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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE

S. TOMÁS DE AQUINO “ANGELICUM”


FACULDADE DE TEOLOGIA – SEÇÃO BÍBLICA

JOSÉ GERALDO DE GOUVÊA

: UM ABRIGO NECESSÁRIO


Uma leitura semita de Jo 1,42
e a helenização do Novo Testamento

TESE DE MESTRADO

MODERADOR
Prof. Dr. Pe. BERNARDO GIANLUIGI BOSCHI, O.P.

ROMA, 2005
Pontificia università S. Tommaso D’Aquino
Largo Angelicum
AGRADECIMENTO

Agradecer. Não me resta outra palavra senão esta. Agradeço a Deus,


“Rocha” que sustenta e abriga a todos; à minha Diocese de Caratinga – na
pessoa do Sr. Bispo, Dom Hélio Gonçalves Heleno – sem a qual este
trabalho não existiria; a meus pais e meus irmãos, obrigado! À Pontifícia
Universidade Santo Tomás de Aquino, minha mais devota gratidão. Não
citarei outros nomes, primeiro porque não posso citar todos os que me
ajudaram tanto, alguns inclusive, “ilustres desconhecidos”; e depois os que
me são mais caros sabem que seus nomes estão grafados não numa folha
de papel, mas no íntimo do meu coração.
E assim, com o espírito agradecido, quero juntar minha voz à do
salmista e rezar:

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Louvai ao SENHOR! Louvai a Deus no seu santuário; louvai-o no
firmamento do seu poder. 2 Louvai-o pelos seus atos poderosos; louvai-o
conforme a excelência da sua grandeza. 3 Louvai-o com o som de
trombeta; louvai-o com o saltério e a harpa. 4 Louvai-o com o adufe e a
flauta; louvai-o com instrumento de cordas e com flautas. 5 Louvai-o com
os címbalos sonoros; louvai-o com címbalos altissonantes. 6 Tudo quanto
tem fôlego louve ao SENHOR. Louvai ao SENHOR! (Sl 150)
ÍNDICE

AGRADECIMENTO ...................................................................................................... 2

ÍNDICE ........................................................................................................................ 3

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 5

CAPÍTULO I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO ...................7

1. LITERATURA E LINGUAGEM NO ANTIGO TESTAMENTO ..................................... 11


2. A SIMBOLOGIA DOS NOMES NO ANTIGO TESTAMENTO ...................................... 16
3. LITERATURA NO NT: MUNDO GRECO-ROMANO E MENTALIDADE SEMITA .......... 21
4. REFLEXOS DO AT NO IV EVANGELHO .............................................................. 24

CAPÍTULO II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO ...............27

1. PEDRO EM RELAÇÃO AOS DOZE ......................................................................... 30


2. PEDRO EM RELAÇÃO AO DISCÍPULO AMADO ...................................................... 31
3. PEDRO E JUDAS ................................................................................................. 34
4. PEDRO, NA PERSPECTIVA DO PRIMADO .............................................................. 37

CAPÍTULO III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO......... 41

1. ΚΗΦAΣ: ETIMOLOGIA E SIMBOLOGIA ................................................................ 45


1.1 A literatura de fundo bíblico-judaica ........................................................ 51
2. ΚΗΦAΣ NO ANTIGO TESTAMENTO .................................................................... 52
2.1 No Texto Massoreta .................................................................................. 52
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2.2 Na Septuaginta .......................................................................................... 57


3. ΚΗΦAΣ NO MUNDO JUDAICO EXTRA-BÍBLICO ................................................... 59

4. ΚΗΦAΣ NO NOVO TESTAMENTO ....................................................................... 60


4.1 Na literatura paulina................................................................................. 61
4.2 Em Jo 1,42 ................................................................................................. 64

CAPÍTULO IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE ................. ...................... 69

1. ΚΗΦAΣ E A MISSÃO DE PEDRO EM JO 1,42 ........................................................ 70


2. A TRAJETÓRIA PROGRAMÁTICA DE PEDRO NO IV EVANGELHO ......................... 74
3. CONFIRMAÇÃO DA MISSÃO DE PEDRO EM JO 21 ................................................ 76

CONCLUSÃO ............................................................................................................. 80

SIGLAS E ABREVIATURAS ........................................................................................ 82

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 83
INTRODUÇÃO

“O estudo da Bíblia é como a alma da Teologia”. Estas são as palavras


usadas pela Pontifícia Comissão Bíblica – citando Dei Verbum 24 – para
expressar a importância do estudo da Sagrada Escritura 1.
Especialmente nos últimos anos, a pesquisa bíblica tem demonstrado de
modo muito concreto, através de várias descobertas, que de fato a Bíblia é
sim a alma da Teologia. Pois afinal, ignorar a Sagrada Escritura é ignorar
Cristo, já dizia São Jerônimo2.
Mas como fazer para se conhecerem verdadeiramente os textos bíblicos,
uma vez que a própria Bíblia já acena para as dificuldades existentes,
sobretudo, em alguns textos3?
A Pontifícia Comissão Bíblica, em 1993, nos apresentou métodos que
sem dúvida fazem a diferença, para os que desejam conhecer as Sagradas
Escrituras. Contudo, não podemos perder de vista que, no caso do estudo
bíblico, tão importante quanto os métodos de pesquisas científicas, é a

1
Cf PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, L’interpretazione della Bibbia nella
Chiesa, Città del Vaticano 1993, 21.
2
Cf SACROSANCTUM CONCILIUM OECUMENICUM VATICANUM II, Constitutio
Dogmática De Divina Revelatione Dei Verbum (18/11/1965), AAS 58 (1966) 25.
3
Dificuldades no que se refere à interpretação dos textos bíblicos não é novidade
ou um problema que não havia no passado, pois basta olhar a história para se
comprovarem os vários desafios que tivemos diante de algumas passagens bíblicas. Cf
PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, L’interpretazione della Bibbia nella Chiesa, Città
del Vaticano 1993, 25.
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humildade daqueles que pesquisam, para admitir que nem sempre teremos
as respostas que gostaríamos e, assim, manter o coração aberto ao
Espírito, fonte e porto seguro de nossos mais profundos anseios.
Docilidade ao Espírito de Deus. Este é o primeiro passo para um
verdadeiro estudo bíblico, porque de outra forma restará uma grande
produção científica, acadêmica, mas com o grave risco de não portar
consigo a razão de ser da própria pesquisa: um sentido para a nossa vida.
Jesus é claro ao explicar a razão de sua vinda ao mundo: “Eu vim para
que tenham vida e a tenham em abundância”4. Com poucas palavras, esta
é a razão da vinda e da vida de Jesus neste mundo. Ter vida é ainda a
razão pela qual Jesus convidou e convida também hoje para que façamos
parte do seu Reino. Tal convite tem sempre uma dimensão pessoal, mas é
ao mesmo tempo comunitário, isto é, fazer parte de uma comunidade de
acordo com minha vocação.
O presente trabalho recorda apenas a história de um destes convites
feitos por Jesus, mas tendo presente uma dimensão riquíssima contida nos
textos bíblicos: a etimologia e simbologia dos nomes bíblicos. Muitas
vezes na Bíblia a simbologia de um nome é uma mensagem a mais. Com
este pensamento que iremos abordar a missão de Simão Pedro nas
palavras de Jo 1,42: “Tu és Simão, o filho de João; chamar-te-ás Cefas”.

4
Jo 10,10b.
CAPÍTULO I

Inter-relação entre Antigo e Novo Testamento

Para o cristianismo, o Novo Testamento representa o cumprimento de


toda a promessa feita, da parte de Deus, ao seu povo. Em outros termos,
Jesus é a plenitude da historia da salvação. Quanto a esta realidade, temos
um consenso no mundo cristão, ou seja, Jesus é a Palavra encarnada, a
promessa realizada. Entretanto, não obstante a primazia de Jesus na
história, como nos lembra a epístola aos Colossenses 1, não podemos
perder de vista a literatura vétero-testamentária, como se fosse algo que, a
partir de Jesus, não tivesse mais importância; ou que o Deus do Antigo
Testamento fosse um Deus diferente, até mesmo vingativo e severo, um
juiz inflexível, e com isto esquecendo a nossa raiz histórica. Pois Jesus
sendo o “Filho”, isto é, o rosto visível de Deus, e que manifestou a
bondade de modo absoluto, poderia ter um Pai severo, vingativo e
desumano2? Sobretudo levando-se em consideração a unidade e a
intimidade entre Jesus e o Pai3? E além do mais, os escritos do Novo
Testamento não se apresentam como uma novidade absoluta mas, ao

1
Cf Cl 1,15-20.
2
Cf W. BINNI – B. G. BOSCHI, Cristologia primitiva. Dalla teofania del Sinài
all’Io Sono giovanneo, Bologna 2004, 229. Nesta obra, mais do que a estreita relação
entre os testamentos, temos a identificação do “Eu Sou” joanino com “Ihwh”.
3
Cf Jo 14,9-11.
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contrário, estão solidamente fundados na experiência religiosa do povo


judaico, isto é, fundados no Antigo Testamento4.
Na tentativa de esclarecer e estabelecer o justo relacionamento que deve
haver entre os dois testamentos, chamados então de “Antigo” e “Novo”, é
que hoje, em alguns ambientes, estão preferindo utilizar não o vocábulo
“Antigo”, mas “Primeiro”5, pois assim, se evita a conotação negativa que
o termo antigo muitas vezes acaba gerando e, ao mesmo tempo, nos indica
a inter-relação entre os testamentos, e que, em termos de história da
salvação, não podem ser tomados separadamente, rompendo todo o longo
processo histórico e teológico que os une, como queria Marcião no início
do segundo século6. Pois se, de um lado, percebemos, na tradição
evangélica mais antiga, que Jesus considerava que as profecias bíblicas se
realizavam Nele e na Sua missão escatológica 7, por outro lado, não
podemos esquecer o que disse o próprio Jesus a respeito da lei e dos
profetas: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim
revogá-los, mas dar-lhes cumprimento”8.

4
Cf PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture
nella Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 3; K. H. SCHELKLE, Israele nel Nuovo
Testamento, Brescia 1991, 33.
5
Não obstante esta questão do vocábulo Antigo ser evitado por alguns, no presente
trabalho utilizaremos, sempre que necessário, a expressão Antigo Testamento (ou AT),
pois devidamente entendida, não traz prejuízo ao estudo bíblico e, sobretudo, porque é
uma expressão universalmente conhecida.
6
Cf PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture
nella Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 19.
7
Cf J. T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da
bíblia, Petrópolis 1996, 599.
8
Mt 5,17. Seguindo o ensinamento de Jesus, a Igreja nunca sugeriu que o Antigo
Testamento estivesse superado, como desejava, por exemplo, Marcião, mas pelo
contrário, sempre afirmou que o Antigo e o Novo Testamento são inseparáveis. Cf
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 9

De sorte que Antigo e Novo Testamento são partes distintas mas que se
completam, pois formam no seu conjunto uma única história, a história da
salvação. De modo que a esse respeito encontramos nas palavras de Santo
Agostinho uma bela síntese, quando dizia, que o Novo Testamento está
escondido no Antigo, e o Antigo se revela no Novo 9. Além do mais,
devemos ter presente que a inter-relação dos Testamentos, Antigo e Novo,
não é apenas teórica, pois tem razão São Paulo ao escrever: “Ora tudo o
que se escreveu no passado é para nosso ensinamento que foi escrito, a
fim de que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as
Escrituras, tenhamos a esperança”10.
Todavia, não podemos fazer uma leitura do Antigo Testamento como se
fosse um álbum de fotografias que antecipavam o advento de Jesus. Mas
nossa leitura deve ser feita de modo retrospectivo, isto é, a partir da vida,
morte e ressurreição de Jesus, perceber o processo dinâmico do Antigo
Testamento, mas jamais numa ótica como se todas as referências que lá
encontramos, fossem referências diretas e históricas a respeito de Jesus
Cristo e ao cristianismo11. É verdade que temos no texto bíblico fatos
históricos, porém, a justa interpretação do mesmo, requer mais do que
uma interpretação histórica, uma interpretação teológica, pois assim

PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture nella


Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 19.
9
Cf R. BURIGANA – S. E. MONS. L. PACOMIO, Dei Verbum. Per il 400 anniversario
del Concilio Vaticano II, Casale Monferrato 2002, 113.
10
Rm 15,4.
11
Cf PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture
nella Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 21.
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teremos a possibilidade de descobrir que o Novo Testamento só poderá ser


compreendido de modo pleno, à luz do Antigo Testamento12.
Evidentemente, no campo da pesquisa científica, em todos os seus
seguimentos – e não é diferente no caso da pesquisa bíblica – temos
muitas perguntas sem as devidas respostas e, em alguns casos, respostas
que não encontram um consenso entre os respectivos estudiosos13.
No campo da teologia bíblica, as divergências são inúmeras. Todavia, já
demos passos significativos, sobretudo nos últimos anos e, em especial,
após o Concílio Vaticano II, que, através da Constituição Dei Verbum, não
só incentivou enormemente a pesquisa bíblica, como abriu portas há muito
fechadas pelo preconceito e ignorância14. Uma das portas abertas pela
Constituição DV, foi justamente aquela que possibilitou o estudo e a
pesquisa com nossos “irmãos separados”, abrindo um diálogo riquíssimo
para todos, sobretudo para se compreender melhor a fascinante, mas
desafiadora literatura bíblica, já que comporta uma vasta história, contada
e cantada por tantas gerações e épocas distantes. De sorte que, somente
um diálogo aberto e franco, sem barreiras de preconceitos, nos permitirá
beber do modo mais original possível, desta fonte de água viva, pois como

12
Cf PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture
nella Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 21.
13
O maior exemplo da complexidade que é a pesquisa bíblica são os inúmeros
livros, comentários e artigos com as mais variadas teorias, que, ao longo do tempo, se
completam em alguns casos, mas que também se contradizem um sem número de
vezes; o que não deixa de ser uma riqueza, pois, no campo científico, são de grande
valia os confrontos de idéias diferentes.
14
Cf DV 22-23. A Igreja, reconheço, é sempre prudente quando se trata de tomar
decisões. Porém, muitas vezes, em nome da prudência, sua caminhada foi duramente
sacrificada e, no caso da teologia bíblica, ficamos estacionados durante longo tempo.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 11

já dizia a sabedoria popular, a Bíblia é como uma fonte onde sempre


podemos encontrar água fresca.

1. Literatura e linguagem no Antigo Testamento


Quando falamos de literatura e linguagem de modo geral, lembramos
normalmente dos poetas e suas poesias, mas nem sempre nos ocorrem os
textos bíblicos, talvez devido ao aspecto religioso que eles contêm, que
acaba gerando, mesmo que inconsciente, uma visão dos mesmos um tanto
quanto particular: um texto sagrado, que está além das regras da
linguagem humana.
É verdade que um texto bíblico, para uma pessoa crente, é sempre
diverso de um outro texto, digamos comum, no que se refere ao seu valor
religioso. Porém, o que muitas vezes não se leva em consideração, e que já
foi causa de grandes problemas na história da salvação, é que não obstante
o fator sacro e religioso do texto bíblico, é um texto escrito, logo uma
linguagem e linguagem humana, não uma linguagem angelical15, distante
da nossa realidade; o que significa dizer, comportando toda uma carga de
idéias e simbologia, num contexto histórico social concreto. De maneira
que um texto bíblico, mais do que lido, precisa ser interpretado, levando
em consideração a linguagem – que é sempre fruto de um contexto, de
uma situação histórica concreta – onde o hagiógrafo, de acordo com seu
tempo e demais circunstâncias culturais, redigiu, inspirado pelo Espírito
Santo, utilizando um gênero literário então em uso16.

15
Cf L. A. SCHÖKEL, A palavra inspirada. A bíblia à luz da ciência da linguagem,
São Paulo 1992, 82.
16
Cf DV 12.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 12

Uma palavra escrita, mais do que sinais gráficos, contém sempre uma
mensagem, carregada de idéias e emoções que nem sempre conseguimos
decodificar na sua inteireza, pois é um conceito mental que manifestamos
de modo sonoro ou visual (quando escrita), e sendo um conceito mental,
muitas vezes, não só varia a forma sonora, de língua para língua, como
varia a compreensão de um mesmo conceito17. Outro fator ainda a ser
considerado, é que, quando um determinado texto é transmitido e
retransmitido por várias gerações e épocas diferentes, como é o caso da
Bíblia, e especificamente o Antigo Testamento, devido seu maior recuo
temporal e cultural (que reflete um milênio de desenvolvimento
lingüístico)18, o desafio do destinatário em decifrar seu conteúdo, sem
perder sua originalidade, não é tarefa fácil.
É aqui que entra de modo importantíssimo o estudo da literatura.
Conhecer o gênero literário, ou, melhor dizendo, conhecer os gêneros
literários, é parte fundamental na pesquisa bíblica. Para tanto, faz-se
necessário partir de uma língua concreta – na redação bíblica temos o
hebraico, o grego, e em menor escala o aramaico – que se torna como que

17
Cf L. A. SCHÖKEL, El estilo literario. Arte y artesanía, Bilbao 1994, 33-34.
Exemplo citado pelo autor, sobre a compreensão diversa que temos sobre um mesmo
vocábulo – no caso a saudação «boa noite», que, dependendo da língua, expressa uma
idéia distinta, sendo, por exemplo, no espanhol uma saudação usada quando se
escurece e, no inglês ou no alemão, uma expressão usada quando se vai dormir – nos
permite perceber que linguagem é um conceito muito mais amplo do que se imagina às
vezes, pois a mesma palavra pode ser entendida diversamente dependendo de uma
serie de fatores culturais e sociais. Logo, decifrar a escrita é apenas um aspecto da
leitura a ser interpretada.
18
Cf J.T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da
bíblia, Petrópolis 1996, 75.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 13

um ponto de inserção da transcendência no tempo, apresentando uma


mensagem divina em caracteres humanos19.
É digno de nota ainda que, além da mensagem bíblica ser transmitida
em caracteres humanos, devemos ter presente que a maioria dos livros do
Antigo Testamento não é obra de uma só pessoa, e que se desenvolveu por
um grande período de tempo, às vezes, séculos. Os autores e
colaboradores na produção de cada livro, nem sempre tinham a
consciência que estavam sendo movidos por Deus, que eram inspirados.
De sorte que a literatura bíblica, além do aspecto sagrado – que não
desconhecemos – é literatura de um povo, baseada num primeiro momento
na tradição oral e entrelaçada na história desse povo, de tal modo que
podemos afirmar que a Bíblia é um grande tesouro literário acumulado ao
longo de séculos20, onde cada palavra, mais do que sinais gráficos, como
lembramos acima, é uma verdadeira parábola, isto é, uma história a ser
interpretada21. Falemos um pouco dessa literatura.
Como a Sagrada Escritura é fruto de uma longa história, onde épocas,
línguas e costumes se sucederam durante sua composição, temos por
conseqüência uma literatura ou linguagem um tanto rica e complexa, de
modo que podemos encontrar nos textos sagrados desde a linguagem
comum – aquela utilizada no meio familiar, carregada normalmente de

19
Cf L. A. SCHÖKEL, A palavra inspirada. A bíblia à luz da ciência da linguagem,
São Paulo 1992, 86.
20
Cf W. J. HARRINGTON, Chave para a bíblia. A revelação. A promessa. A
realização, São Paulo 1985, 13.
21
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, Parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990. Aqui não faço menção ou citação de uma página em específico, pois
o autor desenvolve em forma de diálogo, em todo o livro, a idéia que cada palavra é
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emoções e simplicidade – à técnica e a literária. A linguagem técnica é


aquela que remove ao máximo possível a subjetividade, com o intento de
ser precisa, como a que encontramos na legislação bíblica. A língua
literária, por sua vez, que, embora nascida da linguagem comum, não se
conforma ao comum, mas utiliza todos os recursos da língua, como
qualidade sonora, rítmico; usando símbolos, imagens e muitas vezes
fundindo o objetivo com o subjetivo de maneira quase mágica 22, num
esforço de superar as barreiras e os limites que tantas vezes enfrentamos,
quando temos que expressar uma determinada idéia e temos a sensação
que nos faltam palavras. A maior parte do Antigo Testamento e parte do
Novo utilizam a língua literária, que não deve ser vulgarizada para ser
posta ao alcance do povo. Ao contrário, devemos elevar os leitores
capacitando-os na compreensão literária23.
Evidentemente, que um estudo da literatura bíblica exige um empenho
titânico, uma vez que, como assinalamos acima, trata-se de um campo
muito vasto de pesquisa e de conhecimento, e nem mesmo existe um
critério uniforme para classificá-la24. O que desejo, entretanto, é chamar a
atenção sobre a questão da linguagem bíblica, com seus variados gêneros
literários, dos quais, segundo Otto Eissfeldt, podemos destacar os
seguintes gêneros principais:

uma parábola, ou seja, carrega consigo uma história de que nem sempre temos
consciência.
22
Cf L. A. SCHÖKEL, A palavra inspirada. A bíblia à luz da ciência da linguagem,
São Paulo 1992, 104-111.
23
Ibidem, 112.
24
Cf L. A. SCHÖKEL, et al., La bibbia nel suo contesto, Brescia 1994, 355.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 15

Prosa – Ditos, prédicas, preces, documentos (leis, listas), narrativas


(poéticas, históricas).
Gênero dos provérbios – Ditos de natureza diversa, sentenças
jurídicas, ditos cultuais, ditos proféticos, provérbios, enigmas e ditos
sapienciais.
Cânticos – Cantigas de trabalho, colheita, brinde, amor e casamento,
cantigas de vigias, canção satírica, canções fúnebres, hinos ao rei
vencedor, hinos litúrgicos (principalmente salmos), poesia sapiencial25.
Seja como for, importante é saber que um texto bíblico jamais deve ser
lido de modo simplista, ou seja, com uma leitura literal e fundamentalista,
desconhecendo o contexto histórico e social que o originou, e
consequentemente o gênero literário usado. A esse respeito nos advertia o
Papa Pio XII: “Ora, qual o sentido literal de um escrito, muitas vezes não
é tão claro nas palavras dos antigos orientais como nos escritores do nosso
tempo. O que eles queriam significar com as palavras não se pode
determinar só pelas regras da gramática e da filologia, nem só pelo
contexto; o intérprete deve transportar-se com o pensamento àqueles
antigos tempos do Oriente e, com o auxílio da história, da arqueologia,
etnologia e outras ciências, examinar e distinguir claramente que gêneros
literários quiseram empregar e empregaram de fato os escritores daquelas
épocas remotas. De fato os antigos orientais, para exprimir os seus
conceitos, nem sempre usaram das formas ou gêneros de dizer de que nós

25
Cf A. LÄPPLE, Bíblia. Interpretação atualizada e catequese, São Paulo 1982, 28.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 16

hoje usamos; mas sim daqueles que estavam em uso entre seus
contemporâneos e conterrâneos”26.
O progresso científico, dos últimos tempos, de fato, como já indicava
Pio XII, colaborou em larga escala no desenrolar da pesquisa bíblica, de
modo que caminhamos bastante na busca de compreender melhor a
riqueza contida na Palavra de Deus, grafada com sinais humanos 27.

2. A simbologia dos nomes no Antigo Testamento 28

Quando temos a oportunidade de fazer uma leitura mais atenta e


sistemática da Bíblia, mesmo antes de fazer um estudo mais profundo, um
fato se torna particularmente interessante e chama rapidamente a nossa
atenção: os nomes dos personagens bíblicos.

26
PIUS PP. XII, Litterae Encyclicae Divino Afflante Spiritu, (30/09/1943), AAS 35
(1943) 314-315. Não podemos esquecer da contribuição dada na área bíblica, em
várias épocas diversas, por tantas pessoas que, dentro de suas respectivas
possibilidades e limites, deram seu contributo. Todavia, é o Concílio Vaticano II que
marca de modo decisivo o desenvolvimento da Teologia bíblica, com a Constituição
Dei Verbum, evidentemente, mas também através de todo um contexto de reflexão
favorável, que naquele momento, mais do que em outras épocas, possibilitou um
grande passo na vida da Igreja.
27
Cf A. M. ARTOLA – J. M. S. CARO, Biblia y Palabra de Dios. Introduccion al
estúdio de la bíblia, Estella 1992, 320. Assim como Jesus é verdadeiramente Deus e
verdadeiramente homem, portanto, não obstante sua revelação, é sempre um mistério,
não podemos esquecer que a Palavra de Deus, embora em caracteres humanos, é
sempre Sagrada. Não é novidade esta afirmação? É verdade. E por que insisto nesta
questão? Justamente devido aos extremismos que muitas vezes nos marcaram, e que
são sempre perigosos: de um lado uma leitura bíblica literal, como se cada palavra da
bíblia fosse uma sentença absoluta proferida por Deus, onde o humano não existe; por
outro lado, quase que como uma reação oposta, o esvaziamento do sagrado, como se o
texto bíblico não passasse de literatura, que podemos e devemos decifrar de modo
pleno sem nenhum mistério. Eis os extremos que devemos evitar.
28
É preciso enfatizar que um símbolo não contrapõe ao real, pois só podemos
simbolizar aquilo que é uma realidade, caso contrário, o símbolo não pode existir, já
que sua função é representar ou trazer presente uma determinada entidade. Cf X.
LEON-DUFOUR, Lectura del Evangelio de Juan, Vol. I, Salamanca 1997, 19.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 17

Como abordagem inicial desta questão, gostaria de recordar nosso velho


e conhecido “casal”, Adão e sua companheira Eva. Isto porque, às vezes,
hoje em dia com todo nosso conhecimento e tecnologia, quando
pronunciamos um determinado nome, o fazemos simplesmente como
apertamos um botão de nosso computador sem ter idéia das implicações
técnicas que decorrem daquele simples toque. Noutras palavras,
utilizamos uma grande tecnologia sem de fato conhecê-la. Não é muito
diferente o que acontece com a grande maioria das pessoas que lêem a
Bíblia, pois o fazem de modo superficial, no sentido exato do termo, isto
é, sem ter idéia da grande riqueza que está por traz de cada vocábulo.
Retomemos, como exemplo, os nomes acima citados, Adão e Eva.
Existe, ainda hoje, um grande equívoco – por incrível que possa parecer
– com relação à criação do homem, onde muitas pessoas (evidentemente
pessoas que não tiveram a oportunidade de fazer uma boa catequese)
acreditam que Deus num belo dia fez um homem, “Adão” e em seguida
uma mulher, “Eva” que, como primeiro casal, deram origem a todas as
pessoas. Lógico, sabemos que na Bíblia não temos tal afirmação, que é
fruto de uma compreensão errada do texto, onde Adão passou a significar
um homem e Eva uma mulher. O que resultaria em um grande problema
se fosse exatamente assim, pois não se explicaria, por exemplo, onde
Caim poderia ter encontrado uma esposa, já que existiam neste momento,
apenas seus pais. Acontece que tal problema não existe, já que a Bíblia
nos diz expressamente, que Deus fez “o homem”, e não um homem, ou
seja, fez o gênero humano, e não um homem29. Contudo, o mais

29
Cf Gn 1,26.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 18

interessante ainda, é que Adão significa entre outras possíveis traduções,


exatamente homem, ou gênero humano30. Eva por sua vez, também dentro
de um grande universo de possíveis traduções, significa de modo geral,
vida31. Assim sendo, entendendo o significado do nome, se entende,
conseqüentemente, o sentido do texto em questão.
Podemos ainda tomar vários outros nomes como exemplo, que
seguramente iremos perceber a relação direta entre o personagem bíblico e
seu respectivo nome. Já que lembramos Adão e Eva, citemos também seus
filhos mais conhecidos: Abel e Caim. Quem já leu a história destes irmãos,
certamente se lembra do primeiro “fratricídio” da humanidade. Porém,
antes de ler o texto bíblico, se tomamos o significado dos nomes destes
irmãos, teremos uma grande surpresa: Caim não poderia ter matado Abel;
ou será que alguém conseguiria matar o vento, ou a fugacidade? Pois Abel
é uma palavra que traduz justamente aquilo que é como o vento, a fumaça,
o hálito, a fugacidade, etc32. Caim por sua vez, significa ferreiro, ou seja,
aquele que bate o metal33.
Quando descobrimos o significado dos nomes destes famosos irmãos, já
intuímos que estamos diante de uma riquíssima literatura, e de uma
igualmente rica mensagem, que nos faz compreender – através dos nomes

30
Cf M. BOCIAN, Adamo, in Dizionario dei personaggi biblici, Casale Monferrato
2004; L. A. SCHÖKEL, ~d'a', in Dicionário bíblico hebraico-português, São Paulo 1997.
31
Cf M. G. CORDERO, Eva, in Enciclopedia de la Biblia, Vol. III, Barcelona 1970.
32
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 1; M. BOCIAN, Abele, in Dizionario dei personaggi biblici, Casale
Monferrato 2004; L. A. SCHÖKEL, lb,h,, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São
Paulo 1997.
33
Cf M. BOCIAM, Caino, in Dizionario dei personaggi biblici, Casale Monferrato
2004.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 19

Caim e Abel – a nossa realidade humana, isto é, se por um lado somos


insistentes como um ferreiro que trabalha o metal (Caim), por outro,
somos como um vento ou hálito (Abel), somos como a fumaça que passa34.
Não podemos tomar de modo genérico o significado dos nomes dos
personagens bíblicos. Evidentemente, não é uma regra geral. Porém, existe
uma relação significante, em muitos casos, entre um nome bíblico e a
missão a ser desempenhada pelo respectivo personagem em questão.
Vejamos alguns outros exemplos.
Quando Deus promete a Abraão que ele seria pai de uma numerosa
nação, ainda que tudo parecesse desfavorável, certamente a promessa
tinha de ser cumprida; e não porque Deus é verdadeiro e justo; isto já
sabemos. Mas é porque o nome Abraão significa justamente pai, podemos
dizer pai dos povos35, sem falar que sua esposa, Sara, significa princesa36.
E quando falamos princesa, não imaginamos uma pessoa pobre, ou
sofredora, logo Sara deveria ser mãe, já que a infertilidade na visão semita
era considerada como um infortúnio.
Tratarei de apenas de mais três nomes, porque primeiro não é o objetivo
deste trabalho, e nem seria possível descrever todos os personagens
bíblicos; e, segundo, porque o que pretendo é chamar a atenção para esta
grande riqueza que temos nos textos bíblicos, e que tantas vezes

34
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 3-5. De fato, todo ser humano é um pouco Caim e um pouco Abel,
pois labutamos diariamente e somos insistentes como um ferreiro que trabalha na
bigorna. Contudo, a nossa vida é apenas um hálito.
35
Cf M. BOCIAN, Abramo, in Dizionario dei personaggi biblici, Casale Monferrato
2004.
36
Cf F. B. GERRITZEN, Sara, in Enciclopedia de la Biblia, Vol. VI, Barcelona
1970.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 20

ignoramos: os nomes próprios. Pois bem, examinemos estes três nomes,


um tanto especiais: Sem, Cam e Jafé.
O livro de Gênesis nos fala que depois do dilúvio, os três filhos de Noé,
Sem, Cam e Jafé, povoaram toda a terra37. Com uma missão assim tão
grande, estes três irmãos não poderiam ter outros nomes. Vejamos por
que.
Sem (Shêm) é um vocábulo de etimologia semita, que está relacionado
sempre com as coisas sublimes, elevadas. Com o mesmo som de Shêm ou
Sham, temos palavras como:
* SHÊMESH: sol, guarda, sentinela no alto da muralha.
* SHÊMEN: fartura, abundância, fertilidade.
* SHAMÁIM: céu, altura, região superior38.
Não é sem razão, que a palavra semita tem este mesmo som que é quase
uma assinatura: SHEMITA.
Cam já é uma palavra ligada às coisas da terra, ou inferiores.
Relacionados com este som temos no hebraico:
* quente, calor, terra queimada.
* destruir, agir com violência, oprimir.
* asno, burro39.
Por fim, Jafé (IÁFET), nome relacionado ao espaço infinito, à
liberdade, à abertura, que através de sons afins evoca:
* FATÁH ou PATAH: abrir, romper, fender.

37
Cf Gn 9,18-19.
38
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 38.
39
Ibidem, 42.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 21

* FATÁR ou PATAR: cortar, romper, abrir.


* PATSÁH: dividir, libertar, livrar40.
Assim, além do texto propriamente dito, podemos dizer que temos um
outro texto por trás dos nomes. Mesmo para quem não leu o texto bíblico,
não é difícil imaginar quais os irmãos seriam abençoados por Noé (Sem e
Jafé), e qual seria amaldiçoado (Cam); e ainda qual deles teria a bênção
mais sublime (Sem). E mais: como vimos estes nomes evocam, céu, terra
e espaço, ou seja, o cosmo todo na compreensão judaica, que é repovoado
pelos filhos de Noé.
Da simbologia destes nomes, temos toda uma implicação que justifica
outras atitudes na história bíblica, como por exemplo, a conquista da terra
de Canaã, pelos judeus (“semitas”), herdeiros da bênção de Sem41. E não
se pode esquecer que o Novo Testamento herda de modo extraordinário
esta riqueza contida na etimologia dos nomes, uma vez que os dois
testamentos estão interligados como já vimos anteriormente. Ler pois o
Novo Testamento, sem esquecer onde estão suas raízes e matizes.

3. Literatura no NT42: mundo greco-romano e mentalidade semita

De modo geral, podemos dizer que a literatura do NT, antes da


descoberta dos manuscritos do Mar Morto, era estudada quase que de
modo exclusivo a partir de uma ótica helênica, não obstante a origem

40
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 44. A Bíblia nos diz que os três filhos de Noé povoaram toda a terra.
Seus nomes expressam essa totalidade, já que representam de certo modo, o céu (Sem),
a terra (Cam) e o espaço (Jafé).
41
Cf Gn 9,26.
42
Por razões práticas utilizaremos, às vezes, NT para designar Novo Testamento.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 22

judaica de Jesus, dos doze Apóstolos, de Paulo de Tarso e da maioria dos


primeiros cristãos43. “A obra clássica de Wilhelm Bousset, Kyrios
Christos, estabelecia uma oposição radical entre o cristianismo
helenístico, muito influenciado pelas religiões mistéricas pagãs, e a
comunidade dos primeiros cristãos da Palestina de raizama judaica” 44.
Temos ainda, R. Bultmann, que desenvolveu a história da formação do
cristianismo em duas etapas, uma judaica e uma grega, contrapondo assim
o “Jesus histórico”, que viveu na Palestina, com o “Cristo da fé”, que o
cristianismo helenístico desenvolveu. Bultmann escreveu inclusive sua
tese doutoral sobre a diatribe45. Entretanto, com as descobertas de
Qumran, as idéias de uma literatura neo-testamentária inspirada na época
helenística, foram cedendo lugar a outro pensamento mais complexo, pois
a facilidade inicial de ver idéias e símbolos gnósticos em algumas
passagens do NT, já não se sustentavam, uma vez que tais idéias gnósticas
não tinham um caráter missionário como se acreditava e, além do mais,
não alcançaram seu desenvolvimento máximo senão no II século, tempo
que o cristianismo já tinha se desenvolvido com suas próprias forças46.
Inclusive as expressões opostas, freqüentes no Evangelho de São João,
“vida-morte”, “luz-trevas”, que pareciam dar sinais de uma influência
gnóstica, foram encontradas nos escritos essênicos de Qumran, inclusive

43
Cf J. T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da
bíblia, Petrópolis 1996, 34-35; F. G. MARTÍNEZ – J. T. BARRERA, Os homens de
Qumran, Petrópolis 1996, 265-266.
44
J. T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da bíblia,
Petrópolis 1996, 35.
45
Cf J. T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da
bíblia, Petrópolis 1996, 35.
46
Ibidem, 36.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 23

muitas vezes quase com o mesmo sentido, e assim o Evangelho de João


que parecia ser um texto marcadamente influenciado pelos gnósticos,
revelou-se autenticamente judaico47.
De fato, a visão de um cristianismo, e evidentemente de uma literatura
neo-testamentária, desenvolvida em cima de um pensamento grego, não se
sustenta. É verdade que havia um contexto social, podemos dizer greco-
romano, porém, o cristianismo antes de ser fruto de uma questão social é
um pensamento profundamente religioso, que nasceu e se desenvolveu a
partir do judaísmo. No início inclusive, os cristãos eram judeus
convertidos, considerados como que uma seita judaica48.
É verdade ainda que devido à situação social vigente, os textos do NT
foram escritos na língua então falada pelo povo, o grego koiné (= comum).
Mas isto não significa que o NT seja fruto da literatura grega, mas ao
contrário, quando analisado, se percebe um texto feito com caracteres
gregos, mas cheio de semitismos, isto é, expressões e construções
traduzidas literalmente das línguas semíticas49. Noutras palavras, não é
exagero afirmar que o NT foi escrito com letras gregas e uma mentalidade
semita.

47
Cf W. J. HARRINGTON, Chave para a bíblia. A revelação. A promessa. A
realização, São Paulo 1985, 187. Contudo, não se pode desconhecer, ainda que não
plenamente desenvolvida, a presença gnóstica contemporânea à redação do IV
evangelho. A questão que se coloca, é que ao contrário do que se cogitou por um
tempo, o pensamento gnóstico não é a fonte inspiradora do IV evangelho, mas sim o
Antigo Testamento. A este respeito, cf W. BINNI – B. G. BOSCHI, Cristologia
primitiva. Dalla teofania del Sinài all’Io Sono giovanneo, Bologna 2004, 7; R. E.
BROWN, Giovanni, Assisi 1999, LXIII.
48
Cf K. H. SCHELKLE, Israele nel Nuovo Testamento, Brescia 1991, 33.
49
Cf J. KONINGS, A bíblia nas suas origens e hoje, Petrópolis 2002, 17.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 24

4. Reflexos do AT no IV Evangelho
A Pontifícia Comissão Bíblica, no já citado documento “O povo
hebraico e suas Sagradas Escrituras na Bíblia cristã”, afirma que, sem o
Antigo Testamento, o Novo seria um livro indecifrável 50. De fato, já
mencionamos no presente trabalho tal inter-relação. Contudo, cada livro
do Novo Testamento tem sua particularidade, de modo que teremos
leituras diversas, ou abordagens diversas do Antigo Testamento,
dependendo do livro que empreitamos no Novo Testamento.
O presente trabalho aborda uma palavra em especial no IV Evangelho,
Kefas, de sorte que trataremos agora dos reflexos e implicações do Antigo
Testamento no Evangelho de João51.
Não é sem razão que, dos quatro evangelhos, os três primeiros (Mateus,
Marcos e Lucas) chamamos sinóticos, ou seja, mesma ótica; o quarto
(João), tratamos e estudamos sob outro ponto de vista. Realmente o
Evangelho segundo João, é sui generis. Não adota o mesmo esquema
cronológico e geográfico que temos nos outros evangelhos. E, além disso,
o que mais nos interessa é a forma narrativa que João utiliza, em vez de
breves passagens contendo ditos ou gestos de Jesus, como fazem os
sinóticos. Narra longos episódios elaborados como grandes discursos ou
diálogos, mais ou menos como fazia Moisés no Deuteronômio, o que nos
leva afirmar que João é mais reflexivo que os outros 52.

50
Cf PONTIFICIA COMMISSIO BIBLICA, Il popolo ebraico e le sue Sacre Scritture
nella Bibbia cristiana, Città del Vaticano 2001, 84.
51
Apesar da questão espinhosa da identificação do autor do IV Evangelho,
usaremos sempre que necessário, a expressão Evangelho de João, já que é uma
expressão tradicionalmente conhecida.
52
Cf J. KONINGS, A bíblia nas suas origens e hoje, Petrópolis 2002, 164.
CAP. I: INTER-RELAÇÃO ENTRE ANTIGO E NOVO TESTAMENTO 25

Entretanto, como já mencionamos acima (cf n. 43), durante muito


tempo, não só o IV Evangelho, mas o NT de modo geral, era abordado a
partir de uma visão helenística. Mas, com as novas pesquisas e
descobertas, os estudiosos perceberam que, embora o cristianismo tenha
nascido num ambiente fortemente marcado pelo helenismo, inclusive a
língua, sua estrutura fundamental não era grega, mas judaica. Em especial
o Evangelho de João, que parecia “o mais grego” dos textos neo-
testamentários, revelou-se um escrito marcadamente judaico, de modo que
o próprio Bultmann que foi um expoente defensor do pensamento gnóstico
presente no IV Evangelho, viu-se obrigado a reconhecer que o que se
acreditava ser um substrato gnóstico no Evangelho de João, na verdade era
um substrato judaico53.
É certo que no Evangelho de João não temos tantas citações explícitas
como nos outros Evangelhos. Porém, tal ausência explícita de citações do
AT no IV Evangelho é enganosa; pois embora não explicitadas, João é
quem mais reflete o pensamento vétero-testamentário, muitas vezes de
modo sutil, contudo, com muita clareza, como é o caso do livro de
Gênesis, que João nunca cita diretamente, mas desenvolve a questão dos
primeiros dias da criação, do primeiro homem e da primeira mulher como
a espinha dorsal da perícope de 1,1 – 2,1054.
A influência do AT no Evangelho de João se tornou um fato tão
evidente que atualmente é objeto de pesquisa de inúmeros estudiosos 55.

53
Cf J. T. BARRERA, A bíblia judaica e a bíblia cristã. Introdução à história da
bíblia, Petrópolis 1996, 36.
54
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, LXIX.
55
Cf G. GHIBERTI, et al., Opera giovannea, Torino 2003, 75.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 26

Alguns pesquisadores bíblicos, inclusive, sugeriram a possibilidade de que


toda a organização do IV Evangelho fosse modelada a partir do livro do
Êxodo56.
Seja como for, hoje é bastante consensual a ligação de dependência do
IV Evangelho em relação ao AT, ressaltando evidentemente que João
utiliza de modo particular a teologia do AT, preferindo refleti-la em vez de
citá-la explicitamente, como fazem os demais Evangelhos. Porém, o que
se pode assegurar é que João depende do AT 57, e este é o ponto em
questão do nosso estudo.

56
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, LXIX. Esta idéia da influência do livro
do Êxodo no Evangelho de João é desenvolvida pelos autores W. BINNI – B. G.
BOSCHI, no já citado livro “Cristologia Primitiva”, onde a dependência do IV
Evangelho em relação à teologia sinaítica é colocada em evidência.
57
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madrid 2003, 57.
CAPÍTULO II

Identidade do Apóstolo Pedro no IV Evangelho

Quando queremos conhecer alguém, evidentemente é preciso descobrir


sua identidade, o que implica algumas perguntas: Qual é o seu nome?
Qual é a sua nacionalidade? Em que trabalha? Existem outras perguntas
que são acrescentadas, porém, o nome, a nacionalidade e o que faz, são
normalmente as primeiras interrogações que fazemos. Vejamos o que nos
diz o IV Evangelho sobre estas questões referentes a Pedro.
Segundo Jo 1,44, Pedro é da região de Betsaida (Βηθσαϊδά, em
e
hebraico, bê¾ ƒaj ¼â, lugar da pesca ou cidade dos pescadores)1, que é
uma região judaica, mas ao mesmo tempo uma região pagã, como se pode
perceber indicado já nos nomes gregos, André, Filipe e talvez o próprio
Simão2. Quanto à profissão, podemos constatar, em Jo 21,3, a mesma

1
Cf A. FUCHS, Βηθσαϊδά in H. BALZ – G. SCHNEIDER, ed., Dizionário Esegetico
del Nuovo Testamento, Brescia 2004. Como fonte para o texto grego do NT, utilizamos
NESTLE-ALAND, Novum Testamentum Graece, Stuttgart27 1993.
2
Cf O. CULLMANN, Cullmann e altri. Il primato di Pietro, Bologna 1965, 22.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 28

informação que temos também nos sinóticos (Mc 1,16; Lc 5,2-3), ou seja,
que Simão Pedro era pescador.
O Pedro apresentado no IV Evangelho tem muitos traços comuns com
os sinóticos, é citado mais vezes que todos os outros discípulos, inclusive
mais que o anônimo discípulo amado. Entretanto, temos também
significativas diferenças entre o que nos falam os sinóticos e aquilo que
nos apresenta São João com relação a Pedro3.
São várias as questões interessantes que podem ser observadas, se
colocamos em paralelo os Evangelhos sinóticos e o Evangelho de João.
Porém, o nosso objetivo não é identificar as divergências e as
convergências de tal paralelo – mesmo que de vez em quando seja
necessário – mas procurar conhecer a missão de Simão Pedro no IV
Evangelho.
Assim, tomemos o Evangelho de João, com o olhar voltado à pessoa de
Pedro, para identificar algumas de suas características; aproveitar aquilo
que o texto nos apresenta sem muitas dificuldades, já que sem maiores
problemas temos sua profissão (pescador), o nome da região onde vive
(Betsaida) e evidentemente o nome Simão Pedro4, que no IV Evangelho
adquire características especiais, como veremos mais adiante.
O Simão Pedro que temos no IV Evangelho, podemos dizer que
desempenha um papel fundamental como acontece também nos sinóticos,
mas é ao mesmo tempo apresentado de modo particular, como por

3
Cf R. E. BROWN, Pietro nel Nuovo Testamento, Roma 1988, 151; R. FABRIS,
Pietro, in P. ROSSANO – G. RAVASI – A. GIRLANDA, ed., Nuovo Dizionario di Teologia
Biblica, Cinisello Balsamo 1988.
4
Com relação ao nome Pedro, especialmente quando è chamado por Jesus em Jo
1,42 de , será objeto de uma reflexão maior no capítulo III.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 29

exemplo, já na sua vocação Pedro é levado até Jesus como que numa
atitude de “passividade”5, sem falar que, diferentemente dos sinóticos,
onde Pedro aparece por primeiro na lista dos vocacionados 6, em João ele
não é o primeiro a encontrar Jesus7; todavia, merece da parte de Jesus um
olhar especial desde o primeiro momento. “Jesus fixa a vista em Pedro,
assim como João Batista a tinha fixado nele mesmo no início do episódio
(1,36). Não se trata, pois, de olhar de eleição, mas de penetração”8. O
verbo utilizado neste caso, ἐμβλέψας, pode ser usado não somente no
sentido de ver, perceber, mas sobretudo, fixar o olhar com atenção 9; de
modo que não é um simples sguardo, como se diz no italiano. É Jesus que
conhece imediatamente a personalidade e o destino de Pedro10.
Uma outra questão ainda que temos com referência a Pedro no IV
Evangelho é que existem indicações fortes a respeito de sua pertença ao
discipulado de João Batista antes de ser levado até Jesus, através de seu
irmão André, que era discípulo de João11. Em Jo 1,42 Jesus fixa o olhar
em Pedro e diz: “Tu és Simão, o filho de João”. A expressão “o filho de

5
Cf J. MATEOS – J. BARRETO, O Evangelho de São João. Análise lingüística e
comentário exegético, São Paulo 1989, 107; X. LÉON-DUFOUR, Lectura del Evangelio
deJuan, Vol. I, Salamanca 1997, 152. Sobre esta questão da “passividade” de Pedro,
retornaremos no capítulo IV.
6
Cf Mt 4,18; Mc 1,16; Lc 5,3.8-10.
7
Cf R. PESCH, I fondamenti biblici del primato, Brescia 2002, 58.
8
J. MATEOS – J. BARRETO, O Evangelho de São João. Análise lingüística e
comentário exegético, São Paulo 1989, 107.
9
Cf I. PEREIRA, Ver, in Dicionário grego-português e português-grego, Braga
1998; C. RUSCONI, ἐμβλέπω, in Vocabolario del greco del Nuovo Testamento, Bologna
1997.
10
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madri 2003, 274.
11
“André, o irmão de Simão Pedro”, sem dúvidas era discípulo de João Batista,
como se pode ler claramente em Jo 1,40.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 30

João” (ὁ υἱὸς Ἰωάννου), neste caso pode significar não exatamente filho
biológico, pois, na mentalidade semita, “filho de” pode ser usado em
vários sentidos, como por exemplo, “adepto”, “partidário”, “discípulo”.
De modo que, levando-se em consideração a mentalidade semita em
questão, já que Jesus é judeu, a expressão “o filho de João” sugere que
Pedro fosse discípulo de João Batista, pois o artigo “o”, confirma esta
interpretação. Se Jesus estivesse falando que Pedro fosse filho de um
homem chamado João, o artigo “o” sugeriria um filho único, coisa que
sabemos que não é possível; Pedro não é filho único, seu irmão André foi
quem o conduziu até Jesus. Assim, temos um indício forte que também
Pedro era discípulo de João Batista 12.

1. Pedro em relação aos doze


No que diz respeito ao relacionamento entre Pedro e os doze, temos
algumas particularidades no IV Evangelho. Vejamos.
Começando pela escolha dos Doze, diferentemente dos sinóticos, onde
os textos mostram o momento em que Jesus escolhe os discípulos em
número de doze, São João não registra este episódio13. O IV Evangelho
mostra a vocação dos primeiros discípulos (1,40-44) e depois em Jo 6,70
Jesus diz: “Não vos escolhi, eu, aos doze?” Entretanto, não narra esta
escolha como faz os sinóticos, apresentando inclusive cada um dos
nomes14.

12
Cf J. MATEOS – J. BARRETO, Pedro, in Vocabulario teologico del evangelio de
Juan, Madri 1980.
13
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 385.
14
Cf Mc 3,14; Mt 10,1; Lc 6,13.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 31

O que mais nos interessa, todavia, é a posição de Pedro em relação ao


grupo dos doze, que nos sinóticos é muito evidente: é Pedro o porta-voz
do grupo. Em São João a preeminência de Pedro é apresentada de modo
diverso, pois a figura do misterioso discípulo amado aparece como que
concorrendo com Pedro. Embora em nenhum momento a primazia de
Pedro em relação ao grupo dos Doze seja contestada pelo autor, mas
apenas minimizada, através de um relacionamento muito próximo entre
Jesus e o discípulo amado, que o autor faz questão de evidenciar15.
Todavia, é claro o reconhecimento da importância de Pedro, sobretudo nos
momentos decisivos, como no momento de crise que temos em Jo 6,67-
69, onde Pedro faz sua profissão de fé: “Senhor, a quem iremos? Tens
palavras de vida eterna e nós cremos e reconhecemos que tu és o Santo de
Deus”. De sorte que, mesmo apresentado de modo diferente dos sinóticos,
Pedro ocupa também no IV Evangelho um lugar tenente.

2. Pedro em relação ao discípulo amado


Se, por um lado, o autor do IV Evangelho não contesta a primazia de
Pedro, por outro, a presença do discípulo amado é um marco distinto no
desenrolar dos fatos. Podemos dizer que, nos momentos mais importantes
e decisivos dos acontecimentos em João, temos ao lado de Pedro a figura
misteriosa do discípulo amado. Misteriosa porque existem hipóteses
diferentes acerca deste discípulo. Desde aquela que vê a figura do
discípulo amado como um ideal do discípulo perfeito, ou o símbolo do

15
Cf O. CULLMANN, Cullmann e altri. Il primato di Pietro, Bologna 1965, 27-28;
R. SCHNACKENBURG, Il vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973, 432-433.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 32

cristão amado por Jesus, àquela de uma pessoa real, um companheiro de


Jesus que era modelo para a comunidade joanina 16.
Mas quem é afinal o discípulo amado? É o mesmo discípulo anônimo
de 1,40? Cullmann e Brown vêem esta possibilidade17. A expressão
discípulo amado aparece pela primeira vez em 13,23, mas o nome de tal
discípulo jamais é mencionado18. Todavia, apesar de anônimo, Raymond
E. Brown, vê como implausível a idéia do discípulo amado como uma
figura ideal, ou puramente fictícia. Segundo Brown, o discípulo foi sim
idealizado, mas era também uma pessoa histórica, fato que se torna cada
vez mais óbvio na eclesiologia joanina19.
Seja como for, o fato é que neste ponto o IV Evangelho é peculiar.
Tem-se a impressão que o discípulo amado completa aquilo que falta em
Pedro. Por exemplo, na Última Ceia, em Jo 13,24, Pedro como os demais
discípulos, curiosos por saber de quem Jesus estava falando, faz sinal ao
discípulo amado para perguntar a Jesus aquilo que ele naquele momento
não tinha condições de fazer, ou seja, Simão Pedro não goza da intimidade
que tem o discípulo anônimo em relação a Jesus. Podemos dizer, que neste
momento, não obstante a primazia de Pedro reconhecida no IV Evangelho,
é o discípulo amado que tem a primazia do amor de Jesus. Talvez um
modo de dizer que a comunidade joanina reconhecia o valor desses dois

16
Cf R. E. BROWN, Pietro nel Nuovo Testamento, Roma 1988, 156.
17
Cf O. CULLMANN, Cullmann e altri. Il primato di Pietro, Bologna 1965, 30; R.
E. BRWON, A comunidade do discípulo amado, São Paulo 1984, 33.
18
Cf J. MATEOS – J. BARRETO, O Evangelho de São João. Análise lingüística e
comentário exegético, São Paulo 1989, 577; R. E. BROWN, Pietro nel Nuovo
Testamento, Roma 1988, 157.
19
Cf R. E. BROWN, A comunidade do discípulo amado, São Paulo 1984, 32.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 33

discípulos, mas ao mesmo tempo deixava claro o afeto especial que Jesus
tinha pelo discípulo amado20.
Além da Última Ceia, temos ainda a participação do discípulo amado
em outras situações ou momentos especiais. No momento em que Jesus é
crucificado, perto de sua cruz se encontram sua mãe e, junto dela, o
discípulo amado 19,26; ou, na corrida com Pedro ao sepulcro, assim que
recebem a notícia que Jesus não estava mais lá 20,2; e ainda, na pesca
após a ressurreição de Jesus, é o discípulo amado e anônimo que diz: “É o
Senhor!” 21,7; finalmente e fielmente, seguindo Pedro e Jesus e
“assinando” o Evangelho, temos o discípulo que Jesus amava 21,20.24.
De modo que a relação próxima entre Pedro e o discípulo amado salta
aos olhos. A interpretação de tal relacionamento é que não goza de um
consenso entre os estudiosos. Temos os que vêem uma relação de
concorrência ou rivalidade e os que acreditam que na verdade é um
relacionamento de complementaridade; ou ainda aqueles que atribuem a
estes dois discípulos uma relação de representatividade, onde Pedro
representaria a comunidade hierárquica e o discípulo amado, a
comunidade carismática21. Contudo, o que nos interessa é a proximidade
existente entre os dois que é um marco do IV Evangelho. Vale lembrar,
que o verbo utilizado pelo autor do Evangelho de João, para designar o
discípulo amado em 20,2, é o verbo φιλεῖν, diferente do utilizado nos

outros momentos, o verbo ἀγαπᾶν, que parece não representar um

20
Cf R. E. BROWN, Pietro nel Nuovo Testamento, Roma 1988, 157.
21
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 10.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 34

problema, já que o autor utiliza no decorrer do Evangelho tais verbos


como sinônimos22.

3. Pedro e Judas
Na rede de relações de Pedro no IV Evangelho, não podemos deixar de
mencionar um personagem que sem dúvidas é um dos mais conhecidos
nos evangelhos – diga-se de passagem, tristemente – que é Judas de Simão
Iscariotes, ou simplesmente, Judas Iscariotes23, o traidor de Jesus.
Sobre o significado do nome deste personagem e suas implicações,
temos opiniões diversas. Vejamos algumas delas. Começando pelo nome
Judas, que é nominado oito vezes no Evangelho de João24, e que em si é
um nome comum, mas que no IV Evangelho, segundo Mateos-Barreto, de
qualquer modo já alude à dificuldade de relacionamento entre Jesus e os
judeus, uma vez que os nomes Judas, judeus e Judéia têm uma designação
e uma raiz comum25, detalhe que no caso do Evangelho Joanino é

22
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madri 2003, 891; Não obstante,
porém, a questão dos verbos φιλεῖν e ἀγαπᾶν que, de modo geral, são empregados
como sinônimos não só na literatura joanina, mas também na LXX, existem opiniões
diferentes com relação à equivalência destes verbos no caso específico do capítulo 21,
onde para alguns comentaristas o autor teria a intenção de enfatizar a diferença entre o
amor sublime e incondicional, ἀγαπᾶν, e o amor afetuoso e amigo, φιλεῖν. De fato
não é tarefa fácil uma opinião sem riscos de erro; se recordarmos, por exemplo, que na
mentalidade semita, tanto o hebraico como o aramaico utilizavam um único verbo para
expressar as várias formas de amar, reforçamos ainda mais a opinião da equivalência
dos verbos em questão, como é a opinião de Barret. Todavia, não é uma questão
fechada; cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 1394-1395.
23
Os quatro Evangelhos quando mencionam Judas Iscariotes pela primeira vez, já
o apresentam como o traidor de Jesus. Cf Mt 10,4; Mc 3,19; Lc 6,16 e Jo 6,71.
24
Cf Cf NESTLE – ALAND , Ἰούδας, in Concordance To The Novum Testamentum
Graece, Berlin – New York 1987; C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madri
2003, 465.
25
Cf J. MATEOS – J. BARRETO, O Evangelho de São João. Análise lingüística e
comentário exegético, São Paulo 1989, 561.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 35

significativo, ou no mínimo curioso, se levarmos em consideração a clara


oposição existente entre Jesus e os “judeus” 26.
Além do vocábulo Judas, temos o que podemos chamar de sobrenome,
uma vez que Iscariotes, se não é de fato um sobrenome no sentido exato
do termo, passou a significá-lo na prática, como podemos perceber nos
textos sinóticos, onde Judas é chamado Judas Iscariotes27. Em São João,
embora, às vezes, Judas é chamado também Judas Iscariotes, é o único
evangelista que apresenta o pai de Judas, Simão Iscariotes (13,26),
segundo os melhores testemunhos28, já que existe um número considerável
de variantes. Contudo, o que nos interessa mais é o vocábulo em questão,
Iscariotes que, a exemplo do nome Judas, em São João, também não é um
bom nome.
Temos diferentes possibilidades para a origem do “sobrenome”
Iscariotes. Segundo Raymond Brown, a melhor delas parece ser aquela
que reflete o hebraico °£¬ Qeriyyœt, “homem de Kerioth”; possibilidade
esta que, se verdadeira, faz de Judas o único discípulo de Jesus que não

26
No IV Evangelho, o termo judeus, muitas vezes, aparece enfatizando o atrito
existente entre eles (judeus) e Jesus (cf 5,16; 7,1; 8,48; 9,22; 10,31; 11,8; 18,20.31;
19,7.12). Contudo, não se pode afirmar que Jesus era contra os judeus, sobretudo se
tomamos a palavra Judeus de modo genérico. Mas percebe-se que o problema
existente era entre Jesus e um grupo, ou no máximo grupos de judeus; mas de nenhum
modo podemos concluir uma rejeição da parte de Jesus com relação aos judeus, até
mesmo porque os discípulos de Jesus eram judeus como Ele próprio o era, bem como a
maioria dos primeiros cristãos.
27
Nos sinóticos temos o nome Judas Iscariotes no nominativo Ἰούδας ὁ
Ἰσκαριώτης (como por exemplo, Mt 10,4; com variantes como acontece também em
Mc 14,10); e no acusativo Ἰούδαν Ἰσκαριώθ (por exemplo, Mc 13,19; Lc 6,16;
também com variantes); razão pela qual Judas é chamado o Iscariotes ou simplesmente
Iscariotes, como se fosse seu sobrenome.
28
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 386.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 36

era galileu29. Mas existem outras interpretações, desde a que vê por detrás
do nome Iscariotes a palavra latina sicarius (assassino, bandido), àquela
que busca uma explicação no aramaico ¬e qar (mentiroso, falso)30. Seja
como for, o nome Judas Iscariotes, no caso do Evangelho de João, carrega
consigo uma carga etimológica negativa.
Depois de fazer esta breve apresentação de Judas Iscariotes, retomemos
o que para nós é o mais importante: se, por um lado, João coloca Pedro
sempre próximo ao discípulo amado (cf ponto 2), por outro, Pedro tem
atitudes que o faz próximo também de Judas; de modo que, no Evangelho
de João, Pedro está muitas vezes próximo ao ideal do discípulo de Jesus (o
discípulo amado), mas tem também uma aproximação muito estreita ao
discípulo traidor de Jesus (Judas Iscariotes); aproximação intencionada,
segundo Mateos-Barreto, onde o evangelista insinua justamente traços
comuns existentes entre Simão Pedro e Judas, através da coincidência do
nome Simão, patronímico de Judas, pois três vezes que aparece a
denominação Judas de Simão Iscariotes (6,71; 13,2.26), temos também
em proximidade Simão Pedro (6,68; 13,6.9.24.36)31. Talvez uma forma
que o autor encontrou para dizer à sua comunidade que, diante do Senhor,
mesmo Pedro, que na maioria das vezes está próximo do discípulo amado
por Jesus, é vulnerável, sujeito às quedas, à traição; Pedro assim como
Judas trai Jesus, nega-o por três vezes (18,17.25.26). Eis o “retrato” de
Pedro: Príncipe dos Apóstolos.

29
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 386.
30
Cf M. LIMBECK, Ἰσκαριώθ, in H. BALZ – G. SCHNEIDER, ed., Dizionario
Esegetico del Nuovo Testamento, Brescia 2004.
31
Cf J. MATEOS – J. BARRETO, O Evangelho de São João. Análise lingüística e
comentário exegético, São Paulo 1989, 561.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 37

4. Pedro, na perspectiva do primado


Já fizemos alusão anteriormente que, mesmo sendo abordada de modo
diverso em relação aos sinóticos, a preeminência de Pedro não é
contestada no IV Evangelho, antes reafirmada. Contudo, a perspectiva em
que o autor vê a primazia do Apóstolo Pedro, é que é de fato interessante e
tem muito a nos oferecer enquanto visão eclesiológica.
Quando falamos sobre o Apóstolo Pedro, apesar das divergências no
mundo cristão, relacionadas ao seu primado, uma coisa é certa: Pedro é
respeitado por todos como grande líder32; Apóstolo que recebeu de Jesus
uma missão particular, fato que podemos constatar em todos os
Evangelhos e também em outros escritos neo-testamentários33. Mas é
especialmente no IV Evangelho que, não só a missão de Pedro é muito
distinta, como também seu caráter e temperamento podem ser percebidos
com maior clareza34, pois se é verdade que o discípulo amado por um

32
Cf R. PESCH, I fondamenti biblici del primato, Brescia 2002, 21-25. Não obstante
as divergências no que se refere ao primado de Pedro, a teologia desenvolvida por
autores protestantes não desconhece a liderança do Apóstolo, como salientou Pesch,
citando os biblistas JÜRGEN ROLOFF e ULRICH LUZ.
33
Quanto à incumbência recebida por Pedro e seu papel específico no apostolado
como líder é um fato que podemos constatar em vários textos bíblicos (Mt 16,17-19;
Mc 3,16; 8,29; Lc 5,10; 9,20; Jo 1,42; 6,68; 13,7; 20,3-8; 21,15-18; At 1,15; 5,12; Gl
1,18); as divergências, existentes entre cristãos de várias denominações, não dizem
respeito tanto à questão bíblica como tal, naquilo que se refere à liderança de Pedro,
mas como interpretar a primazia do Apóstolo, situação que se agrava ainda mais no
tocante aos seus sucessores; cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo
exegético sobre Pedro no quarto Evangelho, Roma 1994, 2.6.
34
Todos os evangelistas deixam claro o temperamento impulsivo de Pedro; mas o
Evangelho de João revela alguns detalhes particulares de tal temperamento, como por
exemplo, na última ceia, onde Pedro não entende o significado do gesto de Jesus no
lava-pés. Mas é, sobretudo, em Jo 18,10, que temos uma idéia concreta do
temperamento impulsivo de Pedro que decepa a orelha do servo do sumo sacerdote.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 38

lado, minimiza a presença de Pedro, no entender de O. Cullmann 35, por


outro reforçou justamente a importância deste, já que, nos momentos
decisivos (6,68s.; 21,15-17), não obstante o discípulo predileto de Jesus, o
evangelista evidencia a liderança de Pedro36.
Partamos, pois, daquilo que é mais tranqüilo e que podemos constatar
no Novo Testamento: o destaque preeminente do Apóstolo Pedro. Quanto
a isto, creio que não haja problema; todos os cristãos reconhecem a
importância de Pedro na história do cristianismo. O problema que existe é
com relação à função específica do Apóstolo, o que é conhecido como o
primado de Pedro. Como devemos abordar esta questão? Creio que o
ponto de partida é lançar mão daquilo que temos de concreto nos textos
bíblicos, porém, com a devida atenção para não fazer uma leitura
descontextualizada, fato por demais debatido no estudo bíblico,
especialmente no âmbito catequético, ou seja, quando tomamos um
determinado texto isolado do seu contexto. O perigo neste caso é,
sobretudo, aquele de fazer um texto dizer aquilo que queremos, e não o
que de fato ele diz. De sorte que todos os que estudam um pouco a Bíblia
sabem que uma verdadeira leitura bíblica deve respeitar algumas regras.
Uma delas é justamente não se esquecer que a Bíblia é uma história com
princípio meio e fim, mesmo que a ordem dos livros não sejam
exatamente aquelas em que estão dispostos. Mas o fato é que existe uma
lógica histórica e literária, que precisa ser estudada sem parcialidades ou

Embora os outros evangelistas narrem este fato é somente São João que identifica o
agressor.
35
Cf O. CULLMANN, Cullmann e altri. Il primato di Pietro, Bologna 1965, 28.
36
Cf R. SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte terza, Brescia 1981, 57.
CAP. II: IDENTIDADE DO APÓSTOLO PEDRO NO IV EVANGELHO 39

conceitos hermenêuticos já pré-formados. Este é um grande problema,


cujos efeitos se sentem, sobretudo, num espaço que é a razão de ser da
Igreja: nos trabalhos de evangelização, no âmbito catequético pastoral.
Com relação ao primado de Pedro, aconteceu entre os estudiosos, e
continua acontecer – mesmo que em um nível teológico muito mais
elevado do que o discutido normalmente nas catequeses populares – um
pouco deste problema, isto é, fazem uma análise da questão a partir de
alguns textos, tomando alguns e deixando outros, muitas vezes para
minimizar ou maximizar o ministério petrino. Noutras palavras, seguindo
uma tradição, fortemente marcada pela divergência, sobre quais textos se
deve considerar37. De fato esta questão do primado de Pedro, ou talvez,
seria melhor dizer, sobre a maneira de entender o primado, é assaz
complexa e séria; basta lançar um olhar nas várias opiniões de autores
consagrados pela seriedade de seus trabalhos que existem a este respeito38.
Por isso mesmo, que devemos cada vez mais enfrentar este tema com
liberdade, sem fechar a questão, pois todos os que crêem verdadeiramente
no Cristo só têm a ganhar.
Não entraremos tanto na questão do primado no sentido de opinar sobre
quem tem razão, embora, como sacerdote católico, acredito na Igreja da
qual sou membro e instrumento. Todavia, justamente porque desejo seguir
as orientações da Igreja, que nos convida à reflexão sobre a necessidade de

37
Cf G. O’COLLINS – D. KENDAL, Bibbia e teologia. Dieci princìpi per l’uso
teologico della Scrittura, Cinisello Balsamo 1999, 181.
38
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 2.6.8.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 40

uma comunhão não só entre católicos39, e pensando justamente nesta


perspectiva do crescimento do Reino, que desejamos abordar um aspecto
do primado de Pedro, lançando mão de um texto que normalmente não
figura entre as clássicas citações bíblicas a este respeito (Mt 16,18-19; Lc
22, 31-32; Jo 21,15-17), mas que seguramente tem um contributo a
oferecer, como tantas outras possibilidades que ainda temos no imenso
campo do estudo bíblico. O texto em questão é Jo 1,4240.

39
Se o ecumenismo enquanto movimento organizado é recente, a idéia da unidade
do povo de Deus podemos encontrá-la profundamente radicada na Sagrada Escritura, e
especialmente como uma preocupação constante de Jesus (Jo 10,16; 17,11.20-23). Cf
PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, L’interpretazione della Bibbia nella Chiesa, Città
del Vaticano 1993, 116-117; preocupação também da Igreja, sobretudo, devemos
destacar, no século passado, o Concílio Ecumênico Vaticano II que sem dúvidas foi
um “sopro do Espírito de Deus” que removeu uma enorme quantidade de “poeira
acumulada”, que atrapalhava justamente a percepção daquilo que é a razão de ser da
Igreja: sinal de Deus no mundo. Este continua sendo o apelo do Senhor, unidade no
seu Reino. Daí a importância da Bíblia como instrumento que nos aponta soluções se
estudada nesta perspectiva. Cf DV 22.
40
Este texto foi elencado na nota 33, onde falávamos sobre a liderança de Pedro, o
que pode parecer estranho, pois de fato, num primeiro momento, não se percebe a
ligação existente com a preeminência do Apóstolo. Esta é a proposta de reflexão do
terceiro capítulo.
CAPÍTULO III

ΚΗΦΑΣ: Pedra rara no AT e fundamental no Novo

Quando alguém faz um comentário sobre o Apóstolo Pedro, mesmo


entre os que não têm o costume de ler a Bíblia, ou que não tiveram uma
boa formação catequética, uma coisa praticamente todos sabem: Pedro era
o líder dos Apóstolos. Alguns ainda sabem que Pedro foi cognominado
Pedra1. Conhecimento que muitas vezes é baseado na tradição popular,
onde sabemos, porque ouvimos dizer. Não se pode negar que a tradição
popular e oral tem uma importância muito grande, sobretudo no caso da
Bíblia. Porém, se por um lado não se pode desconhecer este valor, por
outro, no caso de uma pesquisa literária científica, não basta o
conhecimento popular ou o que ouvimos dizer2; é preciso confrontar
opiniões diversas, utilizar todos os recursos técnicos e científicos
disponíveis, como a filologia, a arqueologia, a exegese, etc.

1
O texto que normalmente é citado neste caso é o de Mt 16,18.
2
Esta já era a preocupação de Pio XII em Divino Afflante Spiritu; cf p. 14. Porém,
no caso da Bíblia, a pesquisa tem seu sentido maior, quando cumpre seu papel
fundamental que é o de nos ajudar a descobrir os sinais da presença de Deus na vida.
Cf C. MESTERS, Por trás das palavras, Petrópolis 1974, 131.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 42

No âmbito da pesquisa literária, temos um desafio particular, diferente


do que ocorre com as chamadas ciências exatas, onde normalmente a
matéria pesquisada possui certo padrão, um referencial exato. Por
exemplo, na pesquisa química, cada átomo tem seu valor atômico, que o
distingue de outro elemento, de modo que um átomo de ouro tem sempre
o mesmo valor, não importando se é de uma jóia de três mil anos atrás, ou
de uma pepita recém descoberta. É uma “linguagem” universal e exata. No
mundo das palavras não acontece o mesmo. As palavras não apenas
mudam de significado com o passar do tempo, como também, dentro de
um mesmo contexto cronológico preciso, uma palavra pode ter, além de
seu significado real, digamos “valor absoluto”, concreto, um valor
relativo, isto é, um sentido figurado. Tomemos como exemplo a palavra
pão. Todos nós sabemos que pão é um alimento; porém, o que nem todos
sabem é que no Brasil dos anos setenta, quando uma jovem queria
expressar seu encanto por um jovem, dizia: “ele é um pão”3. Isto para
dizer que uma palavra pode significar muito mais do que aquilo que
imaginamos. Além de seu significado digamos concreto, tem muitas vezes
um significado simbólico, uma história por trás daqueles sinais gráficos.
Retornemos a Pedro e a seu cognome Pedra, (rocha). Quando Mt 16,18
descreve a famosa pedra usa o vocábulo πέτρᾳ, que vem acompanhado

3
Cf A. B. DE HOLANDA FERREIRA, Pão, in Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, Rio de Janeiro 1975.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 43

de uma explicação: “e sobre esta pedra edificarei minha Igreja”4. O


mesmo tipo de “material” usado pelo homem sensato, que escuta a palavra
de Jesus e edifica sua casa sobre a rocha5, pois temos o mesmo vocábulo
utilizado em 16,18. É a mesma palavra ainda, utilizada para descrever o
túmulo de Jesus em 27,60, isto é, a rocha escavada onde depositaram o
corpo de Jesus e, também, para descrever as rochas que se fenderam no
momento da morte de Jesus, abrindo os túmulos (27,51). Das quinze vezes
que a palavra πέτρα é utilizada no Novo Testamento6, cinco vezes é em
Mateus7. O interessante, porém, é que os evangelistas, quando usam o
termo pedra sem um significado secundário, preferem a palavra λίθος8.

De sorte que as cinco vezes, em que Mateus usa o vocábulo πέτρα, é para

descrever construção ou sepulcro9, enquanto que com a palavra λίθος

4
Texto que normalmente figura na tradição da Igreja quando o assunto é o
ministério petrino. Cf G. O’COLLINS – D. KENDAL, Bibbia e teologia. Dieci princìpi
per l’uso teologico della Scrittura, Cinisello Balsamo 1999, 181.
5
Cf Mt 7,24.25; aqui temos πέτραν, acusativo feminino singular.
6
Cf NESTLE – ALAND , πετρα, in Concordance To The Novum Testamentum
Graece, Berlin – New York 1987.
7
Cf R. PESCH, πέτρα in H. BALZ – G. SCHNEIDER, ed., Dizionario Esegetico del
Nuovo Testamento, Brescia 2004.
8
Cf R. KRATZ, λίθος in H. BALZ – G. SCHNEIDER, ed., Dizionario Esegetico del
Nuovo Testamento, Brescia 2004. Somente para se ter uma idéia, temos: λίθος em Mt
24,2; Mc 13,2; 16,4; Lc 17,2; 21,6; λίθοις em Mc 5,5; Lc 21,15; λίθοι em Mt 4,3; Mc
13,1; Lc 19,40; λίθον em Mt 4,6; 7,9; 21,42; 21,44; 24,2; 27,60.66; 28,2; Mc 12,10;
13,2; 15,46; 16,3; Lc 4,11; 19,44 (2x); 20,17.18; 24,2; λίθου em Lc 22,41; λίθῳ em
Lc 4,3; 21,6; λίθων em Mt 3,9; Lc 3,8.
9
Cf Esta imagem da rocha como fundamento ou construção, podemos encontrá-la
no AT, como por exemplo, em Is 51,1b, onde se lê: “Olhai para a rocha (LXX:
πέτραν) da qual fostes talhados, para a cova de que fostes extraídos”. Também
Qumran condivide com Mt 16,18 esta idéia de comunidade que é edificada a partir da
rocha; cf J. GNILKA, Il Vangelo di Matteo. Parte seconda, Brescia 1991, 97-98.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 44

descreve, em conformidade com o Novo Testamento, a pedra em sentido


genérico, tanto a pedra bruta, não trabalhada, como a pedra esquadrada 10.
Assim, se por um lado é verdadeiro que muitas vezes os vocábulos
πέτρα e λίθος parecem ser usados indistintamente, ou com o mesmo
significado11, são palavras diversas com significações diferentes; o Antigo
Testamento nos ajuda a perceber tal diferenciação, pois πέτρα, é

tradução, sobretudo, de ƒûr e sela‘, enquanto λίθος corresponde na língua

hebraica, quase sempre, ’eben,12. Isto porque, ƒûr (rWc) e sela‘ ([l;s,) são
palavras sinônimas cujo significado é rocha e por sua vez °eben (!b,a,),
jamais é usada com o significado de rocha13.
Além das palavras supra citadas (rWc, [l;s, e !b,a,), temos ainda no
hebraico mais duas palavras que também são utilizadas para designar

10
Cf J. JEREMIAS, λίθος, in F. MONTAGNINI – G. SCARPAT – O. SOFFRITTI, ed.,
Grande Lessico del Nuovo Testamento, Vol. VI, Brescia 1970.
11
Por exemplo, temos o vocábulo πέτρᾳ em Mt 16,18 e λίθον em Mt 21,42; os
dois vocábulos foram traduzidos como pedra, tanto na Bíblia de Jerusalém em língua
portuguesa, cf A Bíblia de Jerusalém, São Paulo 1987; como na de língua italiana, cf
La Bibbia di Gerusalemme, Bologna 2000. Devido às necessidades e as
particularidades de cada língua, é difícil dizer se neste caso a tradução foi feliz.
Contudo, a tradução de língua inglesa já faz a devida distinção entre πέτρᾳ e λίθον,
usando rock e stone respectivamente; cf The New American Bible, Washington 1987.
O mesmo vale para a língua alemã, que usa Felsen para traduzir πέτρᾳ e Stein para
λίθον; cf Die Bibel. Altes und Neues Testament. Einheitsübersetzung, Stuttgart 1980.
E assim as traduções em língua inglesa, e em língua alemã, neste caso estão mais
próximas do grego e daquilo que é a tendência veterotestamentária, onde πέτρᾳ e
λίθον, não são sinônimos.
12
O. CULLMANN, πέτρα, in F. MONTAGNINI – G. SCARPAT – O. SOFFRITTI, ed.,
Grande Lessico del Nuovo Testamento, Vol. X, Brescia 1975.
13
Cf A. S. VAN DER WOUDE, rWc, in E. JENNI – C. WESTERMANN, ed., Dizionario
Teologico dell’Antico Testamento, Vol. II, Casale Monferrato, 1982; L. A. SCHÖKEL,
[l;s,, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São Paulo 1997.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 45

pedra. Uma é vymiL'x;, que designa normalmente o seixo, o sílex ou o


quartzo; pedra duríssima e maciça14. A outra é @Ke, palavra que
encontramos somente duas vezes em todo o Antigo Testamento, e mesmo
assim no plural, ~ypiKe (Jr 4,29; Jó 30,6)15. De sorte que em comparação, por
exemplo, com !b,a,, que aparece cerca de 269 vezes, sem contar os nomes
de lugares (e também excetuando Js 15,6; 18,17; 1Sm 20,19; 1 Re 1,9)16,
não é exagero afirmar que de fato, @Ke é uma pedra rara no Antigo
Testamento. Contudo, o que nos interessa mais não é tanto sua raridade
mas o seu significado e, conseqüentemente, as implicações decorrentes
para o Novo Testamento.

1. Κηϕᾶς: etimologia e simbologia

Cada palavra que utilizamos no nosso dia-a-dia tem uma história, uma
origem e uma evolução, aquilo que chamamos de etimologia. Acontece,
porém, que muitas vezes desconhecemos tal história, o que significa, em
termos práticos, o empobrecimento ou até mesmo a compreensão
equivocada de certos conceitos.
Salientamos acima o uso de algumas palavras no Antigo Testamento,
que foram traduzidas nas nossas línguas neo-latinas como pedra, mas que
na verdade expressam idéias diversas, ainda que tenham um ponto comum
que designa rocha, pedra, são realidades diversas. Vejamos mais

14
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 77.
15
Cf L. A. SCHÖKEL, @Ke, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São Paulo
1997; Bíblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart 1997.
16
Cf A. S. VAN DER WOUDE, rWc, in E. JENNI – C. WESTERMANN, ed., Dizionario
Teologico dell’Antico Testamento, Vol. II, Casale Monferrato 1982.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 46

atentamente esta questão começando das palavras que apresentam menos


dificuldade17:
a) !b,a, - no grego a tradução é quase sempre λίθος, com um
enorme campo de significados, como por exemplo, a
pedra que se lança com uma funda (1Sm 17,49); a estela
cultual (Gn 35,14); os ídolos de pedra (Jr 2,27); a pedra
usada para fechar uma fonte (Gn 29,3.8) ou uma gruta18
(Js 10,27); tábuas de pedra dadas a Moisés (Ex 24,12);
etc19.
b) vymiL'x; - pedra duríssima, associada a rWc, que corresponde
ao quartzo ou sílex (Dt 8,15; 32,13; Is 50,7; Sl 114,8; Jó
28,9)20.
c) [l;s, - designa penhasco, penedo, rocha (Nm 20,8.10s;
24,21; Jz 6,20; 1Sm 13,6; 23,25; Is 22,16; 57,5);
penhascos altos (Jó 39,28; Pr 30,26); fendas da rocha (Jr
13,4; 16,16); cume rochoso (1Sm 14,4; Eclo 40,15)21; etc.
d) rWc - pode-se dizer que é sinônimo da anterior, pois
também designa rocha, rochedo, penha, penhasco,

17
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΕΦΑΣ». Estudo exegético sobre
Pedro no quarto Evangelho, Roma 1994, 77.
18
Como por exemplo, a pedra utilizada para fechar o túmulo de Jesus. Cf Mt
27,60; neste versículo temos πέτρᾳ e λίθον, sendo a primeira uma rocha escavada,
gruta; e a segunda uma pedra para fechar a gruta.
19
Cf A. S. VAN DER WOUDE, rWc, in E. JENNI – C. WESTERMANN, ed., Dizionario
Teologico dell’Antico Testamento, Vol. II, Casale Monferrato 1982.
20
Cf L. KOEHLER – W. BAUMGARTNER, vymiL'x;, in The Hebrew and Aramaic
Lexicon of the Old Testament, New York 1994.
21
Cf L. A. SCHÖKEL, [l;s,, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São Paulo
1997.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 47

pedreira, monte, montanha (Ex 17,6; Dt 8,15; Na 8,6; Sl


78,20; 114,8; Jó 19,24); cimo rochoso (Na 23,9); minha
rocha (Sl 19,15); minha rocha salvadora (Sl 89,27);
rocha de refúgio (Sl 94,22)22; etc.
e) @Ke - esta palavra, embora tenha pontos comuns com as
precedentes, especialmente com significado muito
próximo das duas últimas ( [l;s, e rWc ), é uma palavra
particular, pois, como já afirmamos anteriormente, ela
figura no Antigo Testamento apenas duas vezes (Jr 4,29;
Jó 30,6), e diferente das outras que além de rocha têm
outros significados, Kefas tem o mesmo significado nos
dois textos, tanto que, em ambos, a tradução grega dos
LXX usou o vocábulo πέτρα, sendo ... εἰσέδυσαν εἰς τὰ

σπήλαια καὶ εἰς τὰ ἄλση ἐκρύβησαν καὶ ἐπὶ τὰς

πέτρας ἀνέβησαν ..., em Jeremias23 e τρῶγλαι πετρῶν


em Jó; “Designa um tipo especial de rocha: a rocha

22
Cf L. A. SCHÖKEL, rWc, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São Paulo
1997.
23
Cf Septuaginta, Stuttgart 1979. No caso de Jeremias é oportuno recordar que no
texto grego temos a palavra ἐκρύβησαν, que significa esconder. Contudo, o que
normalmente temos nas nossas traduções (por exemplo, no português, no italiano), é
“escalar as rochas” ou “salgono sulle rupi”, que de fato está de acordo com o texto
grego, ἀνέβησαν; porém, não foi levado em conta o verbo κρύπτω. Sem falar que
temos também na tradução grega a palavra σπήλαια, que significa caverna. Cf I.
PEREIRA, Σπήλαιον, in Dicionário grego-português e português-grego, Braga 1998.
De modo que, embora tendo a palavra rocha (e não pedra), o que já é interessante, as
línguas modernas como o italiano e o português, não conseguiram expressar tudo
aquilo que temos no texto hebraico (texto seguido pelas traduções mencionadas) ou no
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 48

escavada, oca; a gruta que serve como lugar de refúgio,


descanso e acolhimento”24.
Não obstante as dificuldades que existem para se fazer uma tradução,
no caso da palavra Kefas, é interessante notar que o texto grego dos LXX
(nas duas ocorrências que temos no Antigo Testamento), manteve sempre
a idéia fundamental desta palavra que é de refúgio, caverna, esconderijo, 25.
De fato, a etimologia de Kefas remonta épocas antigas, e sobretudo
dentro de um ambiente, onde uma palavra tem uma força evocativa, que
não conhecemos no mundo ocidental. “Os escritores bíblicos estão
plenamente conscientes dos elementos expressivos de sua língua, de sorte
que muitas narrações bíblicas deixam bastante evidente uma linguagem
subliminar acompanhando o texto, os fatos, as palavras, os símbolos, os
nomes das pessoas. Essa linguagem tem uma característica essencial:
origina-se de um som fundamental e de uma idéia ligada a este som” 26.
No caso da palavra Kefas, temos um som universal, como um rastro
etimológico, presente tanto em línguas antigas como modernas; “origina-
se dum SOM clássico universal, que vem desde os egípcios, assírios e
babilônios até às culturas modernas, passando pelo sânscrito, grego e

grego, isto é, o refúgio ou esconderijo (ἐκρύβησαν) que Jerusalém buscaria na


profecia de Jeremias.
24
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 78.
25
Independente das histórias criadas com relação à tradução dos LXX, presume-se
que os tradutores do hebreu para o grego conheciam o original hebraico. Cf R. C. DE
SOUZA, Palavra parábola. Uma aventura no mundo da linguagem, Aparecida 1990,
237.
26
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 73-74.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 49

latim”27. Este som pode ser assim representado: Kef, Kep, Keb, Kev -
Guef, Guep, Gueb, Guev – Hef, Hep, Heb, Hev. O sentido básico destes
sons pode ser assim traduzido ou representado: cercar, guardar, proteger,
defender, evolver. Exatamente as características que encontramos numa
gruta28.
Tanto na língua hebraica como na língua aramaica, podemos constatar
um grande número de palavras derivadas deste som acima citado: Kaf
(palma da mão, cavidade da mão, espaço côncavo, vaso levantado em
forma de curva, planta ou sola do pé, turíbulo, cova); Kafar (abrigo,
cobertura, teto, esconderijo, cobrir, encobrir, perdoar); Kefor (vaso, copo,
cântaro); Kofer (piche, resina, betume); Kaporet (cobertura da Arca da
Aliança); Kafas (reunir, juntar, concentrar); Kafash (cobrir); Kipah (folha
de palmeira); Gaf (asa, penas de ave); Gafaf (encobrir, ser curvo,
encurvar-se); Guf (cercar, ser cavado, fundo); Hafa (ocultar, cobrir, velar);
Hafaf (proteger, defender, velar, cobrir); Hafar (escavar, furar, abrir um
poço); Hefer (poço, cova, cavidade, fossa, buraco); Hob (útero, seio,
entranhas maternas, ninho, proteção, fecundar, chocar, guardar um
tesouro, esconder); Hufah (abrigo, refúgio, proteção)29.
Pode parecer estranho, mas todas estas palavras têm um ponto em
comum: a idéia de invólucro, de proteção, de defesa, de encobrir; mesmo
que num primeiro momento elas não aparentem uma ligação, quando

27
R. C. DE SOUZA, Palavra parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 239.
28
Ibidem.
29
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 75; R. C. DE SOUZA, Palavra parábola. Uma
aventura no mundo da linguagem, São Paulo 1990, 239.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 50

analisadas de modo mais preciso, revelam um denominador comum. Por


exemplo, se tomamos as palavras Kaf 30 (palma da mão), kipah31 (folha da
palmeira) e a palavra Kofer32 (piche, betume), aparentemente elas não têm
nenhuma ligação; porém, a palma da mão é capaz, dentre tantas coisas, de
cobrir e proteger os olhos contra os raios do sol, exatamente como fazem
as folhas da palmeira que oferecem abrigo ao viajante cansado do calor do
deserto. Proteger a madeira contra a umidade e contra os insetos era a
razão pela qual os carpinteiros antigos untavam com betume ou piche as
caixas e baús que fabricavam, tornando-os impermeáveis33.
É interessante analisar ainda mais uma das palavras que relacionamos
acima, já que está intimamente ligada a uma das idéias fundamentais do
cristianismo: perdoar. Um semita tem várias palavras para expressar o
perdão. Uma delas é exatamente Kafar, que se pode traduzir como
“encobrir os pecados”34. De modo que hoje, quando nós ocidentais
pronunciamos a palavra Kefas, normalmente não temos presente toda a
riqueza de seu significado etimológico. Contudo, “suas raízes sonoras,

30
Cf L. A. SCHÖKEL, @K;, in Dicionário Bíblico hebraico-português, São Paulo
1997.
31
Cf L. KOEHLER – W. BAUMGARTNER, hP'Ki, in The Hebrew and Aramaic Lexicon
of the Old Testament, New York 1995.
32
Cf F. ZORELL, rp,K{, in Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti,
Roma 1954.
33
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 75-76; prática de fato bastante antiga, pois na
narrativa do dilúvio, uma das orientações que Noé recebe de Deus é de calafetar a arca
com betume, por dentro e por fora. Cf Gn 6,14.
34
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 240; Sl 65,4; 78,38; 79,9; Jr 18,23; Dt 21,8; Ez 16,63. Estas citações
foram feitas a partir da Bíblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart 1997. Ver também: A
Bíblia de Jerusalém, São Paulo 1987, 1016, nota o.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 51

etimológicas” estão solidamente fundadas neste conceito de proteger,


abrigar, esconder, etc.35.

1.1 A literatura de fundo bíblico-judaica

Salientamos, no primeiro capítulo, a importância do chamado gênero


literário no estudo da Sagrada Escritura. Apesar de não existir um critério
uniforme para classificar os gêneros literários, devido à dificuldade de se
estabelecer um limite entre um e outro gênero36, não podemos no âmbito
da pesquisa bíblica caminhar ignorando esta questão. Segundo Alonso
Schökel, o Novo Testamento não era normalmente estudado ou
considerado dentro desta perspectiva literária 37. E na verdade por trás de
cada palavra existe uma verdadeira parábola, ou seja, toda uma mensagem
a ser decodificada, como já salientamos antes e que podemos confirmar a
partir do próprio vocábulo palavra, que no latim se diz justamente
parábola38. Em especial o Evangelho de João é o que mais se apóia sobre

35
Existe uma série de palavras em línguas diversas, que testemunham a etimologia
de Kefas. Temos por exemplo, em egípcio: Kep (palma da mão); Keb (ventre, útero);
Kabt (seio, mama); Geb (urna, vaso); em assírio-babilônico: Kab (mão que segura,
garras da águia); Gab, Qub, hub (variantes de Kab); em árabe: Kaf (gancho que
prende, montanha sagrada); em sírio: Kpá (cobrir); em grego: Skáfe (berço); Skáfos
(navio); Skáptos (mina subterrânea); em latim: Capax (capaz, isto é, que agarra, que
pega, que tem capacidade para segurar, para prender com a inteligência); Habêre (ter,
isto é, segurar com as mãos, prender); em português: cavo, cavidade, caverna, cofre,
cabana, etc.. Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre
Pedro no quarto Evangelho, Roma 1994, 74-75.
36
Cf L. A. SCHÖKEL, et al., La Bibbia nel suo contesto, Brescia 1994, 355.
37
Ibidem, 325.
38
Sobre o vocábulo palavra, Antenor Nascentes diz: “Comparação, alegoria sob a
qual se oculta uma verdade importante”. Cf A. NASCENTES, Palavra, in Dicionário
Etimológico da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1932. Com outras palavras o
Aurélio também afirma: “significa fonema ou grupo de fonemas com uma
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 52

os símbolos do Antigo Testamento, às vezes de modo explícito, e outras


de modo implícito, como um desafio ao leitor que deseja entender sua
mensagem39.
Assim temos na etimologia de Kefas toda uma simbologia que se
concretiza no uso que as tradições bíblica e judaica fizeram do termo @k.
Podemos dizer que existe um “pano de fundo” na tradição bíblico-
judaica, que serviu de fundamentação para o Evangelho joanino e, em
especial, no uso de Kefas em 1,4240.

2. Κηϕᾶς no Antigo Testamento

Já fizemos alusão à raridade “desta pedra” no Antigo Testamento. O


termo @Ke aparece somente duas vezes e, no plural, nos livros de Jó e de
Jeremias (Jr 4,29; Jó 30,6). Trataremos, sobretudo, do Texto Massorético e
da tradução dos LXX. Vejamos cada um dos textos separadamente.

2.1 No Texto Massoreta

Tomemos primeiramente o livro de Jó. Talvez o aspecto mais destacado


do personagem Jó é a sua famosa “paciência”. Ainda que de fato Jó não
tenha sido tão paciente41, sua história é dramaticamente fantástica: de uma

significação”. Cf A. B. DE HOLANDA FERREIRA, Palavra, in Novo Dicionário da


Língua Portuguesa, Rio de Janeiro 1975.
39
Cf L. A. SCHÖKEL, et al., La Bibbia nel suo contesto, Brescia 1994, 326.
40
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 78.
41
Na verdade Jó é um “especialista” em xingos e maldições. Se riscássemos de
vermelho todas as palavras de reclamações e maldições proferidas pelo “paciente Jó”,
sua impaciência saltaria aos olhos. Citaremos apenas como exemplo algumas frases:
“Pereça o dia em que nasci” (3,3); “Por que não morri ao deixar o ventre materno, ou
pereci ao sair das entranhas?” (3,11); “levo cravadas as flechas de Shadai e sinto
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 53

vida tranqüila e abençoada42 aos maiores infortúnios, inclusive as “chagas


malignas”43.
Quando Jó chegou ao limite de suas provações, quando não lhe restava
nem mesmo a saúde44, teve de enfrentar ainda uma situação desafiadora,
morar juntamente com pessoas que ele chamou de “gente vil, homens sem
nome” (30,8); ou “Chusma vil, prole sin nombre”, como traduziram
Alonso Schökel e Sicre Díaz45. Esta maneira de Jó se referir aos
infortunados que estão ao seu redor, não é porque os despreza enquanto
marginalizados, mas despreza aquilo que é vil nestas pessoas. Podemos
fazer um paralelo entre esta situação enfrentada por Jó e a vivida por um
homem inocente que é colocado no cárcere no meio de presos comuns 46. E
o nosso interesse na história de Jó, não desconhecendo a magnífica obra
literária de todo o livro, é particularmente voltado para o lugar onde se
refugiavam os “homens sem nome”, na descrição de Jó, e possivelmente
ele próprio, já que, no caso de sua enfermidade, era previsto em Lv 13,46,
um refúgio fora da comunidade.
Temos a seguinte descrição em Jó 30,6 no texto massoreta:
47
~ypi(kew> rp"å[' yrEÞxo !Ko=v.li ~ylixä 'n> #Wrå[]B;

absorver seu veneno” (6,4); “Pois sabei que foi Deus quem me transtornou,
envolvendo-me em suas redes” (19,6).
42
Cf Jó 1,1-5.
43
Cf Jó 2,7.
44
“Chagas malignas”. A terrível doença de Jó é descrita com a mesma palavra
(!yxiv.) que encontramos aplicada à sexta praga do Egito (Ex 9,9) e que temos também
em Lv 13,18-20.23 nas orientações sobre o que fazer em caso de lepra. Cf A Bíblia de
Jerusalém, São Paulo 1987, 883, nota o.
45
Cf L. A. SCHÖKEL – J. L. SICRE DÍAZ, Job. Comentario teológico y literario,
Madrid 2002, 518.
46
Ibidem, 526.
47
Bíblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart 1997.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 54

“... morando em barrancos escarpados, em covas e grutas do rochedo” 48.


Ou, “... habitando en barrancos espantosos, en cuevas e cavernas”, na
tradução de Alonso Schökel e José Luiz Sicre49.
Pode-se dizer que o ambiente descrito nesta frase não oferece, o que se
poderia chamar, condições dignas de moradia, pois temos três
características básicas do lugar e todas as situações de extrema pobreza.
A primeira descrição que a frase nos oferece é de modo mais genérico;
diz que aquelas pessoas habitavam «~ylixä 'n> #Wrå[]B;», que, em ambas as
traduções que utilizamos acima, nos apresenta um ambiente difícil, e que
de fato está em sintonia com o restante da frase, pois a segunda
informação que temos nos diz que eles viviam em «rp"å[' yrEÞxo». O vocábulo
yrEÞxo pode ser traduzido como buraco, cova 50, que ligado ao termo sucessivo
rp"å[', que significa terra, solo51, temos então, a expressão “covas cavadas na
terra”, que eram utilizadas como um tipo de refúgio de homens e animais,
fato já conhecido na literatura bíblica52.
Terminando a descrição sobre o habitat destas pessoas, a frase em
questão nos apresenta a palavra que mais nos interessa, «~ypi(ke», que é o
plural de «@Ke». Esta última descrição não apenas reforça a situação em que
vivia esta gente, com mera repetição de palavras, mas nos apresenta um

48
A Bíblia de Jerusalém, São Paulo 1987.
49
Cf L. A. SCHÖKEL – J. L. SICRE DÍAZ, Job. Comentario teológico y literario,
Madrid 2002, 518.
50
Cf F. ZORELL, yrEÞxo, in Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti,
Roma 1954.
51
Ibidem, rp"[å '.
52
Cf 1Sm 14,11; Na 2,13.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 55

detalhe a mais, pois trata-se de covas mas não como as primeiras, cavadas
na terra, mas nas rochas, portanto trata-se de grutas53.
Vejamos ainda, no texto massoreta, o passo de Jr 4,29:
~ybiê['B, WaB'… ry[iêh'-lK' ‘tx;r:’Bo tv,q,ª hmeråwo > vr"øP' lAQ’mi
54
vyai( !hEßB' bveîAy-!yaew> hb'êWz[] ry[iäh'-lK' Wl+[' ~ypiÞKeb;W
Este versículo foi assim traduzido em português pela Bíblia de
Jerusalém: “Ao grito do cavaleiro e do arqueiro, toda a cidade fugiu:
entraram no matagal, escalaram as rochas; toda cidade foi abandonada e
mais ninguém habita nela”55.
O quarto capítulo de Jeremias é uma minuciosa descrição do avanço de
um povo inimigo que vem do Norte ameaçando Jerusalém56 que, embora
advertida pelo profeta, não se converteu a Ihwh, procurando viver no
direito e na justiça; daí o terrível anúncio de um inimigo que arrasaria Judá
e Jerusalém em ruínas, provocando a fuga de todos os seus habitantes que
se refugiariam na selva e nas rochas. Iremos analisar apenas a parte final
deste versículo, o lugar para onde iriam as pessoas, segundo o profeta,
fugindo dos invasores. Estes lugares de refúgio são descritos como «~ypiÞKeb;W
~ybiê['B,». “A raiz b[ indica algo relacionado com volume, densidade,
espessura, e pode significar tanto «massa de nuvem», como bosque,

53
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ. Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 80.
54
Biblia Hebraica Stuttgartensia, Stuttgart 1997.
55
A Bíblia de Jerusalém, São Paulo 1987.
56
Cf A. WEISER, Geremia, Brescia 1987, 125-126.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 56

floresta densa, matagal, lugar cheio de árvores altas, adequado justamente


para o esconderijo”57.
Outra informação, referente ao esconderijo que as pessoas iriam buscar,
vem do termo ~ypiÞKe, que se refere a um lugar de esconderijo ou refúgio, a
exemplo de Jó 30,658. Não se trata somente de uma rocha ou pedreira que
se escala, mas de uma gruta rochosa, onde se pode entrar e se esconder.
Tal informação é confirmada, sobretudo, pelo verbo hl'[', que vem logo
em seguida e rege a palavra ~ypiÞKe. Como já fizemos alusão acima (n. 23), as
traduções na língua italiana ou portuguesa falam de escalar as rochas, e de
fato o verbo hl'[' na forma qal expressa tal ação; porém, não se limita à
ação de escalar, pois é o mesmo termo utilizado para dizer subir ao teto (Jz
9,51), ou ao monte (Ex 19,12), à cama (Gn 49,4), ou entrar no carro (1Re
12,18)59. Além do mais, temos a preposição b que indica “em” ou
“dentro”, de sorte que neste caso a ação não era apenas de subir mas de
entrar nas rochas60. Aliás, tem muito mais lógica alguém que deseja se
esconder, entrar numa gruta do que ficar sobre ela. Contudo, não se trata
de simplesmente dizer que esta ou aquela tradução não foi muito feliz.
Não é este nosso objetivo e nem é tarefa fácil fazer tal afirmação. Porém, é

57
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 81-82.
58
Cf W. L. HOLLADAY, Jeremiah 1, Philadelphia 1986, 169.
59
O sentido original do verbo hl'[', de fato, é de subir, ascender, escalar, montar,
erguer-se, dirigir-se, apresentar-se, incorporar-se, etc.; logo não se limita apenas a
escalar uma rocha. Cf L. A. SCHÖKEL, hl'[', in Dicionário Bíblico hebraico-português,
São Paulo 1997.
60
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 82.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 57

sempre importante confrontar os dados que dispomos. Creio que o texto


dos LXX tem muito a nos dizer a este respeito.

2.2 Na Septuaginta

Já adiantamos um pouco aquilo que o texto dos LXX nos apresenta a


respeito destes dois versículos. Aprofundemos um pouco mais a questão,
começando mais uma vez com Jó 30,6.
Os LXX traduziram o texto hebraico do seguinte modo:
ὧν οἱ οἶκοι αὐτῶν ἦσαν τρῶγλαι πετρῶν61.
E assim temos para o vocábulo ~ypiÞKe o uso de duas palavras gregas:
τρῶγλαι πετρῶν. Da palavra τρῶγλαι temos, por exemplo, no
português, o termo troglodita, isto é, homem da caverna. E, de fato,
τρώγλη significa buraco, cova62. Já o termo πετρῶν não tem sua
etimologia muito bem esclarecida, e abarca um amplo campo de
significados, que vai do fragmento de rocha ou pedra simples até a rocha
sólida, o penhasco, a pedreira; na maioria das vezes é utilizada para
traduzir as palavras ƒûr e sela‘, e, apesar de faltar um maior
esclarecimento, O. Cullmann, depois de expor o vasto campo de
significados do termo πέτρα, diz ser absolutamente inverossímil o jogo

de palavras πέτρα/Πέτρος de Mt 16,18, que se apóia sobre a


possibilidade semântica do aramaico Kefas, se fundar exclusivamente
sobre a acepção Kefas = λίθος, uma vez que estes termos tinham na

61
Septuaginta, Stuttgart 1979.
62
Cf I. PEREIRA, τρώγλη, in Dicionário grego-português e português-grego,
Braga 1998.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 58

origem conteúdos semânticos específicos e distintos 63. De maneira que


πέτρα indica preferencialmente a rocha sólida que, neste contexto

somada à palavra τρῶγλαι, cria a expressão cavidades das rochas, ou


simplesmente cavernas.
Analisemos agora o texto de Jr 4,29 na tradução dos LXX.
Com relação ao passo de Jr 4,29, temos na tradução dos LXX, um texto
mais longo que o texto Massoreta, que assim resultou no seguinte
versículo:
ἀπὸ φωνῆς ἱππέως καὶ ἐντεταμένου τόξου ἀνεχώρησεν

πᾶσα χώρα · εἰσέδυσαν εἰς τὰ σπήλαια καὶ εἰς τὰ ἄλση ἐκρύβησαν

καὶ ἐπὶ τὰς πέτρας ἀνέβησαν64.


Não se esquecendo da contextualização deste passo, que fala da fuga
dos habitantes da cidade, que fogem do temeroso inimigo do Norte,
analisemos três sentenças que aparecem salientando os lugares de refúgio.
A primeira diz que toda cidade65 (πᾶσα χώρα) iria entrar nas cavernas

(εἰσέδυσαν εἰς τὰ σπήλαια)66. A segunda informção nos fala sobre

63
Cf O. CULLMANN, πέτρα, in F. MONTAGNINI – G. SCARPAT – O. SOFFRITTI, ed.,
Grande Lessico del Nuovo Testamento, Vol. X, Brescia 1975.
64
Septuaginta, Stuttgart 1979.
65
Seguindo o texto massorético temos: “toda a cidade”. Cf A Bíblia de Jerusalém,
São Paulo 1987, 1483, nota q.
66
Como já fizemos alusão na nota 23, as traduções das Bíblias de Jerusalém, tanto
da língua portuguesa como da língua italiana seguiram, o Texto Massoreta. Cf A Bíblia
de Jerusalém, São Paulo 1987, 13; La Bibbia di Gerusalemme, Bologna 2000, 14.
Razão pela qual, apresentam em suas traduções um texto mais breve do que o que
temos na versão dos LXX. Contudo, a observação que fizemos na nota citada
permanece, uma vez que, mesmo seguindo o Texto Massorético e sendo fiéis quanto à
tradução em si, não levaram em consideração o trabalho realizado pelos tradutores da
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 59

esconder nos bosques (εἰς τὰ ἄλση ἐκρύβησαν). E, por fim, a terceira

indicação nos apresenta uma situação mais complexa, já que diz «ἐπὶ τὰς

πέτρας ἀνέβησαν» que, de acordo com a preposição que rege a sentença

«ἐπὶ» e o verbo final «ἀνέβησαν», temos a idéia de sobre e ainda de


subir. Contudo, levando-se em consideração o contexto claro que descreve
esconderijo e refúgio e ainda a força da etimologia de ~ypiÞKeb, que está por
trás de πέτρας, podemos concluir que não se trata tanto, ou somente, de
escalar as rochas, mas também de entrar nelas 67.

3. Κηϕᾶς no mundo judaico extra-bíblico

Começaremos desta vez analisando o nosso termo @Ke utilizando a


tradução do Targum de Jeremias, feita pelo Professor Josep Ribera Florit.
Assim o professor Ribera traduziu Jr 4,29, do referido targum:
“Al vocerío de los jinetes y de los arqueros han emigrado todos los habitantes
de la ciudad, han penetrado en las espesuras para huir y han escalado las
rocas para esconderse; todas sus ciudades han sido abandonadas y no hay
hombre que habite en ellas”68.

Como podemos notar a tradução acima vai de encontro com a idéia


central que apresentamos com relação à palavra kefas, que é sempre de
abrigo, proteção, refúgio. Diferentemente das traduções que mencionamos

Septuaginta que, presume-se, conhecedores da língua hebraica e, sobretudo, da força


etimológica da palavra @Ke, tanto que empregaram palavras que literalmente falando não
estão no texto hebraico, mas que são necessárias para traduzirem o termo em questão.
67
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 84.
68
J. R. FLORIT, Traducción del Targum de Jeremias, Estella 1992, 82.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 60

acima, aqui é muito claro que, mais do que escalar as rochas, o objetivo
principal era esconder-se nelas.
Obtivemos também informações preciosas no campo da literatura
semítica, com relação ao nosso termo, a partir das descobertas de Qumran,
uma vez que se trata de textos oriundos da região da Palestina dos tempos
que precederam Jesus ou que foram contemporâneos a Ele69. Temos por
exemplo atestações no Targum de Jó (duas), e no livro aramaico de
Henoque (três)70. Estas cinco atestações, cada uma mencionando uma
situação diversa, usam o termo kefas como penhasco e refúgio. Abrigo da
cabra montês e da águia no Targum de Jó; proteção contra o sol que
abrasa e alto penhasco por onde subiu o cordeiro, no livro aramaico de
Henoque71. De maneira que estes textos confirmam a etimologia da “nossa
pedra”, como sendo de fato uma pedra particular.

4. Κηϕᾶς no Novo Testamento

Como já afirmamos no início deste trabalho, entre os Testamentos


Antigo e Novo existe uma inter-relação, de tal modo que são ao mesmo

69
Cf A. P. DELL’ACQUA, Pietro e la roccia, in RivBiblIt 41 (1993) 189-199; J. T.
DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no quarto
Evangelho, Roma 1994, 84.
70
João Tavares de Lima faz na sua tese doutoral uma exposição destas atestações
do Targum de Jó e do livro aramaico de Henoque. O termo apk se encontra, por
exemplo, em 11QtgJó 32,1, que embora subsista só parcialmente, reforça a concepção
de kefas como refúgio, pois o termo aparece como habitat da camurça, um tipo de
cabra selvagem que habita as montanhas rochosas; cf F. ZORELL, l[ey', in Lexicon
Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti, Roma 1954; J. T. DE LIMA, «Tu serás
chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no quarto Evangelho, Roma 1994,
85-86.
71
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 85-88.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 61

tempo partes distintas e uma história única: a história da salvação. História


que se fez e se faz, não sem tensões, mas ao contrário a Bíblia é marcada
pelo que a Pontifícia Comissão Bíblica chamou de “tensões dinâmicas”; e
que o relacionamento entre Antigo e Novo Testamento tem suas
complexidades72. Contudo, o que não podemos perder de vista é que o
Novo Testamento está pleno de alusões e citações explícitas do Antigo73,
de sorte que, entender a literatura neo-testamentária, implica conhecer na
medida do possível a literatura vétero-testamentária.
Dito isto, podemos continuar nossa pesquisa acerca da palavra kefas,
pois o que fizemos até o presente momento foi justamente procurar
entender e conhecer melhor o significado desta palavra rara no Antigo
Testamento e não muito utilizada no Novo, já que nos Evangelhos ela é
hapax em Jo 1,42, e nos demais escritos neo-testamentários é utilizada
apenas por São Paulo e mesmo assim apenas oito vezes. O que nos leva a
concluir que não se trata de uma pedra comum, pois em todas as vezes que
Paulo a empregou foi para designar Pedro74, e jamais pedra, ou rocha; de
modo que resta assim apenas o texto de Jo 1,42 que a emprega no sentido
de rocha. E assim, se kefas, no sentido próprio de rocha, é rara no Antigo
Testamento, é raríssima no Novo, pois é empregada apenas uma vez.

4.1 Na literatura paulina

Quando lemos sobre a vida de São Paulo – especialmente nas suas


próprias cartas, pois tudo indica que elas nos oferecem informações mais

72
Cf PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, L’interpretazione della Bibbia nella
Chiesa, Città del Vaticano 1993, 82-83.
73
Ibidem, 80.
74
Cf 1Cor 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gl 1,18; 2,9.11.14.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 62

confiáveis do que, por exemplo, o livro dos Atos 75 – descobrimos um


homem verdadeiramente extraordinário76. Isto não tanto pela sua santidade
em si, mas especialmente percebemos um homem culto, “um
cosmopolita” como o definiu A. Deissmann 77. Um judeu de Tarso, da
Cilícia78, o que indica um judeu da diáspora que vive num mundo
helenizado. É um cidadão romano79, que o coloca também dentro do
quadro social e político do Império Romano.
Quanto à cultura e ao conhecimento da língua grega, se percebe, nas
suas cartas, seu modo de expressar eloqüente, que influenciou não só a
comunidade cristã primitiva, mas também no período patrístico onde a
marca de Paulo é evidente em Clemente Romano, Inácio de Antioquia e
Irineu de Lion. Agostinho de Hipona, ao reformular a teologia cristã ou a
reforma protestante ao formular sua teologia, o fizeram, sobretudo, tendo a
teologia paulina como base80. De maneira que Paulo não sem razão é
considerado o grande teólogo cristão81.
Todavia, um fato não menos notável na vida de Paulo, e que ele faz
questão de ressaltar, é a sua origem e formação no campo religioso. Assim
nos diz o Apóstolo, referindo-se à sua origem: “circuncidado ao oitavo

75
Cf P. ROSSANO, Paulo, in P. ROSSANO – G. RAVASI – A. GIRLANDA, ed., Nuovo
Dizionario di Teologia Biblica, Cinisello Balsamo 1988.
76
Paulo soube fazer como nenhum outro a adaptação de um “cristianismo” de
origem e mentalidade judaica à mentalidade helenista, possibilitando assim que o
mandamento do Senhor de levar a Boa Nova a todos os povos se tornasse de fato uma
realidade. Cf J. COMBLIN, Paulo Apóstolo de Jesus Cristo, Petrópolis 1993, 7.
77
Cf P. ROSSANO, Paulo, in P. ROSSANO – G. RAVASI – A. GIRLANDA, ed., Nuovo
Dizionario di Teologia Biblica, Cinisello Balsamo 1988.
78
Cf At 21,39.
79
Cf At 22,27.
80
Cf J. D. G. DUNN, La teologia dell’apostolo Paolo, Brescia 1999, 30-31.
81
Ibidem, 30.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 63

dia, da raça de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu filho de hebreus;


quanto à Lei, fariseu”82. Quanto ao zelo religioso, num tempo anterior à
sua conversão, nos fala: “... e como progredia no judaísmo mais do que
muitos compatriotas da minha idade, distinguindo-me no zelo pelas
tradições paternas”83. E ainda, no que tange à sua formação religiosa,
temos a seguinte informação: “Eu sou judeu. Nasci em Tarso, da Cilícia,
mas criei-me nesta cidade, educado aos pés de Gamaliel na observância
exata da Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus, como vós todos no
dia de Hoje”84. E assim, se de um lado Paulo possui cultura helenista, não
resta dúvidas quanto à sua formação e cultura semita.
Após esta breve “apresentação” do Apóstolo Paulo, que me parecia
necessária, retornemos à nossa questão central, o uso da palavra kefas, na
literatura paulina.
Para uma pessoa não habituada a lidar com a escrita – fato não muito
raro ainda hoje, mas que seguramente no tempo de Paulo era muitíssimo
comum, pessoas que não sabiam ler ou escrever – o uso das palavras é um
tanto quanto prático e preocupar-se com a etimologia ou filologia não é
uma questão essencial. Para um escritor ou para um leitor culto, as
palavras não são apenas instrumentos práticos na comunicação, pois cada
uma delas representa uma idéia, uma história. É aqui que entra nossa
observação sobre a utilização por parte de Paulo do termo kefas que,
excetuando o IV Evangelho, é o único escritor que faz uso desta palavra; e
a emprega não como Jesus quando muda o nome Simão Pedro, dizendo

82
Fl 3,5.
83
Gl 1,14.
84
At 22,3.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 64

que ele seria chamado rocha. Mas Paulo nas oito vezes que usa kefas, é
referência direta a Simão Pedro85, que aliás, Paulo quase não chama de
Pedro, mas Kefas86. E assim, estatisticamente falando, Kefas tem um
significado especial para Paulo.

4.2 Em Jo 1,42

Chegamos finalmente no que poderíamos chamar de “coração” do


nosso trabalho. Depois de abordar a palavra chave em questão num
levantamento de sua etimologia e significado, penso que estamos em
grado de ler Jo 1,42, numa perspectiva diversa daquela em que fomos
acostumados.
No campo da pesquisa bíblica, fato comum é a divergência entre os
estudiosos, que sem dúvidas é um dos motores que mais impulsiona e
ajuda a teologia solucionar as várias questões que vão surgindo ao longo
da história87. No caso do nosso passo joanino, o termo Kefas não encontra
entre os pesquisadores uma interpretação unívoca. Entretanto, quando
abordam a questão, alguns partem da correspondente de Κηϕᾶς em grego,

85
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 95.
86
É muito interessante observar que Paulo jamais usa o nome Simão para se referir
a Pedro. E usa somente duas vezes o nome Pedro (Gl 2,7.8). Vem imediatamente a
pergunta: por que Paulo usa preferentemente o nome Kefas? Não poderia a cultura
rabínica do Apóstolo ser a resposta a esta questão? Uma vez que sendo judeu culto
conhecia a literatura semita mais do que os outros escritores neo-testamentários e
consequentemente, sabia das implicações da palavra? São questões no mínimo
intrigantes.
87
Como ressaltamos acima, as tensões e divergências na pesquisa bíblica se
transformam em dinâmica, diria necessária para o enriquecimento da própria pesquisa.
Cf PONTIFICIA COMMISSIONE BIBLICA, L’interpretazione della Bibbia nella Chiesa,
Città del Vaticano 1993, 83.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 65

Πέτρος, escapando assim muito da significação do contexto de fundo


semítico88.
Não era fato estranho a mudança de nomes para o mundo do Antigo
Testamento, antes o contrário. Já na origem do povo bíblico constatamos
tal procedimento, como por exemplo, com Abrão que passa a ser chamado
Abraão (Gn 17,5); com Sarai que recebe o nome de Sara (Gn 17,15); Jacó
é nomeado Israel (Gn 32,29; 35,10); no Novo Testamento Saulo se
transforma em Paulo (At 13,9) e Pedro em Kefas (Jo 1,42)89.
Das interpretações que temos acerca de Jo 1,42, existem basicamente
dois modos de considerar a mudança de nome do Apóstolo Pedro: apelido
dado por Jesus, salientando a personalidade e o temperamento do
discípulo90; ou uma indicação da missão que Pedro iria assumir, como
rocha fundamental sobre a qual a Igreja se estruturaria. João Tavares
apresenta uma série de estudiosos desta questão, que trabalham dentro
destes dois pólos de possibilidades para interpretar a palavra Kefas91.

88
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 88.
89
Segundo a concepção dos antigos, o nome de um ser não só o designa, mas
determina a sua natureza. De sorte que mudar o nome de uma pessoa implicava mudar
seu destino. Cf A Bíblia de Jerusalém, São Paulo 1987, 52, nota p. Ver também, R. E.
BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 105.
90
O parecer de Mateos-Barreto é que o sobrenome Kefas alude à obstinação do
discípulo. Mas ressalta, contudo, que estas carcterísticas de Pedro não se aplicam à sua
personalidade em geral, mas à sua concepção messiânica. Cf J. MATEOS – J. BARRETO,
Pedro, in Vocabulario Teológico del Evangelio de Juan, Madrid 1980.
91
Dentre os que vêm o nome Kefas como um apelido que alude à personalidade de
Pedro, estão O. Karrer, J. Mateos-J. Barreto, R. Pesch, C. Coulot, e B. Lindars. Dentre
os que abordam o fato considerando o termo Kefas como indicação da missão que
Pedro deveria assumir, temos: J. Betz, M. É. Boismard, S. Cipriani e M. P. Da Sortino.
Os últimos contudo não entram na questão sobre o tipo de missão que Pedro iria
assumir, mas se limitam em constatar a ligação entre Kefas e a missão daí decorrente.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 66

O problema é que as interpretações acima mencionadas, embora


interessantes, quando colocadas à luz da etimologia de Kefas, não
encontram sustentáculo, pois em nenhum momento o termo @Ke é utilizado
na literatura judaica para expressar teimosia, obstinação, ou qualquer outro
aspecto referente à personalidade de alguém92; de modo que usar kefas
para expressar tais predicados não encontra nenhuma fundamentação seja
na etimologia ou na tradição bíblica. Tampouco encontramos no
Evangelho joanino a idéia presente noutras passagens neo-testamentárias,
da pedra usada para a construção, ou da pedra angular, que é referência a
Jesus Cristo93. E também neste caso a etimologia de Kefas não oferece
nenhuma sustentação, pois o vocábulo que designa a pedra angular ou de
construção nestes passos, é λίθος, que no hebraico se expressa com !b,a,,
como já mencionamos supra (p. 45).
É verdade que o temperamento forte de Pedro, sua incompreensão em
várias situações diante do ensinamento de Jesus; seu nome que mesmo
com interpretações diversas está de qualquer modo ligado à idéia de rocha,
e ainda a situação de liderança diante dos Doze criaram nele a imagem da
pedra da Igreja, um ponto de referência, o que não está errado. O
problema é a compreensão que se tem a respeito desta pedra. De que tipo
de pedra ou rocha se trata?

Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no


quarto Evangelho, Roma 1994, 88-89.
92
Ibidem.
93
Cf Mt 21,42; Mc 12,10; Lc 20,17; At 4,11; 1Pd 2,4; Ver também, R.
SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Prima parte, Brescia 1973, 433.
CAP. III: ΚΗΦΑΣ: PEDRA RARA NO AT E FUNDAMENTAL NO NOVO 67

Somente Mt 16,18 e Jo 1,42 falam sobre o momento em que Jesus


mudou o nome de Pedro94. Mateus, entretanto, explica a razão da
mudança: “e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”; Mateus fala sobre
o uso da pedra (no caso πέτρᾳ)95, como fundamento, enquanto João não
explica o porquê da mudança, todavia, usa a forma aramaica Kefas que,
como vimos, evoca um significado especial, seja no Antigo Testamento,
ou em outros textos extra-bíblicos.
E assim, não obstante as dificuldades existentes sobre o entendimento
da missão e do primado de Pedro, Mateus e João não se contradizem. A
questão da primazia de Pedro como líder, como ponto de referência, está
presente em ambos. A questão é que em João, quando Jesus diz a Pedro
σὺ κληθήσῃ Κηφᾶς, está sim de acordo com Mateus, anunciando a
missão que o discípulo irá desempenhar na Igreja, ser rocha; porém,
seguindo a força etimológica e a tradição semita do nome Kefas, podemos
ver esta rocha sob um novo prisma: uma gruta escavada na rocha, capaz
de oferecer abrigo, refúgio, proteger enfim a comunidade cristã que
necessita de defesa, de moradia, de um espaço comum 96.
Esta idéia de proteção para a comunidade cristã encontra uma lógica
ainda maior, se recordarmos que o Evangelho de João foi escrito numa

94
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 105.
95
É oportuno recordar que o termo πέτρα, com exceção de 1Cor 10,4; Rm 9,33;
1Pd 2,8 e Mt 16,18, é usado no Novo Testamento em sentido próprio. Mc 15,46 e Mt
27,60 falam do sepulcro escavado na πέτρα. No livro do Apocalipse (6,15), quando o
sexto selo foi aberto, os homens se esconderam nas cavernas e nas rochas πέτρας. Cf
O. CULLMANN, πέτρα, in F. MONTAGNINI – G. SCARPAT – O. SOFFRITTI, ed., Grande
Lessico del Nuovo Testamento, Vol. X, Brescia 1975.
96
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 93.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 68

época em que as comunidades cristãs enfrentavam desafios de toda sorte97,


logo a necessidade de colocar verdadeiramente em prática virtudes que
expressam a essência do cristianismo: a fraternidade, o acolhimento; um
espaço enfim, onde a rocha de fundamento se chama caridade. Uma leitura
não diversa daquela de Mt 16,18, no sentido ou no que se refere à solidez
da rocha como um fundamento seguro, contudo, resgatando uma dimensão
não menos importante desta rocha: a Igreja enquanto construção, enquanto
estrutura é uma necessidade mas não sua razão de ser. Sua razão de ser,
desde o início, é justamente um espaço de acolhimento, onde não haja
excluídos; onde o valor de uma pessoa, a sua dignidade está na sua
filiação divina e não no chamado “status social”.
Jesus nos deixou o exemplo maior ao convidar samaritanos (Jo 4,7s),
enfermos (Jo 5,6s), a adúltera (Jo 8,3s), o cego de nascença (Jo 9,6s) para
tomarem parte no seu Reino. E assim, ao dizer Kefas, devemos recordar-
nos da gruta que acolhe a todos98, mas especialmente o viajante cansado, o
desabrigado, ou o que não tinha espaço na sociedade, como o estrangeiro,
o enfermo, a adúltera, o cego. Esta é a leitura que constatamos em Jo 1,42.

97
Especialmente depois da guerra do ano 70 d.C., os cristãos não tinham mais a
possibilidade de conviver no meio judaico e não eram mais aceitos em suas sinagogas,
pois estes eram vistos pelos judeus como uma seita herética do judaísmo. De modo que
a chamada comunidade dos judeus-cristãos, se tornava cada vez mais isolada
geográfica e politicamente falando; inclusive amaldiçoada nas orações das “dezoito
súplicas” que os judeus criaram no final do I século, como reação aos “renegados” que
não aceitavam submeter o Evangelho à Lei. Cf K. S. FRANK, Manuale di storia della
Chiesa antica, Città del Vaticano 2000, 80-81.
98
Cf R. C. DE SOUZA, Palavra, parábola. Uma aventura no mundo da linguagem,
Aparecida 1990, 240.
CAPÍTULO IV

Igreja de pedra: Igreja que acolhe

Terminamos o terceiro capítulo fazendo uma alusão aos primeiros


tempos da Igreja1, o chamado tempo apostólico, onde a fraternidade entre
seus membros era preceito evangélico2, mas também uma necessidade. Ser
solidário, fraterno, era também uma questão de sobrevivência, pois o
cristianismo que começara desenvolver-se lentamente e de modo
progressivo, sem um projeto definido por parte dos homens, e num
primeiro momento conservando do judaísmo muitas características que
não eram incompatíveis com a fé cristã 3, a partir do ano 70 d.C., não podia
mais continuar em tal situação, já que a estrutura do judaísmo que

1
Cf nota 94 p. 48.
2
O cristianismo tem na sua origem as virtudes do acolhimento, da hospitalidade, da
fraternidade enfim, características todas elas, que estão em sintonia com a palavra
kefas enquanto lugar de refúgio, de proteção; basta recordar o mandamento novo:
“Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei,
amai-vos também uns aos outros. Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos,
se tiverdes amor uns aos outros” (Jo 13, 34-35). Ideal narrado com palavras diversas, e
já como testemunho em At 2,42.
3
Cf G. LEBRETON – G. ZEILLER, Storia della Chiesa. La Chiesa primitiva, Vol. I,
Cinisello Balsamo 1995, 161.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 70

vigorava até esta época fora completamente modificada depois da guerra.


De maneira que os cristãos, que antes encontravam espaço nas sinagogas,
agora eram banidos como hereges4. É neste contexto de incertezas e
perseguições que temos a origem e desenvolvimento do Evangelho de
João, por volta do final do I século5.
E assim, mesmo não tendo informação sobre alguma comunidade
fundada por São João, já que os escritos chamados joaninos (Evangelho e
as cartas) não mencionam nenhuma comunidade local específica 6, não é
difícil entender o porquê que o IV Evangelho insiste tanto na questão do
conhecimento de Cristo e do amor fraterno, logo uma imagem de uma
Igreja que seja sólida – devido às perseguições – mas que pela mesma
razão seja capaz de acolher; noutras palavras, uma Igreja de pedra (sólida
como a rocha), e ao mesmo tempo, uma Igreja que acolhe (como uma
gruta).

1. Κηϕᾶς e a missão de Pedro em Jo 1,42

Para entendermos bem a missão de Pedro no Evangelho de João, o


ponto de partida, no nosso entendimento é justamente o passo 1,42. E mais
especificamente a palavra Kefas7.

4
Definitivamente não era mais possível uma relação entre judeus e cristãos,
sobretudo devido à interpretação da Lei sob ótica diversa. Em Jo 12,42; 16,1-4,
podemos constatar a questão da expulsão das sinagogas sofrida pelos cristãos. Cf K. S.
FRANK, Manuale di storia della Chiesa antica, Città del Vaticano 2000, 80; J.
KONINGS, A Bíblia nas suas origens e Hoje, Petrópolis 2002, 150.
5
Cf J. KONINGS, A Bíblia nas suas origens e Hoje, Petrópolis 2002, 164.
6
Cf R. FABRIS, et al., Introduzione generale alla Bibbia, Leumann 1999, 141.
7
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 346.
CAP. IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE 71

Quando Pedro é levado até Jesus, temos um primeiro contato nada


animador. Enquanto André e o outro discípulo tomaram iniciativa de
seguir Jesus após ouvirem do Batista, “Eis o Cordeiro de Deus” 8, Pedro,
além de ser levado até Jesus, ou seja, não é iniciativa própria, não fala
absolutamente nada, e não mostra nenhum interesse por Jesus, diferente
do irmão André. Todavia, esta primeira impressão não deve ser entendida
como um modo de desvalorizar ou diminuir a pessoa de Pedro,
especialmente diante do discípulo amado, já que em João não é Pedro o
primeiro a encontrar Jesus9. Isto porque, depois do diálogo entre Jesus e os
dois discípulos, e apesar da “passividade” de Pedro, é ele quem merece da
parte de Jesus uma atenção ou um olhar especial10, que de certo modo,
podemos dizer, alude à posição e à missão que Pedro irá desempenhar, a
partir do seu novo nome11.

8
“André, o irmão de Simão Pedro, era um dos dois que ouviram as palavras de
João e seguiram Jesus”. O outro discípulo não é nomeado. Contudo, o que salientamos
neste episódio é que eles (André e o outro) seguem Jesus, isto é, tomam iniciativa e
chamam Jesus de “Rabi”; logo em seguida André diz a Pedro: “Encontramos o
Messias”. Assim, temos a iniciativa de André e do outro discípulo de um lado e a
passividade de Pedro de outro. Diferente dos sinóticos onde cabe a Pedro a honra de
ser o primeiro a seguir Jesus.
9
Cf R. SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973, 422-
433.
10
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madrid 2003, 274; R.
SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973, 433.
11
Quando Pedro é conduzido até Jesus, a primeira reação de Jesus é fixá-lo com o
olhar; e em seguida o chama de Kefas. Da parte de Pedro não temos nenhuma reação.
Jesus também não acrescenta nenhuma palavra ao nome Kefas; nenhum comentário
sobre a mudança do nome, como, por exemplo, temos em Mt 16,18, onde Jesus diz
qual seria a missão ou a razão do novo nome: “e sobre esta pedra edificarei minha
Igreja”. Porém, como vimos no capítulo III, Kefas não é simplesmente pedra como
temos nas nossas traduções; ou mesmo que tomemos o texto grego, onde a explicação
de Kefas no final do versículo diz: ὃ ἑρμηνεύεται Πέτρος, na verdade o sentido da
palavra Kefas não é expresso na sua inteireza. De modo que, considerando agora o
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 72

É interessante observar, que o autor do IV Evangelho faz uma pequena


explicação do nome Kefas, diferente do que acontece em Mt 16,18, onde é
Jesus que diz a razão do nome; aqui é o autor que sente a necessidade de
traduzir para o grego a palavra aramaica 12. O novo nome de Pedro,
contudo, com todas as implicações que já salientamos, não é uma
atribuição que ele deve assumir imediatamente, haja vista que a expressão
dita por Jesus é: σὺ κληθήσῃ Κηϕᾶς, é uma afirmação direta e pessoal,
mas que deveria se concretizar no futuro, como uma profecia 13; é Jesus
que conhece já num primeiro instante a personalidade e o destino de
Pedro14. Contudo, normalmente não percebemos na fala de Jesus o

sentido etimológico e tradicional do termo, é que se percebe o que Jesus realmente


disse; e porque naquele momento não fez nenhum acréscimo ao novo nome de Pedro.
Na verdade não precisava acréscimo ou comentar o nome, pois dentro da mentalidade
semita, o termo Kefas já sintetizava a missão atribuída a Pedro, pois decodificando seu
novo nome decodificamos também seu programa missionário. Cf J. T. DE LIMA, «Tu
serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no quarto Evangelho, Roma
1994, 348.
12
Embora abordando um outro aspecto da questão, R. Schnackenburg diz que esta
pequena explicação, ou tradução feita pelo autor, da palavra aramaica Kefas, é porque
ele quer não apenas recordar aos leitores gregos um nome que eles conhecem, mas
quer também, analogamente ao versículo 41(Messias = Cristo), explicá-lo. Cf R.
SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973,431. Raymond
E. Brown, por sua vez, chama a atenção para o fato de que nem Petros em grego e nem
Kefas em aramaico eram normalmente empregados como nomes próprios; poderia ser
mais um sobrenome que deveria explicar alguma coisa do caráter ou da missão de
Pedro. Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 100.
13
Cf R. SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973,
431.
14
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madrid 2003, 274. Contudo,
além das informações apresentadas pelos autores que citamos, João Tavares nos
oferece, no que toca à missão de Simão Pedro, a seguinte observação: “Κηϕᾶς é
hapax legomenon nos evangelhos e, quando deveria referir-se a Simão com este termo,
o quarto evangelista usa Πέτρος, uma tentativa de tradução para o grego do aramaico
@k – do qual Κηϕᾶς é uma grecização – fazendo com que este vocábulo original
CAP. IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE 73

conteúdo programático que Ele expressa em relação à missão que Pedro


deverá trilhar. Isto porque fomos acostumados a fazer uma leitura de Jo
1,42, sem levar em conta as implicações de Kefas no que se refere à sua
etimologia, ou à sua aplicação na literatura semita, e lemos somente sua
tradução helenizada15.
Uma interpretação, portanto, mais precisa de Jo 1,42, deve evocar a
significação etimológica e simbólica de @k, “segundo as quais as kefas são
grutas rochosas que formam uma espécie de abrigo natural e gratuito nos
lugares afastados e desertos, muito conhecidas pelos habitantes da
Palestina, servindo para abrigar, acolher e proteger os pastores e suas
ovelhas, os peregrinos surpreendidos pela noite, pelo frio e pela
tempestade, os fugitivos em épocas de invasões, de guerras e de
perseguições, os fracos em busca de recobrarem suas forças” 16.
Analisando também a trajetória de Pedro no IV Evangelho, seu
temperamento, suas atitudes, percebe-se que, entre o novo nome dado por
Jesus, Kefas, e o papel desenvolvido por ele, existe uma grande sintonia.
Pedro é conhecido por seu caráter impetuoso, decidido, mas inconstante.
Basta recordar alguns episódios que temos no Evangelho de João. Pedro

permaneça como fonte de significado para a missão de Simão”. J. T. DE LIMA, «Tu


serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no quarto Evangelho, Roma
1994, 348.
15
Se tomarmos apenas as traduções ou interpretações que foram feitas a partir da
palavra πέτρα, ou ainda as interpretações que foram feitas de Kefas, sem levar em
conta sua etimologia, dificilmente iremos perceber a missão petrina no IV Evangelho
que está diretamente ligada à concepção de Kefas. Isto porque, sem o dado
etimológico, Kefas dificilmente encontraria uma interpretação ou tradução satisfatória.
Cf A. P. DELL’ACQUA, Pietro e la roccia, in RivBiblIt 41 (1993) 189-199.
16
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 348.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 74

no momento de crise demonstra atitude de liderança ao responder em


nome dos Doze17. Já no momento da última ceia, Pedro revela sua pouca
capacidade de compreender o projeto de Jesus18. Depois, no momento da
prisão de Jesus, Pedro age de modo violento, impetuoso19. De modo que,
da mesma forma que numa gruta podemos encontrar coisas preciosas que
foram conservadas – basta lembrar os manuscritos de Qumran – e também
perigos como animais selvagens em busca de abrigo, em Pedro temos
atitudes dignas de um discípulo de Jesus, mas também ações contrárias ao
ensinamento do Senhor. Penso que não é exagero afirmar que Pedro, com
seu caráter inconstante, é uma caverna de surpresas.

2. A trajetória programática de Pedro no IV Evangelho


No primeiro contato entre Pedro e Jesus, a falta de interesse por parte
do discípulo, que não faz nenhuma observação, não questiona, não
manifesta qualquer outra reação, possibilita apenas um monólogo;
somente Jesus fala. Bem diferente do encontro com André e o outro
discípulo, onde existe um diálogo entre os três. Contudo, nas palavras de
Jesus temos a resposta ou a razão do silêncio do discípulo20.

17
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 385.
18
“O que faço, não compreendes agora, mas o compreenderás mais tarde” (Jo
13,7).
19
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 673.
20
Cf Jo 1,37-42. No encontro de Jesus com André e o outro discípulo, temos um
diálogo que acontece e se desenvolve naquele exato momento: τί ζητεῖτε; À pergunta
de Jesus, temos uma resposta que diz respeito àquele momento preciso: οἱ δὲ εἶπαν
αὐτῷ· ῥαββί‚ ὃ λέγεται μεθερμηνευόμενον διδάσκαλε͵ ποῦ μένεις; São
perguntas objetivas e diretas feitas para o momento presente, acompanhadas também
de respostas para aquela situação; os discípulos estão decididos: “e permaneceram com
ele aquele dia”. No encontro com Pedro, temos uma outra situação; não temos diálogo,
não temos decisão da parte de Pedro; e não temos nenhuma afirmação para aquele
CAP. IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE 75

Somente no final do Evangelho é que se entende a aparente passividade


ou falta de interesse de Pedro em 1,42 ou ainda o porquê do olhar especial
de Jesus e a mudança do nome para Kefas. Primeiro com relação à
passividade de Pedro, devemos ter presente que o fato de ele ter sido
levado até Jesus não indica necessariamente passividade, ou que tenha
sido colocado em segundo plano21, especialmente porque em seguida ele
merece de Jesus uma atenção especial, um olhar que no grego se diz
ἐμβλέπω, um verbo composto de βλέπω, que exprime a idéia de visão,

mais a preposição ἐν, dentro; logo um olhar com penetração, poderíamos

momento. Isto podemos perceber, sobretudo, no verbo utilizado por Jesus, que é uma
referência ao futuro: σὺ κληθήσῃ (cf nota 13). O interessante contudo é que esta não é
a única vez que Jesus se dirige a Pedro referindo-se ao futuro. Em Jo 13,7, por
exemplo, Pedro não compreendendo a ação de Jesus, tem a seguinte resposta: γνώσῃ
δὲ μετὰ ταῦτα, ou seja, um conhecimento que Pedro terá no futuro. Também com
relação à negação de Pedro, Jesus faz duas revelações que sucederão no futuro; a
primeira é que Pedro o seguirá mais tarde, ἀκολουθήσεις δὲ ὕστερον 13,36. A
segunda, também um fato que sucederá no futuro, é a negação de Pedro, que embora
no momento insista que dará a vida por Jesus, na verdade não está pronto para tal
testemunho, negará Jesus (13,36-38). Podemos citar ainda como o exemplo desta
trajetória programada de Pedro, o capítulo 21. Neste capítulo, dentre tantos fatos, no
vesículo 18, Jesus conclui o programa ou a missão que Pedro ainda terá por cumprir;
são fatos que sucederão, portanto no futuro: ᾄλλος σε ζώσει καὶ οἴσει ὅπου οὐ
θέλει. Contudo, aqui temos uma diferença, pois em seguida Jesus vai dizer a Pedro o
que não tinha falado em todo o Evangelho: ἀκολούθει μοι (segue-me). “Jesus retoma
a palavra dirigida a Pedro, após o lava-pés (13,36)”; cf A Bíblia de Jerusalém, São
Paulo 1987, 2040, nota i. João Tavares fala deste conteúdo programático da trajetória
de Pedro, que seguindo programaticamente a messianidade de Jesus que é proclamada
no Evangelho de João de modo progressivo a partir da perícope 1,35-51, culmina em
21,15s. Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre
Pedro no quarto Evangelho, Roma 1994, 346-352.
21
Cf R. SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte prima, Brescia 1973,
433.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 76

dizer, olhar o interior22.


E assim, no olhar profundo de Jesus e em especial no nome Kefas,
temos anunciado de modo programático a missão e trajetória de Pedro,
que embora não sendo tratada nos passos seguintes, “continua como pano
de fundo deles – já que, quando apresenta a pessoa de Pedro, o evangelista
se interessa em evidenciar aqueles aspectos que ajudam a entender os seus
condicionamentos, as suas dificuldades e o seu processo de
amadurecimento em vista da missão – e se completa no capítulo 21, que
evoca 1,41-42 e concretiza a missão de Pedro num contexto e com
imagens eminentemente eclesiológicas”23.

3. Confirmação da missão de Pedro em Jo 21


No que toca ao capítulo 21 de São João, temos inúmeras opiniões tanto
no que se refere à sua origem como ao seu objetivo. Quanto à sua origem,
temos testemunhos antigos, como o P66 e Tertuliano que atestam que o
Evangelho nunca circulou sem o capítulo 2124. Contudo, é clara a
conclusão do Evangelho em 20,30-3125. O capítulo 21, portanto, é um
acréscimo, como um suplemento com notícias de um segundo momento?

22
Cf J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 65-66. Segundo Barret, este verbo revela que Jesus
já conhece de imediato a personalidade e o destino de Pedro. Cf nota 14. É muito
sugestiva a imagem deste encontro entre Jesus e Pedro. Temos o olhar fixo de Jesus, e
rompendo o silêncio após o olhar, a frase no futuro que, no estilo literário
programático joanino, encontrará seu nexo no capítulo final.
23
J. T. DE LIMA, «Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro no
quarto Evangelho, Roma 1994, 346.
24
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 1361.
25
Cf C. K. BARRET, El evangelio según san Juan, Madrid 2003, 879; R.
SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte terza, Brescia 1981, 565; R. E.
BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 1361.
CAP. IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE 77

Ou um apêndice sem correlação com a obra no seu conjunto? Ou seria um


epílogo que remata ou faz uma recapitulação de todo o Evangelho? R.
Brown é da opinião de que se trata de um epílogo, pois o capítulo 21 não
pode ser um apêndice, como algo sem relação com o Evangelho, já que
apresenta uma estreita relação com o pensamento joanino26; suplemento
também não é uma boa definição, pois um suplemento normalmente
fornece notícias de um segundo momento, que não é o caso de Jo 21 27.
Todavia, a opinião mais aceita é que o capítulo 21 é um acréscimo feito
pelo mesmo autor ou discípulo deste, quando o Evangelho já estava
concluído28. Este acréscimo é um epílogo, segundo R. E. Brown, porque
dentre outras razões, contrabalança com o prólogo do início do Evangelho.
E, segundo ainda Brown, tanto o pensamento e a expressão do capítulo 21
refletem os escritos joaninos29.
Seja como for, o que desejamos destacar é a ligação existente entre Jo
1,42 com o capítulo 2130. Num primeiro momento, tem-se a impressão de
que a única ligação existente entre os dois textos é que em ambos temos
como figura de destaque Simão Pedro. Porém, analisando e resgatando a
força etimológica de Kefas, percebemos que existe sim uma idéia comum

26
Não se pode negar, contudo, a presença de tradições diversas no que se refere ao
material de Jo 21,1-23. Todavia, como estas tradições diversas foram redigidas, de
modo que se chegasse ao texto que ora possuímos, não encontra ainda uma solução
satisfatória, especialmente no que se refere aos vv. 2-13. O estilo joanino está presente
sem dúvidas nos vv.15-23; mas isto não é suficiente para afirmar a autoria do texto. De
modo que temos muitas interrogações com soluções provisórias. Cf R.
SCHNACKENBURG, Il Vangelo di Giovanni. Parte terza, Brescia 1981, 570-571.
27
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 1362.
28
Cf J. T. DE LIMA, « Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 250.
29
Cf R. E. BROWN, Giovanni, Assisi 1999, 1362-63.
30
Cf J. T. DE LIMA, « Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 351.
: UM ABRIGO NECESSÁRIO 78

entre o pastoreio de que Pedro é incumbido no capítulo 21, com a palavra


Kefas, pois do pastor se espera proteção, abrigo, acolhida; características
próprias de Kefas, como já salientamos acima.
Temos ainda uma correspondência literária e temática, entre os passos
1,19-51 e o capítulo 21, no mínimo interessantes. Por exemplo, em Jo 1,42
e 21,15-17, temos a expressão “Simão de João”, que só aparece nesses
dois passos; temos também Natanael, nome que aparece no NT seis
vezes31, e todas elas no IV Evangelho e nas duas perícopes em questão
(1,45-49; 21,2); dois discípulos não identificados em 1,35.37 e também
em 21,2; as expressões segue-me (1,43; 21,19.22) e virou-se para trás e
viu (1,38; 21,20)32.
Uma palavra ainda que confirma a missão de Pedro no capítulo 21 é o
verbo usado em 1,40.43, quando André e Filipe são associados a Jesus,
através do verbo ἀκολουθέω; isto porque, no primeiro contato com Jesus,

Pedro não recebeu este chamado «Ἀκολούθει μοι» (segui-me); nem


tampouco estava pronto para o seguimento em 13,36, pois usando o
mesmo verbo ἀκολουθέω, Jesus afirma que Pedro deverá segui-lo
somente mais tarde. E este momento é confirmado duas vezes no capítulo
21 onde, empregando o mesmo verbo, Jesus diz a Pedro: Ἀκολούθει μοι

(21,19) e σύ μοι ἀκολούθει (21,22).

31
Cf NESTLE – ALAND , ναϑαναηλ, in Concordance To The Novum Testamentum
Graece, Berlin – New York 1987.
32
Cf J. T. DE LIMA, « Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 351-352.
CAP. IV: IGREJA DE PEDRA: IGREJA QUE ACOLHE 79

E asssim, se em Jo 1,42 Pedro não se insere totalmente na missão, não


recebe o convite de Jesus, agora em 21,19.22 Pedro é confirmado para a
missão. Isto porque, como ressaltamos antes, em João, Jesus programa a
missão de Pedro que se efetuará ao longo do Evangelho, através de quedas
e de recomeços33. Mas é sobretudo Kefas, que antecipa as qualidades e
virtudes do pastor e líder de que Jesus precisaria: a firmeza da rocha e a
acolhida de uma gruta. Isto é Kefas.

33
Cf J. T. DE LIMA, « Tu serás chamado ΚΗΦΑΣ». Estudo exegético sobre Pedro
no quarto Evangelho, Roma 1994, 353.
CONCLUSÃO

No IV Evangelho, o autor faz questão de mencionar, em vários


momentos, que Jesus sabia o que fazer 1. Creio que podemos afirmar
também que, no caso específico de Jo 1,42, Jesus sabia muito bem o
porquê e as implicações do novo nome dado a Simão Pedro: Kefas.
Quando consultamos os dicionários em busca de uma explicação para o
termo Kefas, o que normalmente encontramos nos diz apenas parte do que
de fato o vocábulo significa; e assim a resposta mais comum, de acordo
também com o próprio Evangelho, é esta: Kefas quer dizer pedra. Não é
uma resposta errada; todavia, não é também uma resposta completa. Para
se ter uma boa tradução de Kefas, não basta o que nos dizem os
dicionários, mas é preciso recuar no tempo em busca de textos antigos
para resgatar a força etimológica e simbólica desta palavra. Sem dúvida é
mais exigente do que simplesmente consultar um vocabulário. Sem falar
que é mais cômodo ser “pedra” do que ser “Kefas”.
Todavia, é preciso redescobrir não apenas o significado original desta
palavra, mas colocar em prática o que ela significa. É desafiador? É
verdade. Contudo, não é missão impossível, pois neste resgate não

1
Cf Jo 2,25; 6,6.64; 11,42; 13,11.
CONCLUSÃO 81

estamos sozinhos, o Senhor da missão assim nos prometeu: “Não vos


deixarei órfãos”2. Promessa do Senhor aos seus discípulos, quando
anuncia que deveria retornar ao Pai, mas que, em seu nome, nos seria
enviado o Espírito Santo.
Diante desta promessa de Jesus, temos quase um paradoxo, pois já se
passaram mais de dois mil anos, e ainda não conseguimos realizar no
mundo o ideal cristão da solidariedade, da justiça, da paz enfim; temos um
longo caminho a percorrer. Todavia, é historicamente claro que, se não
fosse a promessa do Senhor, as nossas limitações humanas há muito já
teriam feito sucumbir os ensinamentos e o ideal cristão. Contudo, mesmo
que humanamente paradoxal, percebe-se na própria história cristã que a
promessa do Cristo é verdadeira, pois jamais nos abandonou o Paráclito
prometido e, nos momentos mais difíceis da nossa caminhada,
encontramos tantos homens e mulheres, famosos e anônimos, mas
impulsionados pelo mesmo Espírito, o que nos permite clamar Abba3!
Espírito que nos recorda sempre a nossa história, nossa origem e nossa
destinação. Daí a necessidade de um coração sempre aberto e sensível a
esta mesma história, onde todos os que acreditam no Cristo devem
aprender a lição do perdão e do amor, dons do Espírito e colunas do ideal
cristão. É assim que poderemos rezar verdadeiramente o Pai-Nosso, e
tantos outros ensinamentos bíblicos que, com certeza, encontram
ressonância na comunidade desejada por Jesus através da palavra Kefas.

2
Cf Jo 14,18.
3
Cf Rm 8,15.
SIGLAS E ABREVIATURAS

AAS Acta Apostolicae Sedis


AT Antigo Testamento
DV Dei Verbum
LXX Septuaginta
n. Nota
NT Novo Testamento
p. Página
P66 Papiro 66
RivBiblIt Rivista Biblica Italiana
s Seguinte(s)
vv. Versículos
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