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- Professor, pra quê serve a arte? Pra quê estudar arte?

Eu não saberia mensurar quantas vezes ouvi essas perguntas vindas de algum aluno,
todo ano eu a ouço pelo menos uma vez e sempre faço uma viagem mental até o ano de
2014 quando li uma reportagem referente ao livro do filósofo Nuccio Ordine chamado A
Utilidade do Inútil. Nesse livro Ordine trava uma batalha contra um tipo de utilitarismo
superficial que está sendo impregnado na sociedade, onde "um martelo vale mais que
uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro:
porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil
compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte."

"Pra quê estudar arte?" Ressoa a pergunta em minha cabeça. Acredito que seja uma
pergunta de suma importância, afinal a arte somente se tornou disciplina obrigatória em
1996 com a Lei de Diretrizes e Bases e mesmo após todos esses anos, muitos ainda não
enxergam um sentido em estudar música, teatro, dança e artes visuais na escola. Ordine
poderia apontar que é como se a questão da utilidade somente pudesse ser observada de
forma explícita e o conhecimento fosse construído de forma mecânica, no entanto não
podemos dizer simplesmente que a arte serve para x. É importante pensar fora da caixa
e muitos argumentariam que o ensino da arte deveria servir para isso: Estimular a
criatividade. A professora Ana Mae Barbosa entrevistou em 1983 diversos professores
de arte em escolas de São Paulo e em sua maioria eles apontaram este como o principal
objetivo do ensino, ligada fatores como cultivar espontaneidade, autolibertação e
originalidade. Ok, entendo que esses elementos sejam desenvolvidos na disciplina, mas
será que a subjetividade presente na arte torna todos os elementos que a cercam também
subjetivos?

Atualmente a Arte está atuando em contexto com a área de linguagens, junto com a
disciplina de português, de modo que isso nos dá uma pista. Ler! Está aqui um dos
elementos importantes presentes na arte. Como assim, ler? Pois bem, a leitura não é
apenas o ato de decifrar sinais gráficos escritos, mas percorre toda a decodificação que
fazemos de nossa própria realidade. Através da arte nós lemos imagens, os sons, o
corpo, a paisagem e o mundo que nos cerca. Comunicação. É exatamente esse um dos
elementos que definem a arte, uma forma de nos expressarmos esteticamente, tendo em
vista que, segundo Vygostsky, a obra de arte é a socialização de algo que estava
interiorizado no artista, possibilitando que outras pessoas interajam com esse sentimento
através do objetivo artístico. Ao tomar contato com a obra de arte, estamos
desenvolvendo o contato com o outro e o conceito de interpretação da própria realidade,
sendo este um dos elementos centrais de todo o processo educacional e que acaba sendo
um dos elementos primordiais da arte-educação.

Se o ensino da arte contribui para a leitura da realidade, não podemos deixar de apontar
essa leitura de forma passiva e ao abordar a capacidade questionar essa realidade
esbarramos de alguma forma no pensamento do filósofo John Dewey, o qual aponta a
importância de proporcionar que os alunos experimentem e pensem por si mesmos, de
forma que o professor deve apresentar sua aula com questões e problemas sem que as
respostas sejam dadas de antemão, fomentando que o aluno crie seus próprios conceitos
e em seguida os confronte com o conhecimento sistematizado. O estímulo à criticidade
está presente durante a apreciação de uma obra de arte, pois não temos respostas
prontas, no entanto este não deve ser encarcerado simplesmente na projeção interna dos
sentimentos do ouvinte à obra de arte. Um exemplo disso é a música “Aonde quer que
eu vá” da banda Paralamas do Sucesso, cujos versos foram escritos para um grande
amigo do compositor Herbert Vianna: um cão da raça labrador. Portanto esse processo
de encontro entre arte e público passa pela mediação cultural que envolve a transmissão
de um contexto objetivo a qual a obra foi criada e suas determinações, de modo que este
processo somente pode ocorrer efetivamente caso haja atenção do apreciador. Tal
elemento está presente no texto do filósofo Theodor Adorno intitulado “O fetichismo da
música e a regressão da audição”, onde o autor argumenta que que a regressão da escuta
não é um fenômeno biológico, mas a perda da capacidade de apreciar uma música, pois
este fenômeno se transforma num ciclo de memória e esquecimento, onde determinados
trechos marcantes de uma música são lembrados enquanto o restante é sumariamente
esquecido.

A apreciação com objetivo da apreensão da obra de arte passa pelo papel da arte em si e
este fator se encontra balizado nas obras do dramaturgo Bertold Brecht e me recorda da
frase de Picasso sobre sua obra Guernica: "Não, a pintura não é feita para decorar os
apartamentos. É um instrumento de guerra ofensiva e defensiva contra o inimigo". Para
Brecht, além de mera representação da realidade, a arte é política, por isso o artista deve
interferir na esfera pública com sua obra e provocar no público uma postura crítica e
complementando com o escritor Guy Debord, não se concentre apenas nos aspectos
estéticos. Aqui residem os aspectos da formação de uma visão de mundo que não apenas
busque compreensão sobre a existência, mas também, através dessa compreensão,
busque sua transformação por meio de uma pedagogia autônoma e que proporcione ao
aluno a atuação no papel principal de sua própria vida.

Além dos aspectos que envolvem entender o mundo e transformá-lo, o ensino da arte
abarca o que o sociólogo francês Pierre Bourdieu cunhou como capital cultural que são
os saberes estéticos e culturais que compõe a bagagem do aluno, de forma que nossos
julgamentos estéticos são resultado de um processo educacional ligado tanto a herança
familiar quanto a influência da mídia e de ambientes educacionais que são capazes de
promover a expansão do repertório cultural, o que permite que o aluno seja capaz de
conhecer sua própria história e ao ter contato com a cultura do outro, possa respeitá-la.
Em meu TCC para o programa de pós-graduação em Psicopedagogia pude analisar
como o capital cultural do discente é capaz de estar relacionado a aprendizagem em
geral dos alunos, pois aqueles que se encontravam imersos em um ambiente cultural
mais amplo tendiam a apresentar melhores resultados nos processos de avaliação
escolar. Dentro desse contexto, buscando maior objetividade, o livro Teatro em Sala de
Aula de Ana Betina lista uma série de benefícios encontrados na participação de grupos
de teatro que podem ser elencados para as demais linguagens da arte. Estes se envolvem
desde em aspectos psicológicos como timidez, autoestima e autoconhecimento,
passando por capacidade de trabalhar em grupo e habilidades cognitivas como
raciocínio e memorização.

A visão que aponta uma utilidade prática da arte vista de forma mecânica se relaciona
ao momento histórico que mercantiliza todos os aspectos da vida, coisificando as
pessoas e vivificando as coisas, atingindo também a arte e todo o aparato educacional,
onde escolas e universidades se tornam fábricas de diplomas e a arte se torna mero
entretenimento, por isso é tão importante compreender a importância da arte educação
tanto em seus aspectos estéticos quanto sociais, pois balizam uma visão de mundo, nos
permite confrontá-la com outras e sintetizar uma crítica do real. Sabendo de sua
importância, por que não estudar arte? Como não estudar arte?

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