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DANS L’AIR

A VIA SANTOS-DUMONT
OU

SANTOS-DUMONT/O FILME

Mario Drumond Editor


mcmxcvi
Copyright©1995 Mario Drumond

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DANS L’AIR
A VIA SANTOS-DUMONT
OU

SANTOS-DUMONT/O FILME

UM ROTEIRO DE INVENÇÃO
para filme de longa metragem

Mario Drumond

Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995

Registrado na Bibilioteca Nacional


Prot. 002791 de 22.05.95
Reg. 98.001 livro 139 fls. 22
“Quando a lenda supera a realidade, imprima-se a lenda.”
(in “The man who shot Liberty Valence”, de John Ford)
Considerações do autor

A narração de uma história real através da linguagem cinematográfica impõe,


necessariamente, a utilização de recursos de estilo e de construção para viabilizar
um filme como esse, que é proposto para uma produção de grande porte
destinada ao grande público internacional do cinema comercial.

O autor optou por estruturar esse roteiro fazendo da verdadeira e fantástica obra
de invenção, projeto e construção aeronáutica pioneira de Alberto Santos-Dumont,
a sua espinha dorsal. Essa obra magnífica de gênio criador e experimentação
cientifica, realizada toda ao longo de uma só década, foi fartamente documentada
pela imprensa da época, e está descrita em minúcias nas diversas e excelentes
biografias dedicadas ao seu autor, com que a História nos tem presenteado. E foi
aqui integralmente respeitada em sua verdade histórica, até porque não há motivos
para não fazê-lo.

O grande mistério que resulta da análise aprofundada dessas biografias, seria a


explicação de como um homem só, sem parcerias técnicas ou científicas
conhecidas, pode realizá-la toda em tempo tão breve e em tal magnitude. Nem
mesmo os recursos financeiros com os quais realizou tão grande e vitoriosa obra -
numa competição internacional da qual participavam as mais poderosas nações da
época - ficam convincentemente explicados pela disponibilidade propiciada por
uma herança, por maior que ela fosse. Todos os seus biógrafos ficam
impossibilitados de desvendar esses mistérios, uma vez que o próprio Santos-
Dumont destruiu toda a sua documentação, e, com isso, as revelações nelas
contidas. Eis aí o grande mote para a liberdade narrativa que o cinema permite aos
seus autores, pela necessária inclusão dos ingredientes de fantasia, magia, licença
poética, dramaticidade, intriga e ficção, que fazem dessa arte a grande atração que
é para o seu imenso público.

A vida do homem Alberto Santos-Dumont, em si, e sua forte componente trágica,


não poderia, evidentemente, ser desprezada nesse roteiro. E a personagem, tal
como existiu, é perfeita para a construção de uma boa trama cinematográfica.
Porém, a concisão que o cinema impõe à narrativa, obriga ao roteirista algumas
alterações e criações ficcionais (fakes) na sua ambientação na época e nas estórias
das personagens coadjuvantes, das quais o autor utilizou-se para dar relevo a
grandeza da sua principal personagem.

Mas este roteiro é, antes de tudo um projeto de vingança, no melhor sentido que
essa palavra possa ter. Vingar Santos-Dumont é, de fato, uma emergência histórica
da nacionalidade, além de se fazer justiça a verdade histórica universal.

Os norte-americanos criaram a lenda dos irmãos Wrigth e impuseram-na ao mundo


pela força de seu poder de comunicação. Essa lenda, porém, não resiste nem às
mais breves e superficiais verificações isentas da História. E nesse caso pelo menos,
a realidade supera, e em muito, a lenda que ainda tentam imprimir.
PERSONAGENS PRINCIPAIS
(pela ordem de entrada)

Alberto Santos-Dumont (SD) - Pai da Aviação

Jorge - sobrinho de SD

Georges - jornalista-caricaturista e melhor amigo de SD

Adrien - Editor-chefe do jornal "Les Temps"

August - Mordomo de SD

Embaixador Antonio Prado (Pradô) - Embaixador do Brasil na França e amigo de família

Lachambre e Machuron - mecânicos-proprietários de uma oficina de balonismo

Deutsch de la Meurthe e Príncipe Bonaparte - incentivadores da pesquisa aeronáutica

Chapin - mecânico-chefe da equipe de SD

Archdeacon - incentivador da pesquisa aeronáutica

Gasteau e Dazon - mecânicos da equipe de SD

Princesa Izabel - Princesa do Brasil exilada em França

Dr José Carlos Rodrigues - da alta sociedade carioca

Lazare - funcionário e depois diretor do jornal "Les Temps"

Levavasseur - mecânico de motores

Aida D'Acosta - bailarina e atriz

Cap. Ferber - militar e aeronauta francês

Voisin - aeronauta francês


Advertência

Considerando-se a superstição numerológica em relação aos números 8 e 13, muito


respeitada pelos nautas em geral, houve por bem o autor deste roteiro - à maneira de
Santos-Dumont ao numerar seus projetos aeronáuticos - saltar as Sequências que
receberiam tais perigosos números.
PARTE 1

A CONQUISTA DA TORRE
(NA NOVA BABEL)
PARTE 1 O garçom entra na ante-sala do apartamento
e começa a arrumar a mesa do café. Jorge
observa-o.

SEQUÊNCIA 1 JORGE
- Não vejo meus cigarros...
Intenso tiroteio;
balas zunindo no O GARÇOM
cinema escuro. Sons - Estamos sem cigarros, doutor Jorge. Após
e ruídos de homens o movimento da manhã, posso buscá-los à
armados correndo, venda do português.
atirando e gritando.
A câmera inicia em JORGE
macro no olho - Obrigado. Eu o chamo, se precisar. (e dá
direito da figura ao garçom uma pequena gorjeta)
desenhada no cartaz
da Revolução de O garçom agradece e sai. Jorge pega um
1932 (acima). Aos poucos vai abrindo o envelope, que veio junto aos jornais na
ângulo, mostra todo o cartaz (uma bala atinge bandeja do café, endereçado ao “Ilmo Sr
a testa da figura do cartaz) e em seguida o Alberto Santos-Dumont”. Lê o remetente:
cenário de uma rua de cidade do interior, na “Governador Pedro Manuel de Toledo, São
qual tropas antagônicas travam acirrados Paulo, Capital”. Ao fundo a porta do quarto
combates. Rebeldes constitucionalistas abre-se e surge Santos-Dumont, ainda no
fortemente armados correm em frente ao desfoque, aproximando-se, entrando em
cartaz, escondem-se numa barricada de foco, dando o laço no cinto de seda de um
tapumes e carroças reviradas, e respondem fino robe-de-chambre. Está envelhecido, mas
ao fogo. A infantaria varguista, que os com bom humor e banho recém tomado.
perseguia, protege-se como pode, e replica. Jorge interpela-o.
Fumaça, granadas, tiros, guerra.
JORGE
- Olá, tio Alberto. Como se sente? Parece estar
bem hoje!
SEQUÊNCIA 2
SD
Vista aérea (olho de pássaro) de uma praia - Razoavelmente, Jorge. Os pesadelos
paradisíaca do litoral brasileiro orlada por começam a deixar-me em paz. Dormi bem e
uma pequena e pacata vilazinha. (Legenda: meu apetite voltou. O que temos para o café?
Praia do Guarujá, Santos, 23 de julho de 1932)
A câmera penetra no interior do Hotel de La JORGE
Plage. Movimento tranqüilo de portaria. Sobe - O de sempre... A novidade é esta carta do
a escada junto com garçons e camareiras Embaixador Pedro de Toledo.
apressados nos afazeres matinais. Entra num
corredor e segue um garçom empurrando SD
um carrinho de café-da-manhã até o - Já a resposta? Estou curioso... (pega o
apartamento número 8. O garçom bate na envelope das mãos de Jorge e senta-se na
porta. Jorge Villares abre-a, ainda arrumando poltrona frente à mesa do café. Começa a
sua gravata. abrir o envelope).

JORGE JORGE (intervindo e, carinhosamente,


- Entre, por favor. tomando-lhe a carta)
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

- Ahn, ahn! Uma coisa de cada vez, tio. JORGE


Primeiro vamos atender ao seu belo e raro - Mas, quem ficaria com o Senhor? A essa
apetite matinal. hora será difícil conseguir uma camareira...

Jorge põe a carta sobre a mesa e serve café- SD (interrompendo-o)


com-leite para ambos. SD, com alguns - Meu caro sobrinho! Sei que estou inválido
muchochos, concorda passivamente com o e perturbado, mas não sou tão perigoso
sobrinho, e passa geléia no pão. assim. Enquanto saboreio mais uma torrada
com essa deliciosa geléia e releio a carta do
JORGE (após sorver de um só gole o suco Toledo, Você já foi e voltou! Fique tranqüilo;
de laranja, pega novamente a carta) seu tio não é um menino traquinas... E traga-
- Posso ler para o Senhor? nos guloseimas da venda. É para as
camareiras. Tem sido gentis conosco. Vá...
SD
- À vontade, sobrinho. Não é nenhum JORGE (aquiescendo apesar de não
segredo de estado. completamente convencido)
- Está bem, meu tio, mas o Senhor não vai
JORGE (rasga o envelope e retira a carta sair dessa poltrona até que eu volte.
colocando-a diante dos olhos) Combinados?
- “A Santos Dumont, o povo paulista, por seu
gover nador, agradece as eloqüentes SD (com um sorriso, e passando geléia em
palavras...etc “ outra fatia de pão)
(lê toda a pequena carta) - Tenho muito o que fazer diante desta mesa,
querido sobrinho. De fato, meu apetite hoje
SD toma seu café-com-leite, indiferente às está surpreendente.
palavras lidas pelo sobrinho.
Jorge vai até a escrivaninha, abre uma gaveta,
SD retira sua carteira, confere-a e coloca-a no
- Muitos elogios... coisas de políticos. bolso do casaco. Pega o chapéu e dirige-se
(comenta, após devorar outra fatia de pão à porta.
com geléia)
JORGE
JORGE - São dois minutos e já estou de volta.
- Porém parece-me sincera, tio Alberto. (e Lembre-se da sua promessa! Sem sair dessa
procurando alguma coisa no bolso do poltrona.
casaco) - Diabos, meus cigarros.
SD sem poder responder, com a boca cheia
SD de torrada com geléia, faz um gesto com a
- Ainda o velho vício... mão para que o sobrinho saia logo.

JORGE Corte para Jorge caminhando pela rua, de


- É verdade, tio Alberto... E o garçom só vai chapéu.
poder buscá-los às dez. Bem, o que fazer!
Corte para SD tomando café-com-leite. Ele
SD tenta alcançar a carta do outro lado da mesa,
- Porque não vai Você mesmo buscá-los à mas não consegue. Com esforço levanta-se
venda, Jorge? Não chegam aos 500 metros da poltrona para contornar a mesa. Ouve-
uma boa caminhada até lá... Não fosse meu se, então, um ruído distante de motores de
lamentável estado de saúde eu o avião. Ia pegar a carta quando percebe o
acompanharia; o dia parece excelente! ruído e paralisa o gesto para tentar ouvi-lo

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

melhor. O ruído aumenta progressivamente. vendo três aeronaves de guerra passando


SD volta-se na direção da janela, e caminha bem à sua frente, voando em direção a
até lá para observar as aeronaves. Santos. Seu olhar é apreensivo e seu humor
não é mais o mesmo. As aeronaves
Corte para Jorge, na rua, ouvindo também distanciam-se sob seu olhar reprovador e,
os motores aéreos. Pára pensativo e indeciso. bem ao longe, despejam bombas sobre a
Continua ou retorna? Decide continuar, mas cidade de Santos. As violentas explosões são
a passos rápidos, bem rápidos. ouvidas, reboando, em terríveis ecos.

Corte para SD chegando na janela. Vê três Corte para Jorge, ainda na venda, aguardando
biplanos vindos do norte, voando em baixa o seu troco. Olha assustado em direção às
altitude. explosões. O Português, ainda de costas,
fazendo o troco na caixa registradora, apenas
Corte para Jorge entrando afobado na venda. balança a cabeça, sem se virar.
Agitado, pede seus cigarros e já tira a carteira
e conta o dinheiro. O português, dono da Corte para close do rosto de SD atônito,
venda, porém, não tem pressa. apoplético, furibundo.

O PORTUGUÊS SD (balbuciando, trêmulo)


- Estes aeroplanos, estes aeroplanos... já - Eles... eles... não podem! Eles, não podem...,
andam por toda parte, ora pois... eles, eles, não podem, não podem...

JORGE (afobado, entregando o dinheiro)


- Por favor, dois maços de Continental; e seja SEQUÊNCIA 3
rápido, eu lhe peço.
Sobre o seu rosto aflito uma sequência de
O PORTUGUÊS (pegando o dinheiro, fusões de bombardeios aéreos se sucedem,
contando-o e arrumando-o calmamente) com tiros, bombas, explosões, estilhaços,
- Vamos com calma, meu senhor, o dia nuvens de fumaça. Começa com primitivos
apenas começa... (os ruídos dos motores biplanos da primeira guerra mundial, passa
aumentam) - Porque tanta pressa, homens?!... por pesados bombardeiros e caças da
(berra o português para os barulhentos Segunda Guerra, pelos caças-a-jato e os B-
aviões, como se os pilotos pudessem ouvi- 52 no Vietnam, jatos de última geração
lo) despejando mísseis no
Iraque; hospitais, escolas,
JORGE (apressando-o, cidades, tudo voando
nervoso) pelos ares em estilhaços e
- Senhor, senhor... fogo; os Quatro Cavaleiros
do Apocalipse surgem
O PORTUGUÊS num fogo horrendo,
- Já me vou, já me vou, já queimando florestas,
me vou...(entrega a Jorge os ardendo edifícios, aos sons
dois maços de cigarros e vai de tiros, explosões, chuvas
em direção ao fundo da de bombas, metralhadoras;
venda onde está a caixa fumaça, destruição,
registradora para fazer o mortes; tudo passando
troco) ...- Já trago-lhe o diante do olhar
troco. ensandecido de SD, que,
Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse às vezes, surge e
Corte para SD na janela, Xilografia de Durer desaparece em meio às

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

fusões sempre balbuciando “Eles não Ribeirão Preto, 20 de julho de 1880) Ao


podem!, eles não podem!, eles, eles...”, até o fundo, muitas crianças, sons, ruídos e música
desfecho de tudo, numa cataclísmica de festa na roça.
explosão nuclear, e o seu monumental
cogumelo abrindo espetacularmente o A CRIANÇA MESTRE (em off, pois a câmera
poderoso raio de devastação, num tremendo continua em Albertinho)
e sonoro reboar. - Albertinho, homem voa?

A câmera aproxima-se lentamente do centro ALBERTINHO (categórico)


incandescente do cogumelo atômico - Voa!
enquanto o som e a imagem do rosto de SD
vão diluindo até o desaparecimento. Tudo é E sai em corrida desabalada, separando-se
pura luz e silêncio. Ouve-se uma voz infantil. do grupo de crianças, correndo por entre as
pessoas e arranjos da festa ao ar livre em
direção à casa-grande de fazenda, a poucos
SEQUÊNCIA 4 (plano-sequência/sem cortes) metros de uma bela e grande gameleira. À
sombra dela as crianças brincavam de “seu
O foco da câmera sai da pura luz, que revela- mestre” na festa de aniversário de Albertinho.
se o centro de uma branca nuvem no céu, e
desce lentamente para a terra durante o A câmera eleva-se, passa por cima da copa
tempo das falas infantis. da árvore numa grua alta, e acompanha, do
alto, a trajetória do pequeno Albertinho até
CRIANÇA MESTRE que ele abrace as pernas de seu pai, que
- Tamanduá voa? vem saindo da casa. Em seguida, passa pelos
telhados do grande casarão e mostra, por
CRIANÇAS EM CORO trás da casa, os imensos cafezais sem fim.
- Não voa! Ainda em movimento contínuo a câmera vai
subindo seu foco para o céu, até às nuvens.
CRIANÇA MESTRE Entra a titulagem:
- Macaco voa?

CRIANÇAS EM CORO DANS L’AIR


- Não voa! A VIA SANTOS-DUMONT

CRIANÇA MESTRE OU
- Pato voa?
SANTOS-DUMONT/O FILME
CRIANÇAS EM CORO
- Voa!
SEQUÊNCIA 5
CRIANÇA MESTRE
- Homem voa? No mesmo céu, como se não houvesse corte,
ouve-se o ruído de um primitivo motor de
UMA VOZ SOLITÁRIA DE MENINO explosão a petróleo, aproximando-se por trás
(Albertinho) do espectador. De repente, corta a tela o
- Voa! dirigível SD N 6, em ângulo surpreendente
(foto),
Todas as crianças riem e debocham. A câmera
está no rosto tímido e desconcertado de Corte para a câmera no próprio dirigível,
Albertinho, de sete anos de idade. (Legenda: focalizando, de frente, o jovem SD, que opera

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

Paris, 20 de outubro de 1901). Um “foca”


aproxima-se.

O “FOCA” (o jovem Lazare)


- O Senhor Adrien pediu-me para avisá-lo
que o espera em seu gabinete.

GEORGES
- Obrigado, rapaz.

Georges põe a caricatura dentro de uma pasta


de cartolina, levanta-se e sai por entre o
tumulto de oficiais e máquinas gráficas em
plena função do dia, na apertada oficina do
“Le Temps”. A câmera acompanha-o até a
"...corta a tela o dirigível SD Nº 6 porta envidraçada do editor onde se lê
em ângulo surpreendente."
“ADRIEN HÉBRARD, EDITEUR”. Bate e abre
complicados sistemas de contrapesos e a porta. Adrien está aos berros num primitivo
manetes de comando, com movimentos aparelho de telefone.
precisos, equilibrando-se, com facilidade, na
pequena barquilha da aeronave. ADRIEN (aos berros)
- Sim, sim, já ouvi,...já ouvi! (e desliga o
Corte para a câmera no solo da cidade de aparelho lançando maldições). - Malditas
Paris enquanto o Número 6 circunda a Torre máquinas! (acalma-se e indica uma poltrona
Eiffel. Bengalas e chapéus agitam-se e são do seu entulhado gabinete a Georges) -
jogados ao alto nos aplausos do povo Sente-se, Georges. (e, indo direto ao assunto)
aglomerado. (foto). - A Comissão Julgadora hesita em conceder

O POVO DE PARIS (aplaudindo)


- Viva “le petit Santos”!
- Viva “le petit Santos”!

Num certo momento (o momento exato dessa


foto), o quadro “congela” e a câmera
aproxima-se do Número 6 ao lado da Torre
Eiffel. Ao enquadrá-los, a cena estática fica
em P&B.

SEQUÊNCIA 6 (O "Le Temps")

A câmera volta a abrir o ângulo e vai


mostrando a foto P&B estampada na primeira
página do jornal "Le Temps", que
está na mesa do jornalista-
caricaturista Georges Goursat.
O desenhista está dando os
últimos retoques na caricatura
de SD (ao lado). Ao terminá-la, "...Viva le Petit Santos! Viva le Petit Santos!"
ele a assina: Sem. (Legenda:

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

o Prêmio Deutsch ao nosso “petit Santos”. usá-la em seu favor. Mas preserva princípios
Sinto o cheiro do velho chauvinismo mais comuns aos santos e aos ingênuos. Sou
francês... testemunha de que ele joga limpo e só
descansará quando estiver convicto de que
GEORGES foi cumprida a missão que o destino lhe
- Você soube que Alberto abriu mão do impôs.
dinheiro do Prêmio em favor de sua equipe
de mecânicos e dos operários pobres de ADRIEN
Paris?.... - Você e ele cultivam uma boa amizade...

ADRIEN GEORGES
- Sim, ele foi esperto. Eis que o nosso herói, - Sim, de fato desde que Alberto começou
além de engenhocas e dirigíveis, entende suas aventuras em Paris, despertou-me uma
também de publicidade, não? A opinião dupla curiosidade: a do jornalista e a do
pública ficou toda com ele. caricaturista. Comecei a acompanhá-lo de
perto e tornei-me seu amigo pessoal. É um
GEORGES gentleman, um bon vivant refinado e
- Não é isso. Alberto não age discreto apesar de toda a
por meio de artimanhas publicidade que desperta.
e truques. Seu É também uma pessoa
desprendimento é reservadíssima...
sincero. Se quisesse,
estaria multimilionário ADRIEN (em tom
só com as patentes solene e circunspeto)
que legou ao domínio - Meu caro Georges,
público... posso introduzir-lhe num
segredo que não pode sair desta
ADRIEN sala?
- Eis aí, meu caro Georges, um caso
raro, raríssimo! Fale-me mais sobre ele. GEORGES (um pouco desconcertado)
- Se é algo que eu possa ajudar...
GEORGES
- Herdou fortuna suficiente para viver bem e ADRIEN
inventar o que quiser. Pode ser considerado - O Herald de Nova York mandou um repórter
louco ou gênio. Essas virtudes costumam para acompanhar o nosso “petit Santos”. Há
trazer consigo o sentimento de predestinação. tempos desconfio desse interesse do Bennett
Creio que, interiormente, Alberto acredita- pela viação aérea. De repente, tornou-se um
se um predestinado. Comporta-se como se mecenas do metier! Gasta fortunas com
sua missão fosse dada pelos deuses, que o prêmios, financiamentos, experiências, o
enviam à Terra para ensinar os segredos da diabo. E Gordon Bennett não preserva, com
aeronáutica. Só por isso vive, pensa, estuda, a publicidade e a imprensa, os mesmos
gasta e trabalha. Mulheres, farras, finanças, princípios que o seu amigo; e muito menos
patentes, heranças, são para os mortais quanto ao dinheiro! Acionei meu agente em
comuns. Para ele a luta e o diálogo é com os Nova York para saber o que se passa na
deuses. Uma espécie de Aquiles ou Prometeu cabeça dele. Ontem recebi esse dossier.
moderno, protegido por uma facção do Bennett está investindo pesado; contratou
Olimpo e combatido por outra. Suas armas estudiosos e doutores de História da
são o talento para a mecânica, a audácia, o Civilização para desenterrar tudo quanto fora
dinheiro e, é claro, a publicidade. Dessa tentativa humana de alçar-se aos ares com
última intui bem a sua importância, e como ajuda de máquinas e outros artifícios. O que

14
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

tenho aqui é apenas Bennett quer chegar?


um resumo.
Georges faz uma expressão interrogativa
Mostra o espesso
dossier a Georges que ADRIEN (prosseguindo)
começa a examiná-lo - Conhece meu faro
f o l h e a n d o - o para notícia, uma
superficialmente. espécie de sexto
sentido no qual
ADRIEN (continuando sempre confio. Há
em off sobre a iconografia citada, em imagens dias, visitou-me o
estáticas ou em movimento animado) Coronel Charles
- Georges, eles foram longe nessa pesquisa. R e n a r d .
Rebuscaram os antigos textos do Delicadamente
Mahabharata, onde se lê que imensas sugeriu-me atenção
aeronaves povoavam os céus cobrindo maior para as
grandes distâncias. Foram aos chineses e seus experiências dos
planadores de alguns séculos antes de Cristo. franceses na
Aos mitos gregos de Ícaro e deuses alados; à aerostática e, à sua
idade média com suas bruxas voando em maneira, queixou-
cabos de vassouras, e monges beneditinos se do excesso de publicidade que temos
em planadores; resgataram histórias de um dado ao seu amigo. Fez a mesma coisa no
alemão exibindo-se em vôo planado perante L’Illustration, no Petit Journal, no Figaro, e,
o imperador no século XV; Roger Bacon e em outros jornais. Com o dossier do Herald,
Leonardo da Vinci o que eu suspeitava confirmou-se: começou
com suas idéias a batalha chauvinista, entre as nações, para
visionárias; um disputar a glória da primazia na conquista
saltimbanco dos ares. E as suas patentes, é claro. Alemães,
atirando-se do ingleses, franceses, russos, italianos e
Palácio Saint americanos já estão nela, Georges, e
Germain, diante de apostando tudo o que têm. Bennett está
Luiz XIV e sua corte; preparando o troféu para os americanos. E
máquinas e inventos o coronel Renard o quer para os franceses.
de toda espécie; Todos se mexem, percebeu?
barcas voadoras;
pernas e cabeças GEORGES
quebradas; tudo - Talvez, mas ainda não o meu papel nessa
com detalhes, documentos, testemunhos. história.
Nos dois últimos séculos, a coisa cresce e se
espalha pelo planeta com todo o tipo de ADRIEN
experiências inacreditáveis. Até um outro - Sim, hoje acordei
brasileiro voador, um tal Bartolomeu com uma
Gusmão, localizaram em Portugal no Século nova
XVIII, a tentar vender ao rei barcas voadoras
de guerra. (e, em in) - Hoje, onde tem alguém
tentando voar nalguma máquina louca, tem
alguém do Herald bisbilhotando. E o que o
Herald publica de tudo isso? Nada! Ou quase
nada! Uma ou outra notícia, que todos nós
publicamos. Então me pergunto: onde "... eles foram longe nessa pesquisa."

15
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

idéia e o meu sexto sentido a aprovou. Você vem a calhar! Espero que haja aumento de
passa a ter uma saleta exclusiva, com chaves salário e despesas pagas, Alberto é habitué
na porta, na escrivaninha e no armário. Vai do Maxim’s...
acompanhar de perto o seu amigo e suas
aventuras aéreas. Algo me diz que o “petit ADRIEN
Santos” é que vai decidir essa parada. Ele é - Sim, mas com moderação. Você sabe que o
o homem! E, pensando bem, seria o melhor "Le Temps" nunca foi grandes coisas em suas
para todos nós: resolveria essa pendenga finanças. Cá estão as suas chaves. Na
idiota e pueril de quem, diabos, foi o primeiro escrivaninha encontrará uma cópia do dossier
a voar com uma máquina, e capaz de dirigi- do Herald. E sigilo total sobre tudo! Vou fazer
la. Nem franceses, nem ingleses, nem saber que o promovi a redator- assistente.
americanos, nem italianos, nem alemães, nem
russos: - um brasileiro! Não seria perfeito? E GEORGES (pegando as chaves)
é só o que os brasileiros desejariam; - a glória! - Negócio fechado, chefe. Ah, aqui está a
Nós outros queremos essas máquinas para caricatura do jornal de amanhã; o que acha?
nos metralharmos mutuamente, e incorporar
os céus aos sangrentos campos de batalha. ADRIEN (olhando atentamente o desenho)
E ganhar dinheiro, meu caro, muito dinheiro, - Perfeita, Georges! Vamos guardá-la para
deixando as demais nações a reboque de depois da decisão da Comissão Julgadora.
patentes bem asseguradas. (e, refletindo) - Publicá-la agora seria contraproducente. Falei
Diga-me, Georges, ele é comunista? Essas com o Deutsch, o Aimé e o Bonaparte.
idéias de patrimônio da humanidade para o Apesar das forças contrárias, o provável é
saber intelectual, distribuição de dinheiro que o prêmio venha para o nosso herói. E
para operários... Li coisas do gênero em que o merece; porque não? Mas lembre-se:
recentes manifestos de comunistas... estamos em França, a velha, boa e madrasta
França, onde o importante é preservar as
GEORGES (interpelando risonho) aparências... Bem, ao trabalho.
- Nem de longe, Adrien. Já disse o que ele é, (cumprimentam-se)
ou acredita ser: um predestinado. Pelo seu
comportamento estaria mais próximo até de
um monarquista do que de um republicano. SEQUÊNCIA 7
Talvez nem saiba da existência de Marx,
Engels e seus discípulos... Por volta das duas da tarde, Georges caminha
pelo Champs Elysées em direção à rua
ADRIEN Washington. Entra num luxuoso prédio de
- Pois bem, Georges, quero que Você me apartamentos grã-finos e dirige-se até a porta
traga a vida dele nos detalhes. Vou pôr um do número 3 do andar térreo. Toca a
fotógrafo para acompanhá-lo. A partir de hoje campainha. August, o mordomo austríaco de
o "Le Temps" vai cuidar mais desse assunto. SD, atende com solicitude e o introduz no
Minha aposta, porém, é no “petit Santos”. Por hall.
isso quero-o inteiro; e guardado a sete
chaves, para a hora certa! Enquanto isso vou Descrição cenográfica: o hall é decorado com
administrando os concorrentes, os políticos quatro litografias de Debret e duas de
e os militares. Concorda com o trabalho? Rugendas, mostrando aspectos do interior do
Brasil, e um conjunto de móveis feitos em
GEORGES jacarandá da Bahia, composto de um
- Não vejo porque recusá-lo. Também cabideiro, um pequeno canapé e um porta
acredito muito em Alberto. Perto dele me revistas, todos do mesmo e curioso artesanato
sinto na presença de um gênio; - um gênio brasileiro, e um tapete arraiolo, de centro,
da mecânica! Também para ele, esse trabalho confeccionado em Diamantina, interior de

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

Minas Gerais, terra de Henrique, pai de SD. amigo, mas o perdôo.


Aguarde-me ao salão.
August pede a Georges que o aguarde. O Pradô lá se
Desaparece por uma porta e, alguns e n c o n t r a .
segundos depois, retorna. Também recusou
meu convite.
AUGUST Mandarei servir
- O Sr Santos-Dumont vai recebê-lo na sala sobremesa a
de jantar, Sr Georges. (e, baixinho no ouvido Vocês e logo
de Georges) - Por favor, não se assuste com estarei lá para o
o que vai ver. O senhor já conhece o patrão. licor. August,
leve o Sr
O mordomo introduz Georges na ampla sala Georges até o
de jantar. Georges parece não acreditar no salão.
que vê. Sentado no alto de uma cadeira com
os quatro pés de dois metros e meio de altura, G e o r g e s
"Georges parece não acreditar
frente a uma mesa de jantar igualmente a c o m p a n h a no que vê"...
pernalta, está o jovem SD, impecavelmente August saindo
vestido e calmamente almoçando, com sua por outra porta e atravessando o largo
cabeça a poucos centímetros do lustre da corredor.
sala. Uma escada, aberta ao lado da mesa,
dá acesso a um dos criados que a sobe, Descrição cenográfica: o corredor é decorado
temeroso e mal equilibrando a bandeja, para com duas raras gravuras de Dürer (a
servir a sobremesa ao seu patrão. SD olha lá calcografia Melencoliae, onde se vê um sábio
de cima a cara estupefata de Georges. medieval com seus instrumentos, a pedra
filosofal e um quadro numerológico, ao
SD fundo, no qual todas as somas dos números
- Como vai, Georges, por favor não se assuste que o compõem, nas verticais, horizontais e
e não tema. O metier obriga-me à diagonais, perfazem 34 e a famosa
convivência com as alturas. Aceita xilogravura alada dos “Quatro Cavaleiros do
acompanhar-me? Há uma outra cadeira para Apocalipse”); uma sanguínea atribuída a
um eventual conviva que, infelizmente, Bosch (mostrando uma composição também
nunca aparece. O alada e surrealista) e
vinho está excelente e duas peanhas ao
a comida... ora, Você já fundo, uma de frente
conhece as habilidades para outra, a da
do meu valioso esquerda sustentando
François. um pequeno fauno de
Rodin e a outra uma
GEORGES (com a voz bailarina de Degas.
um pouco trêmula de
pasmo) Chegam até a porta do
- Sinto declinar do luxuoso salão de
convite, Alberto, mas visitas, iluminado por
hoje estou um tanto grandes janelas
sem apetite... envidraçadas, que dão
para o Arco do Triunfo.
SD
- Já esperava essas Descrição cenográfica:
Melencoliae - Calcografia de Durer
desculpas, meu caro o amplo salão tem, no

17
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

centro da sua parede principal, uma das de três pequenos cálices de cristal. Coloca a
pinturas mais apreciadas de Gauguin: a “Ta bandeja sobre a mesa de centro e sai. Prado
Matete”, na qual o genial artista compõe, com o agradece, passa uma sobremesa a Georges
as cores fortes dos trópicos e suas belas e pega a outra para si.
morenas, uma requintada composição no
estilo egípcio, com as figuras perfiladas e GEORGES (após provar um bom naco do
dispostas coreograficamente no quadro; à seu doce)
frente dela, na parede oposta, contracenam - E como vai o grande Brasil, essa terra que
uma pintura de Rousseau, “O Por do Sol na todos cantam com os mais exuberantes
Selva”, também de forte coloração e tema adjetivos e predicados?
tropicalista, dois quadrinhos pontilhistas de
Signac e um outro, também pequeno, de PRADO (também provando um naco do seu)
Seurat, um gouache de Toulouse Lautrec e - Maravilhosa! Como sempre foi e será, meu
duas sanguíneas, uma aquarela e um óleo caro Georges, maravilhosa! Quando teremos
do pintor, seu conterrâneo e amigo, Elyseu a honra de recebê-lo lá?
Visconti. Na parede do fundo, um altarzinho
barroco, trazido de Cabangu, com um GEORGES
pequenino oratório atribuído ao famoso - Talvez mais breve do que imaginamos,
escultor que atendia Embaixador. Minha
pela alcunha de irmã ordenou-se
“Aleijadinho”. O freira e foi para um
salão é mobiliado mosteiro em
em três ambientes, Petrópolis. Está
dois com jogos de encantada com o seu
confortáveis sofás, país. Em breve
um de couro e outro pretendo visitá-la.
de veludo, ambos
em tons e cores PRADO
claras, feitos nas Detalhe do Ta Matete de Gauguin - Mas que bela
mais finas capotarias notícia, Georges!
de Paris, com respectivas mesas de centro, e Faço questão de visitá-la quando retornar ao
o terceiro com uma mesa redonda de Brasil, se possível levando Você ao encontro
carteado e seis cadeiras de palhinha. de sua irmã e das delícias tropicais brasileiras.
Vai se sentir em pessoa no próprio paraíso,
Antonio Prado está distraído lendo jornais e, acredite.
ao perceber Georges, levanta-se para abraçá-
lo. Ambos deixam as sobremesas e Prado
oferece charutos. Georges aceita um e
GEORGES caminham em direção à janela acendendo
- Fico feliz em revê-lo, Embaixador. Fez boa os charutos.
viagem?
PRADO (após a primeira baforada)
PRADO - Muito bem situado este apartamento de
- Excelente, meu bom Georges, excelente! Alberto; bem diante do Arco do Triunfo.
Vim no Lutéce! Também estou contente em
vê-lo. GEORGES (também fumando e pensativo)
- Sim, uma ótima escolha. Alberto não
Entra o criado trazendo uma bandeja com descuida os detalhes. Seu gênio parece estar
duas sobremesas servidas de torta de maçã sempre à procura dos símbolos em tudo o
e sorvete, e a garrafa de licor acompanhada que faz. Aqui, ele quer conviver com o

18
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

símbolo do triunfo. Eis o nosso bom Alberto, Prêmio Deutsch.


o predestinado... Oh! ei-lo.
SD
SD entra no salão e começa a servir os cálices - Mas isso seria desnecessário, Pradô. Não
de licor. quero tornar-me mais um problema às já
combalidas finanças públicas de nossa pátria.
SD (brincalhão)
- Amigos, vamos brindar a esse encontro. PRADO
(serve a todos, brindam e bebem) - Pradô, - Não é que estejam lá muito boas. Não nos
vou pedir ao governo brasileiro que desafie faltam crises. Vai mal o comércio, a indústria...
a França em armas caso não me concedam Mas estamos longe de uma quebra. E
logo esse prêmio. O que acha? Não é uma desejamos o seu sucesso em Paris, que tanto
afronta? Está me saindo mais difícil receber prestígio tem trazido ao Brasil e ao nosso
o Prêmio do que o foi para conquistá-lo!? povo. É o mínimo que podemos fazer, não
recuse, Alberto. O povo brasileiro iria
GEORGES (após o brinde e de sorver o licor considerá-lo um snob.
de um só gole)
- Amanhã, com certeza, teremos o fim dessa SD
novela. E com final feliz. O povo parisiense - Não recusarei, Pradô. Como sabe concedi
não aceitará mais uma protelação. o Prêmio Deutsch aos meus mecânicos e aos
operários pobres de Paris. E o fiz por
SD merecimento e compaixão. Depois de amigos
- Pudera, já estamos a 3 de novembro. Já se como Você e Georges; os meus mecânicos e
vão quase 15 dias... Mas confio nos sábios o povo pobre de Paris tem sido os meus
do Instituto de Paris, eles me salvarão! maiores aliados desde que aqui cheguei...
mas, Georges, o que está a anotar neste
GEORGES caderno?
- Pelas contas do jornal já temos 10 votos
certos a seu favor. E sabemos que outros dois Georges havia tirado de sua pasta um
também serão nossos. Esses já lhe garantem caderno de notas e um lápis e fazia ali
a vitória. algumas anotações.

Sentam-se todos nos confortáveis sofás do GEORGES


ambiente principal do salão. - Temos aqui uma notícia mais fresca do que
as croissants da boulangerie de la place, meus
PRADO amigos. E eu sou um repórter, lembram-se?
- Falei por telefone ao Deutsch. Ele garante (termina a anotação e guarda o caderno) -
que o Aero Clube de Paris não lhe recusará Mas hoje não tenho notícias só a anotar;
o prêmio. Deutsch estava lá naquele grande tenho-as também a dar: Adrien promoveu-
momento da história que, infelizmente, perdi, me a seu redator-assistente no "Le Temps".
nas atribulações do meu cargo. Campos Sales
chamou-me ao Rio justamente quando tudo PRADO
estava para acontecer. (e, dirigindo-se a SD) - Considero Maurice Talmeyr e Adrien
- Pelo menos pude ser útil à sua luta, Alberto. Hébrard os dois mais brilhantes jornalistas
Convencemos Sales e o Congresso, com a que o novo século revelou. Você está de
ajuda do senador e aeronauta Augusto parabéns, Georges.
Severo, cuja atuação no Parlamento foi
fundamental para o nosso pleito, de que, SD (enchendo novamente os cálices com
independente do que aconteça, o Brasil lhe licor)
pagará um prêmio no mesmo valor do - Sim, Adrien faz jus à estirpe dos

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

“informadíssimos Hébrards”. Eis aí um bom Por isso os convidei hoje. (e levanta-se


motivo para novo brinde. Um brinde ao caminhando em direção ao corredor) - Por
nosso amigo Georges. Sucesso e felicidades favor, dêem-me a honra! Serão os primeiros
para ele. (brindam) - Me sinto orgulhoso de a conhecer o meu atelier, este pequeno
Você, Georges (e bebem). caldeirão onde remexo minhas bruxarias.
Sigam-me. (os dois, movidos pela surpresa,
GEORGES (põe o cálice na mesa) o seguem)
- Para mim é o último. Prefiro não beber
enquanto trabalho.
SEQUÊNCIA 9 (A Oficina secreta de SD -
PRADO Descrição cenográfica)
- Como assim, trabalho, Georges? Vai sair
agora? O final do amplo corredor é arrematado por
uma parede forrada de madeira negra e
SD maciça. Perto dela, na lateral, uma peanha
- Sim, explique-se, Georges. apóia a pequena e delicada bailarina de
Degas. SD gira a bailarina, e a peanha revela-
GEORGES se a portinhola de um mecanismo
- Não, não pretendo sair. Minha primeira escamoteado, composto de uma pequena
missão em meu novo trabalho é Você, alavanca e um segredo numérico semelhante
Alberto. aos dos cofres. SD gira o segredo para as
posições certas, aciona a alavanca, e a
SD “parede” do fundo do corredor denuncia-se
- Ora, não diga que acabo de perder um uma imensa porta de madeira maciça que
amigo e ganhar um jornalista. Já tenho-os corre suavemente para a direita, deslizando,
aos montes, seguindo-me nas esquinas, nos sem qualquer ruído, sobre bem lubrificadas
cafés, nas oficinas, com seus fotógrafos e suas rodilhas. A um sinal de SD os dois amigos
anotações. Amigos, porém, os tenho poucos. estupefatos penetram o recinto, descendo por
E a Vocês farei uma distinção muito especial. uma pequena escada de três degraus,

Espaço destinado à planta baixa


da Oficina Secreta

20
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

sistema de grandes luminárias e holofotes


elétricos reguláveis, pendurados ao forro e
manejáveis do chão por sistemas de correntes
pendentes; que garantiam perfeita
luminosidade, com intensidades reguláveis
por reostatos, em qualquer ponto do seu
interior.

A temperatura ambiente era mantida em


amenos e permanentes 23 graus centígrados
(marcados em um grande e visível
termômetro instalado num dos pilares) por
um sistema de ar renovado e
temperaturizado, idealizado pelo inventor,
que era distribuído por tubulões condutores
aéreos, de seção retangular, feitos em latão,
embrulhados em mantões de lã, e
sustentados por cabos pendidos à estrutura
seguidos de SD que, antes de entrar, aciona superior do telhado, um pouco acima do pé-
novamente a alavanca para que a porta, direito. Eram interligados a um complexo
lentamente, se feche por detrás dele. sistema de aquecimento elétrico e
refrigeração a gás freon, feito de serpentinas
O ambiente era fantástico: um grande galpão, metálicas por onde passava água em
de 30 metros de comprimento por 20 de temperatura controlada, e acoplados a
largura, adaptado de uma desativada garagem poderosos ventiladores, com hélices de
de carruagens e diligências, contígua ao chapas metálicas planas, que recolhiam o ar
apartamento de SD: sem divisões internas, ambiente, renovava-o, filtrava-o, refrigerava-
possuía o pé-direito de cerca de 6 metros, o ou aquecia-o, e soprava-o novamente pelos
telhado de ardósia forrado de tábua corrida, tubos que o distribuíam pelas nove bocas
sustentado por estrutura metálica art- do sistema, nos diversos ambientes do
nouveau apoiada nas laterais e em quatro galpão. Um sistema de chaves e reostatos
pilares simetricamente dispostos, que engenhosamente conectados a termômetros
formavam um grande quadrado central, e barômetros, mantinham o funcionamento
iluminado, de dia, por uma bela cúpula no automático de toda essa parafernália e
centro do telhado, feita em vidro colorido e garantiam pressão atmosférica, temperatura
ferro fundido, no mesmo estilo da estrutura e umidade do ar constantes em qualquer
de sustentação. Além da porta secreta que o época do ano e a qualquer hora do dia.
ligava ao apartamento, o edifício tinha duas
grandes portas de correr, jamais vistas A parte barulhenta do sistema, composta de
naquela época, para entrada e saída de pesados motores elétricos e geradores de
materiais, equipamentos, máquinas, inventos energia elétrica a petróleo e respectivos
inteiros ou em partes, que dava para o pátio tanques de combustível, jogos de chaves
externo. Apesar da inexistência de divisórias automáticas, roldanas, polias, correias e
em seu interior, o ambiente era perfeitamente ventiladores, era mantida isolada numa
dividido em nove diferentes espaços de casinhola de alvenaria feita com paredes
trabalho ou seções, como demonstra a planta duplas e com revestimento interno de feltro
baixa, na página ao lado. grosso, que abafavam completamente todos
os ruídos ali produzidos, e, a tal ponto, que,
A oficina era hermeticamente fechada e vistas pela escotilha de espesso vidro da
iluminada artificialmente por um engenhoso igualmente espessa portinhola de inspeção,

21
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

com as luzes internas acesas, especialíssimas finalidades, as


pareciam silenciosas e serenas maquetes e modelos, etc.]
máquinas em perfeito e celestial
funcionamento. [Aberta, porém, No quadrado central, - entre os
a portinhola, uma violenta pilares feitos de ferro fundido e
orquestra de ruídos bordados com vinhetas art-nouveau
ensurdecedores toma conta da em relevo - , ficava a grande
oficina, para susto dos visitantes que prancheta de trabalho de SD
só destapam seus ouvidos quando (equipada com um suntuoso
o inventor cerra novamente a tecnígrafo) de tampo maciço feito em
portinhola e faz retornar a paz tábua única de ipê emoldurado em
anterior.] pinho de riga, suspenso do teto em
balanço, acima de um armário-
As tubulações principais de renovação mapoteca de seis gavetas, por um
e distribuição do ar encanado subiam da complexo sistema de cabos e roldanas,
casinhola pela parede até o teto, como uma manejáveis por correntes pendentes,
chaminé de lareira, também isolada com podendo ser facilmente posicionado e
feltro grosso e parede dupla de alvenaria; e inclinado em qualquer ângulo, verificáveis
os tubulões de distribuição, isolados com nas bolhas de prumo acopladas nos sentidos
mantões de lã, não só impediam a troca de lateral e longitudinal do tampo suspenso.
calor, como também eliminavam todo o ruído Frente ao tampo, uma barquilha de vime,
produzido pelas máquinas na casinhola, idêntica às utilizadas por SD em suas
antes da saída do ar nas bocas de distribuição. aeronaves dirigíveis, era também suspensa
De sorte que, no interior do galpão, ouvia- do chão por semelhante sistema, só que
se apenas, e no silêncio total, um leve e sutil acoplado a um carrinho com rodilhas,
rumorejar de exalação aérea contínua, equipado com motor elétrico, e instalado
distribuindo ar puro e temperaturizado em num sistema de trilhos firmemente suspensos
todo o vasto ambiente. e fixados na estrutura inferior do telhado,
logo abaixo do pé-direito, como se fosse uma
Uma outra casinhola, contígua à anterior, do espécie de mini-ferrovia aérea. Esse sistema,
mesmo porte e de semelhante construção, operado de dentro da barquilha, permitia
igualmente isolada dos ruídos e equipada levá-la e elevá-la, com o seu ocupante, a
com um sistema de filtragem de gases e qualquer ponto ou altitude dentro da oficina,
aeração própria, servia de cabine de testes de modo que, ao trabalhar em sua criações,
dos motores criados pelo inventor, que o inventor simulava também a situação
podiam nela ser introduzidos através de uma tridimensional de vôo e exercitava o seu
tampa superior, e se sustentavam, no interior, equilíbrio.
em bancadas apropriadas e conectadas por
cabos e fios aos instrumentos de medição Em frente à prancheta, um grande espaço
instalados externamente, embaixo de um vazio servia esporadicamente para a
grande visor retangular de vidro espesso, pelo colocação dos moldes de confecção dos
qual podia-se acompanhar também invólucros de balões e dirigíveis, e montagem
visualmente o desempenho das máquinas em parcial ou integral de protótipos para testes.
teste. À esquerda situava-se, de trás para frente, a
marcenaria completa, servida de mangas de
[SD caminha pela oficina seguido pelos aspiração e reaproveitamento de serragem,
amigos, mostrando, com orgulho, os seus pendentes do teto, para todas as máquinas;
mínimos detalhes, os controles de luz e a serralheria, a tornearia e a usinagem de
atmosfera por ele inventados, as precisão, igualmente completíssimas, com
ferramentinhas que criou e suas seus sistemas de soldas e maçaricos de todos

22
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

os tipos existentes, protegidos por boxes de algumas.


cortinado de percalina e borracha isolante,
e servidos de coifa de exaustão de gases; e a Atrás, no canto de fundo, a parte molhada,
seção de montagem e mock-up, equipada com tanques e pias servidas de torneiras e
com máquinas de costura elétricas e prensas mangueiras diversas e um pequeno
de colagem, onde amontoavam-se, laboratório de química, onde podia-se
organizadamente, do chão ao forro do produzir e testar colas, vernizes, tintas,
telhado, pendurados ou apoiados em caixas, graxas, lubrificantes e até combustíveis,
caixotes e pedestais próprios, uma infinidade também servido de coifa de exaustão
de modelos, protótipos, maquetes e exclusiva e box cortinado de pesada lona
miniaturas de todo o tipo de engenhos aéreos de isolamento. E um lavatório servido de
e terrestres que a imaginação do inventor água aquecida, vasos sanitários com descarga
pode conceber até então. hidráulica e armários de escaninhos para
guardar pertences pessoais dos mecânicos.
No canto dessa seção, via-se uma bizarra
reunião de meia dúzia de bonecos Perto dele, um enorme ventilador, preso à
articulados, feitos de borracha, em escala parede do fundo por um braço mecânico
humana natural, que eram usados para testar ajustável, olhava para um grande tubo ou
posições de pilotagem e condições de manilha feita em latão, de diâmetro igual ao
comando nos mock-ups e protótipos. da hélice do ventilador, estruturado num
engradado de madeira
Atrás do inventor, fixado ao piso. Dentro
quando em sua do tubo estavam
barquilha pendurada no pendurados alguns
quadrado central, modelitos de
ficavam instalados todos m e c a n i s m o s
o sistemas de controles aerodinâmicos
de iluminação e produzidos em papel
atmosfera, junto às ..."uma bizarra reunião de meia dúzia de bonecos"... de seda e bambu.
casinholas de máquinas.
À frente, por onde se entrava lateralmente
À direita, ao lado, um almoxarifado, sempre pela porta secreta do corredor do
repleto de materiais oriundos dos quatro apartamento, uma confortável e portentosa
cantos do mundo, e que poderiam ser biblioteca, provida de armários e estantes
utilizáveis em projetos do inventor. Tudo bem com portas de correr envidraçadas até a altura
armazenado, conservado e guardado em do pé direito, dentro dos quais podia-se
prateleiras, armários e recipientes de várias observar as grossas lombadas de obras
espécies, com etiquetas de identificação e científicas de todo o mundo, obras de
fichas de controle de estoque presas à referências indispensáveis e obras-primas da
pranchetilhas de mão e penduradas em literatura universal e contemporânea, com
cabide de madeira fixado à parede. Ao seu luxuosas encadernações e organizadamente
lado, uma bela ferramentaria, especialmente dispostas; e, ao rés do chão, um armário de
projetada para guardar, com visibilidade, do escaninhos fundos arquivava um sem
mais pequenino e delicado instrumentinho, número de rolos de desenhos, plantas e
até as possantes marretas e poderosas projetos do inventor.
alavancas de ferro fundido, passando por
tudo quanto é tipo de ferramenta pequena, [Prado, esmerado bibliófilo, dirige-se à parte
média ou grande, possível e existente, central da Biblioteca, feita de madeira
fabricadas por quem quer que as fabrique e especial, forrada por dentro de veludo azul
pelo próprio inventor que as inventou da pérsia e com uma porta de cristal bizotado

23
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

com o desenho do Ex-Libris do de 1673, do português Luiz


inventor, criado por Sem Serrão Pimentel, com
(Georges), e, tendo abaixo, em autógrafo do autor e,
plaqueta de cobre, o nome da orgulhoso, folheia
seção: “Cimélios”. Abre a porta delicadamente algumas
e começa a farejar as páginas de um raríssimo
preciosidades ali conservadas. exemplar do Séc. XVI,
Logo reconhece as do falecido impresso em bistre e com
Henrique, algumas das quais primorosa encadernação feita
adquiridas por ele mesmo, a em marroquim carmesim, da
pedido do amigo, em leilões “Historia Naturalis et
europeus. Lá estavam a Experimentalis”, na qual o
princeps d”Os Lusíadas”, em visionário Roger Bacon faz
primorosa encadernação de várias e proféticas previsões
anônimo, feita em pergaminho científicas, entre elas, as
com relevos secos e aplicações de cinábrio máquinas voadoras.]
e ouro verdadeiro, um incunábulo editado
por Aldus Manutius, a “Hypnerotomacchia Toda a Biblioteca era uma vasto painel que
Poliphili”, do dominicano Francisco Colona, abrigava entre 3000 a 5000 volumes com
de 1499, com cerca de 200 gravuras atribuídas subdivisões assinaladas em pequenas
a Mantegna, a primeira edição da “Divina plaquetas de bronze. Além da “Cimélios”,
Comédia” ilustrada por Gustave Doré, de com plaqueta diferenciada em cobre, havia
1868, um dos volumes da completa de Cícero
editada por Aldus, o moço, em 1583, e o a “Scientifica”, abrangendo obras do
pequenino volume da primeira edição de pensamento científico universal desde Tales,
“Hamlet”, datado de 1605, com restauração Pitágoras, Aristóteles, Arquimedes, Ptolomeu
e encadernação posterior atribuídas a Roger e outros gregos, egípcios e romanos, passava
Payne. pelos medievais Avicena, Paracelso, e outros,
os modernos Da Vinci, Copérnico, Newton,
Com várias exclamações ora de espanto, ora Leibnitz, Cavendish, etc até aos atuais Hertz,
de prazer de expert, Prado constata um Edson, Marconi, Langley, e muitos outros.
prodigioso crescimento do acervo que
conhecia, na atual gestão de Alberto. Captura a “Referência” onde se viam as imponentes
de imediato um bem encadernado lombadas góticas dos “Corpus Gregarum
manuscrito autógrafo de Ticho Brahe, de Scriptorum” e “Corpus Romanum
1564, no qual o sábio relata a observação da Scriptorum”, a famosa “Encyclopédie” de
sua “Stela Nuova”, na época do Diderot e D’Alembert, a
seu aparecimento, quase que recente “Britânica” de Adam e
como um novo sol, na Charles Black, já com 24
constelação de Cassiopéia, por volumes, de 1888, e um sem
ocasião do nascimento de número de dicionários de
William Shakespeare. Outro Artes, Ciências, Ofícios e
volume que também o Línguas;
entusiasma é um exemplar da
princeps da “Sciencia Nuova”, a “Brasiliana”, carregada das
de Giambaptista Vico, datado pérolas da fase heróica de São
de 1725. Vê também um Luiz do Maranhão, então
exemplar genialmente chamada a “Atenas Brasileira”,
encadernado da famosíssima das obras de Pedro II,
“Prática da Arte de Navegar”, Machado de Assis, Bernardo

24
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

Guimarães, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Rui cronológica, da esquerda para a direita, as
Barbosa, Tobias Barreto, Castro Alves e existentes ocupando quase a metade do
inúmeros contemporâneos e alguns espaço disponível.
estrangeiros que escreveram sobre o Brasil
como Villegagnon, Agassiz, Bates, Lund e o A Biblioteca era servida de uma confortável
conde italiano Ermano Stradelli, entre outros; mesa de leitura com quatro parrudas cadeiras,
um divã e um jogo de sofá e poltronas
a “Universal”, que chamou a atenção de forrados em couro fino, e dispostos em torno
Georges onde encontrou, surpreso, um de uma mesa de centro sobre um vasto tapete
exemplar, autografado pelo autor “Au jeune persa (outra raridade do Séc. XII,
genie de Ka Ban Gu, Brésil”, da rara edição confeccionado por encomenda de família
do “L’Aprés- midi d’un faune”, de Mallarmé, nobre veneziana da época que, como era
com ilustrações de Manet e diversas costume, exigia dos artesãos que fosse tecido,
maravilhas da obra poética de Baudelaire, num dos cantos do tapete, suas armas e
Hugo, Apollinaire, além de Marlowe, Voltaire, brasões), tudo isso compondo
Rousseau, Goethe, Flaubert, Balzac, Dickens, harmonicamente com um grande globo
Byron, Swift, Wilde e o diabo, e edições terrestre e uma coleção-mostruário de
recentes e caprichadas da “Ilíada” e da instrumentos de navegação marítima e
“Odisséia”; terrestre: sextantes, astrolábios, bússolas e
réguas de cálculo de diversos tipos, épocas
a “Periódicos”, de largas e altas prateleiras e procedências.
especiais, onde se conservavam em
cuidadosa encadernação e metódica Na parede frontal, uma estante de largas
organização, páginas e recortes de jornais e prateleiras baixas, ostentava um completo e
revistas sobre aeronáutica e os aeronautas moderno sistema de comunicações por
de todas as épocas, inclusive o próprio interfones, telefones, telégrafos e cabogramas
Santos-Dumont, e organizavam-se, ainda nos internacionais, equipados com todos os
seus começos, as coleções da “National dispositivos, aparelhos e acessórios mais
Geographic Society”, desde a sua primeira recentes que a ciência moderna e o dinheiro
edição de 1888, a “Popular Mechanical”, podiam oferecer ao homem para que se
também desde sua primeira edição, a “La comunicasse com o mundo naquela época.
Vie au grand Air” , a "L"Aerophile" e outras
revistas do gênero. Acima, perto da cúpula, uma grade metálica
parruda, na horizontal, com sistema de
No topo da estante, ocupando toda a elevação por manivela, sustentava e servia
extensão horizontal superior do enorme de piso de um observatório astronômico
móvel, e com acesso somente possível pela equipado com duas boas lunetas, uma mais
“barquilha” do inventor, ficava a delgada, de Galileu, e a outra bojuda, de
“Philosophica”, que, além dos já conhecidos Newton. Para acessá-lo, o inventor subia até
filósofos gregos e teólogos da alta idade lá em sua “barquilha” e alçava-se por uma
média, abrigava volumes considerados escadinha soldada à grade. Para a cúpula,
perigosos de alguns filósofos havia dois mecanismos de acionamento: um
contemporâneos, entre eles os perigosíssimos que a abria em dois, para observação das
Hegel, Dilthey e um certo Nietzsche, ainda estrelas e da atmosfera; e o outro que fechava
vivo e, diziam, enlouquecido. Numa outra totalmente a base da cúpula através de um
prateleira logo acima desta, e de igual mecanismo em forma de diafragma de
tamanho, SD guardava os seus registros de câmera fotográfica, que impedia a passagem
cálculos, as anotações pessoais, científicas e de qualquer luz, uma vez fechado.
de projetos, arquivadas em pastas de couro
etiquetadas, e dispostas na ordem [O inventor faz essa demonstração; fecha o

25
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

grande diafragma e apaga todas as luzes da GEORGES


oficina numa chave-geral. O ambiente fica - Simplicidade não é exatamente a palavra
tão escuro e, de tal maneira, que se pode, que eu escolheria para definir esta oficina.
sem problemas, abrir-se ali, uma caixa de Fiquei imaginando que, ao entrar aqui à
chapas fotográficas virgens.] noite, Você se multiplica por vinte Santos-
Dumonts e trabalha freneticamente até o raiar
Um grande painel de fotografias dos feitos do dia, quando volta a transformar-se num
do inventor, com previsão de espaços para ser normal e vivente na velha Terra. Diga-
fotos futuras, feito em cortiça e preso na me, Alberto, porque todas essas maravilhas
parede frontal, ao lado das portas de correr; que vejo aqui, Você não dá também ao
e um pequeno bar com adega própria e conhecimento público?
delicada cristaleira, ao lado da Biblioteca,
completavam a equipagem daquela SD
inacreditável oficina individual. - Porque a maioria ainda está em fase de
testes. E depois, porque essa oficina foi criada
para projetar e construir novos tipos de
SEQUÊNCIA 10 aeronaves; e são elas que pretendo exibir
em primeiro lugar. Porém, no futuro,
Os dois amigos olham tudo aquilo e pretendo transformá-la numa escola para
entreolham-se assombrados. Prado pega uma formar novos profissionais dedicados à
charuteira sobre a mesa de centro, examina aeronáutica.
os charutos, aprova-os e oferece-a a Georges
(que aceita um) e a SD. GEORGES
- Compreendo; e o que é aquilo naquela
SD (com um gesto de recusa) espécie de túnel? Um papagaio celular?
- Eu não fumo. Aeronauta não fuma.
SD
PRADO - É um dos meus novos ensaios
- Desculpe-me, Alberto, eu sei que não fuma. aerodinâmicos.
Mas por um momento parece que esqueci-
me até de quem sou eu. (e, voltando à sua PRADO (apontando para o quadrado central)
estupefação) - É inacreditável, é - E porque estes móveis, se é que são móveis,
impressionante! Quantos operários mantém ficam assim, pendurados do teto?
trabalhando aqui?
SD dirige-se até a sua “barquilha” e entra
SD dentro dela. Em seguida aciona uma caixa
- Chapin, Gasteau e Dazon, meus três oficiais de botões que pende de um cabo de fiação
mecânicos de confiança. August e os criados vindo de cima. A barquilha move-se para
só vêm para o meu serviço, quando chamo cima e para o lado. Enquanto fala, SD faz
por interfone, e para as tarefas de limpeza. um passeio pelo espaço aéreo da oficina, às
Tudo aqui é muito simples... Podemos fazer vezes lá no alto, outras vezes quase no chão.
as nossas criações com autonomia e auto- Num determinado ponto, ele está bem diante
suficiência de meios. Somente a fundição dos da prateleira mais alta de sua biblioteca, de
blocos dos motores encomendamos fora; mas onde retira um volume de papéis e retorna
os moldes já vão prontos e a fundição é para o quadrado central. Ao terminar a sua
acompanhada pessoalmente por Dazon, que fala, a barquilha está pousando suavemente
é um dos melhores artífices ferreiros de Paris. no lugar de onde saiu.

SD continua a caminhar pela oficina seguido SD (falando bem alto para ser ouvido de
pelos amigos. longe enquanto passeia na “barquilha”)

26
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

- Aqui, ao mesmo tempo em que coloca-o rápida e suavemente bem


desenho, calculo e supervisiono o à sua frente, na posição desejada
trabalho dos meus mecânicos, e, quase sem curvar-se, em
treino o meu equilíbrio. Equilíbrio movimentos soltos do braço e da
é tudo em aeronáutica, é a palavra- mão direita, faz cuidadosos
chave; o segredo maior! Falando cálculos e demoradas anotações
cientificamente, o centro de sobre um dos quatro desenhos e
gravidade, ou baricentro, do plantas coladas ao tampo,
conjunto homem-máquina que movimentando com precisão o seu
voa. (ele faz uma delicada manobra azeitado tecnígrafo, sem que com isso,
de curva em descida como se provocasse algo mais do que um
estivesse fazendo uma imperceptível balanço milimétrico do
demonstração) - O sofisma de conjunto “barquilha-tampo” suspenso
Napoleão que afirmava não ser no ar, e debaixo dos olhares apatetados
possível voar numa máquina mais dos amigos.
pesada do que o ar, porque no céu
não há ponto de apoio; eu contesto SD (olhando para Prado, e brincalhão)
afirmando que o ponto de apoio no céu é o - Viu como é simples? Quer experimentar?
domínio do equilíbrio das forças e o controle (sai com facilidade da “barquilha”)
da direção de sua resultante. (faz outra
manobra em curva, desta vez ascendente, PRADO (sem se dar conta do logro e do que
chegando ao final, na prateleira mais alta da haveria de fazer)
Biblioteca) - E, como, por enquanto, o - De fato, parece mais fácil do que eu
homem é o elemento mais pesado do pensava. Se ficarem por perto, vou tentar.
conjunto aéreo homem-máquina, ele tem de
ser preciso nos seus movimentos; e saber Ato contínuo, o barrigudo Prado mete para
posicionar-se em dentro da
perfeito equilíbrio “barquilha” uma de
durante o vôo, suas pernas e tenta
enquanto maneja apoiar-se no tampo
comandos e da prancheta para
mecanismos de colocar a outra.
direção e Tudo balança
sustentação do perigosamente e ao
veículo aéreo. (pega tentar voltar atrás é
o maço de papéis no o desastre. Se
alto da biblioteca e retorna em “vôo Georges e SD não acodem “no susto” para
descendente” ao ponto de partida) - ampará-lo, ele se estatelaria com os traseiros
Qualquer desequilíbrio do piloto, meu caro no chão, de pernas para o ar. Todos, inclusive
Pradô, pode por abaixo todo o conjunto ele, riem gostosamente e SD sai catando os
aeronáutico. (pousa suavemente, a poucos lápis, papéis e o charuto de Prado que
centímetros do chão) - Ah, um momentinho, rolaram ao chão no seu atabalhoamento.
amigos, veio-me uma idéia que devo anotar...
PRADO (recompondo-se e pegando de volta
Ainda dentro da “barquilha”, e jeitosamente, o seu charuto)
deposita o maço de papéis no gaveteiro - Ufa! Definitivamente, a pilotagem aérea não
abaixo da prancheta, abre-lhe uma gavetinha é para a minha geração. Prefiro o velho e
de onde retira um lápis bem apontado e uma bom sofá. Posso? (e dirige-se ao grande sofá
régua de cálculo, pega nas correntinhas de onde se senta aliviado e confortavelmente)
controle do pesado tampo da prancheta,

27
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Georges segue-o e SD, logo atrás, vem ninguém sabe como tudo começou. Então
arrumando o seu maço de papéis trazidos que tal não começarmos Você com o Pradô?
dos píncaros da Biblioteca. Senta-se por
último na poltrona e depõe o maço sobre a GEORGES
mesa de centro. - Estamos de acordo, senhor Prado?

SD PRADO (ainda no bar, enchendo duas taças


- São anotações para o livro que pretendo de vinho tinto)
editar, Georges. Talvez lhe sejam úteis. Pode - Não sei o quanto poderia ajudar. Mas não
levá-las por empréstimo, até porque desejo se pode falar dos começos das aventuras de
muito a sua opinião. Já o batizei com uma Alberto, sem lembrarmos o grande e saudoso
expressão lugar - comum, mas que Mallarmé Henrique Dumont, seu pai, e que foi, para
usou de maneira genial, aérea mesmo, eu mim, também um pai. Daí porque trato
diria, em seu “L’Aprés Midi dun faune”: “Dans Alberto como um irmão mais novo e mais
L’Air”... Bem, que tal uma bebida? querido...

GEORGES GEORGES (já anotando e comentando)


- Já desconfiava do seu cultivo pelo melhor - Sim, muitos homens importantes
das nossas letras, Alberto. Belo título! Quanto começaram pelos seus pais.
à bebida, prefiro distanciar-me dela enquanto
trabalho; - se não os aborreço, claro.
(A partir de agora, o filme passa a usar
PRADO (já diante do bar) largamente a linguagem de flash-backs; com
- Claro que não nos aborrece, Georges, mas narrações em off, ou com seus próprios
não estamos nós, Alberto e eu, a trabalho. diálogos)
Portanto... bem, vejamos o que temos por
aqui... O que Você deseja, Alberto?
SEQUÊNCIA 11
SD
- À sua escolha, Pradô. Sirva-nos ao seu gosto, PRADO (narrando em off sobre as cenas de
por favor. E, Georges, estou ao seu inteiro flash-back)
dispor. O que manda? ...Conheci Henrique numa atribulada
negociação de café na City londrina, com a
GEORGES (um tanto confuso) presença de uns trinta fazendeiros brasileiros.
- Estou sob impacto dessa fantástica caverna O governo inglês pediu ajuda à Embaixada
secreta! Nem sei por onde começar... porque a maioria dos brasileiros não falava
inglês e por isso criava um grande tumulto.
SD (em tom de caçoada) Na época eu era jovem funcionário graduado
- Meu pai dizia que devemos começar pelo da Embaixada em Londres e fui escalado para
começo... ir até a City ver o que se passava. De fato,
havia um princípio de caos; ninguém se
GEORGES (também caçoando) entendia ali. Henrique estava entre os poucos
- Ah, sim, ótimo, o começo. (e, de sopetão) que sabia bem o inglês e o francês, e logo o
- Como começou? tive ao meu lado ajudando-me a desfazer os
imbroglios que se formavam. Felizmente
SD (voltando à seriedade e franzindo os tudo acabou bem e, por sorte, as cotações
sobrolhos) de café subiram muito em poucos dias, e os
- Eis aí a mais difícil pergunta que ouvi de fazendeiros ganharam fortunas em libras
um jornalista. Como comecei, Pradô? Sim, esterlinas. Terminado tudo, todos
Pradô... ótima idéia! Pradô, melhor que debandaram a gastar suas libras à tripa forra

28
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

pela Europa e só Henrique permaneceu em técnicos e doutores; embarque de carga num


Londres, usando a sua disponibilidade navio com várias caixas enormes carimbadas
financeira, para construir a estrada do seu "Ribeirao Preto - Brazil"; Henrique
futuro. Foi à Embaixada pedir auxílio para cumprimentando os homens que contratou
conhecer e se colocar em contato com as ao subirem a escada do navio; a fazenda de
inovações da mecânica e da ciência e como Henrique sendo arada, cultivada e operada
aplicá-las ao bem de sua propriedade em por máquinas agrícolas e ferrovias, etc; os
Ribeirão Preto. Queria saber dos usos da cafezais de Henrique; ele em seu gabinete
máquina a vapor, queria comprar uma diante de estatísticas de crescimento de
ferrovia inteira, queria isso, queria aquilo... produção; e exibindo-as a Prado)
E nós tínhamos muito a informá-lo pois o
Gover no Pedro II
exigia-nos atualização SEQUÊNCIA 12
permanente de tudo
que se inventava e se PRADO (continuando a
fazia nos campos da narração em off)
ciência e da indústria - Alberto, porém, só vim
nos países em que tinha a conhecê-lo quando já
representação. Para era moço de dezoito
resumir, Henrique anos. Foi numa viagem
embarcou para o Brasil, para cá, já no governo
alguns meses depois, Floriano, quando fui
levando quase um nomeado Secretário da
navio inteiro lotado de Embaixada em Paris.
motores, máquinas e
equipamentos O flash-back mostra um
agrícolas; e um batalhão embarque festivo no
de cientistas, doutores e Henrique Dumont porto do Rio de Janeiro.
técnicos ingleses de (Legenda: Rio de
todas as especialidades que precisava para Janeiro, março de 1891). O “Elbe” já soltara
melhor preparar e adubar a sua terra, semear as amarras e separava-se do cais em lento
o café, colhê-lo, limpá-lo, separá-lo, refiná- movimento, e sonoros apitos. No convés da
lo, conservá-lo, armazená-lo, transportá-lo e primeira classe estão o jovem SD, Henrique,
vendê-lo. Começou aí a grande amizade e muito envelhecido, numa cadeira de rodas,
admiração que, durante toda a minha vida, e Prado, despedindo-se em meio à festa de
dediquei a esse grande homem. E, de fato, serpentinas e confetes. Muita banda de
duas ou três safras depois, Henrique já estava música em terra. A câmera acompanha o trio
entre os maiores produtores de café do Brasil caminhando pelo convés, SD empurrando a
e era um homem rico e realizado. cadeira de rodas do pai com Prado ao seu
lado, em direção ao salão de fumar.

(Sob a narrativa de Prado sucedem-se as HENRIQUE (para Prado)


imagens correspondentes: a confusão de - Pensamos que perderia o navio, Pradô.
brasileiros na City; o encontro do ainda jovem Chegou um minuto antes de soltar as amarras.
Prado com Henrique; os dois atuando juntos Arre, foi a conta!
para acalmar os ânimos; Henrique visitando
a Embaixada e sendo recebido por Prado; PRADO (ainda suando e passando o lenço
funcionários da Embaixada orientando em volta do rosto)
Henrique; Henrique visitando fábricas, - Contratempos burocráticos, Henrique. É o
oficinas e universidades; em conversa com velho ditado: santo de casa não faz milagres.

29
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

A embaixada esqueceu-se de renovar meu saúde não me permita desfrutá-lo como


passaporte, Você acredita? Coisas do Brasil... gostaria.
Mas, enfim, tudo resolvido; cá estou.
PRADO
HENRIQUE - Não fale assim, Henrique. Vai melhorar logo,
- Quero apresentar-lhe o meu filho Alberto, é forte e duro na queda. E a medicina na
de quem tanto falo... Europa está muito avançada. Em Paris, logo
ficará bom. Onde está o nosso Alberto?
Prado e Alberto cumprimentam-se.
HENRIQUE
PRADO - Foi à cabine de comando. Passa as manhãs
- Alberto, saiba que me sinto tão próximo lá. Ele e o comandante tornaram-se amigos
de Você, como se fosse um irmão. Henrique e Alberto está tomando lições práticas de
não esconde a predileção pelo seu caçula, e navegação, cálculos de distâncias e rotas,
sempre se gaba da sua inteligência, do seu análise de cartas e mapas, essas coisas... Já
talento e sua aplicação nos estudos. conhece o navio nos detalhes, sabe como
tudo funciona, cada mecanismo, em teoria e
SD prática. É um fenômeno esse meu rapaz...
- Vai muito de exagero e bondade de pai
nisso, Sr Prado. Papai crê que o futuro do PRADO
mundo está na mecânica e prefere que a ela - Sim, Henrique, e sem favores. Estou
eu me dedique, ao invés de tornar-me doutor. tornando-me seu amigo e admirador. Ontem
Não terei dificuldades em atendê-lo; também à noite fomos até altas horas numa boa prosa
penso assim. sobre a Europa e Paris. Fiquei surpreso: não
quis saber de mulheres, cabarets, Quartier
PRADO (em off, na oficina, narrando a Latin, ou farras de rapaziada. Argüiu-me dos
Georges) progressos e inovações da ciência; queria
- Na viagem percebi que Alberto era muito saber de eletrificação urbana, redes de
mais do que um caçula mimado. Maduro, telefonia e telégrafo, teatrofones, indústria
responsável, era sério até demais para a sua de máquinas, aerostática... Esse último
idade. Também já era disciplinado, fino e assunto parece interessar-lhe amiúde... Fiquei
educado. Seu desvelo para com o pai apertado; como sabe não sou chegado aos
adoentado sensibilizava todo o navio, riscos e às aventuras. Falou-me que deverá
passageiros e tripulação... ficar morando em Paris...

HENRIQUE
A imagem mostra Henrique todo agasalhado - É sobre isso que desejo falar-lhe, Pradô,
na sua cadeira de rodas com SD e um garçom por isso mandei chamá-lo. Perdoe-me se o
a preparar-lhe a mesa de desjejum no convés. incomodei, sei que acorda tarde. Mas
Finda sua tarefa SD despede-se do pai com precisava falar-lhe sem a presença de
uma série de recomendações e sai. Ato Alberto...
contínuo, aparece Prado por uma das
portinholas do convés. PRADO
- Ora, por favor, Henrique. Saiba que
PRADO um chamado seu, faz-me sentir
- Bom dia, Henrique, honrado por ter um homem
belo dia, não? como Você precisando de
HENRIQUE mim. Poucas vezes, na
- Sim, Pradô, um belo minha vida fútil, tenho a
dia. Pena que minha sensação de ser útil. Diga-

30
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

me, em que posso servi-lo? dele. Inclusive Você, Henrique, abandone


esse pessimismo. Nós três seremos
HENRIQUE inseparáveis na velha Paris.
- Pradô, depois de meus filhos e esposa, Você
é a pessoa em quem eu mais confio neste
mundo. O fato é que pressinto o meu fim. SEQUÊNCIA 14
Não, não me interrompa. Não se trata de
achaques de velho amargurado. Considero- PRADO (narrando em off para Georges)
me um homem feliz. Mas minhas forças estão ... Mas em Paris chegamos apenas Alberto e
no fim e sei que não haverá ciência que possa eu. Henrique desembarcou em Portugal para
impedir a morte dos homens. Ela é a única retornar ao Brasil. Estava, de fato, muito mal;
certeza da vida! (faz uma pausa) - Antes de e queria morrer em sua pátria. (cena de Prado
partir, levei Alberto ao cartório e emancipei- e SD desembarcando no Havre.) - E, pouco
o. Escrevi-lhe também uma carta para que meses depois, recebemos a notícia de sua
guarde como lembrança minha. Hoje, ele é morte... (SD mostrando a Prado o telegrama
senhor de si mesmo e vai a Paris tornar-se e abraçando-se a ele em prantos) ...Durante
um homem. Não lhe faltará dinheiro, graças cinco anos em Paris, Alberto alternava os
a Deus, e essa providência deixo bem estudos de mecânica com a observação do
assegurada. Mas, por mais que confie em progresso das máquinas. Conseguimos que
Alberto, um pai não pode deixar de temer o famoso Prof. Garcia lhe desse aulas
as armadilhas da vida. Você, meu bom Pradô, particulares de física, química, matemática e
estará também em Paris. Conhece do mundo mecânica. Cedo, Alberto descobriu o
e da vida, bem mais que o meu Alberto. Peço- automóvel e revelou seu espírito inventivo,
lhe, não o deixe em abandono. Temos modificando motores e mecanismos.
parentes lá, mas prefiro confiá-lo a Você. E Participou, e foi organizador, das primeiras
direi isso a ele. corridas de automóveis deste planeta, mas
não ganhou nenhuma; o que o deixava de
PRADO (dando uma boa risada) muito mal humor. (cenas de Alberto tendo
- É apenas isso que me pede, Henrique? Velar aulas com o Prof. Garcia e disputando
por Alberto em Paris? Mas que missão mais corridas de automóveis nas estradas
fácil e deliciosa! Recebo-a como prêmio de francesas) - Conseguimos-lhe, graças a
reconhecimento, não como tarefa de Garcia, o ingresso como aluno assistente na
responsabilidade. Pelo que conheço de Universidade de Bristol (SD chegando a
Alberto, sei que não dará trabalho em Paris. Bristol e assistindo aulas acadêmicas) -
Desconfio até que teremos grande orgulho Depois de uma breve viagem ao Brasil, para

Paris 1897

31
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

visitar o túmulo do pai, na qual levou o


primeiro automóvel que toda a América do
Sul viu rodar por suas ruas e estradas, (SD
chegando de automóvel ao túmulo do pai
no Brasil) - Alberto então, começou...

SEQUÊNCIA 15
(Primeira ascensão)

Uma estranha charrete, puxada por um único


e enorme avestruz (foto), dispara por uma
estradinha arborizada na linda paisagem do "Uma estranha charrete..."
Bois de Boulogne. (Legenda: Paris, 1887) Ao
chegar ao destino, um edifício-garagem O balão começa a subir, na bela manhã. O
construido em madeira, SD, o cocheiro da chão vai se afastando aos pés de seus
surrealista charretinha, estaciona-a, salta de passageiros, os detalhes se diluem, a
dentro dela e amarra o cabresto do seu paisagem se transforma. A subida é rápida e
avestruz num gancho. Entra na oficina de as casas diminuem de tamanho, como se
Lachambre e Alexis Machuron, que acabavam fossem de brinquedo.
de abri-la com os seus dois auxiliares.
MACHURON (para SD)
LACHAMBRE - O equilíbrio do aparelho é sensível às
- O senhor chegou cedo, Sr Santos. A mínimas variações. O hidrogênio dentro do
ascensão está prevista para as 8 horas e são invólucro de tecido escapa aos poucos
apenas 6. Temos preparativos a fazer antes devido à porosidade do material; e o sol,
de subir... aquecendo todo o conjunto, expande o gás.
A pressão dentro do balão aumenta fazendo
SD com que o conjunto se torne cada vez mais
- São esses preparativos que não quero leve.
perder, Sr. Lachambre. Se não incomodo,
gostaria de acompanhá-los desde o início. E O balão pára de subir, estabilizando-se numa
tenha-me à disposição para ajudar no que determinada altura muito elevada.
puder.
MACHURON
MACHURON - A umidade do ar é condensada na superfície
- Não há nada de especial a ser feito, Sr envernizada e isso torna o conjunto mais
Santos, seja bem-vindo. Espero que não se pesado. Há um compromisso que tem de
aborreça com as tarefas de preparação. ser perfeito: a saída de gás pelo tecido e o
acréscimo de peso devido à umidade são
Sequência rápida de cenas de preparação do compensados pela dilatação do hidrogênio
balão. SD acompanha tudo nos mínimos aquecido. O balão fica sujeito às pequenas
detalhes. Aponta aqui e ali, fazendo alterações atmosféricas e se move em
perguntas e anotações numa cadernetinha completa integração com o ar.
de mão. Finalmente o balão está cheio e
pronto para a ascensão. Machuron e SD Uma nuvem passa por cima do balão e este
entram na barquilha. parece despencar vertiginosamente.
Machuron pega um saco de areia e despeja-
MACHURON o no ar.
- Lachez tout!

32
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

MACHURON comprimento da corda-guia no solo, e a


- Para compensar a perda de altura, causada conseqüente diminuição de peso faz com
pela nuvem, que esfriou o balão, só há um que a descida não seja brusca. Nesse
jeito: largar lastro. Quando, ao contrário, o equilíbrio contínuo chegamos ao solo
balão estiver subindo mais que o desejado suavemente.
por causa do calor, é preciso soltar o gás
sob pressão. Nosso vôo terá de terminar O balão pousa com suavidade, Machuron
quando acabar o gás ou o lastro que somos libera todo o resto de gás, e eles saltam
obrigados a perder ao longo do tempo. imediatamente da barquilha, segurando-a
para que a brisa não levasse o balão. Alguns
O balão penetra no interior de uma espessa lavradores das imediações acorrem curiosos
nuvem branca, no topo de um belo cumulus e Machuron logo os arregimenta para ajudar
algodoado que se projetava numa nas tarefas de dobrar o invólucro e guardar
quilométrica vertical a partir de sua base. A o conjunto para transporte até a estação
visibilidade torna-se nula. Machuron começa ferroviária mais próxima.
a despejar muito lastro.
SD (para um dos lavradores)
MACHURON - Onde estamos?
- Dentro de uma nuvem, não podemos
perceber a velocidade de descida. Mas é certo O LAVRADOR
que estamos descendo muito rapidamente, - Nas terras do Castelo La Ferriére,
porque o resfriamento do conjunto é tal que propriedade do Senhor Alphonse de
pode levá-lo ao chão, se não nos Rothschild.
anteciparmos no despejo de lastro.
SD arma a sua câmera fotográfica e explica
Ao sair da nuvem pela sua base, o até então ao lavrador como deve proceder para bater
impassível SD chega a se assustar com a uma chapa dele ao lado de Machuron e o
repentina proximidade do solo aos seus pés. balão sendo guardado. O improvisado
Nesse momento, ouve-se o som distante de fotógrafo não teve dificuldades em batê-la.
um alegre carrilhão. Logo o sol volta a
esquentar o balão e voltam a subir para uma
altura mais reconfortante. Ouvem-se os SEQUÊNCIA 16
latidos de cachorros, marteladas e apitos
distantes de locomotivas. Enfim o vôo SD (agora com a palavra, em lugar de Prado,
encerra-se num belo descampado e narrando em off para Georges)
adredemente escolhido por Machuron, ao - Nessa primeira ascensão percebi que teria
lado de uma ferrovia. A descida foi tranquila, de me conhecer melhor em altitudes
e, durante ela, o competente piloto Machuron elevadas. Fiz uma viagem aos alpes suíços,
explicava ao embevecido SD as funções da em seus pontos mais altos. Lá aprendi a
corda-guia. esquiar (cena de SD chegando a Lucerna,
numa pousada para esquiadores nas
MACHURON montanhas geladas dos Alpes) - para testar
- A corda guia, ou o “cabo pendente”, meus reflexos naquelas condições, e até
funciona como lastro de equilíbrio para a mesmo em situações de queda. Numa
aterrissagem. Ao jogá-la, a parte que toca o aterrissagem forçada, o aeronauta não pode
solo deixa de ser peso e faz com que se perder o controle absoluto das suas ações,
diminua a velocidade de descida. Então pois somente elas podem salvá-lo de uma
vamos liberando o pouco gás que nos resta precipitação fatal. (cenas de SD esquiando e
para que o balão não volte a subir, e desça despencando pelas descidas nevadas dos
ainda mais. Ao fazê-lo aumentamos o Alpes)

33
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SEQUÊNCIA 17 (O “Le Brésil”) desaprovação.

SD chega pela mesma estradinha arborizada MACHURON


na oficina de Lachambre e Machuron, só que - Aqui está escrito seda japonesa?
agora a bordo do seu triciclo motorizado,
que rebocava um pequeno vagonete de SD (já impaciente, pegando a maleta e
carga. Pára em frente à porta da oficina e abrindo-a)
todos saem para ver o seu veículo - Sim, já a trouxe. (retira um volume
embrulhado em papel) - Ei-la.
UM AUXILIAR (para o outro)
- Ele chega a fazer 35 quilômetros por hora! MACHURON (abre o embrulho e pega a seda
com as duas mãos, avaliando o seu peso)
O OUTRO (mais velho) - Mas, é muito leve! E muito fina!? Como
- Mas isso é loucura! Não tenho mais idade resistirá à pressão? Onde já se viu um balão
para isso. com um invólucro tão leve assim?

SD retira seus óculos de piloto e o capacete SD perde a paciência. Toma-lhe a seda,


de couro, desce do triciclo e vai até ao embrulha-a e recolhe-a de volta à maleta.
vagonete, do qual abre o tampo. Retira de Reenrola os seus desenhos, coloca o chapéu
dentro dele alguns rolos de papel, uma e começa a calçar as luvas para sair, enfezado.
pequena maleta de viagem e o seu chapéu.
Em seguida guarda os óculos e coloca o SD
chapéu na cabeça. Pega os rolos e a maleta - Se os senhores permitem, devo retirar-me.
e entra na oficina cumprimentando a todos.
Lachambre e Machuron recebem-no em volta LACHAMBRE
de uma mesa. SD abre sobre ela os rolos de - Acalme-se, Sr Santos. Não temos porque
papel que se revelam plantas e desenhos do nos desentender. Todos aqui aprendemos a
seu futuro balão, o “Le Brésil”, gostar do senhor. Não nos condene só
completamente detalhado em projeto. Os três porque fazemos perguntas e damos
mergulham nos desenhos. sugestões. Faremos tudo o que o senhor
pretender, e como o desejar.
LACHAMBRE
- Hum... mas, apenas cem metros de SD (relaxando e voltando a descalçar as
encubagem?! luvas)
- Certo, Sr Lachambre, desculpe-me o mau
SD gênio. Trabalhei neste
- Eu peso cinquenta projeto os últimos dez
quilos, de sapatos. dias, quase sem dormir.
Quero um balão de cem Está todo calculado e
metros... desenhado. Gostaria
que começassem a
LACHAMBRE c o n s t r u i - l o
- Por favor, Sr Santos, a imediatamente, se
vida é a sua e o senhor possível.
pode fazer dela o que
bem quiser. Mas não nos MACHURON (pegando
obrigue a colaborar para novamente a seda
um suicídio. dentro da maleta)
- Quanto ela pesa?
SD faz uma cara de

34
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD - Como conseguiu essa façanha? Decidimos


- 3,5 quilos. Envernizada pesará 14 quilos e agora há pouco vir aqui! Não foi planejado?!
duzentos gramas. Bem senhores, devo ir-me. Como então a reserva?
Um bom trabalho para todos.
SD
Lachambre e Machuron observam SD - Pago mensalidade à casa para ter sempre
afastando-se em “alta” velocidade com o seu uma mesa à disposição nesse horário.
barulhento triciclo. Aborrece - me ter de aguardar, e acabo
perdendo o apetite...Olhe, aquele senhor
MACHURON acena para Você...
- Nós vamos mesmo construir essa
maluquice? Prado volta-se e vê uma mesa de cinco
convivas, dois casais e um solteiro. O solteiro
LACHAMBRE era Georges, que fazia os sinais para
- Sim, e porque não? Está nos pagando bem cumprimentar Prado a distância. Prado
e, além do mais, esse balãozinho de cem retribuiu os cumprimentos e acenou para que
metros nunca há de voar em dias da minha Georges chegasse até ele. Georges aceitou o
vida. convite.

GEORGES (aproximando-se com alegria e


SEQUÊNCIA 18 cordialidade)
- Embaixador, como vai passando? Há tempos
Porta do Maxim’s agitada. Pessoas aguardam não o vejo no jornal. Anda emburrado com
mesas. SD e Prado descem duma cupê. Sem alguns de nós?
nada perguntar, SD vai passando por todos
os que aguardam, acompanhado do PRADO
espantado Prado, até chegar à presença do - Não é isso, meu caro Georges! Os últimos
maitre. Este, solícito, recebe SD com alegria. dois meses passei-os a ciceronear senhoras
distintas de políticos brasileiros nas suas
O MAITRE compras em Paris. (e, falando baixinho,
- Boa noite, Sr Santos. Sua mesa está quase ao ouvido de Georges) - Vou lhe
reservada, como combinado. Alguém mais confiar um segredo: a primeira dama, em
o acompanha, além do cavalheiro? pessoa, chefiava o grupo! Veio incógnita,
identificada com nome falso e com ordens
SD para que o assunto fosse tratado como
- Não, Charles, apenas o Embaixador Prado segredo de estado! Vê porque desapareci da
e eu jantaremos hoje. Obrigado. roda do "Le Temps".

Deixam casacos e chapéus com a chapeleira GEORGES


e seguem-no pelo interior do restaurante - Não se preocupe, Embaixador. Como vê,
repleto até a mesa por ele indicada. O maitre não estou a trabalho, mas festejando com
retira o cartão de reserva e faz um sinal para alguns amigos. Mas que seria uma bela nota
um dos garçons. social, lá isso seria...

O MAITRE PRADO (pondo o indicador sobre os lábios)


- Estejam à vontade, senhores. Gerard os - Shhhh! Nunca existiu nota alguma, meu
atenderá no que desejarem. Bom apetite. amigo! Nunca! (e, fazendo uma pausa) - Bem,
(retira-se) Georges, chamei-o para apresentá-lo ao meu
melhor amigo e patrício, o Sr Alberto Santos-
PRADO Dumont. (apresenta-os e ambos

35
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

cumprimentam-se) Georges) - Você não acha uma loucura essa


idéia de voar? Se Deus não deu asas ao
GEORGES homem é porque o queria quieto aqui na
- Eu o conheço de vista, Sr Santos-Dumont, terra...
e tenho imenso prazer em apertar-lhe a mão.
Cobri uma reunião no Automóvel Clube, na GEORGES
qual o senhor propôs a fundação de um Aero - No jornal sou da opinião de que devíamos
Clube em Paris, lembra-se? Nosso fotógrafo dar mais atenção aos avanços e experiências
registrou, a meu pedido, um bom instantâneo no campo da aeronáutica. E não acho que
do senhor ao lado dos senhores Ernst seja loucura. Deus não deu asas aos homens
Archdeacon e o Marquês de Dion. mas deu-lhes um cérebro privilegiado. Agora,
que os ature! Queremos voar, ora essa!... (e,
SD para SD) - Por ventura esse balão é o que
- O prazer é o mesmo, Sr Goursat. Lembro- Lachambre e Machuron estão a construir?
me do senhor. Não sabia é que tratava-se da
mesma pessoa que acompanho pelos jornais SD
em excelentes reportagens e caricaturas. Seus - Já o construíram. Está perfeitamente pronto.
amigos consentiriam em que nos desse o Hoje fizemos os últimos testes em terra.
prazer de sua companhia, por alguns Amanhã, se tudo correr bem, vou voá-lo.
momentos?
GEORGES (irônico, para Prado)
GEORGES (olhando para o seu grupo de - Espero que não seja outro segredo de estado
amigos) brasileiro, Embaixador. (e, para SD) - O Sr
- Meus amigos já divertem-se bastante sem se importa que a imprensa cubra esse
minha presença, senhores. Vou aceitar esse acontecimento memorável? Estou
amável convite; me sentindo honrado por duplamente interessado; como jornalista e
compartilhar a companhia de dois ilustres caricaturista. Quando Lachambre falou-me do
brasileiros. (senta-se na cadeira que SD lhe seu balão, ressaltou o fato de o senhor ter
oferece) levado os materiais para construi-lo numa
pequena valise de mão! Achei o mote perfeito
O garçom chega com champagne e duas para uma charge. Espero que não se ofenda
taças. SD pede-lhe que traga mais uma antes com charges e caricaturas, Sr Santos...
de servir. Servidas as taças os três brindam e
bebem. SD
- De modo algum me ofenderia com as suas,
PRADO senhor Goursat. Não as perco nunca quando
- Recomendo esse brinde ao primeiro vôo- estampam-nas nos jornais de Paris. Acho-as
solo de Alberto. (e, falando para Georges) - de excelente espírito e elevado humor.
Amanhã Alberto vai fazer sua primeira Devem contribuir bastante para despertar o
ascensão-solo em balão. Um balão que ele interesse dos leitores. Seria uma honra ter
mesmo projetou e desenhou. Quando sua presença no meu vôo de estréia.
cheguei a Paris com Alberto, achava que não Considere-se meu convidado. A ascensão
ia ter dores de cabeça por sua causa. Estava está prevista para as oito horas.
certo até hoje. Com essa loucura aérea elas
começam a atormentar-me. As últimas noites GEORGES
passei-as rezando, pedindo a proteção do - Eu agradeço-lhe, Sr Santos. Gostaria de
meu bom amigo Henrique, pai de Alberto reprisar o brinde do Embaixador Prado. Um
(e, como se falasse para os céus) - Henrique, brinde, senhores (brindam e bebem, Georges
não há o que eu possa fazer por Alberto aí levanta-se despedindo-se)
nas alturas! Espero que Você possa... (e, para

36
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD entanto, nada mudou. Não vejo


- Por favor, Sr Gousart, trate-me porque vá mudar...
Alberto.
LACHAMBRE
GEORGES - Todos estão de acordo em adiar
- Desde que o senhor aceite a ascensão, Sr Santos. Tem de
tratar-me Georges... reconhecer que não é um
aeronauta de ofício; está apenas
SD começando. É preciso aguardar
- Então, até amanhã, Georges. tempo mais seguro...

GEORGES SD (já impaciente)


- Estarei lá às oito em ponto, Alberto. - O que o senhor está a temer, Sr
E levo comigo um fotógrafo. Até lá. Lachambre? Afinal, não é esse
balãozinho que nunca haveria de subir
em dias da sua vida? Então por quê essa
SEQUÊNCIA 19 (Primeira ascensão-solo) discussão? (e, para os auxiliares)
- Lachez tout!
Oficina de Lachambre e Machuron. (Legenda:
Paris, 4 de julho de 1898) Algumas cupês, Os dois entreolharam-se e olharam para
landaus e primitivos automóveis Lachambre
estacionados. Uma pequena multidão
rodeava a barquilha do “Le Brésil” SD (irado)
completamente cheio de gás e pronto para - Não é para ele que Vocês têm de olhar,
largar. (foto) O tempo, porém, não estava imbecis! É para mim! Eu é que comando esse
nada bom. Não havia vento ou chuva, mas balão e dou as ordens! (e, repetindo) - Lachez
nuvens ameaçadoras e negras cobriam parte tout!
do céu com relâmpagos insistentes ora aqui,
ora ali. No centro da pequena multidão, Um silêncio absoluto tomou conta de todos.
travava-se uma discussão. Os auxiliares olharam mais uma vez
constrangidos para Lachambre e depois para
SD (já dentro da barquilha e pronto para o furioso comandante que ameaçou repetir
largar) a ordem. Soltaram.
- Preciso largar.
No silêncio e no pasmo geral, o “Le Brésil”
LACHAMBRE alçou-se com leveza e
- Vamos adiar a graça, em ascensão
ascensão, Sr Santos. É contínua, quase numa
imperativo. São dez perfeita linha vertical,
horas e o tempo está com um ligeiro
piorando... deslocamento à leste.
Todos, sem sair de suas
SD p o s i ç õ e s ,
- Se tivesse largado às acompanharam o balão
oito estaria aterrissando a subir e a diminuir, até
a essa hora, sem que um vento o
problemas, Lachambre. apanhou, levando-o
Se não o fiz, foi por com rapidez na direção
ouvir suas ponderações leste, a perigosa direção
sobre o tempo. No ..."travava-se uma discussão"... das nuvens, dos pesados

37
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

cumulus nimbus que lá se formavam, num no escritório.


medonho cinza-chumbo, a relampejar e
reboar ao longe. E lá, o pequeno pontinho O MORDOMO
negro no céu, em que havia se transformado - Uma ligação interurbana da Bélgica, senhor.
o “Le Brésil”, desapareceu. No aparelho do salão.

PRADO (saindo para atender, com


SEQUÊNCIA 20 (P.M.N.D.N.) impaciência)
- Da Bélgica? Quem será que, diabos, quer
SD na barquilha do “Le Brésil”, dentro da falar-me da Bélgica nessa hora?...
nuvem, enfrenta uma terrível tempestade.
Chove grosso, venta muito, relampeja por Georges permanece apreensivo no escritório.
todos os lados violentamente. A barquilha De repente ouve a voz de Prado aos berros,
sacode muito, mas o conjunto é resistente e do salão.
não afronta as forças que o assediam; ao
contrário, submete-se a elas. SD segura-se e PRADO (falando em português)
tenta cobrir-se com o seu impermeável. Seu - Alberto! Alberto! Onde Você está, meu filho?
rosto é impassível. Oh, bom Deus (e voltando a falar em francês
ao ver Georges que se aproximava correndo)
Corte para Prado e Georges andando de um - Você está bem? Precisa socorro? Machucou-
lado para o outro no escritório de Prado, na se? (de novo, em português) - Fale, homem
Embaixada Brasileira em Paris. Roem as de Deus!
unhas e esfregam as mãos de aflição e
ansiedade. Na parede, o relógio, num Corte para SD falando ao telefone do interior
impiedoso tic-tac, mostra dezoito horas em da Bélgica, na casa do chefe do trem. A casa
Paris. De repente toca o telefone. Prado está repleta de camponeses, e SD está diante
atende imediatamente. de uma mesa servida com fartura de iguarias
rústicas. Ao seu lado, um grande caixote
PRADO (com voz de decepção) guardava o “Le Brésil” bem acondicionado.
- Sim, sim, está. É Adrien, Georges.
SD (aos berros pelo telefone)
GEORGES (atendendo) - Estou ótimo, Pradô! Foi uma viagem e tanto.
- Não, não; nada até agora. O que? 20 horas? Você não vai acreditar. E deixou-me com um
Não pode ser um pouco mais tarde? Certo, apetite de glutão. Estou falando da casa do
certo. Ainda não sei o que escrever, vou chefe de trem em Virton, na Bélgica. Estão
aguardar até às 19 e em seguida sigo para o sendo muito amáveis comigo. Devo pegar o
jornal. Sim, até já. (desliga e, para Prado) - comboio que passa aqui às 22 horas para
Adrien vai fechar a edição às 20 horas; não Luxemburgo. De lá volto a ligar para dar
pode esperar mais. Conseguiu que o Figaro previsão da minha chegada a Paris.
nada publicasse, mas não há qualquer notícia
até o momento. PRADO (com Georges ao seu lado fazendo
sinal de que também desejava falar)
PRADO (enxugando, sem parar, o seu rosto - Só acredito quando apertar seus ossos
suado, com um enorme lenço) pessoalmente, Alberto. Venha logo para cá!
- Checamos todas as províncias de França, E cuide-se, hein? O nosso Georges deseja
as cidades e vilas que possuem telégrafo e falar com Você. Vou passar a ele.
telefone, e nada. E essa tempestade que
desabou em Paris o dia todo, meu Deus!... Prado estava radiante. Enquanto Georges fala
com SD, ele chama o mordomo.
Batem à porta. O mordomo de Prado entra

38
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

PRADO (em português, esfregando as mãos - Bem, Alberto, felizmente tudo correu bem
de alegria e contentamento) dessa vez, ufa! Agora, de volta à velha vida
- Albério, traga o champagne. Vamos precisar. civilizada, querido amigo. Passamos um mau
pedaço, acredite! Parecia que o céu ia cair
GEORGES (ainda no telefone) nas nossas cabeças ontem à tarde, precisava
... sim, sim, estávamos todos ansiosos e sem ver. Fiquei em pânico com Você lá em cima.
notícias. Tudo está bem? Precisa de alguma Espero que tenha ficado satisfeito,
coisa? Temos amigos aí... aeronáutica é assunto para muito estudo, na
tranqüilidade das sólidas bibliotecas. Praticá-
SD (sempre em in) la ainda não é o momento. É preciso
- Estou com um monumental apetite, esperar...
Georges; e muito bem servido de amigos,
esses bondosos camponeses daqui. Acabam SD não emite um só comentário.
de por à mesa um javali assado ao ponto!
Estou disposto a devorá-lo inteiro, como PRADO (continuando)
Vocês faziam na velha gália quando eram - Andei conversando com o Doutor Genésio
bárbaros. Lisboa, que veio para planejar a nossa
participação na Grande Exposição de 1900.
GEORGES Ele é da opinião que, sendo Paris a
- Amanhã, quando chegar a Paris estará capital do mundo, é justo que
nas primeiras páginas, meu a embaixada mantenha um
caro. Boa viagem. Grandes quadro técnico-consultor para
abraços à Você e à Bélgica as ciências e a mecânica.
inteira! Pensamos que Você seria a
pessoa certa para esse cargo,
Alberto. O que acha? Não o
SEQUÊNCIA 21 obrigaria com tarefas enfadonhas e
burocráticas; e Você trabalharia à
Na estação de Paris, Prado vontade num metier que nenhum
aguarda a composição que brasileiro conhece tão bem...
estaciona lentamente ao seu Alberto! Alberto! Está me ouvindo,
lado, olhando por todas as homem?...
janelas. Caminha até a saída do
vagão de primeira classe do qual já SD (como se estivesse despertando de um
começam a descer passageiros. SD está entre sono profundo)
os primeiros que saltam do trem. Abraçam- - Ah, sim?! Bem, Pradô, preciso de uma
se. Prado tem nas mãos o "Le Temps". propriedade exclusiva para mim em Paris.
Nessa viagem, o que mais preocupou-me
PRADO (mostrando-lhe o jornal) foram os meus parentes, que hospedam-me
- Aí está Você, Alberto. Em todas as primeiras tão generosamente. Ontem, prometi-lhes
páginas de hoje. Ufa! Que aventura! retornar para o jantar e fiquei sem meios de
avisá-los. São pessoas conservadoras, e nem
SD possuem telefone. Você teria alguém na
- Boa a blague do Georges! Ele de fato é Embaixada que pudesse ajudar?
muito bom!
PRADO (um pouco desanimado com a
Entram na landau de Prado que sai a trote desatenção do amigo em relação à sua
em direção ao 15eme. proposta)
- Quem cuida disso na Embaixada é o Flores.
PRADO Vou falar com ele. Foi-nos muito útil na vinda

39
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

das senhoras a Paris...Ah, chegamos, seus GEORGES


parentes já o aguardam... (os parentes de SD - E então foi lá, intrometendo-se na fúria dos
esperavam-no na calçada, ansiosos) - E, elementos e numa conversa com deuses
quanto à minha proposta, que tal pensar... desatinados, que Você recebeu a chave da
dirigibilidade dos balões? Bem mais difícil
SD do que Arquimedes, que teve o seu “Eureca!”
- Proposta? Que proposta? (desce da landau numa sólida e confortável banheira.
e começa a abraçar os parentes)
SD
A cena retorna à oficina de SD onde os três - Bem, se aquilo foi mesmo uma conversa,
amigos conversam. SD renova o vinho de não posso afirmá-lo. O que sei, com certeza,
Prado, e continua a sua narração. é que seria um tipo de conversa que um
homem só pode ter uma vez em cada vida;
SD e olhe lá!
- Aquela ascensão levou-me onde homem
algum jamais esteve antes: ao centro de uma O filme retorna ao flash back.
furiosa tempestade, em pleno céu. Fui
totalmente subjugado àquelas poderosas
forças com as quais a Natureza podia ter-me SEQUÊNCIA 22
feito em picadinhos. Conheci in loco o
significado do verso de Camões, o poeta Uma grande mesa no Maxim’s, tendo SD à
épico da minha raça (e diz em português): cabeceira, comemora o retorno do herói e a
“Por Mares Nunca Dantes Navegados”. Algo sua aventura. Deutsch de la Meurthe e o
que só se compara ao relato dos grandes Príncipe Bonaparte conversam entre si.
odisseus das lendas e narrativas trágicas.
Senti o que provavelmente sentiram os DEUTSCH
Ulisses, os Dantes, os Vascos-da-Gama, os - Ele falou em colocar um motor para guiar
Cristóvãos Colombos, homens que se o seu balão... Isso é impossível! Motores a
atreveram a penetrar regiões somente vapor são muito pesados para ascender...
permitidas aos deuses e às fantasias do
imaginário. (e, em off, sobre as imagens da BONAPARTE
viagem) - Eu ia, ia, nas trevas. Sabia que - Meu caro Deutsch, Você estava desatento;
avançava a grande velocidade, mas não ele referia-se ao motor de explosão a
sentia nenhum movimento. Ouvia e recebia petróleo. Do tipo que estão começando a
a procela; e era só. Tinha consciência de um usar nos automóveis, muito mais leves...
grande perigo, mas este não era tangível.
Uma espécie de alegria selvagem dominava DEUTSCH
meus nervos. Como explicar isso? Lá no alto, - Um motor à explosão! O nome já diz! Aquilo
na solidão negra, entre o fulgor dos solta fagulhas para todos os lados! O balão
relâmpagos que a rasgavam e o faiscar dos explodiria antes de sair do chão. Se não, a
raios, eu me sentia como parte integrante da vibração do motor destruiria o balão.
própria tempestade! (e, em in) - Foi lá, em Lachambre já me falou a respeito.
pleno cataclisma, de tal ordem que nem o
medo consegue manifestar-se, que percebi BONAPARTE
a urgente necessidade de acoplar um motor - Lachambre também arrotou para todos os
ao balão, de modo que eu pudesse conduzi- lados que o “Le Brésil” jamais sairia do solo.
lo para longe dali. Posso jurar, que não No entanto, não somente voou até a Bélgica,
pensei, uma única vez, na possibilidade de como também enfrentou tempestades em
morrer. Cheguei até a pensar que havia plena atmosfera. O Sr Santos já fez por
morrido; mas não que iria morrer. merecer um crédito, não?

40
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 23 Chapin pega um pedaço de papel e passa-o


por cima do cano de escapamento. Nada.
Um bosque nos arredores de Paris. Debaixo
de uma troncuda galhada horizontal de um SD
pitoresco carvalho, estão SD, François e - Perfeito. Desçam-me. (desamarraram as
Chapin, seu novo mecânico. Sob a orientação cordas e seguraram-nas para que o triciclo
de SD, eles montam, no tronco, um sistema pousasse suavemente) - Como calculei as
de cordas capaz de levantar o seu triciclo do vibrações do motor são menores no ar do
solo até uma altura desejada. SD entrega a que em terra. E o dispositivo de escape
Chapin um cano curvado em ângulo reto e funcionou. Podemos começar a montar o
manda prendê-lo com a boca para baixo na Número 1.
saída de escape do motor através de uma
presilha fortemente ajustável que inventara.
Em seguida, ajudado por François, SD sobe SEQUÊNCIA 24 (O Número 1)
no triciclo pendurado e acomoda-se no
assento. Jardin d’Acclimatation, no Bois de Boulogne.
(Legenda: Jardin d’Acclimatation, Paris, 18
SD de setembro de 1898) Chapin, Lachambre e
- Atenção, afastem-se. Vou dar a partida no Machuron e alguns auxiliares, comandados
motor. Se eu cair tentem segurar-me. por SD, fazem os preparativos para vôo do
Número 1. Um multidão forma-se ao redor.
Os dois afastam-se um pouco e SD dá a Chegam vitórias, tilburis, cupês, landaus,
partida no pedal. Ao fazê-lo o conjunto automóveis, triciclos, homens a cavalo, de
balança perigosamente mas logo se equilibra bicicleta e a pé. Muitas senhoras e senhoritas
com um movimento de corpo de SD. O motor curiosas. O grande charuto é inflado,
pega e dispara. Tudo bem. Gira macio, quase elevando-se sobre o aglomerado humano.
sem vibrações. SD dá ordens, verifica detalhes, testa
cordames, não pára. Machuron e ele
SD desentendem-se e discutem por qualquer
- Ótimo, Chapin, verifique se há escape de coisa. Enfim, o motor é posto a girar e SD,
fagulhas para cima. na barquilha, dá ordens para soltar. O
Número 1 eleva-se com lentidão sobre as
cabeças das pessoas atentas e começava sua
ascensão quando uma rajada de vento fez-
se sentir, empurrando-o em direção a um
denso arvoredo nas proximidades, sem
tempo para qualquer manobra. Em seguida,
chocou-se com as árvores desastradamente,
e o invólucro rasgou-se, murchando diante
da platéia boquiaberta. Prado suava,
passando o seu enorme lenço o tempo todo
em volta do rosto, tentando achar Alberto
no meio do arvoredo. Finalmente ele
aparece, descendo de uma árvore, de galho
em galho, lépido, até no chão, de onde acena
para a multidão. Todos aplaudem. Os
mecânicos correm em sua direção.

Outra posição do mesmo local, dois dias


O Nº1: "...elevando-se sobre o aglomerado humano..." depois. (Legenda: Jardin d’Acclimatation,

41
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Paris, 20 de setembro dois. Mal tinha saído da barquilha, SD vê a


de 1898) Os landau de Prado chegando a todo o galope
preparativos para em Bagatelle, seguida de outros
ascensão do Número 1, veículos. Prado desce da
consertado, estão prontos landau e é o primeiro a
e SD prepara-se para chegar até ele.
ordenar a largada.
PRADO (suando com seu
SD (para Chapin) lenço na mão)
- Dessa posição garanto-lhe que - Ufa! Alberto, Você está bem?
não terei problemas para Por favor, é preciso parar; não
decolar, Chapin. Esses balonistas sei se resisto a essa maratona...
enfim vão entender as diferenças
entre o dirigível e o balão esférico. Uma pequena multidão se
forma em torno de SD. Ele
Menos pessoas em volta do que na abraça e beija os garotos que
vez anterior. O Número 1 eleva-se o salvaram e tira do bolso
bem, ultrapassa o topo das árvores sob os algum dinheiro que oferece a eles para
aplausos da pequena platéia, e ganha altura comprar guloseimas. Depois, em meio ao
já em manobras. A câmera pega detalhes de burburinho que se formou, SD sobe na
SD a pilotar o seu dirigível que passeia por barquilha e, equilibrando-se em pé sobre ela,
cima de bosques e campos subindo sempre, pede silêncio a todos.
até atingir 400 metros de altitude. Ao descer
caminha para o pouso em Bagatelle, mas o SD (de pé, no alto da barquilha) (foto)
invólucro começa a murchar perigosamente. - Henry Giffard, com a coragem tão grande
SD percebendo o perigo, joga a corda guia quanto a sua ciência, já tinha demonstrado,
perto de um grupo de garotos que jogavam há mais de 40 anos e de maneira magistral, a
bola e grita para eles. possibilidade de dirigir um balão. Hoje eu o
comprovei mais uma vez, e utilizando pela
SD primeira vez um motor a petróleo. Desejo
- Segurem a corda! Segurem a corda! Atenção, aqui homenagear esse grande precursor que
todos Vocês; segurem bem firme e não foi Henry Giffard.
deixem que ela os arraste.

Os surpresos garotos obedecem SEQUÊNCIA 25


prontamente a ordem e juntam-se
para segurar a corda, com toda a Festa de gala em Paris. Os Rothschild
força que possuem. recebem a alta sociedade e a intelectualidade
francesa. Nos grandes salões repletos SD,
SD uma das estrelas da festa, está envolto numa
- Isso; isso mesmo; firme; bem roda de amigos e curiosos. Georges
firme! aproxima-se, abre passagem, trazendo
consigo uma outra estrela da festa: o jovem
Neste momento o Número escritor e revelação das letras modernas de
1 passou a ser uma França, Marcel Proust.
imensa pipa segura Ele apresenta-o a SD e ambos trocam
pela meninada e vai impressões e elogios mútuos, numa conversa
lentamente caindo até rápida. Depois cumprimentam-se e
o solo com o seu despedem-se. Após a saída de Proust, um
charuto dobrado em dos amigos lhe pergunta o que achou dele.

42
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SD uma premiação, cujos termos ainda


- Uma personalidade muito interessante, mas decidiremos, para acelerar o progresso de
um tanto mundano. experiências e testes em aeronaves.

Marcel Proust, retornando à sua roda de Georges aproxima-se do grupo ao lado de


amigos é indagado da mesma forma sobre Adrien.
SD.
GEORGES (sempre brincalhão e animado)
PROUST - Senhores, desculpem-nos pela interrupção,
- Interessante e exótica figura, a do Sr Santos. mas as danças já começaram. Não é justo
Porém, um tanto aérea... que tão belas senhoritas esquentem sofás e
cadeiras enquanto os cavalheiros tratam
Num outro momento da mesma festa, SD está negócios!
junto ao Príncipe Rolland Bonaparte, o Sr.
Deutsch de La Meurthe, o Marquês de Dion Todos concordam e dirigem-se ao salão de
e o advogado Ernst Archdeacon. danças.

ARCHDEACON No salão, outra estrela da festa: a atriz Sarah


- Achamos que chegou o momento, Sr Santos, Benhard, cercada de um grupo do qual fazem
de fundarmos o Aero Clube de Paris. Sua parte o General André e o Sr. Rothschild.
sugestão do Campo de St. Cloud foi Adrien apresenta SD a Sarah. A música
aprovada. E temos adesões suficientes para começa.
a aquisição dos terrenos. Mas, o mais
importante, é que temos, no senhor, o nosso SD (para Sarah)
primeiro aeronauta motorizado. - A Senhora concede-me a honra dessa
dança?
SD
- Fico feliz em sabê-lo, Doutor Archdeacon, SARAH
pois espero que o Aero Clube estimule novos - Mas com muito prazer, Sr Santos-Dumont.
aeronautas. Penso que a França tem essa Com o Senhor quem sabe vou ter a sensação
missão perante a humanidade. Daqui será de estar dançando nas nuvens...
dada a partida para o novo século. E a
aeronáutica, estou convicto, será a ciência Começam a dançar. Todos observam o
desse novo século, e o seu maior avanço famoso par e admiram-se da destreza de SD
sobre os anteriores. ao girar garbosamente com a grande dama
pelo salão.
DEUTSCH
- Através do Aero Clube, pretendo instituir

Festa de gala em Paris: entre as celebridades, Sarah Benhard, SD e o Gen. André. (do centro para a direita)

43
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SEQUÊNCIA 26 (O Número 2) mostraram equivocados quanto aos dirigíveis.


O Número 3, porém, foi desenhado e
Tempo chuvoso no Jardin d’Acclimatation. projetado segundo os meus próprios cálculos
O Número 2 está sendo preparado para voar. e teorias. Até hoje, minhas inovações bem
Muitos guarda-chuvas e impermeáveis no sucedidas tiveram origem em deduções
agrupamento que se forma em torno dele. teóricas, apoiadas em bases científicas.
(Legenda: Jardin d Acclimatation, Paris, 11 Aeronautas empíricos dizem que a ciência
de maio de 1899) As discussões de sempre pouca coisa vale quando se trata de voar.
repetem-se entre Lachambre e SD. Voa ou Isso não é verdade, e vamos agora
não voa? O tempo, etc. SD está impaciente e demonstrá-lo.
acaba rompendo com Lachambre,
despedindo-o definitivamente. Lachambre Oficina da Vau Girard, no 15eme. (Legenda:
aceita a demissão e sai enfurecido. Paris, 12 de novembro de 1899) SD e seus
mecânicos, com Chapin, pela primeira vez à
LACHAMBRE frente, preparam sozinhos, num grande pátio
- É um cabeçudo! fechado, o Número 3. Tudo pronto, SD entra
na barquilha, manda girar o motor e dá a
SD tira o chapéu e experimenta a chuva. Não ordem de largada. O Número 3 eleva-se firme
está tão forte. Entra na barquilha e manda e tranqüilo na bela manhã de primavera. SD
largar. Nessa hora a chuva aperta e, ainda a manobra-o à vontade; sobe, desce, evolui.
alguns metros do chão, o frio faz com que o (foto) Tudo sai perfeito. Dali, ele sobrevoa
invólucro comece a murchar. De repente, o Champ de Mars, entre a Torre Eiffel e a
uma inesperada ventania arroja todo o École Militaire, executa manobras, brinca no
precário conjunto para cima das árvores. ar. Embaixo, Paris está paralisada e
Outro desastre. Susto geral. Prado em pânico. boquiaberta. Os exercícios dos alunos da
escola militar interrompem-se sem qualquer
PRADO (com as mãos postas para o céu) comando e alunos e instrutores olham para
- Henrique, meu bom amigo, Você está aí? o céu, para ver aquela única nuvem artificial,
Peça a ele que pare com essa loucura, por de cor bege claro, que evoluía sobre suas
favor! cabeças ao comando de seu piloto. Bondes
param e seus passageiros descem para
observar o fenômeno. Os
cafés e as boulangeries
SEQUÊNCIA 27 esvaziam-se repentinamente
(O Número 3) de seus clientes, empregados
e proprietários que correm às
SD e seus mecânicos calçadas e olham o céu. O
reúnem-se na oficina em Vau mesmo acontece com as
Girard, no 15eme. É uma repartições públicas, os
reunião tensa. SD exibe as escritórios, o comércio e
pranchas de projeto do as fábricas. No alto de
Número 3. uma das torres da Catedral
de Notre Dame, um certo
SD corcunda horroroso
- Amigos, nos projetos desentoca-se e olha para
anteriores, a minha o céu, com o seu único
inexperiência permitiu os olho protegido do sol por
aconselhamentos de uma das mãos. O pipocar
aeronautas de balões do motor do Número 3
esféricos, que se "Outro desastre. Susto Geral." passa a ser o ruído que

44
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

todos ouvem passando fotógrafo e comecei a segui-


sobre suas cabeças, lo, no seu automóvel. Agora
precedido da grande sei por que não quis que
sombra que projetava-se eu o devolvesse ontem.
nos telhados e ruas da Tramava tudo isso, não é?
cidade anunciando o
grande charuto do Número SD
3, que logo surgia - Houve também uma certa
imponente, como se fosse coincidência. Passei a noite
O "Número 3"
uma nuvem feita à em claro na Vau Girard e
compasso, geométrica e que não esvanecia. não podia encontrar-me consigo. Queria
E que trazia, pendurado por uma teia de sigilo total nos preparativos. E o Número 3
cabos e cordas que traçavam o seu delicado ficou uma beleza! Todos os meus cálculos
cordame, a pequena barquilha motorizada, verificaram-se corretos.
deixando um leve rastro de fumaça à ré, com
o seu piloto de chapéu já conhecido e Outros veículos vinham chegando com
copiado em Paris, hasteando orgulhoso uma jornalistas, membros do AeroClube, amigos,
vasta bandeira do Brasil a tremular ao vento. curiosos. Prado, dos amigos, foi o último a
O Número 3 dirige-se à Torre Eiffel, chegar e abraçou SD eufórico. A pequena
ultrapassa-a, ruma ao Parc des Princes, onde multidão pegou SD e levou-o sobre os
crianças e suas babás pasmam em vê-lo e ombros fazendo um passeio da vitória em
segue para Bagatelle, onde aterrissa Bagatelle.
suavemente, paralisando uma acirrada
partida de pólo que ao lado se disputava
entre homens a cavalo SEQUÊNCIA 28

Georges foi o primeiro a chegar, pilotando o No dia seguinte, pela manhã, acontecia,
automóvel elétrico de SD. Os mecânicos de como previsto, a sessão solene de fundação
SD já estavam lá, aguardando-o, como do Aero Clube de Paris. Todos os membros
combinado. Georges tinha-o seguido por fundadores lá chegavam trazendo diferentes
toda a Paris, com o fotógrafo jornais debaixo do braço, que exibiam
do "Le Temps" e na primeira página o mesmo
bateram várias assunto: o vôo surpresa do
chapas. Estava em Número 3. SD foi dos
transe. últimos a entrar no
auditório do
GEORGES Automóvel Clube e
- Vitória! Vitória! foi imediatamente
(abraça SD) - aplaudido de pé por
Grande vitória! E todos os presentes.
não avisou O advogado Ernst
ninguém, hein, seu Archdeacon, que
malandro! Eu presidia a sessão,
estava no jornal convidou-o para
quando começou compor a mesa, mas
o rebuliço. ele educadamente
Corremos para fora d e c l i n o u ,
e lá estava Você, preferindo sentar-se
"O Número 3 eleva-se firme e tranquilo..."
sobre as nossas na platéia. Após as
cabeças. Chamei o formalidades SD

45
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

levanta-se e pede a palavra. inusitadas: 30 metros de comprimento, 7 de


largura e 11 de altura, com duas imensas
SD portas de correr, ainda fechadas.
- Amigos, esta data me traz tão grande
felicidade que não posso deixar de registrá- UM DOS PRESENTES (comentando para um
la em breves palavras. Desejo anunciar que, outro, ao seu lado)
amanhã mesmo, darei início à construção de - Que prédio mais esquisito! E essas portas
uma estação-garagem para meus dirigíveis de correr enormes? Serão empurradas por
em St. Cloud. E prometo realizar lá todas as máquinas? Ou por gigantes?
minhas próximas experiências. Tenho a
convicção de que St Cloud está destinado a O Príncipe Bonaparte corta com uma tesoura
ser o primeiro ninho da aeronáutica do uma fita de seda que lacrava as duas portas.
mundo! Muito obrigado. (todos o aplaudem, Gasteau e Dazon, recentemente contratados
e Deutsch pede a palavra) por SD, encarregam-se de abrir as portas
usando apenas uma das mãos, num
DEUTSCH movimento feito sem qualquer esforço. Lá
- Aproveito esse momento para anunciar que dentro, bem guardado e cheio de gás, estava
estou depositando nos cofres do Aero Clube o Número 3, pronto para voar, em toda a
a importância de 100 000 francos. Eu os sua imponência.
ofereço ao aeronauta que conseguir, partindo
do Campo de St. Cloud, levar sua aeronave, SD (para Bonaparte e os demais que o
em vôo por ele controlado, até a Torre Eiffel, acompanhavam na visita ao interior do
contorná-la, e voltar ao ponto de partida, hangar)
num tempo igual ou menor do que trinta - Agora não preciso mais desperdiçar o
minutos. Tenho dito. (novos aplausos, valioso hidrogênio enchendo e esvaziando
seguidos de comentários) o invólucro a cada vôo. Posso guardá-lo
muito bem aqui, e em segurança, sempre
UM DOS PRESENTES (para um outro, ao seu pronto para partir.
lado)
- Prêmio fácil de oferecer; pois é impossível A seguir, SD orienta os seus mecânicos para
ganhá-lo! retirar o Número 3 para fora do hangar. Eles
o fazem e SD entra na barquilha, dá o sinal
O OUTRO e alça-se aos ares, fazendo várias evoluções
- Pelo que vi ontem, não é tão impossível em baixa altitude, subindo e descendo,
assim. Mas o Sr Santos é o único concorrente. manobrando à vontade, sob a admiração de
todos. Enfim,
decide pousá-lo
SEQUÊNCIA 29 e o faz com
a b s o l u t a
Inauguração do perfeição
hangar de SD no exatamente no
campo de St. lugar de onde
Cloud. Uma saíra. Depois,
p e q u e n a sai da barquilha,
multidão se sob os aplausos
aglomera diante da entusiasmada
daquele estranho platéia.
e d i f í c i o ,
projetado por SD,
com dimensões O 1º hangar do mundo: "Que prédio mais esquisito!"...

46
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 30 (O Número 4) finalmente montadas e testadas em vôo.

Reunião de SD e seus mecânicos na nova DAZON


oficina secreta, ainda incompleta, anexa ao - Não seria mais prático fazer tudo lá, ou em
apartamento de SD nos Champs Elysées. SD Vau Girard, como vínhamos fazendo?
percorre os espaços vazios com a planta por
ele desenhada do seu projeto de ocupação SD
e os seus planos de trabalho, mostrando-os - Talvez, Dazon, mas lá não teríamos a
a Chapin, Gasteau e Dazon, maravilhados. disponibilidade de recursos que aqui vamos
Depois, sentam-se em volta da mesa da ter e, o que é mais importante, poderemos
Biblioteca, e SD abre um novo rolo de plantas prosseguir nossos trabalhos em perfeito
e desenhos do seu novo projeto. sigilo.

SD CHAPIN
- Amigos, somente Vocês terão acesso a esta - Sim, agora entendo. O Senhor decidiu-se
oficina e sob o juramento de sigilo. Aqui por registrar patentes de seus inventos...
vamos ter a oficina mais completa e segura
para projetar e construir as nossas futuras SD
aeronaves, a começar pelo dirigível Número - Não, Chapin, não é esse o motivo do sigilo.
4 que projetei, calculei e desenhei nestas Com a inauguração da Grande Exposição no
plantas. Somos os primeiros e, por enquanto, próximo mês, o mundo inaugura uma nova
os únicos concorrentes ao Prêmio Deutsch. era: a era da competição. Diversos prêmios
Com base na experiência dos anteriores, estão sendo divulgados com objetivos
calculei um novo balão dirigível com científicos e industriais, inclusive no campo
aerodinâmica e propulsão mais eficientes, da aeronáutica. O estímulo e a atração que
para ganhar essa prova. Se conquistarmos eles provocam atinge muitas pessoas,
essa vitória prometo-lhes que concederei boa honradas ou não. Vamos ter muitos
parte do seu valor em dinheiro a Vocês e concorrentes, a maioria dispostos a qualquer
seus auxiliares. expediente para vencer. E, desses, nos
protegeremos aqui.. Por isso construi essa
CHAPIN oficina em pleno coração de Paris. Por fora,
- Mas, senhor, qual a razão dessa honra? O vê-se apenas um galpão abandonado e em
senhor nos paga tão bem ... desuso, e ninguém suspeitaria que o
carroceiro Louis, surdo mudo - que toma
SD conta dessa propriedade há anos, e é meu
- Meu caro Chapin, não desejo de Vocês amigo leal e de confiança - seja o seu
apenas a eficácia e a competência. Quero- guardião. Trabalharemos aqui sossegados,
os competindo também, juntamente comigo. sem perigo de ser roubados ou aviltados...
Sem Vocês não sou nada! É justo que Vamos ao Número 4.
participem dele tanto quanto eu, com espírito
de equipe, de fato estimulada para a vitória. SD (narrando a Georges e Prado na oficina,
sobre as cenas da construção do Número 4
GASTEAU e sua montagem no hangar de St. Cloud, até
- Vamos construi-lo aqui? a preparação para o primeiro teste de vôo)
- O Número 4 foi desenhado para ganhar o
SD Prêmio Deutsch ainda no ano da Grande
- Aqui vamos construir e testar cada elemento, Exposição o que, infelizmente, não foi
cada peça, cada sistema de comando e possível. Dei forma mais esbelta e
funcionamento das aeronaves. Depois aerodinâmica ao invólucro e motor bem mais
levaremos para St. Cloud, onde serão potente de 7 HP e dois cilindros, que inventei

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

para propulsão de dirigíveis. Para ganhar


peso, abri mão da barquilha de vime, e a
substituí por um quadro e celim de bicicleta
sobre o qual voei assentado, com os pés nos
pedais, e que permitiam dar partida ao motor
no solo ou em vôo. (foto) Eu ficava
exatamente no baricentro do dirigível, com
todos os controles à mão. Georges deve ..."abri mão da barquilha de vime, e a substituí por
lembrar-se de quando o mostrei pela primeira um quadro e celim de bicicleta"...

vez, em St Cloud. Estavam presentes Jauré e


Rochefort, inimigos políticos figadais, e a ex- ROCHEFORT
imperatriz Eugênia... - Bem, nesse caso já não estaremos mais aí
para vê-lo...
SD mostra o seu Número 4. (Legenda: Campo
de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 1 de agosto JAURÉ
de 1900) - Certamente que não. O que fazemos agora
é construir o futuro; assim como também o
ROCHEFORT faz o Sr Santos-Dumont.
- Sr Jauré, mas que surpresa! Um socialista
frequentando a elite parisiense!
SEQUÊNCIA 31 (A Grande Exposição)
JAURÉ
- Não creio que o senhor pense assim, Sr O Número 4 desliza no ar em direção à
Rochefort. Reputo-o homem inteligente e Grande Exposição, numa perfeita linha reta.
sagaz. Estou aqui pelo mesmo motivo que o
senhor; venho ver de perto o ovo da indústria Uma sombra corta os pátios externos da
que ajudará ao proletariado libertar-se da Grande Exposição, super lotada de visitantes,
ganância de seus patrões. Ela assinala o que fazem enorme fila na bilheteria do
progresso irreversível da humanidade. cinematógrafo Lumière para assistir ao
famoso “Viagem à Lua”, realizado pelo Sr
ROCHEFORT George Meliés. Alguém grita: “é o petit
- Quanto ao primeiro ponto não discordo, Santos” ! Todos olham para o céu. Fotógrafos
Sr Jauré, mas suas prospecções quanto ao buscam posições e ângulos. Surge então,
futuro não seriam por demais otimistas? Crê rasante, sobre os grandes portões art-
que apenas um século seja suficiente para nouveau da Exposição, o Número 4, como
por abaixo tradições que levaram milênios se fosse uma nave de outro planeta, com o
consolidando-se? seu motor rugindo
bem mais forte do
JAURÉ que o antigo
- E por que não, Sr pipocar do Número
Rochefort? Em 3, e a bandeira do
Política, como nas Brasil tremulando
Artes, o novo é que abaixo do leme.
prevalece. Não diria Todos acenam para
para o seu início; o piloto que
mas posso prever um corresponde com
grande governo outros acenos,
socialista na França gentilmente, para o
para o último quartel público. Em
do Século XX... ..."O Nº 4 se vai, em direção ao seu "ninho"."... seguida, realiza

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PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

várias manobras. Destaque para os membros soluções para obter melhor rigidez dos
do Congresso Internacional de Aeronáutica, invólucros, com o motor de dois cilindros,
especialmente o respeitável Prof. Langley, do com a aplicação de cordas de piano aos
Smithsonian Instituition. Depois de diversas cordames, com as estruturas flexíveis de
manobras nas quais sobe até quase bambu e madeira, enfim, uma luta
desaparecer e desce até a poucos centímetros permanente contra preconceitos que só criam
do solo, e circundando todo o espaço da quimeras anti- científicas, e retardam os
exposição, o Número 4 se vai, com os experimentos do progresso. Cada aeronave
aplausos da multidão, em direção ao seu que ponho em vôo enriquece-me de novos
“ninho”. Um verdadeiro show! problemas cujas soluções vou encontrar, em
primeiro lugar, nos livros e estudos teóricos
15 dias depois, todos os jornais, de todo o competentes, como os do Prof. Langley, que
mundo, vendidos nas bancas da exposição, tanto nos honra com sua presença. (aplausos)
mostravam na primeira página o show aéreo - Eles fornecem luzes e princípios sobre os
do Número 4. Uma bela mulher (Aida quais trilham o saber, o raciocínio e a intuição
D’Acosta), com o "Le Temps" numa das mãos, do inventor. Estou no meu dirigível Número
compra um ingresso na bilheteria do 4, com o qual pretendia conquistar, ainda
auditório, e entra no hall de um salão onde neste ano muito especial, o Prêmio tão
se anuncia: “Congresso Internacional de oportunamente oferecido pelo Sr Deutsch de
Aeronáutica. Hoje: Palestra do eminente La Meurthe, também honrando-nos com sua
Aeronauta Santos-Dumont”. Entrega o bilhete presença. (mais aplausos) - Porém, a sorte
ao porteiro e entra atrasada na sala repleta não me foi favorável e novos problemas
onde SD já começara a sua palestra, e senta- surgiram, mas que espero tê-los resolvidos
se numa poltrona da última fila. no Número 5, em projeto na minha
prancheta. Mas, contudo, este foi um ano de
SD (no pódium de palestras do auditório, fundamental importância, pois fez-se por
falando de improviso) merecer ao título de “Portal do Século XX”,
... então, senhoras e senhores, enfatizo a que se abre em Paris, e pelo qual haverá de
importância do estudo teórico-científico, do passar todo ser humano civilizado que tiver
cálculo matemático e do projeto técnico para a sorte de viver e gozar dos confortos e
a construção das máquinas do futuro, privilégios que os gênios pioneiros de
especialmente as aeronaves. Tudo que se fez Marconi, Edson, Pasteur, Grambell, Freud,
até pouco tempo, com raras exceções, é fruto Hertz, Lumière, Lilienthal e muitos outros nos
de puro empirismo, de tentativas de melhor concederam. (aplausos prolongados) - E para
ou pior intuição. A série de dirigíveis que encerrar, senhoras e senhores, devo dizer que
concebi e construí, e os demais inventos que o mundo necessita de cérebros preparados
vieram-me para solução dos problemas que pela ciência para cuidar dos misteres e das
surgiam a cada passo, demonstram-no com variáveis que a Natureza nos apresenta, a
clareza. Quando substitui as pesadas lonas fim de buscar-lhe os modelos teóricos, físicos,
dos balões pelo levíssimo tecido de seda químicos, matemáticos e biológicos. Eles
japonesa, fui admoestado pelos empíricos, serão a matéria prima do inventor do futuro,
mas não dei-lhes ouvidos porque meus cujo papel será o de dar a aplicação industrial
cálculos e testes garantiam-me a certeza da aos benefícios que a ciência moderna oferece
escolha. O mesmo se deu quando propus à Humanidade. Muito obrigado. (muitos
pôr em vôo um motor de explosão a aplausos)
petróleo. Os empíricos afirmavam que a
trepidação produzida espedaçaria a estrutura
da aeronave. Há poucos dias, todos puderam
vê-lo, em pleno funcionamento, sobre suas
próprias cabeças. Também com minhas

49
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SEQUÊNCIA 32 meio da rua entre as


(O Número 5) árvores e os prédios de
um pequeno largo.
SD acompanhado de (foto) SD ainda trepado
um grupo de senhores em seu celim responde
de cartola, senhoras e às perguntas dos
senhoritas muito bem repórteres e pousa para
vestidas, numa os fotógrafos.
demonstração do Começam a chegar,
Número 5, no seu enfim, os seus
hangar em St. Cloud. convidados.
(Legenda: Campo de St.
Cloud, Aero Clube de SD (para os repórteres)
Paris, 12 de julho de - Desculpem-me,
1901) senhores, tenho
convidados para um
CHAPIN (como se drink, permitem-me?
fizesse uma palestra (desce do Número 5 dá
para atentos alunos) ..."tenho convidados para um drink"... o braço a uma das
- O Número 5 da série do Sr Santos-Dumont, moças e abre caminho na multidão, em
é, em verdade, um aperfeiçoamento do direção ao Café Trocadero, seguido por
Número 4. O motor retornou à popa, pois todos)
essa posição configurou-se a mais adequada
ao vôo e ao conforto do piloto. Aumentamos
também a potência para 16 HPs e o número SEQUÊNCIA 33
de cilindros para quatro. O cordame foi
alterado com a inclusão de cordas de piano, Os membros da Comissão Julgadora do
e demos-lhe uma estrutura mais rígida em Prêmio Deutsch chegam ao Campo de St.
madeira. Também o invólucro ganhou mais Cloud. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero
alongamento, passando de 27 para 33 metros Clube de Paris, 13 de julho de 1901) O Sr.
de comprimento. Deutsch lê a convocação de SD, em voz alta.

SD (ao público, já “montado” no Número 5) DEUTSCH


- Vou fazer alguns testes sobre os Campos - “Em obediência ao regulamento do Prêmio
de St. Cloud e Longchamps, e sobre a cidade Deutsch e seus acréscimos de fevereiro de
de Paris, onde, se o tempo permitir, desejo 1901, venho, pela presente, convocar VExas
fazer uma aterrissagem de precisão nas ruas para presenciar uma prova que pretendo
da cidade (exclamações de espanto) - Escolhi realizar no dia de amanhã, 13 de julho de
um local próximo ao Hotel Trocadero. 1901, às 8 horas, no Campo de St Cloud.
Convido - os para tomar um aperitivo em Mui respeitosamente, (ass) Alberto Santos-
algum estabelecimento das imediações. Até Dumont.”
lá, senhoras e senhores.
SD já está pronto para largar, e posa para
O Número 5 sobrevoa Paris, perto da Torre fotógrafos. O Presidente da Comissão,
Eiffel. SD manobra-o com precisão e Príncipe Rolland Bonaparte, olha para o seu
lentamente vai descendo até desaparecer, cronômetro Patec Philip e acerta-o com os
com invólucro e tudo, entre os telhados dos dos demais membros da Comissão. Georges
prédios. Corte para a rua em frente ao também acerta o seu relógio e repara que
Trocadero, com uma multidão embaixo do SD mexe numa pulseira esquisita, colocada
Número 5 tranqüilamente estacionado no no seu pulso esquerdo.

50
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

BONAPARTE olhando ao largar, no seu pulso


- Largar! esquerdo. O que é?

O Número 5 projetou-se em linha reta, SD (rindo, mostrando o pulso esquerdo


na direção da Torre Eiffel. Ao chegar com o relógio e desabotoando a sua
perto, a câmera está no seu interior. SD fivela)
contorna a Torre Eiffel e olha o seu - É um relógio que inventei, Georges.
relógio de pulso: 9 minutos se passaram. Foi a solução que achei para
Tudo bem. Faz o contorno e percebe o acompanhar o tempo de vôo durante a
vento de proa que o retém. De repente, prova. Guarde este como lembrança.
o motor parou bruscamente. O dirigível Encomendei meia dúzia ao Cartier.
passou a ser um simples balão à mercê
dos ventos e começa a perder altura. GEORGES (olhando admirado aquela
Sem perder a calma, SD dirige-o como maravilhosa invenção)
pode até os jardins do Sr. Edmond de - Mas que idéia genial, Alberto, um
Rothschild, mas não consegue relógio de se por no pulso! Fico
ultrapassar as copas das árvores mais lisongeado com o presente! Sou o
altas que se entrelaçam aos cordames, segundo homem deste mundo a usá-
seguram o conjunto e perfuram o lo, não? (prendeu-o ao seu pulso e ficou
invólucro que vai diminuindo a olhar para o relógio, encantado)
gradativamente, perdendo a imponência,
caindo lentamente, até que SD possa agarrar- SD
se a um dos galhos das árvores a poucos - Com certeza, Georges, e Pradô deverá ser
metros do chão. Os guardas do Sr. Rothschild o terceiro. Mandei fazer seis em ouro, um
são os primeiros a chegar e ajudam-no a para cada um de nós, e meus mecânicos.
descer até o solo. Depois começam a chegar Usarei o meu no próximo vôo, quando
os repórteres, fotógrafos e os membros da conquistaremos o Prêmio Deutsch.
Comissão. SD mantém-se impecavelmente
vestido, com sua grande gravata vermelha GEORGES
sobre a imaculada camisa branca de mangas - Esse Você patenteou! Tem de patentear! É
compridas e o seu chapéu panamá. Ele posa um absurdo não fazê-lo! O Cartier vai ganhar
para os fotógrafos ao uma fábula com ele!
lado do Sr Deutsch.
(foto) Quando chegam SD
Georges e Prado (Prado, - Já entreguei a patente ao
como sempre aflito, domínio público no
suando e enxugando o escritório de registros.
rosto com seus enormes Cartier vai produzi-lo em
lenços brancos) SD já série com o nome
está dando orientações Dumont. Me dou por
para seus mecânicos, honrado, é um grande
para o resgate de seu relojoeiro.
dirigível.
PRADO (quase chorando
GEORGES (sorridente) para SD)
- Como pode-se notar, - Alberto, eu o ouvi referir-
está tudo bem, claro. se a um próximo vôo?...
Minha curiosidade agora
é por aquela esquisita Nesse momento, surgem
pulseira que o observei ..."Como pode-se notar está tudo bem!"... dois criados, um deles

51
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

carregando um pequeno cesto de vime. (e, olhando para a própria gravata) - Tenho
de providenciar uma outra gravata... essa
UM DOS CRIADOS gravata vermelha pode ser tomada como uma
- Senhor Santos-Dumont, somos criados da afronta... é um símbolo republicano no
Princesa Izabel, do Brasil, e vizinha do Sr. Brasil... (SD ficou pensativo. Enfim, decidiu-
Edmond de Rothschild. Ela soube do se, retirou um dos guardanapos bege da
acidente e mandou-nos ter notícias. Mandou- cestinha e improvisou rapidamente ao
lhe também esse pequeno lunch, este pescoço uma nova gravata, dando, com
envelope e um convite para o senhor almoçar perfeição, um laço elegante) - Que tal? Está
com ela, em uma hora, na sua casa. (entregou melhor?
a SD o envelope, que o abre e começa a ler)
PRADO
SD (comentando enquanto lê o bilhete) - Sim, bem melhor. Vou aceitar o convite.
- É muita delicadeza da Princesa Izabel. Diga- Você tem alguma razão... Mas não devo
lhe que está tudo bem e que o convite foi demorar- me. Sales chamou-me e amanhã
aceito e... o que é isso? Ah, sim, uma embarco no Arcona.
medalhinha... (e lê para Prado o bilhete)
“Senhor Santos-Dumont..- Envio-lhe uma
medalha de São Benedito que proteje contra SEQUÊNCIA 34 (A Princesa Izabel)
acidentes. Aceite-a e use-a na corrente de seu
relógio, na sua carteira ou no seu pescoço. A landau de Prado chega à casa da Princesa
Ofereço-lhe pensando na sua boa mãe e Izabel. SD e Prado conversam.
pedindo a Deus que lhe socorra sempre e lhe
ajude a trabalhar para a glória de nossa PRADO
pátria. Izabel, Condessa D’Eu”. - E então, - Tenho certeza de que a medalhinha é obra
Pradô? Tenho fome! (abre a cestinha e retira do Henrique, lá no céu, Alberto. Por Você
um bom sanduíche) - Aceita um? (Prado ele faria tudo! Não deve estar aguentando
recusa) - Que tal se me acompanhasse à casa suas traquinagens aéreas. Pediu ajuda a São
da Princesa? Benedito. É a única explicação!

PRADO SD
- Sempre gostei da Princesa Izabel, Alberto. - Acalme-se, Pradô, as coisas não são tão
Também foi amiga de minha mãe. Mas, não perigosas!. O dirigível é seguro; em casos de
acha que um Embaixador da República seria pousos forçados cai muito lentamente. E o
mal recebido na casa de uma princesa piloto ainda tem recursos, se tiver experiência
exilada? E ela convidou apenas a Você... e sangue frio. Me sinto bem preparado.

SD A landau estaciona. A Princesa está na porta


- Ora, Pradô, não seja incivilizado. A Princesa, para recebê-los.
além de muito educada, é brasileira. E na
mesa de uma senhora brasileira sempre terá PRADO
lugar para um patrício, ou qualquer um que - Já desisti de pedir-lhe que pare com essas
apareça na boa hora. Não é como na França, loucuras, Alberto. Só me resta pedir a Deus,
lembre-se. E não seria dever de um bom a São Benedito e a Henrique que o protejam
Embaixador aproveitar oportunidades que lá de cima.
contribuam para a diminuição das tensões
entre adversários políticos? Eis aí Aproximam-se da sorridente Princesa.
a sua chance de tentar moderar
os ataques da nobreza brasileira SD
exilada aos governos republicanos! - Princesa, fiquei sensibilizado com

52
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

as suas gentilezas e o seu convite, e quero vivo! Num governo como o de papai, Alberto
agradecê-la em nome de minha mãe, no do teria grande ajuda do estado para prosseguir
meu falecido pai e no meu próprio. Tomei a nos seus inventos.
liberdade de trazer o Embaixador Prado,
inseparável companheiro das minhas PRADO
aventuras nos céus de Paris. Sua função é - Madame, o Brasil passa por uma fase difícil
pedir por mim na Embaixada do Reino de e problemática. Crises se sucedem
Deus. Espero que a Senhora não se importe... ameaçando o equilíbrio das finanças, do
comércio, da indústria... E somos poucos para
PRINCESA IZABEL dar conta de tudo. Eu, pessoalmente, faço o
- De modo algum, meu menino Alberto. que posso para que nada falte a Alberto. Já
Nossa casa em Paris nunca fechou as portas no Governo as coisas se complicam. Num
aos nossos patrícios, sejam eles republicanos sistema democrático-republicano todos falam
ou não. Seja bem-vindo a essa modesta e apitam. Cada decisão é lenta, difícil. Coisas
morada de exílio, Sr. Antonio Prado, sua dos novos tempos! Mas, prometo-lhe, o Brasil
adorável mãe e eu éramos grandes amigas e o seu Governo não estarão cegos aos
quando solteiras. Ela passa bem? sucessos de Alberto, e suas repercussões pelo
mundo. Pelo contrário, uma das minhas
PRADO missões, na viagem que faço ao Brasil
- Um pouco atormentada pela artrite, amanhã, é levar subsídios para um apoio
madame, obrigado pela acolhida e pela firme a Alberto, que está se tornando um
lembrança. É com humildade e grande prazer herói nacional.
que acompanho o meu amigo, peralta dos
céus, até essa nobre residência. Aqui sou PRINCESA IZABEL
apenas um patrício, um amigo, e, também, - Acredito no senhor, Sr Prado. Mas tudo está
com toda a sinceridade, um admirador muito demorado e lento no Brasil. O tempo
exaltado daquela que tornou livres os urge! As necessidades não esperam! Alberto
escravos da nossa pátria, cuja condição tanto tornou-se uma das maiores esperanças do
nos envergonhava. Receba as minhas nosso país. Mas, no concerto das nações, ele
saudações. surge como solista isolado e desamparado.
Se o Governo brasileiro fosse mais presente
PRINCESA IZABEL nas questões do progresso, outros Albertos
- Entrem, senhores, por favor. Minha não apareceriam? Temos muitos por lá. E nem
cozinheira é brasileira e pedi-lhe que nos todos com a chance que o Dr Henrique deu
preparasse uma das nossas especialidades: ao seu caçula. Eu mesma conheci rapazes
um franguinho ao molho pardo! Gostam? estudiosos e aplicados que não a tiveram e
alguns abandonaram os estudos para viver,
Na mesa, já almoçando as iguarias da ou a pátria e, até, a nacionalidade; porque a
Princesa. República nada faz para estimulá-los e
ampará- los. Nos tempos de papai isso não
PRINCESA IZABEL acontecia. Pelo contrário, os Albertos daqui
- O senhor não acha, Sr. Prado, que o Brasil iam para lá!
deveria dar maior apoio oficial e demonstrar
mais interesse pelas experiências do nosso PRADO
Albertinho? Tantas glórias tem ele propiciado - Madame, a senhora dificilmente vai
à nossa pátria, neste século do progresso... encontrar admirador mais entusiasmado de
Quando vejo a bandeira do nosso Brasil seu pai, do que este que vos fala. Fui seu
sobrevoando Paris em seus balões, meus funcionário, ainda jovem, mas leal e dedicado
olhos se enchem de lágrimas... Pedro, meu e, sou, até hoje, um leitor assíduo de tudo o
pai, ficaria tão orgulhoso dele, se estivesse que escreveu. Minha opinião é a de que a

53
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

senhora tem toda razão. Mas a República foram esvaziadas.


ainda não teve um estadista como o seu
saudoso pai, e temos de concordar que PRADO
estadistas do porte do excelentíssimo senhor - Bem, chegou a vez do Número 6.
seu pai não são fáceis de se encontrar!
Quanto a Alberto, também ele é difícil e GEORGES
único. Não é muito fácil tentar ajudar o - Não, ainda temos o episódio do acidente
Alberto, estou errado Alberto? do Trocadero.

SD acaba de limpar o seu prato e, enquanto PRADO (lembrando-se aterrorizado)


comia, esteve indiferente à conversa. - Graças a Deus eu não estava aqui! Graças a
Deus! Foi a medalha de São Benedito, senão
SD ele, em pessoa, que salvou Alberto desse
- Senhora Princesa, que delícia de manjar! A acidente. No Brasil só nos chegou a versão
senhora permitiria que o meu cozinheiro dos jornais. Agora é a sua vez de falar,
viesse buscar-lhe a receita? Gostaria de Georges. Sabe o que os jornais não publicam,
cumprimentar a autora dessa perfeição, e é o que mais costuma interessar. Sugiro
posso? inverter os papéis. Eu sou o jornalista e Você
o entrevistado. Conte-nos como foi! Agora
PRINCESA IZABEL que passou, estou curioso. No Brasil, dava
- Oh, e por que não? Ela ficará satisfeitíssima! um soco no primeiro que viesse dizer-me
Adora o senhor! Quando então o Sr passa alguma coisa.
em seus dirigíveis ninguém a segura na
cozinha... (e, baixinho) - certa vez ela disse- GEORGES
me que suas evoluções aéreas fazem-na - De fato, eu acompanhei tudo, cada passo...
lembrar os grandes pássaros do nosso Brasil.
(e, para o criado, em português) - Altamiro, SD
chame a Maria. (logo ela aparece, como se - Essa vou ouvir deitado no divã. Nada posso
já aguardasse atrás da porta; é uma negra acrescentar ao que Georges sabe. E estou
retinta e belíssima) - Maria, o Sr Alberto vai ansioso para ouvi-lo tanto quanto Pradô.
mandar o seu cozinheiro pegar-lhe a receita (levanta-se e deita-se, confortavelmente, no
deste prato. Está autorizada a passar-lhe, sim? divã)

SD levanta-se e beija a mão da sorridente e GEORGES (narrando em off)


bela figura, que, no seu deslumbramento, - Na tarde anterior ao acidente, Adrien e eu
não consegue pronunciar uma só palavra. cobrimos a apresentação do novo
embaixador dos EUA, o Sr. Henry White, no
SD Palácio do Governo. Por coincidência,
- Maria, Você só pode ser uma santa afilhada passamos aqui em frente quando íamos para
de Nossa Senhora Aparecida! Permita-me lá, numa vitória do governo francês, e vimos
reverenciá-la e agradecê-la. Muito obrigado! Alberto e Chapin entrando na garagem do
edifício, no automóvel elétrico de Alberto. A
enfadonha solenidade foi muito demorada
SEQUÊNCIA 35 (Acidente do Trocadero) e Adrien saiu cedo, deixando-me para
terminar o trabalho. Ao encerrá-lo, passei
A cena retorna do longo flash-back à oficina minhas anotações ao fotógrafo para levá-las
de SD onde os três amigos conversam. ao jornal e decidi vir a pé até aqui para
Georges está com um caderno encontrar-me com Alberto e, talvez,
repleto de anotações. Três garrafas jantarmos juntos.
de vinho e três de água mineral já

54
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

Georges bate à porta do apartamento de SD. sente-se à mesa. O serviço virá em seguida.
August atende.
GEORGES (narrando em off)
AUGUST - Observando August dar as ordens na
- Como vai, senhor Georges. Deseja entrar? cozinha, com a porta entreaberta, percebi
Pierre secando louça fina e cheguei a pensar
GEORGES que abusavam de Alberto, na sua ausência,
- Sim, August. Estou um pouco cansado. usando a sua louça.
Alberto está?
François entra com o vinho e o cálice de
AUGUST cristal. Traz também queijos e pães. Serve-
- O patrão não se encontra, senhor. Marcaram os a Georges que o agradece.
algum compromisso?
GEORGES (ainda narrando em off)
GEORGES (já no hall) - Nesse momento tocou o telefone e August
- Não, August. Passei por acaso, e, quem atendeu. Era Alberto. August falou ao meu
sabe, para jantarmos juntos e combinar as respeito. Ouviu Alberto e desligou. Fiquei
coisas para a prova de amanhã. aborrecido com August por não ter me dado
chance de falar a Alberto, mas ele logo se
AUGUST explicou.
- Creio que será difícil encontrá-lo, senhor.
Nas vésperas de provas ele costuma chegar AUGUST
muito tarde. Quanto ao jantar, se o senhor - Desculpe-me, Senhor Georges. O patrão
nos der a honra, temos algo pronto na está atarefado e pediu-me que me explicasse
cozinha. ao senhor. Disse que tudo corre como
previsto e que o aguarda amanhã em St.
GEORGES Cloud às sete horas.
- Até que seria prático, August, se não os
atrapalho... Assim ganho tempo e durmo mais GEORGES (em off)
cedo. Não temos tido folga para sonos mais - Depois do jantar, August providenciou-me
prolongados ultimamente. um tilburi e, ao sair do edifício percebi que
o automóvel de Alberto estava na garagem,
AUGUST ao lado do triciclo e a velha charretinha que
- De modo algum nos atrapalha, senhor ele fazia puxada por um avestruz. Estranhei,
Georges. Queira vir comigo até a sala de perguntando-me quem teria levado Alberto
jantar. à St Cloud, mas não dei importância. Agora
sei que Alberto estava mesmo é aqui, na sua
Entram na sala de jantar (ainda com os caverna secreta, não é Alberto?
móveis “normais”)
SD (no divã, rindo)
AUGUST - E testando um motor que, fora da cabine
- Temos pernil de carneiro assado, senhor. de testes, poderia ter sido ouvido por toda a
O que deseja beber? Paris.

GEORGES GEORGES (voltando à narrativa em off)


- Aceitaria um bom vinho tinto, August. - No dia seguinte chegamos cedo a St Cloud.
Talvez ajude-me a ter sono. Obrigado. (Legenda: Campo de St. Cloud, Aero
Clube de Paris, 8 de agosto de 1901) -
AUGUST Com a movimentação do dia anterior,
- Pois não, senhor. Fique à vontade, não pude fazer a preparação que

55
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

desejava para pelo telefone,


cobrir a prova. Fui do outro lado
apenas com um da linha)
fotógrafo, deixando
a equipe de VOZ DE ELISE
prontidão no jornal, (por telefone)
e Elise, nossa nova - Ele caiu, ele
jornalista, dentro da caiu... uma
Torre Eiffel, com t e r r í v e l
ligação direta, por explosão... não
telefone, para o há fogo... todos
jornal e para St. correm para lá...
Cloud. O Número 5
estava reformado e G E O R G E S
parecia per feito. (aflito, ao
Pensávamos que o telefone)
Prêmio seria ganho ..."O Nº 5 indo em direção à Torre Eiffel como uma flexa"... - Elise, Elise,
naquele dia. Toda a Comissão estava Você pode vê-lo?
presente.
ELISE
SD - Ainda não, vejo apenas os cordames e os
- “Lachez tout!” (e parte com o Número 5 pedaços rasgados do balão sobre o telhado...
em vôo rasante em subida.) ele caiu para o outro lado... Oh, meu Deus...

GEORGES (em off) GEORGES (aflitíssimo, com muita gente ao


- O vôo começou soberbo, com o Número 5 seu redor tentando escutar o relato)
indo em direção à Torre como uma flecha. - Mas são quase vinte metros de altura...
Tinham-se passado nove minutos quando Alguém do jornal está escutando? É preciso
Elise anunciou-o ao seu lado, na metade da mandar alguém para lá imediatamente.
altura da Torre, iniciando manobras de
retorno. ADRIEN (no telefone, olhando pela janela)
- René está lá, Georges. Espere, está me
ELISE (observando o Número 5 de dentro fazendo sinais... ele está rindo, parece que
da Torre Eiffel) está tudo bem. Sim, René faz sinal positivo,
- Minha impressão é de que as coisas não tranqüilize-se, creio que não se machucou...
vão bem. O invólucro está murcho e o motor os bombeiros estão chegando, posso vê-los...
falha ; mas ele tenta a manobra de volta...
parece que há problemas... o invólucro A câmera mostra SD pendurado na parede
murcha mais e mais... o motor falha... o motor lateral do Hotel, a uns quinze metros de
parou... está com a hélice presa nas cordas altura, salvo, literalmente, por um fio do
frouxas do balão. O dirigível aproxima-se cordame que embaraçou-se no seu corpo e
muito da Torre, empurrado pelo vento; posso prendeu-se em algum lugar do telhado. (foto)
ver o senhor Santos a poucos metros de mim; SD não se afoba; dá ordens e orientações lá
parece calmo e tenta soltar as cordas que de cima para os bombeiros, demonstrando
prendem a hélice... está perdendo altura... o perfeita tranqüilidade e presença de espírito.
motor não funciona apesar das tentativas do Finalmente um bombeiro o alcança. A
piloto... ele está em perigo... está caindo... multidão aplaude vigorosamente. Sobre essa
Oh, meu Deus!, vai cair em cima do Hotel cena a voz de Prado é ouvida em off.
Trocadero... bateu no telhado... (o balão
explode com um estrondo que Georges ouve PRADO (em off)

56
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

- Foi São Benedito! Foi ele! Henrique PRADO


conseguiu! Consegue o que quer, aquele - Isso torna tudo duplamente perigoso. Já
danado, até no céu! Foi São Benedito, não é fácil voar sem sabotagem. Com
Georges! Posso garantir. sabotagem, é melhor desistir logo...

A cena volta para a oficina, com Prado ainda SD


falando. - Isso é o que os sabotadores querem que
todos pensem, Pradô. E, de fato, não deixa
PRADO (suando e passando seu enorme de ser verdade. Por isso começamos a estudar
lenço no rosto) alter nativas e estratégias para evitar
... Essa eu não resistiria! Meu coração não sabotagens.
aguenta... sabem...
PRADO
GEORGES - Como assim? Melhor, conte-me primeiro o
- Aqui entre nós, Prado, e isso é assunto para que está se passando... (e enche uma taça
não sair daqui. Mas Alberto, seus mecânicos de vinho, até a boca, e limpa o suor do seu
e eu, temos certeza de que houve uma rosto com o lenço)
sabotagem...
GEORGES (em off sobre a repetição do vôo
PRADO em outros ângulos)
- O que? Sabotagem?!... - Alberto fez essas provas com o Número 5
em vôo de baixa altitude para proporcionar
SD um espetáculo melhor à multidão. Todos em
- Shhhh! Não se fala mais nisso... Paris sabiam que o Prêmio Deutsch já tinha
o seu ganhador. Inclusive Alberto, e por isso
PRADO fez um vôo para espetáculo. Quando passou
- Como, não se fala?! por Longchamps,
Querem matá-lo e não pouco acima da copa
se fala mais nisso? das árvores, ele ouviu
Estão malucos? Quero um ruído semelhante
a polícia investigando ao dessas garruchas
tudo amanhã mesmo. de ar comprimido que
Nem que tenha de ir começaram a fabricar
oficialmente ao Palácio recentemente.
do Governo; ao (filmagem em câmera
Primeiro-Ministro, se lenta, do dirigível
preciso for... passando perto da
copa de uma árvore e
GEORGES parece ter alguém
- Calma, Sr Prado. Não entre as ramagens
era o caso na época, e com uma garrucha -
muito menos agora. como no assassinato
Sem provas concretas e de Kennedy - ouve-se
irrefutáveis é o tipo do um ruído e o
assunto que só invólucro dá uma
prejudica o trabalho de ligeira sacudidela) -
Alberto. O que temos Em seguida ele
são suspeitas; mas percebeu a perda de
suspeitas sérias... gás no balão, mas
..."salvo, literalmente, por um fio"... ainda pouca e

57
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

acreditou que daria para concluir. Já na Torre SD


Eiffel, sem poder ganhar altura, o motor - Passei a processar a gasolina aqui, Georges,
começa a falhar e pára, ainda antes das isso Você ainda não sabia.
cordas embaraçarem-se na hélice. Exames
posteriores demonstraram que havia mistura GEORGES
de vernizes não- combustíveis na gasolina. - Sim, somente hoje conheci essa oficina
Nos pedaços que sobraram do invólucro secreta. Mas nisso confio inteiramente em
foram achados dois pregos dobrados, com Você, Alberto. Minha parte é a imprensa, a
duas pontas. Podem ter sido do telhado do publicidade, e o uso dela no esquema anti-
Hotel, mas achamos que foram expelidos da sabotagem.
garrucha criminosa, do alto de alguma árvore
em Longchamps. PRADO
- Esquema anti-sabotagem?
PRADO
- E como conseguiram evitar a sabotagem
no vôo do Número 6? SEQUÊNCIA 36 (O Número 6)

GEORGES GEORGES (agora em off sobre as imagens


- Não somente nós desconfiamos de correspondentes)
sabotagem. Muita gente em Paris não engoliu - Adrien também suspeitava de sabotagem e
este acidente com facilidade. Ninguém ousa deu-me carta branca para agir. Cedeu-me
falar, é claro. Mas todos têm acompanhado mais um fotógrafo para acompanhar Alberto.
de perto, e razoavelmente bem informados, Quando o Número 6 ficou pronto (SD e os
as experiências e os progressos de Alberto. mecânicos tirando o Número 6 do hangar)
Acidentes com mau tempo, ventos fortes ou, combinamos fazer algumas demonstrações
até mesmo, alguns erros de cálculo, como públicas em baixa altitude, em locais
no caso do Número 1, são naturais, podem diferentes, sob pretextos diversos. A primeira
acontecer. Mas os dois acidentes do Número foi no hipódromo de Longchamps a pretexto
5, sem nenhuma causa externa aparente, de medir a velocidade em vôo. Enquanto
tornam-se, de fato, suspeitos. É conhecido o Alberto dava o máximo de velocidade no
cuidado com que Alberto Número 6, Maurice
e seus mecânicos Farman, no seu
constroem e preparam as automóvel, seguia a
suas máquinas e balões. corda guia. Medimos
Cada milímetro quadrado uma velocidade de 35
dos invólucros é revisado, km/hora, naquele dia.
um a um, antes de voar. O meu segundo
Os motores são fotógrafo ocupava-se
construídos com as em fotografar pessoas
melhores ligas e materiais que assistiam. Nesse
e testados à exaustão. dia houve pouca gente.
Além disso, o povo de Outra vez foi sobre o
Paris não esconde a sua Café Le Cascade.
simpatia e a sua torcida Alberto fez várias
pelas vitórias de Alberto. evoluções e depois
Por isso, quando o desceu em frente ao
Número 6 ficou pronto, Café e chamou a todos
Alberto e eu combinamos para um aperitivo.
uma estratégia para a Nesse dia houve muitos
próxima prova. O Número 6. curiosos. Ao retornar

58
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

para St. Cloud, a que sempre


corda guia agarrou- acompanhava essas
se numa árvore e provas. Aquele dia
Alberto teve de soltar amanheceu com
gás para desgarrá-la. mau tempo e
Isso impediu-o de somente cinco
subir e teve de voar membros da
bem baixo. Então, o Comissão Julgadora
povo que assistia compareceram à
pegou a corda guia convocação de
e puxou o Número 6, Alberto. (Legenda:
numa folia coletiva, até seu hangar em St. Campo de St. Cloud, Aero Clube de Paris, 19
Cloud. Esse episódio demonstra bem a de outubro de 1901) Os Srs Deutsch de La
popularidade de Alberto em Paris. Meurthe, de Dion, de Fonvielle, Besaçon e
Aimé. Os demais não acreditaram que haveria
PRADO prova e não foram. Mesmo preocupado com
- Bem, e então? as condições atmosféricas, Alberto decidiu
levantar vôo...
GEORGES (continuando em off)
- Comparamos as fotografias e descobrimos SD
dois senhores desconhecidos presentes em - “Lachez tout!”
todas elas, inclusive na procissão que puxou
o Número 6 até o hangar. Não eram franceses, GEORGES (no seu telefone)
via-se, e Adrien pediu a seus amigos na - Largou. Está subindo bem alto e parte em
polícia para investigá-los. Até hoje não direção ao seu alvo. São 14 horas e 44
obtivemos resposta. Mas, para o dia da prova, minutos.
toda a equipe do "Le Temps" estava sabendo
que, se os vissem, deveriam avisar A multidão no Champ des Mars, ouvindo isso
imediatamente, dando a sua localização. pelas cornetas alto-falantes, aplaude. No Aero
Consegui, com a ajuda de Adrien, a colocação Clube, idem.
de dois repórteres e fotógrafos, em posições
intermediárias entre St. Cloud e a Torre Eiffel, GEORGES (continuando ao telefone)
uma nos Bois de Boulogne e outra no Sena, - Dessa vez o Sr Santos preferiu um vôo em
ambos ligados à Elise, no alto da Torre Eiffel, maior altitude. E lá se vai, bem alto.
à mim, no Aero Clube e a Adrien, no jornal,
por uma linha telefônica exclusiva. No Aero O PRIMEIRO REPÓRTER (ao telefone, no
Clube e no Champ des Mars montamos Bois de Boulogne, frente a uma grande vara
sistemas de cornetas alto-falantes para que fincada no chão)
nossas vozes fossem ouvidas pelo - Já aproxima-se da minha marca, deve cortá-
grande público, la a qualquer momento...sim, passou-a, são
14 horas e 47 minutos, portanto, 3 minutos
decorridos, e o dirigível segue à toda numa
perfeita linha reta, muito alta.

Tomadas do dirigível em vôo, do Aero Clube


e do Champs de Mars.

O SEGUNDO REPÓRTER (ao telefone, numa


ponte sobre o Sena, com uma vara presa ao
..."Está subindo bem alto e parte em direção ao seu alvo"... chão para marcar a posição)

59
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

... agora aproxima-se da minha marca. Vai balão com vigor contra o vento. O Senhor
passá-la em breve. São 5 minutos da largada, Santos vai lentamente agora de volta para St
lá vem ele, o Número 6 do Sr Santos... Cloud, buscar o seu prêmio. Como estão os
atenção... quase chegando... vai passar... cronômetros oficiais, Georges? No meu
passou!, a 6 minutos de vôo e permanece relógio já se passaram 12 minutos, mas não
firme e veloz em direção à Torre Eiffel. Agora tenho ponteiros de segundos como nos
é com Você, Elise. cronômetros...

ELISE GEORGES (em off, para Prado)


- Já o vejo daqui, vindo bem de frente e bem - Percebi, pela primeira vez, a necessidade
alto em minha direção. Vejo o dirigível de ponteiros de segundos em relógios. O
aumentando de tamanho a cada instante... mesmo aconteceu com todos, pois
Parece que vai contornar a Torre pelo topo, aglomeravam-se em volta da Comissão
bem cá em cima... sim, está chegando aqui... Julgadora, sempre perguntando pelos
segundos. Pressentíamos que a prova seria
Cortes para o povo, para as cornetas alto- decidida nos segundos e não nos minutos.
falantes, etc. Creio que nem Alberto contava com isso,
pois o relógio que inventou também não
ELISE possui esse ponteiro. Ao apelo de Elise, fiz
... Sim, Georges, são 8 minutos decorridos e sinal para o fotógrafo e pedi-lhe que
ele cruza a Torre Eiffel e começa a chamasse o Maurice Farman ou o Pedro
contorná-la, numa rota em círculo, Guimarães, que tinham Patecs-
perfeita. Os comandos parecem cronômetros iguais aos da Comissão, e
obedecer-lhe bem, vejo-o na sua ajustados com os dela. Maurice atendeu-
barquilha... ele acena para o povo, me, e chegou para perto, quando olhei,
lá em baixo... pela primeira vez, o tempo
com os segundos:
Cenas do povo aplaudindo. tinham-se
passado 15
ELISE (continuando) minutos e 43
... ele começa a apontar para o rumo segundos.
de retorno, são 9 minutos aqui, bem Havia um silêncio geral.
marcados.
Cenas de expectativa em todos os
A cena da foto do início do roteiro. lugares. Silêncio total, até nas
cornetas. Alguém do povo grita.
O POVO (jogando para o alto
chapéus e bengalas) ALGUÉM DO POVO (aflito, para
- Viva “le petit Santos”! Viva “le a corneta alto-falante mais
petit Santos”! próxima)
- Como é, não vai dizer o
ELISE (continuando) tempo?!...
... a velocidade reduziu-
se muito, o vento, à GEORGES (retomando a
sua proa, quase o locução por telefone)
parou no ar. Mas - Elise, conseguimos a
o motor parece presença do Sr
muito bom, seu Maurice Farman, que
ruído está firme traz um Patec-
e ele empurra o cronômetro ajustado

60
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

com o da Comissão. São... algumas senhoritas dão gritinhos de alarme)


- Já o estamos vendo bem perto... se nada
O SEGUNDO REPÓRTER (interrompendo) acontecer pode chegar a tempo... mas... o
- Ele já vai passar agora a minha marca de que é isso?... parece uma falha do motor?...
retorno. Ele começa a inclinar a proa para sim, parece-me que o motor está falhando...
um vôo em descida, provavelmente para (pessoas roem as unhas) - não, recuperou!
ganhar tempo... vai passar agora... passou... recuperou!... ouço muito bem o ruído do
motor vindo direto em nossa direção...
Corte para SD, na barquilha, olhando o temos... 28 minutos e 40 segundos, senhoras
relógio. Parece tenso. e senhores,... 28 e 50... 29... cravados, falta
apenas um minuto..., está perto, muito perto,
GEORGES aqui vem ele... 29 e 15... está quase na linha
- São 19 minutos e 39 segundos... de chegada, senhoras e senhores,... 29 e 22...
vai passar... vai passar a tempo... 29 e 28...
O SEGUNDO REPÓRTER vai, ... passou!,
- Com a descida ele consegue mais ele passou!... ele ganhou! ... ele ganhou o
velocidade... mas o vento contrário continua Prêmio Deutsch, senhoras e senhores!...
forte e ele já está sobre o Bois de Boulogne...
Pulos de alegria em todos os cantos, chapéus
O PRIMEIRO REPÓRTER voam para todos os lados.
- Sim, está vindo para a minha marca. Está
descendo muito, e em breve estará aqui. Está GEORGES (continuando a eufórica locução)
atento ao tempo, Georges? - O Senhor Alberto Santos-Dumont é o
vencedor do Prêmio Deutsch, nessa tarde que
GEORGES vai entrar para a história da Humanidade,
- Sim, no momento em que ele passar a sua senhoras e senhores, os seus mecânicos já
marca, Você diz e eu dou o tempo... puxam a corda. O Número 6 está
estacionado, cercado pela multidão...
O PRIMEIRO REPÓRTER
- Está quase chegando, está bem baixo agora. Corte para SD, dentro da barquilha, com uma
O senhor Santos manobra o seu dirigível e multidão em sua volta.
altera a posição da proa, perto de
Longchamps... ele dá uma violenta guinada SD
e ganha mais altura...espero que não esteja - Ganhei?
com algum problema...
O povo aplaudindo e entusiasmado retira-o
Tensão geral em todos os rostos, inclusive de dentro da barquilha e o carrega nos
de SD, vendo já o seu hangar em St Cloud e ombros, em comemoração pela vitória.
uma multidão perto dele.
GEORGES (continuando a narração eufórica)
O PRIMEIRO REPÓRTER ... é o primeiro homem deste planeta a
... atenção... vai passar.... passou!... conduzir pelos ares uma máquina, senhoras
e senhores, com um percurso e tempo
GEORGES (já aflito) predeterminados, de ida e volta. Elise, aqui
- 23 minutos e doze segundos. Agora está é uma grande festa, uma grande
bem perto de St. Cloud. Está fazendo uma comemoração... o povo carrega o Senhor
perigosa manobra de recuperação de altura, Santos nos ombros numa grande
consertando a proa do seu dirigível (SD passa demonstração de carinho. E aí, no Campo
raspando num prédio do Bois de Boulogne, de Marte?
dando um susto aos que o viam de St. Cloud,

61
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ELISE popular...
- Aqui outra festa, Georges. Nunca tantos
chapéus voaram ao mesmo tempo em Paris. GEORGES
Todos se abraçam numa grande alegria - Mas, por quê? O que houve?... Para onde
coletiva, felizes com a vitória de seu herói, o foram?
nosso “petit Santos”! Uma vitória difícil, mas
digna dos grandes homens! PEDRO
- Ouvi uma conversa de novas regras que
GEORGES não foram cumpridas na prova, Alberto. Acho
- Todos estamos muito emocionados, Elise, que foi isso que ouvi. Sabe alguma coisa
e toda a Paris estará em festa por este sobre mudanças de regras?
importante acontecimento. Nós, do "Le
Temps", prometemos para a edição de SD
amanhã um trabalho completo de - Mudanças de regras? Não, não deve ser isso.
reportagem dessa emocionante corrida do No caso de mudança de regras eu teria de
homem e a máquina contra o tempo e os ser avisado. Afinal sou o único competidor
cronômetros. Vamos encerrar aqui. Boa tarde desse prêmio?!
para todos e para Você Elise, e os repórteres
que nos acompanharam a cada minuto, digo, GEORGES
a cada segundo. Desligo. - Disseram para onde foram? Precisamos ir
até eles. Quero saber o que aconteceu.
Georges desliga e vai em direção a SD, no
meio do povo, para abraçá-lo. Abraçam-se. MAURICE
- Não nos disseram. Havia uma bela discussão
GEORGES (quase chorando) entre Deutsch e Fonvielle. Foi o Besaçon que
- Uma grande vitória! Parabéns! Grande nos passou o recado enquanto empurrava o
vitória! Aimé e o De Dion para dentro da landau.
Deutsch e Fonvielle foram no automóvel,
Porém, por cima do ombro de SD, ele vê discutindo aos berros, quase a trocar
duas landaux e um automóvel saindo de St. bengaladas. Parecia uma fuga. Apesar de que
Cloud com os membros da Comissão. o Deutsch e o Aimé mais me pareciam estar
sendo sequestrados... O que se passa,
GEORGES (surpreso, e mostrando a SD) afinal?...
- Ora, onde estarão indo? Preciso entrevistá-
los... A cena retorna para a oficina de SD.

Maurice Farman e Pedro Guimarães GEORGES (para Prado)


aproximam-se. Pedro cochicha algo no ... o fato é que, naquele dia, todos os
ouvido SD e Maurice no ouvido de Georges. membros da Comissão, inclusive os que não
Ambos pedem licença aos circunstantes e estiveram em St. Cloud, não foram
saem em direção ao hangar, onde o Número encontrados em parte alguma de Paris. Hoje
6 já está sendo guardado pelos mecânicos temos informações não confirmadas de que
de SD. Escolhem um local sem ninguém por o “esconderijo” foi em Neully, na casa de
perto e Maurice começa a falar. campo do general André. Mas ele não estava
lá. Quem estava era o Coronel Renard.
MAURICE
- A Comissão não quis homologar de PRADO
imediato a conquista do Prêmio. Por isso - Na casa do general André? Deus meu, a
saíram e pediram a mim e ao Pedro para coisa foi mesmo complicada... Alberto, acho
avisá-los discretamente, pois temem a reação que Você estava certo naquela estória de

62
PARTE 1 SANTOS DUMONT/O FILME

desafiar a França em armas. (SD nada comunicado das novas regras. Ao que ele
responde do divã) - Mas, conte-nos, Georges, respondeu simplesmente - e nunca foi tão
e então? Alberto como naquela resposta: - Não!

GEORGES PRADO (um tanto arrependido)


- Bem, o Figaro, vespertino, atrasou, mas saiu, - E eu não estava aqui. Poderia ter ajudado
no mesmo dia, com a notícia da vitória. E Alberto...
fazia a ressalva de que nenhum dos membros
da Comissão fora encontrado para homologá- GEORGES (em off sobre imagens de cenas e
la. Em matéria curta, o jornal especulou que jornais que ilustram o texto))
o motivo devia ser a redação da ata da - O anoitecer do dia 20 foi terrível para os
reunião, “pois não houve qualquer dúvida, membros da Comissão e para o Aero Clube.
para todos os que acompanharam a prova, Telegramas e telefonemas de protestos
da vitória do Senhor Santos-Dumont”. O fato choviam sobre eles e os jornais de Paris.
é que a população de Paris foi dormir, no Edson, Marconi, Langley e vários cientistas
dia 19, com a certeza da vitória. Mas acordou reputados enviavam congratulações a
no dia 20 com o "Le Temps" - com o dobro Alberto, com cópias para os jornais e o Aero
da tiragem normal esgotada em menos de Clube. Os mendigos de Paris anunciaram,
uma hora, e, como os demais jornais - com o apoio de alguns sindicatos, que iam
noticiando apenas a indecisão da Comissão. apedrejar a sede do Automóvel Clube. Uma
Só o L’Illustration deu a fuga da Comissão e telefonação desenfreada sucedeu-se entre
os fatos tais como ocorreram. O mau humor editores, membros da Comissão e
tomou conta de Paris, como eu nunca havia autoridades. Uma confusão! O jeito foi
visto antes. Chegamos a pensar que a vitória protelar a decisão. E começaram a chegar as
não seria homologada. Forças poderosas repercussões do exterior. As piores possíveis!
estavam envolvidas para impedi-la. À tarde, Os grandes jornais moderaram, mas os
porém, volta o Figaro com a declaração de menores bateram sem perdão, e até
Alberto, aliás, genial, e na hora certa, da conseguiram grande repercussão, pois todos
distribuição do Prêmio para seus mecânicos queriam ler o que publicavam. Ao ponto de
e os pobres de Paris. E com o testemunho um editorial do boletim de um Clube de
de Chapin, que é gaulês ancestral e de Xadrez da Espanha, assinado por um grande
reputação ilibadíssima, de que o trato havia enxadrista russo, ser reproduzido no Times
sido feito com muita antecedência. de Londres, que não resistiu à tentação de
ver as pauladas do mestre no amor próprio
PRADO dos franceses, publicadas em suas páginas.
- Essa é boa! O enxadrista alegava que os desclassificados
dessa competição eram a Comissão e a
GEORGES própria França, que perdia a credibilidade
- O Figaro também publicou as desconexas para liderar o mundo na era do progresso. E
declarações da Comissão. Bonaparte falou arrematava com um cheque mate: regras não
em levar aos tribunais essa infâmia, se o podem ser mudadas após o início do jogo; e
Prêmio não fosse concedido imediatamente. esse jogo começou no dia em que foi inscrita
Mas os outros só falavam nas tais novas regras a primeira aeronave para disputá-lo. Esse
que não foram obedecidas. O dirigível teria editorial saiu no Times do dia 25 e, para
de estar estacionado antes dos 30 minutos e humilhação da xenofobia francesa, foi
não apenas cruzar a linha de chegada. Então, reproduzido no L’Illustration.
para que aquela linha? Deutsch estava mudo.
Realmente a coisa estava preta. A salvação PRADO (in)
foi a declaração de Alberto que o Petit Journal - Barbaridade!
publicou quando perguntado se havia sido

63
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

GEORGES (em off, sobre as imagens da GEORGES


Comissão) - Só penso agora como sair daqui sem ele?
- Finalmente as coisas começaram a
modificar-se. Os membros da Comissão, PRADO
favoráveis à concessão do Prêmio, - Eis aí uma boa pergunta. Como sair daqui?
começaram a sair do limbo. No dia 27 o "Le Vamos ver (chegou perto da porta e começou
Temps" publicou um declaração enfática de a apalpá-la tentando achar algum mecanismo
Deutsch: de abri-la. Nada. Deu-lha então, como quem
não quer nada, duas pequenas batidas. Ela
DEUTSCH (em in, cercado de jornalistas no abriu-se e surgiu August)
restaurante do Automóvel Clube)
- “Digam o que disserem, não há dois AUGUST
dirigíveis voando no mundo, senão apenas - Ah, senhores. Eu aguardava aqui esperando
um; e é preciso vir até Paris para vê-lo”. para abri-la às dez, como determina o patrão,
caso não me chame. Às vezes ele dorme no
GEORGES (continuando, in) divã e eu preciso vir acordá-lo. Ele dormiu?
- Para mim essa declaração é duplamente
feliz; pois sai do xeque do enxadrista: PRADO
restaura a França e a vitória de Alberto ao - Sim, August, mas depois Você cuida dele.
mesmo tempo, tornando-as indissociáveis. Leve-nos até a porta para que possamos
Amanhã, não tenho dúvidas, Alberto será providenciar uma condução...
consagrado vencedor.
AUGUST
PRADO - Eu já providenciei, senhor. Consegui apenas
- Ufa! Estou perplexo, Georges. Pobre uma cupê para os dois, se não se importam.
Alberto, sem um patrício para apoiá-lo no Nessa hora não é fácil consegui-las. Está
meio dessa intriga! Bem falou a Princesa esperando na porta. Desejam sair agora ou
Izabel. Se isso não o comprometesse, aceitam um lanche? Está servido na mesa...
Georges, o estado brasileiro estaria a lhe
dever um agradecimento formal. Mas poderia PRADO
prejudicá-lo; o chauvinismo na França é - Para mim já está tarde, August. E Você,
muito forte. (e, tirando o relógio) - Puxa, Georges?
quase dez horas! É hora de sairmos. E estou
à pé, vim com Alberto... GEORGES
- Obrigado, August, mas prefiro aproveitar a
GEORGES carona do senhor Prado. Tenho também de
- Eu também. E a essa hora começa a ficar ir agora. Muito obrigado. (e saem
difícil uma condução. Acho melhor irmos conversando pelo corredor)
logo. Alberto... Alberto!... Ora, Alberto
dormiu... FIM DA PRIMEIRA PARTE

SD dormia placidamente no divã.

PRADO
- Melhor o deixarmos como está. Vê-se que
está cansado. Esses dias devem ter sido
difíceis para ele. Vamos?

Georges arrumando seus papéis, concordou

64
PARTE 2

A VINGANÇA DE ÍCARO
PARTE 2 E apareceu Santos-
Dumont

SEQUÊNCIA 37 (Brasil, 1903) (estribilho)


Salve, Brasil
À bordo do Atlantique, SD e Prado observam Terra adorada
a entrada da Baía da Guanabara. (legenda: A mais falada
Rio de Janeiro, 7 de setembro de 1903) Os Do mundo inteiro!
contornos das belas montanhas, com o Pão-
de-Açúcar (ainda sem o bondinho) em Guarda teus filhos
primeiro plano, e o Corcovado (ainda sem o Lá nessa altura
Cristo) por trás, vendo-se ao fundo a Pedra Mostra a bravura
da Gávea e os Dois Irmãos enchem de alegria De um brasileiro
e de lágrimas o rosto do inventor. Prado
porém estava triste e taciturno. Assinalou p’ra sempre o Século Vinte
O herói que assombrou o mundo inteiro;
SD Mais alto do que as nuvens, quase Deus,
- O que há com Você, Pradô. Até parece que É Santos-Dumont, um brasileiro.
está enjoado da velha pátria... (repete estribilho)

PRADO Sob a música uma sequência de imagens:


- Não é isso, Alberto. Pressinto que essa será SD descendo do navio em meio à multidão
a nossa última viagem juntos de Paris para de autoridades. Discursos empolados. Desfile
cá. Já começo a ficar saudoso da nossa na landau do Presidente da República, ao
convivência em Paris. Rodrigues Alves quer lado de Prado e do Prefeito, pela Rua do
mudar tudo e devo ir para Washington. Ouvidor lotada, em festa, com serpentinas,
Nabuco deverá assumir Paris... carros alegóricos, batuques de negros, etc.
Discursos exaltados. Encontro com o
Ouve-se o ribombar de morteiros de cima Presidente da República no Palácio do Catete.
do Pão-de-Açúcar, justamente quando Almoço-banquete no Clube dos
passavam perto dele. Uma enorme bandeira Democráticos para 500 talheres. Discursos
do Brasil é desfraldada e uma tela ainda maior alucinados. Festa na Federação dos
surge abaixo dela com os dizeres: “SALVE Estudantes do Brasil, com milhares de moços
SANTOS-DUMONT”. Lá de cima, um grupo e donzelas. Outra festa, mais grã-fina, na
de alunos da Escola Militar acenava para o residência do Prefeito. Mais discursos. Dois
navio. Começa a chover leve. O navio inicia homens de fraque e cartola conversam.
as manobras de atracação, comboiado por
dezenas de embarcações de todos os tipos O PRIMEIRO HOMEM
com diversas faixas hasteadas homenageando - Mas ele não trouxe mesmo o seu
o inventor. dirigível?

Ouve-se, na trilha sonora, a modinha de O SEGUNDO HOMEM


Eduardo das Neves, composta para o - Claro que não. É um
inventor, com letra e tudo: snob. Só voa na
Europa;
A Europa curvou-se ante o Brasil
E clamou parabéns em meigo tom
Brilhou lá no céu mais uma estrela
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

já no Brasil... do meu país está aí fora desejando prestar-


me uma homenagem? Se assim é, eu peço-
Jornalistas cercam SD lhe que faça-os entrar; faço questão de
recebê-los...
UM REPÓRTER
- É verdade que o Senhor não trouxe o seu RODRIGUES (tentando convencê-lo)
balão dirigível? - Desculpe, Sr. Santos-Dumont, mas imaginei
que estivessem cansados depois de tantas
SD festas e homenagens, por isso...
- Como já disse em várias oportunidades,
precisávamos ter uma usina de hidrogênio, SD (interrompendo-o)
um hangar bem equipado, um grupo de - Sim, meu amigo, estou exausto, arrasado,
mecânicos com excelente formação técnica mas dos discursos intermináveis, dos fraques
e um Aero Clube em local apropriado. e cartolas, das sobrecasacas e dos chapéus
Pessoalmente, o que eu mais desejaria em de coco nesse calor infernal. E de jornalistas
minha vida, seria poder realizar minhas impacientes e um sem número de
experiências aqui, junto aos meus autoridades que passaram o dia a amarrotar-
compatriotas. me e a apertar-me pelo Rio afora. Agora, o
Sr me diz que tem aqui um grupo de
OUTRO REPÓRTER seresteiros, gente boa de viola debaixo do
- Mas temos informações de que os seus braço. O que eu mais queria, desde que
balões dirigíveis são tão pequenos que cheguei, é poder abraçá-los, amarrotar-nos
chegam a caber numa maleta de viagem... juntos e sentir o calor do verdadeiro afeto e
carinho da nossa gente. Mais uma vez eu
SD peço-lhe, Dr. Rodrigues, desejo recebê-los!
- Isso é apenas uma brincadeira... E sirva-lhes do bom e do melhor. Não se
preocupe com as despesas. Essas eu faço
À noite Teatro Lírico. O Fausto. Toda a questão...
sociedade carioca presente. Discursos loucos.
Discursos sóbrios. No intervalo da peça, RODRIGUES (interrompendo-o polidamente)
discursos. Enfim, exaustos, SD e Prado - De modo algum, Sr Santos-Dumont, em
chegam à casa do Dr. José Carlos Rodrigues, minha casa recebo eu, se me permite.
que os anfitrionava. Ao entrar, numa Mandarei providenciar imediatamente uma
carruagem fechada, passam por um tumulto recepção com tudo o que pode haver de
do lado de fora. Um criado cochicha algo a melhor em nossa modesta residência.
Rodrigues. Concordo com o Senhor; o povo é que traz
a verdade dentro do peito. Permita-me
SD recebê-los junto aos senhores; e não se fala
- O que é isso? mais em contas, ou ficarei ofendido. (e, para
o mordomo) - José, manda entrar todo
RODRIGUES (descendo da carruagem no mundo. Receberemos no salão de festas. (e,
pátio da mansão) para o criado) - Alemão, providencie as
- É um grupo de seresta querendo fazer uma bebidas na adega e peça a Josefina e a
serenata em sua homenagem. Mas já está Gremilda para preparar os canapés e os
muito tarde. Os senhores estão exaustos, salgadinhos. Vamos, todos na função!
precisam repousar. Estou mandando
despachá-los. Os criados saem a cumprir as ordens.

SD (acompanhando-o) SD, Prado e Rodrigues à porta do salão de


- Dr. Rodrigues, o Sr está dizendo que o povo festas imenso, cumprimentam um a um do

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

povaréu que vai entrando, com o seu pedaços, ninguém sabe o que falar. SD, com
acanhamento desconfiado e os seus uma energia fantástica, parece que está
instrumentos nas mãos. Eduardo das Neves, começando o dia, e, animado, quebra o gelo.
elegantérrimo, é o primeiro a entrar, Pega uma tacinha e serve ele mesmo uma
cumprimenta Rodrigues e Prado e abraça cachaça e propõe um brinde ao Brasil. Todos
forte SD, como se fosse um irmão. Em exultam e relaxam; alguém pede música, mas
seguida encarrega-se das apresentações. SD pede a palavra; - agora é a minha vez!

EDUARDO DAS NEVES SD


- Este é o Ventura Careca, da lira; - Desejo expressar a minha gratidão pelo
- Este é o Sátiro Bilhar, do violão baixo; carinho que as senhoras e senhores me
- O Quincas Laranjeiras e o Chico Borges, proporcionam aqui. Digo-lhes, sinceramente,
violões; agora sim, estou no meu país, muito
- O Mário Álvares, o Galdino, o João Ripper obrigado! (aplausos veementes)
e o José Cavaquinho, dos cavaquinhos;
- O Irineu de Almeida e o Alfredo Leite, o Forma-se a roda; começa a música:
conhecido Timbó, dos oficlides;
- O Passos, do Corpo de Bombeiros, o “A Europa curvou-se ante o Brasil... etc”. A
Geraldo, dos Correios e Felisberto Marques, câmera passeia de grua por cima da festa
flautas; animada com o povo cantando feliz e SD
- O Lins de Souza, o maior piston do Brasil; abraçado a Eduardo das Neves e Villa-Lobos
- O Lica, o rei do bombardão; fazendo coro também.
- O Sinhô, nosso Sinhô, mestre-compositor,
trazendo a bandeira nacional;
- E o garoto Villa-Lobos, rapaz de muito SEQUÊNCIA 38 (O novo "Le Temps")
futuro, da ocarina.
Inauguração da nova sede e da nova gráfica
E vai passando a moçada, a turma dos morros do "Le Temps". Clima de festa na casa.
enchendo o salão burguês. Criados servem (Legenda: Paris, 3 de fevereiro de 1904)
bebidas em copos de cristal, salgadinhos Georges está ao lado da nova e imensa
servidos pelas mucamas, tudo sendo aceito rotativa de dois andares, uma Marinoni último
com muito acanhamento e um medo que se modelo, a primeira rotativa a papel em
péla de dar vexame. O pessoal não sabe bobina a imprimir um jornal no mundo. Ele
como comer os bocados e deixam cair conversa com um grupo de
oficiais gráficos que aguarda a

"... uma Marinoni último modelo..."

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

hora solene de acionar a máquina, logo agora! Um almofadinha! Nem cumprimenta


depois que o Prefeito de Paris arrebentar uma mais os antigos colegas de oficina, reparou?
garrafa de champagne na sua pesada Não lembra-se dele, Georges?
estrutura metálica.
GEORGES
GEORGES (para os atentos operários que o - Não é aquele foca que ficava só levando e
ouviam formando uma pequena platéia) recebendo recados do Adrien?
- Foram 14 a 9! Uma vitória total! 14 votos
para Santos-Dumont! O Prêmio Deutsch era O CHEFE DA GRÁFICA
dele e a alegria voltava a Paris! Nosso cálculo - Ele mesmo, um puxa-saco! Nem o Sr
dava 12 a 11. Não sabemos até hoje quem Hébrard simpatiza com ele. Dizem que é filho
recuou do outro lado. Foi um grande dia. À de banqueiro judeu; e que o pai pediu o
noite, ao entrarmos no Maxim’s, todos emprego, mas sem moleza para o garoto. Se
levantaram-se para aplaudi-lo... é verdade, não sabemos, mas é a explicação
que temos por não ter sido despedido. Jornais
Um funcionário do jornal muito alinhado, estão cada dia mais precisando dos bancos...
de terno de listras à la Santos-Dumont e Olha, chegaram!...
chapéu de coco chega ao grupo e interpela
Georges. A porta do mezanino abre-
se e surge Adrien à frente
O FUNCIONÁRIO (Lazare) do Prefeito de Paris
- O Sr Adrien já está vindo seguido de uma vasta
com o Prefeito. Pediu para comitiva de senhoras e
deixar tudo pronto. cartolas. Vinham com ele o
Sr Gordon Benett, o
GEORGES (para os Embaixador Henry White,
oficiais) um grupo de oficiais do
- Mas parece que já está exército liderado pelo
tudo pronto, não? Coronel Renard, alguns
conhecidos banqueiros e
O CHEFE DA GRÁFICA autoridades, todos com
- É só mandar rodar, que respectivas esposas no
disparamos na mesma rigor da moda em Paris. Na
hora! rabeira, o jovem posudo
"...SD está tremendamente elegante..." Lazare Weiller. Georges
Lazare sai. dirige-se para a beira da
escada de ferro por onde o grupo começa a
GEORGES descer. No caminho encontra SD, que entrara
- Quem é ele? pela porta da gráfica em busca de Georges.
SD está tremendamente elegante.
O CHEFE DA GRÁFICA
- É o senhor Lazare Weiller. Com a ampliação SD (caminhando ao lado de Georges)
do jornal, foi promovido a assistente de - Vim só para dar um abraço em Adrien e
redação na editoria de política. Esse já foi em Você. Tenho compromissos ao Teatro
de tudo aqui; foca, carregador-de-galés, hoje. É a estréia da bailarina Aida D’Acosta,
ajudante de tipógrafo, revisor, redator de uma lindíssima cubana. Levo comigo alguns
necrológios e tradutor de telegramas em amigos brasileiros.
inglês. Ninguém gosta dele, o homem parece
que passa uma antipatia congênita. Mas subiu GEORGES
muito em pouco tempo; olha só como está - Recebi convites para amanhã. Hoje, como

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

vê, não posso ir. há, hoje, uma só gráfica no mundo que não
possua alguns de seus equipamentos e
SD máquinas. Essa que agora verão rodar a
- Se eu gostar, é provável que repita a dose. próxima edição do "Le Temps" é sua última
Estou dando uma folga a mim e aos meus grande invenção: a primeira rotativa a
mecânicos por estes dias. Bem, cá estamos... imprimir em papel bobinado! Um
aperfeiçoamento da rotativa que o Sr
Adrien desce com cuidado a escada de ferro, Marinoni inventou há sete anos e pôs a
seguido pelo Prefeito e a comitiva, funcionar no Petit Journal. Tira mais de 50
explicando em voz alta cada detalhe da nova 000 exemplares por hora! Comprei- a na
gráfica. Ao ver SD e Georges cumprimentou- maquete, na Grande Exposição de 1900, com
os e os apresentou ao Prefeito que, ao parar um pequeno sinal em dinheiro. (e, com
para a conversa, paralisou toda a desajeitada ironia) - Ainda não sabia como iria pagar o
fila que descia por traz dele na estreita restante... (todos riem espirituosamente)
escada. Mas isso não perturbaria o Prefeito.
O PREFEITO
O PREFEITO - Ah, mas isso é típico de Adrien! Ele é o
- Não precisa apresentar-me ao Senhor único francês ousado que conheço. Por isso
Santos-Dumont, Adrien. Já o condecorei junto gosto tanto dele. É um homem que acredita
ao Primeiro-Ministro com a Ordem de em si mesmo e no futuro do seu trabalho.
Cavaleiro da Legião de Honra. Esse moço
tem levado Paris às primeiras páginas dos ADRIEN
jornais do mundo, quase diariamente. A - Costumo dizer, Sr Prefeito, que confio no
França é grande devedora dos seus serviços. meu sexto sentido. Em 97, o Sr Marinoni
Só espero, algum dia, ser um dos seus ofereceu-me sua primeira rotativa e achei que
passageiros nos ares. não era a hora. Quase arrependi-me, porque
ele vendeu-a ao Petit que cresceu tanto ao
SD ponto do seu nome tornar-se uma fantasia.
- Sou muito grato pela sua confiança, Senhor Mas em 1900, quando vi a bobina de papel
Prefeito. Tenha toda a minha frota à sua e percebi as potencialidades dessa máquina,
inteira disposição. Mas, fiquem à vontade, não vacilei; assinei o contrato... (e, para o
cavalheiros, não desejo perturbar a sua Chefe da Gráfica) - Está tudo pronto?
preleção, Sr Hébrard; antes desejaria ouvi-
la, se me permite... O CHEFE DA GRÁFICA
- Tudo pronto, Sr Hébrard.
ADRIEN
- No que muito nos honra, Sr Santos. Estava Um garçom aproxima-se trazendo uma
há pouco referindo-me a um grande inventor enorme garrafa de champagne amarrada pelo
no campo das Artes Gráficas. Falo do Sr gargalo num barbante preso, na outra ponta,
Hipólito Marinoni, que infelizmente não no topo da estrutura da máquina. Adrien
pode estar presente por motivos de saúde. passou-a ao Prefeito.
(e, continuando, enfim, a caminhar, recomeça
a falar no tom em voz alta para todos) - Como O PREFEITO (segurando a garrafa no ponto
eu dizia, senhoras e senhores, o Sr Marinoni de atirá-la em direção à máquina)
tem sido o maior responsável pelos avanços - Que essa máquina imprima os melhores
da indústria gráfica nestes últimos dez anos. jornais para os parisienses, e que sejam felizes
Desde os grandes Aldus Manutius e Claude os seus proprietários... (atira a garrafa)
Garamond, no Séc. XVI, e Bodoni, no Séc.
XVIII, que não temos avanço tão visível nesse O Chefe aciona uma alavanca e a máquina
campo. Seus inventos são incontáveis e não roda num grande estardalhaço de rolos e

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

engrenagens. A câmera passeia, por cima, SEQUÊNCIA 39 (A “nova” imprensa)


nos detalhes da máquina em movimento. A
comitiva segue Adrien e o Prefeito até a outra Fim de festa. Os últimos convidados
ponta da máquina, onde já começam a despedem-se. Alguns permanecem
chegar os primeiros exemplares prontos; bebericando. Funcionários encerram suas
impressos, cortados e dobrados. Adrien tarefas. Adrien chama Georges, que estava
abaixa-se, pega um deles e exibe a sua conversando com Lazare. Eles despedem-se
primeira página a todos, que estampa, em e Georges segue Adrien.
grande formato, a foto do Prefeito cortando
a faixa do novo prédio do "Le Temps", há ADRIEN
poucos minutos atrás. Todos exclamam - Vamos à sua sala. Lá é mais difícil nos
admirados, procurando-se também na acharem. (encontram Louise, a sua nova
fotografia. secretária) - Louise, cuide de tudo; já fui
embora, entendeu? (pegam um elevador)
O PREFEITO (olhando a fotografia com
atenção) Descem no quarto andar e vão direto à nova
- Mas... como, Adrien? Não foi aquela que sala de Georges onde lê-se “GEORGES
fizemos há pouco menos de meia hora? GOURSAT - EDITEUR DES ARTS ET DES
SCIENCES”. Georges abre-a com sua chave.
ADRIEN Entram na ampla sala, bem mobiliada, com
- Exatamente, Sr Prefeito, eis a nova imprensa. uma grande escrivaninha com máquina de
Amanhã, quando o Sr sair do Teatro e for a escrever, prancheta de desenho com
um restaurante, lá estará chegando as críticas iluminação própria, um jogo de sofás,
do "Le Temps", sobre a peça que o Sr acabou armários grandes e embutidos na parede,
de ver. tudo muito bem decorado e bem iluminado.
Sentam-se cansados nos sofás. Adrien tira do
O PREFEITO (exibindo a folha a todos) bolso um pedaço de papel e dá a Georges.
- Mas é uma maravilha, não acham? Não
tenho dúvidas, Adrien, que o seu jornal foi ADRIEN
o primeiro a chegar ao Século XX. - Chegou há cerca de dez dias. Preferi só
falar agora por causa das atribulações de
Um jornaleiro passa distribuindo exemplares inauguração.
do jornal a todos.
GEORGES (lendo o cabograma)
ADRIEN (como para encerrar um show) - Quem são estes senhores Orville e Wilbur
- Bem, senhoras e senhores, acabam de Wright? E que lugar é este? Dayton, Ohio?
conhecer o coração do novo "Le Temps".
Agora, aguardamos a todos no hall principal ADRIEN
para um pequeno coquetel. Sigam-me, por - Suspeito que seja coisa do Benett. Aliás,
favor. (e sai em direção à porta que dá para não digo apenas do Benett. A ele cabe essa
o hall) parte, a publicidade.

Ao passar por Georges, cochicha em seu GEORGES


ouvido. - E quem viu esse vôo? É uma
notícia importantíssima, Adrien,
ADRIEN (no ouvido de Georges) diabos! Se for verdade...
- Quero que fique até o fim do
coquetel. Preciso falar com Você. ADRIEN (cortando)
- Não é verdade. Nem os jornais de Benett
Georges balançou a cabeça concordando. publicaram essa balela. Apenas um balão

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

de ensaio em jornalecos menores, só para máxima! Essa história me cheira a balão de


medir a repercussão, entende? Em todo o ensaio; estão em fase de testes, percebe?
caso, mandei meu agente até lá, nesse confins
do mundo. Bem onde afirmam que voaram, GEORGES
passa uma linha de bonde. E, exceto alguns - Não muito, Adrien; perto de Você sempre
pássaros que costumam arribar ali há séculos, me sinto como um principiante...
ninguém viu nada voando, muito menos uma
máquina mais pesada que o ar. ADRIEN
- Tenho conversado com alguns militares
GEORGES bem informados. A questão da aeronáutica
- Bem, então isso não tem nenhuma é assunto em todos os quartéis das grandes
importância; melhor é esquecê-los... nações. E tratado e pensado a portas
fechadas, como segredo de estado.
ADRIEN
- Aí é que eu digo não, Georges. Minhas GEORGES
informações e meu sexto sentido começam - E o que pensam os militares? O que está
a montar o quebra-cabeças. Acho que os me dizendo é que eles agora também
americanos, se não conseguem inventar a pensam, não é? De fato, o mundo está
máquina aérea, já começam a inventar outra mudando muito...
coisa. Estão inventando uma imprensa que
dispensa os fatos reais. São práticos esses ADRIEN
americanos, não duvide, e não os subestime. - O que pensam não interessa. Interessa o
O grande problema de jornalistas como nós, que decidem! São homens que vivem da
que precisam encher jornais todos os dias, guerra; com guerra ou sem guerra.
é, e Você sabe disso, a dificuldade de se obter
a nossa matéria prima principal, isto é, os GEORGES
fatos. Então eles resolvem essa dificuldade - Ótimo; então reformulemos: o que estão a
criando uma imprensa que não precisa deles; decidir de tão grave?
simplesmente inventa-os! Ou criam lendas.
Os “fakes”, como eles dizem. Quem vai ADRIEN
conferir? - Quanto à aeronáutica, posso assegurar que
a ala de maior peso já descartou os mais
GEORGES leves que o ar. Nunca engoliram balões e
- Outros jornais; nós, sei lá; quem quiser; dirigíveis. Acham caros, morosos,
isso é loucura, Adrien! desajeitados para a guerra. É facílimo sabotá-
los e como alvo são excelentes, muito mais
ADRIEN agora que os canhões ganham maior alcance
- Pode ser; mas aí está! Quantos têm recursos e pontaria. Nisso têm razão. Nós mesmos
para mandar alguém naqueles confins, e concordamos. O problema haverá de ser
conferir uma coisa dessas? E, uma vez resolvido com o mais pesado que o ar.
conferido, de que adianta? Foi um jornaleco
que publicou; o "Le Temps" não pode ficar GEORGES
contestando um jornaleco qualquer. Seria - Mas pretendem fabricá-los apenas nos
entrar no jogo! E dar mais publicidade ao noticiários de jornalecos irresponsáveis?
blefe! Mas essa publicação pode valer como
documento amanhã... E começa a criar ao ADRIEN
menos uma lenda. Benett gosta de repetir - O que sabem é que está próxima a hora
uma expressão que diz ser dele, mas não dessa solução. E os americanos preparam-se
creio que seja: “quando a lenda supera a para abocanhar suas patentes ou contestar
realidade, imprima-se a lenda”! É uma boa outras que não as suas. Daí essa balela de

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Ohio. Para eles não interessa quem solucione pesado que o ar?
a questão. Eles a compram e dão o crédito a
quem lhes convier. E é melhor que tenham GEORGES
alguém pronto, na realidade ou na lenda, - Está em franca atividade. Tudo em sigilo. E
para recebê-lo. procura dar a entender que está fora do
páreo. Está escaldado, teme sabotagens, e
GEORGES com razão; americanos nem pintados de cor-
- Mas terão de obter a conivência do de-rosa. Acha que o Benett está envolvido
verdadeiro inventor, e nem sempre... nas sabotagens, porque em Saint Louis...

ADRIEN ADRIEN
- Para os americanos não há dúvidas de que - Não creio. Já lhe disse, a parte do Benett é
a terão. Acreditam na força do dinheiro e a publicidade. Espionagem e sabotagem é
estão comprando tudo pelo mundo afora. A assunto de estado. A Embaixada Americana
França tem sido a campeã desse leilão; está aqui não passa de um antro de espiões.
se vendendo toda para eles. Suspeito do próprio Henry White. E... como
está o nosso arquivo secreto sobre Santos-
GEORGES Dumont?
- Como assim, Adrien?!

ADRIEN SEQUÊNCIA 40 (Álbum de retratos)


- Os franceses são conservadores,
provincianos e pouco audaciosos. Querem Georges foi até um dos armários e, com sua
a segurança individual e a certeza do negócio chave, abriu as duas portas deixando à mostra
líquido e certo. Os americanos são jogadores, o conteúdo repleto de pastas, arquivos
blefadores e aventureiros; aceitam qualquer fotográficos de negativos e cópias, e um
tipo de jogo; não se preocupam com os cofre.
escrúpulos. Veja o caso do "Le Temps". Não
consegui dinheiro em banco europeu algum, GEORGES
muito menos francês, para essa ampliação. - No cofre guardo o que é confidencial,
Bastou o Benett elogiar-me para um inclusive as anotações sobre o mais pesado
banqueiro americano, que logo o dinheiro que o ar (retira duas grandes pastas de cópias
apareceu; e em condições irrecusáveis! Tive fotográficas e põe sobre a sua mesa)
de fazer o negócio. E é o que está
acontecendo em surdina pela França inteira. Georges convida Adrien para olhar os álbuns
Tem dinheiro americano até nas ampliações de fotografias. Abre um deles nas fotos de
do Moulin Rouge, Georges. dirigíveis. A câmera passeia por diversas fotos
enquanto Georges folheia o álbum
GEORGES descrevendo a Adrien o que está vendo.
- Sim, mas voltando à aeronáutica...
GEORGES
ADRIEN - Muitas lendas se criaram em Paris desde
- Ainda faço fé naquela solução de quando que Alberto começou a ter sucesso com seus
o contratei, lembra-se? dirigíveis, enriquecendo o imaginário
popular. Dizem até que, de tanto olhar para
GEORGES cima, os parisienses começaram a enxergar
- Claro; é nela que continuo a trabalhar. coisas do outro mundo. Houve quem jurasse
ter visto um corcunda no alto de uma das
ADRIEN Torres da Catedral de Notre Dame!? (pára
- E o que ele tem feito em relação ao mais numa página)- Ah, aqui é o Número 6. Ele

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

foi copiado por vários aeronautas


americanos, ingleses e franceses. Na
Alemanha, o Conde Ferdinand Von Zeppelin
construiu um exemplar monumental. Mas o
original quase encerrou seus dias em Mônaco
(fotos de Mônaco)

A foto do hangar de Mônaco ganha vida a


cores enquanto Georges narra em off.

GEORGES (em off)


- No início de 1902, a convite do príncipe de
Mônaco, ele foi para Monte Carlo. O governo
de Mônaco providenciou-lhe tudo, conforme
suas instruções, e Alberto construiu lá um
hangar bem equipado para o seu Número 6.

Duas crianças, netos do príncipe, de 8 e 10


anos, sob os aplausos da nobre e engalanada
platéia, abrem sozinhas os grandes portões
de correr do hangar, na sua festa de
inauguração (Legenda: Monte Carlo, 19 de
janeiro de 1902)
"... o Nº 6 original quase encerrou seus dias em Mônaco..."
GEORGES (ainda em off)
- Lá ele fez vários vôos de exibição para o álbum a Adrien.
êxtase dos senhores Eiffel, Rochefort,
Eugênio Higgins e, como não poderia deixar GEORGES (in)
de ser, Sr James Gordon Benett. Em 14 de - Aqui é o Número 7, projetado para disputar
fevereiro deu-se um acidente, também corridas. Com ele foi para a América disputar
inexplicável, mas sem maiores o Prêmio de Saint Louis. Um dia antes da
conseqüências, pois Alberto parece gozar de corrida teve o seu dirigível sabotado ainda
alguma proteção do demônio. Decidiu então nas caixas de transporte. (cena da mão de
retornar a Paris. um homem, com um afiado estilete, a
dilacerar a seda do invólucro, ainda na caixa
A cena volta para Georges mostrando o de transporte, após arrombá-la, num depósito

"...o Nº 7, projetado para disputar corridas, sabotado ainda nas caixas de transporte."

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

portuário escuro) - Tudo bem debaixo das graciosamente sobre as tropas e praticamente
vistas da equipe de Benett que tinha estaciona diante do palanque das
exclusividade na cobertura do evento, era o autoridades, nuns 30 metros de altura. Traz,
seu mentor e patrocinador. Aqui temos umas desfraldada, uma faixa com as iniciais
belas fotos do Número 6 em performances... PMNDN (Por Mares Nunca Dantes
Navegados), do verso de Camões. No silêncio
De novo as fotos ganham vida a cores e geral que se formou, SD, da barquilha do
mostram uma sequência de planos do Número 9, dispara uma salva de tiros de
Número 6: voando rasante sobre o lago do revólver, em posição de sentido, e com o
jardim dos Rothschild e assustando um chapéu seguro ao peito; causando um grande
pescador que por ali se achava; levando o susto no palanque. Feito isso, liga o motor,
garoto Clarkson Potter, de 7 anos, para acena ao povo, que o aplaude, e vai-se.
passear nos ares após pousar em meio à
garotada que jogava futebol em Bagatelle; De volta ao álbum.
assustando moçoilas em pic-nics ao chegar
silencioso, por cima, ameaçador, como se ADRIEN (sorridente)
fosse um extra- terrestre; passando em vôos - Isso deu o que falar. Houve até abertura de
rasantes sobre plantações de trigo, inquérito no Exército. Dizem que o convite
assustando os lavradores, etc... foi uma galhofa de alguns oficiais bêbados
no Le Cascade.
Volta ao álbum.
GEORGES (rindo também)
GEORGES (in) - Pensavam que a façanha seria impossível.
- Chegamos às suas últimas vedetes; o Pior para eles, cada um pegou dez dias de
Número 9, o menor dirigível do mundo, que cadeia. (continua folheando o álbum) - Essa
Paris já apelidou “La Balladeuse”, e o Número foi uma sensação em Paris. A cidade já se
10, o seu “Omnibus aéreo”. Essa foto é do acostumara ao som do motor do
Número 9, sobre a parada de Longchamps, “Balladeuse”. De repente o motor parou em
evoluindo sobre as tropas e 200 000 pleno ar, após falhar algumas vezes. Todos
espectadores. olharam para ver o que era. (de novo, a foto
ganha vida a cores)
Outra vez a foto ganha vida a cores (Legenda:
Paris, 14 de julho de 1903) O Número 9 evolui GEORGES (continuando em off)
- O dirigível estava à deriva e o seu audaz
piloto saía da segurança de sua barquilha
equilibrando-se na frágil
estrutura do
cordame, até
chegar

O SD Nº 9 - "La Balladeuse" e
algumas de suas peripécias sobre
Paris. Acima, no 14 de julho,
evoluindo sobre as tropas
francesas; e caminhando para
consertar o motor em pleno vôo a
mais de 100 metros de altura.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

O SD Nº 10, o "Omnibus Aéreo", o maior dirigível de SD. Abaixo


evoluindo sobre o campo de St. Cloud. Ao lado, levando como
passageiro e aluno o Príncipe Rolland Bonaparte.

ao motor. Isso a mais de cem


metros de altura! Suspense geral!
Ele chegou até o motor e começou
a consertá-lo em pleno ar. Enfim o
motor pegou e ele percorreu de volta o Pasquelle, por minha indicação. Nos
perigoso caminho até a barquilha. (continuou começos estava melhor, mais profundo e
folheando o álbum) - Este é o Número 10, o revelador. Mas, com as sabotagens, Alberto
seu ônibus aéreo. Nessa foto o passageiro é retirou dados e informações que preferiu
o Príncipe Bonaparte. revelar em outra oportunidade. Com ele acho
que Alberto encerra o ciclo dos balões. Nessa
Outra vez a foto ganha vida a cores. SD e sua luta acabou por aprender alguns truques,
Rolland Bonaparte levantam vôo em St Cloud Adrien, e não é mais o jovem ingênuo e
no enorme Número 10. SD ensina a idealista do início.
Bonaparte a comandar a aeronave. Este, de
cartola, fica deslumbrado com a ascensão, ADRIEN
admirando os bosques por cima e a cidade - Ainda bem, porque vamos precisar desses
à sua frente. truques!

Volta ao álbum. GEORGES


- Seu trabalho é todo feito em sigilo na sua
ADRIEN oficina secreta.
- E essa, o que é?
ADRIEN
GEORGES - Eu sei; essa oficina secreta tem dado dores
- É em Cabangu, a cidadezinha onde nasceu de cabeça nas embaixadas e no Palácio do
no interior do estado de Minas Gerais, no Governo. Todos sabem que ela existe mas
Brasil. Essa é a casa em que nasceu. (vira a não onde fica. E haja espião trabalhando,
página) - E aqui, ele com Thomas Alva Edson, Georges... sei que Você a frequenta.
nos Estados Unidos... com Langley... aqui
com Marconi... com Gustave Eiffel... GEORGES
- Sim, mas sob juramento.
Enfim Georges fecha o álbum
e mostra a Adrien um conjunto ADRIEN
de 12 rolos de filmes guardados - Diga a ele para ter cuidado.
num compartimento do Governo algum gosta de
armário, abre o cofre, e retira estrangeiros fazendo
dele um maço de papéis. experiências secretas em seu
território. E Você sabe como
GEORGES age o poder...
- Este é o livro que Alberto vai
publicar sob o título Dans L’Air. GEORGES
Será editado por Eugéne - O que eu posso assegurar,

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Adrien, como francês e patriota, é que nada gala aguardam o sinal para entrar.
lá é feito ou pensado que possa prejudicar o
estado francês, muito pelo contrário... MAURICE
- Ontem a estréia foi magnífica, Georges. Ela
está belíssima. Parece uma figura saída de
SEQUÊNCIA 41 uma pintura de Gauguin. E os ritmos são
fantásticos, bárbaros. Depois da Grande
Corte para a oficina de SD. Ele e quatro Exposição ninguém precisa sair de Paris para
mecânicos trabalham. Além dos três já conhecer o mundo. O mundo vem até Paris!
conhecidos, foi introduzido Levavasseur,
especialista e construtor de motores à PEDRO
explosão de petróleo. Estruturas enormes, do - Aida D’Acosta nos traz os ritmos calientes
tipo celular, são produzidas na marcenaria das Américas central e do sul: a rumba, o
pelo eficiente Gasteau, observado de cima, samba, o tango, a macumba. São ritmos
pelo inventor, em sua barquilha suspensa. fortes... (toca o sinal) - Eis o sinal, vamos.
Num certo momento ele joga duas cordas
que Gasteau amarra na estrutura e, ao seu GEORGES (para SD, enquanto subiam as
sinal, faz levantar a barquilha junto com a escadas)
estrutura e a transporta, suspensa no ar, até - Hoje haverá um número especial, com o Sr
a área de montagem. Em seguida, dirige a Debussy ao piano, tocando uma composição
barquilha até a cabine de testes de motores feita especialmente para ela, Alberto.
e a faz baixar bem ao lado de Levavasseur,
que está testando um novo motor, Cenas de Aida dançando no palco da Ópera
observando-o pelo visor. Os dois olham de Paris. Cortes para a platéia e os amigos
atentamente a máquina e os instrumentos de no camarote. Cenas da Dança com Debussy
medição. ao piano, tocando uma versão de “La Mer”.
Ao final, aplausos de pé.
LEVAVASSEUR
- Já temos 38 HPs. Saída do teatro, ainda no hall. Um repórter
chega alvoroçado até SD.
SD
- Preciso 50, Levavasseur. Vou redesenhá-lo. O REPÓRTER
Penso dispor os cilindros em forma de V, - Senhor Santos-Dumont! Senhor Santos-
para obter mais eficiência e rendimento. Dumont!

LEVAVASSEUR SD pára e aguarda curioso. O repórter


- Teríamos de fundir um novo bloco... aproxima-se.

SD O REPÓRTER
- Mandaremos fundi-lo. - Estávamos numa coletiva no camarim da
Srta Aida. Perguntaram o que ela mais
gostaria de fazer em Paris. Sabe o que ela
SEQUÊNCIA 42 disse?...

Corte para o hall de entrada GEORGES (chegando junto


da Ópera de Paris. a outros repórteres e
Movimento grã-fino e interrompendo o colega)
elegante. SD, Georges, - Ela desejaria voar em seus
Pedro Rodrigues, Maurice dirigíveis, Alberto. Hoje
Farman, todos em trajes de mesmo essa declaração

78
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

estará nas páginas do "Le Temps". O que tem SEQUÊNCIA 43


a comentar?
Campo de St Cloud. Uma multidão aproxima-
SD (cercado pelos repórteres) se em landaus, tilburis, cupês, coches, fiacres,
- É muito delicado da parte da Srta Aida. automóveis, triciclos, cavalos e carruagens.
Vou escrever-lhe um bilhete e se os senhores A Srta Aida D’Acosta chega acompanhada
entregassem-no eu lhes agradeceria. Me sinto de seu empresário numa landau. A multidão
honrado pela confiança da Senhorita... abre o caminho para que a landau estacione
junto ao Balladeuse, pronto para subir, com
SD tira do bolso interno do fraque um SD, em elegante traje esporte e chapéu
envelope com cartão e uma caneta de ouro. panamá. Aida desce da landau sob os flash
Apoiado nas costas de Georges redige o de pólvora dos fotógrafos e posa sorridente
bilhete e passa-o ao ao lado de SD.
primeiro repórter.
SD
Corte para o - Será uma honra para mim
camarim de Aida. e meu Balladeuse levarmos
A bailarina está a Senhorita num passeio
desfazendo a maquiagem aéreo.
frente ao espelho enquanto
a camareira penteia seus longos AIDA
cabelos. Batem à porta. A - Minha intenção, Senhor
camareira vai abri-la e os Santos-Dumont, se não o
repórteres invadem o camarim. ofendo, é a de voar sozinha
Aida retira o resto da maquiagem em seu dirigível. Eu mesma
para atendê-los. O primeiro conduzindo-o nos céus, em total
repórter entrega-lhe o bilhete. liberdade.
Aida, risonha e feliz, abre o
envelope e o lê em voz alta para os Um silêncio tomou conta da platéia.
repórteres que anotam tudo. SD não se perturba.

AIDA (lendo em voz alta o bilhete) SD


- “Senhorita Aida D’Acosta. Soube que deseja - Se é assim, o seu desejo será satisfeito. Mas
voar em meus dirigíveis. Fiquei encantado antes devo dar-lhe algumas instruções para
com a confiança da Senhorita e estou à sua comandar essa aeronave.
inteira disposição. Amanhã às 10 horas
aguardo- a no Campo de St Cloud, e se o E começa a ensinar à bailarina como pilotar
tempo ajudar, espero poder satisfazê-la. o Balladeuse, detalhe por detalhe. O
Tenha-me respeitosamente, Alberto Santos- empresário de Aida, impaciente e inquieto
Dumont.” (ela lê o nome de SD dando desde a manifestação de sua contratada,
gritinhos de alegria) interrompe-os.

Aida cheira o cartãozinho e coloca-o sobre O EMPRESÁRIO


o peito, suspirando. - Desculpe-me, Senhor Santos; mas
tenho de fazer o meu protesto
AIDA perante à minha contratada. (e, para
- Almíscar!... É de muito bom gosto Aida) - Srta Aida, creio que não
o Sr Santos-Dumont! Digam-lhe que devemos nos arriscar assim; temos muitos
estarei lá. compromissos acertados...

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

perfeita e retorna perdendo suavemente a


altura, vindo em direção à platéia extasiada.
Lentamente ele chega de volta ao ponto de
partida e já pode-se ouvir as risadinhas
satisfeitas da sua comandante. Ela joga a
corda guia.

AIDA
- Peguem! Peguem!

Os mecânicos de SD agarram a corda e


"...ascende suavemente com a sorridente bailarina"... puxam forte para segurar o dirigível. Ele pára
num solavanco perigoso, ainda no ar, mas
AIDA Aida não se desequilibra e nem se perturba.
- Charles, querido, não se preocupe. É apenas
um pequeno vôo. O Senhor Santos-Dumont AIDA
afirmou-me que é absolutamente seguro. - Devagar, devagar! Assim podem estragá-
lo...
CHARLES
- Srta Aida, o Senhor Santos é um aeronauta Enfim ele é puxado até o chão, com Aida
de ofício. A Srta há de concordar que o céu radiante dentro da barquilha, a beijar e
não é um palco... abraçar SD que é o primeiro a recebê-la sob
os aplausos efusivos da platéia.
AIDA
- Como não? É o mais belo dos palcos! Você AIDA (ao sair da barquilha)
conhece cenógrafo mais criativo do que o - Podemos convidar o Senhor Santos-Dumont
cenógrafo do céu? Quero atuar nesse palco, para jantar conosco hoje, não é Charles? O
Senhor Charles; ao menos uma vez! Por senhor aceitaria, Senhor Santos-Dumont?
enquanto é exclusivo do Senhor Santos- Logo após o espetáculo...
Dumont. (e, para SD) - Por favor, continue
suas instruções. SD
- Senhorita Aida, hoje sou eu quem a convida
SD olha para Charles como quem diz: - que em tudo. Tenho uma reserva permanente no
fazer? - e continua a dar instruções à bailarina. Maxim’s. Após o espetáculo desejo levá-la
A platéia permanece em silêncio total. para conhecer os segredos do chef Verdoux.
Finalmente a bailarina entra na barquilha com
facilidade, apesar do complicado vestido que AIDA
usava. SD dá a ordem para ligar o motor. - Oh, mas que elegante! O Maxim’s! Sim, eu
Chapin obedece. aceito, Senhor Santos-Dumont; eu aceito o
convite! Muito obrigada! (em seguida sapeca-
AIDA (graciosa) lhe um beijo quase na boca)
- “Lachez tout!”
A multidão se dispersa e SD coordena a
O Balladeuse ascende suavemente com a inspeção do Balladeuse para que fique bem
sorridente bailarina a comandá-lo, e começa guardado no hangar. Georges aproxima-se.
a voar fazendo um largo círculo sobre a
platéia, em baixa altura. Depois sobe um GEORGES
pouco e distancia-se voando por cima do - Parece que temos um novo romance famoso
Bois de Bolougne, como se fosse em direção em Paris?!...
à Torre Eiffel. Mas, ao longe, dá uma volta

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD ainda no esqueleto. SD observa-o, suspenso


- Georges, eu gostaria que pensassem que em sua barquilha, à média altura em relação
eu sou viúvo e parassem de inventar histórias ao pé-direito, e tendo, pendurado ao seu
e me perguntar tolices... lado, um modelo em miniatura do futuro 14
Bis. Dazon e Chapin terminam, na área de
GEORGES montagem, frente às portas de saída da
- Tudo bem, mas o fato é que até hoje Oficina, o Número 12, uma espécie
ninguém havia voado solo em seus dirigíveis; complicada de helicóptero de duas grandes
nem mesmo os seus mais fiéis e experientes hélices. SD vai com sua barquilha aérea até
mecânicos. E hoje Você o entrega, em eles.
público, a uma bailarina?! E ainda quer nos
condenar por estar inventando histórias? CHAPIN
- Está quase pronto, senhor. Mesmo com o
SD (mudando de tom e passando o braço giro contrário das hélices, não creio que vá
sobre os ombros do amigo) se evitar a rotação sobre o eixo central...
- Georges, já lhe disse que o segredo do vôo
está no equilíbrio. SD (pensativo,
Observei a Srta Aida em cofiando o queixo)
suas apresentações. - Ainda não dei com
Ninguém melhor que a maneira de resolver
ela conhece esse esse problema. Vou
segredo. É perfeita! Vou paralisar esse projeto.
lhe contar agora um dos Sua solução definitiva
meus segredos mais exigirá algum tempo.
íntimos: tenho aulas de
balé há quatro anos,
todas as segundas- SEQUÊNCIA 45
feiras, com a Senhorita Vestris...
Amanhece em Paris, com muita neve.
GEORGES (Legenda: Paris, dezembro de 1905) Na Rua
- A Senhorita Vestris?! Mas como consegue Washington, o Sr Louis desce do carroção e
sem que ninguém o saiba? A Senhorita Vestris abre os portões que dão para o seu pátio.
é a bailarina mais famosa de Paris!... Ao entrar, dois homens que o seguiam
penetram furtivamente, sem que ele possa
SD vê-los. Súbito, o Sr Louis trava a carroça, dá
- Mantenho com ela uma combinação secreta. duas batidas no topo da carroceria e, de
Mando buscá-la cedo numa cupê alugada. dentro dela, saem dois gendarmes que dão
Ela vem disfarçada de camareira particular e voz de prisão aos penetras.
vai para o meu quarto onde faço as aulas.
Nem August e os criados percebem a trama, O PRIMEIRO GENDARME
Georges. Acham que é apenas um prazer - Quem são os senhores? O que desejam com
pessoal, metódico e bem pago. E suas aulas o meu tio?
têm me ajudado muito nas performances de
piloto. UM DOS HOMENS
- Nada! Estamos apenas interessados na
compra desse imóvel e queríamos
SEQUÊNCIA 44 inspecioná-lo.

Oficina secreta de SD. Gasteau termina a O PRIMEIRO GENDARME


última parte de uma grande estrutura celular, - Então porque estão seguindo o tio Louis?

81
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Se desejam mesmo comprar o imóvel sabem ao que parece...


que não é ele que trata o assunto. É apenas
o caseiro. O que querem? Falem, expliquem- SD
se... - Pedi ao Maxim’s que nos trouxesse um
jantar, Georges. August já providenciou. Hoje
Um dos homens tenta sacar uma arma mas é folga de Pierre e François e não posso me
o outro Gendarme é mais rápido e mete-lhe ausentar daqui.
uma cacetada na cabeça. O homem cai, o
primeiro Gendarme imobiliza o outro, e apita GEORGES
para um carro do distrito que aproximava- - Espero que tenhamos tempo para nos falar.
se. Os homens são levados presos. O assunto é urgente.

SD
SEQUÊNCIA 46 - Podemos começar, Georges, enquanto
cuido de montar essa estrutura. Ao acabar o
Intensa atividade na Oficina secreta. Várias pessoal se vai, e jantaremos aqui mesmo (e
novas máquinas, prontas e em acabamento, olhando o relógio de pulso) - São 21:15 h.
entulham a área de montagem e mock-up. Terminaremos às 22. O assunto ainda é o
Dois diferentes desenvolvimentos de mesmo?
helicópteros (Números 11 e 12), um estudo
em escala de lancha-hidroavião, um enorme GEORGES
e comprido invólucro de balão dirigível, em - Sim, temos informações de que o Governo
plena fase de corte e costura, e estruturas Francês estuda um meio legal de inspecionar
celulares grandes, parecidas com enormes este imóvel.
papagaios.
SD
Quando Georges entra na oficina, SD está - Já sabem que é aqui? Ah, um momento,
suspenso em sua barquilha ajudando Gasteau Georges (e, para Chapin, lá embaixo) - Um
a amarrar uma das estruturas celulares para pouco mais para a esquerda, Chapin,
suspendê-la presa à barquilha, e levá-la para isso...isso. Agora, mais à frente, assim... vou
uma outra área da oficina, liberando assim a baixar, atenção, agora. (baixa a estrutura até
marcenaria de Gasteau. A operação é bem tocar o solo) - Aí está, podem prender as
sucedida, com Georges a observá-la da ferragens. (e, para Georges) - Então,
Biblioteca. Ao vê-lo SD faz um sinal para Georges?...
que falem por interfone.
GEORGES
GEORGES (no aparelho da Biblioteca) - Certeza mesmo não! Mas fortes suspeitas...
- Pensei que jantaríamos no Le Procope, mas Nosso informante relatou coisas

Uma das hélices do helicóptero Nº 12

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Após algum tempo os mecânicos estão de


saída vestindo os seus capotes. Levavasseur
e Anzani ficam esperando SD na casinhola
de testes de motores. SD sai da barquilha no
quadrado central da Oficina e dirige-se até
eles, após convidar Georges a acompanhá-
lo. Os quatro observam um motor de oito
cilindros em V, dentro da casinhola de testes,
em funcionamento aparentemente silencioso.

LEVAVASSEUR
- Aí estão os seus 50 HP, senhor. É o nosso
novo Antoinette: a 900 rotações por minuto!

SD
- Perfeito! Veja, Georges, o primeiro motor
O 1º motor V8 do mundo: que levará o homem aos ares num mais
"Aí estão os seus 50 HP, senhor." pesado que o ar. Com ele vamos ganhar os
Prêmios Archdeacon e do Aero Clube. (e,
inacreditáveis. Há mais de um ano vigiam para os mecânicos) - Senhores, estão de
este edifício!... Melhor será deixar essa parabéns. Divido com Vocês a glória de tê-
conversa para mais tarde, é delicada... lo tornado uma realidade!

SD
- Tenho pressa, Georges. Devo ganhar dois SEQUÊNCIA 47
prêmios neste ano. Mas, concordo com Você.
Por que não toma um drink? Primavera radiante em Paris. (Legenda: Paris,
maio de 1906) SD anda a pé pela Champs
GEORGES Elysées, num elegante traje de frio. Ele respira
- Vou aceitar alguma coisa; está um frio o ar puro, sorridente, satisfeito. Todos que
terrível lá fora. Mas, pelo que vejo, ainda passam cumprimentam-no cordialmente,
empenha- se nos balões dirigíveis?... sorrindo. Ele corresponde com gentileza.
Num certo momento Chapin, dirigindo a
SD Mercedes de SD, estaciona ao seu lado. Ele
- É mais do que isso, Georges. Depois não pára e obriga Chapin a acompanhá-lo
explico-lhe. Trata-se do meu Número 14. em marcha lenta.

GEORGES CHAPIN
- Número 14? Já? Pensei que... - O Senhor vai à pé, Senhor Santos?

SD
- Saltei o 13, como já fizera com o 8, lembra-
se? (e, para Gasteau) - Vamos começar a içar
a outra asa, Gasteau, dê-me os cabos.

Georges prepara uma boa taça de conhaque


e senta-se à poltrona. Pega, ao lado, um
exemplar do Dans L’Air e começa a folheá-
lo.
A Mercedes de Santos-Dumont

83
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SD SEQUÊNCIA 48
- Sim, Chapin, uma boa caminhada neste
lindo dia só poderá ser benéfica. SD chega ao "Le Temps" após a sua longa
caminhada. Não demonstra nenhum cansaço.
CHAPIN Entra no hall, pega o elevador e desce no
- Mas é grande a distância até lá, Senhor quarto andar, indo direto ao Gabinete de
Santos. “ADRIEN HÉBRARD - EDITEUR GENERALE”.
É recebido na ante-sala pela secretária.
SD
- Preciso exercitar-me, Chapin. Faz parte do LOUISE (solícita, ajudando-o a tirar o
ofício. Calculo que estarei no meu sobretudo, o chapéu e o cachecol)
compromisso exatamente na hora aprazada, - Eles o aguardam, Senhor Santos-Dumont.
isto é, se o senhor me permitir, Sr Chapin... Entre, por favor. (e abre a porta do Gabinete)

CHAPIN SD entra no Gabinete. Adrien e Georges já


- Fechou o negócio do galpão em Neully? estavam lá.

SD ADRIEN
- Sim, Chapin, está tudo certo, amanhã Você, - Senhor Santos, nos horários o Senhor se
Gasteau e Dazon já podem começar a comporta como um inglês. (e olhando o seu
arrumá-lo. François e Pierre vão com Vocês. próprio relógio de pulso) - São exatamente
10 horas! Como tem passado?
CHAPIN
- Ótimo, então posso ir preparando os SD
carretos. Avisei ao Sr Louis. Podemos fazer - Bastante bem, Sr Hébrard; Georges;
quatro ou cinco amanhã. senhores, estou à disposição!

SD ADRIEN (como sempre indo direto ao


- Certo, Chapin, vejo Vocês à tarde. assunto)
- Sr Santos, o que temos aqui é obviamente
CHAPIN sigiloso. Contamos com a sua discrição.
- Então até de tarde, Senhor Santos. (e faz Nosso informante conseguiu-nos cópias de
meia volta no Mercedes) relatórios do serviço secreto francês sobre
as suas atividades.
SD continua a caminhar, cumprimentando a
todos e chega na tumultuada travessia da SD
Place de La Concorde. Ali, o gendarme - O Governo Francês sempre honrou-me com
encarregado do trânsito o reconhece e, notáveis distinções, Sr Hébrard. Mas de todas,
gentilmente, com um sorriso escancarado, talvez seja essa a maior.
pára o trânsito para SD passar.
GEORGES
O GENDARME (tirando gentilmente o seu - Não é hora para ironias, Alberto. A coisa
quepe para SD) está ficando séria. Por isso o chamamos aqui.
- Por favor, Senhor Santos-Dumont. Ouça Adrien com atenção.

SD (também tirando o chapéu e passando SD


rápido para não atrapalhar ainda mais o - Trago-lhes uma notícia que talvez contribua
trânsito) um pouco para aliviar essa tensão. Comprei
- Obrigado, Senhor Gendarme. um galpão em Neully e amanhã transfiro
minhas últimas invenções para lá.

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PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

ADRIEN era. Está metido até o pescoço numa teia de


- Se o problema se reduzisse apenas às suas interesses e poderes sem os quais não
invenções finalizadas, Sr Santos, eu diria que sobrevive. Minha visita à sua oficina não
o senhor tem razão. Mas não são apenas seus poderia ocorrer em sigilo; teria de reportar-
inventos o objeto da espionagem. Há igual me a esses poderes sob pena de perder-lhes
interesse no que se passa e como funciona a a confiança e a sustentação. Eu preferiria
sua Oficina secreta. perguntar-lhe, Sr Santos, se não estaria
disposto a abri-la para uma vistoria reservada
SD de uma pequena comissão de autoridades.
- Porque haverá tanto interesse logo em Isso os acalmaria e daria fim às especulações.
minha oficina, Sr Hébrard?
SD
ADRIEN (folheando os relatórios) - Mas, Sr Hébrard, creio que, como um
- Confesso que após ler estes relatórios até inventor, tenho o direito de preservar o meu
eu fiquei curioso, Sr Santos. O senhor há de laboratório e os meus experimentos no sigilo
concordar que um edifício aparentemente necessário, não? E não há lei que mo proíba
abandonado, sem chaminés, sem qualquer fazê-los em minhas propriedades...
abertura de ventilação, sem que se produza
o menor ruído ou som, sem que se veja uma ADRIEN
fresta sequer de luz durante a noite, mesmo - Essa lei que protege a propriedade privada
tendo uma cúpula transparente, e sem que está por um fio, Sr Santos. Não fosse a França
nada ou ninguém entre ou saia dele hora estar vivendo nesse caos, com uma mudança
alguma do dia ou da noite, seja uma oficina de Primeiro Ministro a cada seis meses, os
capaz de criar, testar e construir máquinas militares a teriam derrubado. E já se desenha
tão sofisticadas e prodigiosas como os um quadro de sério conflito na Europa. O
inventos que o Sr tem nos exibido em Paris. “punho de ferro” alemão começa a
incomodar de fato.
SD
- Busco nos meus trabalhos a simplicidade e SD
a modéstia; porque acham que os faço às - O senhor sabe que coloquei a minha frota
escondidas? de dirigíveis à disposição do General André...

GEORGES ADRIEN (pegando de novo os relatórios)


- Alberto, Adrien está do nosso lado. Vamos - Sr Santos, no natal do ano passado dois
precisar da sua ajuda. Precisa confiar nele. homens foram presos tentando invadir um
galpão abandonado na Rua Washington. Um
SD deles foi identificado pelo meu informante
- Sr Hébrard, se não tive ainda a sua presença como um dos suspeitos que fotografamos
em minha oficina é porque, sinceramente, por ocasião das provas do Prêmio Deutsch.
não sabia do seu interesse em conhecê-la. No distrito identificaram-se como
Considere-se, desde já, meu convidado para funcionários da embaixada americana e o
quando o senhor o desejar. caso foi para esferas superiores, como
segredo de estado. Há dois anos especula-
ADRIEN se sobre a existência de sua oficina secreta,
- Obrigado, mas o seu convite veio no onde seria ela, e que meios e recursos
momento em que não poderia aceitá-lo, extraordinários dispõe. Em 1904, no dia do
apesar da curiosidade. O Sr entenderá lançamento do seu livro, o Sr os autografava
porque. Ultimamente a situação política vem na Livraria do Sr Pasquelle enquanto dois
se complicando e um editor de jornal como agentes do serviço secreto visitavam a sua
eu deixou de ser o simples jornalista que residência disfarçados de inspetores do

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Corpo de Bombeiros. ADRIEN


- Todos sabem que o seu objetivo é
SD conquistar o Prêmio do Aero Clube e a Copa
- Sim, lembro-me, August os recebeu... Archdeacon. Só que dessa vez o Sr não vai
concorrer só. Os Srs Bleriot e Voisin também
ADRIEN (em off, sobre as imagens da vistoria postulam os prêmios com suas máquinas. O
e da espionagem) próprio Sr Archdeacon também pensa em
- Vistoriaram todos os cômodos do disputá-los e testou um planador, puxado
apartamento e só encontraram um escritório por uma lancha, no Sena. Há também o Sr
de trabalho com documentos pessoais e uma Esnault-Pelterie; ... e os irmãos Wright, que
coleção das obras de Jules Verne. foram desafiados a comparecer com o seu
Encontraram também dois cofres; um grande aparelho, que até hoje só voou em
nesse escritório e um pequeno, camuflado, cabogramas e notícias de jornalecos.
no corredor. Ainda não suspeitavam da
oficina estar bem ao lado. Essa veio com a SD
prisão dos americanos. Passaram a vigiar a - Vi os testes do Sr Archdeacon, aliás,
sua residência. A freqüência de seus excelentes. Foram muito úteis para todos nós.
mecânicos era diária e lá permaneciam um
expediente inteiro. Fazendo o quê, Sr Santos? GEORGES
Foram medidas, no prédio anexo, vibrações - A idéia de Adrien é que a Comissão de
que só poderiam ser produzidas por Autoridades tivesse compromisso com a
máquinas possantes e, num tubo protegido imparcialidade e o sigilo, visitando as oficinas
por uma espécie de tampa que aparece ao empenhadas na disputa e verificando seus
lado do telhado, observou-se uma saída de progressos, com vistas a aproveitá-los ao
ar quente, pois a neve descongela à sua volta. interesse público, na paz ou na guerra. O
O mesmo acontece, de dia, com a cúpula de Governo e o Exército Francês estariam
vidro. O carroção de carga de um tal de Sr dispostos a colaborar financeiramente nos
Louis, um surdo-mudo, tem sido seguido. É experimentos.
visto descarregando em St Cloud e em Vau
Girard toda vez que o Sr apresenta um novo SD
invento. (agora, em in) - E muitos outros - Não é má idéia, Sr Hébrard. Como escrevi
detalhes. Sei que Georges sabe de tudo, mas em meu livro, a função das aeronaves se
está sob juramento. Contudo ofereço-me para mostrará de fato nas guerras. Porém, eu não
intermediar uma solução, pois a justiça as faço para esse fim. E ainda não me inscrevi
acabará por conceder mandato que o obrigue nestes prêmios e não estou certo se vou
a abrir suas portas de um modo muito disputá-los. Em julho ou agosto devo ter uma
desagradável. posição mais concreta. Começo essa semana
uma bateria de testes em Bagatelle. Portanto,
SD não vejo motivos para ser incluído agora
- Sabem que o imóvel não pertence à mim, entre as oficinas visitadas.
mas ao Banco Nationalle de la Suisse?
ADRIEN
ADRIEN (consultando novamente o relatório) - Senhor Santos, não me leve a mal; como
- Sim, aqui está. Mas isso é comum em Paris. disse Georges, estou do seu lado. Mas devo
Bancos suíços prestam-se a fazer fachada dizer-lhe que o nosso lado é o mais fraco.
para bons clientes. E tem bons advogados e Cedo ou tarde não teremos como impedi-
são fiéis aos seus clientes. Nada conseguiram. los de fazer o que desejam.

SD SD
- E o que o Sr aconselha, Sr Hébrard? - Por enquanto, Sr Hébrard, confio na posição

86
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

dos advogados do Com ele inscrevo-


Banco Nationalle. me oficialmente na
Não poderão disputa do Prêmio
forçar-nos em nada. do Aero Clube e na
Copa Archdeacon.
ADRIEN (novos aplausos)
- Como queira, Sr
Santos, está no seu UM DOS
direito; e terá o PRESENTES
nosso apoio; pelo - E porque este
menos enquanto for "Cavalheiros, este é o meu Nº 14 Bis." número, 14 Bis?
o dono desse jornal. Mas, com a sua
permissão, vou repetir uma frase que SD
Lachambre, o mecânico, certa - É porque eu o desenvolvi em
vez pronunciou: o Senhor é paralelo com o meu dirigível
um cabeçudo! Nº 14.

SEQUÊNCIA 49 (O 14 Bis) SEQUÊNCIA 50


"O 14 Bis é puxado por um burrico"
Boulevard de La Seine, (Legenda: Campo de Bagatelle,
Neully. No novo galpão Paris, julho de 1906) Uma
trabalham freneticamente híbrida estrutura, mista de
todos os homens de SD, na dirigível e aeroplano (foto),
montagem do 14 Bis. SD dá com o 14 Bis preso ao dirigível
ordens, inspeciona e orienta Número 14, chama a atenção
em todos os detalhes. Enfim, de um grande número de
à tardinha, com o sol se curiosos. SD e sua equipe
pondo, ele sai do galpão, fazem os testes no novo
ainda de portas fechadas, e modelo.
encontra-se com um grupo de O Nº 14 sobrevoando a praia de
senhores encartolados que o Deauville. Verão de 1905. Outro teste mostra o 14 Bis
aguardava. SD cumprimenta os chefes do pendurado a fios presos em galhos de árvores
Aero Clube e dá ordens para abrir as portas altas de Bagatelle. O 14 Bis é puxado por
do galpão. Ao abri-las, os mecânicos fazem um burrico que Chapin guia pelo cabresto.
surgir, solenemente, o pronto e imponente (foto) SD, dentro da “nacelle” do 14 Bis, testa
14 Bis. Aplausos. SD pede a palavra. o equilíbrio da aeronave.

SD Na oficina secreta, SD
- Cavalheiros, este é o testa, no seu “túnel de
meu Número 14 Bis. vento”, os comandos

..."uma híbrida estrutura, mista de dirigível e aeroplano"...

87
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

laterais das asas do 14 Bis. Chapin está ao Brasil. E Alberto gosta de valorizar datas e
seu lado. símbolos, por isso nos fez vir aqui.

CHAPIN O 14 Bis rola no Campo de Bagatelle à vista


- Como pretende chamá-los, senhor? de todos; começa a correr com o motor à
toda e, por uma fração de segundo, chega a
SD sair do solo. SD decide não prosseguir com
- Batizei-os de “ailerons”, Chapin, e com eles os testes.
creio ter resolvido o problema do equilíbrio
lateral do aeroplano. SD (para o Sr Archdeacon)
- Precisarei fazer modificações neste modelo,
CHAPIN Sr Diretor da Prova, em uma semana creio
- E como vai operá-los em vôo? Suas mãos que estarão prontas.
estarão ocupadas com as manetes do motor
e as alavancas de leme e profundidade... ARCHDEACON
- Pode-se sentir que o empuxo do motor é
SD suficiente para alçar o aparelho, Sr Santos.
- Tive a idéia de prender os cabos nos meus Aguardaremos os novos testes.
ombros. Desenhei uma ombreira de couro
para receber a outra ponta dos cabos. Assim, (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 13 de
apenas com um movimento de corpo, posso setembro de 1906) Nova prova. O 14 Bis sobe
acioná-los. a quase um metro de altura e fica no ar por
mais de um segundo.

SEQUÊNCIA 51 UM DOS MEMBROS DA COMISSÃO


- Não há dúvidas de que o aeroplano
Teste de vôo no Campo de Bagatelle suspendeu-se no ar pela força de sustentação
(Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 7 de de suas próprias asas.
setembro de 1906) Alguns membros da
Comissão aguardam as provas. E mais OUTRO MEMBRO DA COMISSÃO
jornalistas, curiosos, etc. - Sim, mas não o suficiente para conquistar
um dos troféus.
UM REPÓRTER (para Georges)
- Georges, porque esse vôo logo hoje? Corte para Georges conversando com SD.
Estamos com um dia cheio...
GEORGES
GEORGES - Pareceu-me que havia condições para
- Hoje é dia da realizar a prova menor. Por quê desistiu?
Independência do

"... por uma fração de segundo, chega a sair do solo..."

88
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD ARCHDEACON
- Georges, em aeronáutica a prudência - O Sr é testemunha disso, Cap. Ferber?
caminha lado a lado com o progresso. O
equilíbrio do 14 Bis não me convenceu. Dar FERBER
um passo além do que dei, seria um risco - Possuo informações seguras e de boas
excessivo e talvez fatal. Tenho de alterar o fontes.
projeto.
ARCHDEACON
GEORGES - O Sr faria a gentileza de nos informar quais
- Voisin e Bleriot disseram ao "Le Temps" são essas fontes, Cap. Ferber?
que estão em fase final de testes do modelo
que fazem em conjunto. FERBER
- Só posso dizer que são oficiais respeitáveis
SD das forças armadas daquele país, Sr
- São excelentes inventores. Por isso decidi Archdeacon, mas devo mantê-las em sigilo.
não arriscar. Se fico sem o meu aeroplano,
vão-se todas as minhas chances. Já marcaram GEORGES (intervindo)
data? - Minhas fontes posso revelar. Nosso agente
em Nova York esteve em Dayton, no sítio de
GEORGES Kitty Hawk, onde disseram ter ocorrido esses
- Ainda não, mas estão prestes a fazê-lo. vôos, e por lá não se tem notícias deles, Cap.
Ferber, nem rumores foram verificados
naquele pequeno lugarejo.
SEQUÊNCIA 52
FERBER
Reunião concorrida no AeroClube. Presentes - As experiências estão sendo feitas
os aeronautas Voisin, Maurice e Henry secretamente, Sr Georges, nem mesmo...
Farman, Bleriot, Esnault-Pelterie, Breguet,
Anzani, Jaques Fauré, Curtiss, Delagrange, MAURICE TALMEYR (intervindo)
Cockbun, o tenente Krebs, o coronel Renard, - Nem tão secretas assim, Cap. Ferber. Alguns
o capitão Ferber, Lachambre, Machuron, jornalecos americanos, sem qualquer
Chapin e SD; os membros da Comissão Paul credibilidade ou importância, parecem ter
Tissandier, René Garnier, Ernest Zens, acesso a elas; pelo menos é o que dizem nas
Surcowt e Besaçon: os dirigentes do suas páginas marrons. Mas a imprensa
Aeroclube Ernst Archdeacon, Deutsch de La respeitável dos próprios americanos não
Meurthe, Marques de Dion, Príncipe Aimé, publica uma só linha. Não acha estranho esse
Príncipe Rolland Bonaparte e o Sr Fonvielle; critério de sigilo, Cap Ferber?
e os jornalistas Georges Goursat, do "Le
Temps", François Peyrey, do Herald, Maurice ARCHDEACON
Talmeyr do L’Illustration, dois jovens - Cap. Ferber, acredita que concederemos um
repórteres do Figaro e do Petit Journal e prêmio destes para vôos dos quais só
muitos fotógrafos. As discussões pegavam conhecemos cabogramas anônimos? Nós
fogo. convidamos os Srs Wright a vir mostrar-nos
sua máquina e não recebemos resposta, Cap.
CAPITÃO FERBER Ferber!
- Senhores, insisto que estes prêmios estão
ultrapassados. Os Srs Orville e Wilbur Wright VOISIN
já bateram essas marcas nos Estados Unidos - E, falando em máquinas, eu gostaria de
da América, com o seu “Flyer”. saber que outros inventos esses senhores
deram ao conhecimento público. Ou será

89
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

que o seu “Flyer” já lhes caiu diretamente e Voisin a honra de tentar primeiro.
dos céus? Pelo que sabemos, antes do “Flyer”, BONAPARTE
eles consertavam bicicletas!... - Da nossa parte não há inconvenientes.
FERBER
- Como já disse, Sr Voisin, tudo que fazem é VOISIN
destinado à indústria e é feito secretamente. - Está aceito, Sr Bonaparte; não declinaremos
da gentileza de um cavalheiro, uma vez que
ARCHDEACON nos antecipou. (e, para SD) - Muito
- O que fazemos aqui também é destinado agradecido, Sr Santos.
ao progresso industrial...
BONAPARTE
BONAPARTE (intervindo, impaciente) - Então está decidido; a prova será realizada
- Cap. Ferber, o Sr já insultou o suficiente a em Bagatelle, às dez horas do dia 23 de
nossa inteligência e mais ainda a nossa outubro. E repetindo as regras: um prêmio
paciência. Tenho informações sobre seu de 1 500 francos, oferecido pelo Aero Clube,
interesse em vender essas abstrações ao ao primeiro aeroplano que, levantando-se
Governo Francês. Ora, Governos não por si só, fizer o percurso de 100 metros,
compram abstrações secretas! Temos de com desnivelamento máximo de 10%; e o
prosseguir em nossa reunião; se os Srs Wright outro, de 3 000 francos, oferecido pelo Sr
postulam nossos prêmios, que façam por Ernst Archdeacon, ao primeiro aeroplano
merecê-los; e nas regras estabelecidas. E dou que, por si só, voar através de um percurso
por encerrado o assunto! Passo à pauta dessa de 25 metros, com um ângulo de queda
reunião: as provas de 23 de outubro. máximo de 25%. (bate o martelo)
(aplausos e gritos de muito bem! muito bem!)

O Cap. Ferber retira-se de cara amarrada. SEQUÊNCIA 53

DEUTSCH Quase noite na véspera da prova. SD chega


- Temos até o momento duas inscrições, Sr de coche em sua residência, vindo pela Rua
Bonaparte, a dos Srs Voisin e Bleriot e a do de Berri.
Sr Santos-Dumont.
Descrição cenográfica: a quadra onde situam-
BONAPARTE se o apartamento de SD, sua oficina secreta
- Faremos um sorteio para decidir quem e o apartamento de Pedro Guimarães é uma
tentará primeiro. criação cenográfica ficcional, feita sobre a
respectiva quadra existente em Paris, como
SD mostra a planta desenhada ao lado.
- Senhores, permitam-me ceder aos Srs Bleriot
Quase chegando na Av. Champs Elysées, SD
percebe uma movimentação de repórteres à
porta de seu edifício. Antes de ser visto
manda o coche estacionar, paga o cocheiro
e salta, entrando no edifício onde mora o
seu amigo Pedro Guimarães. Traz consigo
as chaves do apartamento e ia abrir a porta,
mas decide bater. Pedro atende.

PEDRO
Espaço destinado à planta da quadra em que residia - Alberto?! Seja bem-vindo!
Santos-Dumont

90
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD Izabel. Espero que agrade.


- Como vai, Pedro? Começo a por em prática SD (sem parar, andando em direção à outra
o nosso plano. Está saindo? porta)
- Confio em Você, François. Pegou também
PEDRO a receita da ambrosia?
- Sim, por pouco não me pega aqui. Mas
pode ficar à vontade. FRANÇOIS
- Sim, Senhor. Acho que ficou boa. Aceita
SD uma prova? (pega um pouco na compoteira
- Repórteres cercam minha casa. Não gosto com uma colher e dá a SD)
deles em vésperas de provas. Ficam como
urubus na carniça. Pode ir, ficarei aqui à SD (provando a iguaria)
vontade, Pedro. - Ótima, François! Que a galinha esteja à
altura! O cheirinho está bom! Vou trocar a
PEDRO roupa e desço em 15 minutos.
- Não se preocupe. O porteiro já está avisado,
e é de confiança. Descanse tranqüilo. (e sai)
SEQUÊNCIA 55
SD pega o telefone e chama August.
Interior do luxuoso “Le Procope”, famoso
SD restaurante de Paris. Numa mesa de cabine
- August, estou aqui no Pedro. Não recebo a sentam-se Gordon Benett e Adrien Hébrard,
imprensa hoje. Dê-lhes uma desculpa em trajes de gala. Após servido o champagne,
qualquer. E diga ao François que janto às Benett pede ao garçom que aguarde ser
nove; quando ficar pronto, avise-me. chamado e não os interrompa. Cerra o
cortinado e oferece um brinde. Os dois
brindam.
SEQUÊNCIA 54
BENETT
É noite e SD atende o chamado de August. - Chamei-o aqui, Adrien, porque, além de
Levanta-se do sofá e acende o abajur. Em ser “o informadíssimo Hébrard”, agora somos
seguida sai do apartamento de Pedro pela sócios e creio que posso tirar uma dúvida
porta dos fundos que dá para um quintal. que me inferniza há cinco anos...
Dali vai até um portão que dá acesso a uma
antiga servidão em desuso, no miolo do ADRIEN
quarteirão, somente utilizada por criados para - No que puder ser útil...
queimar lixo e por jardineiros para queimar
folhas no outono, como agora acontecia. Os BENETT
braseiros ainda fumegavam produzindo uma - Vou fazer como Você, indo direto ao
bruma de fumaça branca pela qual passava assunto: (e, de sopetão) - Quem mandou o
SD, desviando-se dos braseiros, até um outro Senhor Santos-Dumont fazer aeronaves?
portão semelhante que dava para o quintal
de seu apartamento. François o esperava na ADRIEN (surpreso)
porta da cozinha. - Ao que eu saiba, ninguém... ele, por si
mesmo...
SD (ao entrar)
- Morro de fome, François, acuda-me. BENETT (interrompendo-o)
- Quanto aos primeiros balões eu até acredito
FRANÇOIS nessa historieta romântica, Adrien. Mas agora
- Estou testando a receita da Sra Princesa a coisa foi longe demais. Não tente enganar-

91
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

me; sei que Você e Georges mantêm um poderosas que conhecemos, Gordon.
arquivo secreto, guardado como uma espécie Diabos, que interesse pode haver no primeiro
de tesouro no jornal. Não sei o que contém, homem que voou numa máquina? Seja ele
e prefiro sabê-lo diretamente de Você, como africano, mulçumano ou até um inglês, como
bons cavalheiros e sócios que somos agora. aqui costumamos debochar...
Mas se quisesse teria outros meios... Confesso
que... BENETT
- Não se faça de ingênuo, Adrien. Há muito
ADRIEN (interrompendo-o) interesse em jogo. O domínio dos ares será
- Gordon, o que acabou de acontecer foi o domínio da guerra; e o primeiro a consegui-
apenas uma discreta solenidade. Os papéis lo terá o mundo a seus pés.
só serão assinados amanhã. Há tempo de
voltar atrás. Não quero começar com uma ADRIEN (irônico)
briga... - Santos-Dumont dominando o mundo?! Até
que não seria má idéia...
BENETT (com o dedo em riste)
- Desfaça o negócio, Adrien, e comece a BENETT
redigir a petição de falência do "Le Temps". - Não é hora para ironias, Adrien. Temos
Não me trate como um imbecil. Não pretendo motivos para suspeitar que Santos-Dumont
brigar; precisamos de Você na direção do tem ligações com os comunistas exilados na
jornal, e sabe disso. Suíça.

ADRIEN ADRIEN
- Não comece a falar grosso, Gordon, tenho - Isso só pode ser piada!...
ainda o Banco da Indústria...
BENETT
GORDON (irônico) - Nas últimas greves na América tivemos
- Que está sendo comprado por Rockfeller, experiências surpreendentes, e não pense
e Você também sabe disso! que aqui as coisas se passam de modo
diferente. Homens bons, honestos, pais de
ADRIEN (rendendo-se) família cordiais e servis, pessoas
- O que o interessa tanto em Santos-Dumont? absolutamente insuspeitas, revelaram-se
líderes secretos de forte influência e carisma
BENETT sobre as massas operárias. Ainda não temos
- Ainda pergunta? As nações mais poderosas, indícios dessa ligação de Santos- Dumont.
as melhores cabeças e os melhores Ela apenas surge como uma possibilidade
profissionais do planeta estão entornando que pode explicar os seus sucessos.
rios de dinheiro para conseguir o vôo
mecânico, diabos, e até agora nada! E Santos- ADRIEN (desdenhando)
Dumont ganhando todas?! Sozinho?! Cá entre - Eu não acredito em meus ouvidos! É mesmo
nós, sabemos da farsa dos Wright; foi idéia Gordon Benett do Herald que está me
minha. Mas a cúpula do poder nos Estados dizendo tamanha asneira?!...
Unidos decidiu levá-la às últimas
conseqüências, a não ser que um fato novo BENETT (sem perder a serenidade)
surja a nosso favor. E esse fato novo não é o - Um tal Lenin anda agitado na Suíça. O
seu “petit Santos”. imperador Nicolau é um imbecil, mas
representa o trono secular da Rússia, e não
ADRIEN deixa de ser um fator de união do povo. O
- Não consigo enxergar essa ameaça a não Kaiser quer destruir a unidade russa e por
ser na xenofobia das cabeças coroadas e isso vai fortalecer Lenin. Nossos analistas

92
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

prevêem a união de ambos, no caso de justamente tudo isso, e alguns pequenos


guerra na Europa, para derrubar Nicolau. A detalhes, que o tornam ainda mais suspeito.
América também vai apoiar Lenin, e já
fazemos dele uma boa imagem por lá. Mas ADRIEN
ambos não confiamos nele. Os motivos para - Interessou-me o que Você chama “pequenos
apoiá-lo é que são diversos. O Kaiser quer detalhes”.
dominar a Rússia com o seu “punho de ferro”
e crê que será mais fácil no caos de Lenin. BENETT
Nós queremos a derrubada da monarquia e, - Coisas como distribuição de dinheiro para
seja lá quem ficar no poder, terá de abrir o operários, oficinas secretas, imóveis secretos,
mercado às nossas indústrias; hoje fechado arquivos secretos e, - quem sabe - armas
pela imbecilidade do Czar. secretas? Jauré foi visto frequentando seus
hangares... Já lhe disse, muitos homens
ADRIEN (ainda desdenhando) absolutamente insuspeitos revelaram-se...
- Muito bem... o Kaiser quer dominar a Rússia
que Napoleão não dominou, e a América ADRIEN (interrompendo-o sério)
deseja comprá-la como está fazendo com a - Sr Gordon Benett, peço-lhe que
França democrática. E é o nosso “petit Santos” continuemos amanhã no jornal. Como sabe,
que paga... minha esposa não passa bem e não sou de
descuidar os deveres de esposo e chefe de
BENETT família. Para encerrar essa cantilena devo
- Pare com bobagens, Adrien. As informações dizer que chegaremos com facilidade a um
nos colocam em alerta e essas duas acordo. Estou convicto de que tudo não
possibilidades podem dar com os burros passa de paranóia generalizada, quase às
n’água. Os comunistas não são idiotas raias do delírio! Uma espécie de praga que
desprezíveis. Devem ter algum trunfo e suas tem assolado inteligências de homens
estratégias têm sido admiradas pelos experts. poderosos, especialmente americanos, dados
Há quem diga que o Kaiser faz o papel do às fantasias e às avaliações apressadas. Mas
bobo nessa aliança. E não pretendemos não deve preocupar-se, nosso jornal vai bem
contracenar com ele. Segundo as últimas graças à mim e ao senhor, e melhor ficará
análises, Lenin tem boas chances de quando nos acertarmos. Pertenço a uma
conseguir seus objetivos maquiavélicos, estirpe de editores de mais de um século de
principalmente se tiver para si o domínio dos tradição, e sei que sou o ponto final dessa
ares. Os comunistas têm demonstrado legenda. O velho jornalismo desinteressado
inusitada autoconfiança em seus discursos. e comprometido com a verdade e os fatos
E o dinheiro do Kaiser não lhes tem faltado; está com dias contados. Mas ainda estou aqui
sem falar em outros dinheiros de milionários e na ativa. De sorte que o senhor haverá de
românticos, poetas e idealistas... amenizar a sua arrogância, e eu não vou jogar
um grande passado nos riscos de uma defesa
ADRIEN (sempre desdenhando) ingênua daquilo que, como já disse, não dou
- E será o aristocrata e inexpugnável apolítico, à mínima! Creio que assim estamos
o Sr Santos-Dumont, que dará aos comunistas entendidos. (levanta-se e estende a mão para
as chaves dos céus?!... despedir-se)

BENETT BENETT (apertando-a com um sorriso cínico)


- Peço-lhe, pela última vez, para me levar a - Certamente que sim, Adrien, mas será
sério, Adrien. Sei que Santos-Dumont tem melhor pela manhã; porque à tarde parece
dinheiro próprio, talento, intuição e ciência que teremos de ver o Sr Santos-Dumont voar,
para fazer o que faz. Sei que o seu não?
comportamento é insuspeito, etc. Mas é

93
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ADRIEN GEORGES
- Como queira, aguardo-o pela manhã. E leve - Não está com maus presságios, hein? Nunca
consigo o Sr Lazare. Já podem tornar públicas o vi assim em vésperas de grandes datas, o
as suas relações, não? que está havendo?

BENETT SD
- É boa idéia, Adrien, talvez precisemos do - Já disse, minha intuição. Nada quanto ao
Lazare. Prometo levá-lo. vôo em si, mas preferiria deixar a abertura
da oficina para depois de conhecer a
repercussão do meu vôo na imprensa. O que
SEQUÊNCIA 56 acha?

Alta madrugada. No gabinete de Georges no GEORGES


"Le Temps" o relógio de parede indica 1:30 - Não deixaria de ser um bom assunto para
h. Georges está de mangas arregaçadas, épocas mais vazias... mas, Você... ora, como
sentado à sua mesa, repleta de fotografias prometi, nada publicarei sem sua
de SD e uma pilha de laudas escritas ao lado autorização... (pega duas laudas de texto e
de sua máquina de escrever. Termina de joga-as no lixo) - Pronto, já se foram à cesta.
datilografar um parágrafo e passa a examinar Dorme bem, Alberto, e descanse.
umas fotografias e desenhos quando o
telefone toca. SD
- Até logo, Georges. Assim durmo mais
GEORGES (atendendo) tranqüilo. Aguardo-o lá amanhã. (desliga)
- Alberto? Ainda acordado?... Sim, estou
fechando uma grande reportagem sobre
Você. SEQUÊNCIA 57 (A Copa Archdeacon)

SD (deitado em sua cama) (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 23 de


- É sobre a idéia de abrir a oficina ao público, outubro de 1906) Grande movimentação de
Georges. Acho que devemos suprimi-la. público, veículos, fotógrafos, jornalistas,
vestidos e cartolas. Archdeacon, o Cap.
GEORGES Ferber e os comissários do Aero Clube
- Por que, Alberto? Está voltando atrás em cercam o 14 Bis. Um dos comissários olha o
nossos planos? seu relógio de pulso.

SD (sentando-se melhor na cama) O COMISSÁRIO


- Não é isso. É minha intuição; algo me diz... - São 14 horas,

"... e solta-se do chão como que por algum milagre..."

94
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Sr Archdeacon. Nenhuma notícia dos Srs de um café de Paris. Todos que passam
Voisin e Bleriot. cumprimentam-nos ou apontam para SD.
Garotos pedem-lhe autógrafos em
Chega um jornalista. caderninhos escolares.

O JORNALISTA SD (passando um papelzinho a Georges)


- Sr. Archdeacon, recebemos um telefonema - Recebi este cabograma do Pradô. Está
do Sr Bleriot; o aeroplano não ficou pronto chateadíssimo na missão do Alaska. Disse
para a prova. Deixam aos senhores a decisão que agora se aposenta mesmo, nem espera
de adiá-la ou não. a compulsória. E toda vez que me passa uma
mensagem ele a encerra com a mesma frase:
ARCHDEACON “não dê créditos à farsa dos Wright. Sabemos
- E por que adiaríamos? Não sabem que há que é tudo balela. E o Governo Brasileiro é
outro concorrente? Que a prova comece. um Governo de merda!”

SD entra na barquilha do 14 Bis. Chapin dá GEORGES (devolvendo-lhe o cabograma)


a partida no motor e o 14 Bis começa a se - Saudades de Prado! Saudades... Comecei a
mover como uma pata-choca no gramado, ter esse estranho sentimento após a
balançando e sacudindo suas asas e seu nariz convivência com Vocês. Minha mana escreve-
enorme. SD dá a manete à toda. O papagaio me que também ela já o sente sempre mais
celular gigante começa a ganhar velocidade forte. E suas cartas já o trazem. Quero visitá-
na direção do comprimento do Campo. Corre la e conhecer o Brasil, Alberto. Quando
uns cem metros e solta-se do chão como que iremos?
por algum milagre. Um automóvel
acompanha-o, ao lado, com 3 membros da SD (passando a Georges uma pesada pasta
Comissão a observar o pássaro a cerca de de couro)
dois metros de altura, como que apoiado pela - Assim que conseguirmos a conquista maior,
exclamação da platéia. Em seguida, ele desce Georges. O Brasil é perfeito para uma
um pouco desastradamente, quebrando uma comemoração. Tem-se, porém, de ter
das rodas ao tocar o solo. Um membro da disposição e paciência. A Eloqüência tem
comissão berra: - 60 metros! sido a mais trucidada das artes, naquelas
bandas. Mas a ternura do povo é inigualável.
UM SENHOR ELEGANTE DA PLATÉIA
(estendendo a mão para o companheiro ao GEORGES (apanhando a pasta)
lado) - E que tal está ficando a reportagem, gostou?
- O “Cannard” ganhou a Copa Archdeacon,
mas não levou o Prêmio do Aero Clube. SD
Ganhei metade da aposta. - Confirma uma velha certeza minha,
Georges. Você escreve tão bem quanto
UM OUTRO SENHOR ELEGANTE (contando desenha. Quanto à mim, sabe que me acanho
o dinheiro e entregando-o a contragosto) diante de elogios. Mas está ótima; é uma
- O “Cannard” não voou; ele apenas saltou! qualidade dos franceses: o domínio da arte
de escrever! A documentação fotográfica
O PRIMEIRO também é primorosa. Por sinal, tenho uma
- O choro é livre! nova: comprei um aparelho de projeção ao
Sr Lumière e todos os filmes que fizeram dos
meus vôos. Amanhã estará instalado na
SEQUÊNCIA 58 minha oficina. Não quer vir estreá-lo?

SD e Georges tomam um drink na calçada

95
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SEQUÊNCIA 59 CHAPIN
(O cinematógrafo da Oficina secreta) - Lá estamos nós!

Fim de expediente na oficina secreta. Novos SD


modelos surgem no cenário. Georges observa - Aí está, vai começar a mover-se. Reparem;
atentamente o arrojo dos novos projetos, com repare as asas, Chapin! Se eu tivesse dado
entusiasmo. SD, sujo de graxa, com roupas mais crédito aos meus ailerons poderia voar
de mecânico, ciceroneia-o. bem mais longe. Veja a asa esquerda caindo,
não tive como equilibrá-la. O jeito foi voltar
GEORGES (frente ao “túnel de vento”, ao chão. (o vôo acaba e o filme mostra
olhando uma miniatura ali suspensa) pessoas em volta do 14 Bis quebrado) -
- Parece uma libélula, Alberto. E como é bela! Dazon, repita a projeção. (e, para Chapin) -
Você, enfim, começou a copiar a natureza? Percebeu, Chapin, a função dos ailerons?
Aquela história do Farman de que eles
SD poderiam causar o desequilíbrio lateral não
- A natureza nunca foi boa mestra para a procede. Será que nunca aprendo a confiar
mecânica. Por ela teríamos trens com pernas em mim mesmo!?
de ferro e navios com barbatanas nos cascos.
Mas sempre nos ensina algo. Se a observamos DAZON (gritando, da cabine)
percebemos que quase tudo o que voa tem - Pode soltar?
asas à frente e uma cauda, maior ou menor,
para trás. Após voar o 14 Bis, senti SD
necessidade de copiá-la. Mas esse projeto não - Pode. (o filme recomeça) - Vejam, reparem
competirá nesse prêmio. Temos de ganhá-lo bem! Faltaram os ailerons, Chapin, amanhã
no 14 Bis, com suas limitações. Vamos vê-lo quero-os instalados em Neully. A prova será
agora nos filmes do Sr Lumière. Penso que em 12 de novembro. E Voisin e Bleriot dessa
poderão nos ajudar. (e, gritando) - Gasteau, vez lá estarão.
abaixe a tela!
GEORGES
Enrolada acima do pé-direito da oficina, uma - E Você continua dando a vez a eles?
enorme tela branca, quase quadrada,
começou a descer perto das portas de correr. SD (sem tirar os olhos da tela)
Ao fundo, sobre a casinhola das máquinas - Sim, Georges. Ah, vejam! Repare, Chapin...
de aeração, uma outra, de madeira, foi viu?.... a asa esquerda... e agora o tombo...
construída criando uma cabine no segundo diabos! Está bem, Dazon, por hoje chega.
andar para abrigar o projetor. Dazon estava Todos dispensados. Amanhã todos em
lá, após subir a escadinha de grampos de Neully, e até o dia 12. Não importa se Bleriot
ferro chumbados à parede. e Voisin voam antes; o certo é que vou voar!

SD
- Dazon, pode começar! Gasteau, apague as SEQUÊNCIA 60 (A via de Santos-Dumont)
luzes!
François serve um fino quitute para SD e
Todos ficaram olhando para a grande tela Georges na bancada da cozinha.
branca quando Gasteau desligou as luzes.
Surge, na tela, o 14 Bis em vários FRANÇOIS
ângulos, com pessoas agitando-se - Permita-me a indiscrição, Senhor. Mas
à sua volta. SD e Chapin inspecionavam podemos assistir aos filmes na próxima
o motor. vez? Chapin e Dazon, antes de sair...

96
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD íntimos de Adrien!? E ele nada diz.


- Claro, François, como não pensei nisso?
Desculpem-me todos, diabos, só penso nessa SD
prova! Prometo-lhes que, na próxima vez, - Também estranhei a imprensa após o 23
todos assistiremos juntos. de outubro. Lembra-se que tive uma intuição
sobre isso? O próprio "Le Temps" tem me
FRANÇOIS saído acanhado, comedido...
- Obrigado, Senhor. Pierre e eu temos tentado
vê-los no cinematógrafo mas nunca GEORGES
conseguimos entrar nas sessões que exibem - Um pouco disso pode ser estratégia do
os filmes do Senhor. São muito comentadas. Adrien. Ele odeia imprensa ufanista, mais
Paris inteira tem a sensação de conhecê-lo ainda quando percebe que algo grandioso
pessoalmente. Não é como antes, que as está para acontecer. Nisso se parece com
pessoas conheciam-no mais pelo nome. Você, Alberto. Ele chama “sexto sentido” e
Somos orgulhosos em servi-lo, senhor. Você “intuição”, mas às vezes eu digo que
tudo não passa de genuína superstição.
SD Lembra-se que eu lhe avisei para não incluir
- Obrigado, François. Há um provérbio chinês a medalhinha de São Benedito em seu livro?
que diz: “uma imagem vale mais do que mil Cientistas detestam essas crendices. Eu estava
palavras.” O que dizer então de milhares de certo, concorda?
imagens que reproduzem, não somente a
realidade, como também, o movimento?! O Acabam de comer, levantam-se, e vão para
cinematógrafo transformará o mundo, meu o salão.
bom François! Como, também, a aeronáutica!
E o cinema e o aeroplano serão os veículos SD (caminhando ao lado de Georges em
do futuro! direção ao salão)
- Sim, considero o meu livro o meu maior
GEORGES fracasso. Seria o momento de crer mais nos
- Sem contar as infinitas possibilidades outros do que em mim mesmo. Errei em não
estéticas e ficcionais que essa nova linguagem ouvi-lo, Georges.
abre ao imaginário! (e, preocupado,
mudando o assunto) - Como andam as GEORGES
pressões para inspecionar a oficina? - Bah! Homens de gênio não erram! Seus erros
são volitivos e são portais de novas
SD descobertas.
- Arrefeceram. Os advogados diziam-me que
nossas chances estavam cada vez menores. SD
Porém, hoje telefonaram-me para dizer que - A modéstia não me permitiria aceitar tal
não me preocupasse por enquanto. É uma argumento, Georges. Mas a verdade é que
situação desagradável, Georges, mas Você é não me preocupam mais as opiniões de
testemunha de que não fui eu que a comecei. cientistas. Aprendi que, para conquistar
minhas metas, devo crer em mim, antes de
GEORGES tudo. Somente minha intuição poderá levar-
- Tenho estranhado o comportamento da me aos meus objetivos
imprensa. Todos sabem dessa história mas
ninguém publica uma linha. Até Adrien está GEORGES
esquisito... Aliás, todo o jornal! Muitos - Mas isso é válido para todos nós, não acha?
fuxicos; Benett à vontade, com o palerma
do Lazare na coleira como se fosse Chegam ao salão e sentam-se. Georges
cachorrinho... Comportam-se como se fossem começa a acender um charuto.

97
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

SD SD (interrompendo-o)
- O fato é que o homem pioneiro está sempre - Ao menos respeito deveria haver, Georges.
no “Limite”; numa via que faz fronteira entre Quem, como eu, viveu a experiência de
o mundo conhecido, material, sensível, desafiar poderosas forças da natureza como
visível; e o desconhecido, imaterial, invisível. a da gravidade, dos ventos e das tempestades
aéreas, não pode raciocinar de maneira tão
GEORGES (ainda tentando acender o simplista e cartesiana. Houve momentos em
charuto) que, voando em meus dirigíveis, pensei:
- Sobre o que está falando, Alberto? estou só aqui! Sou o único ser humano em
todo o planeta a desafiar um tabu tão antigo
SD quanto a própria civilização! E quem sou eu
- Penso que a Ciência do Século XX começa para isso?!
a caminhar para um equívoco, Georges. Ao
buscar evitar o preconceito, acaba por GEORGES
originar um outro ainda maior. Arte e Ciência - Você disse tabu... é um fenômeno ligado à
sempre caminharam juntas ao longo da magia; e a Ciência não o reconhece...
História. No entanto a Ciência que hoje se
pratica começa a fomentar um desprezo pela SD (outra vez interrompendo-o)
Arte, pelas coisas da magia, da superstição, - Certa vez, em Mônaco, deixei-me ser
do incognoscível. rebocado pelo iate do Príncipe Dino. A
aeronave descera muito perto d’água e
GEORGES (finalmente na primeira baforada) faziam-na baixar ainda mais, puxando-a pelo
- Entendo onde quer chegar... cabo a tal ponto que fiquei a poucos pés da
chaminé da chalupa. Ora, essa chaminé
SD expelia fagulhas vivas! Uma só bastaria para
- Não que eu seja um adepto da Arte e da produzir uma queimadela no balão, inflamar
Magia, ou um místico. Não sou; meu trabalho o hidrogênio e reduzir-nos a pó. Do navio
é realizado nos domínios da Ciência. Mas não entenderam minhas advertências e
não desprezo o desconhecido. É um universo protestos. Vi as fagulhas passando ao meu
muito maior e mais misterioso, portanto, mais lado e preparei-me para o pior. E não foi a
poderoso. Prefiro não bulir com ele; muito Ciência que salvou-nos da catástrofe,
menos afrontá-lo. Georges. Mas eu já usava a medalha de São
Benedito...
GEORGES
- E?... GEORGES
- Já é famosa em Paris essa sua sorte
SD impressionante, Alberto. Todos comentam-
- Daí minha posição, muito questionada pela na.
Ciência e seus novos adeptos, com relação
aos ícones, símbolos, datas, e signos do SD
sobrenatural, da numerologia e da magia, - Sorte?! Tabu?! O que a Ciência pode saber
pelos quais não escondo o meu respeito, delas? Ora, se são parte do desconhecido,
inclusive no que toca a questão das patentes. respeitemo-las. Não se brinca com tais coisas.
Em tudo isso entra, também, a medalha de Muito menos quando se é um nauta.
São Benedito.
GEORGES
GEORGES - Nisso temos de dar-lhe razão, Alberto.
- Ora, Alberto, esperar que a Ciência, no Vimos o que aconteceu ao seu conterrâneo,
estágio em que se encontra, veja com bons o Sr Augusto Severo...
olhos a superstição...

98
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD - O que significa?
- Lembra-se que eu Traduza...
tentei avisá-lo? Não
me recebeu! Ia dizer- SD
lhe, em particular, - Em português,
claro, que seu como em francês, a
dirigível era bom mas expressão “é preciso”
a arrogância é tem o duplo
p é s s i m a significado de “ser
companheira de vôo. exato” e “ser
Sou o único que o necessário”, duas
sei por experiência. funções fundamentais
Também fui à vida do navegante
arrogante no início, que se arrisca na via
e paguei caro. Por limítrofe entre o
esse topete pseudo conhecido e o
científico afrontei um desconhecido.
13 de julho e um 8 Traduzindo, Georges,
de agosto. E aprendi navegar é ser exato
que o desconhecido tanto quanto ser
costuma dar aos necessário; e quanto
nautas apenas dois ao viver, não é
avisos. Não pude necessariamente que
advertir Augusto de se seja exato e nem
público porque seria exatamente que se
ridicularizado pela seja necessário,
arrogância da entendeu?
Ciência, que ele A tragédia de Augusto Severo em Paris, 18 de maio de 1902.
insistiu em levar GEORGES
Acima, o "Pax", seu dirigível que explodiu a 400 m de altura;
como passageira. a queda em chamas; e o local onde cairam os destroços.- Estou
acompanhando, Alberto. É genial! Prossiga...
GEORGES (em off, sobre o flash-back do
desastre de Augusto Severo) SD
- Foi uma tragédia! Paris jamais esquecerá - Ora, a arrogância da Ciência, ou pseudo-
aquela bola de fogo despencando de 400 ciência, precisa ser questionada, tanto
metros de altura... filosófica quanto eticamente. Com a
pretensão de abranger todo o campo do
SD conhecimento e o desprezo pelo
- A navegação, Georges, é tanto uma Arte desconhecido ou por tudo que não é lógico
como uma Ciência. Como a Arte ela ou racional, a Ciência torna-se Ignorância e
contempla todo o incognoscível, isto é, o pode levar a Humanidade às catástrofes
desconhecido, a magia, o sobrenatural; jamais testemunhadas em outras épocas.
enquanto que, como Ciência, contempla
apenas o insignificante mundo do GEORGES
conhecimento. Um poeta tão grande quanto - Você crê então que o aeroplano poderá vir
Camões escreveu em língua portuguesa (diz a ser um mal para a Humanidade?
em português): “Navegar é preciso; viver
não é preciso”. SD
- Se será mal ou bom, não sabemos, Georges.
GEORGES O fato é que ele está próximo e virá para

99
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ficar; e vai transformar o mundo exterior dos hangar de Neully. Chapin e Gasteau instalam
homens. Porém, a opção pela Ciência os ailerons no 14 Bis. SD parece estar em
presunçosa e arrogante é mais previsível todos os lugares ao mesmo tempo.
porque ela traz mais lucros, através das Supervisiona Chapin e Gasteau, observa
patentes, apesar do número de vítimas que Dazon instalando ferragens e manetes,
causa. E a Humanidade não terá meios de discute com Levavasseur a regulagem do
fazer os julgamentos porque a informação motor, enquanto experimenta a ombreira
que receberá também estará no poder dos com um costureiro afetado, agulha e linha
proprietários dessas patentes, como já na boca, tentando fazer SD ficar quieto para
podemos perceber. poder dar o ponto, etc.

GEORGES Corte para Georges em seu gabinete, dia e


- Refere-se aos grandes jornais europeus e noite, a teclar a máquina, a fuçar seus
americanos?... Mas, quanto às patentes? arquivos, a remexer fotografias, a desenhar,
Nunca tivemos uma boa explicação sobre a falar ao telefone.
essa sua polêmica posição...
Em seu gabinete, Adrien, com Benett e
SD Lazare, discutem com semblantes carregados.
- Penso que o equilíbrio necessário ao campo
do conhecimento coexista com o equilíbrio No automóvel Clube reuniões tensas entre
que intuo haver também no campo do Archdeacon e outros dirigentes, com o
desconhecido. Foi dele que vim ao mundo Coronel Renard, Cap. Ferber e outros
com a vida, os recursos e os meios para ser militares. Os membros do Aero Clube
o que sou. E para lá voltarei. Não desafiarei balançam a cabeça negativamente resistindo
meu destino na pretensão de mudá-lo ou às pressões.
controlá-lo. Patentes, por exemplo,
significariam poder e dinheiro; dois estorvos
ao delicado equilíbrio de que preciso para SEQUÊNCIA 62 (A Glória)
realizar minha obra. É a minha via; não devo
perder-me nela. (Legenda: Campo de Bagatelle, Paris, 12 de
novembro de 1906) Uma conversa na
GEORGES multidão.
- Sim, a sua obra... é o que todos desejamos,
sinceramente, que realize, Alberto. Já UMA MULHER
expressei em diversas ocasiões as minhas - Porque não fazem mais as narrações pelo
dúvidas sobre esse seu comportamento alto-falante?
esquisito. Creio que agora começo a ter
elementos para tentar decifrá-lo. UM HOMEM
- Os franceses não estão bem cotados e o
SD vôo é baixo. Não dá para ver de todos os
- Desde já Você passa a ter liberdade para lugares.
escrever o que quiser a meu respeito. Não
preciso opinar. Erro sempre quando se trata SD cercado por uma multidão de repórteres
de mim, e muitas vezes contra mim mesmo. cede publicamente a vez a Voisin e Bleriot,
É uma honra tê-lo como biógrafo. pois tinha recuperado o direito de ser o
primeiro.

SEQUÊNCIA 61 (A Véspera) Mecânicos e ajudantes giram em torno de


suas máquinas, enquanto gendarmes
Movimentação de véspera de prova no providenciavam o afastamento dos curiosos.

100
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

E, ato contínuo, beijou


voluptuosamente a boca estarrecida
do inventor que, por cavalheirismo,
não esboçou qualquer reação,
apenas aceitando aquele beijo que
ia até as raias da obscenidade para
a época.

Tudo aconteceu em segundos. O


policial ainda se levantava do seu
tombo. Os fotógrafos e cinegrafistas
"... o piloto tentou novamente a viragem..." presentes nem tiveram tempo de
Máquinas de filmar e fotografar por todos os disparar suas máquinas, apesar de prontos
lados. Chega a hora. Archdeacon, olhando para isso, mesmo porque a surpresa foi geral
seu relógio de pulso, autoriza o primeiro e atingiu também a eles, que são treinados
concorrente. Voisin, dentro do seu aeroplano, para trabalhar justamente nos momentos de
ouve conselhos de Bleriot ao seu ouvido. grandes emoções.
Ele manda girar a hélice, ao que o mecânico
imediatamente obedece. O motor ronca. Aida soltou SD com o mesmo sorriso com
Expectativa geral. Francesada em claque que o encontrou e agradeceu ao público que,
pronta para aplaudir a vitória. Ao lado, o mais uma vez, a aplaudia. Archdeacon, meio
automóvel da Comissão também está pronto. aturdido, repetiu a ordem. SD, como se
Archdeacon dá o sinal. Voisin aciona a estivesse numa outra galáxia, tardou a recebê-
manete. Motor à toda. O aeroplano começa la em seus reflexos. Assim que voltou a si,
a se mexer, anda alguns metros e embica no pulou para a barquilha e pôs seus mecânicos
chão como se fosse para voar no subterrâneo a trabalhar. A multidão afastou-se; motor
e não na atmosfera. A hélice parte-se em roncando, o aeroplano mexe-se,
pedaços, o motor desloca-se do berço e pára. posicionando-se para a decolagem. Idem
Decepção geral. Voisin sai do aeroplano para o automóvel dos Comissários. Volta a
praguejando com os mecânicos e o expectativa. Detalhes de hélice, motor,
automóvel dos Comissários dá marcha-à-ré manetes, cabos e mecanismos. Serenamente,
porque, no ímpeto, aceleraram mais do que com o olhar impassível, SD aciona a manete
o necessário. à força total. O 14 Bis corre, alça-se a uns 40
centímetros do solo e pousa suavemente à
Archdeacon autoriza SD. Ele prepara-se para frente. O Comissário berra: - 40 metros.
entrar na nacelle. Os gendarmes afastam as
pessoas. De repente, Aida D’Acosta, a audaz Aplausos burocráticos e manutenção do
bailarina, destaca-se da multidão, dribla um suspense, enquanto o aeroplano retorna
gendarme com um gracioso movimento do vagarosamente à posição original.
seu lindo corpo, jogando o policial
desajeitadamente ao chão com as pernas para Nova tentativa. Dessa vez o aeroplano deixa
o ar, e aproxima-se de SD, que a reconhece para trás o automóvel e executa dois vôos,
e faz uma mesura para recebê-la, sem deixar na mesma altura do anterior, o primeiro de
de demonstrar a urgência da situação. A 40 metros e o segundo de 60 metros, com
bailarina corresponde ao sorriso e chega-se um toque no solo entre ambos. Ao final do
até ele. segundo vôo, o piloto fez um teste de
viragem em pleno ar, suspendendo-o devido
AIDA à proximidade das árvores. Novo retorno e
- Vim trazer-lhe a energia que o seu motor aumento da expectativa. Silêncio geral.
não poderá dar-lhe, Sr Santos-Dumont.

101
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Terceira tentativa. Outros dois vôos com um no ar vindo, em pleno vôo, na direção da
toque no solo; o primeiro de 50 metros e o multidão que se assusta e se atropela. O
segundo de 82 metros, segundo os berros piloto percebe a situação e aumenta a
do Comissário. Neste vôo o piloto tentou inclinação do nariz do 14 Bis e sobe a 6
novamente a viragem mas susteve-a pela metros de altura, passando por cima da
proximidade do campo de pólo, quando perplexa multidão assustada. Mas a
quase completava a meia volta. Aplausos velocidade de repente diminui como também
para a anunciada quebra do recorde anterior. diminui o ronco do motor. Rostos aflitos
O aparelho porém não retornou à posição olham o pássaro aéreo com uma interrogação
original. O piloto decidira fazer o vôo em nas faces. O aparelho esboça uma curva para
sentido contrário e fora autorizado pela a direita e SD, com todo o seu sangue frio,
Comissão. corta o motor e pousa quase perfeitamente,
apenas com um pequeno roçar da asa direita
CAP. FERBER no gramado, sem quaisquer conseqüências.
- Ele vai tentar voar contra o vento? É um O Comissário berra: - mais de 200 metros! A
maluco! E também, um ignorante; está platéia sacudiu-se em aplausos e vivas com
desprezando a única ajuda que a Natureza chapéus, até de senhoritas, voando junto à
dá aos homens para voar. E ainda a desafia... bengalas, casacos e outras peças que podiam
ser atiradas ao ar. Jaques Fauré foi o primeiro
BONAPARTE a chegar até SD e tirou-lhe da barquilha
- Quando se trata do Sr Santos-Dumont, Cap. colocando-o sobre seus ombros, carregando-
Ferber, é melhor pensar duas vezes antes de o em meio à multidão até à sorridente Aida
arrotar verdades. Aprendi por experiência e que o aguardava. Agora era a vez de SD,
testemunho pessoal que, diante de homens todos esperavam, mas ele apenas a abraçou
como ele, tremem as verdades mais absolutas com ternura e beijou-lhe paternalmente a
e amedrontam-se os mestres mais arrogantes. testa, sob o espocar de dezenas de fotógrafos:
Vi verdades irrefutáveis tornarem-se asneiras - era a Glória!
consagradas por causa de uma única e
pequena ação de ousadia desse homem, Cap. SD
Ferber. Se Santos-Dumont decidiu desafiar a - Aida D’Acosta, A Senhorita é, para mim, a
força dos ventos, que se cuidem os ventos!... própria personificação da Glória!

Um Comissário observa seu relógio de pulso:


16:25 h. O dia já ia ao fim. Ouviu-se então o SEQUÊNCIA 63
ronco do motor
e logo o Festa de arromba nos salões do Automóvel
aparelho Clube. Todas as personagens do filme que
estava estão em França presentes. Aida D’Acosta dá
o seu show de dança à frente de uma banda
cubana. SD entra no salão lotado
debaixo de

"... passando por cima da perplexa multidão assustada..."

102
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

uma chuva de confetes e "...carregando-o em meio à


multidão até à sorridente
serpentinas, sob aplausos Aida que o aguardava.
gerais. A banda ataca os Agora era a vez de SD, todos
ritmos brasileiros. Georges, esperavam, mas ele apenas
a abraçou com ternura e
já totalmente bêbado, beijou-lhe paternalmente a
aproxima-se dele. testa, sob o espocar de
dezenas de fotógrafos: - era
a Glória!"
GEORGES (com voz de (Desenho de Elyseu
bêbado, pegajoso e Visconti)
abraçado a SD)
- Está tudo no prelo, Alberto! cambaleando pelos
No prelo! Amanhã só vai dar oficiais em serviço,
Você nos noticiários, e a trombando nas mesas,
nossa reportagem será a arrastando cadeiras e
melhor de todas! apoiando-se aqui e ali, até chegar na boca
da máquina. Ali reclina-se diante de uma
SD é sequestrado pela multidão eufórica e pilha de jornais prontos, pega um, senta-se
Georges fica só, trocando as pernas na porta na cadeira do chefe da gráfica e abre o jornal.
do salão. Resolve então sair e vai até uma A câmera mostra o jornal aberto na página
cupê estacionada na porta do Clube, entra em que noticia o feito de SD com uma
nela e berra ao cocheiro. matéria modesta e sem expressividade. No
lugar da sua reportagem havia uma grande
GEORGES (berrando) “matéria de geladeira”, assinada pelo Coronel
- Vamos pro "Le Temps"! Renard, sobre os progressos da aeronáutica
num sentido geral, sem que citasse Santos-
Dumont.
SEQUÊNCIA 64 (Desatino)
De repente, após folhear todo o jornal várias
Porta do "Le Temps". A cupê estaciona e vezes, Georges parece ter-se curado do porre,
Georges desce dando ao cocheiro tudo o ganhando uma nova e desmedida energia
que tem no bolso, sem conferir, e vai vital. Parte o jornal em vários pedaços, na
cantarolando feliz em direção à porta da frente dos operários, amassa os pedaços
gráfica. Entra na oficina gráfica em meio à formando uma bola e atira-o na máquina.
zoeira da rotativa à toda velocidade, passa Depois levanta a cadeira do chefe e faz o

103
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

mesmo, espatifando-a no meio das jornalista e editor, capaz de farejar uma


engrenagens. Os oficiais imediatamente notícia com cinco anos de antecedência e
paralisam a impressão e tentam contê-lo. Mas nela investir sem hesitação! E agora Você
ninguém podia segurá-lo; ele vira mesas, mesmo a corta sem piedade, quando, como
empastela cavaletes de tipos, ramas prontas Você diz, chegara a hora certa?! O que pensa
e quebra tudo o que vê pela frente, até o que sou? Uma máquina de escrever?
esgotamento total de suas forças. A essa altura
todos haviam desistido de segurá-lo e apenas ADRIEN
assistiam ao tumulto, de braços cruzados ou - Nunca podia imaginar que viria ao jornal
protegendo-se das trajetórias perigosas de após a festa. Meu plano seria acordá-lo hoje
alguns tipos de chumbo atirados com ódio cedo e lhe falar antes que visse o jornal. Mas,
para qualquer lado pelo furioso jornalista. na madrugada tocou o meu telefone com a
Ninguém se movia. Um silêncio toma conta notícia desse desatino... que se há de fazer?
do ambiente. Dois guardas chegam tardios e
só podem ficar olhando, sem saber o que GEORGES
havia acontecido. Um gráfico chega-se a uma - Ao menos dizer-me o que se passa...
das gavetas mal derrubadas por Georges e
acaba de virá-la ao chão e cruza os braços ADRIEN
em sinal de solidariedade a Georges. Outros - Na França de hoje, Georges, mais
oficiais e operários o imitam, cada um importante do que a subida de um aeroplano
derrubando ou quebrando simbolicamente é a subida de uma moeda. E o dólar
um traste qualquer para em seguida cruzar americano...
os braços e ficar onde estavam. Os guardas
nada puderam fazer. Nos rostos de todos a GEORGES (pulando da poltrona, com o dedo
mesma revolta que Georges estampava no em riste para Adrien)
seu desde que abrira o jornal. - Você vendeu o jornal àquele pulha do
Benett, não é? E, talvez, tenha se vendido
com ele...
SEQUÊNCIA 65
ADRIEN (abaixando o dedo nervoso de
Dia seguinte, no gabinete de Adrien. Georges Georges)
é uma espécie de ser em bagaços, - Acalme-se, Georges...
desconjuntado numa das poltronas.
GEORGES
ADRIEN (falando com irritação) - Você é um vendilhão! Um...
- Decidimos passar uma borracha no que
houve ontem, Georges, e em consideração a ADRIEN (interrompendo-o ríspido)
Você, saiba disso! Essa sua indisciplina infantil - E o que Você quer? Que eu me arruíne na
e alcoólatra custou-nos quase 20 mil francos falência e passe a mendigar em Paris,
de prejuízos. E por pouco não perdemos a esperando as esmolas do seu amigo, quando
rotativa... ganhar os seus prêmios? O que acha que é
esse jornal? São milhões de francos
GEORGES empatados; mais de um século de dedicação
- Mas, quem Você pensa que sou, Adrien? e suor! E não devo satisfações a ninguém!
Foram cinco anos de trabalhos! No último
mês varei madrugadas apurando o texto, GEORGES
caprichando nas imagens e na qualidade - Mas, Adrien...
geral do trabalho!... E que começava
justamente por citar Você, com a sua visão ADRIEN
genial, a sua admirável experiência como - Sim, vendi parte do jornal. Não pense que

104
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

adorei fazê-lo. Nem que tenha sido fácil para - Santos-Dumont tem contra si o fato de
mim, Georges. Mas estou velho para possuir justamente aquilo que os seres
emburrar com os tempos; e não pretendo humanos mais almejam para suas vidas:
arruinar-me em prol de uma verdade de independência e liberdade. Além disso, é
merda, qualquer que seja ela, muito menos desprendido em relação a dinheiro, e não
a do bom-mocismo idealista de sportmans pretende recompensas pelos seus feitos. As
bon-vivants... pessoas levam isso a mal. Os que pretendem,
porque o desinteresse atrai certa sorte que
GEORGES não saberiam admitir despida de
- Cuidado, Adrien, olhe o que está dizendo... maquinações; os que recompensam porque
os não solicitamos. E, para piorar o quadro,
ADRIEN é um brasileiro! E onde estão os brasileiros?!
- Exatamente o que ouviu, Georges. O nosso
amigo “petit Santos” não se preocupa com GEORGES
dinheiro, nem com patentes, etc; claro, não - Os brasileiros?...
precisa, é um criador, está a serviço das
divindades etc, etc. E quanto à nós? Vivemos ADRIEN
de quê? Se o nosso amigo tivesse nas mãos - Pelo que posso presumir, o Brasil é um
o poder que suas patentes lhe dariam, talvez paraíso tropical habitado por um povo gentil,
pudesse comprar esse jornal inteiro. Mas não, mas dominado por uma elite grosseira e
ele prefere doá-las à humanidade! Que a estúpida. Esta só faz aguardar, engordando
humanidade então o reconheça; porque o em suas redes de siesta, os nossos navios
"Le Temps" tem seus compromissos e eu os que vão buscar-lhes o café, plantado e
meus! Não sou mais o único dono desse colhido pelo povo escravizado. Lá chegado
jornal, Georges, ponha isso na sua cabeça. o dinheiro, embarcam com ele para cá, - às
A nossa hora certa chegou no momento vezes no mesmo navio que traz o café -, a
errado! E que o Sr Santos-Dumont seja feliz gastá-lo nas farras sórdidas dos Moulin
com seus aeroplanos... Aliás, quem o Rouges e Cassinos Royales da vida, enquanto
mandou fazer aeroplanos? seu povo chafurda na miséria e na ignomínia.
Desde que transferiram Prado - e que
GEORGES (acalmando-se) transferência infeliz e idiota! - não se vê um
- Certo, Adrien, tem seus motivos; mas não único patrício de Santos-Dumont presente
precisa atacar Alberto. É um direito, uma às suas façanhas que têm repercutido no
opção dele e de qualquer ser humano, a de mundo inteiro! A embaixada brasileira não
não se meter nessa espoliação desatinada, mexe um dedo, não faz a menor exigência,
de empresários desvairados, que se crêem e nem sequer pedido ou insinuação em seu
donos do mundo e passam a vida a estocar favor. Enquanto isso, a embaixada americana
ouro em porões suíços. A opção de dar à joga pesado, com todos os seus trunfos e
vida uma construção bela, humanista e todo o seu poder, para garantir-lhes a
criativa não pode ser simplificada numa sobrevivência ao menos de um embuste, que
rotulação banal de idealismo ou ingenuidade. é só o que têm! Ah, se tivessem um Santos-
Queiram ou não nossos míseros pasquins, Dumont! Transformá-lo-iam no Deus dos
coube a Alberto a glória de ser o primeiro deuses, e com muito menos do que fez.
homem a fazer o vôo mecânico, ache Você
importante ou não! E esse juizo cabe à GEORGES
História, que não pode existir senão dando - Nisso tem razão, Adrien. Mas, e o trabalho
ganho de causa à verdade e condenando o de mais de cinco anos? Qual será seu destino?
embuste.
ADRIEN
ADRIEN - Como disse o próprio Santos-Dumont,

105
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

citando um poeta seu conterrâneo, resta-nos ADRIEN


esperar, Georges: “esperar, eis a doutrina da - Pertencemos, Você e eu, Georges, ao fim
vida; espera e alcançarás a ansiada palma”; de uma era. À outra que se inicia, pertencem
ou algo assim, não é? Benett e Lazare, este último, coitado dele!
Mas isso é assunto para uma outra conversa.
GEORGES Por enquanto vá para casa e descanse. E
- Nesse caso vou prosseguir. A não ser que o acalme-se; o mundo ainda não acabou!
"Le Temps" não o queira mais... e, então...

ADRIEN SEQUÊNCIA 66 (O Número 15)


- Por enquanto sou o diretor desse jornal,
Georges, e, como disse, passamos a borracha. Novo teste com o 14 Bis, no Campo de St
Sua função permanece, sem alterações. Cyr. Um desastre quase total. SD sai ileso
por artes de uma sorte inacreditável.
O interfone chama e Adrien o atende.
Corte para o hangar de Neully. Fica pronto
ADRIEN (ao interfone) o Número 15, que recebe os últimos
- Diga para aguardar, estou terminando. retoques. Chapin dá as últimas pinceladas
(desliga e, para Georges) - É Lazare, temos na inscrição do seu número de batismo.
uma reunião de pauta.
Corte para o Número 15 sendo levado, pelas
GEORGES ruas de Neully, para o Campo de Bagatelle,
- Esse puxa-saco tem crescido nessa casa, com a ajuda do povão.
não é, Adrien?
Teste oficial do Número 15. Multidão, etc.
ADRIEN Um curioso passa a mão pela asa do
- Não preciso apelar para o meu sexto sentido aeroplano e fala com Chapin.
para prever que ele será meu sucessor no
"Le Temps", Georges. Mas um outro "Le O CURIOSO
Temps" que, do meu, só terá o nome; se - Que espécie de madeira é essa?
tiver.
CHAPIN (atencioso)
GEORGES - Madeira compensada, senhor, pela primeira
- Está derrotista, Adrien!? Deve ser a venda vez sendo utilizada em projeto aeronáutico.
de parte das suas ações. Só agora percebo o
quanto isso deve ter sido duro para Você. Começam as tentativas do
Peço-lhe desculpas, Adrien. Número 15. Fracasso, o
aeroplano corre no
gramado e dá um

O Número 15

106
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

"...um cavalo-de-pau antes de decolar, entortando-se todo."

SEQUÊNCIA 68 (O Número 16)

Campo de Bagatelle. Teste do Número 16,


(foto) um dirigível-avião de belíssima e
proporcionadas linhas. Como sempre,
curiosos em torno dele. Um homem, com
cavalo-de-pau antes de decolar, entortando- aparência de artista, comenta para o outro.
se todo. (foto) O piloto, mais uma vez, escapa
ileso de um perigosíssimo acidente. O ARTISTA
- É uma perfeita composição, do ponto de
vista estético! Um desenho que se aproxima
SEQUÊNCIA 67 da perfeição!

Interior da oficina secreta onde estão sendo Uma mulher sobe o topo de uma pequena
produzidos simultaneamente um balão escadinha auxiliar de três degraus e passa
dirigível e o “Demoiselle” que já começa a os dedos entre a hélice e o invólucro para
tomar forma. Fabrica-se também um acreditar que não se chocam, e comenta a
deslizador aquático, como pré-projeto de Dazon.
hidroavião. SD explica a Levavasseur o seu
projeto de motor de 16 cilindros em V, através A MULHER
de desenhos e plantas técnicas e mostra a - Mas não há perigo de a hélice furar o balão?
Chapin a maquete do hidroavião, um
desenvolvimento do deslizador, já com suas Dazon balança negativamente a cabeça com
asas. um sorriso condescendente.

"É uma perfeita composição, do ponto de vista estético!"

107
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Amanhece em Paris. O lado leste da Av SD (para August que o servia)


Champs Elysées, exibe a aurora com seus - Olhe para a janela, August, e veja o futuro.
róseos dedos. No cenário da cidade deserta,
perto do Arco do Triunfo, um leiteiro com AUGUST (olhando pela janela, com a cara
sua carroça estacionada, enche os vasilhames interrogativa e a fleuma de mordomo)
para distribuir aos fregueses. Um fiacre de - E o que é o futuro, Senhor? Será o homem
padeiro passa, estacionando sua
lépido, na direção viatura aérea na
oeste, ao longo da porta de sua
bela avenida. residência para
Súbito o cavalo um lanche?
assusta-se, relincha
e pinoteia,
esperneando, SEQUÊNCIA 69
quase jogando ao
chão o assustado Voisin testando o
O aeroplano de Voisin pilotado por Maurice Farman.
padeiro, que seu “ Voisin”, que
desvia para a calçada, sem tirar o olho da ainda não consegue voar (Legenda: Campo
sua direção, de onde aproximava-se uma de St Cyr, Paris, 1907 - Aeroplano de Voisin
espécie de bólido aéreo, em terrível e Bleriot - Piloto: Sr Voisin)
velocidade, à semelhança de uma enorme
bala de canhão. O leiteiro, igualmente pasmo, Corte para a oficina secreta. O “Demoiselle”
olha para o mesmo ponto, esquecendo-se está praticamente pronto . SD, dentro dele,
do leite que derrama-se todo na calçada, experimenta os comandos.
recebendo os reflexos magentas da bela
aurora. O Número 16 vinha sereno, pelo meio Corte para um novo teste do aeroplano de
da avenida, a poucos metros do solo, numa Voisin, desta vez pilotado por Maurice
precisa linha reta em direção ao Arco do Farman. (Legenda: Aeroplano de Voisin e
Triunfo e, sem reduzir a velocidade, Bleriot - Piloto: Maurice Farman) O aeroplano
atravessa-o por dentro, quase que numa consegue levantar vôo sob os aplausos da
penetração fálica. Logo em seguida, estaciona platéia e a felicidade estampada nos rostos
tranqüilamente na porta da residência do seu de seu piloto e construtores.
piloto. François e Pierre aguardavam-no na
calçada, pegam as cordas e amarram-nas num Corte para a carroça de carga do Sr Louis
hidrante. SD, como sempre elegantemente chegando ao hangar de Neully. Chapin e os
trajado, desce da aeronave e vai para o mecânicos descem com cuidado as partes
interior do edifício. desmontadas do “Demoiselle”.

Corte para SD, Jornaleiro, nas ruas de


tomando café-da- Paris, exibe manchete
manhã em seu salão, de jornal: “ROBERT
vendo-se, pelas ESNAULT-PELTERIE
grandes vidraças da VOA 600 METROS NO
janela, o Número 16 SEU REPL”, na
estacionado e cercado primeira página do "Le
de curiosos. Temps", acompanhada
Repórteres começam a de fotos.
chegar e fotógrafos
batem chapas. SD, no seu Número 18,
O Nº 18, um deslizador aquático com o seu V-16 o deslizador aquático,

108
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

faz demonstrações no Sena, para grande convertera-se numa espécie de balcão de


multidão. teatro, com todas as frisas ocupadas. SD sai
do seu aparelho enquanto dois guardas da
Altas horas da noite no hangar de Neully. propriedade aproximam-se.
SD namora a sua maravilha pronta para voar,
e oferece um champagne a todos os seus SD
companheiros, que fazem um entusiasmado - Venho em paz, senhores. De quem é essa
brinde. propriedade?

UM DOS GUARDAS
SEQUÊNCIA 70 - Pertence ao Conde de Gallard; e quem é o
(O Número 19, o primeiro “Demoiselle”) senhor?

Reina a paz no Castelo de Wideville. SD


Tardezinha com o sol se pondo na tranquila - Meu nome é Santos-Dumont e sou amigo
paisagem. (legenda: Castelo de Wideville, do Sr Conde. Levem minhas desculpas a ele
Davron, setembro de 1908) Um longínquo por essa invasão inesperada. Digam-lhe que
ruído de motor começa a ser ouvido no céu. foi uma emergência, e que não o
Os habitantes do Castelo interrompem suas incomodarei. Aguardarei aqui e só peço-lhe
rotinas e olham na direção da origem do som. um único favor: que faça uma ligação para o
Janelas abrem-se, e surgem senhoras e meu mordomo em Paris ordenando-lhe, em
crianças curiosas. O ruído vai aumentando meu nome, que tome a providência de
gradativamente até que surge, cortando a tela, mandar-me buscar.
o “Demoiselle”, o Número 19, pilotado por
SD. Ele faz um vôo rasante em volta do O OUTRO GUARDA
Castelo e vem para o pouso num longo - O senhor Conde não se encontra no
gramado, bem à frente do edifício. Todos momento. Mas daremos seu recado à
acodem para vê-lo. O pequenino avião pousa Condessa. Aguarde-nos. (e retornam)
suavemente, corre um pouco no gramado e
pára. O rugido do motor eleva-se e o SD começa a inspecionar seu aparelho
“Demoiselle” segue taxiando, ágil, para conferindo-o para ver se não houve algum
debaixo de uma árvore. A fachada do Castelo dano. Os guardas voltam a ele seguidos pela

"Reina a paz no Castelo de Wideville..."

109
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Condessa, seus filhos e risonha)


sua entourage. - Senhor Santos-
Dumont, começo a
O PRIMEIRO GUARDA sentir frio. Meus
- A Condessa deseja criados guardarão seu
convidá-lo ao Castelo. lindo aeroplano no
estábulo, e em
A Condessa aproxima- segurança. Peço-lhe
se de SD. que me leve de volta
ao Castelo.
SD (tirando o chapéu)
- Senhora Condessa SD (oferecendo-lhe o
(beija-lhe a mão), mil perdões por tão braço)
inoportuna invasão. Espero que seus criados - Não tenho como expressar a minha
tenham-lhe informado da emergência em que gratidão, Senhora Condessa.
me encontro.
Caminham em direção ao Castelo e entram.
A CONDESSA
- Senhor Santos-Dumont, todos estamos Ao longe, já de noite, surge a carruagem do
muito felizes com essa surpresa que nos cai Conde a todo o galope. De dentro dela, o
do céu. É uma honra recebê-lo em nossa Conde e o Cap. Ferber tentam entender uma
casa. Considere-se meu hóspede. estranha movimentação perto do estábulo.
A carruagem estaciona ao lado dos criados
SD que cercavam o “Demoiselle”.
- Muito agradecido, senhora Condessa,
tomarei o seu precioso tempo apenas o A Condessa e SD saem à porta do Castelo
suficiente para um telefonema, se a Senhora para recebê-los
mo permitir...
A CONDESSA (radiante, para o surpreso
A CONDESSA marido)
- Senhor Santos-Dumont, um hóspede em - Querido, temos uma visita para hoje que
Wideville é meu hóspede. E meus hóspedes nos veio dos céus! O Sr Santos-Dumont em
não costumam ser tão apressados. Embora carne e osso. (e estende a mão para receber
nunca tenhamos recebido um que chegasse o beijo do Cap. Ferber)
voando, eu ficaria ofendida se recusasse a
nossa humilde hospedagem nessa O CONDE (cumprimentando SD)
emergência. - Pensávamos que havia tido um acidente,
Sr Santos-Dumont. Vimos o Sr passar pela
SD copa das árvores em St Cyr e não mais
- Oh, não, senhora Condessa! Entendeu-me retornou! Fico feliz de vê-lo em minha casa
mal e peço-lhe outra são e salvo.
vez desculpas por
não ter me explicado SD
bem. É que eu me - Foi uma
sentiria como se aterrissagem de
estivesse abusando emergência, Sr
de sua gentileza... Conde. Descuidei-
me da hora e,
A CONDESSA quando percebi, era
(interrompendo-o quase noite...

110
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

A CONDESSA O CONDE (ao chegar ao salão)


- O Sr Santos-Dumont e o Cap. Ferber serão - Essa década tem sido de grandes progressos
nossos hóspedes por essa noite, querido. no campo da aeronáutica. Há bem pouco
tempo lembro-me de uma noitada no
O CONDE (para SD) Maxim’s em que comemorávamos o retorno
- Quer dizer que a sua pequena libélula o do Sr Santos- Dumont, são e salvo, de uma
leva para onde quiser pelos ares? Sou seu temerária viagem no seu pequeno balão
admirador, Sr Santos-Dumont; fico honrado esférico. Agora o temos aqui, bem chegado
com essa coincidência. Creio que sou o numa aeronave que o leva para onde quer,
primeiro homem do mundo a receber uma fazendo em 14 minutos, o percurso que
visita que me chega pela via aérea! levamos duas horas e meia de carruagem. E
ainda temos os progressos de Bleriot, Voisin,
Corte para a sala de jantar, onde todos jantam os Farman, Breguet e muitos outros...
um refinado banquete.
CAP. FERBER
SD - Não podemos esquecer dos irmãos Wright,
... e então tive de comparecer pela primeira que chegaram há poucos dias em Paris e
vez a um tribunal. Precisava garantir a estarão demonstrando o seu aeroplano na
invenção dos meus motores ao domínio semana que vem.
público. Nada tenho contra se os constroem
e vendem; nada cobro. Mas não posso SD
permitir que outros cobrem direitos de - Eles trouxeram o “Flyer”, de 1903?
patentes que eu já houvera concedido ao
público. CAP. FERBER
- É exatamente o mesmo “Flyer” que voou
A CONDESSA em 1903, e sobre o qual falei, na época, numa
- Eu simpatizo muito com esse seu reunião do AeroClube, lembra-se, Sr Santos-
desinteresse, Sr Santos-Dumont. Sempre dei Dumont?
razão ao Senhor. O progresso seria muito
mais veloz e mais ameno para todos, não é? Sentam-se nas grandes poltronas, servidos
Os homens não precisariam criar seus de licores e doces. SD recusa um charuto.
inventos às escondidas e haveria menos
ganância e corrupção. SD
- Sim, lembro-me. Mas..., não acha um pouco
CAP. FERBER estranho, Cap. Ferber?! Estamos em 1908. De
- Mas a Sra há de levar em conta, Sra 1903 para cá, desenvolvi cerca de 10
Condessa, que nem todos possuem a mesma diferentes projetos e, antes daquela data,
sorte do Sr Santos-Dumont. São altos os outros tantos. Os Srs Voisin, Bleriot, Pelterie,
custos e os riscos das experiências científicas Breguet, Farman e Archdeacon também nos
e seus autores precisam ser recompensados expuseram nesse período, uma bela trajetória
para continuar. É um instituto justo, o das de experimentos. E, na observação mútua,
patentes. E quem não as desejar, é só abrir houve a contribuição de uns para com os
mão delas, como o faz o Sr Santos-Dumont... outros. Assim tem sido o progresso da
ciência. Uma pequena descoberta aqui, outra
Terminam a refeição e dirigem-se ao salão ali, um pequeno novo invento, e, detalhe
de fumar. por detalhe, surgem as grandes invenções.
Não somente conosco, mas, também, com
os maiores em outros misteres, como

111
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Edson, Marconi, Grambell, Goodyear. Só com gargalhada. SD também ri. Ferber emburra).
os Srs Wright é que não. Não se sabe o que
fizeram antes de 1903, e agora chegam a Paris No dia seguinte, de manhã, toda a vizinhança
trazendo o mesmo modelo que disseram ter do Castelo estava presente para ver o Número
voado há cinco anos. Vi há pouco algumas 19 decolar, de volta a Paris. SD despede-se
fotos, as primeiras que até hoje nos chegaram. da família, acena ao povo, dá a partida no
Não parece ser diferente dos nossos antigos motor e entra no seu “Demoiselle”. Aciona a
modelos! Percebi que contribuições minhas manete da mistura e acelera. O pequeno
e de meus colegas estão lá aplicadas. Como aeroplano desloca-se lentamente, vai
explica isso, Cap. Ferber? ganhando velocidade e, de repente, sai do
solo, voando serenamente, em linha reta,
CAP. FERBER subindo, distanciando-se. Lá na frente retorna
- Os Wright trabalham num rigoroso sigilo. E e passa veloz sobre as cabeças de todos que
creio que, não somente eles, não é, Sr Santos- o aplaudem, ganha altura e desaparece por
Dumont? Também o Sr, sabemos, guarda cima das copas das árvores.
grandes segredos debaixo de sete chaves...

O CONDE SEQUÊNCIA 71
- Você desviou da conversa, Ferber. Não é
sobre os segredos que Santos-Dumont se Repórteres entrevistam Orville Wright no hall
refere. É justamente sobre o que não é do Grand Hotel de Paris.
segredo. E quanto a isso dou inteira razão a
ele. ORVILLE
... afirmar que o vôo de Santos-Dumont foi
CAP. FERBER o primeiro da História, seria o mesmo que
- Bem, em breve estaremos vendo a máquina admitir que qualquer outro navegador, que
dos Wright voar em Paris. não Colombo, tivesse descoberto a América,
porque ela não foi homologada por nenhum
SD Clube de Descobridores!
- Porque não sugere que façam um vôo de
St Cyr até aqui, nesse agradável Castelo do Os mesmos repórteres entrevistam SD na
Sr Conde? Seria um belo evento, e de muito porta do seu edifício no Champs Elysées .
bom gosto. Essa casa é um exemplo do que
melhor possuímos em França... (o Conde dá SD
uma gargalhada) - Foi infeliz o Sr Orville Wright nessa
argumentação porque é sabido que muitos
CAP. FERBER (aborrecido, mas sem dar o aventureiros tentaram arrogar para si o
braço a torcer) privilégio de terem sido os primeiros a chegar
- Não deixa de ser uma idéia. Procurarei na América. Mas a História só o concedeu a
sugeri-la. Colombo justamente porque o fez com
muitos testemunhos e farta documentação
O CONDE (ainda rindo) oficial; não foi às terras ocidentais em
- E diga-lhes que não se preocupem. Pedirei segredo, e seus relatos, e de seus tripulantes,
a Santos-Dumont que venha na frente, foram homologados pela ciência da época
guiando-os, para não se perderem (e e a dos nossos dias, enquanto
dá outra gostosa

112
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

aqueles aventureiros só tinham a seu favor com ele até o fim. Os americanos têm uma
os seus próprios testemunhos e documentos incrível capacidade de não se preocupar com
por eles mesmos forjados. Porém, eu fico o ridículo.
feliz que o Sr Wright tenha arriscado este
sofisma, pois assim acabou por fazer por mim
o que ninguém fizera antes, nem mesmo os SEQUÊNCIA 73 (“Os barqueiros do Volga”)
meus mais exaltados apologistas: ainda que
sem essa intenção, o Sr Wright não fez outra A cupê chega a St Cyr, já com grande
coisa senão comparar-me ao grande movimento de trânsito e pessoas.
Cristóvão Colombo.
(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 3 de
outubro de 1908) Os Wright vão finalmente
SEQUÊNCIA 72 exibir à França o seu aeroplano secreto. Em
grande lobby da diplomacia americana,
Adrien e Georges viajam numa cupê pelas apresentavam- se todas as autoridades e
ruas de Paris. personalidades civis e militares, e, é claro,
toda a grande imprensa mundial e a alta
GEORGES sociedade em peso. Adrien e Benett
- Não entendi bem aquele entrevero do conversavam.
Embaixador Henry White com o Conde de
Gallard, ontem, na solenidade do Automóvel ADRIEN
Clube, Adrien. - O que é aquilo com um peso pendurado?

ADRIEN BENETT
- O fato é que a arrogância dos americanos - É o “pylon”. Ao soltar o peso, este puxa a
já incomoda os franceses, Georges. Depois corda que empurra o aeroplano no seu
da pressão bem sucedida, mas não sem impulso inicial.
constrangimento, sobre o Aero Clube, para
incluir os irmãos Wright entre os seus ADRIEN
primeiros brevetados, tentaram transferir a - E como se faz para levantar aquele peso?
demonstração de hoje para Le Mans. Pelo
que sei, foi idéia do Ferber. Não sei o motivo. BENETT
Mas o Conde perdeu a paciência e ameaçou - Lá estão os homens para fazê-lo. Veja, já
boicotar o evento. White não teve saída senão começam a puxá-lo.
ceder.
Corte para os dez homens (os “barqueiros
GEORGES do Volga”) puxando, com esforço, a corda
- Talvez temessem o sobrevôo do do “pylon”. (foto)
“Demoiselle” na hora da exibição.
Tudo pronto. Silêncio geral. O Embaixador
ADRIEN Henry White prepara-se para dar o sinal.
- É plausível. Mas levaram Wilbur já está posicionado, deitado dentro
longe demais o embuste da estrutura do “Flyer” e Orville aguarda o
e estão dispostos a ir sinal para girar a hélice. De repente, um

O "Flyer" dos Wright e o seu imprescindível "pylon".

113
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ruído de motor aéreo rompe o silêncio, acontecera ao piloto todos aplaudem


aproximando-se. Todos voltam os pescoços ruidosamente, comandados pelos efusivos
em sua direção. Henry White, Benett e os aplausos de Benett e White.
Wright não escondem o aborrecimento. Surge
um “Demoiselle” por cima da copa de um O comissário de medição berra do
arvoredo. automóvel: - 30 metros!

ADRIEN (para Georges) WHITE (para Orville)


- Espero que não seja Santos-Dumont, - Uma segunda tentativa!
Georges, isso não é bom. (e, procurando na
multidão) - Onde está ele? ORVILLE
- Sim, senhor.
GEORGES (protegendo os olhos do sol para
ver com clareza o aeroplano aproximando- Algumas tentativas depois, o público
se) demonstrava o seu cansaço. White dá-se por
- Não veio... Mas... não, não é ele. É satisfeito.
o piloto de provas do Clément-
Bayard, aquele russo, um tal de WHITE
Kazan. - Ótimo cavalheiros, com este
vôo de 600 metros ficam nítidas
O “Demoiselle” as excelentes qualidades dessa
faz uma máquina e o futuro que ela nos reserva. (e,
aproximação rasante perto dos homens que para os Wright) - Nós agradecemos aos
puxavam a corda, evolui em graciosa curva senhores, por essa pioneira exibição de
de retorno e vai-se embora, pelo mesmo ciência e coragem reunidas; muito obrigado!
caminho que veio. O constrangimento é (e aplaude, seguido pela platéia)
geral. Henry White porém não dá a mínima
e quebra o gelo. Os Wright agradecem ensaiadamente.

WHITE
- Cavalheiros, agora que se foi o “penetra”, SEQUÊNCIA 74
vamos dar início à demonstração para a qual
foram convidados. (e dá o sinal) Na gráfica do "Le Temps", Georges está
reunido com o grupo de operários, oficiais
Orville gira a hélice e manda soltar o “pylon”. gráficos e alguns funcionários. Todos o
O peso cai de uma só pancada e o aeroplano cercam, ouvindo-o com atenção. Ele dá boas
é imediatamente lançado a uns dois metros risadas.
de altura e segue em frente, voando instável,
até pousar uns trinta metros adiante, parando GEORGES (entre as risadas)
abruptamente. Após ter certeza de que nada - ... e então surgiu o

Barqueiros do Volga? - Não! Apenas os puxadores do "pylon", indispensável auxílio para a partida do "Flyer".

114
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

“Demoiselle” com o russo Kazan olhando A cena volta para Georges e a sua roda de
tudo, muito curioso, com aquela cara meio ouvintes na gráfica do "Le Temps". (mais
maluca. Foi muito engraçado. Nem sei gargalhadas gerais)
descrever a cara dos americanos. Difícil foi
conter o riso na hora. E depois, soubemos GEORGES (quase sem conseguir conter o
que o Cap. Ferber riso)
interrogou Kazan, para - E o coitado tremia que nem uma vara
saber se fora Santos- verde, com medo de tomar uma
Dumont que planejara surra do Cap. Ferber. Essa é
tudo. boa; “os barqueiros do Volga”! (e
voltavam a dar gargalhadas)
A cena passa para o Cap. Ferber interrogando
o russo Kazan. Marcel Duchamp, um jovem fotógrafo-
desenhista, novo no jornal, interpela Georges.
KAZAN (sentado numa cadeira de
interrogatório sob os olhares ameaçadores DUCHAMP
de Ferber e outros oficiais) - É verdade que o aeroplano deles não tem
- Não, seu capitão, eu tava só rodas?
testando um modelo pro
dotô Clemen e fui pro sul GEORGES
pruquê no norte, como de - Aí é que está o ponto,
custume vô, tinha umas Duchamp, Você tocou a
nuve danada de preta, seu capitão. medula da questão. Há sete
Aí vim e dei com aqueles home anos venho acompanhando e estudando
puxando a colda qui nem meus as experiências aeronáuticas. Desde que
conterrano faz lá no Vorga e pensei: Roger Bacon previu as máquinas de voar,
será meus conterrano, os barquero do Vorga, foram inúmeras as tentativas realizadas.
como os senhores costuma dizê? Fiquei (agora em off, sobre a iconografia animada
curioso de sabê quê queles tava fazendo ali ou estática) - Já no Século XVIII, homens
naquela grama. Então fui dá uma ispiada. Aí como Besnier, o marquês de Bacqueville
queu vi aquela gente toda enfarpelada Blanchard, Bartolomeu de Gusmão,
lá e vi a torre de ferro e u’a máquina Launoy, Bienvenu, Jacob Degen,
qui paricia daquelas antiga de voá, Vittorio Sarti, Dubochet, Caignard de
o sinhô sabe, né? la Tour, Sir George Wiley, Henson,
Stringfellow, Du Temple, e,
Ferber dá apenas um rugido e recentemente, o príncipe Albert,
continua a fuzilar o russo com o seu Palmer, Kauffmann, Gibson,
olhar ameaçador. Spencer, Penaud, Tatin, Hureau de
Villeneuve, Langley, Thaso,
KAZAN (continuando, tentando explicar-se) Lilienthal e ainda, Chanute, Voisin, Bleriot,
- Num intindi bem mas vi que tava Farman e os Wright; todos até poderiam ter
atrapaiando. Então fui ‘bora. É só isso, seu tido êxito, se houvessem colocado rodas em
capitão, num foi pro mal não, seu capitão! seus aparelhos. Ader, que foi único
desses precursores que a
colocou, só não
fez voar a
s u a
máquina
De cima para baixo: Lilienthal, Chanut, p o r que não possuía motor a
Langley e o "Avion" de Ader. petróleo. Santos-Dumont já

115
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

colocava rodas em seus inventos desde seus - Sim, comprei. Em cinco anos aposento-me
primeiros dirigíveis. Por isso foi o primeiro a e vou morar lá. É o fim do ciclo dos Hébrards
voar pelos próprios meios e capaz de retornar na gráfica francesa. Um dos meus filhos é
ao solo sem problemas. O aeroplano dos advogado e o outro filósofo na Sorbonne.
Wright, apesar dos americanos fingirem não
enxergar, não passa de uma traquitana GEORGES
ultrapassada e catapultada. Como projeto e - É uma lástima, Adrien. Foram quatro belas
construção, chega a ser ingênua, além de gerações de gráficos-editores: os
antiquada e superada. Quando perguntei por “informadíssimos Hébrards”! Desde os jornais
que não utilizavam rodas em seu aeroplano, revolucionários de Danton, os manifestos de
disseram-me candidamente que elas Napoleão, as parcerias com Hugo, Balzac,
exigiriam muita pista para decolar!?... Flaubert, até Você com Zola e o caso
Dreyffus... Não se sente mal?
Um foca aproxima-se
ADRIEN
O FOCA - Por um lado, sim, é melancólico. Mas, por
- Sr Georges, o Sr Adrien... outro, fico orgulhoso. Para ser sincero, não
me agradam os novos tempos. Desde o
GEORGES advento da eletricidade, tudo começou a
- Sim, ele me chama. Diga-lhe que estarei mudar vertiginosamente. Antes fazíamos um
com ele em cinco minutos. Preciso ir ao jornal caseiro, artesanal, preocupado com os
toillete. (despede-se e sai) fatos e com os leitores; lembro-me que toda
a família participava dos trabalhos... Então
vieram o telégrafo sem fio, o telefone, as
SEQUÊNCIA 75 rotativas, o automóvel, o aeroplano, enfim,
a indústria e a loucura da produção em série.
Georges sai do elevador no 4 andar e segue Pressinto maus momentos para a
para o Gabinete de Adrien. Percebe um Humanidade, Georges...
guarda bem à frente da porta de seu Gabinete
mas não dá maior importância. Louise o GEORGES
recebe, abrindo a porta do gabinete. - Mas ainda não me respondeu...

ADRIEN (com um aspecto aborrecido) ADRIEN


- Pedi que viesse porque há novidades que
- Há uma nova imprensa da qual não somos
não gostaremos de ouvir.
parte, Georges. Donos de jornais já não
precisam ser jornalistas ou editores. São
GEORGES
empresários; capachos do poder. Escrever
- Mas é preciso essa cara de enterro?
bem, ter faro para notícias, responsabilidade
com os fatos, compromissos com o leitor e
ADRIEN
outras coisas que os séculos de imprensa
- Benett está chegando com Chapman, o
tentaram nos ensinar, são coisas do passado;
novo Presidente do Conselho de Acionistas.
como os “Hébrards”. Não são mais os leitores
Hoje deixo de ser majoritário na sociedade.
que sustentam as publicações diretamente,
como antes, através das assinaturas dos
GEORGES
nossos antigos e pequenos jornais. É a venda
- Já não me aborreço mais com essas
panfletária e a serviço do poder, e de
novidades, Adrien. Comprou aquela
produtos industriais de todos os tipos;
propriedade em Avignon?
transformando o jornal num loteamento de
espaços gráficos vendidos a x francos a linha.
ADRIEN
(toca o interfone; ele atende) - Sim, pode

116
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

entrar. (e, para Georges) - Benett e Chapman cavalheiros, por quê chamaram-me aqui?
chegaram. Prepare-se, Georges.
BENETT
Entram Benett e Chapman. Todos - Entre os arquivos secretos do "Le Temps"
cumprimentam-se formalmente. que serão lacrados, estão incluídos os
arquivos sobre o aeronauta...
BENETT
- Vamos direto ao assunto. Sr Goursat, Ao ouvir isso, Georges pulou da poltrona
pedimos essa reunião em consideração ao furioso. Benett o interpelou, também
senhor e aos serviços que tem prestado ao levantando-se.
jornal. O que vamos lhe dizer não é pessoal.
BENETT
GEORGES (sem perder a pose) - Acalme-se, Sr Goursat, sabemos do seu
- É tão grave assim? temperamento e da sua indisciplina... para
não falar da bebedeira.
BENETT
- Apenas negócios. Com a fusão do Herald GEORGES (avançando sobre ele)
de Paris e o "Le Temps", apoiada por grandes - Ora, seu...
bancos franceses e americanos, a
prosperidade dessa casa passou a ser a meta ADRIEN (retendo-o)
principal dos nossos acionistas, e, em breve, - Georges!
o "Le Temps" será o maior jornal europeu.
Mas a fusão trouxe também alguns GEORGES (tentando safar-se)
problemas. O histórico anterior de duas - Você também é conivente, Adrien, não
empresas publicamente adversárias, toque em mim! Já entendi... meus arquivos
disputando um mesmo mercado, alimentou sobre Santos-Dumont... serão destruidos...
sobremaneira os arquivos secretos dos dois bando de patifes, eis o que são!
jornais com material muito perigoso para a
nova realidade. Em outras palavras, Adrien BENETT
andou me espionando e eu também o - Ninguém falou em destruição de arquivos,
espionava; Você sabe disso... Sr Goursat; peço-lhe que comporte-se como
um cavalheiro, ou mandarei chamar os
ADRIEN (baixinho para Georges) guardas. Os arquivos que diz serem seus
- É capaz de adivinhar quem era o espião pertencem, em verdade, à sociedade; isso
dele? está bem claro no seu contrato. O senhor
deve entregar suas chaves ao Sr Chapman.
GEORGES (também baixinho para Adrien)
- O patife do Lazare, claro. GEORGES (controlando-se e encarando
Benett)
CHAPMAN - Não sou um criminoso, Sr Benett, e não
- Exatamente, cavalheiros, intrigas como essa tente tratar-me como tal! Não lhe devo
que os senhores acabaram de perpetrar obediência, pois não sou seu empregado,
poderiam multiplicar-se causando graves nem da sua sociedade, a partir desse
danos à sociedade. Por isso, os acionistas, momento! Portanto, não mexa na minha sala
em decisão majoritária, resolveram lacrar os enquanto lá estiverem meus pertences
arquivos secretos dos dois jornais por um pessoais. E nossos advogados é que decidirão
período de 20 anos. quais são eles...

GEORGES BENETT
- Vinte anos?! É bastante tempo... Mas, - Faça o que bem entender, Sr Goursat, como

117
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

já disse, não é nada pessoal. Sou seu leitor e


admirador. Aqui tratamos apenas negócios...

GEORGES
- Em nada me honra a sua admiração, Sr
Benett, me sinto sufocado aqui, nesse seu
mundo imundo. Vou sair, passem bem,
senhores... (pega o chapéu e sai em direção
à porta)

BENETT
- Damos-lhe 48 horas, Sr Goursat, não mais!
Vá perder seu tempo com os advogados. Seu
Gabinete não é mais seu e seus pertences
pessoais serão retirados. Estarão à sua
disposição no Departamento de Pessoal. Se
não tivermos as chaves no tempo estipulado
arrombaremos os armários e o cofre, fique
certo. São propriedades dos acionistas e
temos autorização deles para fazê-lo.

GEORGES (já na porta, irônico e Dumont Nº 20 por 7500 francos. O jornal


melancólico) está nas mãos de Georges, sentado num
- Arrombar cofres... deve ser essa a banco, frente ao hangar de Santos-Dumont
especialidade dos senhores e seus acionistas, em St Cloud. Vários outros hangares ladeiam
não é? E, Adrien, Você me decepcionou; aquele edifício pioneiro. Oito aeroplanos de
nunca pensei que se chafurdaria num covil vários tipos estão dispostos à frente deles,
desses. Passem bem, senhores! (bate a porta com predominância dos "Demoiselle", com
com força e sai) quatro exemplares estacionados e dois em
vôo de instrução por sobre St Cloud. Ao lado,
no hangar de Clément- Bayard, está SD dando
SEQUÊNCIA 76 algumas instruções aos mecânicos. Do lado
(O maior espetáculo do Século) oposto, está o hangar de L. Dutheil, R.
Chalmers e Cia, anunciando também, numa
No jornal aberto um anúncio de Clément- placa, um novo modelo do "Demoiselle" por
Bayard vendendo o Aeroplane Santos- 5000 francos. SD vem na direção de Georges.

SD Nº 20 - "Demoiselle": o primeiro avião do mundo; é também o 1º a ser produzido em série e vendido ao mercado.

118
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

propriedade dos seus autores, após o prazo.


Esqueçamos isso; o L’Illustration é um
excelente jornal; todos lá gostam de Você...

GEORGES
- Por favor, Alberto, não tente consolar-me.
Só agrava o meu estado. Me sinto como se
tivesse sido condenado a 20 anos de prisão.

SD (sentando-se no banco, ao lado de


Georges)
- Ora, Georges, também me aborreci. Mas
como dizem na minha terra, é melhor “dar a
volta por cima”. É preciso também não
confundir a posição de Adrien. Compreendo-
a perfeitamente. Não teve escolha; os fatos
nos atropelaram, e a ele também. É um
grande amigo seu; a influência dele foi
decisiva para a sua contratação no
L’Illustration...

SD (sorridente) GEORGES
- E então? Como foi o repouso na Cote - Não consigo enxergar o Adrien metido
D’Azur? Divertiu-se? nessa patifaria, Alberto, mas ele estava lá...
bolas, esqueçamos tudo isso!... Pelo que vejo
GEORGES os "Demoiselle" vão de vento em popa!
- Que nada, Alberto! Mal consegui dormir.
Voltei dois dias antes do previsto. Eu o SD
perturbo? - É o meu sonho plenamente realizado,
Georges. Vendemos já 40 exemplares. E o
SD Chalmers está fazendo mais 30 simplificados.
- De modo algum. É preciso esquecer o "Le Passamos o dia a dar instruções aos novos
Temps" e os nossos arquivos, Georges. Meus pilotos e mecânicos. Você está assistindo,
advogados analisaram o caso nesse momento, ao maior espetáculo do
exaustivamente. Século: o
Não temos nascimento da
qualquer direito aviação civil!
sobre a decisão Portanto, alegre-
dos acionistas. O se, homem!
máximo que
pudemos fazer SEQUÊNCIA 77
foi acompanhar
o lacre na Manchetes de
presença do j o r n a i s
tabelião e das sobrepõem-se
testemunhas, e na tela:
conseguir um
acordo para que “LAHAM TENTA
os originais AT R AV E S S A R
passem a ser ..."o nascimento da aviação civil"... CANAL DA

119
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

MANCHA” Santos-Dumont”,
através do sistema
“BLERIOT É O de alto-falantes,
PRIMEIRO A provocando
ATRAVESSAR O aplausos em toda
CANAL NUM MAIS a extensão do
PESADO QUE O campo. Um
AR” enorme público
"LAHAM TENTA ATRAVESSAR CANAL"
acompanha os
“ G R A N D dois carros
SEMAINE DE enquanto se
CHAMPAGNE” dirigem ao
h a n g a r
“AERONAUTAS designado
DE TODO O p e l a
M U N D O Comissão.
CHEGAM À
FRANÇA” Começam
as provas.
“WRIGHTS "BLERIOT É O PRIMEIRO A ATRAVESSAR O CANAL" Quinhentos
RECUSAM-SE A PARTICIPAR mil espectadores cercam a
DO CONCURSO” pista de 10 km de extensão.
Festa no ar: sete aviões em
(Legenda: Grand Semaine de vôo ao mesmo tempo,
Champagne, Reims, agosto anunciam os alto-falantes,
de 1909) Aviões de todos os “pela primeira vez no
tipos chegam embalados e mundo”! Um deles, porém,
desmontados no Campo de começa a soltar fumaça e
Champagne. Na desgoverna-se, caindo no
movimentada manhã, as meio da platéia. Susto geral!
aeronaves vão cobrindo de Duas mortes! Contrai-se o
cores o grande gramado, rosto de SD.
cercadas de mecânicos,
aeronautas, visitantes e O alto-falante anuncia um
curiosos. SD chega trazendo vôo de Bleriot. Ele decola,
o seu "Demoiselle" no seu levando um passageiro. O
próprio automóvel. Vem ao motor falha na decolagem e
Curtis na "GRANDE SEMAINE"
seu lado, Georges, e, atrás o aparelho precipita-se sobre
dele, no Mercedes, Chapin, ao volante, a multidão em pânico. Sem mortes, apenas
Gasteau e ferimentos.
Dazon. A Ambulâncias
Comissão de correm ao
Recepção os local. O rosto
recebe em de SD
f e s t a s , aborrece-se
anunciando a ainda mais.
presença do
“Aeronauta Anunciam
pioneiro dos Delagrange, já
ares, o Sr ..."SD chega trazendo o seu Demoiselle"... na decolagem.

120
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

Ao seu lado, decola, sem autorização, E. estante ocupada com as obras completas de
Paulham, numa subida perigosa, choca-se de Júlio Verne, troféus, copas e, nas paredes,
leve com Delagrange, e cai. SD está aflito. diplomas, quadros de medalhas e fotos de
família, esperava o advogado Romain
UMA SENHORA NA MULTIDÃO (bem perto Lelouch. SD entra calmamente, senta-se à sua
de SD) mesa, que é decorada por um grande jarro
- Meu Deus! Essa coisa mata! de flores e a foto emoldurada de Aida
D’Acosta.
Outro desastre; o inglês George Cockburn,
cai com o aeroplano de Farman. Virou um SD
entulho de panos, madeiras e sangue. Quatro - Como vai, advogado Lelouch?
mártires só no primeiro dia!
ROMAIN
SD (lívido, suado, lacrimejante) - Muito atarefado, Sr Santos, espero poder
- Chapin, não desça o "Demoiselle"; vamos servi-lo no que deseja.
voltar.
SD
CHAPIN - Dr Romain, decidi que vou dar por
- Mas, senhor, este é o nosso melhor modelo! encerrada as minhas atividades de inventor
Voará perfeitamente. Nunca o vi com medo e aeronauta.
de voar!
ROMAIN
SD - Eu ouvi bem, Sr Santos? O senhor está me
- Não é medo, Chapin. Não pretendo dizendo...
tripudiar sobre os restos mortais dos nossos
companheiros martirizados nessa carnificina. SD
Vamos embora; Georges, Você vai? - Exatamente o que o senhor ouviu, Dr
Romain. Chamei-o para ajudar-me a
GEORGES providenciar a aposentadoria do Sr Chapin,
- Devo ficar, Alberto. Estou em missão de o único dos meus fiéis mecânicos que
trabalho. Mas dou-lhe razão. O ambiente não também deseja parar. Os demais não terão
está bom. Vejo-o em Paris. dificuldade em colocar-se; são os melhores
de Paris...

SEQUÊNCIA 78

SD está só na sua oficina secreta, vendo os


filmes do 14 Bis e do "Demoiselle". Sua
expressão demonstra uma profunda
amargura. O interfone toca.

AUGUST (in)
- É o advogado Romain Lelouch, senhor, já
está aqui.
SD (in)
- Sim, August. Leve-o ao Gabinete e peça
que aguarde-me. Demoro uns cinco minutos.

No pequeno Gabinete de trabalho do


apartamento de SD, com uma pequena "...e a foto emoldurada de Aida D'Acosta..."

121
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ROMAIN - Mas, até lá...


- Se é o seu desejo, Sr Santos, nosso escritório,
como sempre, está à sua disposição. Daremos ROMAIN
todas as providências que nos ordenar. Agora - Sim, até a aprovação, apesar dos altos custos
permita-me informá-lo sobre um assunto que o senhor terá de desembolsar, é possível
delicado... mantê-los longe. Nosso conselho porém...

SD SD (interrompendo-o)
- A questão das patentes do "Demoiselle"? - Mantenha-os longe, Dr Romain. Temos
algum outro assunto? Desculpe-me, mas
ROMAIN estou bastante ocupado no momento.
- Não, não senhor; esta causa já ganhamos e
está encerrada. O domínio público foi ROMAIN
assegurado, conforme o seu desejo. Falo - Apenas entregar-lhe o relatório financeiro
sobre a questão da vistoria no imóvel anexo do último semestre, Sr Santos. Aqui está
a este. Como já lhe informamos o processo (entrega-lhe os papéis que retirou da pasta)
permanece em difícil situação. Somente um - As coisas felizmente continuam a ir bem
acordo poderá tornar as coisas mais fáceis. para o senhor. Aliás, sempre andaram bem,
Creio que agora, o senhor abandonando as não? O senhor é mesmo um homem de muita
atividades... sorte!

SD SD (recebendo os papéis e olhando-os


- Dr Romain, não estou disposto a abrir mão superficialmente, sem entusiasmo)
de nenhuma das minhas prerrogativas e - Obrigado, Dr Romain. Dê lembranças
direitos de proprietário; em hipótese alguma! minhas ao advogado Heifetz.

ROMAIN
- O escritório não sabe até quando poderá SEQUÊNCIA 79 (Despedida)
manter essa situação, Sr Santos. Tenho o
dever de informá-lo que é iminente a A oficina secreta está abarrotada dos modelos
aprovação da lei de emergência. Se isso e pedaços de modelos que nela foram
acontecer, mais nada poderá ser feito. construídos desde que fora inaugurada.
Numa reunião com todos os seus principais
SD mecânicos, incluindo Anzani e Levavasseur,

SD, seus três fiéis mecânicos, Chapin, Gasteau e Dazon e o protótipo do inacabado bimotor.

122
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SD despede-se. Clima de emoção e tristeza. descobertas. Mas hoje o Aero Clube parece
Alguns não conseguem esconder as lágrimas. ter perdido a sua independência, senão a
dignidade. Veja o episódio da concessão dos
SD brevets. A pressão para a inclusão dos Wright
- Amigos, chegou o fim da minha jornada. e do Cap. Ferber foi vergonhosa e
Minha saúde não permite a continuação dos demonstrou a fraqueza da nossa direção.
trabalhos. Além disso, enfrentamos o boicote
de uma imprensa entregue a interesses GEORGES
inescrupulosos. Começo a duvidar se o que - Isso deu-se logo após o golpe do "Le
fizemos com tanto empenho e dedicação, Temps". Estava tudo articulado, desde a visita
reverterá mesmo em benefício da dos Wrights. E o Aero Clube precisava de
Humanidade. De mim sempre haverá o dinheiro e prestígio para as ampliações. Se
profundo reconhecimento da importância de eu devo perdoar Adrien, como me
todos nessa trajetória de mais de uma década aconselhou, perdoe Você também o Aero
de intensa atividade criadora. Vocês todos Clube. Estou aqui como embaixador deles,
estão de parabéns! Desejo que sejam felizes Alberto.
em seus novos empregos. Muito obrigado.
SD
Comovido, SD começa a abraçar um por um, - Não me consta que tenha perdoado o
num clima de enterro. Todos, emocionados, Adrien...
abraçam-no demoradamente, sem conseguir
emitir uma palavra, pegam suas maletas e GEORGES
saem da oficina, olhando-a com tristeza, pela - Intimamente sim. Apesar de não o ter
última vez. procurado mais, não guardo ressentimentos.

SD fica só na oficina, prepara um drink, SD


senta-se na mesa de leitura, abre um caderno - Eu não tenho o que perdoar em relação ao
e começa a escrever. Entra Georges. Aero Clube, Georges. Compreendo a posição
da Diretoria. Ficarei muito honrado com essa
GEORGES homenagem, pode dizer a eles.
- Houve uma reunião de cúpula no Aero
Clube, Alberto. Estive lá a pedido da diretoria. GEORGES
Estão preparando uma grande homenagem - Você comparecerá?
para Você.
SD
SD - Sim, claro que sim.
- É muita gentileza deles, Georges. Não estou
certo se a mereço...
SEQUÊNCIA 80 (Apologia)
GEORGES
- Já sentem sua falta por lá. Todos Na sede do Automóvel Clube, uma grande
reconhecem que o Aero Clube não é mais o reunião plenária do Aero Clube.
mesmo. Até seus adversários sentem o vazio. Comparecimento maciço de todos os sócios.
É natural! E essa decisão repentina de Archdeacon faz um discurso.
abandonar tudo, os atingiu e às suas
consciências. ARCHDEACON
- ... e como ressaltou o Sr Deutsch de La
SD Meurthe, nosso Aero Clube, o pioneiro dos
- Também eu sinto saudades, Georges, Aero Clubes, que hoje espalham-se pelo
daqueles tempos felizes de emulações e mundo, ressente-se da ausência voluntária

123
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

de um dos seus mais ilustres fundadores e apogeu com o seu mais expressivo projeto;
aeronautas. Muitos de nós testemunhamos, os pequeninos "Demoiselle", que hoje fazem
desde os começos, e até há poucos meses, a parte dos céus parisienses e muitas outras
energia com que este homem empenhou-se cidades, formando novos pilotos e
na construção e crescimento do nosso Clube, aeronautas. Essa sua pequena e última obra-
sem poupar esforços e recursos, como uma prima, senhoras e senhores, é nada menos
chama poderosa e permanente de estímulo do que a primeira aeronave de turismo que
e emulação. Foi também, seguramente, o o homem fabricou em sua indústria! É
maior orgulho dessa casa e, posso dizer, que também a matriz de todos os projetos
o seu espírito, inteligente e empreendedor, aeronáuticos atuais e futuros, pois em
foi a pedra fundamental da nossa instituição. essência, o Sr Santos-Dumont, ao criá-la, deu,
Além disso, o Sr Santos-Dumont, foi grande incontestavelmente, as asas que o homem
aeronauta e inventor de alta brilhância, precisa para viver o seu futuro. É preciso,
podendo figurar na constelação dos maiores, porém, ressaltar que, da primeira até a última
ao lado de Edson, Marconi, Grambell, criação, a obra do Sr Santos-Dumont é, antes
Lumière, entre poucos outros. Sua obra, que de tudo, a obra de um grande humanista.
ele já dá como completa, é uma obra de Sim, porque saíram do coração e da mente
grande mestre, de gênio mesmo! Muitos de um homem que ama profundamente a
presenciamos, em 1898, a sua temerária sua própria espécie, sem nada pedir em troca.
ascensão no pequenino balão esférico “Le É notório o desprendimento com que o Sr
Brésil”, até hoje o menor balão esférico do Santos-Dumont legou todos os seus inventos
mundo, e agora podemos historiar uma ao domínio público. Foram humanistas como
profícua carreira de 23 projetos aeronáuticos, ele que deram à humanidade obras de arte
todos pioneiros e a maioria deles testados como as Nove Sinfonias, a Divina Comédia,
em vôo pelo próprio inventor. Além disso, os Lusíadas, Hamlet, a Ilíada e a Odisséia! E
sete novos motores a petróleo e mais de 300 ao conhecimento, as Proporções Áureas, as
invenções subjacentes e acessórias, grande teorias da gravitação universal, as leis
parte delas já matemáticas e filosóficas da Natureza, os
incorporando-se ao postulados e os teoremas da Ciência, e as
cotidiano dos revolucionárias invenções da nossa época.
projetos e Devemos muito a eles, senhoras e senhores,
oficinas, e até e posso, com certeza, incluir, entre os
mesmo das grandes, o nome de Santos-Dumont.
pessoas, em Sentimos a sua ausência em nossa casa e
todas as partes do devemos-lhe uma homenagem. A casa
mundo. Essa obra Conteneau e Leliévre, por iniciativa do
magnífica, cheia de escultor George Colin, renomado artista de
conquistas e sucessos, Paris, construiu-nos este belo monumento
numa sequência dedicado ao Sr Santos- Dumont (exibe a
progressiva de maquete) que comemora os seus
inovações inesquecíveis vôos de 1901 e 1906. A
revolucionárias, municipalidade de Paris consentiu-nos erigi-
encerra- lo na Praça em frente aos portões do
se no AeroClube, em St Cloud, que também
receberá o nome do nosso ilustre
companheiro e colega. Em 23 de outubro
próximo estaremos inaugurando- a
solenemente. Todos estão convidados. Muito
obrigado. (demorados aplausos)

124
PARTE 2 SANTOS DUMONT/O FILME

SEQUÊNCIA 81 (O Monumento) - Ia doá-la ao liceu de artes e ofícios. Mas a


pressão dos últimos acontecimentos tem
Corte para a inauguração do monumento de abalado a minha crença nos homens e na
St Cloud (foto), com Archdeacon descerrando sociedade. Um forte niilismo se apodera da
o pano de cobertura, ao lado de SD e minha pessoa, Georges.
Deutsch, em meio à uma grande multidão
encartolada. Aida D’Acosta entrega-lhe um GEORGES
buquê de flores e beija-o no rosto, sob os - Tenho de admitir que não nos faltam razões,
aplausos gerais. Alberto. No meu desfecho no "Le Temps"
senti um desprezo tal pela Humanidade, que
Corte para SD dirigindo sua Mercedes, saindo alcançou até o seu Criador.
da solenidade encerrada, com Georges ao
seu lado. Durante a sequência, percorrem as SD
ruas de Paris. - O punho de ferro alemão, a prepotência
anglo-americana, a pusilanimidade francesa
SD e o domínio da estupidez sobre a inteligência,
- Estou feliz, foi uma homenagem muito agravam o quadro. Com a aprovação da lei
sincera. Sinto a sensação satisfeita de ter de emergência, institui-se a lei das selvas.
cumprido minha missão. Minha oficina pode ser invadida a qualquer
momento. Sou ao mesmo tempo, em França,
GEORGES homenageado por homens de bem e acusado
- Está realmente decidido a abandonar, de espionagem por pseudo-nacionalistas.
Alberto? É definitivo? Não sei que atitude tomar, Georges.

SD GEORGES
- Minhas forças esvaem-se, Georges. Parece - Como? Espionagem?
uma certa doença que ataca pessoas como
eu... SD
- Exato! A suspeita de que eu posso ser um
GEORGES espião alemão é a base da justificativa que a
- O que pretende fazer da sua oficina? polícia e o exército francês utilizam para
aplicar a nova lei sobre mim e conseguir a
SD per missão legal para invadir minha

Ícaro vingado: a inauguração do monumento a Santos-Dumont em St. Cloud.

125
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

propriedade. SD
- Ainda não sei, Georges. Por enquanto,
GEORGES pretendo descansar um pouco. (pára o
- Ora essa! Só mesmo a cabeça desses automóvel em frente ao L’Illustration;
pascácios! Mas, nós sabemos o que eles Georges desce)
querem mesmo.
GEORGES
SD - Alberto, apenas uma pergunta: quem o
- Crêem que escondo o mais importante e mandou... ou, melhor, como teve a idéia de
revelo apenas o menos importante. Talvez construir aeronaves?
fosse o que fariam em meu lugar.
SD
GEORGES - Acredito em meus sonhos! (e arranca)
- Conseguirão a ordem judicial?

SD
- Sim, vão consegui-la.

GEORGES
- E o que vai fazer? FIM DA SEGUNDA PARTE

126
PARTE 3

IMPRIMA-SE A LENDA
(EPÍLOGO)

*20.7.1873 †23.7.1932
PARTE 3 penumbra. A barquilha movia-se.

SD
SEQUÊNCIA 82 - Quem está aí?

SD almoça com August, François e Pierre na Ouve-se um risinho cínico e, saindo da


mesa da cozinha. Clima de última ceia, todos penumbra, percebe-se a barquilha
entristecidos, quase não falam. aproximando-se da Biblioteca, vinda do alto,
em “vôo descendente”. Pilotando-a, com a
SD (ao terminar de comer) mesma mestria do inventor, estava um
- Tive grande felicidade em tê-los como homem alto, forte, de barbicha, rosto ovalado
companheiros nessa jornada. Não tenho e lustrosa calva, elegantemente trajado e com
palavras para expressar minha gratidão. uma grande capa negra, forrada por dentro
François, Pierre, terminadas as tarefas de hoje de veludo carmin.
estão dispensados. August fica, como
combinado. (François e Pierre quase não SD (assustado)
conseguem conter as lágrimas; August, apesar - Quem está aí; quem é Você?!
de profundamente entristecido, não perde a
fleuma de mordomo) - Estarei na Oficina, A barquilha pousa suavemente sobre o belo
August, e lá ficarei o dia todo. Está tudo e enorme tapete persa, como se o piloto fosse
pronto? o próprio SD, e a figura imponente de
Mephisto sai jeitosa e equilibradamente de
AUGUST dentro da barquilha, sem qualquer
- Sim, senhor, tudo arrumado. O Senhor crê dificuldade.
mesmo que eles virão hoje?
MEPHISTO (com sua voz gutural e o seu
SD sorriso cínico, característico)
- Tudo indica que sim, August. (levantam-se - Viu como eu também sei? Aqui estou para...
todos, SD aperta a mão, dá um abraço em
cada um e sai) SD (irritado)
- Em primeiro lugar quero saber quem
invadiu minha oficina de trabalho?
SEQUÊNCIA 83 (Mephisto)
MEPHISTO (sem perder a pose)
SD está só na oficina secreta, quase às escuras. - Ora, Alberto - permita-me chamá-lo assim?
Apenas a luz do abajur da biblioteca acesa. - vim tratar dos nossos negócios...
Vai até o bar, abre uma portinhola,
escamoteada com segredo na pequena adega, SD
e retira de lá uma garrafa de absinto. Serve- - Negócios?! (e, esfregando-se) - Como está
se num cálice de cristal e bebe-o de um só frio aqui! - Negócios? - E por quem vos tomaria
gole. Depois enche o cálice novamente, eu?
coloca-o sobre a mesa, ao lado do abajur, e
pega o livro que ali está; o “Fausto”, de MEPHISTO
Goethe. Em seguida, recosta-se no divã e - Uê?! Como posso saber? Mas não ignoras
começa a ler, abrindo numa página já quem sou, ora essa! Não tentes obstinar-te
marcada, com um marcador de marfim. em fingir que não esperas minha visita por
Súbito, ouve um ruído no interior da oficina. agora... Não queres pegar um agasalho?
Sobressalta-se, senta-se no divã e devolve o
livro ao lugar onde estava, observando SD (levantando-se, pegando um capote no
atentamente o interior da oficina em cabide e vestindo-o)
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

- Diabos! O que está acontecendo aqui? imenso balão de hidrogênio, sem proteção
(olhou o grande termômetro marcando 17 algo mais eficiente do que teus cálculos
graus) - Que tipo de negócios haveria eu de científicos? Já esqueceste de Augusto Severo?
tratar convosco, que nem conheço?
SD
MEPHISTO - Severo foi imprudente; eu mesmo tentei
- Ora, meu caro Alberto, já se passaram os 24 avisar-lhe...
anos do nosso trato! Nesse período, ambos
cumprimos nossas partes rigorosamente. MEPHISTO
Chegou a hora do desfecho. - E tu não foste imprudente?! Essa é boa,
meu caro Alberto! Não tens idéia do trabalho
SD que nos deste, desde o teu primeiro vôo
- Vinte e quatro anos? Refere-te àquele naquele balãozinho petulante. Tua audácia
pesadelo que tive em Ribeirão Preto? Mas eu ultrapassou todos os limites!
tinha apenas doze anos...
SD
MEPHISTO - Ora essa! Sem audácia e ousadia, não
- Não costumamos observar exigências etárias haveria como fazer o que fiz!
em nosso negócios, Alberto. A nós importa
os tratos com aqueles que sabem exatamente MEPHISTO
o que querem. E tu eras um deles já naquela - Certamente! Mas também não precisávamos
época. Até pilotavas, com perfeição, as ir tão longe! O teu Número 1, o Número 5,
locomotivas da fazenda do teu pai... os vôos em meio às sabotagens - nós mesmos,
na Inglaterra e nos Estados Unidos, tivemos
SD de sabotar o Número 7 em terra, para que
- Ah, falas de Vós no plural, não é? Sois uma não o fizessem em vôo. O episódio de
legião. Naquele sonho, ou pesadelo, foi outro Mônaco... E o 14 Bis; aquele mastodonte
que me apareceu. Um europeu típico, com aéreo em forma de pipa? Tive de entrar em ti
uma longa barba branca e faces coradas. pela boca daquela bailarina, lembras-te? (a
Cheguei a pensar que era o próprio Papai fala fica em off enquanto repete-se a cena
Noel! do beijo demoníaco da bailarina, antes de
SD entrar no 14 Bis para a glória) - Somente
MEPHISTO nós dois, juntos, pilotando, conseguiríamos
- A nossa forma é apenas uma projeção fazer aquilo voar! Mais ninguém, meu caro
subconsciente dos nossos parceiros, Alberto. Alberto; e não foi fácil, recordas-te?
Daquela feita, tu precisavas de alguém mais
bonachão e paternal. Hoje requeres algo entre SD
o teu pai e o Dr Langley. Cá estamos... - Foram todos projetos bons e necessários. E
cumpriram seus objetivos.
SD
- Nunca fiz pacto algum com Vocês. Nada MEPHISTO
devo aos senhores; tentam aproveitar-se da - Ah, sim! Claro! Não fazemos tratos com
ingenuidade de uma criança... medíocres ou pusilânimes. Sempre demos
preferência a espíritos inquietos como o teu;
MEPHISTO destemerosos, desbravadores e visionários.
- Se insistes em tratar-me no plural, que seja.
Mas não venhas com bobagens, tentando SD
esquivar-te. Pensas mesmo que poderias sair - Qualquer que tenha sido o trato com Vocês
voando por cima de Paris, e até por entre eu não corroborei. A própria tentação das
suas ruas e boulevards, pendurado num patentes...

130
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

MEPHISTO MEPHISTO
- Patentes? Ora, Alberto, essas banalidades - Charlatanice? Aquele espírita que a recebeu
não entram em nossos negócios. Pareces um pode ser tudo, menos um charlatão. E não
tanto esquecido, meu caro! Absinto em se comprovaram suas previsões? Tu não
excesso costuma prejudicar a memória! Devo duvidas disso, meu caro Alberto. Mas naquela
refrescá-la. Tu querias dar asas ao Homem, época achaste mais seguro confiar em nós.
ou antes, querias os segredos das máquinas Por isso aceitaste o pacto.
de voar e dá-los aos homens. Deixamos claro
que não seria fácil. Outros, no passado, não SD
o conseguiram nem com a nossa ajuda. Mas - Recuso-me em reconhecê-lo. O que fiz foi
prometemos-te tentar. E, se conseguíssemos, às minhas próprias custas e sofrimentos. Nada
pedimos-te, em troca, que não amasses a devo a ninguém. E para que fique claro,
ninguém e, após o prazo, entregasse-nos a decido agora contrariá-los: vou retornar à
tua alma. 24 anos, aliás, vencidos há pouco aeronáutica e às minhas invenções. Mesmo
mais de três meses... com as poucas forças que me restam...

SD (perdendo a fleuma) MEPHISTO (dá uma poderosa gargalhada)


- Caluniadores! Não tenho comércio com os - Ora, Alberto, o que quiseres fazer, faças!
senhores. Não vos convidei; retirem-se! Mas nada conseguirás. Custas e sofrimentos?!
Sim, é verdade; foste tu. Fizeste quase tudo.
MEPHISTO Mas o sofrimento foi por tua opção. Foste o
- Vejam só! Estás fazendo progressos! mais festejado dos mortais deste início de
Esquentas-te. Abandonas enfim a cortesia e Século, meu caro. O mundo todo esteve
a esquiva. (e, aproximando-se do rosto de literalmente aos teus pés! Não te faltou
SD, olho a olho) - Lembraste, não é? talento, não o negamos. Mas não te
preocupes. Nossos métodos não são
SD violentos, como dizem as lendas. Tu mesmo
- Eu era apenas um garoto sonhador. Vocês saberás como encontrar-nos na hora em que
iludiram-me e agora tentam aproveitar-se te convenceres disso. Mas, de agora em diante
disso. Não passam de escroques sórdidos; eu... e até lá, tu não farás mais coisa alguma, serás
um pária da sociedade, trarás má sorte às
MEPHISTO pessoas em tua volta e, aí sim, conhecerás,
- Acalma-te, Alberto. Não te esqueças de que finalmente, aquilo que chamas sofrimento!
tivemos a honestidade de avisá-lo
previamente de tudo. Dos antecedentes e das SD (furioso)
conseqüências. Sempre negociamos - Vossas maldições não me atingirão,
corretamente. A outra parte é que tenta canalhas!
trapacear. Deixamos claro que eras um
escolhido. Até fornecemos-te um recorte do MEPHISTO
jornal “Reformador”, publicado em 1º de - Ora, ora... estás perdendo a fleuma?! Não
agosto de 1883, e que trazia uma mensagem se tratam de maldições, é a dura realidade!
profética a teu respeito, recebida quando Nossa proteção sobre tua pessoa encerrou-
ainda tinhas três anos! Ainda o guardas se; tua alma já é nossa! E tempo é o que
naquelas pastas de recortes, eu sei. Queres nunca nos faltou para aguardar-te. Por isso
que eu o localize? não te chateies. Não és um cristãozinho
qualquer, e não mereces o tédio que te seria
SD o paraíso cristão. Estarás entre os grandes da
- Aquela notícia pode ser uma charlatanice, nossa imensa galeria. Terás, ao teu lado,
e não diz que seria a minha pessoa que... almas como a tua; muitas delas daqueles que
assinam as obras que tu conservas com tanto

131
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

desvelo nessa requintada biblioteca. E não - Um momento, cavalheiros, o Sr Santos-


há nada que possas fazer para impedi-lo. Dumont não se encontra. Não deve tardar. O
Portanto, meu caro Alberto, aguardo-te; mandato diz que não é necessária a sua
quando quiseres! (e desaparece) presença, que podem arrombar cofres e
paredes, etc. Mas nada disso será preciso, não
SD (gritando para o nada) é? Somos pessoas educadas, civilizadas. O Sr
- Vocês não podem!... Vocês não podem.... Santos-Dumont não é um espião, todos
sabemos. Não desejariam entrar e aguardar
Cai sentado, exausto, no divã. Olha para a um pouco enquanto tento localizá-lo por
taça vazia sobre a mesa e para a barquilha telefone? Os cavalheiros hão de convir que
sobre o tapete. Começa a chorar. não eram esperados...

O COMANDANTE DO DISTRITO
SEQUÊNCIA 84 - Não devíamos prender logo esse alemão?...

Noite estrelada em Paris. SD está no seu FERBER


observatório astronômico, no alto da cúpula - Ele não é alemão; é austríaco.
aberta, observando a sua constelação de
Câncer, sobre a qual o planeta Saturno se O COMANDANTE DO DISTRITO
posiciona naquele dia. Seu rosto está lívido, - É a mesma coisa...
suas feições entristecidas. Toca o interfone.
RENARD
AUGUST (in) - Comandante, apesar de estar cumprindo
- Chegaram, Senhor. atribuições legais e judiciárias, está ciente de
que está sob o comando do Serviço Secreto?
SD (in, calmamente)
- Faça como combinamos, August. E... August, O COMANDANTE DO DISTRITO
foi bom tê-lo junto. - Sim, senhor.

AUGUST (quase chorando, sob os sons RENARD


insistentes da campainha) - Então peço-lhe que limite-se a fazer o que
- O mesmo digo eu, senhor. Vá tranqüilo. tem de fazer, e obedecer minhas ordens.
Não o esqueceremos. Somos orgulhosos de
tê-lo tido como patrão. Desligo agora, devo O COMANDANTE DO DISTRITO
atendê-los. (desliga) - Sim, senhor.

August vai até a porta enxugando os olhos e FERBER (já entrando prepotentemente)
abre-a. Lá estão o Cap. Ferber, o Coronel - Quinze minutos, no máximo, August. Sirva-
Renard e o Comandante do Distrito da nos um café, para começar. E para os nossos
Gendarmeria, que entrega-lhe um papel da homens. Somos onze ao todo.
justiça. August recebe o papel, coloca
demoradamente os óculos de leitura e começa AUGUST (trêmulo)
enfim a ler. - Pois não, Senhor. Mas hoje é dia de folga
dos criados. Terei eu mesmo de preparar o
RENARD café.
- Temos pressa, senhor. Por favor, o Sr Santos-
Dumont está? RENARD
- Aos diabos, com o café, August. Localize
AUGUST (ainda lendo o mandato e pedindo, Santos-Dumont. Se achá-lo quero falar
com a mão, que o aguardem acabar) pessoalmente. E não esperaremos quinze

132
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

minutos. Cinco, é o que Você tem. bomba de bicicleta e vestindo-o, cheio. Em


Aguardamos aqui no hall. Vá. seguida, abre o armário de Pedro e
experimenta roupas do amigo, baixinho
August, um pouco afobado, tenta pegar-lhe como ele, mas gordo.
as capas e os chapéus mas Renard não dá
tréguas. Corte para o Cel Renard, o Cap Ferber e os
seus homens impacientes no hall do
RENARD apartamento de SD. O Cel Renard abre a porta
- Nós nos arranjamos, August, encontre-o. da sala de jantar e vê August, afobado, no
telefone colocado improvisadamente num
August faz uma reverência e sai. caixote, e os móveis cobertos com pano.

RENARD
SEQUÊNCIA 85 - Seu tempo esgotou-se, August. Vamos
entrar. Parece que estamos de mudanças,
SD já no piso da oficina aciona o comando hein? Ferber, creio que chegamos bem na
de fechamento da cúpula e, em seguida, uma hora!
série de chaves elétricas e alavancas. Depois,
acesas apenas as luzes de serviço, vai até um O COMANDANTE DO DISTRITO
dos bonecos de borracha, tira-lhe o colete - Sabia que o alemão estava escondendo
que vestia, pega uma bomba de encher pneu algo...
de bicicleta e vai para as grandes portas de
correr que dão para o pátio. Aciona a FERBER
alavanca de abertura apenas o suficiente para - Não é alemão; é...
que abram um pouco mais de um metro e
retorna-a para a posição de fechar. Enquanto AUGUST (ainda ao telefone)
elas se fecham, ele escapa para o pátio. A - Não consigo encontrá-lo, senhor.
câmera fica na oficina e vê as portas
fecharem-se e com isso acender RENARD (já abrindo a outra porta)
automaticamente um grande holofote - Penso que não o encontrará mais, August.
vermelho com foco direcionado para a porta Vamos, pessoal.
que dá para o apartamento.
Chegam todos pelo largo corredor até a
Corte para SD no pátio, falando com as mãos bailarina de Degas. Renard mexe-a e a
com o Sr Louis. SD sobe para o alto da portinhola abre-se.
carroceria do carroção e o Sr Louis a dirige
para que encoste perto do muro do pátio RENARD (berrando para August que vinha
que dá para a servidão do interior da quadra. atrás dos outros)
SD salta para o muro e pula para o outro - Você não sabe o segredo, não é August?
lado. A câmera, em grua alta, vê o carroção
saindo para a rua enquanto SD caminha pela AUGUST
servidão em direção aos fundos do - Não, senhor. Somente o patrão o conhece.
apartamento de Pedro.
RENARD (apontando para o especialista em
Corte para o carroção do Sr Louis sendo cofres)
revistado por gendarmes na rua Washington, - Dê uma olhada.
perto do portão.
O rapaz chega-se até a portinhola e observa
Corte para SD no interior do apartamento de o mecanismo com atenção.
Pedro Guimarães inflando o colete com a

133
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

O ESPECIALISTA O GENDARME (liberando o cocheiro e


- É dos mais sofisticados, senhor. fazendo sinal para a barreira)
- Pode passar!
RENARD
- Quanto tempo? Corte para o especialista terminando seu
trabalho, com os oficiais aflitos em volta.
O ESPECIALISTA August vê tudo à distância, do outro lado do
- Entre dez a doze minutos, se tivermos sorte. corredor.

RENARD O ESPECIALISTA
- Comece. (e, para o Comandante da - Consegui! Posso acionar o mecanismo?
gendarmeria) - Está tudo cercado?
RENARD (para Ferber)
O COMANDANTE - Avise ao General. Vamos entrar. (e, para o
- Sim, senhor. Todo o quarteirão está especialista) - Acione!
policiado. Ninguém entra ou sai sem ser
identificado.
SEQUÊNCIA 86
O especialista começa o seu trabalho,
colocando ao ouvido um auscultador de Ao acionar a alavanca, o fundo do corredor
médico e aplicando a outra ponta ao começa a abrir-se lentamente, deixando
mecanismo, girando-o lentamente. Pede passar uma forte luz vermelha que cega a
silêncio a todos. todos.

Corte para SD saindo do prédio de Pedro, Corte para o detalhe interior da porta
com as roupas, o chapéu e o “corpo” de acionando um mecanismo de disparo, ao
Pedro, e com o rosto enfaixado e engordado, encostar no batente.
como se estivesse com dor de dente. O
próprio porteiro o cumprimenta como se Ao ser disparado, corte para um fonógrafo
fosse Pedro. Ligeiro, SD entra numa cupê de rolo sendo acionado automaticamente, no
que já o aguardava na porta. O cocheiro observatório, perto da cúpula.
arranca e pára logo em seguida numa barreira
de gendarmes. Um deles aproxima-se da Corte para a câmera no piso da oficina com
janela da cupê, trazendo uma lanterna na várias luzes vermelhas piscando e uma
mão. campainha tocando insistentemente em alto
volume, e mostrando o Cel Renard e seus
O GENDARME homens entrando na oficina com as mãos
- Documentos, senhor. sobre os olhos, para protegê-los do foco de
luz vermelha do holofote. Ouve-se uma voz
SD entrega os documentos de Pedro. O metálica, emitida por vários alto-falantes.
gendarme aproxima a lanterna dos
documentos e depois chega-a para perto do A VOZ
rosto de SD, tentando comparar o retrato. - Atenção! Atenção! Mecanismo de
autodestruição acionado! Invasores devem
O GENDARME retirar-se imediatamente para desativação do
- Está com dor de dentes, senhor? sistema. (repete, e continua) - Trinta segundos
para a autodestruição... 29 segundos...
SD (falando como se não pudesse encostar (campainhas e sirenes começam a tocar
os dentes) ensurdecedora e intermitentemente)
- Sim, tenho de correr ao dentista.

134
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

O Cel Renard percebe o mecanismo sirenes azucrinando e desorientando todos


disparador no batente da porta de entrada e os homens. E a voz continua: 7 segundos... 6
dá um sinal para um de seus homens para segundos...
que pegue rápido uma picareta que viu de
relance na ferramentaria. Renard, enquanto FERBER (da porta)
isso, tenta observar a oficina, em meio às - Vamos sair daqui! Vou fechar a porta!
luzes piscando, e faz uma exclamação de
deslumbramento. O homem chega com a Todos correm para a porta
picareta. A voz continua: 23 segundos... 22 atabalhoadamente, trombando-se,
segundos... engarrafando-se nela, carregando o corpo
desacordado do homem fulminado. Renard
RENARD (apontado um lugar na parede) é o último deles e vai saindo calmamente,
- Quebre aqui! tentando ainda observar a oficina,
deslumbrado.
O homem mete a picareta na parede. Quando
a voz diz “20 segundos...”, uma série de FERBER
pequenos relâmpagos e coriscos elétricos - Fechando a porta! Fechando a porta!
começa a percorrer assustadoramente toda a
extensão das estruturas, trilhos, e tubulações 4 segundos... 3 segundos...
metálicas da oficina. Os homens ficam
desnorteados dentro da oficina, Renard passa pela porta já fechando-se quase
amedrontados, sem saber o que fazer. O que totalmente.
homem da picareta paralisa-se assustado. A
voz continua: 17 segundos... 16 segundos... 2 segundos... 1 segundo... Súbito, pequenas
15 segundos... Renard, o único que não perde cargas de dinamite estrategicamente dispostas
a calma, ordena. ao longo das paredes e locais chaves da
oficina começam a disparar em ritmo
RENARD programado, uma a uma. A porta fecha-se,
- Quebre aí, para desativar o sistema. (o cortando a poeira e a fumaça das explosões.
homem vacila, ele reforça) - Quebre! A câmera permanece lá dentro, focalizando
detalhes das explosões, numa sequência
O homem mete outra vez a picareta na parede vertiginosa de pedaços de bonecos,
e ela enterra-se fundo, encostando num cano aeronaves, máquinas, tecidos, rolos de filmes,
de condução de eletricidade. Imediatamente, ferramentas, livros preciosos, móveis, produtos
um raio, como se saísse de dentro da parede químicos, tudo voando pelos ares,
pela sua picareta, fulmina-o e ele cai estilhaçando-se em pedaços incandescentes.
desmaiado no chão. Começam a ruir tubulões e pedaços das
estruturas em chamas, fumaça negra
13 segundos... 12 segundos... misturando-se à fumaça roxa. O grande
termômetro de um dos pilares centrais mostra
RENARD (para os outros) a temperatura elevando-se rapidamente,
- Peguem-no, depressa, levem-no para fora! ultrapassando os 80 graus centígrados. Em
seguida explode.
Ao dar 10 segundos, as bocas da tubulação
de ar temperaturizado começam a expelir Corte para uma vista externa, em grua alta,
uma grossa fumaça roxa, em grandes e com o galpão em primeiro plano e Paris
densos vômitos, que vai tomando todo o noturna ao fundo. A cúpula de vidro da
ambiente rapidamente, criando uma oficina explode violentamente e começa a
alucinada atmosfera de luzes piscando, deixar passar um grosso e espesso rolo de
coriscos faiscando, campainhas tocando e fumaça negra subindo em direção ao céu

135
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

estrelado. A câmera vai afastando-se, impermeável e segurando o chapéu, ele


mostrando, na rua, carros de bombeiros parece querer desafiar a fúria dos ventos, da
aproximando-se em meio ao grande tumulto chuva torrencial, e dos relâmpagos insistentes
e movimentação de guardas, militares e e poderosos. Seu rosto impassível recebe
curiosos. rajadas de vento e de água sem mexer um
músculo.

SEQUÊNCIA 86 Corte para SD passeando tranqüilamente nos


jardins do Palácio Imperial em Petrópolis.
Nessa sequência, as imagens ocorrem junto Lindo dia, de luz solar fulgurante da serra.
com as vozes em off, de Georges, em Paris, Um pequeno monoplano passa voando,
correspondendo-se por cartas, com sua irmã cortando o céu azul.
freira, no Convento em Petrópolis. Duas
diferentes narrativas, editadas Manchetes de jornais brasileiros:
simultaneamente, uma nas imagens a outra “ÁUSTRIA DECLARA GUERRA A SÉRVIA”
em áudio, aqui dispostas alternadamente, “ALEMANHA DÁ ULTIMATUM”
primeiro o áudio e, em seguida, as imagens
correspondentes. VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
“Querido irmão. Já aprendi a perdoar heresias
VOZ DE GEORGES (em off) e compreender os homens e seus desatinos.
- “Querida mana, a destruição da oficina de Você sempre terá a minha bênção e o que
Santos-Dumont com todos os seus arquivos ela lhe valer. Pode abrir-se comigo quando
foi um segundo golpe na minha infeliz desejar; sei que enfrenta terríveis dificuldades
existência. A imprensa abafou o caso e o e rezo muito por Você. Não perca a sua fé. O
Governo Francês chegou até a pedir Sr Santos-Dumont veio visitar-nos ao
desculpas formais a Alberto. Porém, muito Convento. Foi um alvoroço! Todas as irmãs
tarde. A loucura e a alucinação já tomavam queriam vê-lo, conhecê-lo, pois ele é o mais
conta do meu grande amigo. Longo tempo famoso dos brasileiros. Foi muito gentil e
ainda tenho de aguardar para reencontrar- cavalheiro com todas nós e, especialmente
me com os meus próprios arquivos, se é que comigo, dando-me uma atenção especial e
um dia os reencontrarei. A Europa prepara- particular. Pude sentir de perto os seus
se para uma guerra cruel. Aleijados mentais sofrimentos: como é atormentada a sua alma!
dominam poderes bélicos de grande Um pandemônio de paixões!”
capacidade de destruição e não resistem ao
desejo de utilizá-los sobre nossas cabeças. SD sobe a escadinha da “Encantada”,
Escrevo-lhe para pedir sua bênção, porque construída de tal forma que só se pode subi-
todos esses fatos fazem aumentar o meu la começando-se com o pé direito. Pedreiros
desprezo pela dão os últimos
humanidade ao retoques na parte
ponto de atingir o externa da pequena
seu próprio casa. SD observa e
Criador.” comenta detalhes.
Um barulhento
SD está a bordo do biplano passa em
Lutéce, que enfrenta baixa altura sobre o
uma furiosa telhado.
tempestade em alto
mar. Sozinho no É noite na
convés deserto, A "Encantada": "construida de tal forma que só se pode subí-la “Encantada”. Na
vestindo um começando-se com o pé direito." pouca luz de um

136
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

abajur, o atormentado SD tenta escrever. preparando um café com leite à sua maneira:
Rascunha alguma coisa, lê-a, e, nervoso, mistura uma certa quantidade de pó ao leite
amarrota o papel e joga-o na cesta. quase fervendo. Espera ferver e passa o
conteúdo coando-o direto para uma xícara
Outra manchete de jornais brasileiros: grande. Bebe-o devagar. Ao dar um gole
“8 DE AGOSTO: ALEMANHA DECLARA percebe uma sombra do lado de fora de uma
GUERRA À FRANÇA E INVADE A BÉLGICA” das janelas. Vê o vulto de Mephisto, vai até a
porta e abre-a. Aos seus pés, a luz da manhã
VOZ DE GEORGES (em off) bate sobre o jornal do dia com a manchete:
“Querida irmã. Sei que entende de almas mais
do que eu. Quando me fala das paixões da “KAISER MANDA AVIÕES BOMBARDEAR
alma de Alberto, creio que refere-se às ESCOLAS E HOSPITAIS: 2OO MORTOS!”
paixões latentes,
n u n c a SD estarrecido lê
exteriorizadas. Pois a manchete.
a aeronáutica foi a Embola o jornal e
sua única e faz uma fogueira
tirânica paixão! com ele na porta
Nunca amou nada da “Encantada”.
ou ninguém além Os passantes dão-
da aeronáutica e no como doido,
seus modelos, por através de gestos
A casa de Cabangu, Minas Gerais, onde nasceu SD.
ele mesmo com o dedo ao
inventados e construídos. Não mais o vi desde ouvido. A câmera aproxima-se do fogo até
que se foi. Mas sei que o Alberto que Você que as labaredas tomem conta do quadro.
conheceu é um morto-vivo! Não existe Ao afastar-se novamente mostra as labaredas
Alberto Santos-Dumont sem o seu próximo de uma fogueira frente ao rosto de SD, numa
projeto “número tal”! Não é possível sequer animada festa junina, em Cabangu, onde
imaginá-lo sem os impulsos dessa energia todos dançam, cantam e brincam, menos ele.
criadora ininterrupta. Sua vida foi como a de Por trás do fogo, o sombrio semblante de SD
uma flecha disparada ao alvo por um é o único infeliz da festa de São João, com
poderoso Maciste. E o acertou em cheio. Ao muitos balões acesos subindo aos céus.
fazê-lo, abriu as portas à humanidade para o
vôo mecânico. E ninguém mais quer saber VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
da flecha, imóvel, inútil e desgastada, após “Irmão querido. Seu ceticismo é fruto das
ter cumprido o seu papel.” grandes adversidades que está passando
agora; não culpe o passado. Recebi cartas de
SD arruma bagagens na papai e todos em casa estão
“Encantada”. empenhados em ajudá-lo
nessa crise terrível. Contar-
Corte para SD em Cabangu, lhe-ei, por isso, um segredo,
passeando a cavalo pelos que talvez o alivie um pouco.
lindos grotões das gerais, Quando o Sr Santos-Dumont
num belíssimo dia. Um esteve no Convento, deixou
pequeno bimotor, muito com a Madre Superiora, dois
barulhento, sobrevoa a envelopes. Um com uma
região. expressiva quantia em
dinheiro brasileiro, como
SD de novo na “Encantada”, donativo ao Convento, e
atormentado, nervoso, "... passeando a cavalo pelos grotões..." outro, aromatizado em

137
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

almíscar, para mim, contendo um cheque de ÁUSTRIA RENDEM-SE AOS ALIADOS”


50 000 francos de um Banco Suíço e um “CONFERÊNCIA DE VERSAILLES
bilhete pedindo-me para enviá-lo a Você, pois ESTABELECE CONDIÇÕES DE ARMISTÍCIO”
sabia que atravessava dificuldades
financeiras. Pedia-me também que nada lhe SD, sempre solitário, auxiliado apenas por
dissesse. Enviei o dinheiro para papai, uma mucama, organiza uma grande bagagem
rogando-lhe que também lhe ajudasse. Você para viagem.
sabe, a situação tem sido difícil em nossa
casa paterna. E, como vê, o Sr Santos-Dumont Corte para dentro do trem, na baixada
não é apenas uma flecha morta. Seu coração fluminense, indo para o Rio. Sentado, ele
é sensível, e, apesar de dolorido, está vivo e observa uma esquadrilha de biplanos
pulsando por Você, por nós e pela fé.” exercitando-se sobre o Campo dos Afonsos.
Seu rosto parece de pedra.
Imagens da Primeira Grande Guerra. Ataques
aéreos furiosos de biplanos com bombas e VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off)
metralhadoras cuspindo fogo sobre vilas e “Mano. Nada disse ao Sr Santos-Dumont e
lugarejos. Bombas espatifam frágeis telhados Você precisa convencer-se de que ele é o
de cerâmica, e arruínam estábulos e seu maior e mais leal amigo. É preciso
construções de madeira. Rostos de pilotos com também que pare com suas lamúrias e
óculos e capacetes de couro. Superposição enfrente a vida de cabeça erguida. Você não
com máscaras de gases. Canhões antiaéreos é um tolo nem um pusilânime. Todos temos
acoplados em vagões de trens. Esquadrilhas orgulho de Você em nossa casa, e ninguém
aéreas em vôo. se queixa dos sofrimentos que estamos
passando, nem o culpamos por eles. Sabemos
SD, na solidão da noite, na “Encantada”, chora que Você é uma vítima desses acontecimentos
copiosamente. e da crueldade humana, que tem boa índole
e, como bons cristãos, o amamos, rezamos
VOZ DE GEORGES (em off) por Você e o ajudamos com tudo o que
“Querida mana. Minha vida é toda uma possuímos, sem lamentar.”
sequência de desastres. E o maior deles é a
situação em que coloquei nossa família com SD no convés do moderno “La Bohéme”,
minhas trapalhadas. Tudo parece cair sobre num belo dia, aproximando-se da Ilha da
minha cabeça como um terrível castigo, sem Madeira. Um hidroavião sobrevoa o navio e
deixar-me opções. Não sou talhado para a pousa perto do cais.
guerra. Não possuo talento para sangrar
homens e estripá-los em batalhas. Sei apenas Sequência de um passeio solitário de SD pelo
usar o pincel e a pena. Não devia ter-me dito mundo: Egito, Grécia, Arábia, Itália, nos
sobre a ajuda de Alberto. Meu orgulho agora clássicos cartões postais. Sempre, um ou mais
impede-me de escrevê-lo. Nunca havia aviões interferem nos “cartões postais” em
mencionado a ele minhas dificuldades, e movimento.
ainda não sei como ele o soube; espero que
não tenha sido Você, querida irmã, na sua VOZ DE GEORGES (em off)
boa fé e ingenuidade cristã. Sei que nosso “Querida irmã. Enfim acabou-se a maldita
pai assumiu a ajuda como dívida e que ela guerra. A Europa hoje é um mar de aleijados
foi a salvação de um tenebroso impasse. Mas e mutilados. Músicos sem braços, escritores
isso ainda não basta para o orgulho com que sem mãos, pintores sem olhos, atores sem
fui criado desde a infância.” pernas, cantores sem voz, e mais restos
humanos arrasados e espalhados por todos
Manchetes de jornais brasileiros: os cantos. Mas o pior é que o aleijado mental
“2 DE NOVEMBRO DE 1917: ALEMANHA E ainda sobrevive e permanece impune depois

138
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

da catástrofe que provocou. A saída que vejo idade, abre a porta. Por trás dela, uma bruaca
para a Humanidade é a experiência de Lenin, imunda, de uns quarenta, surge, segurando
na Rússia Soviética, mas não creio que possa na mão uma coxa de pato, mastigando-a com
durar muito tempo. Aleijados mentais a boca aberta.
proliferam-se por todas as partes e também
lá já devem estar realizando o seu trabalho A BRUACA (olhando SD de cima abaixo, sem
de destruição. Só não sou ainda um interromper a barulhenta mastigação)
comunista porque não consigo ser ateu. - O que deseja?
Confesso-lhe que tentei, mana, e perdoe-me
o desabafo. Sinto a falta de Alberto mas não SD (olhando o envelope de uma velha carta)
concordo com Você quando diz que ele é o - O Senhor Georges Goursat reside nesse
meu maior amigo. Ele é o meu único amigo! endereço?
Peço-lhe que procure notícias dele, passe-
lhe o meu novo endereço e as minhas A BRUACA
lembranças. Diga-lhe que tenho saudades.” - Quem?

SD chega em Paris e vai de táxi até o seu SD ia repetir mas um voz rouca de homem,
velho endereço no Champs Elysées. Desce vinda de dentro do cortiço se fez ouvir.
do automóvel e começa a refazer a pé, o
percurso que gostava de fazer nos bons A VOZ DE HOMEM
tempos. A Paris outonal está linda, mas as - É o artista, mulher, o tal do Sem!
pessoas estão feias e pobres. Mutilados de
guerra, em muletas, cadeiras de rodas ou SD balançou positivamente a cabeça.
pedindo esmolas a todo instante.
A BRUACA
- Ah, sim! Mudou há tempos. Deve ter
SEQUÊNCIA 87 recebido algum dinheiro. Pagou o que devia
por aqui e foi-se.
Ao chegar na complicada travessia da Place
de la Concorde, reconhece o guarda que SD
sempre parava o trânsito para ele passar. - Deixou algum endereço?
Alegra-se, um raro sorriso começa a esboçar-
se em seu rosto, e, sem pensar, começa a A BRUACA
atravessar perigosamente a rua em direção - Qual! Mal deu boa noite. Pegou suas coisas
ao gendarme. Este, furioso, dá um estridente e sumiu.
apito, faz um sinal autoritário para que se
volte e olha bem nos olhos de SD.
SEQUÊNCIA 88
O GENDARME (vociferando)
- Onde pensa que vai, velho idiota! Quer Corte para SD na estação ferroviária
morrer? comprando passagem para Biarritz.

O rosto de SD transfigura-se. A tormenta o SD dentro do trem observa uma esquadrilha


abate novamente. aérea exercitando-se sobre a sua conhecida
paisagem das propriedades dos Rothschild,
Corte para um táxi parando na porta de um onde pousou com Machuron após sua
cortiço num bairro infecto de Paris. SD, primeira ascensão em balão esférico (a
elegante, desce do carro, sobe uma pequena saudosa cena do passado repete-se diante
escada até a porta do cortiço e bate. Uma dos seus olhos envelhecidos e tristes que,
menina escrofulosa, de uns seis anos de por alguns instantes, se tornam alegres e

139
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

rejuvenescidos). O trem chega a Biarritz. SEQUÊNCIA 89

SD desce de um táxi no Sanatório de Biarritz Prado na estação de Biarritz recebe o jovem


e entra. Jorge Villares. Neva forte. Ambos estão
pesadamente agasalhados.
No seu apartamento privativo no Sanatório,
SD, completamente enrolado nas cobertas, PRADO (ajudando Jorge com as bagagens
como se fosse uma múmia, deixando de fora de mão)
apenas o nariz para respirar, acorda - O quadro não é bom, Jorge. Mas os médicos
sobressaltado em meio aos pesadelos. dizem que está melhorando depois que
cheguei.
SD (sobressaltado na cama)
- Eles não podem!... Eles não podem!... JORGE
- E como ele está agora,
Entram um médico e Dr Prado.
uma enfermeira e
aplicam no trêmulo e PRADO
doentio SD uma dose - Fraco. A doença está
cavalar de calmante. Ele progredindo mas não é
não opõe resistência ao a maior preocupação.
tratamento. Aceita-o Mentalmente tem
passivamente, períodos de melhoras e
balbuciando “eles não recaídas. Fica a repetir
podem...” “eles não podem..., eles
não podem...”, mas eles
Corte para SD sentado quem, meu Deus?!
numa cadeira de vime
ao lado de uma janela JORGE
do sanatório, enrolado - Precisará companhia
num cobertor. É dia e permanente. A família
neva lá fora. SD está enfim começou a me
catatônico e imóvel. ouvir. Não poderá ficar
Batem a porta. Ele não "... seus olhos brilham..." sozinho nunca mais. Seu
se move. Repetem a batida com mais força. telegrama decidiu a questão.
Nada. Enfim ouve-se o ruído de uma chave
e entra Prado, também envelhecido, seguido Entram no táxi e saem.
por um enfermeiro.

PRADO (meio afobado) SEQUÊNCIA 90


- Alberto! Alberto!
A limusine de Adrien pára frente ao edifício
SD reage. Seus olhos brilham. Um sorriso de apartamentos onde mora Georges, num
chega a despontar em seus lábios. Ele bairro pobre de Paris. (Legenda: Paris, agosto
levanta-se com dificuldade diante do de 1928) Georges aguardava-o na calçada. A
estarrecido Prado. porta de trás da limusine abre-se e ele entra.
Dentro da limusine, Adrien e Georges
SD (abraçando Prado em prantos) cumprimentam-se calorosamente.
- Pradô, meu amigo. Você não se esqueceu
de mim... ADRIEN (envelhecido, mas forte e saudável)
- Vinte anos, meu velho! E milhares de fios

140
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

brancos em nossas cabeças, hein? Senti falta arranha-céu, estilo art-deco, com néons e
de Você, Georges. luminosos na fachada. Começa a anoitecer
em Paris.
GEORGES (também envelhecido, mas fraco
e acabado) Os dois entram no imenso hall de mármore
- Eu também de Você, Adrien. Como está em de carrara, no interior do edifício. Um
Avignon? funcionário uniformizado os aguarda.

ADRIEN O FUNCIONÁRIO
- Dedico-me a editar e revisar os livros do - Sr Adrien Hébrard?
meu filho Jean Paul, o jovem filósofo -
revelação da Sorbonne. Mas a maior parte Adrien cumprimenta-o.
do meu tempo entrego-o às delícias da
agricultura e do pastoreio no campo. Nunca O FUNCIONÁRIO
entendi tão bem Dionisius como agora, meu - Sigam-me por favor, cavalheiros.
caro, só faltou-me tê-lo visto em carne e osso.
Os três entram por uma porta térrea que dá
GEORGES para um interminável corredor interno, e,
- Pois, para mim, a vida tem sido uma após percorrê-lo quase todo, descem dois
madrasta, Adrien. Não sei quantos pecados lances de escada para o subsolo e entram
cometi para merecer tantas desditas. por uma porta de uma sala cheia de grades e
pesadas portas de cofres. Os carregadores
ADRIEN contratados por Adrien já aguardavam. Uma
- Ora, Georges, não fique se culpando. funcionária do setor os atende. Adrien
Nossos arquivos estão à nossa espera. Hoje entrega-lhe os papéis, a moça os confere e
é o dia do resgate, meu amigo; o resgate da dá ordens para os funcionários dentro do
História! cofre.

GEORGES (amargo) A MOÇA


- A História é um pesadelo do qual não posso - Lotes número 38, 39, 40, 41...
despertar.
Os funcionários vão trazendo as caixas
ADRIEN lacradas com assinaturas sobrepostas aos
- Trouxe comigo toda a documentação e já lacres, passam-nas ao exame de Adrien e
peguei ao tabelião o alvará de liberação. É Georges, que conferem os lacres e o
só chegar ao jornal e pegar tudo. Contratei sobrescrito de conteúdo, e, depois, entregam-
uma camioneta e dois homens. Vamos levar nas aos carregadores, que as levam embora.
tudo para o meu castelinho em Avignon,
inclusive Você. E por tempo indeterminado! A MOÇA
Só o solto depois de vê-lo gordo e bem - Lotes 48, 49, 50, 51, 52....
disposto. Enquanto isso trabalharemos nos
arquivos, desenterrando os nossos tesouros. Georges começa a ficar aflito. Confere várias
Tudo regado a bons vinhos e excelente vezes o documento que lista o conteúdo dos
comida do campo, hein? Que tal? lotes. Seus arquivos, rotulados “Aeronáutica”,
estão indicados com os números de 57 a 62.
Ele ouve então a moça a ditar.
SEQUÊNCIA 91
(O novíssimo “Le Temps”) A MOÇA
A limusine estaciona em frente ao novíssimo - Lotes 63, 64, 65, 66...
“Le Temps”, que agora ocupa um grande

141
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

GEORGES (interrompendo-a) LAZARE (presunçoso e petulante)


- Espere, moça, e os lotes 57 a 62? - A que devo essa repentina visita, Sr Adrien,
para não dizer invasão?
A moça pega novamente a lista e confere-a.
ADRIEN (quase sem se conter, abanando os
A MOÇA papéis do tabelião na cara de Lazare)
- Tem razão, Senhor, saltei esses números. É - A que deve? Sabe que dia é hoje, Sr Lazare?
porque as caixas devem estar fora de ordem. (e, como sempre, indo direto ao assunto) -
Um momento, sim? O que foi feito dos arquivos sobre Santos-
Dumont?
Entrou no cofre e lá demorou-se por algum
tempo. Georges e Adrien entreolhavam-se LAZARE (cínico, com uma ponta de
aflitos. Enfim, a moça retornou. arrogância)
- Eu não sei, Sr Adrien. Como é do seu
A MOÇA conhecimento nada tenho que ver com esses
- Não temos os lotes 57 a 62, senhores, não arquivos. Eram secretos também para mim,
sei o que dizer... lembra-se?

Georges quase desmaiou, ficou branco feito ADRIEN (contendo Georges que já queria
cera. Adrien avermelhou-se de ódio. partir para cima de Lazare)
- Não nos trate como idiotas, Lazare. Exijo
ADRIEN respostas!
- Esses patifes!
LAZARE (olhando sem interesse os papéis
Reparou que Georges preparava-se para fazer que Adrien voltava a lhe exibir e continuando
o bafafá. Conteve-o. a demonstrar desprezo por Georges)
- O que sei é que houve problemas nas
ADRIEN mudanças para cá, Sr Adrien. Ouvi falar de
- Ninguém aqui tem haver com isso, Georges. um incêndio num dos caminhões. É tudo que
Vamos ao Lazare, siga-me. sei, posso mandar averiguar; e é só o que
posso fazer. Agora, se me derem licença,
senhores, sou candidato a uma cadeira na
SEQUÊNCIA 92 Câmara de Deputados e estou em plena
campanha... (toca a campainha, chamando
Georges e Adrien de caras feias, sobem no os assessores, que entram imediatamente)
elevador. No 12º andar descem e entram
decididos pela porta do Gabinete onde se lia ADRIEN (sem dar bola para eles)
“DR LAZARE WEILLER - PRESIDENT - Sei que está metido nisso, Lazare. E vai
DIRECTEUR”. A secretária tenta contê-los na pagar caro, eu prometo. Quem pensa que é?
ante-sala mas Adrien já havia aberto a porta E quem pensa que eu sou, garoto? Vai se
do Gabinete de Lazare e entrava, seguido de arrepender! Sei que Benett não precisa mais
Georges e da apavorada secretária. do Banco de seu pai, que, por sua vez, está
se arruinado por causa das suas pretensões
Lazare, agora gordo e mais velho, vestido políticas...
com elegância excessiva e de mau gosto, foi
pego de surpresa com dois de seus assessores, LAZARE (interrompendo-o, com os
mas não perdeu a hipocrisia. Dispensou assessores ao seu lado, todos de cara
educadamente a secretária e os assessores e fechada)
dirigiu-se, em seguida, a Adrien, sem sequer - Sr Adrien, não tenho de ficar aqui escutando
olhar ou cumprimentar Georges. suas acusações e nem sendo ameaçado por

142
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

jornalistas fracassados. Procurem seus - Ora, Hipólito, aquele patife merecia muito
advogados, nós temos os nossos! Hoje as mais do que umas boas pancadas. Eu só achei
coisas resolvem-se assim no mundo civilizado que não valia a pena Georges sujar as mãos
dos negócios, Sr Adrien. na cara daquele porco!

ADRIEN HIPÓLITO
- Isso é o que Você pensa, menino! Em pouco - Aquele “patife” a que se refere é o diretor
tempo vai ver que não é bem assim! Sim, presidente do maior jornal da Europa, papai.
vamos aos advogados. Mas Você pode E hoje, ser diretor de um jornal como o “Le
começar a contar, nos dedos de uma mão, Temps” é muito mais do que foi no seu tempo,
os seus dias aqui, seu canalhazinho insolente! o senhor sabe disso...
Vamos Georges! Vamos ao Hipólito! (e sai
arrastando Georges sob os olhares cínicos e ADRIEN
petulantes de Lazare e seus puxa-sacos) - Eu sei muito bem, meu filho. Mas sei outras
coisas que Você e o imbecil do Lazare não
sabem, mas agora vão ter de aprender.
SEQUÊNCIA 93
HIPÓLITO (impaciente)
Adrien e Georges entram no luxuoso escritório - Essa discussão parece ser demorada, papai.
de advocacia do “DR HYPPOLITE Vamos direto ao assunto, como o senhor gosta
HÉBRARD”. Este já os esperava em sua sala de dizer. Lazare ofereceu um acordo de 50
de trabalho. mil francos para por fim nessa confusão.
Penso que está sendo até generoso, diante
HIPÓLITO do que ocorreu...
- Não é um pouco tarde, papai? Não
poderíamos deixar para amanhã? Hoje eu... GEORGES
- 50 mil francos? Ora, Dr Hipólito,
ADRIEN francamente! É toda uma vida que está em
- Hipólito, eu não saio de Paris sem ter jogo. E não digo apenas a minha, mas
resolvido esse assunto com todos os pingos também a do seu pai e a do Sr Santos-
em seus devidos iis, entendeu? Portanto, se Dumont, essa última, principalmente. É o
quiser, pode avisar sua esposa que hoje não homem que criou a aeronáutica moderna, e
haverá Teatro, nem Ópera, nem festas ou seja naqueles arquivos estavam todas as provas
lá o que for. Vamos sentar e trabalhar. incontestáveis!

Hipólito aquiesce, rendido. HIPÓLITO


-Eu não confiaria muito nesses argumentos
GEORGES em juizo, Georges. Lembre-se que o Sr
- Não vai acreditar no que acabamos de viver, Santos-Dumont não é um francês, nem um
Dr Hipólito. O tipo mais sórdido de vingança europeu; é um brasileiro! E destruiu ele
que pode haver, não somente contra mim, próprio os seus arquivos. Conheço juizes que
mas contra o seu pai!... a última coisa que leram sobre o Brasil foi
escrita por Villegagnon há mais de três
HIPÓLITO séculos. Acham que por lá habitam índios
- Lazare ligou-me e deu-me a sua versão. Se selvagens e jacarés, e não cientistas inventores
verdadeira, ainda bem que meu pai o e aeronautas. Quanto a ser o pai da
conteve, Georges, do contrário as coisas não aeronáutica, eu também conheço juizes
ficariam boas para Você... que perderam famílias, parentes, amigos e
até pedaços do corpo estraçalhados por essas
ADRIEN máquinas na última guerra. Lamento,

143
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

Georges, ninguém mais, diabos, lembra-se número do telefone de lá. Passe-lhe também
de quem foi esse Santos-Dumont. esse número. O próprio Benett vai desejar
dar-me a resposta pessoalmente. Vamos
GEORGES Georges. (levanta-se e puxa o aparvalhado
- Mas é justamente para isso que servem esses Georges pelo braço, e saem)
arquivos, para resgatar a verdade! Lá tem
coisas que o mundo e o senhor precisam HIPÓLITO
muito conhecer. - Mas... papai, papai!

HIPÓLITO
- Ao que nos consta hoje, não sabemos se SEQUÊNCIA 94
esses arquivos realmente existem, Georges...
Adrien e Georges chegam ao café Diderot.
Durante esse diálogo Adrien ficava Adrien vai até o maitre, orienta-o sobre o
aborrecido, pensando com seus botões, sem telefonema, e pede bebidas, enquanto
prestar atenção no que falavam. Ao perceber Georges senta-se numa mesa e aguarda com
Georges novamente irritado com Hipólito ao a cara triste e pensativa. Adrien chega e senta-
ponto de uma briga séria, interrompeu-os. se também.

ADRIEN GEORGES
- Um milhão de francos, Hipólito! Um milhão - Adrien, Você está mais louco do que eu,
em “cash” como dizem os homens de homem?! Um milhão?! Eles querem nos ver
negócios de hoje, não é?E para amanhã! Esse arrasados e maltrapilhos, acha mesmo que...
é o nosso acordo.Depois de amanhã será o E o seu filho, hein? Que pustulazinha! Oh,
dobro.Estes prazos são o limite da minha perdoe-me, Adrien.
paciência!
ADRIEN
Até Georges surpreendeu-se - Não escolhemos nossos filhos, Georges.
Você não os tem por isso não entende certas
HIPÓLITO coisas. Mas é preciso que comece a entender
- Como, um milhão?! Ora, papai, Lazare nem alguma coisa desse novo mundo. Hipólito
discutirá essa proposta. Não gastará mais de não é o canalha que pareceu a Você, acredite.
20 mil para levar essa causa para as calendas É apenas um advogado, sem qualquer
gregas... Pondere, papai, Lazare quer genialidade, admito, mas que, por isso
negociar, mas assim... mesmo, está se saindo muito bem. Assim
como Lazare. Só que hoje, escaldei, e perdi
ADRIEN a paciência.
- Chegou a hora de Vocês, garotos,
aprenderem certas coisas, Hipólito. Você vai O garçom chega trazendo champagne Don
ligar ao Lazare e dizer que não aceitamos Perignon e duas taças.
menos de um milhão, com prazo de solução
ainda para hoje, e depósito em dinheiro GEORGES
amanhã pela manhã. Diga-lhe para falar ao - Don Perignon? O que estamos
Benett agora (olha seu relógio de pulso) - comemorando?
ainda é expediente em Nova York - e passar-
lhe um recado meu de três palavras: “mon ADRIEN
petit cahier”. Precisa anotar? Então anote. - Comemoração mesmo nenhuma, Georges.
Georges e eu vamos esperar a resposta no A perda dos arquivos de Santos-Dumont é
café aqui embaixo, o da esquina da impagável. Mas quando se ganha um milhão
boulevard Diderot, sei que Você sabe o de francos é justo que se beba ao menos um

144
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

bom champagne, não? (e oferece um brinde) - Como soube disso? Só mesmo o


“informadíssimo Hébrard”! A família manteve
Georges, um pouco a contragosto, aceita o um sigilo quase sepulcral de tudo!...
brinde.
ADRIEN (falando baixinho, aproximando o
GEORGES (após sorver o conteúdo da taça seu rosto do amigo)
de um só gole) - Sei tudo sobre Você e suas enrascadas, e
- É, reconheço que não entendo mais nada. também das que Você meteu seus pais e sua
E que história é essa de “mon petit cahier”? família. Desde que fui para Avignon tornei-
me Conselheiro do Banco da Agricultura. Foi
Adrien dá uma sonora gargalhada. O garçom por mim que aprovaram a hipoteca das terras
aproxima-se. do seu pai naquele valor. Seu próprio pai
veio agradecer-me. É um grande homem.
O Garçom Poucos pais que conheço dariam tudo o que
- Senhor Hébrard, o telefonema que o senhor tem pela liberdade de um filho, como ele
aguardava... fez.

ADRIEN (ainda rindo e levantando-se) Georges estava completamente apatetado,


- Conto a Você num minutinho, Georges, não não conseguia articular palavra.
devo deixar Benett aguardando na linha,
numa ligação de Nova York. Volto já. (e sai) ADRIEN (continuando)
- O resto do dinheiro é todo seu. Não preciso
Georges fica só, pensativo e acabrunhado, de mais dinheiro em minha vida. Tenho mais
duvidando da loucura do amigo. Serve outra do que o suficiente e meus filhos estão melhor
taça de champagne, bebe-a, e mais outra. ainda do que eu. Amanhã já estará
Adrien demora-se. Mais outra taça. Enfim, depositado, em seu nome, no Banco da
Adrien retorna, com um largo sorriso nos Agricultura. (e, voltando a sorrir) - Vamos,
lábios. anime-se, Georges, o que vai fazer com sua
nova fortuna?
ADRIEN
- Tudo resolvido, Georges. Vamos a outro GEORGES (ainda inteiramente surpreendido)
brinde! (enche a sua taça e completa a de - Eu... eu... eu..., não sei ainda. (e
Georges, esgotando o conteúdo da garrafa) - recuperando-se) - Ora, Adrien, diga-me, o que
Rapaz, c’est fini! Você enxuga mesmo, hein? aconteceu? Como conseguiu? É tudo tão
Garçom, traga-nos outra garrafa! rápido, estou confuso...

GEORGES (brindando novamente, mas ainda ADRIEN (brincalhão)


incrédulo) - Até se esqueceu do “mon petit cahier”, não
- O que está resolvido, Adrien? é, meu velho? É a chave da história. (e,
baixinho) - Vou dizer-lhe o que significa: esse
ADRIEN (após virar de um só gole) é o apelido que o Benett dava ao sexo da
- O que? Ora, o dinheiro, bolas! Inclusive, sua amante, a ex-senhora Henry White,
Georges, (mudou o tom de voz e a expressão naqueles bons tempos do “Le Temps”,
do rosto para dizer algo sério) tomei a lembra-se dela?
liberdade de dizer a Hipólito que 500 000
devem ser pagos diretamente ao resgate da GEORGES (tapando a boca de pasmo)
hipoteca das terras de seu pai, no Banco da - Martha? Sim, claro, era linda. Quer dizer
Agricultura... que Você também, hein, seu patife?!
(começou a rir, pela primeira vez)
GEORGES (interrompendo-o)

145
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

ADRIEN (rindo também) se viesse à tona uma história dessas?


- Sim, e só hoje Benett o soube! (gargalhadas)
- Achava que era exclusiva dele. Ficou uma ADRIEN
“arara”. Mas é hipócrita mais do que suficiente - Uma história dessas nunca viria à tona,
para não perder a fleuma. Sabe o que me Georges, a não ser que Benett fosse louco.
disse ao telefone? (mais gargalhadas, o Só ele e eu, e agora Você, sabemos disso.
garçom e as pessoas das mesas vizinhas Com esse acerto nos sentimos pagos e ele
olhavam-nos com reprovação, mas ele não sabe que pode confiar nisso. Morre aqui.
se continha e continuou rindo e imitando Quanto à Martha e Eva, são ambas belas
Benett ao telefone) - Vou lhe devolver outras parisienses, cosmopolitas, satisfeitas
três palavras que bem merece, seu grande intelectualmente, cultas e soberanas de si
patife: “son of bitch”! (mais gargalhadas mesmas. Iriam rir dessa história, como nós.
estrondosas) Rir do Benett, é claro. Também elas tiveram
de aturar a prepotência daquele garanhão
Enfim consegue conter-se e continua. americano, até mesmo Eva, minha esposa.
Martha cedeu para se vingar de White, com
ADRIEN quem casou por interesse familiar, e não por
- O Benett é sério candidato a Presidente dos amor. Em verdade não suportava o marido
Estados Unidos. Lá ele é o pai da moral e da
religião mais castiça; sua plataforma principal GEORGES
é dar escolas moralistas para todas as crianças - E quanto aos arquivos de Santos-Dumont?
americanas. (começa a rir novamente) - Já Será que aqueles canalhas...
pensou se seus inimigos - que são muitos e
tão poderosos quanto ele - ficam sabendo ADRIEN
que aquele pai da moral, da religião e da - Benett jurou-me, e pareceu-me sincero, que
educação chamava o sexo da sua amante, foi acidente mesmo. (e, em off sobre a cena
por sinal, então esposa de seu maior amigo, da explosão do caminhão, com a cara cínica
de “my little notebook”? de Mephisto dando gargalhadas, passando
em 1º plano) - O caminhão estava
GEORGES (agora já solto nas risadas) reabastecendo quando tudo foi pelos ares.
- Começo a entender... mas Você de fato Não sabiam ainda quais arquivos tinham sido
aprendeu bem nessa escola, hein? Tornou-se perdidos. (de novo, em in) - Ele mesmo
um canalha igual ou maior! Isso é chantagem, lamentou a perda, Georges, e não estava
Adrien... sendo hipócrita... São artes do demônio... elas
existem, sabia? Mas, diga—me, o que
ADRIEN pretende fazer com a sua pequena fortuna?
- Prefiro dizer vingança, meu caro, e da
melhor qualidade! É o grande deleite dos GEORGES
deuses; às vezes concedido a alguns mortais. - Acho que em primeiro lugar ajeitar minha
E Você não sabe da outra: pedi também a vida que está num caos. Reconciliar a família
cabeça do Lazare! Estará no olho da rua e voltar às boas com os meus pais, que estão
amanhã mesmo! E o filho da mãe do Benett bem velhos. São moralistas e religiosos de
é tão canalha que ainda me disse (volta a verdade, mas não como a pústula do Benett,
imitar Benett): - Nem precisava exigi-lo, meu mas como camponeses, legítimos franceses
nobre canalha, será um prazer atendê-lo; já que são. Sofreram muito com minhas desditas.
não precisamos mais daquele palerma! Depois quero realizar o velho sonho de ir ao
(ambos dão outra grande gargalhada) Brasil visitar minha irmã e ver o nosso velho
amigo e herói Santos-Dumont.
GEORGES (conseguindo conter o riso)
- E Martha? E Eva, sua esposa? O que diriam ADRIEN

146
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

- Santos-Dumont!... toda essa história de Santos-Dumont. Desde que se foi não mais
devemos a ele, pobre homem. Sua famosa o vi. Mas deve estar sofrendo terrivelmente
sorte parece que não o protege mais. Há por esse injusto boicote de que é vítima.
pouco participei da revisão francesa de uma
grande enciclopédia editada em mais de 40 ADRIEN
línguas e financiada por bancos americanos. - Soube que andou enlouquecido e internado
Vi o verbete do seu nome; é uma bazófia! em Biarritz, mas a última notícia que tive já
Tiraram-lhe toda a parte do mais pesado que era bem melhor... Onde estará ele agora?...
o ar, Georges, e ainda inventaram-lhe um
balão chamado “A Música”, que sei que GEORGES
nunca existiu. Eis no que se transformou a - Recebi ontem uma carta de minha irmã
imprensa dita “moderna”. (olhou seu relógio de pulso) - se o fuso
horário não me engana e o Cap Arcona não
GEORGES atrasou...
- De fato procuram eliminar todos os registros
dos seus feitos. E o mais grave tem sido a
criminosa omissão do seu nome em tudo que SEQUÊNCIA 95
diz respeito aos começos da aeronáutica. E
sobre os irmãos Wright, o que publicaram? A voz de Georges fica em off sobre a imagem
da chegada do Cap Arcona na Baía da
ADRIEN Guanabara numa tarde bela com o Pão de
- Nada, meu caro, absolutamente nada. Nisso Açúcar (já com o bondinho) e o Corcovado
aprenderam comigo. Estão guardando-os para (já com o Cristo Redentor) ao fundo.
a hora certa, entendeu? O momento não é
propício, muitos que sabem do embuste GEORGES (continuando em off)
ainda vivem... E quanto a Você, Georges, e à ... está entrando agora na Baía de Guanabara.
sua arte, o que andou fazendo? Os brasileiros, um tanto arrependidos pelo
descaso para com ele, quando mais precisou
GEORGES do apoio de sua pátria aqui em Paris, tentam
- Ao deixar o jornalismo, abracei os recuperar tardiamente o erro dando-lhe uma
movimentos renovadores do surrealismo e da estrondosa recepção, segundo minha irmã,
vanguarda modernista, com Marcel com preparativos ainda mais retumbantes do
Duchamp, Picabia, Picasso, Max Ernst e que a de 1903...
muitos outros. Mas também deixei-me cair
na miséria e na ruína, e creio que perdi o O Cap Arcona entra na Baía e segue para o
bonde da história, Adrien. cais. Vários barcos estão a comboiá-lo. Um
hidroavião trimotor, da empresa Condor,
ADRIEN batizado às pressas de “Santos-Dumont”,
- Os homens verdadeiramente profundos, desliza sobre o mar decolando perto do cais,
Georges, não sobem; enterram-se. Muitos e voando rasante em direção ao navio, no
anos depois de suas mortes, descobre-se, de convés do qual estão SD e Jorge Villares. Ao
repente ou pouco a pouco, o que na realidade passar pelo navio jogam do avião um rolo
valiam. A consagração oficial entroniza de papel, dentro de um tubo de borracha,
apenas os comediantes e os fantoches da arte, que cai sobre o convés. Jorge corre para pegá-
meu caro, enquanto os verdadeiros criadores lo, mas um marujo se antecipa e entrega-o a
ficam na sombra. Jorge. Jorge abre o rolo de papel e vem
sorridente na direção de SD.
GEORGES JORGE
- Talvez seja assim, Adrien, e o melhor - É uma mensagem, tio Alberto. Vou ler para
exemplo certamente não será o meu, mas o o senhor. (e começa a ler a mensagem em

147
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

voz alta, empostada, e 2), com o som das


orgulhoso do tio) - “Do explosões das bombas
alto do hidroavião que tem jogadas sobre a cidade de
o seu glorioso nome, Santos, como se fosse
precedendo a recepção que também o eco, ainda em
lhe preparou o povo da áudio, da explosão do
Capital do Brasil, vimos hidroavião sobre o mar.
apresentar ao grande
brasileiro que realizando a SD (balbuciando)
conquista dos ares elevou - Quantas vidas
o nome da pátria no sacrificadas por minha
estrangeiro, os nossos votos humilde pessoa!....
de boa vindas...”
Corte para o português da
Mas SD não prestava venda em Guarujá,
atenção à leitura empolada voltando para o balcão
do sobrinho. Seus olhos "SD vira o "Santos-Dumont" cair e naugragar..." contando o troco de Jorge,
ansiosos e preocupados ainda balançando a
seguiam a manobra imprudente do cabeça em sinal de reprovação pelo
hidroavião ao fazer um retorno perigoso a bombardeio.
poucos metros acima da linha d’água. Na
manobra, o infeliz piloto permitiu uma leve O PORTUGUÊS (olhando para os lados para
glissada da aeronave, fatal àquela altitude, e ver se encontrava Jorge)
a ponta da asa direita tocou a água, - Senhor?! Senhor? O seu troco! (e percebendo
derrubando o hidroavião que espatifou-se que já se fora) - Esses apressadinhos!...
numa horrível explosão. Em poucos
segundos o oceano engoliu todos os Corte para Jorge correndo pela rua da Vila
destroços; alguns poucos pedaços em de Guarujá, desesperadamente, segurando o
chamas ainda boiavam sobre a água. Santos- chapéu com uma das mãos, a gritar de
Dumont vira o “Santos-Dumont” cair e aflição, como um louco.
naufragar, diante dos olhares estarrecidos dos
passageiros e da tripulação do navio e das JORGE
embarcações que o comboiavam; sem deixar - Tio Alberto! Tio Alberto!
dúvidas sobre a possibilidade de
sobreviventes. Corte para SD virando-se para
dentro do apartamento do hotel.
A câmera vai aproximando-se em close do Na poltrona que ocupava
rosto arrasado de SD em lágrimas até frente à mesa do café, viu
enquadrar somente os Mephisto sentado confortável
seus dois olhos tristes, e petulantemente, sob a forma SD aos
12 anos
abertos e lacrimejantes. de Albertinho, aos 12 anos de de idade
idade, porém com as feições da
criança original alteradas
SEQUÊNCIA 96 para uma expressão
endiabrada e maliciosa,
Ao afastar-se, no movimento oposto, agravada pelas agressivas
aparentemente sem cortes, a câmera já s o b r a n c e l h a s
encontra SD na janela do Hotel de La Plage, pontiagudas. O garoto
na Praia do Guarujá, exatamente como o vestia uma roupa igual a
deixara no início do filme (final da Sequência da aparição anterior com

148
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

a indefectível capa preta forrada de veludo mas essa é uma questão de estilo. Ficai agora
carmin. Sob o olhar atordoado de SD, ele com o seu epílogo trágico, que haverá de
tira do bolso do colete uma charuteira que saciar vossa curiosidade e sede de saber.
estava na oficina secreta destruída. Retira dela Muito obrigado. (faz uma reverência e a
um charuto e o acende, como um câmera aproxima-se em macro do seu olho
connaisseur, usando o fogo saído da ponta esquerdo até tê-lo todo na tela, ele pisca e
do dedo indicador da sua mão esquerda, desaparece)
acedendo primeiro o braseiro e depois
mordendo o outro lado, sem perder o sorriso Corte para Jorge subindo os degraus da
cínico e irreverente. entrada do hotel, esbaforido, correndo,
segurando o chapéu e gritando feito louco.
SD
- Vocês? ... Vocês não podem... JORGE
- Tio Alberto! Tio Alberto!
MEPHISTO (com a mesma voz gutural)
- Homem voa, Albertinho? (dá uma Ele sobe as escadas sob os olhares dos
gargalhada, que logo interrompe com hóspedes e serviçais que agora enchem o
cinismo) - Então? Satisfeito com vossa obra? hall de entrada e chega ao corredor, em
(outra gargalhada) - Ora, Alberto, não corrida estabanada, trombando em pessoas,
entristeça-te! Sabes que, por força da nossa em carrinhos de café, em garçons e
arte, não é possível ao Homem inventar a camareiras, até chegar à porta do apto 8, que
locomotiva sem que invente, também, o não se abre por fora. Ele procura a chave,
descarrilhamento. mas não a levara. Então soca a porta com
força.
SD (resoluto, como se tivesse recuperado,
instantaneamente, a saúde) JORGE (aos berros)
- Vamos embora daqui! (e sai em direção ao - Tio Alberto! Tio Alberto!
quarto)
Garçons e camareiras chegam para acudi-lo.
No caminho SD retira o cinto de seda do seu Ele tenta forçar a porta com os ombros, mas
robe-de-chambre, enrola-o pelas pontas nas não consegue. Uma camareira chega
duas mãos e dá um forte puxão, como se correndo com a chave mestra, mete-a na
testasse a resistência de uma corda. Ao chegar fechadura, abre-a e Jorge escancara a porta,
à porta ouve a voz de Mephisto. entrando na ante-sala, seguido pelos outros.

MEPHISTO A câmera mostra o primeiro alvo do olhar de


- Não te culpes, Alberto. Esse mundo não é Jorge: a poltrona vazia! Um vento sopra a
mais o teu. O mundo é dos boçais! (e dá cortina quase transparente da janela onde
outra gargalhada) estava SD.

SD passa pela porta e bate-a por trás dele JORGE (farejando o ar)
com energia. - Hum!? Parece cheiro de tabaco?!...

MEPHISTO (levantado-se e caminhando em A CAMAREIRA (também farejando o ar e


direção à câmera) esfregando-se)
- Respeitável público! Aqui encerro minha - Eu não sinto cheiro nenhum, doutor, sinto
participação nessa história que, além de apenas uma friagem esquisita...
verdadeira, é instrutiva e reveladora. Sinto
não ter vos dado as doses de romance, sexo Um garçom chega perto da mesa do café, vê
e violência a que estão habituados nessa sala, a charuteira com as iniciais “SD”, e embolsa-

149
SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

a furtivamente, sem que ninguém percebesse, SEQUÊNCIA 98 (Réquiem)


colocando-a dentro do bolso do paletó.
Sinos dobram em todo o Brasil. Uma
Jorge corre até a porta do quarto, abre-a aos sequência de fusões rápidas de torres de
gritos de “Tio Alberto!”. Ninguém. Olha a diversas arquiteturas; neoclássicas, barrocas,
porta do banheiro e corre até ela, abrindo-a. góticas, rústicas, kitsch, simplórias, etc.
Por trás da cortina do box do chuveiro, a
sombra de SD pendurado ainda balança. Corte para o cortejo fúnebre, a multidão
seguindo pelas ruas do Rio de Janeiro. Em
JORGE (já em lágrimas) áudio o réquiem indígena “Canide Ioune”,
- Oh, meu Deus! extraído e traduzido por Murilo Araujo e
orquestrado por Heckel Tavares.

SEQUÊNCIA 97 RÉQUIEM DOS ÍNDIOS ARITIS

O tiroteio continua intenso na rua da CANTO (CORO DE MENINOS)


cidadezinha do interior de São Paulo. Do (LEGENDA/TRADUÇÃO)
lado varguista, um homem pega um
megafone e um outro hasteia uma bandeira Canide Ioune... Canide Ioune...
branca. O tiroteio cessa repentinamente. (Ave dourada, ave dourada)
Silêncio. Ninguém se mexe da posição nem
baixa as armas. Tensão. Tia ua! Tia ua!
(O corpo chora, o corpo chora!)
SARGENTO MIRANDA (berrando ao
megafone) Canide Ioune... Canide Ioune...
- Aqui é o Sargento Miranda do 33º (Ave dourada, ave dourada)
Regimento de Infantaria do Exército Federal.
Recebemos pelo telégrafo a notícia do Cemati, mamalô!
falecimento do nosso ilustre patrício Senhor (Atende a nós, oh mãe vossa)
Santos-Dumont, o Pai da Aviação. Tenho
autorização para propor uma trégua a fim Queracarê
de homenagearmos em paz o grande herói (O escravo)
da nossa pátria.
ma cauê
Tensão e silêncio. O outro lado confabula. (assim sofre...)
Alguns segundos depois...
Cecô
TENENTE CHUMBINHO (berrando, fazendo (Tão longe)
com as mãos o seu megafone)
- Aqui é o Tenente Chumbinho do 8º Zoricê
Batalhão do Exército Constitucionalista. (As estrelas,)
Aceitamos a trégua. Dois dos nossos sairão
para encontrar dois dos seus e discutir os Anuim caui
termos. (Abelhas de luz)

Os dois lados baixam as armas e os homens Aiçati acô


levantam-se descobrindo-se de suas posições (Matam dentro de nós)
e esconderijos.
Ololi olô
(As pequenas flores de ouro...)

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PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

Canide Ioune... Canide Ioune... corbeilles e coroas de flores, mostrando os


(Ave dourada, ave dourada) cartões remetentes das diversas procedências,
reis, rainhas, estadistas, cientistas, jornalistas,
Tia ua! Tia ua! instituições, personalidades, aeronautas e aero
(O corpo chora, o corpo chora!) clubes do mundo inteiro.

Sobre a música, em determinado momento, O caixão, coberto com a bandeira do Brasil,


entra a voz da irmã de Georges, em off. prossegue em direção à escultura de Ícaro,
réplica da de St Cloud, que ornamenta o
VOZ DA IRMÃ DE GEORGES (em off) túmulo da família do inventor.
“- Querido irmão. Moro há tanto tempo no
Brasil e ainda surpreendo-me e enterneço- Perto dele o cortejo pára e uma sequência
me com a natureza profundamente humana de oradores exaltados, como sempre em cena
do seu povo. A morte do Sr Santos-Dumont muda, superpõem-se em fusões rápidas.
foi um verdadeiro trauma nacional, ainda que Enfim Jorge, ao lado de Prado, dá uma ordem
todos soubessem que ele estava fraco e através de um breve sinal com a mão. Dois
doente. Repare no mapa: o Brasil tem a forma Dragões da Independência dobram
de um coração! E cada um de seus habitantes ritualmente a bandeira do Brasil e a entregam
parece trazer no peito um coração tão grande para a irmã mais velha de SD. A câmera assiste
quanto a sua imensa nação. (durante esse o caixão descer à tumba.
tempo a câmera passeia sobre o cortejo
fúnebre e mostra detalhes do povo humilde
e em lágrimas) - Aqui acontece de modo SEQUÊNCIA 99 (A Dama de Negro)
mais nítido o que também ocorre nas demais
nações. O povo humilde e pobre é mais Cemitério de São João Batista, no Rio de
sensível, mais humano e mais delicado do Janeiro, limpo, vazio e silencioso, num lindo
que as elites, geralmente, arrogantes e dia. A câmera chega na sepultura de Santos-
grosseiras, principalmente nessa terra de Dumont junto com um imponente Rolls-
fortes contrastes. É tão grande e tão elevado Royce negro estacionando. De dentro, sai um
o coração dessa gente que pediram para motorista negro todo vestido de negro, abre
guardar, como relíquia e recordação do seu o porta-malas e retira uma corbeille de flores
maior herói nacional; justamente o seu e coloca-a sobre a sepultura. Em seguida,
coração! O coração do seu amigo Alberto volta ao automóvel e abre a porta de trás
foi então retirado e conservado num escrínio para que saia uma mulher toda vestida de
de ouro para a eternidade. (a câmera mostra negro, com um véu sobre o rosto. Ela anda
o detalhe de um coroinha carregando o com elegância até a sepultura, trazendo nas
escrínio) - O escrínio que encerra o coração mãos um porta-retratos com a foto
de Santos-Dumont, é uma esfera de ouro, autografada de Santos-Dumont. Ao chegar
com perfurações representando inclina-se, abrindo o véu para
estrelas que simbolizam, no beijar o retrato. A câmera, em
conjunto, o universo. Dentro da close lateral, revela sua
esfera se contém outra, identidade: Aida D’Acosta, uma
hermética, de cristal; e dentro artista mais madura, e sempre
desta, em líquido adequado, se mais bela. Ela beija com ternura
acha imerso o coração do a fotografia e deposita o porta-
aeronauta.” retratos sobre o túmulo,
arranjando-o, em destaque, no
O cortejo chega na via principal centro da corbeille. A câmera
do Cemitério São João Batista, fecha em close sobre o retrato do
"... e conservado num escrínio
orlada por uma multidão de de ouro para a eternidade." aeronauta e depois, abrindo

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SANTOS DUMONT/O FILME ROTEIRO MARIO DRUMOND

novamente, sobe até a estátua aeronaves, sem datas.


de Ícaro, e em seguida vai para
o céu onde encontra umas Corte para mais créditos sobre
nuvens e pára. as nuvens.

Ouve-se a voz cândida de Corte para filmes documentários


Albertinho, aos 7 anos de idade, em P&B e cores mostrando os
fazendo a Criança-mestre da aviões de passageiros das
brincadeira infantil. décadas de 40 e 50, em pleno
vôo, com as respectivas legendas
CRIANÇA-MESTRE (com a voz dos nomes das aeronaves, sem
de Albertinho) datas.
- Homem voa? Túmulo de SD
Corte para mais créditos sobre as nuvens.
CRIANÇAS EM CORO
- Voa! Corte para filmes documentários a cores
mostrando os aviões turbo-hélices, de
passageiros, da década de 60, em pleno vôo,
SEQUÊNCIA 100 com respectivas legendas dos nomes das
aeronaves, sem datas.
Entram os primeiros créditos sobre as nuvens.
Corte para mais créditos nas nuvens.
Corte para um “Demoiselle” decolando do
Campo de St Cyr, em filme documentário Corte para filmes documentários a cores
P&B. mostrando os imensos aviões à jato de
(Legenda: Campo de St Cyr, Paris, 1908) passageiros, da década de 70 e 80, em pleno
vôo, com respectivas legendas dos nomes das
Corte para mais créditos sobre as nuvens. aeronaves, sem datas.

Corte para filmes documentários P&B Corte para os créditos finais, sobre as nuvens.
mostrando os aviões de Bleriot, Breguet,
Farman e Lindemberg em pleno vôo, com Corte para o supersônico de passageiros, o
respectivas legendas com seus nomes, mas Concorde, pousando em Orly. (Legenda:
sem datas. Aeroporto de Orly, Paris, 1998). Ao tocar as
rodas no solo, a cena “congela”, sai a legenda
Corte para mais créditos sobre as nuvens. e entra a palavra

Corte para filmes documentários P&B


mostrando os aviões dos primeiros correios FIM
aéreos em pleno vôo, pilotados por Saint
Exupéry, Mermoz, Gago Coutinho, Sacadura
Cabral e outros, com respectivas legendas
nominais, sem datas. 90 ANOS DA AVIAÇÃO CIVIL
1º CENTENÁRIO DA 1ª ASCENSÃO-SOLO
Corte para mais créditos sobre as nuvens. DE SANTOS-DUMONT NO BALÃO
“LE BRÉSIL”
Corte para filmes documentários em P&B
mostrando os primeiros aviões de passageiros
das décadas de 20 e 30, em pleno vôo, com
respectivas legendas dos nomes das Rio de Janeiro, 22 de abril de 1995.

152
PARTE 3 SANTOS DUMONT/O FILME

153
Composto e diagramado pelo autor em PC
486 DX2, utilizando fonte True Type
"Gatineau" e software Aldus PageMaker.
Originais feitos em impressora jato-de-tinta
marca Canon, modelo BJC - 4000 sobre
papéis RENKER "Safir", cor branca, com
90 g/m2. Trabalhos encerrados em Belo
Horizonte, no dia 22 de abril de 1996.

L A V S D E O

Destes originais foram tiradas 12


fotocópias, feitas pela N.A. COPIADORA
LTDA em máquina Minolta mod. EP 5400.
Os 12 exemplares, uma vez encadernados,
foram numerados e assinados pelo autor.

Exemplar Nº
Mario Drumond Editor
Rua Pouso Alto, 240.
Belo Horizonte MG
30240 180

Tel/Fax 55 31 3281 8646


e-mail: mario@dataflow.com.br

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