You are on page 1of 3

A INDÚSTRIA UNIVERSAL DA MENTIRA (1)

08/01/2019

Uma das especialidades marcantes do discurso revolucionário sempre foi a


criação de estereótipos e lendas urbanas que, pela repetição constante e ubíqua,
se impregnam na imaginação popular e a povoam de falsas memórias. Desde
as ondas de pavor e violência suscitadas nas pequenas cidades da França
revolucionária pelos sucessivos anúncios de iminentes invasões de forças
monarquistas que nem sequer existiam, até o mito da tomada de Havana pelos
guerrilheiros de Fidel Castro, que nada mais fizeram senão marchar com total
segurança por uma cidade já abandonada pelas tropas de Batista, a glória das
revoluções é uma sucessão de mentiras tolas que se perpetuam pela repetição
mecânica, como cacoetes.

No Brasil a mais célebre e duradoura dessas mentiras foi a da participação da


CIA no golpe de 1964, até hoje não abonada pela divulgação de um único nome
de agente dessa entidade lotado no Brasil na época.
O observador convencional pode imaginar que, com a queda do Estado soviético
em 1991, a máquina de espalhar falsidades parou de funcionar e está
enferrujada em algum depósito de tristes recordações ao lado das estátuas
caídas de Lênin e de Stalin. Mas o movimento comunista internacional, que
antecedeu de sete décadas o comunismo russo, deu provas cabais de que pode
não apenas sobreviver, mas prosperar sem ele. A mais eloquente dessas provas
foi dada pela guerrilha “zapatista” de Chiapas, México, em 1994. Cada resposta
das autoridades mexicanas à violência guerrilheira era seguida
instantaneamente de uma onda mundial de protestos, paralisando a ação do
governo por medo das pressões internacionais e transformando em vitórias
políticas as derrotas militares da guerrilha.

Daí por diante, acontecimentos similares tornaram-se rotina em todo o mundo


Ocidental. Um exemplo significativo foram os ataques terroristas à rede
ferroviária de Madri em 11 de março de 2004, realizados simultaneamente em
vários pontos da cidade, que mataram 193 pessoas e feriram 2050. Menos de
vinte e quatro horas depois, violentos protestos eclodiram em toda a Espanha,
voltados não contra os terroristas, fossem eles quem fossem, e sim contra o
governo espanhol por ter atribuído a autoria do crime (erroneamente, segundo
se disse na ocasião) ao partido separatista basco Euzkadi. Três dias depois, o
partido governista do primeiro-ministro José Maria Aznar perdia as eleições
gerais para a oposição de esquerda.
A simultaneidade e a rapidez fulminante dessas operações – depois repetidas
mil vezes em vários países – deviam-se a um único fator: estimulado em parte
pelo desastre da experiência soviética, em parte por novas propostas
estratégicas inspiradas em Antonio Gramsci e na Escola de Frakfurt, em parte
pela difusão mundial dos pequenos computadores, o movimento comunista
havia abandonado seu velho modelo hierárquico de linha de comando, e adotado
um sistema de organização mais flexível em “redes”, de modo que em vez de
uma única palavra-de-ordem descer do comando central para espalhar-se
fielmente no seio da militância por meio de toda uma hierarquia de comandos
intermediários, vários centros independentes, unidos vagamente por uma
comunidade de valores e propósito, podiam emitir várias palavras-de-ordem
simultâneas, cujas pequenas contradições mútuas logo se dissolviam na vaga
unidade do sentimento comum voltado contra um inimigo preciso.
Já não se tratava de pôr em ação um exército disciplinado, mas de espalhar
emoções e símbolos, controlando o mais sutil e imperceptivelmente possível o
movimento do conjunto. O sistema tinha a vantagem indiscutível de simular uma
total espontaneidade e de espalhar entre militantes e simpatizantes um
sentimento enganoso de liberdade e criatividade pessoal ao mesmo tempo que
assegurava a difusão das palavras-de-ordem essenciais.
Que esse sistema ainda esteja em vigor nos dias de hoje é a única explicação
possível para o fato de que praticamente todos os perfis jornalísticos da minha
pessoa publicados nos últimos meses, em órgãos tão diferentes quanto Veja,
Folha de S. Paulo, Brasil 247, El País, Der Spiegel e America’s Quarterly, bem
como numa infinidade de blogs e canais do youtube, sigam o mesmo roteiro e
cometam sistematicamente os mesmos erros, como se tivessem sido
antecipadamente planejados para produzir sobre o público um efeito uniforme,
reforçado pela variedade das fontes. Os erros a que me refiro são os seguintes.

Se você, ao traçar o perfil intelectual de um filósofo, omite sistematicamente


qualquer referência ao conteúdo das suas obras filosóficas, aos inumeráveis
louvores que elas receberam de intelectuais de primeira grandeza, aos prêmios
e homenagens que o autor recebeu de instituições culturais do Brasil e do
exterior, sobrando apenas umas opiniões políticas escolhidas entre as mais
desagradáveis ao repórter, umas referências monstruosamente exageradas à
influência que o referido filósofo teria exercido sobre políticos que o repórter
abomina mais ainda, umas intrigas escabrosas de família e por fim algumas
frases soltas sobre assuntos variados, amputadas dos argumentos que as
sustentam e interpretadas sempre no sentido mais grosseiro possível, é óbvio
que esse perfil nada tem de jornalismo mas é uma peça difamatória bem mal
disfarçada, a expressão de um ódio político irracional e incontrolável,
compartilhado por todos os autores dessas matérias.
Como é possível tal fenômeno, sem que haja um acordo prévio entre os
jornalistas que o produzem, acordo que, excluída “in limine” a possibilidade de
conversações secretas e instruções partidárias explícitas, só pode se explicar
pela harmonia mais ou menos espontânea entre membros de uma coletividade
cultural animada pela mesma comunidade de sentimentos e predisposta a reagir
uniformemente, de armas na mão, ao primeiro sinal de uma presença
considerada ameaçadora à integridade e autoestima da tribo inteira?

You might also like