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A CADEIRINHA

AZUL
A CADEIRINHA AZUL

Este texto é uma adaptação de um trecho de «O Caminho de Verónica»,


uma mulher que, incapaz de sentir a mais pequeno sentimento ou
emoção, lança-se num sangrento caminho para descobrir a razão da
sua insensível condição.

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A CADEIRINHA AZUL

ÍNDICE

1 – Tudo é Mentira .........................................................................................4


2 – Era Assim Que Fingia .............................................................................7
3 – A Cadeirinha Azul ................................................................................. 11
4 – Porquê Ela?.............................................................................................. 15

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A CADEIRINHA AZUL

1 – TUDO É MENTIRA

Lavava a roupa à mão no tanque debaixo do sol


escaldante. Pegava na roupa e esfregava-a de
encontro à pedra ondulante, de cima para baixo e de
baixo para cima. Esfregava. Esfregava e suava.
Molhava, ensaboava, esfregava. Lavava os calções
da menina e a segunda muda de calças do marido. E
mais meia dúzia de pares de meias, camisas e
camisolas, saias e cuecas. Esfregava o mais rápido
que podia. Ensopava-as na água, torcia-lhes a água
fora, molhava-as outra vez, e repetia até se dar por
satisfeita. Por fim punha-as no monte de roupa
lavada à sua direita. Era feliz. Sentia aquele trabalho
duro na pele, mas era feliz. Cada peça de roupa suja
tinha um princípio e um fim, e através das suas
mãos aquela roupa voltava a ter as cores e o toque
que a fazia feliz sempre que a sua pequena filha
vestia essas roupas lavadas, quando lhe cheirava o
perfume do sabão vulgar, quando o marido lhe dava
o par de calças sujo do dia de trabalho duro e
recebia um par lavado pronto para recomeçar. Ele
dava-lhe um beijo na face e ela sorria. Era feliz.

Um dia a felicidade acabou. Lavava, a esforço.


Parecia-lhe que o sol queimava mais que o habitual.
Tinha de transpirar mais do que o normal. E aquela

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água toda escorria na face, escorria da testa para os


olhos e ela, para não perder tempo, soprava para
cima para escorraçar as gotas de suor salgado que
lhe queimavam os olhos. Quando não aguentava
mais parava e limpava com o braço. Continuava, e
ao fim de algum tempo o esforço deixou de ser
apenas suor e passou a ser rugas na testa e nos
olhos que, assim, seguravam as forças necessárias
para manter o ritmo frenético de lavar roupa. Não
queria parar, não queria abrandar, não queria largar
a felicidade. Continuou a escalada de um Everest que
não podia vencer, um Everest que não tem altura,
apenas um crescendo infinito que não leva a lado
nenhum, e assim, quando chegou alto o suficiente,
quando lhe faltou o oxigénio e o frio gelado lhe tocou
as veias, caiu.

Caiu para o lado, pois o coração tinha parado.


Ficou ali, deitada, quieta, imitando o movimento do
coração. Ficou à espera; à espera que o coração
recomeçasse, mas ele não se mexeu. Ficou de olhos
vidrados e boca aberta para enganar o coração, mas
este não se demoveu. Aguardou mais um pouco,
para ter certeza que ele jamais voltaria a bater, e
quando se convenceu que não havia mais nada a
fazer levantou-se e acabou de lavar a roupa. Pegou
no monte de roupa lavada e foi estendê-la na corda
de secar, ao vento e ao sol. Foi para casa. Não disse
nada ao marido nessa noite. Ele também não
percebeu que o mal se tinha instalado. Deitou-se
cedo e mais cedo ainda adormeceu. Ela não se
deitou. Ficou por ali, a coser meias e farrapos. No dia
seguinte fingiu que se levantou cedo. Depois de o

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marido ter ido para o trabalho pegou na pequena


filha e foi ao médico.
Explicou ao médico a situação, mas este não se
deixou surpreender.
«O coração parou? Deixe-me ver lá isso»
Auscultou-lhe o peito. Após confirmar a morte do
coração sentou-se na secretária a escrevinhar
qualquer coisa. A mulher ainda aguardou uma
palavra do médico, mas não havendo nada,
perguntou-lhe:
«Doutor, isto é normal…?»
O médico não ligou durante meia dúzia de
segundos mais. Depois levantou-se e foi até à
dispensa de medicamentos.
«Há certas pessoas que…», disse, mas ficou-se
por ali, enquanto remexia os medicamentos. Era
uma mania que tinha. Voltou com uma caixa que lhe
pousou nas mãos.
«Tome um destes todos os dias em jejum, antes
das sete da manhã»
«E quando acabar a caixa venho cá outra vez?»
«Não estarei cá», respondeu de imediato,
olhando para tecto, magicando um futuro que não
era possível descortinar.
«Tome um todos os dias e não terá problemas».
Ela foi para casa, convencida que a felicidade
voltaria.

Mas era mentira. Era tudo mentira. Dois dias


depois o marido desapareceu e não voltou. Dois dias
depois Verónica tinha morrido.

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2 – ERA ASSIM QUE FINGIA

Era assim que fingia. Apoiava o cotovelo na


secretaria e tapava a boca com a palma da mão. Até
amanhã, diz a rapariga apressada que passa por ela,
apressada na sua importância. Ela não responde,
indiferente. Vivia no hall do elevador. Não era nada;
disseram-lhe que ela não era nada. Era apenas um
nada que não podia ser despedido. E a pressa com
que lhe diziam até amanhã doía-lhe na imobilidade
de quem nada pode fazer.
Suspirava entre os até amanhã que por ela
passavam. Clicava mecanicamente no rato, jogando
o único jogo que podia jogar no seu computador
anacrónico. Cruzava as pernas e enfiava a mão
esquerda entre elas, para sentir alguma coisa.
Alguma coisa. Não tinha uma única janela, apenas
portas para os gabinetes das pessoas que lhe diziam
até amanhã. Vivia o dia debaixo de lâmpadas
fluorescentes, ouvindo, permanentemente, o
ronronar do motor de refrigeração da máquina das
bebidas, dos triângulos de sandes, das barras de
chocolate e das batatas fritas. Ela clicava
mecanicamente no rato, clicava para lado nenhum,
clicava apenas para saber que a seguir tinha de clicar
novamente. Até amanhã, diz outra, apressada, e
esse até amanhã doía-lhe como alfinetes. Era um até
amanhã que lhe dizia que amanhã é igual a hoje,

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A CADEIRINHA AZUL

que a angústia que a consumia agora não se iria


embora amanhã, que ela continuaria a ser o que é;
um até amanhã que nunca chega, que não se gasta,
que nunca a abandonará.

E quando logo chegar a casa, quando chegar,


fingirá que está tudo bem, que nenhum mal a
consome, como quem chega de um emprego que a
faz importante. Fingirá uma máscara que tirou
quando saiu do edifício de escritórios onde morre. Ela
não é nada, naquelas oito horas diárias em que não
existe.
Até amanhã, diz outra, matraqueando os saltos
altos no chão. Ela não responde, não quer responder,
não pode responder.
Chegou o último jogo de cartas. Chegou a hora
em que a angústia não se vai embora. Levanta-se,
pega na mala velha de colocar a tiracolo e sai
silenciosamente. Até amanhã, não diz ela.

Pensa no metro, nesse interregno que a segura


num fio fino de navalha. Pensa, enquanto não morre
outra vez.
Aqueles anos todos, sentada naquela posição,
repetindo os jogos de cartas que já foram repetidos,
sendo nada, nada, construíram-lhe rugas lisas e
profundas, como rios de lava que comeram a carne e
deixaram a marca da sua passagem. Como se a lava
tivesse sido chorada, incandescente, vertida face
abaixo.

Lembrava-se sempre das palavras;


«Já não és precisa», disse-lhe o patrão, anos
antes. «Não és nada», ouviu ela.

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A CADEIRINHA AZUL

«Não me vou»
«Vais»
«Não me vou»
«Vais, já disse»
«Não me vou»
«Faço-te a vida num inferno»
Escorreu-lhe a lava incandescente nesse
instante, lavando-lhe a face agora morta, congelada
no fogo que a matou. Continuou a descer, a lava,
entrou-lhe no peito e imobilizou-lhe a vida do
coração, das entranhas, do útero, das pernas, das
mãos. Ela era nada, mas não tinha coragem para
deixar de o ser.
O seu filho. O seu filho precisava de um futuro
que só aquele emprego que a matava lhe poderia
dar. Apenas tinha coragem para ser aquela que
jogava cartas no computador, clicando no rato sem
parar, ouvindo até amanhãs em uníssono
sincronismo com o ligar e desligar do motor de
refrigeração da máquina que guardava triângulos de
sandes, barras de chocolate e pacotes de batatas
fritas.

Verónica estava sentada no sofá verde, velho,


que se afundava podre, desconfortável. Ela olhava
para a mulher que clicava no rato sem parar. A
mulher sabia que Verónica a observava, e que
imaginava os rios de lava e ouvia os até amanhã que
passavam por ela. Verónica olhava para ela e
pensava. Pensava se aquela mulher não seria um
destino à espera, um destino que aguarda um
executor. Se Verónica tinha crescido sem ter
nascido, no entendimento dela, aquela mulher tinha
morrido sem ter desaparecido. Aquela mulher era um

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destino que aguardava; que esperava pacientemente


o destino que não chega, que chega devagarinho,
que escorre lentamente braços abaixo e a sufoca na
lama pesada e suja; suja.
Verónica entrou no gabinete para a reunião
marcada para resolver um problema qualquer que se
evaporou e esqueceu. Aquela mulher não lhe saía da
cabeça; aquela mulher. Quando saiu disse até
amanhã quando passou pelo hall do elevador, apesar
da mulher já lá não estar.
No dia seguinte esperou-a na rua, seguiu-a no
final do dia de trabalho e descobriu onde vivia.

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A CADEIRINHA AZUL

3 – A CADEIRINHA AZUL

Era uma vez uma casa mágica. Era enorme e


vazia. Tinha quatro paredes e um chão mas não
tinha tecto. Olhava-se para cima e via-se as nuvens,
o sol e as estrelas. Viam-se pássaros em bandos, os
topos das árvores a dançar ao vento, ouvia-se o
zumbido que o ar faz quando passa pelas folhas e
pelos ramos, sentia-se o cheiro da terra que
conseguia entrar, sentia-se a chuva a cair, sentia-se
o sabor de uma água pura e fresca que caía mas que
nunca molhava.
Nessa casa mágica viviam três pessoas. A casa
não tinha paredes interiores; não havia divisões que
delimitassem as suas funções. Uma cama de casal
estava arrumada a um canto, outra cama, mais
pequena, arrumada a outro canto, uma mesa e três
cadeiras e mais um cadeirão arrumados a um outro
canto. No último canto estava um velho fogão e uma
pia por baixo de uma torneira. Ao meio da casa
estava uma pequena banheira, uma sanita e um
lavatório branco.
Apesar da casa mágica não ter paredes
interiores, as pessoas que lá viviam cumpriam um
ritual; seguiam por corredores imaginários quando
queriam ir de um lugar para outro. Sempre. Entre o
quarto de casal e o quarto da criança havia uma
parede falsa. Nesse espaço vazio que ficava entre as

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paredes de cada quarto encontrava-se um pequeno


banquinho azul. Em cima desse banquinho repousava
um pequeno guarda-jóias. As três pessoas que
viviam na casa mágica não sabiam que a cadeira
azul e aquele pequeno guarda-jóias estavam ali.
Passavam pelos corredores, deitavam-se nas camas,
guardavam roupas no guarda-fatos minúsculo, e
nunca conseguiam ver o banquinho e o pequeno
guarda-jóias que ficava entre os dois quartos da
casa.
Um dia a menina fez dois anos. Nesse dia falou
pela primeira vez, para felicidade dos pais. «Azul»,
disse ela. «Quero banquinho azul», repetiu. Mãe e
pai montaram uma alegria surpreendida, contentes e
intrigados sem saber o que ela queria dizer. A partir
desse dia nunca mais se calou. Cantarolava sem
parar, repetia todas as palavras que encontrava,
misturava-as de todas as formas e feitios, de tal
modo que os avisos sérios que lançava passaram
despercebidos. «Quero o banquinho azul», dizia ela.
E o pai não ligava. «Posso pegar no banquinho?»,
perguntava ela. E a mãe não ligava. «Queres ver eu
atravessar a parede, queres?», dizia, desafiando os
pais, «Queres?». E os pais não ligavam, olhavam
para ela e diziam «Está quietinha e tira os pés da
parede. Senta-te». Ela insistia, «Posso sentar no
banquinho azul, posso?». Ela corria pela casa toda de
olhos fechados, fingindo que conduzia um carro.
Corria como se não houvesse paredes naquela casa.
À noite ficava acordada a olhar para o céu estrelado
e cintilante, contando as estrelas cadentes que
morriam por cima de si. Quando sentia o sono
chegar voltava-se para o lado direito e ficava a olhar
para a cadeirinha azul com o guarda-jóias em cima,

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ou então olhava a cama dos seus pais mais ao fundo,


que dormiam ou faziam amor. Ficava a olhá-los,
muito fixa na imobilidade que assumiam enquanto
dormiam, sem emitirem qualquer som, apenas uma
pequena brisa na respiração. Ficava de olhos muito
fixos até o sono voltar a desaparecer, perguntando-
lhes baixinho «Posso sentar no banquinho, posso?».

Eram pobres mas felizes. A mãe gastava o dia a


tomar conta da pobre casa e das lides da família.
Tinha um vício. Um esmero absoluto e quase doentio
pela limpeza das roupas que vestiam a sua filha e o
seu marido. Ele trabalhava nas obras, mas todos os
dias aparecia com uma muda de roupa que parecia
nova e cheirava a nova. A sua filha era uma princesa
de pele branca e imaculada, envernizada, polida,
colocada a uma lonjura infinita da terra e do pó que
cobriam, já ali, a rua defronte da sua casa. A menina
passava o dia com a sua mãe junto ao tanque de
lavar roupa, olhando-a quieta, olhando-a frenética
lavando a roupa que nunca acabava; que ela queria
que nunca acabasse.
Um dia a felicidade acabou.

Nessa noite a menina foi sozinha para a cama


sem dizer nada aos pais. Deitou-se mas não tinha
sono. Abriu os olhos mas o céu estava negro e vazio;
era um tecto vulgar. Chorou, parou de chorar.
Chorou mais um pouco. Parou de chorar e voltou-se
para a sua direita. A cadeirinha azul continuava no
mesmo lugar. Mais ao fundo mulher e marido
discutiam. A mãe gritava para o pai empunhando
raiva num indicador que apontava a ele. O pai
pareceu desculpar-se a princípio, negar depois. A

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mãe continuava a empunhar o indicador e não se


calava. O pai deu-lhe um bofetão que a jorrou ao
chão. Deitou-se na cama sem lhe ligar cuidado. A
mulher chorava no chão. Depois calou-se. Chorou
mais um pouco e calou-se novamente. Levantou-se e
pegou no crucifixo de bronze que tinha em cima da
cómoda. Beijou-o. Aproximou-se do pai e deu-lhe
com ele na cabeça uma vez e duas vezes. E três
vezes mais. O pai não se mexeu. A mãe vestiu a
camisa de dormir e deitou-se a seu lado.

A menina chorou novamente. Olhou para cima e


no tecto escuro viu uma estrela cadente esmorecer.
Disse «Pai». Era a primeira vez que dizia pai.
Levantou-se da sua cama e aproximou-se da
cadeirinha azul. Disse baixinho, «Posso sentar na
cadeirinha azul? Posso, pai?». Deu um passo mais e
tocou na cadeirinha azul. Era fria. Passou a mão pelo
guarda-jóias, fazendo-lhe uma festa. Sentou-se na
cadeirinha azul e colocou o guarda-jóias no seu colo.
Chorou outra vez. Perguntou, «Posso, pai?». Puxou o
fecho do guarda-jóias e abriu-o. «Posso?»

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A CADEIRINHA AZUL

4 – PORQUÊ ELA?

Perguntei-lhe porquê ela. A pobre mulher não era


culpada de nada. Não lhe tinha feito nada. Não era
ninguém.
Mas Verónica nunca tinha procurado uma razão.
Verónica tinha metido na cabeça que tinha de
descobrir o que lhe acontecera ou deixado de
acontecer para ser a pessoa que era. «Para mim as
pessoas são todas iguais», disse ela, indiferente ao
meu espanto. «Vivem todas num presente que não
significa nada, que não tem nenhum sentimento
agarrado. Não sinto nada, não sinto nada…merda».
Ficou a abanar a cabeça, fingindo que se preocupava
com a sua tragédia pessoal, mas até isso era
mentira, até isso ela tinha de imaginar e encenar.
Para Verónica, matar, aquela mulher, um homem,
uma criança, um inocente, um culpado, era apenas
uma maneira para procurar sentir; apenas isso;
sentir; qualquer coisa, por mais pequena que fosse;
um nojo ou uma agonia serviria, e até isso lhe daria
uma alegria incomensurável que também seria, esse
sentimento de alegria, uma alegria que se repetiria e
desencadearia a torrente imparável de sentimentos
que sempre toma conta de nós, e assim, julgava ela,
sentir-se viva pela primeira vez.

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Seguiu a mulher após esta sair do edifício de


escritórios. Seguiu a mulher quando esta apanhou o
metro. A mulher era a mesma; triste, morna,
derrotada, vergada pelos veios de lava que lhe
marcavam a cara. Seguiu a mulher quando saiu do
metro e percorreu a distância até casa. Seguiu a
mulher quando esta entrou no prédio onde vivia.
Seguiu a mulher até porta de casa. Deixou-a entrar
e ficou por ali, à porta, a pensar.

Não sentia nada. Vazia. Oca; um buraco imenso


dentro de si, que caía, caía sem parar. Via-se num
precipício, agarrando-se com força, com as duas
mãos e fincando os pés. Queria mais.

O gancho entrou pela garganta e saiu pela boca


jorrando sangue. Não a deixou cair ao chão.
Segurou-a como quem segura um peixe num anzol e
ficou a olhar-lhe os olhos marcados de morte. O
destino tinha chegado. O destino tinha sido
descongelado. O destino dela; o nosso destino; o
destino. Tinha sido descongelado e, de imediato,
deitou-se a apodrecer. Um buraco imenso que caía
abriu-se no corpo da mulher, e aquilo que lhe veio à
mente, nesse momento final, não foram
pensamentos de medo pelo seu filho que dormia no
quarto do lado, regalado no sono que o embalava.
Não foram pensamentos de amor e saudade do filho
que amava. Não foram pensamentos de preocupação
com as intenções daquela mulher delicada de unhas
arranjadas; já sabia que ia morrer na agonia de não
saber o que ela iria fazer a seguir, ao seu filho. Não
foi nada disso; enquanto o sangue escorria, que nem
lava que queima e suja, que a derrota, apenas

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lembrou-se do ronronar do motor da máquina de


refrigeração que guardava triângulos de fiambre,
bolos e sumos, e das pessoas que passavam por ela
e que não lhe diziam até amanhã. Não lhe diziam.

Fiquei cego numa fúria fútil, porque nada podia


fazer. Não conseguia mover-me. Ela não me deixava
mover. Talvez não exista mesmo, como ela diz. Não
sei o que ela fez a seguir, se matou a criança ou não.
Se a deixou quieta ou se entrou no quarto e pegou-a
à bruta e ainda estremunhada, arrastando-a pelos
cabelos e ajoelhando-a no meio da sala para que ela
visse a sua mãe morta de sangue, e depois, por
detrás; por detrás, levantou bem alto o gancho e
espetou-o crânio adentro, com toda a raiva que
conseguiu imaginar, enfiando-lhe o aço até sair do
outro lado, no céu-da-boca da criança, dando-lhe a
provar, assim, na língua, o sabor metálico da morte
que o obriga a olhar a mãe vazia, perdida no buraco
imenso que a preenchia; que o também vai
preencher.

Raiva. Senti raiva e nojo. Senti o sabor metálico


do gancho que tocava a minha língua. Queria matar
Verónica. Quero matá-la, enche-la de morte. Agora.

Quero sair daqui; quero sair daqui! Tirem-me


daqui!

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