Ateoria da emancipagao de Karl Marx
Resumo:0 presente artigo pretend intaduir alguns
dos pinciais problemas decomentes da coxisténcia
de duas concepgies concorentes de emancipagaa
resents na teria de Karl Marya saber, a emancpa
pensada como autoemancipaao do prletaiado,
‘em que este assume um papel ativo e constittivo no
Iocesso revlucionro, e a emancipago formulada
4 pat da detorinaganeconinicaprosente na dnd
nica do capitalism, a qual geraria as pré-conigaes
téoncas, soca e também organzacionis para a
emancipaco poletaria
Palavras-chave: Mart, emancipacéo, entice ima-
rete, lta de clases
Rurion Melo
Professor de Teoria Politica na UNIFESP
@ pesquisador do CEBRAP
Abstract: The ail intonds to introduce some of
the main problems that arse from the coexistence of
‘wo competing conceptions of emancipation in Marx's
theory, namely the sel- emancipation ofthe proletariat
through its active and constitutive role in the revolu-
tionary process, and emancipation characterized by
economic determination in present economic dyna~
nics of capitalism, which would create the technical,
social and organizational preconditions for proletarian
emancipation.
Key-words: Kat! Mars, emancipation, immanent c-
tique, class struggle
Ao final do Prefacio para a terceira edigdo alema de O 18 Brumd-
rio de Luis Bonaparte, de Karl Marx, Friedrich Engels nio deixou de re-
forgar que as andlises politicas ¢ a dinamica da luta de classes apresen-
tadas no texto em questo s6 poderiam ser corretamente compreen-
didas se as entendéssemos como parte da “grande lei do movimento
da histéria" que foi descoberta unicamente por Marx. Pois “todas as
lutas histéricas", continua Engels, "sao na verdade apenas expressio
mais out menos clara das lutas entre as classes sociais, € que a existén-
cia €, portanto, também as colisées destas classes sio determinadas
pelo grau de desenvolvimento de sua situacéo econémica’.' Essa nota
1. Engels, F "Vorrede (zur dritten Auflage (1885) ‘Der achtzente Brumaire des
Louis Bonaparte’ von Karl Marx", In: Marx-Engels Werke, Band 8. Berlin: Dietz
Verlag, 1960, p. 562.
35Rarion Melo
de Engels simplesmente explicita diversas outras passagens, presentes
nos textos de Marx, em que os movimentos politicos emancipatérios
de seu tempo sao compreendidos necessariamente segundo a especi-
ficagao histérica do capitalismo, vale dizer, a partir das condigées ima-
nentes de sua transformagio revolucionaria. O passo tedrico mais rele-
vante da atitude critica inaugurada pelo materialismo histérico esta
longe de se limitar & dentincia da luta de classes, mas reside antes em
poder articular teoria e praxis ao simultaneamente descrever 0 processo
real da vida material que compée a sociedade capitalista sem sujeitar
a realidade a um ideal comunista posterior, a “um estado que deve ser
implantado’, pelo contrério, Marx permitiu que a descrico das con-
digdes econdmicas reais que constituem a sociedade civil submetida
a forma capitalista j4 alimentasse o “movimento ¢fetivo que supera 0
estado de coisas atual’?. Também compreendera que uma critica social
teoricamente bem fundamentada permitiria apontar para a possibili-
dade pratica da negacao histérica da prépria sociedade capitalista
A consideragao de certas obras politicas ¢ a recepgao histérica
dos movimentos proletdrios ndo parecem permitir que se rotule Marx
meramente como um determinista econdmico®. A conhecida afirmagio
do inicio do Manifesto do partido comunista, de acordo com a qual “
historia de todas as sociedades até hoje é a histéria da luta de classes",
estabelece no desenvolvimento da teoria de Marx um momento fun-
damental para a formulagéo de sua teoria da emancipagéo, a saber:
2, Engels, E/Marx, K. Deutsche Ideologie. In: Marx-Engels Werke. Band 3, Berlin:
Dietz Verlag, 1990, p. 35.
3. Paraalguns, esse determinismo decorreria do fato de Marx ter cedido demais
4s ciéncias positivas, para outros, a teoria da emancipacio de Marx presst
poria uma filosofia da histéria ainda muito carregada de metafisica. Sobre
essa diferenga, ver Fleischer, H. Marxismus und Geschichte, Frankfurt/M.
Suhrkamp, 1970, parte I. Esse mesmo problema foi exaustivamente tratado
por autores da tradigio do marxismo analitico, tais como Cohen, G. Karl
Marx theory of bistory. A defence. Princeton: Princeton University Press, 2000,
¢ Elster, J. Making sense of Marx. Cambridge: Cambridge University Press,
1985, parte Il. Ruy Fausto defende um modo de apresentacio da histéria mais
complexo em que encontramos diferentes modelos com uma pluralidade de
sentidos, Cf. Fausto, R. "A apresentagao marxista da historia: modelos’. In:
Marx: Légica e politica. Tomo III. Sao Paulo: Ed. 34, 2002.
4, Engels, E/Marx, K. Manifest der Kommunistischen Partei. In: Marx-Engels Werke.
Band 4. Berlin: Dietz Verlag, 1964, p. 462
36 Canennos oe Fivosoria Aewé | n° 18 | pp. 35-58A teoria da emancipagéo de Karl Marx
pensar a histéria da sociedade capitalista e, principalmente, sua trans-
formacdo revolucionéria a partir da capacidade de auto-organizacéo
do proletariado, de sua autodeterminacao politica e de seu papel ative
(sua Selbsttdtigkeit, ou seja, sua autoatividade’) na histéria. A peculiari-
dade da concepcao revolucionaria defendida por Marx residiria “jus-
tamente na Selbsttatigkeit histérica do proletariado", vale dizer, no
principio de autoenancipagio da classe trabalhadora’
Mas a énfase na luta de classes permite, de fato, encontrarmos
na obra de Marx uma alternativa para o risco do economicismo? Uma
vez que a légica reprodutiva do capital constitui a luta de classes e 0
proletariado € posto pelo capital como um momento de seu processo
de valorizagao, “em que base se pode argumentar’, pergunta Jean
Cohen, se “a autoconstituigdo desses agentes da produgio em uma
classe que se opde ao capital pode ser algo a mais do que a afirmagao
subjetiva do préprio capital2"®. Jé que as condigécs da atividade au-
ténoma nao podem ser fundamentadas em valores ou ideias transcen-
5. Cf idem, p. 490.
6. Lowy, M.A loria da reoolugdo no jovem Marx. Tradugio de Anderson Gongalves,
Petrépolis: Vozes, 2002, p. 216.
7. Anogio de uma atividade auténoma permitiria criar uma tensio considersvel
entre necessidade ¢ liberdade no amago da critica imanente na medida em
que oferece um modelo teérico de explicacio de processos emancipatorios
que parece nio depender das razées meramente estruturais do capital. Se os
efeitos reificantes do sistema capitalista diagnosticados nas atividades dos
trabalhadores podem ser pensados como a imposigzo necesséria das leis do
capital sobre a vontade dos individuos, a afirmacio de uma acio livre ¢ au-
ténoma do proletariado implica mostrar que suas atividades nio precisam ser
determinadas pelos interesses de autovalorizagio do capital: a acio politica
de autodeterminagao resultaria, consequentemente, na autoemancipagio do
proletariado diante da Igica de reprodugio capitalista, O determinismo
econémico, segundo essa concepgio, nao teria papel emancipatério consti-
tutivo, uma vez que tal papel seria antes responsabilidade da autodetermina-
50 politica que a teoria da luta de classes poderia corroborar, Cf, Draper,
H. Karl Marx’s theory of rvotution I: The state and bureaucracy. New York: Monthly
Review Press, 2007, capitulo 10. Segundo Draper, esse principio de autoe-
mancipacao encontraria sua formulagio principal na terceira tese sobre
Feuerbach, Cf. Marx, K, "Thesen iiber Feuerbach’, In: Marx-Engels Werke, Band
3. Berlin: Dietz Verlag, 1990, p. 533-4
8. Cohen, J. Class and civil society: The limits of marxian critical theory. University of
Massachussets Press, 1982, p. 163
Capenwos 0 Fitosorta Auema | jul.-dez. 2011 37