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As duas faces do memorial académico' Maria da Conceigao Passeggi RESUME Cette étude présente une réflexion sur le mémonal acadérnique: mémoral des- cripsif et mémorial de formation, er cherche | mectre en evidence la co-existence de deux dimensions de ce cype diécricure aurobiogra phique dans Fenseignement supérieur’ Une dimension évaluacive, wsible, exgée par les Insticutions, et une dimension aucoforma tive, cachée et méconnue, sous-acente au processus de réflexion subjective. tlle dis cute les situations de demande (injonction instiautionnelle), de production éerté (des xption objective de la vie incellectuelle et professionnelle) e de réception (soutenance & évaluation du mémonal), pour question. ner fa dynamique des transformations des représentacions de sor-méme dans des telles irconstances. MOTS-CLES: Mémoral, formation des en seignants, représentations de soi-méme. Introducao ‘As histrias individuals, mesmo em seus a5- * pectos menos generalizives, apresentam-se como uma sintese vertical da hisria social [Jo que toma unico um ato ou uma hist ‘ ria individual apresenta-se como uma via de acesso {.] a0 conhecimento cientifico de um sistema social. . Franco Ferraroti Nas ciéncias sociais e humanas, as histérias de vida, en- quanto perspectiva mecodolégica, surgem no final do século XIX, na Alemanha, numa ruptura com os mode- los positivistas. No inicio do século XX, sociélogos ame- ricanos da Escola de Chicago, formados na Alemanha, estabelecem as bases da abordagem autobiogrifica 1 Este trabaiho & um produto do estigio pés-doutoral fem Educagio, desenvolvide com bolsa da CAPES na Universidade de Nantes (Franca). Projeto: Narrativas autobiograficas: génese e percurso de saberes docentes rnov-/2004 ~ nov. 205. : 6s ODdISSEIA - VOL. 9 NE (2 € 13 _ 2eorWWIsstia EDUFAW — Ed/7084 da VER em estudos sobre a imigracio, O avango dos métodos. quanticativos, entre os anos 1940 e 1970, marcou um’ recuo dessa abordagem, que parecia entio irreversivel No encanta, ela ressurgité no final dos anas 1979, eam pendo dessa ez fom a tendéncia a tudo quantificar € permitindo (re)valorizar 0 conhecimento do homem pelo homem, numa orientacio hermenéutica, interpre tativista dos fatos sociais (PINEAU: LE GRAND, 1996), ‘A questio aberta sobre sua Validade cientfica, em so- iologia, é defendida por Ferrarocei (1983), que repensa sua dimensio metodoldgica e busca evidenciar 0 seu alcance epistemologico. Segundo 0 autor, para se ler uma sociedade através de (auto)biografas & preciso ‘considerar sta “natureza relacional” e sua “intenciona lidade comunicativa’ Pois as formas e contetidos des- sas narrativas dependem “das expectativas, injungdes, rnormas e valorés implicitos, freqdentemente também anges, subjacentes ao sistema de “microrrelagio so- cial” no qual elas se produzem e sio recebidas (op. cit. p.$1-52). Em Educagio, as histérias de vida foram introduzidas no contexto da formacio permanente, no final dos anos 1970, em paises de lingua francesa, em resposta a uma profunda mutagio social no mundo do traba tho. As historias de vida em formacdo, como se designou esse movimento socioeducativo, sao concebidas como “pesquisa e busca de sentido a partir de fatos tempo: ras pessoais" (PINEAU, 1996, p. 66). O seu interesse & colocar a pessoa do adulto no centro do processo de formacio e valorizar sua capacidade de elaborar uma autobiografia-projeto, como instrumento de pesquisa @ formacio, com vistas a sua reorientagio profissional (COURTOSS, 1996). Uma extensa producio bibliogré fica sobre as histérias de vida em formagéo, publicadas ina Franca, Belgica, Suiga e Canada (Québec), atesta sua importincia como campo de investigacio e de pratica na formagao de adultos. A pesquisa biogrifica (Biography research, Biographie- for:chung), como lembea Delory-Momberger (2003, 2005), constitui-se numa outra corrente de pesquisa in” ternacional, desenvolvida em paises anglo-sax6es € na Alemanha, nos dikimos trinta anos. As pesquisas nes s2 tea atestam uma coeréncia teéricae pritica que a constitui num verdadeiro campo disciplinar No Brasil, um uso particular de histérias de vida surge também no final dos anos 1970, sob a forma de me: 66 diss ‘morial, institucionalizado pela comunidade académica. Ao longo de todos esses anos, 0 memorial tornou-se uma pritica usual para fins de ingresso © promocio na caveina dt obrencio de e'plomas 2 acess pés-graduacio. Sob que aspectos essas narrativas se vinculariam a essa tendéncia internacional que s¢ ins talou em varias areas das ciéncias sociais e humanas? E porque raza0, apesar do potencial heuristico dos me Imoriais para as ciéncias da educacao, por exeiplo, ain: da nio se encontram, no Brasil, pesquisas consotidacas sobre esse género discursivo, gerado e desenvolvide 0 tensino superior, para ele é sabre ele? Hi poucos crabs. los sobre essa priica de escrita e os manuals de me: codologia do trabalho cientifico que a incluem entre os textos cientificos dedicam-the pouco espago (BASTOS, 1996: MORAES, 1995; SEVERINO, 1996). Para minha surpresa, quando a UNICAMP disponibilizou, em 2001, 05 Anais eletrénicos da Ill Conferéncia de Pesquisa ‘S6cio-Cultural, um dos meus primeiros trabathos sobre ‘© memorial de formacao figurava como uma rara rete réncia 20 assunto, No encanto, é inegivel que se trata hoje de uma for made expressio especifica do mundo académico, uma maneira de the dar sentido, problematiziio. Nos me mori, cla autor desconstrbie reconstdi represent): Bes desseuniverso cultural numa articulagio daléica entre situacio pessoal eestruturainsicucional. O con junto dessas narativas apresenta-se, pois, como “uma sintese vertical da historia socal” da universdade. Eas permisriam estudar seus sistemas de producio do co- nihecimento, priticas educacionaisexperéncia profs sional, formacio e profsionalizagio docente, elagSes dde poder entre raneas outras temiticas, como assuntos de interesse para as pesquiss sobre os mais diversos aspectos da vida académica bras ira Neste trabalho, apresento uma reflexio sobre duas dimensées do memorial académico® uma dimensio institucional, visivel, que faz dessas narrativas um dis positivo de avaliagio de candidatos a concursos ou a obencao de grau académico. £ uma segunda, aparen remente oculta, a do memorial como espaco subjetive de reflexo, aberto 4 autoformagio, 8 socializagio de saberes experienciais, problematizacio das represen agbes de si mesmo, do outro e do mundo académico e profssional superior no Brasil “Uma escrita académica em expansao runciances, exigt deles novo pronunciat durance a formagio inicial ou continuada, oe ‘Qual arelagao entre essas duas dimensbes? Qual o inte: resse de ura face exposta? Qual a importncia da face coculta? Em que medida essa reflexéo contribui para a compreensio do memorial como pratica social de es- cra reflexiva e come testemunho da historia do ensino xstic humanamente. é pronunciar 0 mundo, é modificé-1o. © mundo pronunciado, por sua vex. se volta prablemativade aos sujet pro . Paulo Frere (0 memorial académico ser’ aqui definido como uma = narrativa autobiogrsfica onde o autor analisa sua histo fia de vida intelectual e profssional, em resposta a uma demanda da academia. No entanto, em fungio de suas finalidades e formas de elaboracio, convém distinguir [dois tipos de memorial: 0 memorial descritivo, exigido para fins de concurso (ingresso ou promogio na car reira dacente ou na pés-graduagao) € 0 memorial de formacio, apresentado para a obtencio de diploma de graduacio, no ensino superior, geralmente elaborado com 9 acompanhamento de um professor formador, Bo panto de vista etimoldgico, o termo memorial (sc. XIV), do latim tardio memoriale, is, designa “aquilo que faz lembrar’, “obra, relaco concernente afatos ou indivi- duos memoriveis" (HOUAISS, 2001). Para pontuar bre vemente pistassobreas iliagées do memorial, menciono trés obras em cujo titulo figura 0 terme: 0 Memorial de Pascal, © Memorial de Santa Helena e o Memorial de Aires. © primeiro, publicado em 1670, refere-se a uma escrita de cardter individual e mistico. Trata-se, de fato, de um pequeno texto, escrito por Blaise Pascal (1623- 1662), na noite de sua conversio, e encontrado costu- rado na roupa que usava no momento de sua morte, Fle traduz o desejo de perenizar a experigncia mistica da iluminagio e lembrar a ruptura entre um estado de pecaido e0 estado de graca, alcangado pela conversio, Esse tipo de memorial fiia-se & tradigdo das narrativas de conversao, cujas origens remoncam as Conjissdes de Santo Agostinho (354-430). O segundo exemplo, 0 Memorial de Santa Helena (1822) foi escrito por Las Cases, a quem Napoledo Bonaparte (1769-1821) teria ditado suas memérias na ilha de Santa Helena, onde morreu. Esse tipo de memorial remonta a bios gregas (PINEAU; LE GRAND, 1996), criadas para narrar feitos ‘memordveis de personagens ilustres, O ultimo exem- plo, o Memorial de Aires (1908), de Machado de Assis, apresenta-se sob a forma do didrio do Conselheiro Aires, Esse caso de escrca intima, em literatura, lembra as produgdes autobiogrificas popularizadas no século XVilL © estudo aprofundado dessas filiagdes permitiria, ca- vex, mostrar como 9 memorial académico reinterpreta caracteristicas das narrativas de conversdo, dos relatos de fatos memordvels e dos registros pessoais. permitin- do escender ainda a reflexdo sobre a evolugao moral e intelectual de personagens dos romances de formagio (Bildungsroman), considerados-como ama forma de secularizagao das narrativas de conversio (DELORY- MOMBERGER, 2003), Por que razio decidiu-se designar memorial uma es- ccrita académica e institucionaliza-to como sistema de avaliagio ¢ selesio? Essa & uma historia que ainda nao foi escrita. O que se sabe & que no final dos anos 1970, 0 ‘memorial ja era exigido em universidades brasileiras. A divulgagio desse género académico é marcada pela pu: blicacio, em 1991, do memorial da professora Magda Soares, Meta nria ~ Memérias, Travessia de uma educadora, escrito para 0 “concurso de professor titur lar na Universidade Federal de Minas Gerais” (SOARES, 1991, p-15), em 1981. € justamente a partir dessa daca que essa exigéncia se generaliza em concursos para professor titular ou para a progressio funcional nas uuniversidades federais. Nos anos 190, nas mesmas uni- versidades, ela se estende ao ingresso na pés-gradua- io. Hoje, tomou-se um requisito exigido usualmente ‘em editais de concursos para universidades, institutos de pesquisa e érgios governamentais. © prestigio alcangado por essas narrativas académicas servird de garantia e de inspiragio para a proposta, pio- neira no Brasil, do memorial de formagdo como requisito parcial para a obtencio do diploma do Curso Normal Superior, quando da criagio do Insticuto de Formagao de Professores (atualmente IFESP) em Nacal-RN, em 1994, (O memorial de formagao conheceu, desde entio, uma expansio vertiginosa, Muitas universidades brasil 125, pliblicas e privadas, 0 adotaram na formagio de professores, em servico, fora da’ quacro de seus cursos “7 dissin

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