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Documento, pesquisa, vertigem:


Boris Kossoy e a fotografia
Dulcilia H. Schroeder Buitoni

B oris começa com Borges. O fotógrafo


e arquiteto brasileiro inicia seu livro
com palavras do escritor argentino: “ El pasado
es la sustancia de que el tiempo está hecho: por
ello és que este se vuelve pasado en seguida”.
Ambos percorreram caminhos da memória,
um conduzido pela imagem, outro conduzido
pelo verbo. Ambos trabalham com a constru- Os tempos da
fotografia: o efêmero
ção da memória imaginária da humanidade.
e o perpétuo
O fotógrafo Boris Kossoy transcreveu
o tempo em luz; o pesquisador e pensador
traçou as linhas do tempo e refletiu sobre as
humanas construções fotográficas. Suas fa- Boris Kossoy
cetas se combinam num texto claro, sedutor, Cotia/SP: Ateliê Editorial,
onde não faltam profundidade e inquieta- 2007, 176 p.
ção científica. Gênese e duração, origem e
permanência: eis os tempos – decisivos ou damos e sempre criamos novas realidades.
prolongados – que são objeto para esse estu- Imagens técnicas e imagens mentais intera-
dioso, doutor em sociologia, livre-docente e gem entre si e fluem ininterruptamente num
professor titular do Departamento de Jorna- fascinante processo de criação/construção
lismo e Editoração da ECA-USP. de realidades – e de ficções” (p.147). Ficções:
Ele nos diz que fotografia é memória “en- esta é uma marca no processo de “revelação”
quanto registro da aparência dos cenários, per- do autor. Operando com o caráter indiciário
sonagens, objetos, fatos: documentando vivos da imagem fotográfica – embora sem se ren-
ou mortos, é sempre memória daquele preciso der exclusivamente a ele –, Boris inclui sem-
tema, num dado instante de sua existência/ocor- pre o ficcional. Assim, consegue conciliar re-
rência. É assunto ilusoriamente re-tirado de seu alidade e ilusão, fato histórico e construção.
contexto espacial e temporal, codificado em for- Documento e ficção são faces e interfaces
ma de imagem” (p.3). A partir da natureza codi- dessa criação técnica e imaginária, que vem
ficada da fotografia, Boris analisa as variáveis de sendo abordada ao longo de sua consistente
sua construção e propõe leituras socioculturais. produção. O historiador garimpou a inven-
No Brasil, os campos de pesquisas histó- ção do processo fotográfico em terras brasi-
ricas e teóricas sobre o dispositivo fotográfi- leiras: Hercules Florence, 1833: a descoberta
co têm em Boris Kossoy um de seus pionei- isolada da fotografia no Brasil (1977) e ma-
ros e também um formulador de conceitos peou nossos fotógrafos anônimos do século
e propostas metodológicas que vêm sendo XIX ao começo do século XX.
utilizados em trabalhos de graduação e pós- Os fundamentos teóricos da imagem fo-
graduação. A discussão sobre as realidades tográfica e metodologias de análise foram
vinculadas à fotografia aponta para o proces- discutidos em Fotografia e história (1989),
so contínuo de criação de novas realidades. que teve desdobramentos em Realidades e
“Através da fotografia aprendemos , recor- ficções na trama fotográfica (1999). Tais livros
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se articulam numa espécie de trilogia com trata-se de uma imagem que resulta de um
este último, em torno da temporalidade. processo de criação: a imagem é construída
Os tempos da fotografia: o efêmero e o perpé- técnica, cultural, estética e ideologicamente.
tuo mostra os processos de cognição desenca- Temos, então, duas grandes vertentes, visuali-
deados pela fotografia, especialmente os que zadas em excelente quadro (p. 33): a fotografia
envolvem os trânsitos da memória – social e como objeto de pesquisas históricas e teóricas
individual. A primeira parte revisita concei- – e a fotografia como fonte de informações
tos e abordagens metodológicas, numa pers- referentes a diferentes áreas de conhecimento.
pectiva multidisciplinar que revela o pensador Objeto e fonte são desconstruídos e reconstru-
original e também o pesquisador e orienta- ídos em camadas interpretativas, abrindo-se
dor de teses e dissertações. A segunda parte, muitas possibilidades de articulação e análise,
sobre imprensa e história, reúne dois artigos não só para fotos referenciais como para fotos
que levantam contextos políticos – imprensa do mundo da arte.
e censura – durante o governo Vargas. Num, Todos os textos, com exceção do último,
é analisado o trabalho da fotógrafa Hildegard “Castelos de cartas, castelos de areia”, foram
Rosenthal, refugiada do nazismo, que foi uma originalmente apresentados em congressos
das pioneiras do fotojornalismo no Brasil. e reuniões científicas. Revistos e ampliados,
O outro, “Mídia, imagens, ideologia, me- agora estarão mais acessíveis a pesquisadores
mória”, trata das posturas da grande imprensa e aficcionados da fotografia, pois antes sua
desde os anos anteriores à ditadura Vargas. O circulação estava restrita a publicações espe-
livro completa-se com uma parte sobre ima- cializadas e/ou acadêmicas.
ginário e memória, na qual Boris navega num Entre o tempo de criação (instante da gê-
espaço “mais livre em termos de narrativa e nese), primeira realidade e o tempo da repre-
linguagem”, como ele próprio aponta, na in- sentação (registro e memória), segunda rea-
trodução. Mesmo assim, a escritura poética lidade, Boris Kossoy examina as suspensões
realça o cuidado teórico de seu pensamento. e trânsitos dessa figuração técnica e poética
Boris trabalha a relação íntima entre a do imaginário humano. Para ele, a fotografia
máquina fotográfica e o relógio: “A câmara é sempre ambígua, seja ela analógica ou di-
fotográfica incorpora o tempo do relógio gital, seja ela produto da realidade material
para seu funcionamento e se insere, através ou imaterial.
de suas imagens, no Tempo enquanto con- Material, imaterial, ilusão documental,
tingência. Com a fotografia, descobriu-se ambigüidade, vertigem: Boris nos convida a
que, embora ausente, o objeto poderia ser percorrer caminhos de memória e sentido.
(re)apresentado, eternamente. É este o tem-
po da representação, que perpetua a memó- Dulcilia H. Schroeder Buitoni é livre-do-
ria na longa duração” (p.146). cente, professora titular de jornalismo (ECA-
E aponta para as vertentes interdiscipli- USP) e professora de pós-graduação da Facul-
nares da investigação sobre a fotografia, pois dade Cásper Líbero

Líbero - Ano XI - nº 21 - Jun 2008

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