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Revista

de
Informação
Legislativa
Brasília • ano 41 • nº 162
abril/junho – 2004

ESTUDOS EM HOMENAGEM
A ANNA MARIA VILLELA

Organização
Jorge Fontoura
Revista
de
Informação
Legislativa
FUNDADORES
Senador Auro Moura Andrade
Presidente do Senado Federal – 1961-1967
Isaac Brown
Secretário-Geral da Presidência – 1946-1967
Leyla Castello Branco Rangel
Diretora – 1964-1988

ISSN 0034-835x
Publicação trimestral da
Subsecretaria de Edições Técnicas
Senado Federal, Via N-2, Unidade de Apoio III, Praça dos Três Poderes
CEP: 70.165-900 – Brasília, DF. Telefones: (61) 311-3575, 311-3576 e 311-3579
Fax: (61) 311-4258. E-Mail: ssetec@senado.gov.br

DIRETOR: Raimundo Pontes Cunha Neto


REVISÃO: Cláudia Moema de Medeiros Lemos e Angelina Almeida Silva
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA: Anderson Gonçalves de Oliveira e Angelina Almeida Silva
CAPA: Renzo Viggiano
IMPRESSÃO: Secretaria Especial de Editoração e Publicações

© Todos os direitos reservados. A reprodução ou tradução de qualquer parte


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Pídese canje.
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Revista de Informação Legislativa / Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. -


- Ano 1, n. 1 ( mar. 1964 ) – . - - Brasília: Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas, 1964– .
v.
Trimestral.
Ano 1-3, nº 1-10, publ. pelo Serviço de Informação Legislativa; ano 3-9, nº
11-33, publ. pela Diretoria de Informação Legislativa; ano 9- , nº 34- , publ. pela
Subsecretaria de Edições Técnicas.
1. Direito — Periódico. I. Brasil. Congresso. Senado Federal, Subsecretaria
de Edições Técnicas.
CDD 340.05
CDU 34(05)
{entra foto da homenageada}
O COMPARATISMO JURÍDICO E A INTELIGÊNCIA DO DIREITO
NA OBRA DE ANNA MARIA VILLELA

A era do mercado proporciona ao Direito Comparado formidável espaço de evocação e


reafirmação. Como esforço de construção de um sentido universal para as Ciências Jurídicas, o
comparatismo valoriza-se sobremaneira em seu tríplice mister de aproximar para conhecer, conhe-
cer para cotejar e cotejar para aperfeiçoar.
A notória exaustão dos estudos positivistas, em um mundo minimizado pela tecnologia e
pela instantaneidade da informação, leva à esterilidade do estudo bastante em si dos ordenamen-
tos jurídicos nacionais. A profusão de novas órbitas de jurisdição, dos direitos comunitários às
formas alternativas de solução de controvérsias, dos fóruns multilaterais jurídicos, mas não judi-
ciários, como o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, ou as instâncias arbitrais privadas,
como o Tribunal Arbitral da Câmara de Comércio de Paris, tudo isso compõe o marco jurídico em
que modernamente nos devemos mover.
As relações desses planos aparentemente distantes, em inusitadas possibilidades de inte-
rações tangentes e secantes de conflitos normativos, projetam e valorizam o Direito Comparado.
Curiosamente, não vem da área jurídica a lição que parece melhor exprimir a importância da percep-
ção comparatista. André Malraux, usando a perspectiva da arte, ensinou, também com proveito
para o estudo jurídico, que: [...] nous ne pouvons sentir que pour comparaison. Quiconque
connaît Andromaque ou Phèdre sentira mieux ce qu’est le génie français en lisant le Songe
d’une Nuit d’Eté qu’en lisant toutes les autres tragédies de Racine. Le génie grec sera mieux
compris par l’opposition d’une statue grecque à une statue égyptienne ou asiatique, que par la
connaissance de cent statues grecques.
O mundo em que viveram os glosadores da Escola de Bologna, que criaram o comparatismo
jurídico, era locus de necessidades novas – a Itália politicamente fragmentada do começo da Idade
Moderna –, mas que se integrava em comércio, e, logo, em demandas que iam além dos limites
geográficos das ricas cidades mercadoras. A pós-moderna “praça do mundo” guarda muitas seme-
lhanças com tal período, compartilhando necessidades similares de comunicação e interação jurídica.
Para o Direito Ocidental, a Revolução Comercial significou não apenas o nascedouro do
Direito Comparado, mas o advento do próprio Direito Comercial. Da mesma sorte, verificamos à
nossa volta o surgimento e a afirmação dos Direitos integrados, como o inusitado Direito Comuni-
tário Europeu e, mesmo, o Direito do Comércio Internacional, com sua plêiade de novidades. Desde
sempre, a vida precede ao Direito, na multiplicidade de desafios e na renovação de demandas.
Hoje, constatamos estar irremediavelmente esgotada a herança jurídica que recebemos da
sociedade industrial. A variedade das regras de Direito substancial, em face da internacionalização
do Direito, reclama novos paradigmas que estejam mais além das meras respostas estatais ou do
“tratamento nacional”. O caráter obsoleto e mesmo a inutilidade do nacionalismo ou estatismo
jurídico demonstram a ineficiência das abordagens ideológicas, de soluções unilaterais power
oriented, impositivas e inegociáveis; do encastelamento dos Estados em razões não deduzíveis
no senso geral de justiça, como a legislação de normas com pretenso alcance extraterritorial, ou de
sentido discriminatório, que vez por outra se chega a aventar.
Tida como disciplina jurídica tão elitista como desnecessária, o Direito Comparado foi, em
nosso meio, isolado em academicismo estéril e alheio à realidade cultural de uma Nação jovem e
continental, carente de horizontes mais amplos. Não ou mal ensinado na universidade, maltratado
em doutrina, pouco exercitado na jurisprudência, o Direito Comparado refletiu, in absentia, o
rígido dualismo positivista que sempre nos conformou.
Ao justificar seu artigo denominado O Direito Comparado como Fonte do Sistema Jurídi-
co Brasileiro – in Notícia do Direito Brasileiro, p. 41, 1976 –, Anna Maria Villela constatava o
abandono da disciplina no Brasil, ao afirmar que ela se destinava aos vários Institutos de Direito
Comparado que, no mundo inteiro, se preocupavam em manter vivo o gosto e o interesse pelo
estudo dos sistemas jurídicos estrangeiros. E prosseguia: [...] é por isso que achamos interessan-
te apresentar a esses juriscomparatistas, que nos queiram ler, e que usam do Direito Comparado
com finalidade de erudição ou de reformulação dos respectivos sistemas jurídicos nacionais, o
papel que, entre nós, foi reservado à ciência ou método que cultivamos desinteressadamente.
O conhecimento dos mundos estrangeiros tem sido para a cultura jurídica um grande
desafio em toda a América Latina. Nosso aislamiento continental pode ser contabilizado em
imensos prejuízos que refluem sobre todos, sem distinção de classes, a gerar a visão limitada do
nacionalismo exacerbado. Cegamente avesso ao estrangeiro, tal nacionalismo precisaria retempe-
rar-se, tomando em conta a lição de Henri Batiffol: [...] L’ aversion pour ce qui est étranger est un
sentiment en un sens naturel: selon une formule thomiste célèbre, on n’aime que ce qu’on con-
nait – in Droit Internacional Prive, 5ème Édition, Librairie General de Droit et Jurisprudence,
Paris, 1970, p.8.
Precocemente falecida, Anna Maria Villela deixou obra jurídica de grande riqueza e densida-
de, marcada pelo firme propósito de não se limitar às fronteiras. Foi sempre além. Transgrediu e
trouxe prismas inusitados ao estudo do Direito, com o estro ilimitado e pelas possibilidades infini-
tas que só o comparatismo jurídico pode proporcionar. Desconheceu a summa divisio, elaborando
suas idéias com substância e propriedade, tanto em temas de Direito Público como em temas de
Direito Privado. Da Transmition d’Héredité en Droit Brésilien et Français, sua tese de doutora-
mento na França – publicada pela Librairies Techniques de la Cour de Cassations, Paris, 1971, – ao
estudo dos rios internacionais e seus regimes jurídicos, ou o Direito das Sucessões, ou os contratos
de compra e venda internacional, ou o Tratado da Bacia do Prata, foi publicista e privatista indistin-
tamente, mas sempre internacionalista, bem ao sabor da cultura jurídica franco-italiana, onde costu-
mava transitar com facilidade, abstraindo os Alpes, como se não houvera o Mont Blanc.
O tributo que prestamos à eminente doutrinadora, na forma do presente Liber Amicorum,
provavelmente não contaria com o entusiasmo da homenageada. Recôndita e discreta, avessa às
manifestações elogiosas, seguramente, em vida, procuraria eximir-se das luzes que sobre ela,
agora, seus colegas de magistério, ex-alunos e amigos de sempre querem projetar.
Por mais de duas décadas, foi professora titular na Universidade de Brasília, no Curso de
Preparação à Carreira de Diplomata do Instituto Rio Branco e, por concurso de provas e títulos,
onde obteve a primeira classificação, Consultora Legislativa do Senado Federal. Bacharel em
Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, na turma de 1960, obteve, entre outros títulos
importantes, o Diplôme d’Études Superieur, DES, em Direito Privado, em 1963, em Ciências Crimi-
nais, em 1969, e, em 1970, o Doctorat d’État, em Direito Privado, sempre na Universidade de Paris.
Realizou, ademais, cursos de Direito Comparado em Estrasburgo, Helsinque, Lubiana, Trieste,
Pescara, Teerã e Istambul. Trabalhou também no Instituto de Direito Romano da Universidade de
Roma, na Universidade Livre de Bruxelas e no Instituto Universitário Internacional de Luxembur-
go. Como delegada brasileira, esteve presente na IV CEDIP, Conferência Especializada Interameri-
cana de Direito Internacional Privado, da OEA, em Montevidéu, em 1989.
Com particular significado para a presente homenagem , Anna Maria Villela possui em sua
biografia o importante fato de ter dirigido a Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal,
do segundo semestre de 1988 ao primeiro trimestre de 1993. Entre outras tarefas, incumbia-lhe a
publicação desta prestigiosa Revista de Informação Legislativa, que comemora, com a presente
edição especial, no 162, quarenta anos de ininterrupta existência.
Na lembrança da Embaixadora Maria Tereza Quintella, que dirigiu o Curso de Formação à
Carreira de Diplomata, do Instituto Rio Branco, Anna Maria, em seu ciclo de ensino diplomático, foi
scholar cosmopolita e perfeccionista, devotada ao aperfeiçoamento cultural de seus alunos. Eru-
dita e simples, afável e circunspecta, durante os longos anos em que ali regeu a disciplina de
Direito Internacional Privado, forjou imenso legado, sob a reverência devida a proverbial cultura e
conduta exemplar.
Francisco Rezek evoca, em singelo depoimento, a indefectível mineiridade de Anna Maria:
As primeiras lembranças, das muitas que me ficaram dela, são de Paris, onde ela vivia no Foyer
International des Etudiantes, Boulevard Saint Michel, naquele ano alucinante de 1968. Para
mim, que chegava à Universidade, ela, já num ponto avançado de seu doutorado, era a palavra
segura e o conselho prudente. Anna Maria era, ao alcance permanente dos olhos, a imagem
criada um dia por nosso poeta maior: o próprio espírito de Minas, lançando sobre as incertezas
de meu exílio o claro raio ordenador. O mesmo que desde então, e até que ela nos fosse tirada à
traição pelo destino, projetaria, sobre tantos, tanta luz.
Na Universidade de Brasília, da mesma forma, foi professora presente e dedicada, desde os
tempos heróicos da criação de novos cursos, tendo promovido, por intermédio de seu empenho
pessoal, a vinda de docentes que iriam marcar a vida jurídica brasileira. Desse áureo período,
lembra Carlos Henrique Cardim: Anna Maria ensinava pelo exemplo. Sem palavras, mostrava, com
seu trabalho, o proveitoso caminho da dedicação, e o falso atalho da improvisação. Com fino
senso de humor, ganhava vida nela o conselho de Chaucer: Aprende alegre e ensina com alegria.
Como Assessora Legislativa e depois Consultora Legislativa do Senado Federal, atuou na
área de Direito Internacional e relações exteriores, sempre prodigiosa e disponível. Na referência
de Sérgio F. P. de O. Penna, Consultor-Geral Legislativo, a humildade intelectual de Anna Maria
fazia com que ela conseguisse manifestar a propriedade de seu pensamento, sem melindrar a
susceptibilidade de seus pares. Talvez residisse nessa facilidade de argumentação a grande virtu-
de da colega, sempre presente como jurista, como conselheira e, acima de tudo, como amiga.
Todos os participantes da presente edição coletiva foram pessoas presentes na vida da
homenageada, ex-alunos ou colegas, na Universidade de Brasília, no Instituto Rio Branco ou no
Senado Federal. Merece destaque a republicação do expressivo prefácio que René David escreveu
para o livro publicado por Anna Maria na França, em 1971. Um dos mais fulgurantes juristas
europeus do século XX, o autor da lapidar obra Les Grands Sistèmes de Droit Contemporain foi
seu professor dileto e orientador de doutoramento de Estado, na Universidade de Paris, Panthé-
on-Sorbonne, obtido com méritos inigualáveis, prenúncio da memorável carreira que iria trilhar em
sua volta ao Brasil.
Nossos agradecimentos ao Senador José Sarney, Presidente do Congresso Nacional, ao
Primeiro-Secretário do Senado Federal, Senador Romeu Tuma, à sua Diretoria-Geral, na pessoa do
Dr. Agaciel da Silva Maia, à UNILEGIS, ao Centro de Estudos de Direito Internacional, CEDI, à
Universidade de Brasília – UnB e seu reitor, Professor Doutor Lauro Morhy, ao Instituto Rio
Branco, IRBr, do Ministério de Relações Exteriores, e ao Conselho Federal da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil pela inexcedível compreensão e colaboração para que realizássemos a presente
homenagem.
A ocasião de honrar a edificante memória de Anna Maria Villela, por meio da obra solidária
que agora publicamos, é motivo de júbilo para todos nós.

Jorge Fontoura
BIBLIOGRAFIA DE ANNA MARIA VILLELA

VILLELA, Ana Maria. A unificação do direito na América Latina: direito uniforme e direito interna-
cional privado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 21, n. 83, p. 5-26, jul./set. 1984.
______. A usucapião especial no Brasil ou descaracterização de um instituto jurídico romano?
Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 22, n. 85, p. 291-306, jan./mar. 1985.
______. Direito das coisas. Notícia do Direito Brasileiro, Brasília, p. 167-184, 1970.
______. Direito romano e sistema jurídico latino-americano. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, v. 18, n. 70, p. 115-124, abr./jun. 1981.
______. L’unification du droit international privé en amerique latine. Revue Critique de Droit
International Privé, Paris, v. 73, n. 2, p. 233-265, avril/juil., 1984.
______. La transmission d’hérédité: en droit brésilien et en droit français. Préface de R. David.
Paris: Techniques, 1971. 102 p.
______. Le droit international privé brésilien et la question du divorce. Revue Critique de Droit
International Privé, Paris, v. 69, n. 2, p. 231-278, avril/juin 1980.
______. O direito comparado como fonte do sistema jurídico brasileiro. Notícia do Direito Brasi-
leiro, Brasília, p. 41-50, 1972.
______. O direito das sucessões e o projeto e o projeto do código civil. Revista do Advogado, São
Paulo, n. 19, p. 46-53, out. 1985.
______. O direito internacional privado na constituição brasileira. Notícia do Direito Brasileiro,
Brasília, p. 233-239, 1971.
______. O direito romano e a unificação das normas jurídicas relativas aos contratos de compra e
venda internacionais de mercadorias. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 18, n. 72, p.
135-160, out./dez. 1981.
______. O divórcio no direito internacional privado brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1980. 88 p.
______. O mercado comum europeu e as concentrações de empresas. Documentação e Atualida-
de Política, Brasília, n. 1, p. 54-56, out./dez. 1976.
______. O tratado da Bacia do Prata. Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 21, n. 81, p.
147-176, jan./mar. 1984. Suplemento especial – Integração na América Latina.
______. Os princípios jurídicos e a utilização dos rios internacionais. Relações Internacionais,
Brasília, v. 1, n. 1, p. 60-73, jan./abr. 1978.
______. Processo legislativo, normas constitucionais e regimentais. Brasília: Senado Federal,
1992. 414 p.
______. Um privilégio de nacionalidade: o direito internacional privado na constituição brasileira.
Revista de Informação Legislativa, Brasília, v. 17, n. 65, p. 131-146, jan./mar. 1980.
Revista
de
Informação
Legislativa
Brasília · ano 41 · nº 162 · abril/junho · 2004

René David Préface (republicação de prefácio a livro de Anna Maria


Villela de 1971) 13
Alessandro Candeas Direito comparado – entre a norma e a cultura. A contribui-
ção de Anna Maria Villela no Instituto Rio-Branco 15
Carlos Eduardo Caputo Bastos e O adensamento jurídico do Mercosul e o Protocolo de
Jorge Fontoura Olivos 19
Carlos Fernando Mathias de Souza A responsabilidade penal das pessoas jurídicas 25
Carlos Henrique Cardim Norberto Bobbio, professor de clássicos 31
Carlos Mário da S. Velloso Os tratados na jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal 35
Celso de Tarso Pereira Entre a apologia e a utopia: em busca da ética possível 47
Celso Lafer Parecer. O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da
prática do racismo 53
Claudia Lima Marques O Direito Internacional Privado solucionando ‘conflitos
de cultura’: os divórcios no Japão e seu reconhecimento
no Brasil 91
Estevão C. de Rezende Martins A prática jurídica ocidental. A inteligência e a voz 115
Francisco Rezek Parlamento e tratados: o modelo constitucional do
Brasil 121
Gilmar Ferreira Mendes O papel do Senado Federal no controle de constituciona-
lidade: um caso clássico de mutação constitucional 149
Guido Fernando S. Soares Os Direitos Humanos e a proteção dos estrangeiros 169
Inocêncio Mártires Coelho O novo Código Civil e seu ‘completamento’ pela jurispru-
dência 205
José Carlos Brandi Aleixo Anna Maria Villela e Pedro Aleixo: um depoimento 217
José Flávio Sombra Saraiva Sociedade nacional e relações internacionais: um novo
ensaio cooperativo argentino-brasileiro 221
José Theodoro Mascarenhas Menck Em direção a uma constituição européia 229
Luiz Edson Fachin Le juriste de demain et la connaissance du code civil 235
Luiz Fernando Coelho O renascimento do direito comparado 247
Luiz Olavo Baptista A interpretação e aplicação das regras da OMC nos
primeiros anos 265
Marcio P. P. Garcia Responsabilidade internacional do Estado: atuação da
CDI 273
Maristela Basso A proteção da propriedade intelectual e o direito inter-
nacional atual 287
Mirtô Fraga A obrigatoriedade do tratado na ordem interna 311
Pierangelo Catalano Princípios jurídicos e esperança de uma futura “autori-
dade pública universal” 329
Roberto Rosas Venda do ascendente ao descendente. A revogação da
Súmula 494 do STF 337
Rubens Ricupero Um continente à deriva 341
Salomão Almeida Barbosa O poder de celebrar tratados no direito positivo brasi-
leiro 353
Sandro Schipani Debito indebito? Regole per il mercato globale 363
Stéphane Monclaire Para uma arqueologia constitucional 377
Vamireh Chacon A engenharia política institucional do primeiro Estado
brasileiro 385
Walter Costa Porto Católicos e acatólicos: o voto no Império 393
PREFACE

Lorsque Mademoiselle Anna Maria Villela, après avoir conquis son diplôme d´études
supérieures de droit à notre Faculté, est venue me demander un sujet de thèse, je l’ai orientée sur
la question de la transmission et de la liquidation de la succession en droit brésilien.
La raison qui a déterminé ce choix est la suivante. Les différents droits, à ce sujet, suivent
deux systèmes. Dans un premier groupe, conformément à un adage qui frappe les étudiants, «le
mort saisit le vif»: les héritiers, - au moins en régle générale – sont directement saisis des biens
héréditaires, ainsi que des droits du défunt. Dans un second groupe cette notion de saisine, de
transmission directe des droits, actions et obligations du défunt à ses héritiers n’existe pas : la
transmission de l’hérédité est soumise à un contrôle judiciaire; sa liquidation est confiée à une
personne désignée à cet effect, qui parfois seulement est choisie parmi les héritiers.
J’avais trouvé tout naturel de rencontrer cette opposition entre droit français et droit anglais,
les deux droit utilisant très fréquemment des techniques différentes. J’avais été surpris cependant
en découvrant, ultérieurement, que la classification des droits en familles, généralement acceptée,
était ici en défaut. Un grand nombre de droits de l’Europe continentale étaient ralliés au système
français, mais les exceptions étaient nombreuses : l’Autriche, le Danemark, la Suède, le Portugal
paraissaient incliner plutôt vers la conception anglaise.
Je m’ étaits demandé comment ce groupement quelque peu hétéroclite pouvait s’ expliquer.
Je croyais pouvoir en trouver l’ explication dans le droit canonique. L’Eglise a, de longue date,
manifesté un grand intérêt pour les successions, principalement lorsqu’il existe un testament, dans
lequel on peut s’attendre à trouver des legs pour des oeuvres pies ou des monastères. C’est par le
droit canonique que, au témoignage des meilleurs auteurs, un contrôle sur la transmission des
successions a été institué en Angleterre, où Guillaume le Conquérant a dû se faire pardonner une
naissance mal vue de l’Eglise : honni soit qui mal y pense! Il me paraissait naturel de retrouver la
même influence dans certains autres pays, et notamment au Portugal. Ce n’était là cependant
qu’une hypothèse. Je souhaitais la faire vérifier, en ce qui concerne le droit portugais et, dérivé de
lui, le droit brésilien. Les recherches effectuées par Anna Maria Villela montrent que je m’ étais
trompé; et ce n’est pas le moindre mérite de l’auteur d’ avoir présenté et défendu, courageusement,
une thèse opposée à celle que je lui suggérais.
Mademoiselle Villela nous montre, dans son ouvrage, que la situation est, en vérité, beaucoup
plus complexe en droit portugais et brésilien qu’elle ne m’était apparue. Le Protugal ne peut, à
proprement parler, être classé dans aucun des deux groupes que, schématiquement, on tend à
distinguer. Dans le principe, il se situe dans le second; mais deux considérations interviennet, qui
affectent profondément les données du problème. En premier lieu il faut tenir compte du fait que,
parmi les biens immobiliers, - ceux qui, jusqu’au XIXe siècle, ont été les plus importants, - beaucoup
sont constitués en majorats; la transmission de ces biens, comme leur dévolutions, obéit à des
règles spéciales, différentes du droit qui s’applique de façon générale. En second lieu les époux
sont normalement mariés au Portugal sous le régime de la communauté universelle, avec la

Republicação do Prefácio escrito por René David, para o livro de Anna Maria Villela publicado na França, La
transmition d’hérédité en droit brésilien et en droit français. Paris:Techniques, 1971. 102 p.
conséquence que l’époux survivant est, indépendamment de toute vocation héréditaire, en
possession, et reste généralement, en possession de la succession. Partant de ces données,
Mademoiselle Anna Maria Villela nous montre comment un nouvel élément de complexité a été
introduit dans la matière par une Ordonnance qui, au millieu du XVIIIe siècle, a voulu recevoir le
système français de la saisine. L’introduction de cette réforme a été en fait neutralisée par un
attachement tenace à la tradition.
De sujet, traité par Mademoiselle Anna Maria Villela, s’est révélé à l’ étude très difficile. Je
tiens à dire ici mon admiration pour son auteur qui, dans des conditions parfois très dures, a tenu
à prolonger son sejour en France jusqu’à ce qu’elle ait pu terminer son travail. Les qualités d’ordre
tant intellectuel que moral dont elle a donné la preuve me font souhaiter, et donnent lieu de croire
qu’un avenir plein de promesses lui est ouvert dans l’enseignement du droit dans ce pays que
j’aime, le Brésil.

René David
Professeur
à la Faculté de droit de Paris
12 septembre 1970.
Direito Comparado – entre a norma e a
cultura
A contribuição de Anna Maria Villela no Instituto Rio
Branco

Alessandro Candeas

O Direito é um produto histórico e cultu-


ral das sociedades. A definição, assim pos-
ta, pode causar certa perplexidade aos for-
mados nos cânones dogmáticos, normati-
vistas e positivistas de nossas escolas jurí-
dicas, para quem, fiéis à tradição kelsenia-
na, Direito é pura Norma.
Essa é, entretanto, a lição mais impor-
tante ensinada pela professora Anna Maria
Villela, discípula de René David (Les grands
systèmes de droit contemporains), em suas au-
las de Direito comparado, ministradas a di-
plomatas por ela formados no Instituto Rio
Branco, em Brasília. Villela introduziu na
academia diplomática brasileira o Direito
comparado, chamando a atenção para a di-
versidade cultural, histórica e geográfica do
fenômeno jurídico, conseqüência do proces-
so de nacionalização das ordens jurídicas.
René David sublinhava que a diversida-
de normativa em escala mundial resultou
do processo histórico de superação do jus
commune, fundado no direito natural, e da
formação de “direitos nacionais”, em espe-
cial no século XIX. Nesse processo, cada “di-
reito nacional” passou a constituir um sis-
tema normativo fundamentado em concep-
ções específicas de ordem moral e social –
culturalmente determinadas.
Anna Maria Villela mostrava, apoiando-
se no jurista francês, que o Direito não se
identifica exclusivamente com a lei, ao con-
trário do que ensinava a tradição normati-
vista das faculdades de Direito. O Direito é
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 15
um sistema complexo que articula concei- germânico, a common law se expandiu geo-
tos, terminologias, categorias normativas, graficamente além da Europa.
técnicas de formulação legislativa e méto- As famílias Romano-germânica e de com-
dos de hermenêutica. Tais elementos, de or- mon law mantiveram profundos contatos ao
dem cultural e institucional, são mais está- longo dos séculos. Ambas foram diretamente
veis que a norma em si, que pode ser modifi- influenciadas pela moral cristã e por doutri-
cada com uma simples caneta. Além disso, nas filosóficas voltadas para a construção do
uma história da evolução das normas jurí- Estado, da moral e da justiça. Ambas também
dicas – como nascem e transitam através das assimilaram valores de individualismo e li-
fronteiras – sublinha que o Direito contém beralismo, com ênfase nos direitos subjetivos.
um componente transnacional. René David dedica atenção especial à no-
Com base nesses elementos estáveis – e ção de norma jurídica no sistema romano-
não no conteúdo mutável das normas –, germânico. A regra de direito, nesse contexto,
Villela ensinava aos seus alunos do Institu- não se define como a que dá a solução a um
to Rio Branco sobre as diversas “famílias caso concreto, como no sistema de common
jurídicas”: romano-germânica, common law, law. Ela eleva-se a um nível de abstração su-
muçulmana, ex-socialista, japonesa, e assim perior, como regra de conduta dotada de ge-
por diante. Sua ênfase se concentrava nas neralidade, situando-se acima das aplicações
duas primeiras. judiciais no caso concreto. A norma não é obra
A família romano-germânica, à qual se do juiz, mas é o produto de uma reflexão fun-
filia o Direito brasileiro, formou-se sobre a dada em parte sobre a observação da prática
base do direito romano, assentando-se em e em parte sobre considerações filosóficas de
regras abstratas e gerais de conduta que justiça, moral e mesmo de política. A norma,
buscam instaurar critérios de justiça e mo- enfim, contém um modelo de organização
ral. O Direito romano-germânico consoli- social, e não simplesmente de contencioso.
dou-se no esforço de universidades européi- A norma jurídica no direito romano-ger-
as que desenvolveram, desde a Idade Mé- mânico situa-se, portanto, a meio caminho
dia, uma ciência jurídica comum baseada entre a decisão do litígio, considerada apli-
nas compilações do Imperador Justiniano, cação concreta, e os princípios gerais do di-
adaptando-a às necessidades específicas de reito, dos quais as regras jurídicas são cris-
seu tempo. A expansão colonial das Metró- talizações. É necessário que a regra seja su-
poles européias estendeu o Direito romano- ficientemente geral, a fim de abarcar um cer-
germânico a outros continentes. A adesão to número de situações concretas, e não so-
foi parcial em algumas sociedades, como no mente aplicável à decisão do juiz a uma si-
caso dos países muçulmanos. tuação particular. A generalidade da nor-
Por sua parte, a common law formou-se ma faz com que a tarefa dos juristas seja
no trabalho de juízes em torno da resolução entendida como a de interpretação de fór-
de casos particulares, por meio de regras que mulas legislativas, com certa margem de
visavam a solucionar processos específicos manobra para o juiz – ao contrário da com-
– e não pela elaboração de regras gerais de mon law, em que a técnica jurídica exige que
conduta baseadas numa moral e numa jus- as regras sejam formuladas da maneira mais
tiça abstratas. Nesse caso, as regras de for- precisa possível. O legislador, no sistema
ma, processuais – administração de justiça, romano-germânico, deve abster-se de prever
jurisprudência, prova –, e não de regras de todos os casos concretos. Em conseqüência, o
fundo. O interesse desse sistema é restabe- número de normas nos países desse sistema
lecer a ordem perturbada pelo ilícito, e não é menor que nos adeptos da common law.
estabelecer as bases da convivência geral da Ao introduzir no Instituto Rio Branco o
sociedade. Tanto quanto o Direito Romano Direito comparado, Villela sublinhava, an-

16 Revista de Informação Legislativa


tes mesmo da popularização do conceito de Portanto, como assinalava Anna Maria
globalização, nos anos 90, que a multiplica- Villela, o objetivo do Direito comparado é
ção dos fluxos internacionais e da interde- superar o excessivo fechamento dos “Direi-
pendência dos Estados e sociedades, em di- tos nacionais” em suas esferas particulares,
versos planos, exigia o profundo conhecimen- na contramão do processo de abertura e glo-
to das especificidades jurídicas nacionais. balização. Na segunda metade do século XX,
É importante ressaltar que a autonomia no sentido inverso do século anterior, a in-
dos “direitos nacionais” nunca foi herméti- tensificação dos contatos entre países e a
ca, estanque. Os contatos recíprocos entre maior interdependência produziram o for-
sistemas jurídicos, cada vez mais intensos, talecimento do direito internacional e pos-
possibilitaram a comparação, o intercâmbio sibilitaram à ciência jurídica recuperar po-
e o aperfeiçoamento de regras e instituições sição superior aos “direitos nacionais” que
em diversos ramos do direito público e pri- havia sido perdida. Trata-se do fenômeno
vado – civil, penal, processual, constitucio- da reaproximação dos sistemas jurídicos (e
nal, administrativo, trabalhista, comercial. de relativa uniformização normativa em di-
O direito brasileiro, por exemplo, foi muito versos setores). O Direito comparado, nesse
influenciado pelo direito português até o contexto, orienta não somente a ação dos juí-
século XIX; em seguida, o prestígio dos di- zes e legisladores nacionais, mas também dos
reitos alemão, italiano e norte-americano negociadores internacionais – diplomatas –,
suplantaram a tradição lusa. construtores de uma nova normatividade.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 17


18 Revista de Informação Legislativa
O adensamento jurídico do Mercosul e o
Protocolo de Olivos

Carlos Eduardo Caputo Bastos


e Jorge Fontoura

De um país sem justiça fogem os mais


temperantes, os mais ambiciosos e os mais au-
dazes. Porque a audácia, a ambição e a tempe-
rança trabalham para a economia, e a econo-
mia vive da segurança, cuja base é a justiça.
Rui Barbosa

O presente estudo destina-se a homena-


gear Anna Maria Villela, scholar profunda-
mente comprometida com a idéia-matriz da
integração regional e com os valores basila-
res da cooperação e da aproximação dos
povos. Adepta de primeira hora do Merco-
sul, e desde sempre defensora convicta do
pan-americanismo, Anna Maria influenciou
de forma decisiva toda uma plêiade de jo-
vens juristas vocacionados ao direito das gen-
tes e ao comparatismo jurídico.
A era do mercado, malgré soi, proporcio-
na às Ciências Jurídicas formidável momen-
to de reconstrução. Os desafios trazidos pe-
los novos paradigmas, que exigem soluções
além da ideologia e do dogma, obrigam o
Direito, em todas as suas vertentes, a reno-
vado esforço de criatividade e superação.
Nos espaços já integrados, ou nos que
buscam a integração em blocos econômicos,
pela força nem sempre bem intencionada da
abertura comercial, a judicialização dos con-
flitos de interesse e o adensamento de juri-
dicidade, na expressão laferiana, são de
importância capital1. O sistema de solução
de controvérsias constitui, por conseguinte,
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 19
fator decisivo para o contingente sucesso de nossa inexperiência em diplomacia de con-
projetos de construção de blocos econômi- fronto comercial, além de fortes embates elei-
cos, qualquer que seja seu grau de aprofun- torais internos, o Mercosul segue politica-
damento ou institucionalização. mente forte e incisivo, negociando em bloco
A clara definição das regras do jogo, com questões de macropolítica externa, como o
a neutralização das imposições unilaterais livre comércio continental, e eventuais rela-
power oriented, torna-se imprescindível, a bem ções com a União Européia. Poucos ousari-
da segurança jurídica que a todos aprovei- am imaginar, porém, como os números, os
ta. A construção de blocos econômicos é, fatos não são uma mera opinião: a Alca é
vale dizer, labor jurídico por excelência, com negociada pelo Mercosul.
aportes dos mais variados, mas sempre e, Ao firmar-se o Protocolo de Olivos, de 18
essencialmente, jurídico. de fevereiro 2002, os Estados mercosureños
Ao lamentarmos a ausência do Brasil na assumem um patamar de comprometimen-
grande cena internacional, a defasagem en- to jurídico mais elaborado, obedecendo ratio-
tre o que poderíamos ser e o que somos, par- nale ditada pela emergência de novos desafi-
tícipes em menos de um por cento do comér- os. Conforme esse mais recente tratado, todas
cio mundial, reconhecemos a inadiável ne- as controvérsias que surgirem entre os Esta-
cessidade de maior e melhor inserção. Quan- dos Partes sobre interpretação, aplicação ou
to às nossas potencialidades latentes, é re- não-cumprimento do Tratado de Assunção,
velador o fato de sermos, logo após Estados e do conjunto normativo do bloco, ser-lhe-ão
Unidos e Canadá, o grande cliente do siste- submetidas. Para as controvérsias iniciadas
ma de solução de controvérsias da OMC, antes de sua entrada em vigor, o Protocolo de
como autores ou réus em quase dez por cen- Brasília continuará sendo aplicado.
to dos casos. Em essência, Olivos cria uma instância
A integração e a construção de blocos arbitral permanente de revisão, com peculi-
econômicos, zeitgeist do pós-guerra fria, aridades, conforme vamos verificar. Tería-
como resposta às dificuldades trazidas pelo mos chegado, finalmente, ao Sistema Per-
mercado avassalador, foi, a partir dos últi- manente a que se refere o Tratado de Assun-
mos anos 80, inevitável linha de política ção? A resposta é negativa. O Protocolo de
externa. Também para os países sul-ameri- Olivos registra que, antes de se culminar o
canos e, em especial, para os quatro “sócios processo de convergência da tarifa externa
de Assunção”. Em 26 de março de 1991, comum, com o aperfeiçoamento da União
quando se instituiu o Mercosul, os limites Aduaneira, os Estados Partes farão revisão
do possível impunham flexibilidade máxi- do atual sistema.
ma e institucionalização mínima, dentro de Com isso, segue-se o pragmatismo que
rígida forma intergovernamental, em que tem singularizado o bloco. Pratica-se o avan-
tudo se deveria decidir por consenso e una- ço que a diplomacia do possível permite. A
nimidade, consoante o direito internacional manutenção da arbitragem como forma de
público clássico. solução de conflitos, embora constitua per-
Depois, sobrevieram os resultados co- ceptível limitação, em face de modelo que
merciais altamente positivos, conducentes inclua instituição judiciária supranacional,
ao ambicioso Protocolo de Ouro Preto, de 17 como na justiça comunitário-européia, é rei-
de dezembro de 1994, a demonstrar que tam- terada manifestação de prudência política.
bém a América Latina poderia possuir mo- Afora isso, a imediata criação de tribunal de
delo de integração próprio e bem sucedido. natureza judicial requereria que Brasil e Uru-
Sobrevivente de imensos impasses estru- guai reformassem suas constituições, como o
turais e conjunturais, como a abrupta des- fez recentemente a Argentina, a permitir se-
valorização do real de 1999, e mesmo de jam criadas instituições supranacionais.

20 Revista de Informação Legislativa


Na justificativa do Protocolo de Olivos, A possibilidade de o Tribunal Perma-
e da criação do Tribunal Permanente de nente de Revisão oferecer “opiniões consul-
Revisão, de natureza arbitral, fundamenta- tivas” é outra inovação interessante, embo-
se a necessidade de garantir a “correta in- ra não se tenha precisado seu alcance, pro-
terpretação, aplicação e cumprimento” do cedimento, e, fundamentalmente, a neces-
conjunto normativo do Mercosul, de forma sária legitimação ad causam para acionar o
consistente e sistemática. Não há remissão mecanismo, temas pendentes de regulamen-
à “uniformidade de aplicação” de normas, tação pelo Conselho do Mercado Comum.
a nosso juízo, elemento primordial à segu- O recurso das decisões dos tribunais ar-
rança jurídica e à pacificação dos conflitos. bitrais ad hoc, apesar de não ser comum em
Com efeito, na perspectiva de que os Pode- procedimentos arbitrais, parece ter sido im-
res Judiciários nacionais é que vão aplicar portado do modelo OMC. A limitação do
as normas geradas no bloco, qual autorida- recurso às questões de direito e à qualifica-
de garantirá que não haverá diferente en- ção jurídica dos fatos contidos nos laudos
tendimento acerca da “correta interpreta- arbitrais (assim como o não-cabimento de
ção” da norma em potencial dissonância? recurso nas decisões por eqüidade) apresen-
Enquanto o Mercosul seguir sendo um ta-se conveniente.
“conjunto normativo”, não há que se falar Claramente o Protocolo de Olivos bus-
em sua “aplicação sistemática”. Essas ex- cou, mantendo um minimalismo institucio-
pressões justapostas incidem em contradi- nal, conjugar a idéia de tribunal arbitral
ção. Sistema, do ponto de vista do Direito, permanente, como no Benelux, com a idéia
pressupõem ordenamento jurídico e não tão- de um órgão de apelação, como no sistema
somente conjunto normativo. Sendo o Mer- de solução de controvérsias da OMC. Ao
cosul apenas um conjunto normativo, ou contrário do que se imagina, o tribunal do
sendo essa a realidade possível no quadro Benelux sobrevive à Corte de Justiça das
jurídico-constitucional dos Estados Partes, Comunidades Européias, exercendo plena-
a idéia de aplicação sistemática remanesce mente sua atribuição de interpretar por via
com pouca precisão e efetividade jurídica. pré-judicial, quando as regras de direito es-
Ademais, a uniformização não elimina pecífico do bloco forem pouco claras para o
a possibilidade de os judiciários nacionais juiz nacional (DUMOND, 1980). Anterior a
exercerem controle de constitucionalidade toda institucionalização comunitário-euro-
em face das respectivas Constituições. Afi- péia, é aqui (HUSS, 1980) que se encontram
nal, estamos diante de bloco intergoverna- as raízes históricas e a própria ideação ori-
mental, em que o controle não se faz, somen- ginal do prodigioso art. 177 do Tratado de
te, em face dos tratados constitutivos, mas Roma, de 25 de março de 1957, que instituiu
em razão de toda norma concretamente apli- o reenvio pré-judicial (CLERGERIE, 2000).
cável no espaço jurisdicional dos Estados Criando uma instância de revisão arbi-
membros. tral, o Protocolo de Olivos inova, com pru-
Ressalte-se, no entanto, que Olivos traz dência e parcimônia, ao deixar ao sabor das
uma importante novidade que fortalece o partes o encaminhamento que bem se
objetivo integracionista deduzido em todo aprouver. A chave-mestra do projeto parece
o projeto: trata-se da preponderância em re- estar incrustada em seu artigo 23, que facul-
lação aos Estados Partes do sistema de so- ta às partes o acesso direto ao Tribunal Per-
lução de controvérsias comumente adota- manente de Revisão, que assim deixaria de
do, uma vez iniciado qualquer procedimen- sê-lo, para transformar-se em instância ori-
to sob sua tutela, em uma intentada pré-pri- ginária tout court2.
mazia, por assim dizer, utilizando o inevi- Com isso, o imaginoso artigo 23 permite
tável referencial comunitário-europeu. uma substantiva supressão de instância,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 21


facultando às partes dirigirem-se, a partir da válvulas de segurança diplomática, impe-
negociação direta frustrada, diretamente à fase dindo, de fato, a litigância de particulares e
arbitral, sem passar pelas inconveniências e limitando a ingerência judiciária formal.
dilações da tentativa de conciliação, em que Buscava-se claramente “embalar os cristais”,
intervêm as seções nacionais do Grupo Mer- o que se fez com propriedade e eficiência,
cado Comum, com todas as limitações mate- nos méritos nem sempre reconhecidos do
riais e logísticas que tão bem conhecemos. Protocolo de Brasília. Em que pese o grande
O caráter constritivo dos laudos proferi- incremento comercial da primeira década
dos pelo tribunal instituído, que não pode- do Tratado de Assunção (o comércio intra-
rão ser objeto de recurso, fazendo coisa jul- zona passou em menos de sete anos de três
gada formal e material, o que se subsume do para vinte e um bilhões de dólares), os pri-
mesmo artigo 23, confere mais segurança ju- meiros laudos arbitrais ocorrem somente ao
rídica e credibilidade ao sistema. Todos os final dos anos 90, tendo sido a maioria ex-
Estados membros estão sujeitos ao Tribunal, pressiva dos litígios dirimidos nas negocia-
não se utilizando o expediente da cláusula ções diretas ou com a intervenção das se-
facultativa de jurisdição obrigatória, a Cláu- ções nacionais do Grupo Mercado Comum3.
sula Raul Fernandez, tão ao sabor das relações Agora, com a implantação da instância
de coordenação da prática jurídica internaci- permanente de arbitragem, de revisão ou
onal. Assim estabelece o art. 54, ao estipular não, decorrendo do livre querer das partes,
que a adesão ao Tratado de Assunção signi- em contexto histórico alvissareiro para um
fica ipso jure a adesão ao Protocolo de Olivos. Mercosul de muitas possibilidades, robus-
Da mesma forma, sua denúncia implica ex vi tece-se a idéia da integração, sem discursos,
denúncia ao Tratado de Assunção. com a semântica inenargüível dos fatos e
No que concerne à possibilidade de par- das decisões políticas.
ticulares, pessoas físicas e jurídicas dos Es-
tados membros litigarem in pectore, sem os
mecanismos de representação diplomática,
Notas
como se poderia pleitear sem prudência
1
política, e como também o faz a comunida- What do I mean by the expression “thickening of
de acadêmica, acertadamente o Protocolo de legality”..., in The World Trade Organization Dis-
pute Settlement System – Conferences Comemora-
Olivos nada aditou, reiterando o tratamen- tives – conferência de 18 de junho de 1996, Funda-
to meramente enunciativo, de soft law, con- ção Alexandre de Gusmão, Brasília 2000; Celso
forme consta no Protocolo de Brasília. As- Lafer (1998, p. 942) é, a propósito, um emérito
sim, como claro freio político e sem meias formulador de expressões de consagração no mun-
palavras, o Estado potencialmente réu dis- do acadêmico internacional, sendo de sua autoria
também “alianças com geometria variável”, para
poria de poder de veto sobre a admissibili- referir a nova dinâmica das relações internacionais
dade da reclamação de particulares, o que a partir da emergência da OMC: “... um jeu subtil
impediria a causa indesejável ab ovo. que s’articule autour d’un certain nombre de ac-
Diante da transitoriedade e das peculia- teurs icontournables qui vont nouer des alliances à
ridades do projeto Mercosul, a forma adota- GEOMETRIE VARIABLES selon lês intérêts en pre-
sence...” LAFER, Celso. Réflexion sur l’OMC lors
da no Protocolo de Brasília, de 17 de dezem- du 50 ème. Anniversaire du système multilatéral
bro de 1991, foi surpreendente para a épo- commercial. Journal du Droit International, Paris, v.
ca, mercê de seu pragmatismo e lucidez. 125, n. 4, p. 933-944, oct./déc. 1998.
2
Buscando esvaziar politicamente um grau Artigo 23 – Acesso direto ao Tribunal Permanente
conflitual imponderável, dificultando a “pro- de Revisão
1. As partes na controvérsia, culminado o procedi-
cessualização” das controvérsias, inopor- mento estabelecido nos artigos 4 e 5 deste Protocolo,
tunas para o momento de implantação de poderão acordar expressamente submeter-se diretamente
qualquer bloco, o documento era pleno de e em única instância ao Tribunal Permanente de Revisão,

22 Revista de Informação Legislativa


caso em que este terá as mesmas competências que um cíproco”, que se tornou conhecida como caso Sisco-
Tribunal Arbitral Ad Hoc, aplicando-se, no que corres- mex, tendo atuado como árbitro brasileiro João
ponda, os Artigos 9, 12, 13, 14, 15 e 16 do presente Grandino Rodas.
Protocolo.
2. Nessas condições, os laudos do Tribunal Perma-
nente de Revisão serão obrigatórios para os Estados par-
tes na controvérsia a partir do recebimento da respec- Bibliografia
tiva notificação, não estarão sujeitos a recursos de
revisão e terão, com relação às partes, força de coisa CLERGERIE, Jean Louis de. Le renvoi préjudiciel.
julgada. Paris: Elipses Édition, 2000.
3
O Primeiro Laudo do Sistema de Solução de
DUMOND, F. La court de justice du Benelux. Bruxe-
Controvérsias do Mercosul é de 28 de abril de 1999,
las: Bruylant, 1980.
contemplando uma controvérsia, entre a República
Argentina e a República Federativa do Brasil, sobre HUSS, Alfonse. Historique du traité instituant la court
“Aplicação de medidas restritivas ao comércio re- de justice Benelux. Bruxelas: [s. n.], 1980.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 23


24 Revista de Informação Legislativa
A responsabilidade penal das pessoas
jurídicas

Carlos Fernando Mathias de Souza

Societas delinquere non potest, proclama a


velha parêmia.
A toda evidência o brocardo latino ex-
prime que a sociedade (e, em inteligência
mais moderna, a pessoa jurídica) não pode
delinqüir. E, com efeito, assim se entendeu
por muito tempo.
Acontece que, mais recentemente (e em
expressivos ordenamentos jurídicos), tem-
se admitido expressamente a responsabili-
dade penal em destaque. E, é natural, não sem
muita polêmica, em particular na doutrina.
Na França, por exemplo, desde o projeto
de código criminal de 1934 (passando por
elaborações ocorridas em 1978 e 1986), veio-
se consagrando a tese da responsabilização
penal das pessoas jurídicas o que, hoje, está
plenamente consagrado no seu código pe-
nal de 1994.
Por sua vez, no Reino Unido, a admis-
são da responsabilidade penal dos entes
coletivos tem sido entendimento pacífico na
jurisprudência, salvo obviamente os delitos
de mão própria.
Em verdade, no ordenamento britânico,
como sabido baseado na common law, a res-
ponsabilidade penal das pessoas jurídicas
praticamente não encontra limites, sendo de
se assinalar os delitos contra o meio ambi-
ente, a economia, a saúde pública e a segu-
rança do trabalho.
Nos Estados Unidos, conhece-se a res-
ponsabilidade penal em epígrafe, desde o
século XIX. Aliás, o ordenamento norte-ame-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 25
ricano socorre-se de tal responsabilidade nistrativa, civil e penal conforme o disposto
como meio de controle das corporações. Em nesta lei, nos casos em que a infração seja
matéria de lesão ambiental – registre-se, por cometida por decisão de seu representante
bem significativo –, é o bastante a ação des- legal ou contratual, ou de seu órgão colegia-
cuidada da pessoa jurídica, para a fixação do, no interesse ou benefício de sua entida-
de uma sanção penal. de”. Ademais, “a responsabilidade das pes-
Por oportuno, recorde-se que o primeiro soas jurídicas não exclui a das pessoas físi-
precedente judicial sobre responsabilização cas, autoras, co-autoras ou partícipes do mes-
criminal de pessoa jurídica, que se conhe- mo fato” (parágrafo único, do citado art. 3º).
ceu nos Estados Unidos da América do Essa inovação legislativa tem provocado
Norte, ocorreu no caso Central Nova Iorque muita discussão, ou melhor, muita polêmica.
e a estrada de ferro Rio Hudson (New York De passagem, dê-se relevo especial ao fato
Central and Hudson River Railroad) versus de que dois dos sistemas que, de modo signi-
os Estados Unidos, que foi julgado pela Su- ficativo, influenciam a legislação penal bra-
prema Corte norte-americana em 23 de feve- sileira (o alemão e o italiano) não adotam a
reiro de 1909, quando se firmou o entendi- responsabilidade em comento.
mento no sentido de que se a lei fixa que o Importantíssimos autores (e situados no
crime pode ser cometido por uma pessoa que de melhor a doutrina brasileira tem reve-
(sem fazer distinção se física ou jurídica), lado nos últimos tempos) sustentam a incons-
impõe-se a conclusão de que ambas podem titucionalidade da disposição contida no art.
ser responsabilizadas. 3º da Lei 9.605/98, contestando que a Lei
Muitos outros sistemas jurídicos admi- Fundamental de 1988, em seus artigos 173, §
tem a responsabilidade penal das pessoas 5º, e 225, § 6º, tenha autorizado a responsa-
jurídicas, como o da Austrália, da Áustria, bilidade penal das pessoas jurídicas, e enfa-
da Dinamarca, da Escócia, dos Países Bai- tizam que as pessoas morais (como gostam
xos, do Japão, do México, da Noruega e da de designar os franceses) só se sujeitam a
Nova Zelândia, por exemplo. sanções administrativas.
Portugal, por sua vez, muito embora em Entre os expoentes que estão nessa linha,
atenção ao princípio da culpabilidade não con- encontram-se René Ariel Dotti, Luiz Vicente
sagre expressamente a responsabilidade Cernicchiaro, Miguel Reale Júnior, Luiz Ré-
penal dos entes coletivos, por intermédio do gis Prado e José Cretella Júnior.
chamado Direito Penal Administrativo, es- Em contrapartida, opõem-se à tese publi-
tabelece multas pecuniárias às pessoas ju- cistas do porte de José Afonso da Silva, Celso
rídicas, em decorrência do que designa prá- Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Pinto
tica de contra-ordenações, por tais entida- Ferreira e ambientalistas como Paulo Afonso
des no exercício de suas atividades. Leme Machado e Vladimir Passos de Freitas.
De outra parte, muitos países não admi- Ivette Senise Ferreira, professora titular
tem essa forma de responsabilidade penal, de Direito Penal da Faculdade do Largo de
entre eles, a Alemanha, a Itália, a Espanha, São Francisco, em trabalho sob o título “La
a Bélgica, a Grécia, a Suíça e tantos outros. responsabilité penal des personnes morales”,
O Brasil, pela “Lei que dispõe sobre as isto é, responsabilidade penal das pessoas
sanções penais e administrativas derivadas jurídicas (ou morais), apresentado na Aca-
de condutas e atividades lesivas ao meio demia de Ciências da Rússia, em junho de
ambiente e dá outras providências” (Lei 2001, observa (valha aqui uma tradução li-
9.605, de 12.2.98), inseriu em seu ordena- vre), entre outras considerações, que “a or-
mento a responsabilidade penal dos entes dem jurídica brasileira conhece há pouco
coletivos, expressamente: “Art. 3º – As pes- tempo a responsabilidade das pessoas jurí-
soas jurídicas são responsabilizadas admi- dicas no domínio penal, unicamente no se-

26 Revista de Informação Legislativa


tor particular do direito ambiental, a propó- A merecerem, pois, atentas reflexões não
sito de todas as infrações determinadas pela só os textos constitucionais em destaque, mas
Lei 9.605, de 12.2.1998”. também os prós e os contras doutrinários
E assinala a notável professora da USP sobre a importante questão da responsabili-
que “essa lei resultou de discussão acerca da dade penal das pessoas jurídicas.
necessidade de unificação e de harmoniza- O tema permitiria a indagação: “Ser ou
ção de uma dúzia (de várias) leis que dispu- não ser – eis a questão”, recorde-se a dúvida
nham antes sobre as infrações ao meio ambi- (ou a dialética?) do indigitado príncipe
ente no Brasil, de modo desordenado e con- Hamlet.
traditório, posto que o Código Penal, datado Em paráfrase (ou quase isso) dir-se-ia: “as
de 1940, não apresentava nenhuma solução pessoas jurídicas podem ou não podem de-
dos conflitos nesse domínio. Uma lei penal linqüir?” ou, em versão latina, “societas de-
mais completa sobre o meio ambiente era linquere potest aut non potest?”.
portanto reclamada pela comunidade jurídi- É questão sabidamente polêmica.
ca desde a promulgação da nova constitui- A corrente – expressiva, aliás, registre-se
ção federal de 1988, onde foi proclamado que de passagem – que se opõe ao reconhecimen-
o meio ambiente de qualidade é um direito to da pessoa jurídica como passível de res-
fundamental, tanto do indivíduo quanto da ponder penalmente centra-se no princípio da
coletividade (...)”. culpabilidade (consagrado no direito penal
No seu estudo, a autora em destaque pátrio, por exemplo), como um impeditivo
transcreve o § 3º do art. 225 da Lei Maior de para tal. Em outras palavras, o caráter acen-
1988, para registrar que ele permitiu a intro- tuadamente volitivo da ação excluiria ipso
dução da Lei 9.605, ressaltando que enquan- facto a possibilidade de o ente coletivo delin-
to a responsabilidade administrativa não se qüir.
questiona, no particular da penal, há ainda A propósito, observam Eugenio Raul
a rejeição por um grande número de juristas Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (1997):
que não a aceitam. “Não se pode falar de uma vontade em senti-
– E o que diz a Constituição sobre o parti- do psicológico no ato da pessoa jurídica, o
cular? que exclui qualquer possibilidade de admi-
– No parágrafo terceiro do art. 225 (artigo tir a existência de uma conduta humana. A
que engloba todo o capítulo sobre o meio pessoa jurídica não pode ser autora do de-
ambiente da Carta de 1988), tem-se, expres- lito, porque não tem capacidade de con-
samente: “As condutas e atividades consi- duta humana no seu sentido ôntico-onto-
deradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão lógico”.
os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a Acrescente-se (de certo modo e por outro
sanções penais e administrativas, indepen- lado) que o designado juízo de reprovação
dentemente da obrigação de reparar os da- social, que é, por certo, o conteúdo maior da
nos causados”. E, no § 5º do art. 173 (que se culpabilidade, não prescinde, naturalmente,
insere no Título VI – Da Ordem Econômica e de imputabilidade em si, da consciência da
Financeira – Capítulo I – Dos Princípios Ge- ilicitude da conduta (isto é, do ato praticado)
rais da Atividade Econômica), a redação é a e da possibilidade de seu enquadramento na
seguinte: “A lei, sem prejuízo da responsabi- norma penal em atenção ao clássico princí-
lidade individual dos dirigentes da pessoa pio da reserva legal – nullum crimen sine lege;
jurídica, estabelecerá a responsabilidade des- nulla paena sine lege.
ta, sujeitando-a às punições compatíveis com Daí se extrai que a consciência da ilicitu-
sua natureza, nos atos praticados contra a de constitui, por óbvio, um obstáculo (trans-
ordem econômica e financeira e contra a eco- ponível?) à responsabilidade penal das pes-
nomia popular”. soas jurídicas.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 27


Outras teses e (ou) argumentos poderiam ron la cuestión de si la universitas podia ser
ser invocados contra a admissibilidade da excomulgada. La mayoria de los canonistas
responsabilização penal dos entes coletivos, afirmó esto y a la vez, con ello, de capacidad
inclusive passando pelo conceito de pena e, penal de la universitas”.
obviamente, também pela sua própria função. Destaca o autor que tal posição afrontava
Os que admitem a responsabilidade em até a posição do Papa Inocêncio IV no parti-
destaque pretendem enfrentar a forte argu- cular, a tal ponto que o pontífice, no Concílio
mentação oposta, mormente invocando um de Lyon de 1245, rechaçou a idéia de exco-
novo tempo no direito penal. munhão da universitas porque esta não seria
Hans Joachim Hirsch (1993), professor de capaz de culpabilidade (nihil potest facere dolo,
direito penal e processual penal da Univer- ou seja, “de modo nenhum pode cometer
sidade de Colônia (Alemanha), em trabalho dolo”, e “impossibile est quod universitas
traduzido para o espanhol, sob o título “La delinquat”, é dizer-se, “impossível é que a
cuestión de la responsabilidad penal de las universalidade – aí no sentido da Igreja –
asociaciones de personas”, após assinalar delinqua”).
que o direito penal alemão vigente, e também Lembra ainda que a capacidade penal
o da maioria dos países, salvo os anglo-sa- das corporações foi amplamente aceita pelos
xônicos, não conhece a punibilidade das pós-glosadores, destacando o papel de Bár-
associações de pessoas, ou seja, das pessoas tolo no particular e que teve influência na
jurídicas e demais associações de pessoas Alemanha, por vários séculos.
organizadas em forma de corporação (em E conclui o professor tedesco seu estudo
outras palavras, para tais sistemas jurídicos, nesse tópico, citando posições de V. Gierke,
só a pessoa humana ou pessoa física e ja- Franz von List e Max Ernst Mayer, para afir-
mais a corporação é considerada penalmen- mar que “la punibilidad de las asociaciones
te capaz), observa que (e aí, já firmando posi- de personas no es una idea totalmente ajena
ção na diretiva da possibilidade da respon- al desarollo del derecho alemán”.
sabilização penal dos entes coletivos): “La O fato é que a Lei brasileira de número
concepción de que sólo el hombre podria ser 9.605/98 admite expressamente a responsa-
penalmente capaz en la compreensión del bilidade penal das pessoas jurídicas com re-
derecho penal europeo-continental, nos es lação aos delitos ecológicos.
tan obvia como se lo afirma muchas veces. El Naturalmente, a responsabilidade penal,
principio frecuentemente mencionado socie- no caso, é a objetiva, pois não há como se
tas delinquere non potest era probablemente admitir a subjetiva com respeito a quem não
acertado para el derecho romano, al que to- tem vontade (permita-se o registro do óbvio).
davía le eran absolutamente extraños el Já se tem notícia de condenação pelo judi-
concepto de corporación como tal, y en ciário de pessoa jurídica com apoio no diplo-
particular tambíen el concepto de persona ma citado. Contudo, mal começa a lei em
jurídica”. destaque a ser aplicada em particular em tal
E prossegue o professor Hans Joachim ponto.
Hirsch (1993), oferecendo a seguinte síntese É de se esperar muita discussão (polêmi-
histórica: “(...) el cuadro se modificó en la Edad ca mesmo) resultante da aplicação relativa
Media. Los glosadores comenzaron a ocu- do novo diploma, no ponto que ora se ressal-
parse más detenidamente del problema de si ta, até mesmo com questionamento sobre sua
son posibles acciones penales contra agru- inconstitucionalidade.
paciones de personas de esa clase. A ello se Todavia, forçoso é concluir-se que a lei
agregaron los canonistas, que elaboraron el está até aqui incólume sob esse aspecto (ao
concepto de universitas, para la Iglesia, como menos não se tem notícia de qualquer argüi-
algo no idéntico a sus miembros y plantea- ção formal sobre sua inconstitucionalidade).

28 Revista de Informação Legislativa


De outra parte, a jurisprudência, que é a de sua entidade. Parágrafo único – A res-
seiva que mantém vivo o direito, certamente, ponsabilidade das pessoas jurídicas não
amoldará o texto da lei à luz das novas ten- exclui a das pessoas, autoras, co-autoras ou
dências do direito e com atenção aos novos partícipes do mesmo fato”.
ventos que sopram sobre os ordenamentos Polêmicas à parte (inclusive sobre a cons-
jurídicos. É, pois, de certo modo, uma ques- titucionalidade do texto em destaque da Lei
tão de tempo. 9.605/98) e sem embargo das respeitáveis
Se a responsabilidade penal das pesso- (respeitabilíssimas, aliás) opiniões em con-
as jurídicas já é, por si, tema polêmico (mes- trário, no concernente à responsabilidade
mo com a edição da Lei 9.605/98), menor penal das pessoas jurídicas em geral, tem-
não o é seu desdobramento com respeito à se que o tópico está a exigir detida reflexão.
das pessoas jurídicas de direito público. De plano, tenha-se que, diante dos tex-
Com efeito, a Constituição, no parágrafo tos da Lei Fundamental e da Lei Ambiental,
terceiro do seu art. 225, é expressa: “As con- respectivamente, não se pode, de forma sim-
dutas e atividades consideradas lesivas ao plista, alegar que in claris non fit interpretatio
meio ambiente sujeitarão os infratores, pes- (não se faz interpretação, diante do claro),
soas físicas ou jurídicas, a sanções penais e nem tampouco (e aí, mais particularmente
administrativas, independentemente da com relação à responsabilidade penal das
obrigação de reparar os danos causados”. pessoas jurídicas de direito público) que ubi
Por sua vez, dispõe o § 5º do art. 173 da lex non distinguit nec nos distinguere debemus
Lei Maior: “A lei, sem prejuízo da responsa- (em que a lei não distingue, não cabe – ao
bilidade individual dos dirigentes da pessoa intérprete – distinguir).
jurídica, estabelecerá a responsabilidade O fato é que, mesmo entre os que admi-
desta, sujeitando-a às punições compatíveis tem a responsabilidade penal das pessoas
com sua natureza, nos atos praticados con- jurídicas, não é pacífico o entendimento de
tra a ordem econômica e financeira e contra que tal responsabilidade alcança também
a economia pública”. as pessoas jurídicas de direito público.
Pode-se divisar, em tais dispositivos, cer- Entre os que a admitem, sustentam como
ta influência do direito francês que, no seu idéia fulcral a de que muito embora o fim
código penal de 1994, acolheu a responsa- último do Estado não seja (obviamente) o de
bilidade penal das pessoas morais, isto é, cometer ilícitos, na prática os cometeu, em
das jurídicas, na linguagem do ordenamen- especial no campo do meio ambiente. As-
to jurídico brasileiro. sim, se as pessoas jurídicas em geral são atu-
O referido código penal gaulês excluiu, almente apenáveis (a teor da Lei 9.605/98),
de modo expresso, contudo, da responsabi- não há por que se excluir de tal responsabili-
lidade penal, o Estado. Na realidade, quan- dade o Estado e, por extensão, os seus entes.
to ao particular, só foi admitida tal respon- Ademais, se a responsabilidade civil está con-
sabilidade com relação aos municípios, sagrada com relação a tais pessoas jurídicas,
quando se tratar de concessão de serviço por que se excluir a responsabilidade penal?
público. Em sentido contrário, têm-se teses que
A citada lei 9.605, de 12.2.98, por sua vez, partem, inclusive (por curioso), da respon-
em seu art. 3º e parágrafo, prescreve: “As sabilidade civil objetiva das pessoas jurídi-
pessoas jurídicas serão responsabilizadas cas de direito público e das de direito priva-
administrativa, civil e penalmente confor- do, prestadoras de serviços públicos, como
me o disposto nesta Lei, nos casos em que a óbice inquestionável a admitir-se à respon-
infração seja cometida por decisão de seu sabilidade penal com relação a elas.
representante legal ou contratual, ou de seu Como se sabe, dispõe a Lei Fundamen-
órgão colegiado, no interesse ou benefício tal, em seu art. 37, § 6º: “As pessoas jurídi-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 29


cas de direito público e as de direito priva- un contrasentido dificilmente suportable.
do prestadoras de serviços públicos respon- Y tan Estado es la Administración Esta-
derão pelos danos que seus agentes, nessa tal como la Administración Autonómica o
qualidade, causarem a terceiros, assegura- Local, al ser en si misma la Administración
do o direito de regresso contra o responsá- una mera tecnica de personificación que
vel nos casos de dolo ou culpa”. permite el tráfico juridico del ente público
Assim, uma vez que nesses danos po- (...)”.
dem ser incluídos os causados ao meio am- Em resumo, se a Lei 9.605, de 12.2.98, ao
biente e em respondendo as pessoas jurídi- dispor sobre a responsabilidade penal das
cas de direito público objetivamente, por pessoas jurídicas (art. 3º e seu parágrafo
eles, aí já estaria todo o reparo legal e juridi- único), já trouxe assunto polêmico, passan-
camente possível. Acrescente-se que, nos do, inclusive, sobre o aspecto da constituci-
casos de dolo e culpa do agente, este res- onalidade (o § 3º do art. 225 e § 5º do art.
ponde também penalmente, de par com as 173 da Constituição dão-lhe suporte ou
responsabilidades de natureza civil e ad- não?), tem-se que, admitida a responsabili-
ministrativa. dade penal das pessoas jurídicas, perma-
Outra linha de argumentação, também nece acesa outra questão polêmica, que é a
no sentido da exclusão da responsabilida- da responsabilidade em destaque, em res-
de penal das pessoas jurídicas de direito peito às pessoas jurídicas de direito pú-
público, oferece, por exemplo, Sérgio Salo- blico.
mão Shecaira (1998) ao observar que, sendo Por enquanto, habemus legem, e que em
o Estado o “titular do jus puniendi, não po- sua aplicação já conta com apenação a pes-
deria pretender punir a si próprio”. Em ou- soa jurídica com o apoio na Lei 9.605/98.
tras palavras, as pessoas jurídicas de direi- Só o tempo e os tribunais, contudo, que
to público interno, resultado que são de dirão da resistência da norma contida em
mera organização administrativa (fala-se tal diploma e do seu preciso alcance.
em administração direta e em indireta),
acabam por se confundir com o próprio
Estado. Bibliografia
Nesse mesmo sentido, observa Miguel
Carmona Ruano (1999): “(...) Si toda la san- HIRSCH, H. J. La cuestión de la responsabilidad
penal de las asociaciones de personas. Anuario de
ción es manifestación de la potestad puniti- Derecho Penal y Ciencias Penales, Madrid, v. 46, n. 3,
va del Estado, que es quien tiene la capaci- p. 1099-1124, sep./dic. 1993.
dad primaria de sanción – aunque se haya
RUANO, M. C. Responsabilidad penal de lãs per-
delegado su ejercício o incluso en parte su sonas jurídicas: empresas y derecho penal. Cuader-
regulación normativa en Comunidades An- nos de Derecho Judicial, Madrid, 1999.
tõnomas o Corporaciones Locales – no cabe
ZAFFARONI, E. R.; PIERANGELI, J. H. Manual de
duda de que el ejercício de tal potestad pu- direito penal brasileiro: parte geral. São Paulo: RT,
nitiva sobre el proprio ente publico resulta 1997.

30 Revista de Informação Legislativa


Norberto Bobbio, professor de clássicos

Carlos Henrique Cardim

“Hobbes é um pensador central para


mim”. Assim se expressou Norberto Bobbio,
quando lhe indagei, na última vez em que
conversamos por telefone, a respeito dos au-
tores que mais o influenciaram. Agregou, ain-
da, que “o autor que eu estudei mais profun-
damente foi Hegel”, e salientou que “fiquei
muito tocado pelo reconhecimento que recebi
na Alemanha por ter sido agraciado, em Stu-
tgart, com o Prêmio Hegel. Por razões de saú-
de, devido à minha idade, não pude estar pre-
sente à cerimônia de entrega do Prêmio”.
Esse diálogo bem reflete a dimensão es-
sencial do universo intelectual de Bobbio, o
estudioso dos clássicos da Política. Bobbio
foi, fundamentalmente, um Professor, dedi-
cado aos “temas recorrentes”, como ele de-
finia: “os temas que foram propostos e dis-
cutidos na maior parte dos escritores políti-
cos e que, assim, são partes integrantes de
uma teoria geral da política”.
A clareza em explicar as questões prin-
cipais do pensamento de Platão, Aristóte-
les, Maquiavel, Hobbes, Locke, Kant, Marx
e Pareto, entre outros, fizeram de Bobbio um
autor altamente apreciado no meio univer-
sitário. A acolhida que seus livros têm no
Brasil, é, de certo modo, maior do que na
Itália. A chave desse fenômeno está, justa-
mente, na limpidez do seu texto e nos pon-
tos que seleciona do autor enfocado.
Bobbio foi, acima de tudo, um Professor
de clássicos. Professor com P maiúsculo. O
mestre que passa dias, meses e até anos a ler
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 31
os livros clássicos. O mestre que, com idên- destaque Carlo Rosselli (1890-1937), que foi
tico ânimo do habitante que saiu da caver- um dos mais influentes e carismáticos pen-
na de Platão, regressa do mundo exterior sadores europeus na década de 30, no cam-
para nos falar de suas descobertas e acha- po da luta antifascista. Nascido em Roma,
dos, logrados com sacrifícios e alegrias. em próspera família judia, com fortes tradi-
Lembro-me das visitas que lhe fiz em sua ções liberais, abandonou uma segura car-
casa, em Turim. Apresentou-me sua biblio- reira como Professor de Economia Política
teca e sala de trabalho. Guardo a imagem para se dedicar por inteiro, inclusive desti-
do ambiente austero, mas, ao mesmo tempo, nando recursos financeiros próprios, à luta
convidativo. Ali estavam as obras que ele antifascista. Preso, escreveu no cárcere sua
lia, relia e das quais resultavam os textos de obra mais conhecida, “Socialismo Liberal”,
suas aulas e cursos, depois editados sob a que, por razões de censura fascista, teve sua
forma de livros. O núcleo inicial e germina- primeira edição, em Paris, em 1930.
dor de seu trabalho intelectual eram os cur- Os dirigentes fascistas encetaram forte
sos que, como Professor, ministrava na Uni- perseguição, declarando-o como o mais peri-
versidade de Turim. goso inimigo, tendo-o capturado, junto com
Motivado pela alta qualidade da obra de seu irmão, o historiador Nello Rosselli, na
Bobbio, tive o privilégio de convidá-lo para Normandia, e ordenado o assassinato de
vir à Universidade de Brasília em 1982. Com ambos, de forma brutal, em 9 de junho de 1937.
o rigor acadêmico que o caracterizava, co- Carlo Rosselli é uma referência perma-
meçou a palestra intitulada “Bobbio por ele nente no pensamento e ação de Bobbio.
mesmo”, no seminário sobre sua vida e obra, Como ele mesmo disse: “Carlo Rosselli é
com uma frase de Isaac Newton: “se logrei outro autor que me influenciou. Eu sou con-
ver mais longe foi porque subi em ombros siderado o representante do socialismo li-
de gigantes”. Esse enunciado é a própria beral na Itália”.
história do conhecimento humano. Cada
pensador, seja nas ciências humanas, bio- “A Filosofia é uma milícia”
lógicas ou da natureza, parte sempre de vi-
sões alcançadas por um ou mais antecesso- Bobbio tinha uma particular visão sobre
res, para, após duro labor de estudo, crítica si mesmo e sublinhava que, “para dizer a
e reflexão, agregar suas visões. verdade, nunca me considerei um filósofo
A Editora da Universidade de Brasília, no sentido restrito e limitado da palavra, isto
com os livros que tem publicado, foi a intro- é, no sentido acadêmico... nem no sentido
dutora de Bobbio no Brasil. A propósito, em sublime do termo. Devo dizer que sempre
carta, ele assim comentou: “Non posso di- me agradou a divisa de um dos autores que
menticare che i mei primi contatti con la me foram mais caros, nos anos tempestuo-
cultura del Brasile li ho avuti in seguito al sos: ‘A Filosofia é uma milícia’, tanto que
Suo invito a presentare la traduzione del mio lhe dediquei um livro e intitulei ‘Uma Filo-
libro sulle forme di governo all’Universitá sofia Militante’. Trata-se de Carlo Cataneo,
di Brasília”. Acrescentou, também, que “non um pensador do século XIX que, quando es-
ho dimenticato le belle giornate trascorse a talou a revolta dos milaneses contra o do-
Brasília. E’ il ricordo di uno dei più interes- mínio austríaco em março de 1848, abando-
santi viaggi della mia vita”. nou os estudos e improvisou-se chefe do
comitê provisório dos rebeldes. Um exem-
Carlo Rosselli plo que sempre me fascinou, ainda que não
o tenha sabido imitar”.
Dos nomes que marcaram o itinerário Bobbio fez a sua militância filosófica con-
intelectual e pessoal de Bobbio, figura com forme os desafios que enfrentou, diferentes

32 Revista de Informação Legislativa


dos de Cataneo. Foi o melhor militante do são pontes para os grandes pensadores. São
estudo aprofundado dos clássicos, e da sua caminhos que nos levam a participar dessa
difusão a um amplo público, na luta da cul- “conversação da humanidade”, como de-
tura contra o fanatismo, a ignorância e a nominou Hobbes, sobre os temas recorren-
intolerância. Contribuiu de forma marcante tes da teoria política: a melhor forma de go-
para evidenciar, em nosso tempo, a necessi- verno, a democracia e a tirania, a guerra e a
dade e a dignidade da política. Seus livros paz, a justiça e a liberdade.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 33


34 Revista de Informação Legislativa
Os tratados na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal

Carlos Mário da Silva Velloso

Sumário
1. O conflito entre o direito interno e os
tratados: a posição do Supremo Tribunal Fede-
ral. 2. O artigo 98 do Código Tributário Naci-
onal. 3. Os direitos e garantias e os tratados
firmados pelo Brasil. 4. A questão das isenções
heterônomas e a isenção de tributos estaduais
e municipais por tratado internacional. 4.1. A
doutrina brasileira a respeito do tema. 5. Con-
clusão.

1. O conflito entre o direito interno


e os tratados: a posição do
Supremo Tribunal Federal
Em palestras que proferi, posteriormen-
te publicadas — “A Integração de Merca-
dos e o Poder Judiciário”(2002, p. 47 et seq.)
e “O Direito Internacional e o Supremo Tri-
bunal Federal” (2002, p. 5) —, versei sobre o
tema. Permito-me trazer ao debate questões
que abordei nos mencionados trabalhos,
nos quais sustentei, principalmente no se-
gundo, “O Direito Internacional e o Supre-
mo Tribunal Federal”, que o conflito entre
norma interna e norma internacional, ou
entre norma brasileira de produção domés-
tica e norma brasileira de produção inter-
nacional, relaciona-se com as doutrinas do
monismo e do dualismo. Segundo a doutri-
na dualista, que teve como precursor Trie-
pel, “a ordem internacional e a ordem inter-
na são duas ordens jurídicas que coexistem
independentemente, não sendo passíveis de
conflito entre si. Para que uma norma inter-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 35
nacional possa valer na esfera interna é ne- entre tratado internacional e lei do Congres-
cessário que a mesma sofra um processo de so, prevalece nos Estados Unidos o texto
recepção, transformando-se em regra jurí- mais recente, à base do princípio lex posteri-
dica interna. A partir daí, só é possível con- or... É certo, pois, que uma lei federal pode
flito entre duas normas internas, a ser resol- fazer ‘repelir’ a eficácia jurídica de tratado
vida pelo tradicional mecanismo: lex poste- anterior, no plano interno. Se assim não fosse
rior derogat legi priori” (RODAS, 1987, p. 43). – observa Bernard Schwartz – estar-se-ia dan-
O monismo surgiu com Kelsen. Segundo do ao tratado não força de lei, mas de restri-
essa doutrina, existe apenas uma ordem ju- ção constitucional” (REZEK, 1984, p. 465).
rídica, pelo que nega coexistirem duas or- No Brasil, antiga jurisprudência do Su-
dens jurídicas distintas. Por isso, admite a premo Tribunal Federal sustentava o prima-
possibilidade da ocorrência de conflitos do do direito internacional sobre o direito
entre normas internas e internacionais. interno (VALLADÃO, 1971, p. 96). Hoje,
“Daí”, acrescenta Grandino Rodas (1987, entretanto, a jurisprudência do Supremo
p. 43), “a possibilidade de duas espécies de Tribunal Federal orienta-se no sentido da
monismo: um que afirma a supremacia do paridade entre o tratado e a lei federal. Assim
Direito Internacional e outro que propugna decidiu o Supremo Tribunal, em 04.08.71,
a primazia do Direito interno”. O monismo portando o acórdão a seguinte ementa:
kelseniano é o monismo radical, que prega “Lei Uniforme sobre o Cheque,
o primado do Direito Internacional. Mas há, adotada pela Convenção de Genebra.
também, o monismo moderado, criado por Aprovada essa Convenção pelo Con-
Alfred Verdross, discípulo de Kelsen, “que gresso Nacional, e regularmente pro-
sustenta que os juízes nacionais devem apli- mulgada, suas normas têm aplicação
car tanto o direito nacional quanto o inter- imediata, inclusive naquilo em que
nacional de acordo com a regra lex posterior modificarem a legislação interna.”1
derogat legi priori, aplicada pela jurisprudên- A mais importante decisão proferida pelo
cia americana e brasileira”(DOLINGER, Supremo Tribunal Federal, entretanto, foi
1995, p. 71). tomada no julgamento do RE 80.004/SE,
A escola monista que defendia a prima- relator originário o Ministro Xavier de Al-
zia do direito interno – assim uma terceira buquerque e, relator para o acórdão, o Mi-
escola monista – acabou absorvida pela nistro Cunha Peixoto, julgamento realiza-
doutrina dualista (DOLINGER, p. 75). do em 1o.06.772.
Alguns países dão aos tratados interna- O relator originário, Ministro Xavier de
cionais prevalência sobre o direito interno Albuquerque, sustentou, vencido, o prima-
infraconstitucional: França, Constituição de do do Direito Internacional. A maioria, en-
1958, art. 55; Grécia, Constituição de 1975, tretanto, reconhecendo o conflito entre o tra-
art. 23, § 1o; Peru, Constituição de 1979, art. tado e a lei nacional, esta posterior àquele,
101 (REZEK, 1984, p. 463-464; RODAS, garantiu a autoridade da lei nacional, mais
1987, p. 43). recente, tendo em vista a paridade entre o
Nos Estados Unidos da América, o tra- tratado e a lei nacional. Os Ministros Cor-
tado equipara-se à lei federal, prevalecen- deiro Guerra, Rodrigues Alckmin, Thomp-
do, entretanto, sobre a legislação dos Esta- son Flores e Cunha Peixoto votaram no sen-
dos-membros. Assim tem entendido a juris- tido de que, da mesma forma que o tratado
prudência da Suprema Corte, interpretan- posterior derroga a lei, também a lei posteri-
do o art. VI, 2, da Constituição norte-ameri- or derroga o tratado anterior, segundo a re-
cana, que define as leis e os tratados, junta- gra lex posterior derogat legi priori. O Minis-
mente, como suprema lei do País, supreme tro Antônio Neder, com base em argumen-
law of the land. Destarte, “em caso de conflito tos diferentes, acompanhou a conclusão dos

36 Revista de Informação Legislativa


votos dos Ministros Peixoto, Guerra, Leitão, tabelecer o primado do Direito Inter-
Alckmin e Flores. O voto mais importante nacional sobre o Direito Interno, no
foi do Ministro Leitão de Abreu, voto que, campo tributário. Assim o voto que
segundo Rezek (1984, p. 472), melhor equa- proferi no citado REsp 846-SP:
cionou a controvérsia. Segundo Leitão de ‘Sempre entendi que, no campo tri-
Abreu, a lei posterior não revoga o tratado butário, os tratados e as convenções
anterior, “mas simplesmente afasta, en- internacionais, desde que regularmen-
quanto em vigor, as normas do tratado com te incorporados ao direito interno, pre-
ela incompatíveis”, pelo que “voltará ele a valecem sobre a legislação tributária
aplicar-se, se revogada a lei que impediu a interna. Vale dizer, sempre emprestei
aplicação das prescrições nele consubstan- validade ao que está disposto no art.
ciadas”. Prevaleceu, na verdade, o entendi- 98, CTN, não obstante reconhecer in-
mento de Leitão de Abreu, por isso que, re- correta a sua redação, por isso que as
vogado, posteriormente, o DL 427, pelo DL normas internacionais não revogam
1.700/79, o Supremo Tribunal Federal con- as leis internas, simplesmente preva-
tinuou a aplicar as Convenções de Genebra lecem sobre estas, no caso concreto. O
(DOLINGER, 1996, p. 93). Realmente, no Supremo Tribunal Federal, em diver-
julgamento do RE 95.002/PR, Relator o Mi- sos acórdãos, admitiu, no campo tri-
nistro Soares Muñoz, julgamento ocorrido butário, o primado do direito externo
em 15.9.81, o Supremo Tribunal aplicou o (RE 76.099-SP, Rel. Min. R. ALCKMIN,
art. 20 da Lei Uniforme sobre Letras de Câm- RTJ, 73/454; RE no 87.704-SP, Relator
bio e Notas Promissórias, que regula o en- Min. LEITÃO DE ABREU, RTJ 93/
dosso dado após o vencimento3. 1180; RE no 92.982-SP, Relator Min.
RAFAEL MAYER, RTJ 96/921; RE
2. O artigo 98 do Código 97.088-RJ, Relator Min. OSCAR COR-
Tributário Nacional RÊA, RTJ 104/1244).
É verdade que, no julgamento do
No campo tributário, o meu entendimen- RE no 80.004-SE, algumas vozes se
to é no sentido do primado do direito inter- manifestaram, de passagem, no senti-
nacional sobre o direito interno. É o que dis- do de que talvez não fosse possível ao
põe o art. 98 do Código Tributário Nacio- Código Tributário Nacional estabele-
nal, Lei 5.172, de 1966, recebida pela CF/67 cer o primado do Direito Internacio-
e pela CF/88 como lei complementar. Dis- nal sobre o Direito Interno, por isso
põe o mencionado art. 98, CTN: que apenas a Constituição poderia
“Art. 98. Os tratados e as conven- fazê-lo. A questão, entretanto, de
ções internacionais revogam ou mo- validade ou não do art. 98, CTN, não
dificam a legislação tributária inter- foi decidida no mencionado RE no
na e serão observados pelo que lhes 80.004-SE, porque a matéria discuti-
sobrevenha”. da ali não era tributária (RTJ 83/809).
Quando integrava o Superior Tribunal O que sustento é que a Constitui-
de Justiça, ao votar no julgamento do REsp ção de 1967 prescrevia, no art. 18, § 1o,
1.966/SP, sustentei, com o apoio dos meus que a lei complementar estabeleceria
eminentes pares: normas gerais de direito tributário,
“Em caso igual, REsp. no 846-SP, disporia sobre os conflitos de compe-
tive oportunidade de manifestar-me no tência nessa matéria entre a União, os
sentido da possibilidade de o Código Estados, o Distrito Federal e os Muni-
Tributário Nacional, na condição de cípios e regularia as limitações cons-
lei complementar à Constituição, es- titucionais do poder de tributar.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 37


Assim, fiel ao comando constitucio- insculpida no art. 98 do CTN, de que os tra-
nal, poderia a lei complementar esta- tados sobre matéria tributária não podem
belecer o primado anteriormente refe- ser afetados por lei posterior, deriva do fato
rido, já que essa matéria constitui, ao de que estes tratados são acordos contratu-
que me parece, norma geral de direito ais e, como tais, não podem ser afetados por
tributário. Destarte, força é concluir normas legais posteriores; as decisões base-
que, quando o CTN consagrou, no art. adas na natureza contratual do tratado e as
98, o primado do direito externo, fê-lo decisões baseadas no art. 98 do CTN são
com expressa autorização constituci- praticamente idênticas”.
onal. Vale acrescentar, de outro lado, Rezek (1984, p. 475), dissertando a res-
que a mencionada disposição inscri- peito, após mencionar o art. 98 do CTN, con-
ta no art. 98, CTN, foi bem recebida clui: “Em tal quadro, a lei ordinária confli-
pela Constituição de 1988, art. 146, III, tante com tratado preexistente há de sucum-
a dizer, da mesma forma, que cabe à bir, mas em razão de outro conflito: o que a
lei complementar estabelecer normas contrapõe à lei complementar. Esta não se
gerais em matéria tributária. confunde com a própria carta constitucio-
Lembrou bem o Sr. Ministro IL- nal, mas subjuga a lei ordinária inscrita em
MAR GALVÃO que a Corte Suprema, seu âmbito temático”.
por mais de uma vez, deu pela valida- Alberto Xavier (2000, p. 25) leciona “que
de do art. 98, CTN, jamais entenden- o art. 98 do Código Tributário Nacional, ten-
do que citado dispositivo fosse incons- do natureza de lei complementar, contém
titucional. um comando adicional ao legislador ordi-
Do exposto, porque entendo que, nário, que veda a este, hierarquicamente,
na órbita da legislação tributária, os qualquer desobediência ao tratado”. Sacha
tratados e as convenções internacio- Calmon Navarro Coelho (1993, p. 180) re-
nais, desde que incorporados ao di- gistra que “o Ministro Rezek, que pertenceu
reito interno, prevalecem sobre a le- à Suprema Corte, pôde dizer que o art. 98
gislação interna, assim válida a dis- (CTN) construiu, no domínio tributário, uma
posição inscrita no art. 98, CTN, adi- regra de primado do direito internacional
ro ao voto do Sr Ministro Relator’”. sobre o direito interno (Tratado e Legislação In-
Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, terna em Matéria Tributária, ABDF no 22). Hans
no citado REsp 1.966/SP, pela prevalência Kelsen, corifeu da teoria monista que dava
do Tratado do GATT, tendo em vista o dis- primazia aos Direitos das Gentes sobre os
posto no art. 98, CTN4. Direitos Nacionais, ficaria finalmente satis-
No julgamento do RE 90.824/SP, o Rela- feito. O Ministro Rezek indubitavelmente está
tor, Ministro Moreira Alves, deixou expres- certo”. A posição de Sacha Calmon (1997, p.
so que a disposição inscrita no art. 98 do 142 et seq) está reafirmada em obra posterior.
CTN é de ser observada. Está no voto do Em suma, no campo tributário, tem vi-
Ministro Moreira Alves, relator: gência o princípio do primado do direito
“(...) internacional sobre o direito interno.
De feito, em matéria tributária, in-
dependentemente da natureza do tra- 3. Os direitos e garantias e os tratados
tado internacional, observa-se o prin- firmados pelo Brasil
cípio contido no artigo 98 do Código
Tributário Nacional: Em votos proferidos no Supremo Tribu-
(...)”5 nal Federal6, tenho sustentado que são três
Leciona, a propósito, Jacob Dolinger as vertentes, na Constituição da República,
(1996, p. 97) que, “na realidade, a norma dos direitos e garantias: a) direitos e garan-

38 Revista de Informação Legislativa


tias expressos na Constituição; b) direitos e dem ser autônomas e heterônomas. Aque-
garantias decorrentes do regime e dos prin- las são as concedidas mediante lei da enti-
cípios adotados pela Constituição; c) direi- dade política titular da competência para
tos e garantias inscritos nos tratados inter- instituir o tributo. Estas, as heterônomas, são
nacionais firmados pelo Brasil (Constitui- concedidas mediante lei de entidade políti-
ção Federal, art. 5o, § 2o). ca que não é titular da competência para
Se é certo que, na visualização dos direi- instituir o tributo a que se refere a isenção. A
tos e garantias, é preciso distinguir, medi- Constituição pretérita autorizava à União a
ante o estudo da teoria geral dos direitos conceder, por meio de lei complementar,
fundamentais, os direitos fundamentais isenção de impostos estaduais e municipais
materiais dos direitos fundamentais pura- (Constituição de 1967, art. 18, § 2o). É dizer,
mente formais, conforme deixei expresso em a Constituição anterior permitia a conces-
voto que proferi na Ação Direta de Inconsti- são de isenção heterônoma. A Constituição
tucionalidade 1.497/DF e em trabalho dou- vigente, entretanto, veda à União instituir
trinário que escrevi (VELLOSO, 1997a, p. isenções de tributos da competência dos
162), se é certo, repito, que é preciso distin- Estados, do Distrito Federal ou dos Municí-
guir os direitos fundamentais materiais dos pios (CF/1988, art. 151, III). Lembra Hugo
direitos fundamentais puramente formais, de Brito Machado (2001, p. 192-193) que a
não é menos certo, entretanto, que, diante Constituição vigente não proíbe de todo as
de direito fundamental material, que diz res- isenções heterônomas, por isso que, no art.
peito à liberdade, inscrito em Tratado fir- 155, § 2o, XII, e, institui hipótese de tal isen-
mado pelo Brasil, como, por exemplo, o que ção: cabe à lei complementar excluir da in-
está expresso na Convenção de São José da cidência do ICMS, nas exportações para o
Costa Rica, art. 7o, item 7, que limitou a prisão exterior, serviços e outros produtos além dos
por dívida à hipótese de inadimplemento de mencionados no inciso X, a (CF, art. 155, §
obrigação alimentícia, força é reconhecer que 2o, XII, e).
se tem, em tal caso, direito fundamental com Vedado à União instituir isenções de tri-
status constitucional. É dizer, o art. 7o, item 7, butos da competência dos Estados, do Dis-
do citado Pacto de São José da Costa Rica, é trito Federal e dos Municípios (CF, art. 151,
direito fundamental em pé de igualdade com III), assim proibidas as isenções heterôno-
os direitos fundamentais expressos na Cons- mas, indaga-se se seria possível a conces-
tituição (Constituição, art. 5o, § 2o). são de isenções de impostos estaduais e
Nesse caso, no caso de tratar-se de direi- municipais mediante tratados internacio-
to e garantia decorrente de Tratado firmado nais. A resposta que dou é positiva. Penso
pelo Brasil, a incorporação desse direito e que, mediante tratados internacionais, fir-
garantia, ao direito interno, dá-se com status mados pela República Federativa do Brasil,
constitucional, assim com primazia sobre o na forma preconizada na Constituição Fe-
direito comum. É o que deflui, claramente, do deral, vale dizer, celebrados pelo Presiden-
disposto no mencionado § 2o do art. 5o da te da República, referendados pelo Congres-
Constituição da República. O Supremo Tri- so Nacional (CF, artigos 49, I, 84, VIII) e in-
bunal Federal, todavia, não acolheu essa tese7. corporados ao direito interno, será possível
a instituição de isenções de impostos esta-
4. A questão das isenções heterônomas e duais e municipais.
a isenção de tributos estaduais e O que precisa ser entendido é que num
Estado Federal convivem entidades parci-
municipais por tratado internacional
ais – União e Estados, federalismo clássico;
Uma das formas de classificação das União, Estados, Distrito Federal e Municí-
isenções tributárias enuncia que estas po- pios, federalismo brasileiro, CF, artigos 1o e

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 39


18 – dentro no todo, vale dizer, dentro do compreendem dois sistemas harmônicos
Estado Federal total. As entidades parciais que se encerram na coletividade total. Esta
são dotadas de autonomia, enquanto o Es- constitui verdadeiramente o Estado federal,
tado Federal total detém “personalidade ju- pois, como ordem jurídica total, abarca as
rídica de Direito Público internacional” (SIL- duas ordens jurídicas parciais – união e
VA, 2001, p. 104). A União, na Constituição membros – e surge na sua completa integri-
Federal, apresenta, pois, dois conceitos: o dade. A chamada ‘constituição federal’
de entidade parcial e o de Estado total. “A pode ser desdobrada em duas cartas distin-
União é a entidade federal formada pela reu- tas: a constituição total e a constituição da
nião das partes componentes, constituindo União. A constituição total compreende a
pessoa jurídica de Direito Público interno, verdadeira constituição federal e regula,
autônoma em relação aos Estados e a que portanto, os poderes do Estado federal. A
cabe exercer as prerrogativas da soberania constituição da União dispõe somente so-
do Estado brasileiro. Os Estados-membros bre as competências da coletividade central,
são entidades federativas componentes, delegadas pela constituição total. Ela se en-
dotadas de autonomia e também de perso- contra em plano idêntico ao das constitui-
nalidade jurídica de Direito Público inter- ções dos Estados-membros, que regem as
no” (SILVA, p. 104). competências outorgadas pela Constituição
Com propriedade, escreve Sacha Calmon total às coletividades parciais. Desse modo,
(1997, p. 183) que “a conjunção das ordens se evitam confusões como as que quotidia-
jurídicas parciais da União, dos Estados- namente ocorrem entre a União – uma das
membros e dos Municípios forma a ordem coletividades parciais – e o Estado federal –
jurídica total sob a égide da Constituição”. a comunidade total”.
Hans Kelsen formulou a teoria das três or- Celso Ribeiro Bastos (1980?, p. 103) leci-
dens jurídicas: a coletividade central, as co- ona que a “União é a pessoa jurídica de di-
letividades-membros e a comunidade total. reito público investida pela Constituição
Segundo Geraldo Ataliba (1976, p. 141), das atribuições que, dentre outras, vêm dis-
quem melhor sintetizou o pensamento kel- criminadas no seu art. 8o. Há que se fazer,
seniano foi Oswaldo Aranha Bandeira de contudo, uma distinção relativamente à
Mello, opositor, aliás, do Chefe da Escola de União, conforme ela seja considerada do
Viena. Lecionou Bandeira de Mello (1937, ângulo do direito interno ou do direito in-
p. 45-46 apud ATALIBA, 1976, p. 142-143)8: ternacional”. E acrescenta: “Com efeito, pe-
“A federação compreende três ordens jurí- rante o direito das gentes, a União representa
dicas distintas: a coletividade central, as a totalidade do Estado brasileiro, vale dizer,
coletividades-membros e a comunidade to- ela atua internacionalmente, como se o Brasil
tal. As duas primeiras ordens são juridica- fosse um Estado unitário, reunindo em si a
mente iguais, porque estão, na mesma me- totalidade das prerrogativas soberanas a se-
dida, subordinadas à ordem jurídica supe- rem exercidas frente a outros Estados”.
rior – a da comunidade total. Elas são or- Assim, quando à União é conferida com-
dens jurídicas parciais, pois as suas com- petência para manter relações com Estados
petências se circunscrevem somente a cer- estrangeiros e participar de organizações
tas matérias que lhes foram conferidas pela internacionais (CF, art. 21, I); declarar a guer-
ordem jurídica total. As ordens jurídicas ra e celebrar a paz (art. 21, II); permitir, nos
parciais, ao passo que se acham subordina- casos previstos em lei complementar, que
das à ordem jurídica total – que possui a forças estrangeiras transitem pelo território
suprema competência – encontram-se entre nacional ou nela permaneçam temporaria-
si numa relação de coordenação. A coletivi- mente (art. 21, IV), competência que deve ser
dade central e as coletividades-membros exercida com observância dos princípios

40 Revista de Informação Legislativa


inscritos no art. 4o da Constituição, tem-se versa, em autoridade, eficácia e apli-
outorga de competência internacional ou de cabilidade, daquela que se consubstan-
relações internacionais (VELLOSO, 1997, p. cia nas leis e atos de caráter meramente
391). Essa competência é conferida à União federal.
como Estado total e dela decorrem as com- Sob tal perspectiva, nada impede que
petências do Presidente da República para o Estado Federal brasileiro celebre trata-
celebrar tratados, convenções e atos inter- dos internacionais que veiculem cláusu-
nacionais e do Congresso Nacional para las de exoneração tributária, em maté-
referendá-los (CF, arts. 84, VIII e 49, I). As- ria de ICMS, pois a República Federati-
sim, quando a União celebra um tratado, não va do Brasil, ao exercer o seu treaty-
é a entidade parcial União que o faz; é a making power, estará praticando ato legí-
União, Estado total, ou a República Federa- timo que se inclui na esfera de suas prer-
tiva do Brasil que o faz. Disso resulta con- rogativas como pessoa jurídica de direi-
clusão irrefutável: quando a Constituição to internacional público, que detém – em
veda a concessão de isenções heterônomas, face das unidades meramente federadas
ao vedar à União instituir isenções de tri- – o monopólio da soberania e da perso-
butos da competência dos Estados, do Dis- nalidade internacional.
trito Federal e dos Municípios (CF, art. 151, Na realidade, a cláusula de vedação
III), a proibição dirige-se à União como enti- inscrita no art. 151, III, da Constituição
dade parcial e não à União como Estado to- é inoponível ao Estado Federal brasilei-
tal. Noutras palavras, a proibição inscrita ro (vale dizer, à República Federativa do
no art. 151, III, da Constituição, tem como Brasil), incidindo, unicamente, no pla-
destinatária a entidade parcial União e não no das relações institucionais domésti-
a República Federativa do Brasil “formada cas que se estabelecem entre as pessoas
pela União indissolúvel dos Estados e Mu- políticas de direito público interno.
nicípios e do Distrito Federal” (CF, art. 1o). Por isso mesmo, entendo que se re-
vela possível à República Federativa
4.1. A doutrina brasileira a respeito do tema do Brasil, em sua qualidade de sujeito
Com exemplar propriedade, lecionou, no de direito internacional público, con-
Supremo Tribunal Federal, no voto que pro- ceder isenção, em matéria de ICMS, me-
feriu na ADIn 1.600/DF, o Ministro Celso diante tratado internacional, sem que,
de Mello: ao assim proceder, incida em trans-
“A vedação constitucional em cau- gressão ao que dispõe o art. 151, III,
sa incide sobre a União Federal, en- da Constituição, pois tal regra consti-
quanto pessoa jurídica de direito pú- tucional destina-se, em sua eficácia, a
blico interno, responsável, nessa espe- vincular, unicamente, a União, enquan-
cífica condição, pela instauração de to entidade estatal de direito público
uma ordem normativa autônoma me- interno, rigorosamente pacificada, nes-
ramente parcial, inconfundível com a sa específica condição institucional, às
posição institucional de soberania do demais comunidades jurídicas parci-
Estado Federal brasileiro, que ostenta ais, de dimensão meramente regional
a qualidade de sujeito de direito inter- e local, como o são os Estados-membros
nacional público e que constitui, no e os Municípios”.
plano de nossa organização política, Não é outra a lição de José Souto
a expressão mesma de uma comuni- Maior Borges:
dade jurídica global, investida do po- “5.1. A União é uma pessoa jurídi-
der de gerar uma ordem normativa de ca de direito público interno. Por isso
dimensão nacional, essencialmente di- o exercício de sua competência, no

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 41


direito interno, pode ser contrastado no Federal, mas como Chefe de Esta-
com o da competência estadual e mu- do” (BORGES, 1997, p. 176 et seq.).
nicipal, dado que são ordens jurídi- O entendimento de Sacha Calmon (1997,
cas parciais, como visto. Daí a proibi- p. 183-184) é coincidente: “quando o art. 151,
ção de instituir à União isenções de III, da Constituição Federal veda à União a
impostos estaduais e municipais. Não faculdade de instituir isenções de tributos
se deve confundir a República Fede- da competência dos Estados, do Distrito
rativa do Brasil com uma entidade que Federal e dos Municípios, não está limitan-
a integra – a União, que não é sujeito do a competência do Estado brasileiro de
de direito internacional. Muito menos concluir acordos tributários que envolvam
os Estados-membros e Municípios. tributos estaduais e municipais, mas apenas
Nenhum desses é em si mesmo dota- proibindo, na ordem jurídica interna, a isen-
do de personalidade internacional. ção heterônoma e ditatorial que existia na
5.2. Constitui, porém, equívoco ele- Carta autoritária de 67”. No mesmo sentido:
mentar transportar os critérios cons- Valdir de Oliveira Rocha (1997, p. 280)9, Wel-
titucionais de repartição das compe- ber Barral e Tatiana Lacerda Prazeres (2001,
tências para o plano das relações in- p. 140), Hugo de Brito Machado (1997, p. 90-
terestatais. Essas reclamam paradig- 91) e Luciano Amaro (1997, p. 174-176).
ma diverso de análise. Nesse campo, Oswaldo Othon de Pontes Saraiva Filho
como já o fizera dantes com as leis (1998, p. 451) escreveu trabalho sobre o
nacionais, a CF dá à União competên- tema, no qual analisou os argumentos da
cia para vincular o Estado brasileiro corrente doutrinária que entende que o tra-
em nome dela e também dos Estados- tado internacional pode isentar tributos es-
membros e Municípios. A procedên- taduais e municipais e bem assim os argu-
cia dessa ponderação é corroborada mentos da corrente contrária e da corrente
pelo art. 5o, § 2o, da CF, in fine, ao refe- intermediária. Merece ser lido o trabalho do
rir expressamente os ‘tratados inter- Procurador Oswaldo Othon.
nacionais em que a República Fede- Há um livro precioso, que cuida do tema
rativa do Brasil (sic: não a União Fede- exaustivamente, em trabalhos de vários ju-
ral) é parte’. São, pois, áreas diversas ristas (MARTINS, 1997). Ives Gandra Mar-
e autônomas de vinculação jurídica. tins, coordenador do livro, não concorda
.................................................................... com o entendimento de que o Tratado pode
(...) Que um agente ou órgão da conceder isenções de tributos estaduais e
União, o Presidente da República ou municipais. Sustenta que deve o “Governo
Ministro de Estado, subscreva um tra- Federal, se quiser retomar o direito a estabe-
tado não significa que os Estados e lecer isenções, proceder à reforma constitu-
Municípios estejam pré-excluídos dos cional”, dado que “se o art. 151, inc. III, pro-
vínculos decorrentes da sua celebra- íbe a União de decretar isenções de tributos
ção. Precisamente o contrário é o que estaduais e municipais, não está o Presiden-
ocorre na hipótese, como a CF, art. 5o, te da República autorizado a desconsiderar
§ 2o, in fine, deixa claro. Insiste-se: é a dispositivo constitucional para firmar Tra-
República Federativa do Brasil (CF, tados veiculadores de isenções que só as
arts. 1o e 18) que celebra o tratado e é entidades federativas com competência im-
por ele vinculada, e, portanto, também positiva poderiam conceder” (MARTINS,
os Estados-membros e Municípios, e 1997, p. 33-34)10. Marco Aurélio Greco (1997,
não apenas a União. A esse ato inte- p. 45)11 entende que “a rigor, portanto, o Tra-
restatal, o Presidente da República tado não pode ‘conceder isenções’ de tribu-
comparece, não como Chefe do Gover- tos estaduais ou municipais. Mas pode pre-

42 Revista de Informação Legislativa


ver que a competência estadual ou munici- ra política a que pertencerem (União, Esta-
pal não alcança determinada mercadoria, dos, Distrito Federal ou Municípios)”.
situação, pessoa, etc”.
Opinam, de regra, pela negativa — os 5. Conclusão
tratados não podem conceder isenções de
tributos estaduais ou municipais — José Podemos assentar, em conclusão, as se-
Augusto Delgado (1997, p. 71)12, Diva Ma- guintes proposições:
lerbi (1997, p. 80)13, Marilene Talarico Mar- a) na jurisprudência do Supremo Tribu-
tins Rodrigues (1997, p. 150)14, Vittorio Cas- nal Federal, há paridade entre a norma bra-
sone (1997, p. 187)15, José Eduardo Soares sileira de produção doméstica e a norma
de Mello (1997, p. 201)16, Yoschiaki Ichiha- brasileira de produção internacional. Assim,
ra (1997, p. 243)17, Ricardo Abdul Nour o conflito entre uma e outra resolve-se, de
(1997, p. 322)18, Helenilson Cunha Pontes regra, pelo mecanismo tradicional: lex pos-
(1997, p. 383)19 e Mônica Cabral Moura terior derogat legi priori. Todavia, há de se ter
(1997, p. 395)20. presente que a lei posterior não revoga o tra-
Com trabalhos no mesmo livro (MAR- tado anterior, “mas simplesmente afasta,
TINS, 1997), opinam pela afirmativa: Hugo enquanto em vigor, as normas do tratado
de Brito Machado (1997, p. 91)21, Kiyoshi com ela incompatíveis”. Assim, revogada a
Harada (1997, p. 210)22, Moisés Akselrad lei que afastou a sua aplicação, voltará o
(1997, p. 226-229)23, Wagner Balera (1997, tratado a ter aplicação;
p. 258)24, Cecília Marcondes Hamati (1997, b) em matéria tributária, entretanto, ob-
p. 271-275)25, Valdir de Oliveira Rocha (1997, serva-se o princípio contido no artigo 98 do
p. 281)26, Fernando de Oliveira Marques Código Tributário Nacional: o primado da
(1997, p. 339-341)27, Edison Carlos Fernan- norma brasileira de produção internacional;
des (1997, p. 356-358)28, Halley Henares c) são três as vertentes, na Constituição
Neto e Vinicius T. Campanile (1997, p. 454)29, da República, dos direitos e garantias: 1)
Plínio Marafon e Maria Helena Tinoco Soa- direitos e garantias expressos na Constitui-
res (1997, p. 469)30, Antônio Carlos Rodri- ção; 2) direitos e garantias decorrentes do
gues do Amaral (1997, p. 495)31, Oswaldo regime e dos princípios adotados pela Cons-
Othon Saraiva Filho (1997, p. 506-507)32 e tituição; 3) direitos e garantias inscritos nos
Marcos da Costa e Paulo Lucena de Mene- tratados internacionais firmados pelo Bra-
zes (1997, p. 523-526)33. sil (CF, art. 5o, § 2o);
Recolho de Antônio Carlos Rodrigues do d) quando a Constituição veda a conces-
Amaral (1997, p. 495)34 a lição no sentido de são de isenções heterônomas, ao vedar à
que “o regime federativo é fruto de uma cria- União instituir isenções de tributos de com-
ção humana, identificada a partir da Conven- petência dos Estados, do Distrito Federal e
ção de Filadélfia, em 1787. Não é uma fórmu- dos Municípios (CF, art. 151, III), a proibi-
la rígida. Há que se garantir aos Estados fe- ção dirige-se à União como entidade parci-
derados um mínimo de autonomia legislati- al e não à União como Estado total, vale di-
va e financeira, o que não é, de forma alguma, zer, a República Federativa do Brasil “forma-
incompatível com o disciplinamento, no ní- da pela União indissolúvel dos Estados e
vel nacional, da estrutura básica dos tributos Municípios e do Distrito Federal” (CF, art. 1o).
por eles cobrados. Nem, tampouco, impede o
regime federativo que a Nação, representada
pelos Poderes Federais — compreendidos
como nacionais —, firme Tratados ou Con- Notas
venções internacionais disciplinando tribu- 1
RE 71.154/PR, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro,
tos domésticos, independentemente da esfe- RTJ 58/70.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 43


2
RE 80.004/SE, Rel. p/acórdão Min. Cunha BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucio-
Peixoto, RTJ 83/809. nal. 3. ed. São Paulo: Saraiva, [1980?].
3
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7
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“DJ” de 18.05.01; HC 76.561/SP, Rel. Min. Nelson berto. Direito tributário contemporâneo. São Paulo:
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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 45


46 Revista de Informação Legislativa
Entre a apologia e a utopia: em busca da
ética possível

Celso de Tarso Pereira

Sumário
1. Da utopia e do ceticismo 2. O Princípio
Responsabilidade: uma ética para a civilização
tecnológica

Em artigo publicado na Foreign Affairs


(março/abril 1996), In defense of Mother Tere-
sa, Stanley Hoffmann (1996, p. 172-175) de-
lineava algumas idéias sobre a moralidade
na política externa. Ao condenar a visão de
alguns analistas de que a política externa
americana deve pautar-se somente por inte-
resses e não por valores – e assim não deve-
ria preocupar-se com “small, poor, weak
and peripheral countries” –, Hoffmann pro-
cura reestabelecer uma conexão entre interes-
ses e valores, não somente devido à interde-
pendência entre sociedades e economias, mas
por existirem algumas situações que seriam
“morally unacceptable”. Ele realça, igual-
mente, a necessidade de se manter um “esta-
do de coisas moralmente aceitável” e refere-se
à existência de um “dever moral de agir”.
Se, por um lado, a inclusão de pondera-
ções éticas no campo das relações internacio-
nais representa um avanço considerável,
detecta-se facilmente, em outras passagens,
que o fundamento dessa ética para Hoffmann
parece ainda ser, em última análise, o grau de
perigo potencial para a estabilidade ou
bem-estar dos “major players” do cenário
internacional– um realismo moderado, en-
fim, que não tem nada em comum com a éti-
ca de Madre Teresa...
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O que significaria, porém, tomar a ética e outra pessoa lhe diz: “você joga muito
a sério no complexo panorama da política mal” e o jogador responde: “eu sei, mas eu
mundial? Se a ética sempre exigisse que agís- não quero jogar melhor”, tudo o que o inter-
semos contra nossos interesses, seria impos- locutor poderia dizer seria: “ah, então, nes-
sível ser ético; se, contudo, ela nunca exigis- se caso, tudo está bem!”. Se, porém, alguém
se restrições aos nossos interesses, ela seria está contando mentiras extravagantes e tra-
inútil (HOFFMAN apud SHUE, 1995, p. 456- paceando e o interlocutor diz: “você está-se
457). Somente em um equilíbrio entre uma comportando mal, como um irresponsável”
ética utópica e outra meramente apologéti- e a resposta é: “eu sei, mas eu não quero de
ca1, seria possível encontrar uma alternati- maneira nenhuma me comportar melhor”,
va válida para o tratamento das grandes poderia o interlocutor ainda dizer: “ah, nes-
questões internacionais, aí incluídos os cha- se caso, tudo está bem?”. Certamente não.
mados “novos temas”. Teríamos, nesse exemplo, a diferença entre
Levar a ética a sério, nesse contexto, sig- um julgamento de valor relativo e outro de
nifica considerar o interesse dos outros du- valor absoluto, reduzindo-se o primeiro a
rante o processo de elaboração e concepção um mero enunciado de fatos.
dos próprios interesses, e não após essa deci- Quando procuramos aplicar o mesmo
são, quando a estrutura das futuras ações já raciocínio ao comportamento dos Estados,
está definida. Uma maior eqüidade nas re- encontramos uma situação semelhante: se
lações internacionais só será possível se os um determinado Estado decide mudar sua
interesses nacionais forem formulados, des- política de incentivos culturais para apoiar
de o início, comprometidos com uma ordem mais o cinema do que a produção de livros,
internacional justa (a paz é fruto da justiça); isso pode ser discutível, mas tratar-se-ia, cla-
a tentativa posterior de promover uma mai- ramente, de um juízo de valor relativo; se,
or justiça global no espaço residual, que por outro lado, um Estado começa a cercear
possa sobrar depois que os interesses naci- direitos de suas minorias, a promover lim-
onais forem determinados de forma ampla pezas étnicas ou a ameaçar territorialmente
e ilimitada, equivaleria a uma mera filan- vizinhos mais frágeis, poderia ainda ser dito
tropia internacional, aliviadora, mas não “tudo está bem”? As evidentes agressões a
solucionadora de problemas: “Serious normas do Direito Internacional, infelizmen-
ethics operates at the center, not the fringe, te verificáveis diariamente nos jornais, co-
of legitimate interest”(SHUE, 1995, p. 457). metidas em todas as partes do globo, devem
A ética é a doutrina do como agir, “a in- ser apreciadas pelo prisma ético ou, por di-
vestigação geral daquilo que é o bem”, “a zerem respeito à atuação de Estados, devem
investigação do sentido da vida, ou daquilo pairar num firmamento aético e não passí-
que torna a vida digna de ser vivida, ou da vel de uma apreciação axiológica?
maneira correta de viver”(MOORE apud A reação internacional corrente, apesar
WITTGENSTEIN, 1971, p. 143)2. Podem, po- de reconhecer e criticar freqüentemente a
rém, padrões éticos irem além da esfera indi- violação de um padrão ético internacional,
vidual e valerem igualmente para o campo reduz-se, às vezes, ao silêncio ou à expedi-
das relações internacionais? Não valeria aí, ção de notas diplomáticas pro forma ou, ain-
muito mais, uma ética relativista fundada em da, a indicar a impossibilidade de qualquer
interesses imediatos? (WITTGENSTEIN, ação efetiva para restaurar aquele padrão
1971, p. 141-175) moral; variados interesses envolvidos em
A noção de um juízo relativo ou absolu- cada caso sobrepor-se-iam às considerações
to poderia ser vizualizada a partir de um éticas: importância estratégica do forneci-
exemplo comentado por Wittgenstein (apud mento de petróleo, razões de índole históri-
LAFER, 1996): se alguém está jogando tênis ca, a posição do país em apreço dentro de

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um bloco regional e o puro desinteresse com 1996): as demandas fáceis e contínuas no
o destino dos menos afortunados. âmbito interno, contudo, não encontram ain-
A multiplicação dos atores que partici- da canais adequados para obter respostas
pam da tomada de decisões no cenário in- satisfatórias e rápidas no âmbito da comu-
ternacional e a erosão parcial – mas sensí- nidade internacional, o que inviabilizaria a
vel – da soberania estatal fornecem, contu- formação e desenvolvimento de consensos
do, um novo panorama de análise: em um universais. Alguns eventos do segundo
mundo onde as ONGs, as empresas e os pós-guerra, no entanto, assinalam o que
próprios indivíduos – e a opinião pública poderia ser um renascimento ético, se bem
mundial – adquirem crescentemente mais que lento, no tratamento de temas cruciais
influência no processo decisório, a possibi- para a humanidade in totum.
lidade de que um padrão ético mínimo se Primeiramente, e de maneira mais evi-
consolide é menos utópica. dente, o tratamento dado à questão dos di-
reitos humanos, que, a partir da Declaração
1. Da utopia e do ceticismo Universal de 1948, experimentou uma evo-
lução palpável e consistente. Ainda sob os
Embora evidente na atualidade a inade- reflexos da brutalidade ilimitada verificada
quação dos paradigmas teóricos das rela- na 2a guerra, esse documento, na forma de
ções internacionais, a alternativa da idéia declaração não vinculante, acabou por ad-
de uma ética que permeie o processo decisó- quirir uma força inconteste, além de insti-
rio é recebida por muitos com ceticismo. Pela gar a realização de outras convenções e
visão cético-realista, alega-se que a socieda- mecanismos mais eficazes de implementa-
de internacional é anárquica, caracterizada ção do respeito aos direitos humanos. O sis-
por alto grau de caos e luta pelo poder, tema europeu e interamericano de proteção
acrescida de uma inevitável anarquia de aos direitos fundamentais da pessoa huma-
significados, a qual impossibilitaria as pre- na, com a presença de uma Corte competen-
tensões de uma leitura kantiana da realida- te para julgar e condenar violações às nor-
de internacional. A postura kantiana admi- mas acordadas, bem como as diversas Co-
te uma razão comum a toda a humanidade, missões e Comitês no âmbito das Nações
situada acima das raisons d’État; contrapõe- Unidas, com cada vez maior aceitação, é exem-
se, assim, à visão maquiávelico-hobbesiana plo marcante dessa evolução. Embora de ín-
de cunho realista e estatista e vai além da dole muito mais sensível, discute-se até mes-
mera coexistência pacífica de cunho grotia- mo a idéia de um direito de ingerência em
no, a qual percebe o potencial para uma so- casos graves de violação maciça de direitos
ciabilidade e solidariedade na comunidade humanos ou, pelo menos, para levar a cabo
internacional (BOBBIO, 1986, p. 36). missões de auxílio humanitário. Em um pra-
Na atual configuração do cenário inter- zo de 50 anos, portanto, criou-se pouco a
nacional, ademais, essa Razão universal é pouco um “respeitável minimalismo ético”
desafiada, por um lado, pelos particularis- – “thin morality” na qualificação de Micha-
mos regionais, que procuram impor uma el Waltzer – que reclama agora um trabalho
noção excludente e intolerante da realida- de adensamento gradual (ALVES, 1996).
de, e, por outro, pela própria expansão da A Conferência de Viena sobre Direitos
democracia pelo globo, a qual, na acepção Humanos, de 1993, significou um passo
de Bobbio, torna as demandas fáceis e as importante nessa direção. Ao estabelecer um
respostas difíceis, ao contrário dos gover- padrão comum de aceitação entre ociden-
nos autoritários, que estão em condições de tais e orientais, países desenvolvidos e sub-
tornar a demanda difícil e dispõem de mai- desenvolvidos, liberais e autoritários, capi-
or facilidade para dar respostas (LAFER, talistas e socialistas, tendências religiosas e

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profanas, a Conferência pôde superar a frag- pelo menos, o que não faz parte do interesse
mentação dos interesses e uma suposta ra- geral. O debate universal dos temas dessa
zão circunscrita aos diversos grupos. O Agenda diz respeito, diretamente, à discus-
avanço conceitual da Conferência deu-se em são de decisões políticas: o consenso alcan-
quatro pontos principais: a reafirmação da çado nas Conferências, portanto, mesmo se
universalidade dos direitos humanos; o re- mínimo, significa um ganho conceitual e
conhecimento da legitimidade do sistema prático de extrema importância.
internacional de proteção aos direitos hu- Um terceiro fenômeno, do fim do século
manos; o reconhecimento consensual do di- passado, é a difusão de “cross cultural ide-
reito ao desenvolvimento e o estabelecimento als”, os quais seriam indícios da formação
da inter-relação entre democracia, desenvol- embriônica de uma verdadeira comunida-
vimento e direitos humanos (ALVES, 1996). de internacional, não mais aquela centrali-
Um segundo marco nessa evolução éti- zada nos Estados e seus interesses, mas fun-
ca pode ser observado na realização das damentada em valores e políticas cosmopo-
Grandes Conferências Globais dos anos 90, litas e solidárias; os “sovereignty free
as quais simbolizam o esforço normativo agents” (RORTY, 1993, p. 111-134) e os in-
nos vários campos da esfera social, realizado divíduos seriam os atores a construir essa
pela quase totalidade dos países. “Ao estabe- moral transcultural. Se ela talvez não for
lecer de uma maneira não-impositiva, con- capaz de transformar o mundo em 20 anos,
sensualmente, diretrizes inter e intra-Estados qual a conseqüência de uma educação dos
para toda a humanidade, a Agenda Social sentimentos em escala mundial (“transcul-
subscreve a crença em uma Razão univer- tural education of sentiments”3) durante o
sal” (ROSENAU, 1990, Cap. 13). As seis mesmo tempo de ascensão e predomínio das
grandes conferências da década de 90 – unidades estatais (350 anos)?
Meio Ambiente e Desenvolvimento, Direi- Um fator importante na mudança de en-
tos Humanos, População e Desenvolvimen- foque da política internacional seria o pa-
to, Desenvolvimento Social, Direitos da pel renovado do estudo e ensino de relações
Mulher e Assentamentos Humanos – internacionais, o qual, segundo alguns au-
configuram-se na única alternativa racio- tores, teve durante muito tempo a função de
nal, com base em negociações globais con- ser um “Prozac” das ciências humanas
duzidas com sentido de cooperação e busca (BOOTH, 1995), sedando as consciências
do interesse geral, a sublevação dos parti- para as realidades humanas subjacentes à
cularismos excludentes e forças centrífugas contabilidade dos arsenais nucleares, às
de um mundo “pós-moderno”, no qual já disputas de poder na estratégia bipolar, aos
não valeriam os ideais do Iluminismo, mas “pivotal and failed states”, ao imperialis-
sim a “desrazão” fragmentária. mo e colonialismo, etc., temas tão bem trata-
A relevância dos temas da Agenda Soci- dos na teoria acadêmica das relações inter-
al para a própria sobrevivência da humani- nacionais, que acumula “books about books,
dade, e a impossibilidade de tratá-los de articles about articles and papers about pa-
maneira isolada, induz os Estados a busca- pers”. Não seria hora de perguntar se essa
rem, ao menos, denominadores comuns, o disciplina não deveria ter também uma fun-
que significa não pouca coisa na complexi- ção – social, política, psicológica – na evo-
dade da época contemporânea. A partici- lução da sociedade humana na esfera glo-
pação da sociedade civil nas fases prepara- bal? Ken Booth sugere a criação de uma “glo-
tórias das conferências, por outro lado, per- bal moral science”, direcionada não tanto
mite uma renovação nos procedimentos ne- às relações interestatais, mas à ética e à éti-
gociadores e uma “recentrage humaniste” da ca aplicada ao intrincado mundo das rela-
política internacional, e serve para mostrar, ções transnacionais.

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A situação, em todo caso, parece clara: sociedade. Um novo Imperativo Categórico
diante de tendências antagônicas, nosso para a época da civilização tecnológica, glo-
mundo terá de fazer uma opção entre balizada e fragmentada, não tão interdepen-
“agarrar-nos de modo ainda mais firme às dente como interconectada, e mais direciona-
intenções do Iluminismo... ou... desistirmos do à Política, poderia ser assim formulado:
do projeto da modernidade, dando-o como “Aja de tal maneira que os efeitos da sua
perdido” (Habermas, apud JONAS, 1984). ação sejam compatíveis com a permanência
O “homo ethicus”, assim, afigura-se como o de uma digna vida humana sobre a Terra”
fundamento necessário de uma cidadania ou, ainda, “Aja de tal maneira que os efeitos
moderna e cosmopolita, a qual ainda se pre- de sua ação não sejam destruidores das fu-
tenda humana. turas possibilidades de tal vida”. E Hans
Jonas (1984) ainda acrescenta, em enuncia-
2. O Princípio Responsabilidade: uma do de caráter mais positivo: “Inclua na sua
ética para a civilização tecnológica escolha atual a futura integridade do Ho-
mem como co-objeto do seu querer”.
É na esfera da proteção ao Meio Ambi- Os seres humanos do futuro, sendo uma
ente que podemos visualizar mais claramen- mera potencialidade, por qual força poderi-
te a importância da revitalização de princí- am ser representados nas escolhas do pre-
pios éticos, já que a destruição do nosso ha- sente? A única resposta parece ser uma heu-
bitat coloca em perigo toda a humanidade e rística do temor, a qual exige que se dê mais
não somente o causador da destruição. A atenção à profecia da tragédia do que à da
sobrevivência futura da humanidade – que salvação. A imaginação das conseqüências
é o que está em jogo – exige, contudo, a res- dos nossos atos deve assim ser um elemen-
posta a uma pergunta prévia: por que deve, to concreto a guiar nossas decisões, pois não
de maneira imperativa, existir o Homem podemos “apostar” aquilo que não nos per-
sobre a Terra? A fundamentação de uma éti- tence. Somente a degradação vislumbrada do
ca humana encontra, assim, sua validade Homem pode-nos instigar a perceber o conceito
última na metafísica, única instância que de Homem a ser dela resguardada.
poderia fornecer essa resposta: se antiga- A necessidade absoluta de que o Homem
mente a presença do Homem na Terra era não desapareça – e o dever ético de evitar
um dado evidente e inquestionável, a possi- isso – repousa, contudo, na metafísica: so-
bilidade de sua destruição, aos poucos ou mente a idéia de Homem que diga por que o
de uma vez, impõe-se-nos essa questão, que Homem deve existir poderá dizer-nos tam-
no fundo é um axioma, decifrável, talvez, bém como ele deve ser; a axiologia, assim,
somente no âmbito teológico. radicaria na ontologia.
Devido, portanto, às consequências im- À medida que os princípios éticos pas-
previsíveis que podem decorrer de nossas sam a permear o processo de tomada de de-
ações para o futuro, o Princípio Responsabili- cisões da política internacional e conduzem
dade (JONAS, 1984, p. 36) avança para o cen- gradualmente a um adensamento axiológi-
tro da ética, de maneira a auxiliar-nos no co e à conclusão de convenções internacio-
presente com decisões que podem afetar de nais, confere-se, pouco a pouco, o caráter de
modo drástico o futuro. soft power ao conteúdo mínimo alcançado.
O Imperativo Categórico de Kant estabe- Isso faz alguma diferença? Como Robert
lece: “Aja de tal maneira que você também Myers (1990) esclarece, “é possível chegar
possa desejar que a sua máxima (princípio) às mesmas decisões firmes em questões de
de comportamento possa-se tornar lei uni- política externa por meio de uma análise
versal”. Esse imperativo da razão prática orientada pela ética, tanto quanto por meio
dirige-se ao indivíduo e suas relações em de uma solução de auto-interesse. A solu-

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ção ética, a solução certa, é também a solu- BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Rio de
ção prática. A ética está ligada à razão, e é Janeiro: Paz e Terra, 1986.
isso o que faz dela um fator importante no BOOTH, Ken. Human wrongs and international
processo decisório pessoal, institucional, relations. International Affairs, London, v. 71, n. 1, p.
nacional e internacional. 103-123, Jan. 1995.
A ética a ser alcançada pode não ser, HOFFMANN, Stanley. In defense of Mother Tere-
dessa maneira, a ideal, mas pode muito bem sa. Foreign Affairs, New York, v. 75, n. 2, p. 172-175,
ser a possível para o mundo do século XXI. Mar./Apr. 1996.
JONAS, Hans. Das prinzip verantwortung. Frank-
furt: Suhrkamp Verlag, 1984.

Notas KOSKENNIEMI, Martti. From apology to utopia: the


structure of international legal argument. Helsinki:
1
Em analogia a Koskenniemi (1989). Lakimiesliiton Kustannus, 1989.
2
MOORE, George. Princípio Ethica. [S. l.: s.n.,
1903?]. As outras definições são do próprio LAFER, Celso. A ONU, os direitos humanos e o
Wittgenstein. Brasil. Correio Braziliense, Brasília, 25 maio 1996.
3
A possibilidade de sucesso parece estar na MYERS, Robert. Ética em questões internacionais.
educação das gerações futuras, muito mais que na Diálogo, [Rio de Janeiro?], 1990.
presente; seria adotar a posição de Aristóteles, e
não a de Platão, na questão de saber como lidar RORTY, Richard. Human rights, rationality, and
com Thrasymacus e Callicles: melhor do que per- sentimentality. In: SHUTE, Stephen; HURLEY, Su-
suadir indivíduos irresponsáveis da irrazoabilidade san (Ed.). On human rights: The Oxford Amnesty
de suas condutas, como advogava Platão, seria acei- Lectures. New York: Basic Books, 1993.
tar que não se poderia fazer muito com eles, e, por- ROSENAU, James. Turbulence in world politics: a
tanto, com Aristóteles, investir esforços em evitar ter theory of change and continuity. Princeton: Prince-
crianças semelhantes a eles (apud BOOTH, 1995). ton University Press, 1990. Cap. 13.
SHUE, Henry et al. Ethics, the environment and the
changing international order. International Affairs,
Bibliografia London, v. 71, n. 3, p. 456-587, 1995.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Conference sur
ALVES, Lindgren. A agenda social da ONU contra l’Ethique. In: ______. Leçons et conversations sur
a desrazão pós-moderna. Revista Brasileira de Ciên- l’esthétique, la psychologie et la croyance religieuse. Pa-
cias Sociais, São Paulo, v. 11, n. 30, p. 63-81, fev. ris: Gallimard, 1971. Éditée et commentée par Rush
1996. Rhees.

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Parecer
O caso Ellwanger: anti-semitismo como crime da prática do
racismo

Celso Lafer

Sumário
I - Considerações preliminares. II - Positi-
vação, generalização, internacionalização e es-
pecificação como processos de afirmação dos
direitos humanos. III - Interpretação do art. 5o,
XLII, da Constituição - critérios. IV - Interpre-
tação do art. 5o, XLII, da Constituição – o HC
82424-2 e o risco do esvaziamento do conteúdo
jurídico do preceito constitucional. V - Os ar-
gumentos apresentados no HC 82424-2 e os en-
sinamentos de decisões da Suprema Corte dos
EUA e da House of Lords da Inglaterra. VI - Da
raça ao racismo. VII - A prática do racismo e o
seu impacto no Direito Internacional da Pes-
Parecer apresentado e aceito pelo STF na soa Humana – a contribuição do Direito Inter-
condição de amicus curiae, no julgamento do caso nacional-Público para a exegese do art. 5o, XLII,
Ellwanger – HC 82424/RS (dezembro de 2002 a da Constituição de 1988. VIII - Amplitude da
setembro de 2003). Em cinco longas sessões, prática do racismo no Brasil. IX - Síntese con-
confirmou-se, por 8 votos a 3, a condenação, pelo clusiva.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em
outubro de 1966, de Siegfried Ellwanger pelo crime
da prática do racismo. Foram votos vencedores o
do Ministro Maurício Corrêa, relator do acórdão
(datado de 17 de setembro de 2003), e os dos I – Considerações preliminares
Ministros Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos
Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso e 1 – O Art 5º, XLXII, da Constituição de
Sepúlveda Pertence. O Acórdão foi publicado pelo 1988, diz: “a prática do racismo constitui
STF, com prefácio do Ministro Maurício Corrêa crime inafiançável e imprescritível, sujeito
(Crime de Racismo e Antisemitismo – um julgamento
à pena de reclusão nos termos da lei”.
histórico do STF. Brasília, Brasília Jurídica, 2004).
No HC 82424- 2, ora em exame pelo STF,
A professora Anna Maria Villela dedicou-se, alega-se, em síntese, como adiante se discu-
no seu consistente percurso intelectual, ao Direito tirá de maneira circunstanciada, que, não
Internacional, com ênfase no Direito Internacional
sendo os judeus uma raça, o crime pratica-
Privado, que tem entre os seus temas básicos o
relacionamento entre distintos ordenamentos jurí- do por Siegfried Ellwanger é o de incitamen-
dicos. Este parecer também examina a interação to contra os judeus e não o da prática do ra-
entre o ordenamento jurídico nacional e o Direito cismo. Dessa maneira busca o impetrante afas-
Internacional dos direitos humanos. Trata, assim,
tar a imprescritibilidade do delito cometido.
de uma das categorias do Direito Internacional –
Público e Privado – que é a da recepção, no hori- A matéria objeto deste parecer diz res-
zonte dos interesses de Anna Maria Villela. peito à procedência ou improcedência jurí-
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dica dessa alegação. Em síntese, assim foi helenística, com o fim da democracia e das
formulada a consulta: é o crime cometido cidades-estado, o estoicismo atribuiu ao in-
por Siegfried Ellwanger o da prática do ra- divíduo, que tinha perdido a qualidade de
cismo, nos termos da Constituição e da cor- cidadão para se converter em súdito das
respondente legislação infraconstitucional grandes monarquias, uma nova dignidade
que o tipificou, tal como decidiu o Tribunal de alcance universal. O mundo é uma única
de Justiça do Rio Grande do Sul e o Superior cidade – cosmo-polis – da qual todos partici-
Tribunal de Justiça confirmou quando de- pam como amigos e iguais. À comunidade
negou pedido de HC impetrado com os mes- universal do gênero humano corresponde
mos fundamentos? também um direito universal, fundado num
Como a vis directiva da tipificação do cri- patrimônio racional comum, daí derivando
me da prática do racismo é o art. 5º, XLII, um dos precedentes da teoria cristã da lex
integrante do Título II da Constituição, que aeterna e da lex naturalis, igualmente inspi-
tutela os direitos e garantias fundamentais, radora dos direitos humanos.
sua interpretação requer, por isso mesmo, O cristianismo associa o ensinamento
para o adequado entendimento do alcance judaico e o grego, ao aclimatar no mundo,
da matéria, breve consideração sobre o pro- através da evangelização, a idéia de que
cesso histórico de afirmação e subseqüente cada pessoa humana tem um valor absolu-
positivação dos direitos humanos. to no plano espiritual. Jesus, como ensina
2 – A tutela constitucional dos direitos e São Paulo, chamou a todos para a salvação
garantias fundamentais representa o reco- sem distinção entre judeus e gregos, escra-
nhecimento jurídico do valor da pessoa hu- vos e homens livres, homens e mulheres
mana, que é um dos princípios fundamen- (Epístola aos Romanos 10,12; Epístola aos Gála-
tais que a Constituição de 1988 proclama tas, 3,28). Neste sentido o ensinamento cris-
(art. 1º, III). O que cabe dizer sobre o processo tão é um dos elementos formadores da men-
histórico da afirmação desse valor, que está talidade que tornou possível o tema dos
na raiz da tutela contemplada no art. 5º, XLII? direitos humanos.
O valor da pessoa humana está presen- 3 – O tema dos direitos humanos adqui-
te no livro do Gênesis (1,26), que afirma que riu expressão normativa na Inglaterra, com
“Deus criou o homem à sua imagem”. Ensi- a Magna Carta (1212), com a lei do Habeas
na assim o Velho Testamento que o homem Corpus (1679) e com o Bill of Rights (1689), e
assinala o ponto culminante da criação, ten- passou a ter um papel de grande relevância
do importância suprema na economia do na doutrina jurídica do jusnaturalismo ra-
Universo. Na elaboração judaica desse en- cionalista da Idade Moderna. Essa doutri-
sinamento isso se traduz numa visão da uni- na difundiu largamente, nos séculos XVII e
dade do gênero humano, apesar da diversi- XVIII, a tese do contrato social, como expli-
dade de nações, que se expressa nas Leis de cação da origem do Estado, da Sociedade e
Noé (Gênesis, 9, 6-17). Essas são um direito do Direito, fundamentado na vontade con-
comum a todos, pois constituem a aliança corde dos indivíduos. O contratualismo tem
de Deus com a humanidade. Representam uma inequívoca dimensão democrática ao
um conceito próximo do jus naturae et gentium, justificar o Estado e o Direito, não como uma
inspirador de ensinamentos do cristianismo emanação de cima para baixo do poder do
e posteriormente de Grócio e Selden, que são soberano ou de Deus, mas sim de baixo para
uma das fontes das Declarações de Direitos cima, através da vontade dos indivíduos,
das Revoluções Americana e Francesa. que estão na base da sociedade.
Na vertente grega da tradição voltada A explicação contratualista, tal como for-
para afirmar a dignidade da pessoa huma- mulada por exemplo por Locke, explicita
na, cabe mencionar o estoicismo. Na época que o Estado e o Direito são um meio termo,

54 Revista de Informação Legislativa


fruto da celebração de um contrato social, A exigência de estabilidade é a razão de ser
que compatibiliza a liberdade de estado da do art. 60, § 4º, inciso IV, da nossa Consti-
natureza, onde tudo é permitido, com as tuição, que, ao estipular uma cláusula pé-
exigências da vida em sociedade. Daí, como trea, confere aos Direitos e Garantias fun-
diz Locke, a importância capital de settled damentais, contemplados no Título II, a sua
standing laws e o seu argumento de que os dimensão hierárquica de permanência.
homens would not quit the freedom of the state Neste sentido, a primeira conclusão des-
of nature a não ser para preservar their lives, te parecer é a de afirmar que o art. 5º, XLII,
liberties and fortunes; and by stated rules of por estar inserido na sistemática constituci-
right and property to secure their peace and qui- onal dos direitos e garantias fundamentais,
et (John Locke, Of Civil Government, Second tutelado por cláusula pétrea, deve ser apre-
Treatise, Chicago, Gateway, Ed. 1964, Cap. ciado e interpretado com cuidados especi-
11, p. 114). ais. Com efeito, a vis directiva do constituin-
O contratualismo inspirou a tutela dos te foi a de dar estabilidade e permanência a
direitos humanos através da Constituição, um sistema integrado de valores da convi-
pois um dos ingredientes da passagem do vência coletiva, que tem como valor-fonte a
Estado absolutista para o Estado de Direito dignidade da pessoa humana – um valor
foi a preocupação em estabelecer limites ao proclamado pela Constituição de 1988, cujo
poder discricionário do soberano em rela- processo histórico de afirmação e positiva-
ção às pessoas que integram a sociedade. ção apresentei de maneira apenas indicati-
Daí a idéia-força de combinar a divisão de va, porém com o objetivo de dar o alcance
poderes – na lição clássica de Montesquieu hierárquico da matéria em questão (cf. Celso
– com uma declaração de direitos, ambas Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos –
expressas num texto escrito: a constituição. um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt,
É este o sentido do artigo 16 da Declaração São Paulo, Cia. Das Letras, 1988, cap. IV, e as
Francesa dos Direitos do Homem e do Cida- amplas referências bibliográficas indicadas).
dão, de 1789: “Toda sociedade na qual a
garantia dos direitos não é assegurada nem II – Positivação, generalização,
a separação dos poderes determinada, não internacionalização e especificação
tem constituição”.
como processos da afirmação dos
4 – No jusnaturalismo racionalista e se-
cularizado que inspirou o constitucionalis-
direitos humanos
mo, os direitos humanos eram vistos como
direitos inatos e tidos como verdade eviden- 5 – Na sua análise do processo de reco-
te. A sua positivação constitucional através nhecimento jurídico dos direitos humanos,
de Declarações, que se inicia no século XVIII, Norberto Bobbio, endossando a análise de
com as Revoluções Americana e Francesa, Gregório Peces Barba, indica as etapas da
tinha como objetivo conferir aos direitos nela positivação, da generalização, da interna-
contemplados uma dimensão permanente cionalização, a elas agregando a da especi-
e segura. Essa dimensão seria o dado de es- ficação (cf. Norberto Bobbio, A Era dos Direi-
tabilidade, que serviria de contraste e torna- tos, Rio de Janeiro, Campus, 1992, pp.49-65;
va aceitável a variabilidade, no tempo e no Gregório Peces Barba e colaboradores, Cur-
espaço, do Direito Positivo dependente da so de Derechos Fundamentales Teoria General,
vontade do Legislador, em contextos locali- Madrid, Universidad Carlos III de Madrid,
zados e variáveis. Essa variabilidade é ex- Boletín Oficial Del Estado, 1995, pp. 154-
plicável, pois o Direito no mundo moderno 202).
passou a ter a dinâmica de um instrumento A etapa de positivação se inicia com as
de gestão de uma sociedade em mudança. Declarações dos Direitos e sua irradiação

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 55


nos textos constitucionais dos diversos pa- igualdade, não discriminação e fraternida-
íses – (cf. Alphonse Aulard e Boris Mirkine- de, que Cassin considerava os princípios
Guetzevich, Lés Déclarations des Droits de embasadores do pórtico do templo dos Di-
l’homme, Paris, Payot, 1929), em função do reitos Humanos, são a expressão do proces-
que foi acima apontado no item 4 deste pa- so de generalização (Cf. Marc Agi, René Cas-
recer. A etapa da positivação é indispensá- sin, Père de la Declaration Universelle des droits
vel, pois sem ela os direitos humanos não se de l’homme, Mesnil – Sur - L’Estrée, Perrin,
completam. Seriam valores e ideais que não 1998, p.232).
se realizariam plenamente. Assim como os 7 – A Constituição de 1988 explicita de
valores estéticos se realizam no quadro, na maneira inequívoca a afirmação dos princí-
poesia ou numa escultura, assim também o pios inerentes ao processo de generalização,
valor ético dos direitos humanos se realiza, com os seus componentes de igualdade e
como aponta Gregório Peces Barba, medi- não discriminação que acima discuti. Essa
ante sua incorporação ao Direito Positivo explicitação, como aponta José Afonso da
(Gregório Peces Barba, op. cit. p. 160). Silva, é veemente. Ela está presente não ape-
6 – A Declaração de Direitos da Virgínia nas no art. 5º, caput: “Todos são iguais pe-
e a Declaração Francesa de 1789, vincula- rante a lei, sem distinção de qualquer natu-
das à Revolução Americana e à Revolução reza”, mas se vê reforçada, como realça o
Francesa, que dão início ao grande proces- mesmo autor, pela relevância constitucio-
so de positivação, proclamam nas suas aber- nal de não discriminação consagrada no art.
turas, nos seus respectivos artigos iniciais, 3º, IV, que estabelece, entre os objetivos fun-
a dimensão igualitária dos direitos humanos damentais da República Federativa do Bra-
ao afirmar que todos os seres humanos são sil, o de “promover o bem de todos, sem
livres e iguais. É essa dimensão igualitária quaisquer preconceitos de origem, raça,
que caracteriza o processo da generalização. sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
Esse processo de generalização adquire de discriminação” (cf. José Afonso da Silva,
dimensão internacional com a Declaração Curso de Direito Constitucional Positivo, 22a
Universal dos Direitos Humanos do Homem ed., São Paulo, Malheiros, 2003, p.222).
de 1948, que afirma no seu artigo 1º: “Todos 8 – A especificação, observa Bobbio, é
os homens nascem livres e iguais em digni- uma outra etapa do processo de afirmação
dade e direitos. São dotados de razão e cons- histórica dos direitos humanos. Está volta-
ciência e devem agir em relação uns aos ou- da para determinar de maneira mais con-
tros com espírito de fraternidade”. creta – e não de forma abstrata, como no pro-
René Cassin, um dos grandes inspira- cesso de generalização – os destinatários da
dores e redatores da Declaração Universal, tutela jurídica dos direitos e garantias indi-
entendia que o seu artigo 1º, assim como o viduais. É assim que se completa a idéia dos
seu artigo 2º, constituem o pórtico do tem- destinatários genéricos – os seres humanos,
plo dos direitos humanos. Com efeito, o ar- os cidadãos – com a especificação do ser
tigo 2º é o corolário lógico do artigo anterior humano situado – como, por exemplo, a cri-
ao afirmar o princípio da não discrimina- ança, a mulher, o deficiente mental, os ido-
ção: “Art. 2º–1. Todo homem tem capacida- sos. Gregório Peces Barba, na sua elabora-
de para gozar os direitos e liberdades esta- ção, a partir de Bobbio, da etapa de especifi-
belecidos nesta Declaração, sem distinção cação, diz que se trata de um processo de
de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, concreção histórica que não é apenas uma
língua, religião, opinião ou de outra nature- elaboração do já consagrado pelo processo
za, origem nacional ou social, riqueza, nas- de generalização. É uma contribuição que
cimento ou qualquer outra condição”. Em agrega novos elementos ao conteúdo dos
síntese, os princípios gerais da liberdade, direitos humanos, que enriquecem e com-

56 Revista de Informação Legislativa


pletam o valor da dignidade da pessoa hu- O rigor da tutela penal constitucional-
mana, como o valor-fonte da sua positiva- mente previsto para a prática do racismo
ção (cf. Norberto Bobbio, op.cit., pp. 62-63; demonstra a importância que o constituinte
Gregório Peces Barba, op.cit., pp. 180-182). atribuiu à sua repressão, cabendo igualmen-
A Constituição de 1988 exprime de ma- te mencionar que a preocupação do consti-
neira muito nítida o impulso do processo tuinte com o tema também se expressa no
de especificação. É o que se depreende, por art. 4º, VIII, que estabeleceu como um dos
exemplo, da substanciosa análise que fez princípios que regem as relações internaci-
José Afonso da Silva, do Direito de Igualda- onais do Brasil o repúdio tanto do racismo
de, no seu Curso de Direito Constitucional Po- quanto do terrorismo – dois delitos para os
sitivo. Com efeito, ao princípio genérico da quais a Constituição prevê tutela penal ri-
não discriminação – a igualdade perante a gorosa.
lei sem distinção de qualquer natureza –, con- Assim, a segunda conclusão deste pare-
sagrado no caput do artigo 5º, o articulado cer é a de que o art. 5º, LXII, da Constituição
constitucional positiva especificações do ser exprime a etapa de especificação do processo
humano. Daí a afirmação da igualdade sem histórico de positivação dos direitos huma-
distinção de sexo; a igualdade sem distin- nos e a de que, nesse processo, o constituinte
ção de origem, cor e raça; a igualdade sem atribuiu à prática do racismo uma excepcio-
distinção de idade; a igualdade sem distin- nal gravidade, daí advindo o extraordinário
ção de trabalho; a igualdade sem distinção rigor da tutela penal nele contemplada.
de credo religioso; a igualdade sem distin-
ção de convicção filosófica, examinados por III – Interpretação do art. 5º, XLII, da
José Afonso da Silva (op.cit., pp.222-228). Constituição – critérios
O art. 5º, LXII, da Constituição de 1988 é
uma faceta constitucionalmente inovadora 8 – A interpretação é inerente à vida do
em nosso País do processo de especificação direito e os seus métodos um assunto muito
que tem como nota própria atribuir à práti- conhecido e debatido. Entendo, no entanto,
ca do racismo uma tutela penal. Essa tutela útil apresentar algumas observações sobre
penal é mais rigorosa do que a prevista no peculiaridades que cercam a interpretação
inciso anterior do mesmo artigo. Com efeito, dos direitos e garantias fundamentais. In-
o inciso XLI determina que “a lei punirá terpretar o art. 5º, LXII, significa dotar de
qualquer discriminação atentatória dos di- significado o conteúdo jurídico nele previs-
reitos e liberdades fundamentais”; já o inci- to. A particularidade da operação de inter-
so XLII estabelece que “a prática do racismo pretar os direitos humanos deriva, como
constitui crime inafiançável e imprescrití- observa Gregório Peces Barba, tanto da sua
vel, sujeito à pena de reclusão nos termos relevância hierárquica no sistema constitu-
da lei”. Essa tutela penal tem, portanto, ca- cional quanto do fato que numa democra-
racterísticas próprias que não são idênticas cia, que se baseia na perspectiva ex parte
a outras igualmente rigorosas presentes no populi, a ação de interpretar os direitos e
Título II, como a do art. 5º, XLIII (prática de garantias fundamentais deve partir da com-
tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e preensão de que os direitos são os legitima-
drogas afins, o terrorismo e os definidos dores do sistema. Essa visão de Peces Barba
como crimes hediondos), mas que coincidem se coaduna com a Constituição de 1988 à
com a do art. 5º, LXIV, que também constitui luz da cláusula pétrea que os cerca (art. 60,
como “crime inafiançável e imprescritível a § 4º – inciso IV); dos objetivos da República
ação de grupos armados, civis ou militares, Federativa do Brasil entre os quais está o de
contra a ordem constitucional e o Estado de promover o bem de todos sem quaisquer dis-
Direito”. criminações (art. 3º, IV); do fundamento da

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 57


dignidade humana afirmado no art. 1º, III, eles está o da prevalência dos direitos hu-
todos já referidos no correr deste parecer. É manos (art. 4º, II). Devem ser aplicados le-
por esse motivo, como realça Peces Barba, vando-se em conta suas implicações no pla-
que na interpretação dos direitos humanos no interno, não só por uma questão de coe-
deve-se favorecer siempre y em todo caso, de la rência, mas pelo fato de que nesta era de
mejor forma posible el contenido del derecho globalização vem-se diluindo a diferença
(Gregório Peces Barba, op. cit., p. 577). entre o “interno” e o “externo”. No caso em
Registro que foi dessa maneira que pro- questão, que envolvia a cooperação inter-
cedi na interpretação, no âmbito do Execu- nacional em matéria de combate ao terroris-
tivo, do princípio constitucional do repú- mo, isso era evidente, pois o tema passava
dio ao terrorismo e ao racismo (art. 4º, VIII), pelas cidades brasileiras de Chuí e Foz do
que é um dos princípios que regem as rela- Iguaçu. Daí o vínculo entre o art. 4º, VIII e o
ções internacionais do nosso País. Com efei- art. 5º, XLII, e a ênfase atribuída ao risco da
to, como Ministro de Estado das Relações prática discriminatória do racismo e das te-
Exteriores, e com a responsabilidade jurídi- orias e preconceitos que a sustentam em
ca que essa condição me atribuía, afirmei relação a palestinos e muçulmanos e não,
que a iniciativa brasileira de invocar o Tra- realço, em raça, palavra que não está conti-
tado Interamericano de Assistência Recípro- da nem no art. 4º, VIII, nem no art. 5º, XLII.
ca, em função dos ataques terroristas aos (Sobre princípios constitucionais a reger as
EUA em 11 de setembro de 2001, significa- relações internacionais, cf. Antonio Ramiro
va aplicar o art. 4º, VIII – repúdio ao terro- Brotons, La acción exterior del Estado, Madrid,
rismo – de maneira congruente com o senti- Tecnos, 1984, pp.92-115; Pedro Dallari, Cons-
do, no plano interno, do art. 5º, LXIII. Da tituição e Relações Exteriores, São Paulo, Sa-
mesma maneira, afirmei que o trato do tema raiva, 1994, que também analisa o repúdio
da segurança e da cooperação internacio- ao terrorismo e ao racismo, vinculando-os
nal no combate ao terrorismo, na tríplice ao art. 5º, XLII e XLIII, ver pp. 175-178. No
fronteira da Argentina, do Paraguai e do meu prefácio ao livro de Pedro Dallari, exem-
Brasil, que inclui as cidades de Chuí e Foz plifiquei várias situações de aplicação a situ-
do Iguaçu, nas quais vivem numerosas pes- ações concretas dos princípios constitucio-
soas de origem árabe, palestinos e fiéis mu- nais que regem as relações internacionais.)
çulmanos, exigia uma atitude do Executivo, Ao conferir o maior conteúdo possível
inequivocamente firme na oposição ao pre- ao art. 5º, XLII, ou seja, à prática do racismo,
conceito e à discriminação. Fundamentei interpretei-o em consonância com a visão
essa posição tanto no princípio do repúdio internacional da matéria. Lembro, neste
ao racismo no plano internacional (art. 4º, sentido, a Resolução 623 da Assembléia
VIII) quanto na vis directiva constitucional, Geral da ONU de dezembro de 1998 que, no
para o plano interno, de uma sociedade plu- seu item 17, insta todos os governos a
ralista, voltada para afirmar o bem de todos cooperar com o relator especial da Comissão
(art. 3º, IV). Neste sentido, dei, na linha de dos Direitos Humanos incumbido de
Peces Barba, o maior conteúdo possível ao examinar as formas contemporâneas de
art. 5º, XLII (cf. Celso Lafer, Mudam-se os Tem- racismo, discriminação racial, xenofobia e
pos – Diplomacia Brasileira - 2001-2002, Bra- outras formas correlatas de intolerância.
sília, Funag-Ipri, 2002, pp. 53-69). Essa colaboração tem como objeto, nos
Passo a explicitar a minha linha de raci- termos do item 17, o exame de incidents of
ocínio. Os princípios constitucionais que contemporary forms of racism and racial
regem as relações internacionais estabele- discrimination, inter-alia, against blacks, Arabs
cem padrões de comportamento, estímulos and Muslins, xenophobia, Negrophobia, anti-
e limites à conduta externa do Brasil. Entre semitism and related intolerance.

58 Revista de Informação Legislativa


O item 17 da Resolução 623/98 da As- manos e o Brasil, 2a ed., Brasília, Editora Uni-
sembléia Geral, que sustenta minha inter- versidade de Brasília, 2000, p. 26 e passim).
pretação sobre a prática do racismo atingin- Como adiante se verá, para o objeto des-
do árabes e muçulmanos, refere-se igual- te parecer, voltado para discutir o conteúdo
mente ao anti-semitismo. Daí a relevância do crime de racismo suscitado pelo HC
de se examinar qual é a contribuição que o 82424-2, não será necessário analisar as
Direito Internacional Público pode oferecer múltiplas dimensões e as controvérsias ju-
como critério de interpretação do art. 5º, XLII, rídicas em torno do alcance dessa interação
no caso ora em apreciação, pelo STF. entre o Direito Internacional e Direito Inter-
9 – A Constituição de 1988 é explicita- no no sistema da Constituição de 1988. É
mente receptiva ao Direito Internacional relevante, no entanto, apontar que o Direito
Público em matéria de direitos humanos não Internacional dos Direitos Humanos pode
só pelo princípio de sua prevalência nas re- contribuir para a interpretação e o reforço
lações internacionais (art. 4º, II), como em da imperatividade dos direitos constitucio-
especial pelo § 2º do art. 5º, que estabelece: nalmente garantidos.
“Os direitos e garantias expressos nesta Esse é um entendimento que o STF reco-
Constituição não excluem outros decorren- nheceu ao julgar o HC 7384, em 23/6/1994,
tes do regime e dos princípios por ela adota- em fundamental acórdão relatado pelo emi-
dos, ou dos tratados internacionais em que nente Ministro Celso de Mello e substanti-
a República Federativa do Brasil seja par- vamente analisado por Flávia Piovesan. Na
te”. Se a referência ao caráter não exaustivo discussão sobre a existência jurídica do cri-
ou supressivo da enumeração de direitos me de tortura contra crianças e adolescen-
tem antecedentes em nosso direito constitu- tes, tipificado na época pelo art. 233 da Lei
cional, é novidade a menção explícita aos nº 8.069/90 com fundamento no art. 5º,
tratados internacionais de que o Brasil é XLIII, da Constituição, o Ministro Celso de
parte, como aponta Antonio Augusto Can- Mello ressaltou: “o tipo penal em causa é
çado Trindade. Ela assinala, constitucional- passível de complementação, à semelhança
mente, a identidade de objetivos do direito do que ocorre com tipos penais abertos, bas-
internacional e do direito público interno tando, para esse efeito, que o aplicador da
quanto à proteção da pessoa humana (cf. norma proceda à integração do preceito pri-
Antonio Augusto Cançado Trindade, A Pro- mário incriminador mediante a utilização
teção Internacional dos Direitos Humanos – Fun- dos meios postos à sua disposição. Cumpre
damentos Jurídicos e Instrumentos Básicos, São destacar, pois, dentro dessa perspectiva, a
Paulo, Saraiva, 1991, p. 635). É essa identi- existência de diversos atos internacionais
dade que leva Cançado Trindade a afirmar que, subscritos pelo Estado brasileiro, se
que, longe de operarem de modo estanque acham formalmente incorporados ao nosso
ou compartamentalizado, o Direito Interna- sistema jurídico. O Brasil, consciente da ne-
cional e o Direito Interno, por força da Consti- cessidade de prevenir e reprimir os atos ca-
tuição de 1988, passaram efetivamente a inte- racterizadores de tortura, subscreveu, no
ragir em matéria de direitos humanos, caben- plano externo, importantes documentos in-
do lembrar, como ele documenta em livro re- ternacionais de que destaco, por sua inques-
cente, que o Brasil participou do processo de tionável importância, a Convenção contra a
elaboração normativa do direito internacio- Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cru-
nal da pessoa humana, tanto no plano glo- éis, Desumanas ou Degradantes, adotada
bal, no âmbito das Nações Unidas, quanto pela Assembléia Geral das Nações Unidas
no plano regional, no âmbito do sistema ame- em 1984, a Convenção Interamericana so-
ricano (cf. Antonio Augusto Cançado Trin- bre Direitos Humanos (Pacto de São José da
dade, A Proteção Internacional dos direitos hu- Costa Rica) adotada no âmbito da OEA em

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1969. Esses atos internacionais já se acham sim o de incitamento contra o judaísmo.
incorporados ao plano do direito positivo Busca, assim, ilidir a imprescritibilidade do
interno (Decreto nº 40/91, Decreto nº delito a que seu paciente foi condenado.
98.386/89 e Decreto 678/92) e constituem, O pedido de HC perante o Superior Tri-
sob esse aspecto, instrumentos normativos bunal de Justiça tinha como objeto o subs-
que, podendo e devendo ser considerados tancioso acórdão da 3a Câmara Criminal do
pelas autoridades nacionais, fornecem sub- Tribunal de Justiça do Estado do Rio Gran-
sídios relevantes para a adequada compre- de do Sul que condenou Sigfried Ellwanger
ensão da noção típica do crime de tortura, ao imprescritível crime de racismo, com
ainda que em aplicação limitada, no que se amparo no art. 20 da Lei nº 7.716/89, com a
refere ao objeto de sua incriminação, “ape- nova redação dada pela Lei nº 8.081/90,
nas às crianças e adolescentes” (cf. Flávia tendo o desembargador José Eugenio Tedes-
Piovesan, Direitos Humanos e o Direito Cons- co sublinhado no seu voto “a supremacia
titucional Internacional, (5a ed., revista, am- valorativa do dever de não discriminar” con-
pliada e atualizada), São Paulo, Max Limo- sagrada na Constituição de 1988.
nad, 2002, pp.111-115 e passim; cf. igual- O Superior Tribunal de Justiça, em de-
mente Valério de Oliveira Mazzuoli, Direi- cisão majoritária da sua 5a Turma presi-
tos Humanos, Constituição e os Tratados Inter- dida pelo Ministro Felix Fischer, rejeitou
nacionais, São Paulo, Editora Juarez de Oli- as alegações do impetrante, tendo sido
veira, 2001, cap. VII). relator do feito o Ministro Gilson Dipp. Este,
Em síntese, e esta é a terceira conclusão no seu preciso voto, deu, no meu entender
deste parecer, o critério da interpretação do com toda razão, ênfase na interpretação do
art. 5º, LXII, deve favorecer de maneira am- art. 5º, LXII, ao artigo 20 da Lei 8.081/90 que
pla e não restritiva o conteúdo do direito foi acréscimo à Lei nº 7.716 de 5 de janeiro
nele contemplado, dada a relevância que a de 1989. Diz o art. 20, que trata dos crimes
Constituição atribui aos direitos e garanti- e penas aplicáveis aos atos discriminató-
as fundamentais, entre as quais se inclui a rios ou a preconceito de raça, cor, religião,
rigorosa inaceitabilidade da prática do ra- etnia ou procedência nacional, praticados
cismo. Nessa interpretação, o Direito Inter- pelos meios de comunicação ou por pu-
no e o Direito Internacional interagem e não blicações de qualquer natureza:
são estanques com vistas a reforçar a impe- “Praticar, induzir ou incitar, pelos mei-
ratividade do direito constitucionalmente os de comunicação social ou por publica-
garantido, voltado para impedir a prática ções de qualquer natureza, a discriminação
do racismo. ou preconceito de raça, religião, etnia ou pro-
cedência nacional.
IV – Interpretação do art. 5º, LXII, da Penas: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco)
Constituição – o HC 82424-2 e o risco anos”.
Entendeu o Ministro Gilson Dipp que o
do esvaziamento do conteúdo jurídico
crime praticado por Siegfried Ellwanger é
do preceito constitucional daqueles classificados na categoria de mera
10 – O impetrante alega no HC 82424-2, conduta, ou seja, não se exige a realização
perante o Supremo Tribunal Federal, como de resultado material para a sua configura-
antes alegara perante o Superior Tribunal ção, e que não cabe fazer a diferenciação en-
de Justiça, que, não sendo os judeus uma tre as figuras de prática, incitação ou de in-
raça, o crime perpretado por seu paciente duzimento “para fins de configuração de
ao editar e vender livros que fazem a apolo- racismo, eis que todo aquele que pratica uma
gia de idéias preconceituosas contra os ju- destas três condutas discriminatórias ou
deus não foi o de prática do racismo, mas preconceituosas é autor do delito de racis-

60 Revista de Informação Legislativa


mo, inserindo-se, em princípio, no âmbito to da discriminação, condenada pelo art. 5º,
da tipicidade direta”. LXII, da Constituição de 1988. É por esta ra-
O Ministro Jorge Scartezzini, no seu im- zão que o impetrante comete uma falácia
portante voto, no qual acompanha o Minis- argumentativa ao afirmar que o crime de
tro Relator, trouxe à colação a doutrina bra- Siegfried Ellwanger não se subsume como
sileira que comenta o art. 5º, LXII, da Cons- prática de racismo nos termos do art. 20
tituição, ao examinar os pontos de vista ex- da Lei 8.081/90, uma vez que os judeus
postos por Manoel Gonçalves Ferreira Fi- não são uma raça e por isso mesmo o de-
lho, Celso Ribeiro Bastos e José Cretella Jr. lito cometido pelo seu paciente é o do in-
Agrega o Ministro Jorge Scartezzini elemen- citamento contra o judaísmo e não o da
tos adicionais no seu voto, ressaltando que a prática do racismo.
Constituição de 1988, ao dispor sobre o tema No seu arrazoado, o impetrante invo-
da prática de racismo, “pretendeu que tal prá- ca publicação da UNESCO que afirma que
tica fosse abolida e reprimida em todas as suas os judeus não formam uma raça. Omite,
formas e não só pela tez da pele”. no entanto, que a UNESCO foi uma das
O Ministério Público Federal, em pare- primeiras entre as organizações interna-
cer de autoria de Cláudio Lemos Fonteles, cionais do pós-Segunda Guerra Mundi-
Subprocurador-Geral da República, opinou al, em função dos próprios termos de sua
pelo indeferimento do pedido de HC pelo ata de constituição, que se dedicaram a
Supremo Tribunal Federal, afirmando que é demonstrar e condenar o conteúdo racis-
“injurídico o argumento que, pelo texto cons- ta da ideologia nazista (cf., por exemplo,
titucional, reduz a prática do racismo à Juan Comas, Kenneth I. Little, Harry I.
raça”. Em seu parecer, Cláudio Lemos Fon- Shapiro, Michel Leiris, Claude Lévi-
teles se baseia na Lei 8.071/90 e realça que Strauss, Raça e Ciência I, São Paulo, Perspec-
hoje, pela Lei 9.458/97, ex-vi do novo pará- tiva, 1970, e muito especialmente, para os pro-
grafo 2º do artigo 20, o meio – “valendo-se pósitos deste parecer, a apresentação, pp. 7-
dos meios de comunicação social de qual- 9). É essa ideologia que Siegfried Ellwanger
quer natureza” – passou a constituir-se em vem-se dedicando a divulgar por publica-
forma qualificada, com apenação autônoma ções, ao arrepio do art. 20 da Lei 8.081/90.
mais grave do crime da prática do racismo. Foi por se preocupar desde suas origens
Conclui que a legislação infraconstitucio- com a prática do racismo que a UNESCO
nal, ao definir a prática do racismo, tipifi- adotou e proclamou, em 27 de novembro de
cou várias figuras penais e que esses crimes 1978, na vigésima sessão de sua conferên-
são todos imprescritíveis. Afirma assim cia geral, uma importantíssima Declaração
Cláudio Lemos Fonteles que não há extra- sobre Raça e Preconceito Racial. Essa De-
vasamento na interpretação do texto consti- claração, igualmente omitida no arrazoado
tucional quando se conclui que Siegfried do impetrante, contesta frontalmente a sua
Ellwanger, ao infringir o art. 20 da Lei nº argumentação.
8.081/90, cometeu o crime de prática do ra- Diz o art. 1 – 1 da Declaração da UNES-
cismo. CO que todos os seres humanos pertencem
11 – O crime de prática do racismo, como a uma única espécie, o que não exclui, como
concluiu o acórdão do Superior Tribunal de afirma o inciso II do artigo 1, o direito à di-
Justiça, confirmando o entendimento do Tri- versidade de indivíduos e grupos. No seu
bunal de Justiça do Rio Grande do Sul, não se artigo 2 – 1, a Declaração afirma que quais-
baseia no termo “raça”, que tem conotação quer teorias que contemplem a reivindica-
pseudocientífica – como adiante se verá com ção de que grupos raciais ou étnicos são ine-
o devido rigor – mas sim nas teorias e concep- rentemente superiores ou inferiores não têm
ções que atribuem ao termo raça o fundamen- fundamento científico e são contrárias aos

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 61


princípios morais e éticos da humanidade. political tensions between peoples; it is contrary
Os textos acima referidos, na íntegra, são os to the fundamental principles of international
seguintes: law and, consequently, seriously disturbs
“Art. 1 – 1 All human beings belong to a international peace and security.”
single species and are descended from a common Afirma igualmente a Declaração, no seu
stock. They are equal in dignity and rights and art. 5 – 3, ao falar da cultura e dos meios de
all form an integral part of humanity.” comunicação, que a erradicação do racis-
“Art. 1 – 2 All individual and groups have mo, da discriminação racial e do preconcei-
the right to be different, to consider themselves to racial requer “refraining from presenting a
as different and to be regarded as such. However, stereotyped, partial, unilateral or tendentious
the diversity of life styles and the right to be pictures of individuals and of various human
different may not, in any circumstances, serve as groups.”
a pretext for racial prejudice; they may not justify {(O texto completo da Declaração se en-
either in law or in fact any discriminatory contra na publicação da ONU, Human Ri-
practice whatsoever, nor provide a ground for ghts. A Compilation of International Instru-
the policy of ‘apartheid’, which is the extreme ments, vol. 1 (First Part) Universal Instru-
form of racism.” ments, United Nations, New York and Ge-
“Art. 2 – 1 Any theory which involves the neva, 1994 (ST/HR/1/Rev. 5) vol. 1, Part I,
claim that racial or ethnic groups are inherently pp. 133-134)}.
superior or inferior, thus implying that some Como se vê, a UNESCO de maneira al-
would be entitled to dominate or eliminate others, guma abona a tese do impetrante, pois sub-
presumed to be inferior, or which bases value sume inequivocamente o crime de Siegfried
judgements on racial differentiation, has no Ellwanger na tipicidade da prática do ra-
scientific foundation and is contrary to the moral cismo.
and ethical principles of humanity.” O impetrante, no seu arrazoado, traz à
Prossegue a Declaração, no art. 2 – 2, colação texto da antropóloga Lilia Moritz
para qualificar o que é racismo e substanti- Schwarcz para abonar a tese de que o dis-
vamente realçar que a prática do racismo curso racista no Brasil sempre foi dirigido
reside nas ideologias racistas, nas atitudes contra o negro. Ora, essa mesma antropólo-
preconceituosas, no comportamento discri- ga escreveu livro recente sobre Racismo no
minatório que levam à desigualdade racial, Brasil (São Paulo, Publifolha, 2001). Nele
e não reside no conceito de “raça” que o art. afirma: “Raça é, assim, uma construção his-
1 – 1 da Declaração nega, ao afirmar a uni- tórica e social, matéria-prima para o discur-
dade da espécie humana. Diz o art. 2 – 2, na so das nacionalidades”; ou então, confor-
íntegra, o seguinte: me Thomas Sowell, “antes de um conceito
“Art. 2 – 2 Racism includes racist ideologies, biológico é uma realidade social, uma das
prejudiced attitudes, discriminatory behaviours, formas de identificar pessoas em nossas
structural arrangements and institutionalized próprias cabeças” (p. 35). Afirma, igualmen-
practices resulting in racial inequality as well as te, lastreada em Louis Dumont, conhecido
the fallacious notion that discriminatory estudioso das castas, que “o racismo repre-
relations between groups are morally and senta a hierarquia reinventada em socieda-
scientifically justifiable; it is reflected in des supostamente igualitárias” e que o ra-
discriminatory provisions in legislation or cismo é uma “naturalização das diferenças”,
regulations and discriminatory practices as well “uma tentativa de fazer a diversidade ser
as in anti-social beliefs and acts; it hinders the mais do que é” (p. 81). Por isso, ao apontar
development of its victims, perverts those who que o racismo é um tema da agenda global e
practise it, divides nations internally, impedes ao discutir o racismo brasileiro, entende e
international co-operation and gives rise to afirma que, ao se lidar com ódios históricos,

62 Revista de Informação Legislativa


nomeados a partir da raça, da etnia ou da Lindgren Alves, que integrou a nossa dele-
origem: “O primeiro procedimento a desta- gação e é membro do Comitê para a Elimi-
car, ainda uma vez, o caráter pseudocientí- nação da Discriminação Racial da ONU,
fico do termo ‘raça’, mesmo porque seu sen- relata um caso paradigmático do risco aci-
tido é diverso de lugar para lugar e suas ma apontado, ocorrido na Conferência.
determinações de cunho biológico têm efei- Em Durban, a Índia não aceitava que se
to apenas relativo e estatístico. Não há, por- incluíssem os párias entre as vítimas do ra-
tanto, como imputar à natureza o que é da cismo, alegando que as castas não decorrem
ordem da cultura: a humanidade é una, as da raça, alegação que a Conferência eviden-
culturas é que são plurais” (p. 81). temente não acolheu. Lindgren Alves, que,
A antropóloga citada pelo impetrante, além de suas funções diplomáticas, é um scho-
portanto, entende que a prática do racismo lar no campo dos Direitos Humanas, extrai
provém inequivocamente das teorias que as conseqüências desse tipo de alegação.
reinventam a desigualdade através do con- Observa ele que “todos de boa-fé sabem
ceito pseudocientífico de raças e, desse que ‘raça’ é sobretudo uma construção soci-
modo, contestam os princípios da igualda- al, negativa ou positiva, conforme o objetivo
de e da não discriminação. Esses são os pon- que se lhe queira dar”. Assim, “o problema
tos de partida do processo de especificação não está na existência ou não de raças, mas
que levou, como foi exposto, ao art. 5º, LXII, no sentido que se dá ao termo. Se atribuir-
da Constituição de 1988. Ao tema alegado mos caracteres inerentes, naturais e inesca-
pelo impetrante, de que o racismo no Brasil páveis, às diferenças físicas, psíquicas, lin-
se voltou apenas contra o negro, retornarei güísticas ou etno-religiosas de qualquer
mais adiante neste parecer, para mostrar que população, estaremos sendo racistas, qua-
se trata de uma apreciação incompleta da se sempre para o mal”. Destarte, a legítima
nossa História. O que importa realçar neste não aceitação da noção de raça, que a De-
momento é que nem a UNESCO nem a lite- claração da UNESCO de 1978 afirma, como
ratura antropológica, tal como falaciosamen- foi visto, pode arrastar a um absurdo na con-
te argumentado no HC 82424-2, permitem denação e repressão da prática do racismo.
concluir que o crime praticado por Siegfried “Por uma questão de lógica”, aponta Lind-
Ellwanger não é o da prática do racismo e gren Alves comentando o que ocorreu em
enquanto tal imprescritível de acordo com o Durban, “a inexistência de raças poderia
Direito brasileiro. representar inexistência de racismo, justifi-
12 - As implicações de reduzir o crime cando uma inação, que ninguém ousaria,
da prática do racismo ao conceito de raça na Conferência, suscitar como posição” (J.
são graves e vão muito além do objeto do A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-
HC 82424-2, ora em exame pelo Supremo ban contra o racismo e a responsabilidade
Tribunal Federal. Exemplifico. de todos, Revista Brasileira de Política Inter-
Acompanhei de perto em função das nacional, ano 45, nº 2, 2002, pp. 206 e 208).
minhas responsabilidades na época, como O argumento de Lindgren Alves é um
Ministro das Relações Exteriores, a Confe- argumento, contrario sensu, válido para o
rência da ONU de Durban em 2001 contra o Direito Penal no qual o argumento per ana-
racismo, muito consciente dos princípios logiam é vedado. Tem um estatuto axiológi-
constitucionais que regem as relações inter- co que depende de uma avaliação pelo in-
nacionais que me cabia seguir – no caso o térprete, conforme um juízo de valor. No
art. 4º, II e VIII (prevalência dos direitos hu- caso em questão – o HC 182424-2 –, o valor
manos e repúdio ao racismo). Estes foram o positivado é a exigência constitucional de
ponto de partida das instruções dadas à reprimir penalmente a prática do racismo
delegação brasileira. O Embaixador J. A. (sobre o argumento contrario sensu, cf. Tércio

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Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do como também os negros, os indígenas, os
Direito, 2a ed., São Paulo, Atlas, 1994, pp. ciganos ou quaisquer outros grupos, religi-
337-339). O argumento contrario sensu é, as- ões ou nacionalidades não formam uma
sim, aplicável na exegese do art. 5º, LXII, da raça, o que não exclui, ressalvo, o direito à
Constituição, e do art. 20 da Lei 7.716/89, diversidade. No entanto, todos são passí-
com a redação dada pela Lei nº 8.081/90. veis de sofrer a prática do racismo. É essa
Com efeito, na inexistência de raça – o que o prática que o Direito brasileiro condena e
seqüenciamento do genoma humano con- reprime e foi por essas bem fundamentadas
firma do ponto de vista biológico –, inter- razões que Siegfried Ellwanger foi conde-
pretar a prática do racismo, a partir da raça, nado pelo Tribunal de Justiça do Rio Gran-
conduz, no limite, ao esvaziamento com- de do Sul e que o Superior Tribunal de Justi-
pleto do que pretendeu a Constituição de ça não acolheu o pedido de HC. Aceitar os
1988 e a correspondente legislação infra- argumentos do impetrante – que, além de
constitucional. Significa, em poucas pa- falaciosos, são incompletos, inclusive na
lavras, em lugar do que recomenda Peces perspectiva da UNESCO e de autores que trou-
Barba, na interpretação dos direitos hu- xe à colação no seu arrazoado – significa, res-
manos, ou seja, favorecer sempre, em todo salto uma vez mais, reduzir o conteúdo jurí-
caso, da melhor forma possível o conteú- dico da Constituição e da lei, o que não é acei-
do do Direito, fazer exatamente o inverso, tável na interpretação dos direitos e garanti-
isto é, contribuir para o seu progressivo as individuais. Significa, também, no limite,
esvaziamento e, no seu limite, para o pró- por força do argumento contrario sensu, que
prio desaparecimento do bem tutelado cabe em matéria penal, o risco de esvaziar o
pelo Direito brasileiro. Em outras pala- bem jurídico tutelado pelo Direito brasileiro.
vras, a conseqüência, numa situação-li- É à confirmação desta quarta e decisiva con-
mite, é converter o crime da prática do ra- clusão, a partir de outros ângulos, que me de-
cismo em crime impossível pela inexistên- dicarei na seqüência deste parecer.
cia do objeto (sobre o crime impossível, cf.
Miguel Reale Jr., Instituições de Direito Pe- V – Os argumentos apresentados no
nal - Parte Geral, vol. I, Rio de Janeiro, Fo- HC 82424-2 e os ensinamentos de
rense, 2002, pp. 305-311). decisões da Suprema Corte dos EUA
Neste sentido é essa a quarta conclusão e da House of Lords da Inglaterra
deste parecer: discutir o crime da prática do
racismo a partir do termo raça nos termos
dos argumentos apresentados no HC 82424- 13 - Numa matéria com a relevância des-
2 em favor de Siegfried Ellwanger é uma ta que está sendo examinada pelo Supremo
maneira de reduzir e, no limite, esvaziar Tribunal Federal, sobre a qual versa este
completamente o conteúdo jurídico do parecer, é sempre útil testar a linha de raci-
preceito constitucional consagrado pelo ocínio que vem sendo desenvolvido, medi-
art. 5º, LXII, devidamente disciplinado ante referências a casos decididos por Tribu-
pela legislação infraconstitucional, con- nais Superiores de outros países, que têm re-
vertendo-o em crime impossível. O art. 5º, levantes pontos de contato com as questões
LXII, não menciona raça e o conteúdo jurí- suscitadas pelo HC 82424-2. Vou, assim, to-
dico do crime da prática do racismo reside mar a iniciativa de apresentar um caso deci-
nas teorias e preconceitos que discriminam dido pela Suprema Corte dos EUA e a seguir
grupos e pessoas a eles atribuindo caracte- outro, pela Câmara dos Lordes da Inglaterra.
rísticas de uma “raça”. Só existe uma “raça” 14 - O caso examinado pela Suprema
– a espécie humana – e, portanto, do ponto Corte dos EUA e decidido em 18 de maio de
de vista biológico, não apenas os judeus, 1987, em voto formulado pelo “Justice”

64 Revista de Informação Legislativa


White, respaldado pela unanimidade da Held
Corte, é particularmente interessante. 1. A charge of racial discrimination within
Tratava-se da sinagoga da Congregação the meaning of 1982 cannot be made out by
Shaare Tefila em Silver Spring, Maryland, alleging only that the defendants were motivated
que tinha sido grafitada com tinta vermelha by racial animus. It is also necessary to allege
e preta e com grandes slogans anti-semitas, that animus was directed toward the kind of
frases e símbolos. A Congregação e alguns group that Congress intended to protect when it
de seus membros moveram ação contra os passed the statute. P. 617.
responsáveis, invocando a legislação norte- 2. Jews can state a 1982 claim of racial
americana de 1982, voltada para o combate à discrimination since they are among the peoples
discriminação racial. Os acusados se defen considered to be distinct races and hence within
deram, alegando, à maneira do impetrante, the protection of the statute at the time it was
que não sendo os judeus um grupo racial passed. They are not foreclosed from stating a
distinto, não estavam cobertos pela tutela cause of action against other members of what
prevista pela legislação norte-americana de today is considered to be part of the Caucasian
1982. Os argumentos dos acusados foram race. Saint Francis College v. Al-Khazraji, ante
acolhidos na primeira e na segunda ins p. 604. Pp. 617-618. The judgement of the Court
tância e revertidos na decisão da Suprema of Appeals is therefore reversed and remanded for
Corte de 18 de maio de 1987. O fundamento further proceedings consistent with this opinion”.
da decisão foi claro: apesar de os judeus (O texto se encontra em http.// laws.lp.
serem, na data da decisão da Corte, parte do findlaw. com/getcase. /US481/615.html).
que é tido como a raça caucasiana, estavam Conforme se verifica, com as peculiari-
tutelados pela legislação norte-americana de dades próprias do direito norte-americano
1982. Esta visava a proteger da discri minação e do seu sistema judiciário, a decisão da
classes identificáveis de pessoas, submetidas Suprema Corte dos EUA procurou dar – e
à discriminação intencional, apenas por conta deu – o maior e não o menor conteúdo jurí-
de sua origem ou carac terísticas típicas. dico ao valor tutelado – a dignidade da pes-
Afirmava a Corte, com base na história soa humana e a repressão à prática do ra-
legislativa da lei de 1982, que árabes e judeus cismo, positivada pela legislação voltada
estavam entre os que, na época, eram tidos para o combate à discriminação racial. Con-
como raças distintas. Por isso estavam por feriu ao termo “raça” uma interpretação con-
ela protegidos. Concluiu assim a decisão: dizente com a intenção do legislador.
“Jews are not foreclosed from stating a cause of 15 - O caso decidido pela Câmara dos
action against other members of what today is Lordes, em 1983 – Mandla and another vs Do-
considered to be part of the caucasian race. The well Lee and another – dirimia, em última ins-
judgement of the Court of Appeals is therefore tância, o tema da discriminação na escola
reversed and the case is remanded for other de um jovem sikh à luz do Racial Relations
proceedings consistent with this opinion”. Act de 1976. Entendia o pai do jovem, que
A ementa do acórdão, Shaare Tefila Con- moveu a ação contra o responsável da Esco-
gregation v. Cobb, U.S 615 (1987) é a seguinte: la, que a proibição de seu filho usar o tradici-
“After their synagogue was painted with anti- onal turbante, por motivos religiosos, era dis-
Semitic slogans, phrases, and symbols, petitioners criminatória nos termos da lei inglesa de 1976.
brought suit in Federal District Court, alleging A Câmara dos Lordes decidiu que se
that the desecration by respondents violated 42 tratava de um caso de discriminação e
U.S.C. 1982. The District Court dismissed examinou longamente o tema de inclusão
petitioners’ claims, and the Court of Appeals ou não dos sikhs como um “grupo racial”.
affirmed, holding that discrimination against Jews No seu voto, equivalente, no sistema inglês,
is not racial discrimination under 1982. ao voto do relator, Lord Fraser of Tullybelton

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relata o argumento da defesa. Esta alegou, tras considerações, a proibição do uso do
de forma semelhante ao impetrante – ainda turbante pelo jovem na Escola era discrimi-
que no caso com outra e muito mais ace natória nos termos do Race Relations Act (o
itável motivação, pois o responsável pela texto é encontrado em http.//www.hrcr.org/
Escola almejava, com a proibição do uso do safrica/equality /Mandla_DowellLee.htm).
turbante, a minimização das distinções Como se vê, a Câmara dos Lordes, ao tra-
religiosas –, que o significado relevante de tar do problema da discriminação racial,
“étnico” na Lei de 1976 não era aplicável atribuiu ao termo raça sua dimensão histó-
aos sikhs “because they were essentially a rico-cultural, da qual provêm as práticas
religious group, and they share their racial discriminatórias, dela explicitamente exclu-
characteristics with other religious groups, indo sua dimensão biológico-científica. Nes-
including Hindus and Muslins living in the te sentido, a decisão respalda os argumen-
Punjab”. A esta alegação, Lord Fraser of tos deste parecer, de que não é na raça –
Tullybelton contestou, nos seguintes termos: pois só existe uma raça humana –, mas nas
“I recognize that ‘ethnic’ conveys a flavour of práticas discriminatórias do racismo, que
race but it cannot, in my opinion, have been used são histórico-político-culturais, que reside
in the 1976 Act in a strict racial or biological o caminho para a correta interpretação e
sense. For one thing it would be absurd to suppose aplicação do art. 5º, LXII, da Constituição
that Parliament can have intended that member de 1988 e a sua correspondente legislação
ship of a particular racial group should depend on infraconstitucional.
scientific proof that a person possessed the relevant Em síntese, e esta é a quinta conclusão
distinctive biological characteristics (assuming deste parecer, os dois casos decididos, res-
that such characteristics exist). The practical pectivamente, pela Suprema Corte dos EUA
difficulties of such proof would be prohibitive, and e pela House of Lords da Inglaterra, em
it is clear that Parliament must have used the word matéria de prática de racismo, em função
in some more popular sense. For another thing, the da interpretação dada a “raça”, corroem as
briefest glance at the evidence in this case is enough alegações do HC 82424-2 impetrado em fa-
to show that, within the human race, there are very vor de Siegfried Ellwanger. Não permitem
few, if any, distinctions which are scientifically dar curso ao argumento da prescritibilida-
recognised as racial”. de de seu crime. São, assim, indicações ju-
Na discussão do assunto, o juiz inglês, risprudenciais do Direito Comparado que
depois de várias considerações sobre crité- atestam, com base no direito norte-america-
rios de inclusão na legislação de 1976, afir- no e no direito inglês, a lógica da razoabili-
ma que a palavra “étnico” “should be cons- dade da quarta conclusão deste parecer.
trued relatively widely, in what was referred to
by counsel for the apellants as a broad, cultural/ VI – Da raça ao racismo
historic sense”.
Para os propósitos deste parecer, não é o 16 – Qual é a origem da palavra raça, dos
caso de indicar todos os elementos que fun- conceitos de raça, que acabaram levando à
damentaram a decisão de Lord Fraser of prática do racismo que o Direito brasileiro
Tullybelton, endossado pelos demais inte- condena e repudia? No verbete raça, José
grantes da turma do Tribunal que decidiu o Pedro Machado, no seu Dicionário Etimoló-
feito. O que importa realçar é esta sua con- gico da Língua Portuguesa, 2º volume (Lisboa,
clusão: “Sikhs are a group defined by a referen- Editorial Confluência, 1959), diz que a pa-
ce to ethnic origins for the purpose of the 1976 lavra provém do italiano razza, de origem
Act, although they are not distinguishable from obscura, pois as diversas hipóteses apresen-
the other peoples living in the Punjab”. Por esse tadas não parecem convincentes, segundo
motivo, como ele a seguir explicita com ou- Antenor Nascentes (cf. Antenor Nascentes,

66 Revista de Informação Legislativa


verbete raça no seu Dicionário Etimológico da lhas” (cf. Antônio Moreira, Provérbios Portu-
Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1955). O gueses, Lisboa, Editorial Notícias, 1966, p.
caráter obscuro da origem de race, em inglês, 136).
raça, em português, raza, em espanhol, ra- Antonio Geraldo da Cunha, no verbete
zza, em italiano, é também afirmado por raça do seu Dicionário Etimológico - Nova Fron-
Walter W. Skeet no verbete correspondente teira da Língua Portuguesa, 2a ed. (Rio de Ja-
do seu An Etymological Dictionary of the En- neiro, Nova Fronteira, 1986), abona a ori-
glish Language (Oxford, At the Clarendom gem italiana – razza, de raça em português,
Press, 1978). J. Corominas, no seu reputado à maneira de José Pedro Machado, e, na li-
Dicionáro Critico Etimologico de la Lengua Cas- nha de Corominas, faz a derivação do latim
tellana, no verbete correspondente, que está – ratio, rationis.
no vol. III (Madrid, Gredos, 1954), conside- Conforme se verifica, há componentes
ra provável que a origem da palavra prove- aqui obscuros na origem da palavra, como
nha do latim, ratio, rationis, na acepção de obscuras têm sido as conseqüências de seu
índole, modalidade, espécie. Registra que, uso. Além do mais, tanto em português quan-
quando se incorporou no castelhano o es- to em espanhol, o vocábulo raça comporta,
trangeirismo da raça no sentido biológico, a por razões históricas (a reconquista da pe-
palavra se contaminou de um sentido pejo- nínsula Ibérica, a Inquisição), uma dimen-
rativo, tanto mais que sua aplicação a mou- são pejorativo-discriminatória em relação a
ros e judeus a isso se prestava. mouros e judeus que aponta para o tema da
Na edição de 1823 do famoso Dicionário prática do racismo. Em todo caso, se a pala-
da Língua Portuguesa, de Antonio de Moraes vra raça deriva do latim ratio, rationis, qual é a
e Silva, define-se raça como casta: cão, cava- ratio de classificação da espécie humana em
lo de boa ou de má raça, e registra-se que ter raças?
raça é ter sangue de mouro ou judeu. No 17 - A classificação dos seres humanos
verbete raça, da edição portuguesa da Enci- em raças tem sua inspiração em Lineu, que
clopédia Einaudi, de autoria de Clara Quei- no século XVIII estabeleceu um sistema de
roz, esta, comentando o Dicionário de Mo- classificação de plantas e de animais. As-
raes, nota que não há menção às popula- sim “canis familiaris” (cão) e “canis lupus”
ções do império colonial português na defi- (lobo) são duas espécies do gênero “canis”.
nição do étimo raça. Explica essa ausência Para Lineu, o estudo dos seres vivos consis-
porque o Dicionário recompila os étimos tia na taxonomia e a espécie humana – o
impressos até 1823 e pondera que a referên- homo sapiens – dividia-se em seis raças, de
cia apenas a mouros e judeus se explicaria acordo com um critério preponderantemen-
porque eram em Portugal o outro - próximo, te geográfico: européia, ameríndia, asiática,
que estavam na origem de conflitos de vári- africana, selvagem e monstruosa (esta cons-
as ordens, inclusive os psicológicos. Já as tituída por indivíduos com malformações
populações colonizadas não foram referi- físicas).
das porque seriam, na época, o outro - coisifi- No século XIX, com Darwin, a concep-
cado, objeto natural de exploração (cf. Enci- ção fixa das espécies de Lineu é posta em
clopédia Einaudi, vol. 19 - Organismo -Heredi- questão. O tempo, com o evolucionismo, re-
tariedade, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa voluciona o sistema classificatório, pois
da Moeda, 1991, pp. 384, 350-351). passou-se a admitir que as espécies não
A dimensão conflitiva, de natureza psi- eram permanentes. Podiam mudar com o
cológica, apontada por Clara Queiroz em andar do tempo.
relação ao outro próximo se reflete no seguinte O interesse na taxonomia e o evolucio-
provérbio português: “Judeu e porco, algar- nismo renovaram, no século XIX, a preocu-
vio e mouro, são quatro nações e oito cana- pação classificatória dos seres humanos em

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raças e, à maneira da ciência da antigüida- do mais triste aspecto” (cf. Georges Raeders,
de – por exemplo o sistema de Ptolomeo –, a O Conde Gobineau no Brasil, Rio de Janeiro,
diferença específica entre as raças acabou Paz e Terra, 1977, p. 39).
sendo formulada a partir do que se via, como Tocqueville, que conhecia bem Gobi-
esclarece Eliane Azevedo. Os múltiplos cri- neau, pois este foi seu chefe-de-gabinete
térios de classificação estavam ligados à quando de sua passagem como Ministro
aparência física (cor da pele, textura dos dos Negócios Estrangeiros da França, a ele
cabelos, forma da cabeça, etc.), cabendo men- escreveu o seguinte, a propósito de suas te-
cionar que, sem dúvida, como indica Clara orias racistas: “elas são provavelmente er-
Queiroz, a distinção inicial coincidia com radas e certamente perniciosas”. Essa pas-
as cores da pele, predominantes nos gran- sagem de Tocqueville, escrita em 1853,
des continentes terrestres. Isto, como hoje se numa época em que o pensamento racista
sabe, deve-se fundamentalmente à distribui- ainda não tinha adquirido maior peso na
ção e concentração diferencial do pigmento história das idéias, é citada por Hannah
melanina, que não tem maior significado no Arendt ao examinar o Imperialismo, no ca-
plano biológico, ou seja, no da estrutura ge- pítulo em que trata do pensamento racial
nética (cf. Eliane Azevedo, Raça - Conceito e antes da prática do racismo, no admirável
Preconceito, 2a ed., São Paulo, Ática, 1990, pp. Origens do Totalitarismo. Certamente a pas-
16-22; Clara Queiroz, verbete Raça, na edi- sagem confirma a indiscutível capacidade
ção portuguesa da Enciclopédia Einaudi, cit., de antevisão de Tocqueville, como adiante
pp. 335-337, 342-344). se realçará neste parecer, pois como diz
A multiplicidade, a variedade e a não Hannah Arendt: “Historicamente falando,
coincidência dos critérios fizeram do con- os racistas, embora assumissem posições
ceito de raça um conceito impreciso – ten- aparentemente ultranacionalistas, foram os
dencialmente obscuro como aponta a etimo- piores patriotas que os representantes de
logia da palavra. Isso não impediu que a todas as outras ideologias internacionais;
sociologia do darwinismo social servisse de foram os únicos que negaram o princípio
caldo de cultura para teorias racistas, que jus- sobre o qual se constroem as organizações
tificavam a desigualdade com base nas dife- nacionais de povos – o princípio da igual-
renças entre as raças, numa dinâmica con- dade e solidariedade de todos os povos, ga-
trária ao processo de generalização dos direi- rantidos pela idéia de humanidade” (cf.
tos humanos, já examinado neste parecer. Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo
Entre os grandes teóricos racistas, des- - Anti-Semitismo - Imperialismo - Totalitaris-
tacam-se Arthur de Gobineau (1816-1882), mo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989,
que fez a distinção entre a raça semita e a pp. 188-189; 191).
ariana, atribuindo a esta última uma supe- As idéias de Gobineau foram retomadas
rioridade física, moral e cultural. Gobineau por Houston Chamberlain (1855-1927), ar-
esteve no Brasil como representante diplo- doroso defensor da superioridade germâni-
mático francês e comentou, na linha de sua ca e do pensamento racista (cf. Eliane Aze-
visão racista: “Trata-se de uma população vedo, Raça, Conceito e Preconceito, cit. p. 25;
totalmente mulata, viciada no sangue e no Maria Luiza Tucci Carneiro, O Racismo na
espírito e assustadoramente feia”, e comple- História do Brasil, 8a ed., São Paulo, Ática,
menta: “Nenhum brasileiro é de sangue 2002, p. 22).
puro; as combinações dos casamentos entre A prática do racismo baseia-se, assim,
brancos, indígenas e negros multiplicaram- no pressuposto da existência de raças hu-
se a tal ponto que os matizes de carnação manas e no conseqüente estabelecimento de
são inúmeros, e tudo isso produziu, nas clas- sua hierarquização. Por esse motivo, o ar-
ses baixas e nas altas, uma degenerescência gumento teórico privilegiado das teorias

68 Revista de Informação Legislativa


racistas e de suas conseqüências sociais re- biológico em qualquer subdivisão racial da
side, como realça Clara Queiroz, no que en- espécie humana e que os critérios das dife-
tendiam ser a incontestabilidade das ciên- renças visíveis, a começar pela cor da pele,
cias biológicas (Clara Queiroz, verbete Raça, são apenas juízos de aparência. As diferen-
na edição portuguesa da Enciclopédia Einau- ças genéticas individuais entre duas pesso-
di, cit. p. 349). as brancas são maiores que a diferença ge-
As teorias racistas fizeram parte do pro- nética média entre brancos e negros e não
cesso de autolegitimação da expansão colo- custa lembrar que a integridade genética da
nial européia e da ausência de freios e limi- espécie humana, como unidade, é compro-
tes ao imperialismo. Um dos frutos disso foi o vada na reprodução entre pessoas de “ra-
racismo institucionalizado do “apartheid” ças” diferentes, gerando descendentes nor-
na África do Sul, em proveito da minoria bran- mais e férteis. Aliás, a mescla da qual resul-
ca, que foi um dos grandes temas da agenda ta a identidade do Brasil, como aponta Elia-
internacional dos direitos humanos da ONU. ne Azevedo, é disso uma comprovação (cf.
Outra terrível conseqüência foi o racis- Eliane Azevedo, Raça - Conceito e Preconceito,
mo biológico institucionalizado da Alema- cit. pp. 15-16, 40).
nha nazista, que afirmava não só a superio- A capacidade de desvendar o genoma
ridade da raça germânico-ariana, mas o im- humano – que é uma revolução coperniqui-
perativo da luta contra as raças inferiores, ana da biologia – permite dizer que conhe-
entre as quais inseriam não só os judeus cer uma espécie reduz-se a conhecer o seu
como também os ciganos e os eslavos. Essa genoma completo (cf. Monica Teixeira, O
luta, para recorrer a Carl Schmitt, que disso Projeto Genoma Humano, 2a ed., São Paulo,
entendia, não tinha apenas a dimensão dos Publifolha, 2001, p.67) e o seqüenciamento
privata odia, voltada contra inimicos, mas era do genoma humano indica que as diferen-
sobretudo uma guerra pública dirigida con- ças existentes no código genético de cada
tra as raças inferiores, identificadas como ser humano – que estão na escala dos mi-
hostes (cf. Carl Schmitt, La notion de politique lhões – não têm maior relação com a sua
- theorie de partisan, Paris, Calmann-Lévy, procedência geográfica ou étnica. No estu-
1972, p. 69 e 200). Daí o alcance avassala- do da variabilidade genética humana, veri-
dor dos ódios públicos do racismo nazista, fica-se que de 90 a 95% dela ocorre dentro
que levou aos campos de concentração, ao dos chamados “grupos raciais”, não entre
Holocausto e ao ineditismo, na História da eles (Sérgio Danilo Pena, Os múltiplos sig-
Humanidade, do crime de genocídio, que nificados da palavra raça, Folha de S. Paulo,
estão na base da grande reflexão de Han- 21/12/2002, p. 3). Em síntese, como diz Sér-
nah Arendt sobre o totalitarismo no século gio Danilo Pena: “há apenas uma raça do
XX e do grande tema do “direito a ter direi- homo sapiens: a raça humana” (cf. Sérgio
tos” como ponto de partida da reconstru- Danilo Pena, Lição de vida do genoma hu-
ção dos direitos humanos (cf. Hannah Aren- mano, Folha de S. Paulo, 23/1/2001, p. 3).
dt, As Origens do Totalitarismo, cit.; Celso Assim está correto, no plano da biologia, o
Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos - que diz o art. 1 - 1 da Declaração da UNES-
um diálogo com o pensamento de Hannah Aren- CO e evidentemente todos os textos das inú-
dt, cit.). Foram esses fatos que levaram, no meras Declarações de Direitos que partem
pós-Segunda Guerra Mundial, à inclusão do princípio da igualdade dos seres huma-
ampla da agenda dos direitos humanos no nos e afirmam o princípio da não-discrimi-
plano internacional, como adiante se exa- nação. Da mesma maneira confirma-se, no
minará neste parecer. plano do conhecimento, a verdade revelada
18 - O avanço do conhecimento se in- no Velho Testamento sobre a unidade do
cumbiu de mostrar que não há fundamento gênero humano, ponto de partida inicial

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 69


deste parecer sobre o processo de afirmação distintivos ou propaganda que utilizam a
do valor da dignidade da pessoa humana. cruz suástica ou gamada, para fins e divul-
Se o racismo não pode ser justificado por gação do nazismo.
fundamentos biológicos, ele, no entanto, Pena: Reclusão de dois a cinco anos e
persiste como fenômeno social. É esse fenô- multa.”
meno social, e não a “raça”, o destinatário
jurídico da repressão prevista pelo art. 5º, VII – A prática do racismo e o seu
LXII, da Constituição de 1988, e sua corres- impacto no Direito Internacional da
pondente legislação infraconstitucional. Pessoa Humana – a contribuição do
Esta é a sexta conclusão deste parecer, vol- Direito Internacional Público para a
tada para reiterar, como foi dito na quarta
exegese do art. 5º, XLII, da
conclusão, que o conteúdo jurídico do cri-
Constituição de 1988
me da prática do racismo tem o seu núcleo
nas teorias e ideologias e na sua divulga-
ção, que discriminam grupos e pessoas, a 19 - Norberto Bobbio, num, como sem-
elas atribuindo as características de uma pre, límpido texto sobre o racismo, observa
“raça” inferior. É precisamente porque a que ele não se dirige tanto para a pessoa
prática do racismo começa pelo que está na singular, diante da qual se pode ter múlti-
cabeça das pessoas que o Tribunal de Justi- plos sentimentos negativos, quanto para um
ça do Rio Grande do Sul e o Superior Tri- grupo, ou para um indivíduo pertencente a
bunal de Justiça sancionaram, com base no um grupo. Registra que a mais persistente
art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada forma de racismo conhecida pelos povos
pela Lei 8.081/90, a conduta de Siegfried europeus é o anti-semitismo.
Ellwanger como crime imprescritível. É pra- Esclarece, também, Bobbio que os postu-
ticar, induzir e incitar o racismo a publica- lados do racismo como visão do mundo, que
ção de qualquer natureza que promova a independe da fundamentação científica,
discriminação ou preconceito de raça, cor, como foi visto, são três: (i) a humanidade
religião, etnias ou procedência nacional. está dividida em raças, cuja diversidade é
Cabe destacar que a evolução legislativa em dada por características biológicas e psico-
nosso país confirma esse entendimento. É lógicas. Estas têm elementos culturais que
isso que destacou o Ministério Público, no derivam, porém, das características biológi-
parecer já discutido do subprocurador Cláu- cas, cuja natureza é invariável e se transmi-
dio Lemos Fonteles, quando este mencionou te hereditariamente; (ii) não só existem ra-
que a Lei 9.458/97, através do novo § 2º do ças diversas, mas existem raças superiores
art. 20 acima citado, fez do meio – os meios e inferiores; e (iii) não só existem raças, e
de comunicação social de qualquer nature- estas se dividem entre superiores e inferio-
za, utilizados para promover a discrimina- res, como também as superiores têm o direi-
ção e o preconceito – uma forma qualificada, to de dominar as inferiores (cf. Norberto
com apenação autônoma, do crime da prá- Bobbio, Elogio da Serenidade e Outros Escritos
tica do racismo. A essa observação do Mi- Morais, São Paulo, UNESP, 2002, p. 123, 127,
nistério Público, e para precisar que a di- 128).
vulgação do nazismo é prática do racismo Uma visão racista do mundo leva a con-
também com apenação autônoma, acrescen- dutas que têm distintas escalas de agressi-
to o que determina o novo parágrafo 1º do vidade. São todas caracterizadas pela dis-
art. 20, com a redação dada pela Lei nº criminação, ou seja, pelo não reconhecimen-
9.459/97: to aos “outros” dos mesmos direitos e ga-
“Fabricar, comercializar, distribuir ou rantias. Os princípios gerais da igualdade
veicular símbolos, emblemas, ornamentos, e da não discriminação, que têm destinatá-

70 Revista de Informação Legislativa


rios genéricos, e o processo de especifica- centração e o Holocausto. Representou uma
ção, que cuida do ser humano em situação, resposta política e jurídica ao que foi perce-
que em conjunto tutelam os direitos huma- bido como uma escala sem precedentes do
nos, no Brasil e no mundo, são assim direta- mal.
mente afetados. O mal, como ensina Bobbio, tem duas
À discriminação pode somar-se uma in- dimensões analíticas, relevantes para a
tensidade superior de violência à dignida- matéria deste parecer. O mal ativo, associa-
de da pessoa humana, que é a segregação. do à vontade de poder, à prepotência e ao
Esta consiste, como diz Bobbio, “em impe- ilimitado exercício da violência por parte
dir a mistura dos diversos entre os iguais”. dos governantes, e o mal passivo, que se re-
Pode expressar-se através de obstáculos ju- fere à perspectiva das vítimas, que sofrem
rídicos à miscigenação e pela colocação da uma pena sem culpa. O mal ativo é o mal
“raça inferior” pela “raça superior” num infligido. O mal passivo é o mal sofrido. Na
espaço separado. O apartheid, na África do Bíblia, lembra Bobbio, Caim e Jó são duas
Sul, enquanto perdurou, foi um paradigma figuras paradigmáticas desses dois rostos
da segregação institucionalizada e do que do mal (Norberto Bobbio, Elogio da Serenida-
há de mais nefasto na herança racista do de e Outros Ensaios Morais, cit., p. 182).
colonialismo europeu. A Carta da ONU levou em conta nos seus
O último grau na escala da violência do dispositivos o que foi, na guerra e no pré-
tratamento racista é a agressão física. Esta guerra, tanto o mal ativo da discricionari-
começa de modo esporádico, contra alguns dade das soberanias quanto o sofrido mal
indivíduos – é o que fazem os skinheads – e passivo das vítimas. Neste contexto os di-
chega ao extermínio premeditado e de mas- reitos humanos surgem para tornar presen-
sa. O extermínio premeditado de massa tem te, na agenda internacional, não apenas a
nas câmaras de gás dos campos de concen- perspectiva ex parte principis a ser regida por
tração da Alemanha nazista a sua terrível normas delimitadoras de arbítrios, mas tam-
exemplificação, pois foi o meio técnico por bém a pespectiva ex parte populi, voltada
excelência do Holocausto como crime de ge- para evitar as penas sem culpa.
nocídio. O paradigma deste último grau na A Carta da ONU refere-se aos Direitos
escala da violência é o “Estado racial” no Humanos no seu preâmbulo, nos arts. 1 - 3;
qual se transformou a Alemanha nazista de 13, 1 b; 55 c; 56; 62 - 2; 64; 68; 73; 76 c. Esta
Hitler. A Alemanha de Hitler, realça Bob- multiplicidade de referências contrasta com
bio, foi “um Estado racial no mais pleno sen- o bem mais modesto art. 23 do Pacto da Liga
tido da palavra, pois a pureza da raça devia das Nações e com as delimitadas ativida-
ser perseguida não só eliminando indiví- des da antecessora da ONU nesse campo.
duos de outras raças, mas também indiví- Com efeito, o Direito Internacional da Pes-
duos inferiores física ou psiquicamente da soa Humana, pré-Carta da ONU, viu-se cir-
própria raça, como os doentes terminais, os cunscrito ao que estava na agenda das rela-
prejudicados psíquicos, os velhos não mais ções internacionais, que era uma agenda
auto-suficientes” (Norberto Bobbio, Elogio distinta daquela vivida no plano interno.
da Serenidade e Outros Escritos Morais, cit. pp. Daí, por exemplo: o início da elaboração, no
128-129, pp.125-126). século XIX, do Direito Humanitário – que se
20 - A Carta da ONU foi um direito novo, ocupa das vítimas de conflitos armados e
que resultou da Segunda Guerra Mundial. da regulamentação dos meios e métodos de
Na sua elaboração normativa, teve peso o combate; ou então, no período da Liga, o tra-
ineditismo da experiência totalitária da Ale- tamento de minorias e refugiados. Esse foi
manha nazista, que patrocinou, inspirada um grave problema que surgiu como conse-
pela sua ideologia racista, os campos de con- qüência do desmembramento, no pós-Pri-

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meira Guerra Mundial, dos grandes impé- 21 - O Brasil participou, no plano inter-
rios multinacionais – o austro-húngaro, o nacional, do processo de especificação, vol-
russo, o otomano – e da imprevista dissoci- tado para afirmar o princípio da igualdade
ação entre os direitos do homem e os direi- e da não discriminação, dos seres humanos
tos dos povos. Ainda cabe mencionar o tema em situação afetada pela prática do racis-
do criminoso tráfico transnacional de mu- mo. Evoco, a título de ilustração, pela clare-
lheres e crianças. O novo, instigado pela za do enunciado e também pela satisfação
Carta da ONU, foi fazer dos direitos huma- de trazer à colação uma tradição familiar
nos no plano internacional não um tema na matéria, o discurso do Chanceler Horá-
circunscrito, mas um tema global. cio Lafer na abertura dos trabalhos da As-
A conversão dos direitos humanos num sembléia Geral da ONU em 22 de setembro
tema global e não circunscrito resultou, como de 1960:
diria Miguel Reale, de uma política do Di- “O Governo brasileiro subscreveu este
reito e esta foi axiologicamente sensível ao ano, juntamente com vários outros países, o
horror erga omnes do mal da descartabilida- pedido de inclusão na Agenda desta Ses-
de do ser humano, produto do ineditismo são da Assembléia Geral de item referente à
da violência do racismo nazista (cf. Celso discriminação racial. Tem o Brasil sempre
Lafer, A Reconstrução dos Direitos Humanos - apoiado todas as recomendações que tra-
um diálogo com o pensamento de Hannah Aren- mitaram nas Nações Unidas contra as polí-
dt, cit., Desafios: Ética e Política, São Paulo, ticas de segregação, baseadas em distinções
Siciliano, 1995, pp. 201-243; Comércio, De- de raça, cor ou religião, que repugnam a
sarmamento e Direitos Humanos - reflexões so- consciência do povo brasileiro e são clara-
bre uma experiência diplomática, São Paulo, mente condenadas pela Carta da Organiza-
Paz e Terra, 1999, pp. 141-200; Reflexões so- ção. O Brasil submeteu um projeto de reso-
bre o historicismo axiológico de Miguel Re- lução ao Conselho da Organização dos Es-
ale e os direitos humanos no plano interna- tados Americanos para expressar o repú-
cional, in O Pensamento de Miguel Reale, Ac- dio a toda e qualquer forma de distinção e
tas do IV Colóquio Tobias Barreto, Viana do segregação racial, projeto que contou com a
Castelo, Câmara Municipal, 1988, pp. 167- votação unânime dos países americanos.
174; Miguel Reale, Teoria do Direito e do Esta- Neste sentido, quero lembrar que o Brasil
do; 4a ed., São Paulo, Saraiva, 1984, pp. 379- assinou e ratificou a convenção internacio-
382). nal contra o genocídio aprovada em 1948
A abrangente positivação dos direitos pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
humanos como um tema global da vida in- A perseguição racial é contrária ao espírito
ternacional, fruto dessa política do Direito, e aos fins das Nações Unidas e o Brasil, com
tem como marco inicial a Declaração Uni- o mundo civilizado, a condena de forma
versal de 1948, já mencionada neste pare- mais veemente” (O discurso está reprodu-
cer. Ela se desdobrou nos dois grandes pac- zido in A Palavra do Brasil nas Nações Unidas
tos de 1966: o dos Direitos Civis e Políticos e - 1946-1995, org. e apresentação de Luiz Fe-
o dos Direitos Econômicos, Sociais e Cultu- lipe de Seixas Corrêa, Brasília, FUNAG,
rais. Os dois grandes Pactos se inserem no 1995, e o texto citado está na p. 134).
processo histórico de positivação internaci- A referência do Ministro Horácio Lafer à
onal dos direitos humanos na etapa do pro- Convenção Internacional sobre Prevenção
cesso de generalização. Essa etapa se viu e Punição do crime de Genocídio é muito
acompanhada e desdobrada pelo processo pertinente para a matéria deste parecer em
de especificação, que vou a seguir exami- função dos fatos históricos que levaram à
nar, no que diz respeito à prática do racis- tipificação deste crime, como um crime in-
mo. ternacional, seja em tempo de paz, seja em

72 Revista de Informação Legislativa


tempo de guerra. Com efeito, a elaboração 22 - A Convenção Internacional sobre a
normativa do Direito Internacional sobre o Eliminação de todas as formas de Discrimi-
crime de genocídio teve a sua base no mal nação Racial de 1965, elaborada no âmbito
ativo e passivo que levou ao Holocausto da ONU, consolida na hard-law de um trata-
patrocinado pelo Estado racial em que se do multilateral, como é da natureza do pro-
converteu a Alemanha nazista de Hitler, cesso legislativo internacional, a soft-law,
voltada para destruir, para valer-me da for- inter-alia, da Declaração sobre a eliminação
mulação do caput do art. II da Convenção, de todas as formas de discriminação racial,
“no todo ou em parte, um grupo nacional, proclamada pela Assembléia Geral na Re-
étnico, racial ou religioso”. solução 1.904 de 20 de novembro de 1963.
É importante realçar, como faz Fabio A Convenção, que resultou basicamente
Konder Comparato, que a Convenção de do trabalho da Assembléia Geral, foi insti-
1948 traz uma novidade importante sob o gada pela memória das atrocidades das prá-
aspecto penal. É a punição dos atos de “in- ticas raciais do nazismo, nos anos 30 e 40,
citação direta e pública a cometer o genocí- particularmente as anti-semitas, e pelo de-
dio” (art. III, c). Lembra Comparato que es- senvolvimento da segregação racial institu-
tavam na mente dos elaboradores da Con- cionalizada – o apartheid – na África do Sul
venção os livros e panfletos nazistas e re- (cf. Introdução de Boutros Boutros-Ghali,
gistra que a idéia foi ulteriormente acolhida então Secretário-Geral da ONU à publica-
e desenvolvida no art. 4 da Convenção In- ção The United Nations and Human Rights -
ternacional de 1965, para a eliminação de 1945-1995, N. York, The United Nations
todas as formas de discriminação racial (cf. Blue Books Series, vol. VII, 1995, p. 33; José
Fabio Konder Comparato, A Afirmação His- Augusto Lindgren Alves, A Arquitetura In-
tórica dos Direitos Humanos, 3a ed., São Paulo ternacional dos Direitos Humanos, São Paulo,
Saraiva, 2003, p. 243). FTD, 1997, pp. 88-89). O seu objetivo foi o da
Ao art. 4 da Convenção de 1965 voltarei definição de normas contrárias à discrimi-
mais adiante, mas neste momento quero re- nação racial e ao fenômeno do racismo em
alçar que tanto este artigo quanto o Direito todas as suas dimensões.
brasileiro, nos termos do art. 20 (Lei 8.081/ O Brasil assinou a Convenção em 7 de
90), na esteira aberta pelo art. III, c, da Con- março de 1966 e a ratificou, sem reservas,
venção sobre a Prevenção e Punição do Cri- em 27 de março de 1968. O Decreto de pro-
me de Genocídio, integram na estrutura do mulgação é o de nº 65.810 de 8/XII/69. A
delito da prática do racismo (art. 5º, XLII, da Convenção entrou em vigor no âmbito in-
Constituição de 1988) a sua propaganda e ternacional a 4 de janeiro de 1969, tendo sua
incitação, pois estas, no limite, podem levar vigência em relação ao nosso país se inicia-
ao genocídio. Esse foi o caso do racismo ide- do trinta dias depois.
ológico nazista. (A Convenção sobre a Pre- O Brasil participou dos travaux preparatoi-
venção e a Repressão do Crime de Genocí- res da Convenção, como de resto tinha anteri-
dio, em nosso País, foi aprovada pelo De- ormente participado das atividades de ela-
creto Legislativo nº 2, de 11 de abril de 1951, boração normativa do direito internacional
e promulgada pelo Decreto nº 30.822, de 6 da pessoa humana (cf. Antonio Augusto Can-
de maio de 1952. A Lei nº 2.889, de 1º de çado Trindade, A Proteção Internacional dos Di-
outubro de 1956, define e pune o crime de reitos Humanos e o Brasil, cit., pp. 23-38).
genocídio. Tratei do genocídio como crime Nas discussões, a delegação brasileira
contra a humanidade em A Reconstrução dos co-patrocinou com os EUA uma emenda (A/
Direitos Humanos - um diálogo com o pensa- C. 3, L1211) com o objetivo de incluir no tex-
mento de Hannah Arendt, cit. cap. VI, pp. 167- to da Convenção uma referência específica
186). ao anti-semitismo. A emenda não prospe-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 73


rou e a única referência específica, afinal 40. Many representatives had objected to
contemplada pela Convenção, é a da con- reference in the Convention to any specific forms
denação do apartheid (art. 3). Isso se com- of racial discrimination: but the draft already
preende, pois na época, e muito pertinente- included a reference to apartheid.” (cf. A/C. 3/
mente, a condenação do regime então racis- SR 1313, Report of the Third Committee, de
ta da África do Sul estava, e com grande re- 21/10/1965, ONU, Official Records of the
levo, na ordem do dia da agenda internaci- General Assembly (XX Session, 1965, 1313th.
onal do combate ao racismo. É interessante, Meeting p. 125).
no entanto, para os propósitos deste parecer, A razão de fundo apresentada na dis-
reproduzir o que disse a delegação do Brasil, cussão da Convenção para a não aceitação
que inequivocamente afirmou, na defesa da da emenda foi a de que a enumeração de for-
emenda apresentada, o anti-semitismo como mas específicas de discriminação racial nun-
uma forma de discriminação racial. ca conseguiria ser exaustiva. Daí a importân-
“Mr. DAYRELL DE LIMA (Brazil), re cia de enunciados jurídicos de precisão ge-
ferring to observations which had been made ral. É este, assim, o art. 1 - 1 da Convenção:
concerning Brazil’s co-sponsorship of the amen “Nesta Convenção, a expressão ‘discri-
dment in document A/C.3/L.1211, observed that minação racial’ significará qualquer distin-
his delegation had had no chance either to ção, exclusão, restrição ou preferência base-
explain its reasons for co-sponsoring the adas em raça, cor, descendência ou origem
amendment, discussion of which had been nacional ou étnica que tem por objetivo ou
precluded even before the amendment had been efeito anular ou restringir o reconhecimen-
introduced or to express its views before the vote to, gozo ou exercício, num mesmo plano (em
of the Greek-Hungarian draft resolution. igualdade de condição), de direitos huma-
39. He did not agree with those who had said nos e liberdades fundamentais no domínio
that the draft amendment was inopportune. político, econômico, social, cultural ou em
Everyone agreed that anti-Semitism was one of qualquer outro domínio da vida pública.”
the most brutal forms of race prejudice ever (O texto está reproduzido in José Augusto
known in the developed countries and had been Lindgren Alves, A Arquitetura Internacional
the source of nazism, which directly or indirectly, dos Direitos Humanos, cit., p. 99).
had caused the deaths of milllions of human Noto que o art. 20 da Lei 7.716/89, com a
beings. Moreover, that phenomenon did not di redação dada pela Lei 8.081/90, refere-se a
sappear with economic and social advancement “discriminação ou preconceito de raça, cor
as recent history had showed. The United religião, etnia ou procedência nacional”, que
Nations itself had been established as a result of o art. 1º da Convenção, vigente e aplicável
the holocaust that had been caused by anti- no Brasil, qualifica em bloco de “discrimi-
Semitism and nazism. How could the Committee nação racial”. Esse é um elemento adicio-
fail to mention that fact? His delegation had had nal na interpretação do Direito brasileiro, a
no ulterior political motive in sponsoring the invalidar os argumentos do impetrante.
amendment, was not acting under the pressure O art. 4 da Convenção Internacional so-
of any racial minority or outside force and did bre a Eliminação de todas as formas de dis-
not wish to intervene in any political drama being criminação racial, e que partiu da vis directi-
played out anywhere on earth. But Brazil va do art. III, c, da Convenção de 1948 para a
realized that anti-Semitism carried the seeds of Prevenção e a Repressão do Crime de Geno-
war.By what sophistry could the Committee cídio, inclui, como já foi mencionado, na
justify a failure to recognize that fact? Moreover, estrutura do crime da prática do racismo, o
all members of the Committee, even those who incitamento à discriminação. Reza o art. 4:
had opposed the amendment, were opposed to “Os Estados-partes condenam toda pro-
anti-Semitism. paganda e todas as organizações que se ins-

74 Revista de Informação Legislativa


pirem em idéias ou teorias baseadas na su- reito Legislativo nº 226 de 12 de dezembro
perioridade de uma raça ou de um grupo de de 1991 e promulgado pelo Decreto nº 592
pessoas de uma certa cor ou de uma certa de 6 de dezembro de 1992). Argüiram os
origem étnica que pretendem justificar ou opositores do art. 4º que ele limitaria a liber-
encorajar qualquer forma de ódio e de dis- dade de expressão. O entendimento que pre-
criminação raciais e comprometem-se a ado- valeceu foi o de que essa limitação era am-
tar imediatamente medidas positivas desti- plamente justificada pela experiência his-
nadas a eliminar qualquer incitação a uma tórica já discutida neste parecer. Estava ju-
tal discriminação, ou quaisquer atos de dis- ridicamente respaldado, como aponta Lind-
criminação com este objetivo, tendo em vis- gren Alves, no espírito e na letra do art. 29
ta os princípios formulados na Declaração da Declaração Universal, “que condiciona
Universal dos Direitos do Homem e os di- os direitos e liberdades fundamentais de
reitos expressamente enunciados no artigo cada um aos deveres para com a comunida-
5º da presente Convenção, eles se compro- de, assim como aos direitos e liberdades dos
metem principalmente: outros” (José Augusto Lindgren Alves, A
a – a declarar delitos puníveis por Lei Arquitetura Internacional dos Direitos Huma-
qualquer difusão de idéias baseadas na su- nos, cit., p. 91).
perioridade ou ódio raciais, qualquer inci- Essa mesma linha de raciocínio, sobre a
tamento à discriminação racial, assim como existência de limites à liberdade de expres-
quaisquer atos de violência ou provocação são, foi a seguida pelo STF na vigência da
a tais atos, dirigidos contra qualquer raça Constituição de 1946, no recurso extraordi-
ou qualquer grupo de pessoas de outra cor nário nº 25848/MG, do qual foi relator o
ou de outra origem étnica, como também Ministro Ribeiro da Costa. No acórdão de
qualquer assistência prestada a atividades 2/XII/1954, por unanimidade, o STF, a pro-
racistas, inclusive seu financiamento; pósito da liberdade de imprensa, afirmou
b - a declarar ilegais e proibir as organi- que esta comportava limites lícitos, justifi-
zações, assim como as atividades de propa- cando-se “a interdição de órgão de publici-
ganda organizada e qualquer outro tipo de dade quando se demonstra o incitamento à
atividade de propaganda que incitar à dis- subversão da ordem pública e social ou a
criminação racial, e que a encorajar, e a de- propaganda de guerra ou de preconceitos de
clarar delito punível por Lei a participação raça ou de classe” (grifos meus).
nestas organizações ou nestas atividades; Entendo que esse acórdão de 1954 é per-
c - a não permitir às autoridades públi- feitamente compatível com a Constituição
cas nem às instituições públicas, nacionais de 1988. Com efeito, o art. 5º, II, ao estabele-
ou locais, o incitamento ou encorajamento à cer que “ninguém será obrigado a fazer ou
discriminação racial.” (O texto está repro- deixar de fazer alguma coisa senão em vir-
duzido in José Augusto Lindgren Alves, A tude da lei”, estipula que a extensão da li-
Arquitetura Internacional dos Direitos Huma- berdade está na dependência da lei, vale
nos, cit., p. 100). dizer, como aponta José Afonso da Silva, que
Este artigo, como lembra Lindgren Al- “a liberdade não é incompatível com um sis-
ves, foi objeto de discordância como tinha tema coativo”. O mesmo jurista, na análise
sido o art. 20 do Pacto Internacional sobre da expressão “em virtude da lei”, confere
Direitos Civis e Políticos de 1966, que no ao conceito de lei tanto a sua dimensão de
seu item 2 diz: “Será proibida por Lei qual- legalidade quanto a de legitimidade e, na
quer apologia do ódio nacional, racial ou discussão do standard da legitimidade, in-
religioso que constitua incitamento à dis- voca o art. 3º, que trata dos objetivos funda-
criminação, à hostilidade ou à violência” mentais da República Federativa do Brasil.
(O Pacto foi ratificado pelo Brasil pelo Di- José Afonso da Silva menciona, explicita-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 75


mente, os incisos I e III do art. 3º, aos quais sição econômica, nascimento de qualquer
agrego, para os propósitos da matéria ver- outra condição social” (art. 1º). Esta Con-
sada neste parecer, o inciso IV: “promover o venção, à qual o Brasil aderiu, estabelece um
bem de todos, sem preconceitos de origem, aparato de monitoramento de seus disposi-
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras for- tivos, integrado pela Comissão Interameri-
mas de discriminação” (cf. José Afonso da cana de Direitos Humanos e pela Corte In-
Silva, Curso de Direito Constitucional Positi- teramericana, às quais o Brasil também está
vo, cit. pp. 235, 420-424). É precisamente o vinculado (cf. Decreto nº 678, de 6/11/92;
caráter relacional da liberdade que tem um Decreto Legislativo nº 89, dezembro 1998;
limite no dano que pode produzir à liberda- Decreto nº 4463 de 11/11/2002. Para um
de de outro (cf. Tércio Sampaio Ferraz Jr., preciso relato do aparato de monitoramen-
Estudos de Filosofia do Direito, São Paulo, to do Pacto de São José, cf. Flávia Piovesan,
Atlas, 2002, p. 104), quando esta está tutela- Direitos Humanos e o Direito Constitucional
da pelos objetivos maiores do País, preconi- Internacional, cit. pp. 333-249).
zados pelo art. 3º, que me leva a apontar o O artigo 4 da Convenção, sobre a Elimi-
acerto do comentário de Alexandre de Mo- nação de todas as formas de discriminação
raes. Este, ao discutir o acórdão relatado racial, acima reproduzido, insere como de-
pelo Ministro Ribeiro da Costa no contexto lito punível e, portanto, no âmbito do Direi-
da análise do combate ao racismo, apontou to Penal Internacional, a difusão de idéias
que as liberdades públicas não podem ser baseadas na superioridade ou ódios raciais
utilizadas para acobertar finalidades ilíci- e no seu caput estabelece o compromisso dos
tas, como a veiculação de propagandas pre- Estados-partes de promulgar legislação in-
conceituosas a determinadas raças, etnias, terna com esse objetivo. (Sobre a inclusão
religiões ou procedências nacionais (cf. Di- da discriminação racial no Direito Penal In-
reitos Humanos Fundamentais, 2a ed., São Pau- ternacional, cf. Stefan Glaser, Droit Interna-
lo, Atlas, 2000, pp. 227-228). Aponto que, tional Pénal Conventionnel, Bruxelas, 1970,
no caso sobre o que versa este parecer, não pp. 130-132 e Celso D. de Albuquerque Me-
se trata de censura prévia, mas da respon- llo, Direito Penal e Direito Internacional, Rio
sabilidade penal de quem, como Siegfried de Janeiro, Freitas Bastos, 1978, pp. 157-162).
Ellwanger, exerceu a sua liberdade com fi- O rigor da tutela penal previsto pelo art. 5º,
nalidades ilícitas. LXII, da Constituição de 1988 e da sua cor-
Lembro que, no plano regional, a Con- respondente legislação infraconstitucional,
venção Americana de Direitos Humanos – nela incluída a imprescritibilidade do cri-
o Pacto de São José, à semelhança do art. 20 me da prática do racismo, exprime, assim, o
do Pacto Internacional sobre Direitos Civis cumprimento de uma obrigação internacio-
e Políticos, e pelos mesmos motivos, estabe- nal do Brasil e a já referida identidade de
lece no seu art. 13 - 5 que “a lei deve proibir objetivos do direito internacional e do direi-
toda propaganda a favor da guerra, bem to público interno quanto à proteção da pes-
como toda apologia ao ódio nacional, racial soa humana, apontada por Antonio Augus-
ou religioso que constitua incitamento à dis- to Cançado Trindade (cf. A Proteção Interna-
criminação, à hostilidade, ao crime ou à vi- cional dos Direitos Humanos – Fundamentos Ju-
olência”. Lembro, igualmente, que por essa rídicos e Instrumentos Básicos, cit, p. 635).
Convenção os Estados-partes comprome- A importância que o Brasil atribui a essa
tem-se a garantir os direitos e liberdades nela Convenção – que reitera a identidade de ob-
reconhecidos “sem discriminação alguma, jetivos entre o direito internacional e o direi-
por motivo de raça, cor, sexo, idioma, reli- to público interno – viu-se reforçada pelo
gião, opiniões políticas ou de qualquer ou- reconhecimento de Competência do Comitê
tra natureza, origem nacional ou social, po- para a Eliminação da Discriminação Raci-

76 Revista de Informação Legislativa


al, para receber e analisar denúncias de vio- preocupação o aumento do anti-semitismo
lação dos direitos humanos. Tal reconheci- e da islamofobia em diversas partes do mun-
mento, previsto no art. 14 da Convenção, do, assim como o aparecimento de movi-
integra o sistema de monitoramento inter- mentos raciais e violentos baseados no ra-
nacional de seus dispositivos, criado na cismo e em idéias discriminatórias contra
Parte II. O Decreto Legislativo nº 57, de 26 as comunidades judia, muçulmana e ára-
de abril de 2002, aprovou o ingresso do Bra- be”. Ora, é precisamente a divulgação de
sil nesse sistema, que se completou com a idéias discriminatórias contra a comunida-
Declaração do governo brasileiro, feita pelo de judia, que é parte integrante do crime de
Presidente Fernando Henrique Cardoso e prática do racismo, a atividade a que se de-
por mim referendada como Ministro das dica Siegfried Ellwanger. Aponto, igualmen-
Relações Exteriores, em 13 de maio de 2002. te, sobre a dimensão penal dessa atividade,
Em ato normativo interno posterior, atri- no plano internacional, que a Declaração e
buiu-se ao Comitê Nacional de Combate à o Programa de Ação de Durban no seu item
Discriminação (criado pelo Decreto nº 3.952 86, relembram, que a disseminação de idéi-
de 4/8/2001) competência para atuar como as baseadas na superioridade ou no ódio
instância focal, no Brasil, para receber de- racial devem ser declaradas como delitos
núncias com base na faculdade prevista no puníveis pela lei, como institui a Conven-
art. 14 da Convenção. ção Internacional para a Eliminação de to-
O anti-semitismo como racismo conti- das as formas de Discriminação Racial (cf.
nua na ordem do dia na visão internacional J. A. Lindgren Alves, A Conferência de Dur-
da agenda voltada para afirmar a Igualda- ban contra o Racismo e a responsabilidade
de, Dignidade e Tolerância e nesse proces- de todos, in loc. cit. p. 211).
so combater o racismo, a discriminação ra- Finalmente, acho relevante mencionar,
cial, a xenofobia e outras formas de intole- sobre a visão internacional da matéria, o que
rância. É o que diz a Resolução 623 da As- disse recentemente o Alto Comissário da
sembléia Geral da ONU de dezembro de ONU para Direitos Humanos, Sérgio Vieira
1998, já mencionada no item 8 deste pare- de Mello. Sérgio Vieira de Mello – um dos
cer, que faz menção específica ao anti-semi- mais respeitados brasileiros exercendo fun-
tismo como parte das formas contemporâ- ção de alta responsabilidade no sistema da
neas e não apenas históricas do racismo e ONU – em seu pronunciamento de 21 de
da discriminação racial. Sobre a atualidade novembro de 2002 no Instituto Internacio-
do tema do anti-semitismo como racismo, cabe nal de Imprensa em Viena, ao tratar da li-
igualmente trazer à colação o que está dito na berdade de imprensa, disse: “ There is no lack
Declaração e no Programa de Ação da Confe- of examples of the media being misused to whip
rência de Durban, que tornou os seus resulta- up hatred and fanaticism”; e logo adiante, no
dos mais positivos do que os das conferênci- mesmo parágrafo: “There are international le-
as internacionais anteriores sobre racismo. gal obligations a majority of status have accep-
Com efeito, na parte que trata das víti- ted that prohibit incitment to racial, religious
mas do racismo e da discriminação racial, a and ethnic hatred – not least anti-Semitism –
Declaração de Durban afirma , no seu item and they must be adhered to” (o texto integral é
58: “Recordamos que o Holocausto jamais acessível no website www.unhchr.ch).
deverá ser esquecido”. Ora, negar o Holo- 23 - Em síntese e encaminhando a séti-
causto e considerá-lo a mentira do século é ma conclusão deste parecer, os direitos hu-
precisamente uma das atividades a que se manos, como tema global e não circunscri-
dedica Siegfried Ellwanger. to, na agenda internacional, têm como uma
O item 61 da Declaração de Durban diz das suas causas o ineditismo do mal trazi-
igualmente: “Reconhecemos com profunda do pelo estado racial nazista. Este, lastrea-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 77


do na teoria de uma “raça superior”, pro- estipulam os Tratados Internacionais em
moveu ódios públicos e conduziu uma que a República Federativa do Brasil é par-
“guerra pública” contra os judeus como te. No caso da Convenção de 1965, sua vi-
uma “raça inferior” a ser exterminada. Daí gência e aplicação em nosso país antecede
o Holocausto que se insere, ex vi de Conven- a Constituição de 1988 e o seu regime é in-
ção internacional à qual o Brasil aderiu, na teiramente compatível com o texto constitu-
tipificação de crime de genocídio. cional e a sua correspondente legislação
A inclusão dos Direitos Humanos como infraconstitucional. Neste sentido, pode se
um tema global levou a uma abrangente dizer que a Convenção de 1965 integra o
política do Direito Internacional Público, da “bloco da constitucionalidade” à maneira
qual resultou a positivação, a generaliza- do que observa Valério de Oliveira Mazzuoli
ção e a especificação do Direito Internacio- invocando Bidart Campos. Esta integração
nal da Pessoa Humana. da Convenção de 1965 ao “bloco da consti-
No que diz respeito à especificação, no tucionalidade” não é problemática, pois não
que tange à discriminação racial, o grande suscita nem o problema das antinomias nem
tratado, de cuja elaboração o Brasil partici- a discussão sobre a mudança da Constitui-
pou, é a Convenção para a Eliminação de ção, de forma distinta da prevista para as
todas as Formas de Discriminação Racial emendas constitucionais, temas com os
de 1965, vigente no Brasil. A Convenção quais se preocuparam os Ministros Moreira
teve, entre as razões que instigaram a sua Alves e Gilmar Mendes e também, no cam-
redação, a memória das atrocidades das prá- po doutrinário, o Prof. Manoel Gonçalves
ticas racistas do nazismo, nos anos 30 e 40, Ferreira Filho (cf. Valério de Oliveira Ma-
particularmente as anti-semitas. zzuoli, Direitos Humanos, Constituição e os Tra-
A Convenção, no seu art. I, estabelece que tados Internacionais, cit. p. 244; German J. Bi-
discriminação racial significa qualquer dis- dart Campos, El Derecho de la Constitucion y
tinção, exclusão, restrição ou preferência su fuerza normativa; Buenos Aires, EDIAR,
baseadas em raça, cor, descendência ou ori- 1995, pp. 264-267, 399-401; José Carlos Mo-
gem nacional ou étnica. No seu art. 4, a Con- reira Alves in Ives Gandra da Silva Martins,
venção considera que está no âmbito do di- coord. Simpósio sobre imunidades tributárias,
reito penal e na estrutura da prática do ra- Revista dos Tribunais, 1998, pp. 22-23, 25;
cismo a difusão de idéias baseadas na su- Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitu-
perioridade ou ódios raciais. Neste sentido cional - O controle abstrato de normas no Brasil
a Convenção de 1965 incorporou, na sua e na Alemanha, São Paulo, Saraiva, 1996, p.
concepção de delito, o previsto no art. III, c, 178; Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Co-
da Convenção de 1948 para o crime de ge- mentários à Constituição brasileira de 1988, 2a
nocídio. ed. atualizada e reformulada, vol. 1, Sarai-
O Brasil, nos trabalhos preparatórios da va, 1997, p. 85).
Convenção de 1965, co-patrocinou emenda, O STF, no acórdão relatado pelo Minis-
com o objetivo de incluir no texto da Con- tro Celso de Mello, em 23/6/94 (HC 7384),
venção uma referência específica ao anti- examinado no item 9 deste parecer, realça
semitismo. O anti-semitismo, como tema atu- que, entre os meios à disposição do intér-
al da agenda internacional voltada para o prete para aplicar o Direito no Brasil, estão
combate ao racismo e à discriminação raci- os atos internacionais que, subscritos pelo
al, tem sido objeto de reconfirmada preocu- Estado brasileiro, se acham formalmente in-
pação nos textos emanados da ONU. corporados ao nosso sistema jurídico. É o
O § 2º do art. 5º da Constituição de 1988 caso da Convenção de 1965 sobre a Elimi-
determina, em matéria de direitos e garanti- nação de Todas as Formas de Discrimina-
as, a recepção, pelo Direito brasileiro, do que ção Racial.

78 Revista de Informação Legislativa


Destarte, entendo que o Direito Interna- o menor, conteúdo da garantia do direito
cional Público contribui para confirmar a tutelado, como foi ainda discutido ao longo
quarta conclusão deste parecer. A Conven- deste parecer. Mas também não é isso o que
ção de 1965 integra o bloco da constitucio- revela a História do Brasil.
nalidade dos direitos e garantias e reforça a 25 - Com efeito, a História do Brasil se
interpretação voltada para assegurar a im- inicia com o que atualmente denominamos
peratividade da tutela constitucional da práticas racistas e, como estipula o art. 5º,
condenação da prática do racismo como cri- LXII, da Constituição, puni-las obedece à
me imprescritível. Ela qualifica, no seu art. intenção do Constituinte, consignada no
1º, como discriminação racial qualquer dis- Preâmbulo da Constituição de 1988, que afir-
tinção, exclusão, restrição ou preferência ba- ma, como vis directiva da sua interpretação,
seadas em raça, cor, descendência ou ori- “os valores supremos de uma sociedade”
gem nacional ou étnica e estipula, no seu que hoje se deseja “fraterna, pluralista e sem
art. 4º, como parte da estrutura de delito, a preconceitos, fundada na harmonia social”.
difusão de idéias baseadas na superiorida- No seu livro, O Racismo na História do
de ou ódios raciais ou qualquer incitamento Brasil (8a ed., cit.), Maria Luiza Tucci Car-
à discriminação racial. A prática do racismo neiro mostra que, do século XVI até o século
inclui, assim, o anti-semitismo, que é um fe- XVIII, essas práticas racistas se davam pela
nômeno social, que independe de um inexis- distinção entre os que eram limpos de san-
tente e impreciso conceito de “raças”. O con- gue e os que não eram, uma distinção inspi-
teúdo jurídico do art. 5º, LXII, da Constitui- rada pelo Édito de Toledo de 1449. Limpos
ção de 1988, e sua correspondente legislação de sangue eram os que não tinham na famí-
infraconstitucional, insere no delito de práti- lia nenhum membro pertencente às raças
ca do racismo a divulgação de idéias anti- ditas impuras, cujo sangue manchava. Daí
semitas, cuja publicação constitui o crime im- a expressão “raça infecta” que aparece nos
prescritível de Siegfried Ellwanger. documentos coloniais. Eram, no Brasil co-
lônia, considerados de raça impura, os ne-
VIII – Amplitude da prática do gros, os mestiços, os indígenas e os judeus,
racismo no Brasil inclusive os convertidos, que eram qualifi-
cados de cristãos-novos, para diferenciá-los
24 - O impetrante alega que o discurso dos cristãos-velhos, limpos de sangue. Aos
racista no Brasil foi sempre dirigido contra de raça impura eram vedados o acesso a
o negro e, por essa razão, desde a lei Afonso cargos de responsabilidade na administra-
Arinos, o que o Direito brasileiro tutela é a ção pública. Daí a importância dos atesta-
proibição da discriminação pela cor da pele. dos comprobatórios da “limpeza do san-
Assim, o art. 5º, LXII, da Constituição de gue” e os esforços de encobrir a presença da
1988, e a sua correspondente legislação in- “raça infecta” no sangue de figuras de proa
fraconstitucional – o art. 20 da Lei 7.716/89 no Brasil colonial, como relata o historiador
com a redação dada pela Lei 8.081/90 – foi Evaldo Cabral de Mello, no seu importante
elaborado em conformidade com as carac- livro, O Nome e o Sangue, (2a ed., revista, Rio
terísticas do racismo imperante na socieda- de Janeiro, Topbooks, 2000).
de brasileira e, como tal, deve ser interpreta- Em relação aos cristãos-novos, o proble-
do e aplicado. Não é isso, no entanto, o que ma da pureza ou impureza do sangue era
está no texto das normas, nem é esse o único especialmente ameaçador. Era ameaçador
valor nelas positivado, como foi visto no em função da Inquisição estabelecida em
correr deste parecer. Não é esse, igualmen- Portugal em 1536, que fazia do critério da
te, o critério de interpretação dos direitos hu- impureza do sangue um elemento compro-
manos, que deve sempre visar o maior, e não batório de um judaísmo oculto e de uma fé

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cristã inautêntica, merecedora das penas in- Na “Genealogia Geral para desvanecer
quisitoriais. Essas, com freqüência, levavam a opinião dos senhores fidalgos portugue-
aos autos-de-fé e à morte das vítimas na fo- ses que se dizem puritanos”, que Jaime Cor-
gueira. tesão situa em torno de 1747, Alexandre de
O Pe. Antonio Vieira, que foi um grande Gusmão, no dizer do mesmo eminente his-
defensor da “gente de nação” – a denomi- toriador do Tratado de Madri: “... vinga toda
nação dos judeus e cristãos-novos portu- a comunidade dos cristãos-novos e dos sus-
gueses na época –, a isso faz referência na peitos da raça infecta. Forçando com ironia
proposta de 1646 a D. João IV, na qual reco- a lógica ele demonstra por absurdo a inani-
menda a mudança dos estilos do Santo Ofí- dade e o ridículo das pretensões dos purita-
cio e do Fisco. Além de tratar da mudança e nos, que todos, ao arrepio das gerações pas-
da moderação dos ministros da Inquisição, sadas, podiam e deviam ter, em maior ou
propunha Vieira “que todo o homem de na- menor grau, circulando nas veias e macu-
ção seja hábil para qualquer ofício, honra lando sua pureza azul, algumas gotas de
ou mercê dos que não requerem exame e lim- sangue hebraico” (Jaime Cortesão, Alexandre
peza” e “que nos que requerem exame e lim- de Gusmão e o Tratado de Madrid - Parte I - tomo
peza, se faça o exame pelo que toca a fé, e II - 1735-1753, Rio de Janeiro, Ministério das
não pelo que pertence ao sangue” (o texto se Relações Exteriores/Instituto Rio Branco,
encontra em Pe. Antonio Vieira, Escritos His- 1958, p. 213; Alexandre de Gusmão, Obras,
tóricos e Políticos, São Paulo, Martins Fontes, São Paulo, Ed. Cultura, 1943, pp. 75-78).
1995, p. 324). Na história da literatura luso-brasileira,
As práticas racistas baseadas no precon- a mais conhecida vítima das fogueiras da
ceito de pureza do sangue em relação aos Inquisição é Antonio José da Silva – o Ju-
judeus e seus descendentes, do ponto de vis- deu, nascido no Rio de Janeiro em 1705 e
ta jurídico, só foram eliminadas por legisla- cuja família se viu forçada a seguir sob pri-
ção portuguesa, válida para as colônias, são para Lisboa em 1712, por força de de-
inclusive o Brasil, promulgada pelo Marqu- núncias à Inquisição. Antonio José da Sil-
ês de Pombal entre 1768 e 1774. Nessa legis- va, grande amigo de Alexandre de Gusmão
lação, destaca-se a Carta-Lei de 1773, que e a maior figura do teatro português que se
proibia o emprego das expressões cristão- seguiu a Gil Vicente, estudou em Coimbra,
novo e cristão-velho, ditas ou escritas (cf. advogou e teve sucesso literário. Enfrentou
Maria Luiza Tucci Carneiro, op. cit. pp. 9- dois processos da Inquisição e, no segundo,
14; cf. também Anita Novinsky, Cristãos No- foi condenado a morrer na fogueira, num
vos na Bahia, São Paulo, Perspectiva – auto-de-fé, em 1739. (Cf. Alberto Dines, Vín-
EDUSP, 1972). culos do Fogo, vol. I, São Paulo, Cia. das Le-
Um documento importante, que contri- tras, 1992; Anita Novinsky, Cristãos-Novos
buiu para a legislação pombalina, é um juí- na Construção do Brasil, in Arnaldo Niski-
zo do escritor e diplomata Alexandre de er, coord., Contribuição dos Judeus ao Desen-
Gusmão. Nascido em Santos, muito prova- volvimento Brasileiro, Rio de Janeiro, Acade-
velmente de uma família de cristãos-novos, mia Brasileira de Letras, 1998, pp. 29-40).
é ele considerado o avô da diplomacia bra- Domingos José Gonçalves de Magalhães,
sileira, pois foi o principal negociador, pela a quem devemos o esforço de criar uma lite-
Coroa Portuguesa, do Tratado de Madri de ratura brasileira diferenciada da portugue-
1750, celebrado entre Espanha e Portugal, sa e que deu início, com a sua obra e ação, à
no qual foram consagrados os princípios, especificidade do Romantismo nas nossas
entre eles o uti possidetis, da delimitação das letras, foi sensível às camadas discrimina-
fronteiras, nas quais se fundamentou, com su- das da sociedade, entre elas os judeus. É o
cesso, a diplomacia do Brasil Independente. que se vê na sua peça de 1838, “Antonio

80 Revista de Informação Legislativa


José da Silva ou o Poeta e a Inquisição”, que Um dia cheio de contrariedade é ‘um dia-
assinala o início do Romantismo no teatro de-judeu’; e um dia triste, de sol entre nu-
nacional. Assim coloca na boca de seu he- vens e de amiudado cantar do galo, se diz
rói cristão-novo, no quinto e último ato, no que ‘morreu judeu’”. (Pereira da Costa, Fol-
diálogo de Antonio José com frei Gil que clore Pernambucano, 116). Quem cospe em
antecede a fogueira da Inquisição, as seguin- cristão é judeu. Quem promete e falta é ju-
tes palavras: deu. Quem come carne em dia da Paixão é
“Co’o labéo de Judeu, com que me judeu. Judeu bebe sangue de gente. Judeu
infamam, come carne de menino novo.”
Fica minha memória nodoada” 27 - A experiência histórica brasileira de
(cf. Domingos J. G. de Magalhães, Tragédias, discriminação e preconceito, acima relata-
Rio de Janeiro, Garnier, 1865, p. 112; cf. tam- da, tinha evidente compatibilidade com o
bém Kathe Windmüller, O Judeu no Teatro caldo de cultura mais amplo das teorias ra-
Romântico Brasileiro, São Paulo, FFLCH/ cistas que foram parte da História das Idéi-
USP – Centro de Estudos Judaicos, 1984, pp. as e das mentalidades nos séculos XIX e XX,
89-95) discutidas na parte VI deste parecer. Essa
26 - O preconceito racial em relação aos mentalidade racista teve sua irradiação no
judeus, baseado na “impureza de sangue”, Brasil. Está presente, por exemplo, em Var-
a nódoa de que fala Domingos José Gonçal- nhagen, na sua construção da História do
ves de Magalhães e que o Dicionário de Brasil, em Silvio Romero, em Nina Rodri-
Moraes registra, como foi visto no item 16 gues, em Oliveira Viana, que enxergaram na
deste parecer, não desapareceu. Persistiu na mestiçagem entre brancos, negros e índios –
memória da língua portuguesa tal como a mescla maior da identidade brasileira –
usada em nosso país. É o caso dos vocábu- uma das razões daquilo que emperrava o
los judiar e judiaria e da representação do desenvolvimento do Brasil. Daí, em função
judeu no folclore brasileiro, que atestam em de uma hipotética e equivocada divisão en-
surdina a força que ainda tem esse precon- tre “raças” superiores e inferiores, a afirma-
ceito discriminatório, em função da experi- ção da superioridade dos brancos e a inferi-
ência histórica do Brasil. oridade dos demais e o “branqueamento”
Luís da Câmara Cascudo, no seu repu- como caminho para o país.
tado Dicionário do Folclore Brasileiro (3a ed., Na década de 30, no Brasil, o caldo de
1972, Ediouro), no verbete judeu, a seguir cultura desta mentalidade explicativa de
reproduzido, confirma essa asserção: práticas sociais racistas foi receptivo às vi-
“Judeu. Como reminiscência religiosa sões do racismo anti-semita que o racismo
permanece no espírito popular a figura do alemão propagou pela Europa e difundiu
judeu como símbolo da malvadez absoluta, no mundo. Ele também encontrou ressonân-
alegrando-se com o sofrimento alheio, ego- cia na memória das “impurezas de sangue”
ísta, insensível, imperturbável de orgulho. do período colonial, que a língua portugue-
No vocabulário ficavam esses elementos sa no Brasil e o folclore brasileiro preserva-
longínquos da impressão coletiva contra o ram, como foi visto acima.
israelita. Judiar é maltratar, torturar, mago- Esse dado cultural contribui para expli-
ar. Judiaria não é a reunião de judeus, mas o car a existência, no aparelho do Estado, das
ato, a ação de judiar. Comum apontar-se o circulares-secretas e outras medidas volta-
gesto mau como natural no judeu: das para restringir a imigração de judeus
‘Quem matou meu passarinho para o Brasil na década de 30 e durante a
Foi judeu, não foi cristão; Segunda Guerra Mundial. Essas restrições
Meu passarinho tão manso têm uma fundamentação implícita ou explí-
Que comia em minhas mãos’ cita de natureza racista como documentou,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 81


de forma abrangente, Maria Luiza Tucci revela, através de documentos que funcio-
Carneiro no seu livro O anti-semitismo na Era navam como as “circulares secretas” do Ita-
Vargas - 1930-1945, (São Paulo, Brasiliense, maraty, a maneira pela qual, durante o Es-
1988). Com efeito, são inúmeros os documen- tado-Novo, impedia-se o acesso ao Colégio
tos contidos nos arquivos do Itamaraty, em Militar e à Escola Militar, e, portanto, à car-
outros arquivos públicos, na documentação reira no Exército, de brasileiros judeus (cf.
preservada no CPDOC da Fundação Getú- José Murilo de Carvalho, Forças Armadas e
lio Vargas, apresentados por Maria Luiza Política, 1930-1945, in A Revolução de 30,
Tucci Carneiro, que argumentam, com ine- Seminário Internacional, (org. CPDOC-FGV),
quívoca visão racista, contra a imigração e Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1983,
a presença judaica no Brasil. p. 128, p. 183).
Um paradigma dessa visão racista, que Essas políticas racistas se viram instiga-
atribuiu aos judeus uma dimensão de san- das pela propaganda contra o judeu conti-
gue – um jus sanguinis às avessas –, é um da nas obras anti-semitas publicadas na
Projeto de lei que Maria Luiza Tucci Carnei- época. Entre elas, O Judeu Internacional, de
ro encontrou nos arquivos do Itamaraty e Henry Ford; A História Secreta do Brasil de
reproduziu no anexo 9 do seu livro (p. 524). Gustavo Barroso; Os Protocolos dos Sábios do
Diz o art. 1º desse projeto: “Para efeitos da Sião apostilado por Gustavo Barroso; Brasil
entrada no território brasileiro, os indivídu- Colônia de Banqueiros de Gustavo Barroso.
os de origem semita, nascidos em quaisquer Esses livros estão entre aqueles publicados
países estrangeiros, serão considerados, glo- e divulgados por Siegfried Ellwanger e cons-
balmente como pertencentes à nacionalida- tituem o núcleo da propaganda doutrinária
de judaica” (sobre o jus sanguinis às aves- anti-semita dos anos 30, analisada por Ma-
sas, nesta matéria, estranho à Constituição ria Luiza Tucci Carneiro, (O Antisemitismo
brasileira e às leis do Brasil, cf. Avraham na Era Vargas, cit, cap. 6).
Milgram, Arthur Hehl Neiva e a Questão da Não é o caso de uma discussão de maior
Imigração Judaica no Brasil, in Em nome da amplitude sobre o pensamento de Gustavo
Fé, Estudos in Memoriam de Elias Lipner, Na- Barroso (sobre a matéria, ver: Marcos Chor
chman Falbel, Avraham Milgram, Alberto Maio, Nem Rotschild nem Trotsky: o pensamen-
Dines, organiz., São Paulo, Perspectiva, to anti-semita de Gustavo Barroso, Rio de Ja-
1999, pp. 145-156). Esse projeto de lei lem- neiro, Imago, 1992, cap. 3; Maria Luiza Tuc-
bra o tema da “impureza de sangue” do pe- ci Carneiro, A Trajetória de um Mito no Bra-
ríodo colonial. Ecoa o espírito da legislação sil: Os Protocolos dos Sábios de Sião; Roney
racial nazista – as leis de Nuremberg de Cytrynowicz, A América do Sul e o Anti-
1935, voltadas para “a proteção do sangue semitismo na Visão Integralista de Gustavo
e da honra alemã” – e da legislação italiana Barroso e de Plínio Salgado; Marcos Chor
fascista que, a partir de 1938, definia quem Maio, Marcas de uma Trajetória: A Militân-
era de razza ebraica, com o objetivo de estabe- cia Anti-semita de Gustavo Barroso, in Ibé-
lecer misure contra chi attenta al prestigio della ria-Judaica: Roteiros da Memória, Anita No-
razza nel territorio dell’Impero. (cf. verbete, Ra- vinsky e Diane Kuperman, org., Rio de Ja-
zzismo, de Arturo Colombo, in Novissimo neiro, São Paulo, Expressão e Cultura/
Digesto Italiano, 3a ed., Torino, UTET, 1982, EDUSP, 1996, respectivamente, pp. 487-514;
vol. XIV, pp. 914-916). 514-525, 527-539), mas acho relevante, para
Essa postura governamental brasileira os propósitos deste parecer, lembrar o que,
redundou em práticas racistas que não se nas suas Memórias, diz Miguel Reale sobre
restringiram à política migratória. José Mu- o papel de Gustavo Barroso na Ação Inte-
rilo de Carvalho, em estudo sobre as Forças gralista Brasileira. Aponta Miguel Reale que
Armadas e a Política no período 1930-1945, a AIB não era compacta do ponto de vista

82 Revista de Informação Legislativa


doutrinário. Nela atuaram três grandes cor- CPDOC, 2001; Aspásia Camargo e colabo-
rentes de opiniões diversificadas. A mais radores, O Golpe Silencioso, Rio de Janeiro,
numerosa, liderada por Plínio Salgado, Rio Fundo Ed., 1989, pp. 214-215).
“fundada na doutrina social da Igreja e na 28 - Assim, e esta é a oitava e última con-
exaltação nacionalista”; outra “que dava ên- clusão deste parecer, não é factualmente
fase especial aos problemas sociais e sindi- correta a alegação do impetrante de que o
cais, assim como problemas jurídicos-insti- discurso racista, em nosso país, foi sempre
tucionais do Estado”, e “uma terceira, mais dirigido contra o negro e de que o tema da
preocupada com os valores tradicionais da discriminação racial se coloca exclusiva-
história pátria, a que acrescentava um anti- mente em torno da cor da pele.
semitismo de frágil mas espalhafatosa fun- O discurso racista e as práticas racistas
damentação, com Gustavo Barroso à fren- que ele ensejou, no Brasil, lamentavelmente
te” (Miguel Reale, Memórias, vol. I, Destinos tiveram amplitude. Voltou-se contra o ne-
Cruzados, 2a ed. revista, São Paulo, Saraiva, gro, o mulato, o índio, o cigano e o judeu,
1987, p. 80). que em muitos momentos da nossa História
É precisamente a divulgação do anti-se- foram tidos como “seres inferiores”, como
mitismo “de frágil mas espalhafatosa fun- conclui no seu livro, O Racismo na História
damentação” de Gustavo Barroso, que ins- do Brasil (cit. p. 62) Maria Luiza Tucci Car-
tigou práticas de racismo anti-judaico no neiro.
Brasil dos anos 30, parte integrante do cri- É relevante, neste sentido, para explicar
me pelo qual foi condenado Siegfried a amplitude das modalidades dessas práti-
Ellwanger. Não acho irrelevante mencionar, cas racistas, trazer à colação uma distinção
neste contexto em que estou discutindo o conceitual elaborada por Oracy Nogueira,
impacto do anti-semitismo no Brasil nos num pioneiro estudo de 1954 sobre relações
anos 30, que o pretexto para o golpe de 1937 raciais no Brasil. Na análise do preconceito
tenha sido o “Plano Cohen”. Esse plano foi racial, identifica Oracy Nogueira tanto o que
elaborado pelo então Capitão Olympio qualifica de preconceito de marca – que é o
Mourão Filho, lotado no Estado Maior do preconceito de cor que tem como pretexto,
Exército, mas que era simultaneamente che- para as suas manifestações, os traços físi-
fe do Serviço Secreto da Ação Integralista cos, ou seja, a aparência – quanto o precon-
Brasileira e chefe do Estado-Maior de sua ceito de origem, para o qual o pretexto do pre-
Milícia, dirigida por Gustavo Barroso. O conceito é a suposição de que o indivíduo
“Plano” não se baseava em informações. descende de certo grupo (cf. Oracy Noguei-
Fazia parte da “pedagogia integralista” que ra, Tanto Preto Quanto Branco: Estudos de Re-
naquele momento associava anti-semitismo lações Raciais, São Paulo T. A. Queiroz Ed.,
e anti-comunismo e foi denominado de “Pla- 1985, pp. 78-79).
no Cohen” por Gustavo Barroso. Era uma As práticas racistas, cuja condenação
fraude, como se revelou depois de 1945, mas prevê o art. 5º, LXII, e a sua correspondente
foi, no entanto, apropriado pelo Estado- legislação infraconstitucional, não resultam
Maior do Exército como peça de retórica e apenas da cor da pele, como alega o impe-
propaganda para sustentar e justificar a ins- trante – o que configuraria, de forma restri-
tauração do Estado Novo (cf. Paulo Brandi, tiva, apenas a tutela contra o preconceito de
verbete Plano Cohen in Dicionário Histórico- marca. Incluem o preconceito de origem, para
Biográfico Brasileiro pós 1930, vol. IV (2a ed. valer-me da distinção proposta por Oracy
revista e atualizada) coordenação Alzira Nogueira. Este está presente na nossa expe-
Alves de Abreu, Israel Beloch, Fernando riência histórica, como foi visto, e retém atu-
Lattman-Weltman, Sérgio Tadeu de Nie- alidade. Disso é exemplo a conduta de Sie-
meyer Lamarão, Rio de Janeiro, Ed. FGV/ gfried Ellwanger – uma conduta que é con-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 83


trária à vis directiva do Preâmbulo da Cons- critível. As razões e os fundamentos jurídi-
tituição de 1988, que “deve ser levado em cos nos quais se baseia este parecer estão
conta quando da interpretação das normas sumariadas abaixo, na forma de uma sínte-
constitucionais”, na lição de Manoel Gon- se conclusiva.
çalves Ferreira Filho (Comentários à Consti- 28 - Na Conferência Mundial de Direi-
tuição Brasileira de 1988, vol. 1, cit., p. 15), tos Humanos de Viena de 1993, o Ministro
como é o caso do HC 82424-2, ora em exame Maurício Corrêa, que chefiava a Delegação
pelo STF. brasileira na sua condição, à época, de Mi-
Por essas razões todas, também não é nistro da Justiça, em discurso no plenário,
nem histórica nem juridicamente correta a em 14/6/93, fixou a linha geral da posição
afirmação do impetrante que a lei Afonso brasileira, invocando a indivisibilidade dos
Arinos teve como destinatários exclusivos direitos humanos (cf. Antonio Augusto Can-
da sua tutela o ser em situação, vítima da çado Trindade, A proteção internacional dos
discriminação, em função da cor da sua pele. direitos humanos e o Brasil, cit., p 105). A Con-
A lei Afonso Arinos, (Lei nº 1.390, de 3/ju- ferência de Viena, na sua Declaração e Pro-
lho/1951) foi pioneira, em nosso País, na grama de Ação, agregou a noção de indivi-
positivação, como contravenção penal, de sibilidade ao seu item 5, esclarecendo-a ao
práticas discriminatórias, dando, assim, afirmar que todos os direitos humanos são
início à etapa da especificação do processo universais, interdependentes e inter-relaci-
de afirmação dos direitos humanos. A Lei onados. Por isso mesmo a Conferência, no
1.390/51 se refere, em todos os sete artigos item 32, reafirmou a importância de se ga-
que tipificam a contravenção penal, ao pre- rantir universalidade, objetividade e não
conceito de raça ou cor. A sua tutela contem- seletividade na consideração de questões
plou, conseqüentemente, tanto o preconcei- relativas a direitos humanos. (A Declaração
to de marca quanto o preconceito de origem, e Programa de Ação de Viena está reproduzi-
não cabendo uma interpretação restritiva de da no apêndice do livro de J. A. Lindgren Al-
seu conteúdo, por força do próprio texto da ves, Os Direitos Humanos como tema global, São
lei. A Lei 7.716/89 e o seu artigo 20, com a Paulo, Perspectiva, 1994; os itens 5 e 32, estão
redação dada pela Lei 8.081/90 e outras respectivamente, nas páginas 153 e 162).
mudanças legislativas subseqüentes, na es- Indivisibilidade e, por via de conseqü-
teira do processo de especificação iniciado ência, universalidade, interdependência,
com a lei Afonso Arinos de 1951, definem inter-relacionamento e não-seletividade foi
os crimes resultantes de preconceito de raça a posição assumida pelo Ministro Maurício
ou de cor. Abrangem, portanto, em conso- Corrêa em Viena. Ela corresponde inteira-
nância com a tradição do direito brasileiro mente ao que estipula, para o plano interno
ex vi de tipificação determinada pelo art. 5º, e externo, a Constituição de 1988, e foi essa
LXII da Constituição de 1988, tanto o pre- posição o ponto de partida deste parecer.
conceito de marca quanto o de origem. Sub- 29 - O art. 5º, LXII, está inserido na siste-
sume, assim, na sua tutela, o anti-semitis- mática constitucional dos direitos e garan-
mo como prática de racismo e é, portanto, tias individuais, tutelada por cláusula pé-
inteiramente aplicável à conduta criminosa trea, o que significa que a vis directiva do
de Siegfried Ellwanger. constituinte foi dar estabilidade e perma-
nência a um sistema integrado de valores
IX – Síntese conclusiva de convivência coletiva, que tem como va-
lor-fonte a dignidade da pessoa humana,
Respondo, assim, à consulta formulada: ao qual a Constituição atribuiu supremacia
o crime cometido por Siegfried Ellwanger é axiológica. Deve, por isso mesmo, o art. 5º,
o da prática do racismo e, como tal, impres- LXII, ser apreciado e interpretado com os

84 Revista de Informação Legislativa


cuidados especiais exigidos pela indivisi- espécie humana – e, portanto, do ponto de
bilidade dos direitos humanos. vista biológico, não apenas os judeus, como
30 - O art. 5º, LXII, exprime a especifica- também os negros, os índios, os ciganos ou
ção do princípio geral da igualdade e da quaisquer outros grupos, religiões ou naci-
não discriminação. O seu destinatário é o onalidades não formam raças distintas. É o
ser em situação vitimado pela prática do ra- que diz a Declaração da UNESCO de 1978
cismo. O artigo é uma inovação da Consti- sobre Raça e Racismo; é o que dizem auto-
tuição de 1988 e é parte do processo mais res citados pelo impetrante, que mostram
amplo da especificação dos direitos huma- que “raça” é uma construção histórico-so-
nos, que caracteriza o nosso texto constitu- cial, voltada para justificar a desigualdade.
cional. Tem como nota própria o rigor da Essa omissão é o ponto de partida da falaci-
tutela penal, indicativa da importância que osa argumentação do impetrante. Com efei-
a Constituição atribui à repressão da práti- to, os judeus não são uma raça, mas tam-
ca do racismo. bém não são raça os negros, os mulatos, os
31 - O critério de interpretação dos direi- índios e quaisquer outros integrantes da
tos humanos deve favorecer, pela importân- espécie humana que, no entanto, podem ser
cia a eles atribuída pela Constituição de vítimas da prática do racismo. É o caso, por
1988, de maneira ampla, o conteúdo do di- exemplo, dos párias na Índia, discutido na
reito contemplado. Entre os direitos e garan- Conferência de Durban sobre Racismo, víti-
tias individuais, inclui-se, ex vi do art. 5º, mas de um preconceito de origem e não de
LXII, a rigorosa inaceitabilidade da prática marca, para recorrer à distinção de Oracy
do racismo. A Constituição de 1988 é expli- Nogueira. Interpretar o crime da prática do
citamente receptiva ao Direito Internacional racismo a partir do conceito de “raça”, como
Público em matéria de Direitos Humanos, o argumenta o impetrante, exprime não só
que configura uma identidade de objetivos uma seletividade que coloca em questão a
do direito internacional e do direito público universalidade, interdependência e inter-re-
interno, quanto à proteção da pessoa hu- lacionamento, que compõem a indivisibili-
mana. Por isso mesmo, como decidiu o STF dade dos direitos humanos, afirmada, em
no acórdão de 23/6/1994 (HC 7384), do nome do Brasil, pelo Ministro Maurício Cor-
qual foi relator o Ministro Celso de Mello, rêa em Viena. Representa, sobretudo, redu-
na interpretação em matéria de Direitos zir o bem jurídico tutelado pelo Direito bra-
Humanos, o Direito Interno e o Direito In- sileiro, o que não é aceitável como critério
ternacional não são estanques. Interagem de interpretação dos direitos e garantias
com vistas a reforçar a imperatividade do constitucionais. No limite, essa linha de in-
direito constitucionalmente garantido. Este terpretação restritiva pode levar à inação ju-
é, conseqüentemente, também um critério re- rídica por força do argumento contrario sen-
levante para a interpretação do art. 5º, LXII, su, que cabe em matéria penal. Com efeito,
da Constituição de 1988. levadas às últimas conseqüências, ela con-
32 - O conteúdo jurídico do preceito cons- verteria a prática do racismo, por maior que
titucional consagrado pelo art. 5º, LXII, do fosse o esmero na descrição da conduta, em
crime da prática do racismo, tipificado pela crime impossível pela inexistência do obje-
legislação infraconstitucional, reside nas to: as raças.
teorias e preconceitos que estabelecem dife- 33 - O acerto da não interpretação do cri-
renças entre grupos e pessoas, a eles atribu- me da prática do racismo a partir do concei-
indo as características de uma “raça” para to de “raças”, à maneira do que preconiza o
discriminá-las. Daí a repressão prevista no HC 82424-2 impetrado em favor de Siegfri-
art. 20 da Lei 7.716/89, com a redação dada ed Ellwanger, confirma-se por dois casos
pela Lei 8.081/90. Só existe uma “raça” – a decididos por eminentes Cortes Superiores

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de outros países, que comportam aproxima- nos. A taxonomia tornou-se dinâmica com
ção com o HC 82424-2 ora submetido ao jul- o evolucionismo de Darwin e, no que diz
gamento do STF. Tanto o caso da Shaara Te- respeito aos seres humanos, os múltiplos
fila Congregation v Cobb, decidido pela Su- porém imprecisos critérios de classificação
prema Corte dos EUA em 1987, quanto o das raças estavam ligados à aparência.
caso Mandla and another v Dowell Lee and ano- No século XIX, a taxonomia das raças
ther, decidido pela House of Lords da Ingla- acabou induzindo o racismo. Com efeito, a
terra em 1983, interpretam e aplicam a le- classificação das raças levou às teorias ra-
gislação dos seus respectivos países em ma- cistas – por exemplo, as de Gobineau – que
téria de discriminação racial. O caso decidi- justificaram a desigualdade com base na
do pela Suprema Corte dos EUA diz respei- diferença entre raças superiores e inferio-
to à prática do racismo em relação a judeus. res. Essas teorias vicejaram no caldo de cul-
O caso decidido pela House of Lords diz tura do darwinismo social e passaram a fa-
repeito à prática do racismo em relação aos zer parte da História das mentalidades.
sikhs. Em ambos, essas duas Cortes Superi- As teorias racistas buscaram sua funda-
ores decidiram, não obstante as alegações mentação nas ciências biológicas. Justifica-
dos réus semelhantes às do impetrante, que, ram a prepotência da expansão colonial eu-
apesar de os judeus e de os sikhs não serem ropéia e foram a base do racismo biológico
uma “raça”, foram vítimas de práticas ra- institucionalizado da Alemanha nazista.
cistas, cabendo assim, respectivamente, a Esta instigou ódios públicos e conduziu uma
tutela da legislação norte-americana de guerra pública em relação aos que a lide-
1982 e da legislação inglesa de 1976, que rança nazista considerava raças inferiores,
tratam da discriminação racial. Nesses dois com destaque para os judeus.
casos que julgaram em matéria de discrimi- O avanço do conhecimento e o desven-
nação racial, atribuiu-se ao termo “raça” sua dar do seqüenciamento do genoma huma-
dimensão histórico-cultural, da qual pro- no se incumbiram de mostrar que não há
vém as práticas discriminatórias. fundamentação biológica em qualquer sub-
34 - A etimologia da palavra raça, no divisão racial da espécie humana e que os
entender de vários filólogos é obscura, como critérios de diferenças visíveis, a começar
obscuras vieram a ser as conseqüências do pela cor da pele, são apenas juízos de apa-
seu uso social. Em português, na sua ori- rência. Neste sentido as ciências biológicas
gem, além de ser utilizada para diferenciar, são um elemento adicional para a afirma-
cão, cavalo, de boa ou má raça, adquiriu ção do princípio da igualdade e da não dis-
outro significado. Ter raça é ter sangue de criminação, que resultaram da positivação
mouro ou judeu. Essa mesma acepção de do valor do ser humano.
cunho negativo se encontra em espanhol e As teorias racistas não têm fundamenta-
a origem desse emprego, nas duas línguas, ção biológica. Persistem, no entanto, como
reside nas tensões provenientes da Recon- fenômeno social. É por essa razão que é este
quista pelos cristãos da Península Ibérica, fenômeno, e não a “raça”, o destinatário ju-
dominada por séculos pelos árabes e nos rídico da repressão prevista pelo art. 5º, LXII,
conflitos religiosos que posteriormente le- da Constituição, e da sua correspondente
varam ao estabelecimento da Inquisição. legislação infraconstitucional. É precisa-
Alguns filólogos derivam raça do latim, mente porque a prática do racismo está na
ratio, rationis, na acepção da modalidade, cabeça das pessoas que o art. 20 da Lei
espécie. Foi essa acepção que prosperou 7.716/89, com a redação dada pela Lei
quando, no século XVIII, teve início, pela obra 8.081/90 e também sua evolução legislati-
de Lineu, não só a classificação das plantas va, tipifica na estrutura do delito o praticar,
e animais como também dos seres huma- induzir ou incitar por publicações e pelos

86 Revista de Informação Legislativa


meios de comunicação a divulgação de teo- venção que está em vigor no plano internaci-
rias que discriminam grupos ou pessoas, a onal foi recepcionada pelo Direito brasileiro.
elas atribuindo as características de “raças São relevantes na discussão do HC
inferiores”. Essa divulgação é crime de prá- 82424-2, ora em exame pelo STF, o art. 1-1
tica de racismo. Foi por essas bem fundamen- da Convenção, que dá uma definição abran-
tadas razões que o Tribunal de Justiça do Rio gente da expressão “discriminação racial”,
Grande do Sul condenou Siegfried Ellwan- e o art. 4, que insere na tutela penal a difu-
ger e o Superior Tribunal de Justiça confir- são de idéias baseada na superioridade ou
mou o acerto jurídico do Tribunal gaúcho. ódios raciais.
35 - As teorias e visões do mundo racis- A Convenção de 1965 antecede em vi-
tas partem do princípio que existem raças; gência e aplicação a Constituição de 1988;
que essas se dividem entre superiores e in- não suscita o problema das antinomias nem
feriores e que as superiores têm o direito de a discussão sobre a mudança da Constitui-
dominar as inferiores. Uma visão racista do ção de forma distinta da prevista para as
mundo leva a distintas escalas de agressi- emendas constitucionais – temas com os
vidade, lastreada pelo não reconhecimento quais se preocuparam os Ministros Moreira
aos “outros” dos mesmos direitos e garanti- Alves e Gilmar Mendes. É, portanto, um
as, cujo fundamento é o princípio da igual- meio válido, à disposição do intérprete, para
dade e o corolário da não discriminação. A a aplicação do Direito no Brasil em matéria
escala de agressividade se intensifica com a de Direitos Humanos, nos termos da Cons-
violência da segregação de que é exemplo o tituição de 1988, como decidiu o STF no acór-
que foi o apartheid na África do Sul. O paro- dão relatado pelo Ministro Celso de Mello
xismo da violência é o extermínio físico, tal em 23/6/94 (HC7384).
como tipificado pelo crime do genocídio. O O Direito Internacional Público é um ele-
paradigma desse paroxismo foi o Holocaus- mento adicional a confirmar que o crime
to levado a efeito pelo Estado Racial em que cometido por Siegfried Ellwanger é o da prá-
se converteu a Alemanha nazista, que con- tica do racismo. Com efeito, a Convenção de
duziu uma guerra pública contra as raças 1965 qualifica, no seu art. 1, como discrimi-
inferiores, com destaque para o extermínio nação racial, qualquer distinção, exclusão, res-
de judeus. trição ou preferência baseadas em raça, cor, des-
A Carta da ONU procurou responder ao cendência ou origem nacional e estipula, no seu
ineditismo da escala sem precedentes do art. 4, como delito, a difusão de idéias baseadas
mal, da experiência da Segunda Guerra na superioridade ou ódios raciais ou qualquer
Mundial e de seus antecedentes. Nesta res- incitamento à discriminação racial, tal como de-
posta, deu realce para o que representou o finido no art. 1º. A prática do crime de racis-
genocídio como afronta ao valor da digni- mo inclui, assim, o anti-semitismo, que é um
dade da pessoa humana. Fez, assim, da tu- fenômeno social, que independe de um ine-
tela dos direitos humanos no plano inter- xistente e impreciso conceito de “raças”.
nacional, não um tema circunscrito, mas um A história legislativa da Convenção de
tema global. 1965 comprova também que as práticas anti-
Na etapa da especificação, do processo semitas do nazismo foram uma das causas
de positivação dos Direitos Humanos no de sua elaboração e que o Brasil, nos tra-
âmbito do Direito Internacional Público, em vaux preparatoires, foi explícito nesta maté-
matéria de discriminação racial, o grande ria. Na agenda internacional da ONU, o
texto jurídico é a Convenção Internacional anti-semitismo como prática de racismo tem
para a Eliminação de Todas as Formas de sido considerado um tema de preocupação
Discriminação Racial de 1965. O Brasil parti- atual e não apenas histórica. É o que afirma,
cipou de sua elaboração normativa e a Con- por exemplo, a Resolução 623/98 da Assem-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 87


bléia Geral e o item 61 da Declaração da tória das Mentalidades voltadas para justi-
Conferência de Durban sobre Racismo de ficar e legitimar a desigualdade com base
2001, cabendo igualmente lembrar que a na distinção entre “raças” superiores e in-
Declaração de Durban reitera, no seu item feriores. Na década de 30, teve irradiação
58, que o Holocausto jamais deverá ser es- em nosso País o racismo nazista alemão, que
quecido. Aponto, neste sentido, que negar o tinha no anti-semitismo o seu foco prepon-
Holocausto e considerá-lo a mentira do sécu- derante. Isso contribuiu para a existência
lo é parte do crime da prática do racismo pelo de práticas racistas no aparelho do Estado,
qual foi condenado Siegfried Ellwanger. em especial no que tange às restrições da
36 - As práticas do racismo, na experiên- imigração de judeus para o Brasil na déca-
cia histórica do Brasil, em oposição ao que da de 30 e durante a Segunda Guerra Mun-
alega o impetrante, tiveram uma amplitude dial, justificadas por critérios raciais. A pos-
de destinatários que foram vitimados pela tura governamental, que não era ostensiva
discriminação. Negros, mulatos, índios, ci- mas é documentada, viu-se facilitada pela
ganos, judeus foram, em diversos momen- propaganda contra o judeu contida nas
tos da nossa História, considerados “raças obras anti-semitas publicadas na época, em
inferiores” e, como tal, discriminados. especial as de Gustavo Barroso. É a reedi-
No período colonial, as práticas racistas ção das obras do espalhafatoso anti-semi-
se davam pela distinção entre os limpos de tismo de Gustavo Barroso parte integrante
sangue – os brancos, portugueses, cristãos- do crime pelo qual foi condenado Siegfried
velhos – e os de raças ditas impuras, cujo Ellwanger.
sangue manchava – os negros, os mestiços, A legislação brasileira, desde a lei Afon-
os indígenas e os judeus, inclusive os con- so Arinos de 1951, que dá início ao proces-
vertidos, qualificados de cristãos-novos. so de especificação da tutela penal para pro-
Para os cristãos-novos, a impureza de san- teger as vítimas da discriminação racial, não
gue era uma ameaça onipresente em função tem como destinatários exclusivos o ser em
da Inquisição, que fazia do critério da im- situação, vitimado pela cor de sua pele,
pureza de sangue um elemento comproba- como argumenta sem base histórica e jurí-
tório de judaísmo oculto, que poderia con- dica o impetrante. O Direito brasileiro con-
duzir à morte nas fogueiras dos autos-de-fé. templa tanto o preconceito de raça – que o
O teatrólogo Antonio José da Silva – o Ju- sociólogo Oracy Nogueira qualificou de pre-
deu, nascido no Rio de Janeiro, é a mais no- conceito de origem – quanto o preconceito
tória vítima, na História da literatura luso- de cor – por ele qualificado de preconceito
brasileira, condenado a morrer na fogueira, de marca. Essa é a interpretação correta a
num auto-de-fé ocorrido em Lisboa em 1739. ser dada ao art. 5º, LXII, da Constituição de
A distinção entre cristãos-novos e cristãos- 1988, e à sua correspondente legislação in-
velhos, no Brasil, só foi eliminada pela Car- fraconstitucional, inclusive por força da vis
ta-Lei de 1773 promulgada ao tempo do directiva do Preâmbulo da Constituição que
Marquês de Pombal. afirma os valores supremos de uma socie-
O preconceito racial em relação aos ju- dade que se quer fraterna, pluralista e sem
deus, baseado na “impureza de sangue”, preconceitos, fundada na harmonia social.
persistiu na memória da língua portugue- 37 - Uma palavra final sobre a impres-
sa, tal como usada em nosso País com os critibilidade, pois o impetrante, na petição
vocábulos judiar e judiaria e na representa- do HC 82424-2, não nega a existência de
ção do judeu no folclore brasileiro, como um delito cometido por Siegfried Ellwanger.
atesta Luís da Câmara Cascudo. Busca afastar a imprescritibilidade, argu-
O Brasil recepcionou, nos séculos XIX e mentando não tratar-se de crime de prática
XX, teorias racistas que foram parte da His- de racismo.

88 Revista de Informação Legislativa


Existe um nexo estreito entre a impres- O crime de Siegfried Ellwanger é o da
critibilidade, esse tempo jurídico que se es- prática do racismo, crime de que nos quere-
coa sem encontrar termo, e a memória, ape- mos livrar, em todas as suas vertentes, para
lo do passado à disposição dos vivos, triun- construir uma sociedade digna. Tem a es-
fo da lembrança sobre o esquecimento, como pecificidade de querer preservar, por meio
explica Alain Laquièze (Le Debat de 1964 de publicações, viva, a memória de um anti-
sur l’imprescriptibilité des crimes contre semitismo racista. Foi esse anti-semitismo
l’humanité, in Droits, 31, 2000, p. 19). que levou, no Estado Racial em que se con-
A memória das práticas racistas que di- verteu a Alemanha nazista, à escala sem
ficultaram, na História do Brasil, a criação precedentes o mal representado pelo Holo-
de uma sociedade fraterna, pluralista e sem causto. O Holocausto é a recusa da condi-
preconceitos – valores supremos do País ção humana da pluralidade e da diversida-
consagrados no Preâmbulo da Constituição de, que contesta, pela violência do extermí-
– é o que o Constituinte quis preservar, para nio, os princípios da igualdade e da não
impedir sua reincidência. Por isso conferiu, discriminação, que são a base da tutela dos
no art. 5º, LXII, ao crime da prática do racis- direitos humanos. O crime de Siegfried
mo o peso e a gravidade da imprescritibili- Ellwanger, por apontar nessa direção do
dade. mal, não admite o esquecimento.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 89


90 Revista de Informação Legislativa
O Direito Internacional Privado
solucionando conflitos de cultura
Os divórcios no Japão e seu reconhecimento no Brasil

Claudia Lima Marques

Sumário
Introdução. I – Divórcios declarados no Ja-
pão e o direito brasileiro atual: um divórcio
consensual e privado reconhecível segundo o
direito brasileiro? A - Os tipos de divórcio no
direito japonês e sua problemática. 1. Cultura
jurídica e os divórcios consensuais no Japão. 2.
As normas japonesas sobre divórcio e os pro-
blemas de sua prática. B - Comparando as nor-
mas e a função dos divórcios privados japone-
ses com os divórcios brasileiros: reconhecimen-
to ou violação pública? 1. As normas brasilei-
ras principais sobre divórcio. 2. A evolução
histórica das normas sobre o divórcio e a exce-
ção de ordem pública em matéria de divórcio.
II - O reconhecimento dos divórcios consensu-
ais japoneses pelo Supremo Tribunal Federal.
A – O processo de deliberação adaptado aos
divórcios privados japoneses. 1. A deliberação
concentrada no Supremo Tribunal Federal. 2.
A ordem pública brasileira em matéria de di-
vórcios. B – Exame de 30 casos de divórcios
japoneses no STF de 1975 a agosto de 2002. 1. O
exame dos 20 casos de divórcios consensuais
administrativos. 2. O exame dos outros casos.
Conclusões.

Introdução

Anna Maria Villela (1980, p. 7, 30) afir-


mava que o divórcio pronunciado por um
juiz estrangeiro, uma das questões mais
antigas no Brasil, levou o nosso Direito In-
ternacional Privado-DIPriv. a uma evolução
sem precedentes nessa matéria. Também
Haroldo Valladão (1962, p. 75 et seq.) dedi-
cou um de seus cursos na Academia de Di-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 91
reito Internacional de Haia à dissolução do constitucionalização do Direito Internacio-
casamento, demonstrando que, mesmo não nal Privado e modificação da EGBGB6. As-
conhecendo o divórcio até 1977, o Judiciá- sim também foram os ritos religiosos de di-
rio brasileiro sempre foi muito aberto ao re- vórcios, como o divórcio judaico7, que força-
conhecimento de sentenças estrangeiras de ram o Judiciário na Alemanha a reconhecer
dissolução do casamento, se pelo menos um a necessidade de uma “tolerância funcio-
dos cônjuges era estrangeiro (SAMPAIO, nal” entre essas entidades e o judiciário
1973, p. 102)1. laico8.
Efetivamente, a questão do divórcio es- Como ensina o meu mestre de Heidel-
teve por muito tempo relacionada no Brasil berg, Erik Jayme, o respeito às diferenças cul-
a elementos culturais (e jurídicos) específi- turais é um valor na pós-modernidade e apa-
cos, como à forte influência da religião cató- rece com extrema clareza em matéria de for-
lica no país (SOUZA, 1997, p. 747 et seq.) a mas de celebração e formas e causas de dis-
ponto de a indissolubilidade do casamento solução do casamento (JAYME, 1999, p. 35-
(até 1977)2 ou a sua dissolubilidade fazer 36). Cultura é o conjunto das formas típicas
parte integrante de nossas normas consti- de viver de grandes grupos de pessoas, in-
tucionais (Art. 226, §6o, da Constituição Fe- cluindo suas atividades, suas formas bási-
deral de 1988), logo, da ordem pública em cas de pensamento, de expressão e de valo-
DIPriv (VILLELA, 1980, p. 30). A famosa res, sua maneira de ver o mundo. Em senti-
Súmula 3813, sobre o não reconhecimento do lato, cultura é o resultado da atuação do
de divórcios em foros facilitatórios e por pro- homem no mundo, aquilo que é diferente da
curação, constitui-se entre nós no maior natureza: o mundo cultural é o mundo rea-
exemplo de combate à fraude à lei pessoal lizado pelo homem, inclusive suas normas
em nosso Direito Internacional Privado.4 postas e seguidas no dia-a-dia de uma soci-
Da mesma forma, internacionalmente, o edade9. Assim, apesar da imigração, os gru-
divórcio foi responsável por muitas evolu- pos culturalmente ligados, os grupos étni-
ções na teoria do direito internacional pri- cos e religiosos, como ensina Erik Jayme
vado, desde a noção de fraude à lei, no fa- (1994, p. 344), integram-se nas novas pátri-
moso caso da princesa Baufremont de 1878, as, como os grupos de descendentes de ja-
como no que se refere à qualificação entre poneses no Brasil, mas preservam sua lín-
regras de fundo e regras de forma, da pró- gua, sua religião, seus costumes, seu modo
pria evolução da noção de ordem pública5, de ver o mundo... sua cultura!
positiva e negativa (GAUDEMET-TALLON, O Direito Comparado sempre separou as
1991, p. 30), ao hoje concedido reconheci- “famílias” de direito justamente com base
mento automático do divórcio praticamen- nessas “práticas” e visões culturais diferen-
te sem exame da ofensa à ordem pública (ES- tes do direito10. Zweigert e Kötz (1984, p. 406,
PLUGUES MOTA, 2003, p. 27 et seq.), nos 416-417) consideram que é característica da
Estados da União Européia (ANCEI; MUI- “família de direito do extremo oriente” (der
RWATT, 2001; JAYME, 2003a). fernöstliche Rechstkreis) a procura da harmo-
Na Alemanha, o famoso caso do casa- nia pela solução não-conflitual dos litígios
mento entre um espanhol solteiro e uma ale- e uma forte hierarquia social e interna na
mã divorciada em 1971 teve como base a família. Em matéria de divórcios, o tema é
inexistência da instituição do divórcio na solucionado longe do Judiciário, que somen-
Espanha e a conseqüente proibição daque- te é usado quando o consenso não pode ser
le casamento, o que foi considerado contra atingido. Os efeitos do divórcio são trata-
os direitos humanos e os Artigos 3 e 6 da Lei dos em família e muito raramente com a aju-
Fundamental de Bonn, resultando assim na da de mediadores, sendo que o advogado
evolução da ordem pública positiva com praticamente não tem nenhuma atuação

92 Revista de Informação Legislativa


ou função nesses momentos “privados” Direito da UFRGS, em setembro de 2002, na
(ZWEIGERT; KÖTZ, p. 417). Edição especial justamente em homenagem
O grande comparatista, René David (e à Cooperação entre a Faculdade de Direito
JAUFFRET-SPINOSI, 1988, p. 614-615), ob- da Universidade de Tohoku, Sendai (Japão),
serva que apesar da “ocidentalização” do e a Faculdade de Direito da UFRGS (MAR-
direito japonês a partir de 1868, os giri (re- QUES; JACQUES; SCHMITZ, 2002).
gras de comportamento socialmente tradi- Minha hipótese de trabalho é que aque-
cionais), os códigos de honra puramente les 30 casos (23 decisões monocráticas do
costumeiros e uma “ausência da idéia de presidente do Tribunal e 7 acórdãos do Tri-
direito” como o conhecemos no ocidente bunal Pleno) representam uma amostra sig-
continuam a “reger” os comportamentos no nificativa de como é entendida a instituição
Japão, e conclui: “Mas, se as instituições ja- do reconhecimento de sentenças pelo Supre-
ponesas estão totalmente ocidentalizadas, mo Tribunal Federal. Isto é, uma amostra da
se as técnicas jurídicas estão modernizadas, forma bastante flexível e aberta para soluci-
mesmo assim a sua aplicação na atmosfera onar eventuais “conflitos culturais”, em es-
cultural japonesa demonstra ainda a atua- pecial com países de origem de nossos imi-
lidade profunda e viva dos princípios tra- grantes majoritários, como o Japão, reconhe-
dicionais”11. cendo uma equivalência funcional em atos
Apesar de respeitáveis autores franceses privados de divórcio consensual, registra-
concluírem pela existência de um “conflito dos apenas administrativamente no Japão
de civilizações”12, principalmente em casos e o divórcio judicial como é aqui conhecido.
de direito internacional privado envolven- Dividirei minha análise em duas partes,
do pessoas com a visão ocidental de direito uma primeira dedicada a compreender os
ou pessoas de países islâmicos, preferirei tipos de divórcio segundo o direito japonês
neste trabalho a expressão do mestre de e analisar a base legal brasileira e uma se-
Heidelberg, Erik Jayme, que, ao refletir so- gunda dedicada à análise do processo de
bre o direito de família na sociedade multi- delibação concentrado no STF e dos casos
cultural do ocidente de hoje, preferiu deno- levantados.
miná-los “conflitos de cultura” e marcar a
identidade cultural de indivíduos vindos do I – Divórcios declarados no Japão e o
oriente, Ásia e países islâmicos e suas cole- direito brasileiro atual: um divórcio
tividades nos países de imigração, como o
consensual e privado reconhecível
Brasil, e considerar que é uma das finalida-
des do Direito Internacional Privado atual
segundo o direito brasileiro?
dar respostas diferentes e eqüitativas à pre- Segundo o Prof. Dr. Erik Jayme (1999),
sença de grupos culturalmente diferentes da Universidade de Heidelberg, Alemanha,
em um mesmo país, resolvendo esse deno- em seu artigo sobre Direito Comparado pós-
minado “conflito de leis”, que é em verdade moderno, o direito comparado pós-moder-
um conflito de “culturas” jurídicas. no estaria mais interessado no diferente, no
O objetivo deste breve trabalho é, pois, fluido e especial, aquilo que divide e carac-
refletir sobre a pesquisa com 30 casos en- teriza o direito, no atual e específico de cada
volvendo divórcios japoneses no Supremo ordenamento jurídico, a respeitar a identi-
Tribunal Federal (STF) de 1975 a 22 de agos- dade social e cultural de cada povo (MAR-
to de 2002, que foi realizada em conjunto QUES, 2000). Nessa linha, mister observar
com alunas da graduação e pós-graduação que Brasil e Japão apresentam duas cultu-
para servir de base a trabalho da Profa. Dra. ras, dois povos diferentes, dois sistemas ju-
Yuko Nishitani apresentado em 2002 e que rídicos bastante distintos. Escolher como
foi publicada na Revista da Faculdade de objeto de pesquisa essas “diferenças”13, es-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 93


pecialmente em Direito Internacional de tão em contato, começa a ser substituída por
Família, é a nossa finalidade, assim como soluções diferenciadas e tópicas, servindo-
verificar se essas “diferenças” podem ser se muitas vezes da exceção de ordem públi-
superadas, contornadas ou assimiladas de ca, que pressupõe um exame caso a caso e
forma a permitir o reconhecimento de uma do resultado da aplicação do direito estran-
mesma funcionalidade ou se essas diferen- geiro indicado aplicável. Em matéria de re-
ças significam alguma espécie de ruptura conhecimento de direitos adquiridos ou
de fundo, violação de princípios basilares constituídos sob a égide da lei estrangeira,
ou ofensa ao ordenamento jurídico do outro geralmente utilizam-se os países de uma
país. noção de ordem pública “menos exigente”,
O divórcio realizado em um país, por mais flexível e tolerante com as diferenças
exemplo no Japão, por um nissei brasileiro culturais nos dias de hoje. Vejamos o que
(segunda geração de imigrantes japoneses), ocorre no caso desse encontro de culturas
que lá reside para trabalhar em uma fábri- brasileira e japonesa.
ca, tem de ser reconhecido em outro país,
por exemplo, no Brasil, onde o outro cônju- 1. Cultura jurídica e os divórcios
ge reside com os filhos ou onde é seu domi- consensuais no Japão
cílio. Esse divórcio determina a modifica- O mestre Erik Jayme, ao receber o título
ção do estado civil desses imigrantes, brasi- de doutor honoris causa pela Universidade
leiros ou japoneses, permite um novo casa- Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
mento, consolida ou determina a partilha analisou esse mesmo levantamento juris-
de bens, localizados no Brasil ou no Japão, prudencial realizado na jurisprudência do
e leva à regulação dos deveres alimentares Supremo Tribunal Federal, e conclui que os
entre cônjuges e em relação à eventual prole imigrantes japoneses, mesmo aqueles com
(FERNANDES ARROYO, 2003, p. 749 et domicílio permanente no Brasil, preferiram
seq.). Mister, pois, analisar os tipos de di- o foro japonês, ou melhor, o estilo japonês
vórcio japoneses e comparar com as normas de divorciar-se consensualmente e de ma-
brasileiras aplicadas nesses casos. neira privada, a constituir um foro seguro,
discreto, um foro-lar (Heimatforum), justa-
A – Os tipos de divórcio no direito mente por questões culturais. Tal preferên-
japonês e sua problemática cia, mesmo em imigrantes de segunda gera-
Em seu belo artigo, a colega de Sendai, ção ou imigrações de mais de 40 anos, con-
Profa. Dra. Yuko Nishitani (2002, p. 49-53), clui o mestre, é exemplo da “dimensão cul-
destaca a importância de compreender os tural” do direito, a ser respeitada em especi-
tipos de divórcio do direito japonês e toda a al pelo direito internacional privado14. Se-
problemática que esses tipos, em especial ria, pois, um exemplo de respeito à autono-
os consensuais, podem trazer. Efetivamen- mia de vontade, como direito básico tam-
te, como ensina Muir Watt (2001, p. 271), os bém em direito internacional de família, a
modelos familiares são afirmações da cul- busca do foro e da lei mais adaptada ao sen-
tura, do modo de ver os direitos humanos, e, timento cultural do indivíduo imigrante ou
em especial, a atual desagregação da famí- de nacionalidade diferente, sempre que não
lia nas relações privadas internacionais é houvesse fraude à lei ou ofensa à ordem
um grande desafio para o Direito Internaci- pública15.
onal Privado do mundo globalizado. Gan- Habermas relembra que, em se tratando
nagé (1992, p. 427) observa que a neutrali- de multiculturalismo ou sociedades multi-
dade “savigniana” do Direito Internacional culturais, como a brasileira, a luta dos gru-
Privado, em especial quando populações de pos sociais “diferentes”, como os grupos de
origens e tradições culturais diferentes es- raças diferentes ou de imigrantes (por exem-

94 Revista de Informação Legislativa


plo, os grupos afro-americanos ou os gru- o § 764 c/c § 739 do Código Civil Japonês
pos de imigrantes nos EUA), é pelo seu re- (Kasai Geppô); 7,73% dos divórcios ocorre-
conhecimento como grupo a merecer trata- ram por arbitragem/mediação e somente
mento diferenciado, mais flexível ou toleran- 0,81% por decisões judiciais stricto sensu19.
te no Estado Democrático de Direito16. Em seu texto de 2002, Nishitani (2002, p.
Perante a cultura japonesa, de resolver 49) adiciona ainda mais dados, informan-
de forma interna e discreta os problemas do que, em 1997 e 1998, 90,93% dos divórci-
familiares (FROMONT, 1994, p. 134-135), os no Japão eram privados, somente 8,24%
não é de espantar que existam no país duas ocorreram por mediação voluntária e 0,4%
“formas” privadas consensuais ou media- por mediação imposta e 0,80% apenas eram
das de dissolução do casamento, sem qual- divórcios judiciais.
quer presença do Estado no que se refere à São esses divórcios “privados” japone-
declaração de vontade, que é apenas comu- ses que devem ser reconhecidos no Brasil e
nicada por meio do registro a posteriori no aparecem em 20 dos 30 casos analisados
cadastro administrativo do prefeito ou do pelo Supremo Tribunal Federal em nossa
distrito ou vila rural (Arts. 1 e 16 do Ko- pesquisa20. Assim interessa-nos saber se há
sekihô)17. realmente essa natureza “administrativa”
Efetivamente, o Código Civil Japonês visualizada pelo STF nos casos ou se, em
(Kasai Geppô) prevê, do Art. 763 ao Art. 768, contrário, a sua natureza “privada” impe-
essas formas de divórcio consensual, seja diria o seu reconhecimento no Brasil.
por aceitação simples de uma das partes da De outro lado, no Brasil, o divórcio, como
“declaração de divórcio” pelo outro (art. instituição, foi uma das mais polêmicas; ins-
765)18, seja por mediação por terceiro, em tituição desconhecida no ordenamento ju-
casos mais complexos, seja mediação volun- rídico brasileiro até 1977, alcançou hierar-
tária ou obrigatória (que Nishitani denomi- quia constitucional (sua proibição e sua li-
na Schlichtungs- und Zwangschlichtungsschei- beralização), sofreu vários limites e integra
dung) (NISHITANI, 2002, p. 50). O divórcio hoje, sem dúvida alguma, a ordem pública
judicial, com auxílio do juiz, está previsto em DIPriv (DOLINGER, 2000, p. 291 et seq.).
nos Arts. 770 a 791 e é efetuado perante o Daí a importância de aprofundarmos a aná-
Tribunal de família. O Art. 819 do Código lise de uma eventual violação de nossa or-
civil japonês estabelece as regras sobre guar- dem pública por esses tipos de divórcio.
da de menores e registro no cadastro de fa-
mília (MARUTSCHKE, 1999, p. 2 et seq.). 2. As normas japonesas sobre divórcio e os
Interessa-nos aqui as diferenças cultu- problemas de sua prática
rais. Para nós, brasileiros, acostumados ao Mister inicialmente examinar algumas
litígio e à discussão da culpa no divórcio e a normas japonesas de Direito Internacional
longas e amplas ações de separação e de Privado, na lei especial de DIPriv. denomi-
divórcio em que todos os detalhes da vida nada Horei21. Segundo o Art. 3 da Horei, a
em comum pregressa são examinados, cha- capacidade das pessoas (no caso os japone-
ma a atenção a dissolução do casamento ses ou brasileiros que divorciam-se no Ja-
poder ser feita por simples “negócio jurídi- pão) é regulada pela lei de sua nacionalida-
co” registrado após em foro administrativo. de, japonesa ou brasileira (HOREI, 1999, p.
No Japão, porém, a aceitação desse tipo de 308). Nesse sentido, relembre-se que muitos
divórcio é enorme, totalizando as formas de dos nissei brasileiros, que retornam para o
divórcio consensual mais de 90% dos ca- Japão e lá se divorciam dos cônjuges domi-
sos. Assim, em 1999, 91,46% dos divórcios ciliados no Brasil, são brasileiros e não mais
realizados no Japão foram divórcios “pri- japoneses segundo as leis de nacionalida-
vados”, extrajudiciais conforme determina de japonesas, daí poder ser aplicado a esse

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divórcio a lei brasileira. Quanto à forma, o ço de convencimento e decisão para o
Horei apresenta uma regra geral em seu Art. Juiz, mas a previsibilidade da decisão
8 que manda aplicar a lei principal (lex cau- é pequena”.
sae), a qual regulará os “efeitos do negócio Yuko Nishitani, em sua palestra na
jurídico” (HOREI, 1999, p. 310). Nesse caso, UFRGS, em 2001, assim também concluía
se o divórcio privado de um nissei brasilei- que, caso um dos 220 mil brasileiros que vi-
ro for considerado pelo STF como apenas vem atualmente no Japão queira divorciar-
um problema de forma e não como de méri- se, será possivelmente declarado aplicável
to, aplicável é a lei principal do divórcio (lex para esse divórcio o direito japonês, devido
causae), a japonesa ou a brasileira. aos elementos de conexão escolhidos pela
A lei principal que regula os divórcios lei japonesa23.
realizados no Japão está determinada pelo Mister, pois, destacar as críticas que os
Art. 16 do Horei. Aplicável seria a lei que próprios autores japoneses tecem com refe-
regula o casamento (envio para o art. 14 do rência ao direito japonês do divórcio con-
Horei), mas se um dos cônjuges é de nacio- sensual. Yuko Nishitani (2002, p. 49) alerta
nalidade japonesa ou possui à época do di- que, como a declaração de divórcio inicia
vórcio sua residência habitual no Japão, de forma unilateral com um formulário
aplicável é a lei japonesa22. (Scheidungsformular), preenchido geralmen-
Em sua palestra de 2001, a professora te pelo marido, e como os japoneses não co-
Nishitani resumiu as regras sobre o Divór- nhecem a assinatura, mas se utilizam para
cio no Direito Japonês da seguinte forma: essa função de carimbos, há muita probabi-
“O Código Civil Japonês (CCJ, Ka- lidade de falseamento dessa declaração de
sai Geppô) prevê o Divórcio privado e “aceitação” do divórcio. A ponto de existir
o divórcio judicial. A lei sobre Deci- um instrumento para evitar que um cônjuge
sões em Matéria Familiar (LDMF, kaji possa “declarar” o divórcio consensual sem
shinpanhô) prevê o divórcio arbitral o consentimento ou conhecimento do outro.
(administrativo) voluntário e o divór- O problema do falseamento é tão sério que,
cio arbitral imperativo. Assim temos: desde 1952, o Ministério da Justiça desen-
(1) Divórcio privado (§§ 764 e 739 CCJ) volveu uma diretiva, a qual permite a qual-
→ Deve ser registrado no ‘registro fa- quer dos cônjuges realizar uma declaração
miliar’ (koseki) conforme a Lei sobre o no Registro de Família ou Corte familiar
Registro Familiar (kosekihô); (2) divór- denominada “Declaração cautelar de não
cio arbitral é feito no tribunal familiar aceitação da declaração de divórcio priva-
(administrativo) (Prioridade do arbi- do” (vorsoglichen Antrag auf Nichtannahme
tramento por mediadores em caso de des Scheidungsformulars), para evitar tal pe-
não consenso: Art. 18, 1 LDMF);(3) rigo. Informa a autora que, anualmente, cer-
divórcio arbitral imperativo (sobre a ca de 25 mil pessoas fazem uso desse ins-
base do arbitramento e mediação) fren- trumento preventivo no Japão.
te ao Tribunal (administrativo) de Fa- A referida autora vai mais longe, afirman-
mília (Art. 24 LDMF) → Há possibili- do que, mesmo se o cônjuge mulher realmen-
dade de recurso; (4) Divórcio Judicial te consentir na declaração de divórcio do
frente ao Juiz distrital (Processo nor- marido, pode ela estar sendo tratada de for-
mal segundo os Artigos 1 e seguintes ma “abusiva” aos olhos ocidentais, pois
da Lei processual sobre processos en- nessa declaração a parte econômica da dis-
volvendo direitos individuais-LPDI, solução não é tratada ou se tratada, na mai-
jinji soshô tetsuzukihô), quando um oria das vezes, é com renúncia a direitos
dos motivos de divórcio do § 770,1, patrimoniais (NISHITANI, 2002 p. 49). Para
CCJ está presente. Há um maior espa- se ter uma idéia da força dessa observação

96 Revista de Informação Legislativa


da autora japonesa, mister ponderar que, Em resumo, é grande a probabilidade que
segundo o Art. 762 do Código Civil japonês, se aplique a lei japonesa aos divórcios de
o regime de bens legal já é o da separação de brasileiros de origem japonesa residentes
bens e, anualmente, apenas 15 casais op- habitualmente no Japão e que este seja um
tam no Japão por outro regime de bens mais divórcio privado, consensual, por declara-
favorável às mulheres. Informa também que, ção em formulário. Melhor seria que nesses
em 50% dos divórcios privados, os alimen- casos, quando o cônjuge sabe que deverá
tos para a mulher não são concedidos e que, reconhecer o divórcio no Brasil, que se esco-
em 80% dos divórcios, o tema dos alimentos lhesse a via do divórcio por arbitragem/
para os filhos sequer é tratado nessa decla- mediação ou judicial, pois estes não teriam
ração de divórcio! 24 Essas estatísticas im- nenhum problema para serem reconhecidos
pressionam se pensarmos que se tratam de pelo Supremo Tribunal Federal.
divórcios diretos, sem prévia separação ju-
dicial e partilha. B – Comparando as normas e a função dos
Sendo assim, Yuko Nishitani (2002, p. divórcios privados japoneses com os divórcios
52) defende, em seu artigo de 2002, que as brasileiros: reconhecimento ou violação da
“declarações de divórcio” consensuais, ordem pública?
mesmo que registradas administrativamen- Efetivamente, as observações realizadas
te, não equivalem funcionalmente às deci- por Yuko Nishitani sobre as várias possibi-
sões judiciais ou sentenças (Urteil) ou aos lidades de fraude e as dificuldades referen-
atos oficiais (Hoheitsaktes), como é exigido pelo tes aos divórcios consensuais japoneses re-
direito alemão (§328 ZPO), que está analisan- velam um problema sério para determinar
do. A mesma conclusão poder-se-ia chegar se há ou não ofensa a nossa ordem pública
analisando-se o direito brasileiro. Lembra que e qual a natureza desses divórcios. O Su-
a doutrina alemã reconhece esses divórcios premo Tribunal Federal tem considerado
apenas como “negócios jurídicos”25. todos esses casos como divórcios “adminis-
Note-se que Erik Jayme (1994, p. 351)26 trativos” e os reconhecido sem muitas inda-
destaca a abertura cultural que esse reco- gações, sendo que a problemática da ordem
nhecimento também representa, pois a Cor- pública não é sequer mencionada. Nos 30
te Federal Alemã reconheceu mesmo vali- casos analisados, o único motivo usado para
dade a um divórcio baseado em mútuo con- recusar homologação foi a competência ab-
sentimento de dois tailandeses, declarado soluta do juízo brasileiro, envolvendo divór-
por negócio jurídico, mas em território ale- cio de nacionais japoneses domiciliados no
mão! Segundo o mestre, é o revival da auto- Brasil, mas proferido no Paraguai (MAR-
nomia de vontade que ganha espaço no di- QUES; JACQUES; SCHIMIDT, 2002, p. 218-
reito internacional privado de família, um 219). Daí a necessidade de passarmos ao
desenvolvimento que deve ser saudado e exame das normas brasileiras sobre o as-
não combatido, se respeita a identidade cul- sunto.
tural dos envolvidos e respeita os direitos
humanos dos envolvidos (JAYME, 1994, p. 1. As normas brasileiras principais
356; GANNAGÉ, 1992, p. 425 et seq.). sobre divórcio
Segundo Yuko Nishitani (2002, p. 53), o O novo Código Civil de 2002 regula a
divórcio mediado preenche, sim, funcional- dissolução do casamento pelo divórcio nos
mente os requisitos, pois o mediador cuida Arts. 1.571 e seguintes27. As regras determi-
para que o cônjuge mais fraco receba um nam os efeitos da separação e do divórcio,
tratamento econômico correto; assim tam- no que se refere ao nome, à guarda dos fi-
bém um divórcio perante o juiz japonês pode lhos, ao direito de visitas, aos alimentos ao
e deve ser reconhecido em outros países. cônjuge e aos filhos e à partilha de bens28.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 97


Preocupa-se também com o registro do esta- ou, como parte da doutrina defende, a lei da
do civil de divorciado, afirmando: “Art. 10. nacionalidade comum desses cônjuges, em
Far-se-á averbação em registro público: I – interpretação do §6o do Art. 7o da LICC/42
das sentenças que decretarem a nulidade como estabelecendo o elemento de conexão
ou anulação do casamento, o divórcio, a se- de nacionalidade34.
paração judicial e o restabelecimento da so-
ciedade conjugal”. Trata-se de requisito para 2. A evolução histórica das normas sobre o
a habilitação para novo casamento29. Segun- divórcio e a exceção de ordem pública em
do a jurisprudência brasileira, a interpreta- matéria de divórcio
ção dessas normas pode ser no sentido que Antes de passarmos ao exame das nor-
o divórcio consensual não necessita reali- mas brasileiras que regem o reconhecimen-
zar a partilha (Súmula 197 do STJ)30, e que a to hoje das sentenças de divórcio, e o exame
renúncia da esposa aos alimentos é defini- dos casos levantados, mister relembrar a
tiva31, sem que isso ofenda a nossa ordem evolução histórica da instituição divórcio
pública. no Brasil. Como antes mencionado, até a
No Direito Internacional Privado, o Art. Emenda Constitucional de 1977, as consti-
7 da LICC/42 dispõe: “A lei do país em que tuições brasileiras consideravam o casa-
for domiciliada a pessoa determina as re- mento indissolúvel, logo, a instituição “di-
gras sobre o começo e o fim da personalida- vórcio” era desconhecida no país35.
de, o nome, a capacidade e os direitos de Como explica Oscar Tenório (1955, p.
família.” O §6o do Art. 7o da LICC/42 refere- 287), a justiça brasileira de 1894 a 1917 (data
se à homologação de sentenças de divórcio da entrada em vigor das normas da Intro-
de brasileiros, impondo os mesmos prazos dução ao Código Civil) sempre considerou
da lei do divórcio de 1977. Seu espírito é po- que “o divórcio é um ato jurídico perfeito,
sitivo para a homologação dessas sentenças: cujas conseqüências são admitidas em toda
“Art. 7o... § 6o. O divórcio realiza- parte”, daí discutir-se se seu reconhecimen-
do no estrangeiro, se um ou ambos os to no Brasil ofendia ou não a ordem públi-
cônjuges forem brasileiros, só será re- ca. Vejamos a evolução.
conhecido no Brasil depois de três O Código Civil Brasileiro de 1916, que
anos da data da sentença, salvo se entrou em vigor em 1o de janeiro de 1917,
houver sido antecedida de separação como ensina Haroldo Valladão, adotara “em
judicial por igual prazo, caso em que sua introdução, art. 8o, o princípio da lei
a homologação produzirá efeito ime- nacional para os direitos de família e, art.
diato, obedecidas as condições esta- 17, o limite da ordem pública. Daí perdurar
belecidas para a eficácia das senten- a jurisprudência da inadimissibilidade da
ças estrangeiras no País. O Supremo decretação de qualquer divórcio ‘a vínculo’
Tribunal Federal, na forma de seu re- no Brasil, por ser contrário à ordem pública
gimento interno, poderá reexaminar, (acórdão leader do STF, Ap. Cív. 2755, Rev.
a requerimento do interessado, deci- Sup. Trib. Fed. 30/194)... A jurisprudência
sões já proferidas em pedidos de homo- evoluiu com um espírito muito largo... A
logação de sentenças estrangeiras de di- princípio, recusava simplesmente a homo-
vórcio de brasileiros, a fim de que pas- logação às sentenças estrangeiras de divór-
sem a produzir todos os efeitos legais”32. cio, que eram todas consideradas contrári-
Não há unanimidade entre os autores as à ordem pública; depois homologou-as
brasileiros qual a lei indicada aplicável para somente para efeitos patrimoniais... facili-
o divórcio de estrangeiros no Brasil, se a do tando, assim, a vida no Brasil dos divorcia-
domicílio conjugal, segundo o Art. 7o caput dos no estrangeiro (Clunet, 1932, 1.111 a
como lei geral para os direitos de família33, 1.120). Foi um aplicação feliz do princípio

98 Revista de Informação Legislativa


da aproximação ou adaptação... Afinal, con- pelos juízes do que pela legislação, e o exa-
cedeu a homologação, para todos os efeitos, me concentrava-se na competência do juiz
inclusive os de contratar novo casamento estrangeiro que ditava o divórcio, esta sim
no Brasil, se o divórcio era admitido pela lei dada pela nacionalidade dos cônjuges ou
do lugar onde foi promulgado e pela lei na- seu domicílio. Sendo assim, a justiça brasi-
cional dos cônjuges, o que exclui os brasi- leira reconhecia os atos de divórcio de es-
leiros. Se um dos cônjuges era brasileiro e o trangeiros, em foros competentes e se sua lei
outro estrangeiro, reconhecia a sentença es- assim permitisse esse divórcio.
trangeira para o brasileiro, com efeitos so- Interessante notar que os textos dos Arts.
mente patrimoniais, e para o estrangeiro, se 52 e 56 do Código de Bustamante, que pre-
a lei nacional o autorizasse, para todos os viam o elemento de conexão do domicílio
efeitos, inclusive o de novo casamento no matrimonial para o divórcio e a separação,
Brasil, o que criava uma situação de desi- nunca entraram em vigor no Brasil38. O Art.
gualdade que chocava a opinião pública”. 318 desse Código permitia que os cônjuges
A nova Lei de Introdução de 1942 pôs submetessem-se, nessas ações, a competên-
fim às controvérsias estabelecendo clara- cia de um foro escolhido, o que, segundo
mente que o reconhecimento de sentenças Valladão (1962, p. 122), também não foi acei-
de divórcios de estrangeiros, mesmo que to no Brasil em matéria de divórcio, como
domiciliados no país, era possível, mas seu demonstrou a posterior jurisprudência do
novo casamento no Brasil, não. Assim afir- STF na Súmula 381 (SAMPAIO, 1973, p. 23).
mava expressamente o Art. 7o, § 6o da Lei de A Súmula 381 do Supremo Tribunal Fe-
Introdução ao Código Civil até 1977: deral veio justamente combater esse tipo de
“Art. 7o, § 6o. Não será reconheci- “fraude à lei”, pois os estrangeiros domici-
do no Brasil o divórcio, se os cônjuges liados no Brasil passaram a utilizar-se de
forem brasileiros. Se um dêles o fôr, foros facilitários do divórcio, como o Méxi-
será reconhecido o divórcio quanto ao co ou Reno (Estados Unidos da América), e
outro, que não poderá, entretanto, ca- a divorciarem-se por procuração, em países
sar-se no Brasil”. que não eram nacionais ou com os quais
Em resumo, antes de 191736, mesmo para não tinham em princípio nenhuma conexão
reconhecimento e para verificar se havia verdadeira. Esses divórcios não foram reco-
fraude à lei, o elemento de conexão indireto nhecidos pelo STF, apesar de os cônjuges
utilizado era o da nacionalidade de cada terem ambos “escolhido” voluntariamente
cônjuge, a “lei da sua pátria” (TENÓRIO, esses foros39.
1955, p. 288). Depois de 1942, o elemento de A Súmula 381 do STF, consolida a ju-
conexão principal passou a ser o domicílio, risprudência brasileira no sentido de que:
mas a Lei de Introdução de 1942 rompia “Não se homologa sentença de di-
seu próprio sistema em matéria de divórcio vórcio obtida por procuração, em país
e, mesmo assumindo como elemento de co- de que os cônjuges não eram nacio-
nexão principal, do Art. 7o caput, o domicí- nais” (SAMPAIO, 1973, p. 23).
lio da pessoa, manteve em matéria de divór- Note-se que a circunstância de os estran-
cio uma autorização especial de reconheci- geiros serem casados no Brasil ou mante-
mento de sentenças estrangeiras de divór- rem aqui seu domicílio nunca foi conside-
cio de pessoas domiciliadas no Brasil, se rada impeditiva do divórcio no exterior e de
estrangeiras e se sua lei nacional (e a do foro) seu reconhecimento pelo STF (SAMPAIO, p.
permitia o divórcio!37. 27). Da mesma forma, o direito brasileiro
Como ensina Ana Maria Villela (1980, sempre foi bastante estrito, seja consideran-
p. 8-11), em matéria de reconhecimento de do as mudanças automáticas de nacionali-
sentenças, a matéria foi desenvolvida mais dade como fraude à lei, seja não conceden-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 99


do a nacionalidade brasileira à mulher que Quanto ao reconhecimento de sentenças,
casasse com nacional, sendo assim podia a base legal expressamente inclui a exceção
esta obter o divórcio como estrangeira no da ordem pública no Art. 15 da LICC/42:
exterior40. “Art. 15. Será executada no Brasil
Vejamos a base legal atual sobre ofensa a sentença proferida no estrangeiro,
à ordem pública. Segundo ensina Jacob Do- que reúna os seguintes requisitos:
linger, a exceção de ordem pública não é a) haver sido proferida por juiz
passível de definição, sendo relativa, casu- competente;
ística e contemporânea: “A Ordem Pública b) terem sido as partes citadas ou
no DIPR impede a aplicação de leis estran- haver-se legalmente verificado a reve-
geiras, o reconhecimento de atos realizados lia;
no exterior e a execução de sentenças profe- c) ter passado em julgado e estar
ridas por tribunais de outros países, consti- revestida das formalidades necessá-
tuindo-se no mais importante dos princípi- rias para a execução no lugar em que
os da disciplina” (CALIXTO, 1987; DOLIN- foi proferida;
GER, 1979, p. 329-330). A determinação se d) estar traduzida por intérprete
um ato estrangeiro ou uma decisão ou sen- autorizado;
tença de divórcio ofende a ordem pública e) ter sido homologada pelo Supre-
brasileira é feita pelo juiz, no caso concreto mo Tribunal Federal.
e com as noções dos dias de hoje. Concorde- Parágrafo único. Não dependem
se com Andreas Bucher (1993, p. 69) que a de homologação as sentenças mera-
função primeira da cláusula de exceção da mente declaratórias do estado das
ordem pública é preservar os valores essen- pessoas”.
ciais de justiça da ordem jurídica do foro. Esse artigo foi modificado pelos Artigos
A base legal da exceção de ordem públi- 483 do CPC e 216 e 217 do Regimento inter-
ca atual ainda é o Art. 17 da Lei de Introdu- no do Supremo Tribunal Federal, como ve-
ção ao Código Civil de 1942, que dispõe: remos42 . Os requisitos formais necessários
“Art. 17. As leis, atos e sentenças para o Supremo Tribunal Federal conceder
de outro país, bem como quaisquer uma homologação de sentença estrangeira
declarações de vontade, não terão efi- são, segundo os artigos 216 e 217 do Regi-
cácia no Brasil, quando ofenderem a mento Interno do STF, os seguintes: compe-
soberania nacional, a ordem pública tência do juiz prolator; terem sido as partes
e os bons costumes”. citadas ou haver-se legalmente verificado a
Também a Convenção Interamericana revelia; ter passado em julgado e estar re-
sobre Normas Gerais de Direito Internacio- vestida das formalidades necessárias à exe-
nal Privado – que não é aplicada em relação cução no lugar em que foi proferida; estar
a casos japoneses, mas pode servir de inspi- autenticada pelo cônsul brasileiro e acom-
ração ao juiz brasileiro – proíbe a fraude à panhada de tradução oficial; além do requi-
lei nos seguintes termos41: sito da negativa de ofensa à soberania naci-
“Artigo 6. Não se aplicará como onal, à ordem pública e aos bons costumes
direito estrangeiro o direito de um Es- (MOREIRA, 1998, p. 59-60).
tado Parte quando artificiosamente se Antes de passarmos ao exame dos 30
tenham burlado os princípios funda- casos aqui estudados, mister observar que,
mentais da lei do outro Estado Parte. como ensina Pedro Sampaio (1973, p. 73), o
Ficará a juízo das autoridades direito brasileiro desde a Sentença Estran-
competentes do Estado receptor deter- geira no 912 da Dinamarca sempre reconhe-
minar a intenção fraudulenta das par- ceu o divórcio emanado de autoridade ad-
tes interessadas”. ministrativa: “As sentenças de divórcio pro-

100 Revista de Informação Legislativa


nunciadas por autoridade administrativa competência do STF para processar e julgar
do poder executivo, consoante os ditames a homologação de sentenças estrangeiras e,
internos do Estado do qual emanam, preen- segundo essa interpretação majoritária, es-
chem, no particular, o exigido por nossa lei, taria inserido nesse conceito qualquer do-
podendo, tais decisões, ser homologadas, cumento que, segundo a legislação da ori-
independentemente do grau hierárquico de gem do país, tenha-se como funcionalmen-
quem as proferiu”. te válido para decretar o divórcio (RECHS-
Ao contrário, em matéria de autoridade TEINER, 1996, p. 199). Efetivamente, mes-
religiosa, o divórcio realizado de pessoas mo antes da introdução do divórcio no Bra-
domiciliadas no Brasil normalmente não era sil, em 1977, o STF reconhecia divórcios pro-
reconhecido pelo STF por falta de compe- feridos no exterior de estrangeiros, afirman-
tência dessa jurisdição, como demonstra a do: “Homologa-se o divórcio se foi feito com
Sentença Estrangeira no 2016 do Líbano, as formalidades de seu país de origem” (STF,
cuja ementa ensina: SE 1382-Noruega) (SAMPAIO, 1973, p. 97).
“As relações de família não se sub- Vejamos o processo de delibação brasi-
metem, no território brasileiro, a outra leiro sobre o tema (A) e o exame dos casos
jurisdição que não a dos tribunais ci- concretos (B).
vis, instruídos por lei” (SAMPAIO,
1973, p. 76). A - O Processo de delibação adaptado aos
divórcios privados japoneses
II – O reconhecimento dos divórcios O reconhecimento das decisões estran-
consensuais japoneses pelo Supremo geiras é uma parte importante do Direito
Internacional Privado ou do Processo Civil
Tribunal Federal
Internacional, visando justamente garantir
Segundo demonstrou nosso levantamen- o atendimento das finalidades de harmo-
to dos 30 casos de divórcios japoneses reco- nia internacional de decisões almejadas por
nhecidos pelo STF desde a entrada em vigor essas disciplinas. Visa igualmente dar às
da Constituição de 1988 até agosto de 2002, partes a segurança jurídica, por meio da cir-
o STF não demonstra qualquer dificuldade em culação dos julgados e atos, o reconhecimen-
reconhecer esses divórcios privados e afirma: to dos direitos adquiridos e situações juri-
“É certo prever o artigo 102, inciso dicamente constituídas no exterior. Como
I, alínea ‘h’, da Constituição Federal a ensina o grande mestre português, recente-
competência do Supremo Tribunal mente falecido, Antonio Marques dos San-
Federal para processar e julgar, origi- tos (1998, p. 309): “o fundamento do reco-
nalmente, a homologação de senten- nhecimento das sentenças estrangeiras é a
ças estrangeiras. Todavia, há de ado- continuidade das situações jurídico-priva-
tar-se interpretação aditiva, vislum- das internacionais, a sua previsibilidade, a
brando-se, na referência a sentenças segurança jurídica que deriva da atuação
estrangeiras, documentos que, segun- consoante às expectativas fundadas dos
do a legislação de origem, tenham tal sujeitos de direitos: trata-se pois de justiça
envergadura. É o caso do ato admi- formal, própria do Direito Internacional Pri-
nistrativo de divórcio. No Japão, o vado...”.
desenlace matrimonial não é alcança-
do via sentença, mas mediante o re- 1. A delibação concentrada no Supremo
gistro no cartório competente, atuan- Tribunal Federal
do o administrador do distrito”43. Desde 1894, o reconhecimento de sen-
Efetivamente, a Constituição Federal no tenças estrangeiras está concentrado no
seu art.102, inciso I, alínea “h” estabelece a Supremo Tribunal Federal (BOUCAULT,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 101


1999, p. 5), mas as sentenças cíveis mera- de com o sistema jurídico do país de ori-
mente declaratórias não necessitavam de gem”. A doutrina brasileira sempre foi bas-
exequatur no Brasil44. Certo é que as decisões tante positiva e flexível em relação a deci-
(privadas, administrativas ou judiciais) ne- sões administrativas, arbitrais e mesmo re-
cessitam de homologação pelo Supremo Tri- ligiosas, afirmando Pontes de Miranda
bunal Federal, no sistema do direito brasi- (1974, p. 90): “Na expressão sentenças es-
leiro atual, não podendo ser averbadas di- trangeiras compreendem-se todas as deci-
retamente. Segundo a posição majoritária da sões judiciais que precisam ter eficácia alhu-
doutrina, o parágrafo único do Art. 15 da res desde que decisão cível ou com eficácia
Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 cível. Incluem-se as decisões arbitrais e as
(que afirma: “Não dependem de homologa- autoridades administrativas, se tem eficá-
ção as sentenças meramente declaratórias cia cível”.
do estado das pessoas”) foi derrogado pelo O sistema seguido pelo direito brasileiro
Art. 483 da lei mais nova especial, o Código é o da delibação45. Seguindo o modelo itali-
de Processo Civil, impondo-se hoje a neces- ano antigo, realiza o STF somente um juízo
sidade de homologação de qualquer senten- de delibação sem avaliar, no entanto, o méri-
ça estrangeira, inclusive a de divórcio, as to da decisão estrangeira a ser homologada
decisões arbitrais e as proferidas em juris- (DOLINGER, 1985, p. 854). Esse juízo de de-
dição voluntária. O art. 483 do Código de libação visa assegurar que a decisão estran-
Processo Civil dispõe que: “A sentença pro- geira preencheu os requisitos de homologa-
ferida por Tribunal Estrangeiro não terá efi- bilidade exigidos pela legislação brasileira
cácia no Brasil se não depois de homologa- não existindo ofensa à ordem pública, à so-
da pelo Supremo Tribunal Federal”. Nesse berania nacional ou aos bons costumes, mas
sentido, decidiu definitivamente o Supremo aqui o exame é limitado46 . Efetivamente, o
Tribunal Federal na Petição avulsa no 11: STF tem reiteradamente negado alargar as
“Sentença estrangeira de divórcio. discussões no processo delibatório47 e utili-
Pedido de averbação desse ato senten- za-se de uma noção de ordem pública bas-
cial dirigido a magistrado estadual. tante restrita48.
Alegada desnecessidade de prévia Os requisitos formais necessários para o
homologação, em face do art. 15, pa- Supremo Tribunal Federal conceder uma
rágrafo único da LICC. Norma legal homologação são, segundo os artigos 216 e
derrogada pelo CPC (art. 483). Magis- 217 do Regimento Interno do STF, os seguin-
tério da doutrina. Impossibilidade tes: a) competência do juiz prolator; b) cita-
processual da instauração de deliba- ção do réu; c) trânsito em julgado do ato sen-
ção incidente. Ação de homologação tencial; e d) autenticidade e tradução por
de sentença estrangeira. Sistema de tradutor juramentado (MOREIRA, 1998, p.
contenciosidade limitada. Evolução 59-60). Os demais requisitos encontram-se
do instituto no direito brasileiro. In- repetidos no Art. 15 da LICC/42 e Art. 483
dispensabilidade da homologação do CPC e são todos voltados para sentenças
prévia de qualquer sentença estran- ou decisões de instâncias públicas.
geira, quaisquer que sejam os efeitos O mestre português Álvaro da Costa
postulados pela parte interessada. Machado Villela (1921, p. 505) elogiava o
Precedente do STF”. direito brasileiro afirmando: “O único siste-
Como ensina Rechsteiner (1996, p. 202), ma lógico é o sistema da delibação, enquan-
mesmo realizadas perante a um órgão ad- to reconhece a decisão do tribunal estran-
ministrativo, as decisões de divórcio estran- geiro e limita os poderes do tribunal do exe-
geiras por mútuo consentimento podem ser quatur a um exame formal, para verificar se
reconhecidas no Brasil se “em conformida- trata-se de uma sentença regular e definiti-

102 Revista de Informação Legislativa


va, revestida de autenticidade, proferida por ca brasileira violada em virtude de motivos
tribunal competente não contrária às leis de direito material, geralmente são os requi-
locais de interesse e ordem pública. Com sitos processuais antes expostos os mais
efeito, em face do respeito devido às jurisdi- usados.
ções internacionalmente competentes para As críticas de Yuko Nishitani, quanto a
decidir as questões entre particulares, o tri- não equivalência funcional dos divórcios
bunal do exequatur não deve apreciar o mé- privados japoneses às sentenças e de possí-
rito da decisão”. veis violações à nossa ordem pública, de-
Interessante destacar que esse autor por- vem ser aqui examinadas. O primeiro as-
tuguês preocupou-se com a análise dos efei- pecto levantado é o fato de os divórcios ja-
tos que podem ter a decisão estrangeira, poneses geralmente não envolverem a par-
mesmo declaratória de divórcio, a ser ho- tilha dos bens do casal. Aqui vários podem
mologada, e ensina: “Sob dois aspectos ge- ser os comentários. No leading case da Sen-
rais, uma sentença estrangeira pode ser in- tença Estrangeira no 4.512-6-Confederação
vocada: ou como ato de jurisdição que de- Helvética49, em que casal de brasileiros resi-
clarou um direito de modo definitivo, ou dentes na Suíça requeriam a homologação
como um simples documento donde consta de sentença de divórcio consensual sem
a verificação de um fato ou de um direito”. E partilha, essa homologação foi concedida,
continua: “quando a sentença estrangeira é uma vez que a partilha tinha-se realizado
invocada como ato de jurisdição, ainda o anos antes, na separação (BOULCAULT,
pode ser para um de dois fins: ou para ser- 1999, p. 40). Note-se que a competência para
vir de título executivo numa execução for- realizar partilha de bens situados no Brasil,
çada, ou para produzir qualquer outro efei- por força do Art. 89, I, e 89, II, do CPC é ex-
to inerente ao caso julgado, como para fazer clusiva do juiz brasileiro50. Também conhe-
um registro predial ou para deduzir a exce- ce o direito brasileiro o divórcio sem parti-
ção de caso julgado” (VILLELA, 1921, p. lha de bens (que será realizada no futuro ou
505). Aqui uma observação importante, pois já realizou-se no passado). Assim dispõe
o efeito da homologação da declaração re- também a Súmula 197 do Superior Tribunal
gistrada de divórcio no Japão é apenas de- de Justiça: “O divórcio direto pode ser con-
claratório no território brasileiro, a indicar cedido sem que haja prévia partilha de
que realmente a visão positiva do direito bens”. Na Sentença estrangeira 4844, o Mi-
brasileiro em relação às diferenças culturais nistro Gallotti deferiu uma homologação
Brasil-Japão pode indicar um caminho cer- com ressalvas, excluindo a partilha dos bens
to: harmonia internacional de decisões e res- situados no Brasil, pois esses de exclusiva
peito às diferenças culturais! competência do juiz brasileiro51. Sendo as-
sim, conclui-se que – perante o STF – é até
2. A ordem pública brasileira em mais fácil realizar-se a homologação de uma
matéria de divórcios decisão estrangeira de divórcio consensual
Analisando a ordem pública em matéria japonês se essa não regular a partilha de
de homologação de sentenças, Boucault de- bens!
fende que o “conceito de ordem pública, O segundo aspecto é a necessária prote-
dada sua amplitude e elasticidade, deve ção do cônjuge mulher. Quanto à compe-
comportar um abrandamento na aplicação tência, bastante controversa é a vigência do
da norma estrangeira, em observância à li- Art. 100, I, do CPC de um foro privilegiado
berdade cultural dos povos” (BOULCAULT, para a mulher em matéria de divórcio, após
1999, p. 47). Como ensina Rechsteiner (1996, a entrada em vigor da Constituição Federal
205), são raros os casos em que o Supremo de 1988 e seu Art. 5o sobre isonomia entre
Tribunal Federal considera a ordem públi- homens e mulheres (CAMBI, p. 186 et seq.).

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 103


Em outras palavras, a tradição da jurispru- ofende a nossa ordem pública. Pedro Sam-
dência brasileira é considerar esse foro pri- paio (1973, p. 97), em sua obra de 1973, por-
vilegiado como competência concorrente e tanto, anterior à introdução do divórcio no
interpretar a norma, mesmo restritivamen- Brasil, já afirmava que não: “Homologa-se
te, para determinar a própria incompetên- o divórcio amigável registrado no Japão pelo
cia da justiça brasileira caso apenas o mari- Prefeito municipal. A lei deste país reconhe-
do aqui seja domiciliado, isso como forma ce como legal o divórcio consensual proces-
de “proteger” as esposas52. Em resumo, a sado nessas condições”.
doutrina e a jurisprudência brasileiras são A tradição do STF, pois, é, em sentido
unânimes ao reconhecer e interpretar o art. oposto, bastante flexível. De outro lado, sem-
100, inciso I, do CPC como assegurando com- pre mostrou-se aberto a reconhecer divórci-
petência do juízo da residência da mulher os não-judiciais, desde que de acordo com a
brasileira, se essa for a autora ou a ré da cultura local, seja quando estivesse presen-
ação de divórcio53. Trata-se, porém, de com- te alguma autoridade administrativa regis-
petência relativa; sendo assim, poderia ser tradora56, seja religiosa 57.
alterada (prorrogada) por vontade de am-
bas as partes, como o foi no caso dos divór- B – Exame de 30 casos de divórcios japoneses
cios consensuais japoneses. Essa linha da no STF de 1975 a agosto de 2002
jurisprudência poderia, porém, ajudar a es- Dos trinta casos examinados, vinte eram
posa residente no Brasil, caso o divórcio ja- de divórcios por mútuo consentimento, re-
ponês tenha sido realizado sem ou contra gistrados perante autoridade administrati-
sua vontade54. Jacob Dolinger (1987, p. 260) va no Japão, cinco eram de divórcios “judi-
defende veementemente a aplicação, em ca- ciais” ou mediados e cinco eram de cartas
sos atípicos ou internacionais, do art. 100, rogatórias de citação em divórcios judiciais,
inciso I, do CPC, considerando-a importan- um inclusive correndo na justiça brasileira.
te questão de Justiça para a proteção da es- Vejamos os detalhes desses 29 “divórcios”
posa estrangeira residente no Brasil ou em ocorrendo no Japão e um divórcio judicial
outro país: “A tese defendida pela mulher processado no Brasil.
de que lhe cabia o privilégio do foro com
base no artigo 100, I, do CPC não poderia ter 1. O exame dos 20 casos de divórcios
sido negada, com o argumento que vários consensuais administrativos
tribunais invocam de que seu domicílio era A decisão do STF em 19 desses casos foi
efetivamente no Brasil por força do domicí- pelo deferimento do pedido de homologa-
lio local do marido”. Igualmente, defende a ção. Na SE 4269, julgada em 16.08.1991, pelo
aplicação do Art. 100, I, do CPC sempre a Tribunal Pleno, o pedido não foi indeferido,
favor da esposa, Ana Maria Villela (1980, mas sim o processo extinto (de forma a per-
passim). mitir novo pedido) devido à instrução defi-
De outro lado, como vimos, segundo o citária, pois não constava o original do re-
STF, o simples fato de o divórcio ser realiza- gistro administrativo japonês. A ementa da
do perante um órgão administrativo (por decisão foi a seguinte:
mediação estatal, por exemplo), um tribu- “Divórcio amigável, procedente do
nal religioso ou um árbitro/mediador não Japão. Ausência do teor do ato admi-
ofende a ordem pública brasileira. Ao con- nistrativo que se pretende homologar,
trário, parece haver, após 1977, um espírito não bastando, para a homologação,
brasileiro de “favor divórcio” em nossa or- perante o STF, a prova da sua averba-
dem pública55 . A pergunta é se o divórcio ção, no registro civil (art. 218 e 219 e
“amigável” ou consensual apenas registra- seu parágrafo único do regimento in-
do pelo Prefeito municipal, como no Japão, terno). Extinção do processo com res-

104 Revista de Informação Legislativa


salva da possibilidade de renovação Presidente Ministro Moreira Alves”
do pedido, instruído com o documen- (SEC 6399 / JA – Japão, Min. Marco
to indispensável”58. Aurélio, j. 21/06/2000).
Desses 19 deferimentos, dezessete de- Nos outros 17 casos59, a decisão mono-
ram-se por decisão monocrática e 2 por de- crática do Presidente foi das mais simples
cisão do Tribunal Pleno. Apenas nos dois e consta a seguinte ementa: “Certidão
casos da SE 2251/JA e da SE 6399/JA, a Administrativa de Divórcio – Eficácia de
decisão foi do Tribunal Pleno. Nesses ca- Sentença – Homologação”60.
sos, é utilizada a expressão “sentença es- Nesses 17 casos, estavam presentes a tra-
trangeira” para o ato administrativo japo- dução, “a notícia do trânsito em julgado”, e
nês, utilizando-se o STF, geralmente da se- o documento original de registro adminis-
guinte ementa, que cita precedentes de ho- trativo de um prefeito ou de um administra-
mologação de divórcios “privados” ou “ad- dor local, que, segundo o STF, “equivale à
ministrativos” da Noruega, Dinamarca e sentença irrecorrível” (SE 5125/JA)61. O Pre-
Japão para conceder o pedido: sidente do STF, citando os precedentes da
“SENTENÇA ESTRANGEIRA – Dinamarca (SE 1943), Bélgica (SE 2626) e
HOMOLOGAÇÃO – DIVÓRCIO – vários do Japão (SE 1312, SE 2891-3, SE
ATO ADMINISTRATIVO – EXTEN- 3298-8, SE 3371-2, SE 3372-1, SE 1742), e com
SÃO. A norma inserta na alínea ‘h’ parecer do Ministério Público Federal pelo
do inciso I do artigo 102 da Constitui- deferimento ao interpretar cumpridas as for-
ção Federal, segundo a qual compete malidades (Art. 102,I,h, CPC e RISTF), deci-
ao Supremo Tribunal Federal proces- diu da seguinte forma:
sar e julgar, originariamente, a homo- “Defiro o pedido formulado e ho-
logação das sentenças estrangeiras, mologo, para que surta eficácia no
há de ser tomada respeitando-se a so- Brasil, o ato mediante o qual os reque-
berania do país em que praticado o rentes divorciaram-se. 3. Expeça-se a
ato. Prevendo a respectiva legislação carta de sentença. 4. Publique-se”62.
o divórcio mediante simples ato ad- Nesses 17 casos, porém, encontramos 5
ministrativo, como ocorre, por exem- casos com decisão do Presidente diferenci-
plo, no Japão, cabível é a homologa- ada. Em 3 casos (SE 6527/JA, SE 6882/JA e
ção para que surta efeitos no território SE 6969/JA), é a mulher que requer sozinha
brasileiro. Precedentes: Sentença Es- a homologação perante o STF . Em um des-
trangeira no 1.282/Noruega, Relator ses casos (SE 6969/JA), o marido compare-
Ministro Mário Guimarães; Sentença ce ao STF para declarar que não se opõe à
Estrangeira no 1.312/Japão, Relator homologação63, mas nos outros dois casos
Ministro Mário Guimarães; Sentença foi realizada a citação por edital do cônjuge
Estrangeira no 1.943/Dinamarca, Re- varão e concedido-lhe curador especial que
lator Ministro Adaucto Cardoso; Sen- não se opôs à homologação64. Aqui obser-
tença Estrangeira no 2.251/Japão, Re- va-se o interesse na mulher japonesa ou des-
lator Ministro Moreira Alves; Senten- cendente de japoneses, com domicílio no
ça Estrangeira no 2.626/Bélgica, Pre- Brasil, de ver homologado seu divórcio “ami-
sidente Ministro Antonio Neder; Sen- gável” japonês no Brasil para que surta to-
tença Estrangeira no 2.891/Japão, Pre- dos os efeitos.
sidente Ministro Xavier de Albuquer- Interessante observar que, no caso da SE
que; Sentenças Estrangeiras nos 3.298, 7410/JA, a divorcianda mulher requereu,
3.371 e 3.372, todas do Japão, Presi- perante o STF, também a mudança de seu
dente Ministro Cordeiro Guerra; e nome65. Como essa alteração de nome não
Sentença Estrangeira no 3.724/Japão, constava do registro administrativo japonês

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 105


e o STF manteve sua linha de não admitir a conexão” indireto da nacionalidade, conti-
extensão do processo delibatório, o pedido nua a reger o sistema de homologação de
de homologação foi deferido, mas sem mo- sentenças de divórcio no Brasil. Em outras
dificação do nome, uma vez que: “A modifi- palavras, o STF utilizou o Art. 7o , §6o , da Lei
cação de nome não compõe a certidão”66. de Introdução interpretado de acordo com
Também interessante é um caso mais os prazos do Art. 226, §6o , da CF/88 e man-
antigo, anterior à Constituição de 1988, en- teve a tradição brasileira desde 1977 de impe-
quanto vigorava o Art. 38 da Lei de Divór- ratividade dos prazos de separação de fato
cio (Lei 6.515/1977), o qual proibia o segun- ou judicial para a concessão do divórcio.
do divórcio do cônjuge brasileiro. Nesse caso
da SE 3869/JA, tratava-se do reconhecimen- 2. O exame dos outros casos
to dos dois divórcios entre os mesmos côn- Os outros 10 casos levantados em nossa
juges, um cônjuge brasileiro e um japonês. pesquisa versam 5 sobre cartas rogatórias
O STF homologou o primeiro divórcio sem de citação de cônjuges no Brasil e Japão (CR
restrições e homologou o segundo divórcio 9772/JA, CR 9965/JA, CR 10091/JA, CR
administrativo japonês com eficácia irres- 9677/JA e PET 1582/SP), de 4 ditas “sen-
trita para o cônjuge japonês e considerou o tenças” japonesas de divórcio e uma sen-
cônjuge brasileiro apenas “separado judi- tença paraguaia. Desses casos, oito foram
cialmente”67. Certa estava Ana Maria Ville- concedidos e 2 negados.
la (1980, p. 83 et seq.) quando afirmava que As 4 cartas rogatórias passivas vindas
a lacunosa e conservadora lei brasileira de do Japão referem-se à citação da mulher (CR
divórcio de 1977 traria muitos problemas 9965/JA, CR 9677/JA) ou do marido (CR
em direito internacional privado para o Bra- 10091/JA e CR 9772/JA) no Brasil70. Nes-
sil! Após 1988, a decisão foi revista. sas 4 decisões, o STF examina se houve ou
Os problemas, porém, com a lei do di- não ofensa à nossa ordem pública pelo fato
vórcio, não cessaram com a Constituição de um brasileiro, esposa ou marido, estar
Federal de 1988, ao contrário, esta impôs respondendo uma “ação de divórcio” pe-
como imperativos os prazos da Lei brasilei- rante um Tribunal de Família no Japão e
ra para o reconhecimento de divórcio de bra- conclui que não há ofensa, pois a compe-
sileiros, mesmo que declarados no exterior. tência é concorrente. Interessante é a CR
Sendo assim, encontramos na SE 7202/JA68 9677/JA, em que a esposa brasileira é cita-
um caso do divórcio administrativo japo- da para uma audiência – um ano antes – no
nês de dois brasileiros, residentes no Japão, Tribunal de Família no Japão e ela mesma
que foi reconhecido pelo STF, mas com efi- havia entrado com um divórcio litigioso no
cácia apenas passado o prazo do Art. 226, foro de Piracicaba, em São Paulo71. Como o
§6o , da CF/1988, considerando-se ambos, STF não considerou exclusiva a competên-
no Brasil até aquela data, como “separados cia do foro brasileiro na decisão de 2001 e
judicialmente”. A ementa da decisão é a se- concedeu o exequatur, em 2002, a esposa en-
guinte: trou com uma segunda “alegação” de que
“Defiro o pedido formulado e ho- ofenderia a nossa ordem pública tal “divór-
mologo, com a restrição de que o ato cio” judicial no Japão, pois o casamento
mediante o qual os requerentes divor- havia acontecido no Brasil, em 1988, e sob a
ciaram-se somente produzirá efeitos égide do direito brasileiro. Nenhum desses
plenos a partir de 05 de março de 2002 argumentos sensibilizou o STF, que mante-
(Art. 226, §6o da Constituição Fede- ve a citação e concluiu que não havia qual-
ral), observando-se, até essa data, o quer ofensa à nossa ordem pública. A quin-
instituto da separação judicial”69. ta Carta Rogatória é ativa, em que juiz de
Resta, pois, a dúvida se o “elemento de São Paulo requer ao STF a citação de cônju-

106 Revista de Informação Legislativa


ge domiciliado no Japão. Nessa PET 1582/ dicos, como Noruega, Dinamarca e outros,
SP, o STF conclui que não é necessário pas- que conhecem decisões administrativas de
sar as cartas rogatórias ativas pelo STF e divórcio, bem demonstram que realmente o
nega o pedido que deve ser encaminhado STF procura respeitar esses tipos e essas
diretamente ao Ministério da Justiça72. “formalidades” de concessão do divórcio
Dos outros 4 casos, todos homologados dos países de origem destas. Os divórcios
pelo STF, há menção de sentença do Tribu- religiosos são mais controlados, no que se re-
nal de Família. Em um caso houve renúncia fere aos direitos fundamentais das mulheres
de alimentos para a esposa e regulação ex- e à ofensa eventual a nossa ordem pública77.
pressa da guarda dos filhos (SE 4852/JA)73. Conclui-se que o divórcio japonês regis-
Em um outro, SE 5608/JA, a esposa é brasi- trado perante um oficial administrativo é
leira e o marido japonês foi citado apenas visto pelo STF mais como uma formalidade,
por edital, mas o STF considerou cumpri- do que como um momento de fundo, e o con-
das as exigências processuais e concedeu trole exercido é meramente formal, procu-
ao marido curador especial74, sendo a ho- rando respeitar as diferenças culturais. Os
mologação concedida. Nas SE 7292/JA e SE alertas dos professores japoneses e estudos
7047/JA parece ter havido “mediação”. O como esses podem servir para levar à evolu-
caso da SE 7047/JA é mais interessante, pois ção da posição do STF.
houve partilha de bens, inclusive de imóvel A verdade é que a posição do STF já pa-
no Brasil, o que – em princípio – contraria o rece bastante condizente com o momento
disposto no Art. 12 da LICC e Art. 89 do atual de liberdade dos indivíduos e de cir-
CPC, pois seria caso de competência exclu- culação de decisões de divórcios, criando
siva do Judiciário brasileiro. Mesmo assim, maior harmonia e permitindo o reconheci-
o STF concedeu a homologação, alegando mento das novas famílias formadas após o
que o divórcio por “mediação” era consen- divórcio em um dos países. Sendo assim, se
sual e teria havido “acordo sobre imóvel bem que considero importante a precisão de
existente no Brasil”, o que seria possível75. que se tratam de meros atos privados, regis-
Mencione-se, por fim, um outro caso sui trados no oficial administrativo do distrito,
generis levantado de divórcio de japoneses mister considerar que, se esse tipo de divór-
domiciliados no Brasil, mas realizado em cio japonês equivale a mais de 90% do di-
foro “facilitatório” do Paraguai. Nesse caso vórcio no país, a significar que é a forma de
de 1979 (SE 2446), a homologação foi recu- dissolução do casamento culturalmente
sada tendo em vista a competência “abso- mais aprovada pela população japonesa. A
luta” do juízo brasileiro76. regra de reconhecerem-se tais divórcios pa-
Como se observa, a visão do STF dos di- rece, pois, contribuir ao entendimento entre
vórcios obtidos no Japão é bastante positiva Brasil e Japão e a movimentação dos imi-
e aberta, com forte tendência a superar qual- grantes e descendentes entre esses países.
quer obstáculo formal. As exceções, quando o cônjuge mulher, por
exemplo, não tiver realmente consentido ou
Conclusões a declaração lhe tiver retirado direitos, po-
dem ser resolvidas por meio de um exame
Certa a saudosa professora da UnB, mais detalhado no sistema da Sentença Es-
Anna Maria Villela (1980, p. 13), que o con- trangeira contestada78, no Brasil, pela pre-
trole exercido pelo STF em matéria de ho- judicada.
mologação de sentenças estrangeiras de di- Por fim, faço minhas as palavras do mes-
vórcio é “um controle puramente formal ou tre Erik Jayme: “O direito de família em uma
exterior da decisão estrangeira”. As decisões sociedade pluricultural, se visamos reco-
anteriores a 1977, oriundas dos países nór- nhecer um direito da pessoa à proteção de

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 107


sua identidade cultural, necessita de uma international privé en Allemagne fédérale- à propos
certa ‘personalização’ das respectivas re- de la décision du Tribunal Constitutionnel fédérale
du 4 mars 1971, Rev. Crit. dr. internat. privé, 1974, p.
gras para resolver os conflitos de leis”79. 1 e seg; Cf. Bucher, Andreas, La famille en droit inter-
Concluo, pois, louvando a linha de nosso national privé, Recueil des Cours, (2000, p. 9 et seq.).
Supremo Tribunal Federal, que soube tratar 7
Sobre o tema o divórcio judaico e a importâni-
“diferentemente os diferentes”, com tolerân- ca de conseguir a carta-get, Cf. Einhorn, Talia. Jewish
cia cultural e “personalização” para prote- Divorce in the International Arena, in BASEDOW,
J. Private Law in the international Arena-Liber Amico-
ger os interesses dos imigrantes e descen- rum Kurt Siehr, Haia: T.M.C. Asser Press, (2000, p.
dentes de japoneses no Brasil, soube sobre- 135 et seq.).
tudo respeitar as diferenças culturais de 8
Assim reproduz Erik Jayme (1991, p. 1) uma
ambos os países e fomentar a harmonia de decisão de 1994, a qual afirma que deve o “tribunal
decisões entre Brasil e Japão ! religioso do rabinato” promover o divórcio de ju-
deus nacionais de Israel em solo alemão, havendo
possibilidade de reconhecimento, mas não de “atu-
ação” do Judiciário alemão para realizar o divórcio
Notas segundo queriam as partes, segunda a lei israeli:
“Eine solche vom jüdischen Recht geforderte Mi-
1
Cf. Sampaio (1973, p. 89 et seq.) também a twirkung des Rabbinatsgerichts, das das Vorliegen
reprodução da jurisprudência do Supremo Tribu- der Scheidungsvoraussetzungen feststellt, ist eine
nal Federal antes da introdução do divórcio no Bra- Tätigkeit, die, weil der Rabbiner als Geistlicher tätig
sil. wird und sein Mitwirken Teil einer religiösen Han-
2
Por exemplo, a Constituição de 1964 afirma- dlung ist, dem deutschen Rechtssystem völlig we-
va: “Art. 175. A família é constituída pelo casa- sensfremd ist und von einem deutschen Gericht ni-
mento e terá direito à proteção dos Poderes Públi- cht geleistet werden kann.”(KG 11.1.1993, FamRZ
cos. § 1o O casamento é indissolúvel.” (SAMPAIO, 1994, p. 839. Veja também no mesmo sentido deci-
1973, p. 102). são de 1998, KG 27.11.1998, in IPRAx 2000, p.
3
A Súmula (jurisprudência consolidada e uni- 126-128 eseu comentário por HERFAHRT, Chris-
formizada) do Supremo Tribunal Federal nr. 381 é toph, Scheidung nach religiösen Recht durch deutsche
a seguinte: “Não se homologa sentença de divórcio Gerichte, in IPRAX 2000, p. 101-103.
obtida por procuração, em país de que os cônjuges 9
Definição de cultura baseada na definição da
não eram nacionais”, Cf. ROSAS (1991, p. 160- Enciclopédia Brockhause Lexikon, (1982, p. 182). Veja
161), que explica: “Se os nubentes não residem no também HÖFFE, Otfried, Lexikon der Ethik, Beck,
país onde requerem o divórcio, porém, se habilitam Munique, 1986, p. 140: “Natur den vom Menschen
por procuração, não se admite a homologação des- geschaffenen Lebensraum”. Em português veja in-
se divórcio no Brasil, evidente caso de fraude à lei,
teressante trabalho de MARTINS, Estevão Chaves
principalmente quando os cônjuges residem no Bra-
de Rezende. Relações Internacionais-Cultura e Poder.
sil” (apud Valladão, Direito Internacional Privado,
Brasília: IBRI:UnB, 2002. p. 43: “Cultura tornou-se
vol. 3/203).
4 uma incógnita no panorama mundial contemporâ-
Segundo Basso Tamagno (1988, p. 82), a base
neo. Os antropólogos sempre definiram cultura
da Súmula 381 foi a seguinte decisão: “Casamento
como ‘o modo de vida de um povo’”. Veja as linhas
realizado na Itália e divórcio decretado no México.
atuais do direito que partem da cultura, na obra de
Sentença a que se denegou homologação. Ausência
de prova de nacionalidade do marido e do domicí- KAHN, Paul W. The cultural study of Law-Recons-
lio de ambos os cônjuges, nos dois países.” (STF tructing legal scholarship. Chicago: University of
Sentença Estrangeira n. 1778-méxico, 1962, Rel. Min. Chicago Press, 1999. (p. 1): “The culture of law’s rule
Pedro Chaves). needs to be studied in the same way as other cultures”.
10
5
Assim ensina AUDIT (1984, p. 348-349): “...la Cf. RHEINSTEIN, Max. Einführung in die Re-
Cour de cassation déclara que la loi espagnole alors chstvergleichung. 2. ed. Munique: Beck, 1987. (p. 81
prohibitive du divorce était ‘contraire à la concepti- – 82) mencionando as práticas originais das socie-
on française actuelle de l’ordre public international dades asiáticas ao lado das sociedades latino-ame-
qui impose la faculté pour un Français, domicilié ricanas.
11
en France , de demander le divorce...”. David e Jauffret Spinosi (1988, p. 627): “Mais
6
Veja sobre esse caso e sua influência na modi- si les institutions japonaises sont totalement occi-
ficação e atualização da lei de introdução ao Códi- dentalisées, si les techniques juridiques sont mo-
go Civil alemão (EGBGB) e seu atual Art. 6, La- dernisées, néanmoins leur application dans
brusse, Catherine, Droit constitutionnel et le droit l’atmosphère culturelle japonaise révèle encore

108 Revista de Informação Legislativa


l’actualité profonde et vivante des principes tradi- www.dbtk.mhw.go.jp/toukei/data/010/1999/
tionnels.” tokeihyou/0002674/ t0048025/ml…>.
12 20
Aqui a obra principal é o interessantíssimo Em 20 dos 30 casos, o divórcio foi declarado
curso de Haia de Déprez (1988, p. 9 et seq.). de forma consensual e registrado por ato adminis-
13
Cf. Jayme (1999, p. 25): “A minha Tese prin- trativo, este reconhecido pelo STF.
21
cipal é a seguinte: O direito comparado moderno Utilizarei a tradução da Horei (Gesetz betre-
perseguia o objetivo de determinar, de encontrar o ffend die Anwendung der Gesetze) realizada pelo
que era comum, igual (das Gemeinsame), e que Instituto Max-Planck de Hamburgo, 1999. p. 308-
apenas superficialmente podia aparecer, e ser per- 318.
22
cebido de forma diversa, nos também apenas su- “Art. 16. [Ehescheidung] die Bestimmungen
perficialmente diversos sistemas de Direito do des Art. 14 gelten entsprechend für die Eheschei-
mundo. O direito comparado pós-moderno procu- dung. Ist jedoch einer der ehegatten Japaner und
ra, ao contrário, o que divide (das Trennende), as hat seinen gewöhnlichen Aufenthalt in Japan, so
diferenças (die Unterschiede)”. richtet sich die Scheidung nach japanischen Recht.”
14
Veja Kulturelle Dimension des Rechts, in 67 (2003), (HOREI, 1999, p. 313).
23
p. 226 e conferência inédita na UFRGS no prelo. Assim afirma Yuko Nishitani (2002): “A lei
Veja JAYME, Erik. Direito Internacional Privado e aplicável ao divórcio (estatuto do divórcio) segun-
Cultura Pós-Moderna. Cadernos do Programa de Pós- do o Direito Internacional Privado japonês é a se-
Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio guinte: Art. 16 , 1, da Lei de Direito Internacional
Grande do Sul. Porto Alegre, v. 1, n. 1, mar. 2003 b. Privado/Horei, que apresenta uma conexão em cas-
(p. 59-68). cata (1o elemento de conexão: a lei nacional comum;
15
Segundo Gannagé (1992, p. 451), é essa nova 2a conexão: a lei do lugar de residência habitual
“autonomia da vontade” em direito de família in- comum; 3a conexão: a lei mais conectada com o
ternacional uma opção consciente dos legisladores caso concreto/lei mais próxima do caso) e Art. 16,
para alcançar uma maior harmonia internacional 2 Horei: Se um dos cônjuges tem a nacionalidade
de soluções: “L’autonomie de la volonté paraît cer- japonesa e a sua residência habitual no Japão, apli-
tes constituer une voie particulièrement indiquée car-se-á a lei japonesa (denominada cláusula de
pour réaliser cette harmonie”. ‘favor japonês’)”.
16 24
Assim estudo de HABERMAS (TAYLOR, et Nishitani (2002, p. 49) e nota de estatística de
al. 1994. p. 107 –148) em que o autor pergunta: MIZUNO de 1978, nota 9.
25
“Can a theory of rights that is so individualistically Nishitani (2002, p. 52) citando os principais
constructed deal adequately with struggles for re- comentaristas Kegel/Schurig, Palandt/Helderich,
cognition in which it is the articulation and asserti- Soergel/Schurig e Staudinger/Spellbernberg e de-
on of collective identities that seems to be at stake?” cisão que não reconheceu um divórcio privado ja-
(p. 107). ponês , pois aplicável era a lei alemã, BGH 21.2.1990
17
Segundo gentil tradução de Tomoko Gaudio- (BGHZ 110, 267).
26
so, o texto do Art. 1 do Koseki hou é: Art. 1 [Controle Citando o caso BGH, 14.10.1981, BGHZ 82,
e administração referente ao cadastro], §1o . O ser- p. 34, 1983. p. 37 e comentado por Gerhard Kegel,
viço referente ao cadastro de família é efetuado 1983. p. 22 et seq.
27
pelos órgãos estabelecidos por prefeitos, represen- Assim o texto: “Art. 1.571. A sociedade con-
tante do distrito e por representantes das comuni- jugal termina: I – pela morte de um dos cônjuges; II
dades rurais (vilas)”. E Nishitani (2002, p. 49) de- – pela nulidade ou anulação do casamento; III –
nomina essa lei de Lei sobre o registro familiar (Ge- pela separação judicial; IV – pelo divórcio. § 1o O
setz über das Familienbuch) e kosekihô, que aqui casamento válido só se dissolve pela morte de um
utilizaremos. dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a pre-
18
A gentil tradução de Tomoko Gaudioso des- sunção estabelecida neste Código quanto ao au-
se texto é a seguinte: “Art. 765 [A aceitação da sente. § 2o Dissolvido o casamento pelo divórcio
declaração de divórcio] § 1. A aceitação da decla- direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o
ração de divórcio somente ocorrerá após verificar nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo
que o mesmo não viola o § 2 do Art. 739, § 1o , do em contrário a sentença de separação judicial”.
Art. 819 e outras leis. § 2o . Se a aceitação da decla- 28
Veja resumo do conteúdo dessas normas dos
ração for efetuada por vício, omitindo o que foi Arts. 1571 a 1582 in LISBOA, 2002. p. 126-133.
estabelecido no § 1 o , mesmo assim, o seu efeito 29
Assim o texto: “Art. 1.525. O requerimento
permanecerá”. de habilitação para o casamento será firmado por
19
Dados levantados por Yuko Nishitani (2001), ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu
em 1999, em sua palestra na UFRGS, veja Jinkô pedido, por procurador, e deve ser instruído com
Dôtai Chôsa. Disponível em: 1999 <http:// os seguintes documentos:...V – certidão de óbito

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 109


42
do cônjuge falecido, de sentença declaratória de Veja também Art. 483 do C.P.C. e R.I.S.T.F.,
nulidade ou de anulação de casamento, transitada art. 217, II (terem sido as partes citadas ou haver-
em julgado, ou do registro da sentença de divór- se legalmente verificado a revelia), III (ter passado
cio”. em julgado e estar revestida das formalidades ne-
30
Veja a Súmula 197 do Superior Tribunal de cessárias à execução no lugar em que foi proferida)
Justiça: “O divórcio direto pode ser concedido sem e IV (estar autenticada pelo cônsul brasileiro e acom-
que haja prévia partilha de bens”. panhada de tradução oficial), além do requisito da
31
Assim decisões do Superior Tribunal de Jus- negativa de ofensa à soberania nacional, à ordem
tiça, veja por exemplo Recurso Especial 85.683/ pública e aos bons costumes (art. 216 do R.I.S.T.F).
SP: “Alimentos. Renúncia. Divórcio. É válida e efi- Veja também o artigo 15 da LICC.
43
caz a cláusula de renúncia a alimentos (‘não ficou Assim decisão na SE 7039/JA, Min. Marco
estabelecida qualquer cláusula que obrigava o ex- Aurélio, j. 20.03.2002 (MARQUES; JACQUES;
marido a prestar alimentos à ex-mulher’, segundo SCHMIDT, 2002, p. 185).
44
o acórdão recorrido), em acordo de separação. Assim ensina, em seu livro de 1906, o autor
Quem renuncia, renuncia para sempre. O casamen- do Código Civil Brasileiro de 1916, BEVILAQUA,
to válido se dissolve pelo divórcio. Dissolvido o Clóvis, Princípios elementares de Direito Internacional
casamento, desaparecem as obrigações entre os Privado, Edição histórica da obra de 1906, Ed. Rio:
cônjuges. A mútua assistência é própria do casa- Rio de Janeiro, 1988 (p. 326). Veja-se decisão do
mento. Ilegitimidade de parte ativa da mulher para Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 22 de maio
a ação. Recurso especial não conhecido”(STJ, Mi- de 1953, em que se afirmava: “A sentença estran-
nistro Nilson Naves, RSTJ – no 90 – ano 9, fev. de geira de divórcio não depende de homologação
1997). quando meramente declaratória do estado da pes-
32
LICC/1942 com redação dada pela Lei n o soa.” (TENORIO, 1955, p. 434, nota 4).
45
6.515, de 26.12.77. Assim Boucault (1999, na p. 15), que afirma:
33
Assim opinião de Villela (1980, p. 24 et seq.; “O sistema jurídico vigente no Brasil sobre homolo-
66 et seq.) a quem seguimos nessa opinião, uma vez gação de sentença estrangeira vincula-se ao princí-
que utiliza a separação judicial como parâmetro. pio da Delibação, procedente do sistema italiano e
34
Nessa linha de pensamento, encontrava-se o consagrado pelos internacionalistas franceses. O
grande Haroldo Valladão, veja revisão de toda a procedimento da delibação atribui competência
literatura brasileira de DIPriv. da época, Villela para o tribunal examinar os aspectos formais da
(1980, p. 20-24). sentença, sem, contudo, pronunciar-se sobre o mé-
35
Assim Villela (1980, p. 3) referindo-se à Emen- rito do julgado, ou do direito material objeto do
da Constitucional no 9, de 28 de junho de 1977, que direito estrangeiro configurado nos limites da sen-
pôs fim à interdição do divórcio no Brasil. tença”.
46
36
Sobre o direito brasileiro durante o Império, Veja Sentença Estrangeira Contestada no
muito baseado na religião de cada pessoa, veja 5093. Origem: EUA. Publicação: DJ 13/12/1996,
Votação Unânime, Deferido, Min. Celso de Mello:
Valladão (1962, p. 124).
37 “Ementa: ...A Homologação pelo S.T.F. constitui
Assim Tenório (1955, p. 291) relembrando
pressuposto de eficácia das sentenças proferidas
que esse era o critério da Convenção de Haia de 12
por tribunais estrangeiros. – As sentenças proferi-
de junho de 1902, para regular os conflitos de leis e
das por tribunais estrangeiros somente terão eficá-
jurisdições, em matéria de divórcio e separação de
cia no Brasil depois de homologadas pelo Supremo
corpos, assim também Sampaio (1973, p. 106).
38
Tribunal Federal. O processo de homologação de-
Assim Valladão (1962, p. 122). O Código sempenha, perante o Supremo Tribunal Federal –
Bustamante de 1928 dispunha: “Artigo 52. O di- que é o Tribunal do foro –, uma função essencial na
reito à separação de corpos e ao divórcio regula-se outorga de eficácia às sentenças emanadas de Es-
pela lei do domicílio conjugal, mas não se pode tados estrangeiros. Esse processo homologatório –
fundar em causas anteriores à aquisição do dito que se reveste de caráter constitutivo – faz instau-
domicílio se as não autorizar, com iguais efeitos, a rar, perante o Supremo Tribunal Federal, uma situ-
lei pessoal de ambos os cônjuges”. ação de contenciosidade limitada. Destina-se a en-
39
Veja sobre os casos que levaram à elaboração sejar a verificação de determinados requisitos fixa-
da Súmula (SAMPAIO, 1973, p. 21-24). dos pelo ordenamento positivo nacional, propici-
40
Veja o exame das várias hipóteses de fraude ando, desse modo, o reconhecimento, pelo Estado
à lei na mudança de nacionalidade e o problema da brasileiro, de sentenças estrangeiras, com o objetivo
nacionalidade da mulher casada com brasileiro, de viabilizar a produção dos efeitos jurídicos que
(SAMPAIO, 1973, p. 29-39). lhes são inerentes...”.
41 47
Em vigor no Brasil pelo Decreto no 1.979, de 9 Veja Sentença Estrangeira Contestada no
de agosto de 1996. 4795. Suíça, DJ 20/10/1995, j. 16/08/1995, Min.

110 Revista de Informação Legislativa


Maurício Correa: “Ementa: Sentença Estrangeira do domicílio da mulher, e não, necessariamente, no
Contestada. Divórcio. Homologação. O art. 221 do juízo em que se processou a separação. Desconheci-
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal do esse domicílio, o interessado poderá apresentá-lo
delimita o campo para que se estabeleça eventual no seu próprio, expondo-se a eventual exceção de
contraditório, não sendo possível, pela via proces- incompetência por parte da mulher”. (Conflito de
sual de sentença estrangeira, discutir situações ju- Competência no 704-RS, 2a Seção do STJ, j. 29.1.89).
55
rídicas diversas dos requisitos indispensáveis a Veja nesse sentido, sobre a “inconstituciona-
homologação. Preenchidos os requisitos regimen- lidade” de certos limites ao divórcio, 1987, (p. 977
tais, defere-se o pedido de homologação da senten- et seq.).
ça estrangeira”. 56
Assim Tamagno (1988, p. 86-87), que cita o
48
Veja-se controvérsia sobre os limites do siste- reconhecimento de decisão de divórcio decretado
ma da delibação e a prosição restritiva do STF, por autoridade administrativa da Noruega, Sen-
Sentença Estrangeira n 5.179-7-Portugal e Sentença tença Estrangeira n. 3.168, Noruega, 20.05.1983,
Estrangeira n. 4.321-1-França, ambas comentadas Rel. Min. Cordeiro Guerra.
57
por Boucault (1999, p. 41-42). Tamagno (1988, p. 87, 89) cita o reconheci-
49
SE 4.512-6, julgada em 21 de outubro de 1994 mento de decisão de divórcio decretado por rabino
pelo STF.Veja comentários sobre o caso de Bou- em Israel, Sentença Estrangeira n. 3.584, Israel,
cault (1999, 39 et seq.) 15.08.1985, Rel. Min. Moreira Alves.
50 58
Veja sobre o tema e antecedentes dessa nor- Publicado in RTJ 137, 02, p. 618 e Marques,
ma, Dolinger (1987, p. 207). Jacques e Schmidt (2003, p. 214-215).
51 59
SE 4844, j. 04.10.1993, comentada por NERY SE 3549/JA, SE 3869/JA, SE 5125/JA, SE
e NERY (2002, p. 794). 6527/JA, SE6607/JA, SE 6848/JA, SE 6878/JA,
52
Exemplo dessa linha é a decisão do TJ/RS, SE 6882/JA, SE 7005/JA, SE 7039/JA, SE 7116/
assim ementada: “Competência. Ação de divórcio. JA, SE 7122/JA, SE 7188/JA, SE 7202/JA, SE
Casal estrangeiro. Separação de fato há mais de 7410/JA e SE 7434/JA, SE 6969/JA.
60
cinco anos. Incompetência da justiça brasileira. Es- Assim SE 734/JA, Min. Marco Aurélio, DJ
posa não residente no Brasil. Carência decretada. É 01/08/2002, p. 0141, julgamento 08/07/2002, in
incompetente a justiça brasileira para julgar pedi- MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 176-178.
61
do de divórcio de casal estrangeiro cujo casamento SE 5125/JA, Min. Sepúlveda Pertence, j. 23.11.97,
não se realizou no Brasil e aqui nunca residiu a in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 204.
62
esposa, contra quem é movida ação”. (Ap. Civ. Assim SE 6848 / JA, Min. Marco Aurélio, DJ
21.907, 2.Cciv. in RT 572/ 55 e Lex 81, p. 54.) Veja 06/09/2001, p.00030, julgamento 28/08/2001, in
também as decisões do TJ/ES: “Competência. Di- MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 195-197.
63
vórcio. Casamento celebrado no estrangeiro, de ca- SE 6969/JA, Min. Marco Aurélio, j. 21.09.2001,
sal também estrangeiro. Residência dele no Brasil e in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 194-195.
64
dela no exterior. Carência de ação. Incompetência SE 6882/JA, Min. Marco Aurélio, j. 04.04.2002,
da justiça brasileira para processar a ação.” (Ap. in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 183-184
civ. 48.247-1, in Lex 91- RJTJESP, p. 66) e “Compe- e SE 527/JA, Min. Marco Aurélio, j. 13.09.2001, in
tência. Divórcio. Casamento realizado no estran- MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 197-199.
65
geiro. Réu não domiciliado no Brasil. Incompetên- SE 7410/JA, Min. Macro Aurélio, j. 06.06.2002,
cia da Justiça brasileira para processar a ação. Sen- in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 179 a 181.
66
tença confirmada”. (Ap. Civ. 14.142-1, in Lex 75- SE 7410/JA, in MARQUES/JACQUES/
RJTJESP, p. 53.) Destaque-se a sempre respeitadís- SCHMIDT, p. 181.
67
sima opinião em contrário de Yussef Said Cahali SE 3869/JA, Min. Rafael Mayer, j. 12.04.1988,
que defende a competência sempre do juiz brasilei- in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 215-216.
68
ro para toda e qualquer causa de separação e di- SE 7202/ JA, Min. Marco Aurélio, j. 01/02/
vórcio, não importando as circunstâncias do caso, 2002, in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p.
como forma de evitar a denegação de justiça. Cf. 187-188.
69
CAHALI, Yussef Said. Divórcio e separação. São Pau- SE 7202/JA, in MARQUES/JACQUES/
lo: Ed. RT, 1994. (p. 597). SCHMIDT, p. 188.
70
53
Veja por todos, com extensa revisão da doutri- CR 9965/JA, Min. Marco Aurélio, j. 04.02.2002,
na e jurisprudência, RIZZARDO, 1997, (p. 495 et seq.). in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 208-209,
54
Veja decisão in RSTJ 3/341 e decisão do STJ CR 9677/JA, Min. Marco Aurélio, j.19.03.2002 e
publicada in RT 657/184 com a seguinte ementa: CR 9677/JA, Min. Carlos Velloso, j. 21.03.2001, in
“Divórcio. Conversão da separação judicial. Com- MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 205-206 e
petência. O pedido de conversão de separação em 206-207, CR 10091/JA, Min. Marco Aurélio, j.
divórcio deve ser formulado, em princípio, no foro 18.03.2002, in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 111


p. 208 e CR 9772/JA, Min. Marco Aurélio, j. CULTURA. In: ENCICLOPÉDIA Brockhause Le-
07.08.2001, in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, xikon. Wiesbaden: DTV, 1982. v. 10
p. 209-210.
71 DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSI, Camille. Les
CR 9677/JA, Min. Marco Aurélio, j.19.03.2002
grands systèmes de droit contemporains. 9. ed. Paris:
e CR 9677/JA, Min. Carlos Velloso, j. 21.03.2001,
Dalloz, 1988.
in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 205-206
e 206-207. DÉPREZ, J. Droit international privé et conflits de
72
PET 1582/SP, Min. Celso de Mello, j. civilisations. Aspects mèthodologiques: les relati-
10.02.1999, in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, ons entre systèmes d’Europe occidentale et systè-
p. 210-213. me islamique en matière de statut personnel. Re-
73
SE 4852, Min. Otávio Gallotti, j. 18.08.1991, cueil des Cours, Leyde, n. 211, p. 9-372, 1988.
in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 215.
74
SE 5608/JA, Min. Celso de Mello, j. 18.11.1997, DOLINGER, Jacob. A evolução da ordem pública no
in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 202-203. direito internacional privado. Rio de Janeiro: Luna, 1979.
75
SE 7047/JA, Min. Marco Aurélio, j. 25.06.2002, ______. Brazilian confirmation of foreign judgments.
in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 178-179. International Lawyer, Washington, v. 19, n. 3, 1985.
76
SE 2446/JA, Min. Antônio Neder, j. 19.11.1979,
in MARQUES/JACQUES/SCHMIDT, p. 218-219. ______. Evolution of principles for resolving con-
77
Assim repudiação islâmica, não homologada flicts in the field of contracts and torts. Recueil des
pelo STF, citada por Tamagno (1988, p. 84) e por Cours, Leyde, n. 283, p. 291-512, 2000.
Valladão (1962, p. 134) (SE 2574/Jordânia, j. ______. Sentença estrangeira de divórcio. Revista
05.11.1980). Forense, Rio de Janeiro, v. 83, n. 297, jan./mar. 1987.
78
Veja contestação da sentença estrangeira e
processo de “impugnação”, nos Artigos 220, 221 e ESPLUGUES MOTA, Carlos. El divorcio internacio-
223 do Regimento do Supremo Tribunal Federal nal. Valencia: Tirant lo Blanch, 2003.
(NERY; NERY, 2002, p. 1822-1823).
79 FERNANDEZ ARROYO, Diego (Coord.). Derecho
No original em italiano, Jayme, Società multi-
internacional privado de los estados del Mercosur: Ar-
culturale, p. 356: “Il diritto di famiglia in una soci-
gentina, Brasil, Paraguay, Uruguay. Buenos Aires:
età pluriculturale richiede, se si cerca di riconoscere
Zavalia, 2003. 1438 p.
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112 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 113


114 Revista de Informação Legislativa
A prática jurídica ocidental
A inteligência e a voz

Estevão C. de Rezende Martins

Sumário
1. Antigüidade clássica. 2. As Capitulares.

Salus populi suprema lex esto. (De


legibus, III, 3).

Historia ... testis temporum, lux veritatis,


vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis. (De oratore, II).

Cedant arma togae, concedat laurea


linguae. (De obligationibus, I, 21)

À memória de Anna Maria Villela, cuja inteli-


gência e cuja voz ornaram a ciência brasileira do Di-
reito e contribuíram para a elevação da qualidade da
reflexão jurídica.

Alinham-se aqui algumas reflexões so-


bre o início excelso da definição do perfil
profissional dos cultores da observância das
leis e defensores do interesse dos cidadãos,
que se conhece há anos sob a apelação de
jurisconsulto, advogado. Ter sido colega de
Anna Maria Villela em duas vertentes de
carreiras profissionais complementares e
convergentes: na pesquisa científica e no
ensino universitário, na Universidade de
Brasília, e nas lides do parlamento nacio-
nal, na Consultoria Legislativa do Senado
Federal, fizeram-me admirar a qualidade da
pessoa humana, a sólida e profunda forma-
ção da profissional do Direito e a amável e
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 115
firme atuação da consultora legislativa. grandes personagens do Estado (Varrão,
Presto-lhe homenagem com as breves con- Catilina) e ao proferir a apologia da arte ora-
siderações que adiante reúno, sobre os pri- tória (de Oratore)4. Catão, Crasso, Antonio,
mórdios da profissão jurídica na Antigüi- Quintiliano, Plínio o Jovem, os dois
dade clássica e nos primeiros momentos da Gracos, o próprio César, Bruto ... todos ad-
Idade Média latina. vogados. Sob tais auspícios, a profissão
assoma toda sua nobreza, ao mesmo tem-
1. Antigüidade clássica po em que alcança uma abrangência extra-
ordinária.
A lei de Sólon impõe a cada cidadão de Os quatro primeiros séculos depois de
Atenas a obrigação de defender-se por si Cristo testemunham a construção de uma
mesmo perante o tribunal do povo1. Embora verdadeira categoria social, forjada sob a
a eloqüência natural dos gregos seja uma égide de uma deontologia que se transfor-
qualidade bastante difundida, o queixoso mará em tradição profissional. Após cinco
freqüentemente prefere confiar a defesa de anos de estudo do Direito, o recipiendário
seus interesses a um orador político, a um se apresenta perante o Senado, acompanha-
daqueles que, por talento, concorrem ao go- do de seu pai e de um séqüito de familiares.
verno da cidade e o obtém. O próprio Aris- O candidato é assim admitido a inscrever-
tóteles preocupou-se em dar bons conselhos se na “matrícula”, se fizer parte do numerus
de retórica. Dessarte os grande oradores po- clausus e não for gravado de indignidade.
líticos tornam-se naturalmente advogados, Presta juramento ao imperador. Se logra êxi-
ainda antes de a profissão existir na Grécia. to, é o começo da carreira: ingressa na no-
Demóstenes, Temístocles e Lísias foram os breza e, se sua eloqüência galvaniza a mul-
primeiros defensores da História. tidão romana, chegará a censor, procônsul
A marca grega insere-se naturalmente e cônsul ou até ... imperador.
em Roma. Também nesta, o orador político Como advocatus, beneficia-se do mono-
recorre a sua influência na cidade, em bene- pólio de defesa no seio de uma ordem (cria-
fício de sua clientela (no sentido romano do da no século 4º), cujo chefe é o decano. O
termo2), seja por iniciativa própria, seja corpo dos advogados comporta três classes:
quando solicitado. A defesa verbal, no fó- o estagiário; o causidicus ou patronus: o ora-
rum, abre a via do sucesso e a das carreiras dor; o prudens ou consultor (que escreve as
políticas. Serviço gratuito3, mas de eficácia minutas que se submete ao juiz).
extraordinária, prestado pelo cidadão roma- Tem-se, ademais, o procurator, que orga-
no a sua clientela. Já existe no século 1º a.C. niza a defesa. Enfim, no século 6º, tem-se a
também a figura do advocatus, cuja profis- intervenção de Justiniano, o primeiro desde
são é a de redigir memórias escritas em fa- Hamurabi (rei de Babilônia 2.000 anos an-
vor do solicitante. O corpo do direito roma- tes de Cristo) – no estado atual dos conheci-
no já é complexo o suficiente, tanto no con- mentos, a mandar codificar as leis, a juris-
teúdo quanto nas regras processuais, e esse prudência e a doutrina em um conjunto co-
profissional cresce rapidamente em impor- erente e brilhante, sob a designação global
tância. No império, os dois papéis se con- de codex iuris civilis (529 d.C.). O século 6º
fundem e o advocatus assume um papel cada representa, por conseguinte, um marco de-
vez mais destacado em Roma. Augusto con- cisivo para a consolidação do legado de um
firma a gratuidade absoluta da prestação império cuja coesão começa a apresentar fis-
desse serviço e pune qualquer transgressão. suras importantes. O Código transpõe para
Já Cícero confere a essa profissão seu título o futuro um monumento do Direito que rea-
de nobreza, ao atuar seja na defesa de seus parecerá, no século 12, como roteiro para a
familiares, seja nos processos que envolvem organização da cristandade política do Oci-

116 Revista de Informação Legislativa


dente. A prática romana do advocatus, da voz parecem ter sido muito mais conselheiros
da inteligência da causa no interesse do ci- do que oradores. A justiça franca não apre-
dadão, estava definitivamente enraizada na cia, contudo, esse tipo de intermediário e o
história do modelo de organização institu- trata com tanta severidade quanto o queixo-
cional das sociedades. so original. Se o interveniente “pré-empe-
A prática política, econômica e jurídica nho” é desautorizado pelo queixoso quan-
já se espraiara, pelo costume e pelas tabulae, to aos meios de defesa ou fala demais, tam-
e o advocatus pertence ao quotidiano do im- bém é multado. É esse o sistema adotado
pério. Flávius Nicetius, mencionado no sé- pelo regime merovíngeo a partir de Clóvis
culo 5º, atua nas circunscrições romanas de (496), apesar de este ter admitido, ao buscar
Marselha e de Lyon – o que evidencia o de- um regime de conciliação política e territo-
senvolvimento da prática advocatícia no rial entre francos e galo-romanos, a sobrevi-
espaço do Mediterrâneo, fora da Península vência do direito romano nas províncias que
Itálica. No entanto, o desmembramento do viviam até então sob ele.
Império Romano cria espaços vazios entre
os mundos transalpino e cisalpino. As in- 2. As Capitulares
cursões dos bárbaros e as construções de
fortalezas, a destruição das vias, o recuo do Pepino, o Breve, Carlos Magno e Luís, o
comércio e a diminuição do tecido urbano Pio, buscam organizar uma justiça secular,
fazem desvanecer as relações jurídicas pela sob sua autoridade imediata, paralela à jus-
insegurança e prevalecer as relações de for- tiça transcendental divina e à justiça privi-
ça. O sistema feudal que se instala na Euro- legiada eclesiástica.
pa ocidental, dos dois lados do Reno, res- Reforçado pela estrondosa vitória de seu
ponde à nova conjuntura. Os germanos (en- pai, Carlos Martel, sobre os sarracenos, Pe-
tre os quais os francos) instauram um siste- pino, o Breve, confia a seu séqüito de senho-
ma judiciário baseado na defesa pessoal e res (condes) e de monges uma dupla tarefa:
oral (a palavra empenhada não pode ser a da justiça real e a do conselho do rei (737).
retirada) e na sanção pecuniária ou no em- Prefiguração do futuro Parlamento, mas iti-
prego da força (o duelo). O benefício da pro- nerante ao saber das cavalgadas. Carlos
va é atribuído ao mais forte, o que demons- Magno (742-814), com sua estatura de con-
tra mais resistência na provação física. O quistador e de legislador, organiza a justiça
advocatus torna-se desnecessário. em suas “Capitulares”:
Entretanto, o defensor não desaparece in- – a justiça civil: os condes designam os
tegralmente. Embora não se tenha conser- juízes chamados de vogais (podem ser des-
vado testemunho direto de sua voz débil e tituídos). O vocalato é uma justiça imediata,
isolada, a Igreja católica, onipresente com próxima do interessado, que se espalha so-
seus mosteiros, única cultora da herança ro- bretudo no norte da Europa.
mana, precisa defender seus bens contra os – organização da apelação: perante o im-
senhores seculares. De outra parte, a defesa perador e seu séqüito.
pessoal pela palavra empenhada, sem re- – organização da prova em matéria pe-
tratação possível (acompanhada pelo assim nal: “o julgamento de Deus”. Esse julgamen-
chamado código de honra pelo sangue), é to decorre da resistência do queixoso a cer-
tanto mais perigosa quanto formalista. Sur- tas provações físicas (podendo até incluir a
gem assim, gradativamente, pessoas que tortura). Aquele que resiste a essas prova-
atuam como “pré-conselheiros”, conselhei- ções ganha o processo. O desfecho do du-
ros que assistem aos queixosos, em especial elo é o julgamento de Deus. Trata-se do
àqueles mais desprotegidos perante uma formato judicial que prevalece no sistema
justiça dura e sem nuanças. Essas pessoas germânico.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 117


– organização da defesa: de uma parte, selheiros – personagens que dominam a lei-
aparece o procurator, que redige o requeri- tura e a escrita e que zelam pela consolida-
mento; de outra, o advocatus, que só inter- ção de sua legitimidade e de sua continui-
vém em nome do queixoso se este não for dade. A principal dessas instituições escri-
capaz de se defender ou se houver conflito tas é a “lei sálica”, instituída sob o regime
de direito. O advocatus é interdito de intervir de Clóvis: uma espécie de constituição mo-
em um processo “injusto”. A noção de pro- nárquica utilizada para a legitimação dos
cesso injusto é recorrente até o final do merovíngeos e dos capetos. De modo seme-
século 18 e a proibição possui caráter lhante procedem os burgundos (lei gombe-
imperativo. ta), os lombardos e os visigodos (cuja lei, a
Constata-se assim que desde o século 8º mais romanizada de todas, faz menção ex-
ocidental aparece a figura dos defensores, plícita dos mandatores ou defensores). São
mesmo se o papel que lhes é reservado per- esses rudimentos de justiça pública concre-
manece ainda bastante secundário, restrito tizada por ações privadas que prevalecem
à função de auxiliares a título excepcional. na organização, mesmo se ela própria ex-
Apesar dessa dimensão restrita, a função tremamente rudimentar, das relações cole-
existe e passa a desenvolver-se, mesmo se tivas. Nessas condições, a figura do advo-
lentamente. Como se dá tal intervenção? gado – ou, mais precisamente, de uma espé-
O queixoso apresenta um requerimento cie de predecessor do advogado moderno –
verbal perante o prefeito, que preside os de- fica restrita ao papel de conselheiro opcio-
bates ao lado do juiz vogal. Queixoso, de- nal, rigidamente enquadrado pelo processo
fensor e vogal devem buscar conselho (tirar formalista verbal. Luís, o Piedoso, mantém
“seus dias e suas noites”). Regra geral, os esse formato, mas seus três herdeiros, ao par-
costumes ancestrais são conhecidos, alega- tilhar o império no tratado de Verdun (843),
dos e aplicados. Havendo dificuldade, bus- voltam a mergulhar o espaço europeu em
cam conselho de um “pré-conselheiro”. um turbilhão de guerras fratricidas, durante
Apresentados os argumentos de todos, o as quais o direito soçobra na maré de sangue.
juiz vogal pronuncia o julgamento, sempre Quase três séculos passam antes de se
na presença do prefeito e dos aldeões. Todo redescobrir o direito romano. No século 10,
esse procedimento se funda no intercâmbio ao final do reinado de Hugo Capeto (987-
verbal dos meios e das provas; uma espécie 996), progressos notáveis na pacificação dos
de duelo verbal, no qual cada palavra pesa, reinos e a instituição de uma “trégua de
sem que se admita falha ou erro. Justiça sim- Deus” permitem reduzir as penas corporais.
ples, ao alcance de todos, bons conhecedo- A instauração gradativa da paz torna pos-
res dos costumes locais – origem e funda- sível o restabelecimento das vias de comu-
mento do direito consuetudinário. nicação e do comércio. Ressurge a categoria
A resolução dos casos penais se faz seja das relações contratuais de bens e serviços,
pela via pecuniária, seja pela via corporal com seu séquito de compromissos, infrações
(duelo). Esse sistema judiciário, rudimentar e procedimentos. O ressurgimento do inte-
mas eficaz e suficiente para a época, man- resse privado nos negócios volta a exigir o
tém-se no mundo rural até o século 16, bem processo judicial. Em 1137, em Amalfi5, re-
depois da restauração dos princípios do descobre-se o Código de Justiniano. Essa re-
direito romano. descoberta torna-se fundamental para os
Cada tribo germânica toma como base princípios de organização do espaço euro-
de seu funcionamento político seus costu- peu, romanizando-o política e juridicamen-
mes tradicionais próprios. Essas regras são te. O código comporta quatro partes:
freqüentemente consignadas por escrito pe- – as Institutas são a codificação das leis
los monges, pelos advocati ou pelos pré-con- romanas;

118 Revista de Informação Legislativa


– o Digesto é uma compilação de extra- de procuradores. Agora, atuam verdadei-
tos da doutrina dos jurisconsultos roma- ros advogados perante os bailios: o incre-
nos; mento do comércio traz o aumento das
– o Código contém os editos dos impera- questões.
dores; Essa diversificação, mesmo se embrioná-
– as Novelas são uma atualização do tem- ria, começa com os “Estabelecimentos” de
po de Justiniano. São Luís, no século 13, e tem sua primeira
É certo que o sistema romano não desa- regulamentação com a ordenança de 23 de
parece por completo, sobretudo nas regiões outubro de 1274, de Felipe III. Estipula-se o
ribeirinhas do Mediterrâneo, embora as re- juramento e os honorários: o advogado só
giões ao norte tenham retornado à prática pode defender uma “causa justa”, cobrar
dos costumes ancestrais. Num como noutro “salário” limitado a trinta libras6, negar-se
caso, contudo, perdeu-se a fonte ou a ori- a qualquer acordo de partilha (“quota litis”)
gem. A redescoberta do Código de Justinia- e prestar o juramento do direito romano tan-
no vem relançar a fundamentação do direi- to na inscrição inicial para o exercício da
to, renovar-lhe o vigor perdido e contribuir profissão quanto a cada vez que o parla-
para a institucionalização jurídica dos rei- mento se instalar. Esse juramento se presta
nos emergentes no ocidente da Europa. Essa com a mão direita estendida sobre os Evan-
institucionalização ocorrerá em regime de gelhos. O ritual do processo canônico e de
concorrência severa entre o direito canôni- sua liturgia se transpõe, naturalmente, para
co e o direito real. Somente o início do sécu- os novos procedimentos. A toga copia a so-
lo 18 trará o preeminência deste, malgrado taina eclesiástica. As cerimônias solenes e a
os fortes avanços trazidos pela Reforma. hierarquia adotam a púrpura da pompa ecle-
Para a tradição ocidental, contudo, a ere- siástica. Na França e na Alemanha, como
ção de uma instituição permanente para a na Grã-Bretanha e na Itália – na Europa em
administração da justiça é decisiva. A prá- geral –, essas cores ainda predominam, or-
tica da justiça real, desde o carvalho de São nadas não raro dos atributos assumidos da
Luís de França, no castelo de Vincennes, não nobreza (arminho, decorações, perucas),
tinha outro substrato senão o bem querer e a malgrado a laicização completa do proces-
vontade do soberano. A instituição do par- so judicial nos séculos 19 e 20.
lamento como instância permanente de ad- A estatização da justiça requer que a au-
ministração da justiça dá-se no século 14. toridade real escolha, entre os advogados,
Aos 23 de março de 1302, Felipe, o Belo, as- os que cuidarão dos interesses da Coroa e
sina a ordenança que cria um parlamento defenderão a ordem pública. Os “advoga-
permanente para julgar as causas importan- dos da Coroa” passam a ser dirigidos por
tes, composto de vinte e seis membros: treze um procurador da Coroa, que não atua, mas
clérigos (monges e prelados), representan- ordena as causas. Os advogados da Coroa
tes da “justiça divina”, e treze leigos (no- são dois: um para as causas civis (que pode
bres de espada). Não há juristas ou juris- ser um clérigo) e um para as penais (um ‘lei-
consultos. Mas é esse parlamento que terá a go’, pois um ‘clérigo’ não pode atuar em
delegação da mão de justiça real. Antes de causas criminais). Eles não estão impedi-
se ter criado o parlamento, a autoridade real dos de ter clientes particulares. O mandato
já começa a diversificar as instâncias de jus- é revogável. Esses advogados da Coroa logo
tiça secular (“estatal”) para além dos vogais: passam a ser conhecidos como “legistas”,
os bailios, os prepostos e os senechais. Tem encarregados de sustentar os direitos da
início um processo de modificação do for- Coroa e do Estado. Já se pode reconhecer a
malismo canônico que na prática reservava distinção entre os dois grandes papéis do
aos clérigos o papel de pré-conselheiros ou advogado: o defensor privado e o defensor

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 119


público. Trata-se sobretudo de defender e ou na representação do interesse, privado
assentar o direito do soberano e o do súdito. ou público.
As perorações ainda não estão repletas das
circunvoluções retóricas barrocas e parna-
sianas que se tornarão conhecidas a partir Notas
da segunda metade do século 18. A perora-
1
ção é sóbria e prudente. Uma palavra de Um dos Sete Sábios da Grécia, Sólon (c. 640-
558 a.C.) foi um dos políticos mais eminentes de
mais pode pôr tudo a perder. E o latim pro-
Atenas. Eleito arconte em 594, foi sem dúvida in-
cessual começa a sentir a “concorrência” vestido de poderes especiais de legislador. Empre-
dos vernáculos. endeu ampla reformar social e, segundo os teste-
A matriz franca continua a prevalecer munhos do século 4 a.C., também política. Deter-
na organização do sistema judiciário. Entre minou a anistia de dívidas e a supressão dos moi-
rões hipotecários para preservar os camponeses da
os séculos 13 e 14, a admissão de advoga-
dependência da aristocracia dos grandes proprie-
dos à prestação jurisdicional requer o pre- tários (eupátridas), seja como assalariado (téta),
enchimento de duas exigências básicas: o seja como sazonal (hectêmora), e da escravidão.
estudante das Leis deve passar por um exa- No domínio político, é-lhe atribuída a repartição
me e os admitidos – magistrados, advoga- do povo ateniense em quatro classes censitárias,
todas com direito a voto e com direito de acesso ao
dos e procurados – devem prestar o jura-
tribunal da helíada, que criou.
mento de praxe (lealdade, veracidade e im- 2
Cliens: o escravo ou o liberto agregado ao ci-
pessoalidade). Esse juramento se faz duran- dadão romano e que é também um sinal exterior de
te a celebração litúrgica da Missa do Espíri- sua riqueza.
3
to Santo, que precede a instalação dos tra- A lei Cencia proíbe a percepção de honorários
e qualquer participação em ônus de sucumbência.
balhos do Parlamento. Importa recordar que 4
Cf. The Classics Home Page, para as obras
o Parlamento é, até o final do século 18 fran- completas de Cícero (http://patriot.net/~lillard/
cês, a corte de justiça. Na segunda metade cp/cic.html).
do século 14 – observe-se como a regula- 5
O saque de Amalfi pelos pisanos chama-
mentação do exercício da profissão jurí- dos para defender a cidade (a oeste de Salerno,
ao sul do promontório sul da baía de Nápoles)
dica suscita cuidado especial e valoriza-
das invasões normandas fez incluir no butim
ção social –, o próprio Parlamento junto ao documentos da biblioteca, entre os quais a úni-
qual o advogado exercerá suas funções pas- ca cópia de que se tem notícia do Código, leva-
sa a controlar a qualidade dos candidatos da para Pisa.
6
ao acesso. Os resultados obtidos no exame Trata-se da libra de Tournai, unidade mone-
tária do império carolíngeo. Uma libra de Tournai
de admissão (“valores”) têm de ser reconhe-
equivale, no século 13, a 8,271 gramas de ouro fino.
cidos pela corte, que autoriza a prestação Essa moeda subsistira na França até a lei revoluci-
do juramento. Os advogados juramentados onária do 18 de germinal do ano III (7 de abril de
se distribuem em três grupos: os estagiári- 1795), quando foi rebatizada de franco (equivalen-
os, os perorantes e os consultores. Essa dis- te a 4,50 gramas de prata fina). O franco [francês]
foi substituído pelo euro, a nova moeda européia,
tinção consagra, no ordenamento profissio-
em 1.1.2002 (1 euro = FF 6,55597). O valor nominal
nal, a distinção fundamental entre os dois do franco de 1803, em valores de 1999 [quando foi
tipos de atuação dos advogados: a ativida- fixada a paridade para o efeito da introdução do
de de consultoria e assessoria (individual euro em circulação], correspondia a 15,72 [aproxi-
ou institucional) e a de intervenção direta madamente US$ 3].
nas sessões de julgamento. Vê-se como, des-
de bastante cedo, na evolução histórica da
prática jurídica ocidental, as funções advo- Bibliografia
catícias se revestem das características de
seu exercício até os dias de hoje: a inteligên- THE CLASSICS HOME PAGE. Disponível em: <http:/
cia da causa e a voz, empregada na defesa /patriot.net/~lillard/cp/cic.html>. Acesso em: 2003.

120 Revista de Informação Legislativa


Parlamento e tratados: o modelo
constitucional do Brasil

Francisco Rezek

Sumário
I – Sistemas de partilha do poder convenci-
onal. 1. O modelo francês. O Império do Brasil,
o Peru e a Venezuela. 2. O Reino Unido. 3. Os
Estados Unidos da América. II – O poder con-
vencional no Brasil Republicano. 1. A polêmi-
ca Accioly – Valladão sobre os acordos executi-
vos no Brasil. 2. O regime constitucional de
1988. 3. Constituição e acordos executivos: juí-
zo de compatibilidade. 4. Procedimento parla-
mentar. III – O conflito entre tratado e norma
de produção interna. 1. Prevalência dos trata-
dos sobre o direito interno infraconstitucional.
2. Paridade entre o tratado e a lei nacional. 3.
Situações particulares em direito brasileiro atual.

É da responsabilidade do poder Execu-


tivo, mesmo nas grandes democracias par-
lamentares, a dinâmica das relações inter-
nacionais. Notadamente o comprometimen-
to externo formal, a expressão do consenti-
mento do Estado em relação aos tratados, é
algo que se materializa sempre num ato de
governo – a assinatura, a ratificação, a ade-
são. Mas é próprio das democracias, ainda
que sob o sistema de governo presidencia-
lista, que os pressupostos do consentimen-
to, ditados pelo direito interno, tenham nor-
malmente a forma da consulta ao poder Le-
gislativo. Sempre que o Executivo depende,
para comprometer externamente o Estado,
de algo mais que sua própria vontade, isso
vem a ser em regra a aprovação parlamen-
tar. O modelo suíço, em que o referendo po-
pular precondiciona em caráter permanen-
te a conclusão de certos tratados, configura
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 121
uma exceção, assim como excepcionais têm Não há, assim, sob o aspecto qualitati-
sido os episódios avulsos de consulta ao elei- vo, diferença entre o modelo francês – her-
torado quando se cuida, como na Europa dado pela Constituição de 1958 às linhas
dos últimos anos, de integrar determinado gerais de suas predecessoras de 1946 e 1875
país a um processo comunitário de grande – e o que prevaleceu no Império do Brasil,
desenvoltura e de notáveis conseqüências. sob a Constituição de 25 de março de 1824.
O estudo dos pressupostos constitucio- Separa-os um fator puramente quantitativo,
nais do consentimento é, fundamentalmen- vez que neste último caso a aprovação da
te, o estudo da partilha do treaty-making po- Assembléia-Geral impunha-se apenas
wer entre os dois poderes políticos – Legis- quando o tratado envolvesse cessão ou tro-
lativo e Executivo – em determinada ordem ca de território imperial – “ou de posses-
jurídica estatal. Melhor proveito dará a aná- sões a que o Império tenha direito” –, e des-
lise do caso brasileiro se precedida, ainda de que celebrado em tempo de paz3.
que em molde sumário, pela consideração Com a mesma tônica distintiva ratione
de alguns outros sistemas nacionais. materiae, mas sem especificações temáticas
precisas, a Constituição peruana de 1979,
I – Sistemas de partilha do depois de estabelecer que os tratados têm
poder convencional como pressuposto de ratificação o abono do
Congresso, ressalva que o Presidente da
Deixam-se de lado os modelos nacionais República pode celebrá-los por si mesmo,
em que, de direito ou de fato, não há parti- devendo apenas informar imediatamente o
lha, entre governo e parlamento, do poder Legislativo, quando versem “matérias de
de comprometer o Estado no plano interna- sua exclusiva competência”4.
cional1. Em tais casos, hoje muito raros, não A Constituição venezuelana de 1961 re-
se pode falar, a rigor, em pressupostos cons- clama a aprovação legislativa dos tratados,
titucionais do consentimento, visto que excetuados aqueles que importam execução
nada o precondiciona senão a vontade da- ou continuidade de obrigações internacio-
quele mesmo poder que o exprime. No cená- nais preexistentes, desempenho de atos or-
rio restante, abordam-se, em razão de sua dinários em relações internacionais, exercí-
excelência didática, três modelos: o francês, cio de poderes que a lei expressamente con-
o britânico e o norte-americano. fere ao poder Executivo e, por último, apli-
cação de princípios expressamente reconhe-
1. O modelo francês. O Império do cidos pela república5.
Brasil, o Peru e a Venezuela
No modelo francês, a aprovação parla- 2. O Reino Unido
mentar constitui pressuposto da confirma- A originalidade do modelo britânico,
ção de alguns tratados que a Constituição construído sob o pálio de uma constituição
menciona, no seu artigo 53. São eles os tra- costumeira, está no modo de enfocar a ma-
tados de paz, os de comércio, os relativos à téria. Ali, como nos sistemas até agora vis-
organização internacional, os que afetam as tos, alguns tratados não prescindem do be-
finanças do Estado, os que modificam dis- neplácito parlamentar. Não se pretende,
posições legislativas vigentes, os relativos contudo, que seja esse um requisito de vali-
ao estado das pessoas e os que implicam dade da ação exterior do governo, mas um
cessão, permuta ou anexação de território. elemento necessário à implementação do
Cuida-se, pois, de um sistema inspirado na pacto no domínio espacial da ordem jurídi-
idéia do controle parlamentar dos tratados ca britânica. O governo é livre para levar a
de maior importância, à luz do critério sele- negociação de tratados até a fase última da
tivo que o próprio constituinte assumiu2. expressão do consentimento definitivo, mas

122 Revista de Informação Legislativa


não deve deslembrar-se da sua inabilidade A Corte de Apelação derrubou essa sen-
constitucional para alterar as leis vigentes tença, por entender que o direito internacio-
nal costumeiro garantia ao barco real privi-
no reino, ou para, de qualquer modo, onerar légio não inferior ao das naus de guerra.
seus súditos ou reduzir-lhes os direitos, sem Não desautorizou, porém, a assertiva de
que um ato do parlamento para isso concorra. Phillimore sobre a inidoneidade do tratado,
Esse, pois, o toque peculiar ao modelo nos termos em que formulada. O caso do
britânico. O mais singelo e estereotipado Parlement Belge é citado até hoje como ilus-
tração das limitações do Executivo britâni-
pacto bilateral de extradição reclama, para co no trato internacional7.
ser eficaz, o ato parlamentar convalidante,
porque não se concebe que uma pessoa, vi- 3. Os Estados Unidos da América
vendo no real território, seja turbada em sua
paz doméstica, e mandada à força para o A Constituição americana de 1787 ga-
exterior, à base de um compromisso estrita- rantiu ao Presidente dos Estados Unidos o
mente governamental. Concebe-se, porém, poder de celebrar tratados, com o consenti-
que tratados da mais transcendente impor- mento do Senado, expresso pela voz de dois
tância política sejam concluídos pela exclu- terços dos senadores presentes8. Bem cedo,
siva autoridade do governo, desde que pos- porém, uma interpretação restritiva da pa-
sa este executá-los sem onerar os contribu- lavra inglesa treaties fez com que se estimas-
intes nem molestar, de algum modo, os ci- se que nem todos os compromissos interna-
dadãos. À margem da colaboração do par- cionais possuem aquela qualidade. Além
lamento pode o governo britânico, dessarte, dos tratados, somente possíveis com o abo-
adquirir território mediante compromisso no senatorial, entendeu-se que negociações
político; e só não pode ceder território ante a internacionais podiam conduzir a acordos
presunção de que, com esse gesto, estará ou ajustes, os ali chamados agreements, para
destituindo da proteção real os súditos ali cuja conclusão parecia razoável que o Pre-
instalados6. sidente prescindisse do assentimento par-
lamentar. A prática dos acordos executivos
O Parlement Belge, embarcação civil de começa no governo de George Washington,
uso do soberano belga, colidiu em 1879, em
águas territoriais inglesas, com um barco
e ao cabo de dois séculos ostenta impressio-
privado pertencente a súdito local, que de nante dimensão quantitativa. A Corte Supre-
pronto ajuizou no Tribunal do Almiranta- ma norte-americana, levada por mais de uma
do um pedido de ressarcimento, envolven- vez ao exame da sanidade constitucional des-
do a apreensão da nave. Em preliminar, o ses acordos, houve por bem convalidá-los.
governo belga sustentou a inviolabilidade
daquela embarcação pública civil, não di- Na realidade, em dois casos análogos,
versa da que cobria os navios de guerra, U. S. v. Belmont (1937) e U. S. v. Pink (1942),
fosse à vista do direito internacional costu- a Corte Suprema enfrentou de modo curio-
meiro, fosse em razão do tratado bilateral so a pretensão de particulares, do setor ban-
belgo-britânico de 1876, que estendia às cário nova-iorquino, que contestavam a va-
naves do gênero aquele privilégio. lidade do Acordo Litvinov – um acordo exe-
Robert Phillimore, juiz, na época, do Tri- cutivo entre o presidente Franklin Roosevelt
bunal do Almirantado, negou, primeiro, que e o ministro soviético daquele nome, em que
a inviolabilidade geralmente reconhecida se determinava a devolução, à fazenda pú-
pelo direito internacional comum fosse além blica soviética, de somas depositadas em
dos navios de guerra. Em seguida recusou bancos de Nova York por súditos russos,
qualquer préstimo ao tratado de 1876 para antes da revolução de 1917, e não reclama-
estabelecer a extensão do privilégio, eis que das mais tarde pelos depositantes priva-
não podia o governo, sem apoio num ato dos. Chamando em seu socorro as leis e a
do parlamento, pactuar com potência es- ordem pública do estado de Nova York,
trangeira de modo a reduzir os direitos de Belmont, e mais tarde Pink, afirmou não
um súdito local, entre os quais o de obter vislumbrar no acordo executivo o vigor ju-
satisfação judiciária. rídico bastante para neutralizar a proteção
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 123
garantida por aqueles padrões de conduta II – O poder convencional no
a depósitos bancários particulares.
A Corte Suprema confirmou a valida-
Brasil Republicano
de do acordo executivo, sempre à luz da Mais de um século depois de lavrada a
idéia de que só para treaties – não para agre- Constituição dos Estados Unidos, e perfei-
ements – a Carta federal reclama o endosso
de dois terços do Senado. Em seguida – e
tamente cônscio de todos os seus dispositi-
nesse ponto reside a curiosidade, por apa- vos, e da respectiva experimentação cente-
rente contradição, de tal jurisprudência –, nária, entendeu o constituinte brasileiro da
afirmou a Corte a prevalência do acordo primeira República de dispor sobre o poder
Litvinov sobre as leis e a ordem pública do convencional nestes termos:
estado de Nova York, dando-lhe assim a
estatura hierárquica que a mesma carta, no “Compete privativamente ao Congres-
artigo VI, atribui aos treaties: a de “lei su- so Nacional:
prema do país” – o que traduz a virtude de (...)
prevalecer sobre a ordem jurídica dos esta- 12o – resolver definitivamente sobre os
dos federados9. tratados e convenções com as nações es-
trangeiras;
(...)
Embora cresçam em números absolutos,
Compete privativamente ao Presidente
os acordos executivos do governo america- da República:
no têm revelado o exercício de uma prerro- (...)
gativa menos ampla do que se costuma su- 16o – entabolar negociações internacio-
por. Não há indício da pretensão de que es- nais, celebrar ajustes, convenções e trata-
dos, sempre ad referendum do Congresso;”12
ses compromissos possam escapar ao âm-
bito de três categorias geralmente reconheci- A redundância terminológica – ajustes,
das: aqueles que se apóiam em diretrizes ou convenções, tratados –, alvo constante da
autorização prévia do Congresso; aqueles crítica doutrinária, persiste até hoje na lei
que só se executam mediante autorização fundamental brasileira, com um mínimo de
posterior do próprio Congresso; e aqueles variedade. Ali viu Carlos Maximiliano a in-
que derivam dos estritos poderes constitu- tenção de compreender, pela superabun-
cionais do Executivo. O’Connell estabelece dância nominal, todas as formas possíveis
um rol exemplificativo de cada uma dessas de comprometimento exterior13. O estudo da
três categorias, em que se vê que os acordos gênese das constituições brasileiras, a par-
da terceira – seguramente a mais discutível tir da fundação da República, não permite
– são os menos numerosos. Seus temas, en- dúvida a respeito da correção dessa tese.
tendidos como afetos à “estrita competên- Desprezado tal critério hermenêutico, e à luz
cia governamental”, incluem armistício, única da linguagem do dispositivo, poder-
ocupação militar de território estrangeiro, se-ia, entretanto, chegar à conclusão opos-
jurisdição sobre crimes militares, tratamen- ta. Afonso Arinos atentou para esse risco e
to de súditos americanos no exterior e pro- o deplorou em sua obra de 1957:
cessualística de registro de tratados10. “A Constituição brasileira, ao falar em
Do ponto de vista processual, é conveni- tratados e convenções internacionais, em-
ente destacar que o modelo norte-america- pregou duas palavras para exprimir o mes-
no poucos seguidores teve no tocante à en- mo objeto jurídico, o que é de má técnica
constitucional. O que é mais grave, porém,
trega ao Senado – não às duas casas do Con- é que não ficaria excluída a hipótese de se
gresso – da competência para aprovar tra- entender que outros atos internacionais que
tados. O México adota, tradicionalmente, não viessem rotulados como convenções ou
esse sistema11, bem assim as Filipinas e a tratados ficariam dispensados da fiscali-
zação do Legislativo”14.
Libéria. Adotou-o também o Equador en-
quanto teve um Congresso bicameral – vale É notório que os grandes comentaristas
dizer, até 1970. da Constituição da primeira República –
124 Revista de Informação Legislativa
entre eles, destacadamente, João Barbalho e Exteriores e a Embaixada da França no Rio
Clóvis Bevilaqua15 – sustentaram a inviabi- de Janeiro.
(...)
lidade do comprometimento externo por A dúvida (...) concerne à necessidade
obra exclusiva do governo, em qualquer de aprovação do referido acordo pelo Con-
caso. A Constituição de 1934 foi, porém, gresso Nacional.
motivo de algum debate a respeito, ante uma É lição que vem de Clóvis Bevilaqua: ‘É
alteração redacional presente nos disposi- a ratificação que torna o tratado obrigató-
rio. No Brasil, compete a ratificação ao Pre-
tivos que regem a matéria: sidente da República, depois que o Con-
“É da competência exclusiva do Poder gresso aprove o tratado’(Direito Público In-
Legislativo: ternacional, § 168, T. II, 2a ed., 1939, p. 17).
a) resolver definitivamente sobre trata- (...)
dos e convenções com as nações estrangei- A primeira interpretação, logo após a
ras, celebrados pelo Presidente da Repúbli- promulgação da Carta Magna de 24 de fe-
ca, inclusive os relativos à paz; vereiro de 1891, dada, ainda, pelos antigos
(...) constituintes, vamos encontrar na Lei no 23,
Compete privativamente ao Presidente de 30 de outubro de 1891, que reorganizou
da República: os serviços da administração federal, e ain-
(...) da em vigor no que não foi expressamente
6o – celebrar convenções e tratados in- revogada.
ternacionais ad referendum do Poder Legis- Eis o que prescreve o § 3o do seu art. 9o:
lativo;” 16 ‘§ 3o Os ajustes, convenções e tratados cele-
brados pelo Presidente da República, em
Desapareceu dessa derradeira norma a virtude das atribuições que lhe confere o
referência a “ajustes”, bem assim o advér- art. 48, no 16, da Constituição, serão sujei-
bio “sempre”, que precedia a expressão ad tos à ratificação do Congresso, mediante
um projeto de lei formulado pelo Poder
referendum. Superado o regime de 1937, em
Executivo, nos termos do art. 29 da Consti-
que o texto básico outorgava ao Conselho tuição’.
Federal o exame de tratados17, a Constitui- Nem outro foi o modo de ver do insigne
ção de 1946 retomou, quase que literalmen- João Barbalho ao justificar a necessidade
te, a linguagem de 193418. de aprovação pelo Congresso dos atos in-
ternacionais bilaterais: ‘Mas os tratados são
A história diplomática do Brasil oferece
uma troca de concessões e estabelecem re-
exemplos de comprometimento externo, na ciprocidade de obrigações; ora, não é da
velha República, por ação isolada do poder alçada do poder executivo empenhar motu
Executivo e, pois, em afronta aparente ao proprio a responsabilidade da nação, criar-
texto constitucional. Foi, contudo, no regi- lhe compromissos, obrigá-la, ainda que em
permuta de vantagens, a ônus e encargos.
me da Carta de 1946 que floresceu neste país
Por isso ficou reservada ao Congresso Na-
a doutrina da licitude dos acordos executi- cional a ratificação dos ajustes, convenções
vos, tendo Hildebrando Accioly como seu e tratados feitos pelo Presidente da Repú-
mais destacado patrocinador19. blica, o que redunda em corretivos e garan-
tia contra possíveis abusos, contra a má
1. A polêmica Accioly-Valladão sobre os compreensão e comprometimento dos al-
acordos executivos no Brasil tos interesses nacionais’.
(...)
A súmula do pensamento constituciona- Finalmente, do mesmo sentir foi a juris-
lista foi produzida por Haroldo Valladão, prudência nacional, manifestando-se a pro-
em parecer oficial, publicado depois no mes- pósito de extradições concedidas com base
mo periódico em que Accioly defendera seu em promessa de reciprocidade, em simples
ponto de vista20: acordo mediante notas reversais.
(...)
“Consulta o Sr. Ministro das Relações Expressava, pois, Clóvis Bevilaqua o
Exteriores sobre a validade de Acordo de direito positivo brasileiro ao escrever: ‘Ain-
Pagamento entre o Brasil e França, por tro- da que a ratificação seja a solenidade que
ca de notas entre o Ministério das Relações torna o tratado obrigatório, pode ser dis-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 125


pensada por acordo das altas partes con- Eis os trechos fundamentais de sua ar-
tratantes. Exemplo disso nos dá a conven- gumentação: ‘Realmente, o Brasil poderá
ção postal concluída, entre o Brasil e a Grã- ser parte em atos internacionais que não
Bretanha, no Rio de Janeiro, a 16 de agosto dependem de aprovação do Congresso
de 1875. Nenhuma convenção internacional, Nacional. São eles, essencialmente, os que
porém, poderá, hoje, no Brasil, ser executa- não exigem ratificação. Dizer que há trata-
da sem a aprovação do Congresso. Todos dos que não exigem ratificação poderá pa-
os ajustes internacionais, em face da Consti- recer contraditório com o preceito de direito
tuição brasileira, como já ficou exposto, são internacional segundo o qual a ratificação
celebrados pelo poder executivo ad referen- constitui um dos requisitos para a valida-
dum do Congresso’ (op. cit., II, p. 21). de de tais atos, até na ausência de cláusula
Teriam os artigos da Constituição de expressa que a estipule. Trata-se, porém,
1934 e da atual, de 1946, já referidos, alte- ainda aqui, de um princípio de ordem ge-
rado aquela orientação do direito pátrio pelo ral, que admite exceções, conforme abaixo
fato de nos textos referentes ao Presidente veremos… Isto posto, indiquemos agora
da República falarem apenas em ‘conven- quais as exceções admitidas ao princípio
ções internacionais’ (1934, art. 56, 6o) ou da obrigatoriedade da ratificação. Elas se
‘tratados e convenções internacionais’ (1946, fundam principalmente na natureza do ato
art. 87, VII) na forma empregada nos dois internacional e, às vezes, nas circunstâncias
diplomas básicos quanto ao Poder Legisla- que o cercam ou em que é firmado. Alguns
tivo (1934, art. 40, a, e 1946, art. 66, I)? autores mencionam também a forma do ato,
O elemento histórico desautoriza uma como elemento suscetível de tornar dispen-
resposta afirmativa. sável a ratificação; mas, a nosso juízo, a
(...) forma nada significa, no caso; o que, na
Doutra parte, a expressão ‘tratados e verdade, importa é a matéria do pacto.
convenções’ vinha usada desde 1891, no Acontece, porém, que esta geralmente in-
sentido amplo, de quaisquer atos jurídicos flui naquela de modo que freqüentemente
bilaterais de caráter internacional. se dá forma mais simples aos atos que não
Não fala, apenas, em tratados, mas em devem ser ratificados. O princípio geral que
tratados e convenções, com largueza de deve predominar no assunto é o da compe-
expressão. tência privativa dos órgãos constitucionais.
Não se referindo mais os novos textos, Se a matéria sobre que versa o tratado é da
qual em 1891, também às negociações in- competência exclusiva do Poder Legislati-
ternacionais e ajustes nas atribuições do vo, está claro que o aludido ato não se pode
Presidente, ou esses atos entram na chave tornar válido sem a aprovação legislativa;
ampla ‘tratados e convenções’ ou o Poder e, se depende de tal aprovação, deve ser
Executivo não teria competência para assi- submetido à ratificação. A título de exem-
ná-los. plos, podemos citar, no caso do Brasil, os
Já escrevera Lafayette: ‘Aos tratados tratados que, por qualquer forma, estabe-
dá-se indiferentemente a denominação de lecem novos ônus para o Tesouro Nacional;
convenções, acordos, pactos e ajustes os que dispõem sobre a dívida pública fe-
internacionais’(Princípios de Direito Interna- deral; os que implicam cessão ou troca de
cional, II, 1902, p. 268). Não divergira Cló- território nacional ou resolvem sobre os li-
vis Bevilaqua (op. cit., § 163 e nota, desde a mites deste; os que concedem favores adu-
1a edição, 1910) nem Hildebrando Accioly aneiros; os de aliança militar; os que permi-
(Tratado de Direito Público, 1934, no 1.251). tem o trânsito ou a permanência de forças
Há de ser, assim, mantida a interpreta- estrangeiras no território nacional; os de
ção clássica que subordina à aprovação do comércio e navegação; etc. Nada impede,
Congresso Nacional todo e qualquer tratado contudo, que o próprio Congresso tenha
ou convenção, ainda que com a simples de- disposto previamente sobre o assunto do
nominação de acordo, ajuste, convênio, etc. tratado e este não seja mais do que a apli-
Entretanto, ultimamente, em trabalho cação exata do que já se acha regulado por
especial, já mencionado, o eminente inter- lei, parecendo assim desnecessário que se-
nacionalista pátrio, Hildebrando Accioly, melhante tratado seja ainda submetido à
sustentou a possibilidade de ser o Brasil aprovação legislativa. Às vezes, também, o
parte em atos internacionais que não de- Congresso autoriza expressamente o Poder
pendem de aprovação do Congresso Naci- Executivo a dispor convencionalmente so-
onal. bre determinado assunto. Se este, depois,

126 Revista de Informação Legislativa


faz objeto de um tratado, nas condições tado vigente e são como que o seu comple-
indicadas, é bem de ver que se pode consi- mento; e) os de modus vivendi, quando têm
derar dispensável a aprovação subseqüen- em vista apenas deixar as coisas no estado
te, pelo Congresso. O último caso sucedeu, em que se encontram ou estabelecer simples
com alguma freqüência, nos Estados Uni- bases para negociações futuras. A esses ca-
dos. Foi o que se deu, por exemplo, com os sos, é freqüente que na prática se acrescen-
tratados de comércio concluídos durante o tem outros, como, por exemplo, os de ajuste
período governamental do Presidente Frank- para a prorrogação de tratado antes que este
lin Roosevelt, em virtude de ato do Con- expire, e as chamadas declarações de extra-
gresso aprovado a 12 de junho de 1934. dição, isto é, as promessas de reciprocidade,
Assim também, naquele país, as Con- em matéria de extradição, feitas por simples
venções Postais são concluídas pelo Presi- troca de notas’ (Boletim, pp. 5 a 8).
dente e o Postmaster General, sem necessida- A primeira consideração de Hildebran-
de de ‘parecer e consentimento do Senado’, do Accioly, de que independem de aprova-
porque antiga lei do Congresso, modifica- ção pelo Congresso os tratados que inde-
da em junho de 1934, dispôs nesse sentido. pendem de ratificação, – importaria em
Por outro lado, é princípio assento na União pedir ao direito das gentes a solução de um
norte-americana que os tratados meramen- problema de exegese da Constituição de um
te declaratórios da lei internacional (law of determinado país, o que não me parece ori-
nations), ou direito das gentes, não exigem entação aceitável.
sanção legislativa, porque a dita lei, confor- A maior ou menor amplitude de pode-
me tem decidido a Suprema Corte, é reco- res do Governo de um país para negociar e
nhecida como parte da lei do país. Como assinar atos internacionais há de depender,
quer que seja, apesar da disposição expres- evidentemente, dos textos da Constituição
sa da Constituição americana a que atrás e leis desse mesmo país.
aludimos, segundo a qual foi concedido ao É assunto típico de direito interno, que
Presidente ‘o poder de, com o parecer e con- escapa de todo ao direito internacional.
sentimento do Senado, fazer tratados, me- A consulta, no assunto, ao direito cons-
diante a aprovação de dois terços dos sena- titucional é o que aconselha a doutrina cor-
dores presentes’, é praxe antiga e muito se- rente no direito internacional, salvo, é claro,
guida nos Estados Unidos a de concluírem o caso anormal de um Governo revolucio-
ajustes ou compromissos internacionais, nário, ou melhor, extraconstitucional.
sobre várias matérias, por meio dos cha- (...)
mados ‘acordos executivos’ (executive agre- Sai, portanto, o modo de ver de Accioly
ements), para a validade dos quais é dis- também da orientação brasileira no campo
pensado o ‘parecer e consentimento do Se- do próprio direito internacional.
nado’. Os acordos executivos, segundo diz Proclama ele, a seguir, o princípio geral
Miller, não possuem talvez definição exata da competência privativa dos órgãos cons-
e compreendem atos da mais variada na- titucionais, fazendo depender da aprova-
tureza. Assim, por meio deles, têm sido ção legislativa os tratados que versam so-
ajustados, não só assuntos de pouca im- bre matéria exclusiva do Poder Legislativo.
portância, como, por exemplo, a execução É, manifestamente, fugir do jus consti-
de cartas rogatórias, mas também matéria tutum para penetrar no campo do jus consti-
de mais relevância, como a navegação aé- tuendum.
rea, e até assuntos de natureza política. Sem É criar, nos artigos constitucionais, con-
falar, porém, na praxe americana, pode di- tra seu texto, abandonando seu histórico,
zer-se, de conformidade com a doutrina desacompanhando tradição firme, na legis-
mais corrente, que a ratificação não é geral- lação (Lei 23, de 1890), na doutrina (João
mente exigida para os seguintes atos inter- Barbalho, A. Milton, Clóvis Bevilaqua), na
nacionais: a) os acordos sobre assuntos que jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-
sejam da competência privativa do poder ral, distinção que, em absoluto, não ocor-
Executivo; b) os concluídos por agentes ou reu quer aos seus autores, quer aos seus
funcionários que tenham competência para intérpretes.
isso, sobre questões de interesse local ou de A razão do preceito de nossas consti-
importância restrita; c) os que consignam tuições republicanas, exigindo a aprovação
simplesmente a interpretação de cláusulas pelo Congresso dos tratados e convenções,
de um tratado já vigente; d) os que decor- foi dada em trecho que já transcrevemos de
rem, lógica e necessariamente, de algum tra- Barbalho; visou a estabelecer um controle

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 127


amplo do Congresso sobre o Presidente da to, poderia alterar a lei passível de regu-
República nas relações internacionais, da- lamento.
das as graves conseqüências que poderão A estabilidade, necessária aos acordos
advir para o país de compromissos assu- internacionais, apresentar-se-ia de forma
midos na ordem internacional. bem precária.
Não olharam os constituintes republi- E o Poder Executivo poderia criar, na
canos brasileiros a matéria ou a importân- espécie, um caso internacional, de inexecu-
cia dos ajustes internacionais. ção de um compromisso que assumira para
Quiseram subordinar o Executivo ao execução imediata.
Legislativo em matéria de política exterior, E tudo sem ponderar a repercussão ine-
não permitindo assuma o Brasil quaisquer vitável de tais acordos no campo orçamen-
responsabilidades, na ordem internacional, tário, de competência legislativa anual.
sem o consentimento do Congresso. A doutrina exposta por Hildebrando
Aliás, o critério proposto por Hildebran- Accioly está ligada, qual ele próprio o con-
do Accioly, de distinguir entre os tratados fessa, ao direito doutros povos, em especi-
que versassem matéria exclusiva do Poder al, ao dos Estados Unidos.
Legislativo e matéria ‘privativa’ do Poder (...)” 21.
Executivo, levaria a sérias dificuldades em
assunto que deve ser preciso, dada sua al- Accioly replicaria, em número ulterior do
tíssima relevância: validade de atos inter- Boletim da Sociedade Brasileira de Direito
nacionais firmados pelo Brasil. Internacional:
É ‘exclusiva’ do Poder Legislativo, além
das atribuições básicas referentes à admi- “(...)
nistração federal propriamente dita, espe- Os fatos indicam que nunca se enten-
cificadas no artigo 65, I a VIII (orçamento, deu, entre nós, que a aprovação do Con-
tributos, dívidas públicas, cargos públicos gresso Nacional era necessária ou, melhor,
e vencimentos, operações de crédito e emis- indispensável ‘para quaisquer atos bilaterais
sões, fixação de forças, transferência de sede internacionais’.
do Governo Federal, limites do território Ainda no regime da Constituição de
nacional), toda a legislação concernente a 1891 – que era, nesse ponto, talvez mais
bens do domínio federal e a ‘todas as maté- exigente do que as posteriores, pois não se
rias da competência da União’, art. 65, IX, limitava a mencionar tratados e convenções,
art. 5o, I a XV, letra a a r; etc. falando também em ajustes –, numerosos
É todo o âmbito do Governo Federal. são os acordos bilaterais concluídos pelo
(...) Governo brasileiro com Governos estrangei-
Será possível considerar a matéria de ros e que vigoraram sem o preenchimento
um acordo daquela natureza ‘privativa’ do daquela condição. Percorra-se, por exem-
Poder Executivo? plo, o Código das Relações Exteriores, pu-
Para isto seria preciso fixar um limite à blicado em 1900, e lá se encontrarão vários
atividade legislativa no assunto, estabele- exemplos de tais acordos.
cendo-se que, a partir de um certo marco, a (...)
atribuição de estabelecer normas sobre a De datas posteriores a 1900, mas ainda
dívida pública federal cessaria para o Po- sob a vigência da Constituição de 1891,
der Legislativo e começaria, privativamen- poderíamos mencionar vários outros exem-
te, para o Poder Executivo. plos, inclusive alguns acordos para a de-
Tal distinção, separação de atribuições marcação de fronteiras e outros sobre a tro-
com esse caráter, inexiste no direito consti- ca de correspondência diplomática em ma-
tucional brasileiro. las especiais.
Se se quisesse, porém, ter em vista, em A opinião de João Barbalho, embora das
cada lei, a parte deixada à execução e à mais respeitáveis, não impediu a prática
regulamentação do Poder Executivo e, pois, acima referida, sem que, aliás, se confir-
parte sem fronteiras ‘privativas’ a depen- massem os receios do eminente comenta-
der da própria lei – nesse mesmo caso seria dor de nossa primeira Constituição repu-
perigoso admitir fizesse o Presidente acor- blicana. Por outro lado, custa-nos crer que
dos, ajustes, tratados ou convenções com o nosso Poder Executivo, ou melhor, o Pre-
Estados estrangeiros no exercício de um sidente da República, não tenha noção dos
poder, o regulamentar, diretamente subor- ‘altos interesses nacionais’ e fosse compro-
dinado ao Legislativo, que, a cada momen- metê-los em matéria atinente à sua competên-

128 Revista de Informação Legislativa


cia privativa, ao tratar, por intermédio de tabelece, primeiramente, o princípio de que
seus agentes, com países estrangeiros. os três Poderes pelos quais se dividem as
A declaração de que os constituintes atividades do Estado ‘são independentes e
brasileiros ‘quiseram subordinar o Executi- harmônicos entre si’. Depois, indica o que
vo ao Legislativo, em matéria externa’, ca- compete privativamente a cada um. Evi-
rece de provas. E não se justificaria. dentemente, haverá pontos de contacto nes-
Em toda parte, até nos países de regi- sas competências; mas parece-nos possível
me parlamentar, a política externa é ação distinguir sempre a que Poder cada uma
confiada precipuamente ao Chefe da Na- delas pertence.
ção ou do Governo e a seu órgão especial (...)
para esse fim, que é o Ministro das Relações Relativamente à prática nacional, já
Exteriores ou dos Negócios Estrangeiros. Por mostramos que foi freqüente, no sentido
isso, costuma dizer-se que o Chefe do Esta- indicado, durante a vigência da Constitui-
do é quem representa este perante os países ção de 1891. Depois, sob a de 1934 (que
estrangeiros e que o dito Ministro é o seu durou, apenas, pouco mais de três anos) e
mandatário direto para a direção dos servi- a de 1946, podemos referir mais, entre ou-
ços relativos às relações exteriores. tros, os seguintes casos:
Onde funciona o sistema parlamentar, (...)
poderá alegar-se que a orientação da políti- Parece deva ser aqui acrescentado um
ca externa depende da maioria do parla- caso correlato, talvez pouco conhecido, o
mento; mas, ainda aí, quem a executa é, qual não é propriamente o da ausência de
necessariamente, o órgão ordinário dos ne- aprovação legislativa e conseqüente ratifi-
gócios estrangeiros, ou seja, o ministro da cação de tratado ou convenção, mas o de
pasta que destes se incumbe. antecipação de sua execução, determinada
Como quer que seja, no sistema presi- por motivo de força maior. Trata-se de um
dencial, a situação é outra: a responsabili- fato que não ocorre somente no Brasil, mas
dade pela orientação e execução da política também em outros países. É o que sucede
externa cabe simplesmente ao Poder Exe- com certas convenções multilaterais, de ca-
cutivo. ráter técnico ou administrativo, que estabe-
Em nossa Constituição de 1946 (art. 87, lecem data fixa para sua entrada em vigor.
VI) está dito claramente que ‘compete pri- O melhor exemplo disso nos é dado
vativamente ao Presidente da República’: pelas convenções da União Postal Univer-
‘manter relações com Estados estrangeiros’. sal, que, em geral, determinam sua entrada
A circunstância de ser a nomeação dos em vigor numa data fixada à distância de
chefes de missão diplomática sujeita à cerca de um ano após o encerramento do
aprovação do Senado não significa, abso- Congresso que as elabora, e dispõem que a
lutamente, que este deva dirigir a política partir dessa data os atos postais anteriores
exterior do país. Ao Senado também cabe, ficam revogados.
por exemplo, a aprovação da nomeação dos Como essas convenções exigem tempo
Ministros do Supremo Tribunal Federal, demorado para a sua tradução em portu-
sem que isto possa importar na menor in- guês e como sua tramitação também é len-
terferência de nossa Câmara alta na ação ta, no Congresso Nacional, o Departamen-
do mais alto órgão judiciário da República. to dos Correios e Telégrafos vê-se sempre
O argumento de que aos autores da forçado a dar início à sua execução, entre
Constituição de 1891 e aos intérpretes da- nós ou nas relações com os demais países
quele documento nunca ocorreu o critério da União Postal Universal, muito antes de
da competência privativa dos órgãos cons- sua aprovação e de sua ratificação. A este
titucionais na celebração de acordos inter- propósito, baste-nos mencionar que, à data
nacionais não tem a importância pretendi- em que estamos escrevendo (2-VII-1953), a
da. Ainda que se comprove sua exatidão, convenção principal e demais atos do Con-
isto não quererá dizer que tal critério seja gresso da União Postal Universal realizado
inaceitável, nem o fato alegado impediu em Paris em 1952 já começaram a ser exe-
fosse o dito critério seguido várias vezes. cutados universalmente e, no entanto, entre
Não nos parece mais procedente a ale- nós, ainda não puderam ser submetidos ao
gação da dificuldade em distinguir a com- Congresso Nacional, por se não haver ain-
petência privativa do Poder Executivo da da concluído a respectiva tradução, feita
competência exclusiva do Poder Legislativo. pelo órgão administrativo competente.
Realmente, a Constituição Federal es- (...)

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 129


A tese da competência privativa é per- Muitas vezes se viu tratar a prática dos
feitamente razoável. Se a matéria de um acordos executivos como uma imperiosa
acordo é das que cabem peculiarmente den-
tro das atribuições constitucionais do Po-
necessidade estatal, a ser escorada, a todo
der Executivo, e dado que a este é que com- preço, pela doutrina. Os argumentos meta-
pete o exercício das relações com outros Go- jurídicos que serviram de apoio a essa tese
vernos, não há por que se lhe deva negar a enfatizavam a velocidade com que se pas-
autoridade para celebrar o dito acordo e sam as coisas na política internacional con-
pô-lo em vigor, sem intervenção do Poder
Legislativo.
temporânea, diziam da importância das
(...) decisões rápidas, enalteciam o dinamismo
Seja como for, o que principalmente e a vocação simplificadora dos governos,
desejávamos era esclarecer que, entre nós, o deplorando, por contraste, e, finalmente, a
costume já de muitos anos – ainda que se lentidão e a obstrutiva complexidade dos
pretenda estabelecido extra legem – é o de
não se exigir a aprovação do Congresso
trabalhos parlamentares. Não se sabe o que
Nacional para certos atos internacionais, e mais repudiar nesse repetido discurso, se o
mostrar que, nisto, acompanhamos a cor- que tem de frívolo ou o que tem de falso. O
rente moderna e a melhor doutrina.”22 suposto ritmo trepidante do labor conven-
cional, nas relações internacionais contem-
2. O regime constitucional de 1988
porâneas, seria fator idôneo à tentativa de
A Constituição brasileira vigente diz ser inspirar o constituinte, nunca à pretensão
da competência exclusiva do Congresso de desafiá-lo. Por outro lado, é inexata e ar-
Nacional “resolver definitivamente sobre bitrária a assertiva de que os parlamentos,
tratados, acordos ou atos internacionais que em geral, quando vestidos de competência
acarretem encargos ou compromissos gra- para resolver sobre tratados, tomem nisso
vosos ao patrimônio nacional”, sendo que maior tempo regular que aquele dispendi-
ao Presidente incumbe “celebrar tratados, do pelos governos – também em geral – para
convenções e atos internacionais, sujeitos a formar suas próprias decisões definitivas a
referendo do Congresso Nacional”23. respeito, mesmo que não considerado o pe-
A Carta não inova substancialmente por ríodo de negociação, em que agentes destes
mencionar encargos, etc: não há compromis- – e não daqueles – já conviviam com a maté-
so internacional que não os imponha às ria em processo formativo. Toda pesquisa
partes, ainda que não pecuniários. Ela pre- por amostragem permitirá, neste país, e não
serva, ademais, a redundância terminológi- apenas nele, concluir que a demora eventu-
ca, evitando qualquer dúvida sobre o pro- al do Legislativo na aprovação de um trata-
pósito abrangente do constituinte. Uma exe- do é companheira inseparável da indiferen-
gese constitucional inspirada na experiên- ça do próprio Executivo em relação ao an-
cia norte-americana – e em quanto ali se pro- damento do processo; e que o empenho real
moveu a partir da compreensão restritiva do governo pela celeridade, ou a importân-
do termo treaties –, se não de todo inglória cia da matéria, tendem a conduzir o parla-
no Brasil republicano anterior, tornou-se mento a prodígios de expediência24.
agora (ou mais exatamente desde o regime Juristas da consistência de Hildebrando
constitucional de 1967-1969) impensável. Accioly e de João Hermes Pereira de Araújo
Concedendo-se, pois, que tenha Accioly abo- não escoraram, naturalmente, seu pensa-
nado, a seu tempo, uma prática estabeleci- mento em considerações do gênero acima
da extra legem, é provável que tal prática, na referido. Nem se pode dizer que tenham to-
amplitude com que tenciona convalidar mado por arma, na defesa da prática dos
acordos internacionais desprovidos de toda acordos executivos, o entendimento restriti-
forma de consentimento parlamentar, não vo da fórmula “tratados e convenções”, num
se possa hoje defender senão contra legem. exercício hermenêutico à americana. O gran-

130 Revista de Informação Legislativa


de argumento de que se valeram, na reali- Lembraram os deputados Flávio Mar-
dade, foi o do costume constitucional, que se cílio e Henrique Turner o texto constitucio-
nal, que dá competência exclusiva ao Con-
teria desenvolvido, entre nós, temperando a gresso Nacional para resolver definitiva-
fria letra da lei maior. mente sobre os tratados, convenções e atos
Parece, entretanto, que a gênese de nor- internacionais celebrados pelo Presidente da
mas constitucionais costumeiras, numa or- República, não importando que título te-
dem jurídica encabeçada por constituição nham tais documentos.
Revelou Flávio Marcílio o interesse da
escrita – e não exatamente sumária ou con- Marinha em que os acordos de pesca fos-
cisa –, pressupõe o silêncio, ou no mínimo a sem ratificados pelo Congresso Nacional,
ambigüidade do diploma fundamental. As- em contraposição à opinião dominante do
sim, a Carta se omite de abordar o desfazi- Itamaraty, pelo não-envio deles ao Legisla-
mento, por denúncia, de compromissos in- tivo sob o argumento de que sua aprova-
ção seria muito demorada.
ternacionais, e de partilhar a propósito a Henrique Turner acentuou que, no caso
competência dos poderes políticos. Permite do acordo de Roboré, o governo alegara que
pois que um costume constitucional preen- se tratava ‘apenas de notas reversais’, mas
cha – com muita nitidez, desde 1926 – o es- acabou remetendo seu texto ao Congresso,
paço normativo vazio. Tal não é o caso no para que se soubesse se era realmente um
tratado ou realmente ‘notas reversais’.
que tange à determinação do poder conven- O deputado paulista admitiu a hipóte-
cional, de cujo exercício a Carta, expressa e se de o Itamaraty não ter ainda encaminha-
quase que insistentemente, não quer ver ex- do o acordo ao Congresso, talvez por não
cluído o poder Legislativo. Não se pode com- lhe interessar a divulgação antes de serem
preender, portanto, e sob risco de fazer ruir concluídos entendimentos idênticos com ou-
tros países, como ocorreu recentemente com
toda a lógica jurídica, a formação idônea de os Estados Unidos.
um costume constitucional contra a letra da De qualquer maneira, mesmo com essa
Constituição. tentativa de explicação, a Comissão deci-
A própria realidade do elemento psico- diu, por unanimidade, sustar a votação do
lógico de qualquer costume é, no caso, mui- voto de aplauso e congratulação, proposto
pelo Deputado Marcelo Linhares, até que o
to discutível. Não há opinio juris onde, como Ministério das Relações Exteriores forneça
no Itamaraty, a sombra da dúvida, que se à Câmara os necessários esclarecimentos so-
projetava, em seu tempo, sobre o espírito de bre a matéria”25.
Raul Fernandes, marca ainda incômoda
presença. Está claro que os acordos executi- 3. Constituição e acordos executivos:
vos, até hoje celebrados sob o pálio doutri- juízo de compatibilidade
nário de Accioly, expõem-se à luz plena do
conhecimento: publica-os o Diário Oficial da Sobre a premissa de que um costume
União, e lêem-nos os membros do Congresso. constitucional se pode desenvolver em afron-
Mas o silêncio usual não perfaz a opinio juris, ta à literalidade da lei maior, os patrocina-
além de se ver quebrado vez por outra. dores contemporâneos da prática do acor-
Na edição de 25 de maio de 1972, à do executivo, no Brasil, prosseguem fiéis ao
página 3, o jornal O Estado de S. Paulo es- rol permissivo lavrado sob a vigência da
tampou esta notícia: Carta de 1946. Na lógica, na observação de
“O voto de aplauso ao Chanceler Gibson outros modelos nacionais, na própria expe-
Barbosa, sugerido pelo Deputado Marcelo
Linhares à Comissão de Relações Exterio- riência local – não na Constituição –, pre-
res da Câmara, pelo êxito brasileiro na assi- tendem encontrar base para sua lista de
natura do acordo de pesca com Trinidad- tratados consumáveis sem consulta ao Con-
Tobago, foi sustado pela unanimidade dos gresso. Não é de estranhar, assim, que a lista
membros daquele órgão técnico, sob a ale-
gação ‘de desconhecimento oficial do texto
seja encabeçada justamente por seus dois tó-
aprovado’. picos indefensáveis – visto que, quanto a eles,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 131


nenhuma acomodação aos preceitos da lei dão que seria insensato assumir compro-
fundamental se pode conceber. Trata-se dos missos externos em área normativa subor-
acordos “sobre assuntos que sejam da com- dinada, por excelência, ao próprio Congres-
petência privativa do poder Executivo”, e so, que a todo tempo “poderia alterar a lei
daqueles “concluídos por agentes que tenham passível de regulamento”. Idêntico raciocí-
competência para isso, sobre questões de in- nio proscreve a conclusão de acordos exe-
teresse local ou de importância restrita”, que cutivos naquele domínio em que a lei for-
compõem as alíneas a e b do rol de Accioly26. mal tenha autorizado o governo à ação ad-
Tão nebulosa é a segunda categoria – ministrativa discricionária – concessão de
sobre a qual não se produziram fundamen- licenças de pesca ou pesquisa mineralógi-
tos teóricos, senão exemplos avulsos – que ca, entre outros temas comuns –, porque a
melhor parece não discuti-la em abstrato, mutabilidade da lei seria incompatível com
sobretudo à vista da probabilidade de que o vínculo assumido ante soberania estran-
não constitua mais que extensão periférica geira. O quadro é, na essência, diverso da-
da primeira. Esta, por seu turno, vem a ser quele em que o Congresso norte-americano,
uma versão da terceira categoria norte-ame- por lei, expressamente autoriza o governo a
ricana de executive agreements, concebida em pactuar com nações estrangeiras sobre de-
termos menos precisos que os do modelo. A terminada matéria. Nesse caso, a estabili-
adaptação, de todo modo, resulta impossí- dade dos tratados resultará garantida pela
vel: no Brasil, os poderes constitucionais que própria lei, conscientemente elaborada para
revestem o Executivo são por este ampla- servir de base ao comprometimento exterior.
mente exercitáveis à luz singular da ordem Mais grave parece o fenômeno da com-
jurídica nacional, mesmo no que tange ao placência perante os acordos executivos, em
relacionamento diplomático ordinário. nações cuja ordem constitucional não os
Quando se cuide, porém, de legislar inter- abona em princípio, quando se verifica que,
nacionalmente, de envolver no contexto ou- a propósito, o padrão norte-americano, mal
compreendido alhures, conduziu ou pro-
tra soberania, assumindo perante esta com- pende a conduzir a conclusões e a práticas
promissos regidos pelo Direito das Gentes, alarmantes. Descrevendo o entendimento
e apoiados na regra pacta sunt servanda, não oficial dessa questão na Argentina, Juan
há como agir à revelia da norma específica, Carlos Puig dá como pacífico que o que
que exige a combinação da vontade dos dois pode o governo, ali, resolver por decreto, é
matéria idônea para fazer objeto de acordo
poderes políticos, independentemente da executivo27.
importância do tratado ou de qualquer ou- No Brasil, como noutras nações de regi-
tro elemento quantitativo. me republicano presidencialista, o poder
Executivo repousa nas mãos do chefe de
Não é ocioso lembrar quanto se encon-
Estado, a quem o ministério serve como um
tram já ampliados os poderes reais do Exe-
corpo de auxiliares, na expressiva lingua-
cutivo, neste domínio, pela interposição dos
gem da lei fundamental28. Os poderes cons-
entes parestatais dotados de personalida-
titucionais privativos do governo são aque-
de jurídica de direito privado – e hábeis,
les que a Carta vigente atribui no artigo 84
assim, para contratar com seus congêneres
no exterior, e mesmo com Estados estran- ao Presidente da República, como exercer a
geiros, sob a autoridade política do gover- direção superior da administração federal,
no, e sem controle parlamentar. iniciar o processo legislativo, ou vetar pro-
jetos de lei. É importante observar que a com-
Por certo que a alegada competência pri- petência para celebrar “tratados, convenções
vativa do governo não pretende confundir- e atos internacionais” se inscreve nessa mes-
ma lista, só que acrescida do vital comple-
se com o poder regulamentar, e buscar legi-
mento “…sujeitos a referendo do Congresso
timidade nas leis votadas pelo Congresso. Nacional”. Não há, dessarte, como fugir à
Se assim fosse, tampouco haveria lugar para norma específica, a pretexto de que o tema
acordos executivos no setor: lembrou Valla- do ato internacional compromissivo pode

132 Revista de Informação Legislativa


inscrever-se noutro inciso da relação. Assim que nele se exprimem, abona o Congresso
fosse e nos defrontaríamos com uma pers- desde logo os acordos de especificação, de
pectiva convencional gigantesca, além de
tangente de pontos os mais sensíveis do po-
detalhamento, de suplementação, previstos
der político. O Presidente da República, por no texto e deixados a cargo dos governos
sua singular autoridade constitucional, no- pactuantes.
meia e destitui livremente os ministros de
Dir-se-á que o acordo executivo, sub-
Estado, bem como exerce o comando supre-
produto evidente de acordo anterior apro-
mo das Forças Armadas29. Ninguém, contu-
vado pelo Congresso, escapa assim ao re-
do, o estimará por isso autorizado a celebrar
clamo constitucional de uma análise do seu
acordos executivos, por hipótese, com o
texto acabado, implícito na fórmula ad refe-
Equador e com a Santa Sé, partilhando tem-
rendum. Ao contrário, porém, de toda exi-
porariamente aquele comando supremo, e
gência legal de condição prévia – que em
condicionando a escolha e a dispensa de
princípio não se pode suprir com a respec-
ministros ao parecer da Cúria Romana.
tiva satisfação a posteriori –, a exigência do
Apesar de tudo, o acordo executivo – se referendo pode perfeitamente dar-se por
assim chamamos todo pacto internacional suprida quando ocorre a antecipação do
consentimento. Desnecessário lembrar que,
carente da aprovação individualizada do nesse caso, a eventual exorbitância no uso
Congresso – é uma prática convalidável do consentimento antecipado encontra re-
desde que, abandonada a idéia tortuosa dos médio corretivo nos mais variados ramos
assuntos da competência privativa do governo, do direito, e em todas as ordens jurídicas.
busque-se encontrar na lei fundamental a Nos exemplos seguintes observa-se, pri-
sua sustentação jurídica. meiro, a previsão convencional de acordos
Três entre as cinco categorias arroladas executivos, e em seguida a conformação vin-
por Accioly são compatíveis com o preceito culada destes últimos.
constitucional: os acordos “que consignam
simplesmente a interpretação de cláusulas a) No acordo Brasil-Marrocos sobre
transportes aéreos regulares (Brasília, 1975),
de um tratado já vigente”, os “que decor- aprovado pelo Decreto Legislativo 86/75:
rem, lógica e necessariamente, de algum tra- “Art. VIII – 1. Cada Parte Contratante
tado vigente e são como que o seu comple- poderá promover consultas com as autori-
mento” e os de modus vivendi, “quando têm dades aeronáuticas da outra Parte para in-
em vista apenas deixar as coisas no estado terpretação, aplicação ou modificação do
Anexo ao presente Acordo ou se a outra
em que se encontram, ou estabelecer sim- Parte Contratante tiver usado da faculda-
ples bases para negociações futuras”30. Os de prevista no Artigo III.
primeiros, bem assim estes últimos, inscre- 2. Tais consultas deverão ser iniciadas
vem-se no domínio da diplomacia ordiná- dentro do prazo de 60 (sessenta) dias a con-
ria, que se pode apoiar em norma constitu- tar da data da notificação do pedido res-
pectivo.
cional não menos específica que aquela re- 3. Quando as referidas autoridades ae-
ferente à celebração de tratados. Os inter- ronáuticas das Partes Contratantes concor-
mediários se devem reputar, sem qualquer darem em modificar o Anexo ao presente
acrobacia hermenêutica, cobertos por pré- Acordo, tais modificações entrarão em vi-
vio assentimento do Congresso Nacional. gor depois de confirmadas por troca de no-
tas, por via diplomática.”
Isso demanda, porém, explicações maiores. No Acordo básico de cooperação técni-
ca Brasil-Itália (Brasília, 1972), aprovado
O acordo executivo como subproduto de pelo Decreto Legislativo 31/73:
tratado vigente “Artigo I
4. (...) Os programas de cooperação se-
Nesse caso a aprovação congressional,
rão executados em conformidade com os
reclamada pela Carta, sofre no tempo um entendimentos técnicos que forem estabele-
deslocamento antecipativo, sempre que, ao cidos entre as autoridades qualificadas para
aprovar certo tratado, com todas as normas tanto. Esses entendimentos passarão a ter

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 133


força executiva na data em que forem con- A constitucionalidade do acordo execu-
firmados por troca de notas, as quais pas- tivo que, em razão do disposto em tratado
sarão a constituir Ajustes Complementa-
res ao presente Acordo.”
antes aprovado pelo Congresso, aparece
No Acordo Brasil-Colômbia sobre usos como subproduto daquele, não pode ser co-
pacíficos da energia nuclear (Bogotá, 1981), locada em dúvida. Essa tese é, no mínimo,
submetido ao Congresso pela Mensagem compatível com quanto preceitua o artigo
131/81 do Presidente da República: 84 da Carta de 1988. Dessarte, serve o costu-
“Art. 4. A fim de dar cumprimento à
cooperação prevista neste Instrumento, os
me para convalidá-la.
órgãos designados de conformidade com O Congresso, ademais, tem perfeita ci-
os termos do Artigo I, parágrafo 2, celebra- ência do assentimento prévio que confere a
rão Acordos Complementares de Execução, esses acordos antevistos na literalidade de
nos quais serão estabelecidas as condições um pacto submetido a seu exame. E se, por-
e modalidades específicas de cooperação,
incluindo a realização de reuniões técnicas
ventura, não deseja no caso concreto abdi-
mistas para estudo e avaliação de progra- car do controle individualizado de todos os
mas.” subprodutos ali enunciados, procede como
b) No Ajuste complementar ao Acordo quando aprovou o Acordo básico de coope-
básico de cooperação técnica Brasil-R. F. da ração Brasil-Líbia:
Alemanha, concluído por troca de notas,
em 5 de maio de 1981: “Decreto Legislativo no 23, de 1981.
“Senhor Embaixador, Aprovo o texto do Acordo Básico de
Tenho a honra de acusar recebimento Cooperação entre a República Federativa
da nota (...) datada de hoje, cujo teor em do Brasil e a Jamairia Árabe Popular Socia-
português é o seguinte: lista da Líbia, celebrado em Brasília, a 30
‘Senhor Ministro, de junho de 1978.
Com referência à nota (...) de 17 de abril Art. 1o – Fica aprovado o texto do Acor-
de 1979, bem como em execução do Acordo do Básico de Cooperação entre a República
Básico de Cooperação Técnica, de 30 de no- Federativa do Brasil e a Jamairia Árabe
vembro de 1963, concluído entre os nossos Popular Socialista da Líbia, celebrado em
dois Governos, tenho a honra de propor a Brasília, a 30 de junho de 1978.
Vossa Excelência, em nome do Governo da Art. 2 o – Todas as emendas ou altera-
República Federal da Alemanha, o seguinte ções introduzidas no texto referido no arti-
Ajuste sobre o desenvolvimento de processo go anterior só se tornarão eficazes e obriga-
bioquímico contra a ferrugem no cafeeiro. tórias para o País após a respectiva apro-
(...)’ (H.J.S.). vação pelo Congresso Nacional.
(...)” (R.S.G.). Art. 3o – Este decreto legislativo entrará
No Ajuste complementar ao Acordo de em vigor na data de sua publicação.
cooperação científica e tecnológica Argenti- Senado Federal, em 09 de junho de 1981.
na-Brasil, lavrado em instrumento único e Senador Jarbas Passarinho
vigente à data da assinatura (Brasília, 15 Presidente.”
de agosto de 1980):
“O Governo da República Federativa do
Brasil
O acordo executivo como expressão de
e diplomacia ordinária
O Governo da República Argentina
Animados do desejo de desenvolver a Precedendo o inciso que se refere à cele-
cooperação científica e tecnológica, com
bração de “tratados, convenções e atos in-
base no Artigo II do Acordo de Cooperação
Científica e Tecnológica, firmado em Bue- ternacionais, sujeitos a referendo do Con-
nos Aires a 17 de maio de 1980, e gresso Nacional”, o artigo 84 da Constitui-
Reconhecendo a importância da coope- ção encerra um inciso apartado que diz ser
ração no campo das comunicações para
da competência privativa do Presidente da
promover o desenvolvimento econômico e
industrial, República “manter relações com os Estados
Acordam o seguinte: estrangeiros”. Nesse dispositivo tem sede a
(...)” (R.S.G.) (O.C.). titularidade, pelo governo, de toda a dinâ-

134 Revista de Informação Legislativa


mica das relações internacionais: incumbe- sim substantivo, e destinado à análise do
lhe estabelecer e romper, a seu critério, rela- Congresso. Acordos interpretativos, a seu
ções diplomáticas, decidir sobre o intercâm- turno, não representam outra coisa que o
bio consular, sobre a política de maior apro- desempenho do dever diplomático de en-
ximação ou reserva a ser desenvolvida ante tender adequadamente – para melhor apli-
determinado bloco, sobre a atuação de nos- car – um tratado concluído mediante endos-
sos representantes no seio das organizações so do parlamento.
internacionais, sobre a formulação, a acei- Deve-se haver, entretanto, como pedra de
tação e a recusa de convites para entendi- toque na identificação dos acordos executi-
mentos bilaterais ou multilaterais tenden- vos inerentes à diplomacia ordinária, e por
tes à preparação de tratados. Enquanto não isso legitimáveis à luz do inciso VII do artigo
se cuide de incorporar ao direito interno um 84 da lei fundamental, o escrutínio de dois
texto produzido mediante acordo com po- caracteres indispensáveis: a reversibilidade e
tências estrangeiras, a auto-suficiência do a preexistência de cobertura orçamentária.
poder Executivo é praticamente absoluta31. Esses acordos devem ser, com efeito, des-
Também no referido inciso – cuja auto- constituíveis por vontade unilateral, expres-
nomia em relação ao referente a tratados sa em comunicação à outra parte, sem de-
merece destaque – parece repousar a autori- longas – ao contrário do que seria normal
dade do governo para a conclusão de com- em caso de denúncia. De outro modo – ou
promissos internacionais terminantemente seja, se a retratação unilateral não fosse há-
circunscritos na rotina diplomática, no re- bil a operar prontamente –, o acordo esca-
lacionamento ordinário com as nações es- paria às limitações que o conceito de rotina
trangeiras. Não seria despropositado, mas diplomática importa. Por igual motivo, deve
por demais rigoroso, sustentar que a opção a execução desses acordos depender unica-
pelo procedimento convencional desloca o mente dos recursos orçamentários alocados
governo de sob o pálio desse inciso lançan- às relações exteriores, e nunca de outros.
do-o no domínio da regra seguinte, e obri- São muitos os exemplos de acordos exe-
gando-o à consulta parlamentar. Dir-se-ia cutivos celebrados pelo governo brasileiro
então que, livre para decidir unilateralmen- – na pessoa do ministro das Relações Exte-
te sobre qual a melhor interpretação de cer- riores ou de chefe de missão diplomática,
to dispositivo ambíguo de um tratado em nas mais das vezes –, e caracterizáveis como
vigor, ou sobre como mandar proceder em expressão da atividade diplomática ordiná-
zona de fronteira enquanto não terminam ria, coberta por inciso autônomo do artigo
as negociações demarcatórias da linha li- 84 da Constituição em vigor. Alguns deles:
mítrofe em causa, ou sobre a cumulativida- Acordo Brasil-Uruguai sobre turismo,
de de nossa representação diplomática em concluído por troca de notas, em Brasília,
duas nações distantes, ou ainda sobre quan- em 11 de setembro de 1980:
tos escritórios consulares poderão ser aber- “Senhor Ministro,
tos no Brasil por tal país amigo, o governo Tenho a honra de dirigir-me a Vossa
Excelência com relação ao intercâmbio tu-
decairia dessa discrição, passando a depen-
rístico entre a República Federativa do Bra-
der do abono congressional, quando enten- sil e a República Oriental do Uruguai, cujo
desse de regular qualquer daqueles temas volume experimentou um crescimento cons-
mediante acordo com Estado estrangeiro. O tante nos últimos anos.
rigor não elide a razoabilidade dessa tese, 2. Esta circunstância requer uma per-
manente adequação das normas aplicáveis
que não é, contudo, a melhor. Acordos como
para facilitar e promover o normal desen-
o modus vivendi e o pactum de contrahendo volvimento do turismo recíproco.
nada mais são, em regra, que exercício di- 3. Contudo, as normas que regulam a
plomático preparatório de outro acordo, este referida atividade, ou que de alguma ma-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 135


neira sobre ela incidem, referem-se atual- Sobre o assunto, tendo em vista que a
mente a temas específicos e conexos, como citada Comissão Especial deve finalizar seu
migrações, transportes, alfândega e outros, trabalho antes do dia 18 de junho de 1981,
cuja harmonia normativa é necessário lo- e que, não obstante haver avançado signifi-
grar para estimular as correntes turísticas cativamente na tarefa que lhe foi cometida,
entre nossos países. restam a precisar certos aspectos do Con-
4. Para tal fim, e com o objetivo de vênio, tenho a honra de manifestar a con-
harmonizar no maior grau possível as dis- cordância do Governo da República Argen-
posições que regulam o desenvolvimento tina com o de Vossa Excelência, em esten-
do intercâmbio turístico brasileiro-uruguaio der por 180 dias adicionais, a partir desta
e de consubstanciar num instrumento jurí- data, o prazo fixado para a conclusão das
dico a aspiração que nos é comum, é neces- tarefas da Comissão Especial.
sário concertar a adoção de medidas ade- A presente nota e a de resposta de Vos-
quadas para lograr um acordo de caráter sa Excelência, de mesma data e igual teor,
integral sobre facilitação do turismo. constituirão um acordo entre ambos os Go-
5. Para tanto, o Governo brasileiro con- vernos, que entrará em vigor no dia de hoje.
corda com o de Vossa Excelência em cele- (...)’ (R.A.R.).
brar o referido acordo, o qual seria concluí- 2. Em resposta, comunico a Vossa Se-
do como resultado do seguinte procedimen- nhoria que o Governo brasileiro concorda
to prévio: com a proposta de prorrogação de prazo
1. Criar uma Comissão ad hoc que terá contida na nota, a qual, com a presente,
a seu cargo os estudos prévios correspon- constitui acordo entre os dois Governos, a
dentes e a redação de um projeto de convê- entrar em vigor na data de hoje.
nio para a facilitação do turismo entre a (...)” (R.S.G.)33.
República Federativa do Brasil e a Repúbli- Acordo Brasil-Malásia sobre estabele-
ca Oriental do Uruguai. cimento de escritório comercial, concluído
2. A Comissão será integrada por fun- por troca de notas, em Brasília, em 15 de
cionários designados por cada uma das Par- outubro de 1981:
tes. “Senhor Embaixador,
3. A Comissão deverá finalizar os estu- Tenho a honra de levar ao conhecimen-
dos prévios e redigir o pertinente projeto de to de Vossa Excelência que o Governo bra-
acordo antes do dia 1o de janeiro de 1981. sileiro concorda em que seja mantido na
6. A presente Nota e a de Vossa Exce- cidade de São Paulo um escritório da Fede-
lência de mesma data e idêntico teor consti- ração da Malásia para fins comerciais, nas
tuem um acordo entre nossos Governos, o seguintes condições:
qual entrará em vigor a partir do dia de hoje. a) o escritório, designado como Escritó-
(...)” (R.S.G.)32. rio Comercial da Federação da Malásia,
Acordo Argentina-Brasil sobre trans- constituirá uma seção dos serviços comer-
portes marítimos, concluído por troca de ciais da Embaixada da Malásia no Brasil;
notas, em Brasília, em 18 de junho de 1981: b) o Escritório Comercial terá exclusiva
“Senhor Encarregado de Negócios, função de fomentar o intercâmbio comerci-
Tenho a honra de acusar recebimento al entre o Brasil e a Federação da Malásia e
da nota n o 192, de 18 de junho de 1981, promover os interesses comerciais desta úl-
relativa às negociações de novo Convênio tima no Brasil, não podendo, entretanto,
sobre Transporte Marítimo entre o Governo praticar atos de comércio;
da República Federativa do Brasil e o Go- c) as instalações do Escritório Comerci-
verno da República Argentina, cujo teor em al, bem como sua correspondência, goza-
português é o seguinte: rão do privilégio de inviolabilidade;
‘Senhor Ministro, d) os funcionários de nacionalidade
Tenho a honra de dirigir-me a Vossa malásia que vierem a servir no Escritório
Excelência, com referência ao Acordo, por Comercial em São Paulo serão considera-
troca de notas, celebrado nesta cidade no dos um acréscimo ao número total dos fun-
dia 20 de agosto último, mediante o qual cionários da Embaixada da Federação da
nossos Governos criaram uma Comissão Malásia no Brasil;
Especial encarregada de preparar texto de (...)
um projeto de convênio sobre transporte ma- 2. Fica assegurada pelo Governo da
rítimo, que consolide e atualize as disposi- Federação da Malásia reciprocidade de tra-
ções que regulam o citado transporte. tamento ao Governo brasileiro caso este ve-

136 Revista de Informação Legislativa


nha a solicitar o estabelecimento de Escritó- O Protocolo preliminar Bolívia-Brasil
rio da mesma natureza na Federação da sobre navegação fluvial do Amazonas, fir-
Malásia. mado em La Paz, em 29 de março de 1958,
3. A presente nota e a respectiva res- com que se pôs a funcionar certa comissão
posta de Vossa Excelência, de igual teor, mista para estudos e sugestões, teria sido
constituirão um Acordo sobre a matéria celebrável pela autoridade dos dois gover-
entre os Governos do Brasil e da Federação nos, não importasse despesas de algum vul-
da Malásia, o qual entrará em vigor na data to na época. Como conseqüência disso, foi
de recebimento da nota de resposta. submetido ao Congresso, que o aprovou
(...)” (R.S.G.)34. pelo Decreto Legislativo 4/61.
Acordo Argentina-Brasil sobre identifi- O Acordo Brasil-FAO sobre estabeleci-
cação de limites, concluído por troca de no- mento de escritório da organização em Bra-
tas, em Buenos Aires, em 16 de setembro sília (Roma, 1979) não difere, em natureza,
de 1982: daquele acordo Brasil-Malásia citado no
“Senhor Ministro, item precedente, e consumado pelos dois
Tenho a honra de dirigir-me a Vossa governos. Aqui, porém, a necessidade do
Excelência para referir-me à conveniência abono do Congresso – que o aprovou pelo
de melhorar a identificação do limite de nos- Decreto Legislativo 122/80 – explica-se à
sos países, no trecho do rio Uruguai, que leitura do artigo IV:
compreende os grupos de ilhas Chafariz “O Governo, através do Ministério da
(argentinas) e Buricá ou Mburicá (brasilei- Agricultura, prestará assistência ao esta-
ras), tendo em conta que as citadas ilhas, belecimento e efetivo funcionamento do Es-
por sua situação geográfica, podem susci- critório do Representante da FAO no Brasil,
tar dúvidas nos habitantes da zona, com emprestando à FAO instalações, móveis,
respeito à jurisdição sobre as mesmas. material de escritório e demais acessórios,
2. As ilhas citadas foram incorporadas bem como um aparelho de telex e telefones,
definitivamente ao domínio territorial de e deverá também proporcionar pessoal de
cada um dos dois países, de conformidade apoio técnico e administrativo e serviços de
com o Tratado de 6 de outubro de 1898, limpeza e manutenção para as instalações
pelos ‘Artigos Declaratórios da Demarca- acima mencionadas. As despesas decorren-
ção de Fronteiras entre a República Argen- tes do uso diário dos aparelhos de telex e
tina e os Estados Unidos do Brasil’, assina- telefones e quaisquer outras que a FAO con-
dos no Rio de Janeiro, em 4 de outubro de siderar necessárias ao bom funcionamento
1910. do Escritório correrão inteiramente à conta
3. A respeito do assunto, é-me grato da FAO. A contribuição governamental está
levar ao seu conhecimento que o Governo especificada no Anexo ao presente Acordo.”36
brasileiro concorda com o de Vossa Exce-
lência em atribuir à Comissão Mista de Ins- Um raciocínio analógico talvez explique,
peção dos Marcos da Fronteira Brasil-Ar-
gentina, constituída por troca de notas de
a esta altura, a razão por que tradicional-
11 de maio e 17 de junho de 1970, as facul- mente se apontam como independentes de
dades para a construção dos marcos que aprovação parlamentar os acordos de trégua
considere convenientes nos grupos de ilhas e assemelhados, que se concluem, dentro do
Chafariz (argentinas) e Buricá ou Mburicá
estado de guerra, entre chefes militares –
(brasileiras).
4. A presente nota e a de Vossa Exce- agentes do poder Executivo das respectivas
lência, da mesma data e idêntico teor, cons- partes. Mais que o argumento pragmático,
tituem um acordo entre nossos Governos, tocante às circunstâncias prementes em que
que entra em vigor nesta data. se ajustam esses pactos, vale a considera-
(...)” (C.S.D.G.R.) 35.
ção de que presenciamos, nesse quadro, o
Ficou visto que não se enquadra na ação exercício de uma diplomacia de guerra; ou
diplomática ordinária, não podendo, assim, a manutenção de relações – no caso especi-
celebrar-se executivamente, o acordo que alíssimas, por óbvio – com Estados estran-
envolva ônus apartado dos recursos do orça- geiros, dentro de um clima de guerra. A tré-
mento para as relações exteriores. A aprova- gua, o cessar fogo, o acordo para preserva-
ção do Congresso é neste caso indispensável. ção de certas áreas, ou para troca de prisio-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 137


neiros, e outras tratativas a cargo de coman- causa, tanto pode o chefe do governo man-
dos militares – quase todas previstas nas dar arquivar, desde logo, o produto a seu
grandes convenções de Haia e de Genebra – ver insatisfatório de uma negociação bilate-
configuram à evidência o resultado de uma ral ou coletiva, quanto determinar estudos
peculiar diplomacia ordinária; e, tais como mais aprofundados na área do Executivo, a
os acordos desta resultantes em tempo de todo momento; e submeter, quando melhor
paz, ostentam as características do não-com- lhe pareça, o texto à aprovação do Congres-
prometimento de recursos indisponíveis e so. Tudo quanto não pode o Presidente da
da reversibilidade. Mal há lugar para que República é manifestar o consentimento
se efetive esta útima, tão imediata a execu- definitivo, em relação ao tratado, sem o abo-
ção ou tão breve a duração de muitos dos no do Congresso Nacional. Esse abono, po-
acordos da cena de guerra. rém, não o obriga à ratificação39. Isso signifi-
Não se confundam esses acordos com
ca, noutras palavras, que a vontade nacio-
a celebração da paz. Esta é de tal modo nal, afirmativa quanto à assunção de um
valorizada pela Constituição brasileira que, compromisso externo, repousa sobre a von-
para o simples ato de fazê-la – e indepen- tade conjugada dos dois poderes políticos.
dentemente, assim, da confirmação de um A vontade individualizada de cada um de-
tratado de paz – depende o Presidente da
República de aprovação ou do referendo
les é necessária, porém não suficiente.
do Congresso37. A perspectiva aberta ao chefe do gover-
no, de não ratificar o tratado aprovado pelo
Congresso, torna lógica a simultaneidade
4. Procedimento parlamentar eventual do exame parlamentar e do pros-
Quando o tratado tenha podido consu-
seguimento de estudos no interior do gover-
mar-se executivamente, por troca de notas no. Ilustram essa hipótese as primeiras li-
ou pela assinatura do instrumento único, nhas de um parecer de Levi Carneiro, con-
publica-o o Diário Oficial no título corres- sultor jurídico do Itamaraty, com data de 9
pondente ao Ministério das Relações Exte- de junho de 1951:
riores. Em caso algum esses acordos pre-
tendem produzir efeito sobre particulares, “Tendo-se verificado que a convenção
mas, por imperativo do direito público bra- sobre privilégios e imunidades das agênci-
sileiro, a divulgação oficial se impõe para as especializadas das Nações Unidas, apro-
que a própria ação de funcionários públi- vada na Assembléia-Geral de 21 de novem-
cos da área, no sentido de dar cumprimen- bro de 1947, não foi oportunamente sub-
to ao avençado, seja legítima. Importa ago- metida à minha apreciação, como havia sido
ra informar sobre o procedimento que cir- determinado e se afirmou (até acentuando-
cunda, no Brasil, a apreciação do tratado se a demora do meu parecer) – veio-me
pelo Congresso Nacional. agora às mãos, para o mesmo fim, o referi-
do convênio.
Concluída a negociação de um tratado, No entanto, esse convênio já se acha, ao
é certo que o Presidente da República – que, que fui informado, em exame no Congresso
como responsável pela dinâmica das rela- Nacional – e, anteriormente, tivera, prova-
ções exteriores, poderia não tê-la jamais ini- velmente, a coparticipação e a assinatura
do representante do Brasil. Em tais condi-
ciado, ou dela não ter feito parte, se coletiva, ções, torna-se agora difícil fazer acolher al-
ou haver ainda, em qualquer caso, interrom- guma modificação conveniente.
pido a participação negocial brasileira – está Ainda assim, não me posso furtar à
livre para dar curso, ou não, ao processo satisfação do pedido que tenho presente.
determinante do consentimento. Ressalva- (...)” 40.
da a situação própria das convenções inter- A remessa de todo tratado ao Congresso
nacionais do trabalho38, ou alguma inusual Nacional, para que o examine e, se assim
obrigação imposta pelo próprio tratado em julgar conveniente, aprove, faz-se por men-

138 Revista de Informação Legislativa


sagem do Presidente da República, acompa- 2. Trata-se de documento que, pela fle-
nhada do inteiro teor do projetado compro- xibilidade e característica de acordo-qua-
dro, visa a sistematizar a ampla área das
misso, e da exposição de motivos que a ele, relações entre os dois países, além de esta-
Presidente, terá endereçado o ministro das belecer diretrizes básicas de cooperação e
Relações Exteriores41. Essa mensagem é ca- prever a institucionalização, por instrumen-
peada por um aviso do Ministro Chefe do tos complementares, de mecanismos pró-
Gabinete Civil ao Primeiro Secretário da Câ- prios para a consecução dos objetivos nele
fixados.
mara dos Deputados – visto que, tal como nos 3. O referido Tratado estabelece, em seu
projetos de lei de iniciativa do governo, ali, e Artigo II, a criação de uma Comissão de
não no Senado, tem curso inicial o procedi- Coordenação Brasileira-Equatoriana, que
mento relativo aos tratados internacionais. terá por finalidade fortalecer a cooperação
entre os dois países, analisar e acompanhar
Os papéis abaixo transcritos dão idéia o desenvolvimento de assuntos de interesse
da integralidade do que tem entrada no mútuo relativos à política bilateral, regio-
Congresso Nacional. nal ou multilateral, e igualmente propor aos
“Em 19 de abril de 1982. dois Governos as medidas que julgue perti-
Excelentíssimo Senhor Primeiro Secre- nentes, sobretudo nos seguintes campos:
tário: (...)
Tenho a honra de encaminhar a essa 4. Tendo presente a crescente impor-
Secretaria a Mensagem do Excelentíssimo tância do papel que a Amazônia deve de-
Senhor Presidente da República, acompa- sempenhar como elemento de união entre
nhada de Exposição de Motivos do Senhor os países que integram e como ponto focal
Ministro de Estado das Relações Exterio- de um vasto processo de cooperação, sob a
res, relativa ao texto do Tratado de Amiza- égide do Tratado de Cooperação Amazô-
de e Cooperação entre o Governo da Repú- nica, o Tratado de Amizade e Cooperação
blica Federativa do Brasil e o Governo da consigna a decisão das Partes Contratantes
República do Equador, concluído em Bra- de outorgar a mais alta prioridade à execu-
sília a 09 de fevereiro de 1982. ção dos diversos projetos acima relaciona-
Aproveito a oportunidade para reno- dos. Constituindo-se, dessa forma, em
var a Vossa Excelência protestos de eleva- marco significativo nas relações Brasil-
da estima e consideração.” (J.L.A. – Minis- Equador, o referido ato internacional pro-
tro Chefe do Gabinete Civil) porcionará elementos para que a coopera-
“Mensagem no 150 ção mútua se desenvolva e fortifique de
Excelentíssimos Senhores Membros do forma harmônica e sistemática, dentro de
Congresso Nacional: entendimento e boa vizinhança, em benefí-
Em conformidade com o disposto no cio do estreitamento dos laços que unem os
artigo 44, inciso I, da Constituição Federal, dois países.
tenho a honra de submeter à elevada consi- 5. À vista do exposto, Senhor Presiden-
deração de Vossas Excelências, acompanha- te, creio que o Tratado de Amizade e Coo-
do de Exposição de Motivos do Senhor Mi- peração em apreço mereceria ser submeti-
nistro de Estado das Relações Exteriores, o do à aprovação do Congresso Nacional, nos
texto do Tratado de Amizade e Coopera- termos do artigo 44, inciso I, da Constitui-
ção entre o Governo da República Federati- ção Federal. Caso Vossa Excelência concor-
va do Brasil e o Governo da República do de com o que precede, permito-me subme-
Equador, concluído em Brasília a 09 de fe- ter à alta consideração o anexo projeto de
vereiro de 1982. Mensagem ao Poder Legislativo, acompa-
Brasília, em 19 de abril de 1982.” (J.F.) nhado do texto do Tratado em apreço.
“Senhor Presidente, Aproveito a oportunidade para reno-
Tenho a honra de encaminhar a Vossa var a Vossa Excelência, Senhor Presidente,
Excelência o anexo Tratado de Amizade e os protestos do meu mais profundo respei-
Cooperação entre o Governo da República to.” (R.S.G.)
Federativa do Brasil e o Governo da Repú- (Segue-se o texto integral do tratado)
blica do Equador, assinado em Brasília, no
dia 9 de fevereiro passado, por ocasião da
A matéria é discutida e votada separa-
visita ao Brasil do Presidente Osvaldo Hur-
tado Larrea. damente, primeiro na Câmara depois no

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 139


Senado. A aprovação do Congresso impli- tido que esse ato aprobatório, espelhando
ca, nesse contexto, a aprovação de uma e com absoluta pureza a posição do Con-
gresso, comporte sanção do Presidente da
outra das suas duas casas. Isso vale dizer República – e abra, conseqüentemente, a
que a eventual desaprovação no âmbito da insólita possibilidade do veto.
Câmara dos Deputados põe termo ao pro- b) Nos períodos da história do Brasil
cesso, não havendo por que levar a questão em que, desativado o Congresso, assumiu
ao Senado em tais circunstâncias. o Executivo seus poderes, teria sido lógico
que o chefe de Estado simplesmente pres-
Tanto a Câmara quanto o Senado pos- cindisse de qualquer substituto formal do
suem comissões especializadas ratione ma- decreto legislativo de aprovação. Os juris-
teriae, cujos estudos e pareceres precedem a tas da época assim não entenderam. No
votação em plenário. O exame do tratado Estado Novo desencontraram-se, ademais,
internacional costuma envolver, numa e quanto ao diploma executivo preferível: al-
guns tratados foram aprovados por decre-
noutra casa, pelo menos duas das respecti- to simples45, outros por decreto-lei46. Esta
vas comissões: a de Relações Exteriores e a última foi também a forma adotada pela
de Constituição e Justiça. O tema convenci- junta governativa no recesso parlamentar
onal determinará, em cada caso, o parecer compulsório de 196947. Em todos esses ca-
de comissões outras, como as de Finanças, sos, observou-se um curioso processo de
determinação da vontade nacional: o Exe-
Economia, Indústria e Comércio, Seguran- cutivo negociava e firmava o compromis-
ça Nacional, Minas e Energia. A votação em so. Analisava-o depois e, se disposto a ir
plenário requer o quorum comum de presen- adiante, editava o decreto ou decreto-lei
ças – a maioria absoluta do número total de aprobatório. Em seguida, munido de sua
deputados, ou de senadores –, devendo própria aprovação, ratificava o tratado…
c) A aprovação pode ter como objeto
manifestar-se em favor do tratado a maioria qualquer espécie de tratado, sem exclusão
absoluta dos presentes. O sistema difere, do que se tenha concluído por troca de no-
pois, do norte-americano, em que apenas o tas48, sendo numerosos os decretos legislati-
Senado deve aprovar tratados internacio- vos que já se promulgaram para abonar
nais, exigindo-se naquela casa o quorum co- compromissos vestidos dessa roupagem49.
d) O decreto legislativo exprime unica-
mum de presenças, mas sendo necessário mente a aprovação. Não se promulga esse
que dois terços dos presentes profiram voto diploma quando o Congresso rejeita o tra-
afirmativo42. Os regimentos internos da Câ- tado, caso em que cabe apenas a comuni-
mara e do Senado se referem, em normas cação, mediante mensagem, ao Presidente
diversas, à tramitação interior dos compro- da República. Exemplos de desaprovação
repontam com extrema raridade na histó-
missos internacionais, disciplinando seu ria constitucional do Brasil, e entre eles des-
trânsito pelo Congresso Nacional. taca-se o episódio do tratado argentino-bra-
O êxito na Câmara e, em seguida, no Se- sileiro de 25 de janeiro de 1890, sobre a fron-
nado, significa que o compromisso foi teira das Missões, rejeitado pelo plenário
aprovado pelo Congresso Nacional. Incum- do Congresso em 18 de agosto de 1891, por
142 votos contra cinco50.
be formalizar essa decisão do parlamento, e e) Um único decreto legistativo pode
sua forma, no Brasil contemporâneo, é a de aprovar dois ou mais tratados51. Todavia,
um decreto legislativo, promulgado pelo pre- novo decreto legislativo deve aprovar tra-
sidente do Senado Federal, que o faz publi- tado que antes, sob essa mesma forma, haja
car no Diário Oficial da União. merecido o abono do Congresso, mas que,
depois da ratificação, tenha sido um dia
Alguns comentários tópicos, neste pon- denunciado pelo governo52. Extinta a obriga-
to, parecem úteis. ção internacional pela denúncia, cogita-se
a) O uso do decreto legislativo como ins- agora de assumir novo pacto, embora de
trumento de aprovação congressional dos igual teor, e nada justifica a idéia de que o
tratados é de melhor técnica que o uso da governo possa fazê-lo por si mesmo.
lei formal, qual se pratica na França43 e já se f) A forma integral de um Decreto Le-
praticou, outrora, no Brasil44. Não faz sen- gislativo que aprove, simplesmente, o tra-

140 Revista de Informação Legislativa


tado internacional é a seguinte: Senado Federal, em 15 de dezembro de
“Decreto Legislativo no 25 – de 28 de 1962.
maio de 1979 Auro Moura Andrade
Aprova o texto do Acordo Básico de Coope- Presidente do Senado Federal.”
ração Técnica e Científica entre o Governo da
República Federativa do Brasil e o Governo da Esse diploma revocatório de decreto le-
República da Guiné-Bissau, celebrado em Brasí- gislativo anterior resultou de um projeto que
lia, a 18 de maio de 1978. mereceu, no âmbito da Comissão de Consti-
Faço saber que o Congresso Nacional tuição e Justiça da Câmara dos Deputados,
aprovou, nos termos do artigo 44, inciso I,
da Constituição, e eu, Luiz Viana, Presi-
o parecer seguinte:
dente do Senado Federal, promulgo o se- “O Deputado José Bonifácio, pelo pro-
guinte: jeto de decreto legislativo número 36, de
Art. 1o É aprovado o texto do Acordo 1960, deseja a revogação do decreto legis-
Básico de Cooperação Técnica e Científica lativo acima transcrito. Em longa e bem ar-
entre o Governo da República Federativa ticulada justificação, demonstra o equívo-
do Brasil e o Governo da República da Gui- co a que foi levado o Congresso Nacional
né-Bissau, celebrado em Brasília, a 18 de para aprovar o Acordo de Resgate assina-
maio de 1978. do no Rio de Janeiro, em 4 de maio de 1956,
Art. 2 o Este Decreto Legislativo entra entre os Governos dos Estados Unidos do
em vigor na data de sua publicação. Brasil e da França.
Luiz Viana É da competência exclusiva do Congres-
Presidente do Senado Federal.” so Nacional resolver definitivamente sobre
os tratados e convenções celebrados com os
A aprovação parlamentar é retratável? Estados estrangeiros pelo Presidente da
Pode o Congresso Nacional, por decreto le- República (art. 66, I, da Constituição Fede-
gislativo, revogar o igual diploma com que ral).
tenha antes abonado certo compromisso Em face das razões alegadas, algumas
internacional? Se o tratado já foi ratificado delas que atingem o decreto legislativo em
vigor para colocá-lo em orla de duvidosa
– ou seja, se o consentimento definitivo des- constitucionalidade, consideramos que se
ta república já se exprimiu no plano inter- deve permitir a tramitação do Projeto Le-
nacional53 –, é evidente que não. Caso con- gislativo no 36-60.
trário, seria difícil fundamentar a tese da Brasília, em dezembro de 1960.
impossibilidade jurídica de tal gesto. Temos, Pedro Aleixo, Relator.”
de resto, um precedente.
III – O conflito entre tratado e norma
“Decreto Legislativo no 20, de 1962.
Revoga o Decreto Legislativo no 13, de 6 de de produção interna
outubro de 1959, que aprovou o Acordo de Res- O primado do Direito das Gentes sobre o
gate, assinado em 1956, entre os Governos do
direito nacional do Estado soberano é, ain-
Brasil e da França.
Art. 1o É revogado o Decreto Legislati- da hoje, uma proposição doutrinária. Não
vo no 13, de 6 de outubro de 1959, que apro- há, em direito internacional positivo, nor-
vou o Acordo de Resgate assinado no Rio ma assecuratória de tal primado. Descen-
de Janeiro em 4 de maio de 1956, entre o tralizada, a sociedade internacional contem-
Governo dos Estados Unidos do Brasil e da
porânea vê cada um de seus integrantes di-
França, para a execução administrativa de
questões financeiras e a liquidação, por meio tar, no que lhe concerne, as regras de com-
de arbitramento, das indenizações devidas posição entre o direito internacional e o de
pelo Brasil, em decorrência da encampação produção doméstica. Resulta que, para o
das estradas de Ferro São Paulo-Rio Gran- Estado, a constituição nacional, vértice do
de e Vitória-Minas, bem como da Compa-
ordenamento jurídico, é a sede de determi-
nhia Port of Pará.
Art. 2o Este Decreto Legislativo entrará nação da estatura da norma jurídica con-
em vigor na data de sua publicação, revo- vencional. Dificilmente uma dessas leis fun-
gadas as disposições em contrário. damentais desprezaria, neste momento his-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 141


tórico, o ideal de segurança e estabilidade que o tratado recolhesse da ordem constitu-
da ordem jurídica a ponto de subpor-se, a si cional o benefício hierárquico. Sua simples
mesma, ao produto normativo dos compro- introdução no complexo normativo estatal
missos exteriores do Estado. Assim, posto o faria operar, em favor dele, a regra lex poste-
primado da constituição em confronto com rior derogat priori. A prevalência de que fala
a norma pacta sunt servanda, é corrente que este tópico é a que tem indisfarçado valor
se preserve a autoridade da lei fundamen- hierárquico, garantido ao compromisso in-
tal do Estado, ainda que isso signifique a ternacional plena vigência, sem embargo de
prática de um ilícito pelo qual, no plano ex- leis posteriores que o contradigam. A Fran-
terno, deve aquele responder. ça, a Grécia e a Argentina oferecem, neste
Embora sem emprego de linguagem di-
momento, exemplos de semelhante sistema.
reta, a Constituição brasileira deixa claro Constituição francesa de 1958, art. 55:
que os tratados se encontram aqui sujeitos “Os tratados ou acordos devidamente rati-
ao controle de constitucionalidade, a exem- ficados e aprovados terão, desde a data de
plo dos demais componentes infraconsti- sua publicação, autoridade superior à das
tucionais do ordenamento jurídico. Tão fir- leis, com ressalva, para cada acordo ou tra-
me é a convicção de que a lei fundamental tado, de sua aplicação pela outra parte”.
não pode sucumbir, em qualquer espécie Constituição da Grécia de 1975, art. 28,
de confronto, que nos sistemas mais obse- § 1: “As regras de direito internacional ge-
quiosos para com o Direito das Gentes tor- ralmente aceitas, bem como os tratados in-
nou-se encontrável o preceito segundo o qual ternacionais após sua ratificação (....), têm
todo tratado conflitante com a constituição valor superior a qualquer disposição con-
só pode ser concluído depois de se promo- trária das leis”.
ver a necessária reforma constitucional. Constituição política da Argentina, tex-
Norma desse exato feitio aparece na Cons- to de 1994, art. 75, § 22: “(....) os tratados e
tituição francesa de 1958, na Constituição concordatas têm hierarquia superior à das
argelina de 1976 e na Constituição espa- leis”.
nhola de 1978. Excepcional, provavelmente
única, a Constituição holandesa, após a re-
visão de 1956, admite, em determinadas 2. Paridade entre o tratado e a lei nacional
circunstâncias, a conclusão de tratados der-
rogatórios do seu próprio texto, cuja pro-
O sistema brasileiro se identifica àquele
mulgação importa, por si mesma, uma re- consagrado nos Estados Unidos da Améri-
forma constitucional. ca, sem contramarchas na jurisprudência
nem objeção doutrinária de maior vulto.
Abstraída a constituição do Estado, so-
Parte da “lei suprema da nação”, o tratado
brevive o problema da concorrência entre
ombreia com as leis federais votadas pelo
tratados e leis internas de estatura infracons-
Congresso e sancionadas pelo presidente –
titucional. A solução, em países diversos,
embora seja ele próprio o fruto da vontade
consiste em garantir prevalência aos trata-
presidencial somada à do Senado, e não à
dos. Noutros, entre os quais o Brasil con-
das duas casas do parlamento americano.
temporâneo, garante-se-lhes apenas um tra-
A supremacia significa que o tratado preva-
tamento paritário, tomadas como paradig-
lece sobre a legislação dos estados federa-
ma as leis nacionais e diplomas de grau equi-
dos, tal como a lei federal ordinária. Não,
valente.
porém, que seja superior a esta. De tal modo,
1. Prevalência dos tratados sobre o direito em caso de conflito entre tratado internacio-
interno infraconstitucional nal e lei do Congresso, prevalece nos Esta-
dos Unidos o texto mais recente. É certo,
Não se coloca em dúvida, em parte algu- pois, que uma lei federal pode fazer “repe-
ma, a prevalência dos tratados sobre leis lir” a eficácia jurídica de tratado anterior,
internas anteriores à sua promulgação. Para no plano interno. Se assim não fosse – ob-
primar, em tal contexto, não seria preciso serva Bernard Schwartz (1972, p. 87-88) –,
142 Revista de Informação Legislativa
estar-se-ia dando ao tratado não força de devesse garantir a autoridade da mais re-
lei, mas de restrição constitucional54. cente das normas, porque paritária a sua
Nos trabalhos preparatórios da Consti-
estatura no ordenamento jurídico58. Entre-
tuição brasileira de 1934, foi rejeitado o an- tanto ficou claro que, dada a diversidade
teprojeto de norma, inspirada na Carta es- das fontes de produção normativa, não se
panhola de 1931, que garantisse entre nós o deve entender que isso é uma simples apli-
primado dos compromissos externos sobre cação do princípio lex posterior derogat prio-
as leis federais ordinárias. A jurisprudên-
cia, contudo, não cessou de oscilar até pou-
ri. O tratado tem, sem dúvida, qualidade
co tempo atrás, e a doutrina permanece di- para derrogar a lei anterior desde o instante
vidida. Marotta Rangel, partidário do pri- em que passa a integrar nossa ordem jurídi-
mado da norma convencional, enumerou, ca. Mas a lei interna carece de virtude para
entre autores de idêntico pensamento, Pe- derrogar uma norma que envolve outras
dro Lessa, Filadelfo Azevedo, Vicente Rao,
Accioly e Carlos Maximiliano55. Azevedo,
soberanias além da nossa. Diz-se então que
quando ainda ministro do Supremo Tribu- o judiciário enfrenta, no caso do conflito real
nal Federal, em 1945, publicou comentário entre tratado e lei mais recente, a contingên-
demonstrativo da convicção unânime da cia de “afastar a aplicação” do primeiro, sem
corte, naquela época, quanto à prevalência dá-lo por derrogado. Por issso é que se, em
dos tratados sobre o direito interno infra-
constitucional56.
termos práticos, resulta preferível não que o
governo denuncie o tratado59, mas que o
De setembro de 1975 a junho de 1977, Congresso revogue a norma interna com ele
estendeu-se, no plenário do Supremo Tri- conflitante, o tratado, jamais derrogado pela
bunal Federal, o julgamento do recurso ex- lei, volta a aplicar-se entre nós em plenitu-
traordinário 80.00457, em que assentada por de. Por acaso, foi justamente o que aconte-
maioria a tese de que, ante a realidade do ceu com o texto de Genebra sobre títulos de
conflito entre tratado e lei posterior, esta, crédito, uma vez que revogado, algum tem-
porque expressão última da vontade do le- po depois, o decreto-lei que com ele entrara
gislador republicano, deve ter sua prevalên- em conflito.
cia garantida pela Justiça – apesar das con-
3. Situações particulares em direito
seqüências do descumprimento do tratado,
brasileiro atual
no plano internacional. A maioria valeu-se
de precedentes do próprio Tribunal para ter
Há, contudo, exceções à regra da pari-
como induvidosa a introdução do pacto –
dade? Há domínios temáticos em que, des-
no caso, a Lei uniforme de Genebra sobre
prezada a idéia de valorizar simplesmente
letras de câmbio e notas promissórias – na
a última palavra do legislador ordinário,
ordem jurídica brasileira, desde sua promul-
seja possível reconhecer o primado da nor-
gação. Reconheceu, em seguida, o conflito
ma internacional ainda que anterior à nor-
real entre o pacto e um diploma doméstico
ma interna conflitante? Duas situações me-
de nível igual ao das leis federais ordinári-
recem a propósito um comentário apartado,
as – o Decreto-lei 427/69, posterior em cerca
as que se desenham, no domínio tributário,
de três anos à promulgação daquele –, visto
à luz do artigo 98 do CTN, e, no domínio
que a falta de registro da nota promissória,
dos direitos e garantias individuais, à luz
não admitida pelo texto de Genebra coma
do artigo 5o, § 2o, da Constituição de 1988.
causa de nulidade do título, vinha a sê-lo
nos termos do decreto-lei. Admitiram as vo- Domínio tributário: o artigo 98 do
zes majoritárias que, faltante na Constitui- Código Tributário Nacional
ção do Brasil garantia de privilégio hierár-
quico do tratado internacional sobre as leis Esse dispositivo diz que os tratados (os
do Congresso, era inevitável que a Justiça que vinculam o Brasil, naturalmente) “…re-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 143


vogam ou modificam a legislação tributária por uma premissa ideológica hostil à exclu-
interna e serão observados pela que lhes sividade que a Carta dá à lei complementar
sobrevenha”. Essa linguagem sugere mais para ditar normas gerais de direito tributá-
uma norma preventiva de conflitos do que rio.
uma regra de solução do conflito consuma-
do, mas, se assim for entendida, ela é virtu- Direitos e garantias individuais:
almente supérflua. Não há dúvida de que o o artigo 5o, § 2o, da Constituição
tratado revoga, em qualquer domínio, a nor- No desfecho do extenso rol de direitos e
ma interna anterior; nem tampouco de que garantias individuais do artigo 5o da Cons-
o legislador, ao produzir direito interno or- tituição de 1988, um segundo parágrafo es-
dinário, deve observar os compromissos tabelece que aquela lista não exclui outros
externos da República, no mínimo para não direitos e garantias decorrentes do regime e
induzi-la em ilícito internacional. Assim, dos princípios consagrados na Carta, ou dos
para que se dê ao artigo 98 efeito útil, é pre- tratados internacionais em que o Brasil seja
ciso lê-lo como uma norma hierarquizante parte. Sobre esta última categoria, não há
naquele terreno em que o CTN foi qualifica- um ensinamento consolidado no Supremo
do pela Constituição para ditar “normas Tribunal Federal, cuja maioria parece entre-
gerais”. O Supremo Tribunal Federal tem tanto pouco receptiva à idéia de que a nor-
reconhecido, desde que primeiro tratou do ma assecuratória de algum outro direito,
assunto até a hora atual, e de modo unifor- quando expressa em tratado, tenha nível
me, a eficácia do artigo 98 do CTN e sua constitucional. Isso pode resultar da consi-
qualidade para determinar o que determi- deração de que, assim postas as coisas, a
na60. Em matéria tributária, há de buscar-se Carta estaria dando ao Executivo e ao Con-
com mais zelo ainda que noutros domínios gresso, este no quorum simples da aprova-
a compatibilidade. Mas, se aberto e incon- ção de tratados, o poder de aditar à lei fun-
tornável o conflito, prevalece o tratado, mes- damental. Quem sabe mesmo o de mais tar-
mo quando anterior à lei. de expurgá-la mediante a denúncia do tra-
Resolve-se por mais de um caminho, tado, já então – o que parece impalatável –
creio, a questão de saber se o CTN tem esta- até pela vontade singular do governo, habi-
tura para determinar na sua área temática litado que se encontra, em princípio, à de-
um primado que a própria Constituição não núncia de compromissos internacionais.
quis determinar no quadro geral da ordem Mas, se não se reconhece o nível consti-
jurídica. Faz sentido, por exemplo, dizer que, tucional dessas normas, tudo quanto o pa-
no caso do conflito de que ora cuidamos, a rágrafo quer dizer é que não se negará ao
norma interna sucumbe por inconstitucio- indivíduo um direito previsto em tratado
nalidade. Ao desprezar o artigo 98 do CTN sob o prosaico argumento de que ele não se
e entrar em conflito com tratado vigente, a encontra no rol da própria Carta? Tanto sig-
lei ordinária implicitamente terá pretendi- nificaria empobrecer demais o dispositivo,
do inovar uma norma geral de direito tributá- quando não negar-lhe um autêntico efeito
rio, estabelecendo, para si mesma, uma pre- útil. Como quer que seja, vale lembrar as
missa conflitante com aquele artigo, qual decisões majoritárias que o Supremo tomou
seja a de que é possível ignorar o compro- nos últimos anos a propósito da prisão do
misso internacional e dispor de modo des- depositário infiel (ou daqueles devedores
toante sobre igual matéria. É uma hipótese que o legislador ordinário brasileiro enten-
sui generis de inconstitucionalidade formal: deu de assimilar ao depositário infiel), ante
a lei não ofende a Carta pela essência do o texto da Convenção de São José da Costa
seu dispositivo, nem por vício qualquer de Rica61. As perspectivas da jurisprudência,
competência ou de processo legislativo, mas nesse domínio, parecem sombrias.

144 Revista de Informação Legislativa


14
Notas Afonso Arinos de Melo Franco, Estudos de di-
reito constitucional; Rio de Janeiro, Forense, 1957, p.
1
Em sua obra de 1943, Paul de Visscher menci- 266.
onava alguns exemplos ostensivos de concentração 15
V., no volume II de Pareceres dos Consultores
do poder convencional nas mãos do governo. Eram Jurídicos do Ministério das Relações Exteriores (1913-
eles, na época, o Império do Japão, a Alemanha sob 1934), diversos pronunciamentos de Clóvis Bevila-
o III Reich, a Etiópia, a República de São Marinho, qua, na qualidade de consultor do Itamaraty.
a Arábia Saudita, o Iêmen e o Vaticano (Paul de 16
Constituição de 1934, arts. 40 e 56.
Visscher, De la conclusion des traités internationaux. 17
Carta política de 1937:
Bruxelas, Bruylant, 1943. pp. 26-28). “Art. 54. Terá início no Conselho Federal a dis-
2
Quanto ao procedimento: manifestam-se, na cussão e votação dos projetos de lei sobre:
França, as duas casas do parlamento, quais sejam a) tratados e convenções internacionais;
a Assembléia Nacional e o Senado; e o fazem por .............................................................................
meio de uma lei, aprovando o tratado, e permitin- Art. 74. Compete privativamente ao Presidente
do, pois, sua confirmação pelo Presidente da Re- da República:
pública. .............................................................................
3
Constituição política do Império do Brasil, de d) celebrar convenções e tratados internacionais,
25 de março de 1824, art. 102 – VIII. ad referendum do Poder Legislativo;”
4
Constituição peruana de 12 de julho de 1979, 18
Constituição de 18 de setembro de 1946:
arts. 102 e 104. “Art. 66. É da competência exclusiva do Con-
5
Constituição venezuelana de 23 de janeiro de gresso Nacional;
1961, art. 128. I – resolver definitivamente sobre os tratados e
6
Cf., a propósito, os argumentos de Gladstone convenções celebrados com os Estados estrangei-
e William Harcourt no debate sobre a cessão de ros pelo Presidente da República;
Heligoland ao Império Germânico, em 1890 (Willi- .............................................................................
am Reyne’l Anson, The crown, II, p. 140). Relatam Art. 87. Compete privativamente ao Presidente
autores contemporâneos que, de 1924 a esta parte, da República:
o procedimento do governo britânico tem sido, na .............................................................................
prática, mais cauteloso do que lhe manda o direito. VII – celebrar tratados e convenções internacio-
Tem ele procurado enviar ao parlamento, com an- nais, ad referendum do Congresso Nacional;”
tecedência, todos os tratados não consumados pela 19
Pela comodidade que proporcionava, a dou-
assinatura — vale dizer, os dependentes de ratifi- trina granjeou adeptos dentro da diplomacia brasi-
cação —, exprimindo seu consentimento definitivo leira. Não seria exato, porém, associá-la de modo
caso aquele poder não se revele disposto, após al- raso ao Ministério das Relações Exteriores: Levi Car-
gumas semanas, a colocar a matéria em debate. neiro, consultor jurídico do Ministério, ofereceu apoio
Isso de certo modo aproxima a atual tendência das limitado às concepções de Accioly; e Haroldo Valla-
instituições britânicas, no particular, do modelo dos dão, ocupante do mesmo cargo, notabilizou-se como
Países Baixos. (v. Nguyen Quoc Dinh, Droit inter- adversário dessa doutrina, fiel ao pensamento cons-
national public, Paris, LGDJ, 1975, p. 153). titucionalista de Clóvis e de outros autores.
7
V. Paul de Visscher, op.cit., pp. 32-33; 20
7 BSBDI (Boletim da Sociedade Brasileira de Di-
D.P.O’Connell, International Law, Londres, Stevens reito Internacional), 1948, pp. 5-11: Accioly.
& Sons, 1970, p. 867; Arnold McNair, The Law of 21
11-12 BSBDI (1950), pp. 95-108: Valladão.
Treaties, Oxford, Clarendon Press, 1961, pp. 83-84. 22
13-14 BSBDI (1951), pp. 20-33: Accioly.
8
Constituição dos Estados Unidos da Améri- 23
Constituição de 1988, art. 49-I e art. 84-VIII.
ca, de 17 de setembro de 1787, art. II, seção 2. 24
O chamado Tratado de Itaipu foi encaminha-
9
Sobre os casos U. S. v. Belmont e U. S. v. Pink, do ao Congresso por mensagem presidencial data-
v. McNair, pp. 64-65 e 80; e Bernard Schwartz, Cons- da de 17 de maio de 1973. No dia 30 do mesmo
titutional Law; Nova York, Macmillan, 1972, pp. 152- mês, promulgava-se o Decreto Legislativo 23/73,
155. aprovando-o. No Senado – cujo pronunciamento
10
O’Connell, op.cit., pp. 208-210. sucede sempre ao da Câmara – durou dois dias a
11
Constituição mexicana de 31 de janeiro de tramitação da matéria. O Acordo nuclear Brasil-
1917, art. 76-I. Não se refere a Constituição à mai- Alemanha também ilustra a assertiva do texto. A
oria qualificada (2/3). mensagem presidencial que o mandou ao Congres-
12
Constituição republicana de 24 de fevereiro so é de 21 de agosto de 1975, e o inteiro processo se
de 1891, arts. 34 a 48. concluiria, com a promulgação do Decreto Legisla-
13
Carlos Maximiliano, Comentários à Constitui- tivo 83/75, aprobatório do acordo, em 20 de outu-
ção brasileira de 1946; Rio de Janeiro, Freitas Bastos, bro seguinte. Nesse caso, foi de vinte dias a perma-
1948, vol. II, p. 238. nência da matéria no Senado.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 145


25
A notícia é confirmada pela Ata da 6a reunião “Aprovado um tratado pelo Congresso Nacio-
ordinária da Comissão de Relações Exteriores da nal, pode o Poder Executivo adiar a sua ratificação
Câmara dos Deputados, realizada em 24 de maio ou deixar de o ratificar? A questão tem dois aspec-
de 1972. tos: o internacional e o interno (ou constitucional).
26
7 BSBDI (1948), pp. 8. V. também Araújo, pp. 1) Sob o primeiro, é princípio corrente, já con-
160-173. signado até em convenção internacional (art. 7o da
27
Juan Carlos Puig, Derecho de la Comunidad Convenção de Havana, de 1928), que a ratificação
Internacional, Buenos Aires, Depalma, 1975, p. 149. de um tratado pode ser livremente recusada por
28
Constituição de 1988, art. 76 e art. 84, II. qualquer de suas partes contratantes. Realmente,
29
Constituição de 1988, art. 84, incisos I e XIII, ou se considere a ratificação como a confirmação
respectivamente. explícita, dada pela autoridade competente do Es-
30
7 BSBDI (1948), pp. 8 e seguintes. tado, do ato assinado por seu representante, ou se
31
Temperam-na, não obstante, os fatores se- considere, como quer Anzilotti, como a verdadeira
guintes: declaração da vontade de estipular — é sabido que
a) A declaração de guerra e a celebração da ela não constitui mera formalidade, sem importân-
paz, promovidas pelo Presidente da República, têm cia, e que cada parte contratante tem a plena liber-
sua validade condicionada ao endosso ulterior do dade de a dar ou de a recusar. A assinatura ou
Congresso, quando este não haja manifestado an- acordo dos plenipotenciários é apenas — conforme
tecipadamente sua aquiescência. escrevi em meu Tratado de Direito Internacional
b) Na escolha dos chefes de missão diplomáti- Público — um primeiro ato, após o qual os órgãos
ca de caráter permanente, depende o Presidente da competentes do Estado vão apreciar a importância
aprovação prévia do Senado Federal, por voto se- e os efeitos ou conseqüências do tratado. Essa apre-
creto. ciação, entre nós, cabe em parte ao Poder Legislati-
c) Como todo ministro de Estado, encontra-se vo, mas não pode deixar de caber igualmente ao
o chanceler obrigado a comparecer perante a Câ- Poder Executivo ou, antes, ao Presidente da Repú-
mara dos Deputados, o Senado, ou qualquer de blica, que é o órgão ao qual incumbe a representa-
suas comissões, desde que convocado por uma ou ção do Estado e aquele a quem compete manter as
outra casa para prestar, pessoalmente, informa- relações do país com os Estados estrangeiros. Des-
ções acerca de assunto determinado. A convocação sa apreciação, pode resultar a confirmação ou a
dirá respeito, presumivelmente, a tema afeto às re- rejeição do tratado. Internacionalmente, a primeira
lações exteriores. Pode transparecer em tal ensejo a hipótese é representada pela ratificação, expressa
desaprovação do Congresso à política exterior do pelo Presidente da República. Pouco importa para
governo. Nada, porém, mais que isso. Num siste- a outra ou as outras partes contratantes que um
ma presidencialista, as convicções do Congresso dos órgãos do Estado (no caso, o Poder Legislati-
não vinculam o Executivo. Diversamente do que vo) já tenha dado sua aquiescência ao tratado. O
sucede nos regimes parlamentares, não depende que vale é que o Poder representativo do Estado,
entre nós o governo, ou cada um de seus integran- ou seja, o Executivo, o ratifique. Assim, a potência
tes em particular, da confiança do Legislativo. ou potências estrangeiras não têm propriamente
32
Diário Oficial de 4.11.80, S. I, p. 21.986. que indagar se já se verificou ou não a aprovação
33
Diário Oficial de 24.07.81, S. I, p. 13.962. do ato pelo Congresso Nacional: o que lhe ou lhes
34
Diário Oficial de 28.10.81, S. I, p. 20.515. importa é a ratificação pelo Chefe do Estado.
35
Diário Oficial de 19.10.82, S. I, p. 19.809. 2) Do ponto de vista constitucional, não vejo
36
Diário Oficial de 15.05.81, S. I, p. 8.842. onde exista a obrigação do Poder Executivo ratifi-
37
Constituição de 1988, art. 84, XX. Na vigên- car um tratado, como conseqüência necessária da
cia da carta de 1946, era necessária, em todos os aprovação do mesmo pelo Congresso Nacional. É
casos, a aprovação prévia do Congresso para a fei- verdade que a Constituição Federal, em seu art. 66,
tura da paz — assim entendida, juridicamente, a no 1, declara ser da competência exclusiva do Con-
terminação do estado de guerra. V., a respeito, o gresso Nacional resolver definitivamente sobre os
parecer de 26 de julho de 1951, de Levi Carneiro, tratados e convenções celebrados com os Estados
consultor jurídico do Itamaraty (Pareceres, IV, pp. estrangeiros pelo Presidente da República. Parece-
516-518). me, porém, que essa estipulação deve ser entendi-
38
Sobre as convenções internacionais do traba- da no sentido de que o tratado — celebrado como
lho e a razão pela qual é menor, nesse terreno, a deve ser, pelo Presidente da República (por meio de
liberdade do governo, v. Rezek, J.F., Direito dos Tra- delegado seu) — não está completo, não pode ser
tados, Rio de Janeiro, Forense, 1984, pp. 164-168. definitivo, sem a aprovação do Congresso Nacio-
39
Parecer de Hildebrando Accioly, consultor nal. Aquela expressão significa, pois, que o tratado
jurídico do Itamaraty, sob a vigência da Constitui- celebrado pelo Poder Executivo não pode ser con-
ção de 1946 (8 BSBDI (1948), pp. 164-166): firmado ou entrar em vigor sem a aprovação do

146 Revista de Informação Legislativa


Congresso Nacional; mas não quererá dizer que essa cação do ato já aprovado pelo Congresso ou, como
aprovação obrigue o Presidente da República a con- sucede nos Estados Unidos, pelo Senado.”
40
firmar o tratado. E não quererá dizer isso, não só Pareceres, IV, pp. 505-509.
41
porque seria, então, desnecessária a ratificação, mas Ocasionalmente, em razão da matéria, fir-
também porque o órgão das relações exteriores do mam a exposição de motivos outros ministros de
Estado, aquele a quem compete privativamente Estado além do titular das Relações Exteriores.
42
manter relações com Estados estrangeiros, é o Pre- Essa maioria qualificada foi o que não conse-
sidente da República — que, por isso mesmo, se guiu obter no Senado, em 1919, o Presidente Woo-
acha mais habilitado, do que o Congresso, a saber drow Wilson, em relação ao Pacto da Sociedade
se as circunstâncias aconselham ou não o uso da das Nações.
43
faculdade da ratificação. Por outro lado, essa in- E também, ao que informam os textos, na
terpretação lógica é confirmada implicitamente por Argentina, no Chile, na Colômbia e na Venezuela.
outra disposição da Constituição Federal. De fato, No México adota-se a forma da resolução do
determina esta, em seu art. 37, no VII, que ao Presi- Senado.
44
dente da República compete privativamente cele- V. em José Manoel Cardoso de Oliveira, Atos
brar tratados e convenções internacionais ad referen- Diplomáticos do Brasil, Rio de Janeiro, Jornal do
dum do Congresso Nacional; donde se deve con- Comércio, 1912, vol. II, p. 48, a referência ao Trata-
cluir que o papel do Congresso, no caso, é apenas o do brasileiro-peruano de 1874, sobre permuta terri-
de aprovar ou rejeitar o ato internacional em apreço torial, e alguns exemplos de aprovação de tratados
— isto é, autorizar ou não a sua ratificação, ou na vigência da Constituição de 1891.
45
seja, resolver definitivamente sobre o dito ato. As- Tratado de extradição Brasil-Venezuela, de
sim, o Presidente da República assina o tratado, 1938 (Col. MRE n o 160), aprovado pelo Decreto
por delegado seu, mediante uma condição: a de 4.868, de 9.11.39.
46
submeter ao Congresso Nacional o texto assinado. Tratado de extradição Brasil-Colômbia, de
Depois do exame pelo Congresso, estará o Presi- 1938 (Col. MRE no 168), aprovado pelo Decreto-Lei
dente habilitado, ou não, a confirmar ou ratificar o 1.994, de 31.01.40; Acordo sul-americano de radi-
ato em causa. A rejeição pelo Congresso impede a ocomunicações, de 1935 (Col. MRE no 217), aprova-
ratificação; a aprovação permite-a, mas não a tor- do pelo Decreto-Lei 687, de 14.09.38.
47
na obrigatória. Acordo geral de cooperação Brasil-R. F. da
............................................................................. Alemanha, de 1969 (Col. MRE n o 644), aprovado
Green Hackworth, em seu recente Digest of In- pelo Decreto-Lei 681, de 15.07.69; Tratado da Ba-
ternational Law (vol. V, p. 54), menciona um caso cia do Prata, de 1969 (Col. MRE no 633), aprovado
bem expressivo dessa interpretação, assinalando o pelo Decreto-Lei 682, de 15.07.69; Atos (diversos)
seguinte fato, relativo à convenção internacional da do XV Congresso da UPU, de 1964, aprovados pelo
hora (International Time Convention), de 1913. O Se- Decreto-Lei 544, de 18.04.69.
48
nado aprovou-a, o Presidente chegou a ratificá-la, O ritual muda, preservado o princípio, se o
o respectivo instrumento de ratificação foi enviado compromisso, nesse caso, já se encontrava em vi-
à Embaixada americana em Paris, para depósito, gor quando da submissão ao Congresso.
49
mas, depois, por decisão do próprio Governo ame- Decreto Legislativo 5/51; v. também a Men-
ricano, foi dali devolvido a Washington, sendo anu- sagem 532/80 do Presidente ao Congresso; e co-
lado. O consultor do Departamento de Estado, a mentário de Levi Carneiro, em 1949 (Pareceres, IV,
quem fora submetida a questão de saber se o Poder pp. 318-322) e 1950 (Pareceres, IV, pp. 401-414).
50
Executivo podia anular uma ratificação, indepen- Nesse caso o próprio governo, e pela voz de
dentemente de qualquer ação do Senado ou Con- Quintino Bocaiúva — que conduzira as negocia-
gresso, opinara em sentido favorável. É de se notar ções com o chanceler argentino Zeballos — reco-
que, no caso, não se tratava de deixar de ratificar mendou a seus partidários no Congresso a desa-
um ato aprovado pelo Senado, mas de anular uma provação do Tratado (v. José Maria Bello, História
ratificação já dada e ainda não depositada. Na ver- da República; São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1964,
dade, poucas vezes sucederão hipóteses como essa pp. 73-75). Para outro caso de rejeição, ocorrido
ou como a que vim encarando; porque, em geral, o em 1949, e atinente a um pacto bilateral com a
governo que assina um ato internacional e o sub- Tchecoslováquia, v. o comentário de Levi Carneiro
mete ao poder competente, para sobre ele opinar, em Pareceres, IV, p. 410.
51
deseja que o mesmo seja posto em vigor. Assim, Decreto Legislativo 91, de 1972:
logo que obtém a aprovação ou o parecer favorá- “Art. 1o É aprovado o texto do Tratado sobre
vel, trata de ratificar o ato em apreço. Nada impe- Vinculação Rodoviária, assinado em Corumbá, a 4
de, porém, que circunstâncias supervenientes mos- de abril de 1972, e o do Protocolo Adicional ao
trem a necessidade, às vezes imperiosa, de sustar, Tratado sobre Vinculação Rodoviária, firmado, em
por certo tempo ou, até, indefinidamente, a ratifi- La Paz, a 5 de outubro de 1972, celebrados sobre a

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 147


53
República Federativa do Brasil e a República da E não é, no caso, importante saber se o trata-
Bolívia. do já entrou em vigor ou não; ressalvada a possibi-
Art. 2o Este Decreto Legislativo entra em vigor lidade de retirada da ratificação em circunstâncias
na data de sua publicação, revogadas as disposi- excepcionais.
54
ções em contrário. Bernard Schwartz, Constitutional Law, Nova
Senado Federal, em 5 de dezembro de 1972. York, Macmillan, 1972, p. 87-88.
55
Petrônio Portella – Presidente do Senado Fede- Vicente Marotta Rangel, La procédure de con-
ral.” clusion des accords internationaux au Brésil; R. Fac. SP
52
Decreto Legislativo 77, de 1973: (1960), v. 55, p. 264-265.
“Art. 1o É aprovado o texto da Convenção Na- 56
Filadelfo Azevedo, Os tratados e os interesses
cional Internacional para a Regulamentação da privados em face do direito brasileiro; BSBDI (1945), v.
Pesca da Baleia, concluída em Washington, a 2 de 1, p. 12-29.
57
dezembro de 1946, aprovada pelo Decreto Legisla- Para comentário à decisão do STF, v. Mirtô
tivo no 14, de 9 de março de 1950, promulgada pelo Fraga, Conflito entre tratado internacional e norma de
Decreto no 28. 524, de 18 de agosto de 1950, e de- direito interno, Rio de Janeiro, Forense, 1997.
58
nunciada, por nota da Embaixada do Brasil em V. a íntegra do acórdão em RTJ 83/809.
59
Washington, ao Departamento de Estado Norte- O que não nos exonera da responsabilidade
Americano, a 27 de dezembro de 1965, com efeito a internacional por eventuais conseqüências do con-
partir de 30 de junho de 1966, em virtude de não flito, enquanto não surte efeito a denúncia.
60
haver, na ocasião, maior interesse do Brasil em con- V. Carlos Mário da Silva Velloso, O direito
tinuar a participar da referida convenção. internacional e o Supremo Tribunal Federal, Belo Hori-
Art. 2o Este Decreto Legislativo entrará em vi- zonte, CEDIN, 2002.
61
gor na data de sua publicação, revogadas as dis- V., por exemplo, ADIn 1.497-DF, ADIn
posições em contrário. 1.480-DF e HC 76.561-SP. V. ainda o estudo refe-
Senado Federal, em 7 de dezembro de 1973. rido na nota anterior.
Paulo Torres – Presidente do Senado Federal.”

148 Revista de Informação Legislativa


O papel do Senado Federal no controle de
constitucionalidade: um caso clássico de
mutação constitucional

Gilmar Ferreira Mendes

Sumário
1. Considerações preliminares. 2. A suspen-
são pelo Senado Federal da execução de lei de-
clarada inconstitucional pelo Supremo Tribu-
nal Federal sob a Constituição de 1988. 3. A
repercussão da declaração de inconstituciona-
lidade proferida pelo Supremo Tribunal sobre
as decisões de outros tribunais. 4. A suspensão
de execução da lei pelo Senado e mutação cons-
titucional. 5. Conclusão.

1. Considerações preliminares

A suspensão da execução pelo Senado Fe-


deral do ato declarado inconstitucional pela
Excelsa Corte foi a forma definida pelo cons-
tituinte para emprestar eficácia erga omnes
às decisões definitivas sobre inconstitucio-
nalidade.
A aparente originalidade da fórmula
tem dificultado o seu enquadramento dog-
mático. Discute-se, assim, sobre os efeitos e
a natureza da resolução do Senado Federal
que declare suspensa a execução da lei ou
ato normativo. Questiona-se, igualmente,
sobre o caráter vinculado ou discricionário
do ato praticado pelo Senado e sobre a
abrangência das leis estaduais e municipais.
Indaga-se, ainda, sobre a pertinência da
suspensão ao pronunciamento de inconsti-
tucionalidade incidenter tantum, ou sobre a
Texto em homenagem à Professora Anna sua aplicação às decisões proferidas em
Maria Villela, minha professora no Curso de ação direta.
Graduação da Faculdade de Direito da UnB, no Embora a doutrina pátria reiterasse os
ano de 1976. ensinamentos teóricos e jurisprudenciais
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 149
americanos, no sentido da inexistência jurí- a “única solução que atende aos interesses
dica ou da ampla ineficácia da lei declarada de ordem pública é que a suspensão produ-
inconstitucional, não se indicava a razão zirá os seus efeitos desde a sua efetivação,
ou o fundamento desse efeito amplo. Diver- não atingindo as situações jurídicas cria-
samente, a não-aplicação da lei, no Direito das sob a sua vigência”. Da mesma forma,
norte-americano, constitui expressão do sta- Bandeira de Mello (1980, p. 211) ensina que
re decisis, que empresta efeitos vinculantes “a suspensão da lei corresponde à revoga-
às decisões das Cortes Superiores. Daí ter- ção da lei”, devendo “ser respeitadas as si-
se adotado, em 1934, a suspensão de execu- tuações anteriores definitivamente constitu-
ção pelo Senado como mecanismo destina- ídas, porquanto a revogação tem efeito ex
do a outorgar generalidade à declaração de nunc”. Enfatiza que a suspensão “não al-
inconstitucionalidade. A engenhosa fórmu- cança os atos jurídicos formalmente perfei-
la mereceu reparos na própria Assembléia tos, praticados no passado, e os fatos con-
Constituinte. O Deputado Godofredo Vian- sumados, ante sua irretroatividade, e mes-
na pretendeu que se reconhecesse, v.g., a mo os efeitos futuros dos direitos regularmen-
inexistência jurídica da lei, após o segundo te adquiridos”. “O Senado Federal – asseve-
pronunciamento do Supremo Tribunal Fe- ra Bandeira de Mello (1980, p. 211) – apenas
deral sobre a inconstitucionalidade do di- cassa a lei, que deixa de obrigar, e, assim, per-
ploma (ARAÚJO, 1935, p. 247; ALENCAR, de a sua executoriedade porque, dessa data
1978, p. 234-7). em diante, a revoga simplesmente”.
Mas, que efeitos haveriam de se reconhe- Não obstante a autoridade dos seus sec-
cer ao ato do Senado que suspende a execu- tários, essa doutrina parecia confrontar com
ção da lei inconstitucional? as premissas basilares da declaração de in-
Lúcio Bittencourt (1997, p. 145) afirma- constitucionalidade no Direito brasileiro.
va que “o objetivo do art. 45, no IV – a refe- Afirmava-se quase incontestadamente,
rência diz respeito à Constituição de 1967 – entre nós, que a pronúncia da inconstituci-
é apenas tornar pública a decisão do tribu- onalidade tinha efeito ex tunc, contendo a
nal, levando-a ao conhecimento de todos os decisão judicial caráter eminentemente de-
cidadãos”. Outros reconhecem que o Sena- claratório (BARBOSA, 1910, p. 51-52, 1958,
do Federal pratica ato político que “confere p. 49; NUNES, 1943, p. 588; CAMPOS, 1956;
efeito geral ao que era particular (...), gene- v. 1, p. 460-461; BUZAID, 1958, p. 128). Se
raliza os efeitos da decisão” (BUZAID, 1958, assim fora, afigurava-se inconcebível cogi-
p. 89-90; MARINHO, 1964; CAVALCANTI, tar de “situações juridicamente criadas”, de
1966, p. 162-166; BROSSARD, 1976, p. 61; “atos jurídicos formalmente perfeitos” ou de
MELLO, 1980, p. 210; BASTOS, 2002, p. 84). “efeitos futuros dos direitos regularmente
O Supremo Tribunal Federal parece ter adquiridos”, com fundamento em lei incons-
admitido, inicialmente, que o ato do Senado titucional. De resto, é fácil de ver que a consti-
emprestava eficácia genérica à decisão defi- tucionalidade da lei parece constituir pres-
nitiva. Assim, a suspensão tinha o condão suposto inarredável de categorias como as do
de dar alcance normativo ao julgado da Ex- direito adquirido e do ato jurídico perfeito.
celsa Corte1. É verdade que a expressão utilizada pelo
Mas, qual era a dimensão dessa eficácia constituinte de 1934 (art. 91, IV), e reiterada
ampla? Seria a de reconhecer efeito retroati- nos textos de 1946 (art. 64), de 1967/1969
vo ao ato do Senado Federal? (art. 42, VII) e de 1988 (art. 52, X) – suspender
Também aqui não se logravam sufrági- a execução de lei ou decreto – não é isenta
os unânimes. de dúvida2. Originariamente, o substituti-
Themístocles Cavalcanti (1966, p. 164) vo da Comissão Constitucional que produ-
responde negativamente, sustentando que ziu o modelo da Constituição de 1934 che-

150 Revista de Informação Legislativa


gou a referir-se à “revogação ou suspensão Na Assembléia Constituinte de 1946, re-
da lei ou ato” (ALENCAR, 1978, p. 247). Mas encetou-se o debate, tendo-se destacado,
a própria ratio do dispositivo não autorizava uma vez mais, na defesa do instituto, a voz
a equiparação do ato do Senado a uma decla- de Prado Kelly (apud ALENCAR, 1978, p.
ração de ineficácia de caráter prospectivo. A 267-268):
proposta de Godofredo Vianna reconhecia a “O Poder Judiciário só decide em
inexistência jurídica da lei, desde que fosse espécie.
declarada a sua inconstitucionalidade “em É necessário, porém, estender os
mais de um aresto” do Supremo Tribunal Fe- efeitos do julgado, e esta é atribuição
deral. Nos debates realizados, preponderou, do Senado.
porém, a idéia de se outorgar ao Senado, eri- Quanto ao primeiro ponto, quero
gido, então, ao papel de coordenador dos lembrar que na Constituição de 34
poderes, a suspensão da lei declarada incons- existe idêntico dispositivo.
titucional pelo Supremo Tribunal. Participei da elaboração da Cons-
Na discussão travada no Plenário da tituição de 34. De fato, tentou-se a cri-
Constituinte, destacaram-se as objeções de ação de um quarto poder; entretanto,
Levi Carneiro, contrário à incorporação do já há muito o Senado exercia a função
instituto ao Texto Magno. Prevaleceu a tese controladora, fiscalizadora do Poder
perfilhada, entre outros, por Prado Kelly, tal Executivo.
como resumida na seguinte passagem: O regime democrático é um regime
“Na sistemática preferida pelo de legalidade. No momento em que o
nobre Deputado, Sr. Levi Carneiro, o Poder Executivo pratica uma ilegali-
Supremo Tribunal decretaria a in- dade, a pretexto de regulamentar uma
constitucionalidade de uma lei, e os lei votada pelo Congresso, exorbita nas
efeitos dessa decisão se limitariam às suas funções. Há a esfera do Judiciá-
partes em litígio. Todos os demais ci- rio, e este não está impedido, desde que
dadãos, que estivessem na mesma si- é violado o direito patrimonial do indi-
tuação da que foi tutelada num pro- víduo, de apreciar o direito ferido.
cesso próprio, estariam ao desampa- Se, entretanto, se reserva ao órgão
ro da lei. Ocorreria, assim, que a Cons- do Poder Legislativo, no caso o Sena-
tituição teria sido defendida na hipó- do, a atribuição fiscalizadora da lei,
tese que permitiu o exame do Judiciá- não estamos diante de uma função
rio, e esquecida, anulada, postergada judicante, mas de fiscal do arbítrio do
em todos os outros casos (...) Poder Executivo. O dispositivo já
Certas constituições modernas têm constava da Constituição de 34 e não
criado cortes jurisdicionais para de- foi impugnado por nenhum autor ou
fesa da Constituição. Nós continua- comentador que seja do meu conheci-
mos a atribuir à Suprema Corte a pa- mento. Ao contrário, foi um dos dis-
lavra definitiva da defesa e guarda da positivos mas festejados pela crítica,
Constituição da República. Entretan- porque atendia, de fato, às solicitações
to, permitimos a um órgão de supre- do meio político brasileiro.”
macia política estender os efeitos des- Ante as críticas tecidas por Gustavo Ca-
sa decisão, e estendê-los para o fim de panema, ressaltou Nereu Ramos (apud
suspender a execução, no todo ou em ALENCAR, 1978, p. 268) que:
parte, de qualquer lei ou ato, delibera- “A lei ou regulamentos declarados
ção ou regulamento, quando o Poder inconstitucionais são juridicamente
Judiciário os declara inconstitucio- inexistentes, entre os litigantes. Uma
nais.” (ALENCAR, 1978, p. 260). vez declarados, pelo Poder Judiciário,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 151


inconstitucionais ou ilegais, a decisão não desconstitui as situações consti-
apenas produz efeito entre as partes. tuídas enquanto vigorou o ato derro-
Para evitar que os outros interessados, gado. Já quando de suspensão se tra-
amanhã, tenham de recorrer também te, o efeito é ex tunc, pois aquilo que é
ao Judiciário, para obter a mesma coi- inconstitucional é natimorto, não teve
sa, atribui-se ao Senado a faculdade vida (cf. Alfredo Buzaid e Francisco
de suspender o ato no todo ou em par- Campos), e, por isso, não produz efei-
te, quando o Judiciário haja declara- tos, e aqueles que porventura ocorre-
do inconstitucional, porque desde que ram ficam desconstituídos desde as
o Judiciário declar inconstitucional, o suas raízes, como se não tivessem exis-
Presidente da República não pode tido.
declarar constitucional.” Integra-se, assim, o Senado numa
Parecia evidente aos constituintes que a tarefa comum com o STF, equivalente
suspensão da execução da lei, tal como adota- àquela da alta Corte Constitucional da
da em 1934, importava na extensão dos efei- Áustria, do Tribunal Constitucional
tos do aresto declaratório da inconstitucio- alemão e da Corte Constitucional ita-
nalidade, configurando, inclusive, instru- liana. Ambos, Supremo e Senado, re-
mento de economia processual. Atribuía- alizam, na Federação brasileira, a atri-
se, pois, ao ato do Senado caráter ampliativo buição que é dada a essas Cortes eu-
e não apenas paralisante ou derrogatório do ropéias.
diploma viciado. E, não fosse assim, inó- Ao Supremo cabe julgar da in-
cuo seria o instituto com referência à maio- constitucionalidade das leis ou atos,
ria das situações formadas na vigência da emitindo a decisão declaratória quan-
lei declarada inconstitucional. do consegue atingir o quorum qualifi-
Percebeu essa realidade o Senador Ac- cado.
cioly Filho (BRASIL, 1975, 266-268), que Todavia, aí não se exaure o episó-
defendeu a seguinte orientação: dio se aquilo que se deseja é dar efei-
“Posto em face de uma decisão do tos erga omnes à decisão.
STF, que declara a inconstitucionali- A declaração de inconstituciona-
dade de lei ou decreto, ao Senado não lidade, só por ela, não tem a virtude
cabe tão-só a tarefa de promulgador de produzir o desaparecimento da lei
desse decisório. ou ato, não o apaga, eis que fica a pro-
A declaração é do Supremo, mas a duzir efeitos fora da relação proces-
suspensão é do Senado. Sem a decla- sual em que se proferiu a decisão.
ração, o Senado não se movimenta, Do mesmo modo, a revogação da
pois não lhe é dado suspender a exe- lei ou decreto não tem o alcance e a
cução de lei ou decreto não declarado profundidade da suspensão. Conso-
inconstitucional. Essa suspensão é ante já se mostrou, e é tendência no
mais do que a revogação da lei ou de- direito brasileiro, só a suspensão por
creto, tanto pelas suas conseqüências declaração de inconstitucionalidade
quanto por desnecessitar da concor- opera efeito ex tunc, ao passo que a re-
dância da outra Casa do Congresso e vogação tem eficácia só a partir da
da sanção do Poder Executivo. Em data de sua vigência.
suas conseqüências, a suspensão vai Assim, é diferente a revogação de
muito além da revogação. Esta opera uma lei da suspensão de sua vigência
ex nunc, alcança a lei ou ato revogado por inconstitucionalidade.”
só a partir da vigência do ato revoga- Adiante, o insigne parlamentar concluía
dor, não tem olhos para trás e, assim, (p. 268):

152 Revista de Informação Legislativa


“Revogada uma lei, ela continua tureza do instituto, infirmando a possibili-
sendo aplicada, no entanto, às situa- dade de o Senado Federal revogar o ato de
ções constituídas antes da revogação suspensão anteriormente editado, ou de res-
(art. 153, § 3o, da Constituição). Os tringir o alcance da decisão proferida pelo
juízes e a administração aplicam-na Supremo Tribunal Federal. Cuidava-se de
aos atos que se realizaram sob o im- Mandado de Segurança impetrado contra a
pério de sua vigência, porque então Resolução no 93, de 14 de outubro de 1965,
ela era a norma jurídica eficaz. Ainda que revogou a Resolução anterior (no 32, de
continua a viver a lei revogada para 25.3.1965), pela qual o Senado suspendera
essa aplicação, continua a ter existên- a execução de preceito do Código Paulista
cia para ser utilizada nas relações ju- de Impostos e Taxas.
rídicas pretéritas (...) A Excelsa Corte pronunciou a inconsti-
A suspensão por declaração de tucionalidade da resolução revogadora,
inconstitucionalidade, ao contrário, contra os votos dos ministros Aliomar Bale-
vale por fulminar, desde o instante do eiro e Hermes Lima, conhecendo do man-
nascimento, a lei ou decreto inconsti- dado de segurança como representação de in-
tucional, importa manifestar que essa constitucionalidade, tal como proposto pelo
lei ou decreto não existiu, não produ- Procurador-Geral da República, Dr. Alcino
ziu efeitos válidos. Salazar5.
A revogação, ao contrário disso, O Supremo Tribunal Federal reconheceu
importa proclamar que, a partir dela, que o Senado não estava obrigado a proce-
o revogado não tem mais eficácia. der à suspensão do ato declarado inconsti-
A suspensão por declaração de tucional. Nessa linha de entendimento, en-
inconstitucionalidade diz que a lei ou sinava o Ministro Victor Nunes:
decreto suspenso nunca existiu, nem “(...) o Senado terá seu próprio cri-
antes nem depois da suspensão. tério de conveniência e oportunidade
Há, pois, distância a separar o para praticar o ato de suspensão. Se
conceito de revogação daquele da sus- uma questão foi aqui decidida por
pensão de execução de lei ou decreto maioria escassa e novos Ministros são
declarado inconstitucional. O ato de nomeados, como há pouco aconteceu,
revogação, pois, não supre o de sus- é de todo razoável que o Senado aguar-
pensão, não o impede, porque não de novo pronunciamento antes de
produz os mesmos efeitos.” suspender a lei. Mesmo porque não
Essa colocação parecia explicitar a na- há sanção específica nem prazo certo
tureza singular da atribuição deferida ao para o Senado se manifestar”6.
Senado Federal sob as Constituições de 1946 Todavia, ao suspender o ato que teve a
e de 1967/69. A suspensão constituía ato inconstitucionalidade pronunciada pelo
político que retira a lei do ordenamento jurí- Supremo Tribunal Federal, não poderia
dico, de forma definitiva e com efeitos retro- aquela Alta Casa do Congresso revogar o
ativos. É o que ressaltava, igualmente, o ato anterior7. Da mesma forma, o ato do Se-
Supremo Tribunal Federal, ao enfatizar que nado haveria de se ater à “extensão do jul-
“a suspensão da vigência da lei por incons- gado do Supremo Tribunal”8, não tendo
titucionalidade torna sem efeito todos os “competência para examinar o mérito da
atos praticados sob o império da lei incons- decisão (...), para interpretá-la, para ampliá-
titucional”3. la ou restringi-la”9.
Vale recordar, a propósito, que, no MS Vê-se, pois, que, tal como assentado no
16.5124, o Supremo Tribunal Federal teve preclaro acórdão do Supremo Tribunal Fe-
oportunidade de discutir largamente a na- deral, o ato do Senado tem o condão de ou-

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torgar eficácia ampla à decisão judicial, vin- extensão do julgado proferido pela Excelsa
culativa, inicialmente, apenas para os liti- Corte.
gantes. Apenas por amor à completude, obser-
Cobra relevo ressaltar que a inércia do ve-se que o Projeto que resultou na Emenda
Senado não afeta a relação entre os Poderes, n. 16/65 pretendeu conferir nova discipli-
não se podendo vislumbrar qualquer viola- na ao instituto da suspensão pelo Senado.
ção constitucional na eventual recusa à pre- Dizia-se na Exposição de Motivos:
tendida extensão de efeitos. Evidentemen- “Ao direito italiano pedimos, to-
te, se pretendesse outorgar efeito genérico à davia, uma formulação mais singela
decisão do Supremo Tribunal, não precisa- e mais eficiente do que a do art. 64 da
ria o constituinte valer-se dessa fórmula nossa Constituição, para tornar explí-
complexa. cito, a partir da declaração de ilegiti-
Caberia indagar se o Supremo Tribunal midade, o efeito erga omnes de decisões
Federal poderia vir a reconhecer a constitu- definitivas do Supremo Tribunal, pou-
cionalidade de lei anteriormente declarada pando ao Senado o dever correlato de
inconstitucional, mesmo após a regular co- suspensão da lei ou do decreto – ex-
municação ao Senado. Considerando o lap- pediente consentâneo com as teorias
so de tempo decorrido entre a comunicação de direito público em 1934, quando
e o novo julgado, a resposta poderá ser afir- ingressou em nossa legislação, mas
mativa. Assim como o Senado não está obri- presentemente suplantada pela for-
gado a suspender imediatamente o ato de- mulação contida no art. 136 do esta-
clarado inconstitucional pelo Supremo Tri- tuto de 1948: ‘Quando la Corte dichi-
bunal Federal, nada obsta a que o Tribunal ara l’illegittimità costituzionale di una
reveja a orientação anteriormente firmada. norma di legge o di atto avente forza
Neste caso, a suspensão superveniente não di legge, la norma cessa di avere effi-
deverá produzir conseqüência juridicamen- cacia dal giorno sucessivo alla publi-
te relevante. cazione della decisione’” (BRASIL,
Finalmente, deve-se observar que “a fun- 1968, p. 24).
ção política exercida pelo Senado é abran- O art. 64 da Constituição passava a ter a
gente dos atos estaduais e municipais”. E seguinte redação:
não se restringe à lei ou decreto, tal como pres- “Art. 64. Incumbe ao Presidente
crito no texto constitucional, contemplando do Senado Federal, perdida a eficácia
as várias modalidades normativas, de dife- de lei ou ato de natureza normativa
rentes denominações, “que de decretos fa- (art. 101, § 3o), fazer publicar no Diá-
zem as vezes”10. rio Oficial e na Coleção das leis, a con-
As conclusões assentadas acima pare- clusão do julgado que lhe for comuni-
cem consentâneas com a natureza do insti- cado”.
tuto. O Senado Federal não revoga o ato A proposta de alteração do disposto no
declarado inconstitucional, até porque lhe art. 64 da Constituição, com a atribuição de
falece competência para tanto11. Cuida-se eficácia erga omnes à declaração de inconsti-
de ato político que empresta eficácia erga tucionalidade proferida pelo Supremo Tri-
omnes à decisão do Supremo Tribunal pro- bunal Federal, foi porém, rejeitada (BRASIL,
ferida em caso concreto. Não se obriga o 1968, p. 88-90).
Senado Federal a expedir o ato de suspen- A ausência de disciplina sobre a maté-
são, não configurando eventual omissão ou ria contribuiu para que o Supremo Tribunal
qualquer infringência a princípio de ordem se ocupasse do tema, especialmente no que
constitucional. Não pode a Alta Casa do dizia respeito aos efeitos da declaração de
Congresso, todavia, restringir ou ampliar a inconstitucionalidade. Nessa hipótese, o

154 Revista de Informação Legislativa


Tribunal deveria ou não comunicar a decla- ram a inconstitucionalidade de uma lei, li-
ração de inconstitucionalidade ao Senado, mitando-se a fixar a orientação constitucio-
para os fins do art. 64 da Constituição de nalmente adequada ou correta.
1946 (modificado pela Emenda no 16/65)? Isso se verifica quando o Supremo Tri-
Em 1970, o Tribunal começou a debater bunal afirma que dada disposição há de ser
o tema12, tendo firmado posição, em 1977, interpretada dessa ou daquela forma, supe-
quanto à dispensabilidade de intervenção rando, assim, entendimento adotado pelos
do Senado Federal nos casos de declaração tribunais ordinários ou pela própria Admi-
de inconstitucionalidade de lei proferida na nistração. A decisão do Supremo Tribunal
representação de inconstitucionalidade não tem efeito vinculante, valendo nos es-
(controle abstrato)13. Passou-se, assim, a atri- tritos limites da relação processual subjeti-
buir eficácia geral à decisão de inconstituci- va. Como não se cuida de declaração de in-
onalidade proferida em sede de controle constitucionalidade de lei, não há que se co-
abstrato, procedendo-se à redução teleoló- gitar aqui de qualquer intervenção do Sena-
gica do disposto no art. 42, VII, da Consti- do, restando o tema aberto para inúmeras
tuição de 1967/6914. controvérsias.
Situação semelhante ocorre quando o
2. A suspensão pelo Senado Federal Supremo Tribunal Federal adota uma inter-
da execução de lei declarada pretação conforme à Constituição, restrin-
gindo o significado de uma dada expressão
inconstitucional pelo Supremo
literal ou colmatando uma lacuna contida
Tribunal Federal sob a no regramento ordinário. Aqui o Supremo
Constituição de 1988 Tribunal não afirma propriamente a ilegiti-
A amplitude conferida ao controle abs- midade da lei, limitando-se a ressaltar que
trato de normas e a possibilidade de que se uma dada interpretação é compatível com a
suspenda, liminarmente, a eficácia de leis Constituição, ou, ainda, que, para ser consi-
ou atos normativos, com eficácia geral, derada constitucional, determinada norma
contribuíram, certamente, para que se que- necessita de um complemento (lacuna aber-
brantasse a crença na própria justificativa ta) ou restrição (lacuna oculta − redução te-
desse instituto, que se inspirava diretamen- leológica). Todos esses casos de decisão com
te numa concepção de separação de Pode- base em uma interpretação conforme à Cons-
res − hoje necessária e inevitavelmente ul- tituição não podem ter a sua eficácia ampli-
trapassada. Se o Supremo Tribunal pode, ada com o recurso ao instituto da suspen-
em ação direta de inconstitucionalidade, são de execução da lei pelo Senado Federal.
suspender, liminarmente, a eficácia de uma Mencionem-se, ainda, os casos de decla-
lei, até mesmo de uma Emenda Constitucio- ração de inconstitucionalidade parcial sem re-
nal, por que haveria a declaração de incons- dução de texto, nos quais se explicita que um
titucionalidade, proferida no controle inci- significado normativo é inconstitucional
dental, de valer tão-somente para as partes? sem que a expressão literal sofra qualquer
A única resposta plausível nos leva a crer alteração.
que o instituto da suspensão pelo Senado Também nessas hipóteses, a suspensão
assenta-se hoje em razão de índole exclusi- de execução da lei ou do ato normativo pelo
vamente histórica. Senado revela-se problemática, porque não
Deve-se observar, outrossim, que o insti- se cuida de afastar a incidência de disposi-
tuto da suspensão da execução da lei pelo ções do ato impugnado, mas tão-somente
Senado mostra-se inadequado para assegu- de um de seus significados normativos.
rar eficácia geral ou efeito vinculante às de- Não é preciso dizer que a suspensão de
cisões do Supremo Tribunal que não decla- execução pelo Senado não tem qualquer

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 155


aplicação naqueles casos nos quais o Tri- da Suprema Corte que afirme a inconstitu-
bunal limita-se a rejeitar a argüição de in- cionalidade da lei ou do ato normativo.
constitucionalidade. Nessas hipóteses, a Em acórdão proferido no RE 190.728,
decisão vale per se. Da mesma forma, o ve- teve a 1a Turma do Supremo Tribunal Fede-
tusto instituto não tem qualquer serventia ral a oportunidade de, por maioria de votos,
para reforçar ou ampliar os efeitos da deci- vencido o Ministro Celso de Mello, afir-
são do Tribunal naquelas matérias nas quais mar a dispensabilidade de se encaminhar
a Corte, ao prover ou não um dado recurso, o tema constitucional ao Plenário do Tri-
fixa uma interpretação da Constituição. bunal, desde que o Supremo Tribunal já
Da mesma forma, a suspensão da execu- se tenha pronunciado sobre a constituci-
ção da lei inconstitucional não se aplica à onalidade ou a inconstitucionalidade da
declaração de não-recepção da lei pré-cons- lei questionada16.
titucional levada a efeito pelo Supremo Tri- É o que se pode depreender do voto pro-
bunal. Portanto, das decisões possíveis em ferido pelo Ministro Ilmar Galvão, designa-
sede de controle, a suspensão de execução do relator para o acórdão, verbis:
pelo Senado está restrita aos casos de decla- “Esta nova e salutar rotina que, aos
ração de inconstitucionalidade da lei ou do poucos, vai tomando corpo – de par
ato normativo. com aquela anteriormente assinalada,
É certo, outrossim, que a admissão da fundamentada na esteira da orienta-
pronúncia de inconstitucionalidade com ção consagrada no art. 101 do RI/STF,
efeito limitado no controle incidental ou di- onde está prescrito que ‘a declaração
fuso (declaração de inconstitucionalidade de constitucionalidade ou inconstitu-
com efeito ex nunc), cuja necessidade já vem cionalidade de lei ou ato normativo,
sendo reconhecida no âmbito do STF, pare- pronunciada por maioria qualificada,
ce debilitar, fortemente, a intervenção do aplica-se aos novos feitos submetidos
Senado Federal – pelo menos aquela de co- às Turmas ou ao Plenário’ –, além de,
notação substantiva15. É que a “decisão de por igual, não merecer a censura de
calibragem” tomada pelo Tribunal parece ser afrontosa ao princípio insculpido
avançar também sobre a atividade inicial no art. 97 da CF, está em perfeita con-
da Alta Casa do Congresso. Pelo menos, não sonância não apenas com o princípio
resta dúvida de que o Tribunal assume aqui da economia processual, mas também
uma posição que parte da doutrina atribuía, com o da segurança jurídica, merecen-
anteriormente, ao Senado Federal. do, por isso, todo encômio, como pro-
Todas essas razões demonstram o novo cedimento que vem ao encontro da tão
significado do instituto de suspensão de desejada racionalização orgânica da
execução pelo Senado, no contexto norma- instituição judiciária brasileira.
tivo da Constituição de 1988. Tudo, portanto, está a indicar que
se está diante de norma que não deve
3. A repercussão da declaração de ser aplicada com rigor literal, mas, ao
inconstitucionalidade proferida revés, tendo-se em mira a finalidade
objetivada, o que permite a elasticida-
pelo Supremo Tribunal sobre as
de do seu ajustamento às variações da
decisões de outros tribunais realidade circunstancial”17.
Questão interessante agitada pela juris- Na ocasião, acentuou-se que referido
prudência do Supremo Tribunal Federal diz entendimento fora igualmente adotado pela
respeito à necessidade de se utilizar o pro- 2a Turma, como consta da ementa do acór-
cedimento previsto no art. 97 da Constitui- dão proferido no AgRgAI. 168.149, da rela-
ção, na hipótese de existir pronunciamento toria do eminente Ministro Marco Aurélio:

156 Revista de Informação Legislativa


“Versando a controvérsia sobre o nos processos de controle abstrato e concre-
ato normativo já declarado inconsti- to. A decisão do Supremo Tribunal Federal,
tucional pelo guardião maior da Car- tal como colocada, antecipa o efeito vincu-
ta Política da República – o Supremo lante de seus julgados em matéria de con-
Tribunal Federal –, descabe o deslo- trole de constitucionalidade incidental, per-
camento previsto no artigo 97 do refe- mitindo que o órgão fracionário se desvin-
rido Diploma maior. O julgamento de cule do dever de observância da decisão do
plano pelo órgão fracionado homena- Pleno ou do Órgão Especial do Tribunal a
geia não só a racionalidade, como tam- que se encontra vinculado. Decide-se auto-
bém implica interpretação teleológica nomamente com fundamento na declaração
do artigo 97 em comento, evitando a de inconstitucionalidade (ou de constituci-
burocratização dos atos judiciais no onalidade) do Supremo Tribunal Federal
que nefasta ao princípio da economia proferida incidenter tantum.
e da celeridade. A razão de ser do pre-
ceito está na necessidade de evitar-se 4. A suspensão de execução da lei pelo
que órgãos fracionados apreciem, pela Senado e mutação constitucional
vez primeira, a pecha de inconstitu-
cionalidade argüida em relação a um Todas essas reflexões e práticas parecem
certo ato normativo”18. recomendar uma releitura do papel do Se-
Orientação semelhante vem de ser reite- nado no processo de controle de constituci-
rada, em decisão recente, na qual se explici- onalidade.
tou que “o acórdão recorrido deu aplicação Quando o instituto foi concebido no Bra-
ao decidido pelo STF nos RREE 150.755-PE sil, em 1934, dominava uma determinada
e 150.764-PE”, não havendo necessidade, concepção da divisão de poderes, há muito
por isso, de a questão ser submetida ao Ple- superada. Em verdade, quando da promul-
nário do Tribunal19. gação do texto de 1934, outros países já atri-
Em acórdão de 22 agosto de 1997, houve buíam eficácia geral às decisões proferidas
por bem o Tribunal ressaltar, uma vez mais, em sede de controle abstrato de normas, tais
que a reserva de plenário da declaração de como o previsto na Constituição de Weimar
inconstitucionalidade de lei ou ato norma- de 1919 e no modelo austríaco de 1920.
tivo funda-se na presunção de constitucio- A exigência de que a eficácia geral da
nalidade que os protege, somada a razões declaração de inconstitucionalidade proferi-
de segurança jurídica. Assim sendo, “a de- da pelo Supremo Tribunal Federal fique a
cisão plenária do Supremo Tribunal decla- depender de uma decisão do Senado Federal,
ratória de inconstitucionalidade de norma, introduzida entre nós com a Constituição de
posto que incidente, sendo pressuposto ne- 1934 e preservada na Constituição de 1988,
cessário e suficiente a que o Senado lhe con- perdeu grande parte do seu significado com
fira efeitos erga omnes, elide a presunção de a introdução do controle abstrato de normas.
sua constitucionalidade; a partir daí, podem Se a intensa discussão sobre o monopó-
os órgãos parciais dos outros tribunais aco- lio da ação por parte do Procurador-Geral
lhê-la para fundar a decisão de casos con- da República não levou a uma mudança na
cretos ulteriores, prescindindo de submeter jurisprudência consolidada sobre o assun-
a questão de constitucionalidade ao seu pró- to, é fácil constatar que ela foi decisiva para
prio plenário”20. a alteração introduzida pelo constituinte de
Esse entendimento marca uma evolução 1988, com a significativa ampliação do di-
no sistema de controle de constitucionali- reito de propositura da ação direta.
dade brasileiro, que passa a equiparar, pra- O constituinte assegurou o direito do
ticamente, os efeitos das decisões proferidas Procurador-Geral da República de propor a

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ação de inconstitucionalidade. Este é, toda- mais sistemas “difusos” ou “incidentes” de
via, apenas um entre os diversos órgãos ou controle de constitucionalidade.
entes legitimados a propor a ação direta de A Constituição de 1988 reduziu o signi-
inconstitucionalidade. ficado do controle de constitucionalidade
Nos termos do art. 103 da Constituição incidental ou difuso, ao ampliar, de forma
de 1988, dispõem de legitimidade para pro- marcante, a legitimação para propositura
por a ação de inconstitucionalidade: o Pre- da ação direta de inconstitucionalidade (CF,
sidente da República, a Mesa do Senado art. 103), permitindo que, praticamente, to-
Federal, a Mesa da Câmara dos Deputados, das as controvérsias constitucionais rele-
a Mesa de uma Assembléia Legislativa, o vantes sejam submetidas ao Supremo Tri-
Governador do Estado, o Procurador-Geral bunal Federal mediante processo de contro-
da República, o Conselho Federal da Ordem le abstrato de normas.
dos Advogados do Brasil, os partidos polí- Convém assinalar que, tal como já ob-
ticos com representação no Congresso Na- servado por Anschütz (1930) ainda no regi-
cional e as confederações sindicais ou enti- me de Weimar, toda vez que se outorga a
dades de classe de âmbito nacional. um Tribunal especial atribuição para deci-
Com isso satisfez o constituinte apenas dir questões constitucionais, limita-se, ex-
parcialmente a exigência daqueles que soli- plícita ou implicitamente, a competência da
citavam fosse assegurado o direito de pro- jurisdição ordinária para apreciar tais con-
positura da ação a um grupo de, v. g., dez trovérsias.
mil cidadãos ou que defendiam até mesmo Portanto, parece quase intuitivo que, ao
a introdução de uma ação popular de in- ampliar, de forma significativa, o círculo de
constitucionalidade. entes e órgãos legitimados a provocar o Su-
Tal fato fortalece a impressão de que, com premo Tribunal Federal, no processo de con-
a introdução desse sistema de controle abs- trole abstrato de normas, acabou o constitu-
trato de normas, com ampla legitimação e, inte por restringir, de maneira radical, a am-
particularmente, a outorga do direito de pro- plitude do controle difuso de constitucio-
positura a diferentes órgãos da sociedade, nalidade.
pretendeu o constituinte reforçar o controle Assim, se se cogitava, no período anteri-
abstrato de normas no ordenamento jurídi- or a 1988, de um modelo misto de controle de
co brasileiro como peculiar instrumento de constitucionalidade, é certo que o forte acen-
correção do sistema geral incidente. to residia, ainda, no amplo e dominante sis-
Não é menos certo, por outro lado, que a tema difuso de controle. O controle direto
ampla legitimação conferida ao controle continuava a ser algo acidental e episódico
abstrato, com a inevitável possibilidade de dentro do sistema difuso.
se submeter qualquer questão constitucio- A Constituição de 1988 alterou, de ma-
nal ao Supremo Tribunal Federal, operou neira radical, essa situação, conferindo ên-
uma mudança substancial – ainda que não fase não mais ao sistema difuso ou inciden-
desejada – no modelo de controle de consti- tal, mas ao modelo concentrado, uma vez que
tucionalidade até então vigente no Brasil. as questões constitucionais passaram a ser
O monopólio de ação outorgado ao Pro- veiculadas, fundamentalmente, mediante
curador-Geral da República no sistema de ação direta de inconstitucionalidade peran-
1967/69 não provocou uma alteração pro- te o Supremo Tribunal Federal.
funda no modelo incidente ou difuso. Este Ressalte-se que essa alteração não se
continuou predominante, integrando-se a operou de forma ainda profunda porque o
representação de inconstitucionalidade a Supremo Tribunal manteve a orientação
ele como um elemento ancilar, que contri- anterior, que considerava inadmissível o
buía muito pouco para diferençá-lo dos de- ajuizamento de ação direta contra direito

158 Revista de Informação Legislativa


pré-constitucional em face da nova Consti- Por outro lado (...), o ensaio difícil
tuição. de convivência integral dos dois mé-
A ampla legitimação, a presteza e a cele- todos de controle de constitucionali-
ridade desse modelo processual, dotado in- dade do Brasil só se torna possível na
clusive da possibilidade de se suspender medida em que se acumularam, no
imediatamente a eficácia do ato normativo Supremo Tribunal Federal, os dois
questionado, mediante pedido de cautelar, papéis, o de órgão exclusivo do siste-
fazem com que as grandes questões consti- ma concentrado e o de órgão de cúpu-
tucionais sejam solvidas, na sua maioria, la do sistema difuso.
mediante a utilização da ação direta, típico De tal modo, o peso do Supremo
instrumento do controle concentrado. As- Tribunal, em relação aos outros órgãos
sim, se continuamos a ter um modelo misto de jurisdição, que a ação declaratória
de controle de constitucionalidade, a ênfa- de constitucionalidade traz é relativo,
se passou a residir não mais no sistema di- porque, já no sistema de convivência
fuso, mas no de perfil concentrado. dos dois métodos, a palavra final é
Essa peculiaridade foi destacada por sempre reservada ao Supremo Tribu-
Sepúlveda Pertence no voto que proferiu na nal Federal, se bem que, declarada a
ADC no 1, verbis: inconstitucionalidade no sistema di-
“(...) Esta ação é um momento inevi- fuso, ainda convivamos com o ana-
tável na prática da consolidação desse cronismo em que se transformou, es-
audacioso ensaio do constitucionalis- pecialmente após a criação da ação
mo brasileiro – não apenas, como nota direta, a necessidade da deliberação
Cappelletti, de aproximar o controle do Senado para dar eficácia erga om-
difuso e o controle concentrado, como nes à declaração incidente” 21.
se observa em todo o mundo – mas, sim, Assinale-se, outrossim, que a interpreta-
de convivência dos dois sistemas na ção que se deu à suspensão de execução da
integralidade das suas características. lei pela doutrina majoritária e pela própria
Esta convivência não se faz sem jurisprudência do Supremo Tribunal Fede-
uma permanente tensão dialética na ral contribuiu decisivamente para que a afir-
qual, a meu ver, a experiência tem de- mação sobre a teoria da nulidade da lei in-
monstrado que será inevitável o refor- constitucional restasse sem concretização
ço do sistema concentrado, sobretudo entre nós.
nos processos de massa; na multipli- Nesse sentido, constatou Lúcio Bitten-
cidade de processos que inevitavel- court que os constitucionalistas brasileiros
mente, a cada ano, na dinâmica da le- não lograram fundamentar nem a eficácia
gislação, sobretudo da legislação tri- erga omnes, nem a chamada retroatividade
butária e matérias próximas, levará, ex tunc da declaração de inconstitucionali-
se não se criam mecanismos eficazes dade proferida pelo Supremo Tribunal Fe-
de decisão relativamente rápida e uni- deral.
forme, ao estrangulamento da máqui- É o que se lê na seguinte passagem de
na judiciária, acima de qualquer pos- seu magno trabalho:
sibilidade de sua ampliação e, progres- “(...) as dificuldades e problemas
sivamente, ao maior descrédito da Jus- surgem, precisamente, no que tange à
tiça, pela sua total incapacidade de eficácia indireta ou colateral da sen-
responder à demanda de centenas de tença declaratória da inconstituciona-
milhares de processos rigorosamente lidade, pois, embora procurem os au-
idênticos, porque reduzidos a uma só tores estendê-la a situações jurídicas
questão de direito. idênticas, considerando indiretamen-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 159


te anulada a lei, porque a ‘sua aplica- prema Corte tinha-se a segurança de que,
ção não obteria nunca mais o concur- em princípio, nenhum tribunal haveria de
so da justiça’, não têm, todavia, con- conferir eficácia à norma objeto de censura.
seguido apresentar fundamento téc- Assim, a ausência de mecanismo processu-
nico, razoavelmente aceitável, para al assemelhado à “força de lei” (Geset-
justificar essa extensão. zeskraft) do direito alemão não impediu que
Não o apontam os tratadistas os autores americanos sustentassem a nuli-
americanos – infensos à sistematiza- dade da lei inconstitucional22.
ção, que caracteriza os países onde se Sem dispor de um mecanismo que em-
adota a codificação do direito positi- prestasse força de lei ou que, pelo menos, con-
vo –, limitando-se a enunciar o prin- ferisse caráter vinculante às decisões do
cípio, em termos categóricos: a lei de- Supremo Tribunal Federal para os demais
clarada inconstitucional deve ser con- Tribunais tal como o stare decisis america-
siderada, para todos os efeitos, como no23, contentava-se a doutrina brasileira em
se jamais, em qualquer tempo, houves- ressaltar a evidência da nulidade da lei in-
se possuído eficácia jurídica – is to be constitucional (BITTENCOURT, 1997, p.
regarded as having never, at any time, 140-141) e a obrigação dos órgãos estatais
been possessed of any legal force. de se absterem de aplicar disposição que teve
Os nossos tratadistas também não a sua inconstitucionalidade declarada pelo
indicam a razão jurídica determinan- Supremo Tribunal Federal (NUNES, 1943,
te desse efeito amplo. Repetem a dou- p. 592; BITTENCOURT, 1997, p. 144). A sus-
trina dos escritores americanos e as pensão da execução pelo Senado não se mos-
afirmações dos tribunais, sem buscar- trou apta a superar essa incongruência, espe-
lhes o motivo, a causa ou o fundamen- cialmente porque se emprestou a ela um sen-
to. Nem o grande Rui, com o seu gênio tido substantivo que talvez não devesse ter.
estelar, nem os que subseqüentemen- Segundo entendimento amplamente aceito24,
te, na sua trilha luminosa, versaram o esse ato do Senado Federal conferia eficácia
assunto com a proficiência de um Cas- erga omnes à declaração de inconstitucionali-
tro Nunes. dade proferida no caso concreto (FERREIRA
É que, em face dos princípios que FILHO, 2003, p. 35; SILVA, 2003, p. 52).
orientam a doutrina de coisa julgada Ainda que se aceite, em princípio, que a
e que são comumente aceitos entre suspensão da execução da lei pelo Senado
nós, é difícil, senão impossível, justi- retira a lei do ordenamento jurídico com efi-
ficar aqueles efeitos que, aliás, se veri- cácia ex tunc, esse instituto, tal como foi in-
ficam em outras sentenças como, por terpretado e praticado, entre nós, configura
exemplo, as que decidem matéria de antes a negação do que a afirmação da teo-
estado civil, as quais, segundo enten- ria da nulidade da lei inconstitucional. A
dimento geral, prevalecem erga omnes” não-aplicação geral da lei depende exclusi-
(BITTENCOURT, 1997, p. 140-141). vamente da vontade de um órgão eminente-
Em verdade, ainda que não pertencente mente político e não dos órgãos judiciais
ao universo específico da judicial review, o incumbidos da aplicação cotidiana do di-
instituto do stare decisis desonerava os cons- reito. Tal fato reforça a idéia de que, embora
titucionalistas americanos, pelo menos em tecêssemos loas à teoria da nulidade da lei
parte, de um dever mais aprofundado de inconstitucional, consolidávamos institutos
fundamentação na espécie. Como esse me- que iam de encontro à sua implementação.
canismo assegura efeito vinculante às deci- Assinale-se que, se a doutrina e a juris-
sões das Cortes Superiores, em caso de de- prudência entendiam que lei inconstitucio-
claração de inconstitucionalidade pela Su- nal era ipso jure nula, deveriam ter defendi-

160 Revista de Informação Legislativa


do, de forma coerente, que o ato de suspen- o modelo concentrado. Assim, passou a do-
são a ser praticado pelo Senado destinava- minar a eficácia geral das decisões proferi-
se exclusivamente a conferir publicidade à das em sede de controle abstrato (ADIn e
decisão do STF. ADC).
Essa foi a posição sustentada, isolada- A disciplina processual conferida à Ar-
mente, por Lúcio Bittencourt (1997, p. 145- güição de Descumprimento de Preceito Fun-
146): damental – ADPF, que constitui instrumen-
“Se o Senado não agir, nem por to subsidiário para solver questões não con-
isso ficará afetada a eficácia da deci- templadas pelo modelo concentrado – ADIn
são, a qual continuará a produzir to- e ADC –, revela, igualmente, a inconsistên-
dos os seus efeitos regulares que, de cia do atual modelo. A decisão do caso con-
fato, independem de qualquer dos creto proferida em ADPF, por se tratar de
poderes. O objetivo do art. 45, IV, da processo objetivo, será dotada de eficácia
Constituição – a referência é ao texto erga omnes; a mesma questão resolvida no
de 1967 – é apenas tornar pública a processo de controle incidental terá eficácia
decisão do tribunal, levando-a ao co- inter partes.
nhecimento de todos os cidadãos. Di- No que se refere aos recursos especial e
zer que o Senado ‘suspende a execu- extraordinário, a Lei n. 8.038, de 1990, ha-
ção’ da lei inconstitucional é, positi- via concedido ao Relator a faculdade de
vamente, impropriedade técnica, uma negar seguimento a recurso manifestamen-
vez que o ato, sendo ‘inexistente’ ou te intempestivo, incabível, improcedente ou
‘ineficaz’, não pode ter suspensa a sua prejudicado, ou, ainda, que contrariasse
execução”. Súmula do Supremo Tribunal Federal ou no
Tal concepção afigurava-se absoluta- Superior Tribunal de Justiça. O Código de
mente coerente com o fundamento da nuli- Processo Civil, por sua vez, em caráter am-
dade da lei inconstitucional. Uma orienta- pliativo, incorporou disposição que autori-
ção dogmática minimamente consistente za o relator a dar provimento ao recurso se a
haveria de encaminhar-se nesse sentido, até decisão recorrida estiver em manifesto con-
porque a atribuição de funções substanti- fronto com súmula ou com a jurisprudência
vas ao Senado Federal era a própria nega- dominante do respectivo tribunal, do Supre-
ção da idéia de nulidade da lei devidamen- mo Tribunal Federal, ou de Tribunal Supe-
te declarada pelo órgão máximo do Poder rior (art. 557, § 1o-A, acrescentado pela Lei
Judiciário. n. 9.756, de 1998).
Não foi o que se viu inicialmente. Como Tem-se, pois, que, com o advento dessa
apontado, a jurisprudência e a doutrina aca- nova fórmula, passou-se a admitir não só a
baram por conferir significado substancial à negativa de seguimento de recurso extraor-
decisão do Senado, entendendo que somen- dinário, nas hipóteses referidas, mas tam-
te o ato de suspensão do Senado mostrava- bém o provimento do aludido recurso nos
se apto a conferir efeitos gerais à declaração casos de manifesto confronto com a juris-
de inconstitucionalidade proferida pelo prudência do Supremo Tribunal, mediante
Supremo Tribunal Federal, cuja eficácia es- decisão unipessoal do relator.
taria limitada às partes envolvidas no pro- Também aqui parece evidente que o le-
cesso. gislador entendeu possível estender de for-
De qualquer sorte, a ampliação do con- ma geral os efeitos da decisão adotada pelo
trole abstrato de normas, inicialmente reali- Tribunal, tanto nas hipóteses de declaração
zada nos termos do art. 103 e, posteriormen- de inconstitucionalidade incidental de de-
te, com o advento da ADC, alterou significa- terminada lei federal, estadual ou munici-
tivamente a relação entre o modelo difuso e pal – hipótese que estaria submetida à in-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 161


tervenção do Senado –, quanto nos casos de Rio de Janeiro, para dar provimento a recur-
fixação de uma dada interpretação consti- so extraordinário no qual se discutia a ilegi-
tucional pelo Tribunal. timidade de taxa de iluminação pública ins-
Ainda que a questão pudesse comportar tituída pelo Município de Cabo Verde, no
outras leituras, é certo que o legislador ordi- Estado de Minas Gerais27.
nário, com base na jurisprudência do Supre- Carlos Velloso aplicou jurisprudência de
mo Tribunal Federal, considerou legítima a recurso proveniente do Estado de São Pau-
atribuição de efeitos ampliados à decisão pro- lo para fundamentar sua decisão no AI
ferida pelo Tribunal, até mesmo em sede de 423.25228, em que se discutia a inconstituci-
controle de constitucionalidade incidental. onalidade de taxa de coleta e limpeza pú-
Observe-se, ainda, que, nas hipóteses de blica do Município do Rio de Janeiro, con-
declaração de inconstitucionalidade de leis vertendo-o em recurso extraordinário (art.
municipais, o Supremo Tribunal Federal tem 544, §§ 3o e 4o, do CPC) e dando-lhe provi-
adotado uma postura significativamente mento.
ousada, conferindo efeito vinculante não só Sepúlveda Pertence lançou mão de pre-
à parte dispositiva da decisão de inconsti- cedentes originários do Estado de São Pau-
tucionalidade, mas também aos próprios lo para dar provimento ao RE 345.04829, no
fundamentos determinantes. É que são nu- qual se argüia a inconstitucionalidade de
mericamente expressivos os casos em que o taxa de limpeza pública do Município de
Supremo Tribunal tem estendido, com base Belo Horizonte.
no art. 557, caput e § 1o -A do Código de Pro- Celso de Mello, ao apreciar matéria rela-
cesso Civil, a decisão do plenário que decla- tiva à progressividade do IPTU do Municí-
ra a inconstitucionalidade de norma muni- pio de Belo Horizonte, conheceu e deu pro-
cipal a outras situações idênticas, oriundas vimento a recurso extraordinário tendo em
de municípios diversos. Em suma, tem-se conta diversos precedentes oriundos do Es-
considerado dispensável, no caso de mode- tado de São Paulo30.
los legais idênticos, a submissão da ques- Tal procedimento evidencia, ainda que
tão ao Plenário. de forma tímida, o efeito vinculante dos fun-
Nesse sentido, Maurício Corrêa, ao jul- damentos determinantes da decisão exara-
gar o RE 228.844/SP25, no qual se discutia a da pelo Supremo Tribunal Federal no con-
ilegitimidade do IPTU progressivo cobrado trole de constitucionalidade do direito mu-
pelo Município de São José do Rio Preto, no nicipal. Evidentemente, semelhante orien-
Estado de São Paulo, valeu-se de fundamen- tação somente pode vicejar caso se admita
to fixado pelo Plenário deste Tribunal, em que a decisão tomada pelo Plenário seja
precedente oriundo do Estado de Minas dotada de eficácia transcendente, sendo, por
Gerais, no sentido da inconstitucionali- isso, dispensável a manifestação do Sena-
dade de lei do Município de Belo Hori- do Federal.
zonte, que instituiu alíquota progressiva Um outro argumento, igualmente rele-
do IPTU. vante diz respeito ao controle de constituci-
Também Nelson Jobim, no exame da onalidade nas ações coletivas. Aqui, somen-
mesma matéria (progressividade do IPTU) te por força de uma compreensão ampliada
em recurso extraordinário interposto con- ou do uso de uma figura de linguagem
tra lei do Município de São Bernardo do pode-se falar em decisão com eficácia inter
Campo, aplicou tese fixada em julgamentos partes.
que apreciaram a inconstitucionalidade de Como sustentar que uma decisão profe-
lei do Município de São Paulo26. rida numa ação coletiva, numa ação civil
Ellen Gracie utilizou-se de precedente pública ou em um mandado de segurança
oriundo do Município de Niterói, Estado do coletivo, que declare a inconstitucionalida-

162 Revista de Informação Legislativa


de de uma lei determinada, terá eficácia ape- decisões dotadas de eficácia geral, acabou
nas entre as partes? por modificar radicalmente a concepção que
Nesses casos, a suspensão de execução dominava entre nós sobre a divisão de po-
da lei pelo Senado, tal como vinha sendo deres, tornando comum no sistema a deci-
entendida até aqui, revela-se, para dizer o são com eficácia geral, que era excepcional
mínimo, completamente inútil caso se en- sob a Emenda Constitucional de 16/65 e sob
tenda que ela tem uma outra função que não a Carta de 1967/69.
a de atribuir publicidade à decisão declara- No sistema constitucional de 1967/69,
tória de ilegitimidade. a ação direta era apenas uma idiossincra-
Recorde-se, a propósito, que o Supremo sia no contexto de um amplo e dominante
Tribunal Federal, em decisão unânime de 7 modelo difuso. A adoção da ADI, posterior-
de abril de 2003, julgou prejudicada a ação mente, conferiu perfil diverso ao nosso sis-
direta de inconstitucionalidade no 1.919 (Re- tema de controle de constitucionalidade, que
latora Min. Ellen Gracie), proposta contra o continuou a ser um modelo misto. A ênfase
Provimento no 556/97, editado pelo Conse- passou a residir, porém, não mais no mode-
lho Superior da Magistratura Paulista. A lo difuso, mas nas ações diretas. O advento
referida resolução previa a destruição física da Lei 9.882/99 conferiu conformação à
dos autos transitados em julgado e arquiva- ADPF, admitindo a impugnação ou a dis-
dos há mais de cinco anos em primeira ins- cussão direta de decisões judiciais das ins-
tância. A decisão pela prejudicialidade de- tâncias ordinárias perante o Supremo Tri-
correu do fato de o Superior Tribunal de Jus- bunal Federal. Tal como estabelecido na re-
tiça, em mandado de segurança coletivo31, ferida lei (art. 10, § 3o), a decisão proferida
impetrado pela Associação dos Advogados nesse processo há de ser dotada de eficácia
de São Paulo (AASP), ter declarado a nuli- erga omnes e de efeito vinculante. Ora, resta
dade daquele ato. evidente que a ADPF estabeleceu uma pon-
Em outros termos, o Supremo Tribunal te entre os dois modelos de controle, atribu-
Federal acabou por reconhecer eficácia erga indo eficácia geral a decisões de perfil inci-
omnes à declaração de ilegitimidade do ato dental.
normativo proferida em mandado de segu- Vê-se, assim, que a Constituição de 1988
rança pelo STJ. Quid juris, então, se a decla- modificou de forma ampla o sistema de con-
ração de inconstitucionalidade for proferi- trole de constitucionalidade, sendo inevitá-
da pelo próprio Supremo Tribunal Federal veis as reinterpretações ou releituras dos
em sede de ação civil pública? institutos vinculados ao controle inciden-
Se a decisão proferida nesses processos tal de inconstitucionalidade, especialmen-
tem eficácia erga omnes (Lei n. 7.347, de 24/ te da exigência da maioria absoluta para
07/1985 – art. 16), afigura-se difícil justifi- declaração de inconstitucionalidade e da
car a necessidade de comunicação ao Sena- suspensão de execução da lei pelo Senado
do Federal. A propósito, convém recordar Federal.
que, em alguns casos, há uma quase confu- O Supremo Tribunal Federal percebeu
são entre o objeto da ação civil pública e o que não poderia deixar de atribuir signifi-
pedido de declaração de inconstitucionalida- cado jurídico à declaração de inconstitucio-
de. Nessa hipótese, não há como cogitar de nalidade proferida em sede de controle in-
uma típica decisão com eficácia inter partes32. cidental, ficando o órgão fracionário de ou-
tras Cortes exonerado do dever de submeter
5. Conclusão a declaração de inconstitucionalidade ao
plenário ou ao órgão especial, na forma do
Conforme destacado, a ampliação do sis- art. 97 da Constituição. Não há dúvida de
tema concentrado, com a multiplicação de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou por

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 163


reconhecer efeito jurídico transcendente à do, reproduz disposição estabelecida, inici-
sua decisão. Embora na fundamentação almente, na Constituição de 1934 (art. 91,
desse entendimento fale-se em quebra da IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64) e
presunção de constitucionalidade, é certo de 1967/69 (art. 42, VIII).
que, em verdade, a orientação do Supremo Portanto, é outro o contexto normativo
acabou por conferir à sua decisão algo asse- que se coloca para a suspensão da execu-
melhado a um efeito vinculante, indepen- ção pelo Senado Federal no âmbito da Cons-
dentemente da intervenção do Senado. Esse tituição de 1988.
entendimento está hoje consagrado na pró- Ao se entender que a eficácia ampliada
pria legislação processual civil (CPC, art. da decisão está ligada ao papel especial da
481, parágrafo único, parte final, na reda- jurisdição constitucional e, especialmente,
ção da Lei n. 9756, de 17.12.1998). se considerarmos que o texto constitucional
Essa é a orientação que parece presidir o de 1988 alterou substancialmente o papel
entendimento que julga dispensável a apli- desta Corte, que passou a ter uma função
cação do art. 97 da Constituição por parte preeminente na guarda da Constituição a
dos Tribunais ordinários, se o Supremo já partir do controle direto exercido na ADIn,
tiver declarado a inconstitucionalidade da na ADC e na ADPF, não há como deixar de
lei, ainda que no modelo incidental. Na opor- reconhecer a necessidade de uma nova com-
tunidade, ressaltou o redator para o acór- preensão do tema.
dão, Ilmar Galvão, no já mencionado RE A aceitação das ações coletivas como
190.728, que o novo entendimento estava instrumento de controle de constitucionali-
“em perfeita consonância não apenas com dade relativiza enormemente a diferença
o princípio da economia processual, mas entre os processos de índole objetiva e os
também com o da segurança jurídica, mere- processos de caráter estritamente subjetivo.
cendo, por isso, todo encômio, como proce- É que a decisão proferida na ação civil pú-
dimento que vem ao encontro da tão deseja- blica, no mandado de segurança coletivo e
da racionalização orgânica da instituição em outras ações de caráter coletivo não mais
judiciária brasileira, ressaltando que se cui- poderá ser considerada uma decisão inter
dava “de norma que não deve ser aplicada partes.
com rigor literal, mas, ao revés, tendo-se em De qualquer sorte, a natureza idêntica
mira a finalidade objetivada, o que permite do controle de constitucionalidade, quanto
a elasticidade do seu ajustamento às varia- às suas finalidades e aos procedimentos
ções da realidade circunstancial”33. comuns dominantes para os modelos difu-
E ela também demonstra que, por razões so e concentrado, não mais parece legitimar
de ordem pragmática, a jurisprudência e a a distinção quanto aos efeitos das decisões
legislação têm consolidado fórmulas que proferidas no controle direto e no controle
retiram do instituto da “suspensão da exe- incidental.
cução da lei pelo Senado Federal” significa- Somente essa nova compreensão parece
do substancial ou de especial atribuição de apta a explicar o fato de o Tribunal ter pas-
efeitos gerais à decisão proferida no caso sado a reconhecer efeitos gerais à decisão
concreto. proferida em sede de controle incidental,
Como se vê, as decisões proferidas pelo independentemente da intervenção do Se-
Supremo Tribunal Federal em sede de con- nado. O mesmo há de se dizer das várias
trole incidental acabam por ter eficácia que decisões legislativas que reconhecem efeito
transcende o âmbito da decisão, o que indi- transcendente às decisões do STF tomadas em
ca que a própria Corte vem fazendo uma sede de controle difuso.
releitura do texto constante do art. 52, X, da Esse conjunto de decisões judiciais e le-
Constituição de 1988, que, como já observa- gislativas revela, em verdade, uma nova

164 Revista de Informação Legislativa


compreensão do texto constitucional no das pelo Plenário do Tribunal (CPC, art. 557,
âmbito da Constituição de 1988. § 1o-A).
É possível, sem qualquer exagero, falar- De fato, é difícil admitir que a decisão
se aqui de uma autêntica mutação constitu- proferida em ADIn ou ADC e na ADPF pos-
cional em razão da completa reformulação sa ser dotada de eficácia geral e a decisão
do sistema jurídico e, por conseguinte, da proferida no âmbito do controle incidental
nova compreensão que se conferiu à regra – esta muito mais morosa porque em geral
do art. 52, X, da Constituição de 1988. Va- tomada após tramitação da questão por to-
lendo-nos dos subsídios da doutrina cons- das as instâncias – continue a ter eficácia
titucional a propósito da mutação constitu- restrita entre as partes.
cional, poder-se-ia cogitar aqui de uma au- Explica-se, assim, o desenvolvimento da
têntica reforma da Constituição sem expressa nova orientação a propósito da decisão do
modificação do texto (FERRAZ, 1986, p. 64 et Senado Federal no processo de controle de
seq, 102 et seq; JELLINEK, 1991, p. 15-35; constitucionalidade, no contexto normati-
HSÜ, 1998, p. 68 et seq.). vo da Constituição de 1988.
Em verdade, a aplicação que o Supremo A prática dos últimos anos, especialmen-
Tribunal Federal vem conferindo ao dispos- te após o advento da Constituição de 1988,
to no art. 52, X , CF, indica que o referido parece dar razão, pelo menos agora, a Lúcio
instituto mereceu uma significativa rein- Bittencourt (1997, p. 145), para quem a fina-
terpretação a partir da Constituição de 1988. lidade da decisão do Senado era, desde sem-
É possível que a configuração empresta- pre, “apenas tornar pública a decisão do tri-
da ao controle abstrato pela nova Constitui- bunal, levando-a ao conhecimento de todos
ção, com ênfase no modelo abstrato, tenha os cidadãos”.
sido decisiva para a mudança verificada, Sem adentrar o debate sobre a correção
uma vez que as decisões com eficácia erga desse entendimento no passado, não pare-
omnes passaram a se generalizar. ce haver dúvida de que todas as constru-
A multiplicação de processos idênticos ções que se vêm fazendo em torno do efeito
no sistema difuso – notória após 1988 – deve transcendente das decisões pelo Supremo
ter contribuído, igualmente, para que a Cor- Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional,
te percebesse a necessidade de atualização com o apoio, em muitos casos, da jurispru-
do aludido instituto. Nesse contexto, assu- dência da Corte34, estão a indicar a necessi-
me relevo a decisão que afirmou a dispen- dade de revisão da orientação dominante
sabilidade de se submeter a questão consti- antes do advento da Constituição de 1988.
tucional ao Plenário de qualquer Tribunal Assim, parece legítimo entender que,
se o Supremo Tribunal já se tiver manifesta- hodiernamente, a fórmula relativa à suspen-
do pela inconstitucionalidade do diploma. são de execução da lei pelo Senado Federal
Tal como observado, essa decisão acaba por há de ter simples efeito de publicidade. Des-
conferir uma eficácia mais ampla – talvez ta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em
até mesmo um certo efeito vinculante – à sede de controle incidental, chegar à con-
decisão do Plenário do Supremo Tribunal clusão, de modo definitivo, de que a lei é
no controle incidental. Essa orientação está inconstitucional, esta decisão terá efeitos
devidamente incorporada ao direito positi- gerais, fazendo-se a comunicação ao Sena-
vo (CPC, art. 481, parágrafo único, parte fi- do Federal para que este publique a decisão
nal, na redação da Lei n. 9756, de 1998). No no Diário do Congresso. Tal como assente,
mesmo contexto situa-se a decisão que ou- não é (mais) a decisão do Senado que confe-
torgou ao Relator a possibilidade de deci- re eficácia geral ao julgamento do Supremo.
dir, monocraticamente, os recursos extraor- A própria decisão da Corte contém essa for-
dinários vinculados às questões já resolvi- ça normativa. Parece evidente ser essa a ori-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 165


entação implícita nas diversas decisões ju- é, todavia, inadmissível. Exclui-se, igualmente,
diciais e legislativas acima referidas. Assim, qualquer pretensão de enriquecimento sem causa.
Admite-se, porém, a revisão, a qualquer tempo, de
o Senado não terá a faculdade de publicar sentença penal condenatória baseada em lei decla-
ou não a decisão, uma vez que se não cuida de rada inconstitucional (Lei do Bundesverfassungsgeri-
uma decisão substantiva, mas de simples dever cht, § 79). A limitação da retroatividade expressa,
de publicação, tal como reconhecido a outros nesses casos, a tentativa de compatibilizar princí-
órgãos políticos em alguns sistemas consti- pios de segurança jurídica e critérios de justiça. Acen-
tue-se que tais limitações ressaltam, outrossim, a
tucionais (Constituição austríaca, art. 140,5 necessária autonomia jurídica desses atos.
– publicação a cargo do Chanceler Federal, e Lei 4
MS 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, Diá-
Orgânica da Corte Constitucional Alemã, rio de Justiça, [S. l.], 25 maio 1966.
5
art. 31,(2) publicação a cargo do Ministro da Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n. 1,
Justiça). A não-publicação não terá o con- p. 8-9, [2003?].
6
Voto do Ministro Victor Nunes Leal, MS
dão de impedir que a decisão do Supremo 16.512, Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n.
assuma a sua real eficácia. 1, p. 23, [2003?].
Essa solução resolve de forma superior 7
Nesse sentido, v. votos proferidos pelos Mi-
uma das tormentosas questões da nossa ju- nistros Gonçalves de Oliveira e Cândido Motta Fi-
risdição constitucional. Superam-se, assim, lho, Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n. 1,
p. 26, [2003?].
também, as incongruências cada vez mais 8
Voto do Ministro Victor Nunes Leal, MS
marcantes entre a jurisprudência do Supre- 16.512, Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n.
mo Tribunal Federal e a orientação domi- 1, p. 23, [2003?].
9
nante na legislação processual, de um lado, Voto do Ministro Pedro Chaves, MS 16.512,
e, de outro, a visão doutrinária ortodoxa e – Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n. 1, p. 12,
[2003?].
permita-nos dizer – ultrapassada do dispos- 10
Cf. Alencar (1978, p. 304); RISTF, art. 178 c.c
to no art. 52, X, da Constituição de 1988. o art. 176.
11
Voto do Ministro Prado Kelly, MS 16.512,
Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], V. 38, n. 1, p. 16,
[2003?].
Notas 12
Cf. Parecer do Min. Rodrigues Alckmin, de 19
1
de junho de 1975, Diário de Justiça, [S. l.], 16 maio
MS 16.512, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, Re- 1977, p. 3124; ALENCAR (1978, p. 260).
vista do Tribunal de Justiça, [S. l.], p. 20, 21, 23 e 28. 13
2
Cf. Parecer do Min. Moreira Alves no Proces-
A Constituição de 1937 não contemplou o so Administrativo no 4.477-72, Diário de Justiça, [S.
instituto da suspensão da execução pelo Senado l.], 16 maio 1977. (p. 3123).
Federal. 14
Cf. Parecer do Min. Moreira Alves no Proces-
3
RMS 17.976, Rel. Min. Amaral Santos, Revista so Administrativo no 4.477-72, Diário de Justiça, [S.
de Direito Administrativo, [S. l.], n. 113, p. 105-111. l.], 16 maio 1977. (p. 3123-3124).
Evidentemente, essa eficácia ampla há de ser en- 15
Cf. RE no 197.917 Ação civil pública contra lei
tendida com temperamentos. A pronúncia de in- municipal que fixa o número de vereadores, Rel.
constitucionalidade não retira do mundo jurídico, Min. Maurício Corrêa, Diário de Justiça, [S. l.], 31
automaticamente, os atos praticados com base na mar. 2004.
lei inconstitucional, criando apenas as condições 16
RE 190.728, Relator para o Acórdão Min. Il-
para eventual desfazimento ou regulação dessas mar Galvão, Diário de Justiça, [S. l.], 30 maio 1997.
situações. Tanto a coisa julgada quanto outras fór- 17
RE 190.728, Relator para o Acórdão Min. Il-
mulas de preclusão podem tornar irreversíveis as de- mar Galvão, Diário de Justiça, [S. l.], 30 maio 1997.
cisões ou atos fundados na lei censurada. Assim, 18
AgRegAI no 168.149, Relator: Ministro Mar-
operada a decadência ou a prescrição, ou decorri- co Aurélio, Diário de Justiça, [S. l.], 4 ago. 1995. (p.
do in albis o prazo para a propositura da ação res- 22.520).
cisória, não há mais que se cogitar da revisão do 19
Ag.RegAI no 167.444, Relator: Ministro Car-
ato viciado. Alguns sistemas jurídicos, como o los Velloso, Diario de Justiça, [S. l.], 15 set. 1995. (p.
alemão, reconhecem a subsistência dos atos e deci- 29.537).
sões praticados com base na lei declarada inconsti- 20
RE no 191.898, Relator: Ministro Sepúlveda
tucional, desde que tais atos já não se afigurem Pertence, Diário de Justiça, [S. l.] 22 ago. 1997. (p.
suscetíveis de impugnação. A execução desses atos 38.781).

166 Revista de Informação Legislativa


21
Revista do Tribunal de Justiça, [S. l.], [199-?]. (p. aos seus limites subjetivos e temporais (Mendes,
389-390). Gilmar Ferreira. O efeito vinculante das decisões do
22
A doutrina constitucional alemã há muito Supremo Tribunal Federal nos processos de controle abs-
vinha desenvolvendo esforços para ampliar os li- trato de normas, in: Revista Jurídica Virtual, vol. 1, no
mites objetivos e subjetivos da coisa julgada no 4, agosto de 1999, http://geocities .yahoo .com.br/
âmbito da jurisdição estatal (Staatsgerichtsbarkeit). profpito/oefeitovinculantegilmar.html).
23
Importantes autores sustentaram, sob o império Cf., sobre o assunto, a observação de Rui Bar-
da Constituição de Weimar, que a força de lei não se bosa a propósito do direito americano: “(...) se o
limitava à questão julgada, contendo, igualmente, julgamento foi pronunciado pelos mais altos tribu-
uma proibição de reiteração (Wiederholungsverbot) e nais de recurso, a todos os cidadãos se estende,
uma imposição para que normas de teor idêntico, imperativo e sem apelo, no tocante aos princípios
que não foram objeto da decisão judicial, também constitucionais sobre o que versa”. Nem a legisla-
deixassem de ser aplicadas por força da eficácia ge- ção “tentará contrariá-lo, porquanto a regra stare
ral. Essa concepção refletia, certamente, a idéia do- decisis exige que todos os tribunais daí em diante o
minante à época de que a decisão proferida pela respeitem como res judicata (...)” (Cf. Comentários
Corte teria não as qualidades de lei (Gesetzeseigens- Constituição Federal Brasileira, coligidos por Ho-
chaften), mas, efetivamente, a força de lei (Geset- mero Pires, vol IV, p. 268). A propósito, anotou
zeskraft). Afirmava-se inclusive que o Tribunal as- Lúcio Bittencourt que a regra stare decisis não tinha
sumia, nesse caso, as atribuições do Parlamento o poder que lhe atribuíra Rui, muito menos o de
ou, ainda, que se cuidava de uma interpretação au- eliminar a lei do ordenamento jurídico (BITTEN-
têntica, tarefa típica do legislador. Em se tratando COURT, 1997, p. 143, nota 17).
24
de interpretação autêntica da Constituição, não se Cf. item Considerações Preliminares deste
cuidaria de simples legislação ordinária, mas, pro- artigo.
25
priamente, de legislação ou reforma constitucional RE 228.844.SP, Relator Min. Maurício Corrêa,
(Verfassungsgesetzgebung; Verfassungsänderung) ou de Diário de Justiça, [S. l.], 16 jun. 1999.
26
decisão com hierarquia constitucional (Entscheidung RE 221.795, Relator Min. Nelson Jobim, Diário
mit Verfassungsrang). A força de lei está prevista no de Justiça, [S. l.], 16 nov. 2000.
art. 9o da Lei Fundamental e no § 31(2) da Lei orgâ- 27
RE 364.160, Relatora Min. Ellen Gracie, Diário
nica da Corte Constitucional, aplicando-se às deci- de Justiça, [S. l.], 7 fev. 2003.
28
sões proferidas nos processos de controle de consti- AI 423.252, Relator Min. Carlos Velloso, Diá-
tucionalidade. A convicção de que a força de lei sig- rio de Justiça, [S. l.], 15 abr. 2003.
29
nificava apenas que a decisão produziria efeitos RE 345.048, Relator Min. Sepúlveda Pertence,
semelhantes aos de uma lei (gesetzähnlich) (mas não Diário de Justiça, [S. l.], 8 abr. 2004.
30
poderia ser considerada ela própria como uma lei RE 384.521, Relator Min. Celso de Mello, Diá-
em sentido formal e material) parece ter levado a rio de Justiça, [S. l.], 30 maio 2003.
31
doutrina a desenvolver instituto processual desti- ROMS no 11.824, Rel. Min. Francisco Peçanha
nado a dotar as decisões da Corte Constitucional Martins, Diário de Justiça, [S. l.], 27 maio 2002.
32
de qualidades outras não contidas nos conceitos de RE n o 197.917, Rel. Min. Maurício Corrêa,
coisa julgada e de força de lei. Observe-se que o Diário de Justiça, [S. l.], 31 mar. 2004 (inconstituci-
instituto do efeito vinculante, contemplado no § onalidade de lei municipal que fixa número de ve-
31, I, da Lei do Bundesverfassungsgericht, não confi- readores), e Rcl MC no 2537, Relator Min. Cezar
gura novidade absoluta no direito alemão do pós- Peluso, Diário de Justiça, [S. l.], 29 dez. 2003, a
guerra. Antes mesmo da promulgação da Lei Or- propósito da legitimidade de lei estadual sobre lo-
gânica da Corte Constitucional e, portanto, da ins- terias, atacadas, simultaneamente, mediante ação
tituição do Bundesverfassungsgericht, algumas leis civil pública, nas instâncias ordinárias, e ADIn,
que disciplinavam o funcionamento de Cortes Cons- perante o STF.
33
titucionais estaduais já consagravam expressamen- RE 190.728, Relator para o acórdão Min. Il-
te o efeito vinculante das decisões proferidas por mar Galvão, Diário de Justiça, [S. l.], 30 maio 1997.
34
esses órgãos. Embora o conceito de Bindungswirkung MS 16.512 (Rel. Min. Oswaldo Trigueiro), RTJ
(efeito vinculante) corresponda a uma tradição do 38(1):23; RMS 17.976 (Rel. Min. Amaral Santos)
direito alemão, tendo sido também adotado por RDA, 105:111(113); AgRegAI no 168.149 (Rel. Mi-
diversas leis de organização de tribunais constitu- nistro Marco Aurélio), DJ de 04.08.1995; Ag.RegAI
cionais estaduais aprovadas após a promulgação n o 167.444, (Rel. Min. Carlos Velloso), DJ de
da Lei Fundamental, não se pode afirmar que se 15.09.1995; RE 190.728 (Rel. Min. Celso de Mello),
trate de um instituto de compreensão unívoca pela DJ 30.05.1997; RE no 191.898 (Rel. Min. Sepúlveda
doutrina. Não são poucas as questões que se susci- Pertence), DJ de 22.08.1997; RE 228.844.SP (Rel.
tam a propósito desse instituto, seja no que concer- Min. Maurício Corrêa), DJ 16.06.1999; RE 221.795
ne aos seus limites objetivos, seja no que respeita (Rel. Min. Nelson Jobim), DJ 16.11.2000; RE 364.160

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 167


(Rel. Min. Ellen Gracie), DJ 07.02.2003); AI 423.252 BROSSARD, Paulo. O Senado e as leis inconstituci-
(Rel. Min. Carlos Velloso), DJ 15.04.2003; RE 345.048 onais. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano
(Rel. Min. Sepúlveda Pertence), DJ 08.04.2003; RE 13, n. 50, p. 55-64, abr./jun. 1976.
384.521 (Celso de Mello), DJ 30.05.2003); ADI no
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168 Revista de Informação Legislativa


Os Direitos Humanos e a proteção dos
estrangeiros

Guido Fernando Silva Soares

Sumário
I – Introdução: delimitação do tema. II –
Raízes históricas das normas internas de prote-
ção aos estrangeiros. III – A emergência histó-
rica do conceito de nacionalidade. IV – A deter-
minação da nacionalidade no Estado Moderno
e os limites impostos pelo Direito Internacio-
nal Público. V – Plurinacionalidade e apatrí-
dia: sua regulamentação na atualidade. VI – O
quadro normativo geral da proteção dos Di-
reitos Humanos na atualidade. VII – Os Direi-
tos Humanos fundamentais relacionados à pro-
teção dos estrangeiros. VIII – As três novas ver-
tentes do Direito dos Estrangeiros: o Direito
de Asilo, o Direito dos Refugiados e o Direito
Humanitário. IX – Considerações finais quan-
to ao Direito brasileiro.

I – Introdução: delimitação do tema


Numa obra em homenagem à memória
da eminente Professora Doutora Anna
Maria Vilella, cujos méritos principais resi-
dem na extraordinária contribuição que deu
para a fundação da Universidade de Brasí-
lia, DF, e para a formação inicial e o enri-
quecimento do cabedal científico e ético des-
ta instituição, não poderia, a nosso ver, fal-
tar alguma referência à sua inestimável con-
tribuição ao tema da proteção internacional
dos direitos dos estrangeiros. Fique a ex-
pressão póstuma de nossa admiração por
aquela ilustre Professora de Direito Interna-
cional Privado da UnB, registrada neste ar-
tigo, em que tentaremos unir dois campos
aparentemente estanques, mas que, como de-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 169
monstraremos, encontram-se relacionados de capitais e empresas, a partir de fins do Séc.
maneira indelével: a proteção internacional XIX, os Estados passaram a atribuir uma
dos Direitos Humanos e o capítulo mais tra- nacionalidade a pessoas jurídicas, com uma
dicional do Direito Internacional Privado, que dupla finalidade. Em primeiro lugar, a atri-
é a proteção dos direitos dos estrangeiros. buição de uma nacionalidade a empresas e
No presente estudo, as palavras estran- capitais permitiria uma discriminação en-
geiro ou estrangeiros serão empregadas para tre empresas e capitais nacionais e estran-
designar o indivíduo ou indivíduos que, geiros, reservando-se aos primeiros uma
embora estejam domiciliados ou residentes série de privilégios e atividades, que estari-
num determinado Estado, não pertencem ao am proibidos aos estrangeiros. Em segundo
círculo daquelas pessoas que possuem a lugar, o reconhecimento de empresas ou
nacionalidade desse Estado. Trata-se, por- capitais nacionais, logo no início do Séc. XX,
tanto, de um referencial negativo: qualida- permitiria e legitimaria uma intervenção
de ou status de um indivíduo que não tem os diplomática dos Estados da nacionalidade
mesmos direitos nem os mesmos deveres das empresas, perante outros Estados, na
daqueles outros indivíduos, os quais a or- eventualidade de desrespeitos a normas
dem jurídica considera como seus nacio- sobre direitos de propriedade (desapropri-
nais. Portanto, para bem poder considerar- ações) e sobre a boa-fé nos contratos inter-
se o posicionamento dos estrangeiros, numa nacionais (desrespeito a normas contratu-
determinada ordem jurídica nacional ou no ais, em particular, porque haveria, no con-
Direito Internacional, deve-se partir do es- trato, uma parte estrangeira), e que poderi-
tudo da nacionalidade das pessoas físicas am turbar a convivência pacífica entre os
e dos direitos e deveres atribuídos aos naci- Estados. Na verdade, com a determinação
onais, e que, em princípio, não se acham re- de uma nacionalidade a uma empresa ou a
conhecidos aos estrangeiros. capitais, os Estados nada mais fizeram do
Desde a Antigüidade, até meados do Séc. que estender o exercício da proteção diplo-
XVI, o conceito de nacionalidade referia-se, mática possível de ser exercida em favor de
com exclusividade, a pessoas físicas. Con- seus nacionais, pessoas físicas, a pesso-
tudo, desde a formalização dos Estados as jurídicas e a fenômenos econômicos
modernos, por volta de 1648 (Paz de Vestfá- como os movimentos internacionais de
lia), começaram os Estados, então confor- capitais.
mados como Estados autoritários, a atribuir No presente estudo, em que pretendemos
nacionalidade a navios militares e mercan- demonstrar a moderna inserção dos direi-
tis, claramente com a finalidade de controle tos dos estrangeiros na grande temática da
da entrada de tais embarcações nos mares proteção dos direitos humanos, o enfoque
territoriais e a fim de determinar a lei apli- será dado aos direitos dos estrangeiros, ape-
cável aos incidentes ocorridos a bordo dos nas tomados como pessoas físicas, direitos
mesmos quando se encontrassem em alto esses que serão considerados quanto à sua
mar. Em época mais recente, com a mesma oponibilidade a um sistema jurídico, do qual
finalidade de controle da sua circulação, a tais pessoas físicas não possuem a nacio-
nacionalidade igualmente foi estendida a nalidade.
veículos automotores e barcos de navega- No presente artigo, tomaremos como tex-
ção interior, assim como as aeronaves civis to de referência o Cap. 141 de nosso livro
e militares, a veículos lançadores de objetos Curso de Direito Internacional Público, em es-
espaciais e aos próprios objetos espaciais pecial para os itens IV e V, cujas partes mais
(como satélites artificiais e estações orbitais). importantes se encontram transcritas, e para
Da mesma forma, a fim de permitir um o item VIII, o Cap. 152 da mesma obra (SOA-
controle dos movimentos internacionais de RES, 2002 a).

170 Revista de Informação Legislativa


II – Raízes históricas das normas mas jurídicos dos Estados possuíam gran-
internas de proteção aos estrangeiros de número de normas jurídicas nacionais e
uma extensa prática interna nos aspectos
Na verdade, os direitos humanos, na sua legislativo, administrativo e judicial, dedi-
atual expressão, em especial, a partir dos cados à proteção da pessoa humana, mas
anos que se seguiram ao término da Segun- que, no entanto, permitiam discriminações
da Guerra Mundial, tal como reafirmados contra estrangeiros. Em tais sistemas, encon-
na Declaração Universal dos Direitos Hu- trara-se definida a maioria dos direitos hu-
manos, proclamada a 10 de dezembro de manos, mas que eram qualificados como
1948 pela Assembléia Geral da ONU, e em prerrogativas de pessoas com a nacionali-
todo seu desenvolvimento posterior, não dade dos Estados, e, portanto, direitos opo-
distinguem, quanto a seu escopo de prote- níveis ao próprio Estado, inclusive por man-
ção, entre nacionais e estrangeiros. Na sua damento de normas de natureza constituci-
raiz, fortemente ancorada em princípios e onal. Assim foi, no correr do Séc. XIX, como
normas internacionais escritas, os direitos decorrência da Revolução Inglesa e da Re-
humanos têm por finalidade proteger a pes- volução Francesa, numa época histórica em
soa humana na sua realidade individual que se elaboraram as bases do Estado de-
(os direitos individuais oponíveis contra o mocrático moderno, em que os capítulos das
Estado), na sua vivência coletiva (os direi- definições, nas constituições modernas, dos
tos exigíveis do Estado) ou como individu- direitos fundamentais da pessoa humana,
alidade ou pessoas inseridas no mundo (os na forma das Declarações de Direitos, tive-
direitos ditos difusos, como o direito à paz, ram a nítida finalidade de limitar o poder
a um meio ambiente equilibrado, o direito absoluto dos Monarcas. Contudo, não se
ao desenvolvimento, exigíveis dos Estados, pode dizer que, nessa mesma época, os di-
como partícipes de uma comunidade inter- reitos humanos, de cunho eminentemente
nacional). Para realizar tal desiderato, os nacionalista, estivessem abertos à recepção
responsáveis pela aplicação das normas de de normas de proteção aos direitos dos es-
proteção aos direitos humanos não estão trangeiros. Bem ao contrário, o que se verifi-
autorizados a distinguir tratar-se de indiví- cou foi ter havido a instituição das bases da
duos nacionais ou de estrangeiros, mas, bem democracia moderna, na configuração do
ao contrário, são eles incentivados a aplicar Estado liberal, mas, ao mesmo tempo, o for-
as normas protetoras, com o cuidado de con- talecimento de um nacionalismo exacerba-
siderar que todos os homens nascem livres e do e xenófobo, conducente a atitudes cada
iguais em dignidade e direitos (art. I da Decla- vez mais hostis em relação aos estrangei-
ração Universal), e sob o pressuposto de que ros.
todo homem tem capacidade para gozar os direi- Embora os direitos humanos, por sua
tos e as liberdades estabelecidas nesta Declara- própria natureza, não possam comportar
ção, sem distinção de qualquer espécie, seja de uma distinção entre indivíduos nacionais e
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião ou de estrangeiros, foram, nos primórdios da his-
outra natureza, origem nacional ou social, ri- tória de seu desenvolvimento, na forma de
queza, nascimento, ou qualquer outra condição normas do jus scriptum, direitos expressos
(art. II § 1o, id., com um grifado por nós acres- num sistema jurídico nacional fechado,
centado). dentro do qual seria possível comportar
Há pontos comuns na história e no de- uma discriminação entre os nacionais e os
senvolvimento de ambos os campos jurídi- estrangeiros. Mas, na medida em que a pes-
cos, o da proteção da pessoa humana e o da soa humana tem seus direitos definidos em
proteção do estrangeiro. Contudo, eles não normas internacionais, que desbordamos
se confundem. Houve tempos em que siste- limites dos ordenamentos jurídicos nacio-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 171


nais, aquela discriminação perde sua razão Imperador Caracala, que estenderia a cida-
de ser, e, bem ao contrário, torna-se odiosa. dania romana a todos os habitantes do Im-
À medida que os direitos humanos são defi- pério Romano, numa época em que o jus
nidos em relação a qualquer indivíduo, gentium, de há muito já havia suplantado o
onde quer que se encontre, no tempo e no jus civile; contudo, peregrini continuariam a
espaço, e que são direitos exigíveis de qual- ser os indivíduos que não tivessem a cida-
quer Estado, fazer discriminação em razão dania romana (ou seja, que não fossem ha-
de origem nacional passa a ser a negação bitantes do Império Romano).
da universalidade da pessoa humana. Com o Cristianismo, tal fenômeno seria
A análise da história da evolução das reafirmado, com a consagração da supera-
normas sobre um tratamento eqüitativo dos ção das distinções entre os homens, entre
estrangeiros, perante os ordenamentos jurí- cidadãos e não cidadãos, ou na base de di-
dicos nacionais, demonstra que, bem antes ferenças entre raças ou outras origens na-
de pensar-se em dar proteção à pessoa hu- cionais. Relembre-se o mandamento prin-
mana contra o próprio Estado de sua nacio- cipal que Jesus Cristo impõe a seus segui-
nalidade, as primeiras preocupações foram dores: “amar ao próximo como a si mesmo”
no sentido de proteger os estrangeiros, con- (BÍBLIA, N. T. Lucas, 10: 25-27); entenden-
tra o arbítrio das autoridades locais. Certa- do-se “o próximo”, como qualquer outra
mente poderemos vislumbrar, nas grandes pessoa, independentemente de pertencer ela
religiões da antigüidade (como no judaís- ao mesmo povo de quem deve exercer aque-
mo, sobretudo em alguns dos Salmos do Rei la virtude do amor. Retomem-se as palavras
Davi3, e nas palavras do Profeta Isaías4), em de São Paulo, na sua Epístola aos Gálatas:
algumas filosofias éticas, como o estoicis- “não há pois judeu, nem grego, escravo ou
mo5, da Grécia Clássica e de Roma, os tra- livre, varão ou fêmea, pois sois todos um em
ços de considerar-se haver uma igualdade Jesus Cristo” (BÍBLIA, N. T. Gálatas, 3: 28).
entre as pessoas humanas. Embora a unidade do gênero humano
O Direito Romano foi uma surpreenden- tivesse sido proclamada pelo Cristianismo,
te exceção a todos os sistemas jurídicos dos não serviu tal conceito para impedir as guer-
povos da antigüidade, pela extraordinária ras fratricidas contra os denominados “in-
proteção que dava aos estrangeiros, confor- fiéis”, nem que se desenvolvesse uma legis-
me se pode comprovar, pela análise de seu lação nacional, cada vez mais xenófoba e
próprio desenvolvimento histórico. À me- repleta de preconceitos contra os estrangei-
dida que acompanhava o espraiamento do ros, mesmo que eles tivessem a mesma reli-
Império Romano pelo mundo de além fron- gião das pessoas que integravam determi-
teiras da Península Itálica, o antigo e tradi- nados ordenamentos jurídicos locais. Na
cional jus civile, de cunho religioso e reser- verdade, o espírito universalista que se re-
vado aos cives romani, aos poucos se foi adap- velava no Cristianismo apenas conseguiu
tando, em função da presença crescente de manter-se em algumas grandes instituições
outros povos, diferentes dos romanos, a no- medievais nele inspiradas e, sobretudo, na-
vas situações. Ao mesmo tempo em que quelas geradas sob a sombra da Igreja Ca-
abrandava seu primitivo rigor conceitual, o tólica, como as Universidades medievais. A
jus civile passou a conviver com outro cor- idéia fundamental das Universidades me-
po de normas jurídicas, o jus gentium, com- dievais ainda persiste nas Universidades
posto de normas extremamente plásticas e modernas, no relativo a seus Professores e
susceptíveis de abarcar tanto os cives roma- alunos, e, por certo, reflete ela o que de mais
ni, quanto os peregrini (os estrangeiros). Tal claro existe em termos de respeito aos direi-
evolução teria seu ponto culminante, no ano tos humanos: sua comunidade de alunos e
212 da era cristã, com a “Constitutio” do Professores deve ser constituída sem distin-

172 Revista de Informação Legislativa


ção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, constitui o átomo que compõe as rela-
língua, religião, opinião ou de outra natureza, ções internacionais. O conceito de na-
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, cionalidade está presente nas antigas
ou qualquer outra condição (art. II § 1o, Decla- civilizações, mesmo antes de o ter ela
ração Universal dos Direitos Humanos). sido adotada pelo Direito Internacio-
nal Público, cuja expressão passou,
III – A emergência histórica do conceito como temos insistido, a ser associada
de nacionalidade à emergência do próprio Estado mo-
derno, no Séc. XVI. Deve-se rever o
A universalidade do gênero humano, que se considera como “relações in-
que o Cristianismo pretendia, foi aos pou- ternacionais”, para incluir épocas
cos cedendo lugar a particularismos e indi- anteriores àquele século, a fim de con-
vidualismos, à medida que as sociedades siderar-se o relacionamento entre cé-
se fortaleciam, na Idade Média, em torno a lulas políticas em confronto, como
um micro universo de natureza local. Em- entidades autônomas (portanto, não
bora não se possa referir ao fenômeno do eram “Estados”), diferençadas entre
Estado moderno, no qual aquele particula- elas, exatamente por um traço cultu-
rismo será acentuado, na forma da nacio- ral forte, que hoje denominamos “na-
nalidade, na constituição de unidades polí- cionalidade”, para podermos afirmar
ticas, no mundo medieval, a idéia de per- que a nacionalidade existia nas anti-
tencer a um grupo tinha, por contrapartida, gas civilizações. No Egito antigo, na
a idéia de repelir-se qualquer outro perten- Babilônia, na Grécia, entre os hebreus,
cimento6 a outro grupo. havia o fato de um indivíduo poder
Mesmo antes de o conceito nacionalida- ser considerado como parte integran-
de ter emergido na história, sempre existiu, te daqueles povos, da mesma forma,
em qualquer agrupamento humano, aquele como nos primórdios da civilização
vínculo forte que liga um indivíduo à comu- romana, em função de sua filiação a
nidade, da qual ele se considera parte. O um dos membros daqueles povos, tão
sentimento de pertencer a um grupo, por distintos uns dos outros. No mundo
suas características de forte comprometi- da Helenidade, era considerado “gre-
mento do indivíduo em relação aos outros go”, o filho de um grego e que se dis-
indivíduos com os quais comunga determi- tinguiria dos barbarophonói (aqueles
nados valores societários, tem assim um que falam com a voz rouca), em prin-
duplo efeito: de um lado, fortalecer os laços cípio por “falarem” o idioma grego
de coesão entre os membros de uma comu- (“falar” quereria dizer muito mais do
nidade, e, de outro, servir de baliza e de se- que exprimir-se em grego, tendo um
paração dos membros dessa comunidade, sentido de “pertencimento” a uma ci-
em relação a outras que lhe são estranhas7. vilização que se auto supunha como
Conforme escrevemos na já citada obra superior às demais de seu tempo). No
Curso de Direito Internacional Público: auge do expansionismo romano, as
A nacionalidade é o vínculo mais definições de cives romanus sofreriam
antigo da História da Humanidade, extensões crescentes, mas sempre com
que une as pessoas e entre elas e que uma constante histórica, de que os
estabelece as bases para o exercício do novos cives romani, decorrentes da ex-
poder, por parte de uma autoridade tensão crescente da cidadania para
local; é a nacionalidade o conceito de todos os povos habitantes no Império
base inerente à configuração de uma Romano, passavam sua qualidade
unidade política autônoma, a qual pessoal a seus descendentes. Em to-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 173


das essas civilizações antigas, trata- inspirador da moderna concepção
va-se da consagração do critério do ambientalista (de valorização dos ani-
jus sanguinis, determinado por laços mais, como seres advindos do Cria-
familiares, e que serviria para legiti- dor, e, portanto, dignos de um respei-
mar direitos e deveres de um indiví- to por parte do homem), Santa Rita de
duo livre, em relação ao seu próprio Cássia e Santa Teresa de Ávila, famo-
povo e com os conseqüentes traços de sas religiosas que marcaram sua épo-
negação de tais direitos e deveres a ca, por sua intelectualidade e exem-
outros indivíduos que não tivessem plo de vida pessoal, e Erasmo de Ro-
sua “nacionalidade” (ou seja, o mes- terdã, célebre humanista holandês,
mo sangue). O estrangeiro, assim, era preceptor do Imperador Carlos V da
o indivíduo alheio ao grupo social, Espanha (MELLO, 2001, p. 315-316).
cercado das maiores hostilidades...
(SOARES, 2002a, p. 3114-3115). IV – A determinação da
Ainda na mesma obra, assim nos expres- nacionalidade no Estado Moderno
samos:
e os limites impostos pelo Direito
No universo da Idade Média, o cri-
tério do jus sanguinis passará a convi-
Internacional Público
ver com outro critério de vinculação Nos primórdios da emergência dos Es-
dos indivíduos a um determinado or- tados modernos, ainda no Séc. XV, a nacio-
denamento jurídico autônomo e dife- nalidade adquire ainda maior importância,
rençado de outros. Aos poucos emer- tendo em vista que passa a ser o elemento
ge o conceito de jus soli, ligado ao fe- determinante para a submissão de um indi-
nômeno do local de nascimento do in- víduo a um ordenamento jurídico, ordena-
divíduo, sem qualquer referência às mento esse, a partir de então, circunscrito a
qualidades de seus progenitores. Con- um território e dominado por um poder in-
forme anota o Prof. Celso de Albuquer- contrastável de um soberano. O conceito de
que Mello (2001, p. 932), a predomi- nacionalidade serviria, portanto, de elemen-
nância, naquele período, do critério do to para exigir das pessoas uma submissão
jus soli, “tem suas raízes na organiza- total à vontade do governante, em particu-
ção econômica e social do feudalismo lar naqueles períodos de crise, como as guer-
medieval. A terra era considerada a ras, em que se colocavam em perigo valores
maior riqueza e símbolo do poder. Di- nacionais supremos (recorde-se que a for-
versas normas e institutos (jus albina- mação dos exércitos nacionais é coetânea à
gi, jus naufragi etc.) surgiram desta po- emergência dos Estados modernos e que um
sição em relação à terra. A nacionali- Estado passaria a ser cada vez mais pode-
dade apenas acompanhou a orienta- roso, à medida que tivesse à sua disposição
ção geral”. Tal fenômeno se reflete na um grande contingente militar). Na verda-
maneira como que, no período medie- de, a partir da definitiva consagração do
val, se distinguiam os personagem fa- Estado como a mais relevante célula políti-
mosos, pelo local de seu nascimento: ca das relações internacionais, nos dias cor-
os monges São Bento de Núrcia e São rentes, somente se pode conceituar nacio-
Bernardo de Claraval, célebres funda- nalidade a partir da formação dos mesmos,
dores de ordens religiosas até hoje atu- que, como vimos, emergiram numa confor-
antes, o monge Guido d’Arezzo, in- mação totalitária e de exclusividade do po-
ventor da moderna escrita musical, der centrado na figura única do governan-
São Francisco de Assis, o fundador da te, fenômeno que teve sua consagração nos
Ordem dos Frades Menores, e grande Tratados de Vestfália de 1648, os quais,

174 Revista de Informação Legislativa


igualmente, consagrariam a regra da terri- dico dos Estados na pessoa de um dirigente
torialidade do ordenamento jurídico nacio- absoluto, nada mais natural que desapare-
nal, ou seja, a trazida para a esfera de sua cessem outras fontes de normas jurídicas,
regulamentação exclusiva todas as pessoas ao mesmo tempo em que se fortificava o con-
que se encontravam no seu território (o ele- ceito de nacionalidade, inclusive atribuin-
mento da territorialidade dos Direitos mo- do-lhe deveres imperativos, como o dever
dernos, em contraposição à personalidade cívico e inalienável de servir à pessoa do
das leis do período medieval). governante, a própria encarnação do Esta-
Questão interessante é saber-se até que do, principalmente nos tempos de guerra.
ponto a nacionalidade foi ou não um expe- No Direito Internacional Público atual,
diente dos Estados absolutistas de conse- não se encontra uma definição precisa do
guirem a mais completa submissão de seus que seja nacionalidade. Contudo, pelo me-
súditos ao seu poder, ou se, antes, foi o po- nos duas regras importantes se encontram
der do Estado que soube aproveitar-se de estabelecidas. A primeira diz respeito à to-
um elemento forte de unificação entre as tal liberdade de os Estados determinarem
pessoas, para delas extrair seu poder. O fato as regras sobre as pessoas que eles conside-
é que, desde a emergência dos Estados mo- ram como seus nacionais, seja no momento
dernos, a existência de uma nacionalidade do nascimento das pessoas (nacionalidade
definida tem servido como elemento de afir- originária, que pode ser definitiva ou depen-
mação da existência do próprio Estado e dos dente de registro e/ou opção), seja num
motivos que justificariam o essencial dos momento posterior (naturalizações, que po-
comportamentos dos mesmos. Em primeiro dem ser voluntárias, por um ato de um indi-
lugar, ao legitimar aquelas pessoas que têm víduo, sponte sua, adquirir a nacionalidade
direito de participar, nos ordenamentos ju- do Estado, ou involuntárias, por um ato le-
rídicos internos, diretamente na formação gislativo de outro Estado, em determinadas
da vontade política nacional (direito de vo- circunstâncias, ou ainda, pelo casamento
tar e serem votadas), às quais são reserva- com um nacional de outro Estado, e, em al-
dos direitos exclusivos; e, em segundo, no guns casos, pelo fato de os naturalizandos
que se refere à proteção de indivíduos, nas prestarem um trabalho no território de ou-
relações internacionais (o instituto da pro- tro Estado).
teção diplomática, bem como as justificati- No que se refere ao ordenamento jurídi-
vas para as relações consulares, exercidas co sobre as regras de aquisição da naciona-
em relação a pessoas nacionais que se en- lidade, citem-se a Convenção sobre Nacio-
contram em territórios de outros Estados e nalidade, adotada na Haia, em 1930 (no
os casos de deveres canalizados aos Esta- Brasil promulgada pelo Decreto 21.798 de
dos da nacionalidade das pessoas que se 06/11/1932), que fixou no seu art. 1o a nor-
encontram em espaços internacionais co- ma de que “cabe a cada Estado determinar,
muns). Deve-se acentuar que a nacionali- por sua legislação, quais são seus nacionais.
dade teve, por outro lado, o papel de ainda Essa legislação será aceita por todos os ou-
mais unificar e fortalecer a fonte do poder tros Estados, desde que esteja de acordo com
do dirigente único da sociedade dos tem- as convenções internacionais, o costume
pos modernos, uma vez que solapou outros internacional e os princípios de direito ge-
critérios de “pertencimento” a vários orde- ralmente reconhecidos em matéria de naci-
namentos jurídicos que existiam, concomi- onalidade”. Uma análise de Direito Com-
tantemente, na Idade Média, em função de a parado revela que os tipos de legislação dos
pessoa pertencer a estamentos distintos e Estados podem variar, desde normas cons-
com suas normas particulares. Unificada a titucionais (caso do Brasil), até normas de
fonte da legitimidade do ordenamento jurí- direito público (como os Códigos de Nacio-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 175


nalidade ou normas específicas nas codifi- nhecidas por outro Estado, a não ser que
cações de Direito Internacional Privado) ou estejam conformes a uma finalidade geral
ainda de direito privado, como as leis es- de fazer concordar o vínculo jurídico da
parsas contidas nas leis civis, reguladoras nacionalidade, com a ligação efetiva do in-
do estado das pessoas físicas. divíduo ao Estado que assume a defesa de
A segunda regra importante sobre a aqui- seus cidadãos por meio da proteção diplo-
sição da nacionalidade diz respeito a que a mática frente a outros Estados”. Portanto, a
atribuição da nacionalidade não pode ser sentença da CIJ em Nottebohm determinou
resultante do exercício de uma competência que, para a nacionalidade produzir efeitos
discricionária total e injustificada por parte no Direito Internacional (pelo menos no que
do Estado, mas, antes, deve estar baseada diz respeito à legitimidade da proteção di-
em vínculos efetivos entre o indivíduo e o plomática dos Estados perante outros), é
Estado que lhe atribui a nacionalidade. Nes- necessário haver um vínculo efetivo entre
te último particular, havia, na mencionada aquele ato do Estado de outorgar sua nacio-
Convenção sobre Nacionalidade da Haia de nalidade e a pessoa que tem o direito de os-
1930, no seu art. 5o, uma norma de que, num tentá-la e de pedir a proteção diplomática
terceiro Estado, o indivíduo que possuísse de seu Estado nacional; tais vínculos po-
várias nacionalidades poderia ver reconhe- dem ser uma residência ou domicílio, ou
cida quaisquer delas, podendo aquele Esta- ainda negócios habituais no país (fatores
do, “em seu território, reconhecer exclusi- que, no caso de Nottebohm, eram totalmen-
vamente, entre as nacionalidades que tal te ausentes no que se refere ao Lichtenstein).
indivíduo possua, tanto a nacionalidade do
país, no qual tenha a residência habitual e V – Plurinacionalidade e apatrídia: sua
principal, quanto a nacionalidade do país regulamentação na atualidade
ao qual, segundo as circunstâncias, ele, de
fato, pareça mais ligado”. Essa norma foi, O fato de os ordenamentos jurídicos na-
após a Segunda Guerra Mundial, reafirma- cionais poderem variar no que respeita a
da, de modo mais taxativo, pela Corte Inter- critérios adotados para a determinação da
nacional de Justiça, no julgamento do famo- nacionalidade, entre o jus sanguinis e o jus
so Caso Nottebohm, efetuado pela Corte In- soli, pode ocasionar um duplo fenômeno: a)
ternacional de Justiça, em 06/04/1955: tra- a atribuição de duas ou mais nacionalida-
tava-se de um próspero comerciante de na- des ao mesmo indivíduo (binacionalidade
cionalidade alemã, residente na Guatema- ou plurinacionalidade, também dita: poli-
la, que teria conseguido naturalizar-se ci- nacionalidade) e b) a apatrídia, ou seja, a
dadão do Lichtenstein, a fim de colocar-se a ausência de nacionalidade de uma pessoa
salvo das sanções econômicas (nacionali- física. Ambos os fenômenos decorrem da
zação dos bens) que, durante a Segunda regra da liberdade de os Estados poderem
Guerra Mundial, determinados Estados, adotar os critérios que bem entenderem (nos
como aquele da América Central, impuse- limites colocados pelo Caso Nottebohm e das
ram aos súditos alemães. Nesse Caso de regras internacionais de proteção aos direi-
1955, que opôs aqueles dois Estados, a CIJ tos humanos), e que podem ocasionar vín-
julgou que nenhum Estado poderia recla- culos concomitantes ou inexistentes entre
mar pelo fato de outro Estado ter estendido os respectivos ordenamentos jurídicos rela-
sua nacionalidade àquelas pessoas, que tivamente a um mesmo indivíduo, seja no
aquele Estado considera como seus nacio- momento de seu nascimento, seja em épo-
nais, mas determinou que verbis: “nenhum cas posteriores de sua vida.
Estado poderia pretender que as regras por A binacionalidade e plurinacionalida-
ele assim estabelecidas deveriam ser reco- de resultam, portanto, de situações de atri-

176 Revista de Informação Legislativa


buições legítimas e eficazes de duas ou mais efetiva aquisição de outra nacionalidade10)
nacionalidades concomitantes a um mesmo e b) a ocorrência de vínculos concomitantes
indivíduo. Tais situações podem advir de de jus soli e de jus sanguinis, no momento do
várias hipóteses: a) a ocorrência de víncu- nascimento, aos quais os ordenamentos ju-
los de jus soli e de jus sanguinis na mesma rídicos nacionais interessados não conferem
pessoa, desde que tais vínculos sejam efeti- eficácia para a atribuição da nacionalidade
vos e decorrentes das condições exigidas (um filho de um apátrida, ou de um estran-
pelos respectivos ordenamentos nacionais geiro originário de um país que consagra o
(a exemplo, no Brasil: uma pessoa nascida jus soli, nascido em território de um Estado
no Brasil, descendente de italiano, no grau que somente admita o jus sanguinis como cri-
de parentesco exigido pela lei italiana, e que tério para a atribuição da sua nacionalidade,
tenha adimplido as condições exigidas por hipóteses da maioria dos países europeus11).
aquela lei, das quais, uma opção pela naci- O plurinacional é, no Brasil, um brasi-
onalidade italiana, formalizada perante leiro nato12 ou, dependendo das circunstân-
autoridades italianas8); b) a extensão, por cias, um brasileiro naturalizado (no caso de
um ato unilateral de um Estado, de sua na- ter adquirido, por ato voluntário, a nacio-
cionalidade a pessoas que não possuam sua nalidade brasileira, sem haver perdido sua
nacionalidade originária, como um ato de nacionalidade de origem13), portanto, com
natureza política (naturalizações coletivas, os deveres inerentes à nacionalidade, e titu-
como foi o caso do Brasil, logo após a Pro- lar dos direitos de cidadania exclusivos
clamação da República9), ou no reconheci- concedidos ao brasileiro nato (em particu-
mento legal de situações personalíssimas lar os direitos de serem eleitos a cargos pú-
dos indivíduos, como o casamento com uma blicos reservados a tais categorias de brasi-
pessoa nacional daquele Estado (caso de leiros, como já visto anteriormente) e aque-
França) ou por outros motivos, como ter exer- les concedidos aos naturalizados. Contudo,
cido um emprego no país (caso da antiga a plurinacionalidade faz um indivíduo pro-
URSS) ou para permitir sua permanência tegido por vários sistemas jurídicos, mas
no país (caso do Japão). igualmente submetido a deveres cogentes e
A apatrídia resulta de concomitância de imperativos próprios do caráter nacional de
elementos fatuais, no momento do nasci- dois ou mais Estados, dos quais se destaca
mento de um indivíduo, ou em épocas pos- o serviço militar obrigatório. A questão do
teriores de sua vida, de tal maneira que não serviço militar obrigatório, em relação a dois
se verificam os vínculos reconhecidos pelos ou mais países, pode conduzir a situações
sistemas jurídicos nacionais, que permitam insolúveis, em tempos de guerra ou de gra-
a atribuição ao mesmo de qualquer nacio- ves convulsões internacionais; das questões
nalidade. Os fatos conhecidos são: a) perda mais importantes se destaca aquela de de-
coletiva ou individual de uma nacionalida- terminar-se a qual forças armadas de uma
de, sem que haja a aquisição de outra nacio- de suas nacionalidades deve um plurinaci-
nalidade (no primeiro caso, as hipóteses de onal servir, como dever, sob pena de insub-
desaparecimento de um Estado, como a Ar- missão e de pesadas sanções (inclusive os
mênia, durante a existência da URSS, ou da gravíssimos crimes de traição à pátria!), em
cassação na nacionalidade russa aos emi- especial, quando se encontram os dois ou
grados do regime soviético, logo após 1917, mais Estados da sua nacionalidade em con-
e, no segundo, a perda de uma nacionalida- fronto declarado. Em tempo de paz, a ques-
de, como pena, sem que tenha havido a atri- tão do serviço militar obrigatório dos pluri-
buição de outra nacionalidade ao indiví- nacionais encontra-se regulamentada pelo
duo, caso possível no Brasil, na hipótese da Protocolo da Haia de 1932, relativo às obri-
perda da nacionalidade brasileira e da não gações militares em certos casos de dupla

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nacionalidade, no Brasil promulgado pelo do (não pode votar nem ser votado, em ne-
Decreto 21.798, de 06/09/1932, segundo o nhum lugar do mundo), não tem ligações
qual, um indivíduo com duas nacionalida- com quaisquer valores nacionais a serem
des, que prestar serviço militar em um dos defendidos por ele, em caso de guerra ou de
Estados, fica isento de prestá-lo no outro (re- convulsões internacionais (pois sendo es-
gra essa que se encontra repetida na Con- trangeiro, em qualquer parte do mundo, não
venção européia de 1963 sobre resolução de tem o dever do serviço militar, em nenhum
casos de pluralidade de nacionalidade e lugar)15. Por outro lado, inexistem Missão
sobre a obrigação do serviço militar). diplomática ou Repartição consular que,
Ainda em tempo de paz, outras situa- sendo ele estrangeiro, em qualquer lugar do
ções bizarras podem ocorrer, no relativo a mundo, possam vir em socorro a seus direi-
plurinacionais, como os deveres eleitorais tos. Na verdade, e em princípio, o apátrida
(obrigação de voto numa eleição, circuns- não poderia sequer viajar ao exterior (pois
tâncias em que as repartições consulares do não teria sequer qualquer documento de
Estado que envia poderão estar autorizadas, identidade com validade internacional,
pelo Estado receptor das mesmas, a reco- como um passaporte), caso o Direito Inter-
lher as manifestações eleitorais de seus na- nacional não lhe facultasse um documento
cionais, nas respectivas sedes e nas condi- de viagem, o que de fato os Estados têm pro-
ções por aquele exigidas14), e os direitos à videnciado aos apátridas neles residentes
proteção diplomática e à proteção consular ou domiciliados, como a concessão de um
(a questão se resumiria a indagar-se até que laissez-passer, de passaportes amarelos (ins-
ponto poderia um brasileiro, que também tituídos pela ONU) ou outro documento de
tem outra nacionalidade, beneficiar-se de viagem internacional, similares a um pas-
proteção de uma Missão diplomática estran- saporte, os quais têm a função de servir de
geira ou de uma Repartição consular estran- documento de identidade pessoal, em qual-
geira, por fatos a ele relacionados, aprecia- quer lugar do mundo.
dos pelas autoridades brasileiras ou ocorri- A regulamentação internacional dos di-
dos no território nacional!). Neste último reitos subjetivos dos apátridas, na atuali-
particular, é mister citar-se o precedente do dade, constitui um importante campo da
Caso Canevaro, julgado em 1912 por um proteção internacional dos Direitos Huma-
árbitro único (Louis Renault), sob a égide nos, e comunga com os mesmos princípios
da Corte Permanente de Arbitragem, numa que regem duas outras situações de pesso-
reclamação do Peru contra a Itália, que en- as estrangeiras, que devem ter seus direitos
volveu aquele cidadão jure sanguinis italia- reconhecidos em qualquer lugar do mundo,
no e jure solis peruano; o árbitro afirmou que como se verá a seguir, neste trabalho. Em tal
a Itália não poderia endossar uma reclama- categoria, em primeiro lugar, estão os asila-
ção de um seu nacional, perante o Peru, país dos (instituto típico latino-americano, em
que igualmente poderia fazer o mesmo, em virtude do qual o Estado que concede asilo,
relação à Itália. territorial ou diplomático, tem o dever de
A situação mais estranha, quanto aos reconhecer aqueles direitos e conferir docu-
direitos de um indivíduo, diz respeito à apa- mentos de viagem internacional aos seus
trídia; na verdade, a situação de ausência beneficiados) e, em segundo, os refugiados
de nacionalidade torna o apátrida um indi- (pessoas que se encontram em outros paí-
víduo estrangeiro em qualquer parte do ses e que, por normas internacionais adota-
mundo! Tal fato confere ao apátrida uma das pela ONU, têm seus direitos subjetivos
situação de grandes negativas de direitos, assegurados).
pois não tem ele a possibilidade do exercí- O regime jurídico internacional dos apá-
cio da cidadania em nenhum país do mun- tridas recebeu uma especial atenção do

178 Revista de Informação Legislativa


ECOSOC da ONU (relembre-se: o colegiado ternacionais globais, sob a égide da ONU, e
que tem cuidado dos Direitos Humanos), o campo dos regionalismos.
cuja Resolução A(526), adotada na sua XVII As Declarações são instrumentos nor-
sessão, a 26/04/1954, teria, por conseqüên- mativos de extrema importância, que fixam
cia, a convocação de duas Conferências de as grandes linhas políticas e jurídicas que
Plenipotenciários, as quais adotaram, a pri- os Estados Partes se comprometem a respei-
meira, em 28/07/1954, a Convenção sobre tar, conquanto não se tenham revestido da
o Estatuto dos Apátridas, instrumento mi- forma de tratados solenes internacionais.
nucioso, composto de 42 artigos e Anexo, e Das várias Declarações, duas se destacam:
a segunda, em 30/08/1961, a Convenção a primeira, no tempo, a Declaração Ameri-
para a Redução dos Casos de Apatrídia, cana dos Direitos e Deveres do Homem
igualmente ato internacional complexo, (1948), aprovada pela IX Conferência Inter-
composto de 21 artigos16. nacional Interamericana, em Bogotá, sob a
égide da Organização dos Estados Ameri-
VI – O quadro normativo geral canos, em abril de 1948, que, por poucos
da proteção dos Direitos meses, antecedeu à famosa Declaração Uni-
versal dos Direitos Humanos, adotada pela
Humanos na atualidade
Assembléia Geral da ONU, a 1o de dezem-
A inserção dos Direito Humanos como bro de 1948. Quanto à natureza jurídica de
um dos mais importantes capítulos do Di- tais Declarações, a Corte Internacional de
reito Internacional Público, na atualidade, Justiça, unicamente no relativo à Declara-
teve importantes conseqüências para o re- ção Universal de 1948, já teve a oportunida-
gime da proteção dos direitos dos estran- de para estatuir que se trata de um costume
geiros. Como se sabe, o grande passo histó- internacional, portanto, um documento com
rico no progresso dos Direitos Humanos, em mais força normativa do que uma soft law,
quaisquer de suas vertentes, no interior dos esta, uma espécie de ato jurídico de norma-
ordenamentos jurídicos nacionais, ou nas tividade branda, própria de atos adotados
suas relações externas, segundo o pensa- por organizações internacionais, no qual,
mento do grande jusfilósofo italiano Nober- na atualidade, alguns autores pretendem
to Bobbio (1992, p. 25-47), foi aquele dado colocar as duas Declarações.
em direção à afirmação de sua maior positi- Quanto aos tratados internacionais mul-
vidade e eficácia17. Tal momento se realizou, tilaterais de resguardo dos direitos huma-
após os trágicos acontecimentos da Segun- nos, é mister distinguir dois grandes regi-
da Guerra Mundial, com a consagração dos mes, nos quais eles se inserem: a) o regime
Direitos Humanos, que já se encontravam das relações globais, dos denominados “di-
definidos em normas dos ordenamentos ju- reitos humanos stricto sensu”, sob a égide da
rídicos internos dos Estados, em normas in- ONU e sob a égide de organismos reconhe-
ternacionais muito precisas, ao mesmo tem- cidos pelos Estados com poderes de elabo-
po em que se adotavam mecanismos, igual- rar normas relativas a Direito Humanitário
mente muito precisos, de verificação de sua e a Direito dos Refugiados, categorias essas
adimplência, sob o controle da comunida- que integram, juntamente com os anterio-
de dos Estados. res, o que denominamos de direitos huma-
As definições dos direitos humanos se nos lato sensu, e b) os regimes regionais da
encontram em dois grandes conjuntos de Europa, da América Latina (na qual se en-
atos solenes internacionais, as Declarações contra igualmente regulamentado o Direito
e os tratados multilaterais, atos esses que, do Asilo Político, na sua dupla forma, o asi-
por sua vez, podem ser incidentes em dois lo diplomático e o asilo territorial), da Áfri-
grandes campos: o campo das relações in- ca e dos Países Árabes. Devemos esclarecer

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que consideramos direitos humanos lato sen- tros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desuma-
su as normas de proteção, que se encontram nos ou Degradantes, de 1984 (no Brasil,
definidas, no curso da história, tanto para promulgada pelo Decreto 40 de 15/02/
os tempos de paz, quanto para os tempos de 1991); a Convenção sobre os Direitos da Cri-
guerra ou de situações excepcionais; sendo ança, de 1989 (promulgação no Brasil pelo
assim, “Direitos Humanos lato sensu”, a nos- Decreto 99.710 de 21/11/1990); a Conven-
so ver, englobam tanto as normas de prote- ção para a Prevenção e Repressão do Crime
ção aos direitos humanos, concebidas, na de Genocídio, de 1948 (Decreto de promul-
história, para os tempos de paz, os “direitos gação no Brasil, no 30.822 de 06/05/1952).
humanos stricto sensu”, como aquelas outras Inclua-se, nesse rol, o importantíssimo Tri-
normas, excepcionais, concebidas para os bunal Penal Internacional, sediado na Haia,
tempos de guerra ou geradas para regular o qual foi adotado por uma Conferência Di-
as situações dos indivíduos, nos momentos plomática Ad Hoc das Nações Unidas, para
de grave perturbação da ordem interna ou o Estabelecimento de um Tribunal Penal
internacional (como as normas do Direito Internacional, reunida em Roma a 17 de ju-
Humanitário, os Direitos dos Refugiados e lho de 1998 (no Brasil, o tratado que resul-
os Direitos decorrentes do Asilo Político, na tou dessa Conferência, o Estatuto de Roma
América Latina). do Tribunal Penal Internacional, encontra-
No regime das relações globais, sob a se promulgado pelo Decreto 4.388 de 25/
égide da ONU, de proteção dos direitos hu- 09/2002). Tal corte judiciária internacional
manos stricto sensu, destacam-se os dois Pac- já se encontra instalada e com os seus ma-
tos das Nações Unidas, negociados sob a gistrados já empossados, devendo destacar-
égide de sua Assembléia Geral, e assinados se entre seus membros, uma eminente brasi-
ambos no mesmo dia 16 de dezembro de leira, ao tempo de sua nomeação, integrante
1966, na sede da ONU, em Nova York, por- do Tribunal Federal Regional da 3a Região,
tanto, autênticos tratados multilaterais em a ilustre Dra. Sylvia Steiner.
devida forma: o Pacto Internacional sobre No regime dos direitos humanos lato sen-
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o su, ao lado daqueles direitos já menciona-
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e dos, que foram elaborados para ser aplica-
Políticos. Deve dizer-se que os dois Pactos dos em tempos de paz, e que constituem os
tiveram uma aceitação imediata dos Esta- fundamentos de um Estado democrático, na
dos, tendo em vista que os mesmos entra- atualidade, encontramos os direitos que in-
ram em vigor internacional a 23 de maio de tegram o denominado Direito Humanitário,
1976, após o 35o Estado haver depositado o Direito dos Refugiados e o Direito do Asi-
os instrumentos de ratificação, perante o lo, este último, conforme regulamentado no
Secretário Geral das Nações Unidas. No que continente latino-americano, os quais pos-
respeita ao Brasil, o país os assinou, na data suem, como nota comum, o fato de terem sido
de sua adoção, em dezembro de 1966, mas gerados para proteger os direitos humanos,
os ratificou após ter havido a redemocrati- em situações excepcionais, de guerras, con-
zação do país, somente em 23/12/1992, flitos armados, graves perturbações inter-
data de sua promulgação conjunta pelo nas, mas que hoje se estendem a quaisquer
Decreto no 592 dessa data, e após ter havido períodos da vida em sociedade. Serão eles
a aprovação, pelo Congresso Nacional, por melhor considerados na parte deste traba-
meio do Decreto Legislativo no 226 de 12/ lho que se segue a esta.
12/199118. Os mecanismos de verificação da adim-
Citamos, ainda, outros importantes tra- plência dos deveres instituídos nos trata-
tados multilaterais, adotados sob a égide da dos multilaterais de proteção aos direitos
ONU: a Convenção contra a Tortura e Ou- humanos são procedimentos diplomáticos

180 Revista de Informação Legislativa


instituídos nos referidos tratados multilate- tular, em nome próprio, reclamações judici-
rais, e que representam importantes meios ais contra quaisquer Estados, inclusive os
de levar, à opinião pública internacional, de sua própria nacionalidade, domicílio ou
as atividades dos Estados violadoras dos residência, reclamações essas por violações
respectivos deveres internacionais. De tais dos direitos humanos.
mecanismos, sobressai-se a Comissão das No Continente europeu, logo após a as-
Nações Unidas sobre Direitos Humanos, sinatura dos tratados de paz que colocaram
instituída em 1946, por ocasião da primeira um fim à Segunda Guerra Mundial, os paí-
reunião do Conselho Econômico e Social da ses da então denominada Europa Ociden-
ONU, (Resolução I-5), com sede em Gene- tal, já decididos a estabelecer um dos mais
bra, composta de representantes diplomáti- complexos instrumentos multilaterais de
cos dos Estados, numa base de rotatividade integração econômica e política regional, e
de representação geográfica, para reuniões que deveria transformar-se na atual União
ordinárias anuais, por 40 dias, nos meses Européia21, assinaram a Convenção Euro-
de fevereiro e março19. À sua sombra, reú- péia para a Proteção dos Direitos Humanos
nem-se outros órgãos colegiados, instituí- e das Liberdades Fundamentais, em Roma,
dos em tratados multilaterais, como o Co- a 04/11/1950, e a Carta Social Européia,
mitê sobre Direitos Civis e Políticos, institu- adotada em Turim, a 18/10/1961, ambas
ído no Pacto da ONU sobre Direitos Civis e adotadas por iniciativa do Conselho da
Políticos de 1966, do qual o Brasil participa, Europa22. Ressalte-se que tal conjunto nor-
e o Comitê de Direitos Humanos, instituído mativo seria dotado, já no seu nascedouro,
pelo Protocolo Adicional ao Pacto sobre Di- de poderosos instrumentos de verificação
reitos Civis e Políticos, subscrito igualmen- da adimplência de suas normas, com a ins-
te em 1966, mas do qual o Brasil se encontra tituição de uma Comissão Européia de Di-
ausente, por não haver subscrito aquele Pro- reitos Humanos (organismo composto de
tocolo; importa observar que este Protocolo representantes dos Estados Partes, porém
confere, ao referido Comitê, a atribuição de escolhidos por suas qualidades personalís-
poder receber queixas individuais, contra simas, na atualidade, extinto23), e de uma
Estados20, da mesma forma que os Comitês Corte Européia de Direitos Humanos (juí-
previstos na Convenção Internacional so- zes internacionais independentes), ambos
bre a Eliminação de Todas as Formas de sediados em Estrasburgo. Deve ser igual-
Discriminação Racial (art. 14 § 1o) e a Con- mente ressaltado, como um fato de extraor-
venção contra a Tortura (art. 21 § 1o e art. 22 dinária importância para a proteção inter-
§ 2o). nacional dos direitos humanos, que, em data
Nos âmbitos regionais das normas de relativamente recente, o sistema normativo
proteção dos direitos humanos, verifica-se, europeu sofreria um grande aperfeiçoamen-
ao lado de um rol de direitos e deveres mais to, a partir de 1994, com a adoção do Proto-
bem definidos que aqueles dos instrumen- colo 11 e com as posteriores modificações
tos multilaterais globais, um evidente mai- introduzidas pelo Acordo Europeu Relati-
or aperfeiçoamento dos mecanismos de con- vo a Pessoas que Participam nos Procedi-
trole de adimplência das suas normas, in- mentos da Corte Européia dos Direitos Hu-
clusive, como no caso do Continente euro- manos, firmado em Estrasburgo, a 05 de
peu; neste último caso, deve destacar-se a maio de 1997; nos termos de tais reformas,
existência de uma Corte Européia dos Di- foi suprimida a Comissão Européia (que ti-
reitos Humanos, tribunal internacional com nha a incumbência de, entre outras, exami-
sua jurisdição aberta a pedidos de quais- nar e decidir sobre o encaminhamento à
quer pessoas, independentemente de sua Corte Européia das reclamações de indiví-
nacionalidade, as quais têm direitos de pos- duos contra os Estados Partes) e estendeu-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 181


se a competência da Corte Européia dos Di- de não reconhecer “como obrigatória, de
reitos Humanos, para o fim de poder rece- pleno direito e sem convenção especial, a
ber, diretamente, as reclamações dos indiví- Competência da Corte em todos os casos
duos contra quaisquer Estados Partes (in- relativos à interpretação ou aplicação da
clusive os das nacionalidades dos recla- Convenção” (art. 62 § 1o do Pacto de San
mantes ou de quaisquer outras nacionali- José). Deve notar-se que, a 10 de dezembro
dades). O texto da Convenção Européia para de 1998, conforme lhe faculta o mesmo art.
a Proteção dos Direitos Humanos e das Li- 62 do Pacto de San José, após o referendo de
berdades Fundamentais, assinada em aprovação antecipada dada pelo Congres-
Roma, a 04/11/1950, tal qual vigente na so Nacional, pelo Decreto Legislativo no 89
atualidade, portanto, com as modificações de 03/12/1998, o Governo brasileiro pas-
introduzidas com os mencionados atos in- saria nota ao Secretário Geral da OEA, de-
ternacionais, especialmente o Protocolo 11, positário da Convenção de San José, segun-
encontra-se na Internet, no site: www. do a qual o Brasil daria “reconhecimento
dhnet.org.br. da competência obrigatória da Corte Intera-
Na América Latina, o modelo normativo mericana de Direitos Humanos em todos os
regional adotado para a proteção dos direi- casos relativos à interpretação ou aplicação
tos humanos seria o europeu, de seu início da Convenção Americana de Direitos Hu-
histórico, portanto antes das reformas in- manos para fatos ocorridos a partir do reco-
troduzidas em 1994, com o Protocolo no 11, nhecimento, de acordo com o previsto no
e que persiste até os nossos dias. Tendo já parágrafo primeiro do art. 62 daquele ins-
adotado, em Bogotá, a Declaração America- trumento internacional”26.
na dos Direitos e Deveres do Homem, os Na África, em janeiro de 1982, seria apro-
Estados latino-americanos, a 22/11/1969, vada pela Conferência Ministerial da Orga-
assinariam a Convenção Americana sobre nização da Unidade Africana, reunida em
Direitos Humanos, em San José da Costa Banjul, no Quênia, a Carta Africana dos
Rica (conhecida como Pacto de San José), ao Direitos Humanos e dos Povos, denomina-
final de uma Conferência Internacional ad da “Carta de Banjul”, a qual seria formal-
hoc, realizada sob a égide da Organização mente subscrita pelos Chefes de Estado e de
dos Estados Americanos (OEA). Consagrou- Governo dos Estados membros daquela Or-
se a técnica da declaração formal dos direi- ganização, na XVIII sessão de sua Assem-
tos protegidos, por meio de um articulado bléia, reunida em Nairobi, igualmente no
preciso, bem como da instituição de uma Quênia, a 28/06/1981. Adota ela a técnica
duplicidade de órgãos de verificação da da declaração formal dos direitos protegi-
adimplência daqueles direitos, ou seja, uma dos (note-se a introdução, no universo dos
comissão composta de sete pessoas eleitas direitos protegidos, de certos “direitos dos
pela OEA, a Comissão Interamericana de povos”, como a livre disposição de seus re-
Direitos Humanos24, sediada em Washing- cursos naturais, ao desenvolvimento, à paz
ton, e de um tribunal internacional, a Corte e à segurança, bem como o direito a um meio
Interamericana de Direitos Humanos, com- ambiente satisfatório), institui a Comissão
posta de sete juízes nacionais dos Estados Africana dos Direitos Humanos e dos Po-
Membros da OEA, a qual seria, em data pos- vos, composta de 11 membros, com perso-
terior, sediada em San José, na Costa Rica25. nalidades africanas, eleitas a título pessoal
O Brasil veio a aderir à Convenção Ameri- (independentemente de sua nacionalidade),
cana de Direitos Humanos somente a 25/ com as funções de verificar a adimplência
09/1992, tendo a mesma sido promulgada das obrigações convencionadas, por parte
no país, pelo Decreto no 678 de 06/11/1992; dos Estados Partes, por meio da publicação
na ocasião, o Brasil valeu-se da faculdade de relatórios e de notificações endereçadas

182 Revista de Informação Legislativa


aos Estados. No sistema africano de prote- reitos econômicos e sociais (e, sendo assim,
ção aos direitos humanos, com a vigência ao ver daqueles Estados, seria, quando mui-
internacional regional do Protocolo à Carta to, supérflua a existência de tratados ou con-
Africana de Direitos Humanos e dos Povos venções internacionais globais ou regionais
sobre o Estabelecimento de uma Corte Afri- que os declarassem e instituíssem mecanis-
cana de Direitos Humanos e dos Povos (Pro- mos para sua proteção). Por outro lado, era
jeto adotado em setembro de 1995, por um um posicionamento comum dos países do
Comitê de Peritos reunidos em Cape Town, bloco socialista, sobretudo no auge da Guer-
na África do Sul, e a partir de 1997, em exa- ra Fria, que os assuntos de direitos huma-
me pela Comissão Africana dos Direitos nos constituiriam domínio reservado dos
Humanos e dos Povos), passará o mesmo a Estados, e que, nos termos do art. 2o, § 7o, da
contar com uma instância jurisdicional, para Carta da ONU27, estariam, portanto, excluí-
a verificação do cumprimento dos deveres e dos do poder regulatório da ONU e dos tra-
obrigações, em nível regional, em coordena- tados multilaterais que sob sua égide fos-
ção com os poderes da Comissão Africana sem adotados. À medida que países do an-
dos Direitos Humanos e dos Povos. tigo bloco soviético se tornem membros do
Com pesar, deve-se registrar que inexis- sistema regional europeu da União Euro-
te qualquer tratado ou convenção de prote- péia (e de modo muito especial, nas Comu-
ção internacional subregional aos direitos nidades Européias), e sendo condição es-
humanos, no Continente asiático. As expli- sencial para tal filiação um efetivo compro-
cações têm variado; desde argumentos de metimento dos Estados com a decisiva pro-
que se trata de uma região onde os aspectos teção dos direitos humanos, nos moldes da
eminentes de direitos das coletividades or- Convenção Européia para a Proteção dos
ganizadas na forma de Estados primam so- Direitos Humanos e Liberdades Fundamen-
bre os direitos dos indivíduos, até outras mais tais de Roma, de 1950, e da Carta Social
elaboradas, como uma proteção existente, Européia de Turim, de 1961, por expresso
porém distinta e inusitada, conforme os mol- mandamento do Tratado da União Européia
des vigentes nas demais regiões do mundo. (Maastricht, 1992), reafirmado pelo Trata-
A nosso ver, tais justificativas são totalmente do de Amsterdam de 199728, que consagra-
inconvincentes e, portanto, incompatíveis com ram a denominada “cláusula democráti-
a consciência generalizada na comunidade ca”29, é de esperar-se que aquela lacuna no
de todos os Estados da atualidade. Continente Europeu seja sanada, mesmo
Outra lacuna notável, esperamos que no porque são extremamente poderosas as san-
presente momento seja ela um fato da histó- ções previstas para os Estados, sejam os já
ria passada, refere-se à antiga área de influ- participantes, sejam os postulantes, que não
ência da extinta URSS, a qual era justifica- respeitem as normas européias de proteção
da pela doutrina então dominante naque- aos direitos humanos30.
les espaços, por considerarem os então paí- Os direitos humanos consagrados nos
ses socialistas a proteção dos direitos hu- diversos diplomas normativos internacio-
manos, mediante normas internacionais (em nais, na maioria, constituem uma unidade
particular, os direitos civis e políticos), como conceitual, e o fato de eventualmente haver
aspectos de uma filosofia burguesa, indivi- vários atos normativos que lidam com os
dualista e decadente, própria dos países mesmos direitos somente serve para refor-
capitalistas, e que, portanto, aqueles direi- çar sua importância e a busca de mecanis-
tos já estariam consagrados nos sistemas mos complementares para sua defesa. Por
das denominadas “democracias popula- outro lado, a concomitância de direitos hu-
res”. Tais democracias já contemplariam, na manos reconhecidos em tratados e conven-
sua própria essência, em particular, os di- ções internacionais, mundiais e regionais, e

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 183


ao mesmo tempo vigentes nos ordenamen- sil, de 1824 (em virtude do art. 179, “a invi-
tos jurídicos internos dos Estados, consti- olabilidade dos direitos políticos e civis” era
tui, de igual forma, uma garantia de sua efi- assegurada aos “cidadãos brasileiros”), a
cácia, tendo em vista que os ordenamentos partir da primeira Constituição republica-
jurídicos internos e internacionais devem na do Brasil, de 1981 (denominada Consti-
ser considerados como complementares tuição da República dos Estados Unidos do
uns dos outros. Brasil), passaram todas as Constituições
brasileiras a regulamentar, de maneira di-
VII – Os Direitos Humanos reta, os direitos de aquisição e perda da na-
fundamentais relacionados à cionalidade brasileira (a primitiva e a deri-
vada), bem como a inscrever, nos respecti-
proteção dos estrangeiros
vos textos, a norma fundamental de que bra-
Conforme já nos referimos, neste traba- sileiros e estrangeiros residentes no Brasil
lho, as proibições de discriminações entre têm a igualdade dos direitos fundamentais
nacionais e estrangeiros, no referente à aqui- assegurados aos brasileiros, conforme todas
sição e gozo dos direitos humanos, nem elas passavam a definir. Foi assim que o art.
sempre foram expressas nos ordenamentos 72, ementado “Declaração de Direitos”, da
internos dos Estados. Mesmo em épocas primeira Constituição republicana do Bra-
anteriores à segunda metade do Séc. XX, em sil, de 1891, estabeleceria, verbis: A Consti-
que, na Europa, os Estados se apresentavam tuição assegura a brasileiros e a estrangeiros re-
com uma feição democrática, havia um tra- sidentes no país a inviolabilidade dos direitos
tamento discriminatório conferido a estran- concernentes à liberdade, à segurança e à propri-
geiros. Dispositivos constitucionais de tra- edade, nos seguintes termos... Tais normas se-
tamento igualitário entre nacionais e estran- riam repetidas, com variantes nas redações
geiros eram a exceção, naqueles sistemas quanto ao arrolamento dos direitos protegi-
jurídicos marcados por um grande chauvi- dos, nas Constituições de 1934 (art. 113, ins-
nismo decorrente da falta de migrações in- crito no Cap. II ementado Dos Direitos e das
ternas entre os Estados europeus da época. Garantias Individuais), de 1937 (art. 122, num
Nos jovens Estados da América, em par- item denominado Dos Direitos e Garantias
ticular no Brasil, a tradição sempre fora de Individuais), de 1946 (art. 141, no Cap. II
considerar-se o estrangeiro em pé de igual- ementado Dos Direitos e das garantias indivi-
dade com os nacionais. No caso do Brasil, duais), na E/C 1/69 (art. 153, no Cap. IV
tal tendência histórica, presente no Impé- denominado Dos Direitos e Garantias Indivi-
rio, fortalecer-se-ia no momento em que, após duais) e, finalmente, na atual Constituição
a abolição da escravatura, então se busca- da República Federativa do Brasil, de 1988,
va, na jovem República, substituir a mão- no caput do art. 5o, que constitui o Cap. I,
de-obra escrava pelo trabalho assalariado. Dos Direitos e Deveres Constitucionais e Coleti-
Nesse particular, houve um enorme incre- vos, inscrito no Título II, Dos Direitos e Ga-
mento da política de imigração e de coloni- rantias Fundamentais, assim redigido: Todos
zação rural, por parte do Estado brasileiro, são iguais perante a lei, sem distinção de qual-
que nada mais representava do que os an- quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
seios dos proprietários das grandes fazen- estrangeiros residentes no País a inviolabilida-
das de café, pela presença da mão-de-obra de do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
assalariada do trabalhador imigrante euro- segurança e à propriedade, nos termos seguin-
peu e japonês. tes:... Na verdade, o caput do referido art. 5o
Essas são as razões pelas quais, dado o da Constituição Federal brasileira de 1988
silêncio sobre os direitos dos estrangeiros, deve ser interpretado em conjunto com o §
da Constituição Política do Império do Bra- 2o do mesmo art. 5o, assim redigido: “Os di-

184 Revista de Informação Legislativa


reitos e garantias expressos nesta Consti- estrangeiros. O fato de estarem tais normas
tuição não excluem outros decorrentes do sobre não discriminação em artigos iniciais
regime e dos princípios por ela adotados, dos diplomas legais confirma o desiderato
ou dos tratados internacionais em que a dos Estados subscritores dos atos normati-
República Federativa do Brasil seja parte”. vos internacionais de, em primeiro lugar,
Se a distinção entre nacional e estran- terem eles instituído normas de natureza
geiro pode ter sido importante nos ordena- objetiva, que criam igualdades entre as pes-
mentos internos dos Estados, conforme já soas, e, em segundo lugar, de terem estabe-
enfatizamos, por razões da política de for- lecido normas procedimentais relacionadas
talecimento do Estado autocrático, na atua- à qualificação dos beneficiários de todas as
lidade, pela própria natureza dos Direitos outras normas de proteção aos direitos hu-
Humanos, os quais passaram a ser defini- manos. Sendo assim, os vários direitos subje-
dos em normas internacionais, não se po- tivos definidos, como o direito à vida, à pro-
deria imaginar aquela distinção, quando se priedade, a um trabalho digno, tanto podem
encara a natureza transnacional e o escopo ser referidos e destinados aos nacionais de
das normas protetoras da pessoa humana. um Estado, quanto aos estrangeiros domicili-
O próprio conceito de pessoa humana repe- ados ou nele residentes, ou, ainda, simples-
liria quaisquer distinções entre os integran- mente dirigidos a indivíduos presentes no seu
tes de tal categoria de entes, no referente a território ou submetidos à sua jurisdição.
direitos protegidos. Vale a pena repetir a Os tratados solenes multilaterais repe-
transcrição inteira do Art. II da Declaração tem tais normas da Declaração Universal
Universal dos Direitos do Homem, anteri- de 1945, conforme se pode verificar pela re-
ormente mencionada no presente trabalho: dação do art. 2o do Pacto Internacional de
Artigo II – 1. Toda pessoa tem ca- Direitos Civis e Políticos, assim redigido:
pacidade para gozar os direitos e as Artigo 2o, § 1o: Os Estados Partes
liberdades estabelecidos nesta Decla- no presente Pacto comprometem-se a
ração, sem distinção de qualquer es- respeitar e a garantir a todos os indi-
pécie, seja de raça, cor, sexo, língua, víduos que se encontrem em seu terri-
religião, opinião política ou de outra tório e que estejam sujeitos a sua juris-
natureza, origem nacional ou social, dição os direitos reconhecidos no pre-
riqueza, nascimento, ou qualquer ou- sente Pacto, sem discriminação algu-
tra condição. ma por motivo de raça, cor, sexo, lín-
2. Não será tampouco feita ne- gua, religião, opinião política ou de
nhuma distinção fundada na condi- outra natureza, origem nacional ou
ção política, jurídica ou internacional social, situação econômica, nascimen-
do país ou território a que pertença to ou qualquer outra condição31.
uma pessoa, quer se trate de um terri- As normas de proibição de discrimina-
tório independente, sob tutela, sem ção entre nacionais e estrangeiros, quanto à
governo próprio, quer sujeito a qual- aquisição e gozo dos direitos humanos, têm
quer outra limitação de soberania. sua mais acabada expressão nos tratados
Deve observar-se que tais normas dizem regionais de proteção aos direitos humanos.
respeito a proibições de discriminação en- Assim se encontram normas expressas na
tre possíveis classes que se queira instituir Convenção Européia para a Proteção dos
entre as pessoas, evidentemente com finali- Direitos Humanos e das Liberdades Fun-
dades discriminatórias, no que respeita a damentais (ROMA, 1950 apud TRINDADE,
todos os demais direitos definidos e prote- 1991, p. 401), no seu art. 14, que assim dis-
gidos; entre as possibilidades de discrimi- põe: “O gozo dos direitos e liberdades reco-
nações se acha a distinção entre nacionais e nhecidos na presente Convenção devem ser

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assegurados sem quaisquer distinções, tais ção da ONU, pediam uma regulamentação
como as fundadas no sexo, raça, cor, lín- internacional, no sentido de opor-se um di-
gua, opiniões políticas ou outras, a origem reito da pessoa humana a um pretenso di-
nacional ou social, o pertencer a uma mino- reito dos Estados de, discricionariamente,
ria nacional, a riqueza, o nascimento ou considerar quem bem entendesse como seus
qualquer outra situação”. Na América Lati- nacionais.
na, tais normas encontram-se assim redigi- Em tal perspectiva, a Declaração Univer-
das, no Pacto de San José da Costa Rica: sal dos Direitos do Homem declara no art.
Artigo 1o (Pacto de San José da Artigo XV, no § 1o, verbis: “Toda pessoa tem
Costa Rica de 1969) – Obrigação de direito a uma nacionalidade, e no § 2o, verbis:
respeitar os direitos. Ninguém será arbitrariamente privado de
1. Os Estados Partes nesta con- sua nacionalidade, nem do direito de mu-
venção comprometem-se a respeitar dar de nacionalidade”. A Declaração Ame-
os direitos e liberdades nela reconhe- ricana dos Direitos e Deveres do Homem
cidos e a garantir seu livre e pleno exer- consagra idêntica norma, no seu Artigo XIX,
cício a toda pessoa que esteja sujeita à assim redigido: “Toda pessoa tem direito à
sua jurisdição, sem discriminação al- nacionalidade que legalmente lhe corres-
guma por motivo de raça, cor, sexo, ponda, podendo mudá-la, se assim o dese-
idioma, religião, opiniões políticas ou jar, pela de qualquer outro país que estiver
de qualquer outra natureza, origem disposto a concedê-la”.
nacional ou social, posição econômi- No que respeita às normas constantes
ca, nascimento ou qualquer outra con- em tratados multilaterais regionais, merece
dição social. registro o fato de a Convenção Européia para
2. Para os efeitos desta Conven- a Proteção dos Direitos Humanos e das Li-
ção, pessoa é todo ser humano. berdades Fundamentais (Roma, 1950) silen-
Em que pese a repulsa da distinção, nas ciar a respeito do direito a uma nacionali-
normas de proteção à pessoa humana, en- dade32, da mesma forma que a Carta Africa-
tre as pessoas humanas, com base na ori- na dos Direitos Humanos e dos Povos. Na
gem nacional ou no nascimento, ainda per- Convenção Americana dos Direitos do Ho-
manecem questões relacionadas aos direi- mem, o famoso Pacto de San José da Costa
tos dos estrangeiros e que necessitam uma Rica, constam normas claras sobre o direito
definição normativa, no elenco dos própri- da pessoa humana a uma nacionalidade,
os direitos humanos protegidos. Neste par- nos seguintes termos:
ticular, a nacionalidade, que, desde sempre, Artigo 20 – Direito à nacionalidade.
era considerada um status conferido a um 1. Toda pessoa tem direito a uma
indivíduo, por direito exclusivo do Estado, nacionalidade.
como se viu, em especial naqueles momen- 2. Toda pessoa tem direito à naci-
tos de agudas crises internacionais, como onalidade do Estado em cujo territó-
as guerras, durante as quais era necessário rio houver nascido, se não tiver direi-
o Estado contar com um exército compulso- to a outra.
riamente formado por seus nacionais, a par- 3. A ninguém se deve privar arbi-
tir da Declaração Universal dos Direitos do trariamente de sua nacionalidade
Homem, de 1948, passa a nacionalidade a nem do direito de mudá-la.
ser considerada como um direito subjetivo Merece registro um interessante dispo-
do indivíduo. As atribuições compulsórias sitivo constante da Carta dos Direitos Hu-
de nacionalidades, as mudanças maciças e manos dos Povos no Mundo Árabe, apro-
involuntárias de nacionalidades, que eram vada em 15/09/1994, pelo Conselho da Liga
freqüentes na Europa de antes da constitui- dos Estados Árabes, na qual consta o art.

186 Revista de Informação Legislativa


36, assim redigido: “Todo cidadão tem di- dades das demais pessoas, e que se-
reito a uma nacionalidade. Tem direito de jam compatíveis com os outros direi-
trocá-la e mantê-la juntamente com qualquer tos reconhecidos no presente Pacto.
outra nacionalidade árabe. Tem direito de 4. Ninguém poderá ser privado
passar sua nacionalidade a seus filhos sem arbitrariamente do direito de entrar
discriminação a este respeito entre homens em seu próprio país.
e mulheres”33. Artigo 13.
Dois direitos, com íntima relação aos di- Um estrangeiro que se encontre le-
reitos dos estrangeiros, dizem respeito: a) à galmente no território de um Estado
liberdade de ir e vir, seja entre dois ou mais Parte no presente Pacto só poderá dele
países, seja no interior do país em que se ser expulso em decorrência de decisão
encontram domiciliados e b) o direito de não adotada em conformidade com a lei e,
serem os estrangeiros expulsos de um país, a menos que razões imperativas de se-
sem um fundamento jurídico e somente após gurança nacional a isso se oponham,
o devido processo legal. São direitos subje- terá a possibilidade de expor as razões
tivos dos estrangeiros, aos quais os textos que militem contra sua expulsão e de
normativos internacionais multilaterais ter seu caso reexaminado pelas autori-
conferem um tratamento particular. dades competentes, ou por uma ou vá-
Assim, na Declaração Universal, há o rias pessoas especialmente designadas
Artigo XIII, assim redigido: Ҥ 1o РToda pelas referidas autoridades, e de fazer-
pessoa tem direito à liberdade de locomo- se representar com esse objetivo.
ção e residência dentro das fronteiras de Na Convenção Européia sobre Direitos
cada Estado. § 2o – Toda pessoa tem o direi- Humanos e Liberdades Fundamentais,
to de deixar qualquer país, inclusive o pró- nada consta quanto ao direito dos estran-
prio, e a este regressar”. Na Declaração geiros de fixar residência, de não serem ex-
Americana, há o artigo Artigo VIII com a pulsos ou de seu direito subjetivo de ir e vir.
seguinte redação: “Toda pessoa tem direito Contudo, o tema é versado, de maneira trans-
de fixar sua residência no território do Esta- versal, na Carta Social Européia, adotada
do de que é nacional, de transitar por ele em Turim, a 18 de dezembro de 1961, § 18 e
livremente e de não abandoná-lo senão por § 19 da Parte I e o art. 19, ementado: “Direi-
sua própria vontade”. to dos trabalhadores migrantes e das suas
No Pacto Internacional das Nações Uni- famílias à proteção e à assistência” 34.
das sobre Direitos Civis e Políticos, há os Na Convenção Americana sobre Direi-
relevantes Art. 12 e Art. 13, assim redigidos: tos Humanos (Pacto de San José da Costa
Artigo 12. Rica), há um particular artigo destinado a
1. Toda pessoa que se encontre le- regular o direito de circulação, de nacionais
galmente no território de um Estado e de estrangeiros, e o direito de fixar resi-
terá o direito de nele livremente circu- dência. Trata-se do Art. 22, assim redigido:
lar e escolher sua residência. Artigo 22 – Direito de circulação e
2. Toda pessoa terá o direito de de residência.
sair livremente de qualquer país, in- 1. Toda pessoa que se ache legal-
clusive de seu próprio país. mente no território de um Estado tem
3. Os direitos supracitados não direito de circular nele e de nele resi-
poderão constituir objeto de restrições, dir em conformidade com as disposi-
a menos que estejam previstas em lei e ções legais.
no intuito de proteger a segurança 2. Toda pessoa tem o direito de
nacional e a ordem, saúde ou moral sair livremente de qualquer país, in-
públicas, bem como os direitos e liber- clusive do próprio.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 187


3. O exercício dos direitos acima residência no interior de um Estado,
mencionados não pode ser restringi- sob reserva de se conformar às regras
do senão em virtude de lei, na medida prescritas na lei.
indispensável, em uma sociedade de- 2. Toda pessoa tem direito de sair
mocrática, para prevenir infrações de qualquer país, incluindo o seu, e
penais ou para proteger a segurança de regressar ao seu país. Este direito
nacional, a segurança ou a ordem só pode ser objeto de restrições previs-
públicas, a moral ou a saúde públi- tas na lei, necessárias para proteger a
cas, ou os direitos e liberdades das segurança nacional, a ordem pública,
demais pessoas. a saúde ou a moralidade públicas.
4. O exercício dos direitos reconhe- 3. Toda pessoa tem direito, em
cidos no inciso 1 pode também ser res- caso de perseguição, de buscar e de
tringido pela lei, em zonas determina- obter asilo em território estrangeiro,
das, por motivo de interesse público. em conformidade com a lei de cada
5. Ninguém pode ser expulso do país e as convenções internacionais.
território do Estado do qual for nacio- 4. O estrangeiro legalmente admi-
nal nem ser privado do direito de nele tido no território de um Estado Parte
entrar. na presente Carta só poderá ser ex-
6. O estrangeiro que se ache legal- pulso em virtude de uma decisão con-
mente no território de um Estado Par- forme com a lei.
te nesta Convenção só poderá dele ser 5. A expulsão coletiva de estran-
expulso em cumprimento de decisão geiros é proibida. A expulsão coletiva
adotada de acordo com a lei. é aquela que visa globalmente grupos
7. Toda pessoa tem o direito de nacionais, raciais, étnicos ou religiosos.
buscar e receber asilo em território es- Claro está que muitos desses direitos que
trangeiro, em caso de perseguição por aparentemente se referem aos estrangeiros
delitos políticos ou comuns conexos podem também ser referidos aos nacionais
com delitos políticos e de acordo com dos Estados, como o direito de ir e vir e de
a legislação de cada Estado e com as fixar residência no território dos Estados.
convenções internacionais. Contudo, há situações críticas, em determi-
8. Em nenhum caso o estrangeiro nados países e em certas ocasiões (em parti-
pode ser expulso ou entregue a outro cular, naquelas de grande alterações da or-
país, seja ou não de origem, onde seu dem jurídica interna, como golpes de esta-
direito à vida ou à liberdade pessoal do ou revoluções), em que, mesmo os nacio-
esteja em risco de violação por causa nais de um Estado, não gozam de qualquer
da sua raça, nacionalidade, religião, proteção de seus direitos humanos, e pas-
condição social ou de suas opiniões sam a ser tratados com o mesmo grau de
políticas. desrespeito que os estrangeiros.
9. É proibida a expulsão coletiva
de estrangeiros. VIII – As três novas vertentes do
Na Carta Africana dos Direitos Huma- Direito dos Estrangeiros: o Direito de
nos e dos Povos, encontram-se dispositivos
Asilo, o Direito dos Refugiados e o
assemelhados aos do art. 22 do Pacto de San
Jose da Costa Rica, acima transcrito, com a
Direito Humanitário
seguinte redação: Com a elevação do nível normativo dos
Artigo 12. Direitos Humanos a um patamar de normas
1. Toda pessoa tem direito de cir- internacionais, o que lhes conferiu uma per-
cular livremente e de escolher a sua tinência a valores universais e lhe marcou

188 Revista de Informação Legislativa


como um campo de responsabilidade de as missões diplomáticas estrangeiras, os
toda comunidade internacional, a partir do navios militares, aeronaves militares ou
fim da Segunda Guerra Mundial, institutos acampamentos militares de outros Estados,
que existiam no Direito Internacional Pú- autorizados a estacionarem no território do
blico ganharam uma renovada expressão. Estado (o asilo será concedido pelas autori-
Daqueles que mais diretamente dizem res- dades estrangeiras encarregadas de tais lo-
peito aos direitos humanos dos estrangei- cais: o Chefe da Missão diplomática, os co-
ros, destacam-se: o instituto do asilo políti- mandantes militares dos navios, aeronaves
co (na sua dupla versão, do asilo diplomáti- ou acampamentos militares).
co e do asilo territorial), o instituto do refu- A Declaração Universal dos Direitos do
giado e, enfim, os novos conteúdos que Homem, de 1948, bem descreve o instituto
foram atribuídos ao Direito Humanitário, do asilo, nos seguintes termos:
na sua origem histórica, concebido para Artigo XIV – 1. Toda pessoa víti-
a proteção da pessoa humana em tempos ma de perseguição tem o direito de
de guerra. procurar e de gozar asilo em outros
O instituto do asilo político é antigo, re- países.
portando-se a tempos da Grécia clássica, em 2. Este direito não pode ser invo-
que havia lugares consagrados aos deuses cado em caso de perseguição legitima-
ou ao culto das divindades, que podiam mente motivada por crimes de direito
abrigar pessoas perseguidas pelas autori- comum ou por atos contrários aos pro-
dades ou pela populaça, desde que neles pósitos e princípios das Nações Uni-
entrassem. Foi praticado na Idade Média, das.
em conventos, cemitérios, lugares que, por A Declaração Americana dos Direitos e
sua dedicação a Deus ou a santos, recebiam Deveres do Homem, de 1948, repete tais
o maior respeito das autoridades leigas, in- normas, no seu Artigo XXVII, assim redigi-
clusive quanto à sua sacralidade. A invio- do: “Toda pessoa tem o direito de procurar
labilidade de determinados locais foi, com e receber asilo em território estrangeiro, em
o nascimento do Estado moderno, atribuí- caso de perseguição que não seja motivada
da a locais dedicados às missões diplomá- por delitos de direito comum, e de acordo
ticas ou com outras atribuições, nos quais com a legislação de cada país e com as con-
um Estado estrangeiro pudesse exercer suas venções internacionais”.
funções num outro Estado (como os acam- Deve dizer-se que nem os dois Pactos da
pamentos militares autorizados a serem lo- ONU, nem a Convenção Européia incorpo-
calizados no território de um outro Estado, ram tais normas. Unicamente o Pacto de San
navios militares, em águas territoriais de José da Costa Rica (no art. 22, § 7o anterior-
outros Estados, e, na atualidade, aeronaves mente transcrito) e a Carta Africana dos Di-
militares). reitos dos Povos (Art. 12 § 3o)35 consagram o
Trata-se de uma situação de conturba- instituto.
ção local, em um país, e que apresenta gran- Bem antes de o instituto do asilo político
de perigo para a pessoa, que se acha perse- ter sido consagrado nos textos internacio-
guida, por motivos políticos, em seu próprio nais multilaterais, teve ele um grande de-
país, a qual busca asilo, de duas maneiras: senvolvimento entre os países da América
a) ao entrar no território de outro Estado (en- Latina, onde se aperfeiçoou, por usos e cos-
trada urgente e irregular, sem qualquer vis- tumes. No correr do Séc. XX, foi consagrado
to de entrada ou mesmo sem a permissão em quatro convenções multilaterais regio-
das autoridades locais), diferente daquele nais, das quais as mais modernas são as
onde se encontra ou b) ao entrar nos locais duas assinadas em Caracas em março de
protegidos pelo Direito Internacional, como 1954 que representam sensíveis melhoras

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 189


das anteriores36: a “Convenção sobre Asilo i) o Estado asilante não é obrigado a conce-
Diplomático” e a “Convenção sobre Asilo der permanência a um asilado, mas não o
Territorial”. Assinadas por todos Estados poderá mandar de volta a seu país de ori-
latino-americanos membros da OEA, por- gem, salvo por vontade expressa do asila-
tanto, com exceção dos países anglófonos37, do: j) enfim, o asilo diplomático não estará
e ratificadas pela maioria dos signatários38, sujeito à reciprocidade, e qualquer pessoa,
as duas Convenções de Caracas podem ca- seja qual for sua nacionalidade, pode estar
racterizar-se como a expressão de um Direi- sob sua proteção (art. XX, id., no qual, con-
to Internacional Público Sub-Regional na tudo, nada diz a respeito dos apátridas).
América Latina, vigente entre os países lati- Os grandes traços do asilo territorial, nos
no-americanos do Continente americano. termos da Convenção de Caracas sobre Asi-
Os grandes traços do instituto do asilo lo Territorial de 1954, são os seguintes: a)
diplomático, conforme sua regulamentação nenhum Estado é obrigado a entregar a ou-
pela citada Convenção de Caracas sobre tro Estado ou a expulsar de seu território
Asilo Diplomático de 195439, podem assim pessoas perseguidas por motivos ou delitos
ser descritos: a) o asilo diplomático é conce- políticos (art. III); b) “a extradição não se
dido a pessoas perseguidas por motivos ou aplica, quando se trate de pessoas que, se-
delitos políticos (portanto, evitando-se as gundo a classificação do Estado suplicado,
discussões sobre a necessidade de haver sejam perseguidas por delitos políticos ou
qualquer procedimento administrativo ou delitos comuns, cometidos com fins políti-
judicial contra os asilados); b) o direito de cos, nem quando a extradição for solicitada
concessão do asilo pertence ao Estado, que obedecendo a motivos predominantemente
não se acha obrigado a concedê-lo, nem a políticos” (art. IV); c) o Estado não se encon-
declarar por que o nega; c) não se concede tra obrigado a estabelecer distinções entre
asilo diplomático a pessoas acusadas, pro- os estrangeiros, para discriminar os asila-
cessadas ou condenadas por delitos co- dos, na sua legislação interna, nem a aten-
muns; d) compete ao Estado asilante quali- der a pedidos de outro Estado, a adotar me-
ficar a natureza do delito ou dos motivos da didas excepcionais contra asilados, por
perseguição; e) o asilo diplomático pressu- motivos de opinião contrária àquele ou na
põe casos de urgência e pelo tempo estrita- sua liberdade de reunião; d) no caso de ha-
mente indispensável a que o asilado deixe o ver um pedido de internamento ou de vigi-
país, com as garantias acordadas pelo Esta- lância de asilados que se encontrem no ter-
do territorial, cabendo ao Estado asilante ritório do Estado asilante, feito pelo Estado
tipificar o que seja urgência; f) o Estado ter- de onde procedeu o asilado, o internamento
ritorial pode a qualquer momento exigir que deverá ser feito a uma distância prudente
o asilado seja retirado do país, para o que das fronteiras, e as despesas ocorridas de-
deverá conceder um salvo-conduto e as ga- verão ser suportadas pelo Estado que o soli-
rantias necessárias para tanto (art. XI da citar (art. IX e seus §§).
Convenção de Caracas de 1954); g) “conce- O asilo diplomático persiste sendo um
dido o salvo-conduto, o Estado asilante po- instituto tipicamente latino-americano, em-
derá pedir a saída do asilado para o territó- bora tenha havido casos históricos isolados,
rio estrangeiro, sendo o Estado territorial em outras partes do mundo, como foi o de
obrigado a conceder, imediatamente, salvo os EUA terem concedido asilo diplomático
caso de força maior, as garantias necessári- a dois eminentes Cardeais da Igreja Católi-
as” (art. XII, id); h) os asilados não poderão ca, Cardeal Mindszenti e Cardeal Wichinky,
ser desembarcados em ponto algum do Es- respectivamente, em suas missões diplomá-
tado territorial, em lugar que dele esteja pró- ticas em Budapeste e em Varsóvia, ao tempo
ximo, salvo por necessidade de transporte; da Guerra Fria e da intervenção armada da

190 Revista de Informação Legislativa


então URSS. Tais pessoas, no entanto, fo- restres ou marítimas, sem quaisquer docu-
ram conservadas praticamente como prisi- mentos autorizatórios do Governo brasilei-
oneiras das missões diplomáticas, por lon- ro, com a expectativa de beneficiar-se da
gos anos, à vista da recusa de concessão de proteção das normas internacionais e con-
salvo-conduto por parte das autoridades seguir a condição de asilado, a ser definida
locais. quando a pessoa já se encontra no território
Quanto ao asilo territorial, tendo em vis- nacional), quanto pelo asilo diplomático (en-
ta as citadas normas da Declaração Univer- trada em portos ou aeroportos internacio-
sal dos Direitos do Homem sobre asilo, os nais brasileiros, de posse de um salvo-con-
Estados, por intermédio da ONU, debruçar- duto concedido pelo Governo brasileiro
se-iam sobre o assunto, numa tentativa de quando o asilado se encontrava em lugares
elaborar normas internacionais globais a no exterior susceptíveis de abrigar um pos-
respeito. Assim sendo, a 14/12/1967, a XXII tulante a asilo, na condição de asilado já
Assembléia Geral da ONU adotaria, por reconhecida pelo mesmo). As regras gerais
unanimidade, a Resolução 2.314, denomi- são de que, ao asilado político, apliquem-se
nada “Declaração sobre Asilo Territorial” as normas brasileiras relativas aos estran-
(TRINDADE, 1991, p. 276-278), que, no seu geiros, bem como as que lhe impõe o Direito
preâmbulo, após recordar os já menciona- Internacional ou as que o Governo brasilei-
dos art. 13 § 1o e art. 14 da Declaração Uni- ro lhe fixar (a ex.: fixação de residência em
versal dos Direitos do Homem, e expressa- determinados locais, no Brasil, em geral,
mente reconhecer que “a concessão de asilo longe das fronteiras do Estado de sua naci-
por um Estado a pessoas que tenham direi- onalidade ou residência, ao tempo anterior
to de invocar o artigo 14 da Declaração Uni- da concessão do asilo, cf. art. 28 do Estatuto
versal... é um ato pacífico e humanitário e do Estrangeiro). O art. 29 impõe ao asilado
que, como tal, não pode ser considerado ina- político o dever de somente sair do território
mistoso por nenhum outro Estado”, reco- nacional com a prévia autorização do Go-
menda que, “sem prejuízo dos instrumen- verno brasileiro, sob pena de considerar-se
tos existentes sobre o asilo e o estatuto dos renúncia ao asilo, o que impedirá o reingres-
refugiados e apátridas, os Estados se inspi- so, naquela condição (art. 29 e seu parágra-
rem, em sua prática relativa ao asilo territo- fo único, do Estatuto do Estrangeiro).
rial”40. É necessário enfatizar que, mesmo ten-
No Brasil, as normas sobre entrada e do havido somente na Constituição Federal
permanência no território nacional de asi- de 198842 normas sobre o asilo político, nos
lados, que são estrangeiros, regem-se pelo seguintes termos: “a República Federativa
denominado “Estatuto dos Estrangeiros” do Brasil rege-se nas suas relações interna-
(Lei no 6.815 de 19/08/1980, com as altera- cionais pelos seguintes princípios: ... X –
ções da Lei no 6.964 de 09/12/81 e um sem concessão de asilo político”, e que tais pre-
número de outros atos normativos como o ceitos constitucionais eram inexistentes nas
Regulamento expedido pelo Decreto no Constituições anteriores, o País, desde sem-
86.715 de 10/12/1981 e outras normas da pre, reconheceu, respeitou e aplicou, incon-
legislação complementar ou correlata)41. No táveis vezes, os princípios relativos à prote-
Título III, integrado por dois únicos artigos, ção dos asilados no território nacional, seja
28 e 29, o Estatuto dos Estrangeiros regula a aqueles que solicitaram e obtiveram asilo, já
condição do asilado, que a Lei denomina dentro do território nacional, seja aqueles
“asilado político” e que a doutrina e práti- que estavam asilados em missões diplomá-
cas nacionais têm considerado como refe- ticas brasileiras no exterior, ou outros luga-
rente tanto ao estrangeiro beneficiado pelo res no exterior susceptíveis de oferecer asilo
asilo territorial (entrada pelas fronteiras ter- e que foram encaminhados ao citado terri-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 191


tório nacional. Por outro lado, em momen- da Haia relativas a prisioneiros de guerra
tos de golpes de Estado, de revoluções ou de ou à proteção de não combatentes, não con-
sublevações internas graves, o Governo bra- templavam aquelas situações. Por tais ra-
sileiro concedeu salvo-condutos a brasilei- zões, os Estados encarregaram a Sociedade
ros asilados em missões diplomáticas sedi- das Nações de disciplinar e tentar resolver
adas no Rio de Janeiro, então Capital Fede- o assunto, no imediato pós-guerra, dados
ral do País, e, na hipótese de asilo territorial os agudos problemas na Europa43.
concedido a brasileiros no exterior, respei- De uma relevante experiência assisten-
tou as regras internacionais, pois não rom- cial no Entre-Guerras, como rescaldo da Pri-
peu com as relações diplomáticas com os meira Guerra Mundial e dos problemas re-
países asilantes, da mesma forma que, se sultantes da Revolução Bolchevista na Rús-
não teve a prudência de abster-se de solici- sia e da instalação do III Reich na Alema-
tar extradição, soube dar às justas negati- nha, bem como a situação verdadeiramente
vas de concessão de extradição ou de entre- catastrófica das pessoas deslocadas que a
ga dos asilados as devidas proporções. Segunda Guerra Mundial deixou na Euro-
O refúgio, que por vezes, em evidente e pa44, todos os anteriores esforços empreen-
desnecessária confusão conceitual, tem sido didos sob a égide a ONU45 resultariam na
confundido com o instituto do asilo políti- instituição, pela Assembléia Geral da ONU,
co, sendo que obras doutrinárias fazem mes- de um órgão sediado em Genebra, o Alto
mo a errônea sinonímia entre asilado e refu- Comissariado das Nações Unidas para os
giado, é um instituto regulado por normas Refugiados, o ACNUR. Deve notar-se que o
multilaterais globais (e não regionais, como ACNUR foi a instituição que sobrou de to-
no caso do asilo político), editadas sob a dos os esforços dos Estados então integran-
égide da ONU, e, portanto, submetidas a um tes do denominado Bloco Ocidental, na cons-
regime de verificação de sua adimplência, tituição de uma organização especializada
por um órgão internacional, o Alto Comis- das Nações Unidas, esforços esses fracas-
sariado das Nações Unidas para os Refugi- sados devido à oposição do Bloco socialis-
ados, o ACNUR, com sede em Genebra. ta, para cujos Estados a questão dos refugi-
A proteção dos refugiados é um tema re- ados era uma daquelas que se inseriam no
lativamente novo, no Direito Internacional, denominado “domínio reservado dos Esta-
pois, embora a situação calamitosa de gran- dos”, numa retórica própria do auge da
de número de pessoas ficasse, ao final das Guerra Fria.
guerras, em todos os tempos, num estado de Por decisiva influência do ACNUR e sob
extrema penúria, algumas deportadas e per- seu patrocínio, a 26 de julho de 1951, numa
seguidas, outras desabrigadas e vítimas de conferência diplomática multilateral reuni-
epidemias e de fome, outras ainda despro- da em Genebra, os Estados adotaram um
vidas de uma nacionalidade ou com bru- projeto então apresentado pelo referido
tais mutações de sua nacionalidade (decor- ACNUR, que se transformaria na Conven-
rentes de anexações territoriais), foi somen- ção sobre o Estatuto dos Refugiados, consi-
te ao final da Primeira Guerra Mundial, da- derada a Magna Carta dos refugiados. Um
das as proporções alarmantes do número dos mais importantes elementos dessa Con-
de pessoas envolvidas, que o fenômeno re- venção reside no fato de caracterizar-se
ceberia a atenção dos Estados. Em 1919, os como um documento normativo multilate-
Estados já constatavam a lacuna existente. ral, que não só tipifica o status de refugiado
No relativo a tais pessoas deslocadas, pois e institui seus direitos subjetivos, por meio
tanto das incipientes normas do Direito de um arrolamento dos mesmos, mas tam-
Humanitário (Cruz Vermelha), naquele pe- bém institui obrigações aos Estados Partes
ríodo histórico, quanto daquelas do Direito de respeitarem tal status, com o esclarecimen-

192 Revista de Informação Legislativa


to dos deveres de os Estados Partes interna- A definição de refugiado, nas normas
lizarem, nos respectivos ordenamentos ju- internacionais da atualidade, é a seguinte:
rídicos nacionais, as normas protetoras as- “qualquer pessoa... que... temendo ser per-
sim definidas. Deve ser ressaltado que aque- seguida por motivos de raça, religião, naci-
le tratado multilateral centraliza, num úni- onalidade, grupo social ou opiniões políti-
co órgão da ONU, o Alto Comissário das cas, se encontra fora do país de sua nacio-
Nações Unidas para os Refugiados, junta- nalidade e que não pode ou, em virtude des-
mente com seus auxiliares, as tarefas con- se temor, não quer valer-se da proteção des-
cernentes à implementação e à aplicação se país, ou que, se não tem nacionalidade e
eficaz das normas internacionais específi- se encontra fora do país no qual tenha sua
cas46. No Brasil, a Convenção sobre o Esta- residência habitual em conseqüência de tais
tuto dos Refugiados foi promulgada pelo acontecimentos, não pode ou, devido ao re-
Decreto 50.215 de 28/01/1961. ferido temor, não quer voltar a ele” (art. 1o
Deve ressaltar-se que a Convenção so- Seção A § 2o da Convenção, com a redação
bre o Estatuto dos Refugiados somente com- dada pelo Protocolo de 67). No Brasil, mes-
preendia “acontecimentos antes de 1o de ja- mo estando vigentes como direito interno
neiro de 1951”, portanto, ocorridos na Eu- os dispositivos da Convenção e do Protoco-
ropa e ligados aos fatos da Segunda Guerra lo, foi editada a Lei 9.474 de 22 de julho de
Mundial e aos rescaldos da Primeira Guer- 1997 (ANDRADE, 1996b, p. 7-12), que defi-
ra Mundial. Logo os Estados sentiram a ur- ne mecanismos para a implementação do Estatu-
gente necessidade de modernizar os dispo- to dos Refugiados de 1951 e determina outras
sitivos sobre proteção dos refugiados, alar- providências, na qual a definição da Conven-
gando-se a vigência temporal das normas ção de 1951 foi transcrita, conforme as op-
protetoras, e, sobretudo, sua abrangência ções possíveis que aquela Convenção per-
espacial, para poder compreender fenôme- mite e que foram eleitas pelo legislador bra-
nos de deslocamentos individuais e maci- sileiro, nos seguintes termos:
ços de grandes contingentes populacionais, Art. 1o Será reconhecido como re-
ainda na Europa (não só as imigrações ma- fugiado todo indivíduo que:
ciças das antigas colônias africanas em di- I – devido a fundados temores de
reção aos países das antigas metrópoles, perseguição por motivos de raça, reli-
bem como os movimentos migratórios inter- gião, nacionalidade, grupo social ou
nos com o esfacelamento do Bloco Socialis- opiniões políticas encontre-se fora de
ta), na Ásia, na América Latina (aconteci- seu país de nacionalidade e não pos-
mentos relacionados a migrações de países sa ou não queira acolher-se à prote-
da América Central em direção ao México) ção de tal país;
e, em particular, na África (as guerras civis II – não tendo nacionalidade e es-
intermitentes, com os constantes massacres tando fora do país onde antes teve sua
de inteiras etnias). Foi assim que os Estados residência habitual, não possa ou não
Partes daquela Convenção, em 31 de janei- queira regressar a ele, em função das
ro de 1967, na sede da ONU, em Nova York, circunstâncias descritas no inciso an-
assinariam o Protocolo sobre o Estatuto dos terior;
Refugiados (no Brasil, promulgado pelo [III – devido à grave e generalizada
Decreto 70.946 de 07/08/1972)47, cujo dis- violação de direitos humanos, é obrigado
positivo principal foi ter considerado a de- a deixar seu país de nacionalidade para
finição de refugiado, constante naquela Con- buscar refúgio em outro país].
venção, sem a constância das referências aos Deve notar-se que o inciso III, do artigo
acontecimentos anteriores a 1o de janeiro de transcrito, entre colchetes e em itálico, con-
1951. tém normas que inexistem na Convenção de

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1951 e seu Protocolo de 1967, tendo sido no art. 34, determina que a solicitação de
introduzido no ordenamento jurídico bra- refúgio suspenderá, até decisão definitiva,
sileiro, a fim de compatiblizar seus disposi- qualquer processo de extradição pendente,
tivos, no tema da proteção dos refugiados, em fase administrativa ou judicial, baseado
com os princípios da Declaração de Carta- nos fatos que fundamentaram a concessão
gena de 22 de novembro de 1984, que tor- de refúgio; e c) no art. 35, determina que,
nou as normas da ONU mais apropriadas a para os efeitos dos artigos 33 e 34, qualquer
situações na América Latina48. solicitação de reconhecimento como refugi-
Como já acentuamos, no ordenamento ado deverá ser comunicada ao órgão onde
jurídico nacional do Brasil, mesmo após ter tramitar o processo de extradição.
havido uma internalização das normas do Deve notar-se o extremo cuidado com que
Estatuto dos Refugiados, conforme estabe- o sistema jurídico brasileiro tem regulamen-
lecidas pela Convenção de 1951 e seu Pro- tado o instituto do refugiado. Ademais de
tocolo de 1967, foi, como se disse, editada a haver transformado as normas internacio-
referida Lei 9.474 de 22 de julho de 1997 nais em dispositivos do ordenamento jurí-
(ANDRADE, 1997, p. 149-164), que “define dico interno do Brasil, segundo as suas ne-
mecanismos para a implementação do Es- cessidades e potencialidades, foi instituí-
tatuto do Refugiado de 1951, e determina do, no âmbito do Ministério da Justiça, como
outras providências”, inclusive com as nor- órgão de deliberação coletiva, o Conselho
mas e a filosofia da Declaração de Cartage- Nacional para os Refugiados, CONARE,
na. Essa Lei concede ao refugiado os direi- integrado por representantes dos Ministéri-
tos e deveres específicos, diferenciados da- os da Justiça, das Relações Exteriores, do
queles que, no ordenamento jurídico nacio- Trabalho, da Saúde, da Educação e Despor-
nal, são conferidos e exigidos dos estran- tos, do Departamento da Polícia Federal, de
geiros, inclusive dos asilados, tendo em vis- uma ONG que se dedique a atividades de
ta a remissão expressa à Convenção sobre o assistência e proteção dos refugiados no
Estatuto dos Refugiados de 1951 e ao seu Brasil (a presente, a CARITAS, entidade bra-
Protocolo de 1967 (o que implica a introdu- sileira, representada pela Caritas Arquidio-
ção, no sistema jurídico interno do Brasil, cesana do Rio de Janeiro e a de São Paulo) e,
daqueles tratamentos diferenciados institu- enfim , como convidado, o ACNUR, com
ídos pelas normas internacionais, em rela- direito a voz mas sem voto. Mister referir-se,
ção aos direitos e deveres conferidos e exigi- igualmente, à ativa participação da OAB,
dos dos estrangeiros em geral) e reproduz por suas Seções de São Paulo e do Rio de
as normas relacionadas à entrada, pedido Janeiro, que, por um “Convênio sobre As-
de refúgio, proibições ao rechaço49, à depor- sistência Jurídica e Entrevistas a Refugia-
tação e à expulsão. dos e Solicitantes de Refúgio”50, celebrado
Uma notável novidade da Lei brasileira com o ACNUR (treinamento, assistência em
reside no fato de que ela regula um assunto questões técnicas e informações sobre a si-
que não consta na Convenção sobre o Esta- tuação em outros países) e a CARITAS (re-
tuto dos Asilados e no Protocolo de 1967: a cursos financeiros e assistência moral e re-
questão da extradição dos refugiados. As ligiosa às pessoas), participa, em entrevis-
normas encontram-se em três artigos, do seu tas com postulantes a refugiados, as ques-
Título V, “Dos Efeitos do Estatuto de Refu- tões da admissibilidade de conceder-se o
giados sobre a Extradição e a Expulsão”: a) estatuto aos mesmos, com a emissão de um
no art. 33, manda sustar qualquer pedido Parecer, a ser aprovado pelo CONARE.
de extradição formulado em relação a um Enfim, é mister enfatizar as fundamen-
refugiado, e que tenha por base os fatos que tais diferenças que existem entre de um lado,
fundamentaram a concessão de refúgio; b) o instituto do asilo político, conforme regu-

194 Revista de Informação Legislativa


lado nos usos e costumes regionais da Amé- tra a paz, um crime de guerra ou um crime
rica Latina, nas convenções multilaterais contra a humanidade, no sentido dos ins-
regionais vigentes nos países latino-ameri- trumentos internacionais elaborados para
canos e na Resolução 2.314, da AG da ONU, prever tais crimes, bem como proibições de
denominada Declaração sobre Asilo Territori- conceder refúgio a pessoas culpadas de atos
al, e de outro, o instituto do refúgio, confor- contrários aos fins e princípios das Nações
me regulado na Convenção sobre o Estatuto Unidas. As discussões sobre tratar-se de cri-
dos Refugiados de 1951 e no seu Protocolo me de direito comum ou de um crime políti-
de 1967, de cuja aplicação se encontra en- co, que são centrais nas convenções sobre
carregado um órgão da ONU, o ACNUR51. asilo, uma vez que determinantes da con-
Preliminarmente, é necessário dizer que as cessão de asilo político a pessoas persegui-
convenções multilaterais regionais sobre das em seus países de origem ou residência
asilo político têm uma vigência parcial, mes- permanente, são irrelevantes na questão do
mo entre os Estados Latino-americanos, ao Estatuto dos Refugiados, em que às motiva-
passo que a Convenção de 1951 e o Protoco- ções políticas para a perseguição, e mais
lo de 1976 relativos ao Estatuto dos Refugi- ainda, para a insustentabilidade de uma
ados, além de serem convenções mundiais, pessoa permanecer em seu país de origem
têm maior aceitação entre os Estados Lati- ou residência permanente, somam-se ques-
no-Americanos, tendo em vista que somen- tões relacionadas a motivos religiosos, de per-
te Cuba e México não os assinaram. Dito tencimento a determinados grupos sociais.
isso, os principais traços característicos do Tal exercício de comparação entre os
instituto do refúgio internacional são: a) os institutos do asilo político e do refugiado,
Estados Partes, naqueles instrumentos in- sem dúvida, serve de apoio às considera-
ternacionais, não têm a discricionariedade ções científicas sobre as diferenças funda-
de conceder ou não o refúgio: dadas as con- mentais entre ambos. Mas, igualmente, ser-
dições objetivas para sua concessão, terão o ve para afastar os argumentos daqueles au-
dever de proceder afirmativamente: b) o con- tores brasileiros que sustentam que a prote-
trole da aplicação das normas convencio- ção dos asilados, no ordenamento jurídico
nais sobre refúgio depende de órgãos inter- nacional, tem sua base constitucional no
nacionais, ficando, portanto, a responsabi- inciso X do art. 4o da Constituição Federal
lidade dos Estados por inadimplência de de 1988, recorde-se: “A República Federati-
seus deveres, no regime de violação de nor- va do Brasil rege-se, nas suas relações inter-
mas específicas, sob controle de órgãos in- nacionais, pelos seguintes princípios:... X-
ternacionais multilaterais; c) os motivos para concessão de asilo político”. A nosso ver,
a concessão de refúgio não são as simples esse dispositivo serve, como se pode dedu-
perseguições por motivos políticos, mas ain- zir de seu enunciado, unicamente ao asilo
da outras, por motivos de raça, grupo soci- político, o que não significa que o instituto
al, religião; d) há deveres precisos de os Es- do refúgio não tenha uma base constitucio-
tados Partes concederem aos refugiados nal! Tem, sim: no mesmo art. 4o, porém no
documentos de identidade e de viagem, e, inciso “II – prevalência dos direitos huma-
no caso brasileiro, proibições expressas de nos” e no inciso “IX – cooperação entre os
deportação aos postulantes e casos particu- povos para o progresso da humanidade”!
lares de proibições de expulsão e de extra- Enfim, qualquer estudo, nos dias atuais,
dição aos refugiados, e d) por tratar-se de sobre a proteção dos direitos dos estrangei-
um instituto regulamentado sob a égide da ros, na ótica dos direitos humanos, não po-
ONU, as normas que regem o refúgio têm deria deixar de referir-se às novas dimen-
salvaguardas de denegação de refúgio a sões do Direito Humanitário, que, de um
pessoas que tenham cometido um crime con- corpo de normas jurídicas destinado à pro-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 195


teção da pessoa humana em tempos de guer- estudioso do assunto, é mister notar-se que
ra, passaram a ter aplicação, em determina- “a quase totalidade das disposições das anti-
das situações, em tempos de paz. gas Convenções da Haia, relativas a condu-
O Direito Humanitário Internacional, na ção das hostilidades, se incorporaram ao Di-
sua origem, destinava-se a regulamentar, reito de Genebra, mediante adaptação e mo-
entre outros temas, a sorte dos prisioneiros dernização, e se encontram agora incluídas
de guerra; era ele constituído de tratados e no Protocolo I de 1977 [à Convenção de Gene-
convenções internacionais multilaterais, bra de 1949] relativo aos conflitos armados
adotados sob a égide do Comitê Internacio- internacionais” (PEYTRIGNET, 1996, p. 128).
nal da Cruz Vermelha Internacional, enti- As fontes normativas do Direito Huma-
dade suíça, com sede em Genebra, cuja su- nitário Internacional, (“direito de Genebra”)
pervisão era deixada à competência dos são:
Estados e das entidades nacionais da cita- a) as 4 Convenções adotadas a 12/
da Cruz Vermelha. É o que se denomina 08/1949, ao final de uma conferência
“Direito de Genebra”, que não se confunde internacional de representantes de
com o assim dito “Direito da Haia”, o con- Estados, realizada em Genebra, por
junto de normas adotadas nas duas famo- convocação do Governo suíço e por
sas Conferências da Paz, realizadas em proposta do Comitê Internacional da
1899 e 1907, naquela cidade holandesa. O Cruz Vermelha, o qual foi o responsá-
“Direito da Haia” compreende as 3 e 13 con- vel pelos respectivos projetos: (I), para
venções multilaterais52, adotadas, respecti- a Melhoria da Sorte dos Feridos e En-
vamente em 1899 e 1907, sobre o jus ad be- fermos dos Exércitos em Campanha;
llum, ou seja, as normas internacionais que (II), para a Melhoria da Sorte dos Feri-
regulam tanto o direito de ir à guerra e o dos, Enfermos e Náufragos das For-
direito de prevenção da guerra, quanto o ças Armadas no Mar; (III), Relativa à
jus in bello53, ou seja, as normas internacio- Proteção dos Prisioneiros de Guerra;
nais sobre a condução das hostilidades, nos (IV), Relativa à Proteção dos Civis em
dois tipos de guerras, então existentes, a Tempo de Guerra. Essas Convenções
guerra terrestre e a guerra marítima (hoje foram subscritas pelo Brasil, que as
complementado com normas sobre a guerra promulgou pelo Decreto no 42.121 de
aérea e sobre o desarmamento), bem como o 21/08/1957; e
regime da neutralidade. Para completar o b) os 2 Protocolos adotados a 08/
sistema jurídico das normas sobre tais cam- 06/1977, igualmente em Genebra, ao
pos do jus in bello e do jus ad bellum, é mister final da Conferência Diplomática so-
referir-se a um “Direito de Nova York”, que bre Reafirmação de Desenvolvimento
diz respeito às normas sobre definição de do Direito Humanitário, Aplicável nos
agressão, combate ao terrorismo, desarma- Conflitos Armados, convocada, igual-
mento e todas outras que têm sido elabora- mente, pelo Governo suíço, sob o im-
das sob a égide da Assembléia Geral das pulso do CICV: o Protocolo I, relativo
Nações Unidas e do seu Conselho Econômi- à Proteção das Vítimas dos Conflitos
co e Social, claro está, sediados em Nova York. Armados Internacionais e o Protoco-
Na verdade, uma análise comparativa lo II, relativo à Proteção das Vítimas
entre as normas do “direito da Haia” (per- dos Conflitos Armados Não-Interna-
feitamente identificado como um “direito cionais. Ambos foram subscritos pelo
dos meios e métodos de combate”) com o Brasil, que os promulgou pelo Decre-
“direito de Genebra” confere a este último a to no 849 de 25/06/1993.
característica de um “direito de proteção das Conquanto resultantes de projetos ela-
vítimas”. Contudo, como bem observou um borados por uma entidade de um Governo

196 Revista de Informação Legislativa


de um Estado, a Suíça, ou seja, o Comitê In- IX – Considerações finais quanto ao
ternacional da Cruz Vermelha, as 4 Con- Direito brasileiro
venções de Genebra de 1949 e os 2 Protoco-
los de 1977 foram subscritos por considerá- Um aspecto a observar é que a declara-
vel maioria dos Estados da atualidade, e ção nas normas internas dos Estados, sobre
imediatamente entraram em vigor interna- quem são seus nacionais, bem como as even-
cional54. Deve destacar-se que os dois Proto- tuais distinções entre nacionais, e, por im-
colos de 1977 foram decorrência dos fre- plicação, quais os direitos dos estrangeiros,
qüentes conflitos internacionais regionali- nos respectivos territórios, tradicionalmen-
zados, no imediato segundo Pós-Guerra, e te, eram aspectos que o Direito Internacio-
que exigiam uma regulamentação que com- nal Público definia como domínio reserva-
preendesse fenômenos que fugiam à tipici- do à competência interna dos Estados. Nos
dade das guerras tradicionais, como as guer- tempos anteriores à Declaração Universal
ras de libertação nacional, as guerras de dos Direitos do Homem, de 1948, ou seja, nas
descolonização e as guerras revolucionári- épocas históricas em que os direitos huma-
as, cujos efeitos na população eram talvez nos eram definidos unicamente em normas
maiores que as guerras clássicas (como de- internas dos Estados, as únicas limitações aos
monstrou a Guerra Civil espanhola). poderes dos Estados, no relativo a direitos
É necessário enfatizar que, mesmo que dos estrangeiros, referiam-se a poucas ques-
tenha havido uma extensão das atribuições tões sobre a efetividade das concessões de
do Direito Humanitário para os tempos de nacionalidade, e os limites que as próprias
paz e que as entidades da Cruz Vermelha normas constitucionais internas impunham
tenham, por um costume internacional, in- ao legislador infraconstitucional.
vadido campos que tradicionalmente lhe A elevação das normas de proteção à pes-
eram estranhos (como as situações em tem- soa humana ao nível internacional e outras
pos de paz, não tendo havido uma declara- importantes limitações ao poder indiscrimi-
ção formal de guerra), as 4 Convenções de nado dos Estados de legislarem sobre a situa-
Genebra de 1949 e os 2 Protocolos de 1977 ção dos estrangeiros foram sendo introduzi-
já tinham previsto hipóteses que a doutrina das nos ordenamentos internos dos Estados.
dos internacionalistas reconhecia como pró- Sendo assim, dentro dos limites permiti-
prios do campo de regulamentação pertinen- dos pelo Direito Internacional da Pessoa
te aos Direitos Humanos stricto sensu. Trata- Humana, considerando-se o caso do Direi-
se dos 3 artigos iniciais, que contêm dispo- to Constitucional brasileiro atual (Consti-
sitivos comuns àquelas 4 Convenções, do tuição Federal de 1988), poderemos ter as
art. 75, “Garantias Fundamentais” do Pro- seguintes situações, todas legítimas, no or-
tocolo I (proteção das vítimas dos conflitos denamento jurídico do Brasil:
armados internacionais) e do art. 4o, “Ga- a) existência de distinções entre os
rantias Fundamentais”, e art. 5o, “Pessoas próprios nacionais brasileiros, para
Privadas de Liberdade”, do Protocolo II (pro- fins de atribuir direitos exclusivos a
teção das vítimas dos conflitos armados não- uma categoria (hipótese em que os
internacionais)55. Por outro lado, a falta de brasileiros natos têm a plenitude dos
distinções claras entre uma situação de guer- direitos civis e políticos) e não a outra
ra e as situações de conflitos, na atualidade, (hipótese em que os brasileiros natu-
faz com que questões como o tratamento de ralizados se encontram excluídos dos
prisioneiros, em conflitos internacionais, a cargos mencionados no art. 12 § 5o da
propósito de serem considerados crimino- Constituição Federal). Ainda no caso
sos comuns, tenham seus direitos humanos do Brasil, as distinções entre brasilei-
desrespeitados. ros natos e naturalizados sempre se-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 197


rão balizadas pelo fato de que “a lei ção, em sentido negativo (restrições de
[infraconstitucional] não poderá esta- direitos a uma categoria, em compa-
belecer distinção entre brasileiros na- ração a outra), as quais, no entanto,
tos e naturalizados, salvo nos casos somente podem ser estabelecidas por
previstos nesta Constituição” (art. 12 normas internacionais vigentes no
§ 2o da Constituição Federal de 1988); Brasil. Trata-se do expresso permissi-
b) as distinções entre nacionais e vo na Constituição Federal de 1988,
estrangeiros, no Brasil, têm seus limi- (art. 12 § 1o, com a redação dada pela
tes fixados em dispositivos permissi- Emenda Constitucional de Revisão no
vos da Constituição Federal e dos tra- 3 de 07/06/1994)56, que foi incluído
tados e convenções internacionais so- nas normas constitucionais, a fim de
bre direitos e garantias à pessoa hu- compatibilizar a Constituição atual
mana, de que o País seja parte. No que com as normas da Convenção sobre
respeita aos limites constitucionais, Igualdade de Direitos e Deveres entre
sobreleva, no Brasil, o disposto no art. Brasileiros e Portugueses, Convenção
5o caput (o qual arrola os Direitos e bilateral assinada antes de 1988, en-
Deveres Individuais e Coletivos, no tre Brasil e Portugal, no Brasil, pro-
campo dos Direitos e Garantias Fun- mulgada pelo Decreto 70.391 de 12/
damentais) assim redigido: Todos são 04/1972 e regulamentada pelo Decre-
iguais perante a lei, sem distinção de qual- to 70.436 de 18/04/197257 (e em Por-
quer natureza, garantindo-se aos brasilei- tugal, regulamentada pelo Decreto-Lei
ros e aos estrangeiros residentes no País a 126/72 de 22/04/1972) (VALLA-
inviolabilidade do direito à vida, à liber- DÃO, 1982, p. 390).
dade, à igualdade, à segurança e à propri- Enfim, devemos ressaltar que o ordena-
edade, nos termos seguintes: .... o qual mento jurídico brasileiro, tanto em nível
deve ser interpretado em conjunto com constitucional quanto infraconstitucional,
o § 2o do mesmo art. 5o da Constitui- pelo menos no que se refere às normas vi-
ção Federal de 1988 assim redigido: gentes, encontra-se em consonância com as
Os direitos e garantias expressos nesta normas internacionais de proteção da pes-
Constituição não excluem outros decor- soa humana. O mesmo não se poderia di-
rentes do regime e dos princípios por ela zer, no que respeita a uma determinada ju-
adotados, ou dos tratados internacionais risprudência do Supremo Tribunal Federal,
em que a República Federativa do Brasil que tem considerado as normas do Pacto de
seja parte. No que respeita aos limites San José da Costa Rica como legislação in-
das normas internacionais, remetemo- capaz de coadunar-se com o permissivo
nos às considerações anteriores do constitucional brasileiro, de colocar-se na
presente artigo, e poderemos dizer que prisão o depositário infiel, situação ex-
se trata das normas do Direito Interna- pressamente vedada pelo Pacto de San
cional da Pessoa Humana, lato sensu, José58.
nos quais se encontram o Direito Inter-
nacional da Pessoa Humana stricto sen-
su, os Direitos do Asilado Político, os
Notas
Direitos dos Refugiados protegidos
1
pela ONU e os direitos das pessoas Assim se denomina o Cap. 14: A abrangência
abrangidas pelas normas do Direito In- pessoal das normas do Direito Internacional Público: a
nacionalidade, a plurinacionalidade, a apatrídia e a pro-
ternacional Humanitário; teção diplomática de estrangeiros. A pessoa jurídica no
c) as distinções entre estrangeiros, Direito Internacional. A nacionalidade dos meios de trans-
desde que não haja uma discrimina- porte internacional e sideral (p. 313-335).

198 Revista de Informação Legislativa


2 9
O Cap. 15 tem o seguinte título: O Primeiro Como exemplo histórico dessa possibilidade,
Grande Tema da Globalidade: a proteção internacional cite-se o caso do Brasil, com a denominada Grande
da pessoa humana e suas três vertentes: Direitos Huma- Naturalização, logo após a Proclamação de Repú-
nos, Direito dos Refugiados e Direito Humanitário. O blica. Com efeito, na sua primeira Constituição
Direito de Asilo (p. 335-406). Republicana, de 24 de fevereiro de 1981, dispunha,
3
No Salmo 146 (145 da Vulgata), versículo 9, o no art. 69 que “são cidadãos brasileiros... § 4o) os
qual segue o tema constante na história dos he- estrangeiros que, achando-se no Brasil aos 15 de
breus, de o estrangeiro estar sempre assemelhado à novembro de 1889, não declararem, dentro em seis
situação das viúvas e órfãos (situação essa do mais meses depois de entrar em vigor a Constituição, o
completo desamparo), assim se lê: “Dominus cus- ânimo de conservar a nacionalidade brasileira, § 5o)
todit advenas pupillum et viduam suscipiet et viam os estrangeiros que possuírem bens imóveis no Bra-
peccatorum disperdet”, na tradução da Bíblia de sil e forem casados com brasileiras ou tiverem fi-
Jerusalém: “Iaweh protege o estrangeiro, sustenta lhos brasileiros, contanto que residam no Brasil, salvo
o órfão e a viúva...(mas) transtorna o caminho dos se manifestarem a intenção de não mudar de naci-
ímpios”. onalidade”. As Constituições posteriores consagra-
4
O Profeta Isaías, considerado o profeta da ram aquelas normas: a de 1934 (art. 106 alínea c,
esperança, invectivava as autoridades de seu tem- “são brasileiros”, sem fazer a distinção entre “na-
po a que propiciassem um tratamento adequado tos” e “naturalizados”), de 1937 (art. 115 alínea c,
aos estrangeiros, com a recordação de que os pró- “idem”) e de 1946 (art. 129. III, “idem”), repetindo
prios judeus se lembrassem de que tinham sido o seguinte dispositivo: “os que adquiriram a nacio-
estrangeiros nas terras de Babilônia. nalidade brasileira, nos termos do artigo 69, itens
5
O estoicismo, na sua primeira vertente, por IV e V, da Constituição de 24 de fevereiro de 1891”.
volta do Séc. III a. C., centrada no filósofo Zenão de A de 1967 e sua Emenda Constitucional n o 1/69,
Eléia, ter-se-ia preocupado com o “gênero huma- no art. 145, fizeram a distinção entre “brasileiros
no” e, em conseqüência, com os direitos dos estran- natos” e “brasileiros naturalizados”, tendo consi-
geiros. O estoicismo iria produzir importantes pen- derado como brasileiros naturalizados “os que ad-
sadores no mundo romano, como o imperador quiriram a nacionalidade brasileira, nos termos do
Marco Aurélio (definiu o homem como o “cidadão artigo 69, itens IV e V, da Constituição de 24 de
do universo”) e Epitecto, o escravo (ambos escreve- fevereiro de 1891” . A Constituição atual de 1988
ram em grego), Sêneca e o grande Cícero (que for- silencia a respeito da Grande Naturalização em-
mulou a existência de um “direito natural”, pró- preendida pela Constituição de 1891.
prio à natureza humana, na sua obra De Republica). 10
O atual art. 12 § 4o da Constituição Federal
Tal vertente humanista da filosofia greco-romana de 1988 assim está redigido: “Será declarada a per-
irá exercer notável influência no pensamento oci- da da nacionalidade do brasileiro que: I – tiver can-
dental, sobretudo após sua revalorização pelo Cris- celada sua naturalização, por sentença judicial, em
tianismo. virtude de atividade nociva ao interesse nacional: II
6
Reconhecendo que, em português, inexiste – adquirir outra nacionalidade por naturalização
um vocábulo tão expressivo como no francês, “allé- voluntária”.
geance”, ou no inglês “allegiance”, para designar o 11
Na verdade, essa situação pode ser a de fi-
sentimento de fidelidade, de vassalidade a uma
lhos de brasileiro ou de brasileira, nascidos em pa-
nação, ou seja, o fenômeno de uma pessoa “perten-
íses europeus como a Alemanha, França e Itália,
cer” a um universo de valores nacionais, utiliza-
cujos progenitores não sejam nacionais desses Es-
mos o termo “pertencimento”, a nosso ver, por
demais cercado de noção de propriedade e pos- tados, e, ao mesmo tempo, que não tenham ocorri-
se. O termo é derivado do universo medieval, do as hipóteses para a sua opção pela nacionalida-
conforme se pode verificar pela persistência, no de brasileira originária (como aquelas contempla-
moderno francês, do adjetivo “lige”, conforme a das no referido art. 12, inc. I, al. b) e c) da Consti-
expressão “homme lige”, no sentido de “person- tuição Federal de 1988).
12
ne entièrement dévouée à.. affidé inconditionnel (Cf. Tal regra deve ser ressaltada pelo fato de que
LIGE, 1993). ilustres brasileiros, que ocuparam elevados cargos
7
Note-se, nas línguas neolatinas, a mesma raiz reservados a brasileiros natos (em especial o de Pre-
nas palavras estrangeiro e estranho, presente no prefi- sidente da República), cujos progenitores ou um
xo “extra” que designa “fora”, “além dos limites”. deles eram nacionais da Alemanha, da Itália e da
8
Pode dar-se a hipótese de a lei de outro país antiga Checoslováquia, terem sido, igualmente,
não exigir qualquer outra condição, para conside- nacionais desses países!
13
rar um brasileiro, nascido de progenitores da naci- A regra constante do art. 12, 4o, item II, da
onalidade daquele país, como seu nacional. Basta- Constituição Federal de 1988 do Brasil (perda da
ria, portanto, a mera filiação. nacionalidade brasileira por naturalização volun-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 199


tária em outro país) não é universal. Na verdade, tituído pelo Pacto da ONU sobre Direitos Econô-
trata-se de uma perda-pena, que a outros países micos, Sociais e Culturais, o Comitê para a Elimi-
pode parecer como inadequada para inibir seus na- nação da Discriminação Racial, instituído pela Con-
cionais a abandonar um status, do qual defluem venção sobre a Eliminação da Discriminação Raci-
direitos e deveres para com o Estado. Ressalte-se al, o Comitê para a Eliminação da Discriminação
que, a nosso ver, a nacionalidade deve ser conside- contra a Mulher, instituído pela Convenção sobre a
rada como um direito irrenunciável por parte de Eliminação da Discriminação contra a Mulher, o
seu titular e, portanto, uma perda da nacionalida- Comitê contra a Tortura, instituído pela Conven-
de por efeito da lei, como a prevista no Direito bra- ção contra a Tortura, e o Comitê dos Direitos da
sileiro, iria contra tais princípios. Criança, instituído pela Convenção dos Direitos da
14
Conforme já visto em capítulo anterior deste Criança.
21
trabalho, o exercício de funções eleitorais pelas Re- A propósito da inter-relação entre o tema da
partições consulares se encontram permitidas, de integração econômica regional e o tema da prote-
conformidade com os dispositivos constantes no ção dos Direitos Humanos, veja-se nosso trabalho:
art. 5o, item (m) da Convenção de Viena sobre Rela- A União Européia, o Mercosul e a Proteção dos Direitos
ções Consulares de 1963, no Brasil promulgada pelo Humanos (2002b, p. 121-163).
Decreto no 61.078 de 26/06/1967. 22
O Conselho da Europa é uma organização
15
Há outros valores psicossociais importantes, regional européia, que se compõe dos Ministros da
que merecem consideração, como o caso de valores Justiça dos países dela integrantes, cujo número
desportivos, em competições internacionais. A qual incluiu e ultrapassa o número de Estados mem-
time de futebol ou a qual delegação nacional per- bros da Comunidade Européia e que não incluía os
tenceria um plurinacional? Num campeonato in- antigos Estados do Bloco socialista.
ternacional de futebol, um indivíduo ítalo-brasilei- 23
Interessante observar que o Protocolo no 8
ro deverá “torcer” pela “Seleção Canarinho” ou pela adicionaria um § 3o ao texto primitivo da Conven-
“Squadra Azzurra”?! ção Européia, claramente calcado no Pacto de San
16
Os textos em português de ambas as Con- José (veja-se além, no presente Capítulo), assim
venções se encontram apud Antônio Augusto Can- redigido: “Os candidatos deverão gozar da mais
çado Trindade (1991, respectivamente, p. 248-263, alta reputação moral e reunir as qualificações exi-
263-272). gidas ao exercício de altas funções judiciais ou se-
17
Segundo esse notável jusfilósofo italiano, te- rem pessoas de reconhecida competência em direi-
ria havido um caminhar dos Direitos Humanos, to nacional ou internacional”. Deve notar-se que a
em direção a uma maior clareza e eficácia: de sim- Comissão Européia seria extinta com o Protocolo
ples aspirações de pensadores, profetas, filósofos e 11, como será dito mais além. O texto do Protocolo
intelectuais, na Antigüidade, na Idade Média, no no 8 encontra-se apud Antônio Augusto Cançado
Renascimento, no Iluminismo, passam eles a ter Trindade (1991, p. 456-461).
uma existência mais concreta, com as definições 24
O Estatuto da Comissão Interamericana de
nas normas constitucionais e ordinárias dos orde- Direitos Humanos foi aprovado pela Resolução
namentos internos dos Estados, a partir das Revo- AG/RES. 447 (IX-079), adotada pela Assembléia
luções Inglesa e Francesa, e na definitiva implanta- Geral da OEA, no seu Nono Período Ordinário de
ção do constitucionalismo moderno. Enfim, após a Sessões, realizado em La Paz, na Bolívia, em outu-
Segunda Guerra Mundial, houve o grande refina- bro de 1979. Seu texto, em português, encontra-se
mento de tal caminhar em busca de maior efetivi- apud Luiz Flávio Gomes e Flávia Piovesan (2000,
dade, com a Declaração Universal dos Direitos p. 420-427).
Humanos, com os dois Pactos sobre Direitos Hu- 25
O Estatuto da Corte Interamericana de Direi-
manos, subscritos sob a égide da ONU, nos gran- tos Humanos foi aprovado pela Resolução AG/
des tratados multilaterais globais e respectivos me- RES. 448 (IX-0/79), adotada pela Assembléia Ge-
canismos de verificação de sua adimplência e, en- ral da OEA, no mesmo Nono Período Ordinário da
fim, nos tratados e mecanismos regionais de prote- Assembléia Geral da OEA, mencionada na nota de
ção dos Direito Humanos. rodapé anterior. Seu texto, em vernáculo, encontra-
18
Os textos da Declaração Universal dos Direi- se no mesmo livro citado no referido rodapé, Luiz
tos do Homem e de ambos os Pactos se encontram Flávio Gomes e Flávia Piovesan (2000, p. 428-452).
26
apud Vicente Marotta Rangel (2000, respectivamen- O texto do Decreto Legislativo no 89 de 03/
te, p. 645-652, 668-680, 681-704). 12/1998, juntamente com a Mensagem do Presi-
19
Originariamente prevista para contar com 18 dente da República e da Exposição de Motivos do
Estados, hoje conta com 53, desde 1990. Cf. J. A Ministério das Relações Exteriores, encontra-se pu-
Lindgren Alves (1994, p. 73). blicado no Diário Oficial da União, de 04/12/1998,
20
Os demais comitês existentes são: o Comitê p. 2, e se acha igualmente reproduzido apud Luiz
sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ins- Flávio Gomes e Flávia Piovesan (2000, p. 437-441).

200 Revista de Informação Legislativa


27
Relembre-se o disposto no art. 2o § 7o: “Ne- se a garantir que os direitos nele enunciados se exercerão
nhum dispositivo da Presente Carta autorizará as sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo,
Nações Unidas a intervirem em assuntos que de- língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
pendam essencialmente da jurisdição de qualquer origem nacional ou social, situação econômica, nascimen-
Estado ou obrigará os membros a submeterem tais to ou qualquer outra situação. Nesse mesmo art. 2o, há
assuntos a uma solução nos termos da presente um § 3o, que merece transcrição, tendo em vista as
Carta... ressalvas quanto a dificuldades práticas que os
28
Para um estudo do condicionamento entre a países em desenvolvimento poderiam ter, em rela-
participação da União Européia e o referido com- ção à aplicabilidade a eles de tais mandamentos
prometimento com os direitos humanos, veja-se legais, assim redigido: § 3o Os países em desenvolvi-
nosso trabalho já referido: A União Européia, o Mer- mento, levando devidamente em consideração os direitos
cosul e a Proteção dos Direitos Humanos (SOARES, humanos e a situação econômica nacional, poderão deter-
2002b), já referido em rodapé anterior. minar em que medida garantirão os direitos econômicos
29
A “cláusula democrática” consta expressa- reconhecidos no presente Pacto àqueles que não sejam
mente no § 2o do art. F do Tratado de Maastricht de seus nacionais.
32
1992 e assim se acha escrita, no Tratado de Ams- Registre-se, contudo, que o Protocolo no 7 de
terdam de 1997, no seu art. seu art. 6 o § 2 o: “A 1984 à Convenção Européia de Direitos Humanos
União respeita os direitos fundamentais, tais quais e Liberdades Fundamentais regulamentou a ques-
se encontram garantidos pela Convenção Européia tão da expulsão de estrangeiros. Seu texto se en-
de Proteção dos Direitos do Homem e das Liberda- contra apud Antônio Augusto Cançado Trindade
des Fundamentais, assinada em Roma a 04 de no- (1991, p. 453-454).
33
vembro de 1950 e tais quais resultem das tradições Seu texto, com comentários de M. A. Al Mi-
constitucionais comuns aos Estados membros, en- dani (1996, p. 183-189). O texto transcrito corres-
quanto princípios gerais do direito comunitário”. ponde ao texto veiculado, ainda como Projeto, na
Em nossa tradução livre do texto do Tratado de obra de Antônio Augusto Cançado Trindade (1991,
Amsterdam, conforme: (1998, p. 304-392, citação p. 510).
34
retirada de p. 307). Os textos de tais atos normativos se encon-
30
Tratar-se-ia da aplicação do art. 7o do Trata- tram apud Antônio Augusto Cançado Trindade
do de Amsterdam (ex. art. F.1 de Maastricht), as- (1991, p. 423, 432-433).
35
sim redigido: “§ 1o – O Conselho, reunido em nível Eis seus termos: Toda pessoa tem direito, em
de Chefes de Estado ou de Governo e decidindo por caso de perseguição, de buscar e de obter asilo em territó-
unanimidade, por proposta de um terço dos Esta- rio estrangeiro, em conformidade com a lei de cada país e
dos membros ou da Comissão, e após parecer con- as convenções internacionais.
36
forme do Parlamento Europeu, pode constatar a Na verdade, não se poderia referir a uma re-
existência de uma violação grave e persistente por vogação ou derrogação das anteriores, pois, como
um Estado membro dos princípios enunciados no há Estados que permanecem partes apenas de umas
artigo 6o parágrafo 1o, após haver convidado o Go- e não de outras, as antigas continuam vigentes en-
verno deste Estado membro a apresentar suas ob- tre os Estados que as ratificaram, conjuntamente.
servações sobre a matéria”. § 2o – “Desde que uma Para uma listagem dos países que ratificaram as
tal constatação seja feita, o Conselho, decidindo duas primeiras, veja-se Hildebrando Accioly (1956,
por maioria qualificada, pode decidir suspender p. 483), e para os Estados que ratificaram as duas
certos direitos decorrentes da aplicação do presen- assinadas em Caracas, veja-se, na Organização dos
te Tratado, em relação ao Estado membro em ques- Estados Americanos: www.oas.org/juridico/spa-
tão, neles compreendidos o direito do representan- nhish/firmas/a-46.html e idem/a-47.html. Acesso em:
te do Governo deste Estado membro no seio do abr. 2002.
37
Conselho. Ao assim decidir, o Conselho levará em Bahamas, Barbados, Belize, Canadá, Domi-
conta as eventuais conseqüências de tal suspensão nica, EUA, Granada, Guiana, Jamaica, Saint Kitts e
sobre os direitos e obrigações das pessoas físicas e Nevis, Santa Lucia, e São Vicente e Granadinas.
38
morais. As obrigações que incumbem ao Estado Não ratificaram a Convenção sobre Asilo Di-
membro em questão, decorrentes do presente Tra- plomático: Bolívia, Chile, Colômbia e Cuba. Não
tado, quaisquer que sejam as circunstâncias, per- ratificaram a Convenção sobre Asilo Territorial:
manecem exigíveis deste Estado” (Em nossa tra- Argentina, Bolívia, Chile, Honduras e República
dução livre, conforme fonte mencionada no pará- Dominicana. Informações: www.oas.org/juridico/
grafo anterior). spanhish/firmas/a-46..html e /a-47..html. Aces-
31
Comparem-se tais normas com as constantes so em: abr. 2002.
39
do § 2o do art. 2o do Pacto Internacional de Direitos Na verdade, a Convenção de Caracas sobre
Econômicos, Sociais e Culturais, assim redigido: § Asilo Diplomático aproveitaria as críticas às im-
2o: Os Estados Partes no presente Pacto comprometem- perfeições de convenções anteriores, feitas pela Corte

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 201


Internacional de Justiça, no famoso Caso Haia de como do Comitê Intergovernamental para as Mi-
la Torre, Caso do Asilo Diplomático, que opôs Co- grações Européias.
46
lômbia e Peru 1950 e 1951 e que seria julgado em Um dos grandes problemas que tinha enfren-
1950 e 1951. Veja-se nossa crônica (SOARES, 2000). tado a Sociedade das Nações era a multiplicidade
40
Uma análise mais detalhada dessa Resolu- de convenções específicas, que versavam sobre um
ção da ONU pode ser encontrada no Cap. 15 O dado assunto, e sempre com caráter regional, cuja
Primeiro Grande Tema da Globalidade: a proteção inter- aplicação e seguimento era de competência de “Co-
nacional da pessoa humana e suas três vertentes: Direitos missários” temáticos, como se pode verificar com o
Humanos, Direito dos Refugiados e Direito Humanitá- Comissário para Refugiados Russos, estabelecido
rio. O Direito de Asilo (SOARES, 2000, p. 335-406). pelo Acordo sobre Refugiados Russos de 05/07/
41
Os assuntos relacionados a quaisquer tipos 1922.
47
de estrangeiros, regulamentados em tais normas, Os textos da Convenção de 1951 (versão ori-
são, em linhas gerais: os casos de entrada de es- ginal) e do Protocolo de 1967 encontram-se em
trangeiros, de sua permanência, de sua deportação Nádia de Araújo e Guilherme Assis de Almeida
(recusa de permanência no território nacional, por (2001, p. 385-412, p. 413-419).
48
falta de requisitos de legalidade na entrada ou es- O Texto da Declaração de Cartagena encon-
tada do estrangeiro, como a expiração de vistos de tra-se transcrito, em português, em Nádia de
permanência, com a devolução da pessoa a outros Araújo e Guilherme Assis de Almeida (2001, p.
Estados, de preferência, aos da nacionalidade), ex- 421-430).
49
pulsão (ato administrativo de fazer cessar a per- Rechaço, ou como se diz no jargão do Direito
manência de um estrangeiro no território nacional, Internacional dos Refugiados, non refoulement, é a
pelos motivos elencados na lei, de natureza cível ou proibição de o Estado poder criar obstáculos, nas
criminal, que configuram o expulsando, em gran- fronteiras, à entrada de possíveis candidatos ao
des linhas, como uma “pessoa indesejável”) e a estatuto de refugiados.
50
extradição de estrangeiros (entrega de um estran- Cf. Fernando Fernandes da Silva (2002), numa
geiro, inocente, no território nacional, a pedido de análise dos pontos principais da Lei 9.474 de 22/
um Poder Judiciário estrangeiro, seja de sua nacio- 07/1997.
51
nalidade ou não, por motivos de uma condenação Um exemplar estudo comparativo entre am-
de privação de liberdade no Estado estrangeiro ou bos os institutos, encontra-se apud José Henrique
estar sua prisão autorizada por juiz, tribunal ou Fischel de Andrade (1998, p. 393).
52
autoridade competente deste último, conforme os As 13 Convenções adotadas na Haia a 18/
temos do art. 78 do Estatuto dos Estrangeiros). 10/1907 foram assinadas pelo Brasil, ratificadas e
42
A propósito do tema “asilo político” na Cons- conjuntamente promulgadas pelo Decreto no 10.719
tituição Federal de 1988, veja-se o trabalho de Tha- de 04/02/1914.
53
my Pogrebinschi (2001, p. 319-342). Jus in bello e jus ad bellum são expressões rela-
43
Veja-se o bem elaborado estudo do Prof. José tivamente recentes no Direito Internacional, cunha-
Henrique Fischel de Andrade (2000, p. 99-125). Em das pelo Prof. Louis Delbez (1951). A expressão
outro estudo, o mesmo Professor Fischel de tradicional para “Direito da Guerra” era, desde os
Andrade (1996a, 1999, p. 75-120) discorre sobre escritores da Idade Média, Jus Belli, então associa-
os mesmos fatos e ainda as outras organizações da à questão das discussões sobre a guerra justa e,
intergovernamentais instituídos após a II Guer- a partir de Grotius, às normas sobre o começo e fim
ra Mundial. das guerras, a condução das hostilidades, a neu-
44
Uma perfeita crônica da situação dos refugi- tralidade e o tratamento dos prisioneiros e da po-
ados na Europa, logo após o fim da Segunda Guer- pulação civil. A propósito dos conceitos do Prof.
ra Mundial, bem como um estudo pormenorizado Delbez, veja-se nosso trabalho (SOARES, 1985) A
dos antecedentes do ACNUR, encontra-se no Cur- Guerra Nuclear e o Direito.
54
so da Academia de Direito Internacional da Haia, Pelo fato de, logo após sua assinatura, terem
do primeiro Diretor desta instituição da ONU, Dr. entrado em vigor internacional e pelo número de
G. J. Van Heuven Goedhart (1953, p. 261-369). sua ratificação, as 4 Convenções de Genebra de 1949
45
Destaque-se a atuação da Administração das provam sua aceitação pela quase totalidade dos
Nações Unidas para o Auxílio e Reabilitação, insti- Estados da atualidade, entre 186 Estados que as
tuída em 1952, com base de atuação em Genebra, ratificaram, da mesma forma que os 2 Protocolos
conhecida por sua sigla em inglês, UNRRA United de 1977, o primeiro, entre 135 Estados ratificantes,
Nations Relief and Rehabilitation Administration., que e o segundo, entre 125 Estados, nas mesmas cir-
funcionaria até 1947, data de sua auto-extinção e cunstâncias.
55
transferência de bens e atribuições para a uma nova Os textos se encontram reunidos no livro do
instituição internacional que seria então instituída, Prof. Antônio Augusto Cançado Trindade (1991,
a Organização Internacional dos Refugiados, bem p. 308-309, 309-312, 312-325). Veja-se, igualmen-

202 Revista de Informação Legislativa


te, nosso Curso de Direito Internacional Público, no nacionais. Brasília: Ordem dos Advogados do Bra-
Cap. já referido (SOARES, 2002a). sil, 1997. p. 149-164.
56
O dispositivo atual assim reza: Aos portugue-
______. Regional policy approaches and harmoni-
ses com residência permanente no País, se houver recipro-
zation: a latin american perspective. International
cidade em favor dos brasileiros, serão atribuídos os direi-
Journal of Refugee Law, Oxford, v. 10, n. 3, p. 389-
tos inerentes ao brasileiro, salvo os casos previstos nesta
409, Jul. 1998.
Constituição. No texto original da CF de 1988, por-
tanto, antes da Emenda Constitucional de Revisão ARAÚJO, Nádia de; ALMEIDA, Guilherme Assis
no 3/94, constava a expressão “brasileiro nato”; no de (Coord.). O direito internacional dos refugiados:
texto atual, consta “brasileiro”. uma perspectiva brasileira. Rio de Janeiro; São Pau-
57
O texto do Decreto 79.436 de 18/04/1972, lo: Renovar, 2001.
“regulamenta a aquisição, pelos portugueses no
BAPTISTA, Luiz Olavo; RODAS, João Grandino;
Brasil, dos direitos e obrigações previstos no Esta-
SOARES; Guido Fernando Silva (Org.). Normas de
tuto da Igualdade e dá outras providências”, en-
direito internacional. São Paulo: LTr, 2001.
contra-se apud Luiz Olavo Baptista, João Grandi-
no Rodas e Guido Fernando Silva Soares (2001, t. 2, BOBBIO, Norberto. Presente e futuro dos direitos
p. 199). do homem. In: ______. A era dos direitos. Rio de
58
Veja-se a crônica deste caso, no Cap. 10: Rela- Janeiro: Campus, 1992. p. 25-47.
ções entre o direito interno e o internacional, na sua
DELBEZ, Louis. Manuel de droit international public:
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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 203


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204 Revista de Informação Legislativa


O novo Código Civil e o seu completamento
pela jurisprudência

Inocêncio Mártires Coelho

Sumário
1. Introdução. 2. A estrutura normativo-ma-
terial dos princípios jurídicos e o desenvolvi-
mento judicial do direito. 3. As normas abertas
do novo Código Civil e a sua concretização
jurisprudencial. 4. Conclusão.

1. Introdução
Aceitas as conseqüências hermenêuticas
da analítica existencial de Martin Heidegger
e os desdobramentos que Hans-Georg-Ga-
damer logrou extrair da obra do seu mestre,
é de se considerar abalada a velha idéia de
verdade como correspondência entre o pen-
samento e a coisa pensada (adequatio rei et
intelectus), um estremecimento que, a rigor,
parece remontar ao idealismo transcenden-
tal kantiano, em cujo âmbito, descartada a
possibilidade de acesso à coisa em si, o su-
jeito passou a desempenhar o papel de pro-
dutor ou, no mínimo, de conformador do
conhecimento, em especial no âmbito das
ciências humanas, que têm como objeto rea-
lidades significativas − as chamadas coisas
do espírito −, cuja apreensão exige o prota-
gonismo do intérprete para se revelarem em
toda a sua plenitude.
É que, em termos noéticos ou gnoseoló-
gicos − e isso independentemente da coisa
que se queira apreender −, o evento cogniti-
vo não se verifica sem a movimentação do
sujeito em direção ao objeto do conhecimento,
objeto esse que não é um ser em si e por si,
mas apenas uma entidade lógica, que o su-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 205
jeito pensante intencionalmente cria e coloca Não por acaso, quando teve de enfrentar
diante de si para ser conhecido1. o tormentoso problema da aplicação do di-
Transpostas essas premissas para os reito, ninguém menos que Hans Kelsen
domínios da hermenêutica jurídica, o que (1962, v. 2, p. 296-297), com todo o seu rigo-
tem sido feito de modo crescente nos últi- rismo, chegou a dizer que a interpretação
mos tempos, restou comprometida, igual- da ciência jurídica deveria evitar, com o
mente e por via de conseqüência, a antiga máximo cuidado, a ficção de que uma nor-
idéia de interpretação como descoberta ou ma jurídica permite apenas, sempre e em
revelação do verdadeiro significado das leis, todos os casos, uma só interpretação − a in-
de uma espécie de significado em si das re- terpretação “correta” − porque, em vista da
gras de direito, assim entendido aquele sen- variedade de significados da maioria das
tido que o legislador pretendeu atribuir-lhes regras de direito, esse ideal somente é reali-
ou que, mesmo à sua revelia, acabou impreg- zável aproximativamente.
nando o texto da norma no curso do proces- É que, observam Carlos Alchourrón e
so legislativo2. Eugenio Bulygin (1998, p. 62-63), só nas lin-
Mens legis ou mens legislatoris, pouco im- guagens puramente formais − como são as
porta, era esse o sentido que, ao ver da dou- da lógica e da matemática puras − não se
trina tradicional, deveria ser observado nas colocam problemas de vagueza, e isso não
relações jurídicas, até porque o de que se porque os seus conceitos sejam mais exatos
tratava era de mera aplicação do direito ou, que os das outras ciências, e sim porque não
se preferirmos, de uma simples subsunção de são conceitos empíricos, uma observação
fatos a normas preestabelecidas, cabendo ao que eles reforçam citando ensinamento de
juiz ser apenas a boca que pronuncia as pala- Einstein para quem, na medida em que se
vras da lei, o que, tudo somado, decorria não referem à realidade, os conceitos são vagos
apenas da leitura dogmática ou em sentido e, na medida em que não são vagos, não se
forte do princípio da separação dos pode- referem à realidade.
res, mas também da compreensão equivo- Na mesma direção, anota Larenz (1989,
cada do julgador como autoridade invisível p. 378-379) que, muito embora toda e qual-
e de algum modo nula3, e da confusão entre quer interpretação − devida a um tribunal
texto e norma, o primeiro, como proposição, ou à ciência jurídica − encerre a pretensão
formulado de uma vez por todas e, por isso, de ser “correta”, em termos de conhecimen-
subtraído à ação do tempo; a segunda, como to adequado e assente em razões compreen-
realidade significativa, a depender necessari- síveis, na verdade não existe uma interpre-
amente de inserção na história e de novas tação “absolutamente correta”, no sentido
leituras para preservar a sua pretensão de de que se possa considerar definitiva e váli-
injuntividade (LARENZ, 1978, p. 144-145, da para todas as épocas. Não é definitiva
1997, p. 262-263). porque a variedade inabarcável e a perma-
Mais ainda, a coroar essa constelação de nente mutação das relações da vida a todo
equívocos, a ingenuidade de supor que as instante colocam aquele que aplica as nor-
palavras da lei − em verdade, quaisquer con- mas perante novas questões; nem tampou-
ceitos normativos − pudessem ter um sen- co é válida, para sempre, porque a interpre-
tido unívoco, a ser descoberto ou revela- tação de qualquer norma, sendo referida de
do pelos operadores do direito, mediante modo necessário à totalidade do ordenamen-
técnicas usuais de interpretação, quando to a que pertence, estará sujeita, reflexamen-
se sabe que a linguagem normativa é na- te, às mudanças de rumo que se verifiquem
turalmente aberta e, por isso, sujeita a múl- nesse ordenamento ou, mais amplamente,
tiplas significações (HART, 1968, p. 155- no prisma histórico-social de aplicação do
169). direito (REALE, 1968, p. 209-218). Precisa-

206 Revista de Informação Legislativa


mente por isso é que Hans-Georg Gadamer vontade do legislador, porque o que está em
(1983, p. 71), coerente com a sua proposta jogo na elucidação do sentido de uma pro-
de abertura hermenêutica, insiste em di- posição jurídica é o que ela significa para
zer que a idéia de uma interpretação defi- nós, para os de hoje, para aqueles a quem ela
nitiva parece encerrar uma contradição fala agora, servindo o contexto histórico da
em si mesma, porque a interpretação é algo sua produção apenas como ponto de parti-
que está sempre a caminho, que nunca se da para o processo interpretativo, uma tare-
conclui. fa que há de prosseguir, por assim dizer,
Pois bem, contra aquele entendimento arrancando-se a lei da sua relação com a
imobilista e fechado, que os espíritos mais época em que surgiu para, em pensamento,
lúcidos desde cedo denunciaram como re- projetá-la na atualidade.
matado equívoco, acabou prevalecendo a Nessa perspectiva, dadas as constantes
compreensão, avalizada pela experiência e inevitáveis revoltas dos fatos contra os códi-
jurídica, de que normas gerais não fazem gos4 e a natural inércia do legislador em ajus-
justiça a situações particulares e que, por tar as leis ao fluxo da história, torna-se evi-
isso mesmo, na tarefa de atribuir a cada um dente que incumbe essencialmente aos juí-
o que é seu, sob pena de denegação de justi- zes encontrar as primeiras respostas para os
ça, deve o juiz adequar a lei às exigências novos problemas sociais, uma tarefa que eles
do caso concreto − para isso se valendo, in- só poderão cumprir a tempo e modo se fo-
clusive, das aberturas próprias da lingua- rem capazes de questionar as idéias crista-
gem normativa −, uma tarefa que, de resto, lizadas, encarar o futuro e trilhar novos ca-
ele sempre cumpriu naturalmente e com in- minhos, porque a chamada opinião dominan-
tensidade muito maior do que supunha a te − chame-se ela senso comum dos juristas,
doutrina tradicional (BRUTAU, 1951?, p. communis opinio doctorum ou jurisprudência
49-55). mansa e pacífica −, longe de traduzir um con-
Nesse contexto, é de se destacar − como senso que se possa reputar verdadeiro, não
fez Recaséns Siches (1968, p. 118) − que des- raro consubstancia grandes e resistentes
de 1908, muito antes, portanto, de se abri- preconceitos coletivos, fruto de argumentos
rem os caminhos para o reconhecimento do de autoridade ou de inércia mental, os quais,
papel criador da jurisprudência, o intuitivo juntos ou separados, sabidamente esterili-
Jean Cruet (1908, p. 26-27) já dizia que o juiz, zam o pensamento e impedem os vôos mais
esse “ente inanimado” de que falava arrojados.
Montesquieu, tem sido a alma do progresso
jurídico, o artífice laborioso do direito novo 2. A estrutura normativo-material
contra as fórmulas caducas do direito tradi- dos princípios jurídicos e o
cional, e que a sua participação no processo
desenvolvimento judicial do direito
de renovação do direito é, em certo grau, um
fenômeno constante, uma espécie de lei na- Considerando que, para os fins deste tra-
tural da evolução jurídica porque, nascido balho, não se faz necessário analisar as di-
da jurisprudência, o direito vive pela ju- versas teorias que pretendem apontar dife-
risprudência e é por ela que, muitas ve- renças qualitativas entre os princípios jurí-
zes, nós o vemos evoluir sob uma legisla- dicos e as regras de direito, até porque − se é
ção imóvel. que existem − essas distinções, supostamen-
No mesmo sentido − invocando ensina- te ontológicas, parecem não resistir às refuta-
mentos de Gerhart Husserl e de Walther ções da experiência jurídica, aproveitaremos
Schönfeld −, Karl Larenz (1978, p. 145) acen- de cada uma dessas doutrinas apenas os
tua que a última palavra em questões de in- pontos que julgarmos mais importantes, as
terpretação de uma lei não a pode dizer a suas idéias centrais, digamos, para mostrar

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 207


que o destino do novo Código Civil depen- mento jurisprudencial, o que não chega a
derá, fundamentalmente, do modo como fo- causar surpresa se tivermos presente que
rem aplicadas as suas normas − sejam elas esse é um fenômeno comum na vida do di-
regras ou princípios5 − porque, ao fim e ao reito8 e que o mesmo ocorreu com o Código
cabo, em sua concreta existência, elas serão de 1916, em que pese a ilusão, reinante àque-
aquilo que for “declarado” pelos juízes e tri- le tempo, de que as malhas da lei pudessem
bunais, sem cuja mediação os comandos regular, por inteiro e aos detalhes, os múlti-
jurídicos permanecem genéricos e estáticos, plos e complexos problemas da convivên-
vale dizer, inermes ou desprovidos de exe- cia social.9
cução (KAUFMANN, 1992, p. 49; FERNÁN- A propósito dessa vigência intelectual,
DEZ-LARGO, 1995, p. 92). procurando desvendar-lhe as causas para
Assim sendo, comecemos por destacar não cair no anacronismo, que tanto conde-
que, ao contrário das regras constantes do na, de julgar o passado sob a perspectiva do
novo Código Civil, que são ordenações de presente, o sempre arguto Miguel Reale es-
vigência, a se aplicarem segundo a lógica clarece que essa visão de mundo decorria
do tudo ou nada, os seus princípios consubs- da convicção − dominante entre os juristas
tanciam mandatos de otimização, o que sig- do século XIX − de que havia uma corres-
nifica dizer que eles devem ser desenvolvi- pondência essencial entre a realidade só-
dos e concretizados − antes que simplesmente cio-econômica e os modelos jurídicos con-
interpretados ou aplicados − num jogo con- sagrados nas leis, uma compreensão que, a
certado de complementações e restrições re- rigor, não era de todo equivocada se tiver-
cíprocas, de integração, portanto, com outras mos presente que, ao longo daquela centú-
normas eventualmente concorrentes, quer as ria, salvo alguns abalos ocasionais, conti-
que se encontrem no próprio código, quer nuaram apenas latentes os conflitos sociais
as que se achem fora dele − especialmente e ideológicos que eclodiriam, mais adiante,
as de relevo constitucional −, tudo em obsé- sob o impacto das grandes transformações
quio aos princípios, conjugados, da unida- operadas pela revolução industrial.
de do ordenamento e da supremacia da Daí, na síntese calidoscópica do mestre
Constituição (ALEXY, 1993, p. 86; BO- do tridimensionalismo jurídico, este gran-
CKENFORDE, 1993, p. 126-127; DWORKIN, de panorama, que nos permite decifrar, em
1997, p. 74-80). perspectiva historicamente adequada, a vi-
Sob essa perspectiva, apesar das críticas são de mundo que marcou o século XIX e
acerbas que recebeu desde a sua chegada que, dialeticamente transformada pelo em-
como projeto no Congresso Nacional e que bate com as idéias do breve século XX, orien-
prosseguem, mesmo arrefecidas, após a sua tou a elaboração, o desenvolvimento e, até
promulgação, ataques esses que em sua mesmo, a substituição do Código Civil que
maioria nos parecem injustos e emocionais, vigorou entre nós até o início de 2003:
assim como o foram − guardadas as enor- “O culto à lei, com o ciumento ape-
mes diferenças de autoria e de conteúdo − go à independência das funções legis-
as diatribes filológicas que o ressentimento lativas e ao princípio da separação
de Rui Barbosa (1902, v. 1, 1904, v. 2) assa- dos poderes; a redução do ato inter-
cou contra o Projeto Bevilaqua, o certo é que o pretativo à mera explicitação do sig-
novo Código Civil, graças sobretudo às gran- nificado imanente ao ato legislativo;
des diretrizes que informaram a sua elabora- a subordinação do juiz à suposta in-
ção − sistematicidade, eticidade, socialidade e tenção do legislador; a atenção dedi-
operabilidade6 − e às belas cláusulas gerais7, que cada ao rigor formal dos textos, alian-
abrem o seu texto, está vocacionado natural- do-se a prudência do jurista à arte dos
mente a receber o mais amplo desenvolvi- filólogos, tudo revelava o status de uma

208 Revista de Informação Legislativa


sociedade convicta da eficácia e da 3. As normas abertas do novo Código
justiça das suas opções normativas. Civil e a sua concretização
No Brasil, então, como alhures, che- jurisprudencial
gou a vingar um verdadeiro parnasia-
nismo jurídico, que resplende na exce- Com um domínio normativo que abarca
lência verbal da Constituição de 1891, quase todos os aspectos da vida social, in-
e se projeta século XX adentro, até às clusive as atividades empresariais e as obri-
polêmicas travadas sobre o Código gações mercantis, antes sujeitas a legisla-
Civil de 1916, quando maior repercus- ção própria11, pode-se dizer que o novo Có-
são tiveram as disputas dos gramáti- digo Civil, por força mesmo da magnitude
cos do que as divergências dos juris- da sua incidência, ostenta um programa nor-
consultos” (REALE, 1968, p. 30). mativo12 do mais amplo espectro, em que se
Pois bem, diversamente dessa concepção encontram praticamente todas as espécies e
estática do mundo do direito, o que a expe- subespécies de enunciados de que se utili-
riência evidencia é que as normas jurídicas, zam os operadores do direito − e.g. legisla-
assim como as outras criações do espírito, dores, juízes, advogados, professores, mem-
não esgotam em si mesmas, nem sequer ali- bros do Ministério Público e administrado-
mentam essa pretensão de auto-suficiência, res − para compor o vocabulário jurídico13,
antes exigem e aguardam − para obter a sua cujo manejo constitui o indispensável jogo
autêntica realidade − aquilo que Hans-Ge- de linguagem do direito, que outra coisa não
org Gadamer (1998, p. 64-65) chamou de é senão o modo como, no âmbito da experi-
“completamento” (Auffüllen) da obra de arte, ência jurídica, se fala da coisa Direito (WIT-
uma espécie de adimplemento pelo qual os TGENSTEIN, 1995, p. 177; LARENZ, 1997,
seus admiradores − leitores, ouvintes ou es- p. 280-281).
pectadores − como que ampliam ou levam Noutras palavras, por força mesmo do
adiante, enriquecido com esse perfazimen- amplo alcance das disposições que integram
to forçoso, um sentido que parece oculto ou as codificações civis − não por acaso elas se
apenas insinuado nos lugares mais débeis dizem a constituição do homem comum −, é
ou fluidos da forma encontrada pelo artista igualmente extenso o rol dos enunciados de
e que, a juízo desses estetas, não externa tudo que se compõe o novo Código Civil Brasilei-
aquilo que o seu criador quis dizer. ro, em cujo texto se encontram desde os abs-
Nessa mesma direção, no domínio espe- tratos princípios jurídicos até às casuísticas
cífico da criação literária, Borges (1999, p. formulações de hipóteses legais, afora as cha-
196) observa que o ato de pegar e abrir um madas cláusulas gerais, as normas em branco e
livro é que encerra a possibilidade do fato os mais variados conceitos − abstratos, empí-
estético inerente à leitura, porque antes dis- ricos, essenciais, descritivos, prescritivos,
so ele não passa de um cubo de papel e cou- normativos, determinados e indetermina-
ro, de um repositório de palavras que, into- dos, entre outros − de que se valem tanto os
cado, permanece morto, mas, quando lido − produtores quanto os aplicadores de nor-
e sempre que o lemos −, ganha vida e se re- mas jurídicas, e os juristas em geral, para
nova a cada vez. Por isso, conclui e afirma o levar a cabo a tarefa comum de realizar o
poeta maior da pátria argentina que o Ham- direito.14
let não é exatamente o que Shakespeare con- Presente esse repertório de instrumentos
cebeu, mas sim o Hamlet de Coleridge, de lingüísticos e aceita a idéia de que a criativi-
Goethe e de Bradley, do mesmo modo que o dade do intérprete depende, essencialmen-
Quixote, enriquecido pelos seus incontáveis te, do significado excedente de uma obra intelec-
e sucessivos leitores, não é o mesmo que saiu tual15, fecharemos este estudo apreciando
da pena de Cervantes.10 alguns dos preceitos do novo Código Civil

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 209


cuja estrutura normativo-material se fez in- renz (1978, p. 58-59) afirma que o princípio
tencionalmente aberta, como declarou Mi- da boa-fé se baseia na consideração de que
guel Reale (1986, p. 45), para permitir a evo- uma convivência pacífica e próspera, em
lução e a obra da interpretação − os neces- sociedades ainda carentes de coesão, não
sários completamentos − quer da doutrina, seria possível se nelas imperasse a quebra
quer da jurisprudência.16 de confiança, pois se cada indivíduo des-
Entre esses enunciados, por sua parti- confiasse do outro ter-se-ia um estado de
cular relevância para se compreender a eti- guerra latente, de todos contra todos, sacri-
cidade que permeia todo o Código Civil, ficando-se a paz à discórdia.
merece destaque, desde logo, o vetusto prin- Ainda no art. 422 do novo Código Civil,
cípio da boa-fé, um standard axiológico que a merecer registro pela sua abertura semân-
não figurava expressamente na codificação tica e conseqüente aptidão para variadas
anterior17, mas nem por isso evadiu-se da concretizações, tem-se o princípio da probida-
consciência dos nossos magistrados − a jus- de, que sintetiza múltiplos deveres − em espe-
tiça viva de que falava Aristóteles (1992, p. cial os de veracidade, integridade, honradez
98) −, que sempre o tiveram em conta para e lealdade − considerados inerentes a todas
aquilatar a legitimidade das situações jurí- as relações jurídicas (ALVES, 2002, p. 374).
dicas (MARQUES, 2002, p. 16-17; NERY Em que pese a objeção de que esse dispo-
JUNIOR, 1998; GRINOVER et al., 1998, p. sitivo seria imperfeito porque, pela sua ex-
350-351). pressão literal, estaria a exigir os requisitos
É que, independentemente de acolhida de probidade e boa-fé apenas na celebração
expressa nos ordenamentos jurídicos, esse e na execução dos contratos e não, também,
valor se mostra congênito à própria idéia como devera, nas fases pré-contratual e pós-
do direito, cujos seculares princípios − ho- contratual21, apesar disso achamos que a
neste vivere; alterum non laedere; suum cuique crítica não procede ou, no mínimo, mostra-
tribuere18 − são essencialmente preceitos de se exagerada, porque nada impede que, na
ordem moral, que antecedem, dirigem e con- concretização desse enunciado − como de
formam a criação do direito. resto sempre ocorreu com preceitos seme-
Afinal de contas, se todo direito positivo lhantes −, os seus aplicadores levem a cabo
é um intento de ser direito justo19, nenhuma a velha e obsequiosa interpretação extensiva,
ordem jurídica − sob pena de se obstruir o que outra coisa não é senão ampliar o al-
curso da vida20 − poderia manter-se neutra cance das palavras da lei para, à vista da
diante dos ditames supremos da moral, um finalidade da norma, atribuir-lhes o sentido
fato tão evidente que, em sã consciência, nin- que reputam adequado em cada situação
guém admitiria desprezar a verdade e esco- hermenêutica.22
lher a mentira como regra das ações (BRI- Vejamos, agora, mais alguns desses mo-
TO, 1905). delos jurídicos cuja abertura por certo ense-
Não por acaso, em juízo unânime, os dou- jará desenvolvimentos e concretizações para
trinadores proclamam que a boa-fé é a regra ajustar os seus comandos às sempre cambi-
de ouro que preside as operações de convali- antes relações sociais.
dação dos negócios jurídicos, o critério últi- Com efeito, consonante com o princípio
mo que há de prevalecer em qualquer contra- constitucional da função social da proprie-
to ou em qualquer cláusula, quer se trate de dade e com a diretriz da socialidade que, ao
um texto claro ou de um texto obscuro ou lado de outras, inspirou a sua elaboração, o
ambíguo, porque também um texto claro pode novo Código Civil contém preceito expres-
ter sido obra da má-fé (FROSINI, 1995, p. 135). so, o art. 421, que restringe a liberdade de
Por tudo isso, com palavras que tradu- contratar herdada do liberalismo econômi-
zem o senso comum dos juristas, Karl La- co e do voluntarismo jurídico − sob cuja égi-

210 Revista de Informação Legislativa


de se proclamava que o contrato era lei en- contratos por adesão, num evidente retro-
tre as partes − para estatuir que, doravante, cesso em face do Código de Defesa do Con-
essa clássica expressão da autonomia da sumidor, cujo art. 47 estabeleceu que nas
vontade só merecerá reconhecimento e pro- relações de consumo todas as cláusulas con-
teção do Estado se for exercida em razão e tratuais serão interpretadas de maneira mais
nos limites da função social do contrato. Na favorável ao consumidor.
prática, isso significa que qualquer contra- Esses reparos são procedentes e, por isso,
to, por mais cuidadoso que seja do ponto de devem ser levados em conta, quando mais
vista formal, se e quando for necessária a não seja para lembrar, na linha do entendi-
intervenção do Estado para garantir a sua mento finalista preconizado por Cláudia
execução, estará sujeito a controle de legiti- Lima Marques (2002), que os intérpretes e
midade à luz da Constituição e da Lei Civil, aplicadores do Código Civil − em clima de
uma e outra voltadas à concretização da jus- diálogo e com base no princípio da unidade
tiça em sentido real, que não se compadece do ordenamento jurídico − poderão conti-
com os pactos leoninos, via dos quais, em nuar estendendo às avenças celebradas en-
posição dominante, uma parte consegue tre os supostamente iguais, que são regidas
impor os seus interesses e reduzir a outra à pela Lei Civil, os grandes avanços que se
condição de contratante sem vontade. introduziram no Código do Consumidor
Nessa mesma direção, e tendo presente para melhor disciplinar as relações entre os
a realidade dos nossos dias, o novo Código efetivamente diferentes.24
Civil contém importante regra de interpre- Uma outra solução, que não ultrapassa-
tação destinada a coibir os abusos perpe- ria o Código Civil, antes decorreria do prin-
trados por meio dos chamados contratos de cípio hermenêutico que manda levar em con-
adesão − em verdade, contratos celebrados ta o contexto significativo e conjunto da re-
por adesão23−, que, além de reduzirem ou pra- gulamentação para esclarecer o sentido das
ticamente eliminarem a liberdade dos que a partes que o compõem, seria controlar todas
eles simplesmente aderem, muitas vezes são as cláusulas dos contratos por adesão − in-
utilizados para impor-lhes cláusulas que, clusive as cláusulas ambíguas ou contradi-
em negociação aberta, provavelmente não tórias − com base no princípio da função so-
seriam aceitas. Daí a norma do art. 423, a cial do contrato, que está expressamente men-
estatuir que, nesse tipo de contrato, haven- cionado no art. 421 da Lei Civil e funciona
do cláusulas ambíguas ou contraditórias, como critério geral de validação de quaisquer
dever-se-á adotar a interpretação mais fa- negócios celebrados sob a égide dessa codi-
vorável ao aderente. ficação25. Afora, é claro, os princípios da pro-
Pois bem, comentando a saída hermenêu- bidade e da boa-fé, que igualmente se apli-
tica possibilitada por esse modelo jurídico cam a todos os contratos e, assim, funcio-
de caráter aberto, Miguel Reale (1986, p. 47- nam como parâmetro de controle das aven-
48) observou que, à primeira vista, essa fór- ças por adesão.
mula teria pequenas conseqüências, mas, Se, ainda assim, na execução de qual-
transposta para o plano prático, abre um quer contrato, restar configurada situação
leque de possibilidades extraordinárias, de abuso de direito, ou fatos imprevisíveis
porque já será prevenida a malícia daquele tornarem extremamente injusto o cumpri-
que redige o contrato de adesão. mento das obrigações assumidas, o próprio
Em que pese o avanço, não faltaram crí- Código contém preceitos que permitem ao
ticas a esse dispositivo do novo Código Ci- julgador encontrar solução correta e justa 26,
vil, sob o argumento de que, referindo-se bastando para isso levar a cabo um jogo con-
apenas às cláusulas ambíguas ou contraditó- certado, de complementações e restrições re-
rias, não alcançaria as demais cláusulas dos cíprocas, entre, por exemplo, o art. 156, que

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 211


define o estado de perigo como aquela situa- onalidade de aplicação do direito27 −, im-
ção em que alguém, premido da necessida- põe-se reconhecer, por questão de justiça e
de de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de probidade intelectual, que também sob
de grave dano conhecido pela outra parte, esse aspecto nós temos uma Lei Civil tem-
assume obrigação excessivamente onerosa; poralmente adequada.28
o art. 157, que considera vítima de lesão
quem, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, obriga-se a prestação mani- Notas
festamente desproporcional ao valor da
1
prestação oposta; o art. 187, segundo o qual Manuel García Morente, (1957, p. 273). Sobre
a importância do fator subjetivo no processo do co-
pratica ato ilícito o titular de um direito que, nhecimento, ver, também, Adam Schaff, (1987, c.
ao exercê-lo, excede manifestamente os li- 1, p. 65-98).
mites impostos pelo seu fim econômico ou 2
Sobre essa viragem hermenêutica, ver, entre
social, pela boa-fé ou pelos bons costumes; outros, José Lamego (1990); Antonio Osuna Fer-
o art. 317, que faculta ao juiz, a pedido da nández-Largo (1992, 1995); Lenio Luiz Streck
(1999); Kelly Susane Alflen da Silva (2000).
parte, corrigir o valor de prestação, que se fez 3
Montesquieu (1839, p. 191, 193 e 196); C. Marx
excessivo por motivo imprevisível, de modo & F. Engels (1974, p. 45), (1987, p. 72); Luís Prieto
a torná-lo, quanto possível, real; e, finalmen- Sanchís (1993, p. 13).
4
te, o art. 478, que permite até mesmo a resolu- Gaston Morin (1945).
5
ção do contrato, a pedido do devedor, nas Adota-se, aqui, a idéia de que as regras e os
princípios são espécies de normas jurídicas. A pro-
avenças de execução continuada ou diferi- pósito, ver, entre outros, J.J. Gomes Canotilho (1998,
da, se a prestação de uma das partes se tor- p. 1034).
nar excessivamente onerosa, com extrema 6
Miguel Reale (1986, p. 5-13).
7
vantagem para a outra, em virtude de acon- Cláudia Lima Marques (2002, p. 16); Judith
tecimentos extraordinários e imprevisíveis, Martins-Costa (1998, 2002, p. 87-168).
8
Karl Larenz (1997, p. 519-524).
retroagindo à data da citação os efeitos da 9
Cientes dessa limitação, os membros da Co-
sentença que resolver o contrato. missão Revisora e Elaboradora do Código Civil re-
Pela sua evidente correção e justiça − eis nunciaram à pretensão de regular tudo, antes op-
que, sem contornar a lei, visa a proteger os tando por “não dar guarida no Código senão aos
mais fracos nas relações oriundas de qual- institutos e soluções normativas já dotados de cer-
ta sedimentação e estabilidade, deixando para a
quer contrato −, não temos dúvida em vati- legislação aditiva a disciplina de questões ainda
cinar que os nossos juízes e tribunais ado- objeto de fortes dúvidas e contrastes, em virtude
tarão essa postura hermenêutica, que, de de mutações sociais em curso, ou na dependência
resto, parece-nos a mais adequada à con- de mais claras colocações doutrinárias, ou ainda
cretização dos valores morais que permei- quando fossem previsíveis alterações sucessivas
para adaptações da lei à experiência social e econô-
am o novo Código Civil. mica”. Cf. Miguel Reale (1986, p. 76).
10
Ver, entre outros estudos enriquecedores da
4. Conclusão obra de Miguel de Cervantes, Francisco Campos
(1967); e San Tiago Dantas (1979).
11
Comprovado, assim, com esses vários Relembre-se que o próprio Código de 1916
delimitou o seu campo de incidência, indicando, no
exemplos, que, ao contrário do que dizem art. 1º, que aquela codificação regularia apenas os
os seus críticos, o novo Código Civil Brasi- direitos e obrigações de ordem privada concernentes às
leiro, a par dos seus grandes avanços de pessoas, aos bens e às suas relações, o que significava
conteúdo, ainda se pôs em dia com a mo- dizer que outros possíveis domínios normativos não
derna teoria da legislação e a melhor técni- seriam alcançados pelas suas disposições. Clovis
Bevilaqua (1959, p. 136): “O pensamento do artigo
ca legislativa − a evidenciar que os seus au- é assinalar que no Código Civil se não encontram
tores tiveram presente a necessária correla- disposições relativas ao direito público, ao direito
ção entre racionalidade de produção e raci- comercial e ao processo”.

212 Revista de Informação Legislativa


12 27
Utilizam-se, aqui, por suas ricas implicações, Sobre essa interdependência entre ato normati-
os conceitos de programa normativo e âmbito norma- vo e ato hermenêutico, ver Miguel Reale (1978, p. 72-
tivo, propostos por Müller, para designar o que na 82); Manuel Atienza (1993, p. 238-248, 1997, p.
linguagem tradicional se denomina, respectivamen- 95-100); Gilmar Ferreira Mendes (1991); José Joa-
te, texto e realidade ou norma e situação normada. quim Gomes Canotilho (1987).
28
Friedrich Muller (1999, p. 45-51). Inspirada nessa idéia de mútua dependência
13
Essa expressão é usada em sentido amplo entre produção e aplicação do direito, merece aplau-
para compreender tanto a linguagem da lei quanto a sos a Lei Complementar nº 95, de 26/2/98, que
linguagem dos juristas. A propósito, ver, entre ou- estabelece regras para racionalizar a elaboração, a
tros, Juan-Ramon Capella (1968, p. 29-34). redação, a alteração e a consolidação das leis e, por
14
Pela precisão e senso de equilíbrio com que essa forma, facilitar a sua execução, dispensando
maneja esses enunciados, ver, por todos, Karl En- os operadores jurídicos de trabalhar com a ficção
gish (1988, p. 205-274). do legislador racional, um tópos argumentativo de
15
Helmut Coing (2002, p. 329). que todos se utilizam para construir falsas premis-
16
Para uma visão mais completa da presença sas e, a partir delas, extrair conclusões verdadeiras...
desses enunciados no corpo do novo Código Civil,
ver, por todos, o excelente estudo, antes citado, de
Judith Martins-Costa (1998).
17
No atual Código Civil (Lei nº 10.406, de 10/ Bibliografia
1/2002), esse princípio aparece no art. 422, que
tem a seguinte redação: “Art. 422. Os contratantes
ALCHOURRÓN, Carlos; BULYGIN, Eugenio. In-
são obrigados a guardar, assim na conclusão do
troducción a la metodología de las ciencias jurídicas y
contrato, como em sua execução, os princípios de
sociales. Buenos Aires: Astrea, 1998.
probidade e boa-fé.”
18
Ulpiano. Lib. (1829, p. 122). ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales.
19
Rudolf Stammler (1930, p. 241, nota 4). Traducción Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Cen-
20
Giorgio Del Vecchio (1948, p. 41-42). tro de Estudios Constitucionales, 1993.
21
Gustavo Tepedino (2001, p. 4); Jones Figuei-
rêdo Alves (2002, p. 374). ALVES, Jones Figueirêdo. Dos contratos em geral.
22
Ver, entre tantos outros, Alessandro Gropalli In: FIÚZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil co-
(1968, p. 232); Karl Engish (1988, p. 147); Hans mentado. São Paulo: Saraiva, 2002.
Nawiasky (1962, p. 193); Paulo Dourado de Gus- ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 3. ed. Tradução
mão (1978, p. 272); Tercio Sampaio Ferraz Junior Mário da Gama Kury. Brasília: Ed. UnB, 1992.
(1988, p. 266-270).
23
Cf. Jones Figueirêdo Alves (2002, p. 375). ATIENZA, Manuel. Contribución a una teoría de la
24
Cf. Lima (2002, p. 16-17), em que a sua ilus- legislación. Madrid: Civitas, 1997.
tre autora registra que as cláusulas gerais de boa-fé
______. Hacia una concepción unitaria y raciona-
e equilíbrio contratuais, que integram o Código de
lista del Derecho. In: ______. Tras la justicia: una
Defesa do Consumidor, foram aplicadas em rela-
introducción al derecho y al razonamiento jurídico.
ções jurídicas estabelecidas com base no Código
Barcelona: Ariel, 1993.
Civil de 1916, como se vê em mais de 1.000 julga-
dos colacionados nessa obra. BARBOSA, Ruy. Parecer sobre a redacção do pro-
25
Esse modo de relacionar parte/todo, que na jecto da Camara dos Deputados. In: ______. Pro-
hermenêutica jurídica se denomina interpretação jecto de Codigo Civil Brasileiro: Trabalhos da Comis-
sistemática, deita suas raízes na idéia de círculo her- são Especial do Senado Federal. Rio de Janeiro:
menêutico, pioneiramente desenvolvida por Schlei- Imprensa Nacional, 1902. v. 1.
ermacher, para quem “toda compreensão do deta-
lhe é condicionada por uma compreensão do todo”. ______. Réplica do Senador Ruy Barboza às defesas
Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1989, p. 67, da Redacção do Projecto da Camara dos Deputa-
1999, p. 46-47). Nessa mesma linha, Karl Larenz dos. In: ______. Projecto de Codigo Civil Brasileiro: Tra-
(1997, p. 370, 457-462) adverte que “cada proposi- balhos da Comissão Especial do Senado Federal.
ção jurídica, inclusivamente uma proposição jurí- Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1904. v. 2.
dica completa, é sempre considerada pela Juris- BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Uni-
prudência como parte de uma regulação mais am- dos do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1959.
pla” e que “o sentido de uma proposição jurídica v. 1.
só se infere, as mais das vezes, quando se a consi-
dera como parte da regulação a que pertence”. BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre
26
Karl Larenz (1997, p. 491-494). derechos fundamentales. Traducción Juan Luis Reque-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 213


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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 215


216 Revista de Informação Legislativa
Anna Maria Villela e Pedro Aleixo: um
depoimento

José Carlos Brandi Aleixo

Para Ortega y Gasset, as minorias sele-


tas são constituídas por aqueles que não se
conformam com a mediocridade e exigem
muito de si mesmos. Certamente Anna Ma-
ria Villela se encontra plenamente incluída
nessa categoria de pessoas. Sumamente exi-
gente consigo mesma, soube sê-lo, de forma
pedagógica, com seus muitos estudantes,
orientandos e colegas de trabalho. Viveu ela
plenamente a sua vocação de professora e
pesquisadora.
Tendo iniciado, brilhantemente, sua do-
cência na Universidade de Brasília, em 1969,
desempenhou papel de fundamental impor-
tância na criação, organização e desenvol-
vimento do Departamento de Ciência Polí-
tica e Relações Internacionais, que nasceu
em 1976, sob a nossa conjunta chefia. De-
pois, seria a primeira coordenadora do curso
de mestrado em Direito e Estado, na mesma
UnB, onde também fundou o Centro de Estu-
dos de Direito Romano e Sistemas Jurídicos.
Um dos notáveis predicados da profes-
sora Anna Maria foi sua capacidade extra-
ordinária de pesquisa. Graças a sua prover-
bial paciência, diligência e competência, lo-
grou deixar-nos uma obra sólida e vasta,
particularmente na área do Direito Interna-
cional Privado. De grande valia para seu
trabalho foi o domínio de várias línguas,
assim como o constante aprimoramento do
cabedal acadêmico, em numerosos cursos,
nos mais diversos centros universitários, em
países de diferentes culturas e tradições ju-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 217
rídicas. Isso explica, em boa parte, o valor como julgador de concursos de oratória; vi-o can-
ímpar de sua tese de Doutorado de Estado, didato a pleitos eleitorais ou à cátedra de Direito
obtido com láureas acadêmicas, na renoma- Penal da UFMG; acompanhei-o nos júris verda-
da Universidade de Paris, Pantheón-Sor- deiros, em que se digladiava com Pimenta da
bonne, sob a sábia orientação de René David. Veiga, ou nos simulados, em que testava o tirocí-
Seu conhecimento da integração euro- nio profissional de futuros bacharéis.
péia muito ajudou na análise e promoção E, mais que tudo, tive a honra de compor a
da integração latino-americana, assim como, primeira e a única turma de alunos à qual ele,
com sua participação operosa, na criação como catedrático, ensinou Direito Penal, do co-
do Seminário Roma-Brasília, hoje uma das meço ao fim do ano de 1958, quando deixou as
mais relevantes tradições de cooperação Alterosas para ir, gloriosamente, participar da ban-
acadêmica internacional, reunindo profes- cada mineira de Deputados na Câmara Federal.
sores e estudantes de diversos países, do Apraz-me relembrá-lo como mestre:
velho e do novo mundo. Congregam-se eles, Ouço-o ainda fazer a chamada nominal e
anualmente, em Brasília, sempre na última completa de seus cinqüenta alunos, com a voz
semana de agosto, por ocasião do aniversá- pausada e forte, que caracterizava o seu desinibi-
rio do famoso sonho profético de Dom Bos- do magistério.
co, que previu o surgimento de novo centro Vejo-o tirar dos amplos bolsos do casaco as
de civilização, entre paralelos onde nasce- laudas que continham os esquemas de seus cur-
ria a atual capital do Brasil. sos que, ‘a partir de Nelson Hungria’, detalha-
Soube ela compatibilizar, de forma su- vam, um a um, os delitos da Parte Especial do
perlativa, os inúmeros compromissos pro- Código penal: a sedução, o crime passional, o
fissionais de uma carreira prodigiosa com o aborto, o peculato... são temas que, ministrados
cumprimento exemplar de todos os deveres por ele, ficaram-me para sempre na memória.
em relação a sua família e, em particular, Pedro Aleixo era um professor exigente e o
com os seus queridos pais, com os quais foi seu rigor não se dirigia apenas aos alunos, reca-
sempre prestimosa, solícita e disponível. indo-se, antes de mais nada, sobre ele próprio
A pedido meu, Anna Maria Villela redi- que, paraninfando uma turma de bacharéis, as-
giu eloqüente depoimento sobre seu ex-pro- sim se expressara:
fessor de Direito Penal, que, mutatis mutan- ‘Sempre encerro a aula com a penosa impres-
dis, vale para si mesma. Ressaltou ela, em são de deficiências insupríveis e termino o curso
Pedro Aleixo, virtudes humanas e docentes com a amargura certeza de que, tudo procurando
que vieram a ser também características dar, nunca chegarei a dar o necessário’.
suas, em luminosa trajetória profissional. Contudo, se esta é a acusação sadia, que todo
Publicado no jornal Estado de Minas, em 4 bom professor faz a si mesmo, é evidente que não
de agosto de 1982, o texto que se segue refle- representa a verdade, vez que os frutos de um
te a admiração sincera que sentia pelo seu magistério nem sempre são palpáveis ou apa-
professor de Direito Penal, no ano letivo de rentes a breve prazo.
1958, na Universidade Federal de Minas Ge- Somente o tempo os amadurece.
rais: [...] Relembrando o professor Pedro Aleixo... No que me diz respeito, às mais importantes
Se, como já se disse, os Mineiros contemporâneos marcas, que recebi de Pedro Aleixo, extrapolam
se distinguem pelo fato de terem conhecido Pedro o currículo estrito e ainda me servem de incenti-
Aleixo, ou dele terem ouvido apenas falar, sinto- vo. Foram, se assim pudesse expressar-me: a li-
me privilegiada por situar-me entre aqueles que ção do detalhe e a aula de civismo.
sentiram a sua luminosidade fluir de vários focos. Quanto ao detalhe, é importante relembrar o
Observei-o em comícios públicos e li seus co- momento histórico:
mentários de jornais; presenciei suas reações nos Corria o ano de 1958 e estava eu no terceiro
primeiros programas de televisão mineira ou ano de meu Curso Jurídico na UFMG. Avizi-

218 Revista de Informação Legislativa


nhava-se o momento das provas parciais de ju- Foi lá, na mesma Casa de Afonso Pena, que
lho, ao mesmo tempo em que a mocidade coloca- ele a ministrou, menos com a palavra do que com
va-se aos aparelhos de rádio para seguir a atua- o exemplo:
ção gloriosa do Brasil numa Copa do Mundo. Disputavam-se a presidência e os outros car-
Era difícil desprender-se dos campos da Su- gos do Centro Acadêmico Pedro Lessa e dois par-
écia para adentrar os volumes ‘hungrianos’, obri- tidos dividiam o eleitorado estudantil: a Frente
gatórios para o exame. Acadêmica Renovadora (FAR) e a União Demo-
Muitos colegas, na rápida leitura dinâmica crática Universitária (UDU).
que faziam, saltavam as notas de rodapé e, na O pleito era estimulante e eu fora convidada
questão da prova parcial, tiveram a recom- para participar de uma das mesas receptoras de
pensa de sua negligência; o tema escolhido por votos que, à hora da apuração, teve o seu momen-
Pedro Aleixo fora extraído, exatamente, de to culminante com a presidência do mestre que-
uma daquelas notas, inexpressivas e escondi- rido que, para a minha geração, representava a
das, do Tratado, fazendo metade da turma própria idéia de democracia – Pedro Aleixo.
sucumbir. Com que majestade, circunspecção e agilida-
Mas a todos valeu a advertência: o dever de de suas mãos trabalharam!
ler os textos jurídicos não se limitava ao ostensi- Com que admiração fitávamos o político mi-
vo e ao principal; tudo deve ser pesquisado, de- neiro que, no cume de sua carreira, aceitava o
vassado, investigado. modesto papel de acompanhar seus alunos neste
Não surpreende que esta lição do detalhe nos pequeno exercício de civismo.
tenha sido dada pelo proverbial interrogador de Infelizmente, esta vivência tão indispensá-
testemunhas no Fórum Lafayette, que, apegan- vel iria espaçar-se para a nossa geração que, na-
do-se a minúcias e detalhes acessórios, conseguia, quele final dos anos cinqüenta, adquiria a maio-
muitas vezes, fazer saltar, publicamente, a ver- ridade eleitoral e, muito pouco exerceria, em se-
dade dos fatos. guida, o direito de votar, com todas as suas prer-
A aula de civismo também deu-ma Pedro rogativas. Pedro Aleixo foi para nós o varão vir-
Aleixo, mas não nos comícios ou nos discursos tuoso que doutrina com a palavra e pelo exemplo
outros, nem mesmo no Parlamento. convence.

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220 Revista de Informação Legislativa
Sociedade nacional e relações
internacionais: um novo ensaio cooperativo
argentino-brasileiro

José Flávio Sombra Saraiva

Sumário
1. Entre a sociedade nacional e o estado. 2.
Por uma nova dimensão societária das rela-
ções Argentina-Brasil. 3. Argentina-Brasil: novo
marco no relacionamento bilateral. 4. Na dire-
ção de um novo consenso Argentina-Brasil: as
sociedades nacionais e as causalidades múlti-
plas. 5. Três problemas na concertação societá-
ria argentino-brasileira. 6. À guisa de conclu-
são: para além de um mero ensaio estratégico.

O presente estudo, escrito em homena-


gem a Anna Maria Villela, expressa a sau-
dosa lembrança da professora do então De-
partamento de Relações Internacionais e
Ciências Políticas da Universidade de Bra-
sília, de quem tive a honra de ser aluno e
com a qual convivi, entre 1978 e 1981, no
contexto da formação das primeiras gera-
ções de acadêmicos brasileiros dedicados
profissionalmente ao campo atinente às re-
lações internacionais no Brasil.
O texto, que emana de preocupação com
o presente das políticas exteriores da região
platina da América do Sul, traduz uma cer-
ta inclinação pela forma em torno da qual
Anna Maria Vilella procurou, no passado,
abordar os temas internacionais em suas
aulas e conferências.

1. Entre a sociedade nacional e o estado


A dimensão societária das relações in-
ternacionais chegou tarde aos estudos ati-
nentes às interações entre estados, culturas
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e nações. As primeiras gerações de teóricos ção dos Estados dotados de excedentes de
e historiadores preferiram abordar o poder, poder internacional.
a ordem e a desordem bem como o binômio
guerra-paz como os temas nobres da nas- 2. Por uma nova dimensão societária
cente disciplina. Tais conceitos permitiam das relações Argentina-Brasil
conferir especificidade à nova área, que en-
saiava não ser encapsulada, de forma mo- Cabe notar, no entanto, que a mera acu-
nopólica, pelos cânones tradicionais da ci- mulação dos balanços econômicos e estra-
ência política, da diplomacia prática, da tégicos clássicos não são suficientes para o
história áulica e do tratadismo jurídico. escrutínio do peso relativo de certos Esta-
Em torno desses grandes temas, flores- dos nas relações internacionais. A história
ceram, ao longo das décadas posteriores à mais recente do sul do continente america-
Grande Guerra (1914-1918), as grandes teo- no oferece um fabuloso exemplo do quanto
rias e os primeiros debates. A obra seminal as relações internacionais não podem ser
de Edward Carr sobre o entreguerra viria mensuradas apenas pela materialidade das
coroar, no final dos anos 30, o primado das armas estocadas ou pelo produto industri-
causalidades materiais nas relações inter- al posto em marcha no processo econômico
nacionais. dos Estados.
Disciplina infanta, as relações interna- Não se deve negar que o Brasil e a Ar-
cionais – como disciplina acadêmica – ca- gentina, apesar do esforço de retomada gra-
minham para a sua adolescência eferves- dual da normalidade econômica nos anos
cente. A aproximação do seu centenário, nas de 2003 e 2004, não apresentam um perfil
décadas que se aproximam, faz-se momen- muito elevado nas leituras do realismo clás-
to propício para pensar e revisitar o peso sico das relações internacionais. Basta olhar
das sociedades nacionais na vida interna- para os últimos anos para se perceber que o
cional. Há ainda uma forte lacuna de co- panorama que se divisa não é tão anima-
nhecimento e método nessa área. Foi preci- dor. Persiste uma dinâmica de crescimento
so que a chamada “escola inglesa” das re- baixo e descontínuo, instabilidade cambial,
lações internacionais inaugurasse, com a juros elevados e sistemática perda do poder
proposição do conceito de “sociedade in- aquisitivo do mercado interno. O alto endi-
ternacional”, a via das interações biunívo- vidamento público aprisiona ambos os paí-
cas entre as formas sociais internas e exter- ses à lógica financista, deixando-os reféns
nas dos Estados e o lastro cultural que viria de movimentos especulativos e turbulênci-
promover um sentido mais social e cultural as no cenário externo.
à vida internacional. Mas essas discussões, Da mesma forma, os setores empresari-
consolidadas nas tradições teóricas advin- ais nacionais de ambos os países vêm en-
das dos debates realizados por autores como frentando problemas graves como a ausên-
Martin Wight, Hedly Bull, Herbert Butterfi- cia – particularmente no caso argentino, mas
eld e Adam Watson, ainda estão abertas e também no caso do Brasil – de um projeto
merecem revisão. autônomo de inserção internacional. As vi-
A teoria clássica do realismo político nas sões de curto prazo desses setores, associa-
relações desenvolveu a tese segundo a qual das ao fato de que a base nacional do capi-
o peso diferenciado dos Estados nas rela- talismo da produção em ambos os países
ções internacionais seria definido quase está cada vez mais reduzida, parecem valer
apenas pelos dados materiais. A força do ver que esses países não têm condições de
produto interno, a capacidade militar ins- encetar um projeto altivo de inserção global.
talada, as plataformas tecnológicas, entre Por outro lado, deve-se reconhecer que
outros fatores, impor-se-iam na identifica- há, no plano da política internacional do

222 Revista de Informação Legislativa


Brasil e da Argentina, uma mudança de engendrada pelo Itamaraty e pelo Palácio
qualidade com implicações extraordinári- de San Martín, contra a integração assimé-
as nas transformações internacionais que trica do continente. A vitória argentino-bra-
se processaram no Cone Sul das Américas a sileira nas negociações resultantes da Reu-
partir de 2003. Pareceria até, ao observador nião de Miami, em meados de novembro de
desavisado, que há uma contradição fun- 2003, bem como na Reunião de Buenos Ai-
damental entre a economia e a política in- res de março de 2004, confirmou a tese que a
ternacional dos dois países. Na economia, “Alca flexível” conferia mais liberdade aos
permanece a vulnerabilidade. No plano 34 países membros em assumir diferentes
político, os dois países caminham para uma níveis de compromissos. Era um sinal de
concertação estratégica jamais ocorrida na derrota para a diplomacia norte-americana
história da América Latina. e para aqueles países latino-americanos,
Índices de toda ordem indicam essa como o México e o Chile, que haviam enve-
mudança de rumo. Exemplos de toda ordem redado em programas de integração mais
demovem a idéia de que as políticas exterio- rígidos com os Estados Unidos.
res dos Estados são apenas a resultante Os observadores da experiência históri-
matemática do realismo vulgar que soma ca das relações internacionais da América
produto interno e armas estocadas. Latina não nutrem muita surpresa acerca
dos novos posicionamentos argentino-bra-
3. Argentina-Brasil: novo marco no sileiros em relação ao mundo que os rodeia
relacionamento bilateral e aos problemas globais. Afinal, não é sequer
original o arregimentar forças sub-regionais
O que está em curso na região austral da para enfrentar o “gigante do Norte”.
América Latina? Um novo padrão nas rela- Estudos clássicos como os de Juan Car-
ções internacionais com profundas impli- los Puig e José Paradiso, na Argentina, bem
cações teóricas e práticas para a história da como de Hélio Jaguaribe, Moniz Bandeira e
região. Em primeiro lugar, as inclinações Amado Cervo, no Brasil, já haviam demons-
sul-americanas das políticas exteriores do trado, para períodos históricos anteriores, o
Brasil e da Argentina fizeram-se presentes, mecanismo de formação de consensos no
de forma crescente, nos discursos políticos Cone Sul ante ameaças externas à inserção
dos novos líderes sub-regionais – Lula e autônoma dos dois grandes Estados da
Kirchner – bem como na gestão prática das América meridional. Mais recentemente, a
diplomacias. Em segundo lugar, o Merco- dissertação de mestrado de Carlos Eduardo
sul empreendeu retomada conseqüente ante Vidigal e as teses doutorais de Antonio José
os novos interesses engendrados, social e Barbosa, Luiz Fernando Ligiero e Tânia Pe-
politicamente, nas bases das duas socieda- chir Gomes Manzur são elucidativas acer-
des. A Argentina e o Brasil acabavam de re- ca da construção de tais consensos sub-re-
novar, pela via democrática, seus governos gionais, mesmo em tempos nos quais não
nacionais. No Brasil, a oposição alcançava, havia exatamente um processo de integra-
depois de muito se preparar, o poder nacio- ção em curso como o Mercosul.
nal. Na Argentina, o menenismo sofria gol- Mas há algo novo no ar. Basta ver os ter-
pe duro com a chegada de Néstor Kirchner mos do Consenso de Buenos Aires (2003)
à Casa Rosada. em relação aos esforços retóricos e práticos
Em terceiro lugar, e mais importante, está vivenciados pelas lideranças políticas em
o relance mais espetacular dos ventos fres- momentos anteriores de aproximação argen-
cos que sopraram nas relações internacio- tino-brasileira. Há uma inédita vontade po-
nais do Cone Sul e que modificaria a geo- lítica dos dois presidentes no sentido do tra-
grafia das Américas. Foi a frente comum, balho junto, articulado, de forma cooperati-

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va, orientando ações e táticas na mesma A primeira causalidade incide sobre o
direção. quadro de expectativas geradas por ambas
Há, antes de tudo, uma operação diplo- as sociedades nacionais no processo de es-
mática e negocial posta em marcha nas di- colha dos seus novos mandatários. No caso
ferentes frentes de negociação, do Conselho brasileiro, Lula foi eleito com apenas dois
de Segurança das Nações Unidas, passan- grandes argumentos que balizaram sua che-
do pelas táticas dos corredores da Reunião gada ao Palácio do Planalto. Internamente,
da OMC em Cancun (2003) aos votos con- propunha-se superar o déficit social e tra-
certados de abstenção na resolução que pu- zer uma grande parte dos brasileiros à mar-
niu Cuba na Comissão de Direitos Huma- gem do consumo e da cidadania, para o bem-
nos da ONU (2004). Da mesma forma, a ex- estar. O número arrasador desses brasilei-
pressa originalidade da Ata de Copacaba- ros, em torno de 30 milhões, era um fato que
na (2004), assinada pelos dois presidentes, envergonhava o país.
evidencia esforço inédito de construção de No plano externo, o Brasil deveria, se-
uma concertação estratégica entre os dois gundo Lula, atenuar a vulnerabilidade es-
países, apesar dos constrangimentos inter- tratégica e econômica posta em marcha, por
nos de cada país e da vulnerabilidade eco- meio de uma política exterior altiva, capaz
nômica a que ambos estão submetidos. de mudar os padrões de ação servil à espe-
culação internacional que advinham do
4. Na direção de um novo consenso modelo anterior de inserção internacional
Argentina-Brasil: as sociedades do país.
Na Argentina, apesar de fatores própri-
nacionais e as causalidades múltiplas
os que justificam dinamicidade e complexi-
A pergunta mais conseqüente para o dade à chegada de Kirchner à Casa Rosada,
analista é aquela que evoca as razões em não se deve descartar que os dois grandes
torno das quais esse novo consenso argen- argumentos da campanha de Lula estavam
tino-brasileiro pôde ser estabelecido. O es- também na proposta programática de cam-
quema teórico do sistema de causalidades, panha do novo presidente argentino. O pro-
como lembraria Pierre Renouvin, é útil para grama Fome Zero é um exemplo claro. A idéia
averiguar esse momento auspicioso do en- de que os argentinos não pagariam pela cri-
contro entre as duas sociedades mais com- se provocada, em parte, pelos especulado-
plexas da sub-região platina. As causalida- res internacionais era outra que combinava
des profundas são várias. Recordá-las se faz com a proposta de Lula de rever o modelo
necessário para a compreensão do curso de inserção internacional do Brasil.
comum que alimenta as transformações em Dessa forma, os desafios maiores de
marcha, como também para o entendimen- ambos os novos presidentes fizeram-se mui-
to da permanência de certos vícios e des- to próximos se não coincidentes. A plata-
confianças do passado. forma ideológica foi a mesma, antes e de-
Embora nem todas as causalidades a pois de assumirem a presidência. Ambos
seguir apontadas tenham tido o mesmo eram contra o Consenso de Washington.
peso político na construção do consenso Foram eleitos para modificar os padrões das
argentino-brasileiro, elas servem de baliza- reformas liberais ocorridas não apenas na
doras para o debate em curso. Ademais, não Argentina e no Brasil, mas na América Lati-
se pretende estabelecer o peso relativo de na no seu conjunto, nos anos 90.
cada uma delas uma vez que todas elas atu- Esses elementos comuns facilitaram a
am em conjunto. Isolar variáveis, nesse caso, aproximação dos dois países. A sociedade
não parece ser a melhor operação metodo- argentina olhava o exemplo brasileiro, uma
lógica para resolver o problema. vez que a eleição fora anterior no tempo (ain-

224 Revista de Informação Legislativa


da em fins de 2002), e vice-versa. No Brasil, quenas resistências de servidores diplomá-
o grupo político que chegou ao governo em ticos mais vinculados ideologicamente aos
janeiro de 2003 viu, na hipótese de eleição governos anteriores, especialmente à admi-
de Menem, uma ameaça ao avanço das no- nistração Cardoso, a gestão diplomática
vas projeções externas do Brasil. Temia o ganhou os contornos políticos sugeridos
Brasil uma norte-americanização intensa da pelas campanhas dos dois presidentes elei-
Argentina e um forte retrocesso na dimen- tos.
são estratégica do Mercosul. Uma terceira relevante causalidade re-
A desconfiança em relação a Menem le- laciona-se à situação do Mercosul. Sem uma
vou a que o grupo do PT no núcleo duro do estratégia comum externa bem definida nos
governo Lula trabalhasse abertamente pela anos anteriores à posse dos dois novos pre-
eleição de Kirchner. Mesmo com as reservas sidentes, passando por mais uma das suas
do Itamaraty e o receio de certos setores po- crises endêmicas, o Mercosul reencontrou
líticos com o alto risco de apoiar um candi- sua identidade com Lula e Kirchner.
dato com chances não muito claras de che- A reanimação do Mercosul é certamente
gar ao poder, Lula convidou o então candi- um dos elementos mais visíveis da nova
dato Kirchner para uma visita que já tinha concertação argentino-brasileira. Voltou a
conotações de visita de novo chefe de Esta- ser um eixo relevante para a estratégia co-
do, em momento no qual a própria socieda- mum dos dois países. Preencheu um vazio
de argentina demonstrava nutrir certas dú- ideológico que existia no final do mandato
vidas acerca do eventual ganhador de um de Fernando Henrique Cardoso, quando o
eventual segundo-turno nas eleições presi- Mercosul ficou uma forma sem conteúdo,
denciais de 2003. por razões múltiplas e não apenas geradas
Uma segunda causalidade advém da si- pelo desinteresse brasileiro em dar mais ins-
nergia pessoal que foi rapidamente constru- titucionalização ao processo de integração
ída entre os dois líderes e desses líderes com platina.
as massas populares. Mesmo sem querer A instrumentalização do Mercosul como
apenas reproduzir as noções de carisma uma plataforma do agir juntos no cenário
político ou de simples apologia do “messi- internacional já trouxe frutos para as várias
anisno”, Lula e Kirchner têm alguns desses iniciativas comuns dos governos Lula e Kir-
traços e fizeram com que a vontade política chner. Resolveram, Argentina e Brasil, atu-
pessoal se tornasse objetivo de Estado. Pro- ar mais diretamente nas possibilidades de
duziram ilusões redentoras comuns sobre formar um amplo mercado comum na Amé-
as possibilidades externas dos dois países. rica do Sul envolvendo o Mercosul com a
Mas ambos os presidentes compartilharam Comunidade Andina. Aceleraram os dois
a capacidade de fazer dessa vontade uma países suas lideranças no Mercosul de for-
agenda viva, permanente e estratégica. ma a tentar garantir, particularmente a par-
As diplomacias profissionais, de forma tir dos inícios de 2004, a possibilidade de
obediente e hierárquica, cumpriram as no- pôr em marcha, dez anos depois das pri-
vas missões. Celso Amorim, Samuel Pinhei- meiras tratativas, o acordo de livre-comér-
ro Guimarães e Marco Aurélio Garcia pas- cio entre o Mercosul e a União Européia.
saram a operar a formulação da estratégica Agiram os dois países, de forma clara, na
externa do Brasil. Na Argentina, tem-se a superação dos impasses políticos na Bolí-
noção de que não há um grupo orgânico via, garantido a posse do presidente Mesa e
como o que se vê em Brasília. Mas percebe- descartando um banho de sangue no vizi-
se que há um grau de coordenação nessa nho sul-americano. O Brasil, com o apoio
matéria que é claramente mantida por Kir- argentino, monitorou a crise venezuelana
chner e poucos assessores. Apesar de pe- em sua fase mais aguda, evitando interven-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 225


ções norte-americanas no encaminhamen- sil e da Argentina estão bem informados
to do “imbróglio” político em que se metera dessa vulnerabilidade e já a exploram poli-
o presidente Chavez. ticamente. A irritação do governo norte-ame-
ricano em relação à altivez da política exter-
5. Três problemas na concertação na brasileira já se fez presente em várias
societária argentino-brasileira ocasiões, como a produção de incidentes
que envolvem a Agência Internacional de
Os três fatores anteriores, ao animarem Energia Atômica e a suposta centrifugação
a nova página das relações argentino-bra- de urânio nos processadores de Rezende
sileiras, são acompanhados por outros fa- além dos níveis previstos pelo TNP e pelos
tores menos otimistas para a parceria estra- critérios da AIEA.
tégica que está em formação entre os dois Em segundo lugar, aparecem pequenas
países. Alguns desses problemas já se ma- diferenças conceituais na política exterior
nifestam e devem ser observados pelo pro- argentina em relação à brasileira no que tan-
cesso decisório na Argentina e no Brasil, ten- ge à reforma do sistema das Nações Uni-
do em vista o adequado equacionamento das. No que se refere ao assento que o Brasil
antes que se avolumem no tempo. julga natural no Conselho de Segurança
Em primeiro lugar, há um sentimento que dessa instituição, as percepções argentinas
se amplia na sociedade brasileira, em espe- sobre esse lugar natural não são as mesmas
cial em setores mais esclarecidos da opinião do Brasil. Ao contrário, o Palácio de San
pública favoráveis ao governo Lula, de que Martín insiste em que o tema deverá ser
a Argentina vem sendo mais ousada no sen- melhor discutido e que o lugar da Argenti-
tido da articulação da sua política exterior na naquele Conselho, como membro-perma-
com a política econômica. A ausência de nente, não está descartado.
semelhante equilíbrio entre as duas políti- Mesmo o gesto brasileiro de convidar um
cas estaria comprometendo os êxitos da po- diplomata argentino para ser incluído na
lítica externa brasileira. As negociações com delegação do Brasil nos trabalhos como
o FMI, especialmente no capítulo do supe- membro não-permanente do Conselho de
rávit fiscal, vêm preocupando setores apre- Segurança, pelo biênio 2004-2005, não sur-
ensivos com o crescimento econômico no tiu o efeito esperado pelo Itamaraty. Há in-
Brasil. dícios de que a manobra foi vista por vários
Crescimento negativo e superávit fiscal setores esclarecidos da Argentina como uma
da ordem de quase 6%, praticamente o do- forma de cooptação de valor duvidoso. A
bro do argentino, associado a níveis cres- tática brasileira de incluir um delegado ar-
centes de desemprego, vulnerabilizam a gentino poderia ser entendida, como de fato
política externa do Brasil. O esforço de ne- o foi por setores diplomáticos daquele país,
gociação de interesses comuns na formação como uma forma de aliviar as divergências
de coalizões internacionais como aquelas nessa matéria.
que deram origem ao G20, no qual ambos os Last but not least, emergem críticas na
países jogaram papel protagônico, padece Argentina à utilização política, no governo
diante dos baixos índices de crescimento do Lula, do instrumento dos financiamentos do
Brasil. A tendência, ademais, será de cresci- BNDES para o apoio à constituição da in-
mento econômico no Brasil bastante tímido fra-estrutura sul-americana. O descompas-
nos próximos anos, bastante inferior ao cres- so entre o gesto retórico e a prática dos fi-
cimento mundial previsto e mesmo em rela- nanciamentos desse grande banco de desen-
ção ao continente latino-americano. volvimento brasileiro estaria criando mais
Os negociadores internacionais e os ad- embaraços que cooperação na formação da
versários da política internacional do Bra- área sul-americana de países.

226 Revista de Informação Legislativa


No fundo, esse problema leva direta- das sociedades nacionais, o ensaio estraté-
mente ao tema da relação entre a boa ima- gico argentino-brasileiro tem todas as con-
gem do Brasil de Lula na região sul-ameri- dições de ir além do ensaio para se tornar
cana e suas reais possibilidades de meios uma estrutura duradoura nas relações in-
em fazer dessa imagem ação prática coope- ternacionais da América Latina.
rativa. Essa é uma tensão que não tem um Se isso vier a acontecer, teremos muda-
encaminhamento satisfatório por parte de do os rumos da história. E também teremos
setores diplomáticos argentinos que vêem derrubado a mitologia realista clássica das
no gesto brasileiro uma pretensão arrisca- relações internacionais referida nos primei-
da de liderança sul-americana sem meios. ros capítulos deste artigo. Nesse caso, esta-
Uma incipiente irritação de diplomatas e ríamos inaugurando também uma maneira
empresários de países vizinhos do Brasil na mais rica de ver e analisar as relações inter-
América do Sul já haveria chegado aos ou- nacionais, em torno da qual a força das so-
vidos de lideranças políticas em Buenos ciedades domésticas ocupam, com toda sua
Aires e passou a ser utilizada na chancela- complexidade, um lugar de destaque.
ria argentina como uma arma diplomática
contra o Brasil.
Bibliografia
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BARBOSA, Antonio José. O parlamento e a política
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Oxalá as diplomacias e as lideranças políti- política exterior nos governos Jânio Quadros e João Gou-
cas saibam preservar e ampliar o que já se lart (1961-1964). 2001. Tese (Doutorado) – Univer-
fez. Seria lamentável ter de recomeçar, de- sidade de Brasília, Brasília.
pois de um ensaio de concertação, um novo MIRANDA, Roberto Alfredo. Argentina: autono-
ciclo de desconfianças mútuas e competi- mia en tiempos de crisis. Relaciones Internacionales,
[S. l.], v. 12, n. 24, p. 127-140, 2003.
ção improdutiva na América meridional.
As universidades, particularmente nos PARADISO, José. Debates y trayectorias de la política
cursos de graduação e pós-graduação em exterior Argentina. Buenos Aires: Planeta Argentina,
1993.
Relações Internacionais, no Brasil e na Ar-
gentina, devem ser parte importante na re- PUIG, Juan Carlos. La política exterior Argentina:
incongruência epidérmica y coherencia estructural.
troalimentação da concertação que foi inici- In: PUIG, Juan Carlos et al. América Latina: políticas
ada nas novas relações Argentina-Brasil. Ao exteriores comparadas. Buenos Aires: Editor Lati-
envolver setores mais ricos e diversificados noamericano, 1984.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 227


RENOUVIN, Pierre. Histoire des relations internatio- ______. Relações internacionais: dois séculos de his-
nales. Paris: Hachette, 1994. tória. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações In-
ternacionais, 2001. 2 v.
SARAIVA, José Flávio S. A política exterior de
Lula: o desafio africano. Revista Brasileira de Po- SOUTO MAIOR, Luiz A. P. Desafios de uma polí-
lítica Internacional, Brasília, v. 45, n. 2, p. 5-25, tica externa assertiva. Revista Brasileira de Política
2002. Internacional, Brasília, v. 46, n. 1, p. 12-38, 2003.
______ (Org.). Foreign policy and political regime. VIDIGAL, Carlos Eduardo. Integração Brasil-Argenti-
Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacio- na: o primeiro ensaio (1950-1962). 2000. Disserta-
nais, 2003. ção (Mestrado) – Universidade de Brasília, Brasília.

228 Revista de Informação Legislativa


Em direção a uma constituição européia

José Theodoro Mascarenhas Menck

Tive meu primeiro contacto com Anna


Maria Villela na primeira metade da déca-
da de 80. Na ocasião, o curso de Direito da
Universidade de Brasília – UnB passava
por uma de suas sucessivas reformas curri-
culares. Quando da criação do curso, na dé-
cada de 60, um amplo e ambicioso curricu-
lum havia sido montado, no qual se previu
uma série de cadeiras optativas de cunho
de cultura geral jurídica. Naquela reforma,
concluiu-se que muitas das cadeiras previs-
tas nunca haviam sido efetivamente ofere-
cidas aos alunos, e uma das intenções da
reforma fora justamente enxugar a lista de
matérias, suprimindo aquelas nunca lecio-
nadas. Entre as passíveis de supressão,
constava a cadeira “Direito Romano das
Institutas”. Note-se que, muito embora se
tratasse de um campo específico do Direito
Romano, pois era centrado nas Institutas do
Imperador Justiniano, era a única matéria
prevista no curriculum da UnB em que havia
referência explícita ao Direito Romano.
Anna Maria Villela se revoltou contra a pos-
sibilidade dessa supressão. Segundo ela, um
curso de Direito sério não poderia prescin-
dir de estudar o Direito Romano, e assim se
prontificou a ministrar essa matéria pela
primeira vez na história da UnB. Fiz parte
do primeiro grupo de alunos daquela maté-
ria. A cadeira foi um sucesso, e nunca mais
a matéria deixou de ser oferecida aos estu-
dantes.
Anna Maria Villela sempre demonstrou,
ao lado de uma erudição invejável, um gran-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 229
de amor ao estudo, que soube transmitir a litar a aprovação da Constituição. No en-
vários de seus alunos, dos quais se tornou tanto, nunca esteve excluída a possibilida-
verdadeira amiga. Sua grande paixão, no de de uma rejeição do texto. Estava previsto
entanto, não era o Direito Romano, mas sim que o Tratado/Constituição, para entrar em
o Direito Internacional Público e as Rela- vigor, teria de ser aprovado pelos 15 Esta-
ções Internacionais, campo no qual encon- dos que compõem a União Européia, bem
trava poucos rivais. Assim sendo, como ho- como por aqueles 10 que a integrarão a par-
menagem a minha antiga professora, e eter- tir de 2004, reunidos em uma Conferência
na amiga, julgo oportuno dissertar sobre a Intergovernamental. A conferência, que teve
evolução institucional pela qual passa a sede em Bruxelas nos dias 12 e 13 de de-
União Européia, evolução que ela não viu, zembro de 2003, não obteve o consenso ne-
mas que certamente acompanharia com um cessário para a aprovação do texto, tendo
vivíssimo interesse. sido adiada sua discussão para as próxi-
Aos 18 dias do mês de julho de 2003, em mas Conferências Intergovernamentais,
Roma, a “Cidade Eterna”, franqueou-se uma ocasião em que a presidência da União Eu-
etapa inédita tanto na História do Direito ropéia se transferiu para a Irlanda. A im-
quanto na das Relações Internacionais. prensa, bem como vários comentaristas, re-
Naquele dia, a estrutura jurídica que forma agiram declarando que a Conferência In-
a União Européia, a mais bem sucedida ex- tergovernamental foi um fracasso, e que
periência política de integração do nosso uma grande crise se desenhou no horizonte
tempo, partindo das Relações Internacio- próximo da União Européia.
nais, adentrou definitivamente no campo de Em meio a esse debate, ao nosso aviso,
estudo do Direito Constitucional. A singu- um detalhe importante não foi devidamen-
laridade do evento deu-se quando o Presi- te avaliado. Trata-se de que a idéia mesmo
dente da Convenção sobre o Futuro da Eu- de dotar a União Européia de uma “Consti-
ropa, o ex-presidente francês Valéry Giscard tuição” não foi questionada por nenhum
d’Estaing, acompanhado pelos dois Vice- dos países. Ousamos dizer que, mesmo na
Presidentes da Convenção, o ex-primeiro- hipótese de total refugo do texto elaborado
ministro italiano Giuliano Amato e o ex-pri- pela Convenção, a soleira foi atravessada.
meiro-ministro belga Jean Luc Dehaene, Deve-se sempre ter em mente que até recen-
apresentou oficialmente à Presidência do temente havia um grande medo, por parte
Conselho Europeu, em nome da Convenção, dos mais entusiastas partidários da União
o texto integral de um projeto de Tratado Européia, de empregar a palavra confede-
que estabelece uma Constituição para a ração, muito menos federação, ao se referi-
União Européia. rem à natureza jurídica da União Européia.
O texto é longo, apresentando oportuni- Sempre realçavam, certamente por medo
dade para debates vários e objeções as mais de ferir suscetibilidades nacionalistas, tra-
diversas, no entanto, a divergência centrali- tar-se de um organismo internacional, e,
zou-se apenas “em cerca de dez por cento como tal, regido por acordos internacionais,
do texto”, principalmente no quorum neces- no âmbito do Direito Internacional Público.
sário para a aprovação de medidas no âm- No entanto, podemos constatar, o medo do
bito da União Européia. Nesse ponto firma- inédito foi vencido. O tabu foi quebrado.
ram posição contrária ao texto proposto a Doravante falar-se-á sem medo da “Ordem
Espanha e a Polônia, discretamente secun- Constitucional da União Européia”. É aí que
dados pela Inglaterra. A presidência italia- se encontra a magna importância do even-
na do Conselho Europeu encetou uma lar- to. Um Direito Constitucional que regule não
ga ofensiva diplomática na qual procurou a organização interna de um Estado, mas
acertar as divergências de forma a possibi- de um conjunto de Estados. Que não caia-

230 Revista de Informação Legislativa


mos na tentação fácil de dizer que estamos am mais tarde diversas outras atividades
diante do nascimento de um superestado, econômicas. Lembra que a integração eco-
algo profundamente temido pela generali- nômica completou-se com a criação de um
dade dos políticos de origem anglo-saxôni- mercado único de mercadorias, pessoas,
ca, mas não apenas por eles, e peremptoria- serviços e capitais, “a que se juntou, em 1999,
mente negado pelos construtores dessa nova uma moeda única”.
ordem constitucional. Estamos, isso sim, di- Com o aumento do concerto técnico e
ante de um metaestado, cuja real natureza econômico, a União Européia passou a sen-
certamente será melhor definida pela ciên- tir necessidade de uma maior legitimidade
cia jurídica dos próximos decênios. política, não podendo contar apenas com
Como o Direito Constitucional é o ramo aquela que lhe dava o Conselho Europeu.
do Direito mais diretamente imbricado com Surgiu, então, em 1980, a primeira eleição
a Política, cremos ser de grande valia para direta ao Parlamento Europeu. Desde então
todos os que estudam Direito Constitucio- procurou-se, deliberadamente, estabelecer
nal seguir os debates e os acontecimentos as bases de uma cooperação/integração nos
que levaram à elaboração do texto Constitu- domínios da política social, emprego, asilo,
cional europeu, mesmo que, repita-se, não migração, polícia, justiça, segurança, políti-
venha a ser adotado tal como foi escrito. ca externa e defesa comum.
Em dezembro de 2001, na cidade de La- No entanto, mesmo tendo diante dos
eken, onde se localiza a residência do Rei olhos esse passado de sucessos, os dignitá-
da Bélgica, arredores de Bruxelas, em uma rios de Laeken não puderam afastar de seus
de suas periódicas reuniões, os Chefes de espíritos a constatação de que a União vivia
Estado e de Governo dos quinze países que uma encruzilhada, “num momento crucial
atualmente compõem a União Européia e o de sua existência”. A unificação da Europa
Presidente da Comissão Européia firmaram era iminente. A União estava prestes a alar-
um singular documento que foi intitulado gar-se englobando mais de dez novos mem-
“Declaração de Laeken”. A singularidade bros, todos saídos do leste do continente.
e, podemos mesmo dizer, a importância his- Se, por um lado, a incorporação do leste eu-
tórica do documento está no seu conteúdo ropeu no âmbito da União Européia signifi-
altamente crítico em relação ao desenvolvi- ca a definitiva superação de “uma das pá-
mento que a União Européia estava até en- ginas mais negras da História européia: a
tão tomando. segunda guerra mundial e a divisão artifi-
O documento começa retoricamente por cial da Europa”, por outro lado, essa nova
lembrar o histórico da grande aventura que realidade traz à tona a necessidade de uma
foi a criação da União Européia: “Durante reflexão profunda sobre o futuro das insti-
séculos, povos e Estados procuraram adqui- tuições européias.
rir o controle do continente europeu com Nesse ponto, o documento inicia uma
guerras e armas. Nesse continente debilita- surpreendente análise do mal-estar que im-
do por duas guerras sangrentas e pelo en- perara internamente no âmbito da União,
fraquecimento da sua posição no mundo, nas relações entre os cidadãos e o aparelho
foi aumentando a consciência de que o so- burocrático institucional. Sempre, de acor-
nho de uma Europa forte e unida só pode do com a declaração, “os cidadãos subscre-
ser concretizado pela paz e pelo concerto vem, sem dúvida, os grandes objetivos da
dos países”. Segue declarando que, para União, mas nem sempre entendem a rela-
vencer definitivamente “os demônios do ção entre esses objetivos e a atuação da
passado”, foi criada o que seria a pedra União no quotidiano. Pedem às instituições
inaugural da unidade européia: a Comuni- que sejam menos pesadas e rígidas, mais
dade do Carvão e do Aço, a que se seguiri- eficientes e transparentes. Muitos conside-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 231


ram também que a União se deve dedicar cação e reestruturação [dos tratados que ser-
mais às suas preocupações concretas e não vem de base à União Européia] não pode-
entrar nos pormenores em domínios que, rão conduzir à aprovação na União de um
pela sua natureza, poderiam ser confiados texto Constitucional”. E conclui indagan-
com vantagens aos eleitos dos Estados- do: “Quais deverão ser os elementos de base
Membros e das regiões. Alguns vêem mes- dessa Constituição?”. Quais “os valores de-
mo nisso uma ameaça à sua identidade. E, o fendidos pela União, os direitos fundamen-
que é pior, os cidadãos consideram que, fre- tais e as obrigações dos cidadãos?”. Como
qüentemente, tudo é combinado nas suas devem ser “as relações entre os Estados-
costas, desejando um maior controle demo- Membros na União e com a União?”.
crático da instituição”. A última parte da declaração institucio-
Após essa franca análise interna, a de- naliza a Convenção que deverá responder
claração inicia uma rápida análise do es- as perguntas que formula. Determina sua
pectro político mundial. Lembra que, pas- presidência, composição, métodos de traba-
sados poucos anos após a queda do muro lho e um calendário. Não descura sequer
de Berlim, que trouxe consigo um otimismo em fixar a natureza jurídica do documento
enorme, calcado na crença de que seria pos- final esperado ao declarar que a Convenção
sível uma nova ordem mundial estável e “elaborará um documento final que poderá
isenta de conflitos, “o dia 11 de setembro compreender quer diferentes opções, indi-
veio abrir-nos brutalmente os olhos”. Con- cando o apoio que as mesmas obtiveram,
tinua: “o fanatismo religioso, o nacionalis- quer recomendações, em caso de consenso.
mo étnico, o racismo e o terrorismo estão a O documento final, juntamente com o resul-
ganhar terreno e continuam a ser alimenta- tado dos debates nacionais sobre o futuro
dos pelos conflitos regionais, pela pobreza da União, servirá de ponto de partida para
e pelo subdesenvolvimento”. Diante desses os trabalhos da conferência Intergovernamen-
desafios, indaga, qual o papel que deve de- tal, que tomará as decisões finais”.
sempenhar a nova Europa unida? O texto do projeto constitucional ela-
Após essas reflexões, que se materiali- borado pela Convenção sobre o Futuro da
zam em uma série de questões precisas, a Europa consta de um preâmbulo e de 460
Declaração de Laeken convoca uma Con- artigos, divididos em três partes, além de
venção cuja missão será “debater os proble- uma quarta de disposições finais, e de
mas essenciais colocados pelo futuro desen- uma série de anexos.
volvimento da União e analisar as diferen- Indubitavelmente, a maior novidade, e a
tes soluções possíveis”. Para tal objetivo, su- que realmente impediu sua adoção na Con-
blinha que será necessário estudar uma me- ferência Intergovernamental de Bruxelas de
lhor repartição das competências legislativas dezembro de 2003, é a exigência de uma
entre a União e os seus Estados-Membros, a nova maioria qualificada para a tomada de
uma simplificação dos instrumentos legis- decisões no âmbito do Conselho Europeu.
lativos em uso, e, a bem da democracia, for- O artigo 24, primeira parte, diz que: “quan-
mas de aumentar a transparência e a eficá- do o Conselho Europeu ou o Conselho de
cia dos órgãos da União Européia. A decla- Ministros deliberem por maioria qualifica-
ração precisa que a Convenção deve-se pre- da esta será definida como uma maioria de
ocupar em procurar mecanismos que ve- Estados-Membros que represente, no míni-
nham a aumentar a legitimidade “das três mo, três quintos da população da União”.
instituições”: o Parlamento, o Conselho e a A segunda parte declara que: “quando a
Comissão Europeus. O parágrafo final da Constituição não exija que o Conselho Eu-
segunda parte da declaração, arrojadamen- ropeu ou o Conselho de Ministros delibe-
te, levanta “a questão de saber se a simplifi- rem com base numa proposta da Comissão,

232 Revista de Informação Legislativa


ou quando o Conselho Europeu ou o Con- votos aos Estados menos populosos (Lu-
selho de Ministros não deliberem por inici- xemburgo, Eslovênia e Malta). Ressalte-se
ativa do Ministro dos Negócios Estrangei- que a França, que havia feito da sua parida-
ros da União, a maioria qualificada exigida de com a Alemanha um dos elementos es-
consistirá numa maioria de dois terços dos senciais de sua política externa no âmbito
Estados-Membros que represente, no míni- europeu, obteve ganho de causa em Nice.
mo, três quintos da população da União”. 3a – Por fim, a reunião dos votos favorá-
Ou seja, em uma União composta por 25 Es- veis deverá representar pelo menos 62% da
tados-Membros, a tomada de decisão reque- população da União. Esse último requisito
rerá os votos de 13 Estados, maioria sim- foi imposto pela Alemanha, o país mais po-
ples, desde que representem pelo menos 60% puloso.
da população da União. Diante de um sistema tão complexo, di-
A novidade, e dificuldade de adesão a ficilmente compreensível ao público em ge-
seus princípios pela Espanha e Polônia, só ral, em que um número quase que esotérico
podem ser efetivamente avaliados se se le- se deve somar a um valor demográfico sem-
var em consideração o sistema de pondera- pre difícil de calcular, a Convenção optou
ção de votos acordado em 2000, em Nice, no por um sistema de muito mais fácil compre-
tratado que preparou o ingresso do leste ensão: 50% dos Estados representando 60%
europeu na União Européia. da população. Tal simplificação do sistema
Até Nice, as decisões requeriam a ade- de votação, se, por um lado, significava uma
são unânime dos Estados-Membros; diante maior proximidade com o cidadão comum,
da iminência da extensão do número de um dos objetivos da Convenção expressa-
novos membros, ficou clara a inadequação mente citado no ato de convocação da Con-
de se exigir a unanimidade. Seria o mesmo venção, por outro lado, acarretava uma per-
que condenar ao fracasso a União, pois o da considerável para os países “quase gran-
sistema previsto para seis (o número de “Es- des”, a saber, Espanha e Polônia. O sistema
tados Fundadores”) não pode funcionar proposto pela Convenção, excepção feita aos
com 25. Fazia-se mister acordar um sistema dois “quase grandes”, foi bem acolhido pelo
diverso, objetivo principal da reunião de conjunto de países. Mesmo a França, que,
Nice. O sistema acordado em 2000, obtido pelo sistema convencional, perde sua tradi-
após várias estafantes noites de negociação, cional política de paridade com a Alema-
é particularmente complexo: ele exige a reu- nha, aceitou o sistema proposto como uma
nião de três condições para que se alcance a contingência necessária. A Espanha, no
maioria qualificada no seio do Conselho de entanto, ainda durante os debates na Con-
Ministros: venção, declarou que, de forma alguma, po-
1a – a maioria simples dos Estados, ou deria renunciar ao seu status de “quase-gran-
seja, 13 Estados entre 25; de”, conseguido em Nice, e que nada mais
2a – a maioria qualificada de votos, fixa- era do que uma legítima compensação pe-
do em 72% do total, segundo uma grade de los “sacrifícios” que teve de suportar, entre
ponderação, ou seja, 232 votos sobre um to- os quais o tamanho de sua bancada no Par-
tal de 321. Essa grade dá a cada estado uma lamento Europeu: 54 deputados contra 99
quantia determinada de votos, que varia de consentidos à Alemanha. Com o objetivo de
acordo com sua preponderância: 29 votos superar o obstáculo espanhol (a Polônia re-
aos quatro grandes (Alemanha, França, In- velou-se insatisfeita, porém, dada sua situ-
glaterra e Itália), 27 votos à Polônia e à Es- ação de futuro membro, muito menos à von-
panha (quando a população desses dois pa- tade para bloquear os trabalhos), a Conven-
íses é inferior a 50% à da Alemanha), 13 aos ção acordou postergar o início de seu quo-
Países-Baixos, 12 à Bélgica, chegando a 4 rum para o ano de 2009, até lá valendo o

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 233


acordado em Nice (§ 3o do art. 24). Porém, as. Por sua vez, os “países fundadores” de-
em 13 de junho de 2003, a Espanha decla- clararam que, ao contrário de Nice, não acei-
rou que essa postergação era uma conces- tariam um acordo a qualquer preço, e que
são “insatisfatória”. ou o acordo seria satisfatório, ou nada seria
Nas vésperas da Conferência Intergover- aprovado. À Itália, como tendo a presidên-
namental, esse obstáculo assumiu contor- cia rotativa da União Européia, coube a ta-
nos de barreira intransponível, tendo a Po- refa de costurar um acordo. Inicialmente, a
lônia perdido sua timidez e manifestado que conferência, que começou na sexta-feira, dia
estava pronta a declarar um veto ao projeto 12 de dezembro, estava prevista para durar
Constitucional caso não fosse respeitado o até a tarde de domingo, dia 14 de dezembro.
status que adquirira em Nice. Por sua vez, Berlusconi, primeiro-ministro italiano e pre-
Londres passou a dar apoio, ainda que sidente da conferência, e como tal anfitrião,
discreto, aos seus aliados de Madri e de tinha programado uma pausa no domingo
Varsóvia na questão iraquiana. de manhã, para acompanhar uma partida
Sentindo a pressão franco-alemã, e ten- de futebol importante. No entanto, na tarde
do fracassado em tentar se fazer porta-voz de sábado, anunciava-se oficialmente o en-
dos pequenos, a Espanha chegou à Confe- cerramento da conferência sem acordo acer-
rência Intergovernamental de Bruxelas de- ca do problema magno.
clarando-se pronta a aprovar a Constitui- Tais dilemas, no entanto, certamente não
ção, desde que o específico problema dos irão impedir um desenlace que se espera
votos fosse adiado para futuras conferênci- favorável à Europa de instituições comuns.

234 Revista de Informação Legislativa


Le juriste de demain et la connaissance du
code civil

Luiz Edson Fachin

Sommaire
1. Introduction; 2. La codification en tant
que protagoniste : une image; 3. Enseignement
juridique : une invitation à la réflexion sur les
codes; 4. Contexte historique du droit, des co-
des et de la conception d´État; 5. Défi des trans-
formations; 6. Connaissance du droit et con-
naissance des principes constitutionnels; 7. La
réforme du nouveau Code civil brésilien; 8.
Conclusion.

O presente estudo é uma homenagem à vida e à


obra da Professora Anna Maria Villela, que amou o
Direito, os livros e a França.

1. Introduction :
Alberto Bueres (1986, p. 32) a écrit que
“le juriste d´aujourd´hui a une attitude di-
fférente de celui des siècles passés. Autre-
fois, le rationaliste ou le dogmatique se con-
sacraient à la recherche des constructions
parfaites. Leurs structures étaient donc pré-
tendument immuables, permanentes. Et en-
core : les postulats étaient acceptés sans ques-
tionnement. L´homme du droit actuel fait
face à un monde changeant, surtout dans
les domaines social et économique. Ce qui
est valable aujourd´hui le sera demain”.
Cette proposition permet d´analyser les
rapports transitoires existant entre la con-
naissance et la codification, transpercés
d´un idéal d´uniformisation, précision et
nourris d´un désir de simplicité et clarté.
Bref, cette sorte d´utopie législative : accès
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 235
simple au contenu de la loi, à la portée de niste d´une contradiction : la régularisation
tous, moins formelle pour que la norme co- des rôles et la résisitence au pouvoir cons-
difiée soit connue, comprise et utilisée. Voi- tructif des événements marginaux au Code.
là un beau rêve, bercé maintenant par les pers- Dans la codification civile, jurisprudence
pectives encourageantes de l´informatique et ténue, doctrine pâle, législation sans con-
du développement technologique. nexion débouchent sur un répit contempo-
Il faut donc se demander quelles serai- rain, ce que l´on pourrait appeler de consti-
ent les limites et les possibilités de cette as- tutionalisation re-personnalisation, dé-pa-
piration – quelle qu´elles soient, idéal trimonialisation. C´est la traversée des co-
d´uniformistion, précision, prévision et sim- des archaïques aux souffles hypothétiques
plicité -, sans négliger non plus la vigueur de jeuneusse émancipatrice du Droit qui ap-
du nouveau Code Civil brésilien1. Voilà no- proche les frontières entre le public et le pri-
tre questionnement et nous tâcherons d´y vé.
trouver une réponse. Dans le théatre de notre mátaphore, le
Pietro Perligieri (2002, p. 6) affirme, en ce paradoxe apparaît lors du répit de Martín
qui concerne le rôle de la codification con- Santomé. C´est une période d´amour, qui est
temporaine et l´interprétation des dilpômes interrompue avec la mort de la femme ai-
législatifs, que “la question principale ne ré- mée. Les scènes révèlent, pendant cette an-
side pas en la disposition topographique née qui précède sa retraite, l´homme du dé-
(codes, lois spéciales), mais en l´aspect uni- but de son poste et l´homme de la fin de cette
que des problèmes. Il faudra trouver une sorte de mise-en-scène, c´est-à-dire la nais-
réponse à ces problèmes, en la cherchant sance, le développement et la mort d´un
dans le système comme un tout, sans être amour automnal, hors de saison, qui parais-
d´une part attaché à la prémisse préconçue sait l´avoir fait renaître.
du caractère résiduel du code et d´autre part, Cela n´a pas été qu´un répit, brève lu-
sans être inattentif aux lois qui sont chaque mière qui est née et est passée par lui mo-
fois plus nombreuses et fragmentées.” mentanément, qui touche et tout de suite s´est
Pour bien saisir cette conjecture, le che- éteinte, fugace. L´une de ces lumières, qui
min à emprunter n´est pas celui de la tech- malgré son apparition éphémère, paraissent
nique mais celui de l´art . Pour cela, je ferai qui existent pour nous réveler l´obscurité pro-
usage d´une métaphore. fonde. Martín Santomé a voulu se laisser al-
ler par le courant ou peut-être par le torrent.
2. La codification en tant que Quel sera le répit pour le Droit dont le
protagoniste : une image passé est peut-être terminé et dont l´avenir
peut pourtant se constituer ?
L´ éclairage est sur Martín Santomé, per- Pour Martín Santomé, après tout, le pa-
sonnage principal d´ un roman2, La Tregua, radoxe entre le manque de temps pour se
écrit par Mario Benedetti3. L´incohérence rendre compte de ce qui transforme vrai-
apparente de cet homme était entre la routi- ment sa vie et l´organisation de ses heures
ne quotidienne insoutenable, source de cons- prétendument libres4, montre la différence
tatation de la désillusion, et l´impossibilité entre deux perspectives et deux plans.
de convertir son sentiment conscient de vie La première perspective oppose le savo-
frustée en levier de transforamtion. Pour ir, en tant qu´une simple toile, à la seconde,
Martín Santomé, le seul instant de répit se celle du mouvement et du changement. Sur
passe quand une circonstance change le le premier plan, l´histoire est envisagée com-
quotidien ennuyeux de sa vie résignée. me un musée qui peut être contemplé com-
Focalisons-nous sur le juridique privé me culture sans réflexion et superficielle; le
classique où la codification est la protago- second plan, sans aucun doute, saisit temps

236 Revista de Informação Legislativa


et espace présents dans le contemporain ou, lie, par rapport à la discipline ici étudiée, au
tout au moins, capables de focaliser sur la Code Civil de 1865 et à celui (encore en vi-
société et l´État. gueur) de 1942”.
C´est cette seconde idée dont nous allons Pour Francisco Amaral (2003, p. 123), la
traiter. Nous le ferons cependant sans analy- cause première des codifications est “le be-
ser toute la vie inerte de Martín Santomé, apa- soin d´unification et uniformisation de la
thique et sévère. Ce qui nous intéresse, c´est législation en vigueur d´une matière déter-
justement cet intervalle créatif qui n´accorde minée, non seulement en simplifiant le droit
pas d´armistice mais se montre comme une et permettant sa connaissance mais encore
forme de proposition transformatrice. en lui accordant plus de certitude et de sta-
En approchant les éléments de la méta- bilité. Éventuellement, c´est un instrument
phore de notre sujet, il faut se demander : de réforme de la société comme reflet de l´évo-
l´idée de codification est-elle sur quel plan ? lution sociale. Son fondement philosophi-
Dans notre contexte, nous pouvons nette- que ou idéologique est le droit naturel, qui
ment apercevoir le rôle que la pensée scien- trouve dans les codes l´instrument de pla-
tifique-juridique peut jouer, non comme un nification globale de la société par la réor-
instrument de confinement mais comme un ganisation systématique et inovatrice de la
instrument de libération et par conséquent, matière juridique, et on affirme que ‘les co-
il contient quelque chose d´émancipateur. Il des de droit naturel ont été des actes de trans-
faut donc se demander : comment le juriste formations révolutionnaires’.”
de demain se préparera-t-il pour une nou- Amaral (2003, p. 123) affirme encore que
velle analyse du Droit Civil codifié ? Nous “la codification présente des avantages,
voulons maintenant souligner un des sens comme celle de simplifier le système juridi-
dans lequel s´unissent la connaissance, le que, ce qui permet non seulement la con-
Droit et le Code Civil : l´enseignement juri- naissance et l´application du droit, mais
dique en tant que moyen d´accès à la per- encore d´élaborer les principes généraux de
ception de la loi et la compréhension du sys- l´ordonnement qui seront la base de l´ada-
tème juridique en tant qu´archétype ouvert ptation du droit à la complexité de vie réel-
et renseigné par des principes. le, ce qui explique le triomphe de la codifi-
La dimension classique de la pensée co- cation ces trois siècles. L´inconvénient est
dificatrice peut être dégagée de la pensée de que la codification empêche le développe-
Andrés Bello (1979, p. 59), pour qui le Code ment du droit, produit de la vie sociale qui
“pourra donc être utilisé par tous, pourra ne peut être circonscrit, limité, apprivoisé
être consulté par tout citoyen lors de doutes par des structures formelles et abstraites”.
et jouera le rôle de guide pour qu´il accom-
plisse ses tâches”. 3. Enseignement juridique : une
Pour Pietro Perlingieri (2002, p. 4), par invitation à la réflexion sur les codes
“code”, en général, “on comprend le docu-
ment (qui est une loi) contenant un ensem- Notre point de départ correspond à l´idée
ble de propositions prescriptives (dont on suivante : la vie sociale ne doit pas être con-
rélève les normes) envisagées comme uni- forme aux connaissances juridiques, au
tés, selon une idée de cohérence et de systè- contraire, celles-ci doivent s´y ajuster.
me, destinées à constituer une discipline Ce défi ne confond pas l´étude et la re-
tendenciellement complète d´un secteur. cherche avec l´isolement intellectuel et va à
L´expérience de la codification – dont les la fois vers le Droit et vers une des dimensi-
racines sont à la Révolution Française et ons qui, soit l´enseignement aussi bien que
n´est pas une caractéristique typique de tout la recherche juridique, peuvent atteindre
l´ordennement étatique – a donné vie en Ita- dans le discours et la pratique juridiques.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 237


Ici sont les bases pour le dialogue entre le ju- se tomber les conceptions didactiques qui
riste de demain et un Droit Civil renouvellé. ont tout simplement pour but d´ illustrer;
Le principe des idées sur la question du c´est un chemin de sacrifices qui ne coexiste
lien étroit de l´enseignement juridique avec avec l´inertie ni la répétition.
la connaissance des codes est d´abord basé Pietro Pelingieri (2002, p. 2) affirme en-
sur la reconnaissance du vrai rôle du droit et core que “l´étude du droit – et par consé-
par l´insertion sociale et historique du juriste. quent celle du droit traditionnel dit ‘privé’ –
Cela signifie qu´il faut reconnaître que ne peut se passer de l´analyse de la société
la conscience sociale et le changement font en ce qui concerne son histoire locale et uni-
partie de la formation juridique. Et encore, verselle de manière à qu´elle permette
c´est un engagement avec l´appel au vrai but l´individualisation du rôle et du sens de la
de l´enseignement juridique, un défi qui juricité dans l´unité et complexité du phé-
nous questionne. nomène social. Le Droit est une science so-
Pietro Perlingieri (2001, p. 297), lorsqu´on ciale qui a chaque fois plus besoin de plus
lui a demandé quelle serait la technique lé- grandes ouvertures; obligatoirement sensi-
gislative la meilleure et la plus adéquate ble à toute modification de la réalité, celle-ci
pour résoudre les problèmes de l´homme con- comprise dans sa plus large acception”.
temporain (principes, clauses générales, con- Cela implique, surtout dans le Droit Pri-
cepts juridiques inderterminés ou régularisa- vé, non seulement un apprentissage perma-
tion casuistique exaustive), soutient pertinem- nent mais aussi une méthodologie intégrale
ment qu´une organisation doit d´abord être qui fasse de l´homme et de ce qu´il dit un
caractérisée par les principes généraux qu´elle seul être en mutation continue.
énonce, par les valeurs qu´elle exprime, par Saisir parfaitement les antogonismes
l´adéquation des structures qu´elle offre à son que le sujet présente remonte aux origines
action. Toutefois, il argumente que les techni- qui constituent, en grande partie, l´histoire
ques législatives doivent être choisies selon des cours juridiques et des juristes au Brésil
la matière et l´état de la jurisprudence et de la puisque ceux-ci doivent toujours faire atten-
doctrine qui s´y rapporte. Dans ce sens, la dis- tion cours d´introduction du Professeur
cipline casuistique – formée par des fattispe- Docteur Alberto J. Bueres.
cie abstraites, méticuleuses et ponctuelles – Le présent a les portes ouvertes au XXI eme
peut quelquefois être utile, notamment dans siècle. Le juriste de demain sera-t-il engagé à
une période de transition dans laquelle la nouvelle direction que le Droit Privé a pris?
l´interprète n´a pas grande envie de changer. Après avoir présenté ces idées prélimi-
La simple reconnaissance de cette ques- naires, nous devons enfin ébaucher les deux
tion délimite déjà, par elle-même, la géogra- horizons sur lesquels la méthodologie de
phie de l´enseignement du Droit Privé, qui cette perception distincte de l´enseignement
demande dans la cartographie du savoir le et de la recherche juridique du Droit, en gé-
“construit” et non l´induction au “donné”. néral, et du Droit Privé, en particulier, se
Ainsi, on ne peut continuer avec une attitu- déploient en même temps que rend plus cla-
de d´indifférence ou de renonciation à une ir le sens du discours juridique-didactique
position avancée de l´innovation, ou même, et la pratique séparée de lui.
à la révision et au triomphe des concepts
qui contribuent directement à encourager le 4. Contexte historique du droit, des
questionnement et à faire naître des inquié- codes et de la conception d´État
tudes qui stimulent l´étude et la recherche
engagées à son époque et ses dilemmes. Il faut alors faire référence au débat du
Découvrir le nouveau Droit Civil dans moment concernant la définition des Titu-
cet horizon est une option cohérente qui lais- larisations de l´enseignement dans ce pays.

238 Revista de Informação Legislativa


Je parle de la question qui émerge du projet Il est certain que nous devons reconnaître
d´État minime et de la diminution des espa- d´une part, les limites évidentes d´une réfle-
ces publics et normatifs. Cette privatisation xion de ce genre et d´autre part, la crise hypo-
de la fonction publique et son déplacement thétique généralisée contemporaine ainsi
à l´espace privé demande également une que les contradictions et la précarité des pro-
analyse. positions pour réduire l´État au minimum
Le processus de privatisation de l´État possible face à l´évident besoin actuel de
qui est en cours suggère une réflexion sur la répondre à toute sorte de nécessité : de la
dé-institutionalisation de ce modèle recon- santé et l´enseignement public à la misère et
nu par le système juridique classique. Toute l´exclusion sociale et économique progres-
étude repérera, de l´archaïque au contem- sive des pays latino-américains.
porain, les marques de l´idéologie néolibé- Dans cette privatisation de l´État, un
rale lors de la restructuration du dessin ju- nouvel apparat du libéralisme se manifeste.
ridique de cette activité liée à l´enseignement C´est dans le laps de temps du XX eme siècle
et à la recherche. Il en résulte qu´il faut indi- que le projet d´organisation de l´État, qui
quer dans ce domaine des points qui nous découlait de la réaction à la formulation li-
aident à compréhension critique de ce phé- bérale, fidèle à l´idée selon laquelle le seul
nomène de rétraction étatique que l´on ob- devoir de l´État était celui d´empêcher que
serve surtout en Amérique Latine, dans ce les individus nuisent les uns aux autres,
projet nommé “État minime”. démontre mieux le progrès vers un droit
Il ne s´agit pas de plaidoyer en faveur du chaque fois plus promotionnel, un État-pro-
modèle d´État social , mais de comprendre vidence. La fin du XX eme siècle assiste à une
de manière critique les limites, les possibili- sorte de réexaltation de l´idéologie basée sur
tés et les aspects opposés de la structure et l´éthique individualiste et sur l´hypothétique
les conséquences que le néolibéralisme pro- liberté sociale, économique, politique et reli-
pose à la société. gieuse. D´une certaine manière, rentre en scè-
L´étude peut être circonscrite dans une ne la “fuite” de l´État du Droit Public.
période historique définie, comprendre le Encore une fois, le système juridique,
temps actuel, marqué par le dépacement du lorsqu´il analyse le modèle qui gouverne les
public au privé et indiquer, dans une réfé- rapports économiques et sociaux, sert à sig-
rence historique rétroactive, ses ancêtres, naler la marginalisation. L´attribution d´une
enracinés dans la théorie libérale. Elle re- position juridique dépend de l´entrée de la
connaît également l´avance faite, notamment personne dans l´univers des titularisations
pendant ce siècle, dans de différents pays que système lui-même définit. On se rend
capitalistes, d´État-Providence et au rempla- donc compte que le système juridique peut
cement de la production étatique du Droit avant tout être un système d´exclusion.
pour finalment, retourner à notre temps en Cette exclusion se passe par rapoort aux
différentes conceptions qui mettent en relief personnes ou aux situations dans lesquel-
une époque peu réglementée et un manque les l´entrée dans le cadre de titularisations
de formalisation discutable. de droits et devoirs est niée. Cette négative
Cette analyse ne s´occupe pas du projet découle de forces préconçues et stigmatisées
de réforme de l´État, auquel doit être réservé des valeurs domiantes de chaque période et
une analyse plus profonde et plus large, est basé sur un jugement déprécié, hsitori-
même si l´on peut déduire le leitmotiv que quement arriéré et équivoqué.
pousse la recherche de voies économiques Par conséquent, la présence de ces per-
et politiques pour trouver une issue à sonnes dans le Droit est, obligatoirement,
l´impasse légué par les régimes militaires l´histoire d´une absence. Ce que l´on nie n´est
autoritaires. pas tout simplement attesté. Une grande quan-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 239


tité de sujets sont intentionnellement mis à actuelle de réorganisation sociale des mo-
l´écart du système juridique et ils sont inclus dèles. De cette manière, cette étude doit pren-
dans le partage de ceux qui ne sont pas invi- dre en compte la problématique juridique
tés à la titularisation de droits et de devoirs. comme un problème social et comme pré-
Les codes peuvent en être des représen- disposition pour une analyse critique de ses
tations directes. Comme la loi, ils peuvent effets sur la législation, sur la doctrine et sur
être instrument de conservation. Cependant, la jurisprudence.
une loi émancipatrice peut être instrument On pense à une révision critique profon-
de transformation sociale. de, déjà commencée mais encore inachevée
puisqu´il ne suffit pas de réveler la déca-
5. Défi des transformations dence qu´ éprouveront les bases sur lesquel-
les seront édifiées les institutions juridiques.
Le modèle civiliste hérité des valeurs en Il ne s´agit pas d´une crise de formulation
vigueur les dernières décennies est à l´ordre puisque le défi d´un Droit Civil nouveau et
du jour des débats. Des crises et des trans- renouvellé est bien au-delà de ne reconnaître
formations surgissent de nouveaux besoins que le vieillissement du dogmatisme.
fondés sur des idéaux tels quels la citoyan- Entre la résistence à la transformation et
neté totale et font que les rôles traditionnel- les nécessités imposées par les événements,
lement destinés aux institutions fondamen- le rôle que les opérateurs du Droit doivent
tales du Droit Civil changent : contrat (trajet jouer dans ce domaine pourra anticiper, d´une
juridique), projet parental et titularité (pos- certaine manière, ce qui arrivera plus tard.
session et appropriation). Cette voie devra être soumise à l´épreuve : ce
Il est donc juste se demander si l´orga- qui se passe dans le Droit Civil (la constituti-
nisation juridique a déjà répondu d´une onalisation et la re´personalisation, par exem-
manière adéquate aux exigences que les évé- ple) s´agit-il d´un renouvellement intérieur et
nements sociaux nous imposent. profond ou tout simplement de retouches qui
Des prémisses initiales fondent les ou- se passent dans la structure du projet ratio-
vrages qui peuvent surgir de cette idée, par- naliste qui a fondé les codifitions privées ?
mi lesquelles celle de ne pas consideré le Cette question nous invite à réflechir si le pas
Droit et le monde une simple évidence, réu- en avant esquissé est un changement effectif
nissant ceux qui ne s´habitueront cependant ou seulement la dernière frontière d´un systè-
pas au monde et qui ne voudront probable- me qui se meurt mais qui n´est pas achevé.
ment pas que tout devienne une énorme Il y a un vide dans la doctrine civiliste
“normalité”, connue, “prêt-à-porter”. qui part du manque de connaissance et va
La relecture des statuts fondamentaux jusqu´à la résistence aux idées nouvelles et,
du Droit Privé est utile et nécessaire pour quand des constructions subtiles méthodo-
que l´on saisisse la crise et le triomphe du ligues s´approchent des activités d´étude, la
système classique qui a été projeté sur le con- technique pétrifiée des formules achevées
trat, la famille et le patrimoine. Il s´agit d´un revient au propos du thème perdu.
débat encore ouvert, perméable et plural. Refuser cette direction, sans répudier le
La complexité de ce phénomène présente, savoir classique, et contribuer à son évoluti-
en ce moment, un champ d´expérimentation on signife reconnaître que la conscience so-
qui s´ouvre en fondements épistémologiques ciale et le changement font partie de la for-
qui comprennent les nouvelles nécessités ju- mation juridique.
ridiques. A travers cette analyse surgit un En outre, cela représente un engagement
nouveau chemin qui est aussi un défi. avec ce que l´on considère comme le vrai ob-
Le point de départ peut être l´observation jectif de l´enseignement et de la recherche ju-
des événements qui indiquent la tendence ridique, un défi auquel il nous faut réflechir.

240 Revista de Informação Legislativa


Par conséquent, la dimension historique au centre des préoccupations de l´orga-
et culturelle représente quelque chose de fon- nisation juridique de manière que tout le sys-
damental, notamment pour apprendre que tème, dont l´orientation et le fondement sont
le cadre imposé des piliers fondamentaux du dans la Constitution, se dirige vers sa protec-
privé précède, d´une certaine manière, la pro- tion. Les normes constitutionnelles (compo-
pre configuration contemporaine de l´État sées de principes et de règles), axées sur cette
pendant ce siècle. Les changements qui se sont perspective, attribuent une unité systémati-
passés, surtout depuis les années 50, n´ont queà l´ensemble de l´organisation juridique.
pas été suffisantes pour composer un nou- Il faut citer Stefano Rodotà (2002, p. 302).
veau système de rapports. En 1988, avec la Lorsqu´on lui a demandé son avis sur le
nouvelle Conetitution Fédérale, il y a eu une moment historique actuel au Brésil puisque
rupture théorique formelle du standard privé les nouveaux codes entrent en vigueur et en
classique, ce qui a ouvert les portes à une ré- Europe et on parle de la Codification supra-
forme qui pourtant ne s´est pas accomplie. nationale, il a affirmé que : “je sympathisais
Cette perspective fonde la conviction, avec ces tentatives de codes comme celles
presque toujours immuable, de l´importance faites, par exemple, en Europe parce que les
chaque fois plus grande d´un vrai enseig- règles concernant la tendance supranatio-
nement jurique, d´une formation éloignée nale d´établir des règles produites directe-
d´un enseignement pétrifiée par l´exégèse sé- ment par le marché sont élaborées par les
vère du droit institué, dépendant toujours intellectuels du droit, même si par un mo-
des événements sociaux, à la limite de la vie ment bref il s´agit tout simplement , pour
et des circonstances. ainsi dire, des codes. J´espère vraiment qu´il
Voilà le défi qui ne confond pas l´étude y a des documents de l´Union Européenne
et la recherche avec l´isolement intellectuel. qui se réfèrent explicitement au besoin de
Il faut penser mais éloignée de l´éxègese codes communs et que ceux-ci puissent de-
pure. Pour penser à un Droit Civil nouveau venir des codes européens de manière qu´ils
ou renouvellé, à partir de ses piliers fonda- ne seront plus seulement le rpoduit d´une
mentaux, c´est-à-dire le contrat, le projet préoccupation publique. Et je dirai plus,
parental et les titularisations, l´espace est derrière le mot code, il y a des aspects diffé-
ici et ailleurs, le moment est maintenant, la rents de ceux qui existaient à l´époque de
synthèse du passé qui demeure et du futur Napoléon ou du Code de l´Empire Germa-
qui est cependant à venir. nique de la fin du XIX eme siècle. Je vois éga-
lement, en ce qui concerne la technique, un
6. Connaissance du droit et changemnt très net parce qu´il y a des tenta-
connaissance des principes tives européennes d´offrir de larges espaces
aux principes”.
constitutionaux
Il se passe donc, en ce qui concerne le Droit
Connaître le Droit correspond, en pre- dogmatique traditionnel, une inversion du
mier lieu, à connaître ses principes. Au cible de préoccuaptions de l´organisation ju-
Brésil, les principes majeurs sont mani- ridique, ce qui fait le Droit avoir pour but ulti-
festes dans la Constitution brésilienne de me la protection de l´être humain en tant
1988. Celle-ci a énormément influencé le qu´instrument pour son plein développement.
Droit Civil puisqu´elle manifesfe la supré- L´inversion du locus de préoccupations
macie de la valeur de l´être humain par ra- doit également se passer dans le Droti Civil.
pport au patrimoine. Il s´agit de la conséquence nécessaire face à
La Constitution Fédérale de 1988 a érigé la suprémacie de la Constitution dans
comme fondement de la République la dig- l´organisation juridique. en raison de cela,
nité de l´être humain. Cette option l´a mis tout le standard normatif infraconstitution-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 241


nel doit s´adapter au modèle axiologique de trouver ladite unification du Droit Privé.
constitutionnel. Le troisième livre détermine les droits réels.
La Constitution Fédérale de 1988 a im- Il n´y a que le quatrième livre, relégué à la
posé au Droit Civil l´abandon de la position fin du Code, qui trite en aprtie des rapports
patrimonialiste héritée du XIX eme siècle, sans contenu patrimonial, c´est-à-dire ceux
notamment du Code Napoléonien, se diri- de Droit de Famille. Tout de même, la ma-
geant vers une conception dans laquelle on jeure partie des articles de ce livre traite des
privéligie le développement humain et la rapports surtout patrimoniaux.
dignité de l´être humain considéré concrète- La distribution des matières obéi donc à
ment dans ses relations interpersonnelles une rationalité patrimonialiste. Telle rationa-
et visant son émancipation. lité est en désaccord avec la table axiologique
Dans ce contexte, à la lumière du systè- basée sur la dignité det l´être humain et
me constitutionnel, l´aspect patrimonial, l´affronte. La Constitution de 1988, qui avait
celui qui était le plus mis en relief, est au deu- une préoccupation surtout patrimonialsite,
xième plan. La codification patrimoniale im- impose au Droit la concrétisation de la digni-
mobilière n´a plus la garantie constitutionne- té de l´être humain. Cet ordre d´idées devient
lle, ce qui a marqué le Code Civil en 1916. donc inadéquat au nouvel ordre juridique.
Par conséquent, privilégier le patrimoi- Nous ne pouvons pas nier l´insertion de
ne, au contraire de ce que l´on pourrait pen- quelques principes dans le nouveau Code.
ser à partir d´un point de vue peu approfon- Dans ce contexte et traitant du nouveau
di de ce qui signifie cette notion d’ “attribut Code Civil brésilien, Jorge Mosset Iturraspe
de la personnalité”, signifie écarter la va- (2002, p. 301) affirme que “l´insertion dans
leur constitutionnelle de la dignité de l´être. le Code Civil de règles – la bonne foi, l´équité,
Celle-ci a alors, à partir du texte de 1988, le l´interdiction à l´abus, le principe de la soci-
statut de principe essentiel organisationnel alité – est, en soi-même, une activité fran-
dans le système juridique, et toute règle, po- chement progressiste de défense des impuis-
sitivée ou proposée, à laquelle ce principe sants et faibles.” Toujours d´après Iturras-
se heurte, dans le tout ou en partie, est in- pe, à cette activité sont ajoutées des règles
constitutionnelle. comme la lésion et les charges excessives
Dans ce sens, l´évaluation de la consti- ultérieures et met en relief la réception de la
tuionnalité d´un diplôme légal, face à la re- resposabilité objective qui comprend les
personnalisation imposée à partir de 1988, produits incorporés au commerce, s´ils ont
doit prendre en compte la suprémacie de la un défaut ou non, lorsqu´ils endommagent
protection de la dignité humaine en ce qui et ce qu´il dénomme ‘risque de développe-
concerne les rapports juridiques patrimo- ment et croissance’. D´autre part, il ne lui
niaux. Il en découle qu´un diplôme légal - et échappe pas que si l´on juge conforme à la
il faut préciser, quoique positivé ou proposé mondialisation la régression du Droit de
- sera inconstitutionnel lorsqu´il privéligie l´État, avec l´incorporation de la lex mercato-
un point de vue patrimonialiste au détri- ria, “telles règles opposées à cette position
ment d´une conception liée à la protection se montrent contraires à la libre économie
de l´être humain. de marché puisqu´elles permettent l´inter-
Le nouveau Code Civil brésilien, dans vention de l´État – critiquée par les porte-
sa propre structure, montre la préoccupati- parole de l´économicisme parce qu´il s´agit
on primordiale envers le patrimoine: le pre- d´une interférence culturelle. Pour ceux qui
mier livre de la partis spéciale concerne le écrivent sur les règles déjà citées – la bonne
droit des obligations qui traite surtout de la foi, le fonction sociale, etc. – , elles n´appar-
circulation des biens. Ensuite, le deuxième tiennent pas à une période donnée – celle
livre traite du droit de l´entreprise en tâchant des années 60 ou des années 70 – bien au

242 Revista de Informação Legislativa


contraire, elles sont “le meilleur du Droit, les ons nécessaires par lesquelles est déjà pas-
découvertes qui durent le plus longtemps”. sé et par celles qui cependant passera le
Toutefois, Iturraspe (2000, p. 299) affir- Droit Civil brésilien.
me que les Codes ne peuvent pas effacer les Il ne s´agit donc pas de discuter un pro-
microsystèmes, comme ceux dédiés au con- jet, mais de discuter la réforme. La réforme
sommateur et à l´envirennement. On ne doit est un processus en train d´être bâti tandis
pas non plus penser à des Codes ‘pour tou- que la codification , en tant que proposition
jours’ (définitifs, perpétuels) mais former une d´unité , est un événement.
conscience de ses réformes, comme il se passe Avant que l´on ne voit un code derrière
également avec la Constitution au Brésil. un pays, il faut absolument que ce pays écou-
Il y a au Brésil un conflit entre ces deux te le cri qui vient du singulier au collectif en
différentes visions : d´un côté, la défense ce qui concerne les nouveaux temps et les
primordiale de l´être humain et ses valeurs; dilemmes anciens. C´est pour cela que la
de l´autre, la tutelle excessive du patrimoi- dimension proposée de la réforme ne com-
ne. Doctrine et jurisprudence fourniront, mence pas forcément à la codification et tra-
dans un avenir très proche, les lignes direc- ce un programme de réflexion des bases et
trices pour faire face à ce paradoxe. Pendant des fondements de l´organisation sociale.
cela, on pense déjà à la réforme du nouveau Il est indispensable saisir ce nouveau
Code. décor dans lequel la codification civile, avec
son expérience de familles juridiques roma-
7. La réforme du nouveau nistes occidentales, s´insère à la fin du XX eme
Code Civil brésilien siècle comme une sorte de famille royale
sans trône, comme un roi sans couronne.
Il y a actuellement au Brésil un silence élo- Enfin, pour quoi ou pour qui le système
quent en ce qui concerne la réforme du Droit juridique, soit celui du droit privé classique
Civil. À la Chambre des Députés, on annonce qui s´est basé sur la codification, soit celui
le débat qui se propose de discuter la premiè- qui déborde au présent fluide actuel des mi-
re réforme après la promulgation du nouveau crosystèmes.
Code Civil brésilien. Face à cette perspective, La propre idée de codification est en train
ce qui frappe, c´est le triomphe apparent de d´être analysé, dans une société à identités
l´indifférence qui paraît gagner du terrain. multiples, de la fragmentation du corps à la
Il peut paraître paradoxal signaler cette limite entre le sujet et l´objet, la reconnais-
faiblesse dans le domaine du Droit qui se sance de la complexité s´ouvre vers l´idée
propose de gouverner juridiquement ce qui de la réforme comme un processus continu
est à la base organistrice de la société : les de construction et reconstruction. Le présent
titres d´appropriation (notamment ceux de plural, exemplié par le manque d´un modè-
la propriété et possession), le projet paren- le juridique unique pour les rapports fami-
tal (denommé famille) et la circulation juri- liaux, est cohérent avec le respect à la diver-
dique (les contrats et les obligations), Bref, sité et ne s´enferme pas dans une vision
ce débat devrait radiographier les trois pili- monolithique de l´unité.
ers qui exposent, dans une courte leçon Caio Mário da Silva Pereira (2001, p. 105)
d´anatomie juridique, l´architecture sociale et affirme que “la célérité de la vie ne peut être
sa répercussion normative sur les biens arrêtée par les murailles d´un droit codifié.
d´usage, de consommation et de production. Les événements, soit dans la simplicité du
Il est évident qu´il faut demander une quotidien, soit marqués par une plus gran-
convocation destinée non seulement au dé- de sériété, exigent de nouveaux comporte-
bat indispensable sur le nouveau code civil ments législatifs. Par conséquent, un immeu-
mais aussi sur l´ensemble de transformati- ble bâti pendant longtemps, comme l´est un

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 243


Code, se trouve atteint par des exigences fré- trinsèque du droit. Au contraire, elles consti-
quentes et a besoin de suppléments législa- tuent l´expression, une expression hsitorique-
tifs”. ment déterminée, de son hsitoricité intrinsè-
Silvio Rodrigues (2002, p. 311) soutenait que, de son profil de phénomène hsitorique.
qu´il était théoriquement contre la codifica- Ainsi qu´Ulises, qui après avoir erré pen-
tion en raison d´être favorable à la construc- dant quelques années par des sentiers
tion de codes thématiques : un code sur les abrupts rencontre Ítaca, son île, nous espé-
contrats, un autre sur le droit de famille et rons que l´avenir réserve, pour la nouvelle
encore un autre sur la personne juridique. il décennie juridique do Droi civil brésilien,
affirme qu´ “il ne s´agirait pas de microsys- de la place pour le rêve d´une société juste,
tèms proprement dits”. Il trouve qu´il y a fraterne et égalitaire.
erreur lorsqu´on considère que les peuples
modernes ont fait des codes complets et cite 8. Conclusion
comme exemple le code hollandais récem-
ment fait : d´abord, la partie concernant la Conscient qu´il n´existe pas de purisme
famille a été votée en 1970, comme une loi conceptuel, l´observateur contemporain, à
isolée; ultérieurement, les parties concernant l´aide d´un regard spécial du Droit Privé
le droit patrimonail ont été votées, etc. Pour renouvellé, lorsqu´il feuillette de nouveaux
lui , traiter chaque thème isolément permet albums de la famille juridique, retrouve des
une discussion plus pertinente puisqu´elle labeurs innovatrices épistémologiques et
mobilise le congrès, la presse et la société quelques oppositions. Mais, prenez garde :
pour une matière donnée. Après ces discus- à partir de cet élargissement des horizons ,
sions thématiques de différents projets, une liberté mal comprise oscille pour essayer
l´ensemble est analysé comme code. d´équilibrer l´individu (consommateur) et le
À la veille du troisième millénaire se de- citoyen (sujet de la citoyenneté) dans la di-
mander sur la pertinence de ce débat avec le mension de n´importe quelle consommati-
médiéval qui s´obstine à enfermer le Brésil on. Une conduite fausse qui, dans le chant
dans le mépris de l´attention des questions néolibéral, ressemble à une mélodie capti-
vitales jusqu´à maintenant sans réponse et vante.
essayer d´y répondre : voilà le défi qui remet Si, à la veille de la fin du siècle, l´ex-
le Droit dans la perspective de as fonction pression néolibéral prétend à esquisser les
émancipatrice, revendiquée par le contenu problèmes fondamentaux, on ne trouvera
minimal des valeurs fondamentales de l´être pas, à ce projet contestable qui mérite des
humain et le soin de ses besoins. critiques et résistence, de réponses effecti-
Quelques voix autorisées se sont oppo- ves qui associent l´homme réel au sens de
sées (et adéquatement) à l´opportunité de la justice. On essaie d´exclure du public un
codification; il est vrai que le projet a égale- champ large de droits qui n´ont pas au mo-
ment été critiqué injustement lorsqu´il sou- ins été réalisés pour la grande majorité de la
tient la fonction sociale de la propriété et du population.
contrat. Il est évident, même si quelquefois il ne
Pietro Barcellona (1993, p. 23) dit que la le soit pas, celui qui offre l´État dans le pro-
neutralité apparente des formes juridiques cessus de délégation à d´autres institutions
d´espèce codifiée, la capacité expansive ‘en- et réduit l´empreinte de la privatisation à
dogène’ des normes juridiques qui en décou- des idées et intérêts déjà connus, notamment
le, l´interdépendance entre le jugement cri- en Amérique Latine. Les conséquences de
tique et d´autres critères (sociaux, éthiques, cette interférence minime de l´État et parmi
etc.) de valorisation des conduites ne sont elles, on peut essayer d´en repérer quelques
pas l´expression formelle de la neutralité in- des cosnéquences de ce projet qui s´ache-

244 Revista de Informação Legislativa


mine déjà dans le domaine des rapports sur Notes
lequel on est en train de réfléchir. 1
Le nouveau Code Civil brésilien fut institué
Pour Stefano Rodotà (2002, p. 304), il y a par la Loi 10.406 du 10 janveir 2002 et entra en
une nette perception que les nouvelles ten- vigueur un an après sa publication.
2
tatives codificatrices, notamment dans le Benedetti (1992). Comme a déjà été écrit, “le
droit communautaire européen, envisagent roman raconte une année de la vie de Martín Santo-
mé. Au début du roman , le protagoniste a 49 ans,
d´offrir de larges espaces aux principes, ce trois enfants, est veuf depuis 25 ans et tient à partir
qui permet, selon lui : “une grande flexibili- à la retraite. A la fin, il a 50 ans, c´est son dernier
té, une adapatabilité à des situations qui jour de travail et il traîne les aventures et mésaven-
sont très dynamiques du point de vue éco- tures de son amour automnal par la jeune Laura
nomique et aussi du point de vue des droits. Avellaneda qui naît, grandit et meurt pendant cette
année-là”.
Comme cette flexibilité ne doit pas seule- 3
Mario Benedetti, après avoir publié son premi-
ment être comprise comme une croissance er livre en 1945, La Víspera indeleble, écrit plusieurs
du pouvoir discret des juges; il s´agit des romans, contes et surtout des poésies; journaliste,
clauses générales et il est évident que le mot il fut critique littéraire. Il naquît le 14 septembre
derneir doit être celui du juge. J´y vois un 1920 (BENEDETTI, 1988).
4
Ce sont des mots de Martín Santomé : “Derni-
lien très fort, dans l´insertion de l´attendue er jour de travail... Fini le bureau. A partir de dema-
Constitution Européenne de ces droits fon- in et jusqu´au jour de ma mort, le temps m´obéira.
damentaux, puisqu´à partir de ce moment, Après tant d´attente, je vivrai dans l´oisivité. Qu´en
le juge aura la flexibilité qui lui attribuée par ferai-je ?” (BENEDETTI, 1992, p. 180).
ce nouveau type de code ou il sera obligé de
se rapporter obligatoirement aux principes
qui seront la nouvelle chatre de droits. Et je Bibliographie
vois cela comme un modèle qui peut être éga-
lement projeté dans une échelle globale puis- AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 5.
que, même le codificateur national, qui sera ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
trouvé d´avantage dans les domaines sur BARCELLONA, Pietro. Dirito privato e societá mo-
lesquels il y aura des règles supranationa- derna. Napoli: Jovene,1993.
les, comme en Europe, ou dans des traités et BELLO, Andrés. Codification del derecho civil. In:
conventions; ce codificateur devra jouer avec ______. Escritos jurídicos, políticos e universitarios.
ce registre double et par conséquent, j´y vois Valparaíso, Chile: Edeval, 1979.
une sorte de retour au code . cependant, je BENEDETTI, Mario. Antologia poética. Rio de Janei-
ne peux pas m´empêcher de penser que le ro: Record, 1988.
code a le contenu analytique ou la prétenti- ______. La tregua. Montevideo: Arca: Nueva Ima-
on constitutionnelle”. gem, 1992.
Voilà le défi et l´alerte que soulève le pré- BUERES, Alberto J. Objeto del negocio jurídico. Bue-
sent pour les regarder dès maintenant nos Aires: Hammurabi, 1986.
jusqu´à l´avenir. ITURRASPE, Jorge Monet. Diálogos com a doutri-
En raison de cela, nous reprenons la na. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro,
métaphore de Martín Santomé qui oppose v. 3, n. 12, p. 297-304, out./dez. 2002.
le savoir à un simple décor contre l´idée du PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil: alguns
mouvement et le changement. Le droit et les aspectos de sua evolução. Rio de janeiro: Forense,
codes ne peuvent pas être considérés com- 2001.
me des musées qui sont contemplés, comme PERLINGIERI, Pietro. Diálogos com a doutrina.
une culture superficielle; ils doivent être ca- Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v.
pables d´émettre de la lumière sur la société 2, n. 6, p. 289, abr./jun. 2001.
et sur l´État en tant qu´éléments de transfor- ______. Perfis de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro:
mation. Renovar, 2002.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 245


RODOTÁ, Stefano. Diálogos com a doutrina. Re- RODRIGUES, Sílvio. Diálogos com a doutrina. Re-
vista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 3, vista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 1,
n. 11, p. 225-308, jul./set. 2002. n. 2, p. 303, abr./jun. 2000.

246 Revista de Informação Legislativa


O renascimento do direito comparado

Luiz Fernando Coelho

Sumário
1. Breve introdução ao direito comparado.
2. As famílias de direitos. 3. O nivelamento dos
sistemas jurídicos. 4. A globalização como fa-
tor de nivelamento. 5. A ética do capitalismo e
o renascimento do direito comparado.

1. Breve introdução ao
direito comparado
Anna Maria Villela foi uma das poucas
personalidades do mundo jurídico brasilei-
ro que cultivava o direito comparado como
ponto de vista especial referido ao saber ju-
rídico. Mercê de seu trabalho intelectual
como professora da Universidade de Brasí-
lia e do Instituto Rio Branco, de sua atuação
como Consultora Legislativa do Senado Fe-
deral, onde também se destacou como Dire-
tora de Publicações, além de haver atuado
como assessora da Assembléia Nacional
Constituinte, que elaborou a Constituição
de 1988, pode-se dizer que Anna Maria Vil-
lela foi a grande representante no Brasil, não
somente do direito comparado como dou-
trina, mas também do comparatismo como
ideal de ética nas relações internacionais.
A reflexão sobre as possibilidades de res-
gate do direito comparado, com o sentido e
alcance que os mestres da Assotiation Inter-
nationale de Droit Comparé e da Faculté Inter-
nacionale pour l’Enseignement du Droit Com-
paré, de Estrasburgo e Barcelona, cujos cur-
sos e seminários foram por ela freqüenta-
dos, é, portanto, uma homenagem que cer-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 247
tamente haverá de apreciar, desde a dimen- se cogitava de limitações geográficas ou
são atemporal em que se encontra. políticas em relação ao estudo científico de
O direito comparado desenvolveu-se a suas instituições, do mesmo modo que o es-
partir de uma concepção universalista do tudo da filosofia grega não circunscrevia a
direito, denominador comum das tentativas filosofia a seu país de origem, a Grécia clás-
de estruturar o saber jurídico como ciência sica. Idêntica universalidade também ocor-
universal, a despeito da compartimentação rera na Idade Média, quando o direito canô-
de seu objeto, decorrente das fronteiras geo- nico unia os Estados feudais sob um único
políticas dos Estados. Nesse contexto, o re- ordenamento em relação a diversas ques-
pensar dos fundamentos do direito, em fun- tões, e na época pré-renascentista, quando
ção da metodologia engendrada pelo direi- o direito romano redescoberto era ensinado
to comparado, representou um dos esforços nas primeiras universidades e se constituí-
mais profícuos para a superação do vetusto ra em jus commune da Europa.
ceticismo epistemológico que minimizava o O processo de separação dos sistemas
caráter científico dos estudos jurídicos, re- jurídicos acompanhara a racionalização da
legando-os a mera técnica de persuasão, sim- sociedade e se afirmara com a consolidação
ples exercício de um jogo argumentativo. do Estado moderno, o que culminou, quan-
Entretanto, o desiderato de restabelecer to à jurisprudência, com as escolas dogmá-
a dimensão universalista do direito como ticas desenvolvidas após as grandes codifi-
forma de saber viu-se frustrado, em virtude cações, especialmente o Código Napoleão.
da conjugação de fatores os mais diversos: A compartimentação dos direitos positi-
a parafernália legislativa que tem inunda- vos importou em idêntica compartimenta-
do os direitos positivos das nações moder- ção da ciência do direito, pois o ensino jurí-
nas, a maior complexidade das relações ju- dico passara a ser tão dogmático quanto seu
rídicas, o domínio cada vez maior da men- objeto, o que, em função da mentalidade
talidade dogmática na atuação profissional positivista que via na filosofia uma ancilla
dos operadores do direito, a própria educa- scientiarum, havia absorvido a tendência a
ção jurídica, insistentemente voltada para a minimizar os estudos de teoria geral e de
busca de resultados imediatos nesse traba- filosofia do direito, último baluarte da uni-
lho, a conseqüente minimização da teoria versalidade do direito, chegando até sua eli-
geral e da filosofia do direito nos currículos minação dos currículos dos cursos jurídi-
dos cursos jurídicos, tudo isso contribuiu cos ou sua redução qualitativa e quantitati-
para que o direito comparado, como méto- va no conjunto das disciplinas, fato esse
do e como ciência, caísse em relativo esqueci- agravado pela perda do alcance ético dos
mento. Daí a importância de seu resgate, um fundamentos do direito.
serviço a ser prestado à ciência do direito. Estudado em algumas instituições uni-
O direito comparado haure suas raízes versitárias especialmente importantes, ao
na própria história do direito europeu. Lem- tomar-se consciência desses fatos da evolu-
bre-se que a compartimentação dos estudos ção histórica da ciência jurídica, o direito
jurídicos já é fruto dos tempos modernos, comparado surgira como possível resposta
pois época houve em que os conhecimentos à necessidade de resgate daquele tradicio-
jurídicos tinham o mesmo foro de universa- nal sentido de universalidade, o que igual-
lidade que os de qualquer outra ordem cien- mente respondia às exigências cada vez
tífica. Foi a época em que as instituições ro- maiores determinadas pelo incremento das
manas, por sua racionalidade técnica, im- relações internacionais.
punham-se ao direito costumeiro da Euro- O ponto de partida do direito compara-
pa ocidental e, embora se tratasse de um di- do é o fato de o Estado não ser mais que
reito referente a um povo e a um Estado, não acidente histórico, sem dúvida durável, mas

248 Revista de Informação Legislativa


mutável de acordo com as influências eco- sos institutos entre si, no que elas possuem
lógicas, demográficas, econômicas e de or- de perene, bem como as relações desses ins-
dem subjetiva, que o influenciam e que con- titutos com a política geral dos povos e com
dicionam a ordem jurídica. Mais ainda, par- os grandes agrupamentos humanos.
te-se da constatação elementar de que os Esse largo objetivo não se deixa restrin-
homens, com o progresso da civilização, gir pelo aspecto puramente normativo, mas
com o aperfeiçoamento dos meios de comu- envolve considerações interdisciplinares de
nicação e com a maior complexidade das natureza sociológica, econômica, histórica,
relações sociais, estão a exigir agrupamen- política e filosófica. Isso não obstante, o pon-
tos mais amplos aos quais nossas fórmulas to de vista formal da própria jurisprudên-
de legalidade estatal já não mais se enqua- cia tende a prevalecer, pois o direito compa-
dram. Isso tende a gerar um hiato cada vez rado vislumbra a redução dos diferentes
mais acentuado entre a realidade jurídica e conhecimentos oriundos daquelas ordens
as fórmulas de legalidade que, por força do científicas a uma expressão de positividade
poder político conservador, procuram man- normativa. Com isso, procura-se afastar o
ter-se. Ou, em outras palavras, tende acen- risco de enciclopedismo e a possível confu-
tuar a inadequação entre a vivência do di- são com outras ciências sociais e culturais,
reito e sua forma, entre a norma e sua matéria, em especial a teoria geral do Estado e a ciên-
entre a conduta e sua expressão normativa, cia política, considerando que essas disci-
entre os modelos jurídicos e a matéria social. plinas oferecem analogias quanto ao respec-
Pelo que já se tem feito, graças ao traba- tivo objeto material, que tanto poderá ser a
lho de inúmeros Institutos de Direito Com- sociedade quanto o Estado e sua organiza-
parado, pode-se distinguir algumas das ção normativa. A teoria geral do Estado con-
noções fundamentais da novel disciplina. sidera a estrutura do fenômeno Estado, seja
O objeto do direito comparado releva da quanto à forma, divisão política e adminis-
confrontação entre situações reguladas por trativa, seja quanto ao regime político, orga-
diferentes sistemas normativos. Extravasa nização e funcionamento do respectivo sis-
a legislação comparada, entendida como tema de governo, e objetiva a explicação cau-
confrontação, aproximação, cotejo ou compa- sal-teleológica, segundo uns, ou a compre-
ração de instituições jurídicas de Estados di- ensão dialético-valorativa, segundo outros,
ferentes, com o fito de anotar suas discrepân- desse fenômeno. A política estuda o poder
cias e determinar as analogias encontradas em suas diferentes manifestações, inclusive
com vistas à aproximação ou reconciliação os meios de conquista do poder político, as
das legislações diferentes ou, ainda, objeti- formas de seu exercício e os fins a que se
vando a solução de um contencioso em que propõe, e objetiva relacionar essas manifes-
as fontes tradicionais do direito local sejam tações, isoladamente ou em conjunto, com
consideradas insuficientes para o dirimir. determinados valores historicamente vigen-
O direito comparado é muito mais am- tes na comunidade considerada.
plo. Seu objeto é constituído pelo conjunto Em relação ao objeto do direito compa-
das fontes do direito, com a finalidade de rado, há que se distinguir ainda o direito
descobrir as constantes de sua evolução. E, comparado histórico, que considera os orde-
assim, a disciplina se afirma com foros de namentos jurídicos do passado, entre si ou
autonomia científica, pois, não se restrin- relacionados ao direito atual, e o direito com-
gindo à mera contemplação e descrição dos parado dogmático, que tem por objeto os sis-
ordenamentos estrangeiros, pretende rela- temas jurídicos atuais. A rigor somente este
cionar as correntes do pensamento com as último constitui ciência jurídica em sentido
regras de direito e práticas judiciais e extra- estrito, já que o direito comparado histórico
judiciais, reconstituir as relações dos diver- pode ser considerado especialização da his-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 249


tória do direito. Mas nada impede que sua Já se observam os primeiros resultados
metodologia e objetivos sejam os mesmos, do direito comparado em matéria de unifor-
ao fazer-se referência ao passado. mização dos sistemas jurídicos, pois, nos
Deve-se distinguir ainda entre o direito Institutos de Direito Comparado, já se pes-
comparado puro e o aplicado, tomando quisa o direito europeu, entendido como o
como critério dessa divisão a prevalência direito uniforme dos países da União Euro-
de objetivos teórico-científicos, como a for- péia, um direito desenvolvido a partir do
mulação de teorias jurídicas, teses e concei- direito uniforme do mercado comum euro-
tos, ou técnico-práticos, como, por exemplo, peu, e, embora em fase embrionária, pode-
a elaboração de um projeto de lei. se falar em direito latino-americano, referin-
O método do direito comparado tem al- do-se às normas específicas do Mercosul ou
gumas nuanças que o distinguem da meto- às normas comuns dos diferentes mercados
dologia concernente ao estudo de um único comuns, como o Grupo Andino e o Merca-
ordenamento jurídico histórico ou estran- do Comum Centro-Americano.
geiro, ou de coleções de fontes jurídicas es- No campo dogmático, a grande contri-
tranhas, ou ainda de situações casuísticas. buição do direito comparado à moderna ci-
O direito comparado se inicia com a apre- ência do direito é a classificação dos orde-
sentação de pontos comuns e dessemelhan- namentos jurídicos, os quais são agrupados
ças existentes, considerando-se várias or- em sistemas jurídicos ou famílias de direito.
dens jurídicas. Tal método envolve uma con- Infelizmente, nossa concepção de ensi-
tínua confrontação das normas jurídicas no jurídico se apóia sobre uma prevalência
nacionais e estrangeiras, consideradas den- quase absoluta das normas de direito posi-
tro da estrutura social, que é produto da tivo, e a organização curricular segue as di-
evolução histórica e do conjunto das as- visões tradicionais que separam o público e
pirações materiais e tendências espiritu- o privado.
ais da época no país ou no conjunto de O essencial no ensino jurídico não é
nações tomadas como ponto de referên- apresentar as normas jurídicas vigentes, mas
cia. Assim, as regras de direito interessam familiarizar o estudante com a estrutura, as
ao comparatista, menos em sua expres- categorias gerais e particulares e os concei-
são normativa do que na manifestação de tos de determinado sistema de direito posi-
certa posição doutrinária. tivo, considerado no contexto formado pe-
Os processos de trabalho do direito com- los da mesma família, ensinando-lhe o vo-
parado são derivados dos próprios institu- cabulário, a terminologia e os conceitos fun-
tos jurídicos e dos procedimentos da técni- damentais desse direito. É ensinar-lhe os
ca jurídica, sendo aplicáveis as mesmas re- métodos de aplicação, interpretação e inte-
gras válidas para a distinção entre ciência e gração das leis, com a ajuda dos quais ele
técnica. No plano científico, o objeto da ju- poderá encontrar a solução adequada aos
risprudência pode receber tratamento soci- problemas jurídicos concretos. É desenvol-
ológico, histórico ou dogmático-jurídico, ver no estudante a sensibilidade própria do
sendo que as respectivas regras de metodo- jurista para perceber essas soluções e, sobre-
logia igualmente se aplicam ao direito com- tudo, para impregná-lo da idéia da justiça.
parado, subordinadas aos fins retro indica- A classificação dos ordenamentos jurí-
dos. Assim, a pesquisa empírica, sociológi- dicos traz nova distinção metodológica, a
ca e histórica, bem como a generalização que se procede entre microcomparação e
indutiva dos fenômenos que podem ser con- macrocomparação.
siderados no campo do direito, e a conside- Na microcomparação, considera-se o
ração dialética da conduta fornecem elemen- direito nacional ou determinada norma po-
tos ao direito comparado. sitiva, a qual deve ser comparada com nor-

250 Revista de Informação Legislativa


ma semelhante de outro direito estrangeiro, normas. Isso é de tal forma importante que a
ou de vários deles. Na macrocomparação, o consideração pura e simples das normas
direito é encarado estruturalmente como jurídicas vigentes em determinado momen-
parte de uma família de direitos, e a compa- to histórico fornecerá uma visão incomple-
ração se processa em nível menos casuísti- ta e evidentemente falsa do direito. Não que
co e mais conceitual, apurando-se as possí- esses elementos deixem de estar sujeitos à
veis similitudes conceituais entre diversas mesma evolução, mas que se trata de um
ordens jurídicas, também encontradas na desenvolvimento muito mais lento que não
estrutura global de sua respectiva família se compara com as freqüentes mutações a
de direitos. que estão sujeitas as leis.
Micro e macrocomparação revestem-se Daí que a preocupação central da dog-
de importância especial logo que se siste- mática comparatista seja a fixação de crité-
matizam os procedimentos hermenêuticos, rios seguros para a classificação dos orde-
nos quais, ao lado da interpretação grama- namentos jurídicos de todo o mundo.
tical, lógica e histórica, alinha-se a interpre- A tais ordenamentos convencionou-se
tação sistemática, pela qual a norma jurídi- chamá-los de “sistemas jurídicos”, devido
ca a ser interpretada é considerada parte de à predominância doutrinária que vê nas
um conjunto normativo, seja o formado por ordens jurídicas positivas uma normativi-
outras normas da mesma espécie, seja em dade estruturada segundo os princípios da
relação ao sistema geral constituído pelo lógica formal tradicional. As leis componen-
ordenamento positivo, seja no contexto mais tes de um ordenamento positivo estariam
amplo formado pela família de direitos na assim dispostas segundo uma estrutura de
qual este se insere. derivação a partir da constituição, que seria
a norma básica da qual todas as outras de-
2. As famílias de direitos rivariam, até as normas individualizadas
nos atos e negócios jurídicos e nas decisões
Essa tese, do agrupamento dos direitos judiciais casuísticas, formando uma espé-
positivos em famílias, é uma decorrência do cie de pirâmide normativa, tendo nas leis
fato de que, no domínio do direito, como no ordinárias e regulamentos os escalões in-
das demais ciências, por trás da grande va- termediários.
riedade de direitos particulares, podem ser É claro que uma tal estrutura analítica é
reconhecidas categorias gerais, de número deveras discutível, quando comparada com
limitado, em torno das quais é possível agru- a realidade dos direitos dos povos, os quais
par-se os diferentes ordenamentos jurídicos. ostentam leis inconstitucionais, normas
Existem elementos variáveis e elementos contraditórias e lacunas jurídicas e axioló-
constantes no direito. Sendo o comparatis- gicas, mas serve como modelo ideal racio-
mo ainda uma ciência jovem, não chegaram nal a ser concretizado em função da racio-
os comparatistas a um acordo sobre qual nalidade que deve reger as relações jurídi-
elemento seria prevalecente para agrupar os cas, ou então como modelo teórico que auxi-
direitos em conjuntos. Mas o fato é que em lia a demonstrar como se processam ou de-
todos os ordenamentos, independentemen- vem proceder as relações intra-ordenamen-
te das regras vigentes, existe todo um jogo tais.
de conceitos, de métodos de pesquisa, um Quando em direito comparado se fala em
modo peculiar de encarar o mundo, a socie- classificação dos sistemas jurídicos, afasta-
dade e a justiça. São elementos extranorma- se essa conotação analítica e almeja-se tão-
tivos que dão ao direito suas características somente a reunião dos diferentes ordena-
típicas e asseguram sua por meio através de mentos positivos em torno de característi-
todas as variações que possam sofrer as cas comuns que apresentam, tais como, gê-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 251


nese histórica, influência religiosa, ideolo- mundo socialista, convencionou-se classi-
gia e objetivos políticos. Na verdade, não há ficar os sistemas jurídicos segundo os crité-
consenso entre os comparatistas a respeito rios político-ideológicos que dividiam o
dos critérios de classificação, mas somente mundo ocidental em dois blocos antagôni-
ensaios de aproximação de caracteres co- cos, o mundo capitalista em oposição ao
muns. socialista. Nesse sentido, a classificação
Por isso, em vez de falar em sistemas ju- usual adotada opunha o direito burguês ao
rídicos, parece mais adequada a terminolo- direito socialista.
gia proposta por René David (1964), que fala Numa visão tão universal quanto possí-
em “famílias” de direitos. vel das ordens jurídicas existentes atual-
O autor distingue cinco grandes famíli- mente, duas grandes categorias podem ser
as de direitos, com base na influência pre- desde logo distinguidas: ordenamentos ju-
ponderante das respectivas civilizações: o rídicos de fundamento religioso e ordens
sistema ocidental, compreendendo o grupo jurídicas de fundamento civil ou secular.
romano-germanista e o anglo-americano, o Enquanto a primeira categoria abrange os
sistema soviético, o sistema muçulmano, o povos pertencentes a uma mesma comuni-
sistema hindu e o sistema chinês. dade religiosa, que pode extravasar as fron-
Solà Cañizares adota como critério a in- teiras nacionais ao aplicar-se a indivíduos
fluência religiosa, distinguindo assim os unidos por uma fé comum, a segunda tem
sistemas ocidentais, de inspiração cristã, um campo de vigência puramente territorial.
mas cujas fontes não são constituídas pela Os direitos confessionais dos judeus,
religião, o sistema soviético, de espírito ateu cristãos, muçulmanos, hindus e budistas
e anti-religioso, e os sistemas religiosos, em têm validade de direito civil, principalmen-
que as fontes são constituídas pela religião te nos países islamitas e nos do sudeste asi-
de maneira prevalecente, compreendendo o ático, em especial quando se trata de famí-
direito canônico, o muçulmano, o hindu e o lia e sucessões. Isso é igualmente válido
israelita. para muitos povos cristãos em assuntos que
Na atualidade, levando em conta as envolvem questões religiosas, como o ma-
transformações ocorridas no mundo de hoje, trimônio e a paternidade, e ainda a respeito
principalmente a falência dos modelos so- de problemas cujo alcance ético transcende
cialistas de Estado, deixaram de subsistir os limites impostos pelas leis positivas, tais
as condições que levaram esses autores a como, transfusão de sangue, suicídio, euta-
considerar o sistema soviético à parte dos násia e aborto.
demais. Leve-se ainda em conta que a tradi- A validade e efetividade do direito reli-
ção doutrinária dos países outrora subme- gioso pode ocorrer de maneira direta, quan-
tidos à dominação política da ex-União So- do ele tem sua validade própria e imediata
viética é portadora de tradições romanistas por meio de jurisdições religiosas, ou indi-
e cristãs, estas pela presença histórica da reta, quando é aplicado por meio do direito
Igreja Bizantina. Por isso, não vejo motivos estatal.
para considerar o sistema soviético, mas, em Quanto aos direitos seculares ou não-
relação a Cuba e China, eles formam uma confessionais, distinguem-se dois grandes
família distinta que pode ser definida como sistemas, o romano-germanista e o anglo-
de direitos socialistas, em virtude da influ- americano.
ência da ideologia socialista em suas insti- O sistema romano-germanista compre-
tuições, principalmente em matéria de pro- ende os ordenamentos jurídicos forjados à
priedade. base do direito romano e que incorporaram
É mister assinalar finalmente que, na ci- alguns institutos característicos do direito
ência jurídica desenvolvida nos países do consuetudinário dos povos germânicos. A

252 Revista de Informação Legislativa


ele pertence o direito francês e a imensa cau- de de diversos fatores históricos e sociológi-
dal de sistemas jurídicos nacionais, desde cos, o que não impede que, no mundo atual,
os Estados latinos até a Holanda, que sofre- verifique-se a tendência a maior uniformi-
ram sua influência doutrinária e prática, zação de ambos os sistemas, isso devido aos
notadamente com o Código Civil de 1804. E fenômenos da globalização, do aperfeiçoa-
o grupo formado pelos ordenamentos das mento dos meios de comunicação e do do-
nações germânicas, principalmente a Ale- mínio da informática.
manha, a Áustria e a Suíça. Esses direitos se Convém assinalar que, em alguns paí-
caracterizam pela mistura dos direitos ro- ses outrora pertencentes à antiga Comuni-
mano e canônico com numerosos costumes dade Britânica, como a África do Sul, a pro-
germânicos que foram assimilados pelas co- víncia de Québec, no Canadá, e o Estado
dificações nacionais, e que mais tarde tive- americano da Luisiana, constata-se a con-
ram recepção na Ásia Ocidental e na Turquia. vivência, espécie de meio-termo, entre am-
O sistema anglo-americano caracteriza- bos os sistemas, pois nessas regiões subsis-
se pela coexistência de um direito costumei- te uma tradição romanista de origem fran-
ro e jurisprudencial (Common Law) e um di- cesa, pelo menos com validade formal, já que
reito escrito (Statutes). na prática vem-se impondo o tradicional
As diferenças entre os dois sistemas são direito do precedente.
bastante nítidas. No sistema romanista, as Fenômeno análogo ocorre nos países es-
leis constituem expressão eminentemente candinavos, os quais não se apóiam em ne-
legislativa, enquanto o sistema anglo-ame- nhuma das tradições peculiares aos dois
ricano é eminentemente consuetudinário. grandes sistemas jurídicos indicados, mas
Ainda que na atualidade se verifique certa ostentam leis e instituições que os inserem
tendência a conceder espaço maior ao direi- ora no sistema romanista, ora no da Com-
to escrito, a tradição e a própria mentalida- mon Law, ressaltando-se a notável influên-
de jurídica transmitida pela educação uni- cia doutrinária do pensamento jurídico an-
versitária na Inglaterra e nos EUA forçam a glo-americano nesses países.
prevalência do jus non scriptum. É um assunto verdadeiramente fascinan-
Na tradição romanista européia conti- te e que oferece grandes possibilidades de
nental, exportada para a América Latina, o desenvolvimento às vocações jurídicas au-
papel do juiz é passivo, ele interpreta as leis tenticamente científicas e inconformadas
e as aplica. Na common law, o juiz participa com a relativa estagnação da jurisprudên-
da criação das regras de direito segundo o cia, causada pelo isolacionismo ainda do-
princípio do precedente, consubstanciado minante na ciência jurídica de cada país.
na regra do stare decisis.
Nos sistemas jurídicos de tradição roma- 3. O nivelamento dos
nista, a regra de direito é concebida como sistemas jurídicos
princípio normativo geral e abstrato, acima
das situações concretas, formando a premis- A variedade dos sistemas jurídicos pode
sa maior de um silogismo em que a senten- ser verificada tanto nas regras de direito
ça se constitui. No sistema jurídico da Com- substancial quanto no espírito das normas
mon Law, a norma jurídica é concebida ao jurídicas e nas formas de sua produção. Daí
nível da casuística, isto é, o juiz forma uma que um mesmo instituto jurídico pode assu-
regra para cada caso concreto, na conformi- mir diferentes formas. A tutela, por exem-
dade dos precedentes, em vez de uma regra plo, ora surge como sistema de proteção ao
geral (cf. DAVID, 1964, p. 339). menor, incapaz de fato, ora como garantia
É claro que estamos falando de diretri- para a família, com fundamento no pressu-
zes e princípios que se afirmaram em virtu- posto de que o menor poderia fazer mau uso

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 253


dos bens em detrimento de sua família, ora cer distinções entre os ordenamentos. Na
com ambos os aspectos, sem que tal mudan- concepção tradicional francesa, os direitos
ça de atitude em relação ao instituto tradu- subjetivos são definidos como poder da von-
za modificação relevante no tratamento nor- tade. No Estado nazi-fascista e no antigo
mativo que receba. E sabe-se que as origens Estado soviético, a concepção que as leis
greco-romanas da tutela prendem-se à im- assimilaram em matéria de direitos subjeti-
posição religiosa de manutenção do culto vos atribuía aos indivíduos certo poder de
aos antepassados. coerção no interesse de um grupo social que
Todos os ordenamentos jurídicos do os absorve, o Volk alemão ou a Internacio-
Ocidente assimilaram a tese de que o direito nal Comunista. Em ambos, uma facultas agen-
de propriedade deve sofrer limitações legais, di que não é exercida no interesse pessoal.
pois seu uso não pode vir em prejuízo da Outro exemplo marcante é o modo de
coletividade. Mas o conteúdo dessas limita- desenvolvimento das diferentes instâncias
ções é mais restrito em alguns ordenamen- de normatividade, tratadas pela doutrina
tos, dentro do princípio do direito individu- como fontes formais do direito.
alista da função social da propriedade, e Essas divergências entre os sistemas ju-
mais amplo em outros, de acordo com as rídicos decorrem de vários fatores que po-
doutrinas coletivistas, segundo as quais a dem ser divididos em dois grupos: fatores
propriedade é de todos, podendo estar a ser- de diversificação e fatores de nivelamento.
viço do indivíduo como delegação da co- Os principais fatores de diversificação
munidade. Em ambos, as limitações ao di- são as diferenças de origem dos ordenamen-
reito de propriedade estabelecem sua subor- tos. O individualismo extremado das tribos
dinação a objetivos superiores, que se iden- da floresta contrasta com o associacionis-
tificam com o respeito aos direitos de ou- mo profundo das tribos do deserto, com re-
trem, em uns, e com os ideais coletivistas, percussões nos respectivos usos, costumes
em outros. e leis. Tais diferenças se explicam pelas res-
Nos países capitalistas, a tradição jus- pectivas condições geográficas, pois na flo-
naturalista levou a que se mitigasse o abso- resta as fontes de água potável existem em
lutismo que o instituto do direito de propri- abundância e são relativamente próximas
edade herdara do direito romano, imprimin- umas das outras, ao passo que nos desertos
do-lhe a idéia da função social. Nos países e savanas essas fontes estão separadas por
socialistas, o direito de propriedade foi sim- enormes distâncias. Assim, a união em tor-
plesmente abolido, o que não obstou ao Es- no de uma fonte de água potável é condição
tado atribuir a indivíduos o uso e fruição de de sobrevivência para os habitantes dessas
certos bens, com resultados semelhantes aos regiões, o que não se aplica aos povos da
que os países capitalistas haviam consegui- floresta.
do, embora por caminhos radicalmente Idêntica explicação pode ser dada à evo-
opostos. lução de certos grupos sociais, que, do no-
No mundo contemporâneo, a rigidez das madismo primitivo em função da caça e do
disposições atinentes ao uso da proprieda- pastoreio, evoluíram para o sedentarismo
de, em países que ainda mantêm um siste- das populações que se dedicavam à explo-
ma socialista de governo, tem sido mitigada ração da terra.
pela necessidade de desenvolver uma eco- Os fatores de nivelamento são as condi-
nomia de mercado, em condições de partici- ções que provocam migrações jurídicas. Es-
par do comércio internacional. sas ocorrem tanto pela imposição brutal das
O tratamento dado pela doutrina e pelas leis de um país invasor, como pela pacífica
legislações aos direitos subjetivos também assimilação de um ordenamento jurídico
oferece nuanças que possibilitam estabele- por outro.

254 Revista de Informação Legislativa


Os exemplos de invasões são inúmeros. envolvimento aumentou de modo tal que, até
Quando os espanhóis ocuparam a América o advento das codificações, erigiu o direito
Latina, introduziram com extrema brutali- romano em jus commune da Europa ocidental.
dade suas leis, sem nenhum respeito pelos Nivelamento semelhante se observa em
costumes autóctones. Na Áustria, o direito matéria de direito de família, mas devido ao
nazista foi imposto no dia seguinte ao da direito canônico.
anexação. Tal como na fase de expansão doutriná-
Nem sempre, porém, o colonialismo de- ria do direito romano, mesmo em assuntos
terminou o nivelamento dos direitos: os fran- em que os juízes não eram obrigados a esta-
ceses tentaram fazer penetrar pela força o tuir conforme o direito canônico, este se im-
seu direito nos países ocupados, mas o fize- punha auctoritate rationis, pois as soluções
ram parcialmente, conservando as leis e cos- canônicas eram consideradas mais conve-
tumes dos nativos em matéria de estatuto nientes do que as preconizadas pelas tradi-
pessoal, e procuraram introduzir suas pró- ções locais.
prias concepções em matéria de direitos re- A influência do direito canônico exerceu-
ais. Certo respeito aos costumes e à tradição se de maneira direta, pois em determinados
dos povos dominados talvez explique o re- assuntos ele se impunha de ofício, não im-
lativo sucesso da colonização portuguesa portando a nacionalidade do juiz, ainda que
na África. as leis e costumes locais estatuíssem de
Mas os exemplos mais notáveis de mi- modo diferente.
gração jurídica foram a expansão do direito Mas ocorreu também uma influência in-
romano e o nivelamento propiciado pelo direta, pois, levando em conta as diferenças
direito canônico. entre a Igreja de Bizâncio e a Igreja Romana,
A expansão do direito romano conheceu os cânones relativos à família eram aplica-
duas fases. dos em toda a Europa, inclusive a oriental,
Inicialmente, em decorrência da expan- favorecendo o nivelamento do direito de fa-
são militar do Império Romano, ocorreu um mília europeu.
nivelamento de costumes dos povos que O movimento de codificação também
habitavam a Europa ocidental. Muito em- contribuiu para a aproximação e nivelamen-
bora tivesse havido no início uma imposi- to dos sistemas jurídicos da Europa e da
ção forçada das regras do jus gentium, sua América Latina, devido principalmente à
assimilação pelos bárbaros se explica me- influência do Código Napoleão, de 1804.
nos pela maneira como ocorreu a imposi- No mundo de língua inglesa, a common
ção manu militari do que pela evidente supe- law britânica foi assimilada pelos Estados
rioridade das leis de Roma e pelo fascínio Unidos da América durante o período colo-
que a civilização romana exercia sobre as nial e expandiu-se por toda a Commonwealth.
tribos bárbaras. Na América do Sul, não se deve olvidar
A segunda fase ocorreu muitos séculos a obra de Teixeira de Freitas, cujo Esboço,
após o desaparecimento do Estado romano. publicado em 1860 como ensaio1, repercu-
Trata-se da expansão doutrinária conheci- tiu na elaboração do Código Civil da Ar-
da como recepção do direito romano, pois, por gentina, de 1867, o qual foi adotado em 1871
sua racionalidade e tecnicismo, pela coerên- pelo Paraguai.
cia e logicidade de seus conceitos, o direito Além da influência doutrinária de Tei-
romano, redescoberto e estudado a partir do xeira de Freitas, registra-se a influência le-
século XI, utilizado inicialmente como fonte gislativa do Código Civil do Chile, de 1855,
subsidiária, foi aos poucos sendo utilizado que serviu de modelo ao Código argentino e
por magistrados que freqüentemente se viam foi adotado pela Colômbia e Equador, com
perdidos no emaranhado de costumes. Esse poucas modificações.

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Costuma-se apresentar a existência da pelos movimentos de subversão da ordem
parte geral do Código Civil Brasileiro, de preestabelecida, saem do circuito onde gra-
1916, como exemplo de influência legislati- vitam os povos vizinhos e vão encontrar-se
va do Código Civil Alemão, de 1900. Segun- em situação de excentricidade em relação a
do a lição de René David (1964, p. 90, § 66, estes. A diversificação começa a se fazer sen-
nota 1), a adoção de uma Parte Geral para o tir quando um grupo social se afasta da re-
Projeto Clóvis Beviláqua se deve menos à lativa uniformidade jurídica que decorrera
influência do Burgerliches Gesetzbuch (BGB) da influência dos desejos comuns, das civi-
do que ao precedente da Consolidação das lizações imitadas e das migrações jurídicas
Leis Civis, de Teixeira de Freitas, de 1858, brutais. Mas esse processo se transforma em
quando, pela primeira vez no mundo, pro- fator de nivelamento se a revolução tiver
pôs-se sob forma legislativa uma parte geral. sido exportada, devido a certo grau de he-
Entretanto, a proposta de Teixeira de Frei- gemonia que leve os grupos vizinhos ao ca-
tas pareceu quebrar a unidade do sistema minho trilhado pela aludida revolução.
jurídico ocidental, se considerarmos a uni- Exemplos históricos significativos desse
formidade que decorreu da expansão dou- processo foram a Revolução Socialista e o
trinária e legislativa do Código Napoleão, Terceiro Reich, que conduziram a Rússia e a
mas se sabe que as vertentes doutrinárias Alemanha a uma posição excêntrica. Mas
de Teixeira de Freitas radicam na escola his- foram experiências revolucionárias efême-
tórica do direito e na hermenêutica concep- ras, que não tiveram o condão de impor-se
tualista dos pandectistas germânicos. aos povos vizinhos, embora tivessem tem-
Outro fator de nivelamento dos sistemas porariamente determinado o nivelamento de
jurídicos, talvez o mais freqüente, é a sim- seus sistemas jurídicos.
ples imitação, pois o conhecimento dos sis- A Revolução Francesa, de 1789, atuou
temas estrangeiros e a comparação com as como importantíssimo fator de nivelamen-
regras nacionais induzem à busca de uni- to, pois os fermentos ideológicos que a ins-
formização. Após a Primeira Guerra Mun- piraram desde logo se impuseram à imita-
dial, verificou-se uma europeização dos ção de todo o mundo ocidental.
Códigos Civis da China e do Japão, o que se Por um caminho diferente, pode o com-
explica em boa parte pelo prestígio da civi- paratista explicar a divergência entre os sis-
lização ocidental no Extremo Oriente. O temas jurídicos, bastando observar o modo
mesmo ocorreu na Turquia, onde o Código como as leis são propostas. Existem assim
Civil Suíço foi adotado integralmente. duas possibilidades: primeiramente, procu-
As revoluções, finalmente, têm-se cons- ra-se exprimir os desejos do grupo interes-
tituído em fator tanto de diversificação quan- sado segundo as aspirações que recebem o
to de nivelamento. assentimento da maioria dos homens que
Sob um ponto de vista sociológico, o fe- compõem o grupo; a segunda possibilidade
nômeno que se convencionou chamar de é a promoção, junto aos membros do grupo,
revolução sintetiza o desenvolvimento de fer- do ideal moral ou político-ideológico que
mentos ideológicos que, à medida que são inspira uma minoria atuante, a qual realiza
absorvidos ou simplesmente impostos pe- esse ideal mediante um certo número de re-
los donos do poder social, tendem a modifi- formas sociais e econômicas. No primeiro
car quase radicalmente os comportamentos caso, temos normas estáticas, também cha-
dos membros do grupo. madas leis naturais, nesse sentido evocado
Tais fermentos se caracterizam por in- pelo comparatismo; no segundo, temos leis
tenso poder de diversificação dos sistemas políticas ou revolucionárias. Leis naturais
jurídicos, ainda que temporário, que se faz ou políticas, segundo a nomenclatura ora
sentir quando os grupos sociais, agitados proposta, são necessariamente divergentes:

256 Revista de Informação Legislativa


primeiro, sobre os pontos nos quais a influ- texto de facilitar o intercâmbio internacio-
ência geográfica ou ecológica é determinan- nal de pessoas, bens e serviços.
te; segundo, na medida em que elas se diri- Em função das necessidades e interes-
gem a grupos cujos graus de evolução ses do mercado mundial, as decisões políti-
econômica ou cujas estruturas sociais sejam cas que devem expressar-se em normas jurí-
diferentes. Assim, admite-se que os Estados dicas assumem cada vez mais uma conota-
Unidos da América e o Brasil não atingiram ção financeira e mercantil, mas ditadas por
idêntico grau de desenvolvimento econômi- grandes organizações empresariais e orga-
co e social, é evidente que suas leis de di- nismos internacionais, tais como o FMI, o
reito econômico não sejam as mesmas; se BID e o BIRD, além das grandes instituições
a estrutura social da França é diferente financeiras multinacionais, as quais tendem
da estrutura social dos países árabes, o a impor de maneira uniforme suas próprias
direito sindical de ambos não poderá ser regras aos países onde se procura expandir
idêntico. o modo de produção capitalista.
Por conseguinte, na medida em que as Desenvolve-se assim nova lex mercato-
leis são “naturais”, isto é, expressão da ria a presidir o comércio entre firmas, as
maioria, a simples consideração das dife- quais estabelecem uma organização insti-
renças no grau de desenvolvimento econô- tucional que compreende extensa rede de
mico ou nas estruturas sociais explica a dis- franqueadas, representantes e filiais espa-
paridade dos sistemas de direito positivo. lhadas pelo mundo todo, ou seja, as própri-
Quanto às leis políticas ou revolucionárias, as empresas engendram as regras de suas
seu particularismo se demonstra ainda mais trocas comerciais, muitas vezes à margem
evidente, pois em sua maioria são determi- do direito positivo dos lugares onde se ins-
nadas por acidentes históricos. Mas, se no talam.
início as leis revolucionárias são sempre um Além desse pluralismo jurídico transna-
fator de diversificação, elas se constituem cional (COELHO, 2001, p. 100 et seq.), o Es-
em fator de nivelamento quando ocorre a já tado contemporâneo vê minimizada sua
mencionada tendência à expansão no cir- soberania, pois as ordens jurídicas nacio-
cuito onde gravitam os países vizinhos; ou, nais aos poucos se adaptam às exigências
mesmo não sendo do mesmo círculo, naque- dessas novas formas de juridicidade, e que
les que pelo menos possam absorver os ide- o interesse financeiro e mercantil assoma ao
ais que inspiraram a revolução, que devem primeiro plano. Só que essa adaptação é dis-
necessariamente possuir um grau muito farçada por teses sedutoras que a novilín-
grande de atração, podendo repetir-se o ci- gua do direito introduz, tais como, flexibili-
clo das migrações jurídicas ou manifestar- zação, desregulamentação, desconstitucio-
se a lei sociológica da imitação. nalização, etc., eufemismos que disfarçam o
retrocesso em muitas das conquistas histó-
4. A globalização como fator ricas das sociedades, conquistas que já se
de nivelamento achavam consolidadas nas constituições
dos Estados modernos.
A contemporaneidade convive com novo Mas não se trata da retirada do direito
fator de nivelamento dos sistemas jurídicos. positivo em relação à vida social, no senti-
É o fenômeno da globalização, que, articu- do preconizado historicamene pelo libera-
lada com o crescente domínio da informáti- lismo, de que os cidadãos cuidariam muito
ca em todos os setores, está levando as na- melhor de seus negócios à margem do Esta-
ções do mundo a uma unificação de seus do regulamentador, mas de um deslocamen-
direitos positivos, com vistas a estereotipar to da capacidade de normar, implicando
os modelos econômicos das nações, a pre- sua transferência para a esfera privada. Por

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outro lado, esse processo interfere na sobe- a manutenção de um grau razoável de liber-
rania dos Estados quando estes se vêem dade.
obrigados a transigir com grandes organi- Tal afirmação veio a constituir o núcleo
zações financeiras e mercantis, as quais ideológico da tese do fim da história, tratan-
impõem normas previamente negociadas do desde logo o saber oficial de internalizar
por grandes escritórios multinacionais de a convicção de que, com a vitória do capita-
advocacia, contabilidade, auditoria, nego- lismo, nada mais restaria a ser criado, inven-
ciação e arbitragem, os quais atuam em vári- tado ou descoberto pelas ciências humanas.
os países no intuito de adaptarem as respec- Essa vitória do capitalismo teve duas
tivas legislações às exigências dessa nova for- implicações basilares. Num primeiro mo-
ma de dominação (CAPELLA, 1996, 1999). mento, reforça a ideologia que lhe é subja-
Uma análise ainda que superficial des- cente, com a tese de que não existem solu-
sa ideologia põe em relevo um fenômeno de ções para os grandes problemas da huma-
profundo significado: o triunfo do modo nidade e para o equilíbrio da sociedade que
capitalista de produção, calcado no direito sejam alternativas ao capitalismo neolibe-
privado de propriedade e nos princípios da ral. Num segundo, o capitalismo articula-
livre iniciativa e da economia de mercado, o se com a globalização e com a informação,
qual se impõe como modo de produção pre- de modo muito conveniente para sua expan-
valecente, se não o único, no mundo con- são no mundo, já que o capital não tem
temporâneo. quaisquer compromissos com as fronteiras
Esse fato é tão evidente que mesmo os nacionais.
países que, a exemplo de China e Cuba, con- Assiste-se hoje a uma banalização das
servam um sistema de governo inspirado tendências, outrora circunscritas a organi-
no marxismo-leninismo abrem-se aos pou- zações marginais, a afastar o Estado dos
cos para a economia de mercado e tratam de processos multifacetados de tomada de de-
adaptar suas velhas estruturas aos mode- cisões. Organizações não governamentais,
los empresariais capitalistas. serviços de voluntariado, instituições reli-
Trata-se da vitória do individualismo giosas, comunidades de base, associações
consumista sobre o coletivismo socialista. de moradores e outras iniciativas, as mais
Além de banalizar a visão darwinista da das vezes tendentes a suprir deficiências da
sobrevivência do mais forte, agora revesti- atuação oficial do Estado, acabam por re-
da de uma dimensão social e universalista, forçar os ideais comunitários e fundamen-
essa visão é portadora de uma lógica que tar a doutrina da autonomia regulamentar
estabelece a causalidade pura e simples en- da sociedade.
tre meios e fins e uma escala de valores que Esse comunitarismo social repercute
subordina todos os fatores da vida social às também nas organizações empresariais,
exigências da economia capitalista. engendrando certa tendência a elas também
Essa avassaladora arrancada do capita- adquirirem autonomia frente ao Estado, mas
lismo incrementou-se com a derrocada da uma autonomia de caráter jurídico, quando
União Soviética, simbolizada pela queda do organizações empresariais cada vez mais
muro de Berlim, simbolismo que desde logo amplas instituem sua própria regulamen-
sinalizou o fracasso das políticas e dos pla- tação normativa e procuram submeter o di-
nos econômicos socialistas e, paralela e con- reito positivo estatal.
seqüentemente, a afirmação, recepcionada A sociedade atual ostenta, portanto, a
como definitiva, do modo de produção ca- imagem de um complexo de interesses, va-
pitalista como, se não o melhor, pelo menos lores, projetos e exigências de indivíduos e
o único a viabilizar a articulação entre cres- grupos, uma rede de dimensões globais ex-
cimento econômico sustentável, bem como pressada mediante estruturas dos mais di-

258 Revista de Informação Legislativa


versos aspectos, instituídas e constituídas nossas idéias acerca do direito, do papel do
por amplas redes comerciais, sistemas de Estado, das profissões jurídicas e, especial-
produção e distribuição, pelo sistema finan- mente, das teorias da justiça.
ceiro e também pelo mercado de trabalho, Desde tempos imemoriais, a atividade
estruturas que transcendem as fronteiras política da humanidade tem-se resumido na
geopolíticas e culturais. tecnologia de dominar as forças produtoras
Essa realidade repercute evidentemente do homem para que elas não se desviem de
nas concepções comuns de direito, as quais seu objetivo primordial: o lucro. E, para que
passam a articular-se com a idéia de regula- o lucro seja ainda mais lucrativo, vale dizer,
ção autônoma ou semi-autônoma de regi- para que a aplicação do dinheiro se tradu-
ões, localidades, grupos e empresas. Nesse za em maior quantidade de mais-valia, é
amplo contexto, cuja complexidade é agra- necessário que lucro gere lucro, mais-valia
vada em função de uma infinita variedade produza mais-valia, num processo denomi-
de fins e escalões que os expressam, e que nado acumulação de capital.
são articulados por uma rede complexa de A história da civilização não o desmen-
declarações, novas formas de organização te, e nenhuma retórica economicista, nenhu-
social podem dimanar da extrapolação ter- ma sofisticação discursiva vai desmentir
ritorial, nacional e política do conceito de esse fato prosaico, que o capitalismo tende
Estado. a aperfeiçoar-se à medida que se sofistica a
Apesar dessas transformações, a teoria tecnologia da exploração do homem pelo
política mantém o idealismo de sua concep- homem, a qual engendrou as formas primi-
ção juridicista, o Estado concebido em fun- tivas, medievais e modernas de escravidão,
ção de seu território e soberania, voltado as formas modernas e de colonialismo mer-
para o bem do povo. Mas o que verdadeira- cantil, industrial e tecnológico, e agora, a
mente se verifica é o deslocamento do lugar forma pós-moderna de colonialismo virtual.
geométrico da soberania, quando o Estado Nenhum eufemismo será capaz de dis-
perde sua exclusividade para a criação e farçar o fato de que, amparado numa tecno-
revelação do direito, sendo cooptado pelas logia cada vez mais sofisticada, cujo domí-
decisões, impositivas ou participativas, nio tende a restringir-se a países cada vez
oriundas do conjunto econômico de organi- mais ricos e suas organizações empresari-
zações empresariais mundiais. Tal é a nova ais transnacionais, o capitalismo ingressa
forma de organização política da socieda- em nova fase, caracterizada por nova forma
de, por meio da qual se impõe a nova ordem de acumulação que transcende as frontei-
mundial, dominada pelos magnos interes- ras geopolíticas dos Estados nacionais. Ou
ses empresariais mundiais e pelas nações seja, o capitalismo contemporâneo retoma
mais ricas do planeta. sua primitiva e essencial tendência para a
acumulação, com vistas a preparar o desen-
5. A ética do capitalismo e o volvimento de um modo de produção ade-
renascimento do direito quado à nova civilização global.
Esse capitalismo global e virtual está fir-
comparado
memente embasado no neoliberalismo, que
Além dessas conseqüências, a globali- é ao mesmo tempo uma filosofia, uma ideo-
zação, conjugada com o binômio capitalis- logia e um projeto político, a proposta do
mo/neoliberalismo, torna presente uma ter- Estado mínimo, aquele que, mediante um
ceira implicação: a renovada afirmação da processo de desregulamentação da econo-
ética do capitalismo, a qual repercute pro- mia, afasta-se do mercado e retira os obstá-
fundamente na ideologia jurídica e política culos à competição e à livre concorrência,
do mundo contemporâneo, impregnando reservando-se tão-somente às tarefas ineren-

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tes à educação, saúde pública, cultura, la- ração da riqueza, abrem-se questionamen-
zer e administração da justiça. Mesmo nes- tos sobre as vantagens do capitalismo em
ses setores, porém, deve o Estado estimular relação às pessoas, povos e nações margi-
tanto quanto possível as iniciativas empre- nalizados. Isso porque seu efeito distributi-
sariais. vo passa a ser objetivo secundário, somente
O neoliberalismo tem portanto sua uto- tolerado se não obstaculizar a produção em
pia, que paradoxalmente coincide com a si e não interferir no processo de acumula-
utopia socialista, no sentido de que o Esta- ção. É que, paralelamente às necessidades
do tende a tornar-se desnecessário à medi- da produção, gera-se a necessidade de acu-
da que a sociedade se auto-institui, na ple- mulação dos seus resultados, o que importa
nitude da realização dos indivíduos que a afirmar que os ricos tendem a ser cada vez
compõem. mais ricos e menos numerosos, enquanto os
Essa é em síntese a ideologia que se lê pobres permanecem naquele patamar de
nas entrelinhas dos tratados de economia pobreza intrínseca ao sistema.
política e nos documentos que subsidiaram O mal radica então na falta de ética do
a política do governo inglês, eleito pelo Par- discurso capitalista, o qual, centrado na
tido Conservador em 1980, e do governo defesa intransigente da acumulação a pre-
Reagan, a popular reaganomics, que tem ser- texto de favorecer a produção, faz com que
vido de inspiração para os programas polí- essa ótica acumulativa e marginalizadora
ticos neoliberais do mundo subdesenvolvi- prevaleça em todos os espaços da vida soci-
do, inclusive o Brasil, sob a supervisão das al. Só que esse ponto de vista assume hoje
organizações econômicas mundiais, im- uma dimensão planetária.
pregnadas da mesma ideologia e subordi- Se levarmos em conta que a ideologia do
nadas, ainda que subjacentemente, aos mes- capitalismo impõe de modo cada vez mais
mos interesses da dominação econômica enfático a submissão da ética à economia,
mundial. podemos inferir, prosaicamente, que a ética
A ética do capitalismo é a exploração do do capitalismo global é a carência de ética,
homem pelo homem, tornada legítima por ou seja, uma ética aética.
mecanismos ideológicos que a disfarçam sob Quando se observa o atual panorama
forma de princípios, valores, conquistas, mundial, nota-se que o progresso científico
benefícios e outros mitos. E a lógica do capi- e tecnológico muito pouco está contribuin-
talismo é o nexo imputativo que liga a ex- do para superar as mazelas que ainda se-
ploração do homem pelo homem com a acu- param os povos da terra, pois o mundo está
mulação de capital, hoje cada vez mais iden- sendo levado a aprofundar os desequilíbri-
tificada como concentração de renda, mas os sociais e, em muitas regiões, ao agrava-
igualmente dissimulada sob eufemismos e mento da fome, da miséria, do desemprego
mentiras filosóficas e pseudocientífica, tais e da desesperança.
como, desenvolvimento, bem-estar social, Esperava-se que, após a queda do muro
ordem e progresso, etc., mas que no fundo de Berlim em novembro de 1989, as amea-
se subordinam à necessidade de gerar ri- ças de guerra em nível mundial envolvendo
queza material. as superpotências estariam relegadas ao
Evidentemente, a produção material da passado. Entretanto, dados coligidos por
riqueza não é um mal, pois a racionalidade entidades governamentais e não governa-
humana a impõe como causa e efeito do pro- mentais, como o Alto Comissariado das
gresso da humanidade. Isso não obstante, Nações Unidas para Refugiados e o Conse-
quando ela se articula com a necessidade lho de Defesa Nacional dos EUA, reportam
de acumulação e com a marginalização das que, na década anterior a novembro de 1995,
pessoas excluídas dos benefícios dessa ge- mais de cinqüenta milhões de pessoas ha-

260 Revista de Informação Legislativa


viam sido forçadas a abandonar seus lares sorve apenas parte da mais-valia apropria-
para fugir de conflitos, atrocidades e diver- da, a qual tende a jamais ser suficiente para
sas formas de intolerância, perseguição e fazer reverter a produção.
opressão. Cerca de setenta e um conflitos Essa lógica do crescimento contínuo está
armados haviam sido contados entre 1789 aliada à busca do maior lucro possível, o
e 1989, destacando-se as atrocidades come- que exige a destruição de todas as formas
tidas por déspotas e ditadores contra seu alternativas ligadas à economia voltada
próprio povo. Reporta a agência de notícias para a satisfação das necessidades elemen-
Associated Press que, durante o século XX, tares de uma vida digna.
os assassinatos perpetrados no interior das A situação atual confirma essa caracte-
nações, a guerra da nação contra si mesma, rística essencial do capitalismo e sua lógica
haviam excedido as mortes causadas pelas intrínseca, exigindo a concentração da pro-
guerras convencionais contra inimigos de dução com tendência a monopólios, ao for-
fora das fronteiras. E cita os expurgos esta- talecimento dos bancos, que manipulam
linistas, a revolução cultural chinesa, os valores cada vez maiores, e à exportação de
campos da morte do Camboja, a limpeza ét- capitais, que tende a ser mais característica
nica na Bósnia, os horrores de Ruanda, mais da atual fase de expansão do que a exporta-
de 170 milhões de vidas sacrificadas pela in- ção de mercadorias.
tolerância ideológica (ROY, 199-?, p. 8 et seq.). Como conseqüência, o excedente de ca-
O que esperar do século que ora inicia? pitais não se consagra à elevação do nível
O historiador Arthur Schlessinger, ganha- de vida interno, mas à emigração e busca de
dor do prêmio Pulitzer, adverte que, se o sé- áreas menos desenvolvidas onde encontre
culo XX foi o da guerra das ideologias, o aplicação mais lucrativa. Ou seja, mais do
século XXI começa como sendo o das guer- que aético, o capital é apátrida.
ras étnicas (ROY, 199-?, p. 8 et seq.). Com Algumas respeitáveis opiniões, entre as
efeito, as antigas ameaças guerreiras, que quais as de Pierre Bourdieu e Alain Tour-
opunham Estados e nações, hoje foram subs- raine, admitem uma ética do mercado con-
tituídas por guerras relacionadas com ter- traposta às exigências da eqüidade social
rorismo, fundamentalismo político e religi- como a única que se mantém após o desmo-
oso, conflitos étnicos e tribais, narcotráfico ronamento do comunismo. Uma ética de
e novas formas de escravidão, como a pros- comerciantes, a qual faz as vezes de moral
tituição e o tráfico internacional de traba- pública e persegue a trindade moral clássi-
lhadores. Estes, para fugir do desemprego ca da bondade, beleza e verdade.
em seus países de origem, preferem a condi- Por outro lado, os atuais teóricos do ca-
ção de imigrantes ilegais e são submetidos pitalismo procuram banalizar uma ética
a condições desumanas de trabalho. que, se não é nova, como já asseverara Max
Não será exagero afirmar que por detrás Weber (1967), renova-se em argumentos de
desse panorama impressionante, nada alen- base empírica que vão fundamentar uma
tador, está a ética, ou melhor, a falta de ética escala de valores adequada aos interesses
do capitalismo global, a ética aética do ca- do capital, com repercussões no conceito
pitalismo. mesmo de justiça, subordinando-o aos sen-
A tendência fundamental do capitalis- timentos das well ordered societies2, bem como
mo é seu próprio fortalecimento, o que exige uma racionalidade que tudo subordina à
uma expansão contínua, dissimulada sob o relação de causalidade entre meios e fins.
eufemismo do crescimento econômico. Daí, A cavaleiro das transformações da eco-
o não menos constante crescimento da de- nomia mundial, e reforçada pela idéia es-
manda de mercadorias, pois o consumo, por drúxula do fim da história3, essa ética tende
mais que cresça em termos absolutos, ab- hoje a identificar os valores da cultura euro-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 261


péia e americana, impregnados das noções privadas de sua funcionalidade e são sub-
básicas do capitalismo, que reforçam o di- metidas à funcionalidade dimanada das
reito de propriedade, a liberdade contratual grandes organizações capitalistas centrais,
e a livre iniciativa, como o que de melhor a que atuam por meio de extensa rede de em-
humanidade terá produzido e que jamais presas franqueadas, filiais, coligadas, aglo-
produzirá. meradas ou simplesmente representantes.
A produção da mais-valia como meca- Tal como as organizações sociais primi-
nismo pelo qual o capitalismo se desenvol- tivas, essas formas de sobrevivência da eco-
ve, e sua tendência predatória diante de nomia natural ainda formam a base da exis-
outros modos de produção, sempre consti- tência material das sociedades e constitu-
tuiu o núcleo do pensamento dos grandes em uma alternativa ao desemprego ou su-
teóricos do socialismo, e nenhuma ética é bemprego, ou meio de escapar à miséria sem
hoje capaz de elidir ou justificar esse fato deixar-se cooptar por organizações crimi-
prosaico, que para alguém enriquecer é ne- nosas. É fato notório que os bolsões de misé-
cessário, além do próprio trabalho, o con- ria na periferia das grandes cidades alimen-
curso do trabalho de outros, cuja produção tam a mão-de-obra do narcotráfico e do cri-
transformada em mercadoria tende a acu- me organizado. Isso não obstante, na medi-
mular-se nas mãos de quem enriqueceu à da em que representam obstáculo à expan-
custa do trabalho alheio. são do capitalismo como forma prevalecen-
O fato é que a generalização da forma te de produção, o poder desagregador do
mercantil do produto atribui ao modo de capital leva ao aniquilamento sistemático
produção capitalista um poder fortemente das organizações sociais que procuram vi-
desagregador. Enquanto as formações pré- abilizar esses resquícios de economia natu-
capitalistas se caracterizam pela coexistên- ral, tendo como resultado o aumento dos
cia estável de modos diversos, articulados e bolsões de miséria e deixando a juventude à
hierarquizados, o modo capitalista se carac- mercê da sedução da criminalidade.
teriza pela tendência a converter-se em ex- Nessas formações ligadas à economia
clusivo, destruindo os demais, o que pres- natural, procura-se produzir para consumo
supõe expansão e aprofundamento do mer- próprio, e como muito dificilmente ocorre
cado interno. demanda de mercadorias estranhas ao con-
Se esse fato é evidente nos países de eco- sumo, as formas de economia natural ofere-
nomia mais desenvolvida, que puderam es- cem rígidas barreiras às necessidades do
truturar centros industriais altamente sofis- capital. Isso explica porque, onde quer que
ticados e poderosíssimas redes mercantis e se instalem as grandes organizações repre-
financeiras, nos países ditos emergentes, sentativas do capital central, a exemplo dos
como o Brasil, a Argentina, o Chile e o Méxi- “shopping centers” e das redes de super-
co, a situação é mais cruel. mercados gigantes, surge a necessidade de
Nessa espécie de capitalismo periférico, travar um combate mortal contra a econo-
cujas regras são impostas ou induzidas a mia natural na forma histórica com que se
partir daquele capitalismo central, ainda apresenta, o pequeno comércio urbano e
sobrevivem formas de economia natural que, rural, os botequins de beira de estrada, as
nos centros urbanos, manifestam-se por feiras livres e os camelôs, por exemplo.
meio das pequenas e médias empresas, ou No Brasil, como de resto nos países situ-
simples atividade de sobrevivência, a exem- ados na periferia do capitalismo, a destrui-
plo dos camelôs, constituindo uma econo- ção predatória das formas de economia na-
mia informal. tural ligadas à exploração da terra, ao pas-
Essas formas periféricas não são destru- toreio, à indústria e comércio familial, ao
ídas ou desagregadas totalmente, mas ficam artesanato e outras formas espontâneas, nas

262 Revista de Informação Legislativa


quais se incluem também as microempre- nham o produto interno bruto dos quarenta
sas e outras iniciativas geradoras de empre- e oito países mais miseráveis do mundo, e
go, engendrou o abandono do campo, a des- ainda que, mesmo nos países mais ricos do
truição da pequena propriedade rural e o mundo ocidental, um quarto da população
absurdo crescimento das populações urba- seja classificada como em estado de pobre-
nas, onde as elites econômicas e a classe za. Ou seja, o capitalismo hoje patrocina a
média vêem-se sitiadas por uma imensa produção em série de ricos nos países po-
população de favelados. E quaisquer tenta- bres e pobres nos países ricos.
tivas de reversão desse processo perverso, Trata-se de uma irresistível tendência à
promovendo-se, por exemplo, uma reforma marginalização das pessoas, articulada com
agrária coma da redistribuição da terra, ou uma implicação avassaladora que a própria
a implementação de uma política de favore- lógica do sistema engendra, a exigência de
cimento à pequena empresa, encontram os acumulação das riquezas produzidas pelo
obstáculos da dificuldade de acesso ao cré- trabalho social.
dito, do enfrentamento dos monopólios e Se levarmos em conta que a atual crise
cartéis dissimulados e até da incompreen- do direito se confunde com a crise ética do
são ideológica dos que ainda vislumbram capitalismo neoliberal globalizado, que o
os fantasmas do comunismo e da destrui- mundo atual em nada difere do vivido pe-
ção dos valores cristãos. los comparatistas dos anos sessenta, salvo
Ciuro-Caldani (2000, p. 10), a propósito, o agravamento dos problemas que sempre
destaca outro paradoxo do capitalismo con- afligiram a humanidade, bem como sua
temporâneo: ele inclui, quase sem fronteiras, maior amplitude, eis que hoje extravasam o
as pessoas, materiais e espaços de que ne- âmbito relativamente restrito em que ocorri-
cessita, e exclui todo o resto. Por isso, especi- am para adquirir dimensões planetárias, a
almente quando se trata de pessoas, pode- lembrança do contexto em que se desenvol-
se dizer que o atual processo de globaliza- veu o comparatismo servirá para justificar
ção é ao mesmo tempo um processo de mar- a retomada de seus estudos.
ginalização, o qual ocorre em nossos dias com No mundo atual, o projeto epistêmico de
a força especial que possui o capitalismo uma ciência jurídica universal parece cada
desenvolvido, cujas técnicas o fazem ocu- vez mais distante, em face do triunfo da con-
par todo o âmbito planetário. Enfatiza o cepção dogmática do direito e da avassala-
autor que já não se pode falar numa divisão dora virtualização decorrente de uma tec-
do trabalho social, mas de uma crescente ex- nologia de informação jurídica cada vez
clusão do trabalho (CIURO-CALDANI, 2000, mais sofisticada, que, paradoxalmente, iso-
p. 11). Com efeito, ao que hoje assistimos é la e exclui em vez de aproximar. Apesar dis-
um distanciamento crescente das socieda- so, o mundo atual oferece o quadro para um
des em geral quanto à tão sonhada igualda- renascimento, não somente do direito com-
de, à medida que se aprofundam as desi- parado como forma de saber jurídico, como
gualdades como meio de incrementar a pro- também, e principalmente, para um resgate
dução competitiva que impõe uma espécie dos ideais do comparatismo.
de darwinismo social, que joga na fossa co- As reflexões sobre a ética aética da for-
mum da exclusão social o hipossuficiente, ma atual do capitalismo podem ser articu-
o débil, o enfermo, o velho, o imigrante, o ladas com as reflexões em torno das possi-
pobre, os quais sucumbiram na luta contra bilidades de resgate desses ideais, o que tal-
o mais forte. O darwinismo neoliberal glo- vez sirva de inspiração para que o direito se
balizado permite que duzentos e vinte e cin- transforme em veículo de impregnação de
co ricos possuam tanto quanto dois bilhões um mínimo de ética na comunidade das
e meio de pobres, e que três bilionários dete- nações.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 263


Relembremos que o ideal do compara- dêmicos, a comunicação mais intensa entre
tismo surgiu e se desenvolveu nos anos ses- as instituições universitárias e o desejo ja-
senta, num mundo dividido pela guerra fria mais sufocado de promover a solidarieda-
e numa Europa ainda mais dividida pela de entre as nações fornecem efetivamente
herança da segunda guerra mundial. Essa o caldo para resgatar a dimensão univer-
herança guardava as imagens do holocaus- sal do direito por meio do direito compa-
to e das atrocidades cometidas contra as rado.
populações civis, o que redundava em ódio Que se possa igualmente impregnar a
e ressentimento. teoria e a práxis do direito com o sentido
O direito comparado, que sempre fora ético de uma ciência que, respeitando as
considerado somente um método auxiliar diferenças, volte-se para a união dos po-
na interpretação da lei, passou a ser visto vos.
como um esforço para suprir as conseqüên-
cias teóricas e práticas da nacionalização
dos ordenamentos jurídicos. Como resulta- Notas
do, foram consolidados os fundamentos
1
epistemológicos que possibilitaram seu es- NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império,
v. 3, p. 212, nota 2, apud Beviláqua (1959, v. 1, p.
tudo como disciplina jurídica autônoma e,
12).
mais ainda, como a própria ciência jurídi- 2
Rawls (1981).
ca voltada para um objeto que transcen- 3
Fukuyama (1989).
dia as fronteiras geopolíticas dos Estados
nacionais, o direito como fenômeno uni-
versal.
Mas uma conotação ética profunda pre- Bibliografia
sidia seus estudos, pois se almejava a união
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil comentado. [S. l:
dos povos mediante a unificação dos siste- s. n.], 1959. v. 1.
mas jurídicos nacionais em “famílias de di-
CAPELLA, Juan Ramón. En el límite de los derechos.
reitos”, expressão cunhada por René David
Barcelona: EUB, 1996.
(1964).
Essa ética da união dos povos levava em ______. Fructa prohibida. 2. ed. Valladolid: Siman-
cas, 1999.
conta a estrutura do Estado e o poder políti-
co, ainda que privilegiando a face jurídico- CIURO-CALDANI, Miguel Angel. Globalización/
normativa desses fenômenos, com a função Marginación: implosión demográfica? Bioética e Bi-
odireito, Rosário, n. 5, 2000.
definida de unificar o direito, promover a
compreensão e a colaboração internacional, COELHO, Luiz Fernando. Saudade do futuro. Flori-
estimular a solidariedade entre os povos e anópolis: Fundação Boiteux, 2001.
valorizar o conhecimento do direito nacio- DAVID, René. Les grands systèmes de droit contempo-
nal, mediante a sua integração no contexto rains. Paris: Dalloz, 1964.
geral da cultura dos povos (DAVID, 1964, FUKUYAMA, Francis. The end of history? The Na-
p. 8 et seq.). tional Interest, n. 16, Summer, 1989.
No mundo atual, ainda que o projeto RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de
epistêmico de uma ciência jurídica univer- Vamireh Chacon. Brasília: Ed. UnB, 1981.
sal pareça cada vez mais distante, em face
ROY, Michel. The future foretold. Orange: Family Care
do triunfo da concepção dogmática do di- Foundation, [199-?].
reito e da avassaladora virtualização decor-
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capita-
rente de uma tecnologia de informação jurí- lismo. Tradução M. Irene de Q. F. Szmrecsányi e
dica cada vez mais sofisticada, esse alcance Tamás J. M. K. Szmrecsányi. São Paulo: Pioneira,
ético se faz presente. Os intercâmbios aca- 1967.

264 Revista de Informação Legislativa


A interpretação e aplicação das regras da
OMC nos primeiros anos

Luiz Olavo Baptista

“...honorably, independently, impartially,


conscientiously, and in accordance with the
law of the World Trade Organization...”
“...honradamente, independentemente, impar-
cialmente, conscienciosamente, e segundo a
lei da Organização Mundial do Comércio...”
(juramento no texto no Órgão
de Apelação da OMC)

Quando membros do Órgão de Apela-


ção prestam compromisso, os deveres por
eles solenemente assumidos exigem certas
qualidades pessoais para serem cumpridos.
É por isso que, durante o processo de sele-
ção – além do trabalho realizado segundo
as regras por um grupo de pessoas –, mui-
tos Representantes de Estado gostam de en-
trevistar pessoalmente os candidatos para
avaliar suas personalidades.
Ser honrado ou ser independente depen-
de de traços de caráter, além de serem quali-
dades atribuíveis a certas ações. A imparci-
alidade deriva da honorabilidade e da in-
dependência. Também agir de forma cons-
cienciosa é algo possível para uns, mas não
para outros, pois exige que tudo seja feito
com cuidadosa atenção.
Em nenhum lugar – nem nas regras da
Organização nem nas expectativas dos Es-
tados Membros –, há a exigência de que as
pessoas selecionadas sejam infalíveis. Po-
demos, também, não só supor, como ter a
certeza de que os membros do Órgão de
Apelação nem sempre raciocinarão exata-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 265
mente de acordo com as expectativas de uma qual muitas cortes de justiça já caíram –, os
parte, nem chegarão, sempre e precisamente, autores do tratado incluíram no artigo 3.4 a
àquele resultado desejado ou imaginado por regra que delimita o propósito do Acordo
um dos demandantes. Isso porque seu racio- sobre Solução de Controvérsias,
cínio poderá não corresponder ao do autor “(...) conferindo segurança e previsi-
das expectativas. Essas são conclusões óbvi- bilidade ao sistema multilateral. Os
as, acessíveis a qualquer pessoa razoável, e Membros reconhecem que ele funcio-
consensuais para todo indivíduo inteligente. na para preservar os direitos e obriga-
A razão para isso é que o Órgão de Ape- ções dos Membros nos termos dos
lação é um colegiado, composto por sete acordos abrangidos, e para clarificar
“[...] pessoas de reconhecida autori- as disposições existentes nesses acor-
dade, que demonstram amplo conhe- dos de acordo com as regras usuais
cimento e perícia em Direito, comér- de interpretação de direito internaci-
cio internacional e na matéria dos onal público. As recomendações e de-
acordos compreendidos em geral”1. cisões do Órgão de Solução de Dispu-
A composição do Órgão de Apelação, tas não podem incrementar ou dimi-
além do mais, deve ser representativa, em nuir os direitos e obrigações previstos
linhas gerais, da composição da própria nos acordos abrangidos”4.
OMC2, do que resulta que cada um de seus Foram além impondo diretivas para a inter-
integrantes vem com experiências e pano- pretação, contidas em outros parágrafos,
rama cultural bastante distintos. como os 55 e 66 do artigo 17.
Foi assim que os Estados Membros deci- Essas regras demonstram a sabedoria e
diram proceder para minimizar a margem de experiência dos que as redigiram e que as
erros causados por idiossincrasias pessoais, conceberam para garantir que as decisões
pela falibilidade humana, ou deficiências dos do Órgão de Apelação fossem, nos limites
conhecimentos prático-profissionais ou de- da natureza humana, as mais adequadas
correntes do viés cultural e nacional de cada para todos os Membros da OMC, segundo
um. Daí resulta que a decisão, coletiva, repre- os termos do seu Acordo.
senta a amálgama de culturas, experiências, Quando a OMC começou a funcionar,
modos de ver o direito que só podem encon- foram selecionados os sete primeiros mem-
trar seu equilíbrio e foco no interior dos acor- bros do Órgão de Apelação7. Ao saírem, a
dos de Marrakesh. Foi justamente para ga- característica comum na atuação de todos
rantir que o espírito e a letra desses acordos foi que nunca reformularam a lei, ou a cria-
fossem respeitados, e para que cada um dos ram a partir de elementos externos: conten-
países membros tivesse seus direitos e prer- taram-se em interpretá-la e aplicá-la de um
rogativas assegurados, que se criou o Órgão modo razoável, como é apropriado, procu-
de Apelação. Poderíamos dizer que ele é o rando sempre a intenção do legislador em
guardião dos direitos dos Membros da OMC. suas palavras.
Os Estados Membros estipularam que as Fizeram o que um intérprete deve sem-
opiniões dos membros do Órgão de Apela- pre fazer, pois ele é alguém que busca eluci-
ção deveriam ser anônimas3, sempre que não dar o significado do texto de outrem, não
fossem unânimes. Com isso, além da garan- recriá-lo. Ao intérprete não é dado ir além
tia da independência de cada um, evita-se a ou ficar aquém daquilo que é realmente dito
oportunidade de aparecerem as atitudes de no texto que ele interpreta, senão ele falhará
“prima dona” que por vezes aparecem em em sua tarefa.
alguns juízes de tribunais superiores. A mesma palavra – “interpretação” – é
Para evitar que os membros do Órgão de usada para “tradução” e para “interpreta-
Apelação caiam na tentação de legislar – na ção legal”. Ambas implicam um dever para

266 Revista de Informação Legislativa


o intérprete e para o tradutor: – o de ser o nos Acordos. Todas elas mencionam inde-
mais fiel possível à vontade e ao pensamen- pendência, rigor ético, a necessidade de um
to do autor seja traduzindo de um para ou- estudo e reflexão adequados para a melhor
tro idioma, seja examinando as intenções aplicação do direito9.
do legislador para aplicá-las às situações A tarefa não terminou aí. Passou das
concretas. Ambos, portanto, colocam em pa- Regras de Procedimento para o campo das
lavras que escolhem o pensamento de ou- decisões, incluindo nesse trajeto, obrigato-
trem. O tradutor traz para outro universo riamente, a interpretação das disposições
lingüístico o pensamento do autor. O intér- dos Acordos de Marrakesh.
prete da lei explica, levando à concreção, a Como disseram ao assumir o compromis-
intenção do legislador. No caso do intérpre- so que foi o primeiro ato e o que deu início
te das regras de um tratado, vemos a busca ao seu mandato, os primeiros sete sabiam
do sentido resultante do encontro de vonta- que deviam agir conscienciosamente, e as-
des das partes e que nem sempre é a expec- sim o fizeram. A maneira como eles decidi-
tativa com que uma ou outra das partes foi ram é conseqüência do modo como inter-
para a mesa de negociação. Aí reside a difi- pretaram as normas e será examinado ago-
culdade especial de se interpretar um trata- ra, quando virmos algumas das decisões
do. Se fosse um contrato celebrado no interi- feitas pelo Órgão de Apelação que se relaci-
or de um Estado por seus nacionais, a iden- onam exatamente à temática da interpreta-
tidade cultural de ambos faria com que o ção dos Acordos, e como ela deve ser feita.
conteúdo semântico das expressões fosse o Nesses casos, encontramos traçada, pela
mesmo. Com a introdução da internaciona- primeira vez, a que julgavam ser a maneira
lidade e do uso de uma língua que nem sem- correta de interpretar.
pre é a de todas as partes, a possibilidade Um desses casos foi “EC – Hormones”.
de que cada uma delas venha a imaginar No parágrafo 16510 do Relatório, a Divisão
um conteúdo semântico que não é similar julgadora afirma que:
para determinada expressão cresce. “...nós não podemos levianamente
Podemos avaliar como os primeiros sete presumir que Estados soberanos pre-
interpretaram os acordos da OMC para com- tenderam se impor a obrigação mais
preender quão bem-sucedida foi sua atua- onerosa, ao invés da menos gravosa,
ção estabelecendo os mecanismos e regras exigindo conformidade de obediência
de interpretação que permitissem encontrar com tais padrões, paradigmas e reco-
o significado preciso e válido internacional- mendações. Para permitir tal presun-
mente, decorrente da vontade comum dos ção e dar margem a tão ampla inter-
signatários dos Acordos. pretação, a linguagem e os termos do
Além disso, eles abordaram problemas tratado a serem empregados deveri-
essenciais para a Organização, então nas- am ser muito mais específicos e insti-
cente. gantes do que aqueles do Artigo 3 do
Na época, quando a OMC e o Órgão de SPS Agreement”.
Apelação acabavam de se constituir, tinham Aí encontramos a primeira referência à
a necessidade de que padrões de conduta e interpretação, em que o Órgão de Apelação
de trabalho fossem desenhados. Para o Ór- afirma que se deve ler o texto levando em
gão de Apelação, esses padrões aparecem conta que os Estados soberanos nunca es-
nas Regras de Procedimento8 que foram re- colhem a obrigação mais onerosa; ao con-
digidas e aprovadas pelos sete membros trário, preferem a menos gravosa, sempre
originais. Essas regras são rigorosas, posi- que assinam um tratado.
tivas e buscam ser o complemento do que Tendo isso em mente, estabeleceram que
havia sido escrito pelos Membros da OMC a interpretação tende a ser a mais literal

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 267


possível para que não se aumente o alcance como uma codificação dos usos e costumes
do que foi dito. Todavia, essa metodologia é do direito internacional elaborados através
um dos traços interpretativos mais critica- dos séculos, no que diz respeito às práticas
dos por alguns autores. concernentes aos tratados, e resultou de
A interpretação literal e restritiva da in- anos de estudo pela Comissão Internacio-
tenção dos negociadores dos Acordos leva nal de Direito e de extenso processo de de-
forçosamente à análise pormenorizada de bate e negociação pelos seus signatários.
cada palavra, e é por isso que o Órgão mui- Mas é importante recordar que foram os
tas vezes lançou mão de dicionários para Acordos da OMC que incluíram a remissão
compreender o preciso significado de cada ao artigo 31, o que significa que as regras lá
expressão. traçadas foram incorporadas ao corpus legis
No mesmo caso EC – Hormones, no pará- da OMC.
grafo 18111, também é dito que No artigo 31, da Convenção de Viena,
“(...) a regra fundamental da interpre- temos uma referência a “escopo e objetivo”,
tação dos tratados exige que o intér- o que significa que o teor de um tratado deve
prete leia e interprete as palavras efeti- ser buscado em suas próprias palavras e no
vamente empregadas no acordo sob exa- escopo e objetivo do mesmo, e da palavra no
me, não aquelas que o intérprete gostaria contexto.
que tivessem sido usadas”. Eis, mais uma vez, um indicador de que
Aí, mais uma vez, fixam-se os limites à a interpretação feita pelos sete primeiros
interpretação. O Órgão de Apelação já ha- participantes do Órgão de Apelação foi con-
via, antes, como vimos, expresso sua posi- servadora.
ção, e aqui a reitera, mais categórico. Mais Em US – FSC16, no parágrafo 91, pode-
tarde, em outros casos, manteve essa mes- mos encontrar outra indicação sobre a in-
ma linha interpretativa. terpretação e seus limites, nos dizeres da
No caso Argentina – Textiles and Apparel, Divisão:
parágrafo 4212 –, lemos que “(...) Contudo, nós temos certas re-
“(...) o Painel baseia-se substancial- servas restritivas sobre o emprego de
mente naquilo que caracteriza como qualquer padrão legal, como esse tes-
‘práticas passadas do GATT’, sem te do ‘but for’, ao invés da efetiva lin-
proceder nenhuma análise do signifi- guagem de tratado”.
cado usual dos termos do Artigo II Afirma-se, pois, que standards jurídicos
neste contexto e à luz do escopo e pro- não podem substituir a efetiva linguagem
pósito do GATT 1994, segundo as re- de tratado.
gras gerais de interpretação de trata- No que concerne à história legislativa,
dos ditadas pelo Artigo 31 da Con- esse mesmo caso deu margem a um pará-
venção de Viena”. grafo, relacionado à interpretação, no qual
Nessa ocasião, além de criticar a ausên- a Divisão explica que
cia de uma apreciação do significado usual “(...) a história legislativa também
dos termos13 sob a ótica dos objetivos do afirma que essa medida foi tomada
GATT 1994, o Órgão determinou que esses ‘para respeitar decisões de um Pai-
aspectos deveriam ser abordados de acordo nel da OMC e de seu Órgão de Ape-
com as regras gerais de interpretação de tra- lação’”.
tados descritas pela Convenção de Viena14. Em Japan – Alcoholic Beverages II17, p. 12,
Surge nesse caso a Convenção de Vie- a Divisão observou que:
na15 sobre o Direito dos Tratados, e aparece- “(...) um preceito fundamental da in-
rá em outros para explicar o método inter- terpretação dos tratados, que deriva
pretativo. Essa convenção foi considerada da regra geral de interpretação do Ar-

268 Revista de Informação Legislativa


tigo 31, é o princípio da efetividade rea – Dairy, no qual a decisão do Órgão de
(ut res magis valeat quam pereat)”. Apelação é que, “à luz do princípio inter-
Mais uma vez, o artigo 31 aparece como pretativo da efetividade, é o dever de qual-
mecanismo de interpretação sem o objetivo quer intérprete de um tratado ‘ler todas as
de amplificar ou reduzir o alcance do texto, disposições aplicáveis de forma a dar-lhes
não se abrindo as portas para a jurispru- todas, harmoniosamente, pleno significa-
dência criativa. do’”. Um importante corolário desse princí-
Isso é também confirmado e enfatizado pio é que um tratado deve ser interpretado
no caso Argentine – Footwear (EC)18, parágra- como, um todo, assim como, e em particu-
fo 81, no qual os Membros da Divisão deci- lar, suas partes e seções devem ser lidas
diram que como um todo coeso. O Artigo II:2 do Acor-
“... o intérprete de um tratado deve ler do da OMC expressamente consagra o de-
todas as disposições aplicáveis de for- sejo dos negociadores da Rodada Uruguai
ma a dar significado a todos eles, har- de que os dispositivos do Acordo da OMC e
moniosamente. E, uma leitura ade- os Acordos Multilaterais de Comércio inclu-
quada deste ‘pacote inseparável de ídos nos anexos 1, 2 e 3 devem ser lidos como
direitos e disciplinas’ deve, desta for- unidades coerentes19.
ma, ser aquele que dê significado a Percorridos esses casos, terminamos por
todas as disposições relevantes des- recordar que o pensamento do Órgão de
tes dois acordos vinculantes”. Apelação é obtido, em cada caso, pelo con-
Nesse mesmo caso, no parágrafo 95, é senso20 de todos seus Membros. Destarte
dito que podemos chegar a algumas conclusões: não
“nossa leitura desses pré-requisitos restam dúvidas de que a criação de padrões
faz precisamente isto, certificando-se interpretativos do Órgão de Apelação emer-
que todas as disposições relevantes do ge de forma consistente em todos os casos
Agreement on Safeguards e do Artigo acima referidos. Esses padrões nos indicam
XIX do GATT 1994 concernentes a claramente que o Órgão de Apelação deci-
medidas de salvaguarda mantiveram diu de forma condizente, tanto com os prin-
seu pleno sentido e pleno efeito legal”. cípios adequados à interpretação de trata-
Vemos, assim, que esse gênero de inter- dos em geral, delineados pela Convenção
pretação não daria, como não deu, margem de Viena, como, em especial, com os princí-
ao incremento ou à diminuição de direitos pios ditados pelos Acordos da OMC.
de qualquer dos Membros da Organização Dessa forma, eles cumpriram seu dever
Mundial do Comércio, mas, ao contrário, “honradamente, independentemente, im-
leva a fazê-los respeitar aquilo que acorda- parcialmente, conscienciosamente, e segun-
ram. do as normas da Organização Mundial do
Talvez haja quem afirme que tal ou qual Comércio”. É muito gratificante poder dizer
interpretação não era exatamente o preten- àqueles que cumpriram dessa forma o seu
dido no momento da assinatura do tratado. dever que um de nós – que vêem nas leis o
Contudo, quem pensa isso labora em equí- único soberano da humanidade – os agra-
voco porque o intérprete busca num trata- dece com ênfase.
do, ou num acordo privado, não a vontade Ana Maria Villela, no curso de suas ati-
de uma parte, ou a intenção de outra, mas o vidades como Professora e como servidora
que resultou no acordo, do consenso de do Senado da República e advogada, tam-
ambas, e que extrairá do texto adotado por bém cumpriu conscienciosamente o seu de-
elas – o Acordo. ver, obedecendo à Constituição e às leis do
O princípio da efetividade, que acima Brasil. Por isso, não vi melhor maneira de
mencionamos, aparece também no caso Ko- homenageá-la que falar de pessoas que ti-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 269


veram a mesma conduta. Que sejam todos by mandating conformity of compliance with such
exemplos para os que começam a carreira standards, guidelines and recommendations. To
sustain such an assumption and to warrant such a
do direito. far-reaching interpretation, treaty language far more
specific and compelling than that found in Article 3
of the SPS Agreement would be necessary.”
11
Notas WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R. “(…)
The fundamental rule of treaty interpretation re-
1
“[...] persons of recognized authority, with quires a treaty interpreter to read and interpret the
demonstrated expertise in law, international trade words actually used by the agreement under exami-
and the subject matter of the covered agreements nation, not words the interpreter may feel should have
generally”. DSU, Article 17.3. been used.”
2
DSU, Article 17.3 12
WT/DS56/AB/R. “(…) The Panel relies hea-
3
DSU, Article 14.3 and 17.11 vily on what it characterizes as ’past GATT practi-
4
DSU, Article 3.2 “(…) providing security and ce’, without undertaking any analysis of the ordi-
predictability to the multilateral system. The Mem- nary meaning of the terms of Article II in their con-
bers recognize that it serves to preserve the rights text and in the light of the object and purpose of the
and obligations of Members under the covered agre- GATT 1994, in accordance with the general rules of
ements, and to clarify the existing provisions of those treaty interpretation set out in Article 31 of the Vi-
agreements in accordance with customary rules of enna Convention.”
interpretation of public international law. Recom- 13
Segundo a regra do Artigo II da Convenção
mendations and rulings of the DSB cannot add to de Viena. Hoje em dia, parece não haver mais dúvi-
or diminish the rights and obligations provided in das de que a Convenção é boa síntese dos usos e
the covered agreements”. costumes em matéria de redação e interpretação de
5
DSU Article 3.5 contratos no direito internacional.
“All solutions to matters formally raised under 14
Artigo 31o – Regra geral de interpretação. 1 –
the consultation and dispute settlement provisions Um tratado deve ser interpretado de boa-fé, de acor-
of the covered agreements, including arbitration do com o sentido comum a atribuir aos termos do
awards, shall be consistent with those agreements tratado no seu contexto e à luz dos respectivos
and shall not nullify or impair benefits accruing to objecto e fim. 2 – Para efeitos de interpretação de
any Member under those agreements, nor impede um tratado, o contexto compreende, além do texto,
the attainment of any objective of those agreements”. preâmbulo e anexos incluídos: a) Qualquer acordo
6
DSU, Article 17.6 “An appeal shall be limited relativo ao tratado e que tenha sido celebrado entre
to issues of law covered in the panel report and todas as Partes quando da conclusão do tratado;
legal interpretations developed by the panel”. b) Qualquer instrumento estabelecido por uma ou
7
James Bacchus, dos Estados Unidos, Cristo- mais Partes quando da conclusão do tratado e aceite
pher Beeby, da Nova Zelândia, Prof. Claus-Dieter pelas outras Partes como instrumento relativo ao
Ehlermann, da Alemanha, Dr. Said El-Naggar, do tratado. 3 – Ter-se-á em consideração, simultanea-
Egito, Min. Florentino Feliciano, das Filipinas, Bem. mente com o contexto: a) Todo o acordo posterior
Julio Lacarte-Muro, do Uruguai e Prof. Mitsuo Mat- entre as Partes sobre a interpretação do tratado ou
sushita, do Japão. a aplicação das suas disposições; b) Toda a prática
8
The Rules of Conduct for the understanding on seguida posteriormente na aplicação do tratado pela
rules and procedures governing the settlement of dis- qual se estabeleça o acordo das Partes sobre a inter-
putes (WT/DSB/RC/1) define the governing prin- pretação do tratado; c) Toda a norma pertinente de
ciple, its observance, the scope, the textiles monito- direito internacional aplicável às relações entre as
ring body, the self-disclosure requirements by cove- Partes. 4 – Um termo será entendido num sentido
red persons, confidentiality and the procedures con- particular se estiver estabelecido que tal foi a inten-
cerning subsequent disclosure and possible material ção das Partes.
violations. These working procedures were adopted 15
Estava disponível para assinaturas em Vie-
by the TMB on 26 July 1995 (G/TMB/R/1). na, em 23 de março de 1969, e entrou em vigor
9
Os princípios governantes das Regras de Con- internacionalmente em 27 de janeiro de 1980.
duta afirmam expressamente que os indivíduos a 16
WT/DS108/AB/R. “(…) However, we have
quem elas se aplicam devem ser independentes e certain abiding reservations about applying any le-
imparciais, nos artigos II, 1 e III, 2. gal standard, such as this “but for” test, in the place
10
WT/DS26/AB/R, WT/DS48/AB/R. “(…) of the actual treaty language”. And after: “(…) The
We cannot lightly assume that sovereign states in- legislative history also states that the measure was
tended to impose upon themselves the more one- adopted ’to comply with decisions of a World Trade
rous, rather than the less burdensome, obligation Organization dispute panel and Appellate Body’.”

270 Revista de Informação Legislativa


17
WT/DS8/AB/R, WT/DS10/AB/R, WT/ dingly, be one that gives meaning to all the relevant
DS11/AB/R. “(…) A fundamental tenet of treaty provisions of these two equally binding agreements”.
interpretation flowing from the general rule of inter- In this same case, paragraph 95 also said: “Our
pretation set out in Article 31 is the principle of reading of these prerequisites does precisely this,
effectiveness (ut res magis valeat quam pereat)”. by making certain that all the relevant provisions of
18
WT/DS121/AB/R. “Yet a treaty interpreter the Agreement on Safeguards and Article XIX of
must read all applicable provisions of a treaty in a the GATT 1994 relating to safeguard measures are
way that gives meaning to all of them, harmoniou- given their full meaning and their full legal effect.”
19
sly. And, an appropriate reading of this ’insepara- WT/DS98/AB/R.
20
ble package of rights and disciplines’ must, accor- DSU, Article 2.4

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272 Revista de Informação Legislativa
Responsabilidade internacional do Estado:
atuação da CDI

Márcio P. P. Garcia

Sumário
1. Abertura. 2. Introdução. 3. As Nações
Unidas e a codificação do direito internacio-
nal. 3.1. Preliminar: a noção de código no pla-
no internacional. 3.2. Antecedentes. 4. Comis-
são de Direito Internacional das Nações Uni-
das (CDI). 4.1. Notícia histórica. 4.2. Organiza-
ção e método de trabalho. 5. CDI e responsabi-
lidade dos Estados. 5.1. Tentativas: García Ama-
dor (1956/62), Roberto Ago (1963/79), Willen
Riphangen (1980/86), Arangio-Ruiz (1987/96)
e James Crawford (1998/2001). 5.2. “Projeto
Crawford”. 6. Conclusão.

“In dream begins responsibility”.


W. B. Yeats (Responsibilities, 1914)

1. Abertura

Considerando tratar-se de “liber amico-


rum”, permito-me nota pessoal, que, na fal-
ta de título melhor, chamo de abertura.
Pela mão de Anna Maria, tive o privilé-
gio de ingressar no mundo do direito inter-
nacional. E mais, de ter contato com a pes-
quisa e com o estudo. Mulher frontal, cora-
josa e independente. Exemplo de coerência,
de verticalidade. Trata-se de alguém que
venceu muitas das tentações que nos ron-
dam, algumas mais veementes do que as de
Hieronymus Bosch. Ela soube estar acima
do gosto do dia. Seguiu sua carreira sem
espalhafato. Semeou dúvidas, não colheu
certezas. Essa a missão do verdadeiro mes-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 273
tre. Dizia o que pensava, sem concessões, reza dos direitos, a estrutura das obrigações,
nem eufemismos. Era, em derradeira análi- a definição das sanções por sua violação,
se, amante da verdade à Newton (“Amicus tudo converge e se mistura nela em cone-
Plato amicus Aristóteles magis amica veri- xões lógicas e de estreita interdependência.
tar”). Desse modo, parece razoável compreender
a longa gestação que a matéria teve no âm-
2. Introdução bito da Comissão.
O presente trabalho visa analisar a pro-
O incremento das relações entre os Esta- dução da CDI nesse domínio. Principia por
dos, sobretudo no período pós-Segunda introduzir o tema da codificação do direito
Guerra, demanda maior segurança jurídica internacional no campo da responsabilida-
nos relacionamentos interestatais. Consci- de internacional do Estado. Parte de estudo
entes da necessidade de se proporcionar inicial do papel das Nações Unidas na con-
estabilidade na condução da vida interna- versão de normas consuetudinárias em tra-
cional, os redatores do tratado constitutivo tados. Aborda, em seqüência, a atuação da
da Organização das Nações Unidas (ONU) Comissão de Direito Internacional com en-
prescreveram a necessidade de se incenti- foque particular no seu método de trabalho.
var o desenvolvimento progressivo do di- Mais adiante, cuida do assunto propriamen-
reito internacional e a sua codificação [art. te dito: a atuação da CDI na codificação da
13 (1-a)]. Para tanto, foi criado, no âmbito responsabilidade internacional do Estado.
daquela organização, órgão com a missão A análise vai centrada na leitura das parti-
de dar conseqüência ao disposto na Carta cipações dos diversos relatores indicados
da ONU. Em 1949, passa a funcionar a Co- nos quase quarenta anos de debate da ma-
missão de Direito Internacional (CDI) com téria na Comissão. A ênfase, no entanto, re-
essa finalidade. cai sobre os projetos de 1996 (inspirado na
Em seus cinqüenta e cinco anos de exis- obra de Roberto Ago) e, sobretudo, na pro-
tência, a Comissão produziu projetos de posta final de James Crawford de 2001.
codificação para distintas áreas do direito
das gentes. Com maior ou menor êxito, a sín- 3. As Nações Unidas e a codificação do
tese do trabalho da CDI é, até aqui, positiva. direito internacional
Ela, na pior das hipóteses, proporcionou
debate sobre temas importantes do direito 3.1. Preliminar: a noção de código no plano
internacional deixando para o legislador internacional
futuro material a ser pesquisado. No cená-
rio favorável, produziu minutas que, trans- O tema da codificação não tem pertinên-
formadas em tratados, foram fundamentais cia exclusiva com o direito interno dos Esta-
na busca da segurança jurídica almejada dos. O assunto relaciona-se, por igual, com
pelos autores da Carta de São Francisco. o direito das gentes. Assim, parece correto
Direito dos tratados, imunidade e privilégi- iniciar o presente capítulo com tentativa de
os diplomáticos e consulares, direito do mar, definição. Para tanto, invocamos descrição
entre outros, são temas que contaram com a oferecida pelo Professor Marotta Rangel.
contribuição fundamental do órgão. Para ele, codificação “consiste na conver-
O tema da responsabilidade internacio- são, em um corpo sistemático de regras es-
nal dos Estados esteve sempre presente na critas, das normas vigentes com pertinên-
agenda da Comissão. Cuida-se de assunto cia a determinada matéria ou determinada
difícil. Como ponderou Pierre-Marie Dupuy relação”. Arremata observando que “tais
(1984, p. 21), a responsabilidade constitui o normas, ainda que em vigor, nem sempre
“epicentro” de um sistema jurídico: a natu- são escritas como ocorre, verbi gratia, com as

274 Revista de Informação Legislativa


de natureza consuetudinária” (RANGEL, implica a regulação unitária de determina-
1999, p. 191). do setor da ordem jurídica, “a qual espelha
Nessa ordem de idéias, a codificação a sua autonomia material, conferida pela
consiste na tendência de reunir, em lei, ma- especificidade das suas respostas aos pro-
téria concernente a uma área do direito. Tal blemas de ordenação social que deve resol-
propósito tem por objetivo dar unidade de ver” (GOUVEIA, 1993, p. 7). Ele proporcio-
tratamento às relações jurídicas que dela na material legislativo novo. É animado por
advêm. Nesse ponto, cabe uma primeira espírito criador. Apresenta-se como um sis-
advertência: no plano interno, a codificação tema, é dizer, uma exposição de matérias
consubstancia de maneira inovadora, numa jurídicas de um ponto de vista ordenado.
só lei, parte considerável do direito. Dife- Almeja conter o conjunto das normas jurí-
rencia-se, desse modo, tanto da compilação dicas sobre determinada matéria (“Princí-
quanto da consolidação. pio da Totalidade”). A elaboração de obra
A compilação tem como pressuposto si- global se depara com alternância de visões
tuação em que existe incerteza sobre as nor- restritivas e ampliativas do problema1.
mas jurídicas efetivamente vigentes à vista Na perspectiva internacional, sobretudo
de sua multiplicação desorganizada ou ex- na do direito internacional público, tal con-
cessiva. Cabe, pois, ao compilador a tarefa cepção não se aplica de modo necessário.
de agrupar o material normativo existente. Isso se depreende, por exemplo, do fato de
Depois, passa à etapa de seleção das nor- inexistir, ainda hoje, código de direito das
mas jurídicas (revogadas, não eficazes etc.). gentes. Entretanto, a idéia de codificação
Por fim, organiza o resultado obtido medi- também se apresenta nesse ramo do direito
ante ordenação de todo o material devida- mesmo que em patamar menos abrangente.
mente unificado poupando o investigador Nesse domínio, a noção de código relacio-
ou o aplicador do direito da consulta a fon- na-se à formalização ? via texto escrito ? de
tes distintas. A compilação não reelabora normas consuetudinárias em conformida-
as normas jurídicas. Os textos compilados de com princípios comuns.
são reproduzidos em seus termos originais. Tal situação é fácil de compreender à vis-
O objetivo é, tão-só, facilitar a consulta, a ta do caráter inorganizado da sociedade
pesquisa e a aplicação das normas jurídi- internacional nos dias de hoje. Assim, a re-
cas. gra geral propõe que a ordenação normati-
Por sua vez, a consolidação vai adiante va no plano externo, quando intencional,
na medida em que cuida de reelaboração do será feita por meio de tratados, em que os
material jurídico existente. A consolidação sujeitos envolvidos ocupam a mesma posi-
dá nova redação às normas e as unifica em ção jurídica. Com isso, parece razoável su-
um só corpo legislativo. O conteúdo do di- gerir que a idéia de codificação internacio-
reito consolidado não é, de modo necessá- nal nada mais é do que uma atividade de
rio, criador. Ao contrário da codificação, a compilação de normas consuetudinárias de
consolidação não inova. Ela apenas agrega acordo com critério cronológico ou temáti-
de maneira uniformizada. Isso se dá, de co. De outro lado, o crescente alargamento
modo geral, em momento de exaustão legis- do domínio de campos temáticos internaci-
lativa. onalmente regulados inviabiliza a realiza-
Dessa forma, o código oferece, no direito ção de um código que contemple todas as
doméstico, a idéia de coleção unitária, orgâ- suas normas.
nica, sistemática, de disposições de caráter Em resumo, pode-se dizer que a princi-
legislativo, relacionadas a determinado pal função da codificação no direito inter-
ramo do direito positivo (penal, civil, tribu- nacional é a conversão do direito costumei-
tário, processual). De outro modo, o código ro em direito convencional. Claro está, no

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 275


entanto, que, ao dar forma escrita ao direito mento5. A atuação variada de diferentes en-
consuetudinário, verificam-se, quase sem- tidades é sinal claro da complexidade das
pre, modificações e aperfeiçoamentos. A co- relações entre os Estados nos dias de agora.
dificação tem sempre envolvido algum ele- Assim, é importante ter em atenção que, den-
mento de “lege ferenda”, ou seja, certa am- tro de sua área temática, diferentes órgãos e
pliação de princípios e normas vigentes para agências do Sistema têm capacidade para
preencher lacunas no direito e adaptá-lo às transpor o direito costumeiro para o direito
novas situações. escrito, inovando sempre que possível [ex.:
Organização da Aviação Civil Internacio-
3.2. Antecedentes nal – OACI (direto aeronáutico); Organiza-
Desde cedo, os internacionalistas con- ção Marítima Internacional – OMI (direito
tam, entre suas preocupações, a codificação de navegação); Organização Internacional
de normas do direito das gentes. O motivo do Trabalho – OIT (direito do trabalho); Pro-
parece evidente: segurança jurídica. No sé- grama das Nações Unidas para o Meio
culo XIX, a iniciativa coube, sobretudo, às Ambiente – PNUMA (direito ambiental)
instituições internacionais privadas [“Ins- etc.].
titute de Droit International”, “Internatio- O tratado constitutivo da ONU, no en-
nal Law Association” (ambos fundados em tanto, é espartano ao cuidar do direito das
1873) e “Harvard Research in International gentes6. O artigo 13, que dispõe sobre as atri-
Law” (1927)]; contou, por igual, com atua- buições da Assembléia Geral, diz que ela
ção dos Estados [Congresso de Viena (1815), deverá iniciar estudos e fazer recomenda-
Conferências de Paz da Haia (1899 e 1907)]. ções com o objetivo de incentivar o desen-
Já o século XX teve como protagonistas mais volvimento progressivo do direito interna-
destacados as organizações intergoverna- cional, bem como sua codificação. Visando
mentais de caráter universal. Para facilitar dar conseqüência ao dispositivo referido, a
a leitura histórica, convém dividir o assun- Assembléia Geral decide pelo estabeleci-
to em duas fases: antes e depois da criação mento de comitê7 que haveria de lançar lu-
da ONU. zes sobre a melhor maneira de desincumbir
Até o surgimento das Nações Unidas, as a função atribuída pela Carta. Tal comitê,
tentativas de codificação não lograram êxi- composto de dezessete membros, propõe a
to. Ou melhor, os casos de fracasso são ma- criação de uma Comissão de Direito Inter-
joritários [ex.: Conferência da Haia (1930)]2. nacional8.
Na esfera regional, a situação não é de todo
diferente [ex.: Projeto Epitácio Pessoa de 4. Comissão de Direito Internacional
Código de Direito Internacional Público das Nações Unidas (CDI)
(1910)]3. Nos domínios do direito internaci-
onal privado, produziu-se, em 1928, o Có- 4.1. Notícia histórica
digo de Bustamante (437 artigos)4. Quem
sabe aí situação isolada de sucesso. O qua- A idéia de criação de órgão permanente
dro começa a mudar após o advento da Car- com o objetivo de codificar o direito interna-
ta da ONU. A partir de 1945, o movimento cional tem origem na Liga das Nações9. A
codificador ganha novo impulso com a ela- proposta, no entanto, só vingou em 1947, já
boração e entrada em vigor de grande parte no âmbito da ONU. Naquele ano, a Assem-
das convenções internacionais que, no pre- bléia Geral das Nações Unidas aprovou re-
sente momento, regem a vida internacional. solução que instituiu a Comissão de Direito
A atividade codificadora da ONU é mul- Internacional e sancionou seu estatuto10. Tal
tiforme. Vários órgãos e agências contribu- documento foi reação ao disposto no artigo
em, de tal ou qual modo, com o empreendi- 13 (1) da Carta. A primeira eleição dos mem-

276 Revista de Informação Legislativa


bros se deu em 1948, e a sessão inaugural po científico, libertado da preocupação de
ocorreu no ano seguinte. transigir com o fim de obter acordo dos Es-
De acordo com seu estatuto, a CDI visa a tados em tudo que se relacione com o desen-
promoção do desenvolvimento progressivo volvimento do direito internacional e, ao
do direito internacional e de sua codifica- mesmo tempo, poderá recomendar, como
ção. É o que dispõe, por igual, a Carta de órgão codificador, as matérias e princípios
São Francisco [art. 13 (1)]11. Saber a exata cuja codificação ela julgue ‘necessária’ ou
distinção entre uma coisa (desenvolvimen- ‘desejável’”.
to progressivo) e outra (codificação), no en- O Estatuto evitou diferençar, de modo
tanto, nunca foi assunto isento de debate. preciso, um e outro instituto. Até porque
Boa parte da doutrina vê na codificação sim- existe uma área de superposição. Como ad-
ples transposição de normas de direito cos- verte Oscar Schachter (1997, p. 7), “... codifi-
tumeiro para a forma escrita; e o desenvol- cation involved a measure of progressive deve-
vimento progressivo não se limitaria, segun- lopment. Inconsistencies in existing law often had
do alguns, a acolher normas já existentes, to be dealt with and gaps filled”. Ao que parece,
iria além ao incluir disposições inovadoras. o intento foi alcançado. O dispositivo, tal
O artigo 15 do Estatuto da Comissão ofe- como elaborado, resiste ao tempo. A Comis-
rece caminho, se não seguro, ao menos bali- são, por seu turno, tem realizado importante
zador do que se quis para seus trabalhos. O tarefa no cumprimento de suas funções.
dispositivo assim prescreve: “Nos artigos
que se seguem a expressão ‘desenvolvimen- 4.2. Organização e método de trabalho
to progressivo do Direito Internacional’ é A Comissão se reúne, anualmente, em
empregada por comodidade, para visar os Genebra. Os trabalhos têm, na hora atual,
casos em que se impõe a necessidade de re- duração de 12 semanas entre os meses de
digir convenções sobre matérias que não maio e agosto12. Seus membros são eleitos
estejam ainda reguladas no Direito Interna- pela Assembléia Geral para mandato de cin-
cional ou relativamente às quais o Direito co anos, admitida a reeleição13. Inexiste vín-
não se ache ainda suficientemente desen- culo de subordinação com o Estado de ori-
volvido pela prática dos Estados. Assim, gem. Os componentes são escolhidos a títu-
também a expressão ‘codificação do direito lo pessoal. Eles são, em geral, especialistas
internacional’ é empregada por comodida- de reconhecida competência em direito in-
de para visar os casos em que se tenha de ternacional e, na sua maioria, professores
formular com maior precisão e de sistemati- universitários14.
zar as regras do direito internacional em Para cada tópico é designado relator es-
domínios em que já exista uma prática esta- pecial. Ele deve apresentar relatório anual
tal considerável dos precedentes e das opi- com estudo da matéria e oferecer minutas
niões doutrinárias”. de artigos. A Comissão analisa os relatórios
O dispositivo trata de distinção funda- e os debate em sessões públicas. Após, ela
mental que proporcionou, ao longo dos anos, transmite as minutas ao Comitê de Redação
dúvidas e questionamentos por parte dos (entre 15 e 18 membros), que as examina e
Estados em relação ao trabalho da CDI. De propõe redação final. O Comitê tem papel
acordo com Gilberto Amado (1951, p. 337), de relevo no trabalho final. Ele tenta resol-
a diferença entre codificação e desenvolvi- ver e reconciliar diferenças, bem como ado-
mento progressivo oferecida pelo Estatuto tar postura mais pragmática. O trabalho
se revelou apropriada. Para ele “a impor- deve ser claro, preciso, bem delimitado dou-
tância dessa decisão de compromisso está trinariamente, prático e realista. De outra
em que, graças a ela, a Comissão de Direito forma, o produto final faria as delícias, tão-
Internacional pode trabalhar como um cor- só, do meio acadêmico. Após, a proposta do

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 277


Comitê passa, uma vez mais, pelo debate concluir que triunfariam os esforços
plenário. O desfecho do encontro será, en- dos homens de ciência. Ao meu espí-
tão, encaminhado à Assembléia Geral (Sexto rito sempre foi evidente que a questão
Comitê), que poderá convocar conferência de método é sempre acessória ou su-
para a adoção de tratado sobre a matéria15. plementar em matéria de codificação
Para a boa execução de suas atribuições, internacional. O essencial não é o
o órgão trabalha de modo próximo com: (i) método: é o estado das relações entre
governos, que, em geral, oferecem comentá- as potências; não é o remédio a ser
rios às minutas produzidas e disponibili- empregado; é a saúde da comunida-
zam informações sobre o assunto em deba- de internacional; é a higidez do corpo
te; (ii) Assembléia Geral (AG), que supervi- coletivo”.
siona o trabalho realizado mediante leitura E arremata,
e discussão de relatório anual enviado pela “... toda obra de codificação razoavel-
CDI; (iii) Sexto Comitê, que opera como faci- mente concebível e realizável há de
litador dos trabalhos entre a AG e a CDI na inspirar-se nesta preocupação assaz
medida em que proporciona visão mais precária? corresponder ao interesse,
pragmática dos temas em debate; e (iv) ou- às aspirações possíveis dos Estados”.
tros órgãos, integrantes [ex.: Conselho Eco- Seria mais fácil desfraldar a bandeira da
nômico e Social (ECOSOC)] ou não do siste- ciência pura. Esquecer a linguagem da vida.
ma das Nações Unidas [ex. Comissão Jurí- Assim proceder, no entanto, seria um desfa-
dica Interamericana]. vor ao trabalho da Comissão. O delírio utó-
Entre os brasileiros que passaram pela pico poderia ficar bem como doutrina, mas
CDI, merece destaque Gilberto Amado. Ele não ali. O retumbante fracasso de experiên-
foi eleito membro da Comissão na sua pri- cias anteriores o convencia disso. Sinal cla-
meira formação, e sucessivamente reeleito. ro do acerto de suas observações é o fato de
A indicação inicial de seu nome para inte- que toda proposta de convenção que saiu do
grar a CDI parte de outro grande internacio- prelo da Comissão com viés mais quimérico
nalista brasileiro: Raul Fernandes16. Na Co- foi simplesmente ignorada pelos Estados.
missão, Gilberto atinge, pelo talento, pelo Até aqui, treze assuntos apreciados pela
estudo, pela cultura, pela dedicação ao tra- Comissão deram origem a tratados interna-
balho, pelo pragmatismo de suas afirma- cionais. Merecem destaque os seguintes:
ções, o respeito de todos. Sua participação é Convenção de Viena sobre Relações Diplo-
decisiva para o rumo do novo órgão. Como máticas (1961), Convenção de Viena sobre
lembrou o Embaixador Sette Câmara (1987, Relações Consulares (1963), Convenção de
p. 21), “Gilberto Amado foi o primeiro pro- Viena sobre o Direito dos Tratados (1969) e
fético inconformista com as tendências aca- Convenção de Viena sobre o Direito dos Tra-
dêmicas da Comissão. Desde o começo, ele tados entre Organizações Internacionais
compreendeu que a Comissão era um órgão (1986)17.
subsidiário da Assembléia Geral, criado
para prover perícia científica de maneira a 5. CDI e responsabilidade dos Estados
servir aos interesses dos Estados no campo
da codificação do Direito Internacional ...”. 5.1. Tentativas: García Amador (1956/62),
Gilberto (AMADO, 1951, p. 338-339) traz Roberto Ago (1963/79), Willen Riphangen
objetividade para os trabalhos da Comissão. (1980/86), Arangio-Ruiz (1987/96) e James
Pondera, Crawford (1998/2001)
“Não me deixei embair pela supo-
sição vã de que, porque os métodos Na primeira sessão da CDI, em 1949,
diplomáticos faliram, forçoso seria seus membros escolheram tópicos dentro de

278 Revista de Informação Legislativa


um programa de trabalho que estimaram aprovação do parecer, os membros elegem
oportunos para serem codificados18. Entre Roberto Ago como novo relator especial
eles, figura a responsabilidade internacio- para o tópico.
nal do Estado. O assunto esteve sob os cui- Sucessivas resoluções da Assembléia
dados da Comissão desde o romper de suas Geral instam à CDI que dê continuidade ao
atividades. Em 1954, a Assembléia Geral seus esforços23 e que se empenhe no sentido
aprova resolução em que recomenda à Co- de começar trabalho substantivo (“make
missão a codificação de princípios de direi- every effort to begin substantive work”24).
to internacional referentes à matéria19. Dan- Ago (1969, p. 125-126) submete seu primei-
do conseqüência ao disposto na resolução, ro relatório em 196925. O documento contém
a Comissão decide iniciar os trabalhos so- síntese do trabalho até então realizado so-
bre responsabilidade internacional e indi- bre responsabilidade internacional. Cuida-
ca García Amador como relator do tópico20. se de estudo necessário para prosseguir com
No período compreendido entre 1956 e o ideal de codificação do assunto. O profes-
1961, o jurista apresenta seis propostas para sor milanês percorre o que foi produzido por
discussão. O debate centrou-se na respon- diferentes órgãos e entidades com ênfase nos
sabilidade do Estado por danos causados trabalhos da subcomissão por ele presidi-
em seu território à pessoa ou aos bens de da. A Comissão, após estudar o trabalho,
estrangeiros. O enfoque era, pois, limitado. solicita ao relator o estudo do assunto sob
Em 1961, a Assembléia Geral recomenda à dupla perspectiva: (i) considerar a origem
Comissão que continue seu trabalho sobre da responsabilidade internacional (quais
responsabilidade internacional do Estado21. fatos e circunstâncias dão margem à confi-
Havia concordância dos membros da CDI guração de um ato ilícito em conformidade
que o assunto deveria merecer prioridade; com o direito internacional) e (ii) examinar
entretanto, o mesmo não ocorria em relação o conteúdo de tal responsabilidade (como
à forma de abordá-lo. Inicia-se, assim, deba- determinar as conseqüências e estabelecer
te para saber a exata abrangência que o tra- os graus de responsabilidade à vista do di-
balho deveria ter. Muito se discutiu sobre o reito das gentes). Após, poder-se-ia avançar
melhor modo de estudar a matéria e seus para uma terceira fase: a implementação.
múltiplos desdobramentos. Criou-se, por O relator apresenta material novo em
fim, subcomissão com a finalidade de sub- 1970. O texto, denominado ‘As origens da res-
meter relatório ao colegiado sobre a dimen- ponsabilidade internacional’, foi importante no
são e a forma de abordagem que o futuro sentido de proporcionar conclusões sobre o
estudo deveria ter22. método, a substância e a terminologia es-
A Comissão aprecia, em 1963, o relató- sencial para a continuação do trabalho. Pela
rio entregue pela subcomissão. Os membros ótica do relator, o assunto seria abordado
concordam com as conclusões gerais do considerando, tão-só, a prática de ato ilíci-
documento, que indica a necessidade de to.
priorizar a definição das regras gerais so- Ele ofereceu, ainda, a estrutura tópica
bre o tema e, ao fazê-lo, considerar o papel que o projeto passaria a ter (1a Parte: origem
que a evolução do direito das gentes como da responsabilidade internacional; 2a Parte:
um todo proporcionou ao assunto. O relató- conteúdos, formas e graus da responsabili-
rio desencoraja, de outro lado, o estudo por dade internacional; e 3a Parte: aplicação das
área temática. A visão deveria ser de con- regras sobre responsabilidade internacional
junto. O documento propõe, ainda, que se e resoluções de controvérsias). A Comissão,
evite tratar a matéria tendo em considera- na linha do relator, enfatiza que a expres-
ção outros sujeitos do direito internacional são “responsabilidade do Estado” deveria
(ex.: organizações internacionais). Após a ser entendida como “responsabilidade dos

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 279


Estados pela prática de ato ilícito internaci- graus da responsabilidade internacional”
onal” (“responsibility of States for interna- e da “solução de controvérsias”. Eles, res-
tionally wrongful acts”). Só mais tarde peitados os estilos pessoais, confirmam o
(1978) a responsabilidade por atos não proi- modo de pensar de Ago. O projeto é, por fim,
bidos pelo direito internacional entra no aprovado em primeira leitura no ano de
programa da CDI (SOARES, 2003, p. 730). 1996. Após, ele foi submetido aos governos
Ago apresenta, no total, oito relatórios e à Assembléia Geral para comentários. O
no período de 1963/7926. Em que pese a de- texto final, no entanto, não obteve o confor-
manda da Assembléia Geral, que chegou a to da unanimidade na Comissão. Ele foi fonte
solicitar prioridade (“high priority”27) para de controvérsias entre os membros do ór-
o trabalho, o assunto ainda não estava pron- gão, bem assim de reações desfavoráveis de
to para ser codificado. Alguns avanços, no diferentes governos.
entanto, foram verificados, sobretudo a par- O desfecho não é de todo estranho, sufi-
tir do empenho do mestre italiano. A defini- ciente recordar que a obra teve início ainda
ção por ele alvitrada, por exemplo, sobrevi- nos anos sessenta. A longa gestação reflete,
veu a diferentes propostas: “Todo ato inter- de tal ou qual modo, a complexidade do as-
nacionalmente ilícito praticado por um Es- sunto, a forma de trabalho da Comissão (três
tado dá ensejo à responsabilidade interna- meses por ano), bem como as alterações ob-
cional deste” (“Every internationally wrong- servadas na composição do órgão. O proje-
ful act of a State entails the international res- to sofreu, ao longo dos anos, reparos tanto
ponsibility of that State”). A definição pres- do ponto de vista técnico [p. ex.: Parte Três
cinde do elemento dano, do mesmo modo (solução obrigatória de controvérsias)]
que Anzilotti havia excluído o elemento quanto “ideológico” (distintas visões do
culpa. direito e das relações internacionais em um
Em 1979, Roberto Ago passa a ocupar contexto de fim da Guerra Fria). Alguns go-
cadeira no principal órgão judiciário das vernos indicaram que o projeto avançou
Nações Unidas; lá permanece até o ano de muito em termos de desenvolvimento pro-
sua morte (1995). Com a saída de Ago, os gressivo: ausência de dano no conceito de
membros da CDI indicam Willem Riphagen responsabilidade, relevância do conceito de
como relator. Ele avança em alguns pontos, crime de Estado (artigo 19). Esse o quadro
cuida de outros ainda não abordados (“res- que encontra James Crawford, professor da
titutio in integrum stricto sensu”; reparação Universidade de Cambridge, quando assu-
“ex nunc”, “ex tunc” e “ex ante”). Em resu- me a relatoria do projeto em 1998.
mo, Riphagen apresenta sete relatórios28. As
minutas até então propostas de dispositi- 5.2. “Projeto Crawford”
vos recebem, no período de 1980/83, comen- Crawford assume a condição de relator
tários e sugestões de governos. Com base no com a responsabilidade de conduzir a se-
material oferecido, Riphangen produz os gunda leitura do projeto. O trabalho deve-
cinco primeiros artigos da segunda parte do ria enfrentar os problemas indicados no tex-
projeto. Em 1987, a CDI designa Gaetano to de 1996, incorporando, sempre que pos-
Arangio-Ruiz em substituição a Willen Ri- sível, os comentários oferecidos, bem assim
phagen, cujo mandato expirara. O novo re- a jurisprudência mais recente da Corte In-
lator dá continuidade ao trabalho e propõe ternacional de Justiça [p.ex.: “Projeto Gab-
minutas para os artigos subseqüentes da cíkovo-Nagymaros”, 1997 (Eslováquia vs.
segunda parte. Hungria); Caso “Irmãos La Grand”, 1998
Riphangen e Arangio-Ruiz concluem as (Alemanha vs. EUA)]. O primeiro informe
partes dois e três do projeto que tratam, res- do novo relator faz apanhado das questões
pectivamente, dos “conteúdos, formas e mais controvertidas para a doutrina e para

280 Revista de Informação Legislativa


os Estados. O texto reordena os artigos ini- síveis reminiscências penalistas apropria-
ciais com redação melhorada. Crawford, das ao direito interno. O mestre francês lem-
entretanto, concentra o melhor de suas ener- bra, por fim, frase cunhada por Kelsen (1953,
gias no conceito de crime de Estado do polê- p. 87): “a responsabilidade internacional
mico artigo 19, que era essencial na concep- não é nem civil nem penal, é simplesmente
ção original do projeto. internacional”. Crawford, por seu turno,
O controverso artigo fazia a distinção adota, à maneira de Gilberto Amado, postu-
entre crimes e delitos (“torts”) internacio- ra pragmática. Para ele, a manutenção do
nais. O parágrafo segundo definia como tipo referido artigo poderia comprometer o pro-
especial de fato internacionalmente ilícito jeto em seu conjunto. Com isso, propõe a eli-
aquele resultante da violação por um Esta- minação do dispositivo, bem assim da dis-
do de uma obrigação tão essencial para a tinção entre obrigação de conduta e obriga-
salvaguarda dos interesses fundamentais ção de resultado (respectivamente, artigos
da comunidade internacional que sua vio- 20 e 21 do antigo projeto). Outro item rele-
lação é reconhecida como crime por essa vante na proposta de Crawford foi conside-
comunidade em seu conjunto [art. 19 (2) “An rar a regra do esgotamento dos recursos in-
internationally wrongful act which results ternos unicamente como requisito para a
from the breach by a State of an internatio- admissibilidade da reclamação [artigo 44
nal obligation so essential for the protection (b)].
of fundamental interests of the internatio- Por fim, ele sugere a supressão da Parte
nal community that its breach is recognized III do projeto de 1996, que cuida da solução
as a crime by that community as a whole de controvérsias. Argumenta, entre outras
constitutes an international crime”]. O dis- coisas, que os dispositivos, tal como redigi-
positivo polarizou opiniões29. dos, colocavam tão-só na mão do Estado
Os detratores passam a indicar que o autor do ilícito a possibilidade de desenca-
artigo é desenvolvimento progressivo puro dear o procedimento vinculante de solução
(ROSENSTOCK, 1997, p. 265-285). Argu- de controvérsias. A idéia da eliminação da
mentam que o suposto caráter punitivo vio- Parte III fazia eco à censura de numerosos
laria o princípio “imposibile est quod socie- Estados. Eliminava-se, desse modo, um dos
tas delinquat”. Concluem observando que elementos mais avançados do projeto de
a penalização de certas condutas só é pos- 1996.
sível no âmbito de um sistema judicial com As mudanças sugeridas têm forte influ-
garantias processuais, defesa e provas. Do ência do modo anglo-saxão de pensar o Di-
outro lado, colocam-se os defensores da pro- reito. Nesse sentido, as discussões na CDI
posta original. Ponderam que a distinção é foram marcadas pela disputa entre membros
importante e responde a necessidade indis- oriundos da família romano-germânica do
cutível. Alain Pellet (1999, p. 425-434), por Direito e da família do “common law”. Em
exemplo, destaca que não se pode compa- 2000, Crawford apresenta seu terceiro in-
rar um crime como o genocídio com uma forme já com a nova estrutura. O texto foi
violação ordinária de obrigação derivada de discutido na CDI e remetido ao Comitê de
tratado comercial. Este afeta tão-só os Es- redação. Mesmo não tendo sido aprovado
tados partes, enquanto o genocídio ame- pela Comissão, a proposta foi tornada pú-
aça a sociedade internacional em seu con- blica com o objetivo de proporcionar mais
junto. uma oportunidade para apresentação de
Apesar da posição francamente favorá- comentário por parte dos governos. O rela-
vel ao conceito de crime de Estado, Pellet tor apresenta seu trabalho final em 26 de
revela-se flexível quanto à terminologia uti- julho de 2001. A Assembléia Geral, após
lizada. Ela faz acudir aos espíritos mais sen- discussão dos governos no Sexto Comitê,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 281


adota o projeto mediante a Resolução 56/ ao excluir o sistema de solução de contro-
83, de 12 de dezembro de 2001. A mencio- vérsias proposto. Sua atuação pauta-se por
nada resolução, entretanto, não acarreta grande pragmatismo. O espírito de Gilberto
aprovação do projeto. Ela inclui novo perío- Amado, por certo, rondou a cabeça do pro-
do de sessões para outra rodada de debates fessor de Cambridge. Ele levou em conta de
sobre o texto. modo superlativo os comentários de gover-
nos ao projeto para chegar à proposta de
6. Conclusão 2001.
Ocorre, no entanto, que, mesmo tendo em
Em um cenário de convivência entre Es- mente eventuais restrições de tal ou qual
tados ainda inorganizado, a existência de governo, a proposta ainda suscita debate. A
normas escritas a vincular boa parte dos discussão está sobretudo na retirada de
membros dessa comunidade apresenta-se itens considerados fundamentais para de-
fundamental. Parece fora de dúvida a im- terminados governos. Em resumo, as altera-
portância do trabalho de transposição de ções propostas por Crawford em nome do
preceitos consuetudinários do direito das pragmatismo redundaram em novas dúvi-
gentes para regra escrita. A crescente “juris- das e em crítica pela retirada de pontos im-
dicização” do relacionamento externo30, ou, portantes à matéria. Claro está que não se
como pondera Celso Lafer (1998, p. 279-280), deve atribuir, tão-só, ao relator o ônus por
o adensamento de juridicidade (“thicke- eventual fracasso ou o bônus pelo sucesso
ning of legality”) das relações internacio- do empreendimento. Cuida-se de obra cole-
nais é claro sinal de demanda por segu- tiva que deve atender aos anseios médios
rança e maior precisão jurídica nesse da doutrina e dos Estados. Nesse sentido, o
relacionamento. problema parece residir, mais do que nun-
O tema da responsabilidade internacio- ca, no ajuste fino entre as duas posições.
nal do Estado insere-se nesse quadro. Ele Agradar a ambas tem-se revelado impossí-
ganha em dimensão, já que reside aí o cerne vel. O tempo até aqui transcorrido dá notí-
do ordenamento. De outro modo, ele cuida cia da dificuldade de se harmonizar o que
das conseqüências jurídicas de uma viola- se pode ter com o que se gostaria de ter.
ção à disposição do sistema de que se trata. O trabalho de Crawford parece fadado a
Em resumo, dá conseqüência à eventual entrar no rol daqueles que figuram hoje
afronta ao ordenamento jurídico internaci- como objeto de pesquisa. Não se deve atri-
onal. Por isso, o assunto é extremamente buir a ele toda a responsabilidade pelo pro-
vasto e complexo, como nos lembra Guido vável desfecho do empenho codificador, o
Soares (2003, p. 735). A amplitude e a difi- assunto é que não proporciona o conforto
culdade do tema respondem, de algum da unanimidade. Isso não é privilégio des-
modo, pela longa jornada da CDI no apreci- se tema; ocorre que, em seus domínios, é
ar a matéria. mais difícil se alcançar o meio termo entre o
O produto final da Comissão, “Projeto desejado e o realizado. Corre-se o risco de
Crawford” (2001), resume bem as dificul- ficar nos extremos: poesia pura e realismo
dades técnicas, “ideológicas” e pragmáti- puro. No campo pragmático, é inspirador o
cas para se chegar a documento palatável à pensamento de Gilberto Amado, para quem
maioria dos membros do órgão. Alcançar o trabalho de codificação deve correspon-
unanimidade em relação ao tema é pedir o der às aspirações possíveis do Estado. En-
impossível. Crawford assume o controle do tre os sonhadores, pode-se invocar o pensa-
projeto tendo por base o texto de 1996. Pro- mento de Philip Allott (1988, p. 24), para
põe reviravolta na obra ao afastar a noção quem é “dever dos internacionalistas, mes-
de crime praticado por Estado, bem assim mos aqueles empregados por governos, con-

282 Revista de Informação Legislativa


7
siderar não apenas o que é de interesse des- Resolução da Assembléia Geral no 94 (I), de 11
se ou daquele Estado, mas o que é de inte- de dezembro de 1946.
8
Entre os membros do grupo, encontrava-se o
resse da sociedade internacional”. diplomata brasileiro Gilberto Amado. Na oportu-
Tal disputa tem-se resolvido, ao menos nidade, ele fora assessorado pelo então Secretário
na CDI, em prol dos pragmáticos. Suficiente Ramiro Saraiva Guerreiro. Sobre esse período, Cf.
estudo das matérias que até aqui foram co- saborosos comentários em: GUERREIRO, R. S. Lem-
dificadas e daquelas que não o foram. As branças de um empregado do Itamaraty. São Paulo:
Siciliano, 1992. p. 50-63.
Nações Unidas voltarão a debater o assun- 9
Cf. Resolução da Assembléia da Liga de 22 de
to com base no “Projeto Crawford”. Não será setembro de 1924 mediante a qual se cogitou da
surpresa ver nova recomendação da Assem- criação de órgão denominado Comitê de Especia-
bléia à CDI no sentido de aprimorar o as- listas para a Codificação Progressiva do Direito
sunto. Não é necessariamente mau que as- Internacional (Committee of Experts for the Pro-
gressive Codification of International Law).
sim seja. Cuida-se de claro reflexo da socie- 10
Resolução no 174 (II), de 21 de novembro de
dade internacional dos dias de hoje. De ou- 1947.
tro lado, o trabalho até aqui realizado não 11
No mesmo sentido, o artigo 104 do tratado
foi em vão. Proporcionou amadurecimento constitutivo da Organização dos Estados Ameri-
tanto da doutrina quanto da prática dos canos – OEA, que trata da Comissão Jurídica Inte-
ramericana.
Estados. Quem sabe em futuro próximo o 12
Resolução da Assembléia Geral no 3315 (XXIX),
tema não seja contemplado com convenção de 14 de dezembro de 1974.
que considere ao menos os princípios ge- 13
Desde 1981, a Comissão conta com 34 mem-
rais da matéria. Isso já seria um avanço em bros. De início, ela tinha 15 membros. Em 1951,
passa para 21. Vinte e cinco membros é a composi-
direção a algo mais consistente.
ção no período de 1961 até 1980.
14
Os seguintes brasileiros atuaram na Comis-
são: Gilberto Amado (1948/69); Embaixador Sette
Notas Câmara (1970/78); Embaixador Calero Rodrigues
(1982/97) e, desde 1998, o Embaixador Baena So-
1
Para maiores desdobramentos, Cf. ANDRA- ares.
15
DE, Fábio S. de. Da codificação: crônica de um con- Notícia atualizada sobre a Comissão de Di-
ceito. Porto Alegre: Livraria dos Advogados, 1997. reito Internacional é encontrada no seguinte endere-
2
Dos assuntos tratados na Conferência (nacio- ço eletrônico: www.un.org/law/ilc/ilcintro.htm.
16
nalidade, águas territoriais e responsabilidade dos Cf. artigo de AMADO, Gilberto. Raul Fernan-
Estados por danos causados em seu território ao des: traços para um estudo. In: RAUL Fernandes:
estrangeiro ou à sua propriedade), somente nacio- nonagésimo aniversário. Rio de Janeiro: Ministério
nalidade logrou chegar a proposta concreta. das Relações Exteriores, 1958. v. 2.
3 17
OS PROJETOS de códigos de direito público e Para análise de temas mais recentes, Cf. texto
privado internacional mandados elaborar pelo go- do Embaixador RODRIGUES, Calero. O trabalho
verno do Brasil. In: BRASIL. Ministério das Rela- de codificação do direito internacional nas Nações
ções Exteriores. A codificação americana do direito in- Unidas. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito In-
ternacional. Rio de Janeiro, 1927. v. 3. Para breve ternacional, Rio de Janeiro, v. 49, n. 101-103, p. 23-
comentário ao trabalho, Cf. SCOTT, James B. The 30, jan./jun. 1996.
18
gradual and progressive codification of internatio- Para relação completa dos temas, Cf. UNI-
nal law. American Journal of International Law, Wa- TED NATIONS. The work of the International Law
shington, v. 21, 1927, p. 417 et seq. Commission. 5th ed. New York, 1996. p. 9-11.
4 19
Incorporado ao direito brasileiro mediante o Resolução no 799 (VIII), de 07 de dezembro
Decreto Presidencial no 18.871, de 13 de agosto de de 1953.
20
1929. Ele ofereceu curso monográfico sobre o as-
5
Cf., entre outros, JOYNER, Christopher (Ed.). sunto na Academia da Haia. AMADOR, Garcia.
The United Nations and international law. Cambrid- State responsibility, some new problems. Recueil de
ge: University Press, 1997. Cours, Leyde, Holanda, n. 94, p. 370, 1958.
6 21
Sobre o tema, Cf. SILVA, Geraldo Eulálio Resolução 1686 (XVI), de 18 de dezembro de
Nascimento e. As Nações Unidas e o direito inter- 1961.
22
nacional. Carta Mensal, Rio de Janeiro, v. 42, n. 494, Integrava o grupo: Roberto Ago, Herbert
p. 3-20, maio 1996. Briggs, André Gros, Eduardo Jiménez de Arécha-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 283


ga, Manfred Lachs, Antonio de Luna, Angel Mo- CRAWFORD, James. The International Law Com
desto Paredes, Senjin Tsuruoka, Gregory Tunkin e mission’s articles on State responsibility: introduction,
Mustafa Yasseen. text and commentaries. Cambridge: University
23
Resoluções 1902 (XVIII), de 18 de novembro Press, 2002.
de 1963; e 2272 (XXII), de 1o de dezembro de 1967,
entre outras. ______; PEEL, Jacqueline; OLLESON, Simon. The
24
Resolução 2400 (XXIII), de 11 de dezembro ILC’s articles on responsibility of States for interna-
de 1968. tionally wrongful acts: completion of the second
25
Cf. Yearbooks of the International Law Com- reading. European Journal of International Law, Firen-
mission (1969, v. 2, p. 125-126). ze, v. 12, n. 5, p. 936-991, Dec. 2001. Disponível
26
Cf. Yearbooks... (1970, v. 2, p. 177-198; 1971, em: <http://www.ejil.org/journal/Vol12/No5/
v. 2; 1972, v.2, p. 71; 1976, v.2; 1977, v.2; 1978, v.2; art2.html>. Acesso em: [2003?].
1979, v.2). DUPUY, P. M. Le fait générateur de la responsabi-
27
Resoluções 31/97, de 15 de dezembro de 1975, lité internationale des Etats. Recueil des Cours, Lei-
e 32/151, de 19 de dezembro de 1977. den, Holanda, v. 188, n. 5, p. 9-134, 1984.
28
Cf. Yearbooks... (1980, v.2; 1981, v.2; 1982,
v.2; 1983, v.2; 1984, v.2; 1985, v.2; 1986, v.2). GARCIA, Márcio P. P. Gilberto Amado, o jurista.
29
Para maiores considerações, Cf. GALINDO, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 37, n.
George R. B. O crime compensa? Acerca da viabili- 147, p. 77-88, jul./set. 2000.
dade da noção de crimes internacionais no direito GOUVEIA, Jorge B. Textos fundamentais de direito
internacional. Revista de Informação Legislativa, Bra- internacional. Lisboa: Aequitas, 1993.
sília, v. 37, n. 147, p. 201-227, jul./set. 2000.
30
Carl Schmitt, por exemplo, faz menção à “ju- KELSEN, Hans. Theorie du droit international pu-
ridificação” das relações internacionais. SCHIMITT, blic. Recueil des Cours, Leiden, Holanda, v. 84, n. 3,
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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 285


286 Revista de Informação Legislativa
A proteção da propriedade intelectual e o
direito internacional atual

Maristela Basso

Sumário
1. Considerações introdutórias. 2. O regi-
me internacional da propriedade intelectual da
OMC/TRIPS. 2.1. As razões da inclusão do TRIPS
no GATT. 2.2. As negociações do TRIPS no
GATT: a busca do consenso entre as partes. 2.3.
O TRIPS: natureza, objetivos, alcance e princí-
pios gerais. 3. Solução de controvérsias. A)
mecanismos de solução. 4. Os efeitos do TRIPS.
4.1. Os efeitos do TRIPS no direito internacio-
nal de proteção dos direitos de propriedade
intelectual pós-Uniões de Paris e de Berna. 4.2.
As implicações institucionais decorrentes das
relações entre o TRIPS e a OMPI. 4.3. Os efeitos
do TRIPS no Brasil.

1. Considerações introdutórias
Os direitos de propriedade intelectual
estão vinculados, historicamente, ao direito
internacional, porque houve uma interação
entre o movimento de proteção dos direitos
de propriedade intelectual e o direito inter-
nacional.
Como se sabe, as Convenções da União
de Paris para a Proteção da Propriedade
Industrial (1883) e da União de Berna para
a Proteção das Obras Literárias e Artísticas
(1886) desempenharam um papel funda-
mental para a evolução desses direitos no
âmbito dos direitos internos e do direito in-
ternacional1.
Durante mais de cinqüenta anos, os sis-
temas das duas Uniões, de Paris e de Berna,
reunidas, oficialmente, em novembro de
1892, nos BIRPI – Bureaux Internationaux
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 287
Réunis Pour la Protection de la Propriété Intel- turação dos BIRPI, a fim de responderem às
lectuelle, permaneceram inalterados, ainda novas necessidades e enfrentar as transfor-
que algumas reorganizações tenham sido mações ocorridas após a Segunda Guerra
levadas a efeito. mundial.
Após a Segunda Guerra mundial, o di- A resposta veio com a “Convenção de
reito internacional sofreu importantes trans- Estocolmo”, de 14 de julho de 19672, que
formações, que se refletiram nos direitos de criou a “Organização Mundial da Proprie-
propriedade intelectual. O sistema introdu- dade Intelectual” – OMPI/WIPO, com sede
zido pelas Nações Unidas propiciou altera- em Genebra, que adquiriu o status de Orga-
ção essencial no regime das duas Uniões. nismo Especializado da ONU, em 17 de de-
Viu-se que as estruturas das Uniões eram zembro de 19743.
arcaicas e não conseguiam mais atender às A OMPI unifica os conceitos, abolindo a
novas necessidades de proteção da propri- tradicional divisão existente no modelo
edade intelectual. Com o aparecimento das tradicional ou histórico, que separava os
organizações internacionais, não era mais direitos dos autores e dos inventores em
possível manter as Uniões com as suas es- duas categorias: direito de autor e conexos e
truturas e características originárias. Era propriedade industrial. A Convenção de Es-
chegado o momento de aproximá-las das tocolmo destina-se à proteção da “proprie-
organizações internacionais que começa- dade intelectual” que, de acordo com o seu
vam a se multiplicar no pós-Guerra. texto, art. 2o , VIII, inclui os direitos relativos:
A Carta das Nações Unidas trouxe im- “– às obras literárias, artísticas e ci-
portantes e inovadoras disposições relati- entíficas;
vas à cooperação econômica e social entre – às interpretações dos artistas intér-
seus Estados membros. As competências pretes e às execuções dos artistas exe-
conferidas ao “Conselho Econômico e Soci- cutantes, aos fonogramas e às emis-
al” da ONU puseram em cheque a sobrevi- sões de radiodifusão;
vência dos organismos de coordenação en- – às invenções em todos os domínios
tão existentes, como as Uniões de Paris e de da atividade humana;
Berna e seus “Bureaux”. Não tardou para – às descobertas científicas;
que o “Conselho Econômico e Social” ace- – aos desenhos e modelos industriais;
nasse com a possibilidade de liquidação de – às marcas industriais, comerciais e
algumas instituições internacionais, entre de serviço, bem como às firmas comer-
as quais os referidos “Bureaux”. ciais e denominações comerciais;
Com o surgimento da Conferência das – à proteção contra a concorrência
Nações Unidas para o Comércio e o Desen- desleal e todos os outros direitos ine-
volvimento – CNUCED/UNCTAD (1964) rentes à atividade intelectual nos do-
e da Organização das Nações Unidas para mínios industrial, científico, literário
o Desenvolvimento Industrial – ONUDI e artístico”.
(1966), soluções do passado tornaram-se Vê-se, claramente, a unificação dos con-
ultrapassadas; era preciso criar uma orga- ceitos.
nização que se ocupasse, especificamente, Da sua constituição aos dias atuais, des-
da propriedade intelectual, que instituísse taca-se a função da OMPI de encorajar e es-
mecanismos adequados de proteção e redu- timular a atividade de criação dos indiví-
ção das disparidades crescentes entre os duos e das empresas dos países membros,
países industrializados e os em desenvolvi- facilitando a aquisição de técnicas e obras
mento. literárias e artísticas estrangeiras, bem como
A Comunidade Internacional se encon- o acesso à informação científica e técnica
trava diante de uma tarefa difícil: a reestru- contida nas patentes.

288 Revista de Informação Legislativa


A OMPI é o principal centro internacional solução de controvérsias entre os Estados
de promoção dos direitos de propriedade intelec- (negociação, mediação, conciliação e arbi-
tual. tragem), além do recurso à Corte Internacio-
nal de Justiça da Haia.
2. O regime internacional da A OMPI é uma organização de caráter
propriedade intelectual da OMC/TRIPS preponderantemente técnico, cujo processo
decisório tem por base o princípio da igual-
2.1. As razões da inclusão do TRIPS no GATT dade de votos entre os Estados partes. Ine-
xiste um órgão com competência para veri-
Duas são as razões fundamentais da in- ficar o adimplemento pelos Estados dos
clusão do TRIPS4 no GATT: o interesse de compromissos assumidos e um sistema de
completar as deficiências do sistema de proteção sanções oponíveis aos Estados-membros
da propriedade intelectual da OMPI e a necessi- inadimplentes.
dade de vincular, definitivamente, o tema ao co-
mércio internacional. 2.1.2. A vinculação dos direitos de
Em torno dessas duas grandes motiva- propriedade intelectual com o
ções, orbitam outras, satélites. Entretanto, comércio internacional
por razões metodológicas, debruçar-nos- Quando foi negociado o Acordo do
emos sobre as motivações principais. GATT, em 1947, já se sabia da importância
da proteção dos direitos de propriedade in-
2.1.1. A necessidade de completar o regime telectual para o comércio multilateral. Al-
internacional da OMPI guns dispositivos do GATT fazem referên-
A OMPI, diferentemente de outras orga- cia ao tema: arts. IX (6); XII (3), iii; XVIII (10)
nizações internacionais do sistema das e XX (d), porém, de forma muito tímida. Isso
Nações Unidas, não tem poderes para diri- porque, logo após a Segunda Guerra mun-
gir resoluções diretamente aos Estados. Seus dial, ainda não se tinha clara percepção da
atos decorrem das competências conferidas vinculação entre propriedade intelectual e
por tratados e convenções, em matérias es- comércio internacional, nem dos reflexos
pecíficas. Quanto aos aspectos administra- que poderiam advir, no mercado internaci-
tivos, a OMPI se encarrega da aplicação das onal, de um sistema mais eficaz de proteção
normas destinadas a dar efeitos internacio- desses direitos.
nais, tanto aos registros que são feitos dire- Isto só acontece, mais tarde, quando, es-
tamente no seu secretariado quanto àqueles pecialmente nas décadas de 70 e 80, ficam
realizados em órgãos administrativos inter- evidentes os benefícios da proteção à pro-
nos dos Estados. priedade intelectual, como fator fundamen-
Contudo, a atividade de harmonização tal de desenvolvimento tecnológico e au-
das normas sobre propriedade intelectual mento dos investimentos diretos do exterior.
acaba-se restringindo aos aspectos técnicos, Ou seja, reconhece-se que a proteção à pro-
haja vista a inexistência de mecanismos efi- priedade intelectual está diretamente vincu-
cazes de verificação do adimplemento dos lada ao aumento do comércio mundial.
deveres e obrigações dos Estados, e de reso- A partir de então, expande-se a compre-
lução de controvérsias. ensão de que os bens imateriais se tornam
A OMPI reconhece essas deficiências, cada vez mais importantes para a sobrevi-
razão pela qual continua seus trabalhos no vência das indústrias, e para as estratégias
sentido de elaborar um tratado sobre solu- que elas devem implementar nos âmbitos
ção de disputas, sobretudo no âmbito da nacional e internacional.
propriedade industrial, o qual deverá con- Se os bens imateriais se destacam no con-
templar os mecanismos tradicionais de re- texto do desenvolvimento tecnológico, os

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 289


direitos de propriedade intelectual, que os países em desenvolvimento influenciaram
protegem, assumem um grau maior de im- no curso dos trabalhos.
portância estratégica. Durante os debates, emergiram três con-
Aquela antiga condição de que gozavam cepções sobre propriedade intelectual:
os Estados, no modelo tradicional ou histó- (a) A primeira, defendida pelos
rico, anterior à Segunda Guerra, de optar Estados Unidos, entendia a proteção
por implementar ou não políticas de prote- da propriedade intelectual como ins-
ção à propriedade intelectual, torna-se invi- trumento para favorecer a inovação, as
ável no modelo atual, perante os compro- invenções e a transferência de tecnolo-
missos internacionais, cada vez mais nu- gia, independentemente dos níveis de
merosos, assumidos pelos Estados, e às pres- desenvolvimento econômico dos paí-
sões dos setores privados nacionais e trans- ses. Os países desenvolvidos enfatiza-
nacionais5. vam a vinculação entre propriedade
Vimos, assim, que a associação de fato- intelectual e comércio internacional.
res políticos, econômicos, sociais, culturais Durante as discussões, os países co-
e jurídicos realizou o casamento (indissolú- municaram ao GATT que a operação
vel) entre os direitos de propriedade intelec- de suas companhias era ameaçada
tual e o comércio internacional. Mas, para pela contrafação e inadequada prote-
isso, foi preciso esperar até as décadas re- ção da propriedade intelectual;
centes. (b) A segunda posição, defendida
pelos países em desenvolvimento,
2.2. As negociações do TRIPS no GATT: a destacava as profundas assimetrias
busca do consenso entre as partes Norte-Sul, no que diz respeito à capa-
Como vimos acima, as pressões das in- cidade de geração de tecnologia. Sem
dústrias nos países desenvolvidos, sobre- desconhecer a importância da prote-
tudo nos Estados Unidos, no sentido de ção da propriedade intelectual, esses
buscar maior proteção aos direitos de pro- países defendiam que o objetivo pri-
priedade intelectual, associada à frustração mordial das negociações deveria ser
demonstrada por alguns países com o siste- assegurar a difusão de tecnologia
ma de proteção das Nações Unidas, leva- mediante mecanismos formais e infor-
ram o tema para o âmbito de discussões do mais de transferência. Os países em
GATT6. desenvolvimento tinham a preocupa-
Os países em desenvolvimento resisti- ção de se garantir do acesso seguro à
ram por mais de vinte anos, porém acaba- moderna tecnologia mediante maior
ram por aceitar o GATT como o foro mais proteção dos direitos de propriedade
adequado para a elaboração de normas des- intelectual. O dilema era como aumen-
tinadas a estabelecer “níveis” ou “padrões” tar a proteção a esses direitos e garan-
de proteção da propriedade intelectual, tir o acesso à moderna tecnologia.
como também as medidas necessárias para Para eles, suas necessidades de desen-
a sua observância e sanções. volvimento econômico e social eram
As negociações tiveram início em 20 de tão importantes (ou mais) que os di-
setembro de 1986, quando do lançamento reitos dos detentores de propriedade
da Rodada do Uruguai. As diferenças entre intelectual;
Norte e Sul ficaram, mais uma vez, eviden- (c) Por fim, tínhamos uma posição
tes e se refletiram na capacidade negocia- intermediária de alguns países desen-
dora das delegações. Não apenas as dife- volvidos, entre os quais o Japão e os
renças econômicas dos países como também membros das Comunidades Européi-
a falta de especialistas nas delegações dos as, que destacaram a necessidade de

290 Revista de Informação Legislativa


assegurar a proteção dos direitos de dos no Preâmbulo do Acordo e nos arts. 7o,
propriedade intelectual, evitando abu- 8o e 69.
sos no seu exercício ou outras práti- Como se lê no Preâmbulo do Acordo, as
cas que constituíssem impedimento partes lograram o consenso comprometen-
ao comércio legítimo. Isso porque os do-se:
direitos exclusivos outorgados pelos (a) a aplicar os princípios básicos do
títulos de propriedade intelectual po- GATT 1994 e os acordos e convenções in-
deriam tornar-se, muitas vezes, bar- ternacionais relevantes em matéria de pro-
reiras ao comércio, especialmente por priedade intelectual;
seu uso abusivo. Para esses países, as (b) a estabelecer padrões e princípios ade-
distorções no comércio podem surgir quados relativos à existência, abrangên-
não apenas da “inadequada” prote- cia e exercício de direitos de propriedade
ção como também de uma “excessi- intelectual relacionados ao comércio;
va” proteção. (c) a estabelecer meios eficazes e apropria-
Após seis anos de intensas negociações, dos para a aplicação de normas de prote-
o diretor-geral do GATT, Arthur Dunkel, ção de direitos de propriedade intelectual
apresentou, em dezembro de 1991, um pro- relacionados ao comércio, levando em con-
jeto do acordo em todas as áreas negocia- sideração as diferenças existentes entre os
das durante a “Rodada do Uruguai”. Co- sistemas jurídicos nacionais;
nhecido como Dunkel Draft7, o projeto sofreu (d) a estabelecer procedimentos eficazes e
alterações até o fim da “Rodada do Uru- expedidos para a prevenção e solução
guai”, em 15 de dezembro de 1993, sendo multilaterais de controvérsias entre Go-
aprovado pelos Ministros do GATT, em vernos; (...).
Marraqueche, em 15 de abril de 1994. Para tanto, os Estados reconhecem:
O projeto buscava um ponto de equilí- (a) a necessidade de um arcabouço de prin-
brio entre as várias posições e, ao mesmo cípios, regras e disciplinas multilaterais
tempo, apresentava uma resposta às preo- sobre comércio internacional de bens con-
cupações dos países em desenvolvimento. trafeitos;
São reveladoras do contexto em que as (b) os direitos de propriedade intelectual
negociações se desenvolveram as colocações são direitos privados;
do diretor-geral Dunkel, no projeto final, de (c) os objetivos básicos de política pública
dezembro de 1991: dos sistemas nacionais para a proteção da
“This is not to say the agreement propriedade intelectual, inclusive os ob-
is without its critics. All parties ‘won’ jetivos de desenvolvimento e tecnologia;
and ‘lost’ important issues. Some in- (d) as necessidades especiais dos países de
dustries in some countries are deeply menor desenvolvimento relativo, no que
troubled by the compromise package se refere à implementação interna de leis e
put forward. Nonetheless, the oppor- regulamentos, com a máxima flexibilida-
tunity to obtain multilateral rules and de, de forma a habilitá-los a criar uma base
enforcement mechanisms across so tecnológica sólida e viável;
many disparate issues will likely be (e) a importância de reduzir tensões medi-
viewed as one of the major accom- ante a obtenção de compromissos firmes
plishments in any concluded Uruguay para a solução de controvérsias sobre ques-
Round”. tões de propriedade intelectual relaciona-
A composição dos interesses em jogo das ao comércio, por meio de procedimen-
durante as negociações do TRIPS resultou tos multilaterais (Preâmbulo).
numa posição comum expressa numa pau- O art. 7o do Acordo TRIPS fixa os Objeti-
ta de compromissos claramente apresenta- vos a serem perseguidos:

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 291


“A proteção e a aplicação de nor- cas que limitem de maneira injustificá-
mas de proteção dos direitos de pro- vel o comércio ou que afetem adversa-
priedade intelectual devem contribuir mente a transferência de tecnologia”.
para a promoção da inovação tecno- Os Estados, tendo sempre presentes as
lógica e para a transferência e difusão disposições do Acordo, devem adaptar suas
de tecnologia, em benefício mútuo de legislações às regras de proteção da proprie-
produtores e usuários de conhecimen- dade intelectual, sem perder de vista seus
to tecnológico e de uma forma condu- interesses em matéria de saúde pública, pro-
cente ao bem-estar social e econômico teção ambiental, entre outros. Podem os Es-
e a um equilíbrio entre direitos e obri- tados adotar medidas para evitar o abuso
gações”. dos direitos de propriedade intelectual ou o
As partes se comprometem a buscar “be- recurso a práticas que sirvam de barreiras
nefícios recíprocos”, “bem-estar social e eco- injustificáveis e não razoáveis ao comércio,
nômico” e, sobretudo, o “equilíbrio de direi- ou que afetem adversamente o curso da
tos e obrigações”. O reconhecimento e a ob- transferência internacional de tecnologia,
servância dos direitos de propriedade inte- lançando mão, por exemplo, das licenças
lectual dependem de valores sociais rele- obrigatórias.
vantes e, em particular, do equilíbrio entre O art. 69 do Acordo fixa as premissas
os usuários de conhecimento tecnológico. básicas da Cooperação Internacional entre
Como observou Carlos Correa (1998, p. os Estados contratantes:
28-29), “o Acordo TRIPS, portanto, não con- “Os Membros concordam em coo-
sagra um paradigma ‘absolutista’ da pro- perar entre si com o objetivo de elimi-
priedade intelectual, no qual só interessa a nar o comércio internacional de bens
proteção dos direitos do titular. Pelo contrá- que violem direitos de propriedade
rio, se baseia no equilíbrio entre a promoção intelectual. Para este fim, estabelece-
da inovação e da difusão e transferência de rão pontos de contato em suas respec-
tecnologia”. tivas administrações nacionais, deles
Destaca-se, assim, a importância da pro- darão notificações e estarão prontos a
moção da inovação e a difusão tecnológica intercambiar informações sobre o co-
como componentes fundamentais da políti- mércio de bens infratores. Promove-
ca dos países partes do Acordo. rão, em particular, o intercâmbio de
O art. 8o fixa os Princípios do Acordo: informações e a cooperação entre as
“1– Os Membros, ao formular ou autoridades alfandegárias no que tan-
emendar suas leis e regulamentos, ge ao comércio de bens com marca
podem adotar medidas necessárias contrafeita e bens pirateados”.
para proteger a saúde e nutrição pú- O dispositivo expressa o compromisso
blicas e para promover o interesse das partes, no sentido de coibir o comércio
público em setores de importância vi- de bens pirateados e com marcas contrafei-
tal para seu desenvolvimento socioe- tas, ou seja, o comércio internacional de bens
conômico e tecnológico, desde que es- que violem os direitos de propriedade inte-
tas medidas sejam compatíveis com o lectual. Todas as medidas tomadas nesse
disposto neste Acordo. sentido devem ser comunicadas, por meio
2– Desde que compatíveis com o do Conselho para TRIPS (Conselho dos As-
disposto neste Acordo, poderão ser pectos dos Direitos de Propriedade Intelec-
necessárias medidas apropriadas tual Relacionados ao Comércio), cujas fun-
para evitar o abuso dos direitos de ções são, de acordo com o art. 68, “supervi-
propriedade intelectual por seus titu- sionar a aplicação do Acordo e, em particu-
lares ou para evitar o recurso a práti- lar, o cumprimento, por parte dos Membros,

292 Revista de Informação Legislativa


das obrigações por ele estabelecidas, e lhes difusão de tecnologia, destacando as assi-
oferecer a oportunidade de efetuar consul- metrias Norte-Sul, comprometeram-se a im-
tas sobre questões relativas aos aspectos dos plementar medidas eficazes e apropriadas
direitos de propriedade intelectual relacio- para a aplicação de normas de proteção des-
nados ao comércio. O Conselho se desin- ses direitos relacionadas ao comércio, na
cumbirá de outras atribuições que lhe forem perspectiva da cooperação internacional.
confiadas pelos Membros e, em particular, A “Rodada do Uruguai” representa a
lhes prestará qualquer assistência solicita- busca de um denominador comum, cujo li-
da no contexto de procedimentos de solu- mite foi o próprio consenso. Sob essa ótica,
ção de controvérsias”. são extremamente oportunas as afirmações
O disposto no art. 67, referente à Coope- de Celso Lafer (1998, p. 28), quando, recor-
ração Técnica, determina que “a fim de faci- dando a lição de Grócio em oposição à de
litar a aplicação do Acordo, os países de- Hobbes”, diz-nos:
senvolvidos Membros, a pedido, e em ter- “Há um potencial de sociabilida-
mos e condições mutuamente acordados, de e solidariedade na esfera interna-
prestarão cooperação técnica e financeira cional. Este potencial provê – e este é
aos países em desenvolvimento Membros e o pressuposto no qual se fundamenta
de menor desenvolvimento relativo Mem- a OMC – uma interação organizada e
bros. Essa cooperação incluirá assistência não-anárquica entre os atores da vida
na elaboração de leis e regulamentos sobre econômica num mercado globalizado,
proteção e aplicação de normas de proteção que não funciona como um jogo de
dos direitos de propriedade intelectual, bem soma zero, em que o ganho de um sig-
como sobre a prevenção de seu abuso, e in- nifica a perda do outro. Há conflito,
cluirá apoio ao estabelecimento e fortaleci- mas há também cooperação, lastrea-
mento dos escritórios e agências nacionais da num processo abrangente que tem
competentes nesses assuntos, inclusive na sua base na racionalidade e na funci-
formação de pessoal”. onalidade da reciprocidade de inte-
O Acordo TRIPS busca o consenso, cujo resses. Somente se pode perceber e jul-
alicerce fundamental deve ser a cooperação gar adequadamente essa reciprocida-
entre os Estados partes. Quando necessá- de de interesses se estão visivelmente
rio, está à disposição dos Estados o Sistema à tona, através da publicidade contem-
de Solução de Controvérsias (constante do plada pelo princípio de transparên-
art. 64, do TRIPS, e do Anexo 2 do Acordo cia” (grifo nosso).
Final da Rodada do Uruguai).
O TRIPS representa, portanto, um docu- 2.3. O TRIPS: natureza, objetivos, alcance e
mento fundamental na consolidação da pro- princípios gerais
teção dos direitos de propriedade intelectu- Antes de estudarmos o conteúdo do Acor-
al na sociedade internacional contemporâ- do TRIPS, o que faremos a seguir, é impor-
nea, e a vinculação definitiva desses direi- tante examinar sua natureza jurídica, bem
tos ao comércio internacional. Com ele, as como seu alcance, principais objetivos, prin-
partes ganharam e perderam e os interesses cípios e características.
contrapostos acabaram chegando ao con-
senso. Certamente, o texto ficou aquém das 2.3.1. Natureza do TRIPS
expectativas dos países desenvolvidos, que O TRIPS integra o “Acordo Constitutivo
buscavam no GATT patamares superiores da Organização Mundial do Comércio –
de proteção dos direitos de propriedade in- OMC”, também conhecido como “Ata Final
telectual. Por outro lado, os países em de- da Rodada do Uruguai”, que aqui denomi-
senvolvimento, que buscavam assegurar a namos de “Acordo Geral” ou “Acordo

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 293


Constitutivo”. A OMC é um Acordo maior a paz ou a guerra, o recuso obstrucio-
que se compõe de quatro Anexos e o TRIPS é nista ao veto é considerado legítimo e
o Anexo 1C. ocorre com freqüência porque, teori-
Dessa forma, para entendermos o TRIPS e camente, a sobrevivência do Estado
seus fundamentos, devemos ter presente os como uma unidade independente
princípios que inspiram e norteiam a OMC. pode estar em jogo. A OMC, como uma
Como observou Celso Lafer, “a OMC, expressão de direito internacional de
num sistema internacional hoje caracteriza- cooperação no campo econômico e um
do por preponderância dos Estados Unidos foro de negociação de interesse geral,
– que é a única potência capaz de atuar em não opera sob a mesma presunção.
todos os tabuleiros da vida mundial (estra- Sua premissa é operar dentro, e não
tégico-militar, econômico-financeiro, tecno- fora do sistema. O consenso é a con-
lógico, político-diplomático, etc) –, é uma trapartida dessa premissa na OMC,
das únicas instâncias em que efetivamente enquanto um foro negociador de um
prevalece um multipolarismo. Enseja coli- direito internacional de cooperação.
gações de geometria variável, em função da Essa é a razão pela qual as normas da
variedade dos temas tratados; por isso, no OMC não podem ser impostas por
multilateralismo comercial não prevalecem meio de um pactum subjectionis. Todos
‘alinhamentos automáticos’”. Razão pela os membros da OMC criam e estabele-
qual, comenta Lafer (1998, p. 14-15), “na cem regras por meio de um pactum so-
OMC, na formação destas coligações, não cietatis, que assegura uma efetiva di-
só os Estados Unidos têm peso. A Europa mensão de aceitação generalizada”.
atua pela voz única da Comissão Européia, Os Anexos 1, 2 e 3 do Acordo da OMC
o Japão opera sem inibições; países de gran- integram o conjunto denominado “Acordos
de mercado como a Índia e o Brasil têm efe- Multilaterais de Comércio” e são “obrigató-
tiva influência; interesses específicos como rios” para os Estados membros. O Anexo 4
os da liberação do comércio de produtos agrí- é composto pelos denominados “Acordos
colas, como vem mostrando a atuação do Plurilaterais de Comércio”, que são faculta-
Grupo de Cairns, possuem poder de inici- tivos, isto é, vinculam, unicamente, os paí-
ativa pela força da ação conjunta e, finalmen- ses que os tenham aceitado.
te, a regra e prática do consenso no processo Em alguns países se discute a natureza
decisório têm um componente de democrati- do “Acordo Constitutivo da OMC”, em seus
zação que permeia a vida da organização”. respectivos ordenamentos internos. Para
A OMC descortina um novo universo que alguns, esse Acordo implica um executive
precisa ser mais conhecido pelas conseqü- agreement, para outros, um tratado de comér-
ências que gera em todos os campos da ati- cio – trade agreement8.
vidade econômica dos Estados e por ser o O “Acordo Constitutivo da OMC” é um
trampolim de inserção no comércio mundi- tratado-contrato, porque os Estados membros
al. Por meio de normas de cooperação mú- podem determinar como implementar suas
tua, a OMC busca a promoção do interesse regras, desde que observado o disposto no
comum. E, para entendermos isso melhor, “Acordo Geral e seus Anexos”. Com razão,
novamente são fundamentais as lições de sustenta Luiz Olavo Baptista (1996, p. 14-18),
Celso Lafer (1998, p. 38): “as pessoas não estão familiarizadas
“Em outros organismos internaci- com a sistemática da OMC. Ao lado
onais, tais como o Conselho de Segu- da assinatura do contrato, cada um
rança das Nações Unidas ou a Confe- dos países apresenta um anexo com
rência do Desarmamento, que tratam as disposições e as explicações da for-
de temas de segurança e cujo limite é ma como vai cumprir o tratado. Aí está

294 Revista de Informação Legislativa


um aspecto muito importante, são os tados partes, que só pode ser exigida pelo
bindings, isto é, as obrigações que os outro ou outros Estados partes do tratado.
países têm de nem por denúncia de Quem não é parte não pode exigir o seu cum-
tratado reduzir as vantagens decor- primento, tal qual acontece com os contra-
rentes de determinadas cláusulas e tos, no direito civil das obrigações.
condições. Essas deverão ser inseri- Denis Barbosa (1998, p. 87) afirma que
das na sua legislação, segundo os pra- os “destinatários das normas do TRIPS são
zos ali fixados. Em todos os tratados os Estados membros da OMC. Nenhum di-
que o Brasil assinou em Marraqueche, reito subjetivo resulta para a parte privada,
há um anexo com uma série de bindin- da vigência e aplicação do TRIPS”. E acres-
gs ou obrigações. Nas publicações fei- centa, com muita propriedade: “assim, por
tas pela OMC e do Diário Oficial, es- expressa determinação do próprio TRIPS,
ses bindings não aparecem”. cabe à legislação nacional dar corpo às nor-
Os Estados membros da OMC podem mas prefiguradas no texto internacional.
determinar o método mais adequado, de Não existem, no caso, normas uniformes,
acordo com os seus procedimentos internos, mas ‘padrões mínimos’ a serem seguidos
de implementação das disposições do pelas leis nacionais, sob pena de violação
“Acordo Geral”, o que reforça a sua nature- do Acordo – mas sem resultar, no caso de
za de “tratado-contrato”. Conforme Luiz desatendimento, em violação de direito sub-
Olavo Baptista (1996, p. 14-18), é como se jetivo privado”.
cada Estado, ao firmar a “Ata Final” ou o A essência contratual do TRIPS despon-
“Acordo Constitutivo da OMC, dissesse: ta desde logo em seu art. 1o (Natureza e
“Este contrato que passamos entre nós, Es- Abrangência das Obrigações):
tados-membros, visa criar uma legislação “1.1. Os Membros colocarão em
que observe um piso e deve ser implementa- vigor o disposto neste Acordo. Os
do por você, Estado-membro, dentro do seu Membros poderão, mas não estarão
sistema jurídico da forma que você costuma obrigados a prover, em sua legislação,
fazer, ou deve fazer essas coisas de acordo proteção mais ampla que a exigida
com a sua legislação”. Segundo ele, “fica neste Acordo, desde que tal proteção
claro assim que os mandamentos do Acor- não contrarie as disposições deste
do não se endereçam aos súditos, mas aos Acordo. Os Membros determinarão
Estados-membros da OMC”. livremente a forma apropriada de im-
O TRIPS é um “tratado-contrato”, não plementar as disposições deste Acor-
só devido aos seus aspectos relacionados do no âmbito de seus respectivos sis-
ao comércio, mas porque por meio dele, bem tema e prática jurídicos”.
como dos demais acordos que compõem a Os Estados partes do TRIPS assumiram,
OMC, os Estados partes, realizando uma reciprocamente, o compromisso de imple-
operação jurídica, criaram uma situação mentar, em seus sistemas de direito nacio-
jurídica subjetiva. nal, os padrões mínimos de proteção fixa-
Sua natureza é distinta dos “tratados- dos em comum. São livres para determinar
leis”, que estabelecem uma situação jurídi- a forma mais apropriada de cumprir esse
ca impessoal na medida em que editam re- compromisso de acordo com as regras vi-
gras de direito objetivamente válidas. Nes- gentes em seus sistemas de direito e com a
ses, os Estados desempenham um papel se- prática reinante. Caracterizará violação ao
melhante ao do legislador. Acordo TRIPS se os Estados partes não o
Os “tratados-contratos” geram obriga- fizerem, se, ao fazerem, não observarem os
ção internacional de conduta na ordem in- padrões mínimos ou, se esses forem obser-
ternacional e não na ordem interna dos Es- vados, houver descumprimento.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 295


2.3.2. Os objetivos e alcance do TRIPS para a proteção da propriedade intelectual,
inclusive os objetivos de desenvolvimento e
2.3.2.1. Objetivos tecnologia e, igualmente, nas necessidades
especiais dos países de menor desenvolvi-
Os objetivos do TRIPS, haja vista as duas mento relativo no que se refere à implemen-
preocupações principais – (a) completar as tação interna de leis e regulamentos com a
deficiências do sistema de proteção da máxima flexibilidade, de forma a habilitá-
OMPI e (b) vincular, definitivamente, os di- los a criar uma base tecnológica sólida e vi-
reitos de propriedade intelectual ao comér- ável” (Preâmbulo).
cio internacional, são: “reduzir as distor- Conforme os objetivos do TRIPS, “a pro-
ções e obstáculos ao comércio internacio- teção e a aplicação de normas de proteção
nal”, levando em conta “a necessidade de dos direitos de propriedade intelectual de-
promover uma proteção eficaz e adequada vem contribuir para a promoção da inova-
dos direitos de propriedade intelectual” e ção tecnológica e para a transferência e di-
“a necessidade de assegurar que as medi- fusão de tecnologia, em benefício mútuo de
das e procedimentos destinados a fazê-los produtores e usuários de conhecimento tec-
respeitar não se tornem, por sua vez, obstá- nológico e de uma forma conducente ao bem-
culos ao comércio legítimo”9. Os Estados estar social e econômico e a um equilíbrio
partes reconhecem como absolutamente ne- entre direitos e obrigações” (art.7o).
cessário: Busca o TRIPS reduzir tensões entre os
“a) a aplicação dos princípios bási- Estados partes por meio do compromisso
cos do GATT 1994 e dos acordos e para a solução de controvérsias sobre ques-
convenções internacionais relevan- tões de propriedade intelectual relaciona-
tes em matéria de propriedade inte- das ao comércio, por meio de procedimen-
lectual; tos multilaterais, descritos no art. 64 do
b) o estabelecimento de padrões e prin- Acordo TRIPS e no Anexo 2 do Acordo Ge-
cípios adequados relativos à existên- ral.
cia, abrangência e exercício de direi- O TRIPS visa à realização de um empre-
tos de propriedade intelectual relaci- endimento comum, dirigido à promoção do
onados ao comércio; interesse compartilhado. Suas metas estão
c) o estabelecimento de meios eficazes traçadas em normas de cooperação mútua,
e apropriados para a aplicação de consenso, prudência e lealdade.
normas de proteção de direitos de pro-
priedade intelectual relacionados ao 2.3.2.2. Alcance ou abrangência
comércio, levando em consideração as O art. 1.1. aponta o alcance do TRIPS:
diferenças existentes entre os sistemas 1) o alcance das obrigações represen-
jurídicos nacionais; tam um standard mínimo: “os Mem-
d) o estabelecimento de procedimen- bros poderão, mas não estarão obri-
tos eficazes e expeditos para a preven- gados a prover, em sua legislação,
ção e solução multilaterais de contro- proteção mais ampla que a exigida
vérsias entre os Governos” (Preâmbu- neste Acordo”;
lo). 2) a obrigatoriedade de incorporação
O TRIPS teve origem “na necessidade de das disposições do Acordo nas legis-
se elaborar um arcabouço de princípios, re- lações nacionais;
gras e disciplinas multilaterais sobre o co- 3) a liberdade de escolha da metodo-
mércio de bens contrafeitos; na exigência logia de implementação: “os Membros
premente de se fixar objetivos básicos de determinarão livremente a forma apro-
política pública dos sistemas nacionais priada de implementar as disposições

296 Revista de Informação Legislativa


deste Acordo no âmbito de seus res- Em 1994, o Canadá, o Japão e a Austrá-
pectivos sistemas e prática jurídicos”. lia modificaram suas leis para adaptá-las
ao TRIPS.
A) Os padrões mínimos de proteção Os países latino-americanos, mesmo
As disposições do TRIPS constituem dentro do período de transição, já começa-
padrões mínimos de proteção que devem ser ram a se adaptar às disposições do TRIPS,
adotados pelos Estados partes, em suas le- entre eles Argentina, Brasil e Comunidade
gislações nacionais. Andina.
Não se pode exigir dos Estados partes
proteção aos direitos de propriedade inte- C) Os métodos de incorporação
lectual mais ampla do que aquela prevista aos direitos internos
no Acordo. Qualquer controvérsia deve ser Os Estados partes têm liberdade para
submetida ao procedimento de solução de escolher a forma apropriada para imple-
controvérsias da OMC. mentar as disposições do Acordo, desde
As disposições do Acordo não são autô- que respeitados os padrões mínimos de pro-
nomas e não podem ser aplicadas diretamente teção, podendo prover proteção mais ampla.
porque ditam os critérios mínimos de prote- A metodologia a ser seguida por cada Esta-
ção e não o exato conteúdo desses direitos. do, na implementação do TRIPS, é aquela
Sendo assim, o TRIPS não constitui uma descrita em seu próprio sistema de direito16.
lei uniforme, porque muitas áreas ficaram O art. 1.2. determina o que se entende
em aberto, por exemplo, a matéria patenteá- por propriedade intelectual: direito do au-
vel (art. 27, 3 “d”)10, os períodos de transi- tor e direitos conexos, marcas, indicações
ção conferidos aos países em desenvolvi- geográficas, desenhos industriais, patentes,
mento (art. 65, 2)11 e de menor desenvolvi- topografia de circuitos integrados e prote-
mento relativo (art. 66)12. ção de informação confidencial.
O art. 13 (Limitações e Exceções) prevê
B) A incorporação nos direitos internos que “os Membros restringirão as limitações
Os Estados membros devem incorporar ou exceções aos direitos exclusivos a deter-
as regras do Acordo em suas legislações, minados casos especiais, que não conflitem
observados, para os países em desenvolvi- com a exploração normal da obra e não pre-
mento e de menor desenvolvimento relati- judiquem injustificavelmente os interesses
vo, os períodos de transição estabelecidos. legítimos do titular do direito”.
Muitos países, sobretudo os desenvolvi-
dos, têm ratificado o TRIPS e, pelo seu cará- 2.3.3. Os princípios gerais do TRIPS
ter “não executório” ou no self executing, ado-
2.3.3.1. O princípio do Single Undertaking
tado leis para incorporar as disposições do
Acordo em suas legislações. Nos Estados Esse é um princípio fundamental para
Unidos, foi sancionada uma lei especial para entendermos a lógica do sistema da OMC.
incorporar o TRIPS ao seu direito interno, O princípio do single undetaking está ex-
em 1994. A União Européia ratificou o TRIPS presso no art. 2o, incisos 2 e 3, da Ata Final
e a Comissão Européia declarou que as dis- da Rodada do Uruguai, isto é, do Acordo
posições do Acordo não são “por sua natu- Constitutivo da OMC:
reza suscetíveis de serem invocadas pelos “2. 2 – Os acordos e os instrumen-
particulares na Comunidade ou frente aos tos legais conexos incluídos nos Ane-
tribunais dos países membros”13, razão pela xos 1, 2 e 3 (denominados a seguir de
qual a Comissão modificou as normas pree- ‘Acordos Comerciais Multilaterais’)
xistentes em matéria de marcas14 e de circui- formam parte integrante do presente
tos integrados15. Acordo e obrigam a todos os Membros.

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2. 3 – Os acordos e os instrumen- Convenção de Roma, fará uma notificação,
tos legais conexos incluídos no Ane- de acordo com aquelas disposições, ao Con-
xo 4 (denominados a seguir de ‘Acor- selho para TRIPS”.
dos Comerciais Plurilaterais’) também Os Estados partes também poderão fa-
formam parte do presente Acordo para zer uso dessas exceções “em relação a pro-
os Membros que os tenham aceito e cedimentos judiciais e administrativos, in-
são obrigatórios para estes. Os Acor- clusive a designação de um endereço de ser-
dos Comerciais Plurilateriais não cri- viço ou nomeação de um agente em sua área
am obrigações nem direitos para os de jurisdição, somente quando tais exceções
Membros que não os tenham aceita- sejam necessárias para assegurar o cumpri-
do”. mento de leis e regulamentos que não sejam
Do que se conclui que não é possível incompatíveis com as disposições deste Acor-
aderir a apenas parte dos Acordos, sob pena do e quando tais práticas não sejam aplica-
de quebrar seu equilíbrio e lógica estrutu- das de maneira que poderiam constituir res-
ral, exceção feita aos “Acordos Comerciais trição disfarçada ao comércio” (art. 3.2).
Plurilaterais”, do Anexo 4.
Desse princípio decorre a unidade do 2.3.3.3. O princípio da nação mais favorecida
sistema, razão pela qual chamávamos aten- Esse princípio, que faz parte da história
ção para o fato de que o TRIPS deve ser do GATT – 1947 (art. I: Tratamento Geral de
examinado dentro da estrutura da OMC. Nação mais Favorecida), é um dos pilares
Segundo o princípio do single under- sobre o qual se apóia a OMC. No Acordo
taking o TRIPS não admite reservas. TRIPS, esse princípio está previsto no art.
4o, o qual determina que, com relação à pro-
2.3.3.2. O princípio do tratamento nacional teção da propriedade intelectual, “toda van-
O princípio do “tratamento nacional” e tagem, privilégio ou imunidade que um
o princípio “da nação mais favorecida” já Membro conceda aos nacionais de qualquer
integravam o esquema estrutural do GATT outro país será outorgado imediata e incon-
– 1947 (arts. I e III) e se mantiveram na estru- dicionalmente aos nacionais de todos os
tura da OMC, atingindo todos os seus acor- demais Membros”. Está isenta dessa obri-
dos constitutivos. gação toda vantagem, favorecimento, privi-
De acordo com o art. 3,1 do TRIPS (Tra- légio ou imunidade concedida por um Mem-
tamento Nacional), “cada Membro conce- bro que
derá aos nacionais dos demais Membros tra- “a) resulte de acordos internacionais
tamento não menos favorável que o outor- sobre assistência judicial ou sobre
gado a seus próprios nacionais com relação aplicação em geral da lei e não limita-
à proteção17 da propriedade intelectual, sal- dos em particular à proteção da pro-
vo as exceções já previstas, respectivamen- priedade intelectual;
te, na Convenção de Paris (1967), na Con- b) tenha sido outorgada em conformi-
venção de Berna (1971), na Convenção de dade com as disposições da Conven-
Roma e no Tratado sobre a Propriedade In- ção de Berna (1971) ou da Convenção
telectual em Matéria de Circuitos Integra- de Roma que autorizam a concessão
dos. No que concerne a artistas-intérpretes, de tratamento em função do tratamen-
produtores de fonogramas e organizações to concedido em outro país e não do
de radiodifusão, essa obrigação se aplica tratamento nacional;
apenas aos direitos previstos neste Acordo. c) seja relativa aos direitos de artistas-
Todo Membro que faça uso das possibilida- intérpretes, produtores de fonogramas
des previstas no Artigo 6 da Convenção de e organizações de radiodifusão não
Berna e no parágrafo 1.b, do Artigo 16 da previstos neste Acordo;

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d) resultem de acordos internacionais O esgotamento “nacional” ocorre quan-
relativos à proteção da propriedade do a exaustão dos direitos do titular se limi-
intelectual que tenham entrado em ta ao livre comércio interno de um Estado.
vigor antes da entrada em vigor do Se o titular do direito de propriedade inte-
Acordo Constitutivo da OMC, desde lectual colocou no comércio nacional seu
que esses acordos sejam notificados produto, não pode impedir a sua ulterior
ao Conselho para TRIPS e não consti- comercialização.
tuam discriminação arbitrária ou in- Com o esgotamento internacional acon-
justificável contra nacionais dos de- tece o mesmo, porém, com repercussões
mais Membros (art. 4o)”. maiores. Se o produto for comercializado
O campo de aplicação desse artigo é bas- pela primeira vez pelo titular do direito de
tante amplo: todas as vantagens, favoreci- propriedade intelectual, ou com o seu con-
mentos, privilégios e imunidades que um sentimento, em qualquer lugar do mundo,
Estado parte conceda aos nacionais de ou- estarão livres as importações e ulteriores
tro Estado parte serão automática e incon- vendas paralelas desse produto no Estado
dicionalmente estendidas aos nacionais dos importador em que a marca tenha sido re-
demais Estados partes. gistrada.
É importante observar que as obrigações Existe ainda o esgotamento “supranaci-
decorrentes dos princípios do “tratamento onal”, que acontece no âmbito do Mercado
nacional” e “da nação mais favorecida” Comum Europeu.
(arts. 3o e 4o) “não se aplicam aos procedimen- Contudo, o que nos interessa aqui é o
tos previstos em acordos multilaterais concluí- “esgotamento internacional”.
dos sob os auspícios da OMPI relativos à obten- O art. 6o do Acordo TRIPS estabelece:
ção e manutenção dos direitos de propriedade “Para os propósitos de solução de contro-
intelectual” (art. 5o). vérsias no marco deste Acordo, e sem preju-
ízo do disposto nos Artigos 3 e 4, nada nes-
2.3.3.4. O princípio do esgotamento te Acordo será utilizado para tratar da ques-
internacional dos direitos (exaustão) tão da exaustão dos direitos de proprieda-
Conforme o princípio do “esgotamento de intelectual”.
internacional dos direitos ou exaustão de Durante as negociações da Rodada do
direitos”, o direito de exclusão comercial do Uruguai, pretendeu-se dar a esse artigo uma
titular do direito de propriedade intelectual redação mais explícita. Não obstante, pare-
se esgota (exaure, termina) no momento em ce claro que sua intenção é reconhecer ao
que ele introduz o produto patenteado no legislador nacional a plena liberdade para
comércio ou consente que isso seja feito por prover ou excluir o esgotamento dos direi-
terceiro. tos de propriedade intelectual no seu corpo
Ao realizar a primeira comercialização, o legislativo interno, respeitados os limites
direito do titular se esgota de tal forma que os impostos pelo próprio Acordo TRIPS.
produtos introduzidos no comércio poderão O princípio do esgotamento internacio-
ser objeto de atos, ulteriores e sucessivos, de nal já constava no GATT – 1947, parágrafos
comercialização, de acordo com o regime de 1o e 4o do art. III (Tratamento Nacional no
liberdade de comércio. O titular da marca não Tocante à Tributação e Regulamentação In-
mais poderá proibir ou restringir que tercei- ternas). De acordo com esses dispositivos,
ros comercializem, ulteriormente, produtos os produtos do território de uma parte con-
com a tal marca, o que se denomina “vendas tratante não podem receber da lei nacional
paralelas” ou “distribuições paralelas”. sobre propriedade intelectual tratamento
O esgotamento pode ser “nacional” e menos favorável que o outorgado aos pro-
“internacional”. dutos similares de origem nacional, evitan-

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do uma proteção discriminatória do produ- cado de acordo com patente de processo ou
to nacional. Se, aos produtos nacionais, apli- de produto que tiver sido colocado no mer-
ca-se o esgotamento nacional, ao produto cado interno diretamente pelo titular da
importado deve-se aplicar o princípio do patente ou com seu consentimento”.
esgotamento internacional, nas mesmas con- A exaustão internacional aparece no art.
dições, desde que introduzidos no mercado 188: “Comete crime contra registro de dese-
da parte exportadora pelo titular do direito nho industrial quem: ... II – importa produto
de propriedade intelectual, ou com o seu que incorpore desenho industrial registrado
consentimento. no País, ou imitação substancial que possa
O art. 6o do TRIPS admite a possibilida- induzir em erro ou confusão, para os fins pre-
de do esgotamento internacional dos direi- vistos no inciso anterior, e que não tenha sido
tos, isto é, a possibilidade de importar legal- colocado no mercado externo diretamente
mente um produto protegido por direitos de pelo titular ou com seu consentimento”.
propriedade intelectual, desde que tenha
sido introduzido, no mercado de qualquer 2.3.3.5. O princípio da transparência
outro país, pelo seu titular, ou com o seu O princípio da “transparência” é essen-
consentimento. cial na estrutura da OMC e no Acordo TRIPS.
A possibilidade de “importações para- Pelo art. 63, os Estados partes se comprome-
lelas” faz parte da lógica do sistema da tem a publicar, ou a tornar públicos, as leis
OMC. Como afirmou Tomás de las Heras e regulamentos finais de aplicação relativos
Lorenzo (1994, p. 477), “a exclusão do esgo- à matéria objeto do Acordo, de tal forma que
tamento internacional suporia uma distor- os governos e os titulares dos direitos de
ção no sistema do GATT e um passo atrás propriedade intelectual deles tomem conhe-
na liberdade do comércio internacional”. cimento. Impõe o princípio da transparên-
Afirma Correa (1998, p. 48-49) que “o re- cia que os acordos relativos à matéria objeto
conhecimento do princípio do esgotamento do Acordo TRIPS que estejam em vigor en-
internacional do Acordo TRIPS pode ser tre o governo ou uma agência governamen-
visto como um reflexo lógico da globaliza- tal de um membro e o governo ou agência
ção da economia em nível nacional. Esta so- governamental de um outro membro tam-
lução é conveniente para assegurar a compe- bém sejam publicados.
titividade das empresas locais, que podem Tem um papel importante na transpa-
estar em desvantagem se se vêem obrigadas a rência da conduta das partes contratantes o
comprar exclusivamente de distribuidores “Conselho para TRIPS” (“Conselho dos
que aplicam preços mais altos que os vigen- Aspectos dos Direitos de Propriedade Inte-
tes em outro país”. lectual Relacionados ao Comércio”). Sua
A exaustão nacional no Brasil consta no função é a de supervisionar a aplicação do
art. 43, IV, e a exaustão internacional, no art. Acordo “e, em particular, o cumprimento,
188, II, da Lei n. 9.279, de 14 de maio de 1996. por parte dos Membros, das obrigações por
O art. 42 da referida lei brasileira deter- eles estabelecidas, e lhes oferecerá a oportu-
mina que “a patente confere ao seu titular o nidade de efetuar consultas sobre questões
direito de impedir terceiro, sem o seu con- relativas aos aspectos dos direitos de pro-
sentimento, de produzir, usar, colocar à ven- priedade intelectual relacionados ao comér-
da, vender ou importar com estes propósi- cio”. O Conselho “se desincumbirá de ou-
tos: I – produto objeto de patente; II – proces- tras atribuições que lhe forem confiadas pe-
so ou produto obtido diretamente por pro- los Membros e, em particular, lhes prestará
cesso patenteado...”. A exaustão nacional qualquer assistência solicitada no contexto
aparece no art. 43: “O disposto no artigo de procedimentos de solução de controvér-
anterior não se aplica... IV – a produto fabri- sias” (art. 68).

300 Revista de Informação Legislativa


As partes contratantes se comprometem “A fim de facilitar a aplicação do
a notificar o Conselho para TRIPS das leis e presente Acordo, os países desenvol-
regulamentos referidos acima, de forma a vidos Membros, a pedido, e em termos
assisti-lo em suas funções. O Conselho ten- e condições mutuamente acordados,
tará minimizar o ônus dos membros em dar prestarão cooperação técnica e finan-
cumprimento a essa obrigação e poderá até ceira aos países em desenvolvimento
dispensá-los disso, se concluir com a OMPI Membros e de menor desenvolvimen-
entendimento sobre o estabelecimento de to relativo Membros. Essa cooperação
um registro comum. O mesmo poderá acon- incluirá assistência técnica na elabo-
tecer relativamente às obrigações do Acor- ração de leis e regulamentos sobre pro-
do TRIPS derivadas das disposições do art. teção e aplicação de normas de prote-
6 da Convenção de Paris (1967) (art. 63, 2 do ção dos direitos de propriedade inte-
TRIPS). lectual, bem como sobre a prevenção
de seu abuso, e incluirá apoio ao esta-
2.3.3.6. O princípio da cooperação belecimento e fortalecimento dos es-
internacional critórios e agências nacionais compe-
A OMC tem suas bases no direito inter- tentes nesses assuntos, inclusive na
nacional da cooperação, cuja finalidade formação de pessoal”.
principal é a promoção do interesse comum No campo da assistência mútua, entre
por meio de normas de cooperação mútua. as partes contratantes, os países desenvol-
A cooperação é a pedra de toque em todos vidos concederão “incentivos a empresas e
os Acordos que constituem a Organização, instituições de seus territórios com o objeti-
inclusive o TRIPS. vo de promover e estimular a transferência
A cooperação pode ser interna e externa. de tecnologia aos países de menor desen-
A cooperação “interna” se realiza no volvimento relativo Membros, a fim de ha-
âmbito da OMC, isto é, entre seus membros. bilitá-los a estabelecer uma base tecnológi-
No TRIPS, o princípio da cooperação apa- ca sólida e viável” (art. 66, 2).
rece no Preâmbulo, e se consagra, definiti- A cooperação internacional ou “exter-
vamente, no art. 69 (Cooperação Internacio- na” é a que se estabelece entre o TRIPS e a
nal): OMPI e outras organizações internacionais
“Os Membros concordam em coo- relevantes na proteção dos direitos de pro-
perar entre si com o objetivo de elimi- priedade intelectual. Não poderia ser dife-
nar o comércio internacional de bens rente já que a proposta do TRIPS é somar-se
que violem direitos de propriedade aos acordos preexistentes sobre a matéria,
intelectual. Para este fim, estabelece- estabelecendo relações de cooperação e as-
rão pontos de contato em suas respec- sistência contínua com outras organizações.
tivas administrações nacionais, delas O art. 68, parte final do Acordo, estabele-
darão notificação e estarão prontos a ce: “O Conselho para TRIPS poderá con-
intercambiar informações sobre o co- sultar e buscar informações de qualquer fon-
mércio de bens infratores. Promove- te que considerar adequada. Em consulta
rão, em particular, o intercâmbio de com a OMPI, o Conselho deverá buscar es-
informações e a cooperação entre as tabelecer, no prazo de um ano a partir de
autoridades alfandegárias no que tan- sua primeira reunião, os arranjos apropria-
ge ao comércio de bens com marca dos para a cooperação com os órgãos da-
contrafeita e bens pirateados”. quela Organização”.
Dentro do princípio geral de cooperação, O futuro vai definir e selar as bases des-
o art. 67 enfatiza o aspecto técnico da assis- sas relações de cooperação, tanto interna cor-
tência mútua: poris quanto entre as organizações.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 301


2.3.3.7. O princípio da interação entre os subseqüentes tratados multilaterais, que
tratados internacionais sobre a matéria participam de um grau de generalidade que
lhes dá o caráter de atos legislativos e al-
O TRIPS não pretende cancelar o passa- cançam propriamente todos os membros da
do e recomeçar a tarefa de proteção dos di- comunidade internacional ou devem ser
reitos de propriedade intelectual. Como her- considerados como tendo sido concluídos
deiro da história, reconhece o valor dos do- no interesse internacional...”.
cumentos que o antecederam. O art. 2o (Con- Há um equívoco na argumentação de
venções Sobre Propriedade Intelectual) sela Licks. O Acordo TRIPS não propõe uma rup-
esse compromisso: tura com a Convenção de Paris, nem é um
“1 – Com relação às Partes II, III e “tratado-normativo” mas “contratual”.
IV deste Acordo, os Membros cum- As obrigações contratadas na Conven-
prirão o disposto nos Artigos 1 a 12 e ção de Paris prevalecem sobre o TRIPS, haja
19, da Convenção de Paris (1967). vista que foram mantidas e reafirmadas em
2 – Nada nas Partes I a IV deste seu art. 2o. Os tratados não se excluem, con-
Acordo derrogará as obrigações exis- tradizem ou disputam a primazia de regular
tentes que os Membros possam ter relações jurídicas, mas se somam e comple-
entre si, em virtude da Convenção de tam e, na dúvida, prevalece o bom senso18.
Paris, da Convenção de Berna, da Ambos os documentos representam a
Convenção de Roma e do Tratado So- proteção atual dos direitos de propriedade
bre a Propriedade Intelectual em Ma- intelectual, suas relações são de interação,
téria de Circuitos Integrados”. não de “conflito”, porque estamos no con-
Alguns autores questionam as relações texto do direito internacional de coopera-
entre a Convenção de Paris e o TRIPS. ção e não de coexistência, em que são co-
Uma corrente sustenta que as obrigações, muns os conflitos entre fontes.
assumidas na Convenção de Paris, prevale- O TRIPS é dirigido aos direitos de pro-
cem com o Acordo TRIPS, uma vez que priedade intelectual relacionados ao comér-
mantidas e reafirmadas no art. 2o. Outra cio internacional, enquanto a Convenção de
sustenta que vários são os princípios de di- Paris não tem essa pretensão.
reito internacional público contrários a essa
tese, entre eles, o princípio lex posterior dero- 2.3.3.8. O princípio da interpretação
gat priori, isto é, quando os tratados têm dis- evolutiva
posições contraditórias e os signatários são Uma das principais características do
os mesmos, prevalece o último tratado. TRIPS é a dinamicidade. A interpretação
Para Otto Licks (1998, p. 628), “ainda que das suas cláusulas pode mudar de acordo
muito sedutora pela sua excelência, a tese com a evolução do tema. Como observou
de que a Convenção de Paris prevalece so- Otto Licks (1998, p. 625), “a grande diferen-
bre o TRIPS merece considerações adicio- ça de infra-estrutura constitucional, legal, e
nais”. Isso porque, Licks parece basear-se de disponibilidade de corpo técnico qualifi-
no texto adotado pela Comissão de Direito cado em cada um dos membros do Acordo
Internacional das Nações Unidas, que, cita- também contribuirá para a pluralidade de
do por ele, estabelece que: “1 – Um tratado entendimentos. Ademais, o estudo do TRIPS
bilateral ou multilateral, ou qualquer dis- por internacionalistas também contribuirá
posição de um tratado, é nulo, se sua execu- de forma importante para a interpretação
ção envolve a ruptura de uma obrigação de das cláusulas do Acordo”.
tratado previamente assumida por uma ou Como evitar as diferentes interpretações?
mais partes contratantes; ... 4 – A regra for- Cada Estado, ao incorporar as regras do
mulada nos parágrafos 1 e 2 não se aplica a TRIPS, fá-lo com base no seu próprio siste-

302 Revista de Informação Legislativa


ma de direito e realidade econômica, social, nal da propriedade intelectual”, citado na
cultural, etc. Contudo, a observância dos nota n.1, razão pela qual não nos vamos re-
princípios básicos do Acordo assim como petir aqui.
as decisões proferidas pelo Órgão de Solu-
ção de Controvérsias da OMC (OSC) servi- 4. Os efeitos do TRIPS
rão de lastro comum para a interpretação.
Em síntese, o Acordo TRIPS estabelece os 4.1. Os efeitos do TRIPS no direito
padrões mínimos de proteção a serem ob- internacional de proteção dos direitos
servados pelos Estados partes, os quais se de propriedade intelectual pós-uniões
comprometem a incorporá-los, submetendo- de Paris e de Berna
se às sanções previstas no Acordo.
O Acordo não é auto-executável (no self- A proteção e o reconhecimento dos di-
executing) e deve ser incorporado pelos Es- reitos de propriedade intelectual estão liga-
tados partes em suas legislações nacionais, dos ao direito internacional público e pri-
por mecanismos próprios, haja vista a liber- vado.
dade deixada pelo Acordo, tanto no que diz Com a OMC-TRIPS, a construção jurídi-
respeito às normas substantivas quanto as ca sobre a matéria adquiriu novos contor-
de procedimento. nos e atingiu sua maturidade em nova pers-
O Acordo TRIPS se baseia nas principais pectiva econômica internacional.
convenções internacionais sobre a matéria, O TRIPS, como parte integrante do Acor-
mantendo com todas elas uma relação de do Constitutivo da OMC, trouxe princípios
colaboração e complementaridade, introdu- novos como o single undertaking, “transpa-
zindo princípios como o da “nação mais rência”, “cooperação internacional”, “inte-
favorecida”, “esgotamento internacional ração entre tratados internacionais” e “in-
dos direitos”, e single undertaking, entre ou- terpretação evolutiva”.
tros. O TRIPS fixou “padrões mínimos” rela-
tivos à existência, alcance e exercício dos
3. Solução de controvérsias direitos de propriedade intelectual. Dotou o
regime internacional de proteção desses di-
A) Mecanismos de solução reitos de um “mecanismo de prevenção e
solução de controvérsias”. O Estado parte
De acordo com o art. 64, a solução de pode, mediante notificação ao Órgão de So-
controvérsias do TRIPS é regida pelos arts. lução de Controvérsias da OMC (OSC), soli-
XXII e XXIII do GATT, desenvolvidos e apli- citar uma consulta a outro Estado parte.
cados nos Entendimentos Relativos às Nor- Caso não resolva a controvérsia, pode ser
mas e Procedimentos Sobre Solução de Con- constituído um Painel (ou Grupo Especial)
trovérsias, previstos no Anexo 2, do Acordo com a incumbência de examinar a questão.
Constitutivo da OMC. Esse Anexo 2 adotou Da decisão do Painel, cabe recurso ao Ór-
o Dispute Settlement Body (DSB), ou “Órgão gão de Apelação. Estão previstas sanções,
de Solução de Controvérsias” (OSC), que se autorizadas pelo OSC, contra o Estado mem-
traduz num mecanismo mais eficaz para a bro que não cumprir as decisões do Painel e
solução de controvérsias do que o do GATT. do Órgão de Apelação.
O Órgão de Solução de Controvérsias O TRIPS dotou a legislação internacio-
(OSC) da OMC substituiu o Conselho Geral nal elaborada pela OMPI, e mesmo antes
do GATT, e dele fazem parte todos os Mem- dela, de defesa e ataque, na medida em que
bros da OMC. O OSC traz vários elementos se somou aos instrumentos internacionais
novos e importantes sobre os quais já nos preexistentes sobre a matéria e, ao mesmo
debruçamos no livro “O direito internacio- tempo, acrescentou dados novos.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 303


O TRIPS trouxe o que faltava, estabele- receitas ou de diretivas que o juiz – pois é
cendo mecanismos de consulta e fiscaliza- principalmente a ele que se leva o problema
ção (vigilância) dos “padrões mínimos” in- – deverá aplicar de maneira sistemática”.
ternacionais exigidos e garantindo a obser- O princípio fundamental dessa interpre-
vância desses “padrões” nos direitos dos tação deve ser a vontade dos Estados par-
Estados partes. tes, que, no caso do TRIPS, não é revogar ou
excluir as convenções anteriores, mas acres-
4.2. As implicações institucionais decorrentes centar-lhes elementos novos.
das relações entre o TRIPS e a OMPI Como observou o professor Miguel Rea-
A OMPI administra as Uniões de Paris e le (198-?, p. 17-23), no início dos anos 80, “a
de Berna, bem como os tratados internacio- Convenção de Paris não representa um di-
nais de propriedade intelectual. Seu proces- reito uniforme, ela marca uma diretriz no
so decisório se baseia no princípio da igual- sentido de um direito uniforme. Eu diria
dade de votos entre os Estados partes. Ine- numa expressão filosófico-matemática que
xiste órgão ou mecanismo com competên- a internacionalização das normas de direi-
cia para verificar o cumprimento por parte to industrial é o infinito de uma constante
dos Estados das normas que se encontram exigência jurídica. Nós marchamos cada
sob a sua guarda e nela inexiste um sistema vez mais para a uniformização das regras
de sanção oponível aos Estados inadimplen- que disciplinam a matéria de direito indus-
tes. A OMPI continua-se ocupando da har- trial, mas não podemos pretender que isso
monização legislativa do direito de propri- se realize já”. Segundo ele, “a disparidade
edade intelectual, enquanto o TRIPS, dos entre os diversos países leva a muitas incom-
aspectos comerciais internacionais relacio- preensões, a reclamações reiteradas, pertur-
nados com a matéria. bando o campo das relações internacionais”.
Pode parecer que o TRIPS teria ensejado A constante exigência jurídica de que nos
o conflito de regras entre tratados sucessi- fala Reale deu origem ao TRIPS (DREYFUSS;
vos ou concorrentes. Contudo, isso não LOWENFELD, 1997, p. 275-367; NETANA-
acontece, porque suas regras não são incom- EL, 1997, p. 441-503).
patíveis com as das Convenções preexisten- O TRIPS pode consultar e buscar infor-
tes, antes, completa-as. mações com a OMPI, o que demonstra o tra-
Charles Rousseau (1958, p. 24-548) obser- balho de parceria e cooperação constantes
va que “a interpretação dos tratados interna- na proteção dos direitos de propriedade in-
cionais tem a sua própria lógica, que às vezes telectual.
se afasta daquela dos contratos do direito pri- Em Genebra, em 22 de dezembro de 1995,
vado”. Razão pela qual, “é muito interessan- foi celebrado o “Acordo entre a OMPI e a
te a adaptação do trabalho de interpretação à OMC” com vistas a estabelecer uma relação
natureza das disposições convencionais em de apoio mútuo. O Acordo formula as re-
causa”. O direito internacional “apresenta gras de cooperação institucional entre as duas
características específicas em razão da forma Organizações, no que diz respeito ao acesso
particular que reveste a elaboração das nor- a leis e regulamentos da OMPI pelos Estados
mas jurídicas nas relações entre Estados”. membros da OMC e seus nacionais, bem como
Nas relações entre o TRIPS e as conven- estabelece os princípios básicos da assistên-
ções anteriores devem prevalecer as regras cia técnico-jurídica e cooperação técnica.
de bom senso e a lógica jurídica. Como dis- O TRIPS não pode prescindir do traba-
se Rousseau (1958, p. 500-501), “a interpre- lho da OMPI, haja vista a preocupação cons-
tação dos tratados é um trabalho de arte tante dessa Organização com os tratados
jurídica e não uma operação mecânica que que estão sob a sua responsabilidade e seu
coloca em funcionamento um conjunto de programa, intensificado nos anos 90, de as-

304 Revista de Informação Legislativa


sistência técnico-jurídica aos países em de- dos partes antes de transcorrido um
senvolvimento, pelo qual os ajuda a se in- prazo geral de um ano após a data de
troduzirem no sistema de proteção da pro- entrada em vigor do Acordo Consti-
priedade intelectual ou a aperfeiçoarem tutivo da OMC.
aquele que já possuem. 2) Regime transitório especial para
A OMPI continua estimulando as ativi- os Estados partes em desenvolvi-
dades de criação dos indivíduos e das em- mento
presas, facilitando a aquisição de técnicas e Os Estados partes em desenvolvi-
obras literárias e artísticas estrangeiras, as- mento podem-se beneficiar de um pe-
sim como o acesso à informação científica e ríodo transitório adicional de quatro anos,
técnica contida nas patentes. exceção feita aos arts. 3, 4 e 5 do Acor-
A OMPI continua a ser o principal centro do TRIPS. O total do período transitó-
internacional de promoção dos direitos de pro- rio especial para essa categoria de
priedade intelectual, papel que lhe está asse- Estados partes é de cinco anos, os
gurado na História e agora reforçado pela quais resultam do período transitório
colaboração do Conselho para TRIPS. geral de um ano, mais quatro anos do
período transitório especial (art. 65.2).
4.3. Os efeitos do TRIPS no Brasil As disposições que não podem ser
No Brasil, as normas do TRIPS geram excepcionadas, dos arts. 3, 4 e 5, refe-
dois tipos de efeitos: externos e internos. rem-se aos princípios do “tratamento
Os efeitos externos ou internacionais estão nacional”, do “tratamento de nação
relacionados às obrigações assumidas na mais favorecida” e aos “acordos mul-
OMC e aos seus Estados membros. Os efei- tilaterais concluídos sob os auspícios
tos internos referem-se à entrada em vigor no da OMPI relativos à obtenção e ma-
direito brasileiro e executoriedade no Brasil. nutenção dos direitos de propriedade
Tanto os efeitos externos quanto os internos fi- intelectual”.
caram, no TRIPS, condicionados a um prazo Os países em desenvolvimento
para que suas regras entrassem em vigor. podem obter um prazo adicional de
Vejamos isso melhor. cinco anos para aplicar as normas
sobre patentes de produtos, contidas
4.3.1. O regime transitório especial do TRIPS na Seção 5 da Parte II do Acordo, aos
para os Estados partes em desenvolvimento setores tecnológicos que não protegi-
A Parte VI do TRIPS (arts. 65, 66 e 67) é am em seu território na data geral de
dedicada às Disposições Transitórias, que aplicação do Acordo (art.65.4).
trazem dois elementos importantes: (a) o Os Estados partes em processo de
grau de desenvolvimento econômico dos transformação de economia de pla-
Estados partes e (b) a matéria objeto das dis- nejamento centralizado para merca-
posições do Acordo. do e de livre empresa, realizando re-
Diante da importância da combinação forma estrutural de seu sistema de
desses dois elementos, o TRIPS estabelece propriedade intelectual, enfrentando
três tipos de “Regimes Transitórios”: um problemas especiais na preparação e
“Geral” e dois “Especiais” em favor de cer- implementação de leis e regulamen-
tas categorias de Estados partes. tos de propriedade intelectual, pode-
1) Regime transitório geral rão também se beneficiar de um prazo
Previsto no art. 65.1, beneficia a adicional de quatro anos, exceção fei-
todos os Estados partes do Acordo. ta aos arts. 3, 4, e 5 do TRIPS. Esses
Nenhuma das obrigações contidas no países, portanto, beneficiar-se-ão tam-
Acordo TRIPS será exigível aos Esta- bém de um período transitório de cin-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 305


co anos (quatro anos do período tran- em 1o de janeiro de 1995”, tal não ocorreu
sitório especial e um ano do período por força do “Regime Transitório Especial”
transitório geral), conforme o dispos- do art. 65.2 porque os efeitos externos e inter-
to no art. 65.3. nos do TRIPS ficaram condicionados à pas-
O parágrafo 5 do art. 65 estabelece que sagem do tempo. Como observa Guido Soa-
um “Membro que se utilize do prazo de tran- res (1995, p. 98-119), “até o momento do
sição previsto nos parágrafos 1, 2, 3 e 4 as- adimplemento dos termos para a entrada
segurará que quaisquer modificações nas em vigor daquele ato internacional, não se
suas legislações, regulamentos e prática fei- pode cogitar de um conflito entre a legisla-
tas durante esse prazo não resultem em um ção interna e o direito internacional de ori-
menor grau de consistência com as disposi- gem convencional”.
ções do presente Acordo”. O período de transição se refere ao
3) Regime transitório especial para TRIPS, isto é, ao Anexo 1-C, porque todas as
os Estados de menor desenvolvimen- demais regras dos outros Acordos que com-
to relativo membros põem a Ata Final da Rodada do Uruguai se
Os Estados menos adiantados, em submetem às suas próprias disposições.
virtude de suas limitações econômi-
cas, financeiras e administrativas e 4.3.2. O TRIPS e a legislação brasileira de
necessidade de flexibilidade para es- proteção da propriedade intelectual
tabelecer base tecnológica viável, não Até o transcurso do prazo para a entra-
estão obrigados a aplicar as disposi- da em vigor do TRIPS (1o.1.2000), no Brasil,
ções do Acordo, exceção feita aos arts. não se levantava a possibilidade de conflito
3, 4 e 5, durante um prazo de dez anos entre as disposições daquele Acordo e a
contados a partir da data de aplica- nossa legislação interna.
ção estabelecida no art. 65.1 (Regime O período de transição é e foi, em nosso
Transitório Geral de um ano). caso, importante porque o TRIPS afeta não
Esse período pode ser prorrogado só o universo legislativo dos Estados partes
mediante pedido fundamentado, fei- no que diz respeito aos direitos de proprieda-
to pelo Estado interessado, ao Conse- de intelectual, como também outros setores.
lho para TRIPS (art.66.1). Como é sabido, os Estados partes do
Diante da natureza complexa das dis- TRIPS não estão obrigados a prover, em suas
posições do TRIPS e seus efeitos nas legisla- legislações internas, proteção mais ampla
ções dos Estados partes, foram necessários que a exigida pelo Acordo e têm a liberdade
dispositivos de direito intertemporal para de determinar a forma apropriada de im-
definir o início da vigência do Acordo, consi- plementar as regras do TRIPS em seus siste-
derando as especificidades de certos países. mas e prática jurídicos19.
As disposições que fixam os “Regimes Dando cumprimento ao disposto no
Transitórios” são essenciais uma vez que TRIPS, e de acordo com o sistema brasileiro
não só o TRIPS como o Acordo Constitutivo de aprovação de tratados internacionais (tre-
da OMC afetam a vida econômica dos Esta- aty-making power), o Congresso Nacional
dos membros, os quais precisam de um pe- aprovou o Acordo Constitutivo da OMC,
ríodo razoável de tempo para adequar suas por meio do Decreto Legislativo no 30, de 15
legislações internas às obrigações interna- de dezembro de 1994, promulgado pelo De-
cionalmente assumidas. creto Presidencial no 1.355, de 30 de dezem-
Apesar de o Decreto no 1.355/94 decla- bro de 1994, e publicado no Diário Oficial
rar que “a Ata Final que incorpora os Resul- da União de 31 de dezembro de 1994.
tados da Rodada do Uruguai entra em vi- Logo após começou no Brasil o movimen-
gor para a República Federativa do Brasil to de revisão da legislação sobre proprieda-

306 Revista de Informação Legislativa


de intelectual e novas leis sobre a matéria O TRIPS é uma norma especial, um acor-
foram editadas que, com pequenas exceções, do sobre aspectos de propriedade intelectu-
observam os padrões mínimos de proteção al no campo do comércio internacional. Daí
do TRIPS. decorre a sua natureza especial, inclusive
no que diz respeito aos direitos de proprie-
4.3.2.1. Os efeitos do TRIPS após o decurso do dade intelectual.
período de transição
Quando o Congresso Nacional aprovou
o Acordo Constitutivo da OMC, o TRIPS foi
incorporado à legislação brasileira junta- Notas
mente com o mecanismo que dilata a sua 1
Estudo mais aprofundado sobre a matéria
entrada em vigor. Contudo, mesmo dentro fizemos no livro: O direito internacional da proprieda-
desse período, como vimos acima, o Brasil de intelectual. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
procurou, e tem procurado, adaptar suas 2000.
2
No Brasil, foi promulgada pelo Decreto no
disposições de direito interno aos padrões
75.541, de 31 de março de 1975, publicada no Diá-
internacionais do Acordo. rio Oficial da União, 2 abr. 1975.
Até o momento do transcurso do período 3
Em 28 de setembro de 1979, o texto da Con-
de transição e, conseqüentemente, da entra- venção foi emendado.
4
da em vigor do TRIPS no Brasil (1o.1.2000), TRIPS – Trade Related Aspects of Intellectual Pro-
não ocorreram conflitos entre a legislação perty Rights integra o “Acordo Constitutivo da Or-
ganização Mundial do Comércio (OMC)”, como
interna e as regras do Acordo. seu ANEXO 1C. O TRIPS, nos países de língua
O que pode acontecer transcorrido o pe- latina, é conhecida pela sigla “ADIPIC – Acordo
ríodo de transição? As regras de direito in- Sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Inte-
terno brasileiro, incompatíveis com o TRIPS, lectual Relacionados com o Comércio”. Cf. Decreto
estão ipso facto revogadas? Presidencial no 1355, de 30 de dezembro de 1994.
5
Os tratados internacionais incorporados Sobre as atividades das empresas transnacio-
nais, são valiosas as lições de BAPTISTA (1987).
ao direito brasileiro passam a ser conside- 6
Para aprofundar o estudo da história das
rados como leis e produzem os mesmos efei- negociações da Rodada do Uruguai e seus resulta-
tos destas sobre as demais20. Do que se de- dos, Cf. Lafer (1998); Gervais [19-?]; Khavand
duz que ocorreria a revogação das leis in- (1995); Messerlin (1995); Rainelli (2002); Cerviño;
Prada[19-?]; Zuccherino; Mitelman (1997); Flory
ternas brasileiras pelo TRIPS em conformi- (1995); Costa (1996); são oportunos, também, os
dade do princípio lex posterior derogat priori. resultados do “Colloque de Nice” sobre La réorga-
Entretanto, isso não ocorre, pois o TRIPS nisation mondiale des échanges: Problèmes juridiques,
é um “tratado-contrato” e não “tratado-lei”. publicados pela Société Française Pour le Droit In-
ternational, 1996.
Suas normas se destinam aos Estados-par- 7
Cf. “Meeting of Negotiating Group of 16 and
tes e não aos indivíduos que não recebem, 22 October”, In GATT DOC. MTN.GNG/TRIPS/3
imediatamente, nenhum direito subjetivo (nov.18, 1991).
com a entrada em vigor do TRIPS. 8
Sobre a diferença entre os executive agreements e
Hoje, transcorrido o período de transi- os “tratados internacionais”, são importantes as
lições de Medeiros (1995).
ção, se houver discrepâncias entre a legisla- 9
Preâmbulo do TRIPS.
ção nacional e o TRIPS, caberá ao legislador 10
Art. 27 (“Matéria Patenteável”)... “3) Os
nacional dar corpo às disposições do Acor- Membros também podem considerar como não
do (o que já vem fazendo), adaptar o direito patenteáveis: ...(b) plantas e animais, exceto mi-
interno aos padrões fixados pelo TRIPS, sob croorganismos e processos essencialmente biológi-
pena de, não o fazendo, o Brasil violar o cos para a produção de plantas ou animais, exce-
tuando-se os processos não biológicos e microbio-
Acordo e, conseqüentemente, ficar sujeito a lógicos. Não obstante, os Membros concederão pro-
responder perante o Órgão de Solução de teção a variedades vegetais, seja por meio de pa-
Controvérsias da OMC. tentes, seja por meio de um sistema sui generis efi-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 307


caz, seja por uma combinação de ambos. O dis- partes no tratado posterior, sem que o tratado an-
posto neste subparágrafo será revisto quatro anos terior tenha cessado de vigorar ou sem que a sua
após a entrada em vigor do Acordo Constitutivo aplicação tenha sido suspensa em virtude do arti-
da OMC”. go 59, o tratado anterior só se aplica na medida em
11
Art. 65 (“Disposições Transitórias”) “1 – Sem que suas disposições sejam compatíveis com as do
prejuízo do disposto nos parágrafos 2, 3 e 4, ne- tratado posterior. 4 – Quando as partes no tratado
nhum Membro estará obrigado a aplicar as dispo- posterior não incluírem todas as partes no tratado
sições do presente Acordo antes de transcorrido anterior: a) nas relações entre os Estados partes nos
um prazo geral de um ano após a data de entrada dois tratados, aplicam-se as regras do parágrafo 3;
em vigor do Acordo Constitutivo da OMC”. “2 – b) nas relações entre um Estado parte nos dois tra-
Um país em desenvolvimento Membro tem direito tados e um Estado parte apenas em um desses
a postergar a data de aplicação das disposições do tratados, o tratado em que os dois Estados são
presente Acordo, estabelecida no parágrafo 1, por partes rege seus direitos e obrigações recíprocos”(...).
um prazo de quatro anos, com exceção dos artigos Art. 59 (“Extinção ou Suspensão da Execução de
3, 4 e 5”. um Tratado em Virtude da Conclusão de Tratado
12
Art. 66 (“Países de Menor Desenvolvimento Posterior”), “1 – Considera-se extinto um tratado
Relativo Membros”) “1 – Em virtude de suas ne- quando todas as suas partes concluírem um trata-
cessidades e requisitos especiais, de suas limita- do posterior sobre o mesmo assunto e: a) resultar
ções econômicas, financeiras e administrativas e de do tratado posterior ou ficar estabelecido por outra
sua necessidade de flexibilidade para estabelecer forma que a intenção das partes é regular o assunto
uma base tecnológica viável, os países de menor por este tratado; ou b) as disposições do tratado
desenvolvimento relativo Membros não estarão obri- posterior forem de tal modo incompatíveis com as
gados a aplicar as disposições do presente Acor- do tratado anterior que os dois tratados não pos-
do, com exceção dos Artigos 3, 4, e 5, durante um sam ser aplicados ao mesmo tempo. 2 – A execu-
prazo de dez anos contados a partir da data de ção do tratado anterior é considerada apenas sus-
aplicação estabelecida no parágrafo 1 do Artigo pensa quando se depreender do tratado posterior
65. O Conselho para TRIPS, quando receber um ou estiver estabelecido de outra forma que essa era
pedido devidamente fundamentado de um país de a intenção das partes”.
19
menor desenvolvimento relativo Membro, concede- Conforme o art. 1 do TRIPS (“Disposições
rá prorrogação desse prazo”. Gerais e Princípios Básicos”).
O art. 3o se refere ao princípio do tratamento 20
Sobre as relações dos tratados internacionais
nacional, o art. 4o ao princípio da nação mais favo- e o direito interno, recomendamos: RANGEL, Vi-
recida e o art. 5o aos acordos multilaterais concluí- cente Marotta. Os conflitos entre o direito interno e
dos sob os auspícios da OMPI. os tratados internacionais. Boletim da Sociedade Bra-
13
Reg. 94/800/EC. O Tribunal de Justiça da sileira de Direito Internacional. Rio de Janeiro, n. 45-
União Européia expôs as razões da não auto-exe- 46, dez./jan. 1967; REZEK, José Francisco. Direito
cutoriedade dos Acordos do GATT, no leading case dos tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984; BAPTIS-
“International Fruit”. TA, Luiz Olavo. Inserção dos tratados no direito
14
Reg. 40/94. brasileiro. Revista de Informação Legislativa, Brasília,
15
Reg. 94/824. n. 132, ano 33, out./dez. 1996, p. 71-80; RODAS,
16
Sobre os métodos de incorporação dos tra- João Grandino. A publicidade dos tratados internacio-
tados aos direitos internos, Cf. Medeiros (1995). nais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
17
A proteção aqui compreende os aspetos que
afetem a existência, obtenção, abrangência, manu-
tenção e aplicação de normas de proteção dos di-
reitos de propriedade intelectual, bem como os as- Bibliografia
pectos relativos ao exercício dos direitos de propri-
edade intelectual de que trata especificamente o
Acordo TRIPS. ACTUS du Colloque de Nice. La réorganisation mon-
18 diale des échanges: problèmes juridiques. Société Fran-
Convenção de Viena sobre Direito dos Trata-
çaise Pour le Droit International, Paris: Pedone,
dos, 1969, art. 30 (“Aplicação de Tratados Suces-
1996.
sivos Sobre o Mesmo Assunto”): ... 2 – Quando um
tratado estipular que está subordinado a um trata- BAPTISTA, Luiz Olavo. A nova lei e o TRIPS. Re-
do anterior ou posterior ou que não deve ser consi- vista da Associação Brasileira da Propriedade Intelectu-
derado incompatível com esse outro tratado, as al, Rio de Janeiro, p. 14-18. Edição publicada como
disposições deste último prevalecerão. 3 – Quando anais do XVI Seminário Nacional de Propriedade
todas as partes no tratado anterior são igualmente Intelectual ocorrido em São Paulo em 1996.

308 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 309


310 Revista de Informação Legislativa
A obrigatoriedade do tratado na ordem
interna

Mirtô Fraga

Sumário
1. Situação constitucional da matéria. 1.1. A
aprovação pelo Legislativo. 1.2. A promulga-
ção pelo Executivo. 2. A posição da jurispru-
dência. 3. Conclusão.

A característica instabilidade das insti-


tuições políticas da América Latina, como
não podia deixar de ser, atingiu, também, o
Brasil que, desde sua independência até os
dias atuais, teve sua organização político-
jurídica determinada por sete Constituições
e uma Emenda nº 1, de 1969, que quase pode
ser considerada uma nova Carta, tais foram
o número e o alcance das reformas por ela
instituídas.
Apesar do número excessivamente alto
das Constituições que regeram e têm regido
o País, em cento e cinqüenta e seis anos de
independência, não obstante a baixa média
da sua vigência — sobretudo se se reportar
apenas ao período republicano —, verificar-
se-á que pouca, ou nenhuma, foi a evolu-
ção, no que respeita ao disciplinamento das
relações entre o direito interno e o Direito
Internacional, salvo, é verdade, um avanço
na Constituição de 1988: vejam-se, por exem-
plo, arts. 4º, 5º, §§ 1º e 2º.
Aqui, após negociado e assinado pelo
Poder Executivo, o tratado deve ser aprova-
do pelo Poder Legislativo, podendo, então,
ser ratificado por aquele e os instrumentos
de ratificação são trocados (tratados bilate-
rais) ou depositados perante o depositário.
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 311
Após a sua conclusão, é promulgado pelo As Constituições posteriores mantive-
Presidente da República, por intermédio de ram orientação semelhante, com pequenas
decreto, publicado no Diário Oficial da modificações. Assim, competia ao Supremo
União. Não se pode concluir que o Brasil Tribunal Federal julgar, em recurso extraor-
adota uma ou outra forma de tornar obriga- dinário, as causas decididas, em única ou
tório o tratado, sem uma análise do que dis- última instância, por outros tribunais1, quan-
põe, a respeito do assunto, a Lei Maior. A do a decisão recorrida: a) fosse contra a le-
promulgação mesma do tratado, a necessi- tra de tratado ou lei federal (Const. de 19342,
dade ou a dispensa dessa providência, o 1937 e 1946); b) negasse vigência de tratado
valor que lhe deve ser atribuído e a própria ou lei federal (Const. de 1967), na redação
aprovação do tratado pelo Poder Legislati- primitiva e na resultante da Emenda nº 1/
vo devem, também, ser estudados à luz dos 69, sobre cuja aplicação se haja questiona-
comandos constitucionais, para, então, con- do (Const. de 1934 e 1937). De igual forma, a
cluir-se, ou não, pela obrigatoriedade de Constituição de 1988 confere ao Supremo
aplicação da norma convencional, na ordem Tribunal Federal a competência para julgar,
interna. Este trabalho será subdividido em em recurso extraordinário, as causas deci-
duas partes: a primeira estudará a situação didas, em única ou última instância, por
constitucional do problema e a segunda, a outros tribunais quando a decisão recorri-
posição do Supremo Tribunal Federal, ten- da declarar a inconstitucionalidade de tra-
do em vista sua jurisprudência. tado ou lei federal (art. 102, III, “b”). Relati-
vamente à competência da Justiça Federal
1. Situação constitucional da matéria para processar e julgar as causas fundadas
em tratado firmado pelo Brasil, as Consti-
A Constituição Imperial de 1824 nada tuições de 1937 e 1946 nada dispunham,
dispunha sobre a aplicação de tratado pelo uma vez que não mantiveram a Justiça Fe-
Poder Judiciário. Aliás, foi de todas as nos- deral, reorganizada, posteriormente, com o
sas Cartas a que menos referência fez aos Ato Institucional nº 2, de 27/10/1965, que,
atos internacionais. Ao Imperador com- entre outras providências, deu nova reda-
petia a representação do Estado, poden- ção ao art. 105. A Constituição de 1988 ou-
do celebrar tratados que só, excepcional- torgou competência aos Juízes federais para
mente, deveriam receber aprovação legis- julgar causas: a) entre Estado estrangeiro ou
lativa. organismo internacional e Município ou
A primeira Constituição Republicana, pessoa domiciliada ou residente no Brasil
promulgada em 24/02/1891, outorgava (art. 109, II); b) as causas fundadas em trata-
competência ao Supremo Tribunal Federal do ou contrato da União com Estado estran-
para “julgar, em grau de recurso, as ques- geiro ou organismo internacional (art. 109,
tões resolvidas pelos juízes e tribunais fede- III). Ao Superior Tribunal de Justiça, o cons-
rais” (art. 59, 2), aos quais competia conhe- tituinte de 1987-1988 conferiu competência
cer das “ações movidas por estrangeiros e para julgar, em recurso ordinário, as causas
fundadas (...) em convenções ou tratados da em que forem partes Estado estrangeiro ou
União com outras nações” (art. 60, “f”). Ao organismo internacional, de um lado, e, de
Supremo Tribunal Federal competia, ainda, outro, Município ou pessoa domiciliada ou
conhecer do recurso interposto de sentença, residente no País (art. 105, II, “c”), e, em re-
em última instância, da justiça do Estado curso especial, as causas decididas, em úni-
Membro, quando se questionasse “sobre a ca ou última instância, pelos Tribunais Re-
validade, ou a aplicação, de tratados e leis gionais Federais ou pelos Tribunais dos
federais, e a decisão do tribunal do Estado” Estados, do Distrito Federal ou dos Territó-
fosse “contra ela” (art. 59, § 1º, “a”). rios, quando a decisão recorrida contrariar

312 Revista de Informação Legislativa


tratado ou lei federal ou negar-lhe vigência cional. Ter-se-ia estabelecido, expressamen-
(art. 105, III, “a”). te, a competência do Poder Legislativo para
Todas as nossas Constituições republi- elaborar leis sobre os tratados regularmente
canas fazem referência à aplicação de trata- concluídos pelo Poder Executivo. Mas, ao
do pelos tribunais. Em conseqüência, per- Congresso compete, apenas, aprová-los.
gunta-se: adotou o Brasil a teoria da incor- Para melhor explanação, subdividir-se-
poração imediata do Direito Internacional á este trabalho em duas partes, abordando-
convencional no direito interno? Há neces- se a aprovação legislativa e o decreto de pro-
sidade de atos legislativos que integrem, no mulgação do Executivo.
sistema jurídico brasileiro, a matéria conti-
da no tratado? Ou, em outras palavras, após 1.1. A aprovação pelo Legislativo
o tratado, há necessidade de lei, de um ato No Brasil, apesar do pequeno número
típico do Poder Legislativo, dispondo sobre de dispositivos constitucionais sobre os atos
o assunto, objeto do compromisso firmado? que obrigam, internacionalmente, o Estado,
Em suma, o Poder Judiciário brasileiro apli- a questão não apresenta a dificuldade que
ca o tratado ou aplica disposição legislati- se observa nos Estados Unidos da América,
va interna? onde o tratado é aprovado, apenas, pelo Se-
A resposta a tais indagações requer uma nado. Aqui, as Constituições Republicanas
prévia análise sobre questões diversas. sempre exigiram a aquiescência das duas
O tratado não se confunde com a lei — é Casas para que o acordo consubstanciado
um ponto pacífico na doutrina e na juris- no tratado pudesse ser concluído. Empre-
prudência. Têm eles processos de elabora- ga-se, neste trabalho, o vocábulo tratado no
ção diversos e, para a conclusão do primei- sentido amplo, compreendendo a conven-
ro, indispensável se torna a vontade con- ção, o pacto, o acordo, enfim, qualquer ajus-
cordante de, pelo menos, um outro Estado. te internacional.
A lei emana de fonte interna, dos Poderes Aprovando o tratado assinado pelo Exe-
Legislativo e Executivo — lei no sentido res- cutivo, o Congresso dá seu assentimento
trito —, destinando-se a aplicação interna, para que se conclua o ato internacional, ao
embora possa incidir sobre fatos ocorridos mesmo tempo que exterioriza, é evidente, sua
externamente. O tratado é a exteriorização aquiescência à matéria nele contida. A apro-
da vontade concordante de dois ou mais vação do tratado obedece quase ao mesmo
Estados. Se, a princípio, destinava-se a re- processo de tramitação das leis, dele diver-
gular, apenas, as relações interestatais, hoje, gindo em dois pontos: por não comportar
sua finalidade específica, muitas vezes, é, emendas; por ser promulgada pelo Presi-
justamente, regular as relações individuais dente do Senado3, sem necessidade de san-
no âmbito interno de cada Estado co-con- ção do Presidente da República. A aprova-
tratante, isto é, estabelecer uma legislação ção é feita por Decreto Legislativo. Embora
uniforme a respeito de determinado assun- tal ato se compreenda no processo legislati-
to, uniforme, ainda que só em relação aos vo4, não tem ele o condão de transformar o
dois co-contratantes, se não se tratar de ato acordo assinado pelo Executivo em norma a
multilateral. ser observada, quer na órbita interna, quer
Fazendo expressa referência à aplicação na internacional. Se é da competência ex-
da norma convencional pelos tribunais, as clusiva5 do Congresso Nacional “resolver
nossas Constituições, implicitamente, deter- definitivamente sobre os tratados, acordos ou
minam a sua aplicação sem a exigência de atos internacionais que acarretem encargos
uma lei que disponha sobre a mesma maté- ou compromissos gravosos ao patrimônio
ria nele contida. Se outro fosse o entendi- nacional”, não se pode, entretanto, dar à
mento, diversa seria a disposição constitu- expressão, em grifo, valor acima de seu real

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alcance. Constitucionalmente, o Executivo ção, data em que, geralmente, entra em vi-
só pode concluir, vale dizer ratificar o trata- gor8 na ordem interna, como veremos mais
do, ou a ele aderir, mediante prévia autori- adiante. A aprovação do Legislativo é, apenas,
zação do Congresso. Pode, todavia, assiná- uma etapa, uma fase do processo de formação
lo, celebrá-lo ad referendum do Poder Legis- do ato internacional. Ela é um requisito de
lativo. Concedida a aprovação, não fica, validade, sem o qual a ratificação não pro-
porém, o Chefe do Executivo obrigado à sua duzirá o efeito de obrigar o Estado interna-
ratificação. É que a palavra final, aí, deverá cionalmente; mas, também, como adiante
ser do Presidente da República a quem com- será demonstrado, tem outra característica.
pete, como órgão representativo do Estado, Embora siga quase o mesmo processo desti-
nas relações internacionais, celebrar trata- nado a gerar a lei, o decreto-legislativo, que
do, obrigando o Brasil (Const. 1988, art. 84, aprova o tratado, não pode ser a ela equipa-
VIII). A manifestação do Congresso só é de- rado. A lei, em sentido estrito, é ato conjunto
finitiva se concluir por negar aprovação ao do Legislativo e do Executivo, isto é, exige a
texto6, quando, então, o Presidente da Re- participação de ambos os Poderes, para
pública estará impedido de concluir o acor- converter-se em norma obrigatória depois
do, não podendo, pois, ratificá-lo. Em sínte- de publicada. O decreto-legislativo se dis-
se, “resolver definitivamente sobre tratados, tingue da lei (a) pela matéria; (b) por con-
acordos...” compreende a competência do cluir-se com a aprovação, não sendo susce-
Congresso para (a) autorizar (aprovar) a tível nem de sanção, nem de veto; (c) por ser
conclusão do tratado (isto é, sua ratificação promulgado pelo Presidente do Senado
pelo Executivo) ou (b) negar autorização (C.F., 1988, arts. 48, 49, I, c.c. RI/SF, art. 213,
para que o ato internacional (bi ou multila- II, RI/CD, art. 109, II). Já era assim na Cons-
teral) seja concluído. Por dever de justiça, tituição anterior (art. 59, § 6º e 44, I, C.F./67,
devo registrar que parece ter sido Rezek (“As com a Emenda nº 1/69, art. 48, c.c. arts. 49,
relações...”) o primeiro autor brasileiro a I, e 65).
perceber, com nitidez, o verdadeiro signifi- Na América Latina (cf. REZEK, 1970, p.
cado da expressão “resolver definitivamen- 70-71), três são as formas pelas quais o Po-
te sobre tratados...”. Isso aconteceu há mais der Legislativo aprova o tratado assinado
de um quarto de século. Depois dele, e se- pelo Executivo, para que este o possa ratifi-
guindo suas pegadas, esta autora7, em 1978. car: a) por uma lei – projeto do Executivo
Depois vieram, entre os mais renomados, votado, primeiro, no Senado e, depois, na
Grandino Rodas em 1980 e 1991 e Cacha- Câmara dos Deputados, com audiência da
puz de Medeiros em 1995. Outros autores, Comissão de Relações Exteriores (Chile,
até hoje, ainda não apreenderam o alcan- Colômbia e Venezuela); b) por uma simples
ce do citado dispositivo (MAGALHÃES, resolução do Senado, ouvida, também, a
2000). Comissão de Relações Exteriores, exigindo-
A intervenção do Legislativo, na conclu- se maioria simples (México e Equador) ou
são de tratado, opera-se, sobretudo, na fun- dois terços dos votos dos senadores presen-
ção fiscalizadora que ele exerce sobre os atos tes (Estados Unidos da América); c) por um
do Executivo. E, embora, ao autorizar a rati- decreto legislativo (Brasil e Honduras).
ficação, esteja, também, dando sua aquies- Na vigência da Constituição de 1891, a
cência à matéria contida no ato internacio- aprovação do tratado se fazia por uma reso-
nal, não há, nessa aprovação, uma ativida- lução do Congresso, sancionada por decre-
de legislativa capaz de gerar uma norma to do Presidente9. Isso porque, ao contrário
interna e, menos ainda, de transformar o tra- do que hoje se observa, ao Chefe do Executi-
tado em direito interno a ser aplicado pelo vo Federal competia, privativamente, “san-
Tribunal. Isso só acontece com a promulga- cionar, promulgar e fazer publicar as leis e

314 Revista de Informação Legislativa


resoluções do Congresso; expedir decretos, matérias da competência legislativa da
instruções e regulamentos para a sua fiel União”, enquanto não se reunisse o Parla-
execução” (art. 48, 1º). mento Nacional, eis que a dissolução de to-
Apesar da prática constatada, Accioly10 dos os órgãos federais, estaduais e munici-
se refere ao Decreto Legislativo nº 4.750, de pais do Poder Legislativo havia sido decre-
17/11/1923, aprovando a adesão brasilei- tada. Assim, pelo decreto-lei, o Presidente
ra ao “Ajuste Relativo à Conservação ou aprovava, como órgão legislativo, o tratado
Restabelecimento dos Direitos de Proprie- que ele, ou outrem em seu nome, assinara;
dade Industrial, Atingidos pela Guerra”. A em seguida, por meio de agentes do Execu-
adesão se verificara em 09/10/1920, ad re- tivo, ratificava-o, para, depois, como Chefe
ferendum do Congresso Nacional, tornando- do Executivo, promulgá-lo por decreto11.
se definitiva após ser aprovada, aprovação Após o término da ditadura, com a Cons-
essa que foi comunicada à legação suíça, no tituição de 1946, até o presente, a aprovação
Rio de Janeiro, por nota de 22/11/1923. de tratado segue a prática da Constituição
Houve engano do autor, eis que não se tra- de 1934, com a promulgação do decreto le-
tava de decreto legislativo, mas de decreto gislativo pelo Presidente do Senado.
do Presidente da República, sancionando a
resolução do Congresso, que aprovara o 1.2. A promulgação pelo Executivo
ajuste. Após a aprovação do Congresso, se rati-
A Constituição de 1934 simplificou a ficado, o acordo firmado entra, na data nele
aprovação do tratado ao estabelecer a san- estipulada, em vigor na ordem internacio-
ção e a promulgação, apenas, para as leis nal. No Brasil, entretanto, após a conclusão
(art. 56, 1º), assim entendidas aquelas que do ajuste, é ele promulgado pelo Chefe do
se enquadrassem no art. 39, nº 1. Ora, a apro- Executivo, por meio de decreto. É o que se
vação do tratado pelo Congresso não se vem observando, desde 1826. Expressa e ta-
compreendia aí, mas no art. 40, alínea “a”, xativamente, não houve, e não há, nenhum
dispondo o seu parágrafo único que “as leis, dispositivo constitucional determinando
decretos e resoluções do Poder Legislativo” esse procedimento. Em 29 de agosto de 1825,
seriam “promulgados e mandados publicar Brasil e Portugal assinaram o Tratado de Paz
pelo Presidente da Câmara dos Deputados”, e Amizade, reconhecendo o segundo a inde-
à qual competia o exercício do Poder Legis- pendência do primeiro. As ratificações ocor-
lativo, com a colaboração do Senado Fede- reram em 30 de agosto e 15 de novembro,
ral adstrita a certas matérias, entre as quais, respectivamente, por parte do Brasil e de
a aprovação de tratados e convenções (art. Portugal. Em 10/04/1826, o Imperador pro-
22 c.c. art. 91, I, “f”). mulgou, por decreto, o tratado, cujo texto
Com a implantação do Estado Novo, com ele se publicou, com expressa ordem de
outorgou-se a Carta de 10/11/37, sobre a ser observado e executado12.
qual a análise será mais sumária, por não Apesar da prática adotada, alguns ajus-
ter sido jamais cumprida. O Chefe de Esta- tes não foram promulgados. Entre outros,
do acumulava as funções executivas e le- os seguintes (OLIVEIRA, 1912, v. 1, p. 101,
gislativas. Apesar disso, houve certa coerên- 165-166, v. 2, p. 319; ACCIOLY, 1927, p. 77,
cia relativamente à conclusão de tratado: 252, 255):
após sua assinatura, era aprovado por de- a) em 08/01/1826, Tratado de Amizade,
creto-lei e, em seguida, ratificado, sendo, Navegação e Comércio entre Brasil e França,
posteriormente, promulgado por decreto. ratificado pelo primeiro, mediante a Carta
Digo certa coerência, porque o art. 180 ou- de Lei de 06/06/1826 e, pelo segundo, em
torgava ao Presidente da República o poder 19/03/826. Denunciado pelo Brasil em 13/
de “expedir decretos-leis sobre todas as 04/1907;

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b) em 12/10/1851, Tratado de Subsídio, te de, pelo menos, um Estado, a colaboração
assinado no Rio entre Brasil e Uruguai e dos mesmos órgãos legislativos. Em outras
ratificado, respectivamente, em 13/10/1851 palavras, duas são as fontes de direito no
e 04/11/1851, com troca de instrumentos nosso sistema jurídico positivo: (a) os trata-
em 11/11/1851; dos, convenções ou ajustes internacionais e
c) em 23/10/1851, Tratado de Comércio, (b) os atos legislativos – seja na forma ou na
Navegação e Limites, assinado em Lima pelo matéria – internos. Quando a Constituição
Brasil e Peru, ratificado, respectivamente, em de 1891 outorgou ao Presidente da Repúbli-
18/03/1852 e 01/12/1851, com troca de ca a competência para promulgar leis, bem
instrumentos, em 18/10/1852; como as resoluções do Congresso Nacional
d) em 12/10/1851, tratado firmado com e, ainda, expedir decretos para sua fiel exe-
o Uruguai, no Rio de Janeiro, para entrega cução, referia-se ela, certamente, à lei, no sen-
recíproca de criminosos e desertores e para tido amplo de fonte positiva de direito. De ou-
devolução de escravos. Ratificado pelo Bra- tra forma, como entender-se pudesse o Exe-
sil em 13/10/1851 e pelo Uruguai em 04/ cutivo expedir regulamento para execução
11/1851, com troca de instrumentos em 11/ de um tratado ou, como hoje, também, de
11/1851. Denunciado pelo Brasil em 15/ um decreto-lei? No sentido estrito, lei é o ato
05/1903; normativo elaborado pelo Poder Legislati-
e) em 12/10/1851, Tratado de Limites, com vo, com a sanção do Executivo. No sentido
o Uruguai; ratificação por este em 04/11/ amplo, é toda norma capaz de gerar direitos
1851 e pelo Brasil, em 13/10/1851; troca de e obrigações, é fonte positiva de direito ge-
instrumentos em 11/11/1851; rada pelo processo próprio estabelecido. A
f) em 03/12/1903, Convenção Sanitária promulgação não integra o processo legisla-
Internacional, multilateral, assinada em Pa- tivo, sendo-lhe posterior. Ela é o atestado de
ris, com aprovação sancionada pelo Decre- que uma norma existe, tendo sido cumpri-
to nº 1308, de 28/12/1904, etc. das as formalidades exigidas para que fos-
É verdade que tais tratados são muito se concluída. Quando, por exemplo, o Pre-
antigos, assinados, alguns deles, logo após sidente sanciona um projeto de lei aprova-
a independência, quando não havia, então, do pelo Legislativo, completa-se, por esse
estrutura alguma para estabelecer-se um ato, sua elaboração, devendo ser a lei pro-
processo uniforme. Desses atos menciona- mulgada e publicada. A promulgação nes-
dos, muitos foram cumpridos durante mais se caso não é expressamente mencionada
de cinqüenta anos; o primeiro, por oitenta e na publicação. Se, porém, a sanção é tácita,
um anos. E naquela época já se adotava a com o silêncio do Executivo, no prazo deter-
técnica de promulgação por decreto do Exe- minado, o projeto se converte automatica-
cutivo. Esse decreto, com o texto do tratado mente em lei, da mesma forma quando ocor-
em apenso, integrava, como hoje, a Coleção re a rejeição pelo Legislativo do veto presi-
das Leis. dencial. Nesses dois casos, porém, há ne-
Pensa-se que a promulgação por decreto cessidade de promulgação expressa, uma
foi, apenas, uma prática adotada na vigên- vez que, aí, não há prova de autenticidade
cia da Constituição de 1891 e seguida até do ato normativo. E o que se promulga já é
hoje, sem nenhum amparo na Lei Maior. lei – sentido amplo – antes mesmo da pro-
Entendo, porém, de forma diversa. Na or- mulgação. (V. Const. 1824, arts. 101, § 3º;
dem jurídica brasileira, há normas que ema- 102, § 12; 68 e 69).
nam, apenas, dos órgãos internos, mas há, Em abono à afirmativa de que as Consti-
também, regras que, entendidas, comumen- tuições brasileiras, quando se referem à pro-
te, só de Direito Internacional, exigem, para mulgação de lei, fazem-no emprestando a
sua conclusão, além da vontade concordan- este vocábulo o sentido amplo de fonte posi-

316 Revista de Informação Legislativa


tiva de direito, que não se completa apenas gra jurídica, regularmente concluída, em
com sanção presidencial, cito o § 6º do art. obediência ao processo específico, instituí-
59, da Carta de 1967, com redação da Emen- do na Lei Maior. Se a promulgação não inte-
da nº 1/69 e outras posteriores – e os corres- gra o processo legislativo (RUSSOMANO,
pondentes, das anteriores – em que se ex- 1976, p. 138-139; SILVA, 1964, p. 217-218;
pressa que “nos casos do artigo 44, após a FERREIRA FILHO, 1970, p. 122-123, 1968,
aprovação final, a lei será promulgada pelo p. 213-214), se, ao contrário, ela lhe é poste-
Presidente do Senado Federal”. Ora, o art. rior – o que se promulga já é lei –, não se
44 se refere a matéria de competência exclu- pode, logicamente, afirmar que o tratado pro-
siva do Congresso Nacional e não comporta mulgado por decreto do Executivo deixa, no
sanção ou veto; em conseqüência, não se tra- âmbito interno do Estado, de ser Direito In-
ta de lei no sentido estrito. Da mesma forma, ternacional, para ser disposição legislativa
a Constituição atual, de 1988, no art. 48, ca- interna. O que acontece é o seguinte: assina-
put, confere ao Congresso Nacional, com a do o tratado, aprovado pelo Legislativo, ra-
sanção do Presidente da República, atribui- tificado pelo Executivo, ele passa, conforme
ções para dispor sobre todas as matérias de o que se estabeleceu no seu próprio texto, a
competência da União, mas dispensa a san- vigorar na órbita internacional. Os indiví-
ção, isto é, a colaboração do Executivo, em duos, porém, para acatá-lo e os Tribunais
determinados casos, entre os quais a apro- para aplicá-lo precisam ter conhecimento de
vação de tratados, acordos ou atos interna- que ele existe. Pela promulgação, o Chefe do
cionais que acarretem encargos ou compro- Poder Executivo apenas declara, atesta, so-
missos gravosos ao patrimônio nacional. lenemente, que foram cumpridas as forma-
Parece ser esse, também, o entendimento lidades exigidas para que o ato normativo
de Rezek ao afirmar que, até 1934, a aprova- se completasse. Mas, como afirma José Afon-
ção do tratado, no Brasil, se fazia por “uma so da Silva (1964, p. 217-218), fazer saber que
lei que devia ser sancionada pelo Presiden- há uma norma jurídica pouco adiantaria se
te, por meio de um decreto, antes da ratifica- não se divulgasse tal comunicação. Isso se
ção e procedimentos ulteriores, aí contido o faz com a publicação. E como é ela que dá
decreto de promulgação” (REZEK, 1973, p. conhecimento a todos da existência da nor-
70-71). Se o texto da Constituição de 1891 ma recém-formulada, e como só se é obriga-
(art. 37, § 3º c.c. art. 48, 1º) e a prática mos- do à norma que se conhece (a publicação
traram que a aprovação se fazia por resolu- faz presumir conhecimento), o tratado só é
ção do Congresso, sancionada por decreto obrigatório a partir da data de inserção,
presidencial, a interpretação a ser dada à no Diário Oficial da União, do decreto de
palavra lei, seja na transcrição supra, seja promulgação, contendo em apenso o tra-
no próximo texto constitucional, deve ser tado.
ampla e não restrita. Uma vez publicado, com o decreto, o tra-
Tenho, portanto, como certo, que a pro- tado deve ser observado pelos particulares
mulgação do tratado por decreto não é mera prá- e aplicado pelos Tribunais. Na afirmativa
tica brasileira, encontrando, pois, arrimo em co- de Rousseau (19--?, p. 403), o tratado é obri-
mando constitucional. gatório, em virtude de ratificação; executó-
E qual o valor dessa promulgação? Terá rio, em face da promulgação; aplicável, em
o decreto o poder de transformar, em norma conseqüência da publicação.
interna, o que se convencionou no ato inter- Após as providências supracitadas, as
nacional? Aplicar-se-á, em conseqüência, normas contidas no ajuste são aplicadas
direito interno em vez de Direito Internacio- como Direito Internacional e não direito in-
nal? Entendo que não. O decreto de promul- terno, sem necessidade de qualquer provi-
gação é o atestado de existência de uma re- dência legislativa, dispondo, em outra nor-

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ma, sobre a matéria do tratado. A promul- ções de Genebra sobre as Leis Uniformes.
gação não transforma o Direito Internacio- Lembra ele a discussão travada na Assem-
nal em direito interno. Daí por que nossas bléia Constituinte, que promulgou a Cons-
Constituições sempre se referiram à aplica- tituição de 1946, em torno do art. 165, § 2º
ção do tratado pelos tribunais. A Lei Maior do projeto, segundo o qual “os Tratados e
reconhece, ao lado das leis — sentido estri- Convenções que celebrar na forma dessa
to —, outras fontes de direito: o decreto-lei Constituição passarão a fazer parte da le-
antes da Constituição de 1988; a medida gislação interna”. Procurou, como constitu-
provisória (com a Constituição atual); o tra- inte, demonstrar a inutilidade do dispositi-
tado; a própria emenda constitucional, que vo: o art. 35, I, do projeto (que se converteu
não é lei, no sentido mais estrito, entre ou- no art. 66, I, da Carta) estabelecia a compe-
tras. Os processos de elaboração dessas fon- tência exclusiva do Congresso Nacional
tes de direito são estabelecidos pela própria para resolver, definitivamente, sobre os tra-
Carta, divergindo uns dos outros, pelo me- tados e convenções firmados pelo Presiden-
nos em alguns pontos. A medida provisória te da República e o art. 40 (que se converteu
(e, antes dela, o decreto-lei) e o decreto legis- no art. 71, com a competência do Presidente
lativo são atos próprios, respectivamente, do do Senado para a promulgação) era expres-
Executivo e do Legislativo e não precisam so no sentido de que, nos casos do art. 35, o
ser promulgados. A lei, no sentido estrito, processo legislativo se considerava encer-
exige a participação de ambos. Se essa par- rado, com a aprovação da lei (no sentido
ticipação não se evidencia (sanção tácita e amplo, por tratar-se de decreto legislativo),
rejeição de veto), é necessário que se ateste o que deveria ser promulgada pelo Presiden-
cumprimento das exigências constitucio- te da Casa onde teve início. Com esses dis-
nais, mediante promulgação. Da mesma for- positivos, entendeu Adroaldo Mesquita da
ma, no que se refere ao tratado, embora exis- Costa que a simples promulgação pelo Le-
tente, completamente concluído, encerrada gislativo incorporava o tratado no sistema
sua elaboração, deve-se atestar o preenchi- jurídico interno, eis que as duas Casas do
mento das condições constitucionais: a Congresso sobre ele se haviam manifesta-
aprovação legislativa, a ratificação, a troca do. E, na verdade, conseguiu a rejeição do
dos instrumentos que o consubstanciam. artigo criticado. Discordo, entretanto, da
Como fonte de direito que é, como lei no sen- conclusão final do ex-Consultor. A promul-
tido amplo, deve ser promulgado e publica- gação pelo Legislativo não encerra o pro-
da essa promulgação, como determina o art. cesso de elaboração do ajuste internacional.
81, III, da Constituição, por exemplo, de Uma coisa é o decreto legislativo promul-
modo expresso, taxativo, de 1969, com re- gando a decisão do Congresso, que aprova
dação da EC nº 1/69 (e os correspondentes, o tratado e autoriza, em última análise, sua
das anteriores). ratificação pelo Executivo. A promulgação,
Cumpridas as exigências da Lei Maior, aí referida, encerra uma das fases de forma-
o tratado, se for auto-executório, deve ser, ção do tratado13, que se conclui com a troca
imediatamente, aplicado. Caso contrário, dos instrumentos de ratificação. A promul-
também em obediência a comando consti- gação, que confere força executória ao acor-
tucional, será preciso expedir regulamento do entre Estados, é feita pelo Presidente da
para sua fiel execução. República. Este atesta o cumprimento das
A respeito do assunto, em parecer que formalidades exigidas, dando conhecimen-
mereceu a aprovação do Chefe da Nação, to a todos da existência da norma jurídica
Adroaldo Mesquita da Costa (1968, p. 8420- recém-concluída14.
8428), então Consultor-Geral da República, A doutrina, na sua grande parte (ACCI-
analisa a questão, relativamente às Conven- OLY, 1956, p. 49; 199-?, p. 30-33; MELLO, p.

318 Revista de Informação Legislativa


103; REBELO, 199-?, p. 69-71; SILVA, 199-?, com as correções por ele próprio per-
p. 50-59), admite que o tratado se torna obri- mitidas e inserção na Lei Uniforme de
gatório, no âmbito interno, pela promulga- dispositivos essenciais que nela fal-
ção. Autores (CASTRO, 1956. p. 132; entre tam, como, por exemplo, o da anula-
outros) há, porém, que, assim não entendem. ção das letras extraviadas, de óbvia
A discussão foi reavivada quando da importância prática.”
promulgação das Convenções de Genebra Não tem razão o autor. A aprovação pelo
sobre as Leis Uniformes. Enquanto alguns Legislativo ocorreu na vigência da Consti-
(COSTA, 1968, p. 8420-8428; MERCADO tuição de 1946 e, em face dela, deve ser ana-
JUNIOR, 1966, p. 115-132; BARRETO FI- lisada a questão, embora, nesse particular,
LHO, 1967, p. 7-16; REQUIÃO, 1971, p. 13- não haja divergência, nem nas anteriores (à
28) admitiam sua plena vigência, outros exceção da Carta de 1937), nem nas posteri-
(BATALHA, 1961, p. 32; CAMPARATO, ores.
1968, p. 48-57) não as consideraram fonte Dessa forma, se ao Congresso Nacional
de direito, entendendo-as, quando muito, competia “resolver definitivamente sobre os
como normas programáticas. tratados e convenções celebrados pelo Pre-
Entre os autores que negaram vigência sidente da República”, a expressão em grifo
interna às Leis Uniformes, destaco Whitaker não pode ter alcance superior ao previsto
(1967, p. 7), cujo pensamento, abaixo trans- no contexto da Lei Maior. A interpretação
crito, merece algumas observações. não pode ser isolada, devendo expressar
“A competência para tal aprova- não a literalidade individualizada de um
ção, segundo a Constituição vigente, dispositivo, mas, apenas, o que nele, real-
era exclusiva do Congresso Nacional mente, contém-se, respeitando-se, nessa in-
(art. 66), e o decreto que a promulgou terpretação, outros comandos, sem o que
foi, por isso, assinado pelo Vice-Pre- impossível será descobrir-se o espírito do
sidente do Senado, em exercício, Ca- todo. A exegese, tão-somente literal, leva
milo Nogueira da Gama, em 08 de se- muitas vezes ao absurdo, a um conflito in-
tembro de 1964. Com este Decreto, transponível. Em conseqüência, a expres-
cumpriram-se todas as formalidades são em debate deve ser entendida em ter-
constitucionais para ‘adoção’ do Con- mos, conforme a orientação de Rezek, já
vênio de Genebra, isto é, para sua con- exposta.
versão em lei, e votada regularmente O tratado comporta diversas fases, para
pelo Congresso Nacional. sua formação, e, além delas, outras comple-
Apesar, porém, desta evidência, o mentares: a) negociação, concluída com a
Presidente da República, em 24 de ja- assinatura; b) aprovação pelo Congresso,
neiro de 1966, promulgou de novo o encerrada com o decreto legislativo; c) rati-
que já estava promulgado e, assim, ficação, efetivada com a troca dos instrumen-
como Chefe do Poder Executivo, atri- tos que a consubstanciam; d) promulgação,
buiu a este o direito de julgar ato pró- pelo Presidente da República e e) publica-
prio, usurpando função exclusiva do ção. Com a simples concordância do Con-
Poder Legislativo. gresso, completa-se, apenas, uma das fases
Decreto expedido por Poder in- de sua elaboração. O decreto-legislativo é
competente é decreto nulo, incapaz de autorização ao Executivo para concluir o
qualquer efeito prático. Conseguinte- acordo e é a aquiescência do Congresso à
mente, o que está em vigor é unica- matéria nele contida. O Presidente do Sena-
mente o decreto do Congresso apro- do promulgou, por meio do decreto legisla-
vando o Convênio para sua adoção, tivo, apenas a aprovação, pelas duas Casas,
isto é, para sua transformação em lei, dos textos das Convenções.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 319


Assim, é incorreto dizer que o Presiden- A questão não comportava discussão,
te da República “promulgou de novo o que por ser pacífica. E, em muitos julgamentos,
já estava promulgado”. Após a aprovação o Pretório Excelso não analisou o problema,
do Legislativo, cumpridas as demais forma- limitando-se a deixar expresso que o trata-
lidades (ratificação, troca de instrumentos, do fora promulgado por decreto do Presi-
depósito desses instrumentos), competia ao dente da República.
Chefe do Executivo promulgar as Conven- Assim, no julgamento do Recurso de
ções. Não usurpou nenhuma função nem Habeas-Corpus nº 2.280, de 190515, impe-
atribuiu a si competência para julgar ato trado por Fernando Mendes de Almeida Ju-
próprio. Expediu os decretos, no exercício nior, a favor de Luigi Vicenzo Giovannetti,
de competência própria. Conseqüentemen- visando a impedir que se efetivasse sua ex-
te, não se trata de atos praticados por Poder tradição, já concedida pelo Governo Brasi-
incompetente. leiro à Itália, por duas vezes, o Supremo Tri-
O decreto-legislativo, sem o decreto de bunal Federal se referiu à promulgação do
promulgação do Presidente da República, tratado celebrado pelos dois países:
após as demais formalidades (ratificação ...), “Considerando, pois, que convém
nenhum valor normativo possui, nesse caso, verificar se a extradição, de que se tra-
segundo a corrente predominante no Bra- ta, é concedida na forma estabelecida
sil. Não é necessário que o Poder Legislati- pelo tratado entre o Brasil e a Itália,
vo elabore novo ato, uma lei, repetindo o tex- aprovado pelo Dec. nº 5.274 de 3 de
to do tratado para que ele passe a ter vigên- maio de 1873...” (grifo da transcrição).
cia na ordem interna. De acordo com nosso A palavra em grifo foi empregada na ses-
Direito, no Brasil, basta o decreto do Chefe do são de 07/06/1905, certamente por descui-
Poder Executivo promulgando o tratado. do, e na sessão de 14 seguinte, usou-se a
Em conclusão, no Brasil, o tratado, regu- terminologia adequada:
larmente concluído, é fonte de direito, e deve, “Considerando que a requisição da
como qualquer fonte positiva, ser promul- prisão foi feita por via diplomática e
gado pelo Poder competente, no caso, o Exe- nos precisos termos do Tratado exis-
cutivo, publicando-se, em seguida, essa pro- tente entre o Brasil e o Reino da Itália,
mulgação para conhecimento de todos, promulgado pelo Decreto nº 5.274 de 3
após o que será obrigatório. Os tribunais, ao de maio de 1873, ainda em vigor...”
aplicar disposições convencionais, aplicam (grifo da transcrição).
o próprio tratado e não um ato legislativo E, em geral, assim tem sido a orientação
interno. da Corte Suprema: a referência a certo trata-
do é seguida do decreto de promulgação.
2. A posição da jurisprudência Em um ou outro caso, porém, em seus votos,
os Ministros fazem menção expressa à exi-
O Supremo Tribunal Federal tem enten- gência da promulgação. Nesse sentido, o
dido ser necessária a promulgação para que Ministro Philadelpho Azevedo, no julga-
o tratado tenha força executória na ordem mento da Apelação Cível nº 7.87216:
interna. O decreto do Presidente da Repú- “Entre nós, a formação dos trata-
blica atestando a existência da nova regra e dos, após a fase precontratual, das
o cumprimento das formalidades requeri- negociações, se assemelha à das leis,
das para que ela se concluísse, com a ordem exigindo pronunciamento do Poder Le-
de ser cumprida tão inteiramente como nela gislativo, promulgação e publicação,
se contém, confere-lhe força executória, e a sujeita esta às normas gerais para a
publicação exige sua observância por todos: vigência”. (os grifos não são da
Governo, particulares, Judiciário. transcrição).

320 Revista de Informação Legislativa


Recentemente, porém, o Supremo Tribu- mais consagraram norma pertinente
nal Federal se pronunciou, direta e expres- à imediata eficácia dos tratados, cele-
samente, sobre a matéria, em julgamento em brados pelo Brasil, quando coliden-
que se cogitava da aplicabilidade imediata tes com o direito interno.
ou não da Lei Uniforme sobre o Cheque, adota- Para esse efeito, sem dúvida, ine-
da pela Convenção de Genebra. O assunto, xiste regra constitucional expressa.
que já encontrara quase pacífica solução, Penso, todavia, que o princípio está
voltou à baila, em decorrência da própria implícito no contexto da lei maior.”
designação do ato internacional: Convenção E depois de referir-se ao art. 64, I, da Cons-
para Adoção de uma Lei Uniforme em Matéria tituição de 1946, reproduzido na de 1967,
de Cheque. Teria, em conseqüência, aplica- no seu texto original (art. 47, I) e no resul-
ção imediata, com a promulgação? Ou o tante da Emenda nº 1, de 17/10/1969, pros-
objetivo não teria sido, justamente, obrigar segue:
cada Estado signatário a editar uma norma “Não me parece curial que o Bra-
interna, uma lei que seguisse a orientação sil firme um tratado, que esse tratado
traçada na Convenção a fim de que houves- seja aprovado definitivamente pelo
se uniformidade, em matéria de cheque, na Congresso Nacional, que em seguida
legislação dos co-contratantes? seja promulgado e, apesar de tudo
No julgamento do R.E. nº 71.15417, o Su- isso, sua validade18 ainda fique depen-
premo Tribunal Federal, em sessão plená- dendo de novo ato do Poder Legislati-
ria, decidiu, em acórdão unânime, pela pri- vo. A prevalecer esse critério, o trata-
meira solução, estando, assim, redigida a do, após sua ratificação, vigoraria, ape-
ementa: nas, no plano internacional, porém
“Lei Uniforme sobre o Cheque, não no âmbito de direito interno, o que
adotada pela Convenção de Genebra. colocaria o Brasil na privilegiada po-
Aprovada essa Convenção pelo Con- sição de poder exigir a observância do
gresso Nacional, e regularmente pro- pactuado pelas outras partes contra-
mulgada, suas normas têm aplicação tantes, sem ficar sujeito à obrigação
imediata, inclusive naquilo em que recíproca.”19 (grifos da transcrição).
modificarem a legislação interna. Re- Entendeu o Ministro, e nesse ponto con-
curso extraordinário conhecido e pro- cordo, que se poderia opor objeção ponde-
vido.” (grifos da transcrição) rável se a aprovação estivesse confiada a
Em seu voto, o relator, Ministro Oswal- outro órgão que não o Congresso Nacional.
do Trigueiro, apreciou a questão e, embora Mas, se ela é atribuída ao mesmo órgão en-
sob certos aspectos tenha feito afirmativas carregado da elaboração das leis, não se jus-
das quais discordo, oportuna se torna a tificaria, como não se justifica que, após apro-
transcrição de certos trechos, a respeito da var, de maneira solene, os termos do trata-
matéria em exame: do, veja-se o Congresso Nacional no impe-
“... Essa Convenção foi aprovada rativo de “confirmá-los, repetitivamente, em
pelo Congresso Nacional, sob a vigên- novo diploma legal”. Para ele, “a aprova-
cia da Constituição de 1946, median- ção dos tratados obedece ao mesmo proces-
te a D. leg. 54, de 08/09/64, e promul- so de elaboração da lei, com a observância
gada pelo D. 57.595, de 07/01/66. de idênticas formalidades de tramitação”,
Os que entendem que essa incor- conquanto se dispense a sanção presiden-
poração depende ainda de legislação cial, que julga desnecessária, por conside-
especial acentuam que, no sistema rar que, ao submeter o tratado à aprovação
brasileiro, lei só se revoga por outra legislativa, o Presidente terá, obviamente,
lei, e que as nossas Constituições ja- expressado seu assentimento.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 321


A aquiescência manifestada a esse en- gar, mediante recurso extraordinário,
tendimento é apenas parcial. A aprovação causas oriundas da instância inferi-
do tratado não segue o mesmo processo de or, quando a decisão for contrária à
elaboração da lei. No nosso sistema jurídi- letra de tratado ou lei federal.
co positivo, diversas são as fontes de direito A meu ver, essa norma consagra a
e distintos, embora semelhantes, os proces- vigência dos tratados, independente-
sos de sua respectiva formação. A palavra mente de lei especial. Porque, se essa
lei empregada em diversos dispositivos vigência dependesse de lei, a referên-
constitucionais deve ser entendida no sen- cia a tratado, no dispositivo constitu-
tido amplo de fonte de direito. No mesmo cional, seria de todo ociosa. Por ou-
art. 59, § 6º, da Constituição com sua reda- tras palavras, a Constituição prevê a
ção atual, ou nos correspondentes das ante- negativa de vigência da lei e a negati-
riores, em que se dispensa a sanção presi- va de vigência do tratado, exigido,
dencial na aprovação do tratado, faz-se idên- para a validade deste a aprovação
tica dispensa para a conclusão, também, de pelo Congresso, porém não sua repro-
outras fontes. A verdade é que, nos vários dução formal em texto da legislação
processos de elaboração das fontes do di- interna”20.
reito, há alguns pontos, algumas etapas co- Em conseqüência, se não há necessida-
muns. Depois, não se me afigura válido con- de de ato legislativo dispondo sobre a mes-
cluir que, pelo fato de o Presidente enviar ao ma matéria contida no tratado, se a norma
Congresso o tratado para aprovação, sua convencional, pela promulgação, não se
concordância é óbvia e, portanto, desneces- transforma em interna, ganhando, apenas,
sária. Se verdadeira, a conclusão deveria ser força executória, os tribunais, ao aplicar dis-
extensiva à lei, cujo projeto fosse de sua ini- posições convencionais promulgadas pelo
ciativa e que nenhuma emenda sofresse por Presidente da República, estão aplicando o
parte dos congressistas. Razões posteriores tratado, a norma internacional e não a in-
podem determinar a não ratificação do tra- terna.
tado e a negativa de sanção ao projeto de Antes, porém, da decisão do Tribunal
iniciativa do próprio Chefe da Nação. Não Pleno, no R.E. nº 71.154, a Primeira Turma
há a sanção quando se dá a aprovação de já havia, expressamente, admitido a plena
um tratado, simplesmente porque a Consti- vigência das Leis Uniformes, no julgamen-
tuição a dispensa, da mesma forma que para to do R.E. nº 69.873/7121.
outros casos. O assentimento presidencial, “Cambial – Cheques – Aplicação
no processo de elaboração da lei em sentido da Lei Uniforme de Genebra.
estrito, é a etapa final, segundo a Lei Maior I – As disposições concluídas em
na sua redação atual, como também na ori- Genebra a 7 de junho de 1.930 e 19 de
ginária de 1967 ou, ainda, na de 1946. E março de 1.931, aprovadas pelo De-
como o tratado não se completa com a apro- creto Legislativo nº 54, de 8 de setem-
vação, como não é lei em sentido estrito, se- bro de 1.964, e promulgadas pelo D.
gue-se que, pelo sistema vigente, não se ve- 57.595 e 57.663, de 7 e 24 de janeiro de
rifica, nesse caso, a sanção presidencial. 1.966, respectivamente, com as reser-
Em seu voto, o Ministro Oswaldo Tri- vas ali consignadas, estão em vigor e
gueiro analisou, ainda, a obrigatoriedade de sua eficácia não se restringe aos atos de
aplicação da norma convencional pelos Tri- caráter internacional, senão que alcança,
bunais: igualmente, as relações de direito inter-
“Por outro lado, a Constituição no.” (grifos da transcrição).
inclui, na competência do Supremo Em julgamento proferido em 1977, o Su-
Tribunal Federal, a atribuição de jul- premo Tribunal Federal, em sessão plená-

322 Revista de Informação Legislativa


ria, confirmou, nessa parte, o acórdão pro- Entretanto, sem dúvida alguma, a base
ferido no R.E. nº 71.154. Trecho da ementa essencial do seu voto foi o artigo de José
está assim redigido: Maria Whitacker, já amplamente analisado,
“... Embora a Convenção de Gene- pelo qual o Ministro concluiu que “só por
bra que previu uma lei uniforme so- equívoco” o Pretório Excelso “entendeu es-
bre letras de câmbio e notas promis- tar em vigor o texto da Lei Uniforme”.
sórias tenha aplicabilidade no direito in- Na jurisprudência, portanto, apesar de
terno brasileiro, não se sobrepõe ela às alguns votos isolados, é pacífico o entendi-
leis do País, disso decorrendo a cons- mento segundo o qual, após sua promulga-
titucionalidade e conseqüente valida- ção, o tratado passa a ter vigência na ordem
de do Dec.-lei nº 427/69, que instituiu interna, devendo ser aplicado pelos Tribu-
o registro obrigatório da Nota Promis- nais. Antes mesmo de o declarar, expressa-
sória em Repartição Fazendária, sob mente, no R.E. nº 71.154, o Supremo Tribu-
pena de nulidade do título...22 (grifos nal Federal já havia, de maneira mais ou
da transcrição). menos indireta, admitido a vigência das Leis
No julgamento desse R.E. nº 80.004, o Uniformes, após os decretos que as promul-
Ministro Cunha Peixoto foi o único dissi- garam23. Esse entendimento foi mantido em
dente, para, na matéria que ora se examina, decisões posteriores 24, inclusive após a
negar vigência à Lei Uniforme. Fundamen- Constituição de 198825. Veja-se, por exem-
tou seu voto no ensinamento, entre outros, plo, a ementa no Agravo Regimental em
de Amilcar de Castro, já citado, segundo o Carta Rogatória nº 8.279-4, publicado no DJ
qual o tratado, sendo ato internacional, só de 10/8/2000:
obriga o povo como bloco, vale dizer, obriga Agravo Reg. em Carta Rogatória n°
externamente o Estado, a sociedade política 8.279-4
como um todo, devendo, para impor-se aos República da Argentina, Relator:
particulares e ser aplicado pelos Tribunais, Min. Celso de Mello.
seguir um procedimento especial de adap- D.J. 10/8/2002.
tação do direito nacional, denominado or- “EMENTA: MERCOSUL – CAR-
dem de execução, que será a fonte formal do TA ROGATÓRIA PASSIVA – DENE-
Direito Internacional Privado. GAÇÃO DE EXEQUATUR – PROTO-
Não tinha razão o Ministro, ao buscar COLO DE MEDIDAS CAUTELARES
em Amilcar de Castro apoio para negar vi- (OURO PRETO/MG) – INAPLICABI-
gência à Lei Uniforme. O que é o decreto de LIDADE, POR RAZÕES DE ORDEM
promulgação senão a ordem de execução? CIRCUNSTANCIAL – ATO INTER-
E, nesse particular, discordo do autor cita- NACIONAL CUJO CICLO DE INCOR-
do, por entender que, em nosso sistema jurí- PORAÇÃO, AO DIREITO INTERNO
dico, a ordem de execução se consubstancia DO BRASIL, AINDA NÃO SE ACHA-
em um decreto do Poder Executivo, promul- VA CONCLUÍDO À DATA DA DECI-
gando o tratado, conferindo-lhe força exe- SÃO DENEGATÓRIA DO EXEQUA-
cutória, depois de atestar sua autenticida- TUR, PROFERIDA PELO PRESIDEN-
de. E se o que se promulga já é norma jurídi- TE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDE-
ca, segue-se que não houve transformação. RAL – RELAÇÕES ENTRE O DIREI-
Aliás, a ordem de execução se exige não só TO INTERNACIONAL, O DIREITO
para o tratado, mas para toda fonte positiva COMUNITÁRIO E O DIREITO NACI-
de direito, para a lei, no sentido amplo, que ONAL DO BRASIL – PRINCÍPIOS DO
deve ser promulgada, regra geral, pelo Exe- EFEITO DIRETO E DA APLICABILI-
cutivo, em obediência a comando constitu- DADE IMEDIATA – AUSÊNCIA DE
cional. SUA PREVISÃO NO SISTEMA CONS-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 323


TITUCIONAL BRASILEIRO – INEXIS- jeita ao mesmo tratamento normativo
TÊNCIA DE CLÁUSULA GERAL DE que a Constituição brasileira dispen-
RECEPÇÃO PLENA E AUTOMÁTICA sa aos tratados internacionais em ge-
DE ATOS INTERNACIONAIS, MES- ral.
MO DAQUELES FUNDADOS EM PROCEDIMENTO CONSTITUCIO-
TRATADOS DE INTEGRAÇÃO – RE- NAL DE INCORPORAÇÃO DE CON-
CURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. VENÇÕES INTERNACIONAIS EM
A RECEPÇÃO DOS TRATADOS GERAL E DE TRATADOS DE INTE-
OU CONVENÇÕES INTERNACIO- GRAÇÃO (MERCOSUL).
NAIS EM GERAL E DOS ACORDOS – A recepção dos tratados interna-
CELEBRADOS NO ÂMBITO DO MER- cionais em geral e dos acordos cele-
COSUL ESTÁ SUJEITA À DISCIPLINA brados pelo Brasil no âmbito do MER-
FIXADA NA CONSTITUIÇÃO DA COSUL depende, para efeito de sua ul-
REPÚBLICA. terior execução no plano interno, de uma
– A recepção de acordos celebra- sucessão causal e ordenada de atos re-
dos pelo Brasil no âmbito do MERCO- vestidos de caráter político-jurídico,
SUL está sujeita à mesma disciplina cons- assim definidos: (a) aprovação, pelo
titucional que rege o processo de incor- Congresso Nacional, mediante decre-
poração. À ordem positiva interna bra- to legislativo, de tais convenções; (b)
sileira, dos tratados ou convenções ratificação desses atos internacionais,
internacionais em geral. É, pois, na pelo Chefe de Estado, mediante depó-
Constituição da República, e não em ins- sito do respectivo instrumento; (c) pro-
trumentos normativos de caráter in- mulgação de tais acordos ou tratados,
ternacional, que reside a definição do pelo Presidente da República, medi-
iter procedimental pertinente à trans- ante decreto, em ordem a viabilizar a
posição, para o plano do direito posi- produção dos seguintes efeitos bási-
tivo interno do Brasil, dos tratados, cos, essenciais à sua vigência domésti-
convenções ou acordos – inclusive ca: (1) publicação oficial do texto do tra-
daqueles celebrados no contexto re- tado e (2) executoriedade do ato de di-
gional do MERCOSUL – concluídos reito internacional público, que pas-
pelo Estado brasileiro. Precedente: sa, então — e somente então —, a vincu-
ADI 1.480-DF, Rel. Min. Celso de lar e a obrigar no plano do direito po-
Mello. sitivo interno. Precedentes.
– Embora desejável a adoção de O SISTEMA CONSTITUCIONAL
mecanismos constitucionais diferen- BRASILEIRO NÃO CONSAGRA O
ciados, cuja instituição privilegie o pro- PRINCÍPIO DO EFEITO DIRETO E
cesso de recepção dos atos, acordos, NEM O POSTULADO DA APLICABI-
protocolos ou tratados celebrados pelo LIDADE IMEDIATA DOS TRATADOS
Brasil no âmbito do MERCOSUL, esse OU CONVENÇÕES INTERNACIO-
é um tema que depende, essencialmen- NAIS.
te, quanto à sua solução, de reforma – A Constituição brasileira não
do texto da Constituição brasileira, consagrou, em tema de convenções in-
reclamando, em conseqüência, modifi- ternacionais ou de tratados de inte-
cações de jure constituendo. Enquanto gração, nem o princípio do efeito dire-
não sobrevier essa necessária reforma to, nem o postulado da aplicabilidade
constitucional, a questão da vigência imediata.
doméstica dos acordos celebrados sob Isso significa, de jure constituto, que,
a égide do MERCOSUL continuará su- enquanto não se concluir o ciclo de sua

324 Revista de Informação Legislativa


transposição, para o direito interno, os 3. Conclusão
tratados internacionais e os acordos
Do que foi dito, pode-se concluir que o
de integração, além de não poderem ser
tratado entra em vigor, na esfera internacio-
invocados, desde logo, pelos particu-
nal, com a troca de instrumentos de ratifica-
lares, no que se refere aos direitos e obri-
ção, com o depósito desses instrumentos.
gações neles fundados (princípio do
Mas só vale na ordem interna, isto é, só obri-
efeito direto), também não poderão ser
ga e só pode ser invocado, no território bra-
aplicados, imediatamente, no âmbito
sileiro, após a sua promulgação pelo Presi-
doméstico do Estado brasileiro (pos-
dente da República.
tulado da aplicabilidade imediata).
A promulgação é, pode-se dizer, o ates-
– O princípio do efeito direto (apti-
tado de que foram cumpridas todas as for-
dão de a norma internacional reper-
malidades necessárias para a formação do
cutir, desde logo, em matéria de direi-
ato internacional. É a notícia que se dá a
tos e obrigações, na esfera jurídica dos
todos de que existe mais uma norma em vi-
particulares) e o postulado da aplicabi-
gor e que ela deve ser cumprida e observada
lidade imediata (que diz respeito à vi-
por todos. A promulgação confere força exe-
gência automática da norma interna-
cutória ao tratado. Mas, para fazer saber a
cional na ordem jurídica interna) tra-
todos, é necessário que o decreto de promul-
duzem diretrizes que não se acham con-
gação seja publicado: é a publicação que
sagradas e nem positivadas no texto da
torna conhecido o tratado e só com ela sua
Constituição da República, motivo
observância se faz obrigatória.
pelo qual tais princípios não podem ser
invocados para legitimar a incidên-
cia, no plano do ordenamento domés-
tico brasileiro, de qualquer convenção Notas
internacional, ainda que se cuide de 1
As Constituições de 1934 e 1937 se referiam,
tratado de integração, enquanto não se apenas, às justiças locais, ao passo que as de 1946
concluírem os diversos ciclos que com- e de 1967, no texto originário, mencionavam “ou-
põem o seu processo de incorporação tros tribunais ou juízes”.
2
ao sistema de direito interno do Bra- O Supremo Tribunal foi denominado “Corte
Suprema”.
sil. Magistério da doutrina. 3
Const. 1988, art. 48, caput, c.c. art. 49, I, e arts.
– Sob a égide do modelo constituci- 61, 64, 65. Observe-se a redação do art. 65: “O
onal brasileiro, mesmo cuidando-se de projeto de lei (no caso, projeto de decreto legislati-
tratados de integração, ainda subsis- vo, com início na Câmara dos Deputados, na for-
tem os clássicos mecanismos instituci- ma do art. 64), aprovado por uma Casa, será revis-
to pela outra, em um só turno de discussão e vota-
onais de recepção das convenções in- ção, e enviado à sanção ou promulgação (no caso,
ternacionais em geral, não bastando, à promulgação pelo Presidente da Casa, na forma
para afastá-los, a existência da nor- do art. 48, caput), se a Casa revisora o aprovar, ou
ma inscrita no art.4º, parágrafo único, arquivado, se o rejeitar”.
4
da Constituição da República, que Art. 59, VI, Constituição Federal de 1988.
5
Art. 44, I, Const. Fed. de 1967, com Emenda
possui conteúdo meramente progra-
nº 1/69. Aliás, as Constituições Republicanas de
mático e cujo sentido não torna dispen- 1934 (art. 40, “a”), de 1946 (art. 66, I) e de 1967
sável a atuação dos instrumentos cons- (art. 47, I), no seu texto originário, empregavam a
titucionais de transposição, para a or- expressão “competência exclusiva”, enquanto a de
dem jurídica doméstica, dos acor- 1891 (art. 34, nº 12) usava outra: “Compete priva-
tivamente”. A primeira indica os casos em que a
dos, protocolos e convenções cele- competência do Poder Legislativo exclui a do Exe-
brados pelo Brasil no âmbito do cutivo, que não participa do ato. A segunda, “pri-
MERCOSUL.” vativamente”, na Constituição de 1891, não excluía

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 325


a participação do Executivo: a aprovação deveria analisar, voto por voto, as manifestações dos Mi-
ser sancionada (art. 48, 1º). A Constituição de 1988 nistros do STF.
8
(art. 49, I) confere competência exclusiva ao Con- A Convenção sobre Igualdade de Direitos entre
gresso Nacional, para “resolver definitivamente Brasileiros e Portugueses, fugindo à regra, entrou
sobre tratados, acordos ou atos internacionais que em vigor em 22/04/1972, mas, em 12/04/1972, já
acarretem encargos ou compromissos gravosos ao havia sido promulgada pelo Dec. nº 70.391, e em
patrimônio nacional”. Nos termos do art. 48, ca- 18/04/1972, regulamentada pelo Dec. nº 70.436.
9
put, o Executivo não participa do processo legisla- Por exemplo: a “Convenção para a Adapta-
tivo, isto é, o Presidente não sanciona a lei (sentido ção à Guerra Marítima dos Princípios das Conven-
amplo; aqui, o decreto legislativo), que é, então, ções de Genebra de 22 de Agosto de 1864”. Cf.
promulgada pelo Presidente do Senado Federal Accioly (1927, p. 49), onde estão os dados: “O
(Regimento Interno do Senado, Resolução nº 93, de Congresso Nacional, em resolução de 29 de De-
1970, art. 48, XXVIII ⎯ exemplar publicado em 1999, zembro de 1906, autorizou a adhesão do Brasil.
com texto editado de conformidade com a Resolu- Essa autorização foi sancionada pelo decreto nº
ção nº 18, de 1989, e consolidado com as alterações 1.633, de 3 de Janeiro de 1907, e a adhesão se effec-
decorrentes de resoluções posteriores, até 1998). tuou a 25 de Fevereiro do mesmo anno”. Não cons-
6
Cf. Rezek (1973, p. 110-112). O autor se refere ta, porém, o decreto de promulgação; o mesmo
ainda a casos em que a própria ratificação se perde ocorrendo quanto à “Convenção Relativa a Leis e
no vazio, frustrando-se a decisão definitiva inter- Usos da Guerra Terrestre” (p. 46-47). Em relação à
na, por exemplo, se um tratado bilateral for ratifi- “Convenção para a Proteção das Obras Literárias e
cado por só uma das partes. Artísticas”, os dados são mais completos, cons-
7
FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado interna- tando o decreto de promulgação (p. 151-155). Os
cional e norma de direito interno: estudo analítico da tratados de extradição firmados pelo Brasil com o
situação do tratado na ordem jurídica brasileira. Uruguai, o Peru, o Paraguai foram todos aprova-
1978. 170 f. Dissertação (Mestrado) – Universida- dos por resolução do Congresso, sancionada por
de de Brasília, Brasília. Publicado sem alterações decreto (respectivamente, Dec. nos 3.607, de 13/
em 1997 pela Editora Forense. Dissertação de Mes- 12/918; 4.236, de 04/01/921 e 4.612, de 29/11/
trado elaborada em 1978, depositada em cópia xero- 922), com posterior promulgação (respectivamen-
gráfica na Biblioteca da Universidade de Brasília e te, Dec. nos 17.572, de 30/11/926; 15.506, de 31/
na Secretaria do Curso de Mestrado em Direito e 05/922; 16.925, de 27/05/925); cf.: Coleção de Atos
distribuída, em cópia de igual espécie, para pou- Internacionais, nos 841, 840 e 814.
cos conhecidos, entre eles, João Grandino Rodas, 10
ACCIOLY (1927, p. 31-33); Leis do Brasil (1923,
que por ela se interessaram. Soube que estudantes v. 1, p. 179-180, 1924, v. 2, p. 454-457).
de outras Universidades também obtiveram cópia. 11
Assim, por exemplo, o “Tratado de Extradi-
Repete-se: o trabalho foi elaborado em 1978, mas só ção” e “Protocolos Adicionais”, entre o Brasil e o
veio a ser publicado, sem qualquer alteração em México, foram assinados no Rio de Janeiro, em 28/
1997, pela FORENSE. Deste trabalho, em exemplar 12/1933 e 18/09/1935, respectivamente; aprova-
xerografado, muitos autores se serviram sem citar dos pelo Dec.-lei nº 28, de 30/11/1937; ratificados
a fonte, numa atitude desleal e até criminosa. Bas- pelo Brasil em 30/11/1937, e pelo México em 18/
ta ler os mais recentes e ter-se-á a comprovação. 01/1938; instrumentos de ratificação trocados no
Para citar só um exemplo, creio ter sido esta autora
México em 23/02/1938; promulgados pelo Dec. nº
a primeira a analisar o RE 80.004, ainda em 1978.
2.535, de 22/03/1938, publicado no D.O.U. de 02/
Ao seguirem o mesmo raciocínio, a mesma meto-
04/1938; cf: Coleção de Atos Internacionais, 1975, nº
dologia e os mesmos exemplos que empreguei, es-
125. Igualmente, os tratados de extradição, firma-
quecem-se de dar-me os créditos..., chegando ab-
dos pelo Brasil com a Colômbia, a Venezuela e a
surdamente a, aliás, transcrever, sem aspas e sem
indicar a fonte, trechos inteiros. Rezek, orientador Bolívia; cf: Coleção de Atos Internacionais, respectiva-
da dissertação, ao escrever o seu ‘Direito dos Trata- mente, 1941, nº 168; 1975, nº 160; 1942, nº 187.
12
dos’, como não poderia deixar de ser, agiu de forma “Decreto de 10/04/1826 – Manda observar o
oposta: telefonou-me avisando que estava citando tratado de reconhecimento da Independência entre
o trabalho e queria saber se já havia sido publicado o Brazil e Portugal – Achando-se mutuamente rati-
para indicar a fonte correta. Na resposta negativa, ficado o Tratado assinado nesta côrte aos 29 de
citou a dissertação como trabalho universitário, ain- Agosto do anno proximo passado pelos meus Ple-
da não publicado. A saudosa professora Anna nipotenciarios e o do Senhor D. João VI, Rei de Por-
Maria Villela sempre me cobrava a publicação da tugal e Algarves, meu augusto pai, mediante o qual
análise da jurisprudência da Corte Suprema, pro- pondo-se o desejo termo à guerra que infelizmente
cedimento comum na Europa, mas desconhecido se fizera necessaria entre os dous Estados, foi jus-
no Brasil. Segundo ela, teria sido eu a primeira a tamente reconhecida a plena independencia da

326 Revista de Informação Legislativa


16
Nação Brazileira, e a suprema dignidade, a que fui Ap. Civ. nº 7.872-RS, relator Min. Philadel-
elevado pela unanime acclamação dos povos, com pho Azevedo, em 11/10/1943, Arquivo Judiciá-
a cathegoria de Imperador Constitucional, e Seu rio, 69/13.
17
Defensor Perpetuo: Hei por bom ordenar que se dê R.E. nº 71.154-PR, relator Min. Oswaldo Tri-
ao dito Tratado a mais exacta observancia e execu- gueiro, Trib. Pleno, em 04/08/1971, R.T.J. 58/70.
18
ção, como convém a santidade dos Tratados cele- Não se trata, evidentemente, da validade do
brados entre as nações independentes, e à inviolá- tratado, mas de sua eficácia, na ordem interna.
19
vel boa fé, com que são firmados. O Visconde de Houve, aí, equívoco na conclusão, a julgar
Inhambupe de Cima, do Meu Conselho de Estado, pelas premissas, nas afirmações anteriores. Na rea-
Ministro e Secretario de Estado dos Negocios Es- lidade, a ratificação do tratado, sem outras forma-
trangeiros, o tenha assim entendido, e faça execu- lidades complementares, não autoriza a conclusão
tar, expedindo as devidas participações e exem- pela sua executoriedade na ordem interna; para
plares impressos para as estações competentes des- esse efeito, o tratado deve ser promulgado. Na apre-
ta Côrte e Provincias do Império, com as ordens ciação do Ministro, o Brasil não estaria em situação
mais positivas para que se cumpram e guardem privilegiada. Internacionalmente, o tratado foi con-
como nelle se contém. Palacio do Rio de Janeiro em cluído e sua observância poderia ser exigida, nas
10 de abril de 1826, 5º da Independência e do Im- mesmas condições em que o Brasil a exigisse dos
pério. Com a rubrica de Sua Magestade Imperial. outros contratantes. Se o Brasil pudesse se eximir
Visconde de Inhambupe.” do compromisso firmado, os outros Estados podê-
13
Três são as etapas de formação do tratado, facil- lo-iam, também, se não houvessem incorporado a
mente extraídas, por exemplo, da Constituição de norma convencional ao seu direito interno. Em con-
1967, c/ EC nº 1/69: a) a negociação, pelo Executi- seqüência, a suposta posição privilegiada do Brasil
vo, concluindo com a assinatura ad referendum do se perderia no vazio.
20
Legislativo (art. 81, X); b) a discussão, pelo Con- Trecho do voto proferido no R.E. nº 72.154-
gresso, que se conclui com a aprovação, promulga- PR, R.T.J. 58/70, p. 71-72.
21
da pelo Presidente do Senado, mediante decreto R.E. nº 69.873-PE, relator Min. Amaral San-
legislativo (art. 59, § 6º); c) a ratificação, concluída tos, Primeira Turma, ac. unânime, em 11/11/
com a troca dos instrumentos que a consubstanci- 1971, R.T.J. 60/468; também, admitindo a vi-
am (art. 81, X, c.c. art. 44, I). Etapas complementa- gência da Lei Uniforme sobre Nota Promissória
res, como ocorre a outras normas, verificam-se na o R.E. nº 66.501-MT, relator Min. Djaci Falcão,
promulgação do tratado (art. 81, III) e na publica- Primeira Turma, ac. unânime, em 14/12/1971,
ção dessa promulgação. Na Constituição atual, de R.T.J. 62/69.
22
1988, os dispositivos aplicáveis são: a) art. 84, VIII; R.E. nº 80.004-SE, relator Min. Xavier de Al-
b) art. 48, caput, e art. 49, I; c) art. 84, VIII, e art. 49, buquerque, Tribunal Pleno em 01/06/1977, R.T.J.
I.; Etapas posteriores: promulgação e publicação, 83/809.
23
art. 84, IV. Por exemplo: R.E. nº 58.713-RS, relator Min.
14
A redação do decreto tem seguido essa siste- Hermes Lima, Terceira Turma, ac. unânime, em
mática: “DECRETO Nº 41.909, de 29 de JULHO 30/09/1966, R.T.J. 39/540; C.J. nº 4.663-SP, rela-
de 1957. Promulga o Tratado de Extradição firma- tor Min. Eloy da Rocha, Terceira Turma, ac. unâni-
do, no Rio de Janeiro, a 6 de maio de 1953, entre o me em 17/05/1968, R.T.J. 48/76.
24
Brasil e a Bélgica. O Presidente da República: Ha- R.E. nº 80.171-GB, relator Min. Cordeiro Guer-
vendo o Congresso Nacional aprovado pelo Decreto ra, Segunda Turma, ac. unânime em 21/03/1975,
Legislativo nº 26, de 19 de junho de 1956, o Trata- R.T.J. 74/568; R.E. nº 80.856-SP, relator Min. Cor-
deiro Guerra, ac. unânime, em 11/04/1975, R.T.J.
do de Extradição, firmado, no Rio de Janeiro, a 6 de
74/298 e Juriscível S.T.F. 30/241; R.E. nº 82.583-
maio de 1953, entre o Brasil e a Bélgica; e havendo
SP, relator Min. Thompson Flores, Segunda Turma,
sido ratificado, pelo Brasil, por Carta de 12 de mar-
ac. unânime, em 17/02/1976, D.J. de 24/09/1976,
ço de 1957; e tendo sido efetuada, em Bruxelas, a
p. 8.292; R.E. nº 80.183-SP, relator Min. Leitão de
14 de junho de 1957, a troca dos respectivos Instru- Abreu, Segunda Turma, ac. unânime, em 24/09/
mentos de ratificação; DECRETA que o mencionado 1976; R.E. nº 84.502, relator Min. Moreira Alves, ac.
Tratado, apenso por cópia ao presente Decreto, seja unânime, em 01/10/1976, R.T.J. 80/645; R.E. nº
executado e cumprido tão inteiramente como nele se 83.437-SP, relator Min. Moreira Alves, Segunda Tur-
contém. Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1957, ma, ac. unânime, em 27/08/1976, D.J. de 08/10/
136º da Independência e 69º da República, Jusceli- 1976, p. 8.743, etc.
no Kubitschek. José Carlos de Macedo Soares”. 25
Por ex.: PPE Nº 194, D.J. 4/7/1997; Ementá-
Publ. no D.O. de 1º/8/1957. rio STF 1863-01, p. 27 e seguintes; AGRCR nº 8.279-
15
RHC nº 2.280-DF, relator Min. Lúcio de Men- 4, D.J. 10/8/2000; Ementário STF 1999-1, p. 42 e
donça, em 14/06/1905, O DIREITO, 98/243. seguintes.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 327


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328 Revista de Informação Legislativa


Princípios jurídicos e esperança de uma
futura “autoridade pública universal”

Pierangelo Catalano

Sumário
1. Origem e desenvolvimento dos Seminá-
rios “Roma-Brasília”. 2. Alguns elementos da
unidade “Roma-Brasília”: migrações e direito.
“Roma Americana” e direito romano (José da
Silva Lisboa e Abelardo Lobo). 3. Os Romanos
na História do Futuro (Padre Vieira). 4. “... uma
Roma melhor, porque lavada em sangue ne-
gro e sangue índio” (Darcy Ribeiro). 5. Latini-
dade não é um conceito racial: “omnis uno ore
Latinos” (Virgilio). 6. Identidade latina e resis-
tência. Direito e cultura. 7. O problema da dívi-
da externa: vigência dos princípios gerais do
direito.

1. Origem e desenvolvimento dos


Seminários “Roma-Brasília”

A partir de 1980, com a celebração do


XX aniversário de Brasília, o trabalho da As-
sociação de Estudos Sociais Latino-ameri-
canos foi caracterizado pela reflexão sobre
“os laços profundos que unem as cidades
de Brasília e Roma”, segundo as palavras
da mensagem do Prefeito de Roma, Luigi
Petroselli.
Em maio de 1982, o Vice-prefeito de
Roma Pierluigi Severi, ao entregar uma re-
produção da Loba do Capitólio ao Centro
de Direito Romano e Sistemas Jurídicos da
Universidade de Brasília, recordou “o nexo
entre a independência da América Latina e
os valores da tradição romana”, mesmo “de-
fronte aos riscos de um insidioso neocolo-
nialismo”; foram então pronunciados na-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 329
turalmente os nomes de Giuseppe e Anita Latinidade e integrações jurídicas continentais
Garibaldi. (1998); Identidade jurídica da América Latina e
Os Seminários “Roma-Brasília” são or- globalização (1999); Identidade latina e resis-
ganizados pela ASSLA em colaboração com tência. Direito e cultura no mundo contemporâ-
a Universidade de Brasília, graças à partici- neo (2000); Identidade jurídica da América La-
pação do CNR – Consiglio Nazionale delle tina: integrações continentais e globalização
Ricerche (também no quadro do acordo com (2001).
o correspondente CNPq do Brasil) e sob os
auspícios do Governo do Distrito Federal. 2. Alguns elementos da unidade
Os Seminários sublinham a unidade das “Roma-Brasília”: migrações e direito.
duas cidades. Esses tiveram início em 1984
“Roma Americana” e direito romano
com um relatório sobre Roma na tradição bra-
sileira, do presidente do Instituto Histórico
(José da Silva Lisboa e Abelardo Lobo)
Geográfico Brasileiro prof. Pedro Calmon. Com a articulação dos trabalhos de 1984,
O Seminário de 1985, organizado por oca- foram indicados três elementos dos laços
sião do 25o aniversário da inauguração de profundos que unem Roma e Brasília: mi-
Brasília, realizou-se no Capitólio e na Uni- grações dos homens (e movimentos políti-
versidade de Roma “La Sapienza”, sob o cos), continuidade do direito (e modelos ins-
patrocínio da Comuna de Roma. A partir de titucionais), concepção da urbs e da civitas
1986, os Seminários “Roma-Brasília” ocor- (recordando a definição que Lúcio Costa
rem em Brasília, em agosto, por ocasião da deu de Brasília).
festa de São João Bosco. Em 1980, a ASSLA organizou um Semi-
Os “laços profundos” entre Roma e Bra- nário em Caracas, em colaboração com o
sília podem ser vistos profeticamente, vivi- Instituto de Altos Estudios de América Lati-
dos politicamente, estudados cientificamen- na e a Fundación Bicentenario de Simón
te. Os nossos Seminários, iniciados em 1984, Bolívar, sobre Migraciones latinas y formaci-
desejam percorrer o caminho de Roma a Bra- ón de la Nación Latinoamericana6; em 1985,
sília não excluindo nenhum desses três pon- organizou, em colaboração com a Universi-
tos de vista. dade de São Paulo, um Congresso euro-brasi-
Os Seminários abordaram os seguintes leiro sobre migrações (programado por oca-
temas: A cultura romana e a sua influência no sião do 50o aniversário da Universidade de
pensamento brasileiro: história, direito e litera- São Paulo)7.
tura (1984)1; Roma-Brasília: tradições e reali- Sobre os três elementos, procurou-se de
dade das duas capitais (1985)2; Roma-Brasília: novo um encontro interdisciplinar em 1986.
história das duas cidades (1986); Tradições ju- Em tal ocasião, os estudos jurídicos (intro-
rídicas e legislações vigentes (1987); Roma-Bra- duzidos em 1984 por um relatório do Mi-
sília: centralização do poder e miscigenação das nistro do Supremo Tribunal Federal José
culturas (1988); Tradição jurídica romana e ins- Carlos Moreira Alves sobre o Direito roma-
tituições indígenas (1989)3; Aspectos jurídicos no no Brasil) retomaram o seu curso: vale
da dívida externa dos países latino-americanos recordar o relatório de Piero Bellini, da Uni-
(1990)4; Direito latino-americano e sistema eco- versidade de Roma “La Sapienza”, sobre
lógico mundial (1991)5; Direito da integração: Poder universal do Pontífice Romano e a divi-
Tratado de Roma e Tratado de Asunción (1992); são do Atlântico. Do ponto de vista da refle-
Formação e reforma das constituições (1993); Ci- xão jurídica, podemos considerar no centro
dadania e integrações continentais (1994); Inte- de tal evolução teórica o pensamento do
grações continentais e informática jurídica grande jurista José da Silva Lisboa. No dis-
(1995); Futuro do direito e direito ao futuro curso de 27 de agosto de 1823 na Assem-
(1996); Direito e “História do Futuro” (1997); bléia Geral Constituinte e Legislativa do

330 Revista de Informação Legislativa


Império do Brasil, concernente à instituição lou para o César alegando que era ci-
de cursos jurídicos, o futuro Visconde de dadão romano e que só no Tribunal
Cairú afirmou, referindo-se ao Rio de Janei- de César podia ser julgado. Além de
ro-Roma Americana: “Importa pois, que os que muitos Portugueses eram filhos e
que devem influir nas classes menos instru- netos de Romanos como muitos Ro-
ídas venham fazer estudos e firmar o espíri- manos de Portugueses, pela união e
to do nosso systema na Roma Americana”; comércio destas duas nações, assim
tratava-se da instituição dos cursos jurídi- em Portugal, onde viviam os presídi-
cos. os romanos, como nas guerras dos
Justamente a ciência jurídica consente mesmos Romanos, onde os Portugue-
uma análise geral dos homens, do espaço e ses iam servir e merecer debaixo de
do tempo. Especialmente no Brasil, tornam- suas bandeiras. E posto que qualquer
se evidentes os aspectos do espaço do siste- destas razões e muito mais todas jun-
ma jurídico globalmente (e historicamente) tas são bastantes para que sem impro-
considerado. Desenvolve-se o universalis- priedade se possa entender os Portu-
mo do “direito romano atual” de Savigny gueses debaixo do nome de Romanos,
na obra genial de Teixeira de Freitas. Com o fundamento principal sólido e certo
Clóvis Beviláqua, a comparação jurídica desta interpretação é ser esta a mente
supera as limitações eurocêntricas e vem e sentido em que falaram os mesmos
identificar a individualidade do “grupo das Profetas[...]
legislações dos povos latino-americanos”; Destes Reinos de que se compu-
e, nesse caminho, o patriota Abelardo Lobo nha o Império Romano, aqueles ho-
concebe a visão unitária do direito romano mens que eram os mais fortes e valen-
“desde as leges regiae até a formação do Di- tes de todos não se contentaram só
reito Ibero-Americano”8. com as terras dos outros impérios, mas
intentaram discorrer e passear toda a
3. Os Romanos na História do Futuro redondeza da Terra. Estes foram os
(Padre Vieira) Espanhois, e entre os Espanhois, mui-
to particularmente os Portugueses;
As raízes da idéia da “Roma america- porque a conquista dos mares e terras
na” estão no pensamento do jesuíta Anto- do Oriente, pela distância remotíssi-
nio Vieira, defensor dos índios no século ma das terras, pela dificuldade de
XVII. navegações, pela diferença dos climas,
Segundo Antonio Vieira, o nome “Roma- pelo valor e potência das nações que
nos” compreendia, desde a antigüidade, se conquistaram, foi empresa de mui-
também Espanhóis e Portugueses, que ele to valor, resolução e esforço que a dos
considerava, aliás, como “fortíssimos” en- Castelhanos. Assim que, consideran-
tre os Romanos: do todo o corpo do Império Romano e
“Os Portugueses e todos os Espa- todas as suas empresas, os fortes dos
nhóis se podem e devem entender de- Romanos foram os Cipiões, os Pom-
baixo do nome de Romanos, no senti- peus, os Césares, os Augustos; os for-
do desta profecia, porque Espanha e tíssimos foram os Espanhois, e entre
Portugal foram colónias dos Roma- esses Espanhois os fortíssimos foram
nos, e parte não só do Império, senão os Portugueses”9.
do Povo Romano, e verdadeiros cida- Diante da Inquisição, o Padre Vieira es-
dãos romanos; ao que não obstava clareceu que a teoria do “Quinto Império”
serem de diferente nação, como se vê não negava a eternidade do Império
em São Paulo, que sendo hebreu, ape- Romano:

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 331


“Supõe-se que este império há-de do ali assentar-se permanentemente.
ser com extinção do romano. Nem eu Principalmente as árabes, que toma-
tal digo, nem é necessária tal suposi- ram e mantiveram o poder por um
ção”10; milênio, tido fazendo para desfazer
“lhe parece que o Império de que nossa obra de latinização. Resistimos.
trata, se há de começar com a extinção Vencemos. Há 500 anos atravessei o
do de Alemanha, que de presente, tem mar grosso nas naus lusitanas e vim
nome de Romano, na casa de Áustria; ter aqui nas terras selvagens do Bra-
mas que o tal Quinto império por qual- sil. O desafio se repetiu, maior ainda.
quer modo que seja há de ser sempre Agora se tratava de latinizar os índi-
não só Católico Romano, mas o mais os bravos da floresta, tantíssimos, os
católico que houve”11. negros, milhões deles que trouxemos
da África, outros europeus e gentes
4. “... uma Roma melhor, porque orientais de fala truncada, que tive-
lavada em sangue negro e sangue mos também que domesticar. Somos
hoje um povo só, a Nova Roma. Uni-
índio” (Darcy Ribeiro)
do pela língua, pela cultura e pela
Em 1987, Darcy Ribeiro escreve (em um destinação como maior das provínci-
artigo publicado na Itália, intitulado Siamo as neolatinas. Somos nós que repre-
noi i neo-romani): sentaremos a tradição romana no con-
“Roma, incarnata in ‘lusitanità’, certo dos povos dos próximos séculos
nelle Americhe si vestì di carne india e milênios. Nós o faremos simultane-
e di carne negra per costruire questa amente com a tarefa maior de nos
enorme latinità, formata oggi da quat- modernizarmos, de dominarmos as
trocento milioni di latino-americani e mais avançadas ciências e técnicas para
che nell’anno duemila conterà seicen- realizar, em grandeza, nosso destino de
to milioni. Si tratta di un blocco para- futura civilização latina, morena e tro-
gonabile solo a quello slavo, a quello pical. Orgulhosa de ser a Nova Roma,
cinese, al neo-britannico. Direi che uma Roma melhor, porque lavada em
questo blocco è migliore degli altri, per- sangue negro e sangue índio”.14
ché è formato da gente di più razze,
che sommano i talenti più profondi 5. Latinidade não é um conceito racial:
dell’umanità, oltre che i difetti”12. “omnis uno ore Latinos” (Virgílio)
Darcy Ribeiro retomou e ampliou o tema
no livro sobre a formação do povo brasilei- Desde 1977, quando se organizou em
ro13 e na carta enviada às “autoridades de Roma um primeiro seminário sobre Consti-
Roma” em ocasião da entrega do Prêmio tucionalismo Latino15, e ainda mais depois do
“Roma-Brasília” em 17 de dezembro de 1996: Seminário sobre Migraciones latinas y forma-
“...Eu sou o que vem de volta. Saí ción de la Nación Latinoamericana, organiza-
de Roma há 2000 anos, nos ofícios de do em Caracas pelo padre Gianfausto Ro-
soldado e de romanizador da Euro- soli, a ASSLA – Associazione di Studi Soci-
pa. Por 1500 anos acampei na Ibéria, ali Latinoamericani considera central em
latinizando a gente bárbara de lá. Foi seus trabalhos o conceito de “latino”, como
tarefa dura. Tanto fazê-los entender e fator de união entre os povos dos dois lados
falar latim, com suas bocas estranhas do oceano.
que o deformaram bastante, como, e Em época arcaica, Eneas mistura e une
sobretudo, mantê-los latinizados. Su- os imigrados da Ásia com os indígenas da
cessivas invasões lá foram ter, queren- Itália, sob o nome de “Latinos”: omnis uno

332 Revista de Informação Legislativa


ore Latinos, canta o vate Virgílio no último “escravidão”: a “escravidão” do devedor
livro da Eneida. Durante a idade dos reis e levado até a morte (política e, no que concer-
da antiga república, o nomen Latinum foi uma ne às suas partes economicamente mais fra-
organização religiosa, política e militar, com cas, também física) por mecanismo capita-
o centro no Lácio, a qual poderiam perten- lista que não conhece os tradicionais limi-
cer povos de distinta origem étnica, até que tes religiosos, morais e jurídicos postos à
o “direito latino” (ius Latii) se estendeu tam- usura.
bém fora da península itálica16. Assim a O favor debitoris e os tradicionais limites
“Latinidade”, nas suas várias formas, con- jurídicos postos à usura, no que tange ao
verteu-se em uma possível etapa (para po- direito (desde a antiga República romana
vos e indivíduos) até a Cidadania romana, até o direito latino-americano), estão eviden-
concebida, depois da constituição do impe- ciados já em estudos do prof. José Carlos
rador Antonino Caracalla, e mais ainda com Moreira Alves17, o ex-presidente do Supre-
a concepção cristã de Império, do impera- mo Tribunal Federal. Ele deu início a uma
dor Justiniano, como Cidadania universal. obra que eu definiria de reconstrução da
memória histórica dos juristas. Essa recons-
6. Identidade latina e resistência. trução tem sido vigorosamente prossegui-
Direito e cultura da pela ASSLA a partir do Seminário
“Roma-Brasília” de 199018. Também sobre
Estamos hoje diante do fenômeno eco- essas conclusões baseou-se a citada XI Con-
nômico e principalmente financeiro da glo- ferência Interparlamentar Comunidade Euro-
balização, isto é, diante da forma mais re- péia-América Latina de maio de 1993, que
cente do “imperialismo internacional do adotou entre outros o seguinte acordo: “Pe-
dinheiro”, segundo as palavras do Pontífi- dir a los Estados miembros que estudien la pro-
ce Romano Pio XI (encíclica Quadragesimo puesta de que la Asamblea de las Naciones Uni-
anno, n. 109), retomadas por Paulo VI (Popu- das solicite a la Corte Internacional de Justicia
lorum progressio, n. 26); cfr. na encíclica de de la Haya un dictamen que clarifique y estudie
João Paulo II Sollicitudo rei socialis, n. 35-37, el marco ético y jurídico, que debe regular los
a expressão “estructuras de pecado”. términos de los préstamos internacionales” (pon-
Diante da globalização, que marginali- to 26 da Ata Final).
za a maior parte dos homens e dos povos, O Grupo de Trabajo de Jurisprudencia
os juristas devem reafirmar os princípios do CEISAL tem trabalhado intensamente em
gerais do direito. Esses princípios são ex- colaboração com o Conselho Consultivo do
pressados com força na tradição jurídica Parlamento Latino-americano, presidido
hispano-americana e luso-brasileira: respei- pelo saudoso professor André Franco Mon-
to pela vida desde a concepção, igualdade toro19.
dos direitos civis dos estrangeiros, princí- Na mesma linha, o Parlamento Latino-
pio da bona fides no comércio internacional, americano organizou, em Caracas, dois se-
favor debitoris. minários sobre El fin del Milenio y la deuda
Tudo isso na espera de uma futura publi- externa: I Seminário de 16 a 17 de agosto de
ca auctoritas universalis, segundo a constitui- 1996 e II Seminário de 10 a 12 de julho de
ção da Igreja católica Gaudium et spes (n. 82). 1997.
Na Itália, além do parecer do CNEL–
7. O problema da dívida externa: Consiglio Nazionale dell’Economia e del
vigência dos princípios gerais do direito Lavoro, concernente à dívida externa dos
países do Mediterrâneo (de 27 de junho de
Muitos povos, e em particular aqueles 1997), cumpre ressaltar duas tomadas de
latino-americanos, estão sujeitos a uma nova posição: uma eclesiástica e outra política.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 333


2
Seguindo a linha da Pontifícia Comis- Ver Roma-Brasilia: tradizione giuridica e realtà
são “Iustitia et Pax” e com base na doutrina delle due capitali, CNR... , “Rendiconti I/2”, Roma
1990.
do Doutor da Igreja S. Alfonso Maria de’ 3
Ver Tradizione giuridica romana e istituzioni in-
Liguori, a Diocese de Cerreto Sannita-Tele- digene del Brasile, CNR... , “Rendiconti VIII”, Sassari
se-Sant’Agata dei Goti difundiu uma Decla- 1993.
4
ração sobre usura e dívida externa, preparada Ver Principi generali del diritto e iniquità nei ra-
por um grupo internacional de juristas e pporti obbligatori. Aspetti giuridici del debito internazi-
onale dei paesi latinoamericani, CNR... , “Materiali VII/
moralistas20. Essa linha foi assumida no ano 1”, Sassari 1991.
2000 pela Unione Giuristi Cattolici Italiani. 5
Ver Diritto latinoamericano e sistema ecologico
O tema da dívida externa foi amplamen- mondiale, CNR... , “Rendiconti VI”, Sassari 1992.
6
te tratado em uma sessão organizada no Ver Migraciones latinas y formación de la Nación
âmbito da XVII Conferência Nacional da Latinoamericana, Instituto de Altos Estudios de
América Latina, Universidad Simón Bolívar, Cara-
OAB (Rio de Janeiro, 1999)21. cas 1984.
Por outro lado, a Câmara dos Deputa- 7
Ver Emigrazioni europee e popolo brasiliano, a
dos italiana, em 27 de maio 1998, aprovou cura di Gianfausto Rosoli, Centro Studi Emigrazio-
(com só dois votos contrários) uma “Mozio- ni, Roma 1987.
8
ne”, apresentada pelo deputado Salvatore A. Lobo, Curso de Direito Romano, III, Rio de
Janeiro 1931, p. 201.
Cherchi, concernente à solicitação de um 9
A. Vieira, História do Futuro, introdução, actu-
parecer consultivo da Corte Internacional alização do texto e notas por M.L. Carvalhão Bues-
de Justicia da Haya. No ano 2000 (ano do cu, 2a edição, Lisboa, pp. 271 ss.
10
Jubileu), o Parlamento italiano aprovou a Vedi A. Vieira, Defesa do livro intitulado “Quinto
Lei no 209 de 25 de julho de 2000, com una- Império”, in Id. Obras escolhidas, com prefácio e no-
tas de A. Sérgio e H. Cidade, VI, Lisboa 1952, pp.
nimidade no Senado da República, relativa 124 ss.
às “Misure per la riduzione del debito este- 11
Vedi Os autos do processo de Vieira na Inquisição,
ro dei Paesi a più basso reddito e maggior- edição, transcrição, glossário e notas de A.F. Muha-
mente indebitati”. Ressaltamos em particu- na, São Paulo 1995, pp. 63 ss.
12
lar o artigo 7, que, seguindo a linha do Par- D. Ribeiro, “Siamo noi i neo-romani”, em
L’illustrazione italiana, N.S.,CXV/44 (luglio 1987) p.
lamento Latino-americano e da “Mozione 48.
Cherchi”, dispõe: “O Governo, no âmbito das 13
D. Ribeiro, O povo brasileiro. A formação e o
instituições internacionais competentes, propõe sentido do Brasil, 2a ed., São Paulo 1995, pp. 453 ss.:
o avio dos procedimentos necessários para um “Com efeito, alguns soldados romanos...”.
14
pedido de parecer à Corte Internacional de Justi- D. Ribeiro, “Saudações às autoridades de
Roma e a Pierangelo Catalano”, carta agora publi-
ça sobre a coerência entre as regras internacio- cada em Roma e America. Diritto Romano Comune.
nais que disciplinam a dívida externa dos Paí- Rivista di diritto dell’integrazione e unificazione del di-
ses em via de desenvolvimento e o quadro dos ritto in Europa e in America Latina, 3/1997, pp. 337 s.
15
princípios gerais do direito e dos direitos do ho- O primeiro seminário foi dirigido pelo profes-
mem e dos povos”. sor Giuseppe Chiarelli, presidente emérito da Corte
Constitucional da República italiana: cfr. Quaderni
Essa Lei italiana foi acolhida favoravel- Latinoamericani, 3-6 (1979), pp. 382 s. Outros en-
mente nas reuniões organizadas pelo Par- contros se organizaram em maio de 1978 (ibid., pp.
lamento Latino-americano, entre 2000 e 389 s.) e em maio de 1980.
16
2001, em Montevidéu, São Paulo e Caracas. Cfr. P. Catalano, Linee del sistema sovrannazio-
nale romano, I, Torino 1965.
17
A partir da relação apresentada no VI Con-
gresso Latino-americano de Direito Roma (Mérida, Ve-
nezuela, agosto 1987) e da Conferência feita em 10
Notas
de maio de 1989 no Centro di Studi Latino-Ameri-
1
Ver Roma-Brasilia. Storia e istituzioni, CNR-Con- cani da II Università di Roma “Tor Vergata”, e re-
siglio Nazionale delle Ricerche, Progetto “Italia- tomada no Seminário “Roma-Brasília” 1990, pu-
America Latina”, Ricerche giuridiche e politiche, blicada no volume Principi generali del diritto e ini-
“Rendiconti I/1”, Roma 1989. quità nei rapporti obbligatori. Aspetti giuridici del debi-

334 Revista de Informação Legislativa


to internazionale dei Paesi latinoamericani (Progetto sándose en el análisis del origen de ésta, introduci-
Italia-America Latina, Ricerche giuridiche e politi- do ya por el dictamen aprobado per el Comité Eco-
che, Materiali VII/1), Consiglio Nazionale delle Ri- nómico y Social de la Comunidad Europea en 1985
cerche, Sassari 1991.; reeditado em Debito internazi- (Doc. CES 931/85 CAL/DM., apartado 7), en el
onale e principi generali del diritto, a cura di S. Schipa- enfoque del Parlamento Latinoamericano y en el
ni (“Roma e America”. Collana di studi giuridici análisis jurídico de diversas entidades acádemicas
latinoamericani, 8), ed. Cedam, Padova 1995, págs y científicas, pide a los Estados miembros de los
77 ss., e em Notícia do Direito Brasileiro, Faculdade Parlamentos que tomen las iniciativas oportunas,
de Direito da Universidade de Brasília, Nova Série, buscando el apoyo de otros países del mundo, a fin
n. 3, 1o semestre de 1997, págs. 109 ss. de que la Asamblea General de las Naciones Uni-
18
Ver os dois volumes Principi generali del diritto das solicite a la Corte Internacional de Justicia de
e iniquità nei rapporti obbligatori. Aspetti giuridici del La Haya un dictamen consultivo que permita afron-
debito internazionale dei Paesi latinoamericani (Proget- tar el problema de la deuda externa conforme a los
to Italia-America Latina, Ricerche giuridiche e poli- principios generales del derecho internacional con-
tiche, Materiali VII, 1-2), Consiglio Nazionale delle temporáneo (Estatuto de la Corte, art. 38 c)”.
20
Ricerche, Sassari 1991-Roma 1992; e também Debi- Ver Diritto alla vita e debito estero, aos cuida-
to internazionale, principi generali del diritto, Corte in- dos de P. Catalano, ESI-Edizioni Scientifiche Italia-
ternazionale di Giustizia, Atti del Seminario giuridico ne, Napoli 1997; Id., “A proposito della Carta di S.
internazionale 5-7 marzo 1992, Libreria Editrice Va- Agata dei Goti Dichiarazione su usura e debito interna-
ticana-Libreria Editrice Lateranense, Roma 1993; zionale”, in Studia Moralia, XXXVI/1, june/junio
Debito internazionale. Principi generali del diritto, cit.; 1998, pp. 285 ss. ; ver também P.M. Mazzola, “Pra-
Il debito internazionale (Atti del II Convegno 25-27 ticamente usura”, em Nigrizia, Anno 116, n. 4, aprile
maggio 1995), Collana Utrumque Ius, Pontificia Uni- 1998, pp. 22-24; e ainda os artigos do Secretário da
versità Lateranense, a cura di D. Andrés Gutiérrez e Congregazione per la Dottrina della Fede T. Berto-
S. Schipani, Roma 1998. ne, “Un amore preferenziale”, em 30 giorni, a. 14, n.
19
As conclusões da XII Conferência interparla- 10 (outubro 1996), p. 49 s.; e do presidente do Ce-
mentar União Européia-América Latina (Bruxel- lam-Consejo Episcopal Latinoamericano O. Rodrí-
les, 19-23 de junho de 1995) reconfirmam a posição guez Maradiaga, “Ubbidiscono a chi li paga”, em
da XI Conferência, no ponto 27 da Ata Final: “Rea- 30 giorni, a. 14, n. 11 (novembro 1996), p. 46 s.
21
firma la resolución de la XI Conferencia Interparla- Ver Ordem dos Advogados do Brasil, Anais
mentaria CE/América Latina (Acta Final, aparta- da XVII Conferência Nacional dos Advogados “Justiça:
do 26), relativa a los problemas generados por la realidade e utopia”, volume II, OAB – Conselho Fe-
deuda externa latinoamericana. Igualmente y ba- deral, Brasília 2000, pp. 1579 ss.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 335


336 Revista de Informação Legislativa
Venda do ascendente ao descendente.
A revogação da Súmula 494 do STF

Roberto Rosas

Anna Maria Villela colocou em sua tese


na Faculdade de Direito de Paris, em 1971,
preciosa observação sobre a transmissão da
herança no Direito brasileiro, a partir do art.
1572 do Código Civil, na adoção do princí-
pio da saisine, isto é, le mort saisit le vif, em
vernáculo, o morto é substituído pelo vivo.
Logo, com a morte, abre-se a sucessão, e os
herdeiros passam à disputa do cabível a
cada um, ou a somente um, o acervo heredi-
tário.
Tal exame é importante no discurso so-
bre o instituto da venda do ascendente ao
descendente sem o consentimento dos de-
mais descendentes. O tema ficou controver-
tido na doutrina, sobre as conseqüências, o
prazo para a discussão, e a jurisprudência,
e tomamos a maior, a do STF, já admitiu
duas soluções, uma na Súmula 152, e atual-
mente na Súmula 494, e agora o novo Códi-
go Civil revoga a Súmula 494, repristinan-
do a Súmula 152 (art. 496).
O debate trava-se entre a caracterização
de negócio nulo (Súmula 494) ou negócio
anulável (Súmula 152 e novo C.C.), e o pra-
zo para sua demanda – vinte anos (Súmula
494) ou quatro anos (Súmula 152).
Invoca-se Anna Maria Villela porque o
socorro a seu trabalho leva-nos à nulidade,
mas o início do prazo não é condizente na
solução.
É necessária a digressão sobre o negócio
jurídico realizado entre ascendente e des-
cendente, para acentuar requisitos para a
sua validade, entre eles a solenidade essen-
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 337
cial para sua validade ( C.C. – 2002 – art. mento). Na mesma linha, Pontes de Miran-
166, V), bem como não pode haver o vício da da e Eduardo Espínola.
simulação. No Código Civil (1916), o vício Mais recentemente, autores de expressão
de simulação é anulável. No particular, o entenderam o negócio como anulável, porque
novo Código Civil considera nulo o negócio não há interesse público, e assim, somente
jurídico simulado, mas subsistente se váli- com provocação dos interessados, é possível
do na substância e na forma (art. 167) e para a decretação da invalidade. Se o pai vende ao
caracterizá-lo quando houver aparência de filho, sem consentimento dos outros filhos,
transmissão de direitos a pessoas diversas esse negócio subsistirá se os outros não ar-
daquelas às quais realmente se transmitem güirem, e até poderão ratificá-lo. Assim estão
(art. 167, § 1º, I). Washington de Barros Monteiro, Caio Mário
No tema central, três correntes estabele- da Silva Pereira e Agostinho Alvim.
cem soluções para a falta de consentimento Assinale, também, na terceira corrente,
dos demais descendentes na venda do as- a distinção entre venda direta (nula) e ven-
cendente ao descendente. da indireta, por interposta pessoa, simula-
A ancianidade do tema, ainda agora, ção (anulável).
com soluções controvertidas, está na lingua- A jurisprudência do STF, em 1963, paci-
gem das Ordenações Filipinas, que, para a ficou-se na Súmula 152, considerando a
falta de consentimento de filhos e netos, diz venda anulável, contado o prazo de quatro
– “e fazendo tal venda, ou troca, sem con- anos a partir da abertura da sucessão. En-
sentimento dos filhos, ou sem nossa expres- tendeu-se, portanto, que a venda era simu-
sa licença, será nenhuma e de nenhum efei- lação (ou não, se realmente o pai vendesse
to”. (Portugal, 1985, título 12). Portanto, quis ao filho, mediante prova do pagamento do
essa legislação considerar sem efeito e, as- preço), mas a invalidade somente poderia
sim foi lido como nula a venda. ocorrer após a morte do ascendente, no pra-
O assunto veio ao art. 1132 do Código zo de quatro anos, por ser vício da vontade.
Civil (1916): “os ascendentes não podem A actio nata, com a abertura da sucessão, sig-
vender aos descendentes, sem que os ou- nificou solução expressiva, porque, a partir
tros descendentes expressamente consin- desse momento, haveria a transferência da
tam”. propriedade (cf. VILLELA, 1971), e também
Impede-se, nessa circunstância, a exis- a partir da abertura da sucessão, presume-
tência de doação inoficiosa do ascendente se a ciência da transferência da proprieda-
transferindo (gratuitamente) ao descenden- de, e até a sua existência.
te, em lesão às legítimas, como autêntico Posteriormente, o STF revogou a Súmula
adiantamento. 152, com a edição da Súmula 494, caracteri-
Cabe, ainda, a observação com a locali- zado o negócio como nulo, com prescrição
zação do citado dispositivo no capítulo das em vinte anos, e actio nata da data de negó-
obrigações, e não das sucessões, e, portan- cio (ROSAS, 2002, p. 224). Aqui, permite-se
to, a disputa é de negócio jurídico, e não de até em vida do ascendente, porque a dispu-
transmissão de bens, via sucessória. ta é em razão do negócio, e não da herança.
O novo Código Civil expressa: “é anulá- Estranhamente, esse debate só existe nos
vel a venda de ascendente e descendente, direitos brasileiro e português. O Código
salvo se os outros descendentes e o cônjuge Civil Português considera anulável, após
do alienante, expressamente, houverem con- um ano do conhecimento da celebração do
sentido” (art. 496). contrato (art. 877).
A doutrina dividiu-se nas conseqüênci- A jurisprudência do STJ, em média, ado-
as. Para Clóvis Beviláqua o negócio é nulo, tou as duas Súmulas 494 (venda direta) e
porque a lei nega-lhe efeito (sem consenti- 152 (venda indireta).

338 Revista de Informação Legislativa


Adotou-se a nulidade para ato de trans- direta, em autêntica fraude à legítima. Caso,
ferência de quotas sociais empresariais do portanto, de nulidade.
pai ao filho, com prescrição vintenária, com O pai, por interposta pessoa, vende ao
a actio nata do ato de transferência. Portan- filho, com pagamento simulado. Logo, há
to, aplicação da Súmula 494 (Resp. 208 521 simulação com vício de vontade.
– Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar – RT 778/ Juntando o art. 496 do CC – 2002, a Sú-
230; no Resp. 151 935 foi feita excelente dis- mula 152 (anulável – quatro anos) e a Sú-
tinção entre venda direta e indireta – Rel. mula 494 (nula – vinte anos), vamos à expe-
Min. Ruy Rosado de Aguiar – RT 763/179). riência do Direito.
Em outras oportunidades, a Corte deu Na verdade, a solução está na anulabili-
pela anulação, com interposta pessoa, com dade, porque depende de aprovação dos
prazo de quatro anos, a contar da abertura interessados, que não consentiram, e pode
da sucessão (Resp. 86 489 – Rel. Min. Ruy ser confirmada pelas partes (CC – 2002 –
Rosado de Aguiar – RT Rev. STJ 90/275). art. 172), e a invalidade deve ser pedida no
Da mesma forma, em outro julgado, em que prazo de quatro anos (CC – 2002 – art. 178),
foi acentuada a anulação, porque a declara- contado da abertura da sucessão. Por quê?
ção de invalidade depende da iniciativa dos E não do ato? Ora, nesse tipo de negócio, o
interessados, viável a confirmação, e valerá seu esclarecimento, a sua exteriorização só
se provado o justo e real preço (Resp. 977-0 é reclamada quando há a morte do ascen-
– Rel. Min. Sálvio de Figueiredo – RT 717/ dente vendedor, diante do inventário, da
259). Ainda em expressivo acórdão sobre o busca dos bens a inventariar. Somente a
tema, a Corte deu pela anulação, mas de- partir daí ocorre a legitimidade para a de-
pendente da demonstração da simulação. manda, ao contrário da prescrição vintená-
Se o preço não foi inferior, logo a venda foi ria que permite a demanda, em vida, contra
boa (Resp. 74 135 – Rel. Min. Aldir Passari- o ascendente vendedor. Essas observações
nho Júnior, RT 789/180). são levadas em conta, com a experiência
Essa discussão não se aplica à doação desse singular negócio da venda do ascen-
do ascendente ao descendente, porque o tex- dente sem o consentimento dos demais des-
to legal trata de venda. Nesse caso, trata-se cendentes. Na linha da simulação, verifica-
de adiantamento da legítima (Resp. 124220 se qual o verdadeiro negócio concluído pelas
– Rel. Min. César Asfor Rocha – RT 754/ partes e se verdadeiramente foi concluído.
239 e Rev. STJ 107/281). Para essa divagação, é necessário o exame da
Em outra decisão, não foi exigida a prova linha do Código de 1916 que enquadrou a
da simulação, apenas a venda sem consenti- simulação entre os vícios de vontade, e o novo
mento pressupõe a anulação (Resp. 84724 – adotou outro sistema, numa lição atual de
Rel. Min. Waldemar Zveiter – RT 741/223). Tullio Ascarelli (2001, p. 75) para o tema. Por-
Como observou Oliver Holmes, o direito tanto, somente com a transmissão da heran-
não é só lógica, também experiência. Veja- ça, por força do droit de saisine, ocorrerá o di-
mos então, como ocorre na prática. reito à demanda, tudo isso deduzido da tese
O pai vende ao filho pelo preço certo, de Anna Maria Villela, acima citada.
pago, comprovado, até nas declarações de
renda. Não há qualquer vício. Afinal, o pai
pode vender ao filho, sem induzimento de Bibliografia
doação inoficiosa, ou adiantamento da legíti-
ma disfarçada em prejuízo dos outros filhos. ASCARELLI, T. Problemas das sociedades anônimas e
O pai vende ao filho, com pagamento si- direito comparado. Campinas: Bookseller, 2001.
mulado, não ocorrido na realidade. Só pode PORTUGAL. Ordenações Filipinas. Lisboa: Funda-
se adiantamento da legítima. Logo, venda ção Calouste Gulbenkian, 1985. v. 4.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 339


ROSAS, R. Direito sumular: comentários ás súmulas VILLELA, A. M. La transmisión d’herédité: en droit
do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal brésilien et en droit français. 1971. Paris: Lib. Techi-
de Justiça. 11. ed. rev. e atual. com referências ao niques, 1971. Publicado originalmente como tese
Código Civil de 2002. São Paulo: Malheiros, 2002. de doutorado, Université de Paris, 1970.

340 Revista de Informação Legislativa


Um continente à deriva

Rubens Ricupero

Sumário
1. Os caminhos do retrocesso. 2. Explosões
de desespero. 3. Brasil, florão da América. 4.
Nossa América e a dos outros. 5. Existe Améri-
ca Latina?

Pela primeira vez, ao que eu saiba, a


América Latina arrebatou à África o troféu
do pior desempenho econômico entre todas
as regiões supostamente em desenvolvimen-
to. Com taxas de 0,4%, em 2001, e - 1,1%, em
2002, os latino-americanos ficaram longe
dos 2,7% - 2,5% dos africanos. Não que haja
muito a celebrar nesses últimos resultados,
que mal superam a taxa demográfica. Nem
se pretende extrair do fato conclusões ab-
surdas. Como, por exemplo, a de que, em
termos absolutos ou relativos, a África teria
deixado de ser, em quase todos os domíni-
os, o continente por excelência da desven-
tura: guerras externas ou civis, genocídio,
fome, AIDS, concentração da maioria esma-
gadora das economias mais atrasadas, os
pobres entre os pobres, em inglês “Least
Developed Countries” ou Países Menos
Avançados (33 em 49 – o único LDC nas
Américas é o Haiti).
Tampouco se deve esquecer que, para o
desastroso desempenho de 2002, concorre-
ram alguns fatores excepcionais, dificilmen-
te repetíveis em circunstâncias regulares.
Entre eles, o colapso da economia argentina
e, em grau menor, o da venezuelana. Feitas
essas ressalvas, não há como escamotear a
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 341
extrema gravidade do sinal. Em primeiro pode-se medir a distância que afasta o so-
lugar, porque o contraste é penoso com o nho da realidade.
período de 1946 a 1975, quando a América A confirmar que se trata bem de uma ten-
Latina crescia entre 6% a 7% ao ano, na li- dência geral, não de mero episódio extraor-
derança indisputada das regiões em desen- dinário, há outro indício significativo. De
volvimento. Passamos depois a modesto uns anos para cá, não existem mais exce-
lugar intermediário entre os asiáticos e os ções, novos casos de crescimento rápido,
africanos, sempre, porém, mais próximos da como pareceram ser, em certos momentos, o
comissão de frente. Dessa posição, começa- Chile, a República Dominicana, o México, a
mos agora a escorregar para baixo. Não tan- Costa Rica. Os melhores desempenhos mal
to devido aos duvidosos progressos africa- conseguem superar a módica taxa de 4%.
nos, mas porque o espetacular avanço chi- Como explicar o fenômeno? Em 2001-
nês e asiático ameaça engolir e confundir 2002, algumas das causas foram conjun-
dentro da mesma nuvem de poeira todo o turais, ligadas à recessão americana e
pelotão dos que ficaram para trás. Na aber- mundial, assim como à conseqüente queda
tura da reunião da Comissão de Comércio nos preços das principais exportações
da UNCTAD, em fevereiro de 2003, foi um latino-americanas. O que estaria, contudo,
tanto cabisbaixos que os latinos tiveram de por trás do declínio do crescimento per ca-
escutar o discurso triunfalista com o qual o pita que se registra a partir de 1997-98?
embaixador da Índia justificava o desloca- Ocampo, que foi ministro de Finanças
mento em direção à Asia do fulcro das ativi- da Colômbia e é um dos mais sólidos econo-
dades econômicas. Em 1940, dizia ele, o con- mistas latino-americanos, com especial
tinente asiático representava 60% da popu- competência em temas financeiros, não he-
lação e só 19% do PIB mundiais; em 1995, sita no diagnóstico. A causa comum dessa
essas porcentagens eram de 57% e 37%, res- tendência generalizada é a exacerbada ins-
pectivamente, e, em 2025, estima-se que se- tabilidade da economia internacional, so-
rão de 55% e 51%. bretudo o comportamento dos mercados de
A segunda razão para julgar inquietan- capital. Em conseqüência da crise asiática
te a rabeira dos anos passados é que, em vez de 1997, os fluxos financeiros internacionais
de incidente isolado e atípico, ela indica ten- sofreram forte contração e, após 1998, o pa-
dência à estagnação e ao declínio que dura gamento de juros começou a ser maior do
já, com breve interrupção, quase dois decê- que a entrada de novos capitais. As transfe-
nios, uma geração. De fato, após perder a rências de recursos se tornaram novamente
década de 1980, parecia, a princípio, que os negativas, em termos líquidos. A região vol-
anos 1990 nos tinham devolvido o cresci- tou a ser exportadora de capitais, com uma
mento, embora não mais com a aceleração saída de US$ 39 bilhões, no ano passado,
de antes. A partir de 1997-98, no entanto, o nível que não se via desde os anos 80. Por
vento voltou-nos a ser contrário. Desde en- algum tempo, o processo foi compensado
tão, tivemos cinco anos de taxa negativa de pela entrada de investimentos diretos (para
menos 0,3% em termos per capita. É isso que as privatizações, por exemplo), mas esse não
levou meu colega, José Antonio Ocampo, é mais o caso. Em 2002, os investimentos
Diretor Executivo da CEPAL, a afirmar que, diretos chegaram apenas à metade dos in-
após a “década perdida” dos 80, acabamos gressados em 1999.
de ter meia-década igualmente perdida. A turbulência e volatilidade dos merca-
Quando se lembra que a mesma CEPAL cal- dos de capital tiveram, assim, efeitos devas-
culava em 6%, no mínimo, a taxa média de tadores para os latino-americanos, vítimas
expansão indispensável para recuperar o de crises sucessivas e encadeadas: Ásia,
atraso social e tecnológico do continente, Rússia, Brasil, Argentina. O ajustamento ao

342 Revista de Informação Legislativa


encolhimento de recursos tem sido invaria- impostos; ali, a elevação da taxa da água,
velmente tentado pela via da desvaloriza- do preço do botijão de gás, do combustível,
ção e da recessão interna, com todas suas o congelamento das contas bancárias. Na
seqüelas: desemprego, acirramento dos con- Colômbia, em vez dos levantes esporádicos
flitos, aumento da desigualdade. O pior é e fugazes, a violência já se instalou perma-
que, mesmo quando tem êxito, o ajustamen- nentemente, com armas e bagagens, sob a
to permite apenas recomeçar o ciclo infer- forma da guerrilha aliada ao narcotráfico.
nal: aumento do endividamento, instabili- No Brasil, há pouca violência politicamen-
dade, novas crises. Os mercados financei- te organizada, mas, em compensação, o pa-
ros são imperfeitos e tendem, inelutavelmen- drão que se esboça evoca em alguns aspec-
te, a subestimar ou a exagerar os riscos. Sem tos o colombiano, até para pior: criminali-
uma reforma profunda, que os países ricos dade selvagem, que é uma forma de guerra
recusam, o retorno a esses mercados é só o civil, ao lado da indústria capitalista do
intervalo que precede a crise seguinte. En- narcotráfico, que coordena levantes em pre-
quanto não se tirar a lição dessa verdade, o sídios e fecha o comércio e as escolas no Rio,
continente continuará duplamente à deri- de maneira que seria inimaginável em Bo-
va. Primeiro, porque seu crescimento segui- gotá.
rá errático, ao sabor dos humores dos mer- O pano de fundo dessa desintegração
cados em situação de guerra, tensão inter- progressiva do sistema político e dos laços
nacional e incerteza política extrema. Segun- de coesão social é o persistente fracasso das
do, porque os dirigentes não logram vislum- políticas econômicas para retomar o desen-
brar alternativa e, resignando-se a flutuar volvimento que o continente conheceu an-
aos ventos e tempestades, abandonaram há tes da crise da “década perdida” dos 80. A
muito tempo até a veleidade de comandar verdade é que enganamos o mundo e a nós
seu próprio destino. mesmos com a afirmação de que tínhamos
saído da crise da dívida externa de 1982. É
1. Os caminhos do retrocesso certo que, um após o outro, todos os países
conseguiram ajustes com o FMI e, graças aos
Em meados dos anos 90, houve um mo- títulos Brady, fecharam acordos de reestru-
mento de ilusões. Acreditou-se que o fim da turação com os bancos privados. O que fize-
hiperinflação traria um círculo virtuoso de mos, no entanto, foi apenas trocar uma es-
crescimento sustentado, melhora social e pécie de dívida por outra diferente, escapar
governos democráticos eficientes e hones- de uma armadilha para tombar em nova
tos. O sonho durou pouco e hoje acumulam- pior, sair do pelourinho para ficar amarra-
se os sinais de miséria e desemprego. Esses do no tronco. Lembramos os personagens
indícios são, sobretudo, evidentes na Amé- de “O Anjo Exterminador”, de Buñuel.
rica do Sul, onde têm sido numerosos e em Quando nos libertamos, enfim, do suplício
aumento os episódios de revolta suicida e invisível que nos impedia de cruzar uma
sem esperança. Ontem na Argentina, no porta escancarada, quando acorremos à igre-
Equador, no Peru, hoje na Venezuela e na ja e celebramos um Te Deum pela libertação,
Bolívia, saques, motins, levantes espontâ- descobrimos subitamente, ao tentar sair, que
neos e desorganizados engordam as esta- alguma força misteriosa não nos permitia
tísticas dos miseráveis mortos pela polícia e de novo transpor os umbrais do templo ....
pelo exército. Mais e mais nessas latitudes, Presos na armadilha do mercado finan-
governar é reprimir. ceiro desde 1997, perdemos mais meia dé-
Cada um desses episódios tem um fator cada, com um declínio acumulado de 2%
específico que o desencadeou. Aqui, foi o na produção econômica per capita ao longo
impacto, sobre os pobres, do aumento de de cinco anos. Em conseqüência, é dos mais

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inquietantes o “Panorama Social da Améri- conseguimos, após duas décadas, sequer
ca Latina” apresentado pela CEPAL para voltar ao ponto em que estávamos ao inici-
2001-2002. Nos primeiros anos da década ar-se a derrocada!
de 90, a economia crescia modestamente e Não tenho prazer algum em chamar a
as taxas de pobreza melhoravam um pou- atenção para um fracasso, que, afinal, é de
co. A sucessão de crises financeiras, a partir todos. Diante, porém, do espetáculo de tan-
de 1997, primeiro freou esse movimento para tos dirigentes, um pouco por toda a parte,
invertê-lo em seguida. Em 2000, ano excep- aferrados a quimeras, ostentando um falso
cional para a economia mundial, o índice sentimento de segurança, seria imperdoá-
de pobreza no continente era de 42,1% da vel calar. É preciso, ao contrário, clamar aos
população e o de indigência declinava para céus, oportuna e inoportunamente, como
17,8%. No ano seguinte, a pobreza subiu queria o Apóstolo Paulo, que certos aspec-
para 43% e a indigência para 18,6%, tendo tos (não todos) das políticas econômicas
havido aumentos da primeira em doze paí- abraçadas por convicção ou impostas de
ses e da segunda em catorze. As estimativas fora são perversos e estão na raiz das explo-
para 2002 são de que a porcentagem de po- sões sociais que se sucedem. Com humilda-
bres foi de 44% e a de indigentes, de quase de e comedimento, reconhecendo que os
20%, uma pessoa de cada cinco, no ano pas- governos estão em situação difícil e terão de
sado. Em termos absolutos, isso significa ser ajudados a encontrar uma saída, é in-
que, em relação aos números de 2001, hou- dispensável proclamar, ao mesmo tempo,
ve acréscimo de cerca de 7 milhões, dos quais que não é possível continuar assim: vinte
6 milhões extremamente pobres. É claro que anos de crise e retrocesso bastam para mos-
essa é a experiência média do continente, trar que esse é o caminho do desastre.
bastante influenciada pelo desastre sem pre-
cedentes na Argentina. Feita essa ressalva, 2. Explosões de desespero
não há como ignorar que tais cifras marcam
“uma considerável deterioração da situação Embora os desempenhos sociais variem
social da região”, segundo declara o relató- e alguns países ou setores apresentem avan-
rio. Para se ter uma idéia do que represen- ços, enquanto outros regridem, as análises
tam esses números em pessoas de carne e demonstram que as diferenças preexisten-
osso, com um rosto, um destino, sonhos e tes não bastaram para evitar que, de modo
aspirações, basta dizer que em 2001 a Amé- geral, a situação se deteriorasse na média
rica Latina abrigava 214,3 milhões de po- do continente. Nenhum país é possivelmen-
bres, sendo 92,8 milhões classificados como te mais diferente da Argentina do que o Equa-
indigentes, aos quais é necessário acrescen- dor. O Peru não se parece em quase nada à
tar os 7 milhões a mais daquele ano. Venezuela. Nem esta última à Bolívia. Não
O mais desanimador é a alarmante di- obstante, todos eles conheceram recentemen-
mensão de retrocesso escondida nessa ten- te episódios similares de levantes de massa,
dência. De fato, as porcentagens atuais su- saques e violência espontânea. Em exemplo
peram as que tínhamos antes do início da algum se detectou o dedo escondido dos
crise da dívida, em 1980. Naquele ano, o quase extintos partidos comunistas, nem se
índice de pobreza era de 40,5% e hoje é de repetiram acusações à subversão vinda de
44%, quase quatro pontos percentuais a Cuba, ou se suspeitou de uma manipulação
mais, enquanto o de indigência era de 18,6% qualquer da parte de movimentos guerrilhei-
e agora é de 20%. Aprendi isso a primeira ros. Todos, sem exceção, gozavam de gover-
vez no “Panorama” de 1998 e fiquei tão es- nos eleitos em escrutínios tão democráticos
pantado que o citei em vários discursos e e livres quanto podem ser nessas latitudes.
artigos. Vejo pelo “Panorama” atual que não Finalmente, quase todos, a Bolívia e a Vene-

344 Revista de Informação Legislativa


zuela de 1990-91, a Argentina de Menem, o homens e o dos jovens atingia quase o do-
Peru de Fujimori, foram propostos, em al- bro. Retrato de uma semi-década perdida:
gum momento, à admiração universal pela em 1990, 63 milhões de trabalhadores urba-
determinação com que teriam aplicado as nos, 45% da população economicamente
reformas receitadas pela ortodoxia. ativa, não tinham emprego decente. Em 2002,
Como explicar a coincidência de desas- essa cifra chegou a 93 milhões ou 50,5% da
tres parecidos em países tão diferentes? Três população. O pior é que sete de cada dez
fatores chamam a atenção em todas as au- empregos criados nesse período se locali-
tópsias: 1º) o papel decisivo da dívida, das zam no setor informal, em que apenas dois
crises financeiras e da dependência dos de cada dez empregados têm acesso a bene-
mercados externos, responsáveis na Améri- fícios sociais. A desocupação não só cresce
ca Latina por quinze anos perdidos em vin- fisicamente, mas é acompanhada por maior
te; 2º) a deterioração de quase dois pontos vulnerabilidade social e privação de direi-
percentuais na taxa de pobreza da região, tos trabalhistas.
de 41,5% em 1980 para 44% em 2002, e de O “Panorama Social” da CEPAL, 2001-
1,5 ponto na de indigência, de 18,6% a 20% 02, assinala que mesmo os sinais encoraja-
no mesmo período, resultado provavelmen- dores, os indicadores que justificam a espe-
te sem precedente histórico; 3º) a pior crise rança no longo prazo, são neutralizados
de emprego do continente em trinta anos, pelo crescimento anêmico. Esse é o caso do
segundo o “Labour Outlook 2002”, da Or- salto impressionante, entre 1990 e 1999, no
ganização Internacional do Trabalho (OIT). número de profissionais e técnicos qualifi-
De acordo com a CEPAL, o desemprego cados. De um aumento de 32 milhões de in-
passou de 8,4% em 2001 para 9,1% no ano divíduos com idade de trabalhar, quase 8
seguinte, a mais alta taxa jamais registrada. milhões possuíam qualificação além do se-
A OIT calculava, para o desemprego urba- cundário. Sem embargo, até essa categoria
no, 9,4% em março de 2002 e projetava para mais “empregável” tem sido subutilizada
o ano o índice de 9,8% (no estudo “Globali- ou desperdiçada devido ao déficit de cresci-
zación y trabajo decente en las Américas”). mento. Entre o começo e o fim da década de
Essa taxa equivalia a cerca de 18 milhões de 1990, não só se agravou a desocupação dos
pessoas. A deterioração começou em 1995 – menos qualificados como igualmente a dos
não por acaso o ano da crise mexicana e técnicos e profissionais, para os quais a taxa
início da série de crises – e agravou conti- se elevou de 3,8% para 6,6%.
nuamente a taxa média, até então em torno Já perdi a conta das vezes em que tomei
de 6%. um táxi no Brasil para descobrir que o mo-
Na Argentina, o desemprego saltou de torista possuía curso superior. É o que diz
7,5% em 1990 para 17,4% em 2001 e era esti- em linguagem técnica o “Panorama Social”
mado em 21,5% nos primeiros nove meses da CEPAL: no Brasil e no México, chega a
de 2002. Para os demais países onde se acen- mais da metade (58%) a porcentagem de téc-
tuaram as perturbações, os índices piora- nicos e profissionais que trabalham no co-
ram sempre, entre 1990 e 2001: na Bolívia, mércio ou em serviços pessoais (como tá-
de 7,2% a 8,5%; no Equador, de 6,1% para xis). De um total de 19 milhões da categoria,
10,4%; no Peru, de 8,3% a 9,2%; na Vene- 4,5 milhões não conseguem trabalhar em
zuela, de 11,0% a 13,5%, com projeção para suas especialidades. Um milhão estão de-
15,5% até setembro de 2002 (“Global Em- sempregados. O restante trabalha em em-
ployment Trends, ILO, www.ilo.org/in- pregos com salários mais baixos do que se
form). justificaria “com o investimento feito em sua
No continente, o desemprego urbano educação, representando assim séria perda
para as mulheres era 45% superior ao dos tanto em nível individual como coletivo”.

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A explicação é que as economias da re- Morley, relaciona, como os países de maior
gião não crescem o bastante para criar em- desigualdade pelo grau e persistência, o
pregos que absorvam a rápida expansão na Brasil, o Chile, a Guatemala, Honduras, o
oferta de profissionais e técnicos (a baixa México e o Panamá, dois do sul e quatro do
qualidade do ensino também influi). Vê-se norte. Em outra passagem, assinala que “a
pelo exemplo que a educação não é, por si desigualdade subiu abruptamente” (nos
só, panacéia para superar o subdesenvolvi- anos 1980) “nas maiores economias da re-
mento. Já deveríamos ter aprendido na ra- gião – Argentina, Brasil, Chile e México – e
dicalização dos anos 60 e 70 que, se não não mostrou nenhuma tendência a declinar
houver política macroeconômica capaz de após 1990”. O panorama é, portanto, uni-
impulsionar o crescimento e gerar emprego, forme, constante e deprimente.
a educação superior vai apenas produzir Na mesma obra, afirma-se que, indepen-
legiões de frustrados como os que engrossa- dentemente do método de medição, a Amé-
ram os movimentos guerrilheiros na Argen- rica Latina tem, em média, a distribuição
tina e no Uruguai. A diferença é que, hoje, mais desigual do globo. Estudo de Deinin-
em lugar de pegar em armas, eles pegam o ger e Square para o Banco Mundial (1996)
primeiro avião para levar aos EUA, ao Ca- comparou os coeficientes Gini de desigual-
nadá, à Austrália seus talentos e o investi- dade para 108 nações ao longo de 30 anos.
mento efetuado em sua formação. Ao apre- Resultados: 1º) a distribuição na América
sentar em Lima o documento da OIT, o dire- Latina não é só a mais desigual, mas assim
tor-geral da organização, o chileno Juan tem sido ao menos desde 1960 e, em realida-
Somavia, aludiu aos acontecimentos na Ar- de, desde que se começou a dispor de esta-
gentina e comentou que estávamos lidando tísticas sobre o assunto; 2º) no Oriente Mé-
com populações desesperadas diante da si- dio e na África, as duas outras áreas com
tuação de párias da globalização a que ti- índices comparáveis, a desigualdade caiu
nham chegado. Se a situação não for rever- substancialmente, enquanto na América
tida, dizia ele, haverá explosões de pobre- Latina, após redução ligeira nos anos 1970,
za, fome e desespero, que ameaçarão a esta- a desigualdade se agravou a partir dos anos
bilidade política, pondo em perigo a capa- 1980, sendo a única região na qual essa taxa
cidade das sociedades latino-americanas de permaneceu imobilizada, sem mudança, no
preservarem uma coexistência democrática. elevado patamar inicial. A melhoria passa-
Longe de ser alarmista, meu amigo Soma- geira coincidiu com o último período de cres-
via foi até moderado. Vendo o que se passa cimento firme e difundido por todo o conti-
na Venezuela, na Colômbia, na Bolívia, não nente, trinta anos atrás. As crises financei-
há como negar que as explosões já começa- ras e suas seqüelas, após 1980, provocaram
ram e vão continuar. A dúvida é uma só: uma reversão e, em 1990, todos os indicado-
quem será o próximo? res haviam sofrido um retrocesso de três
décadas; quase um terço do século 20 foi
3. Brasil, florão da América desperdiçado caminhando para trás justa-
mente em um dos aspectos mais retrógra-
Em matéria de desigualdade, não se nota dos da herança do passado.
divergência apreciável de padrões entre O “Panorama Social” 2000-2001, da
norte e sul da América Latina, em contraste CEPAL, constata que, apesar dos inegáveis
com o que ocorre, por exemplo, na crescente avanços como o aumento do gasto social e
dependência econômica e comercial em re- da preocupação com a distribuição, fracas-
lação aos Estados Unidos. No livro sobre samos em obter melhoria substancial nessa
distribuição da renda na região, publicado área, não existindo, tampouco, sinais pro-
pela CEPAL em 2001, o autor, Samuel A. missores para crer que a situação mudará

346 Revista de Informação Legislativa


significativamente no curto ou médio pra- sa, incomensurável distância entre os happy
zo. Dos 17 países analisados, só dois (Hon- few e o resto.
duras e Uruguai) fecharam a década de 1990 Em quase todos esses aspectos, é o Bra-
com progresso em reduzir a desigualdade. sil espelho fiel da situação regional. O nos-
Mesmo nas poucas economias que registra- so país tem o duvidoso título de possuir a
ram crescimento satisfatório como a chile- sociedade mais desigual no continente mais
na, não se conseguiu diminuir o elevado desigual do globo. O “Panorama” da CE-
grau de concentração e de disparidade so- PAL 2000-01 registra que o coeficiente Gini
cial. É bom recordar que esse era o retrato do brasileiro (0,64) é o mais elevado de todos,
problema antes da crise na Argentina, Ve- seguido pelo da Bolívia, Nicarágua e Gua-
nezuela e Uruguai, as quais tiveram e conti- temala. Entre nós, a renda dos 10% mais ri-
nuam a ter devastadoras conseqüências em cos é 32 vezes maior que a dos 40% mais
termos de recessão, desemprego e desigual- pobres, ao passo que essa relação para a re-
dade. gião como um todo é em média de 19,3 ve-
Sem se aventurar no terreno da interpre- zes. Exceto na Costa Rica e no Uruguai, no
tação histórico-social, Morley limita-se a resto da América Latina, os 10% mais ricos
diagnosticar as causas imediatas da desi- controlam por volta de 30% da renda, o que
gualdade. Primeiro, desequilíbrio educaci- no Brasil sobe a 47,1%. Somos também o
onal, que faz da América Latina o continen- único país onde mais da metade da popula-
te com o mais alto diferencial entre os dota- ção, 54,8%, para ser preciso (1999), tem ren-
dos de educação superior e o resto. Enquan- da inferior a 50% da média.
to a Ásia investiu em universalizar a educa- É fácil continuar a alinhar dados desse
ção primária e secundária, os latinos se re- tipo, mas o exercício seria supérfluo pois as
signaram à evasão escolar a partir do pri- conclusões são claras. Não é possível negar
mário, utilizando o dinheiro poupado com que, nos últimos vinte anos, as crises finan-
o secundário a fim de expandir as universi- ceiras, as recessões e o crescimento errático
dades para as elites. Segundo, a região tem ocasionaram retrocesso na luta contra a
a distribuição de terra mais iníqua do mun- pobreza, a indigência, o desemprego e a de-
do. Esse padrão, somado à expansão e ao sigualdade. Algo está errado com a receita.
êxodo de uma população rural sem qualifi- É preciso corrigi-la e, ao planejar reformas
cação, gera oferta excessiva de mão-de-obra indispensáveis como a dos impostos e a do
de baixa produtividade, deprimindo os sa- mercado de trabalho, evitar medidas que
lários (quando há emprego). agravem ainda mais a desigualdade, como
O fator mais importante é o abismo que infelizmente aconteceu em países vizinhos,
separa a renda média dos ricos dos demais de acordo com as análises da CEPAL.
degraus da pirâmide, muito maior do que
nas demais regiões. Os ricos na América 4. Nossa América e a dos outros
Latina são muito mais ricos em relação ao
restante da população do que em outras Uma das provas mais irrefutáveis de
partes. Os 10% no topo são responsáveis por deterioração das perspectivas econômicas
dois terços a três quartos da desigualdade e de mobilidade social é quando um país ou
total na maioria dos países examinados. uma região passam de pólo de atração de
Existem, é claro, diferenças sensíveis entre trabalhadores de fora para a situação de
a renda dos que estão no fundo do poço e os nações que exportam seu melhor capital, os
graus intermediários e superiores, mas es- recursos humanos. Quando as pessoas bus-
sas diferenças são similares às de outros cavam fugir em massa da Alemanha do Les-
continentes. O que de fato singulariza a ex- te ou dos países comunistas da Europa, a
cepcionalidade latino-americana é a imen- propaganda ocidental dizia que elas esta-

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vam votando com os pés. É isso que sucede Transformada agora em país de emigração,
agora na América Latina. apesar de subpovoada, em vias de perder
Semanas antes de morrer abandonado muitos de seus melhores talentos, a vizinha
em Santa Marta, Simón Bolivar escrevia na nação registra a cada ano balanços negati-
véspera da partida para o exílio que “aque- vos mais altos entre partidas e chegadas.
le que serve uma revolução ara no mar”. Os mexicanos começaram cedo, desde o iní-
Além dessa frase célebre, deixou-nos o mo- cio do século 20, a emigrar para os EUA,
ribundo outra, por razões compreensíveis mas o movimento se acelerou enormemente
pouco citada, mas inconscientemente segui- nos últimos vinte anos. Em 1980, haviam
da por milhões e milhões de indivíduos: sido oficialmente registrados nos EUA per-
“Em nossa América, só há uma coisa a fa- to de 2 milhões e 200 mil mexicanos, cifra
zer: emigrar!”. que saltou para 4,3 milhões, em 1990, e 7,5
Nossa América, dizia o Libertador, para milhões em 1998. Um caso extremo é o de
distingui-la da América deles, dos outros, a Porto Rico, cuja população era de 3,8 mi-
do Norte, na qual, para começar, os pais da lhões (1998), ao passo que outros 2,7 mi-
pátria, Washington, Jefferson, morriam co- lhões, o equivalente a 70% do total, viviam
bertos de honra, sem temor de serem escor- nos EUA.
raçados e proscritos, quando não assassi- Aliás, esse é, ao lado do intercâmbio co-
nados, como Sucre. Desde o início, a que mercial, outro aspecto que diferencia nítida
teve o melhor ponto de partida encarnou a e crescentemente o norte em relação ao sul
idéia da terra da promessa, a que impressi- da América Latina. Tanto em matéria de
onou Tocqueville, serviu de modelo às fal- exportações e importações, quanto na dire-
sas cópias dos demais e de pólo de atração ção dos fluxos migratórios, o México, o Ca-
às massas de trabalhadores da Irlanda, Ale- ribe, a América Central se caracterizam por
manha, Itália, judeus da Europa oriental. A um grau muito mais intenso de concentra-
partir de meados do século 19, o sonho de ção nos Estados Unidos do que os mais dis-
“fazer a América” contagiou a outra meta- tantes países sul-americanos. Em outras
de e não faltaram imigrantes europeus, ára- palavras, a integração das nações setentrio-
bes, judeus, japoneses para ajudar a povoar nais com o espaço econômico norte-ameri-
as paragens meridionais. Esse movimento, cano se faz não só por meio das trocas co-
do qual muitos no Brasil somos os herdei- merciais, mas também pela exportação de
ros, estendeu-se até os primeiros anos após mão-de-obra. Para ter idéia de como se tem
a 2ª Guerra Mundial. Desde então, o fluxo se acentuado essa tendência, vale lembrar que,
estancou para depois inverter bruscamente nos anos 1980, um terço da migração legal
de sentido, passando a fluir do sul para o para os EUA provinha do Caribe, calculan-
norte, para a outra margem do Atlântico e do-se, em nossos dias, que caribenhos e
do Pacífico. Como diz meu amigo Sérgio mexicanos respondem por 80% a 90% dos 8
Danese, hoje “a América são eles”, isto é, os milhões de clandestinos (54% mexicanos).
EUA, mas também a França, a Itália, a Espa- O mesmo ocorre com a América Central: ao
nha, a Inglaterra, o Japão, a Suíça, até o pe- longo dos últimos 175 anos, cerca de 1,1
queno Portugal. A esperança de vida me- milhão de centro-americanos ingressaram
lhor mudou de lado e não há sinais de que como imigrantes nos EUA, dos quais 90%
tão cedo voltaremos a tê-la do nosso. chegaram depois de 1980.
A Argentina é o exemplo mais dramáti- No sul, as partidas também se intensifi-
co dessa reviravolta. Em termos relativos, cam, mas as destinações são mais diversifi-
nenhum país, mesmo os EUA, deve tanto cadas, embora os EUA conservem a prima-
aos imigrantes como a terra de promissão zia. Os equatorianos que emigraram são 16%
por excelência, a Argentina de 1880 a 1914. da população ativa, boa parte nos EUA,

348 Revista de Informação Legislativa


constituindo, ao mesmo tempo, a principal valorizar os aspectos positivos e atenuar a
mão-de-obra da agricultura do sul da Espa- amargura dessa evolução, mas é difícil ig-
nha. Estima-se que 2,2 milhões de peruanos norar o que relatava o “Clarín”, de Buenos
tenham emigrado e cerca de 300 mil aban- Aires, sobre a atitude das pessoas no país
donem o país anualmente, muitos dirigin- onde era mais forte a tentação de emigrar.
do-se igualmente à Espanha e a destinos Em artigo sobre a mobilização popular após
latino-americanos. O Brasil, com mais de 2 a crise argentina, dizia o jornal que a res-
milhões de nacionais no exterior, possui a posta mais freqüente à pergunta acerca do
originalidade de um forte contingente, tal- sentido dessa mobilização era simplesmen-
vez 250 mil, no Japão. te: “Porque não quero que meus filhos te-
O fenômeno é mundial – 200 milhões nham que ir embora do nosso país!”.
emigram por ano – e traz benefícios inegá-
veis. A título individual, como instrumento 5. Existe América Latina?
de mobilidade social, encontra-se um bom
exemplo no Secretário de Estado america- Após examinar o que vem acontecendo
no, Colin Powell, filho de jamaicanos. Para no continente em matéria de desempenho
os EUA, sonho da maioria, as vantagens vão social, é tempo de tentar extrair algum sen-
dos cérebros que enriquecem o Vale do Silí- tido e encontrar explicações para as seme-
cio ao “exército de reserva” de mão-de-obra lhanças e diferenças, medindo a importân-
que possibilitou acelerar o crescimento, cia de umas e outras.
mantendo deprimidos os salários. Para os Não se pretende aqui negar o óbvio: que,
países exportadores de gente, além do alí- em termos de línguas, passado histórico,
vio da pressão demográfica, a recompensa tradições culturais, problemas comuns, os
vem pelas remessas financeiras dos emigra- povos da América Latina são menos dife-
dos, equivalente em 2002 a US$ 32 bilhões rentes entre si do que os da Ásia, Europa,
para a América Latina, 31% do total mundi- África, onde às vezes um só país abriga cem
al, dos quais 78% vieram dos EUA. O Méxi- idiomas e etnias distintas. A unidade bási-
co sozinho recebeu US$ 10,5 bilhões, o do- ca não tem impedido, contudo, que se ve-
bro das exportações agrícolas, mais que o nha acentuando, nos últimos tempos, ten-
turismo e dois terços do petróleo. A Améri- dência à crescente diversificação entre o
ca Central ganhou US$ 5,5 bilhões; o Cari- México, a América Central e o Caribe, de um
be, US$ 5,45 bilhões; e os andinos, US$ 5,4 lado, e a América do Sul, do outro. Para evi-
bilhões. O BID, fonte dos dados sobre remes- tar repetir os nomes das regiões, falaremos
sas (os relativos às migrações são da Orga- simplesmente em norte e sul da América
nização Internacional para as Migrações), Latina.
calcula que as remessas para o Brasil em A diferenciação vem-se fazendo mais
2001 foram de US$ 2,6 bilhões, mas julga nítida em dois setores fundamentais: o grau
que a cifra está aquém da realidade. de instabilidade política e a dependência
É esse o panorama da nossa América, econômica e comercial em relação aos Esta-
sobretudo depois de 1980. A deles, não ape- dos Unidos. No primeiro caso, o norte apa-
nas os EUA, mas o Canadá, a Austrália, rece mais calmo, menos instável que o sul e
oriundos do mesmo movimento de coloni- essa mudança é recente. Até os anos 80, a
zação, não precisa exportar gente. Essa di- América Central era o “homem doente” do
ferença crucial basta para mostrar o que se- continente, com o sandinismo no poder na
para o êxito histórico da América do Norte e Nicarágua, a guerrilha fortemente organi-
outros países como a Austrália da experi- zada em El Salvador e a guerra civil com
ência frustrante da América Latina e do tinturas de genocídio na Guatemala. No
Caribe. Pode-se dizer o que se quiser para Caribe anglófono, a Jamaica de Michael

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 349


Manley era o foco das preocupações, embo- total das exportações (para o Brasil, tem os-
ra as complicações aumentassem em Gra- cilado nos últimos anos entre 24% e 19%).
nada e outras ilhas. A República Dominica- Os resultados são similares quando se exa-
na se recuperava lentamente do longo reino minam outros índices de dependência eco-
de terror de Trujillo e da intervenção estran- nômica: origem dos investimentos diretos,
geira de 1966; a tragédia haitiana provoca- localização dos maiores credores da dívi-
va novas intervenções; a hostilidade não só da, fontes de remessas financeiras de imi-
de Washington, mas de outros governos grantes, proveniência de turistas, etc.
contra Cuba, mantinha-se em nível perigo- A primeira conclusão dessa análise é que
so. Completavam o quadro os temores ame- a geografia ainda conta e muito, apesar de
ricanos pela segurança do Canal do Pana- tudo o que se diz sobre a globalização e seu
má, devido à aproximação entre Noriega e suposto efeito de anular a distância. Não é
Castro, bem como os sangrentos aconteci- novidade que, desde os primórdios coloni-
mentos do Suriname, que, embora fisicamen- ais, os ianques sempre dispensaram, para o
te na América do Sul, apresenta, como a bem e para o mal, atenção prioritária ao seu
Guiana, muitos traços caribenhos. entorno físico imediato, boa parte do qual –
Lançando hoje o olhar a esse vasto espa- da Flórida e Porto Rico à Louisiana, Texas,
ço varrido pelos furacões, que se estende dos Califórnia – compraram, anexaram ou as-
desertos mexicanos à “poeira de ilhas” do sociaram. A doutrina Monroe, a política do
Caribe, o que se vê é uma placidez cálida, “big stick”, as guerras contra o México e a
embalada por salsas e merengues, calipsos Espanha, as repetidas intervenções e ocu-
e reggae. O contraste não poderia ser maior pações na Nicarágua, Haiti, Cuba, Panamá
com os roncos subterrâneos, as súbitas erup- tiveram basicamente por cenário essas ex-
ções antecipadoras de explosões vulcânicas, tensões terrestres e marítimas do norte. Nes-
ao longo de todo o arco andino, da Vene- se sentido, existe uma linha de continuida-
zuela à Colômbia, Bolívia, Peru, Equador até de histórica desse passado com o padrão
a Argentina ao sul. Pelo menos até agora, o recente. O “big stick” e as intervenções so-
fim da guerrilha na América Central apa- breviveram no apoio aos “contras”, nas ope-
rentemente inaugurou fase de estabilidade rações clandestinas de financiamento e ori-
menos precária do que a partida dos dita- entação ao combate musculoso da guerri-
dores militares sul-americanos. Será ilusó- lha, chegando diretamente ao uso da força
rio, fugaz, um descompasso apenas entre em Granada e no Panamá. Mais ao sul, ex-
norte e sul no eterno retorno do ciclo de tur- ceto em episódios como a queda de Allende
bulência? e, em razão das drogas, a guerrilha colom-
À medida que se avança para o norte, biana, os métodos são mais sutis.
aumenta, na mesma proporção, a intensi- A mesma diferença de padrão se mani-
dade da dependência econômica e comerci- festa em matéria econômica. Compare-se,
al em relação aos EUA. O grupo mais seten- por exemplo, a ajuda pronta, maciça e efi-
trional – México, América Central, alguns caz com que se socorreu o México na crise
caribenhos mas incluindo também a Colôm- da “tequila” com a indiferença e frieza di-
bia e a Venezuela (devido ao petróleo) – en- ante das convulsões agônicas da Argenti-
contra no mercado americano o destinatá- na. Se as invasões de Granada e Panamá
rio de um máximo de 88% a um mínimo de constituem eco distante das intervenções
48% de suas exportações (a porcentagem dos “marines” e do “big stick”, a política da
das importações é parecida). Para o segun- “boa vizinhança” ou a Aliança para o Pro-
do grupo – Equador, Chile, Bolívia, Merco- gresso, versões mais benignas da política
sul –, os EUA absorvem de 38%, no caso do norte-americana, reaparecem na ALCA.
Equador, até apenas 8%, no Paraguai, do Tampouco é surpresa que esta tenha come-

350 Revista de Informação Legislativa


çado pelo México (NAFTA) e pelo Caribe aumento das exportações mexicanas graças
(“Caribbean Basin Initiative”) e que as re- ao acordo do NAFTA, são relativos. Não só
centes ofertas tarifárias americanas nas ne- parcela expressiva dessas exportações pro-
gociações da ALCA estabeleçam uma sábia vém das maquiladoras, em que é baixo o
dosagem descendente, favorecendo primei- grau de valor agregado, como as indústrias
ro os caribenhos, depois os centro-america- exportadoras se concentram muito ao lon-
nos (com os quais já estão negociando acor- go da fronteira norte, ameaçando agravar a
do separado), um pouco menos os andinos, polarização. Além disso, não houve melho-
para atingir, na rabeira, os sulistas. Nada ra expressiva nos índices sociais.
mais lógico pela geografia e pela história. Situando-se na área direta da afirmação
A segunda e mais relevante conclusão é da hegemonia americana, a região terá de
que a diversificação é real e crescente, mas é redefinir o modo como se relaciona com os
sobretudo de grau, não de essência. Ela se EUA, se quiser reformular em termos quali-
processa dentro do padrão comum, que é a tativos sua inserção global. Basta atentar nos
dependência geral em relação aos EUA. O índices de pobreza, indigência, concentra-
que dá unidade irredutível à América Lati- ção de renda de expulsão de mão-de-obra,
na e ao Caribe é a forma de inserção no mun- uniformemente insatisfatórios, para consta-
do. No passado, como colônias de explora- tar que nenhum desses países teve pleno
ção, fornecedoras de produtos primários aos êxito em mudar o patamar qualitativo da
mercados internacionais; no presente, como inserção. É essa deficiência comum que per-
economias em larga medida ainda depen- mite continuar a afirmar, apesar da diferen-
dentes da exportação de “commodities” e ciação, a fundamental unidade da América
da importação de poupança externa. Mes- Latina como problema ainda à espera de
mo os êxitos, reais ou aparentes, como o solução.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 351


352 Revista de Informação Legislativa
O poder de celebrar tratados no direito
positivo brasileiro

Salomão Almeida Barbosa

Sumário
1. Introdução. 1.1. Direito e Relações Inter-
nacionais. 1.2. Constituição e Relações Exterio-
res. 2. O Poder de celebrar tratados no direito
positivo brasileiro. A prática brasileira e exem-
plos: a obra “O poder de celebrar tratados: com-
petência dos poderes constituídos para a cele-
bração de tratados, à luz do direito internacio-
nal, do direito comparado e do direito consti-
tucional brasileiro”, do Prof. Dr. Antônio Pau-
lo Cachapuz de Medeiros (1995). 2.1. A Consti-
tuição de 1824. 2.2. A Constituição de 1891. 2.3.
As Constituições de 1934 a 1967: panorama ge-
ral. 2.4. A Constituição de 1988. 3. Jurisprudên-
cia recente do Supremo Tribunal Federal. 3.1.
A paridade normativa entre atos internacio-
nais e normas infraconstitucionais. 3.2. O Pacto
de São José da Costa Rica. 4. Conclusões.

1. Introdução

1.1. Direito e Relações Internacionais


O ex-chanceler Celso Lafer (apud
DALLARI, 1994, p. 2-3) afirma que o Tra-
tado de Westfália, de 1648, “representou
a consolidação de uma ordem mundial
constituída exclusivamente pelos gover-
nos de estados soberanos. Estes teriam li-
berdade absoluta para governar um espaço
nacional – podendo entrar em acordos vo-
luntários, tratados –, para regular as rela-
ções externas e intraconexões de variados
tipos”. Assim, a Lógica de Westfália, para
Celso Lafer, traduz governos soberanos e
iguais, vale dizer, o equilíbrio mecânico do
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 353
poder está baseado na ação individual dos verno, em que a realização, individualiza-
Estados, únicos atores da ação política, o ção e execução de interesses secundários
que nos remete ao fundamento precípuo do podem ser pactuados sem menosprezo das
Direito Internacional Clássico: sistema de referidas funções de Estado. Aliás, ao tratar
normas de mútua abstenção (DALLARI, da publicidade dos atos atinentes às rela-
1994, p. 2-3). ções exteriores do Estado, noticia Celso La-
Todavia, acentua o ex-chanceler a de- fer (1989, p. 36-46) que a diplomacia na Ida-
nominada corrosão dos paradigmas da Ló- de Moderna era atividade sigilosa; o segre-
gica de Wesfália, motivada, precipuamente, do era instrumento normal do exercício do
pela tensão entre a igualdade na teoria e a poder do príncipe (ex parte principis), daí a
desigualdade de fato, o que se aprofunda, teoria da razão de Estado que permitia ao
ainda mais, em razão de dois fenômenos que soberano estar acima do direito comum no
abalam o conceito tradicional de soberania: interesse do bem público, com fundamento
a necessidade da cooperação intergoverna- no jus dominationis.
mental e o transnacionalismo, aqui enten- A distinção de Brotons (1984, p. 93-103)
dido como aquele conjunto de relações que tem o condão de ressaltar, como contrapon-
não transitam necessariamente pelos canais to da perspectiva administrativista, a institu-
diplomáticos do Estado, mas que têm o po- cionalização, mormente pela via constituci-
der de influir nas sociedades (LAFER, 1982, onal, de paradigmas e regras de procedimen-
p. 71-83). to que possibilitem o balizamento e o acom-
panhamento da política externa governa-
1.2. Constituição e Relações Exteriores mental por parte da sociedade. Nesse con-
Registra ainda o Prof. Celso Lafer (apud texto, a constitucionalização de princípios
DALLARI, 1994, p. 12-13) que “a teoria po- das relações exteriores viabiliza o controle
lítica, desde Kant, vê uma associação posi- político da ação externa do Estado pelo Po-
tiva entre a democracia no plano interno e der Legislativo e o controle jurídico pelo
um internacionalismo de vocação pacífica, Poder Judiciário.
guiado pelos princípios de coexistência e
cooperação com os demais membros da so- 2. O Poder de celebrar tratados no
ciedade internacional”. A análise da disci- direito positivo brasileiro. A prática
plina constitucional e jurídica do desenvol-
brasileira e exemplos: a obra “O poder
vimento das relações exteriores não deve
prescindir, consoante o Prof. Pedro Dallari,
de celebrar tratados: competência dos
das lições de Antonio Remiro Brotons (1984, poderes constituídos para a celebração
p. 13), o qual, fundado em importantes teó- de tratados, à luz do direito
ricos da organização democrática do exer- internacional, do direito comparado e
cício do poder político (Locke, Rousseau e do direito constitucional brasileiro” do
Tocqueville), diz que há uma tendência con- Prof. Dr. Antônio Paulo Cachapuz de
siderável de que os assuntos inerentes às Medeiros (1995)
relações exteriores, em face de suas caracte-
rísticas intrínsecas, são próprios da alçada O tema objeto do presente trabalho não
de governo, entendido como Poder Executi- pode nem deve prescindir da excelente obra
vo, e não do Parlamento ou do conjunto da em epígrafe, do atual Consultor Jurídico do
população. Para tanto, Brotons (1984, p. 17) Ministério das Relações Exteriores, Prof. Dr.
faz a distinção entre função de Estado, na qual Antônio Paulo Cachapuz de Medeiros, fru-
há uma identificação dos interesses nacio- to de sua tese de doutorado, aprovada com
nais essenciais ou vitais, caracterizados por distinção e louvor na Universidade de São
valores quase permanentes, e função de go- Paulo em 1995. Aliás, o Prof. Dr. Luiz Olavo

354 Revista de Informação Legislativa


Baptista, prefaciando citada obra, diz que desvantagens globais e específicas para o
ela “se tornará leitura obrigatória dos estu- Brasil. Nesse contexto – movimento refor-
diosos do direito internacional, assim mista da Constituição de 1824 –, menciona
como do constitucional, e que não pode o Prof. Cachapuz de Medeiros (1995, p. 94-
deixar de integrar as bibliotecas jurídicas 96), entre outros, os projetos conhecidos
bem compostas” (MEDEIROS, 1995, pre- como “Constituição de Pouso Alegre” (1833)
fácio). e “Constituição da República Rio-Granden-
Sobre o assunto em tela, o Prof. Cacha- se” (1843, fruto de Assembléia Constituinte
puz de Medeiros (1995) desenvolve, na cita- reunida na cidade de Alegrete-RS durante a
da obra, importante histórico das Constitui- Revolução Farroupilha).
ções brasileiras.
2.2. A Constituição de 1891
2.1. A Constituição de 1824 Dispõem os arts. 34 e 48 da primeira
Noticia o Prof. Cachapuz de Medeiros Constituição republicana brasileira, in ver-
(1995, p. 80-90) que a Constituição de 1824 bis:
repetiu, no que concerne à celebração dos “Art. 34. Compete privativamente
tratados, os termos do Projeto do Conselho ao Congresso Nacional:
de Estado nomeado por D. Pedro I, sendo ain- (...)
da certo que a aprovação pelo Legislativo so- 12. Resolver definitivamente sobre
mente ocorreria para os tratados concluídos os tratados e convenções com as na-
em tempo de paz que envolvessem cessão ou ções estrangeiras.
troca de território do Império ou de suas pos- Art. 48. Compete privativamente
sessões (art. 102, 7º e 8º). ao Presidente da República:
Tem o seguinte teor o art. 102, 7º e 8º, da (...)
Constituição de 1824: 16. Entabular negociações interna-
“Art. 102. O Imperador é o Chefe cionais, celebrar ajustes, convenções
do Poder Executivo, e o exercita pelos e tratados, sempre ad referendum do
seus Ministros de Estado. Suas prin- Congresso, e aprovar os que os Esta-
cipais atribuições são: dos celebrarem na conformidade do
(...) artigo 65, submetendo-os, quando
7º Dirigir as negociações políticas cumprir, à autoridade do Congresso”.
com as Nações Estrangeiras. Consoante lição de Afonso Arinos de
8º Fazer tratados de aliança ofen- Melo Franco (1957, p. 263), são equivalen-
siva e defensiva, de subsídio e comér- tes as expressões resolver definitivamente,
cio, levando-os, depois de concluídos, mantida até hoje na Constituição brasileira,
ao conhecimento da Assembléia Ge- e ad referendum. Todavia, informa o Prof. Ca-
ral, quando o interesse e segurança do chapuz de Medeiros (1995, p. 117) que a ex-
Estado o permitirem. Se os tratados pressão resolver definitivamente tem sido con-
concluídos em tempo de paz envolve- siderada inadequada, uma vez que a deci-
rem cessão ou troca de território do são efetivamente definitiva cabe ao Presi-
Império, ou de possessões a que o Im- dente da República, que poderá ou não rati-
pério tenha direito, não serão ratifica- ficar os tratados internacionais, sendo certo
dos sem terem sido aprovados pela que, para o ex-chanceler e ex-Ministro do
Assembléia Geral”. Supremo Tribunal Federal José Francisco
Houve reação do Parlamento ao sistema Rezek (1973, p. 110-111), a aprovação legis-
de tratados no Governo de D. Pedro I, siste- lativa traduz simplesmente ausência de
ma esse formado por acordos celebrados oposição ao tratado internacional pelo Con-
com potências estrangeiras que acarretavam gresso Nacional, incumbindo ao Chefe de

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 355


Estado, a partir desse ponto, a decisão ver- a) tratados e convenções interna-
dadeiramente definitiva. cionais;
Ainda sobre o contexto histórico da (...)
Constituição republicana de 1891, registra Art. 74. Compete privativamente
o diplomata João Hermes Pereira de Araújo ao Presidente da República:
(1958, p. 330) que Rui Barbosa, em 19.6.1893, (...)
em artigo publicado no Jornal do Brasil, d) celebrar convenções e tratados
noticiou que a Lei nº 11, de 30.9.1892, do internacionais ad referendum do Poder
Estado do Amazonas, “aprovava” o Trata- Legislativo”.
do de Navegação do Rio Javari e seus aflu- Constituição de 1946
entes celebrado pelo “Governo federal com “Art. 66. É da competência exclu-
a República do Peru” em 10.10.1891. É siva do Congresso Nacional:
bem provável que esse seja o primeiro 1 – resolver definitivamente sobre
exemplo da denominada paradiplomacia os tratados e convenções celebradas
na história constitucional republicana com os Estados estrangeiros pelo Pre-
brasileira. sidente da República;
Finalmente, João Hermes P. de Araújo (...)
(1958, p. 333-334) também destaca que “nos- Art. 87. Compete privativamente
sa vida internacional republicana” teve iní- ao Presidente da República:
cio com a rejeição, pelo Congresso Nacio- (...)
nal, em 10.8.1891, do Tratado de Montevi- VII - celebrar tratados e convenções
déu, que procurou resolver o litígio das internacionais ad referendum do Con-
Missões. gresso Nacional”.
Constituição de 1967, com a redação
2.3. As Constituições de 1934 a 1967: da EC nº 1/69
panorama geral “Art. 44 – É da competência exclu-
Sobre a matéria, têm o seguinte teor os siva do Congresso Nacional:
dispositivos das Constituições supracita- I – resolver definitivamente sobre
das: os tratados, convenções e atos inter-
Constituição de 1934 nacionais celebrados pelo Presidente
“Art. 40. É da competência exclu- da República;
siva do Poder Legislativo: (...)
a) resolver definitivamente sobre Art. 81. Compete privativamente
tratados e convenções com as nações ao Presidente da República:
estrangeiras, celebrados pelo Presi- (...)
dente da República, inclusive os rela- X – celebrar tratados, convenções
tivos à paz; e atos internacionais, ad referendum do
(...) Congresso Nacional”.
Art. 56. Compete privativamente Assevera o Dr. Cachapuz de Medeiros
ao Presidente da República: (1995, p. 313) que o Governo brasileiro man-
(...) teve a prática de celebração de acordos em
6º Celebrar convenções e tratados forma simplificada, vale dizer, com mitiga-
internacionais, ad referendum do Po- ção da compulsoriedade da deliberação do
der Legislativo”. Legislativo sobre todos os atos internacio-
Constituição de 1937 nais, considerando a prática interna e inter-
“Art. 54. Terá início no Conselho nacional. É destacado, ainda, que a expres-
Federal a discussão e votação dos pro- são “compete privativamente ao Congresso
jetos de lei sobre: Nacional”, contida no texto constitucional

356 Revista de Informação Legislativa


de 1891, foi substituída, nas constituições assinatura do Acordo sobre Cooperação no
subseqüentes, pela expressão “competência Campo dos Usos Pacíficos de Energia Nu-
exclusiva” (do Congresso Nacional). Para clear entre o Brasil e a República Federal da
tanto, reporta-se à lição de Afonso Arinos Alemanha, firmado em Bonn a 27.6.1975,
de Melo Franco (1957, p. 262), quando nos os Ministros das Minas e Energia do Brasil
ensina que a competência privativa de um e da Tecnologia da Alemanha assinaram um
poder não afasta a colaboração do outro na protocolo para implementação do acordo, sen-
realização do ato; por sua vez, a competên- do certo que, posteriormente, somente o acor-
cia exclusiva, por si só, afasta aquela contri- do foi submetido e aprovado pelo Congres-
buição. so Nacional. Ainda sobre o assunto, o Juiz
Ademais, sobre a tese de que nem todos da Corte Internacional de Justiça J. Francis-
os acordos internacionais necessitam de co Rezek (1984, p. 306-309) considera o acor-
aprovação legislativa, é relatada a histórica do executivo prática convalidável, desde que
polêmica entre Hildebrando Accioly e Ha- fundada na Constituição: acordo executivo
roldo Valladão. O Prof. Accioly (1948, p. 11- como subproduto de tratado vigente ou acor-
15) sustentou que o país pode ser parte em do executivo como expressão de diploma-
atos internacionais que não dependem da cia ordinária, tais como o modus vivendi e o
aprovação do Congresso Nacional, ou seja, pactum de contrahendo.
naqueles que independem de ratificação. Ressalte-se, também, que, sob a égide das
Por sua vez, o Prof. Haroldo Valladão (1950, constituições republicanas anteriores a
p. 12-95) rejeitou a posição de Accioly ao 1988, houve reações do Congresso Nacio-
afirmar que todos os tratados necessitam de nal contra a celebração de acordos em for-
aprovação legislativa, argumentando, em ma simplificada. Entre outros, o Prof. Ca-
síntese, que a amplitude maior ou menor dos chapuz de Medeiros (1995, p. 313-337) faz
poderes do Governo de um Estado para ce- alusão ao acordo Brasil e Itália sobre inves-
lebrar tratados é assunto típico de Direito timentos, cujo Ajuste de Pagamentos, de
Interno, que escapa ao Direito Internacio- 1952, não fora submetido ao Parlamento, o
nal, certo que a Convenção de Havana so- mesmo ocorrendo com o Ajuste de Instala-
bre o Direito dos Tratados de 1928, aprova- ção de Posto de Teleguiados em Fernando
da e ratificada pelo Brasil, exige, sem exce- de Noronha, ao argumento precípuo de que
ção, a ratificação para todos os tratados. se tratava de mero ato executivo do Acordo
Acrescenta o Prof. Cachapuz de Medeiros de Assistência Militar entre o Brasil e os
(1995, p. 269-299) que a posição do Itamara- Estados Unidos de 1952, já aprovado pelo
ty, forte em Levi Carneiro, corrobora a tese Congresso Nacional.
de Hildebrando Accioly.
Importante questão trazida pelo Prof. Ca- 2.4. A Constituição de 1988
chapuz de Medeiros diz respeito à posição, A Constituição Federal de 1988, no que
defendida por Guido Fernando da Silva concerne ao tema aqui versado, assim dispõe:
Soares (1977, p. 322), no sentido de que há, “Art. 49 – É da competência exclu-
no Brasil, entendimento implícito entre os siva do Congresso Nacional:
Poderes Legislativo e Executivo de que os I – resolver definitivamente sobre
acordos de implementação de outros mais tratados, acordos ou atos internacio-
gerais (traités-cadre ou acordos de referên- nais que acarretem encargos ou com-
cia) podem ser concluídos pelo Executivo, promissos gravosos ao patrimônio
em forma simplificada, se aqueles gerais, que nacional;
traçaram a moldura normativa, tiverem sido (...)
aprovados pelo Legislativo. Essa conclusão Art. 52 – Compete privativamente
foi oriunda do fato de que, no dia seguinte à ao Senado Federal: (...)

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 357


V – autorizar operações externas tos do 1º e do 2º turnos da Constituição de
de natureza financeira, de interesse 1988 e da Comissão de Redação.
da União, dos Estados, do Distrito Fe- 1º Turno do Projeto de Constituição
deral, dos Territórios e dos Municípi- “Art. 58 – É da competência exclu-
os; siva do Congresso Nacional:
(...) I – aprovar, ou não, tratados e acor-
Art. 84. Compete privativamente dos internacionais ou atos que acar-
ao Presidente da República: (...) retem encargos ou compromissos gra-
VIII – celebrar tratados, convenções vosos ao patrimônio nacional”.
e atos internacionais, sujeitos a refe- 2º Turno do Projeto de Constituição
rendo do Congresso Nacional”. “Art. 50 – É da competência exclu-
siva do Congresso Nacional:
2.4.1. A terminologia e a questão referente I – resolver definitivamente sobre
à competência privativa do Senado tratados e acordos internacionais ou
Federal, objeto do art. 52, V, em face da atos que acarretem encargos ou com-
competência exclusiva do Congresso promissos gravosos ao patrimônio
Nacional prevista no art. 49, I nacional”.
O Dr. Saulo José Casali Bahia, Professor Comissão de Redação
de Direito Internacional da Universidade Fe- “Art. 49 – É da competência exclu-
deral da Bahia, ao tratar sobre o assunto em siva do Congresso Nacional:
questão, aponta erronia contida nos arts. 49, I – resolver definitivamente sobre
I, 84, VIII, da mesma Carta. Diz ele que am- tratados, acordos ou atos internacio-
bos os dispositivos cuidam conjuntamente nais que acarretem encargos ou com-
de gênero e espécie, dado que tratado é gê- promissos gravosos ao patrimônio
nero do qual são espécies os acordos e as nacional”.
convenções, daí ser bastante a utilização Sobre o assunto, o Dr. Cachapuz de Me-
apenas da primeira categoria (tratados). deiros, com maestria, desenvolve o tema, re-
Outra questão levantada pelo Prof. Casali latando, pormenorizadamente, um históri-
(2000, p. 11-13) diz respeito ao alcance da co das deliberações da Assembléia Consti-
expressão “operações externas de natureza tuinte de 1987-1988. Destaca-se, pois, que,
financeira”, objeto do art. 52, V, da C.F./88, “ao trocar no texto a posição do qualificati-
que atribui, no caso, competência privativa vo internacionais de tratados e acordos para
ao Senado Federal, o que faria antever a des- atos, a Comissão de Redação alterou com-
necessidade de apreciação dessas opera- pletamente o art. 49, inciso I. A redação pas-
ções pela Câmara dos Deputados. Conclui o sou a dar a entender que a competência do
Prof. Casali Bahia (2000, p. 5) afirmando que Congresso é restrita à aprovação dos trata-
a melhor solução seria “admitir a possibili- dos que acarretem encargos ou compromis-
dade da celebração das operações externas sos gravosos ao patrimônio nacional, pois
nos moldes preconizados no inciso V do art. ao não falar em atos apenas, mas em atos
52 da Carta Magna (sem a oitiva da Câmara internacionais, equiparou-os aos tratados e
dos Deputados) somente nos casos em que acordos. Na prática brasileira, ato internaci-
as operações não extrapolem o âmbito fi- onal é o mesmo que acordo internacional”
nanceiro” . (1995, p. 394), sendo ainda certo que o art.
84, VIII, confere ao Presidente da República
2.4.2. A antinomia entre os competência privativa para celebrar trata-
arts. 49, I, e 84, VIII dos, convenções e atos internacionais, mas
Para melhor compreensão da questão, é exige que todos sejam submetidos ao refe-
necessária a transcrição referente aos Proje- rendo do Congresso Nacional.

358 Revista de Informação Legislativa


2.4.3. A prática brasileira na a aprovação parcial da Convenção 160 da
celebração de tratados sob o regime da O.I.T. pelo Decreto Legislativo nº 51, de
Constituição Federal de 1988 25.8.89, bem como a aprovação com emendas
do Acordo de Comércio e Pagamentos entre
Discorrendo sobre a prática do Congres- o Brasil e a antiga Tchecoslováquia, firma-
so Nacional no exercício do controle dos atos do em 24.6.1960 (Decreto Legislativo nº 17,
internacionais, sob o pálio da Constituição de 15.12.1961).
de 1988, constata o Prof. Cachapuz de Me-
deiros (1995, p. 409-450) o seguinte: 3. Jurisprudência recente do
a) a continuação de celebração de acor- Supremo Tribunal Federal
dos sob a forma simplificada pelo Poder Exe-
O tema objeto do presente trabalho tam-
cutivo; para tanto, em acurada pesquisa, é no-
bém não pode prescindir, ainda que de for-
ticiado que, de 05.10.1988 a 31.12.1993, o
ma bastante sintética, do entendimento ju-
Congresso Nacional apreciou 185 tratados
risprudencial recente do Supremo Tribunal
internacionais submetidos pelo Presidente
Federal.
da República. No mesmo período, o Gover-
no celebrou 182 acordos sob a forma simpli- 3.1. A paridade normativa entre atos
ficada (pesquisa efetuada no Diário Oficial internacionais e normas infraconstitucionais
da União), entre os quais podem ser desta-
cados os Acordos entre o Brasil e a Grã-Bre- Abrindo o debate, afirma-se, pelo menos
tanha sobre Entorpecentes (1988), Brasil e até a presente data, que o Supremo Tribunal
Bolívia sobre Integração Energética (1989), Federal tem mantido o entendimento de que
Brasil e Argentina sobre Transporte Rodo- os tratados, uma vez recepcionados, têm
viário (1990), etc; status de lei ordinária (VELLOSO, 2002, p.
b) a inclusão de preceitos nos Decretos 5-25). Isso ficou evidente quando do julga-
Legislativos, exigindo a aprovação de ajus- mento da Ação Direta de Inconstitucionali-
tes complementares pelo Congresso Nacio- dade nº 1.480-3/DF, que teve por objeto a
nal, ainda é motivo de discussão entre os Convenção nº 158 da O.I.T. O eminente Re-
parlamentares e preocupação do Itamaraty. lator, Ministro Celso de Mello, elucida refe-
Sobre o tema, reporta-se o Prof. Cachapuz rido posicionamento ao afirmar que “os tra-
de Medeiros (1995, p. 427-431) à posição ex- tados ou convenções internacionais, uma
teriorizada pela Consultoria Jurídica do Mi- vez regularmente incorporados ao direito
nistério das Relações Exteriores, da lavra do interno, situam-se, no sistema jurídico bra-
Consultor Cançado Trindade (1985, p. 5), sileiro, nos mesmos planos de validade, de
no sentido de que devem ser submetidos ao eficácia e de autoridade em que se posicio-
Parlamento somente os ajustes complemen- nam as leis ordinárias, havendo, em conse-
tares que resultem em revisão ou modifica- qüência, entre estas e os atos de direito in-
ção de acordo já aprovado pelo Legislativo, ternacional público, mera relação de pari-
o que pode ser exemplificado com o Decreto dade normativa”. No mesmo sentido, o emi-
Legislativo nº 97, de 1985, que referendou o nente Ministro Carlos Velloso, em recente
texto da Convenção de Viena sobre Respon- trabalho doutrinário (2003, p. 20), esclarece
sabilidade Civil por Danos Nucleares de o seguinte: “a) na jurisprudência do Supre-
1963; mo Tribunal Federal, há paridade entre a
c) a possibilidade de o Congresso criar norma brasileira de produção doméstica e a
reservas ou apresentar emendas aos trata- norma brasileira de produção internacional.
dos também é matéria de debate no Legisla- Assim, o conflito entre uma e outra resolve-
tivo e na doutrina. Apenas a título exempli- se, de regra, pelo mecanismo tradicional: lex
ficativo (MEDEIROS, 1995, p. 447), citemos posterior derogat legi priori. Todavia, há de se

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 359


ter presente que a lei posterior não revoga o 4. Conclusões
tratado anterior, mas simplesmente afasta, en-
É indubitável que a democratização do
quanto em vigor, as normas do tratado com ela
exercício do poder político, bem como a ne-
incompatíveis. Assim, revogada a lei que afas-
cessidade de coexistência e cooperação com
tou a sua aplicação, voltará o tratado a ter
os demais membros da sociedade internaci-
aplicação; b) em matéria tributária, entretan-
onal, alterou os protagonistas das relações
to, observa-se o princípio contido no artigo
jurídicas internacionais, vale dizer, os So-
98 do Código Tributário Nacional: o prima-
beranos, pessoas de Direito Internacional e,
do da norma brasileira de produção inter-
portanto, sujeitos capazes de celebrar trata-
nacional”.
dos, foram substituídos pelos povos, esses
3.2. O Pacto de São José da Costa Rica constituídos em Estados juridicamente or-
ganizados, sendo certo que os Estados, no
O Supremo Tribunal Federal, pelo seu
cenário internacional, agem em nome do
Plenário, ao julgar o HC 72.131/RJ, firmou
povo: elemento basilar democrático.
o entendimento de que, em face da Carta
A constitucionalização, por sua vez, do
Magna de 1988, conforme noticiou o Minis-
exercício do poder político, aqui incluída a
tro Moreira Alves ao julgar o HC 75.306/RJ,
ação externa do Estado mediante a adoção
“persiste a constitucionalidade da prisão
de princípios de relações exteriores, distin-
civil do depositário infiel em se tratando de
gue o processo de celebração de tratados, de
alienação fiduciária, bem como que o Pacto
forte predominância do Poder Executivo, do
de São José de Costa Rica, além de não po-
controle das ações governamentais pelo
der contrapor-se à permissão do artigo 5º,
Poder Legislativo, o que é bastante salutar,
LXVII, da mesma Constituição, derrogou,
dado que se ressalta a idéia de nação e de
por ser norma infraconstitucional geral, as
soberania nacional.
normas infraconstitucionais especiais sobre
A história constitucional brasileira, mor-
prisão civil do depositário infiel” (apud
mente a republicana, consoante demonstrou
AMARAL JÚNIOR, 2000, p. 8). Vale dizer, o
o Prof. Cachapuz de Medeiros em sua obra
Supremo Tribunal Federal decidiu no senti-
(1995), acentua a submissão dos tratados
do de que o art. 4º do Decreto-lei nº 911/69,
ao referendo do Congresso Nacional, o
que equipara o devedor-fiduciante ao depo-
que indubitavelmente fortalece o regime
sitário infiel, foi recepcionado pela Consti-
democrático mediante o controle político
tuição Federal de 1988. Em síntese: conso-
da ação externa do Estado pelo Poder Le-
ante jurisprudência do STF, há prevalência
gislativo.
da norma constitucional (art. 5º, LXVII) so-
bre disposição contrária do Pacto (art. 7º, nº
7), que limitou a prisão por dívida somente
à hipótese de inadimplemento de obrigação Bibliografia
alimentícia. Por sua vez, o Ministro Carlos
Velloso (2003, p. 10) sustenta que “no caso ACCIOLY, Hildebrando. A ratificação e a promul-
de tratar-se de direito e garantia decorrente gação dos tratados em face da constituição federal
de Tratado firmado pelo Brasil, a incorpo- brasileira. Boletim da Sociedade Brasileira de Direito
ração desse direito e garantia, ao direito in- Internacional, Rio de Janeiro, n. 7, p. 11-15, jan./jun.
1948.
terno, dá-se com status constitucional, assim
com primazia sobre o direito comum. É o AMARAL JÚNIOR, José Levi Mello do. Os trata-
dos no ordenamento jurídico brasileiro. Revista Jurí-
que deflui, claramente, do disposto no men-
dica Virtual, Brasília, n. 11, p. 8, abr./2000. Dispo-
cionado § 2º do art. 5º da Constituição da nível em: http:// www.presidencia.gov.br/
República. O Supremo Tribunal Federal, to- ccvil_03/revista/ Rev_11/os_tratados.htm.
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360 Revista de Informação Legislativa


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Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 361


362 Revista de Informação Legislativa
Debito indebito?
Regole per il mercato globale

Sandro Schipani

1. Se si fossero rispettati i vigenti principi


generali del diritto e i diritti umani, il debito
internazionale dei Paesi in via di sviluppo
risulterebbe fondato, o si stanno considerando
dovute somme non realmente dovute?
Sulla spinta delle vicende degli ultimi
venti anni del debito internazionale dell’-
America Latina, è maturata in Europa e in
America Latina una comune riflessione
sulla pluralità di fattori che sono interve-
nuti in esse. In particolare, è maturata la
consapevolezza del fatto che, a fianco a tanti
fattori ampiamente discussi, relativi a
corruzione, cattivo uso delle risorse, ecc., di
cui si devono considerare responsabili
gruppi dirigenti di questo o quel Paese in
Via di Sviluppo, anche in concorso con ope-
ratori economici e/o personalità politiche
esterni all’area stessa, è stato determinan-
te il trattamento giuridico del debito
internazionale stesso. Specificamente, è
maturata la consapevolezza che è stato
determinante il modo in cui sono stati
applicati a tale debito alcuni principi di
diritto (es. pacta sunt servanda), mentre altri
non sono stati applicati (es. determinatezza
della prestazione; buona fede sia nella
fase precontrattuale, sia quale criterio
oggettivo che concorre alla deteminazione
del contenuto della prestazione, sia nella
esecuzione; rebus sic stantibus e/o altri criteri
per considerare l’accollo delle conseguenze
di eventi imprevedibili; divieto di interessi
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 363
usurari; autoresponsabilità; ecc.); inoltre che scientifica coordinata presso il Centro di
sono state prodotte delle violazioni di studi latinoamericani dell’Università di
riconosciuti diritti umani in nome dell- Roma “Tor Vergata”, venivano ponendo a
’affermazione dei diritti di credito, senza fuoco profili della gestione giuridica della
ponderata considerazione della gerarchia vicenda del debito dell’America Latina che
secondo cui nella situazione concreta costituivano probabile violazione di prin-
avrebbe dovuto essere coordinato l’esercizio cipi generali del diritto e di diritti umani che
di questo (ad es. non è stato applicato il invece avrebbero dovuto essere rispettate, e,
beneficium competentiae che non consente di se lo fossero state, il debito non sarebbe
ridurre alla povertà il debitore; il divieto di aumentato nel modo in cui aumentato.1
abuso di diritto). Contemporaneamente, era maturata altresì
Le istituzioni finanziarie internazionali in Argentina e in Brasile, la convinzione
poi non hanno operato per il rispetto di della utilità di chiedere un parere alla Corte
questi esistenti principi e per l’affermazione internazionale di Giustizia dell’Aja in
di questo sistema di diritti, ma anch’esse merito alla violazione del divieto di tassi
sembrano coinvolte in una prassi che non usurari che si sarebbe verificata nei prestiti
riesce a riconoscere la corretta interrelazione internazionali2. L’incontro fra le due im-
fra principi della giustizia e interessi postazioni ha fatto maturare una linea di
economici, e la necessità di regole per il riflessione scientifica dibattuta in numerosi
corretto funzionamento di qualsiasi sistema congressi a Brasília, Vienna, Roma, Caracas,
di libertà, e quindi anche per la massi- Stoccolma, Madrid, Salamanca, Sao Paulo
mizzazione dello sviluppo e della sod- ed ha prodotto pubblicazioni3; esso ha
disfazione degli stessi interessi economici. alimentato e si è alimentato altresí di un
Il punto merita di essere sinteticamente dialogo con teologi e moralisti, da cui è
ricordato. scaturita la Carta di Sant’Agata dei Goti4
Nel 1985, il Comitato economico e che ha proposto alcuni principi di morale e
sociale della Comunità europea osservava: di diritto in materia5.
“Il Comitato economico e sociale si rende La discussione e l’accertamento scie-
conto che, malgrado il leggero miglioramento ntifico dei principi vigenti e vincolanti per
degli ultimi mesi, la situazione di inde- la materia delle convenzioni (accordi,
bitamento continua ad essere un ostacolo contratti internazionali concernenti i
strutturale e a pesare in modo insostenibile prestiti) e delle obbligazioni che ne sca-
sulle prospettive di sviluppo dei Paesi turiscono, ha attinto al comune diritto che
dell’America Latina. Tale fenomeno, favori- scaturisce dalle basi e dagli sviluppi del
to da finanziamenti internazionali non sistema giuridico, dai suoi fondamenti etici,
sempre cauti, aggravato da enormi fughe di dalla comunicazione fra i diritti dei diversi
capitali, e che emargina una manodopera paesi come con quello internazionale. Essa
peraltro a buon mercato, è reso più com- ha offerto i suoi risultati all’uso da parte di
plesso da circostanze imprevedibili quali la tutti gli uomini come iniziale risposta alla
crisi economica internazionale, la sopra- necessità generale di schemi giuridici, di
valutazione del dollaro che ha raddoppiato regole che sorreggano una effettivamente
nel corso degli ultimi cinque anni il suo libera dinamica economica al servizio degli
valore rispetto alle monete europee stabili, uomini, tutelando, in un ambiente quale
nonché agli esorbitanti tassi di interesse” quello internazionale privo di governo
(doc. CES 931/85 CAL/dm, par. 7). dell’economia, anche le presenze più deboli.
Alla fine dello stesso decennio e all’inizio Questa impostazione ha altresì attratto
del successivo, alcuni giuristi europei e studiosi del mondo islamico, che, grazie al
latinoamericani, nel quadro di una ricerca coordinamento dell’Istituto di Studi e

364 Revista de Informação Legislativa


Programmi per il Mediteraneo-ISPROM, en devise, privant ainsi les initiatives
hanno partecipato a congressi svoltisi a économiques et le développement humain
Roma, e poi hanno da ultimo altresì pro- des fonds dont ils auraient besoin”; e
mosso un Seminario scientifico ad Annabha impegna “l’Assemblée générale des NU …
(Algeria), 4-6/12/19996. envisager de solliciter de la Cour in-
ternationale de justice de La Haye un avis
Debito indebito? consultatif sur la manière dont une partie
de la dette a été contractés”.
Questo dibattito scientifico costituisce il La preoccupazione che un improprio
retroterra fatto proprio sia dal Parlamento esercizio del diritto da parte dei creditori
Latinoamericano, sia poi dalla Conferenza possa produrre indirettamente violazioni
interparlamentare Comunità Europea- dei diritti umani è poi alla base della
America Latina, San Paolo, 2-7 maggio 1993, Risoluzione 1998/24 del 17/4/1998, della
nel cui Atto finale veniva approvata all’- Commissione dei diritti umani delle NU, in
unanimità la richiesta agli Stati membri di cui, si sottolinea “la relazione fra il pesante
una loro iniziativa alla Assemblea Generale carico del debito internazionale e il consi-
delle NU di richiesta alla Corte Inter- derevole aumento della povertà che si
nazionale di Giustizia un parere su “el osserva a livello mondiale e acquista
marco ético y jurídico, que debe regular los speciale gravità in Africa”; si indicano come
términos de los préstamos internacionales”. fattori di un “ordine economico inter-
Un simile voto é stato poi reiterato dalla nazionale giusto ed equo, che garantisca in
successiva Conferenza interparlamentare Paesi in via di sviluppo, fra le altre cose la
Unione Europea-America Latina, di Bru- stabilizzazione dei tipi di cambio e di
xelles, 19-22 giugno 1995. interessi”; si afferma “che i diritti fon-
Mentre i propositi di alcuni governanti damentali della popolazione dei paesi
latinoamericani di portare avanti la ri- debitori all’alimentazione, alla abitazione,
chiesta di parere predetta sono risultati ai vestiti, al lavoro, all’educazione, ai servizi
paralizzati sul nascere in modi non chiari, sanitari e ad un ambiente sano non può
che fanno temere interventi volti ad im- essere subordinata alla applicazione di
pedire una iniziativa che tutti invece politiche di ristrutturazione economica
avrebbero dovuto sostenere per il suo spirito originate dal debito”; si istituisce un
di ricerca e di rispetto del diritto, ha fatto Relatore speciale per tre anni che raccolga i
propria tale linea l’Unione interparlementare dati relativi “alle conseguenze negative che
a livello mondiale, nella sua 99a Conferenza, il debito internazionale ha sul godimento
Ginevra, 10 aprile 1998. Essa sottolinea da effettivo dei diritti economici, sociali e
un lato la permanente gravità della crisi culturali nei Paesi in via di sviluppo anche
economica che colpisce i paesi debitori i cui per le politiche adottate per far fronte al
effetti sono aggravati dalle linee imposte debito stesso”.
dalle istituzioni finanziarie internazionali Il Parlamento italiano, per primo in
che hanno “conséquences particulérement Europa, nella seduta della Camera dei
néfastes sur les enfants, les femmes, les Deputati del 27/5/1988 ha approvato a
populations autochtnones et les minorités”; larga maggioranza, con numerose asten-
sottolinea che “dans un monde touché par sioni, ma solo due voti contrati e con parere
la mondialización, plus d’un miliard de favorevole del Governo, una mozione
personnes vivent dans la pauvreté absolue (Cherchi ed altri 1-00023) con cui “si
et sont marginalisées dans la société”, e che impegna il Governo a compiere le necessarie
il servizio del debito “absorbe un pour- azioni affinché, in occasione della prossima
centage excessif de leurs recettes annuelles Assemblea Generale delle NU, venga

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 365


inserita all’ordine del giorno della stessa dallo statual-legalismo, permane una base
assemblea la deliberazione della richiesta di diritto comune posto a disposizione di
del parere consultivo della Corte inter- tutti i popoli, secondo la notissima nozione
nazionale di giustizia in ordine ai profili che troviamo testimoniata dal giurista
giuridici della regolazione del debito inter- romano Gaio, e fatta propria da Giustiniano:
nazionale e ad adoperarsi affinché la “tutti i popoli in parte usano di un diritto
deliberazione dell’Assemblea sia in senso comune, costituito fra tutti gli uomini dalla
positivo”. Anche il Consiglio Nazionale naturale ragione, e chiamato dirittto delle
dell’Economia e del Lavoro è impegnato genti, come se tutte le genti si avvalessero di
sulla stessa linea. E Il Parlamento stesso tale diritto” (D. 1,1,9). Le codificazioni
infine, quest’anno ha tradotto nella legge moderne si sono inserite in tale impos-
209 del 2000 la posizione della mozione tazione, collegandosi a tale permanente
predetta: desidero ricordare l’art. 7: “Il diritto comune principalmente tramite il
Governo, nell’ambito delle istituzioni rinvio ai principi generali del diritto,
internazionali competenti, propone l’avvio concetto tecnico attraverso il quale si filtrano
delle procedure necessarie per la richiesta gli elementi fondanti e permanenti del
di parere alla Corte Internazionale di sistema. Come le codificazioni, così pure il
Giustizia sulla coerenza tra le regole moderno diritto internazionale, tanto che lo
internazionali che disciplinano il debito Statuto della Corte internazionale di Giustizia
estero dei Paesi in via di sviluppo e il qudro dell’Aja considera i “principi generali del
dei principi generali del diritto e dei diritti diritto” fra le fonti del diritto che deve
dell’uomo e dei popoli”. applicare (art. 38 c.). Ed alla ricognizione di
essi da parte della Corte si aspira per un
2. Un contributo della comune base autorevole contributo alla chiarificazione
romanistica alla costruzione di un delle regole fondanti le relazioni creditizie.
Il giurista del sistema giuridico romanistico
ordine giuridico più giusto nel settore
sa che tale ricognizione da parte di un
degli scambi economici giudice deve essere sostenuta dal lavoro
La concezione del diritto che trova della scienza giuridica; deve essere accom-
espressione nei dati riferiti riconduce pagnata da una permanente formazione di
sull’orizzonte dell’attualità l’esistenza di un giuristi consapevole del loro ruolo di far
diritto comune, che regola le situazioni stare insieme e saldo il diritto migliorandolo
anche nuove che si presentano, e che va sempre (secondo le notissime parole di
applicato. Pomponio ricordate da Giustiniano in D.
Il debito internazionale dei Paesi in via 1,2,2,13: constare non potest ius nisi sit aliquis
di sviluppo è formato da rapporti che hanno iuris peritus per quem possit cottidie in melius
notevoli differenze fra loro sia in relazione produci).
ai soggetti coinvolti, sia ai tipi di atti Vorrei richiamare l’attenzione su tre fonti
compiuti, e di conseguenze alle normative romane che contengono l’origine di principi
specifiche da applicare. Nonostante questa che è necessario tenere presenti.
grande varietà, vi sono alcuni principi
generali che non possono essere violati, e di 2.1. Il tema degli interessi costituisce uno dei
cui quindi il rispetto deve essere garantito principali della ricerca ricordata7
comunque, siano essi o no stati espres- Forse sarebbe utile rinnovare una ras-
samente previsti nelle singole convenzioni segna della legislazione repubblicana in
fra le parti che regolano i singoli rapporti, materia appunto di usurae (interessi)8. Il
nell’esercizio dell’autonomia ad esse punto centrale di essa non è tanto la
spettanti. Nonostante l’espansione avuta determinazione del concreto livello oltre il

366 Revista de Informação Legislativa


quale le usure erano illecite, quanto che era valeva per i cittadini romani (pecuniae creditae
chiara la consapevolezza della necessità che ius idem quod cum civibus Romanis), andando
un limite imposto dall’esterno rispetto alle ben oltre le esigenza della situazione
parti contrattanti garantisse dagli abusi concreta. É da sottolineare che Livio riferisce
della parte più forte. Le forme di produzione, che il tribuno, per questo plebiscito, avrebbe
i tipi di fungibili dati a mutuo, ecc. vanno agito ex auctoritate patrum14.
tutti esaminati con adeguata ricostruzione Non mi occupo dei problemi connessi
del contesto; dal complesso dei provvedi- alla prima delibera del Senato. (Dato il
menti emerge il principio secondo cui al carattere di tale primo voto, esso può non
livello degli interessi va imposto un limite. contrastare direttamente con il criterio
Ciò premesso, vorrei richiamare l’atten- secondo cui l’imperium, e la iuris dictio del
zione su uno di tali interventi normativi, il magistrato nei confronti dello straniero, per
plebiscito proposto dal tribuno della plebe ragioni “pubblicistico-processuali”, erano
M. Sempronio nel 193 a.C. de pecunia credita, vincolati dalla fides piuttosto che con la lex15.
e ricordatoci da Livio 35,7,2-59. Il voto del Senato rientrerebbe infatti piu-
Le circostanze sono note. Livio ci riferisce ttosto nel diverso ambito dei rapporti
che: “civitas faenore laborabat. La città era consultivi e direttivi che esso aveva con i
oppressa dai debiti. Sebbene l’avidità fosse magistrati16. In questo quadro, potremmo
stata frenata con molte leggi sugli interessi, ritenere che la frode alla legge, che Livio
era stata imboccata la via della frode, in evidenzia al centro della vicenda17, giusti-
modo da registrare10 i crediti al nome di ficasse, in quanto violazione della fides, una
alleati, che non erano tenuti da tali leggi; istruzione tendente a orientare l’esercizio
così i debitori erano oppressi dagli interessi della tutela giurisdizionale della pretesa che
liberi11“. i Latini o gli altri soci italici facevano valere,
In questa situazione, cercandosi un adeguandola alle norme che avrebbero
modo per tutelare i debitori da questa fraus, dovuto regolare i rapporti effettivi sottos-
al Senato12 parve bene fissare un termine tanti, ai quali, peraltro, non viene data
assai prossimo perché quegli alleati che alcuna diretta rilevanza, permanendo
fossero titolari di crediti da mutuo li dichia- fondamento dell’azione quello che, alla
rassero, e raccomandare ai magistrati che stregua del racconto, dovremmo considerare
da tale giorno esercitassero la giurisdiziione il rapporto simulato.)
(ius diceretur) in merito alle pretese dei La successiva legge, e l’auctoritas che l’ha
creditori che agissero per il denaro da essi preceduta, richiedono una attenta analisi.
dato a credito, applicando però le leggi sugli Il plebiscito in esame ha infatti una
interessi che il debitore invocasse, e pres- grande portata, come espressione del modo
umibilmente solo per quei debiti che fossero di concepire il diritto: a ben vedere, il suo
stati denunciati13. obbiettivo non è colpire una fraus, che non
Attraverso le autodenuncie degli inter- ci si propone di accertare, n‚ è quello di
essati, fu però accertata la grandezza dei proibire in alcun modo tali tipi di atti18.
debiti contratti con questo raggiro (magni- L’elusione delle leggi sugli interessi rimane
tudo aeris alienis per hanc fraudem contracti). l’elemento primario della emozione che
Dovette cioè apparire evidente l’esorbitante percorre gli animi, ma è poi solo un aspetto
predominio della parte creditrice, e quindi della complessa vicenda che conduce al
la necessità di un diverso intervento. Il provvedimento. La ragione del plebiscito è
tribuno della plebe M. Sempronio allora infatti l’oggettivo peso degli interessi usurari
propose, e la plebe decise che, in materia di imposti da una complessa rete di persone e
prestiti di denaro, valesse anche con gli interessi, di relazioni, fiducia e possibilità
alleati e con i Latini lo stesso diritto che di reciproco controllo, più estesa della

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 367


dimensione della civitas; una rete che tende qui suis legibus uteretur, pur nel quadro del
a diventare dominante e ad emarginare le par ius cum populo Romano testimoniatoci
forze che ad essa non si adeguino. Il da Festo, 314 status dies19). Emerge in questo
plebiscito affronta questa nuova realtà impo- plebiscito un dinamismo espansivo fondato
nendo in merito agli interessi, problema che sull’obbiettivo che ius idem esset in relazione
emergeva come determinante, l’identità di all’applicazione dei limiti agli interessi.
diritto per i rapporti che avessero luogo in Emerge cioè la consapevolezza che, in
quella più estesa collettività entro cui quella materia di usurae, pur attraverso leggi, si
rete operava. Il plebiscito, cioè, adegua fissano norme che devono avere neces-
l’ambito di applicabilità della norme a quello sariamente valore cogente generale per tutta
della collettività effettiva, nella quale la la collettività degli operatori economici,
possibilità di frode dipendeva da, e si cittadini e no, che integri un unico mercato
affiancava ad una differenza di trattamento finanziario, altrimenti esse si ritorcono
fra cittadino e straniero socio o Latino che dannosamente contro la comunità che le ha
stava perdendo il suo significato, con una poste20. E come per la tutela nei confronti
velocità che la maggior mobilità della del furto o del damnum iniuria, per ragioni
ricchezza costituita dai nomina fa emergere proprie a tali figure di delitto, si operava
prima di quanto accade in altri ambiti. tramite fictio civitatis l’estensione ai non
Prestare ad uno straniero che può pagare cittadini dell’applicazione di norme statuite
un interesse superiore grazie al fatto che egli per legge (Gai. 4, 37)21, così, in quell’inizio
può a sua volta prestare a un cittadino ad del II sec. a.C., si afferma l’estensione
un interesse superiore in quanto non dell’applicazione dei limiti statuiti per legge
vincolato dalle leggi che imponevano livelli alle usurae, forse direttamente22, come se tali
massimi agli interessi, era una forma di norme si incorporassero o fossero espres-
oggettiva elusione della legge, che poteva o sione di un nucleo di ius che dalle origini
no essere accompagnata da un disegno era comune23, considerandole al pari di
fraudolento, ma che si configurava altresì quello che, secondo una nostra terminologia,
come determinata dalla logica di un mercato sono cogenti “principi giuridici”24.
che ha ampliato le sue dimensioni e che
porta, in assenza di una ragione giuridica o 2.2. Il tema del mutamento del valore della
economica per prestare ad un cittadino a moneta di riferimento costituisce un altra
condizioni meno vantaggiose, ad una fuga profilo su cui si deve riflettere
di capitali, ad un drenaggio delle dispo- In D. 13,4,3 Giustiniano utilizza un
nibilità finanziarie presenti nella collettività frammento dell’opera di Gaio di commento
dei cittadini, che poi rientrano a condizioni all’editto provinciale.
più onerose per gli stessi; e che può com- D. 13,4,3 Gaius l.9 ad ed.prov.: Ideo in
portare anche un generale apprezzamento arbitrium iudicis refertur haec actio, quia scimus,
del valore del denaro, la percezione delle quam varia sint pretia rerum per singulas
conseguenze del quale non mi è qui possibile civitates regionesque, maxime vini olei frumenti:
esaminare. pecuniarum quoque licet videatur una et eadem
Il plebiscito superava allora le ragioni potestas ubique esse, tamen aliis locis facilius et
per cui le leggi non erano applicabili ai non levibus usuris inveniuntur, aliis difficilius et
cittadini, ragioni che sono espressione di un gravibus usuris25.
radicato principio ordinatore della società Il giurista Gaio sta qui esaminando il
secondo cui la legge, come espressione di problema del riequilibrio degli interessi delle
una comunità, vincola solamente i membri parti attraverso l’actio de eo quod certo loco
della stessa (peregrinus è appunto secondo debetur. Cioè, sommariamente26, se taluno
quanto ci ricorda Varr., de Lingua Lat., 5,3: fosse obbligato a dare una certa quantità di

368 Revista de Informação Legislativa


denaro o di altre cose fungibili, in base ad fungibili sulle diverse ‘piazze’. Egli sembra
una causa per cui competa una condictio presupporre, forse anche solo a fini di
certae creditae pecuniae/certae rei, l’intentio esemplificazione chiarificatrice, con impli-
sarebbe formulata: Si paret Numerium cite semplificazioni, situazioni in cui non si
Negidium Aulo Agerio sestertium decem milia tratta di dare in un luogo o in un altro cose
dare oportere (cfr. Gai.4,41), e la condemnatio, fungibili di cui si dispone, e che vengano
per la somma di denaro, nei termini: Iudex fatte pervenire nel luogo di adempimento,
Numerium Negidium Aulo Agerio sestertium con una attività che implicherebbe problemi
decem milia condemna si non paret absolve (cfr. di costo del trasporto e di responsabilità; ma
Gai.4,50), e, in caso di altre cose, l’indica- di dare cose che ci si procura in luogo.
zione dell’importo sarebbe sostituita da Neppure mette in conto viaggi del debitore,
quanti ea res est. Questa azione sarebbe o problemi organizzativi o di credito che egli
esperibile nel luogo dove risiede il debitore, possa avere nei diversi luoghi, e considera
che è in linea generale luogo di adempi- quindi il debitore come in grado di conseg-
mento per questo tipo di obbligazioni. Ma nare cose tramite disposizioni anche date
se fosse determinato un luogo specifico da lontano; il che da un lato ci può far
diverso, e il creditore esperisce l’azione pensare ad organizzazioni commerciali e
citata nel luogo di residenza del debitore finanziarie complesse29, d’altro lato ad un
rischia una pluris petitio loco (Gai.4,53c). Per isolamento di alcuni profili del problema
evitare ciò, l’attore deve utilizzare l’azione rispetto agli altri, al fine di individuarli come
de eo quod certo loco sopra citata, in cui tali da essere considerati.
l’intentio potrebbe essere formulata ad es.: Si Gaio quindi dapprima mette in luce
paret Numerium Negidium Aulo Agerio decem l’oscillazione del prezzo delle merci, come
Ephesi dare oportere (cfr. Ulp. D.13,4,2,1 ss.)27, vino, olio, frumento. L’accostamento ad esse
e la condemnatio in termini tali da attribuire del denaro sarebbe compiuto con “qualche
al giudice, in età classica, in forza di una imbarazzo”30, perché il denaro sarebbe per
condemnatio incerta, “il potere-dovere di sua definizione destinato ad avere ubique
determinare il diverso valore che la presta- una et eadem potestas, e con tali caratteristiche
zione veniva così ad avere” 28 (qualora verrebbe assunto dai giuristi.
competesse un’a. con intentio incerta, il Questa osservazione di Gaio ci fa però
problema della diversità di luogo poteva immediatamente pensare alla riflessione di
essere valutato dal giudice anche senza il Paolo sul denaro, quale oggetto della
ricorso a questa azione). prestazione del compratore, strutturante la
Esaminando i possibili profili di ciò che compravendita: D. 18,1,1 testo, notissimo,
doveva essere valutato, il testo in esame pone in una prospettiva di evoluzione il
dimostra una sensibilità alle oscillazioni di rapporto fra permuta e compravendita, e lo
costo e valore di alcuni beni, e del denaro. lega al sorgere del denaro: materia forma
Premesso che altri profili dell’interesse publica percussa. Il contrasto fra sabiniani e
delle parti ad adempiere, od a veder adem- proculeiani sulla differenza fra permuta e
piuta la prestazione nel luogo convenuto compravendita sembrerebbe essere chiuso
vengono analizzati in altri passi di Ulpiano, con la scelta di questo testo di Paolo
con menzione di Labeone e Giuliano, e di all’inizio del titolo sulla compravendita (D.
Africano (D.13,4,2 pr.; D.13,4,2,8; D.13,4,8), 18,1,1,1).
nonchè delle Institutiones di Giustiniano Gaio, sabiniano, ci ricorda anche nelle
(J.4,6,33 c), e che non è mia intenzione sue Istituzioni i termini del dibattito: Gai.
esaminarli in questa sede, Gaio qui mi 3,141. Egli riconduce la differenza fra
sembra concentrarsi sulle oscillazioni del permuta e compravendita a parametri
prezzo al quale ci si può procurare dei beni sistematici non evoluzionistici, e a questo

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 369


scopo sottolinea che anche la compra- valore/potere di acquisto del denaro, quasi
vendita è una vetustissima species. Cerca poi ipotizzando un apprezzamento/deprez-
di precisare la differenza fra le due figure, e zamento dello stesso. Egli certo però non
quindi di conservare la diversità di consi- pone tale possibile vantaggio/svantaggio
derazione giuridica fra merce e prezzo per l’attore come condizione per la consi-
attraverso un altro criterio di analisi della derazione da parte del giudice della
formazione della compravendita, legato al maggiore/minore onerosità per il convenuto.
rem venalem habere/rem venalem accipere. Il nesso denaro-costo di esso (indi-
Questa impostazione attenua il ruolo della viduato con riferimento agli interessi)-valore
moneta, in quanto tutte le cose possono viene così colto nella sua elasticità, senza
consentire di raggiungere l’obbiettivo di quel mettere qui in discussione il ruolo stesso del
bilanciamento degli interessi che soddisfa denaro rispetto alle altre cose, e la sua
le parti, che è alla base della funzione della individualità, ma subordinando le conse-
moneta, e che questa raggiunge grazie alla guenze giuridiche alla effettiva presenza
publica et perpetua aestimatio che conferisce delle caratteristiche di esso sotto entrambi i
alla sua quantitas uno stabile rapporto profili. In caso di a variazioni, il giudice
(aequalitas) con le cose più diverse a sua volta dovrà tenerne conto.
evidenziata da Paolo.
Nel nostro testo, rilevata la variet… dei 2.3. Se ad obbligazioni di stretto diritto come quella
prezzi delle cose, a tener conto della quale è nata da stipulatio si riferisce il frammento ora
destinato l’arbitrium iudicis, Gaio non mette citato, ad obbligazioni perseguibili con un
in discussione il ruolo che la potestas del iudicium bonae fidei si riferisce invece D.
denaro svolge, ma certo coglie una ragione 19,2,15,2 in cui Ulpiano ci ricorda un parere del
di dubbio (licet videatur) sulla ‘unicità ed giurista Servio Sulpicio Rufo
identità’ di essa, e la mette in correlazione È stato con l’emergere dei giudizi di
con l’osservazione che il denaro stesso ha buona fede che è venuta maturando quella
diversi costi, in quanto l’acquisirne costa riflessione che aveva portato già Quinto
appunto ora di più ora di meno, e ciò, ci Mucio a fissare come regola di ciò a cui sono
spiega, a causa delle diverse usurae che tenute le parti il culpam praestare che poi si
vengono praticate sulle diverse piazze, integra con la regola casus a nullo praestantur,
assumendo quindi per il suo ragionamento e si precisa nei suoi contenuti ascrivendo
un termine di riferimento finanziario, e non ad es. nella colpa l’imperitia, e precisando
commerciale, che manifesta, nella comples- essere inclusi nel casus non solo la forza
sità della sua applicazione, il grado di maggiore, ma anche tutti gli altri acca-
maturità anche di questo settore. dimenti non dovuti a colpa. Si era formato
In un ambiente che, pur unificato nella così il principio la cui elaborazione di
vasta rete di fluidi movimenti commerciali e Ulpiano è stata collocata da Giustiniano fra
finanziari, conserva evidentemente anche le regulae iuris antiqui (D. 50,17,2331). Da esso,
delle ‘vischiosità’, e quindi le menzionate salvo le ipotesi di responsabilità per solo
differenze, Gaio cioè, forte del dato obbiettivo dolo, e salvo diverso accordo fra le parti
costituito dalla rilevazione di queste, purché non esonerante il dolum praestare,
affronta il problema dello ‘sforzo’ che deve l’obbligazione è quindi determinata entro i
compiere il debitore per procurarsi il denaro, confini della condotta diligente, perita ecc.,
e la possibile maggiore o minore onerosità cosicché certo non vi è inadempimento
della prestazione a cui il debitore stesso è quando il soggetto abbia operato secondo
tenuto. Egli inoltre non affronta, ma adombra tali modelli adeguati alle circostanze
il dubbio che ne deriva per l’affermazione concrete, cioè abbia realizzato lo sforzo
di carattere generale della invariabilità del diligente che il contratto esigeva da lui32. E

370 Revista de Informação Legislativa


ciò si riflette su qualsiasi tipo di prestazione, Mucio, non se ne avvale, ma vi deroga, e
anche se con le necessarie distinzioni33. richiama il parere, diversamente impostato,
Ritengo però necessario qui richiamare di Servio, di poco più giovane di Mucio, che
il parere di Servio, che, nell’ambito degli forse utilizza attraverso la citazione di un
stessi iudicia, e quindi nel quadro del lavorio altro giurista37.
interpretativo volto a determinare quale sia Servio aveva distinto ciò a cui è tenuto il
il contenuto dell’ex fide bona oportere, apre proprietario-locatore e ciò a cui è tenuto il
una via distinta da quella ora ricordata, una colono-conduttore, ponendo a carico del
via che viene anch’essa accolta da Ulpiano primo anche il garantire la disponibilità
e poi da Giustiniano, preferendola, per la della cosa locata anche rispeto alla violenza-
situazione esaminata, all’altra. fattore esterno a cui non si può resistere, che
D. 19,2,15,2 Ulp. l. 32 ad Ed..: Si vis viene esemplificata in quella dei fiumi, delle
tempestatis calamitosae contigerit, an locator cornacchie, degli storni e dell’incursione
conductori hoc nomine aliquid praestare debeat nemica, e ponendo a carico del secondo i
videamus. Servius omnem vim, cui resisti non vizi-alterazioni delle cose che scaturiscono
potest, dominum colono praestare debere ait, ut dalla cosa stessa, nel processo produttivo
puta fluminum graculorum sturnorum et si quid di essa, che vengono esemplificati come il
simile acciderit, aut si incursu hostium fiat: si vino che inacetisce, il raccolto che si guasta
qua tamen vitia ex ipsa re oriantur, haec damno a causa di certi vermi o delle erbe infestanti.
coloni esse, veluti si vinum coacuerit, si raucis Servio sembra volersi allontanare da ogni
aut herbis segetes corruptae sint. Sed et si labes valutazione non solo soggettiva, ma anche
facta sit omnemque fructum tulerit, damnum implicante l’indagine dello stesso rapporto
coloni esse, ne supra damnum seminis amissi di causalità con la condotta dei contraenti;
mercedes agri praestare cogatur. Sed et si uredo egli si concentra sul tipo contrattuale, sul
fructum oleae corruperit aut solis fervore non ruolo di ciascun contraente, e ciò che la
adsueto id acciderit, damnum domini futurum: buona fede implica che ciascuno debba
si vero nihil extra consuetudinem acciderit, garantire nel quadro di una corretta indivi-
damnum coloni esse, idemque dicendum si duazione delle rispettive prestazioni,
exercitus praeteriens per lasciviam aliquid definendo che colui che dà un fondo in
abstulit. Sed et si ager terrae motu ita corruerit, ut locazione perché venga coltivato deve
nusquam sit, damno domini esse: oportere enim garantirlo anche a fronte della vis cui resisti
agrum praestari conductori ut frui possit 34. non potest, mentre chi coltiva deve accollarsi
Non intendo qui sviluppare neanche i vitia che ex ipsa re oriantur, cosicché egli
l’esegesi di questo testo, recentemente rimette al giudice solo il compito di sussumere
rinnovata con puntualizzazioni che seguo35. gli eventi concreti per i quali offre esempi
Il parere di Servio è ritenuto sostanzialmente nell’una o nell’altra categoria. Talune
genuino; ad esso sono state aggiunte delle difficoltà connesse a tale sussunzione sono
precisazioni, che cominciano dall’esempio poi alla base delle integrazioni che seguono
della frana. il parere di Servio, a volte correggendolo un
Si deve notare subito che Ulpiano si pone po’, come includendo nella vis la frana del
il problema di quale sia l’estensione della terreno che abbia distrutto il raccolto, o la
prestazione del locatore, e cioè se egli debba malattia che abbia rovinato le olive o il calore
garantire qualche cosa al conduttore nel del sole, se superiore al consueto, o il
caso in cui sia intervenuta la vis di una terremoto, mentre non si riscontra vis se il
rovinosa tempesta36. Per affrontare questo calore del sole non è fuori dell’usuale, o truppe
problema, Ulpiano, che pure, come sopra (non nemiche) di passaggio compiono furti.
visto, ha sintetizzato in modo maturo Ulpiano quindi, di fronte ad un caso, o
l’impostazione scaturita dai pareri di Quinto nell’esaminare un esempio di un colono che

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abbia subìto la distruzione del raccolto a rimarcare quanto più ampia rispetto alle
causa della violenza di una rovinosa diverse formulazioni di articoli di codici sia
tempesta, utilizza una autorevole citazione la prospettiva posta a principio del nostro
che aveva segnato una linea interpretativa sistema nell’espressione delle antiche formule:
che si era consolidata, e introduce la quidquid dare facere oportet ex fide bona.
generale distinzione menzionata, da cui trae
la conclusione essere il locatore tenuto a 3. Conclusione
garantire la disponibilità della cosa, inclu-
dendo in tale disponibilità la garanzia di In concreto, i testi esaminati danno
poter frui il fondo, cioè, il fondo da coltivare interessanti indicazioni in merito a queste
e le condizioni esterne della coltivazione, la possibili conclusioni: è un principio gene-
capacità produttiva del fondo di esso38. rale che i tassi di interesse siano limitati, e
tale principio deve necessariamente valere
2.4. In base alla legge ricordataci da Livio, a livello internazionale per garantire il
i limiti al livello dei tassi di interessi non corretto funzionamento del mercato; le
possono essere circoscritti ad un solo paese, variazioni dei tassi di interesse poi, come
ma, in un mercato finanziario che si estende pure le variazioni connesse del valore della
oltre i confini di esso, tali limiti devono moneta non possono essere accollate
seguire l’estensione del mercato stesso, per indiscriminatamente al debitore, bensì i PVS
una esigenza di parità di trattamento e di devono accollarsi le conseguenze di quanto
non elusione della norma, che quindi o è un ha origine nella loro attività, o nel sistema a
principio di generale applicazione, come cui appartengono; il creditore invece, Paese
infatti è, o si riduce ad essere solo un vincolo industrializzato o Ente del sistema finan-
efficace per i più piccoli operatori, che non ziario internazionale, tutte le altre, e, in
operano oltre tali frontiere. Gli interessi poi primo luogo, per la questione in esame, le
non operano solo di per sé, ma incidono sul conseguenze del sopravvenuto sostanziale
costo del denaro, e in base al testo di Gaio, incremento del valore reale degli interessi
fatto proprio da Giustiniano, si deve pattuiti sui prestiti effettuati, così come
riconoscere un principio di riadeguamento quello del capitale da restituire, che, sia che
del rapporto di credito in relazione alle siano state volute dal creditore, sia che
mutate e più gravose circostanze nelle quali dipendano dal caso fortuito, non può far
l’adempimento di un debito pecuniario, non pagare al debitore41 (ciò mi sembra del tutto
meno di quello di altre cose certe e fungibili, coerente con il ruolo (e quindi anche la
deve effettuarsi, quando questa maggiore responsabilità) di guida dell’economia
onerosità dipenda da un fatto del creditore. mondiale che si vuole da taluni gruppi di
In base alla prospettiva di Servio-Ulpiano, Paesi realizzare, anche attraverso le istitu-
anch’essa fatta propria da Giustiniano, si zioni finanziarie internazionali).
deve dire che, nell’ambito del iudicium bonae
fidei relativo a cose fruttifere che una parte,
dietro compenso, pone a disposizione di
altra che, con l’attività produttiva, ne trae Note
frutto, questa parte deve accollarsi le 1
Cfr. S. Schipani, Principios, institutos y normas a
conseguenze dannose derivanti da cause tutela del deudor, in Mundo Nuevo. Revista de Estudios
endogene alla propria attività, il creditore Latinoamericanos, 42, 1988, Caracas, 328 ss.; A. F.
tutte le altre39. E non si può non sottolineare Montoro, Sotto la scure del debito estero, in Coscienza,
1988 (Roma), 4, 8 ss.; I. C. Moreira Alves, A defesa
che, già dall’inizio del processo di codi-
patrimonial do devedor do direito romano ao direito
ficazione moderna, ormai tutti i giudizi sono latino-americano, in A.A.V.V., Tendencias actuales y
di buona fede40, anche se si deve altresì perspectivas del Derecho Privado y el Sistema jur¡dico

372 Revista de Informação Legislativa


latinoamericano, Lima, 1990, 195 ss.; S. Schipani, quia quodam modo iuris civilis est, e, secondo la scuola
Principi generali del diritto e iniquità nei rapporti proculeiana, era utilizzabile solo da cittadini, mentre
obbligatori (Primo rapporto provvisorio su una ricerca solo Sabino e Cassio avrebbero ritenuto che, per
in corso sui principi, istituti e norme a tutela del contraente l’ipotesi a persona ad personam sarebbe stato
più debole e sulla necessità di applicazione di essi al debito accessibile anche agli stranieri; ma, a parte più
internazionale dei Paesi dell’America Latina), in generali dubbi sulla portata della affermazione di
Apollinaris, 65, Roma,1992, 627 ss. Gaio, su cui cfr. P. Catalano, Linee del sistema
2
M. A. Espeche Gil, Ilicitud del alza unilateral de sovrannazionale romano, I, Torino, 1965, 128 n.4, sul
los intereses de la deuda externa, XV Congreso IHLADI, punto, assai controverso, cfr. persuasivo M. Kaser,
Madrid, 1989; J.R. Vanossi, Proyecto de declaración. Zum Begriff des “commercium”, in St. Arangio-Ruiz,
Fundamentos, in Tramite Parlamentario [Argentina], 2, Napoli, 1953, 290 ss.: “der Ausdruck ist hier
10/3/1989, 210, p. 4599 ss.; F. De La Rua, Proyecto nicht technisch gebraucht”, perché se si trattasse di
de Declaración. Fundamentos, in Senado de la Nación un mutuo originariamente registrato come concesso
[Argentina], 7/11/1989; M.A. Losada, Proyecto de da un cittadino ad altro cittadino e poi novato, il
comunicación, in Senado de la Nación [Argentina], mutuante non avrebbe evitato la sanzione prevista
Diario de Asuntos entrados, VI, 162, 19/3/1991, p. dalla legge sugli interessi; si deve essere quindi
1855; F.H. Cardoso, Senado Federal-República trattato di mutuo costituito re/numeratione
Federativa del Brasil, 16/8/1991. direttamente da uno straniero a favore di un
3
Debito internazionale. Principi generali del diritto. cittadino, magari con denaro a sua volta raccolto
Corte Internazionale di Giustizia, a cura di D.J. presso cittadini, e di registrazione di nomina
Andrés-S. Schipani, Libreria Editrice Vaticana - arcaria(Gai. 3,131-132).
Libreria Editrice Lateranense, Roma, 1993, 398; 11
Il problema si riferiva probabilmente al livello,
Cuadernos do Parlatino, 2, A Dívida externa. Solicitçao usurario, degli interessi, e non alla previsione stessa
de um Ditame Consultivo … Corte Internacional de di essi, nonostante il plebiscito Genucio del 342
Justiça de Haia, Ed. do Parlamento latinoamericano (Liv. 7,42,1) che sembra li vietasse del tutto, e l’antica
- Sede Permanente, Sao Paulo, 1994, 115; Debito legge a cui fa riferimento Appiano (Bell. civ.
internazionale. Principi generali del diritto, a cura di S. 1,54,233-234) nel racconto relativo all’uccisione del
Schipani, Cedam, Padova, 1995, 388; Mundo Nuevo. pretore A. Sempronio Asellio; cfr. per tutti F. De
Revista de Estudios Latinoamericanos, 73-74, Caracas, Martino, Riforme cit., 219 ss.; Id., Storia economica di
1996, 231-390; L’usura ieri ed oggi. Atti Convegno Roma antica, 1, Firenze, 1980, 147 s.
Foggia 1995, a cura di S. Tafaro, Ed. Cacucci, Bari, 12
Che si tratti di una delibera del Senato, risulta
1997, 295; Il debito internazionale, a cura di D.A. da Liv. 35,6.
Gutierrez-S. Schipani, Pontificia Università 13
Cfr. P. Frezza, Corso di Storia del diritto romano,
Lateranense-Mursia, Roma, 1998; La deuda externa. 3 ed., Roma, 1974, 412; L. Di Lella, Il plebiscito
Dimensión jurídica y política, A. Colomer Viadel Sempronio del 193 a.C. e la repressione delle “usurae”,
coord. Madrid, 1999. in Atti Acc. Sc. Mor. e Pol., 95, Napoli, 1984, 4 dell’estr.
4
Diritto alla vita e debito estero, a cura di P. Che la denuncia pubblica dei debiti si riferisca a
Catalano, E.S.I., Napoli, 1997. quelli esistenti al momento del provvedimento del
5
Carta di Sant’Agata dei Goti. Dichiarazione su us- Senato, e che l’obbiettivo che questo così si
ura e debito internazionale, Fondazione Sant’Alfonso, proponeva fosse di pervenire all’accertamento del
Sant’Agata dei Goti, 1996. debito, per porre sotto controllo e quasi per fissare
6
La dette contre le droit. Une perspective la situazione esistente, mi pare confermato nella
méditerranéenne, sous la direction de P. Catalano- frase immediatamente successiva da cui risulta che
Abdelkader Sid Ahmed, Isprom-Publisur, Paris, appunto tali professiones hanno consentito l’-
2001. accertamento dei debiti per hanc fraudem contracti
7
Cfr. S. Schipani, Primo rapporto cit., (non mi sembra che potrebbero essere designati così
8
Cfr. G. Rotondi, Leges publicae populi Romani, i debiti che fossero stati contratti dopo il termine
Milano, 1912; A. Berger, s.v. Leges Semproniae, in fissato dal Senato e immediatamente dichiarati,
PWRE, suppl. 7, 1940, 412 s. come pur potrebbe intendersi la frase ut qui post-
9
Cfr. precedenti contributi di F. De Martino, profiterentur).
Riforme del IV secolo a.C., in BIDR, 78, 1975 (= Id., 14
Cfr. V. Mannino, L’”auctoritas patrum”, Milano,
Diritto e società nell’antica Roma, Roma, 1979, 203 1979, 59 ss.
ss.); E. Giuffré, s.v. Mutuo (Storia), in ED, 27,1977, 15
L’espressione è di G. Pugliese, Il processo civile
420 e n. 25. romano, 2, Il processo formulare, 1, Milano, 1963, 296
10
Il termine latino è tanscribere, e ciò suscita ss. e accolta da P. Catalano, Linee del sistema cit.,
problemi interpretativi se lo si riferisce al nomen 132 n.14, secondo cui “l’esclusione dei peregrini
transcripticium, a proposito del quale Gai. 3,133 ci dalla legis actiones era dovuta al fatto che per essi
informa che an obligentur peregrini, merito quaeritur, non si voleva vincolare con la lex l’imperium del

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 373


magistrato, bensì si voleva che qui ne fosse piena la sistema cit., 65 ss., che però rinvia al vol. 2 l’esame
discrezionalità, pur regolata dalla fides”. Cfr. sul del problema “della validità o meno della leges
criterio della fides richiamato, in generale G. Grosso, publicae populi Romani anche per i peregrini” (p.77
Storia del diritto romano, ed.5, Torino, 1965, 264 ss. n.24).
16 24
Cfr. F. De Martino, Storia della costituzione L’espressione viene usata a questo proposito
romana, 2, Napoli, 1964, 171 parla di “istruzioni e con riferimento esplicito a questa legge, da G.
[...] indirettamente vincolanti, perché venivano Bonfante, Storia del diritto romano, 1, 4 ed., 1934,
osservate dal magistrato stesso nell’esercizio del rist. Milano, 1958, 238.
suo potere giurisdizionale”; cfr. anche O’ Brien Che il meccanismo posto in atto sia sottoposto
Moore, s.v. Senatus, in PWRE, suppl. 6, Stuttgart, al principio dispositivo, caratteristico del processo
1935, 747; M. Talamanca, Lineamenti di storia del romano dell’epoca, e che quindi la tutela nei confronti
diritto romano, Milano, 1979, 222; G. Crifò, Attività della abusiva stipulazione di interessi usurari fosse
normativa del Senato in età repubblicana, in BIDR, 71, frammentata nei singoli processi e rimessa al
1968, 55 ss. giudizio di convenienza del debitore ed al gioco dei
17
Per la risalenza all’epoca in cui i fatti rapporti di potere/stato di necessità, non ci deve
avvenivano dell’interpretazione di essi come fraus indurre a ritenere che essa non avesse la sua forza,
patriciorum, cfr. L. Fascione, Fraus Legi. Indagini se fra cittadini tali divieti erano tanto efficaci da
sulla concezione della frode alla legge nella lotta provocare il fenomeno della fuga dei capitali/fraus
politica e nella esperienza giuridica romana, Milano, ricordata da Livio (certo, in relazione ai cittadini,
1983, 42. abbiamo anche il ricordo di multe edilizie, su cui
18
Richiama opportunamente la problematica cfr. per tutti F. De Martino, Riforme cit., 219 e n.
del rapporto ius-lex rappresentato dalle leges 139).
25
imperfectae, L. Di Lella, Il plebiscito Sempronio cit., 8 (Questa azione [de eo quod certo loco dari oportet/
ss. dell’estr. su ciò che si deve dare in un certo luogo] è rimessa
19
Cfr. P. Catalano, Linee del sistema cit., 76 n. 22 alla valutazione del giudice, perché sappiamo che i
e 71 s. V. anche P. Frezza, Corso di Storia cit., 394 ss. prezzi delle cose, e principalmente del vino dell’olio
20
P. Frezza, Corso di Storia cit., 412 puntualmente e del frumento, possono variare a seconda delle
sottolinea il rapporto fra “questo diritto comune del città e delle regioni. Sebbene, poi, il potere d’acquisto
credito” e il “mercato comune della moneta”. delle monete sia considerato unico ed invariato
21
Cfr., per il quadro del significato di tale uso ovunque, ciononostante in alcuni luoghi il danaro si
della fictio, per tutti P. Catalano, Linee del sistema trova più facilmente e a tassi d’interesse più lievi,
cit., 76 s. mentre in altri luoghi con maggiore difficoltà ed a
22
Immaginare, per analogia con quanto ora tassi d’interesse più gravosi).
menzionato in materia di damnum iniuria e di furtum 26
Cfr. O. Lenel, Das Edictum perpetuum, Leipzig,
(Gai. 4,37), il ricorso ad una fictio civitatis, si scontra 1927 (rist. Aalen, 1974, 232 ss.; F. Amarelli, Locus
con il fatto che non ve ne è alcuna traccia, e che solutionis. Contributo alla teoria del luogo dell’-
inoltre, a differenza di quelle, la fictio avrebbe la adempimento in diritto romano, Milano, 1984, 105 ss.
singolarità di essere predisposta da una legge. Ma 27
Cfr. O. Lenel, Das Edictum perpetuum, cit. (rist.
soprattutto si deve tenere conto che la situazione Aalen, 1974, 240 ss.); G. Provera, La pluris petitio nel
concretamente da risolvere era quella relativa a dei processo romano, 1, La procedura formulare, Torino,
convenuti in un processo. Appare fondato allora 1958, 117 ss.
ritenere che l’applicazione della legge dovesse 28
Cfr. G. Pugliese, con la collaborazione di F.
avvenire tramite una exceptio: cfr. L. Di Lella, Il Sitzia-L. Vacca, Istituzioni di diritto romano, 3 ed.,
plebiscito Sempronio cit., 7 ss. e 21 s., che sottolinea Torino, 1991, 306. O. Lenel, Das edictum cit., 246
altresì come però la tutela nei confronti dei cittadini propone: “Numerium Negidium Aulo Agerio
rimanesse ugualmente differente, dato il diverso decem aut si quid alterutrius interfuit eam
tipo di processo, per legis actiones, che ad essi si pecuniam Ephesi potius quam Romae solvi, tanto
applicava, e potesse probabilmente consistere in pluris minorisve condemna si non paret absolve”.
“una manus iniectio, per la condanna in quadruplum Cfr. per tutti M. Kaser, RPR, 2 ed., 1, München,
ovvero diretta al semplice recupero degli interessi 1971, 639; 2, 1975, 337; A. Burdese, Manuale di
medesimi” dopo il loro pagamento, in base alla lex diritto privato romano, 3 ed., Torino, 1987, 597; M.
Marcia di cui Gai. 4,33 (p.16 ss.) che configurava Talamanca, Istituzioni di diritto romano, Milano,
ancora un tipo reazione da lex imperfecta. La 1990, 638 s.; A. Guarino, Diritto privato romano, 9
maggiore adeguatezza del metodo della exceptio ed., Napoli, 1992, 807 n. 75.4; M. Marrone,
avrebbe fatto sì che esso sia stato poi utilizzato Istituzioni di diritto romano, 2 ed., 1994, 543 s.
29
nelle liti fra cittadini (p. 21 s.). Sull’articolazione del mondo impresariale e
23
Sugli hostes come soggetti dello ius, salvo sfere finanziario, cfr. A. Di Porto, Impresa collettiva e
da cui fossero esclusi, cfr. P. Catalano, Linee del schiavo ‘manager’ in Roma antica (II sec. a.C. - II

374 Revista de Informação Legislativa


sec. d.C.), Milano, 1984; Id., Filius, servus e libertus, abbiano portato via qualche cosa per prepotenza.
strumenti dell’imprenditore romano, in Im- Ma se il fondo sia stato così rovinato dal terremoto
prenditorialità e diritto nell’esperienza storica. Erice, da non esserci più come tale, il danno è del
22-25 novembre 1988, Palermo, 1992, 231 ss.; A. proprietario: egli infatti è tenuto a garantire il fondo
Petrucci, Mensam exercere. Studi sull’impresa al conduttore, perché possa essere fruito).
35
finanziaria romana (II secolo a.C. - metà del III R. Cardilli, L’obbligazione cit., 233 ss.
36
secolo d.C.), Napoli, 1991. Si noti che non si pone qui il problema della
30
G. Melillo, Economia e giurisprudenza a remissione della mercede di cui si tratta poi in altri
Roma, 1978, 65. testi: D. 19,2,15,3-5; C. 4,65,8; 4,65,19.
31 37
Ulpianus l. vigensimo nono ad Sabinum: Cfr. F. Wieacker, Textstufen klassischer Juristen,
Contractus quidam dolum malum dumtaxat recipiunt, Göttingen, 1960, 256.
38
quidam et dolum et culpam. …animalium vero casus Questa frase, corrispondente a quanto
mortesque, quae sine culpa accidunt, fugae servorum qui affermato in generale in D. 19,2,15pr.-1, è presente
custodiri non solent, rapinae, tumultus, incendia, alla conclusione delll’intera riflessione.
39
aquarum magnitudines, impetus praedonum a nullo A livello di storia delle idee, dobbiamo al
praestantur (Certi contratti ammettono solamente il Turgot (1727-1781), sulla stessa linea del gius-
dolo, certi il dolo e la colpa… Da parte di nessuno si naturalismo laico (Grozio, Pufendorf, Christian
garantisce per i casi degli animali, le morti che Wolff), la penetrazione nel diritto civile della nuova
accadono senza colpa, la fuga dei servi che non concezione che porta a considerare il prestito ad
erano solitamente da sorvegliare, le rapine, i tumulti, interessi «un commercio … nel quale chi presta
gli incendi, le inondazioni, le aggressioni dei vende l’uso del suo danaro e chi prende a prestito lo
predoni). Con riferimento a quanto detto, si noti il acquista; esattamente come il proprietario di un
richiamo, come ipotesi di casus che escludono il terreno e il suo fittavolo vendono e acquistano
garantire/rispondere, oltre che al terremoto, alla vis rispettivamente l’uso del fondo affittato». Da
venti, al naufragio, che sono esempi tipici di vis questa concezione dipende la formulazione dell’art.
maior, anche agli altri indicati accadimenti che non 584 Code civil francese, che considera frutti civili
sono ipotesi di vis maior, e che finiscono per definirsi anche i redditi finanziari (su questi problemi e sul
per l’assenza di colpa. rapporto tra nozione giuridica di ‘frutto’ e reddito
32
Cfr. S. Tafaro, ‘Regula’ e ‘ius antiquum’ in D. del capitale cfr. R.Cardilli, Dalla regola romana
50,17,23. Ricerche sulla responsabilità contrattuale, Bari, dell’usura pecuniae in fructu non est agli interessi
1984; R. Cardilli, L’obbligazione di ‘praestare’ e la pecuniari come frutti civili nei moderni codici civili, in
responsabilità contrattuale in diritto romano (II sec. a.C.- Roma e America. Diritto romano comune 5, 1998, 3 ss.,
II sec. d.C.), Milano, 1995, 415 ss. in particolare pp.45 ss.; Id., La nozione giuridica di
33
Cfr. la vicenda moderna della categoria della fructus, Napoli, 2000; sul dibattito sulla natura del
‘impossibilità della prestazione’, le sue difficoltà e denaro in tale momento storico, cfr. anche U.
il suo riassorbimento ad opera della regola in esame: Petronio, Il denaro è una merce. Il prestito a interesse tra
R. Cardilli, Il ruolo della dottrina nella elaborazione del fisiocrazia e codificazione, in Riv. del Dir. comm. e del
sistema: l’esempio della responsabilità contrattuale, in dir. gen. delle obbl., 1-4, 2001, 55 ss.).
Roma e America. Diritto romano comune, 1,1996, 79 ss. 40
Cfr. ad es. J.G. Heineccius, Elementa cit., IV,
34
(Se sia intervenuta la violenza di una tempesta 6, par.1196: Usu fori hodierno discrimen inter actiones
rovinosa, vediamo se il locatore debba garantire bonae fidei et stricti juris plerisque locis cessat; e poi
qualcosa al colono. Servio afferma che il proprietario Codice Civile di Napoleone il Grande col confronto delle
deve star garante nei confronti del colono per ogni leggi romane Ad uso delle Università e dei Licei del Regno
violenza a cui non si può resistere, come quella dei d’Italia, 2, Milano, 1811, art. 1134-1135 p. 826 s.,
fiumi, delle cornacchie, degli storni, e se sia accaduto ove leggiamo «il principio per cui era già da lungo
qualche cosa di simile, o se i nemici compiono una tempo presso di noi tolta una tale distinzione [fra
incursione: se invece i vizi scaturiscano dalla cosa contratti di buona fede e contratti di stretto diritto],
stessa, questi sono a carico del colono, come se il e tutti i contratti s’interpretavano ex bono et aequo,
vino sia inacidito, o se il raccolto sia rovinato dai ed obbligavano anche a ciò che in essi non era stato
vermi o da erba infestante. Ma se una frana abbia espresso, quando così esigevano l’equità, la
asportato tutto il raccolto, il danno non è del colono, consuetudine o il costume» (v. anche p. 804). Nel
affinché, oltre al danno per le sementi perdute, non CcCh./1856 (vigente; codice di Andrés Bello che,
sia tenuto anche al pagamento del canone. Ma se la con piccole variazioni é stato recepito ed é in vigore
malattia abbia rovinato le olive o sia vi sia stato un anche in Ecuador/1861 e Colombia/1858-1887),
inconsueto calore del sole, il danno sarà del troviamo un notevole contributo in rapporto alla
proprietario; se invece non sia intervenuto alcunché determinazione degli effetti del contratto, perché
diverso dal consueto, il danno sarà del colono, e lo all’art. 1546 precisa: «Los contratos deben
stesso si dovrà dire se delle truppe di passaggio executarse de buena fe, y por consiguiente obligan

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 375


no sólo a lo que en ellos se expresa sino a todas las della condictio de eo quod certo loco, pone in luce come,
cosas que emanan precisamente de la naturaleza venuta meno la distinzione fra i giudizi di buona
de la obligación, o que por la ley o la costumbre fede e stricti iuris, non sia più rilevante l’uso di tale
pertenecen a ella»; L. Claro Solar, Explicaciones de condictio, ma continuino ad esserlo i «principii che il
Derecho Civil Chileno y Comparado, vol. 11, Santiago, diritto romano prescrive al giudice nel fissare
1936, 495 ss. commenta: «No cabe duda de que la l’interesse per il luogo di pagamento».
extención que deba darse a los contratos es una Da ultimo, sul principio di buona fede, A.
obligada consecuencia de la buena fe con que deben Martins-Costa, A Boa-Fé no direito Privado, Sao
ejecutarse [...] La expresión ‘de buena fe’ está Paulo, 1999 (su cui rec. di Cardilli, in Roma e America,
tomada de la antigua distinción romana entre los 8, 1999, 287 ss.); R. Zimmermann-S. Whittaker, Good
contratos bonae fidei y los contratos stricti juris». In Faith in Eurpean Contract Law, Cambridge, 2000.
conseguenza di questo superamento, già Ch.F. 41
È interessante rilevare che i Principi di Unidroit,
Glück, Ausführliche Erläuterung der Pandekten, nel definire l’hardship, a cui riconoscono una
Erlangen,1790-, trad. it. Commentario alle Pandette, rilevanza per taluni profili diversa, indicano fra i
Libro XIII, Milano, 1906, con note, al titolo 4, di G. requisiti all’art. 6.2.2. c) « the events are beyond the
Pacchioni, par. 848, a proposito dell’«uso odierno» control of disadvantaged party».

376 Revista de Informação Legislativa


Para uma arqueologia constitucional

Stéphane Monclaire

Certaines rencontres peuvent s’avérer


déterminantes dans la conduite d’une carrière
scientifique, dans la mesure où elles contribuent
à décider de l’objet sur lequel le chercheur
travaillera des années durant. Mon parcours de
brasilianiste doit ainsi beaucoup à Anna Maria
Villela, aux propos qu’elle me tint, en août 1988,
lors de notre première rencontre. J’étais alors
jeune enseignant chercheur au Département de
science politique de la Sorbonne (Université de
Paris 1) et venais de publier mon premier article
scientifique sur le Brésil, consacré à la rédaction
de la nouvelle constitution. De passage à Brasília
pour réunir de la documentation sur ce sujet
d’actualité et y réaliser quelques interviews de
constituants, plusieurs hauts fonctionnaires du
Congrès me conseillèrent d’aller à l’Annexe I du
Sénat, discuter avec la directrice de la Revista de
Informação Legilsativa. Anna Maria Villela me
reçut de suite, car j’appris plus tard qu’elle
essayait toujours de se rendre disponible afin de
pouvoir conseiller au plus vite et au mieux ses
visiteurs. Ce n’était pas la seule de ses qualités.
S’exprimant dans un français parfait, sachant
écouter et, plus encore, suggérer de nombreuses
pistes de réflexions, elle m’expliqua aussi
finement que pédagogiquement certaines dimen-
sions du processus constituant en cours. Ses
analyses me convainquirent un peu plus de la
nécessité de poursuivre mes recherches sur les
travaux de l’Assemblée Nationale Constituante.
Depuis, ceux-ci n’ont cessé de me passionner et
d’occuper la majeure partie de mon temps de
chercheur.
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 377
Le texte qui suit est inédit. Rédigé en 1995, déclarera définitivement clos les travaux de
c’est un extrait de l’introduction d’un long l’ANC et mettra ainsi un terme définitif
ouvrage (6 volumes) en grande partie achevé et au processus constituant engagé des
portant sur les travaux de la Constituante. Cet années plus tôt. Ce faisant, il officialisera
extrait peut être lu comme un plaidoyer (d’où l’ouverture d’une ère nouvelle: celle des
son titre) en faveur de l’étude du processus usages du texte promulgué.
constituant pour mieux comprendre les signi- Pour célébrer ce passage et souligner —
fications de la chartre de 1988. J’aurais aimé le tout en la fabriquant— l’importance de
soumettre à Anna Maria Villela. Elle nous a l’événement, la plupart des personnalités
malheureusement quittés trop tôt. ayant pesé sur l’écriture de la constitution
assistent à cette cérémonie de promulgation.
Plaisir de vivre l’Histoire ou auto- Leur présence physique fait plus qu’illustrer
célébration ? Attitude protocolaire ou ferveur l’étroit rapport unissant la charte à ses
partisane ? Comme tout hommage rendu à auteurs, elle le rend immédiatement per-
un texte par ses auteurs, la cérémonie de ceptible. Mais ce lien —si évident lors des
promulgation de la huitième constitution débats de l’ANC— est en passe de s’éva-
brésilienne est nécessairement ambiguë. Les nouir. Car au tumulte permanent qu’occa-
éloges proférés oscillent entre évaluation sionnait et qui accompagnait le déroulement
sincère et appréciation intéressée. À la du processus constituant (compris, provisoi-
tribune, Ulysses Guimarães (1988, p. 14377), rement, comme ensemble de séquences
le président de l’Assemblée Nationale enchaînées ayant conduit à la promulgation
Constituante (ANC), s’enflamme: «Parlant d’une nouvelle constitution), va succéder le
avec émotion à mes compagnons, aux camouflage que la fin de ce processus impose
autorités, aux chefs du pouvoir législatif, et implique. Tout se passe en effet comme si
aux femmes et aux hommes ici présents, la charte, une fois promulguée, recouvrait et
et parlant surtout au Brésil, je déclare dissimulait les éléments ayant contribué à
promulgué le document de la liberté, de la son écriture et à son avènement. Norme en
dignité, de la démocratie, de la justice sociale quelque sorte parricide, la constitution tend
au Brésil». Dans les travées et les galeries à faire s’évanouir par un prodigieux coup
de l’hémicycle, ces propos avantageux de force symbolique les rapports de force et
déclenchent autant de vifs applaudissements les croyances qui lui ont donné naissance.
que de sourires amusés. Car en cette après- Pourtant, bien que la force de sa forme tende
midi du 5 octobre 1988, les 559 constituants à nous les faire oublier (puisque l’énoncé
et leurs invités ne sont pas dupes: ils se constitutionnel ne renvoie pas explicitement
savent en désaccord sur les mérites à ses auteurs1 ou aux affinités existantes
éventuels de la nouvelle charte, tant celle-ci, entre les prescriptions du texte et les groupes
fruit de renoncements et de concessions sociaux qui étaient les plus immédiatement
forcées, ne peut satisfaire pleinement leurs intéressés par ces prescriptions), la nouvelle
intérêts contradictoires. Cependant, et tous charte brésilienne n’est évidemment pas ce
en conviennent, discuter de ce que la lapin blanc, sorti soudainement du chapeau
constitution aurait dû ou non contenir n’est d’un quelconque magicien sous l’effet
plus de mise. L’heure ne peut plus être à miraculeux de sa baguette magique. Elle
l’écriture de la charte. «Qu’elle nous plaise n’est pas née, comme se plaisent souvent à
ou non, nous devons faire avec» constate un le dire les juristes, de la volonté du constituant
des nombreux constituants conservateurs , sorte d’auteur collectif sublimé —né d’un
inquiets des dispositifs du Titre VII consacré réflexe d’anthropomorphisme— doué par
à l’ordre économique et financier. Du reste, avance de lucidité et de qualités excepti-
dans quelques instants Ulysses Guimarães onnelles lui permettant de ne poursuivre

378 Revista de Informação Legislativa


que des objectifs clairs, complémentaires, édités en rafale dès la fin 19882. Il n’a pas à
cohérents, et de faire advenir ce qu’il imiter ces stakanovistes du verbe qui
ambitionne puisque cet acteur réifié est prétendent, dans un style souvent ampoulé,
présenté d’abord comme le seul protagoniste délivrer «la signification intrinsèque» des
d’un processus dès lors caricaturé, puis 245 articles et 69 dispositions transitoires
comme jouissant à ce titre de la maîtrise du de la charte, mais qui n’offrent en réalité
déroulement et de l’issue de ce processus. qu’une interprétation déguisée et contin-
S’en remettre à une telle version, serait croire gente. Comment le politologue pourrait-il
(et faire croire) à l’absence du politique, croire longtemps à ce mirage ? Car cette
serait s’en remettre à une vision éthérée de illusion est d’abord redevable de l’emploi
la production du droit et perdre une des clefs récurrent, par ces auteurs, d’un vocabulaire
des dispositifs constitutionnels. technique et spécialisé laissant présumer de
Etudier et analyser le processus ayant la profondeur et de la scientificité de leurs
abouti à la constitution actuellement en discours. Elle résulte aussi des emprunts
vigueur (même si elle a été plusieurs fois incessants à un corps de doctrine, donné
amendée depuis sa promulgation) présente comme gage de véracité et d’objectivité
plusieurs intérêts, notamment celui de puisque naturalisé par ces auteurs; ceux-ci
notamment de mieux comprendre son prenant soin de taire ou sous-estimant ce
contenu. Dit autrement, faire l’archéologie que la divergence de la doctrine doit à leurs
du texte constitutionnel aide au moins à rivalités professionnelles3 ou à des gages de
comprendre les raisons de l’existence du loyauté envers les puissants du jour. Dans
texte, de chacun de ses articles, de leur ces conditions, pourquoi le politologue
ordre, du choix des mots qui les composent. devrait-il accorder à ces opérateurs masqués
Ces informations seront utiles aux juristes. et inavoués de «constructions d’une science
Certes traditionnellement, au Brésil comme [le droit] objectiviste (ce qui ne veut pas dire
ailleurs, les interprètes de la constitution objective) le satisfecit qu’ils s’octroient trop
(magistrats, professeurs et autres hermé- vite et à trop bon compte»(BOUDIEU, 1972,
neutes moins professionnalisés) ne puisent p. 202)? Certes parfois, et même souvent, ces
guère le sens des articles dont ils tentent de Commentaires n’en sont plus, puisque leurs
dire ou de préciser la signification dans les auteurs sombrent dans la paraphrase. Mais
conditions et circonstances leur ayant donné en ce cas, l’illusion s’estompe à peine, car
naissance. Mais d’une part, cette tradition cette propension à gloser est d’autant
est moins justifiable que ces interprètes le moins perçue qu’elle s’avère a priori
croient ou feignent d’y croire. D’autre part insoupçonnable chez des auteurs bardés de
et puisque cette tradition risque encore de titres académiques et bénéficiant du capital
perdurer longtemps, les données ressortant d’autorité préalablement acquis par le droit.
de cette entreprise d’archéologie pourront Bref, pourquoi le politologue participerait-
servir à défendre certaines interprétations il à une bataille d’herméneutes alors que
et à en contester d’autres. l’homme est, selon l’expression de Max
Au soir de sa promulgation, donc le 5 Weber, un «animal suspendu dans les toiles
octobre 1988, la charte brésilienne n’est de signification qu’il a lui-même tissées», et
compréhensible qu’au regard des événe- que ses écrits ne peuvent, du coup, être
ments qui ont fait d’elle ce qu’elle est et sans analysés en dehors de lui (et cela, même si
lesquels elle ne serait pas. Le politologue n’a les textes juridiques, institutionnalisation
pas à accompagner les juristes dans leurs aidant, tendent à lui échapper) ? Pourquoi,
Commentaires à la Constitution , œuvre face à un énoncé constitutionnel, sacrifierait-
contemplative, promptement rédigée et il le contexte au nom du texte puisque l’un
composée de plusieurs et épais volumes et l’autre sont inséparables4 ?

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 379


L’argumentation des partisans du droit pas dans ce que le texte stipule, mais dans
positif est connue. Au soir d’un colloque le processus grâce auquel ce qui est stipulé
consacré à la nouvelle charte brésilienne et a pu l’être», je ne rejette pas cet énoncé. Je le
organisé un an jour pour jour après son pose comme terme d’un processus dont les
entrée en vigueur, Caio Tacito jugeait que interactions étaient engagées par des
l’étude du processus constituant n’était pas personnes notamment soucieuses de fixer à
une tache prioritaire. «Si l’activité politique leur avantage les dispositifs de la future
relève de la règle juridique, alors nous constitution. Et c’est par ce biais que je le
devons étudier le contenu de la règle. Certes saisis. C’est par ce qui l’a engendré et l’éclaire
aucun des articles composant notre charte que je l’analyse, tout en sachant —bien
n’en aurait fait partie si une majorité de entendu— que cet énoncé (qui aujourd’hui
constituants ne l’avait point voulu. Mais là et demain, transformé et sanctifié par les
n’est pas l’essentiel. Car les hommes interprétations de ses divers commen-
politiques ou les citoyens, pour savoir ce tateurs, continue et continuera à être
qu’ils peuvent faire, se moquent des inten- constitué par ses usages) peut être abordé
tions qu’avaient les constituants ou les d’une autre manière. Car si le contenu de la
législateurs. Ils regardent simplement la constitution appartient bien au processus
constitution ou la loi en vigueur. Si un article constituant, il participe aussi de compé-
leur semble obscur, ils ne consultent pas les titions qui lui sont postérieures; et cette
historiens, mais les juristes. Et que dit le double qualité autorise deux moyens
juriste ? Que fait le juge constitutionnel d’approche: il peut être saisi par ce qui le
lorsqu’il dégage le sens d’un article ? Il ne précède ou par les jeux ultérieurs qui
s’enquière pas des volontés plus ou moins contribuent à le définir. Mais en aucun cas,
nettes et contradictoires de ses rédacteurs. Il la voie et la méthode recommandées par Caio
ne se réfère pas à l’intention originelle, mais Tacito ne doivent être suivies, puisqu’elles
à la logique interne de la charte»5. «C’est de supposent que tout le texte constitutionnel
la constitution, pensée comme système de dispose a priori d’un sens, d’un sens
normes cohérent, que le juge déduit le sens permanent et «véritable» qu’il incombe à
des articles qui paraissent obscurs» con- l’interprète de mettre à jour8. Certes, les
firme le publiciste Manoel Gonçalves acharnés du suivi de l’actualité consti-
Ferreira Filho6. D’où la conclusion de Carlos tutionnelle, ceux qui s’empressent de la
Mário da Silva Velloso, un des plus hauts commenter ne cessent de se référer à ce sens
magistrats brésiliens d’alors: «Que la merveilleux et de s’y cramponner lorsqu’ils
signification d’un énoncé constitutionnel s’escriment, par exemple, à mesurer ce qu’ils
soit immédiate ou fixée par des juges, c’est nomment «l’écart entre le texte et sa pra-
toujours l’énoncé en lui-même qui prévaut; tique» ou, pire, la distance entre le texte et
jamais ce qu’ont pu en penser ses rédac- «son esprit» (notion écran, version fumigène
teurs. En cela, une fois promulgué et devenu —quoique plus ontologique— de la «volon-
charte, le texte voté par l’ANC échappe à té du constituant» et en même temps
ses auteurs et s’émancipe de ses déter- prosternation définitive devant l’énoncé
minismes. Par conséquent, l’étude du juridique). Bien sûr, la nouvelle charte
processus constituant doit laisser place à brésilienne (et c’est un euphémisme pour
celle de la constitution»7. nombre de spécialistes brésiliens) paraît
Ce qui me sépare de tels propos, c’est le inégalement «appliquée». Mais est-on sûr
sort réservé à l’énoncé constitutionnel, la que l’énoncé constitutionnel soit univoque
façon dont il est considéré. Quand j’affirme ? Car si les usages sont aisément repérables,
que l’intérêt principal de la huitième ce à quoi on nous invite à les ramener est
constitution brésilienne réside d’abord , non plutôt diffus et, en aucun cas, exclusivement

380 Revista de Informação Legislativa


contenu dans la charte. En réalité, c’est pas uniquement pour ces motifs. Ma préfé-
moins à l’énoncé constitutionnel qu’aux rence pour l’étude de ce processus était aussi
propos de ses commentateurs qu’il convient pragmatique. En effet, à cette époque il était
de confronter les pratiques constitutionne- encore impossible de discerner avec clair-
lles. Car, bien qu’il y ait «un déjà là des voyance les usages qui commençaient à
paroles écrites ou proférées par le législateur, former et reformer cette constitution; elle était
il n’y a pas de déjà là de leur sens qui se promulguée depuis quelques mois, et il
trouverait en quelques sorte «déposé» en tant m’aurait alors fallu découvrir, au fil de leur
que tel en elles sous une forme déjà cons- énonciation et de leur diffusion, les discours
tituée et qu’on n’aurait plus qu’à cueillir» concurrents —parfois dissonants— tenus
(AMSELER, 1991, p. 1203). Le positivisme sur les prétendus «dit» ou «non-dit» du
juridique triomphant a longtemps laissé cela texte, puis commenter ces commentaires et
inaperçu: «il n’y a jamais de déjà là du sens mesurer leur influence au risque de sombrer
indépendamment du sujet qui le construit» dans la glose10 ou de voir mes hypothèses
(AMSELER), car le sens d’un texte n’est pas sans cesse remises en cause par la venue de
enfoui sous ses mots mais surgit des nouveaux faits. Par contre, à cette date le
catégories de pensée légitimes et partagées processus constituant était achevé; son
par un corps d’interprètes eux-mêmes observation immédiate laissait entrevoir des
autorisés: «il n’est pas derrière le texte, mais caractéristiques prometteuses et suggérait
devant lui» (RICOEUR apud, VAN DE déjà nombre de questions. Aussi, de ces deux
KERCHOVE, 1986, p. 240). De fait, «la parole approches, j’ai retenu la première.
d’ordre, dont le Texte (constitutionnel) n’est Bien qu’il faille penser la constitution à
en soit qu’un support muet, ne saurait suffire partir du processus constituant, celle-ci
à créer ce qu’elle énonce; encore faut-il n’est pas le reflet direct de ses auteurs. Elle
qu’elle soit reconnue comme telle, parole n’est pas la pure expression des rapports
d’autorité autorisée. C’est alors seulement de force animant et reliant ses rédacteurs
que le texte vient à la réalité (c’est-à-dire fait officiels ou officieux. Car les marxistes, en
autorité ) par le biais des interprètes autorisés partant de «l’influence déterminante des
qui révèlent ce qui n’est alors qu’un texte rapports de production sur le droit»
caché, et par là l’instituent. Et dans la (MARX; ENGELS, 1968, p. 399), et en
mesure où leur est reconnu le droit de parler engageant de la sorte l’étude à laquelle
au nom de ce Texte, de le relever, de dire «ce nombre de juristes se refusent, conduisent
qu’il dit», ils révèlent par là même les une analyse où gît une autre possibilité
fondements de l’ordre, confondus dans et d’erreur. Certes, leur démarche permet de
avec le Texte, l’endossent à leur propre souligner les fonctions de «l’idéologie
compte, habillent leurs discours de la force juridique»11: celle-ci, «par une compré-
de ce qui alors est et qui dit «ce qui est»: le hension originale du monde, l’organise
droit» (FRANÇOIS, 1988, p. 5-6). Bref, ce matériellement en permettant la production
n’est qu’à travers l’étude du processus ayant d’un corps de règles fondé sur des prémisses
fait d’elle ce qu’elle est au jour de son entrée nouvelles» (MICHEL, 1978, p. 6). Mais en
en vigueur, ou/et en se consacrant aux posant que «le droit peut être conçu comme
usages postérieurs à la promulgation qui un rapport social dans le même sens que
font les normes juridiques ou les institutions Marx a appelé le Capital un rapport social»
qu’elles énoncent9, que le politologue peut (PARSUKANIS, c1924, 1970, p. 164), ils
saisir la charte brésilienne. cantonnent le droit à des proportions
Toutefois, si je décidais fin 1988 d’enta- modestes. Autrement dit, en faisant du
mer une étude approfondie du processus rapport juridique un doublet de la structure
constituant qui venait de s’achever, ce n’est économique des transactions marchandes,

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 381


en s’interdisant d’appréhender dans sa lières ayant autorisé pareille charte que je
spécificité l’univers social propre dans me suis attaché. J’ai tenté de prouver qu’en
lequel le droit se produit et s’exerce, les amont de sa promulgation s’échelonnent de
marxistes s’arrêtent aux fonctions de cette multiples phases, s’entrelacent d’amples
idéologie et gomment la spécificité de l’ordre mobilisations et transactions, diverses luttes
juridique en tant qu’ordre normatif. De la d’influence et de pouvoir sous-tendues par
sorte, ils tombent souvent dans les travers d’inégaux antagonismes d’intérêts, de
d’un volontarisme excessif et appauvrissent positions, de dispositions et convictions. J’ai
la réalité qu’ils tentent de saisir. De fait, bien essayé de repérer ces imbrications succes-
que l’analyse marxiste tente de montrer à sives, d’en débrouiller puis d’en étudier les
quel point, dans l’ANC, des clivages ont composantes, les causes et les conséquences
empêché tel accord et dans quelle mesure afin de mieux comprendre le «pourquoi» et
des accords ont modifié tel clivage, bien le «comment» de cette charte, de dégager les
qu’elle veuille souligner que des luttes éléments constitutifs de la constitution, bref
internes ou des rivalités entre les groupes de saisir le processus constituant. Car la
sociaux et les acteurs pesant sur l’ANC nouvelle charte brésilienne résulte d’un
s’altéraient au fil de l’écriture de la charte, processus dynamique complexe, percep-
elle décrit peu ou mal —puisqu’elle n’en tible à travers des mécanismes d’inclusion
saisit pas toutes les raisons— les effets ou d’exclusion de certains groupes, par
imbriqués et transformateurs des rapports l’afflux de définitions intéressées du réel, par
mouvants entre propriétés des producteurs l’utilisation de divers registres de justi-
de la charte et propriétés de la situation; fication ou de légitimation, par un travail
effets qui pèsent sur l’écriture de la de formalisation dont la codification ne fut
constitution. Autrement dit, parce que qu’un élément, par l’institutionnalisation de
l’analyse marxiste omet de se demander — ressources et de rapports à autrui, par
tant le droit relève pour elle de l’«appareil»— l’emploi de capitaux symboliques aptes à
comment les représentations que les fonder des pratiques profitables et des
hommes se font de la signification et de la positions sources de distinction. C’est en
validité du droit qu’ils écrivent (ou qu’ils cela que ce processus fut constituant.
voient rédiger par d’autres) orientent les
travaux de l’ANC, elle mesure mal combien
et comment, au gré de la dispute des enjeux12,
Notes
les nouvelles lignes de fracture ou les
1
nouvelles alliances affectaient à leur tour la Certes l’édition et les rééditions de la constitution
situation; elle perçoit peu que la forme même de 1988 opérées sur les presses du Congrès
comportent, à la fin du texte, la liste des constituants.
sous laquelle ces luttes et ces rivalités étaient Mais cette liste est incomplète. Manquent 3 noms.
tranchées affectait en permanence ce va-et- Car c’est en réalité 593 constituants (suppléants
vient continuel13. inclus) qui ont siégé dans l’ANC.
2
Ni créature éthérée, ni simple ombre Très vite trônèrent ainsi dans les vitrines des
portée, la constitution brésilienne résulte librairies spécialisées les Commentaires de Jose
Cretella Júnior (Forense, Rio de janeiro), Manoel
donc d’un jeu touffu aux règles souvent Gonçalves Ferreira Filho (Saraiva, São Paulo),
subtiles (peu à définies) et aux retour- rejoints plus tard par ceux de Vicente Carlos Lúcio
nements fréquents. Jeu, pour l’essentiel, (Jalovi, São Paulo).
3
propre au processus constituant et dont «Le discours des juristes sur le droit est, par
aucun des très nombreux protagonistes ne définition hagiographique parce qu’il laisse de côté
l’essentiel: tout ce que la production de droit doit
maîtrisait à lui seul la tenue et la finalité. aux stratégies des producteurs pour maintenir ou
Aussi, est-ce à la découverte et à l’analyse améliorer leurs positions dans le champ du
des conditions et des circonstances particu- pouvoir». DEZALAY, Yves. Marchands de droit.

382 Revista de Informação Legislativa


Paris: Fayard, 1992. p. 15-16. Toutefois le silence Saraiva, 1972. v. 1, p. vi). Cette méthode
de la plupart des juristes quant à leurs propres d’interprétation juiridique est, au Brésil comme
stratégies relève bien moins d’un conspiration ailleurs, devenue la plus courante (Cf. CUETO-
collective que de l’intériorisation de certaines façons RUA, «Rapport général», in Travaux de l’Asso-
de penser et de façons de faire valorisées et ciation H. Capitant. L’interprétation par le Juge des
valorisantes. De sorte que des pages entières de Règles Écrites. [S. l.]: Economica, 1980. t. 29. p. 9-10.
7
doctrine sont des discours trompeurs ou/et de Entretien du 07/10/1989.
8
«trompeurs trompés, ignorant et la vérité objective José Afredo de Oliveira Baracho, professeur
de leur maîtrise pratique comme ignorance de sa de droit à l’Université Fédérale de Minas Gerais,
propre vérité et le véritable principe de la présice les modalités de cette mission de mise à
connaissance qu’elle enferme» (BOURDIEU, 1972, jour: «Pour que nous puissions percer le véritable
p. 202). Il est vrai, à la décharge de ces juristes, que sens des dispositions d’une charte, l’interprétation
la manière dont, durant des générations, le droit constitutionnelle exige, en plus de de connaissances
leur a été appris, les a rarement invité à entreprendre techniques élevées, de la sensibilité juridique,
un retour réflexif sur leur pratique, donc à voir et à politique et social». BARACHO, José Afredo de
dire comment et jusqu’où leur vision du droit est Oliveira. Hermenêutica constitucional. Revista de
commandée par leur rapport au droit. Informação Legislativa, Brasília, v. 14, n. 53, p. 113-
4
Faut-il rappeler que le mot «contexte» provient 144, 1977. p. 143; on notera l’adjectif «véritable».
9
du latin «contexere», soit au sens propre «tisser L’évidence de ce phénomène et la nécessité de
ensemble ». Omettre ce que gage et engage l’écriture cette seconde approche pour saisir les institutions,
du droit, reviendrait finalement à poser que la sont largement affirmées et illustrées dans l’ouvrage
nouvelle constitution brésilienne (comme d’autres collectif dirigé par: LAGROYE, Jacques; LACROIX,
chartes) ne mérite pas en soi plus d’attention qu’un Bernard (Ed.). Le Président de la République. Paris:
quelconque règlement affiché sur les quais du métro PFNSP, 1992. 402 p.
10
de São Paulo (ou d’ailleurs). De fait, en refusant Périlleuse propension que Montaigne avait
d’étudier les circonstances et les conditions concrètes déjà souligné et brocardé: «Il y a plus affaire à
de l’élaboration de cette charte ou en délaissant, interpréter les interprétations qu’à interpréter les
par exemple, l’analyse des représentations et des choses, et plus de livres sur les livres que sur autre
révérences intéressées qui fondent son autorité, on sujet: nous ne faisons que nous entregloser». (in Essais,
ne pourrait pas montrer combien l’ordre juridique III-XIII). À titre d’exemple, les passages de la nouvelle
nouveau a altéré et entériné (de par un travail de charte brésilienne relatifs au «mandat d’injonction»
codification) une normalité sociale pré-existante. De ont donné lieu à une foison d’interprétations.
11
même, ne pourrait pas être souligné combien «Le droit, chez Marx, est une représentation
l’écriture même de cet ordre juridique a tendu à idéelle du réel, dont il procède, une idéologie. Il n’a
façonner de manière spectaculaire le social. Bref, donc aucun sens sans la base matérielle à laquelle il
cela amènerait à gommer la réalité, à escamoter les s’applique» ZENATI, Frederic. Le droit et l’écono-
faits et l’effet du processus constituant. Et, du même mie au-delà de Marx. Archives de Philosophie du
coup, cela conduirait à préférer l’étude de cette charte Droit, Paris, n. 37, 1992. (p. 123). Pour Norbert
à celle d’autres énoncés normatifs à vocation Lechner (1977, p. 160), «le droit remplit une fonction
performative (du type règlement de métro) que sous de «ciment idéologique» substitutif, en partie, d’une
le double prétexte illusoire d’une vénération envers structure sociale et économique organique».
sa place au sommet de la hiérarchie des normes, et LECHNER, Norbert. La crisis del Estado en América
de la subséquente surdétermination des usages ou Latina. Caracas: el Cid Ed., 1977. À noter que c’est
des contraintes multiples que sa promulgation ne notamment à travers les pages de cet auteur chilien,
manquerait pas, soit-disant, de provoquer. Or, sur que les idées de Gramsci ont pénétré puis influencé
ce dernier point, à moins de se focaliser sur le seul le milieu des juristes brésiliens désireux d’entamer
champ politique, il est évident que la nouvelle une sociologie du droit rompant avec la vision
constitution brésilienne n’a jusqu’ici contraint dominante jusqu’alors proposée. Ainsi, José
directement que peu d’acteurs, alors que des millions Eduardo Faria (depuis directeur du Département
de passagers sont quotidiennement contraints par de philosophie et de théorie général du droit à l’USP,
les règlements des sociétés de transport! et dont les idées ont maintenant fait école) en a été
5
Entretien du 07/10/1989. un lecteur attentif (Cf. l’introduction de son premier
6
Entretien du 06/10/1989. Quelques années ouvrage. Retórica Política e Ideologia Democrática: a
auparavant, cet universitaire de renom écrivait déjà legitimação do discurso jurídico liberal. Rio de Janeiro:
«toute constitution traduit un système, de telle Graal, 1983. p. 19).
12
manière que chacun de ses dispositifs ne gagne sa Triple dispute: celle autour de l’objectivation
pleine signification qu’au regard de ce tout» (in des enjeux, c’est-à-dire des gains (mais aussi des
Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: pertes) pouvant revenir (être supportées) aux (par

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 383


les) protagonistes durant ou au terme des travaux AMSELEK, Paul. La teneur indécise du droit. Revue de
de l’ANC; donc celle, concomitante, pour la Droit Public, v. CV, n. 5, p. 1203, 1991.
définition de la valeur de ces gains et pertes
VAN DE KERCHOVE, Michel. La théorie des actes de
possibles; puis celle engagée pour empocher ces
langage et la théorie de l’interprétation juridique. In:
gains et éviter ces pertes (voir infra).
13 AMSELEK, Paul (Dir.). Théorie des Actes de Langage,
À preuve, le cadre dans lequel Benedicto de
Ethique et Droit. Paris: PUF, 1986.
Campos (p. 9)inscrit la nouvelle charte brésilienne:
«Les constitutions sont des produits historiques et FRANÇOIS, Bastien. Le Président, pontife consti-
sociaux; elles traduisent, dans leurs articles, la tutionnel. In: CONGRÈS NATIONAL DE L’AFSP, 3.,
corrélation de forces sociales existantes dans une 1988. La Construction de l’Institution Présidentielle.
société donnée à un moment déterminé de son Bordeaux: Association Française de Science Politique,
évolution historique». CAMPOS, Benedicto de. [1988?]. multigraphié.
Constituição de 1988: uma análise marxista. São
Paulo: Alfa-Omega, 1990. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. L’Idéologie Al-
lemande. Paris: Editions Sociales, 1968.
MICHEL, Jacques. Droit et Idéologie: éléments d’analyse
Bibliographie à partir du jeune Marx. Procès, n. 1, p. 6, 1978.

GUIMARAES, Ulisses. DANC, ano 2, n. 308, p. 14377, PASUKANIS, Evgeniij B. La théorie générale du droit
5 out. 1988. et le Marxisme. Paris: E.D.I., c1924, 1970.

BOURDIEU, Pierre. Esquisse d’une théorie de la prati-


que. Paris: Genève, 1972.

384 Revista de Informação Legislativa


A engenharia política institucional do
primeiro Estado brasileiro

Vamireh Chacon

A independência brasileira consumou-


se por competente engenharia política ins-
titucional, mas foi precedida por longos, lar-
gos e sangrentos conflitos sociais, guerras
revolucionárias de libertação nacional, uma
após outra, um contexto que gerou unidade
e sucessão.
O processo começou durante a União Ibé-
rica, quando os brasileiros viram desmisti-
ficado o poder da metrópole portuguesa,
submetida a uma monarquia só dual no
nome e na administração, enquanto, do fun-
damental ponto de vista da decisão políti-
ca, ela ficava em última instância nas mãos
dos reis de Espanha. Essa aliança, impre-
vista apesar dos intencionais matrimônios
dinásticos, foi resultado da morte de Dom
Sebastião, solteiro, tombado na Batalha de
Alcácer-Quibir em 1578 sem deixar herdei-
ros diretos. Um, indireto, seu tio Filipe II de
Espanha, reivindicou e obteve das Cortes
portuguesas de Tomar em 1580 o reconhe-
cimento à Coroa.
A União Ibérica atraiu a hostilidade po-
lítica e militar da Holanda, Províncias Uni-
das dos Países Baixos independentes em
guerras contra a Espanha, que passou a ata-
car a mais rica colônia portuguesa tornada
espanhola, o Brasil. Riqueza do açúcar, a
maior do mundo de então, o século XVII. Se
for somada a hostilidade religiosa entre pro-
testantes e católicos, tem-se um completo
quadro de conflito ideológico e econômico.
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 385
As expulsões dos holandeses, ditos fla- Bequimão, contra os privilégios da recém-
mengos, da Bahia, em 1625, e de Pernambu- criada Companhia do Comércio do Mara-
co, em 1654, ocorreram como conseqüênci- nhão. Manuel Beckman é decapitado pelas
as de lutas em parte com auxílio militar da autoridades da Coroa portuguesa, que de-
Espanha (Bahia) e Portugal (Pernambuco), gredam em África o seu irmão Tomás, anis-
mas principalmente por esforços guerrilhei- tiado e devolvido a São Luís do Maranhão
ros dos próprios brasileiros, em perigosas vinte anos após.
fases abandonados pela Coroa portuguesa Por que um espanhol e dois portugue-
a pretexto de ela conciliar-se com a Holan- ses, os primeiros à frente de movimentos in-
da1. Ao terem de lutar sozinhos, os brasilei- dependentistas brasileiros?
ros davam outro decisivo passo no seu pro- Porque um não era mais espanhol e os
cesso de conscientização nacional. dois não mais portugueses. Neles a obnubi-
A importância mundial do conflito é ates- lação brasílica se conscientizara em brasi-
tada pela presença de enorme painel de au- leiros com interesses e sentimentos da terra
toria do pintor espanhol Juan Bautista May- dos seus iguais nela, diferentes dos da me-
no, com destaque no Museu do Prado em trópole distante no além-mar. Bernardo Vi-
Madrid, celebrando a expulsão dos flamen- eira de Melo, já nascido em Pernambuco, é o
gos da Bahia. Feito também comemorado seguinte rebelde conhecido – outros casos
pelo dramaturgo espanhol Lope de Vega na ainda ignorados, muitos provavelmente
sua peça teatral El Brasil restituído. existiram – ao tentar sublevar a Câmara
Outro fator decisivo para a conscienti- Municipal de Olinda em 1710 com um grito
zação nacional brasileira na época, prece- de independência até explicitamente repu-
dida pelo inicial período da chamada ob- blicano. Reprimido pelas autoridades colo-
nubilação brasílica da descoberta de tanto niais portuguesas, que o prenderam e fize-
sol e tanta selva com as novidades também ram-no morrer no cárcere em Lisboa.
exóticas humanas dos ameríndios, foi a Daí em diante são cada vez mais fortes
quadruplicação do território brasileiro, além os sopros revolucionários do século XVIII
do meridiano do Tratado de Tordesilhas, também no Brasil.
quadruplicação por etapas pelos bandeiran- Sucedem-se as Inconfidências: Mineira
tes sucessivamente reconhecidas e, portan- (1789-1792), nela é executado Tiradentes e
to, legalizadas por reis espanhóis da União degredados em África seus companheiros;
Ibérica. Afonso de E. Taunay e Cassiano Ri- a Fluminense (1794-1796), liderada por Al-
cardo demonstraram em documentais pes- varenga Peixoto; e a Baiana (1798), menos
quisas a crescente consciência nacional dos conhecida por ter sido conduzida não pela
bandeirantes. classe dominante local já brasileira, e sim
O cenário estava pronto, em meados do por artesãos pobres, a chamada Conjuração
século XVII, para as primeiras tentativas de dos Alfaiates, do que resultam seis conde-
independência política pelos brasileiros nações à morte, quatro executadas, uma co-
com consciência de Brasil. mutada em degredo perpétuo africano e uma
Em 1641, chegam ao Brasil, com o retar- sem resultado por fuga do condenado.
do das difíceis comunicações marítimas da O século XIX irrompe no Brasil com in-
época, notícias da Restauração da sobera- surreições cada vez mais violentas. Em ple-
nia portuguesa por guerra no ano anterior. na Salvador da Bahia, antiga capital, rebe-
A população de São Paulo aclama o espa- lam-se à mão armada os negros escravos
nhol Amador Bueno rei do Brasil, ele recu- maleses, muçulmanos, alfabetizados arte-
sa; em 1684, os portugueses irmãos Manuel sãos, urbanizados desde a África, assim
e Tomás Beckman lideram a revolta popu- muito mais predispostos à rebelião contra a
lar em São Luís, conhecida como Revolta do opressão. Em 1807, 1809, 1813, são brutal-

386 Revista de Informação Legislativa


mente esmagados por tropas coloniais por- guesa, embora lhe transmitindo outra dire-
tuguesas. Suas insurreições vão continuar ção política, nacional, brasileira. Mas, em
após a independência do Brasil, já então pela 1823, José Bonifácio discorda da dissolução
abolição da escravatura, pouco conhecida da primeira Assembléia Nacional Consti-
pelo mesmo motivo da Conjuração dos Alfai- tuinte brasileira, da qual fazia parte, e da
ates: a pobreza econômica dos rebelados, ape- conseqüente outorga de uma Constituição
sar da sua alta consciência política e social. apesar de consultadas todas as Assembléi-
O ano de 1817 assiste a uma revolução as Municipais brasileiras. Por isso Dom Pe-
independentista em grande escala: os insur- dro I o exila; fora do Brasil permanece mais
rectos chegam a tomar à força armada, com seis anos, mais de quarenta no estrangeiro.
adesão de soldados e oficiais brasileiros do De volta ao Brasil em 1829, Dom Pedro I,
exército colonial português, a cidade do demonstrando ser também estadista, supe-
Recife e capitais vizinhas de Pernambuco, ra as mútuas discordâncias e nomeia-o pri-
pela Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará; meiro tutor do seu filho menor, futuro Dom
Alagoas fazia parte da capitania, depois Pedro II. Afastado da regência em 1833, José
província, pernambucana. O último vice-rei Bonifácio vem a falecer cinco anos depois.
português no Brasil, o Conde dos Arcos, Tinha cumprido sua missão histórica “na
comanda a repressão e execução de deze- articulação da independência, da constru-
nas de condenados à morte. ção de um Estado nacional e da conquista
É tudo isso que leva Dom João VI à cons- de um império brasílico”.
tatação da insustentabilidade da situação Miriam Dolhnikoff (1998, passim), que
colonial no Brasil e à necessidade do apres- recuperou e publicou seus textos propria-
samento da independência, se possível num mente políticos, muito bem sintetiza de
quadro de continuidade dinástica e estabi- modo a merecer reprodução na íntegra: “Bo-
lidade social. Nisso é Dom João VI aconse- nifácio acalentou um projeto civilizador que
lhado por assessores políticos portugueses tinha por fim último viabilizar a nação”.
do nível de Dom Rodrigo de Sousa Couti- “Mas qualquer educação seria estéril, se
nho, Conde de Linhares, antigo colabora- antes de tudo a heterogênea população bra-
dor do Marquês de Pombal, tão interessado sileira não fosse transformada em um con-
no Brasil, que dedica um vice-reinado, con- junto homogêneo em todos os sentidos: ra-
fiado a um seu irmão, para defesa da Ama- cial, cultural, legal e cívico”. “Só então po-
zônia, e por Silvestre Pinheiro Ferreira, tam- deria ser criada uma identidade nacional,
bém português, intelectual capaz de unir que transformasse inimigos seculares (bran-
teoria e prática. cos proprietários, negros escravos e índios
José Bonifácio de Andrada e Silva, brasi- ‘selvagens’) em compatriotas e concidadãos.
leiro, vem do círculo de Dom Rodrigo de Sou- Tarefa que lhe parecia extremamente árdua”.
sa Coutinho. Vive nada menos de trinta e Continua Dolhnikoff (1998, passim) com
seis anos na Europa, mineralogista forma- oportuna concisão: “Para vencer essas difi-
do em universidades de Portugal, França e culdades, Bonifácio pregava o fim da escra-
Alemanha, secretário perpétuo da Real Aca- vidão com mecanismos de suporte social
demia das Ciências de Lisboa, autor de pes- para os negros, a integração dos índios à
quisas e descobertas e livros a respeito. sociedade nacional e a mestiçagem, de onde
José Bonifácio é o principal dos imedia- deveria resultar uma nova ‘raça’, tão brasi-
tos de Dom Pedro I no processo da indepen- leira quanto integrada: a miscigenação era
dência do Brasil, à qual José Bonifácio que- o caminho pelo qual se chegaria também à
ria num Estado capaz de manter a unidade homogeneidade cultural”.
do país, naquela fase só possível por mo- Daí suas propostas de apoio estatal aos
narquia herdando a administração portu- casamentos interétnicos e sua “defesa de

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 387


uma espécie de reforma agrária no país. Era são mundial da Constituição dos Estados
preciso restringir os latifúndios e incenti- Unidos de 1787, a principal causa da pro-
var a pequena e média propriedade. Cami- pagação do constitucionalismo, a posição
nho seguro para a produtividade agrícola, política que insiste na indispensabilidade
mas também para a penetração do Estado no de Constituições escritas, como básicos pac-
interior da nação, na medida em que dimi- tos sociais jurídicos. Apesar de o berço do
nuiria o poder dos grandes latifundiários e constitucionalismo ser a Inglaterra, onde a
também permitiria o povoamento do territó- Magna Carta de 1215 é o início de longa série
rio nacional, acabando com o isolamento em de sucessivas leis constitucionais que se vão
que vivia a maior parte da população”. completando, em vez de substituírem-se.
“Assim, Bonifácio advogava o confisco Pragmaticamente, para Sartori (1996, p.
e a venda das terras improdutivas pelo go- 9, 209-210), a engenharia constitucional é,
verno, recomendando que seu produto fos- “em primeiro lugar, a idéia de que as Cons-
se ‘empregado nas despesas de estradas, ca- tituições são (algo) como as máquinas, isto
nais e estabelecimentos de colonização de é, são mecanismos que precisam funcionar
europeus, índios e mulatos e negros for- e produzir; em segundo lugar, a idéia de que
ros’”. “Esta é, na verdade, uma constante as Constituições provavelmente não funci-
em seus escritos”. onarão como se deseja, se não utilizarem os
E mais: “como cientista, repugnava-lhe ‘motores’ de Bentham, ou seja, punições e
a destruição insensata e descontrolada das recompensas”.
matas, que traria inevitavelmente grandes Mesmo que não se aceite essa visão fun-
prejuízos para o país no futuro. Como poe- cionalista pragmática – em vez dela se op-
ta, preocupava-se com os limites aparente- tando por uma visão dialética da Constitui-
mente intransponíveis da literatura pátria, ção como um ajuste de forças de classes so-
corroída pelos mesmos males do atraso e da ciais no sentido de Ferdinand Lassalle
ignorância...”. “Como político, denunciava (1985), antes de Karl Marx –, em ambos os
o sacrifício do interesse público em favor do casos se constata a tendência a combina-
enriquecimento privado”. rem-se na prática, não em termos ecléticos
Por tudo isso, “o projeto reformista de filosóficos, e sim históricos concretos.
Bonifácio esbarrou em interesses concretos Afinal de contas, o que está em jogo é o
e poderosos o suficiente para retirar da pauta que Max Weber chamava de monopólio le-
política temas como abolição, educação pú- gítimo e legal da violência pelo Estado, en-
blica e reforma da propriedade da terra”. quanto ele, o Estado, seja necessário para a
Motivos, no final das contas, pelos quais convivência humana.
acabou alijado do poder. Essa realidade se repetiu na independên-
Mesmo com seus interesses, pessoais cia do Brasil, quando de outro conflito entre
embora honestos, de classe social dominan- idealistas e realistas: idealistas pretenden-
te, ficaram as advertências e os caminhos do uma Constituição rousseauniana liber-
apontados por José Bonifácio de Andrada e tária e realistas conseguindo impor a sua,
Silva, em sua “linguagem seca, direta, mui- liberal moderada senão conservadora2. Ide-
tas vezes coloquial e algo moderna, mais de alismo, de inspiração no constitucionalis-
cientista que de bacharel”, exortação e pre- mo dos Estados, vindo desde a Inconfidên-
visão do Brasil do futuro. José Bonifácio não cia Mineira; realismo dos que demonstra-
passaria em vão, sua mensagem voltará vam que, na prática, “à Constituinte e à pró-
cada vez mais a ser ouvida e seguida. pria independência, preexistia a monarquia
Giovanni Sartori (1996), distinguido ci- e o imperador”(FAORO, 1975, p. 280). E
entista político italiano da Universidade de mais: o Estado precedera a nação no Brasil
Columbia, Nova York, aponta, na repercus- (e noutras partes do mundo como na vizi-

388 Revista de Informação Legislativa


nha América Hispânica, onde isso não fora províncias vizinhas, como a Revolução de
reconhecido e ela se fragmentara em repú- 1817, embora com muito maior força. O de-
blicas então anárquicas em guerra civil). mocratismo radical, no fundo do auto-inti-
Dom Pedro I encarregou-se da síntese, tulado liberalismo republicano, porque, na
ao outorgar, nas suas próprias palavras, linguagem da época, era a reivindicação
“uma Constituição em que os três Poderes suprema dos insurrectos por seus ideólo-
sejam bem divididos, de forma que não pos- gos, entre eles Frei Joaquim do Amor Divino
sam arrogar direitos que lhes não compi- Caneca, o melhor articulado intelectual e
tam, mas que sejam de tal modo organiza- politicamente (OBRAS..., 1875). Democratis-
dos e harmonizados que lhes torne impos- mo, portanto, de baixo para cima, de local a
sível, ainda pelo decurso do tempo, fazerem- confederal. Sua desorganização interna con-
se inimigos e cada vez mais concorrerem de dicionou sua derrota pelo Poder central.
mãos dadas para a felicidade do Estado. Cabia aos adeptos do Poder Moderador
Afinal, uma Constituição que, pondo bar- monárquico, no modelo de Benjamim Cons-
reiras inacessíveis ao despotismo, quer real, tant, suíço-francês, e não do posterior ho-
quer aristocrática, quer democrática, afugen- mônimo brasileiro, a tarefa de debaterem a
te a anarquia e plante a árvore daquela li- questão do “rei reina, mas não governa”,
berdade a cuja sombra deva crescer a união, Zacarias de Góes e Vasconcelos (1860), ou “o
a tranqüilidade e independência deste Im- rei reina, governa e administra”, Braz Floren-
pério, que será o assombro do mundo novo tino (1864), em clássicos textos fundadores
e velho”. da Ciência Política no Brasil. Precedidos em
Os temores de Dom Pedro I, José Bonifá- Direito Constitucional pelo comentário de José
cio e dos que assim pensavam eram os ex- Antônio Pimenta Bueno, Marquês de São Vi-
tremos do Terror jacobino da Revolução cente, Direito Público Brasileiro e Análise da
Francesa e seu fim na ditadura pessoal bo- Constituição do Império, 1857.
napartista. A estruturação administrativa da mo-
Nas palavras ainda de Dom Pedro I, nis- narquia brasileira será racionalizada pelo
to portanto merecedoras de reprodução na Visconde de Uruguai, Paulino José Soares
íntegra: “Todas as Constituições que à ma- de Sousa, no seu Ensaio sobre o Direito Admi-
neira de 1791 e 1792 (da Revolução France- nistrativo (1862), aplicada nos também seus
sa) têm estabelecido as suas bases e se têm Estudos Práticos sobre a Administração das Pro-
querido organizar, a experiência nos tem víncias (1865). Dom Pedro II lia-o e anotava-
mostrado que são totalmente teoréticas e me- o, como se vê no Diário por ele escrito.
tafísicas e por isso inexeqüíveis; assim o pro- Dois historiadores mineiros de diferen-
vam a França, a Espanha e, ultimamente, tes orientações ideológicas estudaram a
Portugal. Elas não têm feito a felicidade ge- questão: João Camilo de Oliveira Torres, Os
ral; mas, sim, depois de uma licenciosa li- Construtores do Império (antes, A Democracia
berdade, vemos que em alguns países já Coroada), e José Murilo de Carvalho, A Cons-
apareceu e em outros não tarda a aparecer o trução da Ordem. Um num enfoque idealista
despotismo de um, depois de ter sido exer- institucional, outro em perspectiva realista
cido por muitos, sendo conseqüência neces- sociológica.
sária ficarem os povos reduzidos à triste si- O realismo político brasileiro nisto é ob-
tuação de presenciarem e sofrerem todos os servado por Afonso Arinos de Melo Franco
horrores da anarquia”(FRANCO, 1957, p. (1957, p. 239), ao apontar a inviabilidade
230-232). da Constituição popular no Brasil de então:
A solução, porém, não foi pacífica. “a própria Assembléia Constituinte (fecha-
Irrompeu a Confederação do Equador em da por Dom Pedro I) carecia de elementos
1824, de Pernambuco se alastrando pelas para se afirmar como poder político predo-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 389


minante. Ela não tinha atrás de si um povo crutará a maior parte da força armada para
em revolução, nem um meio intelectual vi- a luta das facções políticas que se formam; e
gilante, como acontecera com as Constitu- ela servirá de aríete das reivindicações po-
intes francesa e norte-americana do século pulares contra a estrutura maciça do impé-
XVIII, e, portanto, não era apoiada por uma rio, que, apesar da força do empuxo, resisti-
força de opinião que fizesse hesitar a Coroa, rá aos golpes”.
antes de desfechar o golpe. Além disso, a Limitadas as elites econômicas e políti-
Constituinte não possuía tradição nem téc- cas locais, pela escassa tecnologia industri-
nica parlamentar, e se embaraçava incerta- al própria e pela necessidade de sempre ex-
mente num trabalho ineficiente, prejudica- portar para compensar uma dívida interna-
do ainda mais pela divisão interna que la- cional escorchante herdada de Portugal,
vrava entre os grupos”. cada vez mais acrescida de juros (BOUÇAS,
Tobias Barreto (1977), porém, desde 1877 1950, p. 23-28), em dilemas transmitidos ao
no seu Discurso em Mangas de Camisa de can- Estado brasileiro desde o berço, este nascia
didato a deputado provincial em Pernam- sobrecarregado e ameaçado.
buco, por dentro da monarquia do seu tem- Entre a monarquia e a república, Joaquim
po, já mostrava como, “entre nós, o que há Nabuco testemunhará ao correligionário
de organizado é o Estado, não é a nação; é o abolicionista, José Mariano, embora discor-
governo, é a administração, por seus ínfi- dasse do seu republicanismo, em carta de 2
mos caudatários nos municípios...”. “O go- de janeiro de 1889, portanto às vésperas da
verno do Brasil não pode ser parlamentar, à Proclamação da República: “Eu nunca pen-
maneira do modelo que oferece a terra dos sei que tivéssemos no Brasil a guerra civil
Pitt e Palmerston; porquanto esse regímen depois, em vez de antes, da Abolição. Mas
supõe ali uma penetração recíproca do Es- havemos de tê-la. O que se quer hoje é o ex-
tado e da sociedade, que em geral nos ou- termínio de uma raça e, como ela é a que tem
tros países vivem divorciados”. mais coragem, o resultado será uma luta
Nessa sua participação no debate da encarniçada” (CHACON, 2000).
Questão do Poder Moderador, conclui ur- O tempo confirmou os dilemas de Tobi-
gindo “o intuito de incutir no povo... um as Barreto e Joaquim Nabuco. Em inícios de
mais vivo sentimento do seu valor, de des- outro século, o Brasil vê ainda mais os peri-
pertar-lhe a indignação contra os opresso- gos do confronto entre instituições, herda-
res e o entusiasmo pelos oprimidos”. “Logo, das e insuficientemente modificadas ou re-
o único meio de salvar e engrandecer o Bra- criadas, de um lado, e realidades sócio-eco-
sil é tratar de colocá-lo em condições de po- nômicas por isso mesmo cada vez mais fora
der ele tirar de si mesmo, quero dizer, do de controle social, sem canalizações das
seio da sua História, a direção que lhe con- suas energias dispersas e, às vezes, contra-
vém” (BARRETO, 1977 p. 183). producentes.
Ao longo de toda a monarquia, que co- As heranças institucionais brasileiras
mandara a independência brasileira e con- são também positivas; entre outras, a uni-
trolará por etapas a abolição da escravatu- dade nacional, o hábito da democracia par-
ra, agitava-se o início do crescentemente lamentar (até parlamentarista em determi-
conscientizado povo brasileiro, trabalhado- nada fase inicial), o enraizamento do muni-
res livres de início nas cidades, depois, pou- cipalismo (de remota origem romana na pe-
co a pouco, nos campos, nas pessoas de es- nínsula ibérica, transladado com êxito) e
cravos libertos pelas etapas do abolicionis- estabilidade das fronteiras terrestres (as
mo. Mostra-o Caio Prado Júnior (1948, p. únicas reconhecidas por todos os vizinhos;
282-283), como “é naquele elemento desen- todos os demais países latino-americanos
raizado da população brasileira que se re- as têm mutuamente contestadas). Todas es-

390 Revista de Informação Legislativa


sas heranças juntas, e mais algumas, são a Bibliografia
base de tudo o que daí se segue: um Estado-
nação consolidado, capaz de continuar re- ANDRADA E SILVA, José Bonifácio de. Projetos
cebendo influências externas e de assimilá- para o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. 371 p. Organização de Miriam Dolhnikoff.
las ou rejeitá-las.
O desafio maior está nas relações inter- BARRETO, Tobias. A questão do poder moderador e
nas do Brasil mais Estado que nação, no outros ensaios brasileiro. Petrópolis: Vozes: Instituto
Nacional do Livro, 1977.
sentido de cada vez maior participação re-
cíproca das duas dimensões, institucional- BOUÇAS, Valentim. História da dívida externa. 2.
política e sócio-econômica. Por outras pala- ed. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1950.
vras: o trânsito completo de súdito na mo- CANECA, Joaquim do Amor Divino Caneca. Obras
narquia a cidadão na república, de uma so- Políticas e Litterarias. Recife: Typ. Mercantil, 1875. 2
v. Colleccionadas pelo commendador Antonio Joa-
ciedade agrária-patriarcal-escravocrata a
quim de Mello.
outra, aberta e solidária, como Joaquim Na-
buco, mais que qualquer abolicionista, de- CHACON, Vamireh. Joaquim Nabuco: revolucioná-
rio conservador, sua filosofia política. Brasília: Se-
fendeu até as últimas conseqüências positi-
nado Federal, Conselho Editorial, 2000.
vas e favoráveis. Projetando-se em nível in-
ternacional numa globalização mais globa- FAORO, Raymundo. Os donos do poder. 2. ed. rev. e
aum. Porto Alegre: Globo, 1975.
lizadora que globalizante, ainda mais divi-
sora dos Estados e sociedades em poucos FRANCO, Afonso Arinos Mello. O Constituciona-
globalizadores e muitos globalizados. Saí- lismo brasileiro na primeira metade do século XIX.
Estudos de direito constitucional. Revista Forense,
da construtiva só viável por Estados enxu- Rio de Janeiro, v. 54, 1957.
tos e justos, porém fortes, mais em diálogo
que em polêmica. LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição.
Tradução Walter Stoenner. Rio de Janeiro: Líber
Júris, 1985.
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contem-
Notas porâneo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1948.

1
Cf. o “Papel que fez o Padre Antônio Vieira a SARTORI, Giovanni. Engenharia constitucional. Bra-
favor da entrega de Pernambuco aos holandeses sília: Ed. da UnB, 1996.
(Papel Forte)” Vieira (1995, p. 337-402). VIEIRA, Antônio. Escritos históricos e políticos. São
2
Raymundo Faoro mostra muito bem o conflito Paulo: Martins Fontes, 1995. Organizado por Alcir
em Os Donos do Poder. Pécora.

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 391


392 Revista de Informação Legislativa
Católicos e acatólicos: o voto no Império

Walter Costa Porto

Por força do artigo 95, inciso III, da Cons-


tituição de 1824, não poderiam ser deputa-
dos à Assembléia Geral os que não profes-
sassem “a religião do Estado”.
E os que não professassem a religião ca-
tólica – os “acatólicos”, como se denomina-
vam no debate parlamentar e na imprensa –
não poderiam, também, ocupar a Regência
e, mesmo, o cargo de Imperador, em vista do
juramento que, para o exercício dessas fun-
ções, era exigido pelo artigo 103 da Carta:
“Juro manter a Religião Católica Apostóli-
ca Romana, a integridade e a indivisibilida-
de do Império; observar e fazer observar a
Constituição Política da Nação Brasileira, e
mais leis do Império, e prover o bem geral
do Brasil, quanto em mim couber”.
A Constituição estabelecera, em seu arti-
go 5º, que a Religião Católica era a religião
do Império1. E mais: que todas as outras
religiões seriam “permitidas com seu culto
doméstico, ou particular, em casas para isso
destinadas, sem forma exterior de templo”2.
O projeto de Constituição redigido por
Antônio Carlos, em 1823, havia sido mais
drástico: “Art. 15 – As outras religiões, além
da cristã, são apenas toleradas, e a sua pro-
fissão inibe o exercício dos direitos políti-
cos”.
Mas a permissão no texto outorgado, de
fevereiro de 1824, não escondia seu caráter
discriminatório, limitando os cultos ao in-
terior dos lares, deixando a ostensividade
somente ao credo católico.
Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 393
Mais adiante, o texto constitucional apre- dos templos edificados por eles mesmos, aos
sentava uma promessa que a realidade des- membros das irmandades, mas também de
mentia: “Ninguém pode ser perseguido por negar-lhes sepultura, quando se tirou a pro-
motivo religioso, uma vez que respeite a do va de que não só eram os vivos, mas eram
Estado e não ofenda a moral pública” (art. também os mortos que estavam sujeitos à
179, IV). perseguição religiosa.”
Ora, a verdade é que a restrição sugerida Procurava-se, então, a defesa, segundo
por Antônio Carlos, em seu projeto – de que Nabuco (p. 214), não só da causa dos pro-
a profissão de outras religiões, que não a testantes, dos judeus, mas dos próprios ca-
cristã, inibiria o exercício dos direitos polí- tólicos, “não por intimação feita em vida,
ticos –, aplicava-se, então: como vimos, às que lhes permitisse a defesa, mas por uma
funções de Deputado, de Regente, de Mo- degradação do cadáver”3.
narca, proibidas aos acatólicos, em razão Um dos casos mais graves de discrimi-
do art. 95, III, e do juramento do artigo 103. nação ocorreu com o herói pernambucano
E, também, o cargo de Senador, aí não por- das guerras de Bolívar, Abreu e Lima. Re-
que a Constituição o vedasse, mas porque o gressando a Pernambuco e tendo-se atrita-
Regimento Interno da Câmara Alta, desde do com a hierarquia católica em Pernambu-
1826, determinava um juramento, aos San- co, esta lhe nega o enterro em seus cemitérios.
tos Evangelhos, de “cumprir fielmente as Citando o livro de David Gueiros Vieira4
obrigações de Senador, manter a Religião (p. 221) sobre a questão religiosa no fim do
Católica, Apostólica, Romana, a integrida- Império, Vamireh Chacon (1983, p. 220) diz
de do Império, observar sua Constituição que, nas suas passagens pelos Estados Uni-
política, ser leal ao Imperador e promover o dos, indo e vindo do Brasil a Grã-Colômbia,
bem-estar da Nação” (BRASIL, 1987?, p. Abreu e Lima adquirira um grande respei-
XXI). Quase idêntico juramento era exigido to pela Bíblia e adotara um conceito ecu-
dos médicos, dos bacharéis em Direito, dos mênico do cristianismo. “Não esqueça-
engenheiros, ao se formarem. Como lembra mos, continuava Chacon, também, sua
Magalhães Junior (1957, p. 265), até aos admiração pelo liberalismo norte-ameri-
simples bacharéis em ciências e letras do cano e as relações entre protestantismo e
Colégio D. Pedro II era requerido que juras- maçonaria.”
sem “manter a religião do Estado, obedecer Tendo-se recusado “a abjurar seu libe-
e defender a S. M. o Sr. Pedro II e as institui- ralismo religioso e não só político”, Abreu e
ções pátrias”. Lima termina sepultado em um cemitério
A elegibilidade dos acatólicos somente protestante, chamado “dos ingleses”5.
seria conseguida com a Lei Saraiva, de 1881. O projeto de que resultaria a Lei Saraiva
Ela se deveu ao grande movimento por “re- foi encaminhado pelo Governo, em abril de
formas liberais em matéria de consciência”, 1880, à Câmara. Um grande debate envol-
como afirmava Nabuco (1949, p. 193), e que veu a Nação sobre se seria possível a altera-
requereria a secularização dos cemitérios, o ção eleitoral por lei ordinária ou se seria
casamento civil, a separação, enfim, do Es- exigida a reforma da Constituição.
tado e da Igreja. Decidida, afinal, a modificação por lei
A secularização dos cemitérios foi o pri- ordinária, vencidos os escrúpulos do Impe-
meiro desses itens. Nabuco (p. 199) a defen- rador a respeito, o projeto, firmado pelo Mi-
dia nas colunas do jornal A Reforma e ela nistro do Império, Barão Homem de Melo,
somente entrou “no catálogo das exigênci- afirmava, expressamente, em seu artigo 2º,
as indeclináveis do partido liberal” quan- que seria eleitor “todo cidadão brasileiro,
do se viu que a Igreja “queria levar sua vin- nato ou naturalizado, católico ou acatólico,
gança ao ponto não só de fechar as portas ingênuo ou liberto”.

394 Revista de Informação Legislativa


E, adiante, quando falava dos elegíveis, Na sessão da Câmara, de 6 de fevereiro
no artigo 8º, dizia ser apto para os cargos de de 1882, Rui Barbosa dirigia um apelo à Co-
Senador, Deputado Geral, membros da As- missão de Polícia, para pronta decisão, so-
sembléia Legislativa Provincial, Vereador, bre uma indicação que se achava sobre a
Juiz de Paz e quaisquer outros criados por mesa “desde a legislatura passada”, que
lei, todo cidadão compreendido no artigo propunha a extinção do juramento religio-
2º. O substitutivo aprovado pela Câmara so. A indicação tinha sido firmada pelo pró-
manteve essa redação. Mas, afinal, o projeto prio orador e pelo então Ministro do Impé-
aprovado não se referiu expressamente aos rio. O Presidente do Conselho opusera-se a
acatólicos, limitando-se a declarar que se- sua passagem enquanto não fosse ouvida a
ria eleitor todo cidadão brasileiro, nos ter- Comissão de Polícia e declarara que a idéia
mos dos artigos 6º, 91 e 92 da Constituição, era “conseqüência forçosa da elegibilidade
que tivesse a renda líquida não inferior a dos acatólicos”, tornada direito constituci-
200$000 “por bens de raiz, indústria, comér- onal no país. Lembrou Rui que o atual Mi-
cio ou emprego”. E elegível o cidadão que nistro da Agricultura, Conselheiro Manuel
fosse eleitor, nos termos do artigo 2º. Alves de Araujo, promovera, na Assembléia
Falando na sessão de 7 de novembro de Provincial do Pará, essa reforma (OBRAS
1881, Saldanha Marinho (apud BRUNO, completas de Ruy Barbosa, 1948, p. 3).
1979, p. 160) insistia em que o projeto não Não se operou, no entanto, essa revisão
fora lógico, desde que deixara de aprovar e a previsão de Saldanha da Gama iria-se
também o que era anexo ao princípio da ele- realizar somente em 1888, quando da posse
gibilidade dos acatólicos e a ele imprescin- do Deputado Antônio Romualdo Monteiro
dível: “consentir que o acatólico possa ser Manso, a quem Magalhães Junior dedica um
representante da nação e legislador no Im- capítulo de um de seus livros6.
pério e não suprimir desde já o juramento O Deputado fora eleito pelo 9º Distrito
que se acha estabelecido é na verdade dig- de Minas Gerais, na vaga de Resende Mon-
no de sério reparo; não é coerente”. teiro, escolhido para o Senado. Em 6 de se-
Mas acreditava ele que o grande princí- tembro de 1888, ao se apresentar à Câmara,
pio da igualdade de direitos aos acatólicos convidado a prestar o juramento, declarou:
era “a maior vitória” que, naquele tempo, “Não posso prestar o juramento porque é
podiam obter as idéias que defendia. E que contra minhas convicções”.
a admissão dos acatólicos aos poderes polí- A mesma comissão que o introduzira ao
ticos do Estado resolvia, por si só, o maior plenário o acompanhou até fora e durante
empenho nacional da separação da Igreja e cinco dias a Câmara discutiu a reforma de
do Estado. A um parlamentar que argumen- seu regimento que, no artigo 17, dispunha
tava que a medida não chegava a tanto, ele devesse o deputado jurar “aos Santos
respondia: “Se não Igreja do Estado para o Evangelhos, manter a Religião Católica,
representante da Nação, cessa ela de ser Apostólica, Romana, observar e fazer ob-
uma instituição vitoriosa: perdeu a eficácia, servar a Constituição, sustentar a indivi-
a firmeza, e se reduziu a uma simples recor- sibilidade do Império, a atual Dinastia Im-
dação”. perante, ser leal ao Imperador, zelar os
Insistia: “Admitiram o princípio? Sujei- direitos dos Povos e promover, quanto em
tem-se às conseqüências”. E voltava a la- mim couber, a prosperidade geral da Na-
mentar não se tivesse procedido à supres- ção”.
são do juramento: “Veremos os acatólicos No dia 1º de setembro, aprovou-se a de-
nesta Câmara não prestar juramento e não cisão de acrescentar, ao artigo, um parágra-
serão por isso repelidos” (BRUNO, 1979, p. fo onde se dispusesse que seria dispensado
160-161). do juramento o parlamentar que declarasse

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 395


à mesa ser aquele voto contrário “às suas menagem de ver grande parte do processo
crenças e opiniões políticas”. eleitoral se desenvolver em seus templos.
Lembra Magalhães Junior (1957) que ne- Missas solenes do Espírito Santo iniciavam
nhum escrúpulo haviam tido, em prestar o as solenidades nos dias de eleição paroqui-
juramento, os primeiros republicanos do Im- ais e de escolha dos eleitores, editais com o
pério, Prudente de Moraes e Campos Sales, número de “fogos” de cada freguesia deve-
quando, em 1885, vieram tomar posse de riam ser afixados nas portas das igrejas e,
suas cadeiras na Câmara. Nem Saldanha depois de 1846, cópia da ata da comissão
Marinho, quando eleito Deputado pelo de alistamento deveria ser afixada no inte-
Amazonas, em 18787. Deviam considerar o rior da igreja matriz.
juramento “uma formalidade perfeitamen- Pelas determinações trazidas pelo Decre-
te vã”, algo com que transigiam, apenas para to de 7 de março de 1821, para a escolha dos
ter “o direito de sustentar, depois, o contrá- deputados às Cortes portuguesas, copiadas
rio, garantidos pelas imunidades parlamen- da Constituição espanhola de Cadiz, as elei-
tares” (MAGALHÃES JUNIOR, 1957, p. 265- ções se processariam nos Paços do Conse-
266). lho ou “no edifício mais próprio”; somente
Somente o Deputado Monteiro Manso re- “aonde não houver casa do Conselho, ou
cusaria o juramento. E os debates que pro- esta não for suficiente, a igreja será o lugar
vocou, então, não se cingiram, inicialmente, destinado à realização dessas assembléias”,
à questão da religião. Os elementos mais acrescentava-se. O pleito que se seguiu, para
monarquistas combateram, com veemência, a Assembléia Constituinte, realizou-se nas
a reforma do regimento. Para Cesar Zama Casas do Conselho, mas as eleições posteri-
(apud MAGALHÃES JUNIOR, 1957, p. ores – obrigatoriamente as de primeiro grau
268), por exemplo, “jurar aqui lealdade a – tiveram lugar no corpo das igrejas. Nes-
sua Majestade, o Imperador, não impede sas, seriam feitas duas divisões, segundo o
ninguém que no dia seguinte pegue em ar- Decreto 157, de 4 de maio de 1842, “uma
mas e vá correndo com desordeiros para pô- para os votantes, outra para a mesa”. Só
lo fora do trono”. nas paróquias em que não houvesse matriz,
Joaquim Nabuco (1949) observou que era ficaria permitida a reunião em outro edifí-
desnecessária a reforma do regimento des- cio, antecipadamente designado.
de que a nova lei eleitoral estabelecera a ele- Uma vez concluída a formação da mesa
gibilidade dos acatólicos; estava tacitamente – dizia-se na Lei nº 387, de 19 de agosto de
revogado o juramento, que colidia com aque- 1846 –, inutilizava-se “a separação que a
le dispositivo. Sendo a lei eleitoral posteri- isolava dos assistentes”, de sorte que estes
or, cederia o regimento naquela exigência, pudessem “rodear e examinar os seus tra-
agora tornada absurda (MAGALHÃES balhos”. É fácil prever, então, os incidentes
JUNIOR, 1957, p. 268). e o tumulto que a emoção dos pleitos pode-
Mas, em verdade, deveria ceder o regi- ria provocar, em desacordo com a solenida-
mento somente no que se referisse à religião, de do edifício sagrado. Em 1855, já se afir-
à crença do parlamentar. Nada se tinha mava no Parlamento que, em vez de a reli-
aprovado, pela lei eleitoral, que liberasse o gião santificar as eleições, como se havia
deputado ou senador da fidelidade à mo- desejado, a experiência levava ao convenci-
narquia constitucional. A recusa do juramen- mento de que “as eleições profanavam a re-
to, no que envolvesse, igualmente, as “opini- ligião”8.
ões políticas”, colaborou, também, para o tri- Multiplicam-se os relatos dos “males e
unfo da República, que se aproximava. horrível profanação” daí resultante. Beli-
Religião do Estado, o catolicismo rece- sário de Souza (1979, p. 32) aponta o caso
beu, durante a maior fase do Império, a ho- da matriz de Sant’Ana, no Rio de Janeiro,

396 Revista de Informação Legislativa


de onde “foram retiradas todas as imagens, rilheiro eleitoral e disse que, sendo já tarde,
os círios, os candelabros, tudo quanto po- ficaria para ser enterrado no dia seguinte.
dia converter-se em arma ou projétil duran- Pela manhã, vindo os mesários continuar
te uma luta a mão armada. O tato tem tido os trabalhos eleitorais, não encontraram a
lugar em tantas igrejas que estas cautelas urna, e dando busca pela matriz, só acha-
não constituem exceção. A sacração das ram os restos da mortalha despedaçada,
imagens não as garante”. porque o suposto defunto também tinha
Mesmo estrangeiros, como Kidder e Fle- desaparecido por uma janela, que ficara
tcher (1941, p. 204), anotaram que os ódios aberta” (p. 89-90).
políticos sobrepujavam, aí, toda a venera- De muitos pontos do país, o clero recla-
ção religiosa: “em certas ocasiões, em algu- mava ao Congresso a liberação de seus tem-
ma das províncias, os eleitores desesperados plos, desse incômodo11. Em 1855, o Senador
agarraram os castiçais das velas e as delica- Manoel da Fonseca apresentava um projeto
das imagens dos altares, para convencerem à proibindo, no interior das igrejas, todo e
força a cabeça de seus adversários”. qualquer ato do processo eleitoral, salvo as
Contava-se, no Parlamento: “Um Sena- cerimônias religiosas que a lei prescrevia.
dor me disse que já viu as imagens servirem Mas mesmo estas foram, afinal, dispensa-
de pedras, em alguns lugares tem corrido o das pelo art. 15, § 2º, do Decreto nº 3.029, de
sangue humano, servindo de instrumento a 9 de janeiro de 1881, a chamada Lei Sarai-
imagem do Senhor”9. va. E por ela foi determinado que o Gover-
E porque, durante quinze ou vinte dias, no, na Corte, e os Presidentes, nas provínci-
os templos não pudessem prestar alguns as, designassem, com a precisa antecedên-
dos ofícios divinos – transformados que es- cia, os edifícios em que se deveriam realizar
tavam em secretarias eleitorais – os “terrí- as eleições. Somente na falta absoluta de
veis males e estragos à religião” se agrava- outros edifícios é que poderiam ser utiliza-
vam. E mais: “a pretexto do povo vigiar e dos, para esse fim, os templos religiosos.
zelar por si mesmo sobre a urna eleitoral,
colocada no centro das igrejas, as portas dos
templos ficam abertas todas as noites ... ali
dormem, ali comem, e disputam calorosa- Notas
mente sobre a política do país; outros se 1
O art. 5º dizia: “A Religião Católica continua-
insultam e gritam, quando não chegam às rá a ser a religião do Império”. Para José Tomaz
vias de fato, o que é muito ordinário ...”10. Nabuco de Araújo (apud NABUCO, 1949, p. 246),
Mas essa paralisação dos serviços reli- “esta palavra continuará mostra bem que a religião
giosos não poderia ser atendida nas peque- do Estado seria, como até aí era, isto é, como era a
religião lusitana ao tempo da Constituição, isto é, a
nas comunidades. E disso se prevaleceu, Religião Católica, com seus dogmas, com os Câno-
no interior do Ceará, um padre, “grande par- nes recebidos, com as leis portuguesas respectivas.
tidista”, segundo conta Moraes Sarmento Neste pressuposto, herdamos de Portugal o placet,
(1862). O religioso reconheceu, pelas listas ilimitado como era, o recurso à Coroa, o padroado,
que estavam na urna, que tinha perdido a a lei que excluiu os jesuítas, a lei de amortização e
as demais que constituíam o circa sacra”.
eleição. Combinou, então, com seus correli- 2
O “culto doméstico ou particular” lembra a
gionários, que um homem se fingisse de religião da Grécia e Roma antigas: o altar em cada
morto e fosse levado à matriz, já à noitinha, casa, o fogo sagrado, que não se extinguia, a ado-
para ser encomendado. “Com efeito, ultima- ração de muitos deuses, o culto nos estreitos limi-
dos os trabalhos eleitorais naquele dia, veio tes da família e vedado a terceiros, enfim os
deuses apenas de uma casa (cf. COULANGES,
para a matriz o fingido defunto, devidamen- 1975).
te amortalhado. O honrado vigário enco- 3
Mas o problema só surgiria na segunda meta-
mendou com a maior seriedade o seu guer- de do século XIX porque, antes, como informa Gil-

Brasília a. 41 n. 162 abr./jun. 2004 397


berto Freyre (1977, p. 112), “os cemitérios eram pela só influência do lugar”. E acrescentava: “Já
apenas para protestantes, para pagãos e para es- o Senador Dantas, que sabia dar às vezes ao
cravos: raramente para quem fosse católico e per- pensamento uma forma característica, dizia em
tencesse à nobreza rural ou à burguesia patriarcal. pleno Senado: ‘Senhores, convém que as coisas
A gente senhoril era enterrada nas igrejas. Nas igre- da igreja não saiam à rua, e que as coisas da rua
jas, nos conventos e nas capelas particulares”. não entrem na igreja’. Referia-se às procissões e
4
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a às eleições”.
maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília: Ed.
UnB, 1980.
5
E em seu túmulo se escreveu: “Aqui jaz / o
cidadão brasileiro General / José Ignácio de Abreu Bibliografia
e Lima / propugnador esforçado da liberdade de /
consciência / faleceu em 8 de março de 1869 / Foi- ASSIS, M. de. Obra completa. Rio de Janeiro: José
lhe negada sepultura no cemitério público / pelo Aguillar, 1962. v. 3.
Bispo D. Francisco Cardoso Ayres/Lembrança de
seus parentes” (CHACON, 1983, p. 224-225). BRASIL. Congresso. Câmara dos Deputados. Anais
6
Segundo Magalhães Junior (1957, p. 267), o da Câmara dos Deputados: notícia histórico-biblio-
Deputado Monteiro Manso era “uma figura estra- gráfica. Brasília: Câmara dos Deputados, 1963.
nha, um homem alto, narigudo, com o rosto orna- Sessão de 27 jan. 1984.
mentado por um bigode ralo e uma barbicha qui- ______. Congresso. Senado Federal. Catálogo bio-
xotesca. Trazia um dente de onça engastado em gráfico dos Senadores brasileiros: de 1826 a 1986. Bra-
ouro, com pendente, na cadeia do relógio. Figura sília: Senado Federal, Centro Gráfico, [1987?].
malajambrada de causídico da roça, em suma”.
Outro autor a lembrar o deputado foi Afonso Cel- BRUNO, F. V. (Org.). O Parlamento e a evolução naci-
so (1981), também parlamentar, ao tempo. Inicial- onal: 1871-1889. 3. ed. Brasília: Senado Federal,
mente, na página 78 de seu livro, diz que “os fatos 1979. v. 6.
se passaram em abril”. Para Magalhães Junior, ele CELSO, A. Oito anos de Parlamento. Brasília: Ed.
“confiara na memória, que já claudicava”. Mas se UnB, 1981.
trata, obviamente, de um erro de revisão pois, adi-
ante, na página 108, Afonso Celso indica que o CHACON, V. Abreu e Lima: general de Bolívar. Rio
juramento de Monteiro Manso foi em 6 de setembro de Janeiro: Paz e Terra, 1983.
de 1888. E comenta: “Que imensa prova de sua COULANGES, F. A cidade antiga. São Paulo: He-
tolerância deu, assim, a Assembléia, cuja maioria mus, 1975.
era conservadora”.
7
Marinho Saldanha havia sido eleito Deputado FREYRE, G. A vida social no Brasil nos meados do
à Assembléia Geral pelo Ceará, em 1848, e pelo Rio, século XIX. Recife: Arte Nova/IJNPS, 1977.
em 1861. Mas ao eleger-se pelo Amazonas, em 1878,
KIDDER, D. P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasi-
já havia assinado, em 1870, o manifesto republica- leiros: esboço histórico e descritivo. São Paulo: Cia.
no. Segundo ele, o manifesto continha “a doutrina Editora Nacional, 1941.
política que eu adoto, que observarei, sem reservas,
plenamente e como nele é claramente expendida” MAGALHÃES JUNIOR, R. O império em chinelos.
(1864, p. 415). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957.
8
Sessão de 28.5.1855. Sessões de maio a junho
NABUCO, J. T. Discursos Parlamentares. Rio de Ja-
de 1855 (BRASIL, 1984, p. 150).
9
neiro: Câmara dos Deputados, 1949.
Senador Manoel da Fonseca, sessão de
9.6.1855. Sessões de maio e junho de 1855 (BRA- OBRAS completas de Ruy Barbosa. Rio de Janeiro:
SIL, 1984, p. 216). MEC, 1948. v. 9, t. 2.
10
Sessão de 28.5.1855. Sessões de maio a junho
SARMENTO, J. J. de M. Eleição direta. In: BAN-
de 1855 (BRASIL, 1984, p. 150).
11
DEIRA, A. H. de S. Reforma eleitoral: eleição direta.
A Machado de Assis (1962, p. 400), em crôni-
Recife: Typographia Universal, 1862.
ca de 1878, parecia também que era ocasião “de
retirar as eleições das matrizes pois que inteira- SOUZA, F. B. de. O sistema eleitoral no império. Bra-
mente falhou o pensamento de as tornar pacíficas sília: Senado Federal, 1979.

398 Revista de Informação Legislativa

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