You are on page 1of 17

Educação e Pesquisa

ISSN: 1517-9702
revedu@usp.br
Universidade de São Paulo
Brasil

Piassi, Luís Paulo; Pietrocola, Maurício


Ficção científica e ensino de ciências: para além do método de 'encontrar erros em filmes'
Educação e Pesquisa, vol. 35, núm. 3, septiembre-diciembre, 2009, pp. 525-540
Universidade de São Paulo
São Paulo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=29812452008

Como citar este artigo


Número completo
Sistema de Informação Científica
Mais artigos Rede de Revistas Científicas da América Latina, Caribe , Espanha e Portugal
Home da revista no Redalyc Projeto acadêmico sem fins lucrativos desenvolvido no âmbito da iniciativa Acesso Aberto
Ficção científica e ensino de ciências: para além do
método de ‘encontrar erros em filmes’

Luís Paulo Piassi


Maurício Pietrocola
Universidade de São Paulo

Resumo

Obras de ficção científica têm sido apontadas como um recurso


importante para o ensino de ciências. Entretanto, mais do que
um possível recurso didático para facilitar o aprendizado de ciên-
cias, a ficção científica constitui por si só uma modalidade de
discurso sobre a ciência na medida em que expressa, por meio do
cinema e da literatura, interesses e preocupações em torno de
questões científicas presentes que influem diretamente no âmbito
sociocultural. É comum, entretanto, considerar a possível qualida-
de didática das obras ficcionais apenas em função da suposta
correção científica dos conceitos que apresenta, procedimento
esse que ignora as condições de produção do discurso ficcional.
Neste trabalho, propõe-se uma metodologia de análise do con-
teúdo de obras de ficção científica em sua relação com o conhe-
cimento científico, que procura evidenciar, mediante elementos de
análise literária e de semiótica, o processo de construção daqui-
lo que denominamos elementos contrafactuais. Tal análise assu-
me a obra não como um simples recurso didático, mas como um
discurso regido por mecanismos ficcionais e que se vale desses
mecanismos para veicular posições, ideias e debates em torno de
temas científicos atuais. Como resultado, foi produzida uma
categorização dos elementos construída a partir da semiótica
greimasiana, empregando uma base de traços distintivos assumi-
dos como lexemas, para a elaboração das categorias. Cada uma
dessas categorias, ao representar mecanismos narrativos distintos,
tem a potencialidade de uma forma de exploração diferente em
termos didáticos.

Palavras-chave

Ficção científica – Literatura – Cinema – Ensino de ciências.


Correspondência:
Luís Paulo Piassi
Escola de Artes, Ciências e Huma-
nidades da USP
Rua Arlindo Béttio, 1000
03828-000 – São Paulo – SP
e-mail: lppiassi@usp.br

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 525
Science fiction and the teaching of science: beyond
the method of ‘finding errors in movies’

Luís Paulo Piassi


Maurício Pietrocola
Universidade de São Paulo

Abstract

Works of science fiction have been pointed as an important


resource in the teaching of science. However, more than a
possible didactic resource to facilitate the learning of science,
science fiction constitutes in itself a modality of discourse about
science, insofar as it expresses through cinema and literature,
interests and concerns about current scientific issues that impact
directly on the socio-cultural sphere. It is, nevertheless, common
to regard the possible didactic quality of fictional works only in
terms of the supposed scientific correction of the concepts they
present, an attitude that ignores the conditions of production of
the fictional discourse. In the present work a methodology is
proposed to analyze the content of works of science fiction in
their relation to scientific knowledge, trying to reveal through
elements of literary analysis and semiotics the process of
construction of what we called counterfactual elements. The
present analysis views the work of fiction not just as a simple
didactic element, but as a discourse governed by fictional
mechanisms, and that makes use of these mechanisms to convey
positions, ideas and debates around current scientific themes. As
a result, a categorization of these elements was developed based
on the Greimasian semiotics, employing a set of distinctive features
assumed as lexemes in the definition of the categories. By representing
distinct narrative mechanisms, each one of these categories has the
potential to be explored differently in didactic terms.

Keywords

Science fiction — Literature — Cinema — Teaching of science.

Contact:
Luís Paulo Piassi
Escola de Artes, Ciências e Huma-
nidades da USP
Rua Arlindo Béttio, 1000
03828-000 – São Paulo – SP
e-mail: lppiassi@usp.br

526 Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009
Tem sido comum a proposta de empregar Interessa verificar se tais aspectos do erro
filmes de ficção científica — FC — para introdu- (etapa de aprendizagem e procedimento narra-
zir conceitos de ciência em sala de aula tivo) são epistemologicamente conciliáveis, de
(Southworth, 1987; Martin-Diaz et al., 1992; forma a ser possível estabelecer entre eles uma
Dubeck et al., 1990; 1993; 1998; Freudenrich, relação de necessidade. Se não, a ficção será
2000; Dark, 2005). No entanto, muitas vezes, o quando muito um simples recurso para estimu-
potencial didático de uma obra é associado à lar o estudante e facilitar o ensino. Entretanto,
precisão científica das situações retratadas. Assim, se há uma relação intrínseca entre a questão
filmes que exibem cenas fantasiosas ou mesmo conceitual da ciência e a lógica ficcional, talvez
flagrantemente contrárias ao conhecimento cien- seja possível encontrar nas obras de ficção algo
tífico seriam didaticamente menos relevantes do mais profundo do que uma simples estratégia
que as que trazem situações realistas. agradável de ensino.
Nas pesquisas em ensino de ciências, no
entanto, a noção de “erro” conceitual tem sido A ficção científica
examinada com critérios menos valorativos, seja
por aquelas baseadas no desenvolvimento A FC moderna tem origem no final do
cognitivo, derivadas dos trabalhos pioneiros de século XIX com Júlio Verne e H. G. Wells, auto-
Viennot (1979) e de Saltiel e Viennot (1985), res que influenciaram decisivamente as obras
seja pelas ligadas à história e à natureza do subsequentes do gênero. Enquanto Verne produ-
conhecimento científico, que mostram como o zia histórias para maravilhar os leitores com as
desenvolvimento do conhecimento no plano possibilidades de um futuro excitante, Wells
individual está sujeito a indefinições e obstácu- empregava a fantasia científica para a crítica so-
los similares aos da construção do conhecimen- cial. Na década de 1920, nos EUA, os contos
to social da ciência, aspecto já destacado nos voltados para um público popular deu impulso à
anos 1980 por Gilbert e Zylbersztajn (1985). FC, conferindo-lhe características singulares como
Além disso, também não é possível ignorar que forma de criação literária que depois veio a influ-
a obra ficcional segue suas próprias leis: aqui- enciar decisivamente outros gêneros de entrete-
lo que um cientista consideraria um erro pode nimento popular como o cinema, os seriados de
constituir uma estratégia narrativa fundamental TV, os quadrinhos e os desenhos animados.
para que a história atinja o efeito pretendido Contudo, o que é a FC afinal? A maior
pelo autor. parte dos autores reconhece a dificuldade de
Nessas duas vertentes do erro — etapa estabelecer uma definição precisa. Asimov
do conhecimento e estratégia narrativa — há um (1984), por exemplo, a insere em um gênero
aspecto em comum: a apreensão do real a partir mais geral — a ficção surrealista — que retra-
de conceitos para representar o mundo por meio taria “fatos que se verificam em ambientes so-
da linguagem. As pesquisas em ensino menciona- ciais não existentes na atualidade e que jamais
das baseiam-se, sobretudo, em dados da expres- existiram em épocas anteriores”. Na FC, em
são verbal dos estudantes sobre fenômenos e particular, tais fatos “podem ser concebivelmen-
situações. São narrativas sobre o mundo, calcadas te derivados do nosso próprio meio social,
em experiências que embora possuam referênci- mediante adequadas mudanças ao nível da ci-
as na vivência direta com o mundo, são predo- ência e da tecnologia” (p. 16).
minantemente representações culturais coletivas Para Allen (1976), a FC distingue-se “de
da ciência. A FC, por outro lado, destrincha es- outros tipos de ficção pela presença de uma
sas experiências culturais a partir de ideias cien- extrapolação dos efeitos humanos de uma ciên-
tíficas e colocam-nas sob a perspectiva das cia extrapolada” (p. 235). Entendemos a ciência
questões humanas a elas subjacentes. extrapolada de Allen como uma categoria que

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 527
engloba qualquer forma de utilização de ideias dentro dos limites da racionalidade lógico-cau-
científicas para a produção do conteúdo veicu- sal. É orientada para a exploração dos efeitos
lado no texto, ou seja, ela não é o conteúdo em humanos decorrentes do estabelecimento de
si, mas uma diretriz para sua construção. um novum, que é disparador de conjeturas. Daí
Umberto Eco (1989) se aproxima de decorre seu efeito literário.
Asimov ao propor que, na FC, “a especulação Um último aspecto fundamental, que
contrafactual de um mundo estruturalmente terá repercussões especialmente relevantes no
possível é conduzida extrapolando, de algumas uso da FC no ensino de ciências, é o chama-
linhas de tendência do mundo real, a possibili- do sense of wonder:
dade mesma do mundo futurível”, e também de
Allen ao enfatizar o aspecto de antecipação da [...] que pressupõe a presença de um fato
FC que, segundo ele, “assume a forma de uma extraordinário interpenetrando a consciência
conjetura formulada a partir de linhas de ten- do real e do cotidiano, causando, em algu-
dência reais do mundo real” (p. 169, grifos do ma medida, o choque entre o que a consci-
autor). A antecipação, fundada na racionalidade ência admite como parte de sua experiência
científica, serve assim a uma especulação a res- imediata, e esse algo novo que vem desafiar
peito do mundo real. Para o autor, a experiência. (Causo, 2003, p. 78)

[...] a boa ficção científica é cientificamente Tal choque ou perplexidade se torna mais
interessante não porque fala de prodígios importante e eficaz quando o contrafactual que
tecnológicos [...], mas porque se apresenta o produz estabelece uma ligação com o real em
como um jogo narrativo sobre a própria termos de possibilidades sustentadas pela razão,
essência de toda a ciência, isto é, sobre a que é o que faz o discurso da FC. Nesse sentido,
sua conjeturabilidade. (p. 170) Suvin (1984) chama a atenção para o aspecto de
cognição, e Peter Nicholls (apud Causo, 2003)
Na mesma linha, Rabkin (1977) afirma estabelece o conceito de “avanço conceitual”.
que “a variação a partir do conhecimento acei- Não se trata de mero espanto e estranha-
to é uma das características definidoras do mento frente ao incomum, que ocorre em his-
gênero de ficção científica”, acentuando que “o tórias de terror ou fantasia, mas de um
que é importante na definição da ficção cien- estranhamento que obriga a pensar no
tífica não são as justaposições de armas de incomum como uma conjetura plausível e lógi-
raios e aventais de laboratório, mas os hábitos ca, aplicável ao mundo fora da ficção. Tal
mentais ‘científicos’” (p. 120-121). estranhamento terá apoio em elementos presen-
Suvin (1984), por sua vez, afirma que tes na obra, construídos pelo processo de de-
“pode-se diferenciar a ficção científica pelo domí- rivação a partir do ambiente empírico do autor
nio ou hegemonia narrativa de um ‘novum’ (novi- (Suvin, 1984), ao mesmo tempo em negação e
dade, inovação) validado mediante a lógica em continuidade com ele.
cognoscitiva” (p. 94), sendo esse novum entendido A expressão “especulação contrafactual” de
principalmente como a lógica de fundo científico, Eco nos dá uma chave para caracterizar tais ele-
da disposição mental que a narrativa induz. mentos. Contrafactual remete à contraposição de
Entende-se assim a FC não como um fatos. Pode-se, por exemplo, imaginar um animal
gênero que possui qualquer relação com a ci- falante, que nega o fato de que animais não falam.
ência, mas sim que emprega uma racionalidade Uma narrativa pode optar por um caminho não
do tipo científica para produzir conjeturas so- conjeturativo da negação como faz George Orwell
bre a realidade. Por meio da derivação ou va- (1971) em A revolução dos bichos, que não está
riação, sua narrativa é pautada pela conjetura preocupado em examinar consequências do tipo “e

528 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
se os bichos falassem, como seria a nossa vida?”. o aspecto semântico de uma palavra ou, mais
Não há novum, já que os limites da racionalidade precisamente, um item lexical ou lexema a partir
lógico-causal não são considerados e a continui- de componentes fundamentais, que seriam
dade espaço-temporal, ignorada. Caso diferente é unidades mínimas de significado. Como analo-
o filme O planeta dos macacos (Schaffner, 2000), gia, tais unidades mínimas — denominadas
no qual a fala dos animais está inscrita em uma semas — seriam elementos ou átomos que,
continuidade espaço-temporal (ocorre no nosso combinados de diferentes formas, constituiriam
futuro), da racionalidade lógico-causal (o proces- diferentes substâncias ou moléculas. O estabe-
so que leva os macacos a falar é cognoscível den- lecimento do conjunto fundamental de semas
tro da racionalidade científica) e a conjetura- tem, no entanto, certo grau de arbitrariedade,
bilidade ocorre em termos de efeitos humanos: a que depende do conhecimento do significado
guerra nuclear destrói nossa civilização, e os ma- do item lexical. Um exemplo com peças de
cacos nos subjugam. Na FC, a construção do vestuário da categoria dos chapéus é dado por
contrafactual acontece, portanto, a partir de um Pietroforte e Lopes (2005, p. 119):
fato conhecido cientificamente, contrapondo-se a Cada lexema (boné, gorro etc.) é dado
ele por meio da apropriação do discurso científi- pela presença, ausência ou indiferença de certos
co, seja mediante o plano da expressão (termino- traços distintivos (com copa, com abas etc.), que
logias, léxicos, imagens), seja por intermédio do são os semas, ou seja, cada categoria é “caracte-
plano do conteúdo (conceitos, relações, processos rizada pela presença de certo número de semas
de raciocínio). e pela ausência de outros” (Greimas, 1976, p. 48).
Os semas formam uma base de traços distintivos
Elementos contrafactuais: os independentes a partir da qual cada categoria é
traços distintivos delimitada, de forma a distinguir termos que
possuem significados próximos, como é o caso
Para investigar o contrafactual na FC a dos diversos tipos de chapéus.
partir de sua relação com o arcabouço de con- Com isso, é possível construir categorias
ceitos, leis e fenômenos da ciência e do co- com base em critérios razoavelmente bem delimi-
nhecimento tácito comum, procuraremos cons- tados, com a vantagem de ser uma categorização
truir uma categorização que elucide sua cons- expansível e não exaustiva. A partir de um con-
trução a partir de aspectos internos ao texto e junto1 de filmes e contos de FC, é possível veri-
de referências ao conhecimento suposto do ficar as diversas categorias de elementos
conteúdo científico nele veiculado. Para a cons- contrafactuais e que cada uma dessas categorias
trução das categorias, adaptaremos a análise de
traços distintivos da semântica greimasiana 1. No final do artigo, para facilitar a consulta, há uma lista em separado
(Greimas, 1976), que considera possível mapear das obras empregadas para verificação das categorias apresentadas.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 529
desempenha um papel diferente na narrativa e estudo, vamos nos ater a elementos que
produz diferentes efeitos no todo. Sentimos que possam ser indicados como [-sobrenatural].
seria importante delimitar essas diferentes catego-
rias de uma forma razoavelmente precisa, e assim [real]: Atribuição (ou não), ao elemento
utilizarmos a semântica greimasiana, construindo contrafactual, de um caráter de realidade
um conjunto de semas que formam a base para presente, de existência real e constatável
a construção das categorias em si, consideradas no mundo empírico do autor e de seu “lei-
como lexemas. tor implícito”, entendido aqui como define
Embora o uso de marcadores binários não Todorov (2004). É bom observar que a re-
seja capaz de captar determinadas nuances in- alidade em si do elemento, no mundo real
termediárias, a partir dos traços distintivos, po- fora do texto da obra, é irrelevante: o dis-
demos construir categorias de elementos curso da obra é que assume a realidade
contrafactuais razoavelmente delimitadas no que desse fato em pacto implícito com o leitor.
se refere à relação da construção literária com o
conhecimento científico e com as suas corres- [extraordinário]: Elemento contrafactual
pondentes possibilidades de análise em contexto construído e considerado (ou não) como ex-
didático. Passemos então a definir um conjun- traordinário em relação à percepção do leitor
to de traços distintivos independentes que em- implícito. Animais falantes são extraordinários,
pregaremos como base na construção de nossas mas barulhos no vácuo do espaço não o são
categorias de elementos contrafactuais: quando o discurso da obra os assume como
algo comum, esperado pelo espectador.
[científico]: Elemento contrafactual que é
(ou não) construído por associação ao dis- [inusitado]: Elemento contrafactual construído
curso científico. Uma arma laser, por exem- e considerado (ou não) como extraordinário
plo, é geralmente [+científico] e um gnomo, na percepção dos personagens. Observemos
em geral, [-científico]. A classificação, no que algo não extraordinário (um sapato, por
entanto, depende da análise específica da exemplo) para o leitor implícito pode ser des-
obra, o que valerá também para os demais conhecido pelos personagens.
traços distintivos. Embora consideremos
possível — e até importante — a análise das [possível]: Elemento contrafactual assumido
possibilidades didáticas de elementos con- (ou não), pelo discurso da obra, como pos-
tra-factuais do tipo [-científico], acreditamos sível, de acordo com o conhecimento cien-
que tal estudo requer considerações teóricas tífico presente. Deve considerar o contexto
que vão além do escopo deste trabalho, de da criação literária, ou seja, a verificação
forma que todas as categorias aqui analisa- de se o discurso pressupõe que o elemento
das possuirão a marca [+científico]. seja possível de acordo com a ciência.

[sobrenatural]: Elemento contrafactual que [explicado]: Elementos contrafactuais para os


tenha (ou não) implícito em sua construção quais a narrativa constrói (ou não) um contex-
origens não cognoscíveis de acordo com to explicativo por meio de uma rede de rela-
pensamento lógico causal típico da ciência, ções ou formando um encadeamento lógico a
tais como a magia, a mitologia e a religião. partir de premissas assumidas como científicas.
Independentemente da origem, tal aspecto
introduz complicadores na análise a partir [conceitual]: Elementos contrafactuais
do repertório científico, o que exigiria (e construídos (ou não) a partir de conceitos
mereceria) um estudo à parte. No presente científicos, remetendo a concepções bem

530 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
delimitadas e assumidas como de conheci- plifica seu aspecto amedrontador e suas proba-
mento do leitor implícito. bilidades de ocorrência no mundo real. Geral-
mente, tais elementos são o centro de uma
[conexo]: Elementos contrafactuais apresen- narrativa na qual outros elementos derivados
tados (ou não) em uma continuidade lógica do discurso tecnocientífico aparecerão, mas
construída com o mundo ficcional. Há filmes, sem o caráter extraordinário.
por exemplo, em que frascos com substânci- Do ponto de vista didático, isso nos dá
as coloridas fumegantes servem como mera algumas possibilidades. Elementos emulativos
ambientação, sem continuidade causal com [+extraordinário] são em geral o assunto central
outros constituintes da trama. Essa ausência da história. Para que o efeito dramático ocorra,
de conexão será indicada como [-conexo]. é quase certo que as falas das personagens e as
Também marcamos como [-conexo] elemen- relações estabelecidas no enredo constituirão um
tos apresentados como inexplicáveis em rup- discurso [+explicado] em torno desse elemento.
tura com relações causais imagináveis no A análise desse discurso relativamente abundante
contexto da obra. em aspectos conceituais e fenomenológicos po-
dem servir de base para a construção de ativi-
Os cinco filmes empregados foram escolhi- dades didáticas. Outro aspecto é que, muitas ve-
dos dentre diversos sucessos cinematográficos zes, esse tipo de história apresenta a situação
amplamente conhecidos, para os quais existem como um problema a ser resolvido. A formula-
diversas referências de uso didático. Determinados ção de hipóteses, os possíveis caminhos de so-
aspectos, mais perceptíveis a partir do texto escrito, lução, a forma de obtenção de informações, as
foram extraídos de contos de FC. Acreditamos que, consequências e os riscos de cada proposta de
no geral, a análise se aplica tanto às obras escri- solução são aspectos que podem ser objeto de
tas como aos filmes e seriados, embora existam discussão em sala de aula. Elementos [-extraor-
algumas diferenças que não abordaremos neste dinário] geralmente ajudarão a compor uma rede
trabalho. As categorias que construímos a partir de relações para sustentar a verossimilhança da
dos diferentes traços distintivos são as seguintes: história. Sendo assim, embora não desempenhem
um papel central no enredo, podem ser objeto
Emulativos: de análise dentro de um encadeamento maior
[+científico][+real][+possível][+conexo] de elementos e suas relações.
[-sobrenatural][-inusitado] Um dos problemas a ser considerado no
trato com elementos emulativos é que o discurso do
Consideramos emulativos elementos que real neles implícito pode levar o leitor-espectador a
reproduzem de forma mais ou menos fiel o que uma indistinção entre o que é conhecimento cien-
é considerado como existente no mundo real. tífico aceito e o que é criação ficcional ou mesmo,
Nesse caso, o que vai distinguir a FC da obras como aponta Kirby (2003, p. 258), aceitar como
“comuns”, ditas naturalistas, é o procedimento consenso uma visão que na verdade pode ser o
de forçar os limites do real ao extremo, mas sem ponto de vista particular de um consultor científi-
violá-los, utilizando elementos implicitamente co que tenha trabalhado na produção da obra.
reais [+real] e ao mesmo tempo enfatizando o
caráter [+extraordinário] como, por exemplo, o Extrapolativos:
asteróide em rota de colisão com a Terra de [+científico][+extraordinário][+possível]
Impacto profundo (Leder, 1998). Apesar de [+conexo][-sobrenatural][-real]
retratarem situações supostamente previstas
pelo conhecimento vigente, tais elementos re- Para Allen (1976) são extrapolativas as his-
tratam-nas por meio de um discurso que am- tórias “que tomam o conhecimento corrente de

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 531
uma das ciências e projetam logicamente quais as extrapolativas, mas que, apesar da inerente
podem ser os próximos passos nessa ciência” (p. dificuldade desse processo, retratam ciências
22). Partindo disso, consideramos extrapolativos “semelhantes às ciências que conhecemos ago-
elementos [+possível], ou seja, que embora não ra e [...] nelas baseadas” (p. 22). Nessa linha,
possuam existência concreta, são assumidos como definimos como especulativos elementos que se
viáveis, a partir de projeções consensuais do conhe- inspiram nas incertezas, especulações ou mesmo
cimento científico presente, como possibilidade téc- impossibilidades teóricas do conhecimento cientí-
nica ou fenomenológica. O hotel orbital de 2001: fico corrente, mantendo, porém, uma constituição
uma odisseia no espaço (Kubrick, 1968), por exem- conceitual fortemente ancorada na lógica científi-
plo, está razoavelmente inserido nas possibilidades ca. Tais elementos são necessariamente [-possível].
técnicas e científicas da época, embora seu custo e Observe-se, no entanto, que dizer o que é ou não
viabilidade fossem impeditivos. Embora do ponto de de fato possível é muito complicado. Não é dis-
vista lógico, o traço [+extraordinário] não seja ne- so que se trata aqui. O aspecto fundamental é
cessário ao elemento extrapolativo. Para a história de a impossibilidade assumida pelo discurso narra-
FC, não faz sentido a introdução de um novum sem tivo. Os robôs da FC são importantes justamen-
chamar a atenção para seu caráter fora do comum. te porque são assumidos como não possíveis:
Do ponto de vista didático, os elementos seu caráter de [+extraordinário] é construído
extrapolativos [+explicado] fornecem material com base em uma tensão entre essa impossibi-
rico de discussão a respeito de conceitos, leis e lidade assumida e uma possibilidade hipotética
fenômenos, porque permitem a análise das vá- ou concebível.
rias relações estabelecidas pela narrativa. Os ele- Ideias como teletransporte, invisibilidade,
mentos [-explicado], por sua vez, mesmo tendo robôs, alienígenas, imortalidade, viagens no tempo
papel secundário na trama, muitas vezes cha- povoam a imaginação de todos nós e são temas
mam a atenção do espectador, até porque o reiterados em inúmeras obras, e se fazem esse
efeito de [+extraordinário] em geral é salienta- sucesso, é porque devem encontrar ressonância
do pela colocação afetadamente casual do ele- em anseios profundos como viajar instantanea-
mento na sequência dos acontecimentos. Como mente, passear sem ser visto, mas também em
estamos falando de elementos [+possível], cabem receios como a superação dos humanos pelas
atividades que proponham preencher o vazio máquinas, a perda da privacidade e assim por
deixado pela ausência de explicação como, por diante. Isso tem consequências didáticas. O pro-
exemplo, uma questão do tipo: seria possível fessor, sendo o representante do conhecimento
existir tal coisa? Além disso, algum tempo após científico na sala de aula, pode se sentir em situ-
a produção da obra, é possível que, pela evolu- ação crítica se tiver que responder categoricamen-
ção técnica, alguns elementos extrapolativos te se são possíveis a invisibilidade ou a viagem no
possuam similares no mundo real. Um debate tempo. E se consultar livros de divulgação cien-
possível, nesse caso, é o contraste entre como o tífica, artigos científicos ou entrevistas de cientis-
autor havia imaginado o artefato e seu uso e tas, verá que essa dúvida permanece e até se
como ele realmente aconteceu no mundo real. acentua. Abordar em aula elementos especu-
lativos, insere-o no campo da controvérsia, ao
Especulativos: mesmo tempo excitante e ameaçador. Excitante
[+científico][+extraordinário][+explicado] porque é fundamental, é contemporâneo, é de
[+conexo][-sobrenatural][-real] interesse para os alunos abordar o novo, o deba-
[-possível] te atual como defendem Snyders (1988) e Durant
(2005). Ameaçador porque o sistema escolar tem
Allen (1976) chama de especulativas his- certa rejeição a temas controversos como obser-
tórias que imaginam um futuro mais remoto que vam esses mesmos autores.

532 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
A inserção de discussões controversas em exemplos são A casa quadridimensional de
meio aos necessários conhecimentos consensuais Robert Heinlein (1979), no qual um arquiteto
pode acontecer por meio de um processo de construiu uma casa com o formato de um
continuidade: a invisibilidade e a viagem no tem- tesseract projetado em três dimensões que, por
po, analisadas a partir das leis ópticas e mecâni- conta de um abalo sísmico, acaba se dobrando
cas clássicas. No entanto, a discussão completa em quatro dimensões; e Um metrô chamado
necessariamente levará à conjetura a respeito das Möbius de Deustch (1979), no qual trens de um
leis ópticas e mecânicas “imagináveis” e podem metrô desaparecem misteriosamente em função
apontar para as pesquisas de hoje, os conceitos de uma topologia incomum das linhas, que exi-
controversos atuais, as fronteiras do conheci- bem propriedades similares à fita de Möbius.
mento. A obra de ficção coloca a invisibilidade Do ponto de vista didático, acreditamos
e tudo o mais em um contexto de possibilidade que as histórias baseadas em elementos anômalos
imaginada e, em geral, dá uma solução, uma se prestam muito bem à discussão crítica de
proposta, que pode ser analisada criticamente conceitos pela maneira como nos colocam em
em função de sua coerência interna e de sua uma situação distinta da convencional, permitin-
relação com os debates atuais da ciência. Tudo do a exploração de aspectos que uma análise
isso pode dar margem para atividades muito mais linear não seria capaz de captar. Além dis-
ricas e relevantes ao entrelaçar as leis e os con- so, o fato de potencializar a atenção do leitor
ceitos conhecidos com os limites do conheci- por meio do estranhamento estabelece uma re-
mento atual, as formas de produção do conhe- lação com o conceito muito diferente da expo-
cimento e as implicações sociais daí derivadas sição linear, levando-o a atitude inquisitiva, ao
que, em geral, são o aspecto central das obras. levantamento de hipóteses, de possibilidades.
Um trabalho didático relevante pode ser explo-
Anômalos: rar a coerência, a relação da história com o
[+científico][+extraordinário][+inusitado] conceito e a formulação de novas hipóteses que
[-sobrenatural][-real][-conexo] a própria narrativa acaba por induzir.

Denominamos anômalos elementos que Associativos:


são construídos por ruptura explícita com o co- [+científico][+extraordinário]
nhecido. Esse processo é geralmente emprega- [+conceitual][+conexo]
do para explorar alternativas de realidade, se- [-sobrenatural][-real][-explicado]
guindo uma lógica do “e se fosse possível?”.
Apresenta os elementos como impossíveis, de Um processo de construção contrafactual
forma muito clara: sabemos que não é possível é a associação semântica de ideias conhecidas,
retornar no tempo, mas e se fosse? A conexão produzindo um efeito de conjetura sobre possi-
causal com o mundo empírico, que é um dos bilidades. O sabre de luz de Guerra nas estrelas
pilares das definições de FC, está comprometi- (Lucas, 1977) é um bom exemplo. Sabemos o
da nesse caso. No entanto, às vezes, a FC se que é sabre, sabemos o que é luz. Sabre de luz
vale de elementos anômalos, e o processo pelo pressupõe a junção desses dois conceitos, crian-
qual ela faz isso é muito relevante por parecer, do um elemento novo, rico em possibilidades,
à primeira vista, contraditório: a junção, em um que por sua construção associa um conceito
mesmo elemento, do traço [-conexo] com pelo científico a um contexto em que ele não é
menos um dos dois traços que, a princípio, empregado. Quando esse é o principal procedi-
deveriam a ele se opor: o traço [+explicado] e mento usado na construção do elemento contra-
o traço [+conceitual] como forma de produzir factual, não havendo explicações [-explicado],
um efeito de estranhamento intensificado. Dois temos um elemento que poderíamos chamar de

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 533
associativo. Eles são em geral acessórios na com- uma possível justificativa científica dos predi-
posição da obra, de forma que a trama não cados alternativos. Tal é o caso de Super-ho-
gira em redor deles, o que, do ponto de vista mem (Donner, 1978) e seus poderes. A justifi-
didático, reduz um pouco as possibilidades. cativa científica nesse caso é muito simples: ele
No entanto, em alguns casos, eles de- vem de outro planeta, o que é suficiente para
sempenham um papel relativamente central. conferir-lhe poderes especiais. Às vezes, tam-
Assim é com o sabre de luz em relação à Guer- bém se utiliza um termo científico que possui
ra nas estrelas . Nesses casos, embora pratica- significado preciso, mas as relações estabe-
mente todo o conteúdo explicativo esteja ape- lecidas com o contexto do discurso faz com
nas no nome e no aspecto visual, muita coisa que esse significado se perca, tornando seu
pode ser deduzida a partir de sua relação com campo semântico menos definido. Esse é o caso
os demais elementos. Esse tipo de elemento, dos cérebros positrônicos de Isaac Asimov
por possuir como ponto de partida a explora- (1978) em Eu, Robô. Embora o termo pósitron
ção de conceitos, pode dar base a atividades seja bem definido em física, no contexto da
didáticas, que podem ser direcionadas ao exa- obra, ele é apresentado simplesmente para dar
me do uso dos conceitos no contexto apresen- a ideia de um cérebro artificial de alta tec-
tado na obra. É isso que faz Cavellos (1999), nologia. Apesar da terminologia científica, temos
que analisa o sabre de luz do ponto de vista elementos desconectados de explicações ou de
físico, levantando questões que poderiam per- alusões conceituais definidas, portanto, marca-
feitamente ser abordadas em sala de aula: os dos como [-explicado] e [-conceitual]. O vínculo
sabres de luz podem ser lasers? Por quê? Aí que se estabelece com a ciência ocorre por
poderiam entrar discussões conceituais ligadas relações vagas de contexto e não pela constru-
ao princípio da superposição, que implica na ção de uma ciência ficcional convincente. Há
independência dos raios de luz e, portanto, aqui, no entanto, um contrato implícito com o
proíbe um laser de “bater” no outro. Poderia se leitor de que esses artefatos e eventos têm uma
esperar que os alunos explicassem porque se- explicação plausível, embora tal explicação seja
ria impossível construir esse tipo de espada tênue e permaneça na maior parte das vezes
utilizando lasers. apenas no plano da expressão por meio das
Outro caminho poderia ser colocar em terminologias científicas.
xeque o próprio princípio da superposição e Em certas obras, os autores constroem um
tentar extrair daí consequências, o que é muito sistema de elementos extrapolativos e emulativos,
difícil de fazer, mas muito importante também. situando a história em um discurso forte de reali-
Não seria tentar “salvar” o filme, como fazem os dade, para então fazer surgir um elemento tipica-
aficionados, mas usá-lo para examinar o conhe- mente apelativo — algo misterioso, sobre o qual os
cimento científico em seus limites, imaginando personagens e o leitor implícito têm a dúvida e o
possibilidades alternativas de leis e suas conse- desconhecimento como núcleo principal da ação
quências, o que levaria a outras questões sobre que se desenrola em torno dele. Nesse caso, o
a formulação de hipóteses científicas. estranhamento é maximizado e geralmente não re-
solvido. Um exemplo típico disso é o monólito em
Apelativos: 2001: Uma odisseia no espaço (Kubrick, 1968).
[+científico][+extraordinário][+conexo] Nesse caso, pouco se sabe sobre o comportamento
[-sobrenatural][-real][-possível] ou o propósito do objeto. O efeito central deseja-
[-explicado][-conceitual] do é justamente esse desconhecimento. Temos
aqui elementos marcados como [+inusitado].
Em muitos casos, a história estabelece Um aspecto didático fundamental em
não mais que uma vaga conexão ou menção a todos os casos é que os elementos apelativos,

534 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
sendo apresentados como [+extraordinário], poderia existir? Em contraste, imaginemos a
tornam-se focos de atenção. Esse fato em si já pergunta: um ser de outro planeta poderia voar
justifica uma análise do ponto de vista dos como faz o Super-homem? A pergunta faz sen-
conceitos e leis científicas. Não são tão ricos tido, embora, por se tratar de um elemento
quanto os elementos especulativos, já que não apelativo, necessitemos de hipóteses extratextuais
estabelecem relações com uma ciência ficcional (tal como: talvez ele use uma força antigra-
que poderia ser analisada à luz da “ciência vitacional). Por outro lado, é completamente inó-
real”, não possuem uma consistência em sua cuo perguntar se poderia existir um capacitor de
relação com outros elementos e não encontram fluxo, porque essa expressão não diz absoluta-
quaisquer limites para suas possibilidades. As- mente nada mais do que “uma coisa técnica
sim, talvez o melhor caminho em sala de aula qualquer”, não leva a conteúdos semânticos su-
seja analisar a possibilidade pura e simples ficientemente definidos, é apenas um rótulo. Aqui
daquele elemento existir, sem limites claros, se perde a conexão causal com os elementos do
sem relações mais rígidas, em função das leis e enredo, com um traço [-conexo].
dos fenômenos conhecidos pelos alunos. Esses elementos podem parecer infrutí-
feros do ponto de vista didático, mas se ado-
Metonímicos: tarmos o ponto de vista do leitor leigo (por
[+científico][+extraordinário] exemplo, o nosso aluno), veremos que em ge-
[-sobrenatural][-real][-possível] ral é indistinguível um elemento metonímico
[-explicado][-conceitual][-conexo] inventado de um real em termos científicos. Se
um astrônomo em um filme fala em espectro-
É comum, nas obras de FC, tentar-se atri- fotômetro, como o espectador poderá distinguir
buir um ar científico a elementos da história como isso de um multiplexador subespacial? Qual
uma das estratégias de construção da verossimi- deles existe e qual não existe? Somente consi-
lhança. A mera menção de uma palavra com as- derações extratextuais poderão decidir. No en-
pecto científico ou a presença em cena de um tanto, apenas isso já configura uma possibilida-
objeto com aparência de instrumento sofisticado de didática relevante. Em uma atividade de sala
pode cumprir uma função que poderíamos deno- de aula, a análise de um filme pode revelar um
minar como metonímica, por não se referir ao cuidado esmerado do autor em seguir de per-
objeto em si, mas a um campo ao qual ele supos- to a terminologia e os usos cotidianos da ciên-
tamente pertence – no caso, o tecnocientífico. O cia ou, ao contrário, uma série de termos com
processo é uma atribuição ad hoc de adjetivos ar científico, mas que na verdade estão longe
inspirados no léxico da ciência como, por exem- da precisão factual. Isso evidentemente não
plo, no capacitor de fluxo da máquina do tempo pode ser realizado sem um trabalho de pesqui-
automotiva em De volta para o futuro (Zemeckis, sa ou então o professor será um mero informante
1985). Nem o nome nem o aspecto visual do factual, dizendo: isso existe na ciência, aquilo
equipamento são capazes (nem pretendem, a não existe. Se espectrofotômetro é um aparelho
nosso ver) de provocar o efeito associativo que os que de fato existe, será que no filme ele é retra-
sabres de luz produzem. Isso por que nem a tado tal como os espectrofotômetros reais? Se
palavra capacitor nem a palavra fluxo estimulam, um multiplexador subespacial não existe, qual
no leitor, associações com campos semânticos es- será a origem do termo empregado — como o
pecíficos que se apliquem à situação apresenta- autor inventou o termo e que relação ele poderia
da, e as referências ao elemento no discurso da guardar com elementos provenientes da ciência
obra não dão maiores esclarecimentos. e da tecnologia? Isso dá alguma pista a respei-
Ao contrário dos elementos anteriores, to do elemento ficcional tal como ele aparece
para os metonímicos, não vale a pergunta: isso retratado na obra?

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 535
Inalterados: no espaço estariam associadas a concepções
[+científico][-sobrenatural][-real] newtonianas. O exame desse tipo de contraste ou
[-extraordinário][-possível] uma análise crítica de tais elementos têm uma
[-explicado][-conceitual][-conexo] possibilidade importante. Uma discussão possível,
junto com o exame crítico conceitual com os
Feixes laser visíveis no vácuo do espaço, alunos (achar os “erros”), é o questionamento das
gravidade no interior das espaçonaves, são motivações que os produtores tiveram em man-
muito numerosos os “erros” cometidos pelos ter determinados elementos da obra como
roteiristas. Em primeiro lugar, cabe definir me- inalterados, apesar do flagrante desacordo com
lhor de que tipo de “erro” estamos falando e o fatos amplamente conhecidos. A comparação dos
porquê dessas aspas. Quando viajamos de car- fatos com as condições dadas pela experiência
ro por uma estrada, olhamos pela janela e ve- cotidiana e o levantamento de hipóteses sobre as
mos as árvores, as casas e tudo o mais na beira consequências, no desenrolar da história, de con-
da estrada passar pela nossa janela em alta siderarmos as leis científicas, podem ser desafios
velocidade para trás. Na janela das naves espa- conceituais muito estimulantes.
ciais da maioria dos filmes de FC, o mesmo
ocorre com as estrelas, o que é completamen- Considerações finais
te absurdo, dada a enorme distância que separa
a nave das estrelas. Os roteiristas não percebem A FC tem sua própria maneira de falar
que isso é absurdo? Ao contrário. Eles estão, na sobre ciência, que é uma maneira que não encon-
verdade, trabalhando com convenções dadas tramos mesmo em outras expressões ficcionais
pela experiência cotidiana. Estrelas passando que falam da ciência. Ela é didática, porque se
para trás na janela dão ideia de movimento. propõe a veicular ideias, mas não no sentido de
Transporta-se assim, a experiência do automó- explicar o que é a ciência ou ensinar conceitos
vel para a espaçonave e passa-se a ideia de científicos, embora isso possa ocorrer ocasional-
movimento, da velocidade e assim por diante, mente. O que ela veicula, acima de tudo, são as
em flagrante violação com o que seria tal ex- questões que incomodam ou estimulam as pes-
periência no espaço. Como passar a ideia de soas, e que são questões originadas na ciência e
movimento se não usarmos essa convenção? A na nossa relação sociocultural com ela.
opção de Kubrick (1968), em 2001: uma Nesse sentido, a FC não é algo que in-
odisseia no espaço , foi por uma valsa de corporamos na sala de aula como mais um re-
Strauss, mas será que isso cabe em um filme de curso didático, que se submete a nossos obje-
aventura? Denominamos tais elementos de tivos. Uma notícia de jornal, por exemplo, pode
inalterados justamente por reiterarem a experi- ser tirada de seu contexto e analisada em sala
ência cotidiana em um contexto onde, pelas de aula, e certamente ainda estará veiculando
leis naturais, ela não se aplicaria. São elemen- posições ideológicas. Isso vale igualmente para
tos que contrariam o conhecimento científico e a notícia e para a obra ficcional. No entanto, o
a experiência real, mas que não são extraordi- compromisso que a notícia de jornal propõe ao
nários, sendo antes ordinários fora do lugar. leitor é completamente diverso do da obra de
No entanto, esse caráter peculiar acaba ficção. Esta lhe chama o envolvimento. A rela-
por chamar a atenção, e isso dá ensejo a algu- ção aqui é de sedução e ocorre no plano afetivo.
mas possibilidades didáticas. Uma delas, muito A relação do leitor na notícia é com o conteú-
curiosa, foi proposta por Neves et al. (2000), do, mas com a obra de ficção é com a expres-
que associa o movimento das naves em Guer- são. A forma de se dizer algo, na obra ficcional,
ra nas estrelas a concepções aristotélicas de suplanta o próprio conteúdo explícito em si. Na
movimento, enquanto as de 2001: uma odisseia FC, a chamada função poética da linguagem se

536 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
coloca a serviço de uma corrente utópica de na obra. Essa leitura, entretanto, estaria descar-
desejos em relação ao mundo e ela faz isso por tando aspectos fundamentais: a sensação de
meio da indissociável relação entre expressão e estar no espaço, o desejo (e o medo) que a
conteúdo. Essa é uma dimensão que foge às humanidade venha a habitá-la, o medo dos
nossas determinações didáticas e segue a “von- perigos e o desafio de enfrentar as dificuldades
tade” da própria obra ficcional. impostas pela improvável insistência em viver
Não fosse assim, seria desnecessário o em um ambiente espacial.
próprio texto da obra em si. Bastaria, em vez de A FC, mais do que um possível recurso
ler um conto de robô de Isaac Asimov, colocar didático para o ensino de ciências, constitui um
a questão: um dia as máquinas poderão evoluir discurso social sobre a ciência. Isso implica que
a ponto de termos dúvidas se elas serão ou não é possível encontrar nas obras de FC visões,
humanas? Acontece que essa questão, assim debates e questões a respeito das ciências em
descrita, não abarca o efeito e a disposição de voga no momento de produção das obras.
espírito que o conto proporciona. Da mesma Assim, abordar ciência a partir da FC é mais do
forma, um artigo opinativo de um neurocientista que simplesmente procurar conceitos veicula-
ou de um cientista de computação poderia dos em filmes ou livros. Para tal abordagem mais
aprofundar a questão e até esboçar respostas e profunda da obra de ficção, são necessários
opiniões, mas ainda assim não estabeleceria o instrumentos que permitam uma análise que vá
contrato de envolvimento afetivo que a obra além dos aspectos superficiais.
ficcional propõe. Nesse trabalho, apresentamos um cami-
A FC trabalha em um limiar, que é a nho de análise, que parte do exame dos ele-
fronteira entre os sentimentos e a racionalidade. mentos ficcionais estáticos que aparecem nas
A racionalidade, a lógica das conclusões e o histórias de FC. Embora tal análise não consi-
estabelecimento de relações causais podem ser dere os aspectos dinâmicos do enredo, tais
explicitados em um discurso não literário. Os como os personagens, os conflitos e a trama,
sentimentos que expressam angústias, preocu- ainda assim é um ponto de partida revelador
pações, admiração, perplexidade — que são, sobre as possibilidades de uso do trabalho
por assim dizer, a matéria-prima da imaginação ficcional no gênero. Verificamos que é possível,
e da criatividade — só aparecem de forma con- por meio de uma análise sustentada em elemen-
tundente no trabalho ficcional. tos de teoria literária, identificar os mecanismos
Se fosse só por isso, entretanto, qualquer de constituição dos elementos contrafactuais
obra literária seria igualmente válida e teria as em uma obra de FC. Tais mecanismos nos reve-
mesmas potencialidades do que uma de FC, lam mais do que procedimentos ficcionais. Eles
desde que abordasse alguns dos temas em que evidenciam os possíveis caminhos epistemológicos
estamos interessados. No entanto, o que a FC que partem do conhecimento científico em dire-
traz é justamente o estabelecimento de uma ção ao discurso ficcional. Ao fazê-lo, abrem va-
dialética entre o racional e o emocional que está riadas possibilidades de abordagem didática. Cada
no cerne de sua construção, e que está ligado modalidade de elemento traz em si um diferente
àquilo que Suvin (1984) chamou de cognição. potencial didático, que permite a exploração dos
Um trabalho com 2001: uma odisseia no temas científicos sob um ou outro enfoque.
espaço eventualmente poderia ficar restrito às Como o próprio trabalho procurou evi-
questões físicas e astronômicas, à curiosidade denciar, esse instrumento de análise não esgo-
sobre os aspectos racionalmente abarcáveis do ta (nem pretende esgotar) as possibilidades da
ambiente lunar e do espaço, aos movimentos FC no ensino de ciências. Em nossas pesquisas,
das espaçonaves, às características e a todos temos procurado levar em consideração outros
aqueles fenômenos que verificamos descritos aspectos da obra para compor um quadro ge-

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 537
ral. Com isso, pretendemos também estabelecer escreve. E é na leitura crítica que a irrealidade
metodologias mais gerais de análise para produ- da ficção se torna realidade sociocultural, já
tos culturais tecnocientíficos que possam (e têm que toda obra literária fala da experiência hu-
sido) incorporados na educação científica formal. mana de forma legítima, travestindo a realida-
A pergunta que nos fizemos no início do de em fantasia. Nesse sentido, permite colocar
trabalho era se haveria uma relação íntima entre os o estudante frente à obra ficcional como um
“erros” conceituais dos estudantes e os “erros leitor crítico e levá-lo a questionar sua própria
ficcionais” das obras. O que a análise mostra é que experiência vivida com os conceitos da ciência
os tais “erros ficcionais” fazem parte de um espec- no contexto da vida humana. É justamente aí
tro de mecanismos de se contar uma história que que encontramos o valor dos instrumentos de
vão da suposta precisão conceitual dos elementos análise, que permitem ao professor que deseja
emulativos à sua flagrante violação nos inalterados. usar a FC ver além da superfície. Uma aborda-
Tanto um quanto outro, assim como todos eles, gem intuitiva mostra aqui e ali as possibilida-
são fruto de uma interlocução com o conhecimen- des que a FC dá na exploração de múltiplos
to científico. Se nos primeiros a ênfase está em aspectos de valor didático nas aulas de ciência.
simular esse conhecimento, é com a intenção de Procedimentos sistemáticos permitem um pas-
produzir um efeito maravilhoso ou assustador. Se so além: ajudam a tornar o professor um leitor
nos últimos os conceitos básicos da ciência são ig- crítico, capaz de ver nuances e mecanismos por
norados, é porque isso é necessário para contar a trás do que parecia apenas uma aventura espa-
história, porque trazem graça à narrativa. Tanto uns cial divertida, levando-o a compreender estra-
quanto outros são ficção e – nesse sentido – igual- tégias narrativas e significados não percebidos.
mente irreais. Certos ou errados, podem trazer Somente quando o professor for capaz de ver
tanto informações contraditórias à ciência, como algo além da superfície é que poderá mostrar
auxiliar na compreensão conceitual. aos alunos aquilo que não é imediatamente
A tal relação íntima, só a encontramos no visível, de levá-los a refletir sobre a própria
ato de ler, como leitor crítico, aquilo que a obra construção de seu conhecimento.

538 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...
Obras analisadas

ASIMOV, I. Eu, Robô


Robô. 10. ed. Rio de Janeiro: Exped-Expansão, 1978.

DEUSTCH, A. J. Um metrô chamado Möbius. In: ASIMOV, I. Para onde vamos? São Paulo: Hemus, 1979. p. 137-152.

DONNER, R. (Dir.). Super-homem – o filme. Vídeo. VHS. Cor. 143 min. Warner, 1978.
Super-homem

HEINLEIN, R. H. A casa quadridimensional. In: ASIMOV, I. Para onde vamos? São Paulo: Hemus, 1979. p. 93-11.

KUBRICK, S. 2001: uma odisseia no espaço


espaço. Vídeo. DVD. Cor. 148 min. Warner, 1968.

LEDER, M. (Dir.). Impacto profundo


profundo. Vídeo. DVD. Cor. 121 min. Paramount, 1998.

LUCAS, G. Guerra nas estrelas


estrelas, episódio IV: a nova esperança. Vídeo. DVD. Cor. 121 min. Fox, 1977.

SCHAFFNER, F. J. (Dir.). O planeta dos macacos


macacos. Vídeo. DVD. Cor. 112 min. Fox, 2000.

ZEMECKIS, R. (Dir.). De volta para o futuro


futuro. DVD. Cor. 115 min. Universal, 1985.

Referências bibliográficas

ALLEN, L. D. No mundo da ficção científica


científica. São Paulo: Summus, 1976.

ASIMOV, I. No mundo da ficção científica


científica. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984.

CAUSO, R. S. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil


Brasil: 1875 a 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

CAVELLOS, J. A ciência de Star Wars


Wars. São Paulo: Market Books, 1999.

DARK, M. Using science fiction movies in introductory physics. Phys. Teach.


each., v. 43. oct. 2005. p. 463-465.

DUBECK, L. W. et. al. Science fiction aids science teaching. Phys. Teach.
each., may 1990. p. 316- 319.

______. Sci-Fi in the classroom: making a “deep impact” on young people’s interest in science. Mercur
Mercuryy , nov./dec. 1998. p. 24-28.

______. Finding facts in science fiction films. Sci. Teach.


each., apr./1993. p. 48.

DURANT, J. O que é alfabetização científica. In: MASSARANI, L. et al. (Org.). Terra incógnita
incógnita: a interface entre ciência e público.
n. 4. Rio de Janeiro: Vieira & Lent; UFRJ; Casa da Ciência: FIOCRUZ, 2005. p. 13-26. Coleção Terra Incógnita.

ECO, U. Sobre o espelho e outros ensaios


ensaios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

FREUDENRICH, C. C. Sci-fi science: using science fiction to set context for learning science. The Science Teacher
eacher, v. 67, n. 8, nov.
2000. p. 42-45.

GILBERT, J. K.; ZYLBERSZTAJN, A. A conceptual framework for science education: the case study of force and movement.
European Journal of Science Educa tion
Education
tion, v.7, n. 3, 1985. p. 107-120.

GREIMAS, A. J. Semântica estrutural


estrutural. 2. ed. São Paulo: Cultrix; Edusp, 1976.

KIRBY, D. A. Science consultants, fictional films and scientific practice. Social Studies of Science
Science, v. 33, n. 2, apr. 2003. p. 231-268.

MARTIN-DIAZ, M. J. et al. Science fiction comes into the classroom: maelstrom II. Phys. Educ.
Educ., v. 27, 1992. p. 18-23.

NEVES, M. C. D. et al. Science fiction in physics teaching: improvement of science education and history of science via informal
strategies of teaching. Recen.
Recen., v. 1, n. 2, 2000. p. 91-101.

ORWELL, G. A revolução dos bichos


bichos. Porto Alegre: Globo, 1971.

Educação e Pesquisa, São Paulo, v.35, n.3, p. 525-540, set./dez. 2009 539
PIETROFORTE, A. V. S.; LOPES, I. C. A semântica lexical. In: FIORIN, J. L. (Org.). Introdução à linguística
linguística. 4. ed. São Paulo:
Contexto, 2005. v. II, p. 111-135. Princípios de Análise.

RABKIN, E. The fantastic in litera ture


literature
ture. New Jersey: Princeton University, 1977.

SALTIEL, E.; VIENNOT, L. Que aprendemos de las semejanzas entre las ideas históricas y el razonamiento espontáneo de los
estudiantes? Enseñanza de las ciencias
ciencias, 1985. p. 137-144.

SNYDERS, G. A alegria na escola


escola. São Paulo: Manole, 1988.

SOUTHWORTH, T. Modern physics and science fiction: a mini-unit for high school physics. The Physics Teacher
eacher, feb. 1987. p. 90-91.

SUVIN, D. Metamorfosis de la ciencia ficción


ficción: sobre la poética y la história de um género literario. Cidade do México: Fondo de
Cultura Económica, 1984.

TODOROV, T. Introdução à litera tura fantástica


literatura fantástica. 3. ed., n. 98, São Paulo: Perspectiva, 2004. Coleção Debates.

VIENNOT, L. Spontaneous reasoning in elementary dynamics. Eur


Eur.. J. Sci. Educ.
Educ., v. 1, n. 2, 1979. p. 205-222.

Recebido em 28.12.08

Aprovado em 18.08.09

Luís Paulo Piassi, doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (2007), professor doutor da Escola de Artes,
Ciências e Humanidades da USP, orientador do programa de pós-graduação interunidades em ensino de ciências da USP,
atua em pesquisas sobre recursos didáticos para o ensino de ciências com ênfase na relação entre literatura, cinema e
ensino de ciências.

Maurício Pietrocola, bolsista de Produtividade em Pesquisa 1C CNPq, orientador de doutorado, doutor em Epistemologie
Et Histoire Des Sciences pela Universite de Paris VII - Universite Denis Diderot (França), livre docente pela Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo, atua em ensino-aprendizagem com ênfase em métodos e técnicas de ensino e é
membro correspondente internacional do Recherches Epistémologiques et Historiques sur les Sciences Exactes (França).

540 Luis Paulo PIASSI e Mauricio PIETROCOLA. Ficção científica e ensino de ciências:...

You might also like