You are on page 1of 193

UNIVERSIDADE FEDERAL

H DE MATO GROSSO DO SUL


Reitora

Célia Maria da Silva Oliveira

Vice-Reitor
João Ricardo Fiigueiras Tognini

Obra aprovada pelo


CONSELHO EDITORIAL DA UFMS
Resolução n° 13/09

CONSELHO EDITORIAL
Dercir Pedro de Oliveira (Presidente)
Antônio Lino Rodrigues de Sá
Cícero Antonio de Oliveira Tredezini
Élcia Esnarriaga de Arruda
Giancarlo Lastoria
Jackeiine Maria Zani Pinto da Silva Oliveira
Jéferson Meneguin Ortega
Jorge Eremites de Oliveira
José Francisco Ferrari
José Luiz Fornasieri
Jussara Peixoto Ennes
Lúcia Regina Vianna Oliveira
Maria Adélia Menegazzo
Marize Terezinha L. P. Peres
Mônica Carvalho Magalhães Kassar
Silvana de Abreu
Tito Carlos Machado de Oliveira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Coordenadoria de Biblioteca Centrai - UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)

Ávila, Vicente Fideles de


A958p A pesquisa na vida e na universidade / Vicente Fideles de Ávila.
3.ed. rev. Campo Grande, MS : Ed. UFMS, 2009.
209 p. : il. ; 21 cm.

ISBN 978-85-7613-254-7

I. Pesquisa. 2. Universidades e faculdades - Brasil. I. Titulo.

CDD (22) 001.4


VICENTE FIPELES
PE ÁVILA

A PESQUISA

NA VIDA
E NA
UNIVERSIDADE

3 a Edição Revisada

Campo Grande - MS
2009

é EDITORA
j[nÉMs
Copyright ® 1992 - Vicente Fideles de Ávila

Titulo original da 1 a edição em 1995:


"A Pesquisa na Dinâmica da Vida
e na Essência da Universidade"

Projeto Gráfico e
Editoração Eletrônica
Editora UFMS

Revisão
A revisão lingüística e ortográfica
é de responsabilidade do autor

Ilustrações
Marlei Sigrist

Publicação da
/(editora
J\\\IBS
UNIVERSIDADE FEDERAL
DE MATO GROSSO DO SUL
Portão 14 - Estádio Morenão - Campus da UFMS
Fone: (67) 3345-7200 - Campo Grande - MS
e-mail: conselho@editora.ufms.br

ISBN: 978-85-7613-254-7
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
Impresso no Brasil
AGRADECIMENTOS

Este trabalho testemunha a permanente atitude de apoio de


minha esposa, MARLENE, e se dedica ao futuro de nossas
filhas FLÁVIA e ELISA, que representam e encarnam nossas
esperanças vivas de um Brasil renovado pelas próximas gerações.
APRESENTAÇÃO

Várias décadas de envolvimento direto com o


ensino, a ciência e a cultura no Brasil (como técnico
e professor desde 1966 e até como Secretário
Substituto de Planejamento do então Ministério da
Educação e Cultura-MEC no início dos anos 80) me
respaldam a convicção de que a pesquisa é o ponto
estratégico a partir do qual se viabilizará a aspirada
qualidade do ensino, em todos os graus e
modalidades de escolas, bem como de
concretização dos sonhos de vida melhor, de
dinamização material que leve à ruptura do
subdesenvolvimento como círculo vicioso e do
conseqüente bem-estar social brasileiro.

Em vista disso, urge educar para a pesquisa, como


também se faz indispensável desmistificar o
aparato ritual que a torna admirada porém
inacessível à adolescência, à juventude e a quantos
dela poderão se valer como fator de ascensão
material, de realização pessoal, de êxito profissional
e de desenvolvimento social. A própria essência da
universidade, e até das instituições educacionais
em geral, pode e deve ser redimensionada à luz da
pesquisa como mecanismo de vida, de saber, de
dinamismo e de formação.
É exatamente nas perspectivas acima que o estudo
A PESQUISA NA VIDA E NA UNIVERSIDADE foi
amadurecido ao longo de anos. Julgou-se oportuno,
até, que sua formatação fosse enriquecida com
algumas ilustrações didático-estimuladoras devido
ao apelo de complexidade que se costuma conferir
à matéria. Por isso, o texto é permeado por
desenhos tipo cartuns - com traços simples a
nanquim preto -, concebidos e executados pela
professora Marlei Sigrist do Departamento de
Comunicação e Artes do Centro de Ciências
Humanas e Sociais da Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.

Entende-se, outrossim, que a clientela


potencialmente usuária deste trabalho abrange
todos os professores universitários, todos os
professores da educação básica, os alunos pelo
menos universitários e do ensino médio e outros
profissionais (psicólogos, sociólogos, engenheiros,
médicos, advogados, economistas, administradores,
jornalistas, etc.), que se interessem por pesquisa.

Vicente Fideles
de Ávila
SUMÁRIO

TÓPICO 1 - PRESSUPOSTOS GERAIS 13


1.1- PRESSUPOSTOS DE PESQUISA EM SI E NA VIDA 16
1.2 - QUESTIONAMENTOS SOBRE PESQUISA NA UNIVERSIDADE 17

TÓPICO 2 - PESQUISA CIENTÍFICA NÃO SÓ PARACIÊNCIA 21

TÓPICO 3-PESQUISAE LIMITAÇÃO CONCEITUAL UNIVERSITÁRIA 27

TÓPICO 4 - A PESQUISA E O PROCESSO NATURAL DE


FORMULAÇÃO EXPANSIVO-EVOLUTIVA DO CONHECIMENTO 39

4.1 - PASSOS REFERENCIAIS DO PROCESSO NATURAL DE


FORMULAÇÃO DO CONHECIMENTO 43

4.1.1 - Primeiro Passo: A Simples Apreensão 43


4.1.2 - Segundo Passo: O Juízo 47
4.1.3 - Terceiro Passo: O Raciocínio 54
4.1.4 - Análise-Síntese: Mecanismo Motor-Reator do Raciocínio 59

4.2-TENTATIVAS DE RECONSTITUIÇÃO DASEQÜÊNCIACÍCLICA


DO PROCESSO EXPANSIVO-EVOLUTIVO DO CONHECIMENTO 61

9
4.2.1 - Primeira Tentativa de Reconstituição 62

4.2.2 - Segunda Tentativa de Reconstituição 63

4.3 - LIÇÕES PRAGMÁTICAS DO PROCESSO


EXPANSIVO-EVOLUTIVO DE FORMULAÇÃO DO CONHECIMENTO 69
4.3.1 - Relativas ao Âmbito Geral do Processo 69
4.3.2 - Relativas à Propalada Questão Teoria Versus Prática 70

4.3.3 - Relativas à Realidade e Importância da Abstração 71


4.3.4 - Relativas ao Proceso Análise-Síntese 73
4.3.5 - Relativas à Ciência e ao Avanço Científico 74
4.3.6 - Relativas à Compreensão Básica do que é Pesquisa 75

TÓPICO 5 - A PESOU ISA NA CONCEPÇÃO CLÁSSICA USUAL 77

5.1 - BREVE ENFOQUE HISTÓRICO SOBRE OS EIXOS


CONCEITUAIS DE PESQUISA 80
5.2- ALGUMAS CONCEITUAÇÕES USUAIS DE PESQUISA 83
5.3 - DOSAGENS PARA RIGOR E ORDEM NO
PROCESSO DE PESQUISA 86
5.4 - TIPOS DE PESQUISA 89
5.5-DICAS AOS INDECISOS 101

TÓPICO 6 - A PESQU ISA NA Dl NAMIZAÇÃO DA VI DA 109

6.1 -APESQUISA NA CONQUISTADA VIDA 112


6.2 -APESQUISACOMO FATOR DE REALIZAÇÃO COLETIVA 115
6.3-A PESQUISA COMO FATOR DE REALIZAÇÃO
PROFISSIONAL E PESSOAL 119

TÓPICO 7 - A PESQUISA NO EPICENTRO DO


FENÔMENO FORMAÇÃO 131

7.1 -APESQUISACOMO DINAMISMO ENERGÉTICO DO


FENÔMENO FORMAÇÃO 135
7.1.1 - A Formação como Pesquisa de Formas 136
7.1.2 - A Formação como Capacidade de Transformação de
Acontecimentos em Experiências Significantes 136
7.1.3 - A Formação como Processo Dialético de Interrogação,
Negação e Afirmação 140

10
7.1.4 Principais Fatores Operacionais do

Processo de Formação: Experiência, Exercitação e Práxis 141

7.1.5 Três Destaques para Concluir 142


7.2 - EXTENSÃO DAABORDAGEM À FORMAÇÃO

DE PROFESSORES 144
7.3 - CABERIA UMA CIÊNCIA PARAA FORMAÇÃO? 147

TÓPICO 8 - A PESQUISA NA RAZÃO DE SER DA UNIVERSIDADE 151


8.1 -ASOCIEDADE COMEÇAADEBATERA
UNIVERSIDADE BRASILEIRA 154
8 . 2 - A UNIVERSIDADE BRASILEIRA EM FASE DE GESTAÇÃO 156
8.2.1 - Fuga a Iniciativas Próprias e Compromissadas 157
8.2.2 - Discussão Improdutiva sobre Ensino, Pesquisa e Extensão 158
8.2.3 - A Universidade Ainda não se Assumiu 160
8.2.4 - Miopia Governamental em Relação à Universidade 162
8.3 - A PESQUISANACARACTERIZACÃO ESSENCIAL DA
UNIVERSIDADE 167

TÓPICO 9 - DIMENSÃO TEÓRICO-OPERACIONAL DA


PESQUISA UNIVERSITÁRIA 179
9.1 -APESQUISA NA CONQUISTADA
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA 181
9.2 - A UNIVERSIDADE COMO AMPLO VIVEIRO DE PESQUISA 187

9.3 - A PESQUISA IMANENTE ÀAÇÃO DOCENTE 192


9.4 - A PESQUISA NÃO IMANENTEÀ DOCÊNCIA 195

TÓPICO 10-DESTAQUES RECAPITULATIVOS 197

BIBLIOGRAFIA 205

11
SIGLAS

CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico


CNRS Centre National de Recherche Scientifique (da França)
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias
IES Insituição (ões) de Ensino Superior
INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
IUPERJ Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro
OCDE Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico
(da Europa Ocidental)
P & D Pesquisa e Desenvolvimento
P.O Pesquisa Operacional
PUC/RJ Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
PUG Pontifícia Universidade Gregoriana (de Roma, Itália)
UEPG Universidade Estadual de Ponta Grossa - PR
UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
UNESCO United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
(da ONU - Organização das Nações Unidas)
com sede em Paris - França
USP Universidade de São Paulo (mantida pelo Estado de São Paulo)

12
PRESSUPOSTOS
GERAIS
A lida com a literatura e o magistério da Metodologia Científica,
bem assim com os problemas gerais da vida e da administração uni-
versitária, vem me mostrando e demonstrando diariamente, há vários
anos, que a área da pesquisa e da ciência está eivada de preconceitos
e tabus que dificultam ou impedem o acesso de professores, técnicos,
estudantes e demais profissionais e potenciais latentes à sua iniciação
e prática progressiva.
Vem demonstrando inclusive que a universidade brasileira, so-
bretudo a sua parcela representada por instituições mais recentes e
interioranas, não acordou para o dimensionamento do que é e de como
se faz pesquisa em consonância com as peculiaridades específicas
da própria realidade
universitária. Não
se despertou para
definir e assumir o
seu papel como vi-
veiro onde se pre-
param e cultivam
não só a pesquisa
e a ciência como
produtos mas tam-
bém, e principal-
mente, os seus
agentes e promoto-
res em processo
contínuo.

15
Nessa perspectiva, e absolutamente convicto de que quem tudo
reivindica nada quer ou pode oferecer, é que resolvi documentar as
análises, as opiniões e, de modo especial, as sugestões da seqüência
deste estudo, intentando incluí-las em pauta de amplo, profundo e pro-
dutivo debate.
Na verdade, tudo o que se registrou em termos de análises e
opiniões pertence ainda ao âmbito das chamadas hipóteses fundamen-
tadas, visto o respectivo processo de demonstração sistemática de-
pender inclusive da aplicação factual das propostas operacionais por
elas abrangidas. São, ou pelo menos pretendem ser, portanto, hipóte-
ses ou respostas, passíveis de demonstração operacional, que emer-
gem de pressupostos sobre pesquisa em si mesma e na própria vida,
bem como se referem a questionamentos concernentes à pesquisa
típica do meio universitário.

PRESSUPOSTOS DE PESQUISA
1.1 EM SI E NA VIDA

A pesquisa não é mito nem rito. Para se entrar no seu mundo,


basta que se equipe progressivamente de: a) hábito de cultivo da curio-
sidade; b) disponibilidade para fundamentação e aprendizado perma-
nentes; c) exercício de capacidade dinamizador-criadora; d) intenção
de aprendizado cumulativo, pela conquista da paciência estratégica de
se começar pelo começo ou de se preparar e ensaiar para produções
sofisticadas a partir das mais simples e fáceis; e) gosto pelo desenvol-
vimento de habilidades de prospecção, programação, acuidade e con-
trole de observações; e f) condições mínimas de formulação de análi-
ses descritivo-interpretativas, principalmente por escrito.
O cultivo da curiosidade (mencionado acima) importa, para o
pesquisador, o exercício dos sentidos, da inteligência e da capacidade
associativa para perceber, captar e interpretar mensagens e significa-
ções lá onde o comum das pessoas não consegue chegar. Assim:
- experiências ou fenômenos simples e corriqueiros para a maio-
ria poderão constituir rico e farto material de trabalho e realização para
o pesquisador;
- a própria pesquisa não se configura única e exclusivamente
como trato com o desconhecido em busca do absolutamente inédito
(mito que se criou em seu entorno e que bloqueia a maioria das pes-

16
soas que por ela se interessam e a ela poderiam se dedicar), mas
como processo que permite, inclusive, redescobrir o já descoberto,
redimensionar o já dimensionado e reaproveitar o já aproveitado. As
grandes descobertas podem surgir tanto de um sofisticado e
dispendioso trabalho de pesquisa (e todo país ou entidade que se pre-
tende desenvolver investe maciçamente nesse sentido) como de um
simples "ovo de Colombo". Essas duas dimensões não se excluem,
ao contrário, complementam-se.

No que respeita à relação de pesquisa com produção, extensão


e/ou aprofundamento do conhecimento, não há fenômenos positivos e
negativos, visto que negativas ou positivas são as formas de relaciona-
mento das pessoas com os aludidos fenômenos. Por isso, é de capital
importância que os candidatos à atuação na área de pesquisa se dis-
ponham e se exercitem no sentido de captar e interpretar a variedade
de mensagens que a experiência do relacionamento com cada fenô-
meno encerra, sobretudo quando se tratar de alguma que não os excite
e motive naturalmente.
Em termos de país subdesenvolvido, mormente em matéria de
competência educacional, a maior barreira com que os candidatos à
pesquisa (como processo de produção de alguma forma de conheci-
mento) se defrontam é a da pobreza relativa a habilidades de análise
interpretativa e de sua comunicação escrita. Trata-se, pois, mais de
deficiência infra-estrutural de desenvolvimento e socialização de pro-
dução pessoal e institucional que da falta de potencial latente.

QUESTIONAMENTOS SOBRE
PESQUISA NA UNIVERSIDADE

Legislou-se, escreve-se e fala-se diuturnamente sobre não


dissociação entre ensino-pesquisa-extensão no âmbito universitá-
rio. Só que até hoje (e já se vão décadas desde que a Lei n.° 5.540/
68 entrou em vigor) não se procurou resolver teórica e operacio-
nalmente questões fundamentais para viabilizar essa "não dissocia-
ção", como:
a) Que é autêntica universidade e o quê a pesquisa tem a ver
com isso?
b) Pesquisar, na instituição universitária, significa o quê?; signifi-
ca fazer exatamente o que fazem as outras instituições especializadas

17
só em programar e
desenvolver pes-
quisa técnico-cien-
tífica, como a EM-
BRAPA (Empresa
Brasileira de Pes-
quisas Agropecuá-
rias), o INPE (Ins-
tituto Nacional de
Pesquisas Espa-
ciais), o CNRS
(Centre Nacional de Recherche Scientifique - da França) e congêneres?

c) Até que limites, em que e como o professor universitário tem


de ser pesquisador?; a partir de onde e quando o professor universitá-
rio, na ativa, não pode ou mesmo não deve se pretender um pesquisa-
dor?; ou: não seria
o caso de se pen-
sar, em termos de
política universitá-
ria, em investimen-
tos, definições e
programações típi-
cas de pesquisa
imanente e não
imanente à ação
docente?

d) O esforço despendido para despertar mentes e iniciar pesso-


as no processo de desenvolvimento de pesquisa e de geração de co-
nhecimento deve ou não ser entendido e valorizado como verdadeiro
trabalho de pesquisa no seio da instituição de ensino universitário?
e) Por quê não se orientam atividades corriqueiras de professo-
res e alunos universitários (como programar, preparar e avaliar discipli-
nas curriculares) no sentido de que um toque programático-metodológico
sistemático as encaminhe na direção de trabalho simples, porém au-
têntico, de pesquisa e produção (não apenas reprodução) de conheci-
mento?
Em relação aos oito assuntos tratados nos Tópicos seguintes, do
segundo ao nono, três observações introdutórias merecem destaque:
1a - Há pelo menos três casos de abordagens em que se procu-
rou vislumbrar o espaço e a funcionalidade da pesquisa em cada fenô-
meno através do ensaio de formulação ou reformulação do núcleo

18
conceituai do próprio fenômeno. Esses casos são concernentes à re-
lação da pesquisa com o processo natural de formulação do conheci-
mento humano (Tópico 4), com a concepção básica de formação (Tó-
pico 7) e com a razão de ser da universidade (Tópico 8). Isso, porque a
relação desses fenômenos com a pesquisa se passa ao nível e no
âmbito da própria essência dos mesmos: por um lado, pesquisa é tam-
bém processo de formulação de conhecimento e, por outro, sem pes-
quisa inexistiriam tanto a verdadeira formação quanto a autêntica uni-
versidade. Esta é a razão pela qual se entendeu, por exemplo, que a
correta maneira de estudar a pesquisa no processo formativo ou na
universidade tem início pelo marcado esforço de se buscar compreen-
der o em quê consiste a verdadeira formação e o em quê consiste a
autêntica universidade, visto que sem a pesquisa, mais ou menos for-
malizada e tecnificada, ambos os fenômenos se assemelhariam a cor-
pos inanimados, relegados à condição de "cadáveres" estáticos, frios,
informes ou no máximo robotizados pela mecânica da repetição impro-
dutiva de conhecimentos, hábitos e costumes. No que respeita a pes-
quisa versus universidade, Demo (1990a, p. 36) é absolutamente con-
tundente:

Pesquisa deve ser vista como processo social que perpassa toda a vida
acadêmica e penetra na medula do professor e do aluno. Sem ela, não há
como falar de universidade, se a compreendermos como descoberta e cria-
ção. Somente para ensinar, não se faz necessária essa instituição e jamais
se deveria atribuir esse nome a entidades que apenas oferecem aulas.

2a - O termo pesquisa não aparece iteradamente apenas ao lon-


go dos oito assuntos mencionados; é a palavra-chave que se destaca
desde o título principal até o último parágrafo deste estudo. Como esse
termo evoca normalmente um verdadeiro mito de complexidade, sofis-
ticação e aparelhagem técnicas, gostaria que as pessoas se predispu-
sessem a entendê-lo, no presente trabalho, como algo que se configu-
ra como processo abrangente e dinâmico de "[...] diálogo inteligente
com a realidade" Demo, (1990a, p. 36), que compreende, em suas
múltiplas dimen-
sões, graus pro-
gressivos de siste-
maticidade e perfei-
ção, os quais se
evoluem a partir
das situações mais
simples (por vezes
extremamente sim-
ples e cotidianas)
para as cada vez

19
mais complexas e precisas em matéria do vigor metodológico adotado
e do aparato tecnológico utilizado. Daí ser possível e necessário des-
cobrir e desenvolver o espaço da pesquisa em fenômenos vitais, mas
normalmente alijados dos campos específicos das especializações
cientificas, como a própria vida, a formação, a realização coletiva, a
realização tanto pessoal como profissional e tantos outros referidos ou
não na seqüência deste trabalho. Diante do mito criado em torno de
pesquisa e ciência, somos levados a nos esquecermos, ainda, de que
o cientista consagrado de hoje foi o principiante desajeitado (por vezes
até rejeitado) e temeroso de ontem, que se dispôs a aprender pesquisar
pesquisando a partir de realidades simples, próximas e vivenciais em
termos de cotidianidade.

3a- Observa-se, por último e objetivamente: apesar do tom relati-


vamente enfático com que todos os assuntos são tratados neste estu-
do, efetivamente se pretende abrir e não fechar a discussão em torno
deles. Reiterando o já registrado no início deste Tópico, que a discus-
são seja ampla, profunda e produtiva.

20
PESQUISA CIENTÍFICA
NÃO SÓ PARA CIÊNCIA
A unilateral valorização da ciência no contexto da vida hodierna
tem motivado a formação da cultura de que só se faz pesquisa científi-
ca para se produzir ciência e tecnologia. Os próprios manuais de
metodologia científica (CERVO/BERVIAN, 1982; GALLIANO, 1979;
GRESSLER, 1983; LAKATOS/MARCONI; 1983; PIERSON, 1968; RUIZ,
1982; SALVADOR, 1970; SEVERINO, 1982; e outros), embora extre-
mamente úteis, enquanto instrumentos subsidiários à formação e ao
disciplinamento nos campos da produção científica e da elaboração de
trabalhos técnicos da cotidianidade universitária, acabam por reforçar
a sedimentação desse tipo de unilateralidade em relação à pesquisa.
Pelo menos dois fatores básicos contribuem para isso: a ênfase
à parte formal do método científico, no que concerne aos manuais, e a
quase absoluta ignorância da juventude brasileira em matéria de ciên-
cia e tecnologia (falta de noções básicas, teorias globais, finalidades e
limites existenciais, etc.) até seu ingresso na universidade. Enfatize-
se, até, que os re-
feridos manuais
contribuiriam ape-
nas positivamente
para a formação
equilibrada de nos-
sos futuros cientis-
tas se não houves-
se a mencionada
ignorância básica
por parte da cliente-

23
Ia usuária, reforçada inclusive pelos "cursinhos" e até pelo próprio pro-
cesso mecanicista do vestibular (ora felizmente objeto de reavaliação).
Essa ignorância é tão arraigada que grande parte da clientela incipiente
em metodologia científica por vezes até docentes, chegam a confundi-
la com "macetodologia ou receitoiogia científica".
No que se refere aos manuais, nova perspectiva começa a des-
pontar: a dos autores que contextualízam ciência, tecnologia e pesqui-
sa no espectro da própria vida, sem se descuidarem do vigor próprio
do método científico. Apenas a título de exemplo (vez que qualquer ge-
neralização poderia acarretar exclusões indevidas), iniciativas desse
tipo já estão sendo constatadas em trabalhos como os de Lukesi et al.
(1986), Demo (1985) e Barbieri (1990), em termos de Brasil. Aliás, da
década de 1990 para cá, muito se fez nessa área.
Quanto à questão da ignorância infantil e juvenil sobre ciência e
tecnologia, em si mesmas e em dimensões mais abrangentes, o pro-
blema não se resolve na esfera dos manuais, por melhores que se
apresentem. É questão que envolve a educação como um todo: na
família, na educação infantil, na educação básica e, sobretudo, no am-
biente de toda a educação superior.
A universidade tem enorme responsabilidade e espaço nessa ma-
téria. Já se foi o tempo em que, com certa legitimidade, a "culpa" pelo
despreparo básico da clientela era transferida em cadeia decrescente:
a universidade a repassava ao ensino médio e este ao fundamental. A
"certa legitimidade" se explica em função de que o acesso aos patama-
res da administração educacional e da própria função magisterial, até
pelo menos o final dos anos 1950, se dava, no Brasil, quase que exclu-
sivamente pelos méritos da "vinculação" às oligarquias que detinham o
poder político-administrativo, sem qualquer ênfase aos graus ou tipos
de escolarização formal. A partir dos anos 1960, principalmente no pri-
meiro decênio da ditadura militar, iniciou-se a instalação sistemática da
tecnicoburocracia universitária em todos os níveis de organização e
funcionamento da vida pública (principalmente nas esferas federal e
estadual), criando exacerbada perspectiva de valorização hierárquica
dos diplomas escolares (Decreto n.° 200/67, Lei n.° 5.692/71, etc.).

Não é à-toa que a corrida aos diplomas universitários (principal-


mente para fins de magistério e administração educacional) e a própria
expansão desenfreada de instituições de ensino superior constituíram
uma espécie de psicose de massa em toda a década de 1970.
Em decorrência, as influências benéficas ou maléficas do ensino
superior - aí incluído o praticado nas universidades - ingerem direta e
imediatamente em todos os escalões tanto dos sistemas educacio-

24
nais formais como nos da própria administração pública como um todo.
Em vista disso, pode-se afirmar sem medo de erro: genericamente
falando, a melhoria da educação básica brasileira depende da melhoria
do próprio "sistema" universitário, inclusive no que se refere à aludida
ignorância técnico-científica básica da clientela que ingressa na univer-
sidade.
Na acepção adotada há anos pelo autor deste trabalho (debatida,
fundamentada e aplicada no transcorrer da disciplina Introdução à
Metodologia Científica e no decurso de assessoramentos ou orienta-
ções ao planejamento e execução de pesquisas e monografias), a pes-
quisa científica não se restringe e se aplica apenas à produção de ciên-
cia em sentido estrito. É empregada também para: geração, aplicação
e transferência de tecnologia (BARBIERI, 1990); desencadeamento do
processo educacional emancipatório (DEMO, 1990a); conquista da li-
berdade a partir da permanente decifração de sentido existencial de
tudo o que se relaciona com o ser humano em condições normais de
intelecção e volição (ÁVILA, 1971); a própria dinâmica da permanente
edificação da vida (MARÍAS, 1966), em seus múltiplos dimensionamentos
e correlações; bem como para a conquista da autonomia e outras con-
dições indispensáveis à autenticidade da vida universitária nas institui-
ções de ensino superior, como se verá na seqüência de Tópicos deste
mesmo trabalho.

A razão pela qual se pode afirmar, com segurança, que o empre-


go da pesquisa científica não é (e nem deve ser) exclusividade de pro-
dução de conhecimento estritamente científico é simples: o que torna
científica a pesquisa são os quesitos metodológicos de sua programa-
ção e operacionalização ou, ainda, o que caracteriza a cientificidade da
pesquisa é o seu dinâmico rigor metodológico (analisado no subtópico
5.3) e não só a natureza de seus produtos. Essa razão/princípio é
iterada, ora por lembrança ora por ênfase, praticamente em toda a se-
qüência do presente estudo.

25
PESQUISA E LIMITAÇÃO
CONCEITUAL
UNIVERSITÁRIA
Tem sido bombardeado, nas discussões universitárias, que a in-
significância da pesquisa na universidade pública se deve basicamen-
te ao desinteresse dos governos, expresso peia sonegação dos recur-
sos financeiros compatíveis.
Há parcela de verdade nisso, mas não é tudo. O problema da
pesquisa, na mentalidade brasileira em geral e universitária em particu-
lar, parece situar-se em dimensão bem mais básica e elementar: não
se faz mais e melhor pesquisa, porque não se soube, não se procurou
saber ou não se metabolizou, ainda, o que se sabe sobre o que é real-
mente pesquisa tanto para a ciência como para as demais dimensões
da vida.
No fundo, a própria noção de pesquisa paira como tabu ritual, de
domínio parasitário da elite intelectual científica (DEMO, 1990 e 1991a)
do país, carente de desmistificação para que realmente se efetive como
mecanismo estratégico do processo emancipatório da formação uni-
versitária (DEMO, 1990a) e da educação libertadora no Brasil, na Amé-
rica Latina e no terceiro mundo (GADOTTI, 1991).*
Não se pode acreditar que só a força da compreensão conceituai
de uma determinada palavra seja o bastante para que o fenômeno por
ela significado se concretize na prática. Mas seria igualmente ingênuo

Conferências proferidas pelo Prof. Dr. Moacir Gadotti (USP/SP) sobre Educação
Libertadora na América Latina, em Campo Grande - MS, como parte da Semana
Cultural Editora Vozes 90 anos - América Latina: Liberdade - Dependência - Liber-
tação, nos dias 12 e 13 e jun/91.

29
desconsiderar que
é pela correta - ou
a mais correta pos-
sível - compreen-
são conceituai de
um dado fenômeno
que se inicia o pro-
cesso de dinamiza-
ção ou concretiza-
ção do mesmo. É
pela planta, conce-
bida como dimensão teórico-conceitual que se torna possível, e até se
começa, a construção racional (programada, segura e funcional) do
prédio: quanto melhor for a planta, e o entendimento que dela se tiver,
tanto maiores serão as probabilidades de perfeição do edifício. Ocorre,
ainda, que a própria elaboração da planta parte da compreensão inicial
do que é (ou será, em termos operacionais) o edifício, respaldada nos
previsíveis porquê, para quê e com quê de sua construção. Isto já é,
de certa maneira, iniciação antecipada da ação ou parte operacional.
Retornando à questão concernente à importância da compreen-
são conceituai, observa-se: dependendo do que se entende por pes-
quisa, portas se abrirão ou fecharão no sentido de sua democratização
e produção em escala maior, mais qualitativa e menos elitista.
Exemplificando, se se acha que pesquisa se destina exclusivamente à
produção de ciência e que ciência só é atributo ou privilégio de cientis-
tas consagrados pelo batismo do reconhecimento por parte da cúpula
detentora das chaves do saber dito científico, então só esse tipo de
cientista estaria "habilitado" a pesquisar.
É essa, aliás, a concepção que predomina na mentalidade da
juventude ingressa na maioria dos Campi universitários, quando não
também na cultura
de significativo con- jjip^fc-
tingente de profes- Jwraj®
sores. Estes se en-
carregam de .--"'feaf? \ J^
mitificar ainda mais ( 1 \ W N^^SP
f/
o "misterioso altar" i | jf 1 Ã ^-hS/Ê
da ciência, cujo > \ f K./ è^
"culto" é exercido \ \ \ m.
pelos "ungidos ci- V/* 2 * j \ (jç&ty-^-jfr

dores", mas ape-

30
nas admirado e respeitado à distância pelos mortais comuns, sobretu-
do o estudante recém-ingressado na universidade.
Embora de há pelo menos trinta anos empiricamente sabedor
desse tipo de limitação (quiçá bitolamento) conceituai universitário so-
bre ciência, pesquisa, cientista e pesquisador, este ensaísta (que tem
sido também professor de Introdução à Metodologia Científica) vem pro-
curando identificar, ao longo dos últimos anos (a cada início de período
letivo), as percepções ou imagens que os acadêmicos têm ou fazem
dos termos e figuras supracitados.
De fato, a ciência sempre se afigura a uma espécie de divindade
misteriosa, inacessível à esmagadora maioria dos mortais. O cientista
é representado ora como maluco (lunático, alienado, anti-social, ócu-
los garrafais, cabelos esvoaçados, jaleco branco, etc.) e ora como sa-
cerdote que, sub-
missamente, in-
censa e cultua a
deusa ciência, bem
como obedece ao
rigor que ela lhe im-
põe e ornamenta os
seus altares, no
mundo todo, com
inventos científicos
de toda ordem.
Também o pesqui-
sador é representa-
do de duas manei-
ras: oscila entre o cientista maluco e/ou sacerdote e o noviço enviado
pela "deusa" ciência, com a missão de contatar o mundo real (natural)
para dele subtrair o alimento (múltiplas informações) de que necessi-
tam tanto a deusa ciência quanto os seus "ungidos", os cientistas.

Seria isso devaneio de "calouros" universitários? - Talvez. Mas


imagens parecidas têm surgido igualmente em outras situações. Exem-
plo disso é a crença de que só é científico o que é publicado em veícu-
los especializados (espécies de "manuais sagrados"). Trata-se, no fun-
do, da crença que a especificidade do veículo de publicação é que con-
fere cientificidade à matéria por ele veiculada.
Por outro lado, e embora aparentemente oposta, a banalização
conceituai da pesquisa não só esvazia o seu real significado e valor
como reforça a sua mistificação. É o caso das ditas "pesquisas" esco-
lares limitadas a cópias de textos, como respostas a questões formu-

31
iadas pelo professor, sem nenhuma organização, interpretação e di-
gestão (DEMO, 1990a) pessoal. É ainda a situação em que o aluno é
estimulado a buscar nos pais, irmãos, amigos e colegas soluções
substitutivas do esforço próprio de tentar. Esforço de começar e reco-
meçar até achar o ponto estratégico através do qual se inicia o proces-
so de desembaraçar as meadas dos problemas, sempre no sentido do
simples para o complexo, do fácil para o difícil e do sensível para o
abstrato.
Além de leviano, improdutivo e irresponsável, esse tipo de postu-
ra degrada a pesquisa e sufoca as potencialidades, às vezes até aspi-
rações, do pesquisador latente. Respalda a crença, na criança e no
jovem, de que pesquisa verdadeira só é possível a poucos, aos cientis-
tas já credenciados para presidirem e administrarem o ritual da ciência
(como se referiu atrás). Arrebata da criança e do jovem a chance tanto
de saberem como de experimentarem os fatos de que a pesquisa é
processo, de que pesquisar se aprende e exercita progressiva e conti-
nuamente (ninguém nasceu sabendo ou aprendeu num estalo), de que
a pesquisa não só gera como recria, reordena e redimensiona conhe-
cimento de toda a ordem, de que o conhecimento produzido pela pes-
quisa pode ter destinação inclusive mais abrangente que a do mero
enriquecimento do acervo estritamente científico, de que a pesquisa
pode ser encarada e utilizada como excelente mecanismo de perse-
guição e conquista da realização pessoal, profissional e societária.

A questão relativa ao fato de que, antes do agir (fazer) propria-


mente dito, as pessoas, sobretudo crianças e adolescentes, preci-
sam buscar o entendimento e formar a teoria (projeção conceituai) do
que pretendem fazer é muito mais séria do que aparenta. Este pro-
fessor, intrigado com a cantilena dos alunos no sentido de que tudo
deve ser "prático", resolveu, a partir de 1987, aplicar em suas turmas
um rápido teste/surpresa de compreensão de alguns termos/fenô-
menos de destaque na metodologia científica: teórico, prático, con-
creto e abstrato. Foi usado este tipo de ficha:
c \

I I teórico =

L I prático =
I I concreto =
r_J abstrato =
V y
32
Só depois de distribuídas cópias das fichas (uma para cada aca-
dêmico) é que se orienta sobre o que se fazer com elas. São, em ver-
dade, duas instruções, de forma que a segunda só deve ser anunciada
depois que todos tiverem concluído o procedimento relativo à primeira:
1a - "Cada um deve assinalar com "X" a quadrícula (só uma) do
termo (ou teórico, ou prático, ou concreto, ou abstrato) que mais
corresponda ao tipo de atividade ou trabalho de seu maior gosto ou
preferência".
2a - "Sem consultar a colegas ou dicionários, escreva (dirigindo-
se a cada um) á frente de cada termo (teórico = ..., prático = ..., concre-
to = ..., e abstrato = ...) uma palavra (de preferência sinônimo) indicativa
do que você pensa que esse termo efetivamente significa" (quase sem-
pre escrevem mais de uma).
Resultados do teste aplicado em 27 alunos do segundo período
do curso de Ciências da Computação, em 22 de setembro de 1987 (a
título de exemplo):
1) Declaração de gosto ou preferência de trabalho: prático = 16
(59,25%), concreto = 2 (7,41%), abstrato = 2(7,41%), teórico =
0(0,00%), não sabiam (abstiveram-se) = 7(25,93%).
2) Conceitos indicados:
a) de "prático": "concreto; real (manuseado); executado; ágil; mais
ação decorrente do teórico; manuseio; objetivo; ativo (manual); exercitado
= 2; de fácil desenvolvimento = 2; desenvolve fisicamente; usual; visual;
útil; fácil (em geral); "exercível"; contestado; desenvolvido = 2; abrangente;
embasado em resultados; por em ação o que aprende; não sei = 3".
Resultados agrupados:
- variações de indicativos conceituais: 21 = 77,78%;
- desconhecimentos de indicativos conceituais: 3 = 11,11%;
-total de indicativos conceituais repetidos: 3 = 11,11%;
- total de acadêmicos testados: 27 = 100,00%.
b) De "teórico": "escrito = 9; abstrato; idéias imagináveis; basea-
do em tese; básico; essencial para a prática; pesquisa escrita; arquiva-
do; conclusão; conceituai; hipótese; provável; aceitável; didático;
embasado em teoria; não sei = 4".
Resultados agrupados:
- variações de indicativos conceituais: 15 = 55,56%;
- desconhecimentos de indicativos conceituais: 4 = 14,81%;
- total de indicativos conceituais repetidos: 8 = 29,63%;
- total de acadêmicos testados: 27 = 100,00%.

33
c) De "concreto": "real = 7; exato = 4; fixo = 3; baseado ou com-
provado = 2; palpável = 2; objetivo; básico; traz resultados aplicáveis e
cientificamente testados; não sei = 6".
Resultados agrupados:
- variações de indicativos conceituais: 8 = 29,63%;
- desconhecimentos de indicativos conceituais: 6 = 22,22%;
-total de indicativos conceituais repetidos: 13 = 48,15%;
- total de acadêmicos testados: 27 = 100,00%.
d) De "abstrato": "imaginário = 5; subjetivo = 3; vago = 3; não
desenvolvido; sonhador; sem base concreta; elementar; idéias; indife-
rente; maciço (profundo); inatingível; restrito; sem embasamento teóri-
co (filosofia); hipótese (sentimento); não sei = 5".
Resultados agrupados:
- variações de indicativos conceituais: 14 = 51,85%;
- desconhecimentos de indicativos conceituais: 5 = 18,52%;
- total de indicativos conceituais repetidos: 8 = 29,63%;
- total de acadêmicos testados: 27 = 100,00%.
3) Hipóteses inferidas
De tudo o que se registrou dos resultados reais desse teste/sur-
presa podem ser inferidas algumas hipóteses de interpretação:
1 a -Ademan-
da de atividades ou
trabalhos "práticos"
representa basica-
mente um pleito
(por vezes reivindi-
cação) por situação
de comodidade
(trabalho fácil, agra-
dável e dinâmico) e
não uma escolha consciente, a partir dos diferentes sentidos que o
termo "prático" comporta, seja na linguagem corrente (conferir o "Minidi-
cionário Aurélio", de uso mais comum atualmente nas escolas de edu-
cação básica) seja na linguagem técnico-científica (abordada no Tópi-
co 4).
2 a -Ademanda ou reivindicação de atividades ou trabalhos "prá-
ticos" se faz, ainda, sem o mínimo critério de seletividade ou esco-
lha em relação aos demais tipos ("teórico", "concreto" e "abstrato"),
pois a esmagadora maioria dos 27 alunos demonstra (pelo teste)
também desconhecer os usuais sentidos desses termos tanto na

34
linguagem corren-
te quanto na técni-
co-científica.
3 a - Se, ante-
riormente ao tes-
te (e sem os res-
pectivos esclare-
cimentos con-
ceituais), o profes-
sor tivesse dito aos
alunos que, no se-
mestre, deveriam
fazer quatro traba-
lhos (um teórico,
um prático, um
concreto e um abs-
trato), o efeito de
compreensão da
natureza desses trabalhos teria sido o da "Torre de Babel": 15 percep-
ções (não importando se corretas ou não e, ainda, sem contar os
"não sei") de "trabalho teórico"; 21 de "trabalho prático"; 8 de "trabalho
concreto" (apesar de elevado contingente dos "não sei"); e 14 de "tra-
balho abstrato".

Importa observar, em relação à representatividade e significância


dos resultados desse teste, que a sua aplicação foi repetida (desde de
1987) em várias turmas de diferentes cursos, inclusive de pós-gradua-
ção, sem substanciais alterações no perfil geral dos mesmos.
A possível objeção no sentido de que os resultados do teste cons-
tituem amostragem de limitação conceituai apenas no âmbito da Uni-
versidade Federal de Mato Grosso do Sul (afastada centenas ou milha-
res de quilômetros dos grandes centros de cultura e ciência no Brasil)
poderá não ser efetivamente sustentada em função dos motivos se-
guintes:
a) Também a UFMS recebe acadêmicos oriundos de grandes
centros como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e
Porto Alegre. É parte daquele contingente de candidatos que fazem os
"cursinhos" nesses centros e buscam esta Universidade seja simples-
mente porque passam no vestibular, seja por conveniência pessoal ou
familiar. É sabido de todos que o Estado de Mato Grosso do Sul foi e
continua sendo um enorme ponto de convergência para gaúchos,
paranaenses, paulistas, mineiros, fluminenses (inclusive cariocas),

35
catarinenses e nordestinos. Exemplo típico dessa multi-repre-
sentatividade é o próprio corpo docente da UFMS.
b) Até a administração universitária federal demonstra extrema-
da limitação conceituai inclusive sobre pesquisa na universidade, quan-
do tem acenado, ao longo da curta história universitária brasileira, à
política fisiológica da repartição do dito (impróprio) "sistema universi-
tário" em "categorias" como no caso dos grupos das "universidades
de ensino", das "universidades emergentes" (em matéria de pesqui-
sa) e das universidades consideradas "centros de excelência" (tam-
bém em matéria de pesquisa). O próprio Grupo Executivo para a
Reformulação da Educação Superior - GERES, criado pela portaria
Ministerial n.° 100/86 e implantado pela de n.° 170, de 03/03/86, ape-
sar de haver efetuado bom estudo e fornecido contribuições relevan-
tes quanto a aspectos legais e funcionais concernentes às institui-
ções universitárias brasileiras, tornou-se partidário, tanto na teoria
comentada quanto na prática sugerida (como consta da proposta de
anteprojeto de lei), de equivocados e contraditórios conceitos de uni-
versidade: adotou, de um lado, a "universidade ensino" (restrita à pre-
paração de recursos humanos, mas com status universitário em ma-
téria de autonomia) e, de outro, a "[...] universidade do conhecimento,
baseada em paradigmas de desempenho acadêmico e científico, pro-
tegida das flutuações de interesses imediatistas [...]", conforme rela-
tório publicado em Estudos e Debates - Revista do Conselho de Rei-
tores das Universidades Brasileiras, n.° 13, jan/87. Isso é, no mínimo,
desconsideração quanto ao fato de que a pesquisa não é mera fun-
ção universitária: faz parte da própria essência conceituai e operacional
da universidade (esta questão é praticamente o objeto central dos
Tópicos n.° 8 e 9 deste trabalho).

Em perdurando dúvidas sobre a generalização dos exemplos de


limitação conceituai, inferida pelos resultados do teste aludido anterior-
mente, a maneira de resolvê-las é extremamente simples: basta apli-
car o teste, com os mesmos termos ou com os da preferência de cada
interessado (inclusive pesquisa) e apurar os resultados.
Aos impacientes quando à escolha e ao sentido dos termos con-
creto, abstrato, teórico e prático, utilizados no teste, avisa-se: essas
duas questões são tratadas no próximo Tópico, o de n° 4.
Antes de passar ao Tópico n° 4, convém enfatizar que limitação
conceituai não quer dizer inexistência, ou mesmo, falta de potencial.
Nota-se, ao contrário, que existe uma certa "fome" por pesquisa, inclu-
sive junto ao estudante. O problema é que, em relação à PESQUISA
NO MEIO UNIVERSITÁRIO, FALA-SE MUITO SOBRE, OMITINDO-SE

36
PROCURAR SABER O QUE DE FATO É (em termos de processo, de
contextualização e de finalidades múltiplas), NA VERDADE ENSEJANDO
QUE SE ARREFEÇAA CHAMA DAS POTENCIALIDADES.
Saber o que de fato é pesquisa (como se disse: enquanto pro-
cesso, de acordo com diferentes contextos e para variadas finalida-
des) é preocupação real e constante que permeia todos os demais
Tópicos que se seguem.

37
A PESQUISA E O
TÓPICO 4
PROCESSO NATURAL DE
FORMULAÇÃO
EXSPANSIVO-EVOLUTIVA
DO CONHECIMENTO
Este Tópico é ao mesmo tempo longo e denso, porque se desti-
na à tentativa de SABER COMO SE SABE ou de CONHECER COMO
SE CONHECE. Trata-se, pois, de matéria densa, porém acessível e
absolutamente importante para tudo na vida, vez que o conhecimento
não só é vida como também o é bússola da vida, em suas multivariadas
formas e dimensões.
Por outro lado, sabe-se até empiricamente que pesquisar é pro-
duzir (no sentido de criar, recriar, redimensionar, digerir, metabolizar,
etc.) conhecimento. Como, então, entender profundamente o que é
pesquisa (pesquisar), sem antes, ou simultaneamente, se buscar sa-
ber como o fenômeno do conhecimento se produz (processa) na dinâ-
mica evolutiva da espécie humana e de cada um de nós em particular?
E mais: entendendo como se processa a formulação e a
dinamização do conhecimento humano, obter-se-ão (nesse próprio
entendimento) res-
postas às duas cu-
riosidades, pen-
dentes do Tópico
anterior, concer-
nentes ao porquê
foram escolhidos
os termos concre-
to, abstrato, teóri-
co e prático para o
teste de sondagem
de limitação con-

41
ceitual e, ainda, o quê os mesmos significam no processo de geração
e dinamização do conhecimento humano.
A facilitação do supra-referido entendimento deste Tópico pres-
supõe, do leitor dos textos que se seguem, duas condições mínimas:
a) Supressão radical do pedagogismo ou psicologismo da educa-
ção sem esforço, como se aprendizagem se processasse e conheci-
mentos se adquirissem, criassem ou redimensionassem mecanicamen-
te a partir apenas da veiculação estimulada, sem um mínimo de disponibi-
lidade maiêutica por parte do educando. Bem ao contrário, a disponibilida-
de maiêutica para partos induzidos de aprendizagem (não importa de
que) e diminização enriquecedora de qualquer tipo de conhecimento deve
constituir objeto educacional desde o Jardim de Infância (LIMA, 1971 e
DEMO, 1990a). Se o que efetivamente vale no processo da aprendiza-
gem não é o ensinar mas o "aprender a aprender", como enfatiza Demo
(1990a); ou o destaque conferido pela OCDE (1974, p. 15) quanto à certe-
za de que"[...] haverá sem dúvida o deslocamento da tônica de um ensino
concebido como organização de saber para a de um ensino concebido
como organização do ato de aprender"; ou ainda, conforme Georges (1974,
p. 25),"[...] a tarefa do professor [...] é a de proporcionar o obstáculo [...]"
deve-se, então, investir sem trégua no sentido do desabrochamento e
desenvolvimento da vontade, da disponibilidade e do efetivo esforço de
aprender do educando e do educador: aprende quem quer e se esforça
ativamente para aprender. Vale registrar, nesse sentido, que a doutrina
piagetiana foi inovadora em matéria sobretudo da aprendizagem mas o
próprio Piaget era extremamente disciplinado e rigoroso consigo mesmo
e com seus discípulos, conforme testemunhou um de seus ex-alunos,
Prof. Moacir Gadotti, durante a palestra referida no Tópico anterior.

b) Disposição para uma limitada incursão na área da Teoria do


Conhecimento, no contexto da lógica filosófica. É o esforço para essa
disposição que efetivamente induziu a proposição da condição anteri-
or. Em palavras sucintas, temos pela frente o provocante desafio do
entendimento de como se configura e funciona o processo natural que
a mente humana desenvolveu e continua desenvolvendo para conhe-
cer. É, portanto, uma questão de lógica cuja facilidade de compreen-
são e assimilação dependerá, em muito, do grau de disponibilidade
maiêutica a ela dispensado.
Feitos esses preâmbulos, é chegado o momento de passar às
considerações fundamentais sobre o processo natural de formulação
expansivo-evoiutiva do conhecimento. Preferiu-se, por razões especifi-
camente metodológicas, que a caminhada das considerações se fi-
zesse de forma modular: um módulo enfocando o cerne da questão

42
(4.1); o segundo reconstituindo o processo (4.2) e o terceiro (4.3) infe-
rindo lições resultantes.

PASSOS REFERENCIAIS DO PROCESSO


4.1 NATURAL DE FORMULAÇÃO DO
CONHECIMENTO

Qualquer bom manual de filosofia dedica vasto espaço a essa


matéria. Uns a situam no campo da Lógica, como Maritain (1958,
p. 7-297) e Boyer (1940, p. 67-213), e outros, a exemplo de Jolivet (1967,
p. 409-535), na área de Psicologia Racional (ou Filosófica). Mas esta
abordagem se limitará apenas à súmula do indispensável à compreen-
são básica do processo de formulação e dinamização do conhecimen-
to humano, da qual fazem parte os quatro termos/fenômenos em refe-
rência: prático, teórico, abstrato e concreto.
Na verdade, segundo a opinião deste ensaísta esses termos não ocu-
pam qualquer lugar no referido processo: são os pontos cardeais do mes-
mo. Aí está a resposta à questão (por quê?) de sua escolha para o teste.
Resta saber, agora, como é que se processa, dinamicamente, a
elaboração do conhecimento humano (observando que chegou a hora
de também o leitor pôr em uso a sua disponibilidade maiêutica):

PRIMEIRO PASSO:
4
'1'1 A SIMPLES APREENSÃO

A mente (inteligência) se contata com o objeto a ser conhecido


(coisa material, fato, fenômeno, idéia, conceito, etc.) através dos senti-
dos (inclusive o "sexto", ainda em fase de se saber exatamente em que
consiste). No próprio ato do contato da mente com o objeto, as proprie-
dades gerais desse objeto (tamanho, forma, cor, etc.) são sacadas
pelos sentidos, que as transportam até o cérebro (através de neuro-
sensores por impulsos eletro-iônicos, de cuja capacidade são dotadas
todas as células do sistema neurônico/nervoso, no sentido de se orde-
narem em circuitos integrados com o cérebro). O cérebro processa os
sinais elétricos correspondentes às propriedades sacadas (tamanho,
forma, cor, etc.), permitindo que a mente (inteligência) as perceba (isto

43
é, faça a percepção das imagens, figuras ou espectros de "grande",
"pequeno", "duro", "mole", "vermelho", "preto", "áspero", "liso", etc.) no
limite, evidentemente, das propriedades sacadas e processadas.
Esse fenômeno tem sido chamado SIMPLES APREENSÃO, desde
Aristóteles (no século IV a.O). Isto, porque as propriedades do objeto são
agarradas (apreendidas) pelos sentidos, imediatamente processadas pelo
cérebro e primeiramente só ESTAMPADAS ou EXPOSTAS na mente.
E daí, que
isso tem a ver com
os termos: concre-
to, abstrato, teó-
rico e prático?
- Tem tudo a ver
com concreto e
abstrato. Por quê?
- Porque concreto,
neste contexto, sig-
nifica todo e qual-
quer objeto material Mm>
(sentido estrito) ou -W
todo fenômeno pas-
sível de ser captado ou percebido pelos sentidos (significado abrangente).
Então, o concreto (com um e/ou outro significado) é sempre o ponto de
partida ou elo inicial tanto na situação em que o processo do conheci-
mento é começado da estaca-zero (questão do primeiro elo de conheci-
mento da espécie humana e de cada criança) quanto na que concerne
ao reinicio de cada ciclo desse processo (aperfeiçoamento, ampliação,
aprofundamento, etc., do conhecimento), orientando-se necessária e
permanentemente pelas dinâmicas evolutivas do geral para o particular
e do simples para o complexo. Já é de Aristóteles a máxima, ainda não
refutada ou modificada, de que "Nada existe na inteligência sem que an-
tes tenha passado pelos sentidos" ("Nihi est in intellectu quod prius non
fuerit in sensibus"). E o que passou-passa-passará pelos sentidos, em
termos de primeiros elos introdutores da cadeia do conhecimento (no
que respeita tanto à espécie humana quanto a cada criança individual-
mente) foi-é-será o concreto entendido como objeto material. Por quê?
- Porque na hierarquia dos objetos do conhecimento humano, o objeto-
matéria é o mais simples (menos complexo) e mais atraente, em rela-
ção aos demais fenômenos (idéias, conceitos, proposições, equações,
etc.), para a captação (apreensão) dos sentidos: para serem captados
pelos sentidos, idéias e conceitos precisam ser materializados através
de símbolos/convenções/vibrações que os tornem sensoriáveis.

44
Na realidade, os sentidos humanos (bem como os de todos os
animais e, quiçá, dos vegetais) se chocam direta, contínua e acidental-
mente (ou não) com um sem número de materialidades: tropeço na
pedra, chute na bola, cisco no olho, espinho no dedo, onda sonora,
bicho-de-pé, choque elétrico, água fria, ar quente, cheiro de suor, den-
tada do cão e incontáveis outras. É importante frisar que o choque dos
sentidos com o objeto-matéria (como mostram os exemplos) pode ser
até acidental (não previsto, casual), mas uma vez acontecendo, funci-
ona como o gesto de engatar a marcha do carro com o motor ligado
(com o sistema nervoso/neuronal pronto para agir): dá início à cami-
nhada do conhecimento. Nessa ótica, é lógico e legítimo pensar que o
ser humano primitivo se defendesse dos animais mais perigosos (e
mais poderosos) em grupo. Num determinado momento, pode ter acon-
tecido de um feroz animal haver enfrentado, amedrontado e persegui-
do o grupo todo. É possível, ainda, que, na fuga, um retardatário (sem-
pre o mais fraco) tenha corrido pouco ou escorregado, ficando ao al-
cance do bote do animal. Caído ao lado de um grande osso quebrado
(pontiagudo) ou de
uma vara de madei-
ra lascada, funcio-
nou o instinto de
defesa (da auto-
conservação):
agarrou o osso ou
a vara e vazou aci-
dentalmente o cora-
ção do animal que
se atirou sobre ele.

Passado o susto, o seu cérebro e os demais colegas (tremenda-


mente curiosos pelo fato de justamente o mais fraco ter abatido a fera)
não só registraram (apreenderam) todo o ocorrido como também co-
meçaram a questionar e a buscar respostas sobre os porquês da mor-
te do animal naquelas circunstâncias. Moral da história? - Muito prova-
velmente daí tenha surgido a lança, que, hoje e graças à evolução do
conhecimento aí detonado, é nada mais nada menos que "exocet",
"patriot", ogiva nuclear, canhão a laser, etc., etc.
Sobre concreto, como termo e ponto cardeal (isto é, estratégi-
co) do processo de elaboração e dinamização do conhecimento, já se
falou o suficiente para a sua compreensão básica. Mas, e sobre abs-
trato: não se falou nada? - Em verdade, também sobre abstrato (mais
precisamente abstração) falou-se o tempo todo já neste 1 o passo. Ve-
jamos porque:

45
a) Sentidos etimoiógicos de abstrato e abstração. Originam-se
do verbo latino abstrahere (abstrair) tanto na forma de particípio pas-
sado (abstractum) como na de adjetivo (abstractus, a, um) e na de
substantivo (o abstrato = abstractum). O próprio termo abstração tam-
bém se origina de abstractio (latim), que toma o radical (abstract) do
particípio passado (abstractum) do verbo abstrahere, cujos significa-
dos próprios (inclusive empregados por Cícero), segundo Faria (1956),
são: "levar puxando, arrancar, retirar". Isso, porque o verbo é formado
de duas outras palavras latinas: a preposição a, ab ou abs significa, no
caso, de (ponto de partida, de procedência, de origem ou separação) e
trahere que é (em
sentido próprio) "ar-
rastar, puxar, carre-
gar", conforme o di-
c i o n á r i o já cita-
do. Em assim sen-
do, pode-se con-
cluir que abstrair
(abstrahere) signi-
fica t a m b é m , e
com absoluta pro-
priedade, arrastar
de ... (de alguma
coisa ou lugar), pu-
xar de ..., carregar de ..., arrancar de... e retirar de... . Portanto, o
termo abstrato (não importa se particípio passado, adjetivo ou na for-
ma substantivada) que dizer, etimologicamente, arrastado de ..., puxa-
do de ..., carregado de ..., arrancado de ... e retirado de ... . E, da mes-
ma forma, abstração expressa o processo ou a dinâmica pelo(a) qual
e no(a) qual se produz o fenômeno de arrastamento de ... arrancamento
de, etc. Pode representar, ainda, só o resultado ou o produto já arrasta-
do de ..., arrancado de ..., retirado de ... . Daí a estreita relação
etimológica entre abstração e extrato, ou seja, ora expressa o pro-
cesso de extração e ora só o produto extraído. Isto, porque também
extrato vem de extractum (seja como particípio passado ou adjetivo)
do verbo extrahere formado de ex + trahere e em que ex ou e tam-
bém é preposição de ... (indicativa de ponto de partida, origem ou pro-
cedência como a, ab, ou abs). Assim é que abstração pode ser enten-
dida ora como extrato (que consiste no produto tirado, arrancado, agar-
rado, puxado, carregado ou retirado de alguma coisa) e ora como o
próprio processo de extrair (tirar, arrancar, agarrar...) algo de alguma
coisa.

46
b) Sentidos de abstração no processo de elaboração (formulação)
do conhecimento humano. São exatamente os dois sentidos acima:
b.1 - Abstração é o processo pelo qual e no qual a mente
(inteligência) apreende do (arrasta de ..., arrebata de ..., puxa de ...,
retira de ..., arranca de ...) objeto em posição de ser conhecido (ob-
jeto-matéria ou qualquer outro fenômeno), cujas propriedades se-
jam materializadas através de símbolos, convenções ou expressões
para efeito de captação dos sentidos abedecendo-se a dinâmica:
das propriedades gerais para as particulares e das simples para as
complexas.

b.2 - Abstração: percepção, imagem ou idéia ou discurso men-


tal sobre as propriedades do objeto, apreendidas pela inteligência atra-
vés dos sentidos ou, ainda, extrato mental das propriedades do objeto
conhecido, apreendidas pela inteligência através dos sentidos.
No que concerne à SIMPLES APREENSÃO, estudada logo no
início deste 1 o passo, é bem nítida a abstração com o significado b,1,
mesmo quando o processo de elaboração (formação) do conhecimen-
to se encontra nessa fase inicial. Quanto ao significado b.2, começa a
ser esboçado, em termos de percepção de imagem ou espectro, mas
só se efetiva realmente a partir da formulação dos juízos, que veremos
no segundo passo. É preciso ter em conta que abstração, entendida
das duas maneiras, se aperfeiçoa, enriquece, amplia e aprofunda sem-
pre, isto é no decorrer de cada ciclo (SiMPLES APREENSÃO + JUÍZO
+ RACiOC(NIO) bem como no transcurso de todo o processo de for-
mulação e evolução do conhecimento, vez que a série seqüencial de
ciclos sucessivos (SIMPLES APREENSÃO + JUÍZO + RACIOCÍNIO)
se desenvolve também, e sempre, de acordo com as dinâmicas: do
geral para o particular e do simples (ou mais simples) para o complexo
(ou mais complexo).

Nos próximos passos, destinados ao entendimento do que são


Juízo e Raciocínio, a questão dos ciclos no processo de evolução dinâ-
mica do conhecimento será retomada.

SEGUNDO PASSO:
4.1.2 O JUÍZO

Recapituiando: já se viu que o conhecimento começa (a partir de


um elo inicial, seja coletivo em termos de espécie humana ou de ordem

47
individual) pela fase mais simplificada do processo de abstração: a men-
te (inteligência) arrebatando, apreendendo ou retirando do objeto (em
posição de conhecimento) as suas propriedades (na dinâmica do mais
geral para o mais específico, do mais sensível para o mais especulativo
e/ou do mais simples para o mais complexo), sempre pela mediação
dos sentidos (inclusive o chamado "sexto sentido"). É o que se denomi-
na SIMPLES APREENSÃO: as percepções ou imagens das proprieda-
des sacadas do objeto, pelos sentidos, são apenas ESTAMPADAS OU
EXPOSTAS À MENTE, AINDASEM QUEAMENTE DELAS AFIRME OU
NEGUE ALGUMA COISA. O EXTRATO (ou abstração entendida como
resultado) dessa fase da abstração tratada como processo são somen-
te os aspectos resultantes da estampação ou exposição das imagens
ou percepções das propriedades apreendidas na mente. Feito isso, vem
a segunda fase (sempre do processo de abstração ou formulação do
conhecimento na mente humana), a seguir, a do JUÍZO.

Na fase do Juízo (segunda do processo), a inteligência se esfor-


ça para identificar de quê são as percepções ou imagens apreendidas
na primeira fase. E nesse esforço de identificação ela (inteligência)
chega ao JUÍZO, que consiste exatamente"[...] na operação pela qual a
inteligência pronuncia alguma coisa de outra (no caso das percepções
ou imagens apreendidas), afirmando ou negando [...]" alguma coisa
delas (BOYER, 1940, p. 97).
Exemplificando:
a) A criança nos primeiros meses após o nascimento, só vê vultos
e mais nada. Depois de um certo tempo, esses vultos já começam a ser
identificados como "bá... bá... bá" (está se iniciando a fase do juízo). Um
pouco mais de tempo e cada "bá... bá... bá" dá lugar a uma determinada
coisa identificada: "mamã (mamãe)... cao (carro)... miao (gato)...". É a
fase em que ela (criança) começa a formular juízos ainda muito simplifi-
cados, mas efetiva-
mente afirmando ou
J JüttH^ j>
negando alguma
coisa de cada ima-
gem apreendida pe-
los sentidos (e evi-
dentemente pro-
cessada pelo cére-
bro), ou seja, cada
vulto se refere a
uma determinada
coisa que a criança

48
vai identificando pouco a pouco. Assim, no começo, só há silêncio
intelectivo absoluto a respeito dos vultos e imagens que estão sendo
permanentemente apreendidos pelos sentidos e processados pelo cé-
rebro (só há manifestações sensitivo-instintivas de autodefesa: choro,
arrepio, encolhimento, etc., que confirmam exatamente que os sentidos
estão em contato com determinados objetos de apreensão, como ar,
água, espinho na fralda, etc.); depois de alguns meses, os vultos ou ima-
gens vão sendo progressivamente identificados ou revelados: primeiro
em forma de esboço primitivo ("bá... bá... bá..."), evoluindo-se em segui-
da para "mama, cao, miao", etc.

b) Exemplo mais ampliado e grosseiro é o de alguém que (sem


óculos de grau) vê, a certa distância, apenas vultos e, em seguida e
com uso de óculos, passa a caracterizar cada vulto como sendo de
homem, mulher, criança, etc.
Colocando-me no lugar da criança e do deficiente visual mencio-
nados, os juízos afirmativos que faço, a respeito dos vultos ou imagens
apreendidas, são:
- "esta é mamã" ou esta é a imagem do objeto mamãe;
- "este é cao" ou esta é a imagem do objeto carro;
- "este é miao" ou esta é a imagem do objeto gato;
- "este vulto é de homem" (ou este vulto é do objeto ho-
mem);
- "este vulto é de mulher" (ou este vulto é do objeto mu-
lher).
Exemplos de juízos negativos, já mais complexos que os positi-
vos acima: "este vulto não é de homem", "este vulto não é de mu-
lher", etc., o que em verdade significa: "este vulto não é o de ho-
mem", "este vulto não é o de mulher".
É exatamente nessa fase do processo de abstração ou formula-
ção do conhecimento humano, a das afirmações e negações, que se
inicia a aprendizagem propriamente dita, por ser o momento em que a
mente começa a reagir sobre o objeto:
- na criança é a fase em que se repetem quase sempre as mes-
mas perguntas "que é isso?" e respostas "isso é...", "isso não é";
- nos adolescentes, jovens e adultos, ocorre a mesma coisa, só
que em velocidade e complexidade cada vez mais desafiadoras e acele-
radas: os vultos e imagens são identificados como de alguma coisa (juízo
positivo) ou como não de alguma coisa (juízo negativo).
É, ainda, a fase em que se inicia a elaboração da oração comple-
ta (sujeito + verbo + predicado): "isto é algo, isto não é algo".

49
Restam, ainda, duas questões a serem esclarecidas: uma com
relação aos leques de juízos e outra sobre os tipos de memória, onde
as percepções ou imagens e os juízos (isolados ou em leque) são ar-
mazenados para as associações requeridas à formulação do RACIO-
CÍNIO.
Sobre os leques de juízos para a formação do juízo global
de um objeto como um todo.
A normalidade é a de que ninguém, mesmo a criança, apreenda só
uma propriedade do objeto em situação de conhecimento (exemplo: só o
formato geral). Apreende, sempre ou quase sempre, um conjunto ou le-
que de propriedades de um mesmo objeto (formato, cor, espessura, quen-
te, frio, etc.). A formação desse leque pode ser de duas maneiras:
- sucessivamente (uma propriedade é apreendida depois da
outra, ao longo do tempo);
- simultaneamente (num mesmo ato de apreensão são capta-
dos o formato, a cor, a espessura, a temperatura, etc., desse objeto).
Como já foi dito, a cada propriedade apreendida corresponde uma
percepção (imagem ou vulto que é identificada na operação juízo (isto
é algo ou isto não é algo). E, então, como é que se formam tanto a
percepção (imagem ou vulto) quanto o juízo do objeto como um todo
(mesmo que de modo extremamente genérico)? - Essa percepção
(imagem ou vulto) se forma pela junção das percepções das proprie-
dades apreendidas e o respectivo juízo também é obtido pela junção,
em leque, dos juízos positivos ou negativos correspondentes à totalida-
de (ou pelo menos parte significativa) das percepções (imagens ou
vultos) existentes na mente.
Exemplo ilustrativo: experimente pegar uma caixinha que conte-
nha peças de um quebra-cabeça sobre determinada figura que lhe é
desconhecida. Como você identificará a figura? - Pegando peça por
peça (apreenden-
do-a), procurando
descobrir o que
cada peça repre-
senta (em termos
de imagem e
juízo: se isto ou
aquilo) e juntando
uma à outra até se
esboçar a figura
em questão. Pode

50
ser até que você não precise juntar todas as peças para descobrir a
figura, mas é certo que não conseguirá apenas com a imagem apreen-
dida e o juízo formulado a respeito da primeira (peça). Aqui está, por-
tanto, também a base de toda a chamada metodologia indutiva. Esta e
outras questões (como a da própria metodologia dedutiva) serão me-
lhor explicitadas no terceiro passo ( o do RACIOCÍNIO).

Tipos de memória para armazenamento de percepções


(imagens ou vultos), juízos (negativos ou positivos)
e de todas as informações ou fenômenos que ocorrem na
formulação e dinamização do conhecimento humano.
Há pelo menos três tipos de memória: individual (pessoal), cole-
tiva (histórica) e eletrônica artificial (a serviço tanto da individual como
da coletiva).
a) A memória individual é aquele dinâmico "espaço" do cérebro
que funciona como setor de arquivamento de informação, a exemplo do
que ocorre numa central de processamento de dados, já que o cérebro é
essa central em relação ao todo psicossomático do ser humano. Trata-
se de um setor fun- .
cional de arquiva- |
mento com, pelo J
menos, três níveis |
ou dimensões de |
operacionalização: |
- O nível
consciente é o de
maior disponibilida-
de de operaciona-
lização pelo cére-
bro, onde se arqui-
vam, definitivamen-
te ou não, as infor-
mações mais con-
tundentes, mais
significativas, me-
lhor decodificadas,
mais recentes, de
uso imediato ou
previsto, mais den-
samente apreendi-
das, etc.

51
- O nível subconsciente, de média disponibilidade de operacio-
nalização, para onde vão as informações semiprocessadas e/ou aque-
las para as quais o cérebro não confere tanta importância e/ou ainda,
aquelas que dão espaço às mais importantes que chegam permanen-
temente à central de processamento.
- O nível inconsciente: de eventual e escassa disponibilidade
de operacionalização, é uma espécie de "arquivo morto" (mas,
enfatize-se, com certa e remota disponibilidade de operacionalização
pelo cérebro). Para lá, vão inclusive dados brutos apreendidos pelos
sentidos (até pelo "sexto") e sequer processados pelo cérebro. Por
isso, se compara sempre a um vulcão latente: pode ficar adormecido
(esse nível) a vida
toda, pode entrar
em erupções leves
(benéficas ou ma-
léficas, na depen-
dência dos tipos e
natureza das infor-
mações arquiva-
das), como pode
explodir até sem o
controle da mente.
A psicanálise freu-
diana nasceu em função dos sistemas de erupções desse vulcão.
Talvez até não constituísse exagero considerar a memória indivi-
dual como uma grande área mnemônica integrada por este três princi-
pais espaços de memória: consciente, subconsciente e inconsciente. E
isso, sem falar no circuito pré-impresso, em DNA, de memória sensitivo-
instintiva, a respeito do que não se propôs discorrer neste trabalho.
b) A memó- m mmm
n
ria coletiva é a K ^f """"' "-«w
que preserva a his- ^ fl v / / w t n w Pa*.
tória humana ( ^ j í / H t f M J
como um todo e - < V^OVTRA*,*
de cada coletivida- ( \
de em particular, \
no que se refere \ \\
tanto ao aspecto
evolutivo das cole-
tividades quanto à
sua criatividade e
produção intelec-

52
: vo-material ao
longo de suas
r= stências. Tam-
cém essa memó-
- a tem três di-
mensões:
- a da tradi-
ção: transmissão
oral ou por proxi-
midade de fatos e
feitos de geração
para geração e de povos para povos no decurso de séculos, predomi-
nante onde e para quem a leitura e/ou a escrita foram ou são, ainda,
inacessíveis;
- a docu-
mental, em que fei-
tos e fatos são es-
critos ou codifica-
dos em documen-
tos (considerados
em sentido tanto
estrito como am-
plo), multiplicados
(em termos de
policopiamento ou
impressão) e colo-
cados à disposição das gerações presentes e futuras em bibliotecas e
multiformes centros de documentação;

- a cultural: aquela pela qual o produto da operosidade de cada povo


constitui testemunho e expressão da maneira comum de vida e da
engenhosidade tanto do povo a que se refere como (direta ou indiretamen-
te) de toda a espécie humana.
c) Memória eletrônica: criada pelo homem bem à semelhança
de sua memória individual e em decorrência do desenvolvimento cien-
tífico e tecnológico, a memória eletrônica se constitui de sofisticados
espaços eletroeletrônicos destinados a dinâmicos armazenamentos
de informações. Trata-se, portanto e em realidade, de mecanismo
mnemônico subsidiário, dinamizador, ampliadore complementar tanto
da memória individual quanto da coletiva.
Retornando às questões anteriores (apreensão de propriedades
do objeto pelos sentidos, percepções ou imagens das propriedades

53
expostas ou es-
tampadas na men-
te e juízos positi-
vos ou negativos
feitos a respeito
das percepções
estampadas), im-
porta observar que
a memória natu-
ralmente arma-
zenadora das in-
formações delas
decorrentes é a in-
dividual. Isto, porque é essa a memória direta e imediatamente integra-
da à central de processamento da mente, o cérebro. Mesmo assim,
entendeu-se oportuno apresentar uma visão geral também das memó-
rias coletiva e eletrônica, visto que elas influem de maneira decisiva
tanto no processo de formulação e aperfeiçoamento do raciocínio (ter-
ceiro passo, a seguir), como na própria dinâmica evolutiva do conheci-
mento humano em geral (item 4.2).

TERCEIRO PASSO:
4.1.3 O RACIOCÍNIO

Recapitulando, para facilitar:


1o - A mente (inteligência) contata (via sentidos) o objeto. O cére-
bro (sempre via sentidos) apreende neuro-sensorialmente os sinais
correspondentes a cada propriedade do objeto, decodifica-os (ou seja,
processa-os) obtendo a respectiva percepção ou imagem (ou, ainda,
vulto) e a expõe (estampa) à mente: é o 1o grande passo, o da SIM-
PLES APREENSÃO.
2 o - A mente (inteligência), tendo a percepção (ou imagem ou
vulto) de cada propriedade (apreendida pelos sentidos e processada
pelo cérebro), reage sobre ela (percepção), fazendo afirmação(ões)
ou negação (ões) a seu respeito, procurando identificá-la por compa-
ração com informações já existentes na memória (esta percepção ou
imagem é ou não é a percepção ou imagem de: grande, pequeno,
espesso, mole, duro, vermelho e/ou preto, etc.). Somando ou fazen-
do a junção dos juízos particulares, referentes à identificação de cada

54
oropriedade, a mente chega a identificações também a respeito do
objeto (que está sendo conhecido) como uma totalidade ("esta ima-
gem, formada da junção das imagens de forma, cabelos, busto, etc.,
é a imagem de mulher grande; mulher bonita; mulher magra; etc.").
Este é o segundo grande passo, o do JUÍZO.
3o - (Antecipando) - Combinando, associando e cruzando os
uszos positivos e negativos, bem como buscando ampliar o leque de
J Í Z O S a respeito de propriedades apreendidas e armazenadas na me-
mória, mas ainda não ajuizadas, a inteligência dá o passo estratégico
do RACIOCÍNIO: passa da junção de propriedades sobre imagem(ns),
na área do juízo para a argumentação sobre essa(s) mesma(s)
imagem(ns), que já é operação tipicamente de razão, por isso chama-
da raciocínio. Exemplo: passa-se de juízos como "esta é a imagem de
mulher", "esta é a imagem de mulher bonita", "esta é a imagem de
mulher de cabelos longos", etc. (resultantes já da junção de imagens
mais simples e particulares), para raciocínio ou argumentação deste
tipo: "esta é a imagem de mulher bonita, porque tem cabelos longos,
etc.". O RACIOCÍNIO-ARGUMENTO é, portanto, o terceiro e decisivo
passo para a formulação do conhecimento humano.

A base da dinâmica do raciocínio já se encontra sumarizada aci-


ma. O que parece oportuno registrar, ainda, são observações que
complementam a compreensão da referida súmula, para efeito de am-
pliação e aprofundamento da visão sobre essa fundamental operação
para a formulação e evolução do conhecimento humano em geral e
científico em parti-
cular.
m mm mmm
titmnwt
rm y«** mwk Tão funda-
m mental é o raciocí-
TfMíM* Pí&í*
M.ig ÇgMM^a nio, que desde os
filósofos gregos,
sobretudo Aristóte-
les no séc. IV a.C.,
se admite ser a
racionalidade (isto
é, o ato de racioci-
nar) a principal
(senão única) dife-
rença essencial que sobreleva o ser humano em relação aos outros
animais pensantes.
Nessa ótica, e conforme a opinião deste ensaísta, o ser humano
tem infra-estrutura potencial e factual para pensar reconhecendo e

55
conhecendo, enquanto os outros animais, também com infra-estrutu-
ra compatível à sua potencialidade, só pensam reconhecendo. Par-
tindo da referência básica de que pensar é exercitar a inteligência, es-
sas expressões significam:
- pensar reconhecendo é o exercício da inteligência limitado à
identificação (reconhecimento) da imagem do objeto, em condições de
ser conhecido, pela junção dos juízos a respeito das imagens de suas
propriedades apreendidas;
- pensar reconhecendo e conhecendo quer dizer que a in-
teligência se exercita de modo geométrica ou exponencialmente mais
amplo e profundo: além da junção de imagens para a identificação
ou reconhecimento do objeto (como se registrou acima), a inteligên-
cia é capaz de relacionar, combinar, associar e cruzar essas ima-
gens para saber (conhecer) não só o que elas são como também
porquê são o que são ou o que representam e porquê representam
o que representam.
Essa opinião parece estar bastante relacionada com a de Lewis
(1968, p. 37):
O intelecto não é uma capacidade dada que existia previamente num estado
latente; consiste em pensamentos que se formam e se modificam de acordo
com os estímulos e necessidades da vida. As reações do animal são ditadas
por seus instintos e hábitos, que, por sua vez, são funções de sua anatomia
altamente modificada e especializada. As reações do homem são inteira-
mente diferentes; ele toma de uma ferramenta apropriada e usa-a. Utilizan-
do-se como se fora um novo ser, equipado com um novo órgão, ele manipula
o mundo externo.

Aí está o raciocínio e é por aí que se começam a dinamicidade e


o entendimento de fenômenos complexos da vida como educação, for-
mação, liberdade e outros.
É por aí, ainda, que a inteligência humana foi e é capaz de entrar
nos mundos intrincados e sutis: da relação entre causa e efeito, e vice-
versa; das correlações entre causas e causas, efeitos e efeitos. É,
ainda, pela dinâmica e eficiência desses correlacionamentos que a in-
teligência humana detona e encadeia a evolução do conhecimento no
sentido do conhecido para o desconhecido: a) por indução, isto é, a
partir da identificação das propriedades de amostras, sensorialmente
apreensíveis, infere, por generalização, a(s) propriedade(s) do todo a
que pertencem as amostras, mesmo que o todo seja inatingível em
todas as suas dimensões; b) por dedução, aplicando a(s)
propriedade(s) generalizada(s) para o todo (conjunto) e cada uma de
suas partes e subpartes (elementos e subelementos), mediante a úni-
ca condição de que a parte ou subparte (o elemento ou subelemento)

56
pertença efetiva- jjSJlWM^^^m^^
mente ao todo
(conjunto) em
enfoque. Exem-
plos:
a) De racio-
cínio indutivo: as
amostras, cole-
tadas em quinze
sacos de soja es-
trategicamente
posicionados na
carreta com quatrocentos sacos, são boas. Daí se infere, portanto, que
toda a soja dos quatrocentos sacos da carreta é igualmente boa.
b) De raciocínio dedutivo: o agrônomo assegurou que todos os
sacos de soja da carreta "A" contêm soja boa. Ora este saco de soja é
da carreta "A". Logo, este saco de soja contém soja boa, de acordo
com o agrônomo.
Parece importante observar que o raciocínio dedutivo foi o mais
evidenciado na área científica desde a época grega antiga (princi-
palmente a partir da lógica aristotélica) até o advento da chamada
ciência positiva, após Galileu-Galilei, Francis Bacon, Kepler,
Giordano Bruno e outros cientistas (ou teóricos da ciência) entre os
séculos XVI e VXII d.C. Isso, por duas razões: de um lado, o ser
humano se valia praticamente só de seus sentidos naturais para
realizar as suas induções (observações, experimentos provocados
e controlados, etc.) e, de outro, a ciência e a tecnologia pouquíssimo
influenciavam pragmaticamente na vida individual e coletiva das pes-
soas (ao contrário, eram rechaçadas). Embora essa situação de
ênfase à dedução tenha ocorrido de fato, a história da ciência não
indica (de maneira alguma) que a dedução tenha sido anterior à
indução no processo de formulação e dinamização do conhecimen-
to humano. Ao inverso, a indução (como já se viu anteriormente pe-
los 1 o e 2° passos) foi e é sempre o ponto de partida: por ela se
chega a generalizações que (se consideradas seguras) são aplica-
das, a seguir, por dedução.

O que se infere da história, na verdade, é que os sábios antigos,


sobretudo gregos, tiveram que suprir as enormes limitações dos sen-
tidos pelo esforço demonstrativo racional (induções hipotéticas) para
buscarem respostas globais aos grandes e abrangentes temas cen-
trais, da época, nas áreas de cosmologia, de metafísica ontológica,

57
da ética natural, da física especulativa, da psicologia racional e da
própria matemática. Utilizando-se das matemáticas já existentes, e
por sinal bem desenvolvidas até o séc. IV a.C., conseguiram elaborar
estratégias metodológicas rígidas de ampliação e checagem do tê-
nue processo indutivo-sensorial, graças ao que se pôde produzir gran-
des generalizações científicas: algumas efetivamente sólidas (princi-
palmente na área da metafísica) e outras só equivocadamente res-
paldadas, como o geocentrismo no campo da astronomia. Mas o que
se ressalta é que a lógica racional exerceu o papel de complementação
dos sentidos humanos na fase da ciência grega de forma análoga à
função que os potentes aparatos eletrônicos o exercem na atualidade
científica.

Hoje em dia,
quando ainda rei-
na certa mentali-
dade de culto ao
experimentalismo,
já se recomeça a
YCM observar o empre-
go sem pudor da
"indução racional",
.*MMMfl mmM' como os estu-
ô mima;
dos do astrofísico
a 5umm mam
inglês Stephen
Hawcking, sobre a teoria dos buracos negros. Diz-se que através de
fórmulas matemático-físicas ele deduziu.... Na realidade, não deduziu,
mas inferiu que... (induziu, portanto).

A quem queira saber se a abstração (de que se falou atrás)


continua na operação raciocínio, a reposta é totalmente positiva. Se
os próprios atos de pensar reconhecendo e de pensar reconhecendo
e conhecendo são a abstração entendida como processo, existem,
então, diferentes graus de abstração, dependendo dos níveis de com-
plexidade e perfeição em que ela se processa. Isso quer dizer apenas
que a abstração enquanto raciocínio é mais complexa e muito mais
aperfeiçoada que no seu estágio de juízo. No estágio de juízo, a abs-
tração é, ainda, essencialmente identificadora, ao passo que, enquanto
raciocínio, é substancialmente analítica (esta questão é tão impor-
tante que mereceu destaque especial no item 4.1.4, a seguir). E no
estágio, o da "simples apreensão" (que precede o do juízo)? Nesse
estágio inicial, a abstração se limita à "extração" e "estampação" de
espectros de propriedades do objeto, contátado pelos sentidos, na
mente.

58
ANÁLISE-SÍNTESE: MECANISMO
4.1.4 MOTOR-REATOR DO RACIOCÍNIO

Já se frisou que, na operação raciocínio, a mente (inteligência)


argumenta sobre as propriedades das imagens do objeto de conheci-
mento, combinando, associando, cruzando e, evidentemente, interpre-
tando imagens e outras informações sobre as propriedades apreendi-
das desse objeto: "isto é, porque...".
Eis um outro conceito de análise ainda mais burilado (JOLIVET,
1967, p. 427) que o acima referido:
O pensamento humano não recebe o dado como um caos indiferenciado.
Mediante operações de dissociação, decomposição e distinção, esforça-se
constantemente por apreender os elementos da experiência, por compará-
los entre si a fim de determinar suas relações de semelhança e a ordem
sistemática que os une.

O conceito supra é claro, mas há um dado complementar impor-


tante no sentido da compreensão de como a análise se desenvolve em
termos operacionais. Trata-se, de fato, da explicitação de um destaque
do referido conceito: "O pensamento humano [...] esforça-se constan-
temente por apreender os elementos da experiência, por compará-los
entre si [...]".
Não se deve interpretar que o "[...] esforça-se constantemente
por apreender os elementos [...]" implica também a constante perma-
nência do contato físico (via sentidos) da inteligência com o objeto do
conhecimento, no caso a "experiência" sobre um fenômeno qualquer.
Isto, porque a inteligência sempre se apóia nos sentidos, para acionar
a partida do processo de formulação do conhecimento, mas não é es-
crava deles, ou seja: dependendo das circunstâncias, a inteligência
pode continuar a operar (apreender, ajuizar e argumentar) sobre as
propriedades de um objeto qualquer, que esteja sendo conhecido (no
caso a "experiência"), sem a contínua conexão física desse objeto com
os sentidos.
É exatamente neste ponto que os tipos de memória, menciona-
dos no item 4.1.2, exercem os seus papéis mais importantes, em ter-
mos de operação do raciocínio. A partir de alguma(s) apreensão(ões)
sensorial(ais) de um determinado objeto (quanto mais melhor), a inteli-
gência chega a outras, tanto do próprio objeto quanto de outros, combi-
nando-as, associando-as e/ou cruzando-as com as características de
propriedades armazenadas na memória individual. De elementos co-

59
nhecidos, a inteligência se lança para o desvendamento de elementos
desconhecidos, por inferência indutiva ou por aplicação de generaliza-
ções inferidas às partes do conjunto ou universo a que se referem.
Nessa tarefa, a inteligência recorre, quando necessário ou oportuno, a
informações armazenadas na memória coletiva, também se valendo
muito, recentemente, da memória eletrônica.
É preciso ter em conta, ainda, que o percurso do processo analí-
tico não é apenas
divergente: só se
caracterizando
como permanente
dinamismo de
dissociação, de-
composição e dis-
tinção. Em reali-
dade, é um per-
curso divergente/
convergente, aná-
logo ao caso de
alguém que garimpa não só pelo prazer da garimpagem, mas, tam-
bém, pelo interesse tanto de uma determinada produção como da pos-
se do que produz.

O lado convergente ou produto do processo analítico, visado pela


inteligência, é a síntese, isto é: na dinâmica do conhecimento, só se
fazem dissociação, decomposição e distinção com o objetivo das con-
seqüentes re-associação, recomposição e reconstituição. Em termos
conceituais mais organizados e sistemáticos, a síntese, segundo Jolivet
(1967, p. 427):
[...] consiste em reconstruir os todos a partir dos elementos, não somente em
vista de apreender os objetos da experiência, previamente analisados e de-
compostos, em sua unidade complexa e em sua multiplicidade orgânica,
mas também para criar objetos novos. Todas as técnicas, todas as ciências
e todas as artes são produtos desse poder sintético [...].

Análise e síntese são, pois, dinâmicas intercomplementares do


próprio processo de formulação e evolução do conhecimento, que con-
ferem à inteligência humana a prerrogativa de tornar-se projetiva.
Projetiva não só em termos de presente e passado, mas até no sentido
de reais antecipações de futuro. Não são apenas os filósofos e os
planejadores que gozam do privilégio da inteligência projetiva. São:
- todos os pesquisadores/cientistas, que descobrem ou ampliam
conhecimentos e que inventam o que nunca existiu antes;

60
- os engenheiros que projetam uma estrada que jamais tinham visto;
- os arquitetos que confeccionam artisticamente a planta de uma
casa exatamente para que seja diferente das já construídas;
- os químicos, físicos, especialistas em informática, etc., bem
como centenas de milhares de pessoas comuns que descobrem, a
cada minuto ou segundo, novidades na área da ciência, da tecnologia e
da própria cotidianidade da vida: descobrem fenômenos acontecidos,
acontecendo e por acontecer, como podem provocar o acontecimento
de outros novos e variados.
Disso decorrem três hipóteses progressivamente intercomple-
mentares:
a) os lastros e disponibilidades de informações nas memórias
individual, coletiva e eletrônica configuram o potencial de desenvolvi-
mento integral que uma pessoa, um grupo ou uma sociedade teve, tem
ou pretende ter;
b) a capacidade e a habilidade de dinamização analítico-sintéti-
ca, bem como a ampliação dos mencionados lastros, possibilitam que
se projetem a dimensão e o grau de desenvolvimento que uma pessoa,
um grupo ou uma sociedade teve, tem ou pretende ter;
c) os investimentos planejados na ampliação de lastros de me-
mórias e na educação para a formação analítico-sintética constituem
os pontos estratégicos de partida para a endogeneização e dinamização
do desenvolvimento, em todas as dimensões e níveis, assim como no
âmbito de pessoas individualizadas, de grupos constituídos e de socie-
dades organizadas.

TENTATIVAS DE RECONSTITUIIÇÃO DA
SEQÜÊNCIA CÍCLICA DO PROCESSO
4.2 EXPANSIVO-EVOLUTIVO DO
CONHECIMENTO
itfliii
Esta matéria não apenas continua tudo o que foi tratado no item
anterior (em todo o 4.1) como praticamente se limita ao dimen-
sionamento funcional de conceitos/fenômenos aí abordados, para efei-
to precípuo de entendimento conceituai, na linha do dinamismo expan-
sivo e, simultaneamente, evolutivo do conhecimento.
O termo expansivo assume, aqui, o sentido mais amplo possível,
ou seja, abrange também dimensões consideradas qualitativas como
aperfeiçoamento, enriquecimento, aprofundamento, especialização e
61
congêneres. Já evolutivo pode ser entendido como progressão ao lon-
go do tempo, mas também com as características do seu emprego na
área de matemática (progressão aritmética, progressão geométrica, pro-
gressão exponencial e assim por diante). Com esta conotação matemá-
tica, o termo evolução já abrange, de certa maneira, bastante espaço
do próprio significado de expansão. Mesmo assim, preferiu-se acoplá-
los para efeito de reforço e ênfase em relação ao que vem tratado a
seguir.
Fala-se muito em: teórico, prático, abstrato, concreto, aplica-
do, básico, funcional, etc., quando se refere principalmente ao co-
nhecimento científico e à sua dimensão tecnológica. Nada haveria de
especial nisso, não fossem a ênfase e a preferência principalmente
w pelo "prático" (ou
até "funcional"),
justamente porque
não se sabe, com
lógica e clareza, o
que representam os
outros no contexto
| do processo de for-
f\ mulação e dinami-
I zação do conheci-
_ mento e até no que
— — ^ r r — — ss e | e s {êm a ver com
"" o próprio "prático"
ou "funcional". Ilustram bem essa situação a celeuma que se tem es-
tabelecido em termos da relação entre teoria e prática, sobretudo nos
meios educacionais, bem como a limitação conceituai abordada no Tó-
pico 3.
A elucidação dessa questão supõe as tentativas de reconstituição,
tanto quanto possível sistemática, da seqüência cíclica de formulação
e dinamização expansivo-evolutiva do conhecimento. No parecer des-
te ensaísta, pode-se pelo menos tentar a reconstituição da referida se-
qüência de duas maneiras:

PRIMEIRA TENTATIVA DE
RECONSTITUIÇÃO

Esta tentativa flui de tudo o que foi abordado no item 4.1 e se


configura assim:

62
a) 1o ciclo: das primeiras e simples apreensões (obtidas atra-
vés dos sentidos) passa-se ao ajuizamento (afirmações ou nega-
ções a respeito das propriedades apreendidas) e (em seguida) se de-
cola para o raciocícino argumentativo (sobre cada propriedade, bem
como sobre os produtos delas resultantes, pelo processo análise-
síntese).
b) 2o e demais ciclos (cujas sistemáticas se aplicam dinamica-
mente, sempre no sentido do menos para o mais complexo ou significa-
tivo, a todos os ciclos que se sucederem na seqüência): os resultados
ou produtos do raciocínio argumentativo do 1o ciclo detonam a geração
de novas apreensões (através dos sentidos ou pelo processo lógico de
análise-síntese ou pela interação de ambos), que passam por
ajuizamentos (mais complexos que os anteriores), que decolam para
raciocínios argumentativos (mais amplos, profundos e sofisticados); e
assim por diante.

SEGUNDA TENTATIVA DE
42 2 RECONSTITUIÇÃO

Nesta reconstituição, os termos/fenômenos CONCRETUDE,


ABSTRAÇÃO, TEORIA e PRÁTICA constituem os quatro pontos estra-
tégicos (ou cardeais, como se referiu anteriormente) do processo de
expansão evolutiva do conhecimento. De fato, esta reconstituição de
ciclos não é essencialmente diferente da primeira. Antes, apenas a
objetiva um pouco mais e sua correta compreensão não se realizará
sem que se tenha entendido bem a primeira.
Para se passar à estruturação e ordenação dos ciclos, necessá-
rio se faz definir
bem o sentido dos
termos estratégi-
cos:
a) CONCRE-
TUDE deriva de
concreto, cujos
dois sentidos mere-
cem recordação:
objeto material
(sentido estrito) ou
todo o fenômeno

63
materializado e, portanto, passível de ser captado ou percebido pelos
sentidos, inclusive o "sexto" (significado amplo).
Nesta reconstituição, concretude deve ser entendida como qual-
quer realidade possível de ser conhecida (pressupondo-se sempre que
nada entra na mente sem que antes se passe direta ou indiretamente,
total ou parcialmente pelos sentidos).
b) ABSTRAÇÃO, também já analisada sob os dois ângulos (cfr.
4.1.1 b): processo pelo qual e no qual a mente (inteligência) apreende
do objeto em posição de ser conhecido, via mediação dos sentidos, as
suas propriedades; ou extrato mental das propriedades do objeto co-
nhecido, apreendidas pela inteligência através dos sentidos.
Na reconstituição, abstração significará, simultaneamente, pro-
cesso e extrato, ou seja, os dois sentidos devem ser levados em con-
ta. E mais, observando atentamente o conceito de síntese, formulado
por Jolivet (1967, p. 427), verificar-se-á: primeiro, que a síntese é o
extrato ou produto do processo de abstração no nível do raciocínio;
segundo, que a síntese, embora se constitua um extrato ou produto, é
dinamicamente projetiva (e não estaticamente conclusiva), pois "[...]
consiste em reconstruir os todos a partir dos elementos, não somente
em vista de apreender os objetos da experiência, previamente analisa-
dos [...], MAS TAMBÉM PARA CRIAR OBJETOS NOVOS" (o destaque
em maiúsculas é nosso). Isso quer dizer, em outras palavras, que o ato
de conhecer não é despretensioso a ponto de se contentar com o co-
nhecimento das propriedades que se encontram na mira direta da inte-
ligência. Ao contrário, é vitalmente pretensioso: no próprio processo de
entendimento de uma determinada dimensão, a mente já começa a
projetar o seu retorno interventivo ao objeto, para extrair (arrancar) dele
o conhecimento de outras de suas propriedades. A mente, como a bom-
ba d'água, "suga e projeta" o conhecimento. Ou, ainda, a conseqüência
natural do ato de conhecer é a de programar, explícita ou implicitamen-
te, nova intervenção
na realidade para:
conhecê-la mais e
melhor, modificá-la,
solucioná-la, etc.
Exemplo disso, um
engenheiro civil não
estuda anos a fio só
para o gozo da abs-
tração sobre o que
é o objeto ponte ou
qualquer ponte em

64
particular. Estuda (abstrai) para, conhecendo o que é esse objeto ponte
ou esta ponte em particular, tornar-se capaz de conceber e comandar
a construção de outras pontes de alguma forma diferentes do objeto
ponte ou daquela ponte que estudou (sob algum aspecto, nunca uma
ponte será igual a outras).
Isso posto,
convém retornar ao
termo abstração,
acrescentando-lhe
mais uma 3a dimen-
são: 1 a , a de pro-
cesso de puxar as
propriedades do
objeto; 2a, a de ex-
trato ou síntese do
conhecimento con-
seguido pelo racio-
cínio; e 3a, a de pro-
jetar novas interven-
ções no objeto.

Só que esta terceira dimensão, a de projeção interventiva, cons-


tituirá a essência do que está sendo denominado TEORIA.
c) TEORIA é, portanto, a dimensão projetivo-interventiva da abs-
tração humana na realidade ou concretude abstraída, objetivando sim-
plesmente conhecê-la mais e melhor e/ou, ainda, alterá-la de alguma
maneira.
Nesta dimensão projetivo-interventiva (a terceira da abstração
como um todo), e em acordo sempre com a lógica do geral para o
particular e do sim-
ples para o comple-
xo, a mente se ocu-
pa de questões
como a de situar o
que a atrai no obje-
to, a de questionar
sobre o quê e (e
porquê) do objeto
ou de parte dele lhe
interessa ou con-
vém, a de progra-
mar (como, com

65
quê, quando, onde, etc.) agir na proporção da intensidade do interesse
ou conveniência, e assim por diante.
Tudo isso é feito de duas maneiras:
- naturalmente, em que pelos recursos lógicos da análise-sínte-
se espontâneas a mente resolve os problemas;
- apoiadamente: a mente busca auxílios logísticos e instru-
mentais externos ou até se ocupa da concepção e projeção de ins-
trumentais subsidiários externos próprios, quando se depara com
um certo grau de complexidade para a solução de seus problemas
(daí porque a mente cria não só em relação ao que ela pretende
alcançar, mas também no que respeita aos meios para conseguir o
que intenciona).

Na área da formulação e dinamização do conhecimento, TEO-


RIA pode, portanto, ser entendida como mapeamento ainda abstrato
porém essencialmente projetivo da intervenção ou reintervenção da
mente (inteligência) na concretude ou realidade que está sendo conhe-
cida.
d) PRÁTICA é um termo que pode ser empregado tanto como
substantivo (a prática) quanto como adjetivo: atividade prática (fem.),
trabalho prático (masc.).
Enquanto substantivo (cfr. FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 1. ed., 9 a impr., Rio:
Nova Fronteira, sem data), prática é o"[...] ato ou efeito de praticar [...]",
em que praticar tem o sentido de "[...] levar a efeito; fazer, realizar, co-
meter ou executar [...]". Disso resulta que prática, como substantivo, é
o ato ou efeito de fazer, realizar, cometer ou executar. Já o Dictionnaire
Encyclopédique Pour Tous - Petit Larousse lllustré (Paris, Librairie
Larousse, 1980) resgata sua etimologia grega "pratiké tekhné = ciência
prática", diferenci-
ando-a de "theorie"
entendida como
"[...] conhecimento
especulativo, ideal,
i n d e p e n d e n t e de
aplicações [...]". Daí
por que a prática
significa em fran-
cês, e também em
português,"[...] Exe-
cução de um proje-

66
to, de uma idéia; aplicação [...]", além de outros sentidos corriqueiros
como "experiência", "habilidade", etc.
Prático, na condição de adjetivo e no contexto aqui enfocado, é,
segundo o citado Petit Larousse,"[...] o que não fica só na teoria; o que
é relativo à ação, à aplicação [...]".
No que se refere à segunda reconstituição dos ciclos de formula-
ção e dinamização do conhecimento, um pouco à frente, a PRÁTICA
decorre da TEORIA e significa: ato de aplicação ou execução de uma
idéia de intervenção na concretude, projetada ou mapeada no âmbito
da teoria.
Recapitulando, os sentidos dos termos estratégicos desta se-
gunda reconstituição são:
a) CONCRE-
TUDE: qualquer
realidade possível
de ser conhecida
pela via direta ou in-
direta, próxima ou
remota dos sentidos
ou, simplesmente,
qualquer objeto ou
fenômeno na forma
que se permita ser
conhecido pela inte-
ligência humana.

b) ABSTRAÇÃO, aqui empregada com dois significados: primei-


ro, de processo pelo qual e no qual a mente (inteligência) apreende da
CONCRETUDE (objeto em posição de ser conhecido), via mediação
dos sentidos, as suas propriedades; segundo, de extratos mentais:
percepções/imagens/vultos apreendidos, afirmações ou negações ajui-
zadas e sínteses obtidas ao nível do raciocínio.
c) TEORIA: dimensão projetivo-interventiva da abstração huma-
na no sentido de conhecer mais e melhor a concretude (ou objeto de
conhecimento) e/ou, ainda, de alterá-la de alguma maneira.
d) PRÁTICA: ato de aplicação ou execução de uma idéia de in-
tervenção na CONCRETUDE, projetada ou mapeada no âmbito da
TEORIA.
Agora, sim, fica simples encadear esta segunda reconstituição
da seqüência de ciclos do processo de formulação expansivo-evolutiva
do conhecimento:
67
1o CICLO:
Da CONCRETUDE (C1), como 1 o elo da cadeia, a mente pas-
sa à ABSTRAÇÃO (pelas operações de apreensão, ajuizamento e
raciocínio) das propriedades sacadas da realidade ou concretude; ain-
da no âmbito da abstração, formula TEORIAS ou prospecção de ou-
tras intervenções na realidade
ou concretude, para alterá-la ei
ou conhecê-la mais; por fim, a
mente encerra o 1 o ciclo pela
PRÁTICA ou execução das
prospecções teorizadas de in-
tervenção (com seus recursos
lógicos próprios e/ou com apoio
logístico e instrumental externo)
na dinâmica da CONCRETUDE
(C2) também mais complexa,
como na representação, em
que:

2 o CICLO:
(cuja sistemática também se aplica dinamicamente, sempre
no sentido do menos para o mais complexo ou significativo, a todos
os ciclos que se sucederem na seqüência): os resultados da inter-
venção do ciclo anterior ampliam as possibilidades de a CONCRE-
TUDE fornecer mais elementos a ABSTRAÇÕES mais complexas,
que geram TEORIAS ou projetos mais elaborados de reintervenções
na concretude, que são executados ou levados à PRÁTICA (sempre
com os recursos lógicos próprios da mente e/ou com apoio logístico
e instrumental externo) na di-
nâmica realidade da CON-
CRETUDE; e assim por dian-
te, formando a espiral do co-
nhecimento que evolui de um
ponto C1 da r e a l i d a d e ou
concretude e se dinamiza ace-
lerando: da somatória para a
progressão aritmética, para a
progressão geométrica, para a
progressão exponencial, em
termos de volume, qualidade e
diversificação (formando no-
vos ciclos).

68
LIÇÕES PRAGMÁTICAS DO PROCESSO
EXPANSIVO-EVOLUTIVO DE
FORMULAÇÃO DO CONHECIMENTO

Incontáveis são as lições que podem ser tiradas de tudo o que se


registrou neste Tópico, principalmente no item das duas tentativas de
reconstituição do processo de formulação expansivo-evolutiva do co-
nhecimento humano. Algumas são elencadas a seguir e outras pode-
rão ser tiradas de acordo com a motivação e prioridade de interesses
de cada leitor.
Dentre as lições que merecem destaque, sobressaem-se as:

RELATIVAS AO ÂMBITO GERAL


4.3.1 DO PROCESSO
I

É pela riqueza e dinamicidade de nossa efetiva capacidade de


conhecer, sempre mais e melhor, que descobrimos a riqueza e a
dinamicidade de tudo o que nos cerca no mundo e em nossa própria
vida. É pelo conhecer, no seu sentido mais abrangente e profundo,
que se conquistam, se reconhecem e se experimentam fenômenos
tão importantes como liberdade, autonomia, cooperação, equilíbrio so-
cial, equilíbrio ecológico, doença, morte, nascimento, ciência,
tecnologia, simplicidade, honestidade, hierarquia de valores e tudo o
mais que nos atinge ou em que nós pisamos, no dia-a-dia e nos gran-
de momentos, à espera de que o descubramos, o vivenciemos
e o respeitemos,
como no caso
do imemorável
achado da ínfima
flor no minúscu-
lo planeta do Pe-
queno Príncipe
de S a i n t - E x u -
péry.

Dentre to-
das as concre-

69
tudes ou realidades
possíveis de serem
conhecidas pela
mente, só o ser hu-
mano é capaz de co-
nhecer as demais no
nível da complexida-
de abordada nas
duas reconstitui-
ções. Dentre todas essas realidades, no entanto, aquelas que mais têm
condições de serem conhecidas por vezes são exatamente as que po-
dem se deixar conhecer menos. Nos reinos mineral e vegetal, todos os
seres estão simplesmente aí, de certa maneira até desafiando no sentido
de que sejam conhecidos e apreciados. Só no reino animal, guardião da
capacidade de conhecer, é que as coisas mudam: esconde-esconde para
os animais em geral e camuflagem para o ser humano inteligente. Daí
porque promover justiça e reparar injustiça não é simples problema de
inteligência, mas de inteligência não camuflada, que busca não apenas o
conhecimento das realidades cognoscíveis, como também o
desvendamento das verdades que elas são e indicam.

RELATIVAS À PROPALADA QUESTÃO


TEORIA VERSUS PRÁTICA

No cotidiano, fala-se sobre teoria e prática como se esta fosse


a mocinha e aquela a vilã do filme da vida. A verdade parece ser outra:
a prática é a dimensão-ação da teoria que a fundamenta, a contextua
e a projeta. A prática está para a teoria assim como a demarcação da
terra indígena está para o respectivo mapeamento ou, ainda, como
a atividade de
y fi edificar o prédio
es a
A f) V w ^ j * Para a cor"
I jpk respondente plan-
2. j M j j t . -T iW pN ta: se o mapea-
m e n t o
jJ< v Sf^wCv f ° r falho,
% J\Q YÍLJkV ^^bÍ»-^-^' falha será a de-
V l ^ ^ V . j . f. ;< j y marcação: se a
. Planta for boa, boa
%
VjKÍr será a edificação.

70
Pode ocorrer até teoria que projete a prática sem que esta se
efetive. Mas jamais haverá verdadeira prática sem ser projetada ria te-
oria. Teoria sem prática se limita a atividade meramente mental, por
vezes constitui até excesso de compreensão e visão de determinadas
coisas em relação às reais condições de efetivamente realizar tudo
que se projeta fazer. Prática sem teoria é simplesmente praticismo,
ativismo ou "jeitinho" infundado, imprevisto e inconseqüente. Só funcio-
na por casualidade.
Teoria não é imaginação e nem masturbação mental. É con-
seqüência do processo "bumerangue" da mente humana, o do sem-
pre pretensioso e dinâmico ato da compreensão-intervenção (ou sim-
plesmente trabalho de ABSTRAÇÃO) da mente, que tem levado o
ser humano não só
a conhecer e apro-
veitar mais e melhor
a realidade do mun-
do e da vida, como
t a m b é m à doentia
ambição de possuí-
la, dominá-la e ma-
nipulá-la a seu bel-
prazer.

RELATIVAS À REALIDADE E
IMPORTÂNCIA DA ABSTRAÇÃO

A abstração é
preconceituosamente
entendida e tida por
muita gente (cfr. Tó-
pico 3, que trata da
limitação conceituai)
como algo imaginá-
rio, irreal, alienado,
sonhador, sem base
concreta, subjetivo,
vago e assim por di-
ante. Se assim fos-
se, imaginário, ir-

71
real, etc., seria quem pensa dessa forma e nisso ignorantemente acredi-
ta. Por quê? - Porque é pela abstração que a mente é capaz de saber o
quê é um machado, uma faca, uma montanha, um átomo e tudo o mais,
sem ter que enfiá-los fisicamente nos seus sentidos, no seu cérebro, na
sua memória e nas suas operações de ajuizamento e análise-sínteses
dos raciocínios quantitativa e qualitativamente complexos. Ou, ainda, é
pela abstração que a inteligência capta-imaterializando, analisa e conhe-
ce toda a realidade (inclusive a física), independentemente de suas di-
mensões, seus tipos e suas naturezas.

Há profissionais, de variados tipos e calibres, que se vangloriam


de serem "práticos" e abominarem abstrações e teorias. Dentre eles
se encontram engenheiros, arquitetos, médicos, veterinários, econo-
mistas, administradores, comunicadores e muitos outros. Esquecem-
se, ou ainda não se deram conta, de que trabalham muito mais no
campo da abstração que no da autêntica prática:
- engenheiros e arquitetos buscando conhecer as realidades da
engenharia e da arquitetura e elaborando projetos e plantas (de inter-
venção) para mestres, contramestres, pedreiros, serventes, etc., exe-
cutarem em termos de prática;
- médicos e veterinários diagnosticando (isto é, buscando abstrair
as relações efeitos/causas bem como outras correlações possíveis, a partir
do quadro sintomático da doença), prognosticando (projetando o quadro
medicamentai e outros cuidados compatíveis com o diagnóstico) e, por
fim, receitando, operando ou vacinando (ou seja, só agora praticando o
projeto prognosticado com base no diagnóstico);
-economistas, administradores, físicos, químicos, comunicadores,
geólogos e a grande maioria dos profissionais de nível mais elevado,
cuja lógica profissional exige: permanente e boa compreensão da res-
pectiva realidade a ser trabalhada, projeção de atividades a serem reali-
zadas e, nem sem-
pre, a conseqüente
prática do que foi
projetado.
Até mesmo
aqueles profissio-
nais mais relaciona-
dos com o campo da
prática só a concre-
tizam, de fato, se
têm pelo menos o
conhecimento empí-

72
rico da teoria que a
fundamenta, con-
textua e projeta: que
será, por exemplo,
do pedreiro encar-
regado da constru-
ção de uma casa se
não souber decifrar
a sua planta?

RELATIVAS AO PROCESSO
4 3 4
ANÁLISE-SÍNTESE

Não há síntese sem análise, ou seja, o processo analítico do raci-


ocínio também se desenvolve ao tipo da trajetória "bumerangue": vai
decompondo, para se entender mais e melhor, e volta recompondo o
que foi e está sendo entendido. Por isso, aquele lugar comum "comigo
é tudo curto e grosso", do sujeito que "desenvolve" uma idéia num ou
dois parágrafos, pode ser interpretado de duas maneiras: 1a - o sujeito
já analisou previamente a idéia e, no texto, só se ocupa da síntese
(cerne) da questão; ou 2a - o indivíduo é muito mais "curto e grosso" do
que pensa: demonstra que efetivamente não sabe analisar e muito
menos se expressar por escrito. Conta-se, neste sentido, que o famo-
so pregador jesuíta, Pe. Antônio Vieira, certa vez fez um sermão, numa
das igrejas de São Luiz - MA, tão longo que causou estranheza até a
ele mesmo. Por isso, resolveu concluí-lo mais ou menos assim: des-
culpem-me ter sido longo por não haver tido tempo de ser breve. Inde-
pendentemente da
autenticidade e fi-
delidade histórica
do acima mencio-
nado, vale o
ensinamento analí-
tico.

Não há aná-
lise sem síntese:
se houvesse, se-
ria a dispersão to-
73
tal, a ida sem retor-
no, como no caso
do "mecânico pi-
careta" que des-
monta o carro,
embaralha as pe-
ças e as abandona
à ferrugem. Isso
não significa, por C-* — — -=-*= 1 —
outro lado, que
toda síntese precisa ser perfeita. Não existe, aliás, síntese perfeita. A
síntese perfeita contrariaria a própria dinâmica do conhecimento. Exis-
tem, portanto, sínteses: mais ou menos lógicas, mais ou menos su-
perficiais, mais ou menos profundas, mais ou menos convincentes e
assim por diante.

RELATIVAS À CIÊNCIA E AO
4.3.5 AVANÇO CIENTÍFICO

A ciência não é só uma extensão artificial da maneira natural de


conhecer. É, na verdade, sua reprodução, só que aberta à participação
de indivíduos, grupos e instituições, subsidiada por métodos, técnicas
e instrumentais, que ampliam as condições humanas de conhecer com
segurança, e desenvolvida em regime cumulativamente progressivo,
de sorte que de fragmentos, conseguidos ao longo do tempo e por di-
versas pessoas, se constróem degraus e alavancas que permitem ao
ser humano penetrar, pouco a pouco e cada vez mais, nos meandros
da constituição, organização e dinâmica dos fenômenos que integram
esta enorme e inesgotável realidade chamada natureza. Se se prestar
bem a atenção, ver-se-á que a metodologia geral da ciência, também
globalmente falando, se desenvolve com a mesma lógica do processo
natural de conhecer: da apreensão da realidade se inferem generaliza-
ções que projetam hipóteses e caminhos para novas e mais comple-
xas apreensões sobre o que são, para que servem e como se compor-
tam os fenômenos da natureza. Em resumo: o conhecimento de como
se conhece naturalmente leva, também e necessariamente, ao conhe-
cimento de como se conhece cientificamente.

No que concerne à relação entre o processo natural do conheci-


mento humano e o avanço científico, apenas um exemplo é suficiente
para elucidar a questão. Em 1989, este ensaísta teve a oportunidade

74
de ouvir uma palestra da Profa. Dra. Ariadne M. B. Rizzoni Carvalho, da
UNICAMP, sobre inteligência artificial na área computacional. Embora
leigo na referida área, pôde captar o esboço geral de que a inteligência
artificial só se efetivará quando se equipar algum computador, em ter-
mos de hardwares e softwares, para desenvolver as operações de apre-
ensão, juízo e raciocínio praticamente idênticas às da mente humana.
Pelo entendido, parece que já se conseguiu significativo progresso em
relação às duas primeiras operações, restando ainda o grande desafio
no sentido de efetivamente levar o computador à realização de raciocí-
nios analíticos complexos e inovadores.

RELATIVAS À C O M P R E E N S Ã O BÁSICA
4 3 6
' ' DO Q U E É PESQUISA
HBMI
Logo no segundo parágrafo introdutório deste longo e denso Tó-
pico se fez a seguinte indagação:
[...] sabe-se até empiricamente que pesquisar é produzir no sentido de criar,
recriar, redimensionar, digerir, metabolizar, etc.) conhecimento. Como, então,
entender profundamente o que é pesquisa (pesquisar), sem antes, ou simul-
taneamente, se buscar saber como o fenômeno do conhecimento se produz
(processa) na dinâmica evolutiva da espécie humana e de cada um de nós
em particular?

É possível que o leitor já tenha formulado a sua resposta à inda-


gação. Mesmo assim, não é demais enfatizá-la. Como se registrou na
lição relativa à ciência (4.3.5), e tendo em vista que o mecanismo
dinamizador básico da ciência não é outro senão a pesquisa, fica rela-
tivamente simples perceber que pesquisa é, do ponto de vista da com-
preensão conceituai de sua essência básica, nada mais nada menos
que recurso sistemático de geração, ampliação e redimen-
cionamento de c o n h e c i m e n t o que reproduz artificial ou
provocadamente a metodologia natural de que a mente humana
se vale para desenvolver o processo de formulação e dinamização
do conhecimento. É pela pesquisa que a mente humana estende
as suas condições de conhecer aos fenômenos que extrapolam
os limites naturais de alcance dos seus sentidos e das suas facul-
dades inatas de apreender, ajuizar e raciocinar de forma contínua
e progressivamente expansivo-evolutiva.

A par dessa compreensão panorâmica da relação direta entre


pesquisa e processo natural de conhecimento, uma correlação
metodológica mais explícita pode ser detectada. Trata-se do fato de

75
que a dinâmica metodológica da pesquisa, genericamente considera-
da, envolve encadeamento de passos sucessivos análogos aos do pro-
cesso natural de conhecer: 1o - coleta e processamento de informa-
ções sobre as propriedades do objeto de pesquisa = "simples apreen-
são"; 2° - configuração de performance dos resultados processados =
"juízo"; 3o - análise interpretativa e argumentativa de compreensão das
propriedades apreendidas através dos dados coletados, processados
e configurados = "raciocínio".
Esses passos formam ciclos que se sucedem da mesma ma-
neira que os da seqüência reconstituída no item 4.2.1. Sem demasiado
esforço, cada leitor interessado poderá fazer a reconstituição da se-
qüência de ciclos da pesquisa em torno, também, dos outros fenôme-
nos-chaves (concretude, abstração, teoria, prática), utilizados para a
segunda tentativa de reconstituição no item 4.2.2.
Cabe frisar, ainda, que a relação direta da pesquisa com o pro-
cesso natural de conhecer se dá sempre, ou seja, ocorre mesmo nos
casos em que a pesquisa não se destine à produção de conhecimento
estritamente científico, como se iterou no Tópico 2 deste trabalho. Isto,
porque a relação que se estabelece entre ambos se configura pela se-
melhança, analogia ou até quase identidade de suas propriedades bá-
sicas e não pela natureza de seus resultados, ou seja, embora de modo
artificial ou provocado, a pesquisa reproduz o processo natural de pro-
dução do conhecimento, não importando se categorizado como cientí-
fico ou atinente a qualquer outra dimensão da vida.

76
A PESQUISA
NA CONCEPÇÃO
CLÁSSICA USUAL
Na concepção clássica, pesquisa sempre se relacionou com
ciência, inclusive filosofia e, portanto, com o método científico. Daí a
razão por que se estigmatizou a generalizada crença de que só se faz
pesquisa científica para se produzir ciência e tecnologia em sentido
estrito ou formal, como se acentuou no segundo Tópico atrás.
Em verdade, a pesquisa não só se relacionou com o método
científico, mas sempre foi, e continua sendo, a própria alma ativa ou
fator dinamizador tanto do método científico quanto da ciência que dele
resulta. Por isso é que se inicia esta abordagem da pesquisa, na con-
cepção clássica, exatamente pela decifração de seu espectro na
conceituação do próprio método científico.
Segundo So- m^ÊÊÊBR
lages (1964, p. 20-
22), o encaminha-
mento do método
científico se desen-
volve em torno de
três eixos pilares: o
do rigor, o da or-
dem e o da pro-
gressão. Alterando
um pouco a se-
qüência acima, a
ordem se estabele-
ce, nos passos do
método científico, t y
79
"[...] em oposição à fantasia que reinava outrora em muitos campos do
pensamento. Tal ordem não exclui o tateio, de que as descobertas não
prescindem, ao contrário do que dão a entender as exposições escola-
res [...]". A progressão (o caráter progressivo do método científico ou,
ainda, a lógica das crescentes aproximações sucessivas) acontece
"[...] em contraste com a primeira ambição do pensamento, que é ir
logo ao definitivo". Por último, embora se tratando do fator mais enfáti-
co - o rigor -, que consiste no:
[...] encaminhamento do pensamento metodológico [...] sempre aproximativo
[...] é uma disciplina que o pensamento, pouco a pouco, se impõe a si próprio,
sob o influxo das matemáticas, cuja aplicação ao real introduziu a noção de
medida num crescente número de domínios.

Em realidade, esses três eixos são as colunas que sustentam e


orientam também a concepção clássica e usual de pesquisa, o que se
explicitará em sucinto enfoque histórico, no enunciado de algumas de-
finições ou conceituações de pesquisa e, em seguida, numa análise
mais abrangente sobre esses eixos no contexto da pesquisa enquanto
processo dinâmico.

BREVE ENFOQUE HISTÓRICO


5,1 SOBRE OS EIXOS CONCEITUAIS
DE PESQUISA

A ênfase no rigor e na ordem, quando se refere a método ou


pesquisa científica, não é coisa só do positivismo científico comteano
do séc. XIX e nem do experimentalismo do séc. XX. É tão antiga quanto
a própria história da ciência. Segundo o citado Solages, "Não resta dú-
vida que o primeiro esforço para matematizar a ciência é bem mais
antigo, pois que remonta a Pitágoras", no séc. VI a.C., contrariamente
aos que pretendem atribuir ao mecanicismo aflorado no séc. XVII, de
Galileu-Galilei (1564-1642) a Pascal (1623-1662), a caracterização do
aspecto quantitativo como o "[...] único que se presta a mensuração e
permite, por conseguinte, estabelecer relações matemáticas entre as
várias grandezas consideradas".

Vale ressaltar que a lógica aristotélica, enquanto também "[..,]


teoria de pesquisa" na visão de Dewey (in: ABBAGNANO, 1982), foi
buscar nas matemáticas, principalmente na doutrina pitagórica
(THONNARD, 1976), os fundamentos de seu rigoroso ordenamento
racional, tendo em vista que, à época, o trabalho da razão tinha que
superar e ampliar as extremadas limitações dos sentidos para iteração

80
e aprofundamento
de contatos da
mente inclusive
com os objetos ma-
teriais do conheci-
mento. Daí a esma-
gadora predomi-
nância da dinâmica
especulativa sobre
os aspectos indu-
tivo-experimentais,
em todos os tipos
de demonstração
científica, até o sur-
gimento da mentalidade e dos instrumentos que permitiram a concep-
ção e o ensaio dos primeiros passos da ciência positiva, por volta dos
sécs. XVIA/XII, com os citados Galileu-Galilei e Pascal, Copérnico (1473-
1543), Kepler (1571-1630), Francis Bacon (1561-1626), Giordano Bru-
no (1548-1600), Descartes (1596-1650) e outros.

Em todo esse período inicial da história da ciência, do método


científico e, conseqüentemente, da pesquisa científica, a configuração
geral da demonstração científica era, aproximadamente, a seguinte: de
poucos e limitados elementos indutivo-experimentais, obtidos através
da capacidade natural dos sentidos, a mente tinha que multiplicar es-
forços para inferir generalizações e aplicá-las dedutivamente com se-
gurança, o que só se tornou possível com a razão suportada pela lógi-
ca matemática, vez que não havia sequer lente óptica para estender a
visão e muito menos amplificadores e outros instrumentais modernos
de extensão e ampliação artificial das condições sensitivas do ser hu-
mano.
Nesse contexto, evoluiu o saber clássico grego do séc. VII a.C. (a
partir de quando se começa a ter registro histórico), com Thales de
Mileto, até seu apogeu nos sécs. IV/III a.C., com a imortal tríade:
Sócrates, Platão e Aristóteles. Foi assim que se processou o
renascimento científico medieval, nos sécs. XII/XIII, do qual surgiu a
instituição universitária, não só como legado histórico mas, e sobretu-
do, como entidade perpetuadora dos constantes renascimentos da so-
ciedade (pelo menos isso é o que ficou encravado na sua origem).
Ainda foi no clima de absoluta predominância do esforço racional-indutivo
na área de pesquisar e produzir ciência, porém já com certo apoio de
instrumental rudimentar mas fundamental - como o astrolábio, a bús-
sola, o quadrante e a balestilha -, que as áreas da engenharia da nave-

81
gação e da as-
tronomia tiveram
avanços tão signifi-
cativos que o res-
pectivo legado his-
tórico se constituiu
do próprio desve-
lamento do conti-
nente americano,
no apagar das lu-
zes do séc. XV.

' ' ^"^"-ss"- Com o ad-


vento da ciência
positiva, cujo arcabouço teórico sistemático foi enciclopedicamente
ensaiado por Francis Bacon no séc. XVII, em convívio com ilustres ci-
entistas como Galileu-Galilei e outros já mencionados, a sociedade co-
meçou a se interessar diretamente sobretudo pelos resultados da ci-
ência, o que não só acarretou o desencadeamento da chamada revolu-
ção industrial, na segunda metade do séc. XVIII, como também colo-
cou a ciência numa M M In a l i
posição de risco e
comprometimen-
to. Tanto isso é
fato, que em pleno
curso do séc. XIX
surgia o fenômeno
Marx (1818-1883)
como expressão e
resultado dos efei-
tos da tecnologia
científica na eco-
nomia, na política e
na própria concep-
ção, organização e
funcionamento da
vida na empresa e na sociedade. A situação de risco e comprometi-
mento da ciência, em todos os setores do planeta e da vida, talvez já
tenha atingido o seu ápice na última década do séc. XX. Isto porque, a
par dos extraordinários efeitos positivos da ciência e da tecnologia, a
maioria das nações apostou de olhos tão fechados na ciência pragmá-
tico-experimental que a própria convocação da Conferência Mundial so-
bre o Meio-Ambiente, a ECO-RIO-92 como foi chamada pela impren-
sa, constituiu testemunho universal do uso acrítico e inescrupuloso da

82
ciência e de seus
efeitos tecnológicos
não apenas nas
condições da so-
brevivência huma-
na, como, inclusive,
nas da permanên-
cia de qualquer tipo
de vida sobre a
terra.

Esse apanha-
do histórico permite
entrever que toda a
evolução científica e
tecnológica da humanidade vem se orientando pelos três eixos pilares
do método científico apontados por Soiages: o rigor, a ordem e a pro-
gressão. Mas há duas questões que merecem discussão mais
aprofundada. A primeira se refere ao rigor, à ordem e à progressão
concernentes à produção mas não ao emprego adequado de ciência e
tecnologia (o que gerou a ECO-RIO-92, como se viu acima). Asegunda
diz respeito ao rigor, à ordem e à progressão utilizados para caracte-
rizações genéricas de ciência, método científico e, lógico, pesquisa ci-
entífica, sem se dar conta ou se demonstrar que a própria pesquisa se
desenvolve de maneira processual, de sorte que o rigor e ordem da
fase inicial não têm a mesma configuração que os das demais e su-
cessivas fases do processo (essa questão é retomada no item 5.3).
No que concerne especificamente ao método científico, abran-
gendo evidentemente a pesquisa, destaca-se a questão, já abordada
no Tópico 2, de que não se utiliza método científico (ou pesquisa cien-
tífica) só para se produzir ciência e tecnologia "stricto sensu" (também
isso será lembrado ou enfatizado praticamente em todo o curso deste
ensaio).

ALGUMAS CONCEITUAÇÕES
5.2 USUAIS DE PESQUISA

Nas conceituações de pesquisa, a seguir, ver-se-á que o eixo


da progressão só foi explicitado por Pierson, que lhe dedicou a (se-
gunda) parte descritiva do conceito. Nos demais casos, esse eixo é
83
suposto, implícito ou subentendido. Já os eixos rigor e ordem apare-
cem em todas as conceituações, embutidos nos termos ou expres-
sões: a) "[...] minudentes e sistemáticos [...]"; b) "[...] controlada ou
direta [..,]"; c)"[...] sistemática levada a efeito no mundo real"; d)"[...]
emprego de processos científicos [...] os processos de pesquisa ci-
entífica têm maior probabilidade [...]"; e)"[...] atividades realizadas de
forma intencional e sistemática [...]"; f)"[...] inquérito ou exame cuida-
doso [...]"; g)"[...] investigações controladas"; h)"[...] método científi-
co de tomada de decisão [...]"; i)"[...] os passos formais [...] são uma
sistematização [...]".

Isso observado, talvez seja de valia o contato direto com a íntegra


de todas as conceituações de pesquisa, transcritas, a seguir, na se-
qüência acima indicada:
a) Ado Novo Dicionário Aurélio:
"Investigação e estudo, minudentes e sistemáticos, com o fim de
descobrir ou estabelecer fatos ou princípios relativos a um campo qual-
quer do conhecimento".
b) Ade Dewey (in: ABBAGNANO, 1982):
[...] transformação
controlada ou direta
de uma s i t u a ç ã o
indeterminada em
outra, que seja de-
terminada, nas dis-
tinções e relações
que a constituem,
de maneira a con-
verter os elementos
da situação originá-
ria em uma totalida-
de unificada.

c) A de Pier-
son (1968, p. 329 e
60):
Investigação sistemática levada a efeito no mundo real (e não apenas no de
idéias); na significação científica do conceito, sempre se orienta pelas teori-
as anteriores e se esforça para relacionar com elas, logicamente, todas as
novas descobertas, verificando assim a teoria anterior, modificando-a ou
mostrando a necessidade de abandoná-la.

A pesquisa tem apenas um valor instrumental; sua finalidade não é eliminar


as teorias e sim melhorá-las; é a de nos ajudar a conseguir um corpo de
conhecimentos que tenham sido verificados, não apenas no mundo das
idéias, mas também, e mais significativamente, no mundo das coisas.

84
d) Ade Barbieri (1990, p. 56):
Por pesquisa se entende aqui o conjunto de atividades realizadas de forma
intencional e sistemática para produzir novos conhecimentos.

e) A d e Gressler (1979, p. 16):


Pesquisa é um inquérito ou exame cuidadoso para descobrir novas informa-
ções ou relações, ampliar e verificar o conhecimento existente.
É usual falar em pesquisa mencionando-a como simples coleta de dados.
No entanto a pesquisa científica pode ser entendida como forma de observar,
verificar e explanar fatos para os quais o homem necessita ampliar sua com-
preensão, ou testar a compreensão que já possui a respeito dos mesmos.

f) Ade Ackoff (1975, p. 6):


[...] e m p r e g a r e m o s o
termo "pesquisa" para
designar a classe geral
de investigações con-
troladas.

g) A d e Seiitiz
et ai. (1965, p. 5):
O objetivo da pesquisa
é descobrir respostas
para perguntas, através
do emprego de proces-
sos científicos.

Tais processos foram


criados para aumentar a probabilidade de que a informação obtida seja sig-
nificativa para a pergunta proposta e, além disso, seja precisa e não-viesada.
Certamente, não existe garantia de que qualquer empreendimento de pes-
quisa apresente, na realidade, informação significativa, precisa e não-viesada.
Mas os processos de pesquisa científica têm maior probabilidade de fazê-lo
do que qualquer outro método conhecido pelo homem.

h) A d e Shamblin/Stevens Jr. (1979, p. 13), referente especifica-


mente à pesquisa operacional:
A Pesquisa Operacional (P.O.) é um método científico de tomada de decisão
e, neste contexto, remonta a Frederick W. Taylor, e a Gilbreths e Henry Gantt.
Mas só por ocasião da Segunda Guerra Mundial o termo pesquisa operacional
foi usado para descrever um método nascido de grupos interdisciplinares de
cientistas que pretendiam resolver problemas estratégicos e táticos de ad-
ministração militar. Após a guerra, este método espalhou-se pelas organiza-
ções industriais e, com o advento dos computadores avançados, tornou-se
um tipo de abordagem comum na solução de problemas organizacionais.

i)Ade Salvador (1970, p. 12-17), limitada à pesquisa bibliográfica:


[...] Há duas formas fundamentais de adquirir conhecimentos: a pesquisa da
realidade ou pesquisa de campo e experimental, e o estudo da literatura ou
p e s q u i s a b i b l i o g r á f i c a . A p e s q u i s a bibliográfica é, pois, um estudo

85
recapitulativo de revisão da literatura existente em biblioteca [...]. Os passos
formais que sugerimos são uma sistematização do que, em essência, vem
sendo praticado por pesquisadores experimentados. É que tais passos são
indicados pela própria teoria da aprendizagem com base nos procedimentos
espontaneamente adotados na resolução de problemas.

Importa ressaltar que todos os autores supracitados, inclusive


aqueles em cujas conceituações sintéticas os eixos pilares rigor, or-
dem e progressão menos aparecem, dedicam centenas de páginas
exatamente para mostrarem e demonstrarem, minudentemente, como
os mesmos se estruturam, interagem e dinamizam no encaminhamento
teórico-operacional do processo de pesquisa.

DOSAGENS PARA RIGOR E ORDEM


5.3 NO PROCESSO DE PESQUISA

Em tese,
nada há de mais em
se falar de rigor e
ordem para o méto-
do científico, para a
pesquisa e para a
própria ciência. Já
se referiu ao fato de
que ciência e tec-
nologia são fenô-
menos que impli-
cam riscos e com-
promissos: a par de suas metodologias (metá = além + odós = cami-
nho + logía = estudo, pesquisa) se projetarem sempre para o desco-
nhecido (o que está cada vez mais além..., do lado de lá..., depois...),
seus resultados podem beneficiar, prejudicar ou até inviabilizara causa
da vida e do equilíbrio natural do planeta que é nosso berço, nossa
casa.

Por mais que se procure depurar a pesquisa do positivismo


mecanicista, mesmo aqueles tipos ou modelos de pesquisa mais isen-
tos (como os casos da pesquisa-ação e da pesquisa participante, pró-
prias da área social) não há como prescindir do rigor e da ordem (or-
denação), pois se caracterizariam como meras conveniências, sem
fundamentação, análises e resultados sistemáticos.

86
Há, por outro
lado, uma questão _ « p mmmm®m —/
j y ^ A f f C t i 3 VUL.l u»j*,í;S
extremamente gra-
ve em relação à ên-
: . f.
fase no rigor e na
ordem em matéria
mm&mS " " S a E
de pesquisa, méto-
do científico e ciên-
cia: a generalização
indiscriminada des-
ses fatores confere
"status" ao pesqui-
sador-cientista talvez até maior que o justo devido, mas amedronta os
candidatos potenciais e mitifica os fenômenos tanto da pesquisa quan-
to da ciência, como se comentou no Tópico 2 deste trabalho.

Essa questão se deve ao fato de se falar ou até escrever sobre


pesquisa e ciência, principalmente nos meios educacionais, sem se
ter em conta que ambas se desenvolvem em dinâmica de processo
e não de monobloco. O próprio eixo progressão é indicativo dessa
dinâmica. Retroagindo um pouco à citação de Solages (1964, p. 20)
quando se referiu à ordem em "[,..] oposição à fantasia que reinava
outrora em muitos campos do pensamento", salta aos olhos a seguinte
ponderação: "Tal ordem não exclui o tateio, de que as descobertas não
prescindem, ao contrário do que dão a entender as exposições escola-
res [...]", o que é de certo modo partilhado por dois outros autores (DEMO,
1985, p. 23 e GOODE/HATT, 1979, p. 155):
- Demo: Pesquisa é a atividade científica peia qual descobrimos a realidade.
Partimos do pressuposto de que a realidade não se desvenda na superfície.
Não é o que apareça à primeira vista. Ademais, nossos esquemas explicativos
nunca esgotam a realidade, porque esta é mais exuberante que aqueles.
- Goode/Hatt: A observação pode assumir várias formas e é, ao mesmo tem-
po, a mais antiga e mais moderna das técnicas de pesquisa. Inclui as expe-
riências mais casuais, não controladas, até os registros mais exatos por
meio de filme na experimentação de laboratório.

Talvez seja ainda na linha da não exclusão do tateio referido por


Solages que Pierson (1968, p. 82) distingue a pesquisa social em "[...]
experimentações espontâneas" e "pesquisa formal propositadamente
empreendida a fim de resolver problemas [...]". Diz o autor:
Experimentações espontâneas sempre se realizam por toda a parte (indús-
tria, política, etc.): 1 - Cada uma destas se orienta por uma ou mais teorias,
explícitas ou implícitas. 2 - Estas, porém, não se apresentam em forma de
hipóteses. 3 - Nem são submetidas propositadamente a provas em relação
à sua validade (especialmente no que se refere a "casos negativos).

87
(Aí está a razão da ressalva, na definição à letra c do item 5.2:
"[...] na significação científica do conceito [...], ou seja, o conceito lá
transcrito se refere à "pesquisa formal" e não a "experimentações es-
pontâneas").
Em termos mais explícitos, o que se quer dizer em relação a
rigor e ordem em pesquisa é que:
a) a dinâmica da pesquisa é processual, ou seja, se desenvolve
sempre por progressão ou aproximações sucessivas: do mais sensí-
vel para o mais especulativo, do mais simples para o mais complexo e
do mais geral para o mais particular (de acordo com a própria lógica
natural do conhecimento humano, rememorando o Tópico 4);
b) em razão dis-
so, a intensificação do
rigor e da ordem é
também progressiva:
acontece na medida
em que a evolução do
próprio processo da
pesquisa se dá nas di-
reções supramencio-
nadas, inclusive na do
óbvio ou quase óbvio
para o inédito;
c) assim, o grau de exigência em matéria de rigor e ordem pode
começar relativamente brando, no início, para se tornar progressiva-
mente cada vez mais vigoroso à medida que avança o processo da
pesquisa;
d) assim, ainda, qualquer candidato pode começar do começo
a se ingressar no mundo da pesquisa, com a calma e a certeza de
que as exercitações, mesmo os ensaios-e-erros analisados, lhe pre-
pararão teórica e
operacionalmente
para a produção
da pesquisa, ao
longo de alguns
anos, com a pro-
gressão de rigor
e ordem proporci-
onal aos seus inte-
resses e dedica-
ção.

88
Ao invés de se instalar uma espécie de terrorismo psicológico
em relação à pesquisa e à ciência, de um lado, ou de banalizá-las com
caricaturas de compilações frustrantes, dever-se-ia estimular as crian-
ças, os adolescentes, os jovens e os adultos a tentarem pesquisar, a
partir de problemáticas simples ou até da busca de esclarecimentos
científicos (relação causa e efeito e vice-versa) para a própria sabedo-
ria popular, vivenciada diuturnamente e por vezes consolidada em pro-
vérbios, pensamentos, hábitos e costumes típicos.
Não é só andar que se aprende andando. Pesquisar também se
aprende pesquisando, desde que, ao contrário de se amedrontar, se
motive para tal.
No contexto universitário, esse ponto de vista é ampliado no Tópi-
co 9, que trata da universidade como viveiro de pesquisa.

5.4 TIPOS DE PESQUISA

Sem nenhum intuito enciclopédico, parece oportuno, vez que esta


parte do trabalho se refere a uma visão abrangente da pesquisa na
concepção clássica usual, que o leitor tenha acesso também a algu-
mas classificações de tipos ou modelos de pesquisa ora em corrente
circulação.
As classificações aqui apresentadas não foram selecionadas por-
que melhores ou piores que outras de outros autores. São apenas pon-
tos de referência para quem está começando, agora, a travar contato
mais acirrado com o mundo da pesquisa. Em verdade, este assunto
de classificação é G .
extremamente po- ^ O f i / L g ^ % s
lêmico, tanto é que , .
só aqui três pro- "õlLjL.:
postas são apre- / t a l ^ ^ C T i G g a / j *
sentadas. Espera- ^ H g E f e J W t s ^ ^ M ^
se até, e com tor- J f i g . f f i g v f f i ' ^ AA I j X z X ^
cida, que o tímido ' ~'
principiante de hoje
seja exatamente jHPj .,
aquele que seieci- .Ju^CS.^
onará ou mesmo ,

89
formulará, amanhã, propostas mais apropriadas que a de Isaac/Michael
(1987), a de Demo (1985) e a da OCDE/Manual Frascati (apud
BARBIERI, 1990). As duas primeiras se referem à pesquisa em geral e
a última concerne especificamente a P&D ou "Pesquisa e Desenvolvi-
mento Experimental".
Como o objetivo fundamental deste item é o de informar so-
bre classificações de tipos e não o de exaurir o debate a respeito
de sua configuração e legitimação teórico-operacional, estudos
mais aprofundados poderão ser desenvolvidos pelos interessados
a partir, quem sabe, das próprias fontes supracitadas. Em assim
sendo, e limitando-se à transcrição ou tradução (no caso de Isaac/
Michael) do estritamente essencial, as classificações são as que
se seguem:

a) Proposta de Isaac/Michael (1987, p. 43-55): De cada um


dos nove tipos de pesquisa apontados pelos autores, só houve a preo-
cupação de traduzir aquilo que permite a sua boa compreensão. Para
cada tipo, outras referências complementares e de cunho mais
operacional (como
características e,
por vezes, até su-
gestão de roteiros
programáticos) po-
dem ser consulta-
das diretamente no
original. Com c in-
tuito de garantir a
qualidade da tradu-
ção, foram solicita-
dos os préstimos
da Prof a . Wanda
Pires Nogueira, do-
cente de Língua In-
glesa do Departa-
mento de Letras do Centro de Ciência Humanas e Sociais da UFMS,
que gentilmente se dispôs a realizá-la. Esta tipologia é voltada mais
para a área educacional.

a.1 - Pesquisa Histórica


Finalidade:

Reconstruir o passado sistemática e objetivamente colecionando, avaliando,


verificando e sintetizando evidências para estabelecer fatos e chegar a con-
clusões defensáveis, freqüentemente em relação a hipóteses particulares.

90
Exemplos:
Um estudo das origens
das práticas de agrupa-
mento nas escolas pri-
m á r i a s nos Estados
Unidos para compreen-
der suas bases no pas-
sado e relevância para
o presente; testar a hi-
pótese de que Francis
Bacon foi o verdadeiro
autor das "obras de
William Shakespeare.

a.2 - Pesquisa Descritiva


Finalidade:
Descrever sistematicamente os fatos e características de uma dada popula-
ção ou área de interesse, de maneira real e correta.

Exemplos:

1. Uma pesquisa de opinião para avaliar o status de pré-eleição das atitudes


do eleitor em relação ao vínculo de eleição escolar.
2. Uma pesquisa comunitária para estabelecer as necessidades de um pro-
grama educacional.
3. Um estudo e definição de todas as posições pessoais num centro de
educação.

4.Um relatório dos resultados de escores de testes num distrito escolar,

a.3 - Pesquisa de Desenvolvimento


Finalidade:

Investigar padrões e seqüência de crescimento e/ou mudança como função


de tempo.
Exemplos:

1. Estudos de cresci-
mento longitudinal me-
dindo d i r e t a m e n t e a
natureza e o índice de
m u d a n ç a s em uma
SJÇÍO ttESO».
amostra das mesmas
-*»••»:. tr, t
crianças em diferentes
estágios de desenvol-
vimento.

2. Estudos de cresci-
mento de grupos re-
presentativos medindo
indiretamente a nature-
za e proporção destas

91
mesmas mudanças e desenhando amostras de diferentes crianças repre-
sentativas de níveis de idade.

3. Estudos de probabilidades destinados a estabelecer padrões de mudan-


ça no passado a fim de predizer padrões ou condições futuras.

a.4 - Pesquisa de Estudo de Caso e de Campo


Finalidade:
Estudar intensiva-
mente a experiência, o
e s t a d o a t u a l e as
interações ambientais
de uma determinada
unidade social: um in-
divíduo, grupo, insti-
tuição ou c o m u n i d a -
de.

Exemplos:
1. Os e s t u d o s de
Piaget do desenvolvi-
mento cognitivo das crianças.
2. Estudo em profundidade de um aluno com dificuldade de aprendizagem
por um psicólogo ou de um estudante, em período probatório, por um assis-
tente social.

3. Estudo intensivo da cultura da cidade do interior e da condições de vida em


ambiente de uma grande metrópole.
4. Estudo de campo exaustivo da vida cultural numa distante reserva indígena
no Sudoeste.

a.5 - Pesquisa Correlata


Finalidade:

Investigar a extensão em que variações de fator correspondem com varia-


ções em um ou mais fatores baseados em coeficientes de correlação.

Exemplos:

1. Um estudo investigando a relação entre a média como sendo o critério


variável e um número de outras variáveis de interesse.
2. Estudo de um fator analítico de vários testes de personalidade.

3. Estudo para prever o sucesso em escola de graduação baseado na


intercorrelação de padrões para variáveis de não-graduados.

a.6 - Pesquisa Comparativo-Casual


Finalidade:

Investigar pos-síveis relações de causa-efeito, observando-se alguma con-


seqüência existente e buscando pesquisar nos dados obtidos plausíveis
fatores causais. Isto contrasta com o método experimental que coleta seus
dados sob condições controladas no presente.

92
Exemplos:

1. Identificar fatores
que caracterizam pes-
soas com altos e bai-
xos índices de aciden-
tes, utilizando dados
dos registros das com-
panhias de seguro.

2.Determinar os atribu-
tos de professores efe-
tivos como definidos,
por exemplo, pela ava-
liação de seu desem-
penho e outros dados
dos arquivos pesso-
ais. D o c u m e n t o s de
professores durante os dez últimos anos são então examinados, comparan-
do-se estes dados à quantidade de freqüência escolar ou a cada um dos
diversos outros fatores.

3. Buscar padrões de comportamento e conclusão associados a diferenças


de idade na época da entrada na escola, usando dados descritivos de com-
portamento e escores de testes nos registros cumulativos de alunos atual-
mente no 6° grau.

a.7 - Verdadeira Pesquisa Experimental


Investigar as possíveis relações de causa-e-efeito expondo um ou mais
grupos experimentais a uma ou mais condições de tratamento e comparar
os resultados a um ou mais grupos de controle que não recebam o trata-
mento.

Exemplos:
1. Investigar os efeitos de dois métodos de ensino de um programa de histó-
ria do 12° grau como função de tamanho de classe (grande e pequena) e de
níveis de inteligência do estudante (alto, médio, baixo), usando a determina-
ção, ao acaso, de professores e alunos por nível de inteligência do método e
tamanho da classe.

2. Investigar os efeitos
de um novo programa
de prevenção ao abu-
so de drogas nas atitu-
des de aluno de 3 o ano
ginasial, usando gru-
pos experimentais e de
controle que estejam
ou não expostos ao
programa, respectiva-
mente, e usando um
plano de pré-teste/pós-
teste no qual apenas a
metade dos estudan-

93
tes receba ao acaso o
pré-teste para determi-
nar o quanto uma mu-
dança de atitude pode
ser atribuída ao pré-
teste ou ao programa
educacional.

3. Investigar os efeitos
dos dois métodos de
avaliação do aluno no
desempenho de crian-
ças em 23 escolas ele-
mentares de um dado
distrito de subúrbio. Neste estudo N seria o número de salas de aula, em vez
de crianças, e o método seria determinado por técnicas estratíficadas ao
acaso de forma que houvesse uma distribuição equilibrada dos dois méto-
dos às salas de aula em diferentes níveis escolares e diferentes localiza-
ções sócio-econômicas de escolas.

a.8 - Pesquisa Quasi-Experimental


Finalidade:
Aproximar as condições do verdadeiro experimento num cenário que não
permita controle e/ou manipulação de todas as variáveis relevantes. O pes-
quisador deve compreender claramente quais compromissos existem na
validade interna e externa de seu projeto e proceder dentro destas limita-
ções.

Exemplos:
1. Investigar os efeitos da prática espaçada versus prática concentrada em
memorizar listas de vocabulário em quatro cursos de língua estrangeira, em
cursos ginasiais, sem ser capaz de determinar que os estudantes recebam
tratamento ao acaso ou de supervisionar bem de perto seus períodos de
prática.
2. Avaliar a eficácia de três métodos para ensinar princípios e conceitos bási-
cos de economia a cri-
anças de um curso pri-
mário, quando alguns
dos professores inad-
vertidamente tiveram
p e r m i s s ã o de optar
por um dos métodos
devido à i m p r e s s ã o
causada pela aparên-
cia dos materiais.

3. Pesquisa educacio-
nal envolvendo plano
de pré-teste e pós-tes-
te em que variáveis tais
como maturidade, efei-
tos do testar, regres-

94
são estatística, desgaste seletivo e estímulo da novidade ou adaptação são
inevitáveis ou desconsideradas.

4. A maioria dos estudos de problemas sociais de delinqüência, tumultos,


vício de fumar ou casos de doença cardíaca, em que o controle e a manipula-
ção não são sempre possíveis.

a.9 - Pesquisa-Ação
Finalidade:

Desenvolver novas habilidades ou novos métodos bem como resolver pro-


blemas com aplicação direta à sala de aula ou ao ambiente de trabalho.

Exemplos: Um programa de treinamento interno para auxiliar e treinar pesso-


as para trabalharem com mais eficácia com crianças de grupos minoritários;
desenvolver um programa exploratório na prevenção de acidentes num curso
de educação para motoristas; para solucionar o problema da apatia em aula
de orientação em determinado curso secundário; testar um novo método
para interessar mais estudantes na escolha de cursos relacionados com a
educação.

Características:
1. Prática e diretamente relevante a uma situação real no mundo do trabalho.
O objeto desta pesquisa são estudantes, funcionários da escola e outros
com os quais você esteja primordialmente envolvido.

2. Fornece uma estrutura ordenada, para a solução de problemas e novos


desenvolvimentos, que é superior ao método impressionista e fragmentário
que costumeiramente caracteriza os desfechos na educação. É também
empírico no sentido de que se baseia em observações reais e dados de
comportamento e não recai sobre 'estudos' de comitês subjetivos ou opini-
ões de pessoas baseadas em suas experiências passadas.

3. Flexível e adaptável, permite mudanças durante o período de experimenta-


ção, sacrificando o controle em favor da reação, experimentação e inovação
imediata.

4. Enquanto tenta ser sistemática, a pesquisa-ação ressente-se da falta de


rigor científico, porque sua validade interna e externa é fraca [...]. Seu objetivo
é situacional, sua
amostragem é restrita
e não representativa e
tem pouco controle so-
bre as variáveis inde-
pendentes.
Por esta razão, as des-
c o b e r t a s , ainda que
úteis d e n t r o das di-
mensões práticas da
situação, não contri-
buem diretamente
para o corpo geral do
conhecimento educa-
cional.

95
b) Propos- ta
de Demo (1985, p.
23-28), em termos
gerais de pesquisa:
b.1 - Pesquisa teóri-
c a : aquela que monta e
t J B í ' desvenda quadros teóri-
cos de referência. Não
f l existe p e s q u i s a pura-
mente teórica, porque já
seria mera especulação.
Mera especulação é a re-
flexão aérea subjetiva, à
revelia da realidade, algo que um colega cientista não poderia refazer ou
controlar.

b.2 - P e s q u i s a m e t o d o l ó g i c a : não se refere diretamente à realidade,


mas aos instrumentos de captação e manipulação dela. Para muitos será
estranho imaginar uma pesquisa metodológica, porque não é usual colocar
as coisas assim. Cremos, no entanto, que é fundamental estabelecer a im-
portância da construção metodológica, porque não há amadurecimento cien-
tífico sem amadurecimento metodológico.

b.3 - Pesquisa empírica: aquela voltada sobretudo para a fase experi-


mental e observável dos fenômenos. É aquela que manipula dados, fatos
concretos. Procura traduzir os resultados em dimensões mensuráveis. Ten-
de a ser quantitativa, na medida do possível.

O grande valor da pesquisa empírica é o de trazer a teoria para a realidade


concreta. Foi muitas vezes abusada, e não há metodologia mais superficial e
medíocre que o empirismo, porque crédulo. Acredita na realidade que observa.
Ora, as coisas mais relevantes da realidade não se manifestam à primeira
vista e sempre há dimensões refratárias à mensuração. Se levarmos em conta
somente o mensurável, ficaremos com o superficial. Mas, se soubermos usar,
a dedicação empírica chega a ser um remédio para as ciências sociais.

b.4 - P e s q u i s a prática: [...] é aquela que se faz através do teste prático de


possíveis idéias ou posi-
ções teóricas. Certamen-
te é uma função da práti-
ca testar se a teoria é fan-
tasia, especulação ou se
é real.

Todavia, a prática tem a


função mais essencial de
representar o lado políti-
co das ciências sociais. Aí,
a própria omissão é uma
prática, porquanto há de
significar o favorecimento
da situação vigente.

96
Seja qual for a dimensão visualizada, a prática também é uma forma de desco-
brir a realidade. Aparece muitas vezes em pessoas que somente sabem pela
prática, já que nunca pararam para teorizar, ou sequer saberiam fazer isto de
forma explícita. No cientista social é a ocasião de descortinar horizontes que
não tinham sido percebidos na teoria ou mesmo surpresas à revelia da teoria.

c) Proposta da OCDE/Manual Frascati (in: BARBIERI, 1990:


57-58), também em termos gerais de pesquisa:
C. 1 - Pesquisa básica: [...] é o trabalho teórico ou experimental empreen-
dido primordialmente para a aquisição de uma nova compreensão dos fun-
damentos subjacentes aos fenômenos e fatos observáveis, sem ter em vista
nenhum uso ou aplicação específicos.

C.2 - Pesquisa aplicada: [.,.] é também investigação original concebida


pelo interesse em adquirir novos conhecimentos. É, entretanto, primordial-
mente dirigida em função de um fim ou objetivo prático ou específico.

c.3 - Desenvolvimento experimental: [...] é o trabalho sistemático, deli-


neado a partir do conhecimento preexistente, obtido através de pesquisa e/
ou experiência prática, e aplicado na produção de novos materiais, produtos
e aparelhagens, no estabelecimento de novos processos, sistemas e servi-
ços, e ainda no substancial aperfeiçoamento dos já produzidos ou estabele-
cidos.

Dois tipos de pesquisa, usualmente muito mencionados, não fo-


ram contemplados em nenhuma das propostas acima: bibliográfica e
participante.
Quanto á pesquisa bibliográfica, duas observações podem ser
feitas: primeira, já se encontra conceituada no item 5.2, letra i; segun-
da, a pesquisa inteiramente bibliográfica só existe, conforme indica a
conceituação, quando toda ela consiste em"[,..] um estudo recapitulativo
de revisão da literatura existente em biblioteca", mas ocorre, no entan-
to, que constitui
parte de qualquer
outro tipo de pes-
quisa, sob a deno-
minação "revisão
de literatura" ou "re-
visão bibliográfica"
ou, ainda, "revisão
documentai", vez
que a identificação
do que já se fez ou
produziu em rela-
ção a qualquer ob-
jeto de pesquisa re-
quer esse tipo de

97
"revisão" (e isso sem falar no indispensável subsídio que a área docu-
mental-bibliográfica presta ao desenvolvimento de análises-sínteses no
decorrer de qualquer pesquisa).
No que respeita à pesquisa participante, muitíssimo citada no
âmbito das ciências sociais, é melhor que a palavra seja dada a Le
Boterf (apud BRANDÃO, 1985, p. 51-52):
Em uma pesquisa tradicional a população pesquisada é considerada passi-
va, enquanto simples reservatório de informações, incapaz de analisar a sua
própria situação e de procurar soluções para seus problemas. Nesse caso,
a pesquisa fica exclusivamente a cargo de "especialistas" (sociólogos, eco-
nomistas, etc.), pois somente estes possuiriam a capacidade de formular os
problemas e de encontrar formas de resolver. Desse modo, os resultados da
pesquisa ficam reservados aos pesquisadores, e a população não é levada
a conhecer tais resultados e menos ainda a discuti-los.

Essas várias características explicam a pouca eficácia que podem alcançar


as medidas decididas a partir de tais pesquisas. De fato, essas medidas
deparam com a resistência da população, que não faz questão de se engajar
num projeto em cuja elaboração ela não teve a possibilidade de participar.

Considerando as limitações da pesquisa tradicional, a pesquisa participante


vai, ao contrário, procurar auxiliar a população envolvida a identificar por si
mesma os seus problemas, a realizar a análise crítica destes e a buscar as
soluções adequadas. Deste modo, a seleção dos problemas a serem estu-
dados emerge da população envolvida, que os discute com especialistas
apropriados, não emergindo apenas de simples decisão dos pesquisado-
res.

Uma outra denominação que aparece com certa freqüência é


"pesquisa exploratória". Em verdade, o próprio termo "exploratório"
já dá a idéia do que consiste essa "pesquisa": procedimento de lei-
tura, consultas, enquetes, etc., prévios e necessários à delimitação
de temas, à formulação de hipóteses fundamentadas (com forte pro-
babilidade de serem demonstradas), à seleção de recursos e ins-
trumentos para os
procedimentos de-
m o n s t r a t i v o s de
hipóteses e assim
por d i a n t e . Nos
meios a c a d ê m i -
cos, em que a mai-
oria das pesquisas
não envolve riscos
e compromissos
maiores (ou seja,
são apenas
"exploratórias"),

98
chega a ser admitido que uma hipótese pode ou não ser comprova-
da, Mas em circunstâncias em que os riscos, os custos e os com-
promissos são elevados, por vezes vitais, não se elabora hipótese
com apenas 50% de chance de demonstração confirmativa; requer-
se, em condições normais, mais do que isso: pelo menos forte pro-
babilidade de demonstração confirmativa. Isso é observado inclusi-
ve nos contratos de risco; imaginem só se uma empresa se dispõe
a investir milhões de dólares na prospecção de petróleo, numa área,
não se respaldar na forte probabilidade de que o mesmo exista ou,
ainda, de que seja possível a sua exploração (seria burrice total ou
"roleta russa" irresponsável). Imaginem, também, se alguém se pro-
põe a arcar com todos os ônus da prospecção mineral de uma área,
sem, antes, ter buscado, de alguma maneira informações sobre a
sua configuração geológica que sinalizem no sentido da forte proba-
bilidade do minério desejado ou de outra forma de resultados com-
pensatórios.

Por aí se enten-
de bem tanto a fun-
ção quanto a impor-
tância da "pesquisa
exploratória" num de-
terminado processo
de pesquisa ou até de
compra e venda de
qualquer coisa de
certo valor.
Para encerrar
este item sobre tipos
de pesquisa, regis-
tra-se a posição ge-
ral que este ensaísta
m UtioviTs»»
tem assumido junto Oft, ^ms** r,
aos principiantes em
matéria conceituai de ÉSJfeta

ciência e tecnologia.
Trata-se apenas de
uma tentativa de
esquematização di-
dática da variada e
quase interminável
lista de denomina-
ções de pesquisa

99
("básica", "aplicada", "teórica", formal", "abstrata", "experimental",
"factual", "empírica", "pura", "fenomenológica", etc., etc.).
Do ponto de vista geral e didático, parece que as coisas podem
começar, de maneira bem mais simplificada, pela identificação, em todo
o universo da pesquisa, de apenas duas grandes categorias: a das
pesquisas abstratas e a das pesquisas experimentais.
Essas duas categorias se configuram peia natureza das pesqui-
sas:
- abstratas (especulativas, teóricas e/ou formais) são aquelas
pesquisas cuja natureza não permite a manipulação ou o contato sen-
sorial, direto ou indireto, do pesquisador com o objeto pesquisado;
- experimentais são aquelas cuja natureza permite a manipula-
ção ou o contato sensorial supramencionado.
Mas ambas
f básicas as categorias se
abstratas desdobram em
apieadas
aplicadas (utilitári-
PesquisaS as, funcionais, etc.)
e básicas (por ve-
básicas
©ípôfimanteía zes ditas puras)
apficâãas em razão da previ-
são de emprego ou
não emprego de suas metodologias e/ou resultados, quando da pro-
gramação e realização das mesmas.

Pelo preconceito apriorístico que se tem contra "abstrato", quem


não leu o Tópico 4 deste trabalho pode ter levado um susto quando se
deparou com a seqüência: pesquisas abstratas aplicadas. Para se
acalmar, basta lembrar-se de que há pesquisas abstratas, extrema-
mente comuns nas áreas da Matemática e da Física (para não "ape-
lar" às das áreas da Filosofia, da Psicologia, etc.), que são aplicadas
sem trégua nos programas nucleares, espaciais, de revolução
informática e em inúmeros outros setores da vida. Não há, portanto,
porque se assustar, basta saber o que é efetivamente abstrato ou
abstração.

Isso posto, fica fácil entender, também, que há pesquisas experi-


mentais básicas, ou seja, para as quais não se prevê nenhuma finali-
dade pragmática ao longo pelo menos de sua concepção programática,
visto que a pesquisa se torna aplicada (mesmo se iniciando como bá-
sica) exatamente no momento em que se lhe descobre e destina um
objetivo ou papel pragmático.

100
Ademais, esse tipo de esquematização didática não contrariaria
as classificações já referidas e outras existentes, bem como as que
ainda vierem a ser propostas. Apenas as agrupa, resgatando o real
sentido de abstrato, para efeito de mais rápida e melhor visão geral do
conjunto.

DICAS AOS INDECISOS

Conversemos diretamente agora. Se você está lendo isto, é por-


que não está tão indeciso assim. Você está procurando algum apoio
para se decidir de vez ou para ajudar um colega ou amigo a transpor o
muro da indecisão.
Pois bem, são quatro as recomendações: arrisque-se, exerci-
te-se, programe-se e nunca pare de produzir.
ARRiSQUE-SE
Deixe de lado aquela conversa de que "eu não sou capaz", "eu
sou da roça", "eu fiz curso noturno", "eu trabalho pra viver", "isto é muito
complicado", "eu invejo quem sabe", "...se eu tivesse recursos...", "...um
dia, quem sabe...", e todas as outras "justificativas" que você acaba de
lembrar.
Para você, para
todos nós, a entrada e
a caminhada no mun-
do da pesquisa e da
ciência só dependem
de duas coisas: a) de
tudo o que está aí,
acontecendo no infini-
to universo da nature-
za que você respira, aspira, toca, vê, pisa, come, compra, faz, omite,
discute, respeita, teme, aceita, rejeita, reivindica, conhece, desconhe-
ce, tem vontade de conhecer, gostaria de realizar, gostaria que outros
realizassem; b) de tudo o que está aqui (em você), os seus sentidos, o
seu sistema neuronal, o seu rico cérebro, a sua inteligência potencial-
mente ilimitada, a sua memória disponível, a sua capacidade de querer
alguma coisa, a possibilidade de você se exercitar para realizar muito
do que pretende, os problemas até de sobrevivência que você tem que

101
resolver, o apoio de
alguém com quem frjj HfiLL&l
você convive, a po-
bre biblioteca mas à
sua disposição, a
sua própria existên-
cia dependente de
outras que também
dela dependem.
Essa cami-
nhada tem ou terá
um começo, mas
os seus meios e
fim só dependerão de você. Tire da cabeça essa estória de que você
não faz porque os outros não deixam. Se o problema é o da falta de
tempo e recursos, "pesquise" para conquistá-los com criatividade, dig-
nidade e contribuindo para sua realização, para o bem de todos e de-
senvolvimento da nação.
Não pense que você deve partir de onde estão as celebridades
científicas. Elas estão aqui, hoje, porque partiram anteontem do ponto
em que você se encontra agora.
É, foi e será sempre assim que se chegará lá. Não há exceções
e muito menos você será uma delas. Até o superdotado passa por isso.
Só que nem sempre o superdotado é aquele que tem mais dotes. Pode
ser também aquele que exercita e aproveita mais e melhor os dotes
que tem. Se todos nós utilizássemos mais de 4% de nossa capacida-
de intelectivo-neuronal, além de superdotados seríamos super-
desenvolvidos, pois "[...] o ser humano não utiliza mais de 2 ou 3% de
sua capacidade ce-
rebral" (LIMA, 1971,
p. 47).
Perca o me-
do de fundamentar
e documentar suas
idéias. É claro que
você ficará exposto
a críticas. Mas é
claro também que
suas idéias e seus
achados documen-
tados servirão de

102
"lance mínimo" à
"indução de partos"
de novas idéias e
novos achados por
outros, não importa
se com a finalidade
de lhe aplaudir ou
contrariar.

Respeite a
tudo e a todos, mas
não cultive a depen-
dência como ca-
muflagem à
autocobrança contra a mediocridade. Se você não se dispuser a cres-
cer, ninguém terá como lhe ajudar. Se você se dispuser a crescer, não
crescerá só, outros lhe acompanharão.

EXERCITE-SE
O segundo passo rumo à pesquisa é o da disponibilidade para
exercitação. E o terceiro são as próprias exercitações. De quê? - De
duas coisas: análise interpretativa e habilidade de comunicação es-
crita.
Essas duas coisas são fundamentais. Mas se você é fraco em
ambas, não se desanime. É só começar a exercitá-las, e já. Se for
capaz de redigir a análise de um fato qualquer a cada quatro dias, che-
gará ao fim do primeiro ano com 91 exercícios, ao fim do segundo com
182 e ao fim do terceiro com 273. Se você começar já, os três anos
passarão sem você sentir. Se você não começar, os anos passarão
mas você sentirá a
falta dos exercícios.
E mais, ao final de
alguns meses de
exercícios sistemá-
ticos, você será ca-
paz de produzir em
poucas horas o
equivalente ao con-
seguido com muito
esforço nos quatro
dias da fase inicial.
Em conseqüência,

103
você poderá multiplicar, ao invés de somar, os resultados dos exercíci-
os em termos tanto de quantidade como de qualidade. Tudo depende
de você iniciar e perseverar.

PROGRAME-SE
Há subsídios metodológicos que ajudam muito nos exercícios ana-
líticos. Nunca comece um trabalho de análise mental ou escrita sem,
antes, programar as trilhas ou os caminhos que pretende seguir. Suge-
re-se, para tanto, que ramifique as trilhas ou caminhos em três dire-
ções: a) para o entendimento por dentro do próprio fato; b) para a am-
pliação desse entendimento pela comparação do que se pretende ana-
lisar desse fato com o que já foi ou está sendo analisado de outros
idênticos, semelhantes ou contrários; c) para a formulação de sínteses
indicativas do que efetivamente se entendeu pelas análises e de como
proceder com relação ao que foi entendido.

Em terminologia técnica, as mencionadas direções são: a) a da


análise diagnostica, que objetiva o conhecimento por dentro do objeto
('diá = através de + gnôsis - conhecimento, do grego antigo), indo dos
efeitos ou sintomas exteriores às causas profundas; b) a da análise
comparativa, que auxilia o conhecimento diagnóstico pela confronta-
ção de sintomas e causas do objeto da análise com sintomas e cau-
sas de outros objetos já analisados; c) análise prognostica, aquela que
viabiliza a formulação das sínteses resultantes das análises anterio-
res, indicativas ou precursoras (prógonos = precursor no grego) de
iniciativas ou medidas a serem tomadas como próximo passo.

Desenvolva a saudável mania de analisar e sintetizar, para efeito


de conhecimento, todo e qualquer objeto ou fenômeno com que se de-
pare, m e s m o no
cotidiano das con-
versas, dos estu-
dos, do trabalho, da
família, da política,
etc. Evite aceitar ou
rejeitar uma coisa
sem antes procurar
entendê-la ao máxi-
mo, analisando-a
ou decompondo-a,
diagnostica e com-
parativamente, e
sintetizando-a ou

104
recompondo-a
prognosticamente. U mm% 7
m. m
m m m 5>&-wib! N»<
Logo que vo-
mm m*mml m-
cê achar conveni-
ente, poderá dar
' f i i i w A m mtm §
um passo mais ar- wm0 m:imm m %m
rojado e formai, ode E*M*xt»*» m
começar a desen- r
volver o que cos-
tumo denominar
PROGRAMAÇÃO
RESTRITA AO Dl-
MENSIONAMENTO
ESSENCIAL DA PESQUISA, que implica:

a) Caracterização e delimitação do problema da pesquisa.


Trata-se, em síntese, da identificação, contextuaiização e formu-
lação do problema para o qual se procurará resposta ou solução atra-
vés da pesquisa pretendida.
b) Formulação da(s) hipótese(s).
Hipótese é resposta ou solução programada (portanto ainda pré-
via, provável e sujeita à comprovação ou demonstração) ao problema
da pesquisa (sobre o qual se falou acima).
Não confundir, todavia, hipótese de pesquisa com raciocínio hi-
potético ou com probabilidade sem compromisso. É resposta ou solu-
ção compromissada (portanto fundamentada na teoria científica que
lhe concerne e, quando a teoria científica for deficitária, respaldada por
s o n d a g e n s e/ou
testes de "pesquisa
exploratória"). Teo-
ria científica é o
acervo de conheci-
mentos já produzi-
dos sobre uma ma-
téria, objeto ou fe-
nômeno.

Não se pode
investir (tempo, cré-
dito, dinheiro, etc.)
na busca de solu-
ção ou r e s p o s t a

105
que poderá ou não
ser confirmada.
Deve-se investir,
sim, em hipóte-
s e ^ ) com forte pro-
babilidade de confir-
mação (já vimos
isso antes).

c) Indicação de variáveis
Deixando de lado detalhes técnicos (variável dependente, inde-
pendente, interveniente, etc.), variáveis são os caminhos estratégicos
em torno dos quais se concentrarão, dinamizarão e organizarão da-
dos, informações, análises e provas necessárias à demonstração ci-
entífica de qualquer hipótese formulada. Exemplos:
- na área demográfica: sexo, idade, distribuição, concentração,
migração, etc.;
- na área econômica: salário, renda, vencimento, poder aquisiti-
vo, PIB, PNB, renda per capita, etc.;
- na área educacional: aprovação, reprovação, evasão, repetência,
nível de escolaridade, etc.;
- na área da saúde: nutrição, incidência de determinada moléstia,
leitos hospitalares, atendimento médico, exames laboratoriais, etc.;
- e assim por diante.
d) Previsão de procedimentos
A organização e o processamento de dados, informações, análi-
ses e provas referentes a cada hipótese exigem também prévia e deta-
lhada programação de todas as ações ou operações que garantirão a
efetiva concretização da demonstração científica da(s) hipótese(s), atra-
vés dos "caminhos estratégicos" (variáveis) adotados.
Nota: Por vezes, o projeto de pesquisa se limita à citada Progra-
mação Restrita ao Dimensionamento Essencial da Pesquisa, sobretu-
do na área acadêmica ou quando a sua realização não depende subs-
tancialmente da decisão de terceiros, isto é, não está sujeita a rigoroso
controle externo. Mas há também muitos casos em que a pesquisa
tem de ser programada no âmbito de um projeto completo. Vamos dei-
xar essa coisa do projeto completo para uma outra ocasião, senão a
conversa ficará muito comprida e você começará a se desanimar.

106
NAO PARE DE PRODUZIR
Se você achou os
subsídios metodoló-
gicos complicados de-
mais e conhece ou tem
orientações melhores,
não pare de querer pro-
duzir. Aliás, não pare de
produzir inclusive por
nenhuma outra razão:
nem por preguiça, nem
por falta de tempo, nem
por falta de dinheiro,
nem porque ficou sen-
sibilizado com a comis-
são que podou a sua ' -
proposta... nem por nada.
Atrás de um bom produto se encontra algum esforço, algum tra-
balho de pesquisa, não importa se mais ou menos formal, mais ou
menos técnico. E isto é mii vezes melhor que a frustração, a incompe-
tência e a mediocridade.
Além do mais, e ao contrário do que muitos pensam, o trabalho
científico é extremamente criativo. Se o pesquisador/cientista cria, des-
cobre, reformula, etc., por que justo você deveria copiar tudo? - Pois
crie, invente e recrie também, inclusive ou sobretudo na área
metodológica. Etimoiogicamente, já vimos, metodologia significa estu-
dar e/ou pesquisar caminhos para se conhecer o que não foi conheci-
do, o que se situa além do já conhecido (metá = além + odós = cami-
nho + logía = estudo, pesquisa).

107
A PESQUISA NA
DINAMIZAÇÃO
DA VIDA
Não é sem discussão que se aceita a essencialidade da vinculação
da pesquisa à vida humana e, por extensão, a todo o universo da vida
no planeta. Já de início emerge fundamental questionamento: como
relacionar necessariamente pesquisa e vida humana, se esta surgiu e
se desenvolveu ao longo de milhares de anos sem sequer a existência
daquela?
Do prisma histórico, a pesquisa tem sido considerada um fenô-
meno inseparável da ciência, caracterizando-se, em conseqüência,
como produto e recurso bastante recente da vida humana. Nessa linha
de raciocínio, parece ter sentido a segunda parte da questão: a vida
humana se desenvolveu ao longo de milhares de anos sem sequer a
existência da pesquisa.
Ocorre, porém, que essa discussão toma outro rumo se orienta-
da para a retros-
pecção no sentido
de que a própria
pesquisa (entendida
como amplo e con-
tínuo processo de
busca e produção
de conhecimentos)
tenha sido exata-
mente o r e c u r s o
que a mente huma-
na criou e desenvol-
veu ou desenvolveu &

111
criando para subsistir-evoluindo ao longo de milhares de anos, sendo a
pesquisa científica apenas a forma mais elaborada dentre as
diversificadas maneiras de dinamização desse permanente processo
de busca, adaptação e produção de conhecimentos no decurso da his-
tória coletiva e pessoal.

A PESQUISA NA
6.1 CONQUISTA DA VIDA

Analisou-se longa e tanto quanto possível densamente no Tópico


4, anterior, a dinâmica do processo natural de formulação espansivo-
evolutiva do conhecimento, concluindo-se, no item 4.3.6, que pesquisa
(mesmo na sua acepção científica usual) é
[...] o recurso sistemático de geração, ampliação e redimensionamento do
conhecimento que reproduz artificial ou provocadamente a metodologia natu-
ral de que a mente humana se vale para desenvolver o processo de formula-
ção e dinamização do conhecimento [ou, ainda] é pela pesquisa que a mente
humana estende as suas condições de conhecer aos fenômenos que
extrapolam os limites naturais de alcance dos seus sentidos e das suas
faculdades inatas de apreender, ajuizar e raciocinar de forma contínua e pro-
gressivamente expansivo-evolutiva.

Com relação a essa conceituação, importa observar duas coi-


sas: primeira, a pesquisa é um recurso da mente humana; segunda, é
um recurso criado pela própria mente humana (sobre o que já se falou
no item 4.2.2 c) no decorrer da evolução das capacidades individuais e
coletivas da espécie.
Não consta, até prova em contrário, que a mente humana te-
nha recebido ou "pirateado", de algum extraterreno, um "software"
de como pes-
quisar, de co-
mo e s t e n d e r
artificialmente
as suas condi-
ções naturais
de conhecer.
Opostamente,
estudos antro-
pológicos, ar-
queológicos,
filosóficos, bio-

112
lógicos, históricos,
f S P W
tom m ft*» » físicos, químicos,
«•
etc., vêm mostran-
do, pouco a pouco,
que tanto a vida
quanto este ser
humano que co-
n h e c e m o s são,
agora, apenas es-
tágios-produtos de
lenta, paciente e
contínua evolução.
. . , c AFMSJífiíe 4WSK& Sal DM.a?» 6 *''"
Mesmo a ex-
traordinária capacidade de multiplicação de conhecimentos e tecnolo-
gias dos dias atuais é resultado dessa paciente evolução. Basta ob-
servar, por exemplo, que a velocidade quase instantânea da comu-
nicação hoje, e envolvendo grande parte da população da terra, não
ultrapassou os 17 km/h até o início da segunda metade do século
XIX.
Durante milênios, a comunicação iimitou-se à velocidade e ao
alcance dos mensageiros a cavalo (inclusive diligências), dos bar-
cos a vela e dos primeiros trens (primeira linha, Liverpool-
Manchester, inaugurada em 1830). Progrediu, logo após, em duas
direções: a do transporte de passageiros, cargas e notícias (expan-
são e melhoria das linha férreas e das outras embarcações a vapor
em toda a segunda metade do século XIX, bem como aproveita-
mento em escala do automóvel e do avião já nos primeiros anos do
século XX); e, simultaneamente, a das telecomunicações (embora
limitada, em ter-
mos de abran- . f~\ J
gência, mas já [ |
quase instantâ- \ \ ]
nea) de mensa-
gens e notícias
com o uso do telé- tf/'jAXX \ A \
grafo, por Morse, -- \
em 1844, do tele- j ^ ^ ^ S f ^ * j
fone, por Graham f *
Bell, em 1876 e da V-- -
radiotelegrafia ^^^
sem fio (rádio), por / /
Marconi, em 1897. f

113
Com o aperfeiçoamento das fontes geradoras de energia elé-
trica, a partir das duas últimas décadas do séc. XIX até hoje, a
comunicação se sofisticou e diversificou tanto (circuitos, por saté-
lites, de TVs, computadores, FAX, telefonia, Internet, etc.) que, além
de quase instantânea, tornou possível realizar a integração tam-
bém quase simultânea de praticamente todas as populações dos
cinco continentes terrestres.

Todos esses enormes avanços científicos e tecnológicos são


historicamente recentíssimos, mas passam aos que deles só usufru-
em, sobretudo adolescentes e jovens (até a maioria dos que nasce-
ram a partir da década de 50, em pleno início da era espacial), a im-
pressão de que tudo se fez de um dia para o outro e com o suporte da
ciência e da tecnologia, como se elas constituíssem um fenômeno ou
milagre a parte da própria evolução milenar do conhecimento e da
vida humana.
Na verdade, o ser humano teve que pesquisar ou procurar "apren-
dera aprender" (expressão enfatizada por DEMO, 1990a) ao longo de
toda a sua história (rever o caso da evolução da lança primitiva à ogiva
nuclear no item 4.1.1), tomando como referência de partida situações
instintivas, a exemplo da mencionada, visto que, segundo Lima (1970,
p. 148),
O instinto é a lógica da anatomia e da fisiologia. A anatomia e a fisiologia
humana são plásticas (aprendem). O homem não vem programado. Os es-
quemas hereditários do homem não são especializados. É na relação com
os demais que adquire suas qualidades humanas. O homem tende a assi-
milar o meio. Nesta atividade: ou modifica o meio (faz cultura), ou se modifica
(aprende) [...].

Ainda no que se refere à dinâmica da permanente construção ou


conquista da vida, Marías (1966, p. 200) vai mais longe:"[...] a vida me
é dada, não me é dada feita mas pelo contrário me é dada por fazer, me
é dada como quefazer ou tarefa [...] que eu tenho que fazer aqui e ago-
ra [...]".
Para Marías, a vida que"[...] me é dada como quefazer [...]" não é
uma "tarefa" a ser feita só pelo ser humano enquanto espécie ou cate-
goria histórica, geral e coletiva. Eu, você, João, Maria, Manoel, Elisa,
Antônio, Flávia, Francisco, Marlene, etc. etc., recebemos (cada um re-
cebeu) ou ganhamos a vida como alguém que herda a infra-estrutura,
a planta geral e até os recursos básicos para construção e manuten-
ção do complexo edifício da vida. Como, quando, com quê e para quê
efetivamente edificar são questões cujas respostas couberam, cabem
e caberão ao ser humano como espécie e a cada um de nós enquanto
indivíduo-pessoa pesquisar e viabilizar.

114
A PESQUISA COMO FATOR DE
6.2 REALIZAÇÃO COLETIVA

Ocorre, no
entanto, que nin-
guém está sozinho
nessa busca ou
pesquisa de solu-
ções e viabilidade.
Todos nós temos a
mesma "tarefa" que
é a de encontrar-
mos os caminhos e
meios para cons-
truirmos a vida que
nos é dada apenas
como algo "que-
fazer". Todos podemos nos ajudar, mas não sem esforço simultanea-
mente pessoal e coletivo. Por isso é que existem família, educação,
escola, universidade, bem como vasta e variada gama de outros meios
auxiliares ao desenvolvimento da vida coletiva e individual. Mas são
apenas meios auxiliares, ou seja, jamais substituem a pesquisa pró-
pria: de cada pessoa, de cada família, de cada grupo ou de cada na-
ção. O esforço pessoal e coletivo é necessário, tendo em vista que o
ser humano é essencialmente gregário mas apenas perifericamente
solidário. Aessencialidade gregária lhe é conferida pelo instinto de pre-
servação, e autoconservação da espécie, ao passo que a solidarieda-
de se lhe afigura como fenômeno residual, resultante da intuição (em
estado mais primitivo) e do raciocínio analítico (em estágios mais avan-
çados), sobre a necessidade e/ou conveniência de se estender aos
"outros" aquilo que extrapola pelo menos os limites mínimos da
autopreservação individual. Se a solidariedade estivesse gravada ins-
tintivamente em cada um de nós, inexistiriam religiões, entidades filan-
trópicas, instituições judiciárias e as próprias ideologias que a pregam
e promovem, sob as denominações amor e justiça. Inexistiriam a insti-
tuição política e tantas outras, dentre as quais inclusive aquelas que se
aproveitam da carência de solidariedade (ou falta de amor e justiça)
para sua ilegítima e, por vezes, injusta autopromoção.

Já a gregariedade é impulsiva diante de qualquer ameaça ou até


interesse de autopreservação: vários se unem, quando se trata de união

115
voluntária ou instin-
tiva, mas cada um
com o objetivo ou
impulso de se pre-
servar. Exemplo
bem típico de um
fenômeno de
gregariedade vo-
luntária sem solida-
riedade foi dado por uma brasileira, residente no Kwait, quando entre-
vistada sobre as razões da Guerra do Golfo Pérsico. Reproduzindo, o
que ela disse foi mais ou menos isto: "eu sou contra o meu irmão; mas
eu e meu irmão somos contra o nosso vizinho; mas eu, meu irmão e
nosso vizinho somos contra o estranho do bairro; e assim por diante;
eles pensam dessa forma".

A gregariedade sem solidariedade foi sempre a "razão" de todas


as guerras, de todos os conflitos, de todos os desentendimentos, de
todos os descalabros ecológicos e do próprio subdesenvolvimento,
caracterizado pela exploração de uns (pessoas ou países) para man-
ter a riqueza e o bem-estar de outros. Visto sob esse prisma, o subde-
senvolvimento é, também, um descalabro ecológico.
Mas se a solidariedade é objetivada por nós, intuitiva e/ou analiti-
camente, ela também é um elemento, uma faceta da vida, que nos é
dada como algo "quefazer", inclusive coletivamente. Só que, nesse caso,
deverá haver gregariedade com solidariedade, de forma que a agrega-
ção se faça não só com vistas à autopreservação individual mas, e
sobretudo, em função da reunião de forças, da soma de fragmentos e
da multiplicação da competência para se atingirem objetivos coletivos,
em termos de grupos sociais e de nação.
ingênuo, tolo ou mal-intencionado é quem pensa que os países
ricos nos desenvolverão um dia e por mera solidariedade. Pode ser até
que nos "cultivem"
para que a "fonte"
não se seque de
vez. Para compre-
ender isso, basta
observar a nature-
za. Fique-se debai-
xo de uma laranjei-
ra cheia de pulgões
e procure-se verifi-
car com atenção o

116
que se passa. Os pulgões são, na verdade, um campo de cultivo de
formigas doceiras grandes e miúdas. Elas os "cultivam" para sugarem
as suas secreções adocicadas. Portanto, as formigas jamais "quere-
riam" que os pulgões se acabassem, como também jamais "permitiri-
am" que deixassem de ser pulgões. O que fazem é alimentá-los sem-
pre para que excretem também cada vez mais. O que "interessa" às
formigas, em última análise, é a autopreservação e o bem-estar delas
mesmas e não a vida e a comodidade dos pulgões.
Pois é, se quisermos, como nação, fugir da condição de "roça de
pulgões", temos que buscar e encontrar as saídas e isso se faz com
pesquisa que gere conhecimentos; que avolume e diversifique ciência,
tecnologia e bem-estar; que nos torne sujeitos de nosso desenvolvi-
mento, o qual também está aí como algo "quefazer".
No que respeita especificamente ao caso do desenvolvimento
brasileiro, Kujawski (1991, p. 203-4) ressalta com absoluta proprie-
dade que:
O princípio responsável pela crise não está na economia, mas na vida e na
História do h o m e m brasileiro c o n t e m p o r â n e o ; está na p e r p l e x i d a d e
hamletiana de não saber o que fazer. A desordem política e a subversão
moral não passam de desdobramento dessa mesma perplexidade vital: não
saber o que fazer. Eis aí por que vamos tão mal. Não por culpa da economia,
da política ou da moralidade, e sim porque estamos em crise, perplexos e
faltos de rumos em nossa vida mesma, em nossa capacidade de projeção
na História. Tão faltos de rumos, que alguns já não querem andar, desconhe-
cendo a sábia lição do poeta espanhol Antonio Machado: "Caminhante, não
há caminho. O caminho se faz ao caminhar".

Caminhar juntos, solidários, pesquisando e fazendo o nosso


próprio caminho é, efetivamente, o ponto vital da realização coletivo-
nacional de todos os países que realmente querem se desenvolver.
Vale registrar, nesse sentido, mais uma lição das formigas, agora
daquelas minúsculas e aparentemente incapazes de caçarem uma
mosca, um besouro ou até outra formiga grande. A questão é que
caçam, em trabalho conjunto, evidentemente. Primeiro, sondam o
besouro. Depois, após várias investidas, uma se agarra numa per-
na traseira do animal, enrolando-se nela. O besouro perde o equilí-
brio e, incomodado, começa a girar nervosamente (mas a formigui-
nha continua lá). Tão logo o animal se cansa, uma segunda formi-
guinha investe contra a outra perna traseira e o besouro não tem
mais domínio de si. Em seguida, outras formigas se agarram nas
que se encontram enroladas, formando uma corrente de formigas
em cada perna. Assim, cada corrente se estriba por lados opostos,
de forma que o besouro se imobiliza e o bando todo o ataca sem
maiores dificuldades.

117
Se até as for-
miguinhas "pesqui-
sam" e encontram
os meios instintivos
para imobilizarem
o grande besouro,
por que é que não
seríamos capazes
de buscar e en-
contrar os meios
para, como nação,
dominarmos o
"monstro" do sub-
desenvolvimento? - E uma das "pernas estratégicas" do "monstro" do
subdesenvolvimento, que devemos "agarrar" de imediato, é a da pes-
quisa. Isso, porque o desenvolvimento é gerado e operacionalizado
pela ativação, articulada e intercomplementar, de três mecanismos
fundamentalmente estratégicos da atualidade: a pesquisa, a ciência
e a tecnologia. Através da pesquisa se chega à ciência, pela
metabolização do conhecimento alienígena e produção do próprio (por
criação e adequação), e a tecnologia tanto decorre como alimenta a
pesquisa e a ciência.

Hoje, ao contrário de décadas atrás, pesquisa-ciência-tec-


nologia constituem os principais pontos nevrálgicos de avaliação
sobre a situação de desenvolvimento ou subdesenvolvimento de
países e povos. Antes, eram "renda per capita", "estoque de ouro",
"reserva de divisas", "capacidade industrial instalada", etc., pratica-
mente todos os indicadores prioritariamente relacionados com o vo-
lume e a diversificação da produção econômica efetiva. Na atualida-
de, avalia-se a capacidade potencial e instalada de pesquisa-ciên-
cia-tecnologia para se diversificar, avolumar, adaptar, criar, etc., tanto
na área econômica quanto em todas as demais que compõem o
universo da vida: áreas social, cultural, educacional, esportiva e as-
sim por diante.
A pesquisa é porta e caminho à conquista da vida tanto para
coletividades como para pessoas individualizadas (fato este reiterado
no próximo item), que assumem o desafio de se tornarem sujeitos de
sua própria realização histórica. É a saída para a situação crítica bra-
sileira, denunciada na citação de Kujawski, aquela do não sabermos
o que fazer ou de estarmos "[...] em crise, perplexos e faltos de ru-
mos em nossa vida mesma, em nossa capacidade de projeção na
História".

118
A PESQUISA COMO FATOR DE
6.3 REALIZAÇÃO PROFISSIONAL E
PESSOAL

Tem sido cu-


rioso, e de certa
maneira tristemen-
te grotesco, seguir
os passos de uma
pessoa, em nosso
meio, no período
compreendido en-
tre as últimas sé-
ries do ensino fun-
damental até a apo-
s e n t a d o r i a , pas-
sando pela univer-
sidade (ou qualquer curso superior). Esse período compreende fases
de expectativas e realidades que se sucedem até a sonhada aposen-
tadoria:

a) - No final do ensino fundamental, quando o adolescente come-


ça a vislumbrar os atrativos da vida, joga-se duro para se chegar ao
ensino médio. Há famílias que não podem, como as de classe média
baixa, mas suportam qualquer sacrifício para investirem no filho.
b) - Durante o ensino médio, o jogo endurece ainda mais, depen-
dendo das pretensões universitárias e do gargalo do concurso vestibu-
lar para os chamados cursos "nobres".
c) - Ao entrar na universidade, os sonhos de uma vida universitá-
ria "à ilha da fanta-
sia" cedem lugar a
um sem número de
reclamações: pro-
fessores fracos, fal-
ta de laboratórios e
de equipamento, bi-
blioteca deficitária,
aulas monótonas,
inexistência de con-
dições de pesquisa,
etc., etc..

119
d) - Ao chegar à segunda metade do curso, a sonhada universi-
dade se torna insuportável. A ansiedade pelo diploma (para muitos a
única razão de continuarem até o fim) transforma a vida universitária
numa chatice. E o que passa a importar freneticamente é a expectativa
do consultório, da
clínica, do escritó-
rio, do exercício téc-
nico, da profissão
rendosa, da ascen-
são econômica, do
lazer sofisticado, da
"posse do mundo".

e) - Findo o
curso universitário,
inicia-se o embate
no mercado de tra-
balho (exceção feita aos privilegiados que recebem escritório, clínica,
direção de empresas e outros, com respectivas clientelas, de herança
familiar ou por apadrinhamento). No jogo da pechincha de mercado,
baixam-se os níveis de pretensão até se chegar ao possível, mesmo
que não "ideal".

f) - Começa-se a luta profissional, sempre em busca de "algo


melhor". Mas, nos primeiros meses e anos, tudo bem: "no mínimo se
adquire experiência" para emprego melhor e mais rendoso. Com base
no ganho real e na expectativa de melhora, compram-se (quase sem-
pre a crédito) carro, casa e o mobiliário mínimo, pelo menos, para o
começo da nova moradia. Aí vêm os problemas: o tempo de "experi-
ência" se estica, o patrão, agora mais familiarizado, "pede" mais, o
colega "incompetente ganha mais que eu", "só fico aqui por mais al-
gum tempo", e as-
sim se vai. 6 &.MAâMh |
yf*V « N S A R NlWWWW l
g) - Passa- <j ^vmdm*, , i
dos quinze ou vin- vtnoMí«At tmênmí
te anos de traba- -\ - £ m& i s t o _ l

lho, o élan profis-


sional vai cedendo
lugar à ânsia pela
aposentadoria. A
cada ano que pas-
sa, o espectro da
aposentadoria se
amplia e se confi-

120
gura com mais ni-
tidez. Mais um pou-
co, e a idéia da
aposentadoria vira
obsessão. Agora é
o trabalho, a profis-
são que ficam in-
suportáveis.

h) - Vem a
aposentadoria. No
começo, tudo
6 6: UfmtÊÊÊm » ^Pêsmtvfmwma* bem (como sem-
pre). Passado al-
gum tempo, a
aposentadoria
não pode ser go-
zada, porque os
proventos são in-
s u f i c i e n t e s para
as despesas, e a
solução é o
reingresso no mercado de trabalho, que faz restrição ao aposenta-
do (a menos que seja bom profissional de verdade e a empresa
precise dele). Mesmo assim, resta frustração de não poder usufruir
da aposentadoria.

i) - Vem, de novo, a aposentadoria: compulsória ou pleiteada. E


novos problemas surgem, dentre eles se destacando o complexo de
inutilidade, de abandono, de isolamento. E isso sem falar nas perdas
de "status", como ocorre com muitos juizes, médicos, promotores, po-
líticos de carreira,
diretores e execu-
tivos de grandes fir-
mas, oficiais milita-
res e t o d o s que
hajam se elevado
no reconhecimen-
to público pelo mé-
rito próprio ou "res-
peito" ao cargo e à
profissão, sem se
prepararem psico-
lógica e existen-
cialmente para se
aposentarem. Há
honrosas exce-
ções, mas a ima-
gem que mais
vem se associan-
do ao aposentado
de fato é a da ocio-
sidade e frustração
em casa (onde "só
atrapalha", se ho-
mem) e no banco
da praça, onde se
suicida existencialmente.
j) - Em síntese: estuda-se para trabalhar, trabalha-se para se apo-
sentar e aposenta-se para se frustrar. Eis porque essa trajetória é ao
mesmo tempo triste e grotesca.
Pela lógica, tudo isso deveria ser bem diferente: a) estudar
para se capacitar: desenvolver mentalidade, adquirir embasamento,
projetar teorias de futuro, exercitar-se em análises-sínteses
interpretativas, desenvolver habilidades de comunicação de idéias
próprias (oralmente, por escrito e artisticamente, conforme o caso),
iniciar-se em determinada profissão; b) trabalhar para: produzir, cri-
ar, servir, redimensionar, redimensionar-se, contribuir, realizar-se pes-
soal e profissionalmente; c) aposentar-se para: descansar-se do jugo
do trabalho compulsório, sistematizar (analisar, escrever e divulgar),
com criatividade, experiências amadurecidas prazerosa ou doloro-
samente ao logo de trinta, quarenta ou mais anos de trabalho, não
importando se como empregado, patrão, dono da própria iniciativa
ou profissional liberal.

A máxima de que o trabalho dignifica o ser humano continua


com sua validade. Mas o que se vem observando no mundo subde-
senvolvido é que a maioria das populações da terra não se dá ao
luxo de trabalhar para se dignificar, pelo fato de ter que trabalhar
apenas para sobreviver: morre de trabalhar, trabalhando. Até os que
ganham com isso morrem trabalhando para que outros trabalhem
mais e ganhem menos. Tanto para uns (em esmagadora maioria)
como para outros (em minoria absoluta) o trabalho já virou obses-
são. E, mesmo assim, poder-se-á observar que já houve épocas
piores, as da escravatura e do trabalho proletário rural. Talvez seja
até uma espécie de "consolo histórico" constatar que as massas,

122
hoje, podem ter a obsessão do trabalho pela subsistência, vez que
o trabalho escravagista e proletário se fazia apenas sob o jugo da
subserviência e opressão.
O fato é que o mundo do trabalho a todos mais sufoca que
dignifica, porque leva o ser humano a olhar só o que faz, no deses-
pero de fazer mais para subsistir melhor ou para simplesmente ter
mais. E isto não ocorre por "culpa" do trabalho, é conseqüência da
própria visão e postura do ser humano em relação ao trabalho, uma
de suas criações ao longo da história de sua evolução. Na condição
de autor e ator do trabalho, compete ao ser humano redimensioná-
lo sem extingui-lo.
Teorias e tentativas nessa área vêm sendo formuladas e en-
saiadas, dentre as quais se destaca a doutrina marxista, formulada
por Marx e Engels no curso do séc. XIX (sobretudo a partir do Mani-
festo do Partido Comunista em 1848 e da publicação de O Capital
de Marx, por Engels, em 1867). A Organização Internacional do Tra-
balho - OIT foi criada em 1919 pelo Tratado de Versailles, depois
anexada (em 1946) à Organização das Nações Unidas - ONU. É
uma entidade especializada que reúne representações de gover-
nos, empregadores e empregados dos países associados. A par da
OIT, existem em quase todos os países do mundo complexas estru-
turas administrativas e volumosos corpos de leis concernentes a
questões do trabalho.
Mesmo assim, o trabalho, enquanto instituição humana, conti-
nua a desafiar propostas e posturas no sentido de que deixe de ser
instrumento de opressão para se tornar meio de libertação e realiza-
ção.
Segundo Pieper (1968:5-18), há na própria rotina da vida alguns
"abalos" que per-
mitem ao ser hu-
mano transcender
o mundo do traba-
lho. São esses
"abalos" que levam
o homem a filoso-
far, a rezar, a amar,
a temer a morte, e
a se elevar pela
contemplação da
arte, ou seja, por
esses "abalos"

123
"[...] o homem experimenta a limitação deste mundo das ocupações
diárias; ele as transcende e ultrapassa".
A posição de Pieper faz sentido, em termos gerais e para a fina-
lidade a que se propôs (a de analisar as questões "que é filosofar, que
é acadêmico?"), mas deixa a impressão de que filosofar, amar, rezar,
etc., representam a transcendência do homem em relação ao mundo
do trabalho e não a transcendência do próprio mundo do trabalho. Nes-
se caso, filosofar, rezar, amar, etc., significariam apenas fenômenos
de sublimação do homem em relação ao mundo do trabalho, ou seja,
permitiriam ao homem fugir do afogamento das "ocupações diárias", a
ele retornando quando não estivesse filosofando, amando, rezando, con-
templando ou temendo.

Nessa concepção, o mundo do trabalho se afiguraria á penitenciá-


ria dos homens que cumprem pena em regime semiaberto: durante a
maior parte do tempo, ficam presos no trabalho; mas, ocorridos os
referidos "abalos", se libertam, por algum momento, enquanto filoso-
fam, amam, etc. Nessa linha de pensamento, uma indagação mais
direta e profunda se faz necessária: que fazer para elevar (transcen-
der) o mundo do trabalho em si mesmo, objetivando a que ele próprio
enseje o filosofar, o amar, o rezar, o temer e o contemplar ao trabalha-
dor enquanto trabalha? - Em outras palavras, que fazer para que o tra-
balho se eleve à condição de meio de libertação e realização do traba-
lhador?
Em 1971, este ensaísta publicou um estudo, com o título "Liber-
dade e seus Condicionamentos Histórico-Sociais", no qual enfoca a
liberdade como exercício da capacidade de decifrar sentidos (significa-
ções) em tudo com que nos relacionamos, inclusive nos condiciona-
mentos que nos impõem limitações, de toda ordem, ao iongo de nossa
vida em estado de consciência normal. Trata-se, portanto, de um pro-
cesso de decifração que implica:
a) aperfeiçoamento e exercitação constante de nossas capaci-
dades intelectiva, emocional e volitiva;
b) permanente dinamismo de ampliação (conquista) ou redu-
ção (perda) quantitativa e qualitativa de significados, sem a incidên-
cia de meios-termos, ou seja, o fato da não ampliação das conquis-
tas já significa a sua redução. Esta temática é reiterada no item
7.1.2b.
Segundo a visão acima, liberdade ou libertação depende
visceralmente da exercitação da busca de sentidos nas coisas e
não só das coisas em si, mesmo que elas se nos afigurem tempo-

124
rária ou definitiva-
mente como con-
dicionamento. Daí
porque, também,
a p r o m o ç ã o do
trabalho que liber-
ta, que leva à re-
alização profissi-
onal e p e s s o a l ,
diz respeito ape-
nas aos seus au-
tores e atores, e
não ao fenômeno do trabalho em si mesmo. Tanto é que um mes-
mo tipo de trabalho pode ser gratificante para uns e penalizante
para outros.

Uma outra ênfase é a de que se descubram sentidos no próprio


trabalho e não apenas na sua funcionalidade: subsistência, salário, status
e similares. Do contrário, o trabalho já é ou pode vir a ser um processo
de tortura permanente. Ademais, a realização ou libertação no trabalho
não se processa só quando se faz o que se gosta. Na maioria das
vezes, ocorre ou deve ocorrer diferentemente: tanto o autor como o
ator do trabalho têm que exercitar o aprendizado no sentido de torna-
rem "gostoso" o próprio trabalho. Em outros termos, a questão princi-
pal é a de tornar "gostoso" o que se faz e não a de só se fazer o que já
é "gostoso".
É nesse contexto de decifração e interpretação de sentidos no e
do trabalho, de qualquer tipo, que entra a pesquisa. E isso pelas se-
guintes razões:
Primeira razão: a pesquisa é também um tipo de trabalho
como outro qualquer.
Para qualquer tipo de trabalho, inclusive o da pesquisa, exigem-
se do trabalhador:
a) conhecimento do que se faz;
b) fundamentação metodológica sobre como se faz;
c) habilidade exercitada para se fazer bem o que se faz;
d) disponibilidade para aperfeiçoar sempre o que sempre
se faz;
e) planejamento ou programação mínima do que se deve ou
quer fazer;

125
f) competência de geração de resultados ou produtos que
compensem os esforços e recursos despendidos para se fazer o
que se deve ou quer fazer;
g) efetiva capacidade de transformação de esforços, recur-
sos, ações, iniciativas, criatividade, relacionamento e produtos
em realização profissional e pessoal.
Observando com atenção, verificar-se-á que apenas dois pontos
diferenciam, entre si, todos os tipos de trabalho: os propósitos ou ob-
jetivos e a metodologia de cada um. Dependendo do que se quer como
resultado ou produto, na linha dos objetivos e das maneiras
metodológicas de agir para se conseguirem os resultados aspirados, é
que se configuram e diferenciam os tipos de trabalho, permanecendo
as sete características, anteriormente relacionadas, comuns a todos
eles.
No caso da pesquisa, já se referiu várias vezes aos seus propó-
sitos e metodologia, mas vale relembrar:
a) propósitos: descobrir, criar, aprofundar, ampliar e/ou
redimensionar conhecimentos em suas dimensões teórica e aplicada;
b) metodologia: é típico da pesquisa o seu prévio planejamento
(mais ou menos formal, mais ou menos perfeito, mas sempre intenci-
onal), porque pesquisar é exatamente buscar, perquirir o conhecimen-
to de algo de acordo com alguma programação; do contrário, não se
faria pesquisa, mas improvisação, "jeitinho", ou até casualidade (coi-
sas descobertas por casualidade são válidas, evidentemente, mas não
resultam de pesquisa, o que é igualmente evidente).
O fato de a pesquisa ser um tipo de trabalho, diferenciando-se
dos demais pelos mesmos elementos que diferenciam a todos entre
si, significa que pesquisar não é privilégio exclusivo de ninguém. É um
tipo de trabalho aberto a todos que por ele se interessam, seja como
ocupação principal (pesquisador profissional) seja como atividade sub-
sidiária ao exercício da profissão ou até como lazer-mania.

Segunda razão: a pesquisa como atividade subsidiária ao


exercício de qualquer profissão pode contribuir para a
realização profissional e pessoal no próprio trabalho
e durante a aposentadoria.
É sabido que o exercício profissional, em qualquer setor, precisa
de certa organização e ordem, mas não admite estagnação ou mera
repetição indefinida de hábitos incorporados mecanicamente. Comporta

126
criatividade e aperfeiçoamentos que podem ser exigidos pela própria
natureza do trabalho ou desenvolvidos como iniciativa do trabalhador,
inclusive em proveito próprio.
É muito comum, no Brasil, verificar que profissionais inteligentes
e de nível superior são capazes de exercer uma profissão convivendo
com os mais variados problemas, pessoas, documentos, situações,
dados e informações sem deles tirar contribuições úteis tanto à melhoria
do trabalho em si como ao enriquecimento pessoal.
Dois casos, vivenciados por este ensaísta, ilustram essa situa-
ção:
1o - Em 1977, um professor orientador de estágio em zona rural
para alunos do curso de Farmácia e Bioquímica, da Universidade Esta-
dual de Ponta Grossa - PR, me convidou para passar um dia com a
equipe no campo. Verifiquei (o que na verdade já sabia) que o professor
há quase dois anos dedicava oito horas de trabalho por dia útil, com
diferentes equipes de estagiários, a levantamentos, análises e caracte-
rizações de situações rurais típicas das áreas de estágio em Farmácia
e Bioquímica, tais como incidência e tipos de verminose, virose, usos e
fontes medicamentais próprias (farmacopéia popular), hábitos e teores
energéticos alimentares, e assim por diante.
De volta ao Campus, e percebendo o meu entusiasmo pelo tra-
balho que estava sendo realizado, o professor me abordou: - "Pretendo
fazer mestrado, mas não tenho idéia de que pesquisa desenvolver para
o trabalho de dissertação". Sem pestanejar, disse-lhe: "mas você tem
uma vasta pesquisa entabulada e em andamento, por que não a siste-
matiza e escreve?" - Na hora, a resposta foi: "a gente não foi preparado
para a pesquisa, por isso não sei como sistematizá-la". Respondi-lhe:
"peça a ajuda de alguém, leia alguma coisa sobre pesquisa, mas não
deixe de documentar todo esse trabalho, indo ou não fazer o mestrado".
Alguns anos de-
pois, o professor
começou a escre-
ver sobre o assun-
to, tomando a inici-
ativa de começara
dimensionar o pró-
prio trabalho como
pesquisa e, simul-
taneamente, meio
de auto-realiza-
ção. Trata-se do

127
professor Antonio Carlos Schafranski, que (em co-autoria) teve seu pri-
meiro ensaio A Verminose na Área de Atuação do Programa CRUTAC-
PG publicado pela UEPG em 1984.
2 o - Em 1986, conversava com um magistrado, muito preparado
e que, segundo informações, escrevia muito bem. O assunto eram os
problemas típicos da área da magistratura e do sistema judiciário bra-
sileiro. Dizia ele que esses problemas poderiam ser resolvidos, mas
não havia pré-disposição administrativo-política para isso. Por essa
razão, queria aposentar-se o mais breve possível, visto que a rotina
burocrático-processualística de audiências, sentenças, administração
judiciária, etc., já se tornava enfadonhamente cansativa e desgastante.

Ocorreu-me de sugerir-lhe que selecionasse os problemas que


mais lhe interessassem, formulasse algumas hipóteses de solução e
utilizasse toda a rotina burocrático-processualista para reunir provas e
argumentos, visando à produção de um extraordinariamente bem fun-
damentado livro quando se aposentasse.
Não conversamos mais sobre o assunto, mas continuo absolu-
tamente convicto de que se pelo menos vinte por cento dos magistra-
dos brasileiros assim procedessem o nosso sistema judiciário estaria
se r e a l i m e n t a n d o d e s s a s v a l i o s a s e x p e r i ê n c i a s , l o n g a m e n t e
vivenciadas, para a sua evolução fundamentalmente sadia. Estou con-
victo, ainda, de que esses magistrados jamais teriam tempo, motiva-
ção e espaço para frustrações quando aposentados, vez que continu-
ariam contribuindo e recebendo o reconhecimento público.

Esses casos ilustram o quanto um profissional com um pouco


de conhecimento teórico e aplicado de pesquisa pode contribuir pelo
menos em três direções: na da recuperação de interesse por fatos,
convivências e idéias que acabam sendo abafados pela rotinização
autodecadente do trabalho; na do posicionamento do trabalhador como
agente ativo de mudanças evolutivas em sua área ocupacional; e na da
conseqüente conquista de sentidos para o próprio trabalho e para sua
realização pessoal e profissional, enquanto estiver na ativa (analisando
problemas, elaborando hipóteses, delineando esboços de argumenta-
ção e coletando provas e subsídios demonstrativos no próprio traba-
lho) e durante a aposentadoria: escrevendo sem temor de sensibilizar,
de rebaixar-se ou de perder emprego, publicando livros e artigos, profe-
rindo palestras e, enfim, contribuindo de toda forma com sua longa
vivência e alicerçada experiência.

É muito comum ouvir pessoas conscientes de sua capacidade


reclamarem que não são valorizadas no seu ambiente de trabalho. E
isso ocorre, de fato, sobretudo em setores públicos e privados em que

128
a administração se pauta mais por critérios "políticos" que técnicos.
Acontece, porém, que essa questão de valorização envolve dois as-
pectos: o da valorização que é conferida ao trabalhador e o da que o
próprio trabalhador procura promover e conquistar. Os dois aspectos
são importantes, mas, na maioria das vezes, a valorização só é
"conferida" como resultado de um longo processo de conquista.
Por outro lado, o processo de conquista não se faz só com rei-
vindicações repetitivas e lamuriantes. Faz-se sobretudo com produ-
ção fundamentada, documentada e publicada, que acaba por contri-
buir e angariar a atenção, o reconhecimento e a valorização. Essa
conquista se faz freqüentemente ao inverso do que se aspira, ou seja,
na linha do reconhecimento público à chefia imediata e não ao contrá-
rio, como sempre tem sido o desejo de nossa imediatista mentalida-
de brasileira.
Seriam incalculáveis a quantidade e a variedade das produções
científicas, técnicas e culturais se os advogados, médicos, dentistas,
economistas, administradores, professores, engenheiros, analistas de
sistemas, matemáticos, geógrafos, veterinários, enfermeiros, empre-
sários (da agricultura, do comércio, da indústria e da prestação de ser-
viços), bem como todos os profissionais pelo menos de nível superior,
organizassem e manipulassem seus fichários, arquivos, acervos e ex-
periências tanto para o exercício técnico da profissão como para a pro-
dução de estudos, ensaios, artigos, livros e tudo o mais que um pouco
de visão e exercitação na área da pesquisa lhes proporcionasse.
Mais que montanhas de livros, ensaios e artigos, teríamos um
Brasil dinâmico e com perspectivas, ao contrário da situação a que
assistimos: a de "esperarmos" (talvez até acreditarmos) que nossos
credores internacionais nos farão um ato de caridade, "perdoando" a
dívida externa que já pagamos múltiplas vezes (mas não conseguimos
fazer valerem as provas) e nos desenvolvendo por puro sentimento de
solidariedade.
Só sairemos bem dessa situação quando (sem mito, sem eco-
nomia de energias e jogando nossa produção por portas, janelas e fres-
tas) efetivamente levarmos a pesquisa às fábricas, aos campos agrí-
colas, aos escritórios, às escolas, às universidades e instituições iso-
ladas de ensino superior, à administração pública, aos consultórios, às
clínicas, aos hospitais, ao comércio, às entidades de classe, às famíli-
as, aos fóruns e tribunais, às casas legislativas, ao exercício profissio-
nal e até aos entretenimentos, individuais e coletivos, pelo menos da
população brasileira que teve, tem e terá o privilégio do acesso ao nível
universitário de educação e instrução.

129
A PESQUISA NO
EPICENTRO DO
FENÔMENO FORMAÇÃO
Todo este tópico resultou de uma preocupação pessoal de longa
data, que pode interessar também a todos os educadores e educandos.
Desde 1968, quando me alistei para a batalha do magistério
universitário, comecei a tomar consciência de que se falava e es-
crevia sobre formação de professores, formação de mão-de-obra,
formação de engenheiros, advogados, médicos, administradores,
etc., mas não se discutia exatamente o que é formação, simples-
mente formação. Constatei que a questão embutida no objetivo
geral dos então 1 o e 2° graus "[...] proporcionar ao educando a for-
mação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades
[...]", transcrita do art. 1 o da Lei n.° 5.692/71, não mereceu maiores
considerações além daquelas genéricas já conhecidas até pela
etimologia do termo FORMAR (que em latim significa dar, conferir
ou fazer forma).

Em contexto mais específico de educação e personalidade, a sín-


tese mais comum
de compreensão
do fenômeno for-
mação nunca foi
muito além da regis-
trada por Ávila
(1967, p. 231), meu
homônimo, profes-
sor da PUC/RJ:
O termo é aí emprega-
do quase como sinôni-

133
mo, e mais precisamente, como complementação do processo educativo
em todas as dimensões a que este se estende. Assim como da educação,
fala-se também da formação física, moral, intelectual, sexual, cívica, etc. Em
sentido mais restrito, quando nos referimos a uma pessoa de formação,
queremos dizer que é uma pessoa de altos princípios morais e de comporta-
mento coerente com esses princípios.

Nunca consegui descobrir uma razão lógica que sustentasse


a formação (mesmo como dar ou conferir forma) na condição de
sinônimo ou complemento do processo educativo, sobretudo quan-
do se sabe que esse processo guarda relação muito estreita com o
âmbito da educação promovida pela sociedade, portanto sempre
formal, não importando o maior ou menor grau de organização e
sistematicidade por ele envolvido. Minha indagação era: será que
formação não é um processo próprio e essencialmente fundamen-
tal para a educação?

Essa dúvida perdurou até 1978, quando descobri uma publi-


cação conjunta (de 1974) do "Instituí de Formation et d'Études
Psychosociologiques et Pédagogiques" com a "Petite Bibliothèque
P a y o t " de P a r i s , i n t i t u l a d a " F O R M A T I O N 1 - QUELLE
FORMATION?" (Formação 1 - Qual Formação?), com dois ensai-
os: a) "La Formation en Questiorí' (A Formação em Questão), de
Alexandre Lothellier (p. 15-87), conselheiro técnico e responsável
pela "Escola de Formação e do Serviço "Métodos" do citado insti-
tuto, bem como professor da Universidade de Nantes; b) e "Quelle
Formation?" (Qual Formação?) de Bernard Honoré (p. 89-183),
psiquiatra e diretor do instituto.

Estava, na mesma época, interessado em me aprofundar um


pouco no campo específico da formação de professores, evidentemente
no contexto do próprio fenômeno básico da formação. Realizei, portan-
to, breve estudo/consulta também sobre esse tema que, me parece,
pode vir a ser igualmente de interesse do leitor.
Esses dois estudos/consultas foram elaborados em francês,
para efeito de desenvolvimento de tarefas concernentes ao processo
de doutoramento, e guardados sem publicação até o presente mo-
mento. Ao longo dos anos decorridos após 1978, venho não só refle-
tindo como também questionando sobre a realidade, em termos de
visão fundamentada e atualizada, desses estudos/consultas. Como
não encontrei pontos que exijam, no meu parecer, modificações subs-
tanciais, limito-me a traduzi-los, com alguns acréscimos de atualiza-
ção, conservando a forma original de apresentação (organização das
idéias a partir de cuidadosa seleção de textos que as explicam ou
conceituam).

134
O que me chamou à atenção, genericamente faiando, foi o fato
de que a pesquisa (sempre intencional, mas não importando as
especificações que a caracterizem: formal, informal, sistemática, cien-
tífica, espontânea, etc.) constitui a fonte de geração e dinamização de
grande parte da energia que o fenômeno formação envolve e requer.
Gostaria que o leitor se preocupasse não só com a observação
da essencialidade da pesquisa em todo o processo básico da forma-
ção (até mesmo antes de se perguntar para quê...), mas inclusive com
a ampliação e o aprofundamento das análises no âmbito desse pro-
cesso. O que se propõe sinteticamente nos dois estudos/consultas, a
seguir (7.1 e 7.2), é apenas uma espécie de roteiro de provocação aos
referidos aprofundamento/ampliação.

A PESQUISA COMO DINAMISMO


ENERGÉTICO DO FENÔMENO
FORMAÇÃO

Pode-se começar este estudo/consulta pela questão tradicional:


que é formação, como processo em si mesmo? - A resposta não é tão
fácil quanto a indagação. Há respostas, sem dúvida, que evidenciam
as características realmente fundamentais da formação, mas sem a
preocupação com a rigorosa unificação intencional de um conceito glo-
balmente extensivo, precisamente definido e definitivamente acabado.
Honoré (p. 104) aponta com precisão a dificuldade, talvez até impossi-
bilidade, de se pretender um trabalho de definição exaustiva sobre a
formação em geral, visto a pesquisa constituir o núcleo estratégico do
respectivo processo: "A constatação do inacabamento na condição
humana confere à formação um sentido de pesquisa dos possíveis".

Mesmo assim, convenci-me de que a constatação das referidas


características fundamentais me levará à compreensão de tudo aquilo
que mais direta e genericamente interessa saber sobre formação nes-
te breve estudo. Para tanto, apoiar-me-ei nos dois autores citados,
Lothellier e Honoré, dando maior ênfase quantitativa às citações de
Lothellier e chamando à atenção para o fato de que suas colocações
se embasam nos princípios de sua especialização, a Psicosociologia,
mas evidentemente em perfeita harmonia com os postulados filosófi-
co-existenciais relacionados com o tema em estudo.
Feitas essas observações preliminares, é o momento de se passar,
objetivamente, às características fundamentais do fenômeno formação:

135
A FORMAÇÃO COMO
7.1.1 PESQUISA DE FORMAS

Para Lothellier (p. 56),


A formação é pesquisa de forma e não análise de elementos. Tudo é informe
enquanto não é assumido por nós. Tudo ao nosso redor é "matéria prodigio-
samente enorme, imperceptível, incerta, impessoal". Todavia, esta realidade
é a grande geradora de formas... A formação é o debate sobre as formas,
sobre os modos de expressão...

A formação é o trabalho sobre as formas que realizam uma existência e estas


formas de existência, condicionadas historicamente, estão em reforma per-
manente, sob pena de não sobreviverem senão deformadas, esclerosadas,
mortas, ultrapassadas. Esta idéia de forma implica aquela de metamorfose.
Cada forma define um conjunto provisório - que requer a sua própria finalida-
de - e acarreta outra pesquisa de forma.

O texto acima implica a idéia de situação na existência. Situação


evidentemente inteligente e consciente. Mas não basta saber se locali-
zar na existência de maneira passiva. É preciso reconhecer e assumir
o próprio lugar na totalidade da existência.
A formação deve, portanto, tornar possível ao ser humano tanto o
reconhecimento quanto o ato de assumir de fato a existência, o que faz
emergir a segunda característica tratada a seguir.

A FORMAÇÃO COMO CAPACIDADE


DE TRANSFORMAÇÃO
7.1.2 DE ACONTECIMENTOS EM
EXPERIÊNCIAS SIGNIFICANTES
Lothellier (p. 77) ensaia uma conceituação mais sistematiza-
da de formação: "A formação é a capacidade de transformação
dos acontecimentos cotidianos vagamente experimentados em ex-
periência significante, no horizonte de um projeto pessoal e cole-
tivo".
Precisando um pouco mais, o texto enseja que a formação tem o
objetivo de desenvolver a capacidade de o ser humano transformar os
acontecimentos, cotidianos e extraordinários, em experiências
significantes (com efetiva significação para a existência). Quanto à pró-
pria formação, enquanto processo, a interpretação que me aflora e con-
vence é a de que ela diz respeito à dinâmica pela qual a mencionada

136
capacidade de
transformação po-
de ou deve ser con-
quistada pelo ser
humano.
O aspecto
processo, supra-
referido, será obje-
to da próxima (ter-
ceira) característi-
ca. Com isso, pare-
ce-me oportuno
analisar um pouco
mais a dimensão objetivo ou finalidade da formação.
A capacidade de transformar, de fato, acontecimentos ordinários
e extraordinários em experiências significantes para a existência (con-
cebida simultaneamente em sua totalidade pessoal e coletiva) evoca e
implica duas outras dimensões relativas à maneira concreta de o ho-
mem se situar face e na própria existência, busca (pesquisa) perma-
nente da verdade e exercício da liberdade:

a) Busca (pesquisa) permanente da verdade.


Poder-se-ia até supor, pela evidência em sentido estrito, a exis-
tência de conformidade da inteligência com a verdade, o que consistiria
no conhecimento do objeto tal como é e aparenta, ou seja, o conheci-
mento perfeito. Isto significaria o acesso da inteligência à verdade inte-
gral e objetiva do que é conhecido.
Mas de que serviria essa suposição, se o homem tem em si mes-
mo a evidência que manifesta a verdade da relatividade, do dinamismo
do universo e da própria existência? - O que importa é o conhecimento,
seja qual for o seu grau de perfeição que manifesta a verdade e que, no
mesmo ato, induz o engajamento ativo no dinamismo da existência. É
necessário, ainda, que o conhecimento intelectual seja intrinsecamen-
te vinculado à capacidade de decifrar as significações situacionais e
relacionais de tudo o que é conhecido.
Estou ciente de que essa maneira de tratar a relação do homem
com a verdade, pelo conhecimento, ultrapassa o domínio de uma única
ciência, seja ela a filosofia, a psicologia, a sociologia ou outra. Mas es-
tou ciente também que se faz necessário considerar qualquer ato do

137
homem como sen-
do de todo homem,
isto é, de cada ho-
mem como uma to-
talidade. Em conse-
qüência, tem-se
que levar em conta
que a formação que
vise o desenvolvi-
mento da capacida-
de do conhecimen-
to intelectual, sem
(ao mesmo tempo e
no mesmo processo) desenvolver a capacidade de decifração de sig-
nificações situacionais e relacionais do que é conhecido, leva o ser
humano ao suicídio existencial.

Se, de um lado e apesar de tudo, a formação pudesse conduzir o


homem ao assentimento da verdade de sua existência e da existência
de tudo o que integra o seu universo e, de outro, fosse incapaz de engajar
o homem na existência total e pessoal, o resultado seria o seguinte:
construiria apenas um homem que conheceria verdades e que viveria,
mas incapaz de ser efetivamente humano, visto que o homem se
humaniza pela coexistência significante. É exatamente nesse sentido
que entendo esta outra posição conceituai de Lothellier (p. 55): "A for-
mação é, portanto, um ato existencial de busca (pesquisa) da verdade,
ato que transforma os acontecimentos da vida em experiência, com a
ajuda da reflexão".

b) Exercício da liberdade.
Observação preliminar: esta dimensão retoma as abordagens
sobre liberdade, constantes do item 6.3, e constitui praticamente uma
extensão da primeira, a da busca (pesquisa) da verdade.
Deixando de lado abstrações muito metafísicas sobre liberdade,
indaga-se simplesmente: que é o exercício da liberdade, pelo homem,
senão a aptidão adquirida de decifrar novas significações e de as incor-
porar à existência pessoal, em harmonia com os critérios próprios da
natureza e segundo a hierarquia dos valores? - Ser livre, na minha opi-
nião, consiste em se tornar efetivamente capaz de ampliar e aprofundar,
progressivamente (ou seja, sem descontinuidade), o horizonte de sen-
tidos da existência pessoal no contexto de toda a existência, como uma
totalidade dinâmica. Qualquer estreitamento ou descontinuidade des-

138
se horizonte, que
também pode ser
progressivo, ocasi-
ona a diminuição do
ser livre de fato.
A ampliação
do horizonte de
sentidos (ou signi-
ficações) pode
acontecer com ou
apesar dos condici-
onamentos. Há con-
dicionamentos que
fazem parte inte-
grante da própria vida dos seres humanos. Nesse caso, só permane-
cem restritivos ao exercício da liberdade até que se descubram suas
significações e as incorporem conscientemente na vida. Mas há, tam-
bém, condicionamentos que impedem realmente o exercício da liber-
dade. São aqueles que negam parcial ou totalmente a existência. Ainda
em relação a estes, é necessário saber descobrir o que são e o que
efetivamente restringem ou impedem para que se possa encontrar os
meios de como os superar, evitar ou afastar, objetivando a que se abra
caminho de constante ampliação do horizonte da conquista de senti-
dos para a vida.
Observa-se que esta maneira de conceber o exercício da li-
berdade não conduz a um personalismo extremado. Ao contrário, o
ato de decifrar as significações de minha existência e para a minha
existência é uma operação de reconhecimento, efetivo e afetivo,
apenas daqueles valores que me concernem como sujeito da ação.
E mais: o ato de incorporar ou assumir tais significações não se faz
em detrimento de outras existências personificadas ou não, porque
não são objetos de posse individual (a menos que sejam represen-
tadas por símbolos materiais como, por exemplo, dinheiro). E, ainda
assim, a posse (quando passível de existir) deve ser também cons-
tantemente sujeita à decifração de sentidos, pelo menos no que
concerne à sua validade, à sua legitimidade, à sua oportunidade e
assim por diante.

A incorporação de sentidos se faz pelo auto-enriquecimento,


ou seja, pela reorientação da vida personificada segundo novas sig-
nificações ou valores efetivamente reconhecidos, conforme Honoré
(p. 104):

139
O alvo da formação nos parece que deva ser a descoberta ou o reconheci-
mento de um horizonte pessoal e de um horizonte social, formados por
todas as atividades criativas, significantes, realizadas individual e coleti-
vamente.

Em vista de tudo o que foi exposto, a formação tem por objetivo o


desenvolvimento da capacidade humana de transformação dos acon-
tecimentos da existência em experiências significantes, de forma que
o homem possa buscar (pesquisar) constantemente a verdade, adqui-
rindo nessa busca as aptidões para o exercício concreto da liberdade
pessoal.

A FORMAÇAO COMO PROCESSO


7.1.3 DIALÉTICO DE INTERROGAÇÃO,
NEGAÇÃO E AFIRMAÇÃO

A discussão, decorrente da interrogação, incita o homem à aber-


tura (LOTHELLIER, p. 60): "A interrogação é, portanto, o trabalho da
discussão (do diálogo ao dialético) de hipóteses de interpretação, de
todas as tentativas de aprofundamento e de elucidação".
A negação impulsiona o homem a interferir na sua própria
maneira de mudar (LOTHELLIER, p. 60): "Tornar-se uma pessoa
significa ser capaz de realizar sua própria negatividade: não ape-
nas dizer não ao que é, mas produzir disto que é aquilo que não
era ainda".
A afirmação manifesta o poder que o homem tem em si mesmo
(LOTHELLIER, p. 62):
A formação não é uma
preparação para o de-
pois, para o alhures; é
já uma maneira de nos
tratarmos, de nos com-
preendermos (ou não),
de nos reconhecermos
ou de nos rejeitarmos
(tudo não se "arranja").
É, portanto, questão de
implicação [...]. Esta afir-
mação é, então, mani-
festada pela nossa pre-
sença e pela nossa
escolha de valores. Ou,
de preferência, pela in-

140
serção de nossas valorizações: criatividade, responsabilidade, autenticida-
de em nossas situações [...]. É a inserção num esforço coletivo e não o
exercício de uma liberdade solitária [...]. A formação não é, de maneira algu-
ma, [...] separada das realidades.

Três dimensões da formação decorrem desse processo dialético


de interrogação, negação e afirmação:
a) Dimensão pessoal: a formação visa o desenvolvimento da
pessoa a partir de suas potencialidades e de seus próprios proble-
mas.
b) Dimensão relacionai: "A formação começa um trabalho co-
mum, ligando saber e vivido, antigo e novo, conhecido e desconhecido.
Ajudando a dar à luz o universo de cada um, o formador descobre o
seu próprio" (LOTHELLIER, p. 66).
c) Dimensão situacional: é a consolidação e a dinamização das
relações pessoais e relacionais ao nível dos conjuntos, como partes
que se situam e se engajam nas totalidades maiores (instituições, es-
truturas, sistemas, etc.), estabelecendo-se a reciprocidade através dos
fatos de assumir, analisar e renovar as maneiras de ser e de se organi-
zar dessas totalidades:"[...] unicamente neste nível de estrutura (isto é,
da globalidade das relações existentes entre os elementos de um con-
junto) é que podem aparecer novas significações, contradições e con-
flitos" (LOTHELLIER, p. 68).

PRINCIPAIS FATORES
OPERACIONAIS DO PROCESSO
7.1.4 DE FORMAÇÃO: EXPERIÊNCIA,
EXERCITAÇÃO E PRÁXIS
Atendo-se ao estritamente essencial sobre cada um desses fa-
tores:
a) A experiência "[...] é o reencontro com o desconhecido, o tra-
balho metódico do sentido (LOTHELLIER, p. 71), compreendendo três
tipos (a experiência comum, a questionada e a científica):"[...] Entre a
experiência comum (não refletida) e a experiência científica (controla-
da) se desenvolve a experiência questionada, refletida. É a pesquisa de
possíveis significados, sem a imposição de um significado único"
(LOTHELLIER, p. 75).
b) A exercitação:"[...] consiste em afirmar experiências, em for-
mular novas hipóteses, em definir um controle". Consiste, portanto,"[...]
em organizar um saber, em refletir um processo histórico que ajusta
141
teoria e prática [...] é o momento em que se esforça para conferir sen-
tido ao conjunto das experiências" (LOTHELLiER, p. 79).
c) A práxis "[...] é a unidade ativa da experiência e da experimen-
tação, como elaboração da realidade social [...] é a prática socializada
que se torna consciente dela mesma. Ou ainda, é a experiência organi-
zada, controlada, que se tornou consciente dela mesma pela sua ma-
neira de se situar na totalidade social. O comportamento é função da
experiência, lembra Laing, e a práxis é comum à experiência comparti-
lhada" (LOTHELLIER, p. 82).

TRES DESTAQUES
7.1.5 PARA CONCLUIR

Pretendeu-se, desde o início, que estes estudos/consultas fos-


sem o mais conciso possível, mesmo versando sobre matéria tão com-
plexa como formação. Foi o que efetivamente se tentou realizar,
enfocando os aspectos principais do tema em torno das quatro carac-
terísticas fundamentais, cujos perfis vêm de ser esboçados.
O que se segue não é propriamente conclusão mas apenas um
"recorte", do qual resultam os seguintes destaques:
a) O primeiro se refere aos problemas que tornam difíceis a for-
mulação de definição objetiva e à sistematização de mecanismos de
controle da formação.
Segundo Lothellier (p. 58),
A formação é inseparável de suas conseqüências e de seu controle, da me-
dida de seus efeitos. Esta verificação deve ser presenciada de três modos:
pela avaliação, pela críti-
ca e pela pesquisa. Em
sendo a s s i m , t o m a - s e
consciência da extraordi-
nária dificuldade para de-
finir a formação em ter-
mos objetivos, visto que,
para verificar se a finali-
dade está sendo atingi-
da, necessário se faz obri-
gar-se a se definir. Os ob-
j e t i v o s são, em geral,
pouco definidos e muito
vagos. Mas não se trata

142
somente da precisão dos objetivos considerados "desejáveis" ou justos;
trata-se também da questão de precisar critérios.

b) O segundo acentua a necessidade da pesquisa metodológica.


A posição de Honoré (p. 162) é a de que:
As condições da formação estão por ser criadas. É certo que há experiências
em curso, muitas vezes realizadas de forma anárquica, mas os estudos
metodológicos ainda são muito limitados. O problema que se coloca aqui, à
formação, é mais o de uma corrente de pesquisa metodológica do que o da
definição de métodos precisos, cuja configuração estável se contraditaria
com os objetivos vistos.

O texto acima
enseja duas inferências
inteiramente opostas:
de um lado, todos os
que se ocupam com a
formação, intentando
dinamizar seriamente o
seu processo operacio-
nal (através do qual ela
se torna realmente efi-
caz), têm vastíssimo
campo metodológico a
pesquisar; de outro, to-
dos os que se contentam em se posicionar na defensiva, praticando ape-
nas os métodos estabelecidos, sem a pesquisa das inovações reque-
ridas, estão condenados à contradição, ocasionada pela fixidez ou estag-
nação do que já foi estabelecido, visto se chocarem contra a própria dinâ-
mica, que é uma constante essencial do processo de formação.

c) O terceiro consiste em se tentar dois ensaios de definição,


apesar das dificuldades apontadas: de formação psicossociológica, por
Lothellier (p. 81), e de formação sem adjetivação complementar, para
efeito de fechamento deste estudo.
Para Lothellier,
A formação psicossociológica é a exercitação metódica e permanente da
conscientização e da atualização de todas as dimensões sócio-existenciais
de uma pessoa, de um conjunto de pessoas e de integrantes de uma institui-
ção no horizonte de um projeto coletivo e pessoal.

No que respeita a um esboço de definição de formação (sim-


plesmente formação), tomaria como base o conceito citado e comen-
tado no item 7.1.2, com alguns acréscimos decorrentes das quatro
características analisadas: a formação é o processo pelo qual se
pesquisa, exercita e desenvolve, metódica e permanentemente,

143
a capacidade de o ser humano transformar os acontecimentos or-
dinários e extraordinários de sua existência, espontânea ou sis-
tematicamente vivenciados, em experiências significativas para
os projetos de realização pessoal e coletiva.

EXTENSÃO DA ABORDAGEM
7.2 À FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Nas décadas de 70 e 80, esteve em muita evidência o movimen-


to contestatório da escola institucionalizada, tida como perpetuadora
do massacre despersonalizante do indivíduo. Segundo essa corrente,
os professores se incluiriam entre os principais agentes de massificação
do indivíduo. Pregou-se, inclusive, a conveniência ou mesmo a neces-
sidade do desaparecimento tanto da instituição escolar como dos pro-
fessores institucionalizados.
Ivan lllich, um dos líderes desse movimento, estampou a sua idéia-
chave no próprio título de seu livro Uma Sociedade Sem Escola (Editions
du Seuil, Paris, 1971), cuja repercussão na França despertou o contra-
ataque direto de Hubert Hannoun, nada menos que ex-diretor do Institu-
to de Pesquisas Pedagógicas de Paris (antiga Escola Normal de Pa-
ris), que revidou sem rodeios com outro livro intitulado Ivan lllich ou A
Escola Sem Sociedade (Editions ESF, Paris, 1973).
Sem entrar a fundo na análise de mérito da polêmica, embora o
tenha feito em 1978, o que se conclui é que, segundo o citado movimen-
to, ter-se-ia que reformular radicalmente não só o perfil e o papel ativo do
professor, sobretudo nas sociedades pobres do planeta, como também,
e em decorrência, os
respectivos princípios
e processo de sua for-
mação, extinguindo-se
as figuras institucio-
nalizadas da escola e
do professor.

Preferi, em 1978,
e continuo preferindo
agora, interpretar esse
movimento como um
grito de alerta contra o

144
mecanicismo efetivamente subserviente e confinante das teorias e prá-
ticas educacionais à mitológica eficacidade dos métodos sublimados
pelo g a r g a l o da " s i s t e m a t i z a ç ã o c i e n t í f i c a " ( m e t o d o l o g i s m o ,
pedagogismo, psicologismo, sociologismo educacional, etc.), cuja
credibilidade ficou na dependência de uma minoria, cada vez menor,
de "experts consagrados" internacionalmente.

Em termos de posicionamento pessoal, identifico-me mais com


a opinião de Hannoun, no citado livro, segundo a qual os problemas e
as dificuldades apontados pelo movimento constestatório têm razão
de ser, devendo-se, portanto, buscar (pesquisar) soluções (sobretudo
no sentido de uma evolução sadia) para os mesmos ao invés de se
pretender suprimi-los, pela extinção de tudo o que é institucionalizado
em matéria de escola e mestres.

É importante frisar, no entanto, que o referido grito de alerta pro-


vocou eco de imediato junto aos interessados pelas questões educaci-
onais de nosso tempo, fora dos países pobres. A pedagogia libertadora,
bandeira de nosso ilustre educador Paulo Freire desde os anos 60,
começou a ter repercussão na Europa. Em 1976, Jakob Robert Schmid
publicou em Paris, o seu livro O Mestre-Camarada e a Pedagogia
Libertadora, em que (dentre muitas outras colocações) nos fornece o
perfil funcional do professor da escola ativa, confrontando-o com o da
escola tradicional (p. 77):
O professor da classe ativa não pontifica de sobre um púlpito; ele não se
posta diante de sua classe como um oficial diante de seu pelotão. O novo
mestre desceu da cátedra e se encontra habitualmente em qualquer parte da
classe, trabalhando no meio dos alunos: ele ajuda este aqui, corrige o traba-
lho daquele lá, esclarece uma dificuldade a todo um grupo. A aula ativa é um
trabalho ombro-a-ombro. Esse contato permanente, que resulta desta ma-
neira de trabalhar, favorece, de imediato, uma certa intimidade que havia sido
excluída outrora [...].

Os q u e s t i o n a -
mentos e posturas na
linha da e d u c a ç ã o
libertadora começa-
ram a conquistar espa-
ço também na esfera
de organismos inter-
nacionais, sobretudo a
UNESCO, observando
que Paulo Freire mui-
to contribuiu para isso
durante seu exílio em
Paris (o que pude

145
constatar até pessoalmente). Em conseqüência, também se ampliou o
debate sobre o perfil e o papel do professor. Pouco a pouco, a tônica
predominante na prática da escola tradicional, a do professor como
pontificador e instrutor ou transmissor de conhecimentos teóricos e
aplicados, foi dando lugar à teoria do professor formador, ou seja, da-
quele que ajuda os educandos a desenvolverem as suas capacidades
de transformação dos acontecimentos da existência (inclusive os co-
nhecimentos, não importando de que tipo, forma ou natureza) em ex-
periências significantes para a integralidade de suas vidas e das coleti-
vidades em que elas se desabrocham e desenvolvem.

Nesse contexto, as próprias expressões "formação de professo-


res" ou "formação de professor" não dizem tudo, visto que o que entra
efetivamente em jogo é a formação de formadores ou a formação do
formador. Em outros termos, a formação de professores, enquanto pro-
cesso que começa mas não termina em um curso, implica duas di-
mensões a serem de fato e simultaneamente consideradas: as de vi-
sar o educando (no caso o aluno-mestre do futuro) como aquele que
está em processo de formação agora para continuá-la na condição de
formador daqui a pouco, como diz Lothellier (citação já feita no item
7.1.3 b): "Ajudando a dará luz o universo de cada um, o formador des-
cobre o seu próprio".

Léon (1974, p. 100) é também dessa opinião: Formar um mestre


é, sem dúvida, ajudar a se conhecer melhor. Mas é, ao mesmo tempo,
ajudar a melhor conhecer as condições dos próprios comportamentos
sobre as atividades dos alunos.
A questão, segundo Hannoun (1973, p. 48), de que "[..,] formar
um mestre é formar aquele que amanhã formará alunos para o depois
de amanhã" (ou ainda: é formar hoje aquele que amanhã formará alu-
nos para o depois de amanhã) é complexa, porém viável:
A solução a este difícil problema parece-nos residir no nível de uma efetiva
previsão, talvez uma
orientação, do futuro
social pelos própri-
os homens, ao invés
de se contentarem
em sofrer essa evo-
lução. A d e m a i s , o
ensino (como um
dos fatores essenci-
ais a estas orienta-
ção e previsão) de-
veria estar estreita-
mente associado à
sua elaboração.

146
Quanto à solução supra, apenas enfatizaria um pouco mais a
"orientação do futuro", substituindo o talvez por e: "A solução para este
difícil problema parece-nos residir no nível de uma efetiva previsão e
orientação do futuro social pelos próprios homens..." (sem nenhuma
outra alteração).
Numa tentativa de síntese, a formação de professores parece
consistir, por fim, em dinâmico processo que visa, simultaneamente,
duas dimensões de apoio ao formando de hoje, já na condição poten-
cial de formador de amanhã: a) ajuda no sentido de que o mesmo se
fundamente, exercite e desenvolva a sua capacidade de transforma-
ção de todos os acontecimentos da existência, inclusive o aspecto
instrucíonal, em experiências significantes no âmbito dos projetos de
vida individual e coletiva; e b) oportunidade, também de fundamenta-
ção, exercitação e maturação, para que o formador de amanhã conti-
nue a dinamizar permanentemente a sua capacidade de transforma-
ção, através da ajuda que vier a prestar ao desenvolvimento das mes-
mas qualidades no futuro educando, visto que "[...] ajudando a dar à
luz o universo de cada um, o formador descobre (e desenvolve) o seu
próprio [...]" ou, ainda, segundo a "verdade fundamental" de Piletti (1989,
P-18):
[...] é educando que se aprende a educar. O que exige a capacidade de modi-
ficar a rota sempre que não chegamos ao objetivo. É a maneira como se faz
a formação do educador [...] E, apesar da tentativas, parece que empacamos
nas velhas fórmulas, fugimos da inovação como o diabo foge da cruz, teme-
mos perder espaços conquistados, colocamos o interesse corporativista aci-
ma do interesse educacional. Precisamos avançar.

CABERIA UMA CIÊNCIA PARA


7.3 A FORMAÇÃO?

Pois é o que propôs Honoré (1974, p. 180-81), diretor do "Instituí


de Formafion eí d'Éfudes Psychosociologiques eí Pédagogiques",
mencionado na inírodução desíe Tópico. Segundo ele,
A aquisição de conhecimentos, sua inserção nas significações novas (que
os transformam no curso das intenções, no campo das experiências vividas);
a expressão desses conhecimentos para fins de aquisições de novidades e
mutualidades, ou seja, sua utilização na práxis; tudo isso que não forma a
sintaxe, mas o conteúdo, e que põe em jogo a criatividade humana entra no
campo da formática [...] Entendemos por formática, portanto, a ciência que
tem por objetivo o estudo do fenômeno 'formação'.

147
Em termos gerais, não me preocupo muito com a questão se a
formação deve ou não abranger uma ciência só para ela. Julgo extre-
mamente importante e urgente, no entanto, que esse fenômeno seja,
em si mesmo, foco de maior interesse e estudo sobretudo por quem
deixa transparecer alguma sensibilidade mais substantiva em relação
à formação do homem e da nação brasileira.
Do contrário, ficaremos repetindo "velhas fórmulas", como afirmou
Piletti, pretendendo "formar" professores, economistas, médicos,
odontólogos, especialistas, etc., sem sequer sabermos ou questionarmos
sobre o que é efetivamente formar. É por aí que começaremos a distinguir,
em teoria e prática, o formar do domesticar, do plasmar, do condicionar, do
"especializar" (na realidade bitolando) professores, economistas, médicos,
engenheiros, etc.; e até dos ensinar e "educar" das maneiras como têm
sido concebidos e concretizados nos cursos de educação básica e de
nível superior, inclusive nos das áreas da pós-graduação.
Sou de opinião, por outro lado, que sem pesquisa jamais se en-
tenderá e implementará a autêntica formação, visto tratar-se de fenô-
meno extremamente dinâmico, que se organiza e operacionaiiza de
forma processual, através da soma contínua de conquistas significan-
tes. Vale, nesse sentido, relembrar três frases de Lothellier, citadas no
item 7.1.1: "A formação é pesquisa de forma e não análise de elemen-
tos [...]"; "A formação é o debate sobre as formas, sobre os modos de
expressão [...]"; e "A formação é o trabalho sobre as formas que reali-
zam uma existência [...]".
Talvez seja ainda por aí que tenhamos a oportunidade de rever-
ter o espantoso estigma de nosso vasto currículo histórico de "refor-
mas" que nada formam de novo ou pretendem "reformar" o que
nunca ainda se-
quer se "formou":
por e x e m p l o , o
mote do momento,
na área educacio-
nal, é a "reforma
u n i v e r s i t á r i a de
cima para baixo (a
partir de esquemas
propostos pelo
MEC) e não de con-
solidação formati-
va da própria uni-
v e r s i d a d e brasi-
leira.

148
Como podemos reformar aspectos educacionais, culturais, polí-
ticos, etc., de nossa sociedade sem sequer nos preocuparmos em
saber, na teoria e prática, o que é formar?; sem nos formarmos?; sem
incorporarmos a idéia e o fato de que a reforma nada mais é do que
expressão de dinamicidade do próprio processo de formação, quando
entendido e praticado com autenticidade? - Relembrando Lothellier (já
citado no item 7.1.1 e continuando a última frase acima):
A formação é o trabalho sobre as formas que realizam uma existência e estas
formas de existência, condicionadas historicamente, estão em reforma per-
manente, sob pena de não sobreviverem senão deformadas, escierosadas,
mortas, ultrapassadas.

Reformas descontextualizadas de autêntico processo de forma-


ção são apenas pacotes-artifícios que expressam tão-somente a falta
de identidade e visão de quem as planeja e "operacionaliza" (ou finge
que as operacionaliza). Mais uma vez parece que Kujawski (1991:203)
está com a razão: "O princípio responsável pela crise não está na eco-
nomia, na vida e na História do homem brasileiro contemporâneo; está
na perplexidade de não saber o que fazer".

149
A PESQUISA NA
TOPICO S RAZÃO DE SER DA
UNIVERSIDADE
Depois de abordagens sobre diferentes enfoques metodológico-
conceituais de pesquisa e de sua relação tanto com o desenvolvimento
e formulação do conhecimento científico como com a própria evolução
da vida humana, individual e gregariamente dimensionada, chegou a
vez do trato da pesquisa no prisma especificamente universitário, o
que se iniciará neste Tópico e terá continuidade no próximo.
Ao projetar as idéias fundamentais desta última parte do tra-
balho, julguei oportuno, necessário mesmo, buscar o entendimento
não apenas da pesquisa na universidade mas da própria configura-
ção básica do que é ou venha a ser a autêntica universidade en-
quanto instituição societária universal. Isto porque, na minha con-
cepção, a autêntica universidade foi, é e continuará sendo uma en-
tidade laboratorial da sociedade (seja da sociedade como categoria
geral seja daquela unidade social organizada em que se situa cada
célula universitária), constituindo o clima de pesquisa e a compe-
tência produtiva, que envolve explícita ou implicitamente eficiência
inquiridora, o divisor de águas entre a universidade autêntica e a
meramente rotulada como tal.
Neste Tópico, preocupei-me em saber se nossa instituição uni-
versitária nacional tem reflexo na sociedade brasileira (8.1), se nos-
sas universidades já se consolidaram como tal ou se encontram ain-
da em processo de "gestação" (8.2) e se havia um meio analógico
que facilitasse visão clara das propriedades configurativo-dinâmicas
da autêntica universidade (8.3). Como divisor de águas entre a uni-
versidade autêntica e a não autêntica, a pesquisa permeia todos es-
ses enfoques.

153
Só no próximo Tópico, o nono, serão reveladas dimensões teóri-
co-operacionais específicas da pesquisa na universidade.

A SOCIEDADE COMEÇA A DEBATER


8.1 A UNIVERSIDADE BRASILEIRA

Felizmente,
está se propagando
o debate sobre a
universidade brasi-
leira em escala po-
pular e nacional.
Os meios de comu-
nicação de massa
vêm aumentando
significativamente
espaços à compe-
tência e à incompe-
tência da universi-
dade brasileira, dentre eles se destacando jornais de grande circula-
ção, revistas de relevância nacional, bem como noticiários televisados
e radiofônicos.

Tenho observado, pela leitura corriqueira e lembrando que este texto


foi elaborado em 1992, que o semanário Veja da Editora Abril S.A., por
exemplo, dedicou sete páginas do n.° 24 (de 8 de maio de 1991), com
tiragem de novecentos e oito mil exemplares, à denúncia de que "O País
Arrisca o Futuro nas Universidades", sem falar em entrevistas de desta-
que ("páginas amarelas") como as feitas com o médico-cientista, Prof.
Isaías Raw, da USP/SP, com o Prof. Edmundo Campos (sociólogo) do
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ, com o
Prof. Gianotti, etc., em números anteriores. E isso sem mencionar maté-
rias e até cadernos universitários que têm circulado em grandes jornais
como Folha de São Paulo, Jornal do Brasil, Estado de São Paulo, O
Globo e tantos outros. A própria Televisão brasileira vez por outra se ocu-
pa seriamente de reportagens universitárias que vão muito além do sim-
ples resumo informativo.

Embora os destaques levantados sejam de cunho quase sem-


pre pessimista, por vezes até apocalíptico, o próprio fato de a grande

154
imprensa se preocupar com a matéria já é de extrema relevância. A
sociedade sempre investiu tanto em impostos quanto em crédito de
futuro na instituição universitária. E o mais significativo, e grave, nisso é
que o maior investidor tem sido exatamente aquela camada da popula-
ção com menos chance de acesso sobretudo às universidades públi-
cas e gratuitas, federais e estaduais. Mas continua investindo, seja pela
compulsoriedade tributária seja pela esperança de que alguém da fa-
mília tenha um diploma de "doutor".
Essa é uma expectativa que permeia todas as classes sociais,
principalmente as mais pobres, talvez até como mecanismo de fuga
(sublimação) da pobreza e miséria de um presente sem perspectiva.
Daí o sucesso da tese "o pobre gosta de luxo" do carnavalesco Joãozinho
Trinta, então da Es-
cola de Samba Bei-
ja-Flor de Nilópolis,
que efetivamente
tomou iniciativas de
aproveitar a utopia
do "luxo" para a luta
real contra a misé-
ria humana e soci-
al. Daí, ainda, o su-
cesso das telenove-
las que "transpor-
tam" os confinados
dos barracos e da falta do que comer e vestir para os suntuosos palá-
cios e hotéis de Paris, Londres e Nova Iorque.
Acredito, no entanto, que por trás da utopia universitária coletiva
(a do sonho de se ter um médico, engenheiro ou advogado na família)
se situe uma aspiração (quiçá objetiva) implícita (portanto ainda não
questionada e racionalizada) de que a universidade venha a ser, algum
dia, uma espécie de maternidade de renascimento contínuo da nação
brasileira, onde não só se faça o "dar à luz" à produção e reprodução
do conhecimento, em todas as suas dimensões, como também se
concretize o surgimento das lideranças-agentes que pesquisem, tes-
tem, disseminem e administrem soluções alternativas para a pobreza
sócio-econômica e para as expectativas de equilíbrio e realização de
ordem pessoal e societária.
O fato de a grande imprensa se preocupar com a matéria é
revelador, primeiro, de que o assunto universidade começa a ser incor-
porado no processo de seletividade do "marketing" empresarial (já dá
"ibope") e, segundo, porque amplia e diversifica incomensuravelmente

155
a participação popular, direta ou indiretamente, no debate universitário,
restrito até bem pouco ao âmbito elitizado e ocasional de assembléias
legislativas, conselhos educacionais, órgãos governamentais
especializados e de diminutos grupos ideológica e/ou profissionalmen-
te interessados pelo assunto.

A UNIVERSIDADE BRASILEIRA EM
8.2
FASE DE "GESTAÇÃO"

Em termos de Brasil, pode-se acreditar que a universidade não é


uma entidade que já morreu e não sabe. Permite-se, isto sim, admitir a
idéia de que a maioria das instituições ditas universitárias está, ainda e
apenas, em fase de "gestação", sem concreto "nascimento" para as
reais dimensões universitárias da formação (abordadas no Tópico 7
anterior) dos agenciadores de nossa sociedade. Na opinião de Demo
(1991 a, p. 3-4), "A universidade precisa deixar seu passado reprodutivo,
de entidade de ensino, para assumir a condição de entidade de pesqui-
sa. [...] Cabe à universidade acompanhare incorporara produção oriunda
de outros centros, mas isto não substitui jamais a produção própria,
por mais modesta que seja".
E nesse lento processo de "gestação", na estufa da legitimidade
legal já conseguida, sequer o lado reprodutivo do ensino vem funcio-
nando a contento:"[...] encontraremos em alguns países latino-ameri-
canos um completo alheamento da universidade em relação a seu meio
social, assim como um sistema curricular meramente simbólico" (Pi-
menta, 1984, p. 47), o que é mais contundente, explícita e atualizadamente
enfo-cado por Demo
(1991b, p. 7):
[...] a universidade tam-
bém apre-senta faces
de inadequação relati-
va aos d e s a f i o s do
mundo moderno, assu-
mindo a condição de
uma das instituições
mais conservadoras na
sociedade, no contexto
de uma ironia já mais
típica que estranha: lá,
onde se fabricam as
teorias de mudança, é

156
o lugar em que menos
\ se muda. O conheci-
I mento, quando existe,
volta-se muito mais a
coibir mudanças estru-
•*; turais, do que a
f o m e n t á - l a s . Nossas
instituições de educa-
ção superior são ca-
racteristicamente "ins-
tituições de ensino", ou
seja, de conhecimento
repetido e imitado. [...]
| Quem pesquisa deve
ensinar, mas só ensi-
na quem pesquisa [...]"

Trata-se, portanto, de escolas tradicionais, e em crise, que preci-


sam sair do estado de latência deteriorante em que se encontram, pelo
cultivo parasitário de vícios e mediocridades instaladas na cultura
organizacional e na burocracia operacional. Destacam-se, a seguir,
aqueles vícios mais diretamente relacionados à falta ou omissão de
visão e compromisso no que respeita ao progressivo "parir" a universi-
dade autêntica.

FUGA A INICIATIVAS PRÓPRIAS


8 2 1
- - E COMPROMISSADAS

A conhecida deturpação da lei de Lavoisier (nada se perde,


nada se cria; tudo se copia) tem sido uma constante em grande
parte das instituições universitárias brasileiras, não só na área do
ensino reprodutivo. Começam pelos próprios estatutos e regimen-
tos gerais. Em 1985, analisei dezoito estatutos e regimentos, de di-
ferentes instituições, e pude constatar que a ampla e irrestrita
"isonomia" normativa já era uma prática entre grupos de IES, no
caso autarquias e fundações. E, assim mesmo, com variações que
não chegavam a ultrapassar as fronteiras básicas da legislação vi-
gente para cada tipo de entidade. Pelo visto, os lay-outs normativos
e administrativos de quase todas as nossas IES são cópias de algu-
ma matriz já aprovada pela instância competente, com alguns reto-
ques que visam a fazer crer na especificidade de cada um, sobretu-
do no que se refere a número e denominações de unidades admi-
nistrativas.

157
No fundo, a
impressão que fica
é a de que temos
a síndrome do pa-
vor pelo risco das
experiências não
previamente regu-
lamentadas ou, de
preferência apro-
vadas. Nossa aversão por propostas arrojadas, porém criteriosas,
talvez se explique pela neurose autoritária, decorrente do verdadeiro
autoritarismo vigente em toda a história brasileira (evidenciado na
recente ditadura militar) ou exercitada pelo hábito inveterado de se
criar ambiente autoritário a cada momento de debate sobre proble-
mas institucionais: consomem-se muito mais tempo, energias e re-
cursos para a detecção e presunção de impedimentos e dificulda-
des do que para a pesquisa e o aviamento de soluções criativas. Ao
invés da persistente busca de saídas, nós nos aplicamos à cata de
fechaduras.

8.2.2 DISCUSSÃO IMPRODUTIVA SOBRE


ENSINO, PESQUISA E EXTENSÃO

Estéril tem sido a discussão acadêmica sobre indissocia-


bilidade (hierarquia, espaço, etc.) em relação ao "tripé" ensino, pes-
quisa e extensão, sem determinação institucional e profissional que
oriente a universidade rumo à efetiva produção. Aliás, até o conceito
acadêmico de produção tem sido vazio ou, quando muito, formal:
nos ímpetos moralizantes cobram-se genericamente trabalhos (so-
bretudo pesquisas) técnico-científicos, com rigor saneador, mas
aceita-se a rotina improdutiva até dos que pregam a moralização
alheia. Por outro lado, aqueles que se dedicam à produção sem ró-
tulo (assistência técnica, orientação em toda a sua permanência no
Campus, estímulo ao desenvolvimento cultural, técnico e científico
dentro e fora das obrigações compulsórias, etc.) são, normalmente,
jogados na vala do contingente improdutivo, visto que os processos
de gerenciamento dos departamentos e das demais unidades admi-
nistrativas se fazem quase sempre sem critérios de sistematici-

158
dade e mecanis-
mos gerenciais de
efetivo acompa-
nhamento, contro-
le e avaliação de
desempenho fun-
cional.
Compartilho
a opinião (DEMO
t 1990ae 1991 a) de
—* «f ci116 0 q 116 importa
•*- v — ——• de fato é a produ-
ção com um certo
nível de qualidade, "[...] por mais modesta que seja". Entendo que
por trás, na frente, no fundo, em cima ou do lado de uma produção
já se situaram, se situam ou se situarão (em termos de curto, médio
e longo prazos) as dimensões pesquisa-ensino-extensão. E isso com
ou sem projeto específico (o projeto é sempre um instrumento, mas
o que vale são os processos e resultados), em se tratando de traba-
lhos técnico-científicos formais (escritos) ou de competente esfor-
ço de orientação, assistência e estímulo a que outros se despertem
e multipliquem, agora ou depois, suas efetivas capacidades e habi-
lidades produtivas. Isto porque, no contexto universitário, quem pro-
duz é aquele que veste a camisa de formador e/ou formando e não
apenas aquele que escreve, embora o processo de formação impli-
que também o exercício da habilidade da comunicação escrita de
conhecimentos criados, redimensionados ou simplesmente meta-
bolizados.
A discussão sobre a indissociabilidade entre ensino, pesquisa
e extensão é, de per si e em última instância, um trabalho que des-
gasta mas nunca levou ou levará a lugar nenhum, por reduzir-se a
artifício acadêmico de se pressuporem indissociáveis coisas (con-
ceitos e fatos) que jamais foram dissociados entre si. Exemplos: a)
se faço um bom trabalho de ensino, a pesquisa está presente no
embasamento e a extensão na extrapolação de seus efeitos para os
meios da convivência familiar, profissional e social do meu aluno,
independentemente se hoje, amanhã ou depois; b) se faço um bom
trabalho de pesquisa, o mesmo influirá no meu afazer de ensino (se
sou professor) ou no magistério de outros professores, como incidirá
direta ou indiretamente em meus intercâmbios com a comunidade
extra-universitária. Então, o que importa é trabalhar bem (fundamen-
tando-se e impregnando-se do que se faz) e não o cultivo da obses-

159
são pelo rótulo: ensino, pesquisa ou extensão (essa questão será
retomada no item 8.3).

A UNIVERSIDADE AINDA
8.2.3 NÃO SE ASSUMIU

••.••: S, ^ ^ De fato, os
^ifgfé^tíà movimentos uni-
* kfSií^. versitários se ca-
racter zam
gr^ ' P o r rei-

A \ Jsfip K - ^ j ^ g s r ^ ^ J S f e ^ 1 ^ .' se todas justas,


jí X' >-. /IvnX, mas vazias de
ii I A í f f ' ^ r í p f ^ ' " j l t J ^ ^ j y
auto-análíses so-
if* v y j ' ' |
bre iniciativas que
//. v ' ' ' S í f s L J í
as próprias uni-
/ / \ \ ( / / U
ve rs i d a d e s de-
V ^ f íe=» ^ / A VW-gs i d r 7
vam tomar para
se
|i — .JT"^--
transforma-
ttC? *
rem. Isto não quer
dizer que não haja
pessoas preocupadas com o assunto e nem iniciativas esporádicas
nesse sentido, como: Seminário sobre Situação e Perspectiva do
Ensino Superior no Brasil, promovido pelo Núcleo de Pesquisa sobre
Ensino Superior da Universidade de São Paulo, em 5 e 6 de abril de
1989, bem como recentes trabalhos de Demo (Universidade e quali-
dade, in: Educação Brasileira, 1990b; Educação superior e desenvol-
vimento, 1991a; Educação e desenvolvimento, 1991b; Pesquisa-prin-
cípio científico e educativo, 1990a), de Schuch Jr. (A questão dos ob-
jetivos institucionais da universidade, in: Educação Brasileira, 1990),
de Cano et al. (Universidad y Poder em América Latina, in: Educação
Brasileira, 1990) e as próprias entrevistas com os professores Isaías
Raw, Edmundo Campos (já mencionados), e tudo o mais que vem
sendo publicado.
São apenas iniciativas de pessoas isoladas e equipes ou esparsas
unidades institucionais sensibilizadas e com visão da problemática.
Ocorre, porém, que esse tipo de preocupação não parece ter impreg-
nado efetivamente o grosso da população que compõe e operacionaliza
a vida universitária. Não faz parte, pelo que vem ocorrendo, das angús-

160
tias e muito menos dos objetivos dirigentes, docentes, técnico-admi-
nistrativos e até discentes da esmagadora maioria das IES brasileiras.
Nas áreas dirigente, docente, técnico-administrativa e discente, fala-
se, como nunca, sobre diálogo democrático, idéias pluralistas, gestão
participativa, processos dialéticos e similares. Mas o que se tem verifi-
cado na práxis é a ênfase no dirigismo ideológico, em que o "diálogo",
"o pluralismo de idéias", "os critérios de gestão" e as "premissas
dialéticas" aceitas e praticadas são aquelas decorrentes da equivoca-
da aplicação de convicções metodológico-ideológicas da política parti-
dária.

Prega-se muito e duramente sobre o que os outros devem fa-


zer, mas não se programa efetiva e compromissadamente o que
cada segmento, unidade gerencial e órgão colegiado devem assu-
mir para que a universidade (cada universidade) se evolua no senti-
do de autêntico projeto formativo-educacional. A imaturidade históri-
ca nos leva à crença, à ingenuidade e talvez até ao capricho de
pensarmos que aspirações e convicções partidárias, grupais ou
m e s m o p e s s o a i s , c o i n c i d e m com o b j e t i v o s s o c i e t á r i o s e
institucionais. Em assim sendo, a pluralidade ideológica conduz ao
impasse de alternativas, ao invés de favorecer a formação de le-
ques de propostas viáveis, com espaço participativo para todos e
qualquer um que efetivamente pretendam engajar-se na construção
teórico-operacional da vida institucional, independentemente do res-
pectivo credo ideológico.
O que se tem observado é que a pluralidade ideológico-somativa
ainda está por emergir, enquanto o que efetivamente vem acontecendo
no interior das instituições é a alternância dos autoritarismos de posi-
ção (absoluto no regime da ditadura militar) e de oposições (predomi-
nante na atualidade).
A inexperiência histórica nos leva, ainda, à exótica postura de
agirmos acreditando (sic) que a prática da "polêmica dialética", apoia-
da exclusivamente nos eixos denúncia-reivindicação, é o bastante para
que a universidade saia da crise que não é só financeira: é sobretudo
de capacidade, competência e produção.
E tendo em conta que por trás da produção estão a capacidade e
a competência de algum tipo ou grau de pesquisa, a crise se afigura,
no fundo, como um grande problema de mentalidade e habilidade de
pesquisa na instituição universitária brasileira. As soluções estão por
aí, em alguma parte, à espera de que as pesquisemos e as concretize-
mos pela soma operativa de esforços, em contexto de pluralidade ideo-
lógico-profíssional, formativamente construtivo-produtiva, seja pela ob-

161
tenção de resultados acabados seja pela geração de iniciativas e
engajamento em processos que objetivem a multiplicação de produtos
de sadia evolução a médio e longo prazos.

MIOPIA GOVERNAMENTAL EM
8.2.4
RELAÇÃO À UNIVERSIDADE

Na verdade,
as questões ana-
lisadas nos itens
anteriores (8.2.1 a
8.2.3) represen-
tam aquilo que se
poderia chamar
amplos aspectos
de miopia ins-
titucional.
Enfocarei,
agora, a miopia de um outro prisma (ou seja, no das áreas governa-
mentais federai, estadual e municipal em relação à universidade), mas
entendendo que também esse prisma tem muito a ver com a miopia
institucional. Por quê? - Porque míope é a visão de quem são enxerga
o notório fato de que os políticos e governantes de hoje foram, em mai-
oria absoluta (pelo menos nos âmbitos federal e estaduais) os universi-
tários de algum destaque anteontem; de quem não vê que concebem e
tratam agora o
chamado "siste-
ma universitário" / /'/iSI7 x
brasileiro da ma-
neiracomoapren- f J W-.
deram a concebê- _ > i > j / /*** V
Io e a tratá-lo en- y " A-^Xtf^ f rr '^. • ' ""•• \
quanto universitá- / / g ^^^^t^ff/"^ \
rios no passado, .// • . \
ou seja. como um I j ^ ^ f j / . '
mal necessário •* M S ^ ^ P 1 ^ v %*
ou fábrica de diplo- V ^ 'r
mas (quiçá até la- \
boratório de cor-

162
rupção: "colas", "pesquisas" copiadas, "co-autorias" falsas em traba-
lhos acadêmicos, "espertezas" em embrulhar professores e alunos,
etc.) para ascensão social e profissional, ressalvadas honrosas exce-
ções, evidentemente.
Em decorrência, o resgate da credibilidade depende também, e
fundamentalmente, de cada instituição universitária. A universidade que
se valorizar agora, através de toda a sua comunidade universitária,
estará investindo no seu próprio futuro, pelo reconhecimento de seus
egressos que ocuparem posições de definição e mando no diferentes
níveis e âmbitos da textura polítíco-administrativa.
Mesmo assim, a área executivo-governamental vem mostrando
miopia cabal em relação ao potencial que são sobretudo as universida-
des, a começar pelas mantidas pela União e pelos Estados. São mons-
tros cultivados nos
quintais dos gover-
nos, que sequer
procuram aprovei-
tara força que têm
para a atuação per-
manente na base
de todo o processo
de desenvolvimen-
to material e social
tanto do país como
de cada cidadão,
sem se desvirtua-
rem de seus obje-
tivos e funções específicas (ao contrário, cumprindo-os melhor em ter-
mos de qualidade e quantidade).

Em 1976, quando atuava como técnico na Universidade Estadual


de Ponta Grossa - UEPG, já me preocupava com essa questão. Em
reunião na Secretaria de Planejamento do Estado do Paraná, tive a
oportunidade de interpelar a cúpula técnica do planejamento estadual
mais ou menos no seguinte teor: por quê o Estado por um lado man-
tém as suas universidades e instituições isoladas de ensino superior e,
por outro, as alija da formulação e operacionalização de seus planos,
programas e projetos de desenvolvimento?; por quê o Estado não in-
veste credibilidade e recursos no sentido de que as IES se transfor-
mem em fontes contínuas de geração não só de conhecimento como,
inclusive, de desenvolvimento em suas respectivas áreas de atuação?;
por quê, ao invés de manter as IES como entidades semivivas e de
custear onerosos programas infra-estruturais de desenvolvimento, o

163
Estado não investe, com exigência de retorno, no sentido de que a ins-
tituição universitária estadual rompa os grilhões do academicismo for-
mal e comece a trabalhar com metas arrojadas de mentalização, de
realização de pesquisas, e experimentos, e de prestação de serviços
outros que tornem as comunidades universitárias autênticos agentes
multiplicadores de capacidade e competência no desencadeamento
de processos com opções alternativas de desenvolvimento?
A impressão que se tem hoje (1992), em relação a esse questio-
namento, é a de que as coisas não mudaram significativamente nos
anos que se passaram em termos tanto de Paraná quanto de Brasil.
As IES federais e estaduais são tidas muito mais como peso orça-
mentário que mananciais passíveis de serem aproveitados em prol
do desenvolvimento do país e da consolidação formativa da nação. E
o mais curioso, para não dizer lamentável, é que as entidades gover-
namentais são ca-
pazes de investir
ou até simples-
mente gastar so-
mas exorbitantes
na m o n t a g e m e
m a n u t e n ç ã o de
outros monstros
(centros de aper-
feiçoamento de re-
cursos humanos,
grandes laboratóri-
os de produção e
testes nas áreas
agrícolas, farmacêuticas, etc.), cujas funções poderiam, se planeja-
das com eficiência, ser absorvidas com menos ônus financeiro pelas
IES e sistematicamente cobradas pelas agências de desenvolvimen-
to da respectiva esfera administrativa.

Envolvendo dirigentes, professores, técnicos e alunos nesse tipo


de trabalho, a universidade se configuraria, pouco a pouco, como au-
têntica entidade laboratorial de pesquisas e testes de alternativas de
desenvolvimento, não apenas compatíveis mas até inerentes aos seus
objetivos e atividades formativas. O ensino seria motivado e revitalizado.
A extensão deixaria o seu caráter fisiológico de programas e projetos
artificialmente acoplados à rotina universitária, pois tudo o que se reali-
zasse na universidade produziria reflexos diretos e indiretos na dinâmi-
ca organizacional e funcional da vida societária, em termos de curto,
médio e/ou longo prazos. A dimensão extensionista da universidade se

164
incorporaria natural e essencialmente à pesquisa e ao ensino ou de-
correria diretamente da produção universitária.
Quanto ao receio de a universidade se tornar agência manipulável
de administração do desenvolvimento, de perder as suas característi-
cas de instituição de formação educacional autônoma, até um simples
raciocínio lógico permite entrever que esse é o tipo de problema que só
se concretiza quando as pessoas nele envolvidas são incompetentes,
o que não se pode pressupor aprioristicamente.
O que efetivamente não deveria ocorrer é a universidade ficar
mendigando, de "pires na mão", quando poderia receber reforços,
em matéria de recursos de toda ordem (inclusive para a melhoria de
salários), mediante compromissos de retornos previamente acor-
dados. O que não poderia acontecer são os governos e as entida-
des universitárias, por eles mantidas, ficarem em permanente clima
de rixa, de discór- ;
dia, de caprichos,
de oposição e de
mútuo descrédito.
Sob esse as-
pecto, as entidades
governamentais têm
sido mais míopes
que as próprias ins-
tituições universitári-
as. O não enga-
jamento dessas ins-
tituições em planos
e programas de de-
senvolvimento refle-
te exatamente a vi-
são imediatísta que
vem caracterizando
os constantemente
frustrados progra-
mas governamen-
tais nacionais e es-
taduais, Isso, por-
que o desenvolvi-
mento não é só
questão objetiva de
ciência, tecnologia e
recursos financei-

165
ros. Inicia-se pelo processo de formação da cabeça, da mentalidade,
da cultura e das perspectivas sócio-pessoais de cada indivíduo, de cada
cidadão. E é exatamente aí que as instituições universitárias poderiam
tornar-se fortes, úteis, atraentes e produtivas, sem se desviarem um
milímetro sequer de sua trajetória formativa.
Não se pode dizer, em princípio, que as IES públicas são arredias
a esse tipo de engajamento e compromisso, visto que nunca foram ou
são instadas para tal, em clima de diálogo objetivo, de co-responsabili-
dades gerenciais e de mútuo respeito institucional. Estudos com esse
propósito, como o de Sobral (1989), mostram que é necessário muito
esforço para detectar as ligeiras alusões às universidades, sem efetivo
comprometimento das mesmas, nos planos nacionais e setoriais de
desenvolvimento.
A questão de as IES restarem na condição de pesos orçamentá-
rios, sob a ótica das cúpulas administrativas governamentais, sempre
se me afigurou como algo extremamente contraditório e absurdo, ex-
pressão permanente da incompetência do gerenciamento público no
Brasil. São numerosas, enormes e estrategicamente bem situadas or-
ganizações que poderiam ser aproveitadas como verdadeiras estações
permanentes de geração, irradiação e aperfeiçoamento de contínuos,
alternativos, dinâmicos e compatíveis iniciativas e processos de de-
senvolvimento local, regional e nacional.
Para se ter uma idéia do potencial universitário, em matéria de
desenvolvimento, não são necessárias grandes elocubrações. Basta
um pequeno exercício de raciocínio: mesmo que cada IES pública se
limitasse a trabalhar bem (em termos de mentalização, teorização e
iniciação operacional) só a clientela que nela se ingressa a cada ano
ou semestre, ao final de cada qüinqüênio o país contaria com a entra-
da em ação de milhares de agentes multiplicadores de iniciativas e
progresso, se inclu-
ídos na categoria
de agentes, pelo
menos mentali-
zados, aqueles que
deixam as institui-
ções antes da con-
clusão dos respec-
tivos cursos. E a
questão da forma-
ção dos agentes de
multiplicação é de
estratégica e extre-

166
mada importância, pois serão eles que influenciarão tanto os seus
meios de vida e trabalho como também subsidiarão os primeiros pas-
sos das gerações que nascem e crescem ao longo do processo. Só
a título de exemplo: se houvesse um bom trabalho desenvolvimentista
junto aos professores que saem licenciados dos cursos superiores,
dentro em breve boa parte dos alunos da educação infantil e da edu-
cação básica passaria a receber as influências benéficas e regulares
sobre essa questão no decorrer de todos os seus processos de edu-
cação. E isso sem falar no efeito multiplicador espontâneo que todos
fariam na futura condição de pais, colegas, políticos, gestores empre-
sariais e governamentais.

Só resta mais uma indagação: se tudo o que se disse é tão óbvio,


por quê nossos governos federais, estaduais e municipais não procu-
— — raram, até hoje, en-
volver, de fato e
para valer, as IES
sob sua jurisdição,
ou situadas nos res-
pectivos territórios,
em seus planos,
programas e proje-
tos de desenvolvi-
mento local, regio-
nal e nacional?
Esse tipo de
miopia tem cura.

A PESQUISA NA CARACTERIZAÇÃO
ESSENCIAL DA UNIVERSIDADE

Todos os aspectos tratados no subitem precedente se referem a


problemas concernentes à falta de visão ou miopia por parte tanto das
instituições universitárias quanto da área executiva dos governos fede-
ral, estaduais e municipais. De fato, esses aspectos se sintetizam em
apenas um: a universidade é improdutiva porque sequer se conhece e
assume. Governos e universidade padecem da mesma doença
diagnosticada por Kujawski (1991, p. 202-207) como sendo o problema
básico de toda a crise brasileira: não sabem o que fazer justo porque

167
ainda não se preocuparam em conhecer a si mesmos para gerarem
autopropostas de compromisso evolutivo.
Em virtude disso e no intuito de subsidiar análises e posturas
mais aprofundadas, tentarei caracterizar pelo menos aquilo que enten-
do como essência do esboço estrutural-funcional da instituição ou en-
tidade universitária propriamente dita. Para tanto, associarei a universi-
dade, como instituição laboratorial da sociedade, à figura da lente (aquela
plaqueta arredondada e côncava de vidro que aglutina e condensa os
raios da luz).
Logo que comecei a me relacionar diretamente com a idéia e o
fato da universidade, no começo da década de 60, entrou em acirrada
discussão a extinção do regime da cátedra e dos respectivos lentes
catedráticos, em preparação ao advento da chamada Lei de Reforma
do Ensino Superior no Brasil, a de n.° 5.540/68. Embora tivesse estu-
dado um pouco de latim, a expressão lente catedrático me represen-
tava a idéia de um fenômeno relacionado com noções de Óptica da
Física: o lente catedrático seria aquele professor cujo lastro de for-
mação e erudição lhe permitia captar os raios do saber, compreendê-
los para si mesmo e repassá-los aos alunos universitários, à seme-
lhança do que ocorre com a lente óptica que recebe os raios solares,
os condensa e os projeta concentrados e incandescentes, com pos-
sibilidade até de in-
flamar o material
c o m b u s t í v e l por
eles atingidos (fiz
muitas experiênci-
as nesse sentido,
com lentes de ócu-
los de grau ou com
lupas, bastante
usadas há alguns
anos).

O interessan-
te é que essa ima-
gem, que fiz do len-
te catedrático e, por aproximação, de todos os professores de universi-
dade, despertou em mim enorme admiração e respeito pelo professor
universitário de modo geral, tanto é que batalhei para me tornar um
deles. Essa imagem foi consolidada, na prática, pelo fato de ter tido a
honrosa oportunidade de fazer minha primeira licenciatura-mestrado
na Pontifícia Universidade Gregoriana - P U G (1961 -65) de Roma-ltália,
cuja direção, da Ordem Jesuíta, tinha o privilégio de convocar os me-

168
Ihores professores (jesuítas) do mundo para lá lecionarem. Os proble-
mas metodológicos de uma didática secularmente tradicional se me
afiguravam como secundários, tendo em vista que cada professor, além
de elevadíssima titulação, produzia os textos de apoio (verdadeiros li-
vros para uso dos estudantes), sempre com posicionamentos doutri-
nários próprios.
Essa imagem perdurou em mim até 1968, exatamente o ano
de promulgação da Lei n.° 5.540, quando me iniciei na carreira do
magistério superior e me propus a completar duas outras licencia-
turas. Nessa época, realizei também duas descobertas frustran-
tes: a) o termo lente, aplicado para professor, não procedia (como
eu imaginava) da palavra latina lens-tis (lens = nominativo e lentis
= genitivo) que significa originalmente lentilha, cujo formato
arrendodado-achatado-abaulado inspirou a denominação da lente
óptica, mas resultou de elisões ocorridas no termo legentem, que é
a forma acusativa do gerúndio substantivado legens do verbo legere
(ler) e significa, portanto aquele que lê (está lendo) ou leitor; b) a
segunda descoberta consistiu em vir a saber e comprovar que o
professorado uni-
versitário brasileiro
havia efetivamente
encarnado a fun-
ção de lentes (en-
quanto leitores re-
petidores e repro-
dutores acríticos
de conhecimentos)
muito mais a sério
do que o ensejado
pela origem etimo-
lógica do t e r m o :
oxalá tivessem entendido, de fato e ignorantemente como eu, que
lente universitário seria aquele professor dotado de infra-estrutura
formativa para captar os raios do saber universal da respectiva área
de atuação, com a competência mínima no sentido de digeri-lo, con-
forme Demo (1990a, p. 17) quando se refere ao essencial em ter-
mos da criatividade requerida do professor, e de disseminá-lo de
maneira interventiva (ou seja, tocando, desafiando ou "inflamando")
para a co-digestão dos estudantes universitários.

Ressalvada a gratificante excepcionalidade das chamadas "ilhas


do saber", emergidas aqui e acolá no Brasil, mas que honram a institui-
ção universitária universal, perdura até hoje a frustração acima referi-

169
da. Só que vim a constatar também, através da convivência universitá-
ria e de alguns estudos históricos na área, que o problema do profes-
sor leitor, ensinadore mero reprodutor não representa uma deficiência
de responsabilidade exclusiva do corpo professoral universitário. O Es-
tado autoritário brasileiro tem enorme parcela de culpabilidade histórica
nisso, desde os primórdios do ensino superior no país, pela Lei de 11
de agosto de 1827, que implantou simultaneamente os dois primeiros
cursos jurídicos, os de São Paulo e Olinda.
Só a análise do art. 7 o já seria suficiente para se ter uma idéia do
dirigismo estatal na área magisterial dos lentes. Mas, considerando
outras curiosidades históricas (sobretudo as referentes às cadeiras
curriculares, aos proventos estabelecidos, ao funcionamento simultâ-
neo dos cursos de doutorado, para a formação de lentes, e de prepa-
ração dos candidatos ao ingresso no bacharelado, etc.), resolvi trans-
crever a íntegra da citada Lei (Gazeta Mercantil, São Paulo, 11/08/88):
Lei de 11 de Agosto de 1827. Cria dous Cursos de Ciências Jurídicas e
Sociais, um na Cidade de S. Pauio e outro na de Olinda.
Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus e unânime aclamação dos povos,
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a
todos os nossos súditos que a Assembléia Geral decretou e nós queremos
a Lei seguinte:

Art. 1o - Criar-se-ão dous Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais, um na Cida-


de de S. Paulo, e outro na de Olinda, e neles no espaço de cinco anos, e em
nove cadeiras, se ensinarão as matérias seguintes:
1o ANO - 1 a cadeira. - Direito Natural, Público, Análise da Constituição do
Império, Direito das Gentes, e Diplomacia.
2 o ANO - 1 a cadeira. - Continuação das matérias do ano antecedente. 2 a
cadeira. - Direito Público Eclesiástico.

3 o ANO - 1 a cadeira. - Direito Pátrio Civil. 2 a cadeira. - Direito Pátrio Criminal


com a Teoria do Processo Criminal.

4 o ANO - 1a cadeira. - Continuação do Direito Pátrio Civil. 2 a cadeira. - Direito


Mercantil e Marítimo.
5o ANO - 1a cadeira. - Economia Política. 2 a cadeira. - Teoria e Prática do
Processo adotado pelas leis do Império.
Art.2 o Para a regência destas cadeiras o Governo nomeará nove lentes pro-
prietários, e cinco substitutos.
Art.3 o Os Lentes proprietários v e n c e r ã o o ordenado que tiverem os
Desembargadores das Relações, e gozarão das mesmas honras. Poderão
jubilar-se com o ordenado por inteiro, findo vinte anos de serviço.

Art.4 o Cada um dos Lentes Substitutos vencerá o ordenado anual de 800$000.

Art.5° Haverá um Secretário, cujo ofício será encarregado a um dos Lentes


Substitutos com a gratificação mensal de 20$000.

170
Art,6 o Haverá um Porteiro com o ordenado de 400$000 anuais, e para o ser-
viço haverão os mais empregados que se julgarem necessários.

Art.7° Os Lentes farão a escolha dos compêndios da sua profissão, ou os


arranjarão, não existindo já feitos, contanto que as doutrinas estejam de
acordo com o sistema jurado pela Nação. Estes compêndios, depois de
aprovados pela Congregação, servirão interinamente; submetendo-se po-
rém à aprovação da Assembléia Geral e o Governo os fará imprimir e fornecer
às escolas, competindo aos seus autores o privilégio exclusivo da obra, por
dez anos.

Art.8 o Os estudantes, que se quiserem matricular nos Cursos Jurídicos, de-


vem apresentar as certidões de idade, porque mostrem ter a de quinze anos
completos, e de aprovação da Língua Francesa, Gramática Latina, Retórica,
Filosofia Racional e Moral, e Geometria.

Art.9 o Os que freqüentarem os cinco anos de qualquer dos Cursos, com


aprovação, conseguirão o grau de Bacharéis formados. Haverá também o
grau de Doutor, que será conferido aqueles que se habilitarem com os requi-
sitos que se especificarem nos Estatutos, que devem formar-se, e só os que
o obtiverem, poderão ser escolhidos para Lentes.
Art. 10° Os Estatutos do Visconde da Cachoeira ficarão regulando por ora
naquilo em que forem aplicáveis; e se não opuseram à presente Lei. A Con-
gregação dos Lentes formará quanto antes uns estatutos completos, que
serão submetidos à deliberação da Assembléia Geral.

Art.11° O Governo criará nas Cidades de S. Paulo e Olinda as cadeiras neces-


sárias para os estudos preparatórios declarados no art. 8 o .
Mandamos portanto a todas as autoridades, a quem o conhecimento e exe-
cução da referida Lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar
tão inteiramente, como nela se contém. O Secretário de Estado dos Negóci-
os do Império a faça imprimir, publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de
Janeiro, aos 11 dias do mês de agosto de 1827, 6 o da Independência e do
Império.
IMPERADOR (com rubrica e guarda).

Aos interessados em aprofundar estudos históricos sobre a


situação do lente
catedrático no pe-
ríodo 1 8 2 7 - 1968,
Fávero et ai. (in:
Educação Brasilei-
ra, 1990) apresen-
tam s í n t e s e s de-
monstrativo-com-
parativas, além de
15 referências bi-
bliográficas-docu-
mentais, de muita
valia.

171
O que mais diretamente se relaciona com a questão do profes-
sor "leitor" (portanto não criativo) é o fato de o lente jamais ter tido auto-
nomia doutrinária. A sua criatividade foi, desde o início, castrada pelo
Estado que lhe impôs o sistema doutrinário "[...] jurado pela Nação", a
censura (aprovação) da Congregação, da Assembléia Geral e, lógico,
do próprio governo imperial, com a contrapartida de bons salários e
honrarias de Estado.
É fácil perceber que essa castração doutrinária teve longa dura-
ção inclusive em termos legais, pois só em 1945, pelo Decreto n.° 8.393
(17/12/45),
[...] foi concedida à universidade do Brasil (Rio de Janeiro) uma autonomia
administrativa, didática e financeira, prevendo a participação da comunidade
universitária na gestão da universidade, através de uma Assembléia Univer-
sitária, composta por professores, funcionários e alunos.
Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei n.°
4.024, de 20.12.61 - foram ratificados os princípios da autonomia contidos
na legislação de 1945, através do art. 80 [...], (VAHL, in: Educação Brasileira,
1990).

Como se vê, só no final de 1961 as autonomias, inclusive a didá-


tico-científica aqui destacada, passaram a existir legalmente para todo
o país, quando se ensaiava uma esperançosa brisa de efetiva liberda-
de no Brasil. Ocorre, no entanto, que ironicamente o ato regulamentador
dessas autonomias foi exatamente a Lei n.° 5.540/68, que as manteve
no texto legal sem que de fato pudessem ser exercitadas, em virtude
de 1968 ter sido o ano de recrudescimento (o dos atos mais repressi-
vos) da ditadura militar, já repressora desde a sua instalação em 1964.
Daí para cá, todos conhecemos a história: só em 1988 os entra-
ves repressivos quanto ao exercício das liberdades de pensar e agir
foram extirpados da Constituição, ficando mantidas as autonomias uni-
versitárias no art.
207, talvez com
contexto político
mais favorável no
sentido de que se
propicie a sua real
efetivação.
Mesmo de-
pois de haver enfa-
tizado a ininterrupta
castração estatal
da liberdade de cá-
tedra ou autonomia

172
didático-científica, em todo o período da história universitária brasilei-
ra, faço questão de reiterar que a intervenção do estado, embora opres-
sivamente nociva, não justifica toda a ineficiência produtiva tanto da
área docente quanto da instituição universitária como um todo. E as-
sim penso por três motivos: a) quando subsiste um potencial real de
eficiência, a opressão ao invés de o anular o incita à geração de laten-
tes porém criadoras iniciativas, que passam a tomar corpo logo em
seguida aos primeiros momentos de distensão ou até na própria pro-
vocação do processo distensivo: isso era esperado da universidade
brasileira no apagar das luzes da ditadura militar, mas até o presente
não se têm indícios de que esteja de fato ocorrendo em escala; b) a
universidade começa a sentir os reflexos das cobranças de eficiência
e produtividade, como se registrou no subtópico 8.1, mas parece aco-
modar-se ao estigma da ineficiência, transferindo o problema para a
crise com suas nefastas conseqüências (salários baixos e falta de
verbas para custeio e investimento); todavia, se houvesse verdadeiro
lastro de autoconsciência crítica e de potencial produtivo, a situação
de crise se reverteria em desafio à eficiência, vez que de crise só se
sai com competência produtiva (não há outro caminho e muito me-
nos atalho); c) a instituição universitária pública brasileira nutre o in-
gênuo equívoco de esperar que os governos a tornem competente
(concedendo-lhe verbas a mancheias), contrariamente à lógica que
recomenda o oposto: em condições normais e a médio ou longo pra-
zo, é a instituição universitária que tem mais chances de influir positi-
va ou n e g a t i v a m e n t e nas c a p a c i d a d e s e c o m p e t ê n c i a dos
governantes, como se frisou na introdução do item 8.2.4, vez que tais
influências têm ocorrido sempre (até algumas conquistas, como a
das autonomias legais, delas decorrem) e que se desconhecem pro-
vas da situação oposta em todos os anos da história universitária
brasileira, ou seja, desde 11 de agosto de 1827.

Feito todo esse extenso elenco de considerações introdutório-


contextuais, é o momento de retomar o propósito anunciado no início
deste item do trabalho: buscara compreensão conceituai descritiva da
universidade autêntica pela sua associação analógica às propriedades
da lente óptica ou, mais precisamente, da lupa.
Na minha visão, a universidade, enquanto instituição universal,
se afigura a uma espécie de potente lupa que cada sociedade cons-
trói (institui), com as seguintes propriedades básicas: a) captar con-
vergentemente os raios das luzes do saber universal, independente-
mente de sua natureza, forma, tipo ou especificação própria;
b) decodificá-los, metabolizá-los, recriá-los, aprofundá-los e/ou
redimensioná-los em termos de produção pessoal, grupai e institucional;

173
c) disseminá-los in-
tensivo-difusiva- Kit'
mente, de forma v I *» ?"•** "tf
que cada atividade • •-. V f
/ - '^ife* ,
desenvolvida no ---
»s*- *
\ • u ' * x ' j. * "'•#*'
^í~íííi5ir!f
:

âmbito da universi-
dade irradie diver-
gentemente as suas
influências benéfi-
cas à totalidade da
realidade societária,
através da dinâmica
dos processos de J if " i - ^
efeitos multiplica-
dores que se desencadeiam a partir de fenômenos e pessoas mais
próxima e diretamente atingidos (no caso da lupa, um foguinho conse-
guido com a condensação de raios solares numa moita de sapé pode
incendiar um campo inteiro); d) realizar, simultaneamente aos procedi-
mentos acima mencionados, o caminho inverso: captar da sua própria
realidade (a de cada universidade) e da realidade societária, em que se
situa, tudo o que pode e/ou deve ser conhecido, criado ou inventado;
sistematizá-lo em termos de conhecimentos técnico-científicos
confiáveis; e disseminá-los no universo do saber universal.

A imagem visual que pode ajudar à melhor compreensão do deli-


neamento conceituai descrito acima é a seguinte:
Já ouvi dizer que todas as comparações claudicam e que muitas
sequer têm "pernas". No caso da imagem, acima, pode ser até que
claudique como analogia da instituição universitária universal, mas (pelo
menos para mim) indica muito bem que a característica fundamental
da universidade é o trabalhar irradiando, o que significa o mesmo que
pesquisar disseminando o conhecimento, em processo que se orienta
por vias de mão dupla: a que se dinamiza no sentido da captação de
conhecimento do acervo universal do saber metabolização
institucional disseminação interventivo-difusora na realidade
societária; e a da rota inversa, captando conhecimentos da realidade
societária metabolizando-os e sistematizando-os institucional-
mente remetendo-os para... e disseminando-os no acervo universal
do saber.
É por aí que entendo a diferença entre universidade e outra enti-
dade escolar-ensinadora qualquer; que reitero o posicionamento de que
a universidade é uma entidade laboratorial ou espécie de maternidade

174
de conhecimento para e na sociedade. É em razão disso que assimilo,
com concordância absoluta, o perfil geral do professor, principalmente
universitário caracterizado por Demo (1990a, p. 48-49):
[...] vale perguntar: o que é o professor?
a) em primeiro lugar, é pesquisador, nos sentidos relevados: capacidade de
diálogo com a realidade, orientado a descobrir e a criar, elaborador da ciên-
cia, firme em teoria, método, empiria e prática;

b) é, a seguir, sociabilizador de conhecimentos, desde que tenha bagagem


própria, despertando no aluno a mesma noção de pesquisa;

c) é, por fim, quem, a partir de proposta de emancipação que concebe e


realiza em si mesmo, torna-se capaz de motivar o novo pesquisador no alu-
no, evitando de todos os modos reduzi-los a discípulo subalterno.

[...] somente tem algo a ensinar quem pesquisa.

É de se observar, no entanto, que o pesquisar disseminando e o


disseminar pesquisando não são questões só de professor ou de cor-
po docente da universidade. São dinâmicas processuais inerentes à
própria natureza da universidade, inclusive no que se refere às manei-
ras de se constituir, administrar e agir. Tudo na universidade tem de ser
encarado como de cunho laboratorial para a realidade societária em
que se insere e, ainda, para a macro-realidade do saber universal. O
problema é que, como se tratou no Tópico 2, quando se fala em pes-
quisa se pensa imediatamente em algo tremendamente sofisticado e
ritualizado. Não é bem assim, já o vimos no subtópico 5.3. Enquanto
processo, a pesquisa abrange dosagens, em matéria de rigor e ordem,
do "diálogo inteligente com a realidade [...] fala contrária entre atores
que se encontram e defrontam" (DEMO, 1990, p. 36-37) a até inquiri-
ções extremamente complexas, com tecnologia dita de ponta, nas áre-
as nuclear, biogenética, da química fina, da metafísica, da física quântica,
da microbiologia e correlatas.

Isso quer di-


zer que há espaço
para engajamento
de todos os inte-
grantes de cada co-
munidade universi-
tária nas dinâmicas
do pesquisar disse-
minando e do dis-
seminar pesqui-
sando. A própria or-
ganização adminis-
trativo-funcional da

175
universidade deve
tornar-se exemplo
dinâmico de como
o r g a n i z a r outras
instituições de su-
porte logístico da
sociedade. Por
isso, sequer a ad-
ministração univer-
sitária escapa ao
pesquisar dissemi-
nando e ao disse-
minar pesquisando.

Agora, é hora de retomar a questão da estéril discussão sobre


indissociabilidade entre ensino, pesquisa, extensão e, acrescento, ad-
ministração, as tradicionalmente chamadas funções básicas da uni-
versidade: as três primeiras compondo o "tripé" da área-fim e a última
constituindo o pivô da área-meio (item 8.2.2). Disse e reafirmo, após o
ensaio de caracterização do perfil da autêntica universidade, que a dis-
cussão não leva a lugar nenhum (a não ser que perda de tempo e des-
gaste de energias se afigurem como "objetivos" almejados), por tratar-
se de debate acadêmico que pressupõe indissociados fenômenos
intercomplementares que jamais se desassociam entre si.

Quanto à intercomplementariedade entre pesquisa, ensino e ad-


ministração, acho suficiente relembrar o que foi enfatizado há pouco: o
pesquisar disseminando e o disseminar pesquisando as envolvem to-
das no processo de mão-dupla explicativo da imagem da universidade
associada alegoricamente às propriedades da lupa receptora e retro-
alimentadora dos raios de luzes do saber universal. Não pode haver, na
universidade, ensino sem pesquisa e administração; e administração
sem pesquisa e ensino. O contrário é, em minha opinião, mero exercí-
cio acadêmico do faz de conta que "universidade" é UNIVERSIDADE
tanto na "teoria" quanto na "prática".

E a extensão, por quê ficou de fora? - Porque, também no meu


parecer e de acordo com a opinião dos autores citados, a extensão não
existe como função da universidade, mas consiste na dimensão
interventivo-difusiva da própria essência de universidade como entida-
de laboratorial da sociedade. Ou, ainda, conforme Schuch Jr. (in: Edu-
cação Brasileira, 1990:137):
O aprofundamento desta reflexão, embasada numa forte consciência do
papel social da universidade e na constatação de algumas distorções, leva
ao entendimento de que extensão não é uma atividade diferenciada que tem

176
configuração própria como as atividades de ensino e as atividades de pes-
quisa. Extensão é o "caráter" que o ensino e a pesquisa verdadeiramente
universitários devem ter.

Segundo Demo (1991a, p. 7-8 e 1990a, p. 15):


O problema da extensão é ainda assunto duvidoso, quando toma feição de
atividade extrínseca à vida acadêmica, voluntária e residual. Por certo, inco-
moda demais à universidade o fato de que, quanto mais se "estuda" a pobre-
za, menos se vê correlação com seu combate.

[...] é possível inclusive dizer que a extensão tradicional não faria falta, se a
prática fosse curricular, desde os semestres iniciais, na condição de uma
disciplina qualquer, e retornasse sempre à teoria.

[...] é possível elaborar uma proposta de pesquisa que dispense a muleta da


extensão, se for apenas muleta. Quando a prática se reduz a "estágio", a
extensão é necessária. Se, porém, prática fosse curricular, já é extensão.

Embora venha enfatizando a pesquisa no decurso de todo este


trabalho, reafirmo aqui a certeza de que o ingresso no mundo da boa
pesquisa-ensino ou do bom ensino-pesquisa, de maneira interveniente
e irradiante na realidade societária, se inicia pela determinação
inarredável de produzir com certa qualidade, em termos de assimila-
ção e cunho personalizado. A determinação e o fato de produzir (seja
por escrito ou em forma de orientação, assistência, assessoramento,
etc.) leva necessariamente à pesquisa e à disseminação do conheci-
mento, com metodologia menos formal no começo e progressivamen-
te mais sistematizada a partir de um certo marco de familiarização
com o próprio processo produtivo.
A universidade que efetivamente se determinar a produzir, mes-
mo que não conte com sofisticados insumos logísticos de partida, cri-
ará alternativas metodológicas e contará, sem dúvida, com boas dinâ-
micas e bons resultados difusivos de ensino, pesquisa e administra-
ção, como dimensões intercomplementares da instituição universitá-
ria.
Algumas Dicas aos Indecisos se encontram no subtópico 5.5.
Seria interessante recordá-las no caso da persistência de qualquer tipo
de vacilamento por parte de quem vem me acompanhando pela leitura
do presente trabalho. São apenas dicas, mas podem ajudar: pelo me-
nos foi o que se intencionou ao serem formuladas.

177
DIMENSÃO TEÓRICO-
OPERÂCIONAL DA
PESQUISA UNIVERSITÁRIA
Enquanto no Tópico anterior se buscou a configuração essencial
da universidade a partir do pesquisar disseminando e do disseminar
pesquisando, dá-se ênfase, neste, a aspectos diretamente relaciona-
dos à teoria funcional da pesquisa no âmbito da instituição universitária
sobretudo brasileira.
Nesse intuito, quatro abordagens ou pontos de vista são
enfocados: a pesquisa na conquista da autonomia universitária (9.1); a
universidade entendida como amplo viveiro de pesquisa (9.2); a pes-
quisa imanente à docência (9.3); e a pesquisa não imanente (embora
subsidiária e complementar) à docência em sentido estrito (9.4).
Na verdade, o que ora se pretende é o encaminhamento de aná-
lises, discussões e perspectivas para o campo da práxis da pesquisa
na configuração essencial e no contexto específico da instituição uni-
versitária e, por extensão, de outras entidades de natureza tipicamente
formativo-educacional.

A PESQUISA NA CONQUISTA DA
9,1
AUTONOMIA UNIVERSITÁRIA

O acompanhamento de discussões em torno dessa questão me


tem levado à constatação de um aparente dilema: de um lado, a falta
de autonomia inviabiliza a pesquisa e, de outro, a falta de pesquisa
inviabiliza a autonomia.

181
Esse tipo de
dilema só se torna-
ria real se autono-
mia fosse algo que
se ganhasse, com-
prasse ou herdas-
se por inteiro, ou
seja, se constituís-
se um fator com-
pletamente exóge-
no à organização e
ao funcionamento
de cada instituição,
não implicando pro-
cesso algum de conquista da parte de quantos (pessoas e entidades)
a aspiram. Ocorre que as coisas não são bem assim, como lucida-
mente mostra Schuch Jr. (in: Educação Brasileira, 1990, p. 144):

A autonomia não pode ser concebida como uma concessão que a lei consa-
gra. É uma conquista que o ser maduro e responsável atinge. Na medida em
que as pessoas e grupos amadurecem, tendem a repelir uma relação de
mando-obediência, inerente a uma relação de dominação a exigir reciproci-
dade de tratamento. Isto é autonomia. Não serão as leis que a efetivarão.
Será, sim, a ação competente e responsável da instituição, orientada por
uma atividade de insubordinação às normas burocráticas que cerceiam a
ação da universidade.

A autonomia é, portanto, objeto de conquista permanente por


parte de qualquer instituição que por ela se interesse ou dela necessi-
te. E a autonomia pressuposta como pré-requisito necessário para a
dinamização da pesquisa, no âmbito de uma instituição universitária,
é a da sua autodeteminação no sentido de que: primeiro, se posicione
política e gerenciaimente na perspectiva de sua própria evolução para
autêntica universidade (a pesquisa é componente essencial, como
se viu no Tópico 8); segundo, se proponha a saber, decidir, progra-
mar, executar e avaliar os procedimentos, inclusive estratégicos, de
pesquisa que efetivamente se dimensionem às circunstâncias que
lhe são típicas, sem cópia de protótipos e a partir de suas concretas
potencialidades e condições de começar e operacionalizar o proces-
so de sua evolução pela implementação de eficiente competência pro-
dutiva.

Isto posto, a relação entre autonomia (entendida como autode-


terminação institucional supramencionada) e pesquisa (como com-
ponente essencial da autêntica universidade) se comportará à seme-
lhança da bateria que imediatamente após ter possibilitado a partida

182
do motor passa a ser automaticamente carregada da energia resul-
tante de seu funcionamento. Em outras palavras, o problema pesqui-
sa na universidade brasileira se situa quase que exclusivamente no
campo da mentalidade e do amadurecimento, referido por Schuch
Jr., que leve à autodeterminação pela postura de emancipação atra-
vés do diálogo inteligente com a realidade, do conhecimento em suas
multivariadas formas e da vida como um todo. Na opinião de Demo
(1990), esse diálogo é a própria pesquisa desmistificada da sofistica-
ção de protótipos paramétricos alienados. Assim, a autodetermina-
ção (ou autonomia exercida de fato, no sentido de evoluir-se para au-
têntica universidade), tanto se desemboca necessariamente na pes-
quisa como dela se alimenta para a conquista progressiva de novas
dimensões:
Não é possível discutir "autonomia da universidade" sem produção própria, a
começar pelo fato de que gastos com mero ensino já não são justificáveis.
Por outro lado, uma universidade dotada de convincente produção própria
cria naturalmente sua autonomia, seja pela necessidade de liberdade de
pesquisa, expressão e criação, seja pela importância do que gera em termos
de ciência e tecnologia, bem como arte e cultura, seja pela conquista de
possíveis mercados (DEMO, 1991a, p. 5).

Pelo que se tratou até aqui, parece óbvio e fácil, em tese, a uni-
versidade brasileira autodeterminar-se, pela pesquisa, à evolução para
autêntica universidade. Na realidade, porém, essa questão (até de so-
brevivência para a esmagadora maioria das instituições universitárias
nacionais) não só ainda não se resolveu como também já se involuiu
da situação de mero desafio para a de verdadeiro impasse. E as princi-
pais explicações históricas para esse atípico fenômeno de involução
são, a meu ver, duas: uma relacionada com a própria origem das uni-
versidades brasileiras e outra com o desuso da autonomia por parte de
cada instituição universitária.
No que respeita especificamente à origem de nossas instituições
universitárias, é público e notório que surgiram ou surgem em decor-
rência muito mais de interesses eleitorais, confessionais e empresari-
ais do que de política social. Existe até uma espécie de "jurisprudência"
no sentido de que pelo menos uma universidade federal seja compo-
nente necessário do enxoval de qualquer Unidade da Federação (Esta-
do) que se emancipe. Isso significa que o mais importante tem sido a
iniciativa da criação e instalação formal da universidade, deixando para
o depois (isto é, à consagrada capacidade do "jeito" brasileiro) tanto a
programação do provimento de recursos humanos, científicos e
tecnológicos quanto a previsão dos suportes financeiros para a sua
efetiva manutenção.

183
Esse estigma de origem poderia, como de fato pode, ser corrigi-
do ou pelo menos amenizado, ao longo do processo de funcionamento
de cada instituição, não fosse um outro fator histórico: obstinado desu-
so, ao invés de cultivo, da autonomia universitária. Vigente como dispo-
sitivo legal desde 28 de novembro de 1968 (art. 3o da Lei n.° 5540/68) e
matéria constitucional a partir de 5 de outubro de 1988 (art. 207 da
Constituição da República Federativa do Brasil), a autonomia, sobretu-
do didático-científica e administrativa, vem constando de estatutos mais
como figura de retórica normativa do que como respaldo jurídico à efe-
tiva conquista da maturidade universitária.
É evidente
que houve e há mo-
tivos externos que
têm influído profun-
damente para que a
autonomia supraci-
tada permaneça na
situação de letra
morta, usada ape-
nas como ornamen-
to de oratória e pro-
gramação de inten-
ções sem objetivos
reais. Os mais co-
nhecidos e nomeados são:
a) Cerceamento político-ideológico imposto inclusive à instituição
universitária pelo autoritarismo, em cujo contexto aflorou a própria Lei n.°
5.540/68. No que respeita especificamente à intromissão do Estado na
liberdade didático-científica de cátedra, desde a lei imperial de 11 de agosto
de 1827 até 1988 (com a eliminação dos chamados "entulhos autoritári-
os" da Constituição), resumo histórico pode ser relido no subtópico 8.3.
Mas será que essa situação melhorou com a promulgação da Lei n°
9394/96 (LDBEN)? - Pela Maneira como o MEC vem conduzindo a ava-
liação das IES, de seus cursos de graduação e de seus programas de
pós-graduação, parece que piorou ao invés de melhorar.
b) Direcionismo administrativo-financeiro determinado e exercido
pelas principais instituições mantenedoras, sobretudo ao nível de União
e de Unidades da Federação, no que se refere a pessoal, fomento e
outros custeios. O principal efeito desse direcionismo vem sendo o da
atrofia da capacidade institucional de decisão e produção, a partir das
potencialidades e peculiaridades locais, induzindo (em conseqüência) a
que se confira maior importância à obediência a parâmetros e rubricas

184
pré-determinados do que a iniciativas e produção'de-cunho finaiístico.
Desde 1984 (cfr. ÁVILA, 1999), venho estudando sistematicamente as
questões do direcionismo e do centralismo relacionados com a autogestão
municipal dos serviços sociais básicos, principalmente os concernentes
à organização e ao funcionamento da educação formal do país.
c) Teimosia do centralismo brasileiro, por razões meramente admi-
nistrativas (como se mencionou atrás), de tentar encurralar todas as IES
brasileiras num grande "sistema universitário", desdobrado praticamente
em "subsistemas" federal, (aí incluindo-se todas as IES particulares, de
acordo com o LDBE n° 9394/96), estadual, municipal tentando isonomizar
até o isonomizável ao longo de uma história cujo recente capítulo se es-
creveu com a "isonomia de vencimentos" dos servidores das universida-
des federais autárquicas e fundacionais pelo "Plano Único de Classifica-
ção e Retribuição de Cargos e Empregos", anexo ao Decreto n.° 94.664/
87. Este é o tipo de isonomia, dentre as "isonomias universitárias", que
embora tendo razão de ser, prende a capacidade produtiva da universida-
de na camisa de força dos seus próprios parâmetros. Por quê? - Porque
não se fez isonomia de piso (de mínimo), mas de tudo em matéria de
regime de trabalho, das classes e cargos próprios das carreiras docente e
técnico-administrativa dos servidores universitários.

Como se viu, há importantes razões, externas ao âmbito próprio


das instituições universitárias, que exercem real influência no sentido
de que as autonomias didático-científica e administrativa continuem
sempre letra morta a enfeitar estatutos, regimentos, planos, progra-
mas e até discursos estéreis, relativos a objetivos e funções societárias
(de natureza científico-técnica e cultural-artística) da universidade.
Contudo, o obstinado desuso da autonomia, pelas próprias insti-
tuições universitári-
as, parece constituir
a mais significativa
de todas as razões
que vêm impedindo
a universidade bra-
sileira de decolar de
sua base-escola
(tradicional) para o
vôo seguro de labo-
ratório (dinâmico)
da sociedade, histo-
ricamente consoli-
dada, porém em
marcha permanen-

185
te rumo a um futuro
que se deve definir
mediante funda-
mentadas e sábias
alternativas.
E o ingredien-
te básico para se
obter o desuso da
autonomia com "su-
cesso" tem sido,
como não poderia
deixar de ser, o ar-
raigado parasitismo
que se instalou no
campo decisório-
programático das instituições, de forma que não se tomam iniciativas
sem que as mesmas estejam sempre e "previamente regulamentadas"
ou determinadas, em detalhe, pelo dirigente (autoridade administrativa
ou colegiada) "maior", ou seja, não se realiza a "[...] ação competente e
responsável [...] de insubordinação às normas burocráticas que cercei-
am a ação da universidade", referida no texto de Schuch Jr., citado no
início deste subitem. E quando a premência da realidade institucional
exige um posicionamento ativo e operacionalmente agressivo, a estraté-
gia mais eficiente, para despistar ou driblar as conseqüentes responsa-
bilidades gerenciais, tem sido a de submeter a matéria a uma extensa
cadeia de conse-
lhos, comissões,
assessorias, grupos
de trabalho e outros,
que se encarregam
de amenizá-las, ou
até de esvaziá-las,
sem, na verdade,
promover e praticar
a autêntica gestão
democrática.

Essa ques-
tão, caracterizada como verdadeira fuga histórica à conquista da real
autonomia (pelo pesquisar disseminado ou disseminar pesquisando)
permeia praticamente todo o Tópico anterior, podendo ou devendo ser
relido para efeito de complementação e diversificação de arrazoados,
argumentos e conclusões também nesta ótica.

186
A UNIVERSIDADE COMO AMPLO
9.2 VIVEIRO DE PESQUISA

A universidade brasileira (pelo menos no que se refere à maioria


das entidades legalmente constituídas como tal) ainda não formou
consciência teórica e prática de que a instituição universitária tem de
encarar a pesquisa na sua própria razão de ser, mas com configura-
ção e exercitação bem diferenciadas em relação ao que se teoriza e
concretiza em outras entidades especializadas, limitadas unicamen-
te à programação e produção de pesquisa (a exemplo do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE, da Empresa Brasileira de
Pesquisas Agropecuárias - EMPRAPA e similares). Enquanto nes-
sas entidades a pesquisa é objetivada como meio ou recurso para a
d e t e c t a ç ã o , co-
I Z m DE fOff.-!AÇ.ÂO nhecimento e/ou
solução de deter-
minadas situações
ou problemas, na
universidade a pes-
quisa é (ou deverá
ser) elemento de
fundamentação,
fermentação e di-
namização do pro-
cesso f o r m a t i v o
F H H SUTAÇ * O (conforme tratado
no Tópico n.° 7) de
sólidos e autênticos cidadãos, seja no âmbito da capacidade e com-
petência da realização pessoal e profissional, seja no do agenciamento
da cultura, da ciência e da tecnologia, visando à dimensão coletiva do
desenvolvimento que leve à realização em escala societária. Em
suma, nas instituições especializadas, a pesquisa visa a busca de res-
postas para os respectivos problemas investigatórios; mas, na univer-
sidade, a pesquisa objetiva a formação tanto do cidadão, quanto do
pesquisador.

Essa é a razão fundamental pela qual venho enfatizando itera-


damente a universidade como entidade laboratorial da sociedade, para
a contínua formação da cidadania e nacionalidade. Essa é, ainda, a
razão que permite não confundir universidade tanto com mero instituto
limitado à preparação de cientistas quanto com outra escola qualquer

187
que objetive ou realize apenas o trabalho de reprodução institucional e
habilitação profissional de seus alunos.
Em decorrência, a universidade é ou deverá tornar-se viveiro
institucional de pesquisa formativa em que se cultivem as sementes das
potencialidades dos seres humanos por ela direta e indiretamente atingi-
dos, de forma que: a) todos se embasem e exercitem para o desenvolvi-
mento da cidadania até os limites de sua plenitude; b) a maioria conquis-
te uma base técnico-profissionalizante com competência produtivo-cria-
tiva; e c) uma minoria dinâmica descubra e desabroche, pelo menos ao
nível de eficiente iniciação, a vocação de cidadãos-cientistas. Daí as se-
guintes peculiaridades da pesquisa tipicamente universitária:

- A universidade não pode pesquisar visando só os resultados da


pesquisa. Apropria pesquisa constitui (ou deve constituir) o seu meca-
nismo essencial de formação e qualificação do cidadão geral, do cida-
dão-profissional e do cidadão-cientista em particular.
- A tarefa da universidade, em matéria de pesquisa, começa
bem aquém do fato propriamente dito de pesquisar. É da sua incum-
bência formar e qualificar a sua clientela inclusive no sentido de que
se desperte, capacite e se instrumentalize (isto é, se motive e en-
saie) para os primeiros passos na linha da produção de pesquisa pro-
priamente dita, do ponto de vista técnico-científico. Essa é uma tarefa
extremamente importante, porém relativamente difícil e ingrata. Difí-
cil, por causa do constante reinicio: começa-se tudo de novo, e da
estaca-zero, ao ingresso de cada turma de acadêmicos. Ingrata, pelo
fato de que não se tem retorno imediato: pode até acontecer que o
futuro pesquisador sequer se lembre, um dia, que o ponto de partida
de seu êxito tem muito a ver com aquele humilde e introdutório traba-
lho, desfocado de sua memória ao longo das etapas posteriores e da
própria sucessão
dos anos.

A universida-
de é, portanto, o
viveiro onde se
plantam e cultivam
as s e m e n t e s da
pesquisa, da ciên-
cia e da tecnologia
para a sociedade
as c o l h e r como
fruto e patrimônio.
O m e s m o não

188
acontece com as entidades, não importa se públicas ou não, desti-
nadas unicamente ao desenvolvimento da pesquisa e, logicamente,
de ciência e tecnologia. Também elas estão na sociedade, só que
estão mais para celeiro do que para viveiro, visto que lhes compe-
te mais produzir e estocar pesquisa, ciência e tecnologia do que
executar a tarefa da respectiva iniciação, afeta prioritariamente à
universidade. Isto não quer dizer que a universidade não possa ou
não deva também produzir e estocar. Quer dizer que, numa linha de
prioridades, lhe cabe essencialmente formar e qualificar (ou prepa-
rar) para produzir pesquisa, ciência e tecnologia, conferindo a toda
produção e estoque, que nesse sentido puder viabilizar, funções sub-
sidiárias (em termos de apoio, fundamentação, exercitação,
complementação, etc.) às supracitadas formação e qualificação. Em
síntese, a) a universidade tem de despertar e desenvolver, a partir
do ponto zero, se necessário, as potencialidades pessoais e soci-
ais de sua clientela; b) a universidade pode e deve produzir e esto-
car pesquisa, ciência e tecnologia, mas sempre e simultaneamente
formando recursos humanos para outras entidades especializadas
nesse tipo de produção e estoque, bem como para a própria socie-
dade como um todo, ou seja: a universidade não pode se interessar
só pelos produtos da pesquisa; nessa área, o processo é tão ou
até mais importante que os próprios produtos, devendo-se incluir na
compreensão de processo também a face da moeda representada
pela formação qualitativa de recursos humanos, sem restringi-la
apenas à processualística da programação e execução de uma pes-
quisa técnico-científica, por mais significativa que venha a ser.

Recapitulando o Tópico 2 deste trabalho, uma outra questão


de relevo que se coloca, quando se fala ou escreve sobre pesquisa
na universidade, é a da pesquisa científica voltada com certa exclu-
sividade, do ponto de vista conceituai, para a produção de conheci-
mentos científicos e tecnológicos. Trata-se de abordagem incorre-
ta, visto que:

a) Acomplexidade e a própria dinamicidade do mundo atual con-


ferem à pesquisa posição subsidiária de destaque à tomada de inici-
ativas e à implementação de atividades em todos os setores da vida
(nos âmbitos profissional, empresarial e até no cotidiano da luta pela
subsistência digna), deixando absolutamente óbvio que não se faz
pesquisa científica somente para produzir ciência e tecnologia em
sentido estrito.

b) A caracterização essencial da pesquisa como científica reside


na forma pela qual os procedimentos são programados e opera-

189
cionalizados e não na natureza de sua destinação. A título de exemplo,
pode-se e deve-se fazer pesquisa científica (isto é, com procedimen-
tos cientificamente sistematizados) para se caracterizar a frota de ve-
ículos que melhor atenda às finalidades e condições de uma determi-
nada empresa de grande porte. Essa constituiria uma pesquisa cientí-
fica não destinada, a rigor, à produção de ciência ou tecnologia propria-
mente dita ou "stricto sensu."
Todas as considerações apresentadas neste subitem, no senti-
do de que a maneira de encarar e desenvolver pesquisa na universida-
de é diversa da forma como outras entidades especializadas a enten-
dem e desenvolvem, parecem óbvias. Mas apenas "parecem", porque
essa não tem sido nem a teoria e nem a prática pelo menos da maioria
(se não de todas) as instituições universitárias brasileiras. Para a mai-
or parte, a pesquisa se apresenta como necessidade em termos de
aspiração, porém utópica quanto à sua concretização, porque normal-
mente vem sendo tratada ora como mito e ora como matéria de ficção
científica. Para uma minoria dentre as instituições universitárias brasi-
leiras, a pesquisa já é um fato apenas parcial, visto estar na dependên-
cia mais de professores, isolados ou em equipes, do que de uma glo-
bal e permanente
postura político-
operacional da pró-
pria instituição co-
mo um todo.

Assim, uns
fazem pesquisa
real, para produzir
conhecimento ci-
entífico e/ou tec-
nológico, mas a
maioria da comuni-
dade universitária
nada faz(por vezes
até desestimula os que a fazem) quase sempre com base na capciosa
alegação de que não há recursos, sobretudo financeiros, para a pes-
quisa. Isto se deve justamente ao mito de que pesquisa científica só se
caracteriza como tal se se constitui, metologicamente, de alta comple-
xidade técnico-científica e se se destina, finalisticamente, apenas à pro-
dução de conhecimento científico e/ou tecnológico com muita ou ao
menos certa dose de sofisticação e "ineditismo".

Trata-se, no fundo, de impasse gerado e alimentado pelo pró-


prio desuso das autonomias didático-científica e administrativa no

190
âmbito do gerenciamento de cada instituição universitária. A universi-
dade se encara e se contenta, na prática histórica, como escola
marcada pelo determinismo de sua gênese: formalização, ao nível de
"3o grau", do repasse de instruções e da iniciação meramente profis-
sional da juventude, visando à perseguição de objetivos ditados por
circunstancialidades imediatas, impostas pelo estilo político, adminis-
trativo e normativo de cada facção ideológica que assume o poder,
quer dentro quer fora da instituição, exercendo-o como se no perfil de
uma gestão se encerrasse a infinitude de diversificações da dinâmica
social. Esse totalitarismo "administrativo-estilístico" impede que a uni-
versidade construa a sua própria identidade institucional, ensejando-
Ihe uma truncada história, estigmatizada por permanente: a) solução
de continuidade de propósitos, iniciativas, definições e programação;
b) dependência conceituai, decisória e operacional de idéias e mode-
los exógenos.

O setor mais afetado nesse estado de indefinição e insegurança


é o da pesquisa. Isto porque a pesquisa, na concepção e programação
que lhe convém na instituição universitária e com as variações que
resultam do estágio de potencialidades e condições de cada instituição
isoladamente considerada, é o mecanismo estratégico e dinamizador
pelo qual a universidade pode dar o passo decisivo no sentido de evo-
luir-se da situação que é, a de mera escola, para a que deve ser, a de
laboratório formativo da sociedade.
O círculo vicioso dessa dependência só se romperá:
a) Quando a maioria das universidades brasileiras acabar com a
tradicional mania de copiar tudo, ou quase tudo, de protótipos consa-
grados no país ou no exterior, tomados acriticamente como modelos
conceituais programáticos e operacionais (conforme matéria tratada
no subitem 8.2.1);
b) Quando, mais especificamente, cada instituição universitária
efetivamente se preocupar em conceituar e operacionalizar o que vem
sendo denominado, neste Tópico, pesquisa universitária: aquela que
se dimensione às potencialidades de suas maneiras de ser e agir en-
quanto instituição (da sociedade) integralmente comprometida com a
formação e a qualificação de sua clientela como autênticos cidadãos.
C i d a d ã o s dos quais: uma maioria sempre se limitará a
instrumentalizar-se para o exercício tipicamente profissional e ape-
nas a minoria se sentirá estimulada a preparar-se realmente para o
importante e até certo ponto exigente trabalho da produção científica
propriamente dita. Dessa minoria é que surgirão os cientistas de que
o país tanto necessita.

191
A PESQUISA IMANENTE
9.3 À AÇÃO DOCENTE

Em termos atuais, a situação do professor universitário brasileiro


face à pesquisa é extremamente confusa, até contraditória. Não foi pre-
parado para pesquisar; sem pesquisar jamais será um autêntico pro-
fessor; seu compromisso e tempo enquanto professor impõem condi-
ções e limites quanto ao tipo e à natureza da pesquisa que efetivamen-
te deve (ou deveria) realizar; a instituição lhe imputa a responsabilidade
programática e operacional por toda a pesquisa que ela mesma (en-
quanto instituição e não importa por que motivos) entende necessário
ou oportuno executar. Só o fato de ter sido aprovado em concurso, no
caso das instituições públicas, ou de ser contratado para o magistério
superior, em outras instituições, vem sendo o bastante para se pensar,
por vezes até normatizar, que o docente é profissional "polivalente",
tecnicamente "capaz" de detectar ou "adivinhar" e suprir as carências
de pesquisa de que a universidade necessita em sua área de atuação.
Disso é cobrado, também teoricamente, mesmo que a instituição não
tenha definido para si mesma o que se deve entender por pesquisa,
quando solicitada ou exigida vinculadamente ao exercício da
docência.
Uma situação historicamente bem ilustrativa dessa questão é a
do regime de dedicação exclusiva em universidades públicas. Anterior-
mente à crise econômica, a dedicação exclusiva constituía um estímu-
lo à produção quer na área da pesquisa quer na da extensão. Com a
crise econômico-social, a intenção de estímulo continua, mas sem se
saber bem para que: melhoria e aumento de produção ou reequilíbrio
da situação finan-
ceira do docente E m DO
oIteis» m
universitário, carco- P N T F UM LWO
mida pela defasa-
gem do processo
inflacionário (com-
plementação sala-
rial)?
Todavia, em
ambas as ocasiões
(antes e durante a
crise), ameaçou-
se e a m e a ç a - s e

192
cobrar, sem sucesso, produção científica dos docentes nesse regi-
me de trabalho. Por quê sem sucesso? - Porque não se pode cobrar,
em âmbito institucional, aquilo que a instituição não procura definir
para si mesma em termos do quê é e de como programar, executar e
avaliar, em consonância com as condições de sua própria realidade.
Instituição alguma pode se sentir moral ou eticamente apta a exigir de
alguém algo que ela mesma não saiba o que é política e programatica-
mente.
Enquanto perdurar essa indefinição, o efeito continuará sendo o
mesmo de sempre: "intenciona-se" cobrar produção de pesquisa de
todos (ou pelo menos dos que detêm regime de dedicação exclusiva
nas IES públicas), mas, na prática, só produzem aqueles docentes
que, por iniciativa e esforço pessoal (às vezes até desestimulados pela
burocracia institucional), conseguem fazer valer a vontade e persistên-
cia pessoais sobre a falta de visão, definição e programação de curto,
médio e longo prazos da própria universidade; esforço e iniciativa de
produção que realizam apesar do acúmulo de outros serviços que lhes
são intempestivamente solicitados (participação em comissões,
colegiados, vistorias, grupos de trabalho e outros), justamente porque
são os que demonstram capacidade e interesse em produzir.
Trata-se de um fenômeno que afeta inclusive os docentes nos quais
as instituições investem em termos de pós-graduação, visto que saem
para se capacitar sem perspectivas institucionais de aproveitamento pro-
dutivo em seu retor-
no; uns se sobres-
saem, como se dis-
se por esforço e ini-
ciativa pessoais,
mas a maioria se
acomoda à rotina do
"ensino", à espera
de uma "aposenta-
doria" que ponha fim
a essa angustiante
situação em que to-
dos perdem: profes-
sores, universidade
e, sobretudo, socie-
dade.

Dois aspectos essenciais devem ser considerados no dimensio-


namento da pesquisa imanente à docência:

193
a) Envolvimento do trabalho com as disciplinas (sua organiza-
ção, seu desenvolvimento e sua avaliação) em processo permanente
de pesquisa, posicionando-a e reposicionando-a em seu contexto
organizacional-curricular, sócio-cultural, técnico-científico, mercadológi-
co, metodológico e outros. Trata-se de pesquisa que abranja da "pre-
paração de aula" (ou digestão e metabolização do conhecimento a ser
tratado) à possível e desejável produção científica e artístico-cultural
propriamente dita, sempre compatível com os compromissos e as con-
dições específicas do docente enquanto docente.

b) Reconhecimento, como produtividade em matéria de pesqui-


sa, de esforços e iniciativas que o docente encetar dentro ou fora da
sala de aula, no sentido de despertar, estimular e apoiar alunos, cole-
gas, técnicos e outras pessoas, da instituição ou de fora dela, para que
se engajem no processo de iniciação e dinamização de pesquisas bá-
sicas e aplicadas de que tanto o país necessita.
Para isso, é necessário que se confira mais atenção e valorização à
produtividade/produção que à formalidade dos respectivos instrumentos
programáticos. Em outros termos, a preocupação com a legitimidade dos
planos, programas e projetos tem sua razão de ser na administração uni-
versitária: não se pode banalizar e muito menos malbaratar recursos. Mas
daí ao culto pelo ritual estéril do formalismo vai uma distância simultanea-
mente contraditória e sem tamanho, visto que esse formalismo ritual é, de
per si, um mecanismo dos mais poderosos e eficientes em matéria de
banalização e malbaratamento do suor da sociedade.
É nesse contexto que as figuras do planejamento e especialmente
do projeto vêm perdendo crédito e função. Ao invés de restarem, como
de fato e de direito, na condição de mecanismos e/ou instrumentos téc-
nicos de definição, precisão e viabilização de iniciativas que produzam
efetivamente resultados otimizados, passaram a ser interpretados e uti-
lizados como ferramentas de controle dirigido, pelas quais se estimula a
quem se quer estimular, se premia a quem se quer premiar, se "congela"
a quem se quer "congelar" e se castiga a quem se quer castigar. Trata-
se de um instrumental técnico manipulado até inconscientemente como
filtro ideológico-gerencial em todos os níveis e patamares da administra-
ção pública brasileira. Daí ter-se passado tão rapidamente de uma fase
primitiva, a dos tropeços com as primeiras iniciativas de projeto, no limiar
dos anos 70, à verdadeira febre do projetismo até o presente.

Como não é pela má utilização que se determina a razão de ser


de uma coisa, também não é pelo seu abuso que o projeto perde as
suas funções e finalidades. O que é necessário, urgente mesmo, é
colocá-lo no seu devido lugar, enquanto instrumento técnico de traba-

194
Iho otimizado e não
de controle dirigido.
Em termos concre-
tos, trata-se de re-
posicionamento
que só acontecerá
quando a política
institucional de es-
tímulo, apoio e com-
pensação conferir
mais ênfase à pro-
dutividade/produ-
ção do que ao projeto ou outro instrumento que lhe sirva de suporte
programático. Esse reposicionamento gerará pelo menos dois efeitos
extremamente significativos para todas as áreas de atuação da univer-
sidade: o da extinção do nefasto costume de se medir "produção" pelo
número de "projetos" formalmente aprovados e o de estimular que o
processo produtivo da instituição incorpore tudo o que cada compo-
nente seu for capaz e tiver condições de efetivamente criar ou fazer.

B0P83
A PESQUISA NÃO IMANENTE
À DOCÊNCIA

A pesquisa imanente à docência é fundamental mas não cobre


todo o espaço de pesquisa da universidade que caminha na perspecti-
va de laboratório da sociedade. Nesse tipo de instituição, torna-se ób-
vio que a política de pesquisa deve começar por ela, sem, todavia, se
esgotar nela. Deve estender-se ao âmbito:
[...] daquela pesquisa com resultados e dinâmica também de interesse do
processo ensino-aprendizagem, mas cujos agentes ou executores nada têm
a ver com a aptidão, o vínculo e ação magisterial. É aquela que deve ser
a d m i n i s t r a d a e realizada por t é c n i c o s d e v i d a m e n t e m o t i v a d o s e
instrumentados para tal.

Pelo inchaço e falta de racionalidade da burocracia administrativa, acabou-se


por desvirtuar e desviar as funções do chamado corpo técnico de suas verda-
deiras finalidades, limitando-se ao subaproveitamento como preparadoras e/
ou executoras de trabalhos dos respectivos dirigentes. Já não se distinguem,
na prática, diferenças de funções e atribuições entre o pessoal técnico e o
administrativo, visto que ambos foram totalmente absorvidos pela proces-
sualística burocrática. O técnico, na vida universitária, é praticamente aquele
que prepara e por vezes assina e despacha processos, podendo até ocupar

195
postos de chefia. Suas
capacidade e condi-
ções de iniciativas,
dinamizadoras da insti-
tuição, foram mutiladas
em alguns e totalmente
a n u l a d a s em outros
pela d e p e n d ê n c i a e
disponibilidade que se
devem aos estilos, in-
teresses e vontades da
hierarquia. O "bom téc-
nico" é aquele que não
prende documentos em
sua mesa e que aten-
de ao chefe na hora e à
altura de sua chamada.
Infelizmente não tem sido aquele que pesquisa, cria e propõe situações e
condições no sentido de a instituição melhor conquistar os seus objetivos e
cumprir a sua finalidade (ÁVILA, 1986, p. 28-29).

É pelo adequado aproveitamento do pessoal técnico que cada


instituição universitária conquistará o seu espaço na área da pesquisa
avançada ou de ponta, se começar pela definição de um referencial de
partida com base em suas reais potencialidades e condições de pro-
dução. Uma vez bem começado (sem megalomanias e discursos
intencionais vazios), esse é um tipo de processo que tende a se aper-
feiçoar e expandir progressiva e constantemente.
É também por aí que surgirá a figura do pesquisador no quadro
de pessoal das universidades, destacando-se do simples técnico ad-
ministrativo ou de manutenção, que dará retaguarda e complementação
ao trabalho de base, levado a efeito pela pesquisa tipicamente voltada
para a fundamentação e o exercício da docência. Nada impedirá, aliás,
que professores também sejam liberados, dependendo de suas apti-
dões pessoais e das condições das próprias instituições, para se dedi-
carem à pesquisa pela pesquisa (isto é, tão somente por seus proces-
so e resultados), sem se preocuparem direta e imediatamente com a
sua aplicabilidade e repercussão na ação magisterial.
É de se frisar, no entanto, que as instituições principiantes só se
decolarão, em sua evolução para autênticas universidades, se investi-
rem maciçamente, em termos de decisão e esforços, a partir da pes-
quisa imanente à docência, tendo em vista que por aí se inicia o pro-
cesso de preparação e cultivo dos viveiros de pesquisadores tanto para
a pesquisa universitária não imanente à docência quanto para as enti-
dades externas, especializadas unicamente em programação e reali-
zação de pesquisas que interessem à sociedade.

196
DESTAQUES
TOPICO 10
IICAPITULATIVOS
O intuito iniciai deste trabalho foi o de explicitar posicionamentos,
com razoáveis suportes de embasamento lógico e teórico sobre pes-
quisa, na vida e na universidade, a título de subsídio a professores,
técnicos, estudantes e a quantos mais possa interessar (profissionais
liberais, pais, lideranças de movimentos classistas, diretores e execu-
tivos empresariais, políticos, serventuários públicos, e outros),
objetivando a que o processo de desenvolvimento brasileiro se dinami-
ze pela desmistificação da pesquisa e pela sua inserção na cultura
nacional e na cotidianidade da vida moderna a exigir cada vez mais
disposição e competência para a criatividade individual e coletiva.
Nessa perspectiva, foram abordados oito grandes enfoques, cujos
teores gerais assim se condensam:
1o Ao contrário do que generalizadamente se pensa, pesquisa
científica não se aplica só à produção de conhecimentos científicos e
tecnológicos propriamente ditos. Isto, porque o que determina o caráter
científico da pesquisa é a sistematicidade de sua metodologia e não a
natureza ou a tipologia de seus resultados (Tópico n.° 2).
2° Fala-se e se reivindica sobre pesquisa, ciência e tecnologia no
ambiente universitário, mas o que se verifica de fato é enorme distorção
conceituai sobretudo no que concerne à compreensão de ciência, ci-
entista e pesquisador e de outros fenômenos chaves para o entendi-
mento básico de como se processa e aplica o conhecimento, principal-
mente no que se refere a prático, teórico, abstrato e concreto (Tópi-
co n.° 3). Quanto às imagens reinantes sobre ciência, cientista e pes-
quisadores, o que se detecta é a generalizada mistificação dessas fi-
guras, cujos efeitos psicológicos nas pessoas "não iniciadas", sobretu-

199
do jovens e adolescentes, são o da admiração sacralizada (ou de res-
peito temeroso) e o da sensação de impotência e inatingibilidade quan-
to às condições de acesso a mundos tão rituaiizados e misteriosos
como os por elas representados.
3o A tentativa de desvendamento de como se caracteriza e de-
senvolve o processo evolutivo-expansivo natural do conhecimento hu-
mano, nas dimensões tanto individual (ou de cada pessoa considerada
intelectivamente normal) como histórica (ou do prisma evolutivo da pró-
pria espécie), leva necessariamente à compreensão conceituai, ao ní-
vel de essência, do que efetivamente é pesquisa (Tópico n°4). Isto, por-
que: a) a pesquisa é a maneira pela qual o ser humano amplia, aprofunda
e complementa a sua faculdade natural de conhecer, estendendo seus
sentidos e propriedades intelectivas, de forma artificialmente provocada,
à apreensão e compreensão de realidades inacessíveis às suas limita-
das condições inatas de travar contato sensitivo-inteligente com fenô-
menos complexos ou fora de sua área de captação espontânea; b) a
metodologia da pesquisa (da mais simples à mais tecnicamente sofis-
ticada) praticamente reproduz, de forma artificial, os passos e procedi-
mentos característicos do processo natural de conhecer.

4o Foi realizada a análise de conceitos clássicos usuais de pes-


quisa (Tópico n°5), pela qual se constatou que o rigor e a ordem ou
ordenação constituem a tônica dominante das definições estudadas.
Observou-se que a visão clássica de pesquisa, a partir da tônica
supramencionada, reforça a idéia mitificada de pesquisa, justamente
por não enfocá-la como processo dinâmico, em contínua progressão,
que parte de um ponto extremamente simples, ou seja, com um míni-
mo de rigor e ordem na fase inicial, para exigente sistematização em
estágios mais avançados, sobretudo no daquele denominado pesqui-
sa de ponta. Em vista disso, enfatiza-se que o candidato potencial a
pesquisador/cientista pode e deve começar pelo começo, sem preven-
ções psicológicas e aparatos tecnológicos, tornando-se ciente de que
o interesse e a exercitação crescentes lhe instrumentarão, progressi-
vamente, na escala da perfeição em matéria de pesquisa e ciência.

5o No que respeita a pesquisa e vida, três aspectos foram anali-


sados no Tópico n.° 6: a) segundo Marías (1966), a vida não nos foi
dada pronta mas como QUEFAZER, cabendo-nos a tarefa de
desenvolvê-la ou formá-la (ou seja, implicando permanente pesquisa
de formas) em cada um de nós, sobretudo no contexto da complexida-
de técnico-científica e inter-relacional do mundo atual, com perspecti-
vas de tornar-se cada vez mais acelerada e acentuada para o futuro;
b) a pesquisa é, hoje, elemento vital à realização coletiva seja porque

200
sem pesquisa-ciência-tecnologia não se promove o desenvolvimento
nem de país e nem de nação, seja pelo fato de que a realização coleti-
va, no caso a brasileira, depende substancialmente do desenvolvimen-
to de nosso potencial humano, objetivando criatividade que leve à des-
coberta de saídas e soluções para vários e graves problemas que afe-
tam a vida nacional, tais como dívidas externa e interna, educação,
saúde, habitação, meio-ambiente, e outros; c) a pesquisa é ou pode vir
a ser mecanismo estratégico tanto de realização pessoal como profis-
sional, encarada ora já como trabalho significante e ora como meio
para se decifrar o sentido do trabalho, permitindo evoluir-se para o tão
aspirado tipo de trabalho que dignifica e liberta o trabalhador.

6 o Refere-se sempre à formação disto ou daquilo (de professo-


res, médicos, engenheiros, etc.), mas pouco ou quase nada se produz
sobre o que é e representa o próprio fenômeno FORMAÇÃO, indepen-
dentemente de sua conotação específica quando aliado a outro termo
ou fenômeno (como no caso da formação de professores, por exem-
plo). Por isso, o Tópico n.° 7 foi destinado tanto á tentativa de análise
sobre o que é formação quanto à detectação do papel da pesquisa
(mais ou menos sistemática, mais ou menos científica em termos de
rigor, ordem e progressão) nesse fenômeno. Inferiu-se, nessa pers-
pectiva, que formação é constante pesquisa de formas ou processo
pelo qual o ser humano se capacita para desenvolver suas faculdades
no sentido de transformar todos os acontecimentos (ordinários e extra-
ordinários) de sua vida em experiências significantes no âmbito dos
projetos individuais e coletivos.

7 o Quanto à pesquisa na essência da universidade, considerou-


se, no Tópico n.° 8, que a instituição universitária brasileira começa a
se tornar matéria de debate público, graças ao espaço que vem con-
quistando no seio da grande imprensa (principalmente escrita e televi-
sada) e se encontra em fase de "gestação", vez que as ÍES, em termos
de maioria absoluta, ainda não se assumiram como autênticas entida-
des efetivamente universitárias. Em decorrência, analisou-se o quê é
autêntica universidade, cuja conclusão fundamental aponta no sentido
daquela que pesquisa disseminando interventivo-difusivamente e dis-
semina pesquisando, isto é, descobrindo e/ou metabolizando, pelo diá-
logo inteligente com a realidade (Demo, 1990a), as razões de ser das
coisas e do próprio saber em suas múltiplas dimensões.

Assim entendida, a autêntica universidade se configura como


maternidade do conhecimento (ambiente onde se "dá à luz" e se irra-
dia toda ordem de conhecimento) e entidade laboratorial de formação
permanente tanto de nacionalidade como da própria sociedade em

201
sua marcha evolutiva rumo a futuro cada vez mais complexo e exi-
gente em matéria de capacidade, competência, iniciativa e habilida-
de. Nesse contexto, perde sentido a histórica mas estéril discussão
da "indissociabilidade" entre ensino, pesquisa e extensão, vez que o
pesquisar disseminando (ou vice-versa) engloba em um só processo
essas três "funções", categorizadas como dissociáveis apenas em
tese, ou para efeito de razão, deixando amplo e legítimo espaço à
implementação de corajosa política de produção. Isto, porque a pro-
dução com um mínimo de qualidade, decorre da pesquisa e leva
inexoravelmente à disseminação interventivo-difusiva em todo o raio
de abrangência de cada instituição universitária. Dispensa, inclusive,
a vigente artificialidade da "fabricação" de atividades extensionistas
para, na prática, eximirem a própria instituição universitária de se
engajar por inteiro no processo do pesquisar disseminando e do dis-
seminar pesquisando.

8 o Enfocaram-se, por último, quatro dimensões teórico-


operacionais da pesquisa universitária: a) autonomia e pesquisa
são fenômenos interdependentes, ou seja, a pesquisa decorre da au-
todeterminação de cada IES, no sentido de rumar-se para autêntica
instituição universitária, mas é por sua efetiva dinamização que se
conquista, processualmente, a real autonomia; b) a universidade como
maternidade do conhecimento e entidade laboratorial formativa da
sociedade está mais para viveiro que celeiro de pesquisa, visto o
processo formativo de base (mentalização, motivação, iniciação, etc.,
dos pesquisadores potenciais, que em princípio são todos os univer-
sitários) lhe importar tanto quanto ou até mais acentuadamente que
os próprios produtos ou resultados da pesquisa (ao inverso do que
ocorre nas entidades especializadas, em que os produtos são o que
mais interessa, já que não se pautam por compromisso formativo
explícito); c) se, por um lado, o professor que não pesquisa também
de fato não ensina (porque defasa o que aprendeu ou sequer metaboliza
o que transmite), por outro, não lhe pode imputar ou cobrar senão
atividades permanentes de pesquisa que sejam essencialmente
imanentes à ação docente; d) a pesquisa não imanente à docência
deve ser implementada, na universidade, como subsídio embasador
e complementar à pesquisa docente, mas sob a responsabilidade
operacional direta de técnicos especializados, ensejando a que se
desatrelhe o pessoal técnico de funções meramente burocráticas,
como tem sido o caso até o momento, e a que se institua a figura do
pesquisador profissional nos quadros de pessoal das instituições uni-
versitárias.

202
ENFIM
Fala-se
muito em moder-
nidade para o de-
senvolvimento
brasileiro. No meu
entender, a mo-
dernidade que
alavancará o país
da crise atual (de-
corrente de sua
própria situação
de subdesenvolvi-
mento histórico) é
a da formação,
em cada mente,
da cultura da
pesquisa/produção como ingrediente básico de realização pessoal,
profissional e nacional, objetivando a que cada brasileiro cultive efetiva-
mente a sua cidadania pela dinâmica do progressivo tornar-se sujeito de
sua história individual e da história da sociedade que integra e tem o
compromisso de ajudar a organizar e desenvolver. E a universidade, con-
figurada como maternidade de conhecimento e entidade laboratorial de
formação da sociedade, é o ambiente-viveiro próprio para o desabro-
char e irradiar, de maneira difusivo-multiplicativa, desse tipo de cultura.

..^-raj-TJS twfpiWí© "PsMSi


HMI -»*»•<•<
ínetai^ Í-j^pjzv: uwTBfÈrariB

203
Cabe, por último, enfatizar que este trabalho não encerra e nem
fecha qualquer dos temas e subtemas nele estudados. Bem ao contrá-
rio, o que intencionalmente se pretendeu, e continua sendo desejado
agora, é que as abordagens aqui enfocadas sirvam de subsídio e com-
bustível para o esquentamento do debate permanentemente produtivo
sobre a extensa temática do espaço essencial (e não meramente aci-
dental, como tem sido tratado) da pesquisa/produção desmistificada e
desritualizada tanto na totalidade da vida atual quanto na dinâmica
formativa do âmbito universitário.

204
BIBLIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 2. ed., São Paulo :
Mestre Jou, 1982.
ACKOFF, Russell Lincoln. Planejamento de pesquisa social. Trad. Leônidas Hegenberg e
Octanny Silveira da Mota. São Paulo : EPU/EDUSP, 1975.

A ELITE da cabeça, entrevista: Isaías Raw. Veja, v.24, n.4, p.5-7, 1991.

AS ACADEMIAS do ócio, entrevista : Edmundo Campos. Veja, v.21, n.49, p.5-8, 1988.
ÁVILA, Fernando Bastos de (s.j.). Pequena enciclopédia de moral e civismo. Rio de laneiro
: MEC/Campanha Nacional de Material de Ensino, 1967.
ÁVILA, Vicente Fideles de. No município sempre a educação básica do Brasil. 2. ed., Campo
Grande-MS : Editora UCDB, 1999.

. Municipalização para o desenvolvimento. Campo Grande-MS : PREG/UFMS,


1993.

. Planejamento em toda a universidade. Campo Grande-MS : UFMS, 1986. (fo-


lheto).
. Liberdade e seus condicionamentos histórico-sociais. Belo Horizonte : O Lutador,
1971.
BARBIERI, José Carlos. Produção e transferência de tecnologia. São Paulo : Ática, 1990.
BOYER, Carolus (s.j.). Cursusphilosophiae. Bragis/Belgium : Desclée, 1940.
BRANDÀO, Carlos Rodrigues (Org.). Repensando a pesquisa participante. 2. ed., São Paulo
: Brasiliense, 1985.

205
CANO, Daniel (Coord.). Universidad y poder en América Latina - tendencias y perspectivas
a partir de la política de los anos 80. Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores das
Universidades Brasileiras, Brasília, v. 12, n.25, p. 11 -16, jul./dez., 1990.

CERVO, A. L., BERVIAN, P. A.. Metodologia científica. 2. ed., São Paulo : McGraw-Hill do
Brasil, 1982.

DEMO, Pedro. Educação superior & desenvolvimento. Brasília : IPEA/CPS, 1991a. (estudo
técnico).

. Educação & desenvolvimento - algumas hipóteses de trabalho frente à questão


tecnológica. Brasília : IPEA/CPS, 1991b. (estudo técnico).

. Pesquisa - princípio científico e educativo. São Paulo : Cortez, 1990a.


. Universidade e qualidade - indagações em torno da qualidade formal e política da
formação universitária. Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores das Univer-
sidade Brasileiras, Brasília, v. 12, n.25, jul./dez., 1990b.

. Introdução à metodologia científica. São Paulo : Atlas, 1985.


DURHAM, Eunice Ribeiro. Avaliação e relações com o setor produtivo - novas tendências no
ensino superior. Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores das Universidades
Brasileiras, Brasília, n.24, p.37-64, jan./jun., 1990.

DURHAM, Eunice, SCHWARZMAN, Simon. Situação e perspectivas do ensino superior no


Brasil - os resultados de um seminário. Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores
das Universidades Brasileiras, Brasília, v.12, n.25, p.181-192, jul./dez., 1990.
FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 2. ed., Rio de Janeiro : MEC/Campa-
nha Nacional de Material de Ensino, 1956.

FÁVERO, Maria de Lourdes de A. et al.. A cátedra na Faculdade Nacional de Filosofia.


Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Brasília,
n.24, p.77-100, jan./jun., 1990.
FREIRE-MAIA, Newton. A ciência por dentro. Petrópolis : Vozes, 1991.

GALLIANO, A. Guilherme. O método científico - teoria e prática. São Paulo : Harper & Kow
do Brasil, 1979.

GEORGES, Guy. ( ). In: Formation des Maítres (Collection Information et Formation).


Paris: ESF, 1974.
GOODE, William J., HATT, Paul K.. Métodos em pesquisa social. Trad. Carolina Martuscelli
Bori. 7. ed., São Paulo : Nacional, 1979.
GRESSLER, Lori Alice. Pesquisa educacional. São Paulo : Loyola, 1979.

HANNOUN, Hubert. Ivan Illich ou l'école sans société?. Paris : ESF, 1973.
HONORE, Bernard. Quelle formation? - réflexions pour contribuer à fonder une politique et
une étude de la formation. In: Formation 1 - quelle formation?. Paris : Institut de Formation
et d'Études Psychosociologiques et Pédagogiques/Petite Bibliothèque Payot, 1974, p.89-183.

ILLICH, Ivan. Une société sans école. Paris : Seuil, 1971.

ISAAC, Stephen, MICHAEL, William B. Handbook in research and evaluation. 2. ed., San
Diego:EDITS, 1987.
JOLLIVET, Régis. Tratado de filosofia - psicologia. Trad. Geraldo Dantas Barretto. 2. ed.,
Rio de Janeiro : Agir, 1967, t.2.

206
KUJAWSKI, Gilberto de Mello. A crise do séculoXX. 2. ed., São Paulo : Ática, 1991.

LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Maria de Andrade. Metodologia científica. São Paulo :
Atlas, 1983.

LEON, Antoine. La formation des enseignants et les sciences de Péducation. In: Formation
des Maites (Collection Information et Formation). Paris : ESF, 1974.

LEWIS, John. O homem e a evolução. Trad. Teresa Rita Cetin Toth. Rio de Janeiro : Paz e
Terra, 1968.

LIMA, Lauro de Oliveira. Mutações em educação segundo McLuhan. 3. ed., Petrópolis :


Vozes, 1971.

. Treinamento em dinâmica de grupo no lar, na empresa e na escola. 2. ed., Petrópolis:


1970.

LOTHELLIER, Alexandre. La formation en question. In: Formation 1 - quelle formation ?.


Paris : Institut de Formation et d'Etudes Psychosociologiques et Pédagogiques/Petite
Bibliothèque Payot, 1974, p. 15-87.

LUCKESI, Cipriano et al.. Fazer universidade - uma proposta metodológica. 3. ed., São Paulo
: Cortez, 1986.
MARÍAS, Julián. Introdução àfilosofia. Trad. Diva Ribeiro de Toledo Piza. 2. ed., São Paulo
: Duas Cidades, 1966.
MARITAIN, Jacques. A ordem dos conceitos: lógica menor. Trad. Ilza das Neves. 3. ed., Rio
de Janeiro : Agir, 1958.
O BRASIL vai em frente, entrevista: Otávio Velho. Veja, v.24, n.3, p.5-7, 1991.

OCDE. L'enseignementface à 1'innovation - rapport général. Paris, 1974, v.l.

O PAÍS arrisca o futuro nas universidades. Veja, v.24, n. 19, p.66-73, 1991.

PIEPER, Josef. Que éfilosofar, que é acadêmico?. Trad. Helmuth Alfredo Simon. São Paulo
: Herder, 1968.

PIERSON, Donald. Teoria e pesquisa em sociologia. 11. ed., São Paulo : Melhoramentos,
1968.
PILETTI, Nelson. A formação do educador. Revista Educação Municipal, v.2, n.4, p. 14-18,
mai., 1989.

PIMENTA, Aluísio. Universidade - a destruição de uma experiência democrática. Petrópolis


: Vozes, 1984.
RONAN, C. A .. História ilustrada da ciência. Rio de Janeiro : Zahar, 1987, v. 1/4.

RUIZ, João Álvaro. Metodologia científica. São Paulo : Atlas, 1982.

SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O pequeno príncipe. Trad. Dom Marcos Barbosa. 26. ed.,
Rio de Janeiro : (...), (...).

SALVADOR, Ângelo Domingos. Métodos e técnicas de pesquisa bibliográfica. Porto Alegre :


Sulina, 1970.
SCHAFRANSKI, Antonio Carlos, MARTINS, Rosilda Baron. A verminose na área de atua-
ção do programa CRUTAC-PG. Ponta Grossa-PR : UEPG, 1984.

SCHMID, Jacob Robert. Le maítre camarade et la pédagogie libertatcãre. Paris : Maspero,


1976.

207
SCHUCH JR., Vítor. Aquestão dos objetivos institucionais da universidade. Educação Brasi-
leira - Revista do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Brasília, v. 12, n.25,
p.129-147, 1990.

SELLTIZ, Claire et al.. Métodos de pesquisa nas relações sociais. Trad. Dante Moreira Leite.
São Paulo : Editora Pedagógica e Universitária Ltda., 1965.

SEVERINO, Antonio Joaquim. Metodologia do trabalho científico - diretrizes para o trabalho


didático-científico na universidade. 6. ed., São Paulo : Cortez, 1982.

SHAMBLIN, Janes E., ESTEVENS JR., G. T.. Pesquisa operacional - uma abordagem básica.
Trad. Carlos Roberto V. de Araújo. São Paulo : Atlas, 1979.

SOBRAL, Fernanda A. Fonseca. O ensino superior e a pesquisa científica. In: MARTINS,


Carlos Benedito (Org.). Ensino superior brasileiro - transformações e perspectivas. São Paulo
: Brasiliense, 1989.

SOLAGES, Bruno de. Iniciação metafísica. Trad. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo :
Herder, 1964.

THONNARD, F. J.. Compêndio de história da filosofia. Trad. Valente Pombo (da 5 a edição
francesa). São Paulo : Herder, 1976, 2 v.
VAHL, Teodoro Rogério. O processo decisório e a gestão das universidades federais brasileiras.
Educação Brasileira - Revista do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Brasília,
v.12, n.25, p.107-127, jul./dez., 1990.

208
DADOS SOBRE O AUTOR

VICENTE FIDELES DE ÁVILA:


• Doutor em Política e Programação do Desenvolvimento pela Université de Paris
I/Panthéon-Sorbonne, França.
• Mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália.
• Licenciado em Filosofia Pura e Pedagogia.
• Professor aposentado de Planejamento Educacional e Metodologia de Pesquisa
(em Programas de Pós-Graduação) e de Introdução à Metodologia Científica (em Cursos de
Graduação) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, no campus de Campo Grande.
• Ex-docente dos Programas de Mestrado em Educação/Formação de Professores e atual
professor do Mestrado em Desenvolvimento Local da Universidade Católica
Dom Bosco-UCDB, de Campo Grande - MS.

MARLEI SIGRIST, ilustradora desta obra, é professora aposentada do


Departamento de Comunicação e Artes da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

209

You might also like