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O RETRATO DO PODER

NA ANTÍGONA DE ANTÓNIO PEDRO

Adriano Milho Cordeiro

IN LIMINE...

Antígona de Sófocles é, talvez, o mais belo poema do Ocidente. Vinda da


noite dos tempos, esta peça velha de séculos, impõe-se ainda ao espectador de
hoje, pelo rigor da sua escrita, pela beleza dos seus ritmos internos e pela
actualidade do seu tema, em qualquer lugar onde reine o poder arbitrário dos
tiranos.
O que nos toca em Antígona é a força inquebrantável da filha de Édipo, em
opor a lei do tirano (não enterrar o desertor) à lei da tradição e da família (dar
sepultura aos mortos). Com este acto, sagrado para Antígona, ela dá o primeiro
golpe para o princípio da queda do tirano Creonte.
Antígona será sempre a tragédia da liberdade, tão grega tão luminosa como o
Mediterrâneo!
A história de todas as Antígonas é a história da cultura europeia, da Europa
do mito da nossa memória colectiva.
Fazemos parte da mesma realidade transcultural de peleja pela liberdade...

1
1.º Velho: (Esta é) a tragédia da liberdade.

António Pedro, Antígona


(glosa nova da tragédia de Sófocles), p.2611

Introdução

Polidamente Sophia de Mello Breyner2 sintetizou quase meio século de


ditadura política em Portugal, como a longa “noite” e o “silêncio”, que submergiu a
livre expressão de pensamento, manietou por completo a consciente acção política.
O regime totalitário instaurado em 28 de Maio de 1926 e derrubado em 25 de
Abril de 1974 com a revolução dos cravos alicerçou o seu poder em mecanismos
arbitrariamente repressivos e no medo, amiudadas vezes pela violentação do foro
íntimo da consciência individual. Por este ou por aquele motivo interno ou externo,
devido a circunstâncias e conjunturas políticas muito próprias o regime corporativista
soube-se adaptar, preparar o delfim3 que não Hémon para o continuar. Na década
de cinquenta já se podia falar de uma evolução reformista do regime, adaptado às

1
Seguimos o texto publicado numa co-edição da Imprensa Nacional-Casa da
Moeda/Biblioteca Nacional, prefaciada por Luiz Francisco Rebello: António Pedro, Teatro Completo,
Lisboa, 1981, pp. 255-330. Escrita em Moledo do Minho e concluída a 20 de Novembro de 1953,
esta peça foi publicada pela primeira vez pelo Círculo de Cultura Teatral do Porto, em 1957 (?).
2
“25 de Abril”, Obra Poética III ,Lisboa, 2.ªed., 1966, p 195.
3
Sobre esta matéria cf. o romance O Delfim de José Cardoso Pires e a abordagem literária
que este autor faz ao assunto.

2
novas realidades do pós-guerra, sem convulsões, dentro da ordem estabelecida e
com 10 ou 15 anos de avanço relativamente à situação de finais de 60.
Essas cinzentas metamorfoses em nada modificariam a essência do regime,
nem sequer as orientações primordiais de toda a política.
Quando a velha Europa4 saiu dos horrores da Segunda Guerra Mundial, onde
Salazar havia participado com tão ambígua e característica «neutralidade
colaborante»5 deram-se «mudanças invisíveis» neste Portugal corroído por um
silêncio incompreensível.
O regime salazarista soube «sobreviver» à “vaga de fundo democrático” que
percorria a Europa6 e adaptar-se à nova ordem estabelecida no pós-guerra,
iniciando um processo superficial de relativa abertura e de «diversificação do
regime»7.
Durante diminutos quatro anos, houve «um certo abrandamento do
autoritarismo repressivo e do monopolismo político»8.
Acções de carácter político e cultural aconteceram tentando estilhaçar o
aterrador “silêncio”9. Foi o M.U.D., onde se destacou Mário Soares ou a candidatura

4
História de Portugal (direcção de José Mattoso). VII: O Estado Novo, Lisboa, 1994, 419.
5
Fernando Rosas (coord.), Nova História de Portugal (direcção de Joel Serrão e A. H.
Oliveira Marques). XII: Estado Novo (1930-1960) (Lisboa 1990) 52.
6
Fernando Rosas (Lisboa 1990) 57.
7
Manuel Braga da Cruz (Lisboa 1988) 42.
8
Manuel Braga da Cruz (Lisboa 1988 42.
9
Sobre esse silêncio José Gil diz-nos o seguinte, na sua obra, Salazar: A Retórica da
Invisibilidade, Lisboa, Relógio de Água, 1995, pp. 51-52: «As premissas dos discursos de Salazar
produzem este silêncio inconsciente que representa o desmoronamento originário de qualquer outra
palavra, a torção originária da linguagem que separa o dizer ("não discutimos Deus") do fazer (este
"nós" supõe o "eles" dos que "discutiam Deus", colocando-o deste modo em dúvida e negando-o;
este dizer, assim, posiciona-se em função de uma luta contra um "eles" - a que o discurso, aliás, se
refere: uma luta ou discussão implícita, denegada, excluída).
Esta exclusão primeira, este silêncio fundador (ou esta invisibilidade "originária") permitem a
operação retórica de torção que cria a imagem-nua do sentido do sacrifício individual (do cidadão, do
patriota, do trabalhador, do chefe de família, etc.), cuja invisibilidade se encontra legitimada pela do
princípio espiritual. Resta referir que a operação de legitimação - de articulação, ou de tradução do
político em moral e espiritual - se faz graças ao exemplo de invisibilidade do Chefe, o qual, como
vimos, constitui um elemento essencial da operação retórica que, ao mesmo tempo, afirma a não-
discutibilidade de Deus. A torção transforma-se em círculo, o fundado fundamenta o fundamento. A
invisibilidade estende-se por toda a parte, já que deve antes de mais apagar do visível a raiz do poder
real (prático) desta torção-círculo: o princípio espiritual fundamenta a Autoridade daquele (o Chefe)
que enuncia a não-discutibilidade deste princípio - princípio cuja autoridade (teórica e prática)
depende, assim, da do Chefe... Todos os seres, todos os grupos são apanhados por esta torção: não

3
do velho general republicano Norton de Matos e antigo grão-mestre da Maçonaria
antes desta ser extinta pelo regime corporativista à presidência da República em
1951.

António Pedro: homem de teatro completo

António Pedro regressado de Londres, onde como jornalista havia sido


durante os dois últimos anos da guerra a voz livre de Portugal aos microfones da
B.B.C., possuído de um espírito “diletante”, irrequietamente insatisfeito, polifacetado,
criativo em diversos domínios das artes (cerâmica, escultura, pintura e desenho) e
das letras (poesia, ensaio, romance, crítica e dramaturgia), aproveitou o clima de
aparente liberalização e pensou ensaiar um necessário rejuvenescimento do teatro e
da sua linguagem em Portugal.
Teatro, escreve ainda anos mais tarde precisamente em 1955 era coisa que
não havia10. O que existia era «alguma vergonha de o não ter, algumas tentativas
orientadas, bem e mal, no sentido de modificar essa situação»11, entre as quais
inseria as suas.
Mais de um século depois das palavras de Almeida Garrett, António Pedro
glosa as afirmações proferidas sobre teatro pelo grande escritor português do século
XIX.
Dizia Almeida Garrett:

O teatro é um grande meio de civilização, mas não prospera onde


não a há. Não têm procura os seus produtos enquanto o gosto não
forma os hábitos e com eles a necessidade. Para principiar, pois, é

se afirmam senão para afirmar a. sua exclusão, o seu silêncio. O círculo fecha-se: não há maneira de
escapar ao sistema de produção de invisibilidade e silêncio: estamos condenados a calar-nos.»

10
O Teatro e os seus problemas, Lisboa, s.d., p.10. Este pequeno ensaio de estética teatral,
o n.º 2 de “Cadernos dum amador de Teatro, foi apresentado pela primeira vez numa conferência
realizada no Clube dos Fenianos do Porto, a 24 de Maio de 1950.
11
“Falar por falar”, in Costa Barreto (org.), Estrada Larga. Antologia dos números especiais,
relativos a um lustro, do suplemento “Cultura e Arte” de “O Comércio do Porto”, vol.2, Porto, s.d., p.
371.

4
mister criar um mercado factício. (...) Depois de criar o gosto público, o
gosto público sustenta o teatro12.

Para António Pedro o texto dramático deveria ser representado sob pena de
se transformar «capricho do autor»13 e o que tivesse procura e «nascesse (apenas)
para as bibliotecas (era) uma monstruosidade semelhante à maternidade que (ajuda)
os meninos a virem a este mundo para os meter a seguir em frascos de fenol»14.
António Pedro tentou suscitar no público a necessidade de uma intensa e
renovada actividade teatral. Insatisfeito e incompreendido, não só pelos sectores
mais conservadores, como também pelos dissidentes do grupo surrealista a que
pertencia15, afastou-se da nauseabunda vida cultural lisboeta, em 1951, para o seu
exílio de Moledo do Minho, em busca de uma felicidade possível quando sobre o
cenário político português havia caído já uma «cortina de chumbo».
Os breves anos do pós guerra que pareciam trazer alguma luminosidade
depressa desapareceram16. O regime não demorou a entender que esta quietude
possuía os seus riscos. Sem ataques nem coacções externas e internas
expressivas, os reformistas dentro da situação sentem-se sem problemas para
avançar, reforçar posturas, sugerir mudanças. «Na realidade, sob a carapaça do
cinzentismo oficial, é a sucessão de Salazar que se começa pela primeira vez a

12
Um Auto de Gil Vicente, Porto, 1991, pp.7-8. Esta afirmação de Garrett é glosada também
por António Pedro, no seu ensaio O Teatro e os seus problemas, Lisboa, s.d., p. 18, n. 1, onde
escreve que o teatro é uma «arte sem a qual um povo se inferioriza».
13
O teatro e os seus problemas, Lisboa, s.d., p.34. A completar este seu pensamento, António
Pedro afirma, logo de seguida, que «só depois de encenada e representada a obra teatral se realizou.
Até aí é literatura; só a partir daí como teatro se pode considerar».
De facto, só em palco - através de um fluxo magnético que dimana do texto e une autor,
encenador, actor e espectador - o teatro potencia todas as suas virtualidades dramáticas, patéticas e
psicagógicas, uma vez que só o último elo da cadeia - o espectador - pode assimilar e interpretar
todos os signos acústicos e, sobretudo, visuais contidos no drama. A este propósito, veja-se a
‘introdução’ ao estudo “A função dramática dos metros recitativos no Filoctetes”, Humanitas 45 (1993)
17-20, especialmente p.19 e nota 7, onde se evidencia a importância da vertente espectacular
( ) na concretização do texto dramático ( ) como fenómeno artístico.
14
“Falar por falar”, in Costa Barreto (org.), op. cit., 371.
15
Sobre a actividade e produção surrealista de António Pedro, veja-se Maria de Fátima
Marinho, O Surrealismo em Portugal, Lisboa, 1987, pp. 11-121 e, sobretudo, 187-200 e 569-616; e
Maria de Fátima Lory Ferreira, «As Palavras e os Dias» de António Pedro: 1906-1966, Lisboa, 1996,
pp. 6-94. Esta autora dedica também um capítulo à actividade teatral de António Pedro (II 1950-1966:
O Teatro: ofício mágico de transposição sensível, pp. 95-128), sendo algumas destas páginas (120-
128) reservadas ao estudo comparativo da Antígona do dramaturgo português com a de Sófocles.
16
Sophia de Mello Breyner Andresen, “25 de Abril”, Obra Poética III, Lisboa, 1991, p 195.

5
discutir seriamente. Era o princípio de um longo fim, que, curiosamente, terá como
motor não tanto a ofensiva externa dos seus inimigos, mas a desagregação interna
dos seus apoiantes: na situação como na oposição, ao longo dos anos 50, é a ideia
da transição, da evolução do regime, que polarizará todas as esperanças de
mudança»17. Salazar irá apartar o cerco retomando um «certo arreganho político e
ideológico», enquanto a oposição, controlada pela polícia política e pela censura,
recuara e remetera a um silêncio defensivo – segundo Fernando Rosas18.
Todos estes factos não significam nunca para António Pedro a renúncia a
ideias ou recuo defensivo, nem tão pouco a desistência do projecto que traçara para
a renovação do teatro em Portugal, assumindo a direcção artística do seu Teatro
Experimental (TEP)19.
Também Creonte na Antígona de António Pedro pressente à medida que o
tempo flui um apartar interno dos seus apoiantes, como se verá mais à frente.
António Pedro talvez mais poeta do que artista não faz passar claramente a
mensagem surrealista na sua Antígona. Diremos até que esta «glosa nova da
tragédia de Sófocles parcas ideias foi buscar a esta corrente.

17
Fernando Rosas (coord.) et alli, História de Portugal (direcção de José Mattoso). VII: O
Estado Novo, Lisboa, 1994, 503.
18
Cf. op. cit. p.503: Na opinião dos autores deste volume, «a partir de 1949 (...), o Estado Novo
retomara o pleno controle da situação política interna. A derrota e desarticulação das oposições, no
rescaldo da crise dos anos 40, a recomposição da unidade relativa no seio do regime e os efeitos
nacionais do ambiente da “guerra fria” tinham restituído ao País a modorra cinzenta e, à superfície,
quase despolitizada de uma vida sem surpresas.
Forte de um inequívoco apoio dos aliados ocidentais não só à sua política externa, mas ao
próprio regime político - Eisenhower, já presidente dos EUA, diria que “ditaduras deste género são
necessárias em países cujas instituições políticas não são tão avançadas como as nossas” (cit. in J.
Freire Antunes, 1992, p. 20) - , o salazarismo parecia mesmo retomar certo arreganho político e
ideológico. O discurso anticomunista, corporativista, católico, nacionalista, ultramontano, reaparecia
em força na linguagem do regime na revisão constitucional aprovada, em 1951, nos congressos da
União Nacional, nas falas da Assembleia Nacional, em todo o aparente monolitismo oficial.
Para uma oposição desbaratada pela ofensiva policial de 1949, desmobilizada, dividida, quase
silenciosa. atentamente vigiada pela polícia política e pela censura, era tempo de recuo, de
defensismo: eram os “anos de chumbo” (p. 503).
19
Sobre o papel de António Pedro na formação e consolidação do Teatro Experimental do
Porto, vide Alexandre Babo, “António Pedro, um criador dramático”, in Costa Barreto (org.), op. cit.,
443-447; Maria de Fátima Lory Ferreira (Lisboa 1996) 112-119; e ainda Carlos Porto, O TEP e o
teatro em Portugal. Histórias e imagens, Porto, 1997, maxime o «segundo acto: com António Pedro»,
47-141. Quanto à importância dos grupos de teatro experimental e também universitário e
independente para a renovação estética do teatro em Portugal, veja-se Correia Alves, "Teatros
experimentais", in Costa Barreto (org.), op. cit., 437-442; Luiz Francisco Rebello, Teatro Moderno, 2."
ed., Lisboa, 1964, pp. 498-500; Carlos Porto, “Do teatro tradicional ao teatro independente”, in
António Reis (dir.), Portugal Contemporâneo, vol. V, Lisboa, 1989, 285-290; e José Oliveira Barata,
História do Teatro Português, Lisboa, 1991, 351 e 361.

6
A ânsia de busca constante pela liberdade já existia na Antígona de Sófocles.
Do neo-realismo nem sinais implícitos, quanto mais explícitos.
Apesar do retrato do poder contemporâneo de António Pedro estar ali,
presente em toda a sua dimensão na peça Antígona e sentimo-lo no pulsar das falas
de várias personagens, o dramaturgo português vai beber as suas ideias e
construções a Pirandello. Este autor italiano é, de resto, claramente citado pelo
protagonista da farsa “Desimaginação” («a verdade é uma coisa diferente para cada
um, como dizia o Pirandello»), numa evocação de que foi a primeira peça dele que
se representou em língua portuguesa: “Cosi è (se vi pare)”, que, na tradução de
Teresa Leitão de Barros, apresentada por António Ferro no seu «Teatro Novo», em
1925, se chamou, precisamente, «Uma Verdade para Cada Um» - segundo opinião
de Luiz Francisco Rebelo20.
O agora referenciado autor continua um pouco mais à frente21:
«Quatorze anos separam esta «farsa quotidiana» da peça seguinte: a
«glosa nova da tragédia de Sófocles» em 3 actos e um prólogo que seria, em
18 de Fevereiro de 1954, o segundo espectáculo do Teatro Experimental do
Porto. «Tragédia de quem se recusa a obedecer à lei em nome duma lei que é
superior aos homens» e «às circunstâncias em que os homens fazem certas
leis», «tragédia da liberdade», como no prólogo declaram os velhos do Coro, o
mito de Antígona tem sido, desde que Sófocles o pôs em cena 430 anos antes
de Cristo, o pretexto para um grande número de acções dramáticas, mais
próximas ou mais distantes do modelo grego original. À «glosa» de António
Pedro podem, creio, apontar-se três antecedentes imediatos, um estrangeiro,
dois nacionais: a Antígona de Jean Anouilh, que a companhia francesa do
«Rideau de Paris», dirigida por Marcel Herrand e Jean Marchat, representou
em Lisboa, no Teatro da Trindade, em 1946; a de António Sérgio, editada em
1930, visando um projecto cívico mais do que teatral ou, sequer, literário; e a
de Júlio Dantas, com que também naquele ano de 1946 Mariana Rey Monteiro
se estreou no Teatro Nacional, respeitadora das regras académicas como era
de prever e António Pedro não deixou de sublinhar, numa crítica a esse
espectáculo. Também ele, por sua vez, «ao fazer reviver o conflito humano e
moral dos grandes mitos clássicos, tomou lugar entre os dramaturgos
contemporâneos que têm em Giraudoux senão o melhor pelo menos o mais
conhecido representante». E à lição do autor de Não Haverá Guerra de Tróia
se manteve fiel António Pedro, pois, como também observou nessa página de
crítica, «enquanto nas mãos de Giraudoux Anfitrião e as damas de Tróia falam
por uma boca em que dificilmente se disfarça o sorriso mais agudo da ironia,
Zeus e Penélope mascaram na elegância das túnicas e das sandálias uma
humanidade que sentimos contemporânea, na peça de Júlio Dantas nenhuma
intervenção do autor transplanta de Tebas o conflito de Antígona, senão talvez
a justiça da sua moral imutável». A Antígona de António Pedro está, pois, mais
perto de Anouilh que de Júlio Dantas (aliás, o contrário é que seria de

20
Cf. op. cit. p. 21.
21
Cf. op. cit. pp. 22-23.

7
admirar...), e tem de comum com a de Sérgio a mesma condenação da tirania,
o mesmo anseio de justiça e liberdade. E, de seu, uma linguagem a um tempo
plástica e poética. dramaticamente funcional.»

Diz-nos ainda Luiz Francisco Rebello, «o poeta e o pintor que nele nunca
deixaram de habitar deram-se as mãos para construir uma sucessão de
espectáculos que marcaram uma data, quase todos eles, na história do nosso teatro
contemporâneo»22.
Porém a convergência e a completa orquestração de todas as artes num só
espectáculo conseguiu-a com a sua Antígona, uma glosa nova (em três actos e um
prólogo) da tragédia de Sófocles, escrita propositadamente para o TEP e levada à
cena do Teatro de S. João, a 18 de Fevereiro de 195423. Qual tragediógrafo da
Atenas do séc. V a.C., António Pedro, a um tempo  e
, foi o responsável não só pelo texto teatral ou
espectacular ( ), aquele que só pode ser totalmente apreendido pelo espectador
no acto de representação, como ainda pelo texto dramático ( ), o que integra
os códigos que fazem parte do capo estrito da literatura24.

Antígona, liberdade e liberdades de um "palimpsesto": tragédia


existencial de António Pedro

O fascínio por este tema do corpus sofocliano conhecido não foi casual, muito
menos inocente. Ainda que, em carta autobiográfica datada de 16 de Outubro de
1955, afirme que não é político e que «a política é a única coisa para que não [lhe]
sobra tempo»25, e considere ainda, no programa da 1.ª representação, que esta é

22
Cf. op. cit. p. 14.
23
Sobre esta representação (2.º espectáculo do TEP) e sua reposição, quase três anos depois
(7.º espectáculo, estreado em 16. 11. 1956), veja-se a notícia elaborada em Maria de Fátima Sousa e
Silva (coord.), Representações de Teatro Clássico no Portugal Contemporâneo, Lisboa, 1998, 59-62.
Nas pp. 63-70 deste volume, encontram-se inventariadas outras encenações desta glosa de António
Pedro, às quais se deve acrescentar uma outra incluída no vol. II, Lisboa 2001, pp. 65-66.
24
Para a definição destes dois conceitos ('texto teatral' e 'texto dramático') que traduzem as
duas vertentes do fenómeno teatral, que não se excluem nem se sobrepõem, vide V. M. Aguiar e
Silva, Teoria da Literatura, 8.ª ed., Coimbra, 1993, 604-624. Os termos gregos - dois dos seis
elementos que, segundo Aristóteles, constituem o teatro grego encontram-se explicados em Po. 1450
a 7-10; e 1450 b 13-19.
25
Vide pp. 18-19 do opúsculo de homenagem póstuma a António Pedro, promovida pela Embaixada de
Cabo Verde, em Julho de 1987.

8
uma «peça de amor», é iniludível o conteúdo político que a esta tragédia quis
imprimir, quando, no prólogo, fez dizer aos Velhos do Coro (pp. 260-261)26:

3.º Velho: [Esta é] a tragédia de quem se recusa a obedecer à lei em


nome duma lei que é superior aos homens.
2.º Velho: Que é superior às circunstâncias em que os homens fazem certas
leis.
1.º Velho: A tragédia da liberdade.

Da liberdade
Aproveitando a intemporal retórica de protesto e de liberdade que, no original
grego, ressalta dos conflitos que movimentam a acção27, o dramaturgo português
repetiu, inovando, fórmulas já exploradas, entre outros, por António Sérgio28, em
1930, pouco depois da instauração da ditadura, e por Jean Anouilh, em França,
aquando da ocupação 'nazi'29.
Tragédia existencial já que tal como em Sófocles também em António Pedro é
o Homem que aparece implicado e se torna o centro da atenção, encarado como ser
concreto, nas suas circunstâncias, no seu viver, nas suas aspirações totais.

26
Cf. Carlos Morais, A Antígona de António Pedro: liberdades de uma glosa, in Máscaras
Portuguesas de Antígona, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2001, pp. 85-93.
27
A fim de contextualizar politicamente a peça sofocliana, R. G. Lewis (“An Alternative Date for
Sophocles’ Antigone”, GRBS 29 (1988) 35-50) propõe uma nova data - 438 a. C. - para a sua
encenação. Desta forma, em sua opinião, poderia o público, que presenciou a representação da
tragédia, vislumbrar uma crítica velada ao facto de, após a Guerra de Samos, os soldados do inimigo
terem ficado insepultos, tal como acontecera a Polinices e aos seus homens.
Também V. Ehrenberg (Sophocles and Pericles, Oxford, 1954, pp. 105 ss. e 173 ss., encontra,
na peça, alusões a Péricles e à sua conduta política, no que é contestado por J. C. Kamerbeek (The
Plays of Sophocles. 1II: Antigone, Leiden, 1978, p. 6 e p. 39.
28
Antígona, Porto, 1930. Nesta peça que ficou para o "fenol das bibliotecas" (não temos notícia
da sua representação), António Sérgio, a viver os primórdios da ditadura, actualizou politicamente o
tema sofocliano, quando, e.g., pôs na boca de Antígona estas palavras: a subserviência do grande
número é que torna possível o despotismo. Tens os censores; tens as masmorras; tens espiões. Só
se pode dizer o que bem te apraz (p. 55). Cf. o estudo de Carlos Morais “A Antígona de António
Sérgio: 'um estudo social em forma dialogada”, pp. 13-38 (com ligeiras alterações, este ensaio
reproduz o que foi publicado em Ágora 3, 2001, pp. 111-138.)
29
Antigone, Paris, 1942. Nesta tragédia, levada à cena pela primeira vez no Théâtre de l’
Atelier, Antígona, ao rebelar-se contra o poder despótico e arbitrário de Creonte com um repetido e
decidido “non”, interpretava o pulsar da resistência francesa. Entre nós, esta “pièce noire” de Anouilh
foi por diversas vezes representada, durante a ditadura, ora a partir do original francês ora da
tradução portuguesa de Manuel Breda Simões. Cf. Maria de Fátima Sousa e Silva (coord.), op. cit,
vol. I: 45-53; vol. II: 48-54.
Para uma visão de conjunto do tratamento do tema de Antígona nas literaturas ocidentais, nas
suas mais variadas vertentes, entre as quais a política, vide Simone Fraisse, Le mythe d' Antigone,
Paris, 1974 e George Steiner, Antígonas (trad. port.: Lisboa, 1995).

9
Centrado nos problemas do Homem o existencialismo penetra nas suas angústias e
preocupações, nas suas emoções interiores, nas suas ânsias e satisfações – termos
especialmente aptos para um desenvolvimento literário.
Chocantes e de grandes proporções foram os efeitos da Primeira Guerra
Mundial, catastroficamente corroborados pelos do Segundo conflito mundial, devido
aos quais o Homem aparece aviltado, vivendo a inquietação angustiosa de uma
perdição ainda maior e lutando, ao mesmo tempo, pela busca de uma solução
apaziguante, por vezes de ordem sobrenatural30. Esta valorização do Homem, bem
como a importância atribuída à liberdade é algo que atravessa, quer a Antígona de
Anouilh, quer a de António Pedro e que está presente ao longo das duas peças.
Para os existencialistas, sábio é aquele que tudo faz bem, que nunca vive no
erro, que possui as quatro virtudes cardeais: - prudência, justiça, fortaleza e
temperança. Assim deveriam agir os homens.
Vejamos como foi tratada a temática implicitamente político-existencial, no
original do trágico grego: H. D. F. Kitto formula e responde ao mesmo tempo, a
várias questões sobre a Antígona de Sófocles: será um drama político (o Estado nas
relações com a consciência do indivíduo), ou um drama religioso, ou uma tragédia
de caracteres, no sentido aristotélico?31. O crítico inglês acaba por admitir a fusão do
duplo elemento ético-psicológico, que para Sófocles não se distinguiam32. Não nos
esqueçamos que para os Gregos todo e qualquer cidadão pertencia a uma polis,
logo era político no sentido etimológico do termo.
Não se pode, deste modo, silenciar o aspecto político do drama33. Sófocles,
contemporâneo e amigo de Péricles, tinha como este uma visão democrática do
governo, tal como o português António Pedro em pleno século XX. Sófocles já no
Rei Édipo frisara que de nada vale governar uma cidade, vazia de cidadãos. Aqui, o
despotismo do tirano Creonte não pode causar mais viva repulsa. Hémon, filho do

30
Cf. Pio XII na Enc. Humanis generis (12/08/1950).
31
H.D.F. Kitto, Form and meaning in drama, 2.ª ed., London, 1964, p. 138.
32
Id. Ibid., p. 176.
33
Sobre o tema da tragédia Antígona de Sófocles filósofos e especialistas da tragédia grega
têm debatido o assunto, sem que haja sido possível que uma solução se sobreponha a todas as
restantes.
Sobre este assunto cf. Sófocles, Antígona, tradução e notas de Maria Helena da Rocha
Pereira, Lisboa, I.N.I.C., 1984, pp.26-30.

10
tirano, mas de concepções democráticas, faz ver ao pai que o dever deste é
consultar e ouvir o povo. Diz-lhe expressamente, na Antígona que «não há estado
algum que pertença a um só homem». Esta é a ideia política que António Pedro faz
também ele passar na sua Antígona. Tal como no Rei Édipo, quer no trágico grego,
quer em António Pedro, também aqui se repisa a ideia de governar «uma cidade
deserta». É. portanto, lícito afirmar que na tragédia Antígona se fundem não só
elementos éticos e psicológicos, mas também elementos políticos, existenciais, além
dos dramáticos, comuns a qualquer peça de Sófocles. O mesmo acontece na peça
de António Pedro.
O elemento psicológico do amor fraterno e o elemento religioso de obediência
ao imperativo das leis divinas estão bem sublinhados na decisão e coragem
ultrafemininas, de que Antígona dá prova heróica: «Faz como quiseres - diz a sua
irmã Ismena - a ele sepultá-lo-ei eu. É uma glória para mim morrer cumprindo tal
dever.»

Em tempos de cinzentismo e de modorra acomodatícia, intentava António


Pedro, com este 2.° espectáculo do TEP, agitar a consciência crítica e o
empenhamento cívico dos espectadores que comparticipavam naquele «milagre da
transposição de toda a obra de arte» - assim é definido o teatro pelo Encenador -,
em que «os poetas falam pela nossa boca, que é a dos actores, uma linguagem que
nos serve, e a esses sentimentos, melhor que a nossa própria voz». Uma
«convenção admirável» que consente que passemos «a viver outra vida, que é a da
poesia, em que a nossa se esclarece e se ilumina» (pp. 257-258)34.
Tal como na tragédia sofocliana, - diz-nos Carlos Morais35, «Creonte surge com
os contornos nítidos de um tirano36 que arbitrariamente se arroga o direito, como

34
Poucos anos antes, em O Teatro e a sua Verdade, uma conferência proferida no Instituto
Superior Técnico de Lisboa, a 31 de Março de 1950, e publicada depois em “Cadernos dum Amador
de Teatro”, n.º 1 (Lisboa s.d.), António Pedro definira teatro como «um ofício mágico de transposição
sensível» (p. 14), «uma transposição da realidade realizada por meios convencionais aceites em
frente dum público» (p. 18). A este propósito, vide ainda, do autor, o Pequeno Tratado de Encenação,
Porto, 1962, 37.
35
Cf. op. cit. p. 93.
36
Fátima Alexandra Lory Ferreira, na sua dissertação de Mestrado «As Palavras e os Dias» de
António Pedro: 1906-1966, Lisboa, 1996, p. 125, a propósito do tratamento assunto da tirania em
António Pedro, diz-nos o seguinte: «A colectividade (a sociedade, ou o Estado, isto é, o Todo) tende a
esquecer o indivíduo (o cidadão, isto é, a Parte), apesar de se constituir a partir dele. E desta relação
pode nascer a tirania quando se assume que o conjunto é mais do que a totalidade das partes e se

11
afirma Antígona, de «falar quando [lhe] apetece e não deixar nunca falar quem tem
argumentos para [lhe] opor» (p. 296 - vv. 506-507)37. Por todo o lado vislumbra
traidores que se corrompem por dinheiro (p. 277 - vv. 221-222) e murmuram contra
si, nas «alfurjas da cidade» (p. 283). Conspirações várias que entrevê implícitas nas
palavras do Coro, quando este sugere ter sido obra dos deuses a parcial inumação
de Polinices (pp. 282-283 - vv. 280-314), no olhar de Isménia que traz a «marca da
conivência» (p. 296 - vv. 489-492) e nos augúrios de Tirésias, que considera
desonestos e cúpidos (pp. 317-318 - vv. 1033--1047). Porque teme, infunde, em sua
defesa, o temor entre os cidadãos. Assim, para impedir que afrontem as suas ordens
e transgridam o édito (p. 277 - vv. 215-217), povoa a cidade de uma polícia
subserviente que, como afirma um dos Velhos do Coro, não precisava de ser
inteligente, mas apenas «[má] como as ratoeiras» (p. 290).»
Apesar de se definir como protector da polis e pôr as causas da comunidade
acima de tudo, o divórcio entre o seu poder e os cidadãos é total38. Faz coincidir e
confunde a justiça e a lei da cidade com a sua própria vontade, firmando-se autista e
despótico39. Insensível, surdo e até cruel às críticas que, em surdina, se escutam por
todo o lado, cai na injustiça, como assevera Hémon, «pela cegueira de ter razão» (p.
311). Inflexível, obstinado e teimosamente altivo, permanece na convicção de lograr
a verdade absoluta:

esquece que é mais precisamente graças às partes. Nas duas Antigonas, o conflito estabelece-se
quando apenas uma Parte decide contrariar o Todo (simbolizado na figura de Creonte), acusando-o
de pretender controlar as vontades próprias de todos os cidadãos, o que é apenas possível pela
força.

“Um dos direitos do tirano é falar quando lhes apetece e não


deixar nunca falar quem tem argumentos para lhes opor.”
António Pedro, Antígona, p. 296.
37
Será este o critério que utilizaremos, sempre que confrontarmos passos da Antígona de A.
Pedro com a de Sófocles: o número de página remete para a obra portuguesa e o dos versos para a
tragédia grega, significando o sinal [~] “corresponde a”.
38
Este exercício distante e autoritário do poder - intemporal, porque típico de qualquer tirano -
já se encontrava na Antígona de Sófocles. Sobre esta matéria, veja-se o estudo de Jorge Deserto,
“Creonte e o exercício do poder”, Revista da Faculdade de Letras do Porto - Línguas e Literaturas 14,
1997, pp. 467-486.
39
Dirigindo-se ao soldado que trouxera a notícia da inumação de Polinices, ou seja, da
transgressão do ‘seu’ édito, Creonte vocifera: Com culpa provada ou sem culpa provada tem que
haver um culpado tem que haver muitos culpados no crime de desobediência que acaba de cometer-
se. Se não houver um culpado sereis vós que tendes culpa! (..) Sereis todos enforcados se. até hoje
ao anoitecer. não trouxerdes à presença da minha justiça quem se atreveu a desrespeitar a minha lei
(p. 283).

12
Creonte: Nada me fará mudar os decretos que publiquei. (...) Sei que
estou na verdade (pp. 318-319).

Do outro lado deste poder estão Isménia e Antígona, «os dois modos de sofrer
a tirania» (p. 261) e de viver a inexistência de liberdade40. A primeira representa o
pensamento e o comportamento da generalidade dos cidadãos que, apesar de não
concordarem com este iníquo e despótico exercício do poder, por receio, se
adaptam ao cinzentismo acrítico, renunciando à acareação e à contestação. Isménia
julga um acto de desvario forçar o fatum que apenas lhes reservou «amargura e
angústia» (p. 270) e arrostar uma acção que excede as suas míseras forças de
mulher (p. 272 ~ vv. 61-62). Já para Antígona, a sua condição feminina não constitui
obstáculo. Em obediência ao ver e à consciência (pp. 270, 292 e 294), toma, logo no
princípio, o pleito e eleva-o ao limite extremo do quimérico. Conforme acerbamente
aclama, «só o impossível é que vale a pena» (p. 271 ~ vv. 90-92), pelo que
considera ser preferível «morrer em fé» (p. 272 ~ v. 97), ou seja, na defesa convicta
de princípios universais e justos, a que ninguém pode anular a validade (p. 293 ~ vv.
453-457), «do que vegetar na desesperança» (p. 272); medo não faz parte do seu
vocabulário. Receio, para si, é desonra (p. 297). Por isso, inflexível e dura como o
pai (p. 295 ~ vv. 471-472), segura no poder da razão (pp. 295 e 296), com a qual,
em probidade, está o povo de Tebas 296), Antígona, sem vacilar, e numa dialéctica
entre a intimidade e o empenhamento, rebela-se simultaneamente contra o medo de
Isménia e do que a representa e contra a ordem injusta e prepotente de Creonte. E,
já no zénite da peleja, imperturbável e abnegadamente, sacrifica-se (sem ódio,
porque nasceu para o amor41) pelos valores em que acredita42. Era o único caminho

40
Não incluímos Hémon neste triângulo conflituoso, por considerarmos que ele, só depois de
saber da sorte de Antígona, se associa à causa por ela defendida. Só então, mais por amor do que
por convicção, o jovem define, perante o pai, a sua posição no conflito, fazendo sua a "culpa" da
amada: Esse amor não me cega. Ilumina. Se Antígona pecou por honrar a memória dos seus, eu
peco pela mesma culpa! (p. 311). Nesta altura, adquirem significação plena as palavras proferidas no
prólogo pelo Encenador, segundo as quais o jovem Príncipe simbolizava «a justiça pelo amor» (p.
261).
No original grego, Hémon, nunca declarando abertamente o seu amor por Antígona, procura
sempre falar em nome da razão (cf. vv. 683-757). Acaba, no entanto, por se trair, no preciso momento
em que sai desvairado de cena, dizendo que jamais aceitará assistir à morte de Antígona (cf. vv. 762-
765).
41
Cf. p. 298 ~ v. 523.
42
Cf. Carlos Morais op. cit., pp. 92-93.

13
que enxergava para poder alcançar, sem concessões, a sua liberdade:

Antígona: Manda que os teus carrascos exerçam sobre o meu


corpo as sevícias que não podes contra a razão que me assiste! (p.
296).

António Pedro, sob a "máscara grega" aproveita, na tragédia de Sófoc1es, a


frase proferida por Antígona – “A tirania é feliz por muitas razões e, entre elas,
porque pode fazer e dizer o que mais lhe agrada.” (p. 38) - para questionar a
liberdade dos indivíduos: até que ponto o sujeito é, de facto, livre para se poder
revelar? Até onde é que o conjunto dos cidadãos lhe permite ser único (ser um)?43

Em Sófocles, a postura de Antígona exprimia acima de tudo a sua coragem

em requestar o Rei da cidade; em António Pedro, a questão pode ser alargada ao

contexto político nacional, que rejeitava a possibilidade de dissonância. Neste caso,

a afirmação de Antígona apresenta-se como uma prova para repor a equipendência:

o conjunto é preciso, mas, se for justo, não pode sufocar os direitos do cidadão em

nome de um Estado autoritário. As duas peças colocam a justiça acima de todos os

valores: em Sófocles, Hémon pugna verbalmente com o pai, uma vez que ele não

observou a justiça, em António Pedro, Hémon protesta que

Não é do coração que se trata, é da justiça. E há muitos modos


de se raciocinar até chegar a ela. (p. 310).

Quando Antígona desrespeita Creonte para obedecer aos deuses, corrige a

injustiça decretada sem outra razão que a da mera soberba e fereza do Rei. Ao dar

sepultura ao irmão, repõe o equilíbrio, honrando outras leis, acima das dos homens.

Desta forma, envolvemo-nos em outras duas dicotomias: mundo dos mortos! mundo

dos vivos e homens/deuses:

[as leis que Antígona seguiu são] Não escritas. [...] Nem de ontem
nem de hoje. De sempre. Não se lhes sabe a data nem se lhes conhece
a origem mas elas permanecem, permanecerão enquanto o homem for
homem, e não é do poder de ninguém anular-lhes a validade. (p. 293).

43
Fátima Alexandra Lory Ferreira, op. cit. p. 125.

14
Sob a “máscara grega” ocultava, assim, António Pedro um abafado grito de
revolta contra o totalitarismo do Estado Novo e expressava subrepticiamente um
ansiado desejo de justiça e de liberdade. Com a "máscara grega" ludibriava a
apertada vigilância de uma, muitas vezes, arbitrária censura de uma polícia política,
tal como a da peça, «[má] como as ratoeiras» (p. 290). Por momentos, o espectador,
através de uma admirável convenção ; “encantatória”, passava a viver uma outra
vida - a da poesia - em que a sua ; esclarecia e se iluminava (p. 258).
De novo, a luz. Um fugaz fio de luz a recortar a longa e silenciosa noite...

Liberdades de uma glosa, na edificação livre e reiterada de uma «tragédia da


liberdade», num período de coibição e de mordaça. “Eles” eram néscios... que
“máscara grega”, como diria António Gedeão, era sonho, o sonho que comanda a
vida e «que sempre um homem sonha o mundo pula e avança»44.
Vinte anos antes do 25 de Abril de 1974, António Pedro e todos os que com
ele cumplicemente quinhoaram na representação da glosa nova da Antígona de
Sófocles sentiram, então, por espaços, a ideia do...
dia inicial inteiro e limpo
onde emergimos da noite e do silêncio
e livres habitamos a substância do tempo45.

A polis continua a erguer-se como mediadora entre o indivíduo e o mundo»,


como «ponto de partida e de chegada da poesia sofocliana»46.
Revivamos a liberdade, potência especialmente valorizante, existencial, dessa
polis antiga como potência valorizante de um sonho tão vetusto, tão helénico e tão
actual... na Antígona de António Pedro.

44
António Gedeão, Poemas escolhidos , Lisboa, 1996, pp. 14-16.
45
Sophia de Mello Breyner Andresen, “25 de Abril”, Obra Poética III, Lisboa, 1995, p. 195.
46
Sófocles, Antígona , tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira, Lisboa, I.N.I.C., 1984, p. 28

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jorge Deserto, “Creonte e o exercício do poder”, Revista da Faculdade de


Letras do Porto - Línguas e Literaturas 14, 1997, pp. 467-486.

Carlos Morais, A Antígona de António Pedro: liberdades de uma glosa, in


Máscaras Portuguesas de Antígona, Universidade de Aveiro, Aveiro, 2001, pp. 85-
100.

António Pedro, Teatro Completo, Lisboa, I.N.C.M., 1981, pp. 255-330.

V. M. Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 8.ª ed., Coimbra, 1993.

Sófocles, Antígona, tradução e notas de Maria Helena da Rocha Pereira,


Lisboa, I.N.I.C., 1984, pp. 26-30.

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