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SOBRE A NOÇÃO DE ‘CONCEITO’ EM KANT1

César Romero Fagundes de Souza*


e-mail: caesarsouza@gmail.com

Resumo: Pretendo desenvolver nesse trabalho a concepção de Kant acerca da noção de conceito,
de acordo com a Lógica e a Crítica da Razão Pura, mostrando como é possível distinguir objetos
da experiência por meio de conceitos, ou seja, como são construídos os conceitos empíricos.

Conforme a Lógica2, ''[t]odos os conhecimentos, quer dizer, todas as representações relacionadas a


um objeto são ou intuições ou conceitos. A intuição é uma representação singular (repraesentatio
singularis), o conceito uma representação universal (repraesentatio per notas communes), ou
refletida (repraesentatio discursiva)'' [sic]. De acordo com Kant, na Crítica da Razão Pura3, fora da
intuição, nós só podemos conhecer por conceitos, por isso, o conhecimento —humanamente
considerado— de todo o entendimento 1enquanto faculdade não sensível do conhecimento1 é um
conhecimento por conceitos, e portanto discursivo e não intuitivo. Para Kant, os conceitos são
funções; e uma função é ''a unidade da ação de ordenar diversas representações sob uma
representação comum'' 4. É por meio dos conceitos que o entendimento formula juízos; e como o
conceito é uma representação que nunca se refere imediatamente a um objeto, ''mas a alguma outra
representação qualquer deste'', o juízo é o ''conhecimento mediato de um objeto, por conseguinte a
representação de uma representação do mesmo''5. Pretendo desenvolver nesse trabalho a concepção
de Kant acerca da noção de conceito, de acordo com a Lógica e a Crítica da Razão Pura, mostrando
como é possível distinguir objetos da experiência por meio de conceitos, ou seja, como são
construídos os conceitos empíricos.
De acordo com Kant, a lógica geral não leva em consideração em sua atividade o conteúdo
do conhecimento, mas apenas que representações sejam dadas e transformadas em conceitos 6. E
esse processo de sintetizar representações em conceitos, segundo Kant, é analítico. O que isto quer
dizer?

Segundo Longuenesse7, para Kant, ''todo juízo é síntese, quer dizer, ligação de
representações''; e o que esta ligação tem de específico, no que se refere à síntese sensível, é ''que ela
é ligação de conceitos'', i.e., ''ela tem por meio 'a unidade analítica da consciência' ''8. De acordo com

1
Trabalho escrito em 1996.
*
Doutorando em Filosofia, PUCRS.
2 Kant, I., Lógica, trad. de Guido Antônio de Almeida, E.T.B., RJ, 1992, p. 109.
3 Id., Crítica da Razão Pura, trad. de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger, S.P., Abril Cultural, 1980.
4 Ibid., B 93.
5 Id., loc.cit.
6 Id., Crítica da Razão Pura, B 102.
7 Longuenesse, B.,Kant et le Pouvoir de Juger Sensibilité et Discursivité dans l'analytique Transcendentale
de la Critique de la Raison Pure, Paris, P.U.F., 1993.
8 Ibid, pp. 91-3.
2
Kant9, a síntese de representações só é possível mediante ''a consciência dessa síntese'', pois, é só
porque ''posso, numa consciência, ligar um múltiplo de representações dadas, [que] é possível que
eu mesmo me represente, nessas representações, a identidade da consciência, isto é, a unidade
analítica da apercepção só é possível pressupondo alguma unidade sintética qualquer'' 10. E a
''unidade analítica da consciência'' eleva a unidade sintética de uma representação comum a coisas
diferentes ao estatuto de um conceito comum (conceptus communis)11. Isto equivale a dizer que a
relação de ''ser comum a vários'', que é a propriedade fundamental do conceito, é para Kant, a
''unidade analítica da consciência''.

A lógica transcendental, por sua vez, recebe da estética transcendental, como matéria dos
conceitos puros do entendimento, um diverso da sensibilidade a priori. Sem este diverso dado como
matéria, a lógica transcendental seria destituída de conteúdo, e, portanto, vazia. Disso se segue o
seguinte: a lógica geral se ocupa dos conceitos, desconsiderando os objetos; a lógica transcendental,
ao contrário, se ocupa dos objetos, quanto à sua fonte12.
Na introdução à Lógica Transcendental, na Crítica da Razão Pura, lemos que o ''nosso
conhecimento surge de duas fontes principais da mente, cuja primeira é receber as representações (a
receptividade das impressões)'' —a sensibilidade— ''e a segunda a faculdade de conhecer um

9 Kant, Crítica da Razão Pura, B 133.


10 Conforme Longuenesse, para Kant, todo juízo é síntese, i.e., ligação de representações. A especificidade
desta ligação, no que diz respeito à síntese sensível, consiste em ser ligação de conceitos, ou seja, é realizada
mediante a unidade analítica da consciência. Para Longuenesse, é a presença deste dois elementos —síntese e
análise— na definição que Kant dá à forma lógica do juízo que é geradora de inúmeras incompreensões por
parte de seus intérpretes, pois estes costumam não desvincular a noção de análise da noção de juízo analítico,
e este ao fato de que a lógica geral, por tratar da forma lógica do juízo, só trata de juízos analíticos. Conforme
Longuenesse, pelo fato de a tábua das categorias apresentar uma função apenas arquitetônica na exposição de
Kant, e só tomando em consideração as ''simples formas do pensamento independentemente de todo o
conteúdo, não pode nos ensinar nada do exercício do pensamento em sua referência ao objeto''. Para
Longuenesse, ''a unidade analítica da consciência'' é diferente da ''ligação de conceitos em juízos analíticos''.
A ''operação analítica'' , que opera sobre representações sensíveis e permite a formação dos conceitos,
''acompanha a unidade analítica da consciência'' (unidade da apercepção), e difere da análise dos conceitos
(do sujeito e do predicado) formadores de juízos analíticos. Portanto, a ''unidade analítica'', de que fala Kant,
e que provê a ''forma lógica do juízo'' é a primeira e não a segunda, pois, conforme Longuenesse, ''não é pela
ligação analítica dos conceitos no juízo, mas a unidade analítica da consciência que 'se liga a todos os
conceitos comuns como tais' ''. Disso se segue que, do fato de o juízo ter por matéria conceitos, ele ''tem por
prioridade necessariamente representações dadas''. Para Longuenesse, só é possível compreender a tábua das
categorias, de Kant, se entendermos antes o que ele entende por ''forma lógica do juízo'', pois, conforme
Longuenesse, é por meio destas formas que ''se constitui o exercício do pensamento discursivo em geral''.
Ibid., pp. 91-93; ver também pp. 221-223.
11Conforme Allison, é importante observar, aqui, a razão pela qual Kant considera a tese referente à conexão
entre ''apercepção e síntese como equivalente à tese de que a 'únidade analítica da apercepção é possível
somente sob o suposto de uma certa unidade sintética''. De acordo com Allison, Kant começa a elaborar aqui
a ''conexão entre apercepção e entendimento, uma conexão ... crucial para a totalidade do argumento da
Dedução''. Allison, H.E. , El Idealismo Trascendental de Kant: Una Interpretación y Defensa, trad. de Dulce
Maria Granja Castro, España, Ed. Anthropos, 1992, pp. 233-4.
12 Uma outra maneira de formular a mesma posição encontramos no segundo parágrafo de B 104, onde
lemos: ''Diversas representações são postas analiticamente sob um conceito (tarefa concernente à lógica
geral). A lógica transcendental, todavia, ensina a reportar não as representações, mas a síntese pura das
mesmas a conceitos''. Kant, op.cit..
3
objeto por estas representações (espontaneidade dos conceitos)'' —o entendimento—; ''pela
primeira um objeto nos é dado; pela segunda [ele] é pensado em relação com essa representação
...''13. O que Kant está a dizer acima é que o diverso de elementos da intuição pura a priori, que
estão contidos no espaço e no tempo, dizem respeito à nossa sensibilidade, que pode receber
representações de objetos. O entendimento, uma vez afetado por estas representações de objetos,
deve poder produzir conceitos, a fim de poder pensar estes objetos dados, mas, para tanto, ele exige
que este diverso dado de representações seja ''primeiro e de certo modo perpassado, acolhido e
ligado para que se faça disso um conhecimento''14. Este ato, Kant denomina síntese. Porém, para
que se torne conhecimento propriamente dito, mesmo produzindo um primeiro conhecimento, essa
síntese de um diverso dado requer que o entendimento a reporte a conceitos15.
Para Kant, dada a sua distinção entre as duas fontes de conhecimento: a sensibilidade e o
entendimento, é necessário que se distinga também os objetos com que se está lidando ao se
formular conceitos, se objetos dados pela sensibilidade ou pelo entendimento puro, destituído de
todo elemento empírico. Conforme Kant, existe uma confusão, que se estabeleceu freqüentemente
na filosofia, entre os dois objetos e as duas faculdades, e que ele chama de anfibologia
transcendental.
A intuição sensível fornece os dados empíricos (o múltiplo dado na intuição sensível), ao
passo que a faculdade da razão, os conceitos a priori e puros (as categorias), por meio dos quais os
dados empíricos serão pensados pelo entendimento. Nesse sentido, podemos dizer, em acordo com
Kant, que o entendimento é o receptáculo dos dados da intuição sensível e dos conceitos da razão
pura. E que é operando sobre esses dados com o auxílio dos conceitos, que o entendimento forma os
juízos, quer a posteriori (empíricos) quer a priori.
No Apêndice à Dedução Transcendental, Kant vai se dedicar a fazer a crítica àqueles que na
filosofia não fizeram a distinção necessária entre: primeiro, fenômeno e númeno; e, segundo, entre
operação do entendimento e operação da sensibilidade. Fundamentalmente esta sua crítica vai
incidir sobre dois filósofos que o antecederam, a saber: Leibniz e Locke. Leibniz é acusado por Kant
de cometer o erro grave de converter o fenômeno em númeno —objeto do entendimento— e lidar
com ele apenas por meio de conceitos construídos pelo entendimento, intelectualizando conceitos
empíricos. Locke, por sua vez, ao contrário, converte o númeno em fenômeno, valendo-se apenas de
princípios empíricos para construir conceitos de objetos da experiência, sensualizando desse modo
os conceitos.
O que Kant reclama no Apêndice é uma distinção entre dois tipos de reflexão que devem ser
levadas em conta ao serem elaborados conceitos, ou seja, devemos comparar os conceitos (reflexão
lógica), a fim de saber antes a que tipo de objeto estes conceitos se referem, se a objetos da
sensibilidade ou do entendimento, e esta distinção é possível por meio da reflexão transcendental.
Pois, para Kant, a reflexão lógica, ao não levar em conta a fonte do objeto em questão no conceito,
não pode informar nada acerca do conteúdo do conceito, não evitando assim que, devido ao mau uso
dos dados da sensibilidade e das operações do entendimento, se confundam propriedades dos
objetos com propriedades dos conceitos, ou melhor, propriedades dos objetos da sensibilidade com
as dos objetos do entendimento puro.
Conforme Longuenesse16, a forma de ligações discursivas advém de uma operação
fundamental: a comparação de representações —comparação de representações sensíveis em vista

13 Kant, op.cit., B 74.


14 Ibid., B 102.
15 ibid., B 103.
16 Longuenesse, op.cit., pp.131-137.
4
da formação de conceitos que, por sua vez, são a ''forma que requer a faculdade de julgar''; ou seja, a
comparação de conceitos em vista da formação de juízos. Kant, no texto pré-crítico Acerca da falsa
sutileza das quatro figuras do silogismo 17, define assim o ato de julgar: ''Julgar é comparar qualquer
coisa, tomada como característica, com outra coisa''; donde, a ''própria coisa é o sujeito; a
característica é o predicado''18. Longuenesse reputa à noção de comparação, tão freqüentemente
ignorada pelos intérpretes de Kant, elevada importância no corpo de sua doutrina crítica. E, longe de
possuir, no uso que dela faz Kant, um caráter empirista —o que vai contra a sua intenção de
privilegiar ''a determinação do empírico pelo a priori''— apresenta-se como uma operação lógica na
formação de conceitos.
De acordo com Longuenesse, Kant, na Anfibologia 19, sugere que se distinga entre
comparação de objetos dados pela intuição sensível e comparação de conceitos. Esta comparação é
chamada lógica, e é a que ele chama de reflexão lógica e que se distingue da outra, que ele chama
de reflexão transcendental, que consiste em determinar a fonte a que pertence o objeto que é dado
ao entendimento. Em outros termos, a reflexão transcendental consiste em realizar ''a distinção entre
comparação de conceitos (comparação ou reflexão ''simplesmente lógica'') e comparação de objetos,
como fenômenos''20.
Na Lógica, Kant nos orienta acerca do modo como o entendimento produz conceitos. Ou
seja, como, de representações dadas, o entendimento forma conceitos e como estes se aplicam
depois aos seus objetos. Se considerarmos novamente a frase citada acima do texto pré-crítico:
''Julgar é comparar qualquer coisa, tomada como como característica com outra coisa'' e a
compararmos com a definição de conceito empírico que encontramos na Lógica, a saber, é aquele
que ''se origina dos sentidos pela comparação dos objetos da experiência e recebe mediante o
entendimento unicamente a forma da universalidade''21, podemos, de certo modo dizer que
conceituar é julgar.
Os conceitos, de acordo com a Lógica, são notas características22, e estas são o fundamento
do nosso conhecimento, pois, da parte do entendimento, o conhecimento humano é ''discursivo; quer
dizer, ele tem lugar mediante representações que fazem daquilo que é comum a várias coisas o

17 Essa observação é feita por Smith, N.K. , in A Commentary to Kant's ''Critique of Pure Reason'', N.Y.,
1950, pp. 181-182.
18 Kant, I., Textos Pré-críticos, trad. de José de Andrade e Alberto Reis, Porto, Editora, 1983, p.101.
19 ''Antes de todos os juízos objetivos, comparamos os conceitos para chegar à identidade (de muitas
representações sob um conceito) com vista aos juízos universais, ou à diversidade de tais representações para
a proddução de juízos particulares; à concordância, da qual podem formar-se juízos afirmativos, e à
oposição, ada qual podem formar-se juízos negativos, etc. Por essa razão deveríiamos, como parece,
denominar conceitos comparativos (conceptus comparationis) os conceitos indicados.'' Critica da Razão
Pura, B 317-318.
20 Longuenesse, op.cit., p. 134.
21 Kant, Lógica, A 141/Ak 92.
22 Em Ak 58/A 85, lemos o seguinte: ''(o) conhecimento humano é, da parte do entendimento, discursivo;
quer dizer, ele tem lugar mediante representações que fazem daquilo que é comum a várias coisas o
fundamento do conhecimento, por conseguinte, mediante notas características enquanto tais. Nós só
reconhecemos [Erkennen], pois, as coisas mediante características (...). Uma nota característica é aquilo
que, numa coisa, constitui uma parte do conhecimento da mesma; ou ... uma representação parcial na
medida em que é considerada como uma razão de conhecimento da representação inteira. Por conseguinte,
todos os nossos conceitos são notas características e pensar nada mais é do que representar mediante notas
características.'' . Kant, Lógica.
5
fundamento do conhecimento, por conseguinte, mediante notas características enquanto tais'' 23. Ora,
se ''os nossos conceitos são notas características'' e ''pensar é representar por meio de notas
características'', então, o nosso pensamento representa por meio de conceitos 24. E um conceito é
gerado quanto à sua forma por meio dos três atos lógicos do entendimento: a comparação, a
reflexão e a abstração25.
Mas para que estabelecer a identidade, a diversidade, a concordância e a oposição, por meio
da comparação de conceitos antes de formar juízos objetivos? De acordo com Longuenesse, a
comparação que Kant tem em vista é ''aquela por meio da qual conceitos são formados pela
comparação de representações sensíveis'' 26. Esta comparação é aquela que permite que ''objetos
sensíveis sejam tornados representáveis e efetivamente representados por conceitos'' 27, uma vez que
todos os conceitos devem ter um uso empírico.
Conforme Longuenesse, a ''comparação de representações sensíveis que dá lugar á formação
de conceitos é orientada em direção da busca de caracteres comuns'' 28. Há um procedimento de
conversão de representações ou intuições em conceitos. A fim de produzir um conceito, conforme
Longuenesse, as três operações do entendimento trabalham de forma conjunta. Mas é somente
porque está vinculada às outras duas que a comparação se encaminha ao geral, i.e., ao conceito. De
acordo com Longuenesse, comparar ''representações em vista da formação de conceitos, é portanto
comparar esquemas; e comparar esquemas, graças aos três atos conjuntos da comparação
propriamente dita, da reflexão e da abstração, é acima de tudo suscitar estes esquemas na tensão
mesma de suas identidades e diferenças''29.
Como vimos, o objetivo da lógica geral, de acordo com Kant, é o de saber como o
entendimento pode referir-se a objetos em geral, ou seja, saber como ''representações dadas se
tornam conceitos no pensamento''30. Por esta razão, ela abstrai ''de todo conteúdo do conhecimento,
isto é, de toda referência do mesmo ao objeto, e só considera a forma lógica na relação dos
conhecimentos entre si, isto é, a forma do pensamento em geral'' 31. Desse modo, não pode se ocupar
da matéria do conhecimento, mas apenas da sua forma, partindo apenas do fato de que
representações são dadas e são transformadas em conceitos.
Para Kant, conceitos são notas características obtidas mediante síntese de diversas
representações. É por intermédio da síntese que converto uma nota característica de um objeto dado
em conceito. Essas notas, por sua vez, podem ser analíticas ou sintéticas; as primeiras são os
conceitos da razão, as segundas, os conceitos da experiência.

23 Ibid., Ak 58/A 85.


24 De acordo com B 94, ''todos os juízos são funções da unidade sob nossas representações'', pois, para que
possamos conhecer um objeto, é necessário uma representação mais elevada que inclua a dele e outras mais, a
fim de reunir num só conhecimento muitos conhecimentos possíveis. Para Kant, podemos ''reduzir todas as
ações do entendimento a juízos, de modo que o entendimento em geral pode ser representado como uma
faculdade de julgar'', porque ''é uma capacidade de pensar''. E pensar é conhecer mediante conceitos; estes,
por sua vez, enquanto predicados de juízos possíveis, ''referem-se a uma representação qualquer de um objeto
ainda indeterminado''. Id., Crítica da Razão Pura.
25 Longuenesse, op.cit., p. 135.
26 Ibid., p. 136.
27 Ibid., p. 137.
28 Id., loc.cit.
29 Ibid., p. 139.
30 Kant, Lógica, A 144/Ak 94.
31 Id., Crítica da Razão Pura, B 79.
6
De acordo com o texto da Lógica, devemos distinguir a matéria do conceito da sua forma32.
Todos os conceitos, quanto à sua matéria, podem ser dados ou factícios. Os conceitos dados podem,
por sua vez, ser ou a priori ou a posteriori. Os conceitos dados a priori são as noções, os que têm
sua matéria fornecida pelo entendimento. Os conceitos dados a posteriori são os chamados
conceitos empíricos ou de experiência, e têm sua matéria fornecida pelos sentidos através da
comparação dos objetos da experiência, realizada pelo entendimento33.
Um conceito suficientemente distinto e adequado de um objeto é uma definição. Definir,
conforme Kant34, consiste em ''apresentar originariamente, dentro de seus limites, o conceito
minucioso de uma coisa'', i.e., as características enumeradas pelo conceito do objeto devem ser
claras, precisas, exaustivas, exclusivas e suficientes para determiná-lo. De acordo com Kant,
''[t]odas as definições ou são analíticas ou sintéticas'' 35; as definições analíticas são as que
apresentam um conceito dado (ou a priori ou a posteriori), i.e., são definições nocionais (noções); e
têm como matéria objetos ''produzidos'' pelo entendimento. As definições sintéticas são as que
apresentam um conceito factício (feito ou a priori ou a posteriori). Elas derivam da síntese de
conceitos factícios, que pode ser de dois tipos: (i) ''síntese da exposição dos (fenômenos)'', que
consiste na ''síntese de conceitos feitos empiricamente, a partir de fenômenos dados como a matéria
deles''; e (ii) ''síntese da construção'', que consiste na ''síntese de conceitos arbitrariamente feitos'',
i.e., conceitos cuja matéria é originada no intelecto, e.g., os conceitos matemáticos.
Todas as definições, tanto dos conceitos que derivam de (i) quanto dos que derivam de (ii),
''têm, pois, que ser feitas sinteticamente''. Pois também no caso dos conceitos que derivam de (i), os
conceitos empíricos, ''não devo analisar o que está neles, mas aprender pela experiência o que
pertence a eles''36. Nesse sentido, portanto, conforme a Lógica, ''[t]odos os conceitos empíricos têm,
pois, que ser considerados como conceitos factícios cuja síntese, porém, não é arbitrária, mas
empírica''37. Pois, quando lemos na Lógica que é necessário distinguir a matéria do conceito de sua
forma, e a primeira é apresentada como podendo ser ou dada ou factícia —e daí o conceito ser dado
ou factício quanto à matéria—, isso não significa que a forma do conceito pode também ser dada ou
factícia, mas apenas factícia, pois todos os conceitos, quanto à forma são elaborações do
entendimento, portanto, são ''coisas feitas'', e, por isso, factícios. Convém enfatizar a distinção que
Kant faz entre formar um conceito distinto, e tornar distinto um conceito. O primeiro procedimento
é sintético, o segundo, analítico 38.

32 De acordo com a Lógica, o conceito é ''uma representação universal ou uma representação daquilo que é
comum a diversos objetos, logo uma representação na medida em que pode estar contida em diferentes
objetos''. No conceito, é necessário distinguir uma matéria e uma forma. ''A matéria dos conceitos é o objeto;
sua forma, a universalidade.''. Id., Lógica, A 139/Ak 91 - A 140/Ak 91.
33 ''Todos os conceitos dados empiricamente ou a posteriori se denominam conceitos da experiência...''. Ibid.,
A 143/ Ak 93.
34 Id., Crítica da Razão Pura, B 755.
35 ''Todas as definições são analíticas ou sintéticas. As primeiras são definições de um conceito dado; as
últimas de um conceito factício.''. Id., Lógica, A 217/Ak 141.
36 Ibid., A 218/Ak 141.
37 Id., loc.cit.
38 ''À síntese compete tornar distintos os objetos; à análise, tornar distintos os conceitos. Aqui o todo precede
as partes, lá as partes precedem o todo. O filósofo apenas torna distintos conceitos dados. Às vezes a gente
procede sinteticamente, mesmo que o conceito, que se quer tornar distinto dessa maneira, já esteja dado. Isso
ocorre com freqüência com proposições da experiência, na medida em que não se esteja satisfeito com as
características já pensadas em um conceito dado.''. Ibid., A 95-96/Ak 64.
7
Na Lógica39, encontramos a maneira pela qual podemos tornar distintos o conteúdo de um
conceito e a sua extensão ou esfera. Na verdade, tornar distinto o conteúdo de um conceito é
distinguir o que está contido no conceito, aquilo que o conceito contém em si —as suas notas
características—; tornar distinta a extensão de um conceito é distinguir o que está contido sob ele —
os objetos aos quais ele se aplica. A distinção do conteúdo de um conceito se faz: (i) mediante a
exposição, que é a explicitação exaustiva, uma a uma, de suas notas características; e (ii) mediante a
definição, que consiste na apresentação originária do ''conceito minucioso de uma coisa'' 40 dentro de
seus limites. Em outros termos, a definição de um conceito consiste na determinação pormenorizada
de todas as suas notas características.
Ora, considerando que um conceito empírico tem por matéria a síntese de um múltiplo de
representações dadas pela experiência sensível, essa exigência, de acordo com o texto da Lógica,
jamais pode ser satisfeita 41, pois é sempre possível que se encontre na experiência características a
mais do conceito que não tinham sido antes vistas. Para Kant, somente os conceitos arbitrários
podem ser definidos, pois o seu objeto não é dado nem a posteriori, pela experíência sensível, nem a
priori, pela natureza do entendimento, mas é inteiramente construído pelo pensamento, e é por essa
razão que a síntese, na definição do conceito arbitrário, é possível, uma vez que eu ''tenho que saber
o que eu quis pensar''42 com ele, pois eu próprio o formei. Ou seja, ele pode ser totalmente
delimitado, na apresentação de suas notas características, tal como exige a definição.
A distinção da extensão ou esfera de um conceito, por sua vez, se faz mediante a divisão
lógica deste, que consiste na determinação de um conceito com relação a todos os ''objetos possíveis
contidos sob ele, enquanto se opõem, i.e., diferem um do outro'' 43. Dividir logicamente um conceito
consiste portanto em considerar o que está contido sob este conceito —sua extensão—, e não o que
está contido nele — seu conteúdo.
Consideremos, por fim, aqui o caso dos conceitos empíricos. A fim de ilustrar a nossa
interpretação, tomemos um conceito empírico, e.g., o de cão: 'cão é um animal quadrúpede latidor'.
Dado o conceito empírico de cão: (i) Como torno este conceito logicamente distinto? e (ii) Como,
por meio deste conceito, torno o objeto distinto?
(i) Torno o conceito acima logicamente distinto, desmembrando-o em suas partes
constituintes e elucidando-as uma a uma; ou seja, parto do conceito dado —do todo—, e analiso
uma a uma as notas características que o compõem —as partes. Para tanto, dentro do nosso
exemplo, devo apresentar o conceito de animal e o de quadrúpede, etc. Com isso, de acordo com
Kant, ao analisar os conceitos que compõem o conceito —tornando-os claros e distintos, e, assim
fazendo, tornando distinto o conceito em questão, pois torno mais clara a sua forma mediante a
explicitação de suas partes— eu não aumento o meu conhecimento quanto ao conteúdo do conceito,
pois este continua o mesmo, o que modifico é a sua forma, uma vez que, por meio da análise, ''eu
aprendo apenas a melhor distinguir ou a conhecer com mais clara consciência aquilo que já estava
no conceito dado''44.

39 ''A consciência distinta do conteúdo dos conceitos é promovida pela exposição e definição dos mesmos; a
consciência distinta da sua extensão, ao contrário pela divisão lógica dos mesmos.''. Ibid., Ak 140/A 218.
40 Id., Crítica da Razão Pura, B 755.
41 ''Visto que a síntese dos conceitos empíricos não é arbitrária, mas empírica e, enquanto tal, jamais pode ser
completa (porque se podem sempre descobrir na experiência outras características mais do conceito), os
conceitos empíricos também não podem ser definidos.''. Id., Lógica, A 219/Ak 141-142.
42 Id., Crítica da Razão Pura, B 757.
43 Id., Lógica, Ak 146/A 225.
44 Ibid., A 95/Ak 64.
8
(ii) De acordo com Kant, eu formo um conceito empírico, a partir de representações dadas,
por intermédio dos três atos lógicos do entendimento, a saber: a comparação, a reflexão e a
abstração. Portanto, primeiro comparo as representações entre si; depois, reflito sobre o que há de
comum entre estas diferentes representações; e, por último, abstraio daquilo em que elas se
diferenciam, para somente então ficar com o que há de essencialmente comum a todas elas. Esta
representação, ou conjunto de representações comuns, das diversas representações dadas, é o meu
conceito comum a estas representações. Neste caso, eu vou das partes —as notas características
comuns a várias representações— ao todo —a síntese destas notas comuns num conceito dado.
Portanto, torno distinto o objeto com o conceito na medida em que eu formo este conceito. Ou
melhor, no caso do conceito empírico de cão, utilizado aqui como exemplo, quando formo este
conceito, torno distinto o objeto cão —e todos aqueles aos quais o conceito se aplica enquanto
membros desta classe por ele designada. Posso dizer que, antes de formar o conceito de cão, não
podia distinguir esta representação das demais representações, e.g., da de cavalo, lobo, gato, etc.
A tarefa do filósofo, ocupado apenas com a forma lógica do conhecimento em geral, é aquela
descrita em (i), ou seja, ''tornar distintos conceitos dados''. É este ''procedimento analitico para
produzir distinção, o único do qual a Lógica pode se ocupar, é a primeira e mais importante
exigência quando se trata de tornar nosso conhecimento distinto'' 45. À medida, porém, em que um
conceito empírico dado é insuficiente para determinar um objeto da experiência, podemos
acrescentar, sinteticamente, uma característica nova às demais. No caso do conceito empírico de
cão, se não tivéssemos a característica diferenciadora 'latidor', por exemplo, poderíamos nos
encontrar, no domínio da experiência, embaraçados frente à necessidade de diferenciar entre este e
um cavalo, uma vez que 'animal quadrúpede' serviria para identificar tanto um quanto outro. Com o
conceito 'animal quadrúpede' eu poderia, sim, diferenciar cavalos, gatos e cães de homens, por
exemplo, mas não aqueles entre si.

45 Id., loc.cit.
9
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Dulce Maria Granja Castro, España, Ed. Anthropos, 1992.
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SCHWYZER, H., (Santa Barbara, California). How are Concepts of Objects Possible?, Kant-
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SMITH, N.K. , A Commentary to Kant's ''Critique of Pure Reason'', N.Y., 1950.

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