Resenha da peça teatral “Conselho de Classe” de Jô Bilac
Jô Bilac, dramaturgo carioca, e um dos expoentes da dramaturgia brasileira, traz
em sua obra o melhor da tradição carioca. Apresenta-se como um Nelson Rodrigues às avessas. Do grande dramaturgo brasileiro, pode-se ver em seu texto a riqueza dos diálogos. Estes são sempre cotidianos, mesmo que inseridos no ambiente de trabalho. Na peça esse cotidiano é o escolar, o espaço em que ação transcorre: em uma reunião de classe, na quadra de uma escola, entre professores da rede pública. Essa opção pelo prosaico é tão forte que o autor acrescenta outras camadas de intimidade em um cotidiano já muito informal, uma vez que o conselho de classe se dá após o fim do ano letivo, com a presença apenas de alguns professores, sob o calor tropical do Rio de Janeiro, a falta de água na escola e os ventiladores velhos que não ventilam. Essa irrupção da intimidade está presente, por exemplo, nos problemas que as professoras trazem de casa para o ambiente de trabalho: a venda de roupas para complementar a renda, o telefonema da locadora da casa cobrando a professora o pagamento de taxas, notícias sobre a diretora afastada e “fofocas” sobre professores ausentes. Assim como em Nelson Rodrigues, o dramaturgo também consegue uma excelente caracterização de seus personagens apenas com os diálogos, a informalidade, e essa irrupção do familiar na vida social para enriquecer psicologicamente as personagens. Em “Conselho de Classe”, tem sempre essa conversa informal, sempre essa espera da formalidade da reunião que parece nunca chegar, sempre adiada pelo mesmo cotidiano das personagens que interrompe o oficial. É nesse jogo do anunciado, do esperado, que nunca acontece, que Bilac utiliza-se apenas dos diálogos para dar vida às suas personagens que, embora pertencentes a uma mesma classe, de professoras, têm visões de mundo completamente diferentes. e esse mesmo diálogo enseja aos poucos o conflito. Um conflito que na verdade já ocorreu, mas só paulatinamente o leitor é introduzido nele, ficando em suspensão até a hora da reunião. Mas Bilac é um Nelson Rodrigues às avessas também. E esse é o ponto que torna sua obra tão original. Diferente de Nelson Rodrigues, cujas personagens estão sempre envolvidas com tabus sociais, complexos psicológicos e taras sem distinção de classe social. Em Bilac, é a classe social, a formação profissional e a geração das personagens que determinam seu comportamento. A fala da antiga diretora, Vivian, no prólogo da peça, ao demonstrar seu apreço pelos japoneses, já indica o conflito do drama e o conflito escolar existente no Brasil
[...]Mas é que lá, rapaz, todo mundo é amarelo,
todo mundo tem a mesma cara, o mesmo olho. Aqui no Brasil, não. Um é preto, outro é mulato... Daí fizeram umas escolas pra poucos, e deu no que deu: uma educação totalmente deformada hoje. É preciso entender o país e quem está nele. Pra isso, você precisa sair da sala de aula e entender o aluno como indivíduo... o professor como individuo. E os indivíduos perceberem a escola como parte da comunidade e o que você pode fazer por ela. (BILAC, 2016. P.28)
É essa diversidade social e cultural existente no Brasil e presente na escola
pública, tanto entre os professores quanto entre os alunos que torna sempre iminente os conflitos, quer seja por visões diferentes sobre a educação, quer seja por receber um grupo heterogêneo de estudantes. Diferentemente do Japão, um dos países menos miscigenados do mundo e com uma cultura milenar, a escola brasileira tenta uniformizar conteúdos, padrões, avaliações e comportamentos em nível nacional, de um país extremamente diverso e com abismos sociais. Essa uniformização é a deixa para o conflito na peça. É por causa da proibição do uso de bonés por parte dos alunos, que com eles poderiam se individualizar dentro do sistema massificador escolar, que os alunos, em contato com uma professora de arte, mais progressistas, e estudando a obra “O pagador de promessa”, de Dias Gomes, começam a entender sua realidade. Assim como a personagem da peça, Zé do Burro é proibido de entrar na igreja por ter um sincretismo religioso, os alunos se veem na mesma condição. São proibidos de entrar no templo do saber com suas peculiaridades. Mesmo utilizando seus uniformes, a escola proibi que eles tragam para o ambiente de aprendizado um acessório do vestuário comum à cultura jovem. Mas após lerem criticamente sua realidade, os alunos resolvem intervir politicamente para reivindicar seus direitos. É neste conflito do embate entre alunos e a diretora, que termina ferida com a cruz do aluno que interpreta Zé do Burro, caindo em sua cabeça, que se desenrola a peça. As professoras defensoras da escola uniformizada e com grades, desconfiam da professora de artes. Tem-na como agitadora dos alunos, tramando para conseguir a direção ou um diretor favorável à sua visão de educação. Entretanto, ao ler a peça, mesmo que o leitor não concorde com uma das visões sobre a educação é forçoso reconhecer que se simpatiza com todas essas profissionais da educação. Essas professoras deram suas vidas para educar os alunos. Mesmo que se discorde de sua visão e de seus métodos, elas se entregaram, sem apoio do sistema educacional, com péssima remuneração, sem estrutura para as aulas, enfrentando o cotidiano sucateado e caótico da escola para fazer o melhor em que acreditam pela educação. Esse é um dos grandes aspectos do texto. Assim como Nelson Rodrigues, Bilac constrói personagens com suas virtudes e fraquezas. Acima de tudo humanos. E leva o público a simpatizar com eles, mesmo que não concorde com suas escolhas. O desfecho da peça também é extraordinário. Como disse a diretora Viviam no prólogo da peça, que a solução para a educação é que cada individuo perceba a escola como parte da comunidade; o novo diretor tem a mesma visão. Ele combate personalismos, como a professora de educação física que leva a chave da quadra para sua casa. Mas ele também não consegue resolver o conflito, pois o conselho se dispersa e é adiado para o próximo ano letivo. Jô Bilac deixa a peça sem solução, pois a solução para a educação brasileira não está em uma peça teatral, nem mesmo na mão de uma única pessoa, como nas mãos do autor da peça. A solução está somente na união dos indivíduos, da comunidade em torno dos seus problemas. Na escola, ela passa pela participação democrática dos professores, alunos, pais e funcionários da escola para decidirem, cada um respeitando ao outro, o futuro conjunto deles. Somente o Conselho de Classe pode oferecer alternativas ao conflito escolar.