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Centralização programática ou administração pragmática?

Ensaio sobre o sentido de


colonização em Raimundo Faoro e António Manuel Hespanha

Vinícius Batelli de Souza Balestra1

No presente ensaio, apresentaremos duas diferentes visões a respeito da relação


entre a colônia brasileira e o Império Português. Em diferentes interpretações do Brasil, há
uma caracterização do passado colonial que lamenta e critica a centralização e o mando do
Império sobre o território brasileiro. Um dos mais ilustres representantes dessa tendência
do pensamento brasileiro foi o jurista Raimundo Faoro, autor do célebre “Os Donos do
Poder - Formação do Patronato Político Brasileiro”; em Faoro, a caracterização do passado
colonial serve como explicação para entender o presente da sociedade brasileira. Sua
interpretação, influente em diferentes círculos intelectuais, especialmente jurídicos, tem
sido questionada mais recentemente pela historiografia, em especial pela ressonância de
pesquisadores como António Manuel Hespanha. Veremos, a seguir, como Hespanha
procura desmistificar essa caracterização da relação entre colônia e metrópole, e se
diferencia de Raimundo Faoro. Não se pretende, com isso, esgotar o debate, mas apenas
apresentar um contraponto entre uma visão construída pela ensaística brasileira e outra
oriunda da história do direito. Sabe-se, por exemplo, que autores como Laura de Mello e
Souza, historiadora brasileira, têm tentado equilibrar a visão de um “sentido colonial” no
Brasil e pesquisas históricas mais apuradas como a de Hespanha. Nosso objetivo neste
trabalho, no entanto, será apenas inicialmente apresentar o debate, sem esmiuçar seus
posteriores desdobramentos.

Octávio Ianni, em texto intitulado “Tendências do Pensamento Brasileiro”2,


procura desenhar, em linhas gerais, os temas gerais de obras e interpretações que diversos
pensadores brasileiros elaboraram sobre a formação do país. Ao considerar que “este é um

1 Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, com financiamento CAPES.
Mestre em Direito pela UFMG, tornou-se bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo.
2 IANNI, Octávio. Tendências do Pensamento Brasileiro. Tempo Social, São Paulo, v. 2, n. 12,

p.55-74, dez. 2000.


país que se pensa contínua e periodicamente”3, Ianni traça algumas famílias de
interpretações do Brasil, a partir de alguns temas recorrentes nessas mais diversas obras e
explicações sobre o Brasil. Em todas elas, aponta Ianni, o tema do Brasil colonial é
recorrente, seja como etapa política que antecede a monarquia e a república, seja como
referência a uma economia agrário-exportadora4.

Das famílias de interpretações do Brasil destacadas por Ianni, uma, em particular,


pode ser exemplar para tratar da relação entre centro e periferia no Império Português; é a
família de interpretações que tomam o Estado como “demiurgo da sociedade”.
Interpretações que colocam ênfase numa sociedade civil pouco madura, portadora de certa
debilidade, que não consegue fazer frente a um Estado centralizador.

É o caso, por exemplo, de Raymundo Faoro, para quem, no Brasil, se desenvolveu


um capitalismo politicamente orientado, “centro da aventura, da conquista e da
colonização”5, que teria moldado “a realidade estatal, sobrevivendo, e incorporando na
sobrevivência o capitalismo moderno, de índole industrial, racional na técnica e fundado
na liberdade do indivíduo”6.

De fato, não será difícil encontrar, na tradição do pensamento político e social


brasileiro, o delinear de um raciocínio que conecta os problemas contemporâneos de seus
autores ao passado colonial; com isso, ganhou força entre nós uma certa interpretação do
passado colonial brasileiro marcada por certo “ranço pós-colonial”, que rendia discussões
sobre “a dor e o azar de ter feito parte do Império português”7.

Na interpretação exemplar que Faoro nos legou, a administração colonial no Brasil


marcou-se pela transferência de um Estado centralizador que teria cooptado e subjugado
as elites locais de modo que não pudessem florescer, de tal modo que “o súdito, a

3 IANNI, Octávio. Tendências do Pensamento Brasileiro. Tempo Social, São Paulo, v. 2, n. 12,
p.55 , dez. 2000.
4 IANNI, Octávio. Tendências do Pensamento Brasileiro. Tempo Social, São Paulo, v. 2, n. 12,

p.56 , dez. 2000.


5 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Biblioteca Azul, 2000, p. 633
6 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Biblioteca Azul, 2000, p. 633;
7 SOUZA, O Sol e a Sombra... cit., p. 30
sociedade, se compreendem no âmbito de um aparelhamento a explorar, a manipular, a
tosquiar nos casos extremos”8.

Laura de Mello e Souza aponta para o fato de que Faoro, enviesado pela tarefa de
explicar um país cuja sociedade civil se via sufocada pela centralização estatal, explicou o
Brasil colonial por lentes desfocadas, dirigido por uma concepção de que, em todas os
contextos sócio-políticos, o Estado (perfeitamente transposto da metrópole Portuguesa)
teria antecedido a sociedade e os poderes locais.9

Em Faoro encontramos um representante ilustre, no pensamento político brasileiro,


de alguém que taquigrafou “a difícil e complexa realidade”10 do passado colonial brasileiro.
Tomado pela noção de um Brasil permanentemente marcado por características atávicas,
caracterizou a administração colonial como atravessada por um Estado centralizador, a
ceifar a espontaneidade, o trabalho e a vida política próprias da colônia. Faoro, para isso,
evidencia a diferença entre o processo de colonização inglês na América e a colonização
Portuguesa.

Nas treze colônias, “O Estado, visto o sistema privado de colonização, não


atravessou o oceano”11, de tal modo que “os ingleses transmigrados formaram sua própria
organização política e administrativa, esquecidos do superado resíduo feudal”12. Por outro
lado, no Brasil, uma inicial agitação anárquica dos colonos locais, ainda no século XVI,
teria suscitado uma “renovação da autoridade”13, um revide centralizador, com o que Faoro
conclui que, para o Brasil, a centralização teria sido o meio adequado de dominação
encontrado pela Coroa portuguesa.

Vejamos como Faoro caracteriza a administração colonial no Brasil.

Para Faoro, as funções de fazenda, guerra e justiça da administração colonial no


território brasílico estavam todas diretamente ligadas à figura do Rei: era o monarca que as

8 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Biblioteca Azul, 2000, p. 633.
9 SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: Política e Administração na América Portuguesa
do Século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 33.
10 IANNI, Octávio. Tendências do Pensamento Brasileiro. Tempo Social, São Paulo, v. 2, n. 12,

p.60, dez. 2000.


11 FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Biblioteca Azul, 2000, p. 119.
12 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 119.
13 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 134.
desempenhava e controlava, pelo próprio fato de que essas funções permitiam, de modo
mediato, o controle das atividades econômicas. Se não podia ter controle pessoal de cada
pedaço de terra, de cada decisão judicial e de cada conflito militar, o Rei deveria, então,
contar com agentes públicos. Esses agentes públicos são “o outro eu do rei”14, e, pela força
da centralização demandada, serão apenas sombra de seu rei.

Para Faoro, no entanto, esse é o momento de um Estado absoluto: o rei pode tudo.
E se o “sol” do monarca pode tudo, o mesmo se poderá dizer de seus agentes, suas
sombras. Não haverá proteções, estatutos ou legislações a proteger os direitos individuais
e civis dos cidadãos contra o arbítrio e o despotismo dos funcionários que agem por
delegação da Coroa.15

O titular do cargo público era, a um só tempo, empregado do Estado e nobre.


“Como o emprego público era, ainda no século XVI, atributo do nobre de sangue ou do
cortesão criado nas dobras do manto real, o exercício do cargo infunde o acatamento
aristocrático aos súditos.”16 Com o tempo, o acesso a esses cargos será franqueado também
à burguesia, que passa a adquiri-los por compra dos títulos. O cargo público passa a ser,
assim, a via de amálgama entre o público e o privado, o modo com que todas as classes
sociais podem se submeter à lógica estamental.17

Ao se analisar toda a estrutura administrativa e burocrática da colônia, ensina Faoro,


não se enxerga forte hierarquização. Ao contrário: a única hierarquia existente era entre o
funcionário, de qualquer nível, e o rei, de tal feita que “todos se dirigem ao rei e ao seu
círculo de dependentes, atropelando os graus intermediários de comando”18. Os
governadores e vice-reis não exercem o comando de modo indisputado, porque são
ladeados por outros agentes público como o ouvidor-geral e o provedor-mor. No topo do
comando hierárquico está o rei que, apesar de amplos poderes, os tem limitados pela
existência de alguns órgãos que o flanqueiam.19

14 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 157.


15 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 158.
16 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 162.
17 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 1621-63
18 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 162.
19 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 163.
De que entidades e colegiados se cerca o rei? Primeiro, pelo Conselho de Estado,
ou Conselho del Rei, que é por ele presidido. A ação do Conselho tem como efeito a
distorção e até a desorientação das ordens diretas do Rei; dentro dos órgãos colegiados
estão a nobreza e, surpreendentemente, a burguesia. Há uma incapacidade da sociedade
aristocrática, dessa aliança entre burgueses e nobres, em fixar uma ordem independente do
Estado.20

Assim, Faoro define:

A sociedade colonial não esgota sua caracterização com o quadro administrativo


e o estado-maior de domínio, o estamento. Esta minoria comanda, disciplina e
controla a economia e os núcleos humanos. Ela vive, mantém-se e se articula
sobre uma estrutura de classes, que, ao tempo que influencia o estamento, dele
recebe o influxo configurador, no campo político. O patrimonialismo, de onde
brota a ordem estamental e burocrática, haure a seiva de uma especial contextura
econômica, definida na expansão marítima e comercial de Portugal. A burguesia,
limitada na sua vibração e vinculada nos seus propósitos ao rei, foi incapaz,
incapaz secularmente, de se emancipar, tutelada de cima e do alto. 21

Assim é que Raimundo Faoro dirá que a sociedade colonial brasileira era
efetivamente pré-capitalista, isto é, praticava um capitalismo comercial, ou, ainda, um
capitalismo politicamente orientado. Nesse tipo de prática pré-capitalista, as classes sociais
todas se subordinam ao mando do estamento. Essa posição subalterna caracteriza, de
modo geral, o período colonial e, dirá Faoro, se prolonga “até os dias mais recentes” 22.

Faoro aponta para o fato do atavismo dessa condição colonial: mesmo o Brasil
industrializado não consegue realizar a emancipação das classes sociais. A ascensão social,
para uma posição independente da mediação e clientela do Estado, sempre acaba
desorientada pela ação do estamento. A burguesia, os proprietários e comerciantes, os
industriais e empreendedores, buscam não a possessão de mais bens e de mais ferramentas
para produzir: buscam o afidalgamento. Em vez de buscarem a sua própria emancipação,
pretendem se camuflar mais, domínio político adentro.23

Em lição sobre Faoro, o jurista Fábio Konder Comparato explica:

Para Raymundo Faoro, a sociedade brasileira – tal como a portuguesa, de resto


– foi tradicionalmente moldada por um estamento patrimonialista, formado,

20 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 163.


21 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 163.
22 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 188.
23 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 637.
primeiro, pelos altos funcionários da Coroa, e depois pelo grupo funcional que
sempre cercou o Chefe de Estado, no período republicano. Ao contrário do que
se disse erroneamente em crítica a essa interpretação, o estamento funcional
governante, posto em evidência por Faoro, nunca correspondeu àquela
burocracia moderna, organizada em carreira administrativa, e cujos integrantes
agem segundo padrões bem assentados de legalidade e racionalidade. Não se
trata, pois, daquele estamento de funcionários públicos encontrável nas situações
de “poderio legal com quadro administrativo burocrático” da classificação
weberiana, mas de um grupo estamental correspondente ao tipo tradicional de
dominação política, em que o poder não é uma função pública, mas sim objeto
de apropriação privada.24

Do ponto de vista de sua interpretação geral do Brasil, Faoro aponta que esse pré-
capitalismo colonial nunca deixou a sociedade brasileira. A economia do país ainda
funcionaria a partir do patrimonialismo estatal, que incentiva apenas dois setores: a
especulação financeira e as atividades econômicas que florescem apenas sob a benção do
domínio político; de um lado, o lucro proveniente do jogo e da aventura e, de outro, a
auferição de riquezas por meio da relação de clientela com o poder político, “o, para
satisfazer imperativos ditados pelo quadro administrativo, com seu componente civil e
militar”25.

Em todos os países do Ocidente, anota Faoro, ao pré-capitalismo sucedeu um


capitalismo de tipo industrial, a trazer não apenas as técnicas da indústria, o aparato novo
da Revolução Industrial, mas também uma mudança de cultura política, em especial na
relação com o Estado. Este passa a ser visto não mais como senhor, mas como servidor,
sob a ótica do liberalismo26. No Brasil, essa passagem não teria ocorrido.

Isto, aliás, é tema de outro texto seu, intitulado “Existe um pensamento político
brasileiro?”. Nele, Faoro aduz que o pensamento liberal não teria, por diversas razões,
florescido adequadamente no Brasil. Ausente o pensamento político liberal, a expressar
certas aspirações dentro do contexto social e econômico do país, em especial no período
colonial, estagnou-se o movimento político. 27

Para Faoro, o pensamento político de matriz liberal seria uma etapa necessária para
a democratização do país. Sem que ele tenha ocorrido, também não foi possível ocorrer a

24 COMPARATO, Fábio Konder. Raimundo Faoro historiador. Estudos Avançados, São


Paulo, v. 48, n. 17, p.333., dez. 2003.
25 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 633.
26 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 634.
27 FAORO, Raimundo. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados, São

Paulo, v. 1, n. 1, p.9-58, dez. 1987.


emancipação das classes industriais e sua retirada da “névoa estamental”.28 A democracia,
se não equivale ao liberalismo, poderia dele se aproveitar, a partir de suas ideias de
representação e de direitos. Com o liberalismo, teria sido possível ampliar “o território
democrático, e participativo, conservando, ao superar, o núcleo liberal”29.

A ausência desse pensamento liberal teria ocorrido mesmo pela força da dominação
estamental e do capitalismo politicamente orientado. De uma primeira fase de
patrimonialismo pessoal, concentrado nas figuras dos agentes públicos que operavam por
delegação da coroa, desenvolve-se um patrimonialismo estatal que dá espaço, então, ao
capitalismo politicamente orientado. Ao contrário do feudalismo, esse capitalismo
politicamente orientado sobrevive ao capitalismo de feições industriais.

Ele resiste à liberalização e autonomização das esferas do político e do econômico.


Tal como na colônia, ainda hoje no Brasil, operariam forças de um domínio político que
“impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando” 30.
Persistente a dominação, diz Faoro, de tal modo, que ainda persistente entre nós um
“passado inexaurível, pesado, sufocante”31.

Se mesmo um trabalho ilustrado como o Faoro assim conclui, não será de se


espantar que muitos outros, seja no campo da história, do pensamento político e social
brasileiro e mesmo do direito tenham se enveredado pela mesma representação de uma
relação entre metrópole e colônia marcada pela unidirecionalidade e centralização, por um
domínio absoluto e engessado; neste sentido é que autores como António Manuel
Hespanha32 irão propor que essa tipificação um tanto grosseira da ars regendi do Império
Português seja revisitada e entendida em suas sutilezas.

28 FAORO, Raimundo. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados, São

Paulo, v. 1, n. 1, p. 55, dez. 1987.


29 FAORO, Raimundo. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados, São

Paulo, v. 1, n. 1, p. 56, dez. 1987.


30 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 637.
31 FAORO, Os Donos do Poder... cit., p. 648.
32 Conforme Antônio Filipe Pereira Caetano: “Externamente, o complexo colonial lusitano e as

estruturas do Antigo Regime também foram questionadas com os trabalhos de Charles R. Boxer, A.J.
Russell-Wood, Francisco Bethencourt, Antonio Manuel Hespanha e outros. De um lado, Portugal passava
a não ser visto mais isoladamente e sim inserido em um complexo ultramarino, marcado por uma teia de
relações sociais que o dotavam de amplos tentáculos imperiais que precisavam ser harmonizados; do outro,
sua estrutura política absolutista foi relativizada, demonstrando a existência de um corpo administrativo
Em texto intitulado “Antigo regime nos trópicos? Um debate sobre o modelo
político do império colonial português”33, Hespanha recoloca a questão a partir de suas
pesquisas sobre a administração colonial exercida pelo Império Português, em especial
aquela exercida sobre o Brasil, embora o texto trate, também, de outras colônias que
fizeram parte daquele corpulento Império. Hespanha se contrapõe, em seu texto, à
narrativa de uma relação centralizadora da metrópole portuguesa na ação dirigida às suas
colônias. Para Hespanha, essa é uma narrativa e uma mitificação do real processo de relação
política entre Côrte e colonos, que, em parte, obteve aderência pelas vantagens políticas e
retóricas que oferece:

Do ponto de vista do colonizador português, a imagem de um império


centralizado era ideologicamente compensadora. Ela dava crédito à vocação da
metrópole, permitindo que ela repersonificasse velhos impérios idealizados,
como o romano. Defender o contrário disso, isto é, destacar o papel constitutivo
de elementos periféricos, seria contraprodutivo e permitiria o enfraquecimento
do brilho que tornou o empreendimento imperial esplendoroso. Do ponto de
vista das elites coloniais, um império absoluto, centralizado e opressivo,
justificava mais diretamente uma eterna celebração da própria identidade, da
revolução emancipadora, constituindo mais um fator de autoconfiança da nova
pátria. Isso permitiu apresentar a independência como uma luta heroica contra
o mau governo estrangeiro, ben1 como desresponsabilizar-se das causas dos
infortúnios pós-coloniais, remetendo-os para a responsabilidade dos
colonizadores estrangeiros. Argumentando, nomeadamente, que o constante
aumento da pobreza e a má administração estavam ligados tanto à pretérita
exploração como aos velhos vícios importados do passado colonial. Mesmo o
genocídio de povos indígenas ou a escravização de africanos pôde por
conseguinte, ser como que remetido para o período colonial, apesar do triste
historiai oitocentista e mesmo novecentista. Uma vez posto todo o mal para fora,
a nova nação pós-colonial pôde brilhar imaculada, unida e unificada, livre da
exploração, da segregação étnica e dos preconceitos.34

Assim, Hespanha se propõe a rever essa narrativa, recolocar o papel do Império e,


ao fim, “mostrar a inadequação”35 de uma narrativa na qual metrópole e colônia são

auxiliar e de um poder corporativo e polissinodal.” Cf. CAETANO, Antonio Filipe Pereira. O renascer de
um debate: administração, poder e política colonial. Topoi, São Paulo, v. 18, n. 10, p.77-79, dez. 2009.
33 HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos Trópicos?: Um debate sobre o modelo

político do império colonial português. In: FRAGOSO, José; GOUVêA, Maria de Fátima. Na Trama
das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2010. p. 43-94.
34 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 52.
35 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 52.
espaços políticos bem definidos e bem delimitados, e na qual está pressuposto um
“processo de submissão e exploração”36.

Antes mesmo de tecer os motivos pelos quais não se convence da existência desse
projeto de dominação da metrópole portuguesa sobre seus territórios coloniais, Hespanha
propõe que seja devidamente caracterizado o Estado português constituído no início da
Época Moderna. Esse Estado gozou de uma estrutura que perdurou ao menos até meados
do século XVII. Nessa configuração, o Estado monárquico português não será descrito a
partir de categorias como Estado centralizado, Estado absoluto ou mesmo pela ideia de
Império.37 Hespanha propõe que se entenda a organização política portuguesa desse longo
período a partir da noção de monarquia corporativa.38

Sublinha-se, nesse esquema conceitual, a existência de diversos poderes inferiores


aos poderes reais que efetivamente o limitam39, como é o caso das câmaras municipais, das
jurisdições corporativas e do poder senhorial; outros poderes também limitariam a ação
jurídico-política do rei, como a Igreja e as universidades. Também concorria para a
composição dessa monarquia corporativa a limitação da lei estatutária (direito real). Essa
limitação advinha de diversos outros corpos jurídicos, como a doutrina jurídica comum
europeia, o direito consuetudinário, a religião e a ética40 - e é isto que Hespanha denomina
“pluralismo jurídico”41.

36 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 52.


37 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 45.
38 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 45.
39 “E, quanto às decisões políticas, a vontade do rei estava sujeita a muitos limites. Ele tinha que

obedecer às normas religiosas, porque era o “vigário” (o substituto) de Deus na Terra. Tinha que obedecer
ao direito, porque este não era, como vimos, apenas o resultado da sua vontade. Tinha que obedecer a
normas morais, porque os poderes que lhe tinham sido conferidos o tinham sido para que ele realizasse o
bem comum. E, finalmente, tinha que se comportar com um pai dos seus súbditos, tratando-os com amor
e solicitude, como os pais tratam os filhos. E isto não era apenas poesia. Muitas entidades controlavam o
cumprimento destes deveres do ofício de reinar”. Cf. HESPANHA, António Manuel. As estruturas
políticas em Portugal na Época Moderna. 2001. Disponível em:
<https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3843.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2018.
40 "Também o direito do rei (a lei) não era o único direito. Ao lado dela, vigorava o direito da Igreja

(direito canónico); o direito dos concelhos (usos e costumes locais, posturas das câmaras); ou os usos da
vida, longamente estabelecidos e sobre que houvesse consenso, que os juristas consideravam como de
obediência obrigatória, tanto ou mais do que a lei do rei.” Cf. HESPANHA, António Manuel. As
estruturas políticas em Portugal na Época Moderna. 2001. Disponível em:
<https://www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/amh_MA_3843.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2018.
41 ”A regra mais geral de conflitos no seio desta ordem jurídica pluralista não é, assim, uma regra

formal e sistemática que hierarquize as diversas fontes do direito, mas antes o arbítrio do juiz na apreciação
dos casos concretos ("arbitrium iudex relinquitur quod in iure definitum non est", fica ao arbítrio do juiz
Para além desses dois fatores, a monarquia corporativa, enquanto forma política
limitadora do poder real, contava com a existência de obrigações morais e afetivas, que
efetivamente tolhiam os poderes do rei. Por fim, Hespanha estatui que os oficias régios
eram detentores de jurisdictio, atribuição que protegia o exercício de suas funções até mesmo
contra ordens reais.42

Ao aplicar a lógica do Antigo Regime luso à relação entre o “centro” do Império e


suas “periferias”, Hespanha entrevê a mesma lógica: uma relação na qual se evidencia o
pluralismo jurídico e político, em que se apagam as fronteiras entre metrópole e colônia, e
na qual o modelo de organização se regia “pelo particular e não pelo geral”, isto é, por uma
acomodação da coroa com a sociedade colonial, por uma vontade de poder pragmática e
não programática43. Repassamos, a seguir, alguns dos elementos históricos de que António
Manuel Hespanha se vale para consubstanciar sua afirmação.

O primeiro traço que corrobora essa limitação do poder real de mando sobre as
colônias seria a própria ausência de um status jurídico que unificasse as populações
coloniais. Os povos que viviam nos territórios do império gozavam de diversos estatutos
pessoais, o que formava uma rede plural de vínculos jurídicos e políticos; isto, por sua vez,
atrapalhava a eventual ação da coroa e de seus representantes locais para submeter a
sociedade colonial: não havia regras uniformes para fazê-los.

Regalias, direitos e privilégios dos portugueses, enraizados e existentes pela força


de regimentos locais, não poderiam ser ignorados pelo direito real ou pela ação direta do
rei. Mesmo o direito de empreender guerras com as nações vizinhas sofria limitações, anota
Hespanha, de natureza jurídica e moral.44

A isto, soma-se o pluralismo jurídico que organizava a ordenação e disciplina nas


sociedades dos colonos, do mesmo modo que no território central Português. Assim
descreve Hespanha:

Na verdade, aquilo que a historiografia espanhola identifica como um "derecho


de Índias" era, no Brasil, uma coleção heterogênea de providências jurídicas de

aquilo que não está definido pelo direito)” - Cf. HESPANHA, António Manuel. Direito Comum e Direito
Colonial. Panóptica, Vitória, v. 3, n. 1, p.95-116, dez. 2006.
42 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 46.
43 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 73.
44 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 57.
diferentes graus e tópicos, tornada ainda mais confusa pela prática difusa e
constante do casuísmo, uma característica típica do processo de decisão dos
tribunais de Antigo Regime também nas colônias.49 Longe de um cristalino
império da lei, o que podemos extrair das fontes é uma humilde e confusa colcha
de retalhos de situações jurídicas e soluções jurídicas ad hoc, que a historiografia
tradicional muitas vezes descreve como abuso, ignorância jurídica e confusão,
assim replicando a mesma crítica formulada contra o direito dos rústicos (ius
rusticorum).45

A completar esse quadro de pluralismo jurídico, tem-se o poder dos vice-reis e


governadores. A contrariar a descrição da administração colonial faoriana, na qual a disputa
entre forças centrífugas e centrípetas gera, por fim, uma administração centralizada que
sucedeu em tolher a autonomia das forças do localismo, Hespanha crê que uma “análise
da autonomia dos polos inferiores da cadeia hierárquica poderá demonstrar por qual
cristalina hierarquia burocrática nunca foi estabelecida”46. Explica-se: os governadores
ultramarinos se viam diante da necessidade de decidir sobre os mais diversos
empreendimentos, em localidades desconhecidas por eles próprios e de ambiência política
instável, se comparada à europeia.

Como representantes do rei, os governadores, assim, recebiam poderes como o de


conceder a graça real ou mesmo isentar, concretamente, a aplicação da lei. Decidiam casos
omissos dos estatutos, e poderiam conceder “mercês, ofícios, tenças e perdões de
crimes”47, atribuições típicas dos reis.48 A autonomia periférica se caracteriza, portanto,
pelo extenso poder de governo que os vice-reis e governadores adquiriam.

Como desdobramento dessa autonomia dada aos vice-reis e governadores, há de se


anotar, também, a autonomia administrativa dada a capitães donatários e aos governadores
de capitanias. Esses donatários, posteriormente governadores de capitanias, tinham como
principal atribuição a capacidade de conceder sesmarias, isto é, a concessão de terras que
seriam cultivadas.49 As concessões, de acordo com as instruções gerais emitidas pela Coroa,
poderiam ser dadas arbitrariamente, e com isenção de taxas; Hespanha conclui ser possível
imaginar uma “autonomia local considerável exercida pelas autoridades locais” 50, face a

45 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 58.


46 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 60.
47 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 61.
48 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 60-61.
49 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 62-63.
50 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 63.
essa ampla atribuição de conceder terras agricultáveis - está-se tratando, afinal, de colônias
de plantation, e a autonomia de concessão de terras implica em razoável autonomia
econômica, em outras palavras.

Hespanha destaca também, no quadro que monta para demonstrar seu argumento,
o papel dos tribunais superiores ultramarinos, que tinham prerrogativa até mesmo de tolher
o poder central; detinham, de modo geral, “prerrogativas similares àquelas usufruídas pelos
tribunais supremos da metrópole”51. A acompanhar esse quadro de diferenciação
periférica, anote-se que os ofícios de justiça (notários, escrivães, dentre outros) estavam, a
partir do início do século XVIII, disponíveis para compra pelas elites brasílicas. Isso daria
uma clareza da autonomia com que os “súditos” estariam a praticar o autogoverno, vez
que, sob os cuidados destes ofícios, estariam documentos como os regimentos régios de
doação, as concessões de sesmarias, constituições de morgados, dentre outros afeitos à
distribuição de terras ultramarinas52. A finalizar esse quadro de diferenciação política
periférica, Hespanha põe relevo nas câmaras municipais, que desempenhavam quase o
mesmo papel que as câmaras localizadas no território português.53

Considerações Finais

Como se vê, são muitas as diferenças entre a caracterização feita por António
Manuel Hespanha e aquela elaborada por Faoro; a começar pela própria contextualização
do Estado Português que, para Faoro, era do tipo absolutista e centralizador. Hespanha,
estudioso do Estado Monárquico Português, há muito tem tentado desfazer a imagem de
monarquia centralizadora no período do Antigo Regime luso, representando-a como uma
monarquia de tipo corporativo, em que o poder real é profundamente diluído pelo
pluralismo jurídico e político.

Ao transpor seu raciocínio para as colônias, Hespanha tende a encontrar razões,


inclusive, para duvidar de um projeto de exploração colonial consistente entre metrópole
e colônia. Sabe-se que essa sua conclusão é bastante criticada por parte dos historiadores

51 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 64.


52 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 69.
53 HESPANHA, Antigo Regime nos Trópicos?... cit. p. 70.
brasileiros, inclusive acusada de revisionista. Importa, para nosso ensaio, perceber como a
relativização do poder real, em Hespanha, leva a uma conclusão completamente oposta à
de Faoro, que teria visto, no Brasil, uma continuidade da centralização estatal, a produzir
um capitalismo politicamente orientado, a sufocar a sociedade civil e o desenvolvimento
democrático.

REFERÊNCIAS

CAETANO, Antonio Filipe Pereira. O renascer de um debate: administração, poder e


política colonial. Topoi, São Paulo, v. 18, n. 10, p.77-79, dez. 2009.
COMPARATO, Fábio Konder. Raimundo Faoro historiador. Estudos Avançados, São
Paulo, v. 48, n. 17, p.330-337, dez. 2003.
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. São Paulo: Biblioteca Azul, 2000.
FAORO, Raimundo. Existe um pensamento político brasileiro? Estudos Avançados, São
Paulo, v. 1, n. 1, p.9-58, dez. 1987.
HESPANHA, António Manuel. Antigo Regime nos Trópicos?: Um debate sobre o modelo
político do império colonial português. In: FRAGOSO, José; GOUVêA, Maria de Fátima.
Na Trama das Redes: política e negócios no império português, séculos XVI-XVIII. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 43-94.
HESPANHA, António Manuel. Direito Comum e Direito Colonial. Panóptica, Vitória,
v. 3, n. 1, p.95-116, dez. 2006.
IANNI, Octávio. Tendências do Pensamento Brasileiro. Tempo Social, São Paulo, v. 2, n.
12, p.55-74, dez. 2000.
SOUZA, Laura de Mello e. O Sol e a Sombra: Política e Administração na América
Portuguesa do Século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

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