ex-ministro prussiano Freiherr von Stein (1757-1831) Humboldt escreve
(1982: 304):

(... ) das Gefühl, dass Deutschland ein Ganzes ausmacht, [lasst sich] aus
keiner deutschen Brust vertilgen, und es beruht nicht bloss auf Gemein-
samkeit der Sitten, Sprache und Literatur (.. .), sondem auf der Erinnerung 1
an gemeinsam genossene Rechte und Freiheiten, gemeinsam erkampften
Ruhm und bestandene Gefahren, auf dem Andenken einer engeren Ver- )
bindung, welche die Vater verknüpfte, und die nur noch in der Sehnsucht
der Enkel lebt. (... ) Die Frage kann also nur die sein: wie soll man wieder
aus Deutschland ein Ganzes machen?

Sublinhe-se que os argumentos relacionados com a comunidade de costu-


mes, língua e literatura se consideram já um dado adquirido e, por isso mesmo,
incontestável. Interessante é agora o modo como se reforça o argumento
relacionado com a partilha de um passado histórico: Humboldt não só glorifica
a memória de um passado comum, como também transforma uma história
nacional numa história familiar, feita de pais e netos, procurando assim dar
mais coesão à imagem de um todo social indissoluvelmente unido por laços
familiares.

126
... Face à sua constante preocupação com a questão dos direitos e das liber-
dades individuais, à ideia de que o futuro deve ser a sequência lógica de um
presente reformador mas não necessariamente revolucionário em relação ao
passado histórico e a partir da constatação dos erros e virtudes dos vários
regimes e sistemas políticos entretanto experimentados (nomeadamente o
francês, o italiano e o norte-americano), Humboldt acaba por concluir na
mesma carta: «Die Richtung Deutschlands ist ein Staatenverein zu sein ( ...)»
(Humboldt 1982: 308).

A unidade da Alemanha seria indelevelmente marcada pelo Estado e fun-


dar-se-ia sempre ao nível da língua, da cultura, dos costumes, enfim, de uma
memória histórica compartilhada desde há séculos, muito embora o mesmo
autor admitisse que noutras condições histórico-culturais seria eventualmente
de preferir uma constituição unitária e um poder estatal centralizado e forte.

1.3.3 Pedagogia política

Bem mais radical é a perspectiva proporcionada por J ohann Gottlieb Fichte


(1762-1814), professor da Universidade de Berlim, quando no Inverno de
180711808 profere naquela cidade uma série de catorze conferências que
intitula Reden an die Deutsche Nation. Nessas conferências toma-se perfei-
tamente claro o modo como a reflexão académica que se ocupa da lingua-
gem rapidamente se pode transformar num meio para atingir um objectivo
político.

Estes discursos têm lugar porventura num dos piores momentos da história
alemã: com a Prússia aniquilada militarmente desde a Paz de Tilsit (Julho de
1807) e Berlim ocupada pelas tropas francesas, dir-se-ia que a Alemanha
tinha deixado de existir. É neste contexto que, falando exclusivamente de
alemães e a alemães (Fichte 1978: 13), Fichte se propõe, em primeiro lugar,
indagar da possibilidade de uma nova época (leia-se de um futuro que traga
à Alemanha a autonomia e a independência perdidas) e, em segundo lugar,
admitindo e desejando essa possibilidade, indicar os melhores caminhos que
levem à construção desse futuro autónomo.

Logo no primeiro discurso se tornam claras quais as soluções preconizadas


para os problemas que a «nação alemã» enfrenta -

( ... ) eine giinzliche Veriinderung des bisherigen Erziehungswesens ist es,


was ich, ais das einzige Mittel die deutsche Nation im Dasein zu erhalten,
in Vorschlag bringe (Fichte 1978: 21)

- e quais os objectivos gerais das conferências: «Wir wollen durch die neue
Erziehung die Deutschen zu einer Gesamtheit bilden» (Fichte 1978: 23).

127
Ao longo dos catorze discursos é pois à construção de uma identidade nacio-
nal alemã que se assiste, neles se sublinham caricaturalmente as semelhan-
ças internas e as diferenças externas em relação a outros povos e nações, redi-
mensiona-se e, em alguns passos, profetiza-se umaAlemanha unida do futuro.

O quarto desses discursos tem o significativo título de «Hauptverschieden-


heit zwischen den Deutschen und den übrigen Võlkern germanischer
Abkunft» e merece uma análise mais detalhada. Inaugurando uma série de
outros dois que podem ser considerados o núcleo argumentativo central das
conferências, neles pretende responder-se à pergunta que o título acima
deixava já adivinhar: «was ist der Deutsche, im Gegensatze mit andem
Võlkern germanischer Abkunft?» (Fichte 1978: 124).

E a resposta encontrada por Fichte é simples: as diferenças entre os alemães


e os outros povos de origem germânica residem na tribo ou na etnia a que
pertencem, na língua que falam, no território que ocupam e na memória de
um passado histórico comum que partilham. Os alemães teriam permanecido
nas terras inicialmente povoadas pela tribo original (Stammvolk) e preser-
vavam assim a língua e a memória de um passado comum, por oposição aos
outros povos que, tendo-se deslocado para outros territórios e povoado novas
terras, necessariamente se desviaram também das suas origens germânicas.

Para além da ideia de «germanidade» (Deutschheit) que aqui se veicula, o


que na realidade interessa reter é que deste desvio primordial resultam, por
exemplo, consequências políticas extraordinariamente importantes (Fichte
1978: 60):

Der zu allererst, und unmittelbar der Betrachtung sich darbietende Unter-


schied zwischen den Schicksalen der Deutschen und der übrigen aus
derselben Wurzel erzeugte Stamme ist der, da!3 die ersten in den ursprüngli-
chen Wohnsitzen des Stammvolks blieben, die letzten eine fremde Sprache
annahmen, und dieselbe allmahlich nach ihrer Weise umgestalten. Aus
dieser frühesten Verschiedenheit müssen erst die spater erfolgten, z.B. da!3
im ursprünglichen Vaterlande, angemessen germanischer Ursitte, ein
Staatenbund unter einem beschrankten Oberhaupte blieb, in den fremden
Landern mehr auf bisherige rõmische Weise, die Verfassung in Monar-
chien überging, u. dgl. erklart werden, keineswegs aber in umgekehrter
Ordnung.

Ora esta diferença nos sistemas políticos é provocada quase exclusivamente


pelo desvio linguístico - a língua parece surgir aqui como argumento central
- , uma vez que Fichte entende que a mudança de território não pode, só por
si, modificar um povo que continue a usar a língua original.

Numa primeira análise notar-se-á no conceito de língua que aqui transpa-


rece algumas semelhanças com o carácter «interior» da língua de que falava

128
Herder, nomeadamente no que diz respeito à fraca influência de factores
externos na formação e transformação da mesma. Mas estes pontos de
contacto rapidamente se dissipam já que, em primeiro lugar, Fichte fala
exclusivamente da língua alemã e, em segundo lugar, entende que essa mesma
língua não é arbitrária nem convencional. É, isso sim, a única língua natu-
ral que ainda sobrevive. E embora mais uma vez se esteja assim a sublinhar
que o que a comunidade partilha tem pouco ou nada a ver com convenções
ou «contratos negociados », o que está igualmente aqui a ser dito é que a
língua alemã é a língua original, a única língua europeia que mantém uma
relação directa com o Real.

Noções como as de «liberdade», «igualdade», «fraternidade» ou «humani-


dade» seriam pois «verdadeiras» quando pronunciadas na língua alemã e
«falsas», na medida em que resultariam de uma reflexão especulativa, em
qualquer outra língua europeia, nomeadamente na francesa. Desta forma o
discurso de Fichte, proferido naturalmente em alemão, diz que diz a verdade
e assim se fecha tautologicamente sobre si mesmo.

É claro - e este é um aspecto que não deve deixar de ser sublinhado - que
os Discursos à Nação Alemã são discursos contra o invasor francês que
ocupa o território alemão, sendo nesse sentido discursos tipicamente nacio-
nalistas, de incitamento à revolta e apologéticos do direito à diferença,
independência e auto-determinação do povo alemão. Contudo, por muito
que se considerem estas atenuantes contextuais ou por muito que se consi-
dere que este nacionalismo de Fichte não é incompatível com o seu cosmo-
politismo (cf. Meinecke 1969: 88), a verdade é que a radicalidade nacionalista
deste filósofo alemão tem já todos os ingredientes que mais tarde viriam a
ser perversamente postos em prática na construção do Estado nacional-
-socialista alemão e na política usurpadora de agressão e conquista de
territórios levada a cabo pelo mesmo Estado em meados deste século
(cf. adiante o Cap. IV.5).

Concluindo, convirá reter que entre Rousseau e Fichte ficam de algum modo
traçadas as filiações dos dois tipos de nacionalismos que depois do século
XVIII haveriam de dar forma ao mundo político actual: é, por um lado, o

- nacionalismo de tipo francês e americano, cuja sociedade se funda a partir


de uma base contratual clara - a da aceitação do princípio que todos os
cidadãos são iguais perante a lei; e é, por outro lado, o nacionalismo de tipo
alemão que se baseia na comunidade étnica, de língua, cultura e história.
Significativamente estas diferenças traduzem-se, ainda hoje, em diferentes
mecanismos jurídicos de aquisição da nacionalidade: no caso alemão a
nacionalidade adquire-se pela consanguinidade (jus sanguinis), no caso
francês e americano a nacionalidade é determinada pelo princípio da
territorialidade (jus soli).

129
Por outro lado, se é certo que todo o nacionalismo é o resultado de uma
construção ideológica, não é menos verdade que o carácter artificial dessa
construção se torna particularmente evidente no caso da Alemanha, que teve de
reinventar a sua nação e a sua identidade nacional ao longo dos séculos XIX
e XX. Como certeiramente observa Seeba a este respeito ( 1986: 154-155),

Paradoxically, the German claims to national unity reflect a long history


of political divisions. ( ... ) The concept of national identity, at least as far as
Germany is concemed, is nothing but, linguistically speaking, a word
without a referent. The word may generate a reality of its own, but it does
not reflect a political reality that exists before, outside, and independently
of the concept.

No caso daAlemanha, o conceito de «identidade nacional» acabou, de facto,


por encontrar um referente e a palavra por criar uma realidade nova: a «nação
alemã» . Mas precisamente porque se trata de uma realidade criada a partir
da palavra, a construção da «nação alemã» foi feita com base em argumentos
e conceitos de cariz mítico-histórico e estético-literário. Como recorda o
mesmo autor (Seeba 1986: 165, sublinhados no original),

When the famed founder of the discipline called «Germanistik», Jacob


Grimm, published the first volume of his Deutsches Worterbuch (1854-
-1860) he typically introduced it as a monumentfor, not of, national iden-
tity and with the expressed understanding that its formation in the German
language and literature had no equivalent in the political reality: «Was
haben wir denn gemeinsames als unsere Sprache und Literatur?»

O carácter estético-literário, e portanto retórico e ficcional, deste argumento


fundador da «nação alemã» torna-se óbvio quando confrontado com uma
realidade linguística e dialectal muito diversa e multifacetada, como acima
houve oportunidade de referir.

Por seu turno, o carácter mítico e irrealista de uma Alemanha outrora har-
moniosamente unida e em paz fica bem patente num epigrama de Johann
Vogel (1589-1663) publicado em 1649, do qual se depreende que é mais
fácil ver passar um camelo por uma agulha do que assistir ao nascimento de
uma «paz alemã» (apudWagenknecht 1976: 171):

Was du nit glaubest, das geschiht.


Wie? sol nicht ein Camel durch eine Nadei gehn?
Wann du den Teütschen Fried jetz wider sihst entstehen.

Epigrama irónico e sarcástico, já que é publicado justamente no ano


seguinte ao da assinatura do tratado de paz da Vestefália (1648), que veio
pôr termo à Guerra dos Trinta Anos e assim trazer a paz a um vasto território
que desde inícios do século XVI começava progressivamente a adoptar a

130
designação de Heiliges Romisches Reich Deutscher Nation. Mas é igual-
mente um epigrama premonitório: não apenas em relação à história futura
da Alemanha, mas sim, também, em relação a todo o espaço europeu.

Bibliografia aconselhada

Sobre a formação dos conceitos de nação e nacionalismo no espaço europeu


consultem-se Alter 1985, Coulmas 1985, Schulze 1995 (especialmente o
capítulo «Nationen», pp. 108-208). No que diz respeito ao caso alemão vejam-
-se em particular Amarante 1983, Barrento 1989 (nomeadamente as pp. 27-
-51 do vol. 1), Runa 1992, Hermancl/Steakley 1996, Longerich 1990 e Schulze
1996. No âmbito desta temática os textos de Fichte ( 1978) e Humboldt (1982)
constituem fontes primárias, cuja leitura vivamente se aconselha.

Actividades propostas

• Leia os textos de Hugo von Hofmannsthal («Boicote às línguas estran-


geiras?») e de Thomas Mann («A Alemanha e os Alemães») incluídos
na revista Runa ( 1992) e compare o conceito de «Alemanha» que
está subjacente a cada um deles.

• Comente o seguinte texto:

Que significa «alemão»?


Ao que parece, essencialmente uma forma de ser, literária e filosofica-
mente, contraditória. Ostensivamente contraditória e carregada de ten-
sões, umas vezes destrutivas, outras produtivas ( ... ). Aquilo que
Nietzsche via como um mal - o facto de a Alemanha se alimentar,
«com um apetite nada vulgar... de coisas contraditórias» ( Ecce Homo)
- , parece, afinal, quando visto numa perspectiva histórica mais larga,
um factor de dinamismo e vitalidade. (Barrento 1989: I, 50)
F.C.

--
l
131
2. Aufklarung e modernidade
Resumo

Define-se o conceito de Aujklarung, tendo em conta o contexto das Luzes


europeias e a tradição racionalista, em geral. Caracteriza-se a sociedade alemã
no século XVIII, tendo em consideração a situação particularmente
diferenciada do espaço de expressão alemã, a nível político, económico,
social e cultural. Distinguem-se as diferentes fases do movimento das Luzes
na Alemanha, associando o movimento com o papel da burguesia ascen-
dente. Integra-se a Aujklarung no contexto do espaço não-europeu e avalia-
-se o modo como as Luzes lidaram com a diferença.

Objectivos

• Definir o termo Aujklarung, em diferentes acepções, associando-as


com as implicações que tais definições têm no actual debate sobre a
racionalidade e a modernidade, em geral, e na interpretação das Luzes,
em particular.

• Caracterizar o movimento das Luzes na Alemanha, inserindo-o no


contexto europeu.

• Caracterizar de forma diferenciada a sociedade alemã no século


XVIII.

• Avaliar da correlação entre as Luzes no século XVIII e a moder-


nidade ocidental, numa perspectiva não estritamente europeia.

135
2.1 Conceito de Aujkléirung

O termo Aufklarung, frequentemente utilizado na Germanística portu-


guesa, pressupõe um consenso científico quanto à especificidade que o movi-
mento das Luzes terá adquirido na Alemanha do século XVIII. Contudo,
para que se possa operar com a devida eficácia com este conceito, há que
principiar por delimitá-lo semântica e historicamente.

O termo Aufklarung é, actualmente, utilizado em língua alemã, num sen-


tido amplo, sem se referir a qualquer período histórico, remetendo para um
processo de esclarecimento e de informação, a que não são estranhas as
conotações que o termo adquiriu no século XVIII (cf. Cap. III.3).

O termo pode ainda surgir estreitamente associado a racionalismo, mais


uma vez sem uma fixação histórica precisa, para designar uma evolução
... característica do Ocidente e da modernidade .

Se é ponto consensual a associação entre racionalismo e modernidade,


ambos, de resto, estreitamente ligados ao Ocidente, o mesmo já não se passa
com a delimitação histórica dessa mesma ligação. Há interpretações que
associam o emergir da modernidade à época que a historiografia tradicional
designou de Era Moderna (assinalada com a Reforma e o Renascimento no
século XVI) com os respectivos efeitos na Era Contemporânea (iniciada no
século XVIII), associando a essa tendência a afirmação

• do moderno espírito científico;

• de uma visão secularizada do mundo, crescentemente centrada sobre


o Homem (antropocentrismo), por oposição à mundovisão teo-
cêntrica que teria caracterizado a Idade Média;

• a utilização do experimentalismo e do uso da razão como fundamen-


tos essenciais do conhecimento e da interpretação do mundo e da
natureza, que teriam tido as suas primeiras manifestações no Renas-
cimento e na Reforma protestante e que teriam ganho em consistência
e importância durante o século XVIII.

Entre Copérnico (1473-1543) , Galileu (1564-1642), Kepler (1571-1630),


Lutero (1483-1546) e Calvino (1509-1564 ), Bacon (1561-1626), Descartes
(1596-1650), Locke (1632-1704) e Newton (1643-1727) existiria uma linha
de continuidade essencial.

Por outro lado, a associação entre Luzes e modernidade deve grande parte
dos seus pressupostos ao conceito de racionalidade tal como definido por
Max Weber. Segundo o sociólogo alemão, a racionalidade seria uma
característica do Ocidente, que o autor define como uma vertente que, em

137
termos sociais, económicos e políticos, se caracterizaria, sobretudo, tanto
pela crescente afirmação de um Estado centralizador, apoiado por estruturas
burocráticas, como por uma planificação rigorosa da actividade das empresas
capitalistas, substituindo-se assim o improviso e o espírito aventureiro dos
primórdios do capitalismo por uma racionalidade utilitária que ponderaria
cuidadosamente os meios para atingir os fins (Weber 1972: 4-5; cf. ainda
pp. 60 e segs.).

Der «Staat» überhaupt im Sinn einer politischen Anstalt, mit rational


gesatzter «Verfassuog», ratiooal gesatztem Recht und einer an ratiooalen
gesatzten Regelo: «Gesetzeo», orieotierteo Verwaltuog durch Fachbeamte,
keont, io dieser für iho weseotlicheo Kombioatioo der eotscheideodeo
Merkmale, uogeachtet aller aoderweitigeo Aosatze our der Okzideot.
Uod so steht es oun auch mit der schicksalvollsteo Macht uosres moder-
oeo Lebeos: dem Kapitalismus.
Erwerbstrieb, «Streben nach Gewinn», oach Geldgewion, oach mõglichst
hohem Geldgewino hat ao sich mit Kapitalismus gar nichts zu schaffeo.
Dies Streben faod uod fiodet sich bei Kelloern, Aerzten, Kutschern,
Küostlern, Kokotteo, bestechlichen Beamteo, Soldateo, Raubern, Kreuz-
fahrern, Spielhõlleobesuchern, Bettlern: - mao kann sagen: bei «all sorts
aod cooditioos of meo», zu alleo Epochen aller Laoder der Erde, wo die
objektive Mõglichkeit dafür irgendwie gegeben war uod ist. Es gehõrt io
die kulturgeschichtliche Kinderstube, daB mao diese naive Begriffsbe-
stimmung ein für allemal aufgibt. Schraokeolose Erwerbsgier ist nicht im
miodesten gleich mit Kapitalismus, noch weniger gleich mit dessen «Geist».
Kapitalismus kano geradezu ideotisch seio mit Biindigung, mindesteos
mit rationaler Temperieruog, dieses irratiooalen Triebes. Allerdiogs ist
Kapitalismus ideotisch mit dem Strebeo oach Gewinn, im kootinuierlicheo,
ratiooalen, kapitalistischeo Betrieb: nach immer erneutem Gewion, oach
«Rentabilitiit». Deoo er muB es seio . Iooerhalb einer kapitalistischeo
Ordnung der gesamteo Wirtschaft würde eio kapitalistischer Eiozelbetrieb,
der sich oicht ao der Chance der Erzieluog von Rentabilitat orieotierte,
zum Untergaog verurteilt sein . - Definieren wir zuoachst eiomal etwas
geoauer als es oft geschieht. Eio «kapitalistischer» Wirtschaftsakt soll uns
heiBen zunachst ein solcher, der auf Erwartuog voo Gewion durch
Ausnützuog voo Tauschchanceo ruht: auf (formell) Jriedlichen Erwerbs-
chanceo also. ( .. .) Wo kapitalistischer Erwerb ratiooal erstrebt wird, da ist
das entsprechende Handelo orientiert an Kapitalrechnung . Das heiBt: es
ist eingeordoet in eine planmaBige Verwendung voo sachlichen oder
persõolichen Nutzleistungeo ais Erwerbsmittel ( ... ).

A expressão «racionalização» de meios e recursos, empregue no vocabu-


lário contemporâneo, dá conta do modo com a racionalidade ocidental se
viu parcialmente esvaziada de outros conteúdos críticos que acompanharam
o processo de secularização característico da modernidade, que Weber, de
resto, já anunciava numa fórmula que pretendia descrever o processo de

138
gradual secularização que o calvinismo viria a reforçar, mas que indica
simultaneamente o seu cepticismo relativamente a este processo, o
«desencantamento do mundo» ( «Entzauberung der Welt», Weber 1972: 114).
Com efeito, no seu estudo sobre o processo de racionalização - que associa
à afirmação do cal vinismo, sobretudo na sua variante puritana, e, em estreita
correlação com este, ao emergir do espírito do capitalismo - , Weber teve
ocasião de salientar os elementos negativos, coercivos desse processo
que havia transformado uma arma toda-poderosa numa armadura de ferro.

Der Puritaner wollte Berufsmensch sein, - wir müssen es sein. Denn indem
die Askese aus den Mõnchszellen heraus in das Berufsleben übertragen
wurde und die innerweltliche Sittlichkeit zu beherrschen begann, half sie
an ihrem Teile mit daran, jenen machtigen Kosmos der modemen, an die
technischen und õkonomischen Voraussetzungen mechanisch-maschineller
Produktion gebundenen, Wirtschaftsordnung erbauen, der heute den Lebensstil
aller einzelnen, die in dies Triebwerk hineingeboren werden - nicht nur
der direkt õkonomisch Erwerbstatigen - , mit überwaltigendem Zwange
bestimmt und vielleicht bestimmen wird, bis der letzte Zentner fossilen
Brennstoffs verglüht ist. Nur wie «ein dünner Mantel, den man jederzeit
abwerfen kõnnte», sollte nach Baxters Ansicht die Sorge um die auBeren
Güter um die Schultern seiner Heiligen liegen. Aber aus dem Mantel lieB
das Verhangnis ein stahlhartes Gehause werden. (Weber 1971: 203)

Esta concepção da racionalidade viria a ressurgir, com novos traços, na obra


Dialektik der Aufkliirung (1947) de Max Horkheimer e Theodor W. Adorno
(Horkheimer/Adorno 1971). Traumatizados pelos acontecimentos do
nacional-socialismo e pela sua experiência de exílio nos Estados Unidos da
América, os autores propõem uma interpretação do racionalismo ocidental
ainda mais ampla.

Seit je hat Aufklarung im umfassendsten Sinn fortschreitenden Denkens


das Ziel verfolgt, von den Menschen die Furcht zu nehmen und sie als
Herren einzusetzen. Aber die vollends aufgeklarte Erde strahlt im Zeichen
triumphalen Unheils. Das Programm der Aufklarung war die Entzaube-
rung der Welt. Sie wollte die Mythen auflõsen und Einbildung durch
Wissen stürzen. (Horkheimer/ Adorno 1971: 7)
Aber die Mythen, die der Aufklarung zum Opfer fallen, waren selbst schon
deren eigenes Produkt. ln der wissenschaftlichen Kalkulation des
Geschehens wird die Rechenschaft annuliert, die der Gedanke in den
Mythen einmal vom Geschehen gegeben hatte. Der Mythos wollte
berichten, nennen, den Ursprung sagen: damit aber darstellen, festhalten,
erklaren. (ib.: 11)

Denunciando a dialéctica das Luzes, isto é, o processo através do qual a


racionalidade ocidental teria gerado a sua própria negação, instrumenta-
lizando a Natureza e o Homem, enquanto parte desta, o racionalismo teria

139
rr

provocado o irracionalismo e a barbárie em que o século XX desaguara,


manifesto no terror, quer do nacional-socialismo, quer no totalitarismo
pseudo-liberal do capitalismo norte-americano.

Nicht umsonst stammt das System der Kulturindustrie aus den liberaleren
Industrielandem, wie denn alie charakteristischen Medien, zumal Kino,
Radio, Jazz und Magazin, dort triumphieren. Ihr Fortschritt freilich ent-
sprang den allgemeinen Gesetzen des Kapitals. Gaumont und Pathé,
Ullstein und Hugenberg waren nicht ohne Glück dem internationalen Zug
gefolgt; die wirtschaftliche Abhangigkeit des Kontinents von den USA
nach Krieg und Inflation tat dabei das ihrige. Der Glaube, die Barbarei der
Kulturindustrie sei eine Folge des «cultural lag», der Zurückgebliebenheit
des amerikanischen BewuBtseins hinter dem Stand der Technik, ist ganz
illusionar. Zurückgeblieben hinter der Tendenz zum Kulturmonopol war
das vorfaschistische Europa. Gerade solcher Zurückgebliebenheit aber hatte
der Geist einen Rest von Selbstandigkeit, seine letzten Trager ihre wie
immer auch gedrückte Existenz zu verdanken. (ib.: 118-119)

Desta forma, o conceito de Luzes e de Iluminismo via-se desligado da


contextualização histórica a que tradicionalmente fora associado, passando
a constituir um ponto de apoio para aqueles que, cépticos quanto ao pro-
cesso da pretensa emancipação ocidental, viriam a encontrar ecos seme-
lhantes na crítica do discurso do poder e do logocentrismo de um Michel
Foucault e de um Jacques Derrida.

Foi esta questão relativa ao papel e consequências do racionalismo ocidental


que ressurgiu no debate que colocou frente a frente, sobretudo na década de
oitenta duas posições fundamentais. Os adversários da modernidade não só
recusaram as grandes narrativas ou «metanarrativas» (Lyotard s/d, sobretudo
a «Introdução», pp. 7-10), mas também a possibilidade de se aceder a uma
verdade essencial ou objectiva, ao mesmo tempo que denunciavam os
pressupostos totalitários do racionalismo ocidental. Por sua vez os defensores
da modernidade, de que Habermas terá sido o principal arauto, mantêm-se
apegados aos valores essenciais das Luzes e do seu potencial emancipatório.
Cientes das distorsões a que esse legado foi submetido, defendem o princípio
de que a modernidade ainda está por cumprir (Habermas 1985). Este debate
tem vindo a influenciar a leitura e as interpretações do século XVIII.

2.2 Luzes e século XVIII

No contexto preciso da temática a abordar, os termos Luzes e Iluminismo


remetem fundamentalmente para o emergir de uma série de tendências a
nível político, económico e cultural que se manifestaram com particular

140
acutilância na Europa do século XVIII, embora os seus fundamentos e
influências próximas se possam fazer remontar a meados e finais do século
XVII, na medida em que foi então que alguns dos seus principais inspira-
dores, como Descartes, Locke, Newton e Leibniz (1646-1716) produziram a
sua obra.

Também será de assinalar o cepticismo que a moderna investigação tem


vindo a oferecer face a designações excessivamente abrangentes tais como a
de «século das Luzes» ou de «século da razão». Os motivos de tal objecção
prendem-se não só com questões de periodização histórica, como a que
acabámos de referir, mas também com a recusa em se ver o século XVIII a
partir de uma perspectiva única, ignorando-se a importância de movimentos
como o do sentimentalismo (na Alemanha Empfindsamkeit) 1 ou do 1 Empfindsamkeit - termo

alemão para a palavra senti-


sensualismo 2 . mentalismo que no século
XVIII passou a designar as
Se é certo que Descartes constituiu uma referência obrigatória para o século tendências literárias que, na
senda das correntes inglesas
XVIII, também é verdade que a sua herança foi apropriada criticamente. afins - de Sentimemal Journey
A importância dada ao experimentalismo de Locke levava a que o método de Lawrence Stern e ( 1713-
-1768) e dos romances de
dedutivo fosse questionado pelos pensadores iluministas que retiveram, Samuel Richardson (1695-
sobretudo a dúvida sistemática do filósofo francês. O empirismo de Locke e -1761) - confere particular
ênfase ao domínio do senti-
a física experimental e matemática de Newton serão os modelos preferenciais mento e de que o Werther de
dos pensadores do século XVIII. Goethe constituirá o mais
célebre exemplo.

Contudo, há que não esquecer a importância também determinante de Leib- 2 Sensualismo ou sensismo -

niz, sobretudo na Alemanha, com a sua visão optimista da criação («le corrente filo só fica ou pres-
suposto segundo o qual o
meilleur des mondes possibles» ), a sua defesa da metafísica contra o empi- conhecimento do mundo de-
rismo radical de Locke, postulando que nada existe no intelecto, antes da pende essencialmente das
sensações , recusando-se a
experiência, a não ser o próprio intelecto. existência de ideias inatas e de
uma metafísica absoluta. O
empirismo de Locke inscreve-
A racionalização, tal como entendida por Max Weber, manifesta-se um -se, consequentemente, nesta
pouco por toda a Europa: a nível económico, são introduzidas políticas mesma corrente que surge
radicalizada em Condillac
mercantilistas ou de rentabilidade económica, sobretudo nas sociedades (1715-1780), bem como nas
mais desenvolvidas, como é o caso da Inglaterra em vias de industriali- posições materialistas de La
Mettrie (1709- 17 51) e de
zação acelerada. A nível político, assiste-se ao reforço do papel do Estado Helvétius (1717-1771) ou no
nacional, que passa a concentrar o sistema de tributação, a defesa e ajustiça, cepticismo escocês, de que
David Hume ( 1711-1766) terá
com a crescente importância da respectiva burocracia para o efeito. A nível sido o principal representante.
científico e filosófico, afirma-se a crescente crença na capacidade de, por A filosofia moral, inspirada no
modelo de um Shaftesbury
via racional, se poder dominar e controlar a natureza. (1681-1713) ou de um
Hutcheson (1694-1746) apela
Independentemente da multiplicidade de tendências e leituras do pensamento igualmente a uma sensibi-
lidade agora predominan-
do século XVIII, recorde-se alguns traços essenciais desta época: temente interior como fun-
damento da moral e da
• o claro pendor para a secularização, a tónica pedagógica - sempre religião naturais , assim parti-
lhando da mesma descon-
sustentada por uma razão que deverá constituir não o fundamento fiança contra a tradição e todo
de uma ortodoxia, mas fonte de toda a crítica; o inatismo.

141
• o zelo reformador - baseado na crença na perfectibilidade do
género humano, sob o pano de fundo de uma igualdade essen-
cial;

• a reivindicação da tolerância - a que não é estranho o incremento


das trocas comerciais que requer que todos sejam potenciais par-
ceiros.

Todos estes projectos surgem predominantemente associados a uma visão


antropocêntrica e virada para o aquém, para o mundo imanente, por
oposição às visões teocêntricas e orientadas para o além, para o mundo
transcendente que se pretende contestar.

2.2.1 Luzes e Aufklarung(en)

O consenso relativamente à especificidade das Luzes na Alemanha não


pode deixar de ignorar o facto de que o movimento das Luzes foi essen-
cialmente europeu e cosmopolita. Tal traço encontra-se patente no modo
como o movimento alastrou de forma mais ou menos generalizada a quase
todos os países do velho Continente, influenciando modelos políticos que se
viam a si mesmos como de alcance universal, como sucedeu durante as
Revoluções Americana e Francesa.

Contudo, se é certo que a universalidade dos princípios iluministas influen-


ciou a sua difusão na Europa e na América, também é verdade que sempre
se reconheceu a especificidade que as suas manifestações assumiram, con-
soante os países ou regiões em que se fizeram sentir.

Recentemente, cada vez mais se tem vindo a falar de «Iluminismos» por


oposição às Luzes em geral. Esta atenção dada à especificidade de cada
território tanto mais se justifica no que respeita ao espaço cultural alemão,
se se atender à geografia política e às tradições locais das regiões por ele
abrangidas. Assim, em vez de se falar de Aujkliirung será mais rigoroso
falar em Aujklarungen: os traços que o movimento assumiu na Berlim
burocrática e prussiana ou na Hamburgo burguesa e liberal foram
forçosamente diferentes dos que caracterizaram o movimento na Baviera ou
na Áustria católicas.

Falar de Aujkliirungen também se justifica noutro sentido mais lato, reme-


tendo agora para a história da sua recepção. As imagens que a historiografia
foi construindo das Luzes na Alemanha são tão multifacetadas quanto as
correntes e as épocas.

142
Se a abstracção e o cosmopolitismo iluministas foram criticados pelos histo-
riadores românticos, se Hegel viu nas Luzes um momento de cepticismo neces-
sário mas redutor no processo da realização da razão, influenciando a histo-
riografia alemã ao longo dos séculos XIX e XX, já a herança das Luzes seria
recuperada em favor de uma tradição progressista, sobretudo depois de 1968,
no rescaldo dos movimentos de contestação estudantil à ordem estabelecida.

A recuperação do ideário iluminista na Alemanha depois de 1945, seja na


RFA, seja na RDA, equivalia, também, a um ajuste de contas com uma tradição
irracionalista que, responsabilizada pela «destruição da razão», segundo
Georg Lukács em Die Zerstorung der Vernunft, publicado pela primeira vez
em 1954 (Lukács 1962), teria sido um factor determinante para a ideologia
do nacional-socialismo.

Contudo, a visão das Luzes seria simultaneamente objecto de uma reapre-


ciação crítica sob influência da auto-crítica corrosiva do projecto raciona-
lista levada a cabo por Horkheimer e Adorno em Dialektik der Aufklarung,
perspectiva esta que a consciência ecológica viria a reforçar.

2.3 A sociedade na Alemanha do século XVIII

2.3.1 Nação atrasada?

O conceito de nação atrasada, utilizado por Helmuth Plessner no seu livro


Die verspatete Nation (Plessner 1974), recolha de lições proferidas em
Groningen entre 1934-1935, no exílio holandês, tentava explicar o destino
peculiar da Alemanha, lido agora à luz do passado nazi. Segundo este autor,
a unificação e modernização tardias da Alemanha eram indissociáveis de
um processo tipicamente alemão. Tal processo, iniciado com a Reforma
luterana, levara esses territórios a afastar-se da tradição latina e românica e a
optar por um modelo autoritário, que, de Lutero ao idealismo alemão,
consagrara o autoritarismo nos campos político, económico e ideológico,
dando lugar a um racionalismo deficitário.

Deutschlands Konflikt mit dem alten Europa und der von ihm geschaffe-
nen auBereuropaischen Welt vertieft sich zu einem Kampf gegen den
politischen Humanismus, dessen Wurzeln und Blüte im 16., 17. und 18.
Jahrhundert liegen. So muB die Untersuchung von der bedeutsamen Tat-
sache ihren Ausgang nehmen, daB das Deutsche Reich in keiner seiner
Traditionen ein Verhaltnis zu der Rechts- und Staatsidee dieser für Ent-
stehung undAusbildung der modernen Nationen entscheidenden Jahrhun-
derte hat. Ais eine Gründung des 19. Jahrhunderts ohne Staatsidee fiel die
nur bedingt nationalstaatliche Konsolidierung des deutschen Volkes in die

143
Zeit einer bereits vorgeschrittenen Skepsis an dem Wertsystem des
Humanismus. Der Mangel einer Staatsidee hielt den Antagonismus der
beiden Reichstraditionen im deutschen BewuBtsein wach. Das im Zuge
der Verweltlichung immer starker werdende NationalbewuBtsein fand in
Deutschland auch nach der Bismarckschen Reichsgründung keine Form
und keinen Halt an einer Staatsidee, wie schon Jahrhunderte früher Frank-
reich, England und die Vereinigten Staaten ihn gefunden hatten. Ais Ersatz
dafür und zugleich im Hinblick auf die Inkongruenz zwischen Reichs-
grenzen und Volkstumsgrenzen übernahm der romantische Begriff des
Volkes die Rolle einer politischen Idee.
Iodem die Untersuchung dieser Linie folgt, hat sie zugleich im Auge zu
behalten, daB eine zweite Linie ihren Verlauf mit bestimmt. Diese zweite
Linie entspringt in dem für Deutschland wieder eigentümlichen religiõs-
konfessionellen Dualismus zwischen Katholizismus und protestantischer
Zwangstaatsidee bei fehlendem freikirchlichen Glaubensleben. (Plessner
1974: 40-41)

A teoria de uma via específica (Sonderweg) alemã surgiu igualmente na


historiografia alemã do pós-guerra (Wehler 1995), atribuindo a catástrofe
nacional-socialista a um atraso político, que não soubera acompanhar o surto
económico, sobretudo a partir de 1871, e que seria responsável pela falta de
estruturas democráticas e pelo autoritarismo que culminaria na ascensão de
Hitler ao poder.

O atraso económico e político dos territórios do Sacro Império Romano-


-Germânico fora, de resto, um tema constante de reflexão, que se manteve
até ao século XX, embora com um significado diferente do que Plessner lhe
atribuira.

Como explicar, a fazer-se fé desse pressuposto, a importância que autores


como Goethe, Schiller, Leibniz e Kant, para não falar dos românticos e dos
representantes do idealismo filosófico alemão, haviam tido em toda a
Europa?

Em França, foi Mme. de Stael quem, com a sua obra De l 'Allemagne ( 1810),
soube criar o mito de uma Alemanha romântica e virada para a metafísica, a
Alemanha «dos poetas e dos pensadores», como contrapartida à França
revolucionária.

Tal interpretação teve, de resto, consequências para a leitura da realidade


alemã no espaço cultural francês até aos nossos dias, como o atestam a sedu-
ção exercida pelo irracionalismo da mitologia wagneriana, a adesão ao
heroísmo de um Ernst Jünger ou a recepção de Heidegger na França do
pós-guerra.

O irracionalismo surge assim como traço característico de uma «essência»


ou «alma» alemã, adivinhando-se nesta caracterização a clássica oposição

,
~

1
144 1
entre Kultur e Zivilisation, de resto, erigida em porta-estandarte contra a
civilização francesa, herdeira das Luzes e da Revolução Francesa, em vésperas
da primeira guerra mundial (cf. Cap. 11.1 ).

Seria a esta imagem da superioridade romântica da Alemanha difundida por


Mme. de Stael, celebrando os traços irracionais germânicos, que Heinrich
Reine em Zur Geschichte der Religion und Philosophie in Deutschland
(1835) e Die romantische Schule (1835) viria a contrapor a de uma tradição
alemã, ambivalente nas suas influências.

'1 Céptico face aos românticos alemães, que polemicamente responsabilizaria


de modo unilateral pelas suas influências restauracionistas, em Zur Ge-
schichte der Religion und Philosophie in Deutschland, Reine reabilitaria
os elementos emancipatórios e críticos de um Lutero, fazendo da sua
rebelião anti-papista e do seu apelo à interpretação livre das Escrituras
- enquanto fundamento de uma relação directa entre o crente individual e
Deus - um princípio precursor das Luzes.

Por outro lado, na mesma obra, Reine poria a tónica nos elementos revo-
lucionários da filosofia alemã, desde Kant a Fichte e Hegel, estabelecendo
um paralelismo entre o primeiro e Robespierre e vendo no segundo o
Napoleão da filosofia alemã. Apesar dos elementos claramente regressivos
que a filosofia da natureza de um Schelling, segundo Reine, conteria, a
filosofia de Hegel anunciaria a recuperação de um panteísmo revolucionário.

Se fora exactamente este quem, em primeiro lugar, interpretara esses ele-


mentos críticos, teoricamente revolucionários, como forma de tornar des-
necessária uma revolução política na Alemanha, tal como sucedera em
França, já Reine via nessa herança uma arma poderosa, embora ambígua
para transformar o mundo.

O jovem Marx também retomou esse tema, salientando a actualidade da


teoria alemã, por oposição ao anacronismo das suas estruturas políticas e
económicas. Esta versão seria retomada por inúmeros autores de inspiração
marxista que interpretaram o surto do pensamento e da literatura alemães
nos séculos XVIII e XIX como compensação para o atraso económico desses
territórios.

Se é certo que o espaço cultural alemão não conheceu uma revolução


industrial como a Inglaterra, também é certo que esse atraso foi relativo.
A moderna investigação sobre o século XVIII, ao dar redobrada atenção às
características regionais e ao estudo de fontes mais amplas, tem vindo a
demonstrar que existiu uma efectiva modernização das estruturas políticas e
económicas na Alemanha, à semelhança do que sucedia noutros territórios
europeus. Pode mesmo falar-se de um surto demográfico e manufactureiro
em determinadas regiões.

145
É certo que essa evolução se fazia sentir, sobretudo, nas zonas ocidentais,
onde o regime de servidão feudal começara a ser abolido e onde o intercâmbio
comercial com os países atlânticos era mais intenso.

Apesar de terem perdido a sua importância, mercê da concorrência britâ-


nica, as cidades hanseáticas do Norte da Alemanha, evidenciavam um
desenvolvimento comercial e político bastante mais avançado do que as
regiões do Leste, onde o regime de latifúndio e de servidão permanecia pre-
ponderante. Mas note-se ql!_e o surto urbano, verificado nas regiões ociden-
tais, viria a revelar-se favorável às regiões do Leste, que, deste modo, pude-
ram funcionar como seu celeiro, exercendo simultaneamente uma influência
benigna nas trocas comerciais de que as antigas cidades hanseáticas eram os
grandes entrepostos.

A estrutura autoritária, marcada pelas relações de produção feudais ou feuda-


lizantes da Prússia, pôde assim sobreviver e reforçar-se, sem colidir com o pro-
gresso económico das zonas urbanas do litoral a seu Ocidente, o que não pôde
deixar de exercer uma influência considerável nos destinos da Alemanha.
A Prússia do século XVIII revelava exactamente este misto de conservadorismo
e de abertura às inovações, patente na Realpolitik de Frederico II, e na importância
crescente das suas universidades, como Halle (fundada em 1694) e Kõnigsberg.

Estas universidades tinham, contudo, que rivalizar com a recém-fundada de


Gõttingen ( 1737) que, dependente do Eleitorado de Hannover, mantinha estrei-
tas relações com as instituições congéneres inglesas e escocesas e que, assim,
se dedicaria a «ciências de ponta» como a estatística, a antropologia e a física.

Por outro lado, centros como Hamburgo, Lübeck, Leipzig ou Frankfurt am


Main davam mostras de um surto económico de características predomi-
nantemente urbanas, daí decorrendo uma organização de poder e manifes-
tações culturais mais de acordo com o modelo liberal.

Pode, portanto, afirmar-se que, analisado com mais pormenor, o espaço


cultural alemão não revela um atraso generalizado, dando a entrever algumas
zonas em relativa expansão política e económica.

Se a comparação com a restante Europa tanto mais se justifica numa época de


intercâmbio renovado de bens e de ideias, há que não reduzir unilateral-
mente os modelos de comparação aos países economicamente mais desen-
volvidos, nem transformar os mesmos numa via exclusiva de modernização.

Por outro lado, há que buscar as razões de uma evolução particular que dê
conta do percurso do espaço cultural alemão, não o reduzindo a uma
abstracção que impeça a atenção aos fenómenos territoriais que, como adiante
se verá, tiveram uma importância determinante.

146
2.3.2 A «Alemanha» no século XVIII-Geografia política, sociedade,
economia e cultura

A Alemanha do século XVIII caracteriza-se ainda pela fragmentação polí-


tica, herdada do sistema feudal do Sacro Império e reforçada pela cisão
luterana.

Ao erguer-se contra o poder de Roma, o reformador legitimara, do ponto de


vista religioso, o reforço do poder dos senhores territoriais, poder esse que
estes haviam conquistado face à debilidade crescente do Império e à sua
incapacidade de resolver as questões internas e de funcionar como pólo
aglutinador, como o grande cisma da Igreja provocado pela Reforma viera
provar.

Deste modo, a tendência centralizadora dos Estados absolutistas emergen-


tes, embora se venha a fazer gradualmente sentir na Alemanha, com a res-
pectiva racionalização e burocratização do poder, far-se-á em torno do poder
local, a expensas do Império. Este, não obstante as tentativas de unificação
jurídica e política, ver-se-ia cada vez mais reduzido a uma mera ideia, sem
grande eficácia política, ou a uma fonte de prestígio para a dinastia dos
Habsburgos, não podendo, por isso, constituir um pólo aglutinador dos
interesses alemães.

Assinale-se de resto que, neste momento histórico, é problemático falar de


Alemanha. O Império incluía populações que não se enquadravam na área
de expressão alemã, como é o caso, por exemplo, da Boémia, da Silésia e do
Norte da Itália. Embora a capital do Reino da Prússia, Berlim, se encontrasse
situada no Brandenburgo, o domínio dos Hohenzollern incluía territórios
- exactamente a Prússia Ocidental e Oriental - que se situavam fora das
fronteiras imperiais.

Por outro lado, a ideia de império encontrava-se intimamente associada à


noção de uma cristandade universal que de modo algum se adequava ao
crescente nacionalismo, tal como corporizado, desde o Renascimento, pelas
modernas monarquias: o fim do Sacro Império, com a abdicação formal de
Francisco II em 1806, face a Napoleão, e as medidas empreendidas por este
no sentido de racionalizar a geografia política alemã são prova clara disso.

Assinale-se ainda que a secularização do Estado, para a qual a política


napoleónica contribuiria decisivamente, seja em França, seja nas áreas sob
sua influência, já se fizera sentir anteriormente no espaço cultural alemão
nas zonas de influência luterana.

A Confissão de Augsburgo de 1555, não só reconhecera a legitimidade do


biconfessionalismo, como consagrara a relação entre o poder político e a

147
esfera religiosa, sob a forma do cuius regio, eius religio, segundo a qual os
súbditos eram obrigados a praticar a confissão adaptada pelo senhor territorial.

Submetendo o poder da Igreja aos senhores locais, o Estado tornava-se assim


independente da Igreja, embora esta se mantivesse vinculada ao mesmo,
numa relação de vassalagem desconhecida nos territórios de influência
calvinista onde o inverso se verificava.

A fragmentação política e o biconfessionalismo viriam a ser reforçados pelos


Tratados de Vestefália de 1648 que, pondo termo à Guerra dos Trinta Anos,
reconheceriam, do ponto de vista do direito internacional, um facto há muito
consumado internamente. Se bem que o Sacro Império Romano-Germânico
continuasse a existir e se mantivesse, até certo ponto, como factor de coesão
dos interesses locais, cada vez mais dispersos e divididos, o certo é que
politicamente funcionava mais como símbolo de uma relação feudalizante e
de uma universalidade sem correspondência real.

Contudo, esta Kleinstaaterei, como tem sido designada criticamente, não


teve apenas consequências negativas. Se é certo que a existência de um centro
que aglutinasse o poder económico, político e cultural prejudicou em certa
medida a expansão nestes domínios, segundo o modelo de Estados mais
centralizados como o inglês e o francês, também é verdade que a mesma
possibilitou uma diferenciação e riqueza de tendências, cujas consequências
ainda hoje podemos apreciar na diversidade cultural das diversas regiões e
dos Liinder da actual Alemanha.

O facto de esta fragmentação política ter tido consequências que retar-


daram, como em Itália, a formação de um moderno estado-nação, que só
se viria a concretizar em 1871, sob a hegemonia da Prússia, não equivale
a que os territórios de expressão alemã vivessem num marasmo gene-
ralizado.

Assim, assinale-se que, não obstante o atraso efectivo de algumas regiões,


devido, sobretudo, às consequências da Guerra dos Trinta Anos (que, de
resto, há que estimar com ponderação, na medida em que os seus efeitos
foram muito diferenciados, consoante as regiões), os senhores territo-
riais, acompanharam, em alguns casos, as tendências que se adivinhavam na
Europa mais desenvolvida do ponto de vista económico e político, nomeada-
mente no sentido de racionalizar, centralizar e burocratizar o aparelho de
Estado. '

Se é certo que em grande parte dos territórios alemães não existia uma
burguesia independente, capaz de ser a porta-voz fundamental dos valores
liberais do ponto de vista económico e político, o mesmo já não se pode
dizer de cidades como Hamburgo, Lübeck, Frankfurt ou Leipzig.

148
Por sua vez, a par dos pequenos Estados, muitos dos quais eram autênticas
caricaturas da corte do rei Sol, algumas dinastias evidenciavam uma crescente
importância económica e política: era o caso dos Wittelsbach da Baviera,
dos Wettin da Saxónia ou da Casa de Braunschweig-Lüneburg de Hannover,
que, entre 1714 e 1837, ocuparia o trono inglês.

Mas seriam as monarquias dependentes dos Hohenzollern e dos Habsbur-


gos, a Prússia e a Áustria, aquelas que, na sua rivalidade, desempenhariam
um papel decisivo na futura história da Alemanha. Rivalizando no seu
expansionismo, revelavam já diferenças assinaláveis. A estrutura do Estado
prussiano apresentava-se claramente distinta da austríaca: o papel do exército
e da grande nobreza fundiária equivalia, grosso modo, ao que o clero e a
nobreza detinham nos domínios dos Habsburgos.

Na Prússia, a relação entre a Igreja e o Estado sofrera o processo de secula-


rização característico da Reforma luterana, o que explica parcialmente
a política de tolerância religiosa praticada não só por Frederico II, aco-
lhendo a abolida Companhia de Jesus na recém-ocupada Silésia, como
pelo seu antecessor, o Grande-Eleitor da Prússia. Este recebera, após a
revogação do Édito de Nantes por Luís XIV, os protestantes franceses, os
Huguenotes, oriundos em grande parte da burguesia manufactureira e
mercantil, que, desse modo, dariam um importante contributo para a econo-
. .
mia prussiana.

O facto de Frederico II poder acolher no seu reino e no seu salão pensado-


res-livres como Voltaire (1694-1778), Maupertuis e D' Alembert (1717-1783)
decorre certamente da adesão do rei aos ideais dos philosophes, mas a sua
indiferença e agnosticismo em matéria religiosa não tinham contrapartida
em matéria política, nem corriam o risco de colidir com esta, dado que na
Prússia protestante o domínio religioso se encontrava formalmente submetido
ao estatal.

Esta secularização do Estado e a consequente independência do poder político


face ao religioso garantiram o sucesso das reformas fredericianas que não
pôde encontrar um equivalente na Áustria josefina. As medidas empreendidas
por José II para modernizar os seus territórios deparariam com a resistência
do clero. Contudo, o espírito crítico das Luzes não deixou de se fazer sentir
nos territórios fiéis a Roma.

É portanto difícil fornecer uma imagem homogénea da Alemanha


no século XVIII, na medida em que o territorialismo e as diferenças regio-
nais desempenharam um papel determinante nesse espaço cultu-
ral essencialmente heterogéneo, do ponto de vista político, religioso e
económico.

149
2.3.3 A burguesia na «Alemanha» do século XVIII

A noção prevalecente em determinadas interpretações da história da


Alemanha, que sublinham o atraso estrutural da sua economia e instituições
políticas, designadamente a ausência de uma classe burguesa autónoma, não
pode ser generalizada.

Se é certo que em determinados Estados, de que o exemplo clássico será o


Grão-Ducado de Weimar, a burguesia alemã se recrutou predominantemente
entre a burocracia letrada ao serviço da corte dos senhores territoriais, já o
mesmo não se aplica a algumas cidades como Hamburgo, centro do tráfego
marítimo atlântico e de Leipzig ou de Frankfurt am Main, importantes feiras
e entrepostos comerciais internos.

Embora a rigidez da estratificação social, o intervencionismo do Estado, a


manutenção das corporações, as barreiras alfandegárias e as diferentes moedas
dificultassem as trocas comerciais, há que recordar que mesmo em monarquias
como a francesa tais dificuldades ainda se faziam sentir. A prová-lo recorde-
-se as medidas de liberalização da economia tomadas pela administração
Turgot ( 1727-1781) e seu subsequente fracasso e respectiva implementação
revolucionária após 1789.

Apesar do atraso em relação aos países economicamente desenvolvidos, como


a Grã-Bretanha e a Holanda, e não obstante a reduzida importância conferida
às trocas internacionais, na ausência de relações coloniais, a política came-
ralista seguida por algumas cortes alemãs desempenhou um papel moderni-
zador, no apoio dado a manufacturas, no recrutamento de quadros não-nobres
para a sua administração, quando comparado com outros territórios europeus.

Saliente-se, ainda, que, apesar da censura e repressão em matéria política, os


territórios alemães - mesmo os católicos - não viviam sob o peso de uma
censura tão violenta como sucedia no Portugal pombalino. O pretenso déspota
esclarecido viria a criar a Mesa Censória que proibia tanto os filósofos
franceses como a Nouvelle Heloise de Rousseau, determinando simul-
taneamente que os estudos fossem confiados ao «santo zelo e ciência» das
corporações religiosas. Isto apesar das magras reformas introduzidas na
Universidade de Coimbra e que tinham como principal alvo a Companhia de
Jesus - de resto acolhida, como atrás já foi referido, por Frederico II na
Prússia, na sequência das perseguições pombalinas - e não tanto a difusão
dos princípios das Luzes.

Em contrapartida, nos Estados alemães, o protestantismo garantira a pos-


sibilidade do desenvolvimento de um espírito crítico sobretudo nas uni-
versidades sob a sua influência, que não deixara incólumes, as suas congé-
neres católicas.

150
O surto demográfico, verificado de resto em quase toda a Europa, a que não
foram estranhos os progressos em matéria sanitária e medicinal e encarados,
por isso, como um factor e razão de progresso, também se fez sentir na
Alemanha.

O interesse pela pedagogia, característico do ideal iluminista, não se man-


teve como pura abstracção à boa maneira, diz-se, alemã. Os «poetas e pen-
sadores» esforçaram-se por levar à prática a sua crença em como, só mediante
a educação, os Homens poderiam atingir a felicidade e o progresso. Foi o
caso de Joachim Heinrich Campe (1746-1818) em Wolfenbüttel, de Johann
Bernhard Basedow ( 1723-1790) em Dessau, apoiado por um senhor territorial
anglófilo, ou de Johann Heinrich Pestalozzi (17 46-1827) em Zurique. Se é
certo que tais medidas ficaram aquém do desejado, dada a situação de miséria
mais ou menos extrema em que camponeses e pequenos artesãos continuavam
a viver, o mesmo sucedia noutras regiões europeias, mesmo na França antes
de 1789, como o comprovam a crise de penúria e a fúria das massas nas
vésperas da Revolução , bem como os contínuos esforços do jacobinismo
por assegurar a igualdade que o liberalismo deixava esquecido.

O papel desempenhado a nível intelectual pela burguesia culta manifesta-se


ainda no emergir de um espaço de debate público, em estreita associação
com os ideais de progresso e de esclarecimento, como adiante se analisará
(cf. Cap. III.3) . O surto da imprensa, das sociedades de leitura (Lesegesell-
schaften) demonstra que, nalguns locais, o emergir de uma opinião pública
já se fazia sentir nos territórios alemães, antes do eclodir da Revolução
Francesa.

Pode, portanto, afirmar-se que o atraso relativo do espaço cultural alemão,


quando comparado com a situação nos países económica e politicamente
mais desenvolvidos da Europa, se esbate quando se toma em consideração,
por um lado, outras zonas mais afastadas dessa zona de influência, como o
Leste e o Sul da Europa e, por outro, a situação extremamente diferenciada
dos territórios alemães.

2.4 Aujkldrung(en)

Como já se assinalou, a comparação entre as diversas zonas europeias tanto


mais se justifica, quanto o século XVIII se caracterizou pelo intenso
intercâmbio entre as mesmas, fundando uma herança europeia naquilo que
tem de pior e de melhor. Reduzir as Luzes a um movimento uniforme é tão
inexacto, quanto recusar extrair as convergências que, apesar das diferenças,
se fizeram sentir nos movimentos que aderiram a esta corrente um pouco
por toda a Europa.

151
Em comum possuem

• a crença numa racionalidade emancipatória como fonte de poder


sobre a natureza, fiel à máxima de Francis Bacon segundo a qual
«o conhecimento é poder»;

• o zelo pedagógico, baseado na crença que a educação auxiliará os


homens a aproximar-se de um ideal de perfeição e de bem-estar;

• o pendor crítico, na sua apropriação céptica do passado;

• a ênfase colocada no experimentalismo, a recusa de autoridades e


de verdades absolutas como algo de dado;

• a tónica na capacidade de os indivíduos se esclarecerem com base


no princípio da autonomia;

• a secularização do pensamento filosófico e político.

Se é certo que as Luzes naAlemanha conheceram uma evolução diferenciada,


consoante a zona confessional em que se desenvolveram, pode, contudo,
afirmar-se que a Aujklarung se revelou em regra geral mais moderada nas
suas conclusões do que os movimentos seus congéneres ingleses e franceses,
designadamente, no que toca à conciliação entre a religião revelada e a religião
natural, entendidas como visões complementares e não se excluindo
reciprocamente. Este traço é comum a Gottfried Wilhelm von Leibniz,
Christian Wolff (1679-17 54 ), Gotthold Ephraim Lessing ( 1729-1781) ou
mesmo Immanuel Kant, ao propor o impossível acesso à metafísica a nível
do conhecimento, mas a possibilidade de a mesma ser salvaguardada pela
razão prática.

Para tal terá contribuído o multiconfessionalismo que se verificava em terri-


tório alemão e que levou a que, depois de longos anos de guerras religiosas,
se buscasse os elementos comuns naturalmente idênticos a todas as confissões
ou que, como Lessing em Die Erziehung des Menschengeschlechts (1780),
se visse nas religiões fases de um processo de educação do género humano.

Por outro lado, a dependência de vastas camadas da burguesia culta da corte


também ajuda a compreender esta moderação, embora existissem situações
diferenciadas, como, por exemplo, a das cidades hanseáticas, onde uma
tradição política mais liberal, propunha referências políticas semelhantes às
que predominavam - de forma mais generalizada - na Holanda e na Grã-
-Bretanha. Com efeito, o cepticismo radical de um Hume (1711-1776) não
foi alheio ao livre comércio de mercadorias e de bens na Inglaterra em
vésperas da Revolução Industrial, modelo por excelência e fonte de inspi-
ração para as concepções liberais e libertinas dos enciclopedistas franceses.

152
2.4.1 Fases da Aufkléirung

Falar de Aujklarungen não só se justifica face à multiplicidade de interpre-


tações e às diferenças que caracterizam o movimento consoante as regiões.
O mesmo sucede com as diferentes fases que o movimento conheceu.
Apesar de não se poder distinguir com precisão entre as mesmas, uma vez
que não correspondem rigorosamente à periodização - com carácter mais
esquemático do que cronologicamente rigoroso, podendo mesmo verificar-
-se a sua sobreposição - pode-se distinguir três fases, em função das tendên-
cias predominantes ou de maior impacto.

2.4.1.1 A primeira fase da Aufkléirung (Frühaufkliirung) ( 1680-1750)

A primeira fase da Aufklarung, também designada de Frühaufkliirung


situar-se-ia entre finais do século XVII e meados do século XVIII. Tendo
como principais centros Hamburgo, Zurique, Leipzig e Halle, e principais
representantes Leibniz, Christian Thomasius ( 1655-1728) e Wolff, esta fase
tanto é produto de uma cultura urbana, como irradia da corte.

Se Leibniz ainda utiliza o latim e o francês como línguas universais por


excelência, quer da academia, quer da corte para difundir a sua mensagem
cosmopolita e tolerante, já Thomasius e Wolff, teorizadores da nova ideo-
logia da burocracia prussiana emergente, se teriam distinguido pelo recurso
à língua alemã.

Tal traço não tem de ser interpretado como uma manifestação de naciona-
lismo, prematuro no Sacro Império e numa Prússia que, segundo os crité-
rios das lutas dinásticas, se tentava libertar da vassalagem dos Habsburgo,
mas antes como mais uma tentativa de democratizar o pensamento, fazendo-
-o sair dos círculos nobres, onde a filosofia de um Leibniz ainda se movera
com à vontade. Este filósofo permaneceria de resto como uma fonte
inspiradora, seja de uma prática cosmopolita e tolerante, seja de uma visão
do progresso de inspiração metafísica.

O seu principal discípulo e divulgador foi Christian Wolff, cujas ideias escla-
recidas depressa suscitariam a desconfiança, quer da ortodoxia luterana, quer
dos influentes pietistas na cidade Halle, em cuja universidade possuía uma cáte-
dra. O seu método matemático e dedutivo muito devia a Leibniz, tendo Wolff
exercido um papel fundamental na teorização de uma prática governativa escla-
recida, que separava a pessoa do cargo em termos de poder e que viria a ser con-
sagrada na fórmula de Frederico II «O monarca é o primeiro servidor dos povos
sob o seu domínio», por oposição à clássica máxima de Luís XIV «O Estado sou eu».

153
Defendendo igualmente os valores racionalistas e a democratização da cultura
ao optar também pela língua alemã, Thomasius enveredaria por uma senda
menos teórica: invocando a autonomia do pensar contra todos os precon-
ceitos , elaborou reflexões no domínio da teoria política e jurídica,
desenvolvendo uma acção particularmente intensa no combate à persegui-
ção às bruxas.

Pode reencontrar-se o carácter geométrico e dedutivo do pensamento


wolffiano nas linhas clássicas dos palácios de Potsdam, sobretudo no Sans
Souci de Frederico II, bem como na teoria e prática dramática de um Johann
Christoph Gottsched (1700-1766), que, em Leipzig, tentava renovar a tragédia
alemã, recorrendo aos modelos do classicismo francês.

2.4.1.2 A altaAujkldrung (Hochaujkldrung) (1750-1770)

Os seus principais focos foram os centros urbanos protestantes, onde uma


burguesia relativamente autónoma se começava a afirmar: era o caso de
Hamburgo, das cidades hanseáticas como Lübeck, Bremen, Danzig, Kõnigs-
berg, ou comerciais como Basileia, Zurique ou Frankfurt am Main.

Berlim, onde Christoph Friedrich Nicolai ( 1733-1811 ), Christian Garve


( 1742-1798) e Moses Mendelssohn apelavam ao esclarecimento público,
mediante a divulgação dos ideais iluministas em camadas cada vez mais
vastas, passa igualmente a constituir um importante centro iluminista.

Esta filosofia utilitarista e de pendor essencialmente pragmático, também


designada de Popularphilosophie, encontrou os seus principais órgãos nos
jornais e almanaques que iam proliferando, de acordo com a crescente
importância que a burguesia letrada ia ganhando, assim contribuindo deci-
sivamente para a formação de uma opinião pública (cf. Cap. IIl.3).

O pensamento dedutivo e sistemático de Wolff cede o lugar à influência das


correntes empiristas e sensualistas inglesas, às ideias de Locke e à física de
Newton que, à semelhança do que sucedera noutros países, como a França,
começam a ser brandidos contra o racionalismo dedutivo. A autonomia
do pensar, a razão crítica, a verdade como processo encontram em Lessing
o seu mais perfeito e enérgico representante, que dará um significado renovado
às noções de tolerância, de educação do género humano, de progresso.

A influência inglesa e escocesa far-se-á sentir, sobretudo, em Gõttingen,


cuja recém-fundada universidade (1737) constituiria um importante centro
científico, nomeadamente no domínio da estatística, cameralística e no da
moderna antropologia e da física. Georg Christoph Lichtenberg ( 17 42-1799)

154
e Johann Friedrich Blumenbach (1752-1840) foram alguns dos importantes
nomes de um centro que ousava competir com as congéneres europeias no
domínio das mais inovadoras tendências científicas.

Lichtenberg não só se tornou célebre pelas suas lições de física experimen-


tal, como contribuiria de forma particularmente inovadora no domínio da
escrita aforística, mais uma prova de como é difícil estabelecer critérios
rígidos para a definição de uma época: o estilo fragmentário, unindo o humor
mordaz ao hermetismo da inspiração súbita, representa uma forma de
expressão aparentemente incompatível com a serenidade de uma visão do
mundo e do universo, inspirada no newtonismo.

Blumenbach pode ser considerado o mais importante representante da


recém-fundada disciplina da antropologia física; simultaneamente, a moderna
etnologia era desenvolvida por Christoph Meiners (1747-1810), que no seu
interesse por povos distantes e na sua visão etnocêntrica e claramente
racista, anunciava a evolução dessa ciência durante o século XIX.

2.4.1.3 A Spataufklarung (1770-1789)

A última fase da Aufklarung radicaliza a exigência de autonomia do


pensar, a ponto de colocar em questão a própria mensagem racionalista,
ciente da dialéctica de emancipação e de opressão a que as Luzes iam
conduzindo.

A herança pedagógica não sendo recusada, é vista com olhos cada vez mais
cépticos. O apelo à espontaneidade, à livre subjectividade, à recusa de
quaisquer modelos ecoa tanto no pensamento dos Stürmer und Dranger, como
no de Herder, para encontrar um eco problemático mas decisivo no criticismo
de Kant. Este, estimulado pelo cepticismo radical de Hume, reabilitará a
metafísica, colocando, contudo, limites à razão teórica e imprimindo novos
impulsos à razão prática.

Se bem que a influência de Rousseau fosse predominante nestas tomadas de


posição, também é verdade que elas retomavam tendências que haviam
surgido em paralelo, sobretudo, sob influência do sensualismo e do
sentimentalismo ingleses. A tónica colocada na experiência e nos sentidos
ou no sentimento, por oposição às filosofias escolásticas, baseadas num
racionalismo dedutivo e dogmático, tinha-se vindo a afirmar gradualmente,
expressão de uma burguesia culta que se tentava libertar de modelos de
contenção próprios de uma sociedade de corte e que apelava à espontaneidade
quer de afectos, quer do próprio pensar para criar alternativas à sociedade
vigente.

155
O papel do sentimento e daquilo que escapa ao controle racional, a experiência
individual não podem deixar de se manifestar neste contexto: a melancolia
hipocondríaca e a auto-observação psicológica ganham importância crescente,
patentes, por exemplo, no romance autobiográficoAnton Reiser ( 1785-1790)
de Karl Philipp Moritz (1757-1793), que editou igualmente o Magazinfür
Erfahrungsseelenkunde (1787) que tinha como objectivo «o conhecimento
analítico das paixões». Über die Einsamkeit (1785) de Johann Georg
Zimmermann é mais um exemplo das tendências melancólicas de um século
apressadamente rotulado de optimista.

2.5 A contra-cultura burguesa

Contudo, esta tendência não se reduz à fase tardia daAujklarung. A luta contra
o universo escolástico levada a cabo pelos Popularphilosophen, o zelo
reformador de um Campe ou de um Pestalozzi, a revolta de um Lessing con-
tra o teatro de inspiração francesa e o seu recurso à comédie larmoyante de
um Denis Diderot ( 1713-1784) como modelo alternativo de inspiração reve-
lam, se entendidos nesta perspectiva, claras afinidades com as reivindica-
ções dos jovens Stürmer und Driinger, que radicalizarão estas tendências.

O próprio pietismo foi também um elemento catalisador destas aspirações,


com o seu apelo à praxis pietatis (de resto determinante para a ética de um
Kant) , a sua ênfase na relação sentimental e individual com Deus, a sua
prática reformadora e pedagógica.

Pode, pois, afirmar-se que, não obstante as divergências, entre os adeptos da


razão ou do sentimento, sentidas então de forma particularmente aguda,
como o provam as querelas entre pietistas e wolffianos em Halle, as invectivas
contra o Werther (1774) de Goethe por parte de um Lessing ou as polémicas
entre Herder e Kant, as várias tendências reflectem um sentimento
generalizado de oposição a modelos teóricos distantes da prática, elitistas e
escolásticos, avessos à manifestação da liberdade e da autonomia indivi-
duais e que podem ser lidos como reacção à etiqueta e convenção em que a
sociedade de corte fundamentava as suas relações de poder.

2.6 O emergir de uma consciência nacional?

Algumas destas tendências viriam a ser interpretadas por uma historiografia


de pendor essencialmente nacionalista como manifestações de uma cons-
ciência nacional alemã de que a burguesia teria sido a principal porta-voz.

156
Se é certo que tal leitura faz algum sentido, na medida em que esse surto
intelectual desempenharia um papel determinante para os futuros movimen-
tos nacionalistas, criando mesmo uma certa identidade cultural, através de
uma cultura e língua comuns, também é verdade que as diferenças regionais
se continuaram a fazer sentir. A rejeição dos modelos de corte constitui
antes uma reacção essencialmente social, distante de uma ideia de Estado-
-nação totalmente anacrónica para o espaço cultural alemão do século XVIII.

Apesar de uma crescente noção de identidade alemã, patente por exemplo


nas críticas mais ou menos veementes de um Herder à superficialidade dos
enciclopedistas, ao verniz francês, há que salientar que o ilustrado Frede-
rico II só concordava com este na partilha do cepticismo face ao projecto
enciclopédico de D' Alembert e de Diderot, vendo, de resto, com descon-
fiança as prestações alemãs no domínio da literatura e da cultura. O seu
desprezo pelo Goetz von Berlichingen de uin Goethe e pela língua e litera-
tura alemãs em geral, não serão tanto de estranhar num homem culto e musical
como o foi o rei da Prússia, se se tiver em consideração que o seu modelo
cultural era essencialmente o da corte francesa, com os seus códigos de
etiqueta e regras que se adequavam bastante melhor à estrutura de poder que
representava, pesem embora todas as reformas que empreendeu no sentido
de tomar mais flexíveis e eficazes esses modos de conduta e de funciona-
mento (Elias 1973). Saliente-se que Frederico II desempenharia um papel
determinante no sentido de reforçar e afirmar o poder político de um Estado
alemão, a Prússia, papel esse de forma alguma incompatível com a sua
francofilia.

Atribuir ao programa de um teatro nacional de Lessing um cunho quase


xenófobo equivale a conferir tendências anacronicamente nacionalistas que
só encontraram expressão teórica nos Reden an die deutsche Nation de Fichte,
após a ocupação napoleónica. Ao recusar o modelo gottschediano, reivin-
dicando como alternativa um teatro nacional e burguês, Lessing fá-lo com
recurso a modelos que não os alénães, invocando a originalidade da tra-
gédia grega ou a genialidade do drama shakespeariano. O culto da espon-
taneidade, a recusa da rigidez das regras atesta muito mais a busca de novos
modelos sociais, do que a exaltação de um nacionalismo fechado sobre si
mesmo.

O mesmo se pode verificar noutro campo, o da música. Quando Wolfgang


Amadeus Mozart (1756-1591) opta pela língua alemã, nos Singspiele, Die
Entführung aus dem Serail (1782) e Die Zauberflote (1791), fá-lo para
divulgar mensagens de tolerância e de igualdade universal.

Mas não se esqueça que o mesmo sucederá com Le Nozze di Figaro ( 1786),
onde, em língua italiana, o subordinado, Figaro, canta «Se vuol ballare signor

157
contino», desafiando a autoridade feudal, embora num tom bastante mais
brando do que na peça de Beaumarchais que lhe servira de inspiração.
Contudo, dois anos depois da Revolução Francesa, Mozart compunha por
ocasião da coroação de Leopoldo II, La clemenza di Tito (1791), agora
preferencialmente para a corte.

O mesmo já não sucedia com Die Zauberflote destinada ao moderno


público que, reunido num espaço próprio para o efeito, podia, mediante
aquisição de um bilhete ou de uma subvenção através de assinatura,
gozar dos prazeres da música, o que constitui mais uma manifestação de
uma importante evolução verificada ao longo do século XVIII (cf. Cap. III.3).

2. 7 Identidade europeia e colonialismo

Já houve ocasião de assinalar o modo como o cosmopolitismo das Luzes


coabitou com a multiplicidade regional. Mas se este cosmopolitismo surge
essencialmente associado a uma noção de identidade europeia crescente,
esta careceu de realidades a ela alheias para se afirmar. Essa diferença,
necessária para a construção de uma identidade, irá ser encontrada na alteri-
dade por «civilizar» ou em vias de se colonizar.

A reorganização do espaço (cf. Cap. III.3) não se limitou à criação de uma


esfera de contra-poder ao Estado absolutista, quando este deixou de cor-
responder aos interesses da burguesia em expansão; a sua reorganização irá
igualmente reflectir a estreita interdependência entre a afirmação dos valo-
res da civilização europeia e os do colonialismo.

O domínio do espaço encontra o seu mais perfeito equivalente na moderna


cartografia, que substitui as perspectivas múltiplas e a representação táctil
3 Recorde-se que será somente das paragens, para que remete, por um ângulo único e pela abstracção e
no século XVIII que a inven-
ção do cronómetro por John
precisão que o cronómetro lhe permitiu para calcular a longitude 3 . A pers-
Harrisson permitirá o cálculo pectiva única erige-se em absoluta e confere a segurança de um olhar monolí-
da longitude, mediante a
fixação da diferença entre a
tico e avassalador: é esse olhar, subjectivo e eurocêntrico, que permite a
hora local e a hora do local de localização precisa da alteridade.
partida. James Cook transpor-
tará consigo, na sua segunda
...
circumnavegação ( 1772- Para além do olhar subjectivo, dependente de uma perspectiva única, da
-1775) o referido instrumento, abstracção e da precisão dos mapas, estes reflectem um dado essencial:
pelo que poderá não só loca-
lizar com precisão ilhas e os limites dos continentes encontram-se traçados, o mundo é conhecido,
arquipélagos já anteriormente torna-se mais pequeno. As grandes potências coloniais rivalizam pela
descobertos , entre outros, por
navegadores portugueses, hegemonia do globo, mas cientes agora dos seus limites, a expansão é subs-
mas também empreender tituída por uma política de ocupação de territórios em que a Grã-Bretanha e
uma cartografia exacta dos
mesmos. a França constituirão, passada a época de ouro da conquista espanhola, os

158
principais protagonistas. Ocupar equivale ainda a descobrir o interior dos
continentes por explorar, avaliar dos seus recursos, em termos de flora e de
fauna, de acordo com a nova racionalidade do capitalismo ocidental (Max
Weber).

À semelhança da descoberta dos domínios da psicologia mais recôndita,


depois de garantida a supremacia da subjectividade racional, a nível do
conhecimento e tal como sucedera com o individualismo, que, no seu
auto-centramento se tornara responsável pelo aflorar da melancolia, da
hipocondria e pela suspeita de uma irracionalidade, porventura, indo-
mável , do mesmo modo o «civilizado» descobre, com minúcia e atenção
1 crescente, o outro não-europeu, cada vez menos estilizado, cada vez mais
enigmático.

Se é verdade que o processo de colonização e de civilização não é radi-


calmente questionado , partilhando alguns dos seus maiores críticos,
como um Herder, das tentações hierárquicas, que tendem a colocar o
«homem branco» no seu topo, também é certo que o projecto colonizador
cria, na sua convicção de uma superioridade mais ou menos segura, as
condições para, com algum sentimento de superioridade, mas também de
tolerância e curiosidade genuína, se analisar esses povos distantes. Por vezes,
a suspeita surge de novo: talvez o «bom selvagem» não seja uma abstracção,
como é o caso dos habitantes de Taiti, redescobertos pelo francês Louis-
-Antoine de Bougainville (1729-1811) e pelo inglês James Cook (1728-1779),
observados pelo alemão Georg Forster (1754-1794), fundando assim, o mito
do Pacífico que, banalizado e erigido a mais uma fonte de consumo, se man-
tém até aos nossos dias.

M as a alteridade é ainda frequentemente recuperada pelos interesses


europeus: seja para ser dizimada, como acontece com os indígenas do Novo
Mundo, seja para ser escravizada, como sucede com os africanos na
América do Norte ou Central, seja para se erigir em fonte de crítica velada
à Europa. Os chineses, persas, hurões adquirem as feições do «homem
branco», à semelhança do pavilhão chinês de Frederico II, onde a alteridade
adquire traços de um exotismo meramente decorativo.

Mas, por detrás dessa construção, acena a reivindicação genuína da tole-


rância como sucede com a Palestina imaginária de um Nathm"r der Weise,
propondo a legitimidade de todas as religiões, desde que na esfera prática
se revelem positivas, ou a Turquia de Mozart em Die Entführung aus dem
Serail, onde um Oriente estilizado, depois de dominado, serve de pretexto
para se difundir uma imagem de reconciliação tolerante, pesem embora
todos os estereótipos sobre o «cão turco», mesmo sob a forma caricatural
de Osmin.

159
"
Contudo, as viagens no século XVIII não se reduzem às grandes expedições
científicas, nem aos cenários mais ou menos exóticos do drama ou do Singspiel
burgueses.

A reorganização do espaço efectua-se também através da política mercanti-


lista, praticada um pouco por toda a Europa, de tornar as vias de comuni-
cação mais eficazes. Antes da introdução das vias férreas, constroem-se
estradas, canais, reivindica-se melhores transportes.

Já então se sabia da importância da comunicação para o incremento


das trocas e do modo como os lucros aumentam, na proporção exacta da
)
rapidez com que as mesmas se fazem. É na mesma época que a Revo-
lução Industrial é anunciada pelo investimento nos caminhos de ferro,
inaugurando uma era radicalmente nova para a Europa e o mundo dela
dependente.

2.7.1 O Pacífico: ciência do Homem e mito

Se é certo que em termos globais não se pode afirmar o atraso generalizado


da Alemanha, a verdade é que os territórios de expressão alemã também não
podiam rivalizar com as duas grandes potências europeias, a Grã-Bretanha e
a França, que, na altura, disputavam a hegemonia mundial.

Assim, os alemães raramente faziam viagens com outros intuitos que não os
do comércio ou da formação individual (cf. Cap. 11.2.3). Contudo, as
descobertas internacionais não deixariam de exercer um importante papel
na Alemanha contemporânea. O mito de um paraíso redescoberto e dos seus
habitantes, enquanto personificação do «bom selvagem» viria a ganhar
redobrado interesse com a publicação de Reise um die Welt ( 1784) de
Georg Forster.

Assinale-se, contudo, que o original da obra fora inicialmente publicado na


Grã-Bretanha em 1777, em inglês, e só posteriormente o seu jovem autor
traduziria o mesmo para língua alemã, de resto com dificuldade, uma vez
que passara a sua adolescência em Inglaterra.

O facto de poder publicar o respectivo relato provinha de condições de


excepção para um alemão contemporâneo. Georg Forster tivera a opor-
tunidade de acompanhar o célebre Capitão Cook, na sua segunda viagem à
volta do mundo (1772-1775), podendo assim, observar directamente reali-
dades e culturas tão diferentes e exóticas como as dos habitantes da Terra do
Fogo, da Nova Zelândia, das diferentes Ilhas do Pacífico.

160
É certo que a recepção da obra na Alemanha viria a acentuar os elementos
utópicos, sobretudo da Ilha de Taiti, já celebrada por Bougainville no seu
relato de outra circumnavegação ao serviço da Coroa francesa.

Por outro lado, também é verdade que o modo como o jovem Georg Forster
registaria objectos, costumes e línguas dos povos observados fazem dele um
dos pioneiros da moderna antropologia. O relato constituiria uma fonte
preciosa, quer para os académicos alemães que descobriam, em simultâneo
com os seus congéneres ingleses e franceses, a «Ciência do Homem», quer
para um Herder, com quem Forster manteria uma relação de apreço e de
admiração mútua.

2.7.2 Viagem e utopia

Contudo, muitos dos contemporâneos reterão dessa viagem não tanto o


elemento científico como a promessa de um mundo diferente, alternativa ao
quotidiano por demais deficitário da Europa.

A viagem que ganhara contornos cada vez mais didácticos, funcionando


como grande experiência de vida em sociedade, para a sociedade de corte,
ou de abertura de horizontes e de Bildung (cf. Cap. 11.2), redefine-se de
forma aparentemente paradoxal , quando não prossegue os seus objectivos
predominantemente utilitários e comerciais. A monotonia do mundo bur-
guês, no seu cálculo e previsibilidade, apela à aventura; os primeiros fumos
industriais despertam a nostalgia pela natureza incólume.

Goethe foge para Itália, o círculo em torno do círculo literário do Gõttinger


Hain sonha em construir uma Arcádia em Taiti, dirigindo-se ao único
alemão culto que conhecia o Pacífico, Georg Forster, para apadrinhar o seu
projecto. O Sul representa a utopia: no Pacífico ou em Itália. Busca-se as
origens da humanidade ou da Europa, procura-se consolo para uma
subjectividade cada vez mais desencantada com os espartilhos da civilização
europeia.

Mas, na Alemanha, o Sul pode conter conotações diferentes. Tal como


Georg Forster descobre que o paraíso entrevisto não existe em Taiti, também
a Itália e o Sul da Europa podem funcionar como vestígios de um pas-
sado obscurantista e católico, por oposição ao modelo britânico e liberal.
Lichtenberg e Wilhelm von Archenholtz (1742-1812) preferem a sociedade
inglesa, estabelecendo uma cisão clássica Norte-Sul, de conotações opostas
às de Goethe, que mesmo actualmente, em plena era de união europeia,
continua presente.

161
Entre o sonho cosmopolita e a identidade europeia, alguns hiatos vinham-se
a estabelecer, criando novas cisões, em que a diferença dificilmente era
reconhecida na sua especificidade ou, a sê-lo, corria, por vezes, o risco de
ser instrumentalizada segundo os padrões omnipotentes de uma civiliza-
ção tida por superior.

2.8 As Luzes e a dialéctica da emancipação e da opressão:


selvagens, mulheres, crianças, loucos e judeus

O cosmopolitismo das Luzes pode ser lido segundo duas vertentes: por um
lado, a universalidade dos seus pressupostos assenta no princípio da igualdade
essencial de todos os homens, assim criando o fundamento de uma mensa-
gem e prática igualitárias que, juridicamente, ignoravam a diferença, para
reconhecer todos os seres humanos, homens e mulheres, cristãos e judeus,
católicos e protestantes, crentes e ateus, brancos e negros.

Simultaneamente, a crescente influência das correntes empiristas e sensua-


listas lançava as bases para o reconhecimento da diferença, olhar por detrás
do qual se erguem as grandes construções da moderna antropologia,
etnologia, ginecologia, psiquiatria e pedagogia infantil.

É certo que o século XVIII soube permanecer, em geral, fiel aos princípios
universalistas, reconhecendo-se por detrás das diferenças que a experiência
captava e analisava a essência comum a tudo o que era humano; por outro
lado, do mesmo modo que o discurso das Luzes não evitara que o seu
cosmopolitismo se tornasse predominantemente eurocêntrico, também a
prática consagraria a desigualdade, estilizando a diferença feminina, a
inocência da criança e do selvagem, ou regulamentando o tratamento psi-
quiátrico, a fim de melhor exercer o poder.

Se é verdade que o Sacro Império não pôde rivalizar em termos coloniais


com a Grã-Bretanha e a França, tal situação não impediu os territórios alemães
de terem acesso a objectos e dados essenciais para a criação das modernas
antropologia e etnologia; as suas universidades, academias e revistas não
deixaram de participar, de forma mais distanciada e, por isso, mais reflecti-
da nos mesmos debates.

Foi na Universidade de Gõttingen que a antropologia física conheceu um


maior desenvolvimento, dadas as estreitas relações com as suas congéneres
britânicas. Blumenbach interveio de um modo decisivo nos debates científi-
cos sobre a reprodução biológica e sobre a classificação dos grupos huma-
nos, Meiners era lido com interesse pelos futuros membros da sociedade dos
Observadores do Homem em França, as investigações anatómicas de um

162
)
Samuel Thomas Sõmmerring (1755-1830) eram acolhidas pela comunidade cien-
tífica internacional. Por sua vez, o orientalista Johann David Michaelis ( 1717-
-1791) não só contribuía para a construção da linha imaginária que demarca-
ria, agora com novos fundamentos científicos e etnológicos, a fronteira entre o
Oriente e o Ocidente, como era encarregue de elaborar instruções para uma
expedição de Carsten Niebuhr ( 1733-1785), segundo os moldes de uma pes-
quisa que pretendia unir a observação empírica à sistematização desses dados.

Mas se a distância permitia um maior potencial reflexivo, ela não invalidava


a adesão ao discurso eurocêntico: a diferença era registada para, esquecida
1 gradualmente a igualdade essencial entre todos os homens, sob a presença
imediata da empiria4, se postular uma nova desigualdade baseada nos traços 4 Empiria - os dados que se
oferecem aos nossos sentidos
meramente físicos, desigualdade essa que viria a constituir o fundamento do e que constituem o objecto da
racismo biologista no século XIX. experiência e - sobretudo,
para a corrente empirista - o
fundamento e a condição sine
Também em Gõttingen, as mulheres começavam a dar que falar: as filhas de qua 11011 de todo o conhe-
famosos docentes universitários, como Caroline Michaelis (1763-1809), cimento.

futura mulher do filólogo August Wilhelm Schlegel (1767-1815) e do filó-


sofo Joseph Schelling (1775-1854), e Therese Huber (1764-1829), filha do
classicista Christian Gottlob Heyne (1729-1812) mais tarde casada em
primeiras núpcias com Georg Forster, causavam escândalo com o seu
comportamento heterodoxo inspirando humana e literariamente alguns dos
mais importantes protagonistas da vida cultural contemporânea.

Mas, se em 1792, o chefe da polícia de Kõnigsberg, Theodor Gottlieb von


Hippel (1741-1796), ousava defender o belo sexo em Über die bürgerliche
Verbesserung der Weiber, já o seu conterrâneo Kant lhes recusava peremptoria-
mente o acesso ao espaço público, à semelhança de outros seres dependen-
tes, como os assalariados. A crescente atenção para com a mulher não impediu,
antes reforçou, a sua clausura no espaço doméstico, acompanhada das crianças
que deveria educar segundo modelos que lhe eram ditados por parâmetros
masculinos, restando como forma de expressão o romance intimista, fre-
quentemente escrito sob pseudónimo. As dificuldades de integração social
de Caroline Schlegel-Schelling e de Therese Forster-Huber não deverão ser
esquecidos perante o colorido das suas vidas amorosas. A marginalidade era
o preço a pagar por uma vida em que a livre opção individual era marcante.

Mesmo a emancipação judaica seria feita a expensas de uma assimilação


f
excessiva, como o prova a acção empenhada de um Moses Mendelssohn,
por vezes sem contrapartida prática, como sucedia na Prússia sua contem-
porânea. Tal como as mulheres, a minoria judaica teria de se satisfazer na
Alemanha dos séculos XVIII e XIX com a sua marginalização nos ghettos,
ou com a interdição generalizada de ocupar cargos públicos (cf. Cap. IV.2,
o ponto 2.8).

163
A pedagogia não evitara a mesma dialéctica de libertação e de opressão, ao
racionalizar formas de domínio e de contenção do corpo bem mais subtis do
que aquelas que as práticas obscurantistas haviam permitido e encorajado.

Recorde-se o que, na Prússia Oriental, Kant escrevia acerca dos jogos e


brincadeiras infantis e da sua importância (ou instrumentalização) pedagógica:

Diesen Spielen zu gut versagt sich der Knabe andere Bedürfnisse, und
lemet so allmahlich auch etwas anderes und mehr entbehren. Zudem wird
er dadurch an fortdauernde Beschaftigung gewi:ihnt, aber eben daher darf
es hier auch nicht bloBes Spiel, sondem es muB Spiel rnit Absicht und
Endzweck sein. Denn, je mehr auf diese Weise sein Ki:irper gestarkt und
abgehartet wird, um so sicherer ist er vor den verderblichen Folgen der
Verzartelung. (Kant 1988b: 727)

A descoberta, nomeação e aprisionamento da alteridade não-europeia, não-


-adulta, não-masculina constituiu um elemento essencial do processo de
constituição de novas identidades, a europeia, a adulta, a masculina. É neste
processo de emancipação e de dominação, de colonização e de libertação
que a dialéctica das Luzes se torna gritante: o seu fundamento encontra-se
no capitalismo vitorioso que, libertando novas possibilidades económicas e
tecnológicas, internacionalizando e liberalizando as trocas, criou novas formas
de opressão e de exploração, nada deixando incólume, nem mesmo as nações
«atrasadas».

A diferença observada e hierarquizada, corria o risco de se sobrepor à


igualdade postulada e de esquecer os programas tolerantes anteriormente
defendidos. É neste contexto que a dialéctica das Luzes se torna por demais
evidente: no seu furor emancipatório e reformador, o século XVIII apresenta
importantes acções no domínio da pedagogia infantil, no reconhecimento
da potencial igualdade entre religiões, sexos e «raças», descobre e analisa,
com a distância benevolente que a certeza da sua superioridade civilizacional
lhe confere, essas formas de alteridade. É a essa tradição que ainda
actualmente em todo o mundo se recorre para defender os direitos cívicos
das mulheres, das minorias étnicas, das crianças, dos deficientes. Mas também
é verdade que, da mesma maneira que as classes se antagonizavam, divididas
entre os interesses e as necessidades do capital e do trabalho, o mesmo sucedia
entre a Europa e o mundo colonizado, entre homens e mulheres, entre adultos
e crianças, «civilizados» e «selvagens», «loucos» e «normais».

A modernidade encontra-se assim estabelecida, naquilo que tem de pior


e de melhor. A actual reivindicação feita em nome de minorias ou de
maiorias silenciadas inspira-se ainda e é herdeira dos impasses e promessas
das Luzes. Só ela permite compreender o apelo ao direito à diferença radi-
cal, que, no final da década de sessenta do nosso século, começou a ecoar.

164
O feminismo, o anticolonialismo, o anti-racismo, a anti-psiquiatria revêem
esses parâmetros. Prolongamento ou fim da herança moderna? É certo que o
debate continua por encerrar. Contudo, a análise diferenciada do século da
razão e do sentimento mostra uma realidade mais colorida e complexa que
os seus
detractores pretendem, presas de visões derivadas e leituras excessivamente
abrangentes, e por isso, redutoras.

Bibliografia recomendada

Para uma introdução ao século XVIII na Alemanha recomenda-se a leitura


de Vierhaus 1988, Amarante 1983, da introdução de Grimminger 1980 e
Moller 1986. Para uma visão mais abrangente consulte-se Hazard 1983 e
J
Cassirer 1932. Para o tema das viagens e do confronto com a alteridade
leia-se o capítulo «Reiseliteratur» de Wolfgang Griep em Grimminger 1980:
739-765.

Actividades propostas

• LeiaNathan der Weise e caracterize o programa de tolerância proposto


nesse mesmo texto.

• Comente o texto de I. Kant «Was ist Aufklarung?» e relacione-o


com os temas abordados ao longo deste capítulo.

• Oiça Die Zauberflote de Mozart e analise a música e o respectivo


libreto à luz das considerações do presente capítulo: papel da razão e
do sentimento, do mundo masculino e feminino, classes sociais.

• Analise os excertos de Max Weber transcritos no presente capítulo,


indicando os principais argumentos.

M. R. S.
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165
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3. A formação do espaço público


Resumo

Descreve-se o contexto do emergir do espaço público durante o século XVIII


como local onde a burguesia começou a manifestar formas de contra-poder
ao regime absolutista predominante; refere-se a cisão entre a esfera pública
e privada em correlação com as transformações surgidas a nível político,
económico e social e consequentes manifestações no domínio cultural, na
vida quotidiana e nas mentalidades.

Objectivos

• Associar o emergir do espaço público burguês no século XVIII com


as transformações económicas e sociais suas contemporâneas na
Europa e na Alemanha do século XVIII.

• Relacionar o espaço público com o emergir da família burguesa e a


correspondente redefinição da intimidade e redistribuição dos papéis
sociais.

• Avaliar o modo como o espaço público se foi afirmando em vários


campos, com particular destaque para o teatro, a música e as
sociedades secretas .

...

169
3.1 A contra-cultura burguesa

Embora o século XVIII não possa ser lido unilateralmente como o século da
racionalidade burguesa, como atrás foi referido, também é verdade que,
durante o mesmo, se assistirá ao emergir de uma contra-cultura decisiva
para a futura evolução da Europa e que se pode resumir esquematicamente
do seguinte modo:

• à sociedade absolutista fundada na representação e centralização


do poder, a contra-cultura burguesa oporá a delegação e divisão de
poderes;

• contra a sociedade de corte, regida pela etiqueta e pela contenção,


esquematizadas em códigos racionais e convenções assumidamente
artificiais e, por isso mesmo, tanto mais respeitadas (Elias 1983), a
burguesia reivindicará uma racionalidade, que se baseie na expe-
riência e nos sentidos, e o direito ao sentimento, à espontaneidade
e à sinceridade.

A afirmação de uma contra-cultura burguesa não teria sido possível sem


as transformações económicas e sociais, associadas com a afirmação do
moderno capitalismo, no seu processo de gradual racionalização, e que
também se manifestam numa evolução essencial nos conceitos de espaço e
de tempo.

3.1.1 O tempo

O tempo passa a ser cronometrado, medido: acerta-se a hora pelo relógio,


isto é, segundo normas sociais que não coincidem com a hora solar natural,
passando o tempo a ser contabilizado em termos de lucro, consoante a máxima
de Benjamin Franklin (1706-1790) «tempo é dinheiro» .

O aceleramento do ritmo de trabalho, associado à disciplina e à pontuali-


dade necessárias em função da divisão de trabalho na manufactura, onde os
trabalhadores se agrupam para desempenhar tarefas distintas mas, por isso
mesmo tanto mais interdependentes, evidencia também uma nova concepção
e vivência do tempo, intimamente associadas às transformações espaciais.

Por outro lado, o tempo cíclico, condicionado por uma visão teocêntrica do
mundo que afastava qualquer ideia de progresso terreno, tempo esse inspirado
pelo regresso permanente das estações e do fluir de uma semana que consagra
o domingo como o dia do repouso e da celebração da transcendência, é
substituído por uma noção de tempo linear, orientado para o futuro, que,

171
constitui a condição de realização do progresso. As visões escatológicas,
que anunciam ou prometem a redenção e o paraíso no fim dos tempos, são
substituídas pela filosofia da história que interpreta o passado e o presente
em função do futuro e enquanto etapas nesse processo de aperfeiçoamento
terreno.

3.1.2 O espaço

O espaço passa a ser concebido como um momento desse universo secula-


rizado: para a Europa no auge da sua fase colonial, o mundo é, por um lado,
mais pequeno, na medida em que já não existem territórios incógnitos nem
terras por cartografar, por outro, é maior, na medida em que a identidade e
o poderio europeus se definem face ao espaço colonizado.

Subjacentes a esta nova forma de experienciar e definir o espaço, encon-


tram-se as acima referidas concepções de tempo e de progresso: o espaço
não-europeu é simultaneamente associado a uma distância não apenas
espacial, mas também temporal. Os não-europeus serão potencialmente
iguais, mas representam estádios anteriores da história da humanidade.

Mas esta evolução na concepção do espaço encontra-se também intimamente


associada às novas formas de produção que antecedem e acompanham os
primeiros passos dados na industrialização da Europa - intimamente
associada com a nova fase colonial, em que a Grã-Bretanha se tornará não só
o centro da Revolução Industrial mas também se afirmará como a grande
potência mundial - , criando outras divisões fundamentais para a com-
preensão daquilo que caracteriza o século XVIII e a sociedade burguesa: a
separação entre espaço público e privado.

A antiga união entre produção e habitação, de que a grande família é o


principal núcleo, como centro de uma economia pré-industrial, isto é, rural,
cede gradualmente o lugar a uma separação entre o domínio da produção e
do consumo: a antiga família rural, que, de resto, sobreviverá ao longo de
todo o século XIX e mesmo ainda no século XX nas zonas menos
industrializadas, é o local onde se lavra o terreno e se fabrica os objectos de
consumo necessários que não os que a agricultura fornece. As primeiras
unidades de produção da futura industrialização surgem no seio da família,
onde os tecelões trabalham as matérias-primas que os intermediários lhes
fornecem, permanecendo assim esse trabalho predominantemente doméstico.

Com o incremento da industrialização, surgem as primeiras manufacturas


de produção fora desse mesmo espaço, divisão essa que não só consagra a
separação entre a unidade de produção e de consumo, como a separação

172
entre capital e trabalho: os assalariados que trabalham as matérias-primas
não são proprietários nem destas nem dos objectos com que as transformam,
não lhes pertencendo igualmente o espaço onde realizam essas mesmas
tarefas.

A produção ocupa o lugar essencial na nova ordem económica em expan-


são, pelo que para a burguesia o poder, as decisões políticas e económicas
serão transferidas para o escritório, a loja ou a manufactura, cada vez mais
separados da esfera de consumo, a residência.

3.2 Público e privado

3.2.1 Espaço público e iniciativa privada

A noção de um espaço público, tal como começa a emergir durante o século


XVIII, em primeiro lugar e sobretudo, em Inglaterra, decorre de uma viragem
essencial. Esse novo espaço público não coincide com a esfera do Estado,
mas constitui antes um local à margem das instituições colectivas - ou
públicas, embora noutro sentido da palavra - , local esse onde vontades
privadas se manifestam na sua individualidade, podendo opor-se ou contestar
a ordem económica e política vigente:

Bürgerliche Õffentlichkeit la.Bt sich vorerst als die Sphare der zum Publi-
kum versammelten Privatleute begreifen; diese beanspruchen die obrig-
keitlich reglementierte Õffentlichkeit alsbald gegen die õffentliche Gewalt
selbst, um sich mit dieser über die allgemeinen Regelo des Verkehrs in der
grundsatzlich privatisierten, aber õffentlich relevanten Sphare des Waren-
verkehrs und der gesellschaftlichen Arbeit auseinanderzusetzen. Eigen-
tümlich und geschichtlich ohne Vorbild ist das Medium dieser politischen
Auseinandersetzung: das õffentliche Rasonnement. (Habermas 1962: 42)

Tal evolução pressupõe portanto o aparecimento de uma actividade económica


autónoma que não se inscreve nos tradicionais circuitos de produção e
distribuição, pelo que os seus principais porta-vozes e protagonistas serão os
membros oriundos da burguesia mercantil ou culta, que gradualmente se
emancipa económica e culturalmente.

A divisão entre um espaço público e privado favorece portanto o emergir de


uma opinião pública, à margem das instituições consagradas, opinião pública
que se manifesta consequentemente como contra-poder. A respectiva insti-
tucionalização conhecerá as suas primeiras manifestações em Inglaterra, com
a Glorious Revolution em 1688 que, depois do primado do regime absolutista
dos Stuarts, recuperará o poder parlamentar, conferindo-lhe agora um cunho

173
diferente, conforme com as novas necessidades políticas e económicas e con-
sagrando a primeira divisão de poderes: ao monarca compete apenas a exe-
cução (poder executivo) das leis e decisões do parlamento (poder legislativo).

3 .2.1.1 A sociedade de corte e a representação

A nobreza de corte não conhecia esta cisão, sendo todo o seu quotidiano
atravessado pela encenação de rituais fundamentais para o exercício do poder,
que se fundava essencialmente na representação. A cisão entre aparência e
essência, entre simulação e autenticidade era aí inexistente, uma vez que o
poder coincidia em absoluto com a forma que o exteriorizava.

Tal entendimento do poder manifesta-se tanto na importância do ritual e da


pompa exterior no culto da Igreja católica, como no papel decisivo das regras
de encenação do poder nas cortes absolutistas. Tanto num caso como no
outro, a autoridade era entendida como dependendo fundamentalmente de
uma força legitimada a partir de uma entidade exterior a ela (origem divina
do poder do Papa, do imperador ou do monarca), que os rituais reproduziam.
O poder não é passível de ser delegado, entendimento este que pressupõe
uma cisão entre exercício e legitimidade do poder.

3.2.1.2 Divisão do trabalho e delegação do poder

Tal entendimento do poder passará a ser questionado a partir do momento


em que o mesmo se verá obrigado a auto-legitimar-se, como sucede de forma
exemplar no Leviathan (1651) de Thomas Hobbes (1588-1679), onde a
autoridade é descrita como o resultado de um acordo entre indivíduos que
cedem todos os seus direitos com vista à preservação da paz. O carácter
totalitário deste projecto político é-o apenas de forma aparente, na medida
em que a época não conhecia uma noção de individualidade e de intimidade,
como a era burguesa o viria crescentemente a afirmar. Mas, sobretudo, o que
se adivinha na proposta hobbesiana é a distinção entre exercício e legi-
timidade do poder. Este só surge legitimado na medida em que passa a
depender de um acordo ou contrato previamente estabelecido entre indiví-
duos livres e iguais quê voluntariamente abdicam da sua liberdade e igual-
dade, isto é, consentem na respectiva delegação, assim tornada forçosamente
provisória. Tal concepção da legitimação do poder pressupõe exactamente a
cisão entre a prática do poder e a sua fundamentação abstracta e teórica,
cisão que reproduz a separação entre o domínio prático e do trabalho e o da
teoria individual, cuja distância a família burguesa garantia e tomava possível.

174
3.2.1.3 Espaço público e afirmação da contra-cultura burguesa

Assim o espaço reorganiza-se em função das novas necessidades de pro-


dução e relações de poder. O poder político do Estado absolutista e das
instituições centralizadoras a ele ligadas conhece uma crescente contestação
e pulverização, sobretudo através dos sectores em que a burguesia letrada
consegue afirmar-se com crescente independência.

A imprensa, a literatura, tornam-se focos de uma crescente afirmação


da opinião pública; os cafés, os teatros e as salas de concertos vão-se
enchendo de frequentadores, que livremente dissertam, observam, ajuí-
zam, criando assim os fundamentos dos correspondentes juízos políticos e
estéticos, a partir dos quais avaliam a ordem vigente, quer a nível social,
quer artístico.

Este processo revela como a afirmação desta contra-cultura burguesa não


teria sido possível sem a gradual criação de novos espaços ou sem a reor-
ganização dos mesmos. Por outro lado, demonstra até que ponto essa con-
tra-cultura é também a manifestação de forças económicas que, na esfera
privada, se organizam com crescente soberania em relação ao domínio da
esfera do poder político do Estado absolutista.

Se este processo surgiu de forma precoce em Inglaterra, fruto de uma socie-


dade economicamente mais desenvolvida e dos consequentes mecanismos
políticos daí subsequentes, as mesmas tendências também se irão manifestar
no continente europeu, embora com evoluções distintas.

A França terá que aguardar o eclodir da Revolução Francesa para que


a respectiva institucionalização a nível político seja possível, tendo os Esta-
dos alemães que esperar por mais algumas décadas até que a mesma
implantação se verifique. Contudo, a formação de uma intelectualidade
consciente da sua diferença constituirá um elemento decisivo para a afirmação
do projecto iluminista nos territórios de expressão alemã, no decurso do
século XVIII.

A burguesia letrada, juristas, conselheiros, funcionários da corte, embora


dela dependentes criam uma cultura própria: contra o direito consue-
tudinário assiste-se na Europa - à excepção da Grã-Bretanha, o que
prova o modo como a nobreza aí se soube adaptar, de modo a poder
garantir a manutenção dos seus privilégios - a uma crescente recupe-
ração da tradição do direito romano, que consagra os princípios legis-
ladores a partir de um texto escrito, que fixa de modo abstracto e uni-
versal os direitos, deveres e penas. A tal recuperação não será estranha
a reivindicação por parte da burguesia do princípio da igualdade - abs-
tracto e universal - contra o privilégio feudal e nobre - concreto

175
e particular. Saliente-se que esta particularidade não pode ser con-
fundida com a esfera privada que se irá afirmando no espaço burguês,
na medida em que aquela tenderá a garantir a manutenção dos prin-
cípios da nobreza dominante na era feudal, universalizando dentro do
seu território particular os seus privilégios (leis particulares apenas neste
sentido).

O emergir desta nova noção de poder faz-se com a afirmação do poder


absolutista que carece do apoio da burguesia de modo a fazer face a
outros poderes particulares, pelo que a monarquia viverá da tensão entre
a nova classe emergente e a adaptação da antiga nobreza feudal às
novas necessidades políticas e económicas. Contudo, a monarquia abso-
lutista caracterizar-se-á pela centralização e concentração dos poderes
que a burguesia numa fase mais avançada, no decurso da afirmação
do seu poder económico, passará gradualmente a contestar, de modo
a obter uma institucionalização mais eficaz e adequada às suas neces-
sidades.

Saliente-se que no espaço de expressão alemã a evolução correspon-


derá, consoante as tendências regionalistas desse mesmo território,
a uma evolução particular. Assim, os Estados mais vastos como a Prús-
sia e a Áustria podem até certo ponto equiparar-se com as modernas
monarquias, como o provam de resto as medidas de racionalização
introduzidas nos mesmos, sobretudo durante a vigência dos reinados
dos respectivos déspotas iluminados - Frederico II na Prússia, Maria
Teresa e José II na Áustria, - havendo, contudo, que recordar que estes
não contam com a existência de uma burguesia mercantil autónoma.
O mesmo já não sucederá nas cidades livres hanseáticas, onde as tradi-
ções burguesas permitem o florescimento de um ideário liberal que rede-
fine o exercício do poder, enquanto que os pequenos Estados dependen-
tes sobretudo do poder da corte ainda se mantêm apegados a uma
particularidade feudal, se bem que modernizada, através da imitação de
Versalhes. Contudo, a diminuta importância política e territorial destes
últimos, embora promova uma certa racionalização das estruturas burocráticas
corresponde mais a um feudalismo modernizado do que a uma efectiva
reorganização do poder.

No entanto, também nos territórios alemães se fará sentir uma evolução que
pode ser associada com o movimento geral que atravessa a Europa: a prova
disso encontra-se na importância decisiva da imprensa alemã e no crescente
aumento de uma faixa de letrados que se auto-definem como representantes
de um esclarecimento necessário à modernização e ao progresso da sociedade
que pretendem influenciar.

176
.
_

3.2.2 Órgãos do espaço público

Locais privilegiados para a expressão de uma opinião pública emergente


serão os cafés, os jornais, as sociedades de leitura, onde se debate os temas
mais candentes, se lê periódicos e romances.

Em Inglaterra são os jornais Tatler (1709-1711) e Spectator (1711-1712,


1714) e The Guardian (1713) de Joseph Addison e Richard Steele os pri-
meiros orgãos dessa opinião que se vai formando à margem das instituições
e que gradualmente toma a forma de um contra-poder, no plano literário e
estético. Os seus porta-vozes manifestam as suas opiniões enquanto indi-
víduos, cientes da importância da sua participação para a formação de uma
opinião pública. Para a formação da mesma contribuem os espaços neu-
tros, como os cafés e as sociedades de leitura: espaço de passagem entre o
local de trabalho e a residência, estes constituem o pressuposto para que os
que nele convivem e se cruzam possam, temporariamente libertos das pres-
sões económicas, sociais e familiares, debater livremente os assuntos de
importância colectiva.

Também o salon francês representa outra forma de criar um espaço neutro e


relativamente marginal às instituições consagradas pelo regime de Luís XIV
Do mesmo modo que a etiqueta de corte entra em crise, sobretudo durante o
período da Regência (1715-1723 ), acentuando-se a tendência durante o
reinado de Luís XVI (1754-1793), o salon, surgido em torno de uma mulher
nobre - que, assim revela o estatuto de liberdade de que as burguesas se
verão privadas - permite a reunião num espaço neutro de nobres e burgueses
que privam entre si dada a comunidade de interesses culturais, literários ou
pessoais. Rousseau, plebeu suíço, privará assim num plano de quase igualdade,
com extensão ao domínio íntimo, com representantes da grande nobreza
francesa, que verão com interesse o comportamento exótico desse suíço
camponês e aderirão às suas teorias e prática de uma simplicidade natural,
por reacção ao excesso de artificialismo de normas e etiquetas cada vez mais
desfasadas da realidade e assim tornadas praticamente ineficazes.

3.2.3 A transição

Contudo, o século XVIII ainda não conhece a divisão distinta entre esses
dois espaços, patente no modo como as associações de privados (cafés,
clubes de leitura, maçonaria) eram entendidos. O salon francês do século
XVIII encarna exactamente esse espaço híbrido: tendo à sua frente uma
mulher culta, o referido espaço, constituía uma pequena ilha no seio das
convenções rígidas da sociedade de corte então já em pleno declínio

177
(época da Regência) , onde a dona da casa não só se permitia um com-
portamento mais libertino, como podia privar com homens oriundos da
burguesia.

Por outro lado, a sociabilidade que constitui um dos traços mais generali-
zados do século XVIII ainda não fora contaminada pelo exacerbamento de
uma intimidade que, nas suas manifestações mais radicais raiava a hipo-
condria. O exemplo de Jean-Jacques Rousseau, a sua misantropia, aliada à
sua obsessiva aspiração de autenticidade, de transparência (Starobinski
1971), a sua auto-observação, serve para ilustrar esta última tendência, embora
o seu empenhamento social e político, revelem simultaneamente, o modo
como o domínio público, continuava a permanecer um elemento decisivo,
exigindo-se antes para o mesmo idênticos valores que aqueles que se pre-
conizava para a descoberta individual.

Contudo, esta adequação excessiva não era habitualmente praticada, optando a


burguesia por uma vida oscilante entre o domínio público e privado, deixando,
porém, que as esferas se interpenetrassem e se inspirassem frequentemente.

Tal interpenetração encontrava-se, contudo, reservada aos seres masculinos,


os únicos a terem acesso a ambos. O mito da mulher passiva e do homem
activo conheceu uma nova legitimação com a reorganização do espaço
decorrente da crescente divisão do trabalho.

Dans l' union des sexes chacun concourt également à l' objet commun, mais
non pas de la même maniere. De cette diversité nait la premiere différence
assignable entre Ies rapports moraux de l' un et de l' autre. L'un doit être
actif et fort, l' autre passif e faible: il faut nécessairement que l' un veuille
et puisse, il suffit que l' autre rés is te peu.
Ce principe établi, il s'ensuit que la femme est faite spécialement pour
plaire à l'homrne. Si l'homme doit lui plaire à son tour, c'est d'une nécéssité j
moins directe: son mérite est dans sa puissance; il plait par cela seul qu'il
est fort. Mais n'est pas ici la loi de l'amour,j'en conviens; mais c'est celle
de la nature, antérieure à l' amour même.
Si la femme est faite pour plaire et pour être subjuguée, elle doit se rendre
agréable à l' homme au Iieu dele provoquer; sa violence à elle est dans ses
charmes; c' est par eux qu' elle doit le contraindre à trouver sa force et à en user.
L'art le plus súr d'animer cette force est de la rendre nécessaire par la résis-
tance. Alors l'amour-propre se joint au désir, et l'un triomphe de la victoire
que l' autre lui fait remporter. De là naissent l' attaque et la défense, I' audace
d'un sexe et la timidité de l'autre, enfin la modestie et Ia honte dont la
nature arma le faible pour asservir le fort. (Rousseau 1966: 466-467)

Com efeito, o mundo público dos cafés e dos jornais é um mundo mas-
culino, onde a burguesia emergente faz sentir a sua pressão contra o poder
absolutista do Estado, opondo-lhe os seus interesses privados (de acordo

178
com o novo modelo capitalista e liberal) e os correspondentes modelos a
nível político e estético.

A maior parte das ideias que ainda identificamos com as Luzes é sus-
tentada e fomentada por um debate constante entre congéneres, não só
nos cafés, como nas academias, nas revistas especializadas, seja atra-
vés da actividade recenseadora, seja da apreciação crítica. É aí que
esses homens, desligados das suas obrigações profissionais, aparente
ou provisoriamente libertos das restrições que a hierarquia social lhes
impõe, privam num espaço recentemente conquistado e reinventado, onde
a igualdade teórica da sua posição é uma condição e um pressuposto
fundamental.

A leitura individual não se auto-satisfaz, mas é complementada pela discus-


são dos temas lançados pelos periódicos. O debate constitui um elemento
essencial desta cultura. Nos cafés discutem-se as ideias lidas nos jornais e
revistas à disposição nessas salas, ideias essas que encontrarão o seu reflexo
nas colunas de opinião, nas cartas abertas.

Estas reflectem a individualidade que usa o espaço público que a


imprensa em geral lhe fornece. Esse debate, que se auto-define como
um debate entre iguais, desenrola-se num plano radicalmente diferente
daquele que caracteriza a retórica do poder da corte: teoricamente, não se
trata de representar uma camada social ou uma tendência da sociedade, mas
de, usando do próprio entendimento, reflectir livremente sobre os temas
surgidos. O participante nesse debate representa-se a si mesmo, enquanto
indivíduo autónomo e pensante, fazendo uso do seu entendimento, tal
como Kant o formula no célebre texto «Beantwortung der Frage: Was ist
Aufklarung?»

Aujklarung ist der Ausgang des Menschen aus seiner selbst verschuldeten
Unmündigkeit. Unmündigkeit ist das Unvermõgen, sich seines Verstandes
ohne Leitung eines anderen zu bedienen. Selbstverschuldet ist diese
Unmündigkeit, wenn die Ursache derselben nicht am Mangel des
Verstandes, sondem der EntschlieBung und des Mutes liegt, sich seiner
ohne Leitung eines andem zu bedienen. Sapere aude! Habe Mut, dich deines
eigenen Verstandes zu bedienen! ist also der Wahlspruch der Aufklarung.
(Kant 1986: 9)

3.2.4 A formação do espaço público na Alemanha do século XVIII

No espaço cultural alemão, foram também a imprensa, as sociedades de


leitura, as academias, a maçonaria e as sociedades secretas que constituíram

179
um local de debate e de difusão de ideias, a que sobretudo as camadas letradas
- minoritárias e predominantemente burguesas - tiveram acesso.

Os almanaques, a literatura militante e pedagógica das Moralische Wochen-


schriften (1740-1760), a filosofia popular de um Mendelssohn, na sua crença
na democratização das Luzes e no papel da instrução, foram armas essenciais
neste processo de criação de um espaço de opinião pública. Crê-se na
importância do espaço literário para a formação de uma opinião pública
- expressão de um conjunto de opiniões individuais que colectivamente se
exprimem - a filosofia deverá ser inteligível, recusando o jargão que a
afasta do homem comum - tendência que apenas a partir de Kant se passará
a inverter - , os almanaques e revistas divulgam conselhos de utilidade
quotidiana, recomendações para donas de casa, bem como constituem o foro
onde os debates políticos e científicos se realizam. A separação entre público
leitor e autores ainda não se verificou: os leitores colaboram regular e
activamente com contribuições, como cartas abertas, emitem opiniões,
fomentam e alimentam as polémicas. Os títulos de algumas Moralische
Wochenschriften são eloquentes: Der Patriot (1724-1726, 1728-1729),jornal
de Hamburgo orientado sobretudo segundo o modelo inglês , que terá
conhecido uma tiragem de 6000 exemplares, o famoso Der Biedermann
( 1727-1729), Die vernünftigen Tadlerinnen ( 1725/1726) de Gottsched, Freund
der Aufklarung und Menschenglückseligkeit. Eine Monatsschriftfür denkende
Leserinnen aus allen Religionen und Standen (1785 e segs.).

Os periódicos de conteúdo político como o Teutscher Merkur (1773-1810)


de Wieland, o Deutsches Museum (1776 e segs.) de Heinrich Christian
Boie (1744-1806), o Hamburger Politische Journal, a Deutsche Chronik
(1774 e segs.) de Christian Friedrich Daniel Schubart (1739-1791) ou os
Staatsanzeigen (1782 e segs.) de August Ludwig Schlõzer (1735-1809)
constituem foros de debate e de contestação política. O periódico de Schlozer
era especialmente temido pelos príncipes alemães que, nalguns casos, não
hesitaram em proceder de forma brutalmente decisiva: o encarceramento de
Schubart durante dez anos é prova disso. Wieland impunha um estilo
particularmente contundente ao reclamar a liberdade da imprensa, que de
facto não existia em qualquer território alemão:

Freyheit der Presse ist Angelegenheit und Interesse des ganzen Men-
schengeschlechts. Ihr haben wir hauptsachlich die gegenwartige Stufe von
Kultur und Erleuchtung, worauf der gróBere Theil der Europaischen Vól-
ker steht, zu verdanken. Man raube uns diese Freiheit, so wird das Licht,
dessen wir uns gegenwartig erfreuen, bald wieder verschwinden ( ... ).
(Wieland 1930: 65)

A tiragem destes jornais era significativa em termos relativos , na medida em


que apenas uma ínfima minoria ( 10%) da população era alfabetizada, sendo

180
outras revistas com grande procura a Allgemeine Deutsche Bibliothek de
Nicolai (1777 e segs.) e a Allgemeine Literatur-Zeitung (1785 e segs.),
esta sobretudo pelas recensões nela publicadas. Christoph Meiners e Leo
Spitteler editavam em Gõttingen o Gottingisches Historisches Magazin, onde
os artigos científicos alternavam com as reflexões políticas, sendo também
este o caso do Gottingisches Magazin der Wissenschaften und Litteratur
(1780-1785) da responsabilidade de Lichtenberg e Forster. Embora nestes
últimos dois casos se tratasse de revistas especializadas, o seu estatuto não se
pode comparar com as suas congéneres nossas contemporâneas: a acessibi-
lidade dos artigos e a profusão de temas, para não falar da multidisciplinari-
dade, para que alguns títulos apontam, são prova disso.

É também neste contexto que às mulheres será concedido um espaço como


destinatárias , como se pode deduzir pelos títulos de algumas Moralische
Wochenschriften. Contudo, as mesmas verão interdito o acesso às socieda-
des de leitura, o que não invalida que uma faixa minoritária letrada se dedique
a leituras que não apenas as de romances sentimentais. Assim Caroline
Schlegel-Schelling recorda, em carta a amiga, a leitura de Mirabeau, atitude
pouco ortodoxa é certo, para mais quando se tratava de um protagonista da
Revolução Francesa, recomendando mais tarde ao jovem Friedrich Schlegel
a leitura de Condorcet. Simultaneamente a primeira tradução de The Rights
of Man de Thomas Paine é da autoria de uma mulher, Dorothea Forkel.

O modo como algumas mulheres encontravam no espaço doméstico um local


de debate e de reflexão, que, de certa maneira, reproduzia o ambiente dos
espaços públicos masculinos , como os cafés ou as sociedades de leitura, é
testemunhado numa carta por Caroline:

Die [Menschen], die ich jetzt sehe, sind gut, in mehr wie gewi:ihnlichem
Grade, gewahren meinem Kopf mehr Nahrung als - er bedarf - oder
eigentlich mehr als er ihnen wieder geben kan [sic], und erleichtem meine
Lage durch alie Dienstleistungen der Freundschaft. Sie genieBen ihr
Leben, in dieser schi:inen Gegend - sie arbeiten und gehn spazieren und
ich theile das alies mit ihnen. Jeden Abend bin ich dort um Thee mit
ihnen zu trinken, die intereBantesten Zeitungen zu lesen, die seitAnbeginn
der Welt erschienen sind - raisonniren zu hi:iren, selbst ein biBchen zu
schwazen - Fremde zu sehn u.s.w. (Schlegel-Schelling 1988: 142)

Contudo, tratava-se de uma situação excepcional. Só mais tarde os salões


femininos poderão começar a contribuir para o emergir de uma contra-cultura
burguesa na Alemanha: situados cronologicamente numa fase relativamente
posterior, os salões berlinenses equivalem exactamente a esse espaço neutro,
onde a intelectualidade pode assumir livremente a sua individualidade e
humanidade, rompendo com as convenções sociais que a própria burgue-
sia não ousava maioritariamente pôr em questão. Os salões de algumas

181
berlinenses judaicas, como Rahel von Varnhagen (1771-1883) e Henriette
Herz, Lemos de solteira, (1764-1847)-uma vez que seu pai era um famoso
médico de origem portuguesa- constituem centros de intercâmbio literário.
Saliente-se, de resto, que o próprio movimento romântico teria sido
impensável - pese embora toda a sua contestação da tradição daAujklarung
- sem esta mesma evolução. A utopia de alternativas à família tradicional,
às convenções matrimoniais burguesas e ao papel da mulher - de que
Caroline Schlegel-Schelling, Henriette Herz e Dorothea Veit-Schlegel também
foram exemplos por excelência- mais não são do que o reverso da medalha
de uma subjectividade exacerbada e da protecção asfixiante que as novas
instituições haviam passado a assegurar.

Mas no tempo que antecede essa primeira grande crise da racionalidade e do


progresso europeus que a Revolução Francesa também trará consigo, ainda
se pensa esse espaço público em vias de ser conquistado como a instância
que garante e permite que o indivíduo faça uso público e ilimitado da sua
razão, se manifeste como ser pensante autónomo, desligado dos seus vínculos
sociais e institucionais, a que se mantém fiel, enquanto funcionário do Estado,
como Kant o sublinha.

Zu dieser Aufklarung aber wird nichts erfordert als Freiheit; und zwar die
unschadlichste unter allen, was nur Freiheit hei/3en mag, namlich die: von
seiner Vemunft in allen Stücken offentlichen Gebrauch zu machen. Nun
hõre ich von allen Seiten: rasonniert nicht! Der Offizier sagt: rasonniert
nicht, sondem exerziert! Der Finanzrat: rasonniert nicht, sondem bezahlt!
Der Geistliche: rasonniert nicht, sondem glaubt! (Nur ein einziger Herr in
der Welt sagt: rasonniert so viel ihr wollt gehorcht! ) Hier ist überall Ein-
schrankung der Freiheit. Welche Einschrankung aber ist der Aufklarung
hinderlich? welche nicht, sondem ihr wohl gar befürderlich? - lch ant-
worte: der offentliche Gebrauch seiner Vemunft mu/3 jederzeit frei sein,
und der allein kann Aufklarung unter Menschen zu Stande bringen; der
Privatgebrauch derselben aber darf õfters sehr enge eingeschrankt sein,
ohne doch darum den Fortschritt der Aufklarung sonderlich zu hindem .
Ich verstehe aber unter dem õffentlichen Gebrauche seiner eigenen Ver-
nunft denjenigen, den jemand ais Gelehrter von ihr vor dem ganzen
Publikum der Leserwelt macht. Den Privatgebrauch nenne ich denjenigen,
den er in einem gewissen ihm anvertrauten bürgerlichen Posten, oder Amte,
von seiner Vemunft machen darf. (Kant 1986: 11)

Note-se que, para o filósofo, aquilo que contribui para as Luzes é o uso
ilimitado da razão pública, isto é, enquanto exercício do pensar autónomo
e individual, sem quaisquer restrições , posição de resto perfeitamente
compatível com a obediência naquilo que Kant designa, agora numa acepção
diferente, de domínio privado, isto é, enquanto o mesmo homem acede a
respeitar as normas vigentes na sociedade ou grupo profissional ou con-
fessional a que pertence.

182
É apenas enquanto ser racional, independentemente da ordem a que se
pertence, da profissão que se ocupa (mas não do rendimento que se aufere),
que o indivíduo corporiza urna forma alternativa à sociedade vigente.

Tal posição revela até que ponto o domínio do mundo privado burguês ainda
se encontrava por desenvolver na Prússia fredericiana. Note-se, de resto, que
esta cisão entre uso público e privado da razão lança luz sobre os limites
que as Luzes conheciam na Prússia e noutros territórios alemães, onde o
vínculo institucional ao Estado, não impedindo a expressão pública, apenas
prometia reformas graduais sancionadas pela autoridade a que o «livre»
pensador também se encontrava submetido.

Variante da clássica distinção luterana entre liberdade interior e submis-


são ao poder secular do senhor territorial, a mesma revela as virtualida-
des superiores do modelo calvinista que colocava a autoridade religiosa
acima de qualquer autoridade política e media os poderes senhoriais por
parâmetros exteriores à mesma, ao contrário do que sucedia na confissão
evangélica 1• 1 Note-se que o modelo de

organização da com unidade


calvinista pensa a re la ção
Contudo, que esta posição não pode ser generalizada prova-o o apelo à entre poder político e poder
liberdade ilimitada da imprensa de Wieland em 1784, exactamente no mesmo religioso de forma radical-
mente diferente do modelo
ano em que Kant publica o referido texto: luterano. Enquanto este, à
semelhança do que sucedera
So wie es keinen wissenschaftlichen Gegenstand giebt, den man nicht com a Igreja Anglicana, pres-
supõe a subordinação da
untersuchen, ja selbst keinen Glaubenspunkt, den die Vernunft wohl Igreja ao Estado, o mode lo
beleuchten durfte, um zu sehen, ob er glaubwürdig sey oder nicht : so giebt calvinista submete o poder
político ao religioso , pel o que
es auch keine historische und keine praktische Wahrheit, die man mit einem
contribuirá para fomentar o
lnterdikt zu belegen, oder für Kontrebande zu erklaren berechtigt ware. Es princípio de uma in stância
ist widersinnig, Staatsgeheimnisse aus Dingen machen zu wollen, die aller individual e moral, a partir da
qual a prática política e o
Welt vor Augen liegen, oder übel zu nehmen, wenn jemand der ganzen poder a ela associado podem
Welt sagt, was einige hundert tausend Menschen sehen, horen und fühlen. ser avaliados e contestados.
(Wieland 1930: 72)

Note-se, contudo, que Georg Forster levantará a questão do modo corno na


Alemanha o espaço público não possui o mesmo alcance que conhece na
Grã-Bretanha, salientando a ausência de Gemeingeist, tradução alemã do
termo inglês public spirit. A palavra alemã Gemeingeist começa a difun-
dir-se então, surgindo quer em Forster quer em Herder, porventura não tanto
por influência mútua como recorrendo a um neologismo que Joachim
Heinrich Carnpe utilizara pela primeira vez no sentido de uma acção
empreendida para o bem-comum, corno de resto o Dicionário Grimm ainda
aponta.

( ... ) schon haben wir siebentausend Schriftsteller, und dessen ungeachtet,


wie es keinen deutschen Gemeingeist giebt, so giebt es auch keine deutsche
offentliche Meinung. Selbst diese Worter sind uns so neu, so fremd , daB

183
jedermann Erlauterungen und Definitionen fordert; indeB kein Englander
den andem miBversteht, wenn vompublic spirit, kein Franzose den andem,
wenn von opinion publique die Rede ist. (Forster 1974: 365)

Equivale a dizer que a ausência de um sentido social comum, livremente


expresso a partir das opiniões individuais, reconhecidas e não dominadas ou
instrumentalizadas pelo Estado liberal, constitui o pressuposto da moder-
nização política da Alemanha. A ausência de Gemeingeist ou de opinião
pública deve-se, segundo Forster, à falta de união política e de uma cidade
centralizadora, capaz de levar a cabo essa tarefa de universalização contra as
particularidades territoriais, leia-se, feudais.

Mas o termo offentliche Meinung ganhará para Forster um significado dife-


rente face à experiência directa da Revolução Francesa. Se anteriormente a
igualdade abstracta e a individualidade, independentemente do posiciona-
mento social e económico, haviam sido enfatizados, a opinião pública passará
a equivaler agora ao poder e à pressão violenta que as massas parisienses exer-
cem sobre o governo e a canalização que da mesma o Governo jacobino, na
fase de revolução democrática em França ( 1793-1794 ), fazia. Mas ela é sobre-
tudo a ferramenta e a alma da Revolução («Werkzeug und Seele der Revo-
lution», Forster 1990: 602) . O modelo liberal britânico cede, em parte, o
lugar a uma vontade geral, inspirada em Rousseau, onde o colectivo tem de
predominar, colectivo esse que só pode assumir a importância que tem pelo
facto de emanar de uma cidade, Paris, que é o centro da França e da Revolução.

É a pressão da opinião pública que explica e legitima a violência revolu-


cionária, cientes os seus protagonistas de que a situação social, a miséria das
massas, a torna necessária. Recorde-se que será o Governo jacobino que
instituirá o sufrágio universal - relativo na medida em que excluía a popu-
lação maioritária feminina- e legislará a abolição da escravatura, radicali-
zando o potencial utópico das Luzes, que Napoleão virá a questionar, ao
mesmo tempo que institucionaliza a herança revolucionária.

Com efeito será esse Homem abstracto que, ignorando aparentemente a


diferença, irá corporizar, quer os momentos mais emancipatórios, quer os
elementos mais problemáticos ou repressivos das Luzes. A mensagem de
libertação é vedada na prática às humanas de sexo diferente, aos iletrados
(aos que não pertencem à burguesia e nobreza letradas), aos desapossados,
aos colonizados: a todos aqueles que, sem escrita, se verão impedidos de
fixar as suas histórias, histórias essas perdidas numa tradição que vê na
oralidade uma manifestação cada vez mais negativa.

Ao espaço público apenas têm acesso os homens, os «brancos», os letrados,


os proprietários, assim se equacionando claramente esta forma de expressão
de um poder com os interesses - então ainda facilmente universalizáveis -
da burguesia masculina e europeia.

184
3.3 A reorganização do espaço e dos papéis sociais

3.3. l A cisão entre o espaço do trabalho e da família: a burguesia

A antiga unidade de produção e de habitação e a grande família, como centro


dessa economia, cedem gradualmente o lugar a uma separação cada vez
maior entre o domínio do trabalho (produção) e da residência (consumo),
que corresponde, de resto, a mais uma manifestação da crescente divisão do
trabalho na sociedade burguesa. É assim que a família nuclear poderá erigir-
-se em espaço privilegiado de um intercâmbio de carácter exclusivo.

Desligado das suas tarefas profissionais, o burguês pode reencontrar-se


consigo mesmo, erigindo outros critérios que não os da eficácia económica
e a produtividade para imaginar outras formas de se relacionar.

l Local onde a autoridade masculina será cada vez mais evidente, o espaço
doméstico da burguesia ficará reservado ao repouso, à meditação, à leitura
que, de voz alta passará cada vez mais a ser feita em voz baixa, tornando-se
assim cada vez mais individualizada e extensiva.

É a descoberta de uma realidade imaginária a substituir o quotidiano feito de


rotina, onde a cada um é concedido o direito de escolher a leitura que mais
lhe apraz, criando-se um espaço de compensação sentimental para a ética do
trabalho burguesa, que, entretanto, encontrara nas virtudes do café um
estímulo mais eficaz do que as propriedades calóricas do chocolate, bebida
preferida da nobreza, ou as mais populares mas anestesiantes do vinho, que,
até então, acompanhara as refeições e o espaço de convívio desde o pequeno
almoço ao jantar.

É esta divisão que permite a manifestação de uma dupla moral: se no local


de trabalho é cada vez mais a lei do economicamente mais forte que pre-
domina, no domínio doméstico, a relação afectiva compensa a opressão
exercida no local de trabalho. É a este espaço que o burguês vai buscar a
inspiração para a sua humanidade, independentemente das hierarquias e das
relações de poder, é aí que ele protagoniza a humanidade abstracta e sub-
jectiva que permite pensar a igualdade entre todos, independentemente de
diferenças de classe, de sexo ou de cor (Horkheimer et al. 1987).

3.3.2 Divisão do trabalho e família

À semelhança da nobreza feudal ou de corte, também as camadas campo-


nesas não conheciam a distinção entre o domínio público e privado, na

185
medida em que a organização económica e social da grande família pressu-
punha a estreita contaminação entre o local de trabalho (produção) e de
habitação (consumo) .

Com a crescente dissociação destes espaços, na sequência da Revolução


Industrial, os novos assalariados não conhecerão, porém, nem em termos de
mera aparência, a autonomia da vontade privada como criadores de novos
empreendimentos económicos.

Por sua vez, o espaço doméstico não verá o seu domínio consagrado,
dependente como se encontra da mais estrita necessidade económica. Tal
como os homens , as mulheres ver-se-ão obrigadas ·a abandonar o local
doméstico para assim poderem garantir a sua sobrevivência.

Significativamente, será durante a Revolução Francesa que, com a crescente


subversão da ordem vigente, as mulheres desempenharão um papel decisivo
no domínio político, na medida em que são elas que mais directamente
sentirão no seu quotidiano as consequências da escassez e da penúria, assim
propondo estratégias de acção alternativas que ameaçavam, por isso mesmo,
pôr radicalmente em causa a ordem política da burguesia masculina, de
formação predominantemente jurídica que, em 1789, redigira a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Tal entendimento da política por parte das mulheres questionava de modo


radical a separação entre local de produção e de consumo, pondo em causa a
divisão de papéis dela decorrente, ameaçando o domínio da intimidade, onde
ao indivíduo burguês fora concedida a possibilidade de ser «ele mesmo», ser
racional, potencial, temporariamente liberto das suas obrigações profissionais
e hierarquias sociais. Não será portanto de estranhar a proibição dos clubes
políticos femininos, bem como a condenação de toda a actividade política
espontânea por parte das mulheres, ao longo de quase todo o século XIX,
um pouco por toda a Europa.

E o século XIX consagrará o modelo burguês da família nuclear, conforme


com a ordem económica e social nele triunfante (cf. Cap. IV2, pontos 2.6
e 2.7)

3.3.3 A redistribuição do espaço doméstico e a intimidade

A possibilidade de um membro de uma família se refugiar no seu quarto,


para aí poder dar largas à sua emoção, a noção de novas formas de poder,
que levariam a que, nas famílias burguesas, se passasse a separar a sala de

l
186
estar, da sala de visitas, que a cozinha - local de reunião e de convívio na
grande família rural - fosse transferida para o local mais distante desta
última e que o quarto dos pais passasse a ser distinto do dos filhos, que, por
sua vez gradualmente não só teriam um espaço próprio para brincar, como
veriam surgir a diferença de sexo como mais um critério de organização dos
espaços, todas estas transformações constituem momentos essenciais no
processo de criação da intimidade (Shorter 1975).

Se a sala de visitas guarda os traços de uma exterioridade e de uma repre-


sentação em regressão, a burguesia inventa a sala de estar, espaço neutro
onde toda a família se reúne, depois de terminadas as diferentes tarefas,
conduzidas de forma crescentemente separada. É aí que os seus membros se
entregam aos seus lazeres, preferindo-se as actividades susceptíveis de serem
realizadas em comum, como a música de câmara, a leitura em voz alta, ou
que não interrompam a sociabilidade como o bordado, o jogo de cartas. Não
será, portanto, de estranhar, o ataque aos efeitos perniciosos da leitura
individual e sobretudo de romances: esta não só afastava das obrigações,
como estimulava excessivamente a imaginação, sendo as suas vítimas pre-
ferenciais as mulheres burguesas que, confinadas ao espaço doméstico,
preenchiam por vezes os seus tempos livres com actividades que podiam ser
incontroláveis.

De resto, a sua curiosidade intelectual era frequentemente motivo de troça,


como sucede com Kant, que adivinha nas mulheres o culto das aparências de
que a sociedade burguesa e os adeptos de Rousseau tanto desconfiavam:

Was die gelehrten Frauen betrifft: so brauchen sie ihre Bücher etwa so wie
ihre Uhr, namlich sie zu tragen, damit gesehen werde, daB sie eine haben;
ob sie zwar gemeiniglich still steht oder nicht nach Sonne gestellt ist.
(Kant 1988: 654)

Mas a curiosidade intelectual feminina não só era motivo de troça ou


censura, mas também de complexo de culpa por parte das próprias mulhe-
res, como se pode ler no seguinte excerto de uma carta da jovem Therese
Forster-Huber:

( ... ) Wegen meiner Lektüre habe ich mir bisweilen Vorwürfe gemacht, habe
gedacht, ich sei selbst daran schuld, wenn ich nicht mehr so unbefangen
unschuldig war, wie meine Jahre es mit sich brachten, und es meines Geistes
würdig sei. Sie beruhigen mich um vieles, aber daB Sie mein Lesen zu
einem Grund meiner plagenden Unruhe machen, das ist mir ganz uner-
wartet; denk ich aber mehr darauf nach, so glaub ich, Sie haben ziemlich
recht. Ich habe mir einmal einen Ton gegeben, der nur der einzige ist, der
mir gefüllt, was ich hi:ire und antreffe, muB in diesen Ton einstimmen, um
mir zu gefallen, ists dies nicht, so ist mirs gleichgültig und zuwider. Da
ich nun wenig finde , das mir gefüllt, so macht mir vieles Langeweile, ist

187
mir unschmackhaft, und weil ich immer mehr suche, und nie finde, so bin
ich, glaub ich, unruhig. Die vielen Romane, und andre Schriften, die bloB
fürs Herz waren, haben meine Zartlichkeit gereizt; ich fühle, dal3 ich würde
glücklich sein, wenn ich einen Gegenstand wül3te, dem ich diese Zartlich-
keit ganz geben kê:innte, aus dem ich meinenAbgott machen kê:innte, da ich
aber keine Seele um mich sehe, die mich versteht, mul3 ich mich ver-
schlieBen, mich in mich selbst hinziehn, ich traume bloB ein Glück, das
ich mir ausschweifend traume, so wie ich mir kein Gewissen daraus machen
würde, Mahomeds Paradies mit ausschweifender Pracht und Glückseligkeit
auszuschmücken, beides sindTraume, und Unmê:iglichkeiten. (Huber 1989:
13-14)

Com efeito, Rousseau aconselhava à futura companheira de Emílio, Sofia,


a moderação em tudo, desde os atributos físicos, aos intelectuais, e reco-
mendava como actividade ideal para qualquer jovem os trabalhos manuais
(Rousseau 1966). Certo é que entre a amamentação, a administração da casa
· e outros trabalhos manuais , pouco tempo lhe restava para a leitura, quando
esposa e mãe.

A propósito das cartas de Mirabeau, escrevia Caroline à amiga Luise Gotter


de Mainz no ano de 1792:

Liebe Madam Luise, Du kê:intest doch auch dergleichen [Mirabeaus


Schriften] lesen, wenn Du deine Kleinen, die Dir im Schauspielerakzent
vorgelarmt haben, zu Bett geschickt hast - aber ich weil3 dann wirst Du
müde ( ... )-denn Du Gute sorgst für Deine nahen Freunde und bekümmerst
Dich nicht um einen hal3lichen Bê:isewicht, wie der aul3erordentliche
Mirabeau war ( ... ). (Schlegel-Schelling 1988: 138)

3 .4 Espaço doméstico

3.4.l A divisão de trabalho nafamília burguesa: homens, mulheres e


crianças

A igualdade teórica e abstracta postulada no espaço público não invalida,


antes pressupõe outras formas de separação e de hierarquização, mesmo no
seio da burguesia.

A família nuclear burguesa saberá inventar e definir de forma tanto mais


eficaz as formas de opressão patriarcal, reproduzindo-se, a nível domés-
tico, outras tantas maneiras de exercer a autoridade sobre os econo-
micamente dependentes : mulheres, crianças e criados (Horkheimer et al.
1987).

188
Se esta divisão do espaço constituiu, com efeito, o grande pólo de ins-
piração para a invenção de uma racionalidade individual, para uma
forma de estar em sociedade mais «humana», o certo é que a geografia
da casa burguesa não esconde o modo como a «dialéctica do Iluminismo»
(Horkheimer/Adorno 1971) gera o reverso dessa humanidade sem sexo ou
sem idade.

A separação entre mundo público e privado e a subsequente invenção do


mundo doméstico, cria a fronteira entre o mundo masculino e feminino,
adulto e infantil, entre senhores e criados, em suma, marginalizando aqueles
que não dispõem de maioridade política ou biológica.

Reino do sentimento, poupado das agressões da concorrência e da raciona-


lidade instrumentalizadora do capitalismo, será o local ideal de consumo de
literatura sentimental, bem como de produção da mesma por parte de algumas
mulheres mais ousadas. O mundo doméstico torna-se feminino, reino da
mulher burguesa que, impedida de aceder política e economicamente ao
mundo público, se realiza nas tarefas domésticas, criando filhos e praticando
a administração dos bens masculinos. São estas mulheres que encontram em
Rousseau a emancipação possível, amamentando e educando os futuros
cidadãos para uma participação de que permanecerão excluídas formal e
praticamente até ao princípio do século XX.

Por sua vez, esta divisão tanto mais distinta se torna, quanto o corpo se
transforma no local, onde a diferença empiricamente perceptível se irá
inscrever: a mulher passa a ser gradualmente encarada não como uma variante
de um modelo humano único, mas como um ser portador de uma diferença
biológica irredutível (Gallagher/Laqueur 1987). Assim, quando Rousseau
advoga a diferença natural entre os sexos, ainda o faz socorrendo-se de um
conceito abstracto de natureza, em que a diferença biológica é relativa nesse
processo de demarcação e de atribuição de papéis:

En tout ce qui tient au sexe, la femme et l'homme ont partout des rapports
et partout des différences : la difficulté de comparer vient de celle de
déterminer dans la constitution de l 'un et de l' autre ce qui est du sexe et ce
qui n'en est pas . Par l'anatomie comparée, et même à la seule inspection,
l' on trouve entre eux des différences générales qui paraissent ne point tenir
au sexe; elles y tiennent pourtant, mais par des liaisons que nous sommes
hors d'état d'apercevoir: nous ne savons jusqu'ou ses liasons peuvent
s' étendre; la seule chose que nous savons avec certitude est que tout ce
qu' ils ont de commun est de l' espece, et que tout que ce qu' ils ont de
différent est du sexe. Sous ce double point de vue, nous trouvons entre eux
tant de rapports et tant d' oppositions, que e' est peut-être une des merveilles
de la nature d' avoir pu faire deux êtres si semblables en les constituants si
différemment. (Rousseau 1966: 466)

189
Ora é exactamente essa natureza comum que será cada vez mais relegada
para segundo plano, legitimando e antecipando o discurso científico a
necessidade de o poder político justificar o afastamento das mulheres enquanto
sujeitos de direito (Gallagher/Laqueur 1987). Kant recusar-lhes-á exacta-
mente esse mesmo direito, tal como aos assalariados e não-proprietários,
medidas que a Constituição francesa de 1791, de resto, também, asseguraria.
A caracterização kantiana do sexo feminino revela tanto os preconceitos de
um celibatário como a fonte em que os terá provavelmente bebido: Jean-
-Jacques Rousseau.

Weibliche Tugend oder Untugend ist von der mannlichen, nicht sowohl der
Art als der Triebfeder nach, sehr unterschieden. - Sie soll geduldig, er muB
duldend sein. Sie ist empfindlich, er empfindsam. - Des Mannes Wirtschaft
ist Erwerben, die des Weibes Sparen. - Der Mann ist eifersüchtig wenn
er liebt; die Frau auch ohne daB sie liebt; weil so viele Liebhaber, als von
andern Frauen gewonnen worden, doch ihrem Kreise der Anbeter verloren
sind.- Der Mann hat Geschmack für sich, die Frau macht sich selbst zum
Gegenstande des Geschmacks für jedermann. (Kant 1988: 654)

Condorcet apela ainda para o carácter secundário dessa diferença para


advogar a legitimidade da maioridade política e pública das mulheres,
reproduzindo assim o discurso da igualdade abstracta, fundada numa
racionalidade sem corpo e sem sexo. Reclamando para as mulheres direitos
cívicos e políticos, incluindo-se nestes o direito ao sufrágio, escreve no seu
libelo «Sur I' admission des femmes au droit cité», já durante a Revolução
Francesa, no ano de 1790:

Je demande maintenant qu' on daigne réfuter ces raisons autrement que par
des plaisanteries et des déclamations; que surtout, on me montre entre les
hommes et les femmes une différence naturelle qui puisse légitimement
fonder l'exclusion du droit. (Condorcet 1968: 129)

Mas este marquês republicano inspirava-se noutros modelos que não os


que os adeptos de Robespierre consagravam. E a família burguesa saberá
basear-se no princípio de que a diferença biológica legitima a passividade
pública das mulheres.

A proclamação da igualdade abstracta caminha de par com a fixação de uma


diferença irredutível. Se a criança é reconhecida e retratada já não como
uma miniatura do adulto, a ela se dedicando uma pedagogia que confere de
forma particularmente inovadora ao ritmo de desenvolvimento infantil o
lugar de direito que ainda actualmente lhe é reconhecido, inventando-se
exactamente então a literatura infantil (cf. Cap. II.2, ponto 2.2.2), que conhece
em Robinson der Jüngere (1779) de J. H. Campe (1746-1818) um dos seus
mais importantes representantes, também é verdade que a mesma serve de
meio para consagrar a divisão de sexos e capacidades.

190
A garantia da existência de mulheres saudáveis e equilibradas servia uma
finalidade : a de uma procriação tão eficaz quanto possível e não a de um
direito próprio.

( ... ) Mütter, denen das künftige Wohl ihrer Kinder am Herzen liegt, konnen
daher von dem ersten Augenblicke ihrer EmpfangniG an, nicht zu auf-
merksam auf die Erhaltung der Gesundheit ihres Leibes und ihres Geistes
seyn, kõnnen vor jeder UnpaGlichkeit, vor jeder Ausschweifung aus der
graden StraGe der Tugend und Rechtschaffenheit, und vor jedem widrigen
Affekte, nicht zu sorgfaltig sich in Acht nehmen. Nie wird auf einem
kranklichen, faulenden , oder durch Sturmwinde zersplitterten Stamme das
zarte, so eben erst hervorgequollene Knospchen , zu einem gesunden und
starken Fruchtaste gedeien konnen . (Campe apud Schmid 1995: 62)

No espaço público e político de que as mulheres , as crianças e os criados se


verão privados, apenas ecoa a voz patriarcal do chefe de família. E nem o
direito ao prazer lhes era autorizado como forma de compensação.

3.5 Espaço público e subjectividade

Na Alemanha, o pietismo contribuiu também de forma particularmente


relevante, para a formação de um espaço público. O pietismo, movimento
oriundo do luteranismo e estimulado pela obra de Philipp Jakob Spener ( 1635-
-1705), Pia Desideria (1675), desenvolvera-se inicialmente em Frankfurt e
mais tarde em Berlim. O movimento correspondia a uma reacção à ortodoxia
luterana, que parecera esquecer os elementos de uma prática da piedade e o
sentimento de relação mística com Deus que constituira um importante
elemento na doutrina de Martinho Lutero.

Os seus principais representantes foram August Hermann Francke (1663-


-1727) em Halle e o conde de Zinzendorf (1700- 1760). Enquanto o pri-
meiro desenvolveu uma importante acção social e pedagógica, fundando,
por exemplo, em 1710 o célebre orfanato de Halle (Waisenhaus), o segundo
apelava à renovação dos laços sentimentais e místicos.

Apesar da rivalidade entre pietistas e Aufklêirer em Halle, que resultou na


expulsão de Christian Wolff, em 1727, para Marburg, o certo é que o zelo
reformador e as preocupações práticas e pedagógicas de um Francke possuem
traços comuns ao modelo iluminista.

Por outro lado, a importância dada à responsabilização individual do crente


na praxis pietatis contra a ortodoxia instituída libertara energias seme-
lhantes àquelas catalisadas pelos metodistas e puritanos em Inglaterra.

191
1
:,
r

A responsabilização do indivíduo para com a comunidade passou a constituir


uma alternativa ao espaço burocrático do Estado e um foro de expressão da
autonomia. Sem a influência desta subjectividade renovada pelo pietismo,
a crítica religiosa e do dogma não teriam assumido o radicalismo que
caracteriza, por exemplo, as posições de alguns teólogos como Carl Friedrich
Bahrdt (1741-1792) e Karl Leonhard Reinhold (1758-1823), na sua crítica
radical da ortodoxia e da religião, nem a análise psicológica de um Karl
Philipp Moritz, no seu romance Anton Reiser.

Por outro lado, esta subjectividade permitiria às mulheres a descoberta


de uma diferença não biologicamente detectável: a iredutibilidade de
uma experiência encontraria na escrita uma forma de se afirmar, assim
adquirindo as mulheres a possibilidade de fazer ouvir gradualmente a sua
voz.

A utilização da carta como meio de expressão privilegiado nesta época


constitui mais um elemento nesta história da invenção da intimidade. A mesma
serve de veículo de comunicação de emoções e de exteriorização de afectos.
As fórmulas de cortesia quase servil cruzam-se com um registo afectivo
impensável para o século do racionalismo: homens e mulheres apenas se
distinguem na selecção de temas, havendo por parte das últimas uma atenção
mais virada para o quotidiano sem história, as tarefas domésticas, as
interrupções de momentos dedicados a manifestações de racionalidade
autónoma pelas crianças que impedem a leitura ou a vida contemplativa em
geral, enquanto o mundo masculino é aquele em que se exprime a preo-
cupação com o mundo das carências económicas, as grandes decisões políti-
cas. Todos revelam, porém, quase o mesmo à vontade para manifestar o seu
amor, dedicação ou verter lágrimas de emoção.

No entanto, as cartas não se limitam à expressão de afectos nem a ser um


veículo de temas do foro íntimo, mas constituem um instrumento fundamental
de debate que, transcendendo esse domínio, abordam assuntos sociais, cien-
tíficos e literários e se alargam, sob a forma de cartas-abertas, polémicas e
correspondência científica aos órgãos de imprensa. Assim a epistolografia,
a Briefkultur do século XVIII, foi também uma das instâncias essenciais
para a afirmação do espaço público.

3.6 Sociedades secretas

A maçonaria constitui uma outra instância de importância decisiva para a


formação desta esfera de contra-poder. O espaço privado e delimitado destas
sociedades secretas criava novas relações de dependência e de poder que, se

192
em parte reproduziam as existentes, também criavam alternativas à ordem
vigente, na sua proclamação da igualdade entre nobres e burgueses, na sua
fixação em hierarquias segundo os méritos que não os do nascimento, a que
as provas e ritos iniciáticos davam corpo. Ser-se homem é mais que ser-se
príncipe como Lessing e Mozart o afirmam, separadamente em Ernst und Falk
e Die 'Zaube,fWte. A tolerância, a educação, a ordem universal do Grande
Arquitecto coadunam-se com os ideais iluministas ou constituem antes o
seu eco mais adequado.

A prova de que não se pode, com efeito, identificar as Luzes com a ideologia da
classe burguesa em vias se de emancipar, prova-o também a composição variada
das lojas. Enquanto que em Hamburgo ela era maioritariamente frequen-
tada pela burguesia, nas cidades residenciais a nobreza era predominante,
embora nos centros universitários imperassem os docentes do ensino superior.

O secretismo das sociedades contrasta com o carácter do debate público e


aberto praticado na imprensa, mas constitui um complemento dele: neste
espaço conspira-se efectivamente contra o carácter ilimitado do poder
absolutista, minando-se as bases em que o mesmo se apoiava.

A proliferação de lojas maçónicas foi tão intensa nos territórios alemães


como na Grã-Bretanha e em França. Hamburgo foi a cidade onde a respectiva
actividade mais cedo se fez sentir através da influência inglesa, contando-se
nessa cidade com cinco lojas no ano de 1778. A Loge Friedrich zu den drei
Balken que iniciara a sua actividade em 1778 com 18 membros, contava em
1803 com 103 adeptos.

Na Prússia a maçonaria floresceria sob o reinado de Frederico II, ele próprio


maçon, o mesmo sucedendo com José II da Áustria, sendo Viena um dos
seus mais importantes centros, possuindo 15 lojas. Joseph Haydn (1732-
-1709) e Mozart são outros célebres membros da maçonaria, tendo este último,
membro da loja Zur Wohltiitigkeit, composto inúmeras peças maçónicas,
para não falar nas alusões aos ritos iniciáticos presentes emDie Zauberflote.

Mas, em simultâneo, proliferam outras sociedades secretas que não se


inspiram tanto nos princípios fraternais e esclarecidos que marcavam as
principais lojas, mas que promovem o oculto, o irracional: os Rosacruz e os
Illuminaten, fundados por Adam Weishaupt ( 1748-1830), professor de direito
canónico e natural do Sul da Alemanha. O que é certo é que muitos dos seus
membros também privavam nas lojas maçónicas. Se é verdade que as mesmas
adquiriram um carácter gradualmente avesso ao espírito da Aufkliirung,
sobretudo depois de o sucessor de Frederico II ter subido em 1786 ao trono,
introduzindo uma política de retrocesso relativamente às reformas do seu
antecessor, o certo é que, inicialmente, estas ordens de pendor místico
contavam entre si, além de nobres, sobretudo com médicos e cientistas, o
que mostra até que ponto a cisão entre o ocultismo e a ciência institu-

193
- cionalizada estava longe de se cumprir. Entre os seus adeptos contavam-se
-
Goethe, o jovem Forster e o anatomista Sõmmerring, embora os mesmos
cedo tenham abandonado o grupo Rosacruz a que haviam aderido, temendo
cabalas e influências secretas por parte dos Jesuítas.

Este dualismo nas tendências das sociedades secretas e o facto de par-


tilharem os seus membros revela até que ponto a historiografia tem sido
parcial na imagem que forneceu do século XVIII: as Luzes possuem as
sombras equivalentes, o irracional mantém um papel decisivo . Embora
gradualmente relegado para um plano não-oficial, não-institucional, per-
siste em organizar-se.

3.7 O novo público: teatro e música

O teatro constitui outra vertente que se associará à formação de uma opi-


nião pública esclarecida: Lessing e Schiller utilizam-no como arma de
contestação dos valores da sociedade de corte predominante, contra a aliança
entre a burguesia esclarecida e o absolutismo de corte que Gottsched ainda
representara.

Mas uma vertente essencial é o facto de o teatro se destinar a um público


mais amplo que se desloca às salas, pagando o seu bilhete, criando-se
assim uma relação diferente daquela que existira nas encenações da corte.
O público constitui uma nova autoridade a que o autor e o actor têm de se
submeter e de que dependem economicamente. As opções estéticas de um
Lessing não são de modo algum estranhas a esta evolução. O bürgerliches
Trauerspiel apela à individualidade do público, à transparência de uma
comunicação, à espontaneidade dos afectos contra a contenção das normas
de corte.

Por outro lado, a emergência de um público não-especializado, que se desloca


às salas de espectáculos, apenas por economicamente estar em condições de
o fazer, cria a figura do crítico, órgão e voz dessa opinião pública que ensaia
os seus primeiros passos. Lessing corporiza, na sua polémica contra o drama
de Gottsched exactamente esta tendência.

A cisão entre o espaço público e o privado faz-se sentir igualmente no


modo como se praticará a música: entre a sala de concertos, onde o virtuoso,
mercê do sistema de assinaturas, evidencia o seu talento e a sua genialidade,
e a sala de estar, com música de câmara e piano, instrumento individualista
que, na sua autonomia harmónica e na sua robustez física, surgirá como o
símbolo da burguesia até finais do século XIX.

194
As grandes construções sinfónicas, iniciadas por Haydn e levadas por Ludwig
van Beethoven (1710-1827) ao seu expoente máximo, terão a sua contra-
partida no carácter elitista da música de câmara ou no tom intimista dos
nocturnos para piano e dos Lieder que reelaboram a lírica subjectiva.
A Heróica (1803) de Beethoven contrapõe-se à sua Mondschein-Sonate
(1800/1801 ); a grandiosidade épica e o intimismo lírico, dando voz às
impressões do artista solitário, são duas faces da mesma moeda. O virtuosismo
do concertista e a construção sinfónica adaptam-se às necessidades de um
público mais vasto e menos conhecedor, tentando-se captar o ouvinte através
de efeitos espectaculares do ponto de vista da execução e da composição.
Mas a associação de indivíduos apresenta o seu reverso: o isolamento do
artista solitário é a outra face do espaço público a que os românticos darão
a devida expressão.

A ópera aburguesa-se: de espectáculo para entretenimento da corte a mesma


transforma-se em diversão para camadas gradualmente mais amplas.
Prosseguindo uma via já iniciada por Christoph Willibald Gluck ( 1714-1787),
a retórica barroca, sustentada por figuras mitológicas e estilizadas, é
substituída por um registo cada vez mais intimista e sentimental. A Orfeo
ed Euridice (1762) sucedem-se Figaro e Susana, plebeus que contestam a
omnipotência dos nobres em As bodas de Fígaro (1786); Don Giovanni
( 1787), protagoniza não as virtudes de deuses, mas a hybris demasiado
humana de um nobre que encarna a espécie humana. Por sua vez, a
Zauberflote, representada, em 1791, no Teatro auf der Wieden, espaço
independente da ópera tradicional associada à corte, serve também de pre-
texto para o libretista, Emanuel Schikaneder (1751-1812), e o compositor
divulgarem, de forma tão aberta quanto o código maçónico o permitia, os
ideais de igualdade e o sacrifício iniciático pela transparência de um mundo
mais fraterno e racional.

É esta herança que Beethoven retomará em Fidelio ( 1805), celebrando


a liberdade recém-conquistada pela humanidade e significativamente
invertendo o papel dos castrati, ao introduzir uma mulher transvestida
de homem, a fim de poder libertar o amado acorrentado pelas forças da
opressão.

3.8 Conclusão

Resumindo pode afirmar-se que no espaço cultural alemão se fez sentir,


à semelhança de outros países europeus e pese embora um relativo
atraso económico, uma evolução fundamental na criação de um espaço
público.

195
Antes da Revolução Francesa já se desenhara e consolidara um espaço de
debate e de oposição a que a mesma iria dar a mais perfeita expressão
política, abrindo simultaneamente o caminho para o reforço do papel
do génio solitário face à liberdade cada vez mais institucionalizada e
regulamentada.

A nova ordem decorrente das transformações revolucionárias em França,


institucionalizaria e consagraria no Continente europeu algumas das rei-
vindicações iluministas, para as quais o debate surgido no seio do espaço
público foi determinante. Mas, se a nova realidade herdeira do século XVIII
radicalizava as aspirações das Luzes, também as desvirtuava.

Com efeito, a Revolução Francesa institucionalizou as reivindicações e


práticas que associamos ao emergir do espaço público, sancionando a
liberdade de imprensa, de confissão religiosa, o direito à propriedade,
criando uma esfera distante e estanque da vida íntima, onde tudo seria permi-
tido, desde que não interferisse com o domínio público.

Mas a toled\ncia religiosa não encontraria sempre o seu mais adequado


equivalente político e jurídico, a igualdade permaneceria mero postulado
jurídico sem a correspondente prática económica. A igualdade e a liber-
dade, a identidade e a diferença e o modo de se articular esses dois elemen-
tos seriam o maior dilema e equívoco com que a nossa contemporanei-
dade ainda se vê a braços. A igualdade jurídica, baseada no postulado de
uma igualdade abstracta e universal garantiu, - e garante - o tratamento
idêntico de todos os seres, independentemente do sexo, da origem, das
crenças, da cor, mas simultaneamente não escapou à tentação de tornar
esse modelo e essa referência num modelo monolítico e absoluto, em evi-
dente contradição com o programa tolerante que o inspirara. O «Terror da
razão» (Georg Forster), tudo nivelando e instrumentalizando, não foi
descoberta dos críticos e cépticos das Luzes e da modernidade no nosso
século (Horkheimer e Adorno), mas algo já então sentido pelas mulheres,
pelos colonizados na Europa e fora dela, pelas minorias revolucionárias,
antes de ser reapropriado e instrumentalizado pelos seus críticos, entre os
quais os mais ferozes adeptos da sociedade do privilégio e da diferença mais
unilateral.

A racionalidade abstracta e utópica gerou, na sua dialéctica, os apelos mais


eloquentes ao direito à diferença, baseada na origem, no sexo, na cor, criando
assim a possibilidade do moderno discurso nacionalista, feminista, racista
em tudo aquilo que de mais polémico possuem. E sublinhe-se também: o
pensamento das Luzes inscreveria no seu discurso e lógica do poder essa
diferença de homem branco, cristão/protestante, europeu, contra a inferiori-
dade seja da mulher, seja do não-europeu, segundo uma pretensa norma

196
universal, mas masculina e colonial. Seria na recuperação dessa dife-
rença marginalizada que os protestos dos dominados se iriam reunir
para denunciar a abstracção dessas normas e buscar o fundamento, a
inspiração e a mitologia para a (re )invenção de uma identidade entretanto
destruída.

E é também na Revolução Francesa, enquanto institucionalização da moder-


nidade e de um espaço público centralizado, que vamos encontrar as origens
de uma organização desta esfera até aos nossos dias: a crescente influência e
pressão do poder económico levará a que esses espaços de reflexão e debate
cedam gradualmente o lugar a uma imprensa manipuladora da opinião
pública que passa a constituir uma mera correia de transmissão do poder
instituído. A velocidade e a quantidade da informação virão, a partir do
século XIX, prejudicar os elementos críticos do público leitor, cada vez mais
passivo. O aparecimento dos meios audiovisuais viria a revolucionar a
imprensa e a criar as condições para o aparecimento dos modernos meios
de comunicação de massa. A cultura escrita cederia gradualmente o lugar à
comunicação audiovisual.

Pesem embora todas as diferenças radicais entre esses dois momentos há


que não esquecer que conceitos como os de opinião pública, espaço público
e publicidade, surgidos no século XVIII, ainda persistem no nosso imaginário
social e político e constituem o modelo segundo o qual inconscientemente
ou não medimos a nossa realidade pós-moderna.

Bibliografia recomendada

Para o conceito de espaço público e respectivas instituições consulte-se o


estudo clássico de Habermas 1962, complementando esta leitura com os
dados constantes de «Institutionen der Aufklarung» (Grimminger 1980: 103-
-216) e de Beutin 1992. Sobre a evolução da família consulte-se Shorter
1975, Weber-Kellermann 1974, sobre as sociedades secretas Moller 1986,
sobre a música e outras artes Hauser 1973.

Actividades propostas

• Leia o texto de Kant «Beantwortung der Frage: Was ist Aufklarung?»


caracterize o que o autor entende por uso público e privado da
razão e associe estes conceitos com o de opinião pública no século
XVIII.

197
H

• Analise Die Zauberflote à luz das teorias abordadas neste capítulo,


não esquecendo o papel das figuras femininas.

• Confronte a definição de Wieland de liberdade de imprensa com o


emergir de uma opinião pública na Alemanha e articule a mesma
com o movimento das Luzes no século XVIII europeu.

M. R. S.

198
4. Natureza romântica e identidade nacional
Resumo

Apresentam-se, dentro da história cultural da natureza, quatro linhas temá-


ticas que focam as relações entre formas típicas da paisagem romântica e a
identidade nacional alemã. Mostra-se a evolução deste universo simbólico
«natural» a partir da dimensão religiosa e moral da natureza transcendente
oitocentista, a sua diversificação nos espaços naturais que a burguesia começa
a criar no século XIX e, finalmente, as funções compensatórias do ambiente
natural cujo carácter artificial ganha, na construção de zonas comerciais de
lazer, um novo significado social.

Objectivos

• Entender a dimensão cultural do conceito de «natureza».

• Distinguir as principais fases da história da natureza desde a


Aufkldrung.

• Entender a função social dos espaços naturais na sociedade burguesa.

• Reconhecer a tipologia da paisagem romântica.

• Compreender a função compensatória do espaço natural e as suas


recentes simulações.

201
4.1 A natureza como universo simbólico: o exemplo dos Alpes

Na recente história cultural alemã, o conceito de «natureza» encontra-se


intimamente ligado não só à definição dos espaços públicos e privados que
caracterizam a vida burguesa moderna, mas também a uma identidade
nacional problemática que se exterioriza no mundo. A «descoberta» das altas
montanhas como objecto estético e moral no poema Die Alpen de 1729 do
escritor suíçoAlbrecht von Haller (1708-1777), o entusiasmo lírico expansivo
do Sturm-und-Drang, a paisagem romântica cujos esquemas estereotipados
dominam a percepção da natureza até hoje, o parque inglês e a sua integração
na vida pública do século XIX e os movimentos de evasão e de protesto,
desde o Wandervogel ao Partido dos Verdes e aos ambientes naturais
simulados da indústria turística, são diversos aspectos dum complexo cultural
que apresenta as várias facetas da natureza como objectos sociais com elevado
valor integrativo.

Falar de natureza significa, neste contexto, identificar um universo sim-


bólico que se articula na produção e apreciação afectiva de objectos, práti-
cas sociais e atitudes mentais que se projectam no espaço e no tempo.
A natureza não será, como ainda na filosofia materialista e marxista e no
positivismo científico tradicional, uma parte da realidade objectiva, mas,
antes de mais, um mundo simbólico inscrito na realidade, a organização
estruturada de determinados elementos num todo significativo. Nesta
perspectiva, a natureza faz sempre parte da cultura e está sujeita, por con-
seguinte, à evolução histórica do entendimento e das categorias estéticas.

O simbolismo da natureza é uma parte importante da tradição ocidental.


Neste sentido, o escritor e filósofo Christian Garve pode considerar os
fenómenos naturais como uma linguagem que precisa, para ser entendida
correctamente, da ajuda da razão filosófica. Se a natureza «fala», a sua voz
é suave e precisa de ser reforçada:

Ihre Sprache ist uns anfangs fremd, und wir müssen sie studiren, um sie zu
verstehen. Zuweilen sind ihre Ausdrücke rathselhaft und wir müssen sie
auslegen. (1974: 1072)

Garve retoma aqui a metáfora do mundo-livro que remonta às tradições


exegéticas do cristianismo e percorre toda a história cultural do Ocidente.
Ainda no fim do século XX é publicada uma antologia de textos literários
com o título significativo Die Sprache der Landschaft (Schafer/Storch 1993)
que se apresenta como continuação da famosa colectânea Der Deutsche in
der Landschaft editada por Rudolf Borchardt em 1927.

No seu posfácio, Borchardt situa a unidade dos textos apresentados (1770-


-1870) no contexto duma «história do espírito alemão» (473), documento

203
genuíno dum povo que, dado o seu carácter nacional, se apropria do mundo
inteiro: «der-Deutsche ist überall zu Haus und nicht zu Haus ( ... ). Die Welt
geht in ihn ein, indes er in die Welt aufgeht». Numa época de recentes
nostalgias coloniais, Borchardt perpetua o mito do domínio cultural alemão:

Der eigener landerverknüpfender und besiedelnder Politik fast ganz Enterbte


überblickt nach Teilung der Erde aus den nur ihm eigenen Hõhen des Geistes
eine kosmisch tellurische Verhaltniswelt, die auf keinen Karavellen und
Briggs der seefahrenden Eroberer zu erschiffen war. (Borchardt 1953:
462-463)

Assim, identidade nacional e conceito de natureza revelam uma corres-


pondência essencial; na apreensão científica e estética realizam-se os ideais
expressos no grande «século do espírito alemão» entre a Au.fkliirung e a
fundação do Reich.

A concepção da natureza-texto tem duas implicações importantes: supõe


não só o espaço natural como um conjunto articulado e inteligível, mas
considera também este entendimento como uma técnica cultural que pode
ser aprendida com a ajuda de especialistas na matéria. Um elemento impor-
tante da «leitura» do texto natural é a identificação dos seus vários elemen-
tos significativos. Garve fornece no seu artigo um catálogo dos topai da
natureza da sua época que remetem para uma ordem inalterável (ritmo de
dia e noite, alternância das estações) e uma tipologia estética da paisagem
na transição da Aufkliirung para o Romantismo:

Der Mittag und der Abend, der heiBe Sommer und der milde Herbst, die
dunklen Schatten des Waldes, die Gestade eines Flusses oder Sees, das
offene Feld, mit Baumen umkranzte Wiesen, sanft emporsteigende Hügel,
und schroffe hohe Felsen; jede dieser verschiedenen Ansichten hat ihren
eigenthümlichen Charakter, ist mit andem Gemüthsbewegungen verwandt,
und ist geschickt, andre Ideen zu erwecken. (Garve 1974: 1072)

Esta atribuição de elementos naturais a um paradigma estético e filosófico


condensa-se, nas primeiras décadas do século XIX, em universos antinómicos.
Assim, o escritor Daniel LeBmann ( 1793-1831) já pode distinguir, no exemplo
da paisagem, elementos clássicos e românticos e explicar,

warum die Nacht und der Abend romantisch, nicht aber der Tag und der
Morgen - der Mond und der Nebel, nicht aber die Sonne und das Blau
des Himmels - eine gothische Kathedrale und eine verfallene Ritterburg,
nicht aber ein attischer Minerventempel und eine rõmische Arena - ( ... )
ein naturwilder englischer Garten, nicht aber ein franzõsischer, den die
Scheere dressirt und gelichtet hat. (1828: II, 257 e segs.)

As ideias que a natureza desperta, Garve situa-as, na sequência de Kant, na


semelhança entre natureza e obra de arte. Tal como esta remete para o artista,

204
a natureza remete para um criador dotado de razão por detrás do mundo
visível. As principais funções atribuídas naAufkliirung ao conceito moderno
de natureza, já se encontram expressas numa carta de 1541 do humanista
suíço Konrad Gesner (1516-1565) sobre a alta montanha:

Welchen GenuB gewahrt es nicht, die ungeheuern Bergmassen zu betrach-


ten und das Haupt in die Wolken zu erheben! Wie stimmt es zur Andacht,
wenn man umringt ist von den Schneedomen, die der groBe Weltbaumeister
andem einen langen Schõpfungstage geschaffen hat ! Wie leer ist doch das
Leben, wie niedrig das Streben derer, die auf dem Erdboden urnher kriechen,
nur um zu erwerben und spieBbürgerlich zu genieBen ! Ihnen bleibt das
irdische Paradies verschlossen. (apud Friedlander 1873: 7)

Esta valorização da paisagem alpina situa-se na linha da teologia da cria-


ção, enquanto a teologia da redenção despreza a vida terrestre e a própria
natureza. Admirar a beleza da paisagem é reconhecer a obra e o poder de
Deus. Gesner, que se distinguiu também como botânico e coleccionador
(o seu Naturalienkabinettera um dos primeiros na Europa), atribui um espaço
específico (a alta montanha) a este sentimento de admiração e opõe, assim,
a natureza à vida burguesa e materialista; o paraíso terrestre implica uma
sintonia com o espaço natural transcendente que proporciona, ao mesmo
tempo, na aproximação do viandante a Deus, uma superioridade moral.

A ideia kantiana do deus-artista, porém, já é apresentada por Garve como


uma suposição, um desejo secreto do mais profundo coração humano que se
pode descrever, em termos actuais, como necessidade social de reduzir a
complexidade e a contingência do universo. Neste sentido, Goethe insiste na
produção de sentido como factor antropológico universal; o ser humano é
organizado de tal maneira que deve sempre tentar, ao ordenar os objectos
convenientemente, criar um mundo adequado à sua dimensão. A natureza
aparece, assim, como fenómeno essencialmente cultural.

Para a simbolização cultural só mais dois exemplos que mostram a dispo-


nibilidade total dos fenómenos para contextos diferentes e, nalguns casos,
contrários. No seu poema de 1729, Haller idealiza o espaço alpino por
oposição ao luxo, a riqueza inútil e a depravação que reinam nas cidades. Na
montanha, dominam ainda a antiga harmonia entre razão e natureza- «Hier
herrschet die Vernunft, von der Natur geleitet» (Haller 1984: 6)- e o ritmo
natural duma vida sem excessos e drogas - «Der Mensch allein trinkt Wein
und wird dadurch ein Tier» ( 12). Haller apresenta os Alpes como lugar dum
equilíbrio perfeito- <<Wo nichts, was nõtig, fehlt und nur, was nutzet, blüht»
(15); os habitantes estimam ainda as virtudes ancestrais e dedicam-se intei-
ramente ao trabalho:

Die Arbeit füllt den Tag und Ruh besetzt die Nacht;
Hier laBt kein hoher Geist sich von der Ehrsucht blenden,

205
Des Morgens Sorge friBt des Heutes Freude nie.
Die Freiheit teilt dem Volk, aus milden Mutter-Handen,
Mit immer gleichem MaB Vergnügen, Ruh und Müh.
Kein unzufriedner Sinn zankt sich mit seinem Glücke,
Man iBt, man schlaft, man liebt und danket dem Geschicke. (6)

Os Alpes de Haller são a imagem duma sociedade frugal e simples, essen-


cialmente pré-moderna, em sintonia com o ambiente natural e em depen-
dência total do trabalho rural que cria e mantém uma ética rigorosa.

Em 1911, o sociólogo Georg Simmel, um dos grandes historiadores dos


espaços culturais da modernidade, baseia a sua antinomia natureza/cultura
numa interpretação sugestiva dos Alpes que seriam símbolo da transcen-
dência e da matéria caótica ao mesmo tempo, uma absoluta paisagem
ahistórica que concentra e reflecte «letzte seelische Kategorien» (apud
Schafer/Storch 1993: 69-74):

Das Hochgebirge mit der Unerlostheit und der dumpfen Wucht seiner
bloBen materiellen Masse und dem gleichzeitigen überirdisch Aufstreben-
den, über alle Lebensbewegtheit binaus Verklarten seiner Schneeregion
bringt beides in uns zu einem Klang. Jener Mangel einer eigenen und
eigentlichen Bedeutung seiner Form laBt in ihm Gefühl und Symbol der
groBen Daseinspotenzen: dessen, was weniger ist ais alle Form, und
dessen, was mehr ist ais alle Form - seinen gemeinsamen Ort finden.
(ib.: 71)

Não podemos insistir mais aqui na estetização da alta montanha, aliás já


bem estudada (cf. Raymond 1993). Da longa e complexa história da natu-
reza como universo cultural estruturado, serão abordadas no quadro deste
capítulo apenas quatro linhas temáticas essenciais:

• a dimensão religiosa e moral da natureza transcendente;

• a paisagem romântica e a identidade nacional alemã;

• a natureza burguesa e os seus espaços específicos;

• a função compensatória da natureza.

4.2 Dimensão religiosa e moral da natureza transcendente

Os conceitos de natureza que dominam na segunda metade do século XVIII


são ainda paradigmas europeus que remetem para antagonismos ideológicos
comuns. Assim, o parque geométrico francês corresponde ao absolutismo
feudal , enquanto o parque inglês, que se torna popular na Alemanha no fim

206
do século, projecta e recria uma natureza autónoma e aparentemente livre.
Filósofos e escritores ingleses como Antony Shaftesbury (1671-1713) e
Joseph Addison (1672-1719) já tinham oposto, em 1711, a expressão de
arbitrariedade e escravatura nos parques aristocráticos às virtudes da natureza
«natural» (cf. Wimmer 1989: 419). Esta batalha política em termos culturais
culmina nas aspirações naturalistas da Revolução Francesa que tenta impor,
entre outros, um novo calendário cujos nomes contemplam o ritmo das
estações e do trabalho rural. Aqui , a natureza fornece um ponto de referência
que permite projecções duma ordem igualitária e harmoniosa ao contrário
da tradicional ordem hierárquica do antigo regime. Sem ter realizado a
revolução burguesa, a Alemanha também já imagina mundos alternativos,
onde reine uma ordem natural, embora ainda pensada no quadro da monarquia
absolutista.

Enquanto a literatura e a arte bucólicas estão ainda integradas no contexto


aristocrático, novas formas do sentimento da natureza já se distanciam,
em meados do século, explicitamente deste mundo revoluto. O sentimen-
talismo de Rousseau entusiasma a Europa inteira e o mesmo acontece com
a natureza heróica dos cantos de Ossian (1760), filho do suposto bardo celta
Fingal, uma mistificação literária de James MacPherson ( 1736-1796) que
teve um êxito extraordinário na Alemanha (Herder, Goethe) com numerosas
traduções até meados do século XIX. Herder inclui na sua antologia de poesia
popular mundial vários cantos de Ossian, que foi determinante, na sua fusão
de antigas tradições populares e dum imaginário paisagístico sentimental,
para o seu conceito de Naturpoesie .

Embora situada num contexto europeu, a recepção de Rousseau e de Ossian na


Alemanha tem um carácter específico que enfatiza a dimensão afectiva e
moral do fenómeno natural. O programa pedagógico de Rousseau utiliza a
natureza transcendente como enquadramento duma vida exemplar e os
filantropos alemães que, a partir de 1774 (datada abertura do Philanthropinum
em Dessau por Johann Bernhard Basedow), fundam escolas e internatos,
levam os alunos para passeios educativos que confirmam as lições morais
dos professores. O movimento filantrópico criou também uma literatura
infantil e juvenil e instituiu a educação física e a experiência como parte
integrante da pedagogia.

Por outro lado, o rousseauismo pedagógico já instrumentaliza a natureza no


sentido duma interiorização dos valores burgueses que visam o domínio total
do ambiente exterior e da natureza humana. O panteísmo autónomo e crítico
do Sturm-und-Drang, nomeadamente na obra de Wilhelm Heinse (1746-
-1803), opõe-se directamente a este conceito duma natureza domesticada ao
serviço da ideologia burguesa. No seu diário duma viagem a Itália (1780-
-1783), Heinse aponta:

207
Unser heutiges Leben ist in der That nur ein gemachtes Leben, wie
Uhrwerk. Es hat gar die Veranderung, Neuheit und Mannichfaltigkeit
nicht mehr wie die Natur. Das beste Leben muB dem Wetter gleichen,
Wind und Regen und Sonnenschein, Sturm und Erdbeben, Winter und
Sommer. Unser Stubensitzen, unsre RegelmaBigkeit bringt uns um alie
Freuden. (1924: 34)

Esta citação radicaliza a crítica de Gesner do materialismo burguês numa


antinomia de vida natural e ordem social. O sonho duma vida diferente,
mais espontânea, em harmonia com uma natureza transformada em
dinâmica vital , transforma-se num topos da crítica social e cultural e
antecede a Lebensphilosophie moderna propagada por Wilhelm Dilthey
( 1883-1911) e Ludwig Klages, um vitalismo anti-racionalista que opõe
o criativo ao mecânico, o instinto e a alma ao intelecto. Os últimos resíduos
deste conceito vitalista enfático encontram-se ainda no turismo moderno
e na publicidade que, ao enquadrar os seus produtos num ambiente natural,
remete para uma ordem transcendente e uma simplicidade harmoniosa
que já não existem. Sobretudo bens de consumo poluentes e nocivos
(automóveis, tabaco, álcool) são apresentados numa paisagem intacta e
idílica, de preferência à luz quente do pôr de sol, que nega o contexto
industrial que fabrica estes mesmos produtos. As referências à natureza
simbólica na publicidade, porém, evidenciam uma mitologia interna-
cionalizada; a dimensão nacional - e nacionalista - da paisagem
romântica alemã já se dissolveu, nas últimas décadas, na uniformização
do mercado mundial.

4.3 Paisagem romântica e identidade nacional alemã

A estética do Romantismo é panteísta e mitológica ao mesmo tempo; na


apreensão poética da natureza revelam-se o significado profundo do uni-
verso e o destino do ser humano. A natureza como unidade de ideia e apa-
rência é essencialmente comunicativa, a gramática universal do mundo
que Novalis imagina, permite múltiplas interpretações na perspectiva duma
unidade primeira, divina.

Assim, o Romantismo realiza uma dupla expansão:

• espacial, ao explorar espaços novos (a floresta, o mar, a Itália arcá-


dica e sensualista);

• temporal, ao reconstruir uma Idade Média idealizada e um passado


poético duma Alemanha mais imaginária do que real.

208
Esta mitificação é tão eficaz, que os lugares típicos da Alemanha medieval
se transformam rapidamente em ícones do turismo organizado. Basta lem-
brar a popularidade do Reno (Rheinromantik) com os seus castelos e len-
das, que surgem no Romantismo alemão como paisagem típica no sentido
nacional e poético. Igualmente, as pequenas cidades medievais como
Dinkelsbühl e Rotenburg ob der Tauber fazem as delícias dos turistas
estrangeiros, e até as imitações oitocentistas como o palácio de Neuschwan-
stein de Luís II de Baviera (construído entre 1868-1886) continuam a atrair
milhões de turistas todos os anos.

Estes lugares criados pela mitologia romântica determinam ainda em


grande parte a imagem da Alemanha no estrangeiro. A sua eficácia
social deve-se a várias razões. Por um lado, a fusão de tendências filo-
sófico-literárias e tradições populares tem um elevado valor afectivo. Por
outro lado, a paisagem romântica é essencialmente nostálgica. Ao ignorar
a indústria, a poluição e a miséria social da modernidade, o Romantismo
oferece uma reconciliação entre natureza e história e a promessa duma
ordem harmoniosa que, sendo metafísica, está para além do tempo e da
morte.

A pintura romântica, da natureza metafísica de Caspar David Friedrich ( 1774-


-1840) e Philipp Otto Runge ( 1777-181 O) às cenas idílicas de Ludwig Richter
(1803-1884) e Ernst Moritz Schwind ( 1804-1871 ), ilustra as várias facetas
desta tradição que se transformaram rapidamente em símbolos nacionais.
Ainda hoje em dia, a recorrência do adjectivo «romântico» no turismo alemão
lembra esta identificação cuja «linguagem» repete sempre os mesmos ele-
mentos típicos: castelos e ruínas, casas em madeiramento (Fachwerk), rios,
florestas, árvores como o carvalho e a tília, com as respectivas tradições
populares.

O postulado duma nova mitologia na Frühromantik, que se perfila contra a


fragmentação da vida moderna e o horizonte da industrialização, é essen-
cialmente utópico e transforma-se no início do século XIX numa mitologia
retrospectiva. O trabalho dos irmãos Grimm será, neste sentido, a
reconstrução duma mitologia popular (contos, lendas e tradições, Kinder-
und Hausmiirchen, 1813-1815). A viragem do cosmopolitismo cultural
setecentista para o projecto duma tradição nacional anuncia-se já nos res-
pectivos títulos das grandes colectâneas de Herder (Stimmen der Volker in
Liedern, com este título na 2.ª edição de 1807) e dos irmãos Grimm (Deutsche
Sagen, 1816-1818).

209
4.4 O Reno como cenário romântico

O aproveitamento ideológico dum cenário romântico pode estudar-se tam-


bém na história do Reno. Para Georg Forster, a paisagem do Reno é ainda
monótona e cansativa, e, nos sítios mais selvagens, até «melancólica e terrí-
vel» (Borchardt 1953: 73-74 ). Com a Revolução Francesa, este rio tinha-se
tornado num dos principais pomos de discórdia entre a França e a Ale-
manha. Fronteira política entre os dois países desde 1795, a proximidade da
França na outra margem do Reno provocou uma série de panfletos e de
canções com reivindicações territoriais explícitas.

Entretanto, autores ingleses como Ann Radcliffe ( 17 64-1823) e Lord Byron


(1788-1824) já tinham descoberto as ruínas medievais e as paisagens român-
ticas do Reno, criando com as suas descrições uma nova atracção turística
para os viajantes ingleses no continente. Quando o Congresso de Viena, em
1815, atribui a Renânia à Prússia, estão reunidas as condições para o desen-
volvimento do primeiro fenómeno dum turismo de massas em solo alemão.
Com os barcos a vapor (ligação regular Koln-Mainz a partir de 1827) e a ins-
talação e uniformização das infra-estruturas (hotéis, restaurantes miradouros)
e das modalidades da viagem no Reno, o número de turistas aumenta rapi-
damente. Em 1836, Karl Baedeker (1801-1859) publica a Rheinreise von
Straj3burg bis Rotterdam que está na origem dos famosos guias turísticos
que servem ainda os viajantes actuais. A romantização da paisagem deve-se
às ruínas e aos mitos locais, sendo o mais conhecido o daLoreley inventado
por Brentano e popularizado por Heine e as numerosas adaptações musicais do
seu famoso poema. A Rheinromantik tem consequências concretas ao nível
turístico que continuarão, sem dúvida, pelo século XXI dentro. A trans-
formação arquitectónica e social duma paisagem pelo turismo pode estu-
dar-se também na Suíça, na Alemanha do Sul e nas ilhas do Mar do Norte.

Durante o século XIX, o Reno continua, apesar da sua vertente poética, a


provocar emoções políticas. A chamada crise do Reno de 1840 (Rheinkrise ),
uma manifestação reivindicativa do nacionalismo francês e as respectivas
respostas líricas do lado alemão, nomeadamente o «Rheinlied» de Nikolaus
Becker de 1840 e a «Wacht am Rhein» de Max Schneckenburger de 1841,
que se tornou numa das canções patrióticas mais populares até à Pri-
meira Guerra Mundial, leva os dois países à beira duma confrontação militar.

A concretização monumental da mitificação nacionalista do Reno, que se


conjuga sem problemas com a tradição romântica, é a Germania do Nieder-
wald perto de Rüdesheim (1883) que atrai ainda, actualmente, dois milhões
de turistas por ano, tal como o Reno, sobretudo a sua parte «romântica»
entre Koblenz e Rüdesheim, continua a movimentar visitantes alemães e
estrangeiros em elevado número.

210
4.5 A floresta alemã

Um outro lugar tópico, não menos importante, da identidade nacional alemã


é a floresta. A transformação romântica da floresta num espaço mítico já
tem uma longa pré-história_que remonta até à Germania de Tácito (cf. Schama
1996: 92 e segs.). As vicissitudes pelas quais este manuscrito passou, são
um exemplo da valorização ideológica dum símbolo nacional.A Germania,
verdadeira «certidão de nascimento» da nação germânica, é descoberta no
início do século XV num claustro alemão, levada para Itália e impressa em
Veneza em 1470; a primeira tradução alemã data de 1496. O regresso do
nacional-socialismo às raízes germânicas da Alemanha transforma o livro
de Tácito num símbolo da origem germânica. Numa curiosa troca de
promessas e exigências, o manuscrito entra, na época fascista, numa odisseia
entre Hitler e Mussolini culminando, durante a guerra, no saque do palácio
do proprietário italiano do manuscrito por parte das SS que tentam, em vão,
levar o precioso documento outra vez para a Alemanha. Aparece ainda, em
1943, uma edição alemã com um prefácio de Heinrich Himmler que, par-
ticularmente interessado na legitimação histórica do nacional-socialismo,
insiste na importância do passado e dos anciãos (germânicos) para um futuro
glorioso da Alemanha.

O texto de Tácito tornou-se, assim, num mito da origem nacional, como


confirma também Plínio ao mencionar os carvalhos imensos e intactos nas
florestas alemãs que datam da origem do mundo (vastitas intacta aevis et
congenita mundo). A Germania desta tradição é um mundo natural, sem
cidades (por oposição ao império romano), com uma religião ao ar livre,
sem as instituições duma igreja (romana), onde reinam virtudes bélicas como
a agressividade e a força física, mas também sociais como a simplicidade e
a honestidade do homem natural.

Na época do romantismo, que contribuiu largamente para a revalorização


mítica da floresta, grande parte das antigas florestas alemãs já não existem.
A Guerra dos Trinta Anos ( 1618-1648), a venda de madeira para a constru-
ção naval inglesa e francesa e a subsequente reflorestação com pinheiros
nórdicos mais lucrativos tinham destruído muitos dos carvalhais no século
XIX. O que não impede minimamente a mitificação do carvalho, como nas
nostálgicas encenações do Gottinger Hainbund (fundado em 1772) à procura
dum passado mítico. Com as guerras de libertação na época de Napoleão, os
carvalhos ganharam um simbolismo político nacional, os voluntários trazem
bolotas nos uniformes e as pinturas deste tempo mostram frequentemente a 1 O termo Walder designa

desde o barroco colectâneas


árvore tradicional alemã. No quadro de Caspar David Friedrich, Der Chasseur de textos diversos , mas ganha
im Walde de 1813, aparece um soldado francês perdido numa imensa floresta no título dos irmãos Grimm
em combinação com o adjec-
(uma referência à velha antinomia entre a Alemanha e o mundo galo-româ- tivo altdeutsch conotações
nico ), e os irmãos Grimm publicam a partir de 1813 Altdeutsche Wiilder 1, específicas.

211
antologias de poesia medieval e de lendas e provérbios populares. O sim-
bolismo da floresta nos Mêirchen dos irmãos Grimm mereceria um estudo à
parte; a redescoberta da literatura medieval, o início da filologia germânica
e a construção duma tradição popular permitem, pelo menos ao nível cultural,
a formação duma consciência nacional que politicamente ainda não existe.

O-mito da floresta como mito fundador da nação alemã continua durante


os séculos XIX e XX. O pintor renano Johann Wilhelm Schirmer (1807-
-1863), «wesentlich der vaterlandischen N atur treu» na escolha dos seus
motivos no dizer do Brockhaus de 1914, pinta em 1828 um quadro intitu-
lado Deutscher Urwald com imponentes carvalhos que evocam a tradição da
identidade germânica. Por outro lado, o carvalho que aparece já em Tácito e
que é revalorizado no fim do século XVIII como símbolo da nacionalidade
alemã (força, raízes fundas, continuidade e sabedoria), é oposto muitas vezes
à tília, o lugar do sonho amoroso desde a Idade Média. Esta polaridade
simbólica ilustra os dois lados do Romantismo alemão: poesia, sentimento
e saber filosófico, por um lado, e agressividade nacionalista, por outro.

No século XIX começam também as medidas oficiais de protecção das


florestas, nomeadamente dos carvalhos. Como diz Wilhelm Heinrich Riehl
( 1823-1897), jornalista, historiador e, nos últimos anos da sua vida, con-
servador dos monumentos artísticos e históricos da Baviera, na sua popular
Naturgeschichte des Volkes, que se transforma, com as suas numerosas reedi-
ções, num arsenal não só da ideologia anti-urbana e anti-modernista, mas
também do anti-semitismo moderno:

Ein Dorf ohne Wald ist wie eine Stadt ohne historische Bauwerke, ohne
Denkmaler, ohne Kunstsammlungen, ohne Theater und Musik, kurz ohne
gemütliche und künstlerische Anregung. (apud Schama 1996: 131)

Bismarck, o controverso fundador do Reich, afirma ter tomado as suas


decisões mais importantes na solidão, na floresta (Welchert 1965: 10), e o
valor identificativo deste espaço mítico é tão grande e persistente que mesmo
Helmut Kohl achou-se obrigado a apresentar, na conferência mundial das
Nações Unidas sobre os problemas do ambiente em Junho de 1997, uma
proposta alemã para a protecção global das florestas.

Artistas contemporâneos comoAnselm Kiefer (cf. Schama 1996: 138 e segs.)


e Joseph Beuys também não fogem a esta tradição. Em 1982, Joseph Beuys
( 1921-1986) apresenta a sua contribuição para a documenta, uma conceituada
mostra periódica de arte moderna em Kassel, sob forma dum projecto que
prevê a plantação de 7000 carvalhos na cidade, considerando a florestação
como «redenção» ao transformar o mundo «numa grande floresta» (Schama
1996: 141-142). O artista participa também no congresso fundador do Partido
dos Verdes e candidata-se nas suas listas para as eleições federais de 1980.

212
Já em 1971, Beuys se tinha referido ao mesmo espaço mítico numa acção
directa que visava ultrapassar as normas tradicionais da comunicação cultural.
Para impedir a transformação duma floresta perto de Düsseldorf em campos
de ténis, Beuys e os seus alunos varreram ritualmente a zona e pintaram
cruzes e círculos nas árvores ameaçadas para evocar os antigos espíritos
elementares.

Todas estas acções e manifestações visam ainda a reconciliação romântica


de história e natureza. Em 1965, por exemplo, é publicado um livro sobre
Bismarck com o título significativo Über die Natur, que apresenta o artesão
da unidade alemã como amigo sentimental das flores e animais e grande
protector do meio ambiente (Welchert 1965). Numa carta à mulher de 1851,
Bismarck concretiza os principais elementos do seu horizonte ideológico:

( ... ) mir ist, als wenn man an einem schõnen Septembertage das gelbwer-
dende Laub betrachtet; gesund und heiter, aber etwas Wehmut, etwas
Heimweh, Sehnsucht nach Wald, See, Wiese, dir und den Kindern, alles
mit Sonnenuntergang und Beethovenscher Symphonie vermischt. (35)

Cada elemento desta enumeração tem o seu significado tradicional: o mito


da família, o «Heimweh» (palavra tipicamente alemã que permite só tradu-
ções aproximativas), a melancolia que indica a consciência do carácter utó-
pico da natureza idílica, o pôr-do-sol que continua, até nas suas formas mais
trivializadas (postal, publicidade turística e outra) a iluminar o sentimen-
talismo burguês, e finalmente Beethoven, como Goethe e Schiller, uma das
grandes figuras directrizes do humanismo idealista oitocentista.

4.6 A natureza burguesa e os seus espaços específicos

A sucessão do jardim francês, reservado à corte e à aristocracia, pelo par-


que inglês já mais aberto (o Englische Garten em Munique é instalado no
fim do século XVIII) e pelo passeio público do século XIX mostra a impor-
tância ideológica da construção de espaços «naturais» que completam e
reflectem a própria organização social. Na época daAufklarung, a burguesia
privilegia ainda a natureza cultivada e o valor estético do útil que se prolonga
na instituição de museus de história natural. Mas com o Romantismo, os
lugares naturais diversificam-se. Um inventário descritivo da pintura
romântica daria uma ideia bastante completa da extrema variedade de motivos
naturais e das respectivas dimensões simbólicas.

Do panorama abrangente ao olhar da janela aparecem uma série de esquemas


perceptivos que situam o observador numa configuração simbólica específica.
Assim, o Wanderer über dem Nebelmeer (1818) de Caspar David Friedrich

213
mostra o sujeito monumental em face duma paisagem montanhosa ilumi-
nada pela luz divina, enquanto o Monch am Meer de 1809 reduz a figura
consideravelmente e apresenta céu e mar como reflexos da omnipotência
natural.

4.6.1 O espectáculo da natureza no Panorama

Enquanto os quadros de Friedrich encontram, sobretudo nos últimos anos


da sua vida, uma certa incompreensão junto do grande público e da crítica,
uma outra forma da pintura paisagística teve, desde o início, um êxito enorme.
O Panorama, que surgiu no fim do século XVIII na Inglaterra e se
multiplicou rapidamente por todas as grandes cidades da Europa central,
ilustra bastante bem um novo paradigma da apreensão da natureza. Uma
pintura circular (ou semi-circular), instalada num edifício redondo iluminado
por cima e com uma plataforma para os espectadores no centro, criava uma
ilusão de realidade que deve ter, segundo as testemunhas da época, causado
uma impressão avassaladora.

Se os primeiros panoramas na Alemanha são ainda de origem inglesa


(Ein grasses Natur-Geméihlde der weltberühmten Stadt London, Hamburg
1799), os pintores alemães viram-se cedo para este novo medium. Uma
primeira tentativa - uma vista de Roma (Berlin 1800) - levanta ainda
problemas técnicos (iluminação) e cognitivos (habituação à visão circular)
(cf. Oettermann 1980: 144-221 ). Um projecto panoramático do jovem Caspar
David Friedrich ( 181 O) não se concretiza, enquanto o arquitecto Karl Friedrich
Schinkel ( 1781-1841) pinta em quatro meses um grande Panorama von
Palermo ( 1808) que é mostrado depois com grande êxito em Berlim e outras
cidades alemãs.

Os panoramas das décadas seguintes mostram principalmente cidades


conhecidas (Hamburgo, Frankfurt, Roma, mas também Constantinopla e o
Cairo), a natureza selvagem (os vulcões Etna e Vesúvio, os Alpes) e cenas
históricas (guerras napoleónicas). Já em 183 3 aparece o P leorama des Rheins
von Mainz bis St. Goar, no qual os espectadores, instalados num barco,
assistem durante uma hora à passagem de duas telas laterais com as margens
do Reno. A publicidade salienta as vantagens desta «viagem» (independência
do mau tempo e nenhum perigo de naufrágio) e insiste no aspecto patriótico
do tema:

Der Gegenstand als vaterlandische Gegend wird nicht nur für alie diejenigen
von Interesse seyn, welche die Reise dahin noch untemehmen wollen,
sondem auch für alie, die bereits dort waren, und denen diese Nachreise
nur eine erfreuliche Erinnerung seyn kann. (apud Oettermann 1980: 169)

214
Enquanto a popularidade e a subsequente produção de novas telas estagnam
a partir de 1850, a Alemanha vive de 1880 a 1900 um novo apogeu desta arte
popular. Financiados por sociedades anónimas com elevada capacidade
financeira, novos panoramas são instalados nas principais cidades do império
e atraem, ao longo destes anos, mais de 1O milhões de espectadores. Em
Hamburgo, concorrem três instituições, oito em Berlim e em todas as gran-
des exposições industriais da época são igualmente mostrados panoramas.

Por outro lado, o panorama corresponde às orientações ideológicas do


império. O patriotismo moderado do Biedermeier transforma-se agora num
imperialismo explícito que, nesta altura, se pratica abertamente na França e
na Inglaterra. O National-Panorama em Berlim mostra de preferência cenas
da guerra franco-alemã de 1870/1871, tal como o Sedan-Panorama na mesma
cidade que glorifica a batalha decisiva de Sedan (1.9.1870). Os pintores
encarregados do projecto, sob a direcção de Anton von Werner ( 1843-1915),
visitaram clandestinamente o campo de batalha e estudaram as pinturas
francesas sobre o mesmo tema. Concluído em 1883, este panorama, no qual
os espectadores eram instalados numa plataforma rotativa, estabeleceu-se
como uma das grandes atracções turísticas da capital durante 20 anos.
A crítica da época salienta o realismo incomparável, mas também a mode-
ração dos pintores na representação do sangue e dos cadáveres.

Um outro panorama berlinense, inaugurado em 1885, tematizou durante


três anos cenas das colónias alemãs, nomeadamente uma expedição punitiva
nos Camarões, enquanto aHohenzollemgalerie glorificou a história prussiana
e a marinha alemã. Um dos panoramas mais lucrativos, porém, foi uma vista
de Jerusalém com a crucificação de Cristo, pintado por Bruno Pigelhein
( 1884-1894) em 1886, que junta o monumental ismo pomposo da pintura de
salão ao realismo «científico» que garante a verdade da representação. Assim,
a Zeitschriftfür Bildende Kunstvê neste panorama o «triunfo da arte moderna
realista»:

Erst das Jahrhundert der exakten Wissenschaft, der Photographie und der
Eisenbahnen ermoglichte die umfassenden Studien, welche die wissen-
schaftliche Grundlage des groBen Werkes bilden. Nur ein Künstler, der an
Ort und Stelle die gründlichsten landschaftlichen, volkstypischen und
archaologischen Forschungen gemacht hatte, vermochte den unzahligemale
dargestellten Gegenstand in so durchaus neuer Weise behandeln. (apud
Oettermann 1980: 217)

Este realismo significa, no entanto, o fim do panorama. A crescente popu-


laridade da fotografia e do cinema, que começa a aparecer nas cidades ale-
mãs a partir de 1895, por um lado, e, por outro, a própria evolução das artes
plásticas, que se afastam, com o expressionismo e a pintura abstracta, cada
vez mais do realismo tradicional, levam ao encerramento dos panoramas.

215
Os panoramas actuais (Einsiedeln, Altotting e o Bauernkriegspanorama de
Wemer Tübke - pintado de 1976 a 1989 - em Bad Frankenhausen) que
atraem milhões de visitantes, oferecem ainda a possibilidade de viver, embora
já num contexto cultural completamente diferente, uma experiência visual
que proporcionou a um século inteiro a ilusão duma apropriação total da
natureza e da história. O ambiente idílico e o pathos, que dominam a pintura
paisagística alemã no século XIX, integram-se sem grandes problemas na
sociedade burguesa; o triunfo económico e político desta burguesia provoca
reacções artísticas que põem termo à estética da representação na qual a
mimesis da natureza tinha ainda um papel central.

4.6.2 Espaços naturais recriativos no século XIX

A comercialização da representação da paisagem, tal como a integração da


natureza no espaço social, pressupõe a separação da cidade e do campo;
à expulsão da natureza das cidades corresponde o seu regresso como
espaço verde ( «soziales Grün») (Konig 1996: 321). A cultura do passeio
(Spaziergang) que se estabelece no fim do século XVIII, exprime as normas
burguesas como reprodução mítica duma totalidade que a prática profissio-
nal e comercial nega cada vez mais. Enquanto os primeiros passeios públi-
cos são ainda instalados por iniciativa dos soberanos, os burgueses do
século XIX começam a criar Verschonerungsvereine e outras associa-
ções filantrópicas que financiam novos espaços recriativos e terapêuticos.
A abertura do Prater em Viena (1766) e do Tiergarten em Berlim (1772) ao
grande público é acompanhada pela exigência burguesa de criar novos jardins
públicos. A instalação destes jardins tomou-se possível, no início do século
XIX, com a remoção dos muros e fortificações que circundavam as cidades.

Na base deste movimento para fora está a exploração das zonas rurais à
volta das cidades:

Die Aneignung der Heimat, der Spaziergang in die vertraute Umgebung,


war für die Zeit um 1800 das eigentlich Neue. Mit Ausflügen, Picknicks,
Landpartien und Spaziergangen wurde die Umgebung erkundet. (Kõnig
1996: 15) l
Ao contrário do passeio aristocrático, que representava ainda a hierarquia
da corte, o Spaziergang do burguês integra os espaços naturais numa nova
ética do trabalho e do descanso correspondente. A estética da natureza
completa e substitui a prática religiosa por hábitos que consolidam a família
(Sonntagsspaziergang) e a pretendida harmonia de natureza interior e
exterior.

216
Por outro lado, a cultura do passeio instituiu também uma diferenciação
genérica de papéis sociais e dos respectivos corpos (masculino e feminino);
a vida nos espaços naturais prolonga e diversifica os esquemas essenciais da
sociedade burguesa que se delimita tanto da aristocracia improdutiva como
do povo inculto. O saneamento básico das cidades, que se realiza no decorrer
do século XIX, inclui também as zonas verdes dentro e fora das cidades
que se encontram ainda cheias de lixo, excrementos e cadáveres animais.
A natureza recriativa exige pureza e limpeza, a sua estética não tolera os
incómodos da civilização e ainda menos os resíduos (humanos e materiais)
da produção industrial.

A preferência pela natureza idílica explica-se também pelo facto de na Ale-


manha nunca ter existido uma cultura urbana como em Roma ou, na moder-
nidade, em Paris e Londres. Formas reduzidas desta urbanidade moderna
verificam-se unicamente em Viena, capital do império Austro-Húngaro, e na
Berlim do fim-de-século e dos anos vinte. O que predomina numa Alemanha
industrializada tardiamente é a pequena cidade, o lugar duma vida burguesa
pacata e idílica, tal como aparece na pintura do Biedermeier e nos quadros
ainda muito populares de Carl Spitzweg (1808-1885).

Esta ausência duma cultura urbana moderna traz consigo a valorização dos
espaços naturais, não só das florestas, mas também do pequeno quintal arren-
dado nos arredores da cidade. Esta instituição tipicamente alemã, o Schreber-
garten ou Kleingarten que surge a partir de 1864, assim denominado em
memória do médico e pedagogo Daniel Gottlob Moritz Schreber (1808-
-1861 ), existe ainda em muitas regiões da Alemanha; a sua estrutura
característica (cerca de 300m2) que junta o agradável (flores, sombra, sossego,
relva, um pequeno pavilhão em madeira) ao útil (legumes e fruta, trabalho
ao ar livre), é uma versão em miniatura do sonho burguês duma harmonia
total entre trabalho e natureza, espaço saudável e vida humana.

A parcela individual numa zona «verde pública» (que tem, desde 1919, o
seu próprio estatuto jurídico) recria em poucos metros quadrados um universo
aparentemente intacto e controlável. Mas, com a expansão demográfica e
espacial das cidades e a poluição do ambiente, o Schrebergarten torna-se
numa forma obsoleta de evasão e a progressiva industrialização dos lazeres
cria outros cenários naturais que são comercializáveis de uma forma muito
mais rentável e eficaz.

4.7 A natureza compensatória

Em face do aspecto representativo do parque barroco, por um lado, e da


função crítica do conceito de natureza na ideologia burguesa, por outro, não

217
é de admirar que o jardim ocupe um lugar importante na discussão pública
do século XVIII (cf. Wimmer 1989: 426 e segs.). Para os teóricos ingleses ,
o gardening torna-se uma forma de arte, e os filósofos alemães acompanham
esta valorização da Gartenkunst, que implica igualmente uma nova visão
global da natureza.

No poema «Der Spaziergang» de Friedrich Schiller, o viandante, «entflohn


des Zimmers Gefangnis/Und dem engen Gesprach», refugia-se numa sagrada
e eterna natureza que se apresenta nas suas mais variadas manifestações
como uma «Freundliche Schrift des Gesetzes, des menschenerhaltenden
Gottes». Para Schiller, a relação entre o ser humano e a natureza está sujeita
à evolução histórica; a «liberdade» da era burguesa permite não só uma nova
apreciação estética da natureza, mas implica também, para quem esquece as
suas leis, o perigo do caos e da anarquia social.

Numa perspectiva mais concreta, o filósofo Christian Cay Lorenz Hirschfeld


(1742-1792), cuja Theorie der Gartenkunst (5 vols., 1779-1785) marcou
fortemente a estética da natureza no fim do século XVIII, salienta a função
compensatória do ambiente natural da paisagem serena e agradável do
Heeschenberg perto de Kiel :

Dieser Ort schien nach seinem Charakter und nach seinen Wirkungen
vorzüglich von der Natur zum Ruheplatz eines Geistes bestimmt, der von
den grossen Geschaften der Welt zurückkehrt zu der Einsamkeit des
geliebten Landes, der seinen Abend im eigenen ruhigen Schatten feiern
will, unter dem Nachgenuss seiner offentlichen Verdienste, und unter der
stillen Wonne eines wohltatigen Privatlebens. Kein Sturm der Hõfe, kein
Zwist der Konige mehr; die ganze Welt scheint von hier aus besanftigt und
befriedigt. Alle Szenen umher winken ihm Ruhe und sanfte Erquickung
zu. (Borchardt 1953: 15)

Integrada no ritmo da vida pública e privada, esta paisagem carece das


características do prospecto romântico: «Keine prachtige, der Bewunderung
oder des Erstaunens würdige Gegenstande, keine Gebürge, keine Felsen,
keine von ihnen herabhangende Walder, keine Aussichten auf die Uner-
messlichkeit des Meeres» (ib.: 14 ), mas a solidão da floresta e o «silêncio da
natureza que respira paz» e harmonia.

Nas descrições de Hirschfeld perfilam-se claramente as duas vertentes da


função compensatória da natureza, tal como prevalecem até hoje: o aspecto
pitoresco, grandioso e terrível dos fenómenos naturais que provoca emoções
fortes e será, por isso, reservado para ocasiões especiais, e a natureza amena
e agradável cujos efeitos benéficos são integrados na vida quotidiana.

Neste sentido, o arquitecto paisagista Leberecht Migge ( 1881-1935) exige a


participação activa dos utentes na plantação do jardim (Garten-Dilettan-

218
tismus) a fim de compensar os efeitos nocivos e destrutivos da civilização
moderna. O povo devia aproveitar os jardins públicos também durante a
semana - «Wir brauchen keine Sonntagsgarten» (Wimmer 1989: 364) - e
por isso ter o direito de pisar a relva, brincar e dançar no jardim e tomar
banho nos lagos.

A participação activa na instalação e utilização do jardim está também no


centro das actividades das associações que se organizam depois da morte do
já citado médico Schreber. Mas estes pequenos quintais ou hortas fora da
cidade, concebidos como uma alternativa às formas pouco saudáveis da vida
urbana, tomam-se, também, com a revolução industrial e o crescimento acele--
rado dos centros urbanos, num meio de evasão que opõe o trabalho pro-
fissional muitas vezes desgastante ao Feierabend recriativo. Curiosamente,
esta prática é retomada ultimamente pelas famílias turcas nas zonas indus-
triais do Ruhr que instalam em terrenos abandonados uma pequena Heimat
onde podem cultivar os legumes tradicionais e conviver com família e ami-
gos (cf. a reportagem «Türkische Garten>> de Frauke Hunfeld e Brigitte
Kraemer no Zeitmagazin de 18.4.1997, pp. 42-47): «Wir Türken sind ein
Teil des Ruhrgebiets geworden», diz um destes turcos que passaram mais
tempo na Alemanha do que na Turquia, «Deutschland hat uns verandert, und
wir haben Deutschland verandert. Meine Enkelkinder sollen hier groB
werden» (ib.: 47).

A função compensatória do ambiente natural do Schrebergarten é ainda


resultado dum trabalho individual que transforma, planta e recolhe os frutos
deste esforço. O que se paga é a ocupação do terreno e não os efeitos benéficos
do jardim. Recriar estes efeitos num ambiente artificial já permite um acesso
mais rápido às compensações que a natureza pode oferecer, e isto a números
elevados de pessoas que podem ainda escolher entre cenários diferentes.

A simulação de ambientes naturais , porém, não é só uma manifestação do


processo de modernização, como afirma GroBklaus (1993 : 14). As funções
por ele apontadas (anular a distância temporal e geográfica, transformar
espaços longínquos e diferentes em espaços interiores simultâneos) já se
verificam em épocas pré-industriais; simular um ambiente aparentemente
natural é uma técnica cultural com uma longa tradição. As fontes, grutas e
lagos do parque barroco eram tão artificiais como as colinas e riachos do
parque inglês. As paisagens turísticas modernas, porém, obedeciam aos
imperativos duma indústria que formou e transformou cidades e regiões
inteiras. Mas, neste contexto, o carácter artificial do ambiente natural era
ainda camuflado, a transição imperceptível. A redução considerável da
superfície agrícola e florestal na segunda metade deste século, a mecani-
zação da agricultura e o baixo valor estético e afectivo das monoculturas
exigem novas formas de encenação.

219
Uma destas formas é o aproveitamento e a transformação da natureza concreta
em realidade mediática. Desde 1994, vários canais de televisão apresentam
durante o dia inteiro as «sete maravilhas do mundo», transportando também
o público alemão para os lugares mais espectaculares do planeta. Por outro
lado, já está em elaboração, desde 1985, uma rede informática chamada
Terravision, um projecto americano-alemão que pretende nada mais nada
menos do que criar um segundo mundo digitalizado que permita viajar no
tempo e no espaço, isto é, através das suas representações arquivadas e
preparadas para uma utilização interactiva.

Mas também o turismo em zonas exóticas, antes exclusivamente reservadas


a uma clientela rica (Caraíbas, Pacífico, etc.), por um lado, e a instalação de
grandes parques de lazer (Freizeitparks) na Alemanha, por outro, visam um
alargamento da oferta paisagística. Assim o Grugapark de Essen, uma das
instalações mais antigas deste género, incluiu não só um jardim japonês,
americano e mediterrânico, mas também uma paisagem alpina com cascata.
A publicidade (cf. GrugaparkAktuell, 8.ª edição, Junho-Julho 1997, p. 4)
insiste particularmente na função compensatória deste conjunto:

Warum in die Feme schweifen , im Grugapark Essen erleben Sie eine


Reise durch die Welt. Mit exotischen Tieren und Pflanzen in einer der
gro/3ten Freizeitanlagen - eine in Jahrzehnten gewachsene idyllische
Parklandschaft für Ruhe und Erholung, Sport und Spiel, Frohsinn und
Abenteuer. Vergessen Sie den grauen Alltag. Gonnen Sie sich ein paar
schone Stunden .

Os novos parques que, por razões de clima e poluição industrial, são instalados
em grande parte em áreas cobertas, também incluem elementos tropicais e
exóticos (plantas, animais, temperatura adequada) , estruturas de divertimento
(parques aquáticos, instalações desportivas, etc.) e de consumo (cafés, bares,
restaurantes, supermercados) e recriam, assim, um conjunto harmonioso de
«natureza», férias e consumo.

Enquanto a multiplicação dos canais de televisão e a evolução rápida da


realidade virtual, que oferecem não só desporto, música e informação, mas
também viagens e descobertas, limitam o espectador a uma realidade
mediática integrada no ambiente familiar, a excursão para os novos par-
ques tem ainda uma dimensão concreta e sensual que explica o êxito des-
tes empreendimentos. A fórmula para estas «novas» experiências é a do
Erlebnistourismus (e, na sua variante mais exclusiva, do Abenteuer- und
Risikotourismus) que deve proporcionar o que a monotonia da vida quoti-
diana já não fornece. O «Erlebnis», a experiência da diferença e da alteri-
dade é, porém, reduzido à disponibilidade de elementos estandardizados e a
uma regularidade que limita também o valor afectivo dum ambiente acessí-
vel para toda a gente, a horas certas e preço fixo.

220
x .....tll(~;;.; . : : z
}::C:: j{j;;::(/Ci:i.::}:n'.:::/

Por outro lado, o novo Freizeitpark é um fenómeno internacional (nos países


industrializados) que prescinde largamente de componentes regionais e
nacionais em favor de ambientes estereotipados na sequência da globaliza-
ção da civilização ocidental. Esta uniformização da natureza simulada resulta,
sem dúvida, como GroBklaus salienta ( 1993), da perda de espaços naturais e
da destruição geral do ambiente, mas a desconexão actual de natureza e
identidade nacional, cuja identificação teve tantos efeitos duvidosos na
Alemanha, poderia ter também consequências positivas. Além de pro-
porcionar descanso e divertimento, estes parques podem transformar-se em
lugares de encontro e convívio que permitam também a participação em
manifestações culturais, sem as barreiras sociais que limitam o público das
instituições tradicionais como a ópera e o teatro. A integração de ambientes
naturais e culturais pode favorecer novas formas de interacção social e, até,
uma relação diferente com o espaço a que se chama Heimat.

A redefinição deste conceito, isento das antigas conotações ideológicas, já


se verifica na literatura e crítica (a nova Heimatliteratur, sobretudo na Áustria
e na Suíça) e no cinema. Um papel pioneiro nesta valorização da Heimat no
contexto da história do quotidiano e da cultura popular teve o filme Heimat
de Edgar Reitz que, rodado de 1981 a 1984, apresenta em mais de 15 horas
o mundo limitado da terra natal e, ao mesmo tempo, a instrumentalização e
a destruição deste ambiente idílico e dos respectivos sentimentos. Nesta
perspectiva, Reitz cita o filme Heimat (1938) de Carl Froelich (1875-1953),
um cineasta ao serviço do nacional-socialismo, que reivindicou o conceito
para a ideologia fascista. Reitz remete, pelo contrário, para a dimensão utópica
de um mundo que, tal como a paisagem romântica, não deixa de ter uma
função crítica e compensatória na actual comercialização global da vida social
e cultural.

Bibliografia aconselhada

Além das antologias de Borchardt ( 1953) e Schafer/Storch ( 1993), pode-se


recorrer também, numa perspectiva que abrange outros países como a
Inglaterra e os Estados Unidos, aos estudos de Wimmer (1989) e Schama
(1996); para uma abordagem mais analítica numa perspectiva interdiscipli-
nar recomenda-se Das Naturbild des Menschen (1982) de Jõrg Zimmer-
mann. Neste conjunto de estudos de vários autores destacam-se os artigos de
Hans Hollander («Weltentwürfe neuzeitlicher Landschaftsmalerei», pp. 183-
-224) e do próprio Jõrg Zimmermann («Zur Geschichte des asthetischen
Naturbegriffs», pp. 118-154). Sobre as modalidades do turismo moderno
informa Gabriele M. Knoll: «Reisen als Geschaft. Die Anfange des
organisierten Tourismus», in Bausinger 1991: 336-343.

221
- Actividades propostas
t

• Ler e interpretar o poema «Der Spaziergang» de Friedrich Schiller;

• Resumir os argumentos principais nos extractos seguintes do artigo


«Mit Caspar David Friedrich ins Malboro Country. Die Deutschen
und ihre Sehnsucht nach der Natur» (Bolz 1996: 189-205) de Peter
Wippermann (pp. 193, 204):

Mit der Industrialisierung und immer strengerenArbeitsteilung gegen


Ende des achtzehnten Jahrhunderts entsteht so etwas wie ein Loslêisen
der Wünsche aus Konventionen der realen Lebensumstande.
Die Zweck- und Funktionsfreiheit ist eine der wesentlichen Voraus-
setzungen für unsere modeme bildende Kunst, die nicht mehr nach
Reprasentation, sondem nach Stimmungsbildern undAusdruckswerten
sucht. ( ... )
Stimmung ware als Einheitsbeziehung des Menschen und der Land-
schaftsdarstellung, als Zusammenhang von Weltanschauung und
Lebensgefühl noch vor dem Zustand von Wollen und Erkennen zu
definieren. ( ... )
Die so bestimmte Landschaft ist ein fiktionaler Idealraum, der die
Vorstellung einer erhobenen Welt vermittelt. Funktion dieser Land-
schaft ist einzig, auf den Seelenzustand des Betrachters angenehm zu
wirken.
Es handelt sich also um ein frühes Konzept von dem, was heute als
«Emotional Design» in der Marketingkommunikation eine zentrale
Rolle spielt.

• Coleccionar em revistas alemãs e portuguesas exemplos de publi-


cidade que utilizem elementos naturais e interpretar o significado
mítico destes elementos (paraíso, amor, aventura, liberdade, etc.).

A. O.

222
IV. TEMPOS
1. A Alemanha de 1815 a 1848
Resumo

Define-se a periodização problemática e a perspectivação historiográfica da


Alemanha, entre 1815 e 1848, e descrevem-se as figuras simbólicas da
identidade alemã no contexto da evolução política.

Salienta-se a relação entre a liberalização económica e as modificações no


sector público e explicam-se os efeitos da «dupla revolução» alemã.

Objectivos

• Distinguir as três principais designações para a época compreendida


entre 1815 e 1848.

• Entender a evolução das estruturas políticas e a problemática


elaboração da identidade nacional alemã.

• Caracterizar o crescimento demográfico e a liberalização económica.

• Explicar os motivos da mobilização cultural e a evolução do espaço


público.

• Identificar o conceito da «dupla revolução» e os seus efeitos para a


Alemanha da segunda metade do século XIX.

227
A época entre o Congresso de Viena e a Revolução de Março de 1848
representa uma faseimportante na constituição da nação alemã e das estruturas
políticas e económicas que caracterizam o estado e a sociedade modernos. A
Revolução Francesa e as subsequentes invasões francesas tiveram efeitos
mais importantes na Alemanha do que em outros países europeus. Ao des-
truir o obsoleto Sacro Império Romano-Germânico e ao evidenciar a su-
perioridade de modelos políticos, sociais e militares diferentes, a França
revolucionária colocou os territórios alemães perante a necessidade de re-
formas que, no contexto conservadoc-do poder político·, tinham sido siste-
maticamente adiadas.

No entanto, a modernização sócio-económica, a mobilização cultural e a


crescente tensão política culminaram, em meados do século, numa situação
de crise generalizada que Wehler descreve na perspectiva de uma «dupla
revolução» (1987: 583):

Tatsiichlich aber stand Deutschland an der Schwelle zweier Revolutionen:


der _erfolgreichen Industriellen ~evolution,und der scheiternden politischen
Revolution mit dennoch irreversiblen positiven Konsequenzen. Diese
«Doppelrevolution» trieb den gesamtdeutschen TransformationsprozeB in
eine_neue Phase der modernen deutschen Geschichte hinein.

1.1 Periodização e perspectivações historiográficas

A complexidade da época, o seu .carácter transitório e as suas múltiplas


contradições no jogo entre Restauração e Revolução dificultaram e polari-
zaram as sucessivas abordagens historiográficas deste período. De facto, a
época nunca se reconheceu numa etiqueta, numa designação geralmente aceité
e os numerosos estudos historiográficos perpetuam esta multiplicidade de
perspectivas e pontos de vista. Prevalecem, porém, três designações -
Vormarz, Restauration, Biedermeier - que caracterizam duma maneira
significativa aspectos e períodos essenciais desta época.

Não podemos esquecer, no entanto, que esta periodização e as respectivas


terminologias por ela produzidas, estão sujeitas ao dilema básico de qual-
quer fenomenologia histórica: a abstracção que constrói linhas de evolução,
cronologias e significados centrais, revela-se extremamente selectiva e
redutora, enquanto a mera acumulação de factos, objectos e materiais (que
permitiria uma melhor aproximação à realidade do passado) corre o risco de
acabar na contingência total. Face a esta situação, os significados historio-
gráficos só podem ter um valor heurístico, remetendo não só para um pas-
sado, mas também para um presente que precisa dum passado específico.

229
O espaço alemão de 1815 a 1848 oferece um exemplo particularmente
significativo deste duplo carácter da historiografia cultural e social, que
constrói o passado a partir dum projecto que visa o presente e o futuro da
instituição científica e da sociedade que a suporta. Assim, os estudos na área
da história cultural, literária e social integram-se, desde meados do século
XIX, nas grandes tendências antinómicas que têm vindo a caracterizar, até
hoje, a reflexão sobre os vários níveis da sociedade alemã.

O conceito de Vormarz, que se refere à revolução de Março de 1848, implica


uma perspectivação que privilegia as correntes críticas e progressistas com
base numa cronologia político-histórica na linha do mito do progresso da
sociedade. O conceito é utilizado duma maneira variável, tanto para a época
de 1815 a 1848, como para os anos entre a revolução de Julho (1830) e a
revolução de Março (1848), e ainda, mais especificamente, para os oito anos
particularmente agitados que antecedem esta revolução. A perspectiva do
Vormarz reduz uma época complexa e contraditória a uma linha evolutiva
que se prolonga, implícita ou explicitamente, até um presente que se entende
como continuação e corolário (sempre adiado) deste passado pré-revolucio-
nário. No entanto, devido à importância da dupla revolução de meados do
século para o futuro rumo da Alemanha, a designação de Vormarz, utilizada
com as devidas cautelas hermenêuticas, justifica-se para uma abordagem
sócio-cultural da lenta formação da Alemanha moderna. Assim, a Revolu-
ção Francesa e a dupla revolução (industrial e política, com o primeiro esboço
duma democracia parlamentar) de 1848 criaram as bases dum projecto
sócio-cultural e económico, cujos aspectos problemáticos (a representa-
tividade de eleições às vezes pouco concorridas, a globalização económica e
as vicissitudes da classe política, entre outros), no findar do século XX, se
tomam cada vez mais visíveis.

O termo Restauração insiste no restabelecimento do poder absolutista a


partir do Congresso de Viena e suas consequências: censura, perseguição
das tendências constitucionalistas e emancipatórias, discriminação dos judeus
e francofobia agressiva. Na prática, a restauração tem sobretudo um efeito
retardador, já que ela não põe em questão alguns dos resultados principais
da época revolucionária, tais como uma centralização territorial relativa e a
integração ideológica do «povo» num projecto sócio-cultural que se apresenta
cada vez mais como projecto nacional.

Por outro lado, a restauração conhece, entre 1815 e 1848, várias fases e
tendências até contraditórias. Apesar de terem revelado abertura à introdu-
ção do sistema constitucionalista durante o Congresso de Viena, os dois
Estados mais importantes da Liga Alemã, a Prússia e a Áustria, recusam
cada vez mais uma representação política significativa da burguesia e do
povo. Neste sentido, a política da Liga é uma reacção às tendências gerais de

230
uma Europa cujos sistemas políticos se adaptam mais ou menos facilmente
à realidade complexa do moderno estado industrializado.

Biedermeier designa, em primeiro lugar, um estilo de vida e as suas mani-


festações materiais na arquitectura, nas artes plásticas e nas artes aplicadas.
Utilizado principalmente para o período compreendido entre 1815 e 1835, o
nome surge na revista Fliegende Bléitter (1855-1857) numa série de poemas
atribuídos a uma personagem letárgica e indiferente às grandes questões
políticas e torna-se particularmente popular na perspectiva nostálgica da
segunda metade do século. Numa Alemanha em plena revolução industrial e
em permanente agitação política e social, a época relativamente pacífica
entre o fim das guerras napoleónicas e o fracasso da revolução nacional
surge como essencialmente idílica e estável. De facto, a democratização de
determinados valores (bem-estar e conforto, beleza, comunicação) e a eclosão
duma cultura centrada no ambiente familiar e nas respectivas instituições
públicas (imprensa, bibliotecas e gabinetes de leitura, teatros, museus, etc.)
favorece a imagem dum passado pré-industrial idealizado que, ainda hoje
em dia, é evocado e apreciado. Em termos gerais, o Biedermeier pode ser
considerado como uma manifestação original e qualitativamente importante
da cultura burguesa, de uma classe cada vez mais consciente dos seus valores,
mas ainda à margem do poder político e à procura de uma identidade nacional.

1.2 Evolução das estruturas políticas e da identidade nacional

O resultado do longo processo negocial do Congresso de Viena, que se


prolonga de 1 de Setembro de 1814 a 9 de Junho de 1815, será a Europa das
velhas monarquias pré-revolucionárias, cujo equilíbrio precário é garantido
pela SantaAliança entre a Rússia, a Áustria e a Prússia. Embora peremptório
na restauração dos regimes absolutistas, o Congresso procede a algumas
modificações territoriais, que, sobretudo no espaço alemão, virão a influen-
ciar a evolução futura dos antigos estados do Sacro Império. Por um lado, a
Liga Alemã (Deutscher Bund) que ocupa agora o lugar do antigo império,
reduz a fragmentação territorial extrema segundo o modelo federativo do
Rheinbund de 1806, resultante da aliança de mais de 20 Estados do Sul e
Centro da Alemanha e a França napoleónica. A nova Liga, cuja assembleia
está sediada em Frankfurt, inclui 35 territórios soberanos e 4 cidades impe- ·
riais livres, o que significa um passo decisivo no sentido da unificação
económica e administrativa da Alemanha (veja-se a figura que a seguir se
reproduz segundo Gõrtemaker 1989: 78). Por outro lado, as recompensas
territoriais obtidas pelos principais vencedores de Napoleão criam uma
situação de bipolarização hegemónica, que se transformará, na segunda
metade do século, num conflito aberto.

231
- Grenze
des deutschen
Bundes

I.
Kgr. Polen

11'
li !1.1
Kaiserreich Õsterreich
1 · 1·11
1 1 1

1 i

A Liga Alemã depois de 1815

Ao íncorpbrar a Vestefália católica e Chegando, assim, ao Rerio, a Prússia


protestante deixa de ser uma potência oriental relativamente homogénea em
termos sócio-culturais. A Áustria, ao retirar-se do Sul da Alemanha ao e
ganhar novos territórios na Itália e nos Balcãs, acentua o seu carácter
multinacional, o que vai preparar a divisão dos dois impérios, consumada
defiriitivamente, depois da guerra de 1866 entre a Prússia e a Áustria, com a
fundação do Reich sob liderança prussiana em 1871.

Entre 1815 e 1848, porém, a Áustria ainda domina a aplicação das decisões
restritivas do Congresso de Viena. O complexo sistema repressivo, reforçadp
e alargado várias vezes, é representado pelo príncipe Klemens Wenzel von
Mettemich (1773-1859) que,. até à sua demissão forçada em 1848, não se can-
sará de combater todas as tendências líberais e oposicionistas nos territórios da
Liga. Na sequência do assassinato do escritor e espião russo, August von
Kotzebue (1761-1819), em23 de Março de 1819, Mettemichconvoca uma con-
ferência em Karlsbad ,para promulgar uma série de decretos que proíbem as
associações estudantis, instalam uma vigilância generalizada sobre as univer-
sidades e os professores; introduzem a censura prévia para todos os jornais e
livros com menos de 320 páginas e criam uma comissão central de fiscalização
que deverá vigiar e perseguir todas as actividades consideradas revolucionárias.

232
O escritor Heinrich Reine caracteriza esta época da maneira seguinte:

Eine widerwartige Realq:ion trat gegen allen Liberalismus, gegen jede heitre
und freye. Manifestazionen. des Lebens, Die F;rêimmeley hatte.
'
gute Tage
; . ..

und der Obscurantismus herrschte sowohl im protestantischen wie im


katholischen Kirchenwesen. Die Gentilhommerie, das Gespenst der
Feudalzeit, hob . sich aus seine111 Sarg und wollte . seine vergilbtesten
Pergamente wieder geltenâ machen. Ueberall Censur. ( ... ) Nur in den
Tavemen der Universitaten wehte noch ein freyer Hauch, der Flügelschlag
der Begeisterung, hie'r erloschen riie die Tradizionen der wahren Humanitât
(1973-1997: VI, 358).

Depois das revoltas que, •na sequência da Revolução de Julho de 1830 em


França, tébentam em várias cidades alemãs como Colónia, Frankfurt, '
Munique e Gottingen, onde cidadãos e estudantes ocupam a câmara muni-
cipal e só recuam passada uma semana perante a força de 8000 soldados,
Metternich multiplica as medidas repressivas. A perseguição permanente, os
numerosos processos que levam à condenação a penas pesadas de centenas
de estudantes, professores é escritores, conseguiram abafar efectivamente as
tendências oposicionistas.

Mas emigrantes como Heinrich Heine {1796-1856), Ludwig Borne (1786-


-1837), Arnold Ruge (1802'- 1880) e Marx continuaram a intervir na discus-
sãó pública alemã a partir do estrangeiro e mesmo a interdição, em 1O de
Dezembro de ·1835, de todos os escritos da chamada JovemAlemanha( ]unges
Deutschland) não conseguiria travar por muito tempo as críticas ao
imobilismo cada vez mais intransigente do sistema. Nos anos 40,já é·óbvio
que a atitude ·rígida e defensiva da Liga não deixa margem para qualquer
reforma e este desencanto radicaliza a oposição fora .e dentro do país.
A política de Metternich apenas adiara um confronto violento que irá gene-
ralizar-se nos territórios alemães logo após a Revolução de Fevereiro de
1848 em Paris.

O fracasso da política repressiva da Liga Alemã deve-se, entre outros, ao


facto de a restauração não ter conseguido corresponder às expectativas e às
promessas feitas durante a ocupação francesa, nomeadamente à instalação
dum regime constitucional e à garantia dos direitos fundamentais. O fim do
Sacro Império e a derrota militar da Prússia haviam criado um vazio que
permitiria uma breve era de reformas que iniciariam a difícil modernização
das antiquadas estruturas políticas e administrativas .. Por o.utro lado, uma
resistência eficaz contra os exércitos franceses não .e ra possível sem a
mobilização geral da população através de um ideário nacionalista e liberal.
A visão duma Alemanha livre que reunisse todos os cidadãos, tal com o rei
da Prússia o reclamou, invocando, de resto, na sua famosa proclamaçãoAn
mein Volk de 1813, o exemplo da resistência anti-napoleónica em Espanha e

233
em Portugal, suscitou um entusiasmo popular que não se esgotou na derrota
de Napoleão. Não é por acaso que as cores da bandeira da Liga (vermelho,
preto, ouro) - que são ainda as cores nacionais da Alemanha actual
- foram retiradas dos uniformes dos voluntários que lutaram contra as
tropas francesas.

Mas a derrota de Napoleão e sobretudo as decisões do Congresso de Viena


não deixaram grande margem para um nacionalismo unificador e liberal,
esse «sonho alemão de liberdade e igualdade» (Reine 1973-1997: II, 184),
que sobreviveu nas universidades e nas associações estudantis (Burschen-
schaften). Em 1817, durante a festa destas associações organizada no castelo
de Wartburg, evocou-se explicitamente a reforma de Lutero e a batalha de
Leipzig de 1813 afim de exigir a unidade e a liberdade para uma Alemanha
cujos principais soberanos já não queriam ouvir falar das antigas promessas
que podiam limitar o exercício do poder absolutista.

Mas estes princípios duma nova consciência nacional tinham uma falha que
viria a influenciar duma maneira perniciosa os destinos da futura Alemanha.
Na ausência duma base territorial bem definida e de uma estrutura estatal
adequada, o patriotismo alemão definiu-se em grande parte a partir duma
francofobia sanguinária. Na festa do Wartburg não são queimados unica-
mente os símbolos do absolutismo, mas também livros considerados con-
trários às ideias nacionais. Este nacionalismo tacanho, que favorece tam-
bém, a partir dos anos 20, um anti-semitismo cada vez mais virulento, tor-
na-se entre as facções mais conservadoras da oposição parte integrante do
conceito de identidade nacional alemã, enquanto as correntes mais liberais
situam a Alemanha no contexto europeu e se identificam com a luta dos
gregos contra a ocupação turca ( 1821-1829) e a insurreição na Polónia (1830).
Esta perspectivação internacional representa, porém, só uma faceta da
ambígua identidade nacional desejada.

As aspirações da oposição articulam-se ostensivamente na festa de Hambach,


que reúne, em 1832, cerca de 30 000 participantes para exigir um estado
liberal e democrático unido. Os discursos de Hambach não só rejeitam a
monarquia, mas apontam também para uma revolução social, o que leva
imediatamente ao reforço das medidas e dos decretos repressivos por
parte da Liga. O modelo político esboçado nos anos 30 põe em causa
o poder absolutista baseado na monarquia, na aristocracia e na Igreja.
A burocracia encontra-se bastante dividida, o que permite, por exemplo,
na aplicação da censura uma certa flexibilidade local habilmente explo-
rada pelas editoras da época. Contudo, as crescentes dificuldades económi-
cas e a incapacidade dos principais estados da Liga de resolver os prementes
problemas estruturais e sociais reforçam inevitavelmente a tendência para
uma mudança radical.

234
Na discussão pública, estes diferentes aspectos do projecto alemão conden-
sam-se em três figuras alegóricas, que personificam as principais tendências
do imaginário nacional.

O Michel, representado em numerosas caricaturas e poemas satíricos do


Vormiirz, é um sonhador letárgico que atura pacientemente todas as repre-
sálias e vexações arbitrárias por parte do poder, símbolo do sofrimento dum
povo sem tradição revolucionária. Mas o Michel pode também acordar e
liquidar os seus inimigos como sucede, por exemplo, no Liederbuch des
deutschen Michel editado por Hermann Marggraff em 1843. A grande
popularidade desta figura, que integra atitudes bastante contraditórias, explica
a sua futura recuperação pela propaganda nacionalista do Reich e do
hitlerismo, enquanto que a sua utilização em caricaturas mais recentes se
refere mais à letargia do Michel do Vormiirz (cf. Riha 1991).

As metamorfoses do Michel durante o ano de 1848


(caricaturada época)

$ommtr. 5pitja~r.

Mais agressiva é a figura da Germania que, com as guerras de libertação na


sequência da ocupação da Prússia pelas tropas francesas e a crise do Reno
em 1840, resultando dum surto nacionalista dos dois lados, condensa as
aspirações nacionais face a uma França expansionista. O quadro de Philippe
Veit (1793-1877), que foi instalado em 1848 na assembleia constitucional
da Paulskirche, e a famosa pintura de Lorenz Clasen (1812-1899) de 1860, "
fixam os traços anti-franceses e imperialistas desta virgem combativa que se
virão a materializar, depois da guerra franco-alemã de 1870/1871, em
numerosos monumentos patrióticos (veja-se a figura ao lado que reproduz o
monumento de Leipzig). O exemplo mais conhecido deste patriotismo monu-
mental é a estátua da Germania no Niederwald perto de Rüdesheim, erigida
em 1883.

Contrariamente a estas figuras, a representação da Europa tem uma con-


sistência simbólica relativamente fraca. Por um lado, a aliança emancipató-
ria das nações, «das groBe VõlkerbündniB, die heilige Allianz der Nazionen» ,
que Reine preconiza em 1832 (1973-1997: XII, 65), permite uma visão Germania
Siegesdenkmal in Leipzig
optimista: von Rudolf Siemering (1888)

235
Die Jungfer Europa ist verlobt
Mit dem schonen Geniusse
Der Freyheit, sie liegen einander im Arm,
Sie schwelgen im ersten Kusse. ( 1993-1997: IV, 92)

Por outro lado, o passado feudal e absolutista da Europa favorece uma atitude
de. resignação, tematizada de. maneira paradigmática no romance Die
Europamüden de Ernst Willkomm (1810-1886) de 1838, que antecipa os
movimentos decadentistas e escapistas do fim-de-século (cf. Cap. IV,3).
A bipolarização partidária entre esquerda ,,e direita, que, se acentua a partir de
' " , ·'

1830 e que con.tinua mais tarde no internacionalismo socialista, dificulta


igualmente uma simbolização positiva, o que pode explicar ainda, nos
nossos dias, a fraca identificação com uma Europa comunitária que se define
sobretudo em termos económicos e administrativos.

1.3 Cres,cimento demográfico e liberalização económica .

Na primeir~ metade do século XIX, verifica-se nos territóriosalemães. um


extraordinário crescimento demográfi'ço~ A população da Prússia, por
exemplo; aumentâ.QQ%, e a cidade de Berlim, que conta 197 'Z17hqbitantes
em 1816, jáconcentra uma população de 6.66 800 pessoas em 1866. Entre
1815 e 1'848; a população global da Lig~J\ídínã passa de 22 par;35:rriühões .

Wehler indica três razões principais para este crescimento: a modernização


da agricultura orientada para o mercado e para a exportação, uma extensa
pequena indústria caseira e uma conjuntura internacional favorável. Mesmo
assim, as capacidades de absorção de mão de obra são rapidamente esgotadas
e, já nos anos 20, se começa a manifestar um dos problemas mais preocupantes
do século, a «questão social» e o fenómeno do «pauperismo»: uma nova
pobreza generalizada que caracteriza urna situação de ·transição. entre a
produção agrária e artesanal e a industrialização emergente que, a partir de
meados do século, com a melhoria nos meios de transporte e a construção
em massa de alojamentos nas cidades consegue resolver em grande parte os
aspectos materiais mais visíveis do problema social.

A continuação e o aµmento da emigração, já considerável nos anos 30 e 40,


mostra, porém, que o ritmo do crescimento demográfico continua a exceder
as capacidades económicas dos territórios alemães. Sendo ainda no século
XVIII um fenómeno marginal devido aos regulamentos restritivos dos
governos do antigo regime, a emigração transformou-se, durante a segunda
metade do século XIX, num fenómeno de grandes dimensões que inodificou
profundamente não ,só a situação sócio-cultural dos países afectados como
também a estrutura populacional das diferentes zonas de imigração.

236
--.,__

A contradíção aparente entre o patriotismo patético e a necessidade de emigrar


para garantir a subsistência material, dá bem conta das dificuldades em
conciliar macro-estruturas económicas globais e ideologias nacionais numa
época de grandes modificações.

Na época do Vormârz, a questão social é sem dúvida um dos aspectos que


mais preocupa a opinião pública. Já nos anos 20, o escritor Heinrich Heine
fala da «guerra» entre pobres e _ricos e, em 1843, Bettina von Arnim (1785-
-1859) publica um livro de «reportagens sociajs», Dies Buch gehort dem
Konig, que denuncia a miséria inimaginável. nas cidades alemãs. Falando
dos bairros pobre_s às portas de Hamburgo, a autora aponta:

Am leichtesten iibersieht man einen Theil der Armengesellschaft in den


sogenannten <<Familienhausem». Sie sind in víele kleine Stuben abgetheilt,
von welchen jede einer Familie zum Erwerb, zum Schlafen und Küche dient.
ln 400 Gemachem wohnen 2.500 Menschen. Ich _besuchte daselbst viele Familie
.-und verschaffte mir Einsicht in ~re Lebensumstande. (Pois 1979: 258)

Mas, enquanto Bettina von Arnim dedica ainda o seu livro ao rei da Prússia,
o Hessische Landbote de GeorgBi.ichnerjá articula uma crítica muito mais radi-
cal. O texto começa com as palavras «Friede den Hi.itten ! Krieg den Paliisten !»
(em alusão à Revolução Francesa de 1789) e àcaba com a promessa:
«Deútschland ist jetzt ein Leichenfeld, ba.ld wird es ein Paradies sein» (Büchner
1976: 142). Este panfleto de 183_3 é de tal modo violento nas suas conclusões,
que Büchner terá de 'fugir para evitar a prisão. As situações denunciadas
por Bi.ichner não se limitavam ab estado de Hessen; em 1842, nas grandes
cidades comerciais da Liga, entré 20 e 50% da população vfram~se obrigados
a recorrer à assistência social. Os governos _não conseguiram elaborar uma
política social eficiente e tomaram, no caso de conflitos concretos, o partido
dos empresários e da ordem. Assim, a revolta dos tecelões famintos da Silésia
contra um sistema desumano e repressivo, em 1844, é derrotada pela força
militar. Mas esta revolta transformou-se, num símbolo do sofrimento e da
insurreição nos textos literários da época (de Heine, entre outros) e, mais
tarde, nas gravuras de Kathe Kollwitz (1867-1945) e na peça Die Weber
(1892) de Gerhart Hauptmann· (1862-1946).

Os problemas sociais são airida agravados pelas precárias condições higiénicas


que facilitam a propagação de doenças contagiosas e de grandes epidemias.
Hegel, o filósofo do progresso históriéo, morre em 1831 emBerlim, vítima
da cólera. O problema do saneamento das grandes cidades só será resolvido
em finais do século XIX e ainda em 1892, a cólera mata em Hamburgo mais
de dez mil pessoas. Em 1871/1872, a varíola faz 180 000 vítimas nos
territórios alemães, um numero quatro veze·s superior ao número dos mortos
na guerra franco-alemã. Só na Prússia morrem mais de 120 000 pessoas; a
lei que impõe a vacina obrigatória para todos os r_ecém-nascidos só é

237
promulgada em 1874 e até à Primeira Guerra Mundial, morrem ainda milhares
de pessoas desta doença.

Neste sentido, o conforto material do Biedermeier é bastante relativo e,


comparado com a Inglaterra e a França, o progresso civilizacional realiza-se
com grande atraso. A iluminação pública a gás, por exemplo, introduzida na
Inglaterra a partir de 1807, só é adoptada em Berlim em 1846.

Neste contexto, as iniciativas de modernização partem principalmente da


burguesia mercantil. O liberalismo económico, representado pelo econo-
mista Friedrich List (1789-1846), tenta ultrapassar as limitações adminis-
trativas que resultam da divisão territorial da Liga. As primeiras associações
de comércio livre são criadas em finais dos anos 20 e o Deutsche Zollverein
de 1834 integra já a maior parte dos estados da Liga Alemã, com excepção
da Áustria e do Sul da Alemanha.

List, que tinha visto durante a sua estadia nos Estados Unidos a importância
primordial dos meios de transporte modernos para o desenvolvimento eco-
nómico, tomou-se um promotor incansável da construção de linhas férreas
nos estados alemães, linhas férreas que, em poucos anos, transformaram
radicalmente a realidade sócio-económica e a construção ideológica duma
futura Alemanha unida. A criação dum mercado nacional e a mobilidade
geral de bens e pessoas pôs termo ao isolamento das culturas regionais, criando
'1
novas mitologias patentes, por exemplo, nas utopias socialistas que preconi-
zam um progresso ilimitado e um paraíso finalmente ao alcance de todos.
Em Deutschland. Ein Wintermarchen (1844), Heine profetiza esta totali-
dade de progresso material e plenitude estética e sensual nos versos seguintes:
Es wachst hienieden Brod genug
Für alle Menschenkinder,
Auch Rosen und Myrten, Schõnheit und Lust,
Und Zuckererbsen nicht minder. (1993-1997 : IV, 92)

1.4 Abertura cultural e comunicação pública

Se nos territórios da Liga Alemã podemos verificar um atraso considerável


em termos económicos e tecnológicos, o mesmo já não se pode dizer da vida
cultural. Esta área é caracterizada por mudanças aceleradas e modernizações
rápidas que se manifestam principalmente na
• alfabetização e generalização do ensino básico;
• consolidação da formação universitária na sequência das reformas
de Humboldt e na;
• rápida expansão dos meios de comunicação.

238
Com efeito, o ensino básico atinge até 1848 uma taxa de integração que
ultrapassa, sobretudo nos estados protestantes, o nível ainda bastante defi-
ciente da Inglaterra e da França. Na Prússia, cerca de 82% das crianças
frequentam a escola em 1848 e o analfabetismo baixa, na mesma altura,
para 20% em geral (contra 40-45% em França e na Inglaterra), embora com
grandes diferenças regionais. A Saxónia e a Vestefália, por exemplo, contam
no início dos anos 40 só com 1 a 2% de analfabetos (cf. Wehler 1987: 478-
-485, 504-525).

Esta importância atribuída à formação escolar explica-se, por um lado, pela


falta de operários e técnicos especializados e, por outro, pela necessidade de
consolidar a mitologia social desenvolvida na sequência da Aufkliirung
e da sua pedagogia reformista (família, trabalho, propriedade, etc.). Numa
Alemanha cujas estruturas políticas se estão a desmoronar, o sistema de
valores éticos e culturais que a burguesia setecentista preconizava à revelia
do antigo regime, surge reforçado na sequência dos efeitos da Revolução
Francesa.

O liceu (Gymnasium) com o seu exame final, o Abitur, constitui, a partir de


1834, a única via de acesso à universidade, instituindo assim uma formação
privilegiada e selectiva. Por outro lado, em todos os maiores estados da Liga
são fundados, a exemplo do Instituto Politécnico de Viena inaugurado em
1815, uma série de escolas politécnicas que se transformarão, na segunda
metade do século, em escolas superiores técnicas.

No entanto, o liceu é ainda vedado às raparigas, que só podem frequentar


escolas especializadas (Hohere Miidchenschulen, Tochterschulen) que se
limitam a preparar as alunas para as funções convencionais de mulher e
esposa.

As universidades continuam a funcionar na perspectiva do neo-humanismo


já aplicado no modelo da nova universidade de Gõttingen (fundada em 1737),
frequentada, entre outros, por Wilhelm von Humboldt que irá orientar a
criação da universidade de Berlim, inaugurada em 181 O, segundo os mesmos
princípios. Os estatutos desta universidade dão, porém, prioridade à formação
de funcionários públicos e funcionários da Igreja e confirmam a tutela do
Estado. No entanto, as verbas do orçamento público atribuídas às seis
universidades prussianas (cerca de 0,5 % ) são ínfimas, comparadas com as
despesas militares que arrecadam mais de 40% do orçamento geral.

Por outro lado, a diversidade e a concorrência das 20 universidades exis-


tentes nos vários estados da Liga Alemã favorecem as inovações e a flexi-
bilidade funcional das elites que se integram sem problemas nos processos
de modernização que começam nos anos 30 e 40. O total de estudantes nestas
20 universidades aumenta de 8277 em 1819 para 15 836 em 1830- só na

239
universidade de Gõttingen contavam-se, em 1996, cerca de30 000 estudantes.
Os estudos nas universidades da Liga Alemã eram livres, sem qualquer plano
definido, sendo a maioria dos estudantes protestantes de origem burguesa.
Os judeus compunham 10% dà população académica, sobretudo nas
faculdades de direito e de medicina que proporcionavam uma formação em
profissões menos sujeitas à discriminação. A mobilidade de doce·ntes edis-
centes entre as várias universidades alemãs constituiu umarede académica
nacional particularmente aberta a movimentos reformadores e contestatários .

.O elemento mais significativo da mobilização cultural que impregna a Europa


na sequência da Aufklarung é sem dúvida a rápida expansão da imprensa,
baseada na capacidade cada vez mais generalizada desaber ler e escrever. Já
no fim do século XVIII se verifica a transição da leitura intensiva (um livro
para muitos leitores),repetida, de poucos livros, para uma leitura extensiva,
de, muitos livros e jornais diferentes e novos para cada leitor. Na época do
Vormiirz, a leitura regular de . livros, revistas e jornais já faz parte da vida
quotidiana de boa parte da população. Para corresponder a esta necessi-
dade de leitura, criam-se quase 2000 bibliotecas comerciais, muitas vezes
com salas de leitura para jornais, abertas a pessoas de todos os níveis sociais.
Nas 341 cidades da Liga Alemã existem já 1321 livrarias em 1841 'e
vendedores ambulantes (Kolporteure) distribuem a literatura e a imprensa
populares nas zonas mais ·periféricas. 'A ·função integrativa desta mobili-
zação cultural é evidente; generaliza o uso duma língua e duma mitologia
social comuns e transmite conhecimentos e ·perspectivas queultrapassam·as
fronteiras regionais e nacionais.

Ao mesmo tempo, o aumento quantitativo da produção de livros ejornais é


facilitado, a partir dos. anos 20, pela fabricação industrial do papel, pela uti-
lização de prensas rápidas (57 600 páginas à hora) e pela invenção da litogra-
fia que permite ilustrações em grande tiragem. Assim, a produção de livros
conhece na primeira metade do século XIX um aumento espectacular ·de
quase 330%, com o número recorde de 14 039 títulos publicados em 1843. Entre
·1801 e 1845, o mercado livreiro alemão permite a escolha entre cerca 285 000
títulos. Uma parte considerável deste mercado é ocupada pelos dicionários e
enciclopédias que se tofnaín cada vez mais populares. Editoras como as casas
Brockhaus e Meyer fazem fortuna com sucessivàs edições das suas enciclopédias;
entre 1837 e 1842, dos' 12 volumes da oitavà edição da Real-Enzyklopiidie
de Brockhàus vendem, nada mais nada menos, do que 32 000 exemplares.

O número de revistas e jornais aumenta igualmente e um jornal como a


Allgemeine Zeitung, publicado em Augsburgo pela editora Cotta, com uma
excelente rede de correspondentes no estrangeiro e uma informação abran-
gente e cautelosamente liberal, já se apresenta como um exemplo de jorna-
lismo moderno. As quase 700 publicações periódicas nos vários Estados da
Liga em 1848 oferecem, apesar da censura. e das respectivas limitações, uma

240
variedade temática e formal bastante ampla que vai desde a informação sobre
as mais recentes publicações científicas nacionais e estrangeiras nas
Gottingische Gelehrte Anzeigen às primeiras revistas ilustradas (Illustrierte
Zeitung de Leipzig, desde 1843 ). As numerosas editoras - as mais conhecidas
são Campe em Hamburgo, Cotta em Augsburgo e Brockhaus e Reclam em
Leipzig - organizam-se desde 1825 na associação dos livreiros alemães
(Borsenverein der deutschen Buchhiindler) e com a lei da assembleia federal
de 1835, que proíbe as edições piratas correntes, inicia-se uma legislação
reguladora que integra as actividades culturais no moderno estado de direito.
Por outro lado, a imprensa continua até 1848 a ser alvo de medidas repressivas
que contribuem para o ambiente de tensão que precede a Revolução de Março
e que transformam o jornalismo crítico numa profissão de alto risco.

O antagonismo entre a política restritiva da Liga Alemã e a rápida comer-


cialização dos vários sectores da vida cultural cria núcleos de reflexão crítica
e zonas de evasão, que privilegiam não só a leitura de romances e relatos de
viagens, mas também o teatro, o museu, a ópera e os mais variados diverti-
mentos populares.

Curiosamente, o mais importante museu para a história e a arte alemãs, o


Germanisches Nationalmuseum em Nümberg, foi fundado em 1852, depois
do fracasso da revolução de 1848, de acordo com uma perspectiva ideológica
que o nome indica claramente.

As novas orientações sociais reflectem-se igualmente na importância cres-


cente das associações (Vereinswesen) que se distinguem significativamente
das tradicionais corporações com as suas hierarquias e exclusividades bem deter-
minadas. O Verein, pelo contrário, apresenta-se igualitário, livre e dinâmico.
Na primeira metade do século dominam as Geselligkeitsvereine (associações
das elites burguesas urbanas) que desenvolvem, muitas vezes em edifícios
próprios, as mais variadas actividades, desde concertos, exposições e convívios
festivos às salas de leitura que chegam a ter centenas de jornais e revistas 1• 1 Segundo Sobania (em Hein/

Schulz 1996: 170-190), as


Estas Associações, compostas por várias centenas de membros, pretendiam principais associaçõe s nas
ainda fomentar uma coesão social que, com a progressiva diferenciação da grandes cidades movimenta-
vam já capitais importantes e
própria burguesia na segunda metade do século, já se tomava impraticável. contribuíam com a introdução
de novas tecnologias (ilumi-
Ao estenderem-se às classes médias e à pequena burguesia, as associações nação a gás, etc.) e com um
alto nível de informação para
multiplicam-se e especializam-se cada vez mais. Em Munique, por exemplo, a modernização da sociedade
existem no fim do século já 3000 associações diferentes. Normalmente urbana.
fixadas em zonas de interesses e actividades específicas (desde o patrio-
tismo, a música e a literatura até aos coleccionadores de selos, jogadores de
xadrez e criadores de pombos), as associações são, sobretudo nas zonas
rurais e nas pequenas cidades, um importante elemento de coesão social
que, no entanto, privilegia, no decorrer dos tempos, cada vez mais a função
compensatória da vida associativa.

241
Ao nível do divertimento, as feiras rurais e populares integram o comércio
e a evasão para um público que não tem acesso às imponentes institui-
ções culturais como museus, teatros urbanos e óperas. O Panorama, inven-
tado nos finais do século XVIII na Inglaterra, continua, com as suas pintu-
ras circulares que representam cidades famosas, cenas bíblicas e vitó-
rias militares alemãs, a ser uma das principais atracções das grandes cidades
(cf. Cap. IIl.4).

Do lado oposto destes grandiosos panoramas, que fascinaram o público até


ao fim do século, situa-se a pintura intimista do Biedermeier cujos motivos
preferidos são o retrato, a família, a paisagem e os quadros da vida quo-
tidiana. Oscilando entre o realismo do pormenor e o idílico, esta arte enfeita
as casas burguesas e documenta a progressiva estetização da vida privada.
A integração da pintura no ambiente familiar cria um mercado considerável;
só em Berlim, trabalham mais de 400 pintores, sendo Düsseldorf e Munique
outros centros importantes da pintura Biedermeier. Em lares mais modestos,
as gravuras e as mais acessíveis litografias substituem os quadros. Mas o
cidadão não se limita à intimidade do seu lar; uma paz de várias décadas e as
melhorias nos transportes favorecem também as viagens dentro e fora das
fronteiras alemãs permitindo o conhecimento de outras realidades e o alar-
gamento dos horizontes. De facto, o turismo do século XIX faz-se ainda na
perspectiva mais abrangente da viagem instrutiva da Aufklarung e os via-
jantes visitam não só estabelecimentos industriais e sociais, hospitais e asi-
los, mas também instituições políticas e culturais.

Enquanto o contexto familiar privilegia a música de câmara clássica e


romântica, a evolução da ópera já anuncia tendências pomposas e nacionalistas
que culminam na obra e na controversa personagem de Richard Wagner.
Significativamente, a Alemanha imperial escolhia como ópera nacional não
o Fidelio (1804-1816) de Ludwig van Beethoven com os seus ideais
revolucionários de liberdade, igualdade e fraternidade, masDie Meistersinger
de Wagner que enfatizava a arte e as virtudes alemãs. Estreada em 1868, a
ópera foi inspirada pela Geschichte der poetischen National-Literatur der
Deutschen (1835-1842) de Georg Gottfried Gervinus (1805-1871) que
Wagner leu antes da revolução de 1848 na qual participou activamente.

A génese desta ópera acompanha a transformação do compositor num


nacionalista imperialista e anti-semita. Na época guilhermina, os Meistersin-
ger são interpretados como símbolo da vitoriosa luta germânica contra as
forças estrangeiras. Mais tarde, o nacional-socialismo reivindicará Wagner
como precursor de Hitler que participa, em 1933, na representação dos
Meistersinger de Bayreuth e manda inaugurar, a partir de 1934, o Reichs-
parteitag de Nürnberg com esta ópera. O importante contributo de Wagner
para a renovação das artes cénicas tal como o modo como as suas obras se

242
prestaram a ser instrumentalizadas pela ideologia nacionalista e imperialista,
são um capítulo particularmente interessante da cultura alemã.

Na vida cultural do Biedermeier germinam já as contradições políticas que


determinam a história alemã oitocentista. Em face do imobilismo dos Esta-
dos da Liga Alemã que se vêem confrontados nos anos 40 com uma moder-
nização económica e cultural à qual não sabem corresponder, o movimento
nacionalista organiza-se a todos os níveis sociais.As numerosas associações
eruditas e académicas e até os grupos musicais e desportivos cultivam e
promulgam uma forte ideologia nacional integradora que se desenvolve
numa extensa rede de comunicação pública e privada. O liberalismo,
inicialmente burocrático e constitucional, e depois cada vez mais democrático,
transforma-se num poder público que começa a contrariar abertamente a
administração absolutista. Nos anos 40, os problemas e tensões acumulam-
-se de tal maneira, que tanto conservadores como liberais e socialistas estão
conscientes da iminência duma crise geral.

1.5 A dupla Revolução Alemã

A revolução que, em Fevereiro de 1848, se espalha a partir de Paris a grande


parte da Europa, é entendida na Alemanha como a tentativa duma mudança
fundamental da sociedade. A interdependência dos vários factores e o
policentrismo administrativo alemão conferem a esta revolução, que é política
e social ao mesmo tempo, uma complexidade e uma dinâmica bastante
particulares.

Depois das primeiras revoltas nas zonas rurais, que conseguiram libertar os
camponeses das últimas restrições feudais, os movimentos contestatá-
rios, nas principais cidades da Liga Alemã, confrontaram o poder com um
extenso catálogo de reivindicações de ordem liberal e democrática. Em Viena
e Berlim, o conflito transforma-se rapidamente em guerra civil, a população
constrói barricadas que, na capital prussiana, são atacadas por 15 000
soldados. As lutas de rua, que acabam com a vitória dos revolucionários,
fazem centenas de mortos. O rei da Prússia vê-se obrigado a homenagear as
vítimas da revolução e a retirar todas as tropas de Berlim; em Viena,
Metternich e a corte têm de fugir e uma assembleia constitucional assume
o poder.

Esta primeira fase vitoriosa da revolução confrontou a oposição com uma


série de problemas políticos e sociais que o parlamento de Frankfurt, que
iniciou os seus trabalhos em 18 de Maio de 1848, tentou resolver. Duas
tarefas prioritárias dominaram as suas preocupações: estabelecer as bases

243
uma nova estrutura social, administrativa, judicial e militar no contexto da
constituição a elaborar e institucionalizar um Estado nacional alemão que
teria de limitar necessariamente a soberania dos seus membros, já que a Liga
Alemã continuava a existir formalmente. A recusa da Áustria em renunciar
aos seus territórios de etnias diferentes tornou inviável a
grande Alemanha ( grofideutsche Losung), e a solução dum império sem a
Áustria (kleindeutsche Losung), que foi finalmente adoptada, fracassou
com a recusa do rei da Prússia em aceitar a coroa imperial das mãos dos
revolucionários.

A constituição de Frankfurt, elaborada nos cinco primeiros meses das


sessões parlamentares, aboliu os privilégios da aristocracia e os direi-
tos feudais, fixou os direitos fundamentais dos cidadãos, a liberdade de im-
prensa, de ensino e de religião, a independência da justiça e a abolição
da pena de morte. Nas discussões de dois pontos essenciais, a forma do futuro
Estado alemão (monarquia ou república, confederação ou Estado centrali-
zador) e a constituição dos órgãos do poder (por via democrática
ou por delegação), não se verificou o consenso geral sobre os direitos
fundamentais. O medo da república e do proletariado, que dominava
grande parte da burguesia liberal, favoreceu um compromisso : um sis-
tema político federal e centralista, uma monarquia constitucional com
um imperador hereditário, uma assembleia nacional com duas câmaras,
o Volkshaus (com deputados eleitos directamente) e o Staatenhaus com
os representantes dos governos e assembleias dos Estados membros.
Esta estrutura de representação directa dos cidadãos e representação
indirecta dos estados federais antecipa a actual divisão de Bundestag e
Bundesrat.

Promulgada em 13 de Março de 1849, a constituição encontrou a resistên-cia


generalizada da contra-revolução que se tinha entretanto organizado.
Os governos conseguiram substituir o liberalismo democrático por assembleias
nacionais e abafar as últimas revoltas em favor da constituição de Frankfurt.

As razões principais para o fracasso da Revolução residem na falta de enten-


dimento entre a burguesia liberal e as camadas proletarizadas, na divisão dos
centros de poder, que permitiu uma rápida recuperação do absolutismo, e na
incompatibilidade dos interesses particulares dos estados da Liga, para além
duma acumulação de dificuldades concretas e reformas imprescindíveis cuja
solução ultrapassou de longe as possibilidades de qualquer
assembleia.

As consequências mais directas do fracasso da revolução de 1848 são uma


repressão geral e um aumento espectacular da emigração; de 1850 a 1855,

244
728 300 alemães, entre eles muitos especialistas e quadros qualificados,
deixaram o país. Por outro lado, já não era possível anular uma série de
resultados positivos do processo revolucionário, tal como a reforma agrária
e o fim definitivo de feudalismo. Os governos viam-se também obrigados
a iniciar uma política social e a praticar uma abertura económica que
permitiu prosseguir a rápida industrialização da Alemanha. Mesmo
permanecendo monarquias, os estados alemães adoptaram, embora duma
maneira diluída, estruturas constitucionais e os trabalhos parlamentares de
Frankfurt criaram um conjunto de direitos fundamentais, princípios e
perspectivas que inspiraram as tendências democráticas da vida política
alemã durante um século. Na dialéctica de revolução e contra-revolução
cristalizaram-se igualmente as seis forças principais que iriam dominar a
cena política alemã até 1933: Konservatismus, volkischer Nationalismus,
Nationalliberalismus, Linksliberalismus, politischer Katholizismus, Sozial-
demokratie.

A Revolução de 1848 contribuiu para criar estruturas sócio-económicas


que permitiram o desenvolvimento rápido do capitalismo industrial
que, em duas décadas, transformou a Alemanha numa grande potência.
A generalização do mercado, a forte tendência para a expansão económica
e a constituição de novos centros industriais (Rhein, Ruhr) caracterizam
esta primeira fase da revolução industrial alemã. Nos estados alemães, des-
tacam-se quatro sectores principais: as vias férreas, a siderurgia, as minas
de carvão e a construção de máquinas. A evolução da construção ferro -
viária é particularmente espectacular: entre 1840 e 1847, regista-se
um aumento que ultrapassa a Inglaterra, a França e os Estados Unidos;
em 1850, a Liga Alemã já dispõe de 5875Km. de linhas. Este boom cria
não só grandes necessidades em ferro, carvão, máquinas e locomotivas,
mas desenvolve também, em termos financeiros, a especulação e as sociedades
anónimas.

Assim, o balanço da dupla revolução alemã é essencialmente positivo.


Apesar dos fracassos e retrocessos no longo e complicado processo da unifica-
ção nacional e da democratização política, a nova mobilidade de pessoas e
bens, a rápida modernização da vida pública e a industrialização, criam, já a
partir dos anos 40, uma nova realidade, um espaço alemão com a sua própria
dinâmica sócio-cultural.

245
Bibliografia aconselhada

A obra de referência básica para esta época é o segundo volume da Gesell-


schaftsgeschichte de Wehler (1987), uma apresentação concentrada da
evolução política fornece o cap. «Die Geburt der deutschen Nation» em
Boockmann/Schilling (1990: 201-288). Uma imagem concreta da vida
cultural e social na Alemanha do Vormarz proporcionam as antologias de
Bock/Plõse (1994) eMõhrmann (1989, reclam UB 9903); o artigo de Martino
(1980) informa sobre a evolução do público letrado e da imprensa.

Actividades propostas

• Resumir, com base nos dados fornecidos pelos capítulos seguintes,


as linhas directrizes das três perspectivas conceptuais para a época
de 1815-1848 e a sua continuação na história alemã até hoje.

• Interpretar as duas estrofes seguintes do poema «Erleuchtung» de


Heinrich Reine:

Michel! fallen dir die Schuppen


Von den Augen? Merkst du itzt,
DaB man dir die besten Suppen
Vor dem Maule wegstibizt?
Als Ersatz ward dir versprochen
Reinverklarte Himmelsfreud'
Droben, wo die Engel kochen
Ohne Fleisch die Seligkeit! (1973-1997 : II, 127-128)
A.O.

246
2. A Alemanha Guilhermina
Resumo

Integra-se a época entre 1871 e 1914 no contexto da história do espaço de


expressão alemã. Caracteriza-se a sociedade, a economia, o sistema político
e a vida cultural da Alemanha depois de 1871. Refere-se a evolução veri-
ficada nas estruturas sociais e as alterações dela decorrentes na família, bem
como as respectivas consequências para a situação da mulher. Descreve-se o
surto de anti-semitismo surgido em finais do século XIX. Refere-se a expansão
colonial e imperialista da Alemanha.

Objectivos

• Inserir o processo de modernização da sociedade alemã entre 1871 e


1914 numa perspectiva europeia e mundial.

• Caracterizar o modelo bismarckiano, tendo em conta o posterior


desenvolvimento da história da Alemanha durante o século XX.

• Caracterizar a sociedade guilhermina nas seguintes vertentes:

social e económica: industrialização, evolução demográfica,


urbanização, migração;

política: organização do poder, política hegemónica da Prússia;

- cultural: sistema escolar, universitário .

.• Caracterizar a situação da mulher na Alemanha guilhermina, tendo


em consideração as estruturas sociais e económicas (família, divisão
do trabalho, industrialização) e culturais (história das mentalidades,
história da vida quotidiana).

• Inserir os movimentos anti-semitas na história da minoria judaica na


Alemanha e no contexto da sociedade sua contemporânea.

• Avaliar a correlação entre as estruturas económicas, sociais, políticas


e culturais e o emergir do colonialismo alemão.

249
É do seguinte modo que, em Gotzendammerung, Friedrich Nietzsche carac-
teriza a Alemanha resultante da unificação em 1871:

Die Deutschen - man hiess sie einst das Volk der Denker: denken sie
überhaupt heute noch? Die Deutschen langweilen sich jetzt am Geiste,
die Deutschen misstrauen jetzt dem Geiste, die Politik verschlingt allen
Ernst für wirklich geistige Dinge - «Deutschland, Deutschland über Alles»,
ich fürchte, das war das Ende der deutschen Philosophie ... «Giebt es
deutsche Philosophen? giebt es deutsche Dichter? gibt es gute deutsche
Bücher?» fragt man mich imAusland. Ich errothe; aber mit derTapferkeit,
die mir auch in verzweifelten Fallen zu eigen ist, antworte ich: «Ja,
Bismarck!» - Dürfte ich auch nur eingestehn, welche Bücher man heute
liest? ... Vermaledeiter Instinkt der MittelmaBigkeit ! (Nietzsche 1980: VI,
103-104)

2.1 A Alemanha guilhermina: a unificação tardia e a «via


específica alemã»

A chamada época guilhermina corresponde ao período de tempo com-


preendido entre 1871 e 1918, isto é, ao II Reich, resultante da unificação da
Alemanha sob hegemonia prussiana até à derrota na primeira guerra e
consequente deposição da dinastia dos Hohenzollem. A designação
«guilhermina» surge na sequência dos nomes dos imperadores alemães,
Guilherme I ( 1797-1888) e Guilherme II (1859-1941 ).

Em 1871, a Prússia conseguia realizar finalmente o seu sonho de unifica-


ção da Alemanha, impondo não só a sua hegemonia aos restantes Estados,
mas excluindo também definitivamente a Áustria desse processo: vingava
a solução da «Pequena Alemanha», já esboçada em 1848 (cf. Cap. IV.1).

A historiografia tem vindo a interpretar este momento como um elemento


central de uma evolução que remontaria à era da Reforma luterana, com o
seu autoritarismo, com alguns momentos decisivos na política realista dos
Hohenzollem - pese embora a proverbial tolerância prussiana, sobretudo
de Frederico II - , no nacionalismo xenófobo e na incapacidade de os
alemães darem forma política às suas aspirações liberais ou democráticas.
Essa tradição teria, finalmente, culminado na solução musculada de uni-
ficação de Otto von Bismarck (1815-1898) e nas estruturas sociais e políti-
cas do Império guilhermino.

Contudo, a historiografia recente (Wehler 1995), para além de assinalar o


mito do eterno atraso alemão, que a história económica e política não veio
confirmar no que respeita ao século XVIII e primeira metade do século XIX,

251
$;

aponta antes para uma nova fase iniciada com esta primeira Alemanha
unificada, com consequências decisivas para o emergir do totalitarismo nazi
no século XX.

É certo que, a longo prazo, existem alguns aspectos na história do Estado


prussiano que permitem reconhecer a posição vantajosa da Prússia, no sentido
de, em finais do século XIX, conseguir impor a sua hegemonia.

Recorde-se que as anteriores tentativas de unificação alemã em 1815, 1830


e sobretudo em 1848, haviam embatido contra a resistência do dualismo
austro-prussiano, estando ambas as potências pouco interessadas em se ver
diluídas num projecto de unificação. Tanto a Prússia como a Áustria haviam
preferido a permanência de uma liga formal, mas pouco consistente, sem
um instrumento de política externa e económica comuns, de modo a poder
fazer valer o seu poder particular.

Contudo, desde os anos 30 que a Prússia preparava uma solução que seria
decisiva nesse processo: a união aduaneira, gradual e eficaz, excluindo pro-
gressivamente a Áustria e os seus Estados satélites, havia permitido a união
económica de facto, por volta de finais dos anos 60, passo esse a que a
decisão de «reconquistar» à Dinamarca a região do Schleswig-Holstein viria
a conferir novo peso. A união dos Estados do Norte da Alemanha (Nord-
deutscher Bund) que daí resultaria permitiria um esboço de união, segundo
os planos hegemónicos da Prússia, patentes na guerra que dividiria os adeptos
das duas grandes potências alemãs , em 1866, a que se viria a acrescentar,
entre 1867 e 1871, a guerra franco-prussiana, que uniria numa causa comum
os Estados alemães ainda divididos.

A solução de Bismarck, a unificação não-voluntária, segundo a necessidade


do «sangue e do ferro», viria a iniciar uma fase decisiva na história da
Alemanha, colorindo com novos matizes a questão da sua identidade nacional,
com reflexos até à união de 1990:

Auch nach der Niederlage im ersten totalen Krieg und den Gebietsver-
lusten von 1918, auch nach der Zerschlagung der nationalsozialistischen
Diktatur hat das Kaiserreich die politische Vorstellungswelt und die
politische Phantasie der Deutschen weiterhin besetzt. Trotz seiner im
Grunde kurzlebigen, nur fünfzig Jahre wahrenden Existenz galt es als der
«eigentliche» deutsche Staat. Als auf den Trümmem des «Dritten Reiches»
die beiden deutschen Neustaaten von 1949 entstanden und 1990 durch
einen vi::ilker- und staatsrechtlichen FusionsprozeB vereinigt wurden ,
beharrte die Umgangsprache auf dem Begriff der «Wiedervereinigung»,
obwohl es beide Staaten vor 1949 nie gegeben hatte. Auch darin trat
die pragende Kraft des reichsdeutschen Nationalismus zutage. (Wehler
1995: 490)

252
A questão que aqui se levanta não só se revela fundamental dentro da perspec-
tiva de que toda a leitura do passado remete fundamentalmente para o nosso
presente e projectivamente para o futuro que, em parte, depende dos mesmos,
como enuncia implicitamente a pergunta acerca da relação entre esta solução
nacional e a catástrofe nazi.

A admitir uma via específica para a Alemanha, onde situá-la? Já em Lutero


e na sua doutrina dos dois reinos que remete a liberdade para um puro plano
individual e teórico e defende a submissão à autoridade secular como
momento de estrita necessidade a que nenhum cristão se pode eximir? No
despotismo esclarecido de Frederico II? No nacionalismo de conotações
xenófobas do romantismo político alemão, com o seu culto das origens étni-
cas, da pureza originária alemã, a sua glorificação do Estado e da comu-
nidade contra os modelos liberais? Ou exactamente na solução de hege-
monia prussiana imposta em 1871?

Que as respostas não podem ser unilaterais e que não se pode ocultar a multi-
plicidade de causas políticas, económicas, ideológicas, sociais deverá ser o
primeiro aspecto a reter-se.

Contudo, parece haver uma certa unanimidade em fazer remontar as causas


remotas do III Reich a uma estrutura social e política que surge reforçada na
sociedade resultante da unificação de 1871, assinalando a peculariedade da
evolução da história alemã.

Sublinhe-se, contudo, que a tese da via específica alemã não surgiu apenas
na sequência da II guerra, mas já era anteriormente apontada, então na sua
vertente positiva: a Alemanha teria conseguido um equilíbrio entre moder-
nização e preservação de estruturas conservadoras, com as vantagens visí-
veis no seu poderio económico ou na excelência das suas universidades,
quer na vertente teórica, quer prática.

Depois de 1945, a via específica alemã passou a ser vista com outros olhos,
interrogando-se os historiadores acerca da questão de se saber se as raízes da
catástrofe do nacional-socialismo não poderiam estar exactamente na era
bismarckiana, momento em que a Alemanha, finalmente unida, se trans-
formara rapidamente numa potência da Europa Central e mundial, ocupando
com os EUA e a Grã-Bretanha um lugar cimeiro, tendo culminado esse desen-
volvimento numa temível política belicista e expansionista.

A resposta a estas questões resultará da exposição que a seguir se apresenta:


a caracterização da Alemanha guilhermina poderá indicar quais as possíveis
ligações e causalidades que tornaram a via específica alemã uma pesada
herança até aos nossos dias.

253
2.2 A economia na era guilhermina

A economia alemã conhecera já desde 1848 um importante surto industrial


que se manterá ao longo da época guilhermina, não obstante algumas crises
cíclicas, fenómeno que, de resto, mostra até que ponto o capitalismo se
implantara na Alemanha.

Entre 1871 e 1914, a população aumentou em 58% (de41,1 para 64,9 milhões
de habitantes), verificando-se simultaneamente a diminuição da taxa de morta-
lidade infantil, bem como o aumento da esperança média de vida. Assim a
Alemanha guilhermina possui uma população maioritariamente juvenil,
vendo-se igualmente dotada de enormes recursos em matéria de mão-de-obra.

A acompanhar a industrialização, verifica-se igualmente a urbanização da


sociedade alemã: as cidades redefinem-se, em termos de espaço e de habita-
ção. Os bairros periféricos acolhem e marginalizam a classe operária,
enquanto que as zonas de exclusividade burguesa assumem os seus traços
essenciais. O idílio Biedermeier, a Alemanha dos «poetas e dos pensadores»
deixava de ser cada vez menos real. Em 1914, um em cada cinco alemães
vivia nas cidades (cf. Cap. VI.2, em particular, 2.2).

Apesar destas profundas transformações sociais e dos notáveis planos para


dar resposta às novas necessidades, patentes no modo como inúmeras
cidades alemãs conseguem desenvolver as infra-estruturas urbanas, a socie-
dade alemã revela um misto de conservadorismo e de inovação: a cidade de
Berlim é nesse aspecto eloquente. Transformando-se numa das grandes
metrópoles europeias, servindo ao sociólogo Georg Simmel de modelo para
as suas reflexões sobre a modernidade no seu célebre ensaio «Die GroBstadte
und das Geistesleben» (1908), a mesma é simultaneamente o núcleo de uma
sociedade de corte, onde o poder se afirma sobretudo no plano da repre-
sentação (Elias 1983 ), contra o que era predominante nas sociedades
industrialmente mais avançadas, onde os princípios da cidadania moderna
haviam sido consagrados.

Simultaneamente, a Alemanha, apesar de apenas começar a constituir-se


como potência colonial, transforma-se num importante país de imigração,
o segundo a seguir aos EUA, dados os seus elevados recursos económicos.

Com efeito, a Alemanha conhecerá, não obstante as crises económicas, um


surto de crescimento acelerado, que não tem paralelo na história de outros
países europeus. Face a esta convulsão económica, tanto maior foi o senti-
mento de mudança e de choque perante uma realidade totalmente nova, a que
as estruturas políticas estavam longe de corresponder. E é esta situação que
também ajuda a explicar a violência dos confrontos sociais, a que o carisma
e autoritarismo de Bismarck oferecerão o primeiro ponto de resistência.

254
Para além das indústrias clássicas do ferro, do aço e dos caminhos de ferro,
assistir-se-á ao surto das indústrias química e electrotécnica (Siemens, AEG),
sectores em que aAlemanha passará a dominar a economia mundial. O capi-
tal financeiro torna-se simultaneamente cada vez mais poderoso, surgindo
uma poderosa oligarquia neste sector.

A investigação de ponta, desenvolvida nas escolas politécnicas, instituições-


-modelo de um novo ensino superior, rapidamente adoptado por outros países
europeus, garante a superioridade tecnológica da Alemanha unida.

Tal situação não excluirá, como, de resto, já foi referido, a existência de


crises económicas sucessivas (1873-1879, 1882-1886, 1890-1895), alternando
com períodos de crescimento acentuado que culminarão numa época de
saturação da procura no mercado interno, o que levará a Alemanha a enve-
redar por uma política de expansão colonial, como meio de escoar a sua
sobreprodução.

2.3 As classes

Apesar dos sucessos económicos que colocam a Alemanha numa posição de


clara supremacia política e hegemonia económica em termos europeus e
mundiais, o certo é que, a par das profundas alterações sociais, as classes
mantêm um misto de apego à tradição e inovação que será determinante
para a futura evolução.

Demarcando-se da burguesia recente, enriquecida pela revolução econó-


mica e industrial, a burguesia culta mantém um estatuto privilegiado, patente
numa cultura à parte, numa ligação íntima com a antiga aristocracia fundiária
e militar. O fosso entre os cultos e não-cultos surge mais marcado do que em
qualquer outro país europeu, embora a tradição setecentista da Bildung já se
veja confrontada com as necessidades de uma formação mais especializada
e técnica, de acordo com a evolução de uma indústria modernizada.

Por outro lado, a nobreza prussiana mantém o seu poder quer económico,
quer político, fruto de uma tradição que, já em séculos anteriores, se havia
desenvolvido: a exportação de cereais para a Alemanha Ocidental e outros
países europeus havia permitido o seu florescimento continuado, favorecido
pelo surto urbano já séculos antes. Introduzindo, como em Inglaterra, as
novas técnicas agrícolas e os novos métodos de exploração capitalista da
propriedade fundiária, essa mesma nobreza manterá, ao contrário do que
sucedera em Inglaterra, a sua total independência da burguesia, formando
consequentemente um grupo com interesses próprios que raramente articulará
com os nacionais.

255
Será essa mesma nobreza e os elementos dela oriundos que virão a exercer
uma redobrada influência, depois dos conflitos bélicos que parecerão trazer,
até 1914, a garantia da supremacia alemã.

Simultaneamente, a classe operária com crescente importância numérica,


como será de depreender da evolução económica e da súbita industriali-
zação, passará a organizar-se de forma particularmente eficaz. Dotada de
instrumentos teóricos fundamentais, entre eles a importante contribuição do
marxismo, a mesma passará a constituir uma força decisiva impossível de
ser ignorada. Saliente-se que a esta evolução não será, porventura, estranha
a elevada taxa de alfabetização da população alemã de então.

Entre estas classes, encontramos a pequena burguesia dividida entre o


desejo de ascensão social e o ressentimento para com os mais poderosos.
É aqui que se irão recrutar os elementos que defenderão um nacionalismo
mais xenófobo, fazendo-se sentir igualmente tendências marcadamente
anti-semitas, sobretudo, em fases de crise económica.

A situação híbrida da sociedade alemã é evidente: enquanto que as suas


universidades constituem um modelo em termos de investigação e de ensino,
as corporações estudantis (Burschenschaften) mantêm-se apegadas à prá-
tica do duelo, reminiscência de uma sociedade aristocrática, com os seus
códigos de honra, aparentemente incompatíveis com os valores de uma ética
burguesa.

Pode concluir-se que a sociedade alemã revela a vários níveis um carácter de


hibridez que, sendo característico, não é, contudo, exclusivo da mesma
- podendo observar-se sinais semelhantes nas sociedades britânica ou
francesa, para sugerir os exemplos clássicos - o que leva a ponderar a
afirmação taxativa segundo a qual essa coexistência de elementos conserva-
dores e modernos terá equivalido a uma via específica alemã.

2.4 O poder político

O regime que resultará da unificação imposta pela Prússia caracterizar-se-á


pela manutenção das estruturas tradicionais no que respeita à organização
do poder político, com uma influência predominante da grande nobreza,
influência essa que Bismarck saberá habilmente associar aos interesses da
burguesia liberal.

O certo é que nesse processo de alianças a burguesia perderá o seu estatuto


de autonomia, que, nos países do parlamentarismo clássico, como a Grã-

256
-Bretanha, a França ou Holanda lhe dera um papel essencial na consolidação
de estruturas de formação de uma contra-opinião.

Por outro lado, o emergir de uma classe operária cada vez mais numerosa e
crescentemente dotada de um considerável poder de associação e organi-
zação levará a que a burguesia liberal se veja cercada por duas forças anta-
gónicas.

O carisma de Bismarck sobrepor-se-á à influência partidária, marcando de


forma decisiva o imaginário político dos alemães. O Estado determinará de
forma particularmente enfática, quer a vida política, quer a vida económica,
através de medidas proteccionistas, designadamente na política aduaneira,
bem como através do apoio e ligação às grandes empresas industriais.

2.4.1 A unificação

Nomeado primeiro-ministro da Prússia em 1861 por Guilherme I, na


sequência de um conflito parlamentar que opusera a monarquia às forças
liberais, Bismarck evita a abdicação do rei, disposto a dominar a situação
contra a constituição e o Parlamento.

O exército sairá reforçado desta situação, vendo-se assim confirmada a sua


tradicional influência sobre a sociedade civil e o Estado. Por sua vez, a buro-
cracia prussiana constituirá um ponto de apoio fundamental para o poder
monárquico: educada na tradição autoritária prussiana, promovendo a obe-
diência eficiente, a mesma também continha nos seus quadros dirigentes
oriundos da aristocracia, que assim podiam continuar a influenciar a vida
política.

Por outro lado, a constituição consagrava a intervenção directa do monarca,


como chefe das forças armadas, destruindo-se assim qualquer ilusão liberal
no que toca ao modelo e à prática de uma Alemanha unificada.

Bismarck não ficará na história como um representante dos interesses da


nobreza fundiária prussiana, embora oriundo da mesma, mas antes pela sua
Realpolitik, misto de estratégia e de sentido de oportunidade, que o levará a
praticar alianças tácticas, com vista a obter o seu principal objectivo: o
reforço do poder da Prússia no contexto do espaço cultural alemão, neutrali-
zando a sua tradicional rival, a Áustria. O seu maquiavelismo político está
patente nas suas alianças, a nível da política externa, bem como no modo
como os seus inimigos se sucederão, desde os liberais, aos católicos, aos
sociais-democratas, sabendo o Chanceler propor uma política de reconcilia-
ção e de aproximação quando oportuno.

257
O seu papel carismático marcaria profundamente o horizonte político
de uma Alemanha que, conquistada a unidade, projectava na figura do seu
líder os seus anseios e expectativas, relegando o papel da sociedade civil e
dos seus grupos activos para segundo plano. Tal tendência não deixaria de
marcar profundamente o modelo político alemão até 1945. E não será
certamente de estranhar, neste contexto, a clássica associação de Max
Weber entre modernização e burocracia de Estado, bem como o conceito
de «carisma» por ele introduzido e posteriormente vulgarizado na gíria
política. Os primeiros passos dados pouco antes da unificação, os conflitos
que dividiram os alemães entre si e a guerra que os opôs à França contribuiriam
sintomaticamente para o emergir dessa figura nas suas qualidades caris-
máticas.

A guerra iniciada contra a Dinamarca resultará na cedência, em 1864,


dos territórios do Schleswig e do Holstein a favor, respectivamente, da
Prússia e da Áustria. No ano imediatamente a seguir, a Prússia exige refor-
mas dentro da Liga Alemã (Deutscher Bund), nomeadamente um parla-
mento eleito e, perante a resistência austríaca a tais alterações, invade o
Holstein, sob domínio dos Habsburgos. Com o abandono da Prússia da
Liga Alemã, iniciar-se-á a Guerra Alemã (1866) que culminará na vitória
prussiana. No mesmo ano, assiste-se à dissolução da Liga e à formação
da Liga Alemã do Norte (Nordeutscher Bund), unindo todos os Estados ini-
migos da Áustria, a norte do rio Meno, à excepção da Saxónia e de Hessen-
-Darmstadt.

Entretanto, apesar da divisão inicial dos liberais prussianos face a Bismarck,


o Partido Liberal Nacional (Nationalliberale Fartei) alia-se em 1867 aos
conservadores (Freikonservative Fartei), sendo, no mesmo ano, votada a
constituição da Liga do Norte que elege o novo Reichstag, com Bismarck
como Chanceler Federal.

A linha que conduzirá à solução para a unificação da Alemanha já se


encontra claramente traçada.

258
War~chau

Graz

Reichsgrenze 1871

11111 Nach 1919 verlorene Gebiete

li Saargebiet 1919-1935

mm111 Freistaat Danzig nach 1919

e Perdas Terriroriais (depois de 1919)

Mas uma outra evolução será decisiva para a mesma, a saber a guerra
franco-alemã (1870/1871). Em 1871, a união entre todos os Estados alemães
(v. figura acima reproduzida a partir de Gortemaker 1989: 338) será pos-
sível, dada a aliança dos Estados do Sul da Alemanha com os territórios
do norte em torno dessa causa comum. No mesmo ano, na sala dos Espelhos
de Versalhes , Luís II da Baviera (1845-1886), proclama, em nome dos
príncipes alemães, Guilherme I imperador.

2.4.2 Estruturas políticas do II Reich

O novo Estado alemão possui uma estrutura federativa, competindo, porém,


ao poder central controlar as alfândegas, o comércio, os transportes e cabendo
aos Estados federais a responsabilidade em matéria jurídica, administrativa
e cultural.

259
O Conselho Federal (Bundesrat) é o mais importante órgão com poderes
legislativos, competindo ao Imperador a representação externa e a nomea-
ção do Chanceler Federal. Este corresponde ao cargo de primeiro-ministro
da Prússia, presidindo ao Conselho Federal e superintendendo a toda a
administração.

O regime parlamentar coexiste com esta estrutura autoritária, através do


Reichstag, ao qual compete a votação de projectos de lei e a aprovação do
orçamento. Assim, embora se assista à institucionalização de uma vida
político-partidária na Alemanha, a mesma não terá grandes consequências,
impossibilitada como se encontra de controlar ou limitar os poderes do
Chanceler Federal ou do Imperador.

O novo Reich providenciará para unir os Estados, uniformizando o direito e


as moedas. Contudo, os católicos, representados, sobretudo, pelo partido do
Zentrum, constituirão uma força de oposição ao novo poder predominante-
mente protestante, resultando tal conflito numa série de medidas adversas às
instituições católicas (Kulturkampf).

Em breve uma nova força se oporá à uniformização imposta de cima: a


classe operária. Mas as leis promulgadas por Bismarck para aniquilar qual-
quer acção dos movimentos operários derivam mais de um cauchemar de la
révolution, que identificava comunistas, anarquistas, social-democratas com
a tradição revolucionária- desde a Revolução Francesa ( 1789), recentemente
reavivada pela Comuna de Paris (1870) - , do que de motivos concretos.

O pretexto para a sua repressão foi fornecido por dois atentados contra o
Imperador Guilherme I em 1878. No mesmo ano, o Parlamento aprovava o
Sozialistengesetz, com 221 votos a favor, por parte dos Nationalliberalen e
dos Conservadores contra 149 do DFP (Deutsche Freiheitspartei) e do SAP
(Sozialistische Arbeiterpartei). Esta legislação proibia toda a organização
e imprensa social-democrata, socialista e comunista. Tal manifestação
de poder arbitrário levaria a inúmeras prisões e milhares de militantes ao
exílio, mas não impediria que os atingidos continuassem a organizar-se na
clandestinidade, saindo os social-democratas reforçados na sua influência e
vontade de resistência.

Contudo, Bismarck saberá contrabalançar estas perseguições: tal como


sucedera com a pacificação do conflito com os Católicos, designadamente
através da mediação do Papa Leão XIII (1810-1903), o Estado providen-
ciará algumas medidas a fim de evitar a agudização dos conflitos sociais.
Assim surgirão diplomas, dotando os trabalhadores de protecção contra
acidentes no trabalho e de segurança na reforma. Embora a Alemanha passe
a dispor de um dos mais avançados sistemas de segurança social, o certo é

260
que alguns dos problemas essenciais permanecerão por resolver. A redução
do horário de trabalho, o direito ao descanso ao domingo, a limitação do
trabalho feminino e infantil, a existência de um salário mínimo serão medidas
que ainda ficarão por tomar.

Por isso mesmo, o prestígio do SPD, sobretudo devido às recentes perse-


guições, bem como a sua forte componente teórica, em particular dos seus
dirigentes marxistas, Wilhelm Liebknecht ( 1871-1919) e August Bebel
(1840-1913), não permitirão a pacificação social.

O Chanceler saberá, contudo, manter até 1890 o poder centralizado na sua


pessoa, mediante a sua política instrumentalizadora, elemento fundamental
para garantir a preservação do seu carisma que quase o toma invulnerável a
críticas generalizadas.

O II Reich encontrará na monarquia um apoio fundamental, gozando o


Imperador alemão de poderes incomparáveis com outros países europeus,
detendo o controle das forças armadas e do exército. Por outro lado, a nobreza
será a grande força de apoio quer a nível militar, quer burocrático, enquanto
que o Parlamento constitui um mero joguete dos interesses dessas mesmas
camadas dirigentes.

Contrariamente à agressividade inicialmente demonstrada, a política de


Bismarck caracterizar-se-á fundamentalmente por uma política de alianças,
com vista ao isolamento da França, sendo o período correspondente à sua
governação uma fase de paz europeia.

Mas, com o afastamento de Bismarck em 1890 e o reforço da autoridade


do Imperador Guilherme II, a que as estruturas político-partidárias não
podem oferecer a devida resistência, dada a forma como o poder se encon-
tra institucionalizado, a Alemanha iniciará uma fase mais agressiva na
sua política externa, a par de uma orientação assumidamente expansio-
nista e imperialista. O corolário da mesma surgirá em 1914, com a aliança
com o Império dos Habsburgos, que levará ao primeiro conflito mundial
(1914-1918).

2.5 A vida cultural

2.5 .1 Ensino

O ensino constitui um dos sectores em que a modernização é evi-


dente. O ensino gratuito e obrigatório tornar-se-á efectivo (cf. Cap. 11.2),
verificando-se simultaneamente um maior afluxo de jovens oriundos

26 1
de camadas menos favorecidas, quer ao ensino primário, quer ao liceal.
A democratização do ensino será assim bastante mais eficaz do que
na Grã-Bretanha, onde o modelo liberal sancionará a divisão em clas-
ses, mediante o ingresso da maioria da população em escolas esta-
tais, de menor qualidade, sendo as escolas privadas reservadas às elites
económicas e políticas. Assim, a Alemanha será um dos países com
maior taxa de alfabetização, com as consequências óbvias para a sua
economia.

Simultaneamente, as suas universidades, desenvolvendo de resto uma tradi-


ção de autonomia já lançada pela sua criação no contexto da reforma pro-
testante, não só continuam a brilhar pelos seus representantes das humani-
dades, como se adaptam às novas necessidades económicas, conforme
acima foi recordado.

Mas os perigos desta aliança entre poder político e universidades, poder


económico e institutos politécnicos, começam a desenhar-se: o elitismo de
um Friedrich Nietzsche revela até que ponto a Alemanha só dificilmente
consegue conciliar a sua cultura com as necessidades de um processo
de industrialização e de democratização. A imagem que fornece do ensino
alemão não faz eco da admiração que internacionalmente lhe era
votada.

Dem ganzen hõheren Erziehungswesen in Deutschland ist die Haupt-


sache abhanden gekommen: Zweck sowohl ais Mittel zum Zweck. Dass
Erziehung, Bildung selbst Zweck ist - und nicht «das Reich» - , dass es
zu diesem Zweck der Erzieher bedarf - und nicht der Gymnasiallehrer
und Universitats-Gelehrten - man vergass das ... ( ... ). Die Erzieher
fehlen, die Ausnahmen der Ausnahmen abgerechnet, die erste
Vorbedingung der Erziehung: daher der Niedergang der deutschen Kul-
tur. ( ... ) - Was die «hõheren Schulen» Deutschlands thatsachlich
erreichen, das ist eine brutale Abrichtung, um, mit moglichst geringem
Zeitverlust, eine Unzahl junger Manner für den Staatsdienst nutzbar,
ausnutzbar zu machen. «Hohere Erziehung» und Unzahl - das wider-
spricht sich von vornherein. ( ... ) Es steht Niemandem mehr frei, im
jetzigen Deutschland seinen Kindern eine vornehme Erziehung zu
geben: unsre «hoheren» Schulen sind allesammt auf die zweideutigste
MittelmaBigkeit eingerichtet, mit Lehrern, mit Lehrplanen, mit Lehr-
zielen. Und überall herrscht eine unanstandige Hast, wie ais ob etwas
versaumt ware, wenn der junge Mano mit 23 Jahren noch nicht «fertig»
ist, noch nicht Antwort weiB auf die «Hauptfrage»: welchen Beruf?
- Eine hõhere Art Mensch, mit Verlaub gesagt, liebt nicht «Berufe»,
genau deshalb, weil sie sich berufen weiss ... Sie hat Zeit, sie nimmt
sich Zeit, sie denkt gar nicht daran, «fertig» zu werden - mit dreissig
J ahren ist man, im Sinne hoher Cultur, ein Anfanger, ein Kind.
(Nietzsche 1980: IV, 986-987)

262
2.6 Vida quotidiana: a família

A família manterá as estruturas consagradas no século XVIII, constituindo o


seu modelo por excelência o burguês, tal como já se desenhara em finais do
século XVIII (cf. Cap. 111.3).

A cisão entre espaço público e privado, entre produção e consumo torna-se


generalizada: oásis de recolhimento privado onde o homem burguês pode
repousar das agressões do mundo da concorrência económica, ser ele próprio,
este é o mundo da mulher, confinada ao espaço doméstico.

Afastada do mundo da produção, ao contrário do que sucedera na economia


tradicional, a mulher vê-se consagrada na sua especificidade feminina e
sexual, como mãe e esposa, mas impedida de se realizar noutras esferas.
O pai controla o seu futuro enquanto permanece solteira, o marido assegurará
mais tarde essa tutela: é ele que decide do essencial, embora a mulher
disponha de aparente autonomia no que respeita à organização das tarefas
domésticas e à educação dos filhos.

É certo que a realidade será outra nas classes rurais: a economia ainda
depende excessivamente do espaço familiar como esfera de produção e de
consumo para que a mulher seja entendida e tratada como ser essencial-
mente caseiro e passivo. A intimidade, para a qual é necessária uma con-
cepção diferente do espaço e a equivalente área e subsequente divisão, ainda
não é generalizada: as crianças são educadas em conjunto com os adultos,
não se lhe reconhecendo um estatuto especial, ao contrário do que sucedia
nas classes burguesas.

Por outro lado, as camadas operárias embora se vissem confrontadas com a


divisão da esfera do trabalho e da habitação, não possuíam as infra-estrutu-
ras de que a burguesia dispunha para criar novas formas de convívio e de
sociabilidade: assim, o espaço doméstico excessivamente exíguo, sem
quaisquer condições de intimidade, é apenas penetrado ao fim do dia pelo
chefe de família para ser rapidamente abandonado pela taberna ou outro
local de encontro onde se prolonga o convívio exclusivamente masculino.
As mulheres ver-se-ão obrigadas a trabalhar na fábrica, conhecendo desse
modo a mesma divisão de tarefas que fora recentemente atribuída aos
homens, sem que dispusessem dos mesmos apoios domésticos. Assim, o
trabalho fabril centra-se, sobretudo, nas solteiras, divorciadas e viúvas, aban-
donando as primeiras o seu trabalho com o nascimento do primeiro ou do
segundo filhos. Em 1882, 81 % das trabalhadoras fabris eram solteiras ou
divorciadas, 6,2% viúvas e apenas 12,7% casadas, sendo as percentagens
para o ano de 1907 de 71,1%, 7,6% (agora incluindo as divorciadas) e de
21,3 %, respectivamente, e situando-se 59% na faixa etária entre os 16 e os
30 anos e 29,8% entre os 30 e os 70 anos. O trabalho na indústria era mino-

263
ritário, embora se assistisse a um crescimento de 13,3% para 18,2%, entre
1882 e 1907 (Nipperdey 1993). Uma percentagem bastante mais elevada
trabalhava em casa, na confecção de vestuário, fabrico de brinquedos ou na
prestação de serviços domésticos temporários.

Os domínios onde se verificou o maior aumento do trabalho feminino


foi o terciário, sendo o comércio aquele que empregava a maior parte das
mulheres.

A grande cidade é também o centro de trabalho para muitas mulheres, a


maior parte das vezes, oriundas da província, que para aí se deslocam, a fim
de trabalhar como empregadas domésticas em casas burguesas. Note-se que
não é só a grande burguesia endinheirada que dispõe desse privilégio: a média
e a pequena burguesia também se podem dar a esse luxo. As condições de
vida dessas mulheres são precárias: salários baixos, dependência económica
dos patrões, isolamento social. Com o casamento, abandonarão esse espaço
onde os laços afectivos e as diferenças de classe são pródigos em criar
situações particularmente ambíguas que vão da dedicação sentimental à
agressividade mais ou menos explícita.

Pode, portanto, concluir-se que o modelo de família burguesa embora não


generalizado tende a ser universalizado: a pequena burguesia imita-o, o
mesmo sucedendo com a classe operária ascendente. Modelo possível entre
muitos outros, tenderá a ser glorificado como padrão eterno, fundado numa
ordem natural e biológica, que mais não faz do que reproduzir o discurso do
poder.

Assim, a família nuclear pode ser vista como a miniatura da sociedade gui-
lhermina com todos os seus elementos positivos e negativos. Para a bur-
guesia ela constitui um espaço de refúgio, de humanidade e de cultura, de
consolidação de laços afectivos, de descoberta do lazer e do direito ao prazer
e à infância. Mas esse espaço de refúgio e de protecção contém em si
igualmente elementos marcadamente autoritários, simbolizados, sobretudo,
pelo patriarca da família, que controla económica e juridicamente esse
espaço, que pode dispor do destino da mulher e dos filhos de um modo
quase ilimitado.

Com o enriquecimento da classe burguesa, a mesma passa a misturar com a


sua tradição intimista e recatada a necessidade da representação. Assim,
a sala de visitas passará a constituir um espaço de crescente importância.
A atmosfera de recolhimento da Bildung clássica cede gradualmente lugar
ao exibicionismo pretensioso de uma cultura falsamente elitista. O piano
que a filha musicalmente mais ou menos dotada tem de aprender a tocar
serve de pretexto para saraus de qualidade duvidosa, complemento ao
cenáculo de Bayreuth onde se começa a encenar um misticismo germânico,

264
consagrando a superioridade alemã, consoante as necessidades de um nacio-
nalismo agora com efectiva contrapartida económica e política.

É com ironia que Walter Benjamin evoca a atmosfera do interior burguês da


Alemanha guilhermina:

Das bürgerliche Interieur der sechziger bis neunziger Jahre mit seinen
riesigen, von Schnitzereien überquollenen Büffets, den sonnenlosen Ecken,
wo die Palme steht, dem Erker, den die Balustrade verschanzt und den
langen Korridoren mit der singenden Gasflamme wird adaquat allein der
Leiche zur Behausung. «Auf diesem Sofa kann die Tante nur ermordet
werden» . Die seelenlose Üppigkeit des Mobiliars wird wahrhafter Komfort
erst vor dem Leichnam. Viel interessanter ais der landschaftliche Orient in
den Kriminalromanen ist jener üppiger Orient in ihren Interieurs: der
Persenteppich und die Ottomane, die Ampel und der edle kaukasische
Dolch. Hinter den schweren gerafften Kelims feiert der Hausherr seine
Orgien mit den Wertpappieren, kann sich ais morgenlandischer Kaufherr,
ais fauler Pascha im Khanat des faulen Zaubers fühlen, bis jener Dolch im
silbernen Gehange überm Divan eines schõnen Nachmittags seiner Siesta
und ihm selber ein Ende macht. (Benjamin 1980: II.1, 89)

2. 7 Vida quotidiana, mentalidades: «A condição feminina»

O destino das mulheres encontra-se, como será óbvio, directamente depen-


dente do tipo de estruturas familiares que se acaba de descrever.

Adulada como mãe, esposa e procriadora pelo discurso oficial, a mulher


hesitará entre essa protecção e a sua liberdade. Dominando o espaço
doméstico quando o marido está ausente, a mulher burguesa conquistará
gradualmente um sentimento de autonomia que virá a dar os seus frutos,
durante a mesma época.

Em breve reivindicará o seu direito a exercer uma profissão, a aceder ao


ensino universitário, a usufruir do direito de voto, a ser vista como um ser
com direitos iguais. Mas esses mesmos direitos, sobretudo o de poder exercer
uma profissão, ser-lhe-ão concedidos, desde que abdique do casamento e da
maternidade. Ou mais precisamente: se a estrutura da família burguesa levava
a que se visse o celibato das mulheres como uma ameaça, na medida em que
isso equivalia à eterna dependência destas últimas, também o exercício de
uma profissão impedia as mulheres burguesas de se dedicarem a tempo inteiro
às suas tarefas domésticas e de educação dos filhos, surgindo assim como
potencial ameaça às estruturas tradicionais. Assim, não será de estranhar
que as primeiras burguesas a desempenharem papéis de relevância social
fora da família fossem na sua maioria solteiras, ao mesmo tempo que as

265
tarefas a que se dedicavam eram do foro da educação ou de auxílio huma-
nitário: o ensino e a medicina eram algumas das actividades que mais se
pareciam coadunar com a sua natureza e a sua diferença, gradualmente
fixada a partir do foro biológico.

Com efeito, para se entender a situação da mulher ao longo do século XIX e,


em particular, na sociedade guilhermina, há que tomar em consideração não
apenas as estruturas sociais e políticas, como o próprio modo como o discurso
científico organizava essas mesmas práticas de poder.

A reivindicação da igualdade de direitos, sustentada por uma concepção


jusracionalista que via no homem e na mulher seres teórica e potencialmente
iguais, podia ser quotidianamente contrariada na prática, mas essa mesma
noção levava a que, desde a Revolução Francesa, mulheres como Olympe de
Gouges ou Mary Wollstonecraft (1758-1797) reivindicassem uma concepção
que não pensava tanto a diferença como um direito, mas antes via na mesma
um obstáculo de somenos que haveria que ultrapassar.

No entanto, em simultâneo, a ciência inscrevia essa mesma diferença no


corpo. A sexualidade passa a ser vista não como mero acidente, mas antes
como uma diferença irredutível, que legitima, do ponto de vista biológico,
uma excepcionalidade que há que sublinhar. Será a partir destas concepções,
que deixam de ver a mulher como avesso do homem (Laqueur 1987) e a
instituem na sua diferença específica que, na chamada sociedade vitoriana,
uma sociedade que não se confina exclusivamente à Grã-Bretanha, se irá
consolidando o discurso masculino sobre a natureza essencialmente distinta
das mulheres: como mães, como portadoras de um ciclo biológico distinto e
de uma sexualidade própria que obrigam a um tratamento equivalentemente
distinto (Laqueur 1990).

A ciência crescentemente positivista busca nos dados físicos, empiricamente


comprováveis a chave desse enigma que é a mulher. A sexualidade passa a
ser objecto de uma medicina feita por homens que decidem das necessidades
das mulheres, prescrevem os métodos de parto e comportamento equivalen-
tes : o puritanismo burguês em relação à sexualidade convive com o dis-
curso aparentemente objectivo sobre essa diferença, que faz da mulher um
ser naturalmente submisso, passivo, incapaz de prazer e de transgressão.
A histeria, doença tipicamente feminina, inscreve-se exactamente nessa
diferença sexual. Qualquer desvio aparente a essa mesma diferença é
socialmente proscrito: a homossexualidade é objecto de desconfiança
crescente e de interdição ou penalização tanto mais violentas. A ciência não
tolera qualquer ambiguidade: seja fora da biologia sexual, seja racial.

Os não-europeus são igualmente diferentes no plano da biologia que condi-


ciona, segundo o mecanicismo predominante, a mente: qualquer casamento

266
fora de uma «raça» que se considera dever manter-se «pura», tanto mais
condenável será. A descoberta de que o explorador Carl Peters ( 1856-1918),
quase herói nacional pelas suas expedições na África Oriental, coabitava
com uma mulher africana foi objecto de condenação social, o mesmo
sucedendo com os devaneios homossexuais do industrial Friedrich Alfred
Krupp (1854-1902).

Mas o certo é que os comportamentos sociais se recusavam a manter-se


estritamente dentro do esquema da «normalidade»: afemmefatale, misto de
anjo e de demónio, irrompe no imaginário colectivo, associada, é certo, ao
desregramento que o prazer tem de acarretar consigo, a arte celebra a ambigui-
dade e o desvio. Tantos outros mecanismos que finalmente ajudam à estabili-
dade de uma sociedade que vê com desconfiança todo o modo de vida que
pense a diferença de um modo mais problemático.

Assim, não será de estranhar que as primeiras tentativas de reivindicação


de igualdade das mulheres, insiram-se elas no discurso jusracionalista ou
numa diferença biológica assumida, sejam geralmente vistas com alguma
desconfiança e associadas ou a alguma histeria ou frustração 1• 1 O notável capítulo que

Nipperdey dedica às mulhe-


res no seu volume sobre a
Mas a questão não se esgota no modelo burguês e nas reivindicações que o sociedade alemã entre 1866
mesmo inspira: também a ordem social é contestada pelas mulheres sociais- e 1918 não consegue escon-
der uma posição que se
-democratas que alargam, ao contrário das mais moderadas, as suas reivin- encaminha neste sentido
dicações ao campo dos direitos políticos e sociais, vendo nas reformas (Nipperdey 1993: 82 e segs.).

sociais e nos apoios humanitários à situação da mulher mais uma manobra


de diversão da burguesia masculina. Nos sectores operários, predominante-
mente masculinos, as suas reivindicações não serão sempre bem acolhidas,
apesar do sucesso, mesmo entre as mulheres burguesas mais afoitas, do livro
Die Frau und der Sozialismus ( 1879) deAugust Bebei, que se transformaria
num verdadeiro bestseller.

A grande clivagem persiste. O que colocar à frente: a diferença de classe ou


a diferença feminina? Não será esta maioritariamente instrumentalizada pelas
forças políticas predominantemente masculinas?

Contudo, a organização das mulheres era um facto na Alemanha guilher-


mina com tradições que remontavam à consciencialização política de 1848.

Em 1865, Luise Otto-Peters (1819-1895) fundava oAllgemeiner Deutscher


Frauenverein, que visava não tanto a obtenção de direitos políticos como a
reivindicação de melhorias no direito de família e no acesso das mulheres à
vida profissional e que, nos anos 80, contava com cerca de 12 a 14 mil
activistas. Em seu torno florescem outros pequenos agrupamentos que não
reclamam grandes alterações mas, sobretudo, uma preocupação com o papel
e vocação eminentemente social da mulher: tratava-se de prosseguir de uma

267
forma mais consciente a clássica imagem da mulher devotada aos outros,
demitindo-se perante qualquer potencial narcisismo que permanecia um
privilégio masculino.

Em 1894, as diferentes associações reuniam-se num movimento mais vasto,


o Bund Deutscher Frauenvereine que se tornaria no principal órgão do
movimento de emancipação feminina. Com o termo do IIReich, as mulheres
conseguiam um consenso relativamente amplo, no que respeita às suas
vertentes mais reformistas ou revolucionárias. O SPD já aceitara o princípio
do sufrágio feminino em 1891, embora Clara Zetkin (1857-1933), a grande
dirigente do movimento das mulheres sociais-democratas, persistisse na
recusa de qualquer colaboração com os movimentos burgueses. Contudo, só
a Constituição da República de Weimar concederia direitos políticos às
mulheres.

A actividade e militância destas mulheres oriundas de diversos extractos


sociais não deverá, porém, fazer esquecer a organização predominante, o
Vaterlandischer Frauenverein . Surgido em 1866, isto é, entre as duas guerras
que conduziriam à hegemonia prussiana, o mesmo destinava-se a apoiar os
feridos de guerra, prestar auxílio aos soldados, desenvolvendo actividades
que iam da culinária à costura. É neste campo claramente conservador que
se iria desenvolver uma tradição de apoio feminino ao nacionalismo que
encontrará a sua contrapartida nas organizações femininas do nacional-
-socialismo.

2.8 A «questão judaica»

Se a mulher, na sua diferença específica ou na sua igualdade jurídica, difi-


cilmente se ia impondo, outra faixa da população, estigmatizada pelo peso
da diferença, os judeus, conhecia uma fase particularmente problemática.

Enquanto que no século XVIII haviam surgido algumas tentativas de con-


cessão de direitos aos mesmos, designadamente na sequência das medidas
tomadas pelo Grande Eleitor Frederico Guilherme da Prússia ( 1640-1688),
ao reconhecer as vantagens da imigração de judeus sefarditas para o repovoa-
mento do seu principado em 1671, as mesmas haviam regredido nos reinados
de Frederico I ( 1713-1740) e Frederico II, levando, por exemplo, aos protestos
de um Lessing em Nathan der Weise (1779-1781 ). Em 1781, o ministro prus-
siano Christian Wilhelm Dohm (17 51-1820) publicava, impulsionado por
Moses Mendelssohn, o livro, Über die bürgerliche Verbesserung der Juden,
que influenciaria as reformas levadas a cabo por José II da Áustria (17 41-
-1790) com vista à concessão de direitos à população judaica.

268
Com as invasões e a ocupação francesas dos territórios alemães, os
judeus ganhariam direitos de cidadania, situação que se manteria até
1815. Face à liberalização da economia que se verificaria simultanea-
mente, os judeus alemães alcançariam posição proeminente quer a nível
económico, quer cultural, vantagens que perderiam, após a derrota
napoleónica.

O certo é que a difícil identidade nacional alemã em breve iniciava a


sua política de exclusão da diferença. Já em 1793, Johann Gottlieb Fichte
associava a sua defesa da Revolução Francesa ao anti-semitismo ao
escrever:

Juden Bürgerrechte zu geben, dazu sehe ich wenigstens kein Mittel als
das, in einer Nacht ihnen alle die Kõpfe abzuschneiden, und andere aufzu-
setzen, in denen auch nicht eine jüdische Idee sei. Um uns voo ihnen zu
schützen, dazu sehe ich wieder kein anderer Mittel, als ihnen ihr gelobtes
Land zu erobern, und sie alle dahin zu schicken. (apud Geiss 1988: 268)

Nos seusReden an die deutsche Nation (1810), Fichte argumentava de forma


mais consistente ainda, articulando a defesa de uma nação alemã, com a
fantasia de uma pureza originária e de uma língua superior, mais próxima
das raízes, que transformava os herdeiros do Hebraico, anteriormente língua
sagrada, agora produto derivado, numa parte não integrável na «nação alemã»
(cf. Cap. III.1). Os argumentos biológicos ainda estão ausentes deste
nacionalismo místico, de que o missionarismo germânico de Richard Wagner
também é exemplo. Contudo, a defesa da «pureza rácica» surgiria gradual-
mente fundamentada numa pseudo-ciência positivista, que os círculos de
Bayreuth iriam buscar ao diplomata francês Gobineau (1816-1882), por
intermédio do genro de Wagner, o inglês Houston Stewart Chamberlain
(1855-1927) .

Entre 1815 e 1848, o nacionalismo xenófobo não hesitaria em condenar


qualquer tentativa de emancipação judaica e a sua associação com os direi-
tos da nação alemã, como Ludwig Bõrne e Heinrich Heine, importantes
mentores da oposição ao regime autoritário da Restauração alemã, o souberam
denunciar.

Bõrnes Beobachtung, er registriere eine auffallige Verbindung voo Natio-


nalismus, AristokratenhaB und JudenhaB, ist diesbezüglich bemerkenswert.
Die Judenfeindschaft des frühen 19. Jahrhunderts verband sich mit
emanzipatorischen Interessen und (miB)verstand sich selber so, als Teil
der Frontstellung gegen die reaktionare Politik der deutschen Staaten nach
dem Wiener KongreB unter Führung Metternichs und damit Befreiung des
ais Nation, also ais Einheit gleichberechtigter Bürger aufgefaBten Volkes,
wie problematisch und widersprüchlich im Hinblick auf die jüdische
Minoritat diese Vorstellungen auch waren. (Greive 1983: 19)

269
Os anos 50 e 60 revelariam algum pacificação desta agressividade, que culmi-
naria na emancipação dos judeus no início do processo de unificação entre
1869 e 1872. Contudo, o mesmo ano conheceria, com o início da primeira
depressão económica, os primeiros movimentos anti-semitas, inicialmente
entre os sectores católicos, como minoria perseguida dentro de um Estado
maioritariamente protestante. O lema era o da associação, de resto, já
polemicamente utilizada por Karl Marx em Zur Judenfrage, entre o judeu e
as forças não só da usura mas do grande capital. Tal tema não demoraria a ser
instrumentalizado pelas forças políticas mais conservadoras protestantes e
católicas, unidas nesta frente comum, contra o liberalismo político e econó-
mico.

Em breve, o capelão da corte Adolf Stoecker ( 1835-1909) fundava o partido


Christlich soziale Arbeiterpartei, de tendências anti-semitas e anti-social-
-democratas, cujas posições se alargarão a sectores mais vastos do que a
pequena burguesia, a que inicialmente se dirigira. A germanidade surge
ameaçada por essa população «semita» que deverá ser eliminada.

O historiador liberal conservador Heinrich von Treitschke ( 1834-1896) tam-


bém partilha do receio de que a pureza alemã venha a ser contaminada, cu-
nhando a tristemente célebre frase «Die Juden sind unser Unglück» num
texto publicado nos Preussische Jahrbücher em 1879. A tendência encon-
trará um dos seus momentos mais extremos, do ponto de vista ideológico,
em Wilhelm Marr (1818-1904), cujos círculos consagrariam o neologismo
«anti-semitismo», ao fundar a Liga Anti-semita, que pretendia fornecer ao
movimento uma base de organização.

Os anos 80 conhecerão nova vaga de anti-semitismo, na sequência dos mo-


vimentos migratórios de judeus provindos do Leste, por sua vez provocados
2 Pogrom - termo russo para por pogroms locais 2•
«devastação» e que, no sécu-
lo XIX , passou a designar
o massacre organizado da po- A reacção dos judeus assimilados foi ambivalente: por um lado, olhavam
pulação de confissão judaica. com suspeita essa vaga de correligionários que lhes recordavam as origens
ou uma ortodoxia que há muito haviam abandonado; por outro, receavam a
onda de xenofobia que os mesmos reacendiam e de que também poderiam
ser vítimas. O distanciamento e a identificação revelavam até que ponto a
assimilação, com a consequente rejeição de qualquer reminiscência da sua
identidade religiosa e cultural, não era satisfatória, nem garantia a cidadania
política.

Em breve o movimento estudantil associava-se à vaga anti-semita, como já


sucedera, de resto, em 1815 (cf. Cap. IV.1), fundando em 1881 o Verein
deutscher Studenten (VdSt), assim garantindo a difusão da tendência entre
os meios académicos e a burguesia mais esclarecida. Em 1893, eram eleitos
16 deputados explicitamente anti-semitas para o Reichstag, mandatos esses

270
que estes perderiam, porém, já em 1903. Contudo, não deixava de ser
preocupante o facto de o Partido Conservador (Deutschkonservative Fartei)
ter incluído em 1893 princípios anti-semitas no seu programa.

O movimento ia assim ganhando terreno, reclamando Julius Langbehn ( 1851-


-1907) e Paul Lagarde ( 1827-1891) que esse «corpo estranho» fosse extirpado,
inimigo como era da «pureza rácica» germânica (cf. Cap. IV.2). O anti-
-semitismo organiza-se igualmente em grupos de acção política, não deixando
incólume o movimento operário.

Contudo, seria a crise de poder do imperialismo alemão em 1911, com a


crise de Marrocos, a que seguiria a vitória dos sociais-democratas em 1912,
que suscitaria nova onda de anti-semitismo. O lema de duas obras então
muito divulgadas, o livro de Friedrich v. Bernhardi, Deutschland und der
nachste Krieg e Und wenn ich der Kaiser ware, da autoria do juiz conselheiro
Heinrich ClaB sob o pseudónimo de Daniel Frymann, era o da defesa da
integridade da nação alemã e a exclusão do elemento «semita».

A argumentação, com aceitação nos mais elevados círculos do poder e efeitos


a nível das massas, era a da defesa necessária quer no interior, quer no exterior:
no interior, contra a social-democracia e os judeus (da associação entre
judaísmo e capitalismo passara-se a outra que identificava o comunismo
com o mesmo), no exterior, contra os perigos internacionais que ameaçavam
a unidade e a integridade da pureza nacional alemã. O anti-semitismo e o
chauvinismo eram apenas duas faces da mesma moeda, como, de resto, se
podia adivinhar já desde os primeiros autos-de-fé, levados a cabo pelas
corporações estudantis.

O exemplo de tolerância que a sociedade alemã soubera dar ao longo


do século XVIII e mesmo no século XIX era assim destruído. A polí-
tica anti-judaica recorria a duas armas poderosas: por um lado, uma ciên-
cia positivista que, na senda dos primeiros passos dados na antropologia
e na anatomia setecentista, inscrevia a diferença no corpo - em paralelo
com o que sucedia com as mulheres e os «selvagens» - , estabelecendo
simultaneamente uma relação de causalidade unilateral entre o exterior
e interior, entre corpo e mente; por outro, um misticismo nacionalista
que exaltava, do ponto de vista do irracional e de uma missão superior da
«raça» alemã, a necessidade de se excluir os elementos «estranhos» e
«parasitários».

A noção de cultura enquanto organismo vivo, herdada de Herder e retomada


pelos românticos alemães, isenta de quaisquer convenções e artificialismos,
associada à ideia de uma pureza necessária para que se evitasse a degene-
rescência, surtia já então efeitos que, depois de 1933, o nacional-socialismo
viria a utilizar em seu favor.

271
O Estado unificado rejeitava assim um grupo que representava uma das
mais conseguidas simbioses culturais: os judeus eram obrigados a pagar o
preço pela sua ambivalência e estranheza para as quais não havia lugar
(Bauman 1991).

Se os factores de ordem económica ajudam a explicar a atmosfera de res-


sentimento face a uma população assimilada e disposta a morrer na guerra
de 1914 a 1918 por esse ideal nacionalista que potencialmente a excluía,
eles não conseguem fornecer, por si só, uma causa totalmente convincente
para o fenómeno que não foi de modo algum exclusivo da Alemanha.
Contudo, a estrutura autoritária do Estado que Bismarck ajudara a concre-
tizar não dava lugar a um direito que consagrasse a cidadania, nem que
meramente potencial, dos judeus, não obstante as suas relações íntimas com
a cultura alemã.

Com efeito, o alemão foi até 1933 a língua oficial do sionismo: língua franca
nos seus congressos e aquela em que os seus textos fundamentais - como
é o caso de Judenstaat (1896) de Theodor Herzl (1860-1904) - foram
publicados. E que terá sido o sionismo senão mais uma reacção a uma polí-
tica nacionalista, originando, por sua vez, outros fenómenos de exclusão
até aos nossos dias? A reacção quer de cristãos quer de judeus, por muito
distantes que as convicções religiosas se tivessem tornado, mostrava bem até
que ponto a ambivalênciajudaica era o verdadeiro estigma dessa «questão»
(Bauman 1991).

M.R. S.

2.9 O colonialismo alemão (1884-1914)

Com a deslocação geográfica do comércio marítimo internacional na


sequência das Descobertas, a poderosa Liga Hanseática (séculos XII-XV)
perde definitivamente a sua importância. Durante séculos a Alemanha será,
principalmente um observador da ascensão e da queda dos impérios colo-
niais português, espanhol e holandês. Uma situação geográfica pouco favo-
rável ao comércio de além-mar, a fraqueza política do Sacro Império
Romano-Germânico e os entraves e limitações do poder absolutista afastaram
a Alemanha, durante esta primeira fase, da expansão europeia. As pontuais
iniciativas e projectos coloniais alemães nos séculos XVII e XVIII não
obtiveram resultados significativos.

A partir de 1840, porém, a questão colonial manifesta-se cada vez mais na


discussão pública. Várias tentativas concretas de comprar e colonizar terri-
tórios ultramarinos (cf. Gründer 1991: 17 e segs.) fracassaram, com excepção

272
das colónias alemãs na América do Sul e, nomeadamente, no Brasil. A libe-
ralização da emigração no século XIX, o contexto internacional diferente e
o imperialismo oitocentista inglês e francês criaram uma situação que favo -
receu também na Alemanha do Reich tendências expansionistas e imperia-
listas. A Aufklarung tinha, apesar da crítica de Herder, preparado o caminho
para a legitimação ideológica do colonialismo. A teoria racista de Meiners,
cujos argumentos principais a favor da superioridade cultural e moral da
raça branca se transformaram rapidamente em lugares comuns, o uni-
versalismo europeu e a rápida evolução do comércio internacional criaram
condições favoráveis para uma segunda fase colonialista que visava regiões
ainda pouco exploradas (África, Pacífico e Oriente) .

Durante a primeira metade do século XIX, a Alemanha participa neste


movimento expansionista com uma forte emigração, seguida, a partir de
meados do século, da criação de feitorias comerciais em África. A revolução
industrial e a subsequente explosão demográfica, mas também a fundação
do Reich em 1871 intensificaram a discussão pública das possibilidades e
vantagens dum colonialismo alemão. Já em 1879 o publicista Ernst von Weber
exige a «expo1tação da questão social» e a neutralização das «acendalhas
revolucionárias»:

Für die bedrangtesten unserer Proletarierschichten ware aber eine rasche


und durchgreifende Verbesserung ihrer Lage offenbar am leichtesten und
sichersten durch ihre Uebersiedelung nach eigenen deutschen Ackerbauco-
lonien zu erõffnen. Gerade die unzufriedensten und gahrendsten Elemente
unseres Proletariats, welche zumeist die denkenden Kõpfe unter den Ar-
beitern und ihre Führer und Leiter umfassen, würden sich am meisten von
der ihnen gebotenenAufbesserung ihrer wirthschaftlichen Lage angezogen
fühlen und sich gewi/3 sehr gem nach den Colonien einschiffen lassen.
(apud Frõhlich 1994: 143)

A prioridade da política de Bismarck, porém, visa a estabilização interna-


cional do jovem Reich e um entendimento cauteloso com a Inglaterra e a
França. O pragmatismo de Bismarck recusa a fundação de colónias alemãs
sem importância económica e militar, na medida em que só podem prejudi-
car as relações com as tradicionais potências coloniais. Mas a euforia colo-
nialista em França e na Inglaterra, a partir dos anos 80, manifesta-se tam-
bém na Alemanha. No seguimento das sociedades geográficas constituem-
-se, a partir dos anos 70, uma série de associações coloniais, tal como o
Deutscher Kolonialverein ( 1882, com fins propagandísticos) e a Gesellschaft
für deutsche Kolonisation (1884, com projectos coloniais concretos) que
pretendem lançar a Alemanha na corrida expansionista.

Em face desta evolução, e por motivos de conjuntura política, Bismarck


vê-se obrigado a admitir, em 1884, a necessidade duma protecção imperial

273
(Reichsschutz) das feitorias alemãs e, no mesmo ano, são oficializadas as
primeiras colónias: Deutsch-Südwestafrika (a actual Namíbia), o Togo, os
Camarões, a Nova Guiné e o arquipélago Bismarck no Pacífico. No ano
seguinte o mesmo se passa com uma parte da África Oriental, as ilhas Marshall
no mar do Sul e ainda, em 1898-1899, Kiautschou na China e outras ilhas no
Oceano Pacífico. O total das colónias alemãs abrangeu uma população de
quase 15 milhões de habitantes (com cerca de 29 000 brancos, nem todos
eles alemães), enquanto que o império colonial britânico incluiu mais de
300 milhões de pessoas.

Os principais motivos e argumentos da propaganda colonial eram tanto


ideológicos (nacionalismo e messianismo alemão) como económicos
(exportação e emigração), mas o factor decisivo era a ambição duma polí-
tica a nível mundial (Weltpolitik) que, com Guilherme II, se transformou
num nacionalismo imperialista sem medida. O historiador Felix Dahn
(1834-1910) caracteriza este ambiente numa canção intitulada Deutsches
Koloniallied que enfatiza o heroísmo imperialista na apropriação do
mundo:

Noch ist die Welt nicht ganz verteilt!


Noch manche Flur auf Erden
harrt gleich der Braut: die Hochzeit eilt:
Des Starken will sie werden.
Noch manches Eiland lockt und lauscht
aus Palmen und Bananen:
Der Sturmwind braust, die Woge rauscht,
auf, freudige Germanen !
Aufs Meer, du Volk des Heldentums,
und such' auf blauen Bahnen
das Wundereiland alten Ruhms:
das Win-Land deiner Ahnen. (Sembritzki 1911: 8-9)

Os versos de Dahn mostram a necessidade de legitimar o colonialismo


alemão através de uma tradição histórica, que um artigo da revista Die
Gartenlaube de 1884 refere explicitamente, ao comparar as ruínas duma
primeira feitoria alemã na costa da Guiné (1683-1717) com os símbolos
nacionais da montanha de Kyffhauser (onde Barbarossa espera, segundo a
lenda, a hora do renascimento imperial) e do castelo de Wartburg (o refúgio
de Lutero):

Eine geheimnisvolle Macht waltet über Ruinen. Jahrhunderte vermõgen


nicht ihren EinfluB zu schwachen, denn eifersüchtig wird sie von der Sage
und der Geschichte beschützt, die aus Schutt und Staub das Edelste zu
retten wissen. ln den Erinnerungen an groBe Thaten vergangener Zeiten
ruht diese Zaubermacht, und mehr als einmal hat sie Wunder gewirkt. (349)

274
O milagre, neste caso, seria a «solução da questão colonial» e a participação
activa da Alemanha no expansionismo europeu. As mesmas ideias são
divulgadas em numerosos panfletos, artigos e revistas que tentam entusias-
mar a população com uma aventura colonial, cujas perspectivas eram no
fundo pouco prometedoras; a retórica oficial e propagandística não encontra
uma adesão popular significativa. Assim, um dos objectivos principais da
política colonial (canalizar a emigração e implantar números elevados de
colonos alemães) não foi atingido, e a brutalidade do domínio militar e a
exploração dos indígenas entraram até em conflito com as missões católicas
e protestantes instaladas nas colónias, aliás, as únicas instituições alemãs
que se encarregaram da formação e instrução dos indígenas.

Não obstante, a burguesia mercantil (a única a lucrar com o colonialismo)


continuou a sonhar com um grande império colonial na África Central, à
custa da Bélgica e de Portugal (tratado secreto anglo-alemão de 1898 sobre
a repartição das colónias portuguesas); outras tentativas expansionistas
visaram Marrocos e as zonas colonizadas por alemães no Brasil.

De facto, o balanço de trinta anos de colonialismo alemão era principal-


mente negativo. A importância militar e económica das colónias era mínima
e, em termos políticos, mesmo negativa, já que a França e a Inglaterra não
estavam dispostas a tolerar a expansão alemã nas suas zonas de influência.
Grande parte dos emigrantes alemães preferiam terras mais acolhedoras e
a presença militar alemã em África, que custou centenas de milhões de
marcos, era marcada por escândalos e massacres.

Uma revolta na África Oriental em 1905 causou mais de 75 000 vítimas e a


guerra contra os Hereros na actual Namíbia (1904-1907) levou ao extermínio
de cerca de 80% da tribo. Por outro lado, registou-se uma elevada taxa de
mortalidade nas plantações africanas (até 30% dos trabalhadores) como
também na construção das vias-férreas nos Camarões e no Togo que ocuparam
centenas de milhares de pessoas, enquanto a comunidade branca no Togo
nunca chegou a ultrapassar 400 pessoas.

Neste sentido, o deputado social-democrata August Bebel caracterizou, em


1899, a política colonial como «a exploração elevada à máxima potência
duma população estrangeira»:

Wo immer wir die Geschichte der Kolonialpolitik in den letzten drei Jahr-
hunderten aufschlagen, überall begegnen wir Gewaltthatigkeiten und der
Unterdrückung der betreffenden Võlkerschaften, die nicht selten schlief3lich
mit deren vollstandiger Ausrottung endet. (apud Frõhlich 1994: 145)

Mas também os outros partidos do Reichstag manifestavam reservas em


relação à política colonial propagada principalmente pela burguesia mercantil
e favorecida pelo nacionalismo imperialista a nível europeu. O «lugar ao

275
sol », que a Alemanha guilhermina exigia com tanta insistência, devia
compensar uma identidade nacional bastante frágil que encontrou na
Colonialbewegung e na figura heróica dos Auslandsdeutschen a sua forma
mais rígida e tradicionalista.

Com o início da Primeira Guerra Mundial, quase todas as colónias alemãs


foram ocupadas; só na África Oriental os alemães resistiram até ao fim da
guerra. Não obstante, a recuperação e o aumento das colónias alemãs haviam
sido um dos objectivos declarados da guerra, e o colonialismo continuará na
ordem do dia durante os anos 20 e 30. O sonho duma Weltmacht Deutsch-
land e o slogan dum povo sem espaço, na sequência do romance Volk ohne
Raum de Hans Grimm (1875-1959), publicado em 1926, manifestam-se em
sentimentos de frustração nacional e reivindicações territoriais que o nacional-
-socialismo recuperará habilmente. Significativamente, os anos mais férteis
da literatura colonial alemã situam-se na fase revisionista que precede a
Segunda Guerra Mundial. Embora orientado principalmente para a conquista
da Europa Oriental, o III Reich continuou a alimentar tendências expansio-
nistas a nível mundial que são a última consequência do imperialismo
guilhermino.

A. o.

2.1O A Alemanha entre a modernidade e o autoritarismo con-


servador

A Alemanha resultante da unificação em 1871 possuía as suas ambivalências,


dividida entre a modernização social e a estrutura hierárquica herdada do
Estado prussiano.

O poder do II Reich fundava-se em primeiro lugar na figura carismática do


Chanceler que centralizava na sua pessoa o poder. Outros apoios essenciais
constituíam, como foi acima referido, uma monarquia com poderes mais
amplos que as instituições suas congéneres na Europa, a nobreza, maiorita-
riamente representada nos altos cargos das forças armadas e, em particular,
da burocracia, reforçando-se assim o espírito corporativo, que permitia, sob a
aparência da proverbial eficiência desses quadros - com os quais, de resto,
a administração pública francesa tradicional e os mais recentes civil servants
podiam competir - o florescimento do compadrio e da política de intriga.

É este um dos aspectos que levam Norbert Elias a referir o facto de, na
sociedade guilhermina, as regras típicas de uma sociedade de corte (Elias
1992) ainda vigorarem, com a sua ênfase na representação, na hierarquia
convencionada até ao último pormenor, onde a simulação e a aparência eram

276
factores decisivos por oposição aos valores burgueses que celebravam a
produção, a simplicidade, a sinceridade e a recompensa do talento.

Se é verdade que essa mesma burocracia deu mostras da sua competência a


nível da administração urbana e no plano educativo, também é verdade que
as cidades constituíam os locais onde a industrialização se fizera sentir de
modo mais intenso, acarretando consigo uma mobilidade social desconhe-
cida até então. Por outro lado, a vida urbana constituía uma herança da
tradicional fragmentação política do espaço cultural alemão, o que permitia
que, independentemente dos esforços de centralização, a vida económica e
cultural preservasse alguma autonomia.

Esta coexistência de modelos, encontramo-la novamente a nível da política


educativa, onde a par das universidades clássicas, herdeiras de uma tradição
cultural que a burguesia cultivara por excelência, surgiam cursos técnicos
que se adaptavam às necessidades económicas de um grande império
industrial e colonial, assim formando os quadros e especialistas tornados
entretanto necessários.

O mesmo se pode dizer das classes sociais: a burguesia abdicava gradual-


mente do seu estatuto autónomo, nem que fosse no puro plano teórico, como
sucedera na primeira metade do século XIX, para se refugiar numa atitude
elitista que sabia conjugar a herança cultural com o desprezo pelos iletrados,
transformando-a rapidamente em mera pose. Bayreuth foi o grande cenáculo
dessa burguesia, acorrendo a adorar a nova religião da germanidade encenada
por Wagner na sua Tetralogia, Der Ring des Nibelungen, composta entre
1848 e 1874, ou a deixar-se envolver pelas ondas da unendliche Melodie do
amor fatal de Tristan und /solde (1857-1859), antes de sucumbir aos novos
devaneios cristianizantes de Parsifal (1877), como Nietzsche bem o soube
denunciar em Nietzsche contra Wagner.

Que a universidade nem sempre sabia proporcionar a Bildung clássicà, com


o seu espírito humanista e a sua distância crítica, prova-o o modo como a
filosofia mais inovadora passou a ser um actividade gradualmente indepen-
dente. Já Arthur Schopenhauer (1788-1860) não conseguira reunir mais de
alguns estudantes marginais nos seus cursos na Universidade de Berlim,
perante a concorrência de Hegel, tendência que se acentuará com os discí-
pulos deste último: Ludwig Feuerbach (1804-1872) e outros representantes
do chamado hegelianismo de esquerda terão de se satisfazer com um esta-
tuto de marginalidade, impedidos que haviam sido de exercer a actividade
docente. Também Nietzsche abdicará desse mesmo papel, sabendo que os
verdadeiros educadores não se encontram na academia. Reacção que tanto
melhor se explica, se se recordar a aliança entre o poder e o saber que o
Império de Bismarck levará à perfeição.

277
O Estado guilhermino era a caricatura do figurino político que Hegel pro-
clamara em 1821 na sua Filosofia do Direito. Possuía uma monarquia que
decidia, na certeza da incapacidade de à maioria da população ser confiada
essa soberania. Apoiava-se numa burocracia que zelava pela manutenção da
tradicional eficiência e autoritarismo prussianos, ao mesmo tempo que sabia
organizar-se dentro das necessidades e mecanismos da economia capitalista
e mantinha estruturas que negavam os conflitos de classe, em nome de privi-
légios feudalizantes ou corporativos, sustentado por uma célula fundamen-
tal, a moderna família nuclear burguesa. Esta dividia claramente o espaço
masculino da produção do da reprodução e do consumo, onde a mulher, tida
por elemento predominantemente vegetal, gozava de escassa autonomia.
O Estado garantia o controle das forças antagonizadas pela crescente
industrialização, a defesa dos interesses crescentemente imperialistas, bem
como a sobrevivência dos antigos privilégios, modernizados, da nobreza
prussiana.

Se é verdade que a França possuía uma larga tradição administrativa e centrali-


zadora, herdada, sobretudo, da era napoleónica, modelo em que, de resto,
Hegel também se inspirara, se é certo que a Grã-Bretanha se vira forçada a
desenvolver os seus quadros burocráticos, dadas as necessidades admi-
nistrativas das suas colónias, a situação na Alemanha era diferente. Esta não
operara a ruptura liberal e democrática como a França, nem possuía uma
tradição parlamentar como a Grã-Bretanha. Assim, ao mesmo tempo que
fazia o referido salto industrial, tornando-se numa das maiores potências
do mundo ; a Alemanha permanecia fiel a concepções aparentemente
incompatíveis com este processo de modernização, como será visível no
nacionalismo de tendências místicas, secundado por um social-darwinismo
que terá a sua contrapartida mais sinistra nas manifestações contemporâneas
de anti-semitismo.

Pode pois dizer-se que, se é discutível fazer remontar as raízes da história


recente da Alemanha a épocas tão longínquas como a Reforma luterana, o
modelo bismarckiano e o Império dele resultante revelam exactamente essas
ambivalências fatais entre modernização e conservadorismo que tanto difi-
cultariam a estabilização do regime da República de Weimar e abririam
caminho ao programa nacional-socialista. É com esta tradição que a
Alemanha contemporânea se tem de confrontar, numa permanente reinvenção
da sua identidade, o que Hans-Ulrich Wehler resume nas palavras seguintes:

Nach der geglückten Staatsbildung von 1990 steht aber heutzutage die
N ationsbildung erneut ais schwierige Aufgabe an. Sie sollte in der Gestalt
einer sozial- und rechtstaatlichen verfaBten Staatsbürgernation auf der
normativen Legitimationsbasis eines liberal-demokratischen Grundgesetzes
mit konstitutionell garantierten, naturrechtlich begründeten Individual-
rechten gelost werden, nicht aber in Gestalt einer «Volksnation» auf der

278
-· Grundlage einer fiktiven, archaischen Abstammungsgemeinschaft,
geschweige denn ais nationaler Machtstaat, der in der Fiebertraumen des
neuen Rechtsradikalismus schon wieder die Grenzen von 1937 oder 1938
besitzt. (Wehler 1995: 491)

Bibliografia recomendada

Sobre a «via específica» alemã e para a obtenção de dados relativos à evolução


económica, social e política consulte-se Wehler 1995. Sobre a polémica acerca
da «via específica» veja-se Evans 1987. Para uma caracterização e análise
da sociedade guilhermina 1995 poderá consultar-se Elias 1992 e Evans 1987.
Sobre o imperialismo alemão veja-se Frõhlich 1994, sobre o anti-semitismo
Geiss 1988 e Greive 1983. Sobre a situação das mulheres e história das
mentalidades e da vida quotidiana consulte-se Nipperdey 1993 e Weber-
-Kellermann 1974.

Actividades propostas

• Leia o excerto de Nietzsche citado no final do ponto 2.5.1 do


presente capítulo e relacione-o com a evolução da educação e
pedagogia na Alemanha guilhermina, tomando em conta a sua
evolução desde o século XVIII (cf. Cap. 11.2, «Bildung e E,fahrung» ).

• Assinale cronologicamente as diferentes tentativas de unificação da


Alemanha desde 1815 e articule-as com a evolução da rivalidade
austro-prussiana.

• Leia os seguintes excertos do texto de Georg Simmel «Über weibliche


Kultur», destacando as principais ideias e avaliando o modo como as
posições neles apresentadas podem ser articuladas com o movimento
de emancipação feminina na Alemanha guilhermina:

Die Voraussetzungen wie die Ergebnisse dieser Fragestellungen [betr.


die Frauenbewegung] übersieht man erst von der Erkenntnis aus, daB
die Kultur sozusagen nichts Geschlechtsloses ist, daB sie keineswegs
in reiner Sachlichkeit jenseits von Mann und Weib steht. Vielmehr
unsere Kultur ist, rnit Ausnahme ganz weniger Provinzen, durchaus
mannlich. Manner haben die Industrie und die Kunst, die Wissenschaft
und den Handel, die Staatsverwaltung und die Religion geschaffen,
und so tragen diese nicht nur objektiv mannlichen Charakter, sondem
verlangen auch zu ihrer immer wiederholten Ausführung spezifisch

279
mannliche Krafte. Der schone Gedanke einer menschlichen Kultur,
die nicht nach Mann und Weib fragt, ist historisch nicht realisiert, der
Glaube daran entstammt dem gleichen Gefühl, das in so vielen
Sprachen für Mensch und Mann dasselbe Wort setzte. ( ... ) (Simmel
1985: 160)
Alle Kulturgebilde, nach deren Produktion hier gefragt wird, haben
den Charakter der Dauer, sie stehen ihrem Sinne nach jenseits des
individuellen Lebens und seines zeitlichen VerflieBens. Vielleicht aber
ist diesem Schaffenstypus die ganze Art und der Rhythmus des
weiblichen Wesens prinzipiell fremd. Es tragt vielleicht, viel starker
als der Mann, den Charakter des FlieBenden, in der Forderung des
Tages Aufgehenden, auf das bloB individuelle Leben Gerichteten. Es
gehort zu den banalen Vorwürfen gegen die Frauen, daB sie keine
Objektivitat besaBen, daB ihre Hingabe eigentlich niemals einem
Gegenstand oder einer Idee, sondem in letzter Instanz immer einer
Person galte, d .h. einem Zeitlichen und gleichsam Punktuellen
gegenüber der Abgewogenheit und Überzufalligkeit, die der rein
sachlichen Interessiertheit eigen ist. Was daran richtig sein mag, hangt
sicher damit zusammen, daB die Tatigkeit der Frauen, besonders seit
der Einschrankung der hauslichen Produktion , selten «Objekte»
schafft. Die noch übrige hausliche Arbeit gilt dem Tage - woran sie
den ganzen Vormittag gekocht haben, wird in einer halben Stunde
aufgegessen - , sie ordnet sich dem Flusse und Wechsel momentaner
Ansprüche und Interessen ein, ohne ein substantielles Resultat zu
hinterlassen, das nicht wieder unmittelbar in diesen FluB hineingezogen
würde. Das Leben im Zeitlosen - das etwas ganz anderes ist ais die
Ewigkeit im religiosen Sinne - , die reine Sachlichkeit und die
unvermeidliche Einseitigkeit substantieller Arbeit, die Einordnung in
überpersonliche Zusammenhange - dies widerstrebt vielleicht dem
innersten Leben der weiblichen Seele. Hier handelt es sich also nicht
mehr darum, ob diese besonders charakterisierte Inhalte besaBe, die
in das geschichtliche Kulturleben hinein verkorpert werden konnten.
Dies mochte im Prinzip zugegeben werden und doch zugleich
behauptet, daB die typische, innere Lebensform, daB der psychische
Rhythmus der Weiblichkeit sich gegen die Produktion der Werte, die
wir objektive Kultur nennen, straubt. Es ist hier nicht die Sache,
somdem ihr Trager, nicht der seelische Gehalt, sondem die Funktion,
die ihn verwiklicht, nicht das Sein, sondem dieArt seines Werdens -
was die Aufgabe vielleicht illusorisch macht. (ib.: 173-174)
M. R. S.

280
3. Emigração, Exotismo, Escapismo: do antimodernismo
às vanguardas artísticas - tendências centrífugas na
Alemanha oitocentista
Resumo

Descrevem-se as migrações internas e externas na sequência da revolução


industrial alemã e o exotismo literário e cultural que impregnou o impe-
rialismo guilhermino. Indicam-se as principais tendências antimodernistas
e anti-capitalistas da chamada «reacção progressista» e os movimentos de
vanguarda artística na última fase do império.

Objectivos

• Entender as razões para o aumento da migração interior e da


emigração na segunda metade do século XIX.

• Conhecer as manifestações do exotismo na Alemanha oitocentista.

• Distinguir as várias tendências antimodernistas e os movimentos de


vanguarda artística no império guilhermino.

283
A fragmentação tradicional do território alemão não alimentava·só o desejo
duma identidade nacional comum, mas proporcionava também uma varie-
dade de contextos definidos, uma Heimat concreta, segura e reconfortante,
apesar do seu atavismo. A industrialização e a respectiva modernização das
infra-estruturas a partir dos anos 40 começam a desagregar esta estabilidade
regional da velha Alemanha. O aumento da mobilidade social na sequência
do progresso económico manifesta-se tanto em tendências migratórias
(atracção das grandes cidades e das novas regiões industriais) como em movi-
mentos centrífugos que afastam as pessoas, quer em termos geográficos
(emigração), quer em termos simbólicos (exotismo, escapismo ). A fundação
do Reich reforça curiosamente esta dinâmica; a realização dum velho sonho
colectivo traz consigo uma forte carga de descontentamento e de desengano.

3.1 A migração interna

A migração interna, que se manifesta desde meados do século, aumenta


nos anos 80 para atingir na década seguinte, com a favorável conjuntura
guilhermina, uma dimensão única na Europa da época (cf. Wehler 1995:
503 e segs.). Na base desta migração, que, entre 1860/1870 e 1914, abrange
cerca de 16 milhões de pessoas, estão as mudanças económicas e a progressiva
urbanização da sociedade alemã entre a fundação do Reich e a Primeira
Guerra Mundial.

Em 1871, o império só conta 8 cidades com mais de 100 000 habitantes (um
total de 1,97 milhões), mas em 1910 já existem 48 cidades desta dimensão
(com 13,82 milhões de habitantes). Enquanto a população alemã aumenta,
neste período, de 41, 1 para 64,9 milhões, a população urbana cresce 160%.
Em 1910, já 38,97 milhões (60%) vivem em cidades; sendo a taxa média de
crescimento das cidades de mais de 200%. Esta urbanização massiva tra-
duz-se principalmente numa segregação social nos bairros residenciais e no
desenvolvimento de novas formas de vida que contemplam as necessidades
culturais (instituições de divertimento, de desporto e de lazeres) das massas
que se acumulam nas cidades.

A urbanização não corresponde, porém, a uma modificação demográfica uni-


lateral, dado que a migração interna é também circular no sentido campo-cidade-
-campo. Os migrantes, maioritariamente jovens sem fanu1ia, vão para os grandes
centros urbanos e industriais (sobretudo Berlim e o Ruhrgebiet cuja população
aumenta sete vezes entre 1850 e 1900), regressam depois à terra natal e recome-
çam a migração com outros destinos. Assim, Berlim conhece entre 1880 e 1890
um aumento populacional de 465 000 pessoas, mas um volume migratório de
2747 600, um valor, que chega a atingir 4848 000 pessoas entre 1900 e 1910.

285
Esta flutuação enorme provoca uma instabilidade social que modifica
profundamente os hábitos e tradições dos alemães. Já em 1907, quase metade
da população vive fora da sua terra natal; a mobilidade profissional
transforma-se numa prática corrente. Esta circulação da mão-de-obra per-
mite, por um lado, a uma grande parte da população melhorar as condições
de vida e conhecer outras realidades, mas cria, por outro, novas formas de
exploração e uma grande insegurança que desintegra rapidamente as estruturas
sociais tradicionais. Além do mais, a migração interna não consegue absor-
ver completamente a mão-de-obra disponível e muitos alemães vêem-se
obrigados a adoptar uma solução mais radical.

3. 2 A emigração

Durante todo o século XIX, a Alemanha é um país de emigração; as esta-


tísticas existentes apontam para mais de 5 milhões que deixam o país entre
1820 e 1914 em busca de uma vida melhor. Em 1836, Heinrich Reine des-
creve um encontro com emigrantes alemães que vão embarcar em Le Havre
e estas famílias personificam para o escritor, também ele emigrante, a pátria
perdida:

J a, es war das Vaterland selbst das mir begegnete, auf jenen Wagen saB das
biande Deutschland, mit seinen ernstblauen Augen, seinen traulichen,
allzubedachtigen Gesichtern, in den Mundwinkeln nochjene kümmerliche
Beschranktheit, über die ich mich einst so sehr gelangweilt und geargert,
die mich aber jetzt gar wehmüthig rührte - ( ... ). (1973-1997: V, 371)

A miséria na base desta emigração em massa ( 145 000 pessoas só nos


anos trinta, principalmente em direcção à América), leva o autor à
ideia dum patriotismo revolucionário que se opõe, na sua perspectiva
redentora global, às tendências restritivas e exclusivas do nacionalismo
alemão.

Enquanto a emigração é ainda fraca nos anos 20, os números aumentam


consideravelmente a partir de 1840 (418 000 de 1840 a 1849, entre 1846 e
1851 cerca de 1, 1 milhão). A situação económica e o fracasso da revolução
de 1848 reforçam esta tendência; só entre 1850 e 1871, cerca de 2 milhões
de alemães decidem emigrar. Uma terceira onda, entre 1880 e 1893, atinge
os 1,8 milhões, até que uma crise industrial nos Estados Unidos e a crescente
procura de mão-de-obra na Alemanha reduzem substancialmente estes
números e começam a favorecer a imigração. Enquanto que, em 1871, vivem
na Alemanha cerca de 207 000 estrangeiros, esse número atinge em 191 Ojá
1,26 milhões.

286
De facto, durante o século XIX, quase 90% dos emigrantes alemães, sobretudo
famílias, escolhem como destino os Estados Unidos que os integram sem
grandes problemas na agricultura em expansão (go west) e na indústria.
Em outros países, porém, a situação económica e climatérica apresenta-se
menos favorável, e o destino de muitos emigrantes não corresponde às
expectativas exageradas provocadas por uma propaganda enganadora.

Um artigo na revista Die Gartenlaube de 1884 (pp. 283-285, 299-302), por


exemplo, relata a construção de uma estrada entre a colónia alemã de
Petrópolis e Juíz de Fora no Brasil e chega à conclusão que, tal como sucede
na província de Santa Catarina, os colonos alemães, nesta região pouco
propícia à agricultura, vivem muito modestamente:

Der Colonist leidet allerdings keinen Mangel, sondem lebt, dank der
Hühner- und Schweinezucht, die er nebenbei betreibt, mit seiner Familie
derart, daB ihn mancher arme Schlesier und «Hundsrücker» in Wahrheit
beneiden kann, aber von wirklichem Wohlstand, von vollstandiger Ent-
faltung seiner Krafte, von glanzenden Hoffnungen für die Zukunft seiner
Nachkommen, kann heute wenigstens noch nicht die Rede sein. (301)

Outros emigrantes encontram-se em situações ainda piores. Em /bicaba.


Das Paradies in den Kopfen ( 1995), um romance baseado em acontecimentos
e documentos, a escritora suíça Eveline Hasler retrata o destino de um grupo
de emigrantes que, no ano de fome de 1855, partem para o Brasil. Enganados
por relatos entusiastas nos jornais e promessas falsas, os emigrantes suportam
uma viagem em condições indescritíveis para se verem depois, nas plantações
brasileiras, reduzidos à condição de escravos que vivem na miséria e na
dependência total do latifundário.

Enquanto a atracção do «paraíso» ultramarino resulta, nas camadas popu-


lares, de condições de vida insuportáveis, as tendências centrífugas na
burguesia traduzem um mal-estar político, social e filosófico. Uma vertente
importante deste movimento e, sobretudo, as suas manifestações culturais,
podem ser resumidas no conceito de exotismo.

3.3 O exotismo

O exotismo pode definir-se como uma tendência cultural surgida a partir de


finais do século XVIII que se manteve até hoje e cujo aspecto constitutivo
seria o ennui romântico, uma relação problemática com a realidade que nunca
cumpre as suas promessas. Daí a busca de sensações extraordinárias, a
preferência por espaços e tempos longínquos, o sonho duma vida mais
intensa e plena (cf. Reif 1975: 55 e segs.). Neste sentido, o exotismo é uma

287
manifestação da subjectividade moderna, que não pode ser identificado com
a curiosidade por artefactos e representantes de outras culturas (sobretudo
ultramarinas), que se verifica também na Alemanha a partir da época das
descobertas.

O exotismo moderno reside numa nova dialéctica de proximidade e dis-


tância que produz objectos, imagens e mitos resultantes duma relação
problemática entre o eu e o mundo, e que se condensa numa grande aversão
a um presente negativo, insuportável: a realidade da Europa oitocentista.

Surgido no contexto da sociedade burguesa moderna, o exotismo é um


fenómeno europeu. Reif menciona, na área da literatura, Rousseau e o seu
discípulo Bernhardin de Saint-Pierre (Paul et Virginie, 1787), William
Beckford (Vathek, em francês 1782, em inglês 1786) e Wilhelm Heinse
(Ardinghello, 1787). Estes autores representam as principais tendências e
temáticas do exotismo moderno: o paraíso tropical, o primitivismo vital e
a mitificação da época do Renascimento, tendências essas que se acentuarão
na segunda metade do século XIX.

O cariz romântico do exotismo continua na época do Vormarz, embora


limitado, em grande parte, a motivos isolados e tópicos na poesia. Este
exotismo situa-se ainda no contexto da emigração, como, por exemplo, no
caso do escritor Nikolaus Lenau ( 1802-1850) que tenta viver o mito da
liberdade americana, tentativa essa, de resto, fracassada e de Friedrich
Gerstacker ( 1816-1872), viajante permanente e autor de numerosos romances
de aventura.

Na base destas vidas e obras está o desejo de uma intensificação da vida e a


vontade da anulação da morte, o velho mito da fonte da eterna juventude
(Jungbrunnen), tal como Heine o tematiza no poema «Bimini» de 1852:

Auf der Insel Bimini


Blüht die ew ' ge Frühlingssonne ( ...)
Schlanke Blumen überwuchem
Wie Savannen dort den Boden,
Leidenschaftlich sind die Düfte
Und die Farben üppig brennend.
GroBe Palmenbaume ragen
Draus hervor, mit ihren Fachem
Wehen sie den Blumen unten
Schattenküsse, holde Kühle.
Auf der Insel Bimini
Quilt die allerliebste Quelle
Aus dem theuren Wunderbom
FlieBt das Wasser der Verjüngung. ( 1973-1997: III, 377)

288
O ponto alto do exotismo moderno é, sem dúvida, a época imperialista entre
1880 e 1914 que regista uma grande popularidade da literatura exatista,
principalmente do Abenteuerroman, da literatura de viagens e do primiti-
vismo erótico. É de salientar, neste contexto, a importância de Karl May
(1842-1912) que, apreciado, entre muitos outros, pela geração expressio-
nista e por personagens tão diferentes como Hitler e o filósofo marxista
Ernst Bloch (1885-1977) , conheceu na Alemanha uma imensa populari-
dade que continua até hoje. Ao combinar o exotismo de mundos longín-
quos com as virtudes da pequena burguesia, os romances de Karl May
são um fenómeno tipicamente alemão. As últimas obras do autor, porém,
propagam um pacifismo transcendental que entrou em conflito com o
militarismo da Alemanha guilhermina. Assim, o romance Friede auf Erden
(1904) apresenta uma comunidade cosmopolita, humanista e ecuménica na
China, longe duma Europa que já caminha para a guerra.

3.4 Tendências antimodernistas

As tendências antimodernistas que se manifestam na Alemanha oitocentista,


recorrem essencialmente ao idealismo tradicional que surge, no fim do século
XVIII, no contexto dumaKulturnation alemã de cariz filosófico e humanista.
A politização deste idealismo acentua-se depois da fundação do Reich. Os
escritos de Paul de Lagarde, o Praeceptor Germaniae que Thomas Mann
ainda glorifica em 1917 (Hepp 1992: 59), dirigiam-se tanto contra o
funcionalismo industrial e político como contra a civilização moderna das
grandes cidades. Por outro lado, Lagarde era anti-semita e propagandista
dum império pan-germânico que devia incluir os países eslavos e uma grande
parte da Rússia. A sua Kulturreligion é profundamente imperialista e racista,
o seu individualismo visa um contexto organicista (família, povo, terra, etc.)
e não a independência e os direitos da pessoa singular.

Os dois principais aspectos do antimodernismo idealista - a recusa da vida


urbana e um acentuado missionarismo cultural - estão igualmente no centro
dum livro publicado em 1890 que teve, no mesmo ano, trinta reedições e que
atinge, em 1936, a sua 85.ª edição. Rembrandt als Erzieher do historiador da
arte Julius Langbehn foi um bestseller que preparou o autoritarismo e a ideolo-
gia do Blut und Boden ao recusar o espírito progressista do século e ao exigir a
«descoberta» do ser humano, deformado pela ciência e pela pseudo-cultura:

Ueberkultur ist thatsachlich noch roher, ais Unkultur. Hier haben also
etwaige neue erzieherische Faktoren einzusetzen, und zwar werden sie
gerade entgegengesetzt wirken müssen, wie die bisherige oder gewõhnliche
Erziehung: das Volk muB nicht von der Natur weg-, sondem zu ihr
zurückerzogen werden. (Langbehn 1890: 3)

289
O regresso à natureza concretiza-se na evocação da essência do povo alemão
e na reforma da sua educação. O novo ideal é uma mistura de arcaísmos
germanizantes e de uma valorização da arte como educadora nacional. «Der
deutsche Mensch sei individuell künstlerisch philosophisch synthetisch
glaubig frei!», por um lado, e por outro: «Aus bauerlicher Wurzel muB sich
der künftige innere Aristokratismus der Deutschen entwickeln» (ib.: 279).

Nesta perspectiva, Langbehn propaga um «idealismo corporal», um novo


ascetismo que inspira os princípios básicos da Jugendbewegung:

Besonders sollten die Letzteren [die jetzigen Deutschen] darauf sehen,


ihre Korper nicht durch Biertrinken allzu sehr aufzuschwemmen; die
zahllosen Wirthshauser konnten sonst für die Volksgesundheit leicht Das
bedeuten, was Bacillenherde für die Gesundheit des Einzelnen sind; schon
einmal, in der Zeit unmittelbar vor dem dreiJ3igjahrigen Kriege, haben die
Deutschen ihren Geist und ihren Kõrper in vielem Biere erstickt. (ib.: 297)

Ao atribuir uma «tendência centrífuga» ao carácter alemão, Langbehn jus-


tifica a irradiação mundial da arte e cultura alemãs; a Alemanha devia
praticar uma política a nível da humanidade inteira:

Der Deutsche beherrscht also, als Aristokrat, bereits Europa; und er


beherrscht, als Demokrat, auch Amerika; es wird vielleicht nicht lange
dauern biser, als Mensch, die ganze Welt beherrscht. (ib.: 223)

Langbehn insiste ainda no carácter pacífico desta missão alemã cujas pre-
tensões são, no contexto internacional da época, completamente irrealistas:

Die Deutschen sind bestimmt, den Ade! der Welt darzustellen. Deutsch-
lands Weltherrschaft kann nur eine innerliche sein; wie auch sein Aristo-
kratismus nur ein innerlicher sein kann; aber beide werden sich trotzdem
auBerlich bethatigen und geltend machen müssen. (ib.: 223)

A contradição evidente deste pangermanismo aparece, depois, na afirmação


segundo a qual a hegemonia mundial alemã deve ser garantida no plano
político e espiritual por uma forte disposição para a guerra e uma verda-
deira inclinação artística. As numerosas referências a Goethe e às figuras
emblemáticas do idealismo alemão como Fichte e Beethoven, a ideia dum
«Volksorganismus», que deve rejeitar todos os elementos estrangeiros (da
democracia e ciência às manifestações da vida urbana moderna), e a ideia do
alemão como sacerdote duma humanidade superior (ib.: 281) mostram já a
aliança eficaz entre tradicionalismo e reformismo radical que o nacional-
socialismo virá a condensar no seu próprio nome.

Assim, o socialismo nacional - e racista - já aparece no ideário dum


conjunto de movimentos e grupos que Jost Hermand designa por «fortschritt-
liche Reaktion» (Hamann/Hermand 1973: 26 e segs.). Livros como Die

290
weltgeschichtliche Bedeutung des deutschen Geistes (1914) de Rudolf
Eucken, Deutschland als Welterzieher ( 1915) de Joseph August Luxe ainda
Das dritte Reich ( 1923) de Moeller van den Bruck, dirigido igualmente contra
o comunismo proletário e o liberalismo burguês, caracterizam esta tendência
progressista e reaccionária. À insistência de Langbehn numa « Volkser-
ziehung» generalizada corresponde um aumento considerável do interesse
público por questões educativas; no fim-de-século, publicam-se na Alema-
nha mais de 400 revistas e jornais pedagógicos que se orientam cada vez
mais no sentido do missionarismo alemão (Hamann/Hermand 1973: 86-87).

A síntese dos dois movimentos ideológicos mais importantes do século XIX


- nacionalismo e socialismo-, explica a grande popularidade do fascismo
hitleriano. A ideia dum socialismo nacional (ao contrário do socialismo
proletário cosmopolita), já bastante corrente na época guilhermina, integra
os ressentimentos anti-capitalistas e as nostalgias organicistas oitocentistas.
Ao conciliar uma modernização diferente das práticas capitalistas e uma
necessidade elementar de ordem e estabilidade P?líticas, o nacional-
-socialismo instrumentaliza um conjunto de mitos e apreensões que tinham
marcado profundamente a memória colectiva alemã.

A efervescência de movimentos reformistas e escapistas nas duas décadas


que antecedem a Primeira Guerra Mundial deve-se a uma constelação sócio-
-política específica. Enquanto as elites guilherminas praticam um naciona-
lismo exagerado, o proletariado e a social-democracia orientam-se pelos
valores culturais tradicionais, tal como a educação e a aquisição de saberes
(Wissen ist Macht). Assim, as camadas burguesas progressistas encon-
tram-se, desde 1871, numa dupla oposição às elites e aos operários. Na base
da sua crescente importância económica e social, a burguesia começa, no
entanto, a exigir a liderança em todos os domínios da vida pública.

Esta oposição burguesa manifesta-se em duas tendências dominantes, uma


reaccionária, que propaga formas de vida e organização política tradicio-
nais, e outra progressista, que tenta integrar a industrialização e as estrutu-
ras reformistas. Todos estes movimentos, porém, acabam por sofrer, a partir
de 1910, as consequências do irracionalismo e imperialismo guilhermino
que culmina no entusiasmo belicista do mês de Agosto de 1914 (início da
Primeira Guerra Mundial).

Segundo o historiador Mommsen, os factores culturais tiveram uma influência


decisiva nas correntes nacionalistas que levaram a um imperialismo agressivo,
tal como estas correntes determinaram, por outro lado, atitudes culturais e
ideais estéticos (Mommsen 1996: 1 e segs.):

Nicht nur im Deutschen Reich sahen die Bildungseliten den Ersten


Weltkrieg von Anbeginn als einen Krieg an, der über die künftige Gestaltung

291
der europaischen Kultur entscheiden werde. ln der Wahmehmung der
Zeitgenossen war der Erste Weltkrieg auch, und zuweilen vomehmlich,
ein Krieg der Kulturen. Die breite Unterstützung der Kriegsführung durch
die Bildungsschichten, wie sie sich nahezu unterschiedslos in allen euro-
paischen Machten findet , speiste sich gutenteils aus solchen Quellen.

Baseado na distinção entre cultura (alemã) e civilização (capital ista e indus-


trial nos outros países ocidentais) (cf. Cap. II.1 ), as elites intelectuais e
artísticas estavam convencidas de dever defender, até com meios militares,
uma cultura autêntica contra uma sociedade moderna massificada. A pers-
pectiva duma guerra já era antes de 1914 considerada como uma inevitável
renovação vital da cultura nacional alemã. Sobretudo nos primeiros meses
da guerra, prevalece um entusiasmo catártico que, no dizer de Anz, liberta
«ein neues, unerhortes Sinnpotential kultureller, nationaler, ja menschheitli-
cher Reichweite» (Anz 1996: 238). Neste sentido, a glorificação da guerra é
um resultado paradoxal da rápida modernização da Alemanha:

Die literarische Kriegsmetaphorikjener Jahre war Ausdruck eines kollek-


tiven Unbehagens an zivilisatorischen Modemisierungsprozessen, die sich
in Deutschland seit der Reichsgründung rapide beschleunigt hatten.
Anomische Erfahrungen der Sinnleere, Motivationslosigkeit, Langeweile
und Beengung schlugen um in einen zerstõrerischen Hunger nach Vitalitat,
Aktivitat und Abenteuer. (ib. : 237)

Com as raras excepções de, por exemplo autores como Hermann Hesse ( 1877-
-1962) e revistas do expressionismo como Die Aktion de Franz Pfemfert
(1879-1954), as vanguardas artísticas e as ciências sociais (Georg Simmel,
Werner Sombart) justificaram e enalteceram a guerra em nome da renova-
ção da cultura.

3.5 Movimentos reformistas e vanguarda artística

Na perspectiva da Primeira Guerra Mundial , a história cultural da época


guilhermina evidencia, apesar da sua diversidade e complexidade, uma
oposição à sociedade moderna e materialista que se revela tão produtiva
como impotente. Enquanto as tendências revivalistas (Historismus) cor-
respondem às necessidades de representação das elites imperiais, a ten-
dência centrífuga reforça-se nas vanguardas artísticas e nos movimentos
reformadores, principalmente na Jugendbewegung e no esoterismo de ten-
dências orientais. Estes movimentos recrutam-se tanto na esquerda revolu-
cionária como na direita conservadora; politicamente ambivalentes, con-
vergem, porém, na procura duma nova simplicidade e cri atividade e na
crítica das normas tradicionais e do patriotismo guilhermino.

292
O movimento da juventude, concentrado no Wandervogel, começa em 1890
com as primeiras excursões nas regiões montanhosas; os jovens deslocam-
-se a pé, dormem em tendas e alimentam-se de uma forma simples. Esta
«vita nova» é tão frugal como sentimental; a música e a dança populares e a
apreciação da natureza pré-industrial fazem parte do ambiente destas
excursões. Ainda cosmopolita nos seus inícios, o Wandervogel integra
rapidamente rituais militares e tradições nacionalistas. As canções do movi-
mento, que conta em 1911/1912 cerca de 1200 membros, são reunidas no
Zupfgeigenhansel (1908), que vai ter, ao longo dos anos, uma série de tira-
gens com mais de um milhão de exemplares. O movimento perece na Pri-
meira Guerra Mundial, mas os seus rituais mantêm-se nas organizações de
juventude na República de Weimar e na juventude hitleriana que recupera e
perverte os ideais contestatários do Wandervogel.

Uma socialista alemã lembra a sua participação no Wandervogel nos termos


seguintes:

Zu Beginn wurde ich wohl nur von der Naturschwarmerei angezogen und
von der Lust des jungen Menschen am gemeinsamen Erlebnis, bald spürte
ich jedoch, ohne es noch richtig zu erfassen, daB es um Entscheidenderes
ging als nur um Wandem und Lagerfeuerromantik. Soweit diese Verbande
überhaupt eine klares Programm besaBen, war einer ihrer wesentlichen
Punkte der Kampf gegen die erstarrten Formen der bürgerlichen Gesell-
schaft und gegen das Diktat der Erwachsenen in Schule und Eltemhaus.
(Ritter/Kocka 1982: 426)

À volta de 1900 organizam-se também as primeiras colónias de artistas


(Worpswede, a partir de 1889, a Mathildenhõhe em Darmstadt, Dachau)
e as comunidades da chamada Lebensreformbewegung na Alemanha e na
Suíça (Monte Verita). Estas comunidades propagam o nudismo (FKK
- Freie Korper-Kultur) e a alimentação vegetariana, recusam o álcool e o
tabaco (como já o Wandervogel). A fuga à vida citadina e à civilização
moderna em geral favoreceu o aparecimento de comunidades rurais; uma
das mais conhecidas, a Obstbaukolonie «Eden» perto de Oranienburg pro-
duzia alimentos vegetarianos numa base ecológica e visava uma reforma
geral da vida, incluindo uma distribuição mais justa do solo e uma organiza-
ção mais humana da estrutura social. O modelo da Gartenstadt, que inte-
gra trabalho, cultura e natureza num ambiente harmonioso e estimulante,
influenciará durante todo o século as orientações duma arquitectura que
trabalha com formas e valores tradicionais e modernos.

A comunidade de Monte Verita em Ascona, fundada em 1900, tornou-se


lendária, durante duas décadas, atraindo não só escritores, pintores e músi-
cos, mas também cientistas, médicos e industriais. Num convívio caótico e
estimulante, discutiam-se as grandes questões da época. O anarquismo

293
individualista e o esoterismo ecléctico desta comunidade são represen-
tativos da primeira fase dos movimentos contestatários que, depois de
1918, se organizam cada vez mais segundo critérios ideológicos e religiosos.

A contestação social durante a última fase do império guilhermino reflecte-


-se também nas vanguardas artísticas que procuram novas fontes de inspira-
ção e uma linguagem formal diferente.

Os dois grupos artísticos que revolucionaram a pintura alemã datam ainda


de antes da Primeira Guerra. Em 1905, juntaram-se em Dresden quatro
jovens pintores para formar aBrücke (1905-1913) que, ao continuar o caminho
de van Gogh, Gauguin e dos Fauves em França, desenvolveram um expres-
sionismo alemão. Karl Schmidt-Rottluff (1884-1976), Erich Heckel (1883-
-1970), Ludwig Kirchner (1880-1938) e, mais tarde, Emil Nolde (1867-
-1956) e Max Pechstein ( 1881-1959) eram os principais membros do grupo que
se reorganizou em Berlim, em 1910, sob o nome deNeue Sezession, incluindo
agora também Otto Mueller (1874-1930). Com designações idênticas,
estabeleceram-se outros grupos de artistas nas grandes cidades, sendo uma
das mais antigas e mais conhecidas a Wiener Sezession fundada em 1897.

No centro do famoso Blaue Reiter de Munique, está a amizade entre o russo


Wassily Kandinsky (1866-1944) e Franz Marc (1880-1916). August Macke
(1887-1914), Gabriele Münter (1877-1962), Alexej Jawlensky (1864-1914)
e Paul Klee ( 1879-1940) completaram o grupo que, em poucos anos ,
desenvolveu uma actividade artística cuja intensidade e qualidade
impressionam ainda hoje. O programa e as ideias do grupo são fixados num
anuário com o mesmo título, Der Blaue Reiter (1912), que proclama a
importância da arte no contexto duma nova religião espiritual.

Contrariamente aos pintores da Brücke, os membros do Blaue Reiter insis-


tem na dimensão espiritual da arte. Kandinsky, que evoluiu até à arte abstracta,
publica em 1912 um livro chamado Das Geistige in der Kunst e proclama a
autonomia de formas e cores e a liberdade ilimitada do artista na escolha dos
seus meios. Atribuindo um carácter cósmico à obra de arte, Kandinsky aspira
a uma pintura absoluta.

Nesta perspectiva, Paul Klee que integrou mais tarde o Bauhaus (cf. Cap.
IV.4.6.1 ), escreve em 1920 a frase programática: «Kunst gibt nicht das
Sichtbare wieder, sondem macht sichtbar». Tal como a terra, a arte é um
símbolo, uma parábola de verdades cósmicas latentes: «Die Kunst spielt mit
den letzten Dingen ein unwissend Spiel und erreicht sie doch!» (Klee 1976:
118-122).

Uma série de revistas novas trabalham igualmente neste sentido: Ver Sacrum
(1898-1903) em Viena, a Jugend (1896-1940) em Muni9ue, a Insel (1899-

294
-1900) em Leipzig e Pan (1895-1900) em Munique e Berlim. Estas revistas
revolucionaram a arte gráfica ao experimentar novas correspondências entre
texto, imagem e formatação, alcançando uma qualidade técnica e estética
que poucas publicações posteriores conseguiram repetir.

Esta intensa actividade artística na véspera da Primeira Guerra Mundial


incluiu também a música (Arnold Schõnberg, 187 4-1951, Alban Berg, 1885-
-1935) e a arquitectura (Adolf Loos, 1870-1933); a nova estética engloba,
como no Jugendstil, todos os domínios da vida cultural no ideal da obra de
arte total (Gesamtkunstwerk), da Allgemeinkunst, na base da interdependên-
cia das artes. De facto, muitos artistas desta geração excelaram em vários
campos artísticos (cf. Hepp 1992: 129-130).

Uma outra revista importante para a arte nova e a literatura de vanguarda, o


Sturm fundado por Herwarth Walden (1878-1941) em 1910, e a respectiva
galeria, que provocou, em 1913, um escândalo com a sua primeira grande
exposição de arte moderna internacional, divulgavam tanto o expressionismo
como o futurismo, o construtivismo e o Dada. Para o jovem Oskar Kokoschka
(1886-1980), a colaboração no Sturm era a confirmação da sua vocação.
Gravemente ferido em 1916, o pintor torna-se pacifista e declara: «Bitte mit
dem Weltkrieg aufhõren, ich mõchte arbeiten» (apudMommsen 1996: 14n.).

A visão duma nova Allgemeinkunst, liberta dos ornamentos do historismo,


está também na base dum movimento com vista a reformar as artes aplicadas
e decorativas. Em 1906, a Dritte allgemeine deutsche Kunstgewerbeausstel-
lung em Dresden mostra duma maneira programática as novas ideias duma
cultura integrativa que ignora a separação tradicional entre artes livres e
artes aplicadas. Um ano depois, é fundado o Deutscher Werkbund, que, ao
contrário do movimento anti-modernista inglês Arts-and-Crafts (inspirado
por William Morris), tenta integrar, num alto nível qualitativo, produção
artística, artesanal e industrial na perspectiva duma renovação ética e
estética da cultura alemã. O Werkbund concilia uma mística da natureza,
um patriotismo missionário com um pragmatismo técnico na concepção e
produção de artefactos, móveis e casas. Richard Riemerschmid ( 1868-1957),
cujo quadro Garten Eden de 1897 se tornou num ícone do movimento
reformista, apresenta dez anos depois, com móveis de madeira simples e
sólidos, um Maschinenmobelprogramm; o arquitecto Peter Behrens (1868-
-1940) tornou-se, com o seu trabalho na AEG a partir de 1907, o primeiro
designer alemão.

O Werkbund conseguiu estabelecer uma intensa cooperação entre os seus


membros e a indústria; as suas exposições mostraram e popularizaram os
respectivos produtos, e a sensibilidade dos consumidores e decoradores para
a qualidade e o aspecto estético das mercadorias foi desenvolvida em cursos
específicos.

295
Um dos projectos mais espectaculares do Werkbundfoi aGartenstadt Hellerau
perto de Dresden , uma síntese das tendências de reforma social e cultural na
tentativa de conciliar trabalho e vida num contexto humano e natural. Um
centro cultural apresentava as manifestações mais variadas da arte moderna
que atraíam visitantes como Paul Claudel, Franz Kafka e Martin Buber.
Depois da guerra, o Werkbund privilegiou a técnica industrial e o fun-
cionalismo formal, como na Weij]enhof-Siedlung em Stuttgart (1927).

Embora maioritariamente apolítico, o Werkbund transformou-se logo em


1933 numa associação nacional-socialista, o Kampjbund Deutsche Kultur.
Os membros da vanguarda artística que haviam optado então pela oposição
vêem-se reduzidos ao silêncio ou à emigração. Aliás, um dos movimentos
mais radicais, Dada, surgira em 1916, em plena guerra, quando fora fundado
em Zurique o Cabaret Voltaire. Ponto de encontro de refugiados, desertores
e pacifistas, o Cabaret torna-se no palco duma revolta artística que visa as
bases da sociedade burguesa. Os membros tentam por todos os meios pro-
vocar e desconstruir a arte e as normas tradicionais, experimentando novas
formas e técnicas e ostentando uma maneira diferente de viver. O movi-
mento, que se espalhou depois do fim da guerra na Alemanha e conquis-
tou também Paris e Nova Iorque, influenciou fortemente o surrealismo francês
e, duma maneira geral , todo o desconstrutivismo moderno.

Estes poucos exemplos já evidenciam a extrema diversidade dos movimen-


tos artísticos entre 1890 e 1914 e a subsequente polarização ideológica
que colocou o modernismo alemão e as vanguardas artísticas numa posi-
ção defensiva. A luta aberta do regime hitleriano contra o modernismo,
porém, não só contou com um largo apoio da população, como pôde tam-
bém legitimar-se com uma tradição anti-modernista que se tinha desenvol-
vido à margem da política cultural do Reich, já de si bastante conservadora.

A crítica cultural das últimas décadas do império é principalmente irracio-


nal e nacionalista. O idealismo alemão, que fora originalmente universalista
e cosmopolita, transforma-se, na segunda metade do século XIX, numa
ideologia nacional que assenta na ideia da cultura sagrada e superior duma
«raça» eleita. A modernização económica e política só pode, nesta pers-
pectiva, tomar dimensões negativas.

Esta mistura de aristocratismo cultural, conservadorismo político e misti-


cismo popular caracteriza tendências e movimentos bastante diversos do fim-
-de-século. Os aspectos compensatórios e os ressentimentos do escapismo
burguês resultam duma situação social concreta que leva à desvalorização
da civilização ocidental (cf. Cap. II.1 ), enquanto a cultura se transforma em
legitimação ideológica e ostentação decorativa. Por outro lado, a crítica
evidencia também os limites do racionalismo e os perigos da mitificação do
passado cultural alemão. Neste sentido, a «revolução conservadora» cujos

296
resíduos se fazem ainda sentir na Alemanha contemporânea, é uma fase
decisiva na própria dialéctica da Aujklarung; o irracionalismo social que
dominará os destinos da Alemanha até 1945 problematiza radicalmente o
papel da razão e da crítica numa fase avançada da modernidade.

Bibliografia aconselhada

Um apanhado sumário da época encontra-se em Gortemaker (1989), espe-


cialmente no cap. V (323-386); Hepp (1992) apresenta duma forma sucinta
os movimentos de contestação e de vanguarda artística, baseando-se, entre
outros, no estudo exaustivo de Hamann/Hermand (1973).

Actividades propostas

• Comentar o início do livro de Langbehn (1890: 1):


Es ist nachgerade zum õffentlichen GeheimniB geworden. daB das
geistige Leben des deutschen Volkes sich gegenwartig in einem
Zustande des langsamen, Einige meinen auch de~ rapiden Verfalls
befindet. Die Wissenschaft zerstiebt allseitig in Spezialismus; auf
dem Gebiet des Denkens wie der schonen Literatur fehlt es an
epochemachenden Individualitaten; die bildende Kunst, obwohl durch
bedeutende Meister vertreten, entbehrt doch der Monumentalitat und
damit ihrer besten Wirkung; Musiker sind selten, Musikanten zahllos.
DieArchitektur ist dieAchse der bildenden Kunst, wie die Philosophie
die Achse alles wissenschaftlichen Denkens ist; augenblicklich giebt
es aber weder eine deutsche Architektur noch eine deutsche Philo-
sophie. Die groBen Koryphaen auf den verschiedenen Gebieten sterben
aus; les rois s 'en vont. Das heutige Kunstgewerbe hat, auf seiner
stilistischen Hetzjagd, alle Zeiten und Võlker durchprobirt und ist
trotzdem oder gerade deshalb nicht zu einem eigenen Stil gelangt.
Ohne Frage spricht sich in allem diesem der demokratisirende
nivellirende atomisirende Geist des jetzigen Jahrhunderts aus.

• Comentar o excerto seguinte (Mommsen 1996: 268-269) sobre uma


reunião em Lauenstein ( 1917) onde se discutem as possibilidades
duma nova cultura espiritual (Geisteskultur). Nesta perspectiva, um
dos oradores defende a aliança entre o estado, a burocracia prussiana
e o «espírito» alemão.

Seiner Auffassung nach ist der Staat das oberste Prinzip. Volk und
Nation sind seine Geschõpfe. Die Überwindung kapitalistischer

297
(

Mechanisierung und des Materialismos des politischen Kampfes ist


nur durch groBtmogliche Starkung des idealistischen deutschen Staates
moglich, für den er eine Art Partei der Geistigen schaffen will. Er
glaubt, daB der dem Staat hingegebene Mensch der künftige Mensch-
heitstyp ist, der allein nicht veraltet sei, und an dem kurz gesagt, die
Welt genesen werde. Dieses Weltbild erklart Maurenbrecher schon in
den deutschen Klassikern insbesondere Fichte, und Hegel, Humboldt
(wohl nur dem spateren), Goethe und Schiller zu finden, wenn man
ihren Humanitatsbegriff richtig verstehe. Der Weltkrieg ist ihm der
Opfer wert, wenn der deutsche klassische Staatsgedanke sich zu
erhalten vermag.

A. O.

298
4. Os Anos Vinte
Resumo

Enquadra-se a República de Weimar no contexto histórico alemão e inter-


nacional, na sequência da nova ordem decorrente da Revolução de Outubro
e da I Guerra Mundial. Indicam-se os principais acontecimentos que
caracterizam o período a nível político e social. Referem-se as transformações
a nível dos modernos meios de comunicação de massas, com particular ênfase
para o cinema, destacam-se as importantes alterações introduzidas pela Escola
do Bauhaus, no domínio da arquitectura e do design.

Objectivos

• Enquadrar os acontecimentos relacionados com o período entre as


duas guerras mundiais no contexto da história contemporânea do
espaço de expressão cultural aleinã.

• Distinguir as diversas fases da República de Weimar, tendo em


consideração o jogo de forças sociais e políticas suas contemporâneas,
quer a nível nacional, quer internacional.

• Articular os acontecimentos políticos e sociais com as transformações


tecnológicas no campo dos modernos meios de comunicação de
massas (cinema, rádio) e com as vanguardas artísticas.

301
4.1 Entre o Leste e Oeste: O regresso da Kultur

Num célebre ensaio, Betrachtungen eines Unpolitischen (Mann 1956,


cf. Cap. 11.1), escrito durante a primeira guerra mundial, Thomas Mann uti-
liza um estilo particularmente contundente e inesperadamente primário
para, num jogo de oposições simplista, opor a Kultur alemã à Zivilisation
francesa.

Tudo aquilo que pode ser associado a exterioridade, a superficialidade, a


falso brilho é colocado do lado da Zivilisation, que não representa, além do
mais, a verdadeira liberdade, mas apenas consagra o direito ao sufrágio.
A Zivilisation desconhece a verdadeira humanidade, pesem embora todas as
proclamações de fraternidade no campo político, campo esse que mais não é
que um momento desse mundo puramente aparente que, não só a França,
como toda a Europa ocidental protagonizam.

A verdade, poder-se-ia ainda dizer, seguindo a lógica do jogo de oposições


de Thomas Mann, encontra-se do lado daKultur, que a germanidade encarna
por excelência. Representa, além do verdadeiro espírito humanista de uma
tradição burguesa, na qual o autor se filia- apelando às suas raízes burguesas
na cidade de Lübeck - , tudo o que de positivo existe nessa tradição: não só
a «verdadeira» liberdade, a «verdadeira» profundidade, como a «verdadeira»
arte, arte essa que não pode ser reduzida à tagarelice dos literatos de café
que, distraídos, ouvindo apenas o rumor em seu redor, se alienam da sua
interioridade, se vendem ao público ou a uma causa política, traindo a sua
«essência alemã».

Para além das implicações que este texto tem para uma caracterização da
evolução de Thomas Mann, o posicionamento do autor dos Buddenbrooks
(1901, obra a que, sobretudo, deve o Prémio Nobel) retoma um conjunto de
oposições que são paradigmáticas da história da Alemanha sua contem-
porânea.

O texto faz parte de uma série de tomadas de posição enunciadas por inú-
meros intelectuais alemães, em vésperas e no decurso da primeira guerra
mundial. As oposições que Thomas Mann fixa - e que Oswald Spengler
também utilizara em Der Untergang des Abendlandes (Spengler 1972)
- correspondem a um entendimento particular da identidade alemã e da sua
vocação de pendor fundamentalmente essencialista e isolacionista. A «alma»,
a «cultura», o «Homem alemão» representam toda uma série de valores
positivos, a saber a verdade face à aparência e à impostura de um Ocidente
cada vez mais artificial, exterior a si mesmo.

Este isolacionismo, como consequência fatal de uma vocação específica da


«essência» ou da «cultura» alemãs, ecoava de resto no diário de Thomas

303
Mann, onde, já em 1911, o mesmo citava o escritor suíço Jakob Schaffner
( 1875-1944), mais tarde conhecido pelas suas simpatias nacional-socialistas:

Der deutsche Mensch weiB im tiefsten Grunde seiner Seele, daB seine
Eigenart in der Welt niemals verstanden u. geduldet sein wird, die deutsche
Nation muB im Gegensatz zur Welt existieren oder sie muB aufhoren, ais
solche zu existieren. (apud Mann 1979: 102-103)

Reencontramos aqui não só muitos dos estereótipos que os alemães culti-


varam em relação a si mesmos , como muitos dos que ainda persistem no
estrangeiro, embora por vezes com carga negativa, e que conheceriam
redobrado vigor, depois de 1945, para reaparecerem na sequência da uni-
ficação em 1990. Se bem que com sinais contrários, a «via específica»
(Sonderweg) da Alemanha, como alteridade seja respeitada seja temida, é
renovadamente sublinhada.

Se a Alemanha teve ou não uma «via específica» ou se de facto foi ou não,


sobretudo, uma Kulturnation, não compete aqui decidir ( ver sobre a questão
o Cap. IV.2), mas tão só apontar para o facto de que a ideia de uma parti-
cularidade alemã existiu e existe.

A mesma já ecoa nos Discursos à nação alemã de Fichte, onde se celebra


uma germanidade essencial e profunda, baseada numa língua pura e, por
isso, viva, por oposição à latinidade (àZivilisation), que se funda numa língua
derivada, separada das suas raízes, contaminada por estrangeirismos que a
falsificam e tomam, consequentemente, acessória e morta (cf. Cap. 111.1).
De certa forma é esta oposição que reencontramos no aludido texto de
Thomas Mann, passados cerca de cem anos, sublinhando agora, em condi-
ções diferentes, a necessidade de a Alemanha se isolar, se se quiser manter
fiel a si própria.

Contudo, este isolamento em breve deixaria de equivaler à tentativa de pre-


servar uma identidade cultural, a partir da qual se sonhava uma união polí-
tica, como sucedera com Fichte em Berlim, invectivando contra a França
napoleónica. Com o fim da guerra e a derrota alemã em 1918, não só se
punha cobro ao primeiro grande sonho da Alemanha imperialista, como
terminava o II Reich de recente fundação (1871 ), soçobrando simultanea-
mente outra reminiscência de um passado germânico mais antigo e mais
glorioso, o Império dos Habsburgos.

Era a derrota de duas ideias possíveis de Alemanha que então terminava,


bem como a capitulação de uma recém-consagrada potência, não só perante
as clássicas rivais europeias - a França e a Grã-Bretanha-, mas também
face a um novo inimigo, herdeiro dos valores da Europa ocidental, contra a
qual a identidade alemã se tentara também afirmar no decurso do conflito, a
saber, os Estados Unidos da América, que, pela primeira vez, invertiam o

304
jogo de acontecimentos e de interesses no Velho Continente. E um antigo
adversário manifestava-se agora sob novas roupagens, ameaçando subverter
a antiga ordem europeia, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a
acenar com novos modelos e a construção de uma utopia ainda mais radical
que a que a França ousara em 1789.

Não só a Alemanha, como o mundo, eram obrigados a repensar estraté-


gias, a redefinir opções económicas, políticas e sociais, face aos acon-
tecimentos ocorridos nesse princípio de século. Mas, enquanto potência
derrotada, a Alemanha via-se confrontada com uma situação particular,
se se tomar em consideração as providências previstas no Tratado de
Versalhes.

Este fora assinado, sob pressão dos aliados vencedores, a 26 de Junho de


1919, determinando a cedência da Alsácia e da Lorena, de Posnan, da
Prússia Oriental e de outras regiões, devendo ainda a Alemanha renun-
ciar a quaisquer direitos no estrangeiro, bem como às suas colónias. O Tra-
tado exigia ainda o desarmamento da Alemanha, a cedência de todo o
material bélico e estipulava graves reparações de guerra, com pesadas con-
sequências para a indústria alemã. Os territórios da margem esquerda do
Reno foram ocupados e divididos em três zonas, a fim de garantir o
cumprimento do acordo. As dívidas da Alemanha elevavam-se a 269 mil
milhões de marcos, que deveriam ser pagos em 42 prestações anuais,
embora o montante viesse a ser reduzido, sob pressão inglesa e francesa,
para 132, na Conferência de Londres (1921 ). Seguir-se-lhe-ia o Plano
Dawes (1924), que regulamentava as reparações e concedia um empréstimo
de 800 mil milhões de marcos, a que em 1930 se sucederia o Plano Young,
cujas concessões já não surtiriam quaisquer efeitos, dada a situação catas-
trófica da economia alemã. Em 1932, a conferência de Lausanne encerrava
a questão das reparações de guerra, sendo a dívida perdoada.

Perante estes factos, acrescidos da difícil conjuntura internacional,


sobretudo nos anos 20, a que nem os EUA ficariam incólumes, pode-se
registar a precariedade da situação económica e financeira da Alemanha
durante a República de Weimar, com um pequeno e ilusório oásis de
prosperidade entre 1925 e 1929/1930, na sequência do referido Plano
Dawes e dos empréstimos internacionais. O certo é que este período se
encontra rodeado de anos de choque e de caos, de desemprego e de terror
político.

A capitulação da Alemanha será vista como uma catástrofe a nível econó-


mico, é certo, sendo a maioria da população por ela atingida, mas a derrota
será, sobretudo, sentida como desonra, manifestando-se, deste modo, o
orgulho ferido de uma «nação atrasada», que só recentemente tivera ocasião
de resolver, de forma autoritária (pelo ferro e pelo sangue, como o afirmou

305
Bismarck) e sob hegemonia prussiana, o problema da criação de uma nação
política.

Oscilando entre a revolta social da esquerda, inspirada em parte pelos con-


selhos de operários e de soldados da União Soviética (como foi o caso da
USPD - Unabhiingige Sozialdemokratische Fartei Deutschlands- e da Liga
Spartakus, o futuro partido comunista alemão, KPD-Kommunistische Fartei
Deutschlands) e o radicalismo de direita, durante os breves anos desta efémera
República, a Alemanha ver-se-á dividida entre duas soluções radicais, que
pouco espaço darão para a normalização de uma vida parlamentar, cuja expe-
riência começava a ensaiar. A representação dos cidadãos pelos seus deputados
eleitos, a consagração da divisão dos poderes serão sentidas como uma con-
sequência da derrota e da perda da autonomia nacional de uma colectividade
que apenas começara a tomar consciência da sua unidade política.

Assim, a tradição prussiana, no seu autoritarismo e consequente recusa de


um debate político efectivo através de orgãos constitucionalmente instituí-
dos , ressurgirá quer na desconfiança perante o parlamento por parte dos
partidos conservadores, quer no terrorismo dos Freikorps. Estes eram
constituídos por grupos de voluntários , saídos do exército - cujo papel de
intervenção lhes fora inicial e ironicamente atribuído pelo SPD, na sua
urgência de defender a via parlamentar contra a solução radical da esquerda
revolucionária-, grupos esses que gradualmente ressuscitariam um heroísmo
que a derrota na guerra não lhes permitira levar a cabo. Simultaneamente, as
elites militares mantinham o seu poder, pesem embora todas as humilhações
infligidas pelos vencedores.

Por sua vez, grande parte da classe operária e a esquerda revolucionária


encaravam o exemplo soviético como um estado de excepção a seguir, vendo
com su speita a estratégia de moderação e de capitulação dos sociais-
-democratas perante a tradicional aliança entre a aristocracia - com con-
siderável representação entre a administração estatal e as forças armadas
- e a alta burguesia.

Contudo, outra grande parte da classe operária parecia apoiar esta estratégia
reformista, se bem que um vasto número de trabalhadores visse com graves
reservas esta política de alianças. Foi assim que a República conheceu os
seus primeiros grandes sobressaltos. Mesmo o compromisso de tentar fazer
coexistir a democracia directa dos conselhos revolucionários com a repre-
sentação parlamentar não viria a ser consagrado, interrogando-se os histo-
riadores sobre a possibilidade de a Alemanha ter podido mais uma vez
encetar uma «via específica». Esta via era agora destruída por uma corre-
lação de forças em tudo desfavorável a esta mediação, embora outras leitu-
ras defendam a inevitabilidade do choque entre duas concepções que se
excluíam necessariamente uma à outra.

306
Assim, a República de Weimar, fundada à sombra da herança de Goethe e de
Schiller e do seu humanismo clássico, dificilmente encontrou eco na
população em geral, mesmo na maioria mais silenciosa que passou a associar
o parlamentarismo à derrota e à crise económica e social, ansiando intima-
mente por um poder musculado e paternalista que gerisse a crise, como o
viria a confirmar a ascensão, por via eleitoral, de Adolf Hitler ( 1889-1945)
ao poder e o consentimento prestado às medidas crescentemente demagó-
gicas e autoritárias. Assim a Zivilisation e a sua tradição política democrá-
tica eram contestadas à direita e à esquerda, em nome de uma Kultur, de urna
herança ou de um futuro que se adivinhava apenas a Leste.

Deste modo a posição de Thomas Mann em Betrachtungen eines Unpoliti-


schen (1918), que o escritor temperaria de resto, após a consagração do
novo regime republicano em Von deutscher Republik (1922), evoca essa
oposição entre a Alemanha e «os outros», entre a democracia ocidental e a
«via específica» daKulturnation, entre o Ocidente e o Oriente, entre os EUA
e a URSS, reflectindo, sobretudo, essas posições a polarização entre os grupos
activos que, no seu radicalismo, recusavam qualquer solução que levasse à
normalização da jovem república.

Entre estes dois extremos uma população descontente, mas sem empenho
político, vivendo o desespero provocado, quer pela precária situação eco-
nómica, quer pelos traumas e dramas quotidianos e pessoais da guerra perdida,
aguardava, passiva, uma solução.

Não será de estranhar que o livro de Erich Maria Remarque ( 1898-1970),


Im Westen nichts Neues (1929), descrevendo os horrores de uma luta sem
finalidade, tenha constituído um best-seller numa sociedade em que a lite-
ratura ia sendo cada vez mais submetida às regras do mercado.

Mas esse anti-belicismo tardaria em manifestar-se cívicamente e as frustra-


ções da guerra e da derrota seriam instrumentalizadas pelo regime totalitário
que, tendo proibido o referido romance, conduziria essa mesma população
abstencionista a uma nova guerra, porventura, ainda mais devastadora.

4.2 O pós-guerra e as tensões sociais: o exemplo soviético e a


democracia ocidental

Recorde-se que o regime parlamentar não constituiu o resultado de uma impo-


sição ou conquista popular, mas foi consequência de uma situação extrema.

No estado de sítio que antecedeu a derrota, assiste-se, a 20 de Outubro de


1918, à revolta da marinha alemã, alastrando a rebelião aos operários e

307
soldados que passam a organizar-se em conselhos, seguindo o exemplo
soviético. O Imperador Guilherme II vê-se obrigado a renunciar ao trono,
sendo a República proclamada pelo social-democrata Philipp Scheidemann
( 1865-1939) e confiado o executivo ao Presidente do SPD, Friedrich Ebert
(1871-1925).

Em Novembro é criado um novo governo a cargo do Conselho de Comis-


sários do Povo (Rat der Volksbeauftragten), unindo representantes do SPD
(Sozialdemokratische Partei Deutschlands) e do USPD (Unabhangige
Sozialdemokratische Partei Deutschlands), surgindo paralelamente o
Conselho Executivo dos Conselhos dos Operários e Soldados. A escolha de
uma via que conciliasse os modelos parlamentar e revolucionário parecia
ainda possível.

Ainda no mesmo mês, a Alemanha aceita as condições de cessar-fogo


impostas pelos aliados, o mesmo sucedendo, algum tempo depois, com o
Império Austro-Húngaro que se dissolvera pouco antes, sob o impulso do
Presidente norte-americano Wilson, dando origem à nova ordem balcânica.

Recuando perante um modelo soviético que sentia cada vez mais iminente,
o Presidente do SPD e o sucessor de Ludendorff, o General Groener, firmam
um acordo que conduzirá à realização de eleições com vista à criação de
uma assembleia nacional, o que leva a que os representantes do USPD
abandonem o Conselho de Comissários do Povo. À sua esquerda, a Liga
Espartaquista transformar-se-á no KPD (Kommunistische Partei Deutsch-
lands), liderando a revolta espartaquista os seus dirigentes Karl Liebknecht
e RosaLuxemburg (1871-1919), que morrerão às mãos dosFreikorps, postos
ao serviço do regime parlamentar em construção.

Assim, quando em Fevereiro de 1919, o Parlamento inaugura os seus traba-


lhos em Weimar, este não pode ignorar a situação precária em que foi criado:
contestado à esquerda, apoiado por uma aliança problemática, defendido
por voluntários belicistas que se reconhecem, independentemente de vagas
concepções políticas, na obediência incondicional ao chefe, o desejo do novo
regime parlamentar de prosseguir uma via de normalização ver-se-á per-
manentemente confrontado tanto com a desconfiança do exército e da bur-
guesia nacionalista como com as pressões extremistas, quer da esquerda,
quer da direita, apesar do apoio tácito de uma população maioritária que,
contudo, se retrai de uma intervenção política activa.

A nova constituição é também uma constituição de compromisso, tendo à


sua cabeça um presidente dotado de poderes excessivos, como a evolução
nos anos 30 o virá a confirmar, e sendo composta por duas câmaras, o
Reichstag, com deputados eleitos nacionalmente, e o Reichsrat, órgão que
reúne os representantes dos Lander.

308
4.3 1923-1929/1930: a estabilidade emprestada ou a vitória da
Zivilisation?

Os anos entre 1919 e 1923 caracterizar-se-ão por uma débil situação eco-
nómica, a que acrescem as sublevações constantes. É o caso do Ruhr,
de Hamburgo e de Munique, onde é criada uma República de conselhos
revolucionários, rapidamente abolida, através de uma sangrenta intervenção
armada.

Entretanto, a extrema direita difunde o terror, através de sucessivos assas-


sinatos, entre os quais, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Walter Rathenau
( 1867-1922) em 1922, e empreende diversos golpes de estado (Kapp-Lüttwitz
Putsch 1920, Putsch da Schwarze Reichswehr 1923, Hitler-Putsch 1923).

Mas a República sobrevive com o apoio do SPD e do partido católico do


Zentrum, sob o olhar crescentemente céptico da burguesia nacionalista e sob
a desconfiança das elites militares. As coligações sucedem-se, a soberania
nacional vê-se novamente posta em perigo face à invasão do Ruhr pelas
tropas francesas e belgas, como forma de pressionar a Alemanha a pagar as
suas dívidas, a desordem eclode em Hamburgo e, em Munique, Hitler tenta
um golpe de Estado a 8 de Novembro de 1923. Na Baviera, no Reno e no
Palatinado as revoltas separatistas são dominadas, sendo finalmente a Grande
Coligação - liderada por Stresemann e integrando representantes do SPD,
do Zentrum, do DDP liberal (Deutsche Demokratische Partei) e do DVP
(Deutsche Volkspartei), igualmente liberal, mas situado mais à direita -
impossibilitada de prosseguir o seu trabalho face ao voto de desconfiança
dos sociais-democratas (1923), que vêem com maus olhos o tratamento
desigual dado às revoltas da extrema esquerda, na Saxónia, e da extrema
direita, na Baviera.

Contudo, Gustav Stresemann ( 1878-1929) conseguirá, agora como ministro


dos negócios estrangeiros do governo constituído após as eleições de 1924,
a normalização das relações internacionais, designadamente com a França.
Assim, o Ruhr é desocupado e a Alemanha consegue fazer-se representar na
Sociedade das Nações (1926). No ano seguinte, é posto termo ao controle
militar dos aliados sobre a Alemanha e, na Conferência de Haia, consegue-
-se uma solução provisória para os problemas de reparação, designadamente
através do Plano Young. Mas a extrema direita mantém-se atenta: Hitler
consegue uma aliança com o partido conservador DNVP (Deutsche
Nationalvolkspartei) para contestar, sem sucesso, esse apoio.

Os governos e as eleições sucedem-se, a crise acentua-se, a esquerda ganha


terreno, obtendo, nas eleições de 1928, 40% da totalidade dos mandatos no
parlamento. Contudo, as cisões entre os diversos partidos, nomeadamente
nos de esquerda não deixam de favorecer a ascensão da extrema direita.

309
4.4 1930-1933: o regresso da Kultur?

Com efeito, entre 1930 e 1933, assiste-se a uma evolução cada vez mais
favorável à radicalização e imposição do ideário nacional-socialista.
A situação surgia favorecida, por um lado, pelas deficiências da Constitui-
ção da República de Weimar - corrigidas, de resto, em 1949, na Lei Fun-
damental da RFA - por outro, pelo facto de, entre 1924 e 1929, o sucesso
da política externa de Stresemann não ter conseguido pôr cobro aos
conflitos sociais e a precariedade da situação económica só ter sido pro-
visoriamente ultrapassada. O desemprego mantinha-se como uma cons-
tante.

Por outro lado, com a ascensão de Hindenburg ao poder, um ano depois da


morte de Stresemann em 1929, a velha elite militar passara a obter um lugar
fundamental no controle dos acontecimentos. À queda do governo liderado
pelo último chanceler social-democrata Müller em 1930, sucede o governo
de Brüning, apoiado por Hindenburg a fim de fazer frente à esquerda
maioritária. Nas eleições de 1930, o SPD e o NSDAP (Nationalsozialistische
Deutsche Arbeiter-Partei), conhecem um aumento considerável de apoios
(24,5 e 18,3% respectivamente), mas a situação radicaliza-se, ganhando este
último as eleições de 1932 (37,3%) e aumentando os votos no KPD (16,9%
contra 13, 1 em 1930) em prejuízo do SPD (20,4% ), depois de, com o governo
de von Papen, a república se ter transformado num regime presidencial.

O facto de a Alemanha ter recuperado o crédito externo e de a questão das


reparações de guerra se ter entretanto resolvido definitivamente não evitava
o descrédito de sucessivos governos e o avanço da extrema direita.

Mas embora na sequência das eleições de Julho de 1932, o NSDAP tivesse


surgido como o partido eleitoral mais votado (37,3%, 230 deputados),
nas eleições subsequentes à crise política de Novembro do mesmo ano,
desce para 33,1 %: o número de deputados eleitos pelo SPD (121) e pelo
KPD ( 100) representam a maioria parlamentar contra os 196 mandatos do
NSDAP.

Em Janeiro de 1933, Hitler e von Papen acordam na formação de um governo,


ganhando o apoio de Hindenburg que aceita nomear Hitler Chanceler e
convocar novas eleições. A estas suceder-se-á o incêndio do Reichstag,
a 27 de Fevereiro de 1933, que servirá de pretexto para inúmeras persegui-
ções, designadamente aos comunistas - acusados pelos nacional-socialis-
tas de estarem na origem do mesmo. Os direitos fundamentais são suspen-
sos e, a pretexto da «protecção do povo», é declarado o estado de emergên-
cia, sendo o Parlamento encerrado a 23 de Março de 1933. Assim terminava
o primeiro regime parlamentar na Alemanha.

310
Ao escolher esta via, a Alemanha não optava por uma solução particular,
mas antes por uma solução semelhante à de outros estados europeus, desi-
gnadamente a do fascismo italiano (1929) , em cujo modelo os nacional-
-socialistas também se haviam inspirado, à semelhança de Portugal (cf.
Constituição de 1933) e da Espanha (1939). As SA (Sturmabteilung), em
breve substituídas pelas SS (Schutzstaffel), disseminavam o terror de um
regime em torno de um Führer que sabia dividir os seus correlegionários
para afirmar a sua omnipotência. Entre a adesão das massas , devidamente
manipuladas e o terror dos grupos nazis, a Alemanha abdicava da democra-
cia recentemente conquistada. Restava saber se prevaleciam os argumentos
a favor da Kultur ou da Zivilisation .

4.5 Para além do bem e do mal

Que os jogos de dicotomias raras ou nenhumas vezes correspondem à


realidade, mas constituem antes meras grelhas deficitárias para a apreciação
e construção fatalmente subjectivas da mesma provam-no as ambiguidades
da República de Weimar que o III Reich saberia instrumentalizar a sua
favor.

A sucessão dos acontecimentos mais marcantes, a incapacidade de a Repú-


blica constituída lidar com os radicalismos e, sobretudo, o desfecho do regime
parlamentar contribuiram para uma leitura do período em questão, pre-
dominantemente orientada para a trágica evolução depois de 1933.

Por um lado, há que reconhecer que a polarização social varria toda a


Europa, dividida entre o modelo soviético e o parlamentarismo tradicio-
nal. Por outro, há que recordar que a Alemanha, a «nação atrasada», não só
possuía uma importante indústria nacional, apesar de toda a crise do
pós-guerra, como se encontrava entre as nações tecnologicamente mais
desenvolvidas da Europa. Além disso, a sua classe trabalhadora possuía
uma das mais fortes e teoricamente mais bem apetrechadas organiza-
ções, o que leva a indagar da validade absoluta das teses que atribuem o
desfecho da República de Weimar ao atraso político da Alemanha, em
contraste com a industrialização da mesma. Saliente-se ainda que o
mundo e a Europa viram durante algum tempo o emergir do poder nacio-
nal-socialista de uma forma ambígua, não só como uma ameaça remota,
mas também como uma garantia de o mesmo constituir um tampão para
o «perigo bolchevique». O certo é que a Alemanha demonstraria a inca-
pacidade de normalizar a sua vida política e social entre as duas guer-
ras, levando apenas a derrota de 1945 à capitulação dos seus sonhos
excessivos.

311
Com efeito, a República de Weimar nasceu de uma situação de emergência,
terminando com outra ainda mais fatal para a identidade alemã. Também é
certo que essa situação de excepção, decorrente dos acontecimentos de 1918,
não pusera cobro a uma tradição que remontava à era bismarckiana e a uma
determinada maneira de entender a nação alemã, ou seja, à medida dos
interesses prussianos e da tradicional aliança entre a aristocracia e a alta
burguesia. Será essa aliança que ressurgirá nestes anos de república, em asso-
ciação com o reformismo de uma classe operária, habituada a contar com o
apoio do Estado, que lhe oferecia a segurança e alguma prosperidade a troco
de cedências no campo político e social.

Por outro lado, o ressentimento face às reparações de guerra não se justifi-


cava tanto como frequentemente se pretende. Para além da afirmação dos
interesses económicos e estratégicos das diversas nações vencedoras, as condi-
ções do Tratado de Versalhes não haviam posto em causa a soberania alemã
no seu essencial, como o comprova - ao contrário do que invocavam os
nacionalistas mais aguerridos - a evolução dos acontecimentos. Os aliados
não recusariam as tentativas de normalização da vida económica e política
alemã, pelo que finalmente, pouco antes da subida de Hitler ao poder, a
Alemanha se via novamente reconhecida como membro de pleno direito da
comunidade internacional, bem como cessavam as obrigações financeiras
que as reparações haviam implicado.

É certo que a crise económica foi avassaladora, mas a mesma foi extensiva a
outros países que, no entanto, se souberam abster de soluções totalitárias.
A Alemanha apenas constituía parcialmente um caso particular. Se é verdade
que a experiência parlamentar foi vista como um corpo estranho, uma solução
imposta pela força das circunstâncias ou avessa ao heroísmo que a derrota
abalara, também é verdade que a adesão ao discurso radical tardou em
fazer-se: no início da República de Weimar a classe trabalhadora apoiava
maioritariamente o compromisso social-democrata contra a esquerda radical,
os católicos reunidos no Zentrum e a burguesia moderada anuíam, embora
com reservas, ao regime. Embora a polarização da sociedade se fosse
acentuando, há que recordar que a oposição ao Plano Dawes, fomentada
pela extrema direita, não logrou suscitar os apoios desejados.

4.6 A civilização e as massas

Pese embora a difícil situação económica, a Alemanha obtivera, através dos


empréstimos concedidos para o auxílio do pagamento das dívidas e repara-
ções da guerra, condições que lhe haviam permitido renovar a sua indústria
e a sua produção, aproximando-se assim dos países mais desenvolvidos da

312
Europa. A terra dos «poetas e pensadores» - fiel, de resto, à Realpolitik de
que Bismarck fora o grande arauto - sabia unir ao heroísmo de direita e ao
radicalismo de esquerda a capacidade de renovar eficazmente a sua economia.

Em breve, se assistia na Alemanha ao eclodir de hábitos de consumo,


decorrentes de uma produção inspirada no fordismo, em que as massas eram
simultaneamente os grandes sujeitos da produção e do consumo.

Tal evolução permitia o emergir de uma massa anónima consumidora que,


seduzida pelo modelo norte-americano, privilegiava os filmes de Chaplin e
saudava com entusiasmo o jazz, sob os olhos reprovadores dos conserva-
dores mais elitistas ou dos estetas mais nacionalistas. Os hábitos de consumo
cada vez mais generalizados, desde os cosméticos, às revistas ilustradas, à
frequência do cinema e aos locais de diversão, ofereciam uma realidade
cultural e uma indústria inimagináveis antes da guerra. A rádio difundia, a
par do cinema, uma cultura do lazer, permitindo a distracção e o entre-
tenimento pouco exigentes para uma população fatigada por longas horas de
trabalho, em que o sector terciário ganhava peso crescente, sobretudo, em
Berlim.

É assim que a subjectividade expressionista, herdada do século XIX, é gra-


dualmente posta em causa, processo esse, de resto, já iniciado, pela provo-
cação Dada, no seu recurso à montagem, na sua contestação da arte como
uma manifestação da Bildung humanista e burguesa, recuperada pela socie-
dade guilhermina para fins de eficácia política e económica, conforme com
os interesses das classes dirigentes. Seguir-se-lhe-ia a vaga da Neue Sach-
lichkeit, com o seu culto da tecnologia, da neutralidade, da objectividade, da
estatística: o engenheiro substitui o poeta, a linguagem dos factos consu-
mados ocupa o lugar da especulação metafísica. Busca-se a realidade nua e
crua, despida de qualquer substância, tal como a estética proíbe aos seus
modelos os acessórios burgueses ou decadentes.A literatura, sujeita às regras
do mercado, abandona o santuário: o público reclama temas mais «objectivos»
(sachlich), mais reportagens e menos ficção, mais ensaio e muita autobio-
grafia. As sondagens de opinião horrorizam a camada mais culta: aquilo que
as massas lêem nada tem em comum com os textos que a escola canonizara
e institucionalizara.

A fotografia e o cinema zelam através das suas técnicas de reprodução para


que o culto da obra de arte, o seu carácter inédito e único, dê lugar a uma
relação de proximidade que impossibilita a manutenção da sua «aura»:

Es empfiehlt sich, den oben für geschichtliche Gegenstande vorgeschlage-


nen Begriff der Aura an dem Begriff einer Aura von natürlichen Gegen-
standen zu illustrieren. Diese letztere definieren wir ais einmalige Erschei-
nung einer Ferne, so nah sie sein mag. An einem Sommernachmittag ruhend

313
einem Gebirgszug am Horizont oder einem Zweig folgen, der seinen
Schatten auf den Ruhenden wirft- das heiBt dieAura dieser Berge, dieses
Zweiges atmen. An der Hand dieser Beschreibung ist es ein Leichtes, die
gesellschaftliche Bedingtheit des gegenwartigen Verfalls der Aura einzu-
sehen. Er beruht auf zwei Umstanden, die beide mit der zunehmenden
Bedeutung der Massen im heutigen Leben zusammenhangen. Namlich:
Die Dinge sich raumlich und menschlich »naherzubringen« ist ein genau
so leidenschaftliches Anliegen der gegenwartigen Masse wie es ihre Ten-
denz einer Überwindung des Einmaligen jeder Gegebenheit durch die
Aufnahme von derer Reproduktion ist. Tagtaglich macht sich unabweis-
barer das Bedürfnis geltend, des Gegenstands aus nachster Nahe im Bild,
vielmehr im Abbild, in der Reproduktion, habhaft zu werden. Und unver-
kennbar unterscheidet sich die Reproduktion, wie illustrierte Zeitung und
Wochenschau sie in Bereitschaft halten, vom Bilde. Einmaligkeit und Dauer
sind in diesem so eng verschrankt wie Flüchtigkeit und Wiederholbarkeit
in jener. (Benjamin 1980: IV.1, 479-480)

O desporto conhece um interesse redobrado, quer como prática, quer como


espectáculo. O culto do corpo vigoroso e saudável revela a mesma busca de
uma realidade desnudada de artifícios, de que as práticas do nudismo, cada
vez mais popularizadas, constituem também exemplo. O aparente regresso à
simplicidade natural tem a sua verdadeira contrapartida numa vida na grande
metrópole cada vez mais rodeada dos artifícios técnicos da «civilização»
(cf. Cap. IV.2).

Na arquitectura e na decoração, a preferência pelo estilo da Neue Sachlichkeit


surge relativamente divulgada entre as classes da pequena e média burguesia,
independentemente dos seus credos ou opiniões políticas. A vanguarda do
projecto do Bauhaus tornava-se gradualmente popular e acessível, fruto das
próprias concepções da escola, antes de o nacional-socialismo proibir a sua
actividade. Em Dessau, Walter Gropius ( 1883-1969) consagrava um projecto
que já se começara a desenhar em Weimar, segundo o qual o modelo inicial
da escola que pretendia unir a arte ao artesanato, evoluiria para uma associação
crescente entre a arte e a técnica: a utopia expressionista de Johannes Itten
( 1888-1967), com o seu culto da individualidade, os elementos místicos e a
sua associação entre reflexão e produção, será em breve substituída pelo
tecnicismo de Walter Gropius e de Ludwig Mies van der Rohe ( 1886-1969).

4.6.1 Bauhaus: arte e técnica

Do mesmo modo que, segundo Walter Benjamin, a fotografia e o cinema,


baseados no princípio da reprodução, revolucionam de forma radical a arte
tornando-a acessível às massas, despojando-a do seu carácter de culto e da

314
sua natureza inédita - da sua «aura» - também o Bauhaus busca as linhas
simples e despojadas, os materiais industriais como o ferro e o aço que
permitam a sua (re)produção industrial e o seu consumo e utilização por
qualquer operário.

O lema do Bauhaus é a racionalização: os espaços tornam-se sóbrios e


geométricos, a pintura prima pela abstracção (Paul Klee e Wassily Kandinsky ),
as coisas querem-se despidas de ornamento, desde os objectos de uso
quotidiano às máscaras teatrais. A austeridade e a simplicidade são o lema,
austeridade e simplicidade que não se esgotam na metafísica utópica que fez
com que os membros do Bauhaus unissem as suas produções em massa ao
vanguardismo mais arrojado: o seu sonho é o conforto e a estética para todos.

A tristeza uniforme dos futuros bairros sociais - construídos sobretudo


depois de 1945 - ainda não é perceptível para quem vê a construção de um
mundo melhor a erguer-se diante dos seus olhos e sonha com a resolução da
questão social.

As simpatias de esquerda dos seus membros tornam-nos suspeitos aos olhos


dos mais conservadores e levarão a que a sua actividade seja proibida pelos
nacional-socialistas.

Entretanto, o Bauhaus sonha com as habitações sociais luxuosas, os espaços


abertos, o luxo massificado e funcional, expresso na chamada «cozinha
americana», para a qual os futuros emigrados viriam a contribuir decisiva-
mente, para não falar do sonho modernista de palácios de vidro e de aço que
os mesmos viriam a construir em Chicago e Nova Iorque.

A arte sai do museu burguês, invade o quotidiano, seja sob a forma do


candeeiro metálico, seja sob a dos acessórios culinários discretos e funcionais .

4.6.2 Cinema: entre a vanguarda e a massificação

No cinema, a evolução demonstra a vitalidade e a especificidade da sociedade


alemã durante os anos 20. Reconhecendo a importância do cinema como
arma de propaganda bélica, Ludendorff, um general de alta patente das forças
armadas alemãs, fundara, já em 1917, à altura da tradicional Realpolitik
prussiana, uma companhia Bufa (Bild und Filmamt) que, unida à sua
concorrente DLG (Deutsche Lichtspiel-Gesellschaft), dará origem à UFA
( Universum Film AG). Erich Pommer, produtor e fundador da Decla ( 1915),
a mais importante produtora cinematográfica alemã, une-se à UFA, iniciando-
-se, graças ao seu talento artístico, que combina eficazmente com a técnica
empresarial, a grande era do cinema alemão.

315
Mas os escritores e os intelectuais - partilhando assim da atitude da alta
burguesia mais conservadora - hesitam em dar o seu apoio a uma mani-
festação que entendem como pouco nobre, traindo a Bildung que é necessa-
riamente individual, satisfazendo gostos circenses e pouco elevados de um
proletariado pouco exigente na ocupação dos seus tempos livres. Bertolt
Brecht (1898-1956), Alfred Dõblin (1878-1957) colaboram, contudo, na
adaptação das suas obras, o primeiro inicialmente convicto das possibilida-
des de agitação de massas existentes no novo meio de comunicação, para
depois se desiludir face à versão cinematográfica de Die 3-Groschen-Oper
(1930/1931) e à incapacidade de inverter os rumos da indústria cinemato-
gráfica. Thomas Mann distancia-se da adaptação dos Buddenbrooks (1923),
para cuja adaptação não contribuíra, ao contrário de Dõblin que se dispusera
a escrever o guião de Berlin Alexanderplatz (1931) e cuja escrita já fora
influenciada por esse novo modo de expressão.

Por sua vez, os autores dos guiões dos grandes clássicos do cinema alemão
de então não verão os seus textos publicados. Será esta a sorte de Carl Mayer,
o autor do guião de Das Kabinett des Dr. Caligari ( 1919-1920), iniciação do
cinema alemão naquilo que viria a ser designado de fase expressionista,
usando de uma linguagem fisionómica, de uma iluminação e de uma
decoração excessivas, deliberadamente anti-naturalistas.

Dr. Caligari aterroriza e manipula, augúrio de futuras acções que ditadores e


realizadores levarão a consequências então impossíveis de se encenar
(Kracauer 1979). Nosferatu ( 1921/1922), o outro nome do herói de Bram
Stoker, Dracula (1897) - para não se pagar direitos de autor ou se citar
obra não alemã numa indústria nacional e nacionalista - lida com o irracio-
nal e com efeitos especiais, utilizando a aceleração das imagens ou o nega-
tivo numa decoração fantasmagórica e sombria, que nenhum filme de
vampirismo virá a poder ignorar.

O macabro, o bizarro - o elemento irracional da germanidade que o


romantismo supostamente descobrira e que o expressionismo, segundo Lotte
Eissner ( 1980), levara até às suas últimas consequências - são, contudo,
também resultado das mais inovadoras técnicas cinematográficas, que
recorrem a artifícios habilmente construídos, inovam no campo da ilumina-
ção, do cenário e da mobilidade da câmara, outros tantos marcos na história
do cinema, que a indústria concorrente de Hollywood saberá usar em seu
proveito. Os arquitectos desempregados constroem os cenários inesque-
cíveis de Dr. Caligari, uma câmara é colocada numa bicicleta ou oscilada
para reproduzir, seja a velocidade, seja o estado de espírito caótico de um
protagonista, em Der letzte Mann (1924) de F. W. Murnau (1888-1931).

E, enquanto os intelectuais persistem, na sua maioria, em desdenhar o cinema,


pese embora toda a sua celebração da moderna tecnologia, Ernst Lubitsch

316
(1892-1947) invade o mundo com o seu erotismo ousado, o seu cinema
irreverente na sua ausência de mensagem e de valores, com a sua versão
delicodoce da Revolução Francesa, reduzida a intriga amorosa entre cama-
reira real e monarca em vias de extinção, na sua Madame Dubarry (1919).
O picante dos seus filmes choca e seduz a Europa e a América, a inflação
ajuda a exportação do cinema, antes de se dar a primeira vaga de emigração
para a dourada e soalheira Califórnia: Lubitsch será um dos que optará por
Hollywood antes do totalitarismo de Hitler expulsar Marlene Dietrich
(1901-1992), embora Georg W. Pabst (1885-1967) saiba fazer face à con-
corrência norte-americana, importando, por sua vez, Louise Brooks para
incarnar a mulher fatal do pós-guerra (Die Büchse der Pandora, 1928/1929).

Mas o teatro soubera contaminar o cinema: a distracção e a tactibilidade do


novo meio de comunicação (Benjamin 1980: IV.1, 504-505) deixa-se inspi-
rar pelo teatro intimista de um Max Reinhardt (1873-1943) e pela drama-
turgia de Henrik Johan lbsen (1828-1906) e de August Strindberg (1849-
-1912). Com o Kammerspiel, a câmara demora-se nos interiores, nos con-
flitos psicológicos e nos dramas existenciais (Hintertreppe de L. Jessnner,
1921; Der letzte Mann de F. W. Murnau, 1924) antes de, seguindo a corrente
da Neue Sachlichkeit, sair à rua (Die Straj]e de Karl Grune, 1923), captando
a grande metrópole no seu anonimato e terror (Dr. Mabuse, der Spieler 1922,
Fritz Lang 1890-1976), recorrendo às subtis técnicas da montagem, já
celebradas pelo Dada e utilizadas pelo cinema soviético, estabelecendo o
paralelo entre a técnica cinematográfica e a musical no plano da composição
(Berlin. Sinfonie der Groj]stadt, Walther Ruttmann, 1927). G. W. Pabst
transfigura pela primeira vez a futura diva de Hollywood, Greta Grabo, para
falar simultaneamente, passada a primeira grande crise, da miséria do pós-
-guerra (Die freudlose Gasse de G. W. Pabst, 1925).

A cidade invade a tela, seja sob a forma naturalista, seja sob a forma do herói
furtivo e anónimo do assassino sem rosto do primeiro filme sonoro de Fritz
Lang em M (1930), seja ainda sob a forma da grande utopia modernista de
Metropolis (1925-1926): se o realizador se inspirara em Nova Iorque para
construir um cenário dispendiosíssimo que a produção não conseguiria
rentabilizar, a utopia radicalizar-se-ia mais tarde nas construções de um
Ludwig Mies van der Rohe, emigrando com o seu projecto de um Bauhaus
proibido para o «novo mundo» ou nas visões futuristas de uma Los Angeles
assolada pelo perigo totalitário da autoria de um outro europeu em Hollywood,
Ridley Scott, este agora indagando dos limites desse mesmo vanguardismo
em Blade Runner (1982).

Contudo, o mesmo Fritz Lang recuperara os mitos germânicos, encenando


aquele que seria o filme preferido de Hitler, Die Nibelungen (1923/1924 ),
citando a mitologia germânica, não tanto a partir de Wagner, como das
gravuras de compêndios escolares da época guilhermina em que o grande

317
público facilmente se revia: a grande mensagem da mística germânica tem
de ser consumível pelas massas, que são estimuladas na sua tactibilidade
(W. Benjamin) pela luta com um dragão vermelho - embora o filme des-
conheça a cor - , accionado por vários homens ou pela luminosidade da
mítica floresta alemã, reconstruída nos estúdios de Babelsberg, com recurso
a iluminação eléctrica. A associação entre a memória colectiva e a moderna
tecnologia dava assim os primeiros passos, antes de ser eficazmente
instrumentalizada por Goebbels e pela sua mais dotada aliada, Leni
Riefenstahl (nascida em 1902).

Murnau opta por outro «mito germânico», o Dr. Faust (1926), mas como
pretexto para ensaiar uma linguagem própria, não descurando os efeitos
especiais que permitem o rejuvenescimento do alquimista, o seu voo sobre
os Alpes, demonstrando desse modo como o cinema, tal tradutor, tanto mais
cria, quanto mais trai o original.

Contudo, não são estes os filmes com maior sucesso de bilheteira: o sector
terciário em expansão, as empregadas de balcão (veja-se o artigo de Siegfried
Kracauer «Die kleinen Ladenmadchen gehen ins Kino», 1992) procuram na
penumbra da sala de cinema o entretenimento que promete o casamento
desinteressado, a ascensão social milagrosa sem assédio sexual - ou de
como o grande amor redime economicamente ou os ricos são sempre
generosos - , a aventura erótica neutralizada pela censura, a viagem aos
estúdios decorados com adornos pretensamente exóticos.

Foge-se para os espaços livres e grandiosos, Dr. Franck descobre o alpi-


nismo e as grandes aventuras nos cumes nevados, Leni Riefenstahl é
seleccionada como heroína desse cinema «ecológico» avant la lettre (Der
heilige Berg, 1926), antes de esta passar a celebrar a virilidade pagã, seja do
colectivo do congresso do NSDAP em Nürnberg (Triumph des Willens, 1935),
seja dos atletas caucasianos ou africanos no estádio de Berlim (Fest der Volker
e Fest der Schonheit, 1938), ou de, nos anos 70, ir buscar a pretensa pureza
originária na musculação dos núbios.

O filme histórico conhece também redobrado interesse: Frederico II, rei da


Prússia, é elevado, mais uma vez, depois da sua apropriação guilhermina, a
herói alemão (Fridericus Rex, 1921/1922), repetindo-se, segundo a receita
eficaz até aos nossos dias, o seu aparecimento em diferentes fitas, que re-
cuperam os ingredientes de iguarias anteriormente consumidas com grande
entusiasmo e lucros.

A estrela do cinema brilha. Além da perturbante e andrógina Louise Brooks,


um anjo azul invade a tela, antes de conquistar Hollywood: Marlene Dietrich
ofusca o texto de Heinrich Mann ( 1871-1950), Professor Unrat, em Der
blaue Engel (1930) de Joseph von Sternberg (1894-1969). Apesar das

318
reticências da crítica informada, o filme e o vampirismo de Marlene Dietrich
continuarão a perdurar na memória colectiva.

Contudo, a intelectualidade mantém a sua posição de reserva, indignando-se


com a massificação e a banalização, em suma, a americanização que, ruidosa,
invade a Alemanha com o seu jazz e Charlie Chaplin. No recuo de Adorno
perante a música afro-americana já nos anos 50 e na crítica da tecnologia
«americana» por Heidegger, mesmo no pós-guerra, ecoa essa recusa. Mas o
«novo mundo» é suficientemente ambivalente: o racismo de um Walt Disney
(1901-1906) e do seu rato Mickey, negro e envergando luvas brancas, tal
escravo submisso admitido em casa do senhor, é esquecido face à animação
que seduz o mundo inteiro; Charlie Chaplin (1889-1977) comove as multidões
até às lágrimas e provoca o riso ao invocar o taylorismo em Tempos Modernos.

W. Benjamin, embora lamentando a perda da aura, ousa sonhar, seguindo o


exemplo destrutivo dos surrealistas franceses, com uma nova forma de praticar
e consumir a arte, admitindo que a distracção dos espectadores dos
espectáculos massificados pode conter momentos subversivos.

Die technische Reproduzierbarkeit des Kunstwerks verandert das Verhaltnis


der Mas se zur Kunst. Aus dem rückstandigsten, z. B. einem Picasso
gegenüber, schlagt es in das fortschrittlichste, angesichts z. B. eines
Chaplins, um. Dabei ist das fortschrittliche Verhalten dadurch gekenn-
zeichnet, daB die Lust am Schauen und am Erleben in ihm eine unmittel-
bare innige Verbindung mit der Haltung des fachmannischen Beurteilers
eingeht. Solche Verbindung ist ein wichtiges gesellschaftliches Indizium.
J e mehr namlich die gesellschaftliche Bedeutung einer Kunst sich
vermindert, <lesto mehr fallen - wie das deutlich angesichts der Malerei
sich erweist - die kritische und die genieBende Haltung im Publikum
auseinander. Das Konventionelle wird kritiklos genossen, das wirklich Neue
kritisiert man mit Widerwillen. Im Kino fallen kritische und genieBende
Haltung des Publikums zusammen. (Benjamin 1980: IV.1, 496-497)

Por sua vez, Brecht sonhara com o grau zero da Kultur na América do
Norte, o mesmo sucedendo com John Heartfield (1891-1968) que usa a
técnica da colagem para desconstruir a propaganda da classe dominante,
assim entrevendo, como poucos, as potencialidades da moderna propaganda
mediática, mais tarde utilizada pelos nacional-socialistas, que virá a combater
com os mesmos meios, subvertendo-os.

A arte reproduzida abolia as fronteiras entre o museu e a vida, repensava e


questionava o culto burguês de um cânone estético, consagrado pelo poder e
pela escola. Significativamente seria o novo mundo que mais beneficiaria a
curto prazo com as interdições nazis: Hollywood acolheria realizadores e
actores, que renovariam a sua indústria cinematográfica, rival da grande era
do cinema alemão.

319
4.7 A vitória da Zivilisation?

A Zivilisation e o Ocidente, contra os quais Thomas Mann erguera a sua


voz, pareciam ter-se imposto. As massas consumiam, sobretudo na verda-
deira capital da República, Berlim, mas, simultaneamente, o mal-estar, que
o cinema e a rádio - esta bastante mais acarinhada pelos escritores e inte-
lectuais - pretendiam iludir e abafar, não deixava de se fazer sentir. Con-
tudo, são apenas alguns meios de escape, entre outras fugas que a pura diver-
são dos «anos loucos» oferece, sobretudo em Berlim; a dança e a viagem (cf.
o artigo «Die Reise und der Tanz» in: Kracauer 1992) são outros antídotos
que os economicamente mais abastados podem buscar contra o niilismo, a
que já o Dada dera prematura e inocentemente voz e que o Bauhaus nega na
sua utopia construtivista. Mesmo a Neue Sachlichkeit acaba por se resumir,
na sua recusa absoluta da subjectividade, a mais uma negação de uma herança
para a qual não existe alternativa que não a da distracção das massas.

A fuga pode assumir ainda traços ostensivamente irracionalistas, ao recupe-


rar-se correntes pseudo-místicas ou ocultistas, conhecendo a antroposofia
de Rudolf Steiner ( 1861-1925) uma curiosidade redobrada. O cepticismo do
olhar isento. de valores, que a intelectualidade alemã aprendera com a
sociologia de Max Weber, faz, porém adivinhar nas grandes manifestações
de massas, em torno do cinema e do desporto, o esvair-se do individualismo
e da tão contestada subjectividade expressionista, reduzindo a moderna
cultura de massas homens e mulheres a meros ornamentos, sem alma, nem
personalidade (Kracauer 1992).

Contudo, a emancipação feminina, consequência da redobrada partici-


pação das mulheres no mercado de trabalho durante a guerra, levara a que
as mesmas cortassem cabelos e saias, fumassem em público, gesto rapida-
mente recuperado quer pelas divas andróginas ou fatais, que conheciam em
Louise Brooks ou Marlene Dietrich dois dos seus mais divulgados este-
reótipos, quer por um mundo cada vez mais masculino na sua competitividade,
no seu sucesso tecnológico e na sua neutralidade «objectiva» e inexpressiva,
de que o novo realismo daNeue Sachlichkeittambém era exemplo. Algumas
mulheres reagem a tais padrões, recusam a artificialidade dos modelos da
tela, celebrando, em contrapartida, a naturalidade abandonada, o regresso
ao solo e à maternidade, aos valores alemães: o III Reich saberá consagrar a
mulher reprodutora de heróis e mártires, recusando os lábios pintados e o
vício tabagista que Hollywood exportara.

É sobre este vazio e esta distracção que o nacional-socialismo virá a actuar.


Os mais incrédulos verão as multidões encontrar um ponto de identificação,
por um lado, no programa social que os líderes nacional-socialistas haviam
ido buscar em parte aos seus adversários de esquerda, sobretudo ao

320
comunismo na sua fase estalinista, por outro, na exaltação de valores de uma
germanidade dificilmente compatíveis com o individualismo «norte-
-americano» ou «capitalista».

O autoritarismo e prussianismo da sociedade alemã, bem como a hábil


instrumentalização por parte dos nacional-socialistas dos meios de comu-
nicação, que a esquerda hesitava em reconhecer e que a intelectuali-
dade com ela simpatizante se recusava a compreender, pesem embora
as posições marginais de um W. Benjamin ou de um S. Kracauer, ganhava
assim terreno numa república que tardava em normalizar a sua opção
parlamentar.

Em 1933, o presidente e antigo general da Reichswehr Hindenburg pro-


clama, fazendo uso de poderes constitucionais, o estado de sítio, dissolvendo
o parlamento. O mundo assistirá estranhamente passivo à ascensão ao poder
de Hitler, que utiliza os meios legais que a Constituição de Weimar lhe
concedera A «revolução democrática», com que, em 1918, o presidente
norte-americano Wilson tentara exorcizar o perigo soviético, permitia que
os adversários da «ameaça bolchevique» assumissem uma posição de
expectativa face à destruição do primeiro regime verdadeirarp.ente demo-
crático na Alemanha.

Terá sido este desfecho consequência do tradicional atraso alemão,


incapaz de articular a modernização económica e industrial com a mesma
evolução a nível das instituições políticas e das mentalidades ou antes
o resultado de uma cultura de massas que fazia perigar as anteriores refe-
rências, gerando esse clamor irracional por valores que a propaganda
manipulava e esvaziava de sentido? Porventura a subtil combinação dos
dois dados, evolução que talvez não fosse exclusiva da Alemanha, como
o viriam a descobrir os pensadores emigrados, nos seus estudos sobre
a personalidade autoritária e o anti-semitismo (Adorno 1950; Lõwenthal
1989).

O certo é que a efémera república se manteve e se mantém, talvez por isso


mesmo, no imaginário alemão e mundial, como um símbolo dos riscos e dos
limites de uma sociedade que se limitou a gerir esse intervalo entre duas
guerras, incapaz de compreender ou sequer aceitar a derrota, entre a
passividade e o radicalismo, praticando a mera sobrevivência. Por isso é
inevitável que a leitura da República de Weimar seja particularmente determi-
nada pelos fatídicos acontecimentos que lhe sucederam. Contudo, também é
verdade que toda a apresentação do passado é incompleta e subjectiva; neste
caso, tanto mais o é quanto se trata de um passado recente, que podemos
confrontar com os testemunhos tão diversos quanto as experiências daqueles
que lhe foram contemporâneos.

321
Bibliografia aconselhada

Sobre a República de Weimar em geral consulte-se H. Mommsen 1996,


Erdmann 1980. Sobre o cinema dos anos 20 Jakobsen 1993 e Eissner 1980.
Para a análise sociológica em correlação com o nacional-socialismo veja-se
Elias 1992.

Actividades sugeridas

• Leia o seguinte excerto e articule com os dados contidos no capítulo:

Bauten werden auf doppelte Art rezipiert: durch Gebrauch und durch
Wahmehmung. Oder besser gesagt: taktil und optisch. Es gibt von
solcher Rezeption keinen Begriff, wenn man sie sich nach Art der
gesammelten vorstellt, wie sie z. B. Reisenden von berühmten Bauten
gelaufig ist. Es besteht namlich auf der taktilen Seite keinerlei
Gegenstück zu dem, was auf der optischen die Kontemplation ist. Die
taktile Rezeption erfolgt nicht sowohl auf dem Wege der Auf-
merksamkeit ais auf dem der Gewohnheit. Der Architektur gegenüber
bestimmt dieser letztere weitgehend sogar die optische Rezeption.
Auch sie findet von Hause aus viel weniger in einem gespanntenAuf-
merken als in einem beilaufigen Bemerken statt. Diese an der
Architektur gebildete Rezeption hat aber unter gewissen Umstanden
kanonischen Wert. Denn: Die Aufgaben, welche in geschichtlichen
Wendezeiten dem menschlichen Wahrnehmungsapparat gestellt
werden, sind auf dem Wege der blojJen Optik, also der Kontemplation,
gar nicht zu losen. Sie werden allmiihlich nach Anleitung der taktilen
Rezeption, durch Gewohnung bewiiltigt.
Gewõhnen kann sich auch der Zerstreute. Mehr: gewisseAufgaben in
der Zerstreung bewaltigen zu kõnnen, erweist erst, daB sie zu losen
einem zur Gewohnheit geworden ist. [ ... ] Die Rezeption in der
Zerstreung, die sich mit wachsendem Nachdruck auf allen Gebieten
der Kunst bemerkbar macht und das Symptom von tiefgreifenden
Veriinderungen der Apperzeption ist, hat am Film ihr eigentliches
Übungsinstrument. ln seiner Chockwirkung kommt der Film dieser
Rezeptionsform entgegen. Der Film drangt den Kultwert nicht dadurch
zurück, daB er das Publikum in eine begutachtende Haltung bringt,
sondem auch dadurch, daB die begutachtende Haltung im Kino
Aufmerksamkeit nicht einschlieBt. Das Publikum ist ein Examinator,
doch ein zerstreuter. (Benjamin 1980: IV.1, 504-505)

• Leia e assinale as principais teses do seguinte texto, tendo em conta


os dados do presente capítulo e os elementos sobre as vanguardas
artísticas constantes do capítulo IV.3:

322
Obwohl expressionistische Malerei und Literatur schon Jahre vor dem Krieg
existierten, fanden sie doch erst nach 1918 ein Publikum. ln dieser
Beziehung glich die Situation in Deutschland annahemd der in der Sowjet-
union, wo wahrend der kurzen Periode des Kriegskommunismus die ver-
schiedenster Richtungen abstrakter Kunst sich groBer Beliebtheit erfreut
hatten. Einem revolutionierten Volk muBte es so scheinen, als verbinde der
Expressionismus mit der Absage an bürgerlichen Traditionen den Glauben
an die im Menschen gelegenen Krafte, Gesellschaft und Natur nach freiem
Ermessen zu gestalten. Solcher Eigenschaften wegen mag er viele Deutsche,
die durch den Zusammenbruch ihrer Welt verstõrt waren, in seinen Bann
gezogen haben .
«Das Filmbild muB Graphik werden», dies war Hermann Warms Leitspruch
zur Zeit, als er und seine beiden Mitarbeiter die CALIGARI-Welt erschufen.
Dem entsprachen die Dekorationen mit ihrem Reichtum an gezackten, spitz
zulaufenden Gebilden, die wie gotische Muster wirkten. Erzeugnisse eines
Stils, der fast schon zur Manier geworden war.( ... )
ln CALIGARI scheint Expressionismus nichts anderes zu sein als die
angemessene Übersetzung einer lrrenphantasie in eine Folge von Bildem.
So verstanden und genossen denn auch viele zeitgenõssische deutsche
Kritiker die Szenerien und Gebarden. ( ...)
Der in CALIGARI unternommene Versuch, szenische Aufmachung,
Schauspieler, Licht und Handlung einheitlich zu gestalten, zeugt vonjenem
Sinn für durchgreifende Organisation, der sich von diesem Werk an im
deutschen Film kundgibt. Rotha pragt das Wort «Studio-Konstruktivismus»,
um die «sonderbare Atmosphare der Vollstandigkeit und Endgültigkeit,
die jedes Produkt der deutschen Studios umgibt» zu charakterisieren.Aber
organisatorische Vollstandigkeit kann nur dann erreicht werden, wenn das
zu organisierende Material ihr nicht widerstrebt. (Die Fahigkeit der
Deutschen, sich selbst zu organisieren, verdankt sich nicht wenig ihrer
Sehnsucht danach, sich zu unterwerfen.) Da die auBere Realitat ihrem Wesen
nach unberechenbar ist und daher nicht so sehr beherrscht als beobachtet
zu werden verlangt, schlieBen sich Realismus und totale Organisiation im
Film gegenseitig aus. Sowohl durch ihren «Studio-Konstruktivismus» wie
durch ihre Lichtbehandlung gaben die deutschen Filme zu erkennen, daB
sie unwirklichen Ereignissen zugewandt waren, die sich in einer grund-
satzlich beherrschbaren Sphare entrollten. (Kracauer 1979: 78 e segs .)

M. R. S.

323
5. Da Apoteose da Superioridade Germânica
à Rendição Incondicional
Resumo

Referem-se em traços largos as causas da ascensão dos nacional-socialistas


ao poder, tendo em conta as diferentes interpretações da mesma, no contexto
da história da Alemanha. Assinalam-se os principais acontecimentos entre
1933 e 1945, mencionando-se igualmente o exílio e o holocausto.

Objectivos

• Enquadrar os acontecimentos e a problemática do III Reich no


contexto da história da Alemanha e da historiografia recente.

• Avaliar das possíveis causas próximas da consagração do regime


nacional-socialista.

• Distinguir e diferenciar os diversos momentos da história do


m Reich, tendo em conta factores de ordem económica, política
e cultural.

327
5.0 Multiculturalismo e «pureza rácica»

Quem deambular pelas actuais ruas de uma cidade alemã, poderá facilmente
verificar que a diversidade caracteriza a sua atmosfera, fazendo entremear
as largas avenidas, com pequenas zonas destinadas a peões, os grandes centros
comerciais, com as pequenas lojas de bairro, onde as frutas e as mercearias
chegam a invadir as ruas por vezes excessivamente cuidadas. No metro e no
autocarro, crianças de tez clara cruzam-se com outras de olhos mais negros
do que será de esperar na Alemanha, mulheres que não escondem a sua
origem oriental ou turca escolhem tecidos num armazém, enquanto que os
filhos preferem observar na secção de discos os ídolos rock, cujas indu-
mentárias e adornos inspiram a sua forma de vestir. Os restaurantes jugos-
lavos , gregos, italianos, turcos são uma constante e um elemento de um novo
colorido na Alemanha contemporânea.

Este colorido do multiculturalismo que faz parte do quotidiano da Alema-


nha reunificada e que integra manifestações culturais que vão da Europa
meridional ao Oriente e, sobretudo depois de 1989, da Europa de Leste, é
também consequência da situação da Europa depois de 1945 e teria sido
impensável nos anos 30, quando Hitler intensificava a sua campanha
nacionalista e racista, com base num pretenso «arianismo» da população
alemã, onde os cabelos loiros e os olhos azuis seriam obrigatórios, preconceito
que, de resto, ainda hoje persegue o estereótipo dos alemães no estrangeiro.

Embora os ataques a estrangeiros em território alemão se baseiem, por vezes,


em ideias e slogans herdados desse tempo, o certo é que, para além do perigo
real de movimentos racistas e de extrema direita - que não são, de resto
exclusivos da Alemanha- estes pouco têm a ver com a situação que garantiu
a ascensão de Hitler e do Partido nazi ao poder. Saliente-se ainda que tais
manifestações de xenofobia têm dado origem não só a um amplo debate
público, como à respectiva denúncia por vários sectores.

Contudo, no estrangeiro reage-se com desconfiança redobrada, quando se


fala da agressão a estrangeiros em território alemão: com efeito, o peso da
herança histórica a que a Alemanha foi associada, depois da catástrofe e da
barbárie nazis, não pode ser ignorado, mesmo que razões históricas e cien-
tíficas a possam questionar.

5 .1 A historiografia sobre o III Reich

A época compreendida entre 1933 e 1945 é a mais complexa da história da


Alemanha no que toca a uma tentativa de uma explicação e interpretação
racionais, como o comprova a historiografia sobre o tema.

329
As polémicas sobre este período histórico são uma constante, desde a célebre
Controvérsia dos Historiadores (Historikerstreit), nos anos oitenta, em torno
da herança de Auschwitz, protagonizada, sobretudo, por Ernst Nolte e Jürgen
Habermas, divididos em duas facções antagónicas, por muito que os
especialistas a entendam ultrapassada (Brozsat/Frei 1989: 1 e 11), até ao
escândalo provocado pelo livro de Daniel Goldhagen, Hitler's Willing
Executioners ( 1996), que recentemente veio colocar de novo o problema da
responsabilidade alargada dos alemães no processo que conduziria à triste-
mente célebre «solução final» (Endlosung), isto é, à liquidação sistemática
dos alemães de confissão ou origem judaica.

Independentemente de questões de ordem ética, como a que se acabou de enun-


ciar, qualquer abordagem histórica, se bem que fatalmente subjectiva, tem de se
basear em factos e documentos que comprovem a sua hipótese de interpretação.

No entanto, pode resumir-se a situação da seguinte maneira: depois de um


período de menor distância, em que o teor acusatório foi predominante,
passou-se a uma fase em que, com maior distância e com mais dados, é
possível proceder a um balanço, porventura, menos envolvido.

Contudo a questão da continuidade da história alemã permanece como um


ponto controverso, designadamente a de se saber se os acontecimentos entre
1933 e 1945 não teriam sido preparados por momentos anteriores; influen-
ciando as interpretações que a historiografia tem vindo a fornecer (sobre o
tema veja-se a súmula em Benz et al. 1998: 18-24).

5 .1.1 A Alemanha e a «via específica». A continuidade histórica e o


nacional-socialismo

Neste contexto pode assinalar-se duas correntes: a primeira vê no Terceiro


Reich a consequência quase natural de uma «via específica» (Sonderweg)
da história daAlemanha, que teria sido incapaz de articular a sua moderniza-
ção industrial e social com a correspondente democratização das suas
estruturas políticas. O tradicional autoritarismo alemão, visível, sobretudo,
na solução bismarckiana da unificação da Alemanha em 1871, com a célebre
associação entre «o ferro e o sangue», como pressupostos para essa mesma
união, teria contribuído para a «prussianização» da Alemanha, que, por
sua vez, teria sido decisiva para o fracasso da República de Weimar e a
consequente ascensão de Hitler ao poder (cf. Cap. IV.2).

Autores como Plessner (1974) chegam mesmo a fazer remontar essa causa-
lidade à era da Reforma e ao subsequente afastamento da Alemanha da lati-
nidade e da sua civilização, eminentemente europeia; outros como Hans-

330
Ulrich Wehler (1973, 1995) vêem na era bismarckiana e no seu compro-
misso entre Estado, classes dominantes, modernização e autoritarismo, o
momento-chave para se entender a subsequente evolução alemã.

A interpretação dos dois autores tem um traço comum que cumpre destacar:
tanto um como outro vêem na «via específica» da Alemanha o resultado da
ausência de modernização das estruturas políticas: o nacional-socialismo
teria sido, sobretudo, consequência do atraso político alemão.

5.1.2 Modernidade e nacional-socialismo

Contudo, a referida leitura tem vindo a ser contestada por uma outra
interpretação (veja-se sobretudo Evans 1987; para uma bibliografia
pormenorizada consulte-se Wehler 1995). Esta tende a minimizar os
elementos específicos da evolução histórica da Alemanha, designadamente
a tese da «via específica», associando a evolução do nazismo sobretudo às
transformações características das modernas sociedades de massas.

Com efeito, se é verdade que o Terceiro Reich reabilitou e manipulou algumas


tradições da história da Alemanha, empenhando-se no culto dos seus mitos
e apelando a forças irracionais e obscuras, também é verdade que, sem o
recurso eficaz aos modernos meios de comunicação de massa no campo da pro-
paganda, o nacional-socialismo não poderia ter tido o alcance e o impacto que
então conheceu. Pense-se no papel decisivo da rádio na difusão dos discursos
de Hitler e do Ministro da Propaganda, Joseph Goebbels (1897-1945), e no
do cinema, na divulgação e encenação de paradas militares e congressos
partidários, com recurso por vezes aos mais requintados truques de montagem.

Por outro lado, toda a organização social e económica do Terceiro Reich


pressupõe um panorama só passível de ser criado a partir de uma sociedade
fortemente industrializada: só assim se pode compreender o papel decisivo
da grande indústria alemã, a sua associação com a produção de armamento
e a eficácia inicial do Blitzkrieg, bem como com a organização e concepção
de campos de concentração e de extermínio e outras técnicas de selecção
«rácica», para não falar da eutanásia.

Segundo esta interpretação, não haveria tanto uma «via específica» alemã,
um caminho que teria conduzido a Alemanha do autoritarismo prussiano ao
terror nazi, mas seria antes a própria sociedade moderna e liberal que con-
teria em si o gérmen dessa destruição da razão.

Esta interpretação ecoaria, por exemplo, no célebre livro de Horkheimer e


Adorno, Dialektik der Aufklarung (Horkheimer/Adorno 1971), escrito no

331
exílio americano, associando a análise dos fundamentos económicos e polí-
-
ticos a elementos de ordem cultural e psicológica.

Os estudos sobre autoridade e família (Horkheimer/Fromm/Marcuse et al.


1987), publicados, em Paris, no ano de 1936, pelos membros do Institut für
Sozialforschung, uniam a metodologia marxista à psicanálise, orientando a
sua análise para fenómenos culturais na sua autonomia - assim contrari-
ando o marxismo ortodoxo. Numa série de estudos havia-se analisado a
relação entre as práticas autoritárias e o papel da família, pelo que sairia
reforçada a ideia de uma linha de continuidade entre a tradição histórica
alemã e a submissão voluntária e colectiva a um Führer (cf. sobretudo os
ensaios de Horkheimer e de Marcuse). Contudo, estas conclusões viriam a
sofrer um abalo relativo, quando os estudos sociológicos de Adorno, agora
reforçados na vertente empírica, na senda da escola norte-americana, viriam
a provar que o anti-semitismo também se manifestava, a par de uma
componente marcadamente autoritária, no país da «liberdade democrática»
(Adorno 1950).

Contudo tal interpretação não consegue explicar o porquê da radicalização


da evolução alemã, sobretudo, a partir de 1933, tendo em consideração que
muitas outras sociedades contemporâneas conheceram como ela o
desemprego, a crise económica, a crise de valores.

É por este motivo que Wehler (1995) se mantém apegado à sua interpreta-
ção segundo a qual a «via específica» alemã, iniciada sobretudo depois
de 1871, reunirá as características decisivas para essa mesma evolução
(cf. Cap. IV.2).

Se é certo que estas interpretações são incompletas e parciais, os mesmos


traços surgem tanto mais reforçados, quanto por detrás das diversas leituras
se adivinham opções políticas e modelos culturais claramente demarcados.

Enquanto que a primeira, ao identificar a catástrofe nazi com o termo de


uma evolução específica da Alemanha, acaba, em última instância, por
postular os méritos absolutos da modernização, segundo um modelo ocidental,
a segunda, ao salientar a correlação dialéctica entre modernidade e nazismo,
lança a suspeita dos perigos totalitários que o Ocidente também contém
latentes.

Sublinhe-se ainda que as teorias do totalitarismo, que tendiam a interpretar


em estreita correlação os regimes nazi e estalinista, seriam particularmente
florescentes, no Ocidente, durante os anos 50, como seria de esperar, em
pleno período de maccarthismo e de «guerra fria» (Arendt 1996). Por sua
vez os ideólogos do modelo soviético enfatizavam a teoria da estreita
associação entre o fascismo e grande capital.

332
Contudo, os adeptos menos ortodoxos de uma alternativa ao modelo capi-
talista ocidental, por sua vez, recusavam-se a identificar o terror nazi com
o Gulag estalinista e as teorias soviéticas oficiais, iniciando um debate e uma
reflexão teórica sobre o fascismo nas suas diferentes vertentes (cf. súmula
e bibliografia em Erdmann 1993: 62-78 e Benz et al. 1998: 457-458, bem
como Kühnl 1979).

Que a queda do muro de Berlim e a nova ordem internacional vieram fazer


rever os critérios unilaterais e esquemáticos é uma conclusão que, contudo,
deverá ser formulada com alguma precaução, sobretudo, depois de algum
optimismo excessivo face à vitória do modelo ocidental que fez reviver de
novo as teorias predominantemente políticas do totalitarismo, enquanto que
versões mais diferenciadas eram postas de parte.

Talvez a interpretação que contemple múltiplas perspectivas e abor-


dagens seja a mais adequada, sobretudo, se não pretender fornecer uma
explicação definitiva ou absoluta para o que dificilmente se consegue
compreender.

É neste sentido que as causas do Terceiro Reich e do terror nazi podem ser
ponderadas.

Sem dúvida que a situação económica, com uma inflação galopante e a ele-
vadíssima taxa de desemprego, durante algumas fases da República de
Weimar, constituíram um factor de insatisfação e de desestabilização da vida
política, mas por si só não podem fornecer uma explicação absoluta para o
fenómeno, uma vez que crises semelhantes ocorreram, simultaneamente, na
Europa e no mundo, não levando, contudo, a situações tão extremas.

A tese defendida pelo sector marxista mais ortodoxo que vê no fascismo


uma manifestação de terror por parte do capital financeiro, nos seus ele-
mentos mais chauvinistas, reaccionários e imperialistas, e de uma aliança
entre a grande indústria e o nacional-socialismo, como o propôs a análise
soviética em 1933, não só não é sustentável, como constituiu um ponto de
partida fatal para os equívocos em que a oposição marxista se deixou envolver.
Ao interpretar Hitler e o seu partido como um mero joguete nas mãos do
grande capital, associação que existiu, mas que em parte também iludiu os
partidos conservadores, convictos de que poderiam servir-se do nacional-
-socialismo para os seus fins, a referida análise não deu conta de outros
factores de ordem política e cultural que teriam igualmente um papel
fundamental em todo o processo. Assinale-se que a teoria marxista evoluiria
no sentido de uma visão mais diferenciada da relação entre capitalismo e
fascismo, assinalando as rivalidades entre os diferentes grupos e alianças
estratégicas, vindo a importância do elemento político subsequentemente a
ser sublinhada (Kühnl 1979).

333
Com efeito, os partidos conservadores apoiaram mais ou menos indi-
rectamente Hitler, na esperança de, através do mesmo, poderem regressar a
uma ordem mais musculada. Mas, se este dado ajuda a explicar em parte o
decorrer dos acontecimentos, também é verdade que as divergências surgi-
das, no decurso dos acontecimentos, entre os referidos partidos e o poder
nazi mostram até que ponto esta explicação é incompleta. De resto, opções
semelhantes, com vista à contenção do «perigo bolchevique», surgiram
noutros países e foram partilhadas por inúmeros países europeus assim
contribuindo para a passividade internacional, de que o exemplo da Grã-
-Bretanha poderá constituir um dos mais eloquentes.

Por outro lado, as fontes recentemente vindas a lume, documentos como


as memórias do membro do partido do Zentrum, o Chanceler Heinrich
Brüning (1885-1970), mostram que a dissolução, em 1930, do Parlamento,
eleito apenas há dois anos, e as consequentes eleições - com resultados
claramente favoráveis aos nacional-socialistas e impossibilitando a forma-
ção de uma maioria democrática - não foram apenas resultado da incapa-
cidade de os partidos conseguirem um consenso democrático, mas revelam
antes a responsabilidade dos partidos conservadores, incluindo o Zentrum,
na subida de Hitler ao poder.

É cada vez mais consensual entre os historiadores a importância do ideário


divulgado por Hitler em Mein Kampf como forma de explicar o decurso e o
desfecho do terror nacional-socialista. Sem dúvida que nesse mesmo texto o
futuro Führer não só propunha uma política rácica de aniquilamento dos
judeus - se bem que não se torne claro se se trataria de uma extinção física
como viria a ser praticada-, como defendia o expansionismo germânico,
sobretudo a Leste, contra os povos pretensamente inferiores de origem eslava,
com recurso a um social-darwinismo primário que postulava o abandono de
quaisquer ideais humanistas, em prol do triunfo dos mais fortes e mais capazes
(Benz et al. 1998: 11-21).

Por outro lado, se Hitler via o confronto com o continente americano como
uma hipótese remota, já revelava a sua habilidade estratégica, ao assinalar a
necessidade de se sacrificar causas menores aos grandes objectivos,
designadamente abdicar do Tirol do Sul a favor da Itália com a qual previa
uma aliança conforme se viria a verificar.

É certo que o desfecho tenebroso da guerra facilita um certo determinismo,


vendo-se a posteriori nesse desfecho a consequência directa desses princípios
postulados.

O facto de o livro de Hitler ter conhecido ampla divulgação - recorde-se


que já em 1932 haviam sido vendidos 287 000 exemplares, atingindo mais
tarde a edição os 10 milhões - pode explicar-se pela circunstância de que

334
alguns princípios encontravam ressonância na sociedade alemã, na medida
em que se partilhava do princípio de que a derrota de 1918 constituíra uma
humilhação para a Alemanha, bem como da desconfiança perante o parla-
mentarismo dada a sua inoperância. Além disso, a Alemanha possuía uma
tradição recente que sabia associar o culto do excesso, a crítica nietzscheana
do humanismo, as visões utópicas e voluntaristas à necessidade de modernizar
e revitalizar a sociedade alemã.

Foi desse modo que inúmeros jovens se sentiram atraídos pelas organiza-
ções hitlerianas: estas não só possibilitavam a ascensão social, como algum
poder, desligando-os dos contextos tradicionais, designadamente os fami-
liares. O anti-comunismo não punha em questão um ideal igualitário e anti-
-burguês, nem um aventureirismo consumível pelas massas, o que leva mesmo
alguns intérpretes a falar da modernização social que o nacional-socialismo
teria acarretado consigo (Graml 1995: 161-174, aqui 169).

Tais questões tanto mais tornam premente a questão relativa à filiação


ideológica destas tendências na história alemã, que conheceria redobrado
interesse no pós-guerra, levando por vezes a interpretações simplistas da
história do espaço de expressão alemã, designadamente na sua vertente
cultural, orientadas segundo as consequências do nacional-socialismo.

Assim, rapidamente toda a tradição intelectual alemã passou a ser vista nos
seus momentos precursores do Terceiro Reich, desde o anti-semitismo de
Lutero, ao nacionalismo xenófobo de Fichte ou ao vitalismo de Nietzsche,
gradualmente associado a um processo de destruição da razão (Lukács 1962).

Embora se possa associar o atraso alemão a esta evolução, sobretudo quando


se trata de indagar acerca da ausência de tradições democráticas na Alemanha,
em particular no século XIX, a tendência para se ver na tradição autoritária
luterana ou prussiana a origem do comportamento de massas verificado no
decurso do Terceiro Reich não surge totalmente convincente, quando
confrontada com a teoria segundo a qual o terror institucionalizado teria
tido um papel determinante na submissão dos alemães ao regime.

Talvez as explicações se complementem: note-se o aparente e súbito assen-


timento e aceitação por parte dos alemães de uma ordem imposta pelos aliados
no pós-guerra. Se este comportamento também pode, sem dúvida, ser
entendido à luz dos traumas dos últimos anos de guerra, quer junto das tropas,
quer junto dos civis, também é verdade que a chamada «desnazificação»,
levada então a cabo e que consistiu quer em processos e julgamentos, quer
em campanhas de esclarecimento, não permitiu que os vencidos, pressionados,
de resto, pela questão da sobrevivência imediata, pudessem confrontar-se de
um modo mais reflectido com o passado recente e a questão da culpa e
responsabilidade colectivas e individuais.

335
Parece assim indubitável que o passado continua a constituir uma ferida
alemã, por muitas tentativas de normalização que se tenham empreendido,
ferida essa permanentemente acompanhada da interrogação sobre o passado
que a teria possivelmente viabilizado.

Por isso, tanto mais urge recordar a necessidade da precaução na elaboração


de conclusões que não tomem em consideração um número tão grande quanto
possível de factores e não os pensem em correlação, evitando, sobretudo, os
estereótipos e as leituras apressadas que, quer condenando, quer defendendo
incorrem num mesmo erro: a visão redutora e limitada de um tema que não
diz certamente apenas respeito à história da Alemanha.

5. 2 Os factos

5.2.1 Os antecedentes

Os antecedentes do Partido de Hitler encontramo-los na atmosfera que


preparou a primeira guerra mundial e que viria a ser reavivada pela derrota
de 1918, misturando o ressentimento nacional com o orgulho ferido, depois
de Versalhes (cf. Cap. IV.4), e a histeria face ao «perigo bolchevique», com
um programa populista e racista.

A própria conjuntura social e política que rodeara a infância e juventude de


Hitler, com o crescente anti-semitismo que viria a caracterizar o Império
dos Habsburgos, tradicionalmente multi-confessional e multinacional,
viera a reforçar o sonho de uma união com os restantes territórios de expressão
alemã, assim se tentando restaurar um Império que agora se deveria carac-
terizar pela unidade linguística, cultural e «rácica» (Hamann 1996).

O embrião do futuro NSDAP (Nationalsozialistische Arbeiterpartei) encontra-


mo-lo no DAP (DeutscheArbeiterpartei) fundado, no ano de 1919, em Munique,
com um escasso número de membros (vinte a quarenta), a que em breve
Hitler se associaria.

Em 1920, contudo, o pequeno grupo já aumentara consideravelmente,


contando com 2000 activistas e possuindo um programa de vinte e cinco
pontos. Entre estes -para cuja formulação Hitler contribuira decisivamente
- figuravam a exigência de uma união alemã, segundo os parâmetros de
uma Grande Alemanha, a reivindicação de reformas na agricultura, no sistema
de empréstimos, a nacionalização de monopólios, a descriminação dos judeus
a pretexto da pureza «rácica», alemã a ser preservada. Foi no seu primeiro
Congresso nesse mesmo ano que seria consagrada a nova designação:
Nationalsozialistische Arbeiterpartei - NSDAP.

336
Em breve, o partido passava a deter um órgão próprio na imprensa, o
Volkischer Beobachter, sendo, em 1921, Hitler eleito seu secretário-geral,
depois de um abandono provisório por dissensões internas. Por outro lado, o
partido criava as suas milícias próprias, as SA(Sturmabteilung), e conseguia
organizar e semear o terror, sendo responsável não só por revoltas e motins
como finalmente por uma tentativa de golpe de Estado a 8 de Novembro de
1923, pelo que Hitler seria condenado à prisão por cinco anos. Contudo
recuperaria a liberdade já em Dezembro do ano seguinte.

Entre 1925 e 1926, Hitler terá ocasião de reorganizar o partido, buscando


novos apoios, designadamente entre os industriais do Ruhr, podendo o
NSDAP contar com representação parlamentar a partir de 1928.

Os anos imediatamente a seguir, com a crise económica e o caos político,


facilitarão a ascensão de Hitler ao poder (cf. Cap. IV.4).

Por questões de exposição e clareza pode dividir-se a época subsequente à


tomada do poder pelos nacional-socialistas em três fases :

5.2.2 Entre 1933 e 1934: conquista e consolidação do poder

Nomeado Chanceler do Reich pelo Presidente Hindenburg a 30 de Janeiro


de 1933 (Machtergreifung, na designação dos nacional-socialistas), o governo
reúne ainda membros apartidários, antigos adeptos doZentrum (von Papen),
do DNVP e independentes, salientando-se o predomínio do poder de Hitler
que assim vai, na prática, esvaziando de funções os restantes cargos.

Contudo, os objectivos do nazismo surgem ainda suficientemente camufla-


dos, recuando Hitler relativamente a posições anteriores, no que respeita ao
anti-semitismo, anti-clericalismo, belicismo e expansionismo.

A razão de ser de tal estratégia residia, antes de mais, na participação


minoritária dos nazis no governo, embora os ministérios por que eram res-
ponsáveis fossem decisivos, a saber, o Ministério do Interior do Reich e a
direcção regional de idêntico pelouro na Prússia.

Contudo, logo a 4 Fevereiro do mesmo ano, Hitler introduzia uma série de


medidas legislativas, visando a restrição da liberdade de imprensa, de
associação e de eleição, a pretexto de proteger o povo alemão (zum Schutze
des deutschen Volkes). No dia 21 do mesmo mês, na sequência de outras
medidas de «saneamento» (Sauberung), todos os membros do SPD com
cargos na administração interna eram substituídos por funcionários conside-
rados leais ou «nacionais», assistindo-se ao reforço da acção das SA e das SS.

337
Tais iniciativas atingiriam o paroxismo face ao incêndio do Reichstag a
27 de Fevereiro. Atribuído ao ex-comunista holandês Martinus van der
Lubbe, a prisão do mesmo seria seguida da divulgação por Goebbels e
Hermann Gõring ( 1893-1946) da ideia de que tal acto de terror seria ape-
nas parte de uma conspiração organizada do DKP, com conhecimento
do SPD, pelo que seria ordenada a prisão dos respectivos deputados e fun-
cionários, o encerramento das sedes partidárias e a proibição da imprensa
comunista.

No dia imediatamente a seguir, o governo radicalizaria as medidas já ante-


riormente iniciadas com vista a «proteger o povo e o estado alemães»,
assinando Hindenburg a disposição que legalizava a utilização da violência
e suspendia os mais importantes direitos fundamentais.

Desta forma, o Partido nacional-socialista não só conseguia desferir um golpe


fatal à esquerda, na sequência de outras iniciativas já anteriormente tomadas,
então com a anuência benevolente dos partidos conservadores, unidos numa
causa comum, como consolidava o seu poder a nível da administração interna,
coordenada por Hermann Gõring.

A política seguida por Hitler durante o período que antecedeu as eleições


para o Reichstag de 5 de Março de 1933 fornece indícios preciosos do que
viria a constituir a prática política nazi: um misto de calculismo e brutali-
dade que a palavra «neutralização» (Gleichschaltung) resume. O partido
comunista não foi imediatamente proibido, receando-se que os votos viessem
a beneficiar os sociais-democratas; por outro lado, Joseph Goebbels serviu-
-se do acto eleitoral para ensaiar a sua máquina propagandística por via
radiofónica.

Com efeito, na sequência das eleições, que não dariam a desejada maio-
ria absoluta aos nacional-socialistas, uma vez que estes receberiam 43,9%
dos votos, apesar da declaração de inconstitucionalidade do SPD, KPD
e do Zentrum, às medidas restritivas dos direitos fundamentais viria a
juntar-se o aumento do terror exercido junto da população pelas SA e
SS, terror esse que se manifestara já anteriormente, particularmente
durante o período eleitoral. Estas milícias não possuíam, como é, de
resto, característico do terror, qualquer ideologia ou programa, sendo,
sobretudo, expressão da violência mais crua, exercida por elementos
ressentidos e aventureiros que assim procuravam uma «razão de exis-
tência» ou uma ocupação. Tais acções constituíam um modo de intimi-
dar a população e de criar um apoio para a ocupação definitiva e total
do poder.

Simultaneamente, as prisões em massa e as deportações prosseguiam.


A 8 de Março de 1933, o ministro do Interior Frick anunciava a criação de

338
campos de concentração (Konzentrationslager) e, no dia 20 do mesmo mês,
Himmler, chefe das SS dava a conhecer a existência do campo de Dachau.
Até finais do mesmo ano, pode registar-se cerca de 500 a 600 mortos e
100 000 prisões.

Ainda em Março, o governo começara a tomar medidas relativas a uma


«higiene rácica», seguindo-se-lhe em Abril do mesmo ano o início do boi-
cote ao comércio judaico, organizado pelo Partido e pelo Ministério da
Propaganda, chefiado por Joseph Goebbels, sendo promulgado, a 7 de Abril
de 1933, o «parágrafo ariano» (Arierparagraph) que impedia os judeus de
terem acesso a cargos na administração pública. Assim, a população judaica
via-se gradualmente privada de cargos em que vira garantida uma importante
influência social.

Ao mesmo tempo que prossegue a política anti-semita, o Partido nacional-


-socialista toma medidas a fim de aniquilar totalmente a oposição de
esquerda. Depois das prisões em massa, do terror exercido, segue-se-lhe a
ocupação dos sindicatos que serão dissolvidos a 2 de Maio de 1933, em
nome da criação de uma Frente de Trabalho Alemã (Deutsche Arbeiterfront
- DAF), ligada ao Partido nacional-socialista, e são criadas associações
corporativas (Reichstande) que constituem a negação do princípio da
organização sindical e forçam a aliança entre assalariados e patronato.

O terror invade de um novo modo a vida quotidiana, designadamente atra-


vés dos autos de fé de livros em diversas cidades universitárias (10 de Maio
de 1933), aumentando o número de exilados, sobretudo entre os membros
do SPD e KPD.

O facto de a política nazi criar ilusões quer entre os partidos, quer entre
sindicatos, crendo estes sempre na possibilidade de a situação se inverter, a
desatenção e a incapacidade de agir de forma eficaz, encontram-se bem
visíveis na impossibilidade de a oposição conseguir domar a fúria de ocupa-
ção de poder a todos os níveis por parte de Hitler e do seu partido. Final-
mente, qualquer promessa de vida parlamentar seria destruída, com a proibi-
ção, a 22 de Julho, do SPD, a que se seguiria a auto-dissolução dos restantes
partidos, integrando-se os deputados do DNVP no partido nacional-socialista.

«Neutralizada» a oposição, Hitler assume uma atitude mais moderada,


anunciando a 6 de Julho que a «revolução» poderá agora ser sucedida pela
«evolução» . O governo zela pela manutenção de uma opinião pública favo -
rável, instrumentalizando-a. Assim o programa megalómano de construção
de auto-estradas, tendendo a garantir o emprego e a assegurar uma comu-
nicação eficaz, prende-se mais directamente com estratégias de controle de
poder e de futuras agressões do que com as necessidades reais da Alemanha
de então.

339
1
A moderação aparece igualmente na Concordata celebrada a 20 de Julho de
1933 com a Igreja Católica, depois de assegurada a submissão da Igreja
evangélica.

Contudo, a situação não é de modo algum estável. O desemprego e a crise


económica persistem. Entre os mais radicais das SAjá se fala da necessidade
de uma segunda «revolução» A moderação está longe de ser uma realidade.
As perseguições a judeus mantêm-se. A 4 de Outubro, estes vêem-se impos-
sibilitados de publicar na imprensa, face a uma lei que define a dependência
dos jornalistas não do editor, mas do Estado.

A 12 de Novembro o Partido nacional-socialista recebe, mediante eleições


aparentemente livres, 92,2% dos votos, encetando ainda no mesmo mês uma
série de acordos decisivos. É celebrado um acordo entre o governo e a empresa
IG Farben (14.12.1933) com vista à produção de combustível sintético,
firma-se um pacto de não-agressão e um tratado comercial com a Polónia,
intensificam-se os laços com outros territórios como a Itália, a Áustria e a
Hungria (Protocolos de Roma).

Deste modo, com o recurso ao terror, à neutralização de partidos e à sub-


missão de todas as áreas, indústria, sindicatos, organizações profissionais,
sob a tutela do Partido e do Führer, Hitler conseguira dominar a sociedade,
restando-lhe agora apenas o problema do poder excessivo do chefe das SA,
Rohm. Este viria a ser derrotado, depois de ter sido denunciado um possível
atentado da sua parte, passando o poder para as SS, sob o comando de
Himmler que reconhecera as vantagens estratégicas de uma aliança com o
Führer.

O reforço do poder deste ver-se-ia consolidado através de um decreto ( 1 de


Agosto de 1934) que proclamava a união do cargo de Presidente com o de
Chanceler do Reich, um dia antes da morte de Hindenburg. A 19 de Agosto
um referendo dava 89,9% de votos a Hitler que assim via consagrado o seu
poder total. A celebração desta vitória seria encenada no Congresso do
Partido em Nuremberga em Setembro do mesmo ano, encarregando-se Leni
Riefenstahl de realizar um dos mais eficazes filmes de propaganda ao partido
e ao Führer, Triumph des Willens (1935).

5.2.3 Entre 1934 e 1939: Os anos da consolidação

O período compreendido entre o ano da consagração do poder de Hitler e o


início da II guerra mundial caracterizou-se por uma fase de crescimento
económico e pela diminuição do desemprego (de três milhões em 1935 para
1 milhão em 1936), o que favoreceu o reforço do poder nacional-socialista e

340
o consenso relativamente amplo face ao regime. Contudo, tais resultados
não impediram o regime de prosseguir a sua actividade de controle de todas
as instâncias da sociedade civil e o recurso à propaganda.

No domínio económico assiste-se ao reforço da colaboração entre a grande


indústria e o Estado: ao já referido acordo com as IG Farben suceder-se-á a
cooperação no campo da indústria do armamento, a que se virá a acrescentar
o plano quadrianual ( 1936) que criava contingentes no que respeitava a
matérias-primas, divisas e forças de trabalho, segundo as prioridades fixadas
pelo Estado, ao mesmo tempo que este controlava preços e salários.

Contudo, a destruição da organização sindical impedia a actualização sala-


rial, não obstante as melhores condições económicas. A manutenção da
animosidade nazi face à agitação comunista e social-democrata, levada a
cabo na clandestinidade, não impede de constatar que o mal-estar para com
o regime autoritário diminuíra consideravelmente entre a classe trabalha-
dora, disposta a pagar o preço da perda de liberdade pela manutenção da
estabilidade económica.

A popularidade do regime era, além disso, acrescida de um maior prestígio


internacional através do restabelecimento da autoridade militar na Alema-
nha, mediante a recuperação da região do Sarre (Saarland) em 1935, a
ocupação da zona desmilitarizada do Reno em 1936 e da anexação da Áustria
e dos Sudetas em Março e Outubro de 1938, respectivamente. Note-se que
este programa expansionista correspondia aos tradicionais desejos alemães,
pelo que a comunidade internacional hesitava em opor-se a esta afirma-
ção de poder, vendo com bons olhos um regime que impedia a expansão
do programa bolchevique, auxiliava as forças franquistas na Guerra Civil
espanhola e que a Igreja Católica também sancionava.

Mas os resultados favoráveis nos plebiscitos acerca da política de Hitler de


5 de Março 1936 e de 10 de Abril de 1938, embora questionáveis dada a
repetida maioria de 99% de votos favoráveis, não invalidavam a actuação da
polícia política (Gestapo, abreviatura de Geheime Staatspolizei) e das SS
sob o comando de Himmler. Embora a perseguição fosse menor; as SS
reforçaram neste período o número de efectivos e a sua organização,
prosseguindo a criação de campos de concentração (Dachau 1933,
Sachsenhausen 1936, Buchenwald 1937, Flossenbürg, Mautthausen e
Neuengamme 1938, Ravensbrück e Stutthof 1939, Auschwitz I e GroB-Rosen
1940, Natzweiler-Struthof, Lublin-Majdanek, Auschwitz II-Birkenau 1941,
Auschwitz III-Monowitz 1942, Herzogenbusch-Vught, Riga, Bergen-Belsen,
Dora-Mittelbau, Kauen, Vaivara e Klooga 1943, Cracóvia-Plaszow 1944) e
de campos de extermínio, os Vemichtungslager (Kulmhof/Chelmno 1941,
Auschwitz-Birkenau, Belzec, Sobibor, Treblinka e Lublin-Majdanek, a partir
de 1942).

341
Simultaneamente, todos os domínios da vida civil eram submetidos à orga-
nização partidária. Ao serviço militar obrigatório suceder-se-ia o serviço
cívico compulsivo, a que as mulheres também eram forçadas. As organi-
zações juvenis zelavam pela educação nos princípios do partido, rivalizando
com a escola e neutralizando as influências familiares.

O culto do corpo e da naturalidade contra os vícios civilizacionais, que já


irrompera durante a República de Weimar, seria instrumentalizado, tal como
se pode verificar nos célebres Jogos Olímpicos de 1936, onde, por detrás da
encenação de uma mensagem pacífica e de eficiência alemã, se escondia o
constante policiamento da vida quotidiana.

A reportagem realizada para o efeito por Leni Riefenstahl, habilmente


montada nos filmes Fest der Volker e Fest der Schonheit (1938), é bem
eloquente na utilização das modernas técnicas de manipulação de massas,
de uma tecnologia requintada ao serviço de uma ideologia que se assumia
como um regresso à «espontaneidade» e «naturalidade primitivas».

A rádio era quase exclusivamente utilizada como instrumento de propa-


ganda, intercalando-se os discursos e comícios com o entretenimento
aparentemente sem consequências. A imprensa escrita também viria a ser
objecto de controle cada vez mais intenso.

No domínio da arte, o ano de 1937 ficaria tristemente célebre através da exposi-


ção Entartete Kunst que, reunindo obras de alguns dos mais importantes artis-
tas plásticos alemães, as exibiria pela última vez em Munique, antes de as
confiscar e leiloar. Os principais visados foram os expressionistas e os moder-
nistas, desde os grupos Der blaue Reiter, Die Brücke, a alguns membros do
Bauhaus, bem como pintores internacionais, entre os quais Van Gogh e Picasso.

O programa artístico do nacional-socialismo seria dado a conhecer através


da primeira Grande Exposição Alemã (GrofJe Deutsche Kunstausstellung)
na Casa da Arte Alemã (Haus der Deutschen Kunst) em Munique no ano
1937, no seu neo-classicismo e academismo, no seu culto do natural e do
rústico, com as suas alegorias nacionais e todo o kitsch de que encontramos
ecos na arte portuguesa durante o Estado Novo de Salazar.

Recorde-se ainda que, entretanto, Joseph Goebbels proibira a crítica de arte


na imprensa, autorizando apenas a «contemplação» artística (Kunstbe-
trachtung, 1936).

Na arquitectura, a omnipotência do Führer era celebrada nas construções


classicistas de um Paul Ludwig Troost, a que se seguiria Albert Speer ( 1905-
-1981) que elevaria à megalomania o desejo de grandeza, de que o Estádio
onde se realizariam as Olimpíadas de 1936 é um dos exemplos, encenando
simultaneamente as grandes paradas e manifestações militares e de massas.

342
O poder totalitário entretinha as massas com arte medíocre, desde a opereta
ao cinema de que não constam apenas produtos de pura propaganda, como
sucede com os filmes de Riefenstahl, ou com Der ewige Jude de Fritz Hippler
ou Jud Sü}J de Veit Harlan (1899-1964), ambos de 1940, primariamente
anti-semitas. Mas era o puro entretenimento que predominava, quer no
cinema, quer na rádio.

A par da arte medíocre e orientada para o apaziguamento das massas, as


festas e celebrações colectivas quebravam o quotidiano cinzento, sob pre-
texto de uma efeméride pseudo-pagã, anunciando o solstício de Verão
(Sommersonnenwende, 21/22 de Junho), de uma homenagem às mulheres
«arianas», recuperando o já existente dia da Mãe, ou do dia do Trabalho,
encenando a vocação operária do partido anti-comunista, a todas as evocações
dos heróis partidários, festividades essas que culminavam no Congresso de
Nuremberga, sempre no mês de Setembro.

Apenas a música parecia querer subtrair-se à mediocridade que carac-


terizou a vida cultural sob o Terceiro Reich. O grande maestro Wilhelm
Furtwangler ( 1886-1954) continuava a servir o ideal da superioridade musi-
cal alemã, artistas e solistas garantiam a reputação internacional. Carl Orff
(1895-1982) e Richard Strauss (1864-1949) acomodar-se-iam ao regime,
mas outros nomes não menos famosos como Paul Hindemith ( 1895-
-1963), Arnold Schõnberg e Kurt Weill (1900-1950) optavam pelo exílio.
Não havia espaço para compositores que cultivavam a música atonal e o
experimentalismo mais radical, vistos como manifestação de arte «bur-
guesa e decadente», quando não degenerada ( entartet), epíteto que era
atribuído ao jazz, critério a que de resto os pressupostos racistas não eram
estranhos: ambas as formas continham em si elementos ou «semitas» ou
africanos.

Entretanto as Leis de Nuremberga (1935) garantiam que a perseguição aos


judeus se acentuasse: ao afastamento dos cargos públicos sucederia a inter-
dição de frequentar lugares públicos.

O entretenimento, a que apenas «arianos» tinham acesso, ajudava, entre-


tanto, a ocultar as crescentes dificuldades económicas resultantes da polí-
tica de armamento, patentes na falta de alimentos (Fettkrise) ou no facto
de a dívida externa aumentar consideravelmente (de 12,9 mil milhões de
Reichsmark em 1933 passar-se-ia para 31,5 mil milhões de RM em 1938).
A insatisfação face aos baixos salários não deixava de se fazer sentir.

É também então que os desejos expansionistas de Hitler se começam a


manifestar, assumindo o Führer o comando da Wehrmacht. No mesmo ano,
uma nova vaga de terror abatia-se sobre os judeus, com o pogrom de Novem-
bro (Reichskristallnacht, na noite de 9 para 10 de Novembro de 1938),

343
\

'

organizado e encenado por Goebbels. Numa fúria incontida e «espontânea»


e perante a estupefacção e a impotência da população, grupos a soldo dos
nazis destroem montras e lojas de membros da comunidade judaica, incen-
deiam sinagogas, matando 91 pessoas e ferindo e violando muitas outras.

Seguir-se-lhe-ão prisões e deportações em massa (30 000).As medidas contra


os judeus agravam-se, originando uma nova vaga de emigrações. No mês de
Dezembro do mesmo ano, iniciam-se as perseguições a ciganos, que se
tornarão mais intensas com o início da guerra, com esterilizações e depor-
tações para campos de concentração.

5.2.4 Entre 1939-1945: o tempo da guerra

Em Março de 1939, os alemães invadem a Checoslováquia, passando a exigir,


pouco depois, à Polónia a devolução de Danzig e do respectivo corredor,
pretensão recusada pela mesma, com apoio franco-britânico. Depois de ter
firmado uma aliança com a Itália (Pacto do Aço), em 22 de Maio de 1939,
Hitler firmará um pacto de não-agressão com Estaline (23 de Agosto de
1939), com uma cláusula secreta que prevê a divisão da Europa Oriental
entre os dois países segundo esferas de interesse.

Com a invasão da Polónia em 1 de Setembro de 1939, a Alemanha esgotará


a capacidade de expectativa da Grã-Bretanha que, com a França, declarará
dois dias mais tarde a guerra à Alemanha.

A ofensiva dirige-se, a partir de então, à Europa Ocidental, com recurso ao


sofisticado equipamento militar, sobretudo através da guerra-relâmpago
(Blitzkrieg). Ocupadas a Dinamarca e a Noruega (9 de Abril de 1940), seguir-
-se-á (10 de Maio), a invasão da Bélgica, da Holanda e do Luxemburgo,
ignorando-se o estatuto de neutralidade desses países.

A guerra que opõe a França à Alemanha será, entretanto interrompida,


quando o governo francês assina, a 22 de Junho, o armistício. Os colabo-
racionistas criarão um governo fantoche em Vichy, sob a anuência de Pétain,
herói da primeira guerra mundial. Mas, pouco depois, De Gaulle lança, de
Londres, o apelo à resistência.

A partir de então, a guerra relâmpago dirigir-se-á, sobretudo, contra a


Inglaterra, com sucessivos ataques aéreos que exigirão a mobilização geral
da população civil.

Com todo este esforço bélico e ao contrário do que sucede nos países
ocupados, a população alemã não conhece grandes sacrifícios de guerra. Tal
situação deve-se não tanto à proverbial organização alemã, como à constante

344
preocupação do poder em manter a população afastada de situações de
carência que possam ocasionar uma nova sublevação como sucedera em 1918
(cf. IV4).

O fornecimento de matérias-primas e de bens alimentares será assim uma


preocupação sempre presente, resolvida ou através de políticas de aliança
- mais ou menos naturais, como sucede com as transacções com a Itália,
Hungria e outros países balcânicos - ou de conveniência: durante o ano de
1941, a União Soviética continuará a abastecer a Alemanha com produtos
essenciais para a sobrevivência da respectiva economia. A ocupação dos
territórios da Europa Ocidental bem como da Europa do Sudoeste terá um
papel decisivo na garantia de fornecimento de produtos alimentares, para
além das alianças com a Itália e o Japão e do apoio tácito da Espanha e da
neutralidade portuguesa.

Mas já em 1939 o Ministerrat für Reichverteidigung passava a centralizar os


esforços bélicos, ao que se sucederia o crescente poder do Ministro do Arma-
mento Speer que, depois de ter elaborado os planos megalómanos da Berlim
de Hitler, punha a sua capacidade de organização ao serviço dos desígnios
expansionistas nazis .

Embora com alterações substanciais na economia, designadamente o reforço


da indústria bélica e a mobilização de recursos, o certo é que a vida quotidiana
não foi totalmente subvertida, nesta fase da guerra. Assinale-se, por exemplo,
que só uma diminuta fracção de trabalho feminino viria a substituir os homens
mobilizados, que o racionamento alimentar seria escasso, quando comparado
com outros países europeus. Na Grã-Bretanha e nos EUA a invasão do espaço labo-
ral pelas mulheres será bastante mais intenso: o poder totalitário sabia preser-
var a imagem da mulher maternal e procriadora, assim obviando a todo o tipo
de artificialismos civilizacionais que incluíam, desde o desejo do afasta-
mento do trabalho no espaço público urbano, ao uso de brincos e de cosméticos.

Apesar desta situação favorável, o poder não se sentia suficientemente


seguro a ponto de não reforçar as suas estruturas com mecanismos de vigi-
lância e de repressão.

As SS controlam o aparelho policial, os julgamentos sumários sucedem-se,


as medidas repressivas sobre os judeus acentuam-se, iniciando-se e refor-
çando-se a política de extradição e aniquilamento.

A propaganda reforça os seus meios de actuação, embora a estratégia nem sempre


seja isenta de contradições. Goebbels prefere uma actuação mais cautelosa,
evitando um triunfalismo excessivo, ponderando a necessidade de não criar
expectativas que não se venham a cumprir. Contudo, o Ministro da Propaganda
mantém-se incansável, organizando conferências de imprensa quotidianas.

345
O cinema exibe habilmente a invasão da Polónia e dos Países Baixos (Kracauer
1979), manipulando os espectadores com técnicas de montagem que já
dominava há muito. O sistema repressivo zela e pune severamente os suspeitos
de ouvir as notícias do campo oposto, designadamente a célebre propaganda
anti-nazi da BBC.

E a indústria da diversão mantém-se: o Barão de Münchhausen (1943) de


Joseph von Baky, com guião de Erich Kastner, ocultado sob o pseudónimo
de Berthold Bürger, sendo o célebre herói da mentira interpretado pelo ídolo
kitsch da cançoneta alemã, Hans Albers, delicia as multidões, a canção «Lili
Marleen» - mais tarde título de outro filme alemão célebre, Lili Marleen
(1980) de Rainer Werner Fassbinder (1946-1982) - entretém mais os
soldados na frente e as populações civis do que Wilhelm Furtwangler, que
põe o seu talento de maestro ao serviço das tropas alemãs.

A 22 de Junho de 1941, Hitler decide atacar a frente oriental, levando a


ameaça nazi até à União Soviética. A partir de então a guerra desenrola-se
em diversas frentes, sucedem-se as vitórias alemãs em múltiplas batalhas, a
consagração do sonho de hegemonia nazi parece iminente.

Mas o ano de 1943 caracterizar-se-á pela inversão da situação vantajosa alemã.


A campanha a Leste revelará que a guerra não será breve, garantindo uma
vitória rápida à Alemanha nazi, sobretudo depois da capitulação em
Estalinegrado, entre 31 de Janeiro e 2 de Fevereiro. Entretanto o conflito
assumira já proporções mundiais, com a declaração de guerra de Hitler aos
EUA, quatro dias depois do ataque japonês a Pearl Harbor em 7 de Dezembro
de 1941. No ano imediatamente a seguir, iniciavam-se as primeiras execuções
de prisioneiros judaicos nas câmaras de gás de Auschwitz.

No início de 1943, Roosevelt e Churchill exigiam, durante a Conferência de


Casablanca (14 a 26 de Janeiro) a «capitulação incondicional» daAlemanha,
ao que o governo nazi responde com um acto de desespero, quando Goebbels
declara a «guerra total», uma enorme acção de propaganda, com vista a
minimizar os efeitos da derrota de Estalinegrado.

Em breve a economia alemã vai à bancarrota. O mercado negro floresce.


A resistência acentua a sua pressão. A deportação de judeus prossegue, as
perseguições e execuções de suspeitos de oposição e de autores de revoltas
torna-se tanto mais violenta. O princípio do fim parece começar a tornar-se
uma realidade: a mobilização de toda a população masculina não consegue
impedir a catástrofe iminente. Himmler ordena que se apague os vestígios
dos campos de extermínio. A fuga das populações alemãs da Europa de
Leste nos territórios reconquistados pelo Exército Vermelho serve ainda de
pretexto para uma propaganda anti-bolchevista reforçada. Mas a Grã-Bretanha
e os EUA continuam a exigir a rendição incondicional.

346
Os aliados não pouparão a população alemã: os constantes bombardeamen-
tos, designadamente de zonas sem importância estratégica que não a da
guerra psicológica, como será o caso do tristemente célebre bombardea-
mento de Dresden, levarão a que a escassez em breve se comece a fazer
sentir. O desaparecimento, quer das habitações com o seu estatuto de sím-
bolo social, quer dos objectos mais insignificantes de uso quotidiano
alterarão o dia a dia dos alemães na guerra. A população infantil e feminina
é evacuada para as zonas menos perigosas. Mas mesmo esta solução, subsi-
diada pelo governo, não evita as consequências negativas provocadas pela
separação das famílias e pelo afastamento do lugar de habitação.

Os últimos anos de guerra parecem fazer prenunciar o seu desfecho: embora


inúmeras revoltas comunistas tivessem sido violentamente reprimidas,
também nos campos de concentração a sublevação se toma possível. Apesar
da dificuldade em obter resultados eficazes, devido ao policiamento, censura
e repressão brutais, a resistência organiza-se, sobretudo no exílio, a nível
nacional e internacional.

Com o desembarque na Normandia, a 6 de Junho de 1944, a resistência


francesa associa-se aos aliados, Paris regressa ao regime democrático,
entrando as tropas americanas em Aachen a 21 de Outubro de 1944 e
iniciando-se a ofensiva soviética na frente alemã em Janeiro de 1945. A 27
do mesmo mês, Auschwitz é libertada pelo Exército Vermelho que depara aí
com cerca de 5000 prisioneiros doentes, que não haviam sido «evacuados»,
depois de Himmler ter dado ordens para que os vestígios do campo de
extermínio fossem destruídos.

A 19 de Março, Hitler ordena a total destruição dos recursos e indústrias


durante a retirada, ordem que Speer não cumprirá. Em Abril, o Exército
Vermelho conquista Viena e, pouco depois, a 2 de Maio de 1945, Berlim.
Entretanto Hitler suicidara-se no seu bunker, a 30 de Abril, seguindo-se-lhe
Goebbels a 1 de Maio. Entre 7 e 9 de Maio o exército alemão capitula no
quartel-general norte-americano em Reims, repetindo-se a cerimónia em
Berlim, no quartel-general soviético.

Quando os aliados vencedores se reunem, a 5 de Junho, em Berlim para


decidir da sorte da Alemanha, a mesma encontra-se em ruínas, o número de
mortos ascende aos 3,76 milhões entre militares e aos 0,5 milhões entre os
civis, o de feridos é de 4 milhões, o de desaparecidos de 1 milhão, o dos
órfãos de guerra de 1,4 milhões , o de viúvas de mais de 1 milhão. Mas, do
lado dos vencedores, as perdas não são menores. De entre 5,7 milhões de
prisioneiros de guerra soviéticos, apenas 3,3 milhões sobreviveram o cati-
veiro. O total das vítimas da guerra mundial é de cerca de 55 milhões, embora
todos estes números sejam de difícil confirmação.

347
O número dos mortos nos campos de extermínio é, não esquecendo os ciganos
e os presos políticos, impossível de ser contabilizado, ascendendo certamente
aos milhões.

Mas também para aAlemanha soava agora a «hora zero» (Stunde Null), esse
momento de ruptura definitiva com o sonho da hegemonia alemã, vivido em
cidades arrasadas e pilhadas e sem outras referências passadas que não a do
sonho absurdo e totalitário do Führer, que o desfecho da guerra traíra.
Contudo, essa hora fora também aguardada ansiosamente por muitos ale-
mães que haviam resistido activa ou passivamente a esses anos totalitários.

5.3 Exílio, emigração e resistência

O exílio teve razões e consequências extremamente diversas. Pôde ser for-


çado ou voluntário e teve inúmeras motivações: desde a simples fuga, à
emigração temporária ou definitiva, com particular destaque para os inte-
lectuais e cientistas. Mas também a resistência política no estrangeiro pas-
sou a desempenhar um papel crescente, incapacitada como se encontrava no
interior, face ao aparelho repressivo que o poder criara.

Apesar da repressão imediatamente exercida pelos nacional-socialistas sobre


a esquerda, logo em 1933, a oposição subestimou a situação, pensando, quer
comunistas, quer sociais-democratas que se estava perante uma situação
semelhante à vivida durante a época do Sozialistengesetz, na era guilhermina
(cf. Cap. IV.2) .

O certo é que a acção clandestina se tornava impossível no interior: todas as


tentativas de reorganizar os partidos na Alemanha deparavam com um
policiamento particularmente eficaz através da infiltração de agentes
provocadores que permitiam o seu desmantelamento logo após a sua
activação.

A incapacidade de avaliar as consequências do poder totalitário levaria


milhares de comunistas à prisão e aos campos de concentração. Simultanea-
mente a vida sindical também era aniquilada, restando apenas a organização
no exílio.

Com o início da guerra, os contactos com o exterior tanto mais difíceis se


tornaram, vendo-se simultaneamente os comunistas alemães confrontados
com as consequências do Pacto Hitler-Estaline. Contudo, depois das pri-
meiras derrotas a Leste, tanto estes como os seus adversários sociais-
-democratas restabeleceram as suas esperanças numa derrota da Alemanha
nazi.

348
Apesar de uma tentativa de união de esquerda no Verão de 1935 através da
Frente Popular Alemã (Volksfront), unindo todas as forças contra o regime
de Hitler, em breve a colaboração com o Partido Comunista se revelou vã,
na medida em que este apenas estava interessado na instrumentalização dessa
aliança, segundo os seus interesses. Tal correlação de forças não deixaria de
influenciar a situação da Alemanha no pós-guerra, acentuada pela «guerra
fria», levando à criação em 1949 dos dois Estados alemães, a República
Federal da Alemanha e a República Democrática Alemã.

A evolução da situação e, sobretudo a eclosão da guerra levara, entretanto, a


que a emigração - que gradualmente deixara apenas de dizer respeito à
esquerda, passando a abranger liberais, conservadores e mesmo antigos
membrôs do NSDAP- se interrogasse sobre a sua corresponsabilização no
decurso dos acontecimentos.

Embora descrentes de que se tratasse apenas de uma luta entre a liberdade e


a ditadura, os opositores viam como único modo de contribuir para a queda
do regime a colaboração nem sempre fácil com os aliados que olhavam
qualquer cidadão alemão, mesmo no exílio, com suspeitas.

Foi esta situação que levou inúmeros exilados a combater a tese segundo
a qual o desastre nacional-socialista se resumiria a um assunto especifi-
camente alemão, substituindo, porém, esse programa, sobretudo a partir
de 1943 - depois de terem tomado conhecimento dos projectos que pre-
tendiam privar a Alemanha dos territórios polacos - , por planos de reor-
ganização da vida política democrática, uma vez ganha a guerra contra
Hitler.

Tal decisão correspondeu simultaneamente à ruptura definitiva dos sociais-


-democratas com os partidos com apoio soviético, optando claramente pelo
modelo do parlamentarismo ocidental, o que teve uma influência decisiva
no pós-guerra.

A resistência fez-se igualmente sentir entre os oficiais da Wehrmacht, con-


duzindo ao atentado fracassado de 20 de Julho de 1944, organizado pelos
círculos em torno de Helmuth von Moltke ( 1907-1945), o chamado «círculo
de Kressau» ( Kressauer Kreis) e que a historiografia pode agora provar
não ter sido apenas uma tentativa desesperada de pôr termo a uma guerra
por si já perdida, mas tratar-se antes de um plano longamente preparado.
Representado, sobretudo, pelo corpo de oficiais, o mesmo estabelecera
ligações com membros da diplomacia, da oposição mais conservadora, com
representantes dos trabalhadores, de organizações sindicais e membros da
Igreja.

Recorde-se que também entre estes últimos, e apesar da política de conivên-


cia de ambas as Igrejas, se verificou frequentemente uma atitude de reserva

349
mental e de resistência passiva, pouco visível e espectacular, é certo, de eficá-
cia difícil de avaliar, mas que não impediu que alguns membros dos seus
fiéis fossem executados e deportados, face a tomadas de posição mais notórias.

Inúmeros cientistas e intelectuais, foram obrigados a emigrar, representando


assim um enorme défice para aAlemanha. Na sua maioria de origem judaica
e/ou suspeitos de simpatias de esquerda, sobretudo os intelectuais, viriam a
constituir uma importante força moral exemplificativa de uma outra Ale-
manha depois da guerra.

5 .4 A «solução final»

Contudo, as principais vítimas do regime de Hitler foram os judeus. É certo


que a Alemanha conhecera já antes do regime nacional-socialista impor-
tantes focos de anti-semitismo, particularmente a partir da época guilher-
mina (cf. Cap. IV2).

Mas, por outro lado e independentemente das importantes questões que o


tema só por si levanta numa perspectiva histórica internacional mais alargada
(cf. Mosse 1985, Geiss 1988, Greive 1983), na Alemanha viviam desde o
século XVIII, grupos de origem confessional judaica, embora grande parte
tivesse vindo a assimilar-se gradualmente. Esta população via-se confron-
tada com a persistente emigração de judeus oriundos do Leste da Europa
(Polónia e Rússia). Dado o estatuto economicamente mais desfavorecido
destes últimos, a xenofobia desenvolveu-se, sobretudo, face a estes grupos,
xenofobia essa de resto, até certo ponto, partilhada pelos judeus assimilados
(cf. Cap. IV2.8).

Embora minoritários - a emigração decrescera desde 1880, contando-se na


Alemanha apenas 503 000 judeus, o que correspondia a apenas 0,76% da
população alemã - , o certo é que os judeus alemães ou se encontravam
concentrados em regiões urbanas, sobretudo Berlim, ou exerciam impor-
tantes cargos nas profissões liberais, sobretudo como médicos e advogados,
constituindo também uma elevada percentagem de importantes agentes da
economia privada. Nomes como os de Rathenau, Edmund Husserl (1859-
-1938), Walter Benjamin, Adorno, Horkheimer, Herbert Marcuse, Hannah
Arendt ( 1906-197 5), Arnold Schõnberg, Norbert Elias, Albert Einstein ( 1879-
-1955), Freud, Fromm, Bruno Bettelheim ( 1903-1990), Siegfried Kracauer,
Dõblin, Lion Feuchtwanger ( 1884-1958), entre muitos outros, revelam não
só a importância que teve para a cultura da República de Weimar essa
extraordinária simbiose, como dão a ver as perdas, nalguns casos irreme-
diáveis, que a emigração e perseguição acarretaram consigo.

350
As perseguições começaram a fazer-se sentir logo em 1933, com boicotes a
estabelecimentos judaicos, sucedendo-lhe o afastamento dos membros da
comunidade judaica dos cargos estatais, a que se seguiria a «arianização»
das empresas judaicas.

Mas a medida de maior alcance foram as tristemente célebres «Leis de Nurem-


berga» (Nürnberger Gesetze ou Reichsbürgergesetz) de 1935 que passavam
a distinguir entre os «cidadãos de sangue alemão ou de tipo afim»
(Reichsbürger deutschen oder artverwandten Blutes), dotados de plenos
direitos de cidadania e aqueles que eram meros «cidadãos». Os critérios de
distinção eram pseudo-científicos e absurdos na medida em que a distinção
entre «ariano», «judeu puro» (Volljude) e «mestiço de primeiro grau»
(Mischling 1. Grades) ou «de segundo grau» (Mischling 2. Grades) se
baseavam nas práticas religiosas dos antepassados, algo impossível de
controlar a partir da terceira geração. Contudo, dezenas de milhares de
Halbjuden (isto é com dois avôs judeus) fizeram parte do exército alemão
durante a guerra, de resto com o beneplácito do Führer que se reservara, no
artigo 7. 0 das Leis de Nuremberga, o direito de «arianizar» pessoas com
antepassados judeus (Bryan Mark, «Riggs Liste» em Die Zeit, n.º 15 de
4.4.97, pp. 11-13).

Com base na distinção entre «arianos» e «não-arianos», todos os judeus


foram sendo progressivamente afastados dos seus postos, incluindo gradual-
mente notários, professores, universitários, farmacêuticos, atingindo a
situação o seu paroxismo com a «noite de Cristal» de 9 para 1Ode Novembro
de 1938, que iniciaria uma nova fase na política de perseguição aos judeus.
Para além da exploração financeira, já praticada anteriormente e que obrigava
os judeus a declarar as suas fortunas e a pagar uma «multa» que viria a
render milhares de Reichsmark ao Estado nazi, os judeus viam-se agora não
só privados de frequentar piscinas, cinemas e outras zonas de recreio, como
lhes passou a ser interdita a liberdade de circulação, ocupar cargos públicos,
frequentar escolas ou universidades estatais, bem como exercer qualquer
actividade económica.

A política de expulsão e emigração forçada em breve seria substituída,


sobretudo depois do início da guerra, pela política de extermínio, decisão
tomada a 20 de Janeiro de 1942, com vista «à solução final da questão
judaica», seguindo os métodos sistemáticos de liquidação já empregues
em doentes psiquiátricos em Agosto do ano anterior: a Auschwitz jun-
taram-se os campos de extermínio de Belzec, Sobibor, Treblinka e Majdanek.

A historiografia discute acerca do carácter premeditado deste acto crimi-


noso, designadamente acerca da responsabilidade de Hitler ou da população
alemã, enquanto colectivo - maioria silenciosa que ignoraria os excessos,

351
mas testemunhou todas as sevícias e humilhações públicas, desde as
interdições anteriormente assinaladas, ao uso de uma estrela como símbolo
de uma «raça» inferior que passou a corporizar tudo aquilo que alimentava
os receios e as frustrações de um povo a braços com uma difícil identidade
nacional.

Discute-se acerca dos números de vítimas. Dificilmente se pode explicar ou


compreender. Daí que séries televisivas como Holocausto (1978) ou filmes
como Shoa de Claude Lanzmann (1985) e A Lista de Schindler de Steven
Spielberg (1993) tenham sempre o mérito de indignar e recordar um dos
mais atrozes crimes perpetrados, como Günther Anders o soube reconhecer.
Mas a maior parte das vezes resta apenas a constatação da incapacidade
de recordar ou de fazer o luto (Mitscherlich 1984) desse crime que, recal-
cado, persiste. Ou como escreveu Günther Anders, a propósito de Auschwitz:

«Und dabei haben wir noch keinen einzigen Toten gesehen», flüsterte sie.
«Eben», flüsterte ich zurück, «So tot sind sie».
«Wie meinst du das?»
«Daf3 ja sogar noch Tote irgendwie noch da sind. Aber was wir gesehen
haben, ist blof3 ihr Nichtdasein. Freilich in der Form von Dingen, die noch
da sind. ln Form ihrer Koffer, ihrer Berge von Koffern, ihrer Brillen, ihrer
Berge von Brillen, ihrer Haare, ihrer Berge von Haaren, ihrer Schuhe,
ihrer Berge von Schuhen. Gesehen haben wir also, daf3 unsere Dinge, wenn
sie noch verwendet werden konnen, begnadigt werden, wir dagegen nicht.
Und das gesehen zu haben, ist sehr viel schlimmer, als wenn du die
Leichname gesehen hattest». (Anders 1977: 270)
( ... ) Denn Millionen Ermorderte nicht trauern zu konnen, ist nicht ein Manko
der Deutschen, dessen ist in derTat niemand fahig. Freilich bedeutet dieses
Zugestandniss nicht, daf3 man sich bei dieser Unfahigkeit beruhigen dürfe.
Mindestens darüber, daf3 man angemessenenes Trauern nicht leisten konne,
über diese Unfahigkeit sollte man trauern. (Anders 1979: 179)

352
Bibliografia aconselhada

Sobre a historiografia consulte Ayçoberry 1979, Evans 1987 e Benz et al.


1998. Para uma súmula dos principais acontecimentos e indicações
bibliográficas mais pormenorizadas leia Brozsat 1995, Erdmann 1993 e
Benz et al. 1998. Sobre a relação dos alemães com o passado nazi veja-se
Mitscherlich 1984.

Actividades propostas

• Leia os seguintes textos e analise as suas posições relativamente aos


limites da estética perante o Holocausto:

(...) nach Auschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch, und daJ3
friJ3t auch die Erkenntnis an, die ausspricht, warum es unmõglich ward,
heute Gedichte zu schreiben. (Adorno 1977: 26)
Eindrücke, die man nicht ausdrücken kann, bleiben nichts als Ein-
drücke . Adornos Wort über die Unmõglichkeit, nach Auschwitz
Gedichte zu dichten, ist wahrer, ais er es selbst geahnt hat. Niemand
wird je behaupten, daJ3 unsere Sprache ausreiche, um Auschwitz in
Worte zu fassen. (Anders 1977: 191)

• Releia o capítulo «Os anos 20» e articule com as referências contidas


no presente texto.

M. R. S.

353
t "i*

6. A Alemanha contemporânea
Resumo

Apresentam-se as fases principais da evolução económica, política e


cultural da Alemanha, desde o pós-guerra até à reunificação, e explica-se
a divisão do país e o confronto de dois sistemas (federalismo democrático
- totalitarismo centralista) a partir do contexto internacional da época.

Na comparação histórica dos dois estados alemães salientam-se a aprendi-


zagem da democracia na RFA e as contradições que levam ao fracasso do
regime socialista na RDA.

Descreve-se a reunificação na sequência da desintegração da União Sovié-


tica e do Pacto de Varsóvia que coloca a Alemanha contemporânea numa
situação sócio-cultural particular, entendida a partir da própria história alemã
e dos problemas estruturais gerais na Europa actual.

Objectivos

• Compreender a situação sócio-cultural da Alemanha actual.

• Conhecer a evolução sócio-económica e política do pós-guerra.

• Distinguir as fases principais da história dos dois estados alemães.

• Entender o processo de reunificação e os problemas sociais daí


decorrentes.

357
Para entender os problemas que a Alemanha actual enfrenta e que, sem dúvida,
ainda continuarão pelo século XXI dentro, é preciso remontar ao fim do III
Reich em 1945. De facto, a RFA, tal como se apresenta neste momento em ter-
mos territoriais, políticos, sociais e culturais, é o resultado duma determinada
constelação histórica na Europa Central na fase final da Segunda Guerra Mun-
dial. Com a capitulação militar incondicional de 7 e 9 de Maio e a subsequente
ocupação do território alemão pelos aliados termina o império criado em 1871
(com as respectivas amputações territoriais de 1918, nomeadamente Posen,
a Alsácia-Lorena e a Prússia Oriental) e o estado nazi e o seu totalitarismo
que arrastou mais de 60 países para uma guerra devastadora com mais de 50
milhões de mortos. Em face do imperialismo nazi, a «Declaração das Nações
Unidas» de 21 de Janeiro de 1942 já tinha proclamado uma política de segu-
rança global que levou à constituição formal das Nações Unidas que coincidiu
com o fim da guerra. É nesta perspectiva duma tutela internacional que se
situa também a proclamação dos aliados de 5 de Junho de 1945 que reclama
o poder político integral para as forças de ocupação na Alemanha vencida.

Por outro lado, começa em 1945, ao nível das mentalidades e sobretudo da


consciência nacional, um complexo processo de recalcamento, de reeduca-
ção forçada (Entnazifizierung) e de reorientação ideológica cujos factores
mais importantes para o futuro serão a difícil aprendizagem da democracia,
uma progressiva autonomização política e uma internacionalização
cultural e civilizacional que virão a mudar por completo a vida dos alemães.

6.1 O pós-guerra

Na situação caótica da Alemanha destruída e ocupada no fim da Segunda Guerra


Mundial, destacam-se, numa síntese retrospectiva, quatro aspectos dominantes:

• uma forte migração de refugiados e soldados desarmados que


modifica profundamente a estrutura social e demográfica alemã;

• a reconstrução das cidades e das infra-estruturas destruídas pela guerra


e, mais tarde, a controversa reorganização da economia que dará origem
a dois sistemas concorrentes (economia de mercado vs. economia
planificada);

• a instauração dum federalismo administrativo como reacção ao poder


centralista do império nacional-socialista e;

• uma progressiva polarização política nacional e internacional que


levará à existência de dois estados alemães cujo confronto dominará
a segunda metade do século XX.

359
6.1.1 Migrações e modificações sociais

Com a entrada dos exércitos aliados em solo alemão e a redefinição terri-


torial da Alemanha decidida na conferência de Potsdam, realizada de 12.7.
a 2.8.1945, começa uma migração que abrange, durante os primeiros anos
do pós-guerra, cerca de 12 milhões de pessoas. Grande parte desta migração
deve-se ao êxodo dos alemães atingidos pela redefinição territorial da Polónia
que estabelece a fronteira oriental alemã, segundo uma linha formada pelos
rios Oder e Neisse(Oder-Neisse-Linie), e atribui as regiões polacas orientais
e a Prússia Oriental à União Soviética. Esta perda de territórios que faziam
ainda parte do Reich está na base de um sentimento de «revanchismo» por
parte dos refugiados que se prolongará até ao fim do século XX e que só
desaparecerá, provavelmente, com as novas gerações que já não viveram a
guerra e as primeiras décadas da divisão alemã.

As divergências entre os aliados, que se fazem sentir desde 1945, levam a


uma certa autonomia na governação das quatro zonas de ocupação. Em
Setembro de 1947, a instalação da Bizane (Estados Unidos, Inglaterra),
conduz a uma divisão administrativa e económica que prefigura a criação de
dois estados alemães. Assim, entre 1945 e 1949, várias centenas de milhares
de pessoas deslocaram-se da zona soviética e de Berlim-Leste para o Oeste.
A partir desta época, a Alemanha e, sobretudo, a RFA não deixa de receber
refugiados e estrangeiros cujo número ultrapassa de longe as migrações que
sempre se verificaram em território alemão.

Enquanto a integração dos refugiados da Segunda Guerra (Vertriebene) é


facilitada pela reconstrução económica e a grande falta de mão-de-obra, a
imigração dos chamados Gastarbeiter a partir de 1955 provocará, a longo
prazo, uma série de problemas sociais que afectam directamente a identi-
dade da Alemanha numa Europa em plena transformação (cf. Cap. IV.7).
Enquanto o termo administrativo ausliindische Arbeitnehmer (trabalhadores
estrangeiros) é muito mais abrangente (incluindo as populações que trabalham
do outro lado da fronteira, mas também habitantes dos países anglo-
-americanos e nórdicos), os primeiros Gastarbeiter vêm de países do Sul,
com estruturas sociais e económicas diferentes. Assim, o termo não indica
só o estatuto precário destas pessoas, mas também a sua inferioridade social
em relação ao nível de desenvolvimento na Europa Central.

A consequência mais directa destas migrações será uma modificação da


estrutura social regional em termos duma maior diversificação e mobilidade
profissional e religiosa. Regiões predominantemente católicas recebem
famílias de outras confissões e etnias, pequenas e médias indústrias insta-
lam-se em zonas rurais e nas grandes cidades concentram-se populações de
origens variadas. Esta dissolução forçada de estruturas e comunidades estáveis
(e da respectiva identificação territorial) causa uma desorientação que implica,

360
por seu lado, uma aprendizagem difícil para uma população com uma longa
prática de tradições regionalistas-e, porventura, racistas e xenófobas. Tanto
mais que, na propaganda nacional-socialista, este provincianismo alemão se
solidificara numa mitologia nacional que resiste, em parte ainda hoje, a
atitudes mais cosmopolitas e interculturais. O medo duma predominância
estrangeira (Überfremdung) remete para uma precária identidade nacional e
cultural que deve adaptar-se a um mundo cada vez mais diversificado e, pelo
menos no contexto europeu e atlântico, mais uniformizado.

6.1.2 Evolução económica

Enquanto, durante os dois primeiros anos do pós-guerra, a sobrevivência


quotidiana e a reconstrução provisória das estruturas sociais são uma
prioridade imperativa, com a lenta e progressiva normalização das condições
de vida, colocam-se questões de fundo sobre o futuro rumo económico da
Alemanha. A aliança entre o grande capital e a ditadura nacional-socialista
tinha deixado uma forte desconfiança a respeito do capitalismo moderno e
favoreceu, mesmo no programa de Ahlen do CDU de 1947, perspectivas
mais sociais e mesmo socialistas. As reparações a pagar às forças aliadas, o
desmantelamento da indústria pesada e química tradicionais e a desmonta-
gem de fábricas inteiras na zona soviética contribuíram para a necessidade
duma reorientação económica.

Por outro lado, a ajuda americana (o plano Marshall -European Recovery-


-Program - de Junho de 1947-1952 que contemplava as zonas ocidentais
da Alemanha e a ajuda alimentar CARE - Cooperative for American
Remittances to Europe, 1946-1960 - de particular importância no difí-
cil ano de fome de 1947), a reforma monetária de 1948 nas zonas ociden-
tais para travar a inflação e pôr cobro ao mercado negro e o empenho
incondicional dos aliados durante o bloqueio de Berlim (de Junho de 1948
a Maio de 1949) inclinaram a opinião pública e o poder administrativo
para o liberalismo económico. Com a fundação de dois estados alemães,
a economia de mercado define-se claramente em oposição a uma economia
socialista planificada. A conjuntura económica dos anos 50 (o Wirt-
schaftswunder favorecido por um mercado internacional propício à
exportação na sequência da guerra da Coreia de 1952) confirma esta
opção que é, desde 1949, ideologicamente modalizada por uma ver-
tente social (soziale Marktwirtschaft) representada pela figura popular
de Ludwig Erhard ( 1897-1977, Ministro da Economia de 1949 a 1963
e chanceler de 1963 a 1966). No início dos anos 50, a RFA já está
completamente integrada no contexto económico europeu e atlântico
(Westbindung), contexto esse que se apresenta, ao mesmo tempo, como

361
garante de segurança internacional e estabilidade política no quadro das
democracias ocidentais.

6.1.3 Reconstrução do sector administrativo e público

Se os aliados assumem formalmente o poder na Alemanha do pós-


-guerra (instalação do Kontrollrat em Junho de 194 7), a administração
local integra, desde o início, personalidades e entidades alemãs . São
publicados, desde Setembro de 1945, jornais alemães sob controle dos
aliados e, entre 1946 e 1948, aparecem novos partidos políticos (CDU e
FDP, entre outros), estações de rádio, sociedades científicas (Max-
-Planck-Gesellschaft) e uma nova central sindical (DGB - Deutscher
Gewerkschaftsbund). Enquanto o SPD, na zona soviética, se funde em
Abril de 1946 com o KPD para formar o SED (Sozialistische Ein-
heitspartei Deutschlands), o SPD ocidental sob a liderança de Kurt
Schumacher (1895-1952) segue uma via independente e pacifista, defen-
dendo um socialismo democrático que aposta na independência da
Alemanha.

A desnazificação dos alemães, decidida na conferência de Potsdam, rea-


liza-se sob a forma de inquéritos e processos, sendo as figuras sobrevi-
ventes mais destacadas do regime nazi julgadas e, em doze casos, executa-
das em Nuremberga (1945-1949). O saneamento político dos serviços
públicos e da economia, porém, abranda nas zonas ocidentais desde
1948 face às necessidades administrativas que não conseguem prescin-
dir completamente de funcionários e especialistas que já estavam ao ser-
viço do nacional-socialismo. Por outro lado, os Estados Unidos, tal como
a União Soviética, não hesitam em recuperar, logo depois da guerra,
especialistas das tecnologias de ponta (aeronáutica espacial etc.), como
Wernher von Braun ( 1912-1977), para reforçar a sua própria posição militar
e política.

A nível cultural, a política de isolamento do regime, tal como a emigração e


o assassínio de muitos escritores, artistas e cientistas judeus causaram uma
ruptura que se faz sentir particularmente nos primeiros anos do pós-guerra.
O mito duma «hora zero» (Stunde Null), porém, corresponde mais a um
apagamento do passado do que aos recomeços reais duma vida cultural que,
sobretudo nas grandes cidades, privilegia o divertimento e a evasão no meio
da miséria e das carências materiais.

Significativo, neste aspecto, é um pequeno artigo do primeiro número do


Spiegel, de 4 de Janeiro de 1947, sobre os filmes apresentados em Berlim

362
nesta altura onde se constata que uma grande parte do público recusa repre-
sentações realistas:

Das wirkliche Leben, hieB es, namentlich auch unter den Frauen, sei heute
traurig genug. Im Kino wolle man sich erholen, wolle man «vergessen»,
aber nicht an die Note des Alltags erinnert werden. Ruinen und zerlumpte
Heirnkehrer (... ) wolle man nicht mehr sehen. Man wolle freundlichere
Eindrücke haben. (p. 20)

Reeducação e esquecimento, crítica e evasão dum quotidiano triste e difícil,


é entre estes pólos que oscila a vida cultural do pós-guerra e ainda dos anos
50. Esta tendência escapista verifica-se sobretudo no cinema e na música,
com o Schlager alemão, as revistas e operetas, por um lado, e a continuação
do culto da música clássica, por outro. A produção cinematográfica, que
recomeça já em 1946, privilegia durante as duas primeiras décadas do
pós-guerra, o género ligeiro e nostálgico, como o Heimatfilm que entu-
siasma o público dos anos 50, e o filme histórico ao nível da literatura de
cordel, cujo exemplo mais popular serão os três filmes sobre a imperatriz
austríaca Elisabeth (Sissi 1955-1957), representada por Romy Schneider
(1938-1982).

A vontade de recuperar o tempo perdido e de esquecer as atrocidades da


guerra, por um lado, e a necessidade de reflectir sobre o passado e de encon-
trar uma explicação para os crimes da ditadura, por outro, dividem os ale-
mães e geram controvérsias e conflitos exacerbados. É neste contexto
que se situa também a discussão sobre a culpa colectiva (Kollektivschuld)
do povo alemão que agita a opinião pública até hoje. Prova disso foi a
discussão sobre o livro do historiador americano Daniel Jonah Goldhagen
( 1996) que insiste na participação de centenas de milhares de alemães
na exterminação dos judeus na base dum anti-semitismo eliminatório
generalizado, e os ataques de meios oficiais e conservadores contra uma
exposição do Hamburger Institut für Sozialforschung sobre a frequente
participação do exército alemão nos crimes de guerra (Vernichtungskrieg.
Verbrechen der Wehrmacht 1941-1944) 1• Ambos os casos mostram claramente ' O exército foi responsável,
desde 1941 , pela morte de
que muitos alemães nunca chegaram a assumir e a discutir publicamente o mais de 3 milhões de prisio-
passado nacional-socialista. Por outro lado, o grande interesse público neiros russos e pelo massacre
de milhares de civis inocentes
que o livro de Goldhagen tal como a exposição sobre o exército alemão na (cf. Heer/Naumann I 995).
II Guerra Mundial encontraram na Alemanha (a exposição foi exibida
de 1995 a 1997 em mais de vinte cidades), parece indicar que uma parte
substancial da população e sobretudo os jovens são sensíveis a uma história
cujas sequelas ainda afectam a identidade nacional.

Se a RDA sempre insistiu, pelo menos oficialmente, num anti-fas-


cismo declarado, a RFA não conseguiu demarcar-se claramente do fas-
cismo. Uma série de escândalos à volta de altas personalidades directa-

363
mente envolvidas no nacional-socialismo indicam a persistência de
valores como disciplina, lealdade e obediência que favorecem uma men-
talidade servil ( Obrigkeitsdenken) que dificilmente se deixa conciliar
com uma democracia moderna que submete o próprio estado à crítica dos
cidadãos.

6.1.4 A divisão alemã

O crescente desentendimento entre a União Soviética e os aliados ocidentais


culmina, já em 1948, numa série de acontecimentos que aprofundam
irreversivelmente as diferenças entre a zona soviética e aBizane anglo-ame-
ricana. A saída da União Soviética do Kontrollrat em Março, a reforma
monetária em Junho e a sua aplicação aos sectores ocidentais de Berlim e o
subsequente bloqueio da cidade, que sobreviveu graças a uma ponte aérea
dos aliados durante onze meses, evidenciam um antagonismo político e
económico que leva ao confronto permanente de dois blocos mundiais em
solo alemão. O estatuto específico de Berlim, que prevê uma administração
comum dos quatro aliados, transforma a cidade num foco de conflitos e, na
sequência das várias crises daí resultantes nos anos 50 e 60, num símbolo de
liberdade e resistência para a RFA. A fundação da República Federal em
Maio de 1949 e a da RDA em Outubro do mesmo ano, após várias semanas
de negociações secretas em Moscovo, institucionalizam finalmente a divisão
alemã.

Enquanto a RFA instala um sistema federativo, tal como já existira no


Vormiirz com a Liga Alemã, no império criado por Bismarck e ainda na
República de Weimar, a RDA segue o modelo soviético da república
. popular com uma administração centralista e dirigista. O federalismo ale-
mão não só criou, na RFA, doze Liinder com uma autonomia administrativa
e política notável, mas favoreceu também uma diversificação cultural que se
revelou bastante produtiva e útil. Duma maneira geral, os diferentes siste-
mas políticos e económicos nos dois estados alemães correspondem às
orientações básicas divergentes das duas grandes potências e às persona-
gens e forças políticas que surgem neste contexto. Enquanto Konrad
Adenauer (1876-1967) prossegue duma maneira decidida a integração da
RFA nas alianças ocidentais na base dum anti-comunismo intransigente,
Walter Ulbricht ( 1893-1973) representa a ortodoxia comunista e a imposição
duma economia socialista na RDA. Assim, a Alemanha segue deliberada-
mente o caminho da divisão, enquanto a Áustria, igualmente ocupada em
1945, consegue recuperar a sua independência a troco de uma neutralidade
que o primeiro governo da RFA nunca quis considerar como alternativa
possível.

364
6.2 As duas Alemanhas

Na história dos dois estados alemães, a alternância de governos ou de


figuras dominantes como KonradAdenauer, Walter Ulbricht e Willy Brandt
( 1913-1992), não corresponde sempre a mudanças de fundo que abrangem a
sociedade inteira. Neste sentido, o historiador Dietrich Thranhardt distingue
na sua Geschichte der Bundesrepublik Deutschland 1949-1990 (1996: 16-
-18) três fases:

1) 1945-1961: uma época de reconstrução e de integração no mundo


ocidental que leva à divisão do país e que conhece, na era Adenauer,
o milagre económico e uma democratização dos principais estruturas
públicas. Nesta perspectiva, a fundação da RFA (como a da RDA)
aparece como o resultado de decisões e orientações político-económi-
cas na sequência da Segunda Guerra Mundial. O consenso geral
anti-comunista na RFA traduzia-se numa atitude intransigente frente
ao bloco de Varsóvia, e a construção do muro de Berlim em 1961
mostra que a política da integração ocidental levou finalmente à
consolidação da divisão alemã.

2) 1961-1974: reformas e mudanças. O progressivo aumento do SPD


nas eleições autárquicas e regionais reflecte a necessidade de novas
perspectivas tanto na política interna como nas relações com os países
de Leste. Temas centrais como a segurança social, a saúde, o ambiente
e o ensino começam a ocupar um lugar cada vez mais importante na dis-
cussão pública, e a política de aproximação, que Willy Brandt pratica
em Berlim com as autoridades da RDA, é alargada, a partir de 1969, a
uma nova Ostpolitik que traz uma normalização considerável nas rela-
ções com a União Soviética e a Polónia e um certo entendimento prag-
mático com a RDA Toda esta época se caracteriza ainda pela con-
fiança no crescimento económico e numa política social abrangente.

3) 1974-1989: recessão e crises. A crise energética de 1974 ( Ôlschock)


significa o fim do optimismo económico e uma progressiva cons-
ciencialização que evidencia a extrema vulnerabilidade das eco-
nomias ocidentais e os limites do poder (financeiro e administrativo)
do estado. O aparecimento duma nova força social, que se condensa
nos movimentos de protesto (Bürgerinitiativen) e no Partido dos
Verdes, mostra a incapacidade dos partidos tradicionais para
ultrapassar as crises estruturais que afectam a sociedade alemã.
A desintegração do bloco de Leste e a queda do muro em 1989
significam o fim da guerra fria e da antiga RFA; a Alemanha
reunificada, com os seus problemas específicos, já se situa numa
Europa diferente e, na sua parte oriental, ainda pouca definida.

365
6.3 Os anos 50

A primeira década na história dos dois estados alemães é caracterizada por


uma progressiva consolidação política e económica, ainda que a morte de
Estaline em 1953 e a revolta popular na RDA em 13 de Junho do mesmo ano
ponham temporariamente em perigo a posição do SED. O tratado de Maio
de 1952 (Deutschlandvertrag) equivale à suspensão do estado de ocupação
que é substituído no ano seguinte pelos tratados de Paris que garantem o
estatuto de Berlim, reconhecem o direito de representação exclusiva da RFA
(Alleinvertretungsanspruch) e preconizam a fundação da União da Europa
Ocidental (WEU). A União Soviética, cujo plano de paz de 1952, com uma
possível reunificação duma Alemanha neutra, tinha fracassado devido às
excessivas exigências territoriais e políticas do governo federal, recusa os
tratados de Paris e propõe mais uma vez a reunificação alemã para travar a
integração da RFA no Tratado do Atlântico Norte.

Em Maio de 1955, é proclamada a plena soberania da RFA que ingressa


imediatamente na NATO, o que provoca a constituição do pacto de Varsóvia
sob a liderança da União Soviética e, em Setembro, a declaração da soberania
da RDA. A visita de Adenauer a Moscovo, no mesmo mês, resulta, porém,
no estabelecimento de relações diplomáticas e no regresso dos últimos pri-
sioneiros de guerra. Por outro lado, a integração dos dois estados alemães
em blocos militares internacionais implica a remilitarização das duas par-
tes e impossibilita, assim, durante várias décadas qualquer esperança duma
reunificação. O governo de Adenauer decide, contra uma forte oposição
interior, a criação da Bundeswehr em 1955 e um ano depois é criada a
Nationale Volksarmee (NVA) como contributo militar da RDA para o pacto
de Varsóvia. Em 1957, Franz-Josef Strauss (1915-1988), o novo ministro da
defesa, chega a exigir, com o apoio de Adenauer, armas nucleares para o
exército alemão, o que provoca o protesto público de 18 cientistas (Gottinger
Appell der Atomwissenschaftler) que teve uma enorme ressonância mediática.
Adenauer recua, mas negoceia em Novembro um protocolo secreto com a
França e a Itália sobre a produção comum de armas nucleares, anulado em
1958 por de Gaulle, cujas ambições militares nacionais acabam com as
pretensões alemãs de se tomar numa potência nuclear.

Com o rearmamento bilateral da Alemanha, a «guerra fria» ganha uma


nova dinâmica que se manifesta, na RFA, com a interdição do partido
comunista (17 de Agosto de 1956) e a doutrina Hallstein (segundo o diplo-
mata Walter Hallstein) que visa o isolamento internacional da RDA ao
declarar incompatíveis as relações diplomáticas entre um estado terceiro e
os dois estados alemães. A nível europeu, o referendo no Saarland ainda
ocupado pela França abre o caminho para a reintegração deste território na
RFA, eliminando assim o último ponto controverso nas relações franco-

366
-alemãs, favorecendo a reconciliação de dois países que se tinham confrontado
como inimigos desde a Revolução Francesa. O tratado franco-alemão de
1963, assinado solenemente por de Gaulle e Adenauer, será o ponto alto
desta reconciliação oficial que aproxima também os dois povos através dum
aumento considerável do intercâmbio cultural, escolar e económico.

Embora marcados pela divisão alemã e a agudização da guerra fria, os anos 50


foram, na RFA, uma época de reconstrução e de esperança. A dinâmica do
milagre económico, a prosperidade crescente e a perspectiva dum enquadra-
mento militar e político internacional da jovem república criaram uma esta-
bilidade relativa que a política autoritária de Adenauer aproveitou habilmente.
O slogan eleitoral «Keine Experimente» traduz muito bem esta atitude que
teve um largo apoio eleitoral (como o revela a maioria absoluta do CDU nas
eleições federais de 1957). A política do SPD, porém, que tentou opor-se ao
rearmamento da Alemanha e à sua integração atlântica e que manteve ainda
uma orientação essencialmente socialista, teve de adaptar-se, em face da
evolução europeia, às novas realidades políticas e económicas. O congresso
do partido em 1957 e o Godesberger Programm que daí resultou confirmaram
esta transformação do partido operário tradicional num partido popular com
perspectivas mais realistas em termos de política externa e económica.

Por outro lado, a prioridade económica travou a democratização da socie-


dade alemã e a necessidade de segurança e conforto material favoreceu um
estilo de vida bastante típico e restaurador no sentido dum quietismo bur-
guês, dum novo Biedermeier que, mesmo quando se abre a culturas estran-
geiras (exemplos disso são a popularidade do jazz, do cinema americano e
de autores como Hemingway) fica dentro dos limites dum modernismo clás-
sico. Este conformismo e o respectivo optimismo materialista manifestam-
-se tanto na arquitectura como no design do quotidiano desta época.

A reconstrução dos centros urbanos é feita num estilo simples e funcional,


sem grandes pretensões estéticas, o que transforma o centro de muitas
cidades num aglomerado anónimo de lojas, grandes armazéns e prédios
incaracterísticos. Este funcionalismo privilegia a circulação dos automóveis
em detrimento da comunicação e da integração social da população urbana;
e assim, o psicanalista Alexander Mitscherlich ( 1908-1982) pode denunciar,
no seu livro de 1965, o aspecto inóspito das cidades alemãs (Die Unwirt-
lichkeit unserer Stadte). A vontade de reconstruir o país também não deixa
uma grande margem para contemplações para com o restante património
histórico; desaparecem, nos anos 50, muitos bairros e prédios antigos, como
o Hansaviertel em Berlim, na sequência duma política de alojamento que
prefere blocos novos à reconstrução do perfil histórico das cidades.

Comparados com a década seguinte, muito mais agitada, os anos 50 apre-


sentam-se na RFA como uma época de estagnação que, ao preocupar-se

367
principalmente com a reconstrução do país e a sua consolidação político-
social, evita as questões de fundo que se prendem com a identidade dum
estado alemão moderno e democrático.

6.4 Os anos 60

O equilíbrio relativo dos anos 50 conhece, no início dos anos 60, uma série
de abalos que já deixam prever as mudanças que afectarão a sociedade alemã
no fim da década. Estas mudanças dizem principalmente respeito às rela-
ções com a RDA, às reformas do sistema educativo, ao fim dos governos
CDU e ao movimento estudantil.

6.4.1 Relações com a RDA

Na sequência da crise de Berlim de 1958, quando a União Soviética exige a


revisão dos estatutos da cidade, realiza-se, entre Maio e Agosto de 1959 em
Genebra, uma conferência dos quatro ministros aliados dos negócios
estrangeiros, na qual participam também os respectivos representantes da
RFA e da RDA. As negociações sobre os dois planos de paz apresentados
ficam, porém, sem resultado. Em 1960, a RDA começa a impor restrições
aos visitantes da RFA e, quando, em 1961, o número de refugiados aumenta
espectacularmente (só em Julho são mais de 30 000), é iniciada a construção
do muro de Berlim sendo igualmente encerrada a fronteira entre a RFA e a
RDA. As cenas dramáticas que ocorrem nestes dias em Berlim revoltam
sobretudo a opinião pública, enquanto os aliados e o governo de Adenauer
evitam dramatizar a situação, acabando por aceitar o muro para o integrar
rapidamente na propaganda anti-comunista. Organizam-se, por exemplo, nas
escolas e nos liceus viagens a Berlim que incluem uma visita ao muro e à
zona oriental da cidade. Para a RDA, o fim das fugas para o Oeste significa
uma maior estabilidade social e política que se traduz num aumento
significativo da produtividade industrial.

6.4.2 Reforma do sistema educativo

A autonomia dos estados federais, que abrange também os ensinos secun-


dário e superior, dificulta bastante uma coordenação eficaz do sistema edu-
cativo ao nível federal. Só em 1966, por exemplo, os vários ministros da

368
cultura acabam por entender-se sobre um início comum do ano escolar no
Outono. Por outro lado, havia ainda em muitas regiões escolas confessionais
e na Baviera a formação dos professores primários fez-se, até 1967, separa-
damente segundo as confissões dos candidatos.

As universidades existentes já não conseguiam corresponder ao desenvolvi-


mento industrial e social da RFA, uma situação que o publicista Georg Picht
caracteriza em 1964 num famoso estudo deDie deutsche Bildungskatastrophe.
Assim, os Uinder decidiram no mesmo ano a fundação de novas univer-
sidades que se estabeleceram em Bochum, Dortmund, Regensburg, Konstanz
e Bremen. As duas últimas eram concebidas como universidades novas
também ao nível dos curricula, privilegiando formas diferentes de trabalho
e uma orientação interdisciplinar dos estudos.

A partir de 1969, verifica-se uma autêntica «explosão» do ensino superior


na RFA. Enquanto em 1971 existem 471 000 vagas, em 1981 as universi-
dades já podem oferecer 1120 000. Esta democratização do ensino superior,
propagada principalmente pelo SPD, não produziu, no entanto, só efeitos
positivos. As sucessivas crises económicas e o aumento do desemprego, por
um lado, e a saturação do sector público, por outro, contribuíram para um
desemprego académico que, em certas disciplinas (Línguas e Literaturas,
História, Direito, Gestão etc.) se tornou numa constante do ensino superior
que, em muitos casos, actualmente já não pode garantir uma profissionalização
dos licenciados. Assim, as reformas não conseguiram prever ou minimizar o
desemprego juvenil e académico e o poder político continua perplexo
perante uma situação que tem consequências sociais e financeiras bastante
negativas.

6.4.3 O fim da era Adenauer

Quando Adenauer se retira em Outubro de 1963 para deixar o lugar ao seu


popular ministro da economia Ludwig Erhard, era difícil de prever que o
homem liberal do Wirtschaftswunder não fosse capaz de enfrentar as crises
económicas e políticas que criavam cada vez mais conflitos dentro da própria
coligação CDU-FDP. A recessão de 1966 provocou um choque tão forte no
eleitorado alemão que Erhard teve de se demitir a favor duma Grande
Coligação CDU-SPD, com o chanceler Kurt Georg Kiesinger (1904-1988)
e Willy Brandt na pasta dos negócios estrangeiros. Esta união dos dois maiores
partidos da RFA começou a praticar novas formas de intervenção estatal na
economia para garantir a estabilidade conjuntural. Para o SPD, esta coligação
significava, depois de 17 anos de oposição, uma oportunidade de mostrar as
suas capacidades governativas e a competência dos seus ministros.

369
A nível cultural, o fim da era Adenauer traduz-se, sobretudo na literatura e
no cinema, por tendências mais críticas e inovadoras em termos formais.
O filme alemão dos anos 50, apesar dum volume produtivo bastante elevado
(só em 1955 estreiam 128 longas metragens), limitou-se a um conformismo
formal e temático e a uma nostalgia sentimental, recusando abrir-se à polí-
tica e à realidade social da época. Em 1962, 26 jovens cineastas assinaram
uma declaração pública (Oberhauser Manifest) que termina com as frases:
«Der alte Film ist tot. Wir glauben an den neuen Film» (Gregor 1978: 123).

Esta nova geração, inspirada pelaNouvelle Vague francesa, produz cineastas


como Alexander Kluge, Edgar Reitz, Werner Herzog, Rainer Werner
Fassbinder, Volker Schlõndorff e Wim Wenders (todos nascidos entre 1932 e
1945), cujos filmes apresentam um olhar original sobre a realidade alemã e
os seus sonhos e problemas durante várias décadas.

Os filmes mais relevantes neste contexto da temática alemã são Abschied


von Gestern (1966) e Gelegenheitsarbeit einer Sklavin (1974) de Kluge, Die
verlorene Ehre der Katharina Bium (1975) e Die Blechtrommel (1979) de
Schlõndorff, Die Ehe der Maria Braun (1976) e Der Hiindler der vier
Jahreszeiten (1972) de Fassbinder, feder für sich und Gott gegen alie (1974)
de Herzog e Im Lauf der Zeit (1976) e Der Himmel über Berlin (1988) de
Wenders. Embora limitado pela crescente influência da televisão e das
distribuidoras americanas, o novo cinema alemão não deixa de acompanhar
a evolução política e social da RFA. Os filmes formalmente mais interessantes
são realizados por Alexander Kluge, também escritor e teorizador dos mass
media, que continua actualmente o seu trabalho de cineasta na televisão,
procurando transformá-la num meio de comunicação inteligente e interactivo.

O novo interesse pela realidade alemã no fim da era Adenauer manifesta-se


na oposição a uma vida política que prolonga as opções básicas do pós-
-guerra. O largo consenso parlamentar da Grande Coligação, que dera mais
uma vez a prioridade à política económica, tornou-se, nos últimos anos da
década de 60, rapidamente alvo de muitas críticas que se concentraram no
protesto dos estudantes.

6.4.4 O movimento estudantil (Studentenbewegung)

A onda de descontentamento que alastra durante os três anos da Grande


Coligação ( 1966-1969), tem várias razões que não se prendem unicamente
com a situação política alemã. O protesto, que abrange não só as escolas e
universidades, mas também uma parte do movimento sindical e as camadas
mais jovens da população, focaliza principalmente os temas seguintes:

370
• a guerra do Vietname e o imperialismo americano;

• as leis de excepção (Notstandsgesetze);

• a sociedade de consumo.

Assim, para a geração jovem, o aliado americano, cuja presença militar na


RFA se tinha revelado imprescindível para a sobrevivência da Europa,
transforma-se num agressor imperialista. Esta viragem anti-americana jus-
tifica-se tanto mais quanto, segundo pesquisas recentes, o presidente John-
son teria pedido ao governo alemão a participação de tropas alemãs na Guerra
do Vietname. Em 1969, decorre em Berlim um Congresso Internacional
sobre o Vietname que condena a intervenção americana e o apoio alemão a
esta guerra considerada como cruzada anti-comunista. Por outro lado, o
movimento estudantil inspira-se nas várias formas de protesto praticadas
nos Estados Unidos; são organizados então «teach-ins» e «sit-ins», e as
fracções mais individualistas do movimento imitam os hippies americanos.

Em Junho de 1967, o Xá do Irão, considerado um ditador e um fantoche dos


Estados Unidos, visita Berlim e, durante as manifestações organizadas nesta
ocasião, um estudante inofensivo é morto a tiro por um polícia. Este
acontecimento revela, de repente, que o poder dum Estado, com o qual a
população se tinha plenamente identificado até agora, pode virar-se bru-
talmente contra os próprios cidadãos. No mesmo ano, Rudi Dutschke
( 1940-1979), um dos principais representantes da revolta estudantil em
Berlim, é alvo dum atentado que é entendido como resultado das agressivas
campanhas jornalísticas da editora Springer contra o movimento de protesto.
Sob a iniciativa do SDS (Sozialistischer Deutscher Studentenbund), são
bloqueadas as várias filiais e incendiadas camionetas da editora, cujo periódico
principal, o jornal Bild, continua até hoje, e com a mais elevada tiragem
nesta área, a sua linha demagógica e sensacionalista. O protesto contra
Springer não conseguiu quebrar o poder dos mass media, mas mobilizou a
opinião pública contra uma manipulação mediática que, no caso de Springer,
propagava opiniões políticas de tendência de direita.

Uma outra vertente do protesto, que mobilizou também grande parte dos
sindicatos e dos membros do SPD, dirigiu-se contra as leis de excepção
que, apesar de todas as manifestações, foram aprovadas no parlamento federal
em Junho de 1968. Neste aspecto, a Grande Coligação reforçou consi-
deravelmente os poderes do estado, enquanto a oposição extraparlamentar
(APO - Auj3erparlamentarische Opposition) não conseguiu influenciar o
poder legislativo.

Um outro alvo importante do movimento estudantil era a sociedade de


consumo, resultado do milagre económico e da integração da Alemanha

371
t:

federal no sistema ocidental. Baseado nos escritos do psicanalista Wilhelm


-
Reich (1897-1957) e dos sociólogos Herbert Marcuse, Max Horkheimer e
2 Marcuse e Habermas par- Theodor W. Adorno 2 e na análise marxista tradicional do capitalismo
ticiparam activamente no
movimento de protesto .
moderno, os círculos académicos forneceram uma série de estudos sobre o
Enquanto Marcuse, professor poder do mercado, a estética da mercadoria e a reificação das relações huma-
visitante em Berlim desde
Julho de 1967 , explicou e
nas na sociedade de consumo. Esta crítica, porém, que incentivou formas de
justificou a contestação como vida alternativas (recusa das regras e do vestuário burgueses, escolas anti-
resultado da despolitização e
da repress ão numa pseudo-
-autoritárias, comunidades - Wohngemeinschaften - e relações livres),
-democracia, Habermas defen- não afectou as estruturas económicas básicas e o mercado transformou as
deu o estado constitucional e
as suas instituições.
manifestações alternativas em modas ou práticas sociais perfeitamente
aceitáveis.

Embora rapidamente transformado em mito, o movimento de 68 (na


sequência do Maio revolucionário de 1968 em França) não deixou de mudar
a mentalidade duma geração inteira. Mesmo que muitos dos objectivos do
movimento se tenham revelado idealistas e irrealistas (como é o caso da
educação anti-autoritária, da revolução sexual e do socialismo humano), a
geração de 68 conhece maiores liberdades pessoais e uma participação mais
concreta na vida social e política. Neste sentido, os Verdes herdaram em
muitos aspectos os sonhos duma vida que aproxima mais o indivíduo, o
cidadão e as instâncias do poder.

Com o fim da Grande Coligação em 1969 e o advento dum governo SPD, o


movimento estudantil dividiu-se rapidamente. Uma fracção mais ortodoxa
organizou-se em grupos de orientação radical ou entrou no recém-formado
partido comunista (DKP), outros capitularam ou integraram o SPD para
iniciar a «longa marcha através das instituições» preconizada já por Rudi
Dutschke. Uma minoria, finalmente, escolheu o caminho do terrorismo
armado que, sob o nome de RAF (Rote Armee Fraktion) se manifestou
principalmente durante os anos 70.

O movimento estudantil faz parte duma mudança cultural que ultrapassa


largamente o domínio político e económico. O que está em causa é, sobre-
tudo, uma mentalidade que já não se deixa dominar pelo passado e que quer
uma vida diferente. Assim, a irrupção dos Beatles e da música pop nos
anos 60, evidencia, antes de mais, um conflito de gerações bastante profundo.
Enquanto a geração dos pais, os sobreviventes da guerra, acreditava ainda
nos valores do trabalho, da disciplina e duma moral rígida, a nova geração
exigia já outras coisas: uma maior liberdade pessoal (e, com isso, também
sexual), uma vida não alienada pelas leis do consumo, mas ao mesmo tempo
uma verdadeira democratização da sociedade na base do pacifismo, da
igualdade e da transparência. O ambiente desta mudança, a euforia crítica e
as alternativas utópicas formam um grande contraste com o pessimismo, a
desorientação e a falta de perspectivas concretas que predominam neste fim
de século.

372
6.5 Mudanças, reformas e crises (1969-1989)

A grande prioridade do governo SPD-FDP sob a liderança de Willy Brandt


era uma nova Ostpolitik. De facto, a crescente influência económica inter-
nacional da RDA e o imobilismo político da RFA perpetuaram um impasse
conflituoso. As conversações com a União Soviética que começaram logo
em Dezembro de 1969 e, poucos meses depois, com a Polónia, levaram a
uma normalização que reconheceu as fronteiras existentes e permitiu resolver
problemas práticos como a reintegração dos russos e polacos de origem alemã
que queriam deixar o país (Aussiedler).

As negociações com a RDA só se desbloquearam depois da morte de


Ulbricht em 1971 , resultando, em Setembro desse ano, num tratado que
garantia os acessos a Berlim e a presença militar dos aliados nesta cidade.
O Grundlagenvertrag de 1972, que garante a soberania e a independência
dos dois estados alemães, tem sobretudo efeitos práticos e humanitários,
as questões básicas (reconhecimento formal mútuo, problema da nacio-
nalidade alemã, etc.) ficam em suspenso. Assim, a Ostpolitik de Willy
Brandt, reconhecido internacionalmente com o Nobel da Paz em 1971, teve
os seus principais efeitos nas relações com a União Soviética e a Polónia; o
tratado com a RDA, muito mais limitativo, permitiu porém a entrada dos
dois estados alemães nas Nações Unidas em 1973 e um aumento das viagens
e colaboração inter-alemã na área do comércio, dos transportes e das tele-
comunicações.

Em termos de política interna, o governo iniciou um largo programa de


reformas (Betriebsverfassungsgesetz de 1971 sobre a representação sin-
dical nas empresas, infra-estruturas, investigação, ensino, política social)
que acabou por inflacionar as finanças públicas duma maneira preo-
cupante. Embora confirmada pelas eleições de 1972, a euforia reformista
encontrou, com a crise do petróleo de 1973/1974, os seus limites. A estagna-
ção económica, o aumento rápido do desemprego e um escândalo polí-
tico (a descoberta dum espião da RDA entre os conselheiros de Brandt)
levaram à demissão do chanceler e à eleição de Helmut Schmidt (nascido
em 1918) que tentou estabilizar a economia e controlar as despesas públi-
cas. No fundo, o governo Kohl, que substituiu Schmidt em 1983, debate-se
ainda com os mesmos problemas: um desemprego estrutural substan-
cial, um aumento incontrolável das despesas e dívidas públicas e a subse-
quente necessidade de cortes radicais nos vários sectores sociais. O velho
sonho da social-democracia, o Estado-providência (Wohlfahrtsstaat),
com uma rede social que abrange todos os cidadãos, revela-se cada vez
mais utópico e na Alemanha das duas últimas décadas do século XX
começa a surgir uma nova pobreza que atinge, entretanto, vários milhões de
pessoas.

373
A recessão económica dos anos 70 começa a criar uma consciência colectiva
da extrema fragilidade da economia moderna e da própria problemática das
ideias de progresso e permanente crescimento económico. O conceito de
Lebensqualitat, que aparece no contexto sindical em 1974 e que é rapi-
damente retomado pelo SPD, insiste no contexto global e na gestão equi-
librada dos recursos naturais, enquanto o desenvolvimento forçado da energia
nuclear encontra cada vez mais resistência entre as populações afectadas.
As manifestações contra a construção das centrais de Brokdorf e Whyl e do
depósito de resíduos radioactivos em Gorleben mobilizam centenas de
milhares de pessoas cujos receios serão confirmados pelo acidente da cen-
tral russa de Tchernobyl em 1986. A contaminação de largas zonas da RFA
com precipitações tóxicas evidencia a dimensão global do perigo nuclear e a
necessidade dum controlo internacional eficaz, além de chamar a atenção
para o desenvolvimento de possíveis energias alternativas.

É neste contexto que o livro Ein Planet wird geplündert (1975) do deputado
Herbert Gruhl (CDU) apresenta um primeiro balanço bastante negativo da
situação ecológica e, já em finais de 1978, os vários grupos de «verdes», que
começam a surgir em todo lado, decidem constituir uma organização
administrativa e política comum. Em Outubro do ano seguinte, os Verdes
conseguem entrar no parlamento regional de Bremen e, cinco anos mais
tarde, no Bundestag. Com este quarto partido, a vida política da RFA e
mesmo a discussão no interior dos outros partidos ganhou uma nova
dinâmica, que assegurou aos problemas ambientais um lugar de desta-
que. As lutas dentro do partido (realistas contra fundamentalistas) e as
ideias às vezes irrealistas dos Verdes não impediram que o ambiente se
tornasse num tema político que nenhum governo pode ignorar e que a
própria indústria já converteu numa série de novas tecnologias que colocam
a Alemanha numa posição pioneira em matéria de protecção do ambiente,
reciclagem dos resíduos industriais e domésticos e recuperação de zonas
contaminadas.

O fraco interesse que a problemática ecológica encontra na ex-RDA (onde,


durante 40 anos, foi privilegiado o aumento da produtividade a troco duma
poluição industrial generalizada) mostra que a mudança das mentalidades
não só leva muito tempo, como depende também dum contexto social
favorável. Enquanto o Waldsterben (a destruição das florestas pela chuva
ácida) e o Treibhauseffekt (efeito de estufa) são largamente discutidos, uma
limitação do trânsito e o desenvolvimento sistemático de transportes
alternativos encontram ainda pouco apoio político e popular. O Smogalarm,
verificado em Janeiro de 1985, quando foi proclamada na zona do Ruhr a
interdição total da circulação automóvel devido aos elevados valores tóxicos
do ar, é ainda considerado um acidente passageiro, e até hoje, nenhuma das
grandes forças políticas (incluindo os sindicatos e o SPD) ousa imaginar e

374
propor uma sociedade sem crescimento económico. A prosperidade e a
valorização intensiva do consumo individual impedem, para já, qualquer
reorientação fundamental da sociedade alemã que, aliás, com as suas
dependências internacionais, dificilmente poderia praticar uma política
ecológica que entrasse em conflito com os interesses dos seus parceiros
comerciais.

Mas a RFA não conhece apenas dificuldades económicas nos anos 70


e 80. O Radikalenerlaj3 de Janeiro de 1972, uma decisão comum dos
Liinder e do governo SPD para impedir extremistas (na prática, sobretudo
a esquerda socialista e comunista) de integrar a função pública, cria um
ambiente de desconfiança e suspeita e explica, pelo menos no início,
algumas simpatias pelo grupo terrorista da RAF que tenta derrubar o
estado capitalista pela força das bombas e dos assassínios . Quando os
principais membros do grupo são presos em 1972, começa uma «guerra»
de atentados e sequestros para libertar os presos condenados no julga-
mento de Stammheim (1975). Dois anos depois, o assassínio da várias figu-
ras proeminentes da política alemã e o desvio dum avião da Lufthansa
por um comando árabe em apoio da RAF, marcam o ponto mais alto dum
confronto que leva, ao fim e ao cabo, a um reforço substancial dos pode-
res do estado e das forças policiais. O fracasso do comando árabe provoca
o suicídio dos presos de Stammheim e a progressiva desintegração da
RAF cujos últimos membros são descobertos na RDA durante a reunifica-
ção. Por outro lado, o fracasso da RAF confirmou o fim das grandes lutas
ideológicas e a ausência de alternativas concretas ao estado de direito.
Neste contexto, o terrorismo reduziu-se a uma função desestabiliza-
dora (aproveitada pelo SED) que reforçou finalmente as forças repressivas
que eram o alvo principal da crítica. Mais êxito tiveram os movimentos em
favor do desarmamento e da redução da energia nuclear que continuam a
actuar com grande apoio popular e que, no âmbito de instituições como a
Amnesty Internacional e o Greenpeace, se empenham cada vez mais a nível
global.

Um outro problema que muito ocupa a opinião pública na RFA nos anos 80
é o crescente afluxo de refugiados políticos e económicos que pedem asilo
(Asylanten). Só na primeira metade de 1986, mais de 70 000 pessoas chegam
à RFA com este intuito, o que implica a adopção de medidas sociais e
burocráticas extraordinárias. Dado que a taxa de reconhecimento de asilo
político varia entre 5 e 9%, a expulsão dos restantes refugiados não deixa de
provocar situações dramáticas. Uma limitação do direito de asilo e a queda
do bloco comunista (em 1988, 30 000 dos refugiados eram polacos) contribuí-
ram para reduzir o número de pedidos e para desviar a opinião pública e os
ressentimentos populares para as grandes mudanças que deviam transfor-
mar por completo a Europa oriental.

375
6.6 Desintegração do Pacto de Varsóvia e reunificação alemã

O fracasso das economias socialistas, que se torna cada vez mais evidente a
partir do início dos anos 80, acarreta turbulências políticas que se manifes-
tam primeiro no movimento Solidariedade na Polónia e numa corrente refor-
mista na União Soviética que leva Gorbatchev ao poder em 1985. A sua polí-
tica de maior transparência administrativa (Glasnost) e cautelosa liberalização
económica tenta ainda garantir a sobrevivência do sistema soviético, dei-
xando uma maior margem de manobra aos países satélites ao decretar a
auto-determinação dos vários regimes comunistas. As primeiras mudanças
liberais na Hungria e na Checoslováquia, por seu lado, incitam turistas da RDA
a aproveitar a situação para fugir via Áustria (abertura da fronteira austro-
-húngara em Maio, confirmada na cimeira de Budapeste em Julho) ou para
se refugiar, no Verão de 1989, nas embaixadas da RFA em Praga e Varsóvia.

Neste ambiente de crescente tensão, a RDA festeja ainda, em 7 de Outubro,


os 40 anos da sua existência; poucos dias depois, Erich Honecker (1912-
-1994) é substituído por Egon Krenz na tentativa de travar os protestos
populares. Mas nas primeiras semanas de Novembro, centenas de milhares
de pessoas em Berlim e em Leipzig reclamam eleições livres e a demissão
do governo. A primeira abertura dum ponto de passagem em 9 de Novembro,
que desencadeia a queda do muro, provoca uma invasão de Berlim-Oci-
dental, e as sucessivas tentativas do SED de acompanhar o movimento
(demissão de Krenz, mudança de nome do SED e nomeação do jovem Gregor
Gysi para a presidência do partido chamado agora PDS - Partei des
Demokratischen Sozialismus) só vêm acelerar o processo de desintegração.

A abertura do Brandenburger Torem 22 de Dezembro, na presença dos polí-


ticos federais e de uma multidão em festa, transformou-se no símbolo duma
vontade geral de união. A mudança das palavras de ordem ilustra esta evolução
para uma convergência política. «Wir sind das Volk», grita-se nas primeiras
manifestações na Alemanha oriental que recuperam um conceito usurpado
pelo aparelho do SED, enquanto depois se proclama: «Wir sind ein Volk» .

As negociações dos meses seguintes levam às primeiras eleições livres na RDA,


que dão uma maioria relativa ao CDU, e, em Maio 1990, começam as nego-
ciações dos dois estados alemães com a participação dos quatro aliados (2+4)
que regulam a situação militar da Alemanha (redução dos efectivos, integração
na NATO e retirada das tropas russas cofinanciada pelo governo alemão) e
preparam a união monetária e económica que entra já em vigor em 1 de Julho.
As negociações seguintes sobre o tratado de unificação (Einigung sve rtrag)
avançam rapidamente sob a pressão da integração económica; o tratado é
assinado em finais de Agosto. O tratado determina nomeadamente o carácter
definitivo das fronteiras alemãs, a renúncia às armas nucleares, biológicas e
químicas e a plena soberania alemã em todos os restantes assuntos internos

376
1'

e externos. No dia 3 de Outubro de 1990, a união é oficialmente realizada e


a RDA deixa de existir. O seu território divide-se agora em cinco novos
estados federais (Brandenburg, Mecklenburg-Vorpommem, Sachsen,
Sachsen-Anhalt, Thüringen) que integram a República Federal (cf. o mapa
seguinte do Statistisches Bundesamt, Wiesbaden) e organizam em 14 de
Outubro as primeiras eleições regionais. As primeiras eleições comuns para
o parlamento federal alargado em Dezembro de 1990 dão uma maioria
confortável ao governo CDU-FDP que aproveita o entusiasmo popular,
minimizando ou ignorando os custos reais desta reunificação rápida.

A Alemanha Actual

p
)

'

Esta sucessão de datas mal pode dar conta da dimensão humana que implica
o fim duma separação de 28 anos. A eufórica desmontagem do muro, o
reencontro de famílias longamente separadas e a simples possibilidade de
viajar livremente nos países ocidentais abafaram todas as vozes críticas que
se levantaram durante o processo de reunificação, de tal modo que só a partir
de 1991 se tornam evidentes os enormes problemas e custos desta operação
politicamente tão fácil e evidente.

377
A privatização da economia da RDA, entregue à Treuhand (1990-1994),
uma empresa pública constituída expressamente para o efeito, não só levantou
complexas questões jurídicas, como também graves problemas sociais na
sequência do encerramento e da liquidação de numerosas empresas que já
não eram viáveis face à concorrência do mercado livre. Em 1992, já se contam
1,3 milhões desempregados na ex-RDA e, todos os anos, um número elevado
de empresas vai à falência. Ao fim de quatro anos de actividade, muitas
vezes criticada por negócios mal conduzidos, a Treuhand privatiza cerca de
13 000 empresas e deixa dívidas no valor de 250 biliões de marcos.

O acesso aos arquivos da ex-RDA e, nomeadamente, da polícia política (Stasi)


revelou uma rede de vigilância e denúncia sistematizada que abrangia
85 000 funcionários e mais de 100 000 colaboradores não oficiais recru-
tados nas empresas, serviços públicos, universidades e até nas próprias
famílias das pessoas suspeitas. A extensão e a minúcia burocrática deste
sistema de controlo (que incluía também mais de 20 000 colaboradores entre
os cidadãos da RFA) só se explica pela fraqueza básica do regime que não
podia contar com um grande apoio popular. Desde que foi aberto o acesso
público ao extenso material de arquivo, muitas personalidades da vida cultural
e política revelaram-se como colaboradores da Stasi. A descoberta de um
sistema que, baseado oficialmente nos valores do humanismo, da
solidariedade e do progresso, conseguia criar um ambiente de desconfiança,
de denúncia e de chantagem, foi um dos aspectos que mais afectou a
normalização da vida política e social na ex-RDA.

Por outro lado, 40 anos duma história antagónica criaram mentalidades dife-
rentes que, uma vez passada a euforia da união, complicaram a aproximação
das duas populações. Os termos depreciativos de Ossis e Wessis concentram
uma série de preconceitos que se prendem principalmente com a falta de
disciplina, eficiência e iniciativa dos habitantes da ex-RDA, desres-
ponsabilizados pelo próprio regime autoritário, por um lado, e o materia-
lismo, a frieza e a arrogância dos alemães federais, por outro. A integração
total da RDA nas estruturas da RFA, o triunfo arrogante do sistema capi-
talista e as persistentes diferenças sócio-económicas contribuiram muito para
estas divergências que só desaparecerão a médio ou longo prazo.

6. 7 A RDA - 40 anos de socialismo alemão

Os 40 anos da RDA constituiram uma tentativa de realizar, a nível econó-


mico, político e social, uma alternativa ao sistema capitalista e imperialista
que dominou na Europa central ou nos seus domínios coloniais, desde o
século XIX, e que tinha permitido o genocídio dos judeus e o cataclismo da

378
II Guerra Mundial. A primeira fase do pós-guerra, ainda caracterizada por
flutuações ideológicas, caminha, no entanto, para a progressiva divisão da
Alemanha e, a partir de 1949, para a implantação do modelo soviético na
RDA. Marcado pela luta contra o fascismo hitleriano, o comunismo alemão
integra-se, pela força do contexto histórico e internacional, num estali-
nismo que nunca conseguiu, até ao fim do SED, ultrapassar completamente.

O historiador Hermann Weber (1991) distingue, na evolução da RDA, duas


etapas principais: uma primeira, até 1961, com a prioridade da uniformiza-
ção ideológica na sequência da transplantação e consolidação do sistema
soviético. O que caracteriza o estalinismo é, segundo Weber, uma burocracia
hierárquica e o domínio dum único partido hegemónico que controla
dogmaticamente não só a administração e a economia, mas também os media
e os vários sectores da vida pública e privada.

Já em 1945, com a reforma agrária e a distribuição de terras a 200 000


operários agrícolas e refugiados na zona soviética, seguida da nacionali-
zação de grande parte da indústria pesada em 1946, deram-se os primeiros
passos duma revisão económica fundamental. A nível político, a desnazi-
ficação foi praticada sistematicamente; até 1948, mais de 500 000 pessoas
que tinham participado activamente no regime hitleriano, foram afastadas
das suas funções. A partir de 1949, a reorganização do aparelho do par-
tido e do estado Uustiça, polícia política e, mais tarde, exército) e das orga-
nizações colectivas levou a um controlo e uma endoutrinação ideológica
permanentes, sobretudo com a expropriação dos camponeses e a insta-
lação forçada de cooperativas agrícolas (LPG - Landwirtschaftliche
Produktionsgenossenschaft). Esta omnipresença do partido visava igualmente
a transformação das mentalidades da população e o desenvolvimento do
ensino, sobretudo politécnico e superior. Entre 1956 e 1961, o regime
distancia-se formalmente dos excessos do estalinismo, mantendo, contudo,
as linhas principais da sua política. O aumento do ritmo das colectivizações
provoca protestos da população e mais fugas para o Oeste (quase 200 000
pessoas em 1960, sendo metade jovens com menos de 25 anos), até que a
construção do muro isola e consolida definitivamente a RDA.

Numa segunda fase, de 1961 a 1989, a RDA sofre as contradições entre as


exigências duma sociedade industrializada moderna e as obsoletas estru-
turas do centralismo burocrático. A política não pode ignorar mais os
parâmetros do consumo individual que fascina cada vez mais a população e
continua a alimentar um movimento de fuga, mesmo depois da construção
do muro (cerca de 40 000 refugiados entre 1961 e 1989). Por outro lado,
praticava-se, nestes anos, um comércio lucrativo para a RDA (designado
criticamente deMenschenhandel) que «vendia» a preços elevados ao governo
federal a libertação de quase 42 000 pessoas. A Zona de ocupação soviética

379
conta, em 1946, 18,3 milhões de habitantes; depois da união vivem ainda no
território da ex-RDA 15 milhões.

Os anos 60 foram, no entanto, uma fase de estabilização e de modernização,


com novos métodos de planificação e um aumento considerável da produ-
ção de bens de consumo. A profissionalização das mulheres (atingindo os
86%, um dos valores mais elevados a nível mundial) foi desenvolvida
sistematicamente, tal como o ensino, a investigação e o desporto. A subs-
tituição de Walter Ulbricht em 1971 permitiu flexibilizar os orgãos directivos
do partido que, por outro lado, intensificou a endoutrinação ideológica. No
início dos anos 70, a RDA conseguia estabelecer relações diplomáticas com
o mundo ocidental e marcar presença nas mais importantes instituições e
conferências internacionais.

Na área da cultura e da arte, é proclamado, desde 1951, o «realismo socia-


lista» à maneira soviética que implica uma recusa categórica do moder-
nismo e do chamado formalismo capitalista. Enquanto o caminho de
Bitterfeld (conferência cultural em 1959) preconizou a participação da
classe operária em todas as actividades culturais, o SED privilegiou igual-
mente a «herança humanista» interpretada como antevisão do socialismo.
Uma certa liberalização da política cultural nos anos 70 acabou em 1976
com a expatriação de Wolf Biermann, o que provocou uma onda de protestos
e o êxodo duma série de outros escritores. O descontentamento cresceu ainda
com a evolução dos outros partidos comunistas europeus na direcção dum
eurocomunismo liberal e independente da União Soviética, uma via total-
mente recusada pelo SED. Na própria RDA, Robert Havemann (1910-1982)
reivindicou um socialismo liberal e pluralista, incluindo uma imprensa livre
e o direito à greve. Esta distinção entre o - falso - socialismo real e um
socialismo democrático e moderno negava radicalmente o papel hegemónico
do SED. Para Havemann e toda a oposição na RDA, a abolição do capitalismo
privado, a nacionalização da economia e o poder absoluto do partido único
não tinham conseguido realizar os ideais humanistas da teoria socialista
oitocentista.

Durante os anos 80, as contradições internas da RDA agudizaram-se dra-


maticamente. As crescentes dificuldades económicas, a liberalização verifi-
cada noutros países socialistas vizinhos como a Polónia e a Hungria e a
influência da televisão ocidental, que espalhou não só uma informação livre,
mas também a miragem dum paraíso de consumo e liberdade ilimitada em
toda a RDA, fortificou a oposição, que se organizou, a partir de 1983, num
movimento pacifista (Friedensbewegung) com grande ressonância popular.
Por outro lado, a Igreja protestante transformou-se num porta-voz da opo-
sição ao exigir publicamente direitos democráticos. O aparelho político
reagiu, aumentando as actividades da Stasi e falsificando os resultados das

380
eleições que deviam legitimar um regime que tinha fracassado nas áreas
essenciais da vida económica e social. A possibilidade de pedir legalmente
uma autorização de saída levou, desde 1984, a centenas de milhares de
pedidos, o que permitiu ao regime, que autorizou cerca de 40 000 saídas,
localizar e controlar de perto os descontentes.

Os defeitos estruturais do sistema (centralismo burocrático, planificação,


totalitarismo ideológico) criaram contradições permanentes e um descon-
tentamento geral alimentado pela comparação mediática quotidiana com uma
RFA idealizada, cujas emissões televisivas eram captadas na RDA. O fim
rápido da RDA e a sua integração quase incondicional no sistema ocidental,
não permitiram, porém, ver que a única alternativa existente não era uma
solução para os grandes problemas do mundo actual. O descrédito do
socialismo e o fracasso total das suas realizações concretas é, sem dúvida,
mais um argumento contra as teorias globais e os perigos totalitaristas que
representam. Mas, por outro lado, a dimensão utópica e humanitária oriunda
da Aujkliirung e da filosofia idealista alemã, que impregna o socialismo
oitocentista, continua a fornecer critérios e objectivos para o debate sobre
uma futura sociedade europeia.

6.8 A Alemanha reunificada

A República Federal encontra-se, no fim do século XX, numa situação


particular na medida em que a reunificação criou uma série de problemas
que estão ainda longe de terem sido ultrapassados. As diferenças salariais
entre os antigos e os novos Liinder continuam, tal como a elevada taxa de
desemprego na ex-RDA. A transformação de Berlim em nova capital
implica mudanças com elevados custos financeiros e sociais. Até 1997, desa-
pareceram 300 000 postos de trabalho e a cidade divide-se cada vez mais em
zonas ricas e bairros pobres (como Kreuzberg) onde o desemprego chega a
atingir 30% da população. Assim, a capital alemã, com a sua elevada dívida
pública e um desemprego juvenil que deve atingir, até ao fim do século, os
40%, representa o paradoxo da sociedade industrializada moderna que,
aumentando a produtividade e excluindo ao mesmo tempo uma parte con-
siderável da população, renuncia definitivamente ao antigo equilíbrio entre
prosperidade, liberdade e solidariedade social.

A rápida liquidação do regime comunista afectou também uma cultura que,


sobretudo na área da literatura, do teatro e da música, tinha produzido obras
interessantes e importantes que se vêem, de repente, votadas ao esquecimento.
As perspectivas dum futuro incerto não deixam muito espaço para recordações
e interrogações acerca duma época que já pertence definitivamente ao passado.

381
Mas a história cultural da RDA é também a história de experiências
e protestos, de esperanças e tentativas de tomar à letra o ideal do socia-
lismo. A resignação e o desencanto que se verificam neste fim de século
são típicas das duas Alemanhas: da RDA, cujas gerações mais velhas
devem assumir, na fórmula do subtítulo da autobiografia do escritor
Heiner Müller (1929-1996), um Leben in zwei Diktaturen (1992), e da
RFA que não consegue assumir a sua culpa histórica e que se identifica com
um materialismo e consumismo que dominam totalmente a vida pública e
privada.

Por outro lado, a Alemanha actual enfrenta problemas que são comuns
ao mundo ocidental, nomeadamente o desemprego estrutural e a necessi-
dade de imaginar e impor politicamente uma redistribuição do trabalho
e uma nova solidariedade social. Neste sentido, a classe política caracte-
riza-se por uma total falta de imaginação e esgota-se em remendos e mano-
bras que evitam tomadas de posição e decisões de fundo. O famoso pragma-
tismo alemão apresenta-se, neste fim de século, essencialmente conser-
vador.

A sociedade alemã actual é, como as suas vizinhas europeias, uma socie-


dade pós-moderna que se debate com a falta de orientações e sentidos
essenciais, que oferece aos cidadãos principalmente bens materiais e que
fica perplexa perante a miséria e as carências que resultam da inactivi-
dade forçada de milhões de pessoas. Esta sociedade ainda não está prepa-
rada para enfrentar a segunda modernidade, isto é, as consequências
da industrialização, do progresso científico e tecnológico e do desen-
volvimento quantitativo que caracterizam a primeira modernidade.
O desaparecimento dos valores universais ligados a esta fase histórica
explica fenómenos como a crescente popularidade de seitas e movimen-
tos esotéricos, por um lado, e a atracção da droga e da delinquência, por
outro. A própria ideia de Estado, como garante da coerência social e
económica, começa a perder o seu significado tradicional. A noção forte
do Estado (Wohlfahrtsstaat, estado de direito e paraíso terrestre ao mesmo
tempo) está a diluir-se em soluções parciais e pragmáticas que, até agora,
proporcionaram um bem estar confortável a uma grande parte das popula-
ções dos países industrializados. Mas a crescente discrepância entre o pri-
meiro e o terceiro mundo, o crescimento e a consequente instabilidade
económica do espaço asiático e a globalização das novas tecnologias deixam
prever que a sociedade e a cultura alemãs serão obrigadas a definir-se cada
vez mais em termos internacionais e interculturais.

382
Bibliografia sugerida

No âmbito deste capítulo, recomenda-se a leitura de dois ou três estudos


globais sobre a evolução da RFA (Thranhardt 1966, Sontheimer 1991, Ellwein
1989) e da RDA (Weber 1991); para uma orientação mais sintética pode-se
recorrer aos capítulos 6 a 8 de Boockmann/Schilling et al. (1990: 477-560).
Uma informação global e regularmente actualizada encontra-se em Tatsachen
über Deutschland ( 1996), distribuído pelas embaixadas alemãs e disponível,
também em versão portuguesa (Perfil da Alemanha), nos Goethe-Institute.

Actividades propostas

• Leia o conto «Nachts schlafen die Ratten doch» de Wolfgang Borchert


e descreva a partir do texto a situação do pós-guerra na Alemanha.

• Resuma as principais diferenças políticas, económicas e culturais


entre a RFA e a RDA.

A.O.

383
7. A Alemanha na Europa
Resumo

Evoca-se a constituição do espaço europeu e a sua evolução corno unidade


cultural. Indicam-se a origem dos tratados europeus e o crescimento do
espaço comunitário e apontam-se as consequências da recente globalização
económica e cultural.

Objectivos

• Entender a coesão cultural da Europa Central face ao mundo islâ-


mico e bizantino.

• Conhecer as sucessivas fases da integração europeia.

• Entender a importância das novas real idades mediáti cas e a


transformação da identidade alemã no contexto cultural da futura
Europa.

387
A Alemanha, país que ainda está em vias de resolver a questão da sua iden-
tidade nacional, vê-se em finais do século XX confrontada com uma evo-
lução internacional a que nenhum país se pode furtar: a da globalização.

Saliente-se que essa globalização se articula de forma mais restrita com o


projecto de união europeia a que a Alemanha Ocidental aderiu no pós-guerra,
em pleno período da guerra fria.

Esta articulação faz-se por via de uma crescente internacionalização dos


mecanismos económicos, que tornam irrealistas e ineficazes as economias
fechadas sobre si mesmas, como o decurso dos acontecimentos a Leste, antes
de 1989, o veio a demonstrar.

Se é verdade que à ideia de Europa assistiu a noção de uma identidade cultural


e política - berço do Ocidente e da democracia - também é verdade que
os mesmos valores têm vindo a ser predominantemente protagonizados, já
desde a I Guerra Mundial, pelos EUA, herdeiros legítimos da tradição
europeia naquilo que ela tem de melhor e de pior. Por outro lado, sem a
pressão económica, a saber o reconhecimento dos limites que o Estado-nação
impõe ao capitalismo, esse mesmo projecto não se teria concretizado.Nascida
em pleno momento de tensão entre os dois grandes blocos militares e
económicos, os EUA e a URSS, a ideia de uma comunidade europeia implicou
simultaneamente a exclusão de inúmeros países e territórios, como os da
Europa Central, que tiveram um papel relevante para a formação dessa mesma
identidade cultural, ao mesmo tempo que privilegiava os tratados com
antigas colónias europeias ou outros membros da NATO, que, embora
ocidentalizados, se inserem numa tradição cultural distinta, como é o caso
da Turquia.

Por outro lado, e se não se reduzir a Europa aos países que aderiram no
pós-guerra ao Tratado do Atlântico, a ideia de uma «identidade europeia»
não pode fazer esquecer a efectiva diversidade desse mesmo espaço cultural,
político, económico e social, onde a multiplicidade de línguas, costumes,
hábitos, a diversidade de modelos políticos, as assimetrias económicas e,
dentro de cada país, as desigualdades regionais são evidentes. Não devem
também ser esquecidas as diferentes situações e influências geográficas
- coincidentes com o atraso económico - , designadamente nos países
periféricos, como Portugal, a Grécia ou os países balcânicos, onde essa linha
de demarcação imaginária e culturalmente construída ao longo de séculos
(cf. Said 1995) entre o Ocidente e o Oriente é mais do que ténue, como o
atesta o multiconfessionalismo que preside à diferenciação e eventualmente
a conflitos étnicos em alguns dos países da região balcânica.

É evidente que a nova ordem política decorrente de 1989 leva a que a pró-·
pria ideia e os mecanismos de legitimação de uma união europeia sejam

389
repensados, como sucede, por exemplo, através da inclusão de países da
Europa Central e Oriental na União Europeia (UE), mas a verdade é que a
«grande Europa» nunca se encontrou tão dividida, como hoje, desde a II
Guerra Mundial. Veja-se, por exemplo, por detrás de todas as declarações de
intenção e das aparências de uniformidade, o recrudescimento dos nacio-
nalismos e etnicismos, para além das diferenças ainda consideráveis entre a
Europa Ocidental e Oriental. Contudo, as aparências de uniformidade tam-
bém não devem ser subestimadas: a crescente influência dos modernos meios
de comunicação e sobretudo da informática não só aproximam como uni-
formizam objectos de consumo e, consequentemente, modelos de com-
portamento.

É face a este complexo conjunto de problemas e questões que se propõe uma


reflexão sobre a situação histórica e actual da Alemanha na Europa.

7 .1 A Europa: evolução histórica e espaço comunitário

7 .1.1 A constituição do espaço cultural europeu

Situada na periferia do Império Romano, a Europa Central assume só rela-


tivamente tarde um papel activo e dominante em termos políticos e eco-
nómicos. Com os reis carolíngios, que retomam no século X a função cen-
tralizadora do Império Romano, a história europeia entra numa fase de
complexidade e expansão crescentes.

A Europa constituiu-se entre 950 e 1350 a partir do centro do antigo Império


Carolíngio (França, Alemanha Ocidental e Norte da Itália), através de um
longo processo de guerras, conquistas e colonizações sucessivas que dupli-
caram o espaço da cristandade latina. A reconquista da Espanha árabe
e a colonização alemã pacífica nos países eslavos da Europa central, os
dois fenómenos principais desta primeira expansão europeia, trouxeram
modificações profundas que se manifestaram principalmente em privilé-gios
excepcionais para os recém-chegados, mas também na introdução de
tecnologias modernas (nas áreas militar, urbanística e agrícola).

Esta Europa medieval era dominada por dois centros culturais e económicos:
os Países-Baixos, com a Valónia e a Flandres, e o Norte da Itália que, com os
eixos comerciais do Mar do Norte e do Mar Báltico, por um lado, e do
Mediterrâneo, por outro, criaram as condições para a ascensão económica
do espaço europeu. Esta nova prosperidade permitiu, por seu turno, uma
progressiva expansão política e militar, mas originou também conflitos
internos que opuseram as cidades e as associações da burguesia mercantil ao
feudalismo rural.

390
Em termos políticos, a hegemonia do Império Carolíngio domina a Europa
entre 962 (coroação de Otão I, o Grande) e 1198. A luta entre os Guelfos
(Welfen) e os Gibelinos (Staufer) enfraqueceu o império e facilitou, assim, a
ascensão da França a primeira potência europeia. Enquanto vários vizinhos
da Alemanha se transformaram em Estados nacionais coesos (cf. Cap. III.1 ),
o Sacro Império permaneceu uma associação desarticulada de soberanos e
territórios independentes. Por outro lado, o antagonismo dinástico entre as
casas de Habsburg e Bourbon, que divide a Europa desde Carlos V até meados
do século XVIII, não favorece uma unificação política da Alemanha, cujos
modelos culturais renascentistas, humanistas, barrocos e iluministas são
importados do estrangeiro.

Assim, a Europa apresenta, no fim da Idade Média, e apesar duma certa


unidade cultural, graves antagonismos políticos e dinásticos que se agu-
dizam em tempo de grandes crises, como, por exemplo, a Guerra dos Cem
Anos (1339-1453), a Grande Peste de 1348/1349, o Cisma (1378-1417) e,
finalmente, a Reforma iniciada por Lutero em 1517. Enquanto Portugal
consegue conciliar as antigas e novas elites (aristocracia rural e burguesia
urbana) , criando assim as bases para a expansão ultramarina, a Europa
Central assiste, desde o fim do século XV, a uma nova feudalização. Ao
mesmo tempo que com Colombo ( 1492) e Vasco da Gama ( 1498) se inicia o
processo de globalização da história europeia, na velha Europa acentua-se a
divisão entre um Leste agrário e feudal e um Oeste a caminho da indus-
trialização e da liberalização. Esta evolução favorece o aparecimento de novas
tecnologias e, a partir do século XVIII, uma revolução industrial que será a
base do imperialismo cultural e económico europeu.

Neste contexto político e sócio-cultural, carecendo dum poder central forte


e eficaz, a Alemanha viu-se reduzida durante séculos a um mero joguete dos
interesses dinásticas e religiosos. Mas apesar da heterogeneidade política e
administrativa do Sacro Império Romano, estabeleceu-se uma unidade
cultural que delimitava a Europa claramente face ao mundo islâmico e
bizantino num espaço geográfico correspondente já às fronteiras comunitárias
de finais do século XX.

Ao longo dos séculos, o espaço europeu viveu uma série de divisões e guerras
que travaram e perverteram o desenvolvimento sócio-económico. Com a
ascensão dos Estados nacionais depois da Revolução Francesa e a rápida
evolução da tecnologia militar, os confrontos entre os Estados europeus
tomaram uma dimensão que prejudicava seriamente os interesses imperialistas
cada vez mais transnacionais. Isto explica as repetidas tentativas de limitar
estes conflitos «internos», desde as alianças dinásticas até à formação de
instituições supranacionais como a Sociedade das Nações (1920-1946),
criada sob iniciativa americana, instituições que conseguiram interromper,

391
pelo menos temporariamente, a «sucessão de catástrofes» (a expressão é de
Walter Benjamin) que constitui a «história europeia».

A incapacidade da Sociedade das Nações (Volkerbund) de evitar a ascensão


do fascismo e a catástrofe da Segunda Guerra Mundial não impediu iniciativas
semelhantes que levaram à constituição das Nações Unidas em 1945. Na
base desta organização, como também na ideia da integração europeia que
começa a perfilar-se logo no pós-guerra, está a convicção de que, na era da
tecnologia industrial e militar moderna, só estruturas supranacionais podem
garantir um equilíbrio e uma segurança relativa. Assim, a rede de alianças e
tratados que se estabelece durante a segunda metade do século, visa não só o
progresso económico, mas também o controlo e a limitação de eventuais
conflitos político-militares.

7 .1.2 A Europa comunitária

A integração europeia é, antes de mais, uma consequência directa da


Segunda Guerra Mundial. Em Setembro de 1946, o ministro americano
dos negócios estrangeiros aponta num discurso em Stuttgart para a
necessidade de se limitar a influência soviética na Europa e de reconstruir
a Alemanha nesta perspectiva. Uma semana mais tarde, Churchill exige
em Zurique a formação duma união europeia. Em 1948 é criada a OEEC
(Organization for European Economic Cooperation) e um plano do
primeiro ministro francês Pleven, de Outubro de 1950, pronuncia-se a
favor da criação dum exército europeu que deveria incluir também tropas
alemãs.

O tratado da Montan-Union (CECA- Comunidade Europeia do Carvão e


do Aço) estabelece em 1951 a colaboração entre a RFA, a França, a Itália, os
Países Baixos e o Luxemburgo a nível da indústria pesada. Um tratado
sobre a EVG/CED (Europaische Verteidigungs-Gemeinschaft/Comunidade
Europeia de Defesa), negociado entre 1951 e 1954, fracassa face à recusa
francesa e é substituído, em 1954, pelos tratados de Paris que prevêem, entre
outras coisas, a fundação da WEU/UEO (Westeuropaische Union/União da
Europa Ocidental).

Em 1957 são concluídos os Tratados de Roma que estão na base da Europa


comunitária actual. Um ano mais tarde a assembleia parlamentar europeia,
que reagrupa a Montan-Union, a Euratom (fundada em 1957 para promover
a utilização pacífica da energia nuclear) e a EWG/CEE ( Europaische
Wirtschaftsgemeinschaft/Comunidade Económica Europeia), estabelece-se
em Estrasburgo.

392
A evolução rápida da integração europeia foi uma das grandes prioridades
dos sucessivos governos de Adenauer, enquanto o SPD se opôs durante longos
anos a esta política, sobretudo à sua vertente militar. Embora concordando
com os Tratados de Roma, os sociais-democratas só em 1960 se pronunciam
publicamente a favor dos tratados europeus e atlânticos que, desde então,
serão um elemento largamente consensual da política alemã.

Em 1962 o conselho de ministros dos seis países fundadores da Comunidade


Económica Europeia decide a construção do mercado agrícola comum e,
em 1967, as três organizações comunitárias (Montan-Union, EWG, Euratom)
fundem-se para dar origem às Comunidades Europeias (CE/EG). O tratado
bilateral franco-alemão de 1963 inaugura uma colaboração privilegiada entre
os dois países vizinhos que, até hoje e apesar de mal-entendidos pontuais,
constitui uma das forças mais activas da integração europeia.

Na Alemanha, a união europeia contribui para o desenvolvimento econó-


mico que recorre cada vez mais à mão-de-obra estrangeira. Em Dezembro
de 1964, o número dos chamados Gastarbeiter ultrapassa um milhão, em
1996, a RFA conta 7 ,2 milhões de estrangeiros numa população de 81 ,8
milhões. Enquanto a integração dos estrangeiros oriundos de outros países
da UE se torna cada vez menos problemática (sobretudo depois de Tratado
de Schengen que garante a livre circulação de pessoas e bens dentro da
comunidade), a presença de etnias islâmicas, que ultrapassa o quadro tra-
dicional da diversidade europeia, é muito menos pacífica. Assim, a Alema-
nha é, no quadro europeu, um dos países com uma taxa mais baixa de natu-
ralização (Einbürgerung) de estrangeiros. Um facto cuja explicação reside,
por um lado, na reconhecidamente difícil integração dos estrangeiros no
tecido social alemão e, por outro, numa lei de nacionalidade baseada no jus
sanguinis, que impede a muitos dos que nasceram na Alemanha obter a
nacionalidade alemã (cf. Caps. III.1 e IV.6).

Mas também o crescimento do espaço comunitário não se realiza sem difi-


culdades. O progressivo alargamento da Comunidade (em 1973, aderem à
Comunidade a Dinamarca, a Irlanda e a Inglaterrà, em 1981, a Grécia, em
1985, Portugal e Espanha e, em 1995, a Áustria, a Suécia e a Finlândia)
transforma a União Europeia na maior zona económica do mundo. A dimen-
são deste projecto promete um paraíso de bem-estar e prosperidade que exerce
uma forte atracção sobre os países da Europa Oriental, cada vez mais
orientados para o contexto ocidental e atlântico.

A segunda fase da integração europeia, concretizada no Tratado de


Maastricht de 1992, visa a União Monetária e Social e uma maior cola-
boração ao nível da política externa e da justiça. Se a União Monetária j á
coloca uma série de problemas que põem em questão a própria União
Europeia, o objectivo duma união política parece ainda mais utópico. As

393
divergentes políticas nacionais, as desproporções sócio-económicas entre os
membros cada vez mais numerosos da UE e os problemas práticos que a
administração dum espaço desta dimensão levanta, indicam a necessidade
duma reflexão aprofundada sobre o rumo futuro da Comunidade. Por um
lado, a globalização económica favorece e exige estruturas supranacionais;
por outro, começa a discutir-se a questão de saber se uma nova identidade
europeia pode (ou não) assentar unicamente em vantagens e critérios de
ordem económica.

Para a RFA, a CE ofereceu, sem dúvida, a possibilidade de estabilizar o


sistema democrático e de, depois do desastre nacional-socialista, se desen-
volver num contexto integrativo virado para um futuro em moldes dife-
rentes. A presença alemã nas várias organizações europeias, nomeadamente:

• no Conselho da Europa (Europarat) com 36 países-membros após a


admissão da Rússia;

• na Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)


que inclui 54 países;

• e na União Europeia constituído pelo Parlamento de Estrasburgo,


eleito directamente desde 1979, pelo Conselho Europeu, o Conselho
de Ministros dos países-membros e a Comissão Europeia que executa
as decisões da Comunidade, e ainda o Tribunal Europeu de Justiça, o
Comité das Regiões e o Comité Económico e Financeiro,

garante-lhe um papel importante e, por vezes, decisivo nos grandes debates


da política europeia.

7.2 A identidade alemã e a Europa na era da globalização

A posição da Alemanha na Europa, no entanto, não pode ser reduzida às


estruturas políticas e económicas e aos objectivos comunitários. Na sequência
duma progressiva globalização económica e cultural, a vida quotidiana dos
alemães mudou consideravelmente nas últimas décadas. Os factores mais
visíveis desta globalização são o turismo (nomeadamente com a crescente
procura de destinos exóticos e distantes), que se tornou numa indústria
importante com muitos efeitos negativos nos países de acolhimento (polari-
zação social, prostituição, destruição do ambiente, etc.), e a presença dos
mass media que transformam todos os hábitos sociais.

Assim, a certas horas (transmissão dum jogo de futebol ou dum policial na


televisão), as ruas das cidades alemãs apresentam-se quase desertas, enquanto

394
que a televisão passou a constituir um tema recorrente nas conversas
familiares e nos locais de trabalho. A introdução das televisões privadas (nos
anos 80) confundiu definitivamente consumo e cultura, informação e
publicidade. A invasão dum consumismo que obedece unicamente às leis do
mercado e duma realidade mediática que substitui cada vez mais os ambientes
tradicionais (Lebenswelten) introduziu na Alemanha, nos últimos 40 anos,
mudanças sócio-culturais que ultrapassam as que caracterizavam a evolução
do país desde a Revolução Francesa. Os efeitos concretos destas mudanças
já começam a dissolver a imagem tradicional da Alemanha e da sua história
cultural.

A revisão da ordem política e económica que se sucedeu ao ano de 1989,


leva a colocar com maior acuidade o tema da identidade alemã, dado que,
nos últimos anos, à integração europeia em curso desde a Segunda Guerra
Mundial se sobrepõem importantes mudanças globais. Estas mudanças
começam a afectar directamente a sociedade e a cultura alemãs:

Europaisierung heiBt, daB Europa ais grõBere Einheit im Vergleich zu den


Nationalstaaten in immer grõBerem Umfang unser Leben bestimmt.
Globalisierung bedeutet, daB diese Entwicklung zugleich eingebettet ist in
globale Zusammenhange, die ebenso einen immer grõBeren EinfluB auf
unser Leben nehmen. (Münch 1995: 14)

Neste contexto, a Alemanha actual apresenta-se como uma sociedade mul-


ticultural sob o predomínio duma única cultura mundial universalista.

7 .2.1 A globalização económica

O triunfo mundial do capitalismo ocidental que, depois da queda do império


soviético, prevalece como modelo único para o rumo futuro das sociedades
industrializadas e não-industrializadas, acelerou substancialmente as ten-
dências de internacionalização, tanto a nível da produção como da distri-
buição de mercadorias. As grandes empresas alemãs operam cada vez
mais no estrangeiro (a Siemens, por exemplo, está presente em 190 países),
substituindo o esquema tradicional (produção local e exportação) por uma
rede global de fábricas, filiais e empresas subcontratadas, o que permite
alterar ou mesmo deslocar rapidamente a produção consoante as condições
locais sejam mais ou menos favoráveis.

O volume das transacções das maiores empresas do mundo (em grande parte
japonesas e americanas) já ultrapassa o produto interno bruto de muitos países
e, entretanto, concorrem no mercado mundial mais de 40 000 empresas
transnacionais. Em 1995 as empresas transnacionais controlavam já 2/3 do

395
comércio global, sendo que 1/5 de todos os bens e serviços era comercializado
à escala mundial (cf. Martin/Schuhmann 1996 relativamente a estes dados).
Esta revolução, cujos efeitos sociais e políticos começam a preocupar a
opinião pública europeia, tornou-se possível graças às novas tecnologias
(informática e telecomunicações), por um lado, e à redução das barreiras
administrativas e financeiras do comércio internacional, por outro.

Por seu turno, a liberalização dos mercados cambiais em 1973, que desde o
tratado de Bretton Woods (1944) estavam sujeitos a paridades fixas, criou
um mercado financeiro que, com o surgimento dos «paraísos financeiros»
off-shore, escapa em grande parte ao controlo dos Estados nacionai s.
A redução de receitas fiscais do Estado alemão provocada por esta evasão
fiscal (legal) estima-se em 50 biliões de marcos por ano.

Os principais efeitos negativos da globalização, tal como se verificaram nos


últimos anos, são pois os seguintes:

• aumento do desemprego e dos empregos a tempo parcial e mal


remunerados;

• decréscimo do rendimento real das famílias e redução do âmbito de


protecção da segurança social;

• enfraquecimento progressivo das classes médias.

A grande versatilidade do mercado de trabalho, resultante da automatização


das tarefas e da mobilidade dos empregos, transformou radicalmente a
situação económica e social na RFA nos últimos anos .

Assim, entre 1991 e 1994 desapareceram na indústria alemã mais de 1 milhão


de postos de trabalho (só na indústria automóvel mais de 300 000), enquanto
a produção se mantém ou chega mesmo a aumentar. Depois de terem extinto
150 000 postos de trabalho, as grandes empresas químicas como a Hoechst,
a Bayer e a BASF registaram em 1995 os lucros mais elevados da sua história.
Por outro lado, estas empresas pagam cada vez menos impostos. Enquanto
que em 1991 metade dos lucros das empresas se destinava à tributação, em
1995 essa taxa baixou para 20%. Em 1996 o Deutsche Bank declarou lucros
de 4,2 biliões de marcos, mas conseguiu reduzir a sua contribuição fiscal em
377 milhões de marcos. Em 1983 as empresas e os trabalhadores por conta
própria pagavam ainda 13, 1% do total de impostos, mas em 1996 as
contribuições daqueles dois grupos já representavam apenas 5,7% da totali-
dade das receitas fiscais do Estado alemão e esta tendência continua a
acentuar-se.

Deste modo, a globalização, que, por um lado, aumenta e facilita conside-


ravelmente a circulação de bens e pessoas e oferece uma série de vantagens

396
r:r-. ••
práticas (uniformização de normas técnicas, maior oferta e preços mais baixos
na área dos bens de consumo), enfraquece, por outro, a situação financeira e
institucional dos Estados nacionais, criando novas categorias sociais (working
poor, desemprego de longa duração, etc.) que podem a médio prazo provocar
uma grande instabilidade social e política. Por isso os governos europeus já
começam a revalorizar o papel do Estado a nível nacional e a reivindicar um
controlo internacional eficaz das empresas transnacionais.

7 .2.2 A globalização mediática

Uma das consequências da globalização económica é a uniformização das


referências culturais, para o que os modernos meios de comunicação de
massas contribuíram decisivamente.

Enquanto a imprensa escrita (Schriftkultur, Buchkultur) se desenvolveu


durante séculos, a invasão do espaço social pelos novos media (TV, video,
informática, etc.) realizou-se em poucas décadas. A omnipresença da tele-
visão, sobretudo nos anos mais recentes, com a introdução das transmissões
via satélite e cabo, multiplicou ainda a compra de emissões estrangeiras. Por
cada 100 domicílios alemães, a televisão está presente em 97, a televisão por
cabo em 43 e a TV por satélite em 27.

Tendo a imprensa escrita estado predominantemente ligada a iniciativas


privadas, o mesmo não sucedeu com a rádio e a televisão. Reconhecendo o
seu papel determinante na informação e formação do público, os governos
europeus tenderam, inicialmente, a transformá-las num serviço de interesse
público, com preocupações pedagógicas e de esclarecimento político.
Seguindo o modelo da BBC, a maior parte das estações recusavam qualquer
submissão a um padrão político ou económico, caracterizando-se por ser
sociedades sem fin s lucrativos, com preocupações de ordem cultural.

Com a crescente tendência para a privatização das emissoras televisivas, o


panorama viria a alterar-se significativamente. Por um lado, constituindo a
publicidade a sua principal fonte de receitas, tais emissoras vêem-se obri-
gadas a garantir audiências tão elevadas quanto possível. Para tal, sucedem-
-se os programas com sucesso garantido, sem quaisquer critérios de qualidade
ou de formação cívica ou cultural. Com o aparecimento das emissões por
cabo e satélite, as mesmas tenderiam a uniformizar cada vez mais os seus
padrões, de modo a garantir audiências a nível in ternacional. Tais
características não impedem, contudo, a forte concorrência das emissoras
norte-americanas que, dispondo de um vasto público nacional, vêem o seu
investimento compensado pelo consumo interno, pelo que podem exportar
os seus produtos a preços baixos.

397
Como forma de competir com estas, as emissoras europeias, apesar de
manterem alguns programas de características locais e nacionais , com
garantias de audiência interna, viram-se obrigadas a estandardizar os seus
produtos a fim de conquistar um público mais vasto: contudo, os sucessos
internos não garantem os lucros que as referidas emissoras podem hipoteti-
camente obter a nível internacional.

Surgem assim duas questões : a primeira diz respeito à preservação de uma


identidade local, que não é apenas ameaçada pela união europeia, mas tam-
bém e sobretudo pela globalização marcada pel o modelo norte-americano.

A segunda diz respeito à identidade cultural europeia: num momento em


que são dados os últimos passos para uma união monetária, será que a Europa
se resumirá a ser uma correia de transmissão de interesses económicos,
incapaz de encontrar uma política que respeite o local, seja a nível nacional
seja regional, ou será que conseguirá reinventar uma tradição que se
caracteriza tanto pelo seu universalismo como pela diferença?

É também a este nível que a identidade cultural alemã tem de ser repen-
sada, identidade essa que não pode ignorar os fenómenos introduzidos pelas
novas tecnologias de informação.

A Alemanha ocupa, neste campo, um papel particularmente favorável a


nível europeu. A sua situação económica não só lhe garante ter uma voz de
peso decisiva, como afirmar-se a vários níveis. A sua imprensa escrita é
ainda relativamente forte e oferece uma grande variedade temática e formal.

Por outro lado, a própria tradição cultural do espaço alemão não só lhe permite
a manutenção de periódicos locais, como de uma série de jornais de impor-
tância nacional, por vezes, com um público que excede claramente as suas
fronteiras , como é o caso dos semanários Der Spiegel e Die Zeit ou dos
diários Frankfurter Allgemeine Zeitung, Frankfurter Rundschau, Die Welt,
Süddeutsche Zeitung ou Taz para não falar do prestigiado Neue Zürcher
Zeitung de proveniência suíça. Todos estes mantêm uma tradição jornalística
de grande qualidade, com destaque para os seus Feuilletons (secção cultural)
sendo, na maioria dos casos, a sua apresentação gráfica particularmente densa
e sóbria, por oposição ao tablóide Bild Zeitung, que conhece, porém, a maior
procura, reforçada de resto com a unificação de 1990. Contudo, a componente
regional não só marca os referidos semanários, como se manifesta numa
série de diários locais, de grande prestígio, como é o caso, por exemplo do
referido Taz, jornal berlinense, constituído por uma cooperativa de jornalistas,
que teve um papel fundamental durante os dias de agitação que antecederam
a queda do muro em 1989. Por outro lado, o número de pessoas que falam o
Alemão, quer como língua materna, quer como língua estrangeira é um dos
maiores na Europa.

398
O mesmo se pode dizer da televisão. Com quinze canais públicos e privados,
a Alemanha é um dos países com mais espectadores ligados à televisão por
cabo e satélite. Nos anos 80, a Alemanha iniciaria uma política de expansão
das suas emissões a nível internacional, adaptando-se simultaneamente as
suas editoras a um mercado que requeria cada vez mais novas tecnologias
mediáticas. Assim, a editora Bertelsmann é das mais importantes na Europa,
possuindo a Alemanha um número considerável de canais de difusão
internacional. É o caso da RTL, Sat 1, Viva de iniciativa privada, bem como
das emissões da televisão pública, como é o caso daDeutsche Welle. O facto
de possuir um público extremamente amplo, justifica a dobragem de filmes
e de programas. E embora assim se uniformizem e descaracterizem os
produtos estrangeiros (com o consequente efeito de fechamento da sociedade
sobre si mesma e sobre as suas próprias língua e cultura), a verdade é que
essa mesma dobragem facilita, ao mesmo tempo, o entendimento dos mais
variados temas por todos os membros da comunidade (aproximando-os assim
em termos culturais), constituindo, paralelamente, uma importante fonte de
emprego para profissionais de diversas áreas.

Contudo, se observarmos a programação da TV alemã poderemos verificar


que pouco ou nada possui que a distinga dos seus congéneres europeus ou
norte-americanos. Os filmes são frequentemente produções de Hollywood
ou séries norte-americanas (nas televisões públicas cerca de metade, nas
privadas até 90%) o mesmo sucedendo com os programas de entretenimento
(talk-shows, concursos, etc.) cujos modelos são, na sua grande maioria,
igualmente importados.

Neste sentido, pode afirmar-se que a situação dos media, com a respectiva
privatização e com o fenómeno da globalização, pouco ou nada contribuem
para uma redefinição da identidade cultural europeia que reconheça uma
tradição comum e a importância das diferenças locais: os elementos comuns
inspiram-se nos padrões de caça às audiências norte-americanos, que
uniformizam os programas. E pode também concluir-se que as televisões
via satélite ou cabo contribuiram mais para a globalização do que pro-
priamente para a difusão da cultura alemã na Europa.

É neste contexto que tanto mais se justifica o aparecimento de um projecto


televisivo europeu como é o do canal ARTE (Association Relative à la
Télévision Européenne). Iniciado em 1992 como um projecto franco-ale-
mão, englobando a ARTE Deutschland TV GmbH - em colaboração
com inúmeras televisões e estações radiofónicas alemãs - e a Sept ARTE,
o canal dispõe neste momento duma estrutura mais plural, incluindo a Bél-
gica, a Suíça e a Espanha. Definindo-se como uma emissora de interesse
público, sem qualquer recurso à publicidade, a ARTE difunde, para
além das produções próprias, programas de qualidade cultural produ-

399
zidos em todos os países da Europa. O artigo 2.º do seu tratado fundador diz
explicitamente:

Gegenstand der Vereinigung ist es Fernsehsendungen zu konzipieren,


zu gestalten und durch Satellit oder in sonstiger Weise auszustrahlen
oder ausstrahlen zu lassen, die in einem umfassenden Sinne kulturellen
und internationalen Charakter haben und geeignet sind, das Verstandnis
und die Annaherung der Võlker in Europa zu fordem. (http://www.sdv.
fr/arte)

As suas emissões dedicadas ao cinema permitem visionar produtos quer da


história do cinema europeu, quer produções menos divulgadas, designada-
mente filmes habitualmente afastados dos circuitos de distribuição. As suas
selecções, que privilegiam aquilo que de melhor se produz na Europa, não
ignoram, contudo, as produções de origem diversa, desde os países não-
-industrializados às produções norte-americanas que os circuitos comerciais
ignoram. Com noticiários sobre aquilo que no mundo da arte e da cultura se
faz na Europa, (Metropolis, entre outros) as emissões conseguem dar uma
imagem das potencialidades universais e locais do «velho continente». Resta
saber se a sua difusão será assegurada ou se sucumbirá à concorrência desleal,
Pmbora de momento tudo aponte para um aumento de espectadores, que em
; ')97 era de vinte milhões em toda a Europa que, neste caso não se confina
aos membros da União Europeia.

Pesem embora os efeitos nefastos da globalização, há que ponderar o


discurso predominantemente pessimista que a intelectualidade europeia
sobre a mesma tem produzido e que lembra o cepticismo dos primeiros dias
do cinema. Se é verdade que a globalização corre o risco de fazer desapare-
cer as tradições locais, transformando a Europa e o mundo numa «aldeia»
totalmente uniforme, também é certo que, analisados com maior atenção,
os produtos europeus se distinguem, em alguns aspectos, claramente dos
seus equivalentes norte-americanos. Séries como Schwarzwaldklinik ou
Lindenstrafie, por exemplo, duas telenovelas muito populares na Ale-
manha, mas de qualidade duvidosa, possuem algumas marcas locais, o
que leva a questionar as vantagens da prioridade absoluta a dar a pro-
duções nacionais, se o critério não se esgotar no economicismo. Por outro
lado, há que constatar uma maior americanização dos media alemães,
em confronto com os de proveniência britânica, onde o sabor inglês de
séries como Yes Minister ou Mr. Bean são evidentes. Se é verdade que,
à primeira vista, a MTV não parece oferecer qualquer característica euro-
peia, o mesmo não será já verdade, se se comparar a sua versão com a
norte-americana ou se se atender aos pequenos coloridos locais detectáveis
nas emissões alemãs e francesa de música popular, onde vozes de rappers
franceses, alemães ou portugueses se fazem ouvir.

400
A questão do comportamento das audiências deverá também, por seu
turno, ser tomada em linha de conta. Ao contrário do desprezo a que as
mesmas foram votadas pela intelectualidade alemã, na Grã-Bretanha do
pós-guerra, elas foram objecto de atenção redobrada, exactamente como
reacção a uma excessiva influência norte-americana que, na altura, se
começava a fazer sentir. O Centro de Estudos Culturais Contemporâneos
de Birmingham, fundado em 1964, desenvolveria um trabalho pioneiro
nesse campo, avançando teses particularmente inovadoras com os seus
estudos sobre os media e o comportamento das audiências. Segundo Stuart
Hall (1993), essas audiências não são forçosamente passivas, mas podem
descodificar de forma diferenciada as mensagens que lhes são impostas.
Por outro lado, estudos nesta área permitiram avaliar a importância dos
media na formação de contra-culturas e subculturas, designadamente ,
através da cultura pop que, na Grã-Bretanha permitiria recuperar um
registo local, como o demonstra sobejamente a produção dos Beatles, para
não falar do reggae, símbolo da minoria jamaicana e da sua identidade étnica
(Gray/McGuigan 1993).

Por outro lado, há que referir que se a globalização uniformiza, também


aproxima: assim a juventude mundial pode dialogar sobre os ícones da
cultura rock e trocar impressões sobre um imaginário que a televisão e o
cinema lhe forneceu, descodificando de forma imaginativa e subversiva aquilÓ
que as grandes empresas lhe oferecem. Contudo, há que não ignorar que a
cultura mediática se encontra gradualmente mais presa de um sistema
financeiro omnipotente que cria necessidades, gostos e os manipula de forma
a que a mesma se consiga substituir à realidade aparentemente mais imediata.
No entanto, os seus efeitos são difíceis de avaliar: depende da capacidade de
descodificação dessas mesmas audiências que, de televisor aceso, podem
discutir sobre o que vêem, troçar do que lhes é apresentado ou ignorar aquilo
que lhes é imposto.

Por outro lado, há que assinalar que os discursos pessimistas de perda de


identidade reproduzem noções estereotipadas e essencialistas de uma dife-
rença hipostasiada que é também ela o resultado de um permanente inter-
câmbio entre povos. O facto de existirem McDonalds por todo o mundo, de
os adolescentes usarem t-shirts com alusões a equipas de futebol ou
universidades norte-americanas pouco nos diz acerca do modo como orga-
nizam esses símbolos ou vivem essa apropriação.

E, finalmente, recorde-se os efeitos, nem sempre benévolos, da reacção à


globalização, que vão desde a defesa da etnicidade local ao tribalismo mais
virulento, o que permite questionar a tão propagada dissolução dos Esta-
dos nacionais e a existência de uma «aldeia global» sempre anunciada e
repetidamente adiada.

401
No campo da globalização estritamente mediática os perigos resultam
sobretudo de uma concentração excessiva em monopólios de informação,
com os riscos de às manifestações mais marginais e inovadoras não ser dada
qualquer oportunidade de se manifestar ou de as mesmas serem rapidamente
recicladas e assimiladas segundo os padrões de consumo necessários à
estabilidade do sistema. Note-se que neste campo, a rádio, dado não carecer
de recursos tão onerosos, tem vindo a gradualmente criar intervenções de
teor mais independente, em contraste com a uniformização da televisão, do
cinema e mesmo da indústria discográfica, à excepção de algumas produções
independentes.

O certo é que fenómenos como a crescente importância da cultura audiovi-


sual e da globalização são incontornáveis, embora as virtualidades do espaço
cibernético possam vir a operar transformações consideráveis neste campo.
Com efeito, a Internet oferece possibilidades incomparavelmente superiores
para a difusão do local. Neste campo assinale-se que a reinvenção da
comunicação escrita é outro dos desafios, bem com da capacidade de mani-
pular e organizar a informação. Resta saber se a identidade cultural europeia
conseguirá afirmar-se nesta dialéctica da uniformização e da diferença que
as «auto-estradas» da informação permitem e, por vezes, estimulam.

7.2.3 Identidade e diferença na sociedade multicultural europeia

A tecnologia e a técnica desempenham hoje - e decerto desempenharão no


futuro - um papel determinante na globalização e uniformização da Europa
e, mais genericamente, de todo o mundo. O rápido desenvolvimento que a
Internet conheceu nos últimos anos, um desenvolvimento - sublinhe-se
- só possível em virtude da adopção de protocolos e linguagens técnicas
universalmente compatíveis, ilustra bem a estreita relação de mútua
dependência que se estabeleceu entre a técnica e o referido efeito de globa-
lização.

Compatibilidade parece pois ser a palavra-chave de um mundo que, por


força de se tornar mutuamente compreensível, cada vez mais se assemelha.
Recorde-se a este título a recente reforma ortográfica alemã que entrará pro-
gressivamente em vigor a partir de Agosto de 1998. Trata-se de uma reforma
que obedece a dois princípios fundamentais: o da simplificação da escrita
face às mudanças verificadas na oralidade nos últimos anos (as regras
ortográficas actualmente em vigor datam de 1901/1902) e a eliminação dos
traços mais caracteristicamente nacionais - ou regionais, em termos europeus
- , como seja o «B», que até 2005 praticamente desaparecerá do alemão
escrito. O mesmo sucedeu, aliás, há uns anos em Espanha quando se tentou

402
- neste caso sem êxito - eliminar o alegado preciosismo ortográfico que o
caracter «fi» constitui na língua castelhana.

A crescente informatização das sociedades não é naturalmente alheia a estas


tentativas uniformizadoras. Face ao desenvolvimento de uma lógica de
produção industrial e em série que - é importante lembrá-lo - se con-
solida definitivamente a partir do século XVIII, as desvantagens da dife-
rença, ou seja, os custos acrescidos que as diferentes línguas, nacionalidades
e mesmo alfabetos europeus acarretam são óbvios.

No entanto, deve igualmente acrescentar-se que esta diversidade de lín-


guas, nacionalidades e alfabetos é uma das componentes fundamentais do
espaço a que nos habituámos a chamar Europa. Assim, tão importante como
o movimento de globalização a que hoje se assiste no espaço europeu são os
movimentos de expressão contrária, i. e., de desintegração, que nos últimos
anos tomaram igualmente conta do espaço onde se joga a identidade europeia:
o renascer dos nacionalismos radicais, as novas tendências regionalistas (de
uma «Europa das Regiões» que, no entanto, se apresenta cada vez mais
uniforme em termos políticos e económicos), enfim, a crescente luta pela
autonomia por parte de comunidades locais (cada vez mais pequenas e mais
fechadas sobre si mesmas, que se apresentam como «imensas minorias»)
são disso um exemplo claro.

A Europa é tradicionalmente um espaço complexo, multifacetado e para-


doxal. Quando aplicada ao espaço europeu, a expressão «aldeia global»
- reunindo o particular («aldeia») e o universal («global») - exprime de
uma forma particularmente eficaz as tensões contraditórias e paradoxais que
constituem o núcleo onde se joga a identidade europeia.

No que diz respeito às forças que actuam no sentido da desintegração (ou


atomização) do espaço europeu, convirá sublinhar que se trata de forças
que, hoje como ontem, se alimentam fundamentalmente dos tradicionais
movimentos nacionalistas. Nesse sentido, não será descabido afirmar que os
nacionalismos terão sido os movimentos que mais marcaram a construção
da Europa. Com efeito, a identidade europeia sempre se construiu no e do
choque das várias «contra-identidades» (counter-identities; a expressão é de
Ranum 1986) que coabitam o espaço europeu. Como Johann Georg
Zimmerman notava já em meados do século XVIII:

Jede Nation ist mit sich selbst vorzüglich zufrieden und betrachtet in mehr
und weniger Absichten jede andere Gesellschaft von Menschen ais
Geschõpfe einer schlechtem Art. Ein Fremder und ein Barbar waren bei
den Griechen Worte von gleicher Bedeutung. (Zimmermann 1980: 30)

No grego tal como no alemão, poder-se-ia acrescentar, uma vez que qual-
quer dicionário etimológico revela a curiosa, mas significativa, proximidade

403
semântica existente entre os termos Elend (miséria) e Auslander ou Ausland
(estrangeiro).

Este acentuar do carácter local, regional ou nacional, no fundo, este estado


de «permanente comparação» (Ortega y Gasset 1985) em que a Europa vive
desde sempre, revela-se como uma das características constitutivas da
complexa identidade europeia. Sob este ponto de vista, a fundamental uni-
dade do espaço europeu é uma unidade questionável, a não ser que por Europa
se entenda um espaço comummente marcado pela diferença.

Já em 1803, num texto publicado no primeiro volume da revista Europa,


Friedrich Schlegel ( 1772-1829) chamava a atenção para o carácter arbitrário
e puramente convencional da unidade europeia, ao mesmo tempo que
aproveitava para expor algumas das antinomi as mais marcantes que
caracterizam, ainda hoje, o espaço europeu:

Darf ich nach der Geschichte, den Menschen, nach dem individuellen
Charakter der Lander urtheilen, ( ... ) so halte ich dafür, daB wir Europa
vielleicht mit Unrecht so durchaus ais Einheit betrachten, wenn nicht bloB
von einer willkührlichen, sondem von einer natürlichen, klimatischen und
organischen Einheit und Eintheilung die Rede seyn soll. ( ... ) Das nbrdliche
und das südliche Europa scheinen mir aus diesem Standpunkt zwei durchaus
verschiedene Lander, jedes seinem innem Wesen nach ein eigenes lndivi-
duum für sich, die nur auBerlich gewaltsam verbunden sind. (Schlegel apud
Lützeler 1982: 97-98)

Não deixa de ser interessante notar que esta breve e sucinta análise do espaço
europeu bem se poderia aplicar também à Alemanha de 1803 sem que para
isso se tivesse de proceder a alterações de grande monta no texto: bastaria
substituir o termo «Europa» por «Deutschland».

Na época da globalização das economias nacionais e da progressiva inte-


gração europeia, a identidade alemã joga-se mais do que nunca nas relações
complexas entre «Nationalstaat, regionaler Autonomie undWeltgesellschaft»
(Münch 1995). O século XVIII tornou-se vincadamente eurocêntrico face à
crescente importância dada ao mundo não-europeu. Por sua vez, a descoberta
da nação, ao longo do século XIX, só tornou possível a formação de uma
identidade, em função da rejeição ou da demarcação de outras identidades
locais europeias e, no caso dos impérios coloniais, ultramarinas.

A Alemanha, que tantas dificuldades teve (e continua a ter) em consolidar


uma identidade nacional, vê-se, no limiar do século XXI, integrada numa
nova cultura universal europeia:

Im weltweiten Konkurrenzkampf werden sich nicht die alten europaischen


National- und Regionalkulturen behaupten konnen, sondem nur eine

404
daraus sich entwickelnde, durchaus vielfaltige, aber auch zugleich
vereinheitlichte und kornrnerzialisierte europaische Universalkultur. (Münch
1995: 302)

Mas esta nova cultura universal europeia caracteriza-se por um fenómeno


específico do qual também depende: a comercialização da cultura. Esta,
porém, não teria sido possível sem uma mudança significativa nos interesses
e nas ocupações extralaborais das populações.

Assim, verifica-se um aumento significativo das actividades na área cultural


desde os anos 50. Entre 1954 e 1989 o número de museus na RFA multi-
plicou-se por dez, e o número dos visitantes por sete (cf. Münch 1995: 278).
O tempo livre por dia de trabalho aumentou, até 1980, sete horas e meia,
valorizando assim uma série de actividades que eram até aí consideradas
secundárias. Sobretudo nas últimas décadas organizou-se, por exemplo, um
importante turismo cultural que (cor)responde a uma grande mobilidade das
pessoas.

Numa visão mais pessimista desta evolução, as culturas regionais parecem


perder definitivamente a sua importância tradicional. Desaparecem dialec-
tos, gastronomias e costumes locais, ou transformam-se em produtos
facilmente comercializáveis. O turismo limita-se a fazer um «Erlebnis-
Cocktail» ao gosto e ao preço de toda a gente; a nova Erlebnisgesellschaft
integra totalmente cultura e comércio, transformando identidades tradi-
cionais em efeitos de mercado.

Resumindo, dir-se-ia que, tal como a Alemanha de finais do século XVIII e


inícios do século XIX, a Europa é um espaço marcado e dominado por duas
tensões contraditórias:

• uma tensão globalizante (que actua no sentido de promover uma


«desejável» unidade e autonomia culturais e económicas face ao
exterior, nomeadamente face aos mercados, culturas, modos de vida
e costumes americanos ou asiáticos);

• uma tensão desintegradora (que actua no sentido da dispersão, para


contrabalançar a alegada perda de identidade local face aos efeitos
«perniciosos» da globalização e ainda por oposição à ideia de uma
«Europa unida» que é tida como uma construção artificial).

Tal como o espaço alemão, esta Europa conhece (e conheceu ao longo da


sua história) vários centros e diversas periferias. Trata-se por conseguinte
de um espaço fundamentalmente descentrado, construído ao longo de eixos
relacionais (o «eixo Paris-Bona» é disso um exemplo) e profundamente
marcado pelas antinomias Norte/Sul e Leste/Oeste.

405
À semelhança do que sucedeu com a identidade nacional da Alemanha
(cf. supra Cap. 111.1 ), a identidade europeia foi sendo sucessivamente rein-
ventada ao longo da história, como o mesmo Schlegel deixa significativa-
mente entrever no final do texto acima referido: «das eigentliche Europa
muB erst noch entstehen» (Schlegel apud Lützeler 1982: 105).

O que está em causa neste processo de integração e de reinvenção de uma


identidade europeia é uma nova dimensão da política ao nível supranacional
que possa garantir formas de vida capazes de compensar a progressiva (e
previsível) perda de valores e identidades tradicionais. Neste sentido, a Europa
é um projecto cuja realização social e política não só depende da Alemanha,
como tem também no espaço geográfico, político, económico e cultural de
língua alemã um dos seus centros mais importantes.

Bibliografia aconselhada

Para uma perspectiva global e histórica sobre a formação do espaço cultural


europeu veja-se Ortega y Gasset 1985, Ranum 1986 e Morin 1987; sobre a
Europa actual consulte-se Münch 1995 e, relativamente aos efeitos nega-
tivos da globalização, Martin/Schuhmann 1996.

Actividades propostas

• Recolher na imprensa alemã e portuguesa imagens e metáforas da


Europa e da Alemanha e interpretar este material.

• Depois da leitura do capítulo pondere as vantagens e desvantagens


da globalização.

406
Bibliografia
J
i

A literatura crítica na área da sociedade e cultura alemãs compreende


um número infindável de estudos a que cada ano se somam milhares de
novos títulos . Por razões de ordem prática, a bibliografia que aqui se apre-
senta limita-se às obras básicas que serviram para a elaboração deste
manual e aos principais estudos recentes nas respectivas áreas temáticas.
Recorde-se que no final de cada capítulo ficaram já indicadas as obras que
se entende serem essenciais para o adequado acompanhamento dos temas
abordados.

Existem ainda várias séries de bolso muito acessíveis que apresentam


épocas e temas numa síntese informativa de qualidade, incluindo referências
bibliográficas para consultas mais aprofundadas. De entre essas séries de
bolso, recomendam-se as seguintes:

• dtv (Deutscher Taschenbuchverlag): Deutsche Geschichte der


neuesten Zeit vom 19. Jahrhundert bis zur Gegenwart. Hrsg. Martin
Broszat, Wolfgang Benz und Hermann Graml, com mais de 30
títulos;

• UTB (Universitatstaschenbücher), nas áreas das ciências literárias e


culturais, história e ciência política;

• stw (suhrkamp taschenbuch wissenschaft), na área das ciências


sociais, nomeadamente sociologia, etnografia e antropologia,
incluindo traduções de autores estrangeiros;

• VR (Kleine Vandenhoek-Reihe), na área da história, ciências sociais


e culturais.

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Composto e maquetizado
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Depósito legal n. º 120 981/98

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