Uma das especialidades marcantes do discurso revolucionário sempre foi a
criação de estereótipos e lendas urbanas que, pela repetição constante e ubíqua, se impregnam na imaginação popular e a povoam de falsas memórias. Desde as ondas de pavor e violência suscitadas nas pequenas cidades da França revolucionária pelos sucessivos anúncios de iminentes invasões de forças monarquistas que nem sequer existiam, até o mito da tomada de Havana pelos guerrilheiros de Fidel Castro, que nada mais fizeram senão marchar com total segurança por uma cidade já abandonada pelas tropas de Batista, a glória das revoluções é uma sucessão de mentiras tolas que se perpetuam pela repetição mecânica, como cacoetes.
No Brasil a mais célebre e duradoura dessas mentiras foi a da participação da
CIA no golpe de 1964, até hoje não abonada pela divulgação de um único nome de agente dessa entidade lotado no Brasil na época. O observador convencional pode imaginar que, com a queda do Estado soviético em 1991, a máquina de espalhar falsidades parou de funcionar e está enferrujada em algum depósito de tristes recordações ao lado das estátuas caídas de Lênin e de Stalin. Mas o movimento comunista internacional, que antecedeu de sete décadas o comunismo russo, deu provas cabais de que pode não apenas sobreviver, mas prosperar sem ele. A mais eloquente dessas provas foi dada pela guerrilha “zapatista” de Chiapas, México, em 1994. Cada resposta das autoridades mexicanas à violência guerrilheira era seguida instantaneamente de uma onda mundial de protestos, paralisando a ação do governo por medo das pressões internacionais e transformando em vitórias políticas as derrotas militares da guerrilha.
Daí por diante, acontecimentos similares tornaram-se rotina em todo o mundo
Ocidental. Um exemplo significativo foram os ataques terroristas à rede ferroviária de Madri em 11 de março de 2004, realizados simultaneamente em vários pontos da cidade, que mataram 193 pessoas e feriram 2050. Menos de vinte e quatro horas depois, violentos protestos eclodiram em toda a Espanha, voltados não contra os terroristas, fossem eles quem fossem, e sim contra o governo espanhol por ter atribuído a autoria do crime (erroneamente, segundo se disse na ocasião) ao partido separatista basco Euzkadi. Três dias depois, o partido governista do primeiro-ministro José Maria Aznar perdia as eleições gerais para a oposição de esquerda. A simultaneidade e a rapidez fulminante dessas operações – depois repetidas mil vezes em vários países – deviam-se a um único fator: estimulado em parte pelo desastre da experiência soviética, em parte por novas propostas estratégicas inspiradas em Antonio Gramsci e na Escola de Frakfurt, em parte pela difusão mundial dos pequenos computadores, o movimento comunista havia abandonado seu velho modelo hierárquico de linha de comando, e adotado um sistema de organização mais flexível em “redes”, de modo que em vez de uma única palavra-de-ordem descer do comando central para espalhar-se fielmente no seio da militância por meio de toda uma hierarquia de comandos intermediários, vários centros independentes, unidos vagamente por uma comunidade de valores e propósito, podiam emitir várias palavras-de-ordem simultâneas, cujas pequenas contradições mútuas logo se dissolviam na vaga unidade do sentimento comum voltado contra um inimigo preciso. Já não se tratava de pôr em ação um exército disciplinado, mas de espalhar emoções e símbolos, controlando o mais sutil e imperceptivelmente possível o movimento do conjunto. O sistema tinha a vantagem indiscutível de simular uma total espontaneidade e de espalhar entre militantes e simpatizantes um sentimento enganoso de liberdade e criatividade pessoal ao mesmo tempo que assegurava a difusão das palavras-de-ordem essenciais. Que esse sistema ainda esteja em vigor nos dias de hoje é a única explicação possível para o fato de que praticamente todos os perfis jornalísticos da minha pessoa publicados nos últimos meses, em órgãos tão diferentes quanto Veja, Folha de S. Paulo, Brasil 247, El País, Der Spiegel e America’s Quarterly, bem como numa infinidade de blogs e canais do youtube, sigam o mesmo roteiro e cometam sistematicamente os mesmos erros, como se tivessem sido antecipadamente planejados para produzir sobre o público um efeito uniforme, reforçado pela variedade das fontes. Os erros a que me refiro são os seguintes.
Se você, ao traçar o perfil intelectual de um filósofo, omite sistematicamente
qualquer referência ao conteúdo das suas obras filosóficas, aos inumeráveis louvores que elas receberam de intelectuais de primeira grandeza, aos prêmios e homenagens que o autor recebeu de instituições culturais do Brasil e do exterior, sobrando apenas umas opiniões políticas escolhidas entre as mais desagradáveis ao repórter, umas referências monstruosamente exageradas à influência que o referido filósofo teria exercido sobre políticos que o repórter abomina mais ainda, umas intrigas escabrosas de família e por fim algumas frases soltas sobre assuntos variados, amputadas dos argumentos que as sustentam e interpretadas sempre no sentido mais grosseiro possível, é óbvio que esse perfil nada tem de jornalismo mas é uma peça difamatória bem mal disfarçada, a expressão de um ódio político irracional e incontrolável, compartilhado por todos os autores dessas matérias. Como é possível tal fenômeno, sem que haja um acordo prévio entre os jornalistas que o produzem, acordo que, excluída “in limine” a possibilidade de conversações secretas e instruções partidárias explícitas, só pode se explicar pela harmonia mais ou menos espontânea entre membros de uma coletividade cultural animada pela mesma comunidade de sentimentos e predisposta a reagir uniformemente, de armas na mão, ao primeiro sinal de uma presença considerada ameaçadora à integridade e autoestima da tribo inteira?