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Licenciatura em Espanhol

Teoria da Literatura II
Ana Santana Souza
Ilane Ferreira Cavalcante

Ficção e não ficção


Tradição e ruptura

Aula 03
INSTITUTO FEDERAL DE
EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E TECNOLOGIA
RIO GRANDE DO NORTE
Campus EaD

GOVERNO DO BRASIL TEORIA DA LITERATURA II


Aula 03
Presidente da República Ficção e não ficção
DILMA VANA ROUSSEFF Tradição e ruptura
Ministro da Educação Professor Pesquisador/conteudista
ALOIZIO MERCADANTE ANA SANTANA SOUZA
Diretor de Ensino a Distância da CAPES ILANE FERREIRA CAVALCANTE
JOÃO CARLOS TEATINI
Diretor da Produção de Material
Reitor do IFRN Didático
BELCHIOR DE OLIVEIRA ROCHA ARTEMILSON LIMA

Diretor do Câmpus EaD/IFRN Coordenadora da Produção de


ERIVALDO CABRAL Material Didático
ROSEMARY PESSOA BORGES
Diretora Acadêmica do Câmpus EaD/IFRN
ANA LÚCIA SARMENTO HENRIQUE Revisão Linguística
MARIA TÂNIA FLORENTINO DE SENA
Coordenadora Geral da UAB /IFRN NASCIMENTO
ILANE FERREIRA CAVALCANTE
Coordenação de Design Gráfico
Coordenador Adjunto da UAB/IFRN LEONARDO DOS SANTOS FEITOZA
JÁSSIO PEREIRA
Diagramação
Coordenadora do Curso a Distância FLÁVIA LIZANDRA DO NASCIMENTO
de Licenciatura em Letras-Espanhol
CARLA AGUIAR FALCÃO

Ficha Catalográfica
Aula 03
Ficção e não ficção
Tradição e ruptura

Apresentação
Apresentação e
e Objetivos
Objetivos

Olá, nas aulas anteriores, você estudou que uma narrativa pode se apresentar em
diferentes modalidades, em verso (epopeia, cordel) e prosa (romance e conto). De uma
forma ou de outra, esses são exemplos de ficção. Nesta Aula, veremos as rupturas que
sofreu o gênero narrativo na sua forma tradicional, ocasionando gêneros híbridos, em
muitos casos, não ficcionais. Ao final, esperamos que você possa

●● compreender as modificações sofridas pelo gênero narrativo;

●● identificar, em textos narrativos, elementos da tradição, da modernidade e da


pós-modernidade; e

●● reconhecer as características dos gêneros híbridos ensaio e crônica.

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Para Começar

Faroeste caboclo

Não tinha medo o tal João de Santo Cristo


Era o que todos diziam quando ele se perdeu
Deixou prá trás todo o marasmo da fazenda
Só prá sentir no seu sangue o ódio que Jesus lhe deu
(...)
Agora o Santo Cristo era bandido
Destemido e temido no Distrito Federal Fig. 01 - Renato Russo

Não tinha nenhum medo de polícia


Capitão ou traficante, playboy ou general
Foi quando conheceu uma menina
E de todos os seus pecados ele se arrependeu
Maria Lúcia era uma menina linda
E o coração dele pra ela o Santo Cristo prometeu
(...)
Mas acontece que um tal de Jeremias,
Traficante de renome, apareceu por lá
Ficou sabendo dos planos de Santo Cristo
E decidiu que, com João ele ia acabar
(…)
E Santo Cristo há muito não ia pra casa
E a saudade começou a apertar
“Eu vou me embora, eu vou ver Maria Lúcia
Já tá em tempo de a gente se casar”
Chegando em casa então ele chorou
E pro inferno ele foi pela segunda vez

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Com Maria Lúcia Jeremias se casou
E um filho nela ele fez
Santo Cristo era só ódio por dentro
E então o Jeremias pra um duelo ele chamou
Amanhã às duas horas na Ceilândia
Em frente ao lote 14, é pra lá que eu vou
(...)
No sábado então, às duas horas,
Todo o povo sem demora foi lá só para assistir
Um homem que atirava pelas costas
E acertou o Santo Cristo, começou a sorrir
(...)
E nisso o sol cegou seus olhos
E então Maria Lúcia ele reconheceu
Ela trazia a Winchester-22
A arma que seu primo Pablo lhe deu
(...)
E Santo Cristo com a Winchester-22
Deu cinco tiros no bandido traidor
Maria Lúcia se arrependeu depois
E morreu junto com João, seu protetor.
(...)

(Renato Russo)

Lembrou dessa música? Faroeste caboclo é do grupo brasileiro Legião Urbana,


composta em 1979 pelo líder da banda, Renato Russo. Lançada oficialmente em 1987,
no álbum Que País É Este 1978/1987, a canção narra a história de João de Santo Cristo,
um traficante nascido no Nordeste brasileiro que se muda para Brasília e lá se corrompe.
Ao se apaixonar por Maria Lúcia, tenta mudar de vida, mas é assassinado por Jeremias,
também traficante. A canção tem 168 versos e foi adaptada para o cinema, sob a direção
de René Sampaio, com estreia marcada para maio de 2013. Quer ouvir a música antes
de continuar a aula? Acesse <http://www.youtube.com/watch?v=eL6zdEwRKws>.

Escolhemos essa música porque ela é um exemplo da mistura de gêneros, de


como tradição e ruptura estão presentes na arte.

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Assim é

Letra de música é, comumente, associada à poesia e não à narrativa. Por isso,


podemos dizer que a canção de Renato Russo é um exemplo de quebra de paradigmas,
pois tem todos os elementos da narrativa: narrador, personagem, tempo, ambiente e
enredo (aos poucos, falaremos sobre eles), contrariando o que se espera de uma letra
de música. Mas, embora rompa com o modelo de canção, Faroeste caboclo segue a
tradição narrativa, na qual o enredo é estruturado linearmente com começo, meio e
fim.

O termo enredo é, geralmente, significado como o conjunto ou a sucessão


de ações e acontecimentos de uma narrativa. Entretanto o termo não dá conta das
diferentes compreensões teóricas do assunto. O que aqui estamos chamando por
enredo pode receber outro nome, dependendo da abordagem teórica: intriga, ação,
trama, história, diegese etc. Arnaldo Franco Júnior (2009) organizou esses termos de
acordo com a seguinte classificação: história narrada e história construída. A primeira
diz respeito à história propriamente dita e a segunda diz respeito ao modo como a
história é contada. Simplificando, Franco Júnior organizou o Quadro1 a seguir.

FORMALISMO
NARRATIVA NEW CRITICISM NARRATOLOGIA
RUSSO

História narrada Fábula estória (story) diegese

História construída Trama enredo (plot) discurso narrativo ou


narração
Quadro 1 - Narrativa para as teorias críticas
Fonte: Franco Júnior (2009, p. 38).

O Formalismo Russo e o New Criticism são correntes críticas que você estudou
em Teoria da literatura I. Sobre Narratologia, veja o quadro abaixo. Todas diferenciam a
história narrada da história construída. Uma diz respeito aos acontecimentos e a outra
se refere ao modo como esses acontecimentos são narrados. Cada autor pode contar
a mesma história (fábula, história ou diegese) de modo diferente. O modo como ele
narra é uma construção (trama, enredo ou narração).

Narratologia

Termo traduzido do Francês, introduzido por Tzvetan Todorov (1969). O


narratologista objetiva descrever o funcionamento da narrativa, examinando

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o que as narrativas têm de comum e também o que as distingue. Para
saber mais sobre narratologia, consulte o E-dicionário de termos literários de
Carlos Ceia, disponível em <http://www.edtl.com.pt/index.php?option=com_
mtree&task=viewlink&link_id=69&Itemid=2>.

Como se vê, o termo enredo está associado ao modo como a história está
construída. O enredo é estruturado em função de um conflito, que pode ser de vários
tipos: morais, religiosos, econômicos e psicológicos.

O enredo tradicional tem uma sequência lógica. Os fragmentos da canção Faroeste


caboclo, transcritos no início desta Aula, foram recortados de partes da sequência,
de modo que o conjunto deles possibilita a compreensão da história. São partes do
enredo:

1. apresentação, introdução ou exposição – é o começo da história e situa o


leitor sobre o que ele irá ler. Na canção Faroeste caboclo, o autor apresenta o
personagem principal, João de Santo Cristo, indicando sua origem, infância e
fatos que construíram sua personalidade.

2. complicação ou desenvolvimento – os acontecimentos se complicam até chegar


a um ponto máximo de tensão. Na canção de Legião Urbana, o desenvolvimento
começa quando João de Santo Cristo vai para Salvador e de lá toma um ônibus
para Brasília, onde se envolve com o tráfico de drogas e conhece Maria Lúcia,
com quem pensa em se casar e mudar de vida. Mas o tráfico não perdoa. Santo
Cristo é ameaçado por outro traficante, Jeremias, que rouba a mulher que ele
ama.

3. clímax – nesse ponto, o conflito chega ao máximo de tensão. O clímax, na


canção, acontece quando João de Santo Cristo desafia Jeremias para um duelo.

4. desfecho, desenlace ou conclusão – é a resolução do conflito, podendo ser


feliz, trágico, cômico, surpreendente etc. O desfecho na canção, que estamos
tomando como exemplo, se dá com a morte de Santo Cristo e Maria Lúcia.

O enredo nem sempre segue essa sequência linear. Às vezes, ele começa pelo
desfecho, como é o caso, por exemplo, de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de
Machado de Assis. O autor, já no século XIX, inverte a ordem tradicional do enredo e
começa sua narrativa pela morte do personagem principal, que também é o narrador.
Este, depois de morto, é que narrará sua vida. Também nas narrativas policiais, a
morte pode acontecer ainda na introdução e o conflito vai se desenvolver em torno da
revelação sobre o assassino.

Aliás, mesmo na poesia épica greco-latina, era comum a narrativa iniciar in media
res, isto é, começar por um acontecimento do meio da história e depois passava-se à
apresentação dos fatos ocorridos antes.

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Como você pode ver, a narrativa não tem um modelo fixo. Cada vez mais, novas
formas de narrar vão surgindo. Na modernidade e na pós-modernidade, as formas
narrativas se multiplicam ocasionando uma grande ruptura do modelo clássico.

Mãos à obra

Com base no que você estudou até agora, pesquise o início de dois
contos: um tradicional e outro in media res. Demonstre, em um parágrafo,
a diferença entre ambos.
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Narrativas modernas e pós-modernas: ruptura como modelo

No século XX, as inovações no gênero narrativo se acentuam. Isso, em parte,


como consequência das vanguardas artísticas europeias que questionaram a tradição
na arte.

Vanguardas artísticas europeias

São os movimentos culturais que começaram na Europa no final do século


XIX e início do século XX, iniciando um tempo de ruptura com as estéticas
anteriores. Entre os movimentos culturais desse período destacam-se: Futurismo,
Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, entre outros.

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Fig. 02 - Vanguardas artísticas europeias.

As próprias vanguardas também resultaram de mudanças nas diversas áreas do


conhecimento, a exemplo da psicanálise, que se preocupava com as estruturas profundas
da mente. Isso trouxe mudanças para a narrativa romanesca, que serão estudadas aos
poucos no decorrer das nossas Aulas. À medida em que formos estudando elementos
da narrativa ― tais como narrador, personagem, espaço e tempo ― acompanharemos
as transformações do gênero. Por enquanto, destacamos duas grandes obras do
século XX que revolucionaram o romance. A primeira delas é Ulisses, de James Joyce.
O autor, parodiando e reinventando a clássica Odisseia, de Homero, apresenta variadas
experiências do homem do século XX, rompendo, em 1922, com todos os preceitos
que fundamentavam o romance, ao escrever empregando, de forma radical, “o fluxo de
consciência” e o “monólogo interior”, que imprime ao texto uma leitura diferente, uma
vez que há uma transgressão às regras padrões da língua.

Fluxo da consciência e monólogo interior

Em Literatura, fluxo de consciência e monólogo interior são técnicas


literárias, usadas para transcrever o aprofundamento de processos mentais do
pensamento de um personagem. Ocorre de forma não-linear levando a rupturas
na sintaxe e na pontuação.

Para saber mais sobre esse assunto, consultre o E-dicionário de termos


literários de Carlos Ceia, disponível em <http://www.edtl.com.pt/index.
php?option=com_mtree&task=viewlink&link_id=302&Itemid=2>.

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Outra obra que merece destaque no que se refere à ruptura da
tradição romanesca é O Jogo da Amarelinha (Rayuela), do escritor
argentino Julio Cortázar (1914-1984). Nessa obra, a leitura pode ser
feita de modo linear, seguindo a ordem dos capítulos ou de modo
não linear, como num labirinto de leitura, um jogo com muitos
encadeamentos possíveis.

Fig. 03 - Capa do
livro O jogo da
amarelinha.

Mãos à obra

Leia o fragmento abaixo, do monólogo de Molly Bloom, da obra


Ulysses, de James Joyce, e explique a ruptura da tradição expressa pela
forma e conteúdo do texto. Você pode acompanhar a interpretação do
monólogo pela atriz Michele Hayashi /direção Rodolfo Silot, disponível
em: <https://www.youtube.com/watch?v=92-nlepeGIM>.

[…] ele me disse no dia em que estávamos deitados entre os


rododendros no cabo de Howth com seu terno de tweed cinza e seu
chapéu de palha no dia em que eu o levei a se declarar sim primeiro
eu lhe dei um pedacinho de doce de amêndoa que tinha em minha
boca e era ano bissexto como agora sim há 16 anos meu Deus depois
daquele longo beijo quase perdi o fôlego sim ele disse que eu era
uma flor da montanha sim certo somos flores todo o corpo da mulher
sim foi a única coisa verdadeira que ele me disse em sua vida e o sol
está brilhando para você hoje sim por isso ele me agradava vi que
ele sabia ou sentia o que era uma mulher e tive a certeza de que
poderia sempre fazer dele o que eu quisesse e dei-lhe todo prazer
que pude para levá-lo a me pedir o sim e eu não quis responder logo
só fiquei olhando para o mar e para o céu pensando em tantas coisas
que ele não sabia em Mulvey e no Sr. Stanhope e Hester e papai e no
velho capitão Groves e nos marinheiros que brincavam de boca-de-
forno de cabra-cega de mão-na-mula como eles diziam no molhe e
a sentinela defronte à casa do governador com a coisa em redor de

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seu capacete branco pobre diabo meio assado e as moças espanholas
rindo com seus xales e seus pentes enormes e os pregões na manhã
os gregos judeus árabes e não sei que dia […]
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Ficção e não ficção: a literatura sem fronteiras

É importante perceber que o gênero narrativo pode ser ficcional ou não ficcional
e, ainda, um e outro. Em O Guesa, do brasileiro Sousândrade, o autor mistura elementos
míticos, históricos e autobiográficos, escrevendo tanto em versos como em gênero
dramático, isto é, sem intervenção do narrador.

A ficção e a não ficção encontram no jornalismo um campo fértil para o diálogo.


A relação entre literatura e jornalismo já é conhecida desde o séc. XVIII, com Daniel
Defoe, em reportagens policiais, mas, a partir do séc. XIX, essa aproximação é mais
evidente, através de nomes como Charles Dickens e Émile Zola.

No início do século XX, Jack London e George Orwell relatam experiências em


meio aos pobres e desvalidos. O conceito de jornalismo literário ou “novo jornalismo”,
isto é, que utiliza técnicas literárias, tem seu marco, em 1946, com a reportagem
Hiroshima, de John Hersey, que relata a tragédia de Hiroshima a partir da perspectiva
de seis sobreviventes da bomba nuclear. Afastando-se do relato frio oficial, a narrativa
privilegia a perspectiva humana e subjetiva. O estilo influenciou outros como Truman

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Capote, que publicou, em 1966, a reportagem em série intitulada A sangue frio, um
romance de não ficção, sobre o assassinato de uma família por uma dupla de forasteiros.
O período em que fez as reportagens que viraram o livro é retratado no filme Capote,
de 2005.

No Brasil, Euclides da Cunha intensificou a relação entre


ficção e realidade com a publicação, em 1902, de Os sertões. A obra,
resultado de seu trabalho como repórter para O Estado de S. Paulo,
narra a guerra de Canudos, ampliando o significado dos fatos para
além do imediato, isto é, para a compreensão do humano.

Uma das grandes obras da literatura brasileira, Os sertões,


é, entretanto, de difícil classificação de gênero. O livro reúne
conteúdos literários, históricos, sociológicos, geográficos etc.,
Fig. 04 - Capa do sendo, portanto, mais coerente classificá-lo como de gênero
livro Os sertões. híbrido.

Genêros híbridos: o ensaio e a crônica

São considerados híbridos os gêneros que, misturando elementos diversos,


se situam num espaço de pouca definição porque não seguem, rigorosamente, as
regras da composição escrita. O ensaio é um gênero dessa natureza. Sem normas nem
fronteiras rígidas, o ensaio pode tratar das mais diferentes temáticas, filosofia, política
etc. , sem a necessidade de provas concretas ou de deduções científicas. Porque não
há limites precisos entre o ensaio e outros gêneros. Muitas obras de difícil classificação
são rotuladas de ensaio. Quando escrito numa linguagem que permeia a linguagem
poética e a instrutiva, ele é considerado como um gênero literário, mas o ensaio não
literário também é um gênero bastante considerado hoje,
inclusive nas instituições de ensino superior.

A conceituação moderna de ensaio tem origem no século


XVI, com a publicação, em 1580, da obra Ensaios, de Michel
Eyquem de Montaigne. O que o autor pretendia era produzir
um texto leve, em que apresentasse modos de ver o mundo.
A partir dele, o gênero pode ser definido como um texto em
prosa não ficcional, escrito para a análise de um tema sob a
Fig. 05 - Michel Ey- perspectiva pessoal do autor. Leia um fragmento das reflexões
quem de Montaigne.
de Montaigne em um de seus ensaios:
Quem considera mal empregada a morte que não traz celebridade, acaba
obscurecendo a vida e deixa fugir-lhe numerosas e justas oportunidades de
se aventurar. [...] Quem só é homem de bem sob a condição de que o saibam,
quem só quer fazer o bem para que sua virtude alcance a celebridade, não
presta por certo grandes serviços. (MONTAIGNE, 1972, p. 291).

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Pela leitura, você pode perceber que uma das características do ensaio é a
persuasão. Assim, a argumentação é um dos seus elementos principais, mas, como o
autor não dispõe de provas, pois não tem a pretensão de cientificidade, a manipulação
da linguagem é sua principal arma.

O ensaio, justamente porque não tem pretensões científicas, foi, durante muito
tempo, relegado a segundo plano. Mas Theodor Adorno, na obra O ensaio como forma,
escrita na década de 1950, defende justamente o ensaio por esse gênero que não
tem a pretensão de definição exata das coisas. Para o autor alemão, o ensaio permite
o exercício da confluência entre pensamento e linguagem e desafia a certeza livre de
dúvidas pretendida pela ciência positivista (ADORNO, 2003).

Na Espanha, o ensaio só é reconhecido três séculos após


os ensaios de Montaigne. Ortega y Gasset foi o primeiro escritor
espanhol a assumir-se como ensaísta. No prólogo de Meditaciones
del Quijote, ao falar da obra, ele dá uma definição de ensaio:
Estas Meditaciones, exentas de erudición —aun en el buen sentido que
pudiera dejarse a la palabra— van empujadas por filosóficos deseos.
Sin embargo, yo agradecería al lector que no entrara en su lectura con
demasiadas exigencias. No son filosofía, que es ciencia. Son simple-
mente unos ensayos. Y el ensayo es La ciencia menos la prueba ex-
plícita […] y el rígido aparato mecánico de la prueba es disuelto en una
Fig. 06- Capa do livro elocución más orgánica, movida y personal (ORTEGA Y GASSET apud
Meditaciones del SILVA, 2010 1963, p. 8).
Quijote.
Como você pode ver, também Ortega y Gasset aponta a
não cientificidade do ensaio ( já que é ciência sem prova) e a motivação pessoal, isto
é, a subjetividade do gênero. O ensaio, portanto, é uma construção de um ponto de
vista do autor, porém fundamentado em suas leituras, enriquecido com a linguagem
criativa, o que o aproxima dos gêneros literários.

Outro gênero híbrido é a crônica. O sentido etimológico do termo está


relacionado à palavra grega chronos, tempo. Originalmente, significava registro da
passagem do tempo e, modernamente, enfoque dos fatos do dia a dia. De um modo
ou de outro, a crônica é sempre um resgate do tempo. Sua temática é voltada para
acontecimentos do cotidiano, por isso se destina, principalmente, à leitura diária. Sendo
assim, o melhor veículo para sua publicação é o jornal, embora não tenha compromisso
com a informação exata, como a notícia. Além disso, a notícia relata os fatos como
eles aconteceram, enquanto a crônica os analisa, explorando um outro ângulo dos
acontecimentos, dando-lhes uma outra dimensão.

A crônica mistura jornalismo e literatura não apenas por causa do veículo de


publicação. O primeiro contribui com a realidade cotidiana e o outro com a tradição
criativa da linguagem, de modo que o que era singular, temporal, passa a servir como
reflexão em outras épocas. Por causa disso, algumas crônicas são publicadas em livro,
para serem apreciadas no tempo.

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Quando a crônica tem personagens, esses não são apresentados com uma
densidade psicológica profunda. Antes são caracterizados por traços genéricos e às
vezes nem são nomeados ou recebem nomes comuns: a moça, o menino, dona Maria,
seu José.
A crônica gira em torno de um único núcleo e tem como objetivo sensi-
bilizar o leitor, principalmente pela emoção. Entretanto essa é uma carac-
terística própria da crônica brasileira, não é comum em crônicas de escri-
tores estrangeiros Por isso, muitos autores consideram a crônica um gênero
brasileiro, pensando nessa concepção e característica. De acordo com José
Marques de Melo (apud TUZINO, 2009, p. 9),

No jornalismo brasileiro, a crônica é um gênero plenamente definido. Sua


configuração contemporânea permitiu a alguns estudiosos proclamarem que se trata
de um gênero tipicamente brasileiro, não encontrando equivalente na produção
jornalística de outros países.

Ainda de acordo com o autor, no jornalismo mundial, a crônica é um termo


vinculado ao relato cronológico, à narração histórica. No Brasil, tomou uma forma
própria, voltando-se para o cotidiano, refletindo sobre ele através de uma linguagem
poética. Os fatos são apenas pretexto para um olhar mais reflexivo sobre o real diário.

Já sei!

Nesta Aula, você estudou que a literatura também se faz de textos não ficcionais
que têm muita identificação com o jornal, o qual lhe dá os fatos para a reflexão sobre
eles, através de uma linguagem literária. Essa linguagem pode ser uma elaboração
nos moldes da tradição ou de forma a romper com ela. A ruptura na obra literária
pode acontecer em vários aspectos, mas, nesta Aula, vimos o modo como o enredo
se estrutura na tradição (que é de forma linear) e na modernidade (de forma não
linear) e os gêneros híbridos, reconhecendo características fundamentais do ensaio, de
natureza subjetiva, e da crônica, que focaliza o cotidiano.

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Autoavaliação

Escreva um ensaio não literário, de no máximo uma lauda, tratando de suas


impressões quanto à relação entre literatura e jornalismo. Para isso, utilize não só o
que você aprendeu nesta Aula, mas pesquise em outras fontes, em outros textos.

Leitura complementar

Para ajudá-lo em suas pesquisas sobre as relações entre literatura e jornalismo,


leia o texto Os limites do devir literatura no jornalismo, de Sílvio Ricardo Demétrio. O
autor faz uma interessante análise sobre a influência do jornalismo na literatura e vice-
versa, em autores da literatura ocidental. Este texto está disponível no sítio <http://
www.bocc.ubi.pt/pag/demetrio-silvio-literatura-jornalismo.pdf>.

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Referências

ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ADORNO, W. T. Notas de Literatura I.


Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003. (Coleção Espírito Crítico)
p. 15-45. Disponível em: <http://maelstromlife.wordpress.com/2010/09/26/o-ensaio-
como-forma-theodor-adorno/>. Acesso em: 15. jan. 2013.

FRANCO JÚNIOR, Arnaldo. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, T. ;


ZOLIN, L. O.(orgs.) Teoria literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas.
3 ed. Maringá: Eduem, 2008, p. 33-58.

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

RUSSO, Renato. Faroeste caboclo. In: Que país é este? EMI-Odeon, out. 1987.

SILVA, Lindinei Rocha; SILVA, Andrea Targino. A inscrição do ensaio nos gêneros
literários. In: Cadernos da FaEL, Nova Iguaçu, v. 3, n. 8, p. 1-10, maio/ago. 2010.
Disponível em: <http://www.unig.br/cadernosdafael/ARTIGO%20CADERNOS%208%20
LINDINEI.pdf>. Acesso em: 15. jan. 2013.

TUZINO, Yolanda Maria. Crônica: uma Intersecção entre o Jornalismo e a Literatura.


Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/tuzino-yolanda-uma-interseccao.pdf>.
Acesso em: 15. jan. 2013.

Fonte das figuras


Fig. 01 - http://www.lastfm.com.br/music/Renato+Russo/+images/29670859

Fig. 02 - http://www.mundoeducacao.com.br/literatura/vanguardas-europeias.htm

Fig. 03 - http://3.bp.blogspot.com/-o9zfXZI5CWA/UDqUY8NB7hI/AAAAAAAAAHw/Pjl01nIKmdo/s1600/amarelinha.jpg

Fig. 04 - http://2.bp.blogspot.com/_TrPvhIWz2yg/TK97MvqZE5I/AAAAAAAAAA4/L0vMB1OmMok/s1600/os-sertoes.jpg

Fig. 05 - http://antoniofarinaci.blogosfera.uol.com.br/files/2011/03/Montaigne.jpg

Fig. 06 - http://www.tower.com/meditaciones-del-quijote-jos-1883-1955-ortega-paperback/wapi/118220955

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