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DOI: 10.1590/1413-81232018236.

06082018 2043

SUS-30 anos: um balanço incômodo?

ARTIGO ARTICLE
The first 30 years of the SUS: an uncomfortable balance?

Lenir Santos 1

Abstract This article takes stock of the imple- Resumo O presente artigo faz um balanço do
mentation of Brazil’s public health system in the SUS a partir da Constituição da República de
period since the promulgation of the 1988 Con- 1988, a qual incluiu dentre suas normas, o direito
stitution, which enshrines the right to health. It à saúde. Analisa-se a organização administrativa
analyzes issues affecting the organizational ef- e sanitária do SUS, assim como o seu financia-
fectiveness of health service provision such as mento; as questões federativas, principalmente o
funding and relations between different spheres papel do município na Federação, também a cen-
of government. It focuses on the role of local gov- tralização na União de competências legislativas,
ernment, the centralization of legislative powers, fato que enfraquece o Estado-membro e permite
which has been shown to weaken the member a política do compadrio; e outros aspectos rele-
states, and the financial dependence of local and vantes. O não desenvolvimento dos municípios,
state governments on federal government and how tornando-os dependentes das transferências de
this has affected policy implementation. It also recursos da União, é examinado à luz de sua afe-
touches on other issues such as regionalization, tação à execução das políticas públicas. Outras
poor planning, federal centralism, and Ministry questões, como a regionalização, o planejamen-
of Health-local government relations, which have to insuficiente, o centralismo federal sanitário,
hampered state coordination of regional health as relações Ministério da Saúde-município, que
systems. To close, we put forward some final con- retardam a coordenação regional do sistema de
siderations for improving the implementation of saúde pelo Estado, algumas propostas de melhor
policies oriented towards the development of SUS execução e a efetivação das políticas estruturantes
structures. do SUS, que devem estar definidas em lei e não em
Key words SUS, Federalism, Funding portarias, são objeto do artigo que se fixou nos
principais aspectos do SUS nos últimos 30 anos.
Palavras-chave SUS, Federalismo, Financia-
mento

1
Instituto de Direito
Sanitário Aplicado. R. José
Antonio Marinho 450,
Barão Geraldo. 13084-
783 Campinas SP Brasil.
santoslenir@terra.com.br
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Santos L

Introdução de e liberdade, usando-se o poder político para


benefícios seletivos numa sociedade que ainda
Comemorar 30 anos de Constituição nos faz não perdeu seu viés oligárquico porque o Brasil
lembrar uma frase de Rubem Alves “Hoje não mal conseguiu viver o estado de bem-estar social.
há razão para otimismo. Hoje só é possível ter Com o capitalismo financeiro globalizado, que
esperança”1. Uma data que se comemora sem arrefece as garantias individuais e sociais, vê-se
otimismo ante o cenário de corrosão do poder agravada a situação de quem nem chegou a vi-
político que amargura a vida do cidadão, além vê-lo em sua profundidade e a transformar cida-
dos constantes ataques à Constituição de que o dãos em consumidores, onde o poder de compra
mal fiscal do Estado habita as garantias dos di- é o marco distintivo entre as pessoas em detri-
reitos fundamentais ali consagradas. Devemos mento da dignidade.
ter o ânimo dos fortes que resistem e perseveram Muitas crenças, talvez ingênuas pela configu-
porque a esperança e o renascimento são o fer- ração histórica do país, não se realizaram, como
mento do processo evolutivo político-social. Não o fortalecimento e melhoria dos serviços públi-
temos otimismo, mas temos esperança. E quan- cos pela descentralização político-administrati-
do o otimismo falha, devemos ser mais atuantes e va decorrente do federalismo trilateral, que não
combatentes para a esperança se transformar em alcançou autonomia financeira correspondente
realidade. para lastrear as obrigações definidas constitu-
Após 20 anos de penumbra, no final dos anos cionalmente para os municípios, mantendo-os,
1980, a sociedade fez os ventos soprarem a seu em sua maioria, dependentes dos repasses dos
favor, dando luz à Constituição que primou pelo fundos de participação, sem desenvolvimento
respeito à dignidade humana, à solidariedade en- econômico capaz de alçá-los à real condição de
tre as pessoas, à justiça social, abandonando os ente político autônomo, administrativa e econo-
resquícios da mesquinhez e obscurantismo que micamente.
assolaram o Estado por duas décadas. Entrevê-se em suas práticas, a reprodução da
Uma Carta Constitucional que na sua geo- política do compadrio e apadrinhamento, sub-
grafia normativa prioriza o ser humano sobre serviência política, atraso administrativo e bai-
as estruturas do Estado e temas orçamentários xa expectativa de diminuição das desigualdades
e econômicos ao dispor primeiramente sobre os sociais, que enche de brumas a justiça social e o
direitos e garantias fundamentais da pessoa. A desenvolvimento emancipador das pessoas. Não
Constituição de 1988 assume como ponto de par- são poucos os autores que se debruçaram sobre
tida a gramática dos direitos, que condiciona o a política do compadrio, da cooptação política,
constitucionalismo por ela invocado2. Uma Cons- sendo destaque Raymundo Faoro que mostrou
tituição a favor dos seus cidadãos. Foi a esperan- as estruturas do Estado brasileiro como um esta-
ça (e o medo) que fez renascer o ânimo de uma mento burocrático à disposição de uma elite que
constituição-cidadã que garante direitos indivi- a domina, não sendo, como deveria, o resultado
duais e sociais e impõe, dentre os objetivos da Re- de uma construção histórica cultural, social, eco-
pública, a diminuição das desigualdades sociais nômica3.
e regionais e a erradicação da pobreza. O direito Nesse cenário, a saúde foi deveras um avanço
associado à ética fez surgir como princípio cons- impar ainda que não tenha se consolidado ple-
titucional a dignidade das pessoas, num reconhe- namente, em diuturna luta pela universalidade
cimento do valor intrínseco da natureza humana. do acesso à serviços públicos, financiamento
Infelizmente, ao chegar aos 30 anos, vive-se adequado, qualidade e quantidade adequada às
um período de grave perturbação da ordem po- necessidades de saúde, combate às investidas de
lítica, social, moral, com os alicerces da Repú- se vender o slogan de que direitos que custam,
blica a carecer urgentes reparos pelas fissuras a como a saúde, (todos custam pelos aparatos de
escancarar a promiscuidade entre o público e o sua proteção, conforme bem discorre Scaff4), não
privado; entre os poderes Legislativo e Executivo, cabem no orçamento público, criando o falso
imiscuídos em seus papeis, levando a sociedade dilema do capitalismo pós-moderno de que a
a se salvaguardar no Judiciário, que por sua vez, austeridade fiscal por si só é a mola propulsora
também tem dado mostras de que os estragos es- do crescimento social e que a garantia de direitos
tão a bater em sua porta e que algumas vezes ela advém tão só de seu resultado.
se abre. O direito num Estado Democrático, não Além do financiamento, a sua gestão não me-
pode ser legislado para atender interesses desti- receu investimento para a sua modernização que
tuídos do fundamento democrático da igualda- aguarda uma reforma administrativa que vise à
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qualidade dos serviços; não foram dados passos em um mesmo sistema, fundados nos mesmos
para melhorar os aparatos públicos necessários princípios, organizados sob as mesmas diretri-
ao alcance de suas finalidades, privilegiando-se o zes, ainda que as responsabilidades quanto à sua
controle de “papéis” e não dos resultados; pare- execução, sejam diferenciadas para garantir equi-
ce que manter as ineficiências chega quase a ser dade federativa ante as profundas assimetrias
um projeto de aliar “Estado” à incompetência. Por existentes).
que não se nega e nada se faz contra os oportu- A Constituição de 1988 visou descentralizar
nismos dos legisladores e governantes que não a execução das políticas públicas, notadamente
querem mudança em seu sentido real e por isso as sociais, contudo, garantiu à União mais de 50
a administração pública brasileira continua a se competências (material e legislativa), centrali-
manter ineficiente? zando a iniciativa legislativa, em especial as tri-
O que este artigo pretende é fazer um balanço butárias, ficando os estados com a competência
sobre a organização e o funcionamento do SUS; residual, diminuindo sua independência.
a falta de política pública estruturante do setor Mesmo a saúde, que tem concepção constitu-
fundada na lei; o baixo financiamento; o planeja- cional interfederativa (art. 198 da Constituição),
mento insatisfatório, assim como a região de saú- não escapou desse centralismo. Ainda que o SUS
de e suas redes que não se cumpriram a contento, se constitua como modelo integrativo de servi-
sendo crescentes e não decrescentes às desigual- ços federativos, vivendo uma interdependência
dades regionais. São estes os principais dilemas sistêmica (federalismo cooperativo), que exige
do SUS aqui examinados, que comportariam ou- planejamento que contemple as necessidades lo-
tros olhares como a atenção básica, a assistência cais e regionais de saúde para que o local não se
farmacêutica; a incorporação de tecnologias em perca no nacional, isso nem sempre foi fato pela
saúde; o público e o privado, a participação social, dependência de transferências de recursos da
a judicialização, mas não são objeto do estudo. União para os estados e municípios e dos estados
para o conjunto de seus municípios (a política da
Os entes federativos e a competência cenoura e da vara6) que deveriam ser pautados,
para cuidar da saúde: descentralização na forma da lei, por critérios previamente defi-
política e executiva nidos, a divisão dos recursos ainda não cumpre
com esta obrigação.
A Constituição distribuiu igualmente en- Ao lado da necessidade de se equalizar as polí-
tre os três entes federativos a responsabilidade ticas para a manutenção sistêmica dos serviços de
pelas ações e os serviços de saúde, na forma do saúde, o centralismo regulatório infralegal extra-
disposto no art. 23, II. Conferiu à União e ao Es- polou esse papel, levando a União, no âmbito do
tado competência concorrente para legislar sobre Ministério da Saúde, a editar, desde os anos 1990,
saúde (art. 24, XII) e definiu como diretriz orga- mais de 700 portarias normativas, definindo, em
nizativa do SUS a descentralização, com direção minúcias, a aplicação dos recursos das transfe-
única em cada esfera de governo, no sentido do rências, traçando as políticas de saúde, próprias
princípio da subsidiariedade que pressupõe que do Legislativo em sua dimensão estrutural. (Por
aquilo que o município pode fazer, o estado não oportuno, lembro que em 2016-2017 foi elabo-
deve fazê-lo, tanto quanto a União em relação ao rado em um trabalho pelo Ministério da Saúde,
estado. Tal princípio tem pautado as administra- em parceria com a Fiocruz, que analisou cerca de
ções públicas modernas pela necessidade de se 17 mil portarias [normativas e não normativas],
colocar próximo do sujeito quem responde pelas tendo discriminado por volta de 700 portarias do
obrigações estatais5. Governar não é ficar distan- Gabinete do Ministro de caráter normativo, afora
te da sociedade, do eleitor e da voz do povo. A as dos gabinetes dos Secretários que não foram
proximidade facilita a transparência e a partici- objeto do estudo. Essas portarias normativas fo-
pação social e garante a verdadeira democracia ram consolidadas em 6 de consolidação, as quais
que deve mesclar a representatividade popular contêm mais de 10 mil artigos, por uma equipe
com a sua participação direta. (Nesse passo não de pesquisadores no projeto denominado SUS-
poderíamos deixar de chamar a atenção para essa LEGIS. Os conteúdos são os mesmos por se tratar
responsabilidade comum entre os entes federa- de uma consolidação).
tivos no cuidado com a saúde que não pode ser Ainda que haja pactuação tripartite no âm-
tomada como solidária no sentido de que todos bito da Comissão Intergestores Tripartite (CIT),
devem cuidar da saúde do mesmo modo, mas sim o dono do poder pode impor os consensos pela
que todos devem integrar seus serviços e ações cooptação política. Arretche7 emprega o termo
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joint-decision trap (teoria defendida pelo germâ- vislumbre de crescimento econômico emancipa-
nico Fritz W. Scharpf8), que veste bem em nos- tório, sujeitando-os ao poder político federal e
so modelo político de centralização de poder na estadual (o mesmo se diga de determinados es-
União. Alguém duvidaria do poder de influência tados). Dados recentes do Tesouro Nacional11 de-
do responsável pela transferência dos recursos, monstram o alarmante nível de dependência dos
se os critérios não forem os da lei? A política da municípios em relação às receitas orçamentárias
cenoura e da vara que pode em algumas situa- de transferências federativas; 81,98% dependem
ções ser boa para equalizar políticas de interesse das mesmas, com 1,81% independentes.
nacional, pode também servir a outros interesses A tridimensionalidade federativa tem deixado
(E no SUS não poderia prevalecer por haver cri- a desejar pelo baixo desenvolvimento socioeco-
térios legais para as transferências, ainda que não nômico dos entes, que apartados não conseguem
cumpridos). lograr efeito na garantia de serviços públicos que
Mesmo assim, caminhou-se no sentido da estão a seu encargo; que sofrem dificuldades por
descentralização. Nos anos 1990, os municípios não casarem encargos com recursos financeiros
adotaram o lema a “municipalização é o cami- e desenvolvimento compatível com a autonomia
nho”, significando a necessidade de o Estado pas- constitucional do ente municipal. E a saúde nes-
sar para os Municípios os serviços que estavam se cenário terá suas dificuldades acentuadas em
sob a sua responsabilidade mas que deveriam ser relação às crescentes obrigações não acompanha-
deles; idem quanto aos federais. das dos recursos financeiros necessários, ainda
Isso deveria ter dado à União um novo papel mais em tempos de EC 95, de 2016, contudo, não
na relação interfederativa do SUS, a quem cabe- podemos deixar de entender como admirável o
ria regular nacionalmente o sistema para manter esforço dos municípios na assunção de seu papel
a sua unidade nacional, atuando como fiel da ba- de prover políticas de saúde, ainda mais quando
lança na diminuição das desigualdades regionais, se sabe que a descentralização federativa não foi
equalizando as diferenças federativas; avaliando acompanhada das inúmeras tarefas nacionais in-
e fiscalizando; fomentando estruturas informa- tersetoriais para o seu melhor desenvolvimento.
tizadas que permitissem unificar dados de saú- Os municípios têm sido o esteio do SUS para a
de, bem como as vigilâncias em saúde, atuando população. Mais de 40% dos estados não aplicam
como regulador das assimetrias federativas para o mínimo de 12% na saúde; contudo 100% dos
diminuí-las, sem olvidar seu papel junto a Minis- municípios aplicam acima do mínimo de 15% na
térios afins no sentido de se concretizar a inter- saúde, chegando a média de 26%12. Afora a ques-
setorialidade, crucial para evitar agravos à saúde. tão da modernização da Administração Pública
As negociações diretas entre o Ministério da que é criticada a quatro cantos, sem que se mova
Saúde e os municípios, a partir dos anos 1990, ex- uma palha para a sua mudança. Os problemas
cluindo os estados, os construtores da saúde re- são identificados e divulgados, ante uma paralisia
gional ao lado de seus municípios, causou fissu- absurda daqueles que detém o poder para pro-
ras nas relações tripartites, que se firmaram com mover mudanças nas estruturas da Administra-
a mitigação do papel do Estado, inclusive a regu- ção Pública.
latória, que se deu em profusão no âmbito federal
que agia como se as assimetrias municipais pu- Da descentralização para a regionalização:
dessem ser supridas por portarias definindo de o que aconteceu no caminho
modo igual, do Oiapoque ao Chuí, a organização
de serviços, como se a métrica regulatória fosse Por que o SUS até hoje não conseguiu lograr
capaz de abolir a desigualdade federativa. Não há qualidade em sua regionalização, com regiões de
região de saúde sem o protagonismo do Estado- saúde demarcadas mais pelas proximidades ter-
membro e por isso a região de saúde até hoje não ritoriais do que pela capacidade sanitária de ga-
é uma realidade concreta. A região de saúde con- rantir atendimento às suas demandas? Ainda que
tinua sendo um objetivo não alcançado, em que existam 438 regiões de saúde elas não são capazes
pesem as 4389 regiões em todo o país. de atender as necessidades das pessoas no seu ter-
Desde a instituição do SUS, ao invés de se ritório sendo resolutivas em 90% dos casos. São
unirem os municípios nas regiões de saúde, mui- regiões que referenciam para outras, demandas
tas vezes, parte dos 5.570 municípios, dos quais que devem ser de cada uma.
73% tem menos de 20 mil habitantes10, se deba- A Constituição, em seu art. 198, impôs a re-
teram na arena pública, na luta pela sobrevivên- gião de saúde ao determinar a integração das
cia financeira face às suas responsabilidades, sem ações e serviços de saúde dos entes federativos
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de modo regionalizado e em redes de atenção à põe conhecimentos aprofundados das necessi-
saúde, sem lei regulamentando suas condições; dades de saúde sob a dimensão epidemiológica,
somente em 2011 foi editado o Decreto nº 7.508, socioeconômica, demográfica, com metas claras
regulamentando aspectos da lei, quando tratou e precisas, como o alcance de qualidade e sufi-
da região de saúde. Nesse ínterim – 21 anos – a ciência na atenção básica, capaz de atendimento
região de saúde foi pautada por portaria minis- de 85% da população, também se constitui como
terial, insuficiente em seus conceitos e força nor- uma falha na organização do SUS.
mativa. Lei nacional deve dispor sobre a região de As conferências loco-regionais são verda­
saúde e o papel do Estado-membro. (Tramitam deiramente o modo de realização do planejamen-
dois projetos de lei sobre o tema, um na Assem- to ascendente, por acontecer em todo território
bleia Legislativa do Estado de SP – Projeto de lei nacional, dando ensejo à Conferência Nacional
nº 120 e outro na Câmara Federal, Projeto de Lei de Saúde. Contudo, não podemos negar que
nº 1.645). seu formato executivo nem sempre incorpora as
Ser sistêmico, único e descentralizado do necessidades regionais para fundamentar a for-
ponto de vista político, exige aglutinação regional mulação de diretrizes nacionais. A Conferência
para garantir que o cidadão de um município de Nacional de Saúde deve encampar no nacional
pequeno porte possa ver satisfeita a sua necessi- as necessidades regionais de alcance local, mas de
dade de saúde em rede articulada, regionalizada, modo mais amplo, como standards, não poden-
contínua e delimitada em espaço regional. Ora, do prever minúcias, próprias dos planos locais. A
tal complexidade organizativa, autonomias e in- participação social é imperativa no SUS, devendo
terconexões federativas, certamente exigem lei es- se expressar pelas conferências de saúde e conse-
tatuindo limites, conformação, responsabilidades lhos de saúde quanto às estratégias para defini-
sanitárias, governança interfederativa, escala, re- ção da política de saúde, sua aprovação e acom-
ferências e outros aspectos, conforme ocorre em panhamento de sua execução, nos termos da lei.
muito menor escala com as regiões metropolita- Nesse ponto importa dizer que a falta de ma-
nas13 que tem lei regulando-a. O Decreto nº 7.508, cropolíticas de saúde fundadas em lei, de diretri-
de 2011, talvez tenha sido o “novo” em 21 anos zes e bases sistêmicas, talvez tenha sido um aspec-
de Lei Orgânica da Saúde, sem tirar o mérito da to que alimentou o subfinanciamento da saúde
NOB 01/93, que talvez tenha sido a portaria mi- e ensejou uma judicialização fracionada, indivi-
nisterial mais inovadora depois da Lei nº 8.080. dualizada, com o Poder Judiciário definindo no
O Decreto nº 7.508, de 2011, que preencheu individual o que deveria ser coletivo. Os repre-
lacunas organizativas no SUS, é uma baliza im- sentantes do povo, o legislativo, e os governantes
portante para a regionalização, como é o caso do devem decidir sobre as políticas públicas, caben-
contrato organizativo de ação pública da saúde do à Administração Pública a sua execução e suas
que garante segurança jurídica e transparência minúcias. Paula Dallari Bucci15 expressa que a
nas relações interfederativas regionais, contudo interação entre Legislativo e a direção governa-
não tem sido cumprido, como se fosse dado ao ad- mental na definição de diretrizes para a execução
ministrador escolher as normas que quer cumprir. das políticas públicas pela administração pública
Os hospitais de pequeno porte, que em núme- passa a ser mais um tipo ideal que um dado de re-
ro unitário são a maioria no país14, é um exemplo alidade. A autora em referência a Muller e Surel16:
de que a região de saúde e as referências nas redes “Este conflito revela não só a crise entre o Execu-
não funcionaram, sustentados apenas pelo desejo tivo e o Legislativo, em termos de titularidade da
de superação dos vazios assistenciais que só serão iniciativa legislativa, como, também, a superação
superados pelas regiões de saúde. Estas devem de toda organização formal do Estado liberal”.
atender as necessidades de saúde de 90% de sua Traçar as diretrizes das macropolíticas da saú-
população, coibindo a construção de unidades de, as estruturas da ação do Estado como a políti-
de saúde incompatíveis com as diretrizes da re- ca nacional da assistência à Saúde, a qual deveria
gionalização, as quais deverão estar inseridas na contemplar a atenção básica, a atenção especiali-
rede interfederativa regional de atenção à saúde. zada e hospitalar, a atenção de urgência e emer-
E pleno século XXI esses erros são imperdoáveis. gência, a farmacêutica e outros aspectos, poderia
ter mudado o papel do Ministério Público e do
Do planejamento regional ao nacional Judiciário no tocante à judicialização da saúde
que se voltaria mais para o cumprimento das
O imperativo planejamento de longo prazo políticas de saúde. O Ministro Gilmar Mendes se
(horizonte de no mínimo 10 anos) que pressu- referiu a essa necessidade na audiência pública
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ocorrida em 200917, quando se referiu à necessi- samos apontar os cinco principais, os que mais
dade de o judiciário dar cobro às políticas públi- complicaram o financiamento da saúde pública:
cas definidas e não cumpridas pelo executivo. a) A DRU que se iniciou com o Fundo Social de
As macropolíticas do SUS quando traçadas Emergência em 1993, retirando recursos da saú-
por portarias ministeriais ficam fragilizadas e de que hoje estão em 30% o volume de permis-
a atenção básica como estruturante do sistema, são de seu contingenciamento; b) a vinculação de
ordenando o cuidado com a saúde das pessoas boa parte das contribuições sociais pela EC 20,
nas redes especializadas, traz em si um poder de em 1988 para a previdência social; c) a conversão
estado que caberia à lei dispor. da URV em Real com perda de 20% dos recursos
O financiamento passaria a ser exigido em originais; d) a retirada de 40% dos valores adi-
conformidade às políticas que conformam o SUS cionais da CPMF e depois a sua extinção; f) a EC
e não o inverso, com as políticas tendo que se 95, de 2016. Outros houveram e foram bastante
conformar ao orçamento. A lei dispondo sobre prejudiciais ao financiamento da saúde, levando
parâmetros, diretrizes, pacto social sobre deter- a um gasto público de 4% do PIB, enquanto o
minados temas como a incorporação tecnológi- nível praticado pelos países com saúde de acesso
ca, um dos grandes gargalos no custo da saúde universal tem sido de 7%, minimamente.
que precisa de mão de ferro ante seu fim que é o Uma questão que gravita a gestão orçamen-
lucro. Tudo isso deveria decorrer da política em tária do SUS, que além de a DRU ser um cheque
suas diretrizes, discutida na casa legislativa, onde em branco para o Tesouro Nacional, o resto a pa-
o povo deve participar de modo efetivo, não ape- gar também fica sob o controle da Secretaria do
nas exercendo seu papel de cidadão pelo votar, Tesouro Nacional que, conforme alerta de Élida
mas pela voz em questões sociais relevantes, me- Graziane Pinto, passa a ter a ‘liberdade’ de a STN
diante participação em audiências, estudos, afora liberar o fluxo de pagamento das suas dotações já
o seu exercício cotidiano nos conselhos de saúde. empenhadas19. Francisco Funcia também alerta
que elevados valores de inscrição e reinscrição em
Financiamento e gestão pública das políticas restos a pagar terão que ‘disputar espaço’ finan-
ceiro em 2018 com outras despesas (do Ministério
Os maiores impasses ao longo desses anos fo- da Saúde e de outros ministérios) no contexto do
ram o financiamento insuficiente e a gestão ine- teto para as despesas primárias da EC 95/201620.
ficiente que se retroalimentam, uma colocando Somar baixo financiamento com dificuldades
a culpa na outra quando ambas são o resultado próprias da Administração Pública brasileira são
da falta de compromisso público com a saúde, o fatores que juntos, um agrava o outro.
modelo patrimonialista e burocrata do Estado A falta de resolutividade da gestão pública
que acredita em carimbos e tráfego de papéis. O levou a criação de figuras jurídicas, que ainda ca-
financiamento não se resolverá sem uma refor- recem de adequada compreensão pelos gestores
ma tributária que altere o modelo centralista da públicos, tendo custado 18 anos a decisão do STF
Federação, com impostos progressivos e outras sobre a constitucionalidade das organizações so-
políticas. ciais, que, ao tempo em que se proliferaram na
A sociedade aguarda uma reforma adminis- insegurança jurídica, também perderam a sua
trativa que modernize a Administração Pública concepção original pelas leis estaduais e munici-
para os desafios do século XXI, e conforme diz pais que mudaram o seu escopo. O que foi julga-
Carlos Ari Sundfeld18, ainda estamos na era da do pelo STF nem sabemos se é o que está de fato
administração dos clipes. Como integrar serviços sendo implementado pelos entes federativos.
sem informatizar essa integração? Desde os anos Além do mais a gestão pública da saúde é
1990 se discute e se propõe a implantação do car- agravada pela inadequada formação de médicos
tão SUS, que nunca passou de um cartão de iden- para a saúde que se manteve ao molde dos anos
tidade, sem conseguir ser a chave de acesso a da- 1980, ou seja, para atender o modelo de saúde
dos dos pacientes para os profissionais de saúde centrado na atenção hospitalar e ambulatorial e
interligarem exames, diagnósticos, terapêuticas, não na atenção básica, tendo sido necessário im-
resultados, enfim, a história sanitária do cidadão. portar médicos para atender a população mais
O subfinanciamento data do advento da pobre. Sem falar na reserva de mercado do ato
Constituição em 1988. Para não discorrer so- médico, que está a fazer estragos na execução dos
bre todos os seus eventos, que nunca se deu ao serviços de atenção básica.
acaso, sendo deliberado para asfixiar pela rota A judicialização que começou a dar sinal de
financeira, direitos constitucionais, talvez pos- sua intensidade no início do ano 2000 não teve a
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atenção necessária dos gestores públicos e demais não pode abdicar porque fora dele só há saúde
autoridades para entender o fenômeno e atuar paga, vendida no mercado como mercadoria
solucionando as carências que afetavam as pes- para os poucos que podem pagar, isso sem falar
soas e coibindo os abusos dos oportunistas. Hoje nas inúmeras ações de cunho preventivo e de
são mais de um milhão de ações e os gestores pú- promoção da saúde. Sem SUS, é barbárie sani-
blicos da saúde bem como as demais autoridades tária.
envolvidas com a saúde e o sistema de justiça, não Nesse ponto, cabe destacar algumas políticas
sabem o que fazer. de excelência no país (a esperança concretizada,
Com a saúde sendo um dos bens mais rele- possível e totalmente compatível com a saúde
vantes e o século XXI, com novas descobertas fiscal e econômica), como a política do sangue e
diárias e exigências pessoais, sendo que a disse- seu controle de qualidade respeitado no mundo;
minação das descobertas em saúde tem elevado a dos transplantes; a do cuidado com as pessoas
o conhecimento das pessoas que passam a co- com HIV; imunização; qualidade dos registros de
nhecer os avanços tecnológicos e suas possibili- medicamentos e demais produtos; SAMU; saúde
dades, impõe-se ao Poder Público capacidade e mental.
agilidade em suas decisões para não ficar refém
do mercado nem no desejo das pessoas em ‘con-
sumir’ saúde. Considerações finais

Por que é necessário defender o SUS Não foram poucas as lutas para implantar o SUS
num país com a proporção territorial e demo-
Diante de tantos problemas por que defen- gráfica do Brasil e sua cultura política de negar
der o SUS? O mais relevante motivo de defender recursos para políticas redutoras das desigualda-
e lutar pela melhoria dos serviços de saúde no des. Quantos hospitais desnecessários e quantos
país, serviços públicos de acesso universal, está necessários não existentes?
expresso na frase de Sérgio Arouca, de que a Re- Manter a saúde das pessoas em equilíbrio é
forma Sanitária não é um projeto técnico-geren- o primeiro dever estatal, que mediante medidas
cial, administrativo e técnico-científico; o Projeto socioeconômicas deve garantir qualidade de
da Reforma Sanitária é também o da civilização vida, provendo esgoto, saneamento, dotando a
humana, é um projeto civilizatório, que, para se vigilância em saúde de recursos e pessoal qualifi-
organizar, precisa ter dentro dele valores que nunca cado para evitar o risco de se adoecer por causas
devemos perder, pois o que queremos para a Saúde, previsíveis.
queremos para a sociedade brasileira21. Ao pensar o SUS, temos que refletir sobre os
Esse projeto civilizatório levou a saúde, ape- altos custos das tecnologias nem sempre necessá-
sar da crônica insuficiência de recursos do SUS e rias, fato a ser enfrentado como política nacional,
muitas outras dificuldades, em 30 anos, a sair do lembrando que dados da União Europeia23 infor-
patamar da atenção médica, ambulatorial e hos- mam que dois terços das novas tecnológicas não
pitalar garantida pelo INAMPS aos trabalhadores são inovações de fato. É preciso controlar o inte-
da Previdência Social como um benefício previ- resse no lucro dado que as indústrias farmacêuti-
denciário, para um sistema de acesso universal. cas não são altruístas nem visam o bem-estar das
Por isso é preciso defender o SUS da falta de pessoas e sim o lucro que podem alcançar.
financiamento adequado, banindo o dilema da O autocuidado precisa tomar corpo e ser uma
saúde fiscal x saúde das pessoas, encruzilhada que responsabilidade de toda a sociedade, ainda mais
mais parece uma armadilha econômica de des- neste século em que os conhecimentos com saú-
respeito aos direitos constitucionais. A sociedade de são amplamente divulgados, sendo necessário
precisa ter pisos sociais como estruturas para sua criar uma consciência sanitária nos indivíduos
segurança psicológica e física; sem a garantia de e na coletividade evitando agravos à saúde que
políticas públicas sociais, a insegurança irá afligir possam ser evitáveis pelo estilo de vida.
as pessoas mais pobres, ensejando a construção Ao impor à sociedade a EC 95, de 2016, ig-
de muros pela camada social mais privilegiada norando todas as demais necessidades sanitárias
para se proteger das inseguranças que as desi- nos próximos 20 anos, nosso Estado afronta os
gualdades criam22. objetivos fundamentais da República, colocan-
O SUS, que atende diretamente 150 milhões do em risco o direito à saúde. A saúde fiscal não
de pessoas e indiretamente 207 milhões, é um pode ocasionar dano moral e físico; tampouco
conjunto de ações e serviços do qual a sociedade pode afetar apenas as políticas sociais, devendo
2050
Santos L

ser discutido de modo amplo, transparente e com Temos que transformar o incômodo deste
responsabilidade, qualquer medida fiscal que balanço em inquietação nacional e considerar
afete a vida das pessoas. Os impostos altamente que a efetiva participação social foi um esteio no
regressivos que punem a população pobre; as re- enfrentamento dos desafios na implantação do
núncias fiscais que são consideradas gasto públi- SUS nesses 30 anos e que somente uma popu-
co, sem o devido controle, em especial quanto ao lação participante dos destinos da nação tem o
seu retorno à sociedade, quanto à sua efetividade poder de promover mudanças para o alcance de
social e econômica precisam ser discutidas com justiça social, igualdade, solidariedade e, acima
a sociedade. de tudo, garantir a dignidade de vida.

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