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A EVASÃO ROMÂNTICA EM VIAGENS NA MINHA TERRA DE

ALMEIDA GARRETT

SILVA, Reginaldo Lima1


CABRAL, Maria Wellitania de Oliveira2

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo analisar a evasão
romântica (metaficção) Viagem na minha terra, de Almeida
Garrett, publicada em 1846, cujo foco narrativo consiste em
uma viagem realizada por Garrett, em 1843, entre Lisboa e
Santarém, a convite do político Passos Manuel. Através de
pesquisa exploratória são destacadas questões relativas ao
contexto histórico / literário identificando, no romance,
valores implícitos e pressupostos da época em que foi
produzido, enfatizando as características românticas que
norteiam o trabalho e os objetivos e intenções do autor ao
empregá-los.

1
Acadêmico do Curso de Letras do Centro Universitário UnirG.
2
Doutoranda em Língua e Cultura pela UTAD – Universidade Trás os
Montes, Portugal. Professora Mestra em Teoria e Crítica Literária, ministra
aulas de Teoria Literária e Literatura Portuguesa no Centro Universitário
v. 5, n. 1, abril/2013,
UnirG, Gurupi – Tocantins – Brasil.
UnirG, Gurupi, TO, Brasil
Palavras-chave: Romantismo. Evasão. Características
românticas.

THE ROMANTIC EVASION IN TRAVEL ON MY


LAND OF ALMEIDA GARRETT

ABSTRACT
This work aims to analyze the romantic evasion
(metafiction) Travel on my land, of Almeida Garrett,
published in 1846, whose focus narrative consists of a trip
carried out by Garrett, in 1843, between Lisbon and
Santarém, the invitation the political Passos Manuel.
Through exploratory research are highlighted issues
regarding the historical context / literary identifying, in the
novel, implicit values and assumptions of the time it was
produced, emphasizing the romantic characteristics that
guide the work and the goals and author's intentions to
employ them.
Keywords: Romanticism. Evasion.Romantic Characteristics.

v. 5, n. 1, abril/2013,
UnirG, Gurupi, TO, Brasil
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ROMANTISMO É cabível ressaltar que o


No início do século XVIII, a Era romantismo abarca não raro
Clássica entra em crise, dando origem, tendências contraditórias ou
na Europa, ao movimento romântico contrastantes, constituindo-se uma
cujas primeiras sementes dão-se na nova maneira de enfrentar os
Inglaterra e na Alemanha, cabendo à problemas da vida e do pensamento,
França, posteriormente, o papel de implica uma profunda metamorfose,
coordenador, divulgador e amplificador uma verdadeira revolução histórico-
do movimento. cultural. O movimento esteve
associado ao desenvolvimento da
[...] a Inglaterra exporta para a Escócia imprensa e à afirmação social de um
os produtos do Classicismo francês,
em tudo contrário à literatura popular novo público-leitor: o burguês.
escocesa que existira até os fins do
século XVI e que agora se reduzia à Os românticos revoltam-se
transmissão oral. Tudo, razões
políticas e literárias, convidava a uma contra as regras, os modelos, as
rebelião que visasse a instaurar o normas, batem-se pela total liberdade
prestígio dessas velhas lendas e
canções que corriam na voz do povo na criação artística e defendem a
[...]. (MOISÉS, 1960, p. 113).
mistura e a impureza dos gêneros
O primeiro escritor escocês a literários. Substituem a visão que os
rebelar-se contra a poesia clássica foi clássicos tinham por uma visão
Allan Ramsay (1686 – 1758) quando, centrada no eu interior de cada um.
em 1724, publica uma antologia de
velhos poemas escoceses, sob o título [...] os românticos voltam-se para si,
na sondagem do mundo interior, onde
de The Evergreen, seguida de outra vegetam sentimentos vagos. Mais
ainda: os sentimentos, já de si
coletânea, The Teatable Miscellany contraditórios, levam ao desequilíbrio,
ao paradoxo, à anarquia. Instável,
(1724- 1727), e também da coletânea complexo, rebelde, jogado por
sentimentos opostos, numa irrefreável
de velhas canções, com base no mobilidade, o romântico cultiva
sentimento da natureza, The Gentle atitudes feminóides e adolescentes: o
Romantismo é uma estética de
Shepherd, publicada em 1725. Cabe adolescentes, expressando
sentimentos femininamente
salientar que daí por diante surgem adolescentes, ou vice-versa.
(MOISÉS, 1960, p.117).
numerosos escritores escoceses e
ingleses, tangidos pela Escola do Três são as configurações
Sentimento contra a Escola da Razão. assumidas pela estética romântica: a
primeira, em que ainda permanecem

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atuantes alguns valores neoclássicos, de biografia romântica de Camões,


é representada por Garret, Herculano destacando seus amores com
e Castilho, e transcorre mais ou menos Natércia. Em 1826 Garrett publica um
entre 1825 e 1838, “Em resumo: segundo poema, também de
românticos em espírito, ideal e ação inspiração romântica, Dona Branca,
política e literária, mas ainda clássicos cuja principal novidade consistirá em
em muitos aspectos da obra que desenvolver um tema medieval e
legaram.” (MOISÉS, 1960, p. 128); a utilizar o folclore nacional em lugar da
segunda, em que se aglutina o mitologia clássica. A maturidade
chamado Ultra-Romantismo, é poética de Garrett como autor
representada especialmente por romântico chega somente em seu
Soares de Passos e Camilo Castelo último livro de poema Folhas caídas.
Branco, e vigora entre 1838 e 1860, é No momento de produção dessa obra,
marcada por uma postura de exagero sua paixão por uma mulher casada
sentimental que a torna inconfundível; causa escândalo na sociedade e dá
a terceira, em que se opera a transição origem a versos de tom confessional
para o Realismo, é representada por que impulsionam o romantismo
João de Deus e Júlio Dinis, e ocupa a intimista na obra do poeta. A prosa de
década de 60, desaparecem os traços ficção é representada por três
mais exagerados da segunda geração, romances: O arco de Sant’ Ana,
e podem-se identificar alguns indícios Viagens da minha terra (o mais
de maior aproximação da realidade. conhecido e considerado o mais bem
acabado) e Helena. Destes, o romance
ALMEIDA GARRETT E A ESTÉTICA Viagem na minha terra é o objeto de
ROMÂNTICA análise deste artigo. Ainda cabe
João Batista Leitão de Almeida salientar que o romantismo de Garrett
Garret nasceu na cidade do Porto, em consistia antes num hábito ou adesão
1799. Dramaturgo e estadista foi o às modas do que numa tendência
marco inicial do romantismo profunda de temperamento: no mais
português, com o poema Camões íntimo de sua visão de mundo seria
(1825). Este poema é dividido em dez um homem clássico, e muito
cantos e escrito em decassílabos moderado e frio para ser
brancos (não rimados), é uma espécie medularmente romântico.

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VIAGENS NA MINHA TERRA conflitivo Carlos. Nele, percebe-se a


A obra foi construída a partir da projeção confessional da própria vida
observação e da vivência da realidade interior de Garrett. Em Joaninha e no
atual. Ela se despe da vestimenta cenário natural que serve de palco aos
pesadona e afetada que sufocava a acontecimentos, circula o ar de
poesia e a prosa, praticadas até então. melancólico saudosismo. Nesse sopro
de pureza e inocência, de aliada
A obra é mista de jornalismo, literatura fantasia a envolver a história duma
de viagens, diário íntimo e prosa de
ficção. Publicada em 1846, seu fio jovem que perece de amor, pois ama
narrativo compõe-se de uma viagem
levada a efeito por Garrett, em 1843, um homem tolhido noutras malhas
entre Lisboa e Santarém, a convite do
político Passos Manuel. Repartida em sentimentais.
49 capítulos, como que escritos ao Quanto ao enredo, Saraiva
sabor da viagem, a obra relata as
peripécias ocorridas entre aquelas (1999, p. 105) cita:
duas cidades e as reflexões que elas
desencadeiam na mente do viajante,
acerca dos mais variados assuntos,
desde o amor até a política. Ao chegar Há em todo este enredo um claro
a Santarém, o narrador toma simbolismo político e social: o
conhecimento da história amorosa de emigrado é filho do Frade (e o chefe
Joaninha dos olhos verdes, a “menina da revolta do Porto é filho do bispo),
dos rouxinóis”, e de seu primo Carlos: como o Portugal revolucionário é filho
ambos se apaixonam, mas ele julga-se do Portugal clerical; e só por acidente
preso ao sentimento de Georgina, que aquele não assassina o pai, como o
ficara na Inglaterra; por fim, desfeito o novo Portugal assassinaria o Portugal
impasse, Georgina entra para o antigo. O emigrado, tendo
convento e Joaninha morre, enquanto comprometido o coração em
Carlos, recomposto do transe, retoma Inglaterra, não pode mais usar dele
sua trajetória de dândi e homem em paz de consciência na sua terra de
público. (MOISÉS, 2006, p. 261) infância: outros amores, outra
civilização, lhe floraram a primitiva
inocência. E, enfim, a política,
Um teor esportivo, jornalístico, associada à negociata bancária, não é
mais do que um jogo de homens
de naturalidade e espontaneidade afetivamente frustrados, jogo que os
antigos emigrados, sem ilusões,
coloquial, substitui o empertigamento e preenchem o vácuo que ficou dos
entusiasmos desfeitos. Dentro dessas
a preconcepção estilística tradicional. situações dramáticas, Garrett inseriu
ainda um conteúdo psicológico
Nesse sentido, pode-se afirmar que é originalíssimo. O herói do romance,
uma prosa liberal, desataviada, Carlos, é um ser instável, mas que luta
com a própria instabilidade, procura
composta pela imaginação e pela deter a constante mutação, o seu eu,
apalpar a própria consciência. As
idealização. contradições não existem só nas
oposições das personagens umas às
O mais significativo da obra outras, mas dentro do sujeito, que,
afinal, não é mais do que um equilíbrio
reside no idílio entre a campônia e sempre cambiante de instantes fluidos.
ingênua Joaninha e o inglesado e
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A perspectiva seguida por quais ela se organiza, ou seja, revela


Garrett é popular: denuncia a na sua maior parte revolta contra a
oligarquia portuguesa (os “barões” e sociedade, horror à realidade, desejo
os “frades”), como se pode observar de fuga através ou da imaginação ou
neste fragmento que registra o sonho do isolamento, refugiando-se o autor
do narrador-personagem desse livro: dentro de sua própria sensibilidade.
Artisticamente, essa incompatibilidade
[...] mas eu sonhei com o frade, com a originará um dos temas mais
velha – e com uma enorme
constelação de barões que luziam frequentes da literatura romântica: a
num céu de papel, donde choviam,
como farrapos de neve, numa noite fuga da realidade.
polar, notas azuis, verdes, brancas,
amarelas, de todas as cores e matizes
possíveis. Eram milhões... Nunca vi [...] Debatendo-se entre a amante
tanto milhão, nem ouvi falar de tanta inglesa e a amada de Santarém,
riqueza senão nas mil e uma noites. exasperado pelo ódio ao frade, a que
Acordei no outro dia e não vi nada... atribui as desgraças da família,
só uns pobres que me pediam esmola surpreendido de se saber filho deste
à porta. Meti a mão na algibeira, e não no próprio momento em que o vai
achei senão notas... papéis! matar, o soldado liberal resolve, por
(GARRETT, 1992, p. 211). fim, não podendo sofrer mais a fadiga
destas lutas íntimas, afogá-las na vida
política e na agiotagem, concebidas
A EVASÃO ROMÂNTICA como evasão e jogo.” (SARAIVA,
1999, p. 103).
A livre expressão de
sentimentos conferiu aos românticos a
Curiosamente, ao lado dessa
alcunha de sentimentalistas e
tendência à evasão, denota-se o gosto
individualistas, associando-os à
pelas descrições minuciosas da
manifestação de uma imaginação
realidade. Partindo desse pressuposto,
intensa, permeada pela atividade
pode-se afirmar que a fuga da
sonhadora.
realidade é um dos elementos
Em uma sociedade dominada
presentes no romance analisado.
pela filosofia iluminista de valorização
Observe os seguintes fragmentos do
dos processos racionais e das
romance:
posturas coletivas, é evidente o
deslocamento do autor romântico. De Formou Deus o homem, e o pôs num
certa forma, ele realmente não é paraíso de delícias; tornou a formá-lo
a sociedade, e o pôs num inferno de
compreendido pela sociedade em que tolices. O homem – não o homem que
Deus fez, mas o homem que a
vive, porque os valores que defende sociedade tem contrafeito, apertando e
forçando seus moldes de ferro aquela
diferem muito daqueles a partir dos pasta de limo que no paraíso terreal se
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afeiçoara à imagem da divindade – o insipidez; deixai-lho, ulcera por fim os


homem assim aleijado como nós o órgãos: o gozo é mais vivo, porque a
conhecemos, é o animal mais ação do estímulo é mais sentida... mas
absurdo, o mais disparado e a ulceração cresce, o coração está em
incongruente que habita na terra. Rei carne viva... agora o prazer é martírio.
nascido de todo o criado, perdeu a (GARRETT, 1992, p. 138).
realeza; príncipe deserdado e
proscrito, hoje vaga foragido no meio
de seus antigos estados, altivo ainda e Viajar, conhecer terras e povos
soberbo com as recordações do
passado, baixo, vil e miserável pela estranhos, paisagens exóticas, ruínas,
desgraça do presente. (GARRETT,
1992, p. 117). restos de velhas civilizações,
monumentos de povos desaparecidos,
Com os olhos vagando por este
quadro imenso e formosíssimo, a torna-se uma forma de escapismo.
imaginação tomava-me asas e fugia
pelo vago infinito das regiões ideais.
Recordações de todos os tempos,
pensamentos de todo o gênero me RELIGIOSIDADE
afluíam ao espírito, e me tinham como
num sonho em que as imagens mais Como uma reação ao
discordantes e disparadas se sucedem Racionalismo materialista dos
uma às outras. Mas eram todas
melancólicas, todas de saudade, clássicos, a vida espiritual e a crença
nenhuma de esperança!... (GARRETT,
1992, p. 136). em Deus são enfocadas como pontos
de apoio ou válvulas de escape diante
O escapismo romântico na
das frustrações do mundo real.
direção da Natureza corresponde ao
anseio de encontrar nela uma
-Padre, padre! e quem assassinou
confidente passiva e fiel, e um consolo meu pai, quem cegou minha avó, e
quem cobriu de infâmia a minha... a
nas horas amargas: deixando de ser toda a minha família? – Tens razão,
de fundo, como era concebida entre os Carlos, fui eu; eu fiz tudo isso: mata-
me. Mas oh! Mata-me, mata-me por
clássicos, a Natureza torna-se tuas mãos, e não me maldigas. Mata-
me, mata-me. É decreto da divina
individualizada, personificada, um justiça que seja assim. Oh! Assim,
meu Deus! às mãos dele, Senhor!
reflexo do “eu”, alterando-se de Seja, e a vossa vontade se faça... O
frade caiu de bruços no chão, e com
conformidade com as mudanças nele as mãos postas e estendidas para o
operadas, se triste o romântico, mancebo, clamava: – Mata-me, mata-
me! aqui há pouca vida já: basta que
constitui “um estado da alma”. me ponhas o pé sobre o pescoço;
esmaga assim o réptil venenoso que
mordeu na tua família e que fez a tua
desgraça e a de quantos o amaram.
Este sonhar acordado, este cismar Sim, Carlos, sê tu o executor das iras
poético diante dos sublimes divinas. Mata-me. Tantos anos de
espetáculos da natureza, é dos penitência e de remorsos nada
prazeres grandes que Deus concedeu fizeram; mata-me, livra-me de mim e
às almas de certa têmpera. Doce é da ira de Deus que me persegue.
gozar assim... mas em que doçuras da (GARRETT, 1992, p. 158).
vida não predomina sempre o ácido
poderoso que estimula! Tirai-lho, fica a
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o primeiro homem habitou com a sua


inocência e com a virgindade do seu
NACIONALISMO OU PATRIOTISMO coração. ((GARRETT, 1992, p. 58).

Percebe-se que o artista


Nessas passagens do romance,
romântico passa a idealizar tudo, as
nota-se que o artista se vê totalmente
coisas não são vistas como realmente
envolvido por paisagens exóticas,
são, mas como deveriam ser segundo
como se ele fosse uma continuação da
uma ótica pessoal. Assim a pátria é
natureza. Nesse sentido, nota-se a
perfeita. Observe o fragmento da obra
exaltação do nacionalismo e nativismo
que enfatiza a exaltação à pátria, de
através da natureza, da força da
forma exagerada, em que somente as
paisagem. A analogia bíblica vem
qualidades são enaltecidas.
justamente para realçar essa

[...] Os olivais de Santarém, cuja exaltação.


riqueza e formosura proverbial é uma O indivíduo deixa de ver-se
das nossas crenças populares mais
gerais e mais queridas!... os olivais de como súdito de um rei e passa a ser o
Santarém lá estão ainda. Reconheceu-
o o meu coração e alegrou-se de os cidadão de uma terra unida, a pátria. É
ver; saudei neles o símbolo patriarcal
da nossa antiga existência [...]. da união dessas duas ideias (o povo
(GARRETT, 1992, p. 131)
dotado de soberania e unido em uma
Cá estamos num dos mis lindos e nação) que nasce o ideal nacionalista.
deliciosos sítios da terra: o vale de
Santarém, pátria dos rouxinóis e das
madressilvas, cinta de faias belas e de
IDEALIZAÇÃO
loureiros viçoso. Disto é que não tem
Paris, nem França, nem terra alguma Mergulhado num mundo irreal, o
do ocidente senão a nossa terra, e
vale bem por tantas coisas que nos escritor romântico recriava-o a seu
faltam [...]. (GARRETT, 1992, p. 58).
modo, de tal forma que a natureza, a
O vale de Santarém é um destes época e as pessoas passaram a ser
lugares privilegiados pela natureza,
sítios amenos e deleitosos em que as idealizadas conforme os sonhos e as
plantas, o ar, a situação, tudo está
numa harmonia suavíssima e perfeita: fantasias que o autor projetava.
não há ali nada grandioso nem
sublime, mas há uma como simetria
Almeida Garrett retrata muito bem a
de cores, de tons, de disposição em imagem da mulher que nas obras
tudo quanto se vê e se sente, que não
parece senão que a paz, a saúde, o românticas é idealizada e vista como
sossego do espírito e o repouso do
coração devem viver ali, reinar ali um virgem, frágil, bela, submissa e
reinado de amor e benevolência. As
paixões más, os pensamentos inatingível. Percebe-se isso neste
mesquinhos, os pesares e as vilezas
da vida não podem senão fugir para fragmento da obra:
longe. Imagine-se por aqui o Éden que
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Por mim, não conheço objeto mais contemplas apenas com olhos de
lindo em toda a natureza, mais artista e lhe estás notando, como em
feiticeiro, mais capaz de arrebatar o quadro gracioso, os finos contornos, a
espírito e inflamar o coração do que é pureza das linhas, a expressão
uma jovem donzela quando a verdadeira e animada? [...]
modéstia lhe faz subir o rubor às (GARRETT, 1992, p. 111).
faces, e o pejo lhe carrega
brandamente nas pálpebras... Pouco
lume que tenha nos olhos, regular que Observe ainda estes outros trechos:
seja o semblante, menos airosa que
seja a figura, parecer-vos-à nesse
momento um anjo. E anjo é a virgem Na maior paixão, no mais acrisolado
modesta, que traz no rosto debuxado afeto do homem que não é poeta,
sempre um céu de virtudes... De entra sempre o seu tanto de vil prosa
alguma beleza sei eu cujos olhos cor humana: é liga sem que se não lavra o
da noite ou de safira (Dialec. Poet mais fino de seu ouro. A mulher não; a
Vet.) cujas faces de leite e rosas, mulher apaixonada deveras sublima-
dentes de pérolas, colo de marfim, se, idealiza-se logo, toda ela é poesia,
tranças de ébano (a alusão é sortida, e não há dor física, interesse material,
há onde escolher) davam larga nem deleites sensuais que a façam
matéria a boas grosas de sonetos – no descer ao positivo da existência
antigo regime dos sonetos, e hoje prosaica. (GARRETT, 1992, p.59).
inspirariam miríadas de. Contando que
não seja lira, que é clássico, todo o [...] Os raios verdes de teus olhos
instrumento, inclusivamente a faiscantes como esmeraldas,
bandurra, é igual diante da lei atravessaram o espaço e foram luzir
romântica.” (GARRETT, 1992, p. 32 - no meio daqueloutros lumes que me
33). cegavam. A esteva brava, o tojo
áspero da nossa charneca mandavam-
me ao longe as exalações de seu
A estética romântica assumiu perfume agreste, e matavam o suave
uma feição anticlássica, proclamando cheiro do feno macio dessas relvas
sempre verdes que me rodeavam. As
a liberdade individual do artista folhas crespas, secas, alvacentas das
nossas oliveiras como que me luziam
(liberdade de criação), eximindo-o da por entre a espessura cerrada da
luxuriante vegetação do norte,
necessidade de imitação dos clássicos prometendo-me paz ao coração,
anunciando-me o fim de uma peleja
greco-latinos. Há uma aproximação da em que mo dilaceravam as paixões.
linguagem coloquial. Partindo disso, (GARRETT, 1992, p. 202).

observa-se que no final do trecho,


Os autores queriam dizer o que
Garret ressalta essa característica
pensavam e o que sentiam e para isso
romântica.
não se limitavam às convenções
árcades de uma poesia sóbria,
Quem era essa mulher?
Aonde, como obtivera ele a posse racional e clássica. Deixaram de lado
dessa joia, desse talismã com o qual
se tinha por tão seguro para não ver as formas fixas como o soneto,
na graciosa prima senão?...
Senão o quê? incentivando a mistura de gêneros.
A inocente criança que ali deixara?(...) Desse modo, sobre Viagens na minha
Podes responder-me da parte que
tomará amanhã na tua existência a terra, é pertinente frisar que Garret
imagem da donzela que hoje
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deixa marcas de uma posição Viagens na minha terra foi produzido,


romântica que se recusa a seguir com identificação de valores implícitos
modelos clássicos preestabelecidos. e pressuposições da época,
enfatizando as características
PESSIMISMO românticas que norteiam a obra e as
O pessimismo também é outro intencionalidades/objetivos do autor ao
aspecto presente na obra. O artista se empregá-las.
vê diante da impossibilidade de
realizar o sonho do “eu” e, desse modo CONCLUSÃO
cai em profunda tristeza, angústia, A livre expressão de
solidão, inquietação, desespero, sentimentos conferiu aos românticos a
frustração. Muitos se suicidam na alcunha de sentimentalistas e
tentativa de resolver o problema. individualistas, associando-os à
manifestação de uma imaginação
[...] Ninguém mais soube a verdade intensa, permeada pela atividade
senão eu – e tua infeliz mãe a quem o
disse para meu castigo, a quem vi sonhadora.
morrer de pesar e de remorsos, que
expirou nos meus braços chorando por Cabe salientar que o
ele, e maldizendo-me a mim. Não
seria bastante castigo, meu filho? Não romantismo de Garrett consistia antes
foi, não. Este burel que há tantos anos num hábito ou adesão às modas que
me roça no corpo, estes cilícios que
mo desfazem, os jejuns, as vigílias, as numa tendência profunda de
orações nada obtiveram ainda de
Deus. A sua ira não me deixa, a sua temperamento: no mais íntimo de sua
cólera vai até à sepultura sobre mim...
Se me perseguirá além dela!... visão de mundo, seria um homem
(GARRETT, 1992, p. 162).
clássico e muito moderado e frio para
ser medularmente romântico. Em
MÉTODO
Viagens na minha terra, Garret deixa
A utilização da pesquisa
marcas de uma posição romântica que
exploratório-bibliográfica possibilitou
se recusa a seguir modelos clássicos
ressaltar aspectos concernentes ao
preestabelecidos.
contexto histórico/literário em que

REFERÊNCIAS

GARRETT, Almeida. Viagens na Minha Terra. São Paulo: FTD, 1992.

Rev. Cereus, v. 5, n. 1, p.100-110, abril/2013, UnirG, Gurupi, TO, Brasil.


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JUNIOR, Benjamim Abdala; PASCHOALIN, Maria Aparecida. História Social da


Literatura Portuguesa. 3. ed. São Paulo: Ática, 1990.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. São Paulo: Cultrix, 1960.

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SARAIVA, António José. Iniciação à Literatura Portuguesa. São Paulo: Companhia


das Letras, 1999.

SARAIVA, António José; LOPES, Óscar. História da Literatura Portuguesa. 17. ed.
Porto: Porto Editora, 2005.

________________
Recebido em: 15 fev. 2013
Aprovado em: 12 abr.2013

Rev. Cereus, v. 5, n. 1, p.100-110, abril/2013, UnirG, Gurupi, TO, Brasil.

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