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Alfredo Bosi
Universidade de São Paulo
O mito prometeico do construtor do novo século aparece configurado precoce mas intensamente
no final do Segundo Fausto de Goethe, interpretado tantas vezes como apoteose do trabalho
humano no decurso de sua emancipação das forças da natureza. A leitura do quinto ato dá-nos,
porém, não só o direito como o avesso do desígnio fáustico de tudo dominar mediante o trabalho
coletivo obediente à sua vontade de poder.
Nos episódios finais avulta a figura do pactário com Mefistófeles ansiando por modificar
a face da terra e dos oceanos e, ao empreender sua obra gigantesca, arregimentar milhares de
trabalhadores que arrancam da natureza os materiais para a construção de diques (como nas terras
baixas da Holanda que o homem conquistou ao mar) ou para a edificação de fábricas, palácios e
torres monumentais:
Corro a cumprir o que o pensar revolve;
Só a voz do senhor produz efeito. –
Servos, de pé! Aqui todos chegai!
Meu pensamento ousado executai!
Travar da ferramenta, pá e enxada
Ordem severa, lida sem detença
Sempre conquistam alta recompensa;
Para acabar a empresa vasta e ingente,
De braços a um milhar basta uma mente1.
(Ato V, versos 11501 a 11510).
Atente-se para os dois últimos versos da citação, cujo sentido literal se verteria em prosa:
Para que a obra maior se realize, basta um espírito por meio de milhares de
mãos.
O que é a expressão cabal da divisão do trabalho em grande escala: uma só mente, que
comanda (“só a voz do senhor produz efeito”) e um sem número de braços e mãos que
obedecem. O objetivo é a maior produção possível, “empresa vasta e ingente”.
1
Goethe, Fausto. Tradução de Agostinho d’Ornellas, nova edição ao cuidado de Paulo Quintela, Universidade de
Coimbra, 1958. Para a interpretação tantas vezes árdua do texto goethiano recomendo a edição do Fausto. Uma
tragédia. Segunda Parte, na tradução de Jenny Klabin Segall, comentada com erudição e discernimento por Marcus
Vinicius Mazzari (S. Paulo, Ed. 34, 2007). Para facilitar o cotejo das citações com as notas do comentador, preferi
numerar os versos por esta última edição.
2
Na cena seguinte, ao escutar os ruídos do trabalho dos lêmures que cavam o túmulo que o
velho e cego colonizador toma por uma obra de drenagem, este exclama satisfeito ao sair para
fora de seu palácio:
Quanto o rumor de enxadas me deleita,
É a multidão que a mim presta serviço;
Faz congraçar consigo a mesma terra,
Põe às ondas limites e circunda
Com apertado valo o mar imenso. (versos 11540 a 11544)
Mas essa obra descomunal, que Mefistófeles designa como um projeto de colonização
(“Colonizar há muito não procuras?”), não pode ser realizada sem resistências. E, para superá-
las, o colonizador terá de empregar a força que arrasa todo e qualquer estorvo. A contraposição se
faz patente quer na ordem natural, quer na ordem humana. O limite desse projeto é a destruição e
a morte de tudo quanto limita o sonho fáustico da dominação universal.
Ao abrir-se o quinto ato, um viandante chega à cabana que o abrigara outrora quando,
náufrago de uma tempestade, recebera a benévola hospedagem de um casal de velhos, Filêmon e
Báucis. Em torno daquela morada cresciam escuras tílias, antigas mas robustas, que o viandante
reconhece. Depois de breve momento de hesitação, ele decide bater à porta da choça para
relembrar e agradecer ao casal aquele gesto solidário. Quem o atende é Báucis, já muito idosa, a
quem se segue logo Filêmon. O forasteiro se prostra em terra e ora sobre a duna que circunda a
casinha. Filêmon mostra-lhe então como se transformara a paisagem que ele conhecera. As águas
revoltas do mar, conquistadas por novos diques e aterros, deram lugar a prados, bosques e jardins,
habitação de homens e de pássaros:
Vede, do mar o escarcéu
Que tão cru vos maltratou,
Em jardim se converteu,
Paraíso se tornou!
O seu aborrecimento cresce movido pela frustração da vontade de poder (“Das angústias
decerto a mais pungente/ É sentir na opulência alguma falta!”) e degrada-se em exigência
4
imediata e brutal de posse: Filêmon e Báucis deverão abandonar o quanto antes a sua morada e
tudo entregar à cupidez colonizadora de Fausto. É sob as ordens do demônio, príncipe deste
mundo, que se fará a operação: ateia-se fogo à cabana, à capela, às tílias e em pouco tempo não
restarão mais que brasas e cinzas. Um canto ouve-se ao longe depois de longa pausa: o que aos
olhos aprazia, com os séculos passado é. Filêmon e Báucis desejariam resistir à ordem de ceder o
seu lar, mas o terror os acomete e morrem subitamente. O peregrino ainda quis lutar, mas foi
igualmente vencido até sucumbir em meio às chamas junto com o casal havia pouco
reencontrado.
Fausto por um momento cai em si diante da atrocidade cometida, amaldiçoa a
Mefistófeles e a seus servos, mas, reduzido às sombras da cegueira, é rodeado por quatro
mulheres grisalhas, alegorias da Falta, da Dívida, da Apreensão e da Miséria. Compulsivamente
condenado a agir (isto é, a reger enormes ações coletivas e cada vez mais eficazmente), Fausto
ainda ordenará aos servos que realizem os seus planos de construtor. Planos que a sua morte irá
em breve deixar inconclusos. A colonização é o último capítulo da vida do pactário. Mas
certamente a obra colonizadora prosseguirá.
Vêm à nossa memória as palavras de Hegel nas Lições sobre a Filosofia da História: “No
desenvolvimento do fim particular radica também o ímpeto colonizador”2.
A leitura linear dos episódios finais do poema reconhece, postos lado a lado, o aspecto
destrutivo do progresso técnico e a sua dimensão prometeica de transformação da natureza por
obra do homem.
O poeta parece contemplar através de lentes límpidas todo o processo de
desenvolvimento, que se desenrola ante seus olhos com a força de uma necessidade histórica,
trazendo consigo prepotência e júbilo, rastros de morte e triunfante vontade de poder. Teremos
aqui mais uma versão do “olímpico” Goethe, na qual ressoaria a tese hegeliana da razoabilidade
última de tudo o que é real?
Responder afirmativamente a essa questão é ceder sem resistência à ideologia (liberal-
capitalista ou estatista) do progresso técnico a ser alcançado a qualquer custo, ora com o
sacrifício do trabalhador, mero instrumento dos projetos fáusticos, ora por meio de violências
cometidas contra a natureza e os seres “improdutivos”, como o velho casal Filêmon e Báucis,
cuja cabana com suas tílias agastava o olhar cobiçoso do inveterado pactário.
2
Hegel, Lecciones sobre la Filosofia de la Historia, trad. José Gaos, Revista de Occidente Argentina, 1948, II, p.
383.
5
3
Georges Gurvitch, Los fundadores franceses de la sociología contemporánea, B. Aires, Nueva Visión, 1970.
4
Apud Los fundadores, p. 40.
6
produtores eliminaria, de vez, o anacrônico prestígio dos ociosos sobreviventes de outras épocas,
como os nobres, o clero e os altos funcionários pendurados no poder monárquico. Embora não se
possa falar aqui em liberalismo econômico tout court, pois as idéias de planejamento e de
organização tecnocrática são recorrentes no sistema de Saint-Simon, cumpre destacar a sua
aversão ao Estado (ele conviveu com a fase de restauração monárquico-reacionária sob Luís
XVIII e Carlos X) e a sua exaltação da Economia Política como conjunto de medidas higiênicas
que limpariam o terreno de tudo o que fosse improdutivo para a plena expansão da indústria.
É consenso sublinhar o caráter conservador da política sansimoniana, que desaconselha
todo e qualquer ato de rebeldia dos trabalhadores em relação aos “chefes industriais”. Nessa
perspectiva, a sua utopia de uma sociedade panteisticamente harmoniosa poderá ser classificada
como uma sub-ideologia do capitalismo industrial nascente? Sim e não.
De um lado, a “igreja sansimoniana”, que se constituiu após a morte do mestre (1825),
contou entre seus principais adeptos com numerosos polytechniciens bem como prósperos
industriais e banqueiros, financiadores dos projetos de Louis-Philippe e de Napoleão III
(particularmente os de renovação urbana da capital), acionistas das novas companhias
ferroviárias, apoiadores da política colonial francesa na Argélia e inspiradores da construção do
canal de Suez5.
De outro lado, os discípulos próximos redigiram uma Exposição da doutrina, em 1830,
reelaborando partes do sistema em uma linha socializante, que cativou o jovem poeta Heine,
assíduo ouvinte dos sansimonianos e, ao que consta, mediador entre estes e o jovem Marx quando
este chegou a Paris em 1844... Gurvitch recorta do texto da Exposição esta passagem que lhe
parece nada menos que precursora do Manifesto comunista: “O homem explorou o homem até
hoje. Amos e escravos; patrícios e plebeus; senhores e servos; proprietários e inquilinos: eis a
história progressiva da humanidade até nossos dias”6.
Quanto ao surgimento da instância religiosa no seu último livro, Novo Cristianismo, um
seu admirador e intérprete, Émile Durkheim, defende a hipótese de que se trata de um recurso
moral, necessário para manter a unidade e o ethos do sistema industrial (temperando assim o
egoísmo comum à nossa espécie), mas não uma tardia entrega à transcendência, que não teria
lugar na construção ergótica da sociedade sansimoniana. A religião do último Saint-Simon não
5
Sobre o apoio dos discípulos diretos de Saint-Simon à política colonial francesa na Argélia, v. o artigo de Smaïl
Hadj Ali, “Os sansimonianos e a colonização da Argélia”, in Estudos Avançados, S.Paulo, Univ. de São Paulo, nº.
56, janeiro-abril de 2006, p. 225-236.
6
Id., p. 99.
7
suprimiria, antes reforçaria, o “humanismo prometeico” da sua concepção social7. Mas para ser-
lhe fiel seria preciso, custe o que custar, pagar o tributo ao preço do progresso.
Colonização e desenvolvimento
7
A expressão está em Gurvitch, op. cit., p. 84.
8
Remeto ao capítulo inicial de Dialética da colonização, S. Paulo, Companhia das Letras, 1992. A versão inglesa,
Colony, Cult and Culture, saiu pela University of Massachusetts Dartmouth, 2008.
8
Cultus é rejeitado com veemência por Fausto em todas as suas dimensões até a destruição
total. Não se trata apenas do sino da capela que tange compassando as horas e enfurecendo o
pactário que desejaria silenciá-lo para todo sempre. Não se trata apenas da cabana, das tílias, da
capela e dos entornos tranquilos que estorvam a visão do novo titã desbravador dos espaços
naturais e construtor moderno de fábricas, diques e canais. Nada deterá a “nova criação”: sob as
ordens de Mefistófeles morrerão em meio às chamas Filêmon e Báucis, velhos moradores da
cobiçada colina. A violência aqui se autojustifica em nome de interesses que se julgam absolutos.
Entramos no coração da ideologia da burguesia industrial já vitoriosa na Inglaterra e na França e
em vias de conquistar seu lugar mediante espúrias alianças naquela Alemanha contemplada do
alto pelo olhar de águia de Goethe.
Mas, se voltarmos os olhos para testemunhas oculares de momentos cruciais da história da
colonização do Novo Mundo, surpreenderemos, junto com a violência dos conquistadores e a
exploração dos nativos e dos escravos africanos, vozes dissonantes para as quais colonizar não
deveria ser sinônimo de destruir, oprimir, esbulhar. Que valores religiosos ou éticos, ligados ao
9
Para uma visão de conjunto do que foi a colonização nas Américas, na África, na Ásia e na Austrália, recomendo O
livro negro do colonialismo (org. por Marc Ferro), Rio, Ediouro, 2004.
9
10
Grégoire deixou um testemunho notável das marchas e contra-marchas da luta anti-escravista nesse período nas
suas Mémoires, publicadas pela primeira vez em 1840. Recomendo a edição prefaciada por J.-N Jeanneney (Paris,
Ed. de la Santé, 1989).
11
Abbé Grégoire, Apologie de Bathelémy de Las Casas, Évêque de Chiappa, Paris, Boudoin, s.d. V. o escrupuloso
artigo de Guy Bedouelle sobre a controversa acusação feita a Las Casas de ter pedido a introdução de escravos
negros na América Espanhola, “Las Casas e o tráfico dos negros”, em Utopia urgente. Escritos em homenagem a Fr.
Carlos Josaphat nos seus 80 anos (org. por Frei Betto, Adélia Bezerra de Meneses e Thomaz Jensen), São Paulo,
Casa Amarela/Educ, 2002, p. 243-50.
10
No primeiro caso, ocorreu a fusão ideológica dura e crua de colo e cultus: as crenças
herdadas justificavam a ação presente. No segundo caso, cultus entrou em tensão religiosa e ética
com a dinâmica violenta de colo.
Os relatos e os sermões de fr. Bartolomeu de Las Casas bem como sua polêmica teológica
e jurídica com Sepúlveda (defensor da “guerra justa” contra os gentios) são hoje bem conhecidos
e constituem, para muitos, uma verdadeira arqueologia do discurso pelos direitos humanos12.
Outro texto, este anti-épico em pleno regime épico, é a Fala do Velho do Restelo, que
Camões incluiu no final do Canto IV dos Lusíadas. Na hora da partida das naus que levariam
12
V. Fr. Carlos Josaphat, Las Casas. Todos os direitos para todos, S. Paulo, Loyola, 2000. Las Casas denuncia
como contrária à “equidade natural” toda imposição de trabalhos forçados ou tributos lançados sobre o povo sem o
expresso e livre consentimento deste. No tratado De regia potestate, publicado postumamente (1571), obra de Las
Casas ou composta sob sua direta inspiração, formula-se uma doutrina que contestava radicalmente a pretensão dos
conquistadores de exigir trabalhos pesados dos índios, ou seja, condenava-se a própria célula da colonização ibérica
nos Andes, a encomienda. Por força dessa instituição (que Las Casas conhecia de perto, pois fora “padre
encomendero” antes de sua conversão), os índios eram arrancados de suas comunidades, “repartidos” e sujeitos a
trabalhos servis não remunerados. Para o estudo dos documentos da época, v. Paulo Suess, A conquista espiritual da
América Espanhola, Petrópolis, Vozes, 1992. Uma testemunha ocular da opressão dos colonos espanhóis e, depois,
dos bandeirantes, predadores de índios e destruidores das missões do Sul, foi o Pe. Antônio Ruiz de Montoya, que
deixou seu depoimento em Conquista espiritual feita pelos Religiosos da Companhia de Jesus nas províncias do
Paraguai, Paraná, Uruguai e Tape, Porto Alegre, Martins Livreiro Editor, 1985 (a lª. ed. saiu em Madri, 1639).
11
Vasco da Gama ao descobrimento do caminho das Índias, a festa promovida por D. Manuel, o
Venturoso e pelos seus áulicos é ensombrada pelas imprecações de um Velho que, saído do povo,
amaldiçoa a empresa conquistadora. Cobrindo-se com os falsos nomes de glória, honra e fama,
ela é, na realidade, obra da ganância e da soberba humana, cujo preço será o abandono do campo,
a miséria das mulheres e das crianças que ficavam na praia, as guerras insanas contra povos
desconhecidos, enfim a perdição material e moral dos que se lançavam na aventura marítima.
Valores tradicionais vivos no mundo rural (cultus) são aqui expressos em contraste com a
apoteose do projeto de conquista e da futura colonização das terras de além-mar (colo):
contradição que surpreende se lembrarmos que o poema de Camões foi escrito com a intenção
explícita de louvar a viagem do Gama e celebrar as virtudes militares e religiosas dos reis e
navegadores lusitanos.
Na América Portuguesa, cedo chamada Brasil, a tensão entre as instâncias econômicas e
morais do processo colonizador manifestou-se esparsamente nas restrições feitas pelos jesuítas à
escravização dos índios e ao tratamento desumano infligido pelos senhores de engenho aos
negros cativos.
O nome central é o do Pe. Antônio Vieira, cuja obra missionária cobriu quase todo o
século 17. Em várias ocasiões ele acusou diretamente a causa do conflito: os colonos exigiam
cada vez mais insolentemente o seu “direito” de arrancar os índios das tribos ou dos aldeamentos
reais (organizados pelos jesuítas) para servirem de mão-de-obra gratuita a suas empresas
agrícolas ou aos serviços urbanos. A reação dos colonos às restrições propostas pelo jesuíta foi
intensa e eficaz: expulso do Maranhão e do Pará com toda sorte de vexames, Vieira articulou
defesas eloquentes perante a Regente portuguesa, alegando como valores universais razões da
natureza e razões das Escrituras, tendentes a afirmar a igualdade natural dos homens enquanto
filhos do mesmo Deus: é a matéria do Sermão da Epifania, pregado na Capela Real em 1662
perante a rainha viúva Dona Luísa, que regia os negócios da monarquia durante a minoridade de
D. Afonso VI13. Como já acontecera um século antes com Las Casas, a Coroa deu formalmente
razão aos argumentos do pregador, mas essa concordância verbal não teve força de mudar a
situação objetiva dos índios nas distantes colônias.
13
Antônio Vieira, Sermões, Porto, Lello, vol I, tomo 2, p. 44. Este belo Sermão da Epifania traz uma crítica mordaz
do preconceito de cor. Vazada em termos do humanismo universalista cristão, a denúncia de Vieira antecede os
libelos dos abolicionistas ilustrados e, especialmente, a argumentação do Abbé Grégoire nos seus discursos
proferidos na Convenção revolucionária a favor da supressão do cativeiro nas colônias francesas. Ver também o
movimentado e imaginoso Sermão XX do Rosário sobre a preferência dada por Deus ao escravo e à cor negra.
12
Octogenário, Vieira procurou defender os índios aldeados em São Paulo, cuja Câmara
composta de bandeirantes e seus familiares expulsara os jesuítas que se opunham às entradas
predatórias dos paulistas. A questão do trabalho forçado é o cerne da argumentação de Vieira na
sua luta contra os regimentos aprovados pelos homens bons da cidade. No Voto sobre as dúvidas
dos moradores de São Paulo acerca da administração dos índios, redigido no Colégio da Bahia e
datado de 12 de julho de 1694, Vieira desmascara a permanência da escravidão dos nativos
debaixo do nome de “Administração”. O termo parece neutro, ainda é hoje corrente no jargão
empresarial, mas Vieira o qualifica de “especioso”, nele detectando tão só “licença e liberdade
pública” para requerer trabalhos compulsórios...
O que temos, no fundo, em termos de ideologia e contra-ideologia? Em síntese, temos a
exigência ao mesmo tempo religiosa e ética de delimitar o raio de ação do senhor colonial de tal
modo que a produção não ocupasse um lugar prioritário ou absoluto. A certa altura do Sermão
XXVII do Rosário, em que é teologicamente posta em questão a existência mesma do direito
“natural” de domínio do escravo pelo senhor, Vieira mostra-se consciente de que a razão de
Estado, ou seja, o plano da legalidade, não tem o aval do discurso teológico: este obedece a
princípios emanados da revelação. O Deus dos cristãos condena a iniquidade dos senhores. Daí
provém uma lógica disjuntiva em relação à escravização dos africanos: a “justiça” da lei colonial
não é a justiça definida pela teologia tomista reelaborada pela Escolástica do século 16:
Bem sei que alguns desses cativeiros são justos, os quais só permitem as leis, e
que tais se supõem os que no Brasil se compram e vendem, não dos naturais,
senão dos trazidos das outras partes; mas que teologia há, ou pode haver que
justifique a desumanidade e sevícia dos exorbitantes castigos com que os
mesmos escravos são maltratados? Maltratados disse, mas é muito curta esta
palavra para a significação do que encerra ou encobre. Tiranizados deveria dizer,
ou martirizados, porque ferem os miseráveis, pingados, lacrados, retalhados,
salmourados, e os outros excessos maiores que calo, mais merecem nome de
martírios que de castigos14.
Essa consciência dos limites, em nome de um direito ao mesmo tempo natural e sagrado,
formou-se em um contexto de valores anterior ao capitalismo industrial, e já não terá nenhum
lugar nos planos de onipotência do titã-pactário. Goethe não apelaria para a linguagem católica
pré-capitalista no momento de cobrir de gravosas sombras o espírito do seu herói trágico: o poeta
moderno preferiu alegorizar na forma de um espectro chamado Apreensão (Sorge) o discurso
14
Sermões, IV, 12, p. 365. A desumanidade dos senhores e de seus feitores suscita em Vieira o profeta que os
ameaça com o merecido castigo divino: “Oh como temo que o Oceano seja para vós mar Vermelho, as vossas casas
como a de Faraó, e todo o Brasil como o Egito!” (ib., p. 366).
13
moral que adverte Fausto da indefectível inquietude que perseguiu e continuará perseguindo cada
lance da sua vida roída pelo insaciável afã de prazer e poder. Esta imagem da Apreensão
incessante tem uma potencialidade estética admirável, pois traz em si tanto a evidência opressiva
da figura alegórica como a dramaticidade da vida psíquica arrastada pelo desejo. Mesmo depois
de amaldiçoado e cegado pelo espectro, Fausto “corre a cumprir o que o pensar revolve”,
lançando-se de novo à realização de seus projetos. “Basta uma mente para mover um milhar de
mãos!”. Fausto morrerá pouco depois, mas para Mefistófeles a morte do pactário não deveria
representar a consumação da obra avassaladora de que ele próprio fora o grande cúmplice. São
significativas as suas palavras de irritação e desprezo ao ouvir o coro dizer que, com a morte de
Fausto, algo “passou”, isto é, acabou-se:
Passou! palavra estúpida!
Passou, por quê? Tolice!
Passou, nada integral, insípida mesmice!
De que serve a perpétua obra criada,
Se logo a arremessa para o Nada?
Passou, passou. Onde há nisso um sentido?
(vv. 11.597-602 da tradução de Jenny Klabin Segall).
O fato é que não temos uma resposta unívoca à questão do sentido de toda uma vida (o
que nos levaria a enfrentar a alternativa do niilismo, o Eterno Vazio preferido pelo demônio), mas
sabemos que o empreendimento fáustico não morreu com o pactário, mas cresceu
exponencialmente e predomina até hoje... A partir da revolução industrial, que Goethe conheceu
parcialmente, tão só a emergência da consciência operária, revolucionária ou reformista,
enfrentaria, em meio a lutas que ainda não cessaram, a vontade de poder do capital.
Tão agudo como o problema do direito colonial de escravizar era o dos modos pelos quais
se exercia a sua violência. No século 17, em pleno auge da produção de açúcar pelos engenhos
nordestinos, que testemunho temos de vozes perplexas, se não consternadas, em face da corvéia,
“este desumano trabalho” executado pelos “miseráveis corpos” dos escravos negros15?
Conhecem-se passagens do sermão de Vieira pregado à irmandade dos negros de Nossa
Senhora do Rosário, em que identifica as pesadas tarefas dos trabalhadores com o martírio de
Cristo na cruz. O fato mesmo da brutal diferença de destino entre senhores e servos deixou
marcas nos discurso do missionário, que confessa não compreendê-lo nem à luz da razão natural
15
V. Antônio Vieira, Sermão XIV do Rosário pregado na Bahia à irmandade dos pretos de um engenho em dia de S.
João Evangelista, no ano de 1633 (Sermões, cit., IV, 11, p. 305).
14
nem com o amparo das Escrituras. Mas, se a interpretação providencialista final que ele acaba
engendrando e o tom conformista geral são para nós inaceitáveis, a descrição existencial guarda
toda a força da sua verdade:
Eles mandam e vós servis; eles dormem e vós velais; eles descansam e vós
trabalhais; eles gozam o fruto de vossos trabalhos, e o que vós colheis deles é
um trabalho sobre o outro. Não há trabalhos mais doces que o das vossas
oficinas, mas toda essa doçura para quem é? Sois como abelhas, de que disse o
poeta. Sic vos non vobis mellificatis apes. O mesmo passa nas vossas colméias.
As abelhas fabricam o mel, sim, mas não para si. (Sermões, IV, 11, p. 315)
Sobre o “doce inferno” vivido pelos escravos nos engenhos da Bahia, comparem-se os
períodos abaixo extraídos do mesmo sermão com o quadro desolador retratado por Engels, dois
séculos depois (1844), a partir da sua observação das condições da classe operária inglesa em
fábricas de Manchester:
E que cousa há na confusão deste mundo mais semelhante ao Inferno, que
qualquer destes vossos engenhos, e tanto mais, quanto de maior fábrica? Por isso
foi tão bem recebido aquela breve e discreta definição de quem chamou a um
engenho de açúcar doce inferno. E verdadeiramente quem vir na escuridade da
noite aquelas fornalhas tremendas perpetuamente ardentes: as labaredas que
estão saindo a borbotões de cada uma pelas duas bocas, ou ventas, por onde
respiram o incêndio: os etíopes, ou ciclopes banhados em suor tão negros como
robustos que subministram a grossa e dura matéria ao fogo, e os forcados com
que o revolvem e atiçam; as caldeiras ou lagos ferventes com os cachões sempre
batidos e rebatidos, já vomitando escumas, exalando nuvens de vapores mais de
calor, que de fumo, e tornando-os a chover para outra vez os exalar: o ruído das
rodas, das cadeias, da gente toda da cor da mesma noite, trabalhando vivamente,
e gemendo tudo ao mesmo tempo sem momento de tréguas, nem de descanso:
quem vir enfim toda a máquina e aparato confuso e estrondoso daquela
babilônia, não poderá duvidar, ainda que tenha visto Etnas e Vesúvios, que é
uma semelhança de Inferno16.
16
Sermões¸ib., p. 312.
15
17
Há tradução brasileira, Tudo que é sólido desmancha no ar, editada pela Companhia das Letras em 1986. A
dimensão dramática do desenvolvimento a todo custo foi analisada por Lukács, em seu ensaio sobre Goethe, ponto
de partida das reflexões de Berman.
18
Marx e Engels, Manifesto comunista. Tradução de Marcus V. Mazzari. Estudos Avançados, São Paulo: USP, n.
34, set/dez. 1998.
19
Michael Jaeger, Fausts Kolonie, Würzburg, 2004, p. 4l4, citado por Marcus V. Mazzari no comentário ao Fausto
II, cit., p. 935.
16
voluntarismo, o conformismo e o utopismo, pólos notórios das reações de esquerda aos projetos
de desenvolvimento.
20
É observação de Marx: “Todas as formas do movimento da indústria moderna resultam, portanto, da
transformação constante de uma parte da população trabalhadora em desempregados ou parcialmente empregados”
(O Capital, Parte VII, cap. 23).
21
Engels, Do socialismo utópico ao socialismo científico, em Marx. Engels, cit., p.408.
18
22
Lukács, Ontologia do ser social. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx, trad. de Carlos Nelson
Coutinho, S. Paulo, Ed. Ciências Humanas, 1979, p.56.
19
do gênero humano. Esse alto grau de consciência, que Marx, Engels e Lênin projetaram como
conquista final do socialismo, não é, de todo modo, característica peculiar à expansão do
capitalismo, nem desta depende estruturalmente.
Bibliografia
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BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
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cuidado de Paulo Quintela. Universidade de Coimbra, 1958.
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Max Beckmann. São Paulo: Ed. 34, 2007.
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MONTOYA, Antônio Ruiz de. Conquista espiritual feita pelos Religiosos da Companhia de Jesus
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Editor, 1985.
20