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UNI CAM P
ESTADUAL DE CAMPINAS
Reitor
JOSÉ TADEU JORGE
C o o r d e n a d o r Geral da Universidade
F E R N A N D O FERREIRA COSTA
B D I T O ff A
Conselho Editorial
Presidente
PAULO FRANCHETTI
T O O
A F O R M A Ç Ã O DO C A N D O M B L É
H I S T Ó R I A E RITUAL DA N A Ç Ã O JEJE NA B A H I A
2° EDIÇÃO REVISTA
F I C H A C A T A L O G R Á F I C A E L A B O R A D A PELA
Pares, Luis N i c o l a u .
P216f A f o r m a ç ã o d o C a n d o m b l é : h i s t ó r i a e ricual d a n a ç ã o j e j e n a Bahia / L u i s
N i c o l a u Pares. - 2* e d . rev. - C a m p i n a s , SP: E d i t o r a da UNICAMP, 2 0 0 7 .
1. C a n d o m b l é - B a h i a . 2. V o d u - B a h i a . 3. E t n i c i s m o . I. T í t u l o .
CDD 299.6098142
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 2 6 8 - 0 7 7 3 - 0 390
C o p y r i g h t © b y Luis N i c o l a u Parés
C o p y r i g h t © 2 0 0 7 by E d i t o r a d a UNICAMP
N e n h u m a p a r t e d e s t a p u b l i c a ç ã o p o d e ser gravada, a r m a z e n a d a
em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos
o u o u t r o s q u a i s q u e r s e m a u t o r i z a ç ã o prévia d o e d i t o r .
In m e m o r i a m
Vicente Paulo dos Santos
1
AGRADECIMENTOS
Este trabalho é resultado de um longo processo de pesquisa que não teria sido
possível sem a colaboração de um grande número de pessoas e instituições,
às quais gostaria de expressar o meu agradecimento. Em primeiro lugar, devo
lembrar muito especialmente os nomes dos mais velhos, que, pacientemente,
partilharam seu tempo e sua sabedoria comigo: o finado humbono Vicente Paulo
dos Santos, a finada gaiaku Luiza Franquelina da Rocha e seu irmão carnal,
Eugénio Rodrigues da Rocha, ogã kuto Ambrosio Bispo Conceição, ogã impe
Bernardino Ferreira e agbagigan Everaldo Conceição Duarte. Agradeço também
a todos os outros membros das congregações religiosas jejes e de outros candom-
blés que aceitaram minha presença em suas cerimónias, assim como a todas
aquelas pessoas do povo-de-santo que, em alguma ocasião, ajudaram na mi-
nha pesquisa, e que aqui seria impossível enumerar.
N o âmbito académico, agradeço a inestimável ajuda e o apoio dos profes-
sores João José Reis, Vivaldo da Costa Lima, embaixador Alberto da Costa e
Silva, Maria Inês Cortes de Oliveira, Renato da Silveira, Luiz M o t t , Mariza
de Carvalho Soares, Silvia H u n o l d Lara, e aos membros da linha de pesquisa
Escravidão e Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Bahia, no qual foram apresentadas ver-
sões preliminares dos capítulos 1, 2 e 3. Sou igualmente grato aos colegas do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da
Bahia, em particular Maria Rosário de Carvalho, Graça Druck e Miriam Ra-
bello, que sempre propiciaram um ambiente académico estimulante para
minha pesquisa.
Agradeço a ajuda de outros pesquisadores e amigos, como Hypolite Brice
Sogbossi, Roger Sansi, Liza Earl Castillo, Luiz Cláudio Nascimento, Fernando
Araújo e Peter C o h e n . Também aos funcionários do Arquivo Regional de
Cachoeira, Arquivo Público do Estado da Bahia e Instituto Geográfico Histó-
rico da Bahia, pela a j u d a na pesquisa d o c u m e n t a l . Meus agradecimentos,
ainda, a Sheila Cavalcante dos Santos, pela paciente revisão do meu p o r t u -
guês, e a Bete C a p i n a n , pelo esforço na busca de recursos para publicação.
Esta pesquisa não teria sido possível sem a bolsa de pesquisador visitante
concedida pelo C N P q nos anos 1999-2002 e, a n t e r i o r m e n t e , a bolsa de pro-
fessor visitante concedida pela C A P E S no período 1998-1999. T a m b é m , em
2003, a Fundação de A m p a r o à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) conce-
deu-me u m auxílio de publicação. Meu grato reconhecimento, por seu apoio,
a essas instituições brasileiras de f o m e n t o à pesquisa.
SUMÁRIO
ABREVIATURAS 11
PREFÁCIO 13
CONCLUSÃO 365
BIBLIOGRAFIA 373
ABREVIATURAS
II
PREFÁCIO
Resultado de mais de sete anos de pesquisa, este livro é uma contribuição para
a recuperação da memória histórica de um grupo geralmente esquecido, tanto
nos estudos afro-brasileiros como entre o povo-de-santo. O prestígio da nação
jeje de C a n d o m b l é 1 é ainda reconhecido entre os especialistas religiosos, e
os pesquisadores não deixaram de se referir ocasionalmente a aspectos parciais
do seu rito. No entanto, não houve até agora n e n h u m livro dedicado a estudar
em p r o f u n d i d a d e e de forma pormenorizada essa "raiz" da cultura afro-bra-
sileira.
O livro enquadra-se ao mesmo tempo na área da história e da antropologia
da religião afro-brasileira. Interdisciplinar, portanto, incide numa pluralidade de
temas diversos, mas internamente entrelaçados, incluindo, entre outros: a
construção da etnicidade jeje no Brasil Colónia, a contribuição dos cultos de
voduns no processo formativo do Candomblé, a micro-história de dois terreiros
de nação jeje e uma etnografia seletiva do panteão e do ritual vodum contem-
porâneo na Bahia.
Um outro aspecto significativo deste trabalho diz respeito ao uso comple-
mentar de fontes escritas e orais, em combinação com a análise dos comporta-
mentos rituais. E m b o r a não seja uma metodologia t o t a l m e n t e nova, essa
interface entre história e etnografia foi utilizada com pouca frequência nos
estudos afro-brasileiros. O cruzamento crítico dessa variedade de fontes se
mostrou bastante fértil e abriu caminhos interpretativos que teriam sido im-
possíveis a partir da análise de um único tipo de fonte. Esse exercício foi espe-
cialmente relevante na reconstituição da história dos terreiros Bogum de Sal-
vador e Seja H u n d é de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ambos fundados por
africanos jejes, ainda na época da escravidão.
O recorte do objeto de estudo responde a critérios de natureza linguísti-
ca. Pode-se dizer que o livro trata da historiografia de duas palavras: jeje e vo-
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d u m — a p r i m e i r a de c o n t e ú d o p r i n c i p a l m e n t e étnico e a s e g u n d a de con-
teúdo n o t a d a m e n t e religioso. Essas palavras orientaram e balizaram a pesquisa
d o c u m e n t a l , assim como a seleção dos terreiros o n d e foi realizado o traba-
lho de campo, já que essas congregações religiosas se a u t o d e f i n e m c o m o per-
t e n c e n d o à "nação jeje" e se distinguem de outras por cultuar certas divin-
dades chamadas v o d u m .
Para demarcar a área geográfica africana da q u a l p r o v i n h a m os g r u p o s
étnicos que no Brasil foram conhecidos como jejes (tema do capítulo 1), tam-
bém utilizei critérios essencialmente linguísticos. Nesse sentido, segui a su-
gestão de H . B. C a p o e adotei a expressão "área dos gbe falantes" (Gbe-
speaking areà), ou simplesmente "área gbe", para designar a região setentrional
do atual Togo, República do Benim e o sudoeste da Nigéria, o n d e habitam os
povos tradicionalmente designados na literatura como adja, ewe, fon ou com-
binações desses termos c o m o adja-ewe. " G b e " é o vocábulo c o m p a r t i l h a d o
p o r todos esses grupos para designar língua e, embora não seja um t e r m o de
auto-identificação a u t ó c t o n e , tem a vantagem de não ser u m termo "etno-
cêntrico" que privilegia o n o m e de u m s u b g r u p o para designar o c o n j u n t o . 2
E precisamente entre esses povos com parentesco linguístico que desde tem-
pos antigos o termo "vodum" é usado para designar as divindades ou forças
invisíveis do m u n d o espiritual.
A demarcação de u m a área geográfica c o m base em critérios linguísticos
r e s p o n d e a u m a n e c e s s i d a d e descritiva e analítica, mas cabe n o t a r q u e a
área gbe s e m p r e c o n s t i t u i u u m a s o c i e d a d e p l u r i c u l t u r a l e p o l i é t n i c a , em
q u e o sistema m e r c a n t i l , as guerras e o sistema escravocrata f a v o r e c i a m
fluxos p o p u l a c i o n a i s de u m a zona p a r a o u t r a , q u e c o n t r i b u í a m para essa
d i v e r s i d a d e . 3 C i d a d e s c o m o U i d á e A b o m e y eram c e n t r o s r e l a t i v a m e n t e
c o s m o p o l i t a s , comparáveis, salvando as distâncias, com os núcleos u r b a n o s
d o Brasil C o l ó n i a , o n d e t a m b é m p o r razões de o r d e m m e r c a n t i l , ligadas
ao sistema escravocrata a t l â n t i c o , se p r o d u z i a a m e s m a c o n f l u ê n c i a e o en-
c o n t r o de grupos h u m a n o s c u l t u r a l m e n t e diversos. Essa semelhança estru-
t u r a l sugere que certas d i n â m i c a s d e i d e n t i d a d e coletiva de g r u p o s m i n o -
ritários, b e m c o m o suas estratégias de assimilação e resistência em relação
aos g r u p o s d o m i n a n t e s , p o d i a m ter-se r e p r o d u z i d o de f o r m a paralela na
Bahia e na área gbe.
Fredrik Barth fala de sistema social englobante para referir à estrutura so-
cial ou ao c o n j u n t o de relações sociais compartilhadas por todos os membros
de u m a sociedade plural (o consenso macrossocial), e fala da m a n u t e n ç ã o de
fronteiras entre grupos étnicos como "organização da diversidade cultural" (a
diferença microssocial). Esse autor insiste na necessidade de não se c o n f u n -
dir cultura e etnicidade, pois a última seria uma dinâmica desenvolvida a par-
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ficar o que t o r n a a nação jeje diferente das outras, e esse interesse decorre,
em primeiro lugar, da constatação de que esta é u m a preocupação c o m u m
entre o povo-de-santo, expressa de variadas formas pelos próprios praticantes.
Esse fator diferencial p o d e ser pensado c o m o incluindo p r i n c i p a l m e n t e dois
aspectos simultâneos: 1) certos elementos específicos da área gbe que, embora
ressignificados ou n ã o , a i n d a p e r s i s t e m ; e 2) u m processo relacional de
contraste com grupos concorrentes (isto é, jeje versus nagô). Privilegiei o se-
g u n d o aspecto, no qual as relações de contraste demarcam fronteiras entre
as nações, do mesmo m o d o c o m o acontece com os grupos étnicos. A identi-
dade religiosa é, p o r t a n t o , relacional e se expressa no contexto de um con-
~ senso institucionalizado.
O capítulo 7 examina o panteão jeje em relação a seus antecedentes afri-
canos, focalizando as divindades voduns que, sem dúvida, constituem um dos
sinais diacríticos da liturgia jeje. N o capítulo final há uma aproximação mais
etnográfica e descritiva do ritual jeje. Cabe alertar que essa etnografia — resulta-
do de um dado observador, n u m certo m o m e n t o e n u m dado lugar — não deixa
de ser aproximativa e está longe de ser exaustiva. Sabe-se que o povo jeje é
muito reservado e não conversa com facilidade sobre a sua religião, o que tal-
vez constitua outro de seus sinais diacríticos. Em diferentes m o m e n t o s , minha
condição de estrangeiro, de não-iniciado, ou até de branco, gerou resistência
mais ou menos explícita por parte de certos indivíduos, e foi só com m u i t a
paciência e persistência que consegui ganhar a confiança de outros. Inúmeros
aspectos da liturgia interna das casas jejes permaneceram ocultos, e outros
que p o r v e n t u r a cheguei a conhecer foram censurados no texto por d e m a n d a
explícita dos praticantes. Foi assim, através da assídua observação participante
dos sucessivos ciclos de festas anuais, que, aos poucos, consegui e n t e n d e r
c o m p o r t a m e n t o s e práticas rituais de intricada complexidade e identificar as
singularidades da nação jeje.
Para finalizar, cabe notar que este trabalho, pelo seu foco e recorte, tende
a valorizar o jeje. Ora, essa valorização não responde a n e n h u m a proposta de
"purificar" ou reificar essa tradição, c o m o p o d e r i a m pensar alguns leitores
inadvertidos, mas é resultado de u m interesse em reconhecer e calibrar na sua
justa medida a sua contribuição (claro que não única!) no processo formativo
do C a n d o m b l é . A valorização aqui elaborada em t o r n o dos jejes não responde
a qualquer noção de "superioridade cultural" dessa tradição, mas a u m demo-
rado trabalho de inferências a partir de dados empíricos relativamente con-
fiáveis e à comprovação de que efetivamente os cultos de v o d u m tiveram u m
papel crítico na formação do C a n d o m b l é . A perspectiva histórica é impor-
tante na medida em que permite entender ou avaliar o jogo das continuidades
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PREFÁCIO
e mudanças. Não foi a minha intenção utilizar "a História" de forma ideoló-
gica, a p o n t a n d o origens e defendendo continuidades diretas entre a Africa e
0 Brasil para justificar ou legitimar qualquer hierarquia cultural, como certa
literatura e tradições orais tendem a sugerir em relação a outras nações.
NOTAS
1
Ao l o n g o deste t r a b a l h o , utilizo o t e r m o " C a n d o m b l é " c o m inicial maiúscula para me
referir à i n s t i t u i ç ã o religiosa c o m o u m t o d o , e o m e s m o t e r m o c o m inicial m i n ú s c u l a
para m e referir a c o n g r e g a ç õ e s religiosas ou terreiros específicos.
2
Capo, Comparative....
i
Fredrik B a r t h d e f i n e u m a sociedadepoliétnica c o m o aquela " i n t e g r a d a no espaço mer-
c a n t i l , sob o c o n t r o l e de u m sistema estatal d o m i n a d o por u m dos g r u p o s , mas dei-
x a n d o a m p l o s espaços de diversidade cultural nos setores de atividade religiosa e d o -
méstica". B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 197.
4
B a r t h , " G r u p o s . . . " , pp. 196, 200.
5
Para Weber, a " c o m u n h ã o étnica" se reduz, em ú l t i m a análise, à crença subjetiva n u m a
origem c o m u m , real ou i m a g i n a d a (Economia..., p. 270). Para Geertz, a ligação étnica
"possui u m p o d e r de coação indescritível e p o r vezes e s m a g a d o r de e em si p r ó p r i a " e
decorre "de certo s e n t i d o a b s o l u t o e inexplicável a t r i b u í d o ao p r ó p r i o laço em si" (Old
societies..., p. 109); para a d i s t i n ç ã o e n t r e teorias p r i m o r d i a i s e relacionais, ver Rex,
Raça..., p. 49.
6
B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 194. Para estudos sobre a e t n i c i d a d e c o m o interação social, com
u m a a b o r d a g e m c o n s t r u t i v i s t a e u m a a t e n ç ã o para a f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a , ver, e n t r e
outros, Roosens, Creating ethnicity...-, Eriksen, Ethnicity and nationalism-, C u n h a , "Etni-
c i d a d e . . . " . E m e s t u d o s a f r o - b r a s i l e i r o s , D a n t a s , Vovó...; M. I. C. de O l i v e i r a , Re-
trouver...; Slenes, " M a l u n g u . . . " .
7
C u n h a , " E t n i c i d a d e . . . " , pp. 35-39 (grifo nosso).
8
C o h e n , Urban... Para teorias da e t n i c i d a d e c o m o expressão de interesses, ver t a m b é m
Giazer e M o y n i h a n , Beyond...
' Sobre as teorias de e t n i c i d a d e i n s t r u m e n t a l i s t a s , ver, por exemplo, B a n t o n , Racial....
C a b e n o t a r q u e há dois tipos de " o u t r o s " em relação ao i n d i v í d u o : aqueles de seu pró-
p r i o g r u p o e os de o u t r o s g r u p o s .
10
Herskovits, "African...", pp. 635-43; The myth..., p. xxxvii; Bastide, Sociologia...-, Verger,
Orixás...-, Elbeim dos Santos, Os Nagô...
" Ver, p o r e x e m p l o , D a n t a s , Vovó...-, C a p o n e , La quête...
12
M i n t z e Price, An anthropological..., pp. 5-7; Barnes, Africas..., pp. 9-10.
13
H e r s k o v i t s , Acculturation...-, c i t a d o e t r a d u z i d o em C u c h e , A noção..., p. 118.
14
Sahlins, Ilhas..., pp. 7, 17.
11
Por e x e m p l o , Verger, Notas.., p. 15; " R a i s o n s . . . " , pp. 144-45; Bastide, Sociologia...,
p p . 113, 316.
16
Turner, Schism Ver t a m b é m Maggie, Guerra...
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Qual teria sido essa área? Seria a palavra "jeje" uma referência a povos que com-
partilhavam uma certa homogeneidade linguística e cultural? O u essa palavra
estaria talvez relacionada a fatores intrinsecamente ligados ao escravismo, tais
como os portos de embarque ou o grupo de comerciantes que se encarregava
da sua venda? Para discutir em maior detalhe essas questões, será útil apresen-
tar um breve p a n o r a m a da história e da composição étnica d o G o l f o d o Be-
nim, b u s c a n d o esclarecer alguma coisa a esse respeito.
C o m o aponta Claude Lepine, toda a área do Golfo do Benim, do rio Volta
ao rio Niger, "constitui uma grande área cultural, onde podem ser observadas
marcantes semelhanças ao nível das instituições sociais e políticas, dos costumes,
das práticas e crenças religiosas. A unidade cultural desta região explica-se
pela história do seu povoamento, pelo seu passado de migrações e contatos". 1 6
O s historiadores contemporâneos que se dedicam a essa área da Africa ociden-
tal falam de u m a série de migrações sucessivas realizadas pelos c h a m a d o s
grupos p r o t o - i o r u b á s que, chegados do leste, se estabeleceram no G o l f o do
Benim a partir do século VII. U m a migração posterior, liderada por O d u d u a ,
instalou-se por volta do ano 1000 em Ilê Ifé. D e lá, os netos de O d u d u a , em
migrações subsidiárias, teriam ocupado a costa e o interior da região que mais
tarde viria a ser o reino de D a o m é . Alguns autores sugerem que os primeiros
habitantes da costa, os hulas ou popos, seriam os descendentes de O l u p o p o
ou O l u k p o k p o , sexto filho de O k a m b i e neto de O d u d u a . O u t r o s grupos
proto-iorubás, c o m o os guedevis, cujo e t n ô n i m o deriva do n o m e do seu rei
Iguede, e os fons teriam o c u p a d o , nessa época, o planalto de Abomey. 1 7
Fala-se de u m a outra onda migratória, provavelmente contemporânea à de
O d u d u a . Ela envolveu o grupo ancestral dos adjas, sob a liderança de Togbin-
Anyi. Proveniente da região de N u p e ou do rio Kwara (Niger), esse grupo veio
a se instalar na área da futura Oyo. Por rivalidade com um outro grupo proto-
iorubá vindo de Ilê Ifé, o grupo de Togbin-Anyi iniciou uma longa migração
r u m o ao oeste. Após estabelecer-se t e m p o r a r i a m e n t e em Ké (localização da
futura Ketu) e em Savè, esse grupo chegaria a Tado, cidade situada na margem
ocidental do rio M o n o , no atual Togo, a uns cem quilómetros do litoral. Ali,
os descendentes de Togbin-Anyi se encontraram com os azanus, cujos ances-
trais seriam os za, provenientes da área cultural Sonrai, na nascente do rio
Niger. É e n t r e t a n t o possível que em Tado houvesse já outros moradores, como
os ferreiros alu. 18
Dessa confluência em Tado entre os descendentes de Togbin-Anyi, vindos
do leste, e os azanus, vindos do noroeste, grupos subsequentemente conhecidos
como adjas, embora provavelmente integrando uma pluralidade de povos, ini-
ciaram novas migrações. A mais antiga se supõe ser a de um grupo conhecido
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cendo Abomey (Agbomé) como sua capital. A população desse reino foi sub-
sequentemente conhecida pela denominação étnica "fon", ou seja, o n o m e de
um dos grupos autóctones do planalto submetidos pelos agassuvi.
Q u a n d o os fons ou daomeanos conquistaram Aliada, em 1724, a família real
desse reino e seus seguidores fugiram para o leste, vindo a se estabelecer na re-
gião oriental do lago Nokué, onde fundaram o reino de Adjaché ou Adjasé, co-
nhecido entre os europeus como Porto Novo. Os adjas ali estabelecidos foram
chamados guri ou gunnu. Cabe notar que essa versão histórica sobre a fundação
do reino de Porto Novo no século XVIII, mantida por Akinjogbin, contradiz
as tradições dos reinos de Aliada, D a o m é e Porto Novo. 2 1
Sujeitos a múltiplas variações, que aqui sintetizo, os mitos de f u n d a ç ã o
desses reinos c o i n c i d e m em a f i r m a r que a d i n a s t i a real de Aliada estava
conectada por linha materna com a de Tado, sendo o seu f u n d a d o r um estran-
geiro que casou com u m a princesa da família real de Tado, que segundo as
tradições do D a o m é se teria chamado Aligbonon. Após um conflito pela su-
cessão do trono de Tado, os agassuvi — descendentes dessa princesa e do estran-
geiro Agassu, por vezes identificado com u m a pantera mítica — tiveram que
fugir daquela cidade, sob a liderança de Ajahuto, n o m e geralmente traduzido
como "o assassino dos adja". A j a h u t o foi o f u n d a d o r do reino de Aliada. Pas-
sadas algumas gerações, três príncipes irmãos se separaram após u m a disputa
sucessória. U m deles teria ficado em Aliada, um o u t r o teria ido para o norte,
para f u n d a r o D a o m é , e o terceiro teria ido em direção ao leste, para f u n d a r
Porto Novo. Segundo essas tradições, a fundação do reino de Porto Novo seria
a p r o x i m a d a m e n t e c o n t e m p o r â n e a à f u n d a ç ã o do Daomé. 2 2
Estudos históricos recentes mostram que esses mitos de fundação poderiam
ser uma construção relativamente tardia, provavelmente do século XVIII, mas
só d o c u m e n t a d a no século XIX, e originalmente elaborada pela família real
daomeana — de m o d o a legitimar o seu poder real, f u n d a m e n t a n d o - o n u m a
ascendência em Tado — , sendo s u b s e q u e n t e m e n t e apropriada e reelaborada
pelas dinastias reais de Porto Novo e Aliada, esta última já sujeita ao domí-
nio do Daomé. 2 3 Seja como for, essas narrativas sugerem que, por volta do
século XVI, grupos adjas originários de Tado migraram para o leste e, d o m i -
n a n d o e absorvendo populações autóctones preexistentes, f u n d a r a m o reino
de Aliada, a partir do qual se legitimou, posteriormente, o poderio do D a o m é
e Porto Novo.
Essas migrações de Tado para o leste foram seguidas por outras, no início
do século XVII, mas desta vez na direção oeste. Em um m o m e n t o não determi-
nado, provavelmente, segundo Spieth, por volta de 1610, grupos oriundos de
Tado f u n d a r a m a cidade de Notsé, centro de migrações subsidiárias que nas
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ENTRE DUAS COSTAS
Fonte: H, B. C. Capo, Comparalive phonology of Gbe. Berlim, Nova Iorque: Foris Publications, 1991.
Nota: Exceto os g l o s s ô n i m o s (escritos n a ortografia gbe, u n i f o r m i z a d a por Capo), todos os outros n o m e s
aparecem na ortografia "oficial" inglesa ou francesa.
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Bergé coletou as tradições orais dos reinos de Fitca (ou país de Fellattah),
Dassa e de o u t r o s povos da área M a h i , assim c o m o as d o vizinho reino de
Savalu, que, e m b o r a localizado ao n o r t e do rio Z o u , esse autor não consi-
dere c o m o p a r t e do país M a h i . D e s c r e v e n d o em detalhe as múltiplas mi-
grações desses povos, Bergé conclui que os mahis c o n s t i t u e m "um verda-
deiro coquetel de raças", resultado de u m a lenta miscigenação e simbiose
cultural das populações nagô-iorubás originais com sucessivos grupos adjas
e fons vindos d o sul. 45 Por exemplo, o reino de Dassa (Idassa), com o seu
centro mais i m p o r t a n t e em Dassa Z o u m é , e c u j a d i n a s t i a real r e m o n t a a
1700, foi f u n d a d o pelos nagô-egbas p r o v e n i e n t e s da zona da atual A b e o -
kuta. 4 6 Os fittas e os savalus (Tchevelou) eram t a m b é m de origem nagô-
iorubá; outros povos p o d i a m ter ascendência adja (guedevis, gbanlis, dovis)
e se teriam r e f u g i a d o na região m o n t a n h o s a dos mahis com o s u r g i m e n t o
do reino de D a o m é no p l a n a l t o de A b o m e y , na p r i m e i r a m e t a d e do sécu-
lo XVII.
O caso de Savalu merece especial atenção, já q u e o t e r m o aparece c o m o
e t n ô n i m o no Brasil a p a r t i r do século XVIII e ainda h o j e designa u m a das
" s u b n a ç õ e s " do C a n d o m b l é jeje. Savalu é, na a t u a l i d a d e , a c i d a d e mais
i m p o r t a n t e da região M a h i , e a família G b a g u i d i tem sido o clã dirigente
desde provavelmente finais do século XVII. Segundo tradições locais, os an-
cestrais dos Gbaguidi eram originários do lago Aheme, na ilha M i t o g b o d j i ,
habitada pelos pescadores dovis (filhos da rede), que, por sua vez, eram de ori-
gem h u e d a . Depois de u m a disputa fratricida, Ahossu Soha emigrou para o
norte, passando pela região do rio O u e m é , o planalto de Abomey, até final-
mente chegar a Savalu, ou T c h e b e l o u , "uma cidade nagô originalmente" ha-
bitada pelos ifès. Essa migração deve ter a c o n t e c i d o nos t e m p o s dos reis
d a o m e a n o s H w e g b a j a (1650-1680) ou Akaba (1680-1708).
Savalu, como outras partes do país Mahi, foi atacada em várias ocasiões
pelos reis daomeanos em sua busca por escravos e manteve um relacionamento
t a n t o de conflito q u a n t o de cooperação com esse reino, a l t e r n a n d o períodos
de independência e de submissão tributária. Foi só durante a vigência do rei-
no de Ghezo (1818-1858) que Savalu e grande parte do país M a h i (exceto os
reinos de Dassa e Fitta) foram ocupados pelo D a o m é . Naquele tempo, Savalu
era considerada terra anagô, mas os seus d i r i g e n t e s de origem h u e d a , os
Gbaguidi, que ajudaram o rei Ghezo a dominar os mahis, preservaram grandes
privilégios. Em 1845, D u n c a n i n f o r m o u que, depois do c h a c h a de Uidá,
G b a g u i d i era a segunda pessoa mais poderosa do D a o m é e m a n t i n h a u m a
relativa independência no controle político não só da região de Savalu, mas
t a m b é m das vizinhas cidades mahis. 4 8
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dom João IV "tinha autorizado seus vassalos a irem às costas da Guiné, a fim de
levar tabaco de terceira categoria e trazer escravos aos portos do Brasil". Os holan-
deses adquiriam o tabaco baiano de terceira qualidade, o chamado tabaco refu-
go, proveniente d o Recôncavo, para comerciar com os africanos que aprecia-
vam esse p r o d u t o mais que qualquer outro.
C o m o já foi estudado em detalhe por Verger, essa preferência teve impor-
tantes repercussões, favorecendo especialmente aos comerciantes baianos que
dispunham de tabaco, em detrimento dos comerciantes portugueses e de outras
partes do Brasil que, sem esse produto, viram reduzidas as suas possibilidades
de comerciar nessa parte da costa. Portugal encorajou seus comerciantes colo-
niais e metropolitanos a comprar escravos em Angola, C o n g o ou Guiné, onde
o poder holandês era menos evidente, mas os baianos não estavam autoriza-
dos a vender o seu tabaco nesses portos. D u r a n t e a segunda metade do século
XVII e todo o século XVIII, os escravocratas de Salvador e da zona fumageira
d o Recôncavo continuaram a desenvolver na área gbe o comércio do tabaco e,
em menor volume, o comércio do açúcar e da cachaça, i m p o r t a n d o , de forma
sistemática e em grande quantidade, escravos gbe-falantes para os engenhos de
açúcar e as plantações de tabaco do Recôncavo Baiano. 66
A partir de 1698, com a descoberta de o u r o em Minas Gerais, a d e m a n d a
de escravos a u m e n t o u . Embora, como aponta Braz do Amaral, as opiniões dos
poderes coloniais nem sempre concordassem, havia uma crescente preferên-
cia pelos negros minas aos angolas. Em 27 de n o v e m b r o de 1718, o vice-rei
da Bahia, d o m Sancho Faro, escrevia a Lisboa: "Os negros da Costa da Mina
são mais procurados para as minas e os engenhos que os de Angola, pela faci-
lidade com que estes morrem e se suicidam". 6 Já em 1726, em relação a uma
revolta escrava em Minas Gerais que fracassara devido a dissidências internas
entre minas e angolas, o governador do Rio ponderava,
os n e g r o s m i n a são os de m a i o r r e p u t a ç ã o para a q u e l e t r a b a l h o , d i z e n d o os m i n e i -
ros q u e são os m a i s f o r t e s e v i g o r o s o s , m a s eu e n t e n d o q u e a d q u i r i r a m a q u e l a r e p u -
t a ç ã o p o r s e r e m t i d o s p o r f e i t i c e i r o s e t ê m i n t r o d u z i d o o d i a b o q u e só eles d e s c o b r e m
o u r o e pela m e s m a c a u s a n ã o hã m i n e i r o q u e possa viver sem unia n e g r a m i n a , d i -
z e n d o q u e só c o m elas t ê m f o r t u n a . 6 8
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dez por encher os seus barcos com rapidez, p o d i a m comprar por preços acima
do c o m u m , acabou por gerar um certo caos comercial e a oposição generali-
zada das nações europeias à sua presença em Uidá. E m 1714, C o l o m b i e r ,
diretor do forte francês, escrevia sobre "a c o n f u s ã o que os portugueses cau-
sam nestas bandas pela falta de ordem". 7 9
Portanto, a p r o x i m a d a m e n t e entre 1700 e 1714, o tráfico na área gbe es-
teve centralizado em Uidá, em d e t r i m e n t o de Aliada e Jakin, o seu p o r t o na-
quele m o m e n t o . O fato de que o termo "jeje" começou a aparecer no Re-
côncavo p r e c i s a m e n t e nessa época, q u a n d o , s i g n i f i c a t i v a m e n t e , o t e r m o
"Arda" tendeu p a u l a t i n a m e n t e a desaparecer, sugere u m a primeira hipótese
segundo a qual "jeje" seria um t e r m o surgido em relação direita com a emer-
gente hegemonia do comércio em Uidá.
No entanto, q u a n d o Labat, no relato da viagem realizada pelo Chevalier de
Marchais, em 1725, listou os nomes das diversas denominações atribuídas aos
escravos em Uidá e Aliada — aradas, nagô, foin (fon), tebou (ijebu), guiamba,
mallais (malês), ayois (oyo), minois (mina) e aqueras 80 —, não aparecia qual-
quer menção ao termo "jeje". Já que os comerciantes negreiros distinguiam
perfeitamente entre os diversos grupos de escravos que estavam c o m p r a n d o e
que, como aponta Labat, "as colónias da América aprenderam a conhecê-los
através de uma longa experiência", a ausência do termo "jeje" nessa lista sugere
que sua utilização estava restrita aos comerciantes baianos ou lusófonos, e não
aos traficantes franceses ou de outras nações. Alternativamente, devemos pro-
curar o surgimento do termo em outros portos fora de Uidá. 8 1
Nina Rodrigues, no já clássico Os africanos no Brasil, identificou os jejes
com os daomeanos e, influenciado pela leitura do trabalho de Ellis, The Ewé-
speakingpeople, sugere uma hipótese etimológica segundo a qual jeje derivaria
do e t n ô n i m o gen.
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das pelos povos gbe-falantes. Uma possível transformação fonética poderia ser:
adjaché > djaché > djedjé > jeje. Essa hipótese só seria válida se, como susten-
tam Merlo e Vidaud, Akindélé e Aguessy, esse topónimo fosse anterior à fun-
dação do reino de Porto Novo. 93 Ao mesmo tempo explicaria também por que,
no século XIX, o termo "djedje" foi aplicado aos guns de Porto Novo.
Resumindo, vemos que o debate etimológico, apesar de não resolver a ques-
tão de uma forma conclusiva, parece relacionar a origem da denominação "jeje"
c o m povos capturados na margem oriental do rio O u e m é , seja na área de
Adjatché (Porto Novo) ou, mais provavelmente, na área dos idjè, entre Pobé
e K e t u . Na primeira década do Setecentos, esses escravos poderiam ter sido
vendidos aos portugueses, no vizinho porto de Apa, pelos traficantes fons,
os iorubás do reino do Benim, ou por outros grupos que ali comerciavam,
sendo embarcados para o Brasil, subsequentemente, ali ou em outros portos,
c o m o Uidá, Jakin ou Popo. C o m o tempo, o e t n ó n i m o idjè, ou o t o p ó n i m o
Adjaché, apropriado e transformado pelos comerciantes baianos sob a forma
jeje, passou a denominar, na Bahia, uma pluralidade de povos adjas, enquanto
no Benim ficou restrito aos guns do reino de Porto Novo. A outra possibili-
dade seria que o termo fosse utilizado pelos traficantes baianos para desig-
nar escravos embarcados no porto de Uidá. Nesse caso, a origem etimológica
do t e r m o permanece em aberto e será preciso esperar futuros estudos para
resolver o problema.
0 T R Á F I C O B A I A N O NA ÁREA V O O U M A P Ó S A
C O N Q U I S T A OA COSTA POR AGAJA ( 1 7 2 4 - 1 8 5 0 )
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NOTAS
1
Peei, "A c o m p a r a t i v e . . , " , p. 263.
2
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 213.
3
Rodrigues, Os africanos..., p. 35; Freire, Casa-grande, p. 301. S e g u n d o Rodrigues, a carta
data de 1648.
4
A n t o n i l , Cultura..., p. 123; a p u d Freire, Casa-grande, p. 389.
5
M . I. C. de Oliveira, "Viver...", p. 175.
6
Mercier, "Notice...", p. 30; S m i t h , Kingdoms..., pp. 55, 70-71; Lima, A família..., p. 16;
Law, "Ethnicity...".
7
Pérez, C o n t r i b u c i ó n . . . , pp. 3-4. O t e r m o é t a m b é m utilizado pelo p e s q u i s a d o r b e n i -
nense H y p o l i t e Brice Sogbossi: M i n a - j e j e . . . , p. 19.
8
Soares, Devotos..., pp, 1 1 4 e s e g s . , 189.
9
Soares, Devotos..., pp. 45, 47, 49; cf. D . P. Pereira, Esmeraldo..., pp. 69-70; Pazzi, Intro-
duction..., pp. 74-75; Law, The Kingdom..., p. 10.
10
Pazzi, "Aperçu,..", p. 13.
" Verger, Os libertos..., p. 17; Rodrigues, Os africanos..., pp. 35, 108. Ver t a m b é m M . I. C .
de Oliveira, " Q u e m eram...", pp. 58-60.
12
Soares, Devotos..., pp. 66, 116-17; D e b r e t , Voyage..., vol. II, p. 76; M . I. C . de Oliveira,
" Q u e m e r a m . . . " , p. 59; Karasch, A vida..., pp. 63-66.
13
Peixoto, Obra nova..., pp. 20, 29, 69.
14
Pereira, A Casa..., p. 24; E d u a r d o , The Negro..., p. 10.
15
Soares, Devotos..., p. 118. Sogbossi, M i n a - j e j e . . . , p. 41. M a t o r y sugere q u e essa l í n g u a
poderia ser o f o n (Black Atlantic..., p. 308, n. 6). Lopes a identifica c o m o gunu ou
ewe ("Os t r a b a l h o s . . . " , pp. 45 e segs.). Pessoa de C a s t r o c o n s i d e r a o fon a língua pre-
d o m i n a n t e no vocabulário (A língua..., p. 68).
Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 122.
J o h n s o n , The history..., p. 8; M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p. 272; Iroko, Mosaiques...,
p. 59.
Pazzi, "Aperçu...", p. 18; Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , pp. 122-23.
r
19 T . «
l e p i n e , As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 123; C o s t a e Silva, A manilha..., pp. 535-38.
20
Verger, Notas..., p. 540.
^ A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 22.
Le H e r i s s é , VAncièn..., pp. 106, 274, 279 ; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ,
PP- 20-28.
57
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23
Law, The Kingdom..., pp. 29-32, 37-40. Por exemplo, e m relação ao episódio Aligbonon-
Agassu, Law sustenta que Agassu seria u m a divindade autóctone dos fons e Aligbonon es-
taria essencialmente associada à localidade de Wassa, perto de Abomey, sem qualquer vín-
culo com Tado; cf. B u r t o n , A mission..., p. 297; Le Herissé, LAncièn..., p. 277; Blier,
" T h e p a t h . . . " , pp. 40L-2.
24
Pazzi, "Aperçu...", p p . 15-16.
C a p o , Comparative..., p. xxv. Para u m a análise d o s t e r m o s " a d j a - e w e - f o n " , ver Me-
deiros, "Le c o u p l e . . . " , pp. 35-46; A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , pp. 87-102.
26
T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p p . 36-38. S m i t h , Kingdoms..., pp. 55-72. Elisée A. S o u m o n n i
c o m e n t a : " O s iorubás do D a o m é c o n s t i t u e m - s e dos seguintes s u b g r u p o s : Sabe, Ketu,
A w o r i , I f o n y i n , O h o r i , I d a i s a , Ife, Isa, M a n i g r i e A j a s e ( P o r t o - N o v o ) " {Daomé...,
P- 19).
27
D a p p e r , Naukeurie..., p. 307, a p u d Pazzi, Introduction..., p. 208.
28
Van D a n t z i n g , Dutcb Documents..., p. 1.
29
B o s m a n , A new..., p . 397; a p u d D a l z e l , History..., p. 13; Verger, Fluxo..., p. 128;
D u n g l a s , " C o n t r i b u t i o n . . . ", p p . 143-44.
30
A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , p p . 87-102.
31
Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 235.
12
Pazzi, Introduction..., pp. 51, 158.
33
C o m o i n t u i t o de atrair o c o m é r c i o E u r o p e u ao p o r t o de Jakin, em d e t r i m e n t o de Uidá,
o rei de A r d r a , T o h o n u , e n v i o u , em 1658, dois e m b a i x a d o r e s — Bans, q u e falava por-
t u g u ê s , e seu serviçal — à c o r t e de Felipe IV, em M a d r i . Por seu lado, os c a p u c h i n h o s
e s p a n h ó i s , c o m o i n t u i t o de c o n v e r t e r ao c a t o l i c i s m o o rei a f r i c a n o , a p r o v e i t a r a m os
c o n h e c i m e n t o s linguísticos dos dois e m b a i x a d o r e s para t r a d u z i r a Doctrina christiana
d o e s p a n h o l à lengua arda. Nesse texto, a p a r e c e m 60 referências a t e r m o s c o m o vodu
( D e u s ) , vodugue (S. M a d r e Iglesia, de vodunhue = casa do v o d u m ) , voduno (sacerdo-
te), vodunu, voduti, voduto etc. ( L a b o u r e t e Rivet, Le royaume...).
34
Para u m a análise d o t e r m o " v o d u m " e suas e t i m o l o g i a s , vet M a u p o i l , La géomancie...,
p p . 52-54; Blier, African..., p p . 37-47.
Sobre osyehwe, ver H e r s k o v i t s , Dahomey..., vol. II, pp. 190, 192. Ver t a m b é m B u r t o n ,
A mission..., p. 292.
36
Verger, Notas..., p. 439. O u t r o e x e m p l o seria o n o m e d o orixá I r o k o , q u e entre os gbe-
falantes é c o n h e c i d o c o m o v o d u m Loko.
37
Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 236.
38
As práticas d i v i n a t ó r i a s de Fa f o r a m trazidas da área i o r u b á para a área gbe, p r i m e i r a -
m e n t e nas cidades da costa, no século XVII; e, para A b o m e y , n o início d o século XVIII
( M a u p o i l , La géomancie...), pp. 4, 45-56.
39
H a z o u m e , " L ' â m e . . . " , p p . 65-86; T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p. 33.
40
A k i n j o g b i n utiliza a expressão "slave r a i d i n g g r o u n d " (Dahomey..., p. 93). A t r a d u ç ã o
é de Reis, " M a g i a . . . " , p. 69.
41
D o francês, "les démagés de la rage" ou "les damages de la rage": Bergé, "Érude...", p. 711;
C o r n e v i n , Histoíre, p. 47, a p u d Lima, A família..., p. 42.
42
Verger, Fluxo..., p. 154; cf. A H U - L i s b o a , São T o m é , cx. 4.
13
N o r r i s , Memoirs..., p. 138.
44
Ver, p o r e x e m p l o , Verger, Fluxo..., p. 251, n. 26. Ver t a m b é m B u r t o n , A mission...,
p p . 147, 262.
58
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60
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81
Labat, Voyage..., vol. II, p p . 125-27.
82
R o d r i g u e s , Os africanos..., p. 103.
83
A tese de R o d r i g u e s parece ser c o r r o b o r a d a p o r m e m b r o s d o terreiro " m i n a - p o p o " , P o ç o
Beta de Salvador. O filho p r i m o g é n i t o de M a n o e l Falefá, f u n d a d o r d a casa, explica q u e
jeje seria u m a c o r r u p t e l a d e guégué, q u e é a l í n g u a de P o p o ( g e n ) : I t a m o a c y Falefá,
c o m u n i c a ç ã o pessoal. S a l v a d o r , 1 3 / 1 2 / 1 9 9 8 .
84
A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ; L i m a , A f a m í l i a . . . , p p . 14-15; Pereira, A Casa...,
p. 68; cf. A b r a h a m , Dictionary..., p. 38. B o l o u v i t a m b é m s u g e r e q u e jeje d e r i v a d o
a d v é r b i o i o r u b á jéjé, q u e s i g n i f i c a r i a " s u a v e m e n t e , s i l e n c i o s a m e n t e , sem r u í d o " . Se-
g u n d o esse a u t o r , esse n o m e seria d a d o aos f o n s p e l o s i o r u b á s , e m m e m ó r i a da t á r i c a
de a t a q u e s - s u r p r e s a l e v a d o s a c a b o p e l o s d a o m e a n o s c o n t r a as c i d a d e s d e A b e o k u t a ,
Ketu etc. ( B o l o u v i , Nouveau..., p. 102). S o g b o s s i r e b a t e essa h i p ó t e s e ( M i n a - j e j e . . . ,
p. 44). Para u m a a n á l i s e d e t a l h a d a s o b r e o t e m a , ver t a m b é m M . C . I. d e O l i v e i r a ,
" Q u e m eram...", pp. 67-72.
85
Law, The Kingdom..., p p . 16, 112; cf. Law, Further...-. A r t h u r W e n d o v e r , Apa, 17/7/1682;
Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 14; i d e m , Introduction..., p p . 202-3.
86
Van D a n t z i g , Dutch..., p. 89.
87
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 64; Law, The Kingdom..., p p . 16, 112; cf. Law, Further...:
Du Colombier, Uidá, 17/4/1715.
88
Verger, Notas..., p. 23. S o g b o s s i a v a n ç a a h i p ó t e s e d a o r i g e m d o t e r m o " j e j e " a p a r t i r
da palavra ajaji ( M i n a - j e j e . . . , p. 47). R a y m o n d O k é c o n t a q u e ajaji v e m d e u m a f r a s e
s e n t e n c i o s a : " A j a h u t o t o n wè h o n j a t a - d o t o n ; a j a - h u t o wè a x o l u a j a t o n , wè j a n n y i
a j a j i " ( " O t r o n o real d e T a d o p e r t e n c e a A j a h u t o ; A j a h u t o é o rei de t o d o s os A j a ; ele
se s e n t o u s o b r e os Aja [ A j a j i ] " ) . D e s s a frase, foi t i r a d o o n o m e A j a j i - H o n j a , p a r a desig-
nar u m a r e g i ã o l o c a l i z a d a a cerca de 12 q u i l ó m e t r o s d e D a v i é - S è m è ( A l i a d a ) , o n d e
A j a h u t o v e n c e u os a d j a de T a d o (R. O k é , "Les siècles...", p. 57). T o d a v i a , Yeda Pessoa
de C a s t r o s u g e r e u m a o u t r a h i p ó t e s e , u m t a n t o " f o r ç a d a " , e m m i n h a o p i n i ã o , s e g u n d o
a q u a l jeje d e c o r r e r i a de gédéji ( o r i u n d o s o u n a s c i d o s de G u e d e , a n c e s t r a l d o s g u e d e v i s )
(A língua..., p. 62).
A n ó n i m o , " L a r e g i o n . . . " , p. 26; S o g b o s s i , M i n a - j e j e . . . , p. 48; Pazzi, Introduction...,
PP- 41, 74. Le Herissé ( a p u d Verg er, Notas..., p. 524) e H e r s k o v i t s ( a p u d M a u p o i l , La
géomancie..., p. 65) f a l a m d o s D j e t o v i .
A n ó n i m o , "La r e g i o n . . . " p p . 17-19. M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p p . 269-70; T i d j a n i ,
N o t e s . . . , p. 38; L a f f i t t e , Lepays..., p. 90. Para a t r a d i ç ã o de i n d e p e n d ê n c i a d o s i d j é s
e p o s t e r i o r r e s i s t ê n c i a à d o m i n a ç ã o f r a n c e s a , ver S o u m o n n i , "A I o r u b a l â n d i a . . . " ,
PP- 13-14.
" Parés, " T h e J e j e . . . " , p 95
r
92 o .
^ s adjas c o n t i n u a r a m a c h a m a r sua nova c a p i t a l de A l i a d a ( A r d r a , o u A r d r e s p a r a os
e u r o p e u s ) , e a seu p o r t o n o l i t o r a l , P e q u e n o A r d r a o u N o v o A r d r e s ( P o r t o N o v o , p a r a
os p o r t u g u e s e s ) .
93 «1 • .
K i n j o g b i n , Dahomey..., p. 214; Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 15; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n -
t r i b u t i o n . . . " , p p . 17, 1 8 i 7 1 ; D j S S O U ; "Essai...", p p . 83, 87; F. M . O k e , " N o t i c e . . . " , p. 89.
B a n c o l é
94 e Soglo, " P o r t o N o v o . . . " , p. 76; Verger, Os libertos..., p p . 10-11.
Verger, Fluxo..., p p , 59,70.
Aki t,"
rijogbin q u e s t i o n a a tese, s u s t e n t a d a p o r S n e l g r a v e , N o r r i s e a h i s t o r i o g r a f i a c o n -
e m p o r â n e a , de q u e essa p r o c u r a p o r u m a saída ao m a r r e s p o n d e s s e e x c l u s i v a m e n t e a
interesses escravistas (Dahomey..., pp. 73-81).
61
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
96
Snelgrave, A new..., pp. 14-15, 20-23, 149-52; Verger, Notas..., p. 540; Verger, Fluxo...,
pp. 150-55; Van Dantzig, Dutch..., pp. 176-78; Akinjogbin, Dahomey..., pp. 91-92, 97-100.
97
Verger, Fluxo..., p p . 144, 154. >
98
S c h w a r t z , Segredos..., pp. 283-84.
1)9
T í t u l o d e r i v a d o da l í n g u a p o r t u g u e s a , utilizado na C o s t a da Africa para designar pes-
soas de alta h i e r a r q u i a .
100
Verger, Fluxo..., p p . 211-23, 257-63 ( p a r a a e m b a i x a d a de T e g b e s u ) ; Verger, Os liber-
tos..., p p . 10-11, 101-4 ( p a r a J o ã o d e O l i v e i r a ) . Ver t a m b é m M a n n i n g , Slavery...,
p p . 36, 43.
101
Rodrigues, Os africanos..., p. 31; cf. " D o i s embaixadores africanos m a n d a d o s à Bahia
pelo rei do D a g o m é . C a r t a de D . F e r n a n d o José de Portugal ao E x m o . Sr. Luís Pinto
de Sousa em 21 d e o u t u b r o de 3795", Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
de Janeiro, vol. 69, p a r t . 1, 1895, p. 413. Existe u m a " C a r t a do e m b a i x a d o r do rei do
D a h o m e . Pedido para casar-se. Palácio d e Q u e l u z 3 abril 1796, N ú c l e o Governo da Ca-
pitania da Bahia", série O r d e n s Regias 1763-1822, vol. 81, d o e . 07, APEBa (apud Verger,
Fluxo..., pp. 265-71).
102
Verger, Fluxo..., p p . 271-75; Verger, Os libertos..., pp. 14, 106-10.
" " J o h n s o n , The history..., p p . 193-205; A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 188; Videgla, "Le
R o y a u m e . . . " , pp. 137-38. Para as revoltas escravas na Bahia n o p e r í o d o 1807-1835, ver
Reis, Rebelião...
104
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p p . 197-98, Law, Francisco Felix...., p p . 5-11.
105
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 193.
106
A p a r t i r da década de 1830, na área gen o u m í n a - p o p o , t a m b é m f o r a m i m p o r t a n t e s os
p o r t o s d e A n e h o (Pequeno P o p o ) , A g o u é e Porto Seguro (ver Jones, "Little Popo...").
107
Sobre os r e t o r n a d o s , ver, e n t r e o u t r o s , Verger, Fluxo...-, ]. M . Turner, Les brésiliens...;
C u n h a , Negros...; G u r a n , Agudas.... S o b r e a t r a n s i ç ã o à e c o n o m i a do azeite de d e n d ê ,
M a n n i n g , Slavery..., pp. 50-55.
108
M . I. C. d e O l i v e i r a , R e t r o u v e r . . . , p p . 120-21; cf. P r e s i d e n c i a P r o v í n c i a , Escravos
a s s u n t o s , m a ç o 2 . 8 8 0 / 1 , c a d e r n o ( . 8 6 1 , e m a ç o 2.891, c a d e r n o s 1.863-79, APF.Ba.
Verger, Fluxo..., p p . 434-38.
109
Verger, Fluxo..., p. 15.
62
1
63
LUIS NICOLAU P A R ÉS
64
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E É T N I C A J E J E N A B A H I A
—
1698-1729 1730-1749 1750-1779 1780-1800 1801-1820
s ; ! !
N« /o N % N» % N /O N« %
Mina 122 35,4 128 41,6 105 27,0 72 24,7 102 12,7
Total africanos 345 100,0 308 100,0 388 100,0 292 100,0 804 100,0
Subtotal África central 141 25,2 74 12,4 118 9,4 102 11,7 179 8,0
Subtotal África ocidentol 172 30,7 234 39,3 270 21,4 189 21,7 ; 6 2 5 27,9
Crioulo 192 34,3 225 37,8 645 51,2 365 42,0 1.005 44,9
65
LUIS N I C O L A U PAR ÉS
66
FORMAÇÃO OE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA
metade do século XVIII) eram crianças menores de doze anos, e não consti-
tuíam, em princípio, parte da força de trabalho.
Passemos agora a examinar os grupos africanos. O s dados disponíveis não
são fáceis de interpretar em virtude da abrangência semântica das categorias
étnicas utilizadas e da variabilidade no uso desse sistema de classificação. Fora
expressões genéricas c o m o gentio da G u i n é ou gentio da Costa, a g r a n d e
maioria de escravos era referida com um p e q u e n o repertório de termos ou
nomes de "nação": angola, benguela, mina, jeje, nagô e hauçá. Havia u m nú-
mero considerável de outros termos — alguns referentes a portos ou regiões
de embarque e outros que p o d e m ser identificados p r o p r i a m e n t e como etni-
cidades vigentes na Africa 1 2 — , mas eles se aplicavam a u m a q u a n t i d a d e rela-
tivamente pequena de escravos (ver categoria "outros" nas Tabelas 1 e 2).
Etnônimos como arda ou lada (aliada), coda ou codavi, fon, sabaru (savalu)
e maqui (mahi) faziam referência a grupos da área gbe, porém eles aparecem
em contadas ocasiões nos inventários. A categoria "arda", por exemplo, foi
bastante frequente na primeira década do Setecentos, mas o seu uso decresceu
à medida que foi suplantada pela denominação "jeje", processo que, como vi-
mos, correspondeu ao declínio do reino de Aliada e à crescente hegemonia de
Uidá no comércio da Costa da Mina. Já o registro ocasional de termos como
"sabaru" e "maquim" refletia as incursões regulares do exército daomeano no
país Mahi na procura de cativos de guerra.
A expressão "gentio de Guiné", praticamente a única no século XVII, tam-
bém desapareceu drasticamente na década de 1710, q u a n d o outras denomina-
ções mais específicas passaram a ser usadas para diferenciar a crescente diver-
sificação do tráfico. Todavia, certas categorias genéricas parecem ter sido privile-
giadas em regiões específicas. Por exemplo, a expressão "gentio da Costa" foi
muito utilizada na cidade de Salvador (ver Tabela 3), mas era praticamente des-
conhecida no Recôncavo. Isso implica, por um lado, que minas e muitos jejes
eram classificados em Salvador apenas como gentio da Costa e, por outro, indica
que a denominação "jeje" era mais característica do Recôncavo. Já na área do
açúcar, especialmente em Santo Amaro, chama a atenção a baixa porcentagem
dos minas, compensada por altas porcentagens de jejes e nagôs. Mais do que
indicar redes de tráfico diferenciadas para as zonas do açúcar e do tabaco, o
-ato sugere um uso regional diferenciado do sistema de classificação étnico-
racial. Talvez os senhores de engenho, ao comprar lotes de cativos maiores, no
seu interesse por identificar a mercadoria, tenham favorecido o uso de denomi-
nações como "jeje" e "nagô", de abrangência semântica mais restrita do que mina.
Essa variabilidade diacrônica e geográfica do sistema de classificação étnica
dificulta a análise, e será preciso um estudo f u t u r o mais detalhado para elu-
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LUIS NICOLAU PAR ÉS
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L U I S N I C O L A U P A R ÉS
Tabela 3 — C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d a p o p u l a ç ã o e s t r a v a . S a l v a d o r , 1702-1850
N !
% ! N !
!% N!
I %
1
Outros África ocidental n 1,2 109 4,9 i 243 8,7
í 1
1
Total 3.544 11 00,00 : 4.059 100,0
Fonte: Inventários, APEBQ. Paro o período 1702-1799: Ott, " O negro", p. 143. Para o período 1800-1820: Projeto
Reis-Nigerian Hinterland. Para o período 1821-1850: Andrade, A mào-áe-obra, pp. 189-90. Obs..- Os 20 "africanos
da primeira linha da tabela foram descontados nos subtotais de africanos centrais e ocidentais, e os "gentio do
Costa" foram contabilizados como africanos ocidentais.
72
FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA
Tabela 4 — C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d o s l i b e r t o s . S a l v a d o r , 1779-1850
N« % N» | % N* %
f no estrangeiro.
p r i v i l e g i a v a o crioulo em detrimento do atrican ^ dTodavia, entre
e s f a v o r e c i d o s .
73
LUIS N I C O L A U P A R ÉS
Para finalizar esta seção sobre as flutuações dos diversos grupos étnicos na
população negra baiana, é preciso comentar brevemente a ascensão dos nagôs.
Mencionados no Recôncavo desde 1734, eles foram demograficamente expres-
sivos na segunda metade do século XVIII, mas a sua importação maciça acon-
teceu d u r a n t e a primeira m e t a d e do século XIX, coincidindo com a desinte-
gração gradual do império de Oyo, iniciada com a revolta de A f o n j a (c. 1797)
e a jihad lançada pelos fulanis em 1804. C o n t u d o , na Bahia, eles só conse-
guiram superar d e m o g r a f i c a m e n t e os jejes e angolas na década de 1820 (Ta-
bela 3). 20 A partir da década de 1830, com a queda definitiva do reino de O y o
e a grande instabilidade social gerada pelas múltiplas guerras civis que assola-
ram a iorubalândia, os cativos nagôs foram cada vez mais numerosos. Em
1848, Francis Castelnau, cônsul de França na Bahia, reporta que "os nagôs
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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA
que formam provavelmente os nove décimos dos escravos da Bahia [...] quase
todos embarcados em O n i m ou Porto Novo". 21 Essa porcentagem é certamen-
te exagerada, mas a superioridade demográfica dos nagôs, embora tardia, é in-
questionável. Entre 1840 e 1860, em Salvador, eles constituíam mais da metade
da população escrava africana, entre 56 e 69% segundo fontes diversas. 22
O u t r o f e n ó m e n o relevante que se inicia na década de 1840, mas que se
generaliza a partir de 1850, com o fim do tráfico transatlântico, é a progres-
siva e sistemática utilização do termo "africano" para classificar tanto a escra-
vos c o m o a l i b e r t o s (Tabela 4). O s d a d o s extraídos dos i n v e n t á r i o s p o r
A n d r a d e m o s t r a m , no decénio de 1851-1860, u m a u m e n t o vertiginoso da
categoria "africano", que chega a designar 58% dos escravos não-brasileiros,
e n c o b r i n d o logicamente uma maioria de escravos nagôs. U m exemplo con-
creto é o do escravo José, que em 1835, d u r a n t e os processos que se seguiram
ao levante dos males, foi identificado como José Nagô. Mas, em 1857, em-
bora ainda referido c o m o José Nagô, ele é mais f r e q u e n t e m e n t e identificado
como José africano ou José da Costa da Africa. 23 O mesmo processo foi identi-
ficado por Maria Inês Cortes de Oliveira nos testamentos dos africanos liber-
tos de Salvador, nos quais se observa que a identificação étnica é cada vez mais
vaga e imprecisa à medida que avança o século. Entre 1851 e 1890, as cate-
gorias "africano" e "Costa da África" constituem 77% das auto-identificações
avaliadas. 2 4
Poder-se-ia supor que o uso das denominações étnicas estava em estreita
relação com o tráfico e que, q u a n d o este cessou, a partir de 1850, n u m a so-
ciedade cada vez mais crioula e racialmente miscigenada, a identificação a par-
tir de nomes de nação foi p e r d e n d o aos poucos a sua significação. H á na do-
cumentação da elite branca u m a clara tendência à homogeneização, passando
a distinção crioulo-africano a ser a linha de corte da população negra. E lícito
pensar t a m b é m que a formação do nacionalismo brasileiro, reforçado pela in-
dependência de Portugal em 1822 e consolidado em décadas posteriores, tives-
se c o n t r i b u í d o para a perda da i m p o r t â n c i a de identidades étnicas "estran-
geiras". Isso não significa que os africanos não mantivessem as suas identi-
dades étnicas, mas o seu uso ficava restrito ao universo cultural da população
negra e, principalmente, como veremos, ao â m b i t o religioso.
C o n c l u i n d o , a análise precedente permite supor que os jejes tiveram na
Bahia uma importância demográfica significativa entre 1730 e 1820, chegando
a constituir, em vários momentos e lugares, o grupo africano numericamente
majoritário. Foi provavelmente já nas primeiras décadas do século XVÍII que
se desenvolveu um senso de c o m u n i d a d e ou de identidade coletiva conhecida
como "nação jeje", e foi provavelmente nas primeiras décadas do século XIX
75
L U I S N I C O L A U PAR ÉS
A F O R M A Ç Ã O DE U M A I D E N T I D A D E M U L T I D I M E N S I O N A L
A PARTIR DE P R O C E S S O S ALTERNATIVOS DE N O M I N A Ç Ã O
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L U I S N I C O L A U P A R ÉS
vizinhos e p o r vezes rivais. Esse seria o terceiro nível, que corresponde aos
processos de diferenciação entre os povos englobados sob u m a mesma deno-
minação metaétnica. Surgem aqui as categorias étnicas prevalecentes na pró-
pria Africa, quase invisíveis para a classe d o m i n a n t e ou outros grupos afri-
canos. Vale lembrar que algumas dessas denominações, c o m o por exemplo
mahi, p o d i a m ser já d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas na Africa.
E o c r u z a m e n t o desses três níveis de n o m i n a ç ã o , desses três campos de
contraste, q u e me parece m a r c a n t e para e n t e n d e r a c o n s t r u ç ã o das nações
africanas no Brasil e a formação de u m a identidade étnica multidimensional.
O processo dialógico entre os próprios africanos gera um a j u s t a m e n t o pro-
gressivo das auto-adscrições africanas preexistentes, múltiplas e com índices
de incidência demográfica variados, às novas denominações metaétnicas de
nação, impostas pela fala da classe d o m i n a n t e , mais genéricas e reduzidas em
n ú m e r o . Essas denominações que, por sua vez, em alguns casos na Africa, um
dia foram restritas a um g r u p o d e t e r m i n a d o , com o t e m p o passam a englo-
bar um m a i o r n ú m e r o de grupos inicialmente diferenciados.
A identidade étnica se expressava muitas vezes através de metáforas de
parentesco. Novos laços de parentesco, não necessariamente biológicos, fo-
ram criados. Aqueles que t i n h a m viajado no mesmo barco, os malungos, pas-
savam, por essa experiência c o m p a r t i l h a d a , a se considerar c o m o irmãos.
C o m o a p o n t a João José Reis,
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As irmandades católicas foram uma das instituições sociais que mais contri-
buíram para o processo dialógico que aos poucos foi criando e definindo os
contornos das diversas nações africanas no Brasil. Vários autores têm apon-
tado para o fato de que as irmandades de homens pretos se dividiam segundo
as diversas etnias africanas, existindo irmandades de angolas, de jejes ou de
nagôs. 37 Ora, essa exclusividade étnica era raríssima e as irmandades incluíam
sempre uma pluralidade de grupos étnico-raciais, embora alguns deles desfru-
tassem de maior visibilidade ou poder. Essa heterogeneidade no interior das
irmandades era fonte de repetidos conflitos e tensões entre os diversos grupos,
e era precisamente nesses conflitos, ou às vezes alianças, que as relações de con-
traste e o fator diferencial se expressavam e que os indivíduos tomavam cons-
ciência de sua identidade coletiva.
O critério de exclusão mais i m p o r t a n t e q u e operava nas i r m a n d a d e s
reproduzia a hierarquia "racial" ou "de cor" prevalecente na sociedade mais
abrangente, isto é, enfatizava-se, sobretudo, o separatismo entre brancos,
pretos e, p o s t e r i o r m e n t e , os pardos, cada vez mais numerosos. Em muitas
confrarias, as distinções "raciais" eram determinantes na aceitação dos irmãos,
embora no caso dos pardos e mulatos existisse u m a margem de ambiguida-
de e mobilidade, dependendo do status social do indivíduo. Já nas congrega-
ções de homens pretos, além da distinção "étnica" entre os diversos grupos
africanos, a divisão interna mais marcante foi a que se deu entre africanos
e crioulos.
O s crioulos, como os mulatos, por terem nascido no Brasil e não terem
outro referente cultural, de um m o d o geral tinham atitudes assimilacionistas.
Eles falavam a língua portuguesa desde o início da vida, facilitando a comuni-
cação e o aprendizado de costumes e hábitos "nacionais". Os africanos, ao
contrário, provinham de outro m u n d o cultural e seus referentes de origem,
apesar das dificuldades, eram mantidos ou lembrados, gerando maior grau
de resistência. Essa resistência era mais acentuada entre os boçais ou africanos
recém-chegados, que não falavam a língua portuguesa, do que entre os ladi-
nos, aqueles mais integrados no sistema escravocrata.
E m b o r a se fale dos crioulos de uma forma genérica, é preciso matizar
que, c o m o os africanos, eles não constituíam um g r u p o h o m o g é n e o . Os
crioulos de primeira geração, em muitos casos criados por suas mães africa-
nas, podiam m a n t e r laços afetivos e de sociabilidade mais marcantes com
os seus progenitores africanos que com outros crioulos. Mas essa proximi-
dade ia-se perdendo com o tempo. Os crioulos de segunda e terceira geração,
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que em outras irmandades da cidade, como "na do Senhor dos Martírios, que
é dos mesmos excluídos [os crioulos], se observa o mesmo impedimento com
os do Ultramar". 4 3 Portanto, as políticas de exclusão entre africanos e crioulos
nas irmandades estavam inter-relacionadas de forma dialética, umas se justifi-
cando em função das outras, e provavelmente abarcando um âmbito regional
que incluía Salvador e o Recôncavo. 44
Mais difícil é saber qual era a natureza e os motivos das "controvérsias" e
"ódios" entre esses dois grupos, tema que merece u m f u t u r o estudo mais
aprofundado, mas o que interessa destacar aqui é que eram esses conflitos e
contrastes que faziam com que os indivíduos fossem colocados ou tomassem
partido por u m ou o u t r o bando, reforçando os processos de identificação co-
letiva. No caso, o a n t a g o n i s m o com os crioulos parece ter favorecido a soli-
dariedade inter-africana.
Na Irmandade dos Martírios de Cachoeira, a diretoria estava composta por
"um Presidente que sempre será h o m e m preto que não seja nacional do País:
um Escrivão da Mesa que não h a v e n d o preto que saiba ler, escrever, será
homem branco, ou pardo de boa conta: um Tesoureiro e um Procurador que
sejam pretos não nacionais". 45 Portanto, os cargos de mais importância, exceto
o de escrivão, estavam reservados a africanos, que pelo título do compromisso
podemos supor "de nação gege". 46 Nesse contexto, o termo "preto" parece po-
der designar t a n t o africanos como crioulos e precisa ser adjetivado com a ex-
pressão "não nacional" ou "não nacional do País" para se referir especifica-
mente aos africanos. Já no compromisso da irmandade da Redenção do C o r p o
Santo, os africanos minas e loandas são referidos como "pretos nacionais de
fora da cidade", provavelmente para indicar que, embora estrangeiros, eram
"pretos de nação". Essa ambiguidade semântica d o termo "preto" no Setecen-
tos contrasta com o seu uso no século XIX, q u a n d o preto é invariavelmente
sinonimo de africano.
Sendo que, além das restrições impostas aos crioulos, q u a l q u e r pessoa
podia ser aceita na associação, pode-se supor que, com o tempo, a irmandade
de Cachoeira foi incluindo, mesmo na sua diretoria, africanos de várias na-
ções, contribuindo para uma relativa heterogeneidade étnico-racial. Por exem-
plo, entre os cargos femininos, como o de Juíza ou Irmã M o r d o m a , c o n t e m -
pla-se a participação de irmãs "assim brancas, c o m o pardas, e pretas, sem
preferência alguma de pessoas". E n t r e t a n t o , os africanos jejes, como f u n d a -
dores da i r m a n d a d e , deviam m a n t e r um relativo controle, pelo menos na
segunda metade do século XVIII. E i m p o r t a n t e lembrar que nesse período,
em Cachoeira, os jejes eram o g r u p o africano d e m o g r a f i c a m e n t e m a j o r i t á -
rio, e embora não haja necessariamente uma relação direta entre demografia
85
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procuraram reforçar suas antigas alianças com os crioulos, talvez para enfren-
tar a nova configuração étnica da sociedade baiana.
E n c o n t r a m o s um outro interessante caso de dinâmica étnica na já men-
cionada I r m a n d a d e d o Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos
H o m e n s Pretos, erigida na Capela de São Frei Pedro Gonsalves, vulgarmente
d e n o m i n a d a do C o r p o Santo, filial da matriz da Conceição da Praia, na Ci-
dade Baixa. Essa capela foi provavelmente f u n d a d a no século XVI e era fre-
q u e n t a d a , principalmente, p o r marinheiros. São Pedro Gonsalves, apelidado
t a m b é m Sant'Elmo, era advogado dos homens de mar. 55 Frézier, que esteve na
Bahia em abril de 1714, descrevendo as igrejas da Cidade Baixa, indica que a
do C o r p o Santo era "para as pessoas pobres". 5 6
N o compromisso dessa irmandade redigido em 1913 consta que, em 3 de
maio de 1752, alguns africanos de nação jeje instituíram a devoção do Senhor
Bom Jesus das Necessidades e Redenção, na igreja do C o r p o Santo, naquele
m o m e n t o matriz provisória da Paróquia da Conceição da Praia. Em 4 de ou-
t u b r o de 1775 foi aprovado pelo D o u t o r Provedor de Resíduos e Capelas o
primeiro compromisso da irmandade, sendo confirmado por despacho do Tri-
bunal da Mesa da Consciência e O r d e m em 22 de agosto de 1778. 57
A partir desses dados, a maioria dos pesquisadores referem-se à Irmandade
do Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção como sendo "jeje", "exclu-
sivamente jeje", ou de "negros daomeanos gege". 58 Ora, a f u n d a ç ã o da devo-
ção em 1752, e a identificação dos seus f u n d a d o r e s c o m o jejes, consta ape-
nas n o compromisso d e 1913, sem existir qualquer outra prova d o c u m e n t a l
c o n t e m p o r â n e a dos eventos. Aliás, como já vimos, no compromisso de 1775,
no capítulo 12, onde se proíbe a entrada de crioulos, explicita-se que para
irmãos e irmãs eram aceitos pretos "da Costa da M i n a ou Loanda". Se a de-
voção foi f u n d a d a por jejes, poucos anos depois ela já aceitava minas e an-
golas. Além do mais, entre os m e m b r o s da mesa de 1775, consta como procu-
rador um português de n o m e José da Silva, o que indicaria t a m b é m a pre-
sença de brancos. 5 9
Silva C a m p o s afirma ter consultado o "antigo livro de resoluções da asso-
ciação" — d o c u m e n t o que infelizmente não achei — e apresenta informações
em que fica patente a heterogeneidade étnico-racial dos membros dessa irman-
dade e a rivalidade e conflitos dos jejes com brancos, mestiços e crioulos. Se-
g u n d o esse autor, nessa irmandade, inicialmente, só p o d i a m participar ne-
gros de nação jeje. "Depois foram-se alistando devotos de cor branca, mes-
tiços, crioulos e negros de o u t r a s castas, e m b o r a os gêges c o n s t i t u í s s e m
maioria." C o m o era frequente, os homens brancos, aos poucos, conseguiram
tomar posse dos primeiros cargos da mesa:
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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA
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L U I S N I C O L A U P A R ÉS
OS JEJES E OS N A G Ô S : D I N Â M I C A S S I M U L T Â N E A S DE CONFLITO E C O O P E R A Ç Ã O
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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA
NOTAS
1
M a t t o s o , Bahia.... pp. 82, 97, 1 19 (Tabelas 9 e 17).
2
Eltis et ai., "A p a r t i c i p a ç ã o . . . " , p. 39. O s mesmos autores calculam ter sido e m b a r c a d o
pelos p o r t u g u e s e s u m total de 1.454.200 escravos nos p o r t o s de L u a n d a e B e n g u e l a ,
e n t r e 1701 e 1810, do q u a l a p e n a s u m a p a r t e (não e s t i m a d a ) teria c h e g a d o à B a h i a
(ibidem).
3
Eltis, T h e v o l u m e . . . , Tabela 3.
4
Mattoso, Bahia, pp. 117-19; Verger, Fluxo..., pp. 662-63. Eltis et al., The Transatlantic
slave trade....
3
As fontes históricas mais i m p o r t a n t e s para alcançar esse objetivo são os inventários post
mortem, cartas de alforria, t e s t a m e n t o s , escrituras de c o m p r a e v e n d a de escravos e
r e c e n s e a m e n t o s . O t t e x a m i n o u fontes diversas em relação à p o p u l a ç ã o escrava de Sal-
vador e ao i n t e r i o r do estado, para os p e r í o d o s de 1702-1799 e 1778-1797, respectiva-
m e n t e ( " O negro...", pp. 141-53). Verger c o n t a b i l i z o u os d a d o s do "Livro de tutelas e
inventários da Vila de São Francisco d o C o n d e " (17.39-1841), p u b l i c a d o s nos Anais do
Arquivo Piíblico da Bahia, n u 37 (Fluxo..., pp. 669-75); Schwartz a p r e s e n t o u d a d o s so-
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L U I S N I C O L A U P A R ÉS
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FORMAÇÃO OE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA
» Ç«nindo os dados dos inventários apresentados por Andrade, A mão-de-obra..., pp. 189-90,
foi a partir de 1825 que os nagôs passaram a constituir o grupo africano demograficamente
majoritário entre a população escrava. E m 1824-1825, por exemplo, em dois engenhos
de açúcar no Iguapé, os nagôs já eram maioria entre os escravos africanos. N o alista-
mento do engenho de Santa C a t a r i n a , consta que 20 escravos africanos, na maioria
nagôs, foram comprados em 1824. O u seja, era naquele m o m e n t o que os engenhos mais
ricos estavam i m p o r t a n d o os nagôs: "Alistamento das pessoas que h a b i t a m desde o
Engenho da Cruz até o E n g e n h o Novo", caderno 7, d o c u m e n t o s avulsos, ARC. Reis
comprova essa transição no período 1820-1835: Rebelião..., pp. 308-9.
21
Verger, Fluxo..., pp. 14-15, 432. Para a jihad fulani e a desintegração do império de Oyo,
ver Reis, Rebelião..., pp. 158-74.
22
Ott, "O negro...", pp. 141-53; M. I. C. de Oliveira, Retrouver.... C o n s i d e r a n d o o total
da população escrava para o período 1830-1850, os nagôs c o n s t i t u í a m 36% (Andrade,
A mão-de-obra..., pp. 189-90).
23
"Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador em 1835", AAPBa, n 2 53, pp. 33,
35, 37.
" M. I. C. de Oliveira, O liberto..., pp. 53-54.
25
Patterson, Slavery....
24
Cabe notar que, na época colonial, os cortes de classe e os raciais que dividiam a po-
pulação eram quase coincidentes; existia, p o r é m , uma certa relatividade e possibili-
dade de ascensão, p r i n c i p a l m e n t e por parte dos pardos e mulatos.
17
Reis, A morte..., p. 55.
P»ra uma análise das homologias entre os vínculos de parentesco e os vínculos religio-
sos no candomblé, ver Lima, A família....
" Houseman et al., "Notes...", pp. 530-41.
Soares, Devotos.. , p 92
" So L
ares reconhece que a transcrição desse termo é apenas tentativa, pois a grafia do texto
original é confusa. M i n h a hipótese é que o t e r m o transcrito c o m o "ianno" seria lanno,
uma variante de lanu e c o n t r a ç ã o do e t n ô n i m o h u l a n u ( h a b i t a n t e -nu, h u l a ) . O
«nônimo lanu aparece em Minas Gerais em 1747 (Mott, "Acotundá...", p. 93). Alterna-
t
» n 1 I ? e n t e ' c o m o sugere Pessoa de Castro, lanu decorreria de alladanu (habitante de
32 W língua..., p. 131).
1624 Ap 3 ^' 3 " ' ^ 57-81. Fonte: Seção Judiciária, Cachoeira, Devassas, 1785, maço
> EBa. D o c u m e n t o e n c o n t r a d o e c o m e n t a d o por Patricia Aufederheide, Order...,
P* 164 A t *
ran
* s c r i ç ã o integral desse d o c u m e n t o , feita por Reis, encontra-se na parte
33
^ a X " ^ 0 - 0 0 ^ - - Revista Brasileira de História 8 (16), pp. 233-49.
O c o n d d ^ a ° e n t r C ^ e ' e S e ^ a g o m é s parece ainda se m a n t e r no início do século XIX.
O»». ° S ^ r c o s escreve: "[...] os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os
" ÍvenTãno05 ^ A W
- P 2I"
* "Inventári 6 Wan
°el Fernandes
Pereira, 1778-1798", 01/24/24/242, ARC, fls. 102, 109, 110.
de Caetana de
* Welw B ° Freitas, 1750", 03/1264/1733/19, APEBa.
57 p 2 5
^ Z Z T * - - - „
J
P- 525-R • ^ s P e c t o s - - - ' » p. 151; M a t t o s o , Ser escravo..., p. 148; Verger, Fluxo...,
mort
* *Com' ' « --, p. 55.
dos Martírio ° ^ * r m a n d a d e do Senhor Bom Jesus com o soberano título de Senhor
do M e r e C t a P e ' o s H o m e n s pretos de nação Gege, neste C o n v e n t o de Nossa
°nte C a r m o da Vila de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira, este
97
LUIS NICOLAU PAR ÉS
98
FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA
„s38
3». p. 140.
Waa,
' PP- 7-8; Reis, Rebelião..., p. 2.33; Verger, Fluxo.... p. 520.
LUIS NICOLAU P A R ÉS
100
3
DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ:
O P R O C E S S O F O R M A T I V O DA R E L I G I Ã O A F R O - B R A S I L E I R A
1
101 > V L/
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DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É
A L G U M A S C O N S I D E R A Ç Õ E S S O B R E AS INSTITUIÇÕES R E L I G I O S A S NA ÁREA V O D U M
Max Weber sustentava que uma das principais funcionalidades da religião é pro-
videnciar um sentido à existência do sofrimento e algum meio para superá-lo
ou transcendê-lo. Também Malinowski apontava para a religião como ajuda
para suportar "situações de pressão emocional". N u m desenvolvimento dessa
linha interpretativa, pesquisadores da Africa central propuseram, nos anos
1960-1970, o modelo teórico conhecido como "complexo f o r t u n a - i n f o r t ú n i o "
ou "ventura-desventura", segundo o qual a atividade religiosa tem por objeti-
vo não só "a prevenção do infortúnio", mas também "a maximização da boa
sorte". Perante os conflitos e os "tempos de experiência difícil" (i.e., doença,
esterilidade, fracasso, destruição, morte etc.), almeja-se propiciar "saúde,
fecundidade, segurança psíquica, harmonia, poder, status e riqueza".
A abrangência conceituai do modelo "fortuna-infortúnio", também apli-
cável ao estudo da religião da Africa ocidental, do "catolicismo popular" e das
religiões afro-brasileiras, questiona sua utilidade heurística e seu interesse ana-
lítico, se ele não consegue distinguir entre as diversas modalidades de religião
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DO C A L U N D U AO CANDOMBLÉ
culto dos ancestrais, e em especial o dos reis, pareça ter sido central, Bosman
identifica três "divindades públicas" principais: a serpente, as árvores e o mar.
"Cada u m a delas [...] tem a sua província particular [...] com esta diferença
apenas, que o mar e as árvores não p o d e m interferir com aquilo que é respon-
sabilidade da serpente, e n q u a n t o esta tem um influente poder sobre aqueles."
Isso significa que as divindades tinham âmbitos de atuação especializados, mas
também que o corpo sacerdotal estava organizado e dividido segundo u m a
estrutura hierárquica, provavelmente bastante competitiva.
Dangbe, a serpente píton, divindade real e suprema em Uidá, era respon-
sável, por exemplo, pela chuva e era invocada "para obter u m a boa colheita".
As árvores eram cultuadas e recebiam oferendas, "em tempos de doença, espe-
cialmente febres, para restabelecer a saúde aos pacientes", embora Dangbe tam-
bém pudesse cumprir essa função. O mar era invocado "quando se enfurece e
impede de trazer as mercadorias à costa, quando não vêm navios por um longo
período e eles os esperam com impaciência". Nessas ocasiões, eram realizados
grandes sacrifícios, jogando n o mar todo tipo de oferendas, inclusive seres hu-
manos. Norris, em 1789, também mencionou a intervenção dos sacerdotes nos
oráculos e decisões concernentes à guerra. Portanto, o corpo sacerdotal, tendo
em vista seu poder real ou imaginado sobre os ciclos agrícolas, a saúde, o comér-
cio e a guerra, era investido do mais alto status social, o que, de seu lado, lhe
permitia estabelecer um pacto social com o poder político ou civil, o rei e os
chefes dos diversos clãs familiares, de forma que os últimos estavam obrigados
a providenciar os recursos necessários para a subsistência dos primeiros. 1 1
Para isso, o rei de Uidá organizava procissões anuais ao templo de Dangbe,
nas imediações de Savi, gastando grande fortuna em oferendas. Nessa dinâmica,
os sacerdotes atuavam em aliança com membros da nobreza, que também rece-
biam presentes do rei. O poder civil, representado pelos chefes das diversas cole-
tividades familiares, tinha claro interesse em sustentar o culto religioso, que
lhe permitia recuperar parte dos pesados impostos cobrados pelo rei. A institui-
ção religiosa funcionava como um mecanismo económico compensatório diante
do poder absoluto da monarquia. As oferendas para as divindades (i.e., os sacer-
dotes) consistiam normalmente em "dinheiro, peças de seda ou panos, todo tipo
de mercadorias européias e africanas, gado, produtos alimentares e bebidas". 1 *
Ao m e s m o t e m p o , o pacto social entre o poder civil e o religioso garantia
ao corpo sacerdotal um contingente h u m a n o nada desprezível de devotos con-
sagrados às divindades, entre eles uma parte de escravos. N o caso do t e m p l o
de D a n g b e , em Savi, Bosman estimava mais de mil vodúnsis ou esposas do
v o d u m . A instituição religiosa, p o r t a n t o , estruturava-se em grande medida
no r e c r u t a m e n t o periódico dessas vodúnsis, r e c r u t a m e n t o que se justificava
105
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
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DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ
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L U I S N I C O L A U PAR ÉS
d u r a n t e o r e i n a d o d e A g o n g o l o ( 1 7 8 9 - 1 7 9 7 ) as e p i d e m i a s d e v a r í o l a f o r a m m u i -
t o v i o l e n t a s e os s a c e r d o t e s d e S a k p a t a g a n h a r a m c o n s i d e r á v e l i m p o r t â n c i a , t a n t o
q u e o rei s e g u i n t e , A d a n d o z a n ( 1 7 9 7 - 1 8 1 8 ) , m a n d o u e x p u l s á - l o s e l e v á - l o s a c o r -
r e n t a d o s a t é A d a m é , d e c l a r a n d o q u e n o D a o m é n ã o p o d i a h a v e r d o i s reis. M a s
G h e z o ( 1 8 1 8 - 1 8 5 8 ) , d i a n t e d a g r a v i d a d e d a s e p i d e m i a s q u e se s u c e d i a m , m a n d o u
t r a z e r S a k p a t a d e v o l t a , a p ó s ter c o n s u l t a d o Fa. S o b o r e i n a d o d e G l e l e ( 1 8 5 8 - 1 8 8 9 )
o c u l t o de S a k p a t a foi p r o i b i d o . ' "
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DO C A L U N D U AO CANDOMBLÉ
AS PRÁTICAS R E L I G I O S A S DE O R I G E M A F R I C A N A NO B R A S I L D O SÉCULO X V I I I
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DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É
sexo para dar venturas e curar" e confessou "que ele dança tabaques muitas
vezes, assim como que para curar, andava em muitas partes deste Recôncavo". 31
Vemos, assim, como no século XVIII "calundu" foi um termo genérico uti-
lizado para designar atividades religiosas de várias índoles, porém de origem
africana, em oposição às práticas católicas ou ameríndias. Embora as danças
e tambores fossem parte da atividade ritual, a sua funcionalidade era essencial-
mente terapêutica e oracular, sendo que "calunduzeiro" podia ser utilizado
como sinónimo de curador ou adivinho. 3 2 Essas práticas eram oficiadas por
um especialista religioso, às vezes com um número reduzido de assistentes
que, secundado ou "incorporado" por "entidades espirituais", em muitos casos
"almas dos seus parentes", interagiam numa relação interpessoal com o "clien-
te" ou paciente, "dizendo venturas", prescrevendo remédios ou fazendo curas,
assim como "malefícios". Também é importante notar que o "calunduzeiro"
deslocava-se para onde seus serviços eram requeridos, sem ter normalmente
um lugar fixo para a realização de suas práticas. Essa forma de atuação relati-
vamente independente era operacional ao facilitar a mobilidade e o acesso
do especialista religioso à sua clientela, que, aliás, não se restringia à popula-
ção negra, p o d e n d o incluir pardos e brancos.
ALTARES E O F E R E N D A S : ALÉM D O S C U R A N D E I R O S E A D I V I N H A D O R E S
são a q u e l e s q u e os p r e t o s da C o s t a d a M i n a f a z e m a e s c o n d i d a s , o u e m casas o u
roças c o m u m a P r e t a M e s t r a c o m a l t a r d e í d o l o s a d o r a n d o b o d e s v i v o s , e o u t r o s fei-
tos de b a r r o , u n t a n d o seus c o r p o s c o m d i v e r s o s ó l e o s , s a n g u e d e g a l o , d a n d o a c o -
m e r b o l o s d e m i l h o d e p o i s d e d i v e r s a s b e n ç õ e s s u p e r s t i c i o s a s f a z e n d o crer aos r ú s t i -
cos q u e n a q u e l a s u n ç õ e s d e p ã o d ã o f o r t u n a , f a z e m q u e r e r b e m m u l h e r e s a h o m e n s ,
e homens a mulheres.34
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DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É
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L U I S N I C O L A U P A R ÉS
material do poder da divindade ali assentada. Além das práticas de cura e adi-
vinhação, encontramos aqui u m elemento de aparente devoção ou adoração de
entidades espirituais. A tradição jeje desenvolve, n o Brasil, a prática do esta-
belecimento do pejis (altares) ou complexos materiais consagrados às divinda-
des, em que a dinâmica cerimonial das oferendas é complementar e caracterís-
tica. Alguns dos objetos encontrados no calundu, como folhas, búzios e aguar-
dente, persistem nos candomblés contemporâneos como elementos centrais do
sistema de oferendas.
N ã o há evidências, na d o c u m e n t a ç ã o , da existência de processos de ini-
ciação de devotos ou vodúnsis consagrados ao culto das divindades, mas o
fato de tratar-se de u m a congregação m i n i m a m e n t e organizada, c o m um es-
paço próprio, deixa supor que já nesse contexto poderiam desenvolver-se tais
rituais. Em resumo, essas informações sugerem que n o ú l t i m o quartel do
século XVIII os jejes, além de se organizarem em irmandades católicas e de
f u n c i o n a r e m individualmente como curadores-adivinhos, já t i n h a m a capaci-
dade de se estabelecer em incipientes congregações religiosas, de â m b i t o do-
méstico, presumivelmente, na sua maioria, em volta de u m a única divindade.
Podemos agora encarar o problema central do processo de institucionali-
zação ou reinstitucionalização das formas de organizações religiosas negras no
Brasil e da constituição de uma "religião afro-brasileira". A m i n h a tese de base
para entender o problema sustenta que esse processo se deu através de um pro-
gressivo nível de complexidade social e ritual. De um estágio inicial, em que
"fragmentos de cultura religiosa" foram retomados e postos em prática por
pessoas carismáticas que atuavam de uma forma relativamente individual e inde-
p e n d e n t e (em interações pessoais, visando principalmente a fins de cura e adi-
vinhação), passou-se pela formação das primeiras congregações religiosas de
caráter familiar ou doméstico, geralmente dedicadas ao culto de uma só divinda-
de, até se chegar à formação de congregações extra-familiares, socialmente ainda
mais complexas nas suas estruturas hierárquicas e práticas rituais, que com o
tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espaços próprios, com
um calendário litúrgico recorrente e dedicadas ao culto de u m a pluralidade de
divindades, "assentadas" em altares ou espaços sagrados individualizados.
Cabe enfatizar que esse processo, que para fins analíticos caracterizei como
t e n d o u m a natureza evolutiva e linear, indo da simplicidade à complexidade,
da d i m e n s ã o individual à coletiva, não deve ser e n t e n d i d o c o m o seletivo ou
excludente. Em outras palavras, s i m u l t a n e a m e n t e à progressiva institucio-
nalização dos cultos mais complexos persistiram, e de forma muito expressiva,
as práticas individuais e as congregações de p o r t e menor. C o m o veremos
adiante, d u r a n t e o século XIX as congregações extradomésticas eram ainda
118
DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ
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L U I S N I C O L A U PAR É S
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DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ
NOTAS
1 Carta m a n u s c r i t a d e p o s i t a d a na B i b l i o t e c a d o E s t a d o d e P e r n a m b u c o e m " C o r r e s p o n -
dência d a C o r t e , 1780-1781", fl. 23-23v, a p u d Soares, Devotos, p p . 158-59. P a r a o u t r o
caso s e m e l h a n t e n a B a h i a , e m 1786, ver Verger, Fluxo..., p. 531; Reis, " I d e n t i d a d e . . . " ,
p. 26.
2
" B a t u q u e " é u m t e r m o f r e q u e n t e m e n t e u t i l i z a d o n o s é c u l o XVIII c o m r e f e r ê n c i a aos
a j u n t a m e n t o s d e n e g r o s q u e e n v o l v e m d a n ç a s e t o q u e s de p a l m a s , t a m b o r e s o u o u t r o s
i n s t r u m e n t o s . I n d i c a v a , i n d i s t i n t a m e n t e , r i t u a i s religiosos o u d i v e r t i m e n t o s s e c u l a r e s .
O u t r a s expressões u t i l i z a d a s n o s é c u l o X I X e r a m " b r i n q u e d o t a m b a q u e " o u " b a t u c a j é " .
" C o r r e s p o n d ê n c i a d o c a p i t ã o J o s é R o i z d e G o m e s p a r a o c a p i t ã o - m o r F r a n c i s c o Pires
de C a v a l h o e A l b u r q u e r q u e , 20 de j a n e i r o d e 1809", C a p i t ã e s m o r e s , S a n t o A m a r o ,
1807-1822, m a ç o s 4 1 7 - 2 ! , ApEBa. Esse d o c u m e n t o f o i a n a l i s a d o e m d e t a l h e p o r Reis:
" I d e n t i d a d e . . . " , p p . 7-9, e e m " T a m b o r e s . . . " , p p . 104-9. Ver t a m b é m H a r d i n g , C a n -
d o m b l é . . . , p p . 286-87.
Lima, A f a m í l i a . . . , p. 21. Esse t r a b a l h o foi p r i m e i r a m e n t e a p r e s e n t a d o c o m o u m a co-
municação, no e n c o n t r o organizado pelo governo do Senegal j u n t a m e n t e com a
UNESCO, N é g r i t u d e en A m é r i q u e L a t i n e , c e l e b r a d o e m D a k a r , e m j a n e i r o d e 1974. Foi
p u b l i c a d o pela p r i m e i r a vez na Afro-Asia, n a 12, e m j u n h o d e 1976, e, p o s t e r i o r m e n t e ,
revisto e p u b l i c a d o c o m o p a r t e d o c a p í t u l o i n t r o d u t ó r i o da sua d i s s e r t a ç ã o de m e s t r a d o
A f a m í l i a - d e - s a n t o n o s C a n d o m b l é s J e j e - N a g ô s da B a h i a : u m e s t u d o de relações i n t r a -
g r u p a i s , e m 1977. E m 2003, a e d i t o r a C o r r u p i o p u b l i c o u esse texto. N e s t e livro, as r e f e -
rências à p a g i n a ç ã o d o t r a b a l h o d e L i m a c o r r e s p o n d e m à e d i ç ã o de 1977.
L i m a , A f a m í l i a . . . , p. 20.
C a r n e i r o , Candomblés, p p . 44, 46. C a b e n o t a r q u e C a r n e i r o f o i o p r i m e i r o a u t o r a fa-
lar de n a ç õ e s r e f e r i n d o - s e aos d i v e r s o s r i t o s p r a t i c a d o s n o C a n d o m b l é . R o d r i g u e s u t i -
liza o t e r m o " n a ç ã o " c o m o g r u p o d e p r o c e d ê n c i a , e n q u a n t o , n o c o n t e x t o r e l i g i o s o ,
refere-se a p e n a s a d i v e r s a s " c o n f r a r i a s " o u " c o l é g i o s " d i s t i n g u i d o s p o r " p r e c e i t o s espe-
ciais r e l a t i v o s à a l i m e n t a ç ã o , às v e s t i m e n t a s , aos deveres religiosos p e c u l i a r e s ao c u l t o
deste o u a q u e l e s a n t o o u o r i x á " (Os africanos..., p p . 101, 234).
W e b e r , " T h e s o c i a l . . . " , p p . 271-75; M a l i n o w s k i , Magic..., p. 67. Para o " c o m p l e x o f o r -
t u n a - i n f o r t ú n i o " : T u r n e r , The drums...-, J a n z e n , The quest..., idem, Ngoma; Craemer,
V a n s i n a e Fox, " R e l i g i o u s . . . " , p p . 463, 475. K a r a s c h (A vida..., c a p . 9, p p . 354-56) e
Slenes (Na senzala..., p. 143) a d o t a m a p e r s p e c t i v a de C r a e m e r et aí. p a r a o e s t u d o da
religiosidade brasileira.
Esses conceitos de religião e ritual f o r a m i n s p i r a d o s pelo curso "Religions of Africa", m i -
nistrado no SOAS da U n i v e r s i d a d e de L o n d r e s , pelo h i s t o r i a d o r da religião africana, prof.
Louis B r e n n e r , n o q u a l c o l a b o r e i c o m o p r o f e s s o r assistente, n o p e r í o d o 1997-1998. Para
u m a d i s c u s s ã o m a i s a b r a n g e n t e d o t e m a ver, e n t r e o u t r o s , D u r k h e i m , Les formes....,
p p . 31-66; G e e r t z , A interpretação..., pp. 101-42, Spiro, " R e l i g i o n . . . " , p p . 187-222.
M i n t z e Price, The birth..., p. 23.
D u r k h e i m , Les formes..., p. 60; T u r n e r , The ritual..., cap. 3; Lewis, Êxtase..., p p . 32-36.
Para u m a a n á l i s e d o s c u l t o s p e r i f é r i c o s c o m o d i s c u r s o c o n t r a - h e g e m ô n i c o , Boddy,
Wombs..., p p . 156-58; Stoller, Etnbodying..., pp. 23-26.
' B o s m a n , A new..., p p . 368a, 369, 382-83; N o r r i s , Memoirs.., p p . 45, 54.
2
B o s m a n , A new..., p p . 371, 369.
3
B o s m a n , A new..., p p . 371-72.
120
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
14
B o s m a n , A new..., p. 367a.
15
Lewis, Êxtase..., pp. 32-36. Para u m a crítica das "teorias da m a r g i n a l i d a d e " , ver Giles,
"Possession...", p p . 234-57.
16
M a u p o i l , La géomancie..., p. 64; Glélé, Le daxomé..., p. 76.
17
Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , pp. 134-36; cf. Le Herissé, LAncien..., p. 128; Herskovits,
Dahomey..., vol. I, p. 20; Verger, Notas..., p p . 244-45.
18
M i n t z e Price, The birth..., p p . 18-19; Bastide, Sociologia..., p p . 92-93, 107.
19
Bastide, Sociologia..., p p . 314-16.
20
Para u m a i n t e r e s s a n t e análise do c l i e n t e l i s m o nas i r m a n d a d e s católicas, ver Silveira,
Yyá..., p p . 45-51.
21
Karasch, A vida..., p p . 342-50; Reis, T h e politics..., p. 15.
22
Mulvey, T h e black..., p. 149.
23
Para u m a discussão da c o n s t r u ç ã o d o c o n c e i t o de f e t i c h i s m o , d e r i v a d o do t e r m o por-
t u g u ê s "feitiço", ver W i l l i a m Pietz, " T h e p r o b l e m of t h e f e t i s h . . . " , vols. I, II e Illa.
24
Ver, por e x e m p l o , Soares, Devotos..., cap. 6, e s p e c i a l m e n t e pp. 206 e 217.
25
Reis, "Nas m a l h a s . . . " , p. 41. Esse a r t i g o foi a m p l i a d o e p u b l i c a d o sob o t í t u l o "Nas
m a l h a s do p o d e r escravista. A invasão d o C a n d o m b l é d o A c c ú " , in Reis e Silva, Nego-
ciação e conflito..., p p . 32-61. D o r a v a n t e , referências a esse t r a b a l h o a p a r e c e r ã o c o m o
Reis e Silva, Negociação
26
Souza, O diabo..., pp. 263-69, 385.
27
Souza, O diabo..., p. 263; Reis, " M a g i a . . . " , p. 62.
28
Souza, O diabo..., p p . 264-67; M o t t , " O c a l u n d u . . . " , pp. 73-82.
25
M o t t m o s t r a a g r a n d e s e m e l h a n ç a e n t r e o c a l u n d u de Luiza P i n t a , em Sabará, c o m os
cultos dos xinguilas ( c u r a d o r e s - a d i v i n h a d o r e s ) de A n g o l a , descritos pelo c a p u c h i n h o
i t a l i a n o J o ã o A n t o n i o Cavazzi d e M o n t e c u c c u l o , n a s e g u n d a m e t a d e d o século XVII;
t a m b é m n o t a as d i f e r e n ç a s e s t r u t u r a i s c o m as tradições religiosas da Á f r i c a o c i d e n t a l .
N u m a das audiências d o i n q u é r i t o , Luzia P i n t a declara, em relação a suas experiências
de m e d i u n i d a d e , q u e "a dita d o e n ç a lhe c h a m a m na sua terra c a l u n d u s e q u e esta se
p e g a de u m a s pessoas a o u t r a s [...] e q u e só a havia de curar e ter r e m é d i o m a n d a n d o
t o c a r alguns i n s t r u m e n t o s e f a z e n d o [algumas coisas] mais", e n t r e as quais estariam
esfregas e uso e x t e r n o e i n t e r n o de p ó , v i s a n d o ao e x o r c i s m o da d o e n ç a ( M o t t , " O
c a l u n d u . . . " , p p . 75, 80-81). Experiências de m e d i u n i d a d e c o m o s i n t o m a de d o e n ç a ,
q u e precisa ser c u r a d a através de rituais q u e envolvem t o q u e de t a m b o r e s e práticas
d e exorcismo e nos quais o d o e n t e passa, depois da cura, a f u n c i o n a r c o m o curador, são
características reconhecidas em m u i t o s cultos da área b a n t o , aos quais Janzen c h a m a , de
f o r m a genérica, ngoma (Janzen, Ngoma...; Turner, The drums of affliction...).
30
C a d e r n o do P r o m o t o r , n 2 129. Lisboa, ANTT, fl. 490. Agradeço a Luiz M o t t por ter ge-
n e r o s a m e n t e cedido cópia dessa d o c u m e n t a ç ã o , e a T â n i a P i n t o por ter i n i c i a l m e n t e
c h a m a d o m i n h a a t e n ç ã o para o caso c i t a d o .
51
H a r d i n g , A refuge..., p p . 81-85, 177-86.
32
Souza, O diabo..., p. 263.
33
Reis, " M a g i a . . . " , p. 62.
34
C a r t a m a n u s c r i t a d e p o s i t a d a na Biblioteca do E s t a d o de P e r n a m b u c o e m " C o r r e s p o n -
d ê n c i a da C o r t e , 1780-1781", fls. 23-23v, a p u d Soares, Devotos..., pp. 158-59.
35
A prática de sacrifícios a n i m a i s está d o c u m e n t a d a n o Brasil desde os p r i m ó r d i o s d o
século XVII. E m 1618, q u a n d o da visita da I n q u i s i ç ã o à Bahia, Sebastien Barreto de-
122
DO C A L U N D U A O CANDOMBLÉ
123
4
A C O N T R I B U I Ç Ã O JEJE NA
I N S T I T U C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A N D O M B L É N O SÉCULO XIX
A EMERGÊNCIA DE U M A REDE DE C O N G R E G A Ç Õ E S R E L I G I O S A S E X T R A D O M É S T I C A S
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As divisões étnicas por nações existiam e, como veremos, foram até estimula-
das pelos poderes políticos, principalmente nas primeiras décadas do século.
Após o fim do tráfico transatlântico, em 1850, as distinções entre nações não
aparecem na d o c u m e n t a ç ã o de f o r m a tão explícita, mas elas persistiram em
alguns candomblés no decorrer do século, apesar da crescente heterogeneidade
étnica e racial dos seus participantes. Seria só após a abolição, com o decréscimo
de africanos na Bahia, que uma identidade "africana" foi assumida por certas
comunidades, e todavia essa "africanidade" esteve fortemente associada à cul-
tura iorubá, o que faz difícil catalogá-la como "pan-africanismo".
Certamente a dinâmica de contraste entre os interesses e valores da "clas-
se" subalterna dos negros e os da camada senhorial foi um fator determinante
para configurar importantes aspectos dessa instituição religiosa, através da res-
significação de velhas práticas religiosas com novas intencionalidades, como,
por exemplo, a produção de bolsas de mandinga para se proteger dos abusos
dos senhores, ou a reinterpretação de novas formas religiosas com velhos sen-
tidos, como, por exemplo, o sincretismo dos santos católicos com as divinda-
des africanas. Nesse c o n f r o n t o com a cultura ibérica e o catolicismo hege-
mónico, o C a n d o m b l é emergiu como u m a instituição religiosa "periférica" e
socialmente marginal, c o m o um discurso cultural paralelo e por vezes contra-
hegemônico.
Entretanto, a génese do C a n d o m b l é não pode ser reduzida a uma oposição
de "classe" ou a uma simples resposta de resistência à escravidão, e deve ser tam-
bém encarada como resultado ou efeito do encontro intra-africano, possuindo
uma relativa autonomia em relação à sociedade mais abrangente decorrente da
sua própria dinâmica interna. A reatualizaçáo das práticas religiosas africanas
podia responder às estratégias contra o infortúnio, que iam além da escravidão,
ou satisfazer a necessidades de solidariedade grupai ou c o m p l e m e n t a r i d a d e
dialética inerentes à micropolítica africana.
O u t r o fator a ter em conta é que, apesar de os candomblés contarem entre
seus participantes com um n ú m e r o significativo de escravos e servirem muitas
vezes de refúgio para escravos fugitivos, a instituição não foi desenvolvida ex-
clusivamente por esse segmento social. De fato, a formação das congregações
religiosas foi um f e n ó m e n o liderado essencialmente por libertos. De um total
de 81 referências documentais a líderes religiosos levantados por Reis para o
período 1800 -1888, só dois eram escravos. Esses dados demonstram o papel
critico dos libertos, com maior mobilidade e disponibilidade de recursos, n o
desenvolvimento e na manutenção do C a n d o m b l é .
Aliás, os africanos libertos líderes de Candomblé, como os calunduzeiros
setecentistas, em muitos casos prestavam serviços religiosos a clientes pertencen-
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a t e r r i t o r i a l i z a ç ã o n ã o se d e f i n e c o m o u m m e r o d e c a l q u e d a t e r r i t o r i a l i d a d e a n i -
mal, mas c o m o força de a p r o p r i a ç ã o exclusiva d o espaço (resultado de u m ordena-
m e n t o s i m b ó l i c o ) c a p a z d e e n g e n d r a r r e g i m e s d e r e l a c i o n a m e n t o s , relações d e p r o x i -
m i d a d e e d i s t â n c i a [...] o t e r r i t ó r i o a p a r e c e assim c o m o u m d a d o n e c e s s á r i o à f o r m u -
l a ç ã o d e i d e n t i d a d e g r u p a i / i n d i v i d u a l , ao r e c o n h e c i m e n t o d e si p o r o u t r o s .
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A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ
D a n t e s , essas p r á t i c a s s u p e r s t i c i o s a s e a o m e s m o t e m p o t e n e b r o s a s , t i n h a m l u -
gar e m r o ç a s , f o r a d a c i d a d e , h o j e são c e l e b r a d a s c o m o m a i s d e s c a r a d o a p a r a t o n a s
ventas da polícia.41
Se a p o l í c i a n ã o q u e r c a n d o m b l é s , c o m o c o n s e n t e - o s e m s u a s b a r b a s ? M a n d a os sol-
d a d o s caçá-los p e l o s m a t o s e p e r m i t e - o s a q u i d e n t r o d a c i d a d e . ' 1 2
As r e u n i õ e s a q u i d e n t r o da c a p i t a l [S. M i g u e l ] i n c o m o d a m , e se n ã o n o s f a l t a a idéia,
são elas p r o i b i d a s p o r u m a p o s t u r a d a c â m a r a o u r e g u l a m e n t o p o l i c i a l . 4 3
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nomia. Podiam dar-se casos também de certos libertos que comprassem pe-
quenos lotes de terra."19
Em todas essas situações, existia a possibilidade de controle por parte dos ne-
gros de certos espaços físicos, às vezes em lugares de difícil acesso, no mato, fora
dos olhos dos proprietários e das forças públicas, para organizar as atividades
religiosas e eventualmente consolidar candomblés. Essa territorialização em vol-
ta do núcleo urbano não decorria só de uma estratégia de ocultação, mas respon-
dia também a um imperativo interno do ritual africano, no qual são impres-
cindíveis os elementos mato e água para o culto das divindades.
Em 1870, O Alabama traz um interessante caso que mostra as eventuais rela-
ções de conflito entre latifundiários e rendeiros. O senhor Cotia Brandão, pro-
prietário da Campina, na freguesia de Pirajá, queria dobrar o aluguel cobrado
ao africano pai Thomaz, chefe de um candomblé naquelas terras. Nesse caso,
não há um problema com as atividades religiosas: o proprietário aceita que
batam candomblé "até feder, com tanto que paguem a renda" de 20 réis. por
tarefa. Além do prejuízo que significava o a u m e n t o da renda, pai Thomaz,
que ocupava aquele "mare-magnum de terras" desde 1847, corria o risco de
perder três casas que tinha construído no terreiro. Tendo em vista que esta-
va em jogo não só a permanência do candomblé, mas o p a t r i m ô n i o do ren-
deiro, pai T h o m a z ameaçou o senhor Cotia de morte. Aliás, "o preto, tendo
sido de certa casa, tem proteção grátis de advogado, que é apologista acérri-
mo do candomblé". 6 0 Vemos, assim, como a posse ou o controle da terra era
já um tema conflituoso para os candomblés naquela época. N o entanto, en-
tendo ser o acesso à terra um p o n t o crucial para a consolidação dos candom-
blés, pois estes precisavam de espaços fixos para "plantar" seus assentos. Se no
centro urbano eles podiam ficar ocultos em quartos, era nas roças da periferia
semi-urbana que os assentos "naturais", em árvores, rios ou fontes, podiam
ser instalados.
A P R E D O M I N Â N C I A DA T R A D I Ç Ã O JEJE NO C A N D O M B L É DA DÉCADA DE 1 8 6 0
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Esses termos, utilizados hoje em dia nos terreiros ketus e angolas referindo-se
a aspectos da "estrutura p r o f u n d a " do ritual, como processos de iniciação, hie-
rarquia do grupo, espaço sagrado, instrumentos e outros, indicam a importância
indiscutível que a tradição do culto de voduns teve no processo formativo do
Candomblé.
A análise linguística dos termos africanos aparecidos em O Alabama vem
c o n f i r m a r e reforçar essa hipótese a p o n t a d a por Lima e Braga. Em primeiro
lugar, e de forma muito significativa, o termo "vodum" ("santo vodum", "dan-
çar vodum") aparece sete vezes para se referir às divindades africanas, enquan-
to não há qualquer menção do termo "orixá", a não ser na expressão com-
posta baba-loixa (do iorubá babalorixá) para designar o chefe religioso. É
m u i t o provável que nessa época, e talvez já desde as primeiras décadas do
século (lembremos o "deus v o d u m " do c a n d o m b l é do Accú em 1829), "vo-
dum" fosse utilizado na maioria dos terreiros como termo genérico para aludir
às divindades africanas. Essa extrapolação do t e r m o " v o d u m " fora do âmbito
restrito dos terreiros de nação jeje é altamente sugestiva da influência da tra-
dição do culto de voduns na instituição do Candomblé. De forma semelhante,
em relação aos processos oraculares aparece em duas ocasiões o termo "Fa",
como é d e n o m i n a d a a divindade da adivinhação na área vodum, e não a forma
"Ifá", utilizada pelos nagôs.
Q u a n t o aos nomes de divindades, aparecem três referências explícitas a
v o d u n s (entre parênteses o n ú m e r o de o c o r r ê n c i a s ) : Lebal (1), q u e seria
Legba; Soubô (1), que seria a divindade do trovão, Sogbo; e Loco (5), que
seria o deus-árvore, associado à gameleira. O último aparece t a m b é m sob a
f o r m a Loucose, que é o n o m e dado às devotas dessa divindade, sendo que em
fon, o sufixo si significa "esposa de" (lokosi = a esposa de Loko). De forma
análoga aparecem alusões indiretas a outros dois voduns: Aguesa (1), devota
do v o d u m caçador Ague, e Nanasi (1), provavelmente do v o d u m N a n ã . Se a
essa lista somarmos a já m e n c i o n a d a divindade da adivinhação, Fa, teremos
u m total de seis v o d u n s jejes.
Por o u t r o lado, só aparecem cinco divindades nagôs: Xangô (3), o orixá
do trovão c o r r e s p o n d e n t e a Sogbo, sendo que em u m caso é n o m e a d o no
contexto de um terreiro jeje; Oiá (1), significativamente n o m e a d a c o m o "a
m u l h e r do santo maior — Soubô", e não do orixá Xangô; Oxalá (2), o "santo
mais velho (Padre Eterno)"; O g u m (1); e Xapanan (1). Aparecem várias re-
ferências à festa de são C o s m e e são D a m i ã o , n u m a ocasião referidos com o
t e r m o angola mabaça, assim c o m o várias referências às "mães d'água", que
poderiam encobrir indistintamente divindades jejes, nagôs ou congo-angolas.
N u m a das notícias fala-se de "cultos à fantasiada mãe d'água, a uma serpente,
146
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folhas comestíveis) (1); amalá (àmàlà ou comida votiva) (1); acucó (àkàko ou
galo) (1); etuns (etu ou c o n q u é m ) (1); abou (àgbd ou carneiro) (1 )\ forican-
abou (f'orí kà àgbò ou cabeça, colocada sobre carneiro, ato ritual de realizar
os pedidos com o animal sacrificai) (1); obacouçu (Oba Koso, n o m e de Xangô
que em O Alabama designa um "pássaro que os africanos veneram e cujo canto
os adverte, q u a n d o se aproxima alguém", talvez o gavião, associado a Xangô)
(1); ebó (oferenda) (1); ojá (òjá ou tira de pano) (1).
C o n t r a r i a m e n t e , entre os termos jejes a maioria refere-se a importantes
espaços, atividades ou objetos rituais: pegi (kpè ji ou altar) (3); segun (sinhun
ou ritual f u n e r á r i o ) (2); sapocan (ritual iniciático) (2); von-siça (vòsísá ou
sacrifício) (1); mocan {mwen kan ou colar de palha) (1); gés (/Vou contas) (1);
kessé (kesé ou papagaio da costa) (1); bobo (abobo ou massa de feijão) (1); e
agonte (broto da palmeira "rônier"; aparece sob a f o r m a aguntesa, n o m e ri-
tual de u m a sacerdotisa) (l). 6 8
Sumariando, m i n h a análise linguística de O Alabama mostra uma ligeira
superioridade numérica dos termos jejes em relação aos iorubás. 6 9 E claro que
essa evidência linguística não é prova conclusiva da dominância jeje no Can-
domblé, mas certamente é indicativa de um equilíbrio de forças entre as tradi-
ções jeje e nagô. O r a , sendo que na década de 1860 os nagôs constituíam a
grande maioria dos africanos na Bahia e os jejes, apenas u m a minoria, o equilí-
brio linguístico demonstra a importância dos cultos de voduns no processo
formativo do C a n d o m b l é e sua atualidade crítica ainda nessa década. Em ou-
tras palavras, pode-se supor que, no âmbito do C a n d o m b l é , a superioridade
demográfica dos nagôs ainda não se tinha traduzido em hegemonia cultural.
Para reforçar essa idéia vamos agora avaliar até que p o n t o nos candomblés
da segunda metade do século XIX existia algum tipo de divisão em termos de
"nações africanas" e, nesse contexto, qual era a presença dos terreiros jejes.
C o m o já vimos, no início do século a população africana agrupava-se em fun-
ção de identidades coletivas que, embora criadas no Brasil, respondiam a dife-
renças culturais e linguísticas, de origem p r e d o m i n a n t e m e n t e africana. Lem-
bremos, por exemplo, os a j u n t a m e n t o s dos angolas, os jejes e os nagôs e hau-
çás em Santo Amaro, em 1808, ou a política do conde dos Arcos, que favorecia
essas divisões étnicas.
N o e n t a n t o , essas distinções parecem diluir-se à m e d i d a que avança o sé-
culo. Em O Alabama, por exemplo, não encontramos n e n h u m a referência ex-
plícita a nações africanas em relação aos candomblés da época. Fala-se apenas
de "seitas africanas". C o m o já comentei, na segunda metade do século a com-
posição social dos candomblés apresenta uma crescente heterogeneidade ét-
nico-racial. Esse processo de mestiçagem se acentuou com a abolição do tráfi-
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termos africanos indicam ou que ele estava por dentro da história, ou que teve
um i n f o r m a n t e conhecedor do assunto. Porém isso não i m p e d i u que ele in-
corresse em algum erro, pois o forican-abou, por exemplo, realiza-se com o
animal vivo, antes do sacrifício. Em qualquer caso, a narrativa dessa notícia
é indicativa da possível interpenetração e m o b i l i d a d e de termos e práticas
além das fronteiras de nação. Aliás, essa fluidez interétnica de interpenetração
ritual teria sido u m fator constante, e até imprescindível, na génese e conti-
n u i d a d e do C a n d o m b l é .
Feita essa i m p o r t a n t e ressalva, também é provável que, ao lado desses espe-
cialistas religiosos mais abertos à assimilação de práticas e valores de várias
fontes, existissem outros igualmente cientes das diversas origens e utilidades
de cada uma dessas práticas, capazes de reconhecer diferenças e estabelecer
critérios seletivos entre umas e outras. Cabe lembrar que a maioria dos terreiros
desse período eram f u n d a d o s e liderados por africanos, especialistas religiosos
predominantemente iniciados na própria Africa. De um m o d o ou de outro eles
continuaram sua carreira religiosa no Brasil, a d a p t a n d o o seu conhecimento e
inserindo suas práticas n o modus operandi que encontraram na sua chegada no
contexto colonial. N o entanto, é mais do que provável que alguns deles, como
líderes, especialmente os favorecidos por redes sociais intra-étnicas, tivessem
interesse em manter certos ritos, divindades e terminologia específicos da suas
terras de origem como estratégia de identidade e diferenciação.
Em outras palavras, as distinções entre diversas nações de c a n d o m b l é ,
apesar do silêncio documental, seguramente persistiram no seio de certas con-
gregações religiosas, c o m o acontece até hoje. C o m o progressivo falecimento
dos líderes africanos na segunda metade do século, os seus descendentes criou-
los, após herdar a liderança dessas congregações, c o n t i n u a r a m a m a n t e r as
identidades de nação c o m base nessas práticas rituais. P o r t a n t o , embora a
heterogeneidade étnico-racial dos participantes dos candomblés tivesse cres-
cido ao longo do século, a identidade das nações africanas ficou ancorada em
certas características litúrgicas que eram emblemáticas de tradições religio-
sas diferenciadas.
Partindo dessa premissa, tentarei avaliar a presença de elementos litúrgicos
de u m a ou o u t r a tradição a f r i c a n a nos c a n d o m b l é s d o c u m e n t a d o s em O
Alabama para inferir daí a p r e d o m i n â n c i a de uma ou outra "nação". O exer-
cício é c o m p l i c a d o por vários motivos. Em primeiro lugar, pela própria am-
biguidade existente na adscrição a uma ou outra nação, que em alguns ter-
reiros podia ter uma consideração de pouca importância. Em segundo lugar,
pela relativa confiabilidade das notícias de O Alabama, escritas por pessoas
alheias ao C a n d o m b l é , que embora fossem, às vezes, t e s t e m u n h a s oculares
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Seguindo Ellis, ele explica a absorção da cultura jeje pela nagô devido à
predominância da língua nagô e à natureza "mais complexa e elevada" das cren-
ças religiosas nagôs. 91 Embora esses pressupostos sejam certamente discutíveis,
essa percepção perdurou ao longo do tempo.
E m 1937, Carneiro escrevia: "se já no t e m p o de N i n a Rodrigues, a mito-
logia jeje se fusionava e mesmo cedia passo à mitologia nagô, o que se verifi-
ca hoje é a quase completa absorção das práticas jejes, quase que totalmente
esquecidas como práticas independentes, por parte da mitologia nagô". 9 2 Uma
década depois, t a m b é m Ramos reiterava:
a v e l h a a s s e r ç ã o d e N i n a R o d r i g u e s , d e q u e os c u l t o s e p r á t i c a s jejes f o r a m absor-
v i d o s p e l o s N a g ô s , c o n t i n u a d e pé. A s s o b r e v i v ê n c i a s religiosas jejes, q u a n d o existem,
não c h e g a m a constituir, na Bahia, n o N o r d e s t e , ou n o Rio, u m bloco cultural onde
se p o s s a n i t i d a m e n t e e v i d e n c i a r u m a f r a n c a h e r a n ç a d a o m e a n a . E m o u t r a s palavras,
n ã o há, na Bahia, u m c u l t o v o d u n estabelecido c o m o tal.93
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na esfera religiosa na Costa da Mina, mas a sua influência não podia deixar
de ser tangencial. C o n t u d o , como lembra Lima,
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NOTAS
' R o d r i g u e s , Os africanos...-, Verger, Fluxo...-, Reis, "Nas m a l h a s . . . " , " M a g i a . . . " . A natu-
reza iniciática dos cultos a f r i c a n o s q u e i m p õ e a lei do segredo, sua c l a n d e s t i n i d a d e e
o f a t o de se tratar, pelo m e n o s até r e c e n t e m e n t e , de u m a c u l t u r a religiosa baseada na
o r a l i d a d e c o n t r i b u í r a m para a falta quase total de d o c u m e n t a ç ã o escrita pelos próprios
praticantes. As fontes disponíveis foram escritas, em sua maioria, por indivíduos alheios
ao C a n d o m b l é , n o r m a l m e n t e e n c a r r e g a d o s de r e p r i m i r ou d e n u n c i a r essas práticas
religiosas, c, assim, sujeitas a p r e c o n c e i t o s , distorções e erros. E n t r e os d o c u m e n t o s
q u e os a f r i c a n o s m a n d a v a m lavrar estão os t e s t a m e n t o s de libertos e as petições, estu-
d a d o s por M a t t o s o ( " T e s t a m e n t o s . . . " ) e M . í. C. de Oliveira (O liberto...). Tambe'm
são n o t ó r i o s o excepcional " T r a t a d o dos escravos do E n g e n h o S a n t a n a em Ilhéus", pu-
blicado pela p r i m e i r a vez por Schwartz ("Resistance", p p . 69-81), c os d o c u m e n t o s es-
critos em árabe dos malês (Reis, " M a g i a . . . " , p. 58). O s c h a m a d o s "cadernos de f u n d a -
m e n t o " , conservados em certos c a n d o m b l é s , seriam u m a o u t r a possível f o n t e , mas esse
material é de difícil acesso e não se tem notícia da existência de c a d e r n o s desse tipo
a n t e r i o r e s às primeiras décadas do século XX.
2
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , "Tambores..."; H a r d i n g , A refuge...-, Silveira, lyá João José Reis
e Jocélio Teles dos Santos estão p o r p u b l i c a r o u t r o t r a b a l h o sobre o C a n d o m b l é n o sé-
culo XIX.
1
O Alabama circulou entre 1863 e 1900, mas, infelizmente, só se conserva a coleção com-
pleta do p e r í o d o 1863-1871, além de alguns n ú m e r o s dispersos do período posterior. O
e d i t o r - c h e f e foi Aristides Ricardo de Santana, mas, entre 1887 e 1890, novos editores
assumiram a direção. N u m a notícia de 17 de d e z e m b r o de 1870 (p. 7), os redatores são
tratados de "negros" e "mulatos". Agradeço a João José Reis por ter-me i n d i c a d o a exis-
tência dessa i m p o r t a n t e fonte e cedido u m a cópia das notícias referentes ao c a n d o m b l é
B o g u m que aparecem nessa publicação. Em 1998, o historiador a m e r i c a n o Dale G r a d e n
p u b l i c o u u m artigo baseado no material dc O Alabama, "So m u c h superstition...".
1
" C o r r e s p o n d ê n c i a do capitão José Roiz de G o m e s para o c a p i t ã o - m o r Francisco Pires
de Carvalho e A l b u q u e r q u e , 20 de janeiro de 1809", Capitães mores, Santo A m a r o , 1807-
1822, maços 417-21, Al>KBa.
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Destes 65 r e g i s t r o s , 55 c o n t ê m casos c o m a l g u m a i n f o r m a ç ã o s o b r e a l i d e r a n ç a , s e n d o
que e m 45 deles c o n s t a o n o m e . N e s t e t o t a l , n ã o f o r a m c o n t a d a s as várias n o t í c i a s com
alusões a " b a t u q u e s , b a t u c a j é s , s a m b a s e algazarras" q u e n ã o são i d e n t i f i c á v e i s c o m o
tendo u m a c o n o t a ç ã o religiosa. T a m b é m não f o r a m c o n t a d a s a q u e l a s q u e , m e s m o t e n d o
u
m possível c a r á t e r religioso, n ã o m o s t r a v a m e v i d ê n c i a de u m a c o n g r e g a ç ã o estável e
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e r a m , p r e s u m i v e l m e n t e , celebrações de caráter p o n t u a l , c o m o a l g u n s a j u n t a m e n t o s
festivos ou ritos f u n e r á r i o s . T a m b é m f o r a m d e s c o n t a d a s as notícias q u e , p o r não apre-
sentar a i n f o r m a ç ã o necessária, p u d e s s e m ser d u p l i c a ç õ e s de casos já d o c u m e n t a d o s .
23
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 129.
14
Schwartz estima a p o r c e n t a g e m de negros livres e m "40% ou mais" da p o p u l a ç ã o total,
na Bahia, em 1816-1817 (Segredos,.,, p. 373). N o R e c ô n c a v o , em 1808, os negros e mu-
latos livres c o n s t i t u í a m 4 3 % : M a t t o s o , Bahia, p. 119. S e g u n d o Reis, os africanos e
crioulos livres e libertos c o n s t i t u í a m 30% dos 65 mil h a b i t a n t e s de Salvador em 1835
( " C a n d o m b l é . . . " , p. 122).
23
O s d a d o s sobre os Estados U n i d o s e J a m a i c a : Schwartz, Segredos..., p. 373. Bastide, Les
Amériques....
26
O Alabama, 29/9/1868, p. 4
11
Reis c o m e n t a d e t a l h a d a m e n t e os dois casos de lideranças brancas (em 1859, o português
D o m i n g o s M i g u e l e sua amásia, a parda M a r i a U m b e l i n a , e, em 1873, a branca Maria
C o u t o ) e o de u m a l i d e r a n ç a p a r d a (em 1865, Belmira) ( " C a n d o m b l é . . . " , p p . 120-21).
H á ainda u m s e g u n d o caso de "uma m u l h e r de cor p a r d a de n o m e U m b e l l i n a , conhe-
cida por m a m ã Balunce, m o r a d o r a aos C o q u e i r o s " , na Freguesia do Pilar, "adivinha,
c u r a n d e i r a de malefícios", d e n u n c i a d a em 1871 (O Alabama, 18/2/1871, p. 1). Talvez
se trate da m e s m a M a r i a U m b e l i n a de 1859.
28
H a r d i n g , A refuge..., p. 71.
29
H a r d i n g , A refuge..., p. 72; Reis, " C a n d o m b l é " , p. 120.
30
H a r d i n g , A refuge..., p p . 72-74; Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 120. Q u a n d o , para o período
1800-1888, H a r d i n g adiciona aos seus 65 d o c u m e n t o s positivos os restantes 30 prováveis
e dois casos de provável co-liderança d o c u m e n t a d o s p o r Verger, ela chega a percenta-
gens de género, na l i d e r a n ç a , similares às de Reis: h o m e n s , 61%, e m u l h e r e s , 39%.
31
Landes, "A c u l t . . . " , pp. 386-97.
32
Idéia t a m b é m m a n t i d a p o r H a r d i n g , A refuge..., p. 97.
35
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , pp. 120, 131; H a r d i n g , A refuge..., p. 127.
34
Ver, por e x e m p l o , M a r q u e s , O feiticeiro...
33
Reis e Silva, Negociação..., pp. 46-47, 128.
36
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 131.
37
Jornal da Bahia, Salvador, 12/2/1859, a p u d Verger..., Fluxo, p. 532. T a m b é m Policia,
21/4/1862, maço 6.234, APEBa, apud Harding, Candomblé..., p. 320; O Alabama, 13/9/1866,
p. 3; Rodrigues, O animismo..., p. 171.
38
Sodré, O terreiro..., pp. 14-15; M a t t o s , N e g r o s . . . , pp. 19, 70.
" N a s freguesias de Nossa Senhora da Vitória, registram-se dois casos, e u m o u t r o na fre-
guesia do Pilar, que c o r r e s p o n d e à área d e n o m i n a d a Barreiras. As referências à Q u i n -
ta das D e v o t a s (duas) f o r a m i d e n t i f i c a d a s c o m a Q u i n t a das Beatas, atual C o s m e de
Farias, em Brotas. C a b e n o t a r a g r a n d e extensão dessas freguesias. N o caso de S a n t o
A n t ô n i o , havia o I a D i s t r i t o , v i z i n h o d o Passo, q u e p o d e r i a ser c o n s i d e r a d o p a r t e do
c e n t r o u r b a n o , e o 2 a D i s t r i t o , q u e se e s t e n d i a ao n o r t e na área s e m i - u r b a n a .
40
Silveira, Iyá..., pp. 51-52.
41
O Alabama, 2/5/1867, p p . 2-3.
42
O Alabama, 25/8//1869, p. 2.
43
O Óculo Mágico, 11/10/1866, a p u d C o s t a , E k a b ó . . . , p. 134.
44
Verger, Fluxo..., p. 532; O Alabama, 19/4/1864, p. 1.
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língua ritual africana), sendo depositada pela própria Ludovina numa casa
de Salvador para concluir sua iniciação, q u a n d o , "depois que u m ano passar
e que cortar os cabelos, poderá então falar". Existe a possibilidade de que o
"quarto em casa da africana Ludovina", o n d e foi recolhida Lucrécia na pri-
meira parte da sua iniciação, se refira à Casa Estrela de Cachoeira. Como
vimos, N a s c i m e n t o sugere que ali eram preparadas as vodúnsis durante os
longos períodos da iniciação. T e s t e m u n h o s orais atestam que Ludovina Pes-
soa m o r o u na Casa Estrela, lugar em que teria "plantado" um assento para
Legba na sua p o r t a de entrada, ainda hoje visível sob u m a pedra de granito
com a f o r m a de u m a estrela de cinco pontas. N o e n t a n t o , a "roça" perto de
Cachoeira, na qual se realizavam as festas, era certamente o Sítio d o Chareme,
o q u e nos permite pensar que a Roça de Cima estava em f u n c i o n a m e n t o pelo
m e n o s desde a década de 1860. 49
A Roça de C i m a parece ter sido o centro religioso mais i m p o r t a n t e da
c o m u n i d a d e jeje em Cachoeira, e lá f o r a m iniciadas as grandes mães-de-santo
do c a n d o m b l é jeje da época pós-abolição. Nessa congregação religiosa pro-
vavelmente foi consolidado o m o d e l o litúrgico que devia se perpetuar tanto
no Bogum de Salvador q u a n t o no Seja H u n d é . A tradição oral coincide em
afirmar que na Roça de Cima foram iniciadas as duas primeiras mães-de-santo
do f u t u r o Seja H u n d é , Maria Luiza do Sacramento (Maria Agorensi) e Ma-
ria Epifania dos Santos (sinhá Abalhe). 5 0 Fala-se vagamente que ali também
f o r a m iniciadas ou receberam alguma obrigação as duas primeiras mães-de-
santo do Bogum pós-abolição, Valentina e Maria Emiliana da Piedade, e cer-
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Essa versão da tradição oral dos anos 1940 apresenta várias informações
de interesse. Por u m lado, expressa as estreitas relações entre o Bogum de Sal-
vador e a Roça de Cima de Cachoeira. O fato de se falar do Bogum como sen-
do "a matriz" sugere, implicitamente, que o terreiro de Cachoeira era conside-
rado u m a "filial", de f u n d a ç ã o posterior. Esse assunto tem suscitado um lon-
go debate entre o povo de santo jeje mahi de Salvador e Cachoeira. Humbono
Vicente afirma que, na verdade, tratava-se de u m a "mesma roça, eram t u d o
unido, mas as mulheres depois brigaram umas com as outras, aí p r o n t o , fi-
cou t u d o desunido. Uns dizem lá de Cachoeira, aqui é jeje d'água doce e o
Bogum diz que aí é água salgada. E uma esculhambação. O jeje era um só". 55
Em 1961, a finada R u n h ó , mãe-de-santo do Bogum, declarava que "a primeira
mãe-de-santo [do Bogum] era Ludovina Pessoa, que era africana". 5 6 N o en-
tanto, o pessoal do Seja H u n d é em Cachoeira e até pessoas do Bogum mantêm
a anterioridade do terreiro de Cachoeira. O ogã Celestino Augusto do Espí-
rito Santo e a finada N i c i n h a do Bogum, declaravam em 1987: "Ludovina
Pessoa saiu de Bogum (cidade da Africa) e abriu terreiro p r i m e i r a m e n t e em
Cachoeira de São Félix [...] Ludovina Pessoa é u m a das mais antigas mães-
de-santo, mas sabemos que ela não foi a primeira". 5 7
A evidência d o c u m e n t a l não permite esclarecer a antecedência de uma ou
outra c o m u n i d a d e . C o m o já apontei, entre 1866 e 1869 Ludovina morava em
Cachoeira, mas recebia visitas periódicas de mulheres de Salvador na Roça
de C i m a . Ao mesmo t e m p o , Ludovina viajava com frequência a Salvador.
Uma notícia de O Alabama, em 1869, informa da visita de "mamãe Ludovina,
que mora em Cachoeira", a c o m p a n h a d a do "ogã Ventura", ao terreiro de Ma-
ria Velhudinha, no "lado das Barreiras" na periferia de Salvador, d u r a n t e a
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e seus descendentes que, desde as primeiras décadas d o século XIX, mas sobre-
t u d o a p a r t i r da m e t a d e d o século, c o n s e g u i r a m ter acesso à propriedade de
terras e estabelecer u m a variada rede de relações sociopolíticas com a elite
b r a n c a q u e p o d i a m g a r a n t i r o f u n c i o n a m e n t o dessas congregações religiosas
N o caso d a Roça de C i m a , a c h a m o s evidência disso na terceira personagem
de nossa narrativa m i c r o - h i s t ó r i c a : Z é de Brechó.
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metade de seu patrimônio. Parece, p o r t a n t o , que, além das rendas das terras e
dos escravos de ganho, ele concedia empréstimos, normalmente "recebidos em
moeda corrente". Porém, não sabemos em que investia o seu dinheiro ou quais
eram os seus "negócios". 79 Fazia-se Belchior Rodrigues de Moura de "banqueiro"
para os africanos? Era "capitão de junta de alforria", espécie de caixa econó-
mica dos africanos, destinada a fazer empréstimos para a aquisição da liber-
dade pelos escravos? O u t r o comércio que na época proporcionava u m enrique-
cimento rápido era o tráfico ilegal. Esteve Belchior envolvido em tais atividades?
Viajou para a Costa da Africa nesse tempo? Perguntas sem resposta, por en-
quanto. O que podemos concluir é que, mesmo sendo modestas as proprieda-
des e importantes as dívidas, Belchior Rodrigues de M o u r a era um liberto per-
tencente a u m a emergente elite negra em Cachoeira, com propriedade de ter-
ras, capacidade para captar recursos económicos e inserido n u m a rede social
que se prolongava do Recôncavo a Salvador.
C o m a morte do pai em 1855, José Maria de Belchior, com quase 20 anos,
herdou, por partes iguais com o irmão menor, Antônio Maria Belchior, o es-
cravo Felippe e as terras da Capapina. Nos anos seguintes, sua mãe, Maria da
M o t t a , que foi, segundo a tradição oral, vodúnsi da Roça de C i m a e mem-
bro da devoção da Boa M o r t e , e n f r e n t o u sérias dificuldades para pagar as dí-
vidas d o marido: dois escravos morreram e outros aproveitaram as circunstân-
cias para se libertar. Tal situação fragmentou e reduziu seriamente o patrimônio
familiar. Nessa época, seus filhos trocaram os velhos rendeiros da Capapina por
outros, talvez n u m a tentativa de aumentar sua renda. 8 0 Podemos supor que o
fato de possuir u m escravo de ganho e as terras da Capapina conferiu aos ir-
mãos Belchior renda e u m certo status social entre a comunidade negra local.
Nos registros de votantes de Cachoeira dos anos 1871-1875, José Maria Bel-
chior e o seu irmão A n t ô n i o Maria Belchior são listados no quarteirão n a 30,
na Recuada. O primeiro declara, como profissão, ser carapina e o segundo,
marceneiro. Já em 1880, eles declaram saber ler e escrever, ter uma renda de
400 mil réis anuais e, como profissão, "negócios", o que sugere certa ascensão
social. 81 D e fato, em 1874, os dois irmãos ingressam na Sociedade M o n t e Pio
dos Artistas Cachoeiranos, uma instituição assistencial das Artes e Ofícios. A
Sociedade foi f u n d a d a esse ano na residência do artista José Clarião Lopes, mas
logo passou a realizar as suas assembléias no consistório da Irmandade de São
Benedito, n u m anexo da capela de Nossa Senhora d'Ajuda, onde, aliás, funcio-
naria também a devoção da Boa Morte. 8 2 Esse vínculo da Sociedade M o n t e Pio
com a Irmandade São Benedito é significativo.
A irmandade ou devoção de São Benedito foi erigida na capela d'Ajuda por
crioulos livres e escravos, em 1818. 83 Dela participavam vários músicos ama-
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[...] logo o santo [o v o d u m Bessen] pediu abrir o terreiro de abaixo [...] aca _
bou acima, passou abaixo [...] no jeje só tem u m terreiro". Por outro lado
ogã Boboso sustenta que ambos os terreiros f u n c i o n a r a m simultaneamente
d u r a n t e algum t e m p o e que existia u m a conexão litúrgica entre as duas con-
gregações religiosas. "Bessen é um só, mas tem força para t o m a r conta dos
dois." 1 0 8 Segundo essa opinião, as vodúnsis do Seja H u n d é , d u r a n t e sua ini-
ciação e o ciclo de festas, subiam à Roça de Zé de Brechó para realizar certas
obrigações, entre elas talvez o boitá (ver cap. 6). Segundo ogã Boboso, Ma-
ria Agorensi "saiu sem briga, foi seguir seu caminho". A finada Aguesi dizia
que "Agorensi abriu e o pessoal de Ludovina se juntou". 1 0 9
O que parece claro é que q u a n d o Ludovina Pessoa e Maria Agorensi abri-
ram o Seja H u n d é foi com a participação de um número significativo de rodan-
tes da Roça de Cima, o que tornava difícil a permanência das duas casas. Se
foi um processo espontâneo e harmonioso, não sei. Mas esses deslocamentos
de várias dançantes de u m a casa para outra indicam geralmente dissidências
internas. Fala-se que naquela época Zé de Brechó estava amasiado com a jovem
Maria Epifania dos Santos, sinhá Abalhe, e que esta, num primeiro momento,
não seguiu a Maria Agorensi. A m i n h a impressão é que, após a saída de Maria
Agorensi, a Roça de C i m a ainda f u n c i o n o u , talvez de uma forma precária, por
alguns anos com pessoal que permaneceu fiel a Zé de Brechó. Certamente, com
a morte dele, em 1902, a Roça de Cima deixou de funcionar definitivamente. 1 1 0
Existe uma o u t r a d ú v i d a q u a n t o à nação ou modalidade de rito praticada
nesses dois terreiros. E n q u a n t o há u n a n i m i d a d e em identificar o Seja H u n d é
como um terreiro de nação jeje mahi (marrin ou marrino), alguns afirmam
que a Roça de Zé de Brechó era jeje m u n d u b i . C o m o uma casa com ascendên-
cia religiosa n u m terreiro m u n d u b i m u d a de nação passando a ser mahi? A
finada Aguesi insistia em distinguir entre a feitoria de Maria Agorensi, reali-
zada por Ludovina, e a de Abalhe, realizada por Zé de Brechó, como se tives-
sem acontecido não só em m o m e n t o s diferentes, mas talvez com preceitos re-
ligiosos diferentes. 1 1 1 Tudo parece indicar que ao redor da Roça de C i m a se
reuniram africanos jejes de diversas origens, e que talvez essas diferenças de
tradição religiosa pudessem explicar o r o m p i m e n t o e saída de Ludovina Pessoa
e Maria Agorensi. 112 De qualquer maneira, o Seja H u n d é , desde a sua funda-
ção, e certamente após a extinção da Roça de Cima, herdou alguns dos assen-
tos de lá, passando a justapor o culto de voduns m u n d u b i e mahi (ver cap. 7).
Resumindo, a história do Seja H u n d é inaugura-se com Maria Agorensi, pro-
vavelmente no período pós-abolição. Acabava a época dos terreiros como a Roça
de C i m a , liderados m a j o r i t a r i a m e n t e por homens africanos, e iniciava-se o
ciclo de candomblés liderados majoritariamente por mulheres crioulas. C o m o
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afirma seu Geninho, n o passado "o jeje era u m a maçonaria, era só h o m e m , não
tinha mulher". 1 1 5 Vale salientar que, p r o v a v e l m e n t e no m e s m o p e r í o d o , na
década de 1890, em Salvador, o Bogum retomava as suas atividades sob a chefia
da c r i o u l a Valentina, de q u e m não se lembra o n o m e de família, talvez iniciada
em Cachoeira por Ludovina. Esses fatos coincidem com u m a tendência geral
de expansão dos c a n d o m b l é s no período pós-abolição que implicaram, como
foi visto, a multiplicação dos terreiros nagôs, assim como outros de influência
congo-angola, que por sua vez propiciaram a expansão do c h a m a d o C a n d o m -
blé de Caboclo. Antes de apresentar, no p r ó x i m o capítulo, a reconstituição
histórica do Seja H u n d é e do Bogum n o período pós-abolição é o p o r t u n o abrir
um parêntese para examinar a etimologia do n o m e africano desses terreiros.
ETIMOLOGIAS 0 0 N O M E A F R I C A N O D O B O G U M E D O S E J A H U N D É
O nome africano do c a n d o m b l é B o g u m é u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o c o m o
Zoogodô Bogum Malê Rundô, e n q u a n t o o d o c a n d o m b l é Seja H u n d é é n o r m a l -
mente identificado c o m o Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé. A semelhança dos
dois nomes só vem c o n f i r m a r a estreita relação entre a m b o s os terreiros e a
idéia sustentada pela tradição oral de q u e no passado c o n s t i t u í a m u m a ú n i c a
comunidade religiosa d e s d o b r a d a em duas congregações. Essa s e m e l h a n ç a
indica t a m b é m q u e os f u n d a d o r e s ou m e m b r o s de u m dos terreiros partici-
param na fundação d o outro. Cabe notar que Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé,
às vezes grafado Ceja Undê, é o n o m e do candomblé do Ventura, e não há qual-
quer evidência de q u e a Roça de C i m a ou Sítio do Xarene tivesse esse n o m e .
Por isso, no presente trabalho, evito utilizar essa d e n o m i n a ç ã o em relação à
Roça de C i m a . M i n h a hipótese é que o Seja H u n d é recebeu esse n o m e por ter
participado da sua f u n d a ç ã o Ludovina Pessoa, t a m b é m reconhecida como f u n -
dadora ou m e m b r o ativo do Bogum. Nesse sentido, como sustenta parte da tra-
dição oral, o Seja H u n d é (mas não a Roça de Cima) poderia ser considerado
"filial" do B o g u m , q u e pela sua antecedência histórica seria a "matriz".
Lébéné P h i l i p p e B o l o u v i a n a l i s o u e m d e t a l h e a e t i m o l o g i a d o n o m e
Zoogodô Bogum Malê Rundô, c o r r e s p o n d e n t e ao B o g u m . C o n c o r d o com ele
que, do p o n t o de vista linguístico, a ausência de m o n e m a s gramaticais apa-
r e n t e m e n t e identificáveis indica provavelmente tratar-se de u m a justaposição
de formas isoladas, talvez de origens linguísticas variadas. Esse autor fala de
uma justaposição "estratégica" de termos, mais ou m e n o s em relação direta
com a f u n d a ç ã o da casa d e culto, isto é, em relação com a diversidade étnica
dos f u n d a d o r e s d o terreiro.
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t u IS N I C O L A U PARÉS
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NOTAS
1
Sobre o B o g u m , t ê m a p a r e c i d o , a p a r t i r dos anos 1940, c o m e n t á r i o s dispersos em vá-
rias publicações especializadas e artigos de j o r n a l , q u e serão citados oporrunamente.
Sobre a Roça de C i m a e o Seja H u n d é , ver W i m b e r l y , " T h e e x p a n s i o n . . . " pp. 74-89;
Dias do N a s c i m e n t o , Candomblé... e Presença... M a r c o s A n t ô n i o Lopez de Carvalho
escreveu u m texto sobre o C a n d o m b l é jeje de C a c h o e i r a , sem t í t u l o e a i n d a inédito,
ao q u a l tive acesso n u m a versão p r e l i m i n a r de 1999, d o r a v a n t e c i t a d o c o m o Lopez de
C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . As pesquisas destes dois ú l t i m o s autores f o r a m realizadas si-
m u l t a n e a m e n t e à m i n h a e, em várias ocasiões, tivemos o p o r t u n i d a d e s de compartilhar
e discutir i n f o r m a ç õ e s .
1
F o r a m m u i t a s as pessoas c o m as quais conversei a respeito da h i s t ó r i a dos terreiros,
mas devo destacar e n t r e elas os mais velhos, q u e , aliás, f o r a m os q u e mais contribuí-
ram para a pesquisa: o f i n a d o V i c e n t e Paulo dos Santos, mais c o n h e c i d o c o m o humbono
V i c e n t e do M a t a t u , u m dos mais a f a m a d o s especialistas religiosos da t r a d i ç ã o jeje;
A m b r ó s i o Bispo C o n c e i ç ã o , ou ogã B o b o s o , um dos mais p r e s t i g i a d o s especialistas
religiosos d o Seja H u n d é ; a finada Luiza F r a n q u e l i n a da R o c h a , ou gaiaku Luiza, lí-
der d o c a n d o m b l é R u m p a y m e H u n t o l o j i , de C a c h o e i r a ; o seu i r m ã o carnal, Eugénio
R o d r i g u e s d a R o c h a , c o n h e c i d o t a m b é m c o m o seu G e n i n h o e Everaldo C o n c e i ç ã o
D u a r t e , pejigã do B o g u m .
3
Ver, p o r exemplo, Vansina. Oral...
4
Lima, " O c a n d o m b l é . . . " , p. 55.
1
"Bogum q u e r t o m b a m e n t o para preservar o seu bissecular Terreiro", A Tarde, 24/8/1986;
"Sepultada m ã e - d e - s a n t o do mais antigo terreiro jeje", A Tarde, 6/10/1994; "Terreiro do
B o g u m inicia c e r i m ó n i a s de p r e p a r a ç ã o " , A Tarde, 7/10/1994. Ainda alguns m e m b r o s
do B o g u m e s t i m a m a data da f u n d a ç ã o em 1620 (Butler, Freedoms..., p. 191).
' Ficha n a I, ChAO, 17/1/1961.
Everaldo D u a r t e , 13/12/1998; 7/2/1999: 1 l / l 1/1999. T a m b é m se conta q u e alguns desses
escravos a q u i l o m b a d o s p o d e r i a m ter f u g i d o em direção ao R e c ô n c a v o .
' " M o r a d o r e s l u t a m pelo E n g e n h o Velho", A Tarde, 5/5/1997.
' Rego, "Terras b e n e d i t i n a s . . . " , pp. iv-18.
0
Rita A m á l i a , c o m u n i c a ç ã o pessoal, Salvador, 6/4/2001; M a i a , " P r o j e t o F u n d i á r i o " ;
" M o r a d o r e s l u t a m pelo E n g e n h o Velho", A Tarde, 5/5/1997.
' A transcrição desse inventário aparece no inventário da sua mulher e herdeira, Ana Fran-
cisca Texeira de C a r v a l h o , falecida em 1898. " I n v e n t á r i o de Ana Francisca Texeira de
Carvalho", 1/7/7/1, Série judiciária, ApEBa.
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O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA
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6
, I ,
Período Nome Apelido ' Vodum
, j
t. 1896-1 922 i Maria Luiza Sacramento Maria Agorensi ' Bessen
{ + 4
1 934/37-1950 | Maria Epifânia dos Santos \ Abalhe j Bessen
OS TEMPOS DE MARIA A G O R E N S I
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às q u a t o r z e h o r a s , n a l a d e i r a d a P r a ç a , f a l e c e u d e a n t i g o s p a d e c i m e n t o s sua pa-
r e n t e M a r i a L u i z a d o S a c r a m e n t o , m a i o r d e o i t e n t a a n o s d e i d a d e , d e filiação desco-
n h e c i d a , s o l t e i r a , n a t u r a ] d e N a g é , r e s i d e n t e n e s t a c i d a d e , vai ser s e p u l t a d a n o cemi-
t é r i o d a M i s e r i c ó r d i a e m c a r n e i r o da I r m a n d a d e d o s M a r t í r i o s . 3
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LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ
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Entre as vodúnsis, que em sua maioria eram mulheres, cabe destacar apre
sença de dois h o m e n s : A n t ô n i o Pinto, fomotinho de O x u m Déi, iniciado no
primeiro barco e Virgilio d e Bessen, iniciado no segundo. 9 Q u e m alcançou
mais renome foi fomotinho de O x u m . Parece que a decisão para iniciar um
h o m e m causou m u i t o debate e não aconteceu até que O x u m incorporou em
Antônio, que passou uma noite inteira d e n t r o do poço de O x u m , para que
as velhas aceitassem recolhê-lo no hunco. N o e n t a n t o , fala-se que "fomotinho
não acabou a obrigação e fugiu para o Rio ainda com o kele' ,u> Lá fez muitos
filhos de santo e, embora tenha m o d i f i c a d o muitos aspectos rituais, conver-
teu-se na "raiz carioca" do jeje-mahi (ver adiante).
Uma das pessoas mais influentes n o Seja H u n d é dessa época foi seu Miguel
Rodrigues da Rocha, casado com a descendente de nagôs Cecília Ovídia de
Almeida e pai carnal de seu G e n i n h o , gaiaku Luiza e Joana, iniciada para o
v o d u m Azonsu em tempos de Pararasi. Em 1914, seu Miguel foi confirmado
c o m o pejigã, o chefe d o peji, cargo correspondente à segunda pessoa depois
da mãe-de-santo. A sua participação nas atividades religiosas d o candomblé,
j u n t o com a sua condição de protetor, mediador e m a n t e n e d o r do terreiro,
lembram, de certa forma, o carisma de Zé de Brechó.
Segundo relato da sua filha gaiaku Luiza, seu Miguel era de Badé com
Oxalá e t i n h a Iemanjá. Era u m h o m e m fisicamente i m p o n e n t e , alto e forte.
T i n h a açougue em Cachoeira. Por volta de 1918, trabalhou como marinheiro
e dizem que viajou para a Africa. Ele esteve envolvido em política e foi guarda
do c o m e n d a d o r U b a l d i n o N a s c i m e n t o de Assis. Segundo expressão da sua
filha, "ele era um Getúlio Vargas", acrescentado que "vivia com balas no cinto".
As eleições, naquela época, envolviam frequentes distúrbios e tiroteios entre
facções rivais." Depois de uma dessas eleições, seu Miguel teve que fugir para
o Rio, t r a b a l h a n d o lá como mestre-de-obras e pedreiro na c o n s t r u ç ã o do
Palácio do Catete, voltando a Cachoeira só em 1922. Faleceu em 1966, como
fiscal da prefeitura. Ele conseguiu um certo poder político e económico e aju-
dava a custear as festas em tempos de Maria Agorensi. Q u a n d o pejigã Miguel
chegava ao terreiro, era saudado com toque de tambor. 1 2
Ogã Caboco, conhecido c o m o Caboco Acaçá, de n o m e Tomás de Aquino
Bispo, era filho de deré Custódia e do ogã seu Agapito, mas teve por mãe de
leite a d o n a Cecília, mulher de seu Miguel. Aos 11 anos foi confirmado como
ogã senevi, j u n t o com o pai carnal, seu Agapito, e seu Miguel. Era também
hunto (tocador de atabaque) m u i t o bom. Com o tempo, ogã Caboco viria a
ser ogã impe, encarregado das matanças. Ele t a m b é m "deu mão", isto é, ajuda-
va em outras casas jejes como o Bogum, a casa de gaiaku Luiza, sua irmã de
criação, ou a de humbono Vicente. Segundo hurnbono Vicente, ele era quem
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Pejigõ seu Miguel (sentado), ogã seneviCaboto Acaça (com relógio) e outros ogãs do Seja Hundé (c. 1960}
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LOIS NICOLAU FARES
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OS TEMPOS DE A B A L H E
Após 1922, o Seja H u n d é paralisou suas atividades por mais de uma década.
Uns falam que foram 11 anos e outros, que foram 15. 16 Segundo gaiaku Luiza,
"a tia morreu. A roça ficou onze anos fechada. O pessoal foi saindo, muitos
já não voltaram. Abalhe recolheu as suas". 17 Foi, p o r t a n t o , por volta de 1933
ou 1937 que Maria Epifânia dos Santos, sinhá Abalhe, conseguiu, finalmente,
assumir como a nova gaiaku do c a n d o m b l é .
Não deixa de ser significativo que a década de 1920, q u a n d o o Seja H u n d é
e também o Bogum permaneceram inativos, tenha coincidido com o período
de maior repressão policial do C a n d o m b l é , tanto em Salvador q u a n t o no Re-
côncavo, 18 e que em meados da década de 1930, q u a n d o ambos os terreiros
reiniciam suas atividades, o fato tenha coincidido com uma época de progres-
siva tolerância dos cultos afro-brasileiros. Em 1937, intelectuais como Edison
Carneiro e A y d a n o do C o u t o Ferraz, com a participação de pais-de-santo
como Eliseu M a r t i n i a n o do B o m f i m , p r o m o v e r a m o S e g u n d o Congresso
Afro-Brasileiro, em Salvador, que em m u i t o contribuiu para o reconhecimen-
to social e a valorização dessa tradição religiosa. U m ano depois, em 1938,
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LUIS NICOLAU PARÉS
As vodunsi da c a s a , ou s e j a , as f i l h a s d e M a r i a O g o r e n s i , n ã o a c e i t a r a m q u e Sinhá
A b a l h e a s s u m i s s e a d i r e ç ã o d o V e n t u r a e foi p o r isso q u e a r o ç a ficou t a n t o t e m p o
f e c h a d a . N ã o se t e m certeza d o m o t i v o dessa n ã o aceitação, das a n t i g a s filhas d e Maria
O g o r e n s i p a r a c o m S i n h á A b a l h e , m a s a p o p u l a ç ã o d e C a c h o e i r a fala q u e era pelo
f a t o d e S i n h á A b a l h e não t e r s i d o i n i c i a d a ali n o V e n t u r a e s i m n a R o ç a d e C i m a .
Q u e a h e r d e i r a d o t e r r e i r o d e v e r i a ser u m a filha da casa e n ã o u m a i r m ã d e M a r i a
O g o r e n s i ( n o caso t i a das vodunsi). T a m b é m se fala, q u e S i n h á A b a l h e s o f r e u m u i t o
p a r a c o n s e g u i r j u n t a r todas as vodtinsi da casa d e v o l t a , e q u e p a r a t o m a r p o s s e teve
f a c ã o riscado n o c h ã o e até c h i n e l a d a n o rosto d e S i n h á A b a l h e , p o r p a r t e das s o b r i n h a s .
S e g u n d o G a i a k u L u i z a , q u e m c o n s e g u i u r e u n i r as filhas d e volta f o i o A z o n s u de u m a
das vodunsi antiga [Luiza M o r e i r a de A v i m a j e ] 2 0 q u e "virou" e disse q u e a roça de Bessen
n ã o p o d i a virar p a s t o para g a d o , e q u e já era t e m p o das filhas v o l t a r e m a a c e i t a r e m a
n o v a G a i a k u . E foi assim q u e as vodunsi foram voltando pouco a pouco.2'
Mas nem todos voltaram. O pejigã seu Miguel, com sua família, por exemplo,
afastou-se do Seja H u n d é a partir dessa época. Sabe-se que, após a morte de Maria
Agorensi, a chave d o peji, talvez o emblema m á x i m o do poder n u m terreiro,
passou p r i m e i r o p a r a o pejigã M i g u e l , mas depois, m a r c a n d o as diferenças
surgidas entre Abalhe e seu Miguel, passou para o ogã impe Caboco Acaçá. 22
Esse seria um b o m exemplo de "drama social" com as q u a t r o fases descritas
por Turner de r u p t u r a , crise, reparação e, no presente caso, u m a c o m b i n a ç ã o
de reintegração e cisma. Vemos t a m b é m , c o n f o r m e a teoria de Turner, c o m o
se recorre ao ritual (adivinhação, manifestação das divindades e provavelmente
outras atividades) p a r a d i r i m i r o c o n f l i t o e restabelecer a o r d e m i n t e r n a da
congregação. 2 3 Em última instância, são as divindades que, apelando à commu-
nitas ou à união dos m e m b r o s do grupo, sancionam a solução do problema. O
ritual e o sistema de crenças operam de forma dialética, tanto q u a n t o mecanismos
de transformação e superação do conflito, c o m o mantenedores da coesão e da
ordem social. No entanto, c o m o veremos mais adiante, a reparação seria apenas
parcial e, sob a aparente reintegração do g r u p o , p e r m a n e c e m latentes a divisão
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LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ
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Bessen e seu nome africano era arrunsi Lufame (hunsi Lufame), mais conhecida
como fomotinha Agorensi Abalhe, ou simplesmente Abalhe, pronunciado às
vezes Abalia, Abalha ou Abalié, que seria um título honorífico. 2 6 No seu registro
de óbito consta que nasceu em Cachoeira, onde m o r o u em várias casas. Ogã
Boboso menciona u m a na Recuada, que tinha u m quarto que "fechou de tanta
pedra guardada". Acrescenta que Zé de Brechó, que esteve amasiado com ela
na última década do século XIX, morava em cima. 2 7 Ela era irmã da devoção
da Boa M o r t e e m e m b r o das irmandades do Martírio e do Rosarinho. 2 8
Segundo seu G e n i n h o , " t u d o o m u n d o t i n h a m e d o da língua de sinhá
Abalhe", mas ela não vivia da religião; em palavras de humbono Vicente, "não
botava mesa nem ebó". 2 9 Segundo Miguel Santana, respeitado comerciante e
ogã do Axé O p ô Afonjá, "ela era pequenininha, preta, negrinha [...] possuía
u m a q u i t a n d a ao lado da igreja do Rosário, o n d e vendia a m e n d o i m , beiju,
cavaco, pinha. Não, não vendia artigo da Costa, ninguém vendia artigos da
Costa em Cachoeira, t u d o era vendido aqui em Salvador". 30 Miguel Santana
namorava naquela época Maria Cidreira da Anunciação, cujo n o m e de santo
era Badesque (provavelmente Badesi, devota do v o d u m Badé) e que, segundo
ele, era "a segunda pessoa da mãe-de-santo lá do Engenho do Rosário". Por esse
motivo, ele ficou hospedado durante oito dias no Seja H u n d é , o n d e teve opor-
t u n i d a d e de confirmar a reputação de Abalhe como devota do v o d u m Bessen.
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Ilê Ibece Alaketu Axé O g u m Megege que, como já comentei, foi o primeiro
terreiro de nação ketu a funcionar na região de Cachoeira. 3 7 A colaboração com
o pessoal do terreiro jeje é um bom exemplo da flexibilidade nas dinâmicas de
cooperação religiosa além das supostas "fronteiras" das nações de C a n d o m b l é .
P a r a l e l a m e n t e a esses processos de colaboração "transnacional", o pessoal do
Seja Hundé podia manter relações conflituosas com terreiros da sua própria
nação. São conhecidas as disputas entre Abalhe e a temida Badesi Arcanja,
antiga vodunsi do Ventura, feita por Maria Agorensi, que tinha um terreiro "jeje
dahomé" em Maragogipe. Gaiaku Luiza fala de "guerra" e "uma política danada"
entre os dois terreiros. A morte de Badesi Arcanja, na década de 1940, é atri-
buída por alguns a essas brigas, envolvendo atividades de "feitiçaria". 38
A estrutura altamente hierarquizada das congregações de c a n d o m b l é está
sempre centralizada na figura da mãe-de-santo. O d i n a m i s m o e a visibilidade
social adquirida pelo Seja H u n d é , d u r a n t e a gestão de Abalhe, estiveram mar-
cados pela capacidade dessa líder religiosa em articular e manejar u m a rede
de relações políticas que envolvia ora alianças, ora dissidências com indivíduos
ou grupos que se estendiam além do â m b i t o do C a n d o m b l é . A participação
de Abalhe na devoção da Boa M o r t e de Cachoeira, por exemplo, oferecia-lhe
um espaço paralelo para a gestão dessa micropolítica. Em todo caso, com o fale-
cimento da líder de u m candomblé, é como se a c o m u n i d a d e perdesse o cen-
tro de referência, o magnetismo que agrega as partes em u m todo.
Às 5 horas do dia I a de dezembro de 1950, Silvia França de Jesus, antiga vo-
dunsi da Roça de Cima, amiga e vizinha de Abalhe na Recuada, 39 declara que na
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0 B O G U M N O P E R Í O D O P Ó S - A 6 0 L 1 Ç Ã 0 : O E V A L E N T I N A A E M I L I A N A (C. 1 8 9 0 - 1 9 5 0 )
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1
Período Nome Apelido Vodum
i
t. 1890 c - 1 9 2 0 Valentina — ! Sogbo Adaen
i
1.1937-1950 Maria Emiliana da Piedade Miliona | Agué
morava de frente do Bogum, era rapazinho, tinha uma casinha lá. Ele vivia cor-
tando dendê, de fazer azeite, cuidava a roça [...] caiu [aconteceu de] ele ir lá
pelo Bogum [...] e foi suspenso como ogã". As mesmas fontes n o t a m que,
quando reabriu o B o g u m , M a n o e l da Silva não era ainda ogã c o n f i r m a d o .
Segundo D u a r t e , M a n u e l da Silva "era o feitor daquelas terras. Ele fez u m a
promessa a Oxalá que se ganhasse em u m juízo ia reabrir o terreiro". Parece
que conseguiu resultados favoráveis com a justiça e c u m p r i u a promessa. 4 6
Essa colaboração na abertura do terreiro e sua relação sentimental com Va-
lentina p o d e m explicar por que M a n u e l da Silva, embora oficialmente ape-
nas um ogã suspenso, desfrutava de grande poder na congregação religiosa,
até o p o n t o de ser l e m b r a d o como "pai-de-santo".
C o m o no caso d o Seja H u n d é , os primeiros anos da gestão de Valentina
no Bogum são obscuros, mas é razoável pensar que, na primeira década do
século XX, o terreiro já estava f u n c i o n a n d o com uma certa estabilidade, pois
por volta de 1910 Valentina recolheu u m primeiro barco de oito vodúnsis,
celebrando a sua saída em j u n h o de 1911. 47 A m e m ó r i a oral só conserva o
nome de três mulheres desse barco, que ficaram na ativa até os anos 1960:
Runhó de Sogbo, D a d u de O g u m e Anita. 4 8
Runhó enfatizava que "no tempo que eu fiz o santo ainda foi com africanos
na casa [...] Tiana Gege, m ã e - p e q u e n a daqui, é anterior à f i n a d a Emiliana,
tinha marca de t r i b o no rosto. T i a n a vem do t e m p o do m e u pai-de-santo
[Manuel da Silva]". Os entrevistadores c o m e n t a v a m que R u n h ó e o filho
"fazem notar m u i t a diferença q u a n d o falam de africanos e brasileiros. Valen-
tina d e m o n s t r a verdadeira veneração q u a n d o se refere aos africanos". 4 9 Por-
tanto, no B o g u m , o convívio entre africanos e crioulos se alastrou até bem
entrado o século XX.
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Salvador uma africana por volta de 1911 era já u m fato bastante excepcio-
nal- encontrar uma na década de 1930, m u i t o mais, e se ela chegou ao Brasil
antes do fim do tráfico, em 1850, ela era m u i t o provavelmente centenária. 5 3
Quanto à data da m o r t e da que s u p o n h o ser a "mãe-pequena" e não a
"mãe-de-terreiro", Correia Lopes deixa aberta a dúvida de ser 1936 "ou mais"
e, nesse sentido, cabe lembrar a possibilidade de se tratar de um zeleim rea-
lizado três ou sete anos após o falecimento, c o n f o r m e acontece no C a n d o m -
blé com os membros de alta hierarquia. T a m b é m não seria impensável que
Tiana Gege, como m ã e - p e q u e n a , tivesse a t u a d o como regente após a m o r t e
de Valentina e que certas atividades religiosas fossem conduzidas p o r ela du-
rante o período de interregno, o que por sua vez poderia explicar a c o n s t r u -
ção do novo barracão em 1927, c o m o sugeria R u n h ó .
Em todo caso, além da possível concordância cronológica na i n t e r r u p ç ã o
das atividades religiosas no início dos anos 1920, a reabertura do Bogum sob
a liderança de Maria Emiliana da Piedade, em 1937, coincidiu aproximada-
mente com a reabertura do Seja H u n d é com Abalhe, o que poderia sugerir
uma estratégia c o n j u n t a n o f u n c i o n a m e n t o de ambas as congregações religio-
sas. C o m o vimos, tem q u e m afirme que os dois terreiros eram u m só e, nesse
tempo, o pessoal do B o g u m realizava a n u a l m e n t e visitas ao Seja H u n d é e o
pessoal de Cachoeira retribuía as visitas indo a Salvador.
Correia Lopes c o m e n t a que "Bôgúm é o n o m e por que os adeptos do rito
gêge na C i d a d e de Salvador designam a casa de culto. A filial de Cachoeira,
no mesmo Estado da Baía tem o mesmo n o m e . Esta filial foi f u n d a d a por u m
adepto do terreiro do Salvador". 54 N ã o sabemos quem poderia ser esse adepto
do Bogum, talvez Manoel da Silva. Mas o comentário sugere que membros do
Bogum participaram na f u n d a ç ã o do Seja H u n d é , o que, por sua vez, im-
plicaria que o terreiro de Salvador estava f u n c i o n a n d o , provavelmente, sob
a liderança de Valentina já em 1896, a data que estimei para a abertura do
Seja H u n d é (ver cap. 5).
A gestão de Maria Emiliana da Piedade é lembrada como u m a das épocas
mais importantes do Bogum. Ela era u m a preta crioula, filha de Manoel Ramiro
e Maria Claudina Magalhães; nasceu entre 1858 e 1867 e estaria com aproxi-
madamente 70 anos q u a n d o assumiu a chefia da casa, por volta de 1935. Era
analfabeta e ficou solteira. 55 Miliana de Agué, filha do v o d u m Agué, o caçador
e dono das florestas. 56 Em 1987 ogã Celestino Augusto do Espírito Santo e doné
Nicinha declaravam que "Emilia foi nascida e criada n o terreiro [Bogum]".
Humbono Vicente corrobora essa opinião ao dizer que "Emiliana tinha pai e
mãe no Bogum", ambos t a m b é m de Agué, e acrescenta que ela ia ser iniciada
no Pó Zerrem, mas "caiu" no Bogum durante uma obrigação de Zo e foi "feita"
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CONFLITOS DE S U C E S S Ã O E CISÕES: A R E G Ê N C I A D E R O M A N A N O B O G U M
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Maria R o m a n a M o r e i r a , R o m a n i n h a de P ó ( 1 9 4 1 )
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V^* "
áA- n
Vicente P a u l o dos Santos, humbono Vicente de O g u m (2001)
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na ativa". 101 Essa escassez de rodantes foi parcialmente resolvida no ano seguin-
te, em 1962, q u a n d o Pararasi, a candidata de Romana, assumiu a chefia no Seja
H u n d é . A posse foi considerada ilegítima por algumas rodantes de lá e fala-se
que um grupo de aproximadamente dez mulheres passou então a frequentar o
Bogum. C o m esses eventos as relações entre o Bogum e o Seja H u n d é pioraram
e o contato entre ambos os terreiros cessou definitivamente. Entretanto, reme-
diar a escassez de rodantes da casa parece ter sido u m a das prioridades do
m a n d a t o de R u n h ó .
Entre 1964 e 1972 R u n h ó iniciou 6 barcos, com um total de 16 vodúnsis.
Apresento em seguida a lista de iniciadas e as datas das obrigações de saída ci-
tadas por Everaldo Duarte. Em 22 de julho de 1964 realizou-se a saída do pri-
meiro barco de duas vodúnsis: Maria de O m o l u e Teresa de Aziri Tobosi. Em
1966, teve a saída do segundo barco de três vodúnsis: Maria Odília de Ajonsu,
Eunice de O g u m e Jacira de Badé. Em 1967, o terceiro barco de três: Marlene
de Toquem, Margarida de Oiá e Anita de Agué. Em 21 de dezembro de 1970,
o quarto barco de três: u m a filha de Aziri, Adelina de Bessen e Zildete de Ode.
Em I a de agosto de 1971, o q u i n t o barco de dois: Nizette de Logun e Arlinda
de Lissá (Oxalá). Em 20 de o u t u b r o de 1972 realizou-se a saída do sexto e
último barco de R u n h ó de três vodúnsis: Ivone de O g u m , Beatriz de O x u m e
Nilce da Silveira de Ajonsu. 1 0 2
Comprovamos, portanto, uma grande atividade nessa época e também uma
grande diversidade de voduns, sendo todos os voduns diferentes, exceto dois
Aziri (Iemanjá), dois Ajonsu (Azonsu) e dois O g u m . Isso indica, até certo pon-
to, u m a vontade implícita de preservar a riqueza d o panteão jeje e ao mesmo
tempo u m a grande competência ritual de Runhó. C o n h e c i m e n t o esotérico que
ela fazia questão de preservar da curiosidade alheia: "quem não sabe não en-
tende, mas eu não m u d o e não ensino". 1 0 3
Mãe R u n h ó , que sofria do coração, veio a falecer no sábado, 27 de dezem-
bro de 1975, às 9 horas da m a n h ã . Era a véspera exata do início do ciclo de
festas da casa. Segundo a imprensa da época, R u n h ó tinha então 98 anos. Seu
s e p u l t a m e n t o ocorreu na m a n h ã do d o m i n g o , na Q u i n t a dos Lázaros; "o fé-
retro, as coroas, o cântico e o choro desceram a ladeira e, a pé, atravessaram
ruas e avenidas, à frente Iansã a b r i n d o o c a m i n h o , com seu grito terrível". 1 0 4
As 21 horas foi iniciado o sirrum no terreiro. N a última noite, no sábado
3 de janeiro, compareceram representantes de muitos terreiros e i m p o r t a n -
tes personalidades da cultura baiana c o m o Valdeloir Rego, Jorge A m a d o e
Caribé. A missa de sétimo dia, na m a n h ã seguinte, foi celebrada na Igreja de
São João Batista na Vila América. Nesse m o m e n t o , já se sabia que sua filha
gamo Lokosi seria a sucessora. "Na verdade, a direção do Terreiro do Bogum
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J*
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Nicinha, que sofria uma anemia profunda e já tinha sido internada por duas
vezes, faleceu às 2 horas da madrugada da quarta-feira, 5 de o u t u b r o de 1994,
com 82 anos de idade. O cortejo fúnebre, celebrado a pé, como prescreve a
tradição jeje, foi do terreiro até o Cemitério da Q u i n t a dos Lázaros, onde foi
sepultada. Realizou-se o zelim d u r a n t e sete noites seguidas, a contar do dia da
morte da mãe-de-santo, e uma missa de sétimo dia na Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. 1 1 3 Na ausência da doné, assumiu proviso-
riamente como responsável da casa a mãe-pequena hunsó Dezinha de O x u m .
O terreiro permaneceu fechado para o público leigo por mais de sete anos.
Foram t e m p o s difíceis para a congregação religiosa, que ainda perdeu, em
1995, o ogã bundeva Edvaldo dos Anjos Costa, filho carnal de Nicinha. Sur-
giram diferenças entre a facção dos mais tradicionalistas e conservadores e u m a
outra dos mais novos que queriam reiniciar as atividades com mais pressa.
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LUIS NICOLAU PARÉS
Uma das características mais admiráveis dessa congregação tem sido a sua ca-
pacidade para superar os longos períodos de inatividade, às vezes de mais de
15 anos, gerados pelas disputas sucessórias. C o m o falava R u n h ó em 1961: "A
gente quer acabar mas tem t a n t o santo por aí que a gente tem que continuar
[...]. Nós não fazia questão de continuar mas diziam — terreiro é do gege!"114
Em 2001, aproveitando a c a m p a n h a lançada pela Fundação Palmares para
a recuperação dos terreiros de Salvador, o Bogum obteve recursos do Minis-
tério da C u l t u r a para consertar o barracão e os pejis, que nesse t e m p o sofre-
ram sério estrago. Finalizadas as obras, em 16 de dezembro de 2001, veio a
falecer humbono Vicente Paulo dos Santos, que deveria jogar os búzios para
confirmar a nova doné. D i a n t e dessa adversidade, foi convidado do Rio de
j a n e i r o o famoso olowo Agenor M i r a n d a Rocha, 94 anos, que em 30 de maio
de 2002, dia de C o r p u s Christi, após olhar os búzios de Ifá, a p o n t o u como
nova doné do Bogum a dofona Zaildes Iracema de Mello, 38 anos, conhecida
como índia de Ajonsu (Azonsu), sobrinha de N i c i n h a e neta de R u n h ó . Le-
gitimada pelos poderes do mais prestigiado e respeitado olowo do C a n d o m -
blé c o n t e m p o r â n e o , a liderança religiosa do Bogum permanecia ligada à fa-
mília de R u n h ó , já na sua terceira geração. As atividades públicas da casa
foram retomadas em d e z e m b r o de 2002, e em 17 de agosto de 2003 a suces-
sora t o m o u posse do cargo de doné, com o título de Naa Doji, para inaugu-
rar u m a nova etapa do B o g u m .
Voltamos agora a Cachoeira para examinar o período que vai de 1960 até nos-
sos dias. A gestão de Pararasi, Adalgisa C o m b o Pereira, à frente do Seja Hundé,
marca uma nova etapa na história do terreiro. Ela nasceu em Castro Alves, perto
de Muritiba. Foi iniciada por Abalhe e consagrada ao vodum Parara, uma qua-
lidade de Sakpata ou Azonsu, "dançava de palha da Costa". Segundo humbono
115
Vicente, ela era já "moderna". C o m o vimos, a sua posse como gaiaku foi con-
testada por alguns membros da congregação. C o m o escreve Lopez de Carvalho,
"segundo a população de Cachoeira, o reinado de gaiaku Pararasi não foi dos
melhores. Dizem que ela possuía um génio muito difícil, chegando a ser m u i t o
autoritária. Muitas vodunsi da casa haviam já falecido e Pararasi teve uma certa
dificuldade na administração do terreiro". 116
A duração da chefia de Pararasi é difícil de estimar. Ela deve ter assumido
no fim da década de 1950, ou bem no início dos anos 1960. C e r t a m e n t e em
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1962 ela já estava f u n c i o n a n d o com certa regularidade. Foi nesse ano que
gaiaku Luiza c o m p r o u terras no bairro do Caquende, em Cachoeira, e iniciou
as primeiras atividades do terreiro R u m p a y m e Agono H u n t o l o j i . 1 1 Essa cir-
cunstância deu lugar a sérias disputas entre ambos os candomblés, sendo que
o Seja H u n d é não aceitava a instalação de o u t r o terreiro da mesma nação em
Cachoeira. As brigas e os d e s e n t e n d i m e n t o s se prolongam até hoje. A idéia
de que n u m a determinada localidade só possa existir u m candomblé jeje-mahi
e, p o r t a n t o , u m a só gaiaku ou doné, é replicada no B o g u m . Essa n o r m a pa-
rece estar associada à noção de que os assentos instalados pelos africanos no
Seja H u n d é e Bogum não têm possibilidade de ser duplicados em outros lu-
gares, pois as "pedras" supostamente trazidas da Africa seriam a única e legíti-
ma moradia de d e t e r m i n a d o s v o d u n s . Mas t a m b é m parece que essa "regra"
teria sido utilizada e enfatizada c o m o a r g u m e n t o para evitar o d e s m e m b r a -
mento das congregações jeje-mahis nas suas sucessivas disputas internas du-
rante os períodos de sucessão. Isso explicaria, em parte, o sucesso da expansão
das casas nagôs, que não são tão rígidas a esse respeito.
Segundo ogã B e r n a r d i n o , Pararasi b o t o u q u a t r o barcos, e segundo ogã
Boboso foram só dois ou três. O primeiro barco foi recolhido em 1964. Nele
foram preparadas: 1) dofona Maria da Conceição de Azonsu, esposa do ogã
Zé Careca; 2) fomotinha Joana de Azonsu, irmã carnal de gaiaku Luiza e seu
G e n i n h o ; 3) u m a vodúnsi de Averekete; 4) u m a vodúnsi de O x u m ; 5) uma
vodúnsi de Logun Edé. Sabe-se ainda de mais três vodúnsis preparadas por
Pararasi: 6) dofono Edivaldo de Bessen; 1) forno Alda de Oiã; e 8) dofonitinha
Alaíde de Oiã. As duas últimas m o r a m no Rio, mas até recentemente viaja-
vam com regularidade para participar das festas do Seja H u n d é . Todavia, a
menção de um segundo dofono (Edivaldo) indicaria a existência de pelo me-
nos dois barcos,118
O primeiro barco causou grandes problemas a Pararasi e, segundo alguns,
"estrambalhou a roça", iniciando a decadência do Ventura. U m a explicação
dada por Luis Magno, f d h o carnal da dofona Maria da Conceição, é que foram
iniciadas u m a vodúnsi de O x u m e outra de Logun Edé, voduns que, no jeje,
segundo ele, só poderiam ser consagrados na cabeça de uma vodúnsi depois de
a mãe-de-santo ter preparado já vários barcos. "Ela começou por onde outras
terminam." 1 1 9 Alternativamente, outras pessoas explicam que, n u m barco, o
noviciado de Averekete deve ser feito em último lugar: "Averekete é o último;
Pararasi b o t o u em primeiro lugar e daí a casa foi arriando". 1 2 0 N e n h u m des-
ses argumentos parece inteiramente convincente, mas são interpretações que
apontam para o fato de que Pararasi teve problemas e críticas pela forma como
organizou esse barco.xu
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A POSSE DA TERRA: P R O B L E M A S F U N D I Á R I O S D O B O G U M ( 1 9 6 0 - 1 9 9 0 )
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u m t e r r e i r o na vila de A c u p í , p e r t o de S a n t o A m a r o . J a i m e M o n t e n e g r o , ini-
c i a d o n a C a c u n d a , o u v i u d i z e r q u e o p e s s o a l d e S a n t o A m a r o era C a s a -
r a n g o n g o (o q u e p a r e c e u m t e r m o b a n t o ) e f a l a v a m q u e e r a m jeje a g a b i . 1 6 ' A
C a c u n d a de Yaya foi f u n d a d a i n i c i a l m e n t e n o b a i r r o de S u s s u a r a n a , em Sal-
vador, em 6 de j a n e i r o d e 1920. D e p o i s , q u a n d o o g o v e r n o e x p r o p r i o u as
terras, foi t r a n s f e r i d a p a r a São C a e t a n o . Foi d i r i g i d a p o r S i n f r ô n i o Eloi Pi-
res, d e s c e n d e n t e d e a f r i c a n o s , filho de O b a l u a ê , c o m a d i j i n a Z u n t ô n o . Sin-
f ô n i o m o r r e u em I a de j u n h o de 1938, d e i x a n d o c o m o sucessora sua m u l h e r ,
C o n s t a n ç a da R o c h a Pires, mais c o n h e c i d a c o m o m ã e Tança, f d h a de N a n ã ,
cuja d i j i n a era Ajausse. M ã e T a n ç a m o r r e u e m 2 de o u t u b r o de 1978 e foi su-
- cedida pela sua filha n a t u r a l , M a r i a Pires, filha de O x u m c o m a d i j i n a I a - O m i -
N i - Q u e , t e n d o p o r pejigã (e a x o g u m ) Pedro de A l c a n t a r a R o c h a ( P e d r i n h o ) ,
filho de O g u m , c o m d i j i n a O g u m Leé, c o n f i r m a d o em abril de 1933. S e n d o
filho n a t u r a l de m ã e T a n ç a , após a m o r t e dela P e d r i n h o p a s s o u a ser c h a m a d o
de babalaxé. As festas mais i m p o r t a n t e s e r a m a Festa das F r u t a s e o amalá de
X a n g ô , celebradas em 6 de j a n e i r o , e a Festa de O b a l u a ê , c o m m a t a n ç a de boi
e cabritos, n o s á b a d o de Aleluia, na Páscoa. E m b o r a a casa preserve os assen-
tos, d e s d e 1991 n ã o se c e l e b r a m festas lá. 163
E m t e m p o s de m ã e T a n ç a existia u m a estreita c o m u n i c a ç ã o c o m o Seja
H u n d é , q u a n d o g e r i d o p o r A b a l h e e Pararasi. M ã e T a n ç a v i a j o u t a m b é m para
o Rio e parece q u e se f o r m a r a m d u a s facções q u e d e r a m lugar a d i s p u t a s inter-
nas. O p r i m e i r o barco de m ã e T a n ç a foi r e c o l h i d o em 1954 c o m sete v o d ú n s i s ,
depois a i n d a teve u m s e g u n d o barco de q u a t r o vodúnsis."' 4 O terreiro Ilê Axé
Jitolú de m ã e H i l d a Dias dos S a n t o s , f u n d a d o por volta de 1960, n o C u r u z u ,
c e n t r o espiritual d o bloco a f r o Ilê Ayé, e o terreiro Inlegedá J i g e m i n de pai
A m i l r o n C o s t a , f u n d a d o em 1974, na Boca d o Rio e t r a s l a d a d o em 1985 ao
C u r u z u , t ê m a s c e n d ê n c i a religiosa n a C a c u n d a de Yaya.
T a n t o a C a c u n d a de Yaya q u a n t o aqueles t e r r e i r o s a ela a f i l i a d o s são n o r -
m a l m e n t e i d e n t i f i c a d o s c o m o jeje-savalus. As diferenças litúrgicas e n t r e o jeje-
m a h i e o jeje-savalu n ã o são m u i t o a c e n t u a d a s , e m b o r a h a j a b e n ç õ e s , c a n t o s
d e sacrifício e de saída de iaôs, e h i n o s de n a ç ã o q u e são d i f e r e n c i a d o s . D e
m o d o geral, o jeje-savalu a p r e s e n t a a t u a l m e n t e f o r t e s i n f l u ê n c i a s d a l i t u r g i a
n a g ô - k e t u . N o t e r r e i r o J i g e m i n de pai A m i l t o n , p o r e x e m p l o , c e l e b r a m - s e
o b r i g a ç õ e s c o m o a "procissão para O d u d u a " , s e m e l h a n t e às águas d e O x a l á
d a n a ç ã o k e t u , q u e n ã o são n o r m a l m e n t e c e l e b r a d a s n o j e j e - m a h i . N e s s e ter-
reiro, os rituais d o zandró e d o boitá, importantes obrigações do rito mahi
(ver cap. 8), são r a r a m e n t e c e l e b r a d o s e o boitá, por e x e m p l o , é p r i v a d o e n ã o
envolve a p r o c i s s ã o em volta das árvores sagradas, c a r a c t e r í s t i c a d o s t e r r e i r o s
m a h i s . O jeje-savalu r e c o n h e c e c o m o "os v e r d a d e i r o s d o n o s " de sua n a ç ã o
256
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
O m o l u ( A z o n s u ) e N a n á , e n ã o Bessen, c o m o o m a h i . A l é m desses e l e m e n -
tos, a l í n g u a r i t u a l , t o q u e s de a t a b a q u e , c â n t i c o s sagrados e a p r á t i c a r i t u a l
são m u i t o parecidos. 1 6 ''
C o n s t a t a m o s q u e n o s a n o s 1920 e 1 9 3 0 v á r i a s casas jejes de S a l v a d o r
s u r g i r a m c o m o c o n t i n u a ç ã o de t e r r e i r o s l o c a l i z a d o s n o R e c ô n c a v o ( S a n t o
A m a r o , São F r a n c i s c o d o C o n d e , M a t a de São J o ã o ) . N o c a p í t u l o a n t e r i o r
já m e n c i o n e i o t e r r e i r o j e j e - d a g o m é da F a z e n d a C a j u , nas m a r g e n s d o r i o
P a r a g u a ç u , p e r t o d e M a r a g o g i p e . Era d i r i g i d o p o r d o n a V i t ó r i a , q u e p o r
v o l t a de 1970 t i n h a u n s 90 a n o s , e devia f u n c i o n a r já nas p r i m e i r a s d é c a -
d a s d o s é c u l o . S e g u n d o L u i z M a g n o , d o n a V i t ó r i a "era d e A b e r i g ã c o m
N a n ã . A b e r i g ã é o n o m e q u e eles c h a m a m o v o d u m B e s s e n lá n o j e j e -
d a g o m é " . A p e s a r d o d i f í c i l acesso, n a é p o c a d o s c a n d o m b l é s , e r a m m u i t a s
c a n o a s e b a r c o s p a r a levar o p e s s o a l à roça. 1 6 6 E m M a r a g o g i p e , nas d é c a d a s
de 1930 e 1 9 4 0 , a b r i u t e r r e i r o a t e m i d a B a d e s a A r c a n j a , f i l h a d e M a r i a
A g o r e n s i , q u e , c o m o já c o m e n t e i , teve sérias d i s p u t a s c o m A b a l h e n o s úl-
t i m o s a n o s da sua v i d a .
Gaiaku Luiza t a m b é m l e m b r a a existência de u m terreiro "jeje-efon" n a ilha
de Itaparica. 1 6 7 U v a l d o O s s ó r i o , a p e s a r de c o m e n t a r q u e "na ilha a i n f l u ê n -
cia dos Gêges foi q u a s e n u l a " , diz q u e " a b o l i d o o c a t i v e i r o c o n s e r v a r a m - s e
eles na a n t i g a p o v o a ç ã o da P o n t a das Baleias, t r a b a l h a n d o c o m o tarefeiros, nos
C o n t r a t o s e nas D e s t i l a r i a s de A g u a r d e n t e . E r a m na sua m a i o r i a , t a n o e i r o s e
f o r j a d o r e s " , e m e n c i o n a o " t e r r e i r o d o M e s t r e E v ó d i o , v e l h o a d o r a d o r de
Avrikiti, d i v i n d a d e m a r i n h a " , e seus c o m p a n h e i r o s t i o C a s s i a n o , m e s t r e J o r -
ge, tia H e n r i q u e t a e m e s t r e A n t ô n i o Laê. Nessa c o n g r e g a ç ã o religiosa c u l t u a -
vam-se t a m b é m O b e s s é m (Bessen) e I r o k o (Loko). 1 6 8 N ã o são f o r n e c i d o s mais
d e t a l h e s , p o r é m a r e f e r ê n c i a de seu líder ao v o d u m A v e r e k e t e p e r m i t e s u p o r
q u e o t e r r e i r o t i n h a a s c e n d ê n c i a e n t r e os povos da costa da área gbe.
Já e m Salvador, n o s a n o s 1930, t e m o s t a m b é m n o t í c i a de tio V i d a l , c o m
c a n d o m b l é n o E n g e n h o Velho de Brotas. A l g u n s d i z e m q u e ele era k e t u e o u -
tros q u e ele era jeje. M e s t r e D i d i , l e m b r a q u e , em 10 de m a r ç o de 1937, m ã e
A n i n h a d o Axé O p ô A f o n j á , realizou " u m a g r a n d e o b r i g a ç ã o p a r a o babalorixá
V i d a l , q u e era de X a n g ô na n a ç ã o Jeje, e fez O x a l á ( O x a g u i ã ) " . P o u c o s a n o s
d e p o i s , e m 1 9 4 1 - 1 9 4 2 , o casal H e r s k o v i t s r e g i s t r o u várias c a n t i g a s i d e n t i f i -
cadas c o m o " G ê g e " i n t e r p r e t a d a s pelo " g r u p o d o V i d a l " . A t r o c a d e s a n t o e
de n a ç ã o (de jeje p a r a k e t u ) , s o m a d a ao c o n t r o l e de r e p e r t ó r i o s rituais de vá-
rias n a ç õ e s , i n d i c a a relativa p e r m e a b i l i d a d e e f l u i d e z de i n d i v í d u o s e n t r e as
nações de Candomblé.169
Nesse t e r r i t ó r i o de f r o n t e i r a cabe situar u m a série de terreiros, c o m o o Ilê
M a r o i a l a j e ou c a n d o m b l é d o Alaketo, n o M a t a t u , e o terreiro O x u m a r é , na M a -
257
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
ta E s c u r a , q u e , s e m se d e c l a r a r e m e x p l i c i t a m e n t e j e j e s , a p r e s e n t a m f o r t e
i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o dessa n a ç ã o . N o caso d o A l a k e t o , t e r r e i r o d o s m a i s a n -
tigos d e S a l v a d o r , essa j u s t a p o s i ç ã o d e r i t o s t e r i a seus a n t e c e d e n t e s na c i d a d e
de K e t u , d e o n d e seus f u n d a d o r e s e r a m o r i g i n á r i o s , p o i s lá os c u l t o s d e o r i x á
c o n v i v e r a m c o m os c u l t o s d e v o d u m d e s e u s v i z i n h o s d e s d e t e m p o s i m e -
moriais. E m b o r a a literatura afro-brasileira identifique geralmente o Alaketo
c o m o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u , sua dirigente, a f i n a d a O l g a Francisca Régis, o
identificava c o m o n a g ô - v o d u m e explicava:
N a g ô - v o d u n é jeje e ketu, uma parte de jeje e uma parte de ketu, é dizer, dois
coisas juntas [...]. Tanto faz a gente fazer um candomblé só para jeje, como faz um
candomblé só para ketu e t a m b é m podemos misturar, fazemos uma obrigação de jeje,
fazemos uma obrigação de ketu. A gente faz uma obrigação de O x u m a r é , mais para
à parte de jeje; e de Azoónu, é mais para à parte de jeje; de Iroko é mais para à parte
de jeje. T a m b é m fazemos Xangô que é mais para à nossa parte de ketu. [...] Pelas
cantigas, pelas obrigações, [o jeje] é diferente, as danças são diferentes das de ketu.
Mas agora o povo não separa nada, então eles cantam u m b o c a d i n h o de jeje, um bo-
cadinho de ketu, quer dizer, tem uns que fazem as coisas diferente. [...] Nos temos a
separação d e l e s . 1 0
258
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
A l é m d o s t e r r e i r o s a q u i r e f e r i d o s , h o u v e e há a i n d a vários o u t r o s q u e se
d e c l a r a m jejes. A d a p t a n d o u m a série de estatísticas dos t e r r e i r o s de Salvador
s e g u n d o as n a ç õ e s , e l a b o r e i a T a b e l a 7.
1937 9 13,40 6 13 22 15 2 67
Fontes: Poro 1937: Corneiro, Candomblés, p. 44. Poro 1969: "Pesquisa sobre os Candomblés de S a l v a d o r " ,
dirigida por Vivaldo da Costa L i m a , CEAO, 1960-1969, apud J. T. dos Santos, 0 dono, p. 21. Para 1981: Federação
Baiana do Culto Afro-Brasileiro (Barbosa, 1984), apud J. T. dos Santos, 0 dono, p. 21. Para 1983: adaptado dos
dados da pesquisa realizada pela S I C - I P A C na Região Metropolitana de Salvador, apud J. T. dos Santos, 0 dono,
p. 19. Para 1992: Livros de registros, Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, Salvador, jun., 1992. Para
1998: Mott e Cerqueira, As religiões, p. 13.
259
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
NOTAS
1
Hunsi é sinónimo de vodúnsi. O termo agorensi, que utilizo ao longo deste trabalho,
é pronunciado e grafado de várias maneiras: ogurinsi, agorinsi, ogorinse, ogorensi,
ungoroci, gorência, angorense. Trata-se, provavelmente, de uma corruptela de angorâsi,
a mulher (si) de Angorô, sendo este o nome da divindade cobra nos terreiros angolas,
correspondente a Dan ou Bessen nos jejes e Oxumaré nos nagôs. Para uma discussão
do termo e a possível interpenetração das tradições jeje e angola, ver cap. 7.
2
Aguesi, 21/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 16/2/1999; Geninho, 5/3/2000.
1
Registro de Óbitos, livro C23, n 2 460, FTFC.
I
Gaiaku Luiza, 7/11 /1999. Dere Isidora era prima carnal da mãe de Luiza: gaiaku Luiza,
5/5/2003.
5
Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 8/8/2001 Os títulos dofona, dofonitinha,
fomo, etc. indicam a ordem de entrada no grupo de iniciados e a sua ordem de prepa-
ração ritual e comportam diferentes graus hierárquicos: o primeiro a entrar é consi-
derado o mais velho e o último, o mais novo (ver cap. 4).
6
Gaiaku Luiza, 7/11/1999. Pelo menos Badesi Arcanja e Miúda de Kposu foram feitas
no segundo barco. Para uma outra versão sobre a composição desse barco: Lopez de
Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 82. Gaiaku Luiza mencionou também os nomes de Lu-
zia Moreira de Azonsu ou Avimaje (3/1/2000) e de Norberta de Iemanjá (5/5/2002).
C o m o vemos, aparecem várias vodúnsis a mais das vinte de que teoricamente consta-
riam os dois barcos. Essa diferença ocorre porque a lista apresentada por gaiaku Luiza
pode incluir rodantes mais antigas da Roça de Cima, como deré Custódia de Oiá, ou
rodantes iniciadas em outros terreiros (talvez o Bogum) que, por qualquer motivo, aca-
baram se encostando no Seja Hundé. O fato de aparecer na lista duas dofonas teria a
mesma explicação e não implica necessariamente a existência de um terceiro barco.
Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 7/11/1999. Geninho menciona nesse grupo de cinco o alabe
Leardino, talvez o mesmo Ermírio: Geninho, 23/6/2000, 5/5/2002.
8
Gaiaku Luiza, 7/11/1999; Geninho, 5/3/2000.
'' Segundo humbono Vicente, era Virgilio de Oxóssi e tinha quitanda no Gravata: 13/11/1999.
10
Humbono Vicente, 22/8/1999. Kelé é um colar ritual que os neófitos usam durante a
iniciação; indica a sujeição e obediência à divindade e à mãe-de-santo.
II
Ver, por exemplo, "Ubaldino de Assis e pleito presidencial", A Ordem, 1 5/3/1922, ARC.
12
Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 29/7/1999.
13
Gaiaku Luiza, 17/12/1998; humbono Vicente, 19/2/1999, 16/1/1999. Segundo seu
Geninho, ogã Caboco faleceu em Belo Horizonte, em 1977, com 77 anos (5/5/2002).
Geninho, apud Lopez de Carvalho, Documento..., pp. 8-9.
15
Humbono Vicente, 29/4/1999, 3/7/2000.
'' Aguesi dizia que foram quinze anos-, gaiaku Luiza afirmava que foram onze anos; ainda,
Geninho diz que foram só sete: Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza 17/12/1998, 16/8/1999.
Gaiaku Luiza, 7/1 1/1999.
18
Braga, A gamela..., p. 22. Ver também, Lúhning, 'Acabe...".
19
Dias do Nascimento, A capela..., p. 16. Matory comenta sobre essa iniciativa de Ani-
nha, atribuída também por certos pais-de-santo a Joãozinho da Gomeia ou Procópio:
Matory, Black Atlantic..., p. 186.
261
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LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Everaldo Duarte lembra que um grupo liderado
por equede Raimunda e ogã João Bernardo também contestou as aspirações de Runhó.
Gaiaku Luiza, 16/2/1999; humbono Vicente, 7/12/1999.
Segundo humbono Vicente (23/2/1999), as obrigações foram realizadas em Cachoei-
ra. Já segundo Everaldo Duarte (16/2/2003), elas foram realizadas no Bogum, em pre-
sença de Romana.
Humbono Vicente, 23/2/1999.
Humbono Vicente, 4/5/1999; gaiaku Luiza, in CEAO, 2°- Encontro..., p. 70.
Humbono Vicente, 6/12/1998, 4/5/1999.
Humbono Vicente, 23/2/1999.
Gaiaku Luiza, 28/1/1998. Conta-se que, nas terras do Batefolha, há um assento de
Azonsu que seria anterior à fundação do terreiro por Manoel Bernardino da Paixão
em 1916. Talvez Romana fosse chamada para tomar conta das obrigações desse anti-
go assento de nação jeje. Bernardino faleceu em 1946 (gaiaku Luiza, 2/3/2000).
Everaldo Duarte, 13/12/1998.
Ibidem.
Gaiaku Luiza, 28/1 1/1998.
Humbono Vicente, 23/2/1999. Segundo gaiaku Luiza, a data do óbito seria 16 de ou-
tubro de 1956; já segundo Lopez de Carvalho, seria 23 de outubro de 1956.
Humbono Vicente, 23/2/1999. A chave parece que passou primeiro pela mão de ogã
João Bernardo, que, juntamente com equede Raimunda, se o p u n h a m à sucessão de
Runhó, mas foi depois recuperada por Antonio Monteiro, que a entregou à nova doné
(Everaldo Duarte, 21/10/2002).
Gaiaku Luiza, 17/12/1998; Dias do Nascimento, 23/1/1999; humbonoVicente, 19/2/1999.
Everaldo Duarte, 13/12/1998.
Ibidem; humbono Vicente, 18/1/1999.
Everaldo Duarte, 1 3/12/1998; Jaime Montenegro, 10/8/1999.
"Cirrum começou no Bogum e Gamo e a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975.
R u n h ó estava com 98 anos q u a n d o faleceu, em 1975. Nessa ocasião, numa primeira
notícia em A Tarde, fala-se que Nicinha ia celebrar o 66 a aniversário, mas, numa nota
do mesmo jornal, ao dia seguinte, fala-se em 64 anos: " R u i n h ó quer mato e rio para
'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/ 1975; "Calam-se atabaques do Bogum: começa
o ' C i r r u m ' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; " C i r r u m começou no Bogum e Gamo
É a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; ficha n* 1, CEAO, 17/1/1961; Everaldo
Duarte, 4/1/1999.
Gaiaku Luiza, 17/12/1998. "Em breve chegou, do lugar do sacrifício, a ordem, que uma
voz. feminina repetiu: 'Mêrê dó ji' (Hanji, cantar). E o coro principiou" (Lopes, "Exé-
quias...", p. 560).
Segurola, Dictionnaire..., p. 250.
Neném de Mello, 3/11/1999.
F i c h a n a 1, C E A O , 17/1/1961.
Equede Santa, entrevista 1981; "Acabado Cirrum, o Bogum fica fechado por um ano",
A Tarde, 5/1/1 976; Jorge Amado, "A solidão do povo jeje", Manchete, 7 / 2 / 1 9 7 6 , p. 38.
Ficha nE 1, CEAO, 17/1/1961.
Capone, La quête, pp. 126-27. Segundo Everaldo Duarte, essa iniciação foi mais re-
cente (21/10/2001).
265
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
01
Ficha n u 1, CEAO, 17/1/1961.
02
Everaldo D u a r t e , 27/1 1/1999. N o o r g a n o g r a m a de D u a r t e , a data do ú l t i m o barco é
20/10/1974, mas Ivone de Ogum (Ogunsi) cumpriu, em 20 de outubro de 1998, 26 anos
de feita, sendo humbono Vicente o pai-pequeno (Ogunsi, humbono Vicente, 8/10/1998).
03
" M ã e R u i n h ó vai bem, graças aos orixás", Jornal da Bahia, 23/9/1975.
04
J o r g e A m a d o , "A solidão do povo jeje", Manchete, 7/2/1976, p. 38; "Ruinhó quer mato
e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975; "Calam-se atabaques do Bogum; co-
meça o 'Cirrum' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; J. de Carvalho, "Nação...", p. 58.
"Acabado C i r r u m , o Bogum fica fechado por um ano", A Tarde, 5/1/1976; "Sucessão"
e " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975.
1,6
" C a n d o m b l é do B o g u m faz festa em h o m e n a g e m ao prefeito da cidade", A Tarde,
20/2/1979, humbono Vicente, 7/12/1999.
" " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; " M u n d o
Jeje c o m e m o r a c i n q u e n t e n á r i o de sua mãe-de-santo", A Tarde, 26/7/1988.
08
Everaldo D u a r t e , 16/2/2003.
09
J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos).
Prefeitura M u n i c i p a l de Salvador, Casa Civil, G r u p o de C o o r d e n a ç ã o de Assuntos
Culturais, 1981-1985. Nos estatutos da Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bar-
tolomeu (fundada em julho de 1937), publicados no Diário Oficial n - 10.777 e 10.778
em 16 de o u t u b r o de 1977, assinaram Edvaldo dos Anjos Costa c o m o presidente,
Everaldo Conceição Duarte como vice-presidente, Ailton Conceição Nascimento como
I a secretário, Renato Gonzaga dos Santos como 2° secretário, H a m i l t o n Domingos dos
Anjos Melo como l 2 tesoureiro, Celso Santana como 2 a tesoureiro e, como membros
do Conselho Deliberativo, Lydio Pereira de Santanna, Roverval José Marinho, Celesti-
no Augusto do Espirito Santo, Jorge Antonio Fontes Santos e Jorge Gusmão dos Santos.
10
22, 23 e 25 de julho de 1986, A Tarde; J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37.
11
J. de Carvalho, Reinvenção, p. 38.
12
"Pierre Verger comenta reportagem sobre Jêje", A Tarde, 31/7/1988.
13
Segundo a imprensa, N i c i n h a faleceu com 83 anos; "Sepultada mãe-de-santo do mais
antigo terreiro jeje", A Tarde, 6/10/1994; "Terreiro do Bogum inicia cerimónias de pre-
paração" , A Tarde, 7/10/1994.
"' Ficha n" 1, CEAO, 17/1/1961.
15
Humbono Vicente, 19/2/1999.
16
Lopez de Carvalho, D o c u m e n t o . . . , p. 11.
1
Após fechar o candomblé do Cabrito em Salvador, gaiaku Luiza voltou a Cachoeira
em o u t u b r o de 1961. A pedido de Oiá e com a ajuda material do pai, seu Miguel, em
1962, gaiaku Luiza comprou, por 176 cruzeiros, as terras da nova roça e celebrou algu-
mas missas. Em 1964, com o jogo de búzios realizado por humbono Vicente, determi-
nou o que correspondia a cada atinsa, realizando-se as primeiras obrigações. Em 1966
m o r r e u o pai e, em 1967, ela viajou a São Paulo e Rio de Janeiro, onde ficou até 1970.
Neste ano, realizou a primeira confirmação de uma equede no H u n t o l o j í e começou
a bater tambor. Foi só em 1980 que recolheu o primeiro barco e que humbono Vicente
plantou o axé do abassa (gaiaku Luiza, 16/8/1999, 7/11/1999, 3/1/2000).
18
B e r n a r d i n o , 16/2/1999. Ogã Boboso, 16/2/1999, 7/1 1/1999. Luis M a g n o , entrevista
4/2/1999; gaiaku Luiza, 28/1 1/1998. S e g u n d o humbono Vicente, Pararasi preparou
apenas um barco (16/1/1999, 1 1/7/2000). Segundo seu Geninho, Alda e Alaíde perten-
266
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA D O S TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
ciam ao primeiro barco, que seria então de sete vodúnsis (Geninho, 1 a /2/2000, 5/3/2000);
segundo Aguesi, Alaíde era fomotinha e irmã de esteira de um fominho (sic) de Azonzu
(Aguesi, 20/8/1996).
Luiz Magno, entrevista 4/2/1999, Dias do Nascimento, 23/1/1999.
120
Gaiaku Luiza, 6/5/2003.
121
Luiz Magno, por exemplo, atribui a morte da sua mãe, um ano depois, aos erros des-
sa iniciação (Luiz Magno, entrevista 4/2/1999).
122
Humbono Vicente, 16/1/1999; ogã Iasana do Seja H u n d é , 23/6/1999.
123
Antonio Moraes, 14/11/2004; humbono Vicente, 11/7/2000, l t t /l/2001. Lopez de Car-
valho afirma, sem citar a fonte, que o falecimento aconteceu em 3 de março de 1969,
em Salvador: Lopez de Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 50. Bernardinho também diz que
Pararasi faleceu em Salvador (23/6/1999).
124
Segundo humbono Vicente, a roça fechou durante 1 5 anos, o que parece ser um período
excessivo.
125
HumbonoVicente, 16/1/1999, 19/2/1999, 13/11/1999.
!2Í
' Gaiaku Luiza, 16/2/1999.
!27
Olu A yé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Agu esse 1900-1998", Orixás & Africanos,
n a 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro), p. 3.
128
Humbono Vicente, 19/2/1999, 30/6/1999.
129
Ogã Joãozinho, 16/4/1999; gaiaku Luiza, 7/11/1999.
130
Olu Ayé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Aguêse 1900-1998, Orixás & Africanos,
n 2 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro)", p. 3.
131
Humbono Vicente, 23/2/1999, 6/10/2001.
1,2
Conferências de Nilton Feitosa sobre o Candomblé do Rio, apud Capone, La quête...,
p. 125. O Kwe Simba, ainda na ativa, seria de nação jeje kaviono ou alternativamente
axépodaba. Rozenda foi sucedida por Natalina de Aziri Tobosi e depois pela líder atual,
Helena de Oxumaré (dona Nancy de Souza e Silva, 27/8/1999). Algumas das caracte-
rísticas da nação podaba seriam o culto de divindades como o vodum Jo, um tipo de
Iansã, ou o vodum Gotolu, um tipo de Oxóssi; a ausência do culto de Badé ou Averekete
(o que questionaria a suposta pertença dessa casa à nação jeje kaviono); a iniciação de
noviços para Ogum Xoreque (o que não ocorre no rito jeje-mahi); e os cantos para Ogum
e Nanã em "jeje" (não em nagô, como no rito jeje-mahi) (Eduardo de Olissá, Cachoei-
ra, 26/12/1999).
131
V. G. da Silva, Orixás..., p. 91. Também em São Paulo funciona o Dâmbalá Kuere-Rhó-
Becem Akóy Vodu, terreiro de pai Dancy. Embora iniciado na tradição do Vaudou hai-
tiano, pai Dancy foi outro dos assíduos participantes do Seja Hundé, nos últimos anos.
13
' Dadu de Olissá, 26/12/1999; pai Francisco, 26/12/1999.
131
Gaiaku Luiza, 22/6/1999; Orixás ér Africanos (órgão oficial de divulgação do culto e
da cultura afro-brasileiras), n e 45, ano XI, 1998, p. 15.
1,6
Sobre a passagem da Umbanda para o Candomblé em São Paulo, ver Prandi, Os candom-
blés.... Para uma análise da dinâmica competitiva que se dá no processo de "reafricanização"
entre aqueles que procuram a raiz da tradição na Africa e aqueles que a procuram na Bahia,
ver V. G. da Silva, Orixás...-, Capone, La quête...-, Parés, "The nagôization...".
lr
"Arrecadação da propriedade de Maria Julia Figueiredo, 1890", 03/101 1/1480/20, APEB3.
138
Há menção das terras do Comendador Bernardo Martins Catharino na Vitória pelo
menos desde 1930: "Inventário de Joaquim José da Silva Fialho, 1930", 6/2366/2866/2,
267
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
APEBa. Porém, não há menção dessa propriedade no testamento da sua mulher ("Testa-
mento de Úrsula Martins Catarino, 1922", 7/2950/0/8, APEBa).
1,9
C a r t ó r i o do l 2 O f í c i o de Registro de Imóveis de Salvador, apud Maia, "Projeto
Fundiário...", documentos vários.
140
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986.
141
Everaldo Duarte, 1 l / l 1/1999.
142
Ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961.
143
"Ruinhó quer mato e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975.
144
"Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge" (jornal não identificado), 1978;
"Locose toma assento na cadeira de Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; J. de Carvalho, Rein-
venção..., p. 69; Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia
que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Nesse artigo de jornal,
ogã Celestino data a venda do terreno em 1977, mas, segundo Duarte, os problemas
com o muro e o lixo deram-se com o terreno de Azonodo; portanto, sua venda acon-
teceu depois de 1978 (Everaldo Duarte, 22/9/2001).
"Candomblé do Bogum faz festa em homenagem ao prefeito da cidade", A Tarde, 20/2/1979.
146
"Projeto de Lei n u 3.591/85"; cf. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos). Pre-
feitura Municipal de Salvador, Casa Civil, G r u p o de Coordenação de Assuntos Cul-
turais, 1981-1985. "Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde,
10/12/1985.
14
"Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde, 10/12/1985. Everaldo
Duarte, l2/8/l999.
148
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986.
149
"Gil vai lançar campanha para recuperar terreiros", Tribuna da Bahia, 13/3/1987;
"Campanha para recuperar terreiros de candomblé", A Tarde, 13/3/1987; "O chama-
do do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987; "A rica história dos terreiros de candom-
blé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987; "Trono de
Ruinhó", Cidade da Bahia, 28/8/1993; "Decreto de Lídice autoriza m o n u m e n t o à Re-
volta dos Malês", Diário Oficial do Município, ano VIII, n a 1.145, 22/1 1/1993. Em
2001, graças à iniciativa de Everaldo Duarte, Gilberto Leal e Raul Lody, o Bogum con-
segue novos recursos da Fundação Palmares para a restauração do terreiro, viabilizando
assim a sua reabertura em 2002.
1511
"Seção Serviço Total", A Tarde, 19/1/1973.
,SI
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986;
"O chamado do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987.
Considerando o século XX, estatísticas levantadas em 1983 mostram que o percentual
de líderes masculinos que se declaravam jejes constituía importantes 40%, contra
60% de líderes femininas (J. T. dos Santos, O dono..., p. 19). Também citado por
Matory, Black Atlantic..., p. 230.
m
Freyre, Casa-grande..., p. 283; Matory, Black Atlantic..., pp. 191-207, 229-30; Carnei-
ro, Candomblés..., pp. 96-98; Landes, "A cult...", pp. 386-97. Ver também Dantas,
Vovó..., cap. 4; Parés, " T h e nagòization...".
111
Rodrigues, Os africanos..., pp. 230-34.
Lopes, "Exéquias..."; Carneiro, Candomblés..., pp. 45, 64.
w>
Ficha s.n., CEAO, s.d. [1961-1968]. Entrevista com Falefá realizada por Vivaldo da
Costa Lima. Na seção "ascendência religiosa", constam os nomes de Maria Julia (Duke)
268
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ
de Oxum e do "pai de santo Manoel [ou] José Domingos, de Ogun (24 anos de morto)
(Ife) (Jakáibê)". Na mesma ficha, menciona-se a Maria Nenem, famosa mãe-de-santo
da nação angola que teria pretendido iniciar Falefá, mas "o santo fugiu, não aceitando
os cargos da nação" (Itamoacy da Costa, 13/12/1998).
1,7
F i c h a s . n . , CEAO, s . d . [1961-1968].
158
No século XVIII, em Uidá, por exemplo, Labat documenta beta como o nome atribuí-
do às vodúnsis do vodum-cobra Dangbe (Voyage..., vol. II, p. 188). O padre Steinmetz,
em relação à etimologia do termo Nesuhue no Benin, reporta o uso da expressão Len-
su-hue Kpo-vêta, que significaria a casa (hué) do grande (su) Len, filho da pantera (kpo)
da cabeça (ta) vermelha (vê) (Falcon, "Religion...", p. 143). No panteão da família de
Sogbo, também é conhecido o vodum Abetá Yoyo (gaiaku Luiza, em CEAO, 2" Encon-
tro..., pp. 70, 75).
159
M. V. dos Santos, "O mundo...".
160
Itamoacy, 13/12/1998; Gambovi, sobrinha de Manoel Falefá, 6/12/1998.
Gaiaku Luiza, em CEAO, Encontro..., pp. 73-74; Mott E Cerqueira, Candomblés...,
p. 157. Existem dúvidas quanto à ascendência religiosa de Sibeboran. Segundo Yeda
Machado, ela foi feita no Ketu; era amiga da casa de Falefá, mas não era filha de santo
dele. Segundo um ogã da casa, ela teria sido efetivamente feita por Falefá, em São Cae-
tano. Esse ogã acrescenta que o nome português de Sibeboran era Josefina (13/12/1998).
162
Jaime Montenegro, 10/8/1999. Todavia, no trabalho de campo ouvi falar de nagô-agabi
(em relação a antigos terreiros do Recôncavo) (gaiaku Luiza, 26/2/2001).
163
Matory, Man..., pp. 211-13; cf. Pedro de Alcântara Rocha, entrevista 10/9/1992; pai
Amilton, 26/12/1995.
164
Jaime Montenegro, 10/8/1999.
165
Pai Amilton, entrevista 26/12/1996.
166
Luiz Magno, entrevista 4/2/1999. Segundo outra transcrição da entrevista, Averigã seria
um nome de Oxaguian.
161
Gaiaku Luiza, 1996. No cap. 1, comentei a frequente associação que o povo-de-santo
faz entre a denominação étnica efan ou efon (povo do país Ekiti, na área iorubá) e o
etnònimo fon e a tendência a c o n f u n d i r esses terreiros com os terreiros jejes.
168
Ossorio, A ilha..., p. 130. Fico grato a Renato da Silveira que chamou minha atenção
para a existência desse texto (16/6/2001).
ir 9
' D. M. dos Santos, História..., p. 14; Lima, A família..., p. 140; Herskovits e Herskovits,
"Afro-Bahian...".
ro
Olga de Alakero, Salvador, entrevista 3/1/1996.
1 1
A primeira referência conhecida a "Antonio, vulgo Euxumaré" aparece no Diário de
Noticias, 18/9/1911, p. 1 (apud M. L. A. dos Reis, A cor..., p. 133). Encontrei uma
segunda reportagem referente ao "conhecido curandeiro Osumaré'' em A Tarde, 3/10/
1922, p. 2. Em 1934, João da Silva Campos menciona entre "os feiticeiros mais anti-
gos da Bahia de 1 875 para cá", os "mais temidos [...] Salocó, m u l a t o e A n t ô n i o
Oxumaré (Cobra Encantada) crioulo" ("Ligeiras...", p. 305). Ficha s.n., CF.AO, 1960.
172
As informações sobre o relacionamento de seu Jacinto com dona Gotinha são de Mil-
ton Moura, l 2 /9/2001.
17i
Lima, "O candomblé...", p. 41; cf. Carneiro, Religiões..., pp. 106-9. Em "Uma revi-
são na ethnographia religiosa afro-brasileira", trabalho apresentado no Congresso Afro-
Brasileiro de 1937 (p. 66), e em Negros bantos, Carneiro cita o candomblé do Oxumaré,
269
L U I S N I C O L A U P A R ÉS
na Mata Escura, "do pai-de-santo Jacinto" (Religiões..., pp. 166-67). Mas, como foi
dito, Jacinto era apenas o marido de dona Cotinha.
Verger, "Orixás da Bahia...", p. 208; Silvanilton da Mata, em CFAO, 2a Encontro..., p. 26.
Dona Cotinha faleceu em 2 de julho de 1944. Durante um breve tempo, assumiu a chefia
ou regência dona Francelina, até que, por volta de 1950, foi sucedida por Simplicia,
que faleceu em 18 de setembro de 1967 (Milton Moura, l a /9/200l).
Ficha n a 1, CEAO, 17/1/1961; humbono Vicente, 17/11/1994.
270
7
CULTOS D E M Ú L T I P L A S D I V I N D A D E S , P A N T E Õ E S E H I E R A R Q U I A S
271
LUIS NICOLAU P A R ÉS
272
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
273
LUIS NICOLAU P A R ÉS
274
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
q u e r t e m p l o e, c o n s e q u e n t e m e n t e , de q u a l q u e r " c o m p l e x o de c u l t o s local".
A c o m p a r a ç ã o das listas de v o d u n s r e c o l h i d a s em várias regiões da área gbe,
tanto no interior como fora do D a o m é , mostra contradições recorrentes no
n ú m e r o , i d e n t i d a d e , g é n e r o , a t r i b u t o s , f u n ç õ e s o u p o s i ç ã o relativa de p a r e n -
tesco das d i v i n d a d e s de q u a l q u e r " p a n t e ã o " q u e seja. Essa e v i d ê n c i a i n d i c a
c l a r a m e n t e q u e , apesar da c e n t r a l i z a d a o r g a n i z a ç ã o religiosa p r e v a l e c e n t e e m
A b o m e y , os " p a n t e õ e s " n ã o e r a m n u n c a estáticos o u h o m o g é n e o s . A análise
dessa d i n â m i c a e m relação aos v o d u n s c u l t u a d o s n o s c a n d o m b l é s jejes da
Bahia será d e s e n v o l v i d a m a i s a d i a n t e .
A l é m dessa v a r i a b i l i d a d e , em c a d a t e m p l o v o d u m u m a d i v i n d a d e é n o r -
m a l m e n t e i n d i c a d a c o m o a l i d e r a n ç a d o g r u p o e s p i r i t u a l . Esse m í n i m o ele-
m e n t o h i e r á r q u i c o é g e r a l m e n t e , m a s n e m s e m p r e , expresso em t e r m o s ge-
nealógicos. A figura d o pai o u de u m casal g e n i t o r original expressa h a b i t u a l -
m e n t e a p r e e m i n ê n c i a de certos v o d u n s sobre o resto d o g r u p o . E m a l g u n s
casos, as h i e r a r q u i a s prevalecentes e n t r e as d i v i n d a d e s r e f l e t e m c o r r e s p o n d e n -
tes h i e r a r q u i a s e n t r e os seus sacerdotes. As n a r r a t i v a s q u e e n f a t i z a m certas
h i e r a r q u i a s são e l a b o r a d a s o u c o n s t r u í d a s , m u i t a s vezes, p a r a l e g i t i m a r u m a
d i v i n d a d e ou u m g r u p o de d i v i n d a d e s ( n o r m a l m e n t e aquelas c o m as q u a i s o
n a r r a d o r está ligado), p e r a n t e o u t r a s de congregações religiosas c o n c o r r e n t e s .
P o d e m o s c o n c l u i r q u e o c o n c e i t o de g r u p o s ou "famílias" de d i v i n d a d e s , lide-
radas p o r u m a figura p r i n c i p a l e c u l t u a d a s n u m m e s m o t e m p l o , g e r a l m e n t e
sob a s u p e r v i s ã o c e n t r a l i z a d a de u m casal h o m e m - m u l h e r d e vodunons (sa-
cerdotes, literalmente "donos" do v o d u m ) , constitui elemento f u n d a m e n t a l
da religião v o d u m .
Essas características d o c u l t o de v o d u n s na área gbe p a r e c e m c o n t r a s t a r ,
até c e r t o p o n t o , c o m os c u l t o s de orixás da área i o r u b á , o n d e a i n t e r c o n e c -
t i v i d a d e e n t r e orixás é, a p a r e n t e m e n t e , m e n o s f o r t e . S e g u n d o Verger, cada
c u l t o de orixá c o n s t i t u i u m a i n s t i t u i ç ã o i n d e p e n d e n t e , o q u e resulta n o q u e
ele c h a m o u u m a série de " m o n o t e í s m o s j u s t a p o s t o s " . E m o u t r a s palavras, cada
c o n g r e g a ç ã o religiosa, o u até cada vila o u c i d a d e , estaria d e d i c a d a à v e n e r a -
ção exclusiva de u m a ú n i c a d i v i n d a d e a u t ó n o m a . E m b o r a na área i o r u b á
e n c o n t r e m o s c o m p l e x o s de vários c u l t o s e m m u i t a s localidades e até, e m cer-
tos casos, o c u l t o de mais de u m orixá n u m a m e s m a c o n g r e g a ç ã o religiosa, a
h i p ó t e s e de Verger, de u m a certa i n d e p e n d ê n c i a e n t r e os vários cultos de orixá,
parece c o n f i r m a d a n u m e s t u d o de M c k e n z i e . Baseado na análise dos orikis
dos orixás e dos versos d e Ifá, M c k e n z i e c o n c l u i q u e , f o r a o caso de X a n g ô ,
O b a t a l á e a "tríade de Ifá" (Exu, O r u n m i l á e O l o d u m a r é ) , os cultos de orixás
não a p r e s e n t a m quase n e n h u m a alusão verbal a o u t r a s d i v i n d a d e s , s u g e r i n d o
u m relativo "separatismo" e n t r e eles e a ausência de u m p a n t e ã o fixo ou esta-
275
L U I S N I C O L A U PAR ÉS
276
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
U m a característica desses c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s i o r u b á s é a c o n -
d u ç ã o d o r i t u a l p o r u m a p l u r a l i d a d e de especialistas religiosos, cada u m res-
ponsável por u m orixá, e n q u a n t o , nos templos voduns, e n c o n t r a m o s u m a
l i d e r a n ç a c e n t r a l i z a d a n u m casal de vodunons responsável pela t o t a l i d a d e d o
g r u p o de d i v i n d a d e s . S e g u n d o R o d r i g u e s , na Bahia d o final d o século XIX
n ã o havia s a c e r d o t e s especializados; s e n d o q u e cada ialorixá o u b a b a l o r i x á
dirigia o c u l t o de t o d a s as d i v i n d a d e s a s s e n t a d a s n o t e r r e i r o , c o m exceção de
ocasiões especiais, c o m o a l g u m a festa i m p o r t a n t e , em q u e vários líderes reli-
giosos p o d i a m r e u n i r - s e n u m a m e s m a c a s a . E s s a nova s e m e l h a n ç a e s t r u t u -
ral e n t r e a t r a d i ç ã o v o d u m e o C a n d o m b l é v e m r e f o r ç a r a m i n h a tese de base
de u m a s i g n i f i c a t i v a c o n t i n u i d a d e e n t r e os dois sistemas religiosos.
É preciso salientar q u e a ênfase d a d a aqui à i m p o r t â n c i a da t r a d i ç ã o v o d u m
r e s p o n d e à o r i e n t a ç ã o da p e s q u i s a , mas n ã o deveria l e v a r - n o s a m i n i m i z a r a
c o m p l e x i d a d e d o p r o b l e m a . Pensar em t e r m o s d e u m a p o l a r i z a ç ã o e n t r e u m
sistema de o r g a n i z a ç ã o religiosa d a o m e a n o , vertical e "politeísta", e u m o u -
tro iorubá, horizontal e "multimonoteísta", é certamente reducionista e ana-
l i t i c a m e n t e i n c o r r e t o . Processos de h i e r a r q u i z a ç ã o e c e n t r a l i z a ç ã o n ã o e r a m
exclusivos d o s f o n s , e a e v i d ê n c i a h i s t o r i o g r á f i c a e e t n o g r á f i c a p r o v a q u e f o r -
mas c e n t r a l i z a d a s de o r g a n i z a ç ã o religiosa f o r a m t a m b é m c o m u n s e n t r e os
g r u p o s i o r u b á s . 1 6 D e m o d o similar, c o m o foi m o s t r a d o , c u l t o s de m ú l t i p l a s
d i v i n d a d e s e f o r m a s de performance seriada t a m b é m n ã o e r a m exclusivas dos
c u l t o s de v o d u n s . N o e n t a n t o , a d o c u m e n t a ç ã o d i s p o n í v e l sugere q u e essas
práticas e r a m c o m u n s n a área gbe pelo m e n o s desde o século XVIII, e n q u a n t o
na área i o r u b á a p a r e c e m de u m a f o r m a restrita, n u m p e r í o d o r e l a t i v a m e n t e
tardio.
T a m b é m é claro q u e o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é n ã o r e s p o n d e u
a u m a simples réplica de u m a o u o u t r a t r a d i ç ã o a f r i c a n a , mas existiu t o d a
u m a série de c o n d i c i o n a n t e s s o c i o c u l t u r a i s q u e o b r i g a r a m e e s t i m u l a r a m u m a
" c r i a t i v i d a d e " q u e r e s u l t o u em c a r a c t e r í s t i c a s i n s t i t u c i o n a i s p r o p r i a m e n t e
brasileiras, a l é m , ou ao l a d o , dos possíveis processos de c o n t i n u i d a d e . E n -
t r e t a n t o , p e n s o q u e o " p r i n c í p i o de agregação", b a s e a d o na d i n â m i c a de i n -
cluir novas d i v i n d a d e s n u m c o m p l e x o ritual p r e e x i s t e n t e , p r i n c í p i o q u e n o
sistema religioso v o d u m c o n s t i t u i a regra (em vez da exceção, c o m o p a r e c e
a c o n t e c e r n o s c u l t o s d e orixás p r é - c o l o n i a i s ) , p e r s i s t i u c o m o u m a i n f l u ê n c i a
jeje q u e o f e r e c e u u m m o d e l o o r g a n i z a c i o n a l m a r c a n t e n a c o n s t i t u i ç ã o d o
Candomblé.
277
LUIS NICOLAU PAR ÉS
O CULTO D O S V O D U N S D O M A R E D O T R O V Ã O N A Á R E A G B E
A l é m das p r á t i c a s r i t u a i s q u e serão e x a m i n a d a s n o p r ó x i m o c a p í t u l o , o
" p a n t e ã o " , ou a i d e n t i d a d e das e n t i d a d e s espirituais, é talvez o mais i m p o r -
t a n t e f a t o r de d i f e r e n c i a ç ã o e n t r e as diversas "nações de C a n d o m b l é " . Atual-
m e n t e , os vários terreiros j e j e - m a h i s da Bahia p o d e m c u l t u a r u m a c o m p l e x a
v a r i e d a d e de divindades, t a n t o v o d u n s c o m o orixás, c o m certas diferenças de
detalhe de u m a casa para o u t r a . N o e n t a n t o , existe u m certo consenso em des-
tacar três grandes grupos de v o d u n s c o m o d o m i n a n t e s e característicos dessa
"nação". Esses três grupos o u "famílias" são liderados pelos c h a m a d o s "reis da
nação jeje": 1) o v o d u m serpente Bessen (a família de D a n ) ; 2) o v o d u m do
trovão Sogbo (a f a m í l i a de H e v i o s o ou K a v i o n o ) e 3) o v o d u m da varíola
A z o n s u (a família de S a k p a t a ) . C o m o explicava o falecido N e t i n h o , v o d ú n s i
d o Seja H u n d é , as três famílias são c o m o os dedos índice, m é d i o e a n u l a r ; os
três p e r t e n c e m à m e s m a m ã o (a m e s m a nação), mas o m é d i o ( D a n ) é o maior.
gaiaku Luiza, a l t e r a n d o a h i e r a r q u i a , falava q u e Sogbo é o rei, Bessen, o
p r í n c i p e , e A z o n s u , o conde. 1 7
N a n ã , "a mais velha das mães d'água"; Loko, associado à gameleira; Aziri,
Agué, Lissá, Aizan ou Elegba são o u t r o s v o d u n s b e m c o n h e c i d o s , e existem
m u i t o s o u t r o s preservados na m e m ó r i a , mas as três famílias acima m e n c i o -
nadas, i n c l u i n d o cada u m a delas u m variado n ú m e r o de v o d u n s , c o n s t i t u e m
os sinais de i d e n t i d a d e mais i m p o r t a n t e s d o p a n t e ã o jeje c o n t e m p o r â n e o .
J u s t a p o s t o s a esses v o d u n s c u l t u a m - s e t a m b é m u m a série de orixás nagôs, es-
p e c i a l m e n t e as yabas ou orixás f e m i n i n o s , r e s u l t a n d o n u m p a n t e ã o m i s t o ,
f r e q u e n t e m e n t e c h a m a d o " n a g ô - v o d u m " . Essa j u s t a p o s i ç ã o i n t e r é t n i c a , que
c a r a c t e r i z o u não apenas as casas jejes c o m o t a m b é m , de u m m o d o geral, o
processo f o r m a t i v o do C a n d o m b l é , p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d a , s e g u n d o sugeri
acima, c o m o u m a d i n â m i c a i n s p i r a d a no " p r i n c í p i o de agregação", o p e r a t i v o
n o sistema religioso v o d u m da área gbe.
Para m e l h o r e n t e n d e r e m que consiste esse " p r i n c í p i o de agregação", será
útil analisar, de u m a perspectiva histórica, u m caso específico. O exemplo dos
v o d u n s associados com o trovão e o mar, c o r r e s p o n d e n t e à família de Hevioso
n o Brasil, ilustra c o m o essas divindades f o r a m progressivamente inseridas em
p a n t e õ e s m u l t i é t n i c o s cada vez mais a b r a n g e n t e s , p r i m e i r o na área gbe e
depois nos terreiros jejes da Bahia. Esse caso t a m b é m sugere q u e tais m u d a n -
ças, o c o r r i d a s n o nível das e n t i d a d e s espirituais, em q u e novas e n t i d a d e s são
a d i c i o n a d a s e outras "esquecidas", relacionando-as em diferentes hierarquias,
p o d e m expressar d i s t i n t a s interações étnicas de seus agentes sociais, assim
c o m o m u d a n ç a s na organização de suas lideranças religiosas. E m o u t r a s pa-
278
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
lavras, a o r g a n i z a ç ã o d o m u n d o e s p i r i t u a l p o d e r e f l e t i r c e r t o s a s p e c t o s da
d i n â m i c a social.
U m e s q u e m a s i m p l i f i c a d o d o nosso caso em e s t u d o p o d e ser d i v i d i d o e m
q u a t r o estágios:
1) I n i c i a l m e n t e , os c u l t o s dos v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o e r a m i n s t i t u i -
ções religiosas i n d e p e n d e n t e s , a d s t r i t a s a l i n h a g e n s o u g r u p o s é t n i c o s espe-
cíficos, os h u l a e os a í z o - s e t o , r e s p e c t i v a m e n t e .
2) M a i s t a r d e , esses c u l t o s f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e assimilados p o r o u t r o s
g r u p o s étnicos, e x p a n d i n d o - s e p o r t o d a a área gbe, v i r a n d o cultos "públicos".
N e s s e p r o c e s s o , os d o i s g r u p o s de v o d u n s f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e
r e l a c i o n a d o s de f o r m a d i f e r e n c i a d a , s e g u n d o cada região. E m m u i t o s casos,
os v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o f o r a m i n t e g r a d o s n u m ú n i c o " p a n t e ã o " e
cultuados nos mesmos templos.
3) N o s t e r r e i r o s jejes d o Brasil, pelo m e n o s na Bahia e n o M a r a n h ã o , o
g r u p o já i n t e g r a d o d e v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar, c o n h e c i d o c o m o K a v i o n o
o u H e v i o s o , v i r o u u m " p a n t e ã o " i n c l u s i v o , a g r e g a n d o u m a série de d i v i n d a -
des q u e na área gbe e r a m alheias a esse g r u p o .
4) F i n a l m e n t e , n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s d a Bahia a f a m í l i a d e K a v i o n o
(também conhecida como M u n d u b i ) , embora identificada como um grupo
d i f e r e n c i a d o , foi r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a a o u t r o s g r u p o s de v o d u n s m a h i s ,
c o m o o da s e r p e n t e D a n e o d o v o d u m da t e r r a S a k p a t a , assim c o m o a cer-
tos orixás nagôs, c o m o as jyabas O i á e O x u m , p o r e x e m p l o .
O p r i m e i r o p r o b l e m a ao e n c a r a r esse p r o g r e s s i v o e variável p r o c e s s o d e
agregação de d i v i n d a d e s é o de localizar esse m o v i m e n t o n o t e m p o e n o espa-
ço. A análise h i s t ó r i c a de q u a l q u e r g r u p o de v o d u n s , em p a r t i c u l a r a d o s vo-
d u n s d o t r o v ã o e d o m a r , a p r e s e n t a sérias d i f i c u l d a d e s m e t o d o l ó g i c a s d e v i d o
à ausência, até a s e g u n d a m e t a d e do século XIX, de dados precisos e confiáveis.
Essas d i f i c u l d a d e s só p o d e m ser c o n t o r n a d a s r e c o r r e n d o à análise l i n g u í s t i c a ,
à t r a d i ç ã o oral e à p r o j e ç ã o n o passado de d a d o s e t n o g r á f i c o s do século XX. A
c o m b i n a ç ã o cautelosa dessas f o r m a s de evidência indireta, j u n t o c o m a i n f o r -
m a ç ã o d o c u m e n t a l d i s p o n í v e l p e r m i t e m , n o e n t a n t o , esboçar u m q u a d r o geo-
gráfico e c r o n o l ó g i c o r a z o a v e l m e n t e plausível.
O c u l t o d o m a r está d o c u m e n t a d o , d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o
XVII, e m várias p a r t e s d o G o l f o d o B e n i m . 1 8 E m m u i t o s casos, o f e r e n d a s ao
m a r e r a m realizadas p a r a i n v o c a r a c h e g a d a d o s b a r c o s e u r o p e u s , o u p a r a
a c a l m a r a f ú r i a das águas e p e r m i t i r o e m b a r q u e de m e r c a d o r i a s e escravos.
P o r t a n t o , o c u l t o ao m a r estava a p a r e n t e m e n t e ligado ao c o m é r c i o c o m os
279
LUIS NICOLAU P A R ÉS
e u r o p e u s e a suas v a n t a g e n s e c o n ó m i c a s . O r a , há evidências q u e s u g e r e m q u e
a v e n e r a ç ã o m a r í t i m a estava associada a c r e n ç a s a u t ó c t o n e s a n t e r i o r e s , pois
e m r e i n o s d o i n t e r i o r c o m o os de A l i a d a , O y o o u D a o m é existiam p r e c e i t o s
religiosos explícitos q u e p r o i b i a m aos seus reis e n t r a r em c o n t a t o o u o l h a r
para o mar.19
N a área gbe, o c u l t o ao m a r p a r e c e ter sido i n i c i a l m e n t e u m a p r e r r o g a t i v a
d o s h u l a s ; s i g n i f i c a t i v a m e n t e , os v o d u n s d o m a r são c o n h e c i d o s c o m o hu-
lahun, e h o j e em d i a os h u l a s r e c l a m a m ser os seus " p r o p r i e t á r i o s " o r i g i n a i s .
O s h u l a s , t a m b é m c o n h e c i d o s c o m o p o p o s , f u l a o s , pias, flàs o u afias, e r a m ,
p r i n c i p a l m e n t e , p e s c a d o r e s da lagoa litoral e p r o d u t o r e s de sal, t e n d o a sua
c a p i t a l p o l í t i c a e m A g b a n a n k i n , n o d e l t a d o rio M o n o . G r a ç a s às suas h a b i -
lidades de n a v e g a ç ã o e ao f a t o de ser a lagoa litoral u m a das mais i m p o r t a n t e s
r o t a s c o m e r c i a i s locais, os h u l a s r a p i d a m e n t e se e s t a b e l e c e r a m ao l o n g o de
t o d a a c o s t a da área gbe. A d o c u m e n t a ç ã o e x i s t e n t e p e r m i t e s u p o r q u e pelo
m e n o s a p a r t i r de 1630 eles já t e r i a m c r i a d o diversos n ú c l e o s p o p u l a c i o n a i s
d e s d e A f l a w u até J a k i n e, p r o v a v e l m e n t e , a i n d a m a i s a leste, até A p a (Ba-
dagri). 2 0 P o r t a n t o , apesar d a ausência de d o c u m e n t a ç ã o escrita, é possível q u e
o c u l t o de d i v i n d a d e s m a r í t i m a s se tivesse e s t e n d i d o e m t o d a essa área a p a r t i r
desse p e r í o d o .
O c u l t o do t r o v ã o está m e n o s d o c u m e n t a d o , e as p r i m e i r a s f o n t e s d o sé-
c u l o XVII f a l a m , s o b r e t u d o , da C o s t a d o O u r o . B a r b o t d o c u m e n t a , e m ter-
r i t ó r i o a k a n , a associação e n t r e o t r o v ã o e u m a d i v i n d a d e celeste c o n h e c i d a
c o m o J e a n G o e m a n ou J a n k o m é (Onyankome). B o s m a n , r e f e r i n d o - s e à mes-
m a região, m e n c i o n a q u e os "negros" são d a o p i n i ã o q u e "a f o r ç a d o t r o v ã o
está c o n t i d a em certa pedra", e sugere a sua associação c o m "coisas s o b r e n a t u -
rais". 2 1 E m b o r a esses c o m e n t á r i o s n ã o p e r m i t a m a f i r m a r a existência de u m
c u l t o o r g a n i z a d o d o trovão, i n d i c a m u m a a n t i g a d i v i n i z a ç ã o desse f e n ó m e n o
n a t u r a l n a região. N a área gbe, a p r i m e i r a referência ao c u l t o d o trovão apare-
ce n u m m a n u s c r i t o f r a n c ê s d a t a d o e n t r e 1708 e 1724. M e n c i o n a - s e , n o reino
d e U i d á , o c u l t o d o t r o v ã o e a c r e n ç a de q u e ele m a t a v a os ladrões c o m as
suas "pedras", i n s i n u a n d o - s e já a sua associação c o m o d i v i n d a d e da justiça. 2 2
N o e n t a n t o , é só n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XIX q u e e n c o n t r a m o s
d o c u m e n t a d o s os p r i m e i r o s n o m e s de d i v i n d a d e s d o t r o v ã o . F. E. F o r b e s é o
p r i m e i r o a u t o r , e m 1851, a m e n c i o n a r o n o m e de So ("Soh") c o m o d i v i n d a d e
d o t r o v ã o . H e v i o s o é m e n c i o n a d o pela p r i m e i r a vez p e l o p a d r e B o r g h e r o em
1 8 6 3 : " n a l í n g u a G e g i , o d e u s d o t r o v ã o se c h a m a K e v i o s o . E o m e s m o
Schango dos Nagos". Richard B u r t o n , que visitou Uidá e Abomey n o mes-
m o a n o , fala t a m b é m de "So o u K h e v i o s o , o f e t i c h e d o t r o v ã o , c u l t u a d o em
W h y d a h , n o So A g b a j y í , o u q u i n t a l d o t r o v ã o " . 2 3
280
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
C o m o t e m p o , os cultos do m a r e do trovão f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e a p r o -
priados p o r o u t r o s g r u p o s étnicos, c o m o os huedas, fons, gens, ewes ou anlos,
d i s p e r s a n d o - s e p o r quase t o d a a área gbe e c o n v e r t e n d o - s e , desse m o d o , em
cultos "públicos" o u i n t e r é t n i c o s . Nesse processo, os dois g r u p o s de v o d u n s
f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e r e l a c i o n a d o s em d i f e r e n t e s graus, s e g u n d o
cada região. Em m u i t o s casos, os v o d u n s do mar e d o trovão passaram a in-
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L U I S N I C O L A U PA R É S
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L U I S N I C O L A U PA R É S
Sobô estava em suas terras e, de repente, surge uma caravana. E esta caravana tinha
um chefe chamado Dâ. E Dâ chega às terras de Sobô e pede pousada por aquela noite.
Mas Sobô se preocupou com o cansaço dos que seguiam a Dâ e lhe disse: "Você pode
ficar mais um dia, aqui". A partir desse contacto, foram contadas histórias do seu
povo, m u t u a m e n t e , de tal maneira que descobriram que havia, entre eles, interesses
comuns. [...] Então Dâ disse: "Se você me permitir, nunca mais eu vou sair daqui".
E Sobô consentiu. A partir desse encontro, a terra dos jeje-mahins, a terra de Sobo,
passou a ser t a m b é m a terra de Dâ. 3 8
Essa h o s p e d a g e m d o p o v o d e D a n n a s t e r r a s d e S o g b o e n c o n t r a p a r a l e l o
na t r a d i ç ã o m í t i c a d o s c o r r e s p o n d e n t e s o r i x á s n a g ô O x u m a r é e X a n g ô , n o
q u a l , c o m o v e r e m o s m a i s a d i a n t e , o p r i m e i r o , r e s p o n s á v e l pelas c h u v a s , é c o n -
s i d e r a d o "o c r i a d o " d o s e g u n d o . Essa t r a d i ç ã o m í t i c a q u e liga e s u j e i t a D a n
a S o g b o ( o u O x u m a r é a X a n g ô ) talvez t e n h a s u r g i d o a p a r t i r d a c e n t r a l i z a ç ã o
e h i e r a r q u i z a ç ã o d o s c u l t o s d e v o d u n s e s t a b e l e c i d a e m A b o m e y , n a q u a l os
cultos de D a n foram i n t r o d u z i d o s nos templos de Sogbo. Alternativamente,
essa n a r r a t i v a seria u m a a d a p t a ç ã o jeje d o m i t o i o r u b á o c o r r i d a n o Brasil, q u e
r e f l e t i r i a , talvez, o e n c o n t r o e c o l a b o r a ç ã o e n t r e s a c e r d o t e s m u n d u b i s e m a h i s .
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O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
E f e t i v a m e n t e , a j u s t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s m u n d u b i s e m a h i s c o m os orixás
nagôs e n c o n t r a expressão n o nível ritual, na o r d e m da sequência de c a n t o s
d o zandró, o b r i g a ç ã o d e a b e r t u r a d a s festas n o s c a n d o m b l é s j e j e - m a h i s q u e
será e x a m i n a d a n o p r ó x i m o c a p í t u l o . O zandró i n i c i a - s e c o m u m a série de
cantos associados a Bessen, seguidos de o u t r o s para Legba e O g u m X o r o q u e ,
d i v i n d a d e s q u e a b r e m os c a m i n h o s , e a p a r t i r d a í se c a n t a p a r a A i z a n , T o b o s s i
e a f a m í l i a K a v i o n o . F i n a l m e n t e , c o m o c a n t o "Ago n i l ê " i n a u g u r a - s e a se-
q u ê n c i a c o r r e s p o n d e n t e ao l a d o " n a g ô - v o d u m " .
A p a r t e " n a g ô - v o d u m " d o zandró q u e , aliás, c o n s t i t u i a s e q u ê n c i a q u e es-
t r u t u r a as festas p ú b l i c a s , n a v e r d a d e i n c l u i c a n t o s e m l o u v o r t a n t o de v o d u n s
c o m o d e orixás, e segue d e p e r t o , m a s n ã o e x a t a m e n t e , a o r d e m d o x i r ê dos
c a n d o m b l é s n a g ô - k e t u s : 1) o orixá da g u e r r a e d o s m e t a i s O g u m ; 2) os v o d u n s
c a ç a d o r e s A g u é e O d é ; 3) os v o d u n s d a t e r r a e d a v a r í o l a S a k p a t a - A z o n s u ; 4)
as yabas o u o r i x á s f e m i n i n o s O x u m - I e m a n j á - O i á ; 5) os v o d u n s d o t r o v ã o
S o g b o - B a d é - L o k o - K p o ; 6) a m ã e m a i s velha das águas, N a n ã ; 7) O l i s s á - O x a l á
e 8) o v o d u m - c o b r a D a n - B e s s e n . O ú l t i m o , p o r ser c o n s i d e r a d o o " d o n o " o u
"rei" d a n a ç ã o j e j e - m a h i , e n c e r r a a s e q u ê n c i a c o m o sinal d e d i s t i n ç ã o , c a r a c t e -
rística essa p r ó p r i a d o s t e r r e i r o s jejes d e C a c h o e i r a n ã o r e p l i c a d a n o s c a n d o m -
blés n a g ô - k e t u s , q u e f i n a l i z a m o xirê c a n t a n d o p a r a O x a l á . Esse c o m p l e x o p r o -
cesso de a g r e g a ç ã o m u l t i é t n i c a p o d e ser r e p r e s e n t a d o p e l a F i g u r a 2.
C o m p r o v a m o s q u e o " p r i n c í p i o d e a g r e g a ç ã o " se a r t i c u l a e m d o i s níveis
p r i n c i p a i s : 1) a j u s t a p o s i ç ã o d o g r u p o m u n d u b i c o m o g r u p o m a h i e 2) a j u s -
t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s jejes c o m os o r i x á s n a g ô s . A p r i m e i r a j u s t a p o s i ç ã o foi
p r o v a v e l m e n t e resultado da reunião de especialistas religiosos de diversos
g r u p o s é t n i c o s da área gbe, d e t e r m i n a d a pela n e c e s s i d a d e de c o m p a r t i l h a r
os l i m i t a d o s r e c u r s o s d i s p o n í v e i s d u r a n t e o r e g i m e o p r e s s i v o d a e s c r a v i d ã o .
U m e x e m p l o d e s s a d i n â m i c a p o d e ser p e r c e b i d o n a R o ç a de C i m a , n o r m a l -
m e n t e identificada c o m o de nação j e j e - m u n d u b i , mas que c e r t a m e n t e con-
287
L U I S N I C O L A U PA R É S
Mundubi Mahi
» + + 1 + T
Sogbo Bessem Azonsu Legba Oiá (lansã) Ogum
Badé Bafono Azoani Agué Oxum Oxóssi
Loko Toquem Avimanje Aziri Iemanjá Omolu
Kpo Akotoquem Nanã Xangô
Averekete Olissá Oxalá
288
í
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
É d i f í c i l s a b e r se a j u s t a p o s i ç ã o m u n d u b i - m a h i p r e c e d e u o u f o i c o n t e m -
p o r â n e a da jeje-nagô, mas é claro que a heterogénea agregação de divindades
q u e o b s e r v a m o s h o j e estava já l a t e n t e e m m e a d o s d o s é c u l o X I X e, d e c e r t o ,
c o n s o l i d a d a n o f i n a l d o s é c u l o , c o m o a t e s t a o c o m e n t á r i o de R o d r i g u e s s o b r e
a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s jeje e n a g ô , até o p o n t o e m " q u e se t o r n o u
hoje impossível distingui-las".40
J á n a d é c a d a d e 1 8 6 0 , o j o r n a l O Alabama documentava explicitamente
os n o m e s d e S o g b o , L e g b a e L o k o , i n d i r e t a m e n t e os d e A g u é e N a n ã , e fazia
r e f e r ê n c i a ao c u l t o d a " s e r p e n t e " e d a " v a r í o l a " (ver c a p . 4 ) , o q u e s u g e r e q u e
a e s s ê n c i a d o p a n t e ã o j e j e c o n t e m p o r â n e o já estava c o n f i g u r a d a n a q u e l a é p o -
ca. Aliás, n a festa l i d e r a d a p o r L u d o v i n a Pessoa, na C r u z d o C o s m e , e m 1869,
q u a n d o o jornalista chegou:
Estavam c o m e n d o amald
E entoavam u m hino
Em graça e louvor de 0/a.4]
A p a r t i c i p a ç ã o d e L u d o v i n a c o m o d i r i g e n t e dessa f e s t a s u g e r e t r a t a r - s e d e
u m c a n d o m b l é jeje ou, pelo m e n o s , c o m forte influência do culto de v o d u n s .
O f a t o d e f a l a r e m e m O i á i n d i c a r i a q u e , já nesse p e r í o d o , os o r i x á s n a g ô s
faziam parte do "panceão" jeje. D e fato, n u m a nota ao pé de página do texto
o r i g i n a l a p a r e c e a s s o c i a d o ao n o m e d e O i á o s e g u i n t e c o m e n t á r i o : "a m u l h e r
do santo maior — Soubô". C o n t r a r i a m e n t e à tradição nagô, que considera
O i á a m u l h e r d o o r i x á X a n g ô , n o s t e r r e i r o s j e j e s ela é i d e n t i f i c a d a c o m o es-
posa do v o d u m Sogbo.
A p e s a r d a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s j e j e e n a g ô , n a v i r a d a d o
s é c u l o X I X R o d r i g u e s r e g i s t r o u os n o m e s d e v á r i o s v o d u n s c u l t u a d o s n o s
t e r r e i r o s jejes de S a l v a d o r .
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LUIS NICOLAU PA R É S
290
Q PfkSTtí.0 J E J t í SUAS UMtSfOmÇOES
cialistas r e l i g i o s o s , c o m o n o caso d a j u s t a p o s i ç ã o d e v o d u n s m u n d u b i s e
m a h i s , m a s alterações nas p r o p o r ç õ e s d o g é n e r o dos p a r t i c i p a n t e s e, especial-
m e n t e , d a l i d e r a n ç a das c o n g r e g a ç õ e s religiosas.
A c r e s c e n t e i m p o r t â n c i a dos orixás f e m i n i n o s n o u n i v e r s o e s p i r i t u a l jeje
p ô d e t a m b é m ter c o m o causa f a t o r e s c o n c e i t u a i s c o m p l e m e n t a r e s . N a m i t o -
logia n a g ô , O i á e O x u m são tidas c o m o m u l h e r e s d o orixá X a n g ô e, p o r as-
sociação, c o m o v i m o s , n o s terreiros jejes elas são t a m b é m tidas c o m o esposas
do correspondente v o d u m Sogbo.45 Além do papel central do v o d u m - c o b r a
D a n e d o v o d u m - v a r l o l a S a k p a t a , a h e g e m o n i a de X a n g ô p r e v a l e c e n t e nos
t e r r e i r o s n a g ô s e n a c o m u n i d a d e religiosa m a i s a m p l a p o d e ter c o n t r i b u í d o
p a r a privilegiar o v o d u m m u n d u b i S o g b o n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s e, p o r ex-
t e n s ã o , a a s s i m i l a ç ã o de suas esposas.
O r a , ao t e m p o q u e novas d i v i n d a d e s são i n c o r p o r a d a s ao p a n t e ã o , o u t r a s
vão d e s a p a r e c e n d o ; em o u t r a s palavras, o p r i n c í p i o de agregação i n e r e n t e aos
cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s é c o m p l e m e n t a d o p o r u m p r i n c í p i o paralelo de
seletividade o u exclusão q u e explicaria o progressivo e s q u e c i m e n t o de certas
d i v i n d a d e s . A i m p o r t â n c i a decrescente dos v o d u n s jejes d o m a r na Bahia seria
u m e x e m p l o dessa d i n â m i c a . R o d r i g u e s m e n c i o n a pelo m e n o s q u a t r o v o d u n s
do m a r : H u , N a e t é , Averekete e T o k p o d u n (o crocodilo, n o r m a l m e n t e i n c l u í d o
n o p a n t e ã o d o m a r na área gbe). Mas, na lista das d a n ç a n t e s d o Seja H u n d é , é
n o t ó r i a a ausência de d a n ç a n t e s de q u a l q u e r u m desses v o d u n s m a r i n h o s . H u
(Agbé) e T o k p o d u n f o r a m t o t a l m e n t e esquecidos; o n o m e de N a e t é é v a g a m e n t e
l e m b r a d o , mas é r a r a m e n t e e v o c a d o nas cantigas rituais. Averekete é o ú n i c o
v o d u m da f a m í l i a d o m a r l o u v a d o nas cantigas e c o m assento n o Seja H u n d é ,
mas n ã o n o B o g u m , q u e , c o m o vimos, celebrava os seus rituais n o v i z i n h o Pó
Z e r r e m . N o e n t a n t o , o c o n h e c i m e n t o ritual para a i n i c i a ç ã o de d e v o t a s de
Averekete parece q u e foi aos p o u c o s se p e r d e n d o . 4 6 C a b e n o t a r q u e n o M a r a -
n h ã o a persistência dos v o d u n s do m a r é mais i m p o r t a n t e , e A g b é (Abé), N a e t é
e p r i n c i p a l m e n t e Averekete, são a i n d a i m p o r t a n t e s e p o p u l a r e s v o d u n s .
O orixá m a s c u l i n o O l o k u m , a d i v i n d a d e d o m a r n a g ô na área de I j e b u
Awori e E g b a d o , c o m o seus pares jejes, t a m b é m p e r d e u i m p o r t â n c i a na Bahia
p a r a a f e m i n i n a I e m a n j á , d i v i n d a d e d o rio O g u m , o r i g i n a l m e n t e c u l t u a d a
pelos E g b a d e A b e o k u t a , q u e g r a d u a l m e n t e v i r o u a d i v i n d a d e d o m a r m a i s
i m p o r t a n t e n o Brasil. N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s , a f e m i n i n a Aziri T o b o s s i ,
o r i g i n a l m e n t e u m e s p í r i t o dos rios c u l t u a d o pelos m a h i - a g o n l i s , foi associada
a I e m a n j á , e c o m o tal p e r s i s t i u c o m o a m a i s i m p o r t a n t e d i v i n d a d e das águas
e n t r e os jejes (ver c a p . 8).
Essas t r a n s f o r m a ç õ e s i n t e r - r e l a c i o n a d a s , c o m o no caso de O x u m e O i á ,
s u g e r e m q u e h o u v e u m a progressiva " f e m i n i z a ç ã o " d o p a n t e ã o o r i x á - v o d u m ,
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LUIS NICOLAU PA R É S
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v i m o s , a c o n c e i t u a l i z a ç ã o e a r e u n i ã o dos v o d u n s e m f a m í l i a s são h a b i t u a i s
na área g b e e m e n o s c o m u n s nos c u l t o s de orixás. E m A b o m e y e Z a n g n a n a d o
m e n c i o n a - s e N y o h w e A n a n u c o m o p r o g e n i t o r a da f a m í l i a d e S a k p a t a . E m
o u t r a versão de A b o m e y e e m Vedji, n o país M a h i , N a n ã B u r u k u é c o n s i d e -
r a d a a m a t r i a r c a d a f a m í l i a S a k p a t a . T a m b é m M i n o n a , q u e e m f o n significa
"nossa m ã e Na", é u m a d i v i n d a d e f e m i n i n a c o n h e c i d a na área g b e q u e p o d e -
ria ser associada ao c o m p l e x o de N a n ã . N o Brasil diz-se q u e S h a p a n a é filho
d e N a n ã B u r u k u o u de I y a b a y i n ( Y a b a n h i ) . Trata-se p r o v a v e l m e n t e d e dois
n o m e s da m e s m a e n t i d a d e , já q u e I y a b a y i n derivaria da expressão i o r u b á iyá
àgbà yin, a m ã e m a i s velha d e t o d a s . 5 5
Se e m K e t u N a n ã B u r u k u está a s s o c i a d a a S h a p a n a - O m o l u e O x u m a r é ,
n a t r a d i ç ã o de A b o m e y — e m b o r a c o n s i d e r a d a m ã e de S a k p a t a em a l g u n s
t e m p l o s — ela está t a m b é m v i n c u l a d a ao p a n t e ã o celeste d e M a w u e Lissá,
s e n d o , às vezes, c o n s i d e r a d a a m ã e desse casal p r i m o r d i a l , o u a i n d a i d e n -
t i f i c a d a c o m M a w u , a p a r t e f e m i n i n a r e s p o n s á v e l pela criação d o m u n d o . 5 6
E m certas t r a d i ç õ e s de A b o m e y , p o r t a n t o , N a n ã B u r u k u t e m u m p a p e l de
p r o g e n i t o r a ligada a idéias d e f e c u n d i d a d e , c o m o n o T o g o , sem q u a l q u e r re-
lação direita c o m a varíola, c o m o a c o n t e c e na área i o r u b á . N a área de i n f l u ê n -
cia d o s i s t e m a religioso c r i a d o em A b o m e y ela estaria mais p r ó x i m a de Lissá
(Olissá) d o q u e de S a k p a t a .
Essas v a r i a n t e s r e g i o n a i s na t r a n s f o r m a ç ã o d e N a n ã B u r u k u talvez a i n d a
sejam perceptíveis em certos elementos rituais do C a n d o m b l é c o n t e m p o r â -
neo. Se, c o m o já v i m o s , n o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u valoriza-se a t r í a d e N a n ã -
O m o l u - O x u m a r é ; t a m b é m em d a d a s ocasiões N a n ã é tida c o m o esposa de
O x a l á (Lissá). 5 7 T e r í a m o s , assim, a l é m da i n f l u ê n c i a das t r a d i ç õ e s de K e t u ,
o u t r a s p r o v e n i e n t e s das tradições d o D a o m é . N a nação j e j e - m a h i se c a n t a para
N a n ã n o final das c e r i m ó n i a s antes de c a n t a r para Lissá (Oxalá), o q u e expres-
saria o v í n c u l o p r e v a l e c e n t e em Abomey, mas t a m b é m é r e c o n h e c i d a a relação
filial e n t r e S a k p a t a e N a n ã . E s t a m o s , p o r t a n t o , d i a n t e de u m claro e x e m p l o
de i n t e r p e n e t r a ç ã o e n t r e os c u l t o s d e v o d u n s e orixás, d e s e n v o l v i d a d u r a n t e
séculos na A f r i c a o c i d e n t a l e t r a n s f e r i d a p a r a a Bahia, o n d e em m u i t o c o n t r i -
b u i u para a c o n s o l i d a ç ã o de u m sistema religioso q u e os p r ó p r i o s p a r t i c i p a n t e s
n ã o h e s i t a m em c h a m a r n a g ô - v o d u m .
M a s v o l t e m o s a S a k p a t a . C o m o já m e n c i o n e i , em várias localidades da área
i o r u b á , c o m o K e t u , considera-se q u e S h a p a n a foi trazido do país M a h i . O r a ,
o c u l t o S a k p a t a em país M a h i m u i t o p r o v a v e l m e n t e foi trazido p r i m e i r a m e n t e
d a área n a g ô . E m Savalu, diz,-se q u e o c u l t o de S a k p a t a A g b o s u foi a p r o p r i a d o
ou assimilado p o r A h o s u Soha ( f u n d a d o r da dinastia real em Savalu), p o r vol-
ta da s e g u n d a m e t a d e d o século XVII, q u a n d o este passava pela região d o rio
295
L U I S N I C O L A U PA R É S
O u e m é , o n d e m o r a v a m os k a d j a n u s , nagôs v i n d o s d a área E g b a d o , p e r t o de
Badagri. O reino de Dassa, o u t r o i m p o r t a n t e c e n t r o d o c u l t o S a k p a t a , r e m o n -
ta sua d i n a s t i a real pelo m e n o s a 1700, e os seus h a b i t a n t e s t a m b é m se dizem
o r i g i n á r i o s da região dos anagôs, e m volta de Badagri. Aliás, a i n d a h o j e os ini-
ciados de S a k p a t a são c h a m a d o s " a n a g o n u " ( h a b i t a n t e s anagôs), e a sua língua
ritual é u m a f o r m a de i o r u b á arcaico. Fala-se q u e n o D a o m é o c u l t o a S a k p a t a
f o i i m p o r t a d o p e l o rei A g a j a e c i t a m - s e Savalu, Dassa Z o u m é e, mais t a r d i a -
m e n t e , P i n g i n i V e d j i ( p e r t o de Dassa Z o u m é ) c o m o possíveis origens d o s cul-
t o s i n t r o d u z i d o s e m A b o m e y . O país M a h i , assim, foi u m d o s p o n t o s de dis-
p e r s ã o d o c u l t o e é p o r esse m o t i v o q u e S a k p a t a , apesar da sua a n t i g a o r i g e m
n a g ô , c o n s i d e r a - s e n o r m a l m e n t e u m a d i v i n d a d e de o r i g e m m a h i . 5 8
C o m o já foi c o m e n t a d o n o c a p í t u l o 3, é só a p a r t i r d o século XVII q u e o
c o m p l e x o de d i v i n d a d e s S a k p a t a - S h a p a n a - O m o l u (e na área i o r u b á t a m b é m
B u r u k u ) começa a associar-se c o m as epidemias da varíola i m p o r t a d a s pelos eu-
r o p e u s , até o p o n t o de q u e e m f o n g b e c o n t e m p o r â n e o sakpata significa varíola
e sakpata kpevi o u " p e q u e n o sakpata", varicela. Segurola acrescenta q u e , pelo
m e d o q u e inspiravam as epidemias d a varíola, n ã o se ousava p r o n u n c i a r o n o m e
d e S a k p a t a , u t i l i z a n d o - s e o u t r o s apelativos c o m o : me (pessoa), ahosu (rei),
aihosu (rei da terra), dohosu, dokuno (senhor d a m o r t e ) ou àzon ( e n f e r m i d a d e
o u doença). As pessoas consagradas a Sakpata são c h a m a d a s sakpatasi, anagô ou
azonsi.59 T a m b é m vimos as variáveis d i n â m i c a s de a p r o p r i a ç ã o e c o n t r o l e dos
cultos de S a k p a t a pelos reis d a o m e a n o s , e c o m o os seus t e m p l o s v i r a r a m foco
de resistência dos povos s u b m e t i d o s ao D a o m é . E n t r e o u t r a s c o n s e q u ê n c i a s ,
essa c i r c u n s t â n c i a p o d e r i a explicar o g r a n d e n ú m e r o de sacerdotes de S a k p a t a
q u e f o r a m v e n d i d o s c o m o escravos para as A m é r i c a s .
N a Bahia, em 1870, O Alabama registra u m a p r i m e i r a r e f e r ê n c i a a "Xa-
p a n a m " , a versão n a g ô d o n o m e S a k p a t a , e e m 1871 há u m a s e g u n d a refe-
r ê n c i a "a varíola a d o r a d a c o m o u m a d i v i n d a d e " n o c a n d o m b l é d o M o i n h o
( G a n t o i s ) , de n a ç ã o nagô. 6 0 E m relação aos jejes, já v i m o s , na d é c a d a de 1860,
o caso d a Roça d e C i m a , c o m a sua j a q u e i r a c o n s a g r a d a a A z o n s u o u D a n -
d a g o j i , v o d u m p e r t e n c e n t e a tio X a r e n e . N o c a n d o m b l é d o C a p i v a r i , e m São
Félix, tio A n a c l e t o de O m o l u a d q u i r i u f a m a c o m o c u r a d o r d u r a n t e a e p i d e m i a
d e cólera m o r b o q u e assolou a região e m 1855. D e s t e m o d o , p o d e m o s s u p o r
q u e o c u l t o dos v o d u n s e orixás d o n o s d a t e r r a e das e p i d e m i a s já estava ins-
t i t u í d o n a Bahia pelo m e n o s a m e a d o s do s é c u l o XIX.
N i n a R o d r i g u e s , n o final desse século, m e n c i o n a os n o m e s d e " S a p o n a n ,
W a r i - W a r ú , A f o m a n ou O m o l u " . 6 1 N o s anos 1950, em Salvador, Verger cole-
t o u , a p a r t i r de vários i n f o r m a n t e s , u m a lista d e 21 n o m e s associados a essas
d i v i n d a d e s , o n d e se m i s t u r a m a l g u n s t e r m o s n a g ô s e u m a m a i o r i a de t e r m o s
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c ê n t r i c a q u e r e l e g a r i a os o r i x á s n a g ô s a u m a p o s i ç ã o s e c u n d á r i a d i a n t e d o s
v o d u n s , primordiais agentes da d i n â m i c a da natureza.
A p ó s a c r i a ç ã o d o m u n d o , D a n ficou i d e n t i f i c a d o c o m o a r c o - í r i s , r e s i d i n -
d o s i m u l t a n e a m e n t e na terra e no céu, c o n e c t a n d o o d o m í n i o de Sakpata e
S o g b o e s e n d o r e s p o n s á v e l p e l a c h u v a q u e fertiliza e g a r a n t e a v i d a n a t u r a l . Por
isso, D a n , O x u m a r é e A n g o r ô são d i v i n d a d e s q u e p r o p i c i a m a r i q u e z a , a f o r -
t u n a e a p r o s p e r i d a d e . S e g u n d o R o d r i g u e s , O x u m a r é seria "o c r i a d o de X a n g ô " ,
o c u p a d o e m t r a n s p o r t a r á g u a d a t e r r a p a r a as n u v e n s , m o r a d a d o seu a m o . 7 3
Essa idéia é replicada e m relação a A n g o r ô . S e g u n d o Valdina P i n t o ,
"Angorô é o responsável pelo ciclo das águas, a continuidade da vida, a força da vida
contida na água. E Angorô q u e m transporta a água para o céu e faz cair em forma de
chuva; por isso é que nos terreiros de Angola nós fazemos u m círculo d'água no meio
do barracão quando cantamos para Angorô e em alguns terreiros de outra nação, colo-
ca-se uma quartinha com água no centro do barracão quando se canta para Oxumaré. 7 4
Essa c o n v e r g ê n c i a d e i d e i a s e m v o l t a d e D a n , O x u m a r é e A n g o r ô c o m o
d i v i n d a d e s d o m o v i m e n t o , d a r i q u e z a , d o a r c o - í r i s e r e s p o n s á v e i s p e l o ciclo
d a s á g u a s s u g e r e u m a a n t i g a i n t e r p e n e t r a ç ã o d e v a l o r e s e n t r e as d i s t i n t a s
" n a ç õ e s " , s e n d o p r o v á v e l u m a i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o j e j e na c o n c e p ç ã o a n g o l a
de A n g o r ô . Por e x e m p l o , n a área gbe a t r a n s f o r m a ç ã o da s e r p e n t e D a n e m
arco-íris ( m i t o talvez de o r i g e m m a h i ) é m e n c i o n a d a p o r B u r t o n em 1863. A
a s s o c i a ç ã o d e D a n c o m a r i q u e z a d e r i v a da c r e n ç a g b e , d o c u m e n t a d a p o r Ellis,
d e q u e "seus e x c r e m e n t o s t r a n s f o r m a m os g r ã o s d e m i l h o e m b ú z i o s " . V e r g e r
e x p l i c a q u e " a l g u m a s c o n t a s a z u i s , d i t a s Nana o u p e d r a s d e Aigry, denomi-
n a v a m - s e Dan Mi ( e x c r e m e n t o s d e D a n ) e s ã o d e i x a d a s p o r ele n o c h ã o , à
s u a p a s s a g e m ; d i z e m q u e elas v a l e m seu p e s o e m o u r o " . D a n c o m o s í m b o l o
d e c o n t i n u i d a d e t e m s u a e x p r e s s ã o e m v á r i o s b a i x o s - r e l e v o s d o p a l á c i o de
Abomey, o n d e A y i d o - H w e d o aparece representado c o m o u m a serpente en-
g o l i n d o a s u a c a u d a . Esse s í m b o l o c i r c u l a r q u e s i n t e t i z a a i d é i a d e q u e t o d o
final é p r i n c í p i o , e vice-versa, e n c o n t r a u m a exata c o r r e s p o n d ê n c i a na figu-
ra d o Uroboros da t r a d i ç ã o d a A l q u i m i a e u r o p é i a . Le H e r i s s é m e n c i o n a o u -
t r a s d u a s figuras d e s s e v o d u m e n t r e a c o l e ç ã o d e o b j e t o s d o s reis d ' A b o m e y :
duas serpentes de madeira, ligeiramente recurvadas em arco e p i n t a d a s em
v e r m e l h o e b r a n c o . C a b e n o t a r q u e essas são as cores d e H e v i o s o e s i n a l a m a
ligação de D a n c o m o v o d u m do trovão e o ciclo das águas, relação m i t o l ó -
gica p r o v a v e l m e n t e d e s e n v o l v i d a e m A b o m e y e m a n t i d a n o Brasil, o n d e D a n -
O x u m a r é é c o n s i d e r a d o "o c r i a d o d e X a n g ô " . 7 5
300
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
o t e r m o "Agorensi" ( v a r i a n t e s A n g o r i n s e , U n g o r o c i , O g o r e n s i , A n g o r e n s e ,
G o r e n c i a ) é u m t í t u l o u t i l i z a d o , ao m e n o s d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o sécu-
lo XIX, pelas d e v o t a s de Bessen nos t e r r e i r o s j e j e - m a h i s . A palavra parece u m
c o m p o s t o d e A n g o r ô m a i s o s u f i x o si, q u e e m f o n g b e s i g n i f i c a "esposa de", o
q u e i n d i c a r i a q u e A n g o r ô era u m i n q u i c e c o n h e c i d o já n a q u e l e t e m p o e su-
gere u m a n t i g o p r o c e s s o de i n t e r p e n e t r a ç ã o j e j e - a n g o l a . S e g u n d o humbono
V i c e n t e , A g o r i n e A n g o r ô são o m e s m o , "o jeje e a n g o l a se j u n t a m " . ' 6 Aliás,
Binon Cossard oferece u m a etimologia angola para Angorô, que derivaria
d e ãngolo: "esse n o m e d e c o r r e d o t e r m o ngolo, a b r e v i a ç ã o d e kongolo ou
nkongolo, q u e d e s i g n a o arco-íris. B i t t r e m i e u x , q u e cita M g r . A. D e c l e r q , diz:
'o arco-íris é u m a g r a n d e s e r p e n t e nkongolo q u e m o r a nas n u v e n s e a chuva'". 7 7
P o r t a n t o , a associação d e A n g o r ô c o m a s e r p e n t e , o arco-íris e a c h u v a , seria
t a m b é m o r i g i n á r i a da A f r i c a c e n t r a l .
A l é m d o s a t r i b u t o s a s s o c i a d o s ao g e n é r i c o v o d u m D a n o u Bessen, n ã o
d e v e m o s e s q u e c e r q u e n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s essa d i v i n d a d e é a p e n a s a ca-
beça m a i s visível de u m a "família" c o m u m a p l u r a l i d a d e de m e m b r o s . A l g u n s
de seus n o m e s são: 1) B a f o n o D e k a ( B o f u m ) ; 2) D a n A k a ç u ( A k a s s u ) ; 3)
A j a ç u ; 4) T o q u é m ( T o q u e n , T o q u e i n ) ; 5) D o q u é m ; 6) Q u e m q u e m ; 7) C o -
t o q u e m ( A c o t o q u e m ) ; 8) C o q u e m (talvez u m a v a r i a n t e de C o t o q u e m ) e 9)
J i k u . A finada gaiaku Luiza dizia q u e Bessen é o pai d e C o t o q u e m , m a r i d o
8
da f e m i n i n a Q u e n q u é m . Já Aguesi dizia q u e A c o t o q u e m era o pai de Bessen.
E i m p o r t a n t e n o t a r q u e esses n o m e s n ã o c o n s t a m nas e t n o g r a f i a s da área g b e
q u e c o r r e s p o n d e m p r i n c i p a l m e n t e ao l i t o r a l o u A b o m e y . Isso i n d i c a r i a tra-
tar-se de v o d u n s m e n o s c o n h e c i d o s d o i n t e r i o r , s e n d o o país M a h i , pela sua
t r a d i ç ã o em relação a esse c u l t o , a região de o r i g e m m a i s provável.
N o Seja H u n d é e n o H u n t o l o j i , o v o d u m D a n g i b i o u D a n j e b ê , u m a evo-
l u ç ã o f o n é t i c a de D a n g b é , é t a m b é m c u l t u a d o c o m o d i v i n d a d e i n d i v i d u a l i -
zada, c o m a s s e n t o p r ó p r i o e d i f e r e n c i a d a de Bessen. Esse f a t o é s i g n i f i c a t i v o ,
pois D a n g b é é o v o d u m p í t o n , ancestral m í t i c o dos h u e d a s de U i d á , na área
l i t o r a l . A j u s t a p o s i ç ã o de v o d u n s - c o b r a de o r i g e m m a h i e m u n d u b i d e n t r o
d o g r u p o de D a n seria u m o u t r o e x e m p l o d o " p r i n c í p i o de agregação".
E u á , orixá f e m i n i n o de o r i g e m n a g ô , é u m a d i v i n d a d e d o rio d o m e s m o
n o m e (Yewa o u Iyéwa) n a área E g b a d o , mas, a t u a l m e n t e , n o Brasil, ela é p o r
vezes i d e n t i f i c a d a c o m o u m v o d u m - c o b r a de o r i g e m jeje, e m u l h e r d o orixá
9
O x u m a r é . O r a , c o m o a p o n t a gaiaku Luiza, E u á "no jeje c h a m a - s e J i k u " . A
associação e n t r e O x u m a r é e E u á deriva talvez d o t e r r e i r o O x u m a r é , na M a t a
E s c u r a . C o m o já v i m o s , A n t o n i o O x u m a r é , u m dos f u n d a d o r e s da casa, teve
por filha-de-santo d o n a C o t i n h a de Euá, q u e veio a lhe suceder e c o m q u e m ,
a l g u n s d i z e m , teve t a m b é m u m a relação s e n t i m e n t a l . 8 0 P o d e r i a o v í n c u l o ri-
301
L U I S N I C O L A U PA R É S
t u a l e t a l v e z s e n t i m e n t a l e n t r e os d o i s d i r i g e n t e s e x p l i c a r a p o s t e r i o r a s s o c i a -
ç ã o m i t o l ó g i c a d o s seus r e s p e c t i v o s s a n t o s ? A i n d a h o j e , d u r a n t e a f e s t a d e
O x u m a r é (Bafono), em agosto, a presença de Euá é de destaque, e há u m a
c o r e o g r a f i a e m q u e os d o i s o r i x á s d a n ç a m n o c h ã o c o m o s e r p e n t e s , c h u p a n d o
á g u a d e u m a g a m e l a e d e p o i s a s p e r g i n d o - a n o ar. Esse g e s t o r i t u a l é p r o v a v e l -
m e n t e u m a l e m b r a n ç a d o m i t o c o n h e c i d o n a área d e P o r t o N o v o s e g u n d o o
q u a l A y d o H w e d o - O x u m a r é "só a p a r e c e q u a n d o q u e r beber, e s e n t a d o n o c h ã o
s o b r e a s u a c a u d a , j o g a sua b o c a n a água". 8 1 N o t e r r e i r o O x u m a r é diz-se q u e
essa á g u a a s p e r g i d a n o ar p o r E u á e O x u m a r é r e p r e s e n t a o a r c o - í r i s , e q u e m é
m o l h a d o p o r ela " b o l a n o s a n t o " n o i n s t a n t e .
N o s t e r r e i r o s jejes, Bessen e os o u t r o s m e m b r o s d a f a m í l i a D a n v e s t e m - s e
d e b r a n c o e u s a m , c o m o n a área g b e , colares c o m p o s t o s d e várias fileiras de
b ú z i o s a t r a v e s s a d o s n o p e i t o . O seu e m b l e m a , p a r e c i d o c o m u m f a c ã o , é c h a -
m a d o takara, itakara o u a i n d a hungo. Humbono V i c e n t e diz q u e as c o n t a s de
Bessen são b r a n c a s e n ã o r i s c a d a s d e v e r d e e a m a r e l o , c o m o g e r a l m e n t e u s a m
os d e v o t o s d e O x u m a r é . 8 2 Bessen d a n ç a ao s o m d e v á r i o s r i t m o s de t a m b o r
c o m o o bravum o u o sato, e às vezes d a n ç a n o c h ã o o u a j o e l h a d o , i m i t a n d o c o m
os b r a ç o s e s t e n d i d o s p o r c i m a da c a b e ç a o m o v i m e n t o s i n u o s o das s e r p e n t e s .
P a r a c o n c l u i r e s t a s e ç ã o , a p r e s e n t o u m a b r e v e r e f l e x ã o h i s t ó r i c a s o b r e os
c u l t o s o f í d i c o s n a B a h i a . N a v i r a d a d o s é c u l o XIX, R o d r i g u e s a f i r m a v a q u e
o c u l t o d a s e r p e n t e d o s jejes " p a r e c e n ã o t e r e x i s t i d o n o Brasil, p e l o m e n o s
c o n v e n i e n t e m e n t e o r g a n i z a d o " . N a s u a p e s q u i s a , ele só e n c o n t r o u u m "ves-
tígio" d o culto n o terreiro de Livaldina, o n d e achou c o m o u m dos ídolos uma
h a s t e o u l â m i n a d e f e r r o " t e n d o as o n d u l a ç õ e s d e u m a c o b r a e t e r m i n a n d o
nas duas extremidades em cauda e cabeça de serpente". E m b o r a Livaldina
i d e n t i f i c a s s e o o b j e t o c o m o o r i x á d o f e r r o , O g u m , essas figuras serpentinas
de metal n o r m a l m e n t e f o r m a m parte do assento de D a n ou D a n g b e , c o m o é
o caso d o Seja H u n d é a i n d a h o j e , e m q u e esse e m b l e m a se c h a m a pé dagoméP
C o n t u d o , a p a r t i r da d é c a d a de 1930, diversos a u t o r e s c o m o R a m o s , Pierson
e C o u t o Ferraz c o m e ç a r a m a i d e n t i f i c a r e l e m e n t o s d o c u l t o o f í d i c o e m vários
t e r r e i r o s . C a r n e i r o , p o r e x e m p l o , f a l a n d o d e O x u m a r é e das festas d o P a r q u e
São Bartolomeu, comenta que "nem m e s m o N i n a Rodrigues poderia imaginar
a i m p o r t â n c i a q u e o c u l t o desse o r i x á iria ter, a t u a l m e n t e " e, e m 1948, a f i r m a :
302
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
Essa e v i d ê n c i a d o c u m e n t a l , q u e c o n f o r m e R o d r i g u e s sugere a a u s ê n c i a d o
c u l t o d e D a n n a v i r a d a d o s é c u l o XIX e a sua p o s t e r i o r a p a r i ç ã o n a d é c a d a
de 1930, t e m levado L o r a n d M a t o r y a a f i r m a r q u e "a c o m u n i c a ç ã o n o co-
m e ç o deste século [XX] e n t r e a Bahia e o G o l f o da G u i n é i m p l i c a o ressus-
c i t a m e n t o d a n a ç ã o jeje e a a d o r a ç ã o p o r p a r t e da m e s m a d o d e u s - s e r p e n t e
c o m o seu e m b l e m a " . S e g u n d o M a t o r y , os m a h i s " p r a t i c a r a m p o u c o a a d o r a ç ã o
d o d e u s - s e r p e n t e " n o seu país de o r i g e m , mas, q u a n d o r e t o r n a r a m da Bahia
p a r a a A f r i c a , i n s t a l a r a m - s e nas c i d a d e s d o litoral, o n d e os c u l t o s o f í d i c o s
e r a m m u i t o c o m u n s , e deles se a p r o p r i a r a m . Esse fato e o s u b s e q u e n t e c o n t a -
to dos retornados c o m os seus "parentes" baianos explicaria o "ressuscitamento",
n ã o só d o c u l t o de D a n c o m o t a m b é m da i d e n t i d a d e j e j e - m a h i n o C a n d o m -
blé. 8 ' O r a , essa tese, e m b o r a útil para a r g u m e n t a r as d i n â m i c a s t r a n s n a c i o n a i s
na c o n s t r u ç ã o de i d e n t i d a d e s étnicas, a p r e s e n t a alguns p r o b l e m a s sérios.
E m p r i m e i r o lugar, a idéia de q u e os m a h i s d o G o l f o da G u i n é " p r a t i c a r a m
p o u c o a a d o r a ç ã o d o d e u s - s e r p e n t e " é d i s c u t í v e l . C e r t a m e n t e , d e s d e o século
XVII o c u l t o d a s e r p e n t e está d o c u m e n t a d o p r i n c i p a l m e n t e e n t r e os g r u p o s
d o litoral, c o m o os h u l a s e os huedas. 8 6 O r a , isso n ã o significa q u e o culto ofí-
dico n ã o fosse i m p o r t a n t e e n t r e os m a h i s da região m o n t a n h o s a d o interior. A
e t n o g r a f i a religiosa da área gbe é u n â n i m e em a t r i b u i r o r i g e m m a h i a D a n , o u
A y i d o - H w e d o , e m b o r a seja possível q u e a d i v i n d a d e fosse i m p o r t a d a d o s
h u e d a s n a s e g u n d a m e t a d e d o século XVII e q u e d a í o país M a h i se t o r n a s s e
u m d o s p o n t o s de d i f u s ã o d o culto. Aliás, só u m a antiga i m p l a n t a ç ã o d o c u l t o
n o país M a h i e x p l i c a r i a p o r q u e , em t o d o o b a i x o D a o m é , os a d e p t o s d o
v o d u m D a n são c h a m a d o s , após a iniciação, de mahinu (habitantes mahis).87
E m s e g u n d o lugar, a s u p o s t a ausência d o culto de D a n na Bahia n o final
d o século XIX é t a m b é m questionável. O Alabama em 1870, por exemplo, d o c u -
m e n t a e x p l i c i t a m e n t e os cultos r e n d i d o s "a u m a serpente". 8 8 H á o u t r a s evidên-
cias i n d i r e t a s (não escritas), m a s n ã o p o r isso m e n o s c o n v i n c e n t e s . C o m o já
vimos, o " d o n o espiritual" d o B o g u m , q u e estava f u n c i o n a n d o pelo m e n o s des-
de 1867, é o d e u s - s e r p e n t e B a f o n o ou Bessen. A i d e n t i f i c a ç ã o d o " d o n o espiri-
tual" de q u a l q u e r c a n d o m b l é é u m p r o c e s s o s e m p r e d e t e r m i n a d o d u r a n t e a
f u n d a ç ã o do terreiro, e n o r m a l m e n t e coincide c o m o v o d u m ou orixá " d o n o da
cabeça" do seu f u n d a d o r . Logicamente se pode supor que o culto de Bessen dataria
pelo m e n o s dessa época. O m e s m o a r g u m e n t o é aplicável ao Seja H u n d é , f u n -
d a d o na última década do século XIX, c u j o " d o n o espiritual" é t a m b é m Bessen
e cujas duas primeiras gaiakus ou mães-de-santo p e r t e n c i a m a esse v o d u m . Aliás,
elas f o r a m iniciadas na Roça de C i m a nas décadas de 1860 e 1870.
S u m a r i a n d o , os d a d o s disponíveis d e i x a m s u p o r a presença d o culto da ser-
p e n t e n o país M a h i desde pelo m e n o s o século XVIII, e n o Brasil t e m o s provas
303
L U I S N I C O L A U PA R É S
Para f i n a l i z a r este c a p í t u l o , c o m e n t a r e i b r e v e m e n t e s o b r e a l g u n s o u t r o s
v o d u n s c o n h e c i d o s nos terreiros jejes. Por e x e m p l o , Q u e r i n o m e n c i o n a o
n o m e de Niçasse c o m o s i n ó n i m o jeje de O l o r u m o u Z a m b i , o d e u s supre-
mo. 8 9 M u i t o p r o v a v e l m e n t e , trata-se de u m a c o r r u p t e l a de Lissasi, alusão a
Lissá o u Olissá, a c o n t r a p a r t e jeje de O x a l á , o deus da criação. E m b o r a a m i -
tologia d o casal Mawu-Lissá prevalecente no sistema religioso de A b o m e y não
seja t o t a l m e n t e d e s c o n h e c i d a na B a h i a (ver a c i m a m i t o c o s m o l ó g i c o n o
B o g u m ) , a sua expressão ritual não parece significativa. Lissá t e m a d e p t o s e
é c u l t u a d o em í n t i m a relação c o m O x a l á , mas a presença de M a w u parece
ter p e r d i d o i m p o r t â n c i a . C o m o já foi d i t o , N a n ã B u r u k u p o d e ter a s s u m i d o
o papel f e m i n i n o o u t r o r a o c u p a d o por M a w u .
C a b e e n f a t i z a r a i m p o r t â n c i a n o culto jeje de d u a s e n t i d a d e s q u e já m e n -
cionei relacionadas à família Kaviono; trata-se de Loko e Kpo. A i m p o r t â n c i a
da fitolatria nos cultos de v o d u n s foi a p o n t a d a em relação ao reino de U i d á
n o século XVII. E m b o r a a sacralização de árvores e o u t r a s espécies vegetais
não seja exclusiva dos cultos de v o d u n s , ela é, sem d ú v i d a , u m dos aspectos
valorizados e cultivados nos terreiros jejes, o n d e g r a n d e n ú m e r o de assenta-
mentos o u altares são fixados r i t u a l m e n t e nos pés de d e t e r m i n a d a s árvores
sagradas, c h a m a d a s atinsa na n a ç ã o jeje. Veremos a sua significação n o ritual
d o boitá n o p r ó x i m o c a p í t u l o .
N a Bahia, o v o d u m - p a n t e r a K p o , que d a n ç a c o m os dedos da m ã o em for-
m a de garra, é n o r m a l m e n t e r e l a c i o n a d o c o m a família de H e v i o s o , mas ele
p o d e t a m b é m se m a n i f e s t a r c o m o " q u a l i d a d e " d i f e r e n c i a d a da f a m í l i a de
S a k p a t a . N a área gbe, a figura da p a n t e r a representa os v o d u n s Agassu, em
Abomey, e A j a h u n t o , em Aliada, q u e p o r sua vez são deificações dos míticos
ancestrais das linhagens reais desses reinos (ver cap. 1). A i m a g e m da p a n t e r a
304
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
305
L U I S N I C O L A U PA R É S
306
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
orixás n a g ô s , v o d u n s c o m o S o g b o , A z o n s u e Bessen c o n t i n u a m c o n s t i t u i n d o
0 f a t o r d i f e r e n c i a l m a i s i m p o r t a n t e p a r a d e m a r c a r o q u e seria a n a ç ã o j e j e d e
C a n d o m b l é . Dedicarei o p r ó x i m o capítulo a examinar outros elementos, desta
vez r e l a c i o n a d o s c o m a s p e c t o s r i t u a i s q u e c o n t r i b u e m p a r a a r t i c u l a r esse f a t o r
d i f e r e n c i a l d o s jejes p e r a n t e o u t r a s n a ç õ e s .
NOTAS
1
Utilizo a expressão "cultos de múltiplas divindades" para enfatizar a pluralidade de divin-
dades existente em cada uma das congregações religiosas, evitando o termo "politeísta",
normalmente associado à religião como um todo. Uma versão ampliada desta primeira
parte do capítulo foi publicada em inglês (Parés, "Transformations...").
2
Silveira, Iyá...; Harding, A refuge..., p. 59, Candomblé..., pp. 76, 99, 316. Harding tam-
bém cita o terreiro de pai Anacleto, em São Félix (Recôncavo), como evidência de um
culto de múltiplas divindades em meados do século XIX (A refuge..., p. 58); cf. Wimberly,
"The expansion...", pp. 82-83.
3
Verger, Notas..., p. 15; "Raisons...", pp. 144-45; Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Reis,
The politics..., p. 15.
4
Herskovits e Herskovits, "An outline...", pp. 9-10, apud Maupoil, Lagéomancie..., p. 56.
5
Maupoil, La géomancie..., p. 56.
6
Yai, "From Vodun...", p. 246.
7
Bosman, A new..., p. 368a; Maupoil, La géomancie..., p. 64; Glèlè, Le danxome,.., p. 75.
8
Le Herissé, LAncién..., pp. 126-27; Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 103-5; Yai,
"From Vodun...", pp. 254, 256; Bay, Wives..., pp. 92-96.
9
Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 150-51, 163.
10
Peei, "A comparative...", pp. 275-76.
11
Verger, Notas..., pp. 15, 39; "The Yoruba...", p. 24; Mckenzie, "O culto...", pp. 134-35,
137, 139.
12
Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Verger, Notícias..., pp. 228-29.
13
Ver, por exemplo: Merlo, "Hiérarchie..."; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 304.
14
Apter, "Notes...", pp. 373, 392-93, 396-97; Drewal, "Dancing...", pp. 211, 230-31. Cabe
notar que a coreografia circular de Igbogila e a identidade e ordem em que são celebra-
das as divindades (Elegba, Ogum, Eyinle, Iroko, Ondo, Omolu) apresentam uma sur-
preendente semelhança com o xirê (sequência inicial de cantos e danças) praticado nos
candomblés ketus da Bahia. Ou bem as práticas de Igbogila foram introduzidas por
libertos retornados do Brasil, ou, alternativamente, poder-se-ia pensar que os egbados
foram também importantes agentes sociais na formação do candomblé nagô-ketu.
15
Rodrigues, Os africanos..., p. 236. Essa afirmação também é confirmada pela documen-
tação de O Alabama, no período 1863-1871.
16
Por exemplo, em relação ao orixá Xangô, em Oyó, ver Apter, Black Critics..., pp 24-25-
17
Gaiaku Luiza, 26/2/2001.
,s
Sobre o reino do Benim, ver Dapper, Naukeurie..., apud Verger, Notas..., p. 50. Para a
região de Popo, Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 620-21. Para Uidá, Bosman, A new...,
p. 383. Para a Costa do Ouro, ver também Bosman, A new..., p. 153; Isert, Voyage..., p. 45.
307
LUIS NICOLAU PA R É S
Em relação a Aliada, ver Bosman, A new..., p. 383. Em relação a Oyo, Snelgrave, A new...,
p. 59. Em relação aos fon, Borghero, Journal..., p. 123. Ver também Isert, Voyage..., p. 123.
Pazzi, "Aperçu...", pp. 13-14; e Introduction..., pp. 172-74, 199-200; Moulero, "His-
toire...", p. 43; Law, The Kingdom..., pp. 6-9; Gayibor, Les peuples..., pp. 29-30.
Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 581, 589; Bosman, A neu>..., p. 113. B u r t o n (A
mission..., p. 78) cita em Uidá que o "arbusto do trovão" é chamado ayyan ou soyan.
Baudin (Fetichism..., p. 23) afirma que, segundo a legenda iorubá, ayan é a arvore em
que Xangô se pendurou para suicidar-se. Adam Jones (apud Barbot, Barbot on Guinea...,
pp. 582-83) nota que Jean Goeman o u j a n k o m é corresponde ao termo akan Onyankome.
Se a raiz desse termo, onyan, fosse uma evolução fonética akan de ayyan ou soyan, tería-
mos uma evidência indireta da expansão do culto do trovão desde a área iorubá até a
Costa do Ouro, já no século XVII, se concordamos que esse culto se expandiu do leste
para o oeste.
Anónimo (p. 52), citado por Law, "The slave...", p. 111. Para outra referência ao culto
das "pedras caídas do raio", em Uidá: Archives Nationales, Section d ' O u t r e - M e r ,
Depot des Fortifications des Colonies, Côtes d'Afrique, ms. 111, "Réflexions sur Juda
par les Sieurs De Chenevert et Abbe Bullet", l 2 /6/l776, p. 74. Agradeço a Robin Law
que me alertou para a existência desses documentos.
Forbes, Dahomey..., vol. I, p. 171. Esse autor (op. cit., pp. 104-6) relata também um
incidente com os sacerdotes do trovão em Agoue, em fevereiro de 1850. Em abril de
1863, o barracão do forte português de Uidá, onde estavam instalados os padres das
Missões Católicas francesas, foi atingido por um raio. Borghero, fiel aos seus princípios
anti-fetichistas, recusou-se a pagar a multa exigida pelos sacerdotes de Hevioso e foi
preso temporariamente (Borghero, Journal..., pp. 129-34). Burton também aponta ser
Hevioso uma "adaptação" do Xangô iorubá do trovão (A mission..., p. 295). A primeira
referência explícita a Xangô na área iorubá é de Bowen em 1858, emyl Grammar..., p. 16.
Le Herissé, LAncièn..., pp. 115-16; Tidjani, "Notes...", p. 35; Pazzi, Introduction..., p. 123.
Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 157. Para as listas de
voduns, ver Verger, Notas..., pp. 521, 528-29, 542-45; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 304.
Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; H u n o n Daagbo, Uidá, entrevista 16/7/1995.
Le Herissé, LAncièn..., p. 109; Herskovits, Dahomey..., vol. II, 151, 302.
Para Agbanakin, ver Karl, Traditions..., p. 236. Para Heve, Verger, Notas..., pp. 529, 541;
Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193.
Spieth, Die Religion..., p. 173, apud Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193.
Fio Agbonon II, Histoire..., pp. 164, 168; Verger, Notas..., p. 529.
Peei, "A comparative...", p. 275.
Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; Verger, Notas..., p. 105; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 188; Segurola, Dictionnaire..., p. 482.
Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Segurola, Dictionnaire..., p. 484; Verger, Notas...,
pp. 525-30.
Le Herissé, LAncièn.., p. 108; Snelgrave, A new..., pp. 101, 104. Em 1851, Forbes des-
creve a cerimónia em que soldados postados na estrada entre Abomey e Uidá dispara-
vam os seus fuzis em sucessão como "uma saudação ao Fetiche das Grandes Aguas, ou
Deus do Comércio Exterior" (Forbes, Dahomey..., vol. II, p. 18). Em 1860, sacrifícios
humanos ao mar eram promovidos pelo rei Glele desde Abomey como parte das ceri-
mónias funerárias em louvor do seu pai, Ghezo (Peter Bernasko, Uidá, 29/1 1/1860,
308
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
Archives of the Wesleyan Methodist Mission Society (SOAS). Fico grato a Robin Law
por ter chamado minha atenção sobre essas referências. Ver também Burton, A mis-
sion..., p. 295.
35
Humbono Vicente, 8/10/1998.
36
No jeje-mahi da Bahia, a família Kaviono inclui outros voduns como: Zo (vodum do
fogo); Sogbo Baba Guidi (ou So Baguidi, talvez uma evolução fonética de Gbaguidi,
a família dirigente de Savalu. Em Oyo, Verger [Notas..., p. 129], documenta Baba Sigidi
como uma forma de Exu associada aos ilari)-, Jogorobossu (Jogoroboçú na Casa das
Minas pertence à família Davice, filho de Zomadonu); Bossu (talvez uma evolução fo-
nética de Besu, vodum do panteão do trovão no Benin, ou de bossum, nome genérico
das divindades em território akan. Maupoil {La géomancie..., p. 73) menciona Bosu
Zoho como vodum Sakpata, e no templo de Avimanje [Sakpata], em Uidá, cultua-se
o vodum Bosú, guardião da porta do templo); Jokolatin (joko atin, a arvore joko) e
Betá Yoyo (ou Beta Oyo). Essas divindades secundárias, até onde sei, não têm devo-
tos iniciados e não se manifestam nas festas públicas.
37
Everaldo Duarte, 4/1/1996, 21/8/1996, 27/11/1997.
38
J. de Carvalho, "Nação Jeje", p. 51.
39
Gaiaku L u i z a , e m C E A O , 2 A Encontro..., pp. 81-82.
40
Rodrigues, Os africanos..., p. 230.
41
O Alabama, 19/5/1869, p. 3.
42
Rodrigues, Os africanos, p. 234.
43
Gaiaku Luiza, 7/11/1999.
44
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2e Encontro..., p. 82.
45
Na Africa ocidental, o mito sobre as três esposas de Xangô, Oiá, O x u m e Oba, apare-
ce d o c u m e n t a d o por primeira vez em 1858, na obra de Bowen, A grammar... (p. 16).
46
Na área gbe, Averekete é considerado o filho mais novo do casal Agbé e Naeté e, como
caçula, tem fama de mimado, astuto, caprichoso e de desempenhar o papel de "trickster".
Averekete é tido como o mensageiro entre os homens e as divindades e, nos rituais, ele
sempre vem na frente, abrindo o caminho para os outros voduns; ele gosta de brincar,
de difundir rumores e imitar de forma cómica os outros voduns (Herkovits, Dahomey...,
vol. II, pp. 155, 158). Compartilhando com Legba a mesma funcionalidade ritual e ver-
satilidade de caráter, nos terreiros jeje-mahis baianos, Averekete é raramente louvado
na sequência de cantos dedicados a Sogbo, mas nunca é esquecido quando se canta para
Legba. Esse fato pode ter contribuído para a sua persistência.
47
Bastide, Sociologia..., pp. 120-21. Esse autor comenta, por exemplo, como o trabalho
forçado nas plantations propiciou a desaparição de divindades da agricultura que ne-
n h u m benefício traziam aos escravos; mas também como a desigualdade social e a
opressão dos senhores favoreceu a hegemonia de divindades da justiça, como Xangô;
da guerra, como O g u m ; ou das dinâmicas de comunicação, como Exu.
48
Verger, Notas..., p. 276; D. M. dos Santos, História..., pp. 67-69.
49
Segundo diferentes versões, Sakpata teria sido importado de Dassa Zoumé, Adja Popo,
ou Aise, na região Hollidjè. Verger, Notas..., pp. 249-50, 272.
50
Por exemplo, um mito do reino Fitta, na área Mahi, conta que os voduns M o r o u
( O m o l u ) , Dan e Loko chegaram de Adja-Popo e ali se instalaram no tempo do pri-
meiro rei Oba Tchérékou (Anónimo, "Le Royaume des Fittas", pp. 78, 83). O mesmo
mito é citado em Bergé, "Étude...", p. 724. No entanto, cabe notar que O m o l u é uma
expressão iorubá (òmò ò/à).
309
L U I S N I C O L A U PA RÉS
51
Verger, Notas..., p. 252.
52
Gaiaku Luiza, 28/11/1998; M. S. de A. Santos, Meu tempo..., p. 54.
53
Para evidência da diversidade regional do culto de Buruku, ver Burton, A mission....,
p. 297; Abekuta..., p. 107; Ellis, TheYoruba..., p. 73; Frobenius, Mythologie..., pp. 191,218;
Verger, Notas..., pp. 257-59. A náo-utilização de faca de ferro nos sacrifícios dedica-
dos a Omolu e Nanã Buruku indicaria a existência desses cultos anteriormente à épo-
ca do ferro. Essa característica persiste nos cultos de Nanã no Brasil e já foi notada
por Querino (Costumes..., p. 94). O tema é discutido em detalhe por Verger, Notas...,
pp. 272, 278.
54
Verger, Notas..., p. 274.
55
Verger, Notas..., pp. 239-40; Pessoa de Castro, Falares..., p. 246; Rodrigues, O animis-
mo..., p. 50.
,!5
Herskovits, Dahomey..., vo 1. II, pp. 101-2.
57
D. M. dos Santos, H i s t ó r i a . . . , p. 67.
58
Lepine, "As metamorfoses...", pp. 126-28; Verger, Notas..., p. 240; Le Herissé, LAncièn...,
p. 128; Herskovits, Dabomey..., vol. II, p. 38.
59
Segurola, Dietionnaire..., p. 456.
60
O Alabama, 29/10/1870, p. 2; 24/11/1871, p. 4.
61
Rodrigues, O animismo..., p. 50. Saponan e O m o l u são denominações nagôs. Há
dúvidas no caso de Wari-Warú e Afoma. Cacciatore atribui ao último termo uma eti-
mologia iorubá: afomó, contagioso, infeccioso: Diecionario..., p. 40. No entanto, Verger
documenta uma cantiga de Sakpata em Abomey que fala de Afomado Zogi (Notas...,
p. 247).
62
Esses nomes são: 1) Jagun Agbagba; 2) Omolu; 3) Obaluaye (literalmente o "rei da ter-
ra"); 4) Soponna; 5) Afoman; 6) Savalu; 7) Dassa; 8) Arinwarun (o mesmo Wari-Warú
citado por Rodrigues); 9) Azonsu ou Ajansur; 10) Azoani; 11) Posun ou Posuru (Kposu
ou Kpo, o vodum-pantera na sua "qualidade" de Sakpata); 12) Agoro (provavelmente
uma confusão, já que Angorô é a divindade cobra dos angolas); 13) Telu ou Etutu (pro-
vavelmente do nagô ile titu, o mesmo que "chão frio"); 14) Topodun (provavelmente uma
confusão, já que Tokpodun é o vodum crocodilo do panteão do trovão ou do mar); 15)
Paru; 16) Arawe (localidade no país Mahi); 17) Ajoji (no Bogum lembra uma vodúnsi
de Ojoji, "um Omolu jeje", talvez uma corruptela de Daa Zodji); 18) Avimaje; 19) Ahoye;
20) Aruaje; e 21) Ahosuji (uma corruptela do termo fon ahosusi, "mulher do rei") (Verger,
Notas..., p. 252). Outras denominações de Sakpata são Jeholu (Senhor das pérolas) ou
Ainon (Senhor da terra).
6i
Nas primeiras décadas do século XX, nem Rodrigues nem Querino mencionam a pa-
lha da Cosra ao falar de Omolu ou Shapana (Rodrigues, O animismo...., p. 74; Querino,
Os costumes..., p. 38). Em Religiões negras, publicado em 1936, Carneiro também não
toca no assunto. E só em Candomblés da Bahia, quando Carneiro comenta que Omolu
"traz sempre um capuz de palha da Costa (filá), que lhe cai até os ombros e lhe oculta
a face" (Candomblés..., p. 59). Pierson foi o primeiro autor a comentar: "as iniciadas
de O m a n l u [sic] estavam vestidas principalmente com tons vermelhos. Cordões de
fibra, cintos de cor marrom avermelhada, iam da cabeça até abaixo dos joelhos, cobrin-
do completamente o rosto" (Brancos..., p. 327).
04
Rodrigues, O animismo..., p. 50; Querino, Os costumes..., pp. 38-39; Carneiro, Religiões...,
p. 40; Ortiz, Los bailes..., p. 216; Verger, Notas..., pp. 258-50.
310
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES
Na área gbe, os colares de Sakpata (hunkan) alternam pares de búzios brancos com
sementes pretas d o f r u t o c h a m a d o atinkuin ou atekun. Essa característica parece ter
desaparecido nos terreiros jejes.
Carneiro, Religiões..., p. 59.
P. R. e Silva, "Exu-Obaluaiê..."; Lépine, "As metamorfoses..."; Caprara, "Médico...".
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2l Encontro..., p. 78.
Ficha n B 1, CEAO, 17/1/1961; N e n é m de Mello, 3/11/1999.
"Carta do padre Bouche ao padre superior, de Uidá a Porto Novo", Arquivos da Societé
des Missions Apostoliques-, ref. 20.393, rubrica 12/80200, 31 jul., 1868, pp. 3-4, apud
Matory, " M a n . . . " , pp. 161-62.
Carneiro, Religiões (Negros bantos), pp. 166-67. Pierson, Brancos..., p. 307. Para uma
m e m ó r i a dos anos 1940 sobre as romarias do pessoal do Bogum ao Parque de São
Bartolomeu, ver D u a r t e , " O terreiro...", pp. 19-22.
Everaldo D u a r t e , 18/12/1994.
Rodrigues, Os africanos..., p. 223.
Valdina Pinto, em CEAO, 2 ' Encontro..., pp. 56-57.
Ellis, Tbe Ewe..., pp. 47-49; Verger, Notas..., pp. 231, 235; Le Herissé, LAncien..., p. 118;
Burton, A mission..., p. 298; H a z o u m é , Le pacte..., p. 143; Maupoil, La géomancie...,
p. 73.
Humbono Vicente, 6/12/1998. A presença de Angorô no culto angola está documentada
pelo menos desde 1937 (Carneiro, Religiões [Negros bantos]..., pp. 166-67). Braga men-
ciona angorossi como uma "louvação nos candomblés de Angola" (Nagamela..., p. 185).
Cossard, C o n t r i b u t i o n . . . , p. 24; cf. Bittremieux, "La societé secrete des Baknimba au
M a t o m b é . . . " , p. 245. Para outra etimologia, ver t a m b é m Valdina Pinto, em CF.AO, 2°-
Encontro..., p. 56.
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., pp. 75, 82; J. de Carvalho, "Nação...", p. 52.
Waldeloir Rego (19/11/1994) m e n c i o n o u Abalu como uma "forma de Dan". Fala-se
também de Toquéni, talvez uma variante de Toquem. Segundo Waldeloir Rego, Toqiiéni
seria uma cobra venenosa do tipo surucucu de gancho. Na Casa da Minas em São Luís,
o termo toqúém é utilizado para designar os voduns mais novos, meninos ou adolescentes,
sobretudo da família real Davice, que vem na frente, abrem os caminhos aos mais velhos
e levam e trazem recados (Ferretti, Querebentan..., p. 307). Já segundo Olga de Alaketo,
"Tokuenu não é uma entidade. Tokuenu é uma obrigação que se faz na raiz de um pau,
aí vem as pessoas que é de direito, vem pra botar mão e tal [...]" (entrevista 3/1/1996).
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2 ' Encontro..., p. 82.
Ficha s.n., CEAO, 1960; dona Nancy de Souza e Silva, 28/10/98. Milton Moura, W9/2001.
Baudin, Fetichism, pp. 44, 47; Ellis, The Ewe..., pp. 47-48. Observação pessoal: obri-
gação de Bafono e Euá, Terreiro O x u m a r é , 18/8/1996.
Humbono Vicente, 20/10/2000, 12/1 1/2001; gaiaku Luiza, em CEAO, 2o- Encontro...,
pp. 72, 74. Gaiaku Luiza chama os búzios de ajés e os colares de búzios enfiados, balajás
(var. barajás). Os balajás são atributos t a m b é m de Nanã, Azonsu e Euá: gaiaku Luiza,
8/8/2001. Em fon, ajé significa "coquillages", derivado de jé, pérola ou conta (Segurola,
Dictionnaire..., pp. 34, 260).
Rodrigues, Os africanos..., pp. 231-33.
C a r n e i r o , Religiões..., pp. 166-67; Candomblé..., pp. 64-55; Ramos, " I n t r o d u ç ã o . . . " ,
pp. 12-13: cf. Ramos, O negro..., p. 43, e Ferraz, "Vestígios..." pp. 271 e segs.
311
LUIS NICOLAU PA R É S
85
Matory, "Jeje...", pp. 66-67; Black Atlantic..., pp. 87-89, 93, 96-98, 101-2. Matory, re-
t o m a n d o a tese defendida por Gois Dantas, ainda acrescenta que intelectuais como
Carneiro, conhecedores da obra de Herskovits sobre a religião da área gbe, poderiam
ter passado informações aos sacerdotes jejes, c o n t r i b u i n d o para o processo de "ressus-
citamento". Ora, a suposta agência dos intelectuais não é aplicável no contexto dos
terreiros jejes das primeiras décadas do século XX, já que essas casas só receberam vi-
sitas ocasionais de intelectuais a partir de 1937.
86
Ver, entre outros: De Sandoval, Naturaleza..., apud Gayibor, Les peuples...', Bosman,
A new..., pp. 368a-82 ; Barbot, A description..., pp. 340-45; Labat, Voyage..., vol. II,
pp. 163-99, Pommegorge, Description..., p. 195; Snelgrave, A new..., pp. 11-12; Atkins,
A voyage..., p. 113-18; Norris, Memoirs..., pp. 69, 105; Duncan, Traveis..., vol. I, 126-28,
195-97; Burton, A mission..., pp. 73-76; Le Herissé, LAncien..., p. 110; Herskovits,
Dahomey..., vol. II, pp. 240-55; Falcon, Religion..., pp. 66-70; Verger, Notas..., pp. 503-16.
Sobre a instalação de Dangbé como divindade dos hueda: Labat, Voyage..., vol. II, p. 163;
Law, The Kingdom, pp. 24-25.
87
Le Herissé, UAancien..., p. 118; Verger, Notas.., pp. 105, 231, 235; Jaques Bertho, apud
Merlo, "Hiérarchie...", p. 12. Merlo e Vidaud, "Le peuplement...", pp. 287-90; Falcon,
Religion..., p. 38; Bergé, "Étude...", pp. 720-21, 724, 740. Práticas rituais do culto Ne-
suhue, envolvendo os voduns Dan e Dambada Hwedo, foram apropriadas dos agonlis
no país Mahi. Já que o culto real dos Nesuhue estava instaurado em Abomey no século
XVIII, podemos supor que o culto da serpente no país Mahi datava pelo menos dessa
época (Parés, "O triângulo...", pp. 193 e segs.; Verger, Notas..., p. 232). Sobre Dambada
Hwedo, ver Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 203, 207-8.
88
O Alabama, 28/5/1870, p. 3. Há também, no mesmo jornal, uma referência a um tal
Luis Gomes da Saúde, "criador de cobras" (10/12/1870, p. 5). Ver também Jornal da
Bahia, 13/3/1854, apud Verger, Fluxo..., p. 532.
89
Querino, Costumes..., p. 37.
90
Baudin, Fetichism..., p. 37; Ellis, The Ewe..., pp. 83, 89.
91
Alguns autores identificam Agué com Oxóssi (Verger, Notas..., p. 215).
92
Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 107, 121; Verger, Notas..., pp. 215-18. Frobenius,
comentando sobre o orixá Enjille (Erinle, Inle, associado a Oxóssi), diz que ele é "repre-
sentado por figurinhas de ferro forjado, sob a forma de um candelabro em cuja ponta
foi forjado um pássaro" (Mythologie..., p. 222).
93
Dona Nancy de Souza e Silva, 27/9/2000.
94
Gaiaku Luiza, 28/4/2001.
95
Humbono Vicente, 8/10/1998, 30/3/1999, 7/12/1999. Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 271.
96
Liihning, "O compositor...", p. 66.
97
Everaldo Duarte, 10/8/1996.
312
7
313
LUIS NICOLAU PA R É S
314
O RITUAL
315
L U I S N I C O L A U PA R É S
C o m o v i m o s n o c a p í t u l o 3, o " n a c i o n a l i s m o " d a d i á s p o r a a f r i c a n a n o
Brasil, n a a u s ê n c i a d o f a t o r t e r r i t o r i a l ( q u e só p o d i a ser v i v e n c i a d o c o m o
lembrança de u m a procedência perdida), estruturou-se, sobretudo, c o m o um
" n a c i o n a l i s m o l i n g u í s t i c o " . D e igual m o d o , as l í n g u a s a f r i c a n a s p e r s i s t i r a m
n o â m b i t o da religião c o m o u m d o s sinais d i a c r í t i c o s m a i s i m p o r t a n t e s na
f o r m a ç ã o e i m a g i n a ç ã o das n a ç õ e s d e C a n d o m b l é . J á analisei n o c a p í t u l o 4
a i n f l u ê n c i a da t e r m i n o l o g i a religiosa j e j e n o C a n d o m b l é c o m o u m t o d o .
T o d a v i a , a l é m dos v o c á b u l o s jejes q u e c r u z a r a m f r o n t e i r a s de n a ç ã o , os terrei-
ros jejes m a n t ê m u m l i n g u a j a r o u "dialeto" p r ó p r i o q u e c o n t r i b u i para estabe-
lecer a e s p e c i f i c i d a d e i d e n t i t á r i a dessa t r a d i ç ã o religiosa d i a n t e das o u t r a s na-
ções. H o j e e m dia, são os c a n t o s p a r a louvar as d i v i n d a d e s , as cantigas de "ma-
t a n ç a " , as c a n t i g a s d e "saída de i a w ô " etc., e as rezas ( q u e se d i f e r e n c i a m das
a n t e r i o r e s ) , u m d o s â m b i t o s mais i m p o r t a n t e s sob os quais se e s t r u t u r a o f a t o r
d i f e r e n c i a l dos jejes.
E m b o r a seja difícil falar d e u m a "língua" p r o p r i a m e n t e dita, h á t a m b é m
"dialeto" jeje na t e r m i n o l o g i a h i e r á r q u i c a e litúrgica e e m certas f ó r m u l a s orais
c o m o as bênçãos, saudações o u outras expressões para conversar c o m os v o d u n s ,
p a r a c h a m a r a gaiaku-, para p e d i r licença ao e n t r a r n o terreiro, o u na casa (ago
nu kwe vi o u ago no kwé vé). O u t r a s f ó r m u l a s são utilizadas pela gaiaku para
saber se u m a v o d ú n s i está d o e n t e , e assim p o r d i a n t e . O r e p e r t ó r i o l i n g u í s t i c o
é bastante extenso, e um vocabulário provisional, e certamente incompleto,
r e c o m p i l a d o nesta pesquisa, a p o n t a para m a i s de c e m palavras, i n c l u i n d o ter-
m o s para d e s i g n a r as diversas p a r t e s d o c o r p o , a n i m a i s , a l i m e n t o s , folhas, o b -
jetos rituais, espaços sagrados etc. A q u i v o u considerar, de m o d o ilustrativo,
a p e n a s as b ê n ç ã o s o u saudações rituais e os t e r m o s da h i e r a r q u i a sacerdotal.
T o m a r a b ê n ç ã o ( d o l a t i m benedictione, ação de benzer, o u d e a b e n ç o a r )
é u m a p r á t i c a m u i t o c o m u m n a s o c i e d a d e p a t r i a r c a l brasileira, c o m f o r t e i n -
f l u ê n c i a d o C a t o l i c i s m o . N o c o n t e x t o d o C a n d o m b l é , esse gesto ritual se c o n -
f u n d e c o m u m a n ã o m e n o s e x t e n s a t r a d i ç ã o a f r i c a n a de s a u d a ç õ e s e c u m p r i -
m e n t o s r i t u a i s . E m geral, o p e d i d o de b ê n ç ã o e o u t r o s c u m p r i m e n t o s expres-
s a m s u b o r d i n a ç ã o e r e s p e i t o d a q u e l e q u e a p e d e para q u e m a c o n c e d e e estão,
p o r t a n t o , d e t e r m i n a d o s p e l o p r i n c í p i o h i e r á r q u i c o d e s e n i o r i d a d e , regra es-
sencial das c u l t u r a s d a A f r i c a o c i d e n t a l .
A t u a l m e n t e , n o C a n d o m b l é jeje o p e d i d o d e b ê n ç ã o p o d e a p r e s e n t a r várias
f o r m a s . F o r a d o r i t u a l , p o d e c o n s i s t i r n u m s i m p l e s b e i j a - m ã o e, t r a t a n d o - s e
d e m e m b r o s d e u m m e s m o nível h i e r á r q u i c o , a i n t e r a ç ã o é r e p l i c a d a pela se-
g u n d a p e s s o a . N o c o n t e x t o das o b r i g a ç õ e s , d i a n t e d o s m a i s v e l h o s , a pessoa
p o d e a p e n a s c u r v a r l i g e i r a m e n t e o c o r p o , b a i x a n d o o olhar, ao t e m p o q u e es-
t e n d e os b r a ç o s m o s t r a n d o as p a l m a s das m ã o s para c i m a , sem existir n a i n t e -
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t e m p o s de R u n h ó , f o r a m e n v e r n i z a d o s . N o Seja H u n d é utiliza-se m a d e i r a de
d e n d e z e i r o , de m u l u n g u ou c o q u e i r o . A fabricação dos t a m b o r e s é r e s p o n s a b i -
l i d a d e de c e r t o s ogãs. Para c o r t a r o t r o n c o da á r v o r e , a pessoa t e m h o r a c e r t a
e se s u b m e t e a a b s t i n ê n c i a sexual. A m e m b r a n a é c o n f e c c i o n a d a c o m o c o u -
ro d o b o d e s a c r i f i c a d o nas o b r i g a ç õ e s rituais. 2 ' 1
S e g u n d o Verger, "as f o r m a s e os sistemas de t e n s ã o d o c o u r o dos a t a b a q u e s
são d i f e r e n t e s , de a c o r d o c o m as nações dos terreiros. O sistema de t e n s ã o p o r
c u n h a é f r e q u e n t e nos c a n d o m b l é s de origem b a n t o (congo e angola). O sistema
de t e n s ã o por cavilhas enfiadas n o c o r p o do a t a b a q u e é característico, n o Bra-
sil, das nações n a g ô e djèdje". 2 ^ O ú l t i m o sistema é u t i l i z a d o no B o g u m e n o
H u n t o l o j i , o n d e o c o u r o é estirado c o m cordas a m a r r a d a s a t o r n o s inseridos
no c o r p o do t a m b o r . N o Seja H u n d é , o n d e essa técnica era aplicada a n t i g a m e n -
te, h o j e , c o m o n a m a i o r i a de terreiros nagôs, utilizam-se "tensores" metálicos.
O u t r a d i f e r e n ç a e n t r e as diversas n a ç õ e s diz r e s p e i t o ao j e i t o de tocar. N a
nação jeje, o huntó ( t o c a d o r ) d o t a m b o r m a i o r b a t e , de m ã o , c o m a e s q u e r d a ,
e n q u a n t o na d i r e i t a segura u m a g u i d a v i ( t e r m o f o n para d e s i g n a r a vareta de
g o i a b e i r a , t a m a r i n d e i r o o u c i p ó d u r o de 25 a 30 c m ) , q u e usa para b a t e r n ã o
só na m e m b r a n a , m a s t a m b é m n o c o r p o do i n s t r u m e n t o . O s t o c a d o r e s d o
r u m p i e d o lé u t i l i z a m d o i s a g u i d a v i s . N a n a ç ã o n a g ô - k e t u é a m e s m a c o i -
sa, e m b o r a as p a n c a d a s c o m o a g u i d a v i n o c o r p o d o hun s e j a m u m a c a r a c -
t e r í s t i c a d i s t i n t i v a d o jeje. Já na n a ç ã o c o n g o - a n g o l a e ijexá se b a t e n o r m a l -
m e n t e de m ã o , c o m o t a m b é m se fazia n o s a n t i g o s t e r r e i r o s de n a ç ã o n a g ô
do Recôncavo.
O s d i f e r e n t e s r i t m o s o u t o q u e s são apelos o u " l o c u ç õ e s r i t m a d a s " , "pala-
vras de c h a m a d o " , invocações. 2 6 O s o m d o s a t a b a q u e s é c o n s i d e r a d o u m a lin-
g u a g e m q u e estabelece a c o m u n i c a ç ã o c o m o m u n d o invisível das d i v i n d a d e s .
C o m o explicava gaiaku Luiza, é através d o v e n t o q u e circula n o i n t e r i o r dos
t a m b o r e s na h o r a d o t o q u e q u e as d i v i n d a d e s se m a n i f e s t a m . O e l e m e n t o rít-
m i c o da m ú s i c a é c r i a d o pelos a t a b a q u e s e agogô, e nos c a n t o s se expressa o
e l e m e n t o m e l ó d i c o . S e g u n d o ogã J o ã o z i n h o , é o c a n t o q u e m a r c a a veloci-
d a d e d o r i t m o — em suas palavras, "eu t o c o s e g u n d o o t o m d o c a n t o " — e
o b s e r v a : " n e m t u d o é ligeiro, é u m a q u e s t ã o de e d u c a ç ã o : N a n ã d a n ç a l e n t o ;
O i á , p o n t u a d o ; O g u m , ligeiro". S e g u n d o ele, o hun i m p r o v i s a variações so-
bre o r u m p i e o lé, q u e d e v e m c o m b i n a r seus r i t m o s d i f e r e n c i a d o s c o m o se
fossem os d e d o s e n t r e l a ç a d o s das m ã o s . 2 7 C a b e ao ferro m a r c a r a m é t r i c a e o
tempo d o ciclo r í t m i c o , o q u e a q u i c h a m a r e i time line.is
O e t n o m u s i c ó l o g o Xavier Vatin i d e n t i f i c a n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o
20 " f ó r m u l a s r í t m i c a s " ; 8 s e r i a m o r i g i n á r i a s d a n a ç ã o n a g ô - k e t u ( a g a b i ,
aguerê, a l u j á , b a t á , daró, igbí, o p a n i j é , t o n i b o b e ) , 7 da n a ç ã o jeje ( a d a r r u m ,
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C o n t u d o , se a r e f e r ê n c i a à captura de escravos se p e r d e u , n ã o a c o n t e c e u o
m e s m o c o m a m e t á f o r a d a e s c r a v i d ã o . O Alabama já r e g i s t r a v a c o m o as
v o d ú n s i s , " f i n d o este t e m p o [de i n i c i a ç ã o ] , s a e m e a i n d a vão servir c o m o
escravas à pessoa q u e as c o m p r a n o s a n t o " . 4 6 C o m e f e i t o , o r i t u a l a f r i c a n o
kanumò xi xò (a c o m p r a dos escravos), e m q u e a v o d ú n s i era r e s g a t a d a pela
f a m í l i a , p e r s i s t i u até r e c e n t e m e n t e n a B a h i a , p o r é m sob o n o m e d e a compra
das iaôs. Essa o b r i g a ç ã o c o n s i s t i a n u m a p a n t o m i m a d e u m leilão em q u e a
m ã e o u p a i - d e - s a n t o v e n d i a a n o v i ç a a u m m e m b r o da c o n g r e g a ç ã o religiosa,
a q u e m a iaô passava a servir. N a a u s ê n c i a d e c o m p r a d o r , a n o v i ç a ficava su-
j e i t a à m ã e o u p a i - d e - s a n t o . 4 7 Gaiaku Luiza l e m b r a v a q u e a v o d ú n s i era c o n s i -
d e r a d a u m a "escrava" e q u e só após sete a n o s "ficava liberada, alforriada". 4 8 E m
m u i t o s casos, era d u r a n t e esse p e r í o d o de "escravidão" q u e a v o d ú n s i , de igual
m o d o q u e as antigas escravas de g a n h o , ia à r u a v e n d e r acarajé o u o u t r a s igua-
rias para p o d e r pagar os custos da iniciação, o u seja, a sua e m a n c i p a ç ã o . 4 9
T o d a v i a , n a s casas jejes o p a p e l de q u i t a n d e i r a é r e p l i c a d o n o b a r r a c ã o ,
n o c o n t e x t o d e u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a quitanda das iaôs. Sem ser a m e s m a
coisa, esse r i t u a l evoca a o b r i g a ç ã o a f r i c a n a da venda do acaçá a c i m a m e n c i o -
n a d a . Já C a r n e i r o falava da quitanda, "essa c e r i m ó n i a e m q u e se v e n d e m ( o u
se f u r t a m ) a l i m e n t o s o u f r u t a s p r e p a r a d o s o u a d q u i r i d o s pelas iaôs, a l g u m a s
s e m a n a s a n t e s de c o m p l e t a d a a sua i n i c i a ç ã o " . N o B o g u m e n o Seja H u n d é a
quitanda era c e l e b r a d a d e p o i s de a v o d ú n s i dar o nome. C o m o explicava hum-
bono V i c e n t e , " b o t a v a esteira e lençol n o c h ã o " e os erês c h a m a v a m as pessoas
p a r a vir c o m p r a r as f r u t a s , d i z e n d o aemi lé ó; e alejo hun bo". N o m e a v a m as
f r u t a s e os d o c e s e m l í n g u a a f r i c a n a e, n u m c l i m a b e m d e s c o n t r a í d o , "o p e s -
soal faz a c o m p r a ; m e t e a m ã o e faz q u e r o u b a , aí ele [o erê] ogo jo, m e t e o
cipó [...] b a t e c o m c i p ó " . D a v a g r a n d e c o n f u s ã o , até e n t r a r "o aniban, o solda-
d o , a pessoa se veste de s o l d a d o " e, s i m u l a n d o disparos n o ar, t e n t a pôr o r d e m
na sala. É nesse m o m e n t o d e p â n i c o q u e o erê foge p a r a o m a t o , d a n d o i n í c i o
à o b r i g a ç ã o d o gra ( o u o inkita, n o r i t o angola). 5 0
C a b e n o t a r q u e a quitanda é t a m b é m u m segmento ritual distintivo da
n a ç ã o a n g o l a , o q u e v e m i n d i c a r a a n t i g a s i m b i o s e j e j e - a n g o l a já a p o n t a d a
e m relação a o u t r o s e l e m e n t o s . B i n o n C o s s a r d f o r n e c e u m a descrição da o b r i -
g a ç ã o nessa n a ç ã o e c o n f i r m a q u e a quitanda " t a m b é m n ã o existe n o s c a n -
d o m b l é s k e t u " . 5 1 N e s s e d i s c u r s o de s e m e l h a n ç a s e c o n t r a s t e s , a l g u n s especia-
listas religiosos t a m b é m i n s i s t e m q u e n a n a ç ã o jeje " n ã o h á p a n ã c o m o n o
k e t u " . O p a n ã é u m a o b r i g a ç ã o q u e nas casas dessa n a ç ã o p r e c e d e ao leilão
o u à compra das iaôs e c o n s i s t e na s i m u l a ç ã o de u m a série de ações c o t i d í a n a s ,
c o m o levar á g u a n a cabeça, passar a f e r r o , coser, c o z i n h a r etc. O erê t e n t a
d e m o n s t r a r suas h a b i l i d a d e s , p o r é m g e r a l m e n t e c o m m u i t a b r i n c a d e i r a e
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A E S T R U T U R A D O CICLO D E FESTAS: C A L E N D Á R I O S E S E G M E N T O S R I T U A I S
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a t i v i d a d e r i t u a l jeje p a r e c e , assim, a d a p t a r - s e ao c a l e n d á r i o c a t ó l i c o i m p o s t o
pelo c o n t e x t o c o l o n i a l , ao t e m p o q u e preserva traços d o a n t i g o c a l e n d á r i o
africano.
A T a b e l a 8 m o s t r a u m e s q u e m a básico d o ciclo de o b r i g a ç õ e s a n u a i s se-
g u n d o são realizadas n o s terreiros Seja H u n d é e H u n t o l o j i de C a c h o e i r a . Cabe
n o t a r q u e a o r d e m , h o r á r i o s e d u r a ç ã o das a t i v i d a d e s r i t u a i s estão s u j e i t o s ao
r i t m o de cada casa, e h á u m a relativa f l e x i b i l i d a d e p a r a m u d a r s e g u n d o as
c i r c u n s t â n c i a s e as n e c e s s i d a d e s d o m o m e n t o . N o s ú l t i m o s a n o s , p o r exem-
p l o , o c a l e n d á r i o foi r e d u z i d o e m a m b o s os t e r r e i r o s , c o n c e n t r a n d o - s e as
a t i v i d a d e s em d u a s o u três s e m a n a s , m o d i f i c a ç ã o q u e p o d e ser a t r i b u í d a à
a v a n ç a d a i d a d e dos líderes religiosos e à sua n e c e s s i d a d e d e e c o n o m i z a r ener-
gias. N o p a s s a d o , q u a n d o as o b r i g a ç õ e s se e s t e n d i a m p o r m a i s d e u m mês,
as " m a t a n ç a s " , nas p r i m e i r a s s e m a n a s , c o m p o r t a v a m g e r a l m e n t e a p e n a s sa-
crifícios de a n i m a i s de p e n a , e n q u a n t o n a s e m a n a q u e p r e c e d i a ao boitá e r a m
i m o l a d o s a n i m a i s de q u a t r o pés. C o n t u d o , a c o n c e n t r a ç ã o r i t u a l e a relativa
brevidade do calendário t a m b é m constituem u m a i m p o r t a n t e característica
da l i t u r g i a jeje.
E n q u a n t o n a m a i o r i a de t e r r e i r o s d e C a n d o m b l é os c a l e n d á r i o s estão or-
g a n i z a d o s n u m a série d e festas sucessivas, cada u m a delas d e d i c a d a a u m a
d i v i n d a d e p a r t i c u l a r , n a n a ç ã o j e j e - m a h i de C a c h o e i r a t o d a s as d i v i n d a d e s
são c e l e b r a d a s c o n j u n t a m e n t e . E m o u t r a s palavras, d u r a n t e a " m a t a n ç a " são
feitas o f e r e n d a s a t o d o s os v o d u n s na m e s m a o b r i g a ç ã o , e d u r a n t e as festas
p ú b l i c a s são l o u v a d a s t o d a s as d i v i n d a d e s . Essa e s t r u t u r a r i t u a l de sacrifícios
e c e l e b r a ç ã o coletivos r e f o r ç a a h i p ó t e s e d e q u e o c u l t o de m ú l t i p l a s d i v i n -
d a d e s esteve a r r a i g a d o n o C a n d o m b l é jeje d e s d e a sua c o n s t i t u i ç ã o .
C o n t u d o , o c a l e n d á r i o d e festas d o B o g u m se afasta d o m o d e l o de C a -
choeira para seguir u m a e s t r u t u r a similar à dos terreiros n a g ô - k e t u s , c o m obri-
gações específicas para c a d a d i v i n d a d e , c e l e b r a d a s e m s e m a n a s c o n s e c u t i v a s .
O a n o l i t ú r g i c o inicia-se c o m o ossé ( l i m p e z a d o altar) e a festa de Olissá, em
clara c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o ciclo das A g u a s de O x a l á , c e l e b r a d o nas casas
k e t u s " t r a d i c i o n a i s " . A s e q u ê n c i a de festas t a m b é m está d i v i d i d a , c o m o nes-
sas casas, n u m a p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " b r a n c a s " (Olissá, D a n ) , e o u -
tra p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " v e r m e l h a s " ou d o azeite (Sogbo, O j o n s u ) . 5 2
A i m p o r t a n t e d i f e r e n ç a n o c a l e n d á r i o e na e s t r u t u r a r i t u a l o b s e r v a d a e n t r e
as casas de C a c h o e i r a e B o g u m talvez t e n h a sido c o n d i c i o n a d a pelos c o n t e x t o s
r u r a l e u r b a n o desses t e r r e i r o s e p e l o m a i o r c o n t a t o d o B o g u m c o m os ter-
reiros n a g ô - k e t u s de Salvador. Esse caso é t a m b é m u m b o m e x e m p l o da possi-
b i l i d a d e d e processos d e m u d a n ç a d i v e r g e n t e s d e n t r o d a p r ó p r i a n a ç ã o jeje,
f a t o q u e d i f i c u l t a falar d e u m a ú n i c a l i t u r g i a .
334
O RITUAL
Tabela S — E s t r u t u r a b á s i c a do ciclo de
o b r i g a ç õ e s n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i de Cachoeira
Noite Zondró
Sexta — Descanso
Sexta — Descanso
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LUIS NICOLAU PA R É S
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O RITUAL
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L U I S N I C O L A U PA R É S
A o b r i g a ç ã o de Aizan é de f u n d a m e n t a l i m p o r t â n c i a n a liturgia j e j e - m a h i
de C a c h o e i r a , e m b o r a Verger c o m e n t e q u e "no Brasil, q u a s e n ã o se fala mais
desse v o d u n " . Aizan, o u Ayizan, c o m o é c h a m a d o n o B e n i m , é u m v o d u m m u i -
to antigo, p r o v a v e l m e n t e originário de Aliada. Verger d o c u m e n t a d u a s tradições
sobre a sua o r i g e m . S e g u n d o ele, alguns "dizem q u e foi levado para lá [Aliada]
p o r A d j a h u t o , q u a n d o ele c h e g o u de T a d o . O u t r o s a f i r m a m q u e Ayizan já se
e n c o n t r a v a na região antes de sua chegada". Le Herissé parece sustentar a segun-
da versão q u a n d o diz q u e os h a b i t a n t e s originários de Aliada f o r a m os Aizonou
( h a b i t a n t e s Aizo), e q u e o e t n ô n i m o derivaria "do n o m e d o fetiche d a terra",
o u seja, Aizan. J á em 1668, D a p p e r descreve as o f e r e n d a s realizadas n o reino
de A r d r a a u m Fetisi " c o b e r t o p o r u m p o t e c o m orifícios", através d o qual o
s a c e r d o t e realiza c o n s u l t a s oraculares. C o m o a p o n t a Verger, "parece corres-
p o n d e r a Ayizan", pois a i n d a a t u a l m e n t e o assento desse v o d u m "é c o n s t i t u í d o
p o r u m m o n t í c u l o de terra [e areia de diversas p r o c e d ê n c i a s ] , em c i m a d o qual
se c o l o c a u m a jarra c o m p e q u e n o s orifícios, r o d e a d a p o r f r a n j a s de folhas de
dendezeiro (azan)".
A y i z a n é u m v o d u m e s t r e i t a m e n t e ligado ao e l e m e n t o terra. D e fato, ayi,
o u àí, a raiz d o seu n o m e , e m f o n g b e significa t e r r a o u chão. Verger diz q u e
ele é "o d o n o d a terra" e q u e representa "a esteira d a terra", "a c r o s t a terrestre".
D e m o d o s e m e l h a n t e a Legba, Ayizan é t a m b é m c o n s i d e r a d o o p r o t e t o r das
cidades e do país, assim c o m o , s o b r e t u d o , o " g u a r d i ã o ou, mais e x a t a m e n t e , o
s e n h o r d o m e r c a d o " . Ele é e n c o n t r a d o n o m e r c a d o das g r a n d e s cidades, tais
c o m o A b o m e y e U i d á . A l é m da sua d i m e n s ã o p ú b l i c a , "certas famílias t ê m u m
Ayizan p a r t i c u l a r , q u e as apoia, as dirige e castiga o m a u p r o c e d i m e n t o d o s
filhos". L e v a n d o em c o n t a esses cultos d o m é s t i c o s o u familiares, Verger c o n -
clui q u e Ayizan "é u m a espécie d e ancestral" i d e n t i f i c a d o c o m "a terra". 6 0
Nesse s e n t i d o se p o d e r i a p e n s a r q u e Ayizan foi m a i s u m a v a r i a n t e regional
dos a n t i g o s c u l t o s da terra e dos ancestrais, c o m o i n i c i a l m e n t e o f o r a m a q u e -
les de S a k p a t a e S h a p a n a a n t e s de serem i d e n t i f i c a d o s c o m as e p i d e m i a s d a
varíola (ver cap. 7). C o n s i d e r a r a terra u m a "espécie de ancestral" r e s p o n d e à
c o m b i n a ç ã o de d u a s ideias associadas e r e c o r r e n t e s e m várias partes da Africa
o c i d e n t a l . A p r i m e i r a é a crença de q u e os ancestrais m í t i c o s f u n d a d o r e s da
coletividade f a m i l i a r (hennu) — os c h a m a d o s tohwíyo no Benim — surgiram
o u n a s c e r a m d a terra. H e r s k o v i t s c o m e n t a que, às vezes, se c o n s i d e r a q u e o
tohwíyo t e m p o r p r o g e n i t o r s o b r e n a t u r a l Aizan. 6 ' A s e g u n d a é a crença de q u e
a terra é a m o r a d i a dos ancestrais d e f u n t o s , já q u e é na terra q u e eles são se-
p u l t a d o s e nela se realizam suas o f e r e n d a s .
Essa a n t i g a v i n c u l a ç ã o d e Aizan c o m a terra e os ancestrais é a q u e persiste
n a B a h i a , pois n o i n í c i o d a sua o b r i g a ç ã o são i n v o c a d o s os n o m e s d o s ances-
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0 ZANDRÓ: A C H A M A D A Q U E A N U N C I A AS O F E R E N D A S A N I M A I S
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O RITUAL
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LUIS NICOLAU PA R É S
p i d a p e l o s o c a s i o n a i s p e d i d o s d e b ê n ç ã o , r e a l i z a d o s pelas v o d ú n s i s à gaiaku,
aos o g ã s o u às e q u e d e s .
D e p o i s d o " b a t i z a d o d o s a t a b a q u e s " , o ogã c o r t a o o b i e m p e q u e n o s p e -
d a ç o s e, n u m a s o r t e d e c o m u n h ã o , os r e p a r t e , p o r r i g o r o s a o r d e m h i e r á r q u i c a ,
e n t r e os m e m b r o s d a c o n g r e g a ç ã o . A l g u n s t a m b é m b e b e m u m p o u c o d ' á g u a
lustral da q u a r t i n h a e p o d e m c o m e r uns grãos de p i m e n t a malagueta. Nesse
m o m e n t o , r e p e t e m - s e os p e d i d o s d e b ê n ç ã o s . C a b e n o t a r q u e o b a t i z a d o d o s
a t a b a q u e s n ã o é u m r i t u a l e x c l u s i v o d o s t e r r e i r o s jejes e se p r a t i c a t a m b é m
no candomblé ketu, embora com variantes.
Finalizada essa p a r t e e a p ó s breve pausa, as v o d ú n s i s r e a p a r e c e m n a sala e sen-
x a m - s e s o b r e várias esteiras e s t e n d i d a s n o c h ã o . C a d a pessoa t o m a u m a c a b a ç a
r e c o b e r t a de c o n t a s [go) e, a c o m p a n h a n d o o r i t m o d o s t a m b o r e s e d o f e r r o , co-
m e ç a a c a n t a r . A s e q u ê n c i a de c a n t o s d o zandró segue sempre a e s t r u t u r a de
s o l o - c o r o e inicia-se c o m c i n c o c a n t o s , d o s q u a i s t r a n s c r e v o os três p r i m e i r o s . 6 7
1
Olu Baba Valu vava
Valu n u kwé ée lo Valu no quelo
Valu n u kwé ée lo Valu no quelo
Valu nu kwé le dí U)
Olu Baba Valu vava
Valu nu kwé ée lo Valu no quelo
3
Xen xen xen Q u e qué o que qué,
M o n a valê du kia maian valê do kia,
Avalê du kia do kia [...]
M o n a valê du kia maian valê
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0 BOITÁ: A G R A N D E FESTA P Ú B L I C A D A L I T U R G I A J E J E - M A H I
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i m o l a ç õ e s . O boitá é u m a h o m e n a g e m a Bessen, o v o d u m d o n o da n a ç ã o
j e j e - m a h i , m a s t a m b é m p o d e ser d e d i c a d o a o u t r o s v o d u n s . E u m a f e s t a s e m -
pre m u i t o c o n c o r r i d a e n t r e o pessoal da casa e visitantes de fora. A p a r t e
pública da obrigação consiste n u m a procissão em que o f u n d a m e n t o do
boitá, carregado na cabeça de u m a v o d ú n s i de O g u m , orixá q u e é conside-
r a d o o " o r d e n a n ç a " d e B e s s e n , 7 3 é l e v a d o e m v o l t a d e v á r i o s atinsas e apre-
sentado r i t u a l m e n t e nos assentos de Bessen e Azonsu. O carrego do boitá
consiste n u m a g r a n d e b a n d e j a , cesto ou gamela coberta por u m p a n o b r a n c o
[ala), o r n a m e n t a d a c o m f l o r e s d e a n g é l i c a e f o l h a s d e mariwo. A prepara-
ç ã o d e s s e c a r r e g o é u m r i t o s e c r e t o d e f u n d a m e n t o e, u m a v e z c o n c l u í d o ,
j o g a - s e o o b i p a r a c o n f i r m a r o b e n e p l á c i t o d o s v o d u n s . O t e r m o boitá po-
d e r i a ser u m a c o r r u p t e l a d e gbota, parte de u m a expressão utilizada nos
c u l t o s v o d u n s d o B e n i n (gbota gbigbd) para designar uma obrigação envol-
v e n d o o f e r e n d a s aos a n c e n t r a i s .
Assisti a o boitá em várias ocasiões, e m anos e terreiros distintos, e aqui
apresento u m a descrição de síntese n o "presente etnográfico", mas é claro que
essa c o n v e n i ê n c i a e s t i l í s t i c a n ã o s u p õ e u m a p r á t i c a u n i f o r m e e s e m m u d a n -
ças. 7 4 O s v o d u n s i n c o r p o r a m n o b a r r a c ã o a o s o m d o t o q u e a d a r r u m p o r v o l t a
d a s 14 h o r a s , " h o r a d o s v o d u n s c h e g a r à t e r r a " . L o g o d e p o i s , eles d e s c e m ao
r i o p a r a t o m a r u m b a n h o , a n t e s d e ser p a r a m e n t a d o s c o m as suas vestes ri-
t u a i s . Por v o l t a d a s 17 h o r a s , c o n c l u í d o s t o d o s os p r e p a r a t i v o s , o c o r t e j o e n t r a
n o b a r r a c ã o . O s a t a b a q u e s e o gã t o c a m , e o buntó canta:
Aê a ito,
aê ba ito,
aê a aito
aê aba ito.
Esse c a n t o , r e s p o n d i d o p e l o s p a r t i c i p a n t e s , r e p e t e - s e h i p n ó t i c o e m o n ó -
t o n o d u r a n t e a m a i o r p a r t e d a o b r i g a ç ã o . E m fila i n d i a n a a p a r e c e m os o g ã s ,
a gaiaku, os v o d u n s e as e q u e d e s . T o d o s v e s t e m r i g o r o s o b r a n c o — os ogãs c o m
u m a t o a l h a b r a n c a a m a r r a d a n a c i n t u r a , c a i n d o n a p a r t e f r o n t a l a t é os p é s
d e s c a l ç o s . Q u a t r o ogãs v ê m n a f r e n t e , o p r i m e i r o leva u m a g a m e l a c h e i a d e
amasi, o s e g u n d o , u m a com farofa, o terceiro, u m a com farinha de m a n d i o -
ca e o q u a r t o , u m a c o m m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a . A m e d i d a q u e a v a n ç a a
p r o c i s s ã o , o p r i m e i r o vai a s p e r g i n d o o amasi com u m ramalhete de folhas, e
os o u t r o s v ã o j o g a n d o n o c h ã o p e q u e n a s q u a n t i d a d e s d o s a l i m e n t o s . A t r á s
d o s ogãs v e m a gaiaku c o m o adja, s e g u i d a d e O g u m , q u e c a r r e g a o boitá. O
o g ã impé, q u e d i r i g e o s é q u i t o , a c o m p a n h a de p e r t o o f u n d a m e n t o . D e p o i s
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A p ó s u n s m i n u t o s , a p r o c i s s ã o r e i n i c i a o seu p e r c u r s o a t é c h e g a r ao as-
s e n t o d e A z o n s u , o n d e se r e p e t e a m e s m a p a r a d a e c a n t o . O c o r t e j o c o n t i -
n u a d e p o i s ao s o m d o p r i m e i r o c a n t o e, r e t o r n a n d o a o b a r r a c ã o a p ó s u m a
meia hora, conclui a parte exterior da obrigação que deve sempre acabar antes
d o p ô r - d o - s o l . O f u n d a m e n t o d o boitá é l o g o a p r e s e n t a d o n o p e j i o u d e p o -
s i t a d o n o c e n t r o do b a r r a c ã o , o n d e os v o d u n s d a n ç a m e m r o d a d u r a n t e al-
guns cantos, podendo-se produzir a virada d o t a m b o r para entrar no nagô-
v o d u m , a n t e s d e o s v o d u n s se r e t i r a r e m . C o m o já f o i d i t o , o boitá é u m d o s
m o m e n t o s privilegiados para recolher novos iniciados e não é infreqiiente a
" c a í d a " d e c a n d i d a t a s ao n o v i c i a d o .
Por volta das 20 horas, reinicia-se a festa c o m u m t o q u e p ú b l i c o e m q u e
os v o d u n s , d e s t a vez p a r a m e n t a d o s c o m suas v e s t e s r i t u a i s c o l o r i d a s , d a n ç a m
a t é a p r o x i m a d a m e n t e as 2 3 h o r a s . N e s s e t o q u e s e g u e - s e a o r d e m d e c a n t o s
t í p i c a d o dorozan ou da parte n a g ô - v o d u m , c o m e ç a n d o por O g u m e acaban-
d o c o m as d a n ç a s d e B e s s e n . D o i s o u três d i a s a p ó s a o b r i g a ç ã o d o boitá se-
g u e - s e u m p r e c e i t o " p a r a d e s a m a r r a r o boitá": trata-se do ritual de encerra-
m e n t o n o q u a l o boitá é desfeito. Considera-se que nesse intervalo n e n h u m
m e m b r o da c o m u n i d a d e religiosa p o d e a b a n d o n a r o terreiro sob risco de
m o r t e , m a s esse r e s g u a r d o já n ã o se p r e s e r v a . 7 6
O boitá t a m b é m se c e l e b r a n o s t e r r e i r o s B o g u m e O x u m a r é d e S a l v a d o r ,
m a s c o m a l g u m a s d i f e r e n ç a s . N a ú l t i m a casa, p o r e x e m p l o , é u m a o b r i g a ç ã o
p r i v a d a , q u e m c a r r e g a o f u n d a m e n t o é u m a filha d e O x u m e, a p a r e n t e m e n -
te, d u r a n t e o c o r t e j o n ã o p a r t i c i p a m os v o d u n s , q u e só se m a n i f e s t a m n o
b a r r a c ã o n o fim d a p r o c i s s ã o . 7 7 S e g u n d o os p r a t i c a n t e s jejes, o r i t u a l d o boitá
é t a m b é m d i f e r e n t e e m a i s c o m p l e x o q u e o r i t u a l c h a m a d o ita, o u C a b e ç a
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O SITUAI
d e B o i , o b r i g a ç ã o e m h o m e n a g e m ao o r i x á O x ó s s i , r e a l i z a d a n o s t e r r e i r o s
ketus mais antigos, c o m o o E n g e n h o Velho, Gantois, Axé O p ô Afonjá, e
outros de f u n d a ç ã o mais recente, c o m o o Portão d'Águas Claras, no Recôn-
cavo. Essa o b r i g a ç ã o k e t u , c e l e b r a d a n o dia de C o r p u s C h r i s t i , e n v o l v e o sacri-
fício de u m boi em h o m e n a g e m a Oxóssi, assim c o m o a p r e p a r a ç ã o de u m
carrego com a cabeça do animal, que é depois apresentado no barracão. N o
e n t a n t o , até o n d e sei, essa o b r i g a ç ã o n ã o c o m p o r t a a p r o c i s s ã o e a p r e s e n t a ç ã o
d o c a r r e g o e m v o l t a d a s á r v o r e s sagradas c o m o a c o n t e c e nas casas jejes. Gaiaku
%
L u i z a c o m e n t a "Itá é p a r t e d e Q u e t o . N ó s t e m o s o boitá" J As p r o c i s s õ e s p ú -
b l i c a s l e v a n d o d i v e r s o s c a r r e g o s são p r á t i c a s h a b i t u a i s n o s c u l t o s d e v o d u m
d o B e n i m e os c u l t o s d e o r i x á d a área i o r u b á , p o r é m , ao q u e m e c o n s t a , n ã o
h á n e n h u m r i t u a l q u e p o s s a ser c l a r a m e n t e i d e n t i f i c a d o c o m o a n t e c e d e n t e
d o boitá j e j e .
Se o boitá é a g r a n d e festa d o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o
de A z o n o d o ( A z o a n o d o , A z o n a d o , A z a u n o o d o r , Z a n o d ô , A z a n o d ô , O z a n a d o )
é u m a das g r a n d e s festas d o B o g u m . D e f a t o , essa c e r i m ó n i a é p r ó p r i a e e x c l u -
siva desse t e r r e i r o , d e m o n s t r a n d o c o m o a p r o c u r a d e s i n g u l a r i d a d e n ã o se res-
t r i n g e ao â m b i t o d a s n a ç õ e s , m a s m a i s p r e c i s a m e n t e ao â m b i t o das c o n g r e g a -
ções. Ao lado direito de q u e m desce a Ladeira M a n o e l B o m f i m , o v o d u m
A z o n o d o estava a s s e n t a d o n u m a á r v o r e i m e n s a — d u a s o u três pessoas e m cír-
c u l o n ã o c o n s e g u i a m r o d e a r o t r o n c o . E m s e t e m b r o c a í a m t o d a s as f o l h a s e p a -
recia q u e ia m o r r e r , m a s , aos p o u c o s , d o s e s p i n h o s q u e c o b r i a m o t r o n c o e os
g a l h o s n a s c i a m f l o r e s b r a n c a s . E m j a n e i r o , n o t e m p o d a o b r i g a ç ã o , a i n d a esta-
va t o d o b r a n c o . C o m o c o m e n t a ogã A i l t o n , "o pessoal v i n h a t i r a r r e t r a t o , n ã o
t i n h a outra árvore igual em Salvador". D u r a n t e o Primeiro E n c o n t r o de N a -
ções d e C a n d o m b l é , c e l e b r a d o e m j u n h o de 1981, J e h o v á d e C a r v a l h o r e l a t a -
va a i m p o r t â n c i a d o v o d u m A z o n o d o n o t e r r e i r o jeje e d e n u n c i a v a a e s p e c u l a -
ç ã o i m o b i l i á r i a q u e e m 1978 r e s u l t o u na m o r t e da á r v o r e s a g r a d a :
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L U I S N I C O L A U PA RÉS
O g ã A i l t o n e x p l i c a q u e "a á r v o r e c a i u b e m d e v a g a r , g r u n h i n d o , como um
d o e n t e , e f o i cair n o m e i o d a e s t r a d a , s e m d a n i f i c a r n e n h u m a casa". Q u a n t o
à idade dessa árvore, a estimativa de 200 anos parece exagerada. Segundo
d e c l a r a ç õ e s d e e q u e d e S a n t a , a á r v o r e o r i g i n a l foi t r a z i d a d a Á f r i c a , p l a n t a d a
n u m a b a r r i c a p e l o avô d e E s c o l á s t i c a d a C o n c e i ç ã o N a z a r e t h , a f a m o s a M e n i -
n i n h a d o G a n t o i s . O a v ô d e M e n i n i n h a , d e n o m e S a l a c o , d e v i a ser u m li-
berto que, c o m o outros africanos naquela época, provavelmente viajou entre
as d u a s costas a t l â n t i c a s . Se c a l c u l a r m o s q u e n a s c e u a p r o x i m a d a m e n t e 50 a n o s
a n t e s d a n e t a (c. 1 8 4 4 ) , e q u e a v i a g e m à A f r i c a d e v e ter o c o r r i d o n a j u v e n -
tude, podemos especular que a chegada da árvore aconteceu na segunda
m e t a d e d o s é c u l o XIX, t a l v e z n a d é c a d a d e 1 8 6 0 . 8 0 N e s s a é p o c a , c o m o já vi-
m o s , e s t a v a m f u n c i o n a n d o t a n t o o B o g u m c o m o o M o i n h o ( G a n t o i s ) , e esse
f a t o m a i s u m a vez c o n f i r m a as e s t r e i t a s r e l a ç õ e s d e c o m p l e m e n t a r i d a d e e n t r e
as casas k e t u s e o B o g u m .
A f e s t a d e A z o n o d o é c e l e b r a d a n o d i a 6 d e j a n e i r o , dia d o s Reis M a g o s . O
v o d u m A z o n o d o é a s s o c i a d o ao rei n e g r o M e l c h o r (ou Baltazar) e, c o m o a p o n t a
C a r v a l h o , trata-se de u m a " m a n i f e s t a ç ã o p a r t i c u l a r í s s i m a d o s i n c r e t i s m o religio-
so da B a h i a " . 8 1 A r e l a ç ã o d e A z o n o d o c o m a e p i f a n i a d o s Reis M a g o s e a i d é i a
d e q u e esse v o d u m n ã o i n c o r p o r a em c o r p o h u m a n o n e m r e c e b e s a c r i f í c i o d e
s a n g u e são f a t o s u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o s . 8 2 O r a , o v í n c u l o d e A z o n o d o
c o m as g r a n d e s c a t e g o r i a s d e v o d u n s a p r e s e n t a d i s p a r i d a d e d e o p i n i õ e s .
M u i t a s pessoas, talvez a m a i o r i a , a c r e d i t a m q u e A z o n o d o é u m D a n , u m a co-
b r a da f a m í l i a de Bessen. Humbono V i c e n t e m e n c i o n a u m a c a n t i g a q u e expres-
s a r i a esse v í n c u l o : " B e s s e n A z o n a d o ; [ p a r a ] B e s s e n n o g u e r é d é u á ; B e s s e n
A z o n a d o ; Bessen n o g u e r é d é u á " . 8 3 Já o u t r a s p e s s o a s p a r e c e m ter c o n f u n d i -
do Azonodo com Azoani, o v o d u m da família de Azonsu.84 Embora o povo
j e j e d i s t i n g a c l a r a m e n t e e n t r e esses d o i s v o d u n s , a c o m u m raiz f o n é t i c a azon,
q u e e m f o n g b e significa e n f e r m i d a d e e que constitui a base de m u i t o s n o m e s
de v o d u n s da categoria Sakpata, sugere u m a ligação inicial de A z o n o d o c o m
o p a n t e ã o d a t e r r a . S e g u r o l a r e g i s t r a o n o m e Azowano como um apelido de
S a k p a t a . P a r a R e g o , Azon non do s i g n i f i c a a p l a n t a q u e p r o v o c a a e n f e r m i d a -
de. 8 5 E m U i d á , u m s a c e r d o t e d e S a k p a t a , a p ó s d e s c r i ç ã o d a á r v o r e de A z o n o d o ,
que é de folha perene, espinhos e flores brancas, a identificou c o m o a árvore
clontin, a s s o c i a d a a o v o d u m S o d j i , d a c a t e g o r i a S a k p a t a . S u a f o l h a , cloma, é
u t i l i z a d a p a r a o p r e p a r o d e amasi e está a s s o c i a d a a u m r i t u a l d e p u r i f i c a ç ã o
p a r a a f a s t a r a e n f e r m i d a d e {eno nyi azòn).86 Já Everaldo D u a r t e , em viagem
350
O SITUAI
N e s s a f e s t a t o d o s os i n i c i a d o s t r a j a m o b r a n c o e l e v a m c o n t a s e m cores claras. As
mulheres e m procissão carregam gamelas e tabuleiros repletos de f r u t a s das mais
v a r i a d a s q u a l i d a d e s . M a i s t a r d e essas f r u t a s são c o l o c a d a s n o s g a l h o s e raízes d o "Aza-
n o d ô " , a árvore sagrada. Nesse dia não há imolação de animais e o único sacrifício
o f e r e c i d o a A z a n o d ô s ã o as p r ó p r i a s f r u t a s . E n c e r r a n d o a f e s t a , u m a m e s a d e f r u t a s
é oferecida aos p a r t i c i p a n t e s e c o n v i d a d o s . O b s . : A festa de A z a n o d ô está p r a t i c a m e n -
te e s q u e c i d a m e s m o nas casas m a i s t r a d i c i o n a i s d o s c u l t o s A f r o - B r a s i l e i r o s . 8 9
S e g u n d o e q u e d e S a n t a , n o passado a e n t r a d a ao r e c i n t o o n d e estava p l a n -
t a d a a á r v o r e de A z o n o d o , u m l u g a r " f e c h a d o d e m a t o , n a t i v o de p e r e g u n ,
c o m m u i t o segredo", estava r e s t r i t o às v o d ú n s i s m a i s velhas. Só elas p a r t i c i -
p a v a m da o b r i g a ç ã o na q u a l e r a m a p r e s e n t a d a s as f r u t a s n o atinsa p a r a sua
c o n s a g r a ç ã o , e só u m a vez, finalizado esse rito, u m a delas saía para r e p a r t i r
as f r u t a s e n t r e o pessoal q u e esperava fora. E q u e d e S a n t a a i n d a acrescenta que,
d u r a n t e a o b r i g a ç ã o , o S o g b o de R u n h ó p e r m a n e c i a r o d a n d o p o r lá "e leva-
va u m a c o b r a p o r f o r a d a cerca; a g o r a q u e e n t r a t o d o esse p o v ã o " . 9 0 C o m o
fica claro nas descrições de C a r v a l h o e Lody, em t e m p o s mais recentes a o b r i -
gação d e i x o u de ser p r i v a d a , e a r e p a r t i ç ã o das f r u t a s se p r o d u z i a n o m e s m o
recinto do atinsa.
E v e r a l d o D u a r t e c o m e n t a q u e A z o n o d o é " u m a á r v o r e q u e dá f r u t o s , é
v e n t o e p r o t e t o r das safras". Sua o b r i g a ç ã o realizava-se p a r a c o m e m o r a r a pri-
m e i r a safra de f r u t a s de d e z e m b r o . " N i n g u é m p o d i a c o m e r f r u t a s a n t e s dessa
o b r i g a ç ã o " , m a s esse " r e s g u a r d o " , q u e se m a n t e v e v i g e n t e até a d é c a d a de
1960, já n ã o é m a i s r e s p e i t a d o . 9 1 Essa p r o i b i ç ã o l e m b r a p r e c e i t o s d e o u t r o s
r i t u a i s a s s o c i a d o s aos ciclos agrícolas, c o m o a festa d o n y a m e , c e l e b r a d a e m
s e t e m b r o n o B e n i m e e m n o v e m b r o n a Bahia. L e m b r e m o s o comentario de
351
L U I S N I C O L A U PA R É S
352
O RITUAL
353
L U I S N I C O L A U PA R É S
r i t u a l de m e n i n a s p r i n c e s a s , c o m o na C a s a das M i n a s . E m 1 9 1 6 , M a n u e l
Q u e r i n o e s c r e v e u : " S a n t a A n a , e m n a g ô é A n a m b u r u c ú , em d a h o m é a n o ,
T o b o s s i " . 9 8 P o d e m o s p e n s a r q u e , na Bahia, tobosi v i r o u u m t e r m o g e n é r i c o
dos jejes para designar v o d u n s f e m i n i n o s e / o u das águas, c o m o Aziri ou N a n ã .
A m i n h a h i p ó t e s e é q u e , c o m o n o H a i t i , o uso inicial p a r a d e s i g n a r e n t i d a d e s
das águas foi p a u l a t i n a m e n t e s u b s t i t u í d o pela r e f e r ê n c i a à " q u a l i d a d e " f e m i -
n i n a das d i v i n d a d e s , a t r i b u t o q u e f i c o u p r e d o m i n a n t e . O r a , o r i t u a l de Aziri
T o b o s i , c o n f o r m e se p r a t i c a n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , c o n s t i t u i
a última o b r i g a ç ã o q u e f e c h a o c a l e n d á r i o a n u a l de a t i v i d a d e s r i t u a i s , e essa
posição final na e s t r u t u r a d o ciclo de c e r i m ó n i a s l e m b r a a c o r r e s p o n d e n t e p o -
sição f i n a l q u e o c u p a a m a n i f e s t a ç ã o das tobosi o u m e n d i c a n t e s n o s rituais
a f r i c a n o s . Essa c o i n c i d ê n c i a p o d e n ã o ser f o r t u i t a e t r a t a r - s e de u m vestígio
d o c u l t o a g o n l i d o v o d u m Azili T o b o .
E m C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i , q u e c o n s i s t e b a s i c a m e n t e e m
"dar c o m i d a " a essa d i v i n d a d e , é u m r i t u a l e x t e r n o e d i u r n o , c e l e b r a d o a o ar
livre, n o r m a l m e n t e pela m a n h ã . O assento de Aziri está s e m p r e e n t e r r a d o n u m
atinsa l o c a l i z a d o p e r t o d e u m r i a c h o , p o ç o o u f o n t e . A p r o x i m i d a d e da á g u a
é significativa e n o Seja H u n d é ele está " p l a n t a d o " d e n t r o d ' á g u a , na m a r g e m
d o rio C a q u e n d e , sob u m pé de d e n d e z e i r o . As o b r i g a ç õ e s n o Seja H u n d é e
n o H u n t o l o j i a p r e s e n t a m variações, seja n o s h o r á r i o s , na o r d e m d o s s e g m e n -
tos r i t u a i s , nas o f e r e n d a s a l i m e n t a r e s o u e m o u t r o s e l e m e n t o s . N o e n t a n t o ,
c o m p a r t i l h a m s e m e l h a n ç a s na e s t r u t u r a geral, q u e se divide em d u a s partes. 9 9
C o m o em o u t r a s obrigações, n o início se a c e n d e u m a o u várias velas e rea-
liza-se u m a c o n s u l t a o r a c u l a r c o m o obi p a r a c o n f i r m a r a a c e i t a ç ã o da ceri-
m ó n i a p o r p a r t e d o v o d u m . D e p o i s , r e a l i z a m - s e as p r i m e i r a s o f e r e n d a s ali-
m e n t a r e s . C o m o sacrifício de galinhas, ao som dos p r i m e i r o s cânticos, dá-se
a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s nos seus a d e p t o s . N u m a g a m e l a o u n o pé d o atinsa
vão s e n d o colocados a l i m e n t o s c o m o f a r o f a , acaçá, mel, a z e i t e - d e - d e n d ê , água
e o u t r o s . Nessa p r i m e i r a p a r t e h á c a n t o s para Aziri T o b o s i , e n t r e eles:
Aé, aé, T o b o ;
T o b o s i lé, T o b o .
Makobo, makobo
T o b o s i lé m a k o b o
354
O RITUAL
355
LUIS NICOLAU PA R É S
A A N T I G A FESTA D E F E C H A R O B A L A I O E A F O G U E I R A D E S O G B O
356
O RITUAL
C o m p r o v a m o s dessa f o r m a a progressiva p e r d a de i m p o r t â n c i a da a n t i g a
festa de fechar o balaio, q u e a t u a l m e n t e , pelo m e n o s nos t e r r e i r o s jejes, pare-
357
LUIS NICOLAU PA R É S
358
O RITUAL
NOTAS
1
Seu Geninho, 5/3/2000; ogã Boboso, 5/9/2002.
2
Rodrigues, Os a f r i c a n o s . . . , p. 137, 139. Sobre a confusão entre jeje e ewe, ver, por exem-
plo, as notas de Raul Lody na obra de Querino, C o s t u m e s . . . , p. 81. Carneiro, C a n d o m -
b l é s . . . , p. 44.
' No Bogum de Salvador, no entanto, as vodúnsis podem realizar o dobale diante da
d o n é . Para comentários sobre o dobale e o i k d k ò , os f o r í b a l è (gestos de louvor e respei-
to) dos orixás homens e dos orixás mulheres, respectivamente, ver M. S. A. Santos,
M e u t e m p o . . . , pp. 54-57.
359
L U I S N I C O L A U PA RÉS
360
O RITUAL
22
Verger, Notas..., p. 25.
23
Nos tempos de Runhó, um atabaque era de O x u m , e outro de Bogum (ficha n 2 1, CEAO,
1961).
24
F i c h a n 2 1, CEAO, 1961; E v e r a l d o D u a r t e , 3 1 / 8 / 0 2 ; B e r n a r d i n h o , 1 4 / 8 / 1 9 9 9 , 9 / 1 / 2 0 0 0 ;
humbono Vicente, 29/11/2000.
25
Verger, Notas..., p. 28.
26
Ortiz, La africania..., pp. 374, 376, apud Verger, Notas..., pp. 25, 28, 29.
r
Joãozinho, 7/1/1996.
28
"Os 'time line' constituem uma categoria especial de padrões de percussão, caracteri-
zados por uma estrutura interna assimétrica como 5 + 7 ou 7 + 9. São padrões de uma
nota só, executados num instrumento musical com uma qualidade de som penetrante,
como uma sineta" (Kubik, Theory...). Para transcrever os time Unes, sigo o sistema de
anotação convencional utilizado por Kubik, em que "/" marca o início do ciclo rítmi-
co, e em que "x" (a batida) e "." (o silêncio) têm a mesma duração.
29
Vatin, Étude.... Fico grato a Xavier Vatin pela esclarecedora entrevista que me conce-
deu em 27/6/2001.
30
Ramos, O negro..., p. 163; Segurola, Dietionnaire..., p. 4. O adahun era um ritmo uti-
lizado para encorajar os guerreiros antes ou durante as guerras e ainda é tocado nos
cultos v o d u m do Benim. Ver t a m b é m Cossard, La musique..., pp. 160-79; Vatin,
Étude...
31
Em fongbe satã designa um tambor grande que faz parte de certas orquestras fúnebres
ou de divertimento, já satò designa o quintal diante dos conventos vodum ou do pa-
lácio real (Segurola, Dietionnaire..., p. 457).
32
Vatin, Étude...; Sodré, "Música sacra do Candomblé...".
33
No Seja H u n d é , a variação do quebrado apresenta mudança na estrutura de batidas,
mas no H u n t o l o j i o time line muda para o avamunha (ou uma versão mais rápida),
passando de um ciclo de 6 pulsos a um de 12. Já no mundubi, no Seja H u n d é o time
line incrementa uma batida "/x.x.x./", enquanto no Huntoloji há outra sequência mais
complexa que não consegui identificar com precisão.
34
Olga de Alaketo, entrevista 3/1/1996; Waldeloir Rego, 31/12/1995.
33
Van G e n n e p , Rites..., Turner, The Ritual... Para descrições de diversos rituais de ini-
ciação na área gbe, ver Verger, Notas..., pp. 81-118; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
pp. 1 1 1-26, 162-66, 178-90. Utilizo o feminino para referir-me à pessoa iniciada, por
serem as mulheres maioria entre os devotos do Candomblé e da religião vodum, mas
cabe notar que os homens também podem ser iniciados como vodúnsis.
36
Verger, Notas..., pp. 82, 105.
3
" Gaiaku Luiza, 25/12/1994, 20/8/1996.
38
Gaiaku Luiza, 17/8/2002; ogã Boboso, 7/9/2002. Contrariamente, em O Alabama, do-
cumenta-se o caso de uma mulher do Bogum que estava sendo iniciada, "no ato de fazer
o sapocan, cerimónia que consiste em cortar os cabelos e poder transpor o limiar da tal
casinha, depois de seis meses" (grifo nosso) (O Alabama, 14/4/1869, p. 1). Outras notí-
cias de O Alabama (i. e., 6/3/1867, pp. 2-3; 24/12/1870, p. 5; 11/11/1871, p. 4) descre-
vem de forma bastante preconceituosa aspectos da iniciação em outros terreiros jejes,
denunciando condições higiénicas, exploração sexual, maus tratos, e até eventuais mor-
tes causadas pelos castigos.
w
Gaiaku Luiza, 25/12/1994; humbono Vicente, 4/5/1999, 16/5/1901.
40
Gaiaku Luiza, 25/12/1994.
361
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362
O RITUAL
363
L U I S N I C O L A U PA RÉS
77
Milton Moura, l E /9/2001.
78
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., p. 80.
79
J. de Carvalho, "Nação...", p. 53. Ver também "Locose toma assento na cadeira de
Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; "Mundo Jeje comemora cinquentenário de sua mãe-de-
santo", A Tarde, 26/7/1988.
80
Equede Santa, Salvador, entrevista de 1981. Menininha nasceu em 10 de fevereiro de
1894 (D. F. da Silva, "A morte..."). A informação sobre o nome Salaco é de Vivaldo
da Costa Lima, comunicação pessoal, 10/8/1999.
81
J . d e C a r v a l h o , " N a ç ã o . . . " , p . 53.
82
Lody, Ao som..., p. 47; gaiaku Luiza, 17/2/98; Nenem de Mello, 7/1/2003.
83
Humbono Vicente, 13/11/1999.
84
Lima, "A família...", pp. 21, 43. Everaldo Duarte também sugere uma possível rela-
ção de Azonodo com Azoani, mas sem identificá-los (21/4/1999).
85
Waldeloir Rego, "Mitos...", p. 186. Segurola, Dietionnaire..., p. 84. Outras interpre-
tações mais questionáveis associam Azonodo como um vodum dos astros, ou Sogbo.
Ogã Boboso, 18/12/1998; J. de Carvalho, "Nação...", p. 53.
sf
' Avimanjenon, Uidá, 24/11/2001.
87
Everaldo Duarte, 31/8/2002.
88
"Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge", jornal e data não identificados,
1978; J. de Carvalho, "Nação...", p. 54.
89
Lody, Ao som..., p. 47.
90
Equede Santa, Salvador, entrevista 1981.
91
Everaldo Duarte, 21/4/1999.
92
O Alabama, 24/11/1871, p. 4.
93
Para um estudo em detalhe do tema desta seção, ver Parés, "O triângulo...".
94
Semasusi, Uidá, entrevista 4/10/1995. Azilinon, Uidá, entrevista 20/9/1995.
95
Para uma análise dos bo na área gbe, ver Blier, African..., pp. 2-4, e cap. 2.
96
Aguesi, 10/8/1996; gaiaku Luiza, 28/11/1998, 17/12/1998. Indicando, mais uma vez,
a interpenetração jeje-angola, alguns consideram Kaia ou Kaiala o nome angola de
Iemanjá.
97
Aguesi, 10/8/1996. Sobre Azili no Haiti: Gleason, "Report...", p. 28; Metraux, Le
vaudou..., pp. 78, 97.
98
Querino, Costumes..., p. 37.
99
A descrição baseia-se nos rituais celebrados em 2/2/1999, no Huntoloji, e em 12/1/2000,
no Seja Hundé.
100
O Alabama, 6/3/1867; 16/2/1869, pp. 2-3.
101
O Alabama, 10/5/1867; 19/3/1869, pp 2-3.
102
Ogã Boboso, 25/9/2000; Everaldo Duarte, 30/8/2003.
103
Francisco Viana, "Ritual da guerra fecha candomblés após o carnaval", A Tarde, 17/2/1973.
Caciattore apresenta duas possíveis etimologias: 1) partiu (lo), está pronto para a guer-
ra (rogun), ou 2) festival (olórò) da guerra (ogun) (Dicionário..., p. 165).
104
Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 14/2/1999, 2/4/2000; humbono Vicente, 19/2/1999.
105
Segurola, Dietionnaire..., p. 200; Peixoto, Obra..., p. 18; Lopes, "O pessoal...", p. 47.
106
Gaiaku Luiza, 20/8/1996, 22/6/1999, 25/6/1999; humbono Vicente, 22/8/1999.
364
CONCLUSÃO
365
L U I S N I C O L A U PA RÉS
r á t e r é t n i c o - r a c i a l . Esse t i p o de i d e n t i f i c a ç ã o se dá, s o b r e t u d o , em i n t e r a ç õ e s
c o m p e s s o a s p e r t e n c e n t e s a religiões q u e n ã o p o s s u e m r e f e r e n t e s a f r i c a n o s ,
o u q u e , t e n d o - o s , n ã o os v a l o r i z a m d o m e s m o m o d o , c o m o p o r e x e m p l o
p r a t i c a n t e s de C a n d o m b l é d e C a b o c l o , U m b a n d a , E s p i r i t i s m o o u igrejas
evangélicas. N u m nível i n t e r m e d i á r i o , o n o s s o m e m b r o de t e r r e i r o p o d e uti-
lizar c a t e g o r i a s d e c a r á t e r " m e t a é t n i c o " e q u a l i f i c a r a sua casa c o m o s e n d o
d e n a ç ã o j e j e . Esse t i p o de q u a l i f i c a ç ã o - i d e n t i f i c a ç ã o se p r o d u z i r á n o r m a l -
m e n t e e m i n t e r a ç õ e s c o m m e m b r o s de o u t r o s t e r r e i r o s n a g ô s o u a n g o l a s , e
h a v e r á c o n s c i ê n c i a d e d i f e r e n ç a s l i t ú r g i c a s , assim c o m o de g e n e a l o g i a s es-
p i r i t u a i s . N u m t e r c e i r o nível, d e n t r o d e c a d a n a ç ã o , h á u m a série d e c a t e -
gorias c o m r e f e r ê n c i a s m a i s específicas a t e r r a s o u c i d a d e s a f r i c a n a s . N o caso
d o jeje, c o m o já v i m o s , s e r i a m m a h i , s a v a l u , d a g o m e , m u n d u b i e t c . Essas
c a t e g o r i a s n ã o t ê m h o j e e m dia u m e m b a s a m e n t o r i t u a l t ã o f o r t e c o m o o
d a s n a ç õ e s " m e t a é t n i c a s " , m a s p e r s i s t e m c o m o sinais d i a c r í t i c o s de c o n g r e -
gações p a r t i c u l a r e s . N o caso da n a ç ã o jeje, a v a r i a n t e m a h i p a r e c e ter persis-
tido com mais visibilidade do que outras "subnações" que foram progressi-
v a m e n t e e s q u e c i d a s . N o caso da n a ç ã o n a g ô , k e t u é a " s u b n a ç ã o " q u e des-
b a n c o u as c a t e g o r i a s c o n c o r r e n t e s .
C o m p r o v a m o s , assim, q u e a m u l t i d i m e n s i o n a l i d a d e da i d e n t i f i c a ç ã o ét-
n i c a dos n e g r o s d o século XVIII e XIX e n c o n t r a c o r r e s p o n d ê n c i a s n o â m b i t o
r e l i g i o s o , e m b o r a a i m p o r t â n c i a e v i s i b i l i d a d e social d o s v á r i o s níveis i d e n -
titários seja d i n â m i c a e h i s t o r i c a m e n t e variável. E n q u a n t o h o u v e africanos
n a B a h i a e n v o l v i d o s n o s c a n d o m b l é s , o t e r c e i r o n í v e l das " s u b n a ç õ e s " de-
via a i n d a t e r u m a r e l e v â n c i a s i g n i f i c a t i v a ; à m e d i d a q u e esses a f r i c a n o s f o -
r a m m o r r e n d o e s e n d o s u b s t i t u í d o s p o r c r i o u l o s , as d e n o m i n a ç õ e s " m e t a é t -
n i c a s " de n a ç ã o f o r a m privilegiadas. N a s ú l t i m a s d é c a d a s o nível m a i s gené-
rico da a f r i c a n i d a d e parece t o r n a r - s e o mais r e i v i n d i c a d o d e v i d o à i m p o r t â n c i a
que adquiriu a ideologia da negritude c o m o identidade étnico-racial.
T o d a s essas d i m e n s õ e s i d e n t i t á r i a s a s s o c i a d a s ao C a n d o m b l é , b a s e a d a s
e m d i f e r e n ç a s c o n c e i t u a i s e r i t u a i s m a i s o u m e n o s r e c o n h e c i d a s , são o p e -
r a t i v a s e n q u a n t o h á u m c o n s e n s o d e b a s e , i s t o é, e n q u a n t o elas o c o r r e m
d e n t r o o u e m r e l a ç ã o a u m a m e s m a i n s t i t u i ç ã o r e l i g i o s a . C o m o já a p o n t e i
r e p e t i d a s vezes, a d i f e r e n ç a é possível s o m e n t e a p a r t i r de u m m í n i m o nível
d e s e m e l h a n ç a , e essa s e m e l h a n ç a — r e s u l t a d o d e l o n g o s p r o c e s s o s d e
s i m b i o s e — se r e f l e t e t a m b é m n o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o . A s s i m , a e x p r e s s ã o
" n a g ô - v o d u m " (ou, na versão intelectualizada, "jeje-nagô") — e x p r e s s a n d o a
i n t e r p e n e t r a ç ã o dessas duas g r a n d e s tradições étnico-religiosas — é u m t e r m o
f r e q u e n t e m e n t e u s a d o pelos p r a t i c a n t e s jejes para se referir a suas p r á t i c a s .
366
CONCLUSÃO
T o d a v i a o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o a c i m a e s b o ç a d o n ã o deve ser e n t e n d i d o
c o m o rígido o u e s t r a t i f i c a d o e m níveis e s t a n q u e s . H á i n ú m e r a s possibilidades
c o m b i n a t ó r i a s dessa t e r m i n o l o g i a de n a ç õ e s p a r a d e s i g n a r os ritos das casas
de C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e a s , f o r m a n d o expressões c o m o , p o r e x e m p l o ,
k e t u - a n g o l a - c a b o c l o o u i j e x á - k e t u - a n g o l a etc. A p l a s t i c i d a d e e o e c l e t i s m o n o
uso dessas i d e n t i f i c a ç õ e s religiosas s u g e r e m o c o n s t a n t e m o v i m e n t o de p r á -
ticas e valores de u m g r u p o p a r a o o u t r o e i n d i c a m q u e tais i d e n t i f i c a ç õ e s
r e s p o n d e m , f r e q u e n t e m e n t e , a t e n t a t i v a s de l e g i t i m a ç ã o de d e t e r m i n a d o s
grupos perante outros, e nem t a n t o a continuidades diretas com tradições
a f r i c a n a s específicas.
N o caso d o B o g u m e d o Seja H u n d é , n o e n t a n t o , t r a t a n d o - s e d e c o n -
g r e g a ç õ e s c o m u m p a s s a d o q u e r e m o n t a ao s é c u l o XIX, é possível e x a m i -
n a r essas q u e s t õ e s n u m a p e r s p e c t i v a h i s t ó r i c a m a i s a m p l a . A n a l i s a n d o a
a t i v i d a d e r i t u a l e a c o n f i g u r a ç ã o d o s p a n t e õ e s , é possível a t e n t a r p a r a u m a
avaliação d o g r a u de c o n t i n u i d a d e o u d e s c o n t i n u i d a d e d o s sinais d i a c r í t i c o s
q u e m a r c a m a f r o n t e i r a da n a ç ã o j e j e - m a h i . N ã o se t r a t a de u m e x e r c í c i o
fácil d e v i d o à f a l t a d e i n f o r m a ç õ e s h i s t ó r i c a s p r e c i s a s , e a p a r t i r d e e t n o -
g r a f i a s c o n t e m p o r â n e a s fica m u i t o d i f í c i l fazer p r o j e ç õ e s n o p a s s a d o . A l é m
d o m a i s , as p e r s i s t ê n c i a s e m u d a n ç a s d e r a m - s e e m a s p e c t o s s e p a r a d o s e, às
vezes, a p e n a s p a r c i a i s das p r á t i c a s r i t u a i s . C o n t u d o , c o m base nas e v i d ê n -
cias d i s p o n í v e i s foi possível a p r e s e n t a r a l g u m a s h i p ó t e s e s s o b r e as t e n d ê n c i a s
gerais.
O s sinais d i a c r í t i c o s da l i t u r g i a j e j e m a i s visíveis são a i d e n t i d a d e das
d i v i n d a d e s , os v o d u n s , assim c o m o a l í n g u a u t i l i z a d a nas c a n t i g a s e rezas a
eles a s s o c i a d o s . Esses e l e m e n t o s , apesar das possíveis t r a n s f o r m a ç õ e s s o f r i d a s
ao l o n g o d o t e m p o , p a r e c e m a p r e s e n t a r u m a clara r e l a ç ã o de c o n t i n u i d a d e
c o m a n t e c e d e n t e s da área gbe, q u e n u m a m a i o r i a de casos r e m o n t a m à é p o -
ca da e s c r a v i d ã o . E m relação às d i v i n d a d e s v i m o s a d i n â m i c a de a g r e g a ç ã o
q u e p a r e c e o r g a n i z á - l a s em g r u p o s p r o g r e s s i v a m e n t e m a i s a b r a n g e n t e s , ao
t e m p o q u e u m a d i n â m i c a paralela e seletiva d i s c r i m i n a e e s q u e c e d i v i n d a d e s
menores.
V i m o s o caso das o f e r e n d a s s a c r i f i c i a i s a L e g b a e O g u m X o r o q u e , q u e ,
e m b o r a c o m p a r t i l h e m a e s t r u t u r a " a s s e n t o - e b ó " c o m u m ao C a n d o m b l é e
t e n d o a l g u m a s características f u n c i o n a i s s e m e l h a n t e s às d o p a d ê n a g ô , c o n s -
t i t u e m n o s e u c o n j u n t o u m a s i n g u l a r i d a d e d a l i t u r g i a jeje. Essas d i v i n d a -
des são d i f e r e n c i a d a s das suas h o m ó l o g a s n a g ô s c o m o E x u o u E l e g b a r a , a
partir da especificidade n o m i n a l . P o d e existir u m a h o m o g e n e i z a ç ã o das
p r á t i c a s r i t u a i s — L e g b a recebe azeite, f a r o f a e acaçá c o m o E x u — , m a s essa
367
L U I S N I C O L A U PA R É S
h o m o g e n e i z a ç ã o d e r i v a e m p a r t e da Á f r i c a , o n d e essas d i v i n d a d e s já c o m -
p a r t i l h a v a m a t r i b u t o s . Aliás, a f r o n t e i r a n o m i n a l e n t r e essas d u a s c a t e g o -
rias de e n t i d a d e s (ou d e v e r í a m o s falar d e u m a só c a t e g o r i a ? ) p o d e ser té-
n u e e, p e l a s u p r e m a c i a d o s r e f e r e n t e s n a g ô s , a l g u m a s p e s s o a s , m e s m o das
casas j e j e s , p o d e m c h a m a r L e g b a d e E x u . P o r é m , a i n d a a s s i m , n o d i s c u r s o
d o p o v o - d e - s a n t o , L e g b a e O g u m X o r o q u e são c o n s i d e r a d o s " d o l a d o d o
jeje". Logo, cabe notar q u e a d i c o t o m i z a ç ã o entre Legba e Exu, que con-
t r i b u i a d e m a r c a ç ã o da f r o n t e i r a e n t r e a l i t u r g i a j e j e e n a g ô , d e r i v a d e u m a
o p o s i ç ã o já e x i s t e n t e na Á f r i c a , e t e r í a m o s assim u m caso d e r e t e n ç ã o m a i s
ou menos adaptada.
T a m b é m n o caso de A z i r i v i m o s c o m o v a r i a n t e s locais d e c u l t o s de vo-
d u m da área g b e p e r s i s t e m c o m o v a r i a n t e s r e g i o n a i s d e n t r o d a l i t u r g i a j e j e
n o Brasil, o q u e i n d i c a u m a c o n t i n u i d a d e n ã o a p e n a s d o c o m p l e x o c o n c e i -
tuai e ritual associado a v o d u n s específicos, mas t a m b é m u m a c o n t i n u i d a d e
das suas d i f e r e n ç a s r e l a t i v a s . E m o u t r a s p a l a v r a s , n o Brasil n ã o h o u v e a p e -
n a s a m a n u t e n ç ã o das f r o n t e i r a s e n t r e os c u l t o s d e v o d u m e os c u l t o s d e
o r i x á , m a s em a l g u n s casos h o u v e p e r s i s t ê n c i a de d i f e r e n ç a s e n t r e d i s t i n t o s
c u l t o s d e v o d u n s , o q u e é i n d i c a t i v o da i m p o r t â n c i a d e a g e n t e s sociais p a r -
t i c u l a r e s n a t r a n s f e r ê n c i a , r e a t u a l i z a ç ã o e t r a n s m i s s ã o de p r á t i c a s religiosas
a f r i c a n a s n o Brasil.
V i m o s , t o d a v i a , em r e l a ç ã o a c e r t o s s e g m e n t o s r i t u a i s c o m o o zandró, a
c o n t i n u i d a d e de f o r m a s c o m p l e x a s de a t i v i d a d e r i t u a l q u e , a p e s a r das m u -
d a n ç a s , a c r é s c i m o s o u e s q u e c i m e n t o s , e n c o n t r a m claros a n t e c e d e n t e s n a s
p r á t i c a s v o d u n s d a área g b e . P o d e m o s , a s s i m , dizer q u e u m a p a r t e i m p o r -
t a n t e d o s sinais d i a c r í t i c o s q u e e s t a b e l e c e m as f r o n t e i r a s d a n a ç ã o j e j e está
ancorada em práticas dos cultos de v o d u m i m p o r t a d a s d u r a n t e a época do
tráfico.
Ora, em relação a outros elementos rituais q u e hoje c o n s t i t u e m singu-
l a r i d a d e s d a n a ç ã o jeje, n ã o é t ã o fácil e n c o n t r a r tais a n t e c e d e n t e s . C o m e n -
t a m o s o caso d o boitá, essa h o m e n a g e m às á r v o r e s s a g r a d a s q u e , até o n d e
e u sei, n ã o e n c o n t r a u m a c o r r e s p o n d ê n c i a clara nas p r á t i c a s v o d u n s a f r i c a -
n a s . T a m b é m o c u l t o de A z o n a d o n o B o g u m , e m b o r a p r o v a v e l m e n t e fosse
u m a á r v o r e i m p o r t a d a da área gbe, a s s o c i a d a a a l g u m c u l t o d o v o d u m Sak-
p a t a , c o m o s u g e r e o seu n o m e , n ã o h á n a Á f r i c a u m a n t e c e d e n t e d a "festa
d a s f r u t a s " c o m o é r e a l i z a d a em Salvador. E claro q u e as e t n o g r a f i a s religio-
sas da área g b e a p r e s e n t a m g r a n d e s l a c u n a s , e q u e o q u e c o n s i d e r o f a l t a de
a n t e c e d e n t e s talvez seja a p e n a s d e s c o n h e c i m e n t o d e c u l t o s n ã o d o c u m e n -
t a d o s . T o d a v i a é p o s s í v e l q u e p r á t i c a s q u e p e r s i s t i r a m n o Brasil t e n h a m
368
CONCLUSÃO
d e s a p a r e c i d o p o s t e r i o r m e n t e na área gbe. H á , n o e n t a n t o , t a m b é m a p o s -
s i b i l i d a d e de t r a t a r - s e de s e g m e n t o s r i t u a i s q u e f o r a m aos p o u c o s s e n d o
" c r i a d o s " n o Brasil, n o caso d o gra, p o r e x e m p l o , p o r s i m b i o s e c o m p r á t i -
cas angolas o u , n o caso d o boitá, c o m o c o n s e q u ê n c i a da o r g a n i z a ç ã o dos
c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s , s e n d o q u e a e s t r u t u r a p r o c e s s i o n a l da o b r i -
gação parece d e s e n h a d a para p r e s t i g i a r essa m u l t i p l i c i d a d e de assentos.
A m e s m a falta de d a d o s e t n o g r á f i c o s i m p e d e de se p r o c e d e r a u m a avalia-
ção s o b r e o g r a u de c o n t i n u i d a d e de o u t r o s e l e m e n t o s r i t u a i s , c o m o as co-
r e o g r a f i a s e os r i t m o s mundubi e quebrado do jeje-mahi cachoeirano, em-
b o r a de f o r m a i n t u i t i v a p e r m i t a p e n s a r - s e em a l g u m t i p o de c o n t i n u i d a d e .
E m relação a c o m p l e m e n t o s de vestuário e, c o n s i d e r a n d o apenas aqueles dis-
t i n t i v o s d o j e j e c o m o , p o r e x e m p l o , a p a l h a da C o s t a t i n g i d a de v e r m e l h o ,
a c h a m o s a n t e c e d e n t e s na área gbe. N o e n t a n t o , a u t i l i z a ç ã o desse e l e m e n -
to em relação ao v o d u m S a k p a t a p a r e c e ter sido u m a criação e s s e n c i a l m e n -
te brasileira. Esses casos sugerem q u e certos sinais diacríticos da liturgia jeje
são r e s u l t a d o d e e l e m e n t o s o r i g i n á r i o s da área gbe q u e s o f r e r a m c o m p l e -
xos processos d e m u d a n ç a e a d a p t a ç ã o às novas c o n d i ç õ e s r i t u a i s .
Por o u t r o l a d o , c o m p r o v a m o s q u e s e g m e n t o s r i t u a i s e l a b o r a d o s n o Bra-
sil — c o m o a festa de f e c h a r o b a l a i o o u a f o g u e i r a de São J o ã o , r e s u l t a d o s
da i n t e r p e n e t r a ç ã o das p r á t i c a s a f r i c a n a s c o m t r a d i ç õ e s católicas o u ibéri-
cas e, p o r t a n t o , r e s u l t a d o s d o c o n s e n s o de a f r i c a n o s de p r o c e d ê n c i a h e t e -
r o g é n e a e n ã o de q u a l q u e r n a ç ã o p a r t i c u l a r — se c o n s t i t u í r a m e m espaços
rituais p o u c o favoráveis para sustentar sinais diacríticos d i f e r e n c i a d o r e s , e m -
b o r a , claro está, cada casa possa ter d e s e n v o l v i d o d e t a l h e s p a r t i c u l a r e s .
F i n a l m e n t e , a p o n t e i o caso de s e g m e n t o s rituais c o m o o decá e o p a n ã ,
que p o d e r i a m ter sido o r i g i n a r i a m e n t e práticas dos cultos de v o d u m , aos p o u -
cos esquecidas pelos jejes até o p o n t o de q u e h o j e em dia eles n o t e m a sua
ausência c o m o traço distintivo da sua liturgia. Paralelamente, os m e s m o s ele-
m e n t o s f o r a m a p r o p r i a d o s , reelaborados e valorizados pelos nagôs nos cultos
de orixá, c h e g a n d o a se converter nos seus sinais diacríticos. Esse m o v i m e n t o
de práticas de u m g r u p o para o u t r o e a sua p o s t e r i o r reelaboração até t r a n s -
f o r m a r - s e e m sinais de i d e n t i d a d e d o g r u p o r e c e p t o r seria o caso mais e m -
b l e m á t i c o da p l a s t i c i d a d e e da d i n â m i c a de m u d a n ç a h i s t ó r i c a a q u e estão
sujeitos os e l e m e n t o s c u l t u r a i s escolhidos nos processos de i d e n t i d a d e é t n i -
co-religiosa.
S u m a r i a n d o , a análise dos sinais d i s t i n t i v o s da l i t u r g i a jeje sugere q u e
eles r e s u l t a m de u m a m u l t i p l i c i d a d e de processos, i n c l u i n d o simples sobre-
vivências, mas em m a i o r m e d i d a r e t e n ç õ e s p a r c i a l m e n t e r e a d a p t a d a s e res-
369
LUIS NICOLAU PA R É S
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CONCLUSÃO
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