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UNIVERSIDADE

o
UNI CAM P

ESTADUAL DE CAMPINAS

Reitor
JOSÉ TADEU JORGE

C o o r d e n a d o r Geral da Universidade
F E R N A N D O FERREIRA COSTA

B D I T O ff A

Conselho Editorial
Presidente
PAULO FRANCHETTI

ALCIR PÉCORA - ARLI-Y R A M O S MORENO

JOSÉ A . R. GONTIJO - JOSÉ ROBERTO ZAN

L U I S F E R N A N D O CF.RIBF.U.I MADI - MARCF.I.O KNOBEI.

SFDI HIRANO - WILSON CANO


LUIS NICOLAU PARÉS

T O O

A F O R M A Ç Ã O DO C A N D O M B L É
H I S T Ó R I A E RITUAL DA N A Ç Ã O JEJE NA B A H I A

2° EDIÇÃO REVISTA
F I C H A C A T A L O G R Á F I C A E L A B O R A D A PELA

BIBLIOTECA CENTRAL DA UNICAMP

Pares, Luis N i c o l a u .
P216f A f o r m a ç ã o d o C a n d o m b l é : h i s t ó r i a e ricual d a n a ç ã o j e j e n a Bahia / L u i s
N i c o l a u Pares. - 2* e d . rev. - C a m p i n a s , SP: E d i t o r a da UNICAMP, 2 0 0 7 .

1. C a n d o m b l é - B a h i a . 2. V o d u - B a h i a . 3. E t n i c i s m o . I. T í t u l o .

CDD 299.6098142
ISBN 9 7 8 - 8 5 - 2 6 8 - 0 7 7 3 - 0 390

índices para catálogo sistemático:

1. Candomblé — Bahia 299.6098142


2. V o d u - Bahia 299.6098142
3. E t n i c i s m o 390

C o p y r i g h t © b y Luis N i c o l a u Parés

C o p y r i g h t © 2 0 0 7 by E d i t o r a d a UNICAMP

N e n h u m a p a r t e d e s t a p u b l i c a ç ã o p o d e ser gravada, a r m a z e n a d a
em sistema eletrônico, fotocopiada, reproduzida por meios mecânicos
o u o u t r o s q u a i s q u e r s e m a u t o r i z a ç ã o prévia d o e d i t o r .
In m e m o r i a m
Vicente Paulo dos Santos
1
AGRADECIMENTOS

Este trabalho é resultado de um longo processo de pesquisa que não teria sido
possível sem a colaboração de um grande número de pessoas e instituições,
às quais gostaria de expressar o meu agradecimento. Em primeiro lugar, devo
lembrar muito especialmente os nomes dos mais velhos, que, pacientemente,
partilharam seu tempo e sua sabedoria comigo: o finado humbono Vicente Paulo
dos Santos, a finada gaiaku Luiza Franquelina da Rocha e seu irmão carnal,
Eugénio Rodrigues da Rocha, ogã kuto Ambrosio Bispo Conceição, ogã impe
Bernardino Ferreira e agbagigan Everaldo Conceição Duarte. Agradeço também
a todos os outros membros das congregações religiosas jejes e de outros candom-
blés que aceitaram minha presença em suas cerimónias, assim como a todas
aquelas pessoas do povo-de-santo que, em alguma ocasião, ajudaram na mi-
nha pesquisa, e que aqui seria impossível enumerar.
N o âmbito académico, agradeço a inestimável ajuda e o apoio dos profes-
sores João José Reis, Vivaldo da Costa Lima, embaixador Alberto da Costa e
Silva, Maria Inês Cortes de Oliveira, Renato da Silveira, Luiz M o t t , Mariza
de Carvalho Soares, Silvia H u n o l d Lara, e aos membros da linha de pesquisa
Escravidão e Invenção da Liberdade, do Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal da Bahia, no qual foram apresentadas ver-
sões preliminares dos capítulos 1, 2 e 3. Sou igualmente grato aos colegas do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da
Bahia, em particular Maria Rosário de Carvalho, Graça Druck e Miriam Ra-
bello, que sempre propiciaram um ambiente académico estimulante para
minha pesquisa.
Agradeço a ajuda de outros pesquisadores e amigos, como Hypolite Brice
Sogbossi, Roger Sansi, Liza Earl Castillo, Luiz Cláudio Nascimento, Fernando
Araújo e Peter C o h e n . Também aos funcionários do Arquivo Regional de
Cachoeira, Arquivo Público do Estado da Bahia e Instituto Geográfico Histó-
rico da Bahia, pela a j u d a na pesquisa d o c u m e n t a l . Meus agradecimentos,
ainda, a Sheila Cavalcante dos Santos, pela paciente revisão do meu p o r t u -
guês, e a Bete C a p i n a n , pelo esforço na busca de recursos para publicação.
Esta pesquisa não teria sido possível sem a bolsa de pesquisador visitante
concedida pelo C N P q nos anos 1999-2002 e, a n t e r i o r m e n t e , a bolsa de pro-
fessor visitante concedida pela C A P E S no período 1998-1999. T a m b é m , em
2003, a Fundação de A m p a r o à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB) conce-
deu-me u m auxílio de publicação. Meu grato reconhecimento, por seu apoio,
a essas instituições brasileiras de f o m e n t o à pesquisa.
SUMÁRIO

ABREVIATURAS 11

PREFÁCIO 13

1 ENTRE DUAS COSTAS: NAÇÕES, ETNIAS,


PORTOS E TRÁFICO DE ESCRAVOS 23

2 FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE


NA BAHIA DOS SÉCULOS XVIII E XIX 63

3 DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ: O PROCESSO FORMATIVO


DA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA 101

4 A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO


DO CANDOMBLÉ NO SÉCULO XIX 125

5 O BOGUM E A ROÇA DE CIMA: A HISTÓRIA PARALELA


DE DOIS TERREIROS JEJES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX 169

6 LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS

BOGUM E SEJA HUNDÉ NO SÉCULO XX 213

7 O PANTEÃO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES 271

8 O RITUAL: CARACTERÍSTICAS DA LITURGIA JEJE-MAHI NA BAHIA 313

CONCLUSÃO 365

BIBLIOGRAFIA 373
ABREVIATURAS

AAPBa Anais d o Arquivo Público d a Bahia


ACMS Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
ANTT Arquivo Nacional da Torre do Tombo — Lisboa
APEBa Arquivo Público do Estado da Bahia — Salvador, Bahia
ARC Arquivo Regional da Cachoeira — Cachoeira, Bahia
ASMPAC Arquivo da Sociedade Montepio dos Artistas Cachoeiranos
Cachoeira, Bahia
CEAO Centro de Estudos Afro-Orientais
ED Études Dahomeénnes
FTFC Fórum Texeira de Freitas — Cachoeira, Bahia
iHGBa Instituto Histórico e Geográfico da Bahia — Salvador, Bahia
UFBa Universidade Federal da Bahia

II
PREFÁCIO

Resultado de mais de sete anos de pesquisa, este livro é uma contribuição para
a recuperação da memória histórica de um grupo geralmente esquecido, tanto
nos estudos afro-brasileiros como entre o povo-de-santo. O prestígio da nação
jeje de C a n d o m b l é 1 é ainda reconhecido entre os especialistas religiosos, e
os pesquisadores não deixaram de se referir ocasionalmente a aspectos parciais
do seu rito. No entanto, não houve até agora n e n h u m livro dedicado a estudar
em p r o f u n d i d a d e e de forma pormenorizada essa "raiz" da cultura afro-bra-
sileira.
O livro enquadra-se ao mesmo tempo na área da história e da antropologia
da religião afro-brasileira. Interdisciplinar, portanto, incide numa pluralidade de
temas diversos, mas internamente entrelaçados, incluindo, entre outros: a
construção da etnicidade jeje no Brasil Colónia, a contribuição dos cultos de
voduns no processo formativo do Candomblé, a micro-história de dois terreiros
de nação jeje e uma etnografia seletiva do panteão e do ritual vodum contem-
porâneo na Bahia.
Um outro aspecto significativo deste trabalho diz respeito ao uso comple-
mentar de fontes escritas e orais, em combinação com a análise dos comporta-
mentos rituais. E m b o r a não seja uma metodologia t o t a l m e n t e nova, essa
interface entre história e etnografia foi utilizada com pouca frequência nos
estudos afro-brasileiros. O cruzamento crítico dessa variedade de fontes se
mostrou bastante fértil e abriu caminhos interpretativos que teriam sido im-
possíveis a partir da análise de um único tipo de fonte. Esse exercício foi espe-
cialmente relevante na reconstituição da história dos terreiros Bogum de Sal-
vador e Seja H u n d é de Cachoeira, no Recôncavo Baiano, ambos fundados por
africanos jejes, ainda na época da escravidão.
O recorte do objeto de estudo responde a critérios de natureza linguísti-
ca. Pode-se dizer que o livro trata da historiografia de duas palavras: jeje e vo-

13
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

d u m — a p r i m e i r a de c o n t e ú d o p r i n c i p a l m e n t e étnico e a s e g u n d a de con-
teúdo n o t a d a m e n t e religioso. Essas palavras orientaram e balizaram a pesquisa
d o c u m e n t a l , assim como a seleção dos terreiros o n d e foi realizado o traba-
lho de campo, já que essas congregações religiosas se a u t o d e f i n e m c o m o per-
t e n c e n d o à "nação jeje" e se distinguem de outras por cultuar certas divin-
dades chamadas v o d u m .
Para demarcar a área geográfica africana da q u a l p r o v i n h a m os g r u p o s
étnicos que no Brasil foram conhecidos como jejes (tema do capítulo 1), tam-
bém utilizei critérios essencialmente linguísticos. Nesse sentido, segui a su-
gestão de H . B. C a p o e adotei a expressão "área dos gbe falantes" (Gbe-
speaking areà), ou simplesmente "área gbe", para designar a região setentrional
do atual Togo, República do Benim e o sudoeste da Nigéria, o n d e habitam os
povos tradicionalmente designados na literatura como adja, ewe, fon ou com-
binações desses termos c o m o adja-ewe. " G b e " é o vocábulo c o m p a r t i l h a d o
p o r todos esses grupos para designar língua e, embora não seja um t e r m o de
auto-identificação a u t ó c t o n e , tem a vantagem de não ser u m termo "etno-
cêntrico" que privilegia o n o m e de u m s u b g r u p o para designar o c o n j u n t o . 2
E precisamente entre esses povos com parentesco linguístico que desde tem-
pos antigos o termo "vodum" é usado para designar as divindades ou forças
invisíveis do m u n d o espiritual.
A demarcação de u m a área geográfica c o m base em critérios linguísticos
r e s p o n d e a u m a n e c e s s i d a d e descritiva e analítica, mas cabe n o t a r q u e a
área gbe s e m p r e c o n s t i t u i u u m a s o c i e d a d e p l u r i c u l t u r a l e p o l i é t n i c a , em
q u e o sistema m e r c a n t i l , as guerras e o sistema escravocrata f a v o r e c i a m
fluxos p o p u l a c i o n a i s de u m a zona p a r a o u t r a , q u e c o n t r i b u í a m para essa
d i v e r s i d a d e . 3 C i d a d e s c o m o U i d á e A b o m e y eram c e n t r o s r e l a t i v a m e n t e
c o s m o p o l i t a s , comparáveis, salvando as distâncias, com os núcleos u r b a n o s
d o Brasil C o l ó n i a , o n d e t a m b é m p o r razões de o r d e m m e r c a n t i l , ligadas
ao sistema escravocrata a t l â n t i c o , se p r o d u z i a a m e s m a c o n f l u ê n c i a e o en-
c o n t r o de grupos h u m a n o s c u l t u r a l m e n t e diversos. Essa semelhança estru-
t u r a l sugere que certas d i n â m i c a s d e i d e n t i d a d e coletiva de g r u p o s m i n o -
ritários, b e m c o m o suas estratégias de assimilação e resistência em relação
aos g r u p o s d o m i n a n t e s , p o d i a m ter-se r e p r o d u z i d o de f o r m a paralela na
Bahia e na área gbe.
Fredrik Barth fala de sistema social englobante para referir à estrutura so-
cial ou ao c o n j u n t o de relações sociais compartilhadas por todos os membros
de u m a sociedade plural (o consenso macrossocial), e fala da m a n u t e n ç ã o de
fronteiras entre grupos étnicos como "organização da diversidade cultural" (a
diferença microssocial). Esse autor insiste na necessidade de não se c o n f u n -
dir cultura e etnicidade, pois a última seria uma dinâmica desenvolvida a par-

14
PREFÁCIO

tir da valorização de apenas alguns elementos culturais, os sinais diacríticos


q u e expressam as diferenças.
Porém a persistência dos grupos étnicos precisa de "um c o n j u n t o sistemá-
tico de regras dirigindo os contatos interétnicos"; em outras palavras, é pre-
ciso q u e exista " u m a c o n g r u ê n c i a de códigos e valores", o q u e em ú l t i m a
instância requer e cria u m a "similaridade ou c o m u n i d a d e de cultura". 4 O s
sistemas sociais multiétnicos c o m p o r t a m , p o r t a n t o , u m a relativa simbiose
cultural, u m consenso de base a partir do qual se articula a diferença. C o m o
veremos, o C a n d o m b l é é u m claro exemplo dessa d i n â m i c a de progressiva
homogeneização institucional, a c o m p a n h a d a de u m a d i n â m i c a paralela de
diferenciação "étnica" estabelecida a partir de u m a série discreta de elemen-
tos rituais.
U m dos problemas centrais deste trabalho é c o m p r e e n d e r a génese e a
m a n u t e n ç ã o das identidades étnicas dos africanos no Brasil. Para abordar essa
questão optei por utilizar as teorias da etnicidade de caráter "relacional" pro-
postas por Barth, em d e t r i m e n t o daquelas de caráter "primordial" sustenta-
das por autores c o m o Max Weber ou Clifford Geertz. 5 A teoria "situacional"
proposta por Barth entende a i d e n t i d a d e étnica c o m o u m a d i n â m i c a rela-
cional, ou dialógica, s e g u n d o a qual "o nós se constrói em relação a eles".
A i d e n t i d a d e étnica não seria, p o r t a n t o , simplesmente u m conglomerado de
sinais diacríticos fixos (origem, parentesco biológico, língua, religião etc.),
mas um processo histórico, dinâmico, em que esses sinais seriam selecionados
e (re)elaborados em relação de contraste com o "outro". 6 C o m o sugere Carnei-
ro da C u n h a , "a cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situa-
ções de intenso contato, não se perde ou se f u n d e simplesmente, mas adquire
u m a nova f u n ç ã o , essencial e que se acresce às outras, e n q u a n t o se torna uma
cultura de contraste" J
Por seu lado, Abner C o h e n concebe os grupos étnicos c o m o grupos de
interesses que m a n i p u l a m elementos da sua cultura "tradicional" como meio
para incentivar a u n i d a d e do g r u p o na busca pelo poder. 8 Nesse sentido, a
análise realizada no capítulo 2 sobre a construção da identidade jeje na Bahia
dos séculos XVIII e XIX sugere que os africanos desenvolviam "estratégias de
identidade" nas quais os atores sociais, em f u n ç ã o da sua avaliação da situa-
ção, utilizavam seus recursos de identidade de maneira estratégica, geralmente
com o i n t u i t o de atingir algum objetivo. Por exemplo, u m escravo ou liberto
podia identificar-se, d e p e n d e n d o do contexto e do interlocutor, como savalu,
jeje, mina ou africano, indo da categoria mais particular à mais genérica. As
diversas categorias de identidade f u n c i o n a r i a m , por assim dizer, de f o r m a su-
perposta, ou como as bonecas russas encaixadas umas nas outras.

15
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Desse p o n t o de vista, não existiria t a n t o u m a i d e n t i d a d e única, fixa e


rígida, mas m ú l t i p l o s e cruzados processos de identificação gerados p o r con-
textos e i n t e r l o c u t o r e s específicos. Nessas interações sociais, certos sinais
diacríticos, fluídos e flexíveis, seriam valorizados em f u n ç ã o da utilidade de
u m a d e t e r m i n a d a identificação e de a c o r d o com as preferências e os inte-
resses d o m o m e n t o . Mas essa i n s t r u m e n t a l i z a ç ã o da i d e n t i d a d e tem seus li-
mites n o s e n t i d o de que a i d e n t i d a d e é t a m b é m resultante da identificação
i m p o s t a pelos o u t r o s , e o i n d i v í d u o ou g r u p o deve considerar esses limites
na sua estratégia. 9 A c o n f l u ê n c i a do caráter "situacional" dos processos de
i d e n t i f i c a ç ã o , c o m a existência de um r e p e r t ó r i o variado de categorias re-
ferenciais, p e r m i t e m postular a noção de u m a identidade multidimensional.
O caso jeje sugere que a plasticidade e m u l t i p l i c i d a d e identitárias, q u e nor-
m a l m e n t e se a t r i b u e m à m o d e r n i d a d e tardia, f o r a m um f e n ó m e n o que já
se dava pelo m e n o s desde o século XVIII.
Ainda no capítulo 2 aponta-se para a i m p o r t â n c i a crítica das dinâmicas
associativas e a formação de instituições sociais, tais como irmandades católi-
cas, grupos de trabalho ou candomblés, como espaços de sociabilidade nos quais
os processos contrastivos de identificação étnica encontravam um campo de ex-
pressão fecundo. Aliás, o âmbito das práticas e valores religiosos foi um dos
espaços culturais mais ricos para a articulação das diferenças étnicas. E assim
que, intimamente imbricado com o problema da identidade étnica dos africanos
no Brasil, nos capítulos 3 e 4 abordo o processo de institucionalização do Can-
domblé e a sua contribuição para a formação de uma "cultura afro-brasileira".
Um dos temas centrais dos estudos comparativos sobre a religião afro-ame-
ricana é o relativo grau de c o n t i n u i d a d e ou de m u d a n ç a sofrido pelas culturas
religiosas de origem africana no Novo M u n d o . E n q u a n t o autores c o m o Mel-
ville Herskovits ou Roger Bastide deram ênfase especial à c o n t i n u i d a d e das
formas culturais africanas e à "tenacidade da tradição", mais recentemente ou-
tros autores têm notado as "dramáticas" mudanças que ocorreram no processo
de transferência, concluindo que a experiência do Novo M u n d o praticamente
diluiu a herança africana. O dilema está em saber se a cultura negra ou, no
caso mais concreto que nos ocupa, a religião afro-brasileira deve ser entendida
como retenção ou sobrevivência de africanismos, ou como adaptação criativa
à dureza da escravidão e do racismo.
A primeira corrente interpretativa valoriza o conceito de sobrevivência cul-
tural, i n t r o d u z i d o por Herskovits, para designar aqueles elementos da antiga
cultura conservados "idênticos" na nova cultura "sincrética", buscando provar
a qualquer preço a c o n t i n u i d a d e da cultura apesar das m u d a n ç a s aparentes.
Essa interpretação, assumida t a m b é m pelo setor "tradicionalista" dos prati-

16
PREFÁCIO

cantes de C a n d o m b l é , tem reforçado a ideologia da "pureza" étnica e ritual


dessa instituição e, legitimada por "mitos" históricos, sustenta u m a idéia da
tradição como repetição invariável. Nos estudos afro-americanos essa postura
se alinha n o r m a l m e n t e com u m a ideologia afro-cêntrica. 1 0
Já a segunda corrente interpretativa encara a tradição como estímulo para
a inovação e a m u d a n ç a ; destaca a hibridez, ou crioulização, da religião afro-
brasileira e a necessidade de estudá-la e entendê-la não em relação às origens
africanas, mas d e n t r o da especificidade do processo histórico e do contexto
sociocultural brasileiro. Esse m o d e l o critica a obsessiva busca por "africa-
nismos" ou sobrevivências culturais africanas empreendida pelos pesquisadores,
o que, em certos casos, é visto como uma forma de "exotizar" a religião. Vale
notar que a tese "crioulista" não nega a continuidade com a Africa, mas enfatiza
os processos culturais que, no novo contexto colonial, modificaram considera-
velmente algumas práticas rituais, m a n t e n d o outras, e b u s c a n d o paralelos
entre diferentes tradições religiosas. 11
Nesse â m b i t o teórico, Sidney M i n t z e Richard Price, influenciados pela
antropologia simbólica americana, sugerem um novo enfoque nos estudos so-
bre continuidade e mudança. Mais que comparar as formas e a funcionalidade
dos elementos religiosos, eles chamam a atenção para a necessidade de compa-
rar o sentido dos "africanismos" e a persistência de certas orientações cognitivas
ou "visões do m u n d o " (world views); enfim, sugerem comparar não os aspec-
tos estruturais das representações culturais africanas e diaspóricas, mas o que
essas representações significam, pretendem e expressam. 12
O p r o b l e m a da permanência e da m u d a n ç a , ou da interação entre estru-
tura e ação, é um dos temas recorrentes nos estudos antropológicos. C o m
certas especificidades, essa problemática é aplicável t a m b é m à religião afro-
brasileira. Comprova-se, na história do C a n d o m b l é , a persistência de certos
valores e práticas j u n t o à ressignificação ou criação de outros. Há, p o r t a n t o ,
alguma coisa que permanece ao lado de o u t r a que m u d a . D e f e n d o a necessi-
dade de entender a simultaneidade ou sincronia dos processos de continuida-
de e descontinuidade, assim c o m o a necessidade de entender a proporção en-
tre essas dinâmicas. O problema é uma questão de ênfase, e o meu acento não
cai sobre os "africanismos" ou as "invenções", mas sobre a complexa interação
entre ambos.
Herskovits definiu a noção de reinterpretação (ou, na sua versão atualizada,
ressignificação) como "o processo pelo qual antigas significações são atribuí-
das a elementos novos ou pelo qual novos valores m u d a m a significação cultu-
ral de formas antigas". 1 3 O interesse dos culturalistas em d e m o n s t r a r a conti-
nuidade dos significados (inclusive nas mudanças) levou-os a dar uma ênfase

17
LUIS NICOLAU P A R ÉS

na primeira parte da definição. D o seu lado, os defensores da tese crioulista


tenderiam a destacar a segunda parte da definição, privilegiando o conceito
de agência, do envolvimento ativo e t r a n s f o r m a d o r dos próprios participan-
tes. Sahlins fala da c o n t í n u a "reavaliação f u n c i o n a l " das categorias culturais
e de c o m o "a cultura é alterada historicamente na ação". 14
Sabemos que nem todos os legados culturais são contínuos e n e n h u m deles
é primordial. O r a , poderíamos nos perguntar se o C a n d o m b l é seria o mesmo
se os grupos africanos i m p o r t a d o s para o Brasil tivessem sido outros. N ã o há
como responder com precisão a essa questão, mas é provável que sem a contri-
buição dos grupos da Africa ocidental o C a n d o m b l é dificilmente teria che-
- g a d o às formas de organização conventual pelas quais é reconhecido hoje em
dia. E m outras palavras, a especificidade de certas tradições religiosas africa-
nas foi tão i m p o r t a n t e q u a n t o o sistema da escravidão para d e t e r m i n a r a for-
mação dessa instituição religiosa.
U m a das teses centrais deste trabalho, exposta nos capítulos 3 e 4, sustenta
que f o r a m as tradições religiosas da Costa da M i n a , e em especial as da área
gbe, isto é, os cultos de v o d u m , os que providenciaram no Brasil setecentista
os primeiros referentes para a organização do g r u p o religioso n u m a estrutura
eclesial ou conventual. O tipo de atividade devocional desenvolvido a partir
da consagração de devotos às divindades mediante processos de iniciação, com
a instalação de altares fixos em espaços sagrados estáveis, contrastava com as
práticas terapêuticas e oraculares de caráter mais individualizado e itinerante,
próprias da maioria dos calundus coloniais.
Através da análise cronológica da documentação sobre as práticas religiosas
dos africanos nos séculos XVIII e XIX percebe-se u m processo de progressiva
complexidade, t a n t o no aspecto ritual como na organização do g r u p o reli-
gioso. C o m o sugeri, penso que os especialistas religiosos jejes, com sua ex-
periência e m e m ó r i a das tradições do culto de v o d u n s na área gbe, p r o p o r -
cionaram i m p o r t a n t e s referentes para a institucionalização do C a n d o m b l é ,
particularmente no que tange à organização de congregações extradomésticas
de tipo eclesial.
Essa tese é complementada com o argumento, desenvolvido no capítulo 7,
de que a justaposição de várias divindades n u m m e s m o t e m p l o e a organi-
zação de performance ritual seriada, características do C a n d o m b l é c o n t e m p o -
râneo, e n c o n t r a m nas tradições v o d u n s da área gbe um claro a n t e c e d e n t e
desde pelo menos o século XVIII, sobretudo no âmbito dos cultos reais ou das
linhagens socialmente d o m i n a n t e s em cidades c o m o Uidá ou Abomey. Por-
tanto, a constituição de cultos de múltiplas divindades não seria, como tem
sustentado a literatura, l 5 apenas uma "invenção" local resultado das novas con-

18
PREFÁCIO

dições socioculturais do Brasil, especificamente da Bahia, mas encontraria nos


cultos de v o d u m na Africa u m modelo organizacional que teria sido replicado
por variados grupos étnicos com suas divindades particulares.
Estou, então, apesar de ciente das transformações, enfatizando de algum
m o d o certas continuidades, no que se refere às linhas estruturais dos cultos,
e a i m p o r t â n c i a de algumas tradições religiosas africanas nesse processo. Po-
rém, é preciso insistir que não estou d e f e n d e n d o um único "modelo p r i m o r -
dial" do C a n d o m b l é , nem quero reduzir a sua formação a u m simples con-
glomerado de continuidades diretas. Sabemos, por exemplo, c o m o o carisma
de um líder religioso pode ser d e t e r m i n a n t e na legitimação de um novo com-
p o r t a m e n t o ritual e na sua posterior réplica por parte de outros. Assim, o in-
divíduo c o m o transmissor de cultura se converte em agente de m u d a n ç a , e
por isso a história do C a n d o m b l é precisa fazer um esforço de aproximação
aos sujeitos históricos que foram seus protagonistas.
É sob essa perspectiva que os capítulos 5 e 6 ensaiam u m a reconstituição
histórica, em longue durée, desde a segunda m e t a d e do século XIX até nos-
sos dias, de duas congregações de C a n d o m b l é jeje-mahi, o Bogum e o Seja
H u n d é . U m dos objetivos foi organizar com o m á x i m o de rigor possível os
escassos dados d o c u m e n t a i s e os m ú l t i p l o s e c o n t r a d i t ó r i o s t e s t e m u n h o s
orais sobre a história dessas comunidades jejes. Trata-se de uma tentativa pro-
visória que, sem dúvida, poderá ser acrescida e refinada por futuras pesqui-
sas. C o m base nesse c r u z a m e n t o de fontes escritas e orais, o esforço para a
recuperação da m e m ó r i a histórica dos jejes alinha-se com o interesse geral
da Nova História por estudar a história cultural dos grupos minoritários, dos
grupos subalternos, dos excluídos e dos "sem-história".
Esses capítulos t a m b é m fornecem um material interessante para exami-
nar a dinâmica de cooperação, conflito e c o m p l e m e n t a r i d a d e das lideranças
religiosas no C a n d o m b l é . A articulação de redes de solidariedade e alianças
estratégicas se mistura com a luta pelo poder nos períodos de sucessão, as ri-
validades entre facções concorrentes, as acusações de feitiçaria e as sanções
das divindades para dirimir os c o n f r o n t o s . A micropolítica no C a n d o m b l é ,
e no jeje em particular, revela-se e x t r e m a m e n t e d i n â m i c a e complexa. Uti-
l i z a n d o c o n c e i t o s de V i c t o r T u r n e r , p o d e r í a m o s dizer que o c o n f l i t o se
desenvolve no â m b i t o dos "dramas sociais" (com os q u a t r o estágios de r u p -
tura, crise, solução e reintegração ou cisma) e é resolvido através do ritual,
por sua vez e n t e n d i d o como algo regenerador e criativo. 1 6
No capítulo 7 e, sobretudo, no 8, ambicionei e n t e n d e r o fator diferencial
da identidade religiosa jeje dentro do C a n d o m b l é , r e t o m a n d o certas ideias
expostas em relação aos processos de identificação étnica. O objetivo é identi-

19
LUIS NICOLAU PAR ÉS

ficar o que t o r n a a nação jeje diferente das outras, e esse interesse decorre,
em primeiro lugar, da constatação de que esta é u m a preocupação c o m u m
entre o povo-de-santo, expressa de variadas formas pelos próprios praticantes.
Esse fator diferencial p o d e ser pensado c o m o incluindo p r i n c i p a l m e n t e dois
aspectos simultâneos: 1) certos elementos específicos da área gbe que, embora
ressignificados ou n ã o , a i n d a p e r s i s t e m ; e 2) u m processo relacional de
contraste com grupos concorrentes (isto é, jeje versus nagô). Privilegiei o se-
g u n d o aspecto, no qual as relações de contraste demarcam fronteiras entre
as nações, do mesmo m o d o c o m o acontece com os grupos étnicos. A identi-
dade religiosa é, p o r t a n t o , relacional e se expressa no contexto de um con-
~ senso institucionalizado.
O capítulo 7 examina o panteão jeje em relação a seus antecedentes afri-
canos, focalizando as divindades voduns que, sem dúvida, constituem um dos
sinais diacríticos da liturgia jeje. N o capítulo final há uma aproximação mais
etnográfica e descritiva do ritual jeje. Cabe alertar que essa etnografia — resulta-
do de um dado observador, n u m certo m o m e n t o e n u m dado lugar — não deixa
de ser aproximativa e está longe de ser exaustiva. Sabe-se que o povo jeje é
muito reservado e não conversa com facilidade sobre a sua religião, o que tal-
vez constitua outro de seus sinais diacríticos. Em diferentes m o m e n t o s , minha
condição de estrangeiro, de não-iniciado, ou até de branco, gerou resistência
mais ou menos explícita por parte de certos indivíduos, e foi só com m u i t a
paciência e persistência que consegui ganhar a confiança de outros. Inúmeros
aspectos da liturgia interna das casas jejes permaneceram ocultos, e outros
que p o r v e n t u r a cheguei a conhecer foram censurados no texto por d e m a n d a
explícita dos praticantes. Foi assim, através da assídua observação participante
dos sucessivos ciclos de festas anuais, que, aos poucos, consegui e n t e n d e r
c o m p o r t a m e n t o s e práticas rituais de intricada complexidade e identificar as
singularidades da nação jeje.
Para finalizar, cabe notar que este trabalho, pelo seu foco e recorte, tende
a valorizar o jeje. Ora, essa valorização não responde a n e n h u m a proposta de
"purificar" ou reificar essa tradição, c o m o p o d e r i a m pensar alguns leitores
inadvertidos, mas é resultado de u m interesse em reconhecer e calibrar na sua
justa medida a sua contribuição (claro que não única!) no processo formativo
do C a n d o m b l é . A valorização aqui elaborada em t o r n o dos jejes não responde
a qualquer noção de "superioridade cultural" dessa tradição, mas a u m demo-
rado trabalho de inferências a partir de dados empíricos relativamente con-
fiáveis e à comprovação de que efetivamente os cultos de v o d u m tiveram u m
papel crítico na formação do C a n d o m b l é . A perspectiva histórica é impor-
tante na medida em que permite entender ou avaliar o jogo das continuidades

20
PREFÁCIO

e mudanças. Não foi a minha intenção utilizar "a História" de forma ideoló-
gica, a p o n t a n d o origens e defendendo continuidades diretas entre a Africa e
0 Brasil para justificar ou legitimar qualquer hierarquia cultural, como certa
literatura e tradições orais tendem a sugerir em relação a outras nações.

NOTAS

1
Ao l o n g o deste t r a b a l h o , utilizo o t e r m o " C a n d o m b l é " c o m inicial maiúscula para me
referir à i n s t i t u i ç ã o religiosa c o m o u m t o d o , e o m e s m o t e r m o c o m inicial m i n ú s c u l a
para m e referir a c o n g r e g a ç õ e s religiosas ou terreiros específicos.
2
Capo, Comparative....
i
Fredrik B a r t h d e f i n e u m a sociedadepoliétnica c o m o aquela " i n t e g r a d a no espaço mer-
c a n t i l , sob o c o n t r o l e de u m sistema estatal d o m i n a d o por u m dos g r u p o s , mas dei-
x a n d o a m p l o s espaços de diversidade cultural nos setores de atividade religiosa e d o -
méstica". B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 197.
4
B a r t h , " G r u p o s . . . " , pp. 196, 200.
5
Para Weber, a " c o m u n h ã o étnica" se reduz, em ú l t i m a análise, à crença subjetiva n u m a
origem c o m u m , real ou i m a g i n a d a (Economia..., p. 270). Para Geertz, a ligação étnica
"possui u m p o d e r de coação indescritível e p o r vezes e s m a g a d o r de e em si p r ó p r i a " e
decorre "de certo s e n t i d o a b s o l u t o e inexplicável a t r i b u í d o ao p r ó p r i o laço em si" (Old
societies..., p. 109); para a d i s t i n ç ã o e n t r e teorias p r i m o r d i a i s e relacionais, ver Rex,
Raça..., p. 49.
6
B a r t h , " G r u p o s . . . " , p. 194. Para estudos sobre a e t n i c i d a d e c o m o interação social, com
u m a a b o r d a g e m c o n s t r u t i v i s t a e u m a a t e n ç ã o para a f o r m a ç ã o h i s t ó r i c a , ver, e n t r e
outros, Roosens, Creating ethnicity...-, Eriksen, Ethnicity and nationalism-, C u n h a , "Etni-
c i d a d e . . . " . E m e s t u d o s a f r o - b r a s i l e i r o s , D a n t a s , Vovó...; M. I. C. de O l i v e i r a , Re-
trouver...; Slenes, " M a l u n g u . . . " .
7
C u n h a , " E t n i c i d a d e . . . " , pp. 35-39 (grifo nosso).
8
C o h e n , Urban... Para teorias da e t n i c i d a d e c o m o expressão de interesses, ver t a m b é m
Giazer e M o y n i h a n , Beyond...
' Sobre as teorias de e t n i c i d a d e i n s t r u m e n t a l i s t a s , ver, por exemplo, B a n t o n , Racial....
C a b e n o t a r q u e há dois tipos de " o u t r o s " em relação ao i n d i v í d u o : aqueles de seu pró-
p r i o g r u p o e os de o u t r o s g r u p o s .
10
Herskovits, "African...", pp. 635-43; The myth..., p. xxxvii; Bastide, Sociologia...-, Verger,
Orixás...-, Elbeim dos Santos, Os Nagô...
" Ver, p o r e x e m p l o , D a n t a s , Vovó...-, C a p o n e , La quête...
12
M i n t z e Price, An anthropological..., pp. 5-7; Barnes, Africas..., pp. 9-10.
13
H e r s k o v i t s , Acculturation...-, c i t a d o e t r a d u z i d o em C u c h e , A noção..., p. 118.
14
Sahlins, Ilhas..., pp. 7, 17.
11
Por e x e m p l o , Verger, Notas.., p. 15; " R a i s o n s . . . " , pp. 144-45; Bastide, Sociologia...,
p p . 113, 316.
16
Turner, Schism Ver t a m b é m Maggie, Guerra...

21
1

ENTRE DUAS COSTAS:


NAÇÕES, ETNIAS, PORTOS E TRÁFICO DE ESCRAVOS

NAÇÕES " A F R I C A N A S " E D E N O M I N A Ç Õ E S " M E T A É T N I C A S "

O presente capítulo apresenta algumas informações e reflexões sobre a cha-


mada "nação" jeje a partir de uma análise do contexto da Africa ocidental e
da historiografia desse e t n ô n i m o em relação ao tráfico de escravos. Mas,
antes de avaliar quem eram os jejes, é importante entender o que foi conside-
rado como "nação" nos séculos XVII e XVIII.
Ao lado de outros nomes como país ou reino, o termo "nação" era utiliza-
do, naquele período, pelos traficantes de escravos, missionários e oficiais admi-
nistrativos das feitorias européias da Costa da Mina, para designar os diversos
grupos populacionais autóctones. O uso inicial do termo "nação" pelos ingleses,
franceses, holandeses e portugueses, no contexto da África ocidental, estava
determinado pelo senso de identidade coletiva que prevalecia nos estados mo-
nárquicos europeus dessa época, e que se projetava em suas empresas comerciais
e administrativas na Costa da Mina.
Esses estados soberanos europeus encontraram um forte e paralelo sentido
de identidade coletiva nas sociedades da África ocidental. Essa identidade ba-
seava-se, sobretudo, na afiliação por parentesco a certas chefias normalmente
organizadas em volta de instituições monárquicas. Por outra parte, a identidade
coletiva das sociedades da África ocidental era multidimensional e estava articu-
lada em diversos níveis (étnico, religioso, territorial, linguístico, político). Em
primeiro lugar, a identidade de grupo decorria dos vínculos de parentesco das
corporações familiares que reconheciam uma ancestralidade comum. Nesse nível,
a atividade religiosa relacionada com o culto de determinados ancestrais ou de
outras entidades espirituais era o veículo por excelência da identidade étnica ou
comunitária. 1 Tal pertença era normalmente assinalada por uma série de marcas
físicas ou escarificações no rosto ou em outras partes do corpo.

23
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

A cidade ou território de moradia e a língua t a m b é m eram i m p o r t a n t e s


fatores e denominações de identidades grupais. Na Africa ocidental existe u m
sistema geral de nomeação pelo qual as cidades c o m p a r t i l h a m o mesmo n o m e
com seus habitantes. 2 Finalmente, alianças políticas e dependências tributárias
de certas monarquias também configuravam novas e mais abrangentes identidades
"nacionais".
Essa diversidade de identidades coletivas estava sujeita a transformações
históricas, devido a diversos fatores, tais como alianças matrimoniais, guerras,
migrações, agregação de linhagens escravas, apropriação de cultos religiosos
estrangeiros ou m u d a n ç a s políticas. Em muitos casos, as d e n o m i n a ç õ e s de
"certos grupos eram criadas por povos vizinhos ou poderes externos, sendo sub-
s e q u e n t e m e n t e a p r o p r i a d a s pelos m e m b r o s dos grupos assim designados.
Cabe notar t a m b é m que a imposição dessas denominações externas muitas
vezes incluía u m a pluralidade de grupos originalmente heterogéneos.
É nessa perspectiva que devemos e n t e n d e r a formação de u m a série de
"nações" africanas no contexto colonial brasileiro. N o século XVI falava-se
de "gentio da G u i n é " ou de "negro da G u i n é " para referir-se de u m a f o r m a
genérica aos africanos. Mas já na primeira metade do século XVII começam
a distinguir-se as várias nações. Em Recife, em 1647, na época da guerra con-
tra os holandeses, H e n r i q u e Dias, chefe do Regimento dos H o m e n s Pretos,
escreveu uma carta em que mencionava: " D e q u a t r o nações se c o m p õ e esse
regimento: Minas, Ardas, Angolas e Crioulos". 3 A menção aos crioulos (des-
cendentes de africanos nascidos no Brasil) como u m a "nação" já sugere que
no século XVII esse conceito não respondia a critérios políticos ou étnicos
prevalecentes na Africa, mas a distinções elaboradas pelas classes d o m i n a n -
tes na colónia em f u n ç ã o dos interesses escravistas.
A n d r é João Antonil, padre jesuíta que viveu no século XVII e p u b l i c o u a
obra Cultura e opulência do Brasil, em 1706, escreveu: "E p o r q u e c o m u m e n t e
[os escravos] são de nações diversas [...]. Os que vêm para o Brasil são Ardas,
Minas, Congos de S. T h o m é , d'Angola, de Cabo Verde, e alguns Moçambique,
que vêm nas naus da índia". 4 N o século XVIII deixa-se progressivamente de
falar em "gentio da Guiné", embora a denominação "gentio da Costa" seja ainda
c o m u m em Salvador, e a classificação dos africanos por nações parece impor-
se, coincidindo com o i n c r e m e n t o e diversificação do tráfico, sujeito agora a
u m a maior complexidade de rotas e portos de origem.
Os nomes de nação, como vimos na citação de Antonil, não são homogé-
neos e p o d e m referir-se a portos de embarque, reinos, etnias, ilhas ou cidades.
Eles foram utilizados pelos traficantes e senhores de escravos, servindo aos seus
interesses de classificação administrativa e controle. Em muitos casos, os portos

24
ENTRE DUAS COSTAS

ou a área geográfica de embarque parece ter sido um dos critérios prioritários


na elaboração dessas categorias (Mina, Angola, Cabo Verde, São Tomé etc.).
Tratava-se, portanto, de denominações que não correspondiam necessariamente
às autodenominações étnicas utilizadas pelos africanos em suas regiões de ori-
gem. C o m o aponta Maria Inês Cortes de Oliveira, as nações africanas, "tal como
ficaram conhecidas no Novo M u n d o , não guardavam, nem no nome nem em
sua composição social, u m a correlação com as formas de auto-adscrição cor-
rentes na Africa".^ Talvez, cabe frisar, o processo não fosse tão unilateral ou
radical, pois existiram casos em que as denominações utilizadas pelos trafi-
cantes correspondiam efetivamente a denominações étnicas ou de identida-
de coletiva vigentes na Africa, mas que, aos poucos, foram e x p a n d i n d o a sua
abrangência semântica para designar uma pluralidade de grupos anteriormen-
te diferenciados. Esse parece ter sido o caso de d e n o m i n a ç õ e s como jeje e
nagô, entre outras.
Analisarei em detalhe o caso jeje mais adiante. N o segundo caso, por exem-
plo, sabemos que nagô, anagô ou anagonu era o e t n ô n i m o ou a u t o d e n o m i -
nação de u m g r u p o de fala iorubá que habitava a região de Egbado, na atual
Nigéria, mas que emigrou e se disseminou por várias partes da atual Repú-
blica do Benim. Ao m e s m o t e m p o , os habitantes do D a o m é , reino que se
manteve desde meados do século XVII até o final do século XIX, começaram
a utilizar o termo "nagô", que na língua fon tinha provavelmente um sentido
derrogatório, para designar u m a pluralidade de povos iorubá-falantes sob a in-
fluência do reino de Oyo, seu vizinho e temido inimigo. Desse modo, u m a au-
todenominação étnica, restrita a u m grupo particular, passou a ser utilizada
por m e m b r o s alheios a essa c o m u n i d a d e para assinalar u m g r u p o de povos
mais amplo. 6
A lógica dessa generalização reside no fato de esses povos compartilharem
u m a série de c o m p o n e n t e s culturais, como língua, hábitos e costumes. C o m
o tempo, esse grupo de povos de fala iorubá passou a assimilar a denominação
externa imposta pelos daomeanos e, uma vez desprendida do seu sentido der-
rogatório inicial, a utilizá-la como autodenominação. Por sua vez, os trafican-
tes europeus apropriaram-se do uso local que os daomeanos faziam do termo
"nagô", e este foi assim transferido ao Brasil, preservando a dimensão gené-
rica e inclusiva estabelecida pelos daomeanos.
Para analisar esse tipo de processo, parece útil tentar distinguir entre deno-
minações "internas", utilizadas pelos membros de um determinado grupo para
identificar-se, e denominações "externas", utilizadas, seja pelos africanos ou
pelos escravocratas europeus, para designar uma pluralidade de grupos inicial-
m e n t e heterogéneos. Para o primeiro caso, poderíamos utilizar a expressão

25
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

"etnônimo" ou simplesmente "denominação étnica"; para o segundo caso, pode-


ríamos utilizar a expressão "denominação metaétnica", que, segundo o pesqui-
sador cubano Jesus Guanche Pérez, seria a denominação externa utilizada para
assinalar um c o n j u n t o de grupos étnicos relativamente vizinhos, com u m a
comunidade de traços linguísticos e culturais, com certa estabilidade territorial
e, no contexto do escravismo, embarcados nos mesmos portos. 7
Cabe notar que as d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas (externas), impostas a gru-
pos relativamente heterogéneos, p o d e m , com o tempo, transformar-se em de-
nominações étnicas (internas), q u a n d o apropriadas por esses grupos e utili-
zadas c o m o f o r m a de a u t o - i d e n t i f i c a ç ã o . O conceito de d e n o m i n a ç ã o me-
t a é t n i c a é útil apenas para descrever o processo pelo qual novas identidades
coletivas são geradas a partir da inclusão, sob u m a d e n o m i n a ç ã o de caráter
abrangente, de identidades inicialmente discretas e diferenciadas. Utilizando
essa terminologia, poderíamos dizer que os traficantes e senhores do Brasil co-
lonial foram responsáveis pela elaboração de uma série de denominações me-
taétnicas — em função dos p o n t o s de compra ou embarque de escravos — ,
e n q u a n t o outras, como o caso nagô, já operativas no contexto africano, foram
apropriadas e gradualmente modificadas n o Brasil.
Desse modo, os africanos chegados ao Brasil encontravam uma pluralidade
de denominações de nação — umas internas e outras metaétnicas — que lhes
permitia múltiplos processos de identificação. Aqueles africanos não habitua-
dos às denominações metaétnicas já na própria África, u m a vez no Brasil, ra-
p i d a m e n t e as assimilaram e passaram a utilizá-las pela sua operacionalidade
na sociedade escravocrata, e n q u a n t o geralmente reservavam o uso das deno-
minações étnicas vigentes nas suas regiões de origem para o contexto social
mais restrito da c o m u n i d a d e negro-mestiça.
Mariza de Carvalho Soares utiliza o conceito de grupo de procedência para
referir-se ao c o n j u n t o de povos englobados sob uma mesma denominação me-
taétnica. Essa autora distingue e n t r e o uso do termo "nação" como emblema
da identidade de procedência (nação angola, nação mina) e o uso do termo "na-
ção" c o m o referência a u m a identidade étnica (nação ketu, nação makii). 8 Tra-
ta-se de outra terminologia para analisar o m e s m o problema. Aqui evitarei
falar de grupos de procedência ou identidades de procedência p o r q u e me parece
que os processos identitários c o n s t r u í d o s em t o r n o das d e n o m i n a ç õ e s me-
taétnicas (mina, angola, nagô) não se restringiam exclusiva ou principalmente
à consciência de u m a p r o c e d ê n c i a geográfica c o m u m . O conceito de pro-
cedência, como fator d e t e r m i n a n t e na construção da idéia de nação, está li-
gado a teorias da etnicidade de caráter primordial que privilegiam a origem,
e n q u a n t o a m i n h a perspectiva se situa mais no â m b i t o das teorias da etni-

26
ENTRE DUAS COSTAS

cidade relacionais. A formação de nações africanas no Brasil é aqui e n t e n d i -


da especialmente c o m o o resultado de um processo dialógico e de contraste
cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob as várias d e n o m i -
nações metaétnicas.
O resultado dessa dinâmica é que as denominações de nação adquiriram con-
teúdos distintos segundo as diferentes épocas e regiões do Brasil. Consideremos,
como ilustrativo, o caso do termo "mina". Assim como a expressão "gentio da
Guiné", utilizada no século XVI, "mina" foi uma denominação que, ao longo do
tempo, ampliou o seu domínio semântico até quase se transformar em u m si-
n ó n i m o de africano. Mas isso não foi sempre assim. Inicialmente, "mina" ti-
nha significado restrito e designava os escravos embarcados no Castelo de São
Jorge da M i n a (ou São Jorge d'Elmina). Esse forte foi construído na Costa do
O u r o , atual Gana, pela Coroa portuguesa, entre 1482 e 1484 e, até 1637, quan-
do os holandeses o ocuparam, foi o enclave português mais i m p o r t a n t e para o
comércio de ouro e o tráfico de escravos.
O Forte de São Jorge da M i n a constituía u m centro para o qual escravos de
várias partes da costa o c i d e n t a l africana eram levados. A c o r r e s p o n d ê n c i a
de Duarte Pacheco Pereira, capitão do forte entre 1520 e 1522, menciona a pre-
sença de escravos chegados do distante reino do Benim, localizado na atual Ni-
géria, na área que os ingleses já então denominavam Costa dos Escravos. Tam-
bém escravos vindos do C o n g o passavam pelo forte antes de serem embar-
cados para as Américas. Já na década de 1660, W i l h e l m J o h a n n Muller,
sacerdote da D a n i s h African C o m p a n y , por exemplo, alude à presença de
escravos de Aliada na Costa do O u r o . Vemos assim que, desde o início, "mina"
identificava um p o r t o de e m b a r q u e e que os escravos ali comprados podiam
ter procedências bem diversas. 9
A partir de 1680, os gãs de Accra e os fante-anés de Elmina chegaram à
área de Pequeno Popo e Glinji, na costa do atual Togo, escapando das guer-
ras com os akwamus. Os fugitivos gãs, dada a sua procedência da Costa do
O u r o , foram chamados minas pelos europeus, já no século XVII. 10 Esses minas
se misturaram com os moradores locais, como os hulas e uatchis, constituindo,
n o século XVIII, o reino Gen ou Genyi, cujo maior p o r t o se situou em Pe-
q u e n o Popo (Aneho). O reino Gen esteve envolvido no tráfico de escravos,
sendo que a denominação "mina", principalmente nas últimas décadas do século
XVIII e nas primeiras do XIX, também podia designar escravos embarcados em
Aneho e em outros portos da zona ocidental do rio M o n o .
C o m o foi n o t a d o por Verger, a expressão "Costa da Mina" passou paulati-
n a m e n t e a designar não a Costa do O u r o , mas, mais precisamente, a Costa
dos Escravos, isto é, a costa a sotavento do Castelo de São Jorge da M i n a ,

27
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

que se estendia do delta do rio Volta, em Gana, até a desembocadura do rio


Niger (rio Lagos), na Nigéria. Consequentemente, como bem observou Nina
Rodrigues, mina ou "preto mina" podia designar africanos não só da Costa do
O u r o como também da Costa do M a r f i m e da Costa dos Escravos, esta última
incluindo Togoland, Benim e Nigéria ocidental." Desse m o d o , a abrangência
semântica do termo "mina" passou a incluir quase todos os povos do Golfo do
Benim, desde um ashante até um nagô.
Esse processo de m u d a n ç a semântica explica por que o termo significou
coisas distintas no Rio, em Minas Gerais, na Bahia ou no Maranhão. N o Rio
de Janeiro, referências a escravos da Costa da Mina aparecem desde inícios do
século XVII e, como demonstram os compromissos de irmandades católicas de
homens pretos do século XVIII, mina parece corresponder aos povos da atual
República do Benim, chamados jeje na Bahia, sendo que essa denominação era
então desconhecida no Rio de Janeiro. Já no século XIX, Debret menciona os
mina, mina-callava, mina-maí e. mim-nejos. A denominação "mina-callava", que
Rodrigues transcreve como mina-cavalos, é provavelmente uma referência a es-
cravos embarcados no porto de Calabar, embora Oliveira pense que possam ser
também escravos de Abomey-Calavi, às margens do lago Nokué. Os néjos equi-
valeriam provavelmente aos nagôs, ou talvez aos minas de Aneho (Pequeno
Popo), e n q u a n t o os maí ou mahij seriam os mahis. Todos esses povos habita-
vam a área oriental do G o l f o do Benim, o que confirma a ampliação da abran-
gência semântica e domínio geográfico da denominação "mina". 12
N o século XVIII, em Minas Gerais como no Rio, mina parece designar os
povos que na Bahia eram chamados jejes. Q u a n d o em 1741 António da Costa
Peixoto escreveu a Obra nova da língua geral de mina, a língua identificada como
tal corresponde àquela falada ao Sul da atual República de Benim. Aliás, a
expressão "gente mina" é identificada com o termo "guno", referindo-se espe-
cificamente aos habitantes guns de Porto Novo. 1 3 Já no Maranhão, autores do
século XX como Nunes Pereira mencionam os "minas-achantis, minas-nagôs,
minas-cavalos, minas-santé, minas-mahys" e os mina-jeje. Otávio da Costa
E d u a r d o d o c u m e n t a expressões c o m o m i n a - n a g ô , m i n a - j e j e , m i n a - p o p o ,
m i n a - f u l u p a e até mina-angola e m i n a - c a m b i n d a . 1 4 Isso significa que, em
certos lugares, entre os quais o Maranhão, mina chegou a designar simples-
mente africano, sem n e n h u m a especificidade de procedência.
Esse caso d e m o n s t r a c o m o as d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas variam em con-
teúdo segundo as diversas épocas e regiões. Uma segunda consideração deve
ser feita. A medida que as denominações metaétnicas crescem em generali-
dade, elas são qualificadas com um segundo termo de c o n t e ú d o mais restrito
(cavalo, maí, nagô, jeje...). Essa segunda denominação pode até ser uma outra

28
ENTRE DUAS COSTAS

d e n o m i n a ç ã o metaétnica, porém de caráter mais específico. Cabe reter aqui


que o termo "mina", a partir do século XVIII, abrangia a população africana
da Costa dos Escravos ou Golfo do Benim, e dentre esta, muito especialmente,
povos do reino de D a o m é e de suas imediações, os quais na Bahia f o r a m
conhecidos por jejes.
As denominações metaétnicas utilizadas e impostas pela elite escravista,
embora na maioria estivessem fortemente associadas a determinados portos ou
áreas geográficas de embarque, podiam também fazer referência a uma certa ho-
mogeneidade de componentes culturais e linguísticos compartilhados pelos po-
vos assim designados. E precisamente o reconhecimento dessa comunidade de
componentes culturais o que vai favorecer a adoção dessas denominações exter-
nas e a subsequente configuração de uma identidade coletiva (nação) assumida
pelos próprios africanos.
Cabe frisar que os c o m p o n e n t e s culturais não eram necessária ou exclusi-
vamente de origem africana. C o m o já foi a p o n t a d o , no século XVIII os es-
cravos minas de Minas Gerais eram aqueles que falavam o que se conven-
cionou chamar a "língua geral da Mina". Portanto, na base do significado do
termo "mina" estava não só a procedência de e m b a r q u e como t a m b é m o fator
linguístico e, implicitamente, outras semelhanças culturais. Entretanto, a "lín-
gua geral da Mina", embora correspondente em especial ao gun, língua por
sua vez derivada do aizo, o idioma original de Aliada, parece ter sido u m a
espécie de língua franca desenvolvida no Brasil através de um processo de inclu-
são de itens lexicais de outras línguas do grupo gbe, tais como o fon, e até mes-
mo do nagô. 1 5 U m caso semelhante se dá com a língua nagô falada na Bahia
do século XIX. Essa língua não correspondia inteiramente àquela falada pelos
nagôs ou anagôs de Egbado, mas parece ter evoluído, n o contexto brasileiro,
para u m a f o r m a de "patois" a partir de vários dialetos iorubás e da contri-
buição lexical de outras línguas africanas e até mesmo do português.
Assim, vemos c o m o os povos incluídos sob u m a mesma d e n o m i n a ç ã o de
nação são definidos a partir de vários fatores i n t i m a m e n t e relacionados, a
saber: as zonas ou portos o n d e os escravos eram comprados ou embarcados,
u m a área geográfica relativamente c o m u m e estável de moradia e u m a seme-
lhança de c o m p o n e n t e s lingtiístico-culturais. C o n t u d o , foi a língua — a
possibilidade de os africanos se c o m u n i c a r e m e se e n t e n d e r e m — o que le-
vou, no Brasil, à absorção dessas denominações como formas de auto-inscrição
e à consequente criação de novas comunidades ou sentimentos de pertença
coletivos.

29
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

OS P O V O S DO GOLFO DO B E N I M E A ÁREA V O D U M

O termo "jeje" aparece d o c u m e n t a d o pela primeira vez na Bahia nas primei-


ras décadas do Setecentos para designar um grupo de povos provenientes da
Costa da Mina. Mas quais eram esses povos jejes? Os jejes têm sido usual-
mente identificados, ao menos a partir do século XIX e, posteriormente, na
literatura afro-brasileira, como daomeanos, isto é, grupos provenientes do
antigo reino de Daomé. Mas, na verdade, o termo "jeje" parece ter designado
originariamente um grupo étnico minoritário, provavelmente localizado na
área da atual cidade de Porto Novo, e que, aos poucos, devido ao tráfico, pas-
sou a incluir uma pluralidade de grupos étnicos localmente diferenciados.
Trata-se, portanto, de u m a outra denominação metaétnica.

Mapa 1— Área dos g b e - f a l a n t e s e principais grupos étnicos

Em função das idéias apresentadas acima, caberia considerar os possíveis fa-


tores pelos quais os jejes eram identificados como tal. Seria esse termo uma
referência ao fato de morarem esses povos numa área geográfica determinada?

30
ENTRE DUAS COSTAS

Qual teria sido essa área? Seria a palavra "jeje" uma referência a povos que com-
partilhavam uma certa homogeneidade linguística e cultural? O u essa palavra
estaria talvez relacionada a fatores intrinsecamente ligados ao escravismo, tais
como os portos de embarque ou o grupo de comerciantes que se encarregava
da sua venda? Para discutir em maior detalhe essas questões, será útil apresen-
tar um breve p a n o r a m a da história e da composição étnica d o G o l f o d o Be-
nim, b u s c a n d o esclarecer alguma coisa a esse respeito.
C o m o aponta Claude Lepine, toda a área do Golfo do Benim, do rio Volta
ao rio Niger, "constitui uma grande área cultural, onde podem ser observadas
marcantes semelhanças ao nível das instituições sociais e políticas, dos costumes,
das práticas e crenças religiosas. A unidade cultural desta região explica-se
pela história do seu povoamento, pelo seu passado de migrações e contatos". 1 6
O s historiadores contemporâneos que se dedicam a essa área da Africa ociden-
tal falam de u m a série de migrações sucessivas realizadas pelos c h a m a d o s
grupos p r o t o - i o r u b á s que, chegados do leste, se estabeleceram no G o l f o do
Benim a partir do século VII. U m a migração posterior, liderada por O d u d u a ,
instalou-se por volta do ano 1000 em Ilê Ifé. D e lá, os netos de O d u d u a , em
migrações subsidiárias, teriam ocupado a costa e o interior da região que mais
tarde viria a ser o reino de D a o m é . Alguns autores sugerem que os primeiros
habitantes da costa, os hulas ou popos, seriam os descendentes de O l u p o p o
ou O l u k p o k p o , sexto filho de O k a m b i e neto de O d u d u a . O u t r o s grupos
proto-iorubás, c o m o os guedevis, cujo e t n ô n i m o deriva do n o m e do seu rei
Iguede, e os fons teriam o c u p a d o , nessa época, o planalto de Abomey. 1 7
Fala-se de u m a outra onda migratória, provavelmente contemporânea à de
O d u d u a . Ela envolveu o grupo ancestral dos adjas, sob a liderança de Togbin-
Anyi. Proveniente da região de N u p e ou do rio Kwara (Niger), esse grupo veio
a se instalar na área da futura Oyo. Por rivalidade com um outro grupo proto-
iorubá vindo de Ilê Ifé, o grupo de Togbin-Anyi iniciou uma longa migração
r u m o ao oeste. Após estabelecer-se t e m p o r a r i a m e n t e em Ké (localização da
futura Ketu) e em Savè, esse grupo chegaria a Tado, cidade situada na margem
ocidental do rio M o n o , no atual Togo, a uns cem quilómetros do litoral. Ali,
os descendentes de Togbin-Anyi se encontraram com os azanus, cujos ances-
trais seriam os za, provenientes da área cultural Sonrai, na nascente do rio
Niger. É e n t r e t a n t o possível que em Tado houvesse já outros moradores, como
os ferreiros alu. 18
Dessa confluência em Tado entre os descendentes de Togbin-Anyi, vindos
do leste, e os azanus, vindos do noroeste, grupos subsequentemente conhecidos
como adjas, embora provavelmente integrando uma pluralidade de povos, ini-
ciaram novas migrações. A mais antiga se supõe ser a de um grupo conhecido

31
L U I S N I C O L A U PAR É S

c o m o huisi, que, por volta do século XIII, se estabeleceu na planície entre os


rios Koufo e O u e m é , f u n d a n d o ali o reino de Davie, que precedeu ao de Alia-
da. Esses grupos foram mais tarde c o n h e c i d o s como aizã ou, na sua versão
moderna, aizos. 19 As tradições orais dos grupos hula e hueda indicam que tam-
bém eles teriam saído de Tado. Porém, como j á apontei, esses grupos que ocu-
param a lagoa litorânea teriam vindo d o leste com as migrações proto-iorubás
em datas anteriores. Assim, o mito de u m a origem em Tado talvez tenha f u n -
d a m e n t o em reminiscências deixadas p o r invasões ou alianças posteriores em
que estivessem envolvidos grupos adjas vindos de Tado. 2 0

Mapa 2 — Migrações dos adjas

N o século XVI, novas migrações adjas provenientes de Tado o c u p a r a m o


território dos aizos, p r o m o v e n d o a f u n d a ç ã o d a cidade de Togudo, capital do
reino de Aliada, que nessa época se c o n v e r t e u no poder hegemónico da re-
gião, c o n f o r m e sugere a aparição do seu n o m e ("Árida" e "Arda") em cartas
de navegação portuguesa de 1570 em diante. Segundo as tradições orais, um
g r u p o dos chamados agassuvi saiu de Aliada na primeira metade do século
XVII e r u m o u em direção ao norte. Após submeter as populações locais c o m o
os guedevis e os fons, esse g r u p o teria f u n d a d o o reino de D a o m é , estabele-

32
ENTRE DUAS COSTAS

cendo Abomey (Agbomé) como sua capital. A população desse reino foi sub-
sequentemente conhecida pela denominação étnica "fon", ou seja, o n o m e de
um dos grupos autóctones do planalto submetidos pelos agassuvi.
Q u a n d o os fons ou daomeanos conquistaram Aliada, em 1724, a família real
desse reino e seus seguidores fugiram para o leste, vindo a se estabelecer na re-
gião oriental do lago Nokué, onde fundaram o reino de Adjaché ou Adjasé, co-
nhecido entre os europeus como Porto Novo. Os adjas ali estabelecidos foram
chamados guri ou gunnu. Cabe notar que essa versão histórica sobre a fundação
do reino de Porto Novo no século XVIII, mantida por Akinjogbin, contradiz
as tradições dos reinos de Aliada, D a o m é e Porto Novo. 2 1
Sujeitos a múltiplas variações, que aqui sintetizo, os mitos de f u n d a ç ã o
desses reinos c o i n c i d e m em a f i r m a r que a d i n a s t i a real de Aliada estava
conectada por linha materna com a de Tado, sendo o seu f u n d a d o r um estran-
geiro que casou com u m a princesa da família real de Tado, que segundo as
tradições do D a o m é se teria chamado Aligbonon. Após um conflito pela su-
cessão do trono de Tado, os agassuvi — descendentes dessa princesa e do estran-
geiro Agassu, por vezes identificado com u m a pantera mítica — tiveram que
fugir daquela cidade, sob a liderança de Ajahuto, n o m e geralmente traduzido
como "o assassino dos adja". A j a h u t o foi o f u n d a d o r do reino de Aliada. Pas-
sadas algumas gerações, três príncipes irmãos se separaram após u m a disputa
sucessória. U m deles teria ficado em Aliada, um o u t r o teria ido para o norte,
para f u n d a r o D a o m é , e o terceiro teria ido em direção ao leste, para f u n d a r
Porto Novo. Segundo essas tradições, a fundação do reino de Porto Novo seria
a p r o x i m a d a m e n t e c o n t e m p o r â n e a à f u n d a ç ã o do Daomé. 2 2
Estudos históricos recentes mostram que esses mitos de fundação poderiam
ser uma construção relativamente tardia, provavelmente do século XVIII, mas
só d o c u m e n t a d a no século XIX, e originalmente elaborada pela família real
daomeana — de m o d o a legitimar o seu poder real, f u n d a m e n t a n d o - o n u m a
ascendência em Tado — , sendo s u b s e q u e n t e m e n t e apropriada e reelaborada
pelas dinastias reais de Porto Novo e Aliada, esta última já sujeita ao domí-
nio do Daomé. 2 3 Seja como for, essas narrativas sugerem que, por volta do
século XVI, grupos adjas originários de Tado migraram para o leste e, d o m i -
n a n d o e absorvendo populações autóctones preexistentes, f u n d a r a m o reino
de Aliada, a partir do qual se legitimou, posteriormente, o poderio do D a o m é
e Porto Novo.
Essas migrações de Tado para o leste foram seguidas por outras, no início
do século XVII, mas desta vez na direção oeste. Em um m o m e n t o não determi-
nado, provavelmente, segundo Spieth, por volta de 1610, grupos oriundos de
Tado f u n d a r a m a cidade de Notsé, centro de migrações subsidiárias que nas

33
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

décadas seguintes resultaram na ocupação da região setentrional da atual Togo


e Gana. Esses grupos foram conhecidos pela d e n o m i n a ç ã o metaétnica "ewe",
originada no e t n ô n i m o de um desses grupos. 2 4
Foi o coronel Alred Ellis, com o seu livro The Ewe-speakingpeople, publi-
cado em 1890, q u e m popularizou o termo "ewe" para designar todos os povos
linguisticamente relacionados que ocupavam a região do rio Volta em Gana, e
as partes meridionais de Togo e Benim. Assim, o termo "ewe" viria a designar
não só os povos saídos de Notsé, mas todos aqueles originários de Tado. Pos-
teriormente, o linguista alemão Diedrich Westermann, trabalhando em Togo,
veio consolidar o uso do termo "ewe". N a literatura francófona, termos como
"adja", "aja" ou "aja-Tado" têm sido mais f r e q u e n t e m e n t e utilizados para de-
signar esses grupos. Mais recentemente, ocorre a utilização de termos como
"fon-ewe" ou "ewe-fon", "adja-ewe" ou "ewe-aja", "foja ( f o n - a d j a ) " e " E G A F
(ewe-gen-aja-fon)". 2 5
D e maneira geral, no presente trabalho, a d e n o m i n a ç ã o "adja" será usada
de m o d o restrito para designar aqueles povos que reclamam u m a origem de
Tado e emigraram para o leste, instalando-se na área da atual República do
Benim e no sudoeste da Nigéria. Entre eles, os fons foram o g r u p o d o m i n a n t e
a partir da expansão do reino do D a o m é . Por o u t r o lado, o termo "ewe" será
utilizado para designar os povos que saíram de N o t s é e se expandiram em
direção ao oeste, no Togo e em Gana. Em 1980, n u m a conferência celebrada
em C o t o n u , H o u n k p a t i B. C. Capo propôs utilizar a expressão "área dos gbe-
falantes" (Gbe-speaking area) para designar a região ocupada por esses povos
linguisticamente relacionados, sendo que gbe é um termo c o m u m para signi-
ficar língua na maioria dos 51 dialetos registrados. C o m essa expressão mais
neutra e genérica se pretende evitar o e t n o c e n t r i s m o de designar uma plura-
lidade de povos com o n o m e de um deles. C o m o já foi dito no prefácio, a
expressão "área gbe" será aqui utilizada para designar a zona geográfica ocu-
pada pelos povos a n t e r i o r m e n t e chamados de adja-ewe (ou variantes).
Todavia, essa região não foi habitada apenas por povos gbe-falantes. C o m o
já foi dito, o substrato cultural dos povos proto-iorubás permaneceu forte,
sobretudo na área oriental da região. Desde as migrações de Ilê Ifé, na virada
do milénio, vários desses grupos se deslocaram em direção oeste, f u n d a n d o
diversas cidades-estado que aos poucos se converteram em reinos. Os nagôs,
anagôs ou a n a g o n u , o r i g i n á r i o s da área de E g b a d o (Nigéria), estabelece-
ram-se na área da f u t u r a Porto Novo (Adjaché) e nas áreas de Sakété e Pobé
(sudeste e centro), chegando a constituir uma das maiores populações iorubás
no Daomé. O u t r o s grupos proto-iorubás f u n d a r a m a cidade de Ké, onde mais
tarde surgiria o reino de Ketu. Os savès f u n d a r a m o seu reino (onde eles se

34
ENTRE DUAS COSTAS

chamam Tchabè) em ambas as margens do rio Okpara, mas as fronteiras entre


Nigéria e D a h o m e y estabelecidas pelos poderes coloniais dividiram o seu
território, ficando os grupos da margem ocidental (no D a h o m e y ) , sob o cír-
culo de Savè, atualmente sous-préfecture de Savè. Os dassas f u n d a r a m o seu
reino (onde eles se c h a m a m Dassa ou Idatcha) na área M a h i , ao norte do rio
Z o u . A noroeste de Dassa, os ifès, os itchas e os manigris constituíram ou-
tros grupos proto-iorubás. Os ohoris (idjè ou holli) instalaram-se na região
de Hollidjè, entre Pobé e Ketu. 2 6

Mapa 3 — A área dos gbe-falantes e seus dialetos

Fonte: H, B. C. Capo, Comparalive phonology of Gbe. Berlim, Nova Iorque: Foris Publications, 1991.
Nota: Exceto os g l o s s ô n i m o s (escritos n a ortografia gbe, u n i f o r m i z a d a por Capo), todos os outros n o m e s
aparecem na ortografia "oficial" inglesa ou francesa.

A influência cultural desses povos é c o n f i r m a d a pelo uso frequente, entre


os povos de língua gbe, de alguns dos muitos dialetos iorubás, fato já docu-
m e n t a d o desde meados do século XVII. Em 1668, Olfert Dapper comenta-
va: "E curioso que estes negros [de Aliada e Jakin] despreciam a sua língua
materna que utilizam pouco, aprendendo uma outra de uso mais corrente que
chamam U l k u m y [ a n a g ô ] " . r Aliada era inicialmente tributária do reino do
Benim, fato d o c u m e n t a d o em 1 6 7 0 , m a s desde finais do século XVII era o
reino de O y o que exercia o poder. Em 1698, Aliada foi invadida pelos oyos,
em consequência do massacre dos mensageiros do rei de O y o enviados para
Aliada.' 9 As incursões dos oyos em território adja c o n t i n u a r a m d u r a n t e o

35
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

século XVIII. Em consequência disso, D a o m é se manteve como um reino tri-


butário de O y o de 1712 até o início do século XIX, q u a n d o o rei Glele con-
seguiu libertar o seu povo desse domínio. Por outro lado, depois da conquista
da costa pelo rei Agaja, em 1724-27, grupos gbe-falantes de huedas, oueme-
nus, hulas e aizos se deslocaram para as zonas habitadas pelos nagôs, em Porto
N o v o , Badagri e Lagos. 30
Temos, p o r t a n t o , uma área em que dependências políticas, diplomacia,
comércio, guerras, escravidão e migrações cruzadas c o n t r i b u í r a m para gerar
u m a situação de intenso contato cultural nagô-adja. Trata-se de um território
de fronteira, onde valores e práticas, tradições e línguas convivem e se influen-
ciam, n u m a apropriação e reelaboração mútuas. Essa área culturalmente hete-
rogénea e multilingue, em que se misturam os gbe-falantes com os iorubá-fa-
lantes, se tornou um espaço propício para que a sua população desencadeasse
processos de diferenciação étnica, mas a convivência continuada levou também
a processos paralelos de complementaridade e assimilação cultural.
Nessa sociedade poliétnica, os adjas e os iorubás, apesar de compartilharem
semelhanças político-culturais importantes, p o d e m ser distinguidos por algu-
mas diferenças significativas, o que d e m o n s t r a , como a p o n t a Aguessy, que
"mesmo as populações saídas de um substrato c o m u m acabam por diferen-
ciar-se através de séculos de vida própria". 3 1 Pazzi aponta algumas dessas dife-
renças. Os iorubás têm como bebida tradicional o vinho de palma (deha), en-
q u a n t o a bebida tradicional dos adjas é a cerveja de milho (liha). O t r o n o
real dos iorubás é de três pés, e n q u a n t o o dos adjas é de cinco pés, como acon-
tece entre alguns povos blus, localizados ao n o r t e e oeste da área gbe. Entre
os iorubás, o ciclo semanal é de quatro dias, e n q u a n t o entre os adjas esse ciclo,
e m b o r a m a n t i d o para os ritos dos ancestrais e o repouso da terra, é combi-
n a d o com o ciclo de sete dias característico dos blus, que se aplica para a cele-
bração dos aniversários de nascimento. Pazzi sugere que essas semelhanças em
relação a práticas dos povos blus (em particular dos ashantes de Kumasi) e de
outras populações do nascente do Niger (antigamente relacionadas ao império
Mali) seriam resultado da influência exercida pelos azanus sobre os adjas em
Tado e justificariam a hipótese segundo a qual os azanus seriam oriundos da
área Sonrai. Entretanto, iorubás e adjas praticam a circuncisão e, em ambos os
casos, o parentesco é estabelecido por descendência patrilinear, excetuando
os ewés que praticam um sistema misto. Talvez a origem dessa diferença dos ewés
possa ser também explicada como uma influência dos blus, entre os quais o pa-
rentesco se organiza por descendência matrilinear. 3 2
N o âmbito religioso t a m b é m há diferenças e semelhanças entre as institui-
ções e manifestações religiosas dos iorubás e dos adjas. U m a das diferenças

36
ENTRE DUAS COSTAS

mais significativas é de ordem linguística. E n q u a n t o os grupos iorubás utili-


zam o termo "orixá" para referir-se às divindades, todos os grupos gbe-falan-
tes, não apenas os adjas, utilizam o termo "vodum". Essa palavra aparece re-
gistrada pela primeira vez na tradução da Doctrina Christiana para a Lengua
Arda, realizada pelos c a p u c h i n h o s espanhóis em 16 5 8. 33 A sua etimologia é
incerta, mas, de m o d o geral, o termo evoca u m a ideia de mistério, o inefável
que não p o d e ser conhecido. 3 4 O u t r a palavra utilizada na área gbe para de-
signar os v o d u n s é hun, termo polissêmico que t a m b é m significa sangue. Já
no extremo ocidental da área gbe, p r i n c i p a l m e n t e no Togo, os voduns são
designados pelo t e r m o yehwe. Entre os gens, yehwe parece ser aplicado a di-
vindades do p a n t e ã o do m a r e do trovão de origem hula e aizo. 3 '
Naquelas partes da área gbe onde habitam grupos iorubá-falantes há possi-
bilidade de achar cultos de orixás. O s orixás não são divindades de origem
adja, como ocorre com os yehwe. Ao contrário, é mais provável que certos
voduns t e n h a m origem iorubá. Por exemplo, na tradução da Doctrina Chris-
tiana aparece a expressão Lisa (Toi Lisa, Elisa) para traduzir o n o m e de Jesus
Cristo. Sendo Lissá um v o d u m associado à cor branca, não é estranho que os
tradutores de Aliada escolhessem esse referente para designar o deus dos bran-
cos. Ora, Lissá deriva do nagô orisa, pois os vocábulos nagôs, q u a n d o apro-
priados pelos gbe-falantes, perdem a vogal inicial e t r a n s f o r m a m o r em l. i h
Essa evidência indica que em meados do século XVII o sistema religioso nagô
já tinha forte penetração no sistema religioso v o d u m . Aguessy afirma que,
"além de u m a homologia na estrutura de seus panteões, há t a m b é m uma cor-
respondência termo a termo de numerosas divindades". 3 7 O que interessa reter
é que os processos de interpenetração cultural que se deram no Brasil entre
os jejes e os nagôs já t i n h a m u m a longa tradição na própria África.
Apesar da c o m u n i d a d e de elementos conceituais e rituais que e s t r u t u r a m
o sistema religioso da maioria das sociedades do Golfo do Benim, a frontei-
ra linguística permite demarcar u m a hipotética área dos cultos de v o d u n s
entre os cultos de yehwe dos mina-gens e os cultos de orixás dos nagôs. Es-
sas fronteiras, estabelecidas em f u n ç ã o das palavras utilizadas para designar
as divindades, são reforçadas pelos nomes dados às práticas oraculares que
n o r m a l m e n t e a c o m p a n h a m esses cultos: fala-se de Ifá nos cultos de orixás,
de Fa nos cultos de voduns, e de Afa na área ewe. 38 E m b o r a não seja possível
falar de limites geográficos precisos, as diferenças na terminologia religiosa
permitiriam falar de uma "área vodum", inserida no sistema religioso-cultural
mais amplo que abarca desde G a n a até Nigéria.
O interesse em circunscrever uma área do v o d u m , praticamente coinci-
dente com a área linguística dos gbe-falantes, deriva do fato de que o C a n -

37
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

d o m b l é jeje no Brasil p o d e ser d e f i n i d o c o m o uma instituição religiosa ca-


racterizada pelo culto de entidades espirituais chamadas voduns. Sendo as-
sim, definir u m a área do v o d u m p o d e a j u d a r a identificar a procedência dos
jejes. Se considerarmos as divindades jejes que são cultuadas nos candomblés
atuais (Hevioso, Sakpata, Dan) e levarmos em conta as diversas "subnações"
jejes que ainda hoje são lembradas (mahi, savalu, m u n d u b i , dagomé, mina-
p o p o ) , todos esses elementos poderão levar-nos a circunscrever a área de pro-
cedência dos jejes à região que vai de A n e h o a Badagri, entre os rios H o h o e
o rio Yewa, incluindo a zona interior dos mahis e a área litoral dos mina-gens,
talvez deixando de lado os povos ewés do norte, que Capo identifica com os
" V h e lects" (kplen, dayin, gbin, agu, ho, peei). Nesse s e n t i d o , a área do
v o d u m seria a dos povos gen, u a t c h i , a d j a , f o n , h u e d a , h u l a , aizo, g u n ,
o u e m e n u , mahi e outros a eles ligados.
Esses grupos étnicos correspondem principalmente aos povos gbe-falantes
que, a partir do século XVIII, foram submetidos ou estiveram sob a influência
e o controle do reino do D a o m é . A composição étnica do reino de D a o m é e
imediações é bastante complexa e se presta a várias tipologias ou classifica-
ções. Paul H a z o u m è menciona, entre as etnias do reino de Daomé, pelo menos
14 povos: adjas, hulas (pias), uatchis, kotafons, huedas (pedas), aizos, tofinus,
fons, guns, o u e m e n u s , além dos iorubás, nagôs e hollis, que vieram do leste.
Segundo Tidjani, o grupo étnico mais i m p o r t a n t e do Baixo D a o m é é o g r u p o
adja-aizo-fon e m i n a (gen); e assinala que, q u a n d o se fala de "daomeano", se
trata essencialmente desse grupo. 3 9 Cabe frisar que o que entendemos por área
v o d u m abarca uma extensão algo maior que o D a o m é , i n c l u i n d o povos que,
e m b o r a sujeitos às incursões dos d a o m e a n o s na p r o c u r a de escravos, não
p e r t e n c i a m estritamente aos seus limites políticos.
T o m e m o s para ilustrar esse p o n t o o caso dos povos mahis, que aliás fo-
ram u m dos grupos com presença mais expressiva na Bahia. A k i n j o g b i n cha-
ma o país M a h i um "campo de caça a escravos". 40 Efetivamente, desde Agaja
até Glele, todos os reis do D a o m é realizaram nessa área c a m p a n h a s militares
de maior ou m e n o r sucesso. A expressão "mahi" parece ter surgido no século
XVIII c o m o d e n o m i n a ç ã o utilizada pelos d a o m e a n o s para referir-se a u m a
pluralidade de povos localizados ao n o r t e do rio Z o u . E m b o r a questionável,
Bergé e C o r n e v i n nos dão como etimologia de mahi a expressão ma-hi-nou,
que significaria "as vítimas da fúria" ou "a destruição da fúria", talvez u m a
alusão a esse passado de caça a escravos. 41
A primeira referência escrita conhecida sobre os mahis aparece n u m a carta
redigida ao vice-rei da Bahia por João Basílio, diretor do forte português em
Uidá, em 8 de setembro de 1732: " C o m o o Rei de D a o m é teve a felicidade

38
ENTRE DUAS COSTAS

de vencer o país dos Mauis [...]". 42 O u t r a referência aparece mais tarde no


relato de Norris, escrito em 1773: "os mahis são u m a poderosa confederação
de muitos estados i n d e p e n d e n t e s e unificados, cuja f o r m a de governo parece
ser de tipo feudal. Seus líderes possuem vassalos ou escravos, mas não os tra-
tam com a dureza dos daomeanos. Porém os vendem em n ú m e r o s conside-
ráveis aos negociantes daomeanos". 4 3 Portanto, mesmo m a n t e n d o u m a rela-
tiva independência, a "confederação" dos mahis esteve em constante conta-
to com seus vizinhos. Muitas vezes estabeleceram alianças com os oyos para
defender-se dos daomeanos, mas t a m b é m , já no século XVIII, certos grupos
mahis constituíram parte i m p o r t a n t e do exército daomeano. 4 4

Mapa 4 — 0 país Mahi

39
LUIS NICOLAU P A R ÉS

Bergé coletou as tradições orais dos reinos de Fitca (ou país de Fellattah),
Dassa e de o u t r o s povos da área M a h i , assim c o m o as d o vizinho reino de
Savalu, que, e m b o r a localizado ao n o r t e do rio Z o u , esse autor não consi-
dere c o m o p a r t e do país M a h i . D e s c r e v e n d o em detalhe as múltiplas mi-
grações desses povos, Bergé conclui que os mahis c o n s t i t u e m "um verda-
deiro coquetel de raças", resultado de u m a lenta miscigenação e simbiose
cultural das populações nagô-iorubás originais com sucessivos grupos adjas
e fons vindos d o sul. 45 Por exemplo, o reino de Dassa (Idassa), com o seu
centro mais i m p o r t a n t e em Dassa Z o u m é , e c u j a d i n a s t i a real r e m o n t a a
1700, foi f u n d a d o pelos nagô-egbas p r o v e n i e n t e s da zona da atual A b e o -
kuta. 4 6 Os fittas e os savalus (Tchevelou) eram t a m b é m de origem nagô-
iorubá; outros povos p o d i a m ter ascendência adja (guedevis, gbanlis, dovis)
e se teriam r e f u g i a d o na região m o n t a n h o s a dos mahis com o s u r g i m e n t o
do reino de D a o m é no p l a n a l t o de A b o m e y , na p r i m e i r a m e t a d e do sécu-
lo XVII.
O caso de Savalu merece especial atenção, já q u e o t e r m o aparece c o m o
e t n ô n i m o no Brasil a p a r t i r do século XVIII e ainda h o j e designa u m a das
" s u b n a ç õ e s " do C a n d o m b l é jeje. Savalu é, na a t u a l i d a d e , a c i d a d e mais
i m p o r t a n t e da região M a h i , e a família G b a g u i d i tem sido o clã dirigente
desde provavelmente finais do século XVII. Segundo tradições locais, os an-
cestrais dos Gbaguidi eram originários do lago Aheme, na ilha M i t o g b o d j i ,
habitada pelos pescadores dovis (filhos da rede), que, por sua vez, eram de ori-
gem h u e d a . Depois de u m a disputa fratricida, Ahossu Soha emigrou para o
norte, passando pela região do rio O u e m é , o planalto de Abomey, até final-
mente chegar a Savalu, ou T c h e b e l o u , "uma cidade nagô originalmente" ha-
bitada pelos ifès. Essa migração deve ter a c o n t e c i d o nos t e m p o s dos reis
d a o m e a n o s H w e g b a j a (1650-1680) ou Akaba (1680-1708).
Savalu, como outras partes do país Mahi, foi atacada em várias ocasiões
pelos reis daomeanos em sua busca por escravos e manteve um relacionamento
t a n t o de conflito q u a n t o de cooperação com esse reino, a l t e r n a n d o períodos
de independência e de submissão tributária. Foi só durante a vigência do rei-
no de Ghezo (1818-1858) que Savalu e grande parte do país M a h i (exceto os
reinos de Dassa e Fitta) foram ocupados pelo D a o m é . Naquele tempo, Savalu
era considerada terra anagô, mas os seus d i r i g e n t e s de origem h u e d a , os
Gbaguidi, que ajudaram o rei Ghezo a dominar os mahis, preservaram grandes
privilégios. Em 1845, D u n c a n i n f o r m o u que, depois do c h a c h a de Uidá,
G b a g u i d i era a segunda pessoa mais poderosa do D a o m é e m a n t i n h a u m a
relativa independência no controle político não só da região de Savalu, mas
t a m b é m das vizinhas cidades mahis. 4 8

40
ENTRE DUAS COSTAS

Por essas relações privilegiadas com os f o n s , os m e m b r o s da f a m í l i a


G b a g u i d i c o n s i d e r a m - s e h o j e f o n s : "embora o nosso ancestral seja peda
[hueda] de Mitogbodji, nós, seus descendentes, nos consideramos como fons.
A nossa passagem por Wavè, no território fon, fez com que t o m á r a m o s os
hábitos dos fons. Nós não somos mahis. Ao contrario, nós c o m a n d a m o s toda
essa gente". 4 9 Portanto, embora estabelecidos entre povos anagôs, os savalus
(ou pelo menos seus dirigentes), que falam uma língua parecida com o fon e
preservam os costumes fons, parecem ter c o n s t r u í d o u m a identidade étnica
diferenciada dos mahis. O comentário dos Gbaguidi mostra claramente como
as identidades étnicas p o d e m ser resultado de u m a orientação ideológica que
responde aos interesses políticos do grupo, n o caso, a identificação com os
fons serviria para legitimar a sua hegemonia sobre os povos vizinhos mahis e
nagôs. E m b o r a esses povos pertençam à mesma área geográfica, a diferen-
ciação étnica entre os savalus e os mahis explicaria a diferenciação que se man-
tém no C a n d o m b l é baiano entre a nação jeje-mahi e a nação jeje-savalu.
O u t r o grupo cuja presença no Brasil foi bastante significativa era o dos
chamados "agolin", correspondentes aos agonlis ou agonlinus, estabelecidos a
este de Abomey, ao redor de cidades como Zagnanado e Cové. Ainda que Bergé
não reconheça essa área como parte do país Mahi, é provável que, por estar loca-
lizada ao norte do rio Zou, os daomeanos assim o fizessem. Foi no contato com
povos dessa região, próxima do lago Azili, que os daomeanos se apropriaram
de práticas religiosas associadas aos espíritos dos rios que eles identificam como
mahis. O culto das divindades tohosu e das tobosi, que constituem uma impor-
tante base ritual do culto aos ancestrais reais de Abomey (Nesuhue), provém
dos agonlis. 50
Todavia, outra modalidade de rito no C a n d o m b l é de nação jeje é o jeje-
m u n d u b i . " M u n d u b i " (ou as suas variantes m u d u b i , m a n d u b i , m o n d u b i ,
m o n d o b i , m e n d o b i ou m o d o b ê ) é u m a d e n o m i n a ç ã o étnica que surge re-
gistrada na Bahia a partir de 1812 e que, embora pouco frequente, parece
mais utilizada a partir de 1830. S1 De toda forma, não encontrei o t e r m o do-
cumentado na área dos gbe-falantes. Alguns autores têm identificado erronea-
mente m u n d u b i com um g r u p o banto, S 2 mas o e t n ô n i m o certamente desig-
na grupos da área gbe e isso porque no contexto religioso brasileiro esse termo
se aplica especificamente à família dos voduns do trovão e do mar (Hevioso,
Sogbo, Averekete etc.), procedentes dessa área. Verger identifica os m u n d u b i
com os h u e d a e hula, y ' o que é provável por serem essas etnias dois dos gru-
pos que originariamente cultuavam essas divindades. Mas outros grupos do
litoral que no início do século XIX também as cultuavam (i.e., ai'zo, fon, tori,
dovi, gen, anlo) não devem ser descartados (ver cap. 7). Embora a etimologia

41
LUIS NICOLAU FARES

de m u n d u b i seja confusa, não seria impensável que o e t n ô n i m o fosse uma


criação brasileira. 54
Vemos, assim, como no Candomblé, associadas à denominação genérica
"jeje", se acrescentaram denominações étnicas de "províncias" ou "terras" da
área vodum. Tendo demarcado a área geográfica aproximada dos povos adja-
ewés, delineado a grandes traços a sua complexa composição étnica, apontado
a sua unidade linguística referida como a área dos gbe-falantes, e a sua unida-
de cultural, aqui essencialmente definida em termos religiosos como a área
v o d u m , foi possível identificar e localizar os principais grupos que deram
n o m e às "subnações" ou "modalidades de rito" do C a n d o m b l é jeje. A saber:
jeje-marrim ou marrino (mahi), jeje-savalu, jeje-dagomé (daomé), jeje-mun-
dubi e jeje-mina-popo. 5 5 Do mesmo modo que as denominações metaétnicas
eram qualificadas com um segundo termo de caráter mais restrito (i.e. mina-
nagô, mina-jeje etc.), essa dinâmica denominacional se perpetua no âmbito das
nações de Candomblé.

0 TRÁFICO PORTUGUÊS D E ESCRAVOS MA ÁREA V O D U M ANTERIOR AO SÉCULO X V I I I

A história do tráfico de escravos escapa ao propósito desta pesquisa. Entre-


tanto, é preciso apresentar um breve panorama desse processo para demarcar
os períodos e portos de embarque a partir dos quais os povos da área vodum
foram trazidos para a Bahia. Precedendo Verger, Luiz Viana Filho já estabele-
cera uma divisão cronológica do tráfico português em três grandes ciclos.
Esses ciclos teriam sido os seguintes: o ciclo da Guiné, durante a segunda me-
tade do século XVI, o ciclo de Angola e do Congo, no século XVII, e o ciclo
da Costa da Mina, durante os três primeiros quartos do século XVIII. A isso
Verger acrescenta o ciclo da baía de Benim, entre 1770 e 1850, incluindo aí
o período do tráfico clandestino. 5 6 Aqui nos interessam, sobretudo, o terceiro
e o quarto ciclos, que estão compreendidos ao longo do século XVIII e du-
rante a primeira metade do século XIX, período em que o maior contingente
de escravos da área vodum chegou à Bahia. Vamos, no entanto, analisar bre-
vemente o período anterior.
O comércio de ouro e escravos realizado por portugueses na Costa da Mina
tem início por volta de 1470, mas é só em 1553 quando temos notícia do pri-
meiro contacto português com os povos litorâneos da área gbe, os papouès ou
popos, provavelmente no atual Grande Popo. 5 " É possível presumir que pouco
tempo depois os portugueses tenham estabelecido contato com o reino de Alia-
da (Ardra), o qual detinha um poder hegemónico naquela zona, na segunda

42
ENTRE DUAS COSTAS

metade do século XVI. H á documentos que indicam a presença de escravos de-


nominados "Aradas" ou "Araras" no Peru, já a partir de meados da década de
1560. O negociante holandês De Merees, descrevendo as condições do comércio
de escravos no ano de 1601 (ou antes), nota que os portugueses estavam com-
prando "muitos escravos" de Aliada, para as plantações de açúcar de São Tomé
e Brasil. Outras referências mostram que o comércio português em Aliada con-
tinuou ativo, tanto c o m escravos como com outros produtos, pelo menos até
o final da década de 1620, quando os holandeses passaram a controlar a região. 58
As Províncias Unidas dos Países Baixos, em guerra de independência con-
tra o rei de Castela desde 1568, aproveitaram a forçada submissão dos p o r t u -
gueses ao Império Espanhol, em 1580, como um pretexto para atacar os seus
territórios de ultramar, tanto nas Américas c o m o na África. Aos holandeses
importava o fato de que Portugal não só competia com os Países Baixos n o
tráfico de escravos, c o m o agora fazia parte do inimigo Império Espanhol.
Deu-se assim u m a tentativa frustrada de invadir a Bahia (1624-25) e, poucos
anos depois, em 1630, foi invadido o nordeste do Brasil (Pernambuco, em
1630, Rio G r a n d e do N o r t e e Paraíba, em 1634). A necessidade de prover es-
cravos para os engenhos de açúcar brasileiros levou os holandeses a invadir
os entrepostos portugueses na costa da Africa. O forte de São Jorge da Mina
foi c o n q u i s t a d o em 1637. Em 1641, apesar da trégua então firmada entre o
rei João IV e os holandeses, as ilhas de São Tomé e Príncipe foram ocupadas.
O m e s m o aconteceria a Angola (Luanda até 1648). Desse m o d o , desde a
década de 1630 até 1653 a C o m p a n h i a H o l a n d e s a das í n d i a s O c i d e n t a i s
(WIC) d o m i n o u o comércio na Costa da Mina, vindo ocasionalmente a se
estabelecer nos portos de O f f r a (Offer para os holandeses) e Apa. Entre 1636
e 1647 a W I C c o m p r o u u m a média anual de 800 escravos de Aliada, levados
p r i n c i p a l m e n t e para o Brasil, mas t a m b é m para São T o m é . ' 9
As primeiras levas de escravos da área gbe para o Brasil d a t a m , p o r t a n t o ,
desse período, que vai de 1570 a 1647. São esses os escravos que, vindos de
Aliada, foram recrutados em regimentos paramilitares d u r a n t e a guerra da in-
dependência contra os holandeses em P e r n a m b u c o . Já mencionei a carta de
H e n r i q u e Dias, de 1647, em que há u m a primeira referência aos Ardas, "tão
fogosos que t u d o querem cortar de u m só golpe". T a m b é m em 1647, Gaspar
Barléus menciona os Ardrenses, "que são m u i t o ignorantes, teimosos e estú-
pidos, têm horror ao trabalho se excetuarmos pouquíssimos que, m u i t o pa-
cientes no trabalho, a u m e n t a m o seu preço". Antonil menciona os Ardas, mas
ja entre uma pluralidade de denominações de procedência, o que evidencia o
incremento paulatino do tráfico intercontinental. Esse autor faz comentário
segundo o qual "os Ardas e os Minas são robustos". 6 0

43
LUIS NICOLAU P A R ÉS

Arda designava o centro comercial o n d e os escravos t i n h a m sido vendidos


aos portugueses. Da mesma f o r m a que mina, arda ou arada foram d e n o m i -
nações metaétnicas elaboradas a partir do n o m e do lugar de procedência "co-
mercial". C o m o aponta Labat, no Voyage du Chevalier des Marchais en Guinée,
p u b l i c a d o em 1730, arada não designava necessariamente u m a p o p u l a ç ã o
indígena desse reino. "Os Aradas são os melhores escravos que p o d e m ser com-
prados nos reinos de Juda [Uidá] e Ardres [Aliada]; mas não devem ser c o n f u n -
didos com os naturais de Ardres, eles não vêm desse reino. São trazidos a Juda
de um país que fica a umas 150 léguas ao nordeste." 6 1
, D u r a n t e a segunda metade do século XVII, a concorrência comercial entre
holandeses, ingleses e franceses, centrada s o b r e t u d o no tráfico de escravos,
"provocou u m a transformação político-econômica sem precedentes na costa
da área gbe, que ameaçou e acabou por solapar o poder hegemónico de Aliada.
Favorecidos pela localização costeira, pelas o p o r t u n i d a d e s comerciais e pelas
armas oferecidas pelos europeus, surgiram outros reinos menores, como Popo
e, sobretudo, o reino Hueda, com capital em Savi e porto em Uidá. Esses reinos
viviam em constante disputa com O f f r a e depois Jakin, os portos de embar-
que dos comerciantes de Aliada. A partir de 1680, com a chegada dos gãs e
dos fante-anés e a subsequente f u n d a ç ã o do reino Gen, com o seu p o r t o em
Pequeno Popo (Aneho), essas disputas interétnicas viriam a se exacerbar. Foi
uma época de grande instabilidade social, com guerras constantes entre Coto,
Aneho, Popo, Uidá, Aliada, O f f r a e Jakin. Essas guerras tanto poderiam ter co-
mo objetivo a procura de escravos q u a n t o a desestabilização e o consequente
controle do comércio dos vizinhos em benefício próprio.
A principal disputa entre o reino de Aliada e o reino H u e d a foi ainda com-
plicada por O f f r a que, instigada pelo lucro do tráfico, rebelara-se em várias
ocasiões contra o seu soberano. C o m o estratégia contra-ofensiva, Aliada blo-
queava de f o r m a recorrente as rotas que vinham do interior, desviando o trá-
fico ora para Uidá ora para O f f r a , segundo os interesses do m o m e n t o . Foi a
a t i t u d e rebelde do fidalgo de O f f r a — que em 1690 tinha assassinado o fei-
tor holandês Van H o o l w e r f f — que levou o rei de Aliada a convocar o exér-
cito de Pequeno Popo, o qual deveria resolver a questão. Em 1692, O f f r a foi
totalmente destruída. A partir desse m o m e n t o , holandeses, franceses e ingleses
passaram a desenvolver o comércio principalmente em Uidá, em detrimento
de Aliada. Em 1703, indicando o seu crescente poderio, os huedas negaram-se
a pagar os tradicionais tributos a Aliada. Após 1714, q u a n d o as condições co-
merciais em Uidá se tornaram difíceis, devido às novas pressões exercidas por
Aliada, as feitorias foram de novo transferidas para os portos desse reino, desta
vez para Jakin e não mais para O f f r a . 6 '

44
ENTRE DUAS COSTAS

Entretanto, c o m o já foi bem descrito por Pierre Verger, o comércio por-


tuguês e baiano na Costa da M i n a estava sujeito ao controle e c o n ó m i c o e
militar dos holandeses. O tratado de trégua de dez anos, assinado em 1641
entre Portugal e os Países Baixos, reconhecia a soberania holandesa na costa
da Guiné. O Tratado de Miinster (Westphalia), de 1648, exigia que os p o r t u -
gueses comprassem qualquer escravo africano diretamente à W I C , exceto na
área de Luanda (Angola). Esse acordo apenas desapareceria com o tratado de
1661, que reconhecia o livre comércio português na Africa, mas o proibia
explicitamente na Costa da Mina.
C o m o resultado, qualquer barco português que quisesse comerciar a sota-
vento do Forte de São Jorge d ' E l m i n a deveria pagar aos holandeses, nesse
porto, u m a taxa equivalente a 10% da sua mercadoria. Além disso (depois
do Tratado de Miinster, segundo Pazzi), cada barco teria que solicitar um pas-
saporte em Elmina para poder comerciar. A taxa de 10% é d o c u m e n t a d a já
em 1717, mas corria o boato de que essa obrigação datava de 1654, q u a n d o
os holandeses deixaram P e r n a m b u c o . O r a , essa saída foi na verdade o resul-
tado de u m a expulsão e, desse m o d o , dificilmente poderia ter dado lugar a
uma tal imposição. Por o u t r o lado, sempre que possível, os comerciantes bra-
sileiros procuravam evitar esse p a g a m e n t o .
Em 15 de j u n h o de 1733, o vice-rei da Bahia escrevia ao secretário de
Estado, explicando que "as embarcações do Brasil não c o s t u m a m fazer ne-
gócio senão nos portos de Jaquin, A j u d a [Uidá] e Apá e outros que c h a m a m
de Baixo [Pequeno Popo], em que os holandeses não têm d o m í n i o nem pre-
sentemente feitorias [...] sem irem ao Castelo [d'Elmina] a pagar-lhe dez por
cento do tabaco que levam". N ã o existe certeza acerca do m o m e n t o em que
o direito dos barcos portugueses de comerciar na Costa da M i n a foi restrito
pelos holandeses aos q u a t r o portos de Popo, Uidá, Jakin e Apa, mas a medi-
da permaneceu efetiva até pelo menos 1770. 63
Apesar das restrições e da vigilância naval dos holandeses, nas últimas
décadas do século XVII os vasos, patachos e sumacas portuguesas e baianas
comerciavam de f o r m a clandestina, mas fluída, em outros portos menores
como o do reino de C o t o , ao leste do rio Volta, ou Pequeno Popo (Aneho). 6 4
Todavia, em 1711, como atesta a correspondência da WIC, "os portugueses
tem de fato livre comércio [ao longo da Costa] e mais q u a n d o conseguem
escapar aos navios da C o m p a n h i a , navegando sob a proteção dos canhões dos
fortes de outras nações estrangeiras". 6 3
A taxa de 10% era paga necessariamente em tabaco, sendo proibido aos
portugueses o comércio de outros produtos europeus. C o m o informa Antonil,
o plantio do tabaco na Bahia teve início no final do século XVI. Em 1644,

45
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

dom João IV "tinha autorizado seus vassalos a irem às costas da Guiné, a fim de
levar tabaco de terceira categoria e trazer escravos aos portos do Brasil". Os holan-
deses adquiriam o tabaco baiano de terceira qualidade, o chamado tabaco refu-
go, proveniente d o Recôncavo, para comerciar com os africanos que aprecia-
vam esse p r o d u t o mais que qualquer outro.
C o m o já foi estudado em detalhe por Verger, essa preferência teve impor-
tantes repercussões, favorecendo especialmente aos comerciantes baianos que
dispunham de tabaco, em detrimento dos comerciantes portugueses e de outras
partes do Brasil que, sem esse produto, viram reduzidas as suas possibilidades
de comerciar nessa parte da costa. Portugal encorajou seus comerciantes colo-
niais e metropolitanos a comprar escravos em Angola, C o n g o ou Guiné, onde
o poder holandês era menos evidente, mas os baianos não estavam autoriza-
dos a vender o seu tabaco nesses portos. D u r a n t e a segunda metade do século
XVII e todo o século XVIII, os escravocratas de Salvador e da zona fumageira
d o Recôncavo continuaram a desenvolver na área gbe o comércio do tabaco e,
em menor volume, o comércio do açúcar e da cachaça, i m p o r t a n d o , de forma
sistemática e em grande quantidade, escravos gbe-falantes para os engenhos de
açúcar e as plantações de tabaco do Recôncavo Baiano. 66
A partir de 1698, com a descoberta de o u r o em Minas Gerais, a d e m a n d a
de escravos a u m e n t o u . Embora, como aponta Braz do Amaral, as opiniões dos
poderes coloniais nem sempre concordassem, havia uma crescente preferên-
cia pelos negros minas aos angolas. Em 27 de n o v e m b r o de 1718, o vice-rei
da Bahia, d o m Sancho Faro, escrevia a Lisboa: "Os negros da Costa da Mina
são mais procurados para as minas e os engenhos que os de Angola, pela faci-
lidade com que estes morrem e se suicidam". 6 Já em 1726, em relação a uma
revolta escrava em Minas Gerais que fracassara devido a dissidências internas
entre minas e angolas, o governador do Rio ponderava,

os n e g r o s m i n a são os de m a i o r r e p u t a ç ã o para a q u e l e t r a b a l h o , d i z e n d o os m i n e i -
ros q u e são os m a i s f o r t e s e v i g o r o s o s , m a s eu e n t e n d o q u e a d q u i r i r a m a q u e l a r e p u -
t a ç ã o p o r s e r e m t i d o s p o r f e i t i c e i r o s e t ê m i n t r o d u z i d o o d i a b o q u e só eles d e s c o b r e m
o u r o e pela m e s m a c a u s a n ã o hã m i n e i r o q u e possa viver sem unia n e g r a m i n a , d i -
z e n d o q u e só c o m elas t ê m f o r t u n a . 6 8

Embora a mescla com angolas seja ainda recomendada, de m o d o a evitar


a união subversiva dos escravos, a d e m a n d a dos minas sofre um incremento.
Inicia-se, assim, o ciclo da Costa da Mina, que c o n v e n c i o n a l m e n t e corres-
p o n d e aos três primeiros quartos do século XVIll. Esse fato também dá início
ao c o n t r a b a n d o de ouro com a Costa da Mina que, ao lado do comércio de
tabaco e de aguardente, constituiu a base do comércio baiano. E precisamente

46
ENTRE DUAS COSTAS

na primeira década do Setecentos que no Recôncavo Baiano começa ser uti-


lizado o termo "jeje".

HIPÓTESES S O B R E A O R I G E M GEOGRÁFICA E E T I M O L O G I A S OA D E N O M I N A Ç Ã O "JEJE"

"Luiza geige", avaliada em 80 mil réis, aparece registrada no inventário de


Antonio Sardinha, datado de 3 de setembro de 1711, na freguesia de Muri-
tiba, no Recôncavo. 69 Esse é o primeiro registro conhecido do e t n ô n i m o jeje
no Brasil. Encontrei uma segunda referência, em 1714, na freguesia de São
Gonzalo dos Campos, a "Joanna Gege doente e com uma perna inchada e
com uma ferida avaliada em trinta mil réis"; e uma terceira em 1717, ainda
em Muritiba, a uma escrava "Catherina gege"."0 A partir de 1719, os registros
de escravos jejes nos inventários do Recôncavo começam a aumentar progres-
sivamente (ver adiante). Como os inventários só são redigidos com a morte
do proprietário dos bens, podemos inferir que o termo "gege" era já conhe-
cido e utilizado alguns anos antes de 1711, q u a n d o se realizou a compra de
"Luizi geige", provavelmente na primeira década do Setecentos.
O primeiro fato notável a destacar é que o uso do termo "jeje" está restrito
ao Brasil e não aparece documentado em Haiti, Cuba, Trinidad ou outras par-
tes das Américas, enquanto outros etnônimos da área gbe, como alada (lada,
arada, rada, ardra) ou mahi (mai, makii), têm sido preservados em diversas
partes do Novo M u n d o (Cuba, Haiti, Trinidad). Aliás, no Brasil, no século
XVIII, o uso do etnônimo parece estar restrito à Capitania da Bahia e, em
menor grau, ao estado do Maranhão (comarca do Piauí), onde achamos uma
primeira e única referência a escravos jejes em 1758. 1 Já na Obra nova da lín-
gua geral de mina, um vocabulário da língua falada pelos escravos provenientes
da área gbe em Minas Gerais, escrito por Peixoto em 1741, não há qualquer
menção do termo "jeje". No Rio, é só em 1835 que aparece a primeira refe-
rencia ao e t n ô n i m o "gege", significativamente em relação a escravos impor-
tados da Bahia." 2 Talvez seja também nesse período tardio, e como consequên-
cia do tráfico interno, que o termo foi "exportado" da Bahia para Pernambuco.
Isso leva a pensar que o uso do etnônimo, na sua origem, esteve relacionado
com o tráfico baiano e talvez, mais especificamente, com o Recôncavo, e que
de lá teria sido d i f u n d i d o para outras regiões.
Na Africa ocidental, o termo "jeje" só aparece documentado como djédji
a
partir da segunda metade do século XIX, principalmente nos escritos dos
padres das Missions Africaines de Lyon. Aplicava-se normalmente para desig-
nar os guns, os habitantes adjas de Porto Novo, ou à sua língua e, mais rara-

47
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

m e n t e , c o m o n o caso de D'Albeca, para se referir de u m a f o r m a genérica à


área gbe, f a l a n d o da "costa D j e d j i " . Ainda n u m mapa de 1892, "realizado
a partir das mais recentes expedições", o t e r m o "djedjis" aparece designando
os povos das margens do lago Aheme, a maioria de composição hula e hueda. 7 1
Cornevin conclui que jeje, grafado como djedje, era o n o m e dado aos guns,
em P o r t o Novo, pela a d m i n i s t r a ç ã o colonial francesa." 4 H o j e , o t e r m o não
é mais usado, mas ainda é l e m b r a d o em relação aos guns. C a b e p o r é m n o -
tar que, q u a n d o surge o t e r m o "jeje" n o Recôncavo, P o r t o N o v o ainda não
existia.
Lorand M a t o r y sugere que a historiografia da palavra escrita m o s t r a n d o
precedência no Brasil poderia indicar a formação do termo no país e a sua
possível i n t r o d u ç ã o no Benim pelos ex-escravos africanos para lá retornados
n o século X I X . O r a , sendo que o uso do e t n ô n i m o era c o m u m entre trafi-
cantes e senhores de escravos, assim como entre os próprios africanos, é mais
provável que, e m b o r a falte d o c u m e n t a ç ã o escrita, o t e r m o "jeje" se tenha
originado na Africa, como acontece com quase todas as outras denominações
de nações étnicas africanas no Brasil. Mais precisamente se poderia pensar que
o termo resultou de uma adaptação aportuguesada que os traficantes baianos
fizeram de algum vocábulo africano.
Já que o termo "jeje" surge no Recôncavo na primeira década do Setecen-
tos e o seu uso é generalizado na segunda, interessa-nos saber o que estava
acontecendo naquele período na costa da área gbe e qual dos portos de embar-
q u e utilizados pelos portugueses (Popo, Uidá, Jakin, Apa) poderia ter sido a
origem geográfica d o termo. Essa análise talvez nos ajude a identificar que
povos eram d e n o m i n a d o s como jeje.
C o m o já foi dito, a partir de 1692, com a destruição de O f f r a , as feitorias
européias e o comércio concentraram-se em Uidá. Os holandeses estabelece-
ram-se lá em 1703 e calcula-se que eram embarcados 30 mil escravos por ano.
E m 1704, os franceses construíram o Forte de St. Louis de Grégoy. C o m o
a u m e n t o da demanda, entre 1700 e 1701, o preço dos escravos em Uidá tinha
d u p l i c a d o . 7 6 Apesar da ameaça c o n s t a n t e dos holandeses, os comerciantes
baianos, embora sem o apoio da metrópole portuguesa, atuavam t a m b é m em
U i d á . Entre 1698 e 1702 eles tinham intenção de construir um forte lá (ou, al-
ternativamente, em Popo) e estabelecer uma companhia que monopolizasse o
tráfico dessa parte da costa, para prejuízo dos negociantes portugueses. Mas
o projeto não prosperou. 7 7
Porém o tráfico c o n t i n u o u crescendo e, no período de 1701 a 1710, 216
navios provenientes da Bahia aportaram na Costa da Mina. 7 8 A atuação in-
d e p e n d e n t e e sem r e g u l a m e n t o dos comerciantes baianos, que, na sua avi-

48
ENTRE DUAS COSTAS

dez por encher os seus barcos com rapidez, p o d i a m comprar por preços acima
do c o m u m , acabou por gerar um certo caos comercial e a oposição generali-
zada das nações europeias à sua presença em Uidá. E m 1714, C o l o m b i e r ,
diretor do forte francês, escrevia sobre "a c o n f u s ã o que os portugueses cau-
sam nestas bandas pela falta de ordem". 7 9
Portanto, a p r o x i m a d a m e n t e entre 1700 e 1714, o tráfico na área gbe es-
teve centralizado em Uidá, em d e t r i m e n t o de Aliada e Jakin, o seu p o r t o na-
quele m o m e n t o . O fato de que o termo "jeje" começou a aparecer no Re-
côncavo p r e c i s a m e n t e nessa época, q u a n d o , s i g n i f i c a t i v a m e n t e , o t e r m o
"Arda" tendeu p a u l a t i n a m e n t e a desaparecer, sugere u m a primeira hipótese
segundo a qual "jeje" seria um t e r m o surgido em relação direita com a emer-
gente hegemonia do comércio em Uidá.
No entanto, q u a n d o Labat, no relato da viagem realizada pelo Chevalier de
Marchais, em 1725, listou os nomes das diversas denominações atribuídas aos
escravos em Uidá e Aliada — aradas, nagô, foin (fon), tebou (ijebu), guiamba,
mallais (malês), ayois (oyo), minois (mina) e aqueras 80 —, não aparecia qual-
quer menção ao termo "jeje". Já que os comerciantes negreiros distinguiam
perfeitamente entre os diversos grupos de escravos que estavam c o m p r a n d o e
que, como aponta Labat, "as colónias da América aprenderam a conhecê-los
através de uma longa experiência", a ausência do termo "jeje" nessa lista sugere
que sua utilização estava restrita aos comerciantes baianos ou lusófonos, e não
aos traficantes franceses ou de outras nações. Alternativamente, devemos pro-
curar o surgimento do termo em outros portos fora de Uidá. 8 1
Nina Rodrigues, no já clássico Os africanos no Brasil, identificou os jejes
com os daomeanos e, influenciado pela leitura do trabalho de Ellis, The Ewé-
speakingpeople, sugere uma hipótese etimológica segundo a qual jeje derivaria
do e t n ô n i m o gen.

A d e n o m i n a ç ã o Gêge vem d o n o m e da zona ou território da C o s t a dos Escravos


q u e vai d e B a g e i d a [ e m T o g o , a o e s t e d e A g b o d r a f o ( P o r t o S e g u r o ) ] a A k r a k u [ e n t r e
P e q u e n o e G r a n d e P o p o ] e q u e os i n g l e s e s e s c r e v e m G e n g , m a s q u e os n e g r o s p r o -
n u n c i a m antes egége.82

Para Rodrigues, jeje designaria, principalmente, os povos gens, localiza-


dos na área M i n a - P o p o , na costa a oeste do rio M o n o , cujos maiores portos
eram Aneho e Agoué, "donde veio para o Brasil avultado n ú m e r o de escra-
vos . No e n t a n t o , as leis de transformação fonética não corroboram a hipó-
tese, já que o termo "gen" é p r o n u n c i a d o como "guen", inclusive — contra-
riamente à opinião de Rodrigues — pelos próprios nativos, e sua reduplicação
guenguen" dificilmente derivaria em jeje. 83 A ocorrência de egége nessa re-

49
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

gião poderia dever-se à difusão tardia do termo pelos retornados brasileiros


que se instalaram nessa parte da costa na segunda m e t a d e do século XIX.
Vivaldo da Costa Lima sugere que a expressão "jeje" deriva da palavra âjèji,
que em língua iorubá significa forasteiro ou estrangeiro. Esse autor explica que
os nagôs da área de Porto Novo chamavam ajeji ou, na forma abreviada, jeji,
os invasores adjas vindos do oeste. Subsequentemente, os adjas instalados em
Porto Novo, isto é, os guns, apropriaram-se do termo para se a u t o d e n o m i n a r
e, c o m o já c o m e n t a m o s , o t e r m o foi f i n a l m e n t e a p r o p r i a d o pelos a d m i -
nistradores e missionários franceses. 8 4 Essa hipótese etimológica que atribui
uma origem iorubá ao termo "jeje" é bastante convincente. Porém caberia u m a
objeção de ordem histórica, já que as migrações de "estrangeiros" adjas na área
de Porto Novo se deram só a partir de 1724, após a conquista de Aliada por
Agaja e, portanto, após o surgimento do termo "jeje" no Brasil.
A mesma hipótese etimológica poderia f u n c i o n a r m e l h o r no contexto de
Apa, que, no século XVII, constituía o porto mais oriental d o reino de Aliada
na sua fronteira com o reino do Benim, na área da atual Badagri. Em 1682,
lá compravam escravos comerciantes de Aliada, O f f r a , Uidá e Popo, e se ven-
diam panos trazidos de Benim, indicando a presença de mercadores iorubá-
falantes. 8 5 Q u a n d o em 1707 os holandeses em Uidá consideraram deslocar-se
a Apa, o rei de Aliada lhes prometeu a exclusividade do comércio, com "exce-
ção dos portugueses", sugerindo que, nessa época, os traficantes baianos es-
tavam c o m e r c i a n d o em Apa. 8 6 Já em 1715, Apa tinha conseguido u m a certa
independência de Aliada, e lá vendiam seus escravos t a n t o os comerciantes
fons do emergente reino do D a o m é como os iorubá-falantes do reino do Be-
nim. 8 7 Existe então a possibilidade de que a d e n o m i n a ç ã o âjèji — aplicada,
talvez, aos escravos trazidos pelos d a o m e a n o s — fosse popularizada pelos
mercadores iorubá-falantes no p o r t o de Apa e apropriada depois pelos trafi-
cantes portugueses.
Pierre Verger ainda sugere que o termo "jeje" derivaria do e t n ô n i m o adja,
mas, mais uma vez, as leis fonéticas não explicam facilmente u m a evolução de
adja pura. jeje.88 Está claro que o termo "jeje" acabou por designar uma plu-
ralidade de povos adjas; porém inclino-me a pensar que na sua origem a deno-
minação estava restrita a um grupo ou a u m a geografia, mais específicos. Nes-
se sentido, Brice Sogbossi sugere uma outra etimologia relacionada com um
g r u p o proto-iorubá chamado idjè, localizado na área entre Pobé e Ketu, ao
norte de Porto Novo.
Idjè é a a u t o d e n o m i n a ç ã o étnica desse g r u p o , e n q u a n t o os iorubás os
chamavam ohoris ou ahoris, termo que os fons pronunciavam "holli". A admi-
nistração colonial francesa acabou por d e n o m i n a r o grupo com o termo com-

50
ENTRE DUAS COSTAS

posto " h o l l i d j è " , que, além de e t n ô n i m o , virou t o p ó n i m o e g l o s s ô n i m o .


Sogbossi argumenta que jeje poderia ser a reduplicação desse etnoglossônimo
(idjè > djè ou idjè > djèidjè > d j è d j è ) . A reduplicação o n o m a t o p a i c a de ter-
mos indígenas monossilábicos parece ter sido uma prática c o m u m entre os
portugueses para designar os povos autóctones. Pazzi dá vários exemplos como
popo, que p o d e r i a ser u m a reduplicação de kpo ou, na C o s t a do M a r f i m ,
quaqua, que seria u m a reduplicação da saudação local kwa.89
Os idjès são conhecidos pelo seu espírito de independência e sua resistência
contra o poder colonial francês, mas se o seu e t n ô n i m o está na origem do
termo "jeje", significa que eles o c u p a r a m a área de hollidjè, com anteriori-
dade ao século XVIII. Uma tradição oral dos vizinhos adja-wérés explica que
os idjès eram descendentes de um g r u p o de caçadores nagôs chegados de
Méko, na atual Nigéria, e que o c u p a r a m a área entre Pobé e Ketu, só após a
chegada dos adjas, a partir de 1730. N o entanto, os próprios idjès se decla-
ram os primeiros habitantes dessa região, tese que seria corroborada pelas suas
características fenotípicas diferenciadas daquelas dos nagôs. Merlo e Vidaud
também falam da existência de caçadores idjès mais ao sul, na área de Akron
e Adjachè ( f u t u r a Porto Novo), antes do século XIV. A partir de diversas
evidências etnográficas, esses autores sugerem que os hulas e os huedas, po-
vos hoje considerados c o m o originários de Tado, teriam na verdade surgido
desse povo p r o t o - i o r u b á , o que provaria u m a antiga presença dos idjès na
região. Embora Tidjani identifique a sua língua como um "dialeto iorubá mo-
dificado", isso seria resultado do longo processo de aculturação entre os idjés
e seus vizinhos nagôs. Ainda o missionário francês Laffitte, no fim do século
XIX, parece referir-se aos idjès q u a n d o , no relato de tradições relativas à f u n -
dação do reino de Porto Novo, menciona "os Djedgis, povo feroz vindo do
interior", que teria perseguido e expulsado do seu território os nagôs respon-
sáveis pela f u n d a ç ã o desse reino em meados do século XVII. 90
Para contribuir com esse debate etimológico, já apresentei, em trabalho
anterior, u m a o u t r a possível interpretação segundo a qual jeje decorreria do
t o p ó n i m o Adjaché. 9 1 A d j a c h é (grafado por diversos autores c o m o Ajâcé,
Adjacé, Ajase, Adjatchè ou Jasin) foi a capital de uma área que os oyos chama-
vam Adjaché Ipo, região o n d e os adjas de Aliada se refugiaram após a con-
quista do seu reino pelas tropas de Agaja, em 1724. Segundo Pazzi, Ajâcé sig-
nificaria "os adjas se instalaram aqui" e segundo Akindélé e Aguessy, Adjatchè
significaria "conquistados pelos adjas". Segundo u m a outra versão, Adjaché
e Akron eram os povoados originais onde surgiu mais tarde Xògbónú, capital
do reino de Porto Novo, que os nagôs c o n t i n u a r a m a chamar Adjaché. 9 2 É
sabido que as palavras iorubás perdem a vogal inicial q u a n d o são apropria-

51
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

das pelos povos gbe-falantes. Uma possível transformação fonética poderia ser:
adjaché > djaché > djedjé > jeje. Essa hipótese só seria válida se, como susten-
tam Merlo e Vidaud, Akindélé e Aguessy, esse topónimo fosse anterior à fun-
dação do reino de Porto Novo. 93 Ao mesmo tempo explicaria também por que,
no século XIX, o termo "djedje" foi aplicado aos guns de Porto Novo.
Resumindo, vemos que o debate etimológico, apesar de não resolver a ques-
tão de uma forma conclusiva, parece relacionar a origem da denominação "jeje"
c o m povos capturados na margem oriental do rio O u e m é , seja na área de
Adjatché (Porto Novo) ou, mais provavelmente, na área dos idjè, entre Pobé
e K e t u . Na primeira década do Setecentos, esses escravos poderiam ter sido
vendidos aos portugueses, no vizinho porto de Apa, pelos traficantes fons,
os iorubás do reino do Benim, ou por outros grupos que ali comerciavam,
sendo embarcados para o Brasil, subsequentemente, ali ou em outros portos,
c o m o Uidá, Jakin ou Popo. C o m o tempo, o e t n ó n i m o idjè, ou o t o p ó n i m o
Adjaché, apropriado e transformado pelos comerciantes baianos sob a forma
jeje, passou a denominar, na Bahia, uma pluralidade de povos adjas, enquanto
no Benim ficou restrito aos guns do reino de Porto Novo. A outra possibili-
dade seria que o termo fosse utilizado pelos traficantes baianos para desig-
nar escravos embarcados no porto de Uidá. Nesse caso, a origem etimológica
do t e r m o permanece em aberto e será preciso esperar futuros estudos para
resolver o problema.

0 T R Á F I C O B A I A N O NA ÁREA V O O U M A P Ó S A
C O N Q U I S T A OA COSTA POR AGAJA ( 1 7 2 4 - 1 8 5 0 )

R e t o m a m o s agora a história do tráfico baiano na Costa da Mina, que in-


terrompemos por volta da década de 1710. Em 1721, um ano após a chegada
de Vasco Fernandez César de Menezes como governador da Bahia e vice-rei do
Brasil, o capitão de mar e guerra Joseph de Torres consegue os recursos para
construir finalmente o Forte de Ajuda em Uidá, apesar da oposição das ou-
tras nações europeias. Pouco depois, em j u n h o de 1723, é criada a Compa-
nhia do Corisco pelos negociantes baianos para monopolizar e solidificar as
bases do tráfico negreiro na Costa da Mina. No entanto, as iniciativas baianas
não vão f r u t i f i c a r até anos depois, após a c o n q u i s t a da costa pelos dao-
meanos. 9 4 Sob o reinado de Agaja, o exército daomeano, seguindo o propó-
sito estabelecido por Hwegbaja de continuar a expansão, invadiu Aliada, em
1724. N u m a clara tentativa de ampliar o seus contatos e relações comerciais
com os europeus, três anos depois, em 1727, os daomeanos atacaram Savi, a

52
ENTRE DUAS COSTAS

capital do reino H u e d a , sendo que Uidá (Glehue), o seu p o r t o , caiu pouco


tempo depois. 9 5
Essas campanhas militares provocaram importantes migrações dos huedas
e hulas para o oeste, na área Popo, o n d e os huedas se envolveram em uma
longa guerra civil, além de tentar reconquistar o seu reino em várias ocasiões.
Outros grupos hulas, aizos e ouemenus t a m b é m escaparam para o leste, na
área de Porto Novo, Apa e Badagri. A devastação provocada pelas guerras e
as invasões periódicas de O y o Fizeram entrar em decadência o comércio em
Uidá até pelo menos 1733. Jakin, o centro escravocrata litorâneo de Aliada,
conseguiu, n u m primeiro m o m e n t o , manter certa atividade comercial, de-
clarando a sua submissão ao poder dos fons. Joseph Torres, em oposição aos
interesses do Forte de Ajuda, então sob a direção de João Basílio, c o n s t r u i u ,
em 1731, u m a nova feitoria com a bandeira portuguesa em Jakin. Todavia, em
2 de abril de 1732, Jakin foi invadida e completamente destruída pelo exér-
cito de Agaja, após a conspiração do feitor holandês Hertog que, aliado à po-
pulação local e alegando a f u t u r a a j u d a dos huedas e dos oyos, pretendia aca-
bar com o d o m í n i o d a o m e a n o sobre o tráfico. Os daomeanos passam, assim,
a controlar os principais portos na área gbe, Uidá e Jakin, e n q u a n t o G r a n d e
Popo e Apa, portos menores, perdiam importância. O tráfico de escravos passa
a ser a principal atividade económica do reino do Daomé. 9 6
Entre 1727 e 1740, as guerras daomeanas pelo d o m í n i o da costa, apesar
dos estragos causados no comércio nos primeiros anos, geraram grande q u a n -
tidade de prisioneiros. Fala-se de 11 mil cativos na conquista de Uidá em
172.7, e de 4 .538, em Jakin, em 1732. 9 7 Historiadores da escravidão têm no-
tado que, no período de 1700-1730, as exportações de africanos da Costa da
Mina para a Bahia conheceram um grande crescimento, sendo que, após 1730,
com a crise da economia do açúcar, elas entraram em declínio. 9 8 Pode-se su-
por que, nesse período, grande n ú m e r o de escravos das etnias que moravam
no litoral, c o m o os hulas, huedas e aizos, foram transportados nas embarca-
ções baianas. Ao mesmo t e m p o , q u a n d o o recesso dos ataques de O y o o per-
mitia, as incursões daomeanas no país Mahi e na região do rio O u e m é conti-
nuaram. Essa progressiva chegada de escravos gbe-falantes, na primeira meta-
de do século XVIII, aos poucos iria constituir na Bahia um estrato de população
escrava demograficamente significativo para estabelecer a matriz de uma nova
identidade coletiva, que viria a consolidar-se c o m o a "nação jeje" na segunda
metade do século.
Além dos tradicionais portos de Grande Popo, Uidá, Jakin e Apa, os ne-
gociantes baianos traficavam ocasionalmente em outros enclaves fora da área
6
Afluência fon, como Aneho ou o novo p o r t o de Epe (Ekpe), localizado

53
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

p e r t o de Porto Novo. A partir da década de 1750, como já foi bem d o c u m e n -


tado por Verger, o tráfico de escravos na Costa da Mina deslocou-se paulatina-
m e n t e dos portos m e n c i o n a d o s para Porto Novo, Badagri e O n i m (Lagos).
Nesse ano, o rei d a o m e a n o Tegbesu, talvez pressentindo essa m u d a n ç a , m a n -
dou, via Bahia, uma embaixada a Portugal p e d i n d o a exclusividade do comér-
cio nos seus portos. O marquês de Pombal não c o n c o r d o u com esse m o n o -
pólio, t e m e n d o o progressivo a u m e n t o d o preço dos escravos, já altamente
inflacionado desde a c o n q u i s t a de U i d á por Agaja. Nesse sentido, Pombal
p o d e ser considerado o m e n t o r político do deslocamento do comércio por-
tuguês aos portos orientais.
O tráfico de Porto Novo estaria controlado pelo reino de Oyo, e n q u a n t o
o tráfico em O n i m estaria c o n t r o l a d o pelo reino de Benim. Em 1758, T h e o -
dozio Rodrigues da Costa, diretor do Forte de A j u d a , escrevendo ao vice-rei
de Portugal, m e n c i o n a o "novo porto" (Porto Novo) pela primeira vez, no-
tando que os escravos eram mais baratos lá, onde se trocavam por 8 a 12 rolos
de f u m o , do que em A j u d a , o n d e o preço era de 13 a 16 rolos. Em 1776, o
diretor francês em U i d á escrevia ao Ministério das Colónias c o n s t a t a n d o as
maiores vantagens económicas de Porto Novo e Badagri, "onde o tráfico rende
desde alguns anos". João de Oliveira — ex-escravo iorubá em Recife, que
residiu e serviu de cabeceira99 na Africa ocidental entre 1733 e 1770 — foi
i n s t r u m e n t a l nessa abertura do tráfico nos portos orientais.
Por volta de 1775, o comércio em Uidá entrou em sério declínio. Em 1777,
o novo m o n a r c a d a o m e a n o , Kpengla, i n t e n t o u revitalizar o p o r t o de Jakin
para atrair o interesse dos europeus, mas sem sucesso. N o mesmo ano, o di-
retor do forte francês, Ollivier M o n t a n g u è r e , nota que "os daomeanos estão
em u m estado de e n f r a q u e c i m e n t o que não lhes p e r m i t e obter cativos de
guerra". O s p o r t o s orientais não p o d i a m ser atacados i m p u n e m e n t e pelo
D a o m é , pois estavam sob a proteção de Oyo, mas Kpengla utilizou subter-
fúgios e estratégias combinadas para a consecução dos seus fins. Por exem-
plo, em 1781, atacava Epe, K e t o n o u (não c o n f u n d i r com C o t o n u ) e outras
localidades sob a i n f l u ê n c i a de P o r t o N o v o , "sob pretexto de que haviam
participado das depredações cometidas pela gente de Badagris, na praça de
Porto Novo". Ao mesmo t e m p o , em 1783, aliava-se com O y o e Porto Novo
para atacar Badagri. Apesar, ou talvez p o r causa dessa política desestabi-
lizadora, a decadência do comércio em Uidá alastrou-se d u r a n t e toda a década
de 1780. O resultado foi um significativo declínio da importação de escra-
vos jejes na Bahia (ver Tabela 1, cap. 2). 100
A rivalidade entre os portos controlados pelo D a o m é e os portos orientais
no G o l f o do Benim prolongou-se até o fim do tráfico. Em 1795, o rei dao-

54
ENTRE DUAS COSTAS

m e a n o A g o n g o l o e n v i o u dois embaixadores à Bahia com uma nova p r o p o s t a


de c o n f e r i r ao p o r t o de U i d á o m o n o p ó l i o d o comércio de escravos. O p r o -
jeto foi recusado, e n t r e o u t r a s razões, pelo m e d o de u m a concentração exces-
siva de "escravos de u m a m e s m a nação, do q u e facilmente p o d e r i a m resultar
perniciosas c o n s e q u ê n c i a s " . 1 0 1 T a m b é m o rei d a o m e a n o Adadozan insistiu
nesse m o n o p ó l i o com os portugueses, c o m o mostra sua carta ao rei p o r t u g u ê s
d o m J o ã o e m n o v e m b r o de 1804. 1 0 2
Cabe n o t a r q u e foi a p a r t i r desse ano que os fulanis iniciaram a jihad ou
guerra santa c o n t r a os hauçás, o que resultou em muitos prisioneiros de a m -
bos os lados a serem vendidos nos portos do golfo, por intermédio de traficantes
de O y o . Paralelamente, o reino de Oyo, devido a diversos conflitos i n t e r n o s
iniciados c o m a revolta de A f o n j a (c. 1797), vinha p e r d e n d o progressivamente
o seu poderio, e sucessivas guerras civis resultaram t a m b é m em grande n ú m e -
ro de cativos. C o m o consequência, muitos escravos hauçás e nagôs f o r a m e m -
barcados em Porto N o v o para a Bahia — principalmente por negociantes p o r -
tugueses e brasileiros e inclusive afro-brasileiros — c o n t r i b u i n d o de m a n e i r a
significativa para as revoltas de africanos que aconteceram entre 1807 e 1835. 103
Em 1807 os p o r t u g u e s e s a b a n d o n a r a m o forte de Uidá e os ingleses abo-
liram u n i l a t e r a l m e n t e o tráfico. E n t r e 1807 e 1809, o tráfico em U i d á prati-
c a m e n t e cessou. A d a d o z a n p r o c u r o u formas alternativas de comércio na agri-
cultura, mas n o t r a t a d o a n g l o - p o r t u g u ê s de 1810 permitia-se a c o n t i n u a ç ã o
do tráfico no p o r t o de Uidá, e n q u a n t o era interditado em Aneho, Porto Novo,
Badagri e Lagos, o que revitalizou os interesses escravistas daomeanos. E pre-
cisamente em 1810 que o baiano Francisco Felix de Souza retorna a Uidá, pas-
sando a ser, a partir de então, o traficante mais i m p o r t a n t e da área. 104 Calcula-
se que 45 barcos baianos comerciavam em Uidá em 1812. , 0 5 Essa situação fez
com que a i m p o r t a ç ã o de escravos jejes à Bahia, que vinha decrescendo des-
de 1780, conhecesse, na década de 1810, o segundo e último m o m e n t o d o
seu esplendor (ver Tabela 1, cap. 2).
A p a u l a t i n a desintegração de O y o ocasionou u m a desestabilização geral
do poder político e e c o n ó m i c o na região, a c o m p a n h a d a , a partir de 1830, do
s u r g i m e n t o de cidades de r e f u g i a d o s c o m o N o v o O y o , Ibadan e A b e o k u t a .
É o p e r í o d o das grandes exportações clandestinas de escravos nagôs à Bahia
através dos p o r t o s orientais de Porto Novo, Badagri e Lagos, mas t a m b é m de
Uidá, o n d e o c h a c h a Felix de Souza, sob a proteção do rei Ghezo, exerceu,
ate o início da década de 1840, um controle quase absoluto sobre o tráfico. 1 0 6
Paralelamente, desde 1835 existia u m refluxo regular de ex-escravos africa-
nos do Brasil para a C o s t a da M i n a , que se p r o l o n g o u até o final do século.
Alguns deles se deslocavam p e r i o d i c a m e n t e entre as duas costas do A t l â n t i c o ,

55
LUIS NICOLAU P A R ÉS

estabelecendo relações comerciais e c o n t a t o s regulares q u e m a n t i n h a m a


p o p u l a ç ã o africana da Bahia i n f o r m a d a sobre os a c o n t e c i m e n t o s da costa
africana. As colónias desses libertos retornados (nagôs, hauçás e jejes) em
Aneho, Agoué, Uidá, Porto Novo e Lagos, c o n t r i b u í r a m t a n t o para a conti-
nuação do tráfico ilegal até a sua extinção c o m o para o desenvolvimento de
uma economia agrícola alternativa, baseada na produção de azeite de dendê. 107
Em 1850, declara-se o fim do tráfico no Brasil, embora na Bahia haja notícias
de aprisionamento de fragatas e brigues com carregamentos h u m a n o s clandes-
tinos ainda em 1851 e 1856. 108
Resumindo, p o d e m o s dizer que, como resultado da expansão do reino do
D a o m é , de 1720 a 1780 e nas primeiras décadas d o século XIX, o comércio
negreiro nos portos da área gbe foi constante, gerando u m fluxo c o n t i n u a d o
de escravos jejes para a Bahia. Pode-se pensar que, n u m primeiro m o m e n t o ,
a p r o x i m a d a m e n t e até meados de século XVIII, os diversos grupos, como os
huedas, hulas, aizos ou guns, do litoral, e os o u e m e n u s , agonlis e mahis, do
interior, m a n t i n h a m ainda u m a marcada diferenciação étnica e eram povos
relativamente i n d e p e n d e n t e s . Já na segunda m e t a d e do século XVIII, na me-
dida em que o D a o m é solidificou o seu poder centralizado, esses grupos ten-
deram a miscigenar-se, t a n t o no que diz respeito às áreas de moradia (devido
a m a t r i m ó n i o s exogâmicos, migrações forçadas, tráfico i n t e r n o de escravos
etc.) como nos seus componentes culturais. Por exemplo, no aspecto religioso
o D a o m é a d o t o u u m a política de assimilação dos cultos dos povos sob o seu
controle, i m p o n d o ao mesmo tempo um modelo hegemónico e hierarquizado
das instituições religiosas. A partir do século XIX, o culto dos ancestrais da
família real de Abomey (Nesuhue) adquiriu um caráter de culto "nacional' ,
ao qual estavam s u b o r d i n a d o s os outros cultos de v o d u n s "públicos". Aos
poucos, a organização do culto de voduns imposta pelos fons foi influencian-
d o os cultos dos povos sob o seu d o m í n i o (ver cap. 3). Esse processo de cres-
cente homogeneização cultural que se deu no D a o m é talvez possa ter contri-
b u í d o para que os grupos provenientes dessa área, u m a vez n o Brasil, assi-
milassem com relativa facilidade a d e n o m i n a ç ã o genérica "jeje" como forma
de identidade coletiva.
Desse m o d o , a d e n o m i n a ç ã o "jeje", no início restrita a u m g r u p o adja
particular, provavelmente localizado na região de Porto Novo ou imediações,
com a expansão do D a o m é e no contexto do tráfico lusófono passou a ad-
quirir um significado mais genérico, para designar aqueles povos controlados
ou sob a influência desse reino, mas que podiam ser embarcados como escravos
em portos fora do seu território. Nessa expansão semântica do termo, certos
c o m p o n e n t e s culturais, como a semelhança de línguas, converteram-se em

56
ENTRE DUAS COSTAS

elementos definidores do conteúdo da denominação, em detrimento de ou-


tros fatores como os portos de embarque. Em 1848, no final da época do
tráfico clandestino, Francis Castelnau, cônsul da França na Bahia, escreveu:
"os jejes ou daomeanos, que f o r m a m uma nação poderosa, têm numerosos
representantes na Bahia: antigamente embarcavam em Uidá, mas a maior
parte hoje em dia vem por Porto Novo". 109 O próximo capítulo examina a
presença dos jejes na Bahia.

NOTAS

1
Peei, "A c o m p a r a t i v e . . , " , p. 263.
2
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 213.
3
Rodrigues, Os africanos..., p. 35; Freire, Casa-grande, p. 301. S e g u n d o Rodrigues, a carta
data de 1648.
4
A n t o n i l , Cultura..., p. 123; a p u d Freire, Casa-grande, p. 389.
5
M . I. C. de Oliveira, "Viver...", p. 175.
6
Mercier, "Notice...", p. 30; S m i t h , Kingdoms..., pp. 55, 70-71; Lima, A família..., p. 16;
Law, "Ethnicity...".
7
Pérez, C o n t r i b u c i ó n . . . , pp. 3-4. O t e r m o é t a m b é m utilizado pelo p e s q u i s a d o r b e n i -
nense H y p o l i t e Brice Sogbossi: M i n a - j e j e . . . , p. 19.
8
Soares, Devotos..., pp, 1 1 4 e s e g s . , 189.
9
Soares, Devotos..., pp. 45, 47, 49; cf. D . P. Pereira, Esmeraldo..., pp. 69-70; Pazzi, Intro-
duction..., pp. 74-75; Law, The Kingdom..., p. 10.
10
Pazzi, "Aperçu,..", p. 13.
" Verger, Os libertos..., p. 17; Rodrigues, Os africanos..., pp. 35, 108. Ver t a m b é m M . I. C .
de Oliveira, " Q u e m eram...", pp. 58-60.
12
Soares, Devotos..., pp. 66, 116-17; D e b r e t , Voyage..., vol. II, p. 76; M . I. C . de Oliveira,
" Q u e m e r a m . . . " , p. 59; Karasch, A vida..., pp. 63-66.
13
Peixoto, Obra nova..., pp. 20, 29, 69.
14
Pereira, A Casa..., p. 24; E d u a r d o , The Negro..., p. 10.
15
Soares, Devotos..., p. 118. Sogbossi, M i n a - j e j e . . . , p. 41. M a t o r y sugere q u e essa l í n g u a
poderia ser o f o n (Black Atlantic..., p. 308, n. 6). Lopes a identifica c o m o gunu ou
ewe ("Os t r a b a l h o s . . . " , pp. 45 e segs.). Pessoa de C a s t r o c o n s i d e r a o fon a língua pre-
d o m i n a n t e no vocabulário (A língua..., p. 68).
Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 122.
J o h n s o n , The history..., p. 8; M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p. 272; Iroko, Mosaiques...,
p. 59.
Pazzi, "Aperçu...", p. 18; Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , pp. 122-23.
r
19 T . «
l e p i n e , As m e t a m o r f o s e s . . . " , p. 123; C o s t a e Silva, A manilha..., pp. 535-38.
20
Verger, Notas..., p. 540.
^ A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 22.
Le H e r i s s é , VAncièn..., pp. 106, 274, 279 ; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ,
PP- 20-28.

57
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

23
Law, The Kingdom..., pp. 29-32, 37-40. Por exemplo, e m relação ao episódio Aligbonon-
Agassu, Law sustenta que Agassu seria u m a divindade autóctone dos fons e Aligbonon es-
taria essencialmente associada à localidade de Wassa, perto de Abomey, sem qualquer vín-
culo com Tado; cf. B u r t o n , A mission..., p. 297; Le Herissé, LAncièn..., p. 277; Blier,
" T h e p a t h . . . " , pp. 40L-2.
24
Pazzi, "Aperçu...", p p . 15-16.
C a p o , Comparative..., p. xxv. Para u m a análise d o s t e r m o s " a d j a - e w e - f o n " , ver Me-
deiros, "Le c o u p l e . . . " , pp. 35-46; A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , pp. 87-102.
26
T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p p . 36-38. S m i t h , Kingdoms..., pp. 55-72. Elisée A. S o u m o n n i
c o m e n t a : " O s iorubás do D a o m é c o n s t i t u e m - s e dos seguintes s u b g r u p o s : Sabe, Ketu,
A w o r i , I f o n y i n , O h o r i , I d a i s a , Ife, Isa, M a n i g r i e A j a s e ( P o r t o - N o v o ) " {Daomé...,
P- 19).
27
D a p p e r , Naukeurie..., p. 307, a p u d Pazzi, Introduction..., p. 208.
28
Van D a n t z i n g , Dutcb Documents..., p. 1.
29
B o s m a n , A new..., p . 397; a p u d D a l z e l , History..., p. 13; Verger, Fluxo..., p. 128;
D u n g l a s , " C o n t r i b u t i o n . . . ", p p . 143-44.
30
A s i w a j u , " T h e A j a - s p e a k i n g . . . " , p p . 87-102.
31
Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 235.
12
Pazzi, Introduction..., pp. 51, 158.
33
C o m o i n t u i t o de atrair o c o m é r c i o E u r o p e u ao p o r t o de Jakin, em d e t r i m e n t o de Uidá,
o rei de A r d r a , T o h o n u , e n v i o u , em 1658, dois e m b a i x a d o r e s — Bans, q u e falava por-
t u g u ê s , e seu serviçal — à c o r t e de Felipe IV, em M a d r i . Por seu lado, os c a p u c h i n h o s
e s p a n h ó i s , c o m o i n t u i t o de c o n v e r t e r ao c a t o l i c i s m o o rei a f r i c a n o , a p r o v e i t a r a m os
c o n h e c i m e n t o s linguísticos dos dois e m b a i x a d o r e s para t r a d u z i r a Doctrina christiana
d o e s p a n h o l à lengua arda. Nesse texto, a p a r e c e m 60 referências a t e r m o s c o m o vodu
( D e u s ) , vodugue (S. M a d r e Iglesia, de vodunhue = casa do v o d u m ) , voduno (sacerdo-
te), vodunu, voduti, voduto etc. ( L a b o u r e t e Rivet, Le royaume...).
34
Para u m a análise d o t e r m o " v o d u m " e suas e t i m o l o g i a s , vet M a u p o i l , La géomancie...,
p p . 52-54; Blier, African..., p p . 37-47.
Sobre osyehwe, ver H e r s k o v i t s , Dahomey..., vol. II, pp. 190, 192. Ver t a m b é m B u r t o n ,
A mission..., p. 292.
36
Verger, Notas..., p. 439. O u t r o e x e m p l o seria o n o m e d o orixá I r o k o , q u e entre os gbe-
falantes é c o n h e c i d o c o m o v o d u m Loko.
37
Aguessy, " C o n v e r g e n c e s . . . " , p. 236.
38
As práticas d i v i n a t ó r i a s de Fa f o r a m trazidas da área i o r u b á para a área gbe, p r i m e i r a -
m e n t e nas cidades da costa, no século XVII; e, para A b o m e y , n o início d o século XVIII
( M a u p o i l , La géomancie...), pp. 4, 45-56.
39
H a z o u m e , " L ' â m e . . . " , p p . 65-86; T i d j a n i , " N o t e s . . . " , p. 33.
40
A k i n j o g b i n utiliza a expressão "slave r a i d i n g g r o u n d " (Dahomey..., p. 93). A t r a d u ç ã o
é de Reis, " M a g i a . . . " , p. 69.
41
D o francês, "les démagés de la rage" ou "les damages de la rage": Bergé, "Érude...", p. 711;
C o r n e v i n , Histoíre, p. 47, a p u d Lima, A família..., p. 42.
42
Verger, Fluxo..., p. 154; cf. A H U - L i s b o a , São T o m é , cx. 4.
13
N o r r i s , Memoirs..., p. 138.
44
Ver, p o r e x e m p l o , Verger, Fluxo..., p. 251, n. 26. Ver t a m b é m B u r t o n , A mission...,
p p . 147, 262.

58
ENTRE DUAS COSTAS

45 B e r g é , " É t u d e . . . " , pp. 712, 723.


46
Smith, Kingdoms..•, p. 59.
47
Merlo e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , pp. 287-90. Bergé apresenta u m a v a r i a n t e da m e s m a tra-
dição em " É t u d e . . . " , pp. 733-55. Sobre os ifès, ver I r o k o , Mosaiques..., p. 98.
48
D u n c a n , Traveis..., vol. II, pp. 222, 229-30.
49
Karl, Traditions...-, Merlo e V i d a u d , " D a n g b é " , pp. 287-90; Bergé, " É t u d e " , pp. 710-11.
50
Parés, " O t r i â n g u l o . . . " , pp. 193-96.
51
O t t , " O n e g r o . . . " p p . 144-45; A n d r a d e , "A m ã o - d e - o b r a . . . " , T a b e l a 4 (2); Verger,
Fluxo..., p. 670; Q u e r i n o , Costumes..., p. 72.
52
Em Angola, há f o r m a s fonéticas similares a m u n d u b i , c o m o m u n d ó m b e ( n d o m b e ) , u m
grupo étnico b a n t o localizado n o interior de Benguela: C u r t o , " T h e story of N b e n a . . . " ,
pp. 44-64; Figueira, Africa Bantu..., pp. 241-64. N o Brasil, R a m o s , As culturas..., p. 224,
refere-se aos m u n d o m b e s c o m o "cafres b a n t u s em Angola".
53
Verger, Notícias..., p. 228.
54
T a n t o na Bahia c o m o no M a r a n h ã o , mindubim (var. midubi) é u m t e r m o p o p u l a r para
designar o a m e n d o i m (Arachis hipogaea, Lin.). C u r i o s a m e n t e , o a m e n d o i m é u m a das
comidas rituais dos v o d u n s da família de Hevioso. S e g u n d o a ialorixá Olga de Alaketu,
as escarificações dos m u n d u b i s c o n s i s t i a m em sete p o n t i n h o s em cada lado da face e
um na barba, e a sua s e m e l h a n ç a c o m a m e n d o i n s g e r o u o e t n ô n i m o no l i n g u a j a r p o -
pular (Olga de Alaketo, Salvador, entrevista em 3/1/1996). N a Casa das M i n a s , em São
Luís d c M a r a n h ã o , o t e r m o mindubim aplica-se t a m b é m aos v o d u n s da f a m í l i a d e
Hevioso. U m p r i m e i r o s i g n i f i c a d o do t e r m o é a m e n d o i m ; o s e g u n d o , " m u d o " . A ex-
ceção de Averekete e Abé, os v o d u n s de H e v i o s o , c o n h e c i d o s ali c o m o a f a m í l i a de
Nagô, são tidos p o r m u d o s (mindubim), e acredita-se q u e eles n ã o falavam para ocul-
tar aos jejes os segredos dos nagôs: Ferretti, Querebentan..., pp. 300, 120-26. A l t e r n a t i -
vamente, para Pessoa de Castro (A língua..., p. 146), m u n d u b i decorreria de xogbonuvi,
filhos de X o g b o n u (i.e. Porto N o v o ) .
55
Todavia, no t r a b a l h o de c a m p o , ouvi falar ora de jeje-agabí (em relação a u m terreiro
de Santo A m a r o ) , ora de nagô-agabi (em relação a a n t i g o s terreiros do R e c ô n c a v o ) :
Jaime M o n t e n e g r o , 10/8/1999; gaiaku Luiza, 26/2/2001. N a l i t e r a t u r a afro-brasileira,
fala-se t a m b é m de j e j e - e f o n (efan), mas essa i d e n t i f i c a ç ã o dos e f o n s c o m o jejes é u m
erro que decorre da semelhança f o n é t i c a dos e t n ô n i m o s fon e e f o n . Q u e r i n o falava dos
efon ou cara q u e i m a d a " , e R o d r i g u e s considerava os "efan" c o m o negros do D a o m é ,
e m b o r a notasse que eles "se m o s t r a m d i s t i n t o s dos d a o m e a n o s " — c o m razão, pois é
sabido que os efons e r a m u m g r u p o i o r u b á - i j e x á localizado p e r t o de Ekiti, na Nigéria:
Q u e r i n o , Costumes..., p. 31; Rodrigues, Os africanos..., p. 105; A k i n j o g b i n , Dahomey...,
P- 10. Para o r i t o ou n a ç ã o efon de C a n d o m b l é , c o m o uma variável do t r o n c o nagô,
ver V. G. da Silva, Orixás..., pp. 84-88; C a p o n e , La quête..., pp. 126-29.
* Viana Filho, O negro...-, Verger, Fluxo..., p. 9.
Law, The kingdom..., p p . 5, 87; cf. Brásio, Monumenta..., vol. 2, n 2 97; J á c o m e Leite,
ão Tomé, 8/8/1553. O s popos, e r a m povos p r e d o m i n a n t e m e n t e do g r u p o é t n i c o hula
e dedicavam-se à pesca e à p r o d u ç ã o de sal, d e s e n v o l v e n d o seu c o m é r c i o às m a r g e n s
d a la
5s g ° a litorânea.
Law, The kingdom..., p. 87; cf. Bowser, The African..., pp. 40-43; D e Marees, Des-
cnption..., pp. 224-25; Brásio, Monumenta..., vol. 5, n a 197, Relação da Costa da G u i n é ,
16
0 7 , vol. 6; Garcia M e n d e s Castelo B r a n c o , " R e l a t i o n de la C o s t a de Africa", 1620;
vo
• 7, n s 39, Decree of C o u n c i l of State, Lisboa, 27/6/1623.

59
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

^ Law, The kingdom..., p. 87. C á l c u l o s a p a r t i r de d a d o s de Van den B o o g a a r t e Emmer,


" T h e d u t c h . . . " , pp. 353-75.
6
" Rodrigues, Os africanos..., pp. 35-36; Freire, Casa-grande..., pp. 301, 389; cf. Barlei, Res
gestae..., p. 128; A n t o n i l , Cultura..., p. 123. R o d r i g u e s oferece uma t r a d u ç ã o do texto
de Barlei d i f e r e n t e d a q u e l a de Freire; "com exceção de u m n ú m e r o l i m i t a d o q u e , pela
excessiva paciência n o t r a b a l h o , c o n t r i b u i para a u m e n r a r - s e o seu valor".
1,1
Labat, Voyage..., vol. II, p. 125. A m e s m a ideia é e n f a t i z a d a n u m a o u t r a p á g i n a : " N ã o
deve i m a g i n a r - s e q u e t o d o s os cativos c o m p r a d o s em J u d a e Ardres, sejam originários
desses reinos. Esses dois reis não v e n d e m seus s ú b d i t o s [...] eles são trazidos de regiões
v i z i n h a s " , m u i t a s vezes p o r n e g o c i a n t e s m u ç u l m a n o s (malês).
62
Law, The kingdom..., pp. 6-9, 53-54, 87-88.
" Verger, Fluxo..., p p . 30-38, 49, 77; Pazzi, Introduction..., p. 208.
64
B a r b o t , A description..., pp. 321-22. A m e s m a referência ao tráfico p o r t u g u ê s de má
q u a l i d a d e em P e q u e n o P o p o é d o c u m e n t a d a em 1698, por B o s m a n , A new..., p. 334.
6
- Van D a n t z i g , Dutch..., p. 106.
66
Verger, Fluxo..., pp. 19-30; Pazzi, Introduction..., p. 208; W i m b e r l y , T h e A f r i c a n . . . ,
c a p . 4.
67
A m a r a l , "As t r i b o s . . . " , p. 57; Verger, Fluxo..., p. 63.
68
Lara, " L i n g u a g e m . . . " , p. 6; cf. "Carta do g o v e r n a d o r do Rio de j a n e i r o ao rei de 5 de
j u l h o de 1726", in Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, n a 50,
1929, p p . 60-61; "Parecer do C o n s e l h o U l t r a m a r i n o de 18 d e s e t e m b r o de 1728", ín
Documentos históricos, n 2 94, 1951, pp. 28-30. Sobre o m e s m o i n c i d e n t e ver, Verger, Flu-
xo..., p. 68.
69
I n v e n t á r i o de A n t o n i o S a r d i n h a , M u r i t i b a , 1711-1713, fl. 3 v; Seção C o l o n i a l Judiciá-
ria, 01 / 5 6 / 5 6 / 4 4 2 , ARC. Na p a r t i l h a (fl. 10), aparece c o m o Luzia gege.
"" I n v e n t á r i o de Ana da Silva A n d r a d e , São G o n z a l o dos C a m p o s , 1714-1749, Seção Co-
lonial J u d i c i á r i a , 01/65/65/495, ARC.
1
T e s t a m e n t o de M a n o e l B a r b o s a de A b r e u , m o r a d o r "da o u t r a b a n d a da P a r a n a í b a ,
Freguesia de São B e n t o das Balzas, e s t a d o do M a r a n h ã o " , 5/9/1758, a p u d M o t a et al.,
Cripto maranhenses..., pp. 102-6.
1
K a r a s c h , A vida..., p. 94. U m a o u t r a r e f e r ê n c i a a u m n e g r o " n a ç ã o geje" aparece em
7/4/1835, no Diário do Rio de Janeiro, p. 4, a p u d Soares e G o m e s , G é n e r o . . . , p. 22. j á
e m 1879, há u m a r e f e r ê n c i a a u m a gunhõde, ou s a c e r d o t i s a " M i n a Gègi", de n o m e
L e o p o l d i n a J a c o m o da C o s t a : " D e s a c a t o à realeza — T i r a m o s da ' G a z e t a ' de 28", Pro-
víncia de São Paulo, 30/9/1879, pasta 16.017, A r q u i v o s de O Estado de S. Paulo, apud
M a t o r y , M a n . . . , pp. 166-67.
3
B o r g h e r o , " R e l a t i o n . . , " , p p . 419-44; D e s r i b e s , L'Evangelie...\ B o u c h e , La côte...',
D Al beca, "Essai...", vol. II, p p . 5, 83, 129-37. H a n s e n , " D a h o m e y . . . . " .
4
C o r n e v i n , Histoire..., p. 79; Segurola, Dictionnaire..., p. 264.
M a t o r y , Black Atlantic..., pp. 79-81, 299-300; "Jeje...", pp. 62-63.
76
Van D a n t z i g , Dutch..., pp. 66-67.
77
Verger , Fluxo..., pp. 59-61.
" S c h w a r t z , Segredos..., p. 282; cf. Verger, Fluxo..., p. 651.
79
Verger , Fluxo..., pp. 129-30.
80
"Acquérat" designaria os escravos ligados ao forte francês q u e n ã o p o d i a m ser vendi-
dos, pois faziam p a r t e dos " b e n s móveis": Verger, Fluxo..., p. 207.

60
ENTRE DUAS COSTAS

81
Labat, Voyage..., vol. II, p p . 125-27.
82
R o d r i g u e s , Os africanos..., p. 103.
83
A tese de R o d r i g u e s parece ser c o r r o b o r a d a p o r m e m b r o s d o terreiro " m i n a - p o p o " , P o ç o
Beta de Salvador. O filho p r i m o g é n i t o de M a n o e l Falefá, f u n d a d o r d a casa, explica q u e
jeje seria u m a c o r r u p t e l a d e guégué, q u e é a l í n g u a de P o p o ( g e n ) : I t a m o a c y Falefá,
c o m u n i c a ç ã o pessoal. S a l v a d o r , 1 3 / 1 2 / 1 9 9 8 .
84
A k i n d é l é e Aguessy, " C o n t r i b u t i o n . . . " ; L i m a , A f a m í l i a . . . , p p . 14-15; Pereira, A Casa...,
p. 68; cf. A b r a h a m , Dictionary..., p. 38. B o l o u v i t a m b é m s u g e r e q u e jeje d e r i v a d o
a d v é r b i o i o r u b á jéjé, q u e s i g n i f i c a r i a " s u a v e m e n t e , s i l e n c i o s a m e n t e , sem r u í d o " . Se-
g u n d o esse a u t o r , esse n o m e seria d a d o aos f o n s p e l o s i o r u b á s , e m m e m ó r i a da t á r i c a
de a t a q u e s - s u r p r e s a l e v a d o s a c a b o p e l o s d a o m e a n o s c o n t r a as c i d a d e s d e A b e o k u t a ,
Ketu etc. ( B o l o u v i , Nouveau..., p. 102). S o g b o s s i r e b a t e essa h i p ó t e s e ( M i n a - j e j e . . . ,
p. 44). Para u m a a n á l i s e d e t a l h a d a s o b r e o t e m a , ver t a m b é m M . C . I. d e O l i v e i r a ,
" Q u e m eram...", pp. 67-72.
85
Law, The Kingdom..., p p . 16, 112; cf. Law, Further...-. A r t h u r W e n d o v e r , Apa, 17/7/1682;
Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 14; i d e m , Introduction..., p p . 202-3.
86
Van D a n t z i g , Dutch..., p. 89.
87
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 64; Law, The Kingdom..., p p . 16, 112; cf. Law, Further...:
Du Colombier, Uidá, 17/4/1715.
88
Verger, Notas..., p. 23. S o g b o s s i a v a n ç a a h i p ó t e s e d a o r i g e m d o t e r m o " j e j e " a p a r t i r
da palavra ajaji ( M i n a - j e j e . . . , p. 47). R a y m o n d O k é c o n t a q u e ajaji v e m d e u m a f r a s e
s e n t e n c i o s a : " A j a h u t o t o n wè h o n j a t a - d o t o n ; a j a - h u t o wè a x o l u a j a t o n , wè j a n n y i
a j a j i " ( " O t r o n o real d e T a d o p e r t e n c e a A j a h u t o ; A j a h u t o é o rei de t o d o s os A j a ; ele
se s e n t o u s o b r e os Aja [ A j a j i ] " ) . D e s s a frase, foi t i r a d o o n o m e A j a j i - H o n j a , p a r a desig-
nar u m a r e g i ã o l o c a l i z a d a a cerca de 12 q u i l ó m e t r o s d e D a v i é - S è m è ( A l i a d a ) , o n d e
A j a h u t o v e n c e u os a d j a de T a d o (R. O k é , "Les siècles...", p. 57). T o d a v i a , Yeda Pessoa
de C a s t r o s u g e r e u m a o u t r a h i p ó t e s e , u m t a n t o " f o r ç a d a " , e m m i n h a o p i n i ã o , s e g u n d o
a q u a l jeje d e c o r r e r i a de gédéji ( o r i u n d o s o u n a s c i d o s de G u e d e , a n c e s t r a l d o s g u e d e v i s )
(A língua..., p. 62).
A n ó n i m o , " L a r e g i o n . . . " , p. 26; S o g b o s s i , M i n a - j e j e . . . , p. 48; Pazzi, Introduction...,
PP- 41, 74. Le Herissé ( a p u d Verg er, Notas..., p. 524) e H e r s k o v i t s ( a p u d M a u p o i l , La
géomancie..., p. 65) f a l a m d o s D j e t o v i .
A n ó n i m o , "La r e g i o n . . . " p p . 17-19. M e r l o e V i d a u d , " D a n g b é . . . " , p p . 269-70; T i d j a n i ,
N o t e s . . . , p. 38; L a f f i t t e , Lepays..., p. 90. Para a t r a d i ç ã o de i n d e p e n d ê n c i a d o s i d j é s
e p o s t e r i o r r e s i s t ê n c i a à d o m i n a ç ã o f r a n c e s a , ver S o u m o n n i , "A I o r u b a l â n d i a . . . " ,
PP- 13-14.
" Parés, " T h e J e j e . . . " , p 95
r
92 o .
^ s adjas c o n t i n u a r a m a c h a m a r sua nova c a p i t a l de A l i a d a ( A r d r a , o u A r d r e s p a r a os
e u r o p e u s ) , e a seu p o r t o n o l i t o r a l , P e q u e n o A r d r a o u N o v o A r d r e s ( P o r t o N o v o , p a r a
os p o r t u g u e s e s ) .
93 «1 • .
K i n j o g b i n , Dahomey..., p. 214; Pazzi, " A p e r ç u . . . " , p. 15; A k i n d é l é e Aguessy, " C o n -
t r i b u t i o n . . . " , p p . 17, 1 8 i 7 1 ; D j S S O U ; "Essai...", p p . 83, 87; F. M . O k e , " N o t i c e . . . " , p. 89.
B a n c o l é
94 e Soglo, " P o r t o N o v o . . . " , p. 76; Verger, Os libertos..., p p . 10-11.
Verger, Fluxo..., p p , 59,70.
Aki t,"
rijogbin q u e s t i o n a a tese, s u s t e n t a d a p o r S n e l g r a v e , N o r r i s e a h i s t o r i o g r a f i a c o n -
e m p o r â n e a , de q u e essa p r o c u r a p o r u m a saída ao m a r r e s p o n d e s s e e x c l u s i v a m e n t e a
interesses escravistas (Dahomey..., pp. 73-81).

61
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

96
Snelgrave, A new..., pp. 14-15, 20-23, 149-52; Verger, Notas..., p. 540; Verger, Fluxo...,
pp. 150-55; Van Dantzig, Dutch..., pp. 176-78; Akinjogbin, Dahomey..., pp. 91-92, 97-100.
97
Verger, Fluxo..., p p . 144, 154. >
98
S c h w a r t z , Segredos..., pp. 283-84.
1)9
T í t u l o d e r i v a d o da l í n g u a p o r t u g u e s a , utilizado na C o s t a da Africa para designar pes-
soas de alta h i e r a r q u i a .
100
Verger, Fluxo..., p p . 211-23, 257-63 ( p a r a a e m b a i x a d a de T e g b e s u ) ; Verger, Os liber-
tos..., p p . 10-11, 101-4 ( p a r a J o ã o d e O l i v e i r a ) . Ver t a m b é m M a n n i n g , Slavery...,
p p . 36, 43.
101
Rodrigues, Os africanos..., p. 31; cf. " D o i s embaixadores africanos m a n d a d o s à Bahia
pelo rei do D a g o m é . C a r t a de D . F e r n a n d o José de Portugal ao E x m o . Sr. Luís Pinto
de Sousa em 21 d e o u t u b r o de 3795", Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
de Janeiro, vol. 69, p a r t . 1, 1895, p. 413. Existe u m a " C a r t a do e m b a i x a d o r do rei do
D a h o m e . Pedido para casar-se. Palácio d e Q u e l u z 3 abril 1796, N ú c l e o Governo da Ca-
pitania da Bahia", série O r d e n s Regias 1763-1822, vol. 81, d o e . 07, APEBa (apud Verger,
Fluxo..., pp. 265-71).
102
Verger, Fluxo..., p p . 271-75; Verger, Os libertos..., pp. 14, 106-10.
" " J o h n s o n , The history..., p p . 193-205; A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 188; Videgla, "Le
R o y a u m e . . . " , pp. 137-38. Para as revoltas escravas na Bahia n o p e r í o d o 1807-1835, ver
Reis, Rebelião...
104
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p p . 197-98, Law, Francisco Felix...., p p . 5-11.
105
A k i n j o g b i n , Dahomey..., p. 193.
106
A p a r t i r da década de 1830, na área gen o u m í n a - p o p o , t a m b é m f o r a m i m p o r t a n t e s os
p o r t o s d e A n e h o (Pequeno P o p o ) , A g o u é e Porto Seguro (ver Jones, "Little Popo...").
107
Sobre os r e t o r n a d o s , ver, e n t r e o u t r o s , Verger, Fluxo...-, ]. M . Turner, Les brésiliens...;
C u n h a , Negros...; G u r a n , Agudas.... S o b r e a t r a n s i ç ã o à e c o n o m i a do azeite de d e n d ê ,
M a n n i n g , Slavery..., pp. 50-55.
108
M . I. C. d e O l i v e i r a , R e t r o u v e r . . . , p p . 120-21; cf. P r e s i d e n c i a P r o v í n c i a , Escravos
a s s u n t o s , m a ç o 2 . 8 8 0 / 1 , c a d e r n o ( . 8 6 1 , e m a ç o 2.891, c a d e r n o s 1.863-79, APF.Ba.
Verger, Fluxo..., p p . 434-38.
109
Verger, Fluxo..., p. 15.

62
1

FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA


JEJE NA BAHIA DOS SÉCULOS X V I I I E XIX

NOTAS S O B R E AS FLUTUAÇÕES D E M O G R Á F I C A S DOS JEJES NO RECÔNCAVO E EM SALVADOR

Após nosso percurso sobre o tráfico português e baiano na Costa da Mina, o


presente capítulo examina os possíveis processos que levaram à formação de
uma identidade étnica jeje entre a população africana na Bahia do século
XVIII e da primeira metade do XIX. Caberia perguntar, em primeiro lugar,
qual foi a importância demográfica dessa migração forçada dos jejes na Bahia.
Infelizmente, os dados disponíveis sobre a estrutura demográfica e a evo-
lução da população baiana no século XVIII são praticamente inexistentes ou
muito imprecisos. Segundo Kátia Mattoso, os recenseamentos dessa época são
pouco confiáveis, sem poder quantificar-se com um mínimo de segurança o
seu total nem a proporção de negros e mestiços livres ou escravos. Já para
o século XIX, baseando-se n u m recenseamento de 1808, encontrado no Ar-
quivo Regional de Cachoeira pela historiadora norte-americana Catherine Lu-
gar, e no recenseamento oficial de 1872, Mattoso conclui que a população negra
e mestiça constituía uma maioria de 78,3% (43% livres e 35,3% escravos) em
1808, decrescendo para 72,4% (60,2% livres e 12,2% escravos) em 1872. Quan-
to à proporção da população escrava, observa-se uma queda significativa à
medida que avança o século. 1 Se as informações disponíveis não são satisfa-
tórias, permitindo apenas "trabalhar com ordens de grandeza", o problema
se agrava quando queremos saber alguma coisa sobre o contingente de africa-
nos nessa população e mais especificamente sobre os jejes, um entre os muitos
grupos africanos.
As estimativas mais recentes sugerem que, entre 1701 e 1810, aproximada-
mente 656 mil escravos teriam saído da Costa dos Escravos em barcos portu-
gueses com destino à Bahia, dos quais teriam chegado uns 598.200. 2 Já para o
Período de 1801 a 1851, calcula-se que entraram 328.500 escravos africanos

63
LUIS NICOLAU P A R ÉS

no p o r t o de Salvador. 3 As estimativas da média anual de importação para esse


p e r í o d o oscilam, segundo os diversos autores, entre 5.600 e 7.700 africanos,
constatando-se um nítido crescimento a partir da década de 1840, quando o
tráfico era ostensivamente p r o i b i d o pelos ingleses. Por exemplo, n o período
de 1846-1850, às vésperas da abolição do tráfico atlântico, a média anual cal-
cula-se em 8.700 africanos. 4 Parte dessa p o p u l a ç ã o era f l u t u a n t e ou em trân-
sito para outros destinos, p o d e n d o permanecer vários meses nos entrepostos
da cidade construídos pelos comerciantes para esse fim.
Poucos autores têm apresentado informações sobre as categorias étnico-
raciais da população escrava no século XVIII, e os dados disponíveis são geral-
m e n t e insuficientes. 5 Para cobrir parcialmente essa lacuna, consultei os in-
ventários do período 1698-1820, correspondentes à zona fumageira do Re-
côncavo ( m u n i c í p i o de Cachoeira e seus termos), depositados n o Arquivo
Regional de Cachoeira, e os do período 1750-1800, correspondentes à zona
açucareira (municípios de São Francisco d o C o n d e e Santo A m a r o da Purifi-
cação), depositados no Arquivo Público do Estado da Bahia/' Os dados desses
inventários f o r a m c o m p l e m e n t a d o s com os de u m a pesquisa similar desen-
volvida pelo professor João José Reis para o período 1801-1820, do que resul-
taram as tabelas 1 e 2. 7 E m b o r a se trate de uma amostragem relativamente
densa, é preciso lembrar que os resultados representam apenas estimativas
aproximadas.
Observa-se que, d u r a n t e a segunda m e t a d e do século XVIII, mais da me-
tade da população escrava do Recôncavo Baiano era brasileira, ou seja, criou-
los (negros nascidos n o país de progenitores africanos) e mestiços, incluindo
nessa categoria mulatos, pardos e cabras. C i t a n d o as estimativas de Patrick
M a n n i n g sobre as exportações da Costa da M i n a para a Bahia, Schwartz nota
que o decréscimo da importação de africanos coincidiu com o declínio da eco-
n o m i a açucareira entre 1730 e 1780. 8 Nesse sentido, a "crioulização" demo-
gráfica da população escrava esteve influenciada, e até estimulada, pela crise
do açúcar. Foi apenas a partir de 1790, c o m a recuperação das exportações
desse p r o d u t o , que os senhores de engenho dispuseram de capital para renovar
suas escravarias com novas levas de africanos. Essa situação levou, nas pri-
meiras décadas do Oitocentos, a u m a relativa "africanização" demográfica na
zona d o açúcar e, sobretudo, em Salvador (ver Tabela 3), embora na zona fu-
mageira continuasse a p r e d o m i n â n c i a do elemento crioulo, assim como um
crescente processo de miscigenação racial. 9
Fernando O r t i z já falava, em relação à agricultura de exportação em Cuba,
que "o açúcar e o tabaco são todo contraste". Segundo Schwartz, a população
escrava da área do açúcar baiano no século XVIII caracterizava-se por urna

64
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E É T N I C A J E J E N A B A H I A

Tabela 1 — Composição étnico-racial da população


escrava. Cachoeira (área fumageira), 1698-1820


1698-1729 1730-1749 1750-1779 1780-1800 1801-1820

s ; ! !
N« /o N % N» % N /O N« %

Gentio do Guiné 32 ; 9,3

Angola 59 17,1 51 16,6 85 21,9 87 29,8 1 55 19,3

Benguela 36 10,4 10 3,2 10 2,6 9 3,1 14 1,7

Outros África central 46 13,3 13 4,2 23 5,9 6 2,1 10 1,2

Mina 122 35,4 128 41,6 105 27,0 72 24,7 102 12,7

Jeje 39 11,3 106 27,1 115 29,6 60 20,5 237 29,5

Nagô — — 5 1,6 35 9,0 51 17,5 159 19,8

Hauçá 2 0,7 81 10,1

Outros África ocidental 11 3,2 20 6,5 15 4,2 5 1,7 46 5,7

Total africanos 345 100,0 308 100,0 388 100,0 292 100,0 804 100,0

Subtotal África central 141 25,2 74 12,4 118 9,4 102 11,7 179 8,0

Subtotal África ocidentol 172 30,7 234 39,3 270 21,4 189 21,7 ; 6 2 5 27,9

Crioulo 192 34,3 225 37,8 645 51,2 365 42,0 1.005 44,9

Mestiço 55 9,8 62 10,4 227 18,0 214 24,6 429 ; 19,2

Total 560 100,0 !


595 1 0 0 , 0 | 1 . 2 6 0 100,0 870 100,0 2.238 1 0 0 , 0

Fonte: Para o p e r í o d o de 1698-1800, i n v e n t á r i o s , ARC. F o r a m c o n s u l t a d o s 2 6 4 i n v e n t á r i o s : 1 7 3 de C a c h o e i r a 3 2


de S ã o G o n z a l o d o s C a m p o s , 2 6 d e S ã o P e d r o d e M u r i t i b a , 12 d e B e l é m , 7 d e S a n t o A n t o n i o d e T i b i n , 5 d e
Nossa Senhora d o D e s t e r r o d o O u t e i r o R e d o n d o , 3 d e S a n t o E s t e v ã o d e J a t u í p e , 2 d e C o n c e b o d a i-eira,
de tapoeiruçu, 1 de S â o Félix e 1 M a r a g o g i p e . P a r a o p e r í o d o d e 1801-1820, i n v e n t á r i o s , A P E B O , Pro|eto R e i s -
Nigerian H i n t e r l a n d . Obs.-. " M e s t i ç o " i n c l u i : m u l a t o s , p a r d o s , c a b r a s e mestiços.

alta porcentagem de africanos, escassez de mulheres e poucas crianças. Essa


distribuição era maior nos grandes engenhos do que nas fazendas de cana e
indica a dependência direta da economia do açúcar do tráfico transatlântico
de escravos. 10 As fazendas de tabaco, geralmente com menor poder económico
e acesso a créditos, empregavam menos escravos e provavelmente absorviam
aqueles mais baratos (mulheres, crianças e idosos), porque o cultivo do f u m o

65
LUIS N I C O L A U PAR ÉS

Tabela 2 — Composição étnico-racial da população escrava. São Francisco


do Conde e Santo A m a r o da Purificação (área d o açúcar), 1750-1820

17S0 1779 1780 • 1 8 0 0 1801 -1820


s
N % N« % N! X

Angola 100 36,5 126 27,5 168 30,4

Benguela 4 1,5 34 7,4 25


LJ1:5
Outros Africo central 10 3,6 4 0,9 12 2,2

Mina 26 9,5 15 3,3 28 5,)

Jeje 111 40,5 166 36,2 122 22,0

Nagô 10 3,6 97 21,1 102 18,5

Hauco — — : 4 0,9 60 10,9

Outros África ocidental 13 4,7 13 2,9 35 6,3

Total africanos 274 100,0 459 100,0 552 100,0

Subtotal África central 114 21,3 164 15,8 205 18,8

Subtotal África ocidental 152 2», 4 291 28,1 347 31,9


"' " 1
Crioulo 201 37,5 411 39,7 365 33,5

Mestiço 69 12,9 169 16,3 172 15,8


•i
Totol 536 100,0 1.035 100,0 1.089 100,0

Fonte: Inventários, A P E B O . Para o período de 1 7 5 0 - 1 8 0 0 foram consultados 4 8 inventários de Santo A m a r o e 1 1 8


de S ã o Francisco d o Conde. Para o período de 1801-1820, dados extraídos do Projeto Reis-Nígerían Hinterland.

requer relativamente menos esforço físico que o do açúcar. Essa circunstância


favoreceu uma proporção mais equilibrada entre h o m e n s e mulheres e, pre-
sumivelmente, o estabelecimento de um maior n ú m e r o de núcleos familia-
res. J u n t o com a possibilidade de u m a dieta mais rica — devido à criação de
gado e à p r o d u ç ã o de farinha, feijão e milho nas fazendas de f u m o — , o re-
sultado foi maior fecundidade, que resultou na crescente presença de "criou-
linhos, m u l a t i n h o s e cabrinhas". Nesse sentido, a economia do tabaco pare-
ceria d e p e n d e r menos do tráfico transatlântico do que a economia do açú-
car, sem, no entanto, deixar de estar sujeita a ele." De qualquer m o d o , uma
grande proporção dos crioulos e mestiços (em t o r n o de 44% para a segunda

66
FORMAÇÃO OE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA

metade do século XVIII) eram crianças menores de doze anos, e não consti-
tuíam, em princípio, parte da força de trabalho.
Passemos agora a examinar os grupos africanos. O s dados disponíveis não
são fáceis de interpretar em virtude da abrangência semântica das categorias
étnicas utilizadas e da variabilidade no uso desse sistema de classificação. Fora
expressões genéricas c o m o gentio da G u i n é ou gentio da Costa, a g r a n d e
maioria de escravos era referida com um p e q u e n o repertório de termos ou
nomes de "nação": angola, benguela, mina, jeje, nagô e hauçá. Havia u m nú-
mero considerável de outros termos — alguns referentes a portos ou regiões
de embarque e outros que p o d e m ser identificados p r o p r i a m e n t e como etni-
cidades vigentes na Africa 1 2 — , mas eles se aplicavam a u m a q u a n t i d a d e rela-
tivamente pequena de escravos (ver categoria "outros" nas Tabelas 1 e 2).
Etnônimos como arda ou lada (aliada), coda ou codavi, fon, sabaru (savalu)
e maqui (mahi) faziam referência a grupos da área gbe, porém eles aparecem
em contadas ocasiões nos inventários. A categoria "arda", por exemplo, foi
bastante frequente na primeira década do Setecentos, mas o seu uso decresceu
à medida que foi suplantada pela denominação "jeje", processo que, como vi-
mos, correspondeu ao declínio do reino de Aliada e à crescente hegemonia de
Uidá no comércio da Costa da Mina. Já o registro ocasional de termos como
"sabaru" e "maquim" refletia as incursões regulares do exército daomeano no
país Mahi na procura de cativos de guerra.
A expressão "gentio de Guiné", praticamente a única no século XVII, tam-
bém desapareceu drasticamente na década de 1710, q u a n d o outras denomina-
ções mais específicas passaram a ser usadas para diferenciar a crescente diver-
sificação do tráfico. Todavia, certas categorias genéricas parecem ter sido privile-
giadas em regiões específicas. Por exemplo, a expressão "gentio da Costa" foi
muito utilizada na cidade de Salvador (ver Tabela 3), mas era praticamente des-
conhecida no Recôncavo. Isso implica, por um lado, que minas e muitos jejes
eram classificados em Salvador apenas como gentio da Costa e, por outro, indica
que a denominação "jeje" era mais característica do Recôncavo. Já na área do
açúcar, especialmente em Santo Amaro, chama a atenção a baixa porcentagem
dos minas, compensada por altas porcentagens de jejes e nagôs. Mais do que
indicar redes de tráfico diferenciadas para as zonas do açúcar e do tabaco, o
-ato sugere um uso regional diferenciado do sistema de classificação étnico-
racial. Talvez os senhores de engenho, ao comprar lotes de cativos maiores, no
seu interesse por identificar a mercadoria, tenham favorecido o uso de denomi-
nações como "jeje" e "nagô", de abrangência semântica mais restrita do que mina.
Essa variabilidade diacrônica e geográfica do sistema de classificação étnica
dificulta a análise, e será preciso um estudo f u t u r o mais detalhado para elu-

67
LUIS NICOLAU PAR ÉS

cidar a sua complexidade. C o n t u d o , os dados disponíveis p e r m i t e m confir-


mar a p r e d o m i n â n c i a na Bahia dos escravos da Africa ocidental, em relação
àqueles da África central. Na área do açúcar, porém, a p r o p o r ç ã o de angolas,
benguelas e outros grupos de língua banto era maior do que aquela registrada
pelos mesmos grupos na área d o tabaco. A partir de 1750, em Cachoeira, a
porcentagem dos africanos centrais em relação aos africanos ocidentais osci-
lava entre 22% e 35%, e n q u a n t o em Santo Amaro e São Francisco ela oscilava
entre 35% e 41%. Essa diferença faz com que a proporção relativa entre jejes e
angolas, os dois grupos africanos predominantes até 1820, variasse não apenas
em função dos períodos mas t a m b é m segundo as regiões.
Uma das mudanças mais notórias da primeira metade do século XVIII é o
significativo a u m e n t o dos jejes, que passam de 11,3%, nas três primeiras dé-
cadas do Setecentos, a 27,1%, no período 1730-1750 (Tabela 1). Esse aumen-
to reflete a conquista do litoral gbe por Agaja e o consequente cativeiro de
muitos prisioneiros de guerra embarcados em Uidá. A partir de 1750 até 1780,
esse grupo atinge a sua proporção mais alta, constituindo, com quase 30% na
área fumageira e 40% na área açucareira, o grupo africano demograficamente
majoritário. A grande exportação dos jejes corresponde, portanto, aos reinos
de Agaja (1708-1740) e Tegbesu (1740-1775), no D a o m é .
C o m os reis Kpengla e Agongolo, nas duas últimas décadas do século, a
proporção dos jejes nos engenhos e fazendas de cana baianas decresce para 36%,
em favor de u m a u m e n t o dos nagôs, que começam a ter u m peso demográfico
significativo. Essa tendência p o d e ser explicada pelo declínio do tráfico em
Uidá, motivado, em parte, pelo crescimento dos portos orientais do Golfo do
Benim (Porto Novo, Badagri e O n i m ) que, sobretudo a partir de 1780, con-
correram e limitaram o tráfico no maior porto daomeano. Esse fato também
explicaria o progressivo crescimento dos nagôs a partir de 1760 e também de
outros grupos da África ocidental, incluindo os primeiros hauçás, tapas e baribas
(Borgu) a chegarem na Bahia. C o n t u d o , os jejes ainda constituíam o grupo
africano demograficamente majoritário.
Já no Recôncavo fumageiro houve nesse período um declínio dos jejes, cons-
tituindo apenas 20% dos africanos, contra 30% de angolas. O crescimento dos
angolas e , em menor grau, dos benguelas, nas últimas décadas do S e t e c e n t o s ,
é c o n f i r m a d o pelos n ú m e r o s de Carlos O t t , que no período 1778-1797 docu-
m e n t a para o interior do estado u m a clara superioridade dos "bantos", com
2.163 registros, e n q u a n t o que os "sudaneses" (minas, nagôs, jejes) c o n s t a m
em apenas 681 registros. 1 3 E m b o r a a proporção dos "bantos" que se deriva
dos dados de O t t pareça inflacionada, não cabe dúvida de que na virada do
século XIX os angolas recuperavam uma presença significativa. A r e v i t a l i z a ç ã o

68
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

do tráfico subequatorial coincidia, como foi dito, com a recuperação da eco-


nomia do açúcar e a d e m a n d a de mão-de-obra escrava africana.
Nas duas primeiras décadas do Oitocentos, na Costa da Mina, o comércio
de escravos continuou a prosperar. O tratado anglo-português de 1810, que
interditava o tráfico nos portos de Aneho, Porto Novo, Badagri e Lagos — fa-
vorecendo momentaneamente Uidá — , e a subsequente proibição de 1815 de
traficar acima do equador, foram pouco efetivos. Os negreiros não interrom-
peram o embarque clandestino de jejes e outros povos vizinhos, como tapas,
bornus, carabaris, benins, nagôs e hauçás. Os últimos começaram a chegar à
Bahia em números significativos a partir de 1804, ano em que os fulanis lan-
çaram a jihad islâmica contra esse povo. 14 Todavia, os jejes e angolas continua-
ram a ser os grupos africanos mais importantes, embora se constate u m a nova
inversão na sua proporção relativa. Enquanto na zona fumageira os jejes recupe-
ram a superioridade demográfica, chegando a constituir quase 30% da p o p u -
lação africana, na zona do açúcar se produz um movimento oposto, com uma
ascensão dos angolas e um declínio dos jejes. Já em Salvador, no mesmo período
de 1800-1820, jejes e angolas mantêm proporções similares (ver Tabela 3).
No seu conjunto, essas oscilações respondiam às dinâmicas da economia do
açúcar brasileiro e suas interligações com as flutuações do tráfico atlântico,
dependente, por sua vez, das variáveis políticas do D a o m é e da c o n j u n t u r a
internacional. As razões para explicar a variabilidade regional baiana são mais
difíceis de identificar e podem incluir desde dinâmicas do tráfico interno su-
jeitas à lei da oferta e da demanda, mudanças nas preferências étnicas dos se-
nhores, condicionadas talvez pela propaganda dos traficantes em favor de um
ou outro grupo africano, ou até simples distorções estatísticas.
Seja como for, interessa destacar que, deixando de lado os minas, que, aliás,
certamente incluíam escravos da área gbe, entre 1730 e 1780 os jejes consti-
tuíram o grupo africano demograficamente mais importante entre a popula-
ção escrava do Recôncavo e provavelmente da Bahia como um todo. Entre
1780 e 1820, apesar da presença expressiva dos angolas, os jejes c o n t i n u a r a m
a ter
destaque, m a n t e n d o ou recuperando em certos m o m e n t o s e lugares a
supremacia numérica. Já a partir de 1820, a chegada maciça dos nagôs des-
bancou tanto jejes como angolas.
antes
. de comentar esse estágio, convém analisar algumas caracterís-
ticas da população jeje. Para o período 1750-1800 foram contabilizados 452
escravos dessa nação em um total de 3.737, constituindo, assim, 12,1% da
P pulação escrava toda ela e 32% da população escrava africana. Em dois
nao roi possível identificar o género, e o resto dividia-se em 232 homens
mulheres, o b t e n d o u m a taxa de masculinidade ( n ú m e r o de homens a

69
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

cada 100 m u l h e r e s ) de 95 na área d o tabaco e de 114 na área d o açúcar. Esses


são n ú m e r o s baixos em relação àqueles do c o n j u n t o da p o p u l a ç ã o escrava, que
na área de tabaco seria a p r o x i m a d a m e n t e de 123 p a r a o m e s m o período e na
área d o açúcar teria u m a m é d i a de 185 no século X V I I I . 1 5
F o r a m i d e n t i f i c a d o s 77 i n d i v í d u o s casados, 47 m u l h e r e s e 30 homens,
s i g n i f i c a n d o que a p e n a s 17% da p o p u l a ç ã o jeje escravizada estava casada
f o r m a l m e n t e pela igreja. N o t a - s e q u e as m u l h e r e s casavam c o m mais faci-
l i d a d e do q u e os h o m e n s , p r o v a v e l m e n t e d e v i d o à relativa falta de mulheres
e n t r e a p o p u l a ç ã o escrava c o m o u m t o d o . Esse f a t o j u s t i f i c a r i a t a m b é m
o alto n u m e r o de uniões interétnicas. E n t r e os 71 indivíduos casados para os
quais identifiquei a etnicidade do c ô n j u g e , 28 c o n s t i t u í a m 14 casais jejes ou
i n t r a - é t n i c o s ( i n c l u i n d o d o i s casais j e j e - s a v a l u ) ; os d e m a i s 4 3 jejes estavam
casados c o m i n d i v í d u o s de o u t r a s categorias é t n i c o - r a c i a i s . A l g u n s , de pre-
f e r ê n c i a as m u l h e r e s , p o d i a m casar c o m c r i o u l o s (14 casos) e até com ca-
bras e p a r d o s (2 casos), mas e r a m mais f r e q u e n t e s as u n i õ e s c o m outros afri-
c a n o s . N a a m o s t r a o b t i d a , os parceiros dos jejes eram 8 angolas, 3 benguelas,
3 c o n g o s , 1 m a s a n g a n o , 4 m i n a s , 5 nagôs e 3 São T h o m é s . A baixa pro-
p o r ç ã o de e n d o g a m i a é t n i c a (14 casais i n t r a - é t n i c o s c o n t r a 4 3 interétnicos)
e a alta p r o p o r ç ã o d e casais e n v o l v e n d o p a r c e i r o s da A f r i c a c e n t r a l não pa-
rece c o n f i r m a r o viés é t n i c o q u e S c h w a r t z a t r i b u i à escolha d o c ô n j u g e nos
c a s a m e n t o s e s c r a v o s da á r e a d o a ç ú c a r . 1 6 P o r é m vale n o t a r q u e fatores
c o m o a i m p o s i ç ã o s e n h o r i a l o u a escassez de p o t e n c i a i s p a r c e i r o s nas es-
c r a v a r i a s p e q u e n a s p o d i a m f a c i l m e n t e c o m p r o m e t e r a p r e f e r ê n c i a étnica
endogâmica.17
E n t r e as 4 7 m u l h e r e s jejes casadas, apenas algo mais da m e t a d e (27) ti-
n h a registrada descendência, s o m a n d o u m total de 72 "crioulinhos", o que dá
u m a média de 1,5 filhos por casal. E m b o r a faltem dados para estimar com pre-
cisão a taxa d e fertilidade da p o p u l a ç ã o jeje — c o m o índices de abortos ou
m o r t a l i d a d e i n f a n t i l (que não deviam ser baixos) — , parece que os jejes esta-
vam longe de s u s t e n t a b i l i d a d e por m e i o da r e p r o d u ç ã o n a t u r a l . Todavia, sete
das mães jejes, c u r i o s a m e n t e p e r t e n c e n t e s a casais i n t r a - é t n i c o s , eram pro-
g e n i t o r a s de 37 filhos, ou seja, mais da m e t a d e do total e s t i m a d o . P a r a l e l a -
m e n t e f o r a m i d e n t i f i c a d a s 40 mães "solteiras" c o m u m total de 75 filhos, o
q u e dá u m a taxa de f e r t i l i d a d e de 1,9 filho p o r m u l h e r , algo inferior à taxa
das mães casadas, q u e era de 2,6. 1 8
C o m o já vimos, na segunda m e t a d e do século XVIII os crio ulos e mestiços
e r a m maioria, o que sugere q u e os fazendeiros de f u m o , e até alguns senhores
de e n g e n h o , a c r e d i t a v a m e p r o v a v e l m e n t e i n c e n t i v a v a m os c a s a m e n t o s cotn°
estratégia para a reposição parcial d o c o n t i n g e n t e escravo. Se a esse cresci-

70
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

mento crioulo a d i c i o n a m o s a miscigenação i n t e r é t n i c a dos c a s a m e n t o s jejes,


há elementos para q u e s t i o n a r a separação da p o p u l a ç ã o escrava em f u n ç ã o da
sua cultura de o r i g e m . Ao c o n t r á r i o , os d a d o s sugerem q u e na s e g u n d a m e -
tade do Setecentos h o u v e u m a f o r t e simbiose de valores africanos, a qual foi
certamente h e r d a d a pelos crioulos.
Os jejes eram t a m b é m u m a p o p u l a ç ã o a d u l t a e e m m u i t o s casos d o e n t e .
Apenas achei u m a referência a u m " m o l e q u e " e u m a " m e n i n a " jejes, e, e m -
bora em geral não constasse a idade, 2 2 , 5 % dos escravos são i d e n t i f i c a d o s
como "já velhos" ou "de m a i o r " . Aparece t a m b é m u m a s u r p r e e n d e n t e q u a n -
tidade de doentes ou aleijados, em t o r n o de 27,5%, devido às duras condições
de trabalho e à falta de q u a l q u e r a t e n d i m e n t o m é d i c o . As patologias são va-
riadas, mas figuram com frequência aqueles "quebrados da virilha" pelo carrego
excessivo de peso na cabeça, os q u e p a d e c e m de gota, de dores de peito, de
estômago, asma, " c o r r i m e n t o de b a b a nas pernas", "calor de fígado nas m ã o s e
pés" e também aqueles "doentes de cansaço".
Em r e l a ç ã o à o c u p a ç ã o dos e s c r a v o s j e j e s , a g r a n d e m a i o r i a ( 7 2 % )
estava e m p r e g a d a n o "serviço da e n x a d a " , isto é, e m a t i v i d a d e s d e l a v o u r a
da cana, t a b a c o o u p r o d u t o s de s u b s i s t ê n c i a . S e g u i a m - s e a q u e l e s e m p r e -
gados no "serviço d a casa" e em m e n o r n ú m e r o a p a r e c e m o u t r o s com o c u -
pações mais especializadas, c o m o f u m e i r o , c o z i n h e i r o , c a r r e i r o , c o r d o e i t o
ou marinheiro. Essas h a b i l i d a d e s são n o r m a l m e n t e r e f l e t i d a s n o preço m a i s
alto desses escravos.
Até aqui falei p r i n c i p a l m e n t e da p o p u l a ç ã o escrava jeje d o R e c ô n c a v o ,
mas p o u c o foi d i t o em relação a Salvador o u à p o p u l a ç ã o l i b e r t a . Até o n d e
sei, Carlos O t t foi o ú n i c o a u t o r a a p r e s e n t a r d a d o s s o b r e as c a t e g o r i a s
etnico-raciais da p o p u l a ç ã o escrava, e m Salvador, n o s é c u l o XVIII. Pelo
limitado da a m o s t r a , esses d a d o s d e v e m ser c o n s i d e r a d o s c o m e x t r e m a cau-
tela, mas, s e n d o os ú n i c o s d i s p o n í v e i s , f o r a m i n c l u í d o s na T a b e l a 3 a p e -
nas c o m o i n d i c a t i v o s . As i n f o r m a ç õ e s relativas ao século X I X são m a i s
"cas, p e r m i t i n d o e x p a n d i r o p e r í o d o de análise até 1850, o q u e a i n d a n ã o
e
possível para o R e c ô n c a v o . Para esse p e r í o d o , n a T a b e l a 3, a d a p t e i os
dados extraídos dos i n v e n t á r i o s p o r M a r i a José d e Souza A n d r a d e e J o ã o
José Rei s .
Todavia, na Tabela 4, adaptei os dados apresentados por M a t t o s o sobre as
°ngens étnicas de escravos e m a n c i p a d o s e m Salvador e n t r e 1779 e 1850. U m a
/1 • I
lse c
, ° m p a r a t i v a das tabelas 3 e 4 p e r m i t e identificar quais eram os g r u p o s
etnico-raciais mais favorecidos pelas alforrias na cidade. Essa i n f o r m a ç ã o é im-
portante, já que, c o m o vimos no início do capítulo, n o século XIX a p o p u l a -
ne
g r a e mestiça livre o u liberta era superior à escrava.

71
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Tabela 3 — C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d a p o p u l a ç ã o e s t r a v a . S a l v a d o r , 1702-1850

1702 - 1 7 9 9 1800 - 1 8 2 0 1821 - 1 8 5 0

N !
% ! N !
!% N!
I %

Africano | 10 0,4; 10 J 0,3


i i ,

Gentio da Guiné 15 2,3 — —


i
1 -

Angola 211 22,8 i 4 0 2 18,0 292 10,5


1
Benguela i 53 5,7 ' 91 4,0 ! 44 ! 16
_L
Outros África central ] 41 4,4 1 57 2,6! 280 I 10,0
í

Gentio da Costa 457 49,3 465 20,9 80 ! 2,9


J

Mina 102 11,0 166 7,5 í 137 4,9

Jeje í 32 3,5 420 18,9 331 11,8


1

Nagô ; 5 0,5 286 12,8 1.204 43,2

Hauçó _ — 221 9,9! 168 6,0

1
Outros África ocidental n 1,2 109 4,9 i 243 8,7
í 1

Total africanos ] 927 100,0 2.227 100,0 2.789 100,0


1
i

Subtotal África central _ 550 15,5! 616 15,1

Subtotal África ocidental 1.667; 4 7 , 0 ; 2.163 53,2

Crioulo 905; 25,5! 8 3 1 20,4

Mestiço 422! 1 1,9 449 1 1,0

1
Total 3.544 11 00,00 : 4.059 100,0
Fonte: Inventários, APEBQ. Paro o período 1702-1799: Ott, " O negro", p. 143. Para o período 1800-1820: Projeto
Reis-Nigerian Hinterland. Para o período 1821-1850: Andrade, A mào-áe-obra, pp. 189-90. Obs..- Os 20 "africanos
da primeira linha da tabela foram descontados nos subtotais de africanos centrais e ocidentais, e os "gentio do
Costa" foram contabilizados como africanos ocidentais.

N ã o se trata aqui de fazer uma discussão pormenorizada desses dados, mas


apenas de destacar algumas generalidades significativas. Em primeiro lugar,
obsetva-se que a porcentagem de africanos entre a população liberta era me-
nor que entre a população escrava, o que permite inferir que os crioulos nasci-
dos no país e, sobretudo, os mestiços, tinham mais chance de alcançar a liber-
dade. Essa assimetria indica um sistema de relações sociais hierarquizado q u e

72
FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA

Tabela 4 — C o m p o s i ç ã o é t n i c o - r a c i a l d o s l i b e r t o s . S a l v a d o r , 1779-1850

1779-1800 1801-1820 1821-1850

N« % N» | % N* %

0,3 1 0,1 ' 119 | 6,9


Africano 1

8 ; 2,2 15 1,6 5 ; 0,3


Gentio da Guiné

61 17,0 i 108 12,0 122 6,7


Angola

23 6,4 34 3,7 13 0,7


Benguela

0,3 7 0,8 77 4,2


Outros África central 1

11 3,0 22 2,4 2 0,1


Gentio da Costa

169 47,0 314 34,8 138 7,6


Mina

63 17,5 236 26,2 318 17,6


Jeje

Nagô : 20 5,6 96 10,6 ; 754 41,7

i 43 4,8 110 6,0


Hautá —

Outros África ocidental 2 0,5 26 2,9 150 8,3

Total a f r i c a n o s 359 100,0 902 100,0 1.808 100,0

Subtolal África central 65 10,4 149 7,7 212 6,0

Subtotal África ocidental 265 | 32,7 7 3 7 38,2 1.472 | 42,0


, ,
Crioulo/mestiço 461 ' 56,8 | 1.043 | 54,0 1 . 8 1 8 ! 5 1 , 9
Total | 811 100,0 ! 1.929 ! 100,0 j 3.502 1 00,0

Forte-, Cartas de allorria, A P E B O , dados extra, os de J 0 " 0 5 0 ' * a ,.P,ntlu,721opas,31bornus,27 calabar s


• W inclui 6 dahomes e 11 maquinas (mahis); "Outros Afrca»a<lent« M ^ ^ ^ ^ l m ,
M benim, 9 barbas, 7 íulanis, 7 São Tomés, 3 camarões e 1 Ilha do r r ^ ^ da

tabindas, 29 congas e 15 moçambiques. Os "africanos e flenito ^^ ^da Costa„ f o r a m con.


tabela foram descontados nos subtotais de africanos centrais e
tabilizados como africanos ocidenlais.

f no estrangeiro.
p r i v i l e g i a v a o crioulo em detrimento do atrican ^ dTodavia, entre
e s f a v o r e c i d o s .

os africanos, os da África central parecem ter si o os ^ ^ ^ classifica-


Cabe notar também a aparente discrepância no ^ u a n t 0 nos inventários
Ção étnico-racial segundo o tipo de d o c u m e n t o . ^ ^ ^ da C o s t i l , essa
Há uma alta porcentagem de escravos identificados como ge

73
LUIS N I C O L A U P A R ÉS

categoria é quase inexistente nas cartas de alforria, em que o termo "mina"


parece substituí-la.
Em relação aos jejes, observa-se que em Salvador eles eram u m dos gru-
pos que mais se beneficiavam das alforrias. Nas duas primeiras décadas do
século, q u a n d o eles ainda eram o grupo d e m o g r a f i c a m e n t e m a j o r i t á r i o en-
tre os escravos africanos (18,9%), c o n s t i t u í a m mais d e u m a q u a r t a parte
(26,2%) da população africana emancipada. Já no período 1830-1850, q u a n d o
a sua presença entre os escravos cai para 11,8%, eles ainda constituem expres-
sivos 17,6% entre os libertos. A aparente capacidade dos jejes em negociar e
obter as suas cartas de alforria acima da média esperada talvez se deva a sua
maior antiguidade n o país e à consolidação de u m a ampla rede social de soli-
dariedade ao longo d o t e m p o , p r i n c i p a l m e n t e no contexto urbano. Sabemos,
por exemplo, que na segunda m e t a d e do século XVIII, na área fumageira do
Recôncavo, a situação era a contrária. Eles constituíam aproximadamente 25%
da população escrava africana, mas apenas chegavam a 19% da população li-
berta. 1 9 A conquista da liberdade dos jejes foi, assim, u m a luta que se ganhou
p r i n c i p a l m e n t e na cidade e foi favorecida p o r u m a tradição de esforço cole-
tivo de longa data.
A supremacia n u m é r i c a dos jejes entre os libertos africanos de Salvador
nas duas primeiras décadas do século XIX é de extrema i m p o r t â n c i a , pois,
como veremos no capítulo 4, foram os libertos africanos que desempenha-
ram o papel mais relevante no processo formativo do C a n d o m b l é que se deu
nesse período. Esse fator demográfico, e m b o r a não seja d e t e r m i n a n t e , p o d e
ter c o n t r i b u í d o para uma p r e d o m i n â n c i a do culto de voduns na institucio-
nalização do C a n d o m b l é .

Para finalizar esta seção sobre as flutuações dos diversos grupos étnicos na
população negra baiana, é preciso comentar brevemente a ascensão dos nagôs.
Mencionados no Recôncavo desde 1734, eles foram demograficamente expres-
sivos na segunda metade do século XVIII, mas a sua importação maciça acon-
teceu d u r a n t e a primeira m e t a d e do século XIX, coincidindo com a desinte-
gração gradual do império de Oyo, iniciada com a revolta de A f o n j a (c. 1797)
e a jihad lançada pelos fulanis em 1804. C o n t u d o , na Bahia, eles só conse-
guiram superar d e m o g r a f i c a m e n t e os jejes e angolas na década de 1820 (Ta-
bela 3). 20 A partir da década de 1830, com a queda definitiva do reino de O y o
e a grande instabilidade social gerada pelas múltiplas guerras civis que assola-
ram a iorubalândia, os cativos nagôs foram cada vez mais numerosos. Em
1848, Francis Castelnau, cônsul de França na Bahia, reporta que "os nagôs

74
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

que formam provavelmente os nove décimos dos escravos da Bahia [...] quase
todos embarcados em O n i m ou Porto Novo". 21 Essa porcentagem é certamen-
te exagerada, mas a superioridade demográfica dos nagôs, embora tardia, é in-
questionável. Entre 1840 e 1860, em Salvador, eles constituíam mais da metade
da população escrava africana, entre 56 e 69% segundo fontes diversas. 22
O u t r o f e n ó m e n o relevante que se inicia na década de 1840, mas que se
generaliza a partir de 1850, com o fim do tráfico transatlântico, é a progres-
siva e sistemática utilização do termo "africano" para classificar tanto a escra-
vos c o m o a l i b e r t o s (Tabela 4). O s d a d o s extraídos dos i n v e n t á r i o s p o r
A n d r a d e m o s t r a m , no decénio de 1851-1860, u m a u m e n t o vertiginoso da
categoria "africano", que chega a designar 58% dos escravos não-brasileiros,
e n c o b r i n d o logicamente uma maioria de escravos nagôs. U m exemplo con-
creto é o do escravo José, que em 1835, d u r a n t e os processos que se seguiram
ao levante dos males, foi identificado como José Nagô. Mas, em 1857, em-
bora ainda referido c o m o José Nagô, ele é mais f r e q u e n t e m e n t e identificado
como José africano ou José da Costa da Africa. 23 O mesmo processo foi identi-
ficado por Maria Inês Cortes de Oliveira nos testamentos dos africanos liber-
tos de Salvador, nos quais se observa que a identificação étnica é cada vez mais
vaga e imprecisa à medida que avança o século. Entre 1851 e 1890, as cate-
gorias "africano" e "Costa da África" constituem 77% das auto-identificações
avaliadas. 2 4
Poder-se-ia supor que o uso das denominações étnicas estava em estreita
relação com o tráfico e que, q u a n d o este cessou, a partir de 1850, n u m a so-
ciedade cada vez mais crioula e racialmente miscigenada, a identificação a par-
tir de nomes de nação foi p e r d e n d o aos poucos a sua significação. H á na do-
cumentação da elite branca u m a clara tendência à homogeneização, passando
a distinção crioulo-africano a ser a linha de corte da população negra. E lícito
pensar t a m b é m que a formação do nacionalismo brasileiro, reforçado pela in-
dependência de Portugal em 1822 e consolidado em décadas posteriores, tives-
se c o n t r i b u í d o para a perda da i m p o r t â n c i a de identidades étnicas "estran-
geiras". Isso não significa que os africanos não mantivessem as suas identi-
dades étnicas, mas o seu uso ficava restrito ao universo cultural da população
negra e, principalmente, como veremos, ao â m b i t o religioso.
C o n c l u i n d o , a análise precedente permite supor que os jejes tiveram na
Bahia uma importância demográfica significativa entre 1730 e 1820, chegando
a constituir, em vários momentos e lugares, o grupo africano numericamente
majoritário. Foi provavelmente já nas primeiras décadas do século XVÍII que
se desenvolveu um senso de c o m u n i d a d e ou de identidade coletiva conhecida
como "nação jeje", e foi provavelmente nas primeiras décadas do século XIX

75
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

que os jejes, especialmente os libertos, contribuíram de uma forma determi-


nante para a institucionalização do Candomblé, embora esse processo encontre
as suas raízes já na segunda metade do século XVIII. Contudo, antes de entrar
nesse assunto, nos interessa primeiro entender alguma coisa sobre o processo
de construção identitária inicial e ver como os nomes de nação contribuíram
para gerar laços comunitários. Porém, além das categorias de classificação, a
identidade étnica é vivida e expressada em toda uma série de comportamentos
e interações interpessoais e, sobretudo, na capacidade de criar instituições so-
ciais passíveis de agregar os membros de uma determinada comunidade.

A F O R M A Ç Ã O DE U M A I D E N T I D A D E M U L T I D I M E N S I O N A L
A PARTIR DE P R O C E S S O S ALTERNATIVOS DE N O M I N A Ç Ã O

O escravo africano, q u a n d o capturado pelos traficantes, não só perdia a li-


berdade; com ela iam-se os vínculos familiares e sociais, assim como os refe-
rentes culturais da sua terra. Esse processo de "dessocialização", que Orlando
Patterson chama "morte social", era a c o m p a n h a d o por outro de desperso-
n a l i z a ç ã o . U m a vez vendido aos europeus, antes de embarcar ou na sua
chegada às colónias, ele era normalmente batizado na religião católica e rece-
bia um nome português. Já no Brasil, devia aprender a falar uma nova língua
e, aos olhos dos senhores, passava a ser uma mercadoria, identificado pelo nome
do seu proprietário e pelo n o m e de nação adscrito pelos traficantes, que na
maioria dos casos designava o ponto de embarque ou da transação comercial,
e não o lugar da procedência original do indivíduo. Ele era também identifi-
cado pelo seu preço n o mercado, que variava de acordo com a sua idade, sexo,
condições físicas e habilidades. Em suma, a sua identidade pessoal, se não
totalmente suprimida ou substituída, era severamente relativizada por uma
outra gerada e imposta de fora. A um nível individual, ou no convívio com
os parceiros de cativeiro, certos traços da identidade pessoal original podiam
ser mantidos, mas no cotidiano das relações com a sociedade mais ampla a
nova identidade imposta pela escravatura ia-se mostrando a forma mais ope-
racional de se apresentar aos outros. Foi assim que, aos poucos, as denomi-
nações metaétnicas de nação foram assumidas pela população negra africana.
Paralelamente à d i n â m i c a de identificação externa exercida pela classe
dominante, os africanos e seus descendentes foram desenvolvendo novas for-
mas de solidariedade e de identidade coletiva, na medida em que as novas
circunstâncias o permitiam. No convívio da senzala e dos grupos de traba-
lho da cidade, a partir do reconhecimento de semelhanças linguísticas e com-
portamentais e da identificação de lugares de procedência comuns ou próxi-

76
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

mos, novos grupos mais amplos foram g a n h a n d o u m a autoconsciência cole-


tiva. Esse reconhecimento da semelhança com certos indivíduos era reforçado
pelo reconhecimento de diferenças com outros. A esse nível, é claro que o com-
ponente linguístico, a possibilidade de se entender, mesmo falando dialetos
diferenciados, gerava u m vínculo imediato entre certos grupos que os sepa-
rava daqueles outros com quem essa comunicação era inviável. Nesse sentido,
cabe lembrar que, a partir de certo m o m e n t o , os escravos recém-chegados já
encontravam em funcionamento redes sociais estruturadas, em que a identidade
coletiva de nação era efetivamente operacional e o processo de assimilação dessa
nova identidade podia produzir-se com mais rapidez.
Nessa dinâmica histórica de construção das nações africanas no Brasil, os
processos de n o m i n a ç ã o t i n h a m u m papel i m p o r t a n t e , existindo u m diálogo
de várias vozes cruzadas. Pensemos no caso hipotético do escravo J o a q u i m .
O senhor ou proprietário registra no seu inventário o escravo J o a q u i m c o m o
jeje, porque assim lhe foi n o m e a d o e vendido pelo comerciante que o trouxera
do porto de Uidá ou Porto Novo na Costa da M i n a . Q u a n d o J o a q u i m é preso
numa tentativa de fuga e tem que responder perante o juiz, ou qualquer outra
instância civil ou religiosa controlada pela camada senhorial, ele será identi-
ficado, ou m e s m o se a u t o d e n o m i n a r á , Joaquim jeje, utilizando a d e n o m i n a -
ção que lhe foi dada pelo seu senhor. Esse é u m primeiro nível de articulação
da identidade jeje, que corresponde às relações de poder vertical de uma classe
d o m i n a n t e branca sobre uma classe escrava negro-mestiça, e em que os valo-
res e usos sociais da classe d o m i n a n t e são impostos à classe subalterna. 2 6
Entretanto, o escravo Joaquim é membro de u m a Irmandade de H o m e n s
Pretos, onde há tempos existem rivalidades entre africanos e crioulos. Nesse
novo antagonismo, agora restrito ao âmbito da população negra, Joaquim é
antes africano, na linguagem da época "preto" ou "não nacional do país", do
que jeje. Diante do negro filho da terra, Joaquim relembra que não nasceu no
país, que foi capturado e vem de outro lugar. Diante do crioulo ele é estrangeiro.
Joaquim é jeje, sobretudo perante os outros grupos de africanos — os an-
golas, os nagôs, os hauçás, os tapas — , que falam outras línguas, vêm de outras
terras e têm hábitos diferenciados. Esse é o segundo nível, que corresponde a
relações internas de cooperação e conflito entre os negros-mestiços e princi-
palmente entre os africanos. Trata-se, de alguma forma, de dialéticas de cará-
ter essencialmente étnico mais do que raciais ou de classe, como ocorria n o
primeiro nível. Aqui as diferenças linguísticas e culturais, e não a cor ou a posi-
ção no sistema de produção, se tornam o campo de diferenciação e contraste.
Além disso, nas conversas entre outros escravos de ganho jejes, J o a q u i m
se declara mahi de Dassa e polemiza com um dagomé ou um savalu, povos

77
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

vizinhos e p o r vezes rivais. Esse seria o terceiro nível, que corresponde aos
processos de diferenciação entre os povos englobados sob u m a mesma deno-
minação metaétnica. Surgem aqui as categorias étnicas prevalecentes na pró-
pria Africa, quase invisíveis para a classe d o m i n a n t e ou outros grupos afri-
canos. Vale lembrar que algumas dessas denominações, c o m o por exemplo
mahi, p o d i a m ser já d e n o m i n a ç õ e s metaétnicas na Africa.
E o c r u z a m e n t o desses três níveis de n o m i n a ç ã o , desses três campos de
contraste, q u e me parece m a r c a n t e para e n t e n d e r a c o n s t r u ç ã o das nações
africanas no Brasil e a formação de u m a identidade étnica multidimensional.
O processo dialógico entre os próprios africanos gera um a j u s t a m e n t o pro-
gressivo das auto-adscrições africanas preexistentes, múltiplas e com índices
de incidência demográfica variados, às novas denominações metaétnicas de
nação, impostas pela fala da classe d o m i n a n t e , mais genéricas e reduzidas em
n ú m e r o . Essas denominações que, por sua vez, em alguns casos na Africa, um
dia foram restritas a um g r u p o d e t e r m i n a d o , com o t e m p o passam a englo-
bar um m a i o r n ú m e r o de grupos inicialmente diferenciados.
A identidade étnica se expressava muitas vezes através de metáforas de
parentesco. Novos laços de parentesco, não necessariamente biológicos, fo-
ram criados. Aqueles que t i n h a m viajado no mesmo barco, os malungos, pas-
savam, por essa experiência c o m p a r t i l h a d a , a se considerar c o m o irmãos.
C o m o a p o n t a João José Reis,

a d i f i c u l d a d e que t i n h a m os a f r i c a n o s escravos, e m e s m o os l i b e r t o s , de f o r m a r fa-


m í l i a s , p o d e explicar p o r q u e na Bahia eles r e d e f i n i r a m a a b r a n g ê n c i a s e m â n t i c a da
p a l a v r a p a r e n t e para i n c l u i r t o d o s da m e s m a e t n i a : o n a g ô se dizia " p a r e n t e " d e o u t r o
n a g ô , o jeje de jeje e t c . O a f r i c a n o i n v e n t o u a q u i o c o n c e i t o d e " p a r e n t e de n a ç ã o " . 2

As associações de caráter religioso, nas suas congregações e rituais, provi-


denciaram formas institucionais para reforçar esse s e n t i m e n t o de c o m u n a -
lismo e de identificação com uma coletividade étnica. As irmandades católi-
cas (em que os membros são irmãos de confraria), com suas folias e reinados
organizados d e acordo com as nações africanas, parecem ter em muito contri-
buído para a formação desse novo "parentesco de nação" (ver adiante). Além
das irmandades, os batuques e, a partir do século XIX, os candomblés, com
a criação da c h a m a d a "família-de-santo", t a m b é m c o n t r i b u í r a m de f o r m a
marcante, sendo que os laços e vínculos m ú t u o s estabelecidos no contexto
religioso aparecem c o m o uma alternativa ao parentesco consanguíneo. 2 8
Pode-se também pensar que a abrangência semântica do "parentesco" no
Brasil foi favorecida pelo conceito de "parentesco" operativo nas "famílias ex-
tensas" da maioria de sociedades africanas. No caso da área gbe, por exemplo,

78
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

a organização familiar comporta formações sociais díspares e situadas em níveis


diferenciados, sendo as principais o huédo, o hennu e o ako. Cada u m a dessas
formações implica variados laços de solidariedade entre os seus membros, que
se expressam pela linguagem do parentesco. Deixando de lado o hué (casa)
ou família conjugal, o huédo é a coletividade familiar de base, composta pelos
descendentes por linha patrilinear de um ancestral recente (três ou cinco gera-
ções). O huédo constitui uma coletividade residencial e os seus membros moram
na mesma concessão familiar, ao tempo que reconhecem um único chefe (daa)
em função do princípio de senioridade. Por sua vez, vários huédos que reco-
nhecem laços de parentesco ou u m a origem geográfica c o m u m dos seus res-
pectivos ancestrais constituem um hennu ou linhagem. Existiria ainda o hennu
daho, ou hennu extenso, que incluiria certos huédos agregados, sem responder
necessariamente a vínculos genealógicos. O hennu comporta submissão à au-
toridade de um chefe (hennugan) e das "velhas tias paternais" (tanyi). Final-
mente, no nível superior, está o ako ou clã, composto por aqueles hennus que
reconhecem um mesmo ancestral mítico (tohuíyo). C o m p a r t i l h a m certas proi-
bições (alimentares e outras) e obrigações cerimoniais de caráter religioso, mas
não reconhecem subordinação a um chefe nem constituem necessariamente
uma coletividade residencial. Na verdade, o ako não é p r o p r i a m e n t e u m gru-
po, mas uma categoria referencial. 2 9
Além do huédo, o indivíduo pode utilizar a linguagem do parentesco com
os m e m b r o s do hennu e do ako, embora estas sejam formações sociais de li-
mites flexíveis não necessariamente ligadas por vínculos genealógicos. Nesse
sentido, o parentesco de nação desenvolvido no Brasil seria apenas uma exten-
são da mesma lógica operativa nas sociedades africanas, segundo a qual todos
aqueles indivíduos que c o m p a r t i l h a m uma ancestralidade c o m u m , real ou
imaginada, são considerados como "irmãos". Essa consideração é f u n d a m e n t a l
para entender o tema que nos ocupa.
C o m o já foi dito, o processo de construção identitária jeje, aparentemente
restrito à Bahia, parece ter acontecido ao longo de várias décadas, ajustando a
denominação de um grupo étnico particular a um âmbito cada vez mais gené-
rico e inclusivo de todos os povos gbe-falantes. Até meados do século XVIII,
vieram vários grupos do litoral — como os huedas, hulas, aizos, guns — e
outros do interior — como os ouemenus, agonlis e mahis — , que apresentavam,
nessa primeira fase, uma grande diversidade étnica. Essa heterogeneidade, pro-
vavelmente invisível aos olhos da elite branca brasileira, parece ter sido pre-
servada entre os africanos.
Na década de 1750, no Rio de Janeiro, existiam vários grupos de "pretos
minas", escravos e forros, trazidos do Daomé. Seguramente, uma parte deles

79
LUIS NICOLAU P A R ÉS

chegou pelo tráfico interno proveniente da Bahia. Esses pretos constituíram


agremiações religiosas c o m o a I r m a n d a d e de São Estevão e Santa Efigênia na
Igreja de São Domingos. C o m o bem d o c u m e n t o u Mariza de Carvalho Soares,
no compromisso dessa i r m a n d a d e , dirigido aos poderes eclesiásticos de Lis-
boa, os africanos se identificam com a d e n o m i n a ç ã o metaétnica de "pretos
minas". N a década de 1750, esses minas "entram em conflitos separando-se
em dois grupos: u m composto pelos d a o m e a n o s (dagomé) e o u t r o por peque-
nos grupos quase desconhecidos, identificados por eles mesmos como makii,
agolin, sabaru e ianno". 30 Dagomé refere-se, provavelmente, aos fons ou a outros
grupos já sob o domínio do reino de D a o m é . Os makii são os mahis. Savaru
corresponde a Savalu, uma cidade vizinha da região dos mahis. E o mesmo caso
dos agolin, ou agonlis, povos localizados ao nordeste de A g b o m e e t a m b é m
considerados mahis. Ianno é um termo até agora não identificado. 3 1
Vemos, assim, como, sob a d e n o m i n a ç ã o "mina", se e n c o b r i u uma plura-
lidade de etnônimos. Vale frisar que é só nas congregações menores da irman-
dade, organizadas em t o r n o dos reinados e das folias e cujos d o c u m e n t o s não
eram dirigidos a estamentos eclesiásticos, que aparecem essas denominações
vigentes na Africa. Fica claro que as denominações metaétnicas são assumidas
pelos africanos para negociar com a sociedade branca, e n q u a n t o as outras têm
u m a funcionalidade interna. Os africanos negociavam com u m a série variável
de identidades, baseadas em denominações externas e internas, em função dos
interlocutores ou d o contexto social.
E n c o n t r a m o s o u t r o exemplo, desta vez na Bahia, d u r a n t e a repressão do
C a l u n d u d o Pasto em C a c h o e i r a , em 1785. Trata-se de u m a devassa civil
exercida pela autoridade civil e não religiosa. N o d o c u m e n t o de formação de
culpa, o escrivão nomeia os acusados: "Sebastião, e A n t o n i o , e Francisco, e
Thereza e Anna, todos jeje", e u m a sexta mulher, Marcella, jeje, que, final-
m e n t e , não foi processada. Um mês depois, no e n c e r r a m e n t o da devassa, o
escrivão já sabia mais, pelo menos dos h o m e n s : "Sebastião de Guerra, Fran-
cisco Rodrigues Leite e A n t o n i o A m o r i m , todos forros, o primeiro de nação
D a g o m é , o segundo Marri, o terceiro Tapa, e as pretas Thereza e Anna". Foi
José Pereira, o africano d o n o da casa o n d e foi celebrado o c a l u n d u , q u e m
esclareceu a origem dos presos, inclusive a das mulheres: Thereza era forra
de origem mahi; Anna, escrava jeje e Marcella, forra, t a m b é m jeje. Vemos,
p o r t a n t o , que seis indivíduos, declarados inicialmente "todos jeje", na ver-
dade integram: um dagomé, dois mahis, dois jejes, um tapa. 3 2 Além de jeje
poder incluir povos fora da área v o d u m , como os tapas, o que fica claro é que,
entre os africanos, "jeje" era ainda uma d e n o m i n a ç ã o restrita a um g r u p o ét-
nico específico d e n t r o da área v o d u m , que se distingue dos dagomés e dos

80
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E É T N I C A J E J E N A B A H I A

mahis. 33 C o m o já vimos, esses jejes seriam os povos litorâneos da área vodum,


especialmente aqueles localizados na região de Porto Novo.
O uso da d e n o m i n a ç ã o "jeje" entre os senhores e traficantes de escravos
parece ter assumido o seu caráter genérico desde bem cedo, e m b o r a nos in-
ventários apareçam esporádicas menções a codavis, m a q u i m s , sabarus, fons,
dagomés, e já n o século XIX, a m o n d o b i s e popos. Em alguns casos a d o c u -
mentação deixa entrever a ambivalência do repertório de denominações ét-
nicas. Por exemplo, em 1778, na avaliação dos bens de Manoel Fernandes
Pereira, m o r a d o r em Maragogipe, figura o escravo "Lourenço sabaru", que,
em duas declarações anexas referentes à sua alforria, se auto-identifica indis-
tintamente c o m o "gegê" e "nação mina". 3 4 Já n u m inventário de São Fran-
cisco do C o n d e , achei u m a referência a "uma negra por n o m e Josepha gege
ou codavy" (grifo nosso). 3 5
O termo "jeje" foi adotado pelos africanos em seu diálogo com a sociedade
mais abrangente e no relacionamento contrastivo com outros grupos africanos,
especialmente os angolas, no século XVIII, e t a m b é m os nagôs, no século XIX.
Nesse diálogo interafricano, as diferenças linguísticas e religiosas passaram a
ser mais importantes. Ora, no âmbito interno dos gbe-falantes, pelo menos no
domínio religioso, associadas ao termo "jeje" persistiram até hoje denomina-
ções de identidade étnica mais restrita como jeje-marrim (mahi), jeje-dagomé,
jeje-savalu e j e j e - m u n d u b i (mondobi). Uma vez mais vislumbra-se uma iden-
tidade multidimensional baseada em diálogos externos (de fora para dentro e
de dentro para fora) e internos (de dentro para dentro).
Até aqui falei, sobretudo, dos processos alternativos de n o m i n a ç ã o étnica
e da sua i m p o r t â n c i a na formação dos relacionamentos sociais comunitários,
baseados, em palavras de Weber, n u m "sentimento subjetivo dos participantes
de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao mesmo grupo". Mas, c o m o já
notei acima, é a capacidade das comunidades étnicas para gerar ações de grupo
de tipo associativo, baseadas em valores ou razões de conveniência c o m u n s ,
que me parece essencial para o desenvolvimento de uma consciência coletiva
e a formação de uma identidade étnica. Além dos discursos elaborados no con-
texto das interações interpessoais, é nas instituições sociais que se geram os
processos simultâneos de inclusão ( p e r t e n c i m e n t o ) ou exclusão, e é nesses
relacionamentos associativos que a identidade étnica p o d e expressar-se com
maior clareza. A participação em irmandades católicas, grupos de trabalho e
congregações religiosas em volta do culto de voduns seriam exemplos dessas
"ações de g r u p o de tipo associativo" que propiciaram a consciência de u m a
identidade coletiva jeje. 36

81
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

OS JEJES PERANTE OS B R A N C O S , C R I O U L O S E A N G O L A S N A S I R M A N D A D E S CATÓLICAS

As irmandades católicas foram uma das instituições sociais que mais contri-
buíram para o processo dialógico que aos poucos foi criando e definindo os
contornos das diversas nações africanas no Brasil. Vários autores têm apon-
tado para o fato de que as irmandades de homens pretos se dividiam segundo
as diversas etnias africanas, existindo irmandades de angolas, de jejes ou de
nagôs. 37 Ora, essa exclusividade étnica era raríssima e as irmandades incluíam
sempre uma pluralidade de grupos étnico-raciais, embora alguns deles desfru-
tassem de maior visibilidade ou poder. Essa heterogeneidade no interior das
irmandades era fonte de repetidos conflitos e tensões entre os diversos grupos,
e era precisamente nesses conflitos, ou às vezes alianças, que as relações de con-
traste e o fator diferencial se expressavam e que os indivíduos tomavam cons-
ciência de sua identidade coletiva.
O critério de exclusão mais i m p o r t a n t e q u e operava nas i r m a n d a d e s
reproduzia a hierarquia "racial" ou "de cor" prevalecente na sociedade mais
abrangente, isto é, enfatizava-se, sobretudo, o separatismo entre brancos,
pretos e, p o s t e r i o r m e n t e , os pardos, cada vez mais numerosos. Em muitas
confrarias, as distinções "raciais" eram determinantes na aceitação dos irmãos,
embora no caso dos pardos e mulatos existisse u m a margem de ambiguida-
de e mobilidade, dependendo do status social do indivíduo. Já nas congrega-
ções de homens pretos, além da distinção "étnica" entre os diversos grupos
africanos, a divisão interna mais marcante foi a que se deu entre africanos
e crioulos.
O s crioulos, como os mulatos, por terem nascido no Brasil e não terem
outro referente cultural, de um m o d o geral tinham atitudes assimilacionistas.
Eles falavam a língua portuguesa desde o início da vida, facilitando a comuni-
cação e o aprendizado de costumes e hábitos "nacionais". Os africanos, ao
contrário, provinham de outro m u n d o cultural e seus referentes de origem,
apesar das dificuldades, eram mantidos ou lembrados, gerando maior grau
de resistência. Essa resistência era mais acentuada entre os boçais ou africanos
recém-chegados, que não falavam a língua portuguesa, do que entre os ladi-
nos, aqueles mais integrados no sistema escravocrata.
E m b o r a se fale dos crioulos de uma forma genérica, é preciso matizar
que, c o m o os africanos, eles não constituíam um g r u p o h o m o g é n e o . Os
crioulos de primeira geração, em muitos casos criados por suas mães africa-
nas, podiam m a n t e r laços afetivos e de sociabilidade mais marcantes com
os seus progenitores africanos que com outros crioulos. Mas essa proximi-
dade ia-se perdendo com o tempo. Os crioulos de segunda e terceira geração,

82
F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E É T N I C A J E J E N A B A H I A

criados p o r o u t r o s "filhos da terra", apresentavam m a i o r grau de a d a p t a -


ção à c u l t u r a d o m i n a n t e e passavam a c o n s t i t u i r u m s e g m e n t o social c u l t u -
ralmente mais h o m o g é n e o , com valores e interesses q u e se d i f e r e n c i a v a m
daqueles dos a f r i c a n o s "estrangeiros". Aliás, c o m o já foi d i t o , pelo me-
nos entre os jejes da segunda m e t a d e do século XVIII, havia um alto número
de m a t r i m ó n i o s i n t e r é t n i c o s , p r i n c i p a l m e n t e de jejes com angolas, m i n a s
e nagôs. Pode-se supor q u e a comunicação entre esses casais se desenvolvia a
partir do p o r t u g u ê s e q u e a sua descendência crioula estava exposta a refe-
rentes culturais mistos, t a n t o brasileiros como africanos. Isso devia gerar
processos m u i t o variáveis de exclusão ou inclusão desses crioulos por parte
dos africanos.
Os conflitos entre africanos e crioulos r e m o n t a m pelo menos ao século
XVIII e ficam patentes na d o c u m e n t a ç ã o das irmandades católicas. U m dos
exemplos mais conhecidos na historiografia baiana é o caso da I r m a n d a d e do
Senhor Bom Jesus dos M a r t í r i o s , "erigida pelos H o m e n s pretos de nação
Gege", n o convento do C a r m o na vila de Nossa Senhora do Rosário da Ca-
choeira, em 17 6 5. 38 Essa i r m a n d a d e dos Martírios é u m dos pouquíssimos
casos de irmandades de " H o m e n s pretos" que faz referência explícita no seu
título a u m a nação étnica. Voltaremos a esse assunto mais adiante.
A i r m a n d a d e , m e s m o sendo f u n d a d a por africanos jejes, estava aberta a
qualquer um de "bons costumes" que tivesse condições de pagar, mas limitava
a e n t r a d a dos c r i o u l o s . O s a f r i c a n o s deixam p a t e n t e a a n i m o s i d a d e exis-
tente e n t r e eles e "os h o m e n s pretos nacionais desta terra a que vulgarmente
chamam crioulos [...] pelas controvérsias que c o s t u m a m ter semelhantes ho-
mens com os de nação Gege e que estabelecem esta Irmandade". Os crioulos
só podiam ingressar na i r m a n d a d e se pagassem u m a entrada de 10 mil réis
(contra duas patacas da entrada de qualquer outro); além do mais, eles não
podiam, sob n e n h u m a condição, participar de algum cargo da mesa. N o en-
tanto, "nesta proibição se não entende as Irmãs Crioulas, que estas poderão
servir todos os cargos, e gozar todos os privilégios da I r m a n d a d e sem reser-
va". 39 A aceitação de mulheres crioulas, poderia ser vista c o m o uma tentati-
va de favorecer o "mercado amoroso" n u m a sociedade em que, entre a p o p u -
lação africana, existia u m a relativa escassez de mulheres. 4 0
Essa política discriminatória dos jejes contra os crioulos resultava das ditas
"controvérsias", entre as quais a rivalidade no mercado amoroso não pode ser
excluída, mas o antagonismo não era apenas local e inseria-se n u m a dialética
mais ampla. A atitude dos jejes era, provavelmente, t a m b é m uma resposta a
políticas semelhantes exercidas pelos crioulos contra os africanos em outras
irmandades.

83
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

Por exemplo, em 1764, um ano antes de se redigir o compromisso da ir-


mandade dos Martírios de Cachoeira, Felix Simões de Azevedo, administrador
do c o n t r a t o da chancelaria e dos escravos que vinham da Costa da Mina, pos-
suindo na capela da Barroquinha de Salvador o altar de Nossa Senhora da
Caridade, doou-o à irmandade h o m ó n i m a do Senhor Bom Jesus dos Martírios
existente n a cidade, para que no mesmo colocasse a sagrada imagem do seu
orago. Essa irmandade dos Martírios de Salvador teve a sua sede primitiva na
Capela do Rosário dos H o m e n s Pretos às Portas do C a r m o . A irmandade acei-
tou a oferta de Azevedo no mesmo ano 1764, mas não se sabe exatamente quan-
do se transferiu para a Barroquinha. Sabe-se que em 1779, q u a n d o se redigiu
o compromisso, já estava lá. O compromisso logrou o beneplácito régio em 12
de fevereiro de 1788. 41
C o m o n o t a Silva Campos, o título antigo e oficial que figurava nesse com-
promisso era " I r m a n d a d e do Senhor Bom Jesus dos M a r t í r i o s dos Creoulos
Naturais da Cidade da Bahia" e, c o n t r a r i a m e n t e ao que pensa Russell-Wood,
essa congregação não se caracterizava pela flexibilidade na aceitação dos seus
m e m b r o s . 4 2 Do m e s m o m o d o que os jejes de C a c h o e i r a d i s c r i m i n a v a m os
crioulos, t a m b é m os crioulos c o n s t i t u í a m i r m a n d a d e s que d i s c r i m i n a v a m
os africanos.
H á comprovação desse fato n u m outro compromisso redigido em 1775, pela
Irmandade d o Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção, ereta na cape-
la do Corpo Santo de Salvador. Nesse compromisso, impresso em Lisboa em
1778, ficou registrada u m a interessante troca de cartas entre o p r o m o t o r An-
tônio de Brito e os mesários da irmandade a respeito do capítulo XII. Esse item
explicita que, "para evitar escândalos, dúvidas e discórdias como a experiência
tem mostrado se deve advertir que para Irmãos e Irmãs desta I r m a n d a d e serão
aceitos os pretos nacionais de fora da cidade como são os da Costa da M i n a
ou Loanda e por n e n h u m princípio serão admitidos toda a qualidade de pretos
crioulos". Se na i r m a n d a d e de Cachoeira os jejes restringiam a participação
dos crioulos, os minas e angolas da i r m a n d a d e do C o r p o Santo, uns anos de-
pois, os excluíam definitivamente.
O p r o m o t o r Antônio de Brito, encarregado de encaminhar o compromisso
a Lisboa, questionou a pertinência desse capítulo, já que não se deveria proi-
bir a n i n g u é m a devoção a " D e u s e aos seus santos". O s irmãos, um t a n t o
ironicamente, a r g u m e n t a r a m que não impediam a devoção a n i n g u é m , "por-
que cada um, se por sua devoção quiser, bem p o d e dar a sua esmola, sem que
para isso haja impedimentos", mas insistiram que a finalidade da exclusão era
"evitar parcialidades, ódios, e dissensões, que c o m u m e n t e há entre eles [os
crioulos], e os de Ultramar". Aliás, entre as justificativas de peso, alegaram

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

que em outras irmandades da cidade, como "na do Senhor dos Martírios, que
é dos mesmos excluídos [os crioulos], se observa o mesmo impedimento com
os do Ultramar". 4 3 Portanto, as políticas de exclusão entre africanos e crioulos
nas irmandades estavam inter-relacionadas de forma dialética, umas se justifi-
cando em função das outras, e provavelmente abarcando um âmbito regional
que incluía Salvador e o Recôncavo. 44
Mais difícil é saber qual era a natureza e os motivos das "controvérsias" e
"ódios" entre esses dois grupos, tema que merece u m f u t u r o estudo mais
aprofundado, mas o que interessa destacar aqui é que eram esses conflitos e
contrastes que faziam com que os indivíduos fossem colocados ou tomassem
partido por u m ou o u t r o bando, reforçando os processos de identificação co-
letiva. No caso, o a n t a g o n i s m o com os crioulos parece ter favorecido a soli-
dariedade inter-africana.
Na Irmandade dos Martírios de Cachoeira, a diretoria estava composta por
"um Presidente que sempre será h o m e m preto que não seja nacional do País:
um Escrivão da Mesa que não h a v e n d o preto que saiba ler, escrever, será
homem branco, ou pardo de boa conta: um Tesoureiro e um Procurador que
sejam pretos não nacionais". 45 Portanto, os cargos de mais importância, exceto
o de escrivão, estavam reservados a africanos, que pelo título do compromisso
podemos supor "de nação gege". 46 Nesse contexto, o termo "preto" parece po-
der designar t a n t o africanos como crioulos e precisa ser adjetivado com a ex-
pressão "não nacional" ou "não nacional do País" para se referir especifica-
mente aos africanos. Já no compromisso da irmandade da Redenção do C o r p o
Santo, os africanos minas e loandas são referidos como "pretos nacionais de
fora da cidade", provavelmente para indicar que, embora estrangeiros, eram
"pretos de nação". Essa ambiguidade semântica d o termo "preto" no Setecen-
tos contrasta com o seu uso no século XIX, q u a n d o preto é invariavelmente
sinonimo de africano.
Sendo que, além das restrições impostas aos crioulos, q u a l q u e r pessoa
podia ser aceita na associação, pode-se supor que, com o tempo, a irmandade
de Cachoeira foi incluindo, mesmo na sua diretoria, africanos de várias na-
ções, contribuindo para uma relativa heterogeneidade étnico-racial. Por exem-
plo, entre os cargos femininos, como o de Juíza ou Irmã M o r d o m a , c o n t e m -
pla-se a participação de irmãs "assim brancas, c o m o pardas, e pretas, sem
preferência alguma de pessoas". E n t r e t a n t o , os africanos jejes, como f u n d a -
dores da i r m a n d a d e , deviam m a n t e r um relativo controle, pelo menos na
segunda metade do século XVIII. E i m p o r t a n t e lembrar que nesse período,
em Cachoeira, os jejes eram o g r u p o africano d e m o g r a f i c a m e n t e m a j o r i t á -
rio, e embora não haja necessariamente uma relação direta entre demografia

85
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

e influência cultural, a sua predominância n u m é r i c a entre os escravos e, pro-


vavelmente, os libertos, p o d e ter favorecido a sua maior visibilidade social.
Uma hipótese e m relação ao termo "jeje" n o título do compromisso é que,
no século XVIII, antes da chegada maciça dos nagôs, essa d e n o m i n a ç ã o fosse
utilizada, em certas ocasiões, c o m o s i n ó n i m o de mina, e designasse de f o r m a
genérica os africanos provenientes do Golfo do Benim, em contraste com os
angolas da Africa central. N o compromisso da Irmandade do Glorioso Senhor
São Benedito, em Itapagipe, redigido em 1800, por exemplo, nomeiam-se três
juizes: u m pardo, u m crioulo e um terceiro jeje ou angola. 4 7 Essa divisão dos
cargos da mesa reflete o sistema de classificação étnico-racial da época, e o ter-
ceiro juiz seria o representante dos africanos que, por sua vez, significativamen-
te, dividiam-se em angolas e jejes. N ã o devemos descartar, portanto, que em
certos contextos jeje fosse utilizado como um termo "guarda-chuva", incluin-
do um grupo maior do que os gbe-falantes. Isso poderia explicar também a sua
utilização na devassa do calundu do Pasto, em 1785, incluindo os tapas.
N o seio das irmandades católicas, os jejes e os angolas mantiveram relações
variáveis de conflito e cooperação. Vimos o caso da Irmandade do Senhor Bom
Jesus das Necessidades e Redenção do C o r p o Santo, em que os pretos da Cos-
ta da Mina e Loanda — os primeiros incluindo provavelmente grande número
de jejes (ver adiante) — compartilhavam os cargos da mesa diretora. Temos u m
o u t r o episódio de aparente cooperação na Irmandade de Nossa Senhora do Ro-
sário dos Pretos da Rua de João Pereira. 48 Em 9 de novembro de 1784, o padre
José Joaquim Alvares, escrivão da irmandade, redige um requerimento "relati-
vo às desordens que alega praticadas pela Mesa no governo da mesma Irman-
dade". Esse d o c u m e n t o indica que a mesa diretora, composta por dois juízes,
era dividida em "igual n ú m e r o de Geges e Benguelas ou Angolas". Além dos
"pretos Benguelas e Geges", a irmandade acolhia membros "de toda qualidade",
entre eles brancos religiosos e pardos. Mas, nesse ano, os africanos se uniram
para demover os brancos dos cargos de tesoureiro e escrivão. 49
Esse incidente sugere u m caso de solidariedade ou aliança entre membros
das nações jeje e angola, com a intenção de combater o poder dos brancos den-
tro da instituição. Nas irmandades dos pretos, tanto na Bahia como em Per-
n a m b u c o , era muito frequente entregar-se aos brancos o cargo de tesoureiro e
escrivão. Mas, à medida q u e os negros se foram alfabetizando, as tentativas
de s u b s t i t u i r os brancos p o r negros nesses cargos f o r a m a u m e n t a n d o . Na
Bahia, e n c o n t r a m o s esse tipo de conflito na I r m a n d a d e do Senhor Bom Je-
sus das Necessidades e Redenção (ver adiante), e t a m b é m na I r m a n d a d e de
Nossa Senhora do Rosário dos H o m e n s Pretos, em Cachoeira, em 1794. 50 O
caso da irmandade d o Rosário de João Pereira é um claro exemplo de como o

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

antagonismo de "classe" e "raça" entre africanos e brancos parece antepor-se


às diferenças étnicas, e de como a experiência de "classe" (ou de posição social
subalterna) podia reforçar a solidariedade interétnica.
Encontramos um outro caso, desta vez de aparente conflito entre jejes e an-
golas, na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos às Portas do Car-
mo (Baixa dos Sapateiros). A confraria já existia em 1685 e estava localizada
na Sé. Em 1700 foi erigida a capela às Portas do Carmo, para onde a irmandade
se trasladou e permanece até nossos dias. A bibliografia especializada afirma
que, no início, essa irmandade era composta exclusivamente de negros angolas,
mas que, a partir da segunda metade do século XVIII, foi obrigada a admitir
irmãos jejes e crioulos, assim como mulatos e mesmo brancos. 5 1
No livro de entrada de irmãos dessa irmandade, entre 1719 e 1837, Sara
Oliveira Faria conta um total de 3.175 registros, dos quais só se identificam
etnicamente 115 crioulos (3,6%), 103 jejes (3,2%), 48 angolas (1,5%), 37 mi-
nas (1,1%), 17 benguelas (0,5%), 4 nagôs (0,1%) e 3 moçambiques (0,09%),
sendo que em 2.848 registros (89,7%) não consta n e n h u m a declaração de ori-
gem. 52 A alta porcentagem de registros sem essa informação faz questionável
qualquer estimativa da composição étnica da irmandade, além de sugerir que
tal critério não era f u n d a m e n t a l na aceitação de irmãos. Entretanto, os dados
mostram claramente a heterogeneidade étnica da congregação, ao tempo que
indicam uma relativa maioria de jejes entre os africanos.
Talvez até por essa ameaça numérica, os jejes foram impedidos estatua-
riamente de compor a mesa diretora da entidade, sendo a discriminação étnica
nas esferas do poder expressão de tensões subjacentes. N o compromisso de
1820, os cargos da mesa diretora eram restritos a angolas e crioulos, especi-
ficando-se que "no ano que for o Escrivão da série dos Angolas, seja o Tesou-
reiro da série dos Crioulos". 5 3 C o m o aponta João Reis, a convivência entre an-
golas e crioulos na irmandade do Rosário "talvez revele, em nível de micropo-
lítica institucional, alianças sociais mais consolidadas, até porque mais antigas,
entre esses dois grupos". 5 4
C o m presença significativa desde o século XVII, os angolas foram a nação
mais antiga na escravatura baiana, o que possibilitou o enraizamento de vín-
culos estreitos com sua descendência crioula. Por sua vez, esses crioulos aco-
lheram as novas levas de escravos angolas trazidos no século XVIII, m a n t e n d o
e reforçando os laços de solidariedade entre os dois grupos. Esse relaciona-
mento não i m p e d i u a relativa cooperação entre minas e angolas, p r o m o v i d a
pelo d u p l o a n t a g o n i s m o entre brancos e crioulos, que se deu, como vimos,
na segunda metade do século XVIII. Mas nas primeiras décadas do século XIX,
em parte devido à crescente chegada de africanos da Costa da Mina, os angolas

87
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

procuraram reforçar suas antigas alianças com os crioulos, talvez para enfren-
tar a nova configuração étnica da sociedade baiana.
E n c o n t r a m o s um outro interessante caso de dinâmica étnica na já men-
cionada I r m a n d a d e d o Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção dos
H o m e n s Pretos, erigida na Capela de São Frei Pedro Gonsalves, vulgarmente
d e n o m i n a d a do C o r p o Santo, filial da matriz da Conceição da Praia, na Ci-
dade Baixa. Essa capela foi provavelmente f u n d a d a no século XVI e era fre-
q u e n t a d a , principalmente, p o r marinheiros. São Pedro Gonsalves, apelidado
t a m b é m Sant'Elmo, era advogado dos homens de mar. 55 Frézier, que esteve na
Bahia em abril de 1714, descrevendo as igrejas da Cidade Baixa, indica que a
do C o r p o Santo era "para as pessoas pobres". 5 6
N o compromisso dessa irmandade redigido em 1913 consta que, em 3 de
maio de 1752, alguns africanos de nação jeje instituíram a devoção do Senhor
Bom Jesus das Necessidades e Redenção, na igreja do C o r p o Santo, naquele
m o m e n t o matriz provisória da Paróquia da Conceição da Praia. Em 4 de ou-
t u b r o de 1775 foi aprovado pelo D o u t o r Provedor de Resíduos e Capelas o
primeiro compromisso da irmandade, sendo confirmado por despacho do Tri-
bunal da Mesa da Consciência e O r d e m em 22 de agosto de 1778. 57
A partir desses dados, a maioria dos pesquisadores referem-se à Irmandade
do Senhor Bom Jesus das Necessidades e Redenção como sendo "jeje", "exclu-
sivamente jeje", ou de "negros daomeanos gege". 58 Ora, a f u n d a ç ã o da devo-
ção em 1752, e a identificação dos seus f u n d a d o r e s c o m o jejes, consta ape-
nas n o compromisso d e 1913, sem existir qualquer outra prova d o c u m e n t a l
c o n t e m p o r â n e a dos eventos. Aliás, como já vimos, no compromisso de 1775,
no capítulo 12, onde se proíbe a entrada de crioulos, explicita-se que para
irmãos e irmãs eram aceitos pretos "da Costa da M i n a ou Loanda". Se a de-
voção foi f u n d a d a por jejes, poucos anos depois ela já aceitava minas e an-
golas. Além do mais, entre os m e m b r o s da mesa de 1775, consta como procu-
rador um português de n o m e José da Silva, o que indicaria t a m b é m a pre-
sença de brancos. 5 9
Silva C a m p o s afirma ter consultado o "antigo livro de resoluções da asso-
ciação" — d o c u m e n t o que infelizmente não achei — e apresenta informações
em que fica patente a heterogeneidade étnico-racial dos membros dessa irman-
dade e a rivalidade e conflitos dos jejes com brancos, mestiços e crioulos. Se-
g u n d o esse autor, nessa irmandade, inicialmente, só p o d i a m participar ne-
gros de nação jeje. "Depois foram-se alistando devotos de cor branca, mes-
tiços, crioulos e negros de o u t r a s castas, e m b o r a os gêges c o n s t i t u í s s e m
maioria." C o m o era frequente, os homens brancos, aos poucos, conseguiram
tomar posse dos primeiros cargos da mesa:

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

[...] d o q u e se o r i g i n a r a m d e s g o s t o s m u i t o sérios aos n e g r o s . E s t e s , p o r fim, os


despediram da a s s o c i a ç ã o . Tal m e d i d a e s t e n d e u - s e p o s t e r i o r m e n t e aos m e s t i ç o s . N ã o
se seguiu d a í a b o a h a r m o n i a q u e os p r e t o s a f r i c a n o s a l m e j a v a m r e i n a s s e n o seio d a
Irmandade, pois ficando n e l a os c r i o u l o s , e n t r a r a m estes a a n a r q u i z á - l a , s e n d o p o r
fim e l i m i n a d o s t a m b é m [...]. D e s d e e n t ã o só se p u d e r a m a l i s t a r n a c o n f r a t e r n i d a d e
negros geges. P r o c e d e u - s e a s s i m , r i g o r o s a m e n t e , até q u e a s o c i e d a d e ficou r e d u z i d a
a u m ú n i c o i n d i v í d u o , o q u a l f a l e c e u d e m a i s d e c e m a n o s , e m 1 9 2 9 . M a s , a n t e s dis-
so, em 1 9 2 7 , m u i t o s d e v o t o s d o S e n h o r d a R e d e n ç ã o , b r a n c o s e p a r d o s , t o m a r a m a
cargo a t a r e f a d e r e s t a u r a r a I r m a n d a d e , h o j e e m p l e n o f l o r e s c i m e n t o . 6 0

Embora a cronologia e a ordem dessa sequência de eventos sejam duvi-


dosas, já que, por exemplo, em 1775 a irmandade parece ter incluído brancos
e não-crioulos, o caso parece demonstrar como a identidade jeje foi mantida e
reforçada a partir das relações de contraste estabelecidas com brancos, mesti-
ços, crioulos e outros grupos africanos no seio de instituições sociais como
as irmandades.
Ainda segundo Silva Campos, a procissão dessa irmandade, que era qua-
resmal, celebrada no mês de maio, "foi m u i t o solene em dias idos, concorrendo
a ela a africanada da capital, com muitas mostras de devoção. O s negros ricos
metiam-se até na casaca, na cartola e na luva de pelica. Ao mesmo t e m p o que
as negras ostentavam um luxo de sedas e de ouro, que hoje causaria pasmo". 6 1
Entre esses "negros ricos" seguramente estava Joaquim d'Almeida, de nação jeje
mahi, que uma vez liberto se dedicou ao tráfico de escravos. Foi uma reprodu-
ção da imagem do Senhor da Redenção guardada no Corpo Santo que ele levou
quando voltou a se fixar na Africa, na cidade de Agoué, a partir de 1835. Nes-
sa localidade, ergueu uma capela católica com o mesmo nome da Irmandade. 6 2
Do mesmo m o d o que a Irmandade do Senhor das Necessidades e Redenção
do Corpo Santo tem sido identificada, de modo um tanto precipitado, como
sendo exclusivamente jeje, vários autores têm identificado a I r m a n d a d e do
Senhor Bom Jesus dos Martírios da Barroquinha como de pretos (i.e., africanos)
ou homens nagôs. 63 Trata-se mais uma vez de uma associação infundada, já que,
como vimos, pelo menos no século XVIII, essa congregação foi principalmente
de crioulos. A tradição oral ainda sugere que africanas ketu dessa irmandade,
ou da devoção de Nossa Senhora da Boa M o r t e a ela afiliada, f u n d a r a m , nas
proximidades da Barroquinha, o primeiro c a n d o m b l é da Bahia, no início do
Oitocentos. Porém há motivos para questionar essa narrativa, pelo menos em
relação ao suposto vínculo das f u n d a d o r a s do c a n d o m b l é com a i r m a n d a d e
dos Martírios, já que a discriminação contra os africanos nessa agremiação
parece que p e r d u r o u d u r a n t e toda a primeira metade do século XIX. Entre
1800 e 1850, n u m total de 145 testamentos de libertos africanos que se de-

89
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

ciaram membros de alguma confraria católica, apenas duas mulheres minas


pertenciam à irmandade dos Martírios da Barroquinha. 6 4 Essa evidência docu-
mental indica que qualquer presença expressiva de africanas (nagôs ou ou-
tras) nessa irmandade só se pode ter dado na segunda metade do século XIX.
Silva Campos descreve as irmãs dos Martírios devotas da Boa Morte como
"negras do partido-alto, endinheiradas, pimponas, as mais novas cheias de
dengues e momices", e menciona que na procissão encabeçavam o cortejo os
irmãos do Senhor dos Martírios, "seguindo-se em dupla fda as citadas crioulas,
e mais antigamente africanas". Do que foi dito, deduz-se que a participação
de africanas só poderia ter acontecido de 1850 em diante. Ora, a tradição
oral também sustenta que foi por volta de 1850 quando o candomblé da Bar-
roquinha foi deslocado a um outro lugar da cidade. São contradições que
precisam de futuras pesquisas para serem resolvidas. 65
Sumariando, as irmandades católicas, especialmente na segunda metade
do século XVIII, foram instituições sociais que ofereceram à população ne-
gro-mestiça espaços de sociabilidade de primeira ordem para estabelecer pro-
cessos coletivos de identificação étnico-racial. Contrariamente à suposta divi-
são étnica das irmandades de homens pretos defendida pela historiografia,
chamei a atenção para a heterogeneidade étnica dessas associações. Nelas havia
variáveis dinâmicas de cooperação, mas também de conflito, entre os diferen-
tes grupos étnico-raciais: conflitos entre brancos e negros, prevalecendo aí
distinções de "classe" e "raciais"; conflitos entre africanos e crioulos, e con-
flitos entre os diversos grupos africanos, prevalecendo aí distinções "étnicas"
ou culturais. Além disso, como vimos anteriormente no caso do Rio de Ja-
neiro, podiam, inclusive, surgir dinâmicas de diferenciação, expressadas nas
festas e folias, entre os distintos grupos pertencentes a uma mesma nação. Esse
complexo e dinâmico sistema dialógico de contrastes externos e internos é o
que me parece estar na base da configuração da nação jeje.

OS JEJES E OS N A G Ô S : D I N Â M I C A S S I M U L T Â N E A S DE CONFLITO E C O O P E R A Ç Ã O

Se no século XVIII as relações de conflito e cooperação interétnica dos jejes


se deram maiormente com os angolas e outros grupos da África Central, já
na primeira metade do século XIX, com a chegada massiva dos nagôs, a dia-
lética de contraste dos jejes com esse grupo parece mais notória. C o m o vimos
no capítulo anterior, a dialética j e j e - n a g ô deriva não só do encontro desses
grupos no Brasil, mas remonta a uma relação de contato cultural já antiga e
intensa na própria África.

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

A d o c u m e n t a ç ã o do levante dos males, ocorrida em 1835, é bastante rica


em i n f o r m a ç ã o a esse respeito e permite a p o n t a r algumas características des-
sa relação interétnica. Nessa insurreição de africanos só f o r a m detidos ou
processados u m total de 11 africanos jejes (3,8% do total) — 4 escravos
(2,3%), 6 libertos (5,4%) e 1 de status legal desconhecido — , contra 212 afri-
canos nagôs (72,6% do total) — 149 escravos (83%), 60 libertos (53,6%) e 3
de status legal desconhecido. T ã o m í n i m a participação dos jejes nessa revolta
tem sido interpretada como indício da animosidade interétnica que existia
entre jejes e nagôs e que já vinha dos conflitos históricos entre os povos dos
reinos d o D a o m é e Oyo. 6 6
Essa animosidade é explícita em certos depoimentos nas devassas do levan-
te. João D u a r t e da Silva, "liberto, Nação Gege", cozinheiro de embarcações,
foi preso em sua casa, "em que mora t a m b é m D o m Jozé Nação Gege, embai-
xador de Agoumés" e declarou que não participara na revolta dos nagôs "por
não entender a língua [...] e porque até é gente inimiga dos Geges e que ele se
saísse à rua nessa ocasião [a noite da revolta] decerto seria morto". 6 7 O liberto
jeje José da Costa também argumentou em sua defesa ser "de uma nação inteira-
mente inimiga da dos pretos que puseram a cidade desassossegada". Para pro-
var sua rivalidade aos nagôs, chegou a declarar que não tinha amizades entre
eles, "nem por fragilidade h u m a n a [relações sexuais] com pretas de tal nação". 68
O u t r o s jejes, sem expressar tal animosidade, declararam simplesmente não
entender a língua dos nagôs. Esse é o caso de Manoel Gomes Ferrão, "liberto
de Nação Gege, que vive de carregar cadeira no canto de São Domingos, mo-
rador ao beco do Ferrão em companhia de Narciza Barboza, e Thereza de Jesus,
pretas da mesma Nação". 6 9 E também da negra Ellena, liberta jeje, "escrava que
foi do preto Ignacio, e hoje liberta, moradora em casa de seu p a t r o n o Ignacio
Jozé de Santa Anna, à rua da Laranjeira, e vive de vender peixe", que declarou
que o alufá Licutan, um dos dirigentes da insurreição, e o escravo Joaquim alu-
gavam u m quarto no sobrado vizinho da sua casa, onde se reuniam negros "que
vinham aí comer e fazer festa, que ela não entende por não ser Nagô". 7 0
Simultaneamente a essa tradicional animosidade ou diferenciação entre jejes
e nagôs, há casos de cooperação, mostrando que alguns jejes podiam manter
uma prolongada convivência com os nagôs, aprendendo e se comunicando em
sua língua. O escravo Joaquim, "natural da costa da Africa Gege", por exemplo,
foi acusado de ter "um quarto na residência da casa dos insurgentes", sendo
todos eles nagôs: Belchior Nagô de Cobai, Manoel Calafate Nagô, e Aprígio
Ojô. 7 1 A negra Angélica Gege convivia na mesma casa com Joze Nação Nagô,
"ambos coartados a ganhar para pagar as suas Liberdades". Nas acusações está
especificado que Angélica "suposto fale a língua de Nagô, é de nação Gege". 2

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

O jovem Alexandre, de nação jeje, p o r é m nagô-falante, sonhava matar os


brancos e se libertar da escravidão para viver com sua namorada, a preta nagô
Inês, aliás, sua "malunga", e é um outro interessante c o n t r a p o n t o à tradicional
rivalidade entre jejes e nagôs. 73 A nova geração jeje, nagô-aculturada em Sal-
vador, parecia superar os conflitos interétnicos dos mais velhos.
A familiaridade de certos jejes com a língua nagô seria talvez o resultado
do convívio com nagôs em Salvador, mas também é notório que o nagô foi uma
língua c o m u m e n t e falada no D a o m é , em especial na área de Porto Novo. Os
jejes poderiam ter aprendido a língua nagô, assim como assimilado outros as-
pectos culturais dos nagôs, antes da sua chegada ao Brasil. José, 40 anos, jeje
semiliberto, já que em 1835 ainda pagava prestações da sua carta de alforria,
trabalhava como açougueiro, mas a sua reputação, segundo uma testemunha,
era de "curador de feitiço". Embora jeje, José declarou que foi "criado na terra
de Nagô", onde provavelmente aprendera a lidar com o m u n d o dos orixás e
com as suas folhas. 7 4
Encontram-se ainda casos em que os jejes parecem assumir uma identidade
nagô, como, por exemplo, o liberto Luís. E n q u a n t o na sua carta de alforria de
1828 o seu ex-senhor o identifica como "preto de Nação Gege", nos interroga-
tórios ele se diz nagô e a Justiça o classifica no sumário como "Luis de Nação
Hauçá preto forro aliás Nagô". 7 5 Também na acusação do já mencionado es-
cravo Joaquim ele é declarado "natural da costa da Africa Gege", sendo que no
traslado do termo de prisão Joaquim "respondeu chamar-se Joaquim Nagô". 7 6
Poderia tratar-se simplesmente de confusões ou erros do escrivão de turno,
reflexo d o pouco c o n h e c i m e n t o que a administração em geral tinha da iden-
tidade étnica da população africana. Todavia, se nas devassas foi encontrada
u m a pluralidade de casos em que u m mesmo indivíduo é declarado, ou se de-
clara, com denominações étnicas diferentes, esses dois casos parecem sugerir
u m a tendência de certos jejes a se identificar como nagôs. N ã o é improvável
que Luis e Joaquim fossem efetivamente nagôs, embora embarcados "na cos-
ta da África Gege", isto é, nos portos daomeanos, e, portanto, declarados pelos
seus senhores como jejes. Mas também é possível que eles fossem jejes e que
tivessem optado por se declarar nagôs, como resultado de processos de convívio
e identificação étnica com o grupo africano d o m i n a n t e e numericamente ma-
joritário na época.
Na verdade, a progressiva abrangência semântica das d e n o m i n a ç õ e s me-
taétnicas trazia implícita esse tipo de dinâmica inclusiva. Ainda Renato da
Silveira, que sustenta ter sido a revolta dos malês um levante essencialmente
de caráter religioso inspirado nas jihads islâmicas da África, sugere que a iden-
tificação desses dois jejes c o m o nagôs equivalia dizer que eles eram malês ou

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

do povo de Alá. 7 7 V i s l u m b r a m o s aqui c o m o identificações étnicas p o d e m


s u perpor-se e c o n f u n d i r - s e com identificações ou adscrições religiosas, tema

que será abordado nos próximos capítulos.


Para concluir a análise das relações de conflito e cooperação que configu-
raram a nação jeje, caberia fazer umas reflexões sobre um o u t r o aspecto de ín-
dole mais geral, respeitante às dinâmicas de assimilação e resistência que se de-
ram entre os africanos no seu contato com a sociedade escravocrata brasileira.
Nas últimas décadas, os estudos históricos sobre a população negra têm privi-
legiado o binómio assimilação e resistência, ou negociação e conflito, como mo-
delo conceituai para entender as dinâmicas sociais e culturais resultantes do con-
tato entre os africanos e afro-descendentes com a cultura européia dos colonos.
Essa tendência, assumida sobretudo pela "nova historiografia" a partir dos anos
1980, mas que tem antecedentes nos anos 1960 (i.e., Bastide), quer entender
o negro como "sujeito histórico" inserido n u m complexo sistema de relações
sociais, políticas e culturais e não mais como classe social homogénea, defini-
da só em termos do seu lugar no m o d o de produção no sistema económico
escravista. 78
No e n t a n t o , essa polaridade conceituai, assimilação e resistência, apesar
de apontar para essa complexidade de múltiplas relações, é n o r m a l m e n t e con-
cebida como m u t u a m e n t e excludente, isto é, os negros, ou as associações por
eles constituídas, assumiam posições assimilacionistas ou de resistência. O r a ,
muitos processos a p a r e n t e m e n t e de assimilação, como as irmandades católi-
cas, por exemplo, p o d e m t a m b é m ser entendidos como formas de resistência
camuflada, Bastide já apontava que toda acomodação ou sincretismo é sempre
mais ou menos "contra-aculturativo". 7 9 Aliás, no nível individual, n o â m b i t o
da psicologia social, cabe pensar que u m mesmo indivíduo podia, como p o d e
hoje, adotar sucessivamente em diversas épocas da sua vida, ou até simultanea-
mente, posturas assimilacionistas ou de resistência. Verger já apontava essa
"tendência à aceitação simultânea das culturas brasileiras e africanas" na Bahia
do século XIX. 80
Assimilação e resistência são tendências complementares e não necessaria-
mente antagónicas. Podem dar-se simultaneamente e, em maior ou menor me-
dida, reproduzem-se em qualquer grupo ou indivíduo deslocado do seu habitus
ou cultura de origem. D e p e n d e n d o da circunstância e sempre que o sistema
de relações sociais ofereça espaço para isso, o indivíduo negocia e escolhe a es-
tratégia mais conveniente a partir do seu repertório de referências culturais.
Os jejes dos séculos XVIII e XIX não foram exceção. D e n t r o desse grupo exis-
tia a tendência ao "abrasileiramento", isto é, indivíduos que se ajustavam e trata-
vam de adotar os novos costumes dominados pelos valores de uma elite branca,

93
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

e a tendência contrária de "africanização" mantida por aqueles indivíduos que


visavam m a n t e r e reproduzir, na medida do possível, as práticas e costumes da
sua terra de origem. Ambas as atitudes p o d i a m f u n c i o n a r c o m o estratégias
contra a exclusão social na qual o sistema escravocrata os colocava.
A t e n d ê n c i a ao "abrasileiramento" é explicita naquelas pessoas que adota-
ram o catolicismo c o m o religião, ou c o m o u m a das religiões. U m b o m exem-
plo de converso seria o já m e n c i o n a d o J o a q u i m de Almeida, liberto de ori-
gem mahi, m e m b r o d a i r m a n d a d e do C o r p o Santo, que esteve envolvido no
tráfico de escravos e chegou a construir uma igreja católica em Agoué, na Cos-
ta da M i n a , p o r volta de 1835. 81 O u t r o exemplo de a t i t u d e assimilacionista,
n o contexto d o levante dos malês, seria o caso do liberto jeje José da Costa
que, além de se declarar inimigo dos nagôs, tenta ainda d e m o n s t r a r sua ino-
cência pelo fato de na hora do levante não vestir o abada (vestido branco dos
malês) ou qualquer r o u p a africana; pelo contrário, estava "vestido com uma
sobrecasaca de chita e os mais trastes de uso da Nação Brasileira". Oficial
artesão do Arsenal da M a r i n h a , ele se definia c o m o "assíduo em seu trabalho
de calafate [...] conhecido amigo da Terra que o felicitou, c o m o obediente a
todos os seus superiores em cores e Autoridades e respeitador das Leis". Além
disso, era "observador da Religião Católica R o m a n a [...] e a f e r r a d a m e n t e
propenso aos costumes e aos Nacionais deste Império, com os quais sempre
se entreteve em relações sociais". A única coisa que tinha "contra si [era] a
infelicidade de nascer n o País da África", mas sua verdadeira afeição era pelo
Brasil, a "Pátria em q u e teve a educação" e do lado dela teria lutado se fosse
c h a m a d o em 1835. 82 Talvez esse p a t r i o t i s m o fosse exagerado, a t u a n d o como
estratégia para se defender das acusações. Mas é essa dinâmica e maleabilidade
dos processos de identificação segundo os interlocutores e as circunstâncias
o que precisamente estou p r o c u r a n d o apontar.
E n c o n t r a m o s uma pluralidade de exemplos da atitude de resistência em
todas aquelas situações em que os jejes mantiveram e participaram de ativida-
des e práticas religiosas de origem africana, como o já mencionado semiliberto
José, de nação jeje, que no levante dos malês foi acusado de curador, ou os
jejes que foram detidos no c a l u n d u do Pasto de Cachoeira, em 1785. A lista
seria extensa e nos próximos capítulos abordo em detalhe alguns desses casos.
Verger acrescenta que outras formas de "recusa de integração" estão expressas
nos quilombos, nas revoltas organizadas pelos africanos, na conversão ao is-
lamismo e no retorno à África, u m a vez conseguida a alforria. 8 3
A assimilação, entendida como aceitação e reprodução de elementos de
u m a cultura alheia, reside na vontade de identificação com os valores d o m i -
nantes que permitem melhor adaptação e progresso, seja do g r u p o ou do in-

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F O R M A Ç Ã O OE U M A I D E N T I D A D E ÉTNICA JEJE NA BAHIA

divíduo. Em outras palavras, os processos de adaptação cultural se justificam


na medida em que oferecem ao indivíduo mecanismos de mobilidade e ascen-
são social. O mercado de trabalho parece ser o espaço social privilegiado para
os processos de assimilação.
Por outro lado, os processos de resistência cultural das minorias étnicas
ou classes subalternas, baseados na manutenção de valores e práticas culturais
diferenciados daqueles da cultura dominante, oferecem mecanismos de luta
àqueles indivíduos discriminados das esferas do poder. A resistência cultural
responde, em primeira instância, à dinâmica mimética inerente a todo pro-
cesso de aprendizado que acompanha a transferência cultural de uma geração
para outra. O indivíduo tende, de uma forma natural, a repetir ou reproduzir
aqueles valores nos quais foi criado. A resistência cultural se baseia, ou enfa-
tiza, o espírito gregário e conservador do ser h u m a n o . Mas, no contexto da
luta de classes ou dos conflitos interétnicos, em que aos grupos marginalizados
é negada a identificação com os valores do grupo hegemónico, a resistência
cultural aparece como dinâmica de diferenciação, como mecanismo de auto-
afirmação e defesa perante a ameaça da indiferenciação ou da invisibilidade,
isto é, da alienação. A preservação ou reatualização periódica de elementos
diferenciadores, na qual se baseia a construção da identidade étnica, constitui
de algum modo uma arma política para os excluídos. No contexto dos africa-
nos e afro-descendentes no Brasil, o campo da religião, das crenças e das prá-
ticas rituais associadas ao m u n d o invisível parece ter sido o domínio por ex-
celência da resistência cultural.

NOTAS

1
M a t t o s o , Bahia.... pp. 82, 97, 1 19 (Tabelas 9 e 17).
2
Eltis et ai., "A p a r t i c i p a ç ã o . . . " , p. 39. O s mesmos autores calculam ter sido e m b a r c a d o
pelos p o r t u g u e s e s u m total de 1.454.200 escravos nos p o r t o s de L u a n d a e B e n g u e l a ,
e n t r e 1701 e 1810, do q u a l a p e n a s u m a p a r t e (não e s t i m a d a ) teria c h e g a d o à B a h i a
(ibidem).
3
Eltis, T h e v o l u m e . . . , Tabela 3.
4
Mattoso, Bahia, pp. 117-19; Verger, Fluxo..., pp. 662-63. Eltis et al., The Transatlantic
slave trade....
3
As fontes históricas mais i m p o r t a n t e s para alcançar esse objetivo são os inventários post
mortem, cartas de alforria, t e s t a m e n t o s , escrituras de c o m p r a e v e n d a de escravos e
r e c e n s e a m e n t o s . O t t e x a m i n o u fontes diversas em relação à p o p u l a ç ã o escrava de Sal-
vador e ao i n t e r i o r do estado, para os p e r í o d o s de 1702-1799 e 1778-1797, respectiva-
m e n t e ( " O negro...", pp. 141-53). Verger c o n t a b i l i z o u os d a d o s do "Livro de tutelas e
inventários da Vila de São Francisco d o C o n d e " (17.39-1841), p u b l i c a d o s nos Anais do
Arquivo Piíblico da Bahia, n u 37 (Fluxo..., pp. 669-75); Schwartz a p r e s e n t o u d a d o s so-

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

bre as c a t e g o r i a s é t n i c a s d a p o p u l a ç ã o escrava de n o v e e n g e n h o s b a i a n o s , em 1739


de S e r g i p e de E l - R e y e m 1785 (Segredos..., p p . 287, 291). T a m b é m a p r e s e n t o u as ori-
g e n s é t n i c a s d e e s c r a v o s e m a n c i p a d o s e m S a l v a d o r e n t r e 1684 e 1745 ("A manumii
s ã o . . . " , p. 87). O m e s m o foi f e i t o p o r M a t t o s o , p a r a o p e r í o d o 1779-1850 ("A propósi
t o . . . " , p. 39).
1
Essa p e s q u i s a f o i p a r t e d o p r o j e t o i n t i t u l a d o O P r o c e s s o d e C r i o u l i z a ç ã o : Anteceden-
tes H i s t ó r i c o s d a I d e n t i d a d e N e g r a n a B a h i a , d e s e n v o l v i d o e n t r e os anos 2003 e 2004
c o m u m a bolsa d e D e s e n v o l v i m e n t o C i e n t í f i c o R e g i o n a l d o C N P q .
O p r o j e t o de p e s q u i s a d i r i g i d o p e l o p r o f e s s o r J o ã o J o s é Reis c o n t o u c o m o apoio do
N i g e r i a n H i n t e r l a n d P r o j e c t , d a U n i v e r s i d a d e d e York ( C a n a d á ) , e envolveu o levanta-
m e n t o de i n v e n t á r i o s d e p o s i t a d o s n o ApEBa. Fico g r a t o ao p r o f e s s o r Reis por ter cedido
c ó p i a desses d a d o s ( d o r a v a n t e P r o j e t o R e i s - N i g e r i a n H i n t e r l a n d ) .
S c h w a r t z , Segredos..., p p . 283-85; M a n n i n g , Slavery..., p. 28.
Para u m a a n á l i s e e m d e t a l h e d o p r o c e s s o d e c r i o u l i z a ç ã o d e m o g r á f i c a do Recôncavo,
ver Pares, " O p r o c e s s o d e c r i o u l i z a ç ã o . . . " .
0
S c h w a r t z , Segredos..., p. 289; O r t i z , Contrapunto...., apud Baríckman, A Bahian...,yA.
C o n t u d o , S c h w a r t z p a r e c e ter s u b e s t i m a d o a p r e s e n ç a d o s c r i o u l o s nos egenhos de açú-
car e f a z e n d a s de c a n a .
1
B a r i c k m a n , A Bahian..., p p . 157-60. B a r i c k m a n e x a m i n a o p e r í o d o 1780-1860, mas suai
c o n s i d e r a ç õ e s s o b r e o c o n t r a s t e e n t r e a p o p u l a ç ã o escrava da z o n a f u m a g e i r a e do açú-
car são aplicáveis ao s é c u l o XVIII. Ver W i m m e r , E t h n i c i t y . . . , p. 17.
• N o s i n v e n t á r i o s d o R e c ô n c a v o (alguns deles n ã o c o n t a b i l i z a d o s nas tabelas 1 e 2), encon-
trei e t n ô n i m o s d a A f r i c a c e n t r a l c o m o ( e n t r e p a r ê n t e s e s o a n o da p r i m e i r a menção):
l o a n g o (1698), c o n g o (1699), i u a n d a (1699), r e b o l l o (1699), p o m b o (1701), monjollo
( 1 7 0 4 ) , q u i s a m b a ( 1 7 0 4 ) , g a n g u e l l a ( 1 7 0 9 ) , m a s s a n g a n o (1709), d o n g o ou comon-
d o n g o ( 1 7 1 3 ) , m o ç a m b i q u e ( 1 7 1 5 ) , c a n g i c o ( a n g i c o ) ( 1 7 1 8 ) , c a s a n g e (1720). bo-
t i c o n g o (1724), m u x i c o n g o (1760), x a m b a (1778), p e m b a (1785), t e m b u (1785) e cabinda
(1797). E n t r e os da A f r i c a o c i d e n t a l : a r d a o u ladá (1699), C a b o Verde (1699), SáoTomé
(1713), c a c h e u (1717), b a m b a (1720), c a l a b a r (1727), c o u r a n a (1733), codavi ou coda
(1746), f o n (1746), lagoa (1760), m a l e t (1763), s a b a r u (savalu) (1778), b e n i m (1786),
m a q u i n ( m a h i ) (1785), ossá o u ussá ( h a u ç á ) (1785), o y o (1797), t a p a (1797) e barba
( b a r i b a ) (1797). A i n d a e n c o n t r e i c a t e g o r i a s c o m o g a n g a (1766), g r u m ã (1788) e danum
(1785) q u e n ã o c o n s e g u i i d e n t i f i c a r .
O t t , " O n e g r o . . . " , p. 143.

E m b o r a islamizados, os h a u ç á s e r a m vistos pelos f u l a n i s c o m o pagãos ou infiéis, poisu* 1


p r á t i c a s religiosas, q u e p o d i a m assimilar ritos e crenças q u e n ã o se a j u s t a v a m à o r t o d o í
i s l â m i c a . C o n h e c i d o s na B a h i a t a m b é m c o m o muçulmis, os h a u ç á s , juntamente ^
os n a g ô s , f o r a m r e s p o n s á v e i s p o r v á r i a s r e v o l t a s escravas e n t r e 1807 e 1835- Ver
Rebelião..., pp. 68-121.
W i m m e r , E t n i c i t y . . . , p p . 7, 21; S c h w a r t z , Segredos..., p. 289.
S c h w a r t z , Segredos..., p. 319. . jg
Para u m a análise da e x o g a m i a e e n d o g a m i a é t n i c o - r a c i a l na f a m í l i a negro-mesUÇ
R e c ô n c a v o , ver P á r e s , " O p r o c e s s o d e c r i o u l i z a ç ã o . . . " . j,
É possível q u e as m ã e s " s o l t e i r a s " — m u l h e r e s a r e s p e i t o das q u a i s não consta ^
q u e r r e f e r ê n c i a a u m c ô n j u g e — t i v e s s e m relações estáveis, e m b o r a n ã o sanei"
por um casamento formal.
Páres, " O p r o c e s s o d e c r i o u l i z a ç ã o . . . " , p. 38.

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FORMAÇÃO OE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA

» Ç«nindo os dados dos inventários apresentados por Andrade, A mão-de-obra..., pp. 189-90,
foi a partir de 1825 que os nagôs passaram a constituir o grupo africano demograficamente
majoritário entre a população escrava. E m 1824-1825, por exemplo, em dois engenhos
de açúcar no Iguapé, os nagôs já eram maioria entre os escravos africanos. N o alista-
mento do engenho de Santa C a t a r i n a , consta que 20 escravos africanos, na maioria
nagôs, foram comprados em 1824. O u seja, era naquele m o m e n t o que os engenhos mais
ricos estavam i m p o r t a n d o os nagôs: "Alistamento das pessoas que h a b i t a m desde o
Engenho da Cruz até o E n g e n h o Novo", caderno 7, d o c u m e n t o s avulsos, ARC. Reis
comprova essa transição no período 1820-1835: Rebelião..., pp. 308-9.
21
Verger, Fluxo..., pp. 14-15, 432. Para a jihad fulani e a desintegração do império de Oyo,
ver Reis, Rebelião..., pp. 158-74.
22
Ott, "O negro...", pp. 141-53; M. I. C. de Oliveira, Retrouver.... C o n s i d e r a n d o o total
da população escrava para o período 1830-1850, os nagôs c o n s t i t u í a m 36% (Andrade,
A mão-de-obra..., pp. 189-90).
23
"Devassa do levante de escravos ocorrido em Salvador em 1835", AAPBa, n 2 53, pp. 33,
35, 37.
" M. I. C. de Oliveira, O liberto..., pp. 53-54.
25
Patterson, Slavery....
24
Cabe notar que, na época colonial, os cortes de classe e os raciais que dividiam a po-
pulação eram quase coincidentes; existia, p o r é m , uma certa relatividade e possibili-
dade de ascensão, p r i n c i p a l m e n t e por parte dos pardos e mulatos.
17
Reis, A morte..., p. 55.
P»ra uma análise das homologias entre os vínculos de parentesco e os vínculos religio-
sos no candomblé, ver Lima, A família....
" Houseman et al., "Notes...", pp. 530-41.
Soares, Devotos.. , p 92
" So L
ares reconhece que a transcrição desse termo é apenas tentativa, pois a grafia do texto
original é confusa. M i n h a hipótese é que o t e r m o transcrito c o m o "ianno" seria lanno,
uma variante de lanu e c o n t r a ç ã o do e t n ô n i m o h u l a n u ( h a b i t a n t e -nu, h u l a ) . O
«nônimo lanu aparece em Minas Gerais em 1747 (Mott, "Acotundá...", p. 93). Alterna-
t
» n 1 I ? e n t e ' c o m o sugere Pessoa de Castro, lanu decorreria de alladanu (habitante de
32 W língua..., p. 131).
1624 Ap 3 ^' 3 " ' ^ 57-81. Fonte: Seção Judiciária, Cachoeira, Devassas, 1785, maço
> EBa. D o c u m e n t o e n c o n t r a d o e c o m e n t a d o por Patricia Aufederheide, Order...,
P* 164 A t *
ran
* s c r i ç ã o integral desse d o c u m e n t o , feita por Reis, encontra-se na parte
33
^ a X " ^ 0 - 0 0 ^ - - Revista Brasileira de História 8 (16), pp. 233-49.
O c o n d d ^ a ° e n t r C ^ e ' e S e ^ a g o m é s parece ainda se m a n t e r no início do século XIX.
O»». ° S ^ r c o s escreve: "[...] os de Agomés vierem a ser irmãos com os Nagôs, os
" ÍvenTãno05 ^ A W
- P 2I"
* "Inventári 6 Wan
°el Fernandes
Pereira, 1778-1798", 01/24/24/242, ARC, fls. 102, 109, 110.
de Caetana de
* Welw B ° Freitas, 1750", 03/1264/1733/19, APEBa.
57 p 2 5
^ Z Z T * - - - „
J
P- 525-R • ^ s P e c t o s - - - ' » p. 151; M a t t o s o , Ser escravo..., p. 148; Verger, Fluxo...,
mort
* *Com' ' « --, p. 55.
dos Martírio ° ^ * r m a n d a d e do Senhor Bom Jesus com o soberano título de Senhor
do M e r e C t a P e ' o s H o m e n s pretos de nação Gege, neste C o n v e n t o de Nossa
°nte C a r m o da Vila de Nossa Senhora do Rosário da Cachoeira, este

97
LUIS NICOLAU PAR ÉS

a n o d e 1765", L i s b o a , A H U , c ó d i c e 1.666. D o c u m e n t o t r a n s c r i t o em Mulvey The


b l a c k . . . , a p ê n d i c e C , p p . 264-72. As r e s p o n s a b i l i d a d e s da i r m a n d a d e incluíam- cele-
brar a festa em l o u v o r d o S e n h o r B o m Jesus n o dia 15 d e J a n e i r o (cap. IX), a procij-
são, c o m r e p r e s e n t a ç ã o d o s passos d o s m a r t í r i o s , n o D o m i n g o d e R a m o s (cap X)
c e l e b r a r s u f r á g i o s pelos d e f u n t o s em Q u a r e s m a (cap. XI) e u m a missa semanal àssex-
t a s - f e i r a s (cap. XV), a j u d a r os c a t i v o s a c o m p r a r a sua l i b e r d a d e (cap. XI), atender aos
i r m ã o s p o b r e s e e n f e r m o s (cap. XIII) e t o m a r c o n t a d o s e n t e r r o s , t e n d o quatro sepul-
turas p a r a tal n a igreja d o c o n v e n t o (cap. XIV, XV). A i r m a n d a d e p e r m a n e c e u durante
t o d o o século XIX n o C o n v e n t o d o C a r m o , mas cabe n o t a r q u e , e m 1877, celebravam-se
a festa e a p r o c i s s ã o no d i a 23 d e s e t e m b r o (O Progresso, 23 set., 1877, ARC).
" C o m p r o m i s s o d a I r m a n d a d e d o S e n h o r B o m Jesus dos M a r t í r i o s . C a p . 2: Da entrada
dos I r m ã o s " , a p u d Muvley, " T h e black...", p. 265. T a m b é m c i t a d o por Reis, A morte...,
p. 56, e p o r M . I. C . de O l i v e i r a , " Q u e m e r a m . . . " , p. 70.
Reis, " I d e n t i d a d e . . . " , p. 16.
C a m p o s , " P r o c i s s õ e s . . . " , p p . 328-32.
C a m p o s , " P r o c i s s õ e s . . . " , p. 16; R u s s e l l - W o o d , "Aspectos...", p. 152.
" B o m Jesus das N e c e s s i d a d e s e R e d e n ç ã o , Lisboa, na O f i c . de A n t o n i o Rodrigues Ga-
l h a r d o , I m p r e s s o r da Real Mesa C e n s ó r i a , A n o 1778", d o e . 38, cx. arq. 162-Asl, est. 1,
cx. 32, ACMS. A g r a d e ç o a L u c i l e n e R e g i n a l d o p o r ter c e d i d o u m a cópia da versão ma-
n u s c r i t a da P r o v i s ã o de c o n f i r m a ç ã o d o c o m p r o m i s s o , d a t a d a de 28 de agosto de 1778
(livro 5, fls. 51-60, C o m u n s 432, C h a n c e l a r i a da O r d e m d e C r i s t o , Arquivo da Torre
do T o m b o , L i s b o a ) .
Por e x e m p l o , e m 1804, foi erigida, na ilha de I t a p a r i c a , a I r m a n d a d e do Senhor Bom
Jesus das N e c e s s i d a d e s e R e d e n ç ã o , c u j o c o m p r o m i s s o está c o p i a d o quase literalmente
d a q u e l e da i r m a n d a d e h o m ó n i m a d o C o r p o S a n t o , a c e i t a n d o i r m ã o s da Costa da Mina
e L o a n d a e excluindo os crioulos. Agradeço a R e n a t o da Silveira p o r ter cedido uma cópia
desse c o m p r o m i s s o .
" C o m p r o m i s s o d a I r m a n d a d e do S e n h o r B o m Jesus dos M a r t í r i o s " , a p u d Muvley,
b l a c k . . . " , p. 265.
C a b e n o t a r que, n o c o r p o d o texto, a r e f e r ê n c i a à n a ç ã o jeje aparece apenas n u m a oca
sião.
" C o m p r o m i s s o da I r m a n d a d e d o G l o r i o s o S e n h o r São B e n e d i t o colocado na
de Nossa Senhora d o Rosário, Filial a M a t r i z de Nossa S e n h o r a da Penha de
I t a p a g i p e de Baixo. Feito no ano de 1800. C a p . 2: D o s juízes e suas obrigações , c
1.929, A H U . A g r a d e ç o a L u c i l e n e R e g i n a l d o a r e f e r ê n c i a a esse compromisso.
Essa d e v o ç ã o foi e r i g i d a na m a t r i z de São P e d r o em 1689, mas, em m a i o de
i r m ã o s da c o n g r e g a ç ã o r e c e b e m a u t o r i z a ç ã o para c o n s t r u i r sua p r ó p r i a c a p e ' 3 ^
gar da rua de J o ã o Pereira", p r ó x i m a à a t u a l Praça da P i e d a d e : "Ereção da Cape a
Nossa S e n h o r a d o R o s á r i o da Rua d o J o ã o Pereira, Freguesia de S. Pedro
tal, a n o 1746". d o c u m e n t o n 2 175, cx. a r q . 362, e s t . 1, cx. 91, ACMS; P ° n
C a p e l i n h a . . . " , pp. 316, 322. ^
" P a r e c e r d o d e s e m b a r g a d o r o u v i d o r geral d o c r i m e a d. R o d r i g o José N u n e s '
l^Sá", Cartas ao Governo, Í780-84, maço AlT.Ha.
Geogr*}
C a m p o s , " P r o c i s s õ e s . . . " , pp. 418-21; cf. Revista do Instituto Arqueológico
e Geogf
r
'
Pernambucano, n" 55, c. 1901, p. 285; " C a r t a da R a i n h a de P o r t u g a l D . M í «•a 1 1aoygj ^j » 31
' •
v e r n a d o r da c a p i t a n i a da B a h i a , s o b r e o p e d i d o da c o n s t r u ç ã o de u m a c a p e ' a n

98
FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE ÉTNICA JEJE NA BAHIA

de Cachoeira pela I r m a n d a d e de N. S. d o R o s á r i o dos H o m e n s P r e t o s . L i s b o a , 13 de


• Af 1794" N ú c l e o G o v e r n o da C a p i t a n i a da B a h i a , série O r d e n s Regias 1763-
fevereiro ae /
1822, vol. 80, d o e . 9 9 A , 9 9 B , 9 9 C ( a n o s 1 7 9 4 , 1 7 9 6 ) , APKBa.
„ Camp0S, "Procissões...", p p . 493-94; R u s s e l l - W o o d , " A s p e c t o s . . . " , p. 152; R e i s , Rebe-
liío..., P- 332; Faria, I r m ã o s . . . , p. 19.
» Faria, Irmãos..., p. 33. Ver t a m b é m Reis, " I d e n t i d a d e . . . " , p. 14.
53
"Compromisso de Nossa S e n h o r a d o R o s á r i o das Portas d o C a r m o , 1820", cap. 5, cx. 1,
doe. 1/R14, a p u d Faria, I r m ã o s . . . , p p . 29-30.
54
Reis, Rebelião..., p. 332.
» Campos, "Procissões...", p p . 495-503; " T r a d i ç õ e s . . . " , p. 488.
* Frézier, Relation..., vol. 2, p. 521, a p u d Verger, Fluxo..., p. 84.
57
"Compromisso da I r m a n d a d e do S e n h o r B o m Jesus das Necessidades e R e d e n ç ã o [1913]",
cx. arq. 446, est. 2, cx. 112, ACMS; C a m p o s , "Procissões...", p p . 418-21. As m e s m a s in-
formações são r e p r o d u z i d a s e m "A I g r e j a do C o r p o S a n t o " , A Tarde, 6 / 1 / 1 9 3 4 , a p u d
Barbosa, Retalhos..., pp. 92-95; i d e m , Efemérides..., p p . 43, 57, 58.
* Verger, Fluxo..., p. 525; Mattoso, Bahia..., p. 401; M. I. C. de Oliveira, O liberto...,
p. 81; Russell-Wood, " A s p e c t o s . . . " , p. 151; Reis, Rebelião..., p. 333; A morte..., p. 55;
Mulvey, T h e black..., p. 292. O t t a t r i b u i aos n a g ô s a criação da i r m a n d a d e ("A i r m a n -
dade...", p. 20). Pierson m e n c i o n a 1829 c o m o a d a t a de f u n d a ç ã o e e s p e c i f i c a q u e a
irmandade exigia dos m e m b r o s u m a " a s c e n d ê n c i a a f r i c a n a p u r a " {Brancos..., p. 81).
" "Bom Jesus das N e c e s s i d a d e s e R e d e n ç ã o , L i s b o a , na o f i c . d e A n t o n i o R o d r i g u e s
Galhardo, i m p r e s s o r da Real M e s a C e n s ó r i a , A n o 1778", d o e . 38, cx. a r q . 1 6 2 - A s l ,
cst.l, cx. 32, ACMS. " I n v e n t á r i o de J o s é d a S i l v a , 1817", 0 3 / 1 2 1 9 / 1 6 8 8 / 0 5 , J u d i c i á -
rio, ApEBa.
Campos, "Procissões...", pp. 418-21.
" Ibidem.
Verger, Os libertos..., 1pp.
1
47, 48; Fluxo..., foto nE 27.
63 y u _
ver
g e r , Orixás da B a h i a . . . " , p. 238; M u l v e y , T h e b l a c k . . . , p. 293. S e g u n d o R e n a t o
1
Silveira, a i r m a n d a d e d e v e r i a c o n s t i t u i r - s e , a l é m de c r i o u l o s , t a m b é m de a f r i c a -
nos da Costa da M i n a , c o m o jejes, n a g ô s e k e t u s ( I v á . . . , p. 25, c o m u n i c a ç ã o p e s s o a l ,
13/9/1999)
64 «-T.
j . j S t a m e n t o s de a f r i c a n o s , 1800-1888", J u d i c i á r i o , APFBa. D a d o s g e n e r o s a m e n t e ce-
° S P o r Maria Inês C o r t e s de O l i v e i r a . Aliás, a m b a s as m u l h e r e s m i n a s , c o m testa-
65 mentos datados de 1805 e 1811, p e r t e n c i a m a sete e cinco i r m a n d a d e s , r e s p e c t i v a m e n t e .
verSM° S '- * > r 0 c ' s s õ e s " - P P - 328-32. S o b r e a f u n d a ç ã o d o c a n d o m b l é da B a r r o q u i n h a ,
OpôAf 6 1 1 ^'' <
~' a ' 3e ' e m b r a r q u e m ã e A n i n h a , d i r i g e n t e d o f a m o s o t e r r e i r o Axé
a na
Bar . ' Ç ã o n a g ô - k e t u , foi p r o v e d o r a e juíza da I r m a n d a d e d o s M a r t í r i o s da
c
° m afr'"1'13 naS
P r ' m e ' r a s d é c a d a s d o s é c u l o XX. Seria a a s s o c i a ç ã o d o s M a r t í r i o s
Ca naS na
dein - . Ç ã o n a g ô u m a n a r r a t i v a r e l a t i v a m e n t e r e c e n t e , r e s u l t a d o da p a r -
m â e A n n h a na
* R e i ' 'rmandade?
ã 0 PP 326 28; Llw Th
lf8 -' ' " " ? Oyo....
e
' e d a Ab '^ R bel'ão..., p. 328. S e g u n d o Verger {Fluxo..., p. 519), A g o u m e

„s38
3». p. 140.

Waa,
' PP- 7-8; Reis, Rebelião..., p. 2.33; Verger, Fluxo.... p. 520.
LUIS NICOLAU P A R ÉS

Aapbh, n E 4 0 , pp. 19, 24-25. Belchior, n a g ô de C o b a i , aparece em o u t r o s m o m e n t o s só


c o m o "africano", " n a g ô " ou "nação Aossá" (AAPBa, n 2 40, p p . 83, 86 e segs.).
AAPBa, n- 38, pp. 20, 77.
AapHii, n a 54, p p . 105-21.

Reis, Rebelião..,, p p . 379-80.


AAPBa, n" 53, p. 59.
a
Aapbu, n 53, p . 57.

R e n a t o da Silveira, c o m u n i c a ç ã o pessoal, 10/5/2000.


Ver T h o m p s o n , A formação...-, Bastide, Sociologia...
Bastide, Sociologia, p . 173.
Verger, Fluxo..., p. 530.
Verger, Fluxo..., p p . 525, 527, 600, 601, 635. O f a t o e' d o c u m e n t a d o t a m b é m por
B o u c h e , q u e esteve e m Agoué, e m 1874, p o r L a f i t t e e p o r B o r g h e r o .
Reis, Rebelião..., pp. 447-48.
Verger, Fluxo..., p. 529.

100
3

DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ:
O P R O C E S S O F O R M A T I V O DA R E L I G I Ã O A F R O - B R A S I L E I R A

DA NAÇÃO " É T N I C A " À NAÇÃO DE C A N D O M B L É

A dinâmica dialógica de diferenciação étnica entre as diversas nações que vie-


mos analisando encontrou desde o princípio um contexto privilegiado de ex-
pressão nos ajuntamentos festivos dos negros e nas práticas religiosas de origem
africana. Já no século XVIII, numa carta bastante citada de Martinho de Mello
e Castro, conde de Povolide, datada em 10 de junho de 1780, fala-se das festas
da Igreja do Rosário, no Recife, onde "os pretos divididos em Nações e com ins-
trumentos próprios de cada uma dançam". 1 C o m o acontece até hoje no Can-
domblé, as nações se dividiam e se diferenciavam por meio de diversos elemen-
tos rituais como língua, cantos, danças e instrumentos, especialmente os tambo-
res. No natal de 1808, na vila de Santo Amaro, no Recôncavo Baiano, persistia
a distinção dos batuques por nações. 2

N a q u e l e s d i t o s dias S a n t o s d o N a t a l , desceram d o s e n g e n h o s d o d i s t r i t o desta vila


vários e s c r a v o s d e t o d a s a n a ç õ e s , e u n i n d o - s e e m três c o r p o r a ç õ e s c o m m u i t o s d e s t a
vila, s e g u n d o a sua nação, f o r m a r a m três d i f e r e n t e s r a n c h o s , de a t a b a q u e s e fizeram os
seus c o s t u m a d o s b r i n q u e d o s , ou danças; a saber os geges, n o sítio d o S e r g i m i r i m , os a n -
golas p o r detrás da capela d o Rosário, e os nagôs e haussás na rua de detrás, j u n t o ao alam-
bique q u e t e m de r e n d a T h o m e C o r r ê a de M a t t o s , s e n d o este r a n c h o o mais l u z i d o . 3

Vemos, assim, como as identidades étnicas sempre encontraram no ritual


formas de expressão e diferenciação. De igual modo, as práticas de caráter
religioso conhecidas como calundus, e depois como candomblés, foram um
dos espaços de contraste e diferenciação dos mais importantes para a demar-
cação dos limites das diversas nações africanas. Tanto é assim que o conceito
de nação foi, aos poucos, sendo limitado ao âmbito dessas práticas religiosas
e das congregações organizadas em torno delas.

1
101 > V L/
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Q u a n d o , na segunda metade do século XIX, com o fim do tráfico e o decrés-


cimo progressivo de africanos no Brasil, as denominações étnicas dos grupos
africanos deixaram de ser operacionais para a classe senhorial, elas persistiram
entre os africanos e seus descendentes crioulos no âmbito de suas redes de so-
lidariedade familiar e, sobretudo, de práticas religiosas. A identidade étnica foi
sendo acomodada àquele território de sociabilidade que era controlado exclusi-
vamente pela população negro-mestiça, em que ainda era possível estabelecer
relações de contraste internas.
Vivaldo da Costa Lima, no seu já clássico artigo " O conceito de nação nos
Candomblés da Bahia", foi o primeiro autor a chamar a atenção sobre como,
aos poucos, o termo "nação" "foi perdendo sua conotação política para se trans-
formar n u m conceito quase exclusivamente teológico. Nação passou a ser, desse
m o d o , o padrão ideológico e ritual dos terreiros de candomblé da Bahia". Em
outras palavras, nação passou a designar u m a "modalidade de rito", ou uma
"forma organizacional definida em bases religiosas". 4
Progressivamente, as d e n o m i n a ç õ e s de nação deixaram de designar indi-
víduos c o m p a r t i l h a n d o u m a mesma terra de origem ou ascendência africana.
O p e r t e n c i m e n t o de u m a pessoa a u m a nação passou a d e p e n d e r do seu en-
volvimento, n o r m a l m e n t e marcado pela iniciação, com um terreiro onde, no
culto, predominavam elementos rituais e míticos originários de u m a determi-
nada terra africana. C o m o bem notou Lima, o parentesco biológico foi subs-
tituído pelo parentesco do santo, decorrente de processos iniciáticos. C o n -
sequentemente, o conceito de nação "religiosa" ficou estreitamente relacio-
n a d o com as diversas linhagens ou genealogias da família-de-santo, através
das quais "a n o r m a dos ritos e o corpo doutrinário" são, de u m a f o r m a ou de
outra, transmitidos. 5
Ora, devido à fluidez e ao m o v i m e n t o de especialistas religiosos e práticas
rituais de uma casa para outra, e à possibilidade de u m indivíduo ser parcial
ou sucessivamente iniciado em terreiros de diversas ascendências, é difícil acei-
tar a idéia das nações de C a n d o m b l é como unidades estanques, homogéneas e
m u t u a m e n t e exclusivas. Carneiro, em 1937, já notava a crescente interpene-
tração das práticas religiosas: "hoje muitos candomblés não mais se dedicam a
u m a só nação, como antigamente, seja porque o chefe atual tem nação diferente
da do seu antecessor, e naturalmente se dedica às duas", seja pelas visitas dos
especialistas religiosos de uma casa a outra, "o que faz que se homenageiem tais
pessoas, tocando e dançando à maneira das suas respectivas nações. Já não é raro
tocar-se para qualquer nação em qualquer candomblé". 6
Essa flexibilidade levou a um grande ecletismo, sendo f r e q u e n t e um ter-
reiro identificar-se com várias nações h i p o t e t i c a m e n t e exclusivas (i.e., nação

102
DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É

ketu-angola-caboclo). Hoje, também é comum um terreiro identificar-se com


a n a ç ã o das casas "tradicionais" socialmente mais visíveis e prestigiadas (i.e.,
ketu), i n d e p e n d e n t e m e n t e de qualquer vínculo ritual de iniciação. Cada vez
mais, a categoria de nação é utilizada de forma ideológica, como uma estra-
tégia que responde a interesses de legitimação social e através da qual o grupo
pode estabelecer alianças com congregações prestigiosas ou dinâmicas de con-
traste com congregações concorrentes.
Nessa perspectiva, a categoria de nação de Candomblé, embora associada
a uma "modalidade de rito", funciona como um i m p o r t a n t e fator de identi-
dade coletiva, tanto nas casas "tradicionais" como naquelas de fundação mais
recente. Implica, portanto, ainda numa conotação de caráter político (no sen-
tido mais amplo do termo), ao mesmo tempo em que reproduz mecanismos
de competitividade e alinhamento solidário paralelos aos que operam nas
dinâmicas de identificação étnica.
O argumento que intentarei sustentar nos próximos capítulos, através do
caso jeje, é que a identidade das nações "religiosas" de Candomblé, baseada
na articulação de uma série de sinais diacríticos, compartilha a mesma lógica
e dinâmica de contraste inerentes aos processos de diferenciação étnica. Mas
para f u n d a m e n t a r essa idéia é preciso melhor compreensão do processo for-
mativo do C a n d o m b l é , assunto principal das próximas seções.

A L G U M A S C O N S I D E R A Ç Õ E S S O B R E AS INSTITUIÇÕES R E L I G I O S A S NA ÁREA V O D U M

Max Weber sustentava que uma das principais funcionalidades da religião é pro-
videnciar um sentido à existência do sofrimento e algum meio para superá-lo
ou transcendê-lo. Também Malinowski apontava para a religião como ajuda
para suportar "situações de pressão emocional". N u m desenvolvimento dessa
linha interpretativa, pesquisadores da Africa central propuseram, nos anos
1960-1970, o modelo teórico conhecido como "complexo f o r t u n a - i n f o r t ú n i o "
ou "ventura-desventura", segundo o qual a atividade religiosa tem por objeti-
vo não só "a prevenção do infortúnio", mas também "a maximização da boa
sorte". Perante os conflitos e os "tempos de experiência difícil" (i.e., doença,
esterilidade, fracasso, destruição, morte etc.), almeja-se propiciar "saúde,
fecundidade, segurança psíquica, harmonia, poder, status e riqueza".
A abrangência conceituai do modelo "fortuna-infortúnio", também apli-
cável ao estudo da religião da Africa ocidental, do "catolicismo popular" e das
religiões afro-brasileiras, questiona sua utilidade heurística e seu interesse ana-
lítico, se ele não consegue distinguir entre as diversas modalidades de religião

103
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

citadas. Entretanto, esse modelo ajuda a destacar e caracterizar um tipo de reli-


giosidade que se preocupa com a sustentabilidade da vida neste mundo, ante a
ênfase das religiões de revelação (Cristianismo, Islã, Judaísmo), mais interes-
sadas na salvação eterna da alma no além.
N ã o é aqui o lugar para fazer um repasse das teorias da antropologia da
religião. Para fins expositivos, basta clarificar que neste trabalho a religião
será c o n c e b i d a c o m o a q u e l e c o n j u n t o de p r á t i c a s q u e e s t a b e l e c e m u m a
interação entre "este m u n d o " (dos h u m a n o s ) e o "outro m u n d o " invisível, ha-
bitado (geralmente) por u m a série de "entidades espirituais" responsáveis pela
sustentabilidade da vida. O ritual, por sua vez, é definido como o meio estru-
turado e comportamental que viabiliza essa interação. 8 Esse conceito de religião
tem a vantagem de incluir toda uma série de práticas, como a produção de amu-
letos, rituais de cura ou atividades de "feitiçaria", que desde o ponto de vista da
tradição antropológica e t a m b é m da ortodoxia das religiões de revelação difi-
cilmente seriam cabíveis sob o rótulo de religião. N o e n t a n t o , nas sociedades
africanas elas constituem parte integrante, às vezes central e não apenas peri-
férica ou marginal, do sistema religioso.
Podemos agora abordar o p r o b l e m a da institucionalização das práticas
religiosas, e n t e n d e n d o instituição, c o n f o r m e M i n t z e Price, como "qualquer
interação social regular ou ordenada que adquire u m caráter normativo e que,
p o r t a n t o , pode ser empregada para enfrentar necessidades recorrentes". 9 Nas
sociedades africanas diversas formas de atividade religiosa foram progressiva-
mente institucionalizadas, isto é, os valores e práticas que visam à comunica-
ção com o "mundo invisível" foram acomodados a certas formas de organização
social relativamente estáveis que se perpetuaram para fins recorrentes. Para fins
analíticos, podemos estabelecer uma polaridade distinguindo, por u m lado,
aquelas instituições religiosas que c o n t r i b u e m para reforçar as estruturas de
poder e o desenvolvimento de mecanismos de controle e integração social (no
sentido durkheimiano) e, por outro, aquelas mais dinâmicas e transformativas
(no sentido turneriano) que surgem, normalmente, na marginalidade social e
c o m p o r t a m um discurso contra-hegemônico. Utilizando a terminologia que
loan M. Lewis usa no âmbito dos cultos de possessão, poderíamos chamar as
primeiras, instituições centrais, e as segundas, instituições periféricas. 10
Consideremos, como exemplo de instituição religiosa "central", o culto de
voduns no reino de Uidá (Fida, Juda, Whydah), com capital em Savi, nas últi-
mas décadas do século XVII, do qual existem vários relatos, como os de Bosman
e Barbot. Nesse reino, como no vizinho reino de Aliada (Ardra), o culto de vo-
duns estava indissociavelmente imbricado na organização sociopolítica e sancio-
nava a autoridade legal e moral do rei e dos chefes das linhagens. E m b o r a o

104
DO C A L U N D U AO CANDOMBLÉ

culto dos ancestrais, e em especial o dos reis, pareça ter sido central, Bosman
identifica três "divindades públicas" principais: a serpente, as árvores e o mar.
"Cada u m a delas [...] tem a sua província particular [...] com esta diferença
apenas, que o mar e as árvores não p o d e m interferir com aquilo que é respon-
sabilidade da serpente, e n q u a n t o esta tem um influente poder sobre aqueles."
Isso significa que as divindades tinham âmbitos de atuação especializados, mas
também que o corpo sacerdotal estava organizado e dividido segundo u m a
estrutura hierárquica, provavelmente bastante competitiva.
Dangbe, a serpente píton, divindade real e suprema em Uidá, era respon-
sável, por exemplo, pela chuva e era invocada "para obter u m a boa colheita".
As árvores eram cultuadas e recebiam oferendas, "em tempos de doença, espe-
cialmente febres, para restabelecer a saúde aos pacientes", embora Dangbe tam-
bém pudesse cumprir essa função. O mar era invocado "quando se enfurece e
impede de trazer as mercadorias à costa, quando não vêm navios por um longo
período e eles os esperam com impaciência". Nessas ocasiões, eram realizados
grandes sacrifícios, jogando n o mar todo tipo de oferendas, inclusive seres hu-
manos. Norris, em 1789, também mencionou a intervenção dos sacerdotes nos
oráculos e decisões concernentes à guerra. Portanto, o corpo sacerdotal, tendo
em vista seu poder real ou imaginado sobre os ciclos agrícolas, a saúde, o comér-
cio e a guerra, era investido do mais alto status social, o que, de seu lado, lhe
permitia estabelecer um pacto social com o poder político ou civil, o rei e os
chefes dos diversos clãs familiares, de forma que os últimos estavam obrigados
a providenciar os recursos necessários para a subsistência dos primeiros. 1 1
Para isso, o rei de Uidá organizava procissões anuais ao templo de Dangbe,
nas imediações de Savi, gastando grande fortuna em oferendas. Nessa dinâmica,
os sacerdotes atuavam em aliança com membros da nobreza, que também rece-
biam presentes do rei. O poder civil, representado pelos chefes das diversas cole-
tividades familiares, tinha claro interesse em sustentar o culto religioso, que
lhe permitia recuperar parte dos pesados impostos cobrados pelo rei. A institui-
ção religiosa funcionava como um mecanismo económico compensatório diante
do poder absoluto da monarquia. As oferendas para as divindades (i.e., os sacer-
dotes) consistiam normalmente em "dinheiro, peças de seda ou panos, todo tipo
de mercadorias européias e africanas, gado, produtos alimentares e bebidas". 1 *
Ao m e s m o t e m p o , o pacto social entre o poder civil e o religioso garantia
ao corpo sacerdotal um contingente h u m a n o nada desprezível de devotos con-
sagrados às divindades, entre eles uma parte de escravos. N o caso do t e m p l o
de D a n g b e , em Savi, Bosman estimava mais de mil vodúnsis ou esposas do
v o d u m . A instituição religiosa, p o r t a n t o , estruturava-se em grande medida
no r e c r u t a m e n t o periódico dessas vodúnsis, r e c r u t a m e n t o que se justificava

105
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

com base em princípios religiosos, t e n d o por finalidade principal consagrar


ritualmente essas mulheres ao serviço das divindades através de complexos
processos de iniciação. Mas, além da dimensão religiosa, esse recrutamento
tinha u m a motivação de ordem material, sendo que essas mulheres, ou seus
parentes, c o n t r i b u í a m "com t o d o tipo de p r o d u t o s " para as atividades do
templo, e "isso de f o r m a tão a b u n d a n t e que os sacerdotes p o d e m viver com
fartura".' 3 Podemos supor que no caso das vodúnsis escravas a sua contribui-
ção se desenvolvia em trabalhos de lavoura, serviço doméstico ou outros.
Portanto, a instituição d o culto de voduns, baseada em oferendas às divin-
dades e em processos de iniciação dos devotos, encobre u m a dinâmica de tro-
ca de recursos económicos que justifica a sua existência e perpetuação; e esse
fato não difere m u i t o de certa dinâmica inerente aos cultos de voduns contem-
porâneos, tanto no Benim como no Brasil. O processo de iniciação é, em muitos
casos, u m dos meios mais i m p o r t a n t e s de subsistência de u m a congregação
religiosa. No caso de Uidá, Bosman supõe que o rei recebia dos sacerdotes uma
parte dos benefícios obtidos das famílias das vodúnsis. Isso sugere u m a circu-
laridade dos recursos dos sacerdotes ao rei e do rei aos sacerdotes.
A percepção iluminista, entre irónica e sarcástica, de Bosman sobre o fun-
c i o n a m e n t o da instituição religiosa em Uidá, que poderia ser chamada de pré-
marxista por sua ênfase em desmascarar as motivações pecuniárias subjacentes
à dinâmica do culto ("a religião parece f u n d a m e n t a d a apenas no princípio do
interesse"),14 não deveria, no entanto, fazer-nos esquecer outras dimensões com-
plementares. Embora a instituição funcionasse como u m mecanismo de contro-
le e exploração — "o ópio do povo", como Marx chamava a religião — , ela tam-
bém garantia processos de integração social e oferecia assistência, soluções e
referências conceituais e morais coerentes com as necessidades básicas da po-
pulação diante dos "tempos de experiência difícil" (secas, guerras, enfermidade,
m o r t e etc.).
O que me interessa destacar aqui é que certas sociedades da Africa oci-
dental, especialmente aquelas localizadas perto do litoral, desenvolveram pro-
gressivamente complexas instituições religiosas, f u n d a m e n t a i s para sua orga-
nização sociopolítico-econômica e, portanto, "centrais" no sistema de relações
sociais. O caso do culto de voduns, em Uidá, no século XVII, é um exemplo
desse tipo instituição religiosa complexa, e n t e n d e n d o por complexidade um
sistema organizado com base em: 1) espaços sagrados estáveis dedicados às
divindades (templos com altares); 2) um corpo sacerdotal hierarquizado, na
maioria h o m e n s , no c o m a n d o ; 3) u m a coletividade de devotos ou vodúnsis,
na maioria mulheres; 4) uma série de atividades rituais periódicas, como pro-
cissões anuais, toques de t a m b o r e danças públicas com manifestações das di-

106
DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ

vindades no corpo das vodúnsis; 5) um culto iniciático e 6) oferendas às divin-


dades, sendo que essas duas últimas características e n c o b r e m a estratégia de
troca de recursos entre o poder civil e o poder religioso.
Paralelamente a essas instituições religiosas "centrais", p o d e m aparecer
os cultos que Lewis c h a m a de "periféricos" e que estabelecem relações dia-
léticas, ou de contraste, com os primeiros. De acordo com esse autor, os cultos
de possessão centrais, cujos participantes são normalmente homens competindo
pelo poder e autoridade, f u n c i o n a m como i n s t r u m e n t o de controle social, en-
quanto os cultos periféricos, cujos participantes são n o r m a l m e n t e grupos su-
balternos — como mulheres ou homossexuais — f u n c i o n a m como u m a forma
ritualizada de protesto ou rebelião.' 5 Se esse modelo não se aplica com faci-
lidade a todos os contextos, ele serve, por outro lado, para destacar a possível
simultaneidade, e até c o m p l e m e n t a r i d a d e , n u m a mesma sociedade, de várias
instituições religiosas concorrentes e as consequentes negociações e conflitos
entre seus agentes sociais.
Para ilustrar essa d i n â m i c a p o d e m o s t o m a r o caso do culto do v o d u m
Sakpata, no reino do D a o m é . Após a conquista dos reinos de Aliada e Uidá,
na década de 1720, Agaja e o seu sucessor, Tegbesu, adotaram u m a política
de apropriação dos cultos dos povos submetidos, levando muitas vezes seus
altares e sacerdotes a Abomey, a capital do reino. Essa política de importação
de cultos alheios estava baseada n u m a estratégia de a c u m u l a ç ã o de p o d e r
religioso, mas visava t a m b é m aplacar a possível cólera e vingança das divin-
dades dos povos vencidos. Ao m e s m o t e m p o f u n c i o n a v a c o m o f o r m a de
manter um controle efetivo sobre essa pluralidade de congregações religiosas,
algumas delas percebidas como u m a ameaça e potencial foco de contestação
ao poder central de Abomey. O rei Tegbesu toi responsável pelo estabele-
cimento do ajahó, ministro dos cultos de v o d u n s e chefe da polícia secreta
do rei. C o m o diz Maupoil, foi elaborado um "plano de submissão dos altares
ao trono", ou, em termos de Maurice Glele, os cultos de voduns foram sujeitos
a "um controle de polícia administrativa". 1 6 Esse processo foi a c o m p a n h a d o
de uma organização hierárquica das múltiplas divindades existentes de acordo
com u m modelo genealógico, colocando no nível máximo o culto dos ances-
trais reais (Nesuhue), ao lado do culto do casal Mawu-Lissá, ao qual os cultos
restantes estavam subordinados (ver cap. 7).
Desse m o d o , pretendia-se neutralizar o poder de certas instituições reli-
giosas ou "cultos periféricos" que pudessem ameaçar o poder central. O caso
mais notável foi o do v o d u m Sakpata. C o m a aparição da varíola na área gbe,
trazida pelos europeus no início do século XVII, esse v o d u m , originalmente
ligado ao culto dos ancestrais e da terra, foi progressivamente associado às

107
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

epidemias dessa doença que assolaram regularmente o D a o m é . Os sacerdotes


de Sakpata eram as únicas pessoas capazes de intervir em casos de epidemias,
sendo responsáveis pelas curas individuais, pelos rituais para aplacar a cólera
da divindade e pelas festas de agradecimento para aqueles que escapavam da
m o r t e e que, aliás, passavam a ser adeptos do v o d u m . Isso fez com que as con-
gregações de Sakpata conhecessem u m a grande expansão e popularidade. Se
a isso adicionarmos a crença de que os sacerdotes de Sakpata eram detentores
do conhecimento esotérico para castigar com a varíola, podemos entender por
que esse culto de temido poder foi percebido c o m o u m a ameaça para a mo-
narquia daomeana. C o m o aponta Claude Lepine, Sakpata apareceu aos pou-
cos como o único e verdadeiro "rei da terra", contestador do poder dos usur-
padores daomeanos que não respeitavam os reis ou "donos da terra" dos povos
vencidos. Tradições daomeanas reportam que nos tempos de Agaja houve "nu-
merosas conspirações lideradas por sacerdotes de Sakpata, muitos deles sendo
expulsos do país; muitos trabalhos mágicos eram realizados nos templos de
Sakpata com o fim de acabar com Agaja". Apenas no século XVIII, dos cinco
reis agassuvi que reinaram no D a o m é quatro pegaram a varíola, sendo que três
morreram dela. Sakpata "tornou-se rapidamente uma espécie de símbolo para
todos aqueles que estavam descontentes com a monarquia de Abomey".
Os reis do Daomé nunca aceitaram casar com uma mulher consagrada a esse
v o d u m , nunca atribuíram qualquer cargo a u m adepto desse v o d u m e vários
deles mandaram tirar todos os altares de Sakpata da cidade de Abomey e instalá-
los fora dos muros. Oscilavam entre a vontade de exterminar o culto e o medo
de não poder lidar com as epidemias sem a ajuda dos seus sacerdotes. C o m o
observa Lepine,

d u r a n t e o r e i n a d o d e A g o n g o l o ( 1 7 8 9 - 1 7 9 7 ) as e p i d e m i a s d e v a r í o l a f o r a m m u i -
t o v i o l e n t a s e os s a c e r d o t e s d e S a k p a t a g a n h a r a m c o n s i d e r á v e l i m p o r t â n c i a , t a n t o
q u e o rei s e g u i n t e , A d a n d o z a n ( 1 7 9 7 - 1 8 1 8 ) , m a n d o u e x p u l s á - l o s e l e v á - l o s a c o r -
r e n t a d o s a t é A d a m é , d e c l a r a n d o q u e n o D a o m é n ã o p o d i a h a v e r d o i s reis. M a s
G h e z o ( 1 8 1 8 - 1 8 5 8 ) , d i a n t e d a g r a v i d a d e d a s e p i d e m i a s q u e se s u c e d i a m , m a n d o u
t r a z e r S a k p a t a d e v o l t a , a p ó s ter c o n s u l t a d o Fa. S o b o r e i n a d o d e G l e l e ( 1 8 5 8 - 1 8 8 9 )
o c u l t o de S a k p a t a foi p r o i b i d o . ' "

Esse exemplo mostra como, diante de uma instituição religiosa centraliza-


da e hierárquica, surgem instituições periféricas, contra-hegemônicas, concor-
rentes e complementares, que historicamente podem mudar sua posição de mar-
ginalidade adquirindo maior centralidade, ou vice-versa. Além da relativa es-
tabilidade de um sistema religioso legitimado pelo poder político, as instituições
religiosas estão sempre sujeitas a dinâmicas internas de mudança. N o entanto,

108
DO C A L U N D U AO CANDOMBLÉ

fica claro que as práticas religiosas se organizam e desenvolvem a partir da exis-


tência de instituições sociais que garantem a sua expressão.

AS PRÁTICAS R E L I G I O S A S DE O R I G E M A F R I C A N A NO B R A S I L D O SÉCULO X V I I I

No caso da diáspora forçada da população africana no Brasil temos uma situa-


ção singular na qual diversos grupos humanos foram deslocados de suas socie-
dades e instituições religiosas e que, no entanto, trasladaram para o novo es-
paço social uma pluralidade de culturas (valores e práticas, nos meus termos;
civilizações ou superestruturas, nos termos de Bastide; representações coletivas,
nos termos de Durkheim). Isto é, na forma de memória e de experiência indi-
vidualizada, os escravos levaram "fragmentos de cultura", porém desprovidos
das instituições sociais que lhes davam expressão. C o m o apontam Mintz e Price,
seguindo de perto a idéia geral de Bastide, a formação de uma sociedade afro-
brasileira só se deu quando se reconstruíram novas instituições ou, nas palavras
de Bastide, com a criação de estruturas sociais complexas (infra-estruturas) que
acomodassem as múltiplas culturas africanas (superestruturas) trazidas por
indivíduos ou grupos de escravos. 18 Paralelamente, podemos dizer que a cons-
tituição de uma comunidade religiosa "afro-brasileira", o que hoje chamamos
povo-de-santo, é resultado do processo de reconstrução de novas instituições
religiosas por essa pluralidade de fragmentos culturais.
Mas quais são essas "instituições"? Bastide fala de um primeiro estágio de
adaptação ao redor dos batuques, cantos e irmandades católicas, e de um segun-
do estágio de criação correspondente à formação de estruturas sociais complexas
como calundus e candomblés, processo no qual, aponta o autor, os libertos
tiveram um papel decisivo. Na verdade, como veremos, os dois estágios parecem
sobrepor-se, sendo que os calundus de origem africana se organizaram paralela
ou simultaneamente aos batuques de divertimento e às folias das irmandades
católicas. Bastide também nota que esse processo se deu sobretudo no contexto
urbano ou nas plantações de açúcar, onde se concentrava grande quantidade
de escravos, em contraste com as zonas de minas, do sertão (onde predominava
a economia pecuária) ou das plantações mais tardias de café no sul do país. 19
Se retomarmos o argumento inicial do "complexo fortuna-infortúnio", di-
remos que essa reconstrução, reinvenção ou reinstitucionalização das religiões
africanas no Brasil ocorreu não só como uma forma coletiva de resistência
cultural (assistemática na maioria dos casos e consciente em certos indivíduos
ou círculos relativamente restritos), mas, em primeira instância, como uma ne-
cessidade para enfrentar o infortúnio ou os "tempos de experiência difícil", dos

109
LUIS NICOLAU P A R ÉS

quais a escravidão é sem dúvida u m dos casos mais extremos. A reatualização


parcial de práticas religiosas de origem africana, com a sua longa e variada
tradição no âmbito da cura, ou do que hoje chamaríamos trabalho assistencial,
tornou-se, assim, inevitável. N ã o foi por acaso que as práticas de "curan-
deirismo" e os rituais funerários foram alguns dos aspectos religiosos africanos
que com mais persistência se reproduziram nas Américas. T a m b é m não foi
por acaso que a população negra recorreu às irmandades católicas que, além
de outras vantagens e funções, garantiam, sobretudo, assistência aos enfermos
e u m enterro decente.
Além dos aspectos terapêuticos e funerários envolvidos na atividade reli-
giosa, e n c o n t r a m o s nas congregações, quer fossem irmandades católicas ou
calundus, um fator de integração ou coesão social que se t o r n o u um elemento
cada vez mais significativo e d e t e r m i n a n t e para a perpetuação dessas organi-
zações coletivas. Estaríamos aqui no outro pólo do "complexo f o r t u n a - i n f o r -
t ú n i o " , que visaria à "maximização da boa sorte". Tanto as festas e folias das
irmandades católicas aceitas oficialmente como os batuques ou calundus se-
miclandestinos, mas relativamente tolerados, constituíam atividades coleti-
vas voltadas ao público. Eram eventos espetaculares que favoreciam a visibi-
lidade social de certos indivíduos ou grupos e ofereciam um espaço institu-
cionalizado para a concorrência na procura de status e poder. C o m o sabemos,
na cosmologia africana a acumulação de poder e riquezas materiais era in-
terpretada e valorizada como sinal do favor dos deuses e prova da "força" do
indivíduo. Nas malhas da complexa estrutura do clientelismo existente nas
irmandades, onde o p a t r o n o branco estabelecia um sistema de troca de favores
com os seus protegidos escravos e libertos, oferecia-se um espaço para a ascen-
são social e a procura de poder. 2 0 T a m b é m no â m b i t o restrito da c o m u n i d a -
de negro-mestiça, na organização de batuques e calundus existia um espaço
para dinâmicas micropolíticas, com criação de hierarquias e formas de clien-
telismo negro paralelas ao clientelismo oferecido pelos brancos nas irman-
dades. Essa procura de visibilidade social e poder, um dos grandes drives ou
impulsos h u m a n o s que responde por u m a parte i m p o r t a n t e da dinâmica so-
cial, c o n t r i b u i u , sem dúvida, para reforçar o f u n c i o n a m e n t o de instituições
que permitiam sua expressão.
As irmandades de h o m e n s negros foram um espaço de sociabilidade, uma
forma institucionalizada de organização dos pretos, aceita e até encorajada
pelas classes d o m i n a n t e s . C e r t a m e n t e , como a p o n t a Karasch em relação aos
escravos do Rio de Janeiro, uma parte dos africanos, fosse por educação rece-
bida na própria Africa ou na sua chegada ao Brasil, podia aceitar o credo ca-
tólico e atuar com uma devoção "sincera" motivada por esses referentes cul-

110
DO C A L U N D U AO CANDOMBLÉ

turais. De fato, a devoção católica dos santos, baseada no "complexo da pro-


messa" e na relação interpessoal do i n d i v í d u o com intermediários espirituais
capazes de resolver os problemas do cotidiano, apresenta u m a notável seme-
lhança com as dinâmicas estabelecidas entre devotos e divindades africanas.
Essa homologia c e r t a m e n t e facilitou a conversão religiosa, mais ou menos
profunda, de certos indivíduos, e não há motivos para duvidar da existência
de negros católicos convictos. 2 1
Entretanto, o u t r a parte dos africanos envolvida nas irmandades, talvez a
maioria, não sofria uma conversão tão radical. Eles podiam adicionar, mui-
tas vezes de forma apenas superficial, certas crenças e hábitos católicos àqueles
com os quais foram educados na Africa, estabelecendo paralelismos ou rela-
ções conceituais, por vezes até identificações, entre os dois sistemas referen-
ciais. A cumulação de recursos espirituais diferenciados, aliás característica
de muitas religiões africanas e t a m b é m do catolicismo popular, não era vivida
necessariamente como uma contradição, mas como uma estratégia eficaz para
lidar com a adversidade e propiciar a boa f o r t u n a . Para essas pessoas, ou pelo
menos para parte delas, a participação nas irmandades não era apenas uma
fachada ou u m a estratégia de ocultação de suas "verdadeiras" crenças, pois a
devoção dos santos constituía também parte integral da sua religiosidade. Isso
não significa que não existisse outra parte de africanos que utilizassem as ir-
mandades efetivamente para encobrir da camada senhorial suas "verdadeiras"
crenças e práticas. Tanto n u m caso como no outro, nos bastidores das irman-
dades, sob a barroca expressão católica, essas pessoas encontravam um espaço
alternativo para a perpetuação de valores, disposições emocionais, orientações
existenciais, concepções sobre a pessoa, formas de expressão, gestualidade etc.,
próprias das culturas africanas, aspectos esses que se imbricavam indisso-
ciavelmente à sua religiosidade.
Desse modo, com muita frequência, as irmandades encobriram práticas que
não se ajustavam aos cânones e regras da teologia católica: os calundus. As redes
sociais dos negros que se articulavam nas irmandades católicas eram provavel-
mente as mesmas que podiam garantir a organização de batuques e outras práti-
cas religiosas que aos olhos dos africanos possuíam tanta eficácia — e para
alguns até mais — quanto a devoção aos santos católicos. A dupla participação
de muitos africanos e crioulos nos desfiles e procissões das irmandades e nos
calundus ou danças "supersticiosas" não era vivida, como já foi dito, como uma
contradição, mas como uma justaposição benéfica de recursos conceituais para
lidar com a adversidade do cotidiano. O sincretismo afro-católico do C a n d o m -
blé contemporâneo encontra as suas raízes nessa duplicidade de práticas surgidas
ainda no século XVII e que se desenvolveram principalmente no século XVIII.

111
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Q u a n d o , em 1765, a C o n f r a r i a do Senhor Bom Jesus dos Martírios de


H o m e n s Pretos de Nação Gege de Cachoeira e n c a m i n h o u a petição para a
confirmação do seu compromisso à Mesa de Consciência e O r d e n s em Lisboa,
as autoridades eclesiásticas locais foram contrárias à constituição da "agre-
miação". A petição foi acompanhada de u m a nota que recomendava às autori-
dades portuguesas rechaçarem a confirmação, sob a alegação de que os jejes "são
tirados d o paganismo de Africa e sempre lhes fica u m a propensão para coisas
supersticiosas", sendo, por isso, conveniente mantê-los sujeitos à disciplina do
ordinário (bispo). 22 Esse "paganismo" e essas "coisas supersticiosas" eram talvez
uma alusão aos batuques de divertimento que acompanhavam as folias e pro-
cissões católicas, com as suas danças, cantos e instrumentos próprios de cada
nação. C o n t u d o , era mais provável que fizessem referência a práticas clandes-
tinas envolvendo formas de "idolatria" que a Igreja Católica vinha demonizando
desde o século anterior e que eram, normalmente, referidas como "feitiçaria". 23
A Igreja não estabelecia qualquer distinção entre aquelas práticas com fi-
nalidades preventivas, propiciatórias e terapêuticas, c o m o a produção de amu-
letos ou os processos de cura, e as práticas que, embora semelhantes às primei-
ras na sua manipulação de complexos materiais (feitiços), t i n h a m u m a inten-
cionalidade de caráter maléfico ou anti-social, e que poderiam ser classificadas
de "feitiçaria" stricto sensu. Cabe n o t a r que a ameaça real ou imaginada da
feitiçaria (no seu sentido agressivo e anti-social) jogou u m papel i m p o r t a n t e
nas relações entre senhores e escravos, mas t a m b é m i n t e r v i n h a amiúde nas
esferas micropolíticas dos africanos, por exemplo, nas rivalidades pelo poder
nas irmandades. 2 4
A possibilidade de ser atingido por práticas de feitiçaria, ou o desejo de se
vingar de u m a suposta agressão mística propiciavam uma ambígua mistura de
atitudes defensivas e ofensivas. O m e d o era o substrato psicológico que sus-
tentava a feitiçaria e podia ser sabiamente m a n i p u l a d o pelos especialistas reli-
giosos, grandes especialistas também da mente. C o m o eles tinham conhecimen-
tos de farmacopéia e uma longa tradição na produção de venenos, os medos
não eram sempre i n f u n d a d o s . Nesse sentido, a feitiçaria dos jejes foi sempre
u m a das mais reputadas e temidas. C o m o veremos nos próximos capítulos, a
dinâmica imposta pela ameaça da feitiçaria persistiu ao longo dos séculos no
âmbito das congregações religiosas jejes, aparecendo especialmente nos momen-
tos das disputas sucessórias pela liderança dessas comunidades.
N o início do século XVII falava-se da eficácia dos "escravos feiticeiros" no
uso de ervas. Em 1728, N u n o Marques Pereira, o Peregrino das Américas,
escreveu sobre "ritos supersticiosos e gentílicos" dos africanos e em 1761 um
ouvidor de Ilhéus mandava prender "pretos feiticeiros", especialistas nas "artes

112
DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É

diabólicas" de adivinhar e curar. 2 5 O u t r o t e r m o , de origem angola, f r e q u e n -


temente utilizado nos autos da Inquisição dos séculos XVII e XVIII para desig-
nar essas práticas, era "calundu". Laura de Mello e Souza estudou em deta-
lhe essa documentação, registrando em Minas Gerais, entre 1725 e 1750, nove
casos de acusação de calundu. 2 6 Na Bahia, já no século XVII, Gregório de
Mattos escrevia: " Q u e de q u i l o m b o s que t e n h o / C o m mestres superlativos/
Nos quais se ensina de noite/ Os calundus e feitiços".
Em 1685, a parda Clara Garcez, viúva, era denunciada por ter em casa um
"culto de criatura ou de pau de barro", em torno do qual vivia "curando a to-
dos que a sua casa vinham doentes, usando de calundus e bonifrates". Entre as
práticas de cura havia, por um lado, atividades apenas preventivas — como a
elaboração de amuletos ou bolsas de mandinga — , outras propriamente tera-
pêuticas — envolvendo a elaboração de remédios (externos e internos) e,
sobretudo, a prática do exorcismo, referida amiúde como "tirar o diabo do
corpo". Técnicas como o sopro, a sucção, esfregas ou outras formas de fazer
expelir (vomitar, defecar) eram usadas para expulsar do corpo h u m a n o os es-
píritos malignos, considerados como causa da doença. E m b o r a o exorcismo
fosse c o m u m às tradições ameríndia, católica e africana, somente aqueles casos
que envolviam "demónios africanos" ou praticantes africanos eram designados
como calundus. N a década de 1740, em Salvador, o carmelita frei Luís de Na-
zaré, ele próprio exorcista, recomendava que escravos trazidos a ele fossem tra-
tar-se em "calundus", pois "os demónios africanos" não faziam parte da sua es-
pecialidade. 27
No Rio, em 1772, nos autos do processo contra u m a calunduzeira de nome
Ana Maria da Conceição, defíne-se calundu como o ato de "pular de várias
danças". Em 1753, por exemplo, a escrava Maria Canga ganhava algum ouro
adivinhando de forma ritual; "inventava uma dança de batuque, no meio da
qual entrava a sair-lhe da cabeça u m a coisa, a que se chamava vento, e entrava
a adivinhar o que queria". As práticas de adivinhação foram, e c o n t i n u a m sen-
do, atividades centrais da religião. As técnicas oraculares permitem predizer,
diagnosticar e prescrever a melhor estratégia a ser seguida diante de um deter-
minado conflito e, nesse sentido, são u m c o m p l e m e n t o imprescindível das
práticas de cura. No século XVIII, adivinhar ou "dar ventura" ocorria geral-
mente por meio de experiências de mediunidade, "possessão" ou outras técni-
cas como olhar na água, e somente no século XIX aparece registrado o uso do
sistema de Ifá ou jogo de búzios. Em 1739, na vila de Sabará, em Minas Ge-
rais, é acusada u m a outra "calunduzeira, curandeira e adivinhadeira", a liberta
angola Luzia Pinta. Ela fazia "aparições diabólicas por meio de umas danças
[...] posta em um altarzinho com seu dossel e um alfanje na mão, com u m a

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L U I S N I C O L A U P A R ÉS

fita larga amarrada na cabeça lançadas as pontas para trás, vestida a m o d o de


anjo", ao som de uns t a m b o r z i n h o s ou tímbales (címbalos, segundo a versão
de Souza) que três pretos, seus escravos, tocavam em volta dela e, ficando
"como fora do seu juízo, falando coisas que n i n g u é m lhe entendia, deitavam
as pessoas que curava n o chão, passava por cima delas várias vezes, e nestas
ocasiões é que dizia que t i n h a ventos de adivinhar". 2 8
E m b o r a Laura de Mello e Souza c h a m e a atenção para a semelhança des-
se ritual com o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o — o que parece pertinente apenas
em relação aos elementos do vestuário, c o m o a fita amarrada na cabeça e o
sabre — , cabe notar que essas danças e experiências de m e d i u n i d a d e estavam
geralmente restritas ao oficiante do ritual e que a sua finalidade principal era
a adivinhação e a cura. Ao mesmo t e m p o , Luzia Pinta se deslocava ali onde
seus serviços eram requeridos, sem ter um espaço fixo para seus rituais. C o m o
a r g u m e n t o em detalhe mais adiante, essas características diferenciariam os
c a l u n d u s coloniais dos c a n d o m b l é s mais tardios inspirados nas tradições da
Costa d a Mina, o n d e as danças e experiências de "possessão" eram coletivas,
oficiadas por indivíduos ritualmente iniciados para esse fim, envolvendo uma
d i m e n s ã o essencialmente de celebração e adoração de divindades, sem inter-
venção tão evidente de outras finalidades mais pragmáticas, a exemplo da cura
e da adivinhação. Nesse sentido, a tradição de adivinhação e cura dos calundus
d o século XVIII parece apresentar u m a forte influência das tradições da Africa
central. 2 9
No e n t a n t o , essa tendência não significa que não existisse na Africa oci-
dental u m a tradição igualmente i m p o r t a n t e de "curadores-adivinhos" ou "fei-
ticeiros". As fontes inquisitoriais do Arquivo Nacional da Torre do Tombo,
estudadas por Luiz M o t t , em sua maioria não identificam a etnia dos d e n u n -
ciados. Todavia, esse autor localizou o caso de Tereza, "preta, mina gegê, forra
que foi escrava do C a p i t ã o M a n o e l Barbosa", d e n u n c i a d a e presa na Bahia
(Recôncavo), em 4 de fevereiro de 1778, e n q u a n t o o "seu amásio Luis, criou-
lo", f u g i u . A d e n o m i n a ç ã o "mina gegê" prova a existência de especialistas re-
ligiosos jejes que, do mesmo m o d o que os congo-angolas, dedicavam-se a ati-
vidades religiosas relativamente individualizadas. N o caso de Tereza, "geral-
mente tida, havida, reputada e temida por feiticeira", tratava-se de práticas
anti-sociais, pois "com seus malefícios tinha morto muita gente causando-lhes
enfermidades incognoscíveis da arte da Medicina, ficando despovoadas pela
m o r t a n d a d e algumas famílias inteiras". 30 Já no início do século XIX, em 1807,
na vila de São Francisco do C o n d e , foi preso Francisco Dossu, "gege forro",
t a m b é m "insigne curador [que] dava venturas". N o seu d e p o i m e n t o decla-
rou "que a ele recorriam muitas pessoas, brancos, pardos, pretos de um e outro

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DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É

sexo para dar venturas e curar" e confessou "que ele dança tabaques muitas
vezes, assim como que para curar, andava em muitas partes deste Recôncavo". 31
Vemos, assim, como no século XVIII "calundu" foi um termo genérico uti-
lizado para designar atividades religiosas de várias índoles, porém de origem
africana, em oposição às práticas católicas ou ameríndias. Embora as danças
e tambores fossem parte da atividade ritual, a sua funcionalidade era essencial-
mente terapêutica e oracular, sendo que "calunduzeiro" podia ser utilizado
como sinónimo de curador ou adivinho. 3 2 Essas práticas eram oficiadas por
um especialista religioso, às vezes com um número reduzido de assistentes
que, secundado ou "incorporado" por "entidades espirituais", em muitos casos
"almas dos seus parentes", interagiam numa relação interpessoal com o "clien-
te" ou paciente, "dizendo venturas", prescrevendo remédios ou fazendo curas,
assim como "malefícios". Também é importante notar que o "calunduzeiro"
deslocava-se para onde seus serviços eram requeridos, sem ter normalmente
um lugar fixo para a realização de suas práticas. Essa forma de atuação relati-
vamente independente era operacional ao facilitar a mobilidade e o acesso
do especialista religioso à sua clientela, que, aliás, não se restringia à popula-
ção negra, p o d e n d o incluir pardos e brancos.

ALTARES E O F E R E N D A S : ALÉM D O S C U R A N D E I R O S E A D I V I N H A D O R E S

Contudo, os calundus podiam, em alguns casos, designar grupos organiza-


dos com práticas rituais coletivas, que envolviam mais participantes do que
simplesmente o curador-adivinho e seus clientes. Em 1738, o prior dos be-
neditinos da Bahia comentava que os escravos "reúnem-se em sociedades para
fazer seus calundus". 3 3 Essa alusão a "sociedades" é significativa. Em relação
às festas dos negros surgidas em volta das irmandades do Recife, o conde de
Povolide, na carta de 1780 já citada, fazia diferença entre "danças que ainda
não sejam as mais santas não as considero dignas de uma total reprovação", já
que "são como os fandangos de Castela, e fofas de Portugal, e os lundus dos bran-
cos e pardos daquele País"; e aquelas outras "danças supersticiosas" ou "bailes que
entendo serem uma total reprovação". Os últimos

são a q u e l e s q u e os p r e t o s da C o s t a d a M i n a f a z e m a e s c o n d i d a s , o u e m casas o u
roças c o m u m a P r e t a M e s t r a c o m a l t a r d e í d o l o s a d o r a n d o b o d e s v i v o s , e o u t r o s fei-
tos de b a r r o , u n t a n d o seus c o r p o s c o m d i v e r s o s ó l e o s , s a n g u e d e g a l o , d a n d o a c o -
m e r b o l o s d e m i l h o d e p o i s d e d i v e r s a s b e n ç õ e s s u p e r s t i c i o s a s f a z e n d o crer aos r ú s t i -
cos q u e n a q u e l a s u n ç õ e s d e p ã o d ã o f o r t u n a , f a z e m q u e r e r b e m m u l h e r e s a h o m e n s ,
e homens a mulheres.34

115
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Esses "bailes" realizados às escondidas nas casas e roças, com "altares de


ídolos", sacrifícios de animais e oferendas alimentícias, parecem ir além de sim-
ples práticas de curandeirismo ou adivinhação e são os antecedentes dos futuros
candomblés do século XIX. Os sacrifícios animais e as oferendas de comidas
rituais nos altares dedicados às divindades constituem a base da religiosidade
africana, especialmente das tradições da África ocidental. 3 5 E importante notar
que na carta de Povolide essas práticas eram associadas explicitamente aos "Pre-
tos da Costa da Mina", sem menção aos grupos da África central. Essa comple-
xidade d o ritual, envolvendo "ídolos" e oferendas, era replicada na dança de
T u n d á ou acotundá, ocorrida em Paracatu por volta de 1747 e documentada
por Luiz M o t t . Esse ritual, praticado pelos courá (courano, curá, curano), um
grupo da Costa da Mina, envolvia, j u n t o com experiências de possessão, a pre-
sença de um "boneco [...] Santo de sua terra", ao qual "obsequiavam" com diver-
sas panelas de ervas cruas e cozidas e em torno das quais dançavam. 3 6
As práticas de cura e feitiçaria eram condizentes para a p r o d u ç ã o de amu-
letos, patuás, gris-gris ou bolsas de m a n d i n g a , objetos moveis, individuali-
zados ou personificados, concebidos c o m o i n s t r u m e n t o s mediadores para a
obtenção de algum fim e que, entre outros, encontrariam antecedentes afri-
canos nos gbo daomeanos. Já na articulação do sistema altar-oferenda — que
poderíamos chamar também de "complexo assento—ebó" — se deu um salto
qualitativo. Os assentos ou altares são "complexos materiais sacralizados re-
lativamente fixos (enterrados, muitas vezes) e de p r o p r i e d a d e familiar ou co-
letiva; concebidos c o m o habitat ou residência de divindades nomeadas e bem
definidas, que c o m p o r t a m n o r m a l m e n t e a iniciação de devotos. 3 7
A minha hipótese é que foi a partir das tradições da Costa da Mina que, no
século XVIII, começaram a se organizar alguns calundus que iam além da mera
funcionalidade de cura e adivinhação, sem, no entanto, prescindir delas. Cabe
lembrar que nesse século os jejes c o m p u n h a m o grupo demograficamente mais
importante daquela parte da costa africana na Bahia. O culto ou adoração de
"ídolos" ou "figuras" com a presença de altares implicava a necessidade de espa-
ços relativamente estáveis para a prática religiosa. Foi provavelmente a partir
dessa tradição da África ocidental, em oposição às tradições congo-angola, mais
baseadas nas atividades individuais dos curadores-adivinhos, que se organizaram
os primeiros cultos domésticos, em "casas e roças", com u m a estrutura social e
ritual mais complexa, que poderíamos chamar de tipo "eclesial".
N o capítulo 2 já mencionei a repressão ao calundu da Rua do Pasto, em
Cachoeira, em 1785, o n d e foram presos três mulheres e três homens, 2 jejes, 2
mahis, 1 dagomé e 1 tapa, aparentemente constituindo três casais. Esse calundu
era aparentemente um culto doméstico, organizado em três quartos de uma casa

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DO C A L U N D U A O C A N D O M B L É

a l u g a d a pelo africano liberto João d o Espírito Santo ao africano mina José


Pereira, t a m b é m liberto. O líder d o c a l u n d u , Sebastião de Guerra, teria, por
sua vez, sublocado um dos quartos a João d o Espírito Santo. C o m o a p o n t a
João José Reis, esse tipo de arranjo de moradia era c o m u m entre a p o p u l a -
ção negra de Salvador e implica a existência de redes estratégicas de solidarie-
dade e cooperação entre africanos. C o m antecedentes penais por práticas de
"feitiçaria" em Jacuípe, Sebastião era conhecido c o m o um poderoso curador
de feitiços, mas, além disso, ele conseguiu organizar, em Cachoeira, uma
incipiente congregação de participantes em volta de um culto que funcionava
com certa regularidade, pois era "público e notório" que ali se "dançavam ca-
lundus". Reis define esse calundu como "uma comunidade religiosa em forma-
ção". 38 Aquele caso exemplifica como os curadores-adivinhos, que em alguns
casos atuavam com relativa independência, conseguiam u m a m í n i m a infra-
estrutura coletiva para conduzir suas atividades religiosas.
Embora no m o m e n t o da invasão policial os seis africanos estivessem dor-
mindo, exceto u m , que estava t o m a n d o banho, uma das testemunhas declarou
que ali "se a j u n t a v a m bastantes negros e negras [...] que todos armavam uma
dança dentro da dita casa e cantavam em língua de jeje, e tocavam o instru-
mento de um ferrinho, e em lugar de t a b a q u e na boca de u m pote tocavam e
era público que a dita dança era de calundus". C o m o bem a p o n t a Reis, a au-
sência de "tabaque" poderia estar relacionada com a necessidade de discrição,
regra essencial no clima de repressão existente, embora a descrição pudesse
aludir t a m b é m a u m ritual funerário. Sabe-se que na tradição jeje é utilizado
para esse fim u m i n s t r u m e n t o c h a m a d o zen-li, em que o som é o b t i d o ba-
tendo um abano de couro ou palha na boca de u m a jarra. 3 '
No quarto de Sebastião também foi encontrada "uma flechinha em pé com
uma agulha em cima, e da dita flecha desciam duas pontas para baixo, e em
cada u m a delas u m penachinho, e estava b u l i n d o sem coisa em que se segu-
rasse". Q u a n d o o negociante branco Manoel de Almeida Cardoso, partici-
pante da ronda contra o calundu, quis pegar a flecha, esta caiu no chão, sem
que ele conseguisse armá-la de novo. Esse estranho objeto, sustentado em si
mesmo por efeitos a p a r e n t e m e n t e mágicos, foi o que mais c h a m o u a atenção
das testemunhas. Em volta daquela misteriosa flecha, e n c o n t r a r a m no chão
moedas, b ú z i o s , c a b a c i n h a s , folhas, u n g u e n t o s , f e r r i n h o s , o u t r o s p e n a -
chinhos, uma garrafa de aguardente, cuias com sementes e outros ingredientes
rituais, e "cavando-se na terra apareceram várias mestrias como foram uns
ferrinhos, uns bolos de cera da terra cravados de feijão, de arroz e [ilegível]". 40
Os objetos enterrados indicavam a presença de um assento e os objetos no
chão, as oferendas arriadas diante da "flecha", seguramente u m a representação

117
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

material do poder da divindade ali assentada. Além das práticas de cura e adi-
vinhação, encontramos aqui u m elemento de aparente devoção ou adoração de
entidades espirituais. A tradição jeje desenvolve, n o Brasil, a prática do esta-
belecimento do pejis (altares) ou complexos materiais consagrados às divinda-
des, em que a dinâmica cerimonial das oferendas é complementar e caracterís-
tica. Alguns dos objetos encontrados no calundu, como folhas, búzios e aguar-
dente, persistem nos candomblés contemporâneos como elementos centrais do
sistema de oferendas.
N ã o há evidências, na d o c u m e n t a ç ã o , da existência de processos de ini-
ciação de devotos ou vodúnsis consagrados ao culto das divindades, mas o
fato de tratar-se de u m a congregação m i n i m a m e n t e organizada, c o m um es-
paço próprio, deixa supor que já nesse contexto poderiam desenvolver-se tais
rituais. Em resumo, essas informações sugerem que n o ú l t i m o quartel do
século XVIII os jejes, além de se organizarem em irmandades católicas e de
f u n c i o n a r e m individualmente como curadores-adivinhos, já t i n h a m a capaci-
dade de se estabelecer em incipientes congregações religiosas, de â m b i t o do-
méstico, presumivelmente, na sua maioria, em volta de u m a única divindade.
Podemos agora encarar o problema central do processo de institucionali-
zação ou reinstitucionalização das formas de organizações religiosas negras no
Brasil e da constituição de uma "religião afro-brasileira". A m i n h a tese de base
para entender o problema sustenta que esse processo se deu através de um pro-
gressivo nível de complexidade social e ritual. De um estágio inicial, em que
"fragmentos de cultura religiosa" foram retomados e postos em prática por
pessoas carismáticas que atuavam de uma forma relativamente individual e inde-
p e n d e n t e (em interações pessoais, visando principalmente a fins de cura e adi-
vinhação), passou-se pela formação das primeiras congregações religiosas de
caráter familiar ou doméstico, geralmente dedicadas ao culto de uma só divinda-
de, até se chegar à formação de congregações extra-familiares, socialmente ainda
mais complexas nas suas estruturas hierárquicas e práticas rituais, que com o
tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espaços próprios, com
um calendário litúrgico recorrente e dedicadas ao culto de u m a pluralidade de
divindades, "assentadas" em altares ou espaços sagrados individualizados.
Cabe enfatizar que esse processo, que para fins analíticos caracterizei como
t e n d o u m a natureza evolutiva e linear, indo da simplicidade à complexidade,
da d i m e n s ã o individual à coletiva, não deve ser e n t e n d i d o c o m o seletivo ou
excludente. Em outras palavras, s i m u l t a n e a m e n t e à progressiva institucio-
nalização dos cultos mais complexos persistiram, e de forma muito expressiva,
as práticas individuais e as congregações de p o r t e menor. C o m o veremos
adiante, d u r a n t e o século XIX as congregações extradomésticas eram ainda

118
DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ

relativamente escassas e funcionavam, como acontece ainda hoje, paralelamente


às práticas individuais e aos cultos restritos ao âmbito doméstico. Aliás, segundo
as circunstâncias ou necessidades, um mesmo especialista religioso podia f u n -
cionar a l t e r n a t i v a m e n t e ora de f o r m a individual, ora inserido n u m a con-
gregação mais ampla. O caráter esquemático e "evolutivo" que atribuí ao pro-
cesso não deve, p o r t a n t o , minimizar a complexidade do problema.
O u t r o aspecto a destacar é que, c o m o vimos no caso da dança do T u n d á ,
já no século XVIII f u n c i o n a v a m congregações religiosas extradomésticas com
uma estrutura "eclesial", e não é impensável que elas fossem mais numerosas
do que a d o c u m e n t a ç ã o existente deixa entrever. Poder-se-ia até especular que
algumas delas apareceram b e m cedo, quase s i m u l t a n e a m e n t e à proliferação
de práticas individuais de cura e adivinhação, negando, p o r t a n t o , a dimensão
"evolutiva" ou linear do processo. O r a , o silencio d o c u m e n t a l leva a pensar
que o possível f u n c i o n a m e n t o dessas congregações extradomésticas no século
XVIII devia ser esporádico e pouco estável.
Nesse sentido, vale lembrar a advertência de Bastide contra modelos explica-
tivos da formação do C a n d o m b l é que postulam a existência de cultos primor-
diais que sobreviveram sem m u d a n ç a ao longo dos séculos. Ele argumenta a
"ideia de u m a proliferação caótica de cultos ou fragmentos de culto, que não
nasciam senão para extinguir-se e que se viam substituídos por outros, à medida
que se iam produzindo as chegadas de novas remessas". 41 Em sintonia com essa
idéia, acredito que foi só n u m estágio mais tardio, provavelmente no início do
século XIX, que se consolidou uma rede social de congregações extradomésticas.
Só quando essas congregações, em número suficiente, começaram a estabelecer
entre si interações de cooperação, complementaridade e conflito, poderíamos falar
de uma "comunidade religiosa afro-brasileira" e do surgimento do Candomblé.
O u t r o problema se coloca em relação aos antecedentes africanos que pude-
ram intervir nesse processo. C o m o foi sugerido, considero que as práticas de
cura e adivinhação, ou alguns dos seus elementos mais significativos, poderiam
ter sua origem tanto na Africa central como na Africa ocidental, embora as tra-
dições da África central pareçam nesse aspecto dominantes. Ora, na Bahia do
século XVIII as bases da organização de tipo "eclesial", que permitiram a for-
mação das congregações extradomésticas descritas acima, encontram anteceden-
tes nas tradições dos grupos vindos da África ocidental e, muito especialmente,
dos jejes. E isso porque os jejes, nesse período, eram o grupo africano demo-
graficamente majoritário e, sobretudo, pelo fato de ter os jejes, como já foi des-
crito em relação aos reinos de Uidá e D a o m é , claros precedentes institucionais
nesse domínio, o que não se comprova de forma tão evidente nos grupos da
Africa central.

119
L U I S N I C O L A U PAR É S

C o m isso não estou sugerindo que o processo formativo do Candomblé


deva explicar-se exclusivamente em f u n ç ã o de u m a transferência direta e li-
near de elementos da Africa ocidental para o Brasil. Parece-me fora de dúvida
que, na reinstitucionalização dos valores e das práticas religiosas dos africanos
no Brasil, houve u m a reconfiguração e ressignificação de elementos africa-
nos de uma multiplicidade de origens (os da Africa central incluídos), de ele-
m e n t o s não africanos, assim como a "criação" de outros elementos, resultado
do novo contexto social e do m e s m o processo formativo. N o e n t a n t o , a cria-
tividade na "bricolagem" é quase sempre resultado da combinação ou transfor-
mação de elementos preexistentes. Em relação à organização de tipo "eclesial"
que deu lugar aos candomblés do século XIX, tem-se arguido a possível in-
fluência de modelos c o m o as irmandades católicas ou até as sociedades ma-
çónicas. 4 2 Todavia parece-me que os escravos vindos da Africa ocidental, com
a sua m e m ó r i a viva das instituições religiosas que ali f u n c i o n a v a m , tiveram
maior probabilidade de contribuir de f o r m a direta, embora t a m b é m criativa,
no processo.
Mas poder-se-ia ainda a r g u m e n t a r que a semelhança entre certas práticas,
valores e formas de organização religiosa da Africa ocidental e do Brasil foi o
resultado não apenas de influências lineares, mas também de respostas paralelas,
e m b o r a i n d e p e n d e n t e s , a condições e d i n â m i c a s sociais semelhantes. Por
exemplo, a c o m u m estrutura do sistema escravista favorecendo a confluência
de grupos etnicamente heterogéneos em cidades c o m o Salvador e Uidá pode-
ria ter gerado processos semelhantes, mas independentes, na reconfiguração
e agregação de cultos. N o capítulo 7 analiso essa hipótese em relação ao sur-
gimento dos cultos de múltiplas divindades na Africa ocidental e no C a n d o m -
blé. A semelhança de contextos sociais p o d e gerar dinâmicas coletivas ou ins-
titucionais parecidas, mas q u a n d o os sistemas resultantes em várias áreas geo-
gráficas apresentam configurações de elementos particulares recorrentes —
como acontece, por exemplo, nos panteões dos cultos de v o d u n s da área gbe
e do C a n d o m b l é jeje — é mais difícil justificar as "convergências" apenas em
termos de um paralelismo nas condições de partida. Nesses casos, não podemos
negligenciar a i m p o r t â n c i a das influências lineares e precisamos avaliar que
grupos africanos, pelos antecedentes das suas sociedades de origem, teriam
maior probabilidade de ter atuado como agentes da transferência, sem esque-
cer que qualquer elemento, u m a vez i m p l a n t a d o no novo contexto, estava
sujeito a adaptações, transformações, ressignificações e apropriações por parte
de outros grupos.

120
DO CALUNDU AO CANDOMBLÉ

NOTAS

1 Carta m a n u s c r i t a d e p o s i t a d a na B i b l i o t e c a d o E s t a d o d e P e r n a m b u c o e m " C o r r e s p o n -
dência d a C o r t e , 1780-1781", fl. 23-23v, a p u d Soares, Devotos, p p . 158-59. P a r a o u t r o
caso s e m e l h a n t e n a B a h i a , e m 1786, ver Verger, Fluxo..., p. 531; Reis, " I d e n t i d a d e . . . " ,
p. 26.
2
" B a t u q u e " é u m t e r m o f r e q u e n t e m e n t e u t i l i z a d o n o s é c u l o XVIII c o m r e f e r ê n c i a aos
a j u n t a m e n t o s d e n e g r o s q u e e n v o l v e m d a n ç a s e t o q u e s de p a l m a s , t a m b o r e s o u o u t r o s
i n s t r u m e n t o s . I n d i c a v a , i n d i s t i n t a m e n t e , r i t u a i s religiosos o u d i v e r t i m e n t o s s e c u l a r e s .
O u t r a s expressões u t i l i z a d a s n o s é c u l o X I X e r a m " b r i n q u e d o t a m b a q u e " o u " b a t u c a j é " .
" C o r r e s p o n d ê n c i a d o c a p i t ã o J o s é R o i z d e G o m e s p a r a o c a p i t ã o - m o r F r a n c i s c o Pires
de C a v a l h o e A l b u r q u e r q u e , 20 de j a n e i r o d e 1809", C a p i t ã e s m o r e s , S a n t o A m a r o ,
1807-1822, m a ç o s 4 1 7 - 2 ! , ApEBa. Esse d o c u m e n t o f o i a n a l i s a d o e m d e t a l h e p o r Reis:
" I d e n t i d a d e . . . " , p p . 7-9, e e m " T a m b o r e s . . . " , p p . 104-9. Ver t a m b é m H a r d i n g , C a n -
d o m b l é . . . , p p . 286-87.
Lima, A f a m í l i a . . . , p. 21. Esse t r a b a l h o foi p r i m e i r a m e n t e a p r e s e n t a d o c o m o u m a co-
municação, no e n c o n t r o organizado pelo governo do Senegal j u n t a m e n t e com a
UNESCO, N é g r i t u d e en A m é r i q u e L a t i n e , c e l e b r a d o e m D a k a r , e m j a n e i r o d e 1974. Foi
p u b l i c a d o pela p r i m e i r a vez na Afro-Asia, n a 12, e m j u n h o d e 1976, e, p o s t e r i o r m e n t e ,
revisto e p u b l i c a d o c o m o p a r t e d o c a p í t u l o i n t r o d u t ó r i o da sua d i s s e r t a ç ã o de m e s t r a d o
A f a m í l i a - d e - s a n t o n o s C a n d o m b l é s J e j e - N a g ô s da B a h i a : u m e s t u d o de relações i n t r a -
g r u p a i s , e m 1977. E m 2003, a e d i t o r a C o r r u p i o p u b l i c o u esse texto. N e s t e livro, as r e f e -
rências à p a g i n a ç ã o d o t r a b a l h o d e L i m a c o r r e s p o n d e m à e d i ç ã o de 1977.
L i m a , A f a m í l i a . . . , p. 20.
C a r n e i r o , Candomblés, p p . 44, 46. C a b e n o t a r q u e C a r n e i r o f o i o p r i m e i r o a u t o r a fa-
lar de n a ç õ e s r e f e r i n d o - s e aos d i v e r s o s r i t o s p r a t i c a d o s n o C a n d o m b l é . R o d r i g u e s u t i -
liza o t e r m o " n a ç ã o " c o m o g r u p o d e p r o c e d ê n c i a , e n q u a n t o , n o c o n t e x t o r e l i g i o s o ,
refere-se a p e n a s a d i v e r s a s " c o n f r a r i a s " o u " c o l é g i o s " d i s t i n g u i d o s p o r " p r e c e i t o s espe-
ciais r e l a t i v o s à a l i m e n t a ç ã o , às v e s t i m e n t a s , aos deveres religiosos p e c u l i a r e s ao c u l t o
deste o u a q u e l e s a n t o o u o r i x á " (Os africanos..., p p . 101, 234).
W e b e r , " T h e s o c i a l . . . " , p p . 271-75; M a l i n o w s k i , Magic..., p. 67. Para o " c o m p l e x o f o r -
t u n a - i n f o r t ú n i o " : T u r n e r , The drums...-, J a n z e n , The quest..., idem, Ngoma; Craemer,
V a n s i n a e Fox, " R e l i g i o u s . . . " , p p . 463, 475. K a r a s c h (A vida..., c a p . 9, p p . 354-56) e
Slenes (Na senzala..., p. 143) a d o t a m a p e r s p e c t i v a de C r a e m e r et aí. p a r a o e s t u d o da
religiosidade brasileira.
Esses conceitos de religião e ritual f o r a m i n s p i r a d o s pelo curso "Religions of Africa", m i -
nistrado no SOAS da U n i v e r s i d a d e de L o n d r e s , pelo h i s t o r i a d o r da religião africana, prof.
Louis B r e n n e r , n o q u a l c o l a b o r e i c o m o p r o f e s s o r assistente, n o p e r í o d o 1997-1998. Para
u m a d i s c u s s ã o m a i s a b r a n g e n t e d o t e m a ver, e n t r e o u t r o s , D u r k h e i m , Les formes....,
p p . 31-66; G e e r t z , A interpretação..., pp. 101-42, Spiro, " R e l i g i o n . . . " , p p . 187-222.
M i n t z e Price, The birth..., p. 23.
D u r k h e i m , Les formes..., p. 60; T u r n e r , The ritual..., cap. 3; Lewis, Êxtase..., p p . 32-36.
Para u m a a n á l i s e d o s c u l t o s p e r i f é r i c o s c o m o d i s c u r s o c o n t r a - h e g e m ô n i c o , Boddy,
Wombs..., p p . 156-58; Stoller, Etnbodying..., pp. 23-26.
' B o s m a n , A new..., p p . 368a, 369, 382-83; N o r r i s , Memoirs.., p p . 45, 54.
2
B o s m a n , A new..., p p . 371, 369.
3
B o s m a n , A new..., p p . 371-72.

120
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

14
B o s m a n , A new..., p. 367a.
15
Lewis, Êxtase..., pp. 32-36. Para u m a crítica das "teorias da m a r g i n a l i d a d e " , ver Giles,
"Possession...", p p . 234-57.
16
M a u p o i l , La géomancie..., p. 64; Glélé, Le daxomé..., p. 76.
17
Lepine, "As m e t a m o r f o s e s . . . " , pp. 134-36; cf. Le Herissé, LAncien..., p. 128; Herskovits,
Dahomey..., vol. I, p. 20; Verger, Notas..., p p . 244-45.
18
M i n t z e Price, The birth..., p p . 18-19; Bastide, Sociologia..., p p . 92-93, 107.
19
Bastide, Sociologia..., p p . 314-16.
20
Para u m a i n t e r e s s a n t e análise do c l i e n t e l i s m o nas i r m a n d a d e s católicas, ver Silveira,
Yyá..., p p . 45-51.
21
Karasch, A vida..., p p . 342-50; Reis, T h e politics..., p. 15.
22
Mulvey, T h e black..., p. 149.
23
Para u m a discussão da c o n s t r u ç ã o d o c o n c e i t o de f e t i c h i s m o , d e r i v a d o do t e r m o por-
t u g u ê s "feitiço", ver W i l l i a m Pietz, " T h e p r o b l e m of t h e f e t i s h . . . " , vols. I, II e Illa.
24
Ver, por e x e m p l o , Soares, Devotos..., cap. 6, e s p e c i a l m e n t e pp. 206 e 217.
25
Reis, "Nas m a l h a s . . . " , p. 41. Esse a r t i g o foi a m p l i a d o e p u b l i c a d o sob o t í t u l o "Nas
m a l h a s do p o d e r escravista. A invasão d o C a n d o m b l é d o A c c ú " , in Reis e Silva, Nego-
ciação e conflito..., p p . 32-61. D o r a v a n t e , referências a esse t r a b a l h o a p a r e c e r ã o c o m o
Reis e Silva, Negociação
26
Souza, O diabo..., pp. 263-69, 385.
27
Souza, O diabo..., p. 263; Reis, " M a g i a . . . " , p. 62.
28
Souza, O diabo..., p p . 264-67; M o t t , " O c a l u n d u . . . " , pp. 73-82.
25
M o t t m o s t r a a g r a n d e s e m e l h a n ç a e n t r e o c a l u n d u de Luiza P i n t a , em Sabará, c o m os
cultos dos xinguilas ( c u r a d o r e s - a d i v i n h a d o r e s ) de A n g o l a , descritos pelo c a p u c h i n h o
i t a l i a n o J o ã o A n t o n i o Cavazzi d e M o n t e c u c c u l o , n a s e g u n d a m e t a d e d o século XVII;
t a m b é m n o t a as d i f e r e n ç a s e s t r u t u r a i s c o m as tradições religiosas da Á f r i c a o c i d e n t a l .
N u m a das audiências d o i n q u é r i t o , Luzia P i n t a declara, em relação a suas experiências
de m e d i u n i d a d e , q u e "a dita d o e n ç a lhe c h a m a m na sua terra c a l u n d u s e q u e esta se
p e g a de u m a s pessoas a o u t r a s [...] e q u e só a havia de curar e ter r e m é d i o m a n d a n d o
t o c a r alguns i n s t r u m e n t o s e f a z e n d o [algumas coisas] mais", e n t r e as quais estariam
esfregas e uso e x t e r n o e i n t e r n o de p ó , v i s a n d o ao e x o r c i s m o da d o e n ç a ( M o t t , " O
c a l u n d u . . . " , p p . 75, 80-81). Experiências de m e d i u n i d a d e c o m o s i n t o m a de d o e n ç a ,
q u e precisa ser c u r a d a através de rituais q u e envolvem t o q u e de t a m b o r e s e práticas
d e exorcismo e nos quais o d o e n t e passa, depois da cura, a f u n c i o n a r c o m o curador, são
características reconhecidas em m u i t o s cultos da área b a n t o , aos quais Janzen c h a m a , de
f o r m a genérica, ngoma (Janzen, Ngoma...; Turner, The drums of affliction...).
30
C a d e r n o do P r o m o t o r , n 2 129. Lisboa, ANTT, fl. 490. Agradeço a Luiz M o t t por ter ge-
n e r o s a m e n t e cedido cópia dessa d o c u m e n t a ç ã o , e a T â n i a P i n t o por ter i n i c i a l m e n t e
c h a m a d o m i n h a a t e n ç ã o para o caso c i t a d o .
51
H a r d i n g , A refuge..., p p . 81-85, 177-86.
32
Souza, O diabo..., p. 263.
33
Reis, " M a g i a . . . " , p. 62.
34
C a r t a m a n u s c r i t a d e p o s i t a d a na Biblioteca do E s t a d o de P e r n a m b u c o e m " C o r r e s p o n -
d ê n c i a da C o r t e , 1780-1781", fls. 23-23v, a p u d Soares, Devotos..., pp. 158-59.
35
A prática de sacrifícios a n i m a i s está d o c u m e n t a d a n o Brasil desde os p r i m ó r d i o s d o
século XVII. E m 1618, q u a n d o da visita da I n q u i s i ç ã o à Bahia, Sebastien Barreto de-

122
DO C A L U N D U A O CANDOMBLÉ

nunciava "o c o s t u m e q u e t i n h a m os negros d e m a t a r a n i m a i s q u a n d o em l u t o para


]avarem-se em seu sangue, d i z e n d o e n t ã o que a alma deixava o c o r p o para subir ao céu"
(Bastide, Sociologia..., p. 249; Verger..., Fluxo, p. 530).
36
Mott, " A c o t u n d á . . . " , p p . 124-47. C i t a d o t a m b é m em Souza, O diabo..., pp. 268-69.
Courá seria u m a e v o l u ç ã o de " k o u r a m o " , t e r m o q u e aparece na d o c u m e n t a ç ã o dos
séculos XVIÍ e XVIII c o m o u m rio, lago, ilha m a r í t i m a o u vila p e r t o da atual Lagos
(Nigéria): M o t t , " A c o t u n d á . . . " , p. 136. Ver t a m b é m Verger, Fluxo..., p p . 204, 207, 209.
37
Sobre as b o l s a s d e m a n d i n g a , ver S o u z a , O diabo..., p p . 204-26; M o t t , "A v i d a . . . " ,
p p . 8 5 - 1 0 4 ; H a r d i n g , A refuge..., p p . 2 7 - 3 3 . S o b r e os gbo e boctò, Bosman, A
new..., p p . 3 6 7 a , 368; H e r s k o v i t s , Dahomey..., vol. II, pp. 256-88; Blier, African....
"Ebó" é um t e r m o a t u a l m e n t e polissêmico q u e , em i o r u b á , significa sacrifício a n i m a l
ou o f e r e n d a , o s e n t i d o básico q u e a q u i n o s interessa.
38
Reis, " M a g i a . . . " , p. 75.
39
Reis, " M a g i a . . . " , pp. 70-71.
40
Reis, " M a g i a . . . " , p. 73.
41
Bastide, Sociologia..., p. 78.
42
Ferretti, Querebentan..., p. 227.

123
4
A C O N T R I B U I Ç Ã O JEJE NA
I N S T I T U C I O N A L I Z A Ç Ã O DO C A N D O M B L É N O SÉCULO XIX

A EMERGÊNCIA DE U M A REDE DE C O N G R E G A Ç Õ E S R E L I G I O S A S E X T R A D O M É S T I C A S

As práticas religiosas baseadas no "complexo altar—oferenda" e a sua extensão


em cerimónias públicas com toques de tambor, danças e manifestação de múl-
tiplas divindades no corpo dos seus adeptos, se bem pudessem ficar restritas
ao âmbito doméstico, tendiam a se organizar em espaços particulares reser-
vados para esses fins. A maior complexidade ritual e a m a n u t e n ç ã o desses
espaços sagrados requeria um dispêndio maior de recursos e, consequente-
mente, a participação de um maior número de pessoas. O surgimento de uma
rede de congregações religiosas com essas características na Bahia do século
XIX e as suas interações sociais serão os temas deste capítulo.
Até recentemente, a historiografia da atividade religiosa dos africanos
na Bahia do século XIX foi um tema pouco desenvolvido e reduzia-se qua-
se exclusivamente aos trabalhos de N i n a Rodrigues, Pierre Verger e João José
Reis.1 Felizmente, nos últimos anos os estudos sobre o C a n d o m b l é do pe-
ríodo pré-abolição têm ganhado maior interesse e, enfim, está-se desenvol-
vendo um esforço mais sistemático para abordar o tema. 2 A correspondência
e outros documentos da polícia, depositados no Arquivo Público do Estado da
Bahia, e os jornais da época constituem as principais fontes documentais;
porém, para a primeira metade do século XIX, elas são ainda escassas, enquan-
to para a segunda metade elas são mais numerosas e consistentes.
Entre os jornais tem destaque O Alabama, "periódico crítico e chistoso",
fundado em Salvador em 1863. Embora os editores desse jornal fossem afro-
descendentes e pró-abolicionistas, eles viam o Candomblé como uma expres-
são de barbarismo, superstição e promiscuidade sexual, e lançaram contra o
mesmo uma campanha sistemática de denúncias. Apesar desse viés ideológico,
as notícias desse jornal oferecem preciosas descrições quase etnográficas das

125
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

práticas religiosas africanas, em alguns casos presenciadas diretamente pelos


jornalistas, e d o c u m e n t a m terminologia africana, nomes de líderes e partici-
pantes, assim c o m o a localização dos diversos c a n d o m b l é s . Esse material
constitui, sem dúvida, a fonte documental mais rica sobre o C a n d o m b l é baiano
na década de 1860 e será analisado mais adiante. 3
Por e n q u a n t o nos concentraremos no período prévio de 1800-1850. Como
vimos no capítulo 3, no natal de 1808, falava-se em Santo Amaro dos "ajunta-
mentos" simultâneos, porém em ruas separadas de escravos angolas, jejes e
nagôs-hauçás. Esses batuques, danças e banquetes eram celebrados ao ar livre
ou em casas abandonadas tomadas p o n t u a l m e n t e para essas ocasiões, e não du-
ravam mais de um dia. 4 Eram, portanto, "corporações" ainda sem u m a orga-
nização estável ou espaços próprios para suas atividades.
Porém sabemos que um ano antes, em 1807, nas terras da fazenda Boa Vista,
pertencentes ao engenho de Herminigildo Netto, no distrito Madre de Deus
(perto de Santo Amaro), existiu uma congregação ritual aparentemente mais
estável, liderada por Antônio, u m jovem escravo angola. A n t ô n i o foi preso e
identificado nos documentos como "presidente do terreiro dos candombleis".
Trata-se do primeiro registro conhecido da palavra "candomblé", um termo
provavelmente de origem banto. Nessa expressão, "candombleis" parece utili-
zado como sinónimo de batuque, p o d e n d o referir-se a práticas de cura e/ou
adivinhação, mas o título de "presidente" sugere uma incipiente organização
hierárquica de uma coletividade religiosa. C o m o comenta Rachel Harding, a
palavra "candomblé" surge no m o m e n t o em que o termo "calundu" deixa de
ser utilizado. 5 Essa coincidência pode ser aproveitada para reforçar a polarida-
de analítica, sugerida n o capítulo precedente, entre os velhos calundus coloniais
e os novos candomblés de maior complexidade organizacional, e talvez para
datar, grosso modo, a emergência e maior visibilidade dos segundos nesse iní-
cio do século.
A tese central de Harding é que o C a n d o m b l é surgiu como uma resposta à
escravidão e como resistência contra a desumanização do africano escravizado.
Essa autora enfatiza os conceitos de "comunhão/comunidade, refúgio/resistência
e cura/reparação" como meios para a criação de um sentido de identidade negra
alternativa sob a escravidão. 6 A adversa condição compartilhada da escravidão
e a comunalidade de orientações cognitivas africanas teriam levado os negros
a u m a solidariedade interétnica de caráter "pan-africanista". Embora essas duas
idéias sintetizem importantes dinâmicas do Candomblé, penso que o proces-
so de formação dessa instituição não pode ser reduzido apenas a esses fatores.
Em primeiro lugar, o "pan-africanismo" defendido por H a r d i n g é questio-
nável, como fica claro no exemplo dos ajuntamentos de Santo Amaro de 1808.

126
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

As divisões étnicas por nações existiam e, como veremos, foram até estimula-
das pelos poderes políticos, principalmente nas primeiras décadas do século.
Após o fim do tráfico transatlântico, em 1850, as distinções entre nações não
aparecem na d o c u m e n t a ç ã o de f o r m a tão explícita, mas elas persistiram em
alguns candomblés no decorrer do século, apesar da crescente heterogeneidade
étnica e racial dos seus participantes. Seria só após a abolição, com o decréscimo
de africanos na Bahia, que uma identidade "africana" foi assumida por certas
comunidades, e todavia essa "africanidade" esteve fortemente associada à cul-
tura iorubá, o que faz difícil catalogá-la como "pan-africanismo".
Certamente a dinâmica de contraste entre os interesses e valores da "clas-
se" subalterna dos negros e os da camada senhorial foi um fator determinante
para configurar importantes aspectos dessa instituição religiosa, através da res-
significação de velhas práticas religiosas com novas intencionalidades, como,
por exemplo, a produção de bolsas de mandinga para se proteger dos abusos
dos senhores, ou a reinterpretação de novas formas religiosas com velhos sen-
tidos, como, por exemplo, o sincretismo dos santos católicos com as divinda-
des africanas. Nesse c o n f r o n t o com a cultura ibérica e o catolicismo hege-
mónico, o C a n d o m b l é emergiu como u m a instituição religiosa "periférica" e
socialmente marginal, c o m o um discurso cultural paralelo e por vezes contra-
hegemônico.
Entretanto, a génese do C a n d o m b l é não pode ser reduzida a uma oposição
de "classe" ou a uma simples resposta de resistência à escravidão, e deve ser tam-
bém encarada como resultado ou efeito do encontro intra-africano, possuindo
uma relativa autonomia em relação à sociedade mais abrangente decorrente da
sua própria dinâmica interna. A reatualizaçáo das práticas religiosas africanas
podia responder às estratégias contra o infortúnio, que iam além da escravidão,
ou satisfazer a necessidades de solidariedade grupai ou c o m p l e m e n t a r i d a d e
dialética inerentes à micropolítica africana.
O u t r o fator a ter em conta é que, apesar de os candomblés contarem entre
seus participantes com um n ú m e r o significativo de escravos e servirem muitas
vezes de refúgio para escravos fugitivos, a instituição não foi desenvolvida ex-
clusivamente por esse segmento social. De fato, a formação das congregações
religiosas foi um f e n ó m e n o liderado essencialmente por libertos. De um total
de 81 referências documentais a líderes religiosos levantados por Reis para o
período 1800 -1888, só dois eram escravos. Esses dados demonstram o papel
critico dos libertos, com maior mobilidade e disponibilidade de recursos, n o
desenvolvimento e na manutenção do C a n d o m b l é .
Aliás, os africanos libertos líderes de Candomblé, como os calunduzeiros
setecentistas, em muitos casos prestavam serviços religiosos a clientes pertencen-

127
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

tes a u m a m p l o e s p e c t r o social, m u i t o além da c o m u n i d a d e negra, incluindo


p a r d o s e b r a n c o s , p o b r e s e ricos, livres, libertos e escravos, o q u e indica que
o C a n d o m b l é , já desde o seu início e de f o r m a crescente, baseou suas ativida-
des n u m a estratégia de inclusão social, pelo m e n o s n o q u e se refere a clientes
e p a r t i c i p a n t e s , e, p o r t a n t o , n ã o p o d e ser e n c a r a d o apenas c o m o u m espaço
de "refúgio" dos negros. A c r e d i t o q u e essa a b e r t u r a e c a p a c i d a d e de estabe-
lecer vínculos externos à c o m u n i d a d e negra c o n t r i b u i u t a m b é m para a conso-
lidação e e x p a n s ã o do C a n d o m b l é .
Isso não significa negar a i m p o r t â n c i a da religião nos processos de resistên-
cia escrava, s o b r e t u d o na p r i m e i r a m e t a d e d o século. Por e x e m p l o , o intento
de revolta escrava h a u ç á em 1807 foi de i n s p i r a ç ã o religiosa. Informações
s o b r e q u i l o m b o s dessa é p o c a i n d i c a m a p r e s e n ç a d e t a m b o r e s e atividade
religiosa r e l a c i o n a d a c o m revoltas. A l é m d o uso f r e q u e n t e de a m u l e t o s e
" m a n d i n g a s " , m u i t a s vezes de o r i g e m malê, em m e i o aos i n s t r u m e n t o s de luta
dos c o n s p i r a d o r e s a f r i c a n o s , o levante i n i c i a d o em 28 de fevereiro de 1814,
em Itapuã, por exemplo, foi liderado pelo escravo Francisco, c h a m a d o de "rei"
e " p r e s i d e n t e das danças de sua n a ç ã o , seu p r o t e t o r e a g e n t e " , e sua compa-
n h e i r a , a "rainha" Francisca. E m 12 de fevereiro de 1816, escravos de Santo
A m a r o e São Francisco d o C o n d e i n i c i a r a m u m a revolta "após u m a festa reli-
giosa". E m 1826, a f r i c a n o s ligados ao levante do q u i l o m b o d o U r u b u , nos
s u b ú r b i o s de Salvador, na sua m a i o r i a de o r i g e m nagô, se r e f u g i a r a m n u m a
"casa a q u e se c h a m a de c a n d o m b l é " . M e n c i o n a - s e a "rainha" Z e f e r e i n a como
u m dos chefes da i n s u r r e i ç ã o e o m u l a t o A n t ô n i o de tal c o m o d o n o d o can-
d o m b l é . Ali f o r a m e n c o n t r a d o s o b j e t o s r i t u a i s c o m o " c o n c h a s " (búzios),
c h o c a l h o s , a t a b a q u e s , " u m a c o r o a de p a p e l ã o com enfeites de búzios" (que
foi e n f i a d a na cabeça do n e g r o ferido), estatuetas de "vacas p i n t a d a s de encar-
n a d o " e "um c h a p é u e n c a r n a d o c o m três p l u m a s " . 8
E m todos esses casos, as revoltas pareciam estar i n t i m a m e n t e ligadas à ati-
v i d a d e religiosa e i n d i c a m a existência de certas congregações religiosas afri-
canas. N o e n t a n t o , a d o c u m e n t a ç ã o não p e r m i t e saber a c o m p l e x i d a d e e o
nível de i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o dessas "festas religiosas" e " c a n d o m b l é s " . As re-
beliões armadas p o d i a m beneficiar-se t a m b é m de outras formas de organização
político-religiosa c o m o as irmandades negras, mas os c a n d o m b l é s , devido a sua
necessidade de m a n t e r a regra da discrição, p o d i a m ser espaços mais propícios
para a organização de m o v i m e n t o s insurgentes. N ã o é s u r p r e e n d e n t e , p o r t a n -
to, q u e as a u t o r i d a d e s tivessem e n t e n d i d o as manifestações religiosas dos afri-
canos c o m o u m a ameaça e u m foco potencial de insurreição a ser c o n t r o l a d o .
As diversas políticas de repressão ou tolerância dessas reuniões, adotadas
pelas elites brancas nas primeiras décadas do O i t o c e n t o s , e n c o n t r a m antece-

128
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

dentes n o século XVIII. Já em 1728 achamos a polaridade entre uma tendência


m o d e r a d a e tolerante e outra mais autoritária e intransigente, no caso do pere-
g r i n o N u n o Marques Pereira e o fazendeiro que o hospedou. O segundo parecia
aceitar os folguedos dos escravos como uma forma de controle social, enquanto
o p e r e g r i n o se mostrava revoltado, vendo nesses calundus horrível ofensa a
D e u s . Como aponta Laura de Mello e Souza, "o paternalismo tolerante e com-
p r e e n s i v o do senhor e a intransigência dogmática e o r t o d o x a do peregrino
9
c o n s t i t u í a m , portanto, duas faces possíveis da ideologia da camada senhorial".
A história da perseguição religiosa no Brasil colónia sugere que o último quar-
tel do século XVIII viu u m a f r o u x a m e n t o em relação às práticas da religião
10
p o p u l a r , fato provavelmente agravado pela expulsão dos jesuítas em 1759.

No século XIX, essa polaridade entre atitudes conflituosas de tolerância


e repressão fica b e m refletida nas políticas de dois governadores da Bahia, o
sexto conde da Ponte, que governou entre 1805 e 1810, e o oitavo conde dos
Arcos, que o sucedeu, governando até 1818. O caso já foi bem estudado por
Reis e Silveira, entre outros autores. O conde da Ponte defendia uma política
de repressão sistemática por considerar "a festa africana subversiva por n a t u -
reza, porque criava no escravo o gosto da independência, estimulava a sua
autoconfiança, p r o m o v i a a libertinagem e o desprezo pelos valores ociden-
tais de moralidade e estética". D o seu lado, o conde dos Arcos considerava
boa política permitir os "batuques" africanos, apesar das recomendações con-
trárias do governo geral do Rio. Para ele, esses " a j u n t a m e n t o s " que reagru-
pavam os escravos por nações c o n t r i b u í a m para a sua divisão interna, sepa-
rando os diversos grupos étnicos. Ao lado de reconhecer o direito do escravo
ao lazer, o conde temia que a repressão viesse a criar uma u n i d a d e entre eles
contra os interesses escravistas. Isto é, segundo o conde da Ponte, a festa con-
tribuía para a elaboração de tensões, e n q u a n t o para o conde dos Arcos ela
era entendida c o m o u m a válvula de escape, aliás, u m fator de desunião que
contribuía para a conhecida estratégia d o "divide e vencerás". 1 1
Essas questões c o n t i n u a r a m dividindo os representantes do poder pós-co-
lonial. No ano 1829, A n t ô n i o Gomes de Abreu Guimarães, juiz de paz da fre-
guesia de Brotas e seguidor da política repressiva do conde da Ponte, a q u e m
reverenciava explicitamente, o r d e n o u o assalto de u m c a n d o m b l é localizado
na sua freguesia, no local chamado Accú, provavelmente o atual A c u p e . u Esse
'nteressante episódio está d o c u m e n t a d o n u m a carta do p r ó p r i o Guimarães,
achada mais u m a vez por Reis e c o m e n t a d a no seu artigo "Nas malhas do
poder escravista: a invasão do c a n d o m b l é do Accú na Bahia, 1829". No con-
texto do presente trabalho, esse c a n d o m b l é é digno de atenção p o r q u e existe
uma referência ao culto do "Deus Vodum", o que poderia indicar u m a origem

129
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

jeje da congregação religiosa. 13 Além de se tratar da primeira referência escrita


ao vocábulo "vodum" na Bahia, e n c o n t r a m o s nesse c a n d o m b l é evidência de
u m a congregação religiosa com uma capacidade organizacional complexa, en-
volvendo a participação de mais de 36 pessoas (foram presos 3 h o m e n s e 22
mulheres, e n q u a n t o 11 mulheres ficaram no local e outros fugiram), e festas
q u e duravam vários dias, pois, em palavras do magistrado, "este festejo ha-
via já três dias que se fazia com estrondo". 1 4
A cerimónia que foi interrompida pelo assalto da tropa é descrita pelo juiz
da seguinte forma: "Em cima de u m a mesa toda preparada, u m Boneco todo
guarnecido de fitas, e búzios, e uma cuia grande da Costa cheia de Búzios, e
algum dinheiro de cobre m i s t u r a d o das esmolas, t o c a n d o t a m b a q u e e cuias
guarnecidas de búzios, d a n ç a n d o umas [mulheres], e outras em um quarto
d o r m i n d o , ou fazendo que dormiam". 1 1 Nessa descrição achamos novamente
o "complexo altar—oferenda": a devoção a um "boneco", representação do
"Deus Vodum", com oferendas de dinheiro e búzios. Além disso, o texto sobre
as mulheres que estavam " d o r m i n d o , ou fazendo que d o r m i a m " , sugere tal-
vez vodúnsis recolhidas na c a m a r i n h a n u m estado de erê, o que indicaria a
existência de processos de iniciação no candomblé. Tudo isso aponta para um
culto com u m a complexidade de práticas rituais semelhante aos candomblés
contemporâneos e precisa ser distinguido dos "ajuntamentos" de escravos to-
lerados pelo conde dos Arcos, mencionados acima, que não deixavam de ser
reuniões esporádicas sem a infra-estrutura para um culto organizado.
Na sequência cronológica da documentação existente sobre as práticas re-
ligiosas dos jejes, que se inicia com a feiticeira mina jeje de 1765, passando pela
congregação doméstica de Cachoeira em 1785, até esse candomblé de 1829,
vemos claramente o processo que vai da atividade individualizada de especia-
listas religiosos jejes até atingir um culto organizado em congregações relativa-
m e n t e estáveis. A década de 1820 marca, assim, a culminação de um processo
iniciado no século XVIII que leva à progressiva consolidação de novas institui-
ções religiosas de base social cada vez mais ampla, incluindo participantes de
qualquer cor e status legal, mas dominadas e controladas na maioria dos casos
pela população negra e, nessa época do século, m a j o r i t a r i a m e n t e por libertos
africanos. O caso dos jejes é emblemático de um processo que devia dar-se
t a m b é m entre as outras nações africanas como os nagôs ou angolas, o que nos
permitiria falar da emergência de u m a comunidade religiosa "afro-brasileira"
já na década de 1820.
Voltarei a falar do candomblé do Accú mais adiante. Por e n q u a n t o , conti-
n u e m o s e x a m i n a n d o as politicas divergentes da camada senhorial diante da
proliferação dos cultos africanos. O juiz de paz Guimarães, na mesma carta

130
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

onde se descreve o assalto do Accú, escrita ao visconde de C a m a m u , então


presidente da província, critica o juiz de paz do vizinho distrito do E n g e n h o
Velho por tolerar uma grande festa com "bandeirolas, partidos, e vozes de viva
o Senhor D o m João, e o Senhor D o m Pedro, que a m u i t o custo se a c o m o d o u ,
e foi tanto o povo, que em um só dia matou-se um Boi, além do mais, e teve
gente de várias cores". 1 6
Em 1832, n u m sítio c h a m a d o Batefolha, na freguesia de Santo A n t ô n i o
Além do C a r m o , fronteiriça à de Pirajá, eram ouvidos " c o n t i n u a m e n t e to-
ques de tabaques" e achou-se "grande a d j u n t o de h o m e n s pretos, brancos,
pardos e mulheres, os quais faziam parte daqueles batuques". O juiz de paz
da freguesia de Pirajá t e n t o u reprimir a festa, mas os participantes apresen-
taram uma licença concedida pelo juiz de paz da freguesia de Santo A n t ô -
nio. 17 C o m p r o v a m o s , assim, as atitudes conflituosas dos juizes de paz das
diversas freguesias em relação aos a j u n t a m e n t o s festivos de negros, porém não
sabemos ao certo se essas duas festas t i n h a m um caráter religioso ou eram fes-
tas seculares. C o n t u d o , não é improvável que elas fossem a c o m p a n h a d a s de
algum tipo de prática ritual de caráter religioso.
C o n t i n u a n d o com sua política repressiva, em 1831 o mesmo Antônio Gui-
marães, com u m a tropa de 30 soldados, sob o c o m a n d o de um certo capitão
Matos, invadiu, embora fora dos limites da sua freguesia, mais de 30 casas de
africanos no distrito do E n g e n h o Velho, o n d e se e n c o n t r a r a m "tambaques,
Santos, e instrumentos de seus Diabólicos festejos, que a Tropa quebrou" e,
ainda, na mesma noite, assaltaram uma casa vizinha localizada n u m morro "que
de contínuo existia nela pretos, e pretas com danças, toques e venturas [adivi-
nhação]", onde foram presos "bastantes pretos e pretas". 18
Todos esses episódios sugerem, já nos anos 1830, a existência de várias
congregações religiosas bem organizadas, com uma certa estabilidade, com
numerosos participantes e com capacidade para reagir contra a repressão.
Tanto no c a n d o m b l é de Accú c o m o n o do E n g e n h o Velho existe evidência
de que certos m e m b r o s dessas congregações t i n h a m relações com persona-
gens influentes dos poderes públicos e da sociedade civil. N o caso do Accú,
o africano liberto Joaquim Baptista, morador e talvez zelador do candomblé,
queixou-se ao presidente da província, o visconde de C a m a m u , pelo roubo de
vários objetos e dinheiro no assalto ao terreiro. Um outro participante desse
candomblé, provavelmente um alabé ou tocador de ta.mba.que, era escravo e,
ao
mesmo t e m p o , feitor do visconde de Pirajá. Q u a n d o , j u n t o com outros
pretos, foi reclamar ao juiz de paz Antônio Guimarães pelo roubo, alegou que
Vinham da parte do seu senhor no propósito de i n t i m i d a r o juiz. Verdade ou
nao, o fato é que essas estratégias evidenciam que as congregações religiosas

131
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

possuíam uma rede de contatos sociais, utilizadas q u a n d o era preciso garan-


tir o f u n c i o n a m e n t o das suas atividades. 1 9
No assalto do candomblé do Engenho Velho, as tropas acharam entre os
assistentes um procurador branco de n o m e Joaquim José de Oliveira. Este não
era um visitante ocasional do terreiro, pois procurou persistentemente conse-
guir a soltura dos negros com algum efeito. 2 " Essa evidência sugere a existência
de pessoas ligadas aos candomblés, em alguns casos brancos, que podiam
interceder diante da sociedade civil em defesa dos terreiros. Foi talvez nessa
época que começou a institucionalizar-se o cargo de ogã com a função de re-
presentante da congregação religiosa perante a sociedade civil, como perdura
até nossos dias.
E difícil avaliar a estabilidade e continuidade desses candomblés, se eram
centros onde periodicamente eram realizadas festas e obrigações religiosas com
um calendário litúrgico estabelecido, ou se eram as festas celebradas só ocasio-
nalmente, q u a n d o as circunstâncias eram favoráveis. N o caso do Batefolha,
mencionado anteriormente, Reis aponta para uma certa estabilidade do suposto
candomblé, visto que, seis anos depois, em 1838, aparece registrado num mapa
do exército legalista que combatia os rebeldes da Sabinada um candomblé muito
perto do local onde foi celebrada a festa de 1832. 21 Em qualquer caso, essas
festas podiam durar vários dias — recordemos que no caso do candomblé de
Accú o "festejo havia já três dias que se fazia com estrondo" — , o que implica
uma capacidade organizacional complexa e, provavelmente, a existência de uma
estrutura litúrgica que dividia a festa em várias partes.

A C O M P O S I Ç Ã O SOCIAL E A CRESCENTE M E S T I Ç A G E M N O S C A N D O M B L É S

Um fato que chama a atenção é a heterogeneidade étnica e racial dos parti-


cipantes desses ajuntamentos e festas religiosas. N o candomblé de Accú, para
a surpresa do juiz de paz, acharam-se tanto africanos como crioulos, "três pre-
tos, porque os outros fugiram, imensas pretas, e por mais desgraça muitas criou-
las naturais do País". No assalto do candomblé do Engenho Velho fala-se de
"pretos e pretas", termos que na linguagem da época referiam-se aos africanos,
mas já vimos a presença do procurador branco entre eles. Na outra festa do En-
genho Velho, criticada na carta de Guimarães de 1829, cita-se a presença de
"gente de várias cores". Na festa do Batefolha foram achados "homens pretos,
brancos, pardos e mulheres".
Essa heterogeneidade étnico-racial será uma tendência crescente na segunda
metade do século. Harding e Reis analisaram a composição social dos can-

132
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

domblés no período 1800-1888. A partir da documentação policial, H a r d i n g


e n c o n t r o u um total de 95 documentos, 65 deles positivamente identificados

como referentes a candomblés e 30 provavelmente referentes a práticas religio-


sas africanas. Reis analisou seus dados a partir de referências a líderes de can-
domblés, achando um total de 81 indivíduos. Na minha análise de O Alabama,
para o período mais restrito de 1863-1871, identifiquei um total de 65 registros
referentes a líderes e/ou candomblés. 2 2 Procurei também diferenciar entre casos
em que é clara a existência de uma congregação religiosa complexa ("candom-
blé") e casos de especialistas religiosos que aparentemente trabalhavam de u m a
forma individual, principalmente com práticas de cura e adivinhação, e sem
indícios de uma infra-estrutura coletiva ou congregação religiosa organizada
("indivíduos"). Embora essa distinção não seja sempre fácil de estabelecer, uma
classificação provisória identificou 37 "candomblés" e 28 "indivíduos".
Os resultados dessas três pesquisas não coincidem sempre, mas convergem
invariavelmente para u m a série de fatos. C o n f i r m a - s e que os c a n d o m b l é s
reuniam pessoas de vários status legais (escravos, libertos e livres), identidades
étnico-raciais (africanos, crioulos, mestiços e brancos) e condições sociais. No
entanto, q u a n d o se distingue entre líderes, participantes e clientes aparecem
recortes mais específicos. Já comentei a escassa presença dos escravos como
chefes de candomblés. O s longos períodos de reclusão necessários para a ini-
ciação eram dificilmente acessíveis para eles e limitavam o seu envolvimento
maciço e continuado. 2 3 Porém, os escravos constituíam uma parte importante
da clientela, muitas vezes em busca de remédios para apaziguar a fúria dos seus
senhores, outras em busca de refúgio, sendo que os candomblés foram sem-
pre suspeitos pela elite de esconder escravos fugitivos.
Nessas circunstâncias, eram os libertos e livres, com maiores recursos eco-
nómicos e mobilidade, os que constituíam a maioria de líderes e participantes.
Uma das características do sistema escravocrata baiano era a alta porcentagem
de pessoas de cor livres e libertas, estimada entre 30% e 40% da população total
nas primeiras décadas do século XIX. 24 Esse fato foi determinante e, talvez, até
uma condição necessária para a formação do Candomblé. Isso parece confir-
mar-se quando olhamos para os Estados Unidos, onde a porcentagem de pessoas
de cor não superou 6% do total da população livre antes de 1850, ou a Jamaica,
onde essa porcentagem era apenas 3% em 1800, e comprovamos a ausência de
instituições religiosas comparáveis ao C a n d o m b l é nesses países. Essa hipótese
complementa e não anula aquela outra de Bastide que justifica a dificuldade
de institucionalização de práticas religiosas africanas nos sistemas escravocratas
anglo-saxões pela influência e rigidez do protestantismo, ante a maior flexibi-
lidade do catolicismo em países como Brasil, Cuba ou Haiti. 2 S

133
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Em relação à cor, os brancos aparecem na d o c u m e n t a ç ã o apenas em dois


casos como dirigentes, alguma vez como participantes e na maioria dos casos
só como clientes. Em 1868, n u m terreiro de C a m p i n a s , fala-se da presença
de duas mulheres brancas e o jornalista comenta: "estão tão enraizadas estas
patifarias de candomblé, que eu já não me a d m i r o de ver a gente de cor preta
e n v o l v i d a , q u a n d o até os b r a n c o s são os mais e n c a r n i ç a d o s a d e p t o s da
cousa". 26 Essa pauta parece repetir-se para os mestiços, com dois casos de che-
fia, porém sua presença como participantes ou devotos era seguramente su-
perior à dos brancos. 2 7
A maioria de líderes e p a r t i c i p a n t e s dos c a n d o m b l é s era, p o r t a n t o , ne-
gra, c o m p o s t a de africanos e crioulos. A p a r t i r dos 65 d o c u m e n t o s positi-
v a m e n t e i d e n t i f i c a d o s , H a r d i n g c o n c l u i u que, no p e r í o d o 1800-1850, 69%
e r a m c a n d o m b l é s exclusivamente de a f r i c a n o s e 31% c a n d o m b l é s mistos
(africanos-crioulos, africanos-crioulos-pardos, africanos-crioulos-pardos-
brancos). Já no p e r í o d o 1851-1888, a p r o p o r ç ã o se inverte, sendo apenas
37% candomblés africanos e 63% candomblés mistos. 2 8 A tendência ao cres-
c i m e n t o da h e t e r o g e n e i d a d e étnico-racial ao longo do século parece, desse
m o d o , clara.
A p a r e n t e m e n t e , esse fato coloca sérias dúvidas sobre a persistência de di-
visões dos candomblés em termos de nações e sustentaria a tese de H a r d i n g
de u m certo "pan-africanismo", embora o termo não me pareça o mais apro-
priado, devido à ênfase no c o m p o n e n t e "africano", q u a n d o sabemos que eram
os crioulos, e em menor medida os pardos e brancos, os que c o n t r i b u í r a m
para a crescente miscigenação. Por o u t r o lado, se os participantes e a clien-
tela eram heterogéneos, isso não significa que não existissem, como acontece
ainda hoje, diferenças rituais emblemáticas nas diversas tradições africanas,
ciosamente mantidas pelos líderes dessas congregações.
Q u a n t o à liderança dos candomblés, os dados c o n f i r m a m que os africanos
f o r a m a g r a n d e maioria na primeira m e t a d e do século e, na segunda m e t a -
de, f o r a m progressivamente decrescendo, e m b o r a m a n t e n d o u m a presença
significativa. O s dados de H a r d i n g m o s t r a m que, no período 1800-1850, os
líderes africanos c o n s t i t u í a m 88% e, n o p e r í o d o 1851-1888, 83%. C o m o
aponta essa autora, a chefia crioula pode ter sido minimizada pelo viés ideoló-
gico dos responsáveis pela d o c u m e n t a ç ã o , que pelo menos até 1850 viam o
C a n d o m b l é c o m o um f e n ó m e n o essencialmente africano. Dos 81 líderes
identificados por Reis, 33 eram africanos, 6 crioulos, 5 mulatos e 2 brancos.
Dos 35 casos restantes, 31 são identificados como negros. 29 Dos 55 líderes iden-
tificados na minha análise de O Alabama, 27 eram africanos ou pretos, 1 negro,
1 crioulo, 2 pardos, sendo que em 24 casos não consta identidade étnico-

134
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

racial. De qualquer f o r m a , é m u i t o provável que essa maioria de líderes afri-


canos contribuísse para o estabelecimento e a m a n u t e n ç ã o de práticas rituais
diferenciadas segundo as várias "nações" ou tradições religiosas de origem.
Um o u t r o tema de debate diz respeito ao género dos participantes e líde-
res. Harding a p o n t a que, n o período 1800-1888, as mulheres constituíam en-
tre 60% e 65% dos participantes. Embora os números possam variar, essa maio-
ria feminina entre os participantes, m a n t i d a até nossos dias, parece fora de
dúvida. Ora, q u a n d o consideramos a liderança, vemos que os homens, na sua
maioria africanos, mantiveram a superioridade numérica durante toda a época
pré-abolição. Para o período 1800-1888, H a r d i n g identificou 41 líderes, dos
quais 68,5% eram h o m e n s e 31,5%, mulheres. Já entre os 81 líderes identifi-
cados p o r Reis para o m e s m o p e r í o d o , 61,7% eram h o m e n s e 38% eram
mulheres. D i v i d i n d o os seus dados para os períodos 1800-1850 e 1851-1888,
H a r d i n g m o s t r a c o m o a liderança f e m i n i n a foi a u m e n t a n d o na s e g u n d a
metade do século, passando de 12%, no primeiro período, para 41%, no se-
gundo período. A m i n h a análise dos 55 líderes do período 1863-1871, em-
bora coincida de m o d o geral com a tendência sugerida acima, mostra per-
centagens diferentes: 38 homens (69%) e 17 mulheres (31%). 3 0
Cabe notar u m outro aspecto m e n c i o n a d o apenas en passant por Harding,
que diz respeito ao f e n ó m e n o da co-liderança. Das 55 lideranças do período
1863-1871, nove delas estão constituídas por duas ou três pessoas e todas
correspondem a casos identificados como "candomblés", isto é, congregações
complexas. Em cinco casos trata-se de um h o m e m secundado por u m a m u -
lher. Esse f e n ó m e n o indica que a liderança dos candomblés, embora normal-
mente hierarquizada, era uma responsabilidade muitas vezes compartilhada.
E tentador ver nesse fato u m a influência da tradição v o d u m da área gbe, na
qual sabemos que a liderança dos templos é n o r m a l m e n t e c o m p a r t i l h a d a por
um casal h o m e m - m u l h e r de vodunons (sacerdotes).
Teríamos, assim, que o famoso e tão falado "matriarcado" do C a n d o m b l é
contemporâneo, legitimado nos anos 1940 sobretudo por Ruth Landes, 31 seria
um f e n ó m e n o relativamente recente, sendo que a superioridade f e m i n i n a na
liderança das congregações religiosas só foi atingida no período pós-abolição.
A explicação desse f e n ó m e n o diverge segundo os autores. Reis acha que na
Bahia do século XIX o viés do género não era um fator d e t e r m i n a n t e na for-
mação da liderança religiosa. Segundo esse autor, a inicial superioridade n u -
mérica dos h o m e n s africanos estaria em consonância com a superioridade
demográfica dos homens entre a população escrava. O subsequente incremen-
to das mulheres na liderança estaria, então, d e t e r m i n a d o por razões de or-
dem ritual e sociológica.

135
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Por um lado, no aspecto ritual, a "possessão" é considerada normalmente


um papel simbolicamente feminino e passivo, em que a devota é "montada"
pela divindade. Em O Alabama, na maioria das referências a grupos de iniciação
fala-se exclusivamente de mulheres. Além de constituir a maioria da clientela
dos candomblés, as mulheres eram, portanto, t a m b é m iniciadas em maior nú-
mero. Logicamente, com o progressivo declínio dos líderes africanos, as novas
gerações de mulheres crioulas formavam a base social mais numerosa para subs-
tituí-los na liderança. 3 2 Por outro lado, no sistema escravocrata, especialmente
no âmbito urbano, as mulheres negras tiveram maior independência económica
e mobilidade social do que os homens. Elas o b t i n h a m com maior facilidade a
alforria e chegavam a se converter em pequenas ou médias empresárias, sobretu-
do no setor alimentício. Nesse caso, a hegemonia na liderança religiosa refletiria
o maior status social das mulheres. H a r d i n g apresenta u m a explicação socioló-
gica alternativa, relacionando a crescente hegemonia feminina no Candomblé
com a exclusão das mulheres do controle político das irmandades católicas. 33
A única objeção a esses a r g u m e n t o s é que a supremacia numérica das mu-
lheres entre as pessoas iniciadas e o seu maior status social na sociedade mais
ampla eram condições provavelmente já existentes em meados do século XIX,
e n q u a n t o a sua supremacia na liderança religiosa só se deu na virada do século
XX. A m i n h a impressão é que sim, na Bahia do século XIX devia existir um
certo viés de género masculino na seleção da liderança religiosa, que era de fato
herança tanto das culturas da Africa ocidental como das da África central. O
maior status religioso dos h o m e n s nas instituições religiosas africanas foi
p e r p e t u a d o na Bahia e manteve-se e n q u a n t o houve africanos. A eficácia atri-
buída às práticas religiosas dos especialistas religiosos africanos lhes conferia
u m prestígio que i n f u n d i a respeito e temor. 3 4 A percepção generalizada do
"poder do feiticeiro africano" foi aproveitada por eles para manter a sua he-
gemonia. Só q u a n d o a presença dos africanos foi decrescendo, na virada do
século XX, as mulheres crioulas, pelas razões expostas por Reis, passaram a
assumir a liderança de uma forma majoritária.
Nesse sentido, vale a pena examinar com um pouco mais de detalhe essa
dialética entre africanos e crioulos no contexto da c o m u n i d a d e religiosa. No
caso do já citado candomblé de Accú, observamos que a tradicional animosi-
dade entre africanos e crioulos m a n i f e s t a , por exemplo, nas revoltas escra-
vas das primeiras décadas do século XIX e, no caso específico dos jejes, nas
irmandades católicas do século XVIII (ver cap. 2), não era sempre tão estrita e
generalizada. A expectativa do juiz de paz, provavelmente coincidente com a da
classe dominante, era de que as crioulas, pela sua origem e educação brasileiras,
tivessem atingido um grau maior de "civilização" e, assim sendo, se afastassem

136
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

n a t u r a l m e n t e dos africanos sujeitos a "supertições e gentilismos". Sabe-se que

os africanos sempre foram mais discriminados que os crioulos, como indica,


por e x e m p l o , o maior número de cartas de alforria concedidas aos crioulos. N o
caso do Accú, as crioulas, com seus choros, foram tratadas paternalmente e
soltas, enquanto as pretas africanas permaneceram presas. 3 ' Apesar da surpresa
causada ao juiz de paz, o evento indica que, de fato, na década de 1820, os
africanos já recrutavam crioulos às suas atividades religiosas, não só c o m o
clientes na procura de serviços, mas c o m o devotos, participantes cuja pre-
sença era necessária para m a n t e r a dinâmica interna da congregação.
Como foi apontado no capítulo 2, os crioulos não p o d e m ser considerados
um grupo h o m o g é n e o . Havia aqueles de primeira geração, isto é, criados em
famílias de africanos, que p o d i a m facilmente integrar-se nas atividades reli-
giosas dos seus progenitores. Reis c o m e n t a que essa "incorporação ritual de
um grupo numeroso de não-africanos" era um "imperativo de sobrevivência"
do Candomblé. Na verdade, penso que é precisamente q u a n d o os africanos
conseguem estabelecer redes de parentesco, a partir da sua descendência criou-
la, que é possível a formação de congregações religiosas, primeiro domésticas
ou familiares e depois extradomésticas. C o m o veremos mais adiante, alguns
dos candomblés jejes da segunda m e t a d e do século XIX foram f u n d a d o s por
africanos em colaboração com crioulos, sendo q u e os laços de parentesco
biológico eram essenciais no r e c r u t a m e n t o de novos adeptos. Nesse sentido,
concordando com Reis, diria que mais do que u m a tendência "pan-africa-
nista", o que prevalece na história do C a n d o m b l é do século XIX é um cres-
cente processo de crioulização e mestiçagem. 3 6
No entanto, cabe frisar que essa miscigenação de africanos, crioulos e m u -
latos, apesar de crescente e de acentuar-se, nomeadamente, nas últimas déca-
das do século, não devia ser homogénea, isto é, coexistiam congregações reli-
giosas mais exclusivas com outras mais permeáveis. Por exemplo, temos notícias,
em 1859, de um candomblé na Q u i n t a das Beatas com uma predominância de
africanos (30 africanos, 8 crioulos e 4 mulatos escuros). Já em 1862, sabemos
do candomblé Pojavá, no 2- Distrito de Santo António, com uma predominân-
cia de crioulos (52 crioulos e 3 africanos). Todavia, em 1866, na freguesia da
Conceição da Praia, encontramos "um candomblé de crioulas" dirigido por
Anninha Sapoca. Terreiros de africanos persistiram até o final do século, como
atesta o comentário de uma velha africana a N i n a Rodrigues, que não dançava
no Gantois porque "o seu terreiro era de gente da Costa (africanos)", enquanto
0
Gantois era terreiro "de gente da terra (crioulos e mulatas)". 3
Assim, do mesmo modo que entre a camada senhorial coexistiam atitudes
conflituosas de repressão ou tolerância ao Candomblé, as próprias congregações

137
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

religiosas, talvez respondendo a essas políticas, combinavam ora estratégias de


resistência e isolamento (mais frequentes no início do século), ora estratégias
de abertura e inclusão social (progressivamente mais comuns). Fica por escla-
recer até que ponto essa alternância de atitudes de resistência e integração social
podia resultar em congregações mais fechadas e outras mais permeáveis, no que
tange à composição étnico-racial dos seus membros. Por outro lado, podería-
mos perguntar se essa polaridade entre "candomblés africanos", mais fechados,
e "candomblés nacionais", mais abertos à mistura étnico-racial, estava ou não
em relação direta com a manutenção de modos de rito diferenciados (nações)
e práticas rituais mais "sincréticas", respectivamente.

A O C U P A Ç Ã O 0 0 ESPAÇO U R B A N O E A PARTICIPAÇÃO DA POLÍCIA NO C A N D O M B L É

C o m a decrescente importância das irmandades católicas na segunda metade


do século XIX (que no passado tinham marcado a presença negra no centro
urbano), os candomblés passam a constituir um dos meios mais importante de
agregação social, identidade e resistência cultural da população negro-mestiça.
Nesse panorama, a ocupação dos espaços físicos da cidade, especialmente a pro-
liferação de candomblés no centro urbano, é um fenómeno significativo.
Segundo Muniz Sodré,

a t e r r i t o r i a l i z a ç ã o n ã o se d e f i n e c o m o u m m e r o d e c a l q u e d a t e r r i t o r i a l i d a d e a n i -
mal, mas c o m o força de a p r o p r i a ç ã o exclusiva d o espaço (resultado de u m ordena-
m e n t o s i m b ó l i c o ) c a p a z d e e n g e n d r a r r e g i m e s d e r e l a c i o n a m e n t o s , relações d e p r o x i -
m i d a d e e d i s t â n c i a [...] o t e r r i t ó r i o a p a r e c e assim c o m o u m d a d o n e c e s s á r i o à f o r m u -
l a ç ã o d e i d e n t i d a d e g r u p a i / i n d i v i d u a l , ao r e c o n h e c i m e n t o d e si p o r o u t r o s .

Em palavras de Wilson Roberto de Mattos, a concepção de territorialidade/


territorialização "não se restringe apenas à análise identificatória da ocupação
de alguns espaços físicos determinados, e sim refere-se sobretudo à ocupa-
ção de espaços sociais de alcance mais amplo singularizando-os através de in-
junções simbólico-culturais". 38 Sem entrar nessa dimensão cultural mais am-
pla do processo de ocupação do espaço da cidade, interessa-me aqui apresentar
uma topografia aproximada dos candomblés a partir da década de 1860.
Descartando dos 65 registros disponíveis para o período 1863-71 oito casos
que não podem ser localizados com precisão, ficam 57 registros. Desse total,
31 casos (54%) estão localizados nas freguesias semi-rurais que constituíam a
fronteira do núcleo urbano de Salvador. Nessa área destacam-se a freguesia de
Nossa Senhora de Brotas (11 casos), Santo Antônio Além do Carmo (9 casos)

138
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

e P e n h a (7 casos). 39 Os restantes 26 casos (46%) estavam situados no centro


urbano da cidade, sobretudo na freguesia da Sé (11 casos) e na de Sant'Anna
do S a c r a m e n t o (8 casos). Seguiam-se a freguesia de São Pedro Velho (3 casos),
Passo (2 casos) e Conceição da Praia (2 casos). A grande quantidade de d e n ú n -
cias de candomblés no centro urbano, especialmente na Sé, era resultado de
estar OAlabama localizado nessa área, tendo u m acesso direto ao que acontecia
nas imediações. C e r t a m e n t e existiram outros terreiros na periferia que funcio-
navam com maior discrição e que nunca foram documentados por esse jornal.
Contudo, embora essa topografia seja apenas um esboço aproximado da reali-
dade, chama a atenção o grande número de terreiros ou especialistas religiosos
funcionando no centro urbano.
Esse não era um f e n ó m e n o novo. A tradição oral lembra o f u n c i o n a m e n t o
nas primeiras décadas do século XIX do famoso candomblé Uê Iyá Nasso, com
a sua primeira sede na igreja da Barraquinha, em pleno centro urbano. 4 0 N o
entanto, como deixam claro as notícias de O Alabama e de O Óculo Mágico, a
proliferação generalizada de candomblés no centro u r b a n o foi u m f e n ó m e n o
iniciado por volta de 1850-1860.

D a n t e s , essas p r á t i c a s s u p e r s t i c i o s a s e a o m e s m o t e m p o t e n e b r o s a s , t i n h a m l u -
gar e m r o ç a s , f o r a d a c i d a d e , h o j e são c e l e b r a d a s c o m o m a i s d e s c a r a d o a p a r a t o n a s
ventas da polícia.41

Se a p o l í c i a n ã o q u e r c a n d o m b l é s , c o m o c o n s e n t e - o s e m s u a s b a r b a s ? M a n d a os sol-
d a d o s caçá-los p e l o s m a t o s e p e r m i t e - o s a q u i d e n t r o d a c i d a d e . ' 1 2

As r e u n i õ e s a q u i d e n t r o da c a p i t a l [S. M i g u e l ] i n c o m o d a m , e se n ã o n o s f a l t a a idéia,
são elas p r o i b i d a s p o r u m a p o s t u r a d a c â m a r a o u r e g u l a m e n t o p o l i c i a l . 4 3

Efetivamente, pela postura nfi 59, de 27 de fevereiro de 1857, "Os batuques,


danças e reuniões de escravos, estão proibidas em qualquer lugar e a qualquer
hora, sob pena de oito dias de prisão para cada um dos contraventores". 4 4 Ora,
essa postura dizia respeito aos escravos. Livres e libertos, mediante solicitação
e
pagamento de u m a licença à polícia, tinham uma relativa liberdade para orga-
nizar as suas festas. As tendências simultâneas e alternativas de repressão e tole-
rância características da primeira metade do século continuavam na década de
1860. Para a indignação dos partidários da repressão, como os jornalistas de O
Alabama, muitas vezes esses candomblés contavam com a colaboração e até a
participação ativa da polícia e dos m e m b r o s do exército.
A um ritual funerário, em 1867, por exemplo, assistiu o ordenança do dele-
gado e dois soldados, que "comeram, dançaram e tocaram no segun [sirrum] V

139
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

O jornalista de O Alabama protesta: "ainda não vi polícia mais candomble-


zeira do que esta! [...] Pedem licença para tocar e cantar, e a polícia con-
cede". 41 ' N u m terreiro d o Engenho Velho, reporta-se a participação de um sub-
delegado que, q u a n d o assistia à festa a c o m p a n h a d o da sua família, "caiu no
santo [...] e no meio das crioulas, com c o m p r i d o timão, ei-lo a mexer com o
corpo, com seu penacho na mão". 4 7 Q u a n d o a polícia foi libertar uma mulher
que estava sendo iniciada n u m terreiro em C a m p i n a s , as vodúnsis trataram
a polícia de "nossa gente". 4 8 Em vários casos se reportam às estreitas relações
entre os dirigentes dos candomblés e a polícia. N u m a "chácara das Devotas"
(provavelmente na Q u i n t a das Beatas, atual C o s m e de Farias), por exemplo,
o africano Joaquim recebia um subdelegado "cego apologista do santo vodum,
apresentando-se com sua família q u a n d o há brinquedo". 4 9 Na mesma Q u i n -
ta das Devotas (Beatas), o d o n o da casa de um o u t r o c a n d o m b l é era mem-
bro da polícia. 1 0
Na década de 1860, a tolerância seletiva dos poderes públicos a certos can-
domblés poderia ter também uma justificativa política, respondendo aos inte-
resses eleitorais da elite, que via nas congregações religiosas u m a fonte signi-
ficativa de votos. O Alabama notifica duas festas, nas Barreiras e n o Engenho
Velho, celebradas em terreiros ou por pessoal de c a n d o m b l é , após a vitória
dos conservadores nas eleições municipais. A primeira, em 1864, "é uma fei-
joada dada pelos conservadores para agradecerem aos seus votantes"; a segun-
da, em 1868, é "uma grande f u n ç o n a t a por ter vencido as eleições o partido
vermelho". O jornalista admira-se por não saber "que a política rolava até nos
candomblés". O apoio do povo de santo aos vermelhos levanta um comentário
sarcástico do jornalista liberal, que chama os conservadores, "conservadores
de candomblé!". 1 1 Também as "crioulas conservadoras organizam uma roma-
ria ao Senhor do Bonfim pelo triunfo do partido nas recentes eleições". , J Esse
caráter conservador dos candomblés parece ter-se perpetuado ao longo do sécu-
lo XX, mas é importante destacar que a dinâmica já estava presente na segun-
da metade do século XIX. 1 '
Voltando à análise da distribuição geográfica dos candomblés, cabe notar
que a maioria dos "candomblés" do centro u r b a n o eram congregações de ca-
ráter doméstico, localizadas em espaços pequenos, no interior de casas, lojas,
armazéns ou cafurnas, sem espaço de mato. As práticas mais habituais eram
de cura ou exorcismo, para "tirar diabo" ou "feitiço" do corpo das pessoas,
assim como práticas oraculares para "dar ventura". Essas ações podiam alter-
nar com ocasionais batuques, geralmente aos sábados ou domingos. Segundo
a distinção estabelecida neste estudo entre "candomblés" e "indivíduos", ob-
serva-se que no centro u r b a n o p r e d o m i n a v a m os "indivíduos", em oposição

140
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

à periferia, o n d e eram mais numerosos os "candomblés". Dos 26 registros do


centro urbano, 14 foram classificados como "candomblés" e 12 como "indi-
víduos", e n q u a n t o dos 31 registros da periferia 23 eram "candomblés" e 8
eram "indivíduos". Isso indica que, além da i m p o r t a n t e presença de especia-
listas religiosos no centro urbano, foi nas roças das freguesias semi-rurais que
as congregações religiosas c o n s e g u i r a m desenvolver m a i o r c o m p l e x i d a d e
organizacional.
Talvez por esse motivo a repressão policial era mais forte nessa área. C o m o
se queixava O Alabama: "esta polícia tem u m a queda para os candomblés!
Permite-os por ordem sua, dentro da cidade e manda apreendê-los nos arra-
baldes!"54 O jornal também denuncia que os candomblés dos arrabaldes serviam
"de esconderijo a escravos fugidos, que aí se acoitam por muitos dias". 55 Desde
o início do século, as freguesias semi-rurais da periferia foram o refúgio pri-
vilegiado de negros fugitivos, não só nos terreiros de candomblé, mas também
em quilombos. Em 1814, por exemplo, alguns comerciantes e outros cidadãos
da praça da Bahia observavam o fraco policiamento da Casa da Pólvora, si-
tuada no M a t a t u , u m lugar cercado, em palavras de Verger, de "aldeias de
negros fugitivos". 5 6 Em Brotas, os libertos eram muitas vezes acusados de in-
duzir escravos a fugir dos senhores e os acolhiam, dando-lhes trabalho em
suas roças, sendo que o juiz de paz dessa freguesia t i n h a devolvido aos seus
donos mais de 400 escravos. 57
Em 1866, O Alabama pediu providências à polícia para reprimir c a n d o m -
blés em certos p o n t o s da cidade e seus arrabaldes, como C r u z do Cosme,
Engenho Velho, C a m p i n a s , Q u i n t a das Beatas, E n g e n h o da Conceição, Ma-
tatu e outros". 5 8 Efetivamente, a C r u z do Cosme (dois casos) — atual bairro
da Liberdade — , na freguesia de Santo Antônio, o Engenho Velho (três casos)
e a Quinta das Beatas (cinco casos), ambos na freguesia de Brotas, e Campinas
(três casos), na freguesia de Penha, parecem ter sido alguns dos pontos mais
importantes de concentração de candomblés na periferia.
Os grandes latifundiários que constituíam a elite capitalista e branca da
sociedade soteropolitana moravam n o r m a l m e n t e em palacetes e sobrados nas
freguesias urbanas. As suas propriedades na periferia semi-urbana, por vezes
extensos engenhos e fazendas de frutas e mata, eram exploradas pela popula-
ção negra, m a j o r i t a r i a m e n t e livres e libertos, que se dedicavam t a m b é m à la-
v
° u r a de subsistência, com o cultivo da mandioca e hortaliças. Assim, "gran-
des chácaras conviviam com pequenos terrenos, e eram frequentes arranjos de
Meação entre proprietários e lavradores". Na maioria dos casos, esses arranjos
er
a m concessões de sortes de terras "a título de foro", o que permitia a certos
ertos e suas famílias dispor como rendeiros dessas roças com relativa auto-

141
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

nomia. Podiam dar-se casos também de certos libertos que comprassem pe-
quenos lotes de terra."19
Em todas essas situações, existia a possibilidade de controle por parte dos ne-
gros de certos espaços físicos, às vezes em lugares de difícil acesso, no mato, fora
dos olhos dos proprietários e das forças públicas, para organizar as atividades
religiosas e eventualmente consolidar candomblés. Essa territorialização em vol-
ta do núcleo urbano não decorria só de uma estratégia de ocultação, mas respon-
dia também a um imperativo interno do ritual africano, no qual são impres-
cindíveis os elementos mato e água para o culto das divindades.
Em 1870, O Alabama traz um interessante caso que mostra as eventuais rela-
ções de conflito entre latifundiários e rendeiros. O senhor Cotia Brandão, pro-
prietário da Campina, na freguesia de Pirajá, queria dobrar o aluguel cobrado
ao africano pai Thomaz, chefe de um candomblé naquelas terras. Nesse caso,
não há um problema com as atividades religiosas: o proprietário aceita que
batam candomblé "até feder, com tanto que paguem a renda" de 20 réis. por
tarefa. Além do prejuízo que significava o a u m e n t o da renda, pai Thomaz,
que ocupava aquele "mare-magnum de terras" desde 1847, corria o risco de
perder três casas que tinha construído no terreiro. Tendo em vista que esta-
va em jogo não só a permanência do candomblé, mas o p a t r i m ô n i o do ren-
deiro, pai T h o m a z ameaçou o senhor Cotia de morte. Aliás, "o preto, tendo
sido de certa casa, tem proteção grátis de advogado, que é apologista acérri-
mo do candomblé". 6 0 Vemos, assim, como a posse ou o controle da terra era
já um tema conflituoso para os candomblés naquela época. N o entanto, en-
tendo ser o acesso à terra um p o n t o crucial para a consolidação dos candom-
blés, pois estes precisavam de espaços fixos para "plantar" seus assentos. Se no
centro urbano eles podiam ficar ocultos em quartos, era nas roças da periferia
semi-urbana que os assentos "naturais", em árvores, rios ou fontes, podiam
ser instalados.

A P R E D O M I N Â N C I A DA T R A D I Ç Ã O JEJE NO C A N D O M B L É DA DÉCADA DE 1 8 6 0

Se na década de 1 830 já existem claros indícios de congregações extradomés-


ticas com um significativo grau de complexidade social e ritual, a documen-
tação de O Alabama não deixa dúvida de que na década de 1860 o Candomblé
tinha atingido um nível de institucionalização comparável ao que conhecemos
hoje em dia. Além das frequentes atividades de cura e adivinhação mantidas
por especialistas religiosos individualizados, havia uma extensa rede de con-
gregações religiosas, com espaços sagrados relativamente estáveis, tanto nas

142
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

roças da periferia c o m o no centro u r b a n o , que m a n t i n h a m variadas relações


d e c o o p e r a ç ã o e complementaridade. Essas congregações estavam organizadas

c o n f o r m e uma hierarquia que derivava do princípio de senioridade, estabe-

lecido através de d e m o r a d o s processos de iniciação.


Como já salientei repetidamente, a atividade ritual era desenvolvida a par-
tir do "complexo assento-ebó", com periódicos sacrifícios animais e oferendas
alimentares nos altares. Um aspecto que até agora só comentei en passant, mas
que constitui uma i m p o r t a n t e característica ritual dessas congregações extra-
domésticas, é que cada u m a delas estava dedicada ao culto não apenas de uma
só divindade, como parece ter sido a n o r m a no século XVIII, mas a u m a plu-
ralidade de entidades espirituais. D e fato, esse seria u m traço distintivo dos
candomblés oitocentistas que viria confirmar o processo de crescente comple-
xidade ritual que e x p e r i m e n t o u a instituição do C a n d o m b l é .
Embora, segundo a tradição oral, o culto de múltiplas divindades remonte
às primeiras décadas do século XIX, com a f u n d a ç ã o do c a n d o m b l é Ilê Iyá
Nasso, na B a r r o q u i n h a , é só em 1858 que achamos os primeiros indícios
documentais que sugerem essa realidade. 61 N o entanto, contrariamente à ideia
prevalecente nos estudos afro-brasileiros, a m i n h a hipótese é que o culto de
múltiplas divindades não foi uma simples inovação brasileira, resultado das
novas condições da sociedade escravista e do encontro das várias etnias afri-
canas. Sustento que essa prática ritual encontra claros antecedentes africanos
na área gbe e que, logicamente, a matriz jeje ou as tradições do culto de voduns
tiveram um papel determinante no processo constitutivo desse modelo de Can-
domblé. Trata-se de um assunto complexo e controverso e, devido a sua im-
portância, dedico-lhe especial atenção no capítulo 7.
Seja como for, os cultos de múltiplas divindades baianos c o m p o r t a v a m
cerimónias públicas, com toque de tambor, danças e manifestação das divin-
dades no corpo dos devotos, que duravam vários dias. Finalmente, essas con-
gregações compartilhavam um calendário de festas relativamente homogéneo.
Por exemplo, depois do Carnaval, no período de Q u a r e s m a , suspendiam as
atividades rituais celebrando a "festa do balaio". Todavia, em novembro, al-
guns terreiros celebravam a "festa do inhame novo", consistente "na consa-
gração dos primeiros frutos da colheita de cada ano às divindades africanas",
e, em setembro, celebrava-se a festa dos gémeos são Cosme e são D a m i ã o ,
sincretizados com os ibejis nagôs, os hoho jejes ou os mabaças angolas. O s ri-
tuais funerários e os presentes às "mães d'água" eram também atividades regu-
lares em que podiam participar m e m b r o s de diversas congregações.
Essa recorrência das mesmas festas em u m a pluralidade de congregações
v
e m d e m o n s t r a r a consolidação do caráter institucional do C a n d o m b l é na

143
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

década de 1860, e m b o r a esse processo de i n s t i t u c i o n a l i z a ç ã o tivesse iniciado,


logicamente, nas décadas anteriores. Se festas c o m o a do i n h a m e n o v o podiam
ser o resultado de t r a n s f e r ê n c i a s q u a s e lineares de práticas africanas especí-
ficas, outras, c o m o a "festa do balaio", c o i n c i d e n t e com o calendário católico,
i n d i c a m u m a génese n i t i d a m e n t e brasileira. As d u a s d i n â m i c a s , a da persis-
tência e a da t r a n s f o r m a ç ã o , a da resistência e a da a d a p t a ç ã o criativa, atua-
vam c o n j u n t a m e n t e .
N a l i t e r a t u r a a f r o - b r a s i l e i r a tem sido e n f a t i z a d o que, no processo forma-
tivo d o C a n d o m b l é , existiu u m a f o r t e i n t e r p e n e t r a ç ã o e n t r e a t r a d i ç ã o dos
cultos de orixás da área i o r u b á e a dos cultos de v o d u n s da área gbe, interpe-
n e t r a ç ã o que, aliás, v i n h a o c o r r e n d o havia séculos já na p r ó p r i a Africa. Ro-
drigues foi o p r i m e i r o a u t o r a utilizar a expressão " c a n d o m b l é jeje-nagô" para
indicar esse processo de " í n t i m a fusão" entre u m a e o u t r a tradição religiosa. 62
Sem querer negar essa evidência nem m i n i m i z a r a i m p o r t â n c i a dos processos
de reinvenção e ressignificação das práticas religiosas africanas no contexto bra-
sileiro, o que m e interessa discutir aqui é a possível p r e d o m i n â n c i a de u m a ou
o u t r a matriz religiosa africana no processo c o n s t i t u t i v o do C a n d o m b l é .
A n t e s de e n t r a r nessa discussão, cabe alertar q u e a m a i o r a t e n ç ã o presta-
da às tradições jeje e n a g ô em d e t r i m e n t o das c o n g o - a n g o l a s — c u j o estudo
h i s t ó r i c o e e t n o g r á f i c o está a i n d a por se fazer — deriva d a m a i o r evidência
d o c u m e n t a l disponível para as p r i m e i r a s . N o e n t a n t o , ao l o n g o da presente
análise, assim c o m o nos p r ó x i m o s c a p í t u l o s , serão a p o n t a d a s , q u a n d o rele-
vantes, as i n f l u ê n c i a s das tradições c o n g o - a n g o l a s e, em especial, a sua im-
p o r t a n t e i n t e r p e n e t r a ç ã o c o m a t r a d i ç ã o jeje.
A tese que p r e t e n d o sustentar nesta seção é a de que a tradição religiosa dos
cultos de v o d u n s originária da área gbe, isto é, a tradição jeje, c o n s t i t u i u u m a
matriz d e t e r m i n a n t e n o processo de institucionalização do C a n d o m b l é , e de
que até a década de 1870 essa tradição foi, se não h e g e m ó n i c a , pelo m e n o s tão
i m p o r t a n t e c o m o a tradição nagô dos cultos de orixás. Essa idéia q u e s t i o n a a
de autores c o m o G r a d e n , M a t o r y e Reis, q u e d e f e n d e m u m a h e g e m o n i a da
tradição dos cultos de orixás. Para a r g u m e n t a r a m i n h a tese, recorro ao m é t o -
do a n t e c i p a d o p o r Reis consistente na análise linguística da terminologia utili-
zada pelos jornalistas de O Alabama. C o m o d e s d o b r a m e n t o e c o m p l e m e n t o des-
sa análise, discuto depois o conceito de "nação" no C a n d o m b l é , p r e t e n d e n d o
avaliar a presença dos terreiros de "nação" jeje na Salvador da segunda m e t a d e
do século XIX, sugerindo u m a p r e d o m i n â n c i a desses terreiros sobre aqueles de
"nação" nagô, o que viria a c o n f i r m a r e reforçar a tese inicial.
Ao c o m e n t a r as notícias de O Alabama, G r a d e n p r e s s u p õ e , aliás, de u m a
f o r m a p o u c o f u n d a m e n t a d a no texto, u m a h e g e m o n i a da t r a d i ç ã o nagô dos

144
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

cultos de orixás e até u m a s u p e r i o r i d a d e n u m é r i c a dos terreiros nagôs no


C a n d o m b l é d a q u e l a é p o c a . Esse a u t o r fala das " t r a d i ç õ e s a f r o - b a i a n a s

i o r u b á s p r e d o m i n a n t e s em Salvador" e do "sentido de s u p e r i o r i d a d e nagô

t r a n s m i t i d o pelas páginas de O Alabama", que, s e g u n d o ele, antecipava em


três décadas as i n t e r p r e t a ç õ e s de Rodrigues, i g u a l m e n t e defensor da "supe-
rioridade" da m i t o l o g i a n a g ô p e r a n t e o u t r a s t r a d i ç õ e s d o C a n d o m b l é .
Lorand M a t o r y t a m b é m fala de um "complexo nagô d o m i n a n t e " e da "pre-
dominância nagô na fala religiosa a f r o - b a i a n a de m e a d o s do século XIX".
Reis, de f o r m a mais p o n d e r a d a e r e c o n h e c e n d o a i m p o r t â n c i a da t r a d i ç ã o
jeje, t a m b é m sugere u m a h e g e m o n i a da tradição nagô, suposição reforçada
pela sua c o n t a g e m da t e r m i n o l o g i a africana de O Alabama, s e g u n d o a qual
os termos nagôs s u p e r a m os jejes. 6 3 Ao c o n t r á r i o dessas interpretações, mi-
nha análise da terminologia de O Alabama sugere u m a relativa p r e d o m i n â n -
cia de termos originários da área gbe.
Em relação ao C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o , Julio Braga, s e g u i n d o in-
formações de Yeda Pessoa de C a s t r o e de Vivaldo da Costa Lima, c h a m a a
atenção para "a presença na estrutura dos candomblés que se dizem da nação
nagô-queto ou q u e t o s p u r o s de segmentos rituais fons que os fazem m u i t o
próximos das organizações c o n v e n t u a i s e iniciáticas daquela p o p u l a ç ã o do
Benim". Acrescenta q u e

o sistema de classificação c o n s t r u í d o a partir da f o r m a ç ã o d o g r u p o iniciático


(barco das íaôs), c u j o s i n t e g r a n t e s são i d e n t i f i c a d o s pela o r d e m d e e n t r a d a n o e s p a ç o
de r e c l u s ã o c o n v e n t u a l , p e l o s t e r m o s " d o f o n o , d o f o n t i n h a , f o r n o , f o m o t i n h a , g a m o ,
gamotinha, d o m o , d o m o t i n h a , vito, vitotinha", é u m exemplo c o n t u n d e n t e de que
o c a n d o m b l é n a g ô é c o n s t r u í d o c o m a p r e s e n ç a , na sua estrutura profunda, de o u t r o s
e l e m e n t o s não n a g ô - i o r u b á s ( g r i f o n o s s o ) .

Esses elementos "não nagô-iorubás" são essencialmente jejes. C o m o su-


gere Lima, citando Akindele e Aguessy, os nomes iniciáticos utilizados no
Brasil c o r r e s p o n d e r i a m a p r o x i m a d a m e n t e àqueles utilizados nos cultos de
voduns de Porto Novo, " h o u n d j è n o u k o n , dométien, nogamou, nogamoutien,
yomou, yomoutien, gamou, gamoutien, notien',64
Mas a influência linguística dos jejes vai além desse sistema de classificação
do grupo iniciático. Os nomes do altar ou santuário, peji, e do seu responsável,
0
pejigã; do quarto dos iniciados, runcó ou runco; do lugar onde se coloca o
assém, assento; da maceração de folhas com água, amasr, dos tambores, r u m ,
tumpi e runle ou lé; da vareta percussiva, aguidavi; do idiofone sagrado, gã; do
espírito guardião, a d j u n t o ; e provavelmente da obrigação que confere o status
de senioridade a u m iniciado, decá, seriam todos vocábulos de origem gbe/'-

145
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Esses termos, utilizados hoje em dia nos terreiros ketus e angolas referindo-se
a aspectos da "estrutura p r o f u n d a " do ritual, como processos de iniciação, hie-
rarquia do grupo, espaço sagrado, instrumentos e outros, indicam a importância
indiscutível que a tradição do culto de voduns teve no processo formativo do
Candomblé.
A análise linguística dos termos africanos aparecidos em O Alabama vem
c o n f i r m a r e reforçar essa hipótese a p o n t a d a por Lima e Braga. Em primeiro
lugar, e de forma muito significativa, o termo "vodum" ("santo vodum", "dan-
çar vodum") aparece sete vezes para se referir às divindades africanas, enquan-
to não há qualquer menção do termo "orixá", a não ser na expressão com-
posta baba-loixa (do iorubá babalorixá) para designar o chefe religioso. É
m u i t o provável que nessa época, e talvez já desde as primeiras décadas do
século (lembremos o "deus v o d u m " do c a n d o m b l é do Accú em 1829), "vo-
dum" fosse utilizado na maioria dos terreiros como termo genérico para aludir
às divindades africanas. Essa extrapolação do t e r m o " v o d u m " fora do âmbito
restrito dos terreiros de nação jeje é altamente sugestiva da influência da tra-
dição do culto de voduns na instituição do Candomblé. De forma semelhante,
em relação aos processos oraculares aparece em duas ocasiões o termo "Fa",
como é d e n o m i n a d a a divindade da adivinhação na área vodum, e não a forma
"Ifá", utilizada pelos nagôs.
Q u a n t o aos nomes de divindades, aparecem três referências explícitas a
v o d u n s (entre parênteses o n ú m e r o de o c o r r ê n c i a s ) : Lebal (1), q u e seria
Legba; Soubô (1), que seria a divindade do trovão, Sogbo; e Loco (5), que
seria o deus-árvore, associado à gameleira. O último aparece t a m b é m sob a
f o r m a Loucose, que é o n o m e dado às devotas dessa divindade, sendo que em
fon, o sufixo si significa "esposa de" (lokosi = a esposa de Loko). De forma
análoga aparecem alusões indiretas a outros dois voduns: Aguesa (1), devota
do v o d u m caçador Ague, e Nanasi (1), provavelmente do v o d u m N a n ã . Se a
essa lista somarmos a já m e n c i o n a d a divindade da adivinhação, Fa, teremos
u m total de seis v o d u n s jejes.
Por o u t r o lado, só aparecem cinco divindades nagôs: Xangô (3), o orixá
do trovão c o r r e s p o n d e n t e a Sogbo, sendo que em u m caso é n o m e a d o no
contexto de um terreiro jeje; Oiá (1), significativamente n o m e a d a c o m o "a
m u l h e r do santo maior — Soubô", e não do orixá Xangô; Oxalá (2), o "santo
mais velho (Padre Eterno)"; O g u m (1); e Xapanan (1). Aparecem várias re-
ferências à festa de são C o s m e e são D a m i ã o , n u m a ocasião referidos com o
t e r m o angola mabaça, assim c o m o várias referências às "mães d'água", que
poderiam encobrir indistintamente divindades jejes, nagôs ou congo-angolas.
N u m a das notícias fala-se de "cultos à fantasiada mãe d'água, a uma serpente,

146
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

a um pássaro, etc.". Essa m e n ç ã o ao culto da serpente p o d e r i a aludir ao


vodum Dan ou ao orixá O x u m a r é . O pássaro poderia ser u m a alusão ao vo-
dum caçador Ague, às vezes representado como u m a ave, ou talvez ao culto
das iamis (ancestrais femininos associados à feitiçaria).
Aligeira predominância de nomes de voduns sobre nomes de orixás é com-
plementada pela maior predominância jeje em relação a termos ou títulos hie-
rárquicos. Para referir-se à dirigente feminina do terreiro, utilizam-se com fre-
quência termos portugueses como: "mamãe, mãe do terreiro, rainha, grã-mestra,
ou sacerdotisa", e para o líder masculino, "papai, pai do terreiro, presidente,
grande-mestre, ou grã-sacerdote". Q u a n t o a termos africanos, há referência a
quatro indivíduos identificados com o título nagô baba-loixa (variantes baba,
baba-louxa), do qual derivaria a expressão portuguesa "pai-de-santo". 6 6
No entanto, são mais numerosas as menções a títulos hierárquicos de ori-
gem gbe, c o m o gumbônde (variante, gombono) (3), ou a sua versão f e m i n i n a
gumbonda, u m a evolução fonética do termo fon bunbono, designando o chefe
religioso; guncô (1), para designar a m u l h e r do gumbônde, e donunce (1),
descrita como "espécie de grã-mestra da ordem", termo derivado provavel-
mente de donusi, significando iniciada no segredo dos amuletos e da farma-
copéia, ou de donoche, c o m p o s t o do termo noche, "minha mãe". Em conso-
nância com o uso generalizado do t e r m o "vodum", utiliza-se com m u i t a fre-
quência o t e r m o vudunças (variante avudunças) (5), c o r r u p t e l a do t e r m o
"vodúnsi", para se referir às adeptas das divindades, sem aparecer em n e n h u m a
ocasião os termos iorubás "iaô" ou "ebome", mais frequentes hoje em dia. H á
ainda referência a duas mulheres chamadas Margarita Gamotinha e Maria
Doufona, c o n f i r m a n d o a utilização dos termos iniciáticos acima c o m e n t a d o s
nessa época. N o contexto de um terreiro jeje aparece o termo "equede" (mestra
das noviças), de origem etimológica ainda incerta. D o mesmo m o d o , o título
"ogã" (6) — utilizado ora c o m o s i n ó n i m o de chefe do terreiro, ora c o m o
nome dos dignitários masculinos que secundam o líder religioso em diversas
funções — , por ser um termo c o m p a r t i l h a d o por jejes e nagôs, é irrelevante
para a contagem. R e s u m i n d o , para u m a ocorrência de termos hierárquicos
nagôs (baba-loixa), aparecem seis de origem jeje.
Em relação a outros termos africanos, como nomes de rituais ou alimentos,
a proporção é invertida. Aparecem 14 termos nagôs, 9 jejes, 4 bantos (milonga,
missangas, zungu e candomblé) e 7 que não foram identificados. 6 Cabe notar
que entre os termos nagôs p r e d o m i n a m os nomes de alimentos ou animais,
provavelmente utilizados também fora do âmbito religioso: atds (ata ou pimen-
ta) (1); obi (obi, fruto) (5); orobô (orógbó, fruto) (2); eipou ou êpu (epo ou azeite)
(2); afurd o\i furã (fúrá em hauçá, afúrá em iorubá, bebida) (2); efó (èfó ou

146
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

folhas comestíveis) (1); amalá (àmàlà ou comida votiva) (1); acucó (àkàko ou
galo) (1); etuns (etu ou c o n q u é m ) (1); abou (àgbd ou carneiro) (1 )\ forican-
abou (f'orí kà àgbò ou cabeça, colocada sobre carneiro, ato ritual de realizar
os pedidos com o animal sacrificai) (1); obacouçu (Oba Koso, n o m e de Xangô
que em O Alabama designa um "pássaro que os africanos veneram e cujo canto
os adverte, q u a n d o se aproxima alguém", talvez o gavião, associado a Xangô)
(1); ebó (oferenda) (1); ojá (òjá ou tira de pano) (1).
C o n t r a r i a m e n t e , entre os termos jejes a maioria refere-se a importantes
espaços, atividades ou objetos rituais: pegi (kpè ji ou altar) (3); segun (sinhun
ou ritual f u n e r á r i o ) (2); sapocan (ritual iniciático) (2); von-siça (vòsísá ou
sacrifício) (1); mocan {mwen kan ou colar de palha) (1); gés (/Vou contas) (1);
kessé (kesé ou papagaio da costa) (1); bobo (abobo ou massa de feijão) (1); e
agonte (broto da palmeira "rônier"; aparece sob a f o r m a aguntesa, n o m e ri-
tual de u m a sacerdotisa) (l). 6 8
Sumariando, m i n h a análise linguística de O Alabama mostra uma ligeira
superioridade numérica dos termos jejes em relação aos iorubás. 6 9 E claro que
essa evidência linguística não é prova conclusiva da dominância jeje no Can-
domblé, mas certamente é indicativa de um equilíbrio de forças entre as tradi-
ções jeje e nagô. O r a , sendo que na década de 1860 os nagôs constituíam a
grande maioria dos africanos na Bahia e os jejes, apenas u m a minoria, o equilí-
brio linguístico demonstra a importância dos cultos de voduns no processo
formativo do C a n d o m b l é e sua atualidade crítica ainda nessa década. Em ou-
tras palavras, pode-se supor que, no âmbito do C a n d o m b l é , a superioridade
demográfica dos nagôs ainda não se tinha traduzido em hegemonia cultural.
Para reforçar essa idéia vamos agora avaliar até que p o n t o nos candomblés
da segunda metade do século XIX existia algum tipo de divisão em termos de
"nações africanas" e, nesse contexto, qual era a presença dos terreiros jejes.
C o m o já vimos, no início do século a população africana agrupava-se em fun-
ção de identidades coletivas que, embora criadas no Brasil, respondiam a dife-
renças culturais e linguísticas, de origem p r e d o m i n a n t e m e n t e africana. Lem-
bremos, por exemplo, os a j u n t a m e n t o s dos angolas, os jejes e os nagôs e hau-
çás em Santo Amaro, em 1808, ou a política do conde dos Arcos, que favorecia
essas divisões étnicas.
N o e n t a n t o , essas distinções parecem diluir-se à m e d i d a que avança o sé-
culo. Em O Alabama, por exemplo, não encontramos n e n h u m a referência ex-
plícita a nações africanas em relação aos candomblés da época. Fala-se apenas
de "seitas africanas". C o m o já comentei, na segunda metade do século a com-
posição social dos candomblés apresenta uma crescente heterogeneidade ét-
nico-racial. Esse processo de mestiçagem se acentuou com a abolição do tráfi-

148
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

co e o fim da chegada de novas levas de africanos. Ora, o silêncio d o c u m e n -


tal de O Alabama em relação a distinções étnicas entre as diversas congrega-
ções religiosas talvez seja u m a falsa aparência. Em parte, esse silêncio pode
ser explicado pelo fato de que, a partir de 1850, as classificações étnicas
africanas deixaram de ser usadas pela classe d o m i n a n t e na sociedade mais
ampla, passando a ser utilizado apenas o termo genérico "africano" (ver cap.
2). Mas isso não significa que os africanos e os seus descendentes crioulos não
tenham preservado essas denominações no contexto religioso e familiar.
A crescente heterogeneidade étnico-racial da base social dos candomblés
sugere a priori a existência de u m paralelo processo de heterogeneidade ritual,
com uma progressiva interpenetração de práticas e valores religiosos das matri-
zes jeje, nagô e angola. Na década de 1860, a já mencionada simbiose do "Can-
domblé jeje-nagô" estava certamente em processo, e é provável que certos ter-
reiros ou líderes religiosos não mais identificassem as suas práticas em termos
de "nações" ou categorias étnicas. Vide como exemplo u m a das notícias de O
Alabama sobre o candomblé do africano Zé Rolavo, na Q u i n t a das Devotas.
O líder é identificado com o termo jeje gombono e tem uma filha de santo, cha-
mada de vudunça, outro termo jeje, mas que é devota de 0'xalá, n o m e de um
orixá nagô. Essa vudunça, incorporada pelo seu orixá, predisse a um oficial
militar, seu marido ou amásio,

q u e ele estava para ser d e m i t i d o b r e v e m e n t e e q u e , para o n ã o ser, havia d e l h e


dar u m abou ( c a r n e i r o ) , m e i a c a n a d a d e êpu (azeite), d o u s acucó (galos), u m kessé
(papagaio da c o s t a ) , obis, colla, atds e o r o b ô s , d o z e da cada u m , para fazer u m ebó
( c u m p r i m e n t o d e p r e c e i t o para a l c a n ç a r q u a l q u e r graça) c o m o q u e n ã o só a r r e d a r i a
o mal q u e lhe estava i m i n e n t e , c o m o passaria a c a p i t ã o .

Na lista de ingredientes para o ebó (termo nagô) aparece uma mistura de


nomes jejes e nagôs (ver acima). Após imolar o carneiro, fato que indicaria u m a
tradição nagô (os jejes não sacrificam esse animal), e de beber algumas gotas
do sangue,

seguiu-se a c e r i m ó n i a burlesca do forican-abou, q u e consiste em dar leves m a r r a d a s


na cabeça d o a n i m a l m o r t o , e n q u a n t o o p r e t o e n g r o l a certas palavras. D e p o i s d o von-
siça ( s a c r i f í c i o ) , s e g u i u - s e u m a espécie de d a n ç a c h a m a d a bonaduê e o nosso oficial
m u i t o a n c h o e n f e i t a d o de ge's ( c o n t a s ) t o m o u c o n t a d o nacucu cuim ( t a b a q u e ) e co-
m e ç o u a b a t e r d e s m e s u r a d a m e n t e , e n q u a n t o as filhas da casa, e m d e s e n v o l t a s e ex-
travagantes posturas dançavam.70

Nessa burlesca descrição do ritual, de novo misturam-se expressões jejes e


nagôs, mas o detalhe e o esforço que toma o jornalista em utilizar e traduzir os

149
LUIS NICOLAU PARÉS

termos africanos indicam ou que ele estava por dentro da história, ou que teve
um i n f o r m a n t e conhecedor do assunto. Porém isso não i m p e d i u que ele in-
corresse em algum erro, pois o forican-abou, por exemplo, realiza-se com o
animal vivo, antes do sacrifício. Em qualquer caso, a narrativa dessa notícia
é indicativa da possível interpenetração e m o b i l i d a d e de termos e práticas
além das fronteiras de nação. Aliás, essa fluidez interétnica de interpenetração
ritual teria sido u m fator constante, e até imprescindível, na génese e conti-
n u i d a d e do C a n d o m b l é .
Feita essa i m p o r t a n t e ressalva, também é provável que, ao lado desses espe-
cialistas religiosos mais abertos à assimilação de práticas e valores de várias
fontes, existissem outros igualmente cientes das diversas origens e utilidades
de cada uma dessas práticas, capazes de reconhecer diferenças e estabelecer
critérios seletivos entre umas e outras. Cabe lembrar que a maioria dos terreiros
desse período eram f u n d a d o s e liderados por africanos, especialistas religiosos
predominantemente iniciados na própria Africa. De um m o d o ou de outro eles
continuaram sua carreira religiosa no Brasil, a d a p t a n d o o seu conhecimento e
inserindo suas práticas n o modus operandi que encontraram na sua chegada no
contexto colonial. N o entanto, é mais do que provável que alguns deles, como
líderes, especialmente os favorecidos por redes sociais intra-étnicas, tivessem
interesse em manter certos ritos, divindades e terminologia específicos da suas
terras de origem como estratégia de identidade e diferenciação.
Em outras palavras, as distinções entre diversas nações de c a n d o m b l é ,
apesar do silêncio documental, seguramente persistiram no seio de certas con-
gregações religiosas, c o m o acontece até hoje. C o m o progressivo falecimento
dos líderes africanos na segunda metade do século, os seus descendentes criou-
los, após herdar a liderança dessas congregações, c o n t i n u a r a m a m a n t e r as
identidades de nação c o m base nessas práticas rituais. P o r t a n t o , embora a
heterogeneidade étnico-racial dos participantes dos candomblés tivesse cres-
cido ao longo do século, a identidade das nações africanas ficou ancorada em
certas características litúrgicas que eram emblemáticas de tradições religio-
sas diferenciadas.
Partindo dessa premissa, tentarei avaliar a presença de elementos litúrgicos
de u m a ou o u t r a tradição a f r i c a n a nos c a n d o m b l é s d o c u m e n t a d o s em O
Alabama para inferir daí a p r e d o m i n â n c i a de uma ou outra "nação". O exer-
cício é c o m p l i c a d o por vários motivos. Em primeiro lugar, pela própria am-
biguidade existente na adscrição a uma ou outra nação, que em alguns ter-
reiros podia ter uma consideração de pouca importância. Em segundo lugar,
pela relativa confiabilidade das notícias de O Alabama, escritas por pessoas
alheias ao C a n d o m b l é , que embora fossem, às vezes, t e s t e m u n h a s oculares

ISO
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

dos eventos, podiam incorrer em distorções ou erros. Em terceiro lugar, na


maioria das notícias não há elementos suficientes para inferir qualquer identi-
ficação. E em quarto lugar, a possível identificação de nações que apresento
está baseada n u m a c o m b i n a ç ã o de estratégias analíticas, com o a origem ét-
nica dos líderes, o uso de terminologia hierárquica ou o culto de certas divin-
dades, que são apenas indícios e não provas conclusivas. Mais confiáveis são
as identificações de nação dos terreiros que estão ainda na ativa e reconhecem
a pertença a uma ou outra nação. Apesar dessas dificuldades, acho que o exer-
cício, embora apenas tentativo, revela certas tendências significativas.
Dos 65 registros identificados em O Alabama correspondentes a "candom-
blés" (congregações religiosas coletivas) ou "indivíduos" (especialistas religiosos
que atuavam provavelmente de forma independente, sem uma infra-estrutura
de grupo estável), apenas 20 apresentam dados que p e r m i t e m sugerir u m a
identificação de "nação". Desses 20, só 8 p o d e m ser identificados com certa
confiabilidade, e são os casos que chamaremos "positivos", sendo o restante ca-
sos apenas "prováveis". Dos 8 casos "positivos", 5 seriam jejes, 2 nagôs, e 1 an-
gola. Dos 12 casos "prováveis", 5 seriam jejes, 6 nagôs e 1 angola. Somando
casos positivos e prováveis teríamos 10 jejes, 8 nagôs e 2 angolas. 71 Vemos, as-
sim, que a análise quantitativa dos terreiros por "nação" apresenta uma cor-
respondência com as proporções achadas na análise linguística, sendo os jejes
maioria, seguidos de perto pelos nagôs e depois pelos angolas, em m e n o r
número. Esse fato reforça a tese inicial de u m a relativa p r e d o m i n â n c i a das
tradições jejes no C a n d o m b l é pré-abolição.
Expostos os resultados da análise, é preciso d e t a l h a r c o m o eles f o r a m
obtidos. U m primeiro critério para avaliar a "nação" de u m terreiro, se não
totalmente confiável pelo menos aproximado, seria considerar as origens ét-
nicas dos seus chefes ou dirigentes. Ora, dos 81 líderes (33 africanos) identi-
ficados por Reis para o período 1800-1888, só 6 puderam ser identificados
com nações africanas: 2 angolas, 1 mina, 1 jeje, 1 hauçá e 1 nagô. 7 2 Desse
numero, apenas os dois angolas e o nagô aparecem no período 1863-1871.
Vejamos os casos angolas. Em 1864, denuncia-se um c a n d o m b l é "no lu-
gar d e n o m i n a d o Dendezeiro", na freguesia de Penha, "cujos chefes são Anna
Maria, africana, de nação Angola e um negro c o n h e c i d o por pai Francisco".
Ana Maria, t a m b é m c h a m a d a "rainha, ou mãe do terreiro", era líder de u m a
congregação composta pelo menos por 13 membros: 6 mulheres e 7 h o m e n s
(6 deles "tocadores de tabaque"); 3 africanos, 2 crioulos, 3 pardos e 5 não
1(
ientificados; sendo nomeados entre eles 2 libertos e 1 escravo. O segundo
caso angola corresponde ao "preto velho angola, papai M a n é , que tira dia-
bos, bota diabos, vende diabos, empresta diabos e é o m e s m o diabo". Uma

151
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

vez que nessa notícia as informações só a p o n t a m para atividades de cura e


exorcismo, considero apenas provável que "papai M a n é " fosse dirigente de
um terreiro angola. 7 3
Entre os casos nagôs, os dois que considero "positivos" são o candomblé
de D o m i n g o s Pereira Sodré e o c a n d o m b l é c h a m a d o M o i n h o , dirigido pela
africana tia Julia. T a n t o Reis c o m o H a r d i n g c o m e n t a m o caso d o liberto
D o m i n g o s , e o primeiro autor achou u m a notícia n o Diário da Bahia, em 28
de j u l h o de 1862, na qual se especifica que era originário de O n i m (Lagos).
Aparentemente secundado por duas libertas ganhadeiras, dava ventura a uma
clientela sofisticada, ao t e m p o que trabalhava para libertar escravos dos seus
senhores por meio de "feitiçaria". Trata-se provavelmente d o mesmo "papai
Domingos" que aparece em 1870, n o beco do Acá, em Brotas, dirigindo, jun-
to com m a m ã e M a r i q u i n h a s Velludinho, u m a "sessão magna, em uma roça,
para evocar a alma do Chico Papai, grá-sacerdote d o fetichismo". 7 4
O segundo caso é o do M o i n h o , que pode ser identificado como nagô por
evidências atuais, já que, na verdade, se trata do mesmo pessoal do terreiro
Gantois (Ilê Iyá O m i n Axé Iyamassé), reconhecido como um dos candomblés
nagô-ketus mais antigos da cidade. Em 4 de janeiro de 1868, aparece uma pri-
meira notícia em que se fala de um "pagode" ou "bando", na estrada do Rio
Vermelho (atual Vasco da Gama), composto pela "gente do terreiro de tia Julia,
no Moinho", e cita-se t a m b é m a "Pulcheria, segunda mamãe d o terreiro". Não
cabe dúvida de que se trata da africana Maria Julia Conceição Nazaré e a sua
filha Pulcheria, dirigentes do G a n t o i s , c o m o foi d o c u m e n t a d o por N i n a
Rodrigues na década de 1890: "a mãe de terreiro Julia, velha africana [...] as-
siste-a imediatamente sua filha Pulcheria". O M o i n h o estava localizado perto
da estrada do Rio Vermelho, seguramente nas imediações do D i q u e do Tororó,
no atual Garcia, e seria só a partir de 1870 que se mudara para a sua atual lo-
calização, na fazenda Gantois. Várias outras notícias sobre o M o i n h o acrescen-
tam interessantes informações, como a celebração da "festa do inhame novo",
em novembro, ou a festa organizada em finais de dezembro por uma devoção
de Nossa Senhora da Conceição, seguida de obrigação com sacrifício de "um
boi à Mãe d'Agua" (provavelmente Oxum). 7 3
O critério para identificar os outros seis casos "prováveis" de terreiros ou
indivíduos nagôs é o uso do título baba-loixa, ou a menção de divindades
nagôs em relação aos seus m e m b r o s : 1) u m baba-loixa não identificado, com
terreiro na C r u z do C o s m e ; 2) o senhor G r a n a d a , filho de santo do baba-
loixa da C r u z do C o s m e , c o n s a g r a d o a X a n g ô e Oxalá, "curador de feitiço
e t i r a d o r de diabos"; 3) o baba-loixa Turibio, com candomblé na Q u i n t a das
Beatas, falecido em 1864; 4) os "baba-louxas, Azomé e Acromece, professores

152
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

jubilados da extinta escola de Chico-Papai, dão ventura e consultas, e tiram


diabo do corpo, a preços cómodos", com casa na ladeira do Alvo, na freguesia
de Sant'Anna; 5) o "africano curandeiro Augusto", também chamado baba-loixa,
com terreiro no C a m p o Grande, dedicado a práticas de exorcismo. Finalmente,
6) o candomblé de Chico-Papai, localizado na Rua da Poeira, poderia ser tam-
bém nagô, visto que seu dirigente tem dois filhos de santo c h a m a d o s de baba-
loixas, é "colega" do baba-loixa da Cruz do Cosme, e a sessão celebrada em
1870, após cinco anos da sua m o r t e , foi dirigida por papai D o m i n g o s , pro-
vavelmente o mesmo D o m i n g o s Pereira Sodré, nagô de O n i m . Cabe n o t a r
que pelo menos três desses casos (2, 4 e 5) aparecem c o m o "indivíduos" de-
dicados a atividades de cura e adivinhação, sem ficar claro se efetivamente
eram líderes de u m a congregação religiosa complexa. 7 6
Em relação aos dez casos de candomblés jejes, identifiquei cinco c o m o
"positivos". Em primeiro lugar figura o Bogum, terreiro ainda na ativa, consi-
derado o representante mais n o t ó r i o da nação jeje no C a n d o m b l é sotero-
politano c o n t e m p o r â n e o . Sobre ele aparecem várias notícias e n t r e 1867 e
1870, que comentarei em detalhe no próximo capítulo. U m segundo terreiro,
na Q u i n t a das Beatas, pode ser identificado como jeje. N ã o constam os nomes
dos líderes, apenas menciona-se um "papai" e uma "mamãe", mas reporta-se
o caso de u m a m u l h e r "de um h o m e m do comércio", levada em segredo, "fe-
chada na cadeira", que ia lá para "dançar vodum' e "a Loco adorar". E m b o r a
se diga que ela "pega de Xangô na machadinha \ poderia tratar -se de uma alu-
são ao v o d u m Sogbo, pois nesse terreiro aparece a menção explícita entre os
seus membros de "negrasgeges, crioulas e mulatas". Essa referência à etnicidade
das africanas é u m caso singular na d o c u m e n t a ç ã o de O Alabama e constitui
uma evidência forte da nação do terreiro. 7 7
A identificação dos outros três casos "positivos" deriva da tradição oral
mantida até nossos dias. A finada Valentina Maria dos Anjos, mais conhecida
como D o n é R u n h ó , mãe-de-santo do Bogum entre 1960 e 1975, l e m b r a n d o
os antigos terreiros jejes de Salvador, citava o Kerebetan, o C a m p i n a de
Boskejan e o A g o m e a / 8 A ialorixá Olga Francisca Régis, dirigente do can-
domblé do Alaketo, c o n f i r m o u algum desses n o m e s : "tinha Agomé, tinha
Kanjira, tinha [outro] j u n t o ao terreiro de Tapa, que é o n d e tinha gaiaku,
Zerebetan, mas era daqueles lados lá da beira da praia [...]. Temos até a can-
tiga 'Zerebetano zaro, zerebetano zaro'" P A memória oral, nesse caso, perma-
nece fiel ao passado, pois efetivamente achei referências d o c u m e n t a i s a esses
terreiros jejes em O Alabama.
Sobre o terreiro Zerebetan (var. Kerebetan) encontrei u m a notícia, em 15
de maio de 1867, na qual se d e n u n c i a o desaparecimento da parda escrava

153
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

C a s i m i r a , q u e "foi c o m o u t r a s a um t e r r e i r o para o lado das Barreiras,


c h a m a d o em língua africana Querebetan — fonte o n d e todos vão beber". Se
a tradução do jornalista é correta, o termo original seria talvez Querebetb, sen-
do tò o termo fon para se referir a t o d o curso d'água, lagoa, rio ou riacho.
Existe, na atualidade, na periferia de Salvador, um bairro chamado Calabetão
que talvez seja u m a corruptela do antigo c a n d o m b l é do "lado das Barreiras".
A Casa das Minas, em São Luís do M a r a n h ã o , um dos terreiros jejes mais an-
tigos e importantes do Brasil, é t a m b é m chamada Q u e r e b e n t ã de Zomadonu.
Segundo Sérgio Ferretti, em São Luís querebentã designa a casa do povo de
Davice, casa grande, ou terreiro de Davice. Davice (um reino provavelmente
anterior ao de Aliada) na Casa das Minas designa a família de v o d u n s reais
d o D a o m é , liderada pelo v o d u m Z o m a d o n u . 8 0
O "terreiro de Agomé" (variante Agomea) estava localizado em Campinas,
nas imediações de Pirajá, na freguesia da Penha, e é n o m e a d o n u m a notícia
em 11 de n o v e m b r o de 1871. De u m a f o r m a bastante preconceituosa e dis-
torcida, são descritas as condições das vodúnsis na c a m a r i n h a . Aparece men-
ção à "mamãe do terreiro, {gumbonda)" e à crioula Paixão, "equede" ou respon-
sável pelas iniciadas. 81 O nome do terreiro deriva seguramente de Agbomé, atual
Abomey, capital do antigo reino de D a o m é . Poderia, portanto, pensar-se que
esse candomblé fosse de nação jeje-dagomé.
E provável que esse terreiro de Agomé tenha dado o n o m e ao bairro da
G o m e i a , localizado perto de São C a e t a n o , ao sul de C a m p i n a s . A r t h u r Ra-
m o s já sugeriu ser o t o p ó n i m o " u m a c o r r u p t e l a da f o r m a p o r t u g u e s a do
D a h o m e y (Agomé, D a g o m é nos d o c u m e n t o s antigos), o país dos geges" e,
em apoio dessa interpretação, Edison Carneiro acrescentava que "dois dos três
candomblés geges da Bahia — os de Manuel Menezes e Falefá — estão locali-
zados na vizinhança da Goméa". 8 2 T a m b é m f u n c i o n o u ali o terreiro de Joãozi-
n h o da Gomeia que, embora de nação angola, apresentava, como nota Ramos,
importantes "intromissões jejes". Testemunhas oculares das festas daquela casa
l e m b r a m que "tinha muitas pessoas jejes, era angola, mas tocava c a n d o m b l é
jeje, fazia m u i t o O m o l u , O x u m a r é , Nanã". 8 3 N o e n t a n t o , é improvável que
essa presença de terreiros jejes, ou de influência jeje, no século XX, tivesse
alguma ligação com o antigo terreiro Agomé.
O terreiro C a m p i n a de Boskejan (var. C a m p i n a de Boskeji) estaria logi-
camente t a m b é m localizado em C a m p i n a s . Em O Alabama aparecem várias
notícias sobre terreiros localizados nessa área, mas é difícil identificá-los e
saber se alguma dessas notícias se refere especificamente a esse candomblé jeje.
N o entanto, há uma notícia de 1867 em que se fala "do terreiro da C a m p i n a "
(note-se o singular, c o m p a r a d o ao n o m e do bairro, Campinas), onde se estava

154
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

realizando o segum (sirrum, n o m e jeje do ritual funerário) pela m o r t e de ma-


mãe Aguntessa ("esposa de" Agunté, em fon agontè, broto comestível de uma
espécie de palmeira, talvez deificada como vodum). Menciona-se a presença de
gameleiras, um papai D o t h é {dote é u m título hierárquico fon) jogando Fa
(note-se o uso do termo fon), Izabel Loucouce (Lokosi, devota do vodum Loko)
como oficiante do ritual de raspar o cadáver e uma Agueça (Aguesi, devota do
vodum Agué). Esses elementos indicam tratar-se de um terreiro jeje, m u i t o
provavelmente o Campina de Boskejan lembrado pela memória oral. Humbono
Vicente, por exemplo, dizia lembrar que o C a m p i n a de Bosqueji tinha um pé
de Loco (gameleira). 84
A identificação dos restantes cinco casos "prováveis" de candomblés jejes é
obtida, como no caso dos nagôs, a partir do uso de terminologia hierárquica
jeje, menção de divindades ou devotas de divindades jejes e do vínculo com
outras congregações jejes. N o Engenho Velho, no candomblé do "preto" papai
Antônio, é documentada, em 1868, uma grande festa coincidindo com a vitória
dos conservadores nas eleições municipais, que durou mais de uma semana, teve
"matança" de boi e congregou "mais de duas mil pessoas de todas as classes".
Havia crioulas "elegantemente vestidas com saietas, umas toalhinhas com uns
chocalhos pela cabeça e uns rabos de cavalos na mão, e no meio delas haviam
algumas pretas africanas que como vudunças antigas, t o m a r a m parte na folia".
Na descrição da "matança" fala-se de novo da presença de "muitas mulheres,
espécie de bachantes, a que chamam vudunças feitas". Foi nessa festa que, como
já foi mencionado, um subdelegado da polícia "caiu no santo [...] comeu azeite
fervendo, e j u n t o do pé de Lôcco, foi pelo chão se batendo" (grifo nosso). 85
Nos terreiros jejes e nagôs do Maranhão e da Bahia, fala-se de uma antiga
prática realizada para demonstrar o poder do vodum e confirmar a autenticidade
da possessão, que consistia na ingestão de bolas de algodão impregnadas de dendê
fervendo {acará). Todavia, nos cultos de voduns da área gbe e nos terreiros jejes
era frequente outro ritual com a mesma funcionalidade — chamado na Bahia
prova de Zo", "prova do fogo" ou "bota-a-mão" —- que consiste em meter a mão
numa panela de barro com azeite de dendê borbulhante, de onde o vodum pega
um pedaço de carne de um animal previamente sacrificado. Em seguida, o
vodum exibe para todos o pedaço, mas não há ingestão do alimento. O Alabama
menciona explicitamente essa obrigação "em que vão meter a mão no azeite"
em outro candomblé na Q u i n t a das Beatas. 86 Jehová de Carvalho, seguindo in-
formações de uma antiga equede do Bogum, reporta o mesmo ritual nesse ter-
reiro e acrescenta que podia ser seguido pelo "pisa na brasa", no qual as vo-
dúnsis, descalças, p u n h a m os pés sobre brasas vivas, sopradas pelos abanos de
palha de palmeira à mão dos ogãs: "Sogbo tudo via e t u d o vigiava". 87

155
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Efetivamente, a "prova de Zo", no Brasil, está associada aos voduns da fa-


mília Hevioso, dos quais Loko faz parte. O fato de que na festa do Engenho
Velho o ato de "comer azeite fervendo" fosse realizado "junto do pé de Lôcco"
sugere que a prova de fogo da qual participou o subdelegado já seja o ritual do
acará, ou talvez a "prova de Zo" pertencesse à tradição do v o d u m . A menção
dessa obrigação, do v o d u m Loko e as alusões a africanas vudunças antigas, ou
feitas, permite supor que se tratava de u m candomblé jeje. Aliás, no Engenho
Velho, vizinho do Bogum, a tradição oral lembra o f u n c i o n a m e n t o do terreiro
jeje Pó Zerrem, do qual falaremos mais adiante. Seria o c a n d o m b l é de papai
A n t ô n i o o mesmo Pó Zerrem? Fica a dúvida.
O p r e t o J o a q u i m , c o m terreiro na Q u i n t a das Beatas (talvez o mesmo
acima m e n c i o n a d o o n d e se realizava a "prova de Zo"), é c h a m a d o de "gum-
bônde (grã-sacerdote)" e a sua mulher, de guncô, dois títulos jejes que sugerem
ser o c a n d o m b l é dessa nação. Pai J o a q u i m é d e n u n c i a d o por sua m u l h e r por
um suposto abuso sexual com "as raparigas" que estavam sendo iniciadas. 8 8
Em São Miguel, na freguesia de Sant'Anna, registra-se a presença de um afri-
cano q u e "tem em um q u a r t o p r e p a r a d o em f o r m a de t e m p l o imagens idola-
tras de diversas espécies [...] até a figura do diabo (Lebal) vestido de capona,
o qual é u m dos mais milagrosos". Esse Lebal é Legba, a divindade jeje corres-
p o n d e n t e ao Exu nagô. 8 9 Finalmente, em 1869, um grupo de iniciadas do Bo-
gum, devido à perseguição policial, foi levado primeiro para São Miguel, na
casa da africana Clara, e logo para um terreiro nas Areias da Armação, prova-
velmente liderado por Maria Velhudinha. Seria lógico pensar que as "vudun-
ças" do Bogum foram levadas para terreiros da mesma nação, a fim de continuar
a sua iniciação. Aliás, sabemos que o terreiro de Maria Velhudinha, nas Areias,
recebia visitas de outras sacerdotisas e sacerdotes jejes de Cachoeira, o que re-
forçaria essa hipótese. 9 0 Voltaremos sobre esse tema no próximo capítulo.
Concluindo, pode-se dizer que a partir da segunda metade do século XIX
se foi, aos poucos, consolidando em Salvador uma rede de congregações reli-
giosas jejes, com organização hierárquica e litúrgica complexa, que estabeleciam
entre si várias relações de complementaridade, cooperação e provavelmente
conflito. Ao mesmo tempo, a comunidade religiosa jeje funcionava inserida e
c o m o parte constitutiva de u m a c o m u n i d a d e religiosa negro-mestiça mais
ampla, com cujas congregações também estabeleciam relações, ora de concor-
rência e contraste com base em seus ritos, ora de solidariedade e cooperação
na resistência organizada à repressão e à discriminação das classes dominantes.
Devido à inevitável limitação e parcialidade das fontes, a análise linguística
e a avaliação quantitativa de terreiros jejes aqui apresentada deve ser tomada
com cautela, sendo preciso haver futuras pesquisas para refinar esses resultados.

156
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

No entanto, a evidência documental de O Alabama, além de confirmar a idéia


já estabelecida nos estudos afro-brasileiros de que a matriz jeje foi uma das mais
importantes na génese do Candomblé, sugere que as tradições dos cultos de
voduns permaneceram dominantes até pelo menos o início da década de 1870.
Isso não significa minimizar a importância das outras matrizes, como os cul-
tos congo-angolas de inquices e, sobretudo, os cultos nagôs de orixás que, como
comprovamos, nesse período quase se equiparam com os dos jejes.
Na realidade, o que estou p r o p o n d o é apenas uma inversão da ênfase no
binómio jeje-nagô, questionando a tradicional interpretação vigente nos es-
tudos afro-baianos que têm privilegiado o pólo nagô. A interpretação nagô-
cêntrica decorre da constatação c o n t e m p o r â n e a de uma clara supremacia
numérica dos terreiros auto-identificados como nagô-ketus e, em especial, da
memória histórica preservada pela tradição oral, que considera o Ilê Iyá Nasso
como o terreiro mais antigo da Bahia. Pelo prestígio atual dessa casa, e da-
quelas que dela surgiram como o Gantois e o Axé O p ô Afonjá, esse mito da
origem nagô-ketu do Candomblé tem sido aceito sem maior questionamento,
e com o tempo virou hegemónico no discurso do povo-de-santo e dos inte-
lectuais. As novas fontes documentais como O Alabama, no entanto, apre-
sentam uma realidade muito mais complexa e oferecem indícios suficientes
para propor interpretações alternativas.

0 PROCESSO OE " N A G O I Z A Ç Ã O " NA V I R A D A D O SÉCULO X I X

A tese aqui sustentada de uma preeminência da tradição jeje no C a n d o m b l é


de meados do século XIX coloca, no entanto, um interessante problema. Tra-
ta-se de explicar como em aproximadamente 20 anos (1871-1891), desde os
tempos de O Alabama até o início da pesquisa de N i n a Rodrigues, a predo-
minância jeje parece desaparecer em favor de uma clara supremacia da tradi-
ção do culto de orixás. Na sua obra póstuma, Os africanos no Brasil, Rodrigues
reconhece que no início dos seus estudos não conseguiu diferenciar a mito-
logia jeje da nagô, devido à "íntima fusão" em que se encontravam. Embora
afirme que "antes se deve dizer que uma mitologia jeje-nagô do que puramen-
te nagô prevalece no Brasil", ele conclui:

são h o j e m u i t o r e d u z i d o s e m n ú m e r o os jeje da Bahia. Se e m t e m p o existiram aqui


livres de mescla as suas crenças e o seu culto, n ã o posso a f i r m a r agora. N o s atuais can-
d o m b l é s e terreiros jeje p r e d o m i n a o e l e m e n t o crioulo e mestiço e as práticas são, c o m o
nos c a n d o m b l é s e terreiros nagôs, u m m i s t o das duas m i t o l o g i a s . O q u e n ã o sofre d ú -
vida é q u e h o j e a m i t o l o g i a ewe [jeje] é d o m i n a d a pela y o r u b a n a .

157
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

Seguindo Ellis, ele explica a absorção da cultura jeje pela nagô devido à
predominância da língua nagô e à natureza "mais complexa e elevada" das cren-
ças religiosas nagôs. 91 Embora esses pressupostos sejam certamente discutíveis,
essa percepção perdurou ao longo do tempo.
E m 1937, Carneiro escrevia: "se já no t e m p o de N i n a Rodrigues, a mito-
logia jeje se fusionava e mesmo cedia passo à mitologia nagô, o que se verifi-
ca hoje é a quase completa absorção das práticas jejes, quase que totalmente
esquecidas como práticas independentes, por parte da mitologia nagô". 9 2 Uma
década depois, t a m b é m Ramos reiterava:

a v e l h a a s s e r ç ã o d e N i n a R o d r i g u e s , d e q u e os c u l t o s e p r á t i c a s jejes f o r a m absor-
v i d o s p e l o s N a g ô s , c o n t i n u a d e pé. A s s o b r e v i v ê n c i a s religiosas jejes, q u a n d o existem,
não c h e g a m a constituir, na Bahia, n o N o r d e s t e , ou n o Rio, u m bloco cultural onde
se p o s s a n i t i d a m e n t e e v i d e n c i a r u m a f r a n c a h e r a n ç a d a o m e a n a . E m o u t r a s palavras,
n ã o há, na Bahia, u m c u l t o v o d u n estabelecido c o m o tal.93

Cabe a p o n t a r que essa percepção era resultado, em parte, de um foco das


pesquisas desses autores nos terreiros nagô-ketus, e que esse viés fez com que
a visibilidade desses terreiros acabasse por ofuscar a presença dos jejes. Se
efetivamente os c a n d o m b l é s jejes passaram a ser u m a minoria, c o m o discu-
tirei o p o r t u n a m e n t e nos próximos capítulos, alguns deles persistiram man-
t e n d o o culto de divindades e práticas rituais jejes diferenciadas.
N i n a Rodrigues c o n c e n t r o u seu estudo sobre o C a n d o m b l é no terreiro
G a n t o i s de nação nagô, e do mesmo m o d o que, ao analisar os grupos de ga-
nhadores privilegiou os dos africanos, m i n i m i z a n d o aqueles dos crioulos, é
provável que a sua pesquisa sobre religião incorra n u m a parcialidade seme-
l h a n t e , r e s u l t a n d o n u m a imagem algo distorcida do que realmente estava
a c o n t e c e n d o na virada do século XIX. Mas, além dessa circunstância, na sua
obra há indícios claros de que os jejes efetivamente já não desfrutavam do
destaque da década de 1860. Se o termo "vodum", por exemplo, fosse utilizado
como na época de O Alabama, Rodrigues não deixaria de ter n o t a d o o fato.
N o entanto, é o termo "orixá" que se começa a utilizar de uma forma genérica
para designar as divindades africanas.
Nesse sentido, é interessante um c o m e n t á r i o do próprio Rodrigues. Fa-
lando d o v o d u m Loko, associado à gameleira, diz: "aconteceu que nos nossos
estudos publicados antes de conhecer as obras de Ellis, negros nagôs nos fize-
ram corrigir o nome de Lôco [...] pretextando que havia simples corrupção criou-
la do seu verdadeiro n o m e Irôco" (grifo nosso). 9 4 O exemplo sugere que, na-
quele m o m e n t o , um m o v i m e n t o etnocêntrico de "purificação" nagô estava
sendo articulado em oposição à "corrupção crioula", e mostra como a agência

158
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO C A N D O M B L É

dos praticantes nagôs p o d e ter sido i n s t r u m e n t a l para a sua p r o m o ç ã o sócio-


religiosa e, consequentemente, para a progressiva invisibilidade dos jejes. Mas
quais teriam sido as causas que propiciaram essa autoconsciência da identi-
dade nagô e o subsequente esforço para legitimá-la?
O processo que gerou a supremacia nagô no C a n d o m b l é baiano não pode
ser explicado como efeito de apenas uma causa, mas deve ser entendido como
resultado da complexa interação de uma pluralidade de fatores que aqui só po-
dem ser abordados de forma tentativa. 95 Em primeiro lugar, tal mudança parece
coincidir com a grande proliferação de terreiros que se deu na época pós-abo-
lição que, como d e m o n s t r a m as notícias de jornais recolhidas por Rodrigues
entre 1896 e 1905, se espalharam por toda a cidade, e também n o Recôncavo,
liderados majoritariamente por mulheres crioulas/' 6 Apesar dos ideais de pro-
gresso e civilização p r o m o v i d o s pela nova República, a grande maioria ne-
gro-mestiça baiana c o n t i n u o u privada da possibilidade de exercer uma cidada-
nia real. A marginalidade social da população de cor reforçou a formação de
uma identidade racial e cultural diferenciada e a procura de espaços de socia-
bilidade alternativos c o m o o candomblé. Na construção dessa identidade ne-
gra, assumida s o b r e t u d o pela população crioula, a Africa, c o m o sinal dia-
crítico de origem e c o m o projeção do imaginário cultural, passou a jogar u m
papel central, pelo menos para alguns grupos. E na década de 1890, por exem-
plo, que surgem g r u p o s carnavalescos c o m o os Pândegos da Africa e a Em-
baixada Africana. 9 7
No contexto do C a n d o m b l é , penso que foi precisamente no período pós-
abolição, coincidindo com a progressiva desaparição dos velhos africanos e a
simultânea idealização da África, que terreiros como o Gantois — que podiam
reclamar u m a f u n d a ç ã o histórica africana — começaram a reivindicar essa as-
cendência, embora já fossem congregações essencialmente crioulas nesse mo-
mento. A africanidade constituía um fator diferencial, um capital simbólico
para enfrentar a concorrência das casas de f u n d a ç ã o recente. Essa reafirmação
identitária estaria reforçada t a m b é m pela crença de que as práticas religiosas
'africanas" eram mais eficazes e "fortes" do que as d i s c r i m i n a d a s práticas
crioulas" dos especialistas religiosos recém-chegados.
Mas, nessa reivindicação de africanidade, por que a tradição nagô ganhou
essa posição privilegiada? Talvez isso se deva a u m a idéia particular da África
que se estava f o r j a n d o naquele m o m e n t o , i n t i m a m e n t e ligada à crescente
visibilidade da i d e n t i d a d e iorubá. Lorand M a t o r y observa que, nas últimas
décadas do século XIX, " d o m i n a d a pelos britânicos, a encruzilhada de inte-
rações entre África e Afro-América conferiu aos iorubás u m a notória repu-
tação de superioridade em relação a outros grupos africanos". 9 8 Iniciada pe-

159
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

los missionários p r o t e s t a n t e s de Serra Leoa, i n c e n t i v a d a pelo p o d e r colonial


b r i t â n i c o na sua d i s p u t a c o m os franceses, a e t n o g ê n e s e i o r u b á alcançou re-
n o v a d o vigor c o m a c h a m a d a R e n a s c e n ç a de Lagos, nas décadas de 1880 e
1890. A b u r g u e s i a negra dessa p u j a n t e cidade, d i a n t e da exclusão social e ra-
cial i m p o s t a pelo c o l o n i a l i s m o , c o m e ç o u a p r o m o v e r u m "nacionalismo cul-
t u r a l " — a expressão é de Ade Ajayi — c o m o f o r m a de c o n t e s t a ç ã o . Afir-
m a n d o a especificidade de u m a "raça-nação" i o r u b á , esse m o v i m e n t o culti-
vava a l í n g u a i o r u b á , a d o t a v a f o r m a s de vestir africanas, coletava a sabedoria
ancestral em f o r m a de provérbios, c o n t o s e poesia, criava narrativas históri-
cas a p a r t i r da t r a d i ç ã o oral e "até r e c o n h e c i a o m é r i t o de alguns aspectos da
religião t r a d i c i o n a l " . 9 9
E m b o r a b e m antiga, a c o m u n i c a ç ã o t r a n s a t l â n t i c a e n t r e Bahia e a Costa
da M i n a v i n h a c r e s c e n d o d e s d e 1835, c o m c e n t e n a s de r e t o r n a d o s africanos
instalando-se na costa africana a cada ano, m u i t o s deles em Lagos, contribuin-
d o , j u n t o aos r e t o r n a d o s l u c u m i s de C u b a e os akus de Serra Leoa, à men-
c i o n a d a "renascença i o r u b á " . O u t r o s a f r o - b a i a n o s v i a j a v a m e comerciavam
r e g u l a r m e n t e entre as duas costas, s e n d o q u e o p r i n c i p a l d e s t i n o das embar-
cações q u e nas ú l t i m a s d é c a d a s d o século iam p a r a a A f r i c a o c i d e n t a l era
Lagos. Isso significa q u e as notícias sobre o " n a c i o n a l i s m o c u l t u r a l iorubá"
p o d e r i a m ter revertido i n d i r e t a m e n t e na Bahia, g e r a n d o u m c l i m a favorável
p a r a a revalorização da c o r r e s p o n d e n t e i d e n t i d a d e nagô. O C a n d o m b l é , com
a sua velha e l a t e n t e divisão é t n i c o - r i t u a l , oferecia u m t e r r e n o a b o n a d o para
revivalismos " n a c i o n a l i s t a s " . É t a m b é m i m p o r t a n t e n o t a r q u e a c i d a d e de
K e t u , após ser d e s t r u í d a pelos d a o m e a n o s em 1883 e 1886, foi r e c o n s t r u í d a
em 1896, e q u e n o t í c i a s desse e v e n t o p o d e m ter c h e g a d o à Bahia. D a t a r i a
desse m o m e n t o a i d e n t i f i c a ç ã o de alguns terreiros de Salvador c o m a nação
nagô-ketu?
E n t r e os agentes dessa i n t e r c o m u n i c a ç ã o e n t r e a Bahia e a área i o r u b á no
final d o século, o caso d o b a b a l a ô M a r t i n i a n o Eliseu de B o m f i m é o mais
c o n h e c i d o . Ele foi u m dos i n f o r m a n t e s de N i n a R o d r i g u e s e, n a sua juven-
t u d e , esteve vários a n o s na Nigéria, i n i c i a n d o - s e na t r a d i ç ã o de Ifá e conver-
t e n d o - s e d e p o i s em u m dos precursores do processo de "africanizaçao", ou
m e l h o r , "nagoização", d o C a n d o m b l é . Foi ele que, em 1910, a j u d o u Eugênia
A n a dos Santos, mãe A n i n h a , a f u n d a r o Axé do O p ô A f o n j á e a estabelecer,
p o s t e r i o r m e n t e , com base nos títulos h o n o r í f i c o s utilizados n o reino de O y o ,
a i n s t i t u i ç ã o dos obás de Xangô. 1 0 0 J o a q u i m Francisco D e v o d ê Branco (1856-
1924), u m l i b e r t o mahi residente em Lagos e c o m e r c i a n t e em Porto Novo, era
t a m b é m amigo de mãe A n i n h a e p a d r i n h o de Senhora do Axé O p ô Afonjá. 1 0 1
C o m as suas viagens, poderia ter trazido informações do que estava a c o n t e c e n d o

160
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO C A N D O M B L É

na esfera religiosa na Costa da Mina, mas a sua influência não podia deixar
de ser tangencial. C o n t u d o , como lembra Lima,

a ida à Á f r i c a d e a f r i c a n o s l i b e r t o s e d e s e u s filhos, p e l o s fins d o s é c u l o d e z e n o v e ,


era n a q u e l e t e m p o , u m i m p o r t a n t e e l e m e n t o l e g i t i m a d o r d e p r e s t í g i o e g e r a d o r d e
conhecimentos e p o d e r e c o n ó m i c o . E n q u a n t o n e g o c i a v a m t a n t a vária m e r c a d o r i a
trazida d a C o s t a e l e v a d a d o B r a s i l , t a m b é m , c o m o h o j e se d i z , r e c i c l a v a m o s a b e r
da t r a d i ç ã o r e l i g i o s a a p r e n d i d a c o m o s " a n t i g o s " , n o s t e r r e i r o s d a B a h i a . 1 0 2

Na sua função legitimadora de prestígio, a viagem (real ou imaginada) à


África aparece t a m b é m em várias narrativas referentes à f u n d a ç ã o de alguns
dos terreiros baianos mais famosos. 1 0 3 Nesse sentido, o final do século XIX
parece estabelecer as bases conceptuais para uma noção da África como o locus
original de uma "tradição" que precisava ser recuperada, reinventando con-
tinuidades de m o d o a superar um "passado traumático". Essa idealização da
África também se apresentava c o m o u m a alternativa e u m a reação ao viés
assimilacionista da cultura crioula. Sincronizada com a crescente visibilidade
da supremacia cultural iorubá no m u n d o afro-atlântico, o processo de "rea-
fricanização" consolidou-se, de fato, como um processo de "nagoização". Ao
mesmo tempo, alguns setores da c o m u n i d a d e religiosa perceberam esse pro-
cesso como uma estratégia para obter poder político n u m a sociedade cada vez
mais racializada.
O papel dos intelectuais tem sido considerado o u t r o fator que c o n t r i b u i u
para o processo de "nagoização". Beatriz Góis Dantas tem d e f e n d i d o a idéia
de que foram os intelectuais, desde Rodrigues, passando por Carneiro e Ra-
mos, até chegar a Verger e Elbein dos Santos, para citar apenas os mais conhe-
cidos, que privilegiaram de modo sistemático os terreiros "nagôs puros", exal-
tando-os "como verdadeira religião, c o n t r a s t a n d o assim com a magia/feiti-
çaria dos bantos". 1 0 4 Sem negar esse fato, o a r g u m e n t o de D a n t a s tem o sério
defeito de infravalorizar a agência dos próprios participantes nos processos
de legitimação de suas práticas religiosas em relação às dos grupos concor-
rentes. A reputação do Gantois, por exemplo, já estava bem estabelecida antes
que Rodrigues iniciasse a sua pesquisa. De fato, talvez essa fosse u m a das
razões que o levaram para aquele terreiro. Q u a n d o , a partir da década de 1930,
os intelectuais passaram a valorizar de uma f o r m a mais ostensiva a "pureza"
africana dos candomblés nagô-ketus, eles estavam apenas reconhecendo uma
dinâmica interna do C a n d o m b l é já consolidada, embora ao m e s m o t e m p o
estivessem c o n t r i b u i n d o para reforçá-la.
A combinação desse complexo de causas, aqui apenas esboçadas, favoreceu
que certos candomblés nagô-ketus passassem a ser considerados como "mode-

161
LUIS NICOLAU P A R ÉS

los" ou referências hegemónicas, e que muitos outros candomblés de menor


porte assumiram progressivamente a identidade "nagô", numa tentativa de le-
gitimar as suas práticas. O resultado foi uma crescente invisibilidade da tradi-
ção dos cultos de voduns, que no século XIX tinham constituído uma das
matrizes religiosas mais determinantes na institucionalização do Candomblé.
Nos próximos dois capítulos retomo a historiografia do terreiro Bogum e
a de outros candomblés jejes de Cachoeira, analisando a sua evolução na se-
gunda metade do século XIX e depois no período pós-abolição. Contudo,
espero que o panorama macro-histórico aqui apresentado sirva para inserir
as informações de caráter micro-histórico que se seguem, no seu contexto
sociocultural mais amplo.

NOTAS

' R o d r i g u e s , Os africanos...-, Verger, Fluxo...-, Reis, "Nas m a l h a s . . . " , " M a g i a . . . " . A natu-
reza iniciática dos cultos a f r i c a n o s q u e i m p õ e a lei do segredo, sua c l a n d e s t i n i d a d e e
o f a t o de se tratar, pelo m e n o s até r e c e n t e m e n t e , de u m a c u l t u r a religiosa baseada na
o r a l i d a d e c o n t r i b u í r a m para a falta quase total de d o c u m e n t a ç ã o escrita pelos próprios
praticantes. As fontes disponíveis foram escritas, em sua maioria, por indivíduos alheios
ao C a n d o m b l é , n o r m a l m e n t e e n c a r r e g a d o s de r e p r i m i r ou d e n u n c i a r essas práticas
religiosas, c, assim, sujeitas a p r e c o n c e i t o s , distorções e erros. E n t r e os d o c u m e n t o s
q u e os a f r i c a n o s m a n d a v a m lavrar estão os t e s t a m e n t o s de libertos e as petições, estu-
d a d o s por M a t t o s o ( " T e s t a m e n t o s . . . " ) e M . í. C. de Oliveira (O liberto...). Tambe'm
são n o t ó r i o s o excepcional " T r a t a d o dos escravos do E n g e n h o S a n t a n a em Ilhéus", pu-
blicado pela p r i m e i r a vez por Schwartz ("Resistance", p p . 69-81), c os d o c u m e n t o s es-
critos em árabe dos malês (Reis, " M a g i a . . . " , p. 58). O s c h a m a d o s "cadernos de f u n d a -
m e n t o " , conservados em certos c a n d o m b l é s , seriam u m a o u t r a possível f o n t e , mas esse
material é de difícil acesso e não se tem notícia da existência de c a d e r n o s desse tipo
a n t e r i o r e s às primeiras décadas do século XX.
2
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , "Tambores..."; H a r d i n g , A refuge...-, Silveira, lyá João José Reis
e Jocélio Teles dos Santos estão p o r p u b l i c a r o u t r o t r a b a l h o sobre o C a n d o m b l é n o sé-
culo XIX.
1
O Alabama circulou entre 1863 e 1900, mas, infelizmente, só se conserva a coleção com-
pleta do p e r í o d o 1863-1871, além de alguns n ú m e r o s dispersos do período posterior. O
e d i t o r - c h e f e foi Aristides Ricardo de Santana, mas, entre 1887 e 1890, novos editores
assumiram a direção. N u m a notícia de 17 de d e z e m b r o de 1870 (p. 7), os redatores são
tratados de "negros" e "mulatos". Agradeço a João José Reis por ter-me i n d i c a d o a exis-
tência dessa i m p o r t a n t e fonte e cedido u m a cópia das notícias referentes ao c a n d o m b l é
B o g u m que aparecem nessa publicação. Em 1998, o historiador a m e r i c a n o Dale G r a d e n
p u b l i c o u u m artigo baseado no material dc O Alabama, "So m u c h superstition...".
1
" C o r r e s p o n d ê n c i a do capitão José Roiz de G o m e s para o c a p i t ã o - m o r Francisco Pires
de Carvalho e A l b u q u e r q u e , 20 de janeiro de 1809", Capitães mores, Santo A m a r o , 1807-
1822, maços 417-21, Al>KBa.

162
A CONTRIBUIÇÃO J E J E NA I N S T I T U C I O N A L I Z A Ç Ã O DO CANDOMBLÉ

5 C a p i t ã e s - m o r e s , 1 9 / 6 / 1 8 0 7 , m a ç o 417-1, ApEBa, a p u d Reis, " R e c ô n c a v o . . . " , p. 103;


H a r d i n g , C a n d o m b l é . . . , p. 80. Para possíveis e t i m o l o g i a s do t e r m o " c a n d o m b l é " , ver
Pessoa de C a s t r o , "A p r e s e n ç a . . . " , p. 4; C a s t r o e C a s t r o , C u l t u r a s . . . , a p u d K a r a s c h , A
vida..., p. 573, n. 98.
<> H a r d i n g , A refuge..., p. i .
7
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p p . 121-22. U m foi o já m e n c i o n a d o A n t ô n i o , de n a ç ã o a n g o l a ;
outro, o escravo M a n u e l , c o m c a n d o m b l é ao C a m i n h o d o I n f e r n o , em Salvador, d e n u n -
ciado p o r O Alabama ( 1 / 6 / 1 8 7 1 , p. 1).
8
Reis, Rebelião..., p p . 7 3 - / 5 , 85-86, 102-4; Reis e Silva, Negociação..., p. 41; Verger, No-
tícias..., p. 227. S o b r e as c o r o a ç õ e s de reis e r a i n h a s a f r i c a n o s n o Brasil, ver, e n t r e
outros, R o d r i g u e s , Os africanos..., p p . 31-34; M . M . e S o u z a , Reis...-, L. M . S c h w a r c z ,
As barbas..., pp. 247-94.
9
Souza, O diabo..., p. 266.
10
Reis, " M a g i a . . . " , p p . 62-63; cf. M o t t , " A c o t u n d á . . . " ; H i g g s , T h e I n q u i s i t i o n . . . ; S o u z a ,
O diabo..., p p . 323-24.
" Verger, Fluxo..., p p . 334-35; Reis, Rebelião..., p. 82, " T a m b o r e s . . . " , p p . 109-12; Silveira,
Iyá..., p p . 8-21. A c a r t a d o c o n d e d o s A r c o s , e m 10 d e abril d e 1814, p e r m i t i n d o os
a j u n t a m e n t o s de escravos na G r a ç a e n o B a r b a l h o , é t r a n s c r i t a p o r R o d r i g u e s , e m Os
africanos..., p. 156; Verger, Notas..., p. 21; Silveira, Iyá..., p. 17.
12
Accú talvez d e r i v e d o t e r m o a f r i c a n o aku, o b r i g a ç ã o r e a l i z a d a a p ó s sete a n o s d a m o r t e
de u m a ialorixá p a r a d a r p o s e à s u c e s s o r a ( D . M . dos S a n t o s , História..., p. 18). E m
f o n g b e , kú d e s i g n a a m o r t e , o a l é m , o l u g a r d o s m o r t o s e t a m b é m , c o m o em i o r u b á , o
verbo m o r r e r . N a Á f r i c a o c i d e n t a l , aku t o r n o u - s e u m a d e n o m i n a ç ã o é t n i c a para desig-
nar m u ç u l m a n o s d e s c e n d e n t e s d o s escravos i o r u b á s q u e c h e g a r a m a Serra Leoa n o sé-
culo XÍX. P r o v a v e l m e n t e p o r q u e m u i t a s s a u d a ç õ e s i o r u b á s se i n i c i a m c o m f o r m a s c o m o
E ku, ou A ku. T a m b é m os f o n s u t i l i z a m kú e m m u i t a s s a u d a ç õ e s c o m o O kú ( S e g u r o l a ,
Dictionnaire..., p. 309).
" C o m o v e r e m o s m a i s a d i a n t e , o t e r m o " v o d u m " ou " v u d u m " foi u t i l i z a d o d u r a n t e a
s e g u n d a metade do século XIX c o m o d e s i g n a ç ã o g e n é r i c a das e n t i d a d e s e s p i r i t u a i s afri-
canas, e, p o r t a n t o , n ã o é possível a f i r m a r q u e se t r a t e d e u m c a n d o m b l é jeje, e m b o r a
a p o s s i b i l i d a d e n ã o possa ser d e s c a r t a d a .
14
Reis e Silva, Negociação..., p p . 36, 42, 128-29. A p r i m e i r a r e f e r ê n c i a ao t e r m o " v o d u m "
n o Brasil aparece n a o b r a de P e i x o t o , de 1741, e m M i n a s G e r a i s .
" Re is e Silva, Negociação..., p p . 36, 128.
16
Reis e Silva, Negociação..., p p . 44, 129.
1
Re is e Silva, Negociação..., p. 61.
18
Reis e Silva, Negociação..., p p . 55-57; cf. A n t ô n i o G u i m a r ã e s ao p r e s i d e n t e Barros P a i m ,
em 24 de j u n h o d e 1831, Juizes de Paz, m a ç o 2,681, Al-tBa.
Reis e Silva, Negociação..., p p . 48-50, 129.
Reis e Silva, Negociação..., p p . 57-58.
Reis e Silva, Negociação..., p. 61.

Destes 65 r e g i s t r o s , 55 c o n t ê m casos c o m a l g u m a i n f o r m a ç ã o s o b r e a l i d e r a n ç a , s e n d o
que e m 45 deles c o n s t a o n o m e . N e s t e t o t a l , n ã o f o r a m c o n t a d a s as várias n o t í c i a s com
alusões a " b a t u q u e s , b a t u c a j é s , s a m b a s e algazarras" q u e n ã o são i d e n t i f i c á v e i s c o m o
tendo u m a c o n o t a ç ã o religiosa. T a m b é m não f o r a m c o n t a d a s a q u e l a s q u e , m e s m o t e n d o
u
m possível c a r á t e r religioso, n ã o m o s t r a v a m e v i d ê n c i a de u m a c o n g r e g a ç ã o estável e

163
LUIS N I C O U U PARÉS

e r a m , p r e s u m i v e l m e n t e , celebrações de caráter p o n t u a l , c o m o a l g u n s a j u n t a m e n t o s
festivos ou ritos f u n e r á r i o s . T a m b é m f o r a m d e s c o n t a d a s as notícias q u e , p o r não apre-
sentar a i n f o r m a ç ã o necessária, p u d e s s e m ser d u p l i c a ç õ e s de casos já d o c u m e n t a d o s .
23
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 129.
14
Schwartz estima a p o r c e n t a g e m de negros livres e m "40% ou mais" da p o p u l a ç ã o total,
na Bahia, em 1816-1817 (Segredos,.,, p. 373). N o R e c ô n c a v o , em 1808, os negros e mu-
latos livres c o n s t i t u í a m 4 3 % : M a t t o s o , Bahia, p. 119. S e g u n d o Reis, os africanos e
crioulos livres e libertos c o n s t i t u í a m 30% dos 65 mil h a b i t a n t e s de Salvador em 1835
( " C a n d o m b l é . . . " , p. 122).
23
O s d a d o s sobre os Estados U n i d o s e J a m a i c a : Schwartz, Segredos..., p. 373. Bastide, Les
Amériques....
26
O Alabama, 29/9/1868, p. 4
11
Reis c o m e n t a d e t a l h a d a m e n t e os dois casos de lideranças brancas (em 1859, o português
D o m i n g o s M i g u e l e sua amásia, a parda M a r i a U m b e l i n a , e, em 1873, a branca Maria
C o u t o ) e o de u m a l i d e r a n ç a p a r d a (em 1865, Belmira) ( " C a n d o m b l é . . . " , p p . 120-21).
H á ainda u m s e g u n d o caso de "uma m u l h e r de cor p a r d a de n o m e U m b e l l i n a , conhe-
cida por m a m ã Balunce, m o r a d o r a aos C o q u e i r o s " , na Freguesia do Pilar, "adivinha,
c u r a n d e i r a de malefícios", d e n u n c i a d a em 1871 (O Alabama, 18/2/1871, p. 1). Talvez
se trate da m e s m a M a r i a U m b e l i n a de 1859.
28
H a r d i n g , A refuge..., p. 71.
29
H a r d i n g , A refuge..., p. 72; Reis, " C a n d o m b l é " , p. 120.
30
H a r d i n g , A refuge..., p p . 72-74; Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 120. Q u a n d o , para o período
1800-1888, H a r d i n g adiciona aos seus 65 d o c u m e n t o s positivos os restantes 30 prováveis
e dois casos de provável co-liderança d o c u m e n t a d o s p o r Verger, ela chega a percenta-
gens de género, na l i d e r a n ç a , similares às de Reis: h o m e n s , 61%, e m u l h e r e s , 39%.
31
Landes, "A c u l t . . . " , pp. 386-97.
32
Idéia t a m b é m m a n t i d a p o r H a r d i n g , A refuge..., p. 97.
35
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , pp. 120, 131; H a r d i n g , A refuge..., p. 127.
34
Ver, por e x e m p l o , M a r q u e s , O feiticeiro...
33
Reis e Silva, Negociação..., pp. 46-47, 128.
36
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 131.
37
Jornal da Bahia, Salvador, 12/2/1859, a p u d Verger..., Fluxo, p. 532. T a m b é m Policia,
21/4/1862, maço 6.234, APEBa, apud Harding, Candomblé..., p. 320; O Alabama, 13/9/1866,
p. 3; Rodrigues, O animismo..., p. 171.
38
Sodré, O terreiro..., pp. 14-15; M a t t o s , N e g r o s . . . , pp. 19, 70.
" N a s freguesias de Nossa Senhora da Vitória, registram-se dois casos, e u m o u t r o na fre-
guesia do Pilar, que c o r r e s p o n d e à área d e n o m i n a d a Barreiras. As referências à Q u i n -
ta das D e v o t a s (duas) f o r a m i d e n t i f i c a d a s c o m a Q u i n t a das Beatas, atual C o s m e de
Farias, em Brotas. C a b e n o t a r a g r a n d e extensão dessas freguesias. N o caso de S a n t o
A n t ô n i o , havia o I a D i s t r i t o , v i z i n h o d o Passo, q u e p o d e r i a ser c o n s i d e r a d o p a r t e do
c e n t r o u r b a n o , e o 2 a D i s t r i t o , q u e se e s t e n d i a ao n o r t e na área s e m i - u r b a n a .
40
Silveira, Iyá..., pp. 51-52.
41
O Alabama, 2/5/1867, p p . 2-3.
42
O Alabama, 25/8//1869, p. 2.
43
O Óculo Mágico, 11/10/1866, a p u d C o s t a , E k a b ó . . . , p. 134.
44
Verger, Fluxo..., p. 532; O Alabama, 19/4/1864, p. 1.

164
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

« O Alabama, 2/5/1867, p p . 2-3.


« O Alabama, 2/5/1867, pp. 2-3.
O Alabama, 29/9/1868, p. 3.
« O Alabama, 11/11/1871, p. 4.
« O Alabama, 23/9/1869.
5» O Alabama, 19/3/1869, p. 6.
5> O Alabama, 23/9/1864, p p . 1-2; 26/9/1868, p. 4.
52
O Alabama, 19/9/1868, p. 1.
53
O s dois g r a n d e s p e r í o d o s de r e s s u r g i m e n t o d o C a n d o m b l é , nos a n o s 1930 e 1970,
correspondem de m a n e i r a significativa ao E s t a d o Novo e ao g o v e r n o de ACM e à d i t a -
dura, r e s p e c t i v a m e n t e , isto é, a p e r í o d o s p o l i t i c a m e n t e conservadores. A aliança das
elites c o n s e r v a d o r a s c o m o C a n d o m b l é , ou a sua relação p a t e r n a l i s t a e clientelista,
respondem a uma politica p o p u l i s t a q u e visa c o n t e n t a r as classes subalternas com gestos
simbólicos, mas é r e t r o a l i m e n t a d a por u m a d e p e n d ê n c i a (ou m e d o ) das elites ao p o -
der espiritual dos negros.
54
O Alabama, 2/10/1869, p. 3.
55
O Alabama-, 9 / 8 / 1 8 6 6 , p. 4. H á t a m b é m u m caso de d u a s negras f u g i d a s , r e f u g i a d a s
num c a n d o m b l é na Rua do Bangala, na freguesia da Sé: O Alabama, 19/4/1866, pp. 1-2;
26/11/1867, p. 1.
56
Verger, Fluxo..., p. 335,
57
Costa, E k a b ó . . . , p . 153; cf. A. A. V. N a s c i m e n t o , Dez freguesias..., p. 89.
58
O Alabama, 9/8/1866, p. 4.
55
Reis, A morte..., p. 31; C o s t a , E k a b ó . . . , p. 151; M a t t o s o , Bahia..., pp. 124-25.
60
O Alabama, 12/2/1870, p. 7.
61
Neste a n o , n u m c a n d o m b l é na Quintas da Barra, no d i s t r i t o da V i t ó r i a , em Salvador,
a polícia a c h o u várias vestes e e m b l e m a s rituais que sugerem ser esse u m culto de m ú l -
tiplas d i v i n d a d e s : " C o r r e s p o n d ê n c i a do Secretário de Polícia ao Presidente da Provín-
cia", 13 de abril 1858, m a ç o 2,994-1, Polícia, Delegados 1842-1866, ApEBa, ( d o c u m e n t o
achado por A l e x a n d r a B r o w n e João José Reis), a p u d H a r d i n g , A refuge..., p. 59. H á
transcrição do d o c u m e n t o original em H a r d i n g , C a n d o m b l é . . . , p . 316.
62
Rodrigues, Os africanos..., p. 230.
63
G r a d e n , "So m u c h . . . " , p. 69; M a t o r y , Black Atlantic..., p. 86; Reis, " C a n d o m b l é . . . " ,
p. 124-25. A análise de G r a d e n incorre em vários erros, entre eles identificar vários can-
domblés c o m o nagôs q u a n d o não há q u a l q u e r indício para justificar essa i d e n t i f i c a -
ção. Por e x e m p l o , u m c a n d o m b l é no E n g e n h o Velho, q u e aparece em u m a notícia em
1869, é i d e n t i f i c a d o por esse a u t o r c o m o s e n d o o atual c a n d o m b l é E n g e n h o Velho o u
Casa Branca, de nação n a g ô - k e t u . N o e n t a n t o , as notícias de O Alabama d e i x a m cla-
ro q u e o bairro E n g e n h o Velho era u m a das áreas de m a i o r c o n c e n t r a ç ã o de terreiros,
não sendo possível tal i d e n t i f i c a ç ã o . Aliás, nessa notícia há o u t r o s indícios linguísticos
e rituais que i n d i c a m q u e talvez se trate de u m terreiro jeje.
64
Lima, A família..., pp. 72- 7 3; Pessoa de C a s t r o , " L í n g u a . . . " , p. 75; Braga, Na gamela...,
PP- 38-39, 56.
65
Pessoa de C a s t r o , " L í n g u a . . . " , p. 75; Braga, Na gamela..., p. 56. A e t i m o l o g i a da ex-
pressão "decá" é ainda confusa. N a obrigação do decá, a cabaça é o c o n t e n t o r dos u t e n -
sílios da iniciação (faca, tesoura, s e m e n t e s , folhas etc.), e n t r e g u e s ao s a c e r d o t e q u e
atingiu a s e n i o r i d a d e e a i n d e p e n d ê n c i a . C o m o em f o n g b e ka significa cabaça, ou cuia,

165
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

o t e r m o "decá" (deka) é g e r a l m e n t e tido por jeje ou de o r i g e m gbe. N o e n t a n t o , em


f o n g b e c o n t e m p o r â n e o , deka n ã o e x i s t e c o m o p a l a v r a . V i v a l d o da C o s t a Lima
c i t a n d o A k i n d e l e e Aguéssy, a p o n t a p a r a a expressão do non dé ka me c o m o possível
e t i m o l o g i a do t e r m o . Essa expressão é u t i l i z a d a e m P o r t o N o v o p a r a d e s i g n a r uma
c e r i m ó n i a em q u e as f a m í l i a s das novas i n i c i a d a s a g r a d e c e m ao vodunon, oferecen-
d o - l h e t o d a s o r t e d e c o m i d a s (A f a m í l i a . . . , p p . 133-34, 177). N i n a R o d r i g u e s (Os
africanos, p. 138) t r a d u z o t e r m o "ogã" c o m o "senhor, chefe", q u e s e g u n d o ele seria jeje,
m a s cabe n o t a r q u e o t e r m o ògdn, c o m o m e s m o s i g n i f i c a d o , é i o r u b á , e n q u a n t o o
f o n g b e utiliza a palavra gan.
A expressão "pai-de-santo" aparece u m a vez, e m b o r a utilizada fora do c o n t e x t o religio-
so {O Alabama, 28/7/1868, pp. 1-2). Agradeço a João Reis por ter c h a m a d o m i n h a atenção
para o que seria a mais antiga ocorrência d o c u m e n t a d a desse t e r m o . O apelativo "mãe-
d e - s a n t o " , q u e d e r i v a r i a da expressão i o r u b á " i a l o r i x á " , n ã o a p a r e c e na d é c a d a de
1860. O u t r o s t e r m o s h i e r á r q u i c o s p o r t u g u e s e s registrados em O Alabama são: "segun-
d a m a m ã e d o t e r r e i r o " , "secretário", "secretária", "cabo de e s q u a d r a " ou " t o c a d o r de
tabaque".
O s oito t e r m o s cuja o r i g e m linguística n ã o foi i d e n t i f i c a d a são: congu (dois), termo
s i n ó n i m o d e c a n d o m b l é o u b a t u c a j é , c o m o p r o v a v e l m e n t e t a m b é m cundúm (tocar
cundúm) (dois); colla ( g r a n d e g é n e r o de árvores a f r i c a n a s da família das esterculiáceas,
c u j o s f r u t o s capsulares c o n t ê m grandes s e m e n t e s n u c i f o r m e s c o m alto teor de cafeína
e o u t r o s alcalóides) (dois); nacucu cuim ( t a b a q u e ) ( u m ) ; luge ( u m ) ; bonadué (dança,
p r o v a v e l m e n t e t e r m o jeje) ( u m ) ; caruru ( c o m i d a , t e r m o talvez de o r i g e m tupi) (três).
Segun é u m a evolução f o n é t i c a d o t e r m o "sirrum", n o m e d a d o aos rituais f u n e r á r i o s
n o s terreiros jejes do Brasil, por sua vez c o r r u p t e l a d o t e r m o f o n sinhun (sín = asin =
água; bun = t a m b o r ; sinhun = t a m b o r d'água). Sinhun é o n o m e de u m dos i n s t r u m e n t o s
de percussão utilizados nos ritos f u n e r á r i o s (em meia cabaça i n v e r t i d a , colocada sobre
u m a gamela com água, b a t i d a c o m varetas c h a m a d a s aguidavis). O o u t r o i n s t r u m e n t o
de percussão í o zenli, um pote ou p u r r ã o sobre cuja boca se bate u m a b a n o (do fongbe,
zin - p o t e , jarra, cerâmica; li = ali = a a b e r t u r a , a via; zenli = a b e r t u r a d o p o t e , boca
da jarra). Zenli designa t a n t o o i n s t r u m e n t o , o r i t m o ou música f ú n e b r e c o m o o ritual
f u n e r á r i o . Pessoa de C a s t r o d o c u m e n t a o t e r m o sal-apocã (var. c ã o - d a - c o s t a ou sal-da-
costa) (Falares..., p. 333). N o e n t a n t o , os especialistas religiosos jejes n ã o r e c o n h e c e m
essa expressão, nem a i d e n t i f i c a m com o ritual iniciático do sapocã (ou sarapocã). Mo-
can aparece na notícia de O Alabama c o m o o b j e t o ritual de u m a d i v i n h o de Fa. Na
língua fon, mwenkanto (o d o n o d o mwenkan) significa adivinho, vidente. N o C a n d o m -
blé, a t u a l m e n t e , mocan designa u m "colar de p a l h a - d a - c o s t a t r a n ç a d a e n f e i t a d o de
búzios, t e n d o as duas p o n t a s unidas por u m a espécie de vassoura feita da mesma palha".
A discrepância com a contagem de Reis ( " C a n d o m b l é . . . " , p. 124), que conclui que "Nagô
b e a t s Jeje" (os t e r m o s n a g ô s s u p e r a m os jejes), deve-se ao f a t o de q u e Reis, e m b o r a
se baseie p r i n c i p a l m e n t e em O Alabama, i n c l u i u na sua a m o s t r a alguns t e r m o s nagôs
a c h a d o s em o u t r a s f o n t e s d o c u m e n t a i s .
O Alabama, 23/2/1870, p p . 3-4.
C a b e acrescentar que nove casos jejes c o r r e s p o n d e m a registros classificados c o m o "can-
d o m b l é s " e u m como " i n d i v í d u o " ; dos oito registros nagôs, entre os casos "prováveis",
há três classificados c o m o "indivíduos"; o caso "provável" dos angolas é um "indivíduo".
H á a i n d a o a f r i c a n o pai Jebú, q u e poderia ser de Ijebu ( O Aíabama, 15/1 1/1864), cf.
Reis. " C a n d o m b l é . . . " , p. 120.

166
A CONTRIBUIÇÃO JEJE NA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO CANDOMBLÉ

O Alabama, 8/11/1864, p p . 3-4; 18/11/1864, pp. 3-4; 2 1 / 2 / 1 8 6 5 , p p . 3-4. E m 1868, re-


porta-se o caso da a d o l e s c e n t e P a u l i n a , q u e estava e n f e i t i ç a d a , s e n d o q u e "a m i l o n g a
fora a r r a n j a d a no Bate-folha" (O Alabama, 15/10/1868, p. 2). O a t u a l t e r r e i r o Bate-
folha, M a n s u B a n d u K e n k ê , de n a ç ã o a n g o l a ( m u x i c o n g o ou c o n g o - a n g o l a ) , na M a t a
Escura de Salvador, foi f u n d a d o em 1916 p o r M a n o e l B e r n a r d i n o da Paixão ( A r a p u -
mandezu). P o r t a n t o , referências ao B a t e f o l h a a n t e r i o r e s a essa d a t a n ã o p o d e m ser as-
sociadas a u m c a n d o m b l é de nação a n g o l a .
Reis, " C a n d o m b l é . . . " , p. 128; H a r d i n g , A refuge..., p p . 93-94, 200, 203; O Alabama,
14/9/1864, p. 1; 3 / 6 / 1 8 7 0 .
O Alabama, 4/1/1868; 24/12/1870, p. 8; 29/12/1870, p. 3; 31/12/1870, p. 6; 24/11/1871,
p. 4; Rodrigues, O animismo..., p. 157. É provável q u e o Ilê I y i Nasso da B a r r o q u i n h a —
terreiro de nação nagô-ketu e matriz do G a n t o i s — estivesse f u n c i o n a n d o , por essa épo-
ca, já no E n g e n h o Velho, p o r é m O Alabama não permite constatar esse fato. É o caso tam-
bém do Ilé Maroialaje, c a n d o m b l é do Alaketo, de nação "nagô-vodum" — identificação
que se refere à coexistência ritual de tradições nagôs e jejes (ver caps. 6 e 7) — , q u e es-
taria f u n c i o n a n d o desde a p r i m e i r a m e t a d e do século XIX no M a t a t u (Brotas). E m O
Alabama, há u m a alusão à existência de c a n d o m b l é s no M a t a t u , mas n ã o são dados mais
detalhes. D i a n t e disso, preferi limitar m i n h a análise às i n f o r m a ç õ e s de O Alabama, e
esses dois terreiros n ã o f o r a m contabilizados.
O Alabama, 24/12/1863, p. 2; 12/3/1864, p. 4; 2/8/1866, pp. 3-4; 23/6/1870; 18/11/1871,
p. 1; 21/11/1871, p p . 2, 3; 19/12/1871, p. 4.
O Alabama, 27/2/1866, p. 4.
Valentina Maria dos A n j o s ( R u n h o ) , ficha n 2 1, Ceao, 1961: "Pesquisa sobre os c a n d o m -
blés de Salvador", dirigida p o r Vivaldo da C o s t a Lima e n t r e 1960 e 1969, C e n t r o de
Estudos A f r o - O r i e n t a i s (CEAo)-UFBa. Fico m u i t o g r a t o a Vivaldo da C o s t a L i m a por
ter generosamente facilitado o acesso às fichas de 113 terreiros pesquisados nesse projeto.
D o r a v a n t e , referências a esse material aparecerão c o m o "ficha n 2 ..., Ceao, ano".
Olga de A l a k e t o , Salvador, e n t r e v i s t a 3/1/1996.
O Alabama, 15/5/1867; F e r r e t t i , Querebentã..., p. 304.
O Alabama, 11/11/1871, p. 4.
Edison C a r n e i r o , " L e m b r a n ç a do n e g r o da Bahia", A Tarde, 29/3/1949, p. 1 5. O s dois
terreiros m e n c i o n a d o s p o r C a r n e i r o e s t a v a m localizados no b a i r r o de São C a e t a n o .
C a r n e i r o , Religiões..., p. 62; R a m o s , " I n t r o d u ç ã o . . . " , p p . 12-13; d o n a N a n c y de Sou-
za e Silva, 14/5/1999.
O Alabama, 2 / 3 / 1 8 6 7 , p. 3. Humbono V i c e n t e , 17/2/2001.
O Alabama, 22/9/1868, p. 2; 26/9/1868, p. 4; 29/9/1868, p. 3.
O Alabama, 23/5/1871, p. 2. Nessa notícia, menciona-se q u e "o d o n o das terras apareceu
para a c o m o d a r o b a r u l h o e foi carregado pelos santos nas cabeças das v u d u n s " . A menção
da "prova de Zo" e a alusão a v u d u n s sugere tratar-se de u m o u t r o c a n d o m b l é jeje.
J. de C a r v a l h o , Reinvenção..., p. 37. N o t e m p l o de A v i m a n j e , e m U i d á ( B e n i m ) , f u i
t e s t e m u n h a de u m ritual similar c h a m a d o ahwan dida, em q u e , d e p o i s de c o z i n h a r
u m b o d e e m u m a panela de b a r r o com d e n d ê , os v o d u n s e x t r a í a m os p e d a ç o s de car-
ne c o m a m ã o ( U i d á , s e t e m b r o de 1995). N o s filmes realizados p o r Frédéric G a d m e r
em 1929-1930, no B e n i m , d o c u m e n t a - s e u m ritual s i m i l a r n u m t e m p l o de Agassu, no
qual os v o d u n s suspensos p o r o u t r a s pessoas colocam os pés sobre a p a n e l a f u m e g a n t e
( G a d m e r , " D a h o m e y . . . " ) . Para u m a descrição de diversas provas de f o g o nos t e m p l o s

167
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

de M a w u e H e v í o s o em A b o m e y , ver H e r s k o v i t s , Dahomey..., vol. II, pp. 124, 155-6$


T a m b é m no c u l t o d o orixá X a n g ô realiza-se o ajeré, ritual em q u e o orixá carrega na
cabeça u m p o t e c o m brasas a r d e n d o .
88
O Alabama, 2 4 / 1 2 / 1 8 7 0 , p. 5. H á a i n d a o caso, c o m e n t a d o a c i m a , do a f r i c a n o Zé
Rovalo, t a m b é m c h a m a d o de gumbonde, mas, d e v i d o ao fato de o ritual do ebó ali rea-
lizado apresentar f o r t e s e l e m e n t o s nagôs, preferi n ã o c o n s i d e r a r a q u i esse caso.
8
'> O Alabama, 21/11/1871, p. 1.
l)u
O Alabama, 14 /4/18Ó9; 16/4/1869, p. 2.
Rodrigues. Os africanos..., p p . 230-31.
1,2
C a r n e i r o , Religiões..., p. 33
w
R a m o s , " I n t r o d u ç ã o . . . " , p. 13.
94
R o d r i g u e s , Os africanos..., p. 231.
1,1
Para u m a análise e m detalhe da discussão desta seção, ver Parés, " T h e Nagôization..."
e "The birth...".
Rodrigues, Os africanos..., pp. 240-45.
97
Ver A l b u q u e r q u e , " E s p e r a n ç a s . . . " .
1,8
Matory, " A f r o - A t l a n t i c c u l t u r e . . . " .
99
Peei, Religious..,, p. 279. Ver t a m b é m Ajayi, " N i n e t e e n t h - c e n t u r y origins..."; Matory,
" T h e English professors...", Black Atlantic..., p p . 57-61, "Jeje...", pp. 60, 64; Law, T h e
A t l a n t i c slave t r a d e . . .
Braga, A gamela..., p p . 37-58; L i m a , " O c a n d o m b l é . . . " , p. 45; " O s obas...", p p . 5-36.
101
M a t o r y . Black Atlantic..., pp. 88, 95-96.
102
Lima, " O c a n d o m b l é . . . " , p. 52.
103
Sobre as narrativas relativas à f u n d a ç ã o d o Ilê Iyá Nasso e o papel da viagem à Africa,
ver C a r n e i r o , Candomblés..., p. 48; Verger, Orixás..., pp. 28-29; Bastide, Sociologia...,
p. 323. Para o m e s m o t e m a , r e l a c i o n a d o ao c u l t o e g u m da ilha de I t a p a r i c a , ver
C a p o n e , La quête..., p. 250.
D a n t a s , "Pureza...", p. 125.

168
5

O BOGUM E A ROÇA DE C I M A : A HISTÓRIA PARALELA DE


DOIS TERREIROS JEJES NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

0 CRUZAMENTO DA T R A D I Ç Ã O ORAL COM AS FONTES ESCRITAS

Neste capítulo, examino informações históricas da segunda metade do século


XIX sobre dois terreiros jejes: o Bogum, de Salvador, e a chamada Roça de
Cima, de Cachoeira. Do segundo terreiro surgiu, no fim do século, o Seja
Hundé (também conhecido como Roça do Ventura), que continuou a manter
estreitos laços com o Bogum até aproximadamente a década de 1950. Os da-
dos para a apresentação que se segue provém em parte da escassa bibliografia
disponível, 1 mas derivam principalmente de documentos históricos que pude
encontrar em cartórios e arquivos, de algumas notícias de O Alabama e do
levantamento das tradições orais do povo-de-santo jeje coletadas nos últimos
sete anos. 2
A metodologia utilizada, baseada no cruzamento da tradição oral com as
fontes escritas, revelou-se complicada por vários motivos. Em primeiro lugar,
devido à escassez de documentos sobre as atividades religiosas da população
negro-mestiça, em geral, e sobre os membros desses candomblés jejes, em
particular. Em segundo lugar, nem sempre os devotos e sacerdotes jejes estão
dispostos a falar da história dos seus terreiros e, às vezes, foi preciso muita
paciência e persistência para ganhar-lhes a confiança. Em terceiro lugar,
quando superada essa resistência, a utilização das tradições orais para a re-
construção histórica, como já foi bem estudado especialmente pelos africa-
nistas, 3 apresenta inúmeros problemas.
Sabe-se, por exemplo, como na evocação de genealogias históricas não
documentadas é comum a possibilidade do "salto de gerações" ou da "simpli-
ficação seletiva". 4 Lembram-se das figuras mais relevantes e se esquecem de fi-
guras intermediárias menos importantes, resultando em sequências genealógicas
ou cronológicas incompletas. Pode não se mentir, porém também não se fala tudo.

169
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

Em outros casos, há uso de topoi ou estereótipos narrativos, que geram transpo-


sição de eventos; utilizam-se as mesmas histórias para se referir a eventos geo-
gráfica ou c r o n o l o g i c a m e n t e distintos ou se a t r i b u e m variantes da mesma
história a grupos diversos. Essa "economia narrativa" da oralidade pode gerar
distorções por omissão e t a m b é m por invenção. O discurso oral está sempre
c o n d i c i o n a d o pelas interações sociais entre o narrador e o receptor e, muitas
vezes, os discursos expressam as orientações e vieses ideológicos, conscientes
ou inconscientes, d o narrador, servindo como estratégia para legitimar situa-
ções presentes a partir do passado ou para fazer frente a versões concorrentes.
E a "realidade" subjetiva e operacional desses "mitos históricos", indepen-
d e n t e m e n t e da sua veracidade histórica, que interessa à antropologia. Mas,
para a reconstrução histórica, é i m p o r t a n t e ir além do valor antropológico
das "realidades do imaginário" e tentar "filtrar" as informações através de uma
peneira crítica, que p e r m i t a desvendar e corrigir os vieses ideológicos ou
distorções implícitas no discurso. Para avaliar a confiabilidade histórica de
u m a evidência oral é m u i t o i m p o r t a n t e perguntar à mesma pessoa sobre o
mesmo assunto em várias ocasiões e contrastar de f o r m a sistemática esses
dados com o t e s t e m u n h o de outras pessoas. T a m b é m é necessário identificar
se as pessoas foram t e s t e m u n h a s oculares dos fatos ou se receberam as infor-
mações de terceiros e, nesse caso, saber quem eram esses terceiros. Finalmente,
a correspondência entre as evidências orais e as fontes escritas ( q u a n d o dis-
poníveis) p o d e constituir a prova decisiva para a c o n f i r m a ç ã o de um evento.
O presente experimento permitiu constatar recorrentes discrepâncias no
cruzamento da memória oral e da memória documental. Nesses casos, privile-
giei as informações escritas, após a prévia avaliação da sua confiabilidade his-
tórica, segundo as metodologias convencionais da historiografia. Isso não sig-
nifica que a evidência documental não esteja sujeita, do mesmo m o d o que as
evidências orais, a possíveis distorções e erros. Mas, sendo documentos con-
temporâneos dos fatos, permitem supor maior veracidade ou pelo menos maior
probabilidade de veracidade. Em qualquer caso, esses comentários introdutórios
devem alertar-nos para tomar com certa cautela o hipotético "realismo histó-
rico" da narrativa que segue. Trata-se, em definitivo, apenas de uma tentativa
de reconstituição ou ordenamento cronológico dos fatos conhecidos, com a fi-
nalidade de ensejar as bases para futuras pesquisas mais demoradas. Iniciarei o
nosso percurso pelo Bogum de Salvador.

170
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

ORIGENS DO B O G U M E S U A S A T I V I D A D E S NA DÉCADA DE 1 8 6 0

O candomblé do Bogum, ou Zoogodô Bogum Malê Rundô, já f o i chamado o


"terreiro mais antigo do jeje", "centenário", "bissecular", com "mais de três
5
s é c u l o s " e outros apelativos que destacam sua antiguidade. N u m a entrevista
em 1961, a finada Valentina Maria dos Anjos, Doné Runhó, então mãe-de-santo
do Bogum, dizia com mais prudência: "o terreiro foi fundado por africanos e
tem muito mais de 100 anos", o que situaria a sua fundação por volta da pri-
meira metade do século XIX. 6
Outra tradição oral da casa retrata a fundação do Bogum no final do sé-
culo XVIII. Segundo essa versão, existia nessa época uma fazenda ou enge-
nho com grande concentração de escravos na zona onde hoje está localizada
a Universidade Católica, entre a Avenida Garibaldi e a Avenida Cardeal da
Silva, adjacente à Ladeira de São João. Acredita-se que alguns desses escravos
fugiram do engenho e se aquilombaram no mato, "plantando", a uns 800 ou
1.000 metros do dito engenho, os primeiros assentos do Bogum. Conta-se
que esses escravos eram de nação mahi, mas que provavelmente havia também
africanos de outras nações. 7 Imagino que, nesse primeiro m o m e n t o , tratan-
do-se de um quilombo clandestino, a estabilidade do suposto terreiro devia
ser precária e as atividades religiosas, esporádicas. Talvez decorrente dessa tra-
dição oral, os moradores do atual Engenho Velho da Federação, onde está lo-
calizado o Bogum, acreditam igualmente que o bairro surgiu a partir de um
quilombo. 8 Em 1724, limítrofe com as terras do Convento de São Bento, no
Rio Vermelho, e na fronteira com a atual Avenida Cardeal da Silva (antiga
estrada da Federação), existia um engenho que, "por se colocar divisória de gra-
nito, ficou, até hoje, na toponímia urbana, conhecido como Pedra da Marca". 9
Talvez esse fosse o engenho referido pela tradição oral do Bogum, mas além
dessa conjectura nada posso dizer.
Embora nas últimas décadas a extensão do terreiro tenha sido seriamente
reduzida, antigos membros do Bogum lembram que, no passado, abarcava
uma grande área de mato que ia do alto da Federação — hoje Praça Valmir
Barreto — e se estendia, descendo o morro, entre a atual Ladeira Manoel
Bomfim (também conhecida como ladeira do Bogum) e a Rua Xisto Bahia, até
chegar na antiga estrada Dois de Julho — hoje Avenida Vasco da Gama — ,
onde passava o rio Lucaia e a linha de bonde. No século XIX, a estrada Dois
de Julho, que ia do Dique do Tororó até o Rio Vermelho, era também co-
nhecida como o caminho ou estrada do Rio Vermelho e constituía a divisa
entre a freguesia de Brotas e a freguesia da Vitória. A área do Bogum pertencia
à freguesia da Vitória, no atual bairro Engenho Velho da Federação.

171
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

S e g u n d o Rita Amélia, p e s q u i s a d o r a d o " P r o j e t o F u n d i á r i o do Engenho


Velho da Federação", n o passado, o c h a m a d o E n g e n h o Velho foi u m a grande
p r o p r i e d a d e q u e se estendia além da freguesia de Brotas, o c u p a n d o parte da
freguesia da Vitória, sendo que, em u m m o m e n t o d e t e r m i n a d o , a parte da fre-
guesia da Vitória foi d e s m e m b r a d a e, j u n t o c o m as terras da Fazenda Madre
de Deus, veio a constituir o atual bairro E n g e n h o Velho da Federação. 1 0 Se essa
hipótese é correta, o d e s m e m b r a m e n t o da parte do E n g e n h o Velho da Federa-
ção deve ter o c o r r i d o antes de 1853, já q u e n o i n v e n t á r i o d o c a p i t ã o Antô-
nio Teixeira de C a r v a l h o , falecido nesse a n o , c o n s t a e n t r e suas propriedades
a "roça d e n o m i n a d a E n g e n h o Velho, sita na freguesia de Brotas, q u e se divide
pelos f u n d o s c o m o Rio de São Pedro [Lucaia]". 1 1 O r a , t a m b é m é m u i t o pro-
vável q u e no uso p o p u l a r o t o p ó n i m o " E n g e n h o Velho" seguisse d e n o m i n a n d o
u m a área q u e ia além dos limites estritos d o E n g e n h o Velho de Brotas. Na
d é c a d a de 1860, em O Alabama, a p a r e c e m três c a n d o m b l é s localizados no
" E n g e n h o Velho" e pelo m e n o s u m , o B o g u m , estava n o atual E n g e n h o Velho
d a Federação, fora da freguesia de Brotas. 1 2
Segundo João Reis, na primeira m e t a d e do século XIX a freguesia de Brotas
t i n h a u m só juiz de paz que, n o final da década de 1820, seria, c o m o vimos,
A n t ô n i o G u i m a r ã e s . L e m b r e m o s que, na carta escrita ao v i s c o n d e d e Ca-
m a m u , e m 1829, esse m a g i s t r a d o fala de u m a festa n o E n g e n h o Velho "fora
d o m e u d i s t r i t o " e n u m a carta em 1831 m e n c i o n a o assalto de u m c a n d o m -
blé no E n g e n h o Velho, t a m b é m fora da sua jurisdição. 1 3 L o g i c a m e n t e , então,
o E n g e n h o Velho da festa de 1829 e em p a r t i c u l a r o d o c a n d o m b l é de 1831
estariam localizados na freguesia da Vitória. Se esse for o caso, teríamos, já nos
anos 1830, referências a u m c a n d o m b l é na área do atual E n g e n h o Velho da
Federação.
O assalto do c a n d o m b l é em 1831 foi levado a cabo p o r q u e , após u m a noite
de invasões a casas de a f r i c a n o s , ao a m a n h e c e r , "saiu-nos u m h o m e m ao en-
c o n t r o e disse-nos q u e subíssemos aquele M o n t e , e n o c i m o dele a c h a r í a m o s
u m a casa, q u e de c o n t í n u o existia nela pretos, e pretas com danças, t o q u e s ,
e venturas". 1 4 Essa localização de u m c a n d o m b l é de a f r i c a n o s n o t o p o de u m
m o r r o , no E n g e n h o Velho da Federação, é p e r f e i t a m e n t e c o m p a t í v e l c o m a
localização d o B o g u m , cujo barracão está e s t r a t e g i c a m e n t e localizado no alto
da Ladeira M a n o e l B o m f i m . E claro q u e não é u m a evidência conclusiva, já
q u e existem vários m o r r o s na Federação e p o d e r i a m ter existido o u t r o s can-
d o m b l é s . Mas, por e n q u a n t o , é o indício mais f o r t e para sugerir o f u n c i o n a -
m e n t o d o B o g u m nos anos 1830.
Seja c o m o for, esse indício, e m b o r a impreciso, me parece mais convincente
que o u t r o s a r g u m e n t o s que d e f e n d e m a mesma hipótese do f u n c i o n a m e n t o d o

172
O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA

Bogum nos anos 1830. A n t o n i o M o n t e i r o e Jehová de Carvalho, baseando-se


no nome do terreiro, Z o o g o d ô Bogum Malê R u n d ô , sugerem a existência do
candomblé no t e m p o das revoltas malês das primeiras décadas d o século XIX.
Segundo esses autores, no q u e já virou u m a tradição oral b a s t a n t e e x p a n d i d a
entre o povo-de-santo de Salvador, B o g u m era o n o m e de u m a "casinha" ou
dependência localizada em f r e n t e à igreja dos Q u i n z e Mistérios, em Santo
Antonio Além do C a r m o , o n d e os malês e s c o n d i a m "barras d e ouro, armas e
barris de pólvora" d e s t i n a d o s a subsidiar as suas revoltas. S e g u n d o Carvalho,
Bogum designava especificamente o cofre o n d e se g u a r d a v a m os d o n a t i v o s
de ouro e dinheiro. C o n f o r m e a versão de M o n t e i r o , um negro malê de n o m e
Aprígio, "capitão responsável pelo c o m a n d o das forças [malês] no c e n t r o da
cidade", foi acusado de delatar o m o v i m e n t o insurrecionista à "gente do go-
verno" e, f u g i n d o da represália dos seus próprios correligionários, teria se re-
fugiado no m a t o do E n g e n h o Velho, perto do terreiro jeje. D e s c o b e r t o pelos
africanos mahis, teria sido aceito na c o m u n i d a d e religiosa, na qual, com o
tempo, passou a ser conhecido c o m o o "negro do Bogum", expressão que foi
depois utilizada para designar o terreiro.
Já a versão de Carvalho, s u p o s t a m e n t e baseada n u m a evidência histórica,
identifica esse negro malê c o m o J o a q u i m Jeje, um dos envolvidos n o levante
de 1835 que teria aceitado "o islamismo dos malês sem renunciar ao fetichismo
do povo jeje". S e g u n d o esse autor, J o a q u i m Jeje, f u g i n d o da repressão poli-
cial após o fracasso da insurreição, teria se r e f u g i a d o no terreiro do E n g e n h o
Velho, e s c o n d e n d o lá o prezado cofre ou baú {bogum) com o o u r o dos malês.
Desse m o d o se explicaria a inclusão dos termos bogum e malê na d e n o m i n a ç ã o
do terreiro. Essas interpretações, apesar do seu atrativo quase novelesco, são
questionáveis. Além da discrepância entre u m a e o u t r a , há certa imprecisão
q u a n t o às datas. E m b o r a o a c o n t e c i m e n t o seja n o r m a l m e n t e associado à re-
volta de 1835, C a r v a l h o t a m b é m o relaciona com a insurreição malê de 1826,
mas "que se e s t e n d e u p o r etapas ao ano de 1835". 1 5
As devassas d o levante dos malês de 1835 d o c u m e n t a m o escravo "Joaquim
natural da costa d'Africa Gege" (mesmo que em outra parte ele se declare nagô,
como vimos em c a p í t u l o precedente), mas ele foi preso e não existe n e n h u m a
referência a um baú em relação a ele. 16 H á o caso do escravo Belchior, de nação
nagô, que, na n o i t e da revolta, e s t a n d o na casa o n d e se r e u n i a m os líderes
malês e, n ã o c o n c o r d a n d o com as intenções dos insurgentes, " t o m o u a sua
caixa e foi para Santo A n t ô n i o da M o r a r i a em casa d o seu Senhor". A maioria
de escravos t i n h a sua "caixa" e, em 1835, dezenas delas f o r a m revistas. N o
caso de Belchior, n ã o se e n c o n t r o u nela "coisa a l g u m a q u e indício fosse de
ser o n o m e a d o escravo cúmplice na insurreição". 1 7 Teria c o n s e g u i d o Belchior

173
LUIS NICOLAU PAR ÉS

esconder o conteúdo original da caixa antes do registro? Tratava-se de um outro


baú? A possibilidade segue aberta para quem quiser especular, mas a evidência
documental coloca sérias dúvidas sobre a possível relação de um desconhecido
baú de J o a q u i m Jeje com a d e n o m i n a ç ã o do terreiro Bogum. Mais adiante
voltarei com outros aspectos da etimologia do n o m e do Bogum.
E m b o r a não caiba descartar o f u n c i o n a m e n t o do Bogum nos anos 1830,
não encontrei evidência definitiva da existência dessa congregação religiosa até
a década de 1860. Em 2 de maio de 1867, aparece em O Alabama uma primeira
referência a um ritual f u n e r á r i o realizado "por alma de um M a c h a d o , digni-
dade do Bogum, que faleceu". Provavelmente se tratava de u m i m p o r t a n t e ogã
desse terreiro, mas cabe notar que o zelim ou sirrum, c o m o são chamados os
rituais funerários na nação jeje, se realizou na Rua das Laranjeiras, no cen-
tro histórico da cidade, e não n o E n g e n h o Velho. Na Rua das Laranjeiras
funcionavam vários terreiros, e o fato de realizar-se ali o zelim é u m a primeira
indicação da ligação que existia entre o Bogum e outras congregações reli-
giosas. A cerimónia d u r o u nove noites e "tocou-se ali c a n d o m b l é a valer. A
orgia principiava às 9 horas e acabava às 4 da manhã". 1 8 E m b o r a não fosse
i n f r e q ú e n t e a celebração de rituais funerários de m e m b r o s de u m a congre-
gação religiosa em casas particulares ou fora do seu próprio terreiro, nesse
caso é provável que tenha ocorrido p o r q u e n o Bogum estava sendo realizada
uma iniciação, e os rituais envolvendo eguns ou espíritos de d e f u n t o s são in-
compatíveis com o preparo dos v o d u n s .
Poucos dias depois, em 10 de maio, aparece u m a segunda notícia, enca-
m i n h a d a ao

l i m o . Sr. Dr. C h e f e de Polícia, p e d i n d o - l h e q u e m a n d e ao E n g e n h o V e l h o , n o can-


d o m b l é d e n o m i n a d o Bogum, d e q u e são c h e f e s o b a r b e i r o José M o r a e s , m o r a d o r ao
Cabeça, Isidoro Melandras e a preta Rachel, buscar u m a mulher, cuja superstição e
fanatismo, l i g a d o s à m a i s crassa i g n o r â n c i a , l e v a r a m - n a a e n t r e g a r - s e à q u e l e s desal-
m a d o s , os q u a i s s e r v e m - s e dela p a r a p r á t i c a s h e d i o n d a s e r e p u g n a n t e s .

Essa mulher, u m a crioula de n o m e Andrelina, "a quem c h a m a m Acadé-


mica, conduzida para a mencionada roça, vive ali, há dez semanas, trancada
em um quarto, nua em pele, até receber o sapocã". 1 9 O sapocã é decerto o
c h a m a d o hoje em dia sarapocã, a primeira saída semipública de u m a inicia-
da na tradição jeje (ver adiante e cap. 8).
Apesar do viés ideológico e pejorativo conferido à notícia, aprendemos que
a chefia do Bogum era compartilhada por dois homens e uma mulher africana,
co-liderança que, como já foi sugerido, constitui u m a característica da organi-
zação eclesiástica dos cultos de v o d u m na área gbe. T a m b é m se verifica na

174
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

pauta geral desse período uma predominância masculina na liderança religiosa.


Sobre o barbeiro José Moraes, residente no Cabeça, não consegui mais infor-
mações e também não sabemos se ele era africano ou crioulo. Ora, no século
XIX, os barbeiros africanos muitas vezes atuavam como cirurgiões que aplica-
vam diversos tratamentos médicos, como as sangrias ou as ventosas, estas u m
"remédio africano favorito". 2 0 É provável que José Moraes, sendo barbeiro e
líder de um candomblé, tivesse também essas qualidades de "curandeiro".
Dois anos depois, em 14 de abril de 1869, no mesmo jornal, aparece um
novo "ofício ao limo. Sr. Dr. Chefe de Polícia, levando ao seu conhecimento o
seguinte: Há no Engenho Velho, entre outros, u m terreiro de candomblé, co-
nhecido pelo nome de Bogum, cujo chefe é José Barbeiro, com tenda no Cabe-
ça [o mesmo José Moraes]". Nessa notícia, denuncia-se a misteriosa morte de
uma vodúnsi durante a iniciação. Seguindo a opinião da "voz pública", o jor-
nalista reporta que

u m a dessas i n f e l i z e s , a q u e m a i g n o r â n c i a e f a n a t i s m o l e v a r a m a crer e m tais b r u -


xarias, t i n h a c a í d o n o s a n t o e a c h a v a - s e n a c a s i n h a d o n o v i c i a d o , e m c o m p a n h i a de
outras. N o a t o d e fazer o s a p o c ã , c e r i m ó n i a q u e c o n s i s t e e m c o r t a r os c a b e l o s e p o -
der t r a n s p o r o l i m i a r d a tal c a s i n h a , d e p o i s d e seis m e s e s , a n e ó f i t a n ã o se a j e i t a v a a
certas d a n ç a s q u e são d e u s o , e p a r a e n s i n á - l a era c a s t i g a d a q u o t i d i a n a m e n t e pela do-
nunce, espécie d e g r ã - m e s t r a d a o r d e m ,

do que teoricamente veio a falecer. 21


Embora os castigos pudessem fazer parte do rigor da iniciação, mais u m a
vez devemos nos acautelar sobre a veracidade dessas informações, ou suspei-
tas apenas, das quais o jornalista só ouviu falar. O que interessa destacar aqui
é a referência à donunce, como "grã-mestra da ordem". Essa mulher, máxima
responsável religiosa das iniciações, era provavelmente a preta Rachel, men-
cionada na notícia precedente, e indica a importância da figura f e m i n i n a na
liderança c o m p a r t i l h a d a do Bogum.
Na mesma notícia indica-se que as outras neófitas do barco de iniciação
foram "imediatamente retiradas para uma casa em S. Miguel, o n d e se acham,
precaução esta t o m a d a com receio de que, se a polícia tivesse c o n h e c i m e n t o
lá fosse e as encontrasse". Dois dias depois, em 16 de abril, sabemos que,
escapando mais u m a vez da perseguição policial, "às duas horas da n o i t e
chegavam às Areias da Armação, as chamadas Vudunças e todos os acessórios
do candomblé, conduzidos de casa da africana Clara, em S. Miguel, para ali".
Certamente se tratava do barco do Bogum que, após a publicação do dia 14
de estarem n u m a casa em S. Miguel, m u d o u - s e na noite seguinte para as
Areias da Armação, levando os apetrechos da iniciação ou outros objetos de

175
LUIS N I C O L A U P A R ÉS

candomblé pertencentes à africana Clara que poderiam comprometê-la. Muito


provavelmente o candomblé nas Areias era o de Maria Velhudinha, onde sabe-
mos que Clara de São Miguel e pessoas de jeje como mamãe Ludovina de Ca-
choeira tinham participado, em fevereiro do mesmo ano, da "festa do balaio".
Além da referida conexão do Bogum com o candomblé da Rua das Laranjeiras,
vemos como esse terreiro m a n t i n h a u m a complexa rede de relações de coope-
ração com diversas congregações religiosas, provavelmente t a m b é m jejes, no
centro e na periferia da cidade. A última notícia de O Alabama sobre o Bogum,
datada de 23 de j u n h o de 1870, diz que "no Engenho Velho, no Bogum, há
grande candomblé no sábado, o sacrifício é de um boi". 2 2
Dessa evidência p o d e m o s concluir que, na década de 1860, candomblés
jejes como o Bogum já t i n h a m atingido u m a complexidade litúrgica similar
à dos candomblés c o n t e m p o r â n e o s . Praticavam rituais funerários que dura-
vam nove dias (na atualidade, sete) e e s t r u t u r a v a m as suas atividades rituais
em grandes festas com sacrifício de boi e complexos processos de iniciação
coletiva, que duravam u m m í n i m o de seis meses e envolviam experiências de
possessão (caídas no santo). Na organização do culto existia u m a rígida hie-
rarquia, baseada nas responsabilidades rituais de cada membro, e participavam
líderes africanos e devotos crioulos. Além disso, as notícias consecutivas de
1867 a 1870 indicam u m a estabilidade da congregação religiosa, o n d e a ativi-
dade ritual se prolongava d u r a n t e a maior parte do ano. Se alguns desses ele-
m e n t o s pareciam estar já implícitos nos candomblés de décadas anteriores,
como o c a n d o m b l é do Accú, em 1829, fica claro que, a partir da década de
1860, eles estavam já t o t a l m e n t e consolidados.
Cabe acrescentar que, vizinhos do candomblé Bogum, de nação jeje-mahi,
funcionaram dois importantes terreiros: o Pó Zerrem, de nação jeje-mundubi,
já extinto, e o Ilê lyá Nasso, de nação nagô-ketu, mais c o n h e c i d o c o m o En-
genho Velho ou Casa Branca, ainda na ativa. 2 3 Vemos assim como a área do
Bogum se converteu n u m dos p o n t o s de concentração mais i m p o r t a n t e s de
candomblés da cidade. Esse trecho do C a m i n h o do Rio Vermelho, conhecido
como J o a q u i m dos Couros, era de fato u m a localização estratégica.
N o século XIX, essa zona era essencialmente mato, oferecendo t o d o tipo
de folhas para as práticas religiosas. T a m b é m a proximidade do rio Lucaia
providenciava aceso ao elemento água, essencial para as obrigações de voduns
e orixás. C o m o afirmava a finada Runhó, "para 'fazer santo', só tendo mato e
água". 24 Além do mais, o espaço de mato fechado dificultava o acesso a pessoas
alheias à c o m u n i d a d e religiosa. Os três terreiros estavam localizados em encos-
tas elevadas, sendo que o Bogum estava situado no alto do morro, o que per-
mitia melhor controle da chegada de pessoas indesejadas. Por o u t r o lado, esse

176
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

N a Região do Rio V e r m e l h o (c. 1890)


Autor-, G. Gaensly e R. Lindemann, in Gilberto Ferrez, Bahia velhas fotografias 1B58-190Õ

ponto estava a meio c a m i n h o entre o núcleo u r b a n o de Salvador e o Rio


Vermelho, na época u m a i m p o r t a n t e comunidade de pescadores negros, sobre-
tudo libertos, o que seguramente favorecia a participação nesses candomblés
de pessoas provenientes t a n t o da cidade c o m o desse vilarejo litoral. A con-
trapartida de ser um lugar afastado e relativamente oculto era o risco de assal-
tos às "pretas que transitam com carregos", o que parece ter sido f r e q u e n t e
na década de 1860. 25
O terreiro Pó Zerrem (Pau Zerrem ou Pauzerré) estava localizado n u m a
encosta paralela à ladeira do Bogum, dividindo a área com esse terreiro. Nada
se sabe sobre as suas origens ou f u n d a d o r e s , provavelmente africanos, mas
algumas pessoas acreditam que esse terreiro seja mais antigo que o p r ó p r i o
Bogum. 2 6 Já sugeri que a festa d o c u m e n t a d a em O Alabama, celebrada em
1868, no c a n d o m b l é do E n g e n h o Velho, liderado pelo a f r i c a n o A n t ô n i o ,
poderia corresponder ao Pó Zerrem, por apresentar diversos elementos iden-
tificáveis c o m o jejes. 27 Além dessa conjectura, a memória oral lembra apenas
o seu dirigente mais famoso, Manoel Aprígio da Conceição, mais conhecido
como seu Aprígio ou Tata Aprígio de Sogbo, que operou talvez na última dé-
cada do século XIX e decerto nas primeiras décadas d o século XX. 28 O ter-
reiro deixou de f u n c i o n a r por volta de 1945, provavelmente devido às dis-
putas internas surgidas após a m o r t e de seu Aprígio. As terras foram vendi-
das e, nos anos 1960, a zona foi urbanizada. 2 9
Para Waldeloir Rego, Pó Zerrem seria u m a corruptela da expressão fongbe
kpo zeli, sendo kpo a pantera, totem ancestral (tohuíyo) do clã agassuvi, de o n d e

177
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

emergiram as dinastias reais de Aliada, D a o m é e Porto Novo, e zeli (zènli), 0


n o m e que os fons dão ao i n s t r u m e n t o percussivo, ao r i t m o f ú n e b r e e/ou aos
rituais funerários. O u t r o s pesquisadores identificam o termo zerrem como de-
formação de sirrum, o u t r o n o m e dos rituais funerários jejes. 30 Essa ligação
do n o m e do terreiro com os ritos fúnebres sugere a importância que o culto dos
eguns ou ancestrais podia ter nesse terreiro.
D e fato, o Pó Zerrem é n o r m a l m e n t e identificado como sendo jeje-mun-
dubi, "nação" onde o culto dos eguns seria uma das características litúrgicas. 31
Sabemos, por outro lado, que n o contexto religioso das congregações jejes,
m u n d u b i está associado à família de Kaviono (Hevioso). Humbono Vicente
falava que o Pó Zerrem era Kaviono, e o fato de ser seu Aprígio de Sogbo e de
preservar o terreiro o culto do v o d u m Averekete, também dessa família (em-
bora venerado na sua qualidade de Legba, segundo Everaldo D u a r t e ), confir-
mam a importância da família Kaviono e reforçam a identificação do terreiro
com a nação jeje-mundubi. 3 2
A diferença de "nação", sendo o Pó Zerrem j e j e - m u n d u b i e o Bogum jeje-
mahi, pode explicar tanto as relações de conflito como as de complementaridade
que se parecem ter dado entre os dois candomblés. Embora as poucas infor-
mações de que dispomos sobre o Pó Zerrem sejam relativas ao período de seu
Aprígio, elas sugerem essa alternância de rivalidade e cooperação ritual. Em
1988, mãe Nicinha, dirigente do Bogum, declarava que antigamente o culto
de Averekete era realizado por ocasião das festas de Sogbo e Badé, mas que o
peji de Averekete estava instalado no "Pozzerram" e o seu culto no Bogum fora
i n t e r r o m p i d o desde a desaparição desse terreiro. 3 3 Ainda segundo humbono
Vicente, nas terras do Pó Zerrem havia um pé de b a m b u (assento dos ances-
trais na tradição jeje) em que os membros do Bogum realizavam obrigações pri-
vadas para abrir as atividades litúrgicas da casa, bem como depositavam certos
despachos. 3 1
Por outro lado, por estar o Pó Zerrem mais envolvido com o culto dos eguns,
o pessoal do Bogum não frequentava muito, já que o culto do vodum tende a
evitar o contato com os cultos que lidam com eguns. Everaldo D u a r t e comen-
ta que era mais o pessoal do Pó Zerrem que subia ao Bogum. 3 5 O u t r a das pos-
síveis causas na dinâmica de m ú t u a exclusão era que, no Pó Zerrem, além de
mulheres eram iniciados homens como vodúnsis, contrariamente ao que suce-
dia no Bogum, em que eram iniciadas exclusivamente mulheres, pelo menos a
partir do período pós-abolição. Em palavras de humbono Vicente, "Pó Zerrem
era h o m e m , o Bogum era mulher". 3 6
A proximidade geográfica do Bogum e do Pó Zerrem (e talvez do Ilê Iyá
Nasso) parece, portanto, ter gerado dinâmicas de cooperação, mas também de

178
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

com petição e potencial conflito. A cooperação pode ter favorecido possíveis


i n t e r p e n e t r a ç õ e s de práticas e valores entre a s tradições religiosas das diferen-
tes "nações", processo que, sem dúvida, esteve na base da constituição do Can-
d o m b l é no século X I X . Mas a possível competição pode ter favorecido um re-
sultado oposto, isto é, processos de contraste que acentuaram as diferenças
litúrgicas como sinais de identidade diferenciada.
Infelizmente, não foi possível achar nenhuma informação documental so-
bre o Bogum a partir de 1870. Retomarei a sua história já na época pós-abolição
no próximo capítulo. Agora é preciso deslocar a nossa narrativa para Cachoeira,
onde na segunda metade do século XIX estava funcionando um outro impor-
tante terreiro jeje, a Roça de Cima, que, como já foi dito, mantinha estreitos
contatos com o Bogum, evidenciando como a rede social do Candomblé jeje
não se restringia a Salvador, mas se expandia para o Recôncavo.

0 LEGENDÁRIO Q U I L O M B O E C A N D O M B L É O B Á TEDÔ, EM CACHOEIRA

Como vimos no capítulo I, durante o século XVIII, especialmente durante a


segunda metade, o tabaco de refugo ou de terceira qualidade, cultivado na área
fumageira de Cachoeira, São Félix, Muritiba, Maragogipe e São Gonzalo dos
Campos, converteu-se no p r o d u t o básico do comércio baiano na Costa da
Mina, gerando um fluxo contínuo de escravos jejes para essa zona. A ligação
entre a cultura do tabaco e o tráfico era tão importante que levou alguns senho-
res de engenhos e fazendas a se envolverem diretamente no lucrativo comércio
da carne humana. 3 7 Por outro lado, a produção de açúcar dos engenhos do Igua-
pé, Santo Amaro da Purificação, São Sebastião do Passé e São Francisco do
Conde foi a atividade que sustentou a economia colonial da Bahia. Era nesses
engenhos que se concentrava maior quantidade de escravos. Mas cabe notar
que, junto à cultura do tabaco e da cana, a agricultura de subsistência era tam-
bém significativa. Foi, portanto, na área do Recôncavo que se estabeleceram e
prosperaram as grandes famílias dos senhores brasileiros que viriam a consti-
tuir a elite latifundiária que, mais tarde, organizaria a guerra de independên-
cia contra os comerciantes portugueses da praça da Bahia.
A vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira, nas margens
do rio Paraguaçu, além de ser o maior centro da indústria do tabaco, constituía
0
pólo económico mais importante do Recôncavo, sendo o seu porto fluvial e
mercado o ponto de intercâmbio entre Salvador e o interior do país. De Ca-
choeira saíam os caminhos que iam para as Minas Gerais, Maranhão e os ser-
tões. A transumância do gado, o tráfico de ouro e o tráfico interno de escravos

179
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

passavam p o r C a c h o e i r a . R e s u l t a d o dessa localização estratégica, Cachoeira


se c o n v e r t e u no lugar de residência de u m g r a n d e n ú m e r o de senhores de en-
g e n h o , f a v o r e c e n d o a p r o s p e r i d a d e da vila, assim c o m o a c o n c e n t r a ç ã o da
p o p u l a ç ã o negra. 3 8
O g r a n d e c o n t i n g e n t e de africanos jejes em C a c h o e i r a e imediações fica
evidente, por exemplo, na constituição, em 1765, da I r m a n d a d e do Senhor Bom
Jesus dos Martírios de H o m e n s Pretos de Nação Gege. T a m b é m vimos como,
já nas últimas décadas d o século XVIII, os jejes começavam a organizar cultos
religiosos de caráter doméstico, c o m o o C a l u n d u da Rua do Pasto (cap. 3). Lo-
gicamente, é possível s u p o r q u e as práticas do culto de v o d u m em Cachoeira
r e m o n t a m a essa é p o c a e q u e a t i n g i r a m m a i o r nível de c o m p l e x i d a d e or-
ganizacional ao longo das primeiras décadas do século XIX, c o m o ocorreu em
Salvador. N o e n t a n t o , além dessa razoável c o n j e c t u r a , não t e m o s evidência da
presença de u m c a n d o m b l é jeje até os anos 1860.
Existem, na tradição oral, referências a congregações religiosas anteriores a
esse período. N a Recuada, núcleo u r b a n o o n d e morava a p o p u l a ç ã o africana
de C a c h o e i r a e o n d e h o j e vivem seus descendentes, há u m a área conhecida
c o m o Galinheiro, u m a suposta referência a galinhas ou africanos gruncis, e uma
outra conhecida c o m o C o r t a Jaca, nas proximidades d o atual mercado. Segundo
A m b r ó s i o Bispo C o n c e i ç ã o , ogã Boboso, n o G a l i n h e i r o (ou na C o r t a Jaca)
existia uma casa de c a n d o m b l é de nação " m u s s u r u m i " (musulmi ou muçulmam,
em língua hauçá). O seu culto, ligado c o m os eguns, em q u e se dançava com
u m caixão na cabeça, era considerado perigoso e dele só p a r t i c i p a v a m adultos.
A partir dessa casa, os africanos, fardados e armados de "porretes" e outras armas
brancas, impediam o passo a estranhos. Baseado nessas informações, Luiz Cláu-
dio Dias do N a s c i m e n t o apresenta a hipótese da existência de u m q u i l o m b o
c h a m a d o O b á T e d ô ou, segundo ogã Boboso, BiTedô, f u n c i o n a n d o n u m morro
í n g r e m e entre o c a m i n h o da C a p a p i n a e a antiga estrada de Belém, acima da
Recuada. S e g u n d o estimativa desse autor, nesse q u i l o m b o f u n c i o n o u u m can-
d o m b l é do m e s m o n o m e , por volta de 1830 ou 1840. 3 9
A i n d a s e g u n d o ogã Boboso, o c a n d o m b l é do Bi T e d ô era d i r i g i d o p o r u m
a f r i c a n o de n o m e Q u i x a r e m e ou T i j a r e m i ( u m a c o r r u p t e l a de tio X a r e n e ou
tio C h a r e m e ) e foi lá q u e se " p l a n t a r a m " os p r i m e i r o s f u n d a m e n t o s jejes de
C a c h o e i r a . O g ã B o b o s o diz q u e tio X a r e n e era m a h i e q u e foi o f u n d a d o r e
b a l u a r t e do jeje, não só em C a c h o e i r a , mas em t o d a a Bahia. A f i r m a t a m b é m
q u e o s a n t o de tio X a r e n e era A z o n s u e que no Bi T e d ô se realizavam festas
para esse v o d u m em o u t u b r o . 4 0 N a s c i m e n t o acrescenta q u e a Casa Estrela,
localizada no c e n t r o de C a c h o e i r a , na atual Rua Ana Neri, n a 41, f u n c i o n a v a
c o m o u m q u a r t e l - g e n e r a l da c o m u n i d a d e a f r i c a n a e, e s p e c i a l m e n t e , c o m o

180
O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA

da Boa Morte. Segundo esse autor, a Casa Estrela estava


ede da I r m a n d a d e
vinculada ao candomblé do O b á T e d ô e "acredita-se que era nela que se faziam
os ritos de feitura das iawôs", sendo que, no O b á Tedô, "apenas se faziam as
obrigações rituais e os 'batuques'". 4 1
Infelizmente, além dos t e s t e m u n h o s orais c o n t e m p o r â n e o s , não existe
nenhuma evidência d o c u m e n t a l sobre esse suposto q u i l o m b o ou candomblé.
Apenas sabemos que, em 1876, foi c o n s t r u í d o , perto de Recuada, o viaduto
do Batedor, no ramal da estrada de ferro Central da Bahia. 42 N a s c i m e n t o su-
gere que o nome do viaduto é u m a visível corrupção do termo " O b á Tedô".
Silva Campos, falando de Salvador, c o m e n t a que por volta de 1875 a p o p u -
lação africana se concentrava na Rua do Alvo e na Rua dos Nagôs, "Nagô tedô,
conforme eles a nomeavam". Tédo é u m a expressão iorubá que significa "o
lugar onde um g r u p o de pessoas se instala pela primeira vez". Oba é rei, por-
tanto, oba tedô seria "o lugar onde o rei se instalou" ou, n u m a versão mais
livre de Nascimento, "aqui mora o rei". 43 O termo "Ba", na expressão "Bate-
dor", poderia ser t a m b é m u m a referência aos egbas, um dos grupos étnicos
nagôs mais numerosos na Bahia, às vezes d e n o m i n a d o s desse modo. E m b o r a
o nome O b á Tedô ou Batédo seja de origem nagô, não é impossível que, em
Cachoeira, este se refira a um reduto de africanos de várias nações, nagôs,
gruncis e hauçás, c o m o parece sugerir a presença do c a n d o m b l é "musulmi"
no Galinheiro.
Além do q u i l o m b o O b á Tedô ou Batédo fala-se da presença de outros
quilombos na zona rural de Cachoeira. Por exemplo, na Terra Vermelha, ao
sul do riacho C a q u e n d e , próximo ao E n g e n h o Tororó, parece ter existido um
quilombo c h a m a d o Malaquia ou Malaquias. Fala-se t a m b é m que nesses qui-
lombos se teriam organizado algumas das revoltas escravas que aconteceram
em Cachoeira nos anos 1826, 1827 e 1828, porém a d o c u m e n t a ç ã o histórica
permanece silenciosa a esse respeito. 4 4
A formação de q u i l o m b o s na área de Cachoeira parece certa e a possibili-
dade de cultos religiosos africanos terem sido praticados nesses espaços ocultos
no mato é bem provável. E do c o n h e c i m e n t o popular que o viaduto do Ba-
tedor é uma área onde tradicionalmente são levados ebós, carregos e despachos
pelo povo-de-santo cachoeirano e se fala que "tem muita coisa enterrada por
lá . Mas, além dessa evidência indireta, nada podemos afirmar com certeza.
De qualquer modo, vale notar que, como no caso do Bogum, a tradição oral
coincide em afirmar que o primeiro candomblé jeje em Cachoeira surgiu no
contexto de um quilombo.

181
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

A ROÇA DE C I M A OU SÍTIO D E TIO X A R E N E

E só a partir da segunda metade do século XIX que encontramos informações


mais confiáveis, indicativas da presença de um candomblé jeje a uns poucos
quilómetros do núcleo urbano de Cachoeira. Esse candomblé estaria localiza-
d o à direita de quem sobe a "estrada velha de Belém" (atual ladeira da Cadeia),
antes de chegar à Lagoa Encantada, no c a m i n h o que leva ao Engenho do
Rosário. Segundo a tradição oral, existiu lá um candomblé de africanos co-
nhecido como a Roça de Cima, liderado por Ludovina Pessoa, tio Xarene e,
provavelmente n u m período posterior, t a m b é m por José Maria Belchior,
apelidado de Zé de Brechó.
Atualmente, esse lugar é identificado pelo povo-de-santo pela presença de
uma frondosa e antiga jaqueira. Q u a n d o as pessoas passam diante dela, é co-
m u m saudarem "trocando língua" e, por vezes, batendo a cabeça na própria
árvore. Essa jaqueira é uma árvore sagrada onde foi assentado o dono espiritual
da Roça de Cima, o vodum Dandagojí, ou segundo outras versões Dangorojl
ou Darangogojí, uma qualidade de Sakpata, que talvez corresponda ao vodum
africano Dada Zodji ou Daazodji. 4 5
A Roça de Cima era vizinha, isto é, limitava, com a antiga fazenda Ven-
tura, onde atualmente está localizado o candomblé Seja H u n d é que, como
veremos, surgiu do candomblé da Roça de Cima. N u m registro de terras, da-
tado de 18 de março de 1860, menciona-se a Fazenda Ventura, assim chama-
da por ser propriedade de Luiz Ventura Esteves, morador na Freguesia de São
Sebastião. Na descrição dos limites das terras, menciona-se, entre outros, o
trecho que ia de "um pé de cajueiro grande", no caminho do Engenho do Ro-
sário, até "um pé de jaqueira do sítio de Vicente Ferreira", descendo de lá até
o rio Caquende. 4 6 Esse "pé de jaqueira" é muito provavelmente a jaqueira da
Roça de Cima, que ainda hoje marca o limite com a fazenda Ventura.
Encontrei ainda um outro registro de propriedade, datado de 8 de junho
de 1896, mas que vem oficializar uma escritura particular passada em 5 de
agosto de 1882, pela qual José Maria Belchior comprou por 200 mil réis uma
fazenda denominada Sítio do Charema (Charene ou Cherema) de José Gon-
salo Martins de Oliveira e sua mulher Amália de Oliveira. A localização do Sítio
Charene, vizinho da "portaria de Ventura", indica, sem dúvida, tratar-se da Roça
de Cima. 4 Aliás, Charema ou Charene é, certamente, uma referência a tio
Xarene, que devia ser o morador do local antes da data de compra. E provável
que tio Xarene tivesse arrendado o sítio ao casal Martins de Oliveira, proprie-
tários da vizinha Fazenda Boa Vista. Se o sítio do Charene, com sua jaqueira,
era o mesmo sítio de Vicente Ferreira, que aparece no registro de 1860, po-

182
O B O G U M £ A R O Ç A DE C I M A

pecular que o n o m e português de tio Xarene era Vicente Ferreira,


embora nada impeça que se trate de duas pessoas diferentes.
uer caso, parece c o n f i r m a d o que antes de 1882, tio Xarene tinha
controle das terras o n d e f u n c i o n o u a Roça de Cima e que, a partir dessa data
(talvez coincidindo com a m o r t e de tio Xarene), José Maria de Belchior ga-
rantia a continuidade do terreiro, tornando-se proprietário do sítio e, talvez,
a s s u m i n d o a liderança da congregação religiosa. Isso explicaria por que a Roça
de Cima é hoje lembrada como o c a n d o m b l é de Zé de Brechó, q u a n d o sabe-
mos que ele não era pai-de-santo. A Roça de Cima é também conhecida como
candomblé de Altamira, mas essa d e n o m i n a ç ã o só veio a ser utilizada após a
morte de Zé de Brechó, q u a n d o as terras f o r a m vendidas e adicionadas a u m a
propriedade maior conhecida como Fazenda Altamira (ver adiante).
Sendo tio Xarene reconhecido pela tradição oral cachoeirana c o m o um dos
"baluartes do jeje" e sendo o seu v o d u m Azonsu (provavelmente na sua qua-
lidade de Dada Z o d j i ) , t u d o indica que ele foi o primeiro humbono, ou papai
de terreiro como se falava na época, da Roça de Cima, sendo c o m u m no C a n -
domblé que o "dono espiritual do terreiro" coincida com o "dono da cabeça"
do fundador e máximo responsável religioso. Nesse sentido, ogã Boboso afir-
ma que, além de D a n d a g o j í (Azonsu), t a m b é m O g u m era "dono do terrei-
ro", talvez por ser O g u m o "dono da cabeça" de Ludovina Pessoa. E m b o r a
não haja evidência conclusiva, essas i n f o r m a ç õ e s sugerem u m a liderança
religiosa c o m p a r t i l h a d a entre tio Xarene e Ludovina Pessoa. Aliás, a tradi-
ção oral sustenta q u e tio Xarene foi m a r i d o de Ludovina Pessoa, o que pode-
ria ser u m a distorção da memória oral para expressar essa colaboração reli-
giosa. 48 I n d e p e n d e n t e m e n t e desse possível relacionamento sentimental, como
já vimos, a co-responsabilidade de um h o m e m e uma mulher na liderança de
um templo de v o d u m é prática c o m u m no Benin e também em vários terrei-
ros baianos do século XIX.
Ludovina Pessoa é a segunda, e talvez a mais i m p o r t a n t e personagem da
Roça de Cima. Várias notícias do jornal O Alabama, datadas entre 1866 e 1869,
confirmam que, nesse período, mamãe Ludovina morava e exercia funções re-
ligiosas em Cachoeira, ao tempo que frequentava e até organizava importan-
tes cerimónias em diversos terreiros de Salvador. Na primeira notícia de 1866
explicita-se que, d u r a n t e o período das festas juninas, diversas mulheres de
Salvador foram a Cachoeira e daí "seguiram para u m a roça", sendo que uma
tal Lucrécia ficou "presa e violentada em um q u a r t o em casa da africana
Ludovina". Uma segunda notícia em verso, nove meses depois, indica que,
durante esse tempo, Lucrécia ficou recolhida na "casinha" (ou huncó) e daí saiu
muda", sem saber a "língua de branco" (isto é, durante a iniciação só falava a

183
LUIS NICOLAU P A R ÉS

língua ritual africana), sendo depositada pela própria Ludovina numa casa
de Salvador para concluir sua iniciação, q u a n d o , "depois que u m ano passar
e que cortar os cabelos, poderá então falar". Existe a possibilidade de que o
"quarto em casa da africana Ludovina", o n d e foi recolhida Lucrécia na pri-
meira parte da sua iniciação, se refira à Casa Estrela de Cachoeira. Como
vimos, N a s c i m e n t o sugere que ali eram preparadas as vodúnsis durante os
longos períodos da iniciação. T e s t e m u n h o s orais atestam que Ludovina Pes-
soa m o r o u na Casa Estrela, lugar em que teria "plantado" um assento para
Legba na sua p o r t a de entrada, ainda hoje visível sob u m a pedra de granito
com a f o r m a de u m a estrela de cinco pontas. N o e n t a n t o , a "roça" perto de
Cachoeira, na qual se realizavam as festas, era certamente o Sítio d o Chareme,
o q u e nos permite pensar que a Roça de Cima estava em f u n c i o n a m e n t o pelo
m e n o s desde a década de 1860. 49
A Roça de C i m a parece ter sido o centro religioso mais i m p o r t a n t e da
c o m u n i d a d e jeje em Cachoeira, e lá f o r a m iniciadas as grandes mães-de-santo
do c a n d o m b l é jeje da época pós-abolição. Nessa congregação religiosa pro-
vavelmente foi consolidado o m o d e l o litúrgico que devia se perpetuar tanto
no Bogum de Salvador q u a n t o no Seja H u n d é . A tradição oral coincide em
afirmar que na Roça de Cima foram iniciadas as duas primeiras mães-de-santo
do f u t u r o Seja H u n d é , Maria Luiza do Sacramento (Maria Agorensi) e Ma-
ria Epifania dos Santos (sinhá Abalhe). 5 0 Fala-se vagamente que ali também
f o r a m iniciadas ou receberam alguma obrigação as duas primeiras mães-de-
santo do Bogum pós-abolição, Valentina e Maria Emiliana da Piedade, e cer-

A r m a z é n s da cidade de Cachoeira (c. 1860-1865)


Autor-, Camillo Vedani, in Gilberto Ferrez, Bahia velhas fotografias 1858-1900

184
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

tamente Maria Romana Moreira, que sucedeu a Emiliana, foi preparada em


Cachoeira. A responsabilidade máxima dessas iniciações, que deviam envolver
várias pessoas, não é sempre clara. A tradição oral sustenta que sem o consen-
t i m e n t o de Ludovina "não podia se fazer santo no terreiro de jeje". A Lu-
dovina são normalmente atribuídas as iniciações de Maria Agorensi, Valentina
e Maria Emiliana, embora provavelmente alguma delas tenha sido realizada
no Bogum de Salvador, enquanto tio Xarene e/ou Zé de Brechó são indicados
normalmente como os pais-de-santo de Abalhe e Maria Romana, que foram
feitas no mesmo barco
Segundo humbonoNicente, filho-de-santo de Maria Romana, naquele tempo
a iniciação durava 18 meses, sendo que Abalhe foi recolhida com 14 anos e feita
com 15, ao tempo que Maria Romana teria sido recolhida com 8 anos e saiu com
9 e meio.52 Sabemos que Abalhe, Maria Epifania dos Santos, faleceu em dezem-
bro de 1950, com 90 anos. 53 Se a idade que consta no registro de óbito é cor-
reta, isso colocaria o seu nascimento em 1860 e a sua iniciação por volta de
1874-75. Entretanto, fala-se que as iniciações de Maria Agorensi e de Emiliana
foram anteriores à de Abalhe, provavelmente na década de 1860. E claro que
Ludovina iniciou várias outras filhas de santo, como a já citada Lucrécia dos
Pastéis, mas o que convém destacar é que na Roça de Cima foram preparadas
as mulheres que décadas depois viriam a liderar os candomblés mais impor-
tantes da nação jeje-mahi.

LUDOVINA PESSOA: " A P R I M E I R A M Ã E - D E - S A N T O D O JEJE M A R R I N O " ?

Como apontei no capítulo 4, o surgimento de uma comunidade religiosa de


candomblé é estruturado a partir das relações de cooperação, complemen-
taridade e conflito entre várias congregações religiosas. Aliás, a constituição
de uma congregação religiosa ou terreiro é sempre o resultado do esforço co-
letivo de líderes religiosos e uma rede de relações sociais que contribuem para
providenciar os recursos materiais necessários, como as terras e o capital pa-
ra custear as festas. Se Ludovina Pessoa e tio Xarene formavam a liderança re-
ligiosa da Roça de Cima, eles contaram com a colaboração de influentes perso-
nagens de uma emergente elite negra, como é o caso de Zé de Brechó, que
analisarei mais adiante.
Entretanto, Ludovina Pessoa parece ter atingido um grau de liderança sem
Par no âmbito do Candomblé jeje do terceiro quartel do século XIX. Embora
não seja improvável que existisse alguma congregação jeje anterior a Ludo-
vina, ela aparece como o fator aglutinador dessa comunidade em formação,

185
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

a p o n t o de h o j e a tradição oral do povo jeje afirmar que a africana Ludovina


Pessoa foi a "primeira mãe-de-santo do jeje m a r r i n o [mahi]". Essa versão da
história é resumida n u m d o c u m e n t o datado de 12 de janeiro de 1943, datilo-
grafado por ocasião da entrega do decá ao humbono Vicente, em que se consigna
a ascendência religiosa da sua mãe-de-santo Maria Romana Moreira.

M a r i a R o m a n a M o r e i r a de Possu Beta Pojaí, filha de santo d e d o i s a f r i c a n o s le-


g í t i m o s de Jeje M a r r i n o d a c i d a d e de C a c h o e i r a , d o t e r r e i r o d o f a l e c i d o T i o Xarene
e Z é d o B r e c h ó , s e n d o a p r i m e i r a m ã e - d e - s a n t o d o j e j e m a r r i n o L u d o v i n a Pessoa de
O g u n R a i n h a , n a s c i d a n a A f r i c a . T i n h a u m t e r r e i r o e m C a c h o e i r a na roça de cima,
t i n h a a m a t r i z n o B o u g u . Q u a n d o ela s e m p r e v i n h a t o d o a n o da A f r i c a v i n h a sem-
p r e p a r a os dois terreiros. Sem o c o n s e n t i m e n t o dela n ã o p o d i a se fazer s a n t o n o ter-
reiro d e jeje, e n t ã o ela v i n h a fazer o v o d u n . Assim q u e ela t e r m i n a v a d e fazer volta-
va para Africa. 54

Essa versão da tradição oral dos anos 1940 apresenta várias informações
de interesse. Por u m lado, expressa as estreitas relações entre o Bogum de Sal-
vador e a Roça de Cima de Cachoeira. O fato de se falar do Bogum como sen-
do "a matriz" sugere, implicitamente, que o terreiro de Cachoeira era conside-
rado u m a "filial", de f u n d a ç ã o posterior. Esse assunto tem suscitado um lon-
go debate entre o povo de santo jeje mahi de Salvador e Cachoeira. Humbono
Vicente afirma que, na verdade, tratava-se de u m a "mesma roça, eram t u d o
unido, mas as mulheres depois brigaram umas com as outras, aí p r o n t o , fi-
cou t u d o desunido. Uns dizem lá de Cachoeira, aqui é jeje d'água doce e o
Bogum diz que aí é água salgada. E uma esculhambação. O jeje era um só". 55
Em 1961, a finada R u n h ó , mãe-de-santo do Bogum, declarava que "a primeira
mãe-de-santo [do Bogum] era Ludovina Pessoa, que era africana". 5 6 N o en-
tanto, o pessoal do Seja H u n d é em Cachoeira e até pessoas do Bogum mantêm
a anterioridade do terreiro de Cachoeira. O ogã Celestino Augusto do Espí-
rito Santo e a finada N i c i n h a do Bogum, declaravam em 1987: "Ludovina
Pessoa saiu de Bogum (cidade da Africa) e abriu terreiro p r i m e i r a m e n t e em
Cachoeira de São Félix [...] Ludovina Pessoa é u m a das mais antigas mães-
de-santo, mas sabemos que ela não foi a primeira". 5 7
A evidência d o c u m e n t a l não permite esclarecer a antecedência de uma ou
outra c o m u n i d a d e . C o m o já apontei, entre 1866 e 1869 Ludovina morava em
Cachoeira, mas recebia visitas periódicas de mulheres de Salvador na Roça
de C i m a . Ao mesmo t e m p o , Ludovina viajava com frequência a Salvador.
Uma notícia de O Alabama, em 1869, informa da visita de "mamãe Ludovina,
que mora em Cachoeira", a c o m p a n h a d a do "ogã Ventura", ao terreiro de Ma-
ria Velhudinha, no "lado das Barreiras" na periferia de Salvador, d u r a n t e a

186
O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA

festa de "fechar o balaio", cerimonia que encerra o ciclo anual de atividades


rituais coincidindo c o m o início da Q u a r e s m a . Esse ogã Ventura, de quem
falarei mais adiante, era provavelmente u m rendeiro da vizinha fazenda Ventu-
ra que devia participar das atividades religiosas da Roça de Cima. O destaque
dado a Ludovina, citada em primeiro lugar de u m a larga lista de assistentes
provenientes de Cachoeira, São Félix, Maragogipe e Salvador, indica a sua
fama e prestígio. 5 8 U m a o u t r a série de notícias do mês de maio do mesmo
ano documenta o u t r a festa, organizada n u m a roça da C r u z do C o s m e (atual
bairro da Liberdade), q u e foi liderada por Ludovina.

S a i b a , sem tirar n e m pôr,


Q u e a função da Ludovina,
Q u e fez n a C r u z do C o s m e ,
Esteve cousa superfina.

Aparentemente, tratava-se de um zelim "por alma de uma mulher, a Totonia


Fateira" e o " c a n d o m b l é " ferveu d u r a n t e vários dias. Na m e s m a semana,
Ludovina, "chefe da panela", c o n f i r m o u "em casa da Bella" um ogã de n o m e
Umbellino. N ã o sabemos se essa casa era o mesmo c a n d o m b l é da C r u z do
Cosme, mas, no último, como descreve o jornalista, "tinha gente da Bahia;
multidão de Cachoeira; tropilha de Sant'Amaro; e uma chusma da Feira". Isso
indica a amplitude da rede social da comunidade religiosa e a alta capacidade
agregadora de Ludovina, c o n f i r m a n d o que, nessa época, ela era u m a das mais
respeitadas mães-de-santo do C a n d o m b l é baiano. 5 9
Esses são os únicos registros contemporâneos que achamos de Ludovina
Pessoa e certamente indicam estreitos e periódicos contatos entre Salvador e
Cachoeira. Entretanto, não há evidência da presença de Ludovina no Bogum
que, como já vimos, nessa mesma época era dirigido por José Moraes, Isidoro
Melandras e a preta Rachel. Esse silêncio documental não invalida que Lu-
dovina Pessoa, mesmo m o r a n d o em Cachoeira, tivesse uma importante parti-
cipação no Bogum, como sustenta a tradição oral. 60 De fato, o terreiro de Maria
Velhudinha, nas Areias, visitado por Ludovina, era o mesmo o n d e foi levado o
barco de iniciadas do Bogum q u a n d o fugiam da perseguição policial.
Sendo u m a personagem legendária, Ludovina Pessoa tem suscitado uma
diversidade de opiniões em relação à sua vida, Equede Santa do Bogum decla-
rava que Ludovina era avó de M e n i n i n h a (famosa mãe-de-santo do terreiro
Gantois) e também que "Ludovina vem da senzala". 61 Porém, pouco sabemos do
seu passado. Procurando nos arquivos achei quatro referências a africanas de nome
Lodovina ou Luduvina que poderiam corresponder a Ludovina Pessoa.

187
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

A p r i m e i r a referência é o registro de b a t i s m o de u m a " L o d o v i n a , adulta


gege, escrava de A n t o n i o José", ato realizado na m a t r i z de N o s s a Senhora do
Rosário, na cidade de C a c h o e i r a , em 12 de j a n e i r o de 1810, t e n d o por pa-
d r i n h o s A n t ô n i o C a r v a l h o e Brazida M a r i a Trindade, a m b o s jejes. 62 Se a nação
"gege" dessa L o d o v i n a favorece a sua i d e n t i f i c a ç ã o c o m L u d o v i n a Pessoa, a
sua idade parece dificultá-la. Se ela era adulta em 1810, significa que nos anos
1866-1869, q u a n d o h i p o t e t i c a m e n t e aparece nas notícias do Alabama, ela já
devia ser m u i t o velha.
A segunda referência d o c u m e n t a l é a declaração de u m a " L u d u v i n a gege",
d a t a d a em 19 de agosto de 1829, p e d i n d o clemência ao juiz de Cachoeira após
ter s i d o p r e s a "por d e n ú n c i a i n i m i g a " . L u d u v i n a , a p a r e n t e m e n t e , queria
e m b a r c a r p a r a a Bahia 12 sacos de m i l h o e feijões, p e r t e n c e n t e s a seu marido,
sem a necessária licença da C â m a r a , a s s u n t o q u e foi finalmente solucionado
c o m o p a g a m e n t o de u m a m u l t a . 6 3 Trata-se aqui de u m a L u d u v i n a casada,
talvez m o r a d o r a n u m a roça, d e d i c a d a à lavoura e à a t i v i d a d e comercial, por-
t a n t o , m u i t o p r o v a v e l m e n t e , liberta.
A terceira referência, i n c o m p a t í v e l c o m a anterior, é u m registro de paga-
m e n t o de escravos realizado e m São Félix, em 22 de j a n e i r o de 1844: "Fran-
cisco Lopes de Faria p a g o u meia liza c o r r e s p o n d e n t e a trezentos e c i n q u e n t a
mil réis (17$500 rs.), valor p o r q u a n t o c o m p r o u a A n t ô n i o M a n o e l da C u n h a
a escrava a f r i c a n a L u d u v i n a " . 6 4 O preço r e l a t i v a m e n t e baixo sugere tratar-se
de u m a escrava já velha.
A q u a r t a referência aparece n u m a série de documentos relacionados com a
carta de liberdade o b t i d a por u m a tal Ludovina A f r i c a n a em Cachoeira, em
j u l h o de 1858. Por i n t e r m é d i o da sua m a d r i n h a , Carlota M a r i a da Conceição,
Ludovina, africana, m a i o r de 45 anos, do serviço de g a n h o , consegue c o m p r a r
a sua alforria pelo valor de u m c o n t o de réis à sua senhora, a liberta Maria
Jacintha Pereira, casada com o t a m b é m africano liberto A n t ô n i o Lopez Ferreira
que, além de Ludovina, possuía u m outro escravo africano. Essa carta de alforria
foi contestada por A n t ô n i o Lopez diante da justiça, que queria vender Ludovina
a u m terceiro, mas Maria Jacintha Pereira, já t e n d o recebido parte do dinhei-
ro e alegando d e m ê n c i a d o seu m a r i d o , conseguiu a liberdade de L u d o v i n a . 6 '
I g n o r o se a l g u m a dessas L u d o v i n a s africanas seria a m e s m a L u d o v i n a Pes-
soa, mas s e n d o L u d o v i n a u m n o m e de uso m u i t o l i m i t a d o , trata-se de u m a
h i p ó t e s e provável. N o caso da ú l t i m a Ludovina, a data de alforria precede em
8 anos o t e m p o em q u e L u d o v i n a Pessoa aparece d i r i g i n d o a Roça de C i m a ,
sendo q u e ela estaria e n t ã o com a p r o x i m a d a m e n t e 60 anos. C h a m a a atenção
o preço r e l a t i v a m e n t e alto, para a época, da carta de liberdade, o q u e sugere
t r a t a r - s e de u m a m u l h e r c o m q u a l i d a d e s d e m o n s t r a d a s . A i n t e r v e n ç ã o d a

188
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

madrinha Carlota Maria segue um c o m p o r t a m e n t o c o m u m da primeira me-


tade do século XIX, pela qual os p a d r i n h o s de u m escravo batizado assumiam
a responsabilidade pela compra da liberdade do afilhado, 6 6 mas sugere também
que Ludovina estava inserida n u m a rede social de libertos africanos solidários,
incluindo até a sua senhora. O prestígio religioso de Ludovina Pessoa, certa-
mente já estabelecido na África, teria i n c r e m e n t a d o a solidariedade condi-
zente com sua liberdade. A c o m b i n a ç ã o desses elementos reforça a identifi-
cação dessa Ludovina alforriada em 1858 com a nossa personagem. 6 "
Outra informação interessante do d o c u m e n t o de 1943, acima citado, é a
afirmação de que Ludovina "vinha t o d o ano da África". Poderia tratar-se de
uma legenda, criada para legitimar a autoridade dessa sacerdotisa, mas, se con-
firmado, esse fato teria i m p o r t a n t e s consequências no â m b i t o religioso, pois
sugeriria a introdução no Brasil de valores e práticas do culto de v o d u m poste-
riores à época do tráfico. Entretanto, examinando os registros de entradas e
saídas de passageiros declarados africanos nos livros da inspetoria da Polícia do
Porto de Salvador, entre 1873 e 1889, encontrei apenas uma Ludovina Maria
da Encarnação, africana, que partiu de Salvador a 13 de julho de 1878 com des-
tino ao Rio de Janeiro. 6 8 Talvez as viagens de Ludovina t e n h a m ocorrido antes
de 1873; de qualquer maneira, a evidência disponível não permite c o n f i r m a r
a versão da tradição oral.
O que parece certo é que Ludovina, deslocando-se com regularidade entre
Salvador e Cachoeira, devia ser uma liberta com algum recurso económico,
talvez uma mulher "do partido alto", como se dizia na época. Q u a n t o ao santo
ou vodum de Ludovina Pessoa, a tradição oral é u n â n i m e ao afirmar que era
Ogum, mas uns falam de O g u m Rainha, outros de O g u m Tolo e ainda ou-
tros de O g u m Aires. 69 Lopez de Carvalho, seguindo informações de Nasci-
mento, afirma que "ela foi u m a das africanas libertas que fazia parte do cor-
po feminino da I r m a n d a d e Jeje [sic] do Senhor dos Martírios, localizada na
Igreja da B a r r a q u i n h a [em Salvador]", e que t a m b é m "fazia parte da Irman-
dade de Nossa Senhora da Boa M o r t e [em C a c h o e i r a ] " / 0 N a s c i m e n t o acres-
centa que Ludovina foi u m a das f u n d a d o r a s da devoção da Boa M o r t e . Em-
bora seja provável a sua participação em alguma dessas ou outras irmanda-
des, não há ainda prova d o c u m e n t a l desses fatos.
Podemos trabalhar com certa confiança sobre a idéia de que, na década de
1860, Ludovina Pessoa, unindo-se a outros africanos jejes e seus descendentes,
fundou ou veio consolidar a liderança da Roça de C i m a em Cachoeira, man-
tendo estreita colaboração com o candomblé do Bogum, assim como contatos
regulares com vários outros terreiros da cidade. A minha hipótese é que essa
dinâmica só foi possível pela existência de uma elite negra de libertos africanos

189
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

e seus descendentes que, desde as primeiras décadas d o século XIX, mas sobre-
t u d o a p a r t i r da m e t a d e d o século, c o n s e g u i r a m ter acesso à propriedade de
terras e estabelecer u m a variada rede de relações sociopolíticas com a elite
b r a n c a q u e p o d i a m g a r a n t i r o f u n c i o n a m e n t o dessas congregações religiosas
N o caso d a Roça de C i m a , a c h a m o s evidência disso na terceira personagem
de nossa narrativa m i c r o - h i s t ó r i c a : Z é de Brechó.

ZÉ DE BRECHÓ E A EMERGÊNCIA DE U M A ELITE NEGRA EM CACHOEIRA

José M a r i a Belchior, ou Z é de Brechó, é u m personagem legendário entre o


povo-de-santo cachoeirano. Ele tem f a m a de ter sido u m t e m i d o feiticeiro ou
ajé de " m u i t a força". "Sabia fazer feitiço", "era d o n o do e b ó " e "podia matar em
24 horas", t a n t o a vítima c o m o o cliente que não pagava. São famosas as dispu-
tas de Z é de Brechó com o irmão Salaco, A n t ô n i o Maria Belchior, outro "ma-
cumbeiro" m u i t o falado. Segundo Eugénio Rodrigues da Rocha, seu Geninho,

quando faziam aniversário, um mandava presente para o outro. E quando rece-


biam o presente, olhavam e diziam: "você diga a ele que ainda está faltando alguma
coisa". Só que essa coisa ninguém sabia o que era. Um experimentava o outro. Na-
quele tempo as coisas eram assim. A seita tinha aqueles homens sabidos e os dois mais
falados em Cachoeira eram eles.' 1

A h i s t ó r i a dos dois i r m ã o s que n ã o c o m b i n a v a m atravessou os anos, e a


finada G a l d i n a Silva, p o p u l a r m e n t e c o n h e c i d a c o m o "mãe Baratinha", de na-
ção n a g ô - k e t u , contava q u e "de t a n t o u m fazer t r a b a l h o c o n t r a o o u t r o , os
dois a c a b a r a m m o r r e n d o " . Ela celebrava t o d o mês de m a i o u m a obrigação no
c e m i t é r i o d o R o s a r i n h o em louvor aos dois "babalaôs Salachior e Belchior". 7 2
Humbono V i c e n t e explica q u e Z é de Brechó "virava n u m a garça e ia para
Á f r i ca . N ã o são d e s c o n h e c i d o s esses " p o d e r e s m á g i c o s " dos especialistas
religiosos jejes e, c o m o as lyami O x o r o n g a , acredita-se q u e os "feiticeiros"
possam t r a n s f o r m a r - s e e m pássaro. Q u a n d o chegava o v a p o r de Salvador aos
cais de C a c h o e i r a e se via u m a garça n o m a s t r o , a g e n t e sussurrava "aí vem
Z é de Brechó de volta da África". 7 3
C e r t a m e n t e Zé de Brechó t i n h a p r o f u n d o s c o n h e c i m e n t o s das práticas re-
ligiosas e se c o n v e r t e u n u m i m p o r t a n t e d i g n i t á r i o d o C a n d o m b l é cachoei-
r a n o , c h e g a n d o a c o m p r a r as terras da Roça d e C i m a e liderar a congregação
religiosa. N o e n t a n t o , e m b o r a se fale que ele foi responsável pelas iniciações
de Abalhe e Maria R o m a n a , não fica claro se ele chegou a "pai-de-santo". O g ã
Boboso c o n t a q u e ele assumia a f u n ç ã o de olowô, sacerdote d e t e n t o r dos se-

190
O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA

redos de Ifá, e, segundo N a s c i m e n t o , ele foi consagrado a Dadá, u m tipo


de Xangô, e tinha título de D a d á Runhó. 7 4
Além dessa imagem de "feiticeiro", preservada pela memória oral, temos
de Zé de Brechó algumas informações históricas que revelam u m personagem
mais complexo. Na realidade, ele era descendente de u m a emergente elite ne-
gra surgida em meados d o século XIX e converteu-se, p a u l a t i n a m e n t e , n u m
reputado personagem público com trânsito livre em todas as camadas sociais
cachoeiranas e soteropolitanas. 7 5 C o n t r a r i a m e n t e ao que sugere a tradição
oral, ele não era africano, mas crioulo, f d h o p r i m o g é n i t o do casal de africa-
nos Belchior Rodrigues de M o u r a e Maria da M o t t a . Provavelmente ele nas-
ceu em janeiro de 1836, em Cachoeira, q u a n d o o seu pai era ainda escravo. 76
Em 14 de agosto de 1855, ano da "grande epidemia" de cólera-morbo que
assolou o Recôncavo, Belchior Rodrigues de Moura, "temendo a morte em con-
sequência da epidemia reinante", dita em Salvador o seu testamento. Nele de-
clarou ser "batizado nos dogmas da religião de Jesus Cristo" e "natural da
Costa da Africa vindo para esta capital, inda de m e n o r idade, como escravo
fui comprado em lote pelo senhor José Rodrigues de M o u r a de c u j o poder
me libertei pela q u a n t i a de seiscentos mil réis, na data do primeiro de feve-
reiro de 1841". Belchior Rodrigues de M o u r a morreu, c o m o temia, em 27
de setembro de 1855, em Cachoeira, deixando sua mulher, com q u e m jamais
casou, a africana Maria da M o t t a , e cinco filhos: José Maria de Belchior, de
19 anos e 8 meses; A n t ô n i o Maria, de 16 anos; Maria Aniceta, de 13 anos;
Magdalena, de 4 anos e Juliana, de 2 anos.
Naquele m o m e n t o , Belchior Rodrigues de Moura possuía seis escravos afri-
canos, um "do serviço de terra" e o resto "do serviço de ganho", duas casas na
Recuada, assim como "um pedaço de terra no lugar da Capapina o qual ocupam
tres sítios, um do inventariado, e os outros de Joaquim de tal e Jozé de tal". A
avaliação total das propriedades de Belchior Rodrigues de Moura aumentava
a considerável soma de 2 contos e 548 mil réis. 7 ' As terras foram registradas
17 de agosto de 1858, por Maria da Motta, em nome de seus filhos, especi-
ficando-se que estavam limitadas "pelo sul com a estrada de Belém, e pelo norte
com a estrada de C a p a p i n a " / 8 Segundo Nascimento, seria precisamente nessas
terras que teria f u n c i o n a d o o legendário quilombo do O b a Tedô. O apelido
de tal" dos rendeiros indica que se tratava de africanos ou crioulos, mas, além
de sugerir uma concentração de lavradores negros, nada permite aventurar a
existência de um candomblé, e ainda menos u m quilombo.
Como em 14 anos, de 1841 a 1855, Belchior Rodrigues de M o u r a se liberta
e
consegue c o m p r a r terras, duas casas e seis escravos? N a hora da sua morte,
Belchior tem u m passivo de 1 conto e 391 mil réis, isto é, aproximadamente

191
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

metade de seu patrimônio. Parece, p o r t a n t o , que, além das rendas das terras e
dos escravos de ganho, ele concedia empréstimos, normalmente "recebidos em
moeda corrente". Porém, não sabemos em que investia o seu dinheiro ou quais
eram os seus "negócios". 79 Fazia-se Belchior Rodrigues de Moura de "banqueiro"
para os africanos? Era "capitão de junta de alforria", espécie de caixa econó-
mica dos africanos, destinada a fazer empréstimos para a aquisição da liber-
dade pelos escravos? O u t r o comércio que na época proporcionava u m enrique-
cimento rápido era o tráfico ilegal. Esteve Belchior envolvido em tais atividades?
Viajou para a Costa da Africa nesse tempo? Perguntas sem resposta, por en-
quanto. O que podemos concluir é que, mesmo sendo modestas as proprieda-
des e importantes as dívidas, Belchior Rodrigues de M o u r a era um liberto per-
tencente a u m a emergente elite negra em Cachoeira, com propriedade de ter-
ras, capacidade para captar recursos económicos e inserido n u m a rede social
que se prolongava do Recôncavo a Salvador.
C o m a morte do pai em 1855, José Maria de Belchior, com quase 20 anos,
herdou, por partes iguais com o irmão menor, Antônio Maria Belchior, o es-
cravo Felippe e as terras da Capapina. Nos anos seguintes, sua mãe, Maria da
M o t t a , que foi, segundo a tradição oral, vodúnsi da Roça de C i m a e mem-
bro da devoção da Boa M o r t e , e n f r e n t o u sérias dificuldades para pagar as dí-
vidas d o marido: dois escravos morreram e outros aproveitaram as circunstân-
cias para se libertar. Tal situação fragmentou e reduziu seriamente o patrimônio
familiar. Nessa época, seus filhos trocaram os velhos rendeiros da Capapina por
outros, talvez n u m a tentativa de aumentar sua renda. 8 0 Podemos supor que o
fato de possuir u m escravo de ganho e as terras da Capapina conferiu aos ir-
mãos Belchior renda e u m certo status social entre a comunidade negra local.
Nos registros de votantes de Cachoeira dos anos 1871-1875, José Maria Bel-
chior e o seu irmão A n t ô n i o Maria Belchior são listados no quarteirão n a 30,
na Recuada. O primeiro declara, como profissão, ser carapina e o segundo,
marceneiro. Já em 1880, eles declaram saber ler e escrever, ter uma renda de
400 mil réis anuais e, como profissão, "negócios", o que sugere certa ascensão
social. 81 D e fato, em 1874, os dois irmãos ingressam na Sociedade M o n t e Pio
dos Artistas Cachoeiranos, uma instituição assistencial das Artes e Ofícios. A
Sociedade foi f u n d a d a esse ano na residência do artista José Clarião Lopes, mas
logo passou a realizar as suas assembléias no consistório da Irmandade de São
Benedito, n u m anexo da capela de Nossa Senhora d'Ajuda, onde, aliás, funcio-
naria também a devoção da Boa Morte. 8 2 Esse vínculo da Sociedade M o n t e Pio
com a Irmandade São Benedito é significativo.
A irmandade ou devoção de São Benedito foi erigida na capela d'Ajuda por
crioulos livres e escravos, em 1818. 83 Dela participavam vários músicos ama-

192
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

dores negros, que c o n s t i t u í r a m a Banda Marcial de São Benedito. Mas, na


mesma capela, f u n c i o n a v a a Corporação Musical de Nossa Senhora da Aju-
da (mais tarde Sociedade Lítero Musical Minerva Cachoeirana), formada por
músicos "eruditos" brancos, ligados à oligarquia cachoeirana, que instituíram
a Irmandade de Nossa Senhora d'Ajuda. Por dissidências políticas entre esses
dois grupos, que c u l m i n a r a m , por volta de 1871, em i n q u é r i t o e processo
judicial, a Banda Marcial São Benedito teve que a b a n d o n a r a capela, trasla-
dando-se à igreja da Conceição do M o n t e , centro religioso da facção política
liberal da cidade. Por estar erigida nessa igreja a i r m a n d a d e de Santa Cecília
(padroeira dos músicos negros), em 13 de m a i o de 1872, os m e m b r o s da
antiga b a n d a marcial c o n s t i t u í r a m a f i l a r m ó n i c a Sociedade O r f é i c a Lira
Ceciliana. A sociedade M o n t e Pio, a irmandade de São Benedito e a filarmó-
nica Lira Ceciliana formavam, assim, u m a rede de instituições em que a eli-
te negra cachoeirana articulava sua visibilidade social e seus interesses libe-
rais e abolicionistas perante a facção política conservadora, associada à filar-
mónica Minerva, à irmandade d'Ajuda e à igreja de Nossa Senhora do Rosário,
ou Matriz. 8 4
Embora os registros dos irmãos Belchior não constem no Livro de Termo
de Sócios Efetivos da Sociedade M o n t e Pio, em maio de 1874, três meses após
a sua f u n d a ç ã o , José Maria Belchior participou da assembléia geral na qual
falou sobre "diversos pontos relativos aos estatutos", e em 18 de outubro, após
a aprovação dos estatutos, os dois irmãos pagaram as suas jóias de 20 mil réis.
Desde cedo, eles o c u p a r a m cargos importantes. A n t ô n i o Maria foi tesourei-
ro nos anos de 1877, 1879, 1880 e 1892, e m e m b r o da Comissão de Polícia
da mesma sociedade nos anos de 1884 e 1885. A n t ô n i o Maria participava de
forma mais regular que o irmão nas atividades da Sociedade, e n t r e t a n t o foi
José Maria Belchior quem alcançou mais notoriedade. Além de assumir o car-
go de tesoureiro em 1878, em 28 de fevereiro de 1886 ele foi eleito vice-presi-
dente; em novembro do mesmo ano aparece como presidente interino e, em
20 de fevereiro de 1887, é eleito presidente, cargo que manterá até 10 de mar-
ço de 1889. 85 Lembremos que desde 1882 ele era proprietário da Roça de Cima
e que, além da sua ascensão profissional, ele devia gozar de certa visibilidade
social c o m o dirigente de u m a i m p o r t a n t e congregação religiosa.
C o m o diretor da Sociedade M o n t e Pio, José Maria Belchior e n f r e n t o u um
período de dificuldades económicas devido à perda do p a t r i m ô n i o causada
por transações financeiras sem sucesso e pela falta de pagamento das mensali-
dades por parte dos sócios. Porém, no período da sua gestão, entre 1886 e 1888,
a sociedade experimentou um crescimento de seus membros, passando de 91 a
103 sócios efetivos, de 22 a 25 sócios honorários e de 3 a 4 sócios benfeitores.

193
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

N o s seus relatórios ele d e m o n s t r o u u m a aparente transparência financeira


c o m detalhados cálculos das contas, a t r i b u i n d o os déficits "a enganos nas
contas" das direções anteriores, e nos seus discursos ele aparece bastante elo-
q u e n t e e versado nas artes da oratória. E m várias ocasiões, sugeriu que a
Sociedade tinha inimigos que queriam ver fracassar a empresa e falava das
"peripécias, obstáculos e malquerenças que contra ela [a sociedade] se têm
desenvolvido a fim de que não chegasse, como tem chegado, ao fim da sua
instituição". 8 6 Essas "malquerenças" m u i t o provavelmente provinham da fac-
ção conservadora e tradicional da oligarquia cachoeirana que via na Socie-
d a d e uma ameaça organizada das camadas populares negras, representadas
pela sua elite letrada, liberal e abolicionista.
Em 13 de maio de 1888, dia em que foi "votada e sancionada a Lei que
extingue a escravatura neste Império", na sua f u n ç ã o de presidente da Socie-
dade, José Maria Belchior convocou uma assembléia extraordinária em que,
após vários discursos, foi enviado u m telegrama de felicitação à princesa Isa-
bel, por ele assinado. Depois, os presentes assistiram à manifestação popu-
lar, "composta de mais de oito mil pessoas" e a c o m p a n h a d a de "duas Filar-
mónicas". D a janela do prédio da Sociedade, o Dr. Pedro V i a n n a de Abreu,
P r o m o t o r Público de Cachoeira, proferiu "um l u m i n o s o discurso [...] depois
do que a Filarmónica Ceciliana que se achava postada na frente deste edifício
c a n t o u uma canção análoga ao ato, tocando depois ambas as Filarmónicas o
H i n o Nacional". 8 7
Já como ex-presidente, em setembro de 1 889, José Maria Belchior foi no-
meado chefe de uma comissão da Sociedade para receber a Sua Alteza o C o n d e
d'Eu, esposo da Sereníssima Princesa Imperial, em visita a Cachoeira. Confor-
me consta nas atas da sociedade, "S. A. mostrou-se satisfeito e agradeceu ao
M o n t e Pio a prova de consideração". Esse fato não i m p e d i u que se filiasse
ao Partido Republicano e que, em o u t u b r o do mesmo ano, se candidatasse a
conselheiro m u n i c i p a l por essa legenda política, ficando colocado em 13 s
lugar, o que lhe conferiu o cargo de suplente. 8 8 U m mês depois, em 20 de
n o v e m b r o , José Maria Belchior assinava j u n t o com outras personalidades
cachoeiranas u m a declaração de adesão à República. 8 9
Seguramente, pelo seu vínculo com a Sociedade M o n t e Pio, em 12 de ou-
tubro de 1900, José Maria Belchior foi n o m e a d o presidente e p r o c u r a d o r do
C o n s e l h o Filial de Cachoeira do C e n t r o O p e r á r i o do Estado da Bahia, órgão
f u n d a d o em 1 896 e dedicado ao desenvolvimento das Artes, Ofícios e Indús-
trias. 90 Acredita-se que Zé de Brechó era m a ç o m e, e m b o r a o fato não possa
ser c o n f i r m a d o , o seu vínculo com as sociedades de Artes e O f í c i o s sugere
ser essa possibilidade b a s t a n t e provável. 9 1

194
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

Entre os múltiplos relacionamentos sociais com a elite local, cabe destacar


a sua amizade com o influente político de origem portuguesa, mas naturali-
zado brasileiro, A l b i n o José Milhazes, n e g o c i a n t e abastado, e x p o r t a d o r e
industrial do f u m o e proprietário de muitas terras. O comendador Albino Mi-
lhazes foi p r o c u r a d o r da I r m a n d a d e de Nossa S e n h o r a da C o n c e i ç ã o do
Monte, cuja igreja, como já foi dito, reunia a facção política liberal de Ca-
choeira, t e n d o p o r aliados o u t r o s n e g o c i a n t e s f u m a g e i r o s c o m o G e r a l d
Dannemann e Costa Penna, assim como o deputado e advogado abolicionista
Prisco Paraíso. E significativo t a m b é m que, em 15 de julho de 1883, Albino
Milhazes fosse aceito como sócio h o n o r á r i o da Sociedade M o n t e Pio, o que
vem a confirmar o caráter liberal dessa instituição. 9 2
Além de primeiro suplente de conselheiro municipal, possivelmente no
final da sua vida, José Maria Belchior foi n o m e a d o capitão da Guarda Nacio-
nal.93 Os irmãos Belchior eram t a m b é m membros da Irmandade do Rosarinho
e pelo menos A n t ô n i o Maria aparece repetidas vezes assinando os registros
de óbito de africanos que foram enterrados no cemitério dessa irmandade.' H
De fato e, q u e s t i o n a n d o a lendária inimizade entre os dois irmãos, em 16 de
abril de 1902 A n t ô n i o Maria registra o óbito do irmão, que faleceu "vítima
de sífilis, na sua roça, no lugar Boa Vista", isto é, na Roça de Cima, ou Sítio
Charema, vizinho da Fazenda Boa Vista. Nesse d o c u m e n t o , Zé de Brechó é
nomeado "cidadão", termo só utilizado para altas personalidades, e como "sol-
teiro, proprietário, primeiro suplente de Conselheiro Municipal desta cidade,
capitão da G u a r d a Nacional, sendo o seu cadáver t r a n s p o r t a d o para a igreja
Matriz de o n d e tem de efetuar-se o seu saimento, e será sepultado n o cemi-
tério do Rosário em carneiro p e r p é t u o daquela Irmandade". 9 5
Poucos dias depois, n u m a nota publicada no jornal A Cachoeira, a famí-
lia do finado vem "manifestar sua não esquecida gratidão às pessoas amigas
e conhecidas que d u r a n t e a moléstia o iam visitar e suavizaram os sofrimentos
de seu saudoso parente, não o a b a n d o n a n d o nunca, e depois da m o r t e for-
m a n d o n u m e r o s o cortejo o c o n d u z i r a m até à última morada". Desse m o d o ,
agradecem ao

Vigário Heráclio Mendes da Costa; ao Conselho Municipal desta cidade, do qual


o finado fazia parte; às distintas sociedades que depositaram coroas com inscrição em
homenagem — Montepio dos Artistas Cachoeiranos, Beneficia Cachoeirana e Cen-
tro Operário. Às filarmónicas Minerva e União das Artes que compareceram execu-
tando músicas fúnebres, das quais o finado era sócio. Aos amigos cavalheiros e ami-
gos do finado os Exma Snrs Drs Emiliano e Joaquim Viegas, residentes na Bahia,
Joaquim Correia da Silveira e Souza e Pedro Alexandrino Belmiro que ofertaram
especiais coroas. A P R C . 9 6

195
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Vemos, assim, como Zé de Brechó, filho de um liberto africano, conseguiu


consolidar e incrementar a ascensão social iniciada pelo pai, convertendo-se
paulatinamente, numa prestigiada figura pública, com contatos influentes com
personagens da elite cachoeirana e soteropolitana. São os recursos e privilégios
dessa elite negra, no caso um crioulo de primeira geração, junto com a experiên-
cia religiosa dos últimos e velhos africanos como Ludovina e tio Xarene o que
permite explicar o f u n c i o n a m e n t o de terreiros como a Roça de Cima. Imagino
que o prestígio social de Zé de Brechó e o seu cargo de capitão da Guarda Na-
cional contribuíram bastante para a expansão do terreiro e para garantir a tran-
quilidade das suas atividades sem excessivos problemas de repressão. O seu cará-
ter empreendedor e progressista e os dotes de líder demonstrados levaram-no
a comprar as terras do candomblé jeje em 1882, m o m e n t o a partir do qual, pre-
sumivelmente, passou a comandar a congregação religiosa.

A F U N D A Ç Ã O DO S E J A H U N D É N A ROÇA 0 0 V E N T U R A

Se o candomblé jeje da Roça de C i m a funcionava já na década de 1860, na


década seguinte, e especialmente a partir dos anos 1880, Cachoeira viveu um
crescimento de candomblés nagôs sem precedentes. Na segunda metade do
século XIX, a economia das plantações de açúcar no Recôncavo entrou em de-
clínio, deixando u m a grande massa de população rural negra desempregada.
Mas, no período de 1870-1880, investidores alemães instalaram em Cachoeira
e São Félix várias fábricas mecanizadas de cigarro e charuto, que geraram uma
i m p o r t a n t e imigração de libertos pobres p r o c u r a n d o trabalho nesses novos
centros industriais. 9 7 Essa concentração urbana de população negra, a consoli-
dação de u m a elite negra de artesãos bem sucedidos e proprietários de terras e
a ascensão social que a atividade religiosa podia oferecer à população negra de-
sempregada na época pós-abolição, explicam, em parte, o progressivo estabe-
lecimento d e congregações religiosas relativamente estáveis.
A partir de entrevistas realizadas na década de 1980, Fayette W i m b e r l y
identificou na área de Cachoeira e São Félix dois candomblés f u n d a d o s após
1 850 — a Roça de C i m a e o c a n d o m b l é do Capivari, de Anacleto Nativida-
de — e outros nove, todos nagôs, fundados após 1870. Wimberly documentou
p r i n c i p a l m e n t e o c a n d o m b l é de Anacleto U r b a n o da N a t i v i d a d e , escravo
nagô, e f e i t o r do E n g e n h o de Nossa S e n h o r a da N a t i v i d a d e da Fazenda
Capivari, perto de São Félix, propriedade do coronel Umbelino da Silva Tosta
(1831-1881). Pelas suas qualidades de "curador", demonstradas d u r a n t e a epi-
demia de cólera, em 1855, tio Anacleto de O m o l ú foi autorizado pelo seu

196
O B O G U M E A ROCA DE CIMA

senhor a manter o terreiro, providenciando assistência médica e espiritual tan-


to a escravos da fazenda c o m o a clientes livres e libertos da região. O barra-
cão do terreiro, c o n s t r u í d o em volta de u m i m p o n e n t e pé de cajá consagrado
a São Roque ou Obaluayê, permanece ainda na ativa. Segundo os testemunhos
orais coletados por Wimberly, essa árvore estaria dedicada a Iroko ou ao vo-
dum Loko. Essa autora t a m b é m comenta que o riacho que atravessa o terreiro
estava protegido por uma grande serpente que aparecia e desaparecia segundo
a vontade dos deuses. Esses indícios levaram H a r d i n g a sugerir um culto de
múltiplas divindades com forte influência da tradição jeje. 9 8
Embora seja difícil datar com precisão a fundação dos outros candomblés,
é provável que vários deles funcionassem só a partir da abolição da escravidão,
em 1888. Em São Félix, a tradição oral lembra do terreiro de Neves Moreira de
Ogum e do terreiro de Cajazeiras — f u n d a d o pelo crioulo Luciano Barreto
de Ogum Bomi, c o n h e c i d o c o m o tio Saiu. 9 9 N o s s u b ú r b i o s de Cachoeira,
no caminho da Terra Vermelha, José de Vapor, neto de escravos nagôs, f u n d o u
o terreiro Viva Deus. Na mesma área, tia J u d i t h , descendente de nagôs e pa-
rente de Anacleto do Capivari, liderou a casa Aganjú de Deus, ou talvez Agan-
jú de Dê. N o centro u r b a n o de Cachoeira, no Beco do Sabão, já na virada
do século XX, f u n c i o n o u o c a n d o m b l é nagô de Maria Agueda de Oliveira.
Sinhá Agueda era de Iemanjá e nasceu em alto-mar, q u a n d o a sua mãe, a afri-
cana tia Sofia de Olissá, vinha da África. Maria Felicidade da Conceição, de
origem nagô e conhecida como tia Malaqué de Xangô, abriu u m a casa de afri-
canos por trás do atual Chafariz, na casa n 2 6, e foi sucedida pela sua filha car-
nal, Maria Galdeça da Conceição, falecida em 1910 (avó paterna de gaiaku
Luiza e seu G e n i n h o ) . N a lagoa E n c a n t a d a , no c a m i n h o de Belém, Porfira,
conhecida como Aleijadinha, t i n h a o u t r o c a n d o m b l é famoso pelos seus pre-
sentes à mãe d'água. Segundo a lenda, esses presentes oferecidos na lagoa En-
cantada apareciam depois no dique do Tororó, em Salvador. T a m b é m dessa
época lembram-se os nomes de C a n u t o , que faleceu com avançada idade em
1914; pai João, um temido "feiticeiro" jeje; tio Luiz e tio Fado, entre outros. 10 "
Além de se falar de diversas "subnações" nagô como nagô-agavi, nagô-tedô,
nagô-congú, ou nagô-jexa, cabe notar que o rito nagô do Recôncavo, que se
caracterizava por ter cantigas próprias e usar uns atabaques pequenos tocados
a mão, era distinto da tradição nagô-ketu conhecida em Salvador. O rito nagô
de Cachoeira, além da sua especificidade de origem iorubá, esteve influen-
ciado pela tradição jeje, sendo c o m u m em algumas dessas casas o culto do
vodum jeje Bessen, mas seria mais correto falar de u m a m ú t u a interpenetra-
ção de elementos rituais, que no final do século XIX deu lugar à tradição que
o povo-de-santo chama "nagô-vodum" ou "nagô-vodúnsi". O rito nagô-ketu

197
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

p r e d o m i n a n t e em Salvador só se p o p u l a r i z o u na região de C a c h o e i r a tardia-


m e n t e , na d é c a d a de 1930, c o m a f u n d a ç ã o , n o P o r t ã o , p e r t o de Muritiba,
do Ilé Ibece Alaketu, de M a n o e l C i r q u e i r a de A m o r i m , p o p u l a r m e n t e conhe-
cido c o m o N e z i n h o do Portão, m u i t o ligado à m ã e M e n i n i n h a do Gantois. 101
D i a n t e da g r a n d e p r o l i f e r a ç ã o de terreiros nagôs n o final do século XIX,
é n o t á v e l a relativa u n i d a d e q u e m a n t i v e r a m os jejes e m volta da Roça de
C i m a . Só nas p r i m e i r a s décadas d o século XX se fala de o u t r o terreiro jeje
na região, o c a n d o m b l é j e j e - d a g o m é de d o n a V i t o r i a da Fazenda C a j u , perto
de M a r a g o g i p e , ao qual só se chegava de e m b a r c a ç ã o o u a cavalo, i n d o pela
estrada da praia de Bom Jesus. 1 0 2 N o e n t a n t o , na Roça de C i m a , provavel-
m e n t e na ú l t i m a d é c a d a d o século XIX, parece q u e se p r o d u z i u u m a cisão.
C o m o já foi dito, l i m i t a n d o com a Roça de C i m a , localizava-se a Fazenda Ven-
t u r a , p r o p r i e d a d e em 1860 de Luiz V e n t u r a Esteves. Lá t r a b a l h a v a u m afri-
cano ou crioulo l e m b r a d o c o m o Vovô Ventura, m u i t o p r o v a v e l m e n t e o mesmo
"ogã V e n t u r a " q u e a c o m p a n h a v a L u d o v i n a Pessoa n o c a n d o m b l é de Maria
V e l h u d i n h a , em Salvador, em 1869.
U m a versão da tradição oral sustenta q u e seu V e n t u r a "se casou" com Ma-
ria Luiza Sacramento, M a r i a Agorensi, filha-de-santo de Ludovina, e n q u a n t o
outra diz que seu Ventura só se amasiou ou foi o "companheiro da tia". Provavel-
m e n t e graças a esse relacionamento, Maria Agorensi, ajudada por Ludovina, abriu
um novo terreiro na fazenda Ventura, o Seja H u n d é , conhecido c o m o a Roça do
Ventura ou c a n d o m b l é do Ventura, que p e r m a n e c e na ativa até nossos dias. A
finada Aguesi, Eliza Gonzaga de Souza, s o b r i n h a de M a r i a Agorensi e impor-
tante v o d ú n s i do Seja H u n d é , contava que, q u a n d o ela nasceu, em 1903, Vovô
Ventura já t i n h a falecido. Acrescenta que, q u a n d o M a r i a Agorensi assumiu co-
m o gaiaku, possivelmente por razões de o r d e m religiosa que exigem restrições
sexuais ao responsável m á x i m o de u m c a n d o m b l é , o casal se separou, passando
ele a m o r a r n u m a casa m e n o r localizada p e r t o do atual barracão. "Seu Ventura
diziam que vendia aipim, t o d o o m u n d o ia c o m p r a r aipim a seu Ventura." Al-
g u n s a f i r m a m que seu Ventura não t i n h a n e n h u m a responsabilidade religiosa,
q u e "era só o d o n o da terra", e n q u a n t o outros falam que era alabê do Seja H u n -
dé e que seu santo era Badé. A segunda hipótese parece mais provável, q u a n d o
l e m b r a m o s a sua c o n d i ç ã o de ogã referida em O Alabama, em 1869. 1 0 3
A suposta p r o p r i e d a d e das terras da Fazenda Ventura por p a r t e de seu Ven-
tura, idéia m a n t i d a por pesquisadores c o m o N a s c i m e n t o e Carvalho, não está
c o m p r o v a d a . Humbono V i c e n t e e ogã Boboso s u s t e n t a m q u e ele era só u m
r e n d e i r o q u e t o m o u o n o m e ou apelido do a n t i g o p r o p r i e t á r i o das terras, o
c a p i t ã o Luiz V e n t u r a Esteves, s e n h o r de e n g e n h o e m o r a d o r na Freguesia de
São Sebastião de Passé. 104 P o r é m , na p a r t i l h a amigável dos bens d o capitão,

198
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

falecido em 26 de fevereiro de 1885, não são mencionadas as terras de Ca-


choeira. 105 É provável, p o r t a n t o , que Luiz Ventura Esteves tivesse vendido as
terras de Cachoeira a u m terceiro desconhecido antes da sua m o r t e .
Humbono Vicente, ogã Boboso e seu G e n i n h o coincidem em afirmar que
as terras da roça do Ventura foram, em um m o m e n t o determinado, parte do
vizinho Engenho do Rosário. Na década de 1880, esse engenho pertencia ao
já mencionado e influente comendador Albino José Milhazes. Após sua morte
em 1891, a propriedade foi herdada pela sua mulher, Silvia Milhazes, que, em
1895, a vendeu aos negociantes Francisco Cardozo & Silva C o m p a n h i a . N o
entanto, em 1900, o capitão Albino José Milhazes, filho do comendador e pro-
prietário da vizinha Fazenda Faleira, c o m p r o u de novo os terrenos e benfei-
torias do E n g e n h o do Rosário. 1 0 6 E provável que, graças à amizade de Zé de
Brechó com a família Milhazes, Maria Agorensi conseguisse comprar e des-
membrar a parte d o E n g e n h o do Rosário que hoje constitui o Seja H u n d é .
Ogã Boboso diz que a escritura de compra está datada em 1901 ou 1909. Seu
Geninho confirma que Maria Agorensi comprou a roça do Ventura por 200
mil réis, e que a escritura foi redigida pelo tabelião seu Sapocaia. Esse docu-
mento passou, após a m o r t e de Agorensi, pelas mãos do pejigã Miguel Ro-
drigues da Rocha e hoje estaria nas mãos de ogã Boboso, mas n u n c a me foi
apresentado nem encontrei o seu registro n o cartório do F ó r u m . A posse da
terra é um tema m u i t o delicado e as informações são confusas. Humbono Vi-
cente sugeria que Maria Agorensi e os seus sucessores só teriam os direitos
de a r r e n d a m e n t o das terras e não o título de propriedade. 1 0 7
Embora algumas pessoas acreditem que Ludovina Pessoa foi a primeira
doné ou gaiaku do Seja H u n d é , a maioria de i n f o r m a n t e s coincide em afir-
mar que a primeira mãe-de-santo foi Maria Agorensi, cabendo a Ludovina
só dirigir os rituais para "plantar o f u n d a m e n t o " . A tradição oral afirma que
Maria Agorensi conseguiu c o m p r a r as terras do c a n d o m b l é vários anos após
a sua abertura, o que implicaria ter esta acontecido antes de 1901. A hipótese
mais conservadora seria datar a f u n d a ç ã o do terreiro nos últimos anos da
década de 1890. C o m o já vimos, em 1896, Zé de Brechó registrou oficial-
mente a p r o p r i e d a d e do Sítio do Charema, até então só registrada em escri-
tura privada. N ã o seria improvável que esse fato indicasse algum temor de Zé
de Brechó de perder a posse das terras, como consequência de disputas suces-
sórias no candomblé.
T a m b é m não sabemos q u a n d o a Roça de C i m a deixou de f u n c i o n a r . A
tradição oral é contraditória em relação ao possível f u n c i o n a m e n t o simultâ-
neo por alguns anos da Roça de Cima e d o Seja H u n d é . Humbono Vicente
afirmava que primeiro existia a Roça de C i m a "onde moravam os africanos

199
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

[...] logo o santo [o v o d u m Bessen] pediu abrir o terreiro de abaixo [...] aca _
bou acima, passou abaixo [...] no jeje só tem u m terreiro". Por outro lado
ogã Boboso sustenta que ambos os terreiros f u n c i o n a r a m simultaneamente
d u r a n t e algum t e m p o e que existia u m a conexão litúrgica entre as duas con-
gregações religiosas. "Bessen é um só, mas tem força para t o m a r conta dos
dois." 1 0 8 Segundo essa opinião, as vodúnsis do Seja H u n d é , d u r a n t e sua ini-
ciação e o ciclo de festas, subiam à Roça de Zé de Brechó para realizar certas
obrigações, entre elas talvez o boitá (ver cap. 6). Segundo ogã Boboso, Ma-
ria Agorensi "saiu sem briga, foi seguir seu caminho". A finada Aguesi dizia
que "Agorensi abriu e o pessoal de Ludovina se juntou". 1 0 9
O que parece claro é que q u a n d o Ludovina Pessoa e Maria Agorensi abri-
ram o Seja H u n d é foi com a participação de um número significativo de rodan-
tes da Roça de Cima, o que tornava difícil a permanência das duas casas. Se
foi um processo espontâneo e harmonioso, não sei. Mas esses deslocamentos
de várias dançantes de u m a casa para outra indicam geralmente dissidências
internas. Fala-se que naquela época Zé de Brechó estava amasiado com a jovem
Maria Epifania dos Santos, sinhá Abalhe, e que esta, num primeiro momento,
não seguiu a Maria Agorensi. A m i n h a impressão é que, após a saída de Maria
Agorensi, a Roça de C i m a ainda f u n c i o n o u , talvez de uma forma precária, por
alguns anos com pessoal que permaneceu fiel a Zé de Brechó. Certamente, com
a morte dele, em 1902, a Roça de Cima deixou de funcionar definitivamente. 1 1 0
Existe uma o u t r a d ú v i d a q u a n t o à nação ou modalidade de rito praticada
nesses dois terreiros. E n q u a n t o há u n a n i m i d a d e em identificar o Seja H u n d é
como um terreiro de nação jeje mahi (marrin ou marrino), alguns afirmam
que a Roça de Zé de Brechó era jeje m u n d u b i . C o m o uma casa com ascendên-
cia religiosa n u m terreiro m u n d u b i m u d a de nação passando a ser mahi? A
finada Aguesi insistia em distinguir entre a feitoria de Maria Agorensi, reali-
zada por Ludovina, e a de Abalhe, realizada por Zé de Brechó, como se tives-
sem acontecido não só em m o m e n t o s diferentes, mas talvez com preceitos re-
ligiosos diferentes. 1 1 1 Tudo parece indicar que ao redor da Roça de C i m a se
reuniram africanos jejes de diversas origens, e que talvez essas diferenças de
tradição religiosa pudessem explicar o r o m p i m e n t o e saída de Ludovina Pessoa
e Maria Agorensi. 112 De qualquer maneira, o Seja H u n d é , desde a sua funda-
ção, e certamente após a extinção da Roça de Cima, herdou alguns dos assen-
tos de lá, passando a justapor o culto de voduns m u n d u b i e mahi (ver cap. 7).
Resumindo, a história do Seja H u n d é inaugura-se com Maria Agorensi, pro-
vavelmente no período pós-abolição. Acabava a época dos terreiros como a Roça
de C i m a , liderados m a j o r i t a r i a m e n t e por homens africanos, e iniciava-se o
ciclo de candomblés liderados majoritariamente por mulheres crioulas. C o m o

200
O B O G U M £ A « O U DE CIMA

afirma seu Geninho, n o passado "o jeje era u m a maçonaria, era só h o m e m , não
tinha mulher". 1 1 5 Vale salientar que, p r o v a v e l m e n t e no m e s m o p e r í o d o , na
década de 1890, em Salvador, o Bogum retomava as suas atividades sob a chefia
da c r i o u l a Valentina, de q u e m não se lembra o n o m e de família, talvez iniciada
em Cachoeira por Ludovina. Esses fatos coincidem com u m a tendência geral
de expansão dos c a n d o m b l é s no período pós-abolição que implicaram, como
foi visto, a multiplicação dos terreiros nagôs, assim como outros de influência
congo-angola, que por sua vez propiciaram a expansão do c h a m a d o C a n d o m -
blé de Caboclo. Antes de apresentar, no p r ó x i m o capítulo, a reconstituição
histórica do Seja H u n d é e do Bogum n o período pós-abolição é o p o r t u n o abrir
um parêntese para examinar a etimologia do n o m e africano desses terreiros.

ETIMOLOGIAS 0 0 N O M E A F R I C A N O D O B O G U M E D O S E J A H U N D É

O nome africano do c a n d o m b l é B o g u m é u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o c o m o
Zoogodô Bogum Malê Rundô, e n q u a n t o o d o c a n d o m b l é Seja H u n d é é n o r m a l -
mente identificado c o m o Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé. A semelhança dos
dois nomes só vem c o n f i r m a r a estreita relação entre a m b o s os terreiros e a
idéia sustentada pela tradição oral de q u e no passado c o n s t i t u í a m u m a ú n i c a
comunidade religiosa d e s d o b r a d a em duas congregações. Essa s e m e l h a n ç a
indica t a m b é m q u e os f u n d a d o r e s ou m e m b r o s de u m dos terreiros partici-
param na fundação d o outro. Cabe notar que Zoogodô Bogum Malê Seja Hundé,
às vezes grafado Ceja Undê, é o n o m e do candomblé do Ventura, e não há qual-
quer evidência de q u e a Roça de C i m a ou Sítio do Xarene tivesse esse n o m e .
Por isso, no presente trabalho, evito utilizar essa d e n o m i n a ç ã o em relação à
Roça de C i m a . M i n h a hipótese é que o Seja H u n d é recebeu esse n o m e por ter
participado da sua f u n d a ç ã o Ludovina Pessoa, t a m b é m reconhecida como f u n -
dadora ou m e m b r o ativo do Bogum. Nesse sentido, como sustenta parte da tra-
dição oral, o Seja H u n d é (mas não a Roça de Cima) poderia ser considerado
"filial" do B o g u m , q u e pela sua antecedência histórica seria a "matriz".
Lébéné P h i l i p p e B o l o u v i a n a l i s o u e m d e t a l h e a e t i m o l o g i a d o n o m e
Zoogodô Bogum Malê Rundô, c o r r e s p o n d e n t e ao B o g u m . C o n c o r d o com ele
que, do p o n t o de vista linguístico, a ausência de m o n e m a s gramaticais apa-
r e n t e m e n t e identificáveis indica provavelmente tratar-se de u m a justaposição
de formas isoladas, talvez de origens linguísticas variadas. Esse autor fala de
uma justaposição "estratégica" de termos, mais ou m e n o s em relação direta
com a f u n d a ç ã o da casa d e culto, isto é, em relação com a diversidade étnica
dos f u n d a d o r e s d o terreiro.

201
t u IS N I C O L A U PARÉS

Para Roger Bastide e Waldeloir Rego, o t e r m o bogum seria u m a corruptela


o u alteração do t e r m o "vodum", mas, c o m o a p o n t a Bolouvi, essa interpretação
é questionável se considerarmos que o termo "vodum" é u m a das formas fonéti-
cas de origem africana i n t r o d u z i d a s nas Américas que m e l h o r resistiram a mu-
danças, tendo-se preservado na f o r m a original, apesar das variantes ortográficas,
na Bahia, no M a r a n h ã o , no Haiti, em C u b a e outros lugares do N o v o Mundo. 114
Já c o m e n t e i a versão sugerida por A n t ô n i o M o n t e i r o e Jehová de Carvalho,
q u e i d e n t i f i c a m o t e r m o bogum c o m o n o m e do cofre o u b a ú o n d e era guar-
d a d o o o u r o d e s t i n a d o a financiar as revoltas males das p r i m e i r a s décadas do
século XIX e q u e o escravo malê J o a q u i m , de origem jeje, o teria ocultado
n o local d o c a n d o m b l é . Bolouvi, d e s c a r t a n d o a identificação de B o g u m como
alteração d e baú, mas a c e i t a n d o a tese da presença de f u g i t i v o s males no ter-
reiro, a i n d a sugere q u e esse n e g r o malê seria originário de Borgu, região loca-
lizada ao n o r t e do Benin, cuja p o p u l a ç ã o foi p a r c i a l m e n t e islamizada, e levan-
ta a hipótese de ser B o g u m u m a d e f o r m a ç ã o desse t o p ó n i m o . 1 1 5 Alternativa-
m e n t e , para alguns m e m b r o s do terreiro, B o g u m seria o n o m e de u m vodum
da casa, t a n t o que u m dos três atabaques do terreiro se dizia consagrado a Bo-
g u m . Tratar-se-ia de u m D a n , associado com uma espécie de cobra de cor pre-
ta c o m crista vermelha que até a década de 1950 era c o m u m no terreiro. 1 1 6
A m i n h a h i p ó t e s e é que, n o início, B o g u m se referia a u m a p e q u e n a al-
d e i a do país M a h i , p r o v a v e l m e n t e l o c a l i z a d a e n t r e as a t u a i s A g o u a g o n e
Soklogbo, a leste de Savalu (ver m a p a 4, p. 39). E m 1 9 2 6 - 1 9 2 8 , Bergé, um
a d m i n i s t r a d o r colonial francês q u e escreveu sobre a história dos povos mahis,
descreveu o ê x o d o dos guedevis que, expulsos do p l a n a l t o de A b o m e y após a
c h e g a d a dos agasuvis, se dispersaram pelo país M a h i . N u m d a d o m o m e n t o ,
p r o v a v e l m e n t e no século XVIII, u m g r u p o de guedevis liderados por Djervo,
s a i n d o de A g o u a g o n , e n c o n t r o u no c a m i n h o , n o m e i o da floresta, " u m pe-
q u e n o vilarejo de adjas c h a m a d o B o g o u n " , o n d e f o r a m h o s p e d a d o s p o r al-
gum t e m p o . E m aliança com os adjas de B o g o u n , D j e r b o expulsou mais tarde
os n a g ô s d o m o n t e Soclogo (atual S o k l o g b o ) , o n d e se i n s t a l o u d e f i n i t i v a -
m e n t e . A p o p u l a ç ã o de O u o c o , o u t r o g r u p o do planalto de Abomey, sob a li-
derança de Dossa-Glé, na sua migração para o n o r t e , t a m b é m passou u m lon-
go período em Bogoun. 1 1 7 Se confiamos nas tradições orais coletadas por Bergé,
p o d e m o s supor que alguns dos f u n d a d o r e s do terreiro B o g u m , que, c o m o sa-
bemos, se declaram de nação jeje-mahi, seriam originários da aldeia B o g o u n ,
no país Mahi. Por outro lado, na área gbe não é infreqúente o caso de t o p ó n i m o s
que derivam d o n o m e de voduns ou vice-versa.
Q u a n t o ao t e r m o " Z o o g o d ô " , A n t ô n i o M o n t e i r o pensa que é u m vocativo
o n o m a t o p a i c o em louvor de Xangô. 1 1 8 Essa interpretação é bastante crível e

202
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

parece ainda mais convincente se considerarmos o termo como u m composto


de dois nomes: Zò e Ogodò. Zò, que em fongbe significa fogo, no Benin é tam-
bém o nome de um vodum hunve, literalmente os voduns vermelhos, associados
à família das divindades do trovão, principalmente a Sogbo. Q u a n t o a Ogodô,
sabe-se que, junto a Afonjá, foram dois dos nomes dados a Xangô na terra de
Tapa." 9 Portanto, teríamos uma duplicação reiterativa aludindo a divindades
do trovão segundo as tradições jeje e tapa, o que poderia indicar uma participa-
ção simultânea de pessoal jeje e tapa na fundação do terreiro. Lembremos, por
exemplo, na repressão do C a l u n d u do Pasto de Cachoeira, em 1785, da pre-
sença de um tapa entre vários jejes. A alusão a essas divindades do trovão no
nome do terreiro ganha mais sentido q u a n d o sabemos que a família de Sogbo,
vodum jeje do trovão, é considerada a "família real" do Bogum (ver cap. 7).
Por outro lado, a duplicação de denominações étnicas da mesma divindade
parece reproduzir-se t a m b é m n u m a variante do n o m e do Seja H u n d é que, se-
gundo algumas pessoas, seria Zo Ogodo Dangara Seja Hundé.xl<> Nessa versão,
o termo Dangara poderia ser i n t e r p r e t a d o como u m a contração de D a n e
Angoro, sendo estes os nomes jeje e angola, respectivamente, da divindade
associada à cobra, no caso do Seja H u n d é , a divindade "dona do terreiro".
Como acontece com Zo e Ogodô, encontramos no nome do terreiro de Ca-
choeira a duplicação de variantes étnicas de divindades centrais do culto, o que,
mais uma vez, poderia sugerir a participação na sua fundação de membros de
várias "nações" africanas. N o Seja H u n d é , como veremos, essa não é a única
evidência de u m a possível interpenetração com elementos da tradição angola.
Fica sem elucidação o significado de R u n d ô . A raiz run é u m a clara altera-
ção da palavra fon hun, sendo que, no t o m alto, é s i n o n i m o de v o d u m e, no
tom baixo, significa tambor. N o e n t a n t o , a palavra hundo não tem um signi-
ficado claro. Talvez se trate de u m a variante de hunto, que pode designar o
tocador de atabaque, ou o responsável pelos sacrifícios, ou talvez se refira a uma
evolução de hundé, o t e r m o que aparece no n o m e do terreiro de Cachoeira.
Não obstante, t a m b é m não e n c o n t r a m o s uma interpretação convincente pa-
ta a expressão "Seja H u n d é " , embora algumas pessoas s u p o n h a m tratar-se de
um n o m e ou qualidade de D a n , o v o d u m - c o b r a . O ogã Romão do Bogum,
transcrevendo informações relatadas por humbono Vicente em 1964, grafa o
termo como Sôyan-ôdei}lx O primeiro termo, mais u m a vez, parece uma alu-
são aos v o d u n s do trovão, sendo que, na língua fon, só significa trovão e que
ayyan ou soyan é o nome do arbusto consagrado a Sogbo.' 2 2 Seria ôdei uma re-
ferência ao v o d u m caçador Odé? Alternativamente, Felix Iroko d o c u m e n t a
H u n d è como um dos ancestrais míticos mais importantes da cidade de Hevié,
berço do culto do trovão.' 2 3

203
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Resumindo, se não existe n e n h u m a interpretação inteiramente satisfatória


e, ficando o tema aberto para futuras pesquisas mais demoradas, concordamos
com a tese geral de Bolouvi de que os nomes desses terreiros parecem ser uma
justaposição de termos independentes, na maioria referências a divindades
centrais do culto, cuja origem se deve procurar além do d o m í n i o linguístico
jeje ou gbe. Esse fato, por sua vez, parece refletir hibridismos étnicos havidos
na f u n d a ç ã o dos terreiros.

NOTAS

1
Sobre o B o g u m , t ê m a p a r e c i d o , a p a r t i r dos anos 1940, c o m e n t á r i o s dispersos em vá-
rias publicações especializadas e artigos de j o r n a l , q u e serão citados oporrunamente.
Sobre a Roça de C i m a e o Seja H u n d é , ver W i m b e r l y , " T h e e x p a n s i o n . . . " pp. 74-89;
Dias do N a s c i m e n t o , Candomblé... e Presença... M a r c o s A n t ô n i o Lopez de Carvalho
escreveu u m texto sobre o C a n d o m b l é jeje de C a c h o e i r a , sem t í t u l o e a i n d a inédito,
ao q u a l tive acesso n u m a versão p r e l i m i n a r de 1999, d o r a v a n t e c i t a d o c o m o Lopez de
C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . As pesquisas destes dois ú l t i m o s autores f o r a m realizadas si-
m u l t a n e a m e n t e à m i n h a e, em várias ocasiões, tivemos o p o r t u n i d a d e s de compartilhar
e discutir i n f o r m a ç õ e s .
1
F o r a m m u i t a s as pessoas c o m as quais conversei a respeito da h i s t ó r i a dos terreiros,
mas devo destacar e n t r e elas os mais velhos, q u e , aliás, f o r a m os q u e mais contribuí-
ram para a pesquisa: o f i n a d o V i c e n t e Paulo dos Santos, mais c o n h e c i d o c o m o humbono
V i c e n t e do M a t a t u , u m dos mais a f a m a d o s especialistas religiosos da t r a d i ç ã o jeje;
A m b r ó s i o Bispo C o n c e i ç ã o , ou ogã B o b o s o , um dos mais p r e s t i g i a d o s especialistas
religiosos d o Seja H u n d é ; a finada Luiza F r a n q u e l i n a da R o c h a , ou gaiaku Luiza, lí-
der d o c a n d o m b l é R u m p a y m e H u n t o l o j i , de C a c h o e i r a ; o seu i r m ã o carnal, Eugénio
R o d r i g u e s d a R o c h a , c o n h e c i d o t a m b é m c o m o seu G e n i n h o e Everaldo C o n c e i ç ã o
D u a r t e , pejigã do B o g u m .
3
Ver, p o r exemplo, Vansina. Oral...
4
Lima, " O c a n d o m b l é . . . " , p. 55.
1
"Bogum q u e r t o m b a m e n t o para preservar o seu bissecular Terreiro", A Tarde, 24/8/1986;
"Sepultada m ã e - d e - s a n t o do mais antigo terreiro jeje", A Tarde, 6/10/1994; "Terreiro do
B o g u m inicia c e r i m ó n i a s de p r e p a r a ç ã o " , A Tarde, 7/10/1994. Ainda alguns m e m b r o s
do B o g u m e s t i m a m a data da f u n d a ç ã o em 1620 (Butler, Freedoms..., p. 191).
' Ficha n a I, ChAO, 17/1/1961.
Everaldo D u a r t e , 13/12/1998; 7/2/1999: 1 l / l 1/1999. T a m b é m se conta q u e alguns desses
escravos a q u i l o m b a d o s p o d e r i a m ter f u g i d o em direção ao R e c ô n c a v o .
' " M o r a d o r e s l u t a m pelo E n g e n h o Velho", A Tarde, 5/5/1997.
' Rego, "Terras b e n e d i t i n a s . . . " , pp. iv-18.
0
Rita A m á l i a , c o m u n i c a ç ã o pessoal, Salvador, 6/4/2001; M a i a , " P r o j e t o F u n d i á r i o " ;
" M o r a d o r e s l u t a m pelo E n g e n h o Velho", A Tarde, 5/5/1997.
' A transcrição desse inventário aparece no inventário da sua mulher e herdeira, Ana Fran-
cisca Texeira de C a r v a l h o , falecida em 1898. " I n v e n t á r i o de Ana Francisca Texeira de
Carvalho", 1/7/7/1, Série judiciária, ApEBa.

204
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

i! O uso extensivo do t o p ó n i m o E n g e n h o Velho e a c o n f u s ã o sobre os limites da Freguesia


de Brotas e da Vitoria, persiste até finais de século XIX. E m 1890, na arrecadação da
p r o p r i e d a d e de Maria Julia Figueiredo, ialorixá do Ilê Iyá Nasso, terreiro t a m b é m co-
nhecido como E n g e n h o Velho ou Casa Branca, localizado ao lado do B o g u m , na Fre-
guesia da Vitoria, consta q u e ela possuía três casas "no lugar d e n o m i n a d o E n g e n h o Ve-
lho estrada do Rio V e r m e l h o , Freguesia de Brotas": "Arrecadação da p r o p r i e d a d e de
M a r i a J u l i a F i g u e i r e d o " , 0 3 / 1 0 1 1 / 1 4 8 0 / 2 0 , S é r i e J u d i c i á r i a APEBa.
15
Reis e Silva, Negociação..., p p . 44, 55-56, 129; cf. "Antônio G u i m a r ã e s ao p r e s i d e n t e
Barros Paim" 24/7/1831, Juízes de Paz, m a ç o 2.681, Aprea.
14
Reis e Silva, Negociação..., p p . 56-57; cf. " A n t ô n i o G u i m a r ã e s ao p r e s i d e n t e Barros
Paim", 24/7/1831, Juízes de Paz, maço 2.681, ApEBa.
15
Monteiro, Notas, p. 61. J. de C a r v a l h o , " N a ç ã o Jeje...", p p . 55-56; " M u n d o Jeje c o m e -
mora c i n q u e n t e n á r i o de sua m ã e - d e - s a n t o " , A Tarde, 26/7/1988.
16
AAPBa, n* 40, pp. 24-25, 57, 70.
17
AAPBa, n a 40, pp. 86-92.
18
O Alabama, 2/5/1867.
19
O Alabama, 10/5/1867.
20
Karasch, A vida..., p. 353.
21
O Alabama, 14/4/1869, p. 1.
22
O Alabama, 16/2/1869, pp. 2-3; 14/4/1869, p. 1; 16/5/1869, p. 2; 23/6/1870, p. 2.
23
Depois de a b a n d o n a r o local da B a r r o q u i n h a , parece q u e o Ilê lyi Nassô se estabele-
ceu p r o v i s o r i a m e n t e em vários o u t r o s lugares da c i d a d e antes de se instalar d e f i n i t i -
vamente n o E n g e n h o Velho. C a r n e i r o diz q u e , "depois, quase s i m u l t a n e a m e n t e c o m a
fundação do G a n t o i s , o E n g e n h o Velho se m u d o u para o trecho c h a m a d o J o a q u i m dos
Couros, no C a m i n h o do Rio Vermelho" (Candomblés..., p. 49). C o m o o G a n t o i s (Moi-
nho) já f u n c i o n a v a em 1868 (ver cap. 4), t e r í a m o s q u e , na d é c a d a de 1860, o Ilê Iyá
Nassô já estaria instalado n o E n g e n h o Velho. Verger e Silveira s u g e r e m q u e o terreiro
já estaria instalado ali por volta de 1855. Para s u s t e n t a r essa h i p ó t e s e , a r g u m e n t a m que
entre os i n d i v í d u o s "que estavam n o lugar c h a m a d o E n g e n h o Velho, em u m a r e u n i ã o
que eles c h a m a m de c a n d o m b l é " , c o n s t a n t e s n u m a notícia d o J o r n a l da Bahia em 31
de maio de 1855, a p a r e c e m os n o m e s de L e o p o l d i n a M a r i a da C o n c e i ç ã o e Escolástica
Maria da C o n c e i ç ã o , crioulas livres, q u e seriam, segundo eles, familiares de Julia Maria
da C o n c e i ç ã o N a z a r é , m e m b r o do Ilê Iyá Nassô antes de liderar a cisão d o G a n t o i s
(Verger, Orixás..., p. 29; Silveira, Iyá..., p. 113). C a b e n o t a r q u e Escolástica M a r i a
da C o n c e i ç ã o era t a m b é m o n o m e de mãe M e n i n i n h a , líder d o G a n t o i s desde 1922,
mas C o n c e i ç ã o é u m dos n o m e s de família mais populares no Brasil; o a r g u m e n t o , e m -
bora p e r t i n e n t e , não me parece conclusivo.
' R u i n h ó q u e r m a t o e rio para ' v o d u n s ' do B o g u m " , A Tarde, 5/12/1975.
35
O Alabama, 27/7/1870, p. 1; 11/3/1871, p. 2.
16
Humbono V i c e n t e , 23/2/1999; Everaldo D u a r t e , U / 1 1 / 1 9 9 9 .
27
O Alabama, 22/9/1868, p. 2; 26/9/1868, p. 4; 29/9/1868, p. 3.
28
C a m p o s , "Tradições", p. 416; gaiaku Luiza 25/8/1996; Aguesi, 9/8/1996.
29
Everaldo D u a r t e , 7/2/1999.
30
Rego, "Mitos...", p. 186. A hipótese etimológica de sirrum: Dias do Nascimento, 24/12/1998
(ver cap. 4, n. 68, para uma etimologia de zenli e sirrum).
31
Gaiaku Luiza, 21/8/1996. N o e n t a n t o , ogã Boboso diz que o Pó Z e r r e m "não era m a h i m ,
era d a h o m e a | . . . ] . Esses dois jejes são m u i t o parecidos, só q u e as danças deles [ d a h o m e a ]

205
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

são mais b r u t a s e violentas" (ogã B o b o s o , entrevista 4/2/1999). As entrevistas com -


B o b o s o , Luiz M a g n o e d o n a Francesa A r l i n d a da Silva, e m 4/2/1999, foram gravada
em C a c h o e i r a por D i a s d o N a s c i m e n t o e Lopez de C a r v a l h o . Fico g r a t o a Nascimento
pelo acesso q u e me c o n c e d e u a esse material q u e , d o r a v a n t e , aparece referido como
"entrevista 4/2/1999".
Humbono V i c e n t e , 23/2/1999.
"Pierre Verger c o m e n t a r e p o r t a g e m sobre Jêje", A Tarde, 31/7/1988.
Humbono Vicente, 3/7/2000; gaiaku Luiza, 7/1 1/1999.
Everaldo D u a r t e , 27/11 /1999. N o B o g u m , existe o kutito ou casa dos m o r t o s para o cul-
to dos ancestrais do terreiro, mas não se m i s t u r a m essas práticas c o m as obrigações de
vodum.
Humbono Vicente, 13/11/1999. Nelson José do N a s c i m e n t o , c o n h e c i d o c o m o pai-pe-
q u e n o de O x u m A b o t ô , u m dos filhos-de-santo d e seu Aprígio, l e m b r a q u e foi inicia-
d o em 1933, j u n t o a o u t r o h o m e m de Iansã (Oya Kebê): p a i - p e q u e n o , ficha na 48,
CEAO, 1966.
U m dos casos mais c o n h e c i d o s é o do c o m e n d a d o r Pedro R o d r i g u e s Bandeira, abasca-
do negociante e senhor de e n g e n h o s na região, que, no início do século XIX, comerciava
c o m tabaco e a g u a r d e n t e de C a c h o e i r a para Salvador, ao t e m p o q u e possuía várias em-
barcações envolvidas no tráfico de escravos; W e m b e r l y , " T h e A f r i c a n Liberto". Foi no
seu E n g e n h o da Vitória q u e , em 1827, teve lugar u m a i n s u r r e i ç ã o de escravos.
Para u m e s t u d o h i s t ó r i c o de C a c h o e i r a , ver P. C . da Silva, " D a t a s . . . " ; Dias do Nasci-
m e n t o , Presença...
Ogã Boboso, 24/3/2001; entrevista 4/2/1999. Dias do N a s c i m e n t o , Candomblé...,
p p . 16-17.
A p a r t i r da entrevista c o m ogã B o b o s o , e m 4/2/1999, N a s c i m e n t o e C a r v a l h o sugerem
q u e n o c a n d o m b l é d o O b a Tedô se cultuava "o v o d u n Asansur A z o a n o , c u j o n o m e era
N a g o p é " (Dias do N a s c i m e n t o , Candomblé..., p. 17; Lopez de C a r v a l h o , D o c u m e n -
t o . . . , pp. 1, 7). M i n h a i n t e r p r e t a ç ã o dessa entrevista é q u e o t e r m o nagopé, também
p r o n u n c i a d o nagobe ou modobe, é uma corruptela de " m u n d u b i " e faz referência à nação
da Roça de C i m a ( c a n d o m b l é jeje p o s t e r i o r ) .
Dias do N a s c i m e n t o , Candomblé..., pp. 16-17.
M i l t o n , Epbemerídes..., p. 387.
C a m p o s , "Ligeiras n o t a s . . . " , p. 291; Akin Adé, c o m u n i c a ç ã o pessoal, 5/9/1999; Dias
d o N a s c i m e n t o , 17/12/1998. Todavia, Gavoy ( " N o t e . . . " , p. 66) fala de um " c o m p o u n d "
f u n d a d o pelo C h a c h a Félix de Souza, no bairro Z o m a i de Uidá, c h a m a d o Batédo, onde
m o r a v a m 600 escravos nagôs e hauçás.
Reis, Rebelião, pp. 100, 105-12. E m 1814, h o u v e u m a o u t r a i m p o r t a n t e revolta escrava
nos e n g e n h o s do Iguapé: Reis, Rebelião..., pp. 86-87.
Gaiaku Luiza, 7/11/1999; ogã Boboso, entrevista 4/2/1999: Garangogoji (minha transcrição),
D a n g o r o j i (transcrição de Lopez de Carvalho); D a n d a g o j i (humbono Vicente, 30/6/1999);
D a h o s i ou Dadahosi (ogã Boboso, 5/3/2000). D a d a Z o d j i ou D a a z o d j i é u m a qualidade
de Sakpata m u i t o antiga, e m b o r a d o c u m e n t a d a em Abomey e Uidá apenas a partir dos
anos 1930. Ele é considerado filho da entidade andrógina Mawu-Líssá e irmão gémeo do
v o d u m f e m i n i n o N y o h w e A n a n u , j u n t o c o m q u e m teria procriado os outros Sakpatas.
C o m o "pai-genitor", ele é chefe dos v o d u n s d o p a n t e ã o da terra e t a m b é m q u e m m a t a
c o m a varíola. Herskovits, Dabomey..., vol. II, pp. 129, 139, 142; Merlo, " H i é r a r c h i e . . . " ,
p p . 20, 24. A l t e r n a t i v a m e n t e , o n o m e de Dandagoji talvez derive deagogoji, uma defor-

206
O B O G U M £ A R O Ç A DE C I M A

' o de A g b o g b o j i , " o n o m e m e s m o d e S a k p a t a " , s e g u n d o u m i n f o r m a n t e d e M a u p o i l ,


apud H e r s k o v i t s , Dahomey..., v o l . 11, p p . 1 3 9 , 1 4 0 .
« "Cachoeira 1858-1860", registro n a 9 7 , Presidência da Província, Série Viação, n" 4.677,
Ares a. Documento a c h a d o p o r D i a s d o N a s c i m e n t o .
" Livro 4, n" 585, p. 180; livro 7 ( I n d i c a d o r Real), n a 913; Registros de Imóveis, F n c . N a
descrição dos limites das terras, m e n c i o n a m - s e a estrada d e Belém, o m a r c o de p e d r a de
Virginio, a portaria de V e n t u r a , o rio C a q u e n d e , os b a m b u s , a f a z e n d a Boa Vista, as três
irmãs "que são três árvores b a s t a n t e altas", a Lagoa e as terras da viúva M e l q u í a d e s .
« Ogá Boboso, e n t r e v i s t a 4 / 2 / 1 9 9 9 , 2 0 / 8 / 1 9 9 6 .
45
O Alabama, 12/7/1866, p. 1; 2 2 / 3 / 1 8 6 7 , p. 4. C o m o a p o n t a D i a s d o N a s c i m e n t o (Pre-
sença..., p. 86), o n o m e d a Casa Estrela p o d e r i a derivar do n o m e de A r l i n d o Estrela,
proprietário, nos a n o s 1930, de u m t e r r e n o c o n t í g u o c o n h e c i d o c o m o Solar d o s Estre-
las. Gaiaku Luiza (26/2/2001) a f i r m a q u e a d e n o m i n a ç ã o Casa Estrela é recente e q u e
no passado era c o n h e c i d a c o m o "cava da filha da finada Julia", s e n d o Julia G u i m a r ã e s
Viana, a antiga p r o p r i e t á r i a d o i m ó v e l .
50
Os nomes p o r t u g u e s e s dessas m u l h e r e s se p r e s t a m a m ú l t i p l a s c o n f u s õ e s n a t r a d i ç ã o
oral. S e g u n d o gaiaku Luiza, o n o m e d e M a r i a A g o r e n s i seria M a r i a Luiza G o n z a g a de
Souza e o n o m e de A b a l h e seria M a r i a D i o n í s i a d a C o n c e i ç ã o . Já L o p e z de C a r v a l h o
( D o c u m e n t o . . . , p. 1) dá p a r a A b a l h e o n o m e d e M a r i a Díunísia do S a c r a m e n t o ; e q u e d e
Bela fala de M a r i a E p i f a n i a d o S a c r a m e n t o , e ogã B o b o s o (7/11/1999) refere-se a M a -
ria Epifania D i o n í s i o dos S a n t o s . N o p r e s e n t e t r a b a l h o , utilizo os n o m e s a c h a d o s nos
tespectivos registros de ó b i t o : M a r i a Luiza d o S a c r a m e n t o e M a r i a E p i f a n i a dos San-
tos. Para u m c o m e n t á r i o d o s t e r m o s "Agorensi" e "Abalhe", ver c a p . 6.
51
Gaiaku Luiza, 17/12/1998; Aguesi 9/8/1996. Humbono V i c e n t e sugere que E m i l i a n a foi
preparada p o r L u d o v i n a e m S a l v a d o r ( 3 / 7 / 2 0 0 0 ) .
52
Humbono V i c e n t e , 1996; 2 9 / 1 / 1 9 9 9 ; 7 / 1 2 / 1 9 9 9 . E m 4 / 5 / 1 9 9 9 , disse q u e A b a l h e e n t r o u
com 15 anos e saiu c o m 16 anos.
53
Registros de Óbito, vol. C37, na 4771, F n c .
54
Do : u m e n t o d a t i l o g r a f a d o p e l o p a i - d e - s a n t o c a c h o e i r a n o José d o s S a n t o s Silva, de
O g u m Megege D a j a r r u m , e c o n s e r v a d o p o r humbono V i c e n t e na sua casa d o M a t a t u .
55
Humbono Vicente, 14/12/1999, 7 / 1 2 / 1 9 9 9 .
56
F i c h a n 2 1, C E A O , 17/1/1961.
Valeria A u a d a , "A rica h i s t ó r i a dos terreiros d e c a n d o m b l é da Bahia que o t e m p o a m e a -
ça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. O g ã Boboso afirma que Ludovina Pessoa " f u n -
dou o B o g u m , a Roça d e C i m a e a d e Baixo" (entrevista 4 / 2 / 1 9 9 9 ) .
58
O Alabama, 16/2/1869, p. 2.
55
O Alabama, 13/5/1869, p. 2; 19/5/1869, p. 3. S e g u n d o ogã B o b o s o (24/2/2001), T o r o n i a
Fateira era f i l h a d e L u d o v i n a Pessoa e foi i n i c i a d a n o m e s m o barco d e E m i l i a n a .
Humbono V i c e n t e c o m e n t o u q u e t i n h a o u v i d o dizer "aos a n t i g o s " , entre outros à sua
t n ã e - d e - s a n t o , M a r i a R o m a n a M o r e i r a , q u e o n o m e p o r t u g u ê s d e L u d o v i n a Pessoa era
Rachel: V i c e n t e , 4/5/1999 (Aké); 13/7/1999 (Raqué); 24/3/2000 (Raquel). Como
L u d o v i n a Pessoa é u m n o m e p o r t u g u ê s , essa alusão a R a q u e l em relação a L u d o v i n a
talvez se refira à " p r e t a R a q u e l " , provável c o l a b o r a d o r a de L u d o v i n a .
61
Everaldo Duarte, 10/11/2001.
62
"Livro de B a n z a d o s da P a r o q u i a de C a c h o e i r a , 1805-1817", f. 144, est. 3, cx. 33, ACMS.
N o m e s m o livro, fl. 22, d a t a d o de 8 de n o v e m b r o d e 1805, achei o registro de " L o d o v i c a

207
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

[escrito Lodovta à m a r g e m ] , a d u l t a gege, escrava de I g n a c i o de F i g u e r e i d o Mascarenh


f o r a m p a d r i n h o s A g o s t i n h o [ilegível] e sua i r m ã M a r i a n a da costa". A diferença na ptol
n ú n c i a do n o m e d i f i c u l t a sua i d e n t i f i c a ç ã o c o m L u d o v i n a Pessoa. Para t o d o o período
1805-1835, e n c o n t r e i registros d e a p e n a s o u t r a s cinco L u d o v i n a (Lodovina, Lugduvim)
m a s t o d a s p á r v u l a s e c r i o u l a s , filhas de escravas.
" C a c h o e i r a , 19 a g o s t o 1829", D o c u m e n t o s avulsos, ARC. D o c u m e n t o a c h a d o por Dias
do Nascimento.
L i v r o " C o n t a s - P a g a m e n t o s de escravos e a l u g u e s d e casas. S. Félix 1842-1869", regis-
t r o n 2 182, ARC.
" L u d o v i n a A f r i c a n a " , C a c h o e i r a , 1858, A u t o s civis, J u d i c i á r i o , 7 8 / 2 8 0 1 / 0 9 , ApEBa.
K a r a s c h , A vida..., p p . 344-45.
A c h e i a i n d a u m a q u i n t a r e f e r ê n c i a a u m a M a r i a L u d u v i n a , a f r i c a n a , 90 a n o s , sepultada
n o c e m i t é r i o d a S a n t a C a s a da M i s e r i c ó r d i a , e m 2 d e m a i o d e 1884: " L i v r o de óbitos,
C a c h o e i r a 1776-1885", cx. 35, est. 3, ACMS. C a b e n o t a r q u e foi o ú n i c o registro do nome
L u d o v i n a p a r a o p e r í o d o 1870-1885.
L i v r o s da i n s p e t o r i a d a Polícia d o P o r t o , e n t r a d a s e saídas d e passageiros, vols. 1, 2, 3,
5 0 , 51, 52, 53, 54, 55; APEBa.
O g u m R a i n h a : gaiaku Luiza, 1996; Lopez de C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . , p. 3. O g u m T o l o :
A g u e s i 2 1 / 8 / 1 9 9 6 . O g u m Aires: ogã B o b o s o , a p u d L o p e z de C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . ,
p. 3; D i a s d o N a s c i m e n t o , Candomblé..., p. 17.
L o p e z de C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . , p p . 2, 4.
L o p e z de C a r v a l h o , D o c u m e n t o . . . , p. 9. C o n t a - s e a i n d a q u e Z é de B r e c h ó preparou
u m e b ó c o m u m a c a b e ç a d e p o r c o , q u e foi e n t e r r a d o na p r a ç a m u n i c i p a l , para que
C a c h o e i r a a f u n d a s s e . Salaco d e s m a n c h o u esse e b ó , m a s as o c a s i o n a i s e n c h e n t e s do
rio P a r a g u a ç u a i n d a são e x p l i c a d a s c o m o t e n d o o r i g e m nesse e b ó ( M i s t e r , C a c h o e i r a ,
25/02/2001).
" R u í n a s g u a r d a m h i s t ó r i a da c i d a d e d e C a c h o e i r a " , Correio da Bahia, 4 / 9 / 1 9 9 9 , p. 19.
Humhono Vicente, 22/8/1999.
D i a s d o N a s c i m e n t o , Candomblé..., p. 17. S e g u n d o J e h o v á d e C a r v a l h o , D a d á é uma
d i v i n d a d e f e m i n i n a d o s vegetais {Reinvenção..., p. 94). R o d r i g u e s descreve seu assen-
t o f e i t o c o m b ú z i o s e u m e s p e l h o , m a s n ã o é a s s o c i a d a a n e n h u m o u t r o orixá (O
Animismo..., p. 51). E m f o n g b e , dadá d e s i g n a o rei d e A b o m e y , m a s n o l i t o r a l f r e q u e n -
t e m e n t e d e s i g n a a i r m ã m a i s velha ( S e g u r o l a , Dictionnaire..., p. 111).
D i a s d o N a s c i m e n t o f o r n e c e i n t e r e s s a n t e s d a d o s d e o u t r o s i n d i v í d u o s d a "elite inte-
l e c t u a l e social negra" d e C a c h o e i r a , como os a f r i c a n o s A n t ô n i o D o m i n g u e s M a r t i n s
e a s u a m u l h e r J ú l i a G u i m a r ã e s V i a n n a , os a b o l i c i o n i s t a s Luís O s a n a h e o a d v o g a d o
P r i s c o Paraíso e o C o n s e l h e i r o M u n i c i p a l c o r o n e l José R u y D i a s d ' A f o n s e c c a (Presen-
ç a . . . , p p . 35-36).
E m 27 d e s e t e m b r o d e 1855, n a m o r t e d o seu pai, Z é de B r e c h ó t i n h a 19 a n o s e 8 me-
ses: " I n v e n t á r i o de B e l c h i o r R o d r i g u e s de M o u r a , 1855-1869", Série J u d i c i á r i a , 2/602/
1056/10, ApEBa. T o m a m o s essa r e f e r ê n c i a c o m o a m a i s c o n f i á v e l , e m b o r a o u t r o s d o -
c u m e n t o s m o s t r a m d i s c r e p â n c i a s n o t ó r i a s , d a t a n d o o n a s c i m e n t o e n t r e 1829 e 1843.
" I n v e n t á r i o de Belchior Rodrigues de M o u r a , 1855-1869", Série Judiciária, 2/602/1056/10,
APEBa.

" C a c h o e i r a 1858-1860", registro 66, m a ç o 4.677, P r e s i d ê n c i a da P r o v í n c i a , Série V i a -


ç ã o , ApF.Ba.

208
O B O G U M £ A ROÇA DE CIMA

"Inventário de Belchior R o d r i g u e s de M o u r a , 1 8 5 5 - 1 8 6 9 " , Série J u d i c i á r i a , 2 / 6 0 2 /


1056/10, APEBa.
"Cachoeira 1858-1860", Presidência da Província, Série Viação, m a ç o 4.677, registros
77 81, APEBa. Maria M o t t a m o r o u na casa familiar na Rua dos R e m é d i o s , n a 38, na
Recuada, até a sua venda em 1901: livro 3, n fi 920, Registro de imóveis, FTFC. Ela fa-
leceu em 1904 (Registro de Ó b i t o s , Fi t e ) .
"Atas do conselho da q u a l i f i c a ç ã o dos v o t a n t e s 1871-73"; " Q u a l i f i c a ç ã o dos v o t a n t e s
da Freguesia de Nossa Senhora d o Rosário da Cachoeira 1871-1875" (fí. 26); "Lista de
Cidadãos aptos para v o t a r e m , 1880", d o c u m e n t o s avulsos, A R C .
"Livro de Atas da Assembléia Geral da S o c i e d a d e M o n t e Pio dos Artistas C a c h o e i -
ranos. 21 fev. 1874 a 12 m a r ç o 1893", ASMPAC.
P. C. da Silva, " D a t a s . . . " , p. 334.
P. C. da Silva, " D a t a s . . . " , p. 334; Dias do N a s c i m e n t o , A capela..., pp. 20-32, Pre-
sença..., p. 40. Ver t a m b é m M i l t o n , Ephemerides..., p. 360.
"Livro de Atas da Assembléia Geral da S o c i e d a d e M o n t e Pio dos Artistas C a c h o e i -
ranos. 21 fev. 1874 a 12 m a r ç o 1893", ASMPAC.
"Relatório do C o n s e l h o do M o n t e Pio dos Artistas. Cachoeira 1885-1887, 1887-1888",
d o c u m e n t o 5 7 , ASMPAC.
"Livro de Atas da Assembléia Geral da S o c i e d a d e M o n t e Pio dos Artistas C a c h o e i -
ranos. 21 fev. 1874 a 12 m a r ç o 1893", ASMPAC.
A Cachoeira, 29/10/1899. D o c u m e n t o a c h a d o p o r D i a s N a s c i m e n t o .
"Livro-Relatório 1889-1890", d o c u m e n t o n 2 58, ASMPAC. M i l t o n , Ephemerides..., p. 375.
"Conselho Filial do C e n t r o O p e r á r i o n'este E s t a d o da C i d a d e de C a c h o e i r a " , 1900, d o -
cumentos avulsos, caixa "Atuação", ARC.
Aristides M i l t o n m e n c i o n a a instalação em C a c h o e i r a da loja m a ç ó n i c a C a r i d a d e e
Segredo em 9 de n o v e m b r o de 1879 (Ephemerides..., p. 363).
" D o c u m e n t o s da C â m a r a M u n i c i p a l de C a c h o e i r a " , d o c u m e n t o s avulsos, ARC; "Livro
Lista de A s s o c i a d o s 1874-1897", d o c u m e n t o n a 52, ASMPAC. M i l t o n , Ephemerides...,
p. 312; D i a s do N a s c i m e n t o , A capela..., p. 30; P r e s e n ç a . . . , p. 40.
Registros de ó b i t o , livro C9, n E 396, FTFC. Ele já aparece nomeado c o m o "capitão José
Maria Belchior" n u m a hipoteca de 21 de maio de 1901 ("Inscrição especial", Livro 2B,
NA 1 . 0 7 5 , p . 3 9 v , F T E C ) .
Registros de óbito, livros C 1 - C 9 , FTFC.
Registros de ó b i t o , livro C9, n a 396, FTFC.
"A pedido", A Cachoeira, 1-/5/1902, p. 2. D o c u m e n t o achado por Dias do N a s c i m e n t o .
B a r i c k m a n , "Até a véspera...", pp. 186-93; W i m b e r l y , " T h e e x p a n s i o n . . , " , pp. 77-78.
W i m b e r l y , " T h e e x p a n s i o n . . . " , pp. 82-84. H a r d i n g , A refuge..., p. 58. Após a m o r t e
de tio Anacleto, o c a n d o m b l é do Capivari foi liderado pela sua filha Maria Felizarda e,
já na década de 1960, por d o n a Gina de O b a l u a y ê (1933-95), bisneta de tio Anacleto,
feita em 1945, n o c a n d o m b l é ketu de N e z i n h o do Portão (Velho, São Félix, 3/2/1999).
Segundo ogã B o b o s o (16/2/1999) e gaiaku L u i z a ( 1 6 / 2 / 1 9 9 9 ) , o t e r r e i r o era " n a g ô
p u r o " . S e g u n d o Velho ( 3 / 2 / 1 9 9 9 ) , n e t o de d o n a Gina e atual zelador, o terreiro "era
n a g ô - v o d ú n s i q u e passou a k e t u , e já se b a t e u jeje e angola t a m b é m " , mas ele i d e n t i -
fica sua nação a t u a l c o m o " k e t u p u r o " .
Tio Saiu faleceu em 1949, com mais de 90 anos, e foi sucedido na chefia da casa pela
sua mulher, d o n a Maria Ambrósia da C o n c e i ç ã o (1907-1992), irmã da Boa M o r t e . O

209
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

terreiro é identificado c o m o jeje-nagô ou n a g ô - v o d ú n s i (Rita Maria Barreto Soares da


C o n c e i ç ã o , M u r i t i b a , 17/2/1999). S e g u n d o ogã Boboso e gaiaku Luiza (16/2/99), o ter-
reiro era nagô.
Aguesi, 21/8/1996; gaiaku Luiza, 26/9/2000, 24/3/2001; ogã Boboso, 5/5/2002. Geninho
diz que o primeiro terreiro da Terra Vermelha foi o de J e r ó n i m o que "batia de mão, nagô
e angola" ( G e n i n h o , 30/1/2000, 5/3/2000, 5/5/2002). N a s c i m e n t o m e n c i o n a o candom-
blé de M a c a m b i r a , no C a q u e n d e (A capela..., p. 39).
Gaiaku Luiza, 26/2/2001.
Luiz M a g n o , entrevista 4/2/1999.
Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza, 1996, 7/11/1999; ogã B o b o s o , 7/11/1999, 31/1/2000.
O g ã Boboso, 7/1 1/1999; Humbono V i c e n t e , 10/11/1999.
"Partilha amigável de Luiz Ventura Esteves", Série Judiciária, 06/2596/3096/21, APEBa.
Livro 4, n a 539; Livro 3, n a 1.133; Registro de Imóveis, FTFC. E m 1858, o Engenho do
R o s á r i o era p r o p r i e d a d e d o m a j o r A n t ô n i o O l a v o de Meneses D o r i a ("Registro de
terras de cachoeira 1858-60", Série Viação, nD 4.677, ApEBa). E m 1878, até pelo me-
n o s 1880, o e n g e n h o foi p r o p r i e d a d e do n e g o c i a n t e B e r n a r d o M e n d e s d a Costa ("In-
v e n t á r i o de M a n o e l N u n e s de Freitas Costa", fl. 139-40, 02/120/120/1162, ARC). Já
e m 31 de j a n e i r o de 1890, aparece u m a n ú n c i o n u m j o r n a l local r e p o r t a n d o dois ca-
valos f u r t a d o s "em p o d e r do v a q u e i r o do c o m e n d a d o r A l b i n o José Milhazes no enge-
n h o Rozario" (O Tempo, C a c h o e i r a ) .
Humbono V i c e n t e , 22/8/1999, 19/1/2000; ogã Boboso, 31/1/2000, 5/3/2000, 5/5/2002;
G e n i n h o l a / 2 / 2 0 0 0 . Helvecio V i c e n t e Sapocaia era tabelião e, em 1886, foi nomeado
sócio h o n o r á r i o da Sociedade M o n t e Pio dos Artistas C a c h o e i r a n o s , q u a n d o Zé de
B r e c h ó a s s u m i u a direção ("Relatório do C o n s e l h o d o M o n t e Pio dos Artistas. Ca-
c h o e i r a 1885-1887, 1887-1888", d o c u m e n t o 57, ASMPAC).
Humbono V i c e n t e , s.d.; ogã B o b o s o , 18/12/1998.
O g ã Boboso, entrevista 4/2/1999; Aguesi, 20/8/1996.
Por volta de 1904, as irmãs de Zé de Brechó, Maria Ancieta e Maria Juliana Belchior
v e n d e r a m a Roça de C i m a às "menores púberes" Zilda e Elza da Nova Milhazes, sobri-
n h a s do p o r t u g u ê s A l b i n o Milhazes. Em 1912, as irmãs Zilda e Elza v e n d e r a m a "Fa-
zenda Altamira", c o m p o s t a do Sítio do C h a r e m e e u m s e g u n d o "pedaço" de terras vizi-
nhas, aos m e n o r e s Pedro, José e Clóvis da Costa P i m e n t e l , que, em 1921, a venderam
ao seu atual d o n o , o juiz de direito José Nascimento Costa Falcão (Tabelionato de Notas,
m a r ç o de 1910 a o u t u b r o de 1912, p. 73; agosto de 1920 a j u n h o de 1922, p. 24v. Livro
de Escrituras, FTFC). Agradeço a Dias do N a s c i m e n t o por providenciar essas i n f o r m a -
ções. A p o p u l a ç ã o de Cachoeira acredita ser essa fazenda mal-assombrada, por haver ali
m u i t a coisa enterrada pelos africanos.
Gaiaku Luiza, 1996, 17/12/1998; G e n i n h o , 22/1/2000; Aguesi, 9/8/1996.
Nessa hipótese, p o d e m ter sido críticas as supostas viagens à Á f r i c a de L u d o v i n a , q u e
p o d i a ter t r a z i d o de volta para o Brasil, associada a preceitos religiosos específicos, a
r e n o v a d a i d e n t i d a d e m a h i que estava s e n d o a s s u m i d a pelos r e t o r n a d o s brasileiros em
A g o u é e em o u t r a s cidades da C o s t a da M i n a (Matory, "Jeje...", pp. 66-67; S t r i c k r o d t ,
"Afro-Brazilians...").
Seu G e n i n h o , 5/3/2000.
Bolouvi, Nouveau..., pp. 59-61; Bastide, Sociologia..., p. 375; Rego, " M i t o s . . . " .
Bolouvi, Nouveau..., p. 60.

210
O BOGUM £ A ROÇA DE CIMA

D u a r t e , 4 / 1 / 1 9 9 6 . E m relação aos a t a b a q u e s , " u m é de O x u m , o u t r o de


116 E v e r a l d o
Bogum e o o u t r o [não c o n s t a ] " (ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961. A í l t o n , 4/10/2001).
117 Bergé, "Étude...", pp. 713, 717.
118 Apud Bolouvi, Nouveau..., p. 60. A l t e r n a t i v a m e n t e , é interessante o c o m e n t á r i o de
Dunglas, " C o n t r i b u t i o n . . . " , vol. XX, p. 22, s e g u n d o o qual, em f o n g b e , Zou goudo
significaria "derrière le Z o u " , isto é, detrás, ou ao n o r t e , do rio Z o , d e s i g n a n d o o país
Mahi.
1,9
No Bogum se desconhece Z ó c o m o v o d u m , mas existe u m a obrigação do m e s m o n o m e
associada a Sogbo (ver cap. 4). Q u a n t o a O g o d ô , L i m a c o m e n t a : " I n d a g a d a sobre essa
segunda feitura no s a n t o [de m ã e A n i n h a ] , S e n h o r a me r e s p o n d e u que 'isso t i n h a q u e
ser feito, p o r q u e X a n g ô deu dois n o m e s na terra de Tapa, Ogodô e A f o n j á ' . E r a m d u a s
qualidades d o X a n g ô de A n i n h a " ( " O c a n d o m b l é . . . " , p. 55).
120
Jaime M o n t e n e g r o , 10/8/1999; D i a s do N a s c i m e n t o , 23/1/1999.
121
" O b r i g a ç ã o de V i c e n t e " , m a n u s c r i t o , 1 9 / 2 / 1 9 6 4 . C ó p i a f o r n e c i d a p o r humbono
Vicente.
122
Burton, A mission..., p. 78, diz que, em U i d á , "o alto a r b u s t o do fetiche d o trovão" se
chama Ayyan ou Soyan. B a u d i n , em Fetichísm... (p. 23), c o n t a q u e Ayan é o n o m e da
árvore na qual, s e g u n d o a lenda dos i o r u b á s , X a n g ô se s u i c i d o u .
123
Iroko, Mosaiques..., p p . 15-18.

211
6

LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS


T E R R E I R O S B O G U M E S E J A H U N D É N O S É C U L O XX

Dando continuidade à reconstituição histórica dos terreiros Bogum e Seja


Hundé, neste capítulo examino a liderança e dinâmica interna dessas con-
gregações religiosas no século XX. Além disso, no final do capitulo são apre-
sentadas informações sobre outros terreiros jejes que funcionaram na mes-
ma época. Inicio a exposição pelo Seja Hundé, apresentando na Tabela 5 os
nomes, apelidos, voduns e os prováveis períodos de liderança das suas suces-
sivas gaiakus (um dos títulos utilizados no jeje para designar a mãe-de-santo
ou a chefa da casa).

Tabela 5 — l i d e r a n ç a do Seja Hundé

, I ,
Período Nome Apelido ' Vodum
, j
t. 1896-1 922 i Maria Luiza Sacramento Maria Agorensi ' Bessen
{ + 4
1 934/37-1950 | Maria Epifânia dos Santos \ Abalhe j Bessen

1957/62-1969/71 j Adalgisa Combo Pereira , Pararosi \ Parara

c. 1 978-1994 [ Eliza Gonzaga de Souza i Aguesi ' Agué


i j j
1 994-otuol | Augusta M ! da Conceição Marques i Lokosi \ Loko

OS TEMPOS DE MARIA A G O R E N S I

A primeira gaiaku do Seja Hundé, Maria Luiza do Sacramento, cujo ruim ou


nome ritual africano era arrunsi Missimi (provavelmente deformação de hunsi
Mesime), era conhecida como Agorensi Mesime ou Maria Agorensi. Agorensi
é o título dado à vodúnsi consagrada ao vodum Bessen, o dono da nação jeje-

213
LUIS N I C O L A U P A R ÉS

m a h i . 1 Acredita-se q u e ela f o i iniciada p o r L u d o v i n a Pessoa antes de 1875 e


s e g u n d o a finada Aguesi, a sua iniciação d u r o u dois anos. E m b o r a conside-
rada a f r i c a n a p o r alguns, ela nasceu e m Nagé, p e r t o de M a r a g o g i p e , aproxi-
m a d a m e n t e em 1840. Aqueles que a c o n h e c e r a m nas p r i m e i r a s décadas do
século XX, já na sua velhice, dizem q u e t i n h a cabelo grisalho, usava bengala
e c o s t u m a v a sentar-se n u m t a m b o r e t e de q u a t r o pés c o m u m p e q u e n o buraco
no m e i o . Seu G e n i n h o a recorda c o m o u m a "velha negra, r a n h e t a [...] era se-
vera e andava sempre c o m u m c a c e t e z i n h o [...] era m a g r i n h a , m u i t o rígida e
séria, d u r a na q u e d a , t o d o o m u n d o t i n h a m e d o dela". 2
E provável que ela pertencesse à I r m a n d a d e dos Martírios e à devoção da Boa
M o r t e de Cachoeira, n a qual, sabemos, existia u m a forte presença de mulhe-
res d o terreiro jeje. N o seu registro de óbito, d a t a d o em 3 de maio de 1922, Aris-
tides Gomes Conceição, ogã antigo e m o r a d o r na roça d o Ventura, declara que

às q u a t o r z e h o r a s , n a l a d e i r a d a P r a ç a , f a l e c e u d e a n t i g o s p a d e c i m e n t o s sua pa-
r e n t e M a r i a L u i z a d o S a c r a m e n t o , m a i o r d e o i t e n t a a n o s d e i d a d e , d e filiação desco-
n h e c i d a , s o l t e i r a , n a t u r a ] d e N a g é , r e s i d e n t e n e s t a c i d a d e , vai ser s e p u l t a d a n o cemi-
t é r i o d a M i s e r i c ó r d i a e m c a r n e i r o da I r m a n d a d e d o s M a r t í r i o s . 3

P o u c o sabemos dos p r i m e i r o s anos da gestão de M a r i a Agorensi no Seja


H u n d é . As i n f o r m a ç õ e s disponíveis i n d i c a m q u e o p o n t o de m a i o r brilho da
sua gestão c o r r e s p o n d e u à década de 1910, q u a n d o b o t o u dois barcos (grupo
de iniciados). Nas décadas anteriores, o c a n d o m b l é deve ter f u n c i o n a d o basi-
c a m e n t e com dançantes da Roça de C i m a , mas é significativo o longo período
que foi preciso para organizar as primeiras iniciações, o q u e provavelmente
indica u m p a u l a t i n o processo de consolidação da rede social da congregação
religiosa. Segundo gaiaku Luiza, Maria Agorensi foi auxiliada p o r três deres ou
"mães-pequenas". A mais conhecida foi deré Custódia de Oiá, mas t a m b é m são
lembradas deré M a d a l e n a e deré Isidora. Esses cargos eram assumidos simulta-
n e a m e n t e , mas cada deré tinha responsabilidades diferenciadas. 4
S e g u n d o a finada Aguesi, o p r i m e i r o barco de Maria Agorensi foi de 8 vo-
dúnsis e o segundo, de 12. A iniciação durava então seis meses, três meses dentro
e três meses fora, um período s u b s t a n c i a l m e n t e mais c u r t o d o que o das inicia-
ções na Roça de C i m a que, s e g u n d o vimos, eram de dois anos o u u m e meio.
O primeiro barco foi provavelmente recolhido em 1914 e estava constituído por:
1) dofona Bela de A z o n s u ; 2) dofonitinha M i l u de O i á ; 3) fomo Eliza G o n z a g a
de Souza de Agué; 4) fomotinho A n t ô n i o P i n t o de O x u m Dei; 5) gamo Edwir-
ge de O x u m Nike; 6) D a g m a r de A k o t o q u e m ; 7) Joana Boca da N o i t e de Sogbo
e 8) Virginia Moreira de Olisá. 5

214
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Do segundo barco de 12 não t e n h o a d a t a , mas l o g i c a m e n t e deve ter sido


recolhido entre 1915 e 1921. T a m b é m n ã o c o n h e ç o os detalhes da sua c o m -
posição, embora gaiaku Luiza, em u m alarde da sua admirável m e m ó r i a , for-
neceu-me u m a lista das v o d ú n s i s do Seja H u n d é em t e m p o s de M a r i a Ago-
rensi- Além das o i t o r o d a n t e s já m e n c i o n a d a s , c i t o u os seguintes n o m e s : 9)
Leonidia de O x u m ; 10) Lizarda de O x u m ; 11) A n t ó n i a de O i á ; 12) M a r i a
Custódia de Assis de O i á ; 13) Virgilio de Bessen; 14) dofona E s m e r a l d a de
Azonsu; 15) dofona G i n a de N a n ã ; 16) M i ú d a de N a n ã ; 17) N a n i n h a de N a n ã ;
18) Cecília de Aziri; 19) M a r c i a n a de Aziri; 20) M i ú d a de K p o s u ; 21) Rai-
munda de O d é ; 22) S a n t i n h a de Badé; 23) Fausta de Badé; 24) A r c a n j a de
Badé (Badesi A r c a n j a ) ; 25) J o a n a D e l f i n a de S o g b o e 26) u m a de A k o r o m b e . 6
Trata-se de u m n ú m e r o elevado de v o d ú n s i s , o q u e indica a i m p o r t â n c i a e o
sucesso do c a n d o m b l é n a q u e l a época. S i s t e m a t i z a n d o o n ú m e r o e n o m e dos
voduns, teríamos: u m O d é , u m Agué, dois A z o n s u , q u a t r o O x u m , três O i á ,
dois Aziri, u m K p o , d o i s Sogbo, três Badé, u m A k o r o m b e , três N a n ã , u m
Olissá, u m Bessen e u m A k o t o q u e m .
Além das r o d a n t e s , u m terreiro n ã o sobrevive sem a assistência de ogãs e
equedes. Em 1914, antes do r e c o l h i m e n t o d o p r i m e i r o barco, f o r a m c o n f i r -
mados cinco ogãs, alguns deles c h e g a n d o a se c o n v e r t e r em e m i n e n t e s per-
sonalidades da congregação: 1) pejigã M i g u e l R o d r i g u e s da R o c h a ; 2) ogã se-
yiçviTomas de A q u i n o Bispo, mais c o n h e c i d o c o m o ogã C a b o c o Acaçá; 3) Fer-
nando; 4) Ermírio e 5) Agapito. 7 Além deles, são lembrados também: 6) Aristides
Gomes Conceição, "parente" de Maria Agorensi; 7) ogã João, hunto (tocador
de atabaque), filho de deré C u s t ó d i a e i r m ã o m e n o r de ogã Caboco; 8) o sar-
gento Edinho; 9) ogã minazon Luis Gonzaga, pai de Aguesi e 10) Renato G ó m e z
Conceição, filho de Aristides, c o n h e c i d o c o m o C o n g o de O r o , de I e m a n j á e
Sogbo. O ú l t i m o foi ogã suspenso, mas, p o s t e r i o r m e n t e , a b a n d o n o u o terrei-
ro. E n t r e as equedes, gaiaku Luiza se l e m b r a v a de D o n i n h a e T a t u , filhas do
ogã Aristides, Cecília, A n t ó n i a , N e n é m , C o t i n h a , Z e l i n a , A n a e Isabel. Seu
G e n i n h o m e n c i o n o u t a m b é m a D a d i , irmã de seu pai, M i g u e l R o d r i g u e s da
Rocha, e M a s u , sua i r m ã p o r parte d o pai. 8
Desse p a n o r a m a aproximado da composição da congregação religiosa do Seja
Hundé, vale a pena destacar alguns nomes importantes. Eliza Gonzaga de Sou-
za, Vivi de Agué Aboro, etemin Aguesi, filha de Luis Gonzaga (ogã minazon do
c a n d o m b l é ) e s o b r i n h a carnal de M a r i a Agorensi, estava c o m 9 ou 10 anos
de idade q u a n d o foi recolhida no primeiro barco. Ela viria a ser & gaiaku do Seja
H u n d é nos anos 1970. Sua irmã, Maria Ana d o C a r m o , foi equede de Bessen; o
irmão, Fernando, foi c o n f i r m a d o ogã de Bessen em 1914, e a irmã, Valentina,
seria iniciada posteriormente, em tempos de Abalhe, c o m o fomotinha de N a n ã .

215
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Entre as vodúnsis, que em sua maioria eram mulheres, cabe destacar apre
sença de dois h o m e n s : A n t ô n i o Pinto, fomotinho de O x u m Déi, iniciado no
primeiro barco e Virgilio d e Bessen, iniciado no segundo. 9 Q u e m alcançou
mais renome foi fomotinho de O x u m . Parece que a decisão para iniciar um
h o m e m causou m u i t o debate e não aconteceu até que O x u m incorporou em
Antônio, que passou uma noite inteira d e n t r o do poço de O x u m , para que
as velhas aceitassem recolhê-lo no hunco. N o e n t a n t o , fala-se que "fomotinho
não acabou a obrigação e fugiu para o Rio ainda com o kele' ,u> Lá fez muitos
filhos de santo e, embora tenha m o d i f i c a d o muitos aspectos rituais, conver-
teu-se na "raiz carioca" do jeje-mahi (ver adiante).
Uma das pessoas mais influentes n o Seja H u n d é dessa época foi seu Miguel
Rodrigues da Rocha, casado com a descendente de nagôs Cecília Ovídia de
Almeida e pai carnal de seu G e n i n h o , gaiaku Luiza e Joana, iniciada para o
v o d u m Azonsu em tempos de Pararasi. Em 1914, seu Miguel foi confirmado
c o m o pejigã, o chefe d o peji, cargo correspondente à segunda pessoa depois
da mãe-de-santo. A sua participação nas atividades religiosas d o candomblé,
j u n t o com a sua condição de protetor, mediador e m a n t e n e d o r do terreiro,
lembram, de certa forma, o carisma de Zé de Brechó.
Segundo relato da sua filha gaiaku Luiza, seu Miguel era de Badé com
Oxalá e t i n h a Iemanjá. Era u m h o m e m fisicamente i m p o n e n t e , alto e forte.
T i n h a açougue em Cachoeira. Por volta de 1918, trabalhou como marinheiro
e dizem que viajou para a Africa. Ele esteve envolvido em política e foi guarda
do c o m e n d a d o r U b a l d i n o N a s c i m e n t o de Assis. Segundo expressão da sua
filha, "ele era um Getúlio Vargas", acrescentado que "vivia com balas no cinto".
As eleições, naquela época, envolviam frequentes distúrbios e tiroteios entre
facções rivais." Depois de uma dessas eleições, seu Miguel teve que fugir para
o Rio, t r a b a l h a n d o lá como mestre-de-obras e pedreiro na c o n s t r u ç ã o do
Palácio do Catete, voltando a Cachoeira só em 1922. Faleceu em 1966, como
fiscal da prefeitura. Ele conseguiu um certo poder político e económico e aju-
dava a custear as festas em tempos de Maria Agorensi. Q u a n d o pejigã Miguel
chegava ao terreiro, era saudado com toque de tambor. 1 2
Ogã Caboco, conhecido c o m o Caboco Acaçá, de n o m e Tomás de Aquino
Bispo, era filho de deré Custódia e do ogã seu Agapito, mas teve por mãe de
leite a d o n a Cecília, mulher de seu Miguel. Aos 11 anos foi confirmado como
ogã senevi, j u n t o com o pai carnal, seu Agapito, e seu Miguel. Era também
hunto (tocador de atabaque) m u i t o bom. Com o tempo, ogã Caboco viria a
ser ogã impe, encarregado das matanças. Ele t a m b é m "deu mão", isto é, ajuda-
va em outras casas jejes como o Bogum, a casa de gaiaku Luiza, sua irmã de
criação, ou a de humbono Vicente. Segundo hurnbono Vicente, ele era quem

216
L I D E R A N Ç AE D I N Â M I C A INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Pejigõ seu Miguel (sentado), ogã seneviCaboto Acaça (com relógio) e outros ogãs do Seja Hundé (c. 1960}

mais sabia no Seja H u n d é , "acabou ele, acabou tudo". Ogã C a b o c o faleceu


na década de 1970, em Belo Horizonte. 1 3 Seu irmão, João, t a m b é m era ogã
bunto e a irmã, Gina, era vodúnsi de N a n á .
Dessas informações se percebe uma complexa malha de relações de paren-
tesco entre os m e m b r o s da congregação religiosa, que se irá acrescentando e
imbricando ao longo da história do terreiro. Essa parece ser u m a caracterís-
tica geral dos terreiros jejes, tanto na Bahia q u a n t o na Casa das Minas de São
Luís do M a r a n h ã o . Um n ú m e r o significativo de vodúnsis, ogãs e equedes são
recrutados entre m e m b r o s de certas famílias com ascendência africana e es-
ses vínculos de sangue se perpetuam ao longo das gerações. Seu G e n i n h o fala
do "povo da veia" para se referir a essas pessoas, em contraposição aos "fre-
quentadores" ou participantes que não pertenciam a tais famílias. No primeiro
período do Seja H u n d é , tem destaque a participação i m p o r t a n t e de parentes
de Maria Agorensi e de deré Custódia, assim como a influência do pejigã seu
Miguel. E ssa d i n â m i c a associativa baseada no parentesco, talvez a forma de
solidariedade intergrupal mais básica, é, em geral, sabiamente utilizada pela
liderança religiosa para reforçar e manter o poder.
N ã o me parece que esse f e n ó m e n o seja recente nem exclusivo dos jejes.
C o m o sugeri no capítulo 4, foram precisamente esses vínculos de parentesco
(no século XIX, entre africanos e sua descendência crioula) que p e r m i t i r a m
a formação de congregações religiosas domésticas e, mais tarde, o surgimento
dos candomblés. J u n t o com o parentesco de sangue, o parentesco religioso

217
LOIS NICOLAU FARES

estabelecido através dos processos de iniciação c o n t r i b u i para a formação d e


alianças internas entre vários grupos da congregação que, nos períodos de con-
flito, c o m o p o d e m ser as disputas de sucessão, vêm a se manifestar na forma
de facções c o n c o r r e n t e s .
R e c a p i t u l a n d o , o p e r í o d o q u e vai de 1914 até a m o r t e de M a r i a Agorensi
em 1922, p a r e c e m a r c a r u m dos m o m e n t o s de e s p l e n d o r d o Seja Hundé.
Após, talvez, duas décadas desde a sua f u n d a ç ã o , o terreiro atinge uma das
"épocas d o u r a d a s " . Seu G e n i n h o , nascido e m 1906, foi t e s t e m u n h a , na sua
infância, desses eventos. E m d e p o i m e n t o s recolhidos p o r Lopez de Carvalho,
ele l e m b r a c o m s a u d a d e e vividez o e s p l e n d o r d o c a n d o m b l é d o Ventura da-
quela época.

M o r a m o s n o V e n t u r a p o r m u i t o t e m p o [...] n o s s a casa f i c a v a d e f r o n t e ao peji


[altar] d e c i m a . E r a u m a casa d e d o i s q u a r t o s , d e t e l h a d o d e p a l h a e foi m e u pai quem
c o n s t r u i u . T i n h a u m c o r r e i o d e casas, t o d a s d e p a l h a s , o n d e m o r a v a m os antigos,
c o m o o Sr. A r i s t i d e s , T i a C u s t ó d i a , d o f o n a G i n a [...]. O c a n d o m b l é lá n a R o ç a do
V e n t u r a a m a n h e c i a o dia. T i n h a m a q u e l a s v e n d e d o r a s q u e v i n h a m d e C a c h o e i r a ven-
der a q u e l a s b o b a g e n z i n h a s delas. A n o i t e t o d a , c o m o fifó i l u m i n a d o , v e n d i a m amen-
d o i m c o z i d o , c o c a d a , p é - d e - m o l e q u e [...]. D e n t r o d a r o ç a , e m é p o c a d e festa, tinha
u m a b i r o s c a q u e v e n d i a c h a r u t o s , b o l a c h a s [...]. A R o ç a d o V e n t u r a , e m C a c h o e i r a ,
n ã o e x i s t i a o u t r a i g u a l . Q u a n d o e r a o B o i t á , n e m q u e i r a s a b e r ! C a c h o e i r a e m peso
s u b i a , a q u e l e s n e g o c i a n t e s t o d o s : Sr. R i c a r d o P e r e i r a , Sr. L u i s Reis e a q u e l a s famílias
todas v i n h a m apreciar o Boitá. Era o c a n d o m b l é que abalava Cachoeira. Vinham
m u i t a s a u t o r i d a d e s , c o m o S i n h á P o r f i r i a d a T e r r a V e r m e l h a , A l e i j a d i n h a d a Lagoa
E n c a n t a d a , Z é d e V a p o r d a Terra V e r m e l h a [...]. E!e t i n h a u m filho-de-santo cha-
m a d o E d g a r d e O y á , q u e era m u i t o c o n s i d e r a d o n a R o ç a d o V e n t u r a [...]. S i n h á
A b a l h e s e m p r e estava p r e s e n t e , ela n u n c a a b a n d o n o u M a r i a A g o r e n s i , a s s i m c o m o
Possusi R o m a n i n h a . Essa só falava n o jeje, n ã o falava e m p o r t u g u ê s n ã o ! O p o v o t o d o
d o B o g u m v i n h a , e q u a n d o t i n h a f e s t a lá, o p o v o d ' a q u i ia p a r a lá. V i n h a u m o g a n
q u e c h a m a v a B o m f i m e d o m i n a v a m u i t o o jeje. Chegava no C a q u e n d e , para t o m a r
b a n h o , c o m o g a n C a b o c o , e só f a l a v a m n a l í n g u a d o jeje. E u g a r o t o l e m b r o deles
p a s s a n d o folhas no corpo e falando no dialeto jeje.14

Esse t e s t e m u n h o evidencia a extensa rede social q u e existia e n t r e o can-


d o m b l é e a sociedade civil, assim c o m o , m u i t o e s p e c i a l m e n t e , a i n d i s p e n s á -
vel c o m u n i c a ç ã o e i n t e r c â m b i o de visitas e n t r e os vários terreiros da região,
m u i t o s deles nagôs, mas t a m b é m alguns jejes de Salvador, c o m o o B o g u m e o
C a m p i n a de Boskeji. E através desses laços de c o m p l e m e n t a r i d a d e que se m e n -
sura e legitima a visibilidade social de u m c a n d o m b l é e, q u a n t o mais variados,
m a i o r o prestígio da congregação religiosa. Em relação às visitas do pessoal
d o C a m p i n a , humbono V i c e n t e c o m e n t a que, q u a n d o chegavam, c a n t a v a m ,

218
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

pedindo licença para entrar na roça, salvando o Seja H u n d é , que, segundo


ele seria um n o m e do v o d u m Azonsu, d o n o da casa ou barracão:

Ere ere bi oyo


C a m p i n a tere n a d o
Ere ere bi oyo
Seja H u n d é m i n a d o . 1 5

Como já foi dito, Maria Agorensi faleceu em 1922, fechando-se, assim, um


dos capítulos mais notáveis da história do Seja H u n d é . C o m o é de costume na
tradição jeje, com a morte da mãe-de-santo são iniciados os rituais funerários,
chamados sirruns ou zelins (axexés na tradição nagô), com u m a primeira obri-
gação de corpo presente que dura u m a semana e outras posteriores um mês,
três meses, seis meses, um ano, três anos e sete anos após o falecimento. Nesses
sete anos as atividades do candomblé são normalmente paralisadas, isto é, não
são celebradas festas públicas nem são iniciadas novas vodúnsis, embora certos
rituais internos, como oferendas de comidas secas no peji, possam ser m a n -
tidos. Em todo caso, esses períodos de transição em que deve ser escolhida a
nova mãe-de-santo estão normalmente marcados por conflitos internos de luta
pelo poder.

OS TEMPOS DE A B A L H E

Após 1922, o Seja H u n d é paralisou suas atividades por mais de uma década.
Uns falam que foram 11 anos e outros, que foram 15. 16 Segundo gaiaku Luiza,
"a tia morreu. A roça ficou onze anos fechada. O pessoal foi saindo, muitos
já não voltaram. Abalhe recolheu as suas". 17 Foi, p o r t a n t o , por volta de 1933
ou 1937 que Maria Epifânia dos Santos, sinhá Abalhe, conseguiu, finalmente,
assumir como a nova gaiaku do c a n d o m b l é .
Não deixa de ser significativo que a década de 1920, q u a n d o o Seja H u n d é
e também o Bogum permaneceram inativos, tenha coincidido com o período
de maior repressão policial do C a n d o m b l é , tanto em Salvador q u a n t o no Re-
côncavo, 18 e que em meados da década de 1930, q u a n d o ambos os terreiros
reiniciam suas atividades, o fato tenha coincidido com uma época de progres-
siva tolerância dos cultos afro-brasileiros. Em 1937, intelectuais como Edison
Carneiro e A y d a n o do C o u t o Ferraz, com a participação de pais-de-santo
como Eliseu M a r t i n i a n o do B o m f i m , p r o m o v e r a m o S e g u n d o Congresso
Afro-Brasileiro, em Salvador, que em m u i t o contribuiu para o reconhecimen-
to social e a valorização dessa tradição religiosa. U m ano depois, em 1938,

219
LUIS NICOLAU PARÉS

"liberava-se a prática de c a n d o m b l é , b a t u q u e s e o u t r a s manifestações religio-


sas negras, graças à i n t e r v e n ç ã o d o chefe da Casa Civil d o governo Vargas,
O s w a l d o A r a n h a , ligado à filial d o Axé O p ô A f o n j á no Rio". 1 9
N ã o sei até q u e p o n t o essa d i n â m i c a externa favoreceu a reabertura do Seja
H u n d é e do B o g u m , mas outras dinâmicas de caráter interno, além da repres-
são policial, parecem ter sido mais críticas para explicar o longo período de
interregno que se p r o l o n g o u além dos sete anos de luto. Ao que t u d o indica,
essa d e m o r a foi devida a dissidências internas em t o r n o de q u e m p o d i a e devia
assumir o cargo de gaiaku. Lopez de Carvalho resume a versão dada por gaiaku
Luiza, que coincide com aquela c o n t a d a a m i m :

As vodunsi da c a s a , ou s e j a , as f i l h a s d e M a r i a O g o r e n s i , n ã o a c e i t a r a m q u e Sinhá
A b a l h e a s s u m i s s e a d i r e ç ã o d o V e n t u r a e foi p o r isso q u e a r o ç a ficou t a n t o t e m p o
f e c h a d a . N ã o se t e m certeza d o m o t i v o dessa n ã o aceitação, das a n t i g a s filhas d e Maria
O g o r e n s i p a r a c o m S i n h á A b a l h e , m a s a p o p u l a ç ã o d e C a c h o e i r a fala q u e era pelo
f a t o d e S i n h á A b a l h e não t e r s i d o i n i c i a d a ali n o V e n t u r a e s i m n a R o ç a d e C i m a .
Q u e a h e r d e i r a d o t e r r e i r o d e v e r i a ser u m a filha da casa e n ã o u m a i r m ã d e M a r i a
O g o r e n s i ( n o caso t i a das vodunsi). T a m b é m se fala, q u e S i n h á A b a l h e s o f r e u m u i t o
p a r a c o n s e g u i r j u n t a r todas as vodtinsi da casa d e v o l t a , e q u e p a r a t o m a r p o s s e teve
f a c ã o riscado n o c h ã o e até c h i n e l a d a n o rosto d e S i n h á A b a l h e , p o r p a r t e das s o b r i n h a s .
S e g u n d o G a i a k u L u i z a , q u e m c o n s e g u i u r e u n i r as filhas d e volta f o i o A z o n s u de u m a
das vodunsi antiga [Luiza M o r e i r a de A v i m a j e ] 2 0 q u e "virou" e disse q u e a roça de Bessen
n ã o p o d i a virar p a s t o para g a d o , e q u e já era t e m p o das filhas v o l t a r e m a a c e i t a r e m a
n o v a G a i a k u . E foi assim q u e as vodunsi foram voltando pouco a pouco.2'

Mas nem todos voltaram. O pejigã seu Miguel, com sua família, por exemplo,
afastou-se do Seja H u n d é a partir dessa época. Sabe-se que, após a morte de Maria
Agorensi, a chave d o peji, talvez o emblema m á x i m o do poder n u m terreiro,
passou p r i m e i r o p a r a o pejigã M i g u e l , mas depois, m a r c a n d o as diferenças
surgidas entre Abalhe e seu Miguel, passou para o ogã impe Caboco Acaçá. 22
Esse seria um b o m exemplo de "drama social" com as q u a t r o fases descritas
por Turner de r u p t u r a , crise, reparação e, no presente caso, u m a c o m b i n a ç ã o
de reintegração e cisma. Vemos t a m b é m , c o n f o r m e a teoria de Turner, c o m o
se recorre ao ritual (adivinhação, manifestação das divindades e provavelmente
outras atividades) p a r a d i r i m i r o c o n f l i t o e restabelecer a o r d e m i n t e r n a da
congregação. 2 3 Em última instância, são as divindades que, apelando à commu-
nitas ou à união dos m e m b r o s do grupo, sancionam a solução do problema. O
ritual e o sistema de crenças operam de forma dialética, tanto q u a n t o mecanismos
de transformação e superação do conflito, c o m o mantenedores da coesão e da
ordem social. No entanto, c o m o veremos mais adiante, a reparação seria apenas
parcial e, sob a aparente reintegração do g r u p o , p e r m a n e c e m latentes a divisão

220
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

e as tensões entre facções rivais, dissidências que reapareceram de f o r m a re-


corrente com novas rupturas, geralmente ocasionadas pela m o r t e da líder da
congregação ou o a f r o u x a m e n t o do poder religioso.
A rivalidade entre Abalhe e as filhas-de-santo de Maria Agorensi talvez de-
rivasse de antigas diferenças entre Abalhe e a mesma Maria Agorensi. C o m o
já notei, é possível que nos primeiros tempos Abalhe permanecesse fiel a Zé
de Brechó, na Roça de C i m a . E t a m b é m provável que, após a m o r t e dele,
Abalhe funcionasse como especialista religiosa independente. Aguesi contava
que um h o m e m do jeje, de n o m e E p i f â n i o Santa Rita, deu o decá a Abalhe
e que essa c e r i m o n i a foi realizada no Corral Velho (atual praça Marechal
Deodoro), pois não podia ser celebrada no Seja H u n d é "por causa da o u t r a
[Maria Agorensi]". Essa festa durou três dias e foi m u i t o concorrida.* 4 O r a ,
a partir de certo m o m e n t o i n d e t e r m i n a d o , Abalhe passou a tomar parte no
Seja H u n d é . C o n f o r m e seu G e n i n h o , segundo ouviu dos mais velhos, Maria
Agorensi fez u m a obrigação com Abalhe para "tirar a mão da cabeça" de seu
pai-de-santo original (tio Xarene ou Zé de Brechó), que era m u n d u b i . Daí,
Abalhe passou a ser a segunda pessoa de Agorensi, a j u d a n d o e a c o m p a n h a n d o
todas as atividades do candomblé. 2 5
Em todo caso, a partir do m o m e n t o em que assumiu como gaiaku, por
volta de 1934 ou 1937, Abalhe conseguiu que o Seja H u n d é voltasse a ser o
que era antes, com muitas filhas-de-santo, muitos rendeiros e caseiros m o r a n -
do e zelando pela roça, com festas concorridas que atraíam a presença de im-
portantes m e m b r o s de outras congregações religiosas da região e de Salvador.
A gestão de sinhá Abalhe, no período de 1935 a 1950, constituiu a segunda
e talvez a última "época dourada" do Seja H u n d é .

Maria E p i f â n i a dos Santos, sinhá A b a l h e , i r m ã da Congregação de N . S. da Boa Morte (c. 1950)


Autor-. Pierre Verger

221
Bessen e seu nome africano era arrunsi Lufame (hunsi Lufame), mais conhecida
como fomotinha Agorensi Abalhe, ou simplesmente Abalhe, pronunciado às
vezes Abalia, Abalha ou Abalié, que seria um título honorífico. 2 6 No seu registro
de óbito consta que nasceu em Cachoeira, onde m o r o u em várias casas. Ogã
Boboso menciona u m a na Recuada, que tinha u m quarto que "fechou de tanta
pedra guardada". Acrescenta que Zé de Brechó, que esteve amasiado com ela
na última década do século XIX, morava em cima. 2 7 Ela era irmã da devoção
da Boa M o r t e e m e m b r o das irmandades do Martírio e do Rosarinho. 2 8
Segundo seu G e n i n h o , " t u d o o m u n d o t i n h a m e d o da língua de sinhá
Abalhe", mas ela não vivia da religião; em palavras de humbono Vicente, "não
botava mesa nem ebó". 2 9 Segundo Miguel Santana, respeitado comerciante e
ogã do Axé O p ô Afonjá, "ela era pequenininha, preta, negrinha [...] possuía
u m a q u i t a n d a ao lado da igreja do Rosário, o n d e vendia a m e n d o i m , beiju,
cavaco, pinha. Não, não vendia artigo da Costa, ninguém vendia artigos da
Costa em Cachoeira, t u d o era vendido aqui em Salvador". 30 Miguel Santana
namorava naquela época Maria Cidreira da Anunciação, cujo n o m e de santo
era Badesque (provavelmente Badesi, devota do v o d u m Badé) e que, segundo
ele, era "a segunda pessoa da mãe-de-santo lá do Engenho do Rosário". Por esse
motivo, ele ficou hospedado durante oito dias no Seja H u n d é , o n d e teve opor-
t u n i d a d e de confirmar a reputação de Abalhe como devota do v o d u m Bessen.

T i n h a um n e g ó c i o q u e eu n ã o sabia o q u e era, só o u v i a o r u í d o : chiii... chiii... chiii...


e n a d a . D e p o i s é q u e v i m a s a b e r q u e era a c o b r a q u e Abali t o m a v a c o n t a . M a i s q u e
coisa, h e m ? F r a n c a m e n t e , fiquei c o m m e d o , m a s ela disse: " N ã o t e n h a m e d o , n ã o t e n h a
s u s t o , p o d e ficar a q u i d e s c a n s a d o " . Ela criava t a m b é m u m a s c o b r a s n o rio C a q u e n d e ,
e n t ã o q u a n d o e r a de m a n h ã levava as c a r n e s c o r t a d a s n u m b a l a i o , e ia a o rio, p e r t o de
u n s pés d e m a n g a b e i r a a p a n h a v a u m a s folhas, n ã o sei q u e f o l h a s e r a m ; m a c h u c a v a , pas-
sava pelo c o r p o , se p r e p a r a v a t o d a e e n t ã o cheirava e dava b a f o r a d a s p r a d e n t r o d a água
e c h a m a v a as c o b r a s p e l o n o m e . E n t ã o elas s a í a m d e d e n t r o da água, b o t a v a m a c a b e ç a
p r a f o r a . Q u a n d o a c o n t e c i a sair u m a q u e ela n ã o t i n h a c h a m a d o , ela dizia: " N ã o , p r i -
m e i r o essa, você espera". E n ã o é q u e esperava? Era lá, n o célebre C a q u e n d e . 3 1

N ã o c o n s e g u i i n f o r m a ç õ e s precisas sobre q u a n t o s barcos b o t o u sinhá


Abalhe. Humbono Vicente falava que foram dois ou três, gaiaku Luiza diz que
foram três. E n t r e as vodúnsis iniciadas nesse período são lembradas decerto:
1) dofona Adalgisa de Parara (Pararasi), que viria a ser a sucessora de Abalhe,
nos anos 1960; 2) fomotinha Valentina de Nanã, irmã carnal de Aguesi; 3)
gamo Augusta Maria da Conceição Marques de Loko (Lokosi), a atual gaiaku
do Seja H u n d é ; 4) um h o m e m , dofono de Bessen; 5) Edith Moreira, filha de

222
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA D O S TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

a Caboco. Provavelmente t a m b é m foram iniciadas por Abalhe: 6) Maria


José de Oiá; 7) tia D a d a de Azonsu; 8) Valentina de Bessen e 9) sua filha
carnal, de A k o t o q u e m , que nasceu no hunco?1

A m b r ó s i o Bispo Conceição, ogã Boboso (c. 1999)


Autor-. F e r n a n d o A r a ú j o

Entre 1936 e os primeiros anos da década de 1940 foram c o n f i r m a d o s si-


multaneamente: 1) Ambrósio Bispo Conceição, seu Boboso de Sogbo, como
ogã kutó, e 2) seu B e r n a r d i n h o de Lissá, primo carnal de Aguesi, como pe-
jigã. 33 Eles dois são os m e m b r o s mais antigos, ainda na ativa, que preservam
o conhecimento ritual do Seja H u n d é . São lembrados t a m b é m c o m o parti-
cipantes dessa época: 3) ogã José de Abalhe, s o b r i n h o desta e criado por ela
na Recuada; 4) Sátiro H u m b e r t o da Silva, apelidado de Pássaro Preto, ogã
yninazon e ogã do v o d u m Loko de Augusta da Conceição Marques; 5) José
Magno Ferreira dos Santos, apelidado de Zé Careca, ogã da Oiá da supra-
mencionada Maria José, irmão de seu Bernardinho e do sargento Edinho, an-
tigo ogã em tempos de Maria Agorensi; e 6) ogã Baba, que morava no Rio. Entre
as equedes, são lembradas, por exemplo, tia Dadi, irmã do pejigã seu Miguel;
Maria Ana do C a r m o de Bessen, irmã por parte de pai da finada Aguesi e so-
brinha de Maria Agorensi; sua filha, Maria São Pedro dos Santos, conhecida
como Valdelice de Agué, confirmada como equede de Bessen, e Bela, mulher
de ogã José de Abalhe, ainda na ativa. 34 Vale notar como, em tempos de Abalhe,
as relações de parentesco seguem c o n s t i t u i n d o um dos fatores i m p o r t a n t e s
no r e c r u t a m e n t o dos m e m b r o s e na estrutura social do candomblé.

223
LUIS NICOLAU PARÉS

B e r n a r d i n o Ferreiro dos Santos, atual pejigõ do Seja H u n d é (c. 1999J


Autor-. F e r n a n d o A r a ú j o

C o m o explica ogã B o b o s o , s i n h á A b a l h e era u m a m ã e - d e - s a n t o muito


q u e r i d a e se relacionava m u i t o b e m com as pessoas. O c a n d o m b l é nagô de
Anacleto, n o Capivari, em São Félix, tinha u m a ligação m u i t o boa com o Ven-
tura. Ela era t a m b é m m u i t o amiga de seu Aprígio de Sogbo, do terreiro Pó
Z e r r e m de nação jeje m u n d u b i . O s fortes vínculos com o dirigente do Pó Zer-
r e m são compreensíveis, já q u e sinhá Abalhe tinha ascendência religiosa na
m e s m a tradição. As visitas de Tata Aprígio ao Seja H u n d é são lembradas com
saudade e, conta-se, nessas ocasiões sinhá Abalhe, calçando tamancos de unha,
dançava o m u n d u b i , n o m e de u m a dança p r ó p r i a dessa nação. 3 5
C o m o vimos, a tradição m u n d u b i se caracterizava por dar m u i t a impor-
tância ao culto dos ancestrais, e, de fato, seu Aprígio a j u d o u Abalhe a instalar
ou "assentar" no Seja H u n d é o kututo, a "casa das almas" ou dos espíritos de
d e f u n t o s . Essa inovação é vista por alguns especialistas religiosos c o m o uma
m u d a n ç a indesejada, pois trata-se de u m a prática alheia à tradição jeje-mahi,
em que se faz t u d o "em Aizan, toda obrigação com os m o r t o s é através de
Aizan" (ver cap. 8). 36 N o Seja H u n d é existia o peji original de Maria Agorensi,
localizado n u m q u a r t o na p a r t e posterior d o barracão, mas Abalhe foi tam-
b é m responsável pela instalação de um segundo peji, n u m a dependência cons-
t r u í d a ao lado do barracão. Ali p r o v a v e l m e n t e instalou os assentos q u e ela
t i n h a na casa da Recuada, talvez alguns provenientes da Roça de C i m a , fato
que, de novo, sugere i m p o r t a n t e s alterações na liturgia do terreiro.
E m b o r a o Seja H u n d é estivesse ainda fechado, no início da década de 1930
Abalhe e seu pessoal a j u d a r a m na f u n d a ç ã o e na feitura do primeiro barco do

224
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Ilê Ibece Alaketu Axé O g u m Megege que, como já comentei, foi o primeiro
terreiro de nação ketu a funcionar na região de Cachoeira. 3 7 A colaboração com
o pessoal do terreiro jeje é um bom exemplo da flexibilidade nas dinâmicas de
cooperação religiosa além das supostas "fronteiras" das nações de C a n d o m b l é .
P a r a l e l a m e n t e a esses processos de colaboração "transnacional", o pessoal do
Seja Hundé podia manter relações conflituosas com terreiros da sua própria
nação. São conhecidas as disputas entre Abalhe e a temida Badesi Arcanja,
antiga vodunsi do Ventura, feita por Maria Agorensi, que tinha um terreiro "jeje
dahomé" em Maragogipe. Gaiaku Luiza fala de "guerra" e "uma política danada"
entre os dois terreiros. A morte de Badesi Arcanja, na década de 1940, é atri-
buída por alguns a essas brigas, envolvendo atividades de "feitiçaria". 38
A estrutura altamente hierarquizada das congregações de c a n d o m b l é está
sempre centralizada na figura da mãe-de-santo. O d i n a m i s m o e a visibilidade
social adquirida pelo Seja H u n d é , d u r a n t e a gestão de Abalhe, estiveram mar-
cados pela capacidade dessa líder religiosa em articular e manejar u m a rede
de relações políticas que envolvia ora alianças, ora dissidências com indivíduos
ou grupos que se estendiam além do â m b i t o do C a n d o m b l é . A participação
de Abalhe na devoção da Boa M o r t e de Cachoeira, por exemplo, oferecia-lhe
um espaço paralelo para a gestão dessa micropolítica. Em todo caso, com o fale-
cimento da líder de u m candomblé, é como se a c o m u n i d a d e perdesse o cen-
tro de referência, o magnetismo que agrega as partes em u m todo.
Às 5 horas do dia I a de dezembro de 1950, Silvia França de Jesus, antiga vo-
dunsi da Roça de Cima, amiga e vizinha de Abalhe na Recuada, 39 declara que na

rua dos R e m é d i o s [antiga R u a Belchior] n® 15, na c i d a d e d e C a c h o e i r a , faleceu


Maria E p i f â n i a dos Santos, do sexo f e m i n i n o , de cor p r e t a , c o m n o v e n t a a n o s de i d a -
de — estado civil solteira, de profissão d o m é s t i c a , d o m i c i l i a d a e m C a c h o e i r a e n a t u -
ral de C a c h o e i r a , d e p a i s f a l e c i d o s — a m o r t e foi n a t u r a l , c u j a causa foi a t e s t a d a :
m o r t e s ú b i t a s e m assistência m é d i c a , p o r D o u t o r A g u a l d o S a m p a i o e o s e p u l t a m e n -
to se v e r i f i c a n o C e m i t é r i o da P i e d a d e e m c a r n e i r o . N ã o d e i x o u b e n s , h e r d e i r o s
menores ou interditos.40

Sua irmã de esteira, R o m a n a Moreira, encarregou-se da obrigação que


precede ao enterro, embora t e n h a chegado tarde de Salvador, q u a n d o o cai-
xão já estava no cemitério. M e s m o assim, realizou o ato. 4 1
C o m o falecimento de sinhá Abalhe, finalizava-se toda u m a época do can-
domblé, e o Seja H u n d é não conheceria mais aquele esplendor antigo. C o m o
veremos, a m o r t e de Abalhe foi sucedida de novas disputas pela sucessão e
liderança da comunidade religiosa. Cabe notar que três semanas antes da mor-
te de Abalhe, falecia em Salvador, em 10 de novembro de 1950, Maria Emiliana

225
LUIS NICOLAU PARÉS

da Piedade, doné do Bogum. Esse fato também causou importantes mudanças


na dinâmica interna do Bogum, que teve como resultado, entre outros, a in
terrupção das estreitas relações que t r a d i c i o n a l m e n t e t i n h a m existido entre
os dois terreiros j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a e Salvador. A década de 1950
p o r t a n t o , parece marcar u m p o n t o de inflexão na história desses terreiros e
o início do que poderíamos chamar a sua "época moderna", em oposição aos
"tempos antigos". Aproveito essa circunstância para levar a narrativa de volta
a Salvador e retomar a reconstituição histórica do Bogum, desde a sua reaber-
tura, n o período pós-abolição, até os anos 1950.

0 B O G U M N O P E R Í O D O P Ó S - A 6 0 L 1 Ç Ã 0 : O E V A L E N T I N A A E M I L I A N A (C. 1 8 9 0 - 1 9 5 0 )

C o m o vimos no capítulo anterior, até 1870 o Bogum estava funcionando sob


a direção de José Moraes, Isidoro Melandras e a preta Rachel, contando prova-
velmente com a participação de Ludovina Pessoa. O que aconteceu no Bogum
nas três últimas décadas do século XIX fica um enigma ainda por esclarecer. A
tradição oral do Bogum fala que, após Ludovina, o candomblé fechou por vá-
rios anos até u m a nova retomada das atividades religiosas, por volta de 1890.42
Embora não exista evidência que possa confirmar essa data, ela coincide com
a época em que o Seja H u n d é supostamente teria sido f u n d a d o . Em 17 de ja-
neiro de 1961, em entrevista concedida a pesquisadores do C E A O , Valentina
Maria dos Anjos (Runhó), naquele t e m p o dirigente do Bogum, e o filho, o ogã
Amâncio de Melo, q u a n d o perguntados pela ascendência religiosa da casa, res-
p o n d i a m : "A mãe-de-santo é Valentina, esqueceram o sobrenome dela. O san-
to dela é Adaen [Sogbo Adan], que corresponde a Xangô no Ketu. O pai-de-
santo é Manuel da Silva, que era de O g u n , mas santo não descia nele". 43
Certamente Valentina e Manoel da Silva estavam atuando na primeira década
do século XX, mas bem pouco se sabe sobre o processo e o m o m e n t o de rea-
bertura do Bogum no pós-abolição. Antes de proceder a um exame desse perío-
do e, para ajudar a sistematizar a exposição, apresento, na Tabela 6, uma lista
cronológica das donés14 ou mães-de-santo que lideraram o Bogum no século XX.
Sobre as origens de Valentina, nada sabemos. Porém alguns falam que era
crioula e foi iniciada por Ludovina Pessoa. Alguns c o m e n t a m que Valentina e
Manoel da Silva viveram amasiados, embora outra tradição oral da casa diga
que M a n o e l da Silva estava casado com D o m i n g u i n h a . 4 5 C o n s t a t a m o s que
Runhó e o filho falavam de Manuel de Silva como "pai-de-santo", mas, segundo
Everaldo Duarte, seria só uma forma coloquial e respeitosa de falar. A finada
equede Santa de Nanã, irmã carnal de R u n h ó , contava que "Manoel da Silva

226
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Tabela 6 — Liderança do Bogum

1
Período Nome Apelido Vodum

i
t. 1890 c - 1 9 2 0 Valentina — ! Sogbo Adaen

i
1.1937-1950 Maria Emiliana da Piedade Miliona | Agué

1953-1956 Maria R o m a n a Moreira Romaninha j Kpo

1960-1975 Valentina Maria dos Anjos Runhó j Sogbo Adaen

1978-1994 Evangelista dos Anjos Costa Nicinha | Loko

2002-oluol Zaildes Iracema de Mello índia j Azonsu

morava de frente do Bogum, era rapazinho, tinha uma casinha lá. Ele vivia cor-
tando dendê, de fazer azeite, cuidava a roça [...] caiu [aconteceu de] ele ir lá
pelo Bogum [...] e foi suspenso como ogã". As mesmas fontes n o t a m que,
quando reabriu o B o g u m , M a n o e l da Silva não era ainda ogã c o n f i r m a d o .
Segundo D u a r t e , M a n u e l da Silva "era o feitor daquelas terras. Ele fez u m a
promessa a Oxalá que se ganhasse em u m juízo ia reabrir o terreiro". Parece
que conseguiu resultados favoráveis com a justiça e c u m p r i u a promessa. 4 6
Essa colaboração na abertura do terreiro e sua relação sentimental com Va-
lentina p o d e m explicar por que M a n u e l da Silva, embora oficialmente ape-
nas um ogã suspenso, desfrutava de grande poder na congregação religiosa,
até o p o n t o de ser l e m b r a d o como "pai-de-santo".
C o m o no caso d o Seja H u n d é , os primeiros anos da gestão de Valentina
no Bogum são obscuros, mas é razoável pensar que, na primeira década do
século XX, o terreiro já estava f u n c i o n a n d o com uma certa estabilidade, pois
por volta de 1910 Valentina recolheu u m primeiro barco de oito vodúnsis,
celebrando a sua saída em j u n h o de 1911. 47 A m e m ó r i a oral só conserva o
nome de três mulheres desse barco, que ficaram na ativa até os anos 1960:
Runhó de Sogbo, D a d u de O g u m e Anita. 4 8
Runhó enfatizava que "no tempo que eu fiz o santo ainda foi com africanos
na casa [...] Tiana Gege, m ã e - p e q u e n a daqui, é anterior à f i n a d a Emiliana,
tinha marca de t r i b o no rosto. T i a n a vem do t e m p o do m e u pai-de-santo
[Manuel da Silva]". Os entrevistadores c o m e n t a v a m que R u n h ó e o filho
"fazem notar m u i t a diferença q u a n d o falam de africanos e brasileiros. Valen-
tina d e m o n s t r a verdadeira veneração q u a n d o se refere aos africanos". 4 9 Por-
tanto, no B o g u m , o convívio entre africanos e crioulos se alastrou até bem
entrado o século XX.

227
LUIS NICOLAU PARÉS

A reconstituição histórica do período de transição entre a gestão de Valeu


tina e a sua sucessora, Maria Emiliana da Piedade, apresenta novas dificuldadet
pela falta de evidências documentais confiáveis. Segundo as tradições orais d»
casa, Valentina e Manuel da Silva faleceram por volta de 1920 e o terreiro ficou
inativo por vários anos, até 1935, quando assumiu Emiliana. 5 0 Ora, Runhó ex-
plicava que "houve a primeira casa que foi dos africanos, depois foi ficando nós
caboclos [os brasileiros]. Esta casa foi construída em 1927". 51 Nada impede que
o levantamento da nova casa se tenha produzido no período de interregno, para
satisfazer às necessidades de moradia de membros da congregação. Mas, se o que
foi levantado era um novo barracão, a obra poderia indicar a retomada das afi-
n i d a d e s religiosas, quando Emiliana assumiu como nova gaiaku. Fica por saber
se a memória de Runhó, que data esse evento em 1927, é totalmente confiável.
O escritor português E d m u n d o Correia Lopes, o primeiro autor a escrever
sobre o Bogum d o período pós-abolição, fez uma visita ao terreiro em setem-
bro de 1937, d u r a n t e a celebração de um zelim ou ritual funerário, e comenta
que, naquele m o m e n t o ,

o B ô g ú m d e s p e r t a v a d e u m s o n o l o n g o . V i a casa e m o b r a s , n ã o sei d i z e r se para


a a m p l i a r a p e n a s , se p a r a a e r g u e r das r u í n a s . U m a n o o u m a i s s o b r e o p a s s a m e n t o
d a q u e ali i m p e r a v a c o m o " m ã e - d e - t e r r e i r o " — o u v i d i z e r q u e u m a p r e t a q u e tinha
v i n d o d o D a o m é d e e n c o m e n d a p a r a u m i n g l ê s — a c o m u n i d a d e i a - l h e c e l e b r a r as
e x é q u i a s , fazer o s o l e n e " d e s p a c h o " . 5 2

Segundo essa versão, Emiliana assumiu em 1937, o que me parece uma


hipótese plausível, pois, além de coincidir a p r o x i m a d a m e n t e com a tradição
oral da casa, que data o evento em 1935, trata-se de u m a evidência contem-
porânea dos fatos, fornecida por u m a t e s t e m u n h a ocular. O fato de que na-
quele m o m e n t o a casa estivesse em obras sugere q u e a construção do novo
barracão se deu em 1937, e não 1927, embora, c o m o a p o n t a Correia Lopes,
poderia tratar-se apenas de u m a ampliação. Mais problemática parece a iden-
tificação da falecida com a "mãe-de-terreiro", que ali i m p e r o u até "um ano
ou mais". Isso implicaria que Valentina viveu até a p r o x i m a d a m e n t e os anos
1930 e q u e ela era africana, o que contradiz as versões orais segundo as quais
ela era crioula e faleceu p o r volta de 1920.
Nesse p o n t o , as informações de Correia Lopes, que, aliás, ele mesmo reco-
nhece incertas por apenas "ouvir dizer", me parecem p o u c o confiáveis. Pode-
ríamos especular que a "preta" vinda "do D a o m é de e n c o m e n d a para u m in-
glês" não fosse Valentina, mas a africana Tiana Gege que, segundo R u n h ó ,
estava na ativa em 1911 e era a m ã e - p e q u e n a do Bogum, "anterior à finada
Emiliana". Apesar da providencial longevidade dos africanos, e n c o n t r a r em

228
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS B O G U M E SEJA HUNOÉ

Salvador uma africana por volta de 1911 era já u m fato bastante excepcio-
nal- encontrar uma na década de 1930, m u i t o mais, e se ela chegou ao Brasil
antes do fim do tráfico, em 1850, ela era m u i t o provavelmente centenária. 5 3
Quanto à data da m o r t e da que s u p o n h o ser a "mãe-pequena" e não a
"mãe-de-terreiro", Correia Lopes deixa aberta a dúvida de ser 1936 "ou mais"
e, nesse sentido, cabe lembrar a possibilidade de se tratar de um zeleim rea-
lizado três ou sete anos após o falecimento, c o n f o r m e acontece no C a n d o m -
blé com os membros de alta hierarquia. T a m b é m não seria impensável que
Tiana Gege, como m ã e - p e q u e n a , tivesse a t u a d o como regente após a m o r t e
de Valentina e que certas atividades religiosas fossem conduzidas p o r ela du-
rante o período de interregno, o que por sua vez poderia explicar a c o n s t r u -
ção do novo barracão em 1927, c o m o sugeria R u n h ó .
Em todo caso, além da possível concordância cronológica na i n t e r r u p ç ã o
das atividades religiosas no início dos anos 1920, a reabertura do Bogum sob
a liderança de Maria Emiliana da Piedade, em 1937, coincidiu aproximada-
mente com a reabertura do Seja H u n d é com Abalhe, o que poderia sugerir
uma estratégia c o n j u n t a n o f u n c i o n a m e n t o de ambas as congregações religio-
sas. C o m o vimos, tem q u e m afirme que os dois terreiros eram u m só e, nesse
tempo, o pessoal do B o g u m realizava a n u a l m e n t e visitas ao Seja H u n d é e o
pessoal de Cachoeira retribuía as visitas indo a Salvador.
Correia Lopes c o m e n t a que "Bôgúm é o n o m e por que os adeptos do rito
gêge na C i d a d e de Salvador designam a casa de culto. A filial de Cachoeira,
no mesmo Estado da Baía tem o mesmo n o m e . Esta filial foi f u n d a d a por u m
adepto do terreiro do Salvador". 54 N ã o sabemos quem poderia ser esse adepto
do Bogum, talvez Manoel da Silva. Mas o comentário sugere que membros do
Bogum participaram na f u n d a ç ã o do Seja H u n d é , o que, por sua vez, im-
plicaria que o terreiro de Salvador estava f u n c i o n a n d o , provavelmente, sob
a liderança de Valentina já em 1896, a data que estimei para a abertura do
Seja H u n d é (ver cap. 5).
A gestão de Maria Emiliana da Piedade é lembrada como u m a das épocas
mais importantes do Bogum. Ela era u m a preta crioula, filha de Manoel Ramiro
e Maria Claudina Magalhães; nasceu entre 1858 e 1867 e estaria com aproxi-
madamente 70 anos q u a n d o assumiu a chefia da casa, por volta de 1935. Era
analfabeta e ficou solteira. 55 Miliana de Agué, filha do v o d u m Agué, o caçador
e dono das florestas. 56 Em 1987 ogã Celestino Augusto do Espírito Santo e doné
Nicinha declaravam que "Emilia foi nascida e criada n o terreiro [Bogum]".
Humbono Vicente corrobora essa opinião ao dizer que "Emiliana tinha pai e
mãe no Bogum", ambos t a m b é m de Agué, e acrescenta que ela ia ser iniciada
no Pó Zerrem, mas "caiu" no Bogum durante uma obrigação de Zo e foi "feita"

229
LUIS NICOLAU PARÉS

M a r i a E m i l i a n a da Piedade (sem data)

lá por Ludovina. Everaldo D u a r t e também sugere que Ludovina tenha inicia-


do Emiliana no Bogum pré-abolição, embora não seja impossível que ela reali-
zasse t a m b é m alguma obrigação em Cachoeira. 5 7 D u a r t e a lembra como "alta
e forte" e t a m b é m como "brigante". Nos últimos anos da sua vida teve proble-
mas n u m joelho e andava com bengala. Vicente conta que Emiliana olhava com
búzios que deixava cair n u m a gamela, e que tinha uma cabaça com a qual fazia
Agué assobiar. 58 E provável que Romana, fdha-de-santo da Roça de Cima, fre-
quentasse o Bogum em tempos de Valentina, mas certamente a j u d o u Emiliana
a reabrir a casa nos anos 1930, tornando-se, a partir de então, a mãe-pequena
ou segunda pessoa de Emiliana. Segundo humbono Vicente, a estreita colabo-
ração de Romana no Bogum, às vezes acompanhada por ogã Caboco Acaçá, não
era bem vista por Abalhe no Seja H u n d é e esse teria sido um dos fatores que
c o n t r i b u í r a m para as subsequentes diferenças entre ambos os terreiros. 59
Segundo consta em seus estatutos, a Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São
Bartolomeu (órgão civil do terreiro) teria sido f u n d a d a em 28 de julho de
1937/'° Infelizmente, não achei o antigo registro dessa f u n d a ç ã o , mas a infor-
mação reforça a hipótese de que, nesse ano, coincidindo com a posse de Emi-
liana, h o u v e um sério esforço para c o n s o l i d a r a o r g a n i z a ç ã o i n t e r n a d o
terreiro. A fundação da sociedade sucedeu à celebração do Segundo Congresso
Afro-Brasileiro em janeiro de 1937, e precedeu à constituição, sob iniciativa
de Edison C a r n e i r o , da União das Seitas Afro-Brasileiras, em setembro do
m e s m o ano. N ã o é improvável, p o r t a n t o , q u e a formação da Sociedade Fiéis
de São Bartolomeu fosse incentivada pelos organizadores do congresso.
Em todo caso, o Bogum foi um dos 9 candomblés jejes (8 jejes e 1 dahoméa),
de um total d e 67, registrados na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia,
em setembro de 1937. Já em 1948, ano da publicação de Candomblés da Ba-
hia., Edison Carneiro reduz sensivelmente o número de terreiros jejes: "Os can-
domblés desta nação, na Bahia, são apenas três — o da velha Emiliana, no

230
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNDÉ

Bôgiín> o mais i m p o r t a n t e de todos, o Pôço Bètá ( M a n u e l Falefá), na Formi-


ga jêje-marrim (mahi), e o de M a n u e l Menez, em São Caetano. Estas casas têm
resguardado g a l h a r d a m e n t e a pureza d o culto jêje". 6 1 C o m e n t a r e i sobre esses e
outros terreiros jejes n o Final d o capítulo.
Por enquanto, o q u e convém notar é que a década de 1940 foi u m dos perío-
dos de apogeu e esplendor do B o g u m . Aliás, é nesse p e r í o d o que os p r i m e i r o s
pesquisadores c o m e ç a m a interessar-se pelo terreiro. Já m e n c i o n e i o caso de
Correia Lopes e C a r n e i r o , mas t a m b é m em 1941-42 o B o g u m recebeu a visita
do casal de a n t r o p ó l o g o s americanos Frances e Melville Herskovits que realiza-
ram gravação de várias cantigas rituais. 62 E t a m b é m a partir dos t e m p o s de E m i -
liana que a tradição oral do B o g u m conserva lembranças mais precisas sobre a
história do terreiro. 6 3
Emiliana p r e p a r o u pelo m e n o s três barcos — o p r i m e i r o de sete vodúnsis e
o segundo e terceiro de três — , o que vem a c o n f i r m a r a capacidade de recruta-
mento de novos m e m b r o s e a boa d i n â m i c a da congregação. O p r i m e i r o barco
celebrou a sua saída em 28 de j u l h o de 1940, 6 4 e nele f o r a m preparadas: N i -
cinha de Loko (filha carnal de R u n h ó ) ; M a r t i n h a de A j o n s u (Azonsu); Tomázia
de O x u m ; Teresa de O g u m ; Lourdes e u m a o u t r a filha de Bessen. Essa obriga-
ção de saída foi m u i t o concorrida, o q u e indica u m a p o p u l a r i d a d e e visibili-
dade social d o terreiro já afiançada pela gestão de Emiliana. 6 5
N o segundo barco, cuja saída deve ter acontecido em 1944, f o r a m inicia-
das: Roxinha de O x u m , c o n h e c i d a c o m o dofona da Vitória; M a r i a de Azonsu
e Luiza F r a n q u e l i n a da Rocha de Oiá. 6 6 Luiza Franquelina, ou gaiaku Luiza, a
quem já m e referi em várias ocasiões, foi criada n o Seja H u n d é e trazida ao
Bogum p o r M a r i a R o m a n a , p a s s a n d o a integrar esse barco q u a n d o já estava
recolhido. Esse fato deu o que falar e parece que surgiram certas diferenças entre
Romana e R u n h ó p o r causa disso. 6 7

Luiza Franquelina da Rotha, gaiaku L u i z a ( f e v . 2002)


Autor: Photini Papahatzi

231
LUIS NICOLAU PARÉS

O terceiro barco de três teve a sua saída em 21 de setembro de 1947 e fo-


ram preparadas: Dezinha de O x u m (hunsó ou mãe-pequena durante a gestão
de Nicinha), Clarice de Ajonsu e Luizinha de Ossaim. 6 8 Em 1999, dessas 13
vodúnsis, tinham falecido Roxinha, Tomazia e Luizinha. Cabe notar que a
partir de Emiliana o n ú m e r o de vodúnsis nos barcos de iniciação passa a ser
u m n ú m e r o ímpar, e n q u a n t o em t e m p o s de Valentina e de Maria Agorensi e
Abalhe no Seja H u n d e era u m n ú m e r o par, n o r m a l m e n t e 8 ou 12. bíoje a prá-
tica de iniciar um n ú m e r o ímpar de vodúnsis nos terreiros jeje-mahis parece
prevalecer.
Da época de Emiliana é l e m b r a d o o Velho R o m ã o , o ogã mais entendido
do Bogum, Gregório Bigodeiro e t a m b é m o ogã Saiu que, mesmo sem ser con-
firmado, foi uma pessoa m u i t o respeitada. 6 9 C o m o no Seja H u n d é , durante
a chefia de Emiliana existia uma complexa rede de relações sociais com outros
terreiros da cidade e do Recôncavo. Já foi comentada a presença de Romana e
de Caboco Acaçá, d o Seja H u n d é , em muitas obrigações do Bogum. Quando
o pessoal de Cachoeira visitava o Bogum em grupo, subia a ladeira do terreiro
cantando, pedindo licença para entrar, sendo recebido com outros cantos de
boas-vindas. O g r u p o p o d i a passar mais de u m mês h o s p e d a d o n o Bogum e
participava das festas e obrigações da casa, c o m o a q u i t a n d a e as "romarias"
ao parque São Bartolomeu para celebrar o v o d u m Bessen. 70
Existiam t a m b é m relações com o vizinho terreiro do Pó Zerrem, sob a di-
reção de seu Aprígio, e com Antônio de O x u m a r é e C o t i n h a , do terreiro Oxu-
maré na Mata Escura da Vasco da Gama. O famoso pai-de-santo Procópio, "de
ascendência jeje" mas chefe do terreiro O g u n j á , de nação ijexá (ketu, segundo
Carneiro), frequentava também o Bogum. Lá, ele participou na feitura de uma
vodúnsi, já que o santo dela precisava de um preparo próprio da nação de Pro-
cópio. 71 Existiam contatos com a Cacunda de Yaya de nação jeje-savalu e com
os terreiros nagô-ketus mais famosos, como a vizinha Casa Branca ou Enge-
n h o Velho. M e n i n i n h a do G a n t o i s e M a r i q u i n h a Lembá de Angola frequen-
tavam t a m b é m as festas d o Bogum. 7 2 E, p o r t a n t o , n o período de Emiliana
que o Bogum se consolidou como u m dos terreiros mais importantes de Sal-
vador. O prestígio d o terreiro estava baseado na competência ritual de seus lí-
deres, mas afiançava-se e era legitimado por essa rede social de c o n t a t o s e
colaborações com sacerdotes de outras "nações de c a n d o m b l é " que contri-
buíam para acrescentar o reconhecimento social, ritual e espiritual do Bogum
entre o povo-de-santo.

232
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS B O G U M E SEJA HUNOÉ

CONFLITOS DE S U C E S S Ã O E CISÕES: A R E G Ê N C I A D E R O M A N A N O B O G U M

Emiliana faleceu c o m 92 anos, em IO de n o v e m b r o de 19 5 0. 7 3 Três s e m a n a s


depois, falecia Abalhe, em C a c h o e i r a . O B o g u m f e c h o u p o r três anos e esse
per/odo de transição foi m a r c a d o p o r d i s p u t a s pela liderança. Pelo q u e sei,
os antagonismos c e n t r a v a m - s e e m t o r n o de duas das pessoas mais i n f l u e n t e s
da congregação n a q u e l a época: R o m a n a e R u n h ó . Por idade n o santo e s e n d o
mãe-pequena o u hunsó, R o m a n a devia suceder a Emiliana. 7 4 Antes de morrer,
Emiliana ia n o m e a r R o m a n a c o m o sucessora, mas R u n h ó , c o m q u e m R o m a n a
sempre teve p r o b l e m a s (já c o m e n t e i certas diferenças surgidas por causa da
iniciação de Luiza), o p u n h a - s e a tal sucessão. 7 ' R u n h ó alegava q u e R o m a n a
náo tinha sido iniciada n o B o g u m e q u e estava lá só e n c o s t a d a , o m e s m o ar-
gumento utilizado c o n t r a A b a l h e n o Seja H u n d é . Parece q u e as desavenças
também envolviam acusações m ú t u a s de feitiçaria. C o n t a - s e que, d e p o i s d o
zelim de seis meses de E m i l i a n a , R o m a n a a b a n d o n o u o B o g u m l e v a n d o seus
santos para a casa de humbono V i c e n t e , u m de seus f i l h o s - d e - s a n t o , e n q u a n -
to o pessoal d o Seja H u n d é , em C a c h o e i r a , reclamava esse privilégio. C o m o
é frequente nessas situações, parece q u e R o m a n a a b a n d o n o u o B o g u m a c o m -
panhada por u m g r u p o de rodantes. 7 6 O u t r a versão c o n t a q u e R u n h ó a i n d a
náo t i n h a c u m p r i d o todas as obrigações para p o d e r assumir c o m o doné e que,
finalmente, foi R o m a n a quem, após reconciliação com R u n h ó , assumiu c o m o
regente, na espera de q u e esta concluísse suas obrigações. 7 7
Por volta de 1953, M a r i a R o m a n a M o r e i r a a s s u m i u e f e t i v a m e n t e c o m o
zeladora, mas n u n c a foi doné n e m b o t o u v o d ú n s i n o B o g u m . 7 8 M a r i a R o m a -
na Moreira de K p o s u Batan A j a í era mais c o n h e c i d a c o m o R o m a n i n h a Pó o u
R o m a n i n h a Pósu (Pó-Ossum). 7 9 Humbono Vicente dizia q u e ela "era de O x u m ,
mas q u e m t o m o u c o n t a foi K p o " e q u e foi o p r i m e i r o K p o s u " p r e p a r a d o " n o
Brasil. C o m o já foi d i t o , ela foi iniciada por volta de 1875, na Roça de C i m a ,
com tio X a r e n e e Z é de Brechó. Humbono V i c e n t e c o n t a v a q u e , u m dia, Z é
de B r e c h ó e n c o n t r o u u m a t r o u x a n u m a e n c r u z i l h a d a , mas c o m o ele era
" d o n o do e b ó " n ã o teve m e d o e a d e s m a n c h o u , a c h a n d o no i n t e r i o r u m a
m e n i n a . Era R o m a n a e ele a "criou e fez o s a n t o dela". 8 0
R o m a n a era v e n d e d o r a de acaçá, pipoca com coco e o u t r a s iguarias. Ela
teve u m filho carnal q u e foi t e n e n t e do exército e u m a filha da qual teve vários
netos. 8 1 R o m a n a foi u m a m u l h e r carismática e de g r a n d e c o n h e c i m e n t o d o
f u n d a m e n t o , não só da nação jeje, mas t a m b é m das outras "nações". Ela t r a n -
sitava livremente entre o B o g u m , o n d e estava encostada, e o Seja H u n d é , o n d e
nada se fazia sem sua presença. Além disso, R o m a n a t a m b é m foi m ã e - p e q u e n a
do terreiro Bate Folha, de n a ç ã o angola ( m u x i c o n g o ) , f a t o que, n o v a m e n t e ,

233
LUIS NICOLAU PARÉS

a p o n t a para as estreitas relações e n t r e as nações jeje e angola. 8 2 F r e q u e n t a v a


com a s s i d u i d a d e o terreiro O x u m a r é . A l g u n s falam q u e R o m a n a fez a l g u m a
o b r i g a ç ã o de iniciação para A n t ô n i o O x u m a r é , u m dos p r i m e i r o s chefes da-
quela casa. 83 R o m a n a t a m b é m t i n h a livre acesso à C a c u n d a de Yayá e ao can-
d o m b l é d o P i n h o , em M a r a g o g i p e , de nação nagô.

Maria R o m a n a M o r e i r a , R o m a n i n h a de P ó ( 1 9 4 1 )

Essa m o b i l i d a d e de u m a experiente sacerdotisa através de c a n d o m b l é s de


nações diversas, na p r i m e i r a m e t a d e do século XX, a p o n t a para u m fator que
p o d e explicar certos f e n ó m e n o s de assimilação ou transferência de valores e
práticas rituais de u m a nação para outra. O r a , são precisamente esses especia-
listas religiosos conhecedores d o f u n d a m e n t o dos vários ritos ( o u t r o caso seria
o da sua filha-de-santo gaiaku Luiza) os mais conscientes e cientes das diferen-
ças litúrgicas. N o e n t a n t o , essa prestação de serviços em vários terreiros, que
às vezes podia responder a interesses materiais, n ã o era sempre vista com bons
olhos, e alguns acusaram R o m a n a de ser u m a " b o é m i a da religião". Aparente-

m e n t e , essa a t i t u d e foi u m dos motivos das disputas q u e surgiram com R u n h ó

e a n t e r i o r m e n t e t a m b é m com Abalhe e Emiliana. 8 4


R o m a n a p a r t i c i p o u na iniciação de m u i t o s barcos e m terreiros diferentes,

mas filhos-de-santo p r ó p r i o s só f o r a m q u a t r o . O p r i m e i r o foi Vicente Paul°


dos Santos, iniciado e m 1935, com 12 anos de idade. Ele recebeu uma p r l '
meira obrigação n o B o g u m c o m E m i l i a n a , mas foi p o s t e r i o r m e n t e p r e p a ' 3 '
d o p o r R o m a n a em sua casa d o M a t a t u , o n d e viveu até a m o r t e , em 200Í-
R o m a n a foi a j u d a d a p o r Velho R o m ã o , ogã d o B o g u m , e p o r o eã Caboco,
d o Seja H u n d é . C o m o já foi d i t o , Luiza F r a n q u e l i n a da Rocha foi i n í c 1 ^ *

234
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

em 1944. Existem a i n d a mais dois f i l h o s - d e - s a n t o : V i t o r i n o , q u e m o r a v a em


M i n a s Gerais, e M á r i o , q u e m o r o u n o sertão baiano. 8 5

V^* "
áA- n
Vicente P a u l o dos Santos, humbono Vicente de O g u m (2001)

Nos ú l t i m o s a n o s de v i d a , R o m a n a se h o s p e d o u em casa de humbono


Vicente, mas veio a falecer de diabetes na casa da filha carnal, na Ladeira do
C a n t o da C r u z , em o u t u b r o de 19 5 6. 8 6 Seus filhos-de-santo V i c e n t e e Luiza
afirmam q u e ela t i n h a e n t ã o 115 o u 120 anos, mas é mais provável q u e ti-
vesse uns 90 anos. Antes de sua m o r t e , R o m a n a d e i x o u a V i c e n t e t o d o s os
seus objetos religiosos, entre eles o assento de Kpo, u m xaxará de Azoani e u m
itacara de Bessen. Essa entrega foi realizada d i a n t e d o pessoal do Seja H u n d é .
Antes de ela morrer, t a m b é m , vários ogãs d o B o g u m f o r a m pedir-lhe a chave
do peji d 0 terreiro, q u e e n t ã o estava f e c h a d o , mas ela faleceu sem entregar
esse símbolo do poder. 8 7 Esses eventos sugerem q u e R o m a n a , a p o i a d a pelo
Pessoal do Seja H u n d é , m a n t e v e até o final dos dias u m a relação tensa c o m a
facção do B o g u m l i d e r a d a p o r R u n h ó .
d °Utr° e m
C a c h o e i r a , R o m a n a t a m b é m e n f r e n t o u certas d i f i c u l -
es
apos a m o r t e de Abalhe, em 1950. R o m a n a apoiava a c a n d i d a t u r a de
ra
rarasi, filha-de - s a n t o de Abalhe, n o p o s t o de gaiaku, mas e n f r e n t o u a c o n -
v e n c i a de gamo E d v i r g e m de O x u m , f i l h a - d e - s a n t o de M a r i a Agorensi. A
rtv a | jfi j
ade
entre a facção de Maria Agorensi e a de Abalhe, iniciada na década
192o
' c o r >tinuava na década de 1950. F i n a l m e n t e , parece q u e gamo Edvir-
lue ^ a n c ^ o n o u a
briga deixando o c a m i n h o livre para a sucessão de Pararasi,
e t e r ac
qUe p o n t e c i d o no fim dos anos 50, após a m o r t e de Romana. 8 8 Fala-se
ar
arasi assumiu "por conta própria" e que não foi "muito bem aceita pela

235
LUIS NICOLAU PARÉS

c o m u n i d a d e d e Cachoeira". 8 9 Em Salvador, R u n h ó t a m b é m não quis legiti-


mar a sucessão de Pararasi, talvez por ser u m a pessoa ligada a R o m a n a . Des-
se m o d o , e m b o r a com novos atores, o m e s m o " d r a m a social" do passado
reemergia com características semelhantes e a reintegração parcial da congre-
gação era a c o m p a n h a d a de um novo cisma.
Foi a partir dos anos 1950, e mais concretamente nos últimos anos da regên-
cia de Romana no Bogum, que as relações entre o Bogum e o Seja H u n d é se
esfriam e cessa a comunicação entre os dois terreiros. As causas são confusas,
mas fala-se que existiram acusações mútuas de incompetência ritual. 9 0 O que
um dia f o i "um só terreiro" desmembra-se em dois, pelas brigas micropolíticas
na procura do poder religioso. C o m a morte de Romana, que ainda f u n c i o n o u
como u m elo entre ambas as congregações, R u n h ó se afastou e interrompeu as
relações com o Seja H u n d é . Alguns falam que ela não queria mais depender
d o Seja H u n d é , que fora o feudo de Romana.
Q u a n d o em 1960 R u n h ó assumiu como nova doné do Bogum, já não apa-
receu ninguém de Cachoeira na cerimónia de posse. 91 Naquela c o n j u n t u r a , sua
filha carnal, Nicinha, foi escolhida mãe-pequena; R u n h ó colocou nos postos
de mais responsabilidade pessoas de confiança. 9 2 A partir de sua chefia, ou-
tros m e m b r o s d a família dos A n j o s c o m e ç a m a o c u p a r cargos de importân-
cia, constituindo o parentesco biológico uma forma de garantir a estabilidade
d o poder religioso e a continuidade do terreiro.

OS TEMPOS " M O D E R N O S " N O B O G U M : D E R U N H Ó A N I C I N H A

Maria Valentina dos Anjos, mais conhecida como R u n h ó , nasceu em 1877,


filha de A n a Maria dos Anjos. Ela deve ter ido morar no terreiro Bogum após
sua iniciação em 1911, q u a n d o tinha por volta de 30 anos. R u n h ó esteve ca-
sada ou viveu maritalmente com Gonçalo Alpiniano de Melo, filho-de-santo
da falecida Mariquinha Lembá, de nação angola, e, nessa época, já tinha dois de
seus q u a t r o filhos — o p r i m o g é n i t o A m â n c i o Angelo de Melo, que viria a
ser um dos ogãs mais importantes da casa, e Evangelista dos Anjos Costa (Ni-
cinha), q u e viria a suceder a mãe biológica na chefia religiosa. 9 3
Valentina dos Anjos era filha do vodum Sogbo Adan e seu n o m e africano
era Mere Doji. 9 4 O seu apelido, Runhó, que não deve ser c o n f u n d i d o com hunsó
(título da mãe-pequena no Bogum), deriva do termo gun ou aizo hunyó, n o m e
próprio de uma pessoa consagrada a uma divindade, ou sinónimo de hunsi (i.e.,
vodúnsi). 9 5 Os que a conheceram descrevem seu caráter como firme, respon-
sável, alegre e com m u i t a fé. 96 Ela se declarava católica e com "simpatia por

236
L I D E R A N Ç A E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

São J e r ô n i m o " , o q u e n ã o é de estranhar, se l e m b r a m o s o s i n c r e t i s m o de São


J e r ô n i m o c o m X a n g ô e Sogbo. 9 7 R u n h ó não gostava d o C a n d o m b l é q u a n d o
era moça, mas após a iniciação aceitou a r e s p o n s a b i l i d a d e religiosa c o m total
dedicação. E q u e d e Santa, sua irmã carnal, c o m e n t a v a que o "Sogbo de R u n h ó
não aceitava convites de q u a l q u e r pessoa", a l u d i n d o à sobriedade de seu c o m -
p o r t a m e n t o . J o r g e A m a d o a r e v e r e n c i o u c o m o e x e m p l o da "discrição e o re-
cato t r a d i c i o n a i s da n a ç ã o jeje" e o u t r o s d e s t a c a r a m a " a u s t e r i d a d e com q u e
c o n d u z i u seu C a n d o m b l é " . 9 8

Valentina M a r i a dos Anjos, doné Runhó (1975)

E possível q u e R u n h ó tivesse i n i c i a d o d u a s filhas-de-santo p o r volta de


1918, antes de assumir c o m o doné, pois ela c o m e n t a v a q u e " m i n h a s m e s m o
fiz d u a s filhas d e p o i s de sete anos [de ser iniciada]". 9 9 N a d a mais sei sobre
essas duas f i l h a s - d e - s a n t o , mas n a q u e l e t e m p o as iniciações p o d i a m ser reali-
zadas fora d o terreiro, f r e q u e n t e m e n t e em casas p a r t i c u l a r e s ou lugares isola-
dos fora da cidade. C a p o n e m e n c i o n a t a m b é m o caso de mãe Lindinha (Arlinda
Lopes dos Santos), filha biológica de Cristóvão de O g u n j á , dirigente do Ilê O g u m
Anauegi Belé I o m a n , terreiro de nação e f o n localizado no bairro de Ubaranas,
em Salvador. U m a das quizilas do C a n d o m b l é é que u m pai-de-santo não pode
iniciar os seus parentes biológicos mais imediatos, o que teria levado Cristóvão
a pedir a R u n h ó , como amiga desse terreiro, que iniciasse a sua filha. Essa obriga-
ção teria acontecido antes de 1947- 100
E m 1961, R u n h ó c o m e n t a v a que d o seu barco ficaram vivas apenas três vo-
dúnsis e "com as da casa, feitas pela finada Emiliana, são seis mais ou m e n o s

237
LUIS NICOLAU PARÉS

na ativa". 101 Essa escassez de rodantes foi parcialmente resolvida no ano seguin-
te, em 1962, q u a n d o Pararasi, a candidata de Romana, assumiu a chefia no Seja
H u n d é . A posse foi considerada ilegítima por algumas rodantes de lá e fala-se
que um grupo de aproximadamente dez mulheres passou então a frequentar o
Bogum. C o m esses eventos as relações entre o Bogum e o Seja H u n d é pioraram
e o contato entre ambos os terreiros cessou definitivamente. Entretanto, reme-
diar a escassez de rodantes da casa parece ter sido u m a das prioridades do
m a n d a t o de R u n h ó .
Entre 1964 e 1972 R u n h ó iniciou 6 barcos, com um total de 16 vodúnsis.
Apresento em seguida a lista de iniciadas e as datas das obrigações de saída ci-
tadas por Everaldo Duarte. Em 22 de julho de 1964 realizou-se a saída do pri-
meiro barco de duas vodúnsis: Maria de O m o l u e Teresa de Aziri Tobosi. Em
1966, teve a saída do segundo barco de três vodúnsis: Maria Odília de Ajonsu,
Eunice de O g u m e Jacira de Badé. Em 1967, o terceiro barco de três: Marlene
de Toquem, Margarida de Oiá e Anita de Agué. Em 21 de dezembro de 1970,
o quarto barco de três: u m a filha de Aziri, Adelina de Bessen e Zildete de Ode.
Em I a de agosto de 1971, o q u i n t o barco de dois: Nizette de Logun e Arlinda
de Lissá (Oxalá). Em 20 de o u t u b r o de 1972 realizou-se a saída do sexto e
último barco de R u n h ó de três vodúnsis: Ivone de O g u m , Beatriz de O x u m e
Nilce da Silveira de Ajonsu. 1 0 2
Comprovamos, portanto, uma grande atividade nessa época e também uma
grande diversidade de voduns, sendo todos os voduns diferentes, exceto dois
Aziri (Iemanjá), dois Ajonsu (Azonsu) e dois O g u m . Isso indica, até certo pon-
to, u m a vontade implícita de preservar a riqueza d o panteão jeje e ao mesmo
tempo u m a grande competência ritual de Runhó. C o n h e c i m e n t o esotérico que
ela fazia questão de preservar da curiosidade alheia: "quem não sabe não en-
tende, mas eu não m u d o e não ensino". 1 0 3
Mãe R u n h ó , que sofria do coração, veio a falecer no sábado, 27 de dezem-
bro de 1975, às 9 horas da m a n h ã . Era a véspera exata do início do ciclo de
festas da casa. Segundo a imprensa da época, R u n h ó tinha então 98 anos. Seu
s e p u l t a m e n t o ocorreu na m a n h ã do d o m i n g o , na Q u i n t a dos Lázaros; "o fé-
retro, as coroas, o cântico e o choro desceram a ladeira e, a pé, atravessaram
ruas e avenidas, à frente Iansã a b r i n d o o c a m i n h o , com seu grito terrível". 1 0 4
As 21 horas foi iniciado o sirrum no terreiro. N a última noite, no sábado
3 de janeiro, compareceram representantes de muitos terreiros e i m p o r t a n -
tes personalidades da cultura baiana c o m o Valdeloir Rego, Jorge A m a d o e
Caribé. A missa de sétimo dia, na m a n h ã seguinte, foi celebrada na Igreja de
São João Batista na Vila América. Nesse m o m e n t o , já se sabia que sua filha
gamo Lokosi seria a sucessora. "Na verdade, a direção do Terreiro do Bogum

238
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

J*

Sirrum de R u n h ó : m ã e Nicinho (em pé) junto ao filho E d i v a l d o dos Anjos Costa


Acervo Jornal da Bahia, 12/12/75

já estava nas suas m ã o s desde q u a n d o M a r i a V a l e n t i n a dos A n j o s , ' R u i n h ó ' ,


se encontrava d o e n t e . M a s essa realidade não aparecia, 'pois m e n i n o não p o d e
aparecer d i a n t e dos m a i s velhos'." 1 0 5 Pela p r i m e i r a vez, o B o g u m vive u m
período de t r a n s i ç ã o sem brigas pela sucessão. A política de aliança do p o -
der religioso a u m a m e s m a f a m í l i a parece q u e d e u resultados.
Após três a n o s d o f a l e c i m e n t o de R u n h ó , o terreiro foi r e a b e r t o no dia 2
de janeiro de 1979, e n o dia 21 "foi e m p o s s a d a a sucessora G a m o Lokosse".
Foi humbono V i c e n t e q u e m "sentou na cadeira" e deu posse a N i c i n h a . N o
dia 20 de fevereiro "o p r e f e i t o E d v a l d o B r i t o foi h o m e n a g e a d o d u r a n t e o
e n c e r r a m e n t o d o ciclo de festas q u e m a r c o u a a b e r t u r a d o c a n d o m b l é " . 1 0 6

Evangelista dos Anjos Costa, doné gamo Lokosi (Nicinho)

239
LUIS NICOLAU PARÉS

Evangelista dos A n j o s Costa, N i c i n h a de Loko, nasceu e cresceu no Bo-


g u m . Seu nascimento ocorreu em circunstâncias peculiares. Ela mesma ex-
plicava que sua mãe dizia "que eu nasci n u m a rua, debaixo de u m pé de loôco
(gameleira)". D a í a posterior consagração de N i c i n h a ao v o d u m Loko que,
como vimos, foi iniciada por Emiliana em 1940. Jehová de Carvalho acrescen-
ta que ela recebeu ainda algum o u t r o preparo posterior com R u n h ó , prova-
v e l m e n t e para poder assumir c o m o doné.wl
Na sua gestão, N i c i n h a preparou q u a t r o barcos. O p r i m e i r o foi recolhido
em j u n h o de 1985 e teve a sua saída em janeiro de 1986, com u m a duração
de sete meses. Humbono Vicente p a r t i c i p o u como p a i - p e q u e n o . Nele, foram
iniciadas dofona Zaildes Iracema de Mello, sobrinha de Nicinha, conhecida
c o m o í n d i a de O j o n s u (Azonsu), com 14 anos, e dofonitinha Kelba Carvalho
de Agontolu, filha do ogã Jehová de Carvalho. O segundo barco foi recolhido
provavelmente após o ciclo de festas, em fevereiro de 1986, e teve sua saída
em o u t u b r o do mesmo ano. Nele foram iniciadas dofona Sara Jesus de O x u m
e dofonitinha Gislene Jesus de Bessen. O terceiro barco teve sua saída em se-
tembro de 1989, com dofona Valdete Jesus de G u n , dofonitinha Jubiacira Jesus
de Nanã, forno Rita de Cassia de Kpo e fomotinha Conceição Gonçalves de
Iansa. O q u a r t o e ú l t i m o barco teve sua saída em fevereiro de 1990, com do-
fona Georgina de Sogbo e dofonitinha Albertina de Agué. P o r t a n t o , dez vo-
dúnsis com dez voduns diferentes. 1 0 8
D u r a n t e o t e m p o de Nicinha, o terreiro perdeu alguns de seus m e m b r o s
mais i m p o r t a n t e s , como a equede Santa, que faleceu pouco depois de 1981,
e o ogã huntó A m â n c i o Angelo de Melo, filho de R u n h ó , falecido em 26 de
d e z e m b r o de 1983. E n t r e t a n t o , N i c i n h a soube enfrentar as dificuldades com
grande determinação. Incentivada pela iniciativa do Projeto M A N M B A , coor-
d e n a d o pelo professor O r d e p Serra, ela foi responsável pela reorganização da
Sociedade Fiéis de São Bartolomeu, órgão civil gestor do terreiro, colocando
a sua frente o ogã mais velho, Lídio Pereira de Santana, com a assistência de
dois de seus filhos, Edvaldo e H a m i l t o n dos Anjos Costa, Everaldo Duarte,
o professor Jaime Sodré, Celestino do Espírito Santo, Ana Maria Costa e
Gilberto Leal. 109
Essa época, c o m o veremos em detalhe mais adiante, esteve marcada por
u m esforço persistente da c o m u n i d a d e em promover maior visibilidade so-
cial do terreiro. Nessa perspectiva, mãe N i c i n h a foi anfitriã da I a Semana de
Palestras: O Povo Malê e suas Influências, celebrada no terreiro entre 21 e 26
de julho de 1986. Nesse fórum, começaram a conceber medidas contra a espe-
culação imobiliária e a organizar u m a c a m p a n h a a fim de conseguir recursos
para restaurar o terreiro. 1 1 0

240
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Nicinha t a m b é m promoveu encontros com altos dignitários religiosos da


África. Em 23 de julho de 1983, após o encerramento da II Conferência Mun-
dial sobre a Tradição Orixá, celebrada em Salvador, Nicinha recebeu no terrei-
ro o Obá (rei) Oyesis Xagulan de Ejigbo, Nigéria.'" Em julho de 1988, recebeu
a visita de H u n o n Dagbo, o supremo responsável dos cultos voduns no Benin,
vindo a Salvador como delegado beninense participar da inauguração da Casa
do Benin. 112 Em ambas as ocasiões, mãe Nicinha puxou cânticos aos voduns
em língua africana, que foram imediatamente reconhecidos por seus interlo-
cutores africanos.

Visita de H u n o n D a g b o a o Bogum (jul., 198B). Sentados, da esquerda para


a direita: Everaldo D u a r t e , mãe Nicinha, Hunon D a g b o e Píerre Verger
A u t o r : Arlete Soares

Nicinha, que sofria uma anemia profunda e já tinha sido internada por duas
vezes, faleceu às 2 horas da madrugada da quarta-feira, 5 de o u t u b r o de 1994,
com 82 anos de idade. O cortejo fúnebre, celebrado a pé, como prescreve a
tradição jeje, foi do terreiro até o Cemitério da Q u i n t a dos Lázaros, onde foi
sepultada. Realizou-se o zelim d u r a n t e sete noites seguidas, a contar do dia da
morte da mãe-de-santo, e uma missa de sétimo dia na Igreja de Nossa Senhora
do Rosário dos Pretos, no Pelourinho. 1 1 3 Na ausência da doné, assumiu proviso-
riamente como responsável da casa a mãe-pequena hunsó Dezinha de O x u m .
O terreiro permaneceu fechado para o público leigo por mais de sete anos.
Foram t e m p o s difíceis para a congregação religiosa, que ainda perdeu, em
1995, o ogã bundeva Edvaldo dos Anjos Costa, filho carnal de Nicinha. Sur-
giram diferenças entre a facção dos mais tradicionalistas e conservadores e u m a
outra dos mais novos que queriam reiniciar as atividades com mais pressa.

241
LUIS NICOLAU PARÉS

Uma das características mais admiráveis dessa congregação tem sido a sua ca-
pacidade para superar os longos períodos de inatividade, às vezes de mais de
15 anos, gerados pelas disputas sucessórias. C o m o falava R u n h ó em 1961: "A
gente quer acabar mas tem t a n t o santo por aí que a gente tem que continuar
[...]. Nós não fazia questão de continuar mas diziam — terreiro é do gege!"114
Em 2001, aproveitando a c a m p a n h a lançada pela Fundação Palmares para
a recuperação dos terreiros de Salvador, o Bogum obteve recursos do Minis-
tério da C u l t u r a para consertar o barracão e os pejis, que nesse t e m p o sofre-
ram sério estrago. Finalizadas as obras, em 16 de dezembro de 2001, veio a
falecer humbono Vicente Paulo dos Santos, que deveria jogar os búzios para
confirmar a nova doné. D i a n t e dessa adversidade, foi convidado do Rio de
j a n e i r o o famoso olowo Agenor M i r a n d a Rocha, 94 anos, que em 30 de maio
de 2002, dia de C o r p u s Christi, após olhar os búzios de Ifá, a p o n t o u como
nova doné do Bogum a dofona Zaildes Iracema de Mello, 38 anos, conhecida
como índia de Ajonsu (Azonsu), sobrinha de N i c i n h a e neta de R u n h ó . Le-
gitimada pelos poderes do mais prestigiado e respeitado olowo do C a n d o m -
blé c o n t e m p o r â n e o , a liderança religiosa do Bogum permanecia ligada à fa-
mília de R u n h ó , já na sua terceira geração. As atividades públicas da casa
foram retomadas em d e z e m b r o de 2002, e em 17 de agosto de 2003 a suces-
sora t o m o u posse do cargo de doné, com o título de Naa Doji, para inaugu-
rar u m a nova etapa do B o g u m .

OS T E M P O S " M O D E R N O S " N O SEJA H U N D É :


DE PARARASI A L O K O S I E A I M I G R A Ç Ã O CARIOCA

Voltamos agora a Cachoeira para examinar o período que vai de 1960 até nos-
sos dias. A gestão de Pararasi, Adalgisa C o m b o Pereira, à frente do Seja Hundé,
marca uma nova etapa na história do terreiro. Ela nasceu em Castro Alves, perto
de Muritiba. Foi iniciada por Abalhe e consagrada ao vodum Parara, uma qua-
lidade de Sakpata ou Azonsu, "dançava de palha da Costa". Segundo humbono
115
Vicente, ela era já "moderna". C o m o vimos, a sua posse como gaiaku foi con-
testada por alguns membros da congregação. C o m o escreve Lopez de Carvalho,
"segundo a população de Cachoeira, o reinado de gaiaku Pararasi não foi dos
melhores. Dizem que ela possuía um génio muito difícil, chegando a ser m u i t o
autoritária. Muitas vodunsi da casa haviam já falecido e Pararasi teve uma certa
dificuldade na administração do terreiro". 116
A duração da chefia de Pararasi é difícil de estimar. Ela deve ter assumido
no fim da década de 1950, ou bem no início dos anos 1960. C e r t a m e n t e em

242
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

1962 ela já estava f u n c i o n a n d o com certa regularidade. Foi nesse ano que
gaiaku Luiza c o m p r o u terras no bairro do Caquende, em Cachoeira, e iniciou
as primeiras atividades do terreiro R u m p a y m e Agono H u n t o l o j i . 1 1 Essa cir-
cunstância deu lugar a sérias disputas entre ambos os candomblés, sendo que
o Seja H u n d é não aceitava a instalação de o u t r o terreiro da mesma nação em
Cachoeira. As brigas e os d e s e n t e n d i m e n t o s se prolongam até hoje. A idéia
de que n u m a determinada localidade só possa existir u m candomblé jeje-mahi
e, p o r t a n t o , u m a só gaiaku ou doné, é replicada no B o g u m . Essa n o r m a pa-
rece estar associada à noção de que os assentos instalados pelos africanos no
Seja H u n d é e Bogum não têm possibilidade de ser duplicados em outros lu-
gares, pois as "pedras" supostamente trazidas da Africa seriam a única e legíti-
ma moradia de d e t e r m i n a d o s v o d u n s . Mas t a m b é m parece que essa "regra"
teria sido utilizada e enfatizada c o m o a r g u m e n t o para evitar o d e s m e m b r a -
mento das congregações jeje-mahis nas suas sucessivas disputas internas du-
rante os períodos de sucessão. Isso explicaria, em parte, o sucesso da expansão
das casas nagôs, que não são tão rígidas a esse respeito.
Segundo ogã B e r n a r d i n o , Pararasi b o t o u q u a t r o barcos, e segundo ogã
Boboso foram só dois ou três. O primeiro barco foi recolhido em 1964. Nele
foram preparadas: 1) dofona Maria da Conceição de Azonsu, esposa do ogã
Zé Careca; 2) fomotinha Joana de Azonsu, irmã carnal de gaiaku Luiza e seu
G e n i n h o ; 3) u m a vodúnsi de Averekete; 4) u m a vodúnsi de O x u m ; 5) uma
vodúnsi de Logun Edé. Sabe-se ainda de mais três vodúnsis preparadas por
Pararasi: 6) dofono Edivaldo de Bessen; 1) forno Alda de Oiã; e 8) dofonitinha
Alaíde de Oiã. As duas últimas m o r a m no Rio, mas até recentemente viaja-
vam com regularidade para participar das festas do Seja H u n d é . Todavia, a
menção de um segundo dofono (Edivaldo) indicaria a existência de pelo me-
nos dois barcos,118
O primeiro barco causou grandes problemas a Pararasi e, segundo alguns,
"estrambalhou a roça", iniciando a decadência do Ventura. U m a explicação
dada por Luis Magno, f d h o carnal da dofona Maria da Conceição, é que foram
iniciadas u m a vodúnsi de O x u m e outra de Logun Edé, voduns que, no jeje,
segundo ele, só poderiam ser consagrados na cabeça de uma vodúnsi depois de
a mãe-de-santo ter preparado já vários barcos. "Ela começou por onde outras
terminam." 1 1 9 Alternativamente, outras pessoas explicam que, n u m barco, o
noviciado de Averekete deve ser feito em último lugar: "Averekete é o último;
Pararasi b o t o u em primeiro lugar e daí a casa foi arriando". 1 2 0 N e n h u m des-
ses argumentos parece inteiramente convincente, mas são interpretações que
apontam para o fato de que Pararasi teve problemas e críticas pela forma como
organizou esse barco.xu

243
LUIS NICOLAU PARÉS

C o i n c i d i n d o com o m o v i m e n t o migratório da população nordestina para


as cidades do Sul, Pararasi foi a primeira mãe-de-santo do Seja H u n d é a via-
jar para fora de Cachoeira e a profissionalizar suas atividades religiosas. Ela
morou por algum tempo no Rio, na casa de um ogã do Seja H u n d é de nome
José, e também em Belo Horizonte, onde vivia oferecendo serviços religiosos. 122
O período no Rio foi o início do desenvolvimento de uma rede social que, como
veremos, acabou por m u d a r de forma significativa a base social do Seja H u n d é
nas décadas seguintes. A data do falecimento de Pararasi, ao que t u d o indica,
ocorreu entre 1969 e 1971, q u a n d o ela tinha 84 anos de idade. Uns dizem que
faleceu em Cachoeira e outros que faleceu em Belo Horizonte, mas humbono
'Vicente assegurava que foi em Salvador: "morreu de uma doença na barriga, di-
zem que enfeitiçada". Contudo, o sirrum de sete dias, dirigido por Nezinho do
Portão, foi realizado numa casa alugada na Rua do Carmo, em Cachoeira. 123
Após a morte de Pararasi, Eliza Gonzaga de Souza, Vivi Aguesi, filha-de-
santo de Maria Agorensi, assumiu como "regente" do Seja Hundé. 1 2 4 Hum-
bono V i c e n t e , talvez n u m a m a n o b r a política no processo de sucessão de
Pararasi, a p a r e n t e m e n t e fez alguma obrigação para c o n f i r m a r Aguesi nesse
cargo, mas t a m b é m afirma que "ela não recebeu posse", pois não podia assu-
mir c o m o gaiaku}1'' Segundo a tradição jeje, a qualidade do Agué carregado
por Aguesi, Agué Aboro, que é um v o d u m m e n i n o , não permite que sua vo-
dúnsi assuma esse cargo. T a m b é m se diz que a pessoa desse v o d u m , embora
capacitada para dirigir ou supervisar processos de iniciação, não p o d e raspar
nem pintar, isto é, "botar mão na cabeça" de n i n g u é m . E n t r e t a n t o , em 1980,
Aguesi b o t o u u m barco e iniciou dois filhos-de-santo, um dofono de Azonsu
e uma dofonitinha de O x u m , o que é considerado por alguns como causa de
suas enfermidades e posterior demência senil. 126
D u r a n t e a década de 1980, parece que o Seja H u n d é c o n t i n u o u com certa
estabilidade e se batia a n u a l m e n t e , porém já com um n ú m e r o reduzido de
vodúnsis. Em 9 de maio de 1992, Aguesi foi convidada ao Rio de Janeiro pelo
pai-de-santo Zezinho da Boa Viagem, um dos filhos-de-santo de fomotinho Kn-
tônio Pinto, irmão-de-esteira de Aguesi. Foi recebida no aeroporto por mais
de cem pessoas e a presença da mídia local, causando grande ressonância entre
o povo-de-santo carioca. 1 2 7 N o e n t a n t o , foi p o s t e r i o r m e n t e esquecida, sem
receber atenção q u a n d o , na sua velhice, mais a necessitava.
C o m o sobrinha de Maria Agorensi, Aguesi era a legítima herdeira das terras
do Seja H u n d é , e é por isso que alguns a consideravam a verdadeira "dona da
roça". N o s inícios de 1990, eia começou a sofrer problemas de saúde, o que
foi aproveitado por outros membros da congregação religiosa para afastá-la da
liderança do candomblé. Ela morava, então, na Ladeira da Cadeia (na casa que

244
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

fora da sua tia Maria Agorensi), e posteriormente sozinha na ladeira Manoel


Vitorio, na Recuada, onde foi progressivamente esquecida e abandonada.'""
Foi nesse período que Augusta Maria da Conceição Marques, gamo Lokosi,
filha-de-santo de Abalhe, assumiu como nova. gaiaku. Humbono Vicente lhe
deu posse na sua casa do Matatu, em Salvador. 129 C o m o Aguesi ainda estava
viva, há q u e m sugira que "o trono da Roça do Ventura estava ocupado [...]
paralelamente por duas gaiakus: Aguesse e G a m o Lokossi". 130 Trata-se de um
eufemismo retórico, pois Aguesi já não tinha n e n h u m a participação nas ativi-
dades religiosas e faleceu em 14 de janeiro de 1998, com 95 anos de idade.
Lokosi foi iniciada n o Seja H u n d é p o r q u e a natureza de seu santo, Loko,
exigia u m a feitura na nação jeje, no e n t a n t o ela já t i n h a assentado anterior-
mente um Xangô no terreiro nagô-ijexá, o n d e dançava sua mãe biológica. Na
atualidade, além de ser a gaiaku do Seja H u n d é , ela também lidera um outro
terreiro de nação ijexá em Salvador. Essa simultaneidade de adscrições religiosas
não deixa de ser significativa e indica a permeabilidade entre os diversos ri-
tos de C a n d o m b l é . As diferenças litúrgicas entre u m a e outra nação p o d e m
ser mantidas em cada terreiro; por exemplo, no terreiro de Salvador Lokosi se
recebe caboclo, mas isso não acontece no Seja H u n d é , onde os caboclos não
são aceitos. Porém, pelo menos um filho-de-santo preparado no rito ijexá acom-
panha Lokosi regularmente nas obrigações do Seja Hundé. 1 3 1
Desde 1995, q u a n d o assisti pela primeira vez a obrigações do Seja H u n d é ,
as atividades desse c a n d o m b l é têm-se desenvolvido com regularidade. Nesse
mesmo ano, foram c o n f i r m a d o s dois ogãs e foi recolhido u m barco de uma
só pessoa, um neto de ogã Boboso, pertencente ao v o d u m Bessen. O jovem
N e t i n h o , como era conhecido, estava predestinado a assumir a f u t u r a lide-
rança do Seja H u n d é , pois seu santo, d o n o da nação jeje-mahi, o indicava
como tal. Infelizmente, ele morreu u m ano depois, em julho de 1996, trun-
cando essas perspectivas. Para Lokosi esse não foi m u i t o bom augúrio e pa-
recia confirmar a tendência ao declínio, iniciada nos tempos de Pararasi. N u m
aparente esforço para corrigir essa situação, em j u n h o de 2003 foram confir-
mados dois novos ogãs e foi recolhida para ser iniciada uma nova vodúnsi de
Bessen originária do Rio de Janeiro.
C o m o Pararasi, gamo Lokosi t a m b é m manteve contato periódico com o
Rio, o que contribuiu para gerar uma presença cada vez maior de pessoas desse
estado e, em m e n o r medida, de São Paulo, tanto como ogãs q u a n t o como vo-
dúnsis. A complexa rede de parentesco que estruturava e que de certa forma
garantia os recursos para o f u n c i o n a m e n t o do candomblé na primeira metade
do século começou a desintegrar-se em favor de um fluxo de participantes
cariocas e paulistas que supre essa função. E m b o r a alguns m e m b r o s da famí-

245
LUIS NICOLAU PARÉS

lia de ogã Boboso e de ogã Bernardino sigam d e s e m p e n h a n d o um papel im-


p o r t a n t e nas atividades litúrgicas, os participantes cariocas, m u i t o s deles fi-
lhos ou netos-de-santo de fomotinho A n t ô n i o Pinto de O x u m , têm mudado
a estrutura social e a dinâmica interna da congregação religiosa.
Se, no passado, o Seja H u n d é se caracterizava por ter u m a maioria de mu-
lheres negras feitas no próprio terreiro e moradoras em Cachoeira ou imedia-
ções, nos últimos anos houve crescente participação de vodúnsis homens, por
sinal adés (homossexuais), relativamente jovens, brancos e feitos nas cidades
do Sul d o país. N o ciclo de festas em janeiro de 2000, por exemplo, dança-
ram três homens do Rio, um de São Paulo, outros dois visitantes locais, acom-
p a n h a d o s por apenas u m a m u l h e r da casa. A m u d a n ç a de procedência social
dos agentes do ritual religioso tem afetado certos aspectos litúrgicos (toques de
tambor mais rápidos, o que é visto como u m a influência dos candomblés ca-
riocas), certas formas de convívio (os ogãs têm hoje u m casebre com dois quar-
tos, camas e banheiro e não d o r m e m mais no barracão) e, indiretamente, as
relações internas de poder.
Everaldo D u a r t e nota que no Bogum a presença de cariocas e paulistas já
se experimentava antes da suspensão das suas atividades em 1993. N o entanto,
as ligações do Seja H u n d é com o jeje carioca são bem mais antigas. Fala-se que
no Rio de Janeiro o primeiro terreiro jeje foi o Kwe Simba de gaiaku Rozenda,
u m a africana chegada ao Brasil por volta de 18 5 0. 132 Porém, quem mais con-
tribuiu para a difusão do rito jeje no C a n d o m b l é carioca foi Tata fomotinho
de O x u m i l a ( O x u m ) , iniciado em 1913 por Maria Agorensi. Ainda sem ter
concluído sua iniciação, com apenas 17 anos ele se m u d o u para o Rio, estabe-
lecendo-se em São João de N i t e r ó i , o n d e iniciou g r a n d e q u a n t i d a d e de fi-
l h o s - d e - s a n t o . D e n t r e os mais conhecidos figura Z e z i n h o da Boa Viagem,
q u e por sua vez iniciou alguns dos atuais p a r t i c i p a n t e s das festas do Seja
H u n d é . Fomotinho t a m b é m p r e p a r o u m u i t o s filhos-de-santo em São Paulo,
c o m o J a m i l R a c h i d de O b a l u a ê , i n f l u e n t e líder da u m b a n d a paulista. 1 3 3
Segundo explicam seus netos e bisnetos-de-santo, " f o m o t i n h o já vagunzou com
ketu e angola" e essa seria u m a das razões que os teriam levado ao Seja H u n d é
na procura das "autênticas" raízes do jeje-mahi. 1 3 4 E m t e m p o s mais recen-
tes, t a m b é m f i l h o s - d e - s a n t o de gaiaku Luiza c o n t r i b u í r a m para a d i f u s ã o
d o rito jeje-mahi n o Rio de Janeiro. Por exemplo, D o t é Nelson de A z u n z u
a b r i u um p o p u l a r terreiro n o Parque São José Belford Roxo e foi d i r e t o r
presidente da Rádio M a r r y m FM, dedicada à "divulgação de programas espí-
ritas" nos anos 1996-1998. T a m b é m A m a o r i de Oxóssi e Marcos A n t ô n i o
Lopez de Carvalho de Bessen, ambos preparados pot gaiaku Luiza, têm ter-
reiros jeje-mahis n o Rio. 1 3 5

246
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

Além dos conhecimentos rituais adquiridos em Cachoeira, é sobretudo o


contato com as "origens" o que confere a esses especialistas religiosos um pre-
zado prestígio e status, u m a vez de volta para as suas respectivas comunidades.
Na verdade, a afluência de pessoas do Sul aos terreiros jejes da Bahia insere-se
num movimento muito mais amplo e complexo que vem afetando as religiões
afro-brasileiras desde as décadas de 1970 e 1980. O C a n d o m b l é passou de uma
religião marginalizada e discriminada a ser percebido como uma prática cul-
tural digna de reconhecimento social. Essa nova visibilidade e prestígio da insti-
tuição religiosa se deu com base na valorização da "tradição" e "pureza africana"
das casas baianas de fundação mais antiga. Por sua vez, a nova conjuntura levou
ao chamado processo de "reafricanização", que se expressou no discurso contra
o "sincretismo" católico, o incremento das viagens de especialistas religiosos à
Africa e a implantação de cursos de iorubá, para citar apenas alguns dos as-
pectos mais conhecidos. N o conjunto, essas circunstâncias contribuíram para
que nas cidades do Sul houvesse uma paulatina transferência de praticantes da
Umbanda para o Candomblé, percebido agora como uma tradição de mais "for-
ça" e eficácia, o que no mercado religioso significava também a possibilidade
de maior clientela. Nesse contexto, a Africa ou, alternativamente, na impossibi-
lidade de chegar até lá, as casas "tradicionais" do C a n d o m b l é baiano, que fica-
vam mais perto e acessíveis, passaram a ser prestigiadas como a alvejada fonte
de conhecimento esotérico e "pureza africana" que podia legitimar as práticas
e, em definitivo, o poder dos novos especialistas religiosos. 136
Foi nessa dinâmica sócio-histórica que, no âmbito da nação jeje, o Seja
H u n d é e o Bogum, como casas antigas de raiz africana, foram dimensionados
e associados ao ideal de pureza que, por sua vez, gerou a afluência do pessoal
do Sul. N o caso do Seja H u n d é , muitos desses visitantes justificam essa esco-
lha f u n d a m e n t a n d o - a na sua genealogia religiosa, que através de. fomotinho
os ligaria por ascendência a essa casa. T a m b é m o pessoal d o Seja H u n d é , com
suas viagens ao Rio, São Paulo, Minas Gerais e outras partes dos país, não
deixaram de reforçar u m a rede social que encoraja, pelos benefícios materiais
que reporta, essas visitas d u r a n t e os períodos de festa. Ora, essa presença ma-
ciça de pessoas de fora não deixa de provocar certas tensões e resistência por
parte dos membros mais antigos da casa. Mais de uma vez escutei certos "visi-
tantes" se queixando de que "os velhos não explicam nada" e de terem sido
afastados de certas obrigações internas. N o e n t a n t o , os "velhos" são t a m b é m
conscientes da necessidade de ceder e chegar a um compromisso ou consenso,
pois sabem que, na situação atual as atividades do terreiro, tanto em nível ma-
terial como para garantir o número suficiente de participantes, dependem dessas
pessoas. O povo jeje tem demonstrado amplamente a sua capacidade de per-

247
LUIS NICOLAU PARÉS

sistência e adaptação, superando m o m e n t o s difíceis, como, por exemplo, os


longos conflitos de sucessão; p o r é m os desafios dos novos tempos são bem
diferentes e as consequências, imprevisíveis.

A POSSE DA TERRA: P R O B L E M A S F U N D I Á R I O S D O B O G U M ( 1 9 6 0 - 1 9 9 0 )

Os problemas do Bogum parecem ser de outra natureza. Nesse caso, o contexto


urbano tem sido o grande inimigo dessa congregação. A partir da década de 1960,
com a chefia de R u n h ó , inicia-se o que chamei a "época moderna" do Bogum,
jnarcada por mudanças importantes relacionadas com os efeitos do crescimento
urbanístico de Salvador e a especulação imobiliária.
Em 1890, na arrecadação da propriedade de Maria Julia Figueiredo, ialo-
rixá do Ilê Iyá Nassô, consta que o "lugar denominado Engenho Velho, estrada
do Rio Vermelho [estava] em terreno arrendado e de propriedade do doutor José
Carneiro de Campos". C o m o o Ilê Iyá Nassô era vizinho do terreiro Bogum,
poder-se-ia inferir que o doutor José Carneiro de Campos tenha sido o proprie-
tário das terras de ambos os candomblés, até pelo menos a última década do século
XIX.' 3 " Provavelmente, no início do século XX, 13S as terras do Engenho Velho
da Federação foram compradas pelo comendador Bernardo Martins Catharino,
cuja propriedade incluía os terreiros do Bogum, Pó Zerrem e Casa Branca e se
estendia até o Gantois. Por volta de 1930, essa área de 226.526 metros qua-
drados foi herdada por Eduardo Martins Catharino, filho do comendador, e,
em 1953, após a morte de Eduardo, passou a pertencer à filha do comendador,
Maria Laura Martins Catharino, e o esposo Hermógenes Príncipe de Oliveira.
Após a separação do casal, em 1989, as terras passaram a ser propriedade de
Hermógenes Príncipe de Oliveira, o atual proprietário. 1 3 9
C o m o indiquei no capítulo anterior, originalmente, a extensão do terrei-
ro Bogum abarcava uma grande área de mato. As terras iam do alto da Federa-
ção — hoje Praça Valmir Barreto — e se estendiam, descendo o morro, até chegar
na antiga estrada Dois de Julho — hoje Avenida Vasco da Gama —, onde pas-
sava o rio Lucaia. Existiam, nas imediações, perto do rio, duas fontes dedicadas
às obrigações rituais. O barracão, localizado no alto do morro, era dividido do
resto das terras pela Ladeira do Bogum, um antigo caminho público. N o final
da década de 1950 ou princípios dos anos 1960, esse caminho foi asfaltado pela
prefeitura de Salvador, convertendo-se na atual via pública Ladeira Manoel
B o m f i m . Essa primeira m u d a n ç a urbanística contribuiu para partir ao meio o
terreiro. Desde então, o Bogum "teve o seu espaço físico d i m i n u í d o cinco vezes
ao que era originalmente". 1 4 0

248
LIDERANÇA E DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM E SEJA HUNOÉ

M a p a S — O sítio terreiro B o g u m , área original


aproximada (linha pontilhada) e área atual (sombreada)

Fonte: S I C A R / C O N D E R ; Projeto M A M N B A , Prefeitura Municipal de Salvador, sef., 1981.

A progressiva perda de terras ocorreu devido, sobretudo, à construção de


casas e casebres, iniciada em finais dos anos 1950, e se agravou na década de
1960. As terras que ficavam do outro lado da Ladeira Manoel B o m f i m foram
aos poucos ocupadas por terceiros, a partir de vendas realizadas pela família
Catharino (proprietários nominais das terras), concessões que fazia R u n h ó a
pessoas que vinham pedir-lhe ajuda, e vendas ocasionais que realizava por conta
própria Elísio, irmão de Nicinha. Ao mesmo tempo, havia certa negligência
da prefeitura, que não controlava a situação. 141
Em janeiro de 1961 R u n h ó já lamentava que parte das árvores sagradas ti-
vessem sido "separadas" do terreiro e queixava-se dos problemas imobiliários
pelos quais passava o terreiro. Ela comentava que "o senhor Catarino parece

249
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

q u e q u e r v e n d e r o t e r r e n o d o n d e está s i t u a d o o b a r r a c ã o " e a c r e s c e n t a v a que a


c o m u n i d a d e n ã o p o d i a c o m p r á - l o , pois " n ã o se p o d e p a g a r o q u e ele quer". 1 4 2
E m p r i n c í p i o s dos 1970 p a r e c e q u e o B o g u m a p e n a s p o s s u í a as terras do bar-
racão e, d o l a d o este da Ladeira M a n o e l B o m f i m , a p e n a s dois p e q u e n o s pedaços:
u m deles s e p a r a d o u n s 50 m e t r o s d o b a r r a c ã o , o n d e estava a á r v o r e sagrada do
v o d u m A z o n o d o , e u m o u t r o o n d e t i n h a a casa de Agorensi, u m a a n t i g a vodúnsi
d o B o g u m . P o u c o s dias a n t e s d a sua m o r t e , R u n h ó , e m d e c l a r a ç õ e s feitas ao
p r o f e s s o r J u a r e z Paraíso d u r a n t e as f d m a g e n s d e " T e n d a d o s M i l a g r e s " , d o ci-
neasta N e l s o n Pereira, declarava: " C a d a d i a vai f i c a n d o mais difícil fazer as obri-
gações d o gege, aos n o s s o s v o d u n s (orixás). É q u e estão f a l t a n d o m a t o e rio,
p r ó x i m o s de n o s s o terreiro. A n t e s t í n h a m o s u m rio p o r aqui; m a s foi e n t u l h a d o .
E p a r a 'fazer s a n t o ' , só t e n d o m a t o e água". 1 4 3
E m 1978, a i n d a sob o l u t o p e l a m o r t e d e R u n h ó , a á r v o r e de A z o n o d o , de
g r a n d e i m p o r t â n c i a r i t u a l , t o m b o u sob as c h u v a s i n v e r n a i s , d i z e m q u e i n j e t a -
da c o m a g e n t e s q u í m i c o s q u e a c a b a r a m c o m a s u a v i d a (ver cap. 8). P o u c o
t e m p o d e p o i s esse p e d a ç o d e t e r r a de A z o n o d o f o i v e n d i d o e os b e n e f í c i o s ,
d i s t r i b u í d o s e n t r e vários m e m b r o s d o terreiro. O g ã C e l e s t i n o c o m e n t a v a : "nos
d e s f i z e m o s de p a r t e d o t e r r e n o p o r q u e f a z í a m o s m u r o e d e r r u b a v a m , além de
j o g a r e m lixo nele". 1 4 4
C o m o já c o m e n t e i , e m 20 d e f e v e r e i r o d e 1979 o p r e f e i t o E d v a l d o B r i t o
v i s i t o u o t e r r e i r o e foi h o m e n a g e a d o p e l a c o m u n i d a d e . N i c i n h a i n i c i a v a sua
g e s t ã o c o m a l i a n ç a s p o l í t i c a s d o m a i s a l t o nível, e m b o r a J e h o v á d e C a r v a l h o ,
e m seu d i s c u r s o , a f i r m a s s e q u e "esse c a n d o m b l é n u n c a h o m e n a g e o u a n t e r i o r -
m e n t e n e n h u m a a u t o r i d a d e e recebe o prefeito, n ã o pelo cargo q u e ocupa,
m a s p o r sua c o n d i ç ã o d e h o m e m i n t e g r a d o ao c a n d o m b l é " . 1 4 5 E n t r e t a n t o ,
essas ações i n d i c a m u m a v o n t a d e d a c o m u n i d a d e p a r a c h a m a r a a t e n ç ã o d o s
p o d e r e s p ú b l i c o s s o b r e a s i t u a ç ã o d o t e r r e i r o e v e i c u l a r as suas d e m a n d a s .
E m 1981, a p r e f e i t u r a de Salvador, e m c o n v é n i o c o m o SpHAN/Pró-Memória
d o M i n i s t é r i o d e C u l t u r a e sob a d i r e ç ã o d o p r o f e s s o r O r d e p Serra, lança o Pro-
jeto MAMNBA ( M a p e a m e n t o de M o n u m e n t o s N e g r o s da Bahia), q u e visava p r e -
servar, c o m o p a t r o c í n i o d o s órgãos p ú b l i c o s , as áreas sagradas dos terreiros d e
Salvador. Esse p r o j e t o c o n s e g u i u o t o m b a m e n t o d a C a s a B r a n c a , e m 1984, e o
início d o s t r a b a l h o s d e p r e s e r v a ç ã o d o P a r q u e São B a r t o l o m e u . O r d e p Serra e
o Projeto MAMNBA e m m u i t o c o n t r i b u í r a m p a r a a r e o r g a n i z a ç ã o da S o c i e d a d e
de Fiéis de São B a r t o l o m e u , q u e deveria ser i n s t r u m e n t a l pela c o o r d e n a ç ã o d o s
esforços d o terreiro na luta pela subsistência. O s esforços de ogãs c o m o Everaldo
D u a r t e , J a i m e S o d r é e G i l b e r t o Leal, e n t r e o u t r o s , f o r a m d e g r a n d e i m p o r t â n -
cia nesse p r o c e s s o .
E m 1985, sob a i n i c i a t i v a do P r o j e t o MAMNBA, O e n t ã o p r e f e i t o d e Salva-
dor, M a n o e l Figueiredo Castro, e n c a m i n h o u à C â m a r a Municipal o projeto de

250
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

lei n 2 3.591/85, para declarar o B o g u m , a Casa Branca, o G a n t o i s e o C a n d o m -


blé Ipatirió Gallo c o m o Área de Proteção C u l t u r a l e Paisagística. Essa lei decla-
rava Área de Proteção Rigorosa a extensão do c a n d o m b l é de uso religioso e resi-
dencial, assim c o m o as árvores isoladas e seu entorno. Prescrevia que não seriam
N6
permitidas edificações maiores de dois p a v i m e n t o s nas áreas vizinhas.
Um s e g u n d o p r o j e t o de lei da m e s m a época d e t e r m i n a v a q u e os terreiros
não deviam pagar m a i s décimas à p r e f e i t u r a . Existem cópias de recibos de
impostos pagos pelo B o g u m dos anos 1960, n o n o m e de M a r i a E m i l i a n a da
Piedade, o q u e sugere q u e esses i m p o s t o s e r a m pagos desde os t e m p o s da sua
gestão, nos anos 1940. Em declarações ao j o r n a l A Tarde, N i c i n h a se c o n g r a -
tulava: "pelo m e n o s , nós n á o vamos pagar i m p o s t o s . H o j e em dia, além dos
impostos, nós p a g a m o s l a u d ê m i o s , pois o t e r r e n o não é nosso, até e n t ã o " .
A p r o v e i t a n d o a c o n j u n t u r a e s e g u i n d o o c o n s e l h o da d i r e ç ã o d o P r o j e t o
MAMNBA, o B o g u m deixa de pagar t a m b é m o aluguel das terras. D e s d e en-
tão, a família Príncipe de Oliveira, p r o p r i e t á r i o s oficiais d o t e r r e n o , t a m b é m
não reclamou mais o p a g a m e n t o do aluguel. Porém os m o r a d o r e s do B o g u m
ainda não t ê m n e n h u m registro de p r o p r i e d a d e das terras. 1 4 '

Laterol do terreiro Bogum antes da recuperação do telhado (22/7/87)

A lei q u e declarava o B o g u m Área de Proteção C u l t u r a l e Paisagística foi


aprovada, mas não foi regulamentada. Devido à falta de controle e meios de im-
plementação da lei por parte da prefeitura, as edificações de mais de dois pavi-
mentos proliferaram nas imediações do terreiro, prejudicando seriamente a priva-
cidade das práticas religiosas. N o marco da já comentada U Semana de Palestras:

251
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

O Povo Malê e suas Influências, celebrado em 1986, Jaime Sodré c h a m o u a aten-


ção para a área cada vez mais reduzida d o terreiro, e N i c i n h a se queixava dizendo
que "isso na maioria das vezes atrapalha a realização das cerimonias secretas do
culto, pois estas ficam à vista de curiosos". A lei existia, mas sua eficácia era nula.
Sodré t a m b é m reclamou da "situação precária de conservação em q u e se encon-
tram as instalações físicas do terreiro", c o m necessidade de obras urgentes, e su-
geriu o t o m b a m e n t o para preservá-lo e evitar esses problemas. 1 4 8
Se por u m lado o p r o j e t o d e t o m b a m e n t o n ã o p r o s p e r o u , d e v i d o a u m a
decisão interna dos m e m b r o s d o B o g u m , q u e t e m i a m desse m o d o n ã o p o d e r
preservar a privacidade das áreas sagradas, a c a m p a n h a l a n ç a d a através da im-
p r e n s a e outras iniciativas políticas parece ter s u r t i d o a l g u m efeito. E m m a r ç o
de 1987 a F u n d a ç ã o G r e g ó r i o de M a t o s , sob a p r e s i d ê n c i a de G i l b e r t o Gil e a
direção de A n t ô n i o Risério, lançava u m a c a m p a n h a para a r e c u p e r a ç ã o dos
principais terreiros da c i d a d e . N o B o g u m , essa iniciativa c o n t r i b u i u p r i n c i p a l -
m e n t e para refazer o t e l h a d o d o barracão e levantar m u r o s em t o r n o do terreno,
p o r q u e , c o n f o r m e declarava o ogã C e l e s t i n o Santos, "o d i n h e i r o d a casa é in-
suficiente para os reparos". N a q u e l e m o m e n t o de e n t u s i a s m o esperava-se ainda
o b t e r o u t r o s apoios em níveis estadual e federal. I n f e l i z m e n t e , a p e n a s d u r a n t e
a gestão da prefeita Lídice, em n o v e m b r o de 1993, f o r a m realizadas a l g u m a s
r e f o r m a s na Praça da Federação, nas i m e d i a ç õ e s d o terreiro, q u e passou a se
c h a m a r Praça M ã e R u n h ó , i n s t a l a n d o - s e ali u m b u s t o d a doné R u n h ó . 1 4 9
P o r t a n t o , na d é c a d a de 1980 o B o g u m se m o b i l i z o u através de c o n t a t o s
p o l í t i c o s e do uso da m í d i a para l u t a r c o n t r a a especulação i m o b i l i á r i a e o b t e r
benefícios dos órgãos p ú b l i c o s . A utilização da i m p r e n s a pelos terreiros (e vice-
versa) merece u m p e q u e n o parêntese. Ela foi iniciada nos anos 1970, e em 1973
o j o r n a l A Tarde, por e x e m p l o , c o m e ç o u a a n u n c i a r r e g u l a r m e n t e vários dos
terreiros mais famosos da cidade, e n t r e eles o B o g u m , "a fim de facilitar àqueles
q u e desejam visitar os terreiros de C a n d o m b l é " . 1 ^ 0 Esse p e r í o d o c o r r e s p o n d e
ao m o m e n t o em q u e a política d o G o v e r n o da Bahia c o m e ç a a p r o j e t a r o C a n -
d o m b l é c o m o sinal de i d e n t i d a d e c u l t u r a l b a i a n a , e q u e o C a n d o m b l é começa
a se p r o m o v e r c o m o e s p e t á c u l o t u r í s t i c o e p r o d u t o d e marketing cultural.
S i m u l t a n e a m e n t e a essa m a n i p u l a ç ã o externa, as c o m u n i d a d e s religiosas, es-
p e c i a l m e n t e através de seus ogãs, n ã o d e i x a r a m passar a o p o r t u n i d a d e a b e r t a
p o r esse processo, u t i l i z a n d o , p o r sua vez, a i m p r e n s a c o m o a r m a para sensibi-
lizar a o p i n i ã o pública e reivindicar ajudas dos órgãos oficiais. A década de 1980
parece ser a mais ativa nesse s e n t i d o . N o caso d o B o g u m , a a n t i g u i d a d e do
terreiro e a p r e t e n s ã o de ser "o único c a n d o m b l é da n a ç ã o Jeje no e s t a d o da
Bahia", "o último de u m a série de sítios históricos" o u " u m a espécie d e museu
jeje" (grifo nosso), além de ser f o r m a s de legitimar a a u t o r i d a d e religiosa entre

252
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

o p o v o - d e - s a n t o , f o r a m os valores críticos utilizados na estratégia do terrei-


ro para dar c r e d i b i l i d a d e a suas d e m a n d a s , d e f e n d e r seus direitos e reivindi-
car apoio dos órgãos p ú b l i c o s . 1 M
Paralelamente, a outra idéia que c o n t r i b u i u para a c o n s t r u ç ã o d o prestígio
da casa através da i m p r e n s a foi apelar para a idéia de q u e o B o g u m era u m
"matriarcado". C o m o já vimos, a liderança f e m i n i n a do B o g u m data do perío-
do pós-abolição, e n q u a n t o na segunda m e t a d e do século XIX, apesar da signi-
ficativa presença de L u d o v i n a Pessoa e da preta Raquel, a liderança masculina
parece ter p r e d o m i n a d o . 1 5 2 D e i x a n d o de lado o d e s c o n h e c i m e n t o desses fa-
tos históricos, o apelo c o n t e m p o r â n e o d i a n t e dos poderes p ú b l i c o s ao "ma-
triarcado" d o B o g u m r e s p o n d e r i a , em parte, à percepção de q u e u m p o d e r
religioso f e m i n i n o seria para as elites brancas mais atrativo e aceitável, por
ser m e n o s a m e a ç a d o r q u e u m p o d e r religioso c o n t r o l a d o por h o m e n s .
Nesse s e n t i d o , são p e r t i n e n t e s as ideias de M a t o r y q u a n d o sugere q u e
desde a década de 1930 intelectuais c o m o G i l b e r t o Freyre c o n t r i b u í r a m para
criar na sociedade brasileira a i m a g e m m a t e r n a l , b o n d a d o s a e p r o t e t o r a da
"mãe preta". Autores c o m o C a r n e i r o ou Landes associaram essa imagem bené-
fica da m u l h e r negra à "pureza" dos rituais africanos, s o b r e t u d o nagôs, em
oposição à i m a g e m d o h o m e m "feiticeiro", h o m o s s e x u a l e envolvido em prá-
ticas sincréticas, associados p r i n c i p a l m e n t e à tradição angola. 1 1 ' O B o g u m ,
em suas reivindicações de a n t i g u i d a d e e m a t r i a r c a d o , e i m p l i c i t a m e n t e de
"pureza africana", parece alinhar-se c o m a ideologia das h e g e m ó n i c a s casas
de nação k e t u mais "tradicionais".

OUTROS TERREIROS JEJES NO SÉCULO XX

N i n a R o d r i g u e s , n o f i m d o século XIX, apesar de r e c o n h e c e r a i n f l u ê n c i a da


t r a d i ç ã o jeje no C a n d o m b l é , o q u e o levou a c u n h a r a expressão "jeje-nagô",
n ã o cita e x p l i c i t a m e n t e n e n h u m terreiro dessa "nação". Aliás, esse a u t o r não
fala em nações de C a n d o m b l é , apenas m e n c i o n a o terreiro de Livaldina, "onde
foi mais a c e n t u a d a a i n f l u ê n c i a dos jeje", por e n c o n t r a r nessa casa u m a figura
de s e r p e n t e que i d e n t i f i c o u c o m o p e r t e n c e n d o ao c u l t o de D a n . 1 , 4 D e v e m o s
esperar a d é c a d a de 1930 para e n c o n t r a r as p r i m e i r a s referências a terreiros
jejes. Correia Lopes, em trabalho p u b l i c a d o em 1943, d o c u m e n t a v a sua visita
ao B o g u m em 1937, e Carneiro, em obra publicada em 1948, m e n c i o n a v a o
Bogum, o Poço Béta e o candomblé de M a n u e l Menez c o m o inscritos, em 1937,
na União das Seitas Afro-Brasileiras da Bahia. 1 5 5 Em relação ao terreiro de M a -
nuel Menez, em São C a e t a n o , infelizmente não consegui maiores informações.

253
LUIS NICOLAU P A R ÉS

O terreiro Poço Beta, a i n d a na ativa, foi f u n d a d o p o r M a n u e l Vitorino da


C o s t a , mais c o n h e c i d o c o m o M a n u e l Falefá o u M a n u e l da F o r m i g a . Ele nas-
ceu em S a n t o A m a r o , e m 21 de d e z e m b r o de 1900, e faleceu em 18 de maio de
1980. Existem versões c o n t r a d i t ó r i a s q u a n t o a sua f e i t u r a n o s a n t o . Segundo
d e p o i m e n t o d o p r ó p r i o Falefá, ele teria sido i n i c i a d o c o m 11 anos de idade e
c o n s a g r a d o ao v o d u m N a n á , p r o v a v e l m e n t e em São Francisco d o C o n d e . Por
o u t r o lado, s e g u n d o Itamoacy, seu filho p r i m o g é n i t o , o pai foi feito com 7 anos
de i d a d e pela avó, C l a r i c e C o n s t a n z a B a r b o s a , em P o j u c a , n a Fazenda Pau
G r a n d e , p e r t o de S a n t o A m a r o . 1 ' 6
As i n f o r m a ç õ e s disponíveis, e m b o r a c o n f u s a s , p a r e c e m sugerir a existência
de u m p r i m e i r o t e r r e i r o , " f u n d a d o p o r X a n g ô " , talvez e m M a t a d e São João,
c h a m a d o Poço Bêtá. A avó de Falefá, C l a r e B o r b o s a (sic), era q u e m deveria
a s s u m i r a c h e f i a dessa casa, m a s n ã o a c e i t o u o cargo, i n d i c a n d o Falefá como
" h e r d e i r o " . P o s t e r i o r m e n t e , Falefá a b r i u u m c a n d o m b l é em Salvador, chama-
do P o ç o Béta (com u m a d i f e r e n ç a de a c e n t u a ç ã o e m relação ao n o m e origi-
nal), s e n d o o " p a d r o e i r o da casa" o v o d u m S o g b o A d a , g r a f a d o pelo próprio
Falefá c o m o " C ô bô A d a n d a V i r d ê " . E m b o r a filho de N a n ã , o m e s m o Falefá
declarava: " E u s o u h e r d e i r o d e S o g b o " . Isso sugere q u e ele teve i n i c i a l m e n t e
r e s p o n s a b i l i d a d e n o t e r r e i r o d o R e c ô n c a v o , f u n d a d o p o r terceiros. 1 5
A e t i m o l o g i a d o P o ç o Béta se p r e s t a a várias i n t e r p r e t a ç õ e s . Poço, prova-
v e l m e n t e é u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a de K p o s u , o v o d u m - p a n t e r a . Bêtá, ou béta,
é u m t e r m o m a i s difícil de i d e n t i f i c a r , e m b o r a n o s t e r r e i r o s jejes d a Bahia o
v o d u m K p o seja t a m b é m c o n h e c i d o c o m o P o ç u B a t a n A j a í , q u e s e g u n d o
gaiaku Luiza seria o pai d o v o d u m S o g b o . Essa m e p a r e c e a h i p ó t e s e e t i m o -
lógica m a i s plausível, e m b o r a h a j a o u t r a s . 1 5 8
S e g u n d o I t a m o a c y , e m S a l v a d o r Falefá a b r i u u m a p r i m e i r a casa na Barra,
c h a m a d a O r i F u n j i . P o u c o d e p o i s , p r o v a v e l m e n t e na d é c a d a de 1930, m u d o u
o t e r r e i r o p a r a a R u a da F o r m i g a , n a 118, em São C a e t a n o , o n d e p e r m a n e -
ceu a t é 1970, q u a n d o N a n ã p e d i u p a r a f e c h a r o t e r r e i r o p o r falta d e espaço,
e foi d e s l o c a d o p a r a a R u a São M a r t i n s , n o b a i r r o de São M a r c o s , e m Pau de
Lima, o n d e p e r m a n e c e até h o j e .
N a j u v e n t u d e , M a n o e l Falefá t r a b a l h o u na M a r i n h a , v i a j a n d o em várias
ocasiões para a Á f r i c a , a p r e n d e n d o a falar o i o r u b á , ao t e m p o q u e c o m e r c i a v a
em p a n o - d a - c o s t a , o r o b ô , obi e o u t r o s p r o d u t o s a f r i c a n o s . Falefá foi u m per-
s o n a g e m p o p u l a r e n t r e o p o v o - d e - s a n t o , e m b o r a e n t r e o p o v o jeje seu c o n h e -
c i m e n t o da l i t u r g i a dessa n a ç ã o suscite a i n d a certas reservas. E m 1937 escre-
veu u m t e x t o i n t i t u l a d o " O m u n d o religioso d o n e g r o d a Bahia" p a r a o Se-
g u n d o C o n g r e s s o A f r o - B r a s i l e i r o , e seu t e r r e i r o esteve i n s c r i t o na U n i ã o das
Seitas A f r o - B r a s i l e i r a s d a Bahia. 1 5 9 E m 1968, s e n d o já p r o f e s s o r d e i o r u b á ,

254
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

Manuel Falefá (de chapéu) e sua primeira mulher (c. 1950)


Autor: Pierre Verger

recebeu u m a bolsa p a r a v i a j a r à região de P o p o , n o T o g o , e Lagos, na N i g é r i a .


De volta dessa v i a g e m , d e s e n h o u nas p a r e d e s d o t e r r e i r o i m a g e n s de c o b r a s ,
e m b l e m a d e Bessen, q u e f o r a m p o s t e r i o r m e n t e e l i m i n a d a s . E m b o r a em 1948
C a r n e i r o i d e n t i f i q u e o c a n d o m b l é c o m o " j ê j e - m a r r i m ( m a h í ) " , é provável q u e
t e n h a sido a p a r t i r dessa v i a g e m q u e ele c o m e ç o u a i d e n t i f i c a r sua casa c o m o
de n a ç ã o m i n a - p o p o . C a b e n o t a r q u e na ficha d o CEAO ele já i d e n t i f i c a a avó
c o m o "gêge p o p ô " .
M a n o e l Falefá e s t e v e c a s a d o c o m d u a s m u l h e r e s , t e n d o c o m elas p e l o
m e n o s 17 filhos. N a d é c a d a de 1960, nove deles já p a r t i c i p a v a m das atividades
d o t e r r e i r o , o q u e sugere a i m p o r t a n t e d e p e n d ê n c i a d a c o n g r e g a ç ã o religiosa
nessa e s t r u t u r a f a m i l i a r . F u n d o u n o c a n d o m b l é a S o c i e d a d e C i v i l A y a b a
O k e r e , q u e a i n d a f u n c i o n a . 1 6 0 C o m a m o r t e de Falefá, em 1980, sua filha-
d e - s a n t o m a i s v e l h a , S i b e b o t a n , d e Aziri T o b o s s i , a s s u m i u a l i d e r a n ç a d o
t e r r e i r o , m u d a n d o seu n o m e para Ilê O m ó Ketá Poço Béta (Casa dos Filhos
d o Poço Béta) e a s s e n t a n d o c o m o " r e g e n t e " do t e r r e i r o a I e m a n j á o u Aziri
Tobossi. Q u a n d o S i b e b o r a n faleceu, em 1992, sua filha c a r n a l , E d v a l t í n a Al-
ves d e Souza ( d o n a V a d i n h a ) , p a s s o u a ser a zeladora, p e r m a n e c e n d o nesse
c a r g o até h o j e . A t u a l m e n t e , o c a l e n d á r i o d e festas t r a n s c o r r e n o s meses de
maio, julho, agosto, o u t u b r o e dezembro.161
O u t r o i m p o r t a n t e t e r r e i r o das p r i m e i r a s d é c a d a s d o século XX foi a C a -
c u n d a de Yaya (Yava). M a t o r y fala da o r i g e m d o C a c u n d a c o m o s a i n d o de

255
LUIS NICOLAU P A R ÉS

u m t e r r e i r o na vila de A c u p í , p e r t o de S a n t o A m a r o . J a i m e M o n t e n e g r o , ini-
c i a d o n a C a c u n d a , o u v i u d i z e r q u e o p e s s o a l d e S a n t o A m a r o era C a s a -
r a n g o n g o (o q u e p a r e c e u m t e r m o b a n t o ) e f a l a v a m q u e e r a m jeje a g a b i . 1 6 ' A
C a c u n d a de Yaya foi f u n d a d a i n i c i a l m e n t e n o b a i r r o de S u s s u a r a n a , em Sal-
vador, em 6 de j a n e i r o d e 1920. D e p o i s , q u a n d o o g o v e r n o e x p r o p r i o u as
terras, foi t r a n s f e r i d a p a r a São C a e t a n o . Foi d i r i g i d a p o r S i n f r ô n i o Eloi Pi-
res, d e s c e n d e n t e d e a f r i c a n o s , filho de O b a l u a ê , c o m a d i j i n a Z u n t ô n o . Sin-
f ô n i o m o r r e u em I a de j u n h o de 1938, d e i x a n d o c o m o sucessora sua m u l h e r ,
C o n s t a n ç a da R o c h a Pires, mais c o n h e c i d a c o m o m ã e Tança, f d h a de N a n ã ,
cuja d i j i n a era Ajausse. M ã e T a n ç a m o r r e u e m 2 de o u t u b r o de 1978 e foi su-
- cedida pela sua filha n a t u r a l , M a r i a Pires, filha de O x u m c o m a d i j i n a I a - O m i -
N i - Q u e , t e n d o p o r pejigã (e a x o g u m ) Pedro de A l c a n t a r a R o c h a ( P e d r i n h o ) ,
filho de O g u m , c o m d i j i n a O g u m Leé, c o n f i r m a d o em abril de 1933. S e n d o
filho n a t u r a l de m ã e T a n ç a , após a m o r t e dela P e d r i n h o p a s s o u a ser c h a m a d o
de babalaxé. As festas mais i m p o r t a n t e s e r a m a Festa das F r u t a s e o amalá de
X a n g ô , celebradas em 6 de j a n e i r o , e a Festa de O b a l u a ê , c o m m a t a n ç a de boi
e cabritos, n o s á b a d o de Aleluia, na Páscoa. E m b o r a a casa preserve os assen-
tos, d e s d e 1991 n ã o se c e l e b r a m festas lá. 163
E m t e m p o s de m ã e T a n ç a existia u m a estreita c o m u n i c a ç ã o c o m o Seja
H u n d é , q u a n d o g e r i d o p o r A b a l h e e Pararasi. M ã e T a n ç a v i a j o u t a m b é m para
o Rio e parece q u e se f o r m a r a m d u a s facções q u e d e r a m lugar a d i s p u t a s inter-
nas. O p r i m e i r o barco de m ã e T a n ç a foi r e c o l h i d o em 1954 c o m sete v o d ú n s i s ,
depois a i n d a teve u m s e g u n d o barco de q u a t r o vodúnsis."' 4 O terreiro Ilê Axé
Jitolú de m ã e H i l d a Dias dos S a n t o s , f u n d a d o por volta de 1960, n o C u r u z u ,
c e n t r o espiritual d o bloco a f r o Ilê Ayé, e o terreiro Inlegedá J i g e m i n de pai
A m i l r o n C o s t a , f u n d a d o em 1974, na Boca d o Rio e t r a s l a d a d o em 1985 ao
C u r u z u , t ê m a s c e n d ê n c i a religiosa n a C a c u n d a de Yaya.
T a n t o a C a c u n d a de Yaya q u a n t o aqueles t e r r e i r o s a ela a f i l i a d o s são n o r -
m a l m e n t e i d e n t i f i c a d o s c o m o jeje-savalus. As diferenças litúrgicas e n t r e o jeje-
m a h i e o jeje-savalu n ã o são m u i t o a c e n t u a d a s , e m b o r a h a j a b e n ç õ e s , c a n t o s
d e sacrifício e de saída de iaôs, e h i n o s de n a ç ã o q u e são d i f e r e n c i a d o s . D e
m o d o geral, o jeje-savalu a p r e s e n t a a t u a l m e n t e f o r t e s i n f l u ê n c i a s d a l i t u r g i a
n a g ô - k e t u . N o t e r r e i r o J i g e m i n de pai A m i l t o n , p o r e x e m p l o , c e l e b r a m - s e
o b r i g a ç õ e s c o m o a "procissão para O d u d u a " , s e m e l h a n t e às águas d e O x a l á
d a n a ç ã o k e t u , q u e n ã o são n o r m a l m e n t e c e l e b r a d a s n o j e j e - m a h i . N e s s e ter-
reiro, os rituais d o zandró e d o boitá, importantes obrigações do rito mahi
(ver cap. 8), são r a r a m e n t e c e l e b r a d o s e o boitá, por e x e m p l o , é p r i v a d o e n ã o
envolve a p r o c i s s ã o em volta das árvores sagradas, c a r a c t e r í s t i c a d o s t e r r e i r o s
m a h i s . O jeje-savalu r e c o n h e c e c o m o "os v e r d a d e i r o s d o n o s " de sua n a ç ã o

256
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

O m o l u ( A z o n s u ) e N a n á , e n ã o Bessen, c o m o o m a h i . A l é m desses e l e m e n -
tos, a l í n g u a r i t u a l , t o q u e s de a t a b a q u e , c â n t i c o s sagrados e a p r á t i c a r i t u a l
são m u i t o parecidos. 1 6 ''
C o n s t a t a m o s q u e n o s a n o s 1920 e 1 9 3 0 v á r i a s casas jejes de S a l v a d o r
s u r g i r a m c o m o c o n t i n u a ç ã o de t e r r e i r o s l o c a l i z a d o s n o R e c ô n c a v o ( S a n t o
A m a r o , São F r a n c i s c o d o C o n d e , M a t a de São J o ã o ) . N o c a p í t u l o a n t e r i o r
já m e n c i o n e i o t e r r e i r o j e j e - d a g o m é da F a z e n d a C a j u , nas m a r g e n s d o r i o
P a r a g u a ç u , p e r t o d e M a r a g o g i p e . Era d i r i g i d o p o r d o n a V i t ó r i a , q u e p o r
v o l t a de 1970 t i n h a u n s 90 a n o s , e devia f u n c i o n a r já nas p r i m e i r a s d é c a -
d a s d o s é c u l o . S e g u n d o L u i z M a g n o , d o n a V i t ó r i a "era d e A b e r i g ã c o m
N a n ã . A b e r i g ã é o n o m e q u e eles c h a m a m o v o d u m B e s s e n lá n o j e j e -
d a g o m é " . A p e s a r d o d i f í c i l acesso, n a é p o c a d o s c a n d o m b l é s , e r a m m u i t a s
c a n o a s e b a r c o s p a r a levar o p e s s o a l à roça. 1 6 6 E m M a r a g o g i p e , nas d é c a d a s
de 1930 e 1 9 4 0 , a b r i u t e r r e i r o a t e m i d a B a d e s a A r c a n j a , f i l h a d e M a r i a
A g o r e n s i , q u e , c o m o já c o m e n t e i , teve sérias d i s p u t a s c o m A b a l h e n o s úl-
t i m o s a n o s da sua v i d a .
Gaiaku Luiza t a m b é m l e m b r a a existência de u m terreiro "jeje-efon" n a ilha
de Itaparica. 1 6 7 U v a l d o O s s ó r i o , a p e s a r de c o m e n t a r q u e "na ilha a i n f l u ê n -
cia dos Gêges foi q u a s e n u l a " , diz q u e " a b o l i d o o c a t i v e i r o c o n s e r v a r a m - s e
eles na a n t i g a p o v o a ç ã o da P o n t a das Baleias, t r a b a l h a n d o c o m o tarefeiros, nos
C o n t r a t o s e nas D e s t i l a r i a s de A g u a r d e n t e . E r a m na sua m a i o r i a , t a n o e i r o s e
f o r j a d o r e s " , e m e n c i o n a o " t e r r e i r o d o M e s t r e E v ó d i o , v e l h o a d o r a d o r de
Avrikiti, d i v i n d a d e m a r i n h a " , e seus c o m p a n h e i r o s t i o C a s s i a n o , m e s t r e J o r -
ge, tia H e n r i q u e t a e m e s t r e A n t ô n i o Laê. Nessa c o n g r e g a ç ã o religiosa c u l t u a -
vam-se t a m b é m O b e s s é m (Bessen) e I r o k o (Loko). 1 6 8 N ã o são f o r n e c i d o s mais
d e t a l h e s , p o r é m a r e f e r ê n c i a de seu líder ao v o d u m A v e r e k e t e p e r m i t e s u p o r
q u e o t e r r e i r o t i n h a a s c e n d ê n c i a e n t r e os povos da costa da área gbe.
Já e m Salvador, n o s a n o s 1930, t e m o s t a m b é m n o t í c i a de tio V i d a l , c o m
c a n d o m b l é n o E n g e n h o Velho de Brotas. A l g u n s d i z e m q u e ele era k e t u e o u -
tros q u e ele era jeje. M e s t r e D i d i , l e m b r a q u e , em 10 de m a r ç o de 1937, m ã e
A n i n h a d o Axé O p ô A f o n j á , realizou " u m a g r a n d e o b r i g a ç ã o p a r a o babalorixá
V i d a l , q u e era de X a n g ô na n a ç ã o Jeje, e fez O x a l á ( O x a g u i ã ) " . P o u c o s a n o s
d e p o i s , e m 1 9 4 1 - 1 9 4 2 , o casal H e r s k o v i t s r e g i s t r o u várias c a n t i g a s i d e n t i f i -
cadas c o m o " G ê g e " i n t e r p r e t a d a s pelo " g r u p o d o V i d a l " . A t r o c a d e s a n t o e
de n a ç ã o (de jeje p a r a k e t u ) , s o m a d a ao c o n t r o l e de r e p e r t ó r i o s rituais de vá-
rias n a ç õ e s , i n d i c a a relativa p e r m e a b i l i d a d e e f l u i d e z de i n d i v í d u o s e n t r e as
nações de Candomblé.169
Nesse t e r r i t ó r i o de f r o n t e i r a cabe situar u m a série de terreiros, c o m o o Ilê
M a r o i a l a j e ou c a n d o m b l é d o Alaketo, n o M a t a t u , e o terreiro O x u m a r é , na M a -

257
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

ta E s c u r a , q u e , s e m se d e c l a r a r e m e x p l i c i t a m e n t e j e j e s , a p r e s e n t a m f o r t e
i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o dessa n a ç ã o . N o caso d o A l a k e t o , t e r r e i r o d o s m a i s a n -
tigos d e S a l v a d o r , essa j u s t a p o s i ç ã o d e r i t o s t e r i a seus a n t e c e d e n t e s na c i d a d e
de K e t u , d e o n d e seus f u n d a d o r e s e r a m o r i g i n á r i o s , p o i s lá os c u l t o s d e o r i x á
c o n v i v e r a m c o m os c u l t o s d e v o d u m d e s e u s v i z i n h o s d e s d e t e m p o s i m e -
moriais. E m b o r a a literatura afro-brasileira identifique geralmente o Alaketo
c o m o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u , sua dirigente, a f i n a d a O l g a Francisca Régis, o
identificava c o m o n a g ô - v o d u m e explicava:

N a g ô - v o d u n é jeje e ketu, uma parte de jeje e uma parte de ketu, é dizer, dois
coisas juntas [...]. Tanto faz a gente fazer um candomblé só para jeje, como faz um
candomblé só para ketu e t a m b é m podemos misturar, fazemos uma obrigação de jeje,
fazemos uma obrigação de ketu. A gente faz uma obrigação de O x u m a r é , mais para
à parte de jeje; e de Azoónu, é mais para à parte de jeje; de Iroko é mais para à parte
de jeje. T a m b é m fazemos Xangô que é mais para à nossa parte de ketu. [...] Pelas
cantigas, pelas obrigações, [o jeje] é diferente, as danças são diferentes das de ketu.
Mas agora o povo não separa nada, então eles cantam u m b o c a d i n h o de jeje, um bo-
cadinho de ketu, quer dizer, tem uns que fazem as coisas diferente. [...] Nos temos a
separação d e l e s . 1 0

Esse interessante c o m e n t á r i o ilustra que, apesar do crescente processo de


"nagoização" do C a n d o m b l é , ainda existem diversos graus de "sincretismo
j e j e - n a g ô " e e m a l g u m a s casas a c o e x i s t ê n c i a n ã o i m p l i c a p u r a e s i m p l e s i d e n -
tificação o u s u b s t i t u i ç ã o dos v o d u n s pelos orixás.
O caso d o t e r r e i r o O x u m a r é , n a M a t a E s c u r a ( h o j e V a s c o d a G a m a ) , é
a l g o d i f e r e n t e . Foi f u n d a d o , a n t e s d e 1 9 1 1 , p e l o l e g e n d á r i o a f r i c a n o t i o
S a l a c ó de X a n g ô e p o r A n t ô n i o O x u m a r é , s e u f i l h o - d e - s a n t o . 1 7 1 V i v a l d o d a
Costa Lima c o m e n t a q u e A n t ô n i o O x u m a r é é " l e m b r a d o , ainda hoje, pelos
'mais a n t i g o s ' , p o r suas ligações c o m chefes políticos b a i a n o s n o t e m p o da C a m -
p a n h a Civilista". D o n a C o t i n h a ( M a r i a das M e r c ê s ) , f i l h a - d e - s a n t o de A n t ô n i o
O x u m a r é e m ã e d o t e r r e i r o n a d é c a d a d e 1930, era d e E u á e c a s o u c o m seu Ja-
cinto.1 2
L i m a i n d a g a p o r q u e C a r n e i r o o m i t i u o n o m e d e C o t i n h a na sua o b r a ,
u m a "vez q u e o p r ó p r i o C a r n e i r o cita, e m Religiões Negras, o t e r r e i r o de O x u -
maré, que f r e q u e n t a v a " , i n c l u i n d o , n o A p ê n d i c e desse livro, u m a colorida
descrição da festa do "Presente à M ã e d'Agua" celebrada em 1934.173
E s s e c a n d o m b l é , h o j e a u t o d e n o m i n a d o n a ç ã o k e t u , teve f o r t e i n f l u ê n c i a
da n a ç ã o jeje, n o i n í c i o . Verger c o m e n t a q u e "os c u l t o s G e g ê e N a g ô se f u n -
d i a m e m t e r r e i r o s c o m o o de O x u m a r é " . Sabe-se q u e nas p r i m e i r a s d é c a d a s d o
s é c u l o XX e x i s t i a m e s t r e i t a s r e l a ç õ e s e n t r e o B o g u m e o O x u m a r é , e q u e os
h o m e n s q u e n ã o p o d i a m ser i n i c i a d o s n o B o g u m , p o i s lá só d a n ç a v a m m u -

258
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

lheres, eram feitos n o O x u m a r é . É possível q u e A n t ô n i o O x u m a r é realizasse


a l g u m a o b r i g a ç ã o d o rito jeje c o m R o m a n a , q u e f r e q u e n t a v a m u i t o seu terrei-
ro. O atual d i r i g e n t e da casa, S i l v a n i l t o n da M a t a , declarava em 1995: "no
começo o terreiro era Jeje. Mas por questão de m u d a n ç a s , h o j e se c u l t u a Q u e t o .
O t e r r e i r o p a s s o u por d i f i c u l d a d e s m u i t o g r a n d e s e h o u v e a necessidade de
m u d a n ç a de nação". Isso deve ter a c o n t e c i d o na década de 1940, talvez após o
f a l e c i m e n t o de d o n a C o t i n h a , mas os m o t i v o s n ã o f o r a m i d e n t i f i c a d o s . 1 4

A l é m d o s t e r r e i r o s a q u i r e f e r i d o s , h o u v e e há a i n d a vários o u t r o s q u e se
d e c l a r a m jejes. A d a p t a n d o u m a série de estatísticas dos t e r r e i r o s de Salvador
s e g u n d o as n a ç õ e s , e l a b o r e i a T a b e l a 7.

Tabela 7 — Estatísticas dos terreiros jejes em Salvador

Ano Jeje % Ijexá Ketu Angola Caboclo Umbanda Outro ! Total

1937 9 13,40 6 13 22 15 2 67

1969 14 4,57 16 107 61 105 2 1 ' 306

1981 4 0,27 14 660 350 271 50 1.349

1983 30 2,47 47 447 384 41 1 261 ! 1.211

1992 19 2,02 22 415 200 245 37 ! 938

1998 18 3,60 8 282 137 14 11 26 500

Fontes: Poro 1937: Corneiro, Candomblés, p. 44. Poro 1969: "Pesquisa sobre os Candomblés de S a l v a d o r " ,
dirigida por Vivaldo da Costa L i m a , CEAO, 1960-1969, apud J. T. dos Santos, 0 dono, p. 21. Para 1981: Federação
Baiana do Culto Afro-Brasileiro (Barbosa, 1984), apud J. T. dos Santos, 0 dono, p. 21. Para 1983: adaptado dos
dados da pesquisa realizada pela S I C - I P A C na Região Metropolitana de Salvador, apud J. T. dos Santos, 0 dono,
p. 19. Para 1992: Livros de registros, Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro, Salvador, jun., 1992. Para
1998: Mott e Cerqueira, As religiões, p. 13.

Esses dados devem ser tomados com cautela, já q u e as a u t o d e n o m i n a ç õ e s


de nação p o r vezes r e s p o n d e m mais aos interesses de legitimação dos líderes
q u e a u m efetivo v í n c u l o de d e s c e n d ê n c i a religiosa. Por e x e m p l o , na estatística
de 1998 há terreiros c o m n o m e s q u e i n c l u e m t e r m o s a p a r e n t e m e n t e jejes, c o m o
o Ilê Savaluê de Azanssun, na Liberdade, ou o Ilê Axé Gêge, que se declaram
ketus. T a m b é m há terreiros q u e se declaram jejes, mas q u e têm "donos da casa"
pertencentes a outras nações ou cuja filiação a candomblés jejes seria questionável.
Apesar dessas n u a n ç a s , a tabela m o s t r a u m claro d e c l í n i o da p o r c e n t a g e m
dos terreiros jejes ao l o n g o d o século. D e s d e os a n o s 1930, q u a n d o os jejes ti-
n h a m u m a p r e s e n ç a s i g n i f i c a t i v a d e 13%, até as d é c a d a s d e 1980 e 1990, em
q u e eles r e p r e s e n t a m s o m e n t e cerca de 2% o u 3 , 6 % , a t e n d ê n c i a t e m sido

259
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

baixar. Esse f a t o se deve, em p a r t e , à g r a n d e e x p a n s ã o de t e r r e i r o s o c o r r i d a a


p a r t i r dos a n o s 1970, q u a n d o m u i t o s t e r r e i r o s sem filiação religiosa d e f i n i d a
se d e c l a r a m k e t u s p o r ser essa "nação" a de mais prestígio e visibilidade social.
Isso explicaria o 0 , 2 % d o s jejes, e m 1981, q u a n d o as casas k e t u s a p r e s e n t a m
um grande crescimento, chegando a atingir quase 50%.
C o m o declarava a f i n a d a R u n h ó , "os terreiros de Gege a c a b o u " , p e r c e p ç ã o
nostálgica c o m p a r t i l h a d a por humbono V i c e n t e , q u e m a f i r m a v a q u e "na Bahia
o jeje já foi. H o j e n i n g u é m sabe r e s p o n d e r às cantigas". 1 7 5 A m e m ó r i a d o rito
jeje está se p e r d e n d o , m a s , p a r a d o x a l m e n t e , a "nação" jeje a i n d a d e s f r u t a de
g r a n d e prestígio entre o p o v o - d e - s a n t o e de u m a presença n o s meios de c o m u -
n i c a ç ã o , p r i n c i p a l m e n t e a i m p r e n s a , c o m p a r á v e l à das n a ç õ e s n a g ô - k e t u s o u
c o n g o - a n g o l a s . E m p a r t e isso se deve à v i s i b i l i d a d e social de t e r r e i r o s c o m o
o B o g u m , mas esse p r e s t í g i o t a m b é m está e n r a i z a d o na p r ó p r i a h i s t ó r i a d o
C a n d o m b l é , q u e r e c o n h e c e a tradição d o c u l t o v o d u m c o m o u m a das matrizes
c o n s t i t u t i v a s dessa i n s t i t u i ç ã o religiosa.
É difícil predizer a evolução f u t u r a da "nação jeje". Por u m lado, existe t o d o
u m processo de revitalização dessa n a ç ã o nos terreiros j e j e - m a h i s d o Rio de
J a n e i r o e de o u t r a s cidades d o Sul. Por o u t r o lado, em Salvador, o B o g u m está
r e i n i c i a n d o suas atividades litúrgicas e, j u n t o c o m terreiros c o m o o H u n t o l o j i
da f i n a d a gaiaku Luiza em C a c h o e i r a ou o J i g e m i n de pai A m i l t o n n o C u r u z u ,
q u e t a m b é m d e s f r u t a m de certa v i s i b i l i d a d e social, p o d e m c o n t r i b u i r p a r a
u m n o v o r e n a s c i m e n t o dessa i d e n t i d a d e de nação. C o m o já foi n o t a d o , vários
p e s q u i s a d o r e s c o m o L o r a n d M a t o r y , L o p e z C a r v a l h o ou D i a s d o N a s c i m e n t o
p u b l i c a r a m nos ú l t i m o s anos obras dedicadas a terreiros jejes, e t a m b é m o pre-
sente t r a b a l h o se inscreve nessa d i n â m i c a . Esse n o v o e c r e s c e n t e i n t e r e s s e
n u m a n a ç ã o até agora p o u c o p e s q u i s a d a p o d e c o n t r i b u i r p a r a c o n s o l i d a r u m a
t e n d ê n c i a q u e se p e r c e b e em c e r t o s setores d o p o v o - d e - s a n t o , q u e r e c l a m a m
c o n t r a o n a g o c e n t r i s m o d o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o . N o m o m e n t o atual,
a c o n s t r u ç ã o d e i d e n t i d a d e a p a r t i r de u m a " e s p e c i f i c i d a d e d i f e r e n c i a d a " q u e
c o n t r a s t e c o m os r e f e r e n t e s d o m i n a n t e s p o d e ser vista c o m o u m a estratégia
a l t e r n a t i v a p a r a i n c r e m e n t a r o a t r a t i v o e l e g i t i m a r o p r e s t í g i o de c e r t o s ter-
reiros. N e s s e s e n t i d o , a t r a d i ç ã o d o c u l t o de v o d u m , c o m seus r e c o n h e c i d o s
a n t e c e d e n t e s h i s t ó r i c o s e sua s i m u l t â n e a " r a r i d a d e " , é u m a o p ç ã o c o m u m
p o t e n c i a l a i n d a p o r ser d e s e n v o l v i d o .

260
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

NOTAS

1
Hunsi é sinónimo de vodúnsi. O termo agorensi, que utilizo ao longo deste trabalho,
é pronunciado e grafado de várias maneiras: ogurinsi, agorinsi, ogorinse, ogorensi,
ungoroci, gorência, angorense. Trata-se, provavelmente, de uma corruptela de angorâsi,
a mulher (si) de Angorô, sendo este o nome da divindade cobra nos terreiros angolas,
correspondente a Dan ou Bessen nos jejes e Oxumaré nos nagôs. Para uma discussão
do termo e a possível interpenetração das tradições jeje e angola, ver cap. 7.
2
Aguesi, 21/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 16/2/1999; Geninho, 5/3/2000.
1
Registro de Óbitos, livro C23, n 2 460, FTFC.
I
Gaiaku Luiza, 7/11 /1999. Dere Isidora era prima carnal da mãe de Luiza: gaiaku Luiza,
5/5/2003.
5
Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza, 17/12/1998, 8/8/2001 Os títulos dofona, dofonitinha,
fomo, etc. indicam a ordem de entrada no grupo de iniciados e a sua ordem de prepa-
ração ritual e comportam diferentes graus hierárquicos: o primeiro a entrar é consi-
derado o mais velho e o último, o mais novo (ver cap. 4).
6
Gaiaku Luiza, 7/11/1999. Pelo menos Badesi Arcanja e Miúda de Kposu foram feitas
no segundo barco. Para uma outra versão sobre a composição desse barco: Lopez de
Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 82. Gaiaku Luiza mencionou também os nomes de Lu-
zia Moreira de Azonsu ou Avimaje (3/1/2000) e de Norberta de Iemanjá (5/5/2002).
C o m o vemos, aparecem várias vodúnsis a mais das vinte de que teoricamente consta-
riam os dois barcos. Essa diferença ocorre porque a lista apresentada por gaiaku Luiza
pode incluir rodantes mais antigas da Roça de Cima, como deré Custódia de Oiá, ou
rodantes iniciadas em outros terreiros (talvez o Bogum) que, por qualquer motivo, aca-
baram se encostando no Seja Hundé. O fato de aparecer na lista duas dofonas teria a
mesma explicação e não implica necessariamente a existência de um terceiro barco.
Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 7/11/1999. Geninho menciona nesse grupo de cinco o alabe
Leardino, talvez o mesmo Ermírio: Geninho, 23/6/2000, 5/5/2002.
8
Gaiaku Luiza, 7/11/1999; Geninho, 5/3/2000.
'' Segundo humbono Vicente, era Virgilio de Oxóssi e tinha quitanda no Gravata: 13/11/1999.
10
Humbono Vicente, 22/8/1999. Kelé é um colar ritual que os neófitos usam durante a
iniciação; indica a sujeição e obediência à divindade e à mãe-de-santo.
II
Ver, por exemplo, "Ubaldino de Assis e pleito presidencial", A Ordem, 1 5/3/1922, ARC.
12
Gaiaku Luiza, 17/12/1998, 29/7/1999.
13
Gaiaku Luiza, 17/12/1998; humbono Vicente, 19/2/1999, 16/1/1999. Segundo seu
Geninho, ogã Caboco faleceu em Belo Horizonte, em 1977, com 77 anos (5/5/2002).
Geninho, apud Lopez de Carvalho, Documento..., pp. 8-9.
15
Humbono Vicente, 29/4/1999, 3/7/2000.
'' Aguesi dizia que foram quinze anos-, gaiaku Luiza afirmava que foram onze anos; ainda,
Geninho diz que foram só sete: Aguesi, 9/8/1996; gaiaku Luiza 17/12/1998, 16/8/1999.
Gaiaku Luiza, 7/1 1/1999.
18
Braga, A gamela..., p. 22. Ver também, Lúhning, 'Acabe...".
19
Dias do Nascimento, A capela..., p. 16. Matory comenta sobre essa iniciativa de Ani-
nha, atribuída também por certos pais-de-santo a Joãozinho da Gomeia ou Procópio:
Matory, Black Atlantic..., p. 186.

261
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

Gaiaku Luiza, 3/1/2000.


Lopez de Carvalho, Documento..., p. 6; confirmado por gaiaku Luiza, 16/8/1999, 7/1 1/1999.
Dias do Nascimento, 16/2/1999. A sucessão foi confirmada por humbono Vicente, 19/2/1999.
Turner, Schism...
Aguesi, 20/8/1996. Segundo ogã Boboso, Epifânio Santa Rita foi o pejigã de Abalhe.
Geninho, 22/1/2000. Em outra ocasião sugeriu que foi a mesma Ludovina quem "fez
o trabalho" em Abalhe, 5/5/2003.
Ogã Boboso, entrevista 4/2/1999. N o Seja H u n d é , em 26/12/1999, c a n t a r a m uma
cantiga na parte de Bessen, em que se mencionava o nome abalha. Humbono Vicente
também falava abalha, e não confundir com Abale ou Balé, que seria uma "qualidade"
de Oiá (humbono Vicente, 7/12/1999). Ogã Joãozinho, da casa de humbono Vicente,
dizia que a pronúncia correta é abalié (Joãozinho, 16/4/1999). No Benim, agbalia pode
designar a "recade" ou cetro do Rei Tegbesu (Glélé, Le daxomé..., p. 56); porém, o termo
corresponde mais provavelmente a agbálè, nome dado à filha nascida logo depois da
iniciação da sua mãe ou seu pai num convento Sakpata (Segurola, Dictionnaire..., p. 17).
Registros de Óbito, vol. C37, n" 4.771, FTFC. Mãe Baratinha sustentava que ela era na-
tural de Castro Alves (Dias do Nascimento, 25/6/1999). Ogã Boboso também conta
que o casal Brechó-Abalhe morou no primeiro andar de um sobrado conhecido como
Sete Portas, perto do atual mercado (entrevista 4/2/1999). Na parte superior da fachada
tem uma águia de pedra, que alguns dizem ser um urubu ou a garça, na qual Zé de Brechó
se transformava (dona Anália, 2/3/1999). Essa hipótese é questionável, já que a casa Sete
Portas só foi construída em 1902, ano da morte de Zé de Brechó. Segundo gaiaku Luiza,
era Salaco, irmão de Zé de Brechó, quem morava lá {gaiaku Luiza, 7/11/1999).
Ogã Boboso, 7/11/1999; Dias do Nascimento, Candomblé..., p. 18.
Seu Geninho, 5/3/2000; humbono Vicente, 7/12/1999.
C. Castro, Miguel Santana..., p. 27.
Ibidem.
Dona Francesa Arlinda da Silva, Cachoeira, entrevista 4/2/1999.
Humbono Vicente, 19/2/1999, 1 1/7/2000. Em 1996, ogã Boboso falou ter sido confir-
mado 60 anos atrás, isto é, em 1936, enquanto seu Bernardinho falou de 50 e poucos
anos, portanto no início da década de 1940. Ogã Boboso teria nascido em 8 de dezem-
b r o de 1912 (ogã B o b o s o , 1 6 / 2 / 1 9 9 9 ) .
Todavia gaiaku Luiza menciona os ogãs Nozinho, Gregório e Matias e as equedes
Nininha e Mareeiina (gaiaku Luiza, 7/11/1999, 3/1/2000). O g ã j e n i n h o , da Casa Bran-
ca, diz que seu pai Benzinho foi ogã do Seja H u n d é (14/6/2001).
Aguesi, 20/8/1996; ogã Boboso, entrevista 4/2/1999; Geninho, 1/2/2000.
Gaiaku Luiza, 3/1/2000, 26/9/2000.
O líder desse terreiro, Manoel Cirqueira de Amorim, apelidado de Nezinho do Portão,
foi criado por tio Anacleto, no terreiro nagô do Capivari, mas sua ascendência reli-
giosa estava estreitamente ligada ao Gantois de mãe Menininha, em Salvador. Ele tam-
bém participava com assiduidade nas festas e rituais funerários do Uê Axé O p ô Afonjá
(Kadia Tali, 26/4/1999; Gaiaku Luiza, 25/6/1999; Dias do Nascimento, 22/6/2000; D.
M. dos Santos, História..., pp. 29, 32).
Humbono Vicente, 8/10/1998; Gaiaku Luiza, 17/12/1998; ogã Boboso, 18/12/1998.
Ogã Boboso, 7/1 1/1999.
R e g i s t r o s de Ó b i t o , vol. C 3 7 , n a 4.771, FTFC.

262
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

Humbono V i c e n t e , 2 2 / 8 / 1 9 9 9 ; 13/1 1/1999.


Everaldo Duarte, 23/8/1996.
F i c h a n a 1, C E A O , 17/1/1961.
O u t r o dos títulos utilizados no jeje para designar a mãe-de-santo ou chefa da casa (ver
cap. 8).
Everaldo D u a r t e , 10/11/2001. Informações obtidas de equede Santa.
Equede Santa, Salvador, entrevista 1981; Everaldo D u a r t e , 13/12/1998, 21/4/1999. In-
felizmente, a pesquisa para achar alguma referência a Manoel da Silva nos processos
da justiça depositados no APEBA resultou i n f r u t í f e r a . O ogã Batuta da Casa Branca co-
mentou que Manoel da Silva foi também ogã da Casa Branca, o que indicaria uma inte-
ressante fluidez de relações entre o Bogum e o terreiro nagô-ketu, mas numa outra
ocasião não c o n f i r m o u essa versão: ogã Batuta, 3/6/1999; 8/10/1999.
F i c h a n 2 1, C E A O , 17/1/1961.
Everaldo Duarte, 13/12/1998. Everaldo D u a r t e lembra ter ouvido dizer que em tem-
pos de Valentina um padre com duas virgens foi benzer o terreiro (10/1 1/2001).
F i c h a n 2 1, C E A O , 17/1/1961.
Everaldo D u a r t e , 23/8/1996.
Ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961. O antigo barracão, chamado "bosteiro" por ter o chão
de terra batida misturada com esterco de bovinos, folha de pitangueira e caroço de
dendê (]. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37; Everaldo D u a r t e , 13/12/1998).
Lopes, "Exéquias...", p. 559. N o mesmo ano de 1937, q u a n d o Correia Lopes foi vi-
sitar a Casa das M i n a s de São Luís, c o n t a que se apresentou à mãe Andresa d i z e n d o
"Sei cantigas geges da Baía", n o t a n d o entre parênteses "(Sabia p o u c o , ainda não es-
tava reconstituído, ao t e m p o , o Bogum do E n g e n h o Velho)". Esse c o m e n t á r i o con-
firma que, em s e t e m b r o de 1937, o B o g u m estava em obras e sugere u m a reabertura
do terreiro ou pelo menos u m f u n c i o n a m e n t o precário antes dessa data (Lopes, "A
p r o p ó s i t o . . . " , p. 79).
Segundo humbono Vicente, Tiana Gege era de O x u m e morava na Barroquinha. O Exu
e a O x u m dela ainda estariam assentados no Bogum (humbono Vicente, 13/9/2000).
Lopes, "Exéquias...", p. 559. Em 1945, confirmava que o Bogum "tem filial em Ca-
choeira" ("Os trabalhos...", p. 53).
"Rascunhos de filhos dos terreiros de seita africanas e cabocla existentes na Bahia",
manuscrito produzido por Deoscóredes Maximiliano dos Santos para o CEAO em 1966.
No registro n 2 532, datado em 25/9/1946, consta que Emiliana tinha 75 anos — o que
colocaria seu nascimento em 1871 —, mas ao lado está escrito "6/1/1867" como pro-
vável data de nascimento. Por outro lado, sabemos que Emiliana faleceu em 1950 e,
segundo R u n h ó , estaria com 92 anos de idade — o que colocaria seu nascimento em
1 8 5 8 (ver n. 7 3 ) .
Humbono Vicente, 12/11/2001; gaiaku Luiza diz que Emiliana é "filha de Aman Beunim
Ló" (CEAO, 2° Encontro..., p. 70). Segundo Everaldo Duarte (10/11/2001), Emiliana era
de Bafono e tinha o título de Donaci. Deoscóredes dos Santos, no registro n 2 532 do
já citado manuscrito Rascunhos de filhos dos terreiros de seita africanas e cabocla exis-
tentes na Bahia, registra "Miliana de O g u n " .
Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça
destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Humbono Vicente, 3/7/2000, 22/9/2001, 12/1 1/2001;
Everaldo Duarte, 27/1 1/1999, 23/8/1996, 13/12/1998. Ogã Boboso diz que Emiliana foi
feita antes de Abalhe, junto com Tatiana Fateira, falecida em 1869. Outras informações

263
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

menos confiáveis apontam Emiliana como irmã-de-santo de Abalhe e Romana e, por-


tanto, filha-de-santo de tio Xarene e/ou Brechó.
Humbono Vicente, 18/1/1999, 12/1 1/2001.
Humbono Vicente, 8/9/2001.
Estatutos da Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bartolomeu, publicados no Diá-
rio Oficial nm 10.777 e 10.778, em 16 de outubro de 1977.
Carneiro, Candomblés da Bahia..., pp. 44-45, 64.
Herskovits e Herskovits, "Afro-Bahian religious songs...".
Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia que o tempo ameaça
destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987.
Everaldo Duarte, 13/12/1998; "Cirrum começou no Bogum e Gamo é a nova yalorixá",
A Tarde, 30/12/1975. Outras informações datam a saída em 1941 ou 1938: "Sepultada
mãe-de-santo d o mais antigo terreiro jeje", A Tarde 6/10/1994; " M u n d o jeje comemora
cinquentenário de sua mãe-de-santo", A Tarde, 26/7/1988. Considero 1940 a data mais
provável da saída desse barco.
Everaldo Duarte, 13/12/1998. Tomázia de O x u m era sobrinha de Regina de Oxum, por
sua vez vinda do terreiro Pó Zerrem (equede Santa, entrevista 1981). A Oxum de Tomá-
zia suspendeu Everaldo Duarte como ogã (Everaldo Duarte, 27/11/1999).
Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Esse barco não consta no organograma de Everaldo
Duarte.
Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Luiza Franquelina da Rocha tinha sido iniciada no
rito ketu em 1937, no Ilê Ibece Alaketu de Nezinho do Portão, e tinha já preparado algu-
ma filha-de-santo no rito angola e ijexá em 1944. A feitura de Luiza no rito jeje foi
concluída por Romana fora do Bogum e um ano depois, em 1945, "recebeu a posse" (decá)
das mãos de Romana, na presença de algumas filhas-de-santo de Maria Agorensi (não de
Abalhe). Luiza falava que sua santa (Oiá) não aceitou ficar "nem no oriente, nem no poen-
te", referindo-se ao Seja Hundé e ao Bogum, e ordenou que abrisse o próprio axé. Por
um tempo funcionou na sua casa particular, no bairro da Liberdade, até que em 1952
conseguiu abrir candomblé no Cabrito, passando a ser conhecida como gaiaku Luiza.
Everaldo Duarte, 13/12/1998, 27 /11/1999. A qualidade do Ossaim de Luizinha não era
Agué, sendo provavelmente uma qualidade nagô.
Equede Santa, entrevista 1981; humbono Vicente, 23/2/1 999. Nicinha também comen-
tava ter ouvido falar de outros ogãs antigos da casa "filhos de africanos", citando os
nomes de Romão, Basilio, Mariano e Bonifacio ("Terreiro Bogum, testemunho vivo
da resistencia jêje \ Jornal AfroBrasil, ano 2, n" 37, 6-12/1 1/1985, p. 12).
Everaldo Duarte, 13/12/1998; Duarte, "O terreiro...", pp. 19-22.
Pierson, Brancos e pretos..., p. 324; Carneiro, Candomblés..., p. 45; Everaldo Duarte,
27/11/1999.
Equede Santa, entrevista 1981. Nos anos 1930, parece que Emiliana também ajudou
Manuel Ciriáco de Jesus a iniciar, em Santo Amaro, seu primeiro barco nos preceitos
da nação jeje, embora Ciriáco viesse a ser conhecido mais tarde como líder do terreiro
Tumbajuçara, de nação congo-angola (Cleo Martins, 17/8/2003).
Em 3/3/2000, gaiaku Luiza me mostrou o cartão de in memoriam de Maria Emiliana da
Piedade, falecida ao 10/11/1950. Em janeiro de 1961, Runhó declarava: "Emiliana morreu
há 10 anos e tinha 92 de idade" (ficha nQ 1, CtAo, 17/1/1961).
Humbono Vicente, 19/2/1999.

264
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 3/1/2000. Everaldo Duarte lembra que um grupo liderado
por equede Raimunda e ogã João Bernardo também contestou as aspirações de Runhó.
Gaiaku Luiza, 16/2/1999; humbono Vicente, 7/12/1999.
Segundo humbono Vicente (23/2/1999), as obrigações foram realizadas em Cachoei-
ra. Já segundo Everaldo Duarte (16/2/2003), elas foram realizadas no Bogum, em pre-
sença de Romana.
Humbono Vicente, 23/2/1999.
Humbono Vicente, 4/5/1999; gaiaku Luiza, in CEAO, 2°- Encontro..., p. 70.
Humbono Vicente, 6/12/1998, 4/5/1999.
Humbono Vicente, 23/2/1999.
Gaiaku Luiza, 28/1/1998. Conta-se que, nas terras do Batefolha, há um assento de
Azonsu que seria anterior à fundação do terreiro por Manoel Bernardino da Paixão
em 1916. Talvez Romana fosse chamada para tomar conta das obrigações desse anti-
go assento de nação jeje. Bernardino faleceu em 1946 (gaiaku Luiza, 2/3/2000).
Everaldo Duarte, 13/12/1998.
Ibidem.
Gaiaku Luiza, 28/1 1/1998.
Humbono Vicente, 23/2/1999. Segundo gaiaku Luiza, a data do óbito seria 16 de ou-
tubro de 1956; já segundo Lopez de Carvalho, seria 23 de outubro de 1956.
Humbono Vicente, 23/2/1999. A chave parece que passou primeiro pela mão de ogã
João Bernardo, que, juntamente com equede Raimunda, se o p u n h a m à sucessão de
Runhó, mas foi depois recuperada por Antonio Monteiro, que a entregou à nova doné
(Everaldo Duarte, 21/10/2002).
Gaiaku Luiza, 17/12/1998; Dias do Nascimento, 23/1/1999; humbonoVicente, 19/2/1999.
Everaldo Duarte, 13/12/1998.
Ibidem; humbono Vicente, 18/1/1999.
Everaldo Duarte, 1 3/12/1998; Jaime Montenegro, 10/8/1999.
"Cirrum começou no Bogum e Gamo e a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975.
R u n h ó estava com 98 anos q u a n d o faleceu, em 1975. Nessa ocasião, numa primeira
notícia em A Tarde, fala-se que Nicinha ia celebrar o 66 a aniversário, mas, numa nota
do mesmo jornal, ao dia seguinte, fala-se em 64 anos: " R u i n h ó quer mato e rio para
'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/ 1975; "Calam-se atabaques do Bogum: começa
o ' C i r r u m ' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; " C i r r u m começou no Bogum e Gamo
É a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; ficha n* 1, CEAO, 17/1/1961; Everaldo
Duarte, 4/1/1999.
Gaiaku Luiza, 17/12/1998. "Em breve chegou, do lugar do sacrifício, a ordem, que uma
voz. feminina repetiu: 'Mêrê dó ji' (Hanji, cantar). E o coro principiou" (Lopes, "Exé-
quias...", p. 560).
Segurola, Dictionnaire..., p. 250.
Neném de Mello, 3/11/1999.
F i c h a n a 1, C E A O , 17/1/1961.

Equede Santa, entrevista 1981; "Acabado Cirrum, o Bogum fica fechado por um ano",
A Tarde, 5/1/1 976; Jorge Amado, "A solidão do povo jeje", Manchete, 7 / 2 / 1 9 7 6 , p. 38.
Ficha nE 1, CEAO, 17/1/1961.
Capone, La quête, pp. 126-27. Segundo Everaldo Duarte, essa iniciação foi mais re-
cente (21/10/2001).

265
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

01
Ficha n u 1, CEAO, 17/1/1961.
02
Everaldo D u a r t e , 27/1 1/1999. N o o r g a n o g r a m a de D u a r t e , a data do ú l t i m o barco é
20/10/1974, mas Ivone de Ogum (Ogunsi) cumpriu, em 20 de outubro de 1998, 26 anos
de feita, sendo humbono Vicente o pai-pequeno (Ogunsi, humbono Vicente, 8/10/1998).
03
" M ã e R u i n h ó vai bem, graças aos orixás", Jornal da Bahia, 23/9/1975.
04
J o r g e A m a d o , "A solidão do povo jeje", Manchete, 7/2/1976, p. 38; "Ruinhó quer mato
e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975; "Calam-se atabaques do Bogum; co-
meça o 'Cirrum' por Ruinhó", A Tarde, 29/12/1975; J. de Carvalho, "Nação...", p. 58.
"Acabado C i r r u m , o Bogum fica fechado por um ano", A Tarde, 5/1/1976; "Sucessão"
e " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975.
1,6
" C a n d o m b l é do B o g u m faz festa em h o m e n a g e m ao prefeito da cidade", A Tarde,
20/2/1979, humbono Vicente, 7/12/1999.
" " C i r r u m começou no Bogum e G a m o é a nova yalorixá", A Tarde, 30/12/1975; " M u n d o
Jeje c o m e m o r a c i n q u e n t e n á r i o de sua mãe-de-santo", A Tarde, 26/7/1988.
08
Everaldo D u a r t e , 16/2/2003.
09
J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos).
Prefeitura M u n i c i p a l de Salvador, Casa Civil, G r u p o de C o o r d e n a ç ã o de Assuntos
Culturais, 1981-1985. Nos estatutos da Sociedade Afro-Brasileira Fiéis de São Bar-
tolomeu (fundada em julho de 1937), publicados no Diário Oficial n - 10.777 e 10.778
em 16 de o u t u b r o de 1977, assinaram Edvaldo dos Anjos Costa c o m o presidente,
Everaldo Conceição Duarte como vice-presidente, Ailton Conceição Nascimento como
I a secretário, Renato Gonzaga dos Santos como 2° secretário, H a m i l t o n Domingos dos
Anjos Melo como l 2 tesoureiro, Celso Santana como 2 a tesoureiro e, como membros
do Conselho Deliberativo, Lydio Pereira de Santanna, Roverval José Marinho, Celesti-
no Augusto do Espirito Santo, Jorge Antonio Fontes Santos e Jorge Gusmão dos Santos.
10
22, 23 e 25 de julho de 1986, A Tarde; J. de Carvalho, Reinvenção..., p. 37.
11
J. de Carvalho, Reinvenção, p. 38.
12
"Pierre Verger comenta reportagem sobre Jêje", A Tarde, 31/7/1988.
13
Segundo a imprensa, N i c i n h a faleceu com 83 anos; "Sepultada mãe-de-santo do mais
antigo terreiro jeje", A Tarde, 6/10/1994; "Terreiro do Bogum inicia cerimónias de pre-
paração" , A Tarde, 7/10/1994.
"' Ficha n" 1, CEAO, 17/1/1961.
15
Humbono Vicente, 19/2/1999.
16
Lopez de Carvalho, D o c u m e n t o . . . , p. 11.
1
Após fechar o candomblé do Cabrito em Salvador, gaiaku Luiza voltou a Cachoeira
em o u t u b r o de 1961. A pedido de Oiá e com a ajuda material do pai, seu Miguel, em
1962, gaiaku Luiza comprou, por 176 cruzeiros, as terras da nova roça e celebrou algu-
mas missas. Em 1964, com o jogo de búzios realizado por humbono Vicente, determi-
nou o que correspondia a cada atinsa, realizando-se as primeiras obrigações. Em 1966
m o r r e u o pai e, em 1967, ela viajou a São Paulo e Rio de Janeiro, onde ficou até 1970.
Neste ano, realizou a primeira confirmação de uma equede no H u n t o l o j í e começou
a bater tambor. Foi só em 1980 que recolheu o primeiro barco e que humbono Vicente
plantou o axé do abassa (gaiaku Luiza, 16/8/1999, 7/11/1999, 3/1/2000).
18
B e r n a r d i n o , 16/2/1999. Ogã Boboso, 16/2/1999, 7/1 1/1999. Luis M a g n o , entrevista
4/2/1999; gaiaku Luiza, 28/1 1/1998. S e g u n d o humbono Vicente, Pararasi preparou
apenas um barco (16/1/1999, 1 1/7/2000). Segundo seu Geninho, Alda e Alaíde perten-

266
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA D O S TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

ciam ao primeiro barco, que seria então de sete vodúnsis (Geninho, 1 a /2/2000, 5/3/2000);
segundo Aguesi, Alaíde era fomotinha e irmã de esteira de um fominho (sic) de Azonzu
(Aguesi, 20/8/1996).
Luiz Magno, entrevista 4/2/1999, Dias do Nascimento, 23/1/1999.
120
Gaiaku Luiza, 6/5/2003.
121
Luiz Magno, por exemplo, atribui a morte da sua mãe, um ano depois, aos erros des-
sa iniciação (Luiz Magno, entrevista 4/2/1999).
122
Humbono Vicente, 16/1/1999; ogã Iasana do Seja H u n d é , 23/6/1999.
123
Antonio Moraes, 14/11/2004; humbono Vicente, 11/7/2000, l t t /l/2001. Lopez de Car-
valho afirma, sem citar a fonte, que o falecimento aconteceu em 3 de março de 1969,
em Salvador: Lopez de Carvalho, Gaiaku Luiza..., p. 50. Bernardinho também diz que
Pararasi faleceu em Salvador (23/6/1999).
124
Segundo humbono Vicente, a roça fechou durante 1 5 anos, o que parece ser um período
excessivo.
125
HumbonoVicente, 16/1/1999, 19/2/1999, 13/11/1999.
!2Í
' Gaiaku Luiza, 16/2/1999.
!27
Olu A yé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Agu esse 1900-1998", Orixás & Africanos,
n a 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro), p. 3.
128
Humbono Vicente, 19/2/1999, 30/6/1999.
129
Ogã Joãozinho, 16/4/1999; gaiaku Luiza, 7/11/1999.
130
Olu Ayé, "Nação Jeje Marrym perde gaiaku Aguêse 1900-1998, Orixás & Africanos,
n 2 45, ano XI, 1998 (Rio de Janeiro)", p. 3.
131
Humbono Vicente, 23/2/1999, 6/10/2001.
1,2
Conferências de Nilton Feitosa sobre o Candomblé do Rio, apud Capone, La quête...,
p. 125. O Kwe Simba, ainda na ativa, seria de nação jeje kaviono ou alternativamente
axépodaba. Rozenda foi sucedida por Natalina de Aziri Tobosi e depois pela líder atual,
Helena de Oxumaré (dona Nancy de Souza e Silva, 27/8/1999). Algumas das caracte-
rísticas da nação podaba seriam o culto de divindades como o vodum Jo, um tipo de
Iansã, ou o vodum Gotolu, um tipo de Oxóssi; a ausência do culto de Badé ou Averekete
(o que questionaria a suposta pertença dessa casa à nação jeje kaviono); a iniciação de
noviços para Ogum Xoreque (o que não ocorre no rito jeje-mahi); e os cantos para Ogum
e Nanã em "jeje" (não em nagô, como no rito jeje-mahi) (Eduardo de Olissá, Cachoei-
ra, 26/12/1999).
131
V. G. da Silva, Orixás..., p. 91. Também em São Paulo funciona o Dâmbalá Kuere-Rhó-
Becem Akóy Vodu, terreiro de pai Dancy. Embora iniciado na tradição do Vaudou hai-
tiano, pai Dancy foi outro dos assíduos participantes do Seja Hundé, nos últimos anos.
13
' Dadu de Olissá, 26/12/1999; pai Francisco, 26/12/1999.
131
Gaiaku Luiza, 22/6/1999; Orixás ér Africanos (órgão oficial de divulgação do culto e
da cultura afro-brasileiras), n e 45, ano XI, 1998, p. 15.
1,6
Sobre a passagem da Umbanda para o Candomblé em São Paulo, ver Prandi, Os candom-
blés.... Para uma análise da dinâmica competitiva que se dá no processo de "reafricanização"
entre aqueles que procuram a raiz da tradição na Africa e aqueles que a procuram na Bahia,
ver V. G. da Silva, Orixás...-, Capone, La quête...-, Parés, "The nagôization...".
lr
"Arrecadação da propriedade de Maria Julia Figueiredo, 1890", 03/101 1/1480/20, APEB3.
138
Há menção das terras do Comendador Bernardo Martins Catharino na Vitória pelo
menos desde 1930: "Inventário de Joaquim José da Silva Fialho, 1930", 6/2366/2866/2,

267
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

APEBa. Porém, não há menção dessa propriedade no testamento da sua mulher ("Testa-
mento de Úrsula Martins Catarino, 1922", 7/2950/0/8, APEBa).
1,9
C a r t ó r i o do l 2 O f í c i o de Registro de Imóveis de Salvador, apud Maia, "Projeto
Fundiário...", documentos vários.
140
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986.
141
Everaldo Duarte, 1 l / l 1/1999.
142
Ficha n 2 1, CEAO, 17/1/1961.
143
"Ruinhó quer mato e rio para 'voduns' do Bogum", A Tarde, 5/12/1975.
144
"Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge" (jornal não identificado), 1978;
"Locose toma assento na cadeira de Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; J. de Carvalho, Rein-
venção..., p. 69; Valéria Auada, "A rica história dos terreiros de candomblé da Bahia
que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987. Nesse artigo de jornal,
ogã Celestino data a venda do terreno em 1977, mas, segundo Duarte, os problemas
com o muro e o lixo deram-se com o terreno de Azonodo; portanto, sua venda acon-
teceu depois de 1978 (Everaldo Duarte, 22/9/2001).
"Candomblé do Bogum faz festa em homenagem ao prefeito da cidade", A Tarde, 20/2/1979.
146
"Projeto de Lei n u 3.591/85"; cf. Projeto MAMNBA (relatório e outros documentos). Pre-
feitura Municipal de Salvador, Casa Civil, G r u p o de Coordenação de Assuntos Cul-
turais, 1981-1985. "Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde,
10/12/1985.
14
"Terreiros querem proteção para manter culto a orixás", A Tarde, 10/12/1985. Everaldo
Duarte, l2/8/l999.
148
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986.
149
"Gil vai lançar campanha para recuperar terreiros", Tribuna da Bahia, 13/3/1987;
"Campanha para recuperar terreiros de candomblé", A Tarde, 13/3/1987; "O chama-
do do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987; "A rica história dos terreiros de candom-
blé da Bahia que o tempo ameaça destruir", Tribuna da Bahia, 28/3/1987; "Trono de
Ruinhó", Cidade da Bahia, 28/8/1993; "Decreto de Lídice autoriza m o n u m e n t o à Re-
volta dos Malês", Diário Oficial do Município, ano VIII, n a 1.145, 22/1 1/1993. Em
2001, graças à iniciativa de Everaldo Duarte, Gilberto Leal e Raul Lody, o Bogum con-
segue novos recursos da Fundação Palmares para a restauração do terreiro, viabilizando
assim a sua reabertura em 2002.
1511
"Seção Serviço Total", A Tarde, 19/1/1973.
,SI
"Bogum quer tombamento para preservar o seu bissecular terreiro", A Tarde, 24/7/1986;
"O chamado do Bogum", Jornal da Bahia, 18/3/1987.
Considerando o século XX, estatísticas levantadas em 1983 mostram que o percentual
de líderes masculinos que se declaravam jejes constituía importantes 40%, contra
60% de líderes femininas (J. T. dos Santos, O dono..., p. 19). Também citado por
Matory, Black Atlantic..., p. 230.
m
Freyre, Casa-grande..., p. 283; Matory, Black Atlantic..., pp. 191-207, 229-30; Carnei-
ro, Candomblés..., pp. 96-98; Landes, "A cult...", pp. 386-97. Ver também Dantas,
Vovó..., cap. 4; Parés, " T h e nagòization...".
111
Rodrigues, Os africanos..., pp. 230-34.
Lopes, "Exéquias..."; Carneiro, Candomblés..., pp. 45, 64.
w>
Ficha s.n., CEAO, s.d. [1961-1968]. Entrevista com Falefá realizada por Vivaldo da
Costa Lima. Na seção "ascendência religiosa", constam os nomes de Maria Julia (Duke)

268
LIDERANÇA. F DINÂMICA INTERNA DOS TERREIROS BOGUM £ SEJA HUNDÉ

de Oxum e do "pai de santo Manoel [ou] José Domingos, de Ogun (24 anos de morto)
(Ife) (Jakáibê)". Na mesma ficha, menciona-se a Maria Nenem, famosa mãe-de-santo
da nação angola que teria pretendido iniciar Falefá, mas "o santo fugiu, não aceitando
os cargos da nação" (Itamoacy da Costa, 13/12/1998).
1,7
F i c h a s . n . , CEAO, s . d . [1961-1968].
158
No século XVIII, em Uidá, por exemplo, Labat documenta beta como o nome atribuí-
do às vodúnsis do vodum-cobra Dangbe (Voyage..., vol. II, p. 188). O padre Steinmetz,
em relação à etimologia do termo Nesuhue no Benin, reporta o uso da expressão Len-
su-hue Kpo-vêta, que significaria a casa (hué) do grande (su) Len, filho da pantera (kpo)
da cabeça (ta) vermelha (vê) (Falcon, "Religion...", p. 143). No panteão da família de
Sogbo, também é conhecido o vodum Abetá Yoyo (gaiaku Luiza, em CEAO, 2" Encon-
tro..., pp. 70, 75).
159
M. V. dos Santos, "O mundo...".
160
Itamoacy, 13/12/1998; Gambovi, sobrinha de Manoel Falefá, 6/12/1998.
Gaiaku Luiza, em CEAO, Encontro..., pp. 73-74; Mott E Cerqueira, Candomblés...,
p. 157. Existem dúvidas quanto à ascendência religiosa de Sibeboran. Segundo Yeda
Machado, ela foi feita no Ketu; era amiga da casa de Falefá, mas não era filha de santo
dele. Segundo um ogã da casa, ela teria sido efetivamente feita por Falefá, em São Cae-
tano. Esse ogã acrescenta que o nome português de Sibeboran era Josefina (13/12/1998).
162
Jaime Montenegro, 10/8/1999. Todavia, no trabalho de campo ouvi falar de nagô-agabi
(em relação a antigos terreiros do Recôncavo) (gaiaku Luiza, 26/2/2001).
163
Matory, Man..., pp. 211-13; cf. Pedro de Alcântara Rocha, entrevista 10/9/1992; pai
Amilton, 26/12/1995.
164
Jaime Montenegro, 10/8/1999.
165
Pai Amilton, entrevista 26/12/1996.
166
Luiz Magno, entrevista 4/2/1999. Segundo outra transcrição da entrevista, Averigã seria
um nome de Oxaguian.
161
Gaiaku Luiza, 1996. No cap. 1, comentei a frequente associação que o povo-de-santo
faz entre a denominação étnica efan ou efon (povo do país Ekiti, na área iorubá) e o
etnònimo fon e a tendência a c o n f u n d i r esses terreiros com os terreiros jejes.
168
Ossorio, A ilha..., p. 130. Fico grato a Renato da Silveira que chamou minha atenção
para a existência desse texto (16/6/2001).
ir 9
' D. M. dos Santos, História..., p. 14; Lima, A família..., p. 140; Herskovits e Herskovits,
"Afro-Bahian...".
ro
Olga de Alakero, Salvador, entrevista 3/1/1996.
1 1
A primeira referência conhecida a "Antonio, vulgo Euxumaré" aparece no Diário de
Noticias, 18/9/1911, p. 1 (apud M. L. A. dos Reis, A cor..., p. 133). Encontrei uma
segunda reportagem referente ao "conhecido curandeiro Osumaré'' em A Tarde, 3/10/
1922, p. 2. Em 1934, João da Silva Campos menciona entre "os feiticeiros mais anti-
gos da Bahia de 1 875 para cá", os "mais temidos [...] Salocó, m u l a t o e A n t ô n i o
Oxumaré (Cobra Encantada) crioulo" ("Ligeiras...", p. 305). Ficha s.n., CF.AO, 1960.
172
As informações sobre o relacionamento de seu Jacinto com dona Gotinha são de Mil-
ton Moura, l 2 /9/2001.
17i
Lima, "O candomblé...", p. 41; cf. Carneiro, Religiões..., pp. 106-9. Em "Uma revi-
são na ethnographia religiosa afro-brasileira", trabalho apresentado no Congresso Afro-
Brasileiro de 1937 (p. 66), e em Negros bantos, Carneiro cita o candomblé do Oxumaré,

269
L U I S N I C O L A U P A R ÉS

na Mata Escura, "do pai-de-santo Jacinto" (Religiões..., pp. 166-67). Mas, como foi
dito, Jacinto era apenas o marido de dona Cotinha.
Verger, "Orixás da Bahia...", p. 208; Silvanilton da Mata, em CFAO, 2a Encontro..., p. 26.
Dona Cotinha faleceu em 2 de julho de 1944. Durante um breve tempo, assumiu a chefia
ou regência dona Francelina, até que, por volta de 1950, foi sucedida por Simplicia,
que faleceu em 18 de setembro de 1967 (Milton Moura, l a /9/200l).
Ficha n a 1, CEAO, 17/1/1961; humbono Vicente, 17/11/1994.

270
7

O PANTEÃO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

CULTOS D E M Ú L T I P L A S D I V I N D A D E S , P A N T E Õ E S E H I E R A R Q U I A S

Após a r e c o n s t i t u i ç ã o m i c r o - h i s t ó r i c a dos terreiros j e j e - m a h i s de Salvador e


C a c h o e i r a , passo a examinar seu sistema religioso, c o m e ç a n d o , neste capítulo,
pelas entidades espirituais ou v o d u n s , e a dinâmica interna dos "panteões" em
que elas são organizadas. R e t o m a n d o u m tema já a p o n t a d o no capítulo 4, na
primeira parte d o c a p í t u l o analiso u m dos aspectos q u e c o n t r i b u í r a m de for-
ma mais d e t e r m i n a n t e para o processo de progressiva complexidade ritual que
se deu na institucionalização do C a n d o m b l é . Esse aspecto é a reunião, no seio
de u m a m e s m a c o n g r e g a ç ã o religiosa, de cultos c o r r e s p o n d e n t e s a várias di-
vindades, a c o n s e q u e n t e j u s t a p o s i ç ã o de diversos assentos n u m m e s m o espa-
ço físico e a organização de f o r m a s de performance seriada, para celebrar, si-
m u l t â n e a ou c o n s e c u t i v a m e n t e , essa pluralidade espiritual. Interessa, p o r t a n -
to, distinguir os cultos de múltiplas divindades dos cultos monoteístas, dedicados
1
a u m a só e n t i d a d e espiritual.
Antes do século XIX n ã o há e v i d ê n c i a d o c u m e n t a l , na Bahia, de c o n g r e -
gações que cultuassem mais de u m a d i v i n d a d e , e m b o r a desse fato não se pos-
sa inferir sua i n e x i s t ê n c i a . C o m o já c o m e n t e i , a t r a d i ç ã o oral c o n s i d e r a q u e
foi d u r a n t e a f u n d a ç ã o d o Ilê Iyá N a s s ô — o c o r r i d a , s e g u n d o os cálculos
mais arriscados, na ú l t i m a década do século XVIII, ou, s e g u n d o os mais con-
servadores, nas p r i m e i r a s décadas do século XIX — q u e se p r o d u z i u , pela
primeira vez na Bahia, a reunião simultânea de cultos de várias divindades n u m
m e s m o terreiro. O r a , c o m o t a m b é m foi n o t a d o , o p r i m e i r o indício d o c u m e n -
tal de u m c u l t o de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s só aparece em 1858, q u a n d o , em
u m c a n d o m b l é nas Q u i n t a s da Barra, no d i s t r i t o da V i t ó r i a em Salvador, a
polícia e n c o n t r o u diversas vestes e e m b l e m a s r i t u a i s q u e s u g e r e m esse cul-
to coletivo. 2

271
LUIS NICOLAU P A R ÉS

A u t o r e s c o m o Verger ou Bastide, c o m p a r a n d o essa s i t u a ç ã o b a i a n a c o m


e v i d ê n c i a s e t n o g r á f i c a s d o s c u l t o s de orixás da área i o r u b á , q u e pelo m e n o s
no p a s s a d o p r é - c o l o n i a l e r a m d e c a r á t e r g e r a l m e n t e m o n o t e í s t a ( u m a ú n i c a
divindade por templo ou congregação), concluem que a reunião n u m mesmo
espaço físico de c u l t o s de d i v i n d a d e s de origens diversas, c o m o a c o n t e c e u n o
Ilê Iyá Nassô, seria r e s u l t a d o de u m processo g e n u i n a m e n t e "crioulo" o u u m a
i n o v a ç ã o e s s e n c i a l m e n t e brasileira, d e v i d o às novas c o n d i ç õ e s s o c i o c u l t u r a i s
i m p o s t a s pela s o c i e d a d e escravista ao e n c o n t r o i n t e r é t n i c o de g r u p o s sociais
h e t e r o g é n e o s e à n e c e s s i d a d e de e c o n o m i z a r e c o m p a r t i l h a r recursos em t e m -
pos d e o p r e s s ã o . O u t r o s a u t o r e s , c o m o J o ã o Reis, t ê m s u s t e n t a d o q u e a de-
voção aos vários s a n t o s p r a t i c a d a nas igrejas católicas t a m b é m servira c o m o
m o d e l o o u r e f e r e n t e p a r a o e s t a b e l e c i m e n t o dos c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n -
dades n o C a n d o m b l é . 3
Sem negar a possível i n t e r v e n ç ã o desses fatores, cabe n o t a r q u e havia e n t r e
os g r u p o s africanos q u e chegaram na Bahia alguns c o m claros antecedentes reli-
giosos nesse â m b i t o particular. E f e t i v a m e n t e , u m a das características da religião
v o d u m é a c o n c e i t u a l i z a ç ã o d o m u n d o espiritual em constelações o u grupos de
d i v i n d a d e s , e u m dos seus elementos estruturais é a organização de congregações
religiosas dedicadas ao culto coletivo de u m n ú m e r o variável de v o d u n s , com ri-
tuais públicos q u e utilizam formas de performance seriada. Paralelamente, a análise
histórica e etnográfica d o c u l t o de v o d u n s m o s t r a c o m clareza a n a t u r e z a essen-
c i a l m e n t e d i n â m i c a desses grupos de d i v i n d a d e s , e x i s t i n d o u m a t e n d ê n c i a re-
c o r r e n t e a incluir, assimilar ou agregar novas d i v i n d a d e s aos "panteões" exis-
tentes. O q u e p o d e r í a m o s c h a m a r de " p r i n c í p i o de agregação" seria, p o r t a n t o ,
u m a terceira p r o p r i e d a d e d o sistema religioso v o d u m .
O p r o c e s s o de r e u n i ã o i n t e r é t n i c a de d i v i n d a d e s , q u e c a r a c t e r i z o u a for-
m a ç ã o d o Ilê Iyá N a s s ô e q u e , m u i t o p r o v a v e l m e n t e , o c o r r e u n o m e s m o pe-
r í o d o e m o u t r o s terreiros c o n t e m p o r â n e o s , p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d o , e m parte,
c o m o r e s u l t a d o i n t r í n s e c o da c o n f l u ê n c i a de g r u p o s s o c i a l m e n t e h e t e r o g é n e o s
q u e se d e u na sociedade c o l o n i a l e escravista. Nesse s e n t i d o , c o m o já a p o n t e i ,
o p r o c e s s o de agregação d e s e n v o l v i d o n o C a n d o m b l é b a i a n o e a q u e l e d e s e n -
v o l v i d o nas c i d a d e s c o m e r c i a i s da área g b e em relação aos c u l t o s d e v o d u n s
p o d e r i a m ser i n t e r p r e t a d o s c o m o respostas paralelas, e m b o r a i n d e p e n d e n t e s ,
a c o n d i ç õ e s sociais s e m e l h a n t e s . C e n t r o s c o m o U i d á ou A b o m e y , p o r exem-
plo, c o m p a r t i l h a v a m c o m Salvador a m e s m a h e t e r o g e n e i d a d e , m o v i m e n t a ç ã o
e e s t r a t i f i c a ç ã o social, o q u e de a l g u m m o d o teria c o n t r i b u í d o p a r a a síntese
ou justaposição de cultos.
N o e n t a n t o , d e v i d o à a n t e c e d ê n c i a h i s t ó r i c a desse f e n ó m e n o na área gbe,
p o d e r í a m o s a r g u m e n t a r q u e os c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s n o C a n d o m b l é

272
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

f o r a m r e s u l t a d o também de i n f l u ê n c i a s lineares e d i r e t a s d o " p r i n c í p i o de


agregação", c a r a c t e r í s t i c o d o s c u l t o s de v o d u n s , a i n d a q u e a p l i c a d o a u m a
d i v e r s i d a d e é t n i c a m a i s extensa. E m o u t r a s palavras, c e r t o s especialistas re-
ligiosos jejes v e n d i d o s c o m o escravos na Bahia t i n h a m r e f e r e n t e s rituais e co-
n h e c i m e n t o e s o t é r i c o para o r g a n i z a r c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e, o q u e
é m a i s i m p o r t a n t e , e s t a v a m h a b i t u a d o s a agregar novas d i v i n d a d e s nesses
c u l t o s . N u m c o n t e x t o social q u e p r o p i c i a v a a r e u n i ã o de g r u p o s h u m a n o s
h e t e r o g é n e o s , essa e x p e r i ê n c i a dos a f r i c a n o s jejes foi, sem d ú v i d a , de m u i t a
u t i l i d a d e p a r a especialistas religiosos de o u t r a s origens q u e , fosse em associa-
ção c o m os s a c e r d o t e s jejes, fosse i m i t a n d o suas p r á t i c a s , r e p l i c a r a m f o r m a s
de c u l t o coletivas p a r e c i d a s . Essas c o n s i d e r a ç õ e s vêm c o r r o b o r a r desse o u t r o
â n g u l o a tese, s u s t e n t a d a n o c a p í t u l o 4, de q u e a t r a d i ç ã o v o d u m teve p a p e l
determinante no processo formativo do C a n d o m b l é .
Vejamos c o m mais detalhe essas questões. Ao lado dos ancestrais divinizados
das l i n h a g e n s (hennu-voduns) e das d i v i n d a d e s ou forças de caráter pessoal (Fa,
Legba), H e r s k o v i t s d i v i d e as "grandes d i v i n d a d e s " ou d i v i n d a d e s "públicas"
d a o m e a n a s em q u a t r o g r u p o s principais: o p a n t e ã o celeste de M a w u - L i s s á , o
p a n t e ã o da terra de Sakpata, o p a n t e ã o da s e r p e n t e de D a n e o p a n t e ã o d o t r o -
vão d e H e v i o s o . H e r s k o v i t s comem a q u e "o d a o m e a n o não c o n c e b e u m a só
d i v i n d a d e c u m p r i n d o todas as f u n ç õ e s de cada u m dos e l e m e n t o s . Ele c o n c e -
be s o b r e t u d o grupos de divindades, f o r m a n d o cada g r u p o u m p a n t e ã o gover-
n a d o p o r u m chefe de panteão" (grifo nosso).4 C o m o explica M a u p o i l , "o tro-
vão, a terra, t o d o s os g r a n d e s v o d u n s p o s s u e m u m c o n j u n t o de satélites entre
os quais se r e p a r t e m os deveres sob a sua responsabilidade". > O q u e interessa
destacar é a ideia de q u e os v o d u n s são c o n c e b i d o s c o m o f o r m a n d o grupos, às
vezes ligados por v í n c u l o s genealógicos, e q u e os seus assentos o u altares são
agregados n u m m e s m o t e m p l o ou espaço sagrado, s e g u n d o u m a lógica de efi-
cácia religiosa e de a c u m u l a ç ã o de p o d e r espiritual (acè).
Olabiyi Yai alerta q u e c h a m a r "panteões" a esses g r u p o s de d i v i n d a d e s p o d e
levar a equívocos, já q u e o t e r m o " p a n t e ã o " " i n t r o d u z de f o r m a e n c o b e r t a os
novos e p o t e n c i a l m e n t e subversivos c o n c e i t o s gémeos de verticalidade e hie-
r a r q u i a c o m o d i m e n s õ e s o u traços d e f i n i d o r e s das d i v i n d a d e s na visão d o
m u n d o dos h a b i t a n t e s da região" — características q u e n e m s e m p r e p o d e r i a m
ter existido. 6 N o e n t a n t o , d e v e m o s a d m i t i r q u e idéias de verticalidade e hie-
rarquia n ã o eram estranhas à religião v o d u m , e isso n u m a variedade de f o r m a s .
C o m o já foi referido no capítulo 3, n o século XVII Bosman notava, em Uidá,
a s u p r e m a c i a d o c u l t o da s e r p e n t e sobre os cultos das árvores e d o mar, suge-
r i n d o u m a análoga h i e r a r q u i a e n t r e os respectivos sacerdotes. E n t r e t a n t o , fo-
ram os reis f o n s os responsáveis por estabelecer no D a o m é , já desde o i n í c i o

273
LUIS NICOLAU P A R ÉS

d o século XVIII, u m sistema religioso a l t a m e n t e c e n t r a l i z a d o e h i e r a r q u i z a d o .


V i m o s c o m o M a u p o i l falava de u m "plano de s u b m i s s ã o dos altares ao t r o n o " ,
e M a u r i c e Glele, de u m " c o n t r o l e de polícia a d m i n i s t r a t i v a " d o e s t a d o s o b r e
as c o n g r e g a ç õ e s v o d u n s . 7 Esse c o n t r o l e p o l í t i c o d a vida religiosa r e s u l t o u n a
c e n t r a l i z a ç ã o e o r g a n i z a ç ã o h i e r á r q u i c a da c a s t a s a c e r d o t a l . A m ã e d o rei
T e g b e s u , N a H u a n j i l e , é g e r a l m e n t e t i d a c o m o r e s p o n s á v e l pela i n t r o d u ç ã o ,
p o r v o l t a de 1740, d o c u l t o M a w u - L i s s á , em A b o m e y , t r a n s f o r m a n d o esse
casal d e v o d u n s em divindades genitoras e supremas, colocando-as na cumeeira
d e u m p a n t e ã o cada vez mais vertical e h i e r a r q u i z a d o . Ao m e s m o t e m p o , a
i n t r o d u ç ã o d o sistema de a d i v i n h a ç ã o Fa, c o n t r o l a d o e x c l u s i v a m e n t e p o r h o -
m e n s , e a p r o m o ç ã o d o c u l t o N e s u h u e dos ancestrais reais c o m o c u l t o "nacio-
n a l " , c o m p r e c e d ê n c i a s o b r e o c u l t o d o resto de d i v i n d a d e s " p ú b l i c a s " , c o n -
t r i b u í r a m p a r a u m a c r e s c e n t e e s t r u t u r a ç ã o p i r a m i d a l d o s i s t e m a religioso. 8
O p r o g r e s s i v o e s t a b e l e c i m e n t o , d u r a n t e os séculos XVIII e XIX, de u m
" p a n t e ã o oficial" em A b o m e y foi a c o m p a n h a d o pela e l a b o r a ç ã o de v í n c u l o s
c o n c e i t u a i s e rituais e n t r e as suas p a r t e s c o n s t i t u i n t e s , isto é, as d i v i n d a d e s
"públicas" ou "divindades d o reino". O s cultos de M a w u - L i s s á , H e v i o s o e D a n ,
p o r e x e m p l o , até e n t ã o i n d e p e n d e n t e s , f o r a m r e l a c i o n a d o s através de m i t o s ,
c o m o i n t u i t o de estabelecer c o s m o l o g i a s coerentes. O r a , esses esforços dirigi-
dos p a r a criar u m sistema coeso f o r a m p r i n c i p a l m e n t e restritos a A b o m e y e a
sua área de i n f l u ê n c i a . 9 E m b o r a n ã o d e v a m o s s u b e s t i m a r o i m p a c t o desses es-
forços f o r a de Abomey, o q u e parece ter prevalecido na região é u m a série d o
q u e J o h n Peei, r e f e r i n d o - s e à área i o r u b á , c h a m a de "complexos de cultos lo-
cais" (local cult complexes), definidos c o m o "um c o n j u n t o de cultos que ten-
de a i n c l u i r t a n t o u m b o m n ú m e r o dos orisas [ v o d u n s ] c o n h e c i d o s em t o d o
o país [...] c o m o o u t r o s de caráter mais local, talvez até exclusivos d o lugar". 1 0
Faz-se, p o r t a n t o , útil p a r a a análise d i s t i n g u i r e n t r e u m " c o m p l e x o de c u l t o s
nacional", estabelecido por Abomey, p r o m o v e n d o um panteão altamente
h i e r a r q u i z a d o e vertical, e vários " c o m p l e x o s de c u l t o s locais", capazes de as-
similar e l e m e n t o s d o m o d e l o oficial, m a s q u e p o d i a m t a m b é m m a n t e r cer-
tas e s p e c i f i c i d a d e s locais.
D e m o d o geral, os s a c e r d o t e s de cada t e m p l o o u c o n g r e g a ç ã o v o d u m ti-
n h a m relativa a u t o n o m i a p a r a instalar os assentos o u altares das d i v i n d a d e s
q u e eles a c h a v a m o p o r t u n o . E m b o r a a m a i o r i a d o s v o d u n s c u l t u a d o s n u m
t e m p l o tendessem a pertencer à m e s m a categoria genérica (hunve ou v o d u n s
v e r m e l h o s , c o m o H e v i o s o ; atimevodun o u v o d u n s das árvores; D a n ; S a k p a t a ;
N e s u h u e etc.), novos v o d u n s , p o r m o t i v o s variados, p o d i a m ser " a d q u i r i d o s "
o u " c o m p r a d o s " e a g r e g a d o s aos já existentes c o m o "satélites". Essa d i n â m i -
ca resultava n u m c o n t í n u o m o v i m e n t o e t r a n s f o r m a ç ã o d o " p a n t e ã o " de qual-

274
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

q u e r t e m p l o e, c o n s e q u e n t e m e n t e , de q u a l q u e r " c o m p l e x o de c u l t o s local".
A c o m p a r a ç ã o das listas de v o d u n s r e c o l h i d a s em várias regiões da área gbe,
tanto no interior como fora do D a o m é , mostra contradições recorrentes no
n ú m e r o , i d e n t i d a d e , g é n e r o , a t r i b u t o s , f u n ç õ e s o u p o s i ç ã o relativa de p a r e n -
tesco das d i v i n d a d e s de q u a l q u e r " p a n t e ã o " q u e seja. Essa e v i d ê n c i a i n d i c a
c l a r a m e n t e q u e , apesar da c e n t r a l i z a d a o r g a n i z a ç ã o religiosa p r e v a l e c e n t e e m
A b o m e y , os " p a n t e õ e s " n ã o e r a m n u n c a estáticos o u h o m o g é n e o s . A análise
dessa d i n â m i c a e m relação aos v o d u n s c u l t u a d o s n o s c a n d o m b l é s jejes da
Bahia será d e s e n v o l v i d a m a i s a d i a n t e .
A l é m dessa v a r i a b i l i d a d e , em c a d a t e m p l o v o d u m u m a d i v i n d a d e é n o r -
m a l m e n t e i n d i c a d a c o m o a l i d e r a n ç a d o g r u p o e s p i r i t u a l . Esse m í n i m o ele-
m e n t o h i e r á r q u i c o é g e r a l m e n t e , m a s n e m s e m p r e , expresso em t e r m o s ge-
nealógicos. A figura d o pai o u de u m casal g e n i t o r original expressa h a b i t u a l -
m e n t e a p r e e m i n ê n c i a de certos v o d u n s sobre o resto d o g r u p o . E m a l g u n s
casos, as h i e r a r q u i a s prevalecentes e n t r e as d i v i n d a d e s r e f l e t e m c o r r e s p o n d e n -
tes h i e r a r q u i a s e n t r e os seus sacerdotes. As n a r r a t i v a s q u e e n f a t i z a m certas
h i e r a r q u i a s são e l a b o r a d a s o u c o n s t r u í d a s , m u i t a s vezes, p a r a l e g i t i m a r u m a
d i v i n d a d e ou u m g r u p o de d i v i n d a d e s ( n o r m a l m e n t e aquelas c o m as q u a i s o
n a r r a d o r está ligado), p e r a n t e o u t r a s de congregações religiosas c o n c o r r e n t e s .
P o d e m o s c o n c l u i r q u e o c o n c e i t o de g r u p o s ou "famílias" de d i v i n d a d e s , lide-
radas p o r u m a figura p r i n c i p a l e c u l t u a d a s n u m m e s m o t e m p l o , g e r a l m e n t e
sob a s u p e r v i s ã o c e n t r a l i z a d a de u m casal h o m e m - m u l h e r d e vodunons (sa-
cerdotes, literalmente "donos" do v o d u m ) , constitui elemento f u n d a m e n t a l
da religião v o d u m .
Essas características d o c u l t o de v o d u n s na área gbe p a r e c e m c o n t r a s t a r ,
até c e r t o p o n t o , c o m os c u l t o s de orixás da área i o r u b á , o n d e a i n t e r c o n e c -
t i v i d a d e e n t r e orixás é, a p a r e n t e m e n t e , m e n o s f o r t e . S e g u n d o Verger, cada
c u l t o de orixá c o n s t i t u i u m a i n s t i t u i ç ã o i n d e p e n d e n t e , o q u e resulta n o q u e
ele c h a m o u u m a série de " m o n o t e í s m o s j u s t a p o s t o s " . E m o u t r a s palavras, cada
c o n g r e g a ç ã o religiosa, o u até cada vila o u c i d a d e , estaria d e d i c a d a à v e n e r a -
ção exclusiva de u m a ú n i c a d i v i n d a d e a u t ó n o m a . E m b o r a na área i o r u b á
e n c o n t r e m o s c o m p l e x o s de vários c u l t o s e m m u i t a s localidades e até, e m cer-
tos casos, o c u l t o de mais de u m orixá n u m a m e s m a c o n g r e g a ç ã o religiosa, a
h i p ó t e s e de Verger, de u m a certa i n d e p e n d ê n c i a e n t r e os vários cultos de orixá,
parece c o n f i r m a d a n u m e s t u d o de M c k e n z i e . Baseado na análise dos orikis
dos orixás e dos versos d e Ifá, M c k e n z i e c o n c l u i q u e , f o r a o caso de X a n g ô ,
O b a t a l á e a "tríade de Ifá" (Exu, O r u n m i l á e O l o d u m a r é ) , os cultos de orixás
não a p r e s e n t a m quase n e n h u m a alusão verbal a o u t r a s d i v i n d a d e s , s u g e r i n d o
u m relativo "separatismo" e n t r e eles e a ausência de u m p a n t e ã o fixo ou esta-

275
L U I S N I C O L A U PAR ÉS

belecido. Mckenzie, que critica anteriores modelos unitários do p a n t e ã o


i o r u b á , é m e n o s radical q u e Verger e a d o t a u m a p o s t u r a i n t e r m e d i á r i a mais
c o n c i l i a t ó r i a , f a l a n d o de "constelações de orixás e m t o r n o de a l g u n s o u t r o s
p r o e m i n e n t e s " , e x i s t i n d o e n t r e eles " u n i f o r m i d a d e s parciais, mas s e m c o n -
templar qualquer quadro cosmológico completo"."
A h i p ó t e s e de Verger leva ã c o n c l u s ã o de q u e a j u s t a p o s i ç ã o de u m a plura-
lidade de cultos individuais n u m a m e s m a congregação religiosa, c o m o acontece
n o C a n d o m b l é brasileiro, o V a u d o u h a i t i a n o e a Santeria c u b a n a (o q u e ele
c h a m a d e "politeísmo", em oposição aos " m o n o t e í s m o s justapostos"), seria u m a
criação característica do N o v o M u n d o , r e s u l t a d o das novas c o n d i ç õ e s socio-
c u l t u r a i s i m p o s t a s pelo escravismo, s i t u a ç ã o e m q u e recursos h u m a n o s e m a -
teriais l i m i t a d o s t e r i a m favorecido a r e u n i ã o inclusiva de cultos i n i c i a l m e n t e
discretos ou separados. Esse f e n ó m e n o constituiria, assim, u m a diferença f u n d a -
m e n t a l e n t r e o C a n d o m b l é e as tradições orixá da Á f r i c a o c i d e n t a l . A i n t e r p r e -
tação "nagocêntrica" de Verger tem sido aceita e replicada de f o r m a acrítica pela
l i t e r a t u r a afro-brasileira, e s p e c i a l m e n t e p o r Bastide, para citar apenas u m dos
autores m a i s significativos. 1 2 N o e n t a n t o , essa i n t e r p r e t a ç ã o n ã o leva em consi-
deração a a m p l a evidência coletada na área gbe (parte dela pelo p r ó p r i o Verger),
q u e m o s t r a u m a a n t i g a e f e c u n d a t r a d i ç ã o de cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s . 1 3
Aliás, t a m b é m n a área i o r u b á , ao m e n o s na a t u a l i d a d e , e n c o n t r a m o s cultos
d e m ú l t i p l o s orixás e f o r m a s de performance seriada, c o m o f o i d o c u m e n t a d o
p o r A n d r e w A p t e r n o r e i n o de A y e d e , na região de E k i t i , e p o r M a r g a r e t
T h o m p s o n D r e w a l em I g b o g i l a , u m a vila na região d e E g b a d o . A p t e r chega
a t é a a f i r m a r q u e os cultos d e m ú l t i p l o s orixás p o d e r i a m c o n s t i t u i r u m a ca-
r a c t e r í s t i c a c o m u m da área i o r u b á , e a p a r t i r desse p r e s s u p o s t o q u e s t i o n a
t a m b é m a h i p ó t e s e de Verger, s u g e r i n d o q u e o c u l t o d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s
d o C a n d o m b l é e n c o n t r a r i a os seus a n t e c e d e n t e s nas p r á t i c a s e i n s t i t u i ç õ e s
religiosas da área i o r u b á . C o n q u a n t o p r e c i s a m o s de u m a análise histórica mais
d e t a l h a d a , cabe n o t a r q u e os c u l t o s de m ú l t i p l o s orixás na área i o r u b á pare-
c e m u m f e n ó m e n o r e l a t i v a m e n t e r e c e n t e , talvez r e s u l t a d o das m i g r a ç õ e s e
r e e s t r u t u r a ç õ e s sociais o c o r r i d a s a p ó s a q u e d a d o r e i n o de O y o , p o r v o l t a de
1830. N o caso de A y e d e , p o r e x e m p l o , os c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s em
v o l t a de a l g u n s orixás p r i n c i p a i s s u r g i u só a p ó s 1845, p e r í o d o da f o r m a ç ã o
desse r e i n o , e já q u e o t r á f i c o t r a n s a t l â n t i c o brasileiro cessou e m 1850, parece
difícil q u e as p r á t i c a s religiosas de A y e d e tivessem q u a l q u e r i n f l u ê n c i a na
f o r m a ç ã o d o C a n d o m b l é . N o caso d e I g b o g i l a , c o m o sugere D r e w a l , o c u l t o
d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s p o d e r i a ter sido, na sua o r i g e m , u m a p r á t i c a v o d u m ,
a p r o p r i a d a dos g u n s de P o r t o N o v o , pelos a h o r i s ( h o l l i - i d j è ) e s u b s e q u e n t e -
m e n t e r e p l i c a d a pelos seus v i z i n h o s de E g b a d o . 1 4

276
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

U m a característica desses c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s i o r u b á s é a c o n -
d u ç ã o d o r i t u a l p o r u m a p l u r a l i d a d e de especialistas religiosos, cada u m res-
ponsável por u m orixá, e n q u a n t o , nos templos voduns, e n c o n t r a m o s u m a
l i d e r a n ç a c e n t r a l i z a d a n u m casal de vodunons responsável pela t o t a l i d a d e d o
g r u p o de d i v i n d a d e s . S e g u n d o R o d r i g u e s , na Bahia d o final d o século XIX
n ã o havia s a c e r d o t e s especializados; s e n d o q u e cada ialorixá o u b a b a l o r i x á
dirigia o c u l t o de t o d a s as d i v i n d a d e s a s s e n t a d a s n o t e r r e i r o , c o m exceção de
ocasiões especiais, c o m o a l g u m a festa i m p o r t a n t e , em q u e vários líderes reli-
giosos p o d i a m r e u n i r - s e n u m a m e s m a c a s a . E s s a nova s e m e l h a n ç a e s t r u t u -
ral e n t r e a t r a d i ç ã o v o d u m e o C a n d o m b l é v e m r e f o r ç a r a m i n h a tese de base
de u m a s i g n i f i c a t i v a c o n t i n u i d a d e e n t r e os dois sistemas religiosos.
É preciso salientar q u e a ênfase d a d a aqui à i m p o r t â n c i a da t r a d i ç ã o v o d u m
r e s p o n d e à o r i e n t a ç ã o da p e s q u i s a , mas n ã o deveria l e v a r - n o s a m i n i m i z a r a
c o m p l e x i d a d e d o p r o b l e m a . Pensar em t e r m o s d e u m a p o l a r i z a ç ã o e n t r e u m
sistema de o r g a n i z a ç ã o religiosa d a o m e a n o , vertical e "politeísta", e u m o u -
tro iorubá, horizontal e "multimonoteísta", é certamente reducionista e ana-
l i t i c a m e n t e i n c o r r e t o . Processos de h i e r a r q u i z a ç ã o e c e n t r a l i z a ç ã o n ã o e r a m
exclusivos d o s f o n s , e a e v i d ê n c i a h i s t o r i o g r á f i c a e e t n o g r á f i c a p r o v a q u e f o r -
mas c e n t r a l i z a d a s de o r g a n i z a ç ã o religiosa f o r a m t a m b é m c o m u n s e n t r e os
g r u p o s i o r u b á s . 1 6 D e m o d o similar, c o m o foi m o s t r a d o , c u l t o s de m ú l t i p l a s
d i v i n d a d e s e f o r m a s de performance seriada t a m b é m n ã o e r a m exclusivas dos
c u l t o s de v o d u n s . N o e n t a n t o , a d o c u m e n t a ç ã o d i s p o n í v e l sugere q u e essas
práticas e r a m c o m u n s n a área gbe pelo m e n o s desde o século XVIII, e n q u a n t o
na área i o r u b á a p a r e c e m de u m a f o r m a restrita, n u m p e r í o d o r e l a t i v a m e n t e
tardio.
T a m b é m é claro q u e o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é n ã o r e s p o n d e u
a u m a simples réplica de u m a o u o u t r a t r a d i ç ã o a f r i c a n a , mas existiu t o d a
u m a série de c o n d i c i o n a n t e s s o c i o c u l t u r a i s q u e o b r i g a r a m e e s t i m u l a r a m u m a
" c r i a t i v i d a d e " q u e r e s u l t o u em c a r a c t e r í s t i c a s i n s t i t u c i o n a i s p r o p r i a m e n t e
brasileiras, a l é m , ou ao l a d o , dos possíveis processos de c o n t i n u i d a d e . E n -
t r e t a n t o , p e n s o q u e o " p r i n c í p i o de agregação", b a s e a d o na d i n â m i c a de i n -
cluir novas d i v i n d a d e s n u m c o m p l e x o ritual p r e e x i s t e n t e , p r i n c í p i o q u e n o
sistema religioso v o d u m c o n s t i t u i a regra (em vez da exceção, c o m o p a r e c e
a c o n t e c e r n o s c u l t o s d e orixás p r é - c o l o n i a i s ) , p e r s i s t i u c o m o u m a i n f l u ê n c i a
jeje q u e o f e r e c e u u m m o d e l o o r g a n i z a c i o n a l m a r c a n t e n a c o n s t i t u i ç ã o d o
Candomblé.

277
LUIS NICOLAU PAR ÉS

O CULTO D O S V O D U N S D O M A R E D O T R O V Ã O N A Á R E A G B E

A l é m das p r á t i c a s r i t u a i s q u e serão e x a m i n a d a s n o p r ó x i m o c a p í t u l o , o
" p a n t e ã o " , ou a i d e n t i d a d e das e n t i d a d e s espirituais, é talvez o mais i m p o r -
t a n t e f a t o r de d i f e r e n c i a ç ã o e n t r e as diversas "nações de C a n d o m b l é " . Atual-
m e n t e , os vários terreiros j e j e - m a h i s da Bahia p o d e m c u l t u a r u m a c o m p l e x a
v a r i e d a d e de divindades, t a n t o v o d u n s c o m o orixás, c o m certas diferenças de
detalhe de u m a casa para o u t r a . N o e n t a n t o , existe u m certo consenso em des-
tacar três grandes grupos de v o d u n s c o m o d o m i n a n t e s e característicos dessa
"nação". Esses três grupos o u "famílias" são liderados pelos c h a m a d o s "reis da
nação jeje": 1) o v o d u m serpente Bessen (a família de D a n ) ; 2) o v o d u m do
trovão Sogbo (a f a m í l i a de H e v i o s o ou K a v i o n o ) e 3) o v o d u m da varíola
A z o n s u (a família de S a k p a t a ) . C o m o explicava o falecido N e t i n h o , v o d ú n s i
d o Seja H u n d é , as três famílias são c o m o os dedos índice, m é d i o e a n u l a r ; os
três p e r t e n c e m à m e s m a m ã o (a m e s m a nação), mas o m é d i o ( D a n ) é o maior.
gaiaku Luiza, a l t e r a n d o a h i e r a r q u i a , falava q u e Sogbo é o rei, Bessen, o
p r í n c i p e , e A z o n s u , o conde. 1 7
N a n ã , "a mais velha das mães d'água"; Loko, associado à gameleira; Aziri,
Agué, Lissá, Aizan ou Elegba são o u t r o s v o d u n s b e m c o n h e c i d o s , e existem
m u i t o s o u t r o s preservados na m e m ó r i a , mas as três famílias acima m e n c i o -
nadas, i n c l u i n d o cada u m a delas u m variado n ú m e r o de v o d u n s , c o n s t i t u e m
os sinais de i d e n t i d a d e mais i m p o r t a n t e s d o p a n t e ã o jeje c o n t e m p o r â n e o .
J u s t a p o s t o s a esses v o d u n s c u l t u a m - s e t a m b é m u m a série de orixás nagôs, es-
p e c i a l m e n t e as yabas ou orixás f e m i n i n o s , r e s u l t a n d o n u m p a n t e ã o m i s t o ,
f r e q u e n t e m e n t e c h a m a d o " n a g ô - v o d u m " . Essa j u s t a p o s i ç ã o i n t e r é t n i c a , que
c a r a c t e r i z o u não apenas as casas jejes c o m o t a m b é m , de u m m o d o geral, o
processo f o r m a t i v o do C a n d o m b l é , p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d a , s e g u n d o sugeri
acima, c o m o u m a d i n â m i c a i n s p i r a d a no " p r i n c í p i o de agregação", o p e r a t i v o
n o sistema religioso v o d u m da área gbe.
Para m e l h o r e n t e n d e r e m que consiste esse " p r i n c í p i o de agregação", será
útil analisar, de u m a perspectiva histórica, u m caso específico. O exemplo dos
v o d u n s associados com o trovão e o mar, c o r r e s p o n d e n t e à família de Hevioso
n o Brasil, ilustra c o m o essas divindades f o r a m progressivamente inseridas em
p a n t e õ e s m u l t i é t n i c o s cada vez mais a b r a n g e n t e s , p r i m e i r o na área gbe e
depois nos terreiros jejes da Bahia. Esse caso t a m b é m sugere q u e tais m u d a n -
ças, o c o r r i d a s n o nível das e n t i d a d e s espirituais, em q u e novas e n t i d a d e s são
a d i c i o n a d a s e outras "esquecidas", relacionando-as em diferentes hierarquias,
p o d e m expressar d i s t i n t a s interações étnicas de seus agentes sociais, assim
c o m o m u d a n ç a s na organização de suas lideranças religiosas. E m o u t r a s pa-

278
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

lavras, a o r g a n i z a ç ã o d o m u n d o e s p i r i t u a l p o d e r e f l e t i r c e r t o s a s p e c t o s da
d i n â m i c a social.
U m e s q u e m a s i m p l i f i c a d o d o nosso caso em e s t u d o p o d e ser d i v i d i d o e m
q u a t r o estágios:

1) I n i c i a l m e n t e , os c u l t o s dos v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o e r a m i n s t i t u i -
ções religiosas i n d e p e n d e n t e s , a d s t r i t a s a l i n h a g e n s o u g r u p o s é t n i c o s espe-
cíficos, os h u l a e os a í z o - s e t o , r e s p e c t i v a m e n t e .
2) M a i s t a r d e , esses c u l t o s f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e assimilados p o r o u t r o s
g r u p o s étnicos, e x p a n d i n d o - s e p o r t o d a a área gbe, v i r a n d o cultos "públicos".
N e s s e p r o c e s s o , os d o i s g r u p o s de v o d u n s f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e
r e l a c i o n a d o s de f o r m a d i f e r e n c i a d a , s e g u n d o cada região. E m m u i t o s casos,
os v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o f o r a m i n t e g r a d o s n u m ú n i c o " p a n t e ã o " e
cultuados nos mesmos templos.
3) N o s t e r r e i r o s jejes d o Brasil, pelo m e n o s na Bahia e n o M a r a n h ã o , o
g r u p o já i n t e g r a d o d e v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar, c o n h e c i d o c o m o K a v i o n o
o u H e v i o s o , v i r o u u m " p a n t e ã o " i n c l u s i v o , a g r e g a n d o u m a série de d i v i n d a -
des q u e na área gbe e r a m alheias a esse g r u p o .
4) F i n a l m e n t e , n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s d a Bahia a f a m í l i a d e K a v i o n o
(também conhecida como M u n d u b i ) , embora identificada como um grupo
d i f e r e n c i a d o , foi r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a a o u t r o s g r u p o s de v o d u n s m a h i s ,
c o m o o da s e r p e n t e D a n e o d o v o d u m da t e r r a S a k p a t a , assim c o m o a cer-
tos orixás nagôs, c o m o as jyabas O i á e O x u m , p o r e x e m p l o .

O p r i m e i r o p r o b l e m a ao e n c a r a r esse p r o g r e s s i v o e variável p r o c e s s o d e
agregação de d i v i n d a d e s é o de localizar esse m o v i m e n t o n o t e m p o e n o espa-
ço. A análise h i s t ó r i c a de q u a l q u e r g r u p o de v o d u n s , em p a r t i c u l a r a d o s vo-
d u n s d o t r o v ã o e d o m a r , a p r e s e n t a sérias d i f i c u l d a d e s m e t o d o l ó g i c a s d e v i d o
à ausência, até a s e g u n d a m e t a d e do século XIX, de dados precisos e confiáveis.
Essas d i f i c u l d a d e s só p o d e m ser c o n t o r n a d a s r e c o r r e n d o à análise l i n g u í s t i c a ,
à t r a d i ç ã o oral e à p r o j e ç ã o n o passado de d a d o s e t n o g r á f i c o s do século XX. A
c o m b i n a ç ã o cautelosa dessas f o r m a s de evidência indireta, j u n t o c o m a i n f o r -
m a ç ã o d o c u m e n t a l d i s p o n í v e l p e r m i t e m , n o e n t a n t o , esboçar u m q u a d r o geo-
gráfico e c r o n o l ó g i c o r a z o a v e l m e n t e plausível.
O c u l t o d o m a r está d o c u m e n t a d o , d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o
XVII, e m várias p a r t e s d o G o l f o d o B e n i m . 1 8 E m m u i t o s casos, o f e r e n d a s ao
m a r e r a m realizadas p a r a i n v o c a r a c h e g a d a d o s b a r c o s e u r o p e u s , o u p a r a
a c a l m a r a f ú r i a das águas e p e r m i t i r o e m b a r q u e de m e r c a d o r i a s e escravos.
P o r t a n t o , o c u l t o ao m a r estava a p a r e n t e m e n t e ligado ao c o m é r c i o c o m os

279
LUIS NICOLAU P A R ÉS

e u r o p e u s e a suas v a n t a g e n s e c o n ó m i c a s . O r a , há evidências q u e s u g e r e m q u e
a v e n e r a ç ã o m a r í t i m a estava associada a c r e n ç a s a u t ó c t o n e s a n t e r i o r e s , pois
e m r e i n o s d o i n t e r i o r c o m o os de A l i a d a , O y o o u D a o m é existiam p r e c e i t o s
religiosos explícitos q u e p r o i b i a m aos seus reis e n t r a r em c o n t a t o o u o l h a r
para o mar.19
N a área gbe, o c u l t o ao m a r p a r e c e ter sido i n i c i a l m e n t e u m a p r e r r o g a t i v a
d o s h u l a s ; s i g n i f i c a t i v a m e n t e , os v o d u n s d o m a r são c o n h e c i d o s c o m o hu-
lahun, e h o j e em d i a os h u l a s r e c l a m a m ser os seus " p r o p r i e t á r i o s " o r i g i n a i s .
O s h u l a s , t a m b é m c o n h e c i d o s c o m o p o p o s , f u l a o s , pias, flàs o u afias, e r a m ,
p r i n c i p a l m e n t e , p e s c a d o r e s da lagoa litoral e p r o d u t o r e s de sal, t e n d o a sua
c a p i t a l p o l í t i c a e m A g b a n a n k i n , n o d e l t a d o rio M o n o . G r a ç a s às suas h a b i -
lidades de n a v e g a ç ã o e ao f a t o de ser a lagoa litoral u m a das mais i m p o r t a n t e s
r o t a s c o m e r c i a i s locais, os h u l a s r a p i d a m e n t e se e s t a b e l e c e r a m ao l o n g o de
t o d a a c o s t a da área gbe. A d o c u m e n t a ç ã o e x i s t e n t e p e r m i t e s u p o r q u e pelo
m e n o s a p a r t i r de 1630 eles já t e r i a m c r i a d o diversos n ú c l e o s p o p u l a c i o n a i s
d e s d e A f l a w u até J a k i n e, p r o v a v e l m e n t e , a i n d a m a i s a leste, até A p a (Ba-
dagri). 2 0 P o r t a n t o , apesar d a ausência de d o c u m e n t a ç ã o escrita, é possível q u e
o c u l t o de d i v i n d a d e s m a r í t i m a s se tivesse e s t e n d i d o e m t o d a essa área a p a r t i r
desse p e r í o d o .
O c u l t o do t r o v ã o está m e n o s d o c u m e n t a d o , e as p r i m e i r a s f o n t e s d o sé-
c u l o XVII f a l a m , s o b r e t u d o , da C o s t a d o O u r o . B a r b o t d o c u m e n t a , e m ter-
r i t ó r i o a k a n , a associação e n t r e o t r o v ã o e u m a d i v i n d a d e celeste c o n h e c i d a
c o m o J e a n G o e m a n ou J a n k o m é (Onyankome). B o s m a n , r e f e r i n d o - s e à mes-
m a região, m e n c i o n a q u e os "negros" são d a o p i n i ã o q u e "a f o r ç a d o t r o v ã o
está c o n t i d a em certa pedra", e sugere a sua associação c o m "coisas s o b r e n a t u -
rais". 2 1 E m b o r a esses c o m e n t á r i o s n ã o p e r m i t a m a f i r m a r a existência de u m
c u l t o o r g a n i z a d o d o trovão, i n d i c a m u m a a n t i g a d i v i n i z a ç ã o desse f e n ó m e n o
n a t u r a l n a região. N a área gbe, a p r i m e i r a referência ao c u l t o d o trovão apare-
ce n u m m a n u s c r i t o f r a n c ê s d a t a d o e n t r e 1708 e 1724. M e n c i o n a - s e , n o reino
d e U i d á , o c u l t o d o t r o v ã o e a c r e n ç a de q u e ele m a t a v a os ladrões c o m as
suas "pedras", i n s i n u a n d o - s e já a sua associação c o m o d i v i n d a d e da justiça. 2 2
N o e n t a n t o , é só n a s e g u n d a m e t a d e d o s é c u l o XIX q u e e n c o n t r a m o s
d o c u m e n t a d o s os p r i m e i r o s n o m e s de d i v i n d a d e s d o t r o v ã o . F. E. F o r b e s é o
p r i m e i r o a u t o r , e m 1851, a m e n c i o n a r o n o m e de So ("Soh") c o m o d i v i n d a d e
d o t r o v ã o . H e v i o s o é m e n c i o n a d o pela p r i m e i r a vez p e l o p a d r e B o r g h e r o em
1 8 6 3 : " n a l í n g u a G e g i , o d e u s d o t r o v ã o se c h a m a K e v i o s o . E o m e s m o
Schango dos Nagos". Richard B u r t o n , que visitou Uidá e Abomey n o mes-
m o a n o , fala t a m b é m de "So o u K h e v i o s o , o f e t i c h e d o t r o v ã o , c u l t u a d o em
W h y d a h , n o So A g b a j y í , o u q u i n t a l d o t r o v ã o " . 2 3

280
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

S e g u n d o Le Herissé, na área gbe coexistia u m a variedade de cultos sôs,


ou cultos do trovão (sô = trovão). H a v i a o d j i s ô (trovão do céu), c u l t u a d o
pelos d j e t o v i , p r o v a v e l m e n t e u m g r u p o p r o t o - i o r u b á , m o r a d o r n o p l a n a l t o
de Abomey. H a v i a t a m b é m o hevieso ou hevioso, o sô de Hevie, que, pelo
m e n o s desde o século XIX em d i a n t e , parece ter sido o c u l t o do trovão mais
p o p u l a r na região. E m Hevie, u m a cidade na região Aízo, entre Aliada e Uidá,
os v o d u n s heviosos são d e n o m i n a d o s setohun, ou d i v i n d a d e s dos setos. Se-
g u n d o T i d j a n i , os setos eram u m g r u p o é t n i c o de A t h i e m é , nas m a r g e n s d o
rio M o n o , q u e no século XVII e m i g r a r a m para Hevie. S e g u n d o Pazzi, a di-
f u s ã o do c u l t o sô a p a r t i r Hevie só se p r o d u z i u no século XIX. 2 4
E m b o r a essas i n f o r m a ç õ e s baseadas na t r a d i ç ã o oral d o século XX devam
ser t o m a d a s c o m cautela, o q u e emerge dessa breve exposição é q u e os cultos
dos v o d u n s do mar e d o trovão eram i n i c i a l m e n t e instituições religiosas inde-
p e n d e n t e s , adstritas a g r u p o s étnicos específicos. E m o u t r a s palavras, eles
eram hennu o u ako v o d u n s e seu culto, r e s p o n s a b i l i d a d e exclusiva de certas
linhagens. A l é m da evidência linguística — os v o d u n s do m a r são d e n o m i -
n a d o s hulahun e os d o trovão setohun — a documentação etnográfica con-
t e m p o r â n e a vem c o r r o b o r a r esse f a t o . Verger c o l e t o u as listas de v o d u n s
c u l t u a d o s em H e v i e e várias localidades orientais dos h u l a s . E m Hevie, ele
não a c h o u n e n h u m a m e n ç ã o das divindades d o mar (exceto A h u a n g a n , i d e n -
tificado ora c o m o v o d u m do m a r ora c o m o do trovão), e n q u a n t o em cidades
hulas c o m o K e t o n o u , G o d o m e y e Avlekete, o v o d u m hevioso é d e s c o n h e c i d o
ou f i g u r a apenas de f o r m a periférica, a p a r e n t e m e n t e c o m o u m a apropriação
tardia associada à de o u t r o s v o d u n s "públicos", c o m o Lissá ou Sakpata. E m
Aliada, em território aízo, Herskovits t a m b é m d o c u m e n t o u a presença dos vo-
d u n s heviosos e apenas u m só t e m p l o i n d e p e n d e n t e d e d i c a d o ao v o d u m mari-
n h o Agbé. Esses dados reforçam a idéia de que o culto h u l a dos v o d u n s do mar
e o culto áízo-seto dos v o d u n s do trovão f o r a m , no passado, instituições reli-
giosas separadas e diferenciadas. 2 '

VARIAÇÕES REGIONAIS E DINÂMICA INTERNA DOS "PANTEÕES" DO MAR E DO TROVÃO

C o m o t e m p o , os cultos do m a r e do trovão f o r a m p r o g r e s s i v a m e n t e a p r o -
priados p o r o u t r o s g r u p o s étnicos, c o m o os huedas, fons, gens, ewes ou anlos,
d i s p e r s a n d o - s e p o r quase t o d a a área gbe e c o n v e r t e n d o - s e , desse m o d o , em
cultos "públicos" o u i n t e r é t n i c o s . Nesse processo, os dois g r u p o s de v o d u n s
f o r a m c o n c e i t u a i e r i t u a l m e n t e r e l a c i o n a d o s em d i f e r e n t e s graus, s e g u n d o
cada região. Em m u i t o s casos, os v o d u n s do mar e d o trovão passaram a in-

281
LUIS NICOLAU P A R ÉS

tegrar u m ú n i c o " p a n t e ã o " , c u l t u a d o nos m e s m o s t e m p l o s , o q u e p o d e r í a m o s


c o n s i d e r a r u m p r i m e i r o estágio o u expressão d o " p r i n c í p i o de agregação".
E m U i d á , e m b o r a H e v i o s o seja c u l t u a d o em certas f a m í l i a s h u e d a s , o seu
t e m p l o mais i m p o r t a n t e e n c o n t r a - s e na concessão d o H u n o n D a g b o , o g r a n d e
s a c e r d o t e dos v o d u n s d o m a r . A c o l e t i v i d a d e f a m i l i a r d o H u n o n é h u l a e m
o r i g e m , mas a sua p r e s e n ç a em t e r r i t ó r i o h u e d a p r e c e d e u a c h e g a d a dos d a o -
m e a n o s na década de 1720. Fala-se q u e o H u n o n D a g b o "possui pessoalmente"
os v o d u n s heviosos, m a s a sua j u s t a p o s i ç ã o aos v o d u n s m a r i n h o s da sua l i n h a -
gem sugere q u e , desde o início, os v o d u n s d o t r o v ã o estiveram s u b o r d i n a d o s
às d i v i n d a d e s d o mar. Essa relação h i e r á r q u i c a foi e x p r e s s a m e n t e s a n c i o n a d a
q u a n d o o H u n o n D a g b o foi p r o m o v i d o pelo rei d a o m e a n o c o m o a m á x i m a
a u t o r i d a d e religiosa de U i d á , e t o d o s os c u l t o s de H e v i o s o p a s s a r a m a d e p e n -
der d i r e t a m e n t e dele. A s u b o r d i n a ç ã o dos v o d u n s d o trovão aos d o m a r é c o n -
c e i t u a l m e n t e expressa q u a n d o o H u n o n a f i r m a q u e t o d o s os v o d u n s heviosos
são v o d u n s d o mar, filhos de Agbé. 2 6
U m a s i t u a ç ã o inversa p a r e c e ter-se d a d o e m A b o m e y , o n d e os v o d u n s d o
m a r a p a r e c e m sob a j u r i s d i ç ã o religiosa dos sacerdotes d o t r o v ã o . Le Herissé,
em 1911, foi o p r i m e i r o a u t o r a n o t a r q u e o p a n t e ã o d o m a r estava i n t e g r a d o
e i m p l i c i t a m e n t e s u b o r d i n a d o ao p a n t e ã o d o t r o v ã o . " N a c o r t e de H e b i o s o
estão i n c l u í d o s H u , o m a r e a sua família. H u , o u Agbé ou H u a l a h u n , é, c o m o
i n d i c a o seu ú l t i m o n o m e , de o r i g e m H u a l a [ G d . P o p o ] [ . . . ] H u é o m a r i d o
de N a - è t é , a m b o s g e n i t o r e s d e A v r e k e t e ; esta t r i n d a d e é l o u v a d a n o s t e m -
plos d o t r o v ã o e u t i l i z a as m e s m a s sete f o l h a s c o n s a g r a d a s ao t r o v ã o . " Aliás,
nos t e m p l o s d o t r o v ã o , o casal A g b é e N a e t é é c o n s i d e r a d o " f i l h o " de S o g b o
(o g r a n d e So). 2 7
E m A g b a n a n k i n e H e v e , n o t e r r i t ó r i o h u l a , b e r ç o de A g b é e d o s v o d u n s
do mar, e n c o n t r a m o s t a m b é m o c u l t o de H e v i o s o , mas em t e m p l o s separados.
Nas c o n g r e g a ç õ e s de H e v i o s o em H e v e , os v o d u n s d o t r o v ã o são c h a m a d o s
yehwe, s u g e r i n d o u m a i n t e r p e n e t r a ç ã o c o m o os c u l t o s yehwe de T o g o l a n d i a .
C o m o n o t a H e r s k o v i t s , "os c u l t o s y e h w e , em t e r m o s da c u l t u r a d a o m e a n a ,
não são mais d o q u e c u l t o s de v o d u n s c o m u m a ênfase regional p a r t i c u l a r nos
deuses d o t r o v ã o e d o mar, e m e n o s s e p a r a t i s m o n o c u l t o de o u t r a s d i v i n d a -
des afiliadas" ( c o m o G b a d e , L o k o o u D a n ) . 2 8
E f e t i v a m e n t e , em T o g o l a n d i a , p r o v a v e l m e n t e e n t r e os anlos ou ewes, Spieth
l e m b r a a liderança c o m p a r t i l h a d a do p a n t e ã o yehwe, e n t r e o v o d u m m a s c u l i n o
do t r o v ã o So, i m p o r t a d o de Hevie, e a sua m u l h e r , o v o d u m d o m a r A g b u i
(Agbé), i m p o r t a d o de Avlekete ( u m a l o c a l i d a d e h u l a ) . V e m o s c o m o fora d o
t e r r i t ó r i o h u l a A g b é p o d e virar u m a d i v i n d a d e f e m i n i n a , s i m b o l i c a m e n t e su-
b o r d i n a d a ao seu esposo, o v o d u m d o trovão. A l é m de variações de género e

282
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

relações de p a r e n t e s c o , o g r u p o i n t e g r a d o de v o d u n s d o trovão e do m a r apre-


senta, c o m o em A b o m e y , u m a a p a r e n t e s u p e r i o r i d a d e h i e r á r q u i c a do trovão. 2 9
F i n a l m e n t e , em A n e h o ( P e q u e n o Popo) e G l i d j i , em t e r r i t ó r i o gen, e n c o n -
t r a m o s u m casal m i s t o de v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar, o m a s c u l i n o H e v i o s o
e o f e m i n i n o T o k p a d o u n , p r o g e n i t o r e s de u m a d e s c e n d ê n c i a m i s t a de v o d u n s
m a r i n h o s (Avlekete, A g b o e o u A n a t ê ) e d e v o d u n s d o t r o v ã o , c o m o G b e d e
( G b a d é ) e A k l o b è ( A k o l o m b é ) , o ú l t i m o c o n s i d e r a d o o pai de o u t r o s v o d u n s
do trovão, como Sogbo e Da Ahwanga.30
A e v i d ê n c i a c o l e t a d a em U i d á , A b o m e y , o delta d o M o n o e T o g o l a n d i a
d e m o n s t r a claramente a m o b i l i d a d e das práticas e valores associados aos v o d u n s
através das f r o n t e i r a s geográficas e étnicas e o leque de variações regionais re-
sultado desse m o v i m e n t o . E m K e t o n o u , capital de u m a l i n h a g e m real h u l a , o
culto d o m a r é s u p r e m o e n ã o há evidência do c u l t o de H e v i o s o , e n q u a n t o n o
território gen e n c o n t r a m o s u m casal misto m a r - t r o v ã o com descendência igual-
m e n t e m i s t a . A m e d i d a q u e n o s d e s l o c a m o s p a r a oeste, d e K e t o n o u p a r a
Togolandia, parece existir m a i o r i n t e r p e n e t r a ç ã o , c o m o se a integração dos dois
g r u p o s fosse crescente fora dos t e r r i t ó r i o s originais desses c u l t o s .
C o m e n t a n d o u m a d i n â m i c a s e m e l h a n t e nos cultos de orixás, Peei observa:
"a m o b i l i d a d e dos orisas, seja em c o n s e q u ê n c i a de migrações dos seus d e v o t o s
o u através d o zelo p r o m o c i o n a l d o s seus s a c e r d o t e s , t a m b é m p r o m o v e m u -
d a n ç a s n o c a r á t e r d o orisa. U m orisa r e c é m - c h e g a d o p o d e e n c o n t r a r o seu
n i c h o especial já o c u p a d o , e p o d e t e n t a r criar u m n o v o n i c h o " . 3 1 As m u d a n -
ças de g é n e r o , laços de p a r e n t e s c o e h i e r a r q u i a a p o n t a d a s e m r e l a ç ã o aos
v o d u n s d o m a r e d o t r o v ã o p a r e c e m seguir u m p r i n c í p i o similar. O m a s c u l i n o
Agbé, p o r e x e m p l o , p o d e s o f r e r u m a m u d a n ç a de g é n e r o e d e p o s i ç ã o de pa-
r e n t e s c o q u a n d o é u m a a p r o p r i a ç ã o t a r d i a em c o m u n i d a d e s q u e já t i n h a m
uma d o m i n a n t e divindade masculina do trovão.
Nesse s e n t i d o , a i n v e r s ã o de status h i e r á r q u i c o e n t r e os v o d u n s d o m a r e
do t r o v ã o em U i d á e A b o m e y p o d e r i a ser explicada e m t e r m o s c r o n o l ó g i c o s ;
o g r u p o de d i v i n d a d e s r e c é m - c h e g a d o estaria s e m p r e s u b o r d i n a d o ao g r u p o
p r e v i a m e n t e e s t a b e l e c i d o . Isso é claro em U i d á , o n d e os v o d u n s de H e v i o s o
f o r a m os " h ó s p e d e s " , s e n d o q u e os v o d u n s d o m a r e r a m os p r ó p r i o s da l i n h a -
gem h u l a . Isso i m p l i c a r i a t a m b é m q u e os v o d u n s d o m a r f o r a m i m p o r t a d o s
em A b o m e y q u a n d o o c u l t o de H e v i o s o já estava ali e s t a b e l e c i d o .
Além dessa g e n e r a l i d a d e , sobre o m o m e n t o em q u e se p r o d u z a agregação
m a r - t r o v ã o e o seu m o v i m e n t o através de fronteiras étnicas e geográficas, m u i t o
p o d e ser especulado, mas p o u c o se p o d e a f i r m a r c o m certeza. Foi, sem d ú v i d a ,
u m processo assistemático, q u e aconteceu em períodos sucessivos em diferentes
áreas. O m e s m o v o d u m poderia ser i m p o r t a d o em t e m p l o s diferentes da m e s m a

283
L U I S N I C O L A U PA R É S

localidade por famílias d i s t i n t a s e m m o m e n t o s d i s t i n t o s , seja por m e i o s vio-


lentos, c o m o guerras e c a p t u r a de escravos, seja p o r estratégias pacíficas, c o m o
m a t r i m ó n i o s , alianças e n t r e l i n h a g e n s ou migrações dos sacerdotes.
S e g u n d o M e r l o , a i n c l u s ã o dos v o d u n s de H e v i o s o nos t e m p l o s h u l a s do
m a r em U i d á p r é - d a t a v a a invasão da costa, realizada p o r Agaja em 1727. C e r -
t a m e n t e essa assimilação h u e d a - h u l a dos v o d u n s heviosos devia ser b e m a n -
tiga, já q u e os d e v o t o s de H e v i o s o , n o final da sua i n i c i a ç ã o , são c h a m a d o s
huedanu ( h a b i t a n t e h u e d a ) e a sua l í n g u a r i t u a l secreta é o h u e d a g b e . Essa
t e r m i n o l o g i a é t n i c a associada à i n i c i a ç ã o p o d e , às vezes, i n d i c a r o l u g a r de
o r i g e m d o c u l t o , m a s nesse caso i n d i c a u m dos seus p o n t o s de d i f u s ã o . ' 2
As tradições orais d a t a m a instalação dos cultos de H e v i o s o em A b o m e y e
Kana de f o r m a variável d u r a n t e os reinados de Agaja, Tegbesu e Agonglo, o q u e
p r o v a v e l m e n t e reflete a i m p o r t a ç ã o sucessiva de d i s t i n t o s heviosos. As tradi-
ções orais são t a m b é m c o n t r a d i t ó r i a s em relação ao lugar de o n d e o c u l t o de
H e v i o s o teria sido i m p o r t a d o . E m b o r a U i d á seja u m a possibilidade, H e v i e é a
l o c a l i d a d e mais vezes c i t a d a . O u t r a s versões c i t a m as l o c a l i d a d e s h u l a s de
H e v e , A h l a H e v e , J a k i n e A g b a n a n k i n , i n d i c a n d o , c o m o e m U i d á , u m a an-
tiga a p r o p r i a ç ã o h u l a dos v o d u n s aizo-seto. C o m o t e m p o , Hevioso virou a mais
i m p o r t a n t e " d i v i n d a d e pública" de A b o m e y e c o m o v o d u m g u e r r e i r o e deus
d a justiça foi e m b l e m a da d o m i n a ç ã o d a o m e a n a . A i m p o r t â n c i a c o n f e r i d a a
H e v i o s o e m A b o m e y — c o n h e c i d o t a m b é m c o m o A g b o h u n , o u " d i v i n d a d e de
Abomey" — é comparável à importância outorgada a Xangô em Oyo.33
E m relação aos v o d u n s d o mar, Le H e r i s s é diz q u e f o r a m i m p o r t a d o s em
A b o m e y d u r a n t e o r e i n o d e T e g b e s u e logo i n s e r i d o s nos t e m p l o s d o t r o v ã o .
N o e n t a n t o , em 1727, d u r a n t e o r e i n a d o de Agaja, já h á indícios de q u e m e m -
bros da elite d a o m e a n a p a r t i c i p a v a m dos cultos m a r i n h o s realizados em Jakin.
E m m e a d o s do s é c u l o XIX, a a p r o p r i a ç ã o d o c u l t o m a r i n h o pela realeza f o n
parece i n s t i t u c i o n a l i z a d a . 3 4
O s h u l a s e h u e d a s da c o s t a s e g u r a m e n t e f o r a m os g r u p o s é t n i c o s q u e pri-
m e i r o i n t e g r a r a m os dois "panteões" e f o r a m responsáveis por sua s u b s e q u e n t e
d i f u s ã o g e o g r á f i c a . P o r é m , e m m e a d o s d o século XVIII — p e r í o d o e m q u e a
t r a n s f e r ê n c i a t r a n s a t l â n t i c a desses c u l t o s p o d e ter c o m e ç a d o — e c e r t a m e n -
te n o i n í c i o d o s é c u l o XIX — q u a n d o p r e s u m i v e l m e n t e c o n t r i b u í r a m n o
p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é — , esses c u l t o s d o m a r e d o t r o v ã o já es-
t a v a m d i f u n d i d o s ao l o n g o de t o d a a costa d e s d e o rio Volta até Badagri e
e r a m p r a t i c a d o s p o r diversos g r u p o s étnicos i n c l u i n d o os hulas, h u e d a s , fons,
aizos, toris, dovis, gens, ewes e anlos.
O r a , c o m o v i m o s no c a p í t u l o 1, na Bahia, os v o d u n s d o t r o v ã o e d o mar
passaram a ser c o n h e c i d o s c o m o m u n d u b i , u m a d e n o m i n a ç ã o étnica registra-

284
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

da nas primeiras décadas do século XIX. D o m e s m o m o d o que m a h i , savalu


ou dagomé, m u n d u b i t o r n o u - s e o n o m e de u m a das "subnações" do C a n d o m -
blé jeje, isto é, m u n d u b i passou a designar u m a m o d a l i d a d e de rito específica
associada aos v o d u n s da tamília Kaviono. O t e r m o " K a v i o n o " é i n t e r p r e t a d o
por vários especialistas religiosos jejes c o m o u m a evolução f o n é t i c a de H e -
vioso ou Kevioso, e m b o r a se possa t a m b é m pensar n u m a relação com a expres-
são kaviecile (ou kawo kabiyecile), utilizada para salvar os v o d u n s e orixás do
trovão. C o m o explicava humbonoNicente, " m u n d u b i é Kaviono, e eles cantam:
ooo, ooo, ooo, Daomé, o Kavieceli vodun daome" ,35
N o Brasil, a família de Hevioso, K a v i o n o ou m u n d u b i refere-se s e m p r e
ao p a n t e ã o i n t e g r a d o dos v o d u n s do trovão e do mar, com p r e d o m i n â n c i a
hierárquica e n u m é r i c a dos p r i m e i r o s , c o m o sugere o seu n o m e . O v o d u m
mais i m p o r t a n t e desse g r u p o é Sogbo (Sobo), seguido da sua d e s c e n d ê n c i a
(Badé, A k o l o m b é etc.), e n q u a n t o os v o d u n s do mar, Averekete, Agbé (Abé)
ou N a e t é (Naté) são m e n o s c o n h e c i d o s e n o r m a l m e n t e relegados a posições
secundárias. Essa h e g e m o n i a dos v o d u n s do trovão r e p r o d u z a p a u t a a c h a d a
em A b o m e y , no baixo M o n o e T o g o l a n d i a (e não a inversa p r e v a l e n t e em
Uidá), o q u e p o d e r i a levar-nos a p e n s a r n u m a i d e n t i f i c a ç ã o d o t e r m o m u n -
d u b i com g r u p o s localizados nessas áreas.

0 "PRINCÍPIO DE A G R E G A Ç Ã O " N O PANTEÃO J E J E - M A H I DA BAHIA

Para dar c o n t i n u i d a d e à análise do "princípio de agregação" característico da


tradição dos cultos de v o d u n s , vamos e x a m i n a r os dois ú l t i m o s estágios do
processo, agora já no Brasil. Por u m lado, a "família" de Hevioso ou Kaviono,
t a n t o nos terreiros jejes da Bahia c o m o nos d o M a r a n h ã o , c o n v e r t e u - s e n u m
"nicho" ou categoria conceituai inclusiva, agregando u m a série de divindades
c o m o o v o d u m - p a n t e r a Kpo, ou o v o d u m - á r v o r e Loko ( t a m b é m Lissá e N a n ã
no M a r a n h ã o ) , que na área gbe não p e r t e n c i a m e s t r i t a m e n t e a esse g r u p o .
C a b e n o t a r q u e na Africa e n t i d a d e s espirituais c o m o Legba, K p o , Loko ou
D a n não d e s i g n a m u m ú n i c o v o d u m , mas são t e r m o s genéricos, i n c l u i n d o
u m a p l u r a l i d a d e de e n t i d a d e s individualizadas que p o d e m estar associadas a
vários v o d u n s . Por exemplo, p o d e haver u m K p o que se m a n i f e s t a ou "vem
pelo lado" dos voduns da terra Sakpata, e um o u t r o que "vem pelo lado" dos vo-
duns do trovão Hevioso. Ambos são Kpo ou panteras, mas se manifestam nos
diferentes t e m p l o s c o m o "qualidades" distintas com a t r i b u t o s p r ó p r i o s . D o
m e s m o m o d o , certos v o d u n s p o d e m ter a sua "qualidade" de D a n , L o k o ou
Legba. Esse fato explicaria a inclusão de K p o e Loko na família de H e v i o s o

285
L U I S N I C O L A U PA R É S

n o Brasil. M a s a l é m desse p r i m e i r o nível de a g r e g a ç ã o , a " f a m í l i a " K a v i o n o o u


m u n d u b i , e m b o r a i d e n t i f i c a d a c o m o u m g r u p o d i f e r e n c i a d o de v o d u n s , foi
r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a a o u t r o s g r u p o s d e v o d u n s j e j e - m a h i s e orixás n a g ô s .
Consideremos c o m o p o n t o de partida a organização do panteão do Bogum
n a a t u a l i d a d e . N e s s e t e r r e i r o d i s t i n g u e m - s e três g r a n d e s g r u p o s d e e n t i d a d e s
e s p i r i t u a i s : 1) os Kaviono, c o n s i d e r a d o s a " f a m í l i a real", i n c l u i n d o v o d u n s
c o m o S o g b o , B a d é , L o k o , K p o e o u t r o s ; 3 6 2) os "Voduns", incluindo diferentes
"qualidades" d o v o d u m - c o b r a D a n (Bessen, T o q u e m , Q u e n q u é m etc.), d o
v o d u m - v a r í o l a Sakpata (Azonsu ou A j o n s u , Azoani etc.) e outros, c o m o
T o b o s s i , A g u é e t c . ; e 3) os Nagô-vodum, i n c l u i n d o orixás nagôs f e m i n i n o s ,
c o m o N a n ã , Iansã, O x u m , I e m a n j á e outros masculinos, c o m o O m o l u , Oxóssi
etc. D i s t i n t a s " q u a l i d a d e s " d e u m a m e s m a e n t i d a d e e s p i r i t u a l p o d e m c o r r e s -
p o n d e r a g r u p o s d i f e r e n t e s e t e r a s s e n t o s s e p a r a d o s . Por e x e m p l o , o v o d u m
A j o n s u p e r t e n c e ao g r u p o d o s " v o d u n s " , m a s O m o l u , s e u c o r r e s p o n d e n t e
orixá n a g ô , p e r t e n c e ao g r u p o " n a g ô - v o d u m " e t e m o p r ó p r i o a s s e n t o . O m e s -
m o a c o n t e c e c o m o v o d u m A g u é e o o r i x á O x ó s s i . D i z - s e a i n d a q u e as e n t i -
d a d e s n a g ô s "são orixás m a s t ê m p r e c e i t o s jeje". 3 "
C e r t o s v o d u n s c o m o Bessen o u A j o n s u , pela s u a i m p o r t â n c i a h i e r á r q u i c a ,
são, às vezes, c o n f u n d i d o s c o m m e m b r o s da " f a m í l i a real", m a s seria talvez mais
c o r r e t o falar deles c o m o " s ú d i t o s " o u " h ó s p e d e s " de S o g b o . J e h o v á d e C a r v a l h o
d o c u m e n t a u m m i t o da casa q u e e x p l i c a r i a a a m i z a d e e n t r e S o g b o e D a n .

Sobô estava em suas terras e, de repente, surge uma caravana. E esta caravana tinha
um chefe chamado Dâ. E Dâ chega às terras de Sobô e pede pousada por aquela noite.
Mas Sobô se preocupou com o cansaço dos que seguiam a Dâ e lhe disse: "Você pode
ficar mais um dia, aqui". A partir desse contacto, foram contadas histórias do seu
povo, m u t u a m e n t e , de tal maneira que descobriram que havia, entre eles, interesses
comuns. [...] Então Dâ disse: "Se você me permitir, nunca mais eu vou sair daqui".
E Sobô consentiu. A partir desse encontro, a terra dos jeje-mahins, a terra de Sobo,
passou a ser t a m b é m a terra de Dâ. 3 8

Essa h o s p e d a g e m d o p o v o d e D a n n a s t e r r a s d e S o g b o e n c o n t r a p a r a l e l o
na t r a d i ç ã o m í t i c a d o s c o r r e s p o n d e n t e s o r i x á s n a g ô O x u m a r é e X a n g ô , n o
q u a l , c o m o v e r e m o s m a i s a d i a n t e , o p r i m e i r o , r e s p o n s á v e l pelas c h u v a s , é c o n -
s i d e r a d o "o c r i a d o " d o s e g u n d o . Essa t r a d i ç ã o m í t i c a q u e liga e s u j e i t a D a n
a S o g b o ( o u O x u m a r é a X a n g ô ) talvez t e n h a s u r g i d o a p a r t i r d a c e n t r a l i z a ç ã o
e h i e r a r q u i z a ç ã o d o s c u l t o s d e v o d u n s e s t a b e l e c i d a e m A b o m e y , n a q u a l os
cultos de D a n foram i n t r o d u z i d o s nos templos de Sogbo. Alternativamente,
essa n a r r a t i v a seria u m a a d a p t a ç ã o jeje d o m i t o i o r u b á o c o r r i d a n o Brasil, q u e
r e f l e t i r i a , talvez, o e n c o n t r o e c o l a b o r a ç ã o e n t r e s a c e r d o t e s m u n d u b i s e m a h i s .

286
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

J á gaiaku Luiza, líder do terreiro H u n t o l o j i , q u e segue de p e r t o a tradi-


ç ã o d o Seja H u n d é , e x p l i c a :

Lá em casa nós temos o modubi ou kaviono, o dan e o nagô vodun. E vamos na


linha certa, como quando nós abrimos o zandro "valu, valu nu kulu...'\ aí vai seguindo,
q u a n d o termina entra 110 nagô-vodun "ago, ago nilê", pedindo licença aos Kaviono
porque o jeje é entrosado com os três. Não existia a merê [mulher] no jeje. Só existia
homem. Foi o motivo porque entrou o nagô-vodun. Como sejam: Oiá, Iemanjá, O x u m ,
Nanã, para que haja iabás [vodum feminino em nagô], E por isso que, quando acaba
o zandro e entra o dorozan se canta "Ago nilê, nilê madá, ago ni bibi o e ki iu íle madá
ago', pedindo ao d o n o da nação, Kavioso, licença. 39

E f e t i v a m e n t e , a j u s t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s m u n d u b i s e m a h i s c o m os orixás
nagôs e n c o n t r a expressão n o nível ritual, na o r d e m da sequência de c a n t o s
d o zandró, o b r i g a ç ã o d e a b e r t u r a d a s festas n o s c a n d o m b l é s j e j e - m a h i s q u e
será e x a m i n a d a n o p r ó x i m o c a p í t u l o . O zandró i n i c i a - s e c o m u m a série de
cantos associados a Bessen, seguidos de o u t r o s para Legba e O g u m X o r o q u e ,
d i v i n d a d e s q u e a b r e m os c a m i n h o s , e a p a r t i r d a í se c a n t a p a r a A i z a n , T o b o s s i
e a f a m í l i a K a v i o n o . F i n a l m e n t e , c o m o c a n t o "Ago n i l ê " i n a u g u r a - s e a se-
q u ê n c i a c o r r e s p o n d e n t e ao l a d o " n a g ô - v o d u m " .
A p a r t e " n a g ô - v o d u m " d o zandró q u e , aliás, c o n s t i t u i a s e q u ê n c i a q u e es-
t r u t u r a as festas p ú b l i c a s , n a v e r d a d e i n c l u i c a n t o s e m l o u v o r t a n t o de v o d u n s
c o m o d e orixás, e segue d e p e r t o , m a s n ã o e x a t a m e n t e , a o r d e m d o x i r ê dos
c a n d o m b l é s n a g ô - k e t u s : 1) o orixá da g u e r r a e d o s m e t a i s O g u m ; 2) os v o d u n s
c a ç a d o r e s A g u é e O d é ; 3) os v o d u n s d a t e r r a e d a v a r í o l a S a k p a t a - A z o n s u ; 4)
as yabas o u o r i x á s f e m i n i n o s O x u m - I e m a n j á - O i á ; 5) os v o d u n s d o t r o v ã o
S o g b o - B a d é - L o k o - K p o ; 6) a m ã e m a i s velha das águas, N a n ã ; 7) O l i s s á - O x a l á
e 8) o v o d u m - c o b r a D a n - B e s s e n . O ú l t i m o , p o r ser c o n s i d e r a d o o " d o n o " o u
"rei" d a n a ç ã o j e j e - m a h i , e n c e r r a a s e q u ê n c i a c o m o sinal d e d i s t i n ç ã o , c a r a c t e -
rística essa p r ó p r i a d o s t e r r e i r o s jejes d e C a c h o e i r a n ã o r e p l i c a d a n o s c a n d o m -
blés n a g ô - k e t u s , q u e f i n a l i z a m o xirê c a n t a n d o p a r a O x a l á . Esse c o m p l e x o p r o -
cesso de a g r e g a ç ã o m u l t i é t n i c a p o d e ser r e p r e s e n t a d o p e l a F i g u r a 2.
C o m p r o v a m o s q u e o " p r i n c í p i o d e a g r e g a ç ã o " se a r t i c u l a e m d o i s níveis
p r i n c i p a i s : 1) a j u s t a p o s i ç ã o d o g r u p o m u n d u b i c o m o g r u p o m a h i e 2) a j u s -
t a p o s i ç ã o d o s v o d u n s jejes c o m os o r i x á s n a g ô s . A p r i m e i r a j u s t a p o s i ç ã o foi
p r o v a v e l m e n t e resultado da reunião de especialistas religiosos de diversos
g r u p o s é t n i c o s da área gbe, d e t e r m i n a d a pela n e c e s s i d a d e de c o m p a r t i l h a r
os l i m i t a d o s r e c u r s o s d i s p o n í v e i s d u r a n t e o r e g i m e o p r e s s i v o d a e s c r a v i d ã o .
U m e x e m p l o d e s s a d i n â m i c a p o d e ser p e r c e b i d o n a R o ç a de C i m a , n o r m a l -
m e n t e identificada c o m o de nação j e j e - m u n d u b i , mas que c e r t a m e n t e con-

287
L U I S N I C O L A U PA R É S

tava c o m a p r e s e n ç a de especialistas religiosos m a h i s c o m o L u d o v i n a Pessoa,


q u e mais tarde a j u d o u a f u n d a r o Seja H u n d é , terreiro i d e n t i f i c a d o c o m o jeje-
m a h i . E m q u a l q u e r caso, insisto, essa r e u n i ã o i n t e r é t n i c a foi f a v o r e c i d a pela
t r a d i ç ã o d o s c u l t o s de v o d u n s da área gbe, o n d e o " p r i n c í p i o de agregação"
era p r á t i c a h a b i t u a l . T r a t a r - s e - i a a p e n a s d e u m a e x t e n s ã o da e s t r u t u r a i n c l u -
siva d o s c u l t o s d e m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e das f o r m a s de performance seriada
q u e o p e r a v a m a u m nível m a i s r e s t r i t o na A f r i c a .

Jeje (voduns) N a g ô (orixás)

Mundubi Mahi

Hevioso Dan Sakpata Outros Yabas Outros

» + + 1 + T
Sogbo Bessem Azonsu Legba Oiá (lansã) Ogum
Badé Bafono Azoani Agué Oxum Oxóssi
Loko Toquem Avimanje Aziri Iemanjá Omolu
Kpo Akotoquem Nanã Xangô
Averekete Olissá Oxalá

Figura 1 — 0 processo de agregação jeje-nagô e m u n d u b i - m a h i nos terreiros jeje-mahis

P a r a l e l a m e n t e , a j u s t a p o s i ç ã o de v o d u n s jejes c o m orixás nagôs p o d e r i a


e n t e n d e r - s e d o m e s m o m o d o . O r a , esse s e g u n d o nível de agregação a p r e s e n t a
características m a i s c o m p l e x a s . D u r a n t e as c e r i m ó n i a s p ú b l i c a s , c a n t o s e m
l o u v o r a orixás n a g ô s p o d e m ser i n s e r i d o s n o s s e g m e n t o s c o r r e s p o n d e n t e s às
suas c o n t r a p a r t e s v o d u n s (i.e., p o d e c a n t a r - s e p a r a O x ó s s i n o s e g m e n t o de
Agué, cantar-se para O m o l u n o de S a k p a t a etc.). Esse é u m processo q u e t e n d e
a crescer c o m a h e g e m o n i a n a g ô c o n t e m p o r â n e a e ao q u a l os especialistas
| religiosos a t r i b u e m a p e r d a de c o n h e c i m e n t o d o p o v o - d e - s a n t o , q u e já n ã o
! sabe r e s p o n d e r às cantigas jejes, o q u e o b r i g a a utilizar o r e p e r t ó r i o n a g ô - k e t u
m a i s p o p u l a r . M a s , além desse f a t o , o q u e c h a m a a a t e n ç ã o é a i n c l u s ã o no
p a n t e ã o jeje das yabas, c o m d e s t a q u e de O i á e O x u m , e n t i d a d e s f e m i n i n a s
q u e n ã o e n c o n t r a m e q u i v a l e n t e claro na t r a d i ç ã o v o d u m . C e r t a m e n t e essa
p e n e t r a ç ã o de e l e m e n t o s n a g ô s na l i t u r g i a jeje foi r e s u l t a d o da i m p o r t â n c i a
!
da t r a d i ç ã o dos c u l t o s de orixás n o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é , e isso
n o s o b r i g a a e n s e j a r u m a n o v a análise h i s t ó r i c a p a r a d e t a l h a r u m a possível
explicação.

288

í
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

É d i f í c i l s a b e r se a j u s t a p o s i ç ã o m u n d u b i - m a h i p r e c e d e u o u f o i c o n t e m -
p o r â n e a da jeje-nagô, mas é claro que a heterogénea agregação de divindades
q u e o b s e r v a m o s h o j e estava já l a t e n t e e m m e a d o s d o s é c u l o X I X e, d e c e r t o ,
c o n s o l i d a d a n o f i n a l d o s é c u l o , c o m o a t e s t a o c o m e n t á r i o de R o d r i g u e s s o b r e
a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s jeje e n a g ô , até o p o n t o e m " q u e se t o r n o u
hoje impossível distingui-las".40
J á n a d é c a d a d e 1 8 6 0 , o j o r n a l O Alabama documentava explicitamente
os n o m e s d e S o g b o , L e g b a e L o k o , i n d i r e t a m e n t e os d e A g u é e N a n ã , e fazia
r e f e r ê n c i a ao c u l t o d a " s e r p e n t e " e d a " v a r í o l a " (ver c a p . 4 ) , o q u e s u g e r e q u e
a e s s ê n c i a d o p a n t e ã o j e j e c o n t e m p o r â n e o já estava c o n f i g u r a d a n a q u e l a é p o -
ca. Aliás, n a festa l i d e r a d a p o r L u d o v i n a Pessoa, na C r u z d o C o s m e , e m 1869,
q u a n d o o jornalista chegou:

Estavam c o m e n d o amald
E entoavam u m hino
Em graça e louvor de 0/a.4]

A p a r t i c i p a ç ã o d e L u d o v i n a c o m o d i r i g e n t e dessa f e s t a s u g e r e t r a t a r - s e d e
u m c a n d o m b l é jeje ou, pelo m e n o s , c o m forte influência do culto de v o d u n s .
O f a t o d e f a l a r e m e m O i á i n d i c a r i a q u e , já nesse p e r í o d o , os o r i x á s n a g ô s
faziam parte do "panceão" jeje. D e fato, n u m a nota ao pé de página do texto
o r i g i n a l a p a r e c e a s s o c i a d o ao n o m e d e O i á o s e g u i n t e c o m e n t á r i o : "a m u l h e r
do santo maior — Soubô". C o n t r a r i a m e n t e à tradição nagô, que considera
O i á a m u l h e r d o o r i x á X a n g ô , n o s t e r r e i r o s j e j e s ela é i d e n t i f i c a d a c o m o es-
posa do v o d u m Sogbo.
A p e s a r d a " í n t i m a f u s ã o " e n t r e as m i t o l o g i a s j e j e e n a g ô , n a v i r a d a d o
s é c u l o X I X R o d r i g u e s r e g i s t r o u os n o m e s d e v á r i o s v o d u n s c u l t u a d o s n o s
t e r r e i r o s jejes de S a l v a d o r .

Além de M a w u , Khêbiosô, Legba, Anyi-ewo, Loko, H o h o , Saponan e Wu (mar),


c o n f u n d i d o s com os orixás nagôs correspondentes O í o r u m , Xangô, Elegbá, Oxumarê,
Irôco, Ibeji, X a p o n ã e O l o k u m , existe um n ú m e r o crescido de vodus ou divindades
jejes menos conhecidas c o m o Dsô, fogo, Nati e Avrikiti, divindades marinhas; Ba,
deus dos guerreiros, e animais como o crocodilo, o leopardo etc. 4 ~

A m e n ç ã o d e H e v i o s o , A n y i - e w o ( A i d o - h w e d o o u D a n ) e Saponan (um no-


m e i o r u b á d e S a k p a t a ) c o n f i r m a a v e n e r a ç ã o d o s três g r u p o s h e g e m ó n i c o s a t u a l -
m e n t e . A a l u d i d a " c o n f u s ã o " c o m os c o r r e s p o n d e n t e s o r i x á s n a g ô s p o d e r i a
indicar a crescente p r e d o m i n â n c i a da cosmologia nagô no C a n d o m b l é sotero-
p o l i t a n o d o f i n a l d o s é c u l o X I X , m a s t a m b é m p o d e r i a ser i n t e r p r e t a d a c o m o

289
LUIS NICOLAU PA R É S

u m e s f o r ç o dos i n f o r m a n t e s jejes para falar em t e r m o s c o m p r e e n s í v e i s p a r a


Rodrigues, mais familiarizado c o m a tradição nagô. C o m e n t a r e i mais adian-
te os o u t r o s v o d u n s c i t a d o s p o r R o d r i g u e s , c o m o Legba, L o k o , M a w u , o leo-
p a r d o e as d i v i n d a d e s m a r i n h a s ( W u , N a t i , A v r i k i t i e o c r o c o d i l o ) . Por e n -
q u a n t o , o q u e c a b e reter é q u e já n a s e g u n d a m e t a d e d o O i t o c e n t o s , n o s ter-
reiros jejes c u l t u a v a m - s e as três g r a n d e s famílias d o p a n t e ã o atual, e q u e estas
e r a m r i t u a l m e n t e j u s t a p o s t a s a u m a série de orixás nagôs.
O g r a u de p e r s i s t ê n c i a o u i m p o r t â n c i a de u m a d e t e r m i n a d a d i v i n d a d e na
religião p o d e c a l i b r a r - s e pela o c o r r ê n c i a o u a u s ê n c i a de q u a t r o f e n ó m e n o s ,
a saber, e m o r d e m crescente de i m p o r t â n c i a : a d i v i n d a d e 1) p o d e ser l e m b r a d a
a p e n a s p e l o n o m e ; 2) p o d e ser l o u v a d a nas c a n t i g a s rituais; 3) p o d e ter u m
assento n o terreiro; o u 4) p o d e ter d e v o t o s c o n s a g r a d o s e m a n i f e s t a r - s e através
da "possessão" nas festas públicas e obrigações i n t e r n a s da casa. O ú l t i m o caso,
q u e i m p l i c a a e x i s t ê n c i a d o s três a n t e r i o r e s , expressa o nível m a i s alto de
p r e s e n ç a o u a t u a l i d a d e de u m a d i v i n d a d e na c o m u n i d a d e religiosa.
Nesse sentido, c o m o v i m o s n o c a p í t u l o anterior, e n t r e 1913 e 1920, n o Seja
H u n d é havia u m a s 26 d a n ç a n t e s (20 delas iniciadas nesse período). 4 3 Sete delas,
mais de u m q u a r t o d o total, estavam consagradas a v o d u n s p e r t e n c e n t e s à fa-
mília K a v i o n o (dois Sogbo, três Badé, u m K p o e u m A k o l o m b é ) . Ao m e s m o
t e m p o , u m n ú m e r o igual d e iniciadas estava c o n s a g r a d o aos orixás f e m i n i n o s
O x u m e O i á , f a t o q u e i n d i c a a progressiva p e n e t r a ç ã o do c u l t o das yabas no
culto jeje. Essa situação é t a m b é m r e p r o d u z i d a n o B o g u m d o p e r í o d o p ó s - a b o -
lição, e m q u e , d e f o r m a s i g n i f i c a t i v a , d u a s das q u a t r o m ã e s - d e - s a n t o e r a m
devotas d e Sogbo e a presença de devotas de O i á e O x u m é t a m b é m n o t ó r i a .
E m b o r a a i n c l u s ã o das yabas n a l i t u r g i a jeje fosse já efetiva em m e a d o s d o
século XIX, c o m o sugere a n o t í c i a de O Alabama a c i m a citada, é provável q u e
o n ú m e r o de d e v o t a s desses orixás f e m i n i n o s t e n h a i n c r e m e n t a d o d e v i d o à
s u p e r i o r i d a d e n u m é r i c a das m u l h e r e s e n t r e as pessoas i n i c i a d a s , s o b r e t u d o
q u a n d o m u l h e r e s crioulas a s s u m i r a m de f o r m a p r e d o m i n a n t e a l i d e r a n ç a dos
t e r r e i r o s na v i r a d a d o século XIX (ver cap. 4). C o m o explica gaiaku Luiza,
n o jeje só existiam v o d u n s m a s c u l i n o s e n ã o e x i s t i a m v o d u n s f e m i n i n o s , daí
p o r q u e foi a p r o p r i a d o o c u l t o das yabas, i n s t i t u i n d o n o p a n t e ã o jeje o g r u p o
" n a g ô - v o d u m " . 4 4 E m b o r a n ã o seja t o t a l m e n t e c o r r e t o dizer q u e nos c u l t o s de
v o d u n s da área g b e n ã o existiam v o d u n s f e m i n i n o s , é v e r d a d e q u e havia u m a
p r e d o m i n â n c i a de v o d u n s masculinos. A m i n h a sugestão é que a crescente
i m p o r t â n c i a das d e v o t a s de O i á e O x u m n o s terreiros jejes esteve d i r e t a m e n t e
r e l a c i o n a d a ao p r o g r e s s i v o c o n t r o l e f e m i n i n o das c o n g r e g a ç õ e s religiosas.
N e s s e caso, a agregação das yabas nagôs e a c o n s e q u e n t e t r a n s f o r m a ç ã o d o
p a n t e ã o jeje refletiria ou expressaria n ã o as i n t e r a ç õ e s i n t e r é t n i c a s d o s espe-

290
Q PfkSTtí.0 J E J t í SUAS UMtSfOmÇOES

cialistas r e l i g i o s o s , c o m o n o caso d a j u s t a p o s i ç ã o d e v o d u n s m u n d u b i s e
m a h i s , m a s alterações nas p r o p o r ç õ e s d o g é n e r o dos p a r t i c i p a n t e s e, especial-
m e n t e , d a l i d e r a n ç a das c o n g r e g a ç õ e s religiosas.
A c r e s c e n t e i m p o r t â n c i a dos orixás f e m i n i n o s n o u n i v e r s o e s p i r i t u a l jeje
p ô d e t a m b é m ter c o m o causa f a t o r e s c o n c e i t u a i s c o m p l e m e n t a r e s . N a m i t o -
logia n a g ô , O i á e O x u m são tidas c o m o m u l h e r e s d o orixá X a n g ô e, p o r as-
sociação, c o m o v i m o s , n o s terreiros jejes elas são t a m b é m tidas c o m o esposas
do correspondente v o d u m Sogbo.45 Além do papel central do v o d u m - c o b r a
D a n e d o v o d u m - v a r l o l a S a k p a t a , a h e g e m o n i a de X a n g ô p r e v a l e c e n t e nos
t e r r e i r o s n a g ô s e n a c o m u n i d a d e religiosa m a i s a m p l a p o d e ter c o n t r i b u í d o
p a r a privilegiar o v o d u m m u n d u b i S o g b o n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s e, p o r ex-
t e n s ã o , a a s s i m i l a ç ã o de suas esposas.
O r a , ao t e m p o q u e novas d i v i n d a d e s são i n c o r p o r a d a s ao p a n t e ã o , o u t r a s
vão d e s a p a r e c e n d o ; em o u t r a s palavras, o p r i n c í p i o de agregação i n e r e n t e aos
cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s é c o m p l e m e n t a d o p o r u m p r i n c í p i o paralelo de
seletividade o u exclusão q u e explicaria o progressivo e s q u e c i m e n t o de certas
d i v i n d a d e s . A i m p o r t â n c i a decrescente dos v o d u n s jejes d o m a r na Bahia seria
u m e x e m p l o dessa d i n â m i c a . R o d r i g u e s m e n c i o n a pelo m e n o s q u a t r o v o d u n s
do m a r : H u , N a e t é , Averekete e T o k p o d u n (o crocodilo, n o r m a l m e n t e i n c l u í d o
n o p a n t e ã o d o m a r na área gbe). Mas, na lista das d a n ç a n t e s d o Seja H u n d é , é
n o t ó r i a a ausência de d a n ç a n t e s de q u a l q u e r u m desses v o d u n s m a r i n h o s . H u
(Agbé) e T o k p o d u n f o r a m t o t a l m e n t e esquecidos; o n o m e de N a e t é é v a g a m e n t e
l e m b r a d o , mas é r a r a m e n t e e v o c a d o nas cantigas rituais. Averekete é o ú n i c o
v o d u m da f a m í l i a d o m a r l o u v a d o nas cantigas e c o m assento n o Seja H u n d é ,
mas n ã o n o B o g u m , q u e , c o m o vimos, celebrava os seus rituais n o v i z i n h o Pó
Z e r r e m . N o e n t a n t o , o c o n h e c i m e n t o ritual para a i n i c i a ç ã o de d e v o t a s de
Averekete parece q u e foi aos p o u c o s se p e r d e n d o . 4 6 C a b e n o t a r q u e n o M a r a -
n h ã o a persistência dos v o d u n s do m a r é mais i m p o r t a n t e , e A g b é (Abé), N a e t é
e p r i n c i p a l m e n t e Averekete, são a i n d a i m p o r t a n t e s e p o p u l a r e s v o d u n s .
O orixá m a s c u l i n o O l o k u m , a d i v i n d a d e d o m a r n a g ô na área de I j e b u
Awori e E g b a d o , c o m o seus pares jejes, t a m b é m p e r d e u i m p o r t â n c i a na Bahia
p a r a a f e m i n i n a I e m a n j á , d i v i n d a d e d o rio O g u m , o r i g i n a l m e n t e c u l t u a d a
pelos E g b a d e A b e o k u t a , q u e g r a d u a l m e n t e v i r o u a d i v i n d a d e d o m a r m a i s
i m p o r t a n t e n o Brasil. N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s , a f e m i n i n a Aziri T o b o s s i ,
o r i g i n a l m e n t e u m e s p í r i t o dos rios c u l t u a d o pelos m a h i - a g o n l i s , foi associada
a I e m a n j á , e c o m o tal p e r s i s t i u c o m o a m a i s i m p o r t a n t e d i v i n d a d e das águas
e n t r e os jejes (ver c a p . 8).
Essas t r a n s f o r m a ç õ e s i n t e r - r e l a c i o n a d a s , c o m o no caso de O x u m e O i á ,
s u g e r e m q u e h o u v e u m a progressiva " f e m i n i z a ç ã o " d o p a n t e ã o o r i x á - v o d u m ,

291
LUIS NICOLAU PA R É S

n a qual d i v i n d a d e s masculinas do m a r c o m o Agbé e O l o k u m f o r a m aos p o u -


cos s u b s t i t u í d a s p o r d i v i n d a d e s f e m i n i n a s das águas doces. D o m e s m o m o d o
q u e no século XVIII, no D a o m é , a justaposição de v o d u n s do mar e do trovão
refletia processos de apropriação de cultos alheios, e que na Bahia do século
XIX a justaposição ritual de voduns m u n d u b i s e mahis refletia a reunião de espe-
cialistas religiosos de diversos grupos étnicos da área gbe; p o d e m o s pensar que
a "feminização" d o p a n t e ã o o r i x á - v o d u m , q u e se deu p r i n c i p a l m e n t e n o final
d o século XIX, foi u m a resposta à crescente i m p o r t â n c i a das m u l h e r e s na lide-
rança do C a n d o m b l é . Essas dinâmicas estão em consonância com a tese de Bas-
tide s e g u n d o a qual a seleção e a ênfase de certos a t r i b u t o s das divindades n o
N o v o M u n d o f o r a m condicionadas pelas características socioculturais do novo
contexto. 4 7
S u m a r i z a n d o , m o s t r e i c o m o o processo f o r m a t i v o do C a n d o m b l é , apesar
de ser u m a criação g e n u i n a m e n t e brasileira, c o n d i c i o n a d a e m o l d a d a pela so-
ciedade colonial e escravista, r e p r o d u z i u e a d a p t o u os p r i n c í p i o s básicos dos
cultos de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s e f o r m a s de performance ritual seriada caracte-
rísticos d o sistema religioso v o d u m . Esses p r i n c í p i o s p e r s i s t i r a m na Bahia
c o m o traços essenciais q u e p r o v i d e n c i a r a m os meios e s t r u t u r a i s para agregar
u m a p l u r a l i d a d e de cultos m u l t i é t n i c o s em u m a i n s t i t u i ç ã o religiosa relativa-
m e n t e coesa. T a m b é m p r e t e n d i mostrar, através de u m a análise h i s t ó r i c a da
d i n â m i c a i n t e r n a de u m g r u p o p a r t i c u l a r de d i v i n d a d e s na área gbe e nos
terreiros jejes da Bahia, c o m o a t r a n s f o r m a ç ã o de qualquer "panteão" está sem-
pre baseada em processos s i m u l t â n e o s de c u m u l a ç ã o - i n t e g r a ç ã o e seleção-dis-
c r i m i n a ç ã o de d i v i n d a d e s . Aliás, foi s u g e r i d o q u e esses processos, q u e se dão
ao nível conceituai das entidades espirituais, refletem interações étnicas e m u -
danças específicas na organização d o c o r r e s p o n d e n t e c o r p o sacerdotal. Nesse
s e n t i d o , a análise histórica da d i n â m i c a i n t e r n a dos "panteões" p o d e revelar
aspectos da organização sociopolítica de seus devotos, e em p a r t i c u l a r de seus
líderes religiosos. C a b e agora e x a m i n a r o u t r o s g r u p o s de v o d u n s , c o m o as fa-
mílias de D a n e Sakpata, p a r a c o m p l e m e n t a r a análise levantada a p a r t i r da
família H e v i o s o .

SAKPATA-SHAPANA, OMOLU E NANÃ BURUKU: FLUXOS E REFLUXOS


AFRICANOS E SUA C O N T I N U I D A D E N O C A N D O M B L É N A G Ô - V O D U M

U m m i t o bem c o n h e c i d o n o C a n d o m b l é n a g ô - k e t u fala de N a n ã B u r u k u , "a


mãe mais velha das águas", sincretizada com S a n t a n n a , c o m o a mãe de O m o l u
(Shapana) e O x u m a r é , sendo que as três divindades são geralmente consideradas

292
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

d e o r i g e m jeje o u j e j e - m a h i . N o t e r r e i r o Axé O p ô A f o n j á , p o r e x e m p l o , essas


três e n t i d a d e s t ê m o b r i g a ç õ e s c o n j u n t a s na s e g u n d a - f e i r a , e d u r a n t e o xirê,
às vezes, canta-se para elas de m o d o consecutivo. 4 8 Até certo p o n t o , nessa asso-
ciação r i t u a l , explícita t a m b é m em t e r m o s d e p a r e n t e s c o m i t o l ó g i c o , t e r í a -
m o s u m a o u t r a e x p r e s s ã o d o p r i n c í p i o de agregação.
Verger q u e r ver nessa t r a d i ç ã o dos t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s u m a c o n t i n u i d a d e
d i r e t a d o q u e se passa n a c i d a d e de K e t u , o n d e " N a n ã B u r u k u fica n o m e s m o
t e m p l o q u e O s u m a r e e é c o n s i d e r a d a a m ã e de O m o l u ( S o p o n n a ) " . Este últi-
m o orixá, n u m t e m p l o separado, é t a m b é m r e p r e s e n t a d o j u n t o a e m b l e m a s de
O x u m a r é e Iroko. S h a p a n a teria v i n d o da área gbe, o n d e é c o n h e c i d o c o m o
Sakpata e, s e g u n d o Verger, Ketu seria a ú n i c a cidade o n d e essa e n t i d a d e é i d e n -
tificada c o m O m o l u . 4 9 D i a n t e desse p a r a l e l i s m o n ã o p o d e m o s descartar u m a
possível relação de c o n t i n u i d a d e entre as tradições de Ketu e as práticas d o C a n -
d o m b l é baiano. O r a , é i m p o r t a n t e n o t a r — d e i x a n d o de lado o caso de O x u m a -
ré, q u e será t e m a d a p r ó x i m a seção — q u e N a n ã B u r u k u , S h a p a n a e O m o l u
c o n f i g u r a m n a A f r i c a u m a c o m p l e x a t r í a d e de d i v i n d a d e s , c o m i n ú m e r o s cul-
tos i n t e r - r e l a c i o n a d o s das f o r m a s m a i s diversas e r e p a r t i d o s n u m a vasta área
q u e vai d o país N u p é , n o leste, até além d o rio Volta, na região n o r d e s t e do
país A s h a n t i , n o oeste. R e d u z i r a i n f l u ê n c i a dessa tríade n o C a n d o m b l é a p e n a s
às tradições de u m a ú n i c a localidade seria arriscado.
A t é a q u i m e referi a S a k p a t a c o m o o " v o d u m da terra", mas seria mais cor-
reto falar dele c o m o o " d o n o da terra". S e g u n d o L e p i n e , os c u l t o s s a k p a t a -
s h a p a n a (e o u t r a s variantes c o m o O b a l u a ê , A i n o n , Iye, B u r u k u ) representariam
o r i g i n a l m e n t e u m c u l t o ao "rei da terra", associado aos ancestrais f u n d a d o r e s
(nascidos o u m o r a d o r e s no f u n d o da terra) e aos ciclos agrícolas, e r e m o n t a r i a m
a u m a n t i g o sistema religioso p r é - O d u d u a . Por sua vez, esses c u l t o s t e r i a m
a c o m p a n h a d o as migrações dos d e s c e n d e n t e s de O d u d u a e dos adjas, na virada
do p r i m e i r o m i l é n i o , d i f u n d i n d o - s e e m t o d a a área i o r u b á e gbe. Esse m o v i -
m e n t o implicaria "origem" n a região t a p a ( n u p é ) , n o leste, e teria p r o g r e d i d o
para o oeste, p a s s a n d o p o r O y o - I f é , Ketu, Savè, Dassa Z o u m é , Savalu até T a d o
e A t a k p a m e , n o oeste.
Verger a p r e s e n t a u m a exaustiva d e s c r i ç ã o da d i s t r i b u i ç ã o d o s c u l t o s de
S a k p a t a - S h a p a n a , O m o l u e N a n ã B u r u k u t a n t o na área gbe c o m o em d i f e -
rentes l o c a l i d a d e s i o r u b á s , m o s t r a n d o a i n t r i c a d a d i v e r s i d a d e regional, m a s
c o n s t a t a u m a relativa s e p a r a ç ã o e n t r e os c u l t o s de S a k p a t a - S h a p a n a e a q u e -
les de O m o l u e B u r u k u . C o m o já foi d i t o , a p e n a s na c i d a d e de K e t u S h a p a n a
é i d e n t i f i c a d o c o m O m o l u , s e n d o q u e e m vários casos localiza-se a o r i g e m
de O m o l u , M o l u o u M o r u n o oeste, n a área A j a - P o p o . 5 0 Verger sugere d u a s
hipóteses:

293
L U I S N I C O L A U PA R É S

Estaríamos presenciando um sincretismo, talvez hoje desaparecido, entre duas di-


vindades de origem diferente e pertencentes a antigos grupos culturais diferentes, divin-
dades essas que vieram uma do leste (Soponna) e outra do oeste ( O m o l u ou Molu),
unindo-se e assumindo um caráter único em Ketou? O u ao contrário, tratar-se-ia de
uma divindade única, de origemyoruba e de origem tapa (nupé) mais longínqua, trazida
para o oeste por uma das numerosas e antigas migrações que as tradições mencionam,
e do retorno, em seguida, dessa divindade para seu p o n t o de partida, trazendo um novo
nome [Omolu], que, originariamente, não passava de simples epíteto? 5 1

A s e g u n d a h i p ó t e s e d o " s u r g i m e n t o " d e O m o l u n a área o c i d e n t a l d o g o l f o


do B e n i n , a p a r t i r da nova caracterização de u m a d i v i n d a d e mais antiga
v i n d a d o leste, s e r i a p e r t i n e n t e t a m b é m p a r a N a n ã B u r u k u . E s s a d i v i n d a d e
teria t a l v e z p a r t i d o de Ilê Ifé, c o m o s u g e r e Verger, e o seu c u l t o t e r i a s i d o as-
s o c i a d o p a u l a t i n a m e n t e a d i v i n d a d e s d a t e r r a c o m o S h a p a n a . Essa ligação c o m
o e l e m e n t o t e r r a persiste n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o , pois N a n ã B u r u k u é
associada à lama e é considerada a "venerada yaba da m o r t e e profundezas" ou
" u m m o n s t r o q u e sai d o f u n d o d a terra". 5 2
N a área i o r u b á , B u r u k u ( B u k u ) é n o r m a l m e n t e i d e n t i f i c a d o c o m o enti-
d a d e m a s c u l i n a , s e n d o f r e q u e n t e m e n t e relacionado e até c o n f u n d i d o c o m
S h a p a n a e, às vezes, c o m O m o l u . C o m o estes, B u r u k u p o d e ser a s s o c i a d o à
v a r í o l a e d i z - s e q u e seu c u l t o foi t r a z i d o d o p a í s E g u n o u D a o m é , e n q u a n t o
o u t r a s v e r s õ e s a p o n t a m c o m o o r i g e m Savé o u D a s s a Z o u m é , n o p a í s M a h i . 5 3
As v a r i a ç õ e s q u e v ã o d a j u s t a p o s i ç ã o à i d e n t i f i c a ç ã o d e S h a p a n a e B u r u k u , o
género m a s c u l i n o e a associação c o m a varíola q u e o b s e r v a m o s na área i o r u b á
p a r e c e m c o n t r a s t a r c o m a caracterização de B u r u k u na área gbe.
Nessa região, a e n t i d a d e é de género f e m i n i n o , c o n h e c i d a por vários no-
mes, c o m o N a n ã B u l u k u , A n a b u r u k u ou M i n o n a , associada a ideias de m a -
t e r n i d a d e e f e c u n d i d a d e e b e m diferenciada e n q u a n t o e n t i d a d e de Sakpata.
P o d e r í a m o s p e n s a r q u e essa t r a n s f o r m a ç ã o e f e m i n i z a ç ã o d e B u r u k u a c o n t e -
ceram, c o m o c o m O m o l u , no oeste do G o l f o do Benim, no país Ashanti. C o m
efeito, há indícios que sugerem u m a "origem" ou pelo m e n o s u m trânsito de
B u r u k u p e l o p a í s A s h a n t i . Por e x e m p l o , as s a c e r d o t i s a s d e N a n ã B u r u k u e m
P i r a e D j a g b a l o , ao n o r t e d e S a v a l u , u t i l i z a m u m t r o n o a s h a n t i , e s a b e m o s
q u e N a n ã é o t e r m o r e s p e i t o s o q u e os a s h a n t i s e m p r e g a m p a r a as p e s s o a s d e
i d a d e . A t r a v é s de m i g r a ç õ e s s u b s e q u e n t e s , o c u l t o d e N a n ã teria r e t o r n a d o p a r a
leste, a d q u i r i n d o especial i m p o r t â n c i a n a área d e A t a k p m é , n o T o g o . D e lá, o
c u l t o teria se d i f u n d i d o n o país M a h i e e m A b o m e y e K e t u , talvez se s u p e r p o n d o
a c u l t o s locais s e m e l h a n t e s m a i s a n t i g o s . 5 4
Seria só a p ó s a " f e m i n i z a ç ã o " d e N a n ã B u r u k u n a área a s h a n t i q u e , t r a z i d a
de v o l t a n a área g b e , ela se t e r i a c o n v e r t i d o e m " m ã e " d e S a k p a t a . C o m o já

294
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

v i m o s , a c o n c e i t u a l i z a ç ã o e a r e u n i ã o dos v o d u n s e m f a m í l i a s são h a b i t u a i s
na área g b e e m e n o s c o m u n s nos c u l t o s de orixás. E m A b o m e y e Z a n g n a n a d o
m e n c i o n a - s e N y o h w e A n a n u c o m o p r o g e n i t o r a da f a m í l i a d e S a k p a t a . E m
o u t r a versão de A b o m e y e e m Vedji, n o país M a h i , N a n ã B u r u k u é c o n s i d e -
r a d a a m a t r i a r c a d a f a m í l i a S a k p a t a . T a m b é m M i n o n a , q u e e m f o n significa
"nossa m ã e Na", é u m a d i v i n d a d e f e m i n i n a c o n h e c i d a na área g b e q u e p o d e -
ria ser associada ao c o m p l e x o de N a n ã . N o Brasil diz-se q u e S h a p a n a é filho
d e N a n ã B u r u k u o u de I y a b a y i n ( Y a b a n h i ) . Trata-se p r o v a v e l m e n t e d e dois
n o m e s da m e s m a e n t i d a d e , já q u e I y a b a y i n derivaria da expressão i o r u b á iyá
àgbà yin, a m ã e m a i s velha d e t o d a s . 5 5
Se e m K e t u N a n ã B u r u k u está a s s o c i a d a a S h a p a n a - O m o l u e O x u m a r é ,
n a t r a d i ç ã o de A b o m e y — e m b o r a c o n s i d e r a d a m ã e de S a k p a t a em a l g u n s
t e m p l o s — ela está t a m b é m v i n c u l a d a ao p a n t e ã o celeste d e M a w u e Lissá,
s e n d o , às vezes, c o n s i d e r a d a a m ã e desse casal p r i m o r d i a l , o u a i n d a i d e n -
t i f i c a d a c o m M a w u , a p a r t e f e m i n i n a r e s p o n s á v e l pela criação d o m u n d o . 5 6
E m certas t r a d i ç õ e s de A b o m e y , p o r t a n t o , N a n ã B u r u k u t e m u m p a p e l de
p r o g e n i t o r a ligada a idéias d e f e c u n d i d a d e , c o m o n o T o g o , sem q u a l q u e r re-
lação direita c o m a varíola, c o m o a c o n t e c e na área i o r u b á . N a área de i n f l u ê n -
cia d o s i s t e m a religioso c r i a d o em A b o m e y ela estaria mais p r ó x i m a de Lissá
(Olissá) d o q u e de S a k p a t a .
Essas v a r i a n t e s r e g i o n a i s na t r a n s f o r m a ç ã o d e N a n ã B u r u k u talvez a i n d a
sejam perceptíveis em certos elementos rituais do C a n d o m b l é c o n t e m p o r â -
neo. Se, c o m o já v i m o s , n o c a n d o m b l é n a g ô - k e t u valoriza-se a t r í a d e N a n ã -
O m o l u - O x u m a r é ; t a m b é m em d a d a s ocasiões N a n ã é tida c o m o esposa de
O x a l á (Lissá). 5 7 T e r í a m o s , assim, a l é m da i n f l u ê n c i a das t r a d i ç õ e s de K e t u ,
o u t r a s p r o v e n i e n t e s das tradições d o D a o m é . N a nação j e j e - m a h i se c a n t a para
N a n ã n o final das c e r i m ó n i a s antes de c a n t a r para Lissá (Oxalá), o q u e expres-
saria o v í n c u l o p r e v a l e c e n t e em Abomey, mas t a m b é m é r e c o n h e c i d a a relação
filial e n t r e S a k p a t a e N a n ã . E s t a m o s , p o r t a n t o , d i a n t e de u m claro e x e m p l o
de i n t e r p e n e t r a ç ã o e n t r e os c u l t o s d e v o d u n s e orixás, d e s e n v o l v i d a d u r a n t e
séculos na A f r i c a o c i d e n t a l e t r a n s f e r i d a p a r a a Bahia, o n d e em m u i t o c o n t r i -
b u i u para a c o n s o l i d a ç ã o de u m sistema religioso q u e os p r ó p r i o s p a r t i c i p a n t e s
n ã o h e s i t a m em c h a m a r n a g ô - v o d u m .
M a s v o l t e m o s a S a k p a t a . C o m o já m e n c i o n e i , em várias localidades da área
i o r u b á , c o m o K e t u , considera-se q u e S h a p a n a foi trazido do país M a h i . O r a ,
o c u l t o S a k p a t a em país M a h i m u i t o p r o v a v e l m e n t e foi trazido p r i m e i r a m e n t e
d a área n a g ô . E m Savalu, diz,-se q u e o c u l t o de S a k p a t a A g b o s u foi a p r o p r i a d o
ou assimilado p o r A h o s u Soha ( f u n d a d o r da dinastia real em Savalu), p o r vol-
ta da s e g u n d a m e t a d e d o século XVII, q u a n d o este passava pela região d o rio

295
L U I S N I C O L A U PA R É S

O u e m é , o n d e m o r a v a m os k a d j a n u s , nagôs v i n d o s d a área E g b a d o , p e r t o de
Badagri. O reino de Dassa, o u t r o i m p o r t a n t e c e n t r o d o c u l t o S a k p a t a , r e m o n -
ta sua d i n a s t i a real pelo m e n o s a 1700, e os seus h a b i t a n t e s t a m b é m se dizem
o r i g i n á r i o s da região dos anagôs, e m volta de Badagri. Aliás, a i n d a h o j e os ini-
ciados de S a k p a t a são c h a m a d o s " a n a g o n u " ( h a b i t a n t e s anagôs), e a sua língua
ritual é u m a f o r m a de i o r u b á arcaico. Fala-se q u e n o D a o m é o c u l t o a S a k p a t a
f o i i m p o r t a d o p e l o rei A g a j a e c i t a m - s e Savalu, Dassa Z o u m é e, mais t a r d i a -
m e n t e , P i n g i n i V e d j i ( p e r t o de Dassa Z o u m é ) c o m o possíveis origens d o s cul-
t o s i n t r o d u z i d o s e m A b o m e y . O país M a h i , assim, foi u m d o s p o n t o s de dis-
p e r s ã o d o c u l t o e é p o r esse m o t i v o q u e S a k p a t a , apesar da sua a n t i g a o r i g e m
n a g ô , c o n s i d e r a - s e n o r m a l m e n t e u m a d i v i n d a d e de o r i g e m m a h i . 5 8
C o m o já foi c o m e n t a d o n o c a p í t u l o 3, é só a p a r t i r d o século XVII q u e o
c o m p l e x o de d i v i n d a d e s S a k p a t a - S h a p a n a - O m o l u (e na área i o r u b á t a m b é m
B u r u k u ) começa a associar-se c o m as epidemias da varíola i m p o r t a d a s pelos eu-
r o p e u s , até o p o n t o de q u e e m f o n g b e c o n t e m p o r â n e o sakpata significa varíola
e sakpata kpevi o u " p e q u e n o sakpata", varicela. Segurola acrescenta q u e , pelo
m e d o q u e inspiravam as epidemias d a varíola, n ã o se ousava p r o n u n c i a r o n o m e
d e S a k p a t a , u t i l i z a n d o - s e o u t r o s apelativos c o m o : me (pessoa), ahosu (rei),
aihosu (rei da terra), dohosu, dokuno (senhor d a m o r t e ) ou àzon ( e n f e r m i d a d e
o u doença). As pessoas consagradas a Sakpata são c h a m a d a s sakpatasi, anagô ou
azonsi.59 T a m b é m vimos as variáveis d i n â m i c a s de a p r o p r i a ç ã o e c o n t r o l e dos
cultos de S a k p a t a pelos reis d a o m e a n o s , e c o m o os seus t e m p l o s v i r a r a m foco
de resistência dos povos s u b m e t i d o s ao D a o m é . E n t r e o u t r a s c o n s e q u ê n c i a s ,
essa c i r c u n s t â n c i a p o d e r i a explicar o g r a n d e n ú m e r o de sacerdotes de S a k p a t a
q u e f o r a m v e n d i d o s c o m o escravos para as A m é r i c a s .
N a Bahia, em 1870, O Alabama registra u m a p r i m e i r a r e f e r ê n c i a a "Xa-
p a n a m " , a versão n a g ô d o n o m e S a k p a t a , e e m 1871 há u m a s e g u n d a refe-
r ê n c i a "a varíola a d o r a d a c o m o u m a d i v i n d a d e " n o c a n d o m b l é d o M o i n h o
( G a n t o i s ) , de n a ç ã o nagô. 6 0 E m relação aos jejes, já v i m o s , na d é c a d a de 1860,
o caso d a Roça d e C i m a , c o m a sua j a q u e i r a c o n s a g r a d a a A z o n s u o u D a n -
d a g o j i , v o d u m p e r t e n c e n t e a tio X a r e n e . N o c a n d o m b l é d o C a p i v a r i , e m São
Félix, tio A n a c l e t o de O m o l u a d q u i r i u f a m a c o m o c u r a d o r d u r a n t e a e p i d e m i a
d e cólera m o r b o q u e assolou a região e m 1855. D e s t e m o d o , p o d e m o s s u p o r
q u e o c u l t o dos v o d u n s e orixás d o n o s d a t e r r a e das e p i d e m i a s já estava ins-
t i t u í d o n a Bahia pelo m e n o s a m e a d o s do s é c u l o XIX.
N i n a R o d r i g u e s , n o final desse século, m e n c i o n a os n o m e s d e " S a p o n a n ,
W a r i - W a r ú , A f o m a n ou O m o l u " . 6 1 N o s anos 1950, em Salvador, Verger cole-
t o u , a p a r t i r de vários i n f o r m a n t e s , u m a lista d e 21 n o m e s associados a essas
d i v i n d a d e s , o n d e se m i s t u r a m a l g u n s t e r m o s n a g ô s e u m a m a i o r i a de t e r m o s

296
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

jejes, e n t r e eles v á r i o s t o p ó n i m o s d o país M a h i , c o m o Savalu o u D a s s a . 6 2


C o m o na Africa, n o s terreiros jejes evita-se falar o n o m e de S a k p a t a p o r m e d o
d o s possíveis castigos da d i v i n d a d e . E m b o r a a d e n o m i n a ç ã o apareça em algu-
m a s c a n t i g a s , p a r a d e s i g n a r o c h e f e dessa f a m í l i a u t i l i z a - s e m a i s f r e q u e n -
t e m e n t e o n o m e d e A z o n s u , o u as suas v a r i a n t e s f o n é t i c a s (Azonze, A z u n z u ,
A z u n s u m ) . Azon ( e n f e r m i d a d e ) t a m b é m c o n s t i t u i a raiz d o s n o m e s d e o u -
tros v o d u n s da m e s m a categoria, c o m o Azoani (variante Azoanu), A j o n s u
(variantes Ajansur, O j o n s u , Ajunsó) ou Azonodo (variantes Azoanodo,
A z a u n o o d o r , Z a n o d ô , A z a n a o d ô , O z a n a A d o ) . S o b r e o r i t u a l dessa ú l t i m a
d i v i n d a d e n o B o g u m f a l a r e i e m d e t a l h e n o p r ó x i m o c a p í t u l o . N o Seja
H u n d é , A z o n s u ( a s s e n t a d o n u m pé de m u l u n g u o u o m o l o n g u ) e A z o a n i são
c o n s i d e r a d o s v o d u n s d i s t i n t o s , m a s e m o u t r o s terreiros a l g u m a s dessas " q u a -
lidades" p o d e m ser c o n f u n d i d a s . N o B o g u m , p o r e x e m p l o , A z o n s u p a r e c e ser
identificado c o m o A j o n s u . O u t r o s v o d u n s da mesma família lembrados nos
t e r r e i r o s jejes c o n t e m p o r â n e o s são S a k p a t a L o g u a , Parara, A v i m a n j e , D a d a
Lansu (relacionado com Kpo), Ajagonu e Jagun.
A t u a l m e n t e , na Bahia, o v e s t u á r i o c a r a c t e r í s t i c o de S a k p a t a - O m o l u c o n -
siste e m u m c a p u z e u m a saia de p a l h a d a C o s t a q u e c o b r e m t o d o seu c o r p o ,
s u p o s t a m e n t e para e s c o n d e r as chagas e d e f o r m i d a d e s físicas. O r a , cabe n o t a r
q u e essa v e s t i m e n t a p o d e r i a ser u m a c r i a ç ã o r e l a t i v a m e n t e r e c e n t e , pois n ã o
h á e v i d ê n c i a clara d e seu uso n o c u l t o dessas e n t i d a d e s n a Á f r i c a o c i d e n t a l e,
n o Brasil, essa p r á t i c a está d o c u m e n t a d a s o m e n t e na d é c a d a de 1930. 6 3 N o s
terreiros jejes, a p a l h a da C o s t a , além de A z o n s u , é utilizada por o u t r o s v o d u n s
c o m o K p o e L o k o , e é n o r m a l m e n t e t i n g i d a c o m t i n t u r a "cor d e v i n h o " , téc-
n i c a q u e e n c o n t r a p a r a l e l o s n a área gbe e q u e c o n s t i t u i u m e l e m e n t o d i s t i n -
tivo d o v e s t u á r i o jeje.
A i n s í g n i a r i t u a l d e S a k p a t a - O m o l u é u m a vassoura d e f i b r a s d e p a l h a o u
palitos de d e n d e z e i r o c h a m a d a xaxará, e m b l e m a q u e na Á f r i c a aparece asso-
c i a d o p r i n c i p a l m e n t e aos c u l t o s d e O m o l u . 6 4 S a k p a t a p o d e levar t a m b é m
p e q u e n a s cabaças f e c h a d a s (adô) p e n d u r a d a s nas suas vestes e colares de búzios
b r a n c o s c r u z a d o s n o p e i t o . 6 5 Utiliza, às vezes, u m colar n e g r o c h a m a d o la-
guidibá. O u t r a s vezes o seu colar a l t e r n a c o n t a s p r e t a s e v e r m e l h a s . As suas
cores são, p o r t a n t o , c o m o n a Á f r i c a , b r a n c o , v e r m e l h o e p r e t o .
S e g u i n d o o p r i n c í p i o a m b i v a l e n t e das d i v i n d a d e s a f r i c a n a s , S a k p a t a , Sha-
p a n a , O m o l u o u O b a l u a ê , d i v i n d a d e s das bexigas, das e n f e r m i d a d e s da pele,
das d o e n ç a s c o n t a g i o s a s , a t u a l m e n t e t a m b é m associados à aids, t ê m o p o d e r
t a n t o de infligir esses castigos c o m o , s o b r e t u d o , de curá-los. S a k p a t a - O m o l u ,
t a m b é m c o n h e c i d o c o m o o "velho" o u o " s e n h o r das flores", e m alusão à pi-
p o c a , u m d o s seus a l i m e n t o s rituais e i m a g e m das bexigas, foi s i n c r e t i z a d o ,

297
L U I S N I C O L A U PA R É S

s e g u n d o suas várias "qualidades", c o m São R o q u e , São Lázaro, São Sebasti-


ão e, a n t i g a m e n t e , c o m São B e n t o . As moscas, m o s q u i t o s , b e s o u r o s e b o r b o -
letas pretas são insetos a ele associados. Pelos seus d o n s de cura, foi d e n o m i -
n a d o o " m é d i c o dos negros", 6 6 " m é d i c o dos p o b r e s " ou o " m é d i c o - f e r i d o " . A
d i m e n s ã o t e r a p ê u t i c a de S a k p a t a - O m o l u , q u e a d q u i r i u os seus poderes de
cura p o r ter sido ele m e s m o v í t i m a da d o e n ç a , já foi t r a t a d a em d e t a l h e pela
l i t e r a t u r a a f r o - b r a s i l e i r a e r e m e t o o leitor aos t r a b a l h o s mais r e c e n t e s de
C l a u d e Lepine, Pedro Ratis e Silva e A n d r e a C a p r a r a . 6 7

A FAMÍLIA OE D A N E BESSEN, 0 D O N O OA NAÇÃO JEJE MAHI

O terceiro g r a n d e g r u p o de divindades q u e caracteriza o p a n t e ã o dos terreiros


jeje-mahis é a família de D a n (variante O d a n ) , liderada pelo v o d u m - s e r p e n t e
Bessen (variante O b e s s é n ) , c o n s i d e r a d o p o r m u i t o s o "rei", " p r í n c i p e " , o u
" d o n o da nação m a h i " . A sua saudação é "Arobobo Bessen"; ele é t a m b é m sal-
vo c o m a expressão "seu a h o l o Bessém D o k u m i , O g o r e n s i M i s i m i , O g o r e n s i
N u j a m i " , s e n d o q u e aholo deriva do t e r m o gbe aholu, o m e s m o q u e p r í n c i -
pe. 6 8 N o Seja H u n d é , se A z o n s u é considerado o " d o n o d o barracão", Bessen é
tido c o m o o "dono do terreiro" ou "dono da roça". D o m e s m o m o d o n o B o g u m ,
c o n q u a n t o a família de Sogbo é c o n s i d e r a d a a "família real", o v o d u m Bafo-
n o D e k a (Bafon n o de ka), " m u i t o c o n h e c i d o p o r q u e t e m Bessen", é t i d o co-
m o o " p a d r o e i r o " ou " d o n o da casa". U m m e m b r o d o B o g u m sintetiza: "Bes-
sen é o d o n o d a nação, d o terreiro, mas Sogbo é a cumeeira". 5 9 C o m o já foi
dito, a i m p o r t â n c i a de Bessen se expressa ao nível ritual pela posição q u e ocu-
pam os seus cantos nas distintas c e r i m ó n i a s . E m C a c h o e i r a , as p r i m e i r a s can-
tigas d o zandró estariam associadas a esse v o d u m , e na p a r t e " n a g ô - v o d u m "
desse r i t u a l e nas festas públicas Bessen é a ú l t i m a d i v i n d a d e a ser louvada.
A posição final de D a n n o r e p e r t ó r i o de c a n t o s é u m signo de d i s t i n ç ã o e u m
dos e l e m e n t o s q u e d i s t i n g u e m a s e q u ê n c i a jeje d o xirê n a g ô - k e t u , q u e fina-
liza c o m cantos para O x a l á . O hoitá, obrigação q u e m a r c a o p o n t o alto d o
ciclo de cerimónias jeje-mahi, e q u e será e x a m i n a d a no p r ó x i m o capítulo, está
t a m b é m d e d i c a d o a Bessen.
" D a n " é u m t e r m o genérico q u e em f o n g b e significa c o b r a o u s e r p e n t e .
N a área gbe, v o d u n s de diversas categorias p o d e m ter associada u m a "quali-
d a d e " i n d i v i d u a l i z a d a de D a n , do m e s m o m o d o q u e cada v o d u m t e m o seu
p r ó p r i o Legba p a r t i c u l a r . Trata-se de u m a d i v i n d a d e m ú l t i p l a e p o l i f o r m e ,
a d o r a d a sob f o r m a s diferenciadas por diversos g r u p o s étnicos. N o Brasil, D a n
persiste c o m o t e r m o genérico para designar aqueles v o d u n s q u e se m a n i f e s -

298
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

t a m sob a f o r m a d e s e r p e n t e . E m b o r a os especialistas religiosos p o s s a m dis-


t i n g u i r e n t r e c o b r a s de t e r r a e c o b r a s d ' á g u a , q u a l q u e r espécie o f í d i c a , seja a
sucuri o u s u c u r u j u b a de rio, a coral de terra o u a jibóia, todas são identificadas
como Dan.
D a n , o u na sua " q u a l i d a d e " i n d i v i d u a l i z a d a o v o d u m Bessen, é e q u i p a r a d o
c o m o orixá n a g ô O x u m a r é , e o i n q u i c e a n g o l a A n g o r ô . A l é m d o seu a s p e c t o
o f í d i c o , essas d i v i n d a d e s são t a m b é m i d e n t i f i c a d a s c o m o a r c o - í r i s , e n a área
gbe, q u a n d o D a n a s s u m e essa q u a l i d a d e , é c h a m a d o A y i d o - W e d o , a r c o - í r i s
e m f o n g b e . A i d e n t i f i c a ç ã o e n t r e " O u t c h o u - M a r è " e " A i d o k o u é d o " já foi n o -
tada na A f r i c a o c i d e n t a l pelo p a d r e B o u c h e , e m 1868. 7 0 C o m o vimos, a m e s m a
identificação entre Anyi-ewo e O x u m a r é é replicada p o r N i n a Rodrigues em
Salvador. N a a t u a l i d a d e , A y i d o - W e d o é p o r vezes l e m b r a d o c o m o A n i ê v o .
E n q u a n t o Bessen é i d e n t i f i c a d o c o m o v o d u m m a s c u l i n o , c o n s i d e r a - s e O x u -
maré composto por uma parte masculina e uma outra feminina.
Bessen, O x u m a r é e A n g o r ô são n o r m a l m e n t e s i n c r e t i z a d o s c o m São
B a r t o l o m e u , s a n t o q u e na i c o n o g r a f i a católica aparece j u n t o a u m a c o b r a . Por
isso, i m p o r t a n t e s r o m a r i a s em l o u v o r a essas d i v i n d a d e s e r a m realizadas n o
a t u a l P a r q u e São B a r t o l o m e u , e m P i r a j á . N o s a n o s 1930, C a r n e i r o c o m e n t a
c o m o e r a m f e s t e j a d a s " r u i d o s a m e n t e , n o d i a 24 d e a g o s t o , n a p o v o a ç ã o q u e ,
nas i m e d i a ç õ e s d e Pirajá, t e m o seu n o m e e é u m d o s m a i o r e s c e n t r o s c o n v e r -
g e n t e s d a d e v o ç ã o n e g r o - f e t i c h i s t a n a Bahia". T a m b é m P e a r s o n m e n c i o n a a
f o n t e "sagrada" c o n h e c i d a p o r " M i l a g r e d e S. B a r t o l o m e u " . 7 1
N o C a n d o m b l é , Bessen, O x u m a r é e A n g o r ô simbolizam a c o n t i n u i d a -
d e e a f o r ç a vital q u e i m p r i m e o m o v i m e n t o ao m u n d o . Esse " p r i n c í p i o de
mobilidade" é expresso n u m mito cosmológico escutado no B o g u m , segun-
d o o q u a l n o i n í c i o d o s t e m p o s só existia u m a c a b a ç a c o n s t i t u í d a p e l a s i m -
b i o s e d o casal M a w u - L i s s á , d i v i n d a d e h e r m a f r o d i t a ou m a c h o - f ê m e a n ã o
d i f e r e n c i a d a . D a n , a s e r p e n t e , se e n r o l o u e m v o l t a dessa c a b a ç a p r i m o r d i a l
e, c o m o se fosse a c o r d a d e u m p i ã o , a fez r o d a r , g e r a n d o o m o v i m e n t o q u e
d e u o r i g e m ao m u n d o e à n a t u r e z a . E n t ã o , M a w u o u t o r g o u o c o n t r o l e d o s
d i v e r s o s â m b i t o s n a t u r a i s — a t e r r a , o f o g o , os raios, o mar, os rios, as á r v o -
res — a v á r i o s v o d u n s c o m o S a k p a t a , S o g b o o u L o k o . A s s o c i a d o s às f o r ç a s
da n a t u r e z a , os v o d u n s f o r a m a n t e r i o r e s aos h o m e n s e, p o r t a n t o , o seu c u l t o
n ã o deve ser c o n f u n d i d o c o m o d o s a n c e s t r a i s . Q u a n d o o h o m e m foi c r i a d o
s u r g i r a m n o v o s p r o b l e m a s c o m o as e n f e r m i d a d e s e n o v a s a t i v i d a d e s , c o m o
a p e s c a , a caça e t c . M a w u c r i o u n o v a s d i v i n d a d e s p a r a t o m a r c o n t a dessas
q u e s t õ e s , r e t i r a n d o - s e d e p o i s a u m l u g a r a f a s t a d o d o m u n d o . Essas d i v i n d a -
des m a i s t a r d i a s s e r i a m os orixás, c o m o O x ó s s i , l i g a d o à caça, o u O g u m ,
l i g a d o à c i v i l i z a ç ã o d o s m e t a i s . 7 2 N o t a - s e nessa l e n d a u m a o r i e n t a ç ã o jeje-

299
L U I S N I C O L A U PA R É S

c ê n t r i c a q u e r e l e g a r i a os o r i x á s n a g ô s a u m a p o s i ç ã o s e c u n d á r i a d i a n t e d o s
v o d u n s , primordiais agentes da d i n â m i c a da natureza.
A p ó s a c r i a ç ã o d o m u n d o , D a n ficou i d e n t i f i c a d o c o m o a r c o - í r i s , r e s i d i n -
d o s i m u l t a n e a m e n t e na terra e no céu, c o n e c t a n d o o d o m í n i o de Sakpata e
S o g b o e s e n d o r e s p o n s á v e l p e l a c h u v a q u e fertiliza e g a r a n t e a v i d a n a t u r a l . Por
isso, D a n , O x u m a r é e A n g o r ô são d i v i n d a d e s q u e p r o p i c i a m a r i q u e z a , a f o r -
t u n a e a p r o s p e r i d a d e . S e g u n d o R o d r i g u e s , O x u m a r é seria "o c r i a d o de X a n g ô " ,
o c u p a d o e m t r a n s p o r t a r á g u a d a t e r r a p a r a as n u v e n s , m o r a d a d o seu a m o . 7 3
Essa idéia é replicada e m relação a A n g o r ô . S e g u n d o Valdina P i n t o ,

"Angorô é o responsável pelo ciclo das águas, a continuidade da vida, a força da vida
contida na água. E Angorô q u e m transporta a água para o céu e faz cair em forma de
chuva; por isso é que nos terreiros de Angola nós fazemos u m círculo d'água no meio
do barracão quando cantamos para Angorô e em alguns terreiros de outra nação, colo-
ca-se uma quartinha com água no centro do barracão quando se canta para Oxumaré. 7 4

Essa c o n v e r g ê n c i a d e i d e i a s e m v o l t a d e D a n , O x u m a r é e A n g o r ô c o m o
d i v i n d a d e s d o m o v i m e n t o , d a r i q u e z a , d o a r c o - í r i s e r e s p o n s á v e i s p e l o ciclo
d a s á g u a s s u g e r e u m a a n t i g a i n t e r p e n e t r a ç ã o d e v a l o r e s e n t r e as d i s t i n t a s
" n a ç õ e s " , s e n d o p r o v á v e l u m a i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o j e j e na c o n c e p ç ã o a n g o l a
de A n g o r ô . Por e x e m p l o , n a área gbe a t r a n s f o r m a ç ã o da s e r p e n t e D a n e m
arco-íris ( m i t o talvez de o r i g e m m a h i ) é m e n c i o n a d a p o r B u r t o n em 1863. A
a s s o c i a ç ã o d e D a n c o m a r i q u e z a d e r i v a da c r e n ç a g b e , d o c u m e n t a d a p o r Ellis,
d e q u e "seus e x c r e m e n t o s t r a n s f o r m a m os g r ã o s d e m i l h o e m b ú z i o s " . V e r g e r
e x p l i c a q u e " a l g u m a s c o n t a s a z u i s , d i t a s Nana o u p e d r a s d e Aigry, denomi-
n a v a m - s e Dan Mi ( e x c r e m e n t o s d e D a n ) e s ã o d e i x a d a s p o r ele n o c h ã o , à
s u a p a s s a g e m ; d i z e m q u e elas v a l e m seu p e s o e m o u r o " . D a n c o m o s í m b o l o
d e c o n t i n u i d a d e t e m s u a e x p r e s s ã o e m v á r i o s b a i x o s - r e l e v o s d o p a l á c i o de
Abomey, o n d e A y i d o - H w e d o aparece representado c o m o u m a serpente en-
g o l i n d o a s u a c a u d a . Esse s í m b o l o c i r c u l a r q u e s i n t e t i z a a i d é i a d e q u e t o d o
final é p r i n c í p i o , e vice-versa, e n c o n t r a u m a exata c o r r e s p o n d ê n c i a na figu-
ra d o Uroboros da t r a d i ç ã o d a A l q u i m i a e u r o p é i a . Le H e r i s s é m e n c i o n a o u -
t r a s d u a s figuras d e s s e v o d u m e n t r e a c o l e ç ã o d e o b j e t o s d o s reis d ' A b o m e y :
duas serpentes de madeira, ligeiramente recurvadas em arco e p i n t a d a s em
v e r m e l h o e b r a n c o . C a b e n o t a r q u e essas são as cores d e H e v i o s o e s i n a l a m a
ligação de D a n c o m o v o d u m do trovão e o ciclo das águas, relação m i t o l ó -
gica p r o v a v e l m e n t e d e s e n v o l v i d a e m A b o m e y e m a n t i d a n o Brasil, o n d e D a n -
O x u m a r é é c o n s i d e r a d o "o c r i a d o d e X a n g ô " . 7 5

N o e n t a n t o , o u t r o s indícios sugerem u m a influência s i m u l t â n e a da tra-


dição angola nos cultos jejes da serpente. C o m o vimos no capítulo anterior,

300
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

o t e r m o "Agorensi" ( v a r i a n t e s A n g o r i n s e , U n g o r o c i , O g o r e n s i , A n g o r e n s e ,
G o r e n c i a ) é u m t í t u l o u t i l i z a d o , ao m e n o s d e s d e a s e g u n d a m e t a d e d o sécu-
lo XIX, pelas d e v o t a s de Bessen nos t e r r e i r o s j e j e - m a h i s . A palavra parece u m
c o m p o s t o d e A n g o r ô m a i s o s u f i x o si, q u e e m f o n g b e s i g n i f i c a "esposa de", o
q u e i n d i c a r i a q u e A n g o r ô era u m i n q u i c e c o n h e c i d o já n a q u e l e t e m p o e su-
gere u m a n t i g o p r o c e s s o de i n t e r p e n e t r a ç ã o j e j e - a n g o l a . S e g u n d o humbono
V i c e n t e , A g o r i n e A n g o r ô são o m e s m o , "o jeje e a n g o l a se j u n t a m " . ' 6 Aliás,
Binon Cossard oferece u m a etimologia angola para Angorô, que derivaria
d e ãngolo: "esse n o m e d e c o r r e d o t e r m o ngolo, a b r e v i a ç ã o d e kongolo ou
nkongolo, q u e d e s i g n a o arco-íris. B i t t r e m i e u x , q u e cita M g r . A. D e c l e r q , diz:
'o arco-íris é u m a g r a n d e s e r p e n t e nkongolo q u e m o r a nas n u v e n s e a chuva'". 7 7
P o r t a n t o , a associação d e A n g o r ô c o m a s e r p e n t e , o arco-íris e a c h u v a , seria
t a m b é m o r i g i n á r i a da A f r i c a c e n t r a l .
A l é m d o s a t r i b u t o s a s s o c i a d o s ao g e n é r i c o v o d u m D a n o u Bessen, n ã o
d e v e m o s e s q u e c e r q u e n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s essa d i v i n d a d e é a p e n a s a ca-
beça m a i s visível de u m a "família" c o m u m a p l u r a l i d a d e de m e m b r o s . A l g u n s
de seus n o m e s são: 1) B a f o n o D e k a ( B o f u m ) ; 2) D a n A k a ç u ( A k a s s u ) ; 3)
A j a ç u ; 4) T o q u é m ( T o q u e n , T o q u e i n ) ; 5) D o q u é m ; 6) Q u e m q u e m ; 7) C o -
t o q u e m ( A c o t o q u e m ) ; 8) C o q u e m (talvez u m a v a r i a n t e de C o t o q u e m ) e 9)
J i k u . A finada gaiaku Luiza dizia q u e Bessen é o pai d e C o t o q u e m , m a r i d o
8
da f e m i n i n a Q u e n q u é m . Já Aguesi dizia q u e A c o t o q u e m era o pai de Bessen.
E i m p o r t a n t e n o t a r q u e esses n o m e s n ã o c o n s t a m nas e t n o g r a f i a s da área g b e
q u e c o r r e s p o n d e m p r i n c i p a l m e n t e ao l i t o r a l o u A b o m e y . Isso i n d i c a r i a tra-
tar-se de v o d u n s m e n o s c o n h e c i d o s d o i n t e r i o r , s e n d o o país M a h i , pela sua
t r a d i ç ã o em relação a esse c u l t o , a região de o r i g e m m a i s provável.
N o Seja H u n d é e n o H u n t o l o j i , o v o d u m D a n g i b i o u D a n j e b ê , u m a evo-
l u ç ã o f o n é t i c a de D a n g b é , é t a m b é m c u l t u a d o c o m o d i v i n d a d e i n d i v i d u a l i -
zada, c o m a s s e n t o p r ó p r i o e d i f e r e n c i a d a de Bessen. Esse f a t o é s i g n i f i c a t i v o ,
pois D a n g b é é o v o d u m p í t o n , ancestral m í t i c o dos h u e d a s de U i d á , na área
l i t o r a l . A j u s t a p o s i ç ã o de v o d u n s - c o b r a de o r i g e m m a h i e m u n d u b i d e n t r o
d o g r u p o de D a n seria u m o u t r o e x e m p l o d o " p r i n c í p i o de agregação".
E u á , orixá f e m i n i n o de o r i g e m n a g ô , é u m a d i v i n d a d e d o rio d o m e s m o
n o m e (Yewa o u Iyéwa) n a área E g b a d o , mas, a t u a l m e n t e , n o Brasil, ela é p o r
vezes i d e n t i f i c a d a c o m o u m v o d u m - c o b r a de o r i g e m jeje, e m u l h e r d o orixá
9
O x u m a r é . O r a , c o m o a p o n t a gaiaku Luiza, E u á "no jeje c h a m a - s e J i k u " . A
associação e n t r e O x u m a r é e E u á deriva talvez d o t e r r e i r o O x u m a r é , na M a t a
E s c u r a . C o m o já v i m o s , A n t o n i o O x u m a r é , u m dos f u n d a d o r e s da casa, teve
por filha-de-santo d o n a C o t i n h a de Euá, q u e veio a lhe suceder e c o m q u e m ,
a l g u n s d i z e m , teve t a m b é m u m a relação s e n t i m e n t a l . 8 0 P o d e r i a o v í n c u l o ri-

301
L U I S N I C O L A U PA R É S

t u a l e t a l v e z s e n t i m e n t a l e n t r e os d o i s d i r i g e n t e s e x p l i c a r a p o s t e r i o r a s s o c i a -
ç ã o m i t o l ó g i c a d o s seus r e s p e c t i v o s s a n t o s ? A i n d a h o j e , d u r a n t e a f e s t a d e
O x u m a r é (Bafono), em agosto, a presença de Euá é de destaque, e há u m a
c o r e o g r a f i a e m q u e os d o i s o r i x á s d a n ç a m n o c h ã o c o m o s e r p e n t e s , c h u p a n d o
á g u a d e u m a g a m e l a e d e p o i s a s p e r g i n d o - a n o ar. Esse g e s t o r i t u a l é p r o v a v e l -
m e n t e u m a l e m b r a n ç a d o m i t o c o n h e c i d o n a área d e P o r t o N o v o s e g u n d o o
q u a l A y d o H w e d o - O x u m a r é "só a p a r e c e q u a n d o q u e r beber, e s e n t a d o n o c h ã o
s o b r e a s u a c a u d a , j o g a sua b o c a n a água". 8 1 N o t e r r e i r o O x u m a r é diz-se q u e
essa á g u a a s p e r g i d a n o ar p o r E u á e O x u m a r é r e p r e s e n t a o a r c o - í r i s , e q u e m é
m o l h a d o p o r ela " b o l a n o s a n t o " n o i n s t a n t e .
N o s t e r r e i r o s jejes, Bessen e os o u t r o s m e m b r o s d a f a m í l i a D a n v e s t e m - s e
d e b r a n c o e u s a m , c o m o n a área g b e , colares c o m p o s t o s d e várias fileiras de
b ú z i o s a t r a v e s s a d o s n o p e i t o . O seu e m b l e m a , p a r e c i d o c o m u m f a c ã o , é c h a -
m a d o takara, itakara o u a i n d a hungo. Humbono V i c e n t e diz q u e as c o n t a s de
Bessen são b r a n c a s e n ã o r i s c a d a s d e v e r d e e a m a r e l o , c o m o g e r a l m e n t e u s a m
os d e v o t o s d e O x u m a r é . 8 2 Bessen d a n ç a ao s o m d e v á r i o s r i t m o s de t a m b o r
c o m o o bravum o u o sato, e às vezes d a n ç a n o c h ã o o u a j o e l h a d o , i m i t a n d o c o m
os b r a ç o s e s t e n d i d o s p o r c i m a da c a b e ç a o m o v i m e n t o s i n u o s o das s e r p e n t e s .
P a r a c o n c l u i r e s t a s e ç ã o , a p r e s e n t o u m a b r e v e r e f l e x ã o h i s t ó r i c a s o b r e os
c u l t o s o f í d i c o s n a B a h i a . N a v i r a d a d o s é c u l o XIX, R o d r i g u e s a f i r m a v a q u e
o c u l t o d a s e r p e n t e d o s jejes " p a r e c e n ã o t e r e x i s t i d o n o Brasil, p e l o m e n o s
c o n v e n i e n t e m e n t e o r g a n i z a d o " . N a s u a p e s q u i s a , ele só e n c o n t r o u u m "ves-
tígio" d o culto n o terreiro de Livaldina, o n d e achou c o m o u m dos ídolos uma
h a s t e o u l â m i n a d e f e r r o " t e n d o as o n d u l a ç õ e s d e u m a c o b r a e t e r m i n a n d o
nas duas extremidades em cauda e cabeça de serpente". E m b o r a Livaldina
i d e n t i f i c a s s e o o b j e t o c o m o o r i x á d o f e r r o , O g u m , essas figuras serpentinas
de metal n o r m a l m e n t e f o r m a m parte do assento de D a n ou D a n g b e , c o m o é
o caso d o Seja H u n d é a i n d a h o j e , e m q u e esse e m b l e m a se c h a m a pé dagoméP
C o n t u d o , a p a r t i r da d é c a d a de 1930, diversos a u t o r e s c o m o R a m o s , Pierson
e C o u t o Ferraz c o m e ç a r a m a i d e n t i f i c a r e l e m e n t o s d o c u l t o o f í d i c o e m vários
t e r r e i r o s . C a r n e i r o , p o r e x e m p l o , f a l a n d o d e O x u m a r é e das festas d o P a r q u e
São Bartolomeu, comenta que "nem m e s m o N i n a Rodrigues poderia imaginar
a i m p o r t â n c i a q u e o c u l t o desse o r i x á iria ter, a t u a l m e n t e " e, e m 1948, a f i r m a :

no candomblé da velha Emiliana [Bogum] há uma serpente pintada na parede do


barracão; Manuel Menez me afirmou que "as cobras não o mordem"; e Manuel Falefá,
c o n t a n d o - m e o nascimento do arco-íris, lhe deu o n o m e de Sôbôadã, que entretanto
s u p o n h o seja apenas uma Dã especial de Sôbô (Sogbo), pois, no Dahomey, todos os
vôdúns têm uma. De qualquer m o d o , Dã está presente em todos os candomblés jêjes
ainda existentes na Bahia. O seu estudo ainda está por se fazer. 84

302
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Essa e v i d ê n c i a d o c u m e n t a l , q u e c o n f o r m e R o d r i g u e s sugere a a u s ê n c i a d o
c u l t o d e D a n n a v i r a d a d o s é c u l o XIX e a sua p o s t e r i o r a p a r i ç ã o n a d é c a d a
de 1930, t e m levado L o r a n d M a t o r y a a f i r m a r q u e "a c o m u n i c a ç ã o n o co-
m e ç o deste século [XX] e n t r e a Bahia e o G o l f o da G u i n é i m p l i c a o ressus-
c i t a m e n t o d a n a ç ã o jeje e a a d o r a ç ã o p o r p a r t e da m e s m a d o d e u s - s e r p e n t e
c o m o seu e m b l e m a " . S e g u n d o M a t o r y , os m a h i s " p r a t i c a r a m p o u c o a a d o r a ç ã o
d o d e u s - s e r p e n t e " n o seu país de o r i g e m , mas, q u a n d o r e t o r n a r a m da Bahia
p a r a a A f r i c a , i n s t a l a r a m - s e nas c i d a d e s d o litoral, o n d e os c u l t o s o f í d i c o s
e r a m m u i t o c o m u n s , e deles se a p r o p r i a r a m . Esse fato e o s u b s e q u e n t e c o n t a -
to dos retornados c o m os seus "parentes" baianos explicaria o "ressuscitamento",
n ã o só d o c u l t o de D a n c o m o t a m b é m da i d e n t i d a d e j e j e - m a h i n o C a n d o m -
blé. 8 ' O r a , essa tese, e m b o r a útil para a r g u m e n t a r as d i n â m i c a s t r a n s n a c i o n a i s
na c o n s t r u ç ã o de i d e n t i d a d e s étnicas, a p r e s e n t a alguns p r o b l e m a s sérios.
E m p r i m e i r o lugar, a idéia de q u e os m a h i s d o G o l f o da G u i n é " p r a t i c a r a m
p o u c o a a d o r a ç ã o d o d e u s - s e r p e n t e " é d i s c u t í v e l . C e r t a m e n t e , d e s d e o século
XVII o c u l t o d a s e r p e n t e está d o c u m e n t a d o p r i n c i p a l m e n t e e n t r e os g r u p o s
d o litoral, c o m o os h u l a s e os huedas. 8 6 O r a , isso n ã o significa q u e o culto ofí-
dico n ã o fosse i m p o r t a n t e e n t r e os m a h i s da região m o n t a n h o s a d o interior. A
e t n o g r a f i a religiosa da área gbe é u n â n i m e em a t r i b u i r o r i g e m m a h i a D a n , o u
A y i d o - H w e d o , e m b o r a seja possível q u e a d i v i n d a d e fosse i m p o r t a d a d o s
h u e d a s n a s e g u n d a m e t a d e d o século XVII e q u e d a í o país M a h i se t o r n a s s e
u m d o s p o n t o s de d i f u s ã o d o culto. Aliás, só u m a antiga i m p l a n t a ç ã o d o c u l t o
n o país M a h i e x p l i c a r i a p o r q u e , em t o d o o b a i x o D a o m é , os a d e p t o s d o
v o d u m D a n são c h a m a d o s , após a iniciação, de mahinu (habitantes mahis).87
E m s e g u n d o lugar, a s u p o s t a ausência d o culto de D a n na Bahia n o final
d o século XIX é t a m b é m questionável. O Alabama em 1870, por exemplo, d o c u -
m e n t a e x p l i c i t a m e n t e os cultos r e n d i d o s "a u m a serpente". 8 8 H á o u t r a s evidên-
cias i n d i r e t a s (não escritas), m a s n ã o p o r isso m e n o s c o n v i n c e n t e s . C o m o já
vimos, o " d o n o espiritual" d o B o g u m , q u e estava f u n c i o n a n d o pelo m e n o s des-
de 1867, é o d e u s - s e r p e n t e B a f o n o ou Bessen. A i d e n t i f i c a ç ã o d o " d o n o espiri-
tual" de q u a l q u e r c a n d o m b l é é u m p r o c e s s o s e m p r e d e t e r m i n a d o d u r a n t e a
f u n d a ç ã o do terreiro, e n o r m a l m e n t e coincide c o m o v o d u m ou orixá " d o n o da
cabeça" do seu f u n d a d o r . Logicamente se pode supor que o culto de Bessen dataria
pelo m e n o s dessa época. O m e s m o a r g u m e n t o é aplicável ao Seja H u n d é , f u n -
d a d o na última década do século XIX, c u j o " d o n o espiritual" é t a m b é m Bessen
e cujas duas primeiras gaiakus ou mães-de-santo p e r t e n c i a m a esse v o d u m . Aliás,
elas f o r a m iniciadas na Roça de C i m a nas décadas de 1860 e 1870.
S u m a r i a n d o , os d a d o s disponíveis d e i x a m s u p o r a presença d o culto da ser-
p e n t e n o país M a h i desde pelo m e n o s o século XVIII, e n o Brasil t e m o s provas

303
L U I S N I C O L A U PA R É S

claras de cultos h o m ó l o g o s nos terreiros jeje-mahis, desde a segunda m e t a d e


d o século XIX e, e m b o r a Rodrigues não tivesse c o n h e c i m e n t o , c o n t i n u a r a m
com a l g u m a i m p o r t â n c i a na virada do século XIX e primeiras décadas do XX.
Esses fatos p e r m i t e m a r g u m e n t a r u m a c o n t i n u i d a d e do culto a partir do tráfi-
co de escravos e são suficientes para q u e s t i o n a r a tese de M a t o r y de u m a su-
posta "morte" e "ressuscitamento" do culto na Bahia nas primeiras décadas do
século XX. Isso n ã o invalida a idéia desse a u t o r sobre a i m p o r t â n c i a da c o m u -
nicação transatlântica na c o n s t r u ç ã o transnacional de identidades étnicas, mas
os seus efeitos nas práticas religiosas não p o d e m ser s o b r e d i m e n s i o n a d o s .

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE OUTROS VODUNS JEJES

Para f i n a l i z a r este c a p í t u l o , c o m e n t a r e i b r e v e m e n t e s o b r e a l g u n s o u t r o s
v o d u n s c o n h e c i d o s nos terreiros jejes. Por e x e m p l o , Q u e r i n o m e n c i o n a o
n o m e de Niçasse c o m o s i n ó n i m o jeje de O l o r u m o u Z a m b i , o d e u s supre-
mo. 8 9 M u i t o p r o v a v e l m e n t e , trata-se de u m a c o r r u p t e l a de Lissasi, alusão a
Lissá o u Olissá, a c o n t r a p a r t e jeje de O x a l á , o deus da criação. E m b o r a a m i -
tologia d o casal Mawu-Lissá prevalecente no sistema religioso de A b o m e y não
seja t o t a l m e n t e d e s c o n h e c i d a na B a h i a (ver a c i m a m i t o c o s m o l ó g i c o n o
B o g u m ) , a sua expressão ritual não parece significativa. Lissá t e m a d e p t o s e
é c u l t u a d o em í n t i m a relação c o m O x a l á , mas a presença de M a w u parece
ter p e r d i d o i m p o r t â n c i a . C o m o já foi d i t o , N a n ã B u r u k u p o d e ter a s s u m i d o
o papel f e m i n i n o o u t r o r a o c u p a d o por M a w u .
C a b e e n f a t i z a r a i m p o r t â n c i a n o culto jeje de d u a s e n t i d a d e s q u e já m e n -
cionei relacionadas à família Kaviono; trata-se de Loko e Kpo. A i m p o r t â n c i a
da fitolatria nos cultos de v o d u n s foi a p o n t a d a em relação ao reino de U i d á
n o século XVII. E m b o r a a sacralização de árvores e o u t r a s espécies vegetais
não seja exclusiva dos cultos de v o d u n s , ela é, sem d ú v i d a , u m dos aspectos
valorizados e cultivados nos terreiros jejes, o n d e g r a n d e n ú m e r o de assenta-
mentos o u altares são fixados r i t u a l m e n t e nos pés de d e t e r m i n a d a s árvores
sagradas, c h a m a d a s atinsa na n a ç ã o jeje. Veremos a sua significação n o ritual
d o boitá n o p r ó x i m o c a p í t u l o .
N a Bahia, o v o d u m - p a n t e r a K p o , que d a n ç a c o m os dedos da m ã o em for-
m a de garra, é n o r m a l m e n t e r e l a c i o n a d o c o m a família de H e v i o s o , mas ele
p o d e t a m b é m se m a n i f e s t a r c o m o " q u a l i d a d e " d i f e r e n c i a d a da f a m í l i a de
S a k p a t a . N a área gbe, a figura da p a n t e r a representa os v o d u n s Agassu, em
Abomey, e A j a h u n t o , em Aliada, q u e p o r sua vez são deificações dos míticos
ancestrais das linhagens reais desses reinos (ver cap. 1). A i m a g e m da p a n t e r a

304
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

associada à realeza, c o n s t i t u í a u m f o r t e í c o n e de poder, o q u e c e r t a m e n t e c o n -


t r i b u i u p a r a q u e K p o se " i n f i l t r a s s e " o u fosse a p r o p r i a d o p o r o u t r o s c u l t o s ,
c o m o os de H e v i o s o e S a k p a t a . D o m e s m o m o d o , nos terreiros jejes da Bahia,
K p o o u K p o s u p o d e a p a r e c e r c o m o o pai de S o g b o , a s s o c i a d o aos v o d u n s d o
t r o v ã o , o u ter o seu a s s e n t o f o r a da casa, n o m a t o , r e c e b e n d o o f e r e n d a s se-
m e l h a n t e s às de S a k p a t a .
E m b o r a Agassu n ã o seja c o n h e c i d o na Bahia, o v o d u m A j a u t o (variantes
J u n t o , J a u n t o , U j a u n t o ) é u m a das d i v i n d a d e s mais singulares d o p a n t e ã o jeje.
Essa e n t i d a d e n ã o t e m a d e p t o s a ela c o n s a g r a d o s , mas preside u m i m p o r t a n t e
r i t u a l d e i n i c i a ç ã o c h a m a d o " t o m a r hunvé" o u " t o m a r ajauntó", que comen-
tarei b r e v e m e n t e n o c a p í t u l o s e g u i n t e . N a área gbe, o seu c u l t o está d o c u -
m e n t a d o n o final d o século XIX, e m P o r t o N o v o , m a s foi e m A l i a d a o n d e
t r a d i c i o n a l m e n t e a d q u i r i u m a i o r relevância e p r o v a v e l m e n t e i n s p i r o u os cul-
tos reais d o v o d u m - p a n t e r a Agassu, e m A b o m e y . 9 0
E n t r e os v o d u n s c a ç a d o r e s e das florestas c u l t u a d o s n o s t e r r e i r o s jejes des-
t a c a m - s e A g u é e O d é . O p r i m e i r o é n o r m a l m e n t e associado c o m o orixá n a g ô
das f o l h a s O s s a i m e o s e g u n d o , c o m o orixá c a ç a d o r O x ó s s i . 9 1 A g u é , a l é m de
d i v i n d a d e da m a t a , é c a ç a d o r e os a n i m a i s estão sob o seu c o n t r o l e . S e g u n d o
d o c u m e n t a H e r s k o v i t s , na área gbe "aqueles q u e d a n ç a m p a r a A g u é t r e p a m
nas árvores c o m o f a z e m os caçadores". Ele p o d e ser r e p r e s e n t a d o p o r u m pás-
saro, a n i m a l n o q u a l p o d e t r a n s f o r m a r - s e , c o n f o r m e m e foi e x p l i c a d o em
U i d á . A g u é c u l t u a - s e n o s t e m p l o s d e M a w u - L i s s á e m a n t é m u m a estreita re-
lação c o m O g u m , c a r a c t e r í s t i c a q u e p e r s i s t e n o s t e r r e i r o s jejes, o n d e A g u é é
sempre louvado após O g u m . 9 2
E m i o r u b á odé s i g n i f i c a c a ç a d o r e é i n t e r e s s a n t e c o m p r o v a r c o m o u m
n o m e c o m u m i o r u b á vira n o m e p r ó p r i o d e v o d u m . O d é seria, p o r t a n t o ,
u m a a p r o p r i a ç ã o o u a d a p t a ç ã o jeje de a l g u m a d i v i n d a d e c a ç a d o r a n a g ô . T o -
d a v i a , e m t e r r e i r o s jejes c o m o o B o g u m o u o P o ç o B é t a , é c o n h e c i d o o v o -
d u m Agangá-Tôlú (variantes G o n g a t o l u , O n t o l u ) , considerado u m Oxóssi
j e j e . N o t e r r e i r o O x u m a r é d e S a l v a d o r e n o Kwe S i m b a d o R i o de J a n e i r o
esse v o d u m é c o n h e c i d o c o m o A t o l u . V o d u m c a ç a d o r , n o P o ç o Béta ele d a n -
çava c o m p a n o s c o l o r i d o s a m a r r a d o s n a c i n t u r a c o m o u m a saia e c o m u m a
fita com penas na fronte.93
C o n f o r m e diz gaiaku Luiza, "no jeje n ã o t e m L o g u m E d é " . 9 4 N o e n t a n t o
humbono V i c e n t e l e m b r a v a u m v o d u m p a r t i c u l a r dos t e r r e i r o s jejes já e s q u e -
cido. Trata-se de Bagô, u m s a n t o d ' á g u a q u e usava u m a c a m p a n o p e s c o ç o e
q u e q u a n d o q u e r i a á g u a b a l b u c i a v a c o m o u m m e n i n o . Era c u l t u a d o a p e n a s
n o Seja H u n d é e n ã o n o B o g u m . H e r s k o v i t s m e n c i o n a B a g b ó c o m o " d i v i n -
dade relacionada c o m Sagbata". Por o u t r o lado, no p a n t e ã o h u l a de d i v i n d a d e s

305
L U I S N I C O L A U PA R É S

m a r i n h a s figura S a h o , m a s u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a desse v o c á b u l o p a r a Bagô


parece improvável.95
N ã o p o d e r í a m o s finalizar este c a p í t u l o s o b r e as d i v i n d a d e s jejes sem u m a
m e n ç ã o aos caboclos. A l i t e r a t u r a afro-brasileira t e m s o f r i d o até r e c e n t e m e n t e
de u m a c e r t a t e n d ê n c i a a privilegiar os t e r r e i r o s q u e s u p o s t a m e n t e p r e s e r v a -
r a m a "pureza" da t r a d i ç ã o a f r i c a n a , v a l o r i z a n d o suas d i v i n d a d e s a f r i c a n a s
c o m o orixás e v o d u n s , m a s s e m p r e s t a r a d e v i d a i m p o r t â n c i a às a d a p t a ç õ e s e
i n f l u ê n c i a s locais d o s c a n d o m b l é s m a i s " m i s t u r a d o s " . A p r o l i f e r a ç ã o n o C a n -
d o m b l é das e n t i d a d e s "brasileiras" c h a m a d a s c a b o c l o s — s e j a m e s p í r i t o s d e
í n d i o s , s e j a m encantados associados a t i p o s p o p u l a r e s c o m o b o i a d e i r o s , pes-
c a d o r e s , m a r i n h e i r o s etc., m a s em t o d o caso e n t i d a d e s "criadas" n o Brasil —
p a r e c e ter a c o n t e c i d o , s o b r e t u d o , n o f i n a l d o século XIX, e m b o r a sua p r e -
s e n ç a em a l g u n s c u l t o s de o r i g e m a f r i c a n a possa ser m u i t o m a i s a n t i g a .
Q u a n d o e m 1937 C a m a r g o G u a r n i e r i r e c o l h e u e m S a l v a d o r 152 c a n t i g a s
de c a n d o m b l é , 46 f o r a m especificadas c o m o de nação k e t u , jeje o u ijexá, 14 de
a n g o l a - c o n g o e 92 de caboclo. 9 6 A m a i o r i a de cantigas de caboclo p o d e ser u m
i n d í c i o da i m p o r t â n c i a dessas e n t i d a d e s n o c a n d o m b l é da é p o c a . N o e n t a n t o ,
c e r t o s t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s c o n s i d e r a d o s " t r a d i c i o n a i s " , até a d é c a d a de 1950
e a i n d a m a i s r e c e n t e m e n t e , p r e t e n d i a m o c u l t a r e n e g a v a m q u e a l g u m a s das
suas f i l h a s - d e - s a n t o e m ocasiões d e t e r m i n a d a s p u d e s s e m r e c e b e r c a b o c l o s .
N o s três p r i n c i p a i s t e r r e i r o s jejes a q u i p e s q u i s a d o s — B o g u m , Seja H u n d é e
H u n t o l o j i — há t a m b é m u m relativo s i l e n c i a m e n t o s o b r e a p o s s i b i l i d a d e de
a l g u m a v o d ú n s i r e c e b e r c a b o c l o , e m b o r a em p a r t i c u l a r se t e n h a c o n f i r m a d o
m a i s d e u m caso.
D e q u a l q u e r m o d o , nesses t e r r e i r o s , diz-se q u e os c a b o c l o s n u n c a se m a -
n i f e s t a m n o b a r r a c ã o , p e l o m e n o s d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s d o s v o d u n s , o q u e
s e g u n d o as m i n h a s o b s e r v a ç õ e s é v e r d a d e . T a m b é m se a r g u m e n t a q u e os ca-
b o c l o s n ã o t ê m i n i c i a ç ã o , isto é, as v o d ú n s i s n ã o r e c e b e m u m p r e p a r o espe-
cial p a r a fixar seus c a b o c l o s . O r a , a c e i t a - s e q u e essas e n t i d a d e s p o s s a m m a -
n i f e s t a r - s e e m s i t u a ç õ e s e s p e c í f i c a s p a r a avisar d e a l g u m p e r i g o , d a r c o n s e -
lhos o u a d v e r t ê n c i a s . N o B o g u m , p o r e x e m p l o , s a b e - s e q u e m ã e N i c i n h a
recebia caboclo.97
C o n c l u i n d o , o p a n t e ã o n a g ô - v o d u m dos terreiros j e j e - m a h i s c o n t e m p o r â -
n e o s , apesar da p r e s e n ç a p e r i f é r i c a d o s c a b o c l o s e da c o m p l e x a a g r e g a ç ã o de
orixás nagôs — d i n â m i c a q u e já v i n h a a c o n t e c e n d o n a área gbe d e s d e vários
séculos atrás e q u e n o Brasil s e g u i u d e s e n v o l v e n d o - s e d u r a n t e t o d o o século
XIX — , segue caracterizando-se pela i d e n t i d a d e de certas d i v i n d a d e s singulari-
zadas c o m o v o d u n s , as quais estão associadas a n o m e s e práticas rituais diferen-
ciados. Apesar de todas as suas t r a n s f o r m a ç õ e s e processos m i m é t i c o s c o m os

306
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

orixás n a g ô s , v o d u n s c o m o S o g b o , A z o n s u e Bessen c o n t i n u a m c o n s t i t u i n d o
0 f a t o r d i f e r e n c i a l m a i s i m p o r t a n t e p a r a d e m a r c a r o q u e seria a n a ç ã o j e j e d e
C a n d o m b l é . Dedicarei o p r ó x i m o capítulo a examinar outros elementos, desta
vez r e l a c i o n a d o s c o m a s p e c t o s r i t u a i s q u e c o n t r i b u e m p a r a a r t i c u l a r esse f a t o r
d i f e r e n c i a l d o s jejes p e r a n t e o u t r a s n a ç õ e s .

NOTAS

1
Utilizo a expressão "cultos de múltiplas divindades" para enfatizar a pluralidade de divin-
dades existente em cada uma das congregações religiosas, evitando o termo "politeísta",
normalmente associado à religião como um todo. Uma versão ampliada desta primeira
parte do capítulo foi publicada em inglês (Parés, "Transformations...").
2
Silveira, Iyá...; Harding, A refuge..., p. 59, Candomblé..., pp. 76, 99, 316. Harding tam-
bém cita o terreiro de pai Anacleto, em São Félix (Recôncavo), como evidência de um
culto de múltiplas divindades em meados do século XIX (A refuge..., p. 58); cf. Wimberly,
"The expansion...", pp. 82-83.
3
Verger, Notas..., p. 15; "Raisons...", pp. 144-45; Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Reis,
The politics..., p. 15.
4
Herskovits e Herskovits, "An outline...", pp. 9-10, apud Maupoil, Lagéomancie..., p. 56.
5
Maupoil, La géomancie..., p. 56.
6
Yai, "From Vodun...", p. 246.
7
Bosman, A new..., p. 368a; Maupoil, La géomancie..., p. 64; Glèlè, Le danxome,.., p. 75.
8
Le Herissé, LAncién..., pp. 126-27; Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 103-5; Yai,
"From Vodun...", pp. 254, 256; Bay, Wives..., pp. 92-96.
9
Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 150-51, 163.
10
Peei, "A comparative...", pp. 275-76.
11
Verger, Notas..., pp. 15, 39; "The Yoruba...", p. 24; Mckenzie, "O culto...", pp. 134-35,
137, 139.
12
Bastide, Sociologia..., pp. 113, 316; Verger, Notícias..., pp. 228-29.
13
Ver, por exemplo: Merlo, "Hiérarchie..."; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 304.
14
Apter, "Notes...", pp. 373, 392-93, 396-97; Drewal, "Dancing...", pp. 211, 230-31. Cabe
notar que a coreografia circular de Igbogila e a identidade e ordem em que são celebra-
das as divindades (Elegba, Ogum, Eyinle, Iroko, Ondo, Omolu) apresentam uma sur-
preendente semelhança com o xirê (sequência inicial de cantos e danças) praticado nos
candomblés ketus da Bahia. Ou bem as práticas de Igbogila foram introduzidas por
libertos retornados do Brasil, ou, alternativamente, poder-se-ia pensar que os egbados
foram também importantes agentes sociais na formação do candomblé nagô-ketu.
15
Rodrigues, Os africanos..., p. 236. Essa afirmação também é confirmada pela documen-
tação de O Alabama, no período 1863-1871.
16
Por exemplo, em relação ao orixá Xangô, em Oyó, ver Apter, Black Critics..., pp 24-25-
17
Gaiaku Luiza, 26/2/2001.
,s
Sobre o reino do Benim, ver Dapper, Naukeurie..., apud Verger, Notas..., p. 50. Para a
região de Popo, Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 620-21. Para Uidá, Bosman, A new...,
p. 383. Para a Costa do Ouro, ver também Bosman, A new..., p. 153; Isert, Voyage..., p. 45.

307
LUIS NICOLAU PA R É S

Em relação a Aliada, ver Bosman, A new..., p. 383. Em relação a Oyo, Snelgrave, A new...,
p. 59. Em relação aos fon, Borghero, Journal..., p. 123. Ver também Isert, Voyage..., p. 123.
Pazzi, "Aperçu...", pp. 13-14; e Introduction..., pp. 172-74, 199-200; Moulero, "His-
toire...", p. 43; Law, The Kingdom..., pp. 6-9; Gayibor, Les peuples..., pp. 29-30.
Barbot, Barbot on Guinea..., pp. 581, 589; Bosman, A neu>..., p. 113. B u r t o n (A
mission..., p. 78) cita em Uidá que o "arbusto do trovão" é chamado ayyan ou soyan.
Baudin (Fetichism..., p. 23) afirma que, segundo a legenda iorubá, ayan é a arvore em
que Xangô se pendurou para suicidar-se. Adam Jones (apud Barbot, Barbot on Guinea...,
pp. 582-83) nota que Jean Goeman o u j a n k o m é corresponde ao termo akan Onyankome.
Se a raiz desse termo, onyan, fosse uma evolução fonética akan de ayyan ou soyan, tería-
mos uma evidência indireta da expansão do culto do trovão desde a área iorubá até a
Costa do Ouro, já no século XVII, se concordamos que esse culto se expandiu do leste
para o oeste.
Anónimo (p. 52), citado por Law, "The slave...", p. 111. Para outra referência ao culto
das "pedras caídas do raio", em Uidá: Archives Nationales, Section d ' O u t r e - M e r ,
Depot des Fortifications des Colonies, Côtes d'Afrique, ms. 111, "Réflexions sur Juda
par les Sieurs De Chenevert et Abbe Bullet", l 2 /6/l776, p. 74. Agradeço a Robin Law
que me alertou para a existência desses documentos.
Forbes, Dahomey..., vol. I, p. 171. Esse autor (op. cit., pp. 104-6) relata também um
incidente com os sacerdotes do trovão em Agoue, em fevereiro de 1850. Em abril de
1863, o barracão do forte português de Uidá, onde estavam instalados os padres das
Missões Católicas francesas, foi atingido por um raio. Borghero, fiel aos seus princípios
anti-fetichistas, recusou-se a pagar a multa exigida pelos sacerdotes de Hevioso e foi
preso temporariamente (Borghero, Journal..., pp. 129-34). Burton também aponta ser
Hevioso uma "adaptação" do Xangô iorubá do trovão (A mission..., p. 295). A primeira
referência explícita a Xangô na área iorubá é de Bowen em 1858, emyl Grammar..., p. 16.
Le Herissé, LAncièn..., pp. 115-16; Tidjani, "Notes...", p. 35; Pazzi, Introduction..., p. 123.
Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 157. Para as listas de
voduns, ver Verger, Notas..., pp. 521, 528-29, 542-45; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 304.
Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; H u n o n Daagbo, Uidá, entrevista 16/7/1995.
Le Herissé, LAncièn..., p. 109; Herskovits, Dahomey..., vol. II, 151, 302.
Para Agbanakin, ver Karl, Traditions..., p. 236. Para Heve, Verger, Notas..., pp. 529, 541;
Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193.
Spieth, Die Religion..., p. 173, apud Herskovits, Dahomey..., vol. II, p. 193.
Fio Agbonon II, Histoire..., pp. 164, 168; Verger, Notas..., p. 529.
Peei, "A comparative...", p. 275.
Merlo, "Hiérarchie...", pp. 6-8; Verger, Notas..., p. 105; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 188; Segurola, Dictionnaire..., p. 482.
Le Herissé, LAncièn..., p. 108; Segurola, Dictionnaire..., p. 484; Verger, Notas...,
pp. 525-30.
Le Herissé, LAncièn.., p. 108; Snelgrave, A new..., pp. 101, 104. Em 1851, Forbes des-
creve a cerimónia em que soldados postados na estrada entre Abomey e Uidá dispara-
vam os seus fuzis em sucessão como "uma saudação ao Fetiche das Grandes Aguas, ou
Deus do Comércio Exterior" (Forbes, Dahomey..., vol. II, p. 18). Em 1860, sacrifícios
humanos ao mar eram promovidos pelo rei Glele desde Abomey como parte das ceri-
mónias funerárias em louvor do seu pai, Ghezo (Peter Bernasko, Uidá, 29/1 1/1860,

308
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Archives of the Wesleyan Methodist Mission Society (SOAS). Fico grato a Robin Law
por ter chamado minha atenção sobre essas referências. Ver também Burton, A mis-
sion..., p. 295.
35
Humbono Vicente, 8/10/1998.
36
No jeje-mahi da Bahia, a família Kaviono inclui outros voduns como: Zo (vodum do
fogo); Sogbo Baba Guidi (ou So Baguidi, talvez uma evolução fonética de Gbaguidi,
a família dirigente de Savalu. Em Oyo, Verger [Notas..., p. 129], documenta Baba Sigidi
como uma forma de Exu associada aos ilari)-, Jogorobossu (Jogoroboçú na Casa das
Minas pertence à família Davice, filho de Zomadonu); Bossu (talvez uma evolução fo-
nética de Besu, vodum do panteão do trovão no Benin, ou de bossum, nome genérico
das divindades em território akan. Maupoil {La géomancie..., p. 73) menciona Bosu
Zoho como vodum Sakpata, e no templo de Avimanje [Sakpata], em Uidá, cultua-se
o vodum Bosú, guardião da porta do templo); Jokolatin (joko atin, a arvore joko) e
Betá Yoyo (ou Beta Oyo). Essas divindades secundárias, até onde sei, não têm devo-
tos iniciados e não se manifestam nas festas públicas.
37
Everaldo Duarte, 4/1/1996, 21/8/1996, 27/11/1997.
38
J. de Carvalho, "Nação Jeje", p. 51.
39
Gaiaku L u i z a , e m C E A O , 2 A Encontro..., pp. 81-82.
40
Rodrigues, Os africanos..., p. 230.
41
O Alabama, 19/5/1869, p. 3.
42
Rodrigues, Os africanos, p. 234.
43
Gaiaku Luiza, 7/11/1999.
44
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2e Encontro..., p. 82.
45
Na Africa ocidental, o mito sobre as três esposas de Xangô, Oiá, O x u m e Oba, apare-
ce d o c u m e n t a d o por primeira vez em 1858, na obra de Bowen, A grammar... (p. 16).
46
Na área gbe, Averekete é considerado o filho mais novo do casal Agbé e Naeté e, como
caçula, tem fama de mimado, astuto, caprichoso e de desempenhar o papel de "trickster".
Averekete é tido como o mensageiro entre os homens e as divindades e, nos rituais, ele
sempre vem na frente, abrindo o caminho para os outros voduns; ele gosta de brincar,
de difundir rumores e imitar de forma cómica os outros voduns (Herkovits, Dahomey...,
vol. II, pp. 155, 158). Compartilhando com Legba a mesma funcionalidade ritual e ver-
satilidade de caráter, nos terreiros jeje-mahis baianos, Averekete é raramente louvado
na sequência de cantos dedicados a Sogbo, mas nunca é esquecido quando se canta para
Legba. Esse fato pode ter contribuído para a sua persistência.
47
Bastide, Sociologia..., pp. 120-21. Esse autor comenta, por exemplo, como o trabalho
forçado nas plantations propiciou a desaparição de divindades da agricultura que ne-
n h u m benefício traziam aos escravos; mas também como a desigualdade social e a
opressão dos senhores favoreceu a hegemonia de divindades da justiça, como Xangô;
da guerra, como O g u m ; ou das dinâmicas de comunicação, como Exu.
48
Verger, Notas..., p. 276; D. M. dos Santos, História..., pp. 67-69.
49
Segundo diferentes versões, Sakpata teria sido importado de Dassa Zoumé, Adja Popo,
ou Aise, na região Hollidjè. Verger, Notas..., pp. 249-50, 272.
50
Por exemplo, um mito do reino Fitta, na área Mahi, conta que os voduns M o r o u
( O m o l u ) , Dan e Loko chegaram de Adja-Popo e ali se instalaram no tempo do pri-
meiro rei Oba Tchérékou (Anónimo, "Le Royaume des Fittas", pp. 78, 83). O mesmo
mito é citado em Bergé, "Étude...", p. 724. No entanto, cabe notar que O m o l u é uma
expressão iorubá (òmò ò/à).

309
L U I S N I C O L A U PA RÉS

51
Verger, Notas..., p. 252.
52
Gaiaku Luiza, 28/11/1998; M. S. de A. Santos, Meu tempo..., p. 54.
53
Para evidência da diversidade regional do culto de Buruku, ver Burton, A mission....,
p. 297; Abekuta..., p. 107; Ellis, TheYoruba..., p. 73; Frobenius, Mythologie..., pp. 191,218;
Verger, Notas..., pp. 257-59. A náo-utilização de faca de ferro nos sacrifícios dedica-
dos a Omolu e Nanã Buruku indicaria a existência desses cultos anteriormente à épo-
ca do ferro. Essa característica persiste nos cultos de Nanã no Brasil e já foi notada
por Querino (Costumes..., p. 94). O tema é discutido em detalhe por Verger, Notas...,
pp. 272, 278.
54
Verger, Notas..., p. 274.
55
Verger, Notas..., pp. 239-40; Pessoa de Castro, Falares..., p. 246; Rodrigues, O animis-
mo..., p. 50.
,!5
Herskovits, Dahomey..., vo 1. II, pp. 101-2.
57
D. M. dos Santos, H i s t ó r i a . . . , p. 67.
58
Lepine, "As metamorfoses...", pp. 126-28; Verger, Notas..., p. 240; Le Herissé, LAncièn...,
p. 128; Herskovits, Dabomey..., vol. II, p. 38.
59
Segurola, Dietionnaire..., p. 456.
60
O Alabama, 29/10/1870, p. 2; 24/11/1871, p. 4.
61
Rodrigues, O animismo..., p. 50. Saponan e O m o l u são denominações nagôs. Há
dúvidas no caso de Wari-Warú e Afoma. Cacciatore atribui ao último termo uma eti-
mologia iorubá: afomó, contagioso, infeccioso: Diecionario..., p. 40. No entanto, Verger
documenta uma cantiga de Sakpata em Abomey que fala de Afomado Zogi (Notas...,
p. 247).
62
Esses nomes são: 1) Jagun Agbagba; 2) Omolu; 3) Obaluaye (literalmente o "rei da ter-
ra"); 4) Soponna; 5) Afoman; 6) Savalu; 7) Dassa; 8) Arinwarun (o mesmo Wari-Warú
citado por Rodrigues); 9) Azonsu ou Ajansur; 10) Azoani; 11) Posun ou Posuru (Kposu
ou Kpo, o vodum-pantera na sua "qualidade" de Sakpata); 12) Agoro (provavelmente
uma confusão, já que Angorô é a divindade cobra dos angolas); 13) Telu ou Etutu (pro-
vavelmente do nagô ile titu, o mesmo que "chão frio"); 14) Topodun (provavelmente uma
confusão, já que Tokpodun é o vodum crocodilo do panteão do trovão ou do mar); 15)
Paru; 16) Arawe (localidade no país Mahi); 17) Ajoji (no Bogum lembra uma vodúnsi
de Ojoji, "um Omolu jeje", talvez uma corruptela de Daa Zodji); 18) Avimaje; 19) Ahoye;
20) Aruaje; e 21) Ahosuji (uma corruptela do termo fon ahosusi, "mulher do rei") (Verger,
Notas..., p. 252). Outras denominações de Sakpata são Jeholu (Senhor das pérolas) ou
Ainon (Senhor da terra).
6i
Nas primeiras décadas do século XX, nem Rodrigues nem Querino mencionam a pa-
lha da Cosra ao falar de Omolu ou Shapana (Rodrigues, O animismo...., p. 74; Querino,
Os costumes..., p. 38). Em Religiões negras, publicado em 1936, Carneiro também não
toca no assunto. E só em Candomblés da Bahia, quando Carneiro comenta que Omolu
"traz sempre um capuz de palha da Costa (filá), que lhe cai até os ombros e lhe oculta
a face" (Candomblés..., p. 59). Pierson foi o primeiro autor a comentar: "as iniciadas
de O m a n l u [sic] estavam vestidas principalmente com tons vermelhos. Cordões de
fibra, cintos de cor marrom avermelhada, iam da cabeça até abaixo dos joelhos, cobrin-
do completamente o rosto" (Brancos..., p. 327).
04
Rodrigues, O animismo..., p. 50; Querino, Os costumes..., pp. 38-39; Carneiro, Religiões...,
p. 40; Ortiz, Los bailes..., p. 216; Verger, Notas..., pp. 258-50.

310
O PANTEAO JEJE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Na área gbe, os colares de Sakpata (hunkan) alternam pares de búzios brancos com
sementes pretas d o f r u t o c h a m a d o atinkuin ou atekun. Essa característica parece ter
desaparecido nos terreiros jejes.
Carneiro, Religiões..., p. 59.
P. R. e Silva, "Exu-Obaluaiê..."; Lépine, "As metamorfoses..."; Caprara, "Médico...".
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2l Encontro..., p. 78.
Ficha n B 1, CEAO, 17/1/1961; N e n é m de Mello, 3/11/1999.
"Carta do padre Bouche ao padre superior, de Uidá a Porto Novo", Arquivos da Societé
des Missions Apostoliques-, ref. 20.393, rubrica 12/80200, 31 jul., 1868, pp. 3-4, apud
Matory, " M a n . . . " , pp. 161-62.
Carneiro, Religiões (Negros bantos), pp. 166-67. Pierson, Brancos..., p. 307. Para uma
m e m ó r i a dos anos 1940 sobre as romarias do pessoal do Bogum ao Parque de São
Bartolomeu, ver D u a r t e , " O terreiro...", pp. 19-22.
Everaldo D u a r t e , 18/12/1994.
Rodrigues, Os africanos..., p. 223.
Valdina Pinto, em CEAO, 2 ' Encontro..., pp. 56-57.
Ellis, Tbe Ewe..., pp. 47-49; Verger, Notas..., pp. 231, 235; Le Herissé, LAncien..., p. 118;
Burton, A mission..., p. 298; H a z o u m é , Le pacte..., p. 143; Maupoil, La géomancie...,
p. 73.
Humbono Vicente, 6/12/1998. A presença de Angorô no culto angola está documentada
pelo menos desde 1937 (Carneiro, Religiões [Negros bantos]..., pp. 166-67). Braga men-
ciona angorossi como uma "louvação nos candomblés de Angola" (Nagamela..., p. 185).
Cossard, C o n t r i b u t i o n . . . , p. 24; cf. Bittremieux, "La societé secrete des Baknimba au
M a t o m b é . . . " , p. 245. Para outra etimologia, ver t a m b é m Valdina Pinto, em CF.AO, 2°-
Encontro..., p. 56.
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., pp. 75, 82; J. de Carvalho, "Nação...", p. 52.
Waldeloir Rego (19/11/1994) m e n c i o n o u Abalu como uma "forma de Dan". Fala-se
também de Toquéni, talvez uma variante de Toquem. Segundo Waldeloir Rego, Toqiiéni
seria uma cobra venenosa do tipo surucucu de gancho. Na Casa da Minas em São Luís,
o termo toqúém é utilizado para designar os voduns mais novos, meninos ou adolescentes,
sobretudo da família real Davice, que vem na frente, abrem os caminhos aos mais velhos
e levam e trazem recados (Ferretti, Querebentan..., p. 307). Já segundo Olga de Alaketo,
"Tokuenu não é uma entidade. Tokuenu é uma obrigação que se faz na raiz de um pau,
aí vem as pessoas que é de direito, vem pra botar mão e tal [...]" (entrevista 3/1/1996).
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2 ' Encontro..., p. 82.
Ficha s.n., CEAO, 1960; dona Nancy de Souza e Silva, 28/10/98. Milton Moura, W9/2001.
Baudin, Fetichism, pp. 44, 47; Ellis, The Ewe..., pp. 47-48. Observação pessoal: obri-
gação de Bafono e Euá, Terreiro O x u m a r é , 18/8/1996.
Humbono Vicente, 20/10/2000, 12/1 1/2001; gaiaku Luiza, em CEAO, 2o- Encontro...,
pp. 72, 74. Gaiaku Luiza chama os búzios de ajés e os colares de búzios enfiados, balajás
(var. barajás). Os balajás são atributos t a m b é m de Nanã, Azonsu e Euá: gaiaku Luiza,
8/8/2001. Em fon, ajé significa "coquillages", derivado de jé, pérola ou conta (Segurola,
Dictionnaire..., pp. 34, 260).
Rodrigues, Os africanos..., pp. 231-33.
C a r n e i r o , Religiões..., pp. 166-67; Candomblé..., pp. 64-55; Ramos, " I n t r o d u ç ã o . . . " ,
pp. 12-13: cf. Ramos, O negro..., p. 43, e Ferraz, "Vestígios..." pp. 271 e segs.

311
LUIS NICOLAU PA R É S

85
Matory, "Jeje...", pp. 66-67; Black Atlantic..., pp. 87-89, 93, 96-98, 101-2. Matory, re-
t o m a n d o a tese defendida por Gois Dantas, ainda acrescenta que intelectuais como
Carneiro, conhecedores da obra de Herskovits sobre a religião da área gbe, poderiam
ter passado informações aos sacerdotes jejes, c o n t r i b u i n d o para o processo de "ressus-
citamento". Ora, a suposta agência dos intelectuais não é aplicável no contexto dos
terreiros jejes das primeiras décadas do século XX, já que essas casas só receberam vi-
sitas ocasionais de intelectuais a partir de 1937.
86
Ver, entre outros: De Sandoval, Naturaleza..., apud Gayibor, Les peuples...', Bosman,
A new..., pp. 368a-82 ; Barbot, A description..., pp. 340-45; Labat, Voyage..., vol. II,
pp. 163-99, Pommegorge, Description..., p. 195; Snelgrave, A new..., pp. 11-12; Atkins,
A voyage..., p. 113-18; Norris, Memoirs..., pp. 69, 105; Duncan, Traveis..., vol. I, 126-28,
195-97; Burton, A mission..., pp. 73-76; Le Herissé, LAncien..., p. 110; Herskovits,
Dahomey..., vol. II, pp. 240-55; Falcon, Religion..., pp. 66-70; Verger, Notas..., pp. 503-16.
Sobre a instalação de Dangbé como divindade dos hueda: Labat, Voyage..., vol. II, p. 163;
Law, The Kingdom, pp. 24-25.
87
Le Herissé, UAancien..., p. 118; Verger, Notas.., pp. 105, 231, 235; Jaques Bertho, apud
Merlo, "Hiérarchie...", p. 12. Merlo e Vidaud, "Le peuplement...", pp. 287-90; Falcon,
Religion..., p. 38; Bergé, "Étude...", pp. 720-21, 724, 740. Práticas rituais do culto Ne-
suhue, envolvendo os voduns Dan e Dambada Hwedo, foram apropriadas dos agonlis
no país Mahi. Já que o culto real dos Nesuhue estava instaurado em Abomey no século
XVIII, podemos supor que o culto da serpente no país Mahi datava pelo menos dessa
época (Parés, "O triângulo...", pp. 193 e segs.; Verger, Notas..., p. 232). Sobre Dambada
Hwedo, ver Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 203, 207-8.
88
O Alabama, 28/5/1870, p. 3. Há também, no mesmo jornal, uma referência a um tal
Luis Gomes da Saúde, "criador de cobras" (10/12/1870, p. 5). Ver também Jornal da
Bahia, 13/3/1854, apud Verger, Fluxo..., p. 532.
89
Querino, Costumes..., p. 37.
90
Baudin, Fetichism..., p. 37; Ellis, The Ewe..., pp. 83, 89.
91
Alguns autores identificam Agué com Oxóssi (Verger, Notas..., p. 215).
92
Herskovits, Dahomey..., vol. II, pp. 107, 121; Verger, Notas..., pp. 215-18. Frobenius,
comentando sobre o orixá Enjille (Erinle, Inle, associado a Oxóssi), diz que ele é "repre-
sentado por figurinhas de ferro forjado, sob a forma de um candelabro em cuja ponta
foi forjado um pássaro" (Mythologie..., p. 222).
93
Dona Nancy de Souza e Silva, 27/9/2000.
94
Gaiaku Luiza, 28/4/2001.
95
Humbono Vicente, 8/10/1998, 30/3/1999, 7/12/1999. Herskovits, Dahomey..., vol. II,
p. 271.
96
Liihning, "O compositor...", p. 66.
97
Everaldo Duarte, 10/8/1996.

312
7

O RITUAL: CARACTERÍSTICAS DA LITURGIA JEJE-MAHI NA BAHIA

COMO DEFINIR UMA LITURGIA JEJE?

Este ú l t i m o c a p í t u l o tem p o r o b j e t i v o e x a m i n a r algumas das características


litúrgicas dos terreiros j e j e - m a h i s de Salvador e C a c h o e i r a , c o m o p r o p ó s i t o
de avaliar aqueles e l e m e n t o s rituais q u e d i f e r e n c i a m a "nação jeje" de o u t r a s
tradições religiosas d e n t r o do C a n d o m b l é . A tarefa t e m u m caráter e m i n e n t e -
m e n t e etnográfico e descritivo, mas não é fácil. C o m o em m u i t a s outras insti-
tuições sociais, n o C a n d o m b l é o saber é poder, e a lógica do segredo é a es-
tratégia q u e s u s t e n t a os processos de iniciação e a organização h i e r á r q u i c a d o
g r u p o . Nesse s e n t i d o , os especialistas religiosos jejes t ê m a m e r e c i d a r e p u t a -
ção de ser os mais "fechados" e sigilosos n a preservação dos seus "segredos".
C o m o diz seu G e n i n h o , "o jeje é u m a m a ç o n a r i a " . 1 O esforço p o r o c u l t a r as
suas práticas aos olhos dos curiosos é providencial, n ã o só para c o m os pes-
quisadores, com q u e m se p o d e lidar c o m certa facilidade, mas, especialmente,
com aqueles iniciados q u e vêm de o u t r a s casas e são suspeitos de estarem lá
p a r a "espiar". Essa a t i t u d e de reserva e d e s c o n f i a n ç a , i n t r í n s e c a a q u a l q u e r
religião iniciática, foi exacerbada pelos longos anos de repressão e clandestini-
dade a q u e foi s u b m e t i d a a religião. C o n t u d o , parece que os jejes se o r g u l h a m
e fazem q u e s t ã o de m a n t e r essa f a m a e t r a d i ç ã o .
D i a n t e dessa s i t u a ç ã o e, na m i n h a c o n d i ç ã o de n ã o - i n i c i a d o , a " m e t o d o -
logia" q u e a d o t e i n o t r a b a l h o de c a m p o foi a de observação "ativa" e partici-
pação "passiva". Nesse s e n t i d o , segui u m a dica q u e m e d e r a m repetidas vezes
d u r a n t e a m i n h a pesquisa sobre o T a m b o r de M i n a em São Luís: "na M i n a ,
olho aberto, o u v i d o a t e n t o e boca fechada". Essa atitude, baseada no "estar lá",
t e n t a n d o criar o m í n i m o de interferência e evitando fazer entrevistas formais
ou p e r g u n t a s demais, c e r t a m e n t e resultou n u m a p r e n d i z a d o l e n t o e requereu
paciência e persistência. Porém, de u m a f o r m a gradual, tive acesso a certas

313
LUIS NICOLAU PA R É S

práticas rituais de caráter p r i v a d o e i n f o r m a ç õ e s c o n s i d e r a d a s d e " f u n d a m e n -


to". As f r o n t e i r a s e n t r e o q u e é dizível e o q u e deve ser calado são a m b í g u a s , e
poucas vezes f o r a m discutidas c o m os praticantes, c a b e n d o - m e o difícil trabalho
d e estabelecer os limites. E m b o r a para certas pessoas seja possível q u e na narra-
tiva q u e se segue t e n h a e x c e d i d o o permissível, espero q u e para as pessoas com
as quais conversei o a q u i escrito n ã o ultrapasse os limites d o tolerável.
A l é m desse d e l i c a d o exercício d e a u t o - c e n s u r a e t n o g r á f i c a ( e x e m p l o de
c o m o o p e s q u i s a d o r se c o n t a g i a d o s c o m p o r t a m e n t o s d o s s u j e i t o s p e s q u i -
sados), o m e u p o s i c i o n a m e n t o d i a n t e da religião foi e s s e n c i a l m e n t e "de fora",
o u talvez "das f r o n t e i r a s " , c o m a c o n s e q u e n t e l i m i t a ç ã o a t o d a u m a série de
conhecimentos esotéricos f u n d a m e n t a i s para a compreensão do significado
p r o f u n d o d a religião. A isso se s o m a m a e x t r e m a c o m p l e x i d a d e e a inesgotável
r i q u e z a d e d e t a l h e s q u e c o m p õ e m o u n i v e r s o r i t u a l d o C a n d o m b l é e q u e só
u m c o n v í v i o de m u i t o s a n o s p e r m i t i r i a a p r e e n d e r . Essas d i f i c u l d a d e s e l i m i -
t a ç õ e s são insaliváveis, e o leitor as deve levar e m c o n t a na h o r a d e avaliar os
c o n t e ú d o s deste c a p í t u l o . Feitas essas ressalvas de c a r á t e r reflexivo, às quais
caberia a d i c i o n a r o p r o b l e m a e p i s t e m o l ó g i c o m a i s geral d o r e c o r t e s u b j e t i v o
i n e r e n t e a q u a l q u e r r e p r e s e n t a ç ã o d a r e a l i d a d e , as d i f i c u l d a d e s na análise da
l i t u r g i a j e j e d e r i v a m de o u t r a série d e f a t o s d e o r d e m m a i s o b j e t i v a .
O C a n d o m b l é não é u m a religião s u b m e t i d a a u m a h i e r a r q u i a i n s t i t u c i o n a l
q u e i m p o n h a d o g m a s a serem s e g u i d o s p o r t o d o s e, c o m o se diz, "cada casa
t e m o seu r e g i m e " . T u d o é f e i t o de a c o r d o c o m a " t r a d i ç ã o " , p o r é m esta per-
m i t e , e até exige, u m a c o n s t a n t e a d a p t a ç ã o às c i r c u n s t â n c i a s d e cada m o m e n -
to. N a realidade, a religião afro-brasileira é caracterizada p o r uma grande
f l e x i b i l i d a d e e e c l e t i s m o , e os t e r r e i r o s jejes n ã o e s c a p a m a essa d i n â m i c a de
m u d a n ç a progressiva. A p e s a r de ser u m g r u p o m i n o r i t á r i o , as casas jejes apre-
s e n t a m u m a rica v a r i e d a d e de p r á t i c a s r i t u a i s e d i v i n d a d e s q u e d i f e r e n c i a m
u m a c o n g r e g a ç ã o da o u t r a .
O p r o b l e m a se agrava q u a n d o s a b e m o s q u e , a l é m dessa d i v e r s i d a d e "in-
t e r n a " , os t e r r e i r o s jejes p r a t i c a m o b r i g a ç õ e s e c u l t u a m d i v i n d a d e s p r ó p r i a s
d e o u t r a s nações e q u a n d o , ao m e s m o t e m p o , s a b e m o s q u e t e r r e i r o s q u e n ã o
se d e c l a r a m jejes p o d e m p r a t i c a r o b r i g a ç õ e s e c u l t u a r d i v i n d a d e s o r i g i n á r i a s
dessa n a ç ã o . P o r t a n t o , seria e r r a d o falar d e u m a l i t u r g i a jeje c o m o u m a u n i -
d a d e h o m o g é n e a , estática e e s t a n q u e , só p r a t i c a d a pelos t e r r e i r o s q u e assim
se d e c l a r a m . Esse fato c o l o c a u m sério p r o b l e m a n a h o r a d e d e f i n i r o q u e
e n t e n d e m o s por l i t u r g i a jeje. S e r i a m aquelas p r á t i c a s rituais e n c o n t r a d a s nos
t e r r e i r o s q u e se d e c l a r a m jejes, o u s e r i a m aquelas p r á t i c a s r i t u a i s associadas
aos v o d u n s e n c o n t r a d a s e m t e r r e i r o s de várias nações? N o p r e s e n t e t r a b a l h o ,
o p t e i p o r e s t u d a r aquelas p r á t i c a s q u e se associam aos v o d u n s nos t e r r e i r o s

314
O RITUAL

que se d e c l a r a m jejes e, s e g u n d o os p a r t i c i p a n t e s , expressam e c a r a c t e r i z a m


a liturgia jeje p e r a n t e aquelas de o u t r a s nações.
Nesse sentido, o trabalho não é u m exercício para identificar "africanismos",
depósitos o u sobrevivências culturais da área dos gbe-falantes, mas a m b i c i o n a
analisar os elementos litúrgicos que c o n f i g u r a m a i d e n t i d a d e c o n t e m p o r â n e a
dos terreiros jejes vis-à-vis o u t r o s terreiros c o m o os angolas ou ketus. S e n d o
essa i d e n t i d a d e u m f e n ó m e n o dialógico e c o n t e x t u a l c o n s t r u í d o s e m p r e em
relação aos "outros", será i m p o r t a n t e e n t e n d e r o que os praticantes jejes consi-
d e r a m c o m o p r ó p r i o da sua nação, e n t e n d e r c o m o eles p r o b l e m a t i z a m a sua
diferença. Paralelamente, faz-se necessário analisar o u t r o s elementos que, não
sendo explícitos no discurso dos praticantes jejes, c o n s t i t u e m , de fato, elemen-
tos g e n u i n a m e n t e jejes pela sua ascendência da área dos gbe-falantes.
C o m o v i m o s no c a p í t u l o p r e c e d e n t e , a i d e n t i d a d e dos terreiros jejes arti-
cula-se em p r i m e i r a i n s t â n c i a nas suas d i v i n d a d e s , os v o d u n s . Por sua vez, o
c u l t o dos v o d u n s c o m p o r t a u m a diversidade de m o d o s de expressão, c o m o a
l í n g u a e os cantos, os r i t m o s de t a m b o r , as danças, o vestuário, o c o m p o r t a -
m e n t o e interações sociais dos v o d u n s e dos m e m b r o s da c o m u n i d a d e religio-
sa, as o f e r e n d a s (animais sacrificiais, a l i m e n t o s , sementes, folhas etc.), assim
c o m o u m a série de s e g m e n t o s rituais o u obrigações, em q u e é possível i d e n -
tificar e l e m e n t o s q u e d i s t i n g u e m as práticas jejes daquelas de o u t r o s terrei-
ros. E v i d e n t e m e n t e , t o d o s esses m o d o s de expressão estão i n t e r l i g a d o s e
i n t e g r a d o s n o que p o d e r i a ser c h a m a d o de u m a "cultura religiosa", mas para
fins expositivos é útil m a n t e r essas distinções ou categorias analíticas. Vamos,
p o r t a n t o , analisar esses diferentes aspectos da atividade ritual t e n t a n d o salien-
tar os e l e m e n t o s d i s t i n t i v o s da t r a d i ç ã o jeje.

LÍNGUA OU DIALETO JEJE: BÊNÇÃOS E TERMINOLOGIA HIERÁRQUICA

D e s d e os estudos de Rodrigues, persiste na literatura afro-brasileira u m a ten-


dência errónea a associar a língua jeje com o ewe. "Ewe" foi u m t e r m o p o p u l a -
rizado por Ellis a partir de 1890 para designar, sobretudo na literatura germana,
a totalidade de povos da área gbe, p o r é m , na realidade, é o n o m e de apenas
u m dos g r u p o s originários de Notsé. C o m o a p o n t a o m e s m o Rodrigues, na vi-
rada do século XIX o jeje incluía cinco dialetos: "1.- o M a h i ; 2.- D a h o m ê ou
E f f o n [fon]; 3.- o A u f u e h [Agoué]; 4.- o Awunã ou Aulô [Agouna ou Anlo];
5.- o W h y d a h ou Wetá [hueda]". Nessa lista, apenas o aulô, talvez u m a variante
do e t n ô n i m o anlo, p o d e r i a ser considerado ewe. N a década de 1940, C a r n e i r o
c o m e n t a que a i n d a se falava "o jêje (inclusive a variação mahi, q u e se p r o n u n -
cia m a r r i m ) " . 2

315
L U I S N I C O L A U PA R É S

C o m o v i m o s n o c a p í t u l o 3, o " n a c i o n a l i s m o " d a d i á s p o r a a f r i c a n a n o
Brasil, n a a u s ê n c i a d o f a t o r t e r r i t o r i a l ( q u e só p o d i a ser v i v e n c i a d o c o m o
lembrança de u m a procedência perdida), estruturou-se, sobretudo, c o m o um
" n a c i o n a l i s m o l i n g u í s t i c o " . D e igual m o d o , as l í n g u a s a f r i c a n a s p e r s i s t i r a m
n o â m b i t o da religião c o m o u m d o s sinais d i a c r í t i c o s m a i s i m p o r t a n t e s na
f o r m a ç ã o e i m a g i n a ç ã o das n a ç õ e s d e C a n d o m b l é . J á analisei n o c a p í t u l o 4
a i n f l u ê n c i a da t e r m i n o l o g i a religiosa j e j e n o C a n d o m b l é c o m o u m t o d o .
T o d a v i a , a l é m dos v o c á b u l o s jejes q u e c r u z a r a m f r o n t e i r a s de n a ç ã o , os terrei-
ros jejes m a n t ê m u m l i n g u a j a r o u "dialeto" p r ó p r i o q u e c o n t r i b u i para estabe-
lecer a e s p e c i f i c i d a d e i d e n t i t á r i a dessa t r a d i ç ã o religiosa d i a n t e das o u t r a s na-
ções. H o j e e m dia, são os c a n t o s p a r a louvar as d i v i n d a d e s , as cantigas de "ma-
t a n ç a " , as c a n t i g a s d e "saída de i a w ô " etc., e as rezas ( q u e se d i f e r e n c i a m das
a n t e r i o r e s ) , u m d o s â m b i t o s mais i m p o r t a n t e s sob os quais se e s t r u t u r a o f a t o r
d i f e r e n c i a l dos jejes.
E m b o r a seja difícil falar d e u m a "língua" p r o p r i a m e n t e dita, h á t a m b é m
"dialeto" jeje na t e r m i n o l o g i a h i e r á r q u i c a e litúrgica e e m certas f ó r m u l a s orais
c o m o as bênçãos, saudações o u outras expressões para conversar c o m os v o d u n s ,
p a r a c h a m a r a gaiaku-, para p e d i r licença ao e n t r a r n o terreiro, o u na casa (ago
nu kwe vi o u ago no kwé vé). O u t r a s f ó r m u l a s são utilizadas pela gaiaku para
saber se u m a v o d ú n s i está d o e n t e , e assim p o r d i a n t e . O r e p e r t ó r i o l i n g u í s t i c o
é bastante extenso, e um vocabulário provisional, e certamente incompleto,
r e c o m p i l a d o nesta pesquisa, a p o n t a para m a i s de c e m palavras, i n c l u i n d o ter-
m o s para d e s i g n a r as diversas p a r t e s d o c o r p o , a n i m a i s , a l i m e n t o s , folhas, o b -
jetos rituais, espaços sagrados etc. A q u i v o u considerar, de m o d o ilustrativo,
a p e n a s as b ê n ç ã o s o u saudações rituais e os t e r m o s da h i e r a r q u i a sacerdotal.
T o m a r a b ê n ç ã o ( d o l a t i m benedictione, ação de benzer, o u d e a b e n ç o a r )
é u m a p r á t i c a m u i t o c o m u m n a s o c i e d a d e p a t r i a r c a l brasileira, c o m f o r t e i n -
f l u ê n c i a d o C a t o l i c i s m o . N o c o n t e x t o d o C a n d o m b l é , esse gesto ritual se c o n -
f u n d e c o m u m a n ã o m e n o s e x t e n s a t r a d i ç ã o a f r i c a n a de s a u d a ç õ e s e c u m p r i -
m e n t o s r i t u a i s . E m geral, o p e d i d o de b ê n ç ã o e o u t r o s c u m p r i m e n t o s expres-
s a m s u b o r d i n a ç ã o e r e s p e i t o d a q u e l e q u e a p e d e para q u e m a c o n c e d e e estão,
p o r t a n t o , d e t e r m i n a d o s p e l o p r i n c í p i o h i e r á r q u i c o d e s e n i o r i d a d e , regra es-
sencial das c u l t u r a s d a A f r i c a o c i d e n t a l .
A t u a l m e n t e , n o C a n d o m b l é jeje o p e d i d o d e b ê n ç ã o p o d e a p r e s e n t a r várias
f o r m a s . F o r a d o r i t u a l , p o d e c o n s i s t i r n u m s i m p l e s b e i j a - m ã o e, t r a t a n d o - s e
d e m e m b r o s d e u m m e s m o nível h i e r á r q u i c o , a i n t e r a ç ã o é r e p l i c a d a pela se-
g u n d a p e s s o a . N o c o n t e x t o das o b r i g a ç õ e s , d i a n t e d o s m a i s v e l h o s , a pessoa
p o d e a p e n a s c u r v a r l i g e i r a m e n t e o c o r p o , b a i x a n d o o olhar, ao t e m p o q u e es-
t e n d e os b r a ç o s m o s t r a n d o as p a l m a s das m ã o s para c i m a , sem existir n a i n t e -

316
O RITUAL

r a ç ã o n e n h u m c o n t a t o físico. N o caso e m q u e se p r e t e n d a expressar m a i o r


grau de s u b o r d i n a ç ã o o u respeito, o i n d i v í d u o p o d e a j o e l h a r - s e d i a n t e d o su-
perior, b e i j a n d o o u t o c a n d o c o m a f r e n t e o c h ã o , ao t e m p o q u e o s u p e r i o r
p o d e t o c a r l i g e i r a m e n t e c o m a m ã o o p e s c o ç o o u o d o r s o da pessoa. C a b e
n o t a r q u e n o jeje c a c h o e i r a n o n ã o se observa, p e l o m e n o s h o j e em dia, o c o m -
p l e x o d o b a l e u t i l i z a d o n o s t e r r e i r o s k e t u s , n o q u a l a p e s s o a se p r o s t r a de f o r -
m a s v a r i a d a s d i a n t e d o s u p e r i o r . 3 Esses gestos c o r p o r a i s vão n o r m a l m e n t e
a c o m p a n h a d o s de u m a f ó r m u l a oral c a r a c t e r í s t i c a e d i f e r e n c i a d a s e g u n d o a
nação ou a categoria d o v o d u m a q u e p e r t e n c e o superior. O p e d i d o de b ê n ç ã o
c o m p o r t a s e m p r e u m a r e s p o s t a , q u e seria a b ê n ç ã o p r o p r i a m e n t e d i t a .
N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s d i s t i n g u e m - s e três f ó r m u l a s p r i n c i p a i s , q u e c o r -
r e s p o n d e m às três g r a n d e s c a t e g o r i a s de v o d u n s : n a g ô - v o d u m , m a h i e ka-
v i o n o . N a t r a d i ç ã o n a g ô - v o d u m diz-se c o l o f é , e a r e s p o s t a p o d e ser s i m p l e s -
m e n t e c o l o f é o u Olorum modokivé. E provável q u e c o l o f é seja u m a expressão
de o r i g e m i o r u b á , s e n d o q u e esse p e d i d o de b ê n ç ã o t a m b é m se p o d e e s c u t a r
em a l g u m a s casas k e t u s . B i n o n C o s s a r d , p o r e x e m p l o , m e n c i o n a a expressão
Olorum kolofe c o m o n a g ô . 4
Benoi é o p e d i d o d e b ê n ç ã o n o l a d o m a h i e é u t i l i z a d o p a r a se dirigir aos
f d h o s de D a n o u Bessen. A r e s p o s t a é benoi éganji. Existe a i n d a a expressão
p a r a s a u d a r esse v o d u m , "de n a g ô - v o d u m p a r a D a n " , q u e seria arrobo benoi,
eborrei éganji, o u a v a r i a n t e o benoi, arrobo benoi. C a b e n o t a r q u e aroboboi
é a s a u d a ç ã o de O x u m a r é n o k e t u . N o l a d o de k a v i o n o , para a q u e l a s pessoas
q u e p e r t e n c e m à f a m í l i a d o v o d u m S o g b o , utiliza-se a expressão aóoo, seguida
da r e s p o s t a aotí o u aotín?
E i m p o r t a n t e n o t a r q u e os p e d i d o s de b ê n ç ã o são n o r m a l m e n t e p r e c e d i d o s
p e l o t í t u l o h i e r á r q u i c o da pessoa a q u e m se p e d e (i.e., ogã c o l o f é , e q u e d e
c o l o f é ) . Q u a n d o se t r a t a d a m ã e - d e - s a n t o , usa-se o t í t u l o c o r r e s p o n d e n t e a
esse cargo, s e g u n d o c a d a u m a das t r a d i ç õ e s . N o n a g ô - v o d u m é gaiaku colofé;
n o m a h i , mejito benoi; e n o k a v i o n o , doné aóoo. C o m o dizia gaiaku Luiza,
"eu sou gaiaku n o n a g ô - v o d u m ; eu s o u mejitó na t e r r a d e D a n ; n a t e r r a de
Kevioso, eu sou doné".6 Essa d i v e r s i d a d e d e b ê n ç ã o s e t í t u l o s h i e r á r q u i c o s
d e m o n s t r a e c o r r o b o r a a já m e n c i o n a d a divisão d o p a n t e ã o jeje nas três tra-
dições, m a h i , m u n d u b i e n a g ô - v o d u m . Para os títulos doné e gaiaku (provavel-
m e n t e u m t e r m o nagô) n ã o e n c o n t r e i u m a e t i m o l o g i a clara, já o t e r m o mejito,
u t i l i z a d o "na t e r r a d e D a n " , v e m d o f o n g b e ( o u m a h i g b e ) mjijíto, q u e signifi-
caria m ã e , " a q u e l a q u e traz a l g u é m ao m u n d o " . 7
S e g u r a m e n t e a p a r t i r da leitura de Ellis, R o d r i g u e s fala d o t e r m o vodunon
o u vodunõ como o " n o m e d a d o às sacerdotisas jejes d o culto D ã n h - g b i " . E m b o -
ra esse autor, ao t r a d u z i r nó p o r m ã e e vodu p o r santo o u orixá, veja n o t e r m o

317
L U I S N I C O L A U PA R É S

vodunõ u m a n t e c e d e n t e da expressão brasileira " m ã e - d e - s a n t o " , cabe n o t a r que


e m f o n g b e o s u f i x o nó, além d e s i g n i f i c a r " m ã e de", expressa a idéia de "pos-
s u i d o r de, p r o p r i e t á r i o de, d e t e n t o r d e " . Se n a área g b e o t e r m o vodunõ não
é f e m i n i n o , e é u t i l i z a d o s o b r e t u d o p a r a d e s i g n a r o c h e f e religioso masculi-
n o , a t r a d u ç ã o d o t e r m o p o r " d o n o " , " p r o p r i e t á r i o " ou "zelador" d o v o d u m
seria m a i s c o r r e t a . C a b e n o t a r q u e o u s o desse t e r m o é m u i t o r a r o n o s terrei-
ros jejes c o n t e m p o r â n e o s e parece restrito apenas a pessoas familiarizadas com
a literatura d o Daomé.8
M a i s c o m u m para designar o chefe religioso m a s c u l i n o é o t e r m o humbono.
N o capítulo 4 já m e n c i o n e i o uso, no C a n d o m b l é d o século XIX, das suas evolu-
ções f o n é t i c a s gumbônde o u gombono, e a sua versão f e m i n i n a gumbonda. Es-
sas variantes d e r i v a m d o t e r m o f o n hunbonÕ, q u e t r a d u z i d o l i t e r a l m e n t e sig-
nifica o d o n o o u zelador {no) d o "talismã" (bo) da d i v i n d a d e ( h u n ) . O u t r o s
t í t u l o s h i e r á r q u i c o s f e m i n i n o s q u e a p a r e c e m e m O Alabama, c o m o guncô ou
donunce, p a r e c e m ter sido esquecidos.
N o Seja H u n d é , o t e r m o deré é u t i l i z a d o p a r a d e s i g n a r a m ã e - p e q u e n a ou
a s e g u n d a pessoa da gaiaku.3 N o terreiro B o g u m é usado m a i s f r e q u e n t e m e n t e
o t e r m o hunsó p a r a a l u d i r a esse c a r g o . N o B e n i m , c o n f o r m e r e g i s t r a Segu-
rola, o hunsó p o d e ser m u l h e r o u h o m e m e d e s i g n a o a d j u n t o d o vodunon,
responsável p o r i m p o r t a n t e s funções rituais c o m o dançar "segurando no
o m b r o os a n i m a i s q u e serão s a c r i f i c a d o s . Nesse m o m e n t o se diz: é só hun\ ele
p e g o u o f e t i c h e " . 1 0 Essa f u n ç ã o p r ó p r i a d o r i t u a l c h a m a d o vodun só gbo (o
v o d u m pega o b o d e ) é s e m p r e r e s e r v a d a às pessoas m a i s idosas e de m a i s ex-
p e r i ê n c i a na religião.
A i n d a no B e n i m é u s a d o o t e r m o hungan ( l i t e r a l m e n t e chefe da d i v i n d a d e )
p a r a designar a s e g u n d a pessoa, o u m ã o direita, d o vodunon. P o d e ser h o m e m
ou m u l h e r e, a l é m de s u b s t i t u i r o vodunon e m caso de necessidade, a t u a c o m o
o seu p o r t a - v o z d i a n t e das v o d ú n s i s . Esse t e r m o é c o n h e c i d o n o B o g u m , m a s
a p a r e n t e m e n t e designa pessoas d e b a i x o nível h i e r á r q u i c o .
A l é m da c h e f a ou c h e f e da c o n g r e g a ç ã o religiosa, existem os ogãs, ou d i g -
n i t á r i o s m a s c u l i n o s q u e , sem d a n ç a r o u " r e c e b e r " o v o d u m na cabeça, f o r a m
i n i c i a d o s p a r a s e c u n d a r o líder religioso em diversas f u n ç õ e s . N o s t e r r e i r o s
jejes, os t í t u l o s de mais alto status são pejigã, ogã huntó e, e m C a c h o e i r a , o g ã
impé. E m p r o p r i e d a d e o pejigã é o z e l a d o r o u c h e f e d o p e j i (altar), o huntó é
o c h e f e dos t o c a d o r e s d e a t a b a q u e e o ogã impé seria o responsável pelos sacri-
fícios a n i m a i s e o u t r a s o b r i g a ç õ e s i n t e r n a s , c o r r e s p o n d e n t e ao a x o g u m d o s
t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s . " S e g u n d o as c i r c u n s t â n c i a s , a m e s m a pessoa p o d e as-
s u m i r vários cargos. Por e x e m p l o , A m â n c i o M e l o era ogã huntó do Bogum,
" c h e f e d o s a t a b a q u e s e a b a t e d o r de a n i m a i s e m h o l o c a u s t o aos v o d u n s " . 1 2

318
O RITUAL

O u t r a s vezes esses títulos a d q u i r e m significados variáveis. Por e x e m p l o , huntó,


o " d o n o d o t a m b o r " , p o d e , às vezes, ser e m p r e g a d o c o m o s i n o n i m o d e p a i - p e -
q u e n o , o u p o d e d e s i g n a r u m simples t o c a d o r .
O t e r m o doté é t a m b é m u t i l i z a d o de f o r m a variável, às vezes c o m o s i n ó -
n i m o d e ogã — d a í se p o d e falar d e doté impé e m vez de ogã impé — , o u
t a m b é m c o m o s i n ó n i m o de humbono, zelador do santo, ou pai-de-santo. Em
P o r t o N o v o , A k i n d e l e e A g u é s s y m e n c i o n a m o t e r m o douté c o m o s i n ó n i m o
de vodunon ou d i r i g e n t e d o t e m p l o . 1 3 Já J o h n D u n c a n , em P e q u e n o P o p o ,
m e n c i o n a "o c a b e c e i r a , o u dootay, considerado c o m o um dirigente, magis-
trado ou chefe hereditário".14
O u t r o t í t u l o c o n h e c i d o nos terreiros jejes de C a c h o e i r a é o de obajigan ou
bajigan, a s e g u n d a pessoa d o pejigã. 1 5 Talvez se t r a t e de u m a c o r r u p t e l a de
agbajigan, t í t u l o u t i l i z a d o n o B o g u m , q u e e m f o n g b e significa chefe d o p á t i o
interior (agbaji = p á t i o interior, varanda). T a m b é m f o r a m d o c u m e n t a d o s o u t r o s
t e r m o s d e o r i g e m gbe, c o m o : ganto, responsável pelo gã o u i d i o f o n e sagrado;
ogã kutó, responsável pela casa dos eguns o u ancestrais d o terreiro ( k ú = m o r t e )
e ogã minazon, responsável "pela a r t i l h a r i a do c a n d o m b l é , os a p a r e l h o s dos
tabaques". 1 6 O u t r o s t í t u l o s sobre os quais n ã o o b t i v e m a i o r e s i n f o r m a ç õ e s são
oganvi, ogã senevi, alavi, agosun e ogã tenequites.17 E m C a c h o e i r a t a m b é m es-
cutei o t e r m o hundeva, d a d o a u m t o c a d o r d e a t a b a q u e . N o B e n i m esse t e r m o
designa aquela pessoa q u e não "recebe" o v o d u m na cabeça, mas q u e , s e n d o
iniciada, a j u d a em várias atividades rituais.
E m relação às e q u e d e s o u assistentes f e m i n i n a s , e m b o r a p o s s a m ter f u n -
ções d i f e r e n c i a d a s , relativas ao p r e p a r o d e c o m i d a s r i t u a i s , a t e n d i m e n t o d o s
v o d u n s etc., n ã o c o n s e g u i d o c u m e n t a r t í t u l o s e s p e c í f i c o s p a r a elas. Sei a p e -
nas q u e , n o B o g u m , a responsável pelo p r e p a r o de c o m i d a s rituais é a dogan.ls
C a b e n o t a r q u e t a n t o ogãs c o m o e q u e d e s , além de ter a sua p r ó p r i a d i v i n d a d e
" d o n a d a cabeça", estão g e r a l m e n t e c o n s a g r a d o s t a m b é m aos v o d u n s q u e os
e s c o l h e r a m p a r a esses cargos. Por e x e m p l o , u m i n d i v í d u o d e O g u m p o d e ser
s u s p e n s o ogã pela O x u m de d e t e r m i n a d a v o d ú n s i e, desse m o d o , vira ogã de
O x u m , d e v e n d o a j u d a r sua v o d ú n s i n o q u e f o r preciso.
O u s o de t o d a essa c o m p l e x a t e r m i n o l o g i a h i e r á r q u i c a c o n t r i b u i , assim,
para d i f e r e n c i a r a n a ç ã o jeje de o u t r o s r i t o s de C a n d o m b l é . C o m o já foi n o -
t a d o p o r vários a u t o r e s , a o r g a n i z a ç ã o h i e r á r q u i c a da c o n g r e g a ç ã o religiosa e
a divisão d o t r a b a l h o p o r g é n e r o são de f u n d a m e n t a l i m p o r t â n c i a p a r a o f u n -
c i o n a m e n t o d o c u l t o . C o m o coloca m ã e Stella de Oxóssi, d o Axé O p ô A f o n j á ,
" h i e r a r q u i a é t u d o : p r i n c í p i o , m e i o e fim. Sem ela o caos" o u "a h i e r a r q u i a é
a disciplina". 1 9 N o e n t a n t o , t a m b é m se c o n s t a t a q u e m u i t a s vezes a "hierarquia
oficial" expressa em base aos d i f e r e n t e s títulos e ao p r i n c í p i o de s e n i o r i d a d e

319
LUIS NICOLAU PA R É S

não c o r r e s p o n d e necessariamente com a hierarquia do p o d e r real, e que indi-


víduos com títulos relativamente p o u c o significativos, c o m o equedes ou ogãs,
p o d e m , às vezes, exercer grande influência nas decisões t o m a d a s o u sanciona-
das pela c ú p u l a dirigente. E m outras palavras, ao lado da "hierarquia oficial"
há sempre u m a "hierarquia oficiosa" q u e é a q u e r e a l m e n t e d e t é m o poder.

INSTRUMENTOS E RITMOS DE TAMBOR NOS TERREIROS JEJES

O s i n s t r u m e n t o s percussivos e a l i n g u a g e m musical (ritmos, toques, jeitos de


bater) são c o n s i d e r a d o s o u t r o s â m b i t o s de diferenciação litúrgica e n t r e as na-
ções de C a n d o m b l é , especialmente entre o rito angola e o rito jeje-nagô, sendo
q u e e n t r e os terreiros jejes e k e t u s existe m a i o r i n t e r p e n e t r a ç ã o e s e m e l h a n ç a
de estilos. A o r q u e s t r a do C a n d o m b l é b a i a n o c o n t e m p o r â n e o se c o m p õ e do
ferro (gã ou agogô) e de três atabaques de t a m a n h o s diferentes c h a m a d o s , i n d o
do m a i o r para o m e n o r , "rum, rumpi e lé, d e f o r m a ç ã o das palavras f o n hum
e humpevi, p a r a os dois p r i m e i r o s , e da palavra n a g ô orneie, para o terceiro". 2 0
N o s terreiros jejes de C a c h o e i r a , o gã é u m a sineta de ferro p e r c u t i d a c o m
u m pedaço de ferro o u madeira. Nos terreiros ketus e de outras nações, o agogô
é g e r a l m e n t e u m a d u p l a c a m p â n u l a o u sineta.
A t é a virada do século XIX, a o r q u e s t r a do C a n d o m b l é incluía t a m b é m a
cabaça c o b e r t a p o r u m a rede de fios, em c u j o s nós se p r e n d e m c o n t a s o u
búzios {gò em f o n ou xequere em nagô), a que Rodrigues a t r i b u í a u m "notável
papel". Seu uso, que n o M a r a n h ã o é a i n d a i m p o r t a n t e , na Bahia foi aos p o u -
cos d e s a p a r e c e n d o , ficando restrito, nos terreiros jejes, ao ritual d o zandró
(ver a d i a n t e ) . C a r n e i r o m e n c i o n a a i n d a o chocalho — c i l i n d r o o u espécie de
maracá de f o l h a de f l a n d r e s c o m seixos d e n t r o — , h o j e t a m b é m quase esque-
cido. A p e n a s nos cultos de Sogbo e X a n g ô se utiliza o xeré, c h o c a l h o ritual
de c o b r e ou f e i t o em cabaça, p a r a a invocação e s a u d a ç ã o da d i v i n d a d e . Por
o u t r o lado, o adjá — c a m p a i n h a de metal utilizada para reverenciar e invocar
as d i v i n d a d e s — , q u e nos anos de 1960 C a r n e i r o m e n c i o n a c o m o " m e n o s
usado", é h o j e u m i n s t r u m e n t o m u i t o c o m u m e e m b l e m á t i c o d o p o d e r d o
pai o u m ã e - d e - s a n t o . 2 1
O s a t a b a q u e s e o f e r r o são c o n s i d e r a d o s "seres d o t a d o s de a l m a e perso-
nalidade". 2 2 Eles são b a t i z a d o s e c o n s a g r a d o s a d e t e r m i n a d a s e n t i d a d e s espi-
rituais, o ferro n o r m a l m e n t e a Legba o u Exu. O s a t a b a q u e s n o B o g u m , p o r
e x e m p l o , são de Sogbo, O x u m e I e m a n j á . 2 3 Eles recebem o f e r e n d a s a l i m e n -
tícias p e r i o d i c a m e n t e , na liturgia j e j e - m a h i , d u r a n t e o ritual d o zandró. No
B o g u m , os a t a b a q u e s e r a m "feitos de j a q u e i r a e sem e m e n d a " e, a p a r t i r dos

320
O RITUAL

t e m p o s de R u n h ó , f o r a m e n v e r n i z a d o s . N o Seja H u n d é utiliza-se m a d e i r a de
d e n d e z e i r o , de m u l u n g u ou c o q u e i r o . A fabricação dos t a m b o r e s é r e s p o n s a b i -
l i d a d e de c e r t o s ogãs. Para c o r t a r o t r o n c o da á r v o r e , a pessoa t e m h o r a c e r t a
e se s u b m e t e a a b s t i n ê n c i a sexual. A m e m b r a n a é c o n f e c c i o n a d a c o m o c o u -
ro d o b o d e s a c r i f i c a d o nas o b r i g a ç õ e s rituais. 2 ' 1
S e g u n d o Verger, "as f o r m a s e os sistemas de t e n s ã o d o c o u r o dos a t a b a q u e s
são d i f e r e n t e s , de a c o r d o c o m as nações dos terreiros. O sistema de t e n s ã o p o r
c u n h a é f r e q u e n t e nos c a n d o m b l é s de origem b a n t o (congo e angola). O sistema
de t e n s ã o por cavilhas enfiadas n o c o r p o do a t a b a q u e é característico, n o Bra-
sil, das nações n a g ô e djèdje". 2 ^ O ú l t i m o sistema é u t i l i z a d o no B o g u m e n o
H u n t o l o j i , o n d e o c o u r o é estirado c o m cordas a m a r r a d a s a t o r n o s inseridos
no c o r p o do t a m b o r . N o Seja H u n d é , o n d e essa técnica era aplicada a n t i g a m e n -
te, h o j e , c o m o n a m a i o r i a de terreiros nagôs, utilizam-se "tensores" metálicos.
O u t r a d i f e r e n ç a e n t r e as diversas n a ç õ e s diz r e s p e i t o ao j e i t o de tocar. N a
nação jeje, o huntó ( t o c a d o r ) d o t a m b o r m a i o r b a t e , de m ã o , c o m a e s q u e r d a ,
e n q u a n t o na d i r e i t a segura u m a g u i d a v i ( t e r m o f o n para d e s i g n a r a vareta de
g o i a b e i r a , t a m a r i n d e i r o o u c i p ó d u r o de 25 a 30 c m ) , q u e usa para b a t e r n ã o
só na m e m b r a n a , m a s t a m b é m n o c o r p o do i n s t r u m e n t o . O s t o c a d o r e s d o
r u m p i e d o lé u t i l i z a m d o i s a g u i d a v i s . N a n a ç ã o n a g ô - k e t u é a m e s m a c o i -
sa, e m b o r a as p a n c a d a s c o m o a g u i d a v i n o c o r p o d o hun s e j a m u m a c a r a c -
t e r í s t i c a d i s t i n t i v a d o jeje. Já na n a ç ã o c o n g o - a n g o l a e ijexá se b a t e n o r m a l -
m e n t e de m ã o , c o m o t a m b é m se fazia n o s a n t i g o s t e r r e i r o s de n a ç ã o n a g ô
do Recôncavo.
O s d i f e r e n t e s r i t m o s o u t o q u e s são apelos o u " l o c u ç õ e s r i t m a d a s " , "pala-
vras de c h a m a d o " , invocações. 2 6 O s o m d o s a t a b a q u e s é c o n s i d e r a d o u m a lin-
g u a g e m q u e estabelece a c o m u n i c a ç ã o c o m o m u n d o invisível das d i v i n d a d e s .
C o m o explicava gaiaku Luiza, é através d o v e n t o q u e circula n o i n t e r i o r dos
t a m b o r e s na h o r a d o t o q u e q u e as d i v i n d a d e s se m a n i f e s t a m . O e l e m e n t o rít-
m i c o da m ú s i c a é c r i a d o pelos a t a b a q u e s e agogô, e nos c a n t o s se expressa o
e l e m e n t o m e l ó d i c o . S e g u n d o ogã J o ã o z i n h o , é o c a n t o q u e m a r c a a veloci-
d a d e d o r i t m o — em suas palavras, "eu t o c o s e g u n d o o t o m d o c a n t o " — e
o b s e r v a : " n e m t u d o é ligeiro, é u m a q u e s t ã o de e d u c a ç ã o : N a n ã d a n ç a l e n t o ;
O i á , p o n t u a d o ; O g u m , ligeiro". S e g u n d o ele, o hun i m p r o v i s a variações so-
bre o r u m p i e o lé, q u e d e v e m c o m b i n a r seus r i t m o s d i f e r e n c i a d o s c o m o se
fossem os d e d o s e n t r e l a ç a d o s das m ã o s . 2 7 C a b e ao ferro m a r c a r a m é t r i c a e o
tempo d o ciclo r í t m i c o , o q u e a q u i c h a m a r e i time line.is
O e t n o m u s i c ó l o g o Xavier Vatin i d e n t i f i c a n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o
20 " f ó r m u l a s r í t m i c a s " ; 8 s e r i a m o r i g i n á r i a s d a n a ç ã o n a g ô - k e t u ( a g a b i ,
aguerê, a l u j á , b a t á , daró, igbí, o p a n i j é , t o n i b o b e ) , 7 da n a ç ã o jeje ( a d a r r u m ,

321
L U I S N I C O L A U PA R É S

avaninha, ramunha, bravum, sató, jicá, vassa), 4 da n a ç ã o a n g o l a (arrebate,


b a r r a v e n t o , c a b u l a , c o n g o ) e 1 da n a ç ã o n a g ó - i j e x á (ijexá). C a b e n o t a r q u e ,
c o m o e m o u t r o s a s p e c t o s l i t ú r g i c o s , h á nesse â m b i t o u m a f o r t e i n t e r p e n e -
tração e n t r e as diversas nações, assim c o m o variações t e r m i n o l ó g i c a s e c o n t r o -
vérsia e m relação à possível o r i g e m d e a l g u m desses r i t m o s . 2 9
A q u i v o u apenas i d e n t i f i c a r o time Une e c o m e n t a r a l g u m a s das caracterís-
ticas dos r i t m o s mais i m p o r t a n t e s c o n s i d e r a d o s jejes. O time line d o avamunha
(,avamunia, hamunyia, ramunha), t a m b é m c o n h e c i d o p o r avaninha (avanía),
consiste em 12 pulsos c o m 5 batidas, "/x.x.x..x.x../". Esse time line é s u t i l m e n t e
d i f e r e n t e d o clave c u b a n o , d e 16 pulsos e 5 batidas, "/x..x..x...x.x.../". Vatin
identifica o p r i m e i r o c o m o avaninha, e o s e g u n d o c o m o ramunha. O avamunha
"é u m t o q u e de m a r c h a , mas u m a m a r c h a rápida", u t i l i z a d o p a r a c h a m a r os
v o d u n s ao salão ou para dar-lhes a saída ou retirada. Nesses casos, não vai acom-
p a n h a d o de cantiga, mas t e m avamunha c o m c a n t i g a p a r a vários v o d u n s . E m
a l g u n s terreiros, esse r i t m o t a m b é m p o d e ser u t i l i z a d o (sem cantiga) p a r a in-
vocar a m a n i f e s t a ç ã o das d i v i n d a d e s .
O a d a r r u m é, talvez, o r i t m o jeje mais c o n h e c i d o e c i t a d o na literatura afro-
brasileira. Trata-se de u m t o q u e de c h a m a d a m u i t o a c e l e r a d o e sem cantiga,
a d o t a d o para i n d u z i r a "possessão" nas d a n ç a n t e s , q u a n d o as d i v i n d a d e s de-
m o r a m a se m a n i f e s t a r . C o m o diziam os i n f o r m a n t e s de R a m o s , "não há santo
q u e resista ao t o q u e a d a r r u m " , ou, c o m o ouvi dizer, "toca o a d a r r u m q u e aí
vira t o d o o m u n d o " . A d a r r u m é u m a d e f o r m a ç ã o da palavra f o n adahun que
p o d e ser t r a d u z i d a c o m o o " r i t m o da cólera". N o C a n d o m b l é se toca só em
ocasiões especiais, mas atravessou f r o n t e i r a s de n a ç ã o e p o d e ser e s c u t a d o nos
terreiros n a g ô - k e t u s e mais r a r a m e n t e nos c o n g o - a n g o l a s . O seu time line é de
o i t o pulsos c o m q u a t r o batidas, "/x.x.x.x./", i n c r e m e n t a n d o d e p o i s para sete,
"/x.xxxxxxx/", o q u e s o m a d o a u m rapidíssimo r e p i q u e das varas nos a t a b a q u e s
gera u m a sensação de aceleração. 3 0
O sató (variante huntó) e o bravum (variante brarrum) são o u t r o s dois rit-
m o s u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o s c o m o jejes. O sató é o r i t m o "oficial" de
Bessen, mas se toca t a m b é m e m cantos de Azonsu, N a n ã e Iemanjá. 3 1 O bravum,
sem cantiga, p o d e ser utilizado c o m o " t o q u e de e n t r a d a " , " t o q u e de saída" e
c o m o " t o q u e de s a u d a ç ã o " p a r a salvar as pessoas de alta h i e r a r q u i a q u a n d o
c h e g a m a u m terreiro; mas t a m b é m p o d e a c o m p a n h a r c a n t i g a s para várias di-
vindades. A m b o s os r i t m o s c o m p a r t i l h a m ciclos m é t r i c o s d e seis pulsos. Segun-
d o Vatin, os dois t ê m q u a t r o batidas, "/x.xxx./", c o m a d i f e r e n ç a de q u e n o bra-
vum os seis pulsos estariam a g r u p a d o s de f o r m a b i n á r i a (dois p o r três) e n o sa-
tó estariam agrupados de f o r m a ternária (três p o r dois). Essas divisões dos pulsos
e m pares ou tríades a f e t a m os passos de dança, e n ã o n e c e s s a r i a m e n t e o t o q u e .

322
O RITUAL

O r a , nas casas p e s q u i s a d a s o bravum apresenta n o r m a l m e n t e apenas duas


b a t i d a s , " / x . x . . . / " , p a d r ã o n ã o r e g i s t r a d o p o r Vatin n a sua classificação. 3 2
N o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i de C a c h o e i r a fala-se d o quebrado e do mundubi
( v a r i a n t e kevioso o u voduvi) c o m o os t o q u e s mais c a r a c t e r í s t i c o s dessa n a ç ã o .
N a v e r d a d e , t r a t a - s e d e r i t m o s c u j o s time Unes p r i n c i p a i s c o r r e s p o n d e m , res-
p e c t i v a m e n t e , ao sato e ao bravum (o ú l t i m o de d u a s b a t i d a s ) , m a s q u e alter-
n a m c o m variações r í t m i c a s e t ê m c o r e o g r a f i a s p a r t i c u l a r e s . Esses t o q u e s e
d a n ç a s a c o m p a n h a m i n v a r i a v e l m e n t e o r e p e r t ó r i o de cantigas c o r r e s p o n d e n t e
à p r i m e i r a p a r t e d o zandró, q u a n d o se salvam os v o d u n s jejes, e c o n s t i t u e m ,
p o r t a n t o , u m dos e l e m e n t o s rituais d i s t i n t i v o s dessa liturgia. O quebrado sus-
t e n t a c a n t i g a s de Bessen, A z o n s u e o u t r o s . O mundubi, como o n o m e indica,
está na base de m u i t o s dos c a n t o s de v o d u n s da família H e v i o s o , mas t a m b é m
é u s a d o e m c a n t o s d e o u t r o s v o d u n s , c o m o Bessen.
O s t o q u e s e d a n ç a s d o quebrado e mundubi d i v i d e m - s e em d u a s partes ou
m o v i m e n t o s a l t e r n a d o s . D u r a n t e o p r i m e i r o m o v i m e n t o , o time line d o que-
brado é "/x.xxx./" (sató), e o d o mundubi " / x . x . . . / " (bravum). A d a n ç a coinci-
de c o m o d e s l o c a m e n t o da v o d ú n s i da posição inicial d i a n t e dos t a m b o r e s até
a p o r t a d o barracão, da p o r t a ao e x t r e m o o p o s t o d o salão ( o n d e está s e n t a d a a
gaiaku) e daí de n o v o até os t a m b o r e s , f o r m a n d o u m i t i n e r á r i o t r i a n g u l a r q u e
segue o s e n t i d o inverso dos p o n t e i r o s d o relógio. N o m o m e n t o em q u e a d a n -
ç a n t e está d i a n t e d o s t a m b o r e s , da p o r t a o u d a gaiaku, p r o d u z - s e a variação
d o time line.i3 Nesse s e g u n d o m o v i m e n t o , a d a n ç a t a m b é m m u d a ; as m ã o s são
agitadas c o m o se estivessem b a t e n d o u m t a m b o r n o baixo v e n t r e ou, alterna-
t i v a m e n t e , o t o r s o se d o b r a p a r a a f r e n t e , ao t e m p o q u e os b r a ç o s e p e r n a s se
a b r e m e f e c h a m para os lados, c o m gesto de a p a r ê n c i a pesada.
As t r a n s i ç õ e s d o s e g u n d o p a r a o p r i m e i r o m o v i m e n t o são n o r m a l m e n t e
m a r c a d a s pelo c h a m a d o jiká, gesto q u e consiste n u m a leve g e n u f l e x ã o e u m
e s t r e m e c i m e n t o das o m o p l a t a s . N o C a n d o m b l é é u m s i g n o d i s t i n t i v o d o s
v o d u n s , p o r vezes c o n s i d e r a d o sua s a u d a ç ã o , e só as v o d ú n s i s mais experientes
c o n s e g u e m realizá-lo c o m graça. O jiká dá n o m e a o u t r o r i t m o jeje c h a m a d o
p o r vezes ijika o u jinká, c u j o time line seria "/x.xx../", q u e p o r sua vez corres-
p o n d e ao d o r i t m o ilú, t o c a d o p a r a I e m a n j á . T a m b é m ouvi falar d o t o q u e aza-
kun (azançu, azanhuna), p r o v a v e l m e n t e d e f o r m a ç ã o de azanhun, q u e seria u m
t o q u e " p r i n c i p a l m e n t e para a c h a m a d a " , mas t a m b é m utilizado para a retirada. 3 4
O ú l t i m o r i t m o i d e n t i f i c a d o c o m o jeje p o r Vatin, o vassa, é u m dos m a i s
p o p u l a r e s e m t o d a s as religiões a f r o - b r a s i l e i r a s . O seu time line c o n s i s t e e m
12 p u l s o s c o m 7 b a t i d a s , " / x . x . x x . x . x . x / " . N o s t e r r e i r o s jejes é t a m b é m c h a -
m a d o n a g ô o u a l u j á e a c o m p a n h a g e r a l m e n t e c a n t i g a s p a r a d i v i n d a d e s da
categoria n a g ô - v o d u m ( O g u m , O x u m etc.). E m terreiros de o u t r a s nações esse

323
L U I S N I C O L A U PA R É S

time line é c o n h e c i d o t a m b é m c o m o vassi ou toque de ketu, e n o T a m b o r de


M i n a do M a r a n h ã o , c o m o dobrado. Essas d e n o m i n a ç õ e s , s o m a n d o - s e o fato
de sustentar grande n ú m e r o de cantigas de orixás, q u e s t i o n a m a suposta ori-
gem jeje desse r i t m o , que, aliás, está d o c u m e n t a d o de f o r m a extensiva em t o d a
a Africa ocidental.
H á , f i n a l m e n t e , u m a série de r i t m o s n a g ô - k e t u s q u e p o d e m ser e s c u t a d o s
nos terreiros jejes. Por exemplo, o a l u j á associado a X a n g ô , q u e a rigor tem
u m time line de 12 pulsos e 4 batidas, "/x..x..x..x../", e m b o r a possa apresentar
variações q u e c o i n c i d e m c o m o vassa (daí o uso do t e r m o "alujá" para desig-
nar o vassa, nos terreiros jejes). O u t r o s t o q u e s são o d r a m á t i c o opanije de
O m o l u , " / x x x . x x x . x x . x . x x . / " ; o vivaz aguerê, a s s o c i a d o a O x ó s s i , O i á ou
O g u m , "/xx..xxx./", o u o igbí, t o c a d o para O x a l á , "/x.xx.x.xx.xx/".
P o d e m o s c o n c l u i r que, e m b o r a n o discurso do p o v o - d e - s a n t o se fale fre-
q u e n t e m e n t e dos t o q u e s de t a m b o r c o m o u m dos fatores q u e d i s t i n g u e m a
l i t u r g i a das várias nações, a t u a l m e n t e eles c i r c u l a m de u m terreiro p a r a o u -
tro c o m g r a n d e fluidez. N ã o o b s t a n t e haja t o q u e s e coreografias específicas
dos terreiros jeje-mahis, c o m o o quebrado e o mundubi de C a c h o e i r a , as f r o n -
teiras "rítmicas" e n t r e as nações jeje e ketu são ténues, e n q u a n t o as d i f e r e n -
ças em relação à nação angola são mais n o t ó r i a s , p o r esta ú l t i m a n a ç ã o tocar
os i n s t r u m e n t o s com a m ã o , em vez de com varetas. E s t a r i a m , p o r t a n t o , no
nível das cantigas e de sua língua os p o n t o s nos quais se p o d e estabelecer u m a
d e m a r c a ç ã o mais clara entre as d i f e r e n t e s tradições religiosas.

A L G U M A S CONSIDERAÇÕES SOBRE A INICIAÇÃO DAS VODÚNSIS

A iniciação de a d e p t o s para sua consagração às d i v i n d a d e s c o n s t i t u i u m a das


características centrais do C a n d o m b l é e c o m p o r t a u m a m u d a n ç a do papel e
status do i n d i v í d u o em relação ao g r u p o social. Seguindo T u r n e r , que a m p l i o u
os conceitos desenvolvidos por Van G e n n e p para analisar os ritos de passagem,
p o d e m o s dividir o processo de iniciação em três estágios: separação, transi-
ção (oposição, m a r g i n a l i d a d e ou liminaridade) e posterior reintegração social.
N o s cultos de v o d u m da área gbe, a iniciação de u m a v o d ú n s i s u p õ e u m a r u p -
t u r a radical c o m o seu passado; o ser a n t i g o "morre" p a r a "renascer" sob os
auspícios da d i v i n d a d e , com u m a nova personalidade. Esse processo de trans-
f o r m a ç ã o "existencial" é expresso em diversos estágios r i t u a i s e na t e r m i n o -
logia a eles associada. 3 1
Primeiro, a n e ó f i t a ou c a n d i d a t a e x p e r i m e n t a u m a " m o r t e ritual", da qual
se fala vodun hu asi (o v o d u m m a t o u a m u l h e r ) , e ela p e r m a n e c e vários dias

324
O RITUAL

p r o s t r a d a n o c h ã o . Nesse m o m e n t o , a v o d ú n s i é c h a m a d a hun ciò (o c a d á v e r


d o v o d u m ) . Esse e s t a d o é s e g u i d o de u m a "ressurreição r i t u a l " , c o n h e c i d a co-
m o hun fínfòn ( a c o r d a r d o v o d u m ) , q u e i n a u g u r a a n o v a vida e s p i r i t u a l da
v o d ú n s i . Esse estágio é s e g u i d o de u m p e r í o d o de t r e i n a m e n t o , n o q u a l , atra-
vés d a e x p e r i ê n c i a d e vários p r o c e s s o s r i t u a i s e de a p r e n d i z a d o , a v o d ú n s i
a d q u i r e u m a nova p e r s o n a l i d a d e o u " i d e n t i d a d e e s p i r i t u a l " . D u r a n t e esse
p e r í o d o , a v o d ú n s i p o d e a l t e r n a r estados de "possessão" pelo v o d u m c o m u m
e s t a d o p s i c o l ó g i c o e c o m p o r t a m e n t a l d e difícil d e f i n i ç ã o , c o n c e i t u a l m e n t e
a s s o c i a d o ao e s t á g i o i n f a n t i l e a m o r f o d a n o v a p e r s o n a l i d a d e , q u e Verger
c h a m o u de " e s t a d o de e m b o t a m e n t o " . 3 6
N o B e n i m , existe a i n d a u m estágio p o s t e r i o r n o qual a v o d ú n s i é p r e p a r a -
da para a t u a r c o m o m e n d i c a n t e (nubyoduto). Esse estado t e m características
c o m p o r t a m e n t a i s i n f a n t i s e é c h a m a d o ahwansi, tobosi, agamasi, yomu ou kuvi,
s e g u n d o os diversos cultos, mas é preciso d i s t i n g u i r esse estado d e nubyoduto
d o "estado de e m b o t a m e n t o " referido acima, m e s m o q u e os dois p o s s a m ser
associados a u m e s t a d o i n f a n t i l . N o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o esses dois es-
tados t e n d e m a se c o n f u n d i r com o estado d o erê, a criança o u a d j u n t o da divin-
dade. O estado de erê p e r m i t e à n e ó f i t a s u p o r t a r os longos p e r í o d o s de reclusão
n o huncó e, n o passado, estava t a m b é m ligado à atividade de m e n d i c â n c i a ritual.
A iniciação c u l m i n a c o m a a p r e s e n t a ç ã o p ú b l i c a da v o d ú n s i à c o m u n i d a d e ,
n u m a o b r i g a ç ã o e m q u e o v o d u m "dá o n o m e " , o huin n o jeje o u orunko no
ketu. H o j e e m dia, a volta da v o d ú n s i à vida secular é quase consecutiva ao "dar
o n o m e " , m a s n o passado a reintegração social era u m processo mais l e n t o .
A d u r a ç ã o d o p e r í o d o de iniciação t e m sido reduzida de f o r m a progressiva.
N o s terreiros jejes fala-se q u e , a n t i g a m e n t e , d u r a v a dois anos, u m a n o e m e i o ,
o u u m a n o . E m O Alabama, na d é c a d a de 1860, fala-se n o r m a l m e n t e de seis
meses. H o j e em dia, o t e m p o de r e c o l h i m e n t o é variável e, e m b o r a em a l g u n s
casos ainda seja de seis meses ou mais, não é i n f r e q ú e n t e u m a d u r a ç ã o q u e oscila
e n t r e três meses e três s e m a n a s . A iniciação é dividida n u m p r i m e i r o p e r í o d o ,
em q u e a v o d ú n s i p e r m a n e c e recolhida n o huncó ( c a m a r i n h a o u q u a r t o de ini-
ciação), e u m s e g u n d o p e r í o d o em q u e ela p o d e sair do huncó mas p e r m a n e c e
ainda no terreiro. Por exemplo, n u m a iniciação de seis meses ela passa três meses
" d e n t r o " e três "fora".
Vejamos com u m p o u c o mais de d e t a l h e alguns aspectos da iniciação nos
terreiros j e j e - m a h i s . C o m o explicava gaiaku Luiza, "no jeje n ã o se b o t a barco
[grupo de noviças] cada ano, se bota barco cada x anos. O jeje não c h a m a , espera
cair, mas q u e m não vai b o t a n d o não colhe". 3 H á certas obrigações anuais, c o m o
o boitá o u a f o g u e i r a de Sogbo, c o n s i d e r a d a s m o m e n t o s privilegiados para a
ocorrência da "caída" o u da " m o r t e ritual". N o boitá, à m e d i d a q u e a procissão

325
L U I S N I C O L A U PA R É S

gira e m volta das árvores sagradas (atinsa), as novas c a n d i d a t a s p o d e m " b o l a r


n o s a n t o " . O atinsa d i a n t e do q u a l u m a c a n d i d a t a i n c o r p o r a é g e r a l m e n t e to-
m a d o c o m o u m signo q u e i n d i c a a q u e v o d u m ela p e r t e n c e . N o b a r r a c ã o , a
c a n d i d a t a joga-se no chão, expressando a " m o r t e ritual". Ela é c o b e r t a c o m u m
p a n o b r a n c o (ala), p a r a ser d e p o i s "suspensa" pelos ogãs e m f r e n t e à p o r t a e
aos t a m b o r e s , antes de ser r e c o l h i d a na c a m a r i n h a . C o m esse gesto a c a n d i d a t a
está a p e n a s " p e d i n d o a feitura", sem n e c e s s a r i a m e n t e i m p l i c a r q u e ela vai ser
e f e t i v a m e n t e iniciada. A decisão final c o r r e s p o n d e aos especialistas religiosos.
O e s t a d o p r o d u z i d o pela " m o r t e r i t u a l " p o d e p r o l o n g a r - s e p o r vários dias,
e fala-se q u e n o p a s s a d o d u r a v a sete n o i t e s e sete dias, m a s h o j e d u r a n o r m a l -
m e n t e de u m a três dias. Nesse p e r í o d o , a c a n d i d a t a fica n u m e s t a d o de a t o n i a
t o t a l , "sem c o m e r , beber, o u realizar suas n e c e s s i d a d e s . O v o d u m está n a m a -
téria [...] fica p e g a d o m e s m o " . Se a c a n d i d a t a resiste a essa p r o v a ela é s u b -
m e t i d a a certos ritos iniciais de f e i t u r a , se "afirma o santo", mas, se "desperta",
a f e i t u r a p o d e ser s u s p e n s a . N o r m a l m e n t e , u m a s e m a n a t r a n s c o r r i d a à caída,
celebra-se o s a p o c ã o u s a r a p o c ã , u m a o b r i g a ç ã o s e m i p ú b l i c a e m q u e a n o v i -
ça q u e s u p e r o u t o d a s essas p r o v a s é a p r e s e n t a d a n o b a r r a c ã o . O s a r a p o c ã
m a r c a a " e n t r a d a " f o r m a l da v o d ú n s i n o p r o c e s s o d e i n i c i a ç ã o , e t a m b é m
i n d i c a q u e a f a m í l i a d a n o v i ç a a c e i t o u o c o m p r o m i s s o . S e g u n d o ogã B o b o s o
e gaiaku Luiza, o s a p o c ã é " u m a d e s p e d i d a da f a m í l i a " e a v o d ú n s i "não t e m
n a d a f e i t o " , isto é, ela a i n d a n ã o foi r a s p a d a n e m p i n t a d a . 3 8
A p a r t i r d o s a r a p o c ã , inicia-se o p e r í o d o de r e c o l h i m e n t o e i n s t r u ç ã o e m
q u e a noviça é " a c u l t u r a d a c o m o religioso jeje". H á u m a p r e n d i z a d o c o m p o r -
t a m e n t a l p a r a comer, sentar, falar, rezar etc. " O s a n t o a p r e n d e a ralar na p e d r a
para fazer acaçá, a e n f i a r c o n t a s , as danças, o dialeto." C o m o dizia gaiaku Lui-
za, "jeje t e m escola" e envolve u m a p r e n d i z a d o d e m o r a d o , "sem livros", basea-
do n a i m i t a ç ã o e r e p e t i ç ã o d a q u i l o q u e f a z e m os mais velhos. N o e n t a n t o , a
i n i c i a ç ã o varia de i n d i v í d u o p a r a i n d i v í d u o . C a d a pessoa recebe as suas " m a r -
cas" (escarificações) d i f e r e n c i a d a s , e as f o l h a s e o u t r o s e l e m e n t o s u t i l i z a d o s
nos diversos r i t o s d e f e i t u r a t a m b é m v a r i a m de a c o r d o c o m o v o d u m p a r a
q u e m a p e s s o a esta s e n d o c o n s a g r a d a .
A p ó s esse p e r í o d o d e r e c o l h i m e n t o , q u e p o d e d u r a r v á r i o s m e s e s , reali-
za-se u m a s e g u n d a a p r e s e n t a ç ã o r i t u a l d a v o d ú n s i n o b a r r a c ã o . T r a t a - s e de
u m a c e r i m ó n i a i n t e r n a , p r i v a d a , q u e m a r c a a saída da c a m a r i n h a o u huncó e
i n a u g u r a o s e g u n d o p e r í o d o da iniciação, o p e r í o d o "de fora". A v o d ú n s i p o d e
circular por certas áreas do terreiro, mas sem ultrapassar os seus limites, exceto
em ocasiões especiais. N o p a s s a d o , p o r e x e m p l o , as n o v i ç a s saíam p a r a v e n -
der n o m e r c a d o a c a r a j é o u q u a l q u e r o u t r a coisa, s e g u n d o era i n d i c a d o pelo
p r ó p r i o v o d u m , e c o m os b e n e f í c i o s p a g a v a m as o b r i g a ç õ e s da sua i n i c i a ç ã o .

326
O RITUAL

Gaiaku Luiza l e m b r a v a c o m s a u d a d e os t e m p o s antigos nos terreiros jejes.


D u r a n t e a iniciação "o v o d u m v i n h a n o d o m i n g o d e m a n h ã e só desligava na
q u i n t a - f e i r a de n o i t e [...]. Sexta-feira n ã o desce s a n t o n o jeje". E dia de p r e -
ceito e t a m b é m n ã o se b a t e t a m b o r ; c o m o dita a tradição, "em sexta-feira n e m
p a g o n e m r e c e b o " . O s a n t o , a l t e r n a n d o c o m seu erê, "ficava na m a t é r i a d u -
r a n t e m a i s d e c i n c o dias p a r a d a r i n s t r u ç ã o . H o j e já m u d o u , h o j e as m a t é -
rias n ã o t ê m s a ú d e " . S e g u n d o gaiaku Luiza, o a p r e n d i z a d o das noviças é
m a i s fácil q u a n d o " d e s p e r t a s " (no seu e s t a d o n o r m a l ) d o q u e q u a n d o c o m o
erê o u o v o d u m . S e g u n d o humbono V i c e n t e , o erê, p o r ele c h a m a d o em d a d o s
m o m e n t o s d e esin ( d o i o r u b á esin orisa = cavalo da d i v i n d a d e ) , v e m " s e m p r e
d e p o i s d o s a n t o , eles estão aí até c o m p l e t a r o d i a d o n o m e [i.e., d u r a n t e t o d a
a i n i c i a ç ã o ] [...] a c a n t i g a d e erê é d i f e r e n t e da c a n t i g a d o v o d u m [...] o erê
d o jeje é d i f e r e n t e d o erê d o n a g ô , são c a n t i g a s d i f e r e n t e s [...] t e m a s s e n t a -
m e n t o [de erê] p a r a c a d a pessoa". 3 9
A r o t i n a c o t i d i a n a das noviças era i n t e n s a . D e m a d r u g a d a , p o r volta das
5 h o r a s , as v o d ú n s i s , já i n c o r p o r a d a s p e l o s a n t o , t o m a v a m u m b a n h o n o rio
(to) e i n i c i a v a m as p r i m e i r a s rezas. N u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a kpole, realiza-
v a m u m a procissão ao r e d o r dos atinsa, e m fila i n d i a n a . "A d o f o n a tira as rezas
[...] s o m m a i s de 30 c a n t o s , três p o r v o d u m [...] a d o f o n a tira o c a n t o e os
v o d u n s ficam a p o n t a n d o . " D e p o i s d o kpole s e g u i a m o u t r a s rezas até as 9 h o r a s
d a m a n h ã . Por v o l t a d e 11 h o r a s , os v o d u n s " t o m a v a m o r u m " e d a n ç a v a m
ao s o m dos a t a b a q u e s ; "esse r u m , pela m a n h ã , é s i m p l e s : são três c a n t i g a s " .
Seguia u m d e s c a n s o até as 3 h o r a s da t a r d e , q u a n d o as v o d ú n s i s t o m a v a m u m
n o v o b a n h o de p u r i f i c a ç ã o . Às 4 horas se iniciava de n o v o o t o q u e e os v o d u n s
" t o m a v a m o r u m " até a p r o x i m a d a m e n t e as 6 h o r a s , m o m e n t o d e novas re-
zas. N o C a n d o m b l é , 6 d a t a r d e e 6 d a m a n h ã são h o r a s p a r a rezar. N e s s e
m o m e n t o as v o d ú n s i s n ã o p o d e m s e n t a r e m b a i x o das árvores sagradas, p o i s
a c r e d i t a - s e q u e e n t ã o os v o d u n s estão ali p r e s e n t e s . D e p o i s as n o v i ç a s des-
c a n s a v a m , " r e v i r a v a m u m p o u q u i n h o p a r a reviver a m a t é r i a " , m a s o erê p e r -
m a n e c i a i n c o r p o r a d o . E m o u t r a ocasião, gaiaku c o m e n t o u que, com o t e m p o
e p o r i n f l u ê n c i a da t r a d i ç ã o k e t u , o "ensaio" das 4 h o r a s da t a r d e ( q u a n d o as
v o d ú n s i s " t o m a m o r u m " ) f o i t r a n s f e r i d o p a r a a n o i t e , das 9 à 1 h o r a d a
madrugada.40
É através desse i n t e n s o r e g i m e de a t i v i d a d e s , e s p e c i a l m e n t e n o s "ensaios"
diários, q u e a v o d ú n s i a p r e n d e as cantigas e as danças dos v o d u n s , assim c o m o
o "dialeto" o u " l i n g u a j a r " , pois "não se fala n a d a em p o r t u g u ê s " . N o p a s s a d o ,
d u r a n t e t o d o o t e m p o e m q u e a n o v i ç a vivia n a roça ela se vestia de b a i a n a ,
d e b r a n c o , n ã o se p i n t a v a n e m utilizava b i j u t e r i a , relógio, s a p a t o s altos o u
q u a l q u e r o u t r o e l e m e n t o p r o f a n o . Só a p ó s sete a n o s se l e v a n t a v a a p r o i b i ç ã o

327
L U I S N I C O L A U PA R É S

de vestir q u a l q u e r o u t r a coisa q u e n ã o fosse o v e s t u á r i o de b a i a n a , e só d e p o i s


desse t e m p o a pessoa a d q u i r i a o grau d e v o d ú n s i . G r a n d e d i f e r e n ç a c o m os
tempos presentes.
E c l a r o q u e d u r a n t e o p e r í o d o de i n i c i a ç ã o t e m l u g a r t o d a u m a série de
o b r i g a ç õ e s i n t e r n a s e e x t e r n a s e n v o l v e n d o o c o r p o da v o d ú n s i e o seu a s s e n t o
n o peji, q u e v ã o " f i x a n d o " p r o g r e s s i v a m e n t e o axé da d i v i n d a d e n o altar e na
cabeça da devota. Alguns praticantes do rito ketu a f i r m a m que a iniciação
jeje se c a r a c t e r i z a pela a u s ê n c i a d o oxu ou adoxu, o c o n e de cera, ervas etc.,
q u e c o b r e o c o r t e ritual n o alto d o c r â n i o da n o v i ç a . Esses são a s p e c t o s s o b r e
os q u a i s p o u c o posso dizer e q u e os jejes se o r g u l h a m d e m a n t e r e m segredo.
U m a o b r i g a ç ã o d i s t i n t i v a da i n i c i a ç ã o jeje é o c h a m a d o " t o m a r hunvé" ou
" t o m a r ajauntó" associado ao v o d u m A j a u n t o (var. J u n t o , J a u n t o , U j a u n t o ) ,
o a n c e s t r a l m í t i c o d o s agassuvi (ver c a p í t u l o a n t e r i o r ) . S e g u n d o humbono
V i c e n t e , "sem ele n ã o se p o d e fazer s a n t o , é s a c r a m e n t o " , "para p o d e r e n t r a r
no peji, só q u e m já t o m o u ele; n ã o t o m o u , n ã o e n t r a " . Essa o b r i g a ç ã o q u e
c o m p o r t a a b e b i d a de u m l í q u i d o é p r o v a v e l m e n t e u m a p e r s i s t ê n c i a d o r i t u a l
enon kpe vodun nuye ( b e b e r o v o d u m ) , p r a t i c a d o n o s c u l t o s de v o d u m d o
B e n i m . A i n g e s t ã o da b e b i d a sagrada é c o m o u m a a l i a n ç a c o m a d i v i n d a d e ,
de c o n s e q u ê n c i a s fatais se o p a c t o f o r t r a n s g r e d i d o . 4 1
U m a d a s o b r i g a ç õ e s e x t e r n a s (isto é, realizadas n o t e m p o ) c a r a c t e r í s t i c a s
da i n i c i a ç ã o jeje é o c h a m a d o gra, grau o u tomar grau. A c o n t e c e g e r a l m e n t e
n o ú l t i m o p e r í o d o da i n i c i a ç ã o , a p ó s a quitanda das iaõs (ver m a i s a d i a n t e ) ,
e consiste em u m a "penitência" o u "prova d o v o d u m " em q u e a v o d ú n s i , incor-
p o r a d a pelo gra, passa e n t r e três e sete dias n o m a t o , p a r t e d o t e m p o s o z i n h a ,
mas v i g i a d a de l o n g e pela m ã e - d e - s a n t o , os ogãs o u e q u e d e s . O gra, t a m b é m
c h a m a d o "o b i c h o " , é c o n c e b i d o ora c o m o u m e s p í r i t o e l e m e n t a r da n a t u r e -
za, o r a c o m o u m a m a n i f e s t a ç ã o agressiva d o erê, o u até c o m o u m a f o r m a de
E x u . Por isso, h á u m a c e r t a m i s t i f i c a ç ã o d o p e r i g o e d a d i f i c u l d a d e dessa
"prova do m a t o " . Q u a n d o a v o d ú n s i r e t o r n a o c a s i o n a l m e n t e às i m e d i a ç õ e s
da casa, os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o , n u m a p r o v o c a ç ã o q u e m i s t u r a a b r i n -
c a d e i r a c o m o m e d o , x i n g a m - n a p a r a excitar a a g r e s s i v i d a d e dela. A v o d ú n s i
t e n t a c u s p i r e b a t e r c o m u m p a u nas pessoas, ao t e m p o q u e estas se e s c o n -
d e m n o interior d a casa o u se d e f e n d e m , b a t e n d o c o m força n o chão os respec-
tivos c a j a d o s . 4 2
N e s s a a t i t u d e colérica d a v o d ú n s i e nas relações de e v i t a ç ã o e b r i n c a d e i r a
da c o m u n i d a d e , h á u m a p e r s i s t ê n c i a clara, e m b o r a a l t e r a d a , de u m s e g m e n t o
ritual a f r i c a n o . N o B e n i m , o final d a i n i c i a ç ã o e o i n í c i o da p r o g r e s s i v a r e i n -
t e g r a ç ã o social das v o d ú n s i s são expressos pela m e t á f o r a da c a p t u r a de escra-
vos. D i z - s e q u e o vodunon, n u m a guerra simbólica assinalada por vários

328
O RITUAL

d i s p a r o s de c a n h ã o , r a p t o u as noviças d o "país d o v o d u m " , t r a z e n d o - a s c o m o


escravas ( k a n u m o ) p a r a o m u n d o p r o f a n o . N o s e g m e n t o r i t u a l c h a m a d o "a
g u e r r a vai c a p t u r á - l a s " ( a h w a n wa uliye), as noviças e x t e r i o r i z a m r i t u a l m e n t e
sua f r u s t r a ç ã o e raiva — p o r t e r e m sido a f a s t a d a s d o "país d o v o d u m " , o n d e
d e s f r u t a v a m de t o d a s o r t e de regalias — , t e n t a n d o b a t e r n o s v i z i n h o s d o t e m -
plo c o m p e d r a s e paus, ao t e m p o q u e estes as x i n g a m , d i z e n d o q u e n u n c a mais
v o l t a r ã o "ao país d o v o d u m " . N a Bahia p e r s i s t i u a m e s m a d i n â m i c a e c o m -
p o r t a m e n t o r i t u a l , p o r é m m u d o u a lógica da sua s i g n i f i c a ç ã o . A m e t á f o r a d a
g u e r r a d e escravos foi e s q u e c i d a , talvez p o r q u e essa p r á t i c a n ã o f o r m a v a p a r -
te d a r e a l i d a d e social c o l o n i a l , s e n d o q u e a cólera da v o d ú n s i p a s s o u a ser
e x p l i c a d a c o m o m a n i f e s t a ç ã o d a agressividade de u m a d e t e r m i n a d a e n t i d a -
de e s p i r i t u a l .
O p r e c e i t o d o gra é t a m b é m c o n h e c i d o n o r i t o a n g o l a , s o b a d e n o m i n a -
ção d e inkita o u enquite. Para B i n o n C o s s a r d , "a o r i g i n a l i d a d e d a i n i c i a ç ã o
a n g o l a residia p r i n c i p a l m e n t e n o inkita, essa p r o v a d o m a t o q u e d e i x o u de
43
realizar-se nos a n o s 1950". N ã o é possível especificar se n o Brasil h o u v e u m a
a s s i m i l a ç ã o a n g o l a d e p r á t i c a s jejes o u se foi u m caso de c o n v e r g ê n c i a . E m
q u a l q u e r caso, trata-se de u m o u t r o e x e m p l o da a n t i g a i n t e r p e n e t r a ç ã o de prá-
ticas religiosas jeje e a n g o l a . T o d a v i a , nas casas jejes de C a c h o e i r a c o m espa-
ço de m a t o o gra c o n t i n u a a realizar-se.
O p r o c e s s o de i n i c i a ç ã o c u l m i n a c o m u m a terceira a p r e s e n t a ç ã o da vo-
d ú n s i no b a r r a c ã o , a "obrigação de dar o n o m e " ( h u i n ) . A festa é p ú b l i c a e das
mais c o n c o r r i d a s e i m p o r t a n t e s em q u a l q u e r terreiro. D e a l g u m a f o r m a , é u m a
d e m o n s t r a ç ã o de t u d o o q u e a v o d ú n s i a p r e n d e u d u r a n t e a i n i c i a ç ã o e, ao
m e s m o t e m p o , é u m teste para calibrar a c o m p e t ê n c i a da l i d e r a n ç a q u e s u p e r -
visou o processo. A o b r i g a ç ã o é parecida nas várias nações de C a n d o m b l é , m a s
p o d e a p r e s e n t a r d i f e r e n ç a s em d e t a l h e s . N o r m a l m e n t e , d i v i d e - s e e m três saí-
das o u a p r e s e n t a ç õ e s da v o d ú n s i i n c o r p o r a d a n o salão. Ela a p a r e c e r a s p a d a e
p i n t a d a em várias p a r t e s d o c o r p o , d e f o r m a d i f e r e n t e e m cada ocasião, c o m
efun ( t i n t u r a b r a n c a ) , wuaje ( t i n t u r a azul) e ossum ( t i n t u r a v e r m e l h a ) . Final-
m e n t e , o v o d u m aparece p a r a m e n t a d o c o m suas vestes e e m b l e m a s rituais e,
após ser p e r g u n t a d o várias vezes, dá s u b i t a m e n t e u m p u l o n o ar e exclama em
alta voz o seu n o m e , g e r a n d o g r a n d e e n t u s i a s m o entre os assistentes e a manifes-
tação de o u t r a s d i v i n d a d e s nos filhos da casa. Segue d e p o i s u m a c e r i m ó n i a
c o m u m c o m c a n t o s e d a n ç a s p a r a t o d a s as divindades. 4 ' 1
Existe certa c o n t r o v é r s i a em relação à c a p a c i d a d e q u e t ê m os v o d u n s e ori-
xás p a r a falar. D e m o d o geral, d u r a n t e a iniciação, q u a n d o p o s s u í d a pela sua
d i v i n d a d e , a v o d ú n s i n ã o fala, e seria só no final da i n i c i a ç ã o , a n t e s de d a r o
n o m e , q u e se realiza u m rito p a r a "abrir a fala" d o v o d u m . A l g u n s especialistas

329
L U I S N I C O L A U PA R É S

religiosos a p o n t a m q u e , "no jeje, o s a n t o tira a c a n t i g a dele a p ó s o n o m e " ,


isto é, os v o d u n s p o d e m falar e, nos rituais, eles m e s m o s p u x a m os seus cantos,
u m c o m p o r t a m e n t o t a m b é m o b s e r v a d o n o s c u l t o s v o d u n s d o M a r a n h ã o e da
área gbe. N o e n t a n t o , na Bahia, essa regra t e m exceções, s e n d o q u e a l g u n s
v o d u n s n ã o f a l a m e o u t r o s só c a n t a m . N o C a n d o m b l é n a g ô - k e t u , em geral,
o orixá n ã o c a n t a , e os seus c a n t o s são p u x a d o s p o r terceiros. O r a , o u t r o s
especialistas religiosos d i z e m q u e o r i t o d e "abrir a fala" é p r ó p r i o d o k e t u e
q u e é r e a l i z a d o a n t e s de d a r o n o m e ; o u t r o s d i z e m q u e a fala n o k e t u se abre
só p a r a as e b o m e s ( d a n ç a n t e s c o m m a i s de sete a n o s d e i n i c i a d a s ) . 4 5
A p ó s " d a r o n o m e " , inicia-se a p a u l a t i n a i n c o r p o r a ç ã o d a v o d ú n s i à vida
secular e a sua r e i n t e g r a ç ã o à f a m í l i a biológica. N o B e n i m , esse processo p o d e
d u r a r meses e é m a r c a d o p o r u m a c o m p l e x a s e q u ê n c i a de r i t u a i s . A p ó s a ter-
ceira e ú l t i m a a p r e s e n t a ç ã o p ú b l i c a , c h a m a d a hun su dide ("o l e v a n t a m e n t o
d a s p r o i b i ç õ e s " ) , segue u m a s e m a n a de festas p ú b l i c a s , n o f i n a l d a q u a l a vo-
d ú n s i r e c e b e o seu nome r i t u a l . Realiza-se d e p o i s o ahwan tua uliye (a g u e r r a
vai c a p t u r a r elas), r i t u a l d o q u a l já falei ao descrever a o b r i g a ç ã o d o gra. N a
s u a c o n d i ç ã o de escravas, as v o d ú n s i s p e r m a n e c e m a i n d a três dias n o t e m p l o .
C o m o p e s s o a s q u e r e n a s c e r a m n u m a n o v a v i d a e s p i r i t u a l , elas e s q u e c e r a m
t u d o a r e s p e i t o da v i d a dos m o r t a i s e d e v e m r e a p r e n d e r as a t i v i d a d e s m u n d a -
n a s , e s p e c i a l m e n t e o c o m é r c i o e os deveres c o n j u g a i s . Para isso, c e l e b r a m - s e
várias obrigações, c o m o a c h a m a d a v o d ú n s i lè na sa gi (as v o d ú n s i s vão v e n d e r
acaçá), e m q u e elas v ã o ao m e r c a d o v e n d e r acaçá; e a e na da asu (as n o v i ç a s
v ã o casar), t a m b é m c h a m a d a zan kpíkpé (o e n c o n t r o da esteira), e m q u e as
v o d ú n s i s realizam u m a p a n t o m i m a d o a t o sexual c o m u m a c r i a n ç a d o sexo
o p o s t o n u m a esteira.
A p ó s esse p r o c e s s o , a f a m í l i a deve p a g a r u m a q u a n t i d a d e s i m b ó l i c a ao
vodunon p a r a c o m p r a r a l i b e r d a d e das escravas, n u m r i t u a l c h a m a d o kanumò
xl xò (a c o m p r a d o s escravos), e, assim, a v o d ú n s i r e t o r n a a sua casa, e m b o r a
n o r m a l m e n t e m o s t r e resistência. A p ó s três meses, celebra-se u m a c e r i m ó n i a
c h a m a d a du lè gbe e, seis meses m a i s t a r d e , o u t r a c h a m a d a ^ ô g ^ e (jogar a lín-
g u a ) , q u e p e r m i t e à v o d ú n s i falar de n o v o a l í n g u a c o m u m e n ã o mais a l í n g u a
r i t u a l d o v o d u m . O u t r a s c e r i m ó n i a s c o m sacrifícios v o t i v o s p o d e m o c o r r e r
n o s a n o s s e g u i n t e s . V e m o s , assim, c o m o a r e i n t e g r a ç ã o social da v o d ú n s i é
u m processo paulatino.
N a B a h i a , e m b o r a de m o d o f r a g m e n t a d o , e n c o n t r a m o s várias c o r r e s p o n -
d ê n c i a s e r e s s o n â n c i a s dessas p r á t i c a s a f r i c a n a s , q u e v ê m c o n f i r m a r a i m p o r -
t â n c i a d o s c u l t o s de v o d u m c o m o m o d e l o o r g a n i z a c i o n a l d o C a n d o m b l é . N o
caso d o gra, c o m o já n o t e i , p e r s i s t i u o c o m p o r t a m e n t o c o l é r i c o d o r i t u a l
abwan wa uli ye, e m b o r a a m e t á f o r a e x p l i c a t i v a d a g u e r r a fosse e s q u e c i d a .

330
O RITUAL

C o n t u d o , se a r e f e r ê n c i a à captura de escravos se p e r d e u , n ã o a c o n t e c e u o
m e s m o c o m a m e t á f o r a d a e s c r a v i d ã o . O Alabama já r e g i s t r a v a c o m o as
v o d ú n s i s , " f i n d o este t e m p o [de i n i c i a ç ã o ] , s a e m e a i n d a vão servir c o m o
escravas à pessoa q u e as c o m p r a n o s a n t o " . 4 6 C o m e f e i t o , o r i t u a l a f r i c a n o
kanumò xi xò (a c o m p r a dos escravos), e m q u e a v o d ú n s i era r e s g a t a d a pela
f a m í l i a , p e r s i s t i u até r e c e n t e m e n t e n a B a h i a , p o r é m sob o n o m e d e a compra
das iaôs. Essa o b r i g a ç ã o c o n s i s t i a n u m a p a n t o m i m a d e u m leilão em q u e a
m ã e o u p a i - d e - s a n t o v e n d i a a n o v i ç a a u m m e m b r o da c o n g r e g a ç ã o religiosa,
a q u e m a iaô passava a servir. N a a u s ê n c i a d e c o m p r a d o r , a n o v i ç a ficava su-
j e i t a à m ã e o u p a i - d e - s a n t o . 4 7 Gaiaku Luiza l e m b r a v a q u e a v o d ú n s i era c o n s i -
d e r a d a u m a "escrava" e q u e só após sete a n o s "ficava liberada, alforriada". 4 8 E m
m u i t o s casos, era d u r a n t e esse p e r í o d o de "escravidão" q u e a v o d ú n s i , de igual
m o d o q u e as antigas escravas de g a n h o , ia à r u a v e n d e r acarajé o u o u t r a s igua-
rias para p o d e r pagar os custos da iniciação, o u seja, a sua e m a n c i p a ç ã o . 4 9
T o d a v i a , n a s casas jejes o p a p e l de q u i t a n d e i r a é r e p l i c a d o n o b a r r a c ã o ,
n o c o n t e x t o d e u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a quitanda das iaôs. Sem ser a m e s m a
coisa, esse r i t u a l evoca a o b r i g a ç ã o a f r i c a n a da venda do acaçá a c i m a m e n c i o -
n a d a . Já C a r n e i r o falava da quitanda, "essa c e r i m ó n i a e m q u e se v e n d e m ( o u
se f u r t a m ) a l i m e n t o s o u f r u t a s p r e p a r a d o s o u a d q u i r i d o s pelas iaôs, a l g u m a s
s e m a n a s a n t e s de c o m p l e t a d a a sua i n i c i a ç ã o " . N o B o g u m e n o Seja H u n d é a
quitanda era c e l e b r a d a d e p o i s de a v o d ú n s i dar o nome. C o m o explicava hum-
bono V i c e n t e , " b o t a v a esteira e lençol n o c h ã o " e os erês c h a m a v a m as pessoas
p a r a vir c o m p r a r as f r u t a s , d i z e n d o aemi lé ó; e alejo hun bo". N o m e a v a m as
f r u t a s e os d o c e s e m l í n g u a a f r i c a n a e, n u m c l i m a b e m d e s c o n t r a í d o , "o p e s -
soal faz a c o m p r a ; m e t e a m ã o e faz q u e r o u b a , aí ele [o erê] ogo jo, m e t e o
cipó [...] b a t e c o m c i p ó " . D a v a g r a n d e c o n f u s ã o , até e n t r a r "o aniban, o solda-
d o , a pessoa se veste de s o l d a d o " e, s i m u l a n d o disparos n o ar, t e n t a pôr o r d e m
na sala. É nesse m o m e n t o d e p â n i c o q u e o erê foge p a r a o m a t o , d a n d o i n í c i o
à o b r i g a ç ã o d o gra ( o u o inkita, n o r i t o angola). 5 0
C a b e n o t a r q u e a quitanda é t a m b é m u m segmento ritual distintivo da
n a ç ã o a n g o l a , o q u e v e m i n d i c a r a a n t i g a s i m b i o s e j e j e - a n g o l a já a p o n t a d a
e m relação a o u t r o s e l e m e n t o s . B i n o n C o s s a r d f o r n e c e u m a descrição da o b r i -
g a ç ã o nessa n a ç ã o e c o n f i r m a q u e a quitanda " t a m b é m n ã o existe n o s c a n -
d o m b l é s k e t u " . 5 1 N e s s e d i s c u r s o de s e m e l h a n ç a s e c o n t r a s t e s , a l g u n s especia-
listas religiosos t a m b é m i n s i s t e m q u e n a n a ç ã o jeje " n ã o h á p a n ã c o m o n o
k e t u " . O p a n ã é u m a o b r i g a ç ã o q u e nas casas dessa n a ç ã o p r e c e d e ao leilão
o u à compra das iaôs e c o n s i s t e na s i m u l a ç ã o de u m a série de ações c o t i d í a n a s ,
c o m o levar á g u a n a cabeça, passar a f e r r o , coser, c o z i n h a r etc. O erê t e n t a
d e m o n s t r a r suas h a b i l i d a d e s , p o r é m g e r a l m e n t e c o m m u i t a b r i n c a d e i r a e

331
L U I S N I C O L A U PA R É S

p o u c o sucesso. Essa o b r i g a ç ã o t a m b é m inclui imitações da venda d e a l i m e n t o s


n o m e r c a d o e de u m a missa, c o m a s u b s e q u e n t e e n c e n a ç ã o d o s deveres c o n -
j u g a i s . D e f a t o , e m b o r a b o j e e m dia seja c o n s i d e r a d o u m r i t u a l k e t u , o p a n ã
inclui claros e l e m e n t o s de r i t u a i s da área gbe c o m o o e na da asu (as noviças
vão casar). O caso exemplificaria c o m o sinais diacríticos de u m a n a ç ã o p o d e m
ter s i d o e m p r é s t i m o s d e o u t r a q u e já os e s q u e c e u c o m o p r ó p r i o s .
Seja c o m o for, o a p r e n d i z a d o da v o d ú n s i se p r o l o n g a p o r t o d a a v i d a , n o
c o n v í v i o c o t i d i a n o da c o n g r e g a ç ã o religiosa. A i d e n t i d a d e e s p i r i t u a l da pes-
soa irá se c o n f i g u r a n d o e c o n s t r u i n d o a p a r t i r d o a s s e n t a m e n t o sucessivo das
entidades espirituais secundárias, que a c o m p a n h a m o "dono da cabeça".
N o r m a l m e n t e , esses rituais o c o r r e m d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s q u e a v o d ú n s i deve
realizar 1, 3, 7 e 21 a n o s após a i n i c i a ç ã o . C o m sete a n o s a v o d ú n s i a d q u i r e
a s e n i o r i d a d e . É a p a r t i r desse m o m e n t o q u e , n o k e t u , a e b o m e p o d e receber
o d e c á , t í t u l o q u e lhe c o n f e r e o d i r e i t o p a r a a b r i r u m n o v o t e r r e i r o . E m b o r a
esse t e r m o seja de o r i g e m gbe, a l u d i n d o à c a b a ç a (ka) na q u a l são e n t r e g u e s
os u t e n s í l i o s p a r a a n o v a m ã e - d e - s a n t o i n i c i a r os filhos-de-santo, n o jeje se
diz q u e não h á decá.
A o r t o d o x i a reza q u e "no j e j e n ã o t e m posse, é p o r h i e r a r q u i a " , isto é,
q u a n d o m o r r e a doné o u d i r i g e n t e de u m t e r r e i r o , ela é s u b s t i t u í d a pela v o -
d ú n s i m a i s a n t i g a , e em teoria n ã o haveria p o s s i b i l i d a d e d e a b r i r casas filiais.
U m a v o d ú n s i c o m sete a n o s p o d e r i a a p e n a s "raspar e p i n t a r " n o v o s filhos,
m a s n ã o a b r i r casa p r ó p r i a . C o m o v i m o s , esse d i s c u r s o — r e c o r r e n t e e m
Salvador, C a c h o e i r a e São Luís — p o d e r i a ter s i d o e l a b o r a d o e l e g i t i m a d o
pelos líderes das casas jejes mais antigas, para evitar d i s s i d ê n c i a s i n t e r n a s n o s
processos de sucessão, e explicaria t a m b é m a d i f i c u l d a d e de e x p a n s ã o dos ter-
reiros jejes. N o e n t a n t o , as exceções à n o r m a são n u m e r o s a s , e a f u n d a ç ã o d e
novos t e r r e i r o s q u e se a u t o d e n o m i n a m jejes c o n t i n u a até h o j e .
C o n c l u i n d o , e m relação à i n i c i a ç ã o , a n a ç ã o j e j e - m a h i caracteriza-se p o r
realizar u m a série de r i t u a i s , c o m o o s a r a p o c ã , o kpole o u o " t o m a r hunvé",
q u e são e s p e c i f i c a m e n t e jejes, e p o r c o m p a r t i l h a r o u t r o s c o m os angolas, c o m o
o gra o u a quitanda, q u e n ã o são p r a t i c a d o s no rito k e t u . O f a t o r d i f e r e n c i a l
d o rito jeje p o r c o n t r a s t e c o m o k e t u é t a m b é m expresso n o d i s c u r s o dos seus
p r a t i c a n t e s , i n s i s t i n d o na a u s ê n c i a do p a n ã ou d o decá, rituais que, n o e n t a n -
to, p a r e c e r i a m e n c o n t r a r a n t e c e d e n t e s n o s c u l t o s de v o d u m da área gbe. O s
e x e m p l o s do p a n ã e d o d e c á m o s t r a m c o m o u m a n a ç ã o p o d e acabar p o r assi-
m i l a r e a d a p t a r s e g m e n t o s r i t u a i s a l h e i o s , q u e c o m o t e m p o p a s s a m a ser
c o n s i d e r a d o s c o m o p r ó p r i o s . Nesse caso, os sinais d i a c r í t i c o s n ã o são neces-
s a r i a m e n t e r e s u l t a d o de c o n t i n u i d a d e s h i s t ó r i c a s , mas c o n s e q u ê n c i a d o p r o -
cesso de c o n t r a s t e d i a l ó g i c o q u e se p r o d u z i u e n t r e c o n g r e g a ç õ e s religiosas

332
O RITUAL

c o n c o r r e n t e s n o Brasil. Esses f o r a m alguns dos aspectos i d e n t i f i c a d o s na pes-


quisa, mas é claro q u e existem o u t r o s q u e só um c o n h e c i m e n t o i n t e r n o das
práticas iniciáticas das várias nações de C a n d o m b l é p o d e r i a revelar.

A E S T R U T U R A D O CICLO D E FESTAS: C A L E N D Á R I O S E S E G M E N T O S R I T U A I S

C o m p l e m e n t a r m e n t e às obrigações de iniciação, os terreiros celebram a cada


ano u m ciclo de cerimónias que c o m p o r t a u m a série de obrigações privadas e
outras públicas. As obrigações privadas giram em volta d o c o m p l e x o "assento-
ebó" e consistem, p r i n c i p a l m e n t e , em rituais de limpeza dos assentos (ossé) e
em oferendas animais e alimentícias aos v o d u n s , no peji ou nos atinsa. Atra-
vés dessas o f e r e n d a s p r o p i c i a t ó r i a s , visa-se regenerar o axé das d i v i n d a d e s e,
em d e c o r r ê n c i a disso, regenerar o axé d a congregação religiosa. Ê o p r i n c í p i o
de troca, dar para receber. N ã o é por acaso q u e essas obrigações são conside-
radas as mais i m p o r t a n t e s . As obrigações públicas, os t o q u e s de t a m b o r c o m
danças e m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s n a cabeça das vodúnsis, celebradas no bar-
racão, c o n s t i t u e m a parte social da atividade ritual e visam m o s t r a r e c o m p a r -
tilhar a "força" das divindades com a c o m u n i d a d e mais ampla. As festas públi-
cas c o n t r i b u e m , desse m o d o , para a visibilidade social da congregação religio-
sa n o â m b i t o da sociedade mais a b r a n g e n t e e, além da sua d i m e n s ã o religiosa,
elas têm u m a d i m e n s ã o de espetáculo a u s e n t e nas obrigações privadas.
C o m o nos processos de iniciação, no â m b i t o d o ciclo de festas anuais os
terreiros j e j e - m a h i s se d i s t i n g u e m pela celebração de u m a série de s e g m e n t o s
rituais q u e lhes são p r ó p r i o s , c o m o as obrigações de Aizan, Legba e O g u m
X o r o q u e , o zandró, o boitá, a o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i e, n o B o g u m , a
obrigação de A z o n o d o . O s p r a t i c a n t e s jejes t a m b é m i d e n t i f i c a m sua liturgia
pela ausência de certas obrigações típicas da nação k e t u , c o m o o padê o u as
obrigações da C a b e ç a de Boi de Oxóssi, do o l u b a j é de O m o l u e das águas de
Oxalá.
O ciclo de festas anuais nos terreiros j e j e - m a h i s acontece e n t r e d e z e m b r o
e fevereiro, c o m p l e m e n t a d o p o r u m a obrigação c h a m a d a Fogueira de Sogbo,
no p e r í o d o de São João, em j u n h o . D u r a n t e o resto do ano p o d e ser realizada
alguma obrigação ocasional em f u n ç ã o das necessidades dos m e m b r o s da con-
gregação ou clientela, e m b o r a , c o m o na maioria dos terreiros, d u r a n t e a Q u a -
resma, após o carnaval, as atividades sejam suspensas por várias semanas. A
c o n c e n t r a ç ã o da a t i v i d a d e ritual j e j e - m a h i de d e z e m b r o a fevereiro t a m b é m
coincide c o m o p e r í o d o em que, no B e n i m , a maioria de t e m p l o s v o d u n s rea-
liza suas festas, s e n d o d e z e m b r o o m a r c o d o fim da t e m p o r a d a das chuvas. A

333
L U I S N I C O L A U PA R É S

a t i v i d a d e r i t u a l jeje p a r e c e , assim, a d a p t a r - s e ao c a l e n d á r i o c a t ó l i c o i m p o s t o
pelo c o n t e x t o c o l o n i a l , ao t e m p o q u e preserva traços d o a n t i g o c a l e n d á r i o
africano.
A T a b e l a 8 m o s t r a u m e s q u e m a básico d o ciclo de o b r i g a ç õ e s a n u a i s se-
g u n d o são realizadas n o s terreiros Seja H u n d é e H u n t o l o j i de C a c h o e i r a . Cabe
n o t a r q u e a o r d e m , h o r á r i o s e d u r a ç ã o das a t i v i d a d e s r i t u a i s estão s u j e i t o s ao
r i t m o de cada casa, e h á u m a relativa f l e x i b i l i d a d e p a r a m u d a r s e g u n d o as
c i r c u n s t â n c i a s e as n e c e s s i d a d e s d o m o m e n t o . N o s ú l t i m o s a n o s , p o r exem-
p l o , o c a l e n d á r i o foi r e d u z i d o e m a m b o s os t e r r e i r o s , c o n c e n t r a n d o - s e as
a t i v i d a d e s em d u a s o u três s e m a n a s , m o d i f i c a ç ã o q u e p o d e ser a t r i b u í d a à
a v a n ç a d a i d a d e dos líderes religiosos e à sua n e c e s s i d a d e d e e c o n o m i z a r ener-
gias. N o p a s s a d o , q u a n d o as o b r i g a ç õ e s se e s t e n d i a m p o r m a i s d e u m mês,
as " m a t a n ç a s " , nas p r i m e i r a s s e m a n a s , c o m p o r t a v a m g e r a l m e n t e a p e n a s sa-
crifícios de a n i m a i s de p e n a , e n q u a n t o n a s e m a n a q u e p r e c e d i a ao boitá e r a m
i m o l a d o s a n i m a i s de q u a t r o pés. C o n t u d o , a c o n c e n t r a ç ã o r i t u a l e a relativa
brevidade do calendário t a m b é m constituem u m a i m p o r t a n t e característica
da l i t u r g i a jeje.
E n q u a n t o n a m a i o r i a de t e r r e i r o s d e C a n d o m b l é os c a l e n d á r i o s estão or-
g a n i z a d o s n u m a série d e festas sucessivas, cada u m a delas d e d i c a d a a u m a
d i v i n d a d e p a r t i c u l a r , n a n a ç ã o j e j e - m a h i de C a c h o e i r a t o d a s as d i v i n d a d e s
são c e l e b r a d a s c o n j u n t a m e n t e . E m o u t r a s palavras, d u r a n t e a " m a t a n ç a " são
feitas o f e r e n d a s a t o d o s os v o d u n s na m e s m a o b r i g a ç ã o , e d u r a n t e as festas
p ú b l i c a s são l o u v a d a s t o d a s as d i v i n d a d e s . Essa e s t r u t u r a r i t u a l de sacrifícios
e c e l e b r a ç ã o coletivos r e f o r ç a a h i p ó t e s e d e q u e o c u l t o de m ú l t i p l a s d i v i n -
d a d e s esteve a r r a i g a d o n o C a n d o m b l é jeje d e s d e a sua c o n s t i t u i ç ã o .
C o n t u d o , o c a l e n d á r i o d e festas d o B o g u m se afasta d o m o d e l o de C a -
choeira para seguir u m a e s t r u t u r a similar à dos terreiros n a g ô - k e t u s , c o m obri-
gações específicas para c a d a d i v i n d a d e , c e l e b r a d a s e m s e m a n a s c o n s e c u t i v a s .
O a n o l i t ú r g i c o inicia-se c o m o ossé ( l i m p e z a d o altar) e a festa de Olissá, em
clara c o r r e s p o n d ê n c i a c o m o ciclo das A g u a s de O x a l á , c e l e b r a d o nas casas
k e t u s " t r a d i c i o n a i s " . A s e q u ê n c i a de festas t a m b é m está d i v i d i d a , c o m o nes-
sas casas, n u m a p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " b r a n c a s " (Olissá, D a n ) , e o u -
tra p a r t e d e d i c a d a às d i v i n d a d e s " v e r m e l h a s " ou d o azeite (Sogbo, O j o n s u ) . 5 2
A i m p o r t a n t e d i f e r e n ç a n o c a l e n d á r i o e na e s t r u t u r a r i t u a l o b s e r v a d a e n t r e
as casas de C a c h o e i r a e B o g u m talvez t e n h a sido c o n d i c i o n a d a pelos c o n t e x t o s
r u r a l e u r b a n o desses t e r r e i r o s e p e l o m a i o r c o n t a t o d o B o g u m c o m os ter-
reiros n a g ô - k e t u s de Salvador. Esse caso é t a m b é m u m b o m e x e m p l o da possi-
b i l i d a d e d e processos d e m u d a n ç a d i v e r g e n t e s d e n t r o d a p r ó p r i a n a ç ã o jeje,
f a t o q u e d i f i c u l t a falar d e u m a ú n i c a l i t u r g i a .

334
O RITUAL

Tabela S — E s t r u t u r a b á s i c a do ciclo de
o b r i g a ç õ e s n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i de Cachoeira

Semana Dia Horário Obrigação

Sábado Após as 18 horas Obrigação de Aizan 5 3

Noite Zondró

Domingo Manhã Obrigação de Legba e Ogum Xoroque

1 — jSocrilícios votivos (matança) e oferendas

Noile Festa público

Segunda a quinto — [ Rezas e outros obrigações internas

Sexta — Descanso

Sábodo Noite Zanilró

Domingo Tarde Boitá

Noite Festa pública


2 1
Terça — j Encerramento do boitá

Quarta Manhã Obrigação de Aiiti Tobosi

Sexta — Descanso

3 Domingo de Carnaval — Limpeza da casa e encerramento

LEGBA, O G U M X O R O Q U E E AIZAN: OBRIGAÇÕES DE ABERTURA

N o s terreiros j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a observa-se q u e , apesar de possíveis


inversões de o r d e m , o ciclo de festas anuais se inicia c o m as obrigações para
Aizan, O g u m X o r o q u e e Legba, d i v i n d a d e s características e exclusivas da
nação jeje. N e n h u m a dessas e n t i d a d e s "raspa n i n g u é m " e, p o r t a n t o , não se
m a n i f e s t a m em c o r p o h u m a n o . 5 4 Aizan está ligado aos ancestrais da c o m u -
n i d a d e , e O g u m X o r o q u e e Legba são os mensageiros q u e a b r e m o c a m i n h o
para os d e m a i s v o d u n s , p o r isso são h o m e n a g e a d o s e m p r i m e i r o lugar. Esses
três v o d u n s t a m b é m a t u a m c o m o os guardiões do terreiro.
Legba corresponde a Exu ou Elegbará na nação nagô. Trata-se de u m a figura
multifacetada, c o m diversos atributos e funcionalidades que t o r n a m difícil uma
definição. Legba, c o m o Exu, é considerado o princípio d i n â m i c o d o universo,

335
LUIS NICOLAU PA R É S

o a g e n t e que ativa q u a l q u e r processo. Ele é o m e n s a g e i r o e n t r e os h o m e n s e os


deuses, q u e m leva os recados e traz de volta a resposta, ele é o i n t e r m e d i á r i o , o
l i n g u i s t a , o t r a d u t o r , e foi ele q u e m revelou os segredos da a d i v i n h a ç ã o aos
h u m a n o s . Legba é t a m b é m o d o n o dos c a m i n h o s , ele os abre e os fecha, ele
vem s e m p r e n a f r e n t e dos o u t r o s v o d u n s e orixás q u a n d o se m a n i f e s t a m na ter-
ra. Ele é o trickster por excelência, jovial, a s t u c i o s o , v a i d o s o , susceptível, iras-
cível, c a p r i c h o s o , grosseiro, i n d e c e n t e ; p o d e a j u d a r e solucionar q u a l q u e r pro-
b l e m a , o u a t r a p a l h a r e p r o v o c a r d e s o r d e m , brigas e a c i d e n t e s ; p o d e reunir
i n i m i g o s ou s e p a r a r a m i g o s , t r a b a l h a r p a r a o b e m o u p a r a o m a l . Esquecer
dele traz as p i o r e s c o n s e q u ê n c i a s . Legba t a m b é m simboliza o p r i n c í p i o mascu-
lino e p o d e ser r e p r e s e n t a d o , c o m o n o B e n i m , p o r u m a figura c o m u m falo
de g r a n d e s p r o p o r ç õ e s .
Já e m 1741, na Obra nova da língua geral de mina, Peixoto i d e n t i f i c a "Leba"
com " D e m ó n i o " . " Em Salvador, em 1871, O Alabama denuncia u m africano
m o r a d o r em S ã o M i g u e l , q u e t i n h a "um q u a r t o p r e p a r a d o e m f o r m a de t e m -
plo c o m imagens idolatras de diversas espécies" e, e n t r e elas, "a figura do d i a b o
(Lebal) vestido de c a p o n a , o qual é u m dos mais milagrosos". 5 6 Essa i d e n t i f i -
cação de Legba c o m o diabo, e m b o r a errada e preconceituosa, persiste até nossos
dias. D e v e m o s esperar a o b r a de N i n a R o d r i g u e s para e n c o n t r a r a p r i m e i r a
r e f e r ê n c i a a E s ú (Esú Bará ou Elegbará) na Bahia.
A t u a l m e n t e , nos terreiros jejes são c o n h e c i d o s e c u l t u a d o s , além de Legba,
u m a p l u r a l i d a d e de " q u a l i d a d e s " referidas c o m o Exus, o q u e i n d i c a u m a p r o -
gressiva p e n e t r a ç ã o dos r e f e r e n t e s nagôs e m relação a essa f i g u r a . D e m o d o
i l u s t r a t i v o p o d e m ser c i t a d o s : L a l u , T i r i r i , Birigui, A g b o , q u e " t o m a c o n t a das
folhas", O b a r á , " d o n o d o d i n h e i r o " , M i r i m , "dos Ibeji", e V e r e k e t u (talvez
u m a evolução fonética de Averekete), que a c o m p a n h a Legba e O g u m Xo-
roque.^
O g u m X o r o q u e é u m a o u t r a d i v i n d a d e m u i t o c o n h e c i d a nos terreiros jejes.
Tem o a s s e n t o l o c a l i z a d o s e m p r e n a e n t r a d a da roça, c e r c a d o de u m a série
de paus p l a n t a d o s na terra em f o r m a de c í r c u l o , q u e s o b r e s s a e m u n s 30 c e n t í -
m e t r o s e estão e n t r e l a ç a d o s c o m c i p ó . O g u m X o r o q u e c u m p r e u m a f u n ç ã o
s e m e l h a n t e à de Legba o u E x u e, em certa m e d i d a , à de O g u m , nos t e r r e i r o s
n a g ô - k e t u s . Ele é o " o r d e n a n ç a d o s a n t o , d o n o da roça e d o n o dos c a m i n h o s ,
a b r e e f e c h a os c a m i n h o s " e está a s s o c i a d o c o m B e s s e n , O g u m e o u t r o s
v o d u n s . O g u m X o r o q u e n ã o aparece d o c u m e n t a d o na e t n o g r a f i a da área gbe,
o q u e sugere q u e p o d e r i a ser u m a e n t i d a d e a s s i m i l a d a de o u t r a n a ç ã o e pos-
t e r i o r m e n t e t r a n s f o r m a d a ; talvez u m a j u s t a p o s i ç ã o d o n o m e d o orixá O g u m
c o m o de iami O x o r o n g a ( m ã e a n c e s t r a l ) , o u c o m o d o orixá O l o r o q u ê , p e r -
tencente à nação efon.,s

336
O RITUAL

O papel de Aizan, Legba e O g u m X o r o q u e c o m o " e n t i d a d e s q u e v ê m na


f r e n t e " fica expresso, pelo m e n o s , e m três níveis: 1) n o lugar de p r e c e d ê n c i a
q u e o c u p a m suas o b r i g a ç õ e s na o r d e m das festas; 2) na c e r i m ó n i a d o zandró,
em q u e seus c a n t o s t a m b é m a n t e c e d e m àqueles dos d e m a i s v o d u n s ; e 3) n a lo-
calização de seus assentos n o espaço físico, o c u p a n d o a z o n a f r o n t a l da casa o u
d o terreiro. N o caso d e Legba e O g u m X o r o q u e , essa localização nas e n t r a d a s
e p o r t a s está em c o n s o n â n c i a c o m o seu papel de guardiões.
As o b r i g a ç õ e s d e d i c a d a s a essa t r í a d e d e " m e n s a g e i r o s " t ê m p o r o b j e t i v o
p r i n c i p a l p r o p i c i a r a a b e r t u r a dos c a m i n h o s e, a p a r t i r da sua m e d i a ç ã o , vei-
cular a c h a m a d a e o f e r e n d a s às o u t r a s d i v i n d a d e s . N o caso de Legba, c o m o
a c o n t e c e c o m o E x u n a g ô , p o r vezes se fala e r r o n e a m e n t e q u e ele é " d e s p a -
c h a d o " ( a f a s t a d o ) p a r a g a r a n t i r a sua n ã o - i n t e r v e n ç ã o c o n f l i t u o s a n o d e s e n -
v o l v i m e n t o das c e r i m ó n i a s p o s t e r i o r e s . J á s e g u n d o os especialistas religiosos,
Legba fica o t e m p o t o d o p r e s e n t e e ele é " d e s p a c h a d o " ( a t e n d i d o ) p a r a q u e
proteja e afaste do terreiro qualquer outra entidade espiritual p e r t u r b a d o r a .
N o seu c o n j u n t o , a f u n c i o n a l i d a d e d e a b e r t u r a das o b r i g a ç õ e s dessas três en-
t i d a d e s l e m b r a c e r t o s aspectos d o p a d ê , o u " d e s p a c h o de Exu", c e l e b r a d o n o s
t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s , mas n ã o se t r a t a da m e s m a coisa.
E l b e i m dos S a n t o s descreve e m d e t a l h e o p a d ê ( d o i o r u b á ipàdé, reunião)
n o Axé O p ô A f o n j á . A c e r i m ó n i a é o f i c i a d a pela i a m o r ô e suas assistentes, a
dagã e a sidagã. E x u , nas suas q u a l i d a d e s d e I n á (o f o g o ) , O j i s é (o m e n s a g e i -
ro o u e x e c u t o r ) e A g b o (o g u a r d i ã o ) , é i n v o c a d o p a r a levar o f e r e n d a s aos
ancestrais m a s c u l i n o s ( b a b a e g u n s ) , os f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o (esa) e os a n -
c e s t r a i s f e m i n i n o s ( i a m i ) . C a d a u m desses g r u p o s r e c e b e a t r a v é s d e E x u
o f e r e n d a s d i f e r e n c i a d a s . Por l i d a r c o m os e g u n s e, s o b r e t u d o , c o m i a m i
O x o r o n g a — r e p r e s e n t a n t e das mães ancestrais, associada c o m as ajés (feiticei-
ras) e as forças f e m i n i n a s mais agressivas — , o padê é c o n s i d e r a d o c o m o carre-
g a d o de perigo. E m terreiros ketus de f u n d a ç ã o mais recente o p a d ê p o d e apre-
s e n t a r f o r m a s m a i s simples, mas a i n v o c a ç ã o de E x u e a solicitação p a r a t r a n s -
p o r t a r a o f e r e n d a p r o p i c i a t ó r i a aos a n c e s t r a i s s e m p r e e n v o l v e o g e s t o de
d e r r a m a r água n a terra, n u m l u g a r a p r o p r i a d o n o exterior. 5 9
O g e s t o de d e r r a m a r á g u a n o c h ã o é t a m b é m r e p e t i d o n o r i t u a l j e j e d u -
r a n t e o zandró, q u a n d o se c a n t a p a r a L e g b a e O g u m X o r o q u e , e a h o m e -
n a g e m aos a n c e s t r a i s f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o c o r r e s p o n d e , n o jeje, à o b r i -
gação de Aizan. Portanto, embora existam ressonâncias do padê na liturgia
jeje, o u vice-versa, t a n t o a i d e n t i d a d e das d i v i n d a d e s m e d i a d o r a s c o m o as prá-
ticas rituais a elas associadas são d i f e r e n t e s , de m o d o q u e a a u s ê n c i a d o p a d ê ,
c o m o a p o n t a m os p r a t i c a n t e s jejes, c o n s t i t u i u m d o s t r a ç o s d i s t i n t i v o s da
l i t u r g i a jeje.

337
L U I S N I C O L A U PA R É S

A o b r i g a ç ã o de Aizan é de f u n d a m e n t a l i m p o r t â n c i a n a liturgia j e j e - m a h i
de C a c h o e i r a , e m b o r a Verger c o m e n t e q u e "no Brasil, q u a s e n ã o se fala mais
desse v o d u n " . Aizan, o u Ayizan, c o m o é c h a m a d o n o B e n i m , é u m v o d u m m u i -
to antigo, p r o v a v e l m e n t e originário de Aliada. Verger d o c u m e n t a d u a s tradições
sobre a sua o r i g e m . S e g u n d o ele, alguns "dizem q u e foi levado para lá [Aliada]
p o r A d j a h u t o , q u a n d o ele c h e g o u de T a d o . O u t r o s a f i r m a m q u e Ayizan já se
e n c o n t r a v a na região antes de sua chegada". Le Herissé parece sustentar a segun-
da versão q u a n d o diz q u e os h a b i t a n t e s originários de Aliada f o r a m os Aizonou
( h a b i t a n t e s Aizo), e q u e o e t n ô n i m o derivaria "do n o m e d o fetiche d a terra",
o u seja, Aizan. J á em 1668, D a p p e r descreve as o f e r e n d a s realizadas n o reino
de A r d r a a u m Fetisi " c o b e r t o p o r u m p o t e c o m orifícios", através d o qual o
s a c e r d o t e realiza c o n s u l t a s oraculares. C o m o a p o n t a Verger, "parece corres-
p o n d e r a Ayizan", pois a i n d a a t u a l m e n t e o assento desse v o d u m "é c o n s t i t u í d o
p o r u m m o n t í c u l o de terra [e areia de diversas p r o c e d ê n c i a s ] , em c i m a d o qual
se c o l o c a u m a jarra c o m p e q u e n o s orifícios, r o d e a d a p o r f r a n j a s de folhas de
dendezeiro (azan)".
A y i z a n é u m v o d u m e s t r e i t a m e n t e ligado ao e l e m e n t o terra. D e fato, ayi,
o u àí, a raiz d o seu n o m e , e m f o n g b e significa t e r r a o u chão. Verger diz q u e
ele é "o d o n o d a terra" e q u e representa "a esteira d a terra", "a c r o s t a terrestre".
D e m o d o s e m e l h a n t e a Legba, Ayizan é t a m b é m c o n s i d e r a d o o p r o t e t o r das
cidades e do país, assim c o m o , s o b r e t u d o , o " g u a r d i ã o ou, mais e x a t a m e n t e , o
s e n h o r d o m e r c a d o " . Ele é e n c o n t r a d o n o m e r c a d o das g r a n d e s cidades, tais
c o m o A b o m e y e U i d á . A l é m da sua d i m e n s ã o p ú b l i c a , "certas famílias t ê m u m
Ayizan p a r t i c u l a r , q u e as apoia, as dirige e castiga o m a u p r o c e d i m e n t o d o s
filhos". L e v a n d o em c o n t a esses cultos d o m é s t i c o s o u familiares, Verger c o n -
clui q u e Ayizan "é u m a espécie d e ancestral" i d e n t i f i c a d o c o m "a terra". 6 0
Nesse s e n t i d o se p o d e r i a p e n s a r q u e Ayizan foi m a i s u m a v a r i a n t e regional
dos a n t i g o s c u l t o s da terra e dos ancestrais, c o m o i n i c i a l m e n t e o f o r a m a q u e -
les de S a k p a t a e S h a p a n a a n t e s de serem i d e n t i f i c a d o s c o m as e p i d e m i a s d a
varíola (ver cap. 7). C o n s i d e r a r a terra u m a "espécie de ancestral" r e s p o n d e à
c o m b i n a ç ã o de d u a s ideias associadas e r e c o r r e n t e s e m várias partes da Africa
o c i d e n t a l . A p r i m e i r a é a crença de q u e os ancestrais m í t i c o s f u n d a d o r e s da
coletividade f a m i l i a r (hennu) — os c h a m a d o s tohwíyo no Benim — surgiram
o u n a s c e r a m d a terra. H e r s k o v i t s c o m e n t a que, às vezes, se c o n s i d e r a q u e o
tohwíyo t e m p o r p r o g e n i t o r s o b r e n a t u r a l Aizan. 6 ' A s e g u n d a é a crença de q u e
a terra é a m o r a d i a dos ancestrais d e f u n t o s , já q u e é na terra q u e eles são se-
p u l t a d o s e nela se realizam suas o f e r e n d a s .
Essa a n t i g a v i n c u l a ç ã o d e Aizan c o m a terra e os ancestrais é a q u e persiste
n a B a h i a , pois n o i n í c i o d a sua o b r i g a ç ã o são i n v o c a d o s os n o m e s d o s ances-

338
O RITUAL

trais f u n d a d o r e s d o t e r r e i r o e d o s d e f u n t o s m a i s ilustres da c o n g r e g a ç ã o reli-


giosa. D e v i d o , talvez, a essa ligação de Aizan c o m os kuvito (espíritos d e f u n t o s
o u eguns), t a m b é m se fala q u e "Aizan é a m o r t e " , m a s , e m p r o p r i e d a d e , além
de g u a r d i ã o da roça, esse v o d u m a t u a c o m o m e d i a d o r e n t r e os vivos e a a n -
cestralidade do t e r r e i r o , e aí, c o m o já sugeri, e n c o n t r a m o s u m p a r a l e l i s m o
e n t r e a o b r i g a ç ã o d e Aizan e o p a d ê d o r i t o n a g ô - k e t u . 6 2
Vejamos alguns d o s a s p e c t o s m a i s i m p o r t a n t e s da o b r i g a ç ã o de Aizan. 6 3
E m b o r a o seu ritual possa ser c e l e b r a d o antes d o p ô r - d o - s o l ( c o m o a c o n t e c e
n o H u n t o l o j i ) , Aizan é o ú n i c o v o d u m q u e p o d e t a m b é m " c o m e r " (receber
o f e r e n d a s ) de n o i t e , e a c e r i m ó n i a r e a l i z a - s e e m v o l t a d e u m e s p i n h o de
m a n d a c a r u (Cereus jamacaru), o n d e está a s s e n t a d o o v o d u m . D e p o i s da lim-
peza ou ossé ào altar e acender u m a vela, a luz para i l u m i n a r o c a m i n h o da divin-
dade, procede-se à c o n s u l t a oracular. A o tempo que as d u a s partes d o o r o b ô
(tipo de noz-de-cola) são esfregadas entre si, o ogã impé, o u o m e s t r e de c e r i m ó -
nia, invoca todos os ancestrais do terreiro (i.e., "ago L u d o v i n a Pessoa, ago M a r i a
Agorinsi, ago Abalha, etc."). F i n a l m e n t e , joga-se o o r o b ô p e d i n d o licença para
realizar o ritual.
Finalizada essa parte, os assistentes são "sacudidos", por o r d e m hierárquica,
c o m u m n ú m e r o variável de animais de p e n a , q u e o ogã impé faz passar repeti-
das vezes sobre a cabeça e o corpo de cada pessoa. Trata-se de u m a f o r m a de purifi-
cação ou limpeza dos corpos p o r transferência, q u e é c o m u m t a m b é m nos cultos
de v o d u m d o B e n i m . D e p o i s procede-se ao sacrifício dos animais. Aizan s e m p r e
"come" galinha e o corte realiza-se de u m a f o r m a específica. Segue-se u m a série
de três c a n t i g a s . A p r i m e i r a i n i c i a - s e c o m a f r a s e " E A i z a n , v o d u n A i z a n
bereo...", p e d i n d o ao v o d u m q u e aceite o sacrifício. 6 4 Após a imolação, o ogã
impé p r o c e d e às o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s (feijão, m i l h o , c a r u r u e o u t r o s ) . A p ó s
uns 45 m i n u t o s , os p a r t i c i p a n t e s r e c o l h e m os utensílios e v o l t a m ao barracão.
Mais tarde, as galinhas cozidas são "arriadas" o u a p r e s e n t a d a s n o pé de Aizan.
As obrigações para O g u m X o r o q u e e Legba são c o n s e c u t i v a s e c o n s i s t e m
t a m b é m em oferendas alimentícias e sacrifícios realizados nos seus assentos, mas
celebram-se s e m p r e de m a n h ã , pois diz-se q u e n ã o se dá c o m i d a a Legba de
t a r d e . N o Seja H u n d é , a o b r i g a ç ã o a c o n t e c e n o d o m i n g o a p ó s o p r i m e i r o
zandró, e n q u a n t o n o H u n t o l o j i ela a c o n t e c e n o s á b a d o , p r e c e d e n d o a obriga-
ção de Aizan e o zandró. N o Seja H u n d é , o ritual inicia-se n o barracão c o m o
" s a c u d i m e n t o " d e t o d o s os m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o , u t i l i z a n d o os a n i m a i s
sacrificiais, n o r m a l m e n t e f r a n g o s novos, pretos e v e r m e l h o s . A p r i m e i r a obri-
gação é a de O g u m X o r o q u e e, p e r t o d o seu assento, na e n c r u z i l h a d a d o cami-
n h o de e n t r a d a à roça, p o d e realizar-se t a m b é m u m a s e g u n d a o f e r e n d a para
Exu Tiriri. E m a m b o s os casos, "deixa-se a carne lá".

339
L U I S N I C O L A U PA RÉS

A o b r i g a ç ã o de Legba, realizada na raiz de u m a i m p o n e n t e gameleira ou


pé de L o k o localizado na f r e n t e d o b a r r a c ã o , é s e m e l h a n t e à de O g u m Xoro-
q u e . Inicia-se c o m a limpeza d o assento, u t i l i z a n d o água e folhas. Acende-se
u m a vela e c o l o c a m - s e as p r i m e i r a s o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s (acaçá, cachaça e
d e n d ê ) . Feitos os p e d i d o s necessários, s u s s u r r a n d o palavras n o o u v i d o dos
a n i m a i s , procede-se à m a t a n ç a dos f r a n g o s (às vezes galos). Nesse m o m e n t o ,
iniciam-se as cantigas jejes para Legba, V a r a k e t u , O g u m X o r o q u e e a l g u m a
em língua n a g ô para Exu. A p ó s certas operações c o m as partes d o c o r p o dos
bichos, os seus restos são d e p o s i t a d o s n o assento. E m seguida procede-se à
colocação dos o u t r o s a l i m e n t o s (farofa, m i l h o t o r r a d o , d e n d ê , mel, cachaça,
m i l h o b r a n c o , água e o u t r o s ) . A o b r i g a ç ã o finaliza a n t e s do m e i o - d i a , m o -
m e n t o em que se p r o d u z u m a pausa antes de iniciar a obrigação da "matança".
E n t r e a obrigação de Legba e O g u m X o r o q u e e a de Aizan observa-se certo
paralelismo, p o r consistirem a m b a s e m o f e r e n d a s a n i m a i s e alimentares n u m
d e t e r m i n a d o assento e p o r c o m p a r t i l h a r e m certos gestos rituais, c o m o a l i m -
peza prévia d o assento ou o s a c u d i m e n t o dos p a r t i c i p a n t e s . O r a , essas o b r i -
gações t a m b é m a p r e s e n t a m significativas diferenças nos cantos, nos alimentos
o f e r e c i d o s e n o seu p r e p a r o , assim c o m o n o t i p o de c o r t e e na cor dos ani-
mais sacrificiais.

0 ZANDRÓ: A C H A M A D A Q U E A N U N C I A AS O F E R E N D A S A N I M A I S

O zandró é obrigação jeje que abre o ciclo de toques no barracão. A t u a l m e n t e , o


zandró é celebrado sempre na n o i t e do sábado, iniciando-se a p r o x i m a d a m e n t e
às 22 o u 23 h o r a s . N o passado, p r o l o n g a v a - s e até o a m a n h e c e r d o d o m i n g o ,
mas h o j e finaliza n o r m a l m e n t e p o r volta das 2 o u 3 h o r a s da m a d r u g a d a .
Zandró é u m n o m e f o n c o m p o s t o do t e r m o zan (noite), q u e designa a vela-
da ou vigília n o t u r n a antes de u m a c e r i m ó n i a religiosa. O ritual d o zandró é
o convite, a c h a m a d a ou invocação dos v o d u n s , realizado c o m rezas, c a n t o s
e t o q u e s percussivos, c u j a f i n a l i d a d e seria a n u n c i a r aos v o d u n s as o f e r e n d a s
animais a serem realizadas no dia seguinte. Essa m e s m a f i n a l i d a d e é e n c o n -
trada n o B e n i m , o n d e o zandró t a m b é m t e m caráter de a b e r t u r a d o ciclo de
festas anuais e está ligado a esse a n ú n c i o dos sacrifícios a n i m a i s . Esse sinal
diacrítico da liturgia jeje estaria, p o r t a n t o , baseado na c o n t i n u i d a d e de u m
s e g m e n t o ritual da área gbe.
N o j e j e - m a h i da Bahia essa o b r i g a ç ã o p o d e repetir-se em várias ocasiões,
p r e c e d e n d o as festas mais i m p o r t a n t e s da casa, em especial o boitá. Nesse caso,
não existiria u m vínculo claro entre o zandró e a "matança", já que a obrigação

340
O RITUAL

do boitá n ã o c o m p o r t a sacrifícios a n i m a i s , apesar de estar r e l a c i o n a d a c o m


eles (ver a d i a n t e ) . E m q u a l q u e r caso, os diversos zandró não apresentam en-
tre eles d i f e r e n ç a s i m p o r t a n t e s . A o b r i g a ç ã o divide-se em várias partes n o m e a -
das c o m t e r m o s e s p e c í f i c o s pelos p r ó p r i o s p a r t i c i p a n t e s : o jogo de o b i , a co-
m i d a d o s a t a b a q u e s ("são b a t i z a d o s os a t a b a q u e s " ) e os c a n t o s de zandró, divi-
d i d o s n u m a p r i m e i r a p a r t e c o m c â n t i c o s jejes e x c l u s i v a m e n t e para v o d u n s e
n u m a s e g u n d a p a r t e , às vezes c h a m a d a dorozan, c o m c a n t o s para v o d u n s e ori-
xás (o l a d o n a g ô - v o d u m ) .
Ao s o m d o r i t m o avania, as v o d ú n s i s e n t r a m n a sala e m fila, t r a z e n d o
65
vários o b j e t o s . A p r i m e i r a m u l h e r leva n u m a m ã o u m p r a t o c o m u m a n o z -
de-cola (obi o u o r o b ô ) , p i m e n t a m a l a g u e t a ( a t a k u n ) , a l g u m a s m o e d a s (akwé)
e u m a vela, e n a o u t r a u m a q u a r t i n h a c o m água lustral (esin o u a b ô ) ; as o u -
tras t r a z e m q u a t r o p e q u e n a s g a r r a f a s c o m azeite de d e n d ê ( o m i o u e p ô ) , m e l
(oi), v i n h o e c a c h a ç a ( a h é m ) , u m p r a t o f u n d o ( a b a n ) c o m f a r i n h a b r a n c a
m i s t u r a d a c o m á g u a 6 6 e seis p r a t o s c o m f e i j ã o p r e t o , f e i j ã o f r a d i n h o o u
mulatinho (aikun), f a r o f a , m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a (dobu o u d o b u r u ) , f a r i n h a
b r a n c a (de n y a m e o u m i l h o ) ( i f u n ) e m i l h o b r a n c o c o z i d o (ebô). D e p o i s de
d e p o s i t a r t o d o s os a l i m e n t o s n o c h ã o , as v o d ú n s i s p e r m a n e c e m a j o e l h a d a s
em l i n h a d i a n t e dos a t a b a q u e s .
N o r m a l m e n t e , a l g u é m d a casa a n u n c i a e m p o r t u g u ê s o m o t i v o d o zandró
(i.e. "este zandró é p a r a o boitá") e o ogã impé, o u o o f i c i a n t e d o ritual, a c e n d e
u m a vela a n t e s d e i n i c i a r o j o g o d o o b i . A c o n s u l t a o r a c u l a r se inicia e n u m e -
r a n d o os v o d u n s da casa e suas s a u d a ç õ e s r i t u a i s ("este zandró é p a r a Bessen,
O g u m , O d é , O k é , A g u é . . . " ) , e v o c a n d o os p r e s e n t e s e d e s c u l p a n d o os a u s e n -
tes. Q u a n d o as d u a s m e t a d e s d o f r u t o caem v o l t a d a s p a r a c i m a , i n d i c a n d o
u m a r e s p o s t a p o s i t i v a , dá-se c o n t i n u i d a d e à c e r i m ó n i a .
P r o c e d e - s e , e n t ã o , à o b r i g a ç ã o d e d a r c o m i d a aos i n s t r u m e n t o s m u s i c a i s ,
o gã (ferro) e os t a m b o r e s , r i t o p o r vezes r e f e r i d o c o m o "dar c o m i d a ao c o u -
ro". C o m o já f o i d i t o , os i n s t r u m e n t o s estão c o n s a g r a d o s a certas d i v i n d a -
des e p r e c i s a m de o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s p e r i ó d i c a s p a r a r e n o v a r a sua " f o r -
ça". O ogã i n t r o d u z u m a p e q u e n a q u a n t i d a d e de cada l í q u i d o e s ó l i d o d e n t r o
d o f e r r o e d e p o s i t a iguais q u a n t i d a d e s n u m e x t r e m o d a b o c a s u p e r i o r d o s
t a m b o r e s . C a d a u m d o s a l i m e n t o s está r e l a c i o n a d o c o m certas e n t i d a d e s es-
p i r i t u a i s . A o r d e m e m q u e são o f e r e c i d o s segue a p r o x i m a d a m e n t e a s e q u ê n -
cia e m q u e são l o u v a d o s os v o d u n s d u r a n t e as o b r i g a ç õ e s . Por e x e m p l o , o
m i l h o b r a n c o de O x a l á é n o r m a l m e n t e o ú l t i m o a l i m e n t o a ser c o l o c a d o , d o
m e s m o m o d o q u e O x a l á é s e m p r e r e v e r e n c i a d o e m ú l t i m o lugar n a s e q u ê n c i a
de c a n t o s . N o e n t a n t o , essa o r d e m p o d e variar de u m a o b r i g a ç ã o para o u t r a .
T o d a a o p e r a ç ã o se realiza em g r a n d e silêncio e c o n c e n t r a ç ã o , só i n t e r r o m -

341
LUIS NICOLAU PA R É S

p i d a p e l o s o c a s i o n a i s p e d i d o s d e b ê n ç ã o , r e a l i z a d o s pelas v o d ú n s i s à gaiaku,
aos o g ã s o u às e q u e d e s .
D e p o i s d o " b a t i z a d o d o s a t a b a q u e s " , o ogã c o r t a o o b i e m p e q u e n o s p e -
d a ç o s e, n u m a s o r t e d e c o m u n h ã o , os r e p a r t e , p o r r i g o r o s a o r d e m h i e r á r q u i c a ,
e n t r e os m e m b r o s d a c o n g r e g a ç ã o . A l g u n s t a m b é m b e b e m u m p o u c o d ' á g u a
lustral da q u a r t i n h a e p o d e m c o m e r uns grãos de p i m e n t a malagueta. Nesse
m o m e n t o , r e p e t e m - s e os p e d i d o s d e b ê n ç ã o s . C a b e n o t a r q u e o b a t i z a d o d o s
a t a b a q u e s n ã o é u m r i t u a l e x c l u s i v o d o s t e r r e i r o s jejes e se p r a t i c a t a m b é m
no candomblé ketu, embora com variantes.
Finalizada essa p a r t e e a p ó s breve pausa, as v o d ú n s i s r e a p a r e c e m n a sala e sen-
x a m - s e s o b r e várias esteiras e s t e n d i d a s n o c h ã o . C a d a pessoa t o m a u m a c a b a ç a
r e c o b e r t a de c o n t a s [go) e, a c o m p a n h a n d o o r i t m o d o s t a m b o r e s e d o f e r r o , co-
m e ç a a c a n t a r . A s e q u ê n c i a de c a n t o s d o zandró segue sempre a e s t r u t u r a de
s o l o - c o r o e inicia-se c o m c i n c o c a n t o s , d o s q u a i s t r a n s c r e v o os três p r i m e i r o s . 6 7

1
Olu Baba Valu vava
Valu n u kwé ée lo Valu no quelo
Valu n u kwé ée lo Valu no quelo
Valu nu kwé le dí U)
Olu Baba Valu vava
Valu nu kwé ée lo Valu no quelo

O l u Baba Valu vava h u n t ó


H u n t ó mona vale mixó maian valê [...] é,
H u n t ó m o n a valê mixó mixó é maian, maian, é mixó
M o n a valê h u n t ó é maian maian h u n t ó
O l u Baba Valu vava h u n t ó
H u n t ó m o n a valê mixó

3
Xen xen xen Q u e qué o que qué,
M o n a valê du kia maian valê do kia,
Avalê du kia do kia [...]
M o n a valê du kia maian valê

S e g u n d o gaiaku L u i z a , esses c a n t o s são p a r a B e s s e n , m a s o u t r o s e s p e c i a -


listas r e l i g i o s o s n ã o os a s s o c i a m d i r e t a m e n t e c o m essa e n t i d a d e e f a l a m q u e
s ã o p a r a t o d o s os v o d u n s . S e g u e m , d e p o i s , c a n t o s p a r a L e g b a , O g u m X o r o q u e
e V a r a k e t u ( A v e r e k e t e ) . D u r a n t e esses c a n t o s , u m a e q u e d e o u v o d ú n s i j o g a ,

342
O RITUAL

por três vezes, c o m u m a cuia, u m p o u c o d água na terra da p a r t e externa d o


barracão, em o f e r e n d a similar à realizada no p a d ê k e t u . D u r a n t e essa s e q u ê n -
cia, n i n g u é m p o d e sair da sala. D e p o i s desses cantos, as v o d ú n s i s a j o e l h a m - s e
em fila d i a n t e dos t a m b o r e s e canta-se para Aizan. As d a n ç a s realizadas de joe-
lhos são u m a c a r a c t e r í s t i c a i m p o r t a n t e dessa d i v i n d a d e . Segue, d e p o i s , u m a
d a n ç a de r o d a coletiva antes de as v o d ú n s i s se s e n t a r e m n o v a m e n t e nas esteiras
para, e n t ã o , iniciar u m a série de danças individuais, em q u e cada v o d ú n s i " t o m a
o r u m " d u r a n t e u m c a n t o . Esses c a n t o s de zandró são iniciados c o m u m a série
d e d i c a d a a Tobosi e o u t r a s , e n t r e elas, especialmente, cantos para a f a m í l i a de
Hevioso, c o m o Sogbo, Badé, A k o l o m b é , K p o e Averekete. Essa p a r t e d o zandró
é c o n c l u í d a c o m u m a d a n ç a de r o d a e o c a n t o "ago, ago, ago nilé o", p e d i n d o
licença ao d o n o da n a ç ã o H e v i o s o p a r a e n t r a r na p a r t e de n a g ô - v o d u m . Esse
canto marca a virada do tambor.68
E m s e g u i d a , inicia-se u m n o v o s e g m e n t o ritual c o m c a n t o s de s a u d a ç ã o
em l o u v o r de v o d u n s e orixás, s e m e l h a n t e à s e q u ê n c i a d o xirê dos n a g ô - k e t u s .
N o s t e r r e i r o s j e j e s , a l g u m a s p e s s o a s c h a m a m esse s e g m e n t o r i t u a l n a g ô -
v o d u m , e o u t r a s , a i n d a , dorozan (dorosan o u dorozu). A l g u n s especialistas jejes
utilizam o t e r m o dorozan p a r a referir-se, de m o d o geral, aos c a n t o s d o zandró,
sem aplicá-lo e s p e c i f i c a m e n t e ao s e g m e n t o n a g ô - v o d u m , o q u e pareceria mais
c o r r e t o . D e f a t o , dorozan é u m a e v o l u ç ã o f o n é t i c a de drozan, p o r sua vez u m a
inversão das sílabas d o t e r m o zandró. Se e m f o n g b e zandró é o substantivo
q u e d e s i g n a a vigília n o t u r n a , drozan é o v e r b o q u e d e s i g n a a ação de velar,
de ficar a c o r d a d o e m c e r i m ó n i a religiosa n o t u r n a . 6 9 Por c o n v e n i ê n c i a expo-
sitiva e, p a r a d i s t i n g u i r esse s e g m e n t o r i t u a l dos c a n t o s de zandró prévios à
virada d o t a m b o r , n o p r e s e n t e t r a b a l h o utilizo o t e r m o dorozan para designar
essa s e q u ê n c i a n a g ô - v o d u m .
Nessa p a r t e , c a d a v o d u m o u orixá é l o u v a d o c o m três c a n t o s e os mais
i m p o r t a n t e s , c o m seis o u m ú l t i p l o s de três. N o j e j e - m a h i de C a c h o e i r a a se-
q u ê n c i a inicia-se c o m O g u m e finaliza c o m Bessen, e n ã o c o m O x a l á c o m o
é h a b i t u a l n o xirê n a g ô - k e t u . A o r d e m é n o r m a l m e n t e a s e g u i n t e : O g u m ,
A g u é ( O s s a i m ) , O d é ( O x ó s s i ) , A z o n s u (Azoani, S a k p a t a , O m o l u ) , O x u m ,
I e m a n j á , Iansã, S o g b o (Badé, L o k o , K p o s u ) , N a n ã , O x a l á e Bessen. 7 0 E i m -
p o r t a n t e n o t a r q u e é p r e c i s a m e n t e essa s e q u ê n c i a d o dorozan a que constitui
a e s t r u t u r a básica das festas p ú b l i c a s q u e s u c e d e m ao zandró nos dias s e g u i n -
tes. O zandró p o d e c o n c l u i r - s e a p ó s o dorozan ou pode prolongar-se com a
s e q u ê n c i a de c a n t o s c h a m a d a mundubi, l o g i c a m e n t e d e d i c a d a à f a m í l i a ka-
viono. Há, finalmente, u n s c a n t o s para f e c h a r a c e r i m ó n i a e dar a retirada às
r o d a n t e s . N o H u n t o l o j i o ú l t i m o c a n t o é n o r m a l m e n t e o koro koro, e m alusão
ao c a n t o d o galo e à c h e g a d a d o a m a n h e c e r .

343
L U I S N I C O L A U PA R É S

N o s terreiros jejes d e C a c h o e i r a , c o m o t a m b é m n o B o g u m , já n ã o se canta


mais e x c l u s i v a m e n t e e m l í n g u a jeje e m u i t o s d o s c a n t o s d o dorozan (i.e. das
festas p ú b l i c a s ) são p u x a d o s e m n a g ô . Só q u a n d o se salvam e n t i d a d e s jejes
c o m o A z o n s u , Sogbo o u D a n e s c u t a m - s e cantos em l í n g u a jeje. O s p a r t i c i p a n -
tes jejes alegam q u e já se p e r d e u o c o n h e c i m e n t o , q u e o p ú b l i c o n ã o sabe res-
p o n d e r às c a n t i g a s jejes e, p o r isso, são o b r i g a d o s a c a n t a r em n a g ô . O u t r a s
explicações a r g u m e n t a m q u e se t r a t a d e u m a estratégia d e p r e c a u ç ã o e dis-
crição, p a r a evitar q u e os c a n t o s jejes s e j a m r e p l i c a d o s e m casas de c u l t o n ã o -
jejes o u em c o n t e x t o s p r o f a n o s c o m o o c a r n a v a l .
D o p o n t o de vista c o r e o g r á f i c o , c a b e n o t a r q u e , e m b o r a p o s s a m ser exe-
c u t a d a s a l g u m a s d a n ç a s de r o d a coletivas, c o m o n o xirê k e t u , a m a i o r i a d o s
c a n t o s são d a n ç a d o s i n d i v i d u a l m e n t e o u p o r u m g r u p o r e d u z i d o d e v o d ú n s i s
p e r t e n c e n t e s à m e s m a c a t e g o r i a d e v o d u m . Se n ã o tiver v o d ú n s i p e r t e n c e n t e
ao v o d u m p a r a o qual se está c a n t a n d o , o u t r a s v o d ú n s i " t o m a m o r u m " o u ,
mais e x c e p c i o n a l m e n t e , toca-se sem d a n ç a . O r a , c o n t r a r i a m e n t e ao rito k e t u ,
n o j e j e deve t o c a r - s e s e m p r e p a r a t o d a s as e n t i d a d e s , h a j a o u n ã o v o d ú n s i s
na sala. N a a b e r t u r a d e u m a série d e c a n t o s p a r a u m a n o v a e n t i d a d e , t o d a s
as v o d ú n s i s realizam s a u d a ç õ e s aos t a m b o r e s , à p o r t a d o b a r r a c ã o e aos altos
d i g n i t á r i o s . Para isso, a j o e l h a m - s e t o c a n d o o c h ã o c o m a c a b e ç a e p e d i n d o a
b ê n ç ã o . O u t r a s p o d e m levar a m ã o ao c h ã o , t o c a n d o d e p o i s l e v e m e n t e a f r e n t e
e a o r e l h a d i r e i t a c o m os d e d o s . N o jeje c a c h o e i r a n o n ã o se o b s e r v a o d o b a l e
t í p i c o d o k e t u , e m q u e as d a n ç a n t e s se p r o s t r a m n o c h ã o .
As c o r e o g r a f i a s são variadas, c o m diversos passos e gestos a d e q u a d o s aos
r i t m o s i n s t r u m e n t a i s e ao c o n t e ú d o d o s c â n t i c o s , q u e p o d e m fazer r e f e r ê n c i a
a f r a g m e n t o s da m i t o l o g i a das d i v i n d a d e s . N o e n t a n t o , m u i t a s dessas d a n ç a s
a p r e s e n t a m u m a c o r e o g r a f i a q u e p o d e ser c o n s i d e r a d a c o m o c a r a c t e r í s t i c a da
t r a d i ç ã o jeje e q u e c o n t r a s t a c o m as d a n ç a s de r o d a coletivas p r ó p r i a s da nação
n a g ô - k e t u . Essa c o r e o g r a f i a , q u e já descrevi ao falar d o s r i t m o s d e t a m b o r
quebrado e mundubi (ver a c i m a ) , além d a g e s t u a l i d a d e e r i t m o característicos,
t e m u m i t i n e r á r i o " t r i a n g u l a r " e n ã o c i r c u l a r ; a v o d ú n s i se d e s l o c a d o s ata-
b a q u e s à p o r t a d o b a r r a c ã o , da p o r t a ao e x t r e m o o p o s t o d a sala e, de lá, de
n o v o a t é os a t a b a q u e s .
O zandró p o d e t r a n s c o r r e r sem q u e n e n h u m a das v o d ú n s i s i n c o r p o r e o
seu s a n t o . N o e n t a n t o , q u a n d o isso acontece, os v o d u n s n ã o são p a r a m e n t a d o s
c o m as suas vestes rituais típicas das festas p ú b l i c a s , h a v e n d o a p e n a s a l g u m a
m u d a n ç a s i m p l e s de v e s t u á r i o , c o m o a c o l o c a ç ã o de u m ojá, p o r e x e m p l o .
As possíveis i n c o r p o r a ç õ e s p o d e m a c o n t e c e r q u a n d o se está c a n t a n d o p a r a o
v o d u m d a pessoa, p o r é m n o H u n t o l o j i o b s e r v e i em m a i s d e u m a ocasião elas
o c o r r e r e m a p ó s os ú l t i m o s c a n t o s d e Bessen, n a p a r t e mundubi.

344
O RITUAL

A l g u m a s das c a r a c t e r í s t i c a s d o zandró, c o m o o "batizado dos tambores" e


o uso das cabaças pelas v o d ú n s i s e n q u a n t o p e r m a n e c e m s e n t a d a s nas esteiras,
t ê m clara a s c e n d ê n c i a na área gbe. N o s c u l t o s de v o d u m d o B e n i m , previa-
m e n t e ao zandró se realiza u m a o b r i g a ç ã o c h a m a d a hun do dji, q u e é para sus-
p e n d e r o u abrir o t a m b o r . M e s m o sem envolver as o f e r e n d a s a l i m e n t í c i a s pra-
ticadas n o s t e r r e i r o s jejes, o hun do dji p a r e c e ter u m a f u n c i o n a l i d a d e similar
ao r i t u a l i z a r os p r i m e i r o s t o q u e s d o s i n s t r u m e n t o s percussivos. 7 1 D e p o i s d o
hun do dji e, p a r a d a r i n í c i o ao zandró, o daa o u c h e f e de f a m í l i a e n t r e g a aos
vodunons u m a série de o b j e t o s para o ritual, e n t r e eles u m c o n j u n t o de esteiras
d o t i p o kplakpla. As esteiras são e s t e n d i d a s e t o d o s os o f i c i a n t e s se s e n t a m
nelas. Nesse m o m e n t o , fala-se "e do zan nu dohué", q u e significa "ele e s t e n d e u
a esteira p a r a o dohué", s e n d o q u e dohué, o n o m e de um ritmo, designa, por
e x t e n s ã o , a c e r i m ó n i a d o zandró. As d a n ç a s e os c a n t o s , q u e se p r o l o n g a m
até as 4 h o r a s d a m a n h ã , são i n v a r i a v e l m e n t e a c o m p a n h a d o s pelo s o m d o s
asogwes, as cabaças recobertas de fios de c o n t a s o u búzios. C a b e n o t a r q u e o
zandró n o B e n i m n ã o envolve a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s . N o p a s s a d o , essa
c e r i m ó n i a n o t u r n a era c o m p l e m e n t a d a p o r u m a p a r t e c h a m a d a dohué na cò
kanlin (o dohué vai velar o a n i m a l ) . O s vodunons passavam o resto da n o i t e
velando os a n i m a i s q u e seriam sacrificados pela m a n h ã , i n d i c a n d o a ligação d o
zandró com a "matança".72
O sacrifício a n i m a l , n a sua d i m e n s ã o s i m b ó l i c a de t r a n s f e r ê n c i a e regene-
ração d o axé das d i v i n d a d e s (e p o r e x t e n s ã o da c o n g r e g a ç ã o religiosa), é o
ato m a i s i m p o r t a n t e d o " c o m p l e x o a s s e n t o - e b ó " e, p r o v a v e l m e n t e , d a reli-
gião c o m o u m t o d o . A o b r i g a ç ã o da " m a t a n ç a " q u e s u c e d e ao zandró é pri-
v a d a e r e s t r i t a aos m e m b r o s i n i c i a d o s d o g r u p o e, p o r t a n t o , s o b r e ela m e li-
m i t a r e i a fazer a p e n a s a l g u n s c o m e n t á r i o s g e n é r i c o s . Já m e n c i o n e i o f a t o de
q u e n o r i t o jeje d e C a c h o e i r a , d i f e r e n t e m e n t e d o r i t o k e t u , se "dá c o m i d a " a
t o d a s as d i v i n d a d e s na m e s m a o b r i g a ç ã o . As d i v i n d a d e s c e n t r a i s d o p a n t e ã o ,
A z o n s u , S o g b o e Bessen, recebem o f e r e n d a s de a n i m a i s de q u a t r o pés, n o r m a l -
m e n t e b o d e s e cabras, s e n d o o c a r n e i r o u m a n i m a l p r o i b i d o n o s terreiros jejes,
o q u e c o n s t i t u i u m a o u t r a d i f e r e n ç a c o m o rito n a g ô - k e t u , e m q u e esse a n i -
mal é a o f e r e n d a v o t i v a m a i s e m b l e m á t i c a ( s o b r e t u d o em relação a X a n g ô ) .
E m ocasiões e x c e p c i o n a i s , na " m a t a n ç a " p o d e - s e t a m b é m i m o l a r u m boi.
O m o m e n t o d o "corte" é o m o m e n t o privilegiado p a r a a m a n i f e s t a ç ã o dos
v o d u n s nas cabeças dos seus d e v o t o s . Ao ser d e r r a m a d o o s a n g u e a n i m a l n o s
assentos, é a b e r t o o canal de transferência entre o m u n d o sensível dos h u m a n o s
e o m u n d o invisível das d i v i n d a d e s e, c o m o prova d a c o n s u m a ç ã o dessa c o m u -
nicação e aceitação das o f e r e n d a s , os v o d u n s se m a n i f e s t a m nos seus receptá-
culos h u m a n o s . U m a vez i n c o r p o r a d a s d u r a n t e essa o b r i g a ç ã o d a " m a t a n ç a "

345
L U I S N I C O L A U PA R É S

(celebrada d e m a d r u g a d a no H u n t o l o j i e por volta do meio-dia n o Seja Hundé),


as vodúnsis p e r m a n e c e m nesse estado de santo até a noite, q u a n d o , no con-
texto d o t a m b o r p ú b l i c o , se a p r e s e n t a m à c o m u n i d a d e . Essa c o n s t i t u i uma
característica do rito jeje que mais u m a vez contrasta com a tradição nagô-ketu.
C o n q u a n t o n o rito k e t u o sacrifício t a m b é m seja u m dos m o m e n t o s pri-
vilegiados p a r a a possessão, u m a vez finalizada a o b r i g a ç ã o as iaôs, p o r regra
geral, d e s i n c o r p o r a m , r e c u p e r a n d o o seu estado n o r m a l . O t a m b o r público,
celebrado de noite, inicia-se c o m o xirê, n o qual são i n v o c a d o s os orixás, e é
d u r a n t e essa d a n ç a de r o d a q u e os orixás vão m a n i f e s t a r - s e . As iaôs q u e "bo-
lam no s a n t o " são retiradas, p a r a reaparecer na s e g u n d a p a r t e da festa, para-
m e n t a d a s c o m suas vestes rituais. C o n t r a r i a m e n t e , n o j e j e - m a h i , as vodúnsis
i n c o r p o r a m d u r a n t e a " m a t a n ç a " e p e r m a n e c e m nesse estado até o início da
festa p ú b l i c a , q u a n d o já a p a r e c e m p a r a m e n t a d a s . N o rito jeje, a c h a m a d a ou
invocação das divindades, q u e na liturgia n a g ô - k e t u se dá d u r a n t e o xirê, rea-
liza-se d u r a n t e o zandró, c e l e b r a d o u m dia antes.
As i m o l a ç õ e s dos a n i m a i s estão sujeitas a c o m p l e x a s regras rituais; o tipo
de animal, a sua cor e sexo d e p e n d e r ã o da d i v i n d a d e à qual vão ser oferecidos.
A faca o u o i n s t r u m e n t o utilizado para a imolação, assim c o m o o tipo de corte
e os cantos associados, t a m b é m variam s e g u n d o as divindades. Alguns v o d u n s
c o m o O g u m X o r o q u e r e c e b e m a carne crua, mas a m a i o r i a das d i v i n d a d e s
exige processos específicos para o p r e p a r o das suas partes. Essa atividade está
t a m b é m s u j e i t a a diversas regras. H á , por exemplo, pessoas e lugares p r ó p r i o s
p a r a tirar o c o u r o dos a n i m a i s de q u a t r o pés, ou i t i n e r á r i o s e f o r m a s especí-
ficas de levar a c a r n e d o peji até a c o z i n h a . C a d a a n i m a l é e s q u a r t e j a d o e
c o z i n h a d o de f o r m a d i f e r e n t e s e g u n d o a d i v i n d a d e p a r a a qual foi oferecido.
O s chamados exés (partes) do animal, c o m o a cabeça, coração, pulmões, moela,
patas, cauda, asas o u testículos, estão carregados c o m axé e são associados a
certas propriedades, recebendo t r a t a m e n t o s especiais. Depois das oferendas no
peji, p a r t e do sangue e das vísceras é oferecida às divindades nos atinsa ex-
teriores, e n q u a n t o outros exés dos animais de q u a t r o pés, c o m o cabeça e patas,
são reservados para u m a o u t r a obrigação de f u n d a m e n t o , que c u l m i n a n o ri-
tual do boitá.

0 BOITÁ: A G R A N D E FESTA P Ú B L I C A D A L I T U R G I A J E J E - M A H I

A obrigação d o boitá é a g r a n d e festa pública da liturgia jeje-mahi e realiza-se


n o d o m i n g o seguinte à "matança" dos bichos de q u a t r o patas. Já que envolve
o preparo de certos exés, o boitá só p o d e ser celebrado após as c o r r e s p o n d e n t e s

346
O RITUAL

i m o l a ç õ e s . O boitá é u m a h o m e n a g e m a Bessen, o v o d u m d o n o da n a ç ã o
j e j e - m a h i , m a s t a m b é m p o d e ser d e d i c a d o a o u t r o s v o d u n s . E u m a f e s t a s e m -
pre m u i t o c o n c o r r i d a e n t r e o pessoal da casa e visitantes de fora. A p a r t e
pública da obrigação consiste n u m a procissão em que o f u n d a m e n t o do
boitá, carregado na cabeça de u m a v o d ú n s i de O g u m , orixá q u e é conside-
r a d o o " o r d e n a n ç a " d e B e s s e n , 7 3 é l e v a d o e m v o l t a d e v á r i o s atinsas e apre-
sentado r i t u a l m e n t e nos assentos de Bessen e Azonsu. O carrego do boitá
consiste n u m a g r a n d e b a n d e j a , cesto ou gamela coberta por u m p a n o b r a n c o
[ala), o r n a m e n t a d a c o m f l o r e s d e a n g é l i c a e f o l h a s d e mariwo. A prepara-
ç ã o d e s s e c a r r e g o é u m r i t o s e c r e t o d e f u n d a m e n t o e, u m a v e z c o n c l u í d o ,
j o g a - s e o o b i p a r a c o n f i r m a r o b e n e p l á c i t o d o s v o d u n s . O t e r m o boitá po-
d e r i a ser u m a c o r r u p t e l a d e gbota, parte de u m a expressão utilizada nos
c u l t o s v o d u n s d o B e n i n (gbota gbigbd) para designar uma obrigação envol-
v e n d o o f e r e n d a s aos a n c e n t r a i s .
Assisti a o boitá em várias ocasiões, e m anos e terreiros distintos, e aqui
apresento u m a descrição de síntese n o "presente etnográfico", mas é claro que
essa c o n v e n i ê n c i a e s t i l í s t i c a n ã o s u p õ e u m a p r á t i c a u n i f o r m e e s e m m u d a n -
ças. 7 4 O s v o d u n s i n c o r p o r a m n o b a r r a c ã o a o s o m d o t o q u e a d a r r u m p o r v o l t a
d a s 14 h o r a s , " h o r a d o s v o d u n s c h e g a r à t e r r a " . L o g o d e p o i s , eles d e s c e m ao
r i o p a r a t o m a r u m b a n h o , a n t e s d e ser p a r a m e n t a d o s c o m as suas vestes ri-
t u a i s . Por v o l t a d a s 17 h o r a s , c o n c l u í d o s t o d o s os p r e p a r a t i v o s , o c o r t e j o e n t r a
n o b a r r a c ã o . O s a t a b a q u e s e o gã t o c a m , e o buntó canta:

Aê a ito,
aê ba ito,
aê a aito
aê aba ito.

Esse c a n t o , r e s p o n d i d o p e l o s p a r t i c i p a n t e s , r e p e t e - s e h i p n ó t i c o e m o n ó -
t o n o d u r a n t e a m a i o r p a r t e d a o b r i g a ç ã o . E m fila i n d i a n a a p a r e c e m os o g ã s ,
a gaiaku, os v o d u n s e as e q u e d e s . T o d o s v e s t e m r i g o r o s o b r a n c o — os ogãs c o m
u m a t o a l h a b r a n c a a m a r r a d a n a c i n t u r a , c a i n d o n a p a r t e f r o n t a l a t é os p é s
d e s c a l ç o s . Q u a t r o ogãs v ê m n a f r e n t e , o p r i m e i r o leva u m a g a m e l a c h e i a d e
amasi, o s e g u n d o , u m a com farofa, o terceiro, u m a com farinha de m a n d i o -
ca e o q u a r t o , u m a c o m m i l h o t o r r a d o o u p i p o c a . A m e d i d a q u e a v a n ç a a
p r o c i s s ã o , o p r i m e i r o vai a s p e r g i n d o o amasi com u m ramalhete de folhas, e
os o u t r o s v ã o j o g a n d o n o c h ã o p e q u e n a s q u a n t i d a d e s d o s a l i m e n t o s . A t r á s
d o s ogãs v e m a gaiaku c o m o adja, s e g u i d a d e O g u m , q u e c a r r e g a o boitá. O
o g ã impé, q u e d i r i g e o s é q u i t o , a c o m p a n h a de p e r t o o f u n d a m e n t o . D e p o i s

347
L U I S N I C O L A U PA RÉS

v ê m os d e m a i s v o d u n s , t o d o s descalços e d e b r a n c o , c o m o "avô f u n f u n " , c o m o


d i z e m n o k e t u . V á r i a s e q u e d e s a s s i s t e m aos v o d u n s e f e c h a m a p r o c i s s ã o .
D e p o i s d e d a r t r ê s v o l t a s n o b a r r a c ã o (e a p r e s e n t a r o f u n d a m e n t o d i a n t e
d o s a t a b a q u e s ) , o c o r t e j o sai ao e x t e r i o r e i n i c i a o s e u p e r c u r s o p e l o t e r r e i r o ,
d a n d o u m a , d u a s o u três v o l t a s e m t o r n o d e várias á r v o r e s s a g r a d a s ( a t i n s a ) .
N a c h e g a d a do cortejo na frente d o assento de Bessen (ou D a n g b e ) que, no
c a s o , n ã o é u m atinsa, mas u m m o n t e de terra recoberto de pedaços de louça,
o boitá é d e s c a r r e g a d o da c a b e ç a d e O g u m e a p r e s e n t a d o ao v o d u m . C a n t a - s e ,
então, u m novo canto:

Eta jero ita kaia


beta besi
Eta jero ita kaian
beta besi 75

A p ó s u n s m i n u t o s , a p r o c i s s ã o r e i n i c i a o seu p e r c u r s o a t é c h e g a r ao as-
s e n t o d e A z o n s u , o n d e se r e p e t e a m e s m a p a r a d a e c a n t o . O c o r t e j o c o n t i -
n u a d e p o i s ao s o m d o p r i m e i r o c a n t o e, r e t o r n a n d o a o b a r r a c ã o a p ó s u m a
meia hora, conclui a parte exterior da obrigação que deve sempre acabar antes
d o p ô r - d o - s o l . O f u n d a m e n t o d o boitá é l o g o a p r e s e n t a d o n o p e j i o u d e p o -
s i t a d o n o c e n t r o do b a r r a c ã o , o n d e os v o d u n s d a n ç a m e m r o d a d u r a n t e al-
guns cantos, podendo-se produzir a virada d o t a m b o r para entrar no nagô-
v o d u m , a n t e s d e o s v o d u n s se r e t i r a r e m . C o m o já f o i d i t o , o boitá é u m d o s
m o m e n t o s privilegiados para recolher novos iniciados e não é infreqiiente a
" c a í d a " d e c a n d i d a t a s ao n o v i c i a d o .
Por volta das 20 horas, reinicia-se a festa c o m u m t o q u e p ú b l i c o e m q u e
os v o d u n s , d e s t a vez p a r a m e n t a d o s c o m suas v e s t e s r i t u a i s c o l o r i d a s , d a n ç a m
a t é a p r o x i m a d a m e n t e as 2 3 h o r a s . N e s s e t o q u e s e g u e - s e a o r d e m d e c a n t o s
t í p i c a d o dorozan ou da parte n a g ô - v o d u m , c o m e ç a n d o por O g u m e acaban-
d o c o m as d a n ç a s d e B e s s e n . D o i s o u três d i a s a p ó s a o b r i g a ç ã o d o boitá se-
g u e - s e u m p r e c e i t o " p a r a d e s a m a r r a r o boitá": trata-se do ritual de encerra-
m e n t o n o q u a l o boitá é desfeito. Considera-se que nesse intervalo n e n h u m
m e m b r o da c o m u n i d a d e religiosa p o d e a b a n d o n a r o terreiro sob risco de
m o r t e , m a s esse r e s g u a r d o já n ã o se p r e s e r v a . 7 6
O boitá t a m b é m se c e l e b r a n o s t e r r e i r o s B o g u m e O x u m a r é d e S a l v a d o r ,
m a s c o m a l g u m a s d i f e r e n ç a s . N a ú l t i m a casa, p o r e x e m p l o , é u m a o b r i g a ç ã o
p r i v a d a , q u e m c a r r e g a o f u n d a m e n t o é u m a filha d e O x u m e, a p a r e n t e m e n -
te, d u r a n t e o c o r t e j o n ã o p a r t i c i p a m os v o d u n s , q u e só se m a n i f e s t a m n o
b a r r a c ã o n o fim d a p r o c i s s ã o . 7 7 S e g u n d o os p r a t i c a n t e s jejes, o r i t u a l d o boitá
é t a m b é m d i f e r e n t e e m a i s c o m p l e x o q u e o r i t u a l c h a m a d o ita, o u C a b e ç a

348
O SITUAI

d e B o i , o b r i g a ç ã o e m h o m e n a g e m ao o r i x á O x ó s s i , r e a l i z a d a n o s t e r r e i r o s
ketus mais antigos, c o m o o E n g e n h o Velho, Gantois, Axé O p ô Afonjá, e
outros de f u n d a ç ã o mais recente, c o m o o Portão d'Águas Claras, no Recôn-
cavo. Essa o b r i g a ç ã o k e t u , c e l e b r a d a n o dia de C o r p u s C h r i s t i , e n v o l v e o sacri-
fício de u m boi em h o m e n a g e m a Oxóssi, assim c o m o a p r e p a r a ç ã o de u m
carrego com a cabeça do animal, que é depois apresentado no barracão. N o
e n t a n t o , até o n d e sei, essa o b r i g a ç ã o n ã o c o m p o r t a a p r o c i s s ã o e a p r e s e n t a ç ã o
d o c a r r e g o e m v o l t a d a s á r v o r e s sagradas c o m o a c o n t e c e nas casas jejes. Gaiaku
%
L u i z a c o m e n t a "Itá é p a r t e d e Q u e t o . N ó s t e m o s o boitá" J As p r o c i s s õ e s p ú -
b l i c a s l e v a n d o d i v e r s o s c a r r e g o s são p r á t i c a s h a b i t u a i s n o s c u l t o s d e v o d u m
d o B e n i m e os c u l t o s d e o r i x á d a área i o r u b á , p o r é m , ao q u e m e c o n s t a , n ã o
h á n e n h u m r i t u a l q u e p o s s a ser c l a r a m e n t e i d e n t i f i c a d o c o m o a n t e c e d e n t e
d o boitá j e j e .

A O B R I G A Ç Ã O D E A Z O N O D O : A FESTA DAS FRUTAS N O B O G U M

Se o boitá é a g r a n d e festa d o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o
de A z o n o d o ( A z o a n o d o , A z o n a d o , A z a u n o o d o r , Z a n o d ô , A z a n o d ô , O z a n a d o )
é u m a das g r a n d e s festas d o B o g u m . D e f a t o , essa c e r i m ó n i a é p r ó p r i a e e x c l u -
siva desse t e r r e i r o , d e m o n s t r a n d o c o m o a p r o c u r a d e s i n g u l a r i d a d e n ã o se res-
t r i n g e ao â m b i t o d a s n a ç õ e s , m a s m a i s p r e c i s a m e n t e ao â m b i t o das c o n g r e g a -
ções. Ao lado direito de q u e m desce a Ladeira M a n o e l B o m f i m , o v o d u m
A z o n o d o estava a s s e n t a d o n u m a á r v o r e i m e n s a — d u a s o u três pessoas e m cír-
c u l o n ã o c o n s e g u i a m r o d e a r o t r o n c o . E m s e t e m b r o c a í a m t o d a s as f o l h a s e p a -
recia q u e ia m o r r e r , m a s , aos p o u c o s , d o s e s p i n h o s q u e c o b r i a m o t r o n c o e os
g a l h o s n a s c i a m f l o r e s b r a n c a s . E m j a n e i r o , n o t e m p o d a o b r i g a ç ã o , a i n d a esta-
va t o d o b r a n c o . C o m o c o m e n t a ogã A i l t o n , "o pessoal v i n h a t i r a r r e t r a t o , n ã o
t i n h a outra árvore igual em Salvador". D u r a n t e o Primeiro E n c o n t r o de N a -
ções d e C a n d o m b l é , c e l e b r a d o e m j u n h o de 1981, J e h o v á d e C a r v a l h o r e l a t a -
va a i m p o r t â n c i a d o v o d u m A z o n o d o n o t e r r e i r o jeje e d e n u n c i a v a a e s p e c u l a -
ç ã o i m o b i l i á r i a q u e e m 1978 r e s u l t o u na m o r t e da á r v o r e s a g r a d a :

Nós temos Z o n o d ô ou Azanodô que, segundo me é i n f o r m a d o , não se manifesta


nos h u m a n o s [...] Essa árvore tinha perto de 200 anos. E o que se presume [...] E
devido a u m p r o b l e m a m u i t o grave que é o sacrifício do solo sagrado do c a n d o m b l é
da Bahia, devido a esse problema de especulação daquela área, para efeito de constru-
ção de grandes prédios [...] essa árvore foi minada [minaram-lhe o tronco com agentes
químicos predatórios]. Essa árvore, há cerca de dois anos atrás, pouco antes da grande
festa de Azanodô, t o m b o u . Antes, fizemos nós uma d e n ú n c i a nesse sentido, de que

349
L U I S N I C O L A U PA RÉS

a á r v o r e p o d e r i a cair, q u e era u m p a t r i m ô n i o c u l t u r a l d a B a h i a . Era u m p a t r i m ô n i o


sagrado do c a n d o m b l é da Bahia.79

O g ã A i l t o n e x p l i c a q u e "a á r v o r e c a i u b e m d e v a g a r , g r u n h i n d o , como um
d o e n t e , e f o i cair n o m e i o d a e s t r a d a , s e m d a n i f i c a r n e n h u m a casa". Q u a n t o
à idade dessa árvore, a estimativa de 200 anos parece exagerada. Segundo
d e c l a r a ç õ e s d e e q u e d e S a n t a , a á r v o r e o r i g i n a l foi t r a z i d a d a Á f r i c a , p l a n t a d a
n u m a b a r r i c a p e l o avô d e E s c o l á s t i c a d a C o n c e i ç ã o N a z a r e t h , a f a m o s a M e n i -
n i n h a d o G a n t o i s . O a v ô d e M e n i n i n h a , d e n o m e S a l a c o , d e v i a ser u m li-
berto que, c o m o outros africanos naquela época, provavelmente viajou entre
as d u a s costas a t l â n t i c a s . Se c a l c u l a r m o s q u e n a s c e u a p r o x i m a d a m e n t e 50 a n o s
a n t e s d a n e t a (c. 1 8 4 4 ) , e q u e a v i a g e m à A f r i c a d e v e ter o c o r r i d o n a j u v e n -
tude, podemos especular que a chegada da árvore aconteceu na segunda
m e t a d e d o s é c u l o XIX, t a l v e z n a d é c a d a d e 1 8 6 0 . 8 0 N e s s a é p o c a , c o m o já vi-
m o s , e s t a v a m f u n c i o n a n d o t a n t o o B o g u m c o m o o M o i n h o ( G a n t o i s ) , e esse
f a t o m a i s u m a vez c o n f i r m a as e s t r e i t a s r e l a ç õ e s d e c o m p l e m e n t a r i d a d e e n t r e
as casas k e t u s e o B o g u m .
A f e s t a d e A z o n o d o é c e l e b r a d a n o d i a 6 d e j a n e i r o , dia d o s Reis M a g o s . O
v o d u m A z o n o d o é a s s o c i a d o ao rei n e g r o M e l c h o r (ou Baltazar) e, c o m o a p o n t a
C a r v a l h o , trata-se de u m a " m a n i f e s t a ç ã o p a r t i c u l a r í s s i m a d o s i n c r e t i s m o religio-
so da B a h i a " . 8 1 A r e l a ç ã o d e A z o n o d o c o m a e p i f a n i a d o s Reis M a g o s e a i d é i a
d e q u e esse v o d u m n ã o i n c o r p o r a em c o r p o h u m a n o n e m r e c e b e s a c r i f í c i o d e
s a n g u e são f a t o s u n a n i m e m e n t e r e c o n h e c i d o s . 8 2 O r a , o v í n c u l o d e A z o n o d o
c o m as g r a n d e s c a t e g o r i a s d e v o d u n s a p r e s e n t a d i s p a r i d a d e d e o p i n i õ e s .
M u i t a s pessoas, talvez a m a i o r i a , a c r e d i t a m q u e A z o n o d o é u m D a n , u m a co-
b r a da f a m í l i a de Bessen. Humbono V i c e n t e m e n c i o n a u m a c a n t i g a q u e expres-
s a r i a esse v í n c u l o : " B e s s e n A z o n a d o ; [ p a r a ] B e s s e n n o g u e r é d é u á ; B e s s e n
A z o n a d o ; Bessen n o g u e r é d é u á " . 8 3 Já o u t r a s p e s s o a s p a r e c e m ter c o n f u n d i -
do Azonodo com Azoani, o v o d u m da família de Azonsu.84 Embora o povo
j e j e d i s t i n g a c l a r a m e n t e e n t r e esses d o i s v o d u n s , a c o m u m raiz f o n é t i c a azon,
q u e e m f o n g b e significa e n f e r m i d a d e e que constitui a base de m u i t o s n o m e s
de v o d u n s da categoria Sakpata, sugere u m a ligação inicial de A z o n o d o c o m
o p a n t e ã o d a t e r r a . S e g u r o l a r e g i s t r a o n o m e Azowano como um apelido de
S a k p a t a . P a r a R e g o , Azon non do s i g n i f i c a a p l a n t a q u e p r o v o c a a e n f e r m i d a -
de. 8 5 E m U i d á , u m s a c e r d o t e d e S a k p a t a , a p ó s d e s c r i ç ã o d a á r v o r e de A z o n o d o ,
que é de folha perene, espinhos e flores brancas, a identificou c o m o a árvore
clontin, a s s o c i a d a a o v o d u m S o d j i , d a c a t e g o r i a S a k p a t a . S u a f o l h a , cloma, é
u t i l i z a d a p a r a o p r e p a r o d e amasi e está a s s o c i a d a a u m r i t u a l d e p u r i f i c a ç ã o
p a r a a f a s t a r a e n f e r m i d a d e {eno nyi azòn).86 Já Everaldo D u a r t e , em viagem

350
O SITUAI

realizada ao B e n i m e m 2002, i d e n t i f i c o u a árvore de A z o n o d o c o m o s e n d o da


m e s m a espécie q u e a f a m o s a "árvore d o e s q u e c i m e n t o " (l'arbre de l'oublie), que
cresce n o c a m i n h o q u e vai de U i d á à praia. S e g u n d o a legenda, a n t e s d e e m -
barcar para o N o v o M u n d o , os escravos e r a m o b r i g a d o s a dar várias voltas em
t o r n o dessa árvore p a r a esquecer q u a l q u e r m e m ó r i a d o seu passado. 8 7
M a s v e j a m o s c o m o t r a n s c o r r i a a festa de A z o n o d o n o B o g u m . A o b r i g a ç ã o
se iniciava nas p r i m e i r a s h o r a s da m a n h ã d o d i a 6 de janeiro, c o m lavagem d e
seu t r o n c o e a c o l o c a ç ã o d e u m a faixa b r a n c a na p a r t e e m q u e saíam seus
p r i m e i r o s galhos. Ao l o n g o d o dia i n t e i r o , pais e m ã e s - d e - s a n t o das várias na-
ções de C a n d o m b l é traziam seus t a b u l e i r o s de f r u t a s aos pés d o t r o n c o d a ár-
vore de A z o n o d o . Por volta das 17 horas, antes de o sol se pôr, essas f r u t a s e r a m
d i s t r i b u í d a s e n t r e os m e m b r o s do B o g u m e os visitantes. 8 8 Raul Lody, ogã d o
B o g u m , descreve a c e r i m ó n i a da s e g u i n t e f o r m a :

N e s s a f e s t a t o d o s os i n i c i a d o s t r a j a m o b r a n c o e l e v a m c o n t a s e m cores claras. As
mulheres e m procissão carregam gamelas e tabuleiros repletos de f r u t a s das mais
v a r i a d a s q u a l i d a d e s . M a i s t a r d e essas f r u t a s são c o l o c a d a s n o s g a l h o s e raízes d o "Aza-
n o d ô " , a árvore sagrada. Nesse dia não há imolação de animais e o único sacrifício
o f e r e c i d o a A z a n o d ô s ã o as p r ó p r i a s f r u t a s . E n c e r r a n d o a f e s t a , u m a m e s a d e f r u t a s
é oferecida aos p a r t i c i p a n t e s e c o n v i d a d o s . O b s . : A festa de A z a n o d ô está p r a t i c a m e n -
te e s q u e c i d a m e s m o nas casas m a i s t r a d i c i o n a i s d o s c u l t o s A f r o - B r a s i l e i r o s . 8 9

S e g u n d o e q u e d e S a n t a , n o passado a e n t r a d a ao r e c i n t o o n d e estava p l a n -
t a d a a á r v o r e de A z o n o d o , u m l u g a r " f e c h a d o d e m a t o , n a t i v o de p e r e g u n ,
c o m m u i t o segredo", estava r e s t r i t o às v o d ú n s i s m a i s velhas. Só elas p a r t i c i -
p a v a m da o b r i g a ç ã o na q u a l e r a m a p r e s e n t a d a s as f r u t a s n o atinsa p a r a sua
c o n s a g r a ç ã o , e só u m a vez, finalizado esse rito, u m a delas saía para r e p a r t i r
as f r u t a s e n t r e o pessoal q u e esperava fora. E q u e d e S a n t a a i n d a acrescenta que,
d u r a n t e a o b r i g a ç ã o , o S o g b o de R u n h ó p e r m a n e c i a r o d a n d o p o r lá "e leva-
va u m a c o b r a p o r f o r a d a cerca; a g o r a q u e e n t r a t o d o esse p o v ã o " . 9 0 C o m o
fica claro nas descrições de C a r v a l h o e Lody, em t e m p o s mais recentes a o b r i -
gação d e i x o u de ser p r i v a d a , e a r e p a r t i ç ã o das f r u t a s se p r o d u z i a n o m e s m o
recinto do atinsa.
E v e r a l d o D u a r t e c o m e n t a q u e A z o n o d o é " u m a á r v o r e q u e dá f r u t o s , é
v e n t o e p r o t e t o r das safras". Sua o b r i g a ç ã o realizava-se p a r a c o m e m o r a r a pri-
m e i r a safra de f r u t a s de d e z e m b r o . " N i n g u é m p o d i a c o m e r f r u t a s a n t e s dessa
o b r i g a ç ã o " , m a s esse " r e s g u a r d o " , q u e se m a n t e v e v i g e n t e até a d é c a d a de
1960, já n ã o é m a i s r e s p e i t a d o . 9 1 Essa p r o i b i ç ã o l e m b r a p r e c e i t o s d e o u t r o s
r i t u a i s a s s o c i a d o s aos ciclos agrícolas, c o m o a festa d o n y a m e , c e l e b r a d a e m
s e t e m b r o n o B e n i m e e m n o v e m b r o n a Bahia. L e m b r e m o s o comentario de

351
L U I S N I C O L A U PA R É S

O Alabama e m r e l a ç ã o à festança do nyame novo n o t e r r e i r o d o M o i n h o


( G a n t o i s ) , e m 1871: " C o n s i s t e na c o n s a g r a ç ã o dos p r i m e i r o s f r u t o s da co-
lheita de cada ano às d i v i n d a d e s africanas. A n t e s da celebração dessa c e r i m ó -
nia é vedado aos prosélitos das seitas africanas comer dele". 9 ' S e g u n d o D u a r t e ,
a festa do n y a m e não se praticava no B o g u m n e m na nação jeje de m o d o geral.
C o m o t o m b a m e n t o da árvore de A z o n o d o , em 1978, os restos d o seu
l e n h o f o r a m i m p l a n t a d o s sob u m flamboyant amarelo, plantado por Nicinha
com a assistência de D u a r t e e e q u e d e Santa, na p a r t e f r o n t a l d o b a r r a c ã o do
B o g u m , e ali c o n t i n u a m a ser realizadas suas obrigações até h o j e .

A OBRIGAÇÃO DE AZIRI TOBOSI: 0 VODUM DAS ÁGUAS AGONLI

Voltamos de n o v o a C a c h o e i r a . A obrigação de Aziri Tobosi, no passado c o m o


hoje, m a r c a o final d o ciclo de festas anuais d o c a l e n d á r i o j e j e - m a h i de C a -
choeira, mas n ã o n e c e s s a r i a m e n t e de o u t r o s terreiros jejes de Salvador, c o m o
o B o g u m ou o Poço Beta. 9 3
Aziri Tobosi e n c o n t r a um claro a n t e c e d e n t e n o B e n i m , em Azili ou Azili
Tobo, u m tòvodun, v o d u m das águas ou v o d u m que h a b i t a nas águas. Essa
d i v i n d a d e está d i r e t a m e n t e relacionada com o lago do m e s m o n o m e , Azili, na
margem oriental do rio O u e m é , a uns 18 quilómetros a nordeste de Z a g n a n a d o ,
no país Agonli. Alguns vodunons dizem q u e o v o d u m Azili vem d o rio W o ou
W o g b o (o g r a n d e Wo), n o m e a u t ó c t o n e d o rio O u e m é . C o m o o país Agonli
está localizado ao n o r t e d o rio Z o u , f r o n t e i r a d o país M a h i , Azili é t a m b é m
considerado u m v o d u m mahi. 9 4 O s e g u n d o t e r m o do n o m e , Tobo, poderia ser
u m c o m p o s t o dos vocábulos bô (complexo material consagrado c o m proprie-
dades sobrenaturais) e tò (água, ou q u a l q u e r curso d'água: rio, f o n t e , lagoa).
Tobo seria, p o r t a n t o , o preparo o u sortilégio cujo p o d e r é i n f u n d i d o pelos espí-
ritos das águas, n o r m a l m e n t e contido n u m a cabaça. 95 Paralelamente, outras pes-
soas acreditam que tobo é u m a c o n t r a ç ã o de tògbo, o g r a n d e {gbo) curso d'água
(tò) que, por sua vez, seria u m a alusão ao rio W o ( O u e m é ) o u ao lago Azili.
Nas d u a s interpretações o vínculo com a água é reconhecido.
Práticas rituais mahis associadas às divindades dos rios c o m o Azili foram
assimiladas ou a p r o p r i a d a s pelos fons, já n o século XVIII, c o n t r i b u i n d o em
grande m e d i d a para a institucionalização d o culto real dos N e s u h u e , em Abo-
mey. O culto dos tohosu (príncipes das águas) e o ritual de iniciação c h a m a d o
Yivodo, p o r exemplo, dois i m p o r t a n t e s c o n s t i t u i n t e s do culto N e s u h u e , estão
estreitamente relacionados com o lago Azili. É p r e c i s a m e n t e n o final do ritual
Yivodo q u e as v o d ú n s i s dos N e s u h u e são p r e p a r a d a s , com a presença de u m

352
O RITUAL

especialista religioso do país de Azili, para a t u a r c o m o tobosi. T r a t a - s e de u m


a m b í g u o estado de transição entre a possessão do v o d u m e o e s t a d o n o r m a l da
pessoa (não c o n f u n d i r com a manifestação de u m a segunda d i v i n d a d e ) , q u e po-
de d u r a r vários dias e se caracteriza por u m c o m p o r t a m e n t o i n f a n t i l e f e m i n i n o
(semelhante mas não idêntico ao estado de erê). Após as festas públicas, as tobosi
vão ao m e r c a d o e o u t r o s lugares para m e n d i g a r . As tobosi s e r i a m u m a carac-
terística exclusiva d o c u l t o N e s u h u e e d o c u l t o d e D a n .
N a Casa das M i n a s de São Luís d o M a r a n h ã o são b e m c o n h e c i d a s as tobosi
c o m o d i v i n d a d e s i n f a n t i s e f e m i n i n a s , e vários a s p e c t o s r i t u a i s a t e s t a m u m
claro v í n c u l o dessas "princesas" aristocráticas c o m o c u l t o N e s u h u e . O r a , esse
n ã o p a r e c e ser o caso d o v o d u m A z i r i T o b o s i n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de
C a c h o e i r a , nos q u a i s essa d i v i n d a d e p a r e c e e n c o n t r a r seus a n t e c e d e n t e s n ã o
n o c u l t o dos N e s u h u e , m a s no c u l t o p r e t é r i t o do v o d u m Azili T o b o da área
agonli.
Aziri Tobosi é u m a e n t i d a d e e s p i r i t u a l jeje d e s c o n h e c i d a n o s c a n d o m b l é s
n a g ô - k e t u s ou a n g o l a s da Bahia. O s especialistas jejes f a l a m de Aziri T o b o s i
(ou T o b o s i Aziri) e Aziri Kaia (ou T o b o s i Akaia) c o m o d u a s e n t i d a d e s espi-
rituais f e m i n i n a s associadas às águas, s e n d o a p r i m e i r a mais c o n h e c i d a . C o m o
declarava a falecida Aguesi d o Seja H u n d é , "toda água t e m d o n o " , e Aziri To-
bosi "é u m a e n t i d a d e d o f u n d o " , ela m o r a nas p r o f u n d e z a s das águas. Aziri
T o b o s i é n o r m a l m e n t e a s s o c i a d a às á g u a s doces e, p o r isso, vez p o r o u t r a
c o m p a r a d a , mas não identificada, c o m a orixá n a g ô dos rios, O x u m . Por o u t r o
lado, Aziri Kaia é n o r m a l m e n t e associada a I e m a n j á e às águas salgadas. Se-
g u n d o gaiaku Luiza, Aziri T o b o s i estaria r e l a c i o n a d a t a n t o c o m a água d o c e
c o m o c o m a água salgada e t a m b é m c o m e n t a v a q u e Aziri veste b r a n c o e usa
contas d e cristal e de prata c o m o I e m a n j á . C o m o com o v o d u m Azili n o Benim,
em t o d o s os casos a associação c o m as águas é explícita. 9 6
O g é n e r o d o v o d u m é s e m p r e u m a s p e c t o difícil de se d e t e r m i n a r , c o n t u -
do, apesar de a f i n a d a Aguesi d e c l a r a r q u e Aziri T o b o s i é seis meses m u l h e r e
seis meses h o m e m ; n a m a i o r i a d o s casos, n a B a h i a ela é c o n s i d e r a d a u m
v o d u m f e m i n i n o . Esse é o caso t a m b é m n o H a i t i , o n d e Azili, c o n h e c i d a c o m o
Ezili o u Erzulie, é tida p o r m u l h e r . E m A b o m e y foi d o c u m e n t a d o o n o m e
de Azili N y ò h o A w u i , d o n d e nyòho p o d e ser t r a d u z i d o c o m o " m u l h e r velha",
s u g e r i n d o q u e a n a t u r e z a f e m i n i n a de Azili n o H a i t i e n a Bahia t e m p r e c e -
d e n t e s n o B e n i m . N o e n t a n t o , na C a s a das M i n a s d o M a r a n h ã o Azili é c o n -
s i d e r a d o u m v o d u m m a s c u l i n o , aliás, c l a r a m e n t e d i f e r e n c i a d o das tobosi, estas
sim c o n s i d e r a d a s e s p í r i t o s f e m i n i n o s . 9
E m n e n h u m lugar na Bahia a palavra tobosi designa o e s t a d o i n f a n t i l e de
transição após a possessão, característico do B e n i m , n e m u m a categoria espi-

353
L U I S N I C O L A U PA R É S

r i t u a l de m e n i n a s p r i n c e s a s , c o m o na C a s a das M i n a s . E m 1 9 1 6 , M a n u e l
Q u e r i n o e s c r e v e u : " S a n t a A n a , e m n a g ô é A n a m b u r u c ú , em d a h o m é a n o ,
T o b o s s i " . 9 8 P o d e m o s p e n s a r q u e , na Bahia, tobosi v i r o u u m t e r m o g e n é r i c o
dos jejes para designar v o d u n s f e m i n i n o s e / o u das águas, c o m o Aziri ou N a n ã .
A m i n h a h i p ó t e s e é q u e , c o m o n o H a i t i , o uso inicial p a r a d e s i g n a r e n t i d a d e s
das águas foi p a u l a t i n a m e n t e s u b s t i t u í d o pela r e f e r ê n c i a à " q u a l i d a d e " f e m i -
n i n a das d i v i n d a d e s , a t r i b u t o q u e f i c o u p r e d o m i n a n t e . O r a , o r i t u a l de Aziri
T o b o s i , c o n f o r m e se p r a t i c a n o s t e r r e i r o s j e j e - m a h i s de C a c h o e i r a , c o n s t i t u i
a última o b r i g a ç ã o q u e f e c h a o c a l e n d á r i o a n u a l de a t i v i d a d e s r i t u a i s , e essa
posição final na e s t r u t u r a d o ciclo de c e r i m ó n i a s l e m b r a a c o r r e s p o n d e n t e p o -
sição f i n a l q u e o c u p a a m a n i f e s t a ç ã o das tobosi o u m e n d i c a n t e s n o s rituais
a f r i c a n o s . Essa c o i n c i d ê n c i a p o d e n ã o ser f o r t u i t a e t r a t a r - s e de u m vestígio
d o c u l t o a g o n l i d o v o d u m Azili T o b o .
E m C a c h o e i r a , a o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i , q u e c o n s i s t e b a s i c a m e n t e e m
"dar c o m i d a " a essa d i v i n d a d e , é u m r i t u a l e x t e r n o e d i u r n o , c e l e b r a d o a o ar
livre, n o r m a l m e n t e pela m a n h ã . O assento de Aziri está s e m p r e e n t e r r a d o n u m
atinsa l o c a l i z a d o p e r t o d e u m r i a c h o , p o ç o o u f o n t e . A p r o x i m i d a d e da á g u a
é significativa e n o Seja H u n d é ele está " p l a n t a d o " d e n t r o d ' á g u a , na m a r g e m
d o rio C a q u e n d e , sob u m pé de d e n d e z e i r o . As o b r i g a ç õ e s n o Seja H u n d é e
n o H u n t o l o j i a p r e s e n t a m variações, seja n o s h o r á r i o s , na o r d e m d o s s e g m e n -
tos r i t u a i s , nas o f e r e n d a s a l i m e n t a r e s o u e m o u t r o s e l e m e n t o s . N o e n t a n t o ,
c o m p a r t i l h a m s e m e l h a n ç a s na e s t r u t u r a geral, q u e se divide em d u a s partes. 9 9
C o m o em o u t r a s obrigações, n o início se a c e n d e u m a o u várias velas e rea-
liza-se u m a c o n s u l t a o r a c u l a r c o m o obi p a r a c o n f i r m a r a a c e i t a ç ã o da ceri-
m ó n i a p o r p a r t e d o v o d u m . D e p o i s , r e a l i z a m - s e as p r i m e i r a s o f e r e n d a s ali-
m e n t a r e s . C o m o sacrifício de galinhas, ao som dos p r i m e i r o s cânticos, dá-se
a m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s nos seus a d e p t o s . N u m a g a m e l a o u n o pé d o atinsa
vão s e n d o colocados a l i m e n t o s c o m o f a r o f a , acaçá, mel, a z e i t e - d e - d e n d ê , água
e o u t r o s . Nessa p r i m e i r a p a r t e h á c a n t o s para Aziri T o b o s i , e n t r e eles:

Aé, aé, T o b o ;
T o b o s i lé, T o b o .

Makobo, makobo
T o b o s i lé m a k o b o

N o Seja H u n d é , p r o s s e g u e - s e c o m a s e q u ê n c i a de c a n t o s d o zandró, com


c a n t o s p a r a vários v o d u n s , e n q u a n t o q u e n o H u n t o l o j i se c a n t a a s e q u ê n c i a
d o dorozan (ou a p a r t e n a g ô - v o d u m ) . O s v o d u n s , em g r u p o , d a n ç a m na f r e n -

354
O RITUAL

te do atinsa p o r u m a h o r a , mais o u m e n o s . Assim, conclui-se a p r i m e i r a p a r t e


da c e r i m ó n i a , q u a n d o os v o d u n s r e t o r n a m para d e n t r o da casa, e n q u a n t o as
e q u e d e s c o z i n h a m os a n i m a i s sacrificiais.
A p ó s essa pausa, t o d o s os p a r t i c i p a n t e s r e t o r n a m ao atinsa e realiza-se u m a
s e g u n d a o f e r e n d a , agora c o m a c a r n e c o z i d a e o u t r o s a l i m e n t o s , c o m o feijão,
abara, c a r u r u , b a n a n a f r i t a , p i p o c a , m i l h o b r a n c o etc. O s m e s m o s a l i m e n t o s
o f e r e c i d o s à d i v i n d a d e são em seguida d i s t r i b u í d o s em f o l h a s de b a n a n e i r a
e n t r e os assistentes. Nessa s e g u n d a p a r t e , n o Seja H u n d é , os v o d u n s d a n ç a m
ao s o m dos c a n t o s d o dorozan, e só c o m p a r t i l h a r ã o a c o m i d a r i t u a l ao final
da o b r i g a ç ã o , u m a vez r e c u p e r a d o o seu e s t a d o " n o r m a l " . C o n t r a r i a m e n t e ,
n o H u n t o l o j i , nessa s e g u n d a p a r t e , as v o d ú n s i s a p a r e c e m i n c o r p o r a d a s p o r
seus erês e, s e n t a d a s em esteiras, c o m p a r t i l h a m a c o m i d a d e o b r i g a ç ã o c o m
os d e m a i s p a r t i c i p a n t e s .
I n i c i a l m e n t e , tal f a t o , nesse c o n t e x t o ritual, m e levou a p e n s a r e m algu-
m a possível relação e n t r e os erês e as tobosi, mas, c o m p a r a n d o - o c o m o r i t u a l
d o Seja H u n d é , e m q u e n ã o há q u a l q u e r p r e s e n ç a d o s erês, tive q u e c o n c l u i r
q u e a m a n i f e s t a ç ã o dos m e s m o s n o H u n t o l o j i é, p r o v a v e l m e n t e , m e r a estra-
tégia f u n c i o n a l para p e r m i t i r às v o d ú n s i s c o m p a r t i l h a r a c o m i d a ritual, já q u e
o erè, ao c o n t r á r i o do v o d u m , está c a p a c i t a d o p a r a c o m e r . N a v e r d a d e , essa
c o m u n h ã o a l i m e n t a r , a c o m p a n h a d a de p e d i d o s pessoais à d i v i n d a d e , gera u m
m o m e n t o de communitas e c o n s t i t u i a v e r d a d e i r a essência d o r i t u a l .
V e m o s , assim, nessa o b r i g a ç ã o de Aziri T o b o s i , q u e as tobosi c o m o são co-
nhecidas no c u l t o N e s u h u e e na Casa das M i n a s n ã o e n c o n t r a m n e n h u m a cor-
r e s p o n d ê n c i a . A p e n a s a n a t u r e z a f e m i n i n a e a q u á t i c a de Aziri Tobosi e talvez
a sua posição final na o r d e m ritual p a r e ç a m m a n t e r u m a c o n t i n u i d a d e c o m as
tobosi d o culto N e s u h u e . Esse fato, j u n t o c o m a evidente s e m e l h a n ç a dos n o -
mes, sugere u m a m a t r i z c u l t u r a l c o m u m d o c u l t o de Aziri T o b o s i c a c h o e i r a n o
e d o c u l t o N e s u h u e , q u e , c o m o foi a p o n t a d o a c i m a , c o r r e s p o n d e r i a ao c u l t o
agonli de Azili T o b o . Esse e x e m p l o sugere q u e as d i f e r e n ç a s r e g i o n a i s q u e se
c o n s t a t a m e m relação a Aziri e às tobosi em São Luís e e m C a c h o e i r a deri-
v a m , e m p a r t e , de d i f e r e n ç a s n o s seus a n t e c e d e n t e s a f r i c a n o s . E m o u t r a s
palavras, a d i f e r e n t e o r i g e m é t n i c a e a f i l i a ç ã o religiosa d o s a g e n t e s sociais
responsáveis pela t r a n s f e r ê n c i a t r a n s a t l â n t i c a estaria na base de certas varia-
ções regionais brasileiras. Esse f a t o v e m salientar q u e , m e s m o d e n t r o da tra-
d i ç ã o jeje, h a v i a já u m a h e t e r o g e n e i d a d e de p r á t i c a s religiosas, até a g o r a
pouco conhecida.

355
LUIS NICOLAU PA R É S

A A N T I G A FESTA D E F E C H A R O B A L A I O E A F O G U E I R A D E S O G B O

Para c o n c l u i r o c a p í t u l o e x a m i n a r e i o encerramento, a obrigação q u e fecha o


ciclo d e festas anuais, a n t i g a m e n t e c o n h e c i d a c o m o a festa de fechar o balaio.
N ã o é u m a obrigação exclusiva dos jejes e, nesse sentido, não c o n t r i b u i para a
discussão sobre o fator diferencial dessa nação. N o e n t a n t o , a sua análise con-
tribui para destacar, ao lado da m a n u t e n ç ã o das diferenças, a persistência d o
c o n s e n s o e das obrigações c o m p a r t i l h a d a s pelas congregações de C a n d o m -
blé, além da p a r t i c u l a r i d a d e das nações.
C o n f o r m e p u b l i c a v a O Alabama em 16 de fevereiro de 1869, "nestes três
dias d e e n t r u d o , o t a b a q u e está b a t e n d o ; f o r a m fechar o balaio q u e a quares-
ma v e m aí". E m o u t r a notícia fala-se q u e "o e n c e r r a m e n t o das festanças da
seita d u r a n t e as semanas da q u a r e s m a d u r a 11 dias, p r i n c i p i a n d o n o sábado
a n t e r i o r ao e n t r u d o " . 1 0 0 A i n t e r r u p ç ã o das atividades litúrgicas d u r a n t e o pe-
ríodo d a Q u a r e s m a ( r e p r o d u z i d a t a m b é m , por e x e m p l o , no T a m b o r de M i n a
do M a r a n h ã o ) , s e g u i n d o o c a l e n d á r i o católico, sugere tratar-se de u m seg-
m e n t o ritual "inventado" ou institucionalizado no Brasil, sem u m a vinculação
direta c o m práticas africanas. Essa c e r i m ó n i a é indicativa da c a p a c i d a d e de
reajuste e dos processos de adaptação do C a n d o m b l é às condições locais da so-
ciedade escravista.
Na década de 1860, o fechar o balaio já era u m a festa de grande i m p o r t â n c i a
no calendário litúrgico, envolvendo vários dias de t o q u e de tabaques, m a t a n -
ças de boi, carneiro e outras obrigações. Praticava-se em grande n ú m e r o de ter-
reiros e constituía uma ocasião para a reunião de especialistas religiosos de vários
lugares. A i m p o r t â n c i a dessa festa "criada" no Brasil, celebrada de f o r m a recor-
rente n u m a pluralidade de terreiros e envolvendo u m a dinâmica de cooperação
e c o m p l e m e n t a r i d a d e entre as diversas nações, é indicativo d o alto grau de con-
solidação institucional q u e o C a n d o m b l é t i n h a a t i n g i d o em princípios da se-
g u n d a m e t a d e do século XIX.
H o j e em dia, fala-se com f r e q u ê n c i a que d u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a
os v o d u n s e orixás r e t o r n a m à África, mas esse não parece ter sido o sentido
original dado à i n t e r r u p ç ã o das atividades religiosas. A c e r i m ó n i a dç. fechar o
balaio estava associada à idéia de que nesse t e m p o as divindades iam para a guer-
ra. Assim, em 1867, em relação a u m a m u l h e r q u e estava sendo iniciada n o
B o g u m , fala-se que "o santo a tiou pelo e n t r u d o , t e m p o que ele retira-separa a
guerra, e só volta pela páscoa". N a Rua do Sodré, o jornalista de O Alabama
relata a presença de um "verdadeiro quilombo" de africanos, onde "fervem cons-
t a n t e m e n t e os tabaques" para celebrar o fato de o "santo ter ido a guerra, ora
p o r q u e voltou da guerra". 1 0 1

356
O RITUAL

Fechar o balaio é expressão já e s q u e c i d a pelo p o v o - d e - s a n t o , m a s parece


ter sido u m a a l u s ã o à a b s t i n ê n c i a sexual f e m i n i n a , e alguns velhos, n u m inte-
ressante giro s e m â n t i c o , a i n d a a l e m b r a m c o m o s i g n i f i c a n d o "não p r o c u r a r
m u l h e r na Quaresma". 1 0 2 A t u a l m e n t e , a obrigação q u e assinala o e n c e r r a m e n t o
das atividades d u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a é mais c o n h e c i d a pelo t e r m o
n a g ô loroogun (ou olorogun), t r a d u z i d o p o r Francisco V i a n a c o m o "aquele q u e
faz o ritual da g u e r r a " . M a n t e n d o a velha t r a d i ç ã o d o c u m e n t a d a e m O Ala-
bama, o loroogun a i n d a simboliza a p a r t i d a para a g u e r r a das d i v i n d a d e s . Nesse
r i t u a l , "as c o r t e s d e O x a l á ( S e n h o r d o B o m f i m ) e X a n g ô (São J e r ô n i m o ) lu-
t a r ã o n o s t e r r e i r o s de c a n d o m b l é ao s o m dos a t a b a q u e s e c â n t i c o s religiosos.
P e r d e r á a l u t a o g r u p o q u e p r i m e i r o deixar ' b a i x a r ' u m orixá n o terreiro". 1 0 3
N o s c a n d o m b l é s j e j e - m a h i s o a n t i g o fechar o balaio é h o j e g e r a l m e n t e ci-
t a d o c o m o o " e n c e r r a m e n t o " o u "o fecha". Trata-se de u m a o b r i g a ç ã o m e n o r ,
restrita a u n s p o u c o s m e m b r o s da c o n g r e g a ç ã o e c e l e b r a d a n o d o m i n g o de
carnaval (ou n o p r i m e i r o d o m i n g o depois do carnaval). O s a n t o r e s p o n d e pela
m a n h ã , e até u n s a n o s a t r á s t i n h a t o q u e pela t a r d e . U t i l i z a n d o p a l m a de
peregun p r o c e d e - s e a u m a l i m p e z a geral da casa. M o l h a - s e o chão d o b a r r a c ã o
c o m m u i t a á g u a e d e f u m a - s e o espaço. T i r a m - s e das p o r t a s e janelas as fo-
lhas d e mariwo e outras decorações do barracão. O s voduns carregam umas
capangas c o m dois quilos de m i l h o b r a n c o (associado à d i v i n d a d e celeste O x a -
lá o u Olissá), q u e são j o g a d o s n o t e l h a d o , e dois q u i l o s de m i l h o t o r r a d o o u
p i p o c a (associado ao v o d u m da t e r r a A z o n s u ) , q u e são j o g a d o s n o c h ã o . D u -
r a n t e a p r o c i s s ã o é t o c a d o o r i t m o avania, a c o m p a n h a d o de u m c â n t i c o d e
d e s p e d i d a q u e a n u n c i a a p a r t i d a dos v o d u n s . S e g u n d o expressão de gaiaku
Luiza, "eles s a b e m q u e n ã o vão v o l t a r [...] é c o m o se eles f o s s e m p a r a a g u e r -
ra". As c a p a n g a s são p o s t e r i o r m e n t e p e n d u r a d a s nos atinsas o u árvores sagra-
das das d i v i n d a d e s e só a p ó s a Q u a r e s m a , c o m a r e a b e r t u r a das a t i v i d a d e s ,
serão r e t i r a d a s . Essa u t i l i z a ç ã o das c a p a n g a s seria c a r a c t e r í s t i c a d o s t e r r e i r o s
jejes e n ã o é p r a t i c a d a nas casas n a g ô s . A c e n d e m - s e velas de sete dias p a r a
cada u m dos v o d u n s n o s assentos d o p e j i e nos atinsas ("se a c e n d e de f o r a e
de d e n t r o " ) , b e m c o m o nos pontos dos filhos da casa. O s assentos d o peji são
c o b e r t o s c o m alas e os atinsas, a m a r r a d o s c o m p a n o s de cor. D o i s dias a p ó s
esse r i t u a l , p r o c e d e - s e ao d e s p a c h o d o s restos da l i m p e z a ( m i l h o b r a n c o , m i -
lho t o r r a d o , peregun, mariwo e t c . ) . O carrego é levado pela t a r d e a u m l u g a r
d i s t a n t e n o m a t o e a b a n d o n a d o na s o m b r a . D u r a n t e o p e r í o d o da Q u a r e s m a
o s a n t o n ã o r e s p o n d e . Fica só O l i s s á (e talvez a l g u m a o u t r a e n t i d a d e , c o m o
N a n ã ) p a r a s o c o r r e r e m caso de q u a l q u e r e m e r g ê n c i a . 1 0 4

C o m p r o v a m o s dessa f o r m a a progressiva p e r d a de i m p o r t â n c i a da a n t i g a
festa de fechar o balaio, q u e a t u a l m e n t e , pelo m e n o s nos t e r r e i r o s jejes, pare-

357
LUIS NICOLAU PA R É S

ce r e d u z i d a a u m ritual i n t e r n o de limpeza da casa, sem sacrifícios a n i m a i s e


p a u l a t i n a m e n t e sem t o q u e s e m a n i f e s t a ç ã o dos v o d u n s . E m casas q u e a s s u m e m
o processo de reafricanização fala-se q u e o lorogum foi u m a t r a d i ç ã o i m p o s t a
pela h e g e m o n i a católica, e n ã o é i n f r e q i i e n t e a i n t e r r u p ç ã o dessa festa, p o d e n -
d o h o j e em dia p r a t i c a r e m - s e diversas atividades rituais d u r a n t e a Q u a r e s m a .
D e p o i s da Q u a r e s m a a ú n i c a o b r i g a ç ã o i m p o r t a n t e nos terreiros jejes é a
c h a m a d a fogueira de Sogbo, celebrada em j u n h o , d u r a n t e as festas de São João.
E m b o r a essa cerimónia apresente singularidades que a diferenciem de obrigações
h o m ó l o g a s praticadas por c a n d o m b l é s de o u t r a s nações, c o m o o encerramento,
ela não constitui u m s e g m e n t o ritual q u e os praticantes i d e n t i f i q u e m c o m o ex-
clusivo da nação jeje. Porém, devido à i m p o r t â n c i a q u e essa festa t e m n o calen-
dário jeje, n ã o gostaria de concluir este capítulo sem u m breve c o m e n t á r i o .
A f o g u e i r a de São J o ã o , u m a t r a d i ç ã o d e o r i g e m ibérica, n o R e c ô n c a v o está
t a m b é m associada às festas da colheita d o m i l h o verde, u m a p l a n t a e lavoura
de o r i g e m a m e r í n d i a . C o m o n o resto d o país, em C a c h o e i r a a festa t e m g r a n d e
p o p u l a r i d a d e e todas as famílias o r g a n i z a m fogueiras na véspera de São João.
Essa t r a d i ç ã o , q u e p r o v a v e l m e n t e r e m o n t a aos p r i m ó r d i o s da época colonial
j u n t a m e n t e com o u t r o s elementos p r ó p r i o s das festas juninas, c o m o , p o r exem-
plo, a p r e p a r a ç ã o de c a n j i c a e o c o n s u m o de licores de j e n i p a p o e m a r a c u j á ,
foi t a m b é m a p r o p r i a d a pela c o m u n i d a d e religiosa de C a n d o m b l é sem distin-
ção de n a ç ã o . N o e n t a n t o , nas casas jejes a festa v i r o u u m a das obrigações de
p r e c e i t o m a i s i m p o r t a n t e s d o c a l e n d á r i o ritual, s e n d o associada aos v o d u n s
Sogbo e Badé, q u e na hagiologia jeje são d i v i n d a d e s associadas ao f o g o . O 24
de j u n h o , dia de São João, é n o r m a l m e n t e associado a Badé, e n q u a n t o o 29 de
j u n h o , d i a de São Pedro, é associado a Sogbo.
H á u m a possível e interessante ligação de Badé c o m a festa d e São João, q u e
derivaria n ã o t a n t o da sua associação c o m o fogo, m a s do seu v í n c u l o c o m o
m i l h o . D e fato, c o m o a p o n t a Segurola, G b a d é , além de ser u m v o d u m da f a m í -
lia H e v i o s o , em f o n g b e significa m i l h o , "em U i d á se diz gbadé-, em Abomey, se
utiliza a f o r m a agbadé". Já e m 1741, Peixoto m e n c i o n a o t e r m o abádê como
m i l h o . C o n f o r m e c o m e n t a C o r r e i a Lopes, "Keibiossô, o X a n g ô gêge, passou a
Badé, Badé é o m i l h o , e n a d a mais natural q u e se ter ligado o culto de Keibiossô
ao cultivo da gramínea, n u m a daquelas festas agrícolas de escravos c o m o a sim-
p á t i c a festa dos a m e n d o i n s de q u e cedo e n c o n t r a m o s notícia em G a b r i e l Soa-
res". Se as festas j u n i n a s c o r r e s p o n d e m à colheita d o m i l h o verde, não é im-
provável q u e esse f a t o c o n t r i b u í s s e para a celebração de Badé d u r a n t e as festas
de São J o ã o .
Eis u m a descrição sintética da festa c o n f o r m e n a r r a d a p o r gaiaku Luiza. N a
véspera de São João, antes de acender a fogueira, prepara-se a canjica de Bessen,

358
O RITUAL

feira c o m m i l h o v e r d e r a l a d o — d o q u a l se r e t i r a a " p a l h a " — , á g u a , a ç ú c a r ,


c r a v o , m a n t e i g a , c a n e l a e m p a u e leite d e c o c o à v o n t a d e . A p r e p a r a ç ã o d a
c a n j i c a d e B e s s e n n o d i a d e São J o ã o faz c o m q u e a l g u m a s p e s s o a s i d e n t i f i -
q u e m a f o g u e i r a desse dia c o m o v o d u m - c o b r a . A p r e p a r a ç ã o d a f o g u e i r a , feita
c o m l e n h a d e á r v o r e s s a g r a d a s , é de p r e c e i t o e r e s p o n s a b i l i d a d e d o o g ã . U m a
vez aceso o f o g o , o q u e às vezes d e m o r a p o r c a u s a d a c h u v a , o pessoal d a casa
d á t r ê s v o l t a s e m t o r n o d a f o g u e i r a c o m a c a n j i c a e as f r u t a s , e s p e c i a l m e n t e
l a r a n j a s , p a r a l o g o s e r e m os a l i m e n t o s a p r e s e n t a d o s n o "pé d o s a n t o " . D u -
r a n t e a f o g u e i r a , a n t i g a m e n t e , b a t i a - s e t a m b o r e os v o d u n s , e m e s p e c i a l
S o g b o , seja d u r a n t e o t o q u e o u e m m e i o aos s a c r i f í c i o s p r é v i o s , " a r r i a v a m "
o u " r e s p o n d i a m " . U m a vez m a n i f e s t a d o s , " t o m a v a m o r u m " , d a n ç a n d o em
v o l t a d o f o g o . N o p a s s a d o essa o b r i g a ç ã o , j u n t o c o m o boitá, era u m d o s m o -
m e n t o s privilegiados para recolher na c a m a r i n h a novas v o d ú n s i s a serem ini-
c i a d a s . N o f i n a l d a o b r i g a ç ã o , r e p a r t i a - s e a c a n j i c a e as f r u t a s e n t r e o p ú b l i c o
a s s i s t e n t e . Humbono V i c e n t e a c r e s c e n t a q u e a n t e s se d a n ç a v a c o m a c a n j i c a
e m v o l t a d o f o g o e t a m b é m se j o g a v a n e l e m i l h o e l a r a n j a . 1 0 6 N o Seja H u n d é
a f o g u e i r a de S ã o J o ã o é m a n t i d a acesa a t é o d i a de São P e d r o , q u a n d o se
homenageia a Sogbo.
Se Azili T o b o s i é u m e x e m p l o q u e m o s t r a c o m o d i f e r e n ç a s de c u l t o n a área
g b e p o d e m p e r s i s t i r c o m o v a r i a n t e s r e g i o n a i s d o r i t o jeje n o Brasil e, se a o b r i -
gação d e A z o n a d o m o s t r a c o m o a d i f e r e n c i a ç ã o ritual p o d e localizar-se n o â m b i -
t o r e s t r i t o de u m só t e r r e i r o , a f e s t a de fechar o balaio e a f o g u e i r a de São J o ã o ,
ao c o n t r á r i o , c o m o o b r i g a ç õ e s c r i a d a s n o Brasil e, p o r t a n t o , r e s u l t a d o d o c o n -
s e n s o , t e n d e m a ser e s p a ç o s r i t u a i s o n d e as p a r t i c u l a r i d a d e s d a s n a ç õ e s n ã o se
e x p r e s s a m de f o r m a e v i d e n t e . A c o n c l u s ã o m a i s a m p l a q u e d e r i v a dessa evi-
d ê n c i a é q u e os s i n a i s d i a c r í t i c o s e s c o l h i d o s p a r a a r t i c u l a r o f a t o r d i f e r e n c i a l
d a s n a ç õ e s , e m b o r a e m a l g u n s casos p o s s a m ser e l e m e n t o s " c r i a d o s " n o B r a -
sil, m a i s f r e q u e n t e m e n t e e s t ã o a n c o r a d o s , a i n d a q u e r e a d a p t a d o s o u ressig-
nificados, em elementos africanos diferenciados.

NOTAS

1
Seu Geninho, 5/3/2000; ogã Boboso, 5/9/2002.
2
Rodrigues, Os a f r i c a n o s . . . , p. 137, 139. Sobre a confusão entre jeje e ewe, ver, por exem-
plo, as notas de Raul Lody na obra de Querino, C o s t u m e s . . . , p. 81. Carneiro, C a n d o m -
b l é s . . . , p. 44.
' No Bogum de Salvador, no entanto, as vodúnsis podem realizar o dobale diante da
d o n é . Para comentários sobre o dobale e o i k d k ò , os f o r í b a l è (gestos de louvor e respei-
to) dos orixás homens e dos orixás mulheres, respectivamente, ver M. S. A. Santos,
M e u t e m p o . . . , pp. 54-57.

359
L U I S N I C O L A U PA RÉS

Cossard, "Concribution...", p. 12. Algumas pessoas, ainda, podem responder colofe' mi


ou, se forem de nação angola, colofé muzambi, expressões que certos especialistas reli-
giosos jejes acham erradas. A resposta Olorum modokwí parece ser uma adaptação de
Olorun mo dupe (graças a Deus), uma resposta clássica a todo tipo de "votos" em iorubá
(Felix Ayoh Omidire, 13/9/2003). No enranto, o uso do vocábulo fon kwé (casa) faz
com que a expressão seja também traduzida como "Deus te receba na sua casa".
Benoi talvez decorre de gbenò, que em fon significa "dono da vida, criador do mun-
d o ' . Para a nação jeje-savalu recolhi duas possíveis bênçãos: 1) se mina ho (gaiaku Luiza,
17/12/1998); 2) imbaloim, resposta: son fosu nafó, ou, mais provavelmente, so kposu apo
(humbono Vicente, 14/12/1999, 16/5/2001). No ketu é corrente a expressão motubá
(matubá), resposta: morubaxe (matubaxe')-, ou túmbá mi, resposta túmbá ase, o.
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., p. 77; e 17/12/1998.
Segurola, Dictionnaire..., p. 384.
Rodrigues, Os africanos..., p. 236; Segurola, Dictionnaire..., p. 408. Carneiro, mais acer-
tadamente, aponta para os termos nagôs "ialorixá" e "babalorixá" como antecedentes
das expressões mãe e pai-de-santo (Religiões..., p. 56).
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2" Encontro..., p. 79.
Segurola, Dictionnaire..., p. 249.
Humbono Vicente, 19/2/1999.
J. de Carvalho, " M u n d o Jeje comemora cinquentenário de sua mãe-de-santo", A Tar-
de, 26/7/1988.
Akindele e Aguéssy, Contribution..., p. 114, apud Lima, A família..., p. 134.
Duncan, Traveis..., vol. I. p. 101. Na Bahia, O Alabama menciona um "papai Dothé",
olowo ou adivinho de Fa (O Alabama, 2/3/1867, p. 3). No culto Nesuhue de Abomey,
utiliza-se o termo "vodúnsi hundoté" (literalmente a vodúnsi da divindade em pé) para
designar aquelas vodúnsis consagradas ao vodum, porém relativamente inexperientes
(Adoukonou, Jalons..., vol. II, pp. 68, 191-95).
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2a Encontro..., p. 77; pai-pequeno, ficha n" 48, CEAO, 1966.
Os dois últimos termos são conhecidos em Cachoeira (ogá Boboso, 7/8/2001). Bernar-
d i n h o c o n f i r m a o ogã minazon como tocador de atabaque (18/8/2001). O termo
minazon provavelmente deriva de binàzõn, que em tongbe significa "quem t u d o orde-
na = ministro das finanças e dos bens do rei" (Segurola, Dictionnaire...).
Pai-pequeno, filho-de-santo do Pó Zerrem, mencionava ainda os títulos citoi e sinoi
como equivalentes de babalaxé e ialaxé (sic), respectivamente, na nação jeje (pai-pe-
queno, ficha n A 48, CEAO, 1966). Um outro título conhecido em Cachoeira, ogã perê,
o fiscal da sala, talvez seja de origem nagô.
Everaldo Duarte, 30/9/2002. Nos terreiros ketus, dagan designa a auxiliar da iamorô
(responsável pelo ritual d o padê).
M. S. A. Santos, Meu tempo..., pp. 26, 28. Para uma análise da organização hierárquica
e o princípio de senioridade no Candomblé, ver Lima, "A família...", pp. 49-118.
Verger, Notas..., p. 28. O termo fon hun é polissêmico e, além de atabaque, significa
coração (pois também bate como ele) e qualquer tipo de veículo (embarcação ou ou-
tros). O termo hunpevi significa o filho (vi) pequeno (kpe) do tambor (hun) (ou o
tambor filho pequeno). Nos terreiros angola os tambores podem ser chamados rum,
contra-rum e rum pi (Cossard, La musique..., pp. 160-79).
Rodrigues, Os africanos..., p. 160; idem, O animismo..., pp. 80-81. Carneiro, Religiões...,
p. 75. Sobre o uso de chocalhos e agogõs, ver ainda Rodrigues, Os africanos..., pp. 240, 248.

360
O RITUAL

22
Verger, Notas..., p. 25.
23
Nos tempos de Runhó, um atabaque era de O x u m , e outro de Bogum (ficha n 2 1, CEAO,
1961).
24
F i c h a n 2 1, CEAO, 1961; E v e r a l d o D u a r t e , 3 1 / 8 / 0 2 ; B e r n a r d i n h o , 1 4 / 8 / 1 9 9 9 , 9 / 1 / 2 0 0 0 ;
humbono Vicente, 29/11/2000.
25
Verger, Notas..., p. 28.
26
Ortiz, La africania..., pp. 374, 376, apud Verger, Notas..., pp. 25, 28, 29.
r
Joãozinho, 7/1/1996.
28
"Os 'time line' constituem uma categoria especial de padrões de percussão, caracteri-
zados por uma estrutura interna assimétrica como 5 + 7 ou 7 + 9. São padrões de uma
nota só, executados num instrumento musical com uma qualidade de som penetrante,
como uma sineta" (Kubik, Theory...). Para transcrever os time Unes, sigo o sistema de
anotação convencional utilizado por Kubik, em que "/" marca o início do ciclo rítmi-
co, e em que "x" (a batida) e "." (o silêncio) têm a mesma duração.
29
Vatin, Étude.... Fico grato a Xavier Vatin pela esclarecedora entrevista que me conce-
deu em 27/6/2001.
30
Ramos, O negro..., p. 163; Segurola, Dietionnaire..., p. 4. O adahun era um ritmo uti-
lizado para encorajar os guerreiros antes ou durante as guerras e ainda é tocado nos
cultos v o d u m do Benim. Ver t a m b é m Cossard, La musique..., pp. 160-79; Vatin,
Étude...
31
Em fongbe satã designa um tambor grande que faz parte de certas orquestras fúnebres
ou de divertimento, já satò designa o quintal diante dos conventos vodum ou do pa-
lácio real (Segurola, Dietionnaire..., p. 457).
32
Vatin, Étude...; Sodré, "Música sacra do Candomblé...".
33
No Seja H u n d é , a variação do quebrado apresenta mudança na estrutura de batidas,
mas no H u n t o l o j i o time line muda para o avamunha (ou uma versão mais rápida),
passando de um ciclo de 6 pulsos a um de 12. Já no mundubi, no Seja H u n d é o time
line incrementa uma batida "/x.x.x./", enquanto no Huntoloji há outra sequência mais
complexa que não consegui identificar com precisão.
34
Olga de Alaketo, entrevista 3/1/1996; Waldeloir Rego, 31/12/1995.
33
Van G e n n e p , Rites..., Turner, The Ritual... Para descrições de diversos rituais de ini-
ciação na área gbe, ver Verger, Notas..., pp. 81-118; Herskovits, Dahomey..., vol. II,
pp. 1 1 1-26, 162-66, 178-90. Utilizo o feminino para referir-me à pessoa iniciada, por
serem as mulheres maioria entre os devotos do Candomblé e da religião vodum, mas
cabe notar que os homens também podem ser iniciados como vodúnsis.
36
Verger, Notas..., pp. 82, 105.
3
" Gaiaku Luiza, 25/12/1994, 20/8/1996.
38
Gaiaku Luiza, 17/8/2002; ogã Boboso, 7/9/2002. Contrariamente, em O Alabama, do-
cumenta-se o caso de uma mulher do Bogum que estava sendo iniciada, "no ato de fazer
o sapocan, cerimónia que consiste em cortar os cabelos e poder transpor o limiar da tal
casinha, depois de seis meses" (grifo nosso) (O Alabama, 14/4/1869, p. 1). Outras notí-
cias de O Alabama (i. e., 6/3/1867, pp. 2-3; 24/12/1870, p. 5; 11/11/1871, p. 4) descre-
vem de forma bastante preconceituosa aspectos da iniciação em outros terreiros jejes,
denunciando condições higiénicas, exploração sexual, maus tratos, e até eventuais mor-
tes causadas pelos castigos.
w
Gaiaku Luiza, 25/12/1994; humbono Vicente, 4/5/1999, 16/5/1901.
40
Gaiaku Luiza, 25/12/1994.

361
L U I S N I C O L A U PA RÉS

Humbono Vicente, 13/11/1999, 20/10/2000. Glèlè, Le Danxome..., p. 75; Hazoume, Le


pacte.... No Benim, hunve, literalmente "divindade vermelha", designa uma categoria
de voduns representados por um aciná (um tipo de assento) e chamados atinmevodun.
Inclui os voduns-pantera Ajahunto e Agassu, e outros como Loko, Massé etc.
Gaiaku Luiza, 20/8/1996; humbono Vicente, 29/11/2000; Everaldo Duarte, 21/4/1999.
Cossard, "Contribution...", p. 206.
Em ritual semelhante observado em Uidá (templo de Avimanje, jul.-set., 1995), foi o
sacerdote quem pronunciou o nome das novas vodúnsis e náo o vodum. A apresenta-
ção pública das noviças aconteceu em três cerimónias, separadas por intervalos de mais
de um mês.
Humbono Vicente, 29/11/2000; Waldeloir Rego, 31/12/1995.
• O Alabama, 1 l / l 1/1871, p. 4.
Para uma descrição da compra das iaôs numa casa de Porto Alegre, nos anos 1940, ver
Herskovits, " T h e Panan...", pp. 133-40. Ver também Marques, O feiticeiro..., p. 109.
Um ano após a iniciação, a vodúnsi pode remover o quelê, colar que, amarrado ao
pescoço, simboliza a submissão à entidade (gaiaku Luiza, 25/12/1994).
Para uma análise sobre a memória da escravidão no ritual religioso, ver Parés, "Me-
mories...".
Carneiro, Candomblés..., p. 141. Humbono Vicente, 22/8/1999- Ogo é cacete em iorubá.
Para outros comentários sobre a quitanda, ver Bastide, Imagens..., pp. 61-62.
Cossard, "Contribution...", pp. 188, 207.
Em 1961, Runhó dava a seguinte sequência (entre parênteses a data): Oxalá ( l / l ) ; Azana
Odo (6/1); Sogbo (domingo seguinte); Bessen (oito dias depois). No meio da semana
festejavam-se as yabas e outros santos: ficha n a 1, CEAO, 27/1/1961. O calendário em
1973 foi: Olissá ( l / l ) ; Azounoodor (7/1); Bafono Decá (10/1); Obessein (14/1); O g u m
é Agangatolú (18/1); Loco ( 2 l / l ) ; Sogbô (23/1); Tobosse (28/1); Badé (4/2); Ojonsu
(Azonsu) ( l l / 2 ) ; J. de Carvalho (jornal não identificado), 31/12. Já o calendário em
2003 foi: Olisá (l a 5/1); Z o n o d o r (7/1); Bessem (12/1); Loko (19/1); O g u m , Aganga-
tolú, Ague (26/1); Sogbo (29/l); Tobossi (2/2); Ibeji (9/2); Ojonsu, Nana (16 a 18/2).
No Huntoloji, as atividades rituais iniciam-se na manhã do sábado, com obrigações
para Legba e O g u m Xoroque, seguidas pela obrigação de Aizan, que ocorre normal-
mente antes das 18 horas. A "matança" acontece de madrugada, por volta das 6 horas
do domingo, após o zandró. Segundo algumas pessoas, no passado também no Seja
H u n d é a "matança" era realizada de madrugada.
Contrariamente, nos cultos de vodum na área gbe, Legba tem devotos a ele consagra-
dos (Legbasi). Para uma análise sobre essa questão em relação a Exu no Brasil, ver
Capone, La quête..., pp. 81-87.
Peixoto, Obra..., p. 32. Pruneau de Pommegorge, que permaneceu em Uidá de 1743
a 1765, dá a primeira referência a Legba, falando do "deus Príapo" (Description...,
p. 201). Em 1804, o rei daomeano Adadozan escreve sobre "o meu grande Deos Leba"
(Verger, Os libertos..., p. 106; Fluxo..., pp. 273, 288). Em 1845, D'Avezac, menciona
a Elegwa em relação à região de Ijebu ("Notice...", p. 84, apud Verger, Notas..., pp.
133-34). Bowen, em 1852, fornece a p r i m e i r a referência a Esu, em A b e o k u t a (A
grammar..., p . 16).
O Alabama, 21/1 1/1871.
Humbono Vicente, 30/6/1999, 28/12/1999, 20/10/2000.

362
O RITUAL

Verger cita e n t r e as árvores em que as iamis vão e m p o l e i r a r - s e o Ògúti bèrèke


(Delonix regia, Leguminosae) ("Grandeza...", p. 71). C a p o n e d o c u m e n t a o orixá
O l o q u e ou O l o r o q u ê , d i v i n d a d e patroa da nação efon (La quête..., pp. 126-27 e
ilustração n a 5).
Para c o m e n t á r i o s mais detalhados sobre o padê, ver ]. E. dos Santos, Os nagô...,
pp. 184-95; Capone, La quête..., pp. 76-79. Para informações sobre as iamis Oxoronga,
ver Verger, "Grandeza...", pp. 13-72; Capone, La quête..., pp. 78-81.
Verger, Notas..., pp. 49, 553; Le Herissé, L'Anciên..., pp. 274-77; Segurola, Dictionnaire...,
p. 32.
Herskovits, Dahomey..., vol. I, p. 208.
Humbono Vicente, 28/12/1999. Alguns consideram Aizan uma mulher doente, que se
ocupa das pessoas mortas (gaiaku Luiza, 3/1/2000).
Acompanhei a obrigação no Seja H u n d é em 25/12/1999 e 6/1/2001, e no Huntoloji em
20/1/2001.
Brice Sogbosi, comunicação pessoal, 6/1/2001.
A descrição do zandró é baseada nas observações realizadas no Seja H u n d é (6/1/1996,
8/1/1999, 25/12/1999, 8/1/2000, 6/1/2001) e no Huntoloji (23/1/1999, 30/1/1999; 20/1/2001).
Designando esse liquido me foram dados vários nomes: degué, padé, amia, ifun ou eko
(o último seria acaçá misturado com água). Para a nação efon, ver Capone, La quête...,
p. 77.
Versões fonéticas livremente transcritas a partir dos cantos de humbono Vicente (en-
trevista 13 /1 /1999), e do zandró do boitá no Huntoloji (30/1/1999). O time line do gã
é "/x.xxx./", correspondente ao ritmo sató. No Seja H u n d é , escutei outra variante, tal-
vez "/xxx.xx.xx./".
A sequência de cantos no H u n t o l o j i apresenta algumas variações na ordem e também
observei algumas coreografias não identificadas no Seja H u n d é .
Segurola, Dictionnaire..., pp. 626-27. Fico grato a Brice Sogbossi por ter chamado a
minha atenção sobre esse particular.
No H u n t o l o j i , às vezes se canta para Nanã antes de Sogbo, na parte das yabas (divin-
dades femininas). No jeje savalu do terreiro Inlegedá Jigemin, a ordem é: Ogum, Oxóssi
(Agangatolu), Agué, Bessen, Azonsu, Sogbo, Oiá, Tobosi, Nanã, Oxalá.
O hun do dji ou e no do hun ji (vamos colocar o tambor acima) é o segmento ritual
no qual se solícita ao huntó (chefe dos tocadores) que inicie os toques do tambor,
mas o termo, por extensão, designa também a complexa série de rituais privados que
precedem ao zandró ou dohué (Basil Semasu, Abomey, 11/8/1995; Olivier Semasu,
Uidá, 18/9/1995).
Basil Semasu, Abomey, 1 1/8/1995.
No passado, no Seja Hundé, o boitá era carregado por Aguesi (Geninho, 28/1/2001).
Mas o vodum Agué "vai sempre com Ogum".
Fui testemunha do boitá no Seja H u n d é , em 9/1/1999 e 9/1/2000, e no Huntoloji, em
31/1/1999 e 28/1/2001.
Versão transcrita a partir do boitá celebrado no Huntoloji em 31/1/1999. Variantes do
primeiro verso dessa cantiga; "hena hero eta kaio" ou "hena heno eta va yo": Huntoloji,
28/1/2001. O u , ainda, "ena ero ita kaia" ou "eno du vodun ita, eno beto esi": humbono
Vicente, 4/2/1999, 28/4/1999.
Gaiaku Luiza, em CLAO, 2°- Encontro..., pp. 77, 78; humbono Vicente, 4/2/1999.

363
L U I S N I C O L A U PA RÉS

77
Milton Moura, l E /9/2001.
78
Gaiaku Luiza, em CEAO, 2- Encontro..., p. 80.
79
J. de Carvalho, "Nação...", p. 53. Ver também "Locose toma assento na cadeira de
Ruinho", A Tarde, 6/1/1979; "Mundo Jeje comemora cinquentenário de sua mãe-de-
santo", A Tarde, 26/7/1988.
80
Equede Santa, Salvador, entrevista de 1981. Menininha nasceu em 10 de fevereiro de
1894 (D. F. da Silva, "A morte..."). A informação sobre o nome Salaco é de Vivaldo
da Costa Lima, comunicação pessoal, 10/8/1999.
81
J . d e C a r v a l h o , " N a ç ã o . . . " , p . 53.
82
Lody, Ao som..., p. 47; gaiaku Luiza, 17/2/98; Nenem de Mello, 7/1/2003.
83
Humbono Vicente, 13/11/1999.
84
Lima, "A família...", pp. 21, 43. Everaldo Duarte também sugere uma possível rela-
ção de Azonodo com Azoani, mas sem identificá-los (21/4/1999).
85
Waldeloir Rego, "Mitos...", p. 186. Segurola, Dietionnaire..., p. 84. Outras interpre-
tações mais questionáveis associam Azonodo como um vodum dos astros, ou Sogbo.
Ogã Boboso, 18/12/1998; J. de Carvalho, "Nação...", p. 53.
sf
' Avimanjenon, Uidá, 24/11/2001.
87
Everaldo Duarte, 31/8/2002.
88
"Mataram árvore africana adorada no terreiro Gêge", jornal e data não identificados,
1978; J. de Carvalho, "Nação...", p. 54.
89
Lody, Ao som..., p. 47.
90
Equede Santa, Salvador, entrevista 1981.
91
Everaldo Duarte, 21/4/1999.
92
O Alabama, 24/11/1871, p. 4.
93
Para um estudo em detalhe do tema desta seção, ver Parés, "O triângulo...".
94
Semasusi, Uidá, entrevista 4/10/1995. Azilinon, Uidá, entrevista 20/9/1995.
95
Para uma análise dos bo na área gbe, ver Blier, African..., pp. 2-4, e cap. 2.
96
Aguesi, 10/8/1996; gaiaku Luiza, 28/11/1998, 17/12/1998. Indicando, mais uma vez,
a interpenetração jeje-angola, alguns consideram Kaia ou Kaiala o nome angola de
Iemanjá.
97
Aguesi, 10/8/1996. Sobre Azili no Haiti: Gleason, "Report...", p. 28; Metraux, Le
vaudou..., pp. 78, 97.
98
Querino, Costumes..., p. 37.
99
A descrição baseia-se nos rituais celebrados em 2/2/1999, no Huntoloji, e em 12/1/2000,
no Seja Hundé.
100
O Alabama, 6/3/1867; 16/2/1869, pp. 2-3.
101
O Alabama, 10/5/1867; 19/3/1869, pp 2-3.
102
Ogã Boboso, 25/9/2000; Everaldo Duarte, 30/8/2003.
103
Francisco Viana, "Ritual da guerra fecha candomblés após o carnaval", A Tarde, 17/2/1973.
Caciattore apresenta duas possíveis etimologias: 1) partiu (lo), está pronto para a guer-
ra (rogun), ou 2) festival (olórò) da guerra (ogun) (Dicionário..., p. 165).
104
Gaiaku Luiza, 16/2/1999, 14/2/1999, 2/4/2000; humbono Vicente, 19/2/1999.
105
Segurola, Dietionnaire..., p. 200; Peixoto, Obra..., p. 18; Lopes, "O pessoal...", p. 47.
106
Gaiaku Luiza, 20/8/1996, 22/6/1999, 25/6/1999; humbono Vicente, 22/8/1999.

364
CONCLUSÃO

C h e g a m o s , assim, ao final d o n o s s o p e r c u r s o . C a b e n o t a r q u e , apesar d o deta-


l h e c o m q u e f o r a m a b o r d a d o s c e r t o s aspectos de l i t u r g i a jeje, o t e x t o q u e a n -
t e c e d e está l o n g e de ser e x a u s t i v o . H á a i n d a o u t r a s o b r i g a ç õ e s i m p o r t a n t e s ,
a e x e m p l o dos ritos f u n e r á r i o s d o zelim, q u e a p r e s e n t a m s i n g u l a r i d a d e s q u e as
d i f e r e n c i a m de o b r i g a ç õ e s h o m ó l o g a s p r a t i c a d a s n o s c a n d o m b l é s d e o u t r a s
nações. N o e n t a n t o , elas n ã o c o n s t i t u e m s e g m e n t o s rituais q u e os p r a t i c a n t e s
i d e n t i f i q u e m c o m o exclusivos da n a ç ã o jeje e, p o r esse m o t i v o , f o r a m deixadas
de l a d o para s e r e m a b o r d a d a s em f u t u r o s t r a b a l h o s .
U m a das c o n c l u s õ e s de o r d e m mais geral é q u e os processos de i d e n t i d a d e
religiosa, q u e se a r t i c u l a m n o C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e o a p a r t i r das d i f e -
renças litúrgicas, a p r e s e n t a m u m claro p a r a l e l i s m o c o m os processos d e i d e n -
t i d a d e é t n i c a q u e o p e r a v a m e n t r e os a f r i c a n o s e seus d e s c e n d e n t e s n o s sécu-
los X V I I I e XIX. E m a m b o s os casos t r a t a - s e de processos de i d e n t i d a d e rela-
cionais, isto é, processos de d i f e r e n c i a ç ã o baseados n o c o n t r a s t e c o m o " o u t r o "
e na d i c o t o m i z a ç ã o de sinais d i a c r í t i c o s . A d i f e r e n ç a se expressa n u m d u p l o
m o v i m e n t o pela v a l o r i z a ç ã o de s i n g u l a r i d a d e s n ã o c o m p a r t i l h a d a s pelos o u -
tros, assim c o m o pela a u s ê n c i a d e c e r t o s valores e p r á t i c a s característicos d o s
o u t r o s . Aliás, os p r o c e s s o s de i d e n t i f i c a ç ã o religiosa q u e o b s e r v a m o s h o j e n o
C a n d o m b l é f o r a m , no p a s s a d o , p a r t e i n t e g r a n t e d o s p r o c e s s o s d e i d e n t i f i c a -
ção é t n i c a , e x i s t i n d o e n t r e a m b o s u m a certa relação de c o n t i n u i d a d e .
T o d a v i a , os p r o c e s s o s de i d e n t i f i c a ç ã o r e l i g i o s a a p r e s e n t a m u m a n a t u -
reza m u l t i d i m e n s i o n a l , p a r a l e l a à q u e l a q u e a p o n t e i e m r e l a ç ã o aos p r o -
cessos d e i d e n t i d a d e é t n i c a . O u s e j a , u m m e m b r o de u m t e r r e i r o jeje d i s -
p õ e d e v á r i a s c a t e g o r i a s p a r a e x p r e s s a r o seu p e r t e n c i m e n t o r e l i g i o s o . N o
nível m a i s g e n é r i c o , ele p o d e q u a l i f i c a r a sua r e l i g i ã o c o m o " a f r i c a n a " , ali-
n h a n d o - s e aí c o m u m a c a d a vez m a i s p r i v i l e g i a d a i d e n t i d a d e n e g r a de ca-

365
L U I S N I C O L A U PA RÉS

r á t e r é t n i c o - r a c i a l . Esse t i p o de i d e n t i f i c a ç ã o se dá, s o b r e t u d o , em i n t e r a ç õ e s
c o m p e s s o a s p e r t e n c e n t e s a religiões q u e n ã o p o s s u e m r e f e r e n t e s a f r i c a n o s ,
o u q u e , t e n d o - o s , n ã o os v a l o r i z a m d o m e s m o m o d o , c o m o p o r e x e m p l o
p r a t i c a n t e s de C a n d o m b l é d e C a b o c l o , U m b a n d a , E s p i r i t i s m o o u igrejas
evangélicas. N u m nível i n t e r m e d i á r i o , o n o s s o m e m b r o de t e r r e i r o p o d e uti-
lizar c a t e g o r i a s d e c a r á t e r " m e t a é t n i c o " e q u a l i f i c a r a sua casa c o m o s e n d o
d e n a ç ã o j e j e . Esse t i p o de q u a l i f i c a ç ã o - i d e n t i f i c a ç ã o se p r o d u z i r á n o r m a l -
m e n t e e m i n t e r a ç õ e s c o m m e m b r o s de o u t r o s t e r r e i r o s n a g ô s o u a n g o l a s , e
h a v e r á c o n s c i ê n c i a d e d i f e r e n ç a s l i t ú r g i c a s , assim c o m o de g e n e a l o g i a s es-
p i r i t u a i s . N u m t e r c e i r o nível, d e n t r o d e c a d a n a ç ã o , h á u m a série d e c a t e -
gorias c o m r e f e r ê n c i a s m a i s específicas a t e r r a s o u c i d a d e s a f r i c a n a s . N o caso
d o jeje, c o m o já v i m o s , s e r i a m m a h i , s a v a l u , d a g o m e , m u n d u b i e t c . Essas
c a t e g o r i a s n ã o t ê m h o j e e m dia u m e m b a s a m e n t o r i t u a l t ã o f o r t e c o m o o
d a s n a ç õ e s " m e t a é t n i c a s " , m a s p e r s i s t e m c o m o sinais d i a c r í t i c o s de c o n g r e -
gações p a r t i c u l a r e s . N o caso da n a ç ã o jeje, a v a r i a n t e m a h i p a r e c e ter persis-
tido com mais visibilidade do que outras "subnações" que foram progressi-
v a m e n t e e s q u e c i d a s . N o caso da n a ç ã o n a g ô , k e t u é a " s u b n a ç ã o " q u e des-
b a n c o u as c a t e g o r i a s c o n c o r r e n t e s .

C o m p r o v a m o s , assim, q u e a m u l t i d i m e n s i o n a l i d a d e da i d e n t i f i c a ç ã o ét-
n i c a dos n e g r o s d o século XVIII e XIX e n c o n t r a c o r r e s p o n d ê n c i a s n o â m b i t o
r e l i g i o s o , e m b o r a a i m p o r t â n c i a e v i s i b i l i d a d e social d o s v á r i o s níveis i d e n -
titários seja d i n â m i c a e h i s t o r i c a m e n t e variável. E n q u a n t o h o u v e africanos
n a B a h i a e n v o l v i d o s n o s c a n d o m b l é s , o t e r c e i r o n í v e l das " s u b n a ç õ e s " de-
via a i n d a t e r u m a r e l e v â n c i a s i g n i f i c a t i v a ; à m e d i d a q u e esses a f r i c a n o s f o -
r a m m o r r e n d o e s e n d o s u b s t i t u í d o s p o r c r i o u l o s , as d e n o m i n a ç õ e s " m e t a é t -
n i c a s " de n a ç ã o f o r a m privilegiadas. N a s ú l t i m a s d é c a d a s o nível m a i s gené-
rico da a f r i c a n i d a d e parece t o r n a r - s e o mais r e i v i n d i c a d o d e v i d o à i m p o r t â n c i a
que adquiriu a ideologia da negritude c o m o identidade étnico-racial.
T o d a s essas d i m e n s õ e s i d e n t i t á r i a s a s s o c i a d a s ao C a n d o m b l é , b a s e a d a s
e m d i f e r e n ç a s c o n c e i t u a i s e r i t u a i s m a i s o u m e n o s r e c o n h e c i d a s , são o p e -
r a t i v a s e n q u a n t o h á u m c o n s e n s o d e b a s e , i s t o é, e n q u a n t o elas o c o r r e m
d e n t r o o u e m r e l a ç ã o a u m a m e s m a i n s t i t u i ç ã o r e l i g i o s a . C o m o já a p o n t e i
r e p e t i d a s vezes, a d i f e r e n ç a é possível s o m e n t e a p a r t i r de u m m í n i m o nível
d e s e m e l h a n ç a , e essa s e m e l h a n ç a — r e s u l t a d o d e l o n g o s p r o c e s s o s d e
s i m b i o s e — se r e f l e t e t a m b é m n o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o . A s s i m , a e x p r e s s ã o
" n a g ô - v o d u m " (ou, na versão intelectualizada, "jeje-nagô") — e x p r e s s a n d o a
i n t e r p e n e t r a ç ã o dessas duas g r a n d e s tradições étnico-religiosas — é u m t e r m o
f r e q u e n t e m e n t e u s a d o pelos p r a t i c a n t e s jejes para se referir a suas p r á t i c a s .

366
CONCLUSÃO

T o d a v i a o s i s t e m a c l a s s i f i c a t ó r i o a c i m a e s b o ç a d o n ã o deve ser e n t e n d i d o
c o m o rígido o u e s t r a t i f i c a d o e m níveis e s t a n q u e s . H á i n ú m e r a s possibilidades
c o m b i n a t ó r i a s dessa t e r m i n o l o g i a de n a ç õ e s p a r a d e s i g n a r os ritos das casas
de C a n d o m b l é c o n t e m p o r â n e a s , f o r m a n d o expressões c o m o , p o r e x e m p l o ,
k e t u - a n g o l a - c a b o c l o o u i j e x á - k e t u - a n g o l a etc. A p l a s t i c i d a d e e o e c l e t i s m o n o
uso dessas i d e n t i f i c a ç õ e s religiosas s u g e r e m o c o n s t a n t e m o v i m e n t o de p r á -
ticas e valores de u m g r u p o p a r a o o u t r o e i n d i c a m q u e tais i d e n t i f i c a ç õ e s
r e s p o n d e m , f r e q u e n t e m e n t e , a t e n t a t i v a s de l e g i t i m a ç ã o de d e t e r m i n a d o s
grupos perante outros, e nem t a n t o a continuidades diretas com tradições
a f r i c a n a s específicas.
N o caso d o B o g u m e d o Seja H u n d é , n o e n t a n t o , t r a t a n d o - s e d e c o n -
g r e g a ç õ e s c o m u m p a s s a d o q u e r e m o n t a ao s é c u l o XIX, é possível e x a m i -
n a r essas q u e s t õ e s n u m a p e r s p e c t i v a h i s t ó r i c a m a i s a m p l a . A n a l i s a n d o a
a t i v i d a d e r i t u a l e a c o n f i g u r a ç ã o d o s p a n t e õ e s , é possível a t e n t a r p a r a u m a
avaliação d o g r a u de c o n t i n u i d a d e o u d e s c o n t i n u i d a d e d o s sinais d i a c r í t i c o s
q u e m a r c a m a f r o n t e i r a da n a ç ã o j e j e - m a h i . N ã o se t r a t a de u m e x e r c í c i o
fácil d e v i d o à f a l t a d e i n f o r m a ç õ e s h i s t ó r i c a s p r e c i s a s , e a p a r t i r d e e t n o -
g r a f i a s c o n t e m p o r â n e a s fica m u i t o d i f í c i l fazer p r o j e ç õ e s n o p a s s a d o . A l é m
d o m a i s , as p e r s i s t ê n c i a s e m u d a n ç a s d e r a m - s e e m a s p e c t o s s e p a r a d o s e, às
vezes, a p e n a s p a r c i a i s das p r á t i c a s r i t u a i s . C o n t u d o , c o m base nas e v i d ê n -
cias d i s p o n í v e i s foi possível a p r e s e n t a r a l g u m a s h i p ó t e s e s s o b r e as t e n d ê n c i a s
gerais.
O s sinais d i a c r í t i c o s da l i t u r g i a j e j e m a i s visíveis são a i d e n t i d a d e das
d i v i n d a d e s , os v o d u n s , assim c o m o a l í n g u a u t i l i z a d a nas c a n t i g a s e rezas a
eles a s s o c i a d o s . Esses e l e m e n t o s , apesar das possíveis t r a n s f o r m a ç õ e s s o f r i d a s
ao l o n g o d o t e m p o , p a r e c e m a p r e s e n t a r u m a clara r e l a ç ã o de c o n t i n u i d a d e
c o m a n t e c e d e n t e s da área gbe, q u e n u m a m a i o r i a de casos r e m o n t a m à é p o -
ca da e s c r a v i d ã o . E m relação às d i v i n d a d e s v i m o s a d i n â m i c a de a g r e g a ç ã o
q u e p a r e c e o r g a n i z á - l a s em g r u p o s p r o g r e s s i v a m e n t e m a i s a b r a n g e n t e s , ao
t e m p o q u e u m a d i n â m i c a paralela e seletiva d i s c r i m i n a e e s q u e c e d i v i n d a d e s
menores.
V i m o s o caso das o f e r e n d a s s a c r i f i c i a i s a L e g b a e O g u m X o r o q u e , q u e ,
e m b o r a c o m p a r t i l h e m a e s t r u t u r a " a s s e n t o - e b ó " c o m u m ao C a n d o m b l é e
t e n d o a l g u m a s características f u n c i o n a i s s e m e l h a n t e s às d o p a d ê n a g ô , c o n s -
t i t u e m n o s e u c o n j u n t o u m a s i n g u l a r i d a d e d a l i t u r g i a jeje. Essas d i v i n d a -
des são d i f e r e n c i a d a s das suas h o m ó l o g a s n a g ô s c o m o E x u o u E l e g b a r a , a
partir da especificidade n o m i n a l . P o d e existir u m a h o m o g e n e i z a ç ã o das
p r á t i c a s r i t u a i s — L e g b a recebe azeite, f a r o f a e acaçá c o m o E x u — , m a s essa

367
L U I S N I C O L A U PA R É S

h o m o g e n e i z a ç ã o d e r i v a e m p a r t e da Á f r i c a , o n d e essas d i v i n d a d e s já c o m -
p a r t i l h a v a m a t r i b u t o s . Aliás, a f r o n t e i r a n o m i n a l e n t r e essas d u a s c a t e g o -
rias de e n t i d a d e s (ou d e v e r í a m o s falar d e u m a só c a t e g o r i a ? ) p o d e ser té-
n u e e, p e l a s u p r e m a c i a d o s r e f e r e n t e s n a g ô s , a l g u m a s p e s s o a s , m e s m o das
casas j e j e s , p o d e m c h a m a r L e g b a d e E x u . P o r é m , a i n d a a s s i m , n o d i s c u r s o
d o p o v o - d e - s a n t o , L e g b a e O g u m X o r o q u e são c o n s i d e r a d o s " d o l a d o d o
jeje". Logo, cabe notar q u e a d i c o t o m i z a ç ã o entre Legba e Exu, que con-
t r i b u i a d e m a r c a ç ã o da f r o n t e i r a e n t r e a l i t u r g i a j e j e e n a g ô , d e r i v a d e u m a
o p o s i ç ã o já e x i s t e n t e na Á f r i c a , e t e r í a m o s assim u m caso d e r e t e n ç ã o m a i s
ou menos adaptada.
T a m b é m n o caso de A z i r i v i m o s c o m o v a r i a n t e s locais d e c u l t o s de vo-
d u m da área g b e p e r s i s t e m c o m o v a r i a n t e s r e g i o n a i s d e n t r o d a l i t u r g i a j e j e
n o Brasil, o q u e i n d i c a u m a c o n t i n u i d a d e n ã o a p e n a s d o c o m p l e x o c o n c e i -
tuai e ritual associado a v o d u n s específicos, mas t a m b é m u m a c o n t i n u i d a d e
das suas d i f e r e n ç a s r e l a t i v a s . E m o u t r a s p a l a v r a s , n o Brasil n ã o h o u v e a p e -
n a s a m a n u t e n ç ã o das f r o n t e i r a s e n t r e os c u l t o s d e v o d u m e os c u l t o s d e
o r i x á , m a s em a l g u n s casos h o u v e p e r s i s t ê n c i a de d i f e r e n ç a s e n t r e d i s t i n t o s
c u l t o s d e v o d u n s , o q u e é i n d i c a t i v o da i m p o r t â n c i a d e a g e n t e s sociais p a r -
t i c u l a r e s n a t r a n s f e r ê n c i a , r e a t u a l i z a ç ã o e t r a n s m i s s ã o de p r á t i c a s religiosas
a f r i c a n a s n o Brasil.
V i m o s , t o d a v i a , em r e l a ç ã o a c e r t o s s e g m e n t o s r i t u a i s c o m o o zandró, a
c o n t i n u i d a d e de f o r m a s c o m p l e x a s de a t i v i d a d e r i t u a l q u e , a p e s a r das m u -
d a n ç a s , a c r é s c i m o s o u e s q u e c i m e n t o s , e n c o n t r a m claros a n t e c e d e n t e s n a s
p r á t i c a s v o d u n s d a área g b e . P o d e m o s , a s s i m , dizer q u e u m a p a r t e i m p o r -
t a n t e d o s sinais d i a c r í t i c o s q u e e s t a b e l e c e m as f r o n t e i r a s d a n a ç ã o j e j e está
ancorada em práticas dos cultos de v o d u m i m p o r t a d a s d u r a n t e a época do
tráfico.
Ora, em relação a outros elementos rituais q u e hoje c o n s t i t u e m singu-
l a r i d a d e s d a n a ç ã o jeje, n ã o é t ã o fácil e n c o n t r a r tais a n t e c e d e n t e s . C o m e n -
t a m o s o caso d o boitá, essa h o m e n a g e m às á r v o r e s s a g r a d a s q u e , até o n d e
e u sei, n ã o e n c o n t r a u m a c o r r e s p o n d ê n c i a clara nas p r á t i c a s v o d u n s a f r i c a -
n a s . T a m b é m o c u l t o de A z o n a d o n o B o g u m , e m b o r a p r o v a v e l m e n t e fosse
u m a á r v o r e i m p o r t a d a da área gbe, a s s o c i a d a a a l g u m c u l t o d o v o d u m Sak-
p a t a , c o m o s u g e r e o seu n o m e , n ã o h á n a Á f r i c a u m a n t e c e d e n t e d a "festa
d a s f r u t a s " c o m o é r e a l i z a d a em Salvador. E claro q u e as e t n o g r a f i a s religio-
sas da área g b e a p r e s e n t a m g r a n d e s l a c u n a s , e q u e o q u e c o n s i d e r o f a l t a de
a n t e c e d e n t e s talvez seja a p e n a s d e s c o n h e c i m e n t o d e c u l t o s n ã o d o c u m e n -
t a d o s . T o d a v i a é p o s s í v e l q u e p r á t i c a s q u e p e r s i s t i r a m n o Brasil t e n h a m

368
CONCLUSÃO

d e s a p a r e c i d o p o s t e r i o r m e n t e na área gbe. H á , n o e n t a n t o , t a m b é m a p o s -
s i b i l i d a d e de t r a t a r - s e de s e g m e n t o s r i t u a i s q u e f o r a m aos p o u c o s s e n d o
" c r i a d o s " n o Brasil, n o caso d o gra, p o r e x e m p l o , p o r s i m b i o s e c o m p r á t i -
cas angolas o u , n o caso d o boitá, c o m o c o n s e q u ê n c i a da o r g a n i z a ç ã o dos
c u l t o s de m ú l t i p l a s d i v i n d a d e s , s e n d o q u e a e s t r u t u r a p r o c e s s i o n a l da o b r i -
gação parece d e s e n h a d a para p r e s t i g i a r essa m u l t i p l i c i d a d e de assentos.
A m e s m a falta de d a d o s e t n o g r á f i c o s i m p e d e de se p r o c e d e r a u m a avalia-
ção s o b r e o g r a u de c o n t i n u i d a d e de o u t r o s e l e m e n t o s r i t u a i s , c o m o as co-
r e o g r a f i a s e os r i t m o s mundubi e quebrado do jeje-mahi cachoeirano, em-
b o r a de f o r m a i n t u i t i v a p e r m i t a p e n s a r - s e em a l g u m t i p o de c o n t i n u i d a d e .
E m relação a c o m p l e m e n t o s de vestuário e, c o n s i d e r a n d o apenas aqueles dis-
t i n t i v o s d o j e j e c o m o , p o r e x e m p l o , a p a l h a da C o s t a t i n g i d a de v e r m e l h o ,
a c h a m o s a n t e c e d e n t e s na área gbe. N o e n t a n t o , a u t i l i z a ç ã o desse e l e m e n -
to em relação ao v o d u m S a k p a t a p a r e c e ter sido u m a criação e s s e n c i a l m e n -
te brasileira. Esses casos sugerem q u e certos sinais diacríticos da liturgia jeje
são r e s u l t a d o d e e l e m e n t o s o r i g i n á r i o s da área gbe q u e s o f r e r a m c o m p l e -
xos processos d e m u d a n ç a e a d a p t a ç ã o às novas c o n d i ç õ e s r i t u a i s .
Por o u t r o l a d o , c o m p r o v a m o s q u e s e g m e n t o s r i t u a i s e l a b o r a d o s n o Bra-
sil — c o m o a festa de f e c h a r o b a l a i o o u a f o g u e i r a de São J o ã o , r e s u l t a d o s
da i n t e r p e n e t r a ç ã o das p r á t i c a s a f r i c a n a s c o m t r a d i ç õ e s católicas o u ibéri-
cas e, p o r t a n t o , r e s u l t a d o s d o c o n s e n s o de a f r i c a n o s de p r o c e d ê n c i a h e t e -
r o g é n e a e n ã o de q u a l q u e r n a ç ã o p a r t i c u l a r — se c o n s t i t u í r a m e m espaços
rituais p o u c o favoráveis para sustentar sinais diacríticos d i f e r e n c i a d o r e s , e m -
b o r a , claro está, cada casa possa ter d e s e n v o l v i d o d e t a l h e s p a r t i c u l a r e s .
F i n a l m e n t e , a p o n t e i o caso de s e g m e n t o s rituais c o m o o decá e o p a n ã ,
que p o d e r i a m ter sido o r i g i n a r i a m e n t e práticas dos cultos de v o d u m , aos p o u -
cos esquecidas pelos jejes até o p o n t o de q u e h o j e em dia eles n o t e m a sua
ausência c o m o traço distintivo da sua liturgia. Paralelamente, os m e s m o s ele-
m e n t o s f o r a m a p r o p r i a d o s , reelaborados e valorizados pelos nagôs nos cultos
de orixá, c h e g a n d o a se converter nos seus sinais diacríticos. Esse m o v i m e n t o
de práticas de u m g r u p o para o u t r o e a sua p o s t e r i o r reelaboração até t r a n s -
f o r m a r - s e e m sinais de i d e n t i d a d e d o g r u p o r e c e p t o r seria o caso mais e m -
b l e m á t i c o da p l a s t i c i d a d e e da d i n â m i c a de m u d a n ç a h i s t ó r i c a a q u e estão
sujeitos os e l e m e n t o s c u l t u r a i s escolhidos nos processos de i d e n t i d a d e é t n i -
co-religiosa.
S u m a r i a n d o , a análise dos sinais d i s t i n t i v o s da l i t u r g i a jeje sugere q u e
eles r e s u l t a m de u m a m u l t i p l i c i d a d e de processos, i n c l u i n d o simples sobre-
vivências, mas em m a i o r m e d i d a r e t e n ç õ e s p a r c i a l m e n t e r e a d a p t a d a s e res-

369
LUIS NICOLAU PA R É S

significadas, ou ainda "criações" idiossincráticas surgidas da bricolagem


c u l t u r a l d e s e n v o l v i d a n a s n o v a s c o n d i ç õ e s d o Brasil. E m d e f i n i t i v o , o caso
jeje i n d i c a a rica i n t e r f a c e e n t r e c o n t i n u i d a d e s e d e s c o n t i n u i d a d e s e a n a -
tureza híbrida e heterogénea das práticas e valores de q u a l q u e r nação de
Candomblé.
D e o u t r a f o r m a , a análise h i s t ó r i c a da c o n s t i t u i ç ã o d o C a n d o m b l é n o s
p e r m i t i u c o n s t a t a r a i m p o r t â n c i a crítica das t r a d i ç õ e s d o c u l t o d e v o d u n s —
e m relação, p o r e x e m p l o , à c e n t r a l i d a d e d o c o m p l e x o " a s s e n t o - e b ó " , à e s t r u -
t u r a d a i n i c i a ç ã o , à o r g a n i z a ç ã o c o n v e n t u a l d o g r u p o o u ao c u l t o d e m ú l t i -
plas d i v i n d a d e s — , e m b o r a essa c o n t r i b u i ç ã o p e r m a n e ç a s u b t e r r â n e a , a p a -
g a d a n a m e m ó r i a d o p o v o - d e - s a n t o q u e h o j e p r i v i l e g i a , s o b r e t u d o , as t r a -
d i ç õ e s d o s c u l t o s de o r i x á s da n a ç ã o n a g ô - k e t u . C o m o a d v e r t i n o P r e f á c i o ,
n e s t e t r a b a l h o t e n d i a v a l o r i z a r o jeje, n ã o n o i n t e n t o d e " p u r i f i c a r " o u rei-
ficar essa t r a d i ç ã o , m a s c o m o i n t u i t o d e r e c o n h e c e r e c a l i b r a r n a s u a j u s t a
m e d i d a a sua c o n t r i b u i ç ã o n o p r o c e s s o f o r m a t i v o d o C a n d o m b l é . A p e r s p e c -
tiva d i a c r ó n i c a o u h i s t ó r i c a q u e a d o t e i é i m p o r t a n t e n a m e d i d a e m q u e p e r -
m i t e e n t e n d e r o u avaliar o j o g o das c o n t i n u i d a d e s e m u d a n ç a s . I n s i s t o , n ã o
foi a m i n h a i n t e n ç ã o utilizar a H i s t ó r i a de f o r m a ideológica, para justificar
ou legitimar qualquer hierarquia.
O m e u p r o p ó s i t o d e e n t e n d e r o f a t o r d i f e r e n c i a l jeje p a r t e t a m b é m d a
c o n s t a t a ç ã o d e q u e se t r a t a de u m a d i n â m i c a o p e r a t i v a e n t r e os p r ó p r i o s
praticantes. N o processo relacional de contraste c o m grupos concorrentes,
as c o n g r e g a ç õ e s jejes, c o m o as a n g o l a s , d e v e m i n e v i t a v e l m e n t e m e d i r - s e c o m
os t e r r e i r o s n a g ô - k e t u s , s o c i a l m e n t e m a i s visíveis. Essa c o m p a r a ç ã o p o d e
r e s u l t a r e m a t i t u d e s o u r e a ç õ e s v a r i a d a s d e p e n d e n d o das p e s s o a s e d o l a d o
r e l i g i o s o a q u e elas p e r t e n ç a m . L o g i c a m e n t e , os m e m b r o s das casas n a g ô -
k e t u s " t r a d i c i o n a i s " ( o u a q u e l e s q u e c o m elas se i d e n t i f i c a m ) n ã o g o s t a m
d e falar e m h e g e m o n i a n a g ô , o u e m n a g o c e n t r i s m o e, cientes da sua i n f l u ê n -
cia g e n e r a l i z a d a n o C a n d o m b l é , t e n d e m a u m c e r t o e c u m e n i s m o i n t r a - a f r i -
cano, d e s t a c a n d o a semelhança entre orixás, v o d u n s e inquices. D o o u t r o
l a d o , os m e m b r o s de t e r r e i r o s d e o u t r a s n a ç õ e s , se b e m c o n s c i e n t e s e acei-
t a n d o a p r e d o m i n â n c i a d o s r e f e r e n t e s n a g ô - k e t u s , p o d e m ter a n s e i o s d e
i n s i s t i r n a sua d i f e r e n ç a e, q u a n d o esta é i g n o r a d a o u m a r g i n a l i z a d a , p o -
d e m r e c o r r e r à i d é i a de u m a h e g e m o n i a n a g ô . Essas a t i t u d e s a n t a g ó n i c a s
d i f i c i l m e n t e são p ú b l i c a s , p r e v a l e c e n d o e m geral as d i n â m i c a s de c o o p e r a -
ção e c o m p l e m e n t a r i d a d e entre terreiros de nações diferentes. N o e n t a n t o ,
de f o r m a privada, persiste t a m b é m u m a dinâmica competitiva que não pode
ser i g n o r a d a .

370
CONCLUSÃO

N ã o é m i n h a i n t e n ç ã o p o l e m i z a r c o m essa " h e g e m o n i a " n a g ô , m a s


t a m b é m é c e r t o q u e , d i a n t e da a v u l t a d a l i t e r a t u r a q u e e s t u d a o c a n d o m b l é
n a g ô - k e t u , este t r a b a l h o s o b r e a n a ç ã o j e j e se p o s i c i o n a c o m o u m o l h a r
a l t e r n a t i v o . Sou p l e n a m e n t e c o n s c i e n t e de q u e se t r a t a d e u m a c o n t r i b u i -
ção l i m i t a d a , a p e n a s u m a t e n t a t i v a , p a r c i a l e p r o v i s ó r i a , q u e vai p r e c i s a r d e
f u t u r a s p e s q u i s a s p a r a c o r r i g i r o u r e f i n a r as suas h i p ó t e s e s . N o e n t a n t o , se
c o n s e g u i a p o n t a r p a r a a p l u r a l i d a d e de i n f l u ê n c i a s q u e i n t e r v i e r a m n a f o r -
m a ç ã o h i s t ó r i c a d o C a n d o m b l é e, nesse q u a d r o , se c o n s e g u i d i m e n s i o n a r a
c o n t r i b u i ç ã o jeje, m e d a r e i p o r satisfeito. Humbono V i c e n t e falava q u e "o jeje
já foi", p o r é m d e s c o n f i o q u e as t r a d i ç õ e s dos c u l t o s de v o d u m , através das
suas c o n s t a n t e s t r a n s f o r m a ç õ e s , s e g u e m c o m o seiva a n t i g a , f i l t r a d a s e a t u -
a n t e s na d i n â m i c a c o n t e m p o r â n e a d o C a n d o m b l é .

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