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► Estrutura da obra

Romance estruturado em 19 capítulos/sequências (1), O Ano da Morte de Ricardo


Reis (1984) apresenta uma sequência cronológica linear dos acontecimentos, embora seja
pontuado por algumas anacronias, nomeadamente as analepses ou as prolepse. Mas são
principalmente as constantes excursões do narrador, com os seus comentários, com o seu
olhar subjetivo e crítico, que tornam a obra mais complexa em termos de referências
textuais.

Apresentando uma estrutura circular, é apresentado o regresso do heterónimo pessoano


Ricardo Reis a Lisboa, vindo do Brasil, em dezembro de 1935. Nessa viagem, para além
da revisitação de uma capital já transformada, há espaço para reflexões, para divagações
e até para relações intertextuais, como o uso paródico do verso épico logo no início
comprova: “Onde a terra se acaba e o mar começa”. É com uma variação sobre este
verso que a obra termina, mostrando a necessidade de se fazer uma epopeia na terra
– “Onde o mar se acabou e a terra começa”.

Especial atenção merece também o texto da contracapa, em paralelo com o


título. “Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa”: assim,
ao dar continuidade aos dados biográficos que Pessoa apresentou na célebre carta a
Adolfo Casais Monteiro, Saramago transforma o heterónimo em personagem individual,
liberto do criador.

Fernando Pessoa, ele era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis,
pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem
sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com os seus
próprios olhos abertos e vivos, médico, de quarenta e oito anos de idade, mais um que a
idade de Fernando Pessoa quando lhe fecharam os olhos, esses sim, mortos, não deviam
ser necessárias outras provas ou certificados de que não se trata da mesma pessoa, e se
ainda aí houver quem duvide, esse vá ao Hotel Bragança e fale com o senhor Salvador,
que é o gerente, pergunte se não está lá hospedado um senhor chamado Ricardo Reis,
médico, que veio do Brasil, e ele dirá que sim. (Cap. II)

Resumo da obra

• Chegada de Ricardo Reis a Lisboa, ao fim de 16 anos ausente no Brasil –


29 de dezembro de 1935.
Sequência I
• Instalação no Hotel Bragança e contacto com a família Sampaio, hóspedes
do hotel: Dr. Sampaio e Marcenda (a filha que tem a mão
esquerda “morta”).
• Leitura das notícias sobre a morte de Fernando Pessoa nos jornais e visita
Sequência ao túmulo do poeta no Cemitério dos Prazeres.
II
• Contacto com Lídia, a criada do hotel, cujo nome espanta Reis.
• Deambulação pela cidade de Lisboa, no último dia do ano, momento em
que presencia o “Bodo do Século”, em que é distribuído dinheiro (dez
escudos) a mil necessitados.
Sequência
III • Regresso ao hotel, após os festejos de passagem de ano, no Rossio, e visita
de Fernando Pessoa: diálogo sobre a morte deste e os motivos do regresso
de Reis.
• Informação dada por Pessoa: tem oito meses para circular no reino dos
vivos.

• Partida da família Sampaio para Coimbra.


• Atração física por Lídia e início da relação amorosa.
Sequência
IV • Passeio por Lisboa e encontro com Pessoa – diálogo sobre os múltiplos
“eus” e sobre a vida e a morte.
• Regresso do Dr. Sampaio e da filha a Lisboa e apresentações formais entre
estes e Reis, no Teatro D. Maria II.
Sequência
• Nova visita de Pessoa a Reis, no quarto do hotel – diálogo sobre Lídia e
V
sobre o fingimento.

• Lídia volta a passar a noite com Reis.


• Conversa entre Reis e Marcenda, pedindo-lhe esta uma opinião médica
Sequência sobre a sua condição física, seguida de um jantar a três.
VI
• Ciúmes de Lídia, que não visita Reis nessa noite.
• Reconciliação de Lídia com Reis, ao fim de cinco dias.

Sequência • Encontro entre Reis e Pessoa num café: diálogo sobre política, a propósito
VII da vitória da esquerda em Espanha.

• Festejos do Entrudo em Lisboa.


• Doença de Reis (febre) e cuidados de Lídia para com este.

• Intimação da PVDE a Reis, o que desperta a desconfiança no hotel e a


Sequência
preocupação de Lídia.
VIII
• Encontro com Pessoa no Alto de Santa Catarina (Bairro Alto) – diálogo
sobre os amores do médico.
• Interrogatório pela PVDE e aluguer de uma casa no Alto de Santa
Sequência Catarina, em frente à estátua do Adamastor.
IX
• Despedida de Lídia e escrita de uma carta a Marcenda a tranquilizá-la.
Sequência • Mudança para a nova casa e visita de Fernando Pessoa – diálogo sobre a
X solidão.
Sequência • Visitas femininas – Lídia visita Reis e trocam um beijo; Marcenda visita-
XI o e também é beijada (pela primeira vez).
• Envolvimento de Reis com Lídia, que também ajuda nas tarefas
domésticas da casa.

Sequência • Exercício da atividade médica em substituição de um colega e


XII deambulação por Lisboa.

• Escrita de uma carta confusa a Marcenda, sendo que esta responde que o
irá visitar no consultório.
• Encontro de Reis e Pessoa junto à estátua do Adamastor: diálogo sobre a
efemeridade da vida e sobre a relação do médico com as duas mulheres.
Sequência
XIII
• Visita de Lídia a Ricardo Reis.
• Pedido de casamento de Reis a Marcenda, que esta recusa.
• Receção da carta de Marcenda, que diz a Reis que nunca mais se irão ver
e que irá em peregrinação a Fátima, em maio.
Sequência
XIV
• Ida de Reis a Fátima, numa tentativa infrutífera de encontrar a filha do Dr.
Sampaio.
• Pensamentos de Reis sobre o seu regresso ao Brasil, após saber que o
colega que estava a substituir irá voltar ao ativo.
Sequência
XV • Visita de Pessoa – diálogo sobre a vigilância que a PVDE impôs a Reis,
sobre as relações amorosas de ambos (Ofélia/Lídia e Marcenda); sobre o
destino e sobre a ordem política.
• Reis dedica um poema a Marcenda.

• Conversa entre Lídia e Reis – esta informa-o de que está grávida e de que
Sequência irá ter a criança.
XVI
• Conversa entre Pessoa e Reis – este confessa àquele que está abalado com
a notícia de que vai ser pai e que ainda não decidiu se irá ou não assumir a
paternidade. Também refletem sobre o regime
Sequência • Visita de Reis a Pessoa, no Cemitério do Alto dos Prazeres – diálogo sobre
XVII o golpe militar espanhol.
• Inquietações de Lídia quanto ao seu papel na vida de Reis.

Sequência • Presença de Reis num comício no Campo Pequeno, de apoio aos regimes
XVIII totalitários.

• Envio de um poema a Marcenda.


• Visita de Lídia a Reis, manifestando-se preocupada com o seu irmão,
Daniel, que, juntamente com outros marinheiros, prepara um golpe contra
Sequência o regime. Os navios “Dão” e “Afonso de Albuquerque” acabam por ser
XIX bombardeados e ditar a morte dos rebeldes.

• Última visita de Pessoa a Reis, que decide acompanhá-lo até ao cemitério.

(1) O romance não apresenta, formalmente, uma estruturação por capítulos. Por uma questão didática, optámos por referir
essas divisões na obra. Todas as citações e O Ano da Morte de Ricardo Reis seguem a edição da Porto Editora, 2016.

► Representações do amor

A obra apresenta um curioso triângulo amoroso, cujo vértice, o poeta das Odes, é incapaz
de tomar uma atitude mais ativa, movendo-se entre o desejo carnal que o impele para a
sábia e ousada Lídia e o impulso afetivo que o leva a seduzir a virgem Marcenda.

Ricardo Reis e Lídia

Ao instalar-se no Hotel Bragança, Reis conhece Lídia, a discreta e atenciosa criada do


hotel, instruída por Salvador para dar “atenção ao hóspede do duzentos e um, ao doutor
Reis” O cuidado com que trata o médico quando este se encontra febril é revelador da
sua genuinidade que se transforma em amor. Contudo, Reis está consciente das diferenças
sociais, e, por isso, apesar de revelar uma clara atração sexual por esta mulher, sabe,
contudo, que tal relação não é socialmente bem vista. Lídia é uma mulher humilde e daí
autêntica, sem subterfúgios na forma como se entrega a Reis, vivendo o prazer do amor
físico. Apresenta-se, assim, como uma figura oposta à musa distante das odes do poeta e
dos preceitos estoicos e epicuristas – esta Lídia não se limita a contemplar o rio.

Para além disso, parece haver neste Reis que se quer demarcar da sua condição de
heterónimo e conquistar uma individualidade própria uma certa incapacidade para
exprimir sentimentos, uma certa incapacidade para amar, daí que seja incapaz de retribuir
o amor que Lídia tem por ele. Sintomática desta frieza sentimental é a forma como reage
à notícia de que vai ser pai.

Não obstante a dualidade de atuação de Reis, que ora se sente atraído por esta mulher, ora
se mostra indiferente, devido aos preconceitos sociais, Lídia revela-se determinada na
forma como comunica a Reis a sua decisão de não abortar, independentemente da decisão
do médico.

Ricardo Reis e Marcenda

Na chegada ao Hotel Bragança, Reis sente um fascínio por uma jovem tímida,
acompanhada por seu pai, e que possui uma mão inerte. Marcenda, nome próprio retirado
de uma ode de Ricardo Reis e que significa “a que irá murchar”, está condenada a ser
prisioneira desse membro inútil, que acaricia como um animalzinho doméstico.

Virgem e recatada, conhece o contacto físico com um homem através do beijo que Reis
lhe dá. Recusa, porém, o pedido de casamento deste, argumentando que não seriam
felizes, o que revela que, tal como Reis, tem dificuldade em assumir compromissos.

Ao contrário da relação com Lídia, a relação com Marcenda é basicamente platónica,


espiritual e condenada ao insucesso, porque ambos “desenlaçam” as mãos.

► Caracterização das personagens

Ricardo Reis:

• 48 anos, médico, solteiro e exilado no Brasil há 16 anos;


• regressa a Portugal ao receber a notícia da morte de Fernando Pessoa e sem grandes
planos futuros;
• revela um crescente cansaço da vida e alguma apatia;
• na tentativa de conhecer melhor a realidade circundante, lê avidamente jornais;
• solitário e errático, acaba por procurar em Lídia algum conforto carnal.

Fernando Pessoa:

• falecido aos 47 anos, a 30 de novembro de 1935, tem nove meses para circular pelo
mundo dos vivos;
• veste um fato preto completo, “como se estivesse de luto ou tivesse por ofício enterrar
os outros”.

Lídia:

• com cerca de 30 anos, trabalha como criada no Hotel Bragança;


• é inteligente, discreta e educada, embora pouco instruída;
• próxima do seu irmão Daniel, é através dele que se mantém a par da situação política
do país;
• consciente e crítica, reflete sobre o contexto político-social e rejeita normas
estabelecidas;
• é uma figura de contrastes: frágil com a relação amorosa e segura quanto a questões
existenciais, como a morte e o destino.
Marcenda:

• solteira, 23 anos, destaca-se pelo facto de a sua mão esquerda estar “morta” –
simbolismo do antropónimo (marcere – murchar, tornar-se fraco);
• órfã de mãe, vem todos os meses a Lisboa com o pai, aparentemente devido ao
acompanhamento médico da sua mão;
• educada e de boas famílias, Marcenda tem uma postura exemplar, apesar de ser inocente
e inexperiente, resignando-se à sua condição clínica (sem solução);
• recusa ter um envolvimento mais profundo com Ricardo Reis.

Outras personagens

Dr. Sampaio:

• notário de meia-idade, “alto, formal, de rosto comprido e vincado”, que dá grande


importância às aparências;
• embora o motivo aparente dos três dias que passa hospedado no hotel seja o
acompanhamento clínico da enfermidade da filha, vem-se a descobrir que há outra razão
para estas visitas: o Dr. Sampaio tem uma amante na cidade.

Salvador:

• gerente do Hotel Bragança, é atencioso com os clientes e revela um particular interesse


pelas suas vidas, procurando conhecer o que os hóspedes lhe omitem;
• defendendo a suposta moral e os bons costumes, não admite faltas de respeito ou de
lealdade de ninguém.

• nos diálogos que mantém com Reis, mostra-se interessado pelas novidades do mundo e
pela vida do interlocutor, que comenta de modo irónico e cínico;
• revela-se crítico, assumindo todavia posições diferentes das que tinha em vida,
nomeadamente no que respeita à solidão, à dualidade vida/morte, à paternidade e à atitude
do “poeta fingidor”.

Os criados do hotel:

• Pimenta é o “empregado, moço dos recados e homem dos carregos” do Hotel Bragança.
Revela-se bom profissional e extremamente dedicado ao hotel, cumprindo todas as ordens
do gerente Salvador;
• Ramon é o empregado de mesa galego que, ocasionalmente, conversa com Ricardo Reis.

Outras personagens

• Daniel, irmão de Lídia e oponente do regime, morre no episódio da revolta dos


marinheiros;
• Victor e o “doutor-adjunto” são representantes das forças opressoras e interrogam
Ricardo Reis aquando da sua ida à

Polícia de Vigilância e Defesa do Estado;


• velhos que leem os jornais no Alto de Santa Catarina;
• vizinhas de Reis na sua casa alugada e que fazem questão de comentar a sua vida e as
suas relações pessoais.

Representação do amor

Reis/Lídia
• Relação intermitente e marcada pelo envolvimento carnal.
• Sentimento amoroso de Lídia não correspondido por Reis, que ora se sente atraído, ora
repudia a humilde criada do hotel.
• Relação sem futuro devido às diferenças sociais, mas que dará um fruto – o filho que
Lídia escolhe ter, ainda que Reis não manifeste qualquer tipo de apoio.

Reis/Marcenda

• Relação mais platónica que física, apesar de Reis beijar Marcenda (o primeiro beijo
que esta recebera).
• Sentimento de proteção que Marcenda desperta em Reis, que tem um fascínio inicial
pela sua frágil mão inerte.
• Relação sem futuro, sem que a jovem ceda à sedução do médico, recusando o seu
pedido de casamento.

► Representações do século XX

O tempo histórico e os acontecimentos políticos em O Ano da Morte de Ricardo


Reis

Ancorada nos instáveis anos de 1935 e 1936, a ação deste romance traz para a narrativa
o “espetáculo do mundo” a que Reis e o fantasma de Pessoa assistem e comentam,
quando se encontram e dialogam sobre o impacto dos regimes fascistas, mas também
sobre as revoltas de origem comunista, um pouco por toda a Europa, como Espanha,
Itália, Alemanha, França e Brasil, para além de Portugal.

• Espanha: referência à crise política que conduz ao golpe militar fascista, do general
Franco, em julho de 1936, e que desemboca numa sangrenta guerra civil (1936-39). As
forças sob o domínio de Franco derrubaram o governo republicano de regime democrático
da ala esquerda com coligação comunista (cf. Capítulos VII, XIII e XVIII).

• Itália: referência ao poderio económico italiano, que procurava alargar o seu território
com a anexação da Etiópia (hegemonia europeia) sob a chefia de Benito Mussolini, líder
do Partido Nacional Fascista (cf. Capítulos I, XIII e XIV).

• Alemanha: referência à ascensão do nazismo fascista de Hitler (estes acontecimentos são


referidos na obra em diversos capítulos, mas principalmente nos VI, IX e XI).

• França: referência à luta da esquerda (Frente Popular) na conquista do poder (cf. capítulos
VI, XVII).

• Brasil: referência na obra à ascensão do regime fascista de Getúlio Vargas, líder da


Revolução de 1930, impedindo o presidente eleito, Luís Carlos Prestes, de subir ao
poder (cf. Capítulos I e IX).

• Portugal: referência na obra à ditadura salazarista, apoiada na PVDE (Polícia de


Vigilância e de Defesa do Estado) e em forte conluio com o poder religioso. A propaganda
da prosperidade e da superioridade do império (“orgulhosamente sós”) bem como a
criação de movimentos como a Mocidade Portuguesa ou a Legião Portuguesa incutiam
na população os valores do regime fascista, através do medo e da repressão (cf. Capítulos VII,
XIII e XVIII).

Assim, a par das tensões vividas nos diferentes países, são referidos outros
acontecimentos marcantes do século XX, tais como: a proclamação da República (1910);
a Primeira Guerra Mundial (1914); a Revolução de 28 de maio e consequente instauração
da Ditadura Militar; a nomeação de Salazar para Ministro das Finanças, em 1928; ou
ainda a projeção do que seria o início da Segunda Guerra Mundial, em 1939.

As informações políticas surgem nos jornais que Reis lê, ávido de informação, embora as
notícias circulem lentamente. Também é possível verificar a importância que Fátima
assume enquanto local de peregrinação nos anos 30.

O espaço da cidade

Em dezembro de 1935, ao desembarcar em Lisboa, Ricardo Reis não tem ideias firmes
quanto ao seu futuro, tal como a ordem dada ao motorista atesta: “para um hotel”,
qualquer hotel, acrescentando depois “que fique perto do rio”. Nas deambulações que
empreende, Reis perde-se numa capital labiríntica, soturna, onde chove muito. E é curioso
que este dado é, afinal, um facto, já que, em entrevista, em 1986, Saramago refere a
investigação que fez sobre esses anos de 1935-36, confirmando que a chuva não é apenas
um elemento ficcional, mas também histórico, visto que estes foram anos de grande
pluviosidade em Portugal, o que adensa a atmosfera difusa, confusa e até sinistra da
cidade, como se fosse um fantasma por onde outro(s) fantasma(s) deambula(m):

Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm
turvas de barro, há cheia nas lezírias. […] Por trás dos vidros embaciados de sal, os
meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre as colinas, […] salvo se tudo isto é
ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu
fechado. […] Por gosto e vontade, ninguém haverá de querer ficar neste porto.

Mas a investigação não fica por aqui, por isso, ao acompanhar os passos erráticos de Reis,
o leitor está a percorrer de forma bastante rigorosa as subidas, descidas e miradouros de
Lisboa, com abundantes referências históricas aos anúncios comerciais e
propagandísticos da época, aos pormenores das ruas e ruelas e à vida quotidiana, o que
confere cor local. Em termos de microespaços exteriores da capital, destacam-se: Rossio,
Baixa, Cais do Sodré, Rua do Alecrim, Largo de Camões, Alto de Santa Catarina e
Chiado.

No entanto, Lisboa não é apenas um espaço físico, mas também social, uma capital feita
de contrastes, como já Cesário Verde tinha revelado em “O Sentimento dum Ocidental”:
ao fausto dos cafés da moda e dos teatros impõe-se a pobreza dos bairros sociais; ao
burguesismo confortável impõe-se a miséria de quem tem de recorrer ao “Bodo do
Século”; à alegria das celebrações do Ano Novo (Cap. III) e do Entrudo (Cap. VII) impõe-se
a tristeza do real e a fome real:

Ricardo Reis gastou a tarde por esses cafés, foi apreciar as obras do Eden Teatro, […] o
Chave de Ouro que está para inaugurar, é patente a nacionais e estrangeiros que Lisboa
vive atualmente um surto de progresso que em pouco tempo a colocará a par das grandes
capitais europeias, nem é de mais que assim seja, sendo cabeça de império. (Cap. V)

[…] O senhor doutor já teve ocasião de ver que espécie de gente é o povo deste país […]
aquela multidão à espera do bodo, e se quiser ver mais e melhor vá por esses bairros, por
essas paróquias e freguesias, veja com os seus olhos a distribuição da sopa, a campanha
de auxílio aos pobres no inverno, […] e diga-me se não valia mais deixá-los morrer,
poupava-se o vergonhoso espetáculo do nosso mundo, sentam-se na berma dos passeios
a comer a bucha de pão e a rapar o tacho, nem a luz elétrica merecem, a eles basta-lhes
conhecer o caminho que vai do prato à boca, e esse até às escuras se encontra. (Cap. IV)

Deambulação geográfica e viagem literária

Lugar geográfico privilegiado onde a ação se desenrola, Lisboa é apresentada como um


espaço emaranhado, complexo, que prende Reis, incapaz de encontrar a saída quer deste
labirinto, quer dos constrangimentos político-sociais do seu tempo.

Nessa errância pela capital, Reis revisita espaços físicos reais impregnados de
simbolismo, já que evocam memórias (felizes) passadas, contrastantes com as presentes,
nomeadamente o Tejo, de onde partiram as naus que Camões celebra, esse Camões feito
estátua no Loreto, ou o Castelo de S. Jorge e as estátuas do Adamastor e de Eça.

Ao desembarcar do Highland Brigade, Ricardo Reis apanha um táxi que o levará “para
um hotel”. O seu único pedido é que “fique perto do rio”. Na viagem até ao Hotel
Bragança, sugerido pelo taxista, Reis vai tomando contacto com uma cidade soturna e
chuvosa, amplificada na miséria social e cultural do Portugal da ditadura na década de
30.

Assim, ao rememorar marcos geográficos numa Lisboa agora confusa e labiríntica, Reis
procura uma baliza que o situe naquele momento num local que se lhe revela
irreconhecível e que nem as referências literárias tornam claro. Reis desembarca e traz
consigo o livro The God of the Labyrinth, de Herbert Quain (romancista ficcionado por
Jorge Luis Borges num conto) e deambula “como se estivesse num labirinto que o
conduzisse sempre ao mesmo lugar”.

A deambulação por espaços icónicos da cidade (cf. o espaço da cidade) é uma tentativa de
Ricardo Reis, 16 anos depois da sua partida para o Brasil, procurar encontrar marcas
identitárias. Porém, a paisagem apresenta-se nublada, em parte pela chuva constante, em
parte pela ausência de referências num país sob o domínio da ditadura. Nessa revisitação
de uma Lisboa física há, paralelamente, uma revisitação literária, a partir dos monumentos
observados, das ruas, do Tejo, na qual se faz acompanhar, algumas vezes, por Pessoa,
com quem tem diálogos de índole literária, mas também filosófica.

O leitor mais inexperiente poderá ter dificuldade em acompanhar alguns troços dessa
viagem literária, já que os textos pessoanos ou camonianos mais celebrados convivem
com citações bíblicas ou com referências intertextuais alteradas, como é o caso da estátua
de Eça:

Ricardo Reis para diante da estátua de Eça de Queirós, ou Queiroz, por cabal respeito da
ortografia que o dono do nome usou, ai como podem ser diferentes as maneiras de
escrever, e o nome ainda é o menos, assombroso é falarem estes a mesma língua e serem,
um Reis, o outro, Eça […] Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia,
parece clara a sentença, clara, fechada e conclusa, uma criança será capaz de perceber e
ir ao exame repetir sem se enganar, mas essa mesma criança perceberia e repetiria com
igual convicção um novo dito, Sobre a nudez arte da fantasia o manto diáfano da verdade,
e este dito, sim, dá muito mais que pensar, e saborosamente imaginar, sólida e nua a
fantasia, diáfana apenas a verdade, se as sentenças viradas do avesso passarem a ser leis,
que mundo faremos com elas, milagre é não endoidecerem os homens de cada vez que
abrem a boca para falar. É instrutivo o passeio, ainda agora contemplámos o Eça e já
podemos observar o Camões, a este não se lembraram de pôr-lhe versos no pedestal
[…] (Cap. III)
Ao fazer a inversão do sentido da epígrafe, o narrador lança o seu olhar crítico sobre o
momento presente, em que a mentira, a “fantasia”, reina e não a verdade, no que pode
ser entendido como uma alusão à ditadura salazarista. No excerto apresentado, comprova-
se, pois, que as duas viagens – a geográfica e a literária – se entrelaçam e que a
deambulação é ponto de partida para reflexões literárias, como esta sobre a língua e os
escritores.

Para além do próprio Reis, também Cesário e Camões farão parte desta viagem pela
literatura portuguesa, sendo abordados no tópico referente a Saramago enquanto leitor de
outros poetas.

► Linguagem e estilo

O tom oralizante e a pontuação

Como é característico da obra de Saramago, o texto é percorrido por múltiplas vozes, que
trazem para a escrita e a oralidade e a fluidez do discurso quotidiano. No diálogo entre
Fernando Pessoa e Reis, verifica-se o recurso ao registo coloquial por parte daquele:

Permita-me que exprima as minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler um romance
policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe venha aquecer o resto,
rogo-lhe que não se melindre com a crueza da linguagem […] (Cap. V)

Nos comentários do narrador, encontra-se, igualmente, o tom oralizante, informal, quer


ao nível do repertório lexical quer ao nível da construção frásica.

Tipicamente saramaguiana é também a transgressão ao nível do uso canónico da


pontuação, apontada como uma das dificuldades do inexperiente leitor. Em frases longas,
é usual verificar a presença de dois ou até três interlocutores, servindo o recurso às
vírgulas e às maiúsculas para marcar a mudança de personagem.

Assim, a supressão de quase todos os sinais de pontuação, à exceção da vírgula e do ponto


final, leva a que se estabeleça um pacto com o leitor, que tem de ler e reler os trechos,
encontrar o sentido, encontrar o ritmo e o tom, encontrar, no fundo, no texto, as
interrogações, as exclamações que Saramago não explicita graficamente, como este
diálogo entre Reis e Lídia exemplifica:

Achas que eles não são bons maridos, Para mim, não, Que é um bom marido, para ti, Não
sei, És difícil de contentar, Nem por isso, basta-me o que tenho agora, estar aqui deitada,
sem nenhum futuro, […]. (Cap. IX)

Esta transgressão verifica-se, sobretudo, ao nível da reprodução do discurso no discurso,


como veremos no ponto seguinte.

Reprodução do discurso no discurso

Singular é também a forma como o autor reproduz o discurso no discurso. Ao não seguir
as convenções ligadas ao discurso direto, Saramago reinventa o texto dialogal, marcando
o discurso de cada personagem pela inicial maiúscula no início de fala, seguida de vírgula
no fim, como o diálogo entre Reis e o taxista, aquando do desembarque daquele, atesta:

Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com
tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que
fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua
do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em
Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-
se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a
Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas
palavras calou-se bruscamente o motorista. (Cap. I)

Para além da inexistência dos dois pontos, do travessão e do parágrafo na marcação do


discurso direto, o leitor tem ainda de encontrar a intencionalidade de cada vírgula: ora a
marcar pontos finais, ora a marcar suspensões frásicas / reticências, ora a marcar pontos
de interrogação. Este excerto prova, igualmente, a presença das diferentes vozes
narrativas, já que, a par da voz das duas personagens, também se pode encontrar a voz do
narrador – “soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse
levado toda a viagem a ponderar a escolha”.

Recursos expressivos

Através do recurso a termos opostos, reforça-se o contraste entre diferentes


elementos, objetos, etc.

Ex.: “Aqui o mar acaba e a terra principia.” – através das antíteses “mar
A antítese “/“terra” e “acaba“/“principia”, é realçada a localização geográfica de
Portugal, para além da relação intertextual com a epopeia camoniana, por
meio da subversão (“Aqui onde a terra se acaba e o mar começa”).

A partir da analogia, estabelece-se uma relação de semelhança entre duas


realidades opostas.

Ex.: “Não estou apaixonado, Pois muito o lamento, deixe que lhe diga, o
D. João ao menos era sincero, volúvel mas sincero, você é como o deserto,
A
nem sombra faz” (Cap. VIII) – a aproximação que Pessoa faz de Reis a um
comparação
deserto é reveladora da dificuldade que este tem em se relacionar com o
sexo feminino, sendo uma pessoa estéril, árida, em que nenhum
sentimento cresce.

Através da apresentação de elementos sucessivos da mesma classe


gramatical, elencados de acordo com uma determinada lógica, intensifica-
se uma dada ideia:
A
Ex.: “Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros intensos, a couve
enumeração
esmagada, a excrementos de coelho, a penas de galinha escaldadas, a
sangue, a pele esfolada” (Cap. II) – a enumeração dos cheiros que boiam no
ar na Praça da Figueira revela a importância das sensações na observação
do real.

A ironia assume um papel central nesta obra, estando ao serviço da crítica


social, política e religiosa.
A ironia
Ex.: “Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar mentalmente aquele
poema da Mensagemque está dedicado a Camões, e levou tempo a
perceber que não há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões,
parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a Sebastião não lhe
escapou um, nem dos profetas se esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve
uma palavrinha, uma só, para o Zarolho” (Cap. XVI) – o epíteto pejorativo
atribuído a Camões bem como a omissão de Pessoa quanto ao épico
português realçam o jogo subversivo do narrador ao longo da obra, para
além de insinuar a terrível sombra que Camões representa para os
escritores futuros, incluindo Pessoa.

A relação de analogia entre duas realidades realça a caracterização feita:

Ex.: “saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá para a grande
A metáfora
babilónia de ferro e vidro que é a Praça da Figueira.” (Cap. II) – a metáfora
enfatiza a desordem nas construções da Praça, identificadas como
babilónicas porque grandes, confusas e sem planeamento.

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