You are on page 1of 101

UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

A AVENTURA DE HELEN KELLER EM ERNST CASSIRER:


REDE SIMBÓLICA E SENTIDO DA VIDA

FELIPE URBANO

SÃO PAULO

2015
2  
 
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU

PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA

A AVENTURA DE HELEN KELLER EM ERNST CASSIRER:


REDE SIMBÓLICA E SENTIDO DA VIDA

Dissertação apresentada ao Programa


de pós-graduação em Filosofia da
Universidade São Judas Tadeu, como
exigência parcial para a obtenção do
título de mestre em filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Hélio Salles


Gentil

SÃO PAULO

2015

 
 
3  
 

Urbano, Felipe
U72a A aventura de Helen Keller em Ernest Cassirer: rede simbólica e
sentido da vida / Felipe Urbano. - São Paulo, 2015.
101 f. ; 30 cm.

Orientador: Hélio Salles Gentil.


Dissertação (mestrado) – Universidade São Judas Tadeu, São Paulo,
2015.

1. Keller, Helen Adams, 1880. 2. Cassirer, Ernst, 1874-1945. 3.


Simbolismo. I. Gentil, Hélio Salles. II. Universidade São Judas Tadeu,
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia. III. Título

CDD 22 – 113.8

 
 
4  
 
DEDICATÓRIA

A todos que em algum momento procuram o


sentido da vida e, não encontrando resposta, encontram
em outros o que achavam buscar em si.

 
 
5  
 
AGRADECIMENTOS

A Hélio Salles Gentil, orientador e mestre do caminho. Em todo o tempo ele


conciliou competência e rigor acadêmico com a ternura de quem carrega gentileza no
sobrenome.

A Talita, amada e presente, pela companhia de vida, pelo amor em todo o tempo.

A José Carlos e Nice Urbano, que me mantiveram de pé com pincéis e joelhos.

A Fabiane Urbano. Sem ela não haveria graduação, e sem graduação não haveria
mestrado.

A Sergio Cruz, mestre e parceiro de caminhada, a quem sou eternamente grato por
ter compartilhado comigo este e tantos outros projetos de vida.

A Marson Guedes, que me ensinou o caminho até as palavras em um tempo que


ainda me eram uma soma de letras.

A Ed René, por ter inspirado boa parte dos lampejos aqui postos.

A tantos outros mestres que encontrei no caminho. Menção especial ao Washington


de Campos, que me acompanha em amizade e compartilhando sabedoria há mais de dez
anos.

Aos amigos, que emprestam sua amizade e questões em todo o tempo.

À querida Julie Oliva, por sua intelectualidade e afetividade no cuidado com este
amigo mestrando.

Aos professores Erinson Cardoso Otenio e Paulo Jonas de Lima Piva pela
contribuições na banca de qualificação deste trabalho e disponibilidade em contribuir.

Aos alunos de sala de aula que repartem suas histórias e me inspiram.

Aqueles que tantos cafés comigo tomaram para tornar esse projeto possível.

Àquele que É o que É.


 
 
6  
 

Felicidade?
Disse o mais tolo: "Felicidade não existe."
O intelectual: "Não no sentido lato."
O empresário: "Desde que haja lucro."
O operário: "Sem emprego, nem pensar!"
O cientista: "Ainda será descoberta."
O místico: "Está escrito nas estrelas."
O político: "Poder"
A igreja: "Sem tristeza? Impossível.... (Amém)"
O poeta riu de todos,
E por alguns minutos...
Foi feliz!
(Sergio Vaz, Felicidade)

 
 
7  
 
RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo investigar a experiência de Helen Keller presente
na obra Ensaio sobre o homem de Ernst Cassirer, tendo por horizonte questões acerca de
quem é o homem e como faz parte de sua natureza uma interrogação sobre o sentido para a
vida. Examinamos, a partir das ideias de Ernest Cassirer, a presença do homem como
produtor de cultura que atua em mundo “ideal” produzido por ele mesmo, o mundo
simbólico. Este homem que, enquanto animal simbólico, busca estabelecer sentido para sua
presença no mundo, imerso em uma rede simbólica constituída pela arte, pelo mito,
religião e linguagem, história e ciência. Helen Keller é um exemplo que nos pareceu
ilustrar com precisão a teoria de Cassirer: uma criança surda e cega que entra neste
universo, novo para ela, vindo de fora dele. Ganha destaque na experiência dela algo que
se passa, de forma menos evidente, com todo ser humano. Para examinar o problema da
atribuição de sentido, a investigação do trabalho parte da consideração do homem
contemporâneo que parece experimentar uma crise pela ausência de sentido. Perguntamos
como conciliar a ideia de um não-sentido em relação a um homem simbólico que a tudo
atribui sentido, interrogando autores como Lima Vaz, Fernando Savater e Albert Camus,
que refletiram sobre a crise de sentido do homem moderno e contemporâneo. Como se
sabe, o não sentido do homem ganha voz gritante na experiência humana em Auschiwitz,
de que buscamos os testemunhos de Viktor Frankl e Primo Levi, com suas reflexões sobre
a ausência de sentido no campo de concentração. Os caminhos do não sentido e do homem
simbólico se encontram novamente na reflexão sobre a figura de Helen Keller e o relato
mais profundo de sua entrada no universo da linguagem, a partir da qual esboçamos nossas
conclusões. A impossibilidade de atribuir um sentido único a vida e a atuação do homem
no poder semântico do mundo são duas importantes conclusões sobre a ação do homem
simbólico.

Palavras-chave: Ernst Cassirer; Helen Keller; rede simbólica; sentido da vida.

 
 
8  
 
ABSTRACT

This study aims to explore Helen Keller’s experience as described in Ernst Cassirer work,
An Essay on Man. It pursues to understand who is the man and how his nature implies a
quest for the meaning of life. By using Ernst Cassirer’s ideas as a starting point, we
examine man’s presence in the world as a culture generator that acts on an “ideal” world of
his own produce, the symbolic world. Such man, as a symbolic animal, seeks the definition
of meaning for his presence in the world surrounded by a symbolic network comprised of
art, myth, religion and language, history and science. Helen Keller is deemed as an
accurate example of Cassirer’s theory: a deaf and blind child enters this world, new to it
and into it. Her experience makes an usual occurrence a remarkable one: what is unusual to
her is taken for granted for most of us. In order to examine how meaning is ascribed, this
investigation examines the contemporary man that seems to go through a crisis because of
lack of meaning. We proceed questioning how to harmonize the idea of non-meaning by
looking through the works of Lima Vaz, Fernando Savater and Albert Camus, thinkers that
pondered on a meaning crisis experienced by modern and contemporary man. It is clear
that man’s non-meaning is intensely expressed by human experience in Auschwitz, so we
examine Viktor Frankl and Primo Levi reflections on the absence of meaning on a
concentration camp. Non-meaning and symbolic man cross pathways again on the
reflection about Helen Keller figure, and on a deeper report of his entry on language
universe. At that point we draw our conclusions. The impossibility of ascribing a single
meaning to life, besides the acting of man on world’s semantic power, are two prominent
conclusions on symbolic man action.

Keywords: Ernst Cassirer; Helen Keller; symbolic network; meaning of life.    

 
 
9  
 
SUMÁRIO

 
DEDICATÓRIA .......................................................................................................................................... 4

AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................ 5

RESUMO ..................................................................................................................................................... 7

ABSTRACT ................................................................................................................................................. 8

SUMÁRIO ................................................................................................................................................... 9
1. A REDE SIMBÓLICA EM CASSIRER ..................................................................................... 16
1.2 O SÍMBOLO E NATUREZA HUMANA ............................................................................ 19
1.3 “DO ANIMAL RACIONAL AO ANIMAL SIMBÓLICO” .................................................... 24
1.4 REDE SIMBÓLICA ................................................................................................................. 32
1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA........................................................................................... 38
1.5.1 EFEITO SIMBÓLICO EM CASSIRER............................................................................. 38
1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS ............................................................... 42
2. A PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA ........................................................................ 49
2.1 A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DA VIDA NA MODERNIDADE .................................... 49
2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA ...................................................... 61
2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ ................................................................................................... 69
2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ ...................................................................... 74
3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR ..................................................... 82
3.1 LINGUAGEM E FALA EM CASSIRER ................................................................................ 82
3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO ............................................................ 89

CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 94

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 99


 

 
 
10  
 
INTRODUÇÃO

Debater-se contra a realidade, buscar um sentido para a experiência diária, um algo


maior que explique esse inóspito e repetitivo exercício diário de pequenas variações:
despertar, tomar o café, fazer exercícios, trabalhar, comer, pegar o caminho de volta pra
casa e novamente deitar-se para dormir. Esse ciclo aparentemente natural – um dia de
sensação indigesta, nauseante 1 – interpela o homem e o coloca em um sem fim de
questionamentos. Isso causa uma profunda sensação de desconforto e inadequação – de
todas as expressões possíveis para referir-se à vida, possivelmente seja a mais indigesta
essa a de afirmar que é um mero suceder de dias. Isso aparece na tradição judaica, Adão
provou o fruto; na história dos heróis gregos, como Aquiles. Estas são expressões
mitológicas que trazem dentro de si camadas aparentes do desejo humano de superar a
rotina, o cotidiano massacrante. São expressões de uma necessidade profunda de romper o
ciclo natural a que estão submetidos e experimentar algo para além das suas fronteiras na
busca por significado.

É a escolha preferencial pela dor, o sofrimento, a guerra até a morte, ou mesmo


qualquer outro estímulo que se oponha ao desenrolar monótono dos dias. Aquiles foi
advertido a ficar na Grécia, casar-se, ter filhos e vê-los crescer. Ainda assim, optou pela
guerra que o destruiria. Do mesmo modo, Adão não se conformou com a sua condição
natural e limitada e decidiu romper com o ciclo que o “aprisionava” na sucessão de dias
sempre iguais2.

Esse movimento se percebe nas situações cotidianas, não é ocorrência rara. Olhar-
se no espelho, avaliar os passos a dar, não gostar dos passos que deu, sentar-se à mesa para
as refeições. Tudo, são movimentos simples e automáticos, como ficar olhando fixamente
para o prato, experimentar uma angústia e, na tentativa de lidar com essa angústia
nauseante, buscar o sono para esvaziar-se dela.

Ao tempo em que este trabalho é produzido, o vento traz consigo expressões de um


homem contemporâneo que sofre a perda de sentido, em constante crise para explicar seu
                                                                                                                                   
1
CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Record, 2004. p. 29
2
Nilton Bonder na obra A Alma Imoral avalia o ato transgressor de Adão como uma vocação inerente ao homem  
 
 
11  
 
mundo, já que é tomado de uma necessidade absoluta de explicá-lo. Sofre ainda com o já
identificado desejo de transcender a vida cotidiana e a monotonia de seus dias, que é uma
característica das gerações anteriores. Em vez de “maçãs e guerras”, vê-se levado a
enxergar cada centímetro de sua presença humana no mundo. A opção são as variações
“psi”: divãs nos consultórios, profissionais da saúde mental, terapias ou medicamentos que
não precisam oferecer obrigatoriamente um triunfo, um final feliz depois do tratamento.
Precisam, no entanto, ser um processo que alivie a dor causada pelas pressões da vida.

O acúmulo de entretenimento passa a ser um valor, não importa quão alienada seja
a postura de “não pensar em nada” enquanto o tempo passa. Muitos espaços passam a ter
esse potencial: a televisão, o estádio de futebol, o salão de beleza. A tecnologia também
acaba por exercer uma função anestésica, provendo contínuas interações com conteúdos ou
pessoas. Os aparelhos são projetados para aperfeiçoar a vida humana, torná-la mais prática.
Talvez a maior tentação seja a de colocar a suprema necessidade de se ocupar no lugar da
necessidade de reflexão. Ocupar-se o tempo todo, com o que quer que seja, parece ser o
mantra de nosso tempo.

Outro grande agente da súplica por um sentido de vida está ligado à tecnologia,
embora se expresse além dela: o consumo. Entretenimento é uma forma de consumo que
nem se prende à aquisição de um objeto, uma vez que é possível consumir ambientes,
pessoas, lugares ou experiências. Quanto mais destas experiências alguém ajunta em sua
coleção, mais contentamento se encontra na própria condição. Observa-se este movimento
até na experiência com o sagrado. Novas propostas religiosas surgem todos os dias.
Templos abarrotados, práticas as mais excêntricas, tudo porque o homem busca uma
experiência que “supere” a sucessão de dias, que lhe forneça um referencial, que prescreva
uma transcendência que possa ser sentida.

Como definir essa crise experimentada pelo homem? Qual é sua origem e quais são
as implicações? Estes fragmentos da vida humana são suficientes para incitar a pergunta
crucial: o que é este homem que a tudo busca significar? Seria este o traço mais

 
 
12  
 
característico da experiência humana? Nenhum momento histórico é mais significativo
para a problemática desta crise de sentido do homem quanto o advento da modernidade3.

Antes da modernidade o eixo de referência para a humanidade era um conjunto de


valores estabelecidos que apontavam para além do ser humano. O mundo que valorizava a
busca “do bem”, e dos imperativos religiosos, testemunha o surgimento das ideias de
Copérnico. Com ele o centro gravitacional do universo muda da divindade para uma
definição astronômica da relação terra-sol, e com isso mudam também os referenciais que
o homem usa para medir-se.

O conjunto de sentidos do homem, junto com a particularidade de suas


circunstâncias, existia fora dele, mas agora foi trazido para dentro. Todos os referenciais de
significação do mundo, e as maneiras de explicá-lo, agora fazem parte de seu mundo
interno. O homem, na sua finitude e limitações, passa a ser responsável por assegurar o seu
mundo de significados. O arcabouço que afirmava “coisas tais como elas são” é substituído
pela lógica “das coisas tal como são para mim”.

No século XX, em meio ao paralelo hegemônico da discussão filosófica e


científica, uma apologia biológica-científica emerge com maior popularidade, pois é um
novo olhar que coloca o homem como variante de outras espécies animais, mesmo que o
ápice desse processo de reflexão seja a ideia de que o homem é um animal de categoria
diferenciada. Após um século de discussões sobre esta pergunta de caráter em princípio
antropológico, o filósofo alemão Ernst Cassirer usa esta perspectiva científico-biológico.
No início do século XX ele propõe questionamentos em sua obra como: estaria o universo
de interação do homem restrito a um processo mecanicista-biológico? Não seria limitador
conceber o homem como animal racional? O debate científico e das outras áreas de
conhecimento não teriam afastado a perspectiva filosófica da discussão sobre o homem?

A proposta para esta investigação é examinar Ensaio sobre o homem, livro de Ernst
Cassirer. A saída do autor para estas questões terá a raiz no conceito de símbolo, tendo
como exemplo mais ilustrativo a história da americana Helen Keller. Cassirer encontra

                                                                                                                                   
3
A ideia será elaborada no decorrer do texto com o filósofo Henrique de Lima Vaz no texto “Crise de sentido e
Modernidade”
 
 
13  
 
nela um exemplo tipicamente humano na natureza para trocar o conceito de um animal
racional para o de um animal simbólico, colocando em xeque as teorias existentes, aquelas
que apontavam a racionalidade como o traço mais característico do ser humano, uma
afirmação amplamente disseminada por biólogos ao longo do século XVIII e XIX.

Helen Keller, cega, surda e consequentemente muda, não apenas vive uma das mais
belas histórias da humanidade na sua relação com a professora Anne Sulivan, mas também
oferece o “abre-te, Sésamo!” para uma compreensão da natureza humana. Sua experiência
mostra como o conceito de símbolo pode nortear toda a discussão filosófica sobre o
homem em Cassirer. O autor reconhece que a discussão da relação entre homem e símbolo
deveria ter mais presença em outras áreas de estudo além da filosofia, defendendo a
necessidade de reencontrar este espaço de discussão. Esta evidência é possível ser
encontrada nos exemplos dados pelo autor nos estudos biológicos das reações animais e,
em uma análise contemporânea a Cassirer, na psicologia de Carl Gustav Jung4.

O tema deste trabalho tem Helen Keller como chave, pois pode ela ser ainda um
exemplo para investigarmos as questões primárias apresentadas por este texto sobre o
sentido da vida. Consideramos que sua condição de extremas limitações no símbolo é uma
oportunidade para a reflexão desta problemática. Que contribuição uma jovem que
aprendeu o sentido das palavras aos nove anos de idade, e que só se comunicou por meio
da professora pelo toque das mãos, poderia dar para a questão? O que ela descobriu nesta
sua entrada no universo simbólico que coloriu sua vida a ponto de ser tornar uma grande
ativista, militante, escritora e personalidade mundialmente conhecida pela plenitude de
vida?

No primeiro capítulo, examinaremos o conceito de rede simbólica em Cassirer


como norte da problemática do símbolo, e examinaremos a forma como o autor estrutura a
ideia de símbolo não como um fragmento isolado (que chamará sinal), mas como uma teia
interligada de múltiplos significados de um homem que em todo o tempo busca estes
significados distintos. O autor se insere em um debate permanente da história da filosofia
sobre o que seria este “homem” e as formas de conhecimento que tem a respeito de si
                                                                                                                                   
4
A comparação direta das duas obras sobre o símbolo foi lembrada na obra O mito em Cassirer e Jung: Uma
compreensão do ser do humano de Nilton Sousa da Silva.
 
 
14  
 
mesmo. Dentre as reflexões, o autor encontrará a chave para o símbolo, a experiência de
Helen Keller aparecerá como exemplo do homem simbólico em ação. Também entra neste
debate uma leitora de Cassirer, Susanne Langer. Ela avalia o símbolo como uma nova
possibilidade da concepção do humano que, até aquele momento, estava reduzido pela
realidade científica. Ela encontrou no símbolo aquilo que denominou de “um mundo de
novas questões”5 não científicas. Para a autora, a única filosofia surgida genuinamente da
ciência foi o positivismo, a menos interessante de todas as doutrinas 6. Segundo ela,
Cassirer possui o pioneirismo na filosofia do simbolismo e é com base em sua reflexão
sobre o símbolo que este trabalho será desenvolvido.

Há uma noção fundamental para a compreensão do conceito de símbolo em


Cassirer: a cultura. Skidelsky, biógrafo de Cassirer, o identifica como o “último filósofo da
cultura”7 e considera fundamental pensar a obra do autor nestes termos. Compreender a
cultura a partir do olhar de Cassirer é investigar o sistema das atividades humanas que
define e determina o círculo da humanidade, em que linguagem, mito, religião, arte,
ciência e história são os setores desse círculo, componentes da rede simbólica discutidas há
pouco8. Para melhor compreensão da relação de homem, símbolo e cultura, também
consideraremos o trabalho de Levi Strauss em sua obra Antropologia Estrutural, junto com
seus estudos em tribos consideradas primitivas (na perspectiva contemporânea de
desenvolvimento voltado para um progresso de infraestrutura de vida) e suas relações com
elementos simbólicos que compreendem seu modo de vida.

No segundo capítulo, dado o homem simbólico que a tudo busca significar, as


questões levantadas no início do trabalho sobre o sentido da vida e a crise de sentido do
homem começam a ganhar contorno: o que seria a “crise de sentido” do homem? O que a
configura e a caracteriza? Quando se dá? Como ela acontece? O teórico Henrique de Lima
Vaz contribuirá na localização da problemática com sua visão sobre a modernidade e busca
de sentido conceituando o que chamamos de crise de sentido e as suas implicações para o

                                                                                                                                   
5
LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25.
6
LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25.
7 Skidelky, E. Cassirer, the last Philosopher of Culture. Princeton: Princeton University Press, 2008.
8 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução:
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.115  
 
 
15  
 
homem moderno9. A resposta para a questão do sentido da vida será explorada em Albert
Camus. O filósofo francês trará com a experiência e a noção de absurdo uma luz
importante e direcionadora para a problemática, como lidamos com esta questão e qual a
resposta possível para ela. Suas alternativas serão indigestas diante da expectativa: a vida
teria em si um sentido? A visão de Camus será corroborada por Fernando Savater. De
posse dos escritos do século XX sobre a problemática, apontará para um caminho
interessante para fundamentar suas respostas de que, na verdade, a vida não tem sentido.
Diante deste cenário pouco atrativo, duas experiências serão relevantes para a discussão: as
de Primo Levi e de Victor Frankl. As situações extremas que viveram em Auschwitz
apontam lampejos do limiar máximo da experiência humana e sua crise de sentido.

No terceiro capítulo, retomamos a experiência de Helen Keller como conexão na


exposição dos sentidos no símbolo de Cassirer, para a ponte do sentido da vida discutido
pelos autores do segundo capítulo, tendo por organizador o universo simbólico da
linguagem. A experiência da pequena Helen Keller é:

“Antes que a minha professora viesse a mim, eu não sabia que existia.
Vivia num mundo que não era mundo para mim. Não espero conseguir
descrever adequadamente aquele inconsciente, embora consciente, estado
do nada. Ignorava que sabia alguma coisa, que vivia, agia, desejava; não
tinha nem vontade, nem intelecto; eu era impelida para objetos e ações
por um impulso cego natural, instintivo. Só tinha uma inclinação para a
cólera, o prazer, o desejo... Não era noite e não era dia, mas um vazio que
absorvia o espaço, uma estabilidade sem fundamento. Não havia estrelas,
nem terra, nem tempo, nem freio, nem mudança, nem bem, nem crime”
(KELLER, 1908, pg.113).

O mundo de Helen Keller é então invadido por símbolos e a “pequena massa de


possibilidades”10, e encontra na educadora Anne Sulivan um desdobramento infinito de
possibilidades. Como foi a experiência de entrar em um universo simbólico? Teria de fato
a menina dado sentido à sua vida a partir de então? O que significou esta euforia? A
experiência de Helen se apresenta como uma oportunidade para questão do sentido da vida

                                                                                                                                   
9
A ideia de um homem moderno não está inserida em um debate sobre o real estado da modernidade ou
hipermodernidade como for a de radicalização como o quer autores contemporâneos (Gilles Lipovettsky
como expoente), mas uma referência simples de um homem que acompanha as questões postas pela
modernidade.
10
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008.
Pg. 36
 
 
 
16  
 
e o universo simbólico. Desvendar o que ela encontrou foi um caminho muito bem trilhado
por Cassirer. A investigação do que esta experiência significou a uma menina que até então
encontrava possibilidades restritas poderá ser uma importante ponte para compreender um
pouco melhor a relação que estabelecemos com o sentido da vida.

Será um regresso para Cassirer, com a exposição da rede simbólica em sua forma
linguística por alguém vindo de um lugar “de fora dela”11. Cassirer, oriundo das ciências
da linguagem com sua formação em literatura anterior à filosofia, contribuirá para uma
alternativa mais específica sobre o problema. Como poderia Helen, por meio da
linguagem, estabelecer sentido para sua vida? Como a rede simbólica da linguagem é fonte
de sentido para qualquer humano? Estaria nela uma chave possível para dissolução da
problemática do sentido?

Para longe de uma resposta definitiva, a expectativa é que este caminho contribua
para uma ilustração sobre uma problemática contemporânea (com diversas manifestações
ao longo da história) sobre o sentido da vida. O que se apresenta nesse momento como
chave é a experiência de uma menina de sete anos, sua professora, e um arcabouço
carregado de densidade filosófica sobre símbolos.

1. A REDE SIMBÓLICA EM CASSIRER

A obra Ensaio sobre o homem foi o roteiro escolhido para remontar o caminho que
Ernst Cassirer construiu até o homem simbólico, como modelo considerado mais adequado
para uma investigação que nos auxilie na busca por uma abordagem inicial para a questão
inicial deste trabalho: o que é este homem que a tudo busca significar? Anterior a uma
reflexão sobre o homem simbólico, Cassirer inicia sua abordagem na questão sobre o
conhecimento que o homem tem a respeito de si e dos meios utilizados até então para
                                                                                                                                   
11
 Esta   expressão   é   utilidade   por   James   Berger   editor   do   livro   A   história   da   Minha   Vida   de   Hellen   Keller  
(2008:  36)  
 
 
17  
 
conhecê-lo. Considera ter sido esta uma questão que superou o conflito de escolas
filosóficas ao longo do tempo, e a avalia como a “mais alta meta” do pensamento filosófico
em geral. Para ele, nem mesmo os pensadores mais céticos negam a possibilidade e a
necessidade do autoconhecimento. O ponto de partida de Cassirer é o método da
introspecção na “tradição cartesiana”.

“O avanço do conhecimento psicológico pouca coisa fez para confirmar


esse principio cartesiano. Hoje, a tendência geral do pensamento inclina-
se novamente para o polo oposto. Poucos psicólogos modernos
admitiriam ou recomendariam um simples método de introspecção. No
geral, dizem-nos que tal método é muito precário. Estão convencidos de
que uma atitude behaviorista estritamente objetiva é única abordagem
possível para um psicologia científica”(CASSIRER, 1994, p. 10)

Para o autor, é possível uma crítica em relação à visão puramente introspectiva,


mas não é possível eliminá-la. No entanto, é preciso admitir que, seguindo apenas este
caminho, nunca poderemos chegar a uma visão abrangente da natureza humana. Cassirer
adjetiva a investigação da natureza humana unicamente por meio da introspecção como
“pobre” e “fragmentária”, investigação que remonta a uma trajetória complexa. Para efeito
desta discussão, longa para demarcar o problema do conhecimento do homem, não
investirei o mesmo tempo que ele me atentando para a problemática, mas lançarei mão de
mais um exemplo que parece essencial no seu raciocínio sobre o conhecimento que o
homem tem sobre si. Para Cassirer, para além das questões cartesianas, Aristóteles tenta
explicar o mundo ideal, o mundo do conhecimento, em termos da vida. Tanto na Natureza
quanto no conhecimento humano, as formas superiores desenvolvem-se a partir de formas
inferiores. No entanto, adotar uma visão estritamente biológica do desenvolvimento
humano compreenderia um olhar exclusivo para o mundo externo, o que não permitiria um
olhar para o conhecimento do homem no mundo interior (temática que Cassirer está
perseguindo). Cassirer defende que, para todas as suas necessidades imediatas e interesses
práticos, o homem depende de seu ambiente físico. Não pode viver sem uma constante
adaptação às condições do mundo que o rodeia. Os primeiros passos na direção da vida
intelectual e cultural do homem podem ser descritos como atos que implicam uma espécie
de ajuste mental ao ambiente imediato. À medida que a cultura humana progride, porém,
logo encontramos uma tendência oposta da vida humana (CASSIRER, 1994, p.12). Neste
momento, Cassirer aponta para a necessidade de encontrar um direcionador comum para
 
 
18  
 
compilar, ordenar o conhecimento humano em torno de uma mesma temática, dizendo ser
a essa a única maneira de encontrar o fio condutor no emaranhado de expressões e olhares,
embora dê valor ao fato de que em nenhuma outra época tenhamos tido condição tão
favorável a respeito do conhecimento da natureza humana.

“Comparado à nossa própria abundância, o passado deve parecer muito


pobre. Nossa riqueza de fatos, contudo, não é necessariamente uma
riqueza de pensamento. A menos que consigamos achar um fio de
Ariadne que nos conduza para fora deste labirinto, não teremos qualquer
compreensão real do caráter geral da cultura humana; continuaremos
perdidos em uma massa de dados desconexos e desintegrados que
parecem carecer de toda a unidade conceitual”. (CASSIRER, 1994, p. 42-
43)

Diante da complexidade tecida por muitos fios, a proposta organizadora do autor


para o conhecimento da natureza humana abre caminho para uma resposta à questão-
chave: quem é o homem? Cassirer responde a esta questão tendo como resposta uma
chave de acesso no símbolo.

 
 
19  
 

1.2 O SÍMBOLO E NATUREZA HUMANA

A favor de um norteador que organize o conhecimento do homem em torno de um


único ponto, o autor escolhe como caminho pensar o homem valendo-se da biologia como
ciência de amparo. A escolha de Cassirer não é aleatória. Ele se coloca diante de um
contexto de supervalorização científica desde o fim do século XIX e de seus constantes
exercícios para aproximar o pensamento a respeito da natureza humana em comparativos
com os animais. Ele centralizava a discussão a respeito do homem em comparativos
biológicos, em constantes exercícios para compreender gestos, reações e expressões de
animais, que justificassem respostas sobre aquilo que o homem sabe a respeito de si.
Cassirer se insere no debate de seu tempo buscando encontrar uma outra “chave” de acesso
ao homem, para além da hegemonia biológica.

Escolhe como referência o biólogo Johannes Von Uexkull, cuja defesa biológica se
assenta em uma visão crítica em relação aos princípios calcados na biologia de então. De
certo modo, Uexkull se opôs a uma perspectiva mais técnica e mecanicista sobre
funcionamento de sistemas e formas dos organismo limitados aos termos da física e da
química. Sua proposta principal está representada na ideia que a vida é uma realidade
suprema e dependente de si mesma e não poderia ser descrita ou explicada (e reduzida)
apenas nos termos da física ou da química. O novo esquema ao qual o biólogo se propõe é
destacado por Cassirer na singularidade que cada espécie biológica dispõe em sua
concepção, criando para si um mundo próprio que não poderia dispor de uma “realidade
absoluta” como propõe a física e a química. Nesse processo, cada organismo é, por assim
dizer, um ser monódico. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada
espécie biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie (CASSIRER, 1994, p.
46).

Para Cassirer, este pressuposto geral do biólogo permite a construção de um


esquema engenhoso e original do mundo biológico. Em meio à riqueza de fatos (já
apontado pelo autor no capítulo anterior) das interpretações psicológicas, o biólogo
sustenta: a única chave para a natureza animal é a anatomia comparada ou seja,
 
 
20  
 
“Conhecendo a estrutura anatômica de uma espécie animal, possuímos todos os dados
necessários para reconstruir seu modo especial de experiência”. O argumento central de
Uexkull destacado por Cassirer é que:

“Cada organismo, mesmo o mais simples, não está apenas, em um sentido


vago adaptado (angepasst) como também inteiramente ajustado
(Eigenpasst) ao seu ambiente. De acordo com sua estrutura anatômica, ele
possui um certo Merknetz e um certo Winknetz – um sistema receptor e
uma sistema efetuador. Sem a cooperação e o equilíbrio desses dois
sistemas, o organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, através
do qual uma espécie biológicas recebe estímulos externos, e o sistema
efetuador, pelo qual reage a eles, estão em todos os casos intimamente
entrelaçados. São elos da mesma cadeia única que Uexkull descreve como
circulo funcional do animal” (CASSIRER, 1994, p.47)

“Ajuste” e não adaptação reforça a ideia de que não haveria outra possibilidade
para o organismo senão aquelas condições, mas que uma adaptação ao ambiente é o
pressuposto de que qualquer alteração neste ambiente poderia ser de alguma forma fatal ao
organismo. O princípio de que isso se aplicaria a organismos superiores e inferiores não é
difícil de compreender. Em um exemplo prático, um urso polar que sofre a mínima
variação de temperatura no seu habitat, não resistiria a uma condição de vida com
temperaturas mais altas por muito tempo. O mesmo se aplica a uma planta longe de sua
fonte de energia em condições ideais de abastecimento de água e sol. O círculo funcional
de efetuação e recepção sugerido pelo biólogo, e que é enfatizado por Cassirer, pressupõe
que alterações em tamanho, ação e resposta do organismo em relação ao meio que está
inserido está dada, impedindo a possibilidade de variação de acordo com um raciocínio de
ação e resposta.

Para uma melhor exploração do conceito proposto por Uexkull, buscaremos uma
leitura para além de Cassirer, no filósofo italiano Giorgio Agamben, que também faz
referência aos estudos do biólogo em sua obra O Aberto, propondo como caminho a leitura
do homem em reconciliação com sua natureza animal. Ao olhar do autor italiano, o biólogo
Uexkull colocou uma infinita variedade de mundos perceptíveis que, embora sejam
incomunicáveis e reciprocamente exclusivos, são todos igualmente perfeitos e ligados
entre si. São como uma gigantesca partitura musical em cujo centro estão pequenos seres
familiares, onde cada ser vivo de algum modo é participante de um mundo singular. Para o
autor, Uexkull desmantela a ideia de que um único mundo situa todos os seres viventes. A
 
 
21  
 
leitura do filósofo, sob o chão construído pelo biólogo, sugeriu um raciocínio relevante
para a compreensão da questão: sugere AGAMBEN (2013, p.69) que animais como a
abelha, a libélula ou a mosca, que observamos voar em torno de nós em um dia de sol
qualquer, não se movem no mesmo mundo em que nós os observamos, nem dividem
conosco – ou entre si – o mesmo tempo e o mesmo espaço. A leitura de Aganben reforça o
olhar que enfatizamos de Cassirer a respeito de Uexkull, na direção de mais
esclarecimentos sobre esta diversidade de mundos. O autor italiano recorre a duas palavras
alemãs, sendo Umgebung (vizinhança, arredores) e Umwelt (ambiente). Na primeira,
refere-se ao espaço objetivo no qual se move o ser vivente, ou seja, a realidade física que
presenciamos. Na seguinte, o mundo em que este ser vivente se insere, ou seja, um
ambiente construído de uma série mais ou menos ampla de elementos que Uexkull
chamará de “portadores de significados” ou “marcas” que são os únicos que interessam ao
animal:

“...por exemplo, o caule de uma flor-do-campo, quando considerado na


qualidade de portador de significado, constitui um elemento diverso a cada
vez que está em um ambiente diverso; de uma garota que colhe flores para
fazer um ramalhete com o qual perfumar o seu corpete; no ambiente da
formiga que se serve dele como trajeto ideal para conseguir sua nutrição no
cálice da flor; naquele da larva da cigarra que, nascida sem canal medular,
utiliza-o, pois, como uma bomba para construir partes fluídas de seu casulo
aéreo e, por fim, naquele da lagarta que simplesmente o mastiga e ingere
para nutrir-se. Todo ambiente é uma unidade fechada em si própria, que
resulta da seleção prévia de uma série de elementos “marcas” na
Umgebung, que não é, por sua vez, como o ambiente do homem”
(AGAMBEN, 2013, p.70)

O autor italiano ilustra o conceito de Uexkull à semelhança da citação do círculo


funcional feita por Cassirer, mas a contribuição de Aganben para a reflexão está não
apenas na validação de um princípio encontrado para pensar o homem, mas também na
chave mestra que guiará o nosso estudo: a polissemia de significados. Para o autor,
expressa no mesmo local e na dependência do olhar em questão, é possível uma “floresta-
para-a-guarda-florestal, uma floresta-para-os-caçadores, uma floresta-para-os-botânicos,
uma floresta-para-os-viajantes, uma floresta-para-o-amigo da natureza, uma floresta-para-
o-lenhador e, por fim, uma floresta para a fábula na qual se perde Chapeuzinho
Vermelho” 12 . O autor italiano antecipa um movimento que será posteriormente
                                                                                                                                   
12
 idem,  p.  70  
 
 
22  
 
amplamente explorado por Cassirer, a ideia de que o animal não necessita estabelecer uma
relação de significação com seu objeto, mas de que ele percebe a marca (ou o sinal como o
quer Cassirer) e reage a ela, como se todos os seus órgãos receptores daquele ambiente
estivessem ajustados para aquela determinada ação. Quando retornamos para o raciocínio
de Ernst Cassirer diante da leitura de Giorgio Aganben, ambos lendo a ideia central do
biólogo Uexkull, a pergunta do autor alemão é: “Será possível fazer uso do esquema
proposto por Uexkull para uma descrição e caracterização do mundo humano?” Em outras
palavras, a pergunta de Cassirer também poderia ser: “será que a maneira de olhar o
homem como fruto de uma composição biológica é suficiente para refletir o que (ou quem)
é esse homem?”. O autor aponta neste momento para o conceito-chave de seu argumento
sobre o homem e que servirá de embasamento para toda a sua construção filosófica,
afirmando que:

“O homem descobriu, por assim dizer, um novo método para adaptar-se ao


seu ambiente. Entre o sistema receptor e o efetuador, que são encontrados
em todas as espécies animais observamos no homem um terceiro elo que
podemos descrever como sistema simbólico. Essa nova aquisição
transforma o conjunto da vida humana. Comparado aos outros animais, o
homem não vive apenas em uma realidade mais ampla, vive, pode-se dizer,
uma nova dimensão da realidade” (CASSIRER, 1994, p.47-48)

O círculo funcional é o mesmo para todas as espécies. No que se refere ao homem,


não é apenas maior que o dos outros organismos, em tamanho e complexidade, mas há um
terceiro elo. Neste momento a complexa teia construída para entender como o homem
ganha mais precisão no sistema simbólico, esta nova dimensão da realidade é um dado
exclusivo da atividade humana, não sendo possível ser acessada por outros seres vivos.
Cassirer não refuta a racionalidade como característica humana, mas refuta ser ela a chave
de acesso para uma compreensão do homem. Cassirer demarca uma importante diferença
entre “as reações orgânicas”, originárias de organismos que funcionam restritos ao círculo
funcional, e as “respostas humanas” dadas em relação aos estímulos externos (no capítulo
seguinte da obra: Das reações animais às repostas humanas o autor investirá seus
argumentos na observação desses fatos).

A racionalidade do homem, para Cassirer, também apresenta sua inadequação como


definição geral nos termos da linguagem. Apesar de elaborada na razão, uma linguagem

 
 
23  
 
científica, lógica ou conceitual, vem acompanhada em todo o instante de uma linguagem
emocional, imaginativa e poética. A religião, para o autor, é mera abstração de objetos,
símbolos distantes da realidade imediata ao homem, que transmite apenas a forma ideal de
uma prática, a sombra do que é a vida religiosa genuína e concreta. Quando posiciona a sua
análise nesse contraste é que autor apresenta o que seria “o fio de Ariadne” para acessar o
homem e organizar o conhecimento sobre ele: o símbolo. Não pela contramão de um
pensamento científico de homem como animal racional, mas utilizando um termo mais
adequado no que seria este universo característico. A partir desta concepção, Cassirer
propõe a investigar o que seria este animal simbólico, não em detrimento do animal
racional, mas adequando a resposta na tentativa de definição do homem.

"A razão é um termo muito inadequado com o qual compreender as


formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas
todas essas são formas simbólicas. Logo, em vez de definir o homem
como animal rationale, deveríamos defini-lo como animal symbolicum"
(CASSIRER, 1994, p.50).

Definir é o verbo em questão. Qual o elemento mais característico da atividade


humana? Qual o fio condutor que nos levará para o conhecimento do homem? Diante da
necessidade de autoconhecimento, o que responder? O autor alemão expõe o problema e
consolida seu raciocínio. Diante do tecnicismo biológico do seu tempo e do silêncio
filosófico sobre a definição do homem, Cassirer se propõe a encontrar uma definição para
o homem no símbolo.
 

 
 
24  
 

1.3 “DO ANIMAL RACIONAL AO ANIMAL SIMBÓLICO”

No capítulo das reações animais as respostas humanas, o autor visita as atividades


tidas como “simbólicas” no reino animal em detrimento da atividade simbólica do homem,
buscando importantes demarcações para justificar a atividade simbólica como tipicamente
humana sem possibilidades de aplicação aos animais. Cassirer propõe uma investigação da
realidade do homem através do símbolo, aparentemente sem definir o conceito de símbolo,
mas indicando por sombras algo ainda oculto.

“É inegável que o pensamento simbólico e o comportamento simbólico


estão entre os traços mais característicos da vida humana, e que todo o
progresso da cultura humana está baseado nessas condições. Teremos,
porém, o direito de considerá-lo como um dom especial do homem, com a
exclusão de todos os seres orgânicos? Seria o simbolismo um princípio
cujas origens podemos encontrar em fontes muito mais profundas, e com
um campo de aplicabilidade ainda mais vasto?” (CASSIRER, 1994, p.51)

Cassirer ancora sua discussão no homem simbólico. No entanto, está diante do


desenvolvimento científico e da multiplicação dos estudos sobre a vida animal e suas
possíveis relações com os homens. O autor reforça a importância do estudo do símbolo
para o entendimento da vida humana, seja por meio da linguagem, da religião ou da arte,
que possibilita a inteligibilidade do homem na cultura. O filósofo alemão reforça que o
debate a respeito do simbolismo é uma questão com manifestações em diferentes campos
de estudo e objeto de discórdia sobre as suas implicações. Ele reforça que sua proposta não
é, de nenhuma maneira, adentrar a esta discussão, mas descrever a atitude simples,
simbólica do homem de maneira mais precisa, para podemos contrapô-la a outros modos
de comportamento simbólico encontrado no reino animal.

Cassirer deste ponto em diante iniciará uma demarcação de conceitos entre a


atividade simbólica do homem em detrimento da dos animais. Em um primeiro momento,
assume como atividade simbólica todas as experiências científicas realizadas e assim
denominadas por seus autores. No entanto, a ideia de símbolo em aplicação aos animais
será refutada alguns passos mais à frente de seu argumento.

 
 
25  
 
No primeiro exemplo, o autor recorre aos estudos com macacos antropóides
propostos por JB Wolfe no estudo “Effectiveness of token rewards for chimpanzees” em
1936. Para CASSIRER (1994, p.53), “segundo Wolfe, os resultados das longas e variadas
experiências mostraram que processos simbólicos ocorrem no comportamento dos
macacos antropoides”. O conhecimento científico de sua época encaminhara a discussão
para a conclusão de que, possivelmente, os processos simbólicos dos animais poderiam ser
os antecedentes dos processos simbólicos humanos. Acompanhando os estudos de JB
Wolfe, o pesquisador americano Robert M Yerkes extrai uma importante conclusão sobre
este fato em sua obra “Chimpanzees. A Laboratory Colony” (apud CASSIRER, 1994,
p.53), afirmando que “os processos simbólicos são raros e difíceis de observar, mas
suspeito que logo serão identificados como antecedentes dos processos simbólicos
humanos”. Ambos os pesquisadores deixaram esta temática aberta para futuras
investigações. No entanto, um fato chama atenção de Cassirer ao analisar os estudos:

“Parece-me altamente significativo que hoje em dia não sejam os


filósofos, mas os observadores e pesquisadores empíricos que parecem
estar assumindo os papeis principais na solução deste problema. Estes
últimos dizem-nos que, afinal, o problema não é meramente empírico,
mas em grande parte lógico” CASSIRER, 1994, p.54)

Para a resolução deste ponto, Cassirer encontra no pesquisador Georg Révész o


debate da questão da linguagem animal. O convite do autor é analisar os fatos empíricos
sob a luz de um conceito sólido e lógico, e o ponto de partida escolhido é a definição de
fala. O conceito de fala é proposto por Cassirer não como uma definição fechada e linear,
mas o ponto de partida de um processo de investigação que será crucial para a
compreensão do que o autor entende por símbolo, sobre o limiar entre a atuação humana e
as respostas cedidas pelos animais. CASSIRER (1994, p.55) inicia sua investigação com a
proposta de visitar as diversas camadas geológicas da fala, sendo a primeira camada a
linguagem das emoções. Ele afirma que grande parte das expressões humanas depende
desta camada, baseando-se no autor Edward Sapir em seu livro Language e no francês
Charles Bally. “Le Langage et la vie” esclarece que não há a possibilidade de romper com
esta primeira camada emocional da linguagem nem mesmo em casos de uma linguagem
teórica sem o mínimo de tintura afetiva ou emocional. O contraponto para o mundo animal
é evocado pelo autor novamente. No entanto, Cassirer delimita novamente o que seria o
 
 
26  
 
limite da expressão animal e as capacidades humanas em responder a um determinado
estímulo.

“No que toca aos chimpanzés, Wolfgang Koehler afirma que eles atingem
um alto grau de expressão por meio da gesticulação. Raiva, terror,
desespero, pesar, súplica, desejo, brincadeira e prazer são expressados
com facilidade deste modo. Falta, no entanto, um elemento, característico
e indispensável a toda a linguagem humana: não encontramos nenhum
sinal que tenha uma referência ou sentido objetivo. (CASSIRER, 1994, p.
55)

O caminho de Cassirer para a argumentação do símbolo como elemento


característico humano começa a ganhar força por meio da linguagem. Observar os estudos
dos chimpanzés não apenas delimita o campo de atuação humana e do reino animal, mas
apresenta por meio de dados empíricos dos biólogos evidências claras da limitação dos
animais em atribuir um sentido objetivo para a sua linguagem emocional. A expressão de
sons e gestos realizados pelos macacos não designam ou descrevem objetos, apenas
reagem ao estímulo oferecido. Cassirer conclui desta experiência que:

“A diferença entre linguagem proposicional e a linguagem emocional é a


verdadeira fronteira entre o mundo humano e mundo animal [...] Em toda
a literatura sobre o tema parece não haver uma única prova conclusiva de
que algum animal jamais de o passo decisivo que leva da linguagem
subjetiva à objetiva, da afetiva a proposicional” CASSIRER, 1994, p. 55 e
56)

Cassirer analisa os estudos de Wolfgang Koehler 13 , Géza Révész 14 e Robert


Yerkes15, sobre a relação dos animais com a linguagem, mas para Cassirer, se partirmos de
uma definição clara do conceito de fala, todas as expressões animais serão
automaticamente eliminadas. Para ele, em Koehler, a ausência da fala nos macacos
antropoides impede os animais de desenvolver sequer os mais mínimos rendimentos de
desenvolvimento cultural. Para Révész, a fala é em si um conceito antropológico e deve ser
descartado da psicologia animal. Por fim, embora seja o mais otimista, Yerkes conclui que
há indícios abundantes de que vários outros tipos de processo de sinalização, além do
simbólico, são de ocorrência frequente e funcionam efetivamente no chimpanzé, mas todas
estas expressões funcionais são excessivamente rudimentares, simples e de utilidade

                                                                                                                                   
13
 KOEHLER,  Wolfang.  The  mentality  of  apes.  Heracourt.  Nova  York,  Brace,  1925.  
14
 RÉVÉSZ,  Géza.  The  origins  and  Prehistory  of  language.  Philosophical  Library.  1940.  
15
 YERKES,  M.  Robert.  Chipanzees.  A  laboratory  Colony.  Yale  University  Press.New  Haven,  1923.    
 
 
27  
 
limitada, em comparação com os processos cognitivos humanos. A análise dos estudos
mais avançados das atividades animais em detrimento da atividade humana posiciona
Cassirer no desafio de enunciar o que melhor seria a atividade simbólica, pois, se a
atividade simbólica é exclusivamente humana, o que dizer dos estudos com os macacos
antropoides? E, se a fala é o limiar escolhido para delimitar o que seria a atividade animal e
uma resposta humana, como extrair deste exemplo a concepção de símbolo? Como
engendrar um raciocínio capaz de refutar as referências a símbolos utilizados até então
pelos biólogos de sua época? A saída escolhida por Cassirer é a delimitação do conceito de
símbolos e sinais, que será amplamente explorada neste momento. A preocupação do autor
neste momento é a construção dos seus argumentos a partir da perspectiva humana,
também explorado a partir de experimentos empíricos. Sobre símbolos e sinais, Cassirer
expõe o problema da seguinte forma:

“... devemos distinguir com cuidado a diferença de sinais e símbolos.


Parece ser um fato estabelecido que encontramos sistemas bastante
complexos de signos e sinais no comportamento animal. Podemos até
dizer que alguns animais, em especial animais domésticos, são
extremamente suscetíveis aos sinais. Um cão reage às mínimas mudanças
no comportamento de seu dono; distingue até as expressões do rosto
humano e as modulações da voz humana. Mas há uma enorme distância
entre tais fenômenos e a compreensão da fala simbólica humana”
(CASSIRER, 1994, p. 57)

Cassirer avalia a experiência empírica com o cão como delimitadora de sinais e


símbolos, afirmando que o cão está absolutamente suscetível a variações dos sentidos
humanos. Um animal pode compreender uma quantidade de sons e sinais que lhe indica o
que deve fazer, qual ação é mais adequada. Para o autor, os “reflexos condicionados” do
animal não estão apenas muito afastados, mas são opostos ao caráter essencial do
pensamento simbólico humano. A leitora de Cassirer, Susanne Langer, sugere em sua obra
Filosofia em nova chave, que isso aponta para uma construção filosófica complementar ao
raciocínio do autor alemão, com uma série de exemplos e evidências importantes para
suportar a proposta da atuação de um homem simbólico em comparação a ação dos
animais. Há uma importante delimitação que Langer sugere logo no prefácio da segunda
edição da obra, a ideia de que nos momentos em que escreveu “signo” poderia
naturalmente ser lida como “sinais”:

 
 
28  
 
“Charles Morris, em seu Signos, Linguagem e Comportamento, empregou
um tratamento que acho superior ao meu e que, consequentemente, adotei
desde a publicação de meu livro. Morris usa a palavra “sinal” pelo o que
eu chamava signo. O termo “sinal” é, naturalmente, estendido para cobrir
não apenas sinais explicitamente reconhecidos – luzes vermelhas,
campainhas, e etc. – mas também fenômenos que tacitamente respeitamos
como sinais para nossos sentidos, p ex., a vista de objetos e janelas pelos
quais somos orientados num aposento, a sensação provocada por um
garfo na mão de alguém que o guia erguendo-o a sua boca; em resumo,
abrangendo tudo que dominei “signo” (LANGER, 2004. p. 11)

A delimitação entre signos e sinais será importante para compreender as


construções da autora no eco ao que Cassirer chama de sinais. De volta à diferença entre
símbolos e sinais, a autora pontua o que chama ser uma profunda diferença entre o uso de
ambos, sendo o segundo uma manifestação primária da mente e comenta, como Cassirer,
ser essa uma primeira aparição na história biológica do homem no “reflexo condicionado”
diante de um estímulo. O mundo animal dos sinais pressupõe um universo mais restrito de
variações. Sons, apontamentos ou indicações não trazem consigo uma multiplicidade de
significados, mas uma reação imediata de respostas. Langer tem um exemplo muito
ilustrativo pensando nos cachorros. Se um cachorro tem por dono James, e escuta a palavra
“James”, automaticamente procurará o dono em resposta ao estímulo. Se o mesmo
estímulo da palavra for dado a um ser humano, não se estranhará uma resposta como: “O
que há com James”? ou “Quem é James?”. Para o cão, James é um sinal como uma
campainha e não pode indicar outra coisa senão o fato da aproximação do seu dono. Para
um ser humano, a palavra evoca uma multiplicidade de possibilidades e significados
(LANGER, 2004, p.71). Eis então a demarcação das respostas humanas em detrimento às
reações animais. A contribuição da autora alemã nos devolve para a necessidade de uma
compreensão geral do que significa essa demarcação de símbolos e sinais. Para uma
compreensão geral importante que seja um avanço na perspectiva do mundo humano dos
símbolos, voltemos para Cassirer:

“Os símbolos – no sentido próprio do termo – não podem ser reduzidos a


meros sinais. Sinais e símbolos pertencem a dois universos diferentes de
discurso: um sinal faz parte do mundo físico do ser; um símbolo é parte
do mundo humano do significado. Os sinais são “operadores” e os
símbolos são “designadores”. Os sinais, mesmo quando entendidos e
usados como tais têm mesmo assim uma espécie de ser físico substancial;
os símbolos tem apenas um valor funcional” (CASSIRER, 1994, p. 58)

 
 
29  
 
Sinais e símbolos como reinos diferentes reforçam a ideia apresentada por Cassirer
sobre o “terceiro elo” humano para além de sistemas receptores e operadores, ou seja, para
além de uma perspectiva mecânica de respostas comum aos animais. Enquanto os sinais
operam no mundo presente das “coisas” (gestos, campainhas, objetos), o símbolo opera na
realidade do significado e possibilita ao homem o questionamento, o porquê. Cassirer
encontra na delimitação de símbolos e sinais uma contribuição para a reflexão sobre a
inteligência dos animais, que se aplica como bom exemplo sobre sinais “operadores” e
símbolos “designadores”. No entanto, a demarcação não resolve a questão central do autor:
poderíamos dizer que, além de symbolicum, o homem seria um animal caracterizadamente
rationale, configurado diante dos outros animais por sua capacidade de raciocínio? Logo, o
que teríamos não seria uma substituição de um termo (animal racional), mas a
sobreposição por outro (animal simbólico). Mas não parece ser esta a proposta de Ernst
Cassirer, que vê a racionalidade como termo inadequado.

A investigação do autor encontra caminho no conceito de inteligência,


comparativamente na atividade humana e animal. O autor pontua a dificuldade de
encontrar um denominador comum ao termo inteligência e discorre sobre a controversa
reflexão do mundo empírico quanto àquilo que poderia ser considerado um processo
cognitivo nos animais. O ponto central da reflexão de Cassirer está em afirmar que, se
entendermos por inteligência o ajuste ao ambiente imediato, ou a modificação adaptativa
ao ambiente, devemos com certeza atribuir aos animais uma inteligência
comparativamente bastante desenvolvida. É o que mostram os estudos com macacos
antropoides, que são considerados formas superiores de vida animal, pois, diante dos
estímulos oferecidos pelos pesquisadores (referência neste caso a Koehler), exibiam uma
reação pensada (compreendida) ao estímulo oferecido. É incontestável a capacidade
surpreendente provada pelos animais. Cassirer refere-se a estudos (do já mencionado
Robert M. Yerkes) em que os animais ainda demonstram uma capacidade imaginativa e
criativa relativamente desenvolvida, e mesmo assim sem as características de uma
imaginação tipicamente humana.

Não é distante a afirmação de que os animais possuem inteligência que, no entanto,


é uma inteligência de natureza diferente da humana. A ideia debatida pelo autor, em
 
 
30  
 
resumo, aponta para nos dizer que o animal possui uma imaginação e uma inteligência
prática, enquanto apenas o homem desenvolveu uma nova forma: uma imaginação e uma
inteligência simbólica (CASSIRER, 2004, p.59). A conclusão de Cassirer não parece
expressiva se analisada diante das capacidades humanas em detrimento da dos animais:
apenas aponta capacidades diferentes e, do ponto de vista de uma compreensão da natureza
humana, possibilita um caminho livre para o aprofundamento da atividade simbólica na
relação do homem com o seu mundo, junto com a possibilidade de um avanço significativo
na compreensão da natureza humana.

Com a delimitação do mundo humano e do mundo animal, a palavra animalidade


possivelmente seja a mais adequada para expressar o distanciamento humano da atividade
simbólica. O esvaziamento do significado, a pantomima das coisas, a experiência
mecanizada são traços comuns da experiência humana e apenas possíveis nela. Para
CASSIRER (1994), a animalidade do homem, longe da atividade simbólica, é como a
ilustração do prisioneiro no mito da caverna de Platão, vendo a realidade passar diante de
si apenas como sombras, sem a presença da luz iluminadora do simbólico, preso a suas
necessidades biológicas e longe do que o autor denomina ao “mundo ideal”. A experiência
do autor alemão no estudo da atividade simbólica o levou à reflexão sobre a relação do
símbolo como elemento singular atividade humana, não sendo reproduzida em qualquer
outra espécie animal, independentemente do nível de evolução dela. Ora, por mais
desenvolvido que seja um ensaio psicológico, não poderia concluir diretamente que um
urso polar suicidou-se porque o derretimento das calotas polares refletiu nele como um
símbolo da perda de esperança sobre o seu habitat. A única reação do urso será: diante da
sensação do processo de derretimento do gelo, abrigar-se para não ser atingido ou afogado
pela onda.

O símbolo. É a resposta mais adequada diante da pergunta do que é o elemento


humano mais característico. O animal simbólico de Cassirer é uma resposta construída
com o fundamento da história da filosofia (sua análise a partir dos filósofos gregos) e a
contemporaneidade do desenvolvimento biológico do século XX. Saber sobre o símbolo
implica, não apenas uma definição vazia e tecnicista, mas a possibilidade de avançar no
estudo da presença do homem no mundo é saber de que forma o símbolo articula sentido
 
 
31  
 
para sua vida. São as questões iniciais deste trabalho, e diante disto se constrói um
universo novo de questões: como se dá essa articulação no mundo humano dos símbolos?
Como é construída essa atividade simbólica? Cassirer apresenta caminhos pela
compreensão de uma cultura humana construída por símbolos, que atuam não mais de
maneira isolada (individual) como quiseram os filósofos e estudiosos do comportamento
humano que o precederam, mas como grandes sistemas simbólicos interligados (coletivo)
que criam o que Cassirer chamará de rede simbólica.

 
 
32  
 

1.4 REDE SIMBÓLICA

A necessidade de encontrar um princípio organizador para o homem no símbolo


impele Ernst Cassirer a encontrar também o mesmo princípio na presença deste homem
simbólico no mundo, buscando um organizador na cultura humana. A questão inicial de
Cassirer sobre quem é o homem, continua ecoando o tema central desta dissertação: quem
é esse homem que a tudo busca significar e como se dá esta significação. Neste momento
da escrita, de posse do conceito do homem simbólico, resta saber como ele se relaciona
com esse universo. É o que Cassirer constantemente chamará de “mundo ideal”. Para ser
fiel à ideia do autor e o seu funcionamento (no sentido de funtionale que será debatido a
diante) neste mundo que o levará – em nossa discussão – até a rede simbólica. A
investigação de Cassirer sobre a cultura humana segue o método de investigação
característico nos seus escritos, um resgate genealógico na história da filosofia sobre a
tratativa. No entanto, a grande caraterística do filósofo da cultura (como foi citado na
introdução deste texto) é a ideia de que o homem pensado de maneira ampla não pode ser
pensado agindo individualmente. A partir de alternativas de respostas nos termos da
política e do estado, para o autor, parece evidente que a natureza do homem está escrita na
natureza do estado, mas não é, também, a vida política a única forma de experiência
comunitária humana.

“a definição do homem como “animal social” não é suficientemente


abrangente. Ela nos proporciona um conceito geral, mas não a
diferenciação específica. A sociabilidade como tal não é uma
característica exclusiva do homem, nem privilégio só dele. Nos chamados
estados animais, entre as abelhas e formigas, encontramos um nítida
diviso do trabalho a uma organização social surpreendente complicada.
No caso do homem, porém, encontramos não só uma sociedade de ação,
como ocorre entre os animais, mas também uma sociedade de pensamento
e sentimento. A linguagem, o mito, a arte, a religião e a ciência são
elementos e as condições constitutivas dessa forma mais elevada da
sociedade. São os meios pelos quais as formas de vida social que
encontramos na natureza orgânica se desenvolvem para um novo estado,
o da consciência social. A consciência social do homem depende de um
ato duplo, de identificação e discriminação. O homem não pode encontrar
a si mesmo, não pode tomar consciência de sua individualidade, a não ser
através do meio de vida social.” (CASSIRER, 1994, p.363)

 
 
33  
 

Para o autor, antes mesmo de o homem descobrir uma forma de organização social,
“ele havia feito outras tentativas de organizar seus sentimentos, desejos e pensamentos.
Tais organizações e sistematizações estão contidas na linguagem, no mito, na religião e na
arte” (CASSIRER, 2004. pg 108). Diante de uma convicção destas organizações
“primitivas” (em relação à política, estado), o autor empreende um caminho de análise dos
muitos métodos empregados para compreender a presença do homem na cultura
(introspecção psicológica, experimentação biológica, investigação histórica) que serão
tratados neste trabalho. No entanto, o seu ponto de chegada (que será o grande ensaio da
sua construção filosófica) culminará na filosofia das formas simbólicas:
“A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que se houver
qualquer definição da natureza ou “essência” do homem, tal definição só
poderá ser entendida como sendo funcional e não substancial. Não
podemos definir o homem com base em qualquer princípio inerente que
constitua a sua essência metafísica – nem podemos definí-lo por qualquer
faculdade ou instinto inato que possa ser verificado pela observação
empírica. A característica destacada do homem, sua marca distintiva, não
é sua natureza metafísica ou física, mas o seu trabalho. É este trabalho, o
sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo da
“humanidade. Linguagem, mito, religião, arte, ciência e história são os
constituintes, os vários setores desse círculo” (CASSIRER, 2004. pg 115)

Não há em Cassirer a preocupação de refutar os métodos anteriormente


desenvolvidos, mas também não é possível concebê-los como organizadores e fontes que
esgotam a presença do homem no mundo. O fato de resgatarmos registros históricos de
uma determinada sociedade não reduz as expressões míticas e religiosas que ele construiu
ao longo deste tempo: são variações diferentes de um mesmo sistema de atividades. A
discussão sobre a filosofia das formas simbólicas é ampla e profundamente debatida em
Cassirer, não sendo objeto direto de estudo a profundidade no conceito. No entanto, um
aspecto é substancial para uma melhor compreensão da presença do homem na cultura: o
desafio de encontrar um organizador para estas expressões da atividade humana no mito,
arte, religião. Para Cassirer, conceber uma filosofia a respeito do homem tem de
(reforçando o caminho por ele proposto) entender a estrutura fundamental de cada destas
atividades, mas ao mesmo tempo precisariam ser concebidas em um todo orgânico.
Reforça ainda que:

 
 
34  
 
“A filosofia não pode contentar-se em analisar as formas individuais da
cultura humana. Ela procura uma visão universal sintética que inclua
todas as formas individuais. Mas não seria uma tal visão abrangente uma
tarefa impossível uma simples quimera? Na experiência humana não
encontramos, de maneira alguma, as varias atividades que constituem o
mundo da cultura existindo em harmonia. Ao contrário, vemos o atrito
perpétuo entre forças conflitantes. O pensamento científico contradiz e
suprime o pensamento mítico. A religião, em seu mais alto
desenvolvimento teórico e ético, ve-sê na necessidade de defender a
pureza de seu próprio ideal contra as fantasias extravagantes do mito ou
da arte. Assim, a unidade e harmonia da cultura parece ser pouca coisa
mais um pium desiderium – um embuste virtuoso – que é constantemente
frustrado pelo curso real dos acontecimentos”( CASSIRER, 1994, pg.
119)

O desafio de organizar a expressão da cultura humana, tendo por raiz o homem


simbólico, empreende um esforço do autor em torno de uma lógica comum que tem por
pressuposto não combinar sequencialmente cada um dos elementos, mas organizá-los em
um elemento comum (funcional, como já mencionado). Se, de algum modo, o filósofo se
contentar apenas os resultados de cada uma destas atividades humanas, seria impossível
encontrar um denominador comum. Para Cassirer, uma síntese filosófica parte do que ele
chamará “unidade de ação”, não dos produtos estabelecidos em cada atividade, mas do
processo criativo as quais todas estão submetidas. Conclui dizendo que: Se o termo
“humanidade” que dizer alguma coisa, que dizer que, a despeito de todas as diferenças e
oposições que existem entre as suas várias formas, todas elas estão, mesmo assim,
trabalhando para um fim comum (CASSIRER, 1994, pg. 119). As sínteses particulares de
cada uma destas atividades já foram encontradas, segundo autor, e sistematizadas nas suas
diversas formas (na arte, no mito, na religião). Encontraram categorias definidas para
acoplar princípios de cada um dela. No entanto, para Cassirer a filosofia não pode parar
por aqui:

“Não fosse por essa síntese prévia efetuada pelas próprias ciências, a
filosofia não teria um ponto de partida. A filosofia, por outro lado, não
pode parar aqui. Ela deve procurar alcançar uma condensação e uma
centralização ainda maiores. Na ilimitada multiplicidade e variedade de
imagens míticas, dogmas religiosos, formas linguísticas, obras de arte, o
pensamento filosófico revela a unidade de uma função geral por meio da
qual todas essas criações são mantidas unidas. O mito, a religião, a arte, a
linguagem e até a ciência são hoje vistos como diversas variedades de um
tema comum – e a tarefa da filosofia é tornar esse tema audível e
compreensível.” (CASSIRER, 1994, pg. 119 – 120)

 
 
35  
 
A função geral, a chave para o “funcionamento” do homem na cultura aparece em
Cassirer como resposta a esse princípio organizador. As formas simbólicas atuantes no
acesso do homem ao universo simbólico organizam-se em um função geral na qual todas
se encontram em um denominador comum. Ainda sob a ótica da função, outro autor,
tributário às formulações de Cassirer, resgata uma definição de símbolo alinhada ao
conceito debatido, até aqui:

“o símbolo é ao mesmo tempo algo físico, um sopro de vento ou uma


marca num papel, e algo espiritual, um significado. O símbolo também é
algo específico, ao mesmo tempo, transmite um significado universal. O
símbolo é, além disso, o meio universal da atividade cultural, e ainda é o
símbolo é algo específico a cada atividade particular dentro da qual ele
tem seu próprio significado. O símbolo é, pois, um análogo ao conceito
matemático de função” (VERENE, 2008, p.98).

A ampliação de Verene contribui para reforçar a necessidade de demarcar o


conceito de símbolo, mas a contribuição para este trabalho se dá a partir de uma
perspectiva do conceito análogo a função, atuando como um meio universal da atividade
cultural. Diante desta demarcação, o conceito chave para o universo simbólico pode ser
mais bem explorado. A ideia de rede simbólica aparece em Cassirer da seguinte maneira:

“Não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um


universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes
desse universo. São os variados fios que tecem a rede simbólica, o
emaranhado da experiência humana. Todo o progresso humano em
pensamento é refinado por essa rede, e a fortalece. O homem não pode
mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por
assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção
ao avanço da atividade simbólica do homem” (CASSIRER, 2004, p.48)

No terceiro elo do sistema desenvolvido pelo homem (debatido anteriormente no


contraponto aos animais), o homem está em permanente contato com a atividade
simbólica, seja no mito, na arte ou na religião. Este homem simbólico constrói fios de uma
rede que se interpõem entre ele e seu mundo, entre a realidade física e o homem. A rede
simbólica é o emaranhado dessa experiência humana, onde o homem se insere em
composição já dada pela cultura em que está inserido. É uma construção artificial (na
expressão de Cassirer) para se relacionar com esta realidade, que necessariamente precisa
ser apreendida em cada rede específica, seja pelos mitos, arte, religião, em que o homem
não vive em um mundo de fatos nus e crus, ou segundo suas necessidades e desejo

 
 
36  
 
imediato: o distanciamento é o movimento fundamental do símbolo. Na experiência
simbólica, o homem não acessa a realidade imediata por uma opção, mas porque não
consegue mais observar os fatos de outro modo, pois já está inserida neste mundo ideal
ditado pelo símbolo. A linguagem já não é um compilado alfabético cuja composição de
palavras que aponta para uma única realidade. A arte não é a apenas a impressão estética
do autor, mas um conjunto (rede) elaborado e polissêmico. A realidade imediata não é uma
referência tipicamente humana. O homem se envolveu de tal modo em formas linguísticas,
imagens artísticas, símbolos míticos, ou ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer
coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial (CASSIRER 2004, p.48-49).

Diante deste cenário, o autor esclarece que, mesmo diante da rede simbólica, a
realidade humana não é apenas abstração, mas possui características únicas de
racionalidade. É pensada e organizada, tem lógica, e é uma parte importante para a
atividade humana. O próprio autor afirma que a racionalidade é de fato um traço inerente a
todas as atividades humanas. A própria mitologia não é uma massa grosseira de
superstições ou ilusões crassas. Não é meramente caótica, pois possui uma forma
sistemática e conceitual. Mas ele acrescenta que, por outro lado, seria impossível
caracterizar a estrutura do mito como racional. CASSIRER (2004, p.48-49). A rede
simbólica é um mundo construído pelo homem e somente acessado por ele. Cassirer
conclui:

“Tomada como um todo, a cultura humana pode ser descrita como o


processo de progressiva auto liberação descrita como o processo de
progressiva autoliberação do homem. A linguagem, a arte, a religião e a
ciência são várias fases desse processo. Em todas elas o homem descobre
e experimenta um novo poder – o poder de construir um mundo só dele,
um mundo “ideal”. A filosofia não pode renunciar à sua busca por uma
unidade fundamental nesse mundo ideal; mas não confunde essa unidade
com simplicidade. Ela não menospreza as tensões e atritos, os fortes
contrastes e os profundos conflitos entre os vários poderes do homem
Estas não podem ser reduzidos a um denominador comum. Tendem para
direções diferentes e obedecem a princípios diferentes. Mas essa
multiplicidade e disparidade não denotam discórdia ou desarmonia. Todas
as funções completam-se e complementam-se entre si. Cada uma delas
abre um novo horizonte e mostra-nos um novo aspecto da humanidade.”
(CASSIRER, 1994, pg. 372)

A abertura deste novo horizonte do homem no acesso à rede simbólica é a grande


contribuição de Cassirer para a compreensão de como o homem simbólico atua no mundo.
 
 
37  
 
O desafio posto agora é apresentar a atuação deste homem presente no mundo e agindo
neste universo do símbolo. Para melhor ilustrar este movimento humano, dois exemplos
serão investigados, estando um em Cassirer e outro em Levi Strauss.

 
 
38  
 
1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA

1.5.1 EFEITO SIMBÓLICO EM CASSIRER

A questão inicial deste trabalho parte de uma observação da realidade, de falas comuns
ouvidas no cotidiano a respeito do homem contemporâneo. Sem qualquer fundamento
inicial empírico ou filosófico, a hipótese levantada na experiência vai ganhando contornos
sob a direção da organização filosófica de Cassirer, para quem é tarefa da filosofia tornar
uma temática audível. A rede simbólica como foi apresentada traz novamente a
necessidade de um exemplo prático de aplicação, onde a hipótese filosófica se prova na
experiência. Este texto, que partiu da experiência, mergulhou nos pressupostos filosóficos,
encontrou novamente outra expressão da experiência.

Cassirer apresenta o que seria seu argumento mais ilustrativo do momento em que
um humano salta da pantomima dos sinais para exercer a função simbólica da realidade.
Este raciocínio de Cassirer torna-se evidente com a jovem Helen Keller16 em sua fase de
formação, principalmente no desenrolar das diferenças entre sinais e símbolos. O caminho
de Helen Keller até o símbolo é reconhecidamente uma das mais belas histórias de
aprendizagem na história humana. Ela sempre intrigou pedagogos do mundo todo a
investigar o exercício de uma criança surda e cega nos seus primeiros passos de escrita. No
entanto, a história de Helen Keller é uma pérola no pressuposto filosófico do símbolo e
ilustração da filosofia de Cassirer. Uma em especial, acontecida em uma tarde de abril de
1887 na cidade americana de Tuscumbia, estado do Alabama, descrita por sua professora
Sra. Sullivan, que abriu a janela para uma compreensão mais abrangente e prática da rede
simbólica:

“Tenho de escrever- lhe uma linha esta manhã porque uma coisa muito
importante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua
educação. Aprendeu que tudo tem um nome, e que, o alfabeto manual é a
chave para tudo o que ela quer saber. Hoje de manhã, quando se estava
lavando, ela quis saber o nome da "água". Quando quer saber o nome de
alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha mão. Soletrei "a-g-
u-a" e não pensei mais nisso até depois do café da manhã...” (CASSIRER,
1994, p. 58)

                                                                                                                                   
16
 Helen  Keller,  americana  que  ainda  na  infância  ficou  cega  e  surda  em  decorrência  de  uma  febre,  nascida  
em   1880   no   Estados   Unidos   tornou-­‐se   o   que   alguns   chamaram   de   “um   milagre   humano”   por   aprender   a   se  
comunicar  e  se  tornar  ativista  em  direitos  humanos.  
 
 
39  
 
Aprender que cada coisa tem um nome foi sua primeira descoberta para apontar
sinais de cada elemento. Helen Keller é uma criança criada em uma cidade interiorana com
o desafio de aprender a nomear o mundo no qual está inserida. Anne Sullivan encontra
Srta. Keller recomendada por trabalhos recentes de alfabetização com crianças em
situações semelhantes. Não há fala, nem sentido. Há um sinal, uma referência imediata a
um objeto, ao que temos defendido em Cassirer. Fazer referência à palavra “água” não é
um exercício de atribuir sentido as coisas e é possível afirmar que o seu movimento de
referir-se ao mundo, neste caso, é mais semelhante à atividade dos animais que
propriamente a atividade humana. Não há interação da menina com o mundo
“propriamente humano”, pois o primeiro passo de Helen Keller na nomeação de seu
mundo é uma pantomima de sinais. Uma demarcação conceitual deve ser reforçada neste
momento. A exata experiência de atribuir sinais as coisas, ou “índices” como prefere o
biólogo Terrence Deacon, em sua obra The Symbolic Species (As espécies simbólicas), é
apontada por Cassirer:

“outros animais usam uma variedade de sinais para se comunicar. O


macaco-vervet dá um determinado grito para indicar que uma águia está
se aproximando pelo céu e outro para indicar que um jaguar se aproxima
pelo chão. Mas tais gritos não são parte uma linguagem. Cada grito,
argumenta Deacon, é um “índice”; aponta pra um objeto determinado
num momento determinado e nunca é usado na ausência desse objeto. O
índice é uma forma de transferência trancada em seu objeto. Muitos
animais podem emprega-lo e é tremendamente útil. Mas o índice não é
um símbolo, que pode construir trocadilhos, abstrações, ficções e
mentiras” (CASSIRER, 1994, p.61)

A expressão “trancada em seu objeto” é possivelmente a melhor forma de


representar a condição de Helen até aquele momento. Ela vivia alheia à rede simbólica
(como bem disse Cassirer) e acessava a realidade no contato imediato, sem intermediações
dos símbolos, o que excluia a possibilidade de atribuir significados diferentes as coisas. A
educação da menina mostra de maneira clara a transição do uso de sinais para designar
objetos para o uso simbólico das palavras. O momento desta transição é narrado pela Sra.
Sullivan logo em seguida ao momento em que Helen toca na água. A descrição é lembrada
por Cassirer. Embora longa, precisa ser transcrita com a riqueza de detalhes que a
experiência merece:

 
 
40  
 
“[Mais tarde] saímos para ir até a casa das bombas e fiz Helen segurar a
caneca dela debaixo da bica enquanto eu bombeava. Quando a água fria
correndo-lhe pela mão pareceu assombrá-la. Deixou cair a caneca e ficou
como que transfixada. Uma nova luz espalhou-se por seus rosto. Soletrou
“água” varias vezes. Então deixou-se cair e perguntou o nome dele e
apontou para bomba e para a treliça.”(CASSIRER, 1994, pg. 61)

Ora, o que acontecera com Helen Keller que a deixara transfixada e iluminara o seu
rosto? Ler a descrição é como ser lançado para uma cena em que uma menina é
transportada a outro universo, como se a porta de uma nova dimensão tivesse sido aberta e
um mundo cinza tivesse sido colorido gradativamente pelo movimento de descoberta em
cada objeto que tocava. Não era a descoberta de uma palavra que a espantava, mas
aplicabilidade universal dela, onde a palavra “água” não estava mais trancada em um
objeto, mas na multiplicidade de significados. Antes desta experiência na casa das bombas,
não parecia haver para ela nenhuma diferença entre a água contida na caneca e a que
jorrava pela treliça, assim como não havia diferença entre a água e a caneca: o vasilhame e
o conteúdo era um único objeto – algo para beber –, e ela não conseguia conceber que
“água” existisse independentemente do objeto em que a bebia. Na verdade, sua mente
trabalhava por indicação. Existe a “caneca d’água”. Água em outro contexto requer algum
outro sinal (tal como a experiência de Deacon com os macacos-vervet). No famoso
episódio junto ao poço, contudo “o mistério da linguagem foi revelado a mim”, disse Helen
Keller 17 , que entendeu com clareza (ou começou a entender) via o tato, tanto a
particularidade quanto a generalidade das palavras. Água, então, era a palavra para água na
caneca e água no poço e a água no rio e no oceano. Uma “caneca” podia conter água, leite
ou limonada, e havia canecas de formas e tamanhos diferentes, mesmo assim, o nome
“caneca” aplicava-se a todas”18.

Para Cassirer, a aplicabilidade geral é uma característica exclusiva do símbolo. Para


ele, Helen Keller “teve de entender que tudo tem um nome – que a função simbólica não
está restrita a casos particulares, mas é um princípio de aplicabilidade universal que abarca
todo o campo de pensamento humano (CASSIRER, 1994. pg. 62). Ele comenta o fato de
Helen Keller aprender a usar as palavras não como meros sinais ou signos mecânicos, mas

                                                                                                                                   
17
 Esta questão será aprofundada no terceiro capítulo do trabalho na relação da forma simbólica da linguagem na relação
com a atribuição de sentido, tendo o caso de Helen como exemplo mais ilustrativo desta relação  
18
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15
 
 
41  
 
como um instrumento inteiramente novo de pensamento. Um novo horizonte se abre a
partir deste momento, como uma criança que corre à vontade por uma área
incomparavelmente mais ampla e livre.

A função simbólica atua articulando a multiplicidade de sentidos nesse novo


universo de Helen Keller, por meio da linguagem. O efeito simbólico de Cassirer é
evidenciado em um exemplo absolutamente ilustrativo na experiência humana. O efeito
simbólico transforma a condição da Helen Keller com expressões de animalidade (pelo
conceito debatido até aqui) para a entrada no “mundo ideal” humano. Cassirer, dentro da
perspectiva da cultura não é o único a presenciar o efeito simbólico na humanidade. O
sociólogo Levi Strauss também estrutura sua análise, não apenas no efeito simbólico, mas
na eficácia desta função da construção de uma cultura.

 
 
42  
 
1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS

Compreender o pensamento de Cassirer na experiência de Helen Keller é


absolutamente esclarecedor. A garota estadunidense foi em direção, na teoria de Cassirer,
de uma rede simbólica já estabelecida e a acessou por um “funcionamento” que uma
criança sem as limitações de Helen Keller acessaria com naturalidade. No sentido de lançar
luz sobre a rede simbólica proposta por Cassirer, há uma reflexão interessante e pertinente
à proposta deste trabalho, que é o trabalho de Levi Strauss com a relação do homem, do
símbolo e da cultura em sua obra Antropologia estrutural. Nessa obra, ele se aplica a
investigar a atuação de feiticeiros e xamãs em comunidades indígenas nas Américas,
visando principalmente pensar as formas de atuação desses guias espirituais em processos
de possíveis curas de doenças sofridas por indivíduos destas comunidades. A função
simbólica em Strauss receberá outras tonalidades e expressões19.

Com o objetivo de investigar a intervenção de um xamã na comunidade indígena, o


autor toma como ponto de partida da sua reflexão o texto de Walter B. CANNON (1942)
intitulado Voodo death. Levi Strauss investiga uma experiência tida como sobrenatural por
parte de um membro de uma comunidade indígena, acometido de um suposto dano /
doença que apenas poderia ser superado com a intervenção de um xamã, por conta da
crença de que a raiz da doença seria um feitiço. O enfeitiçamento sofrido pelo indivíduo
em determinada cultura se apresenta como doença psicossomática – como um trauma,
medo ou cólera. A vítima é persuadida de um determinado malefício pelo grupo, familiares
e tradições que o consideram maldito, “não apenas morto, mas fonte de perigo para o
círculo” (STRAUSS, 1989, 194). O indivíduo é conduzido a uma série de privações que
gera uma “dissolução da sua personalidade social”, com sérias consequências à sua
integridade física. O maldito em questão, interpelado por essa realidade espiritual, é
pressionado pelo grupo de que está doente / enfeitiçado e levado ao feiticeiro, que se aplica
a rituais minuciosos para sanar o problema em questão. O autor reforça a eficácia da magia
do feiticeiro, dizendo que ela está sustentada em um tripé:

                                                                                                                                   
19
 Os comentários que se seguem estão baseados nos capítulos IX e X, sendo respectivamente “O feiticeiro e sua magia”
e “A eficácia simbólica”, com objetivo de extrair de que forma o pensamento simbólico é parte da leitura social que
Strauss faz desses povos.  
 
 
43  
 
“a eficácia da magia implica a crença na magia, e que esta se apresenta
sobre três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença no
feiticeiro, na eficácia das suas técnicas; em seguida, a crença do doente
que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do feiticeiro,
finalmente, a confiança e suas exigências na opinião coletiva, que formam
à casa instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se
definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aquele que ele
enfeitiça” (STRAUSS, 1989, p. 194-195)

Interessante observar que o poder da crença na eficácia da intervenção do feiticeiro


não é colocado em uma relação lateral feiticeiro-doente, mas reforçada por um terceiro
elemento: a opinião coletiva. O autor reforça esse tripé, apresentando três exemplos de
como esse movimento feiticeiro-doente-coletivo está diretamente relacionado à validação
da magia do feiticeiro diante do grupo e o caráter simbólico de sua intervenção.

No primeiro exemplo, Strauss viaja até a tribo dos Nambikwara nas nascentes do
rio Tapajós, aqui mesmo no Brasil, em 1938. Relata que a tribo era organizada por um
chefe civil e um feiticeiro. Em determinado momento, o feiticeiro não apareceu no
acampamento (era um tribo nômade) à hora habitual. O grupo foi tomado de desespero,
mulheres que choravam, um estado de temor entre o coletivo imaginando que poderia ele
ter sido tragado por algum animal e o grupo evocava as consequências trágicas do
desaparecimento do seu feiticeiro. Após um longo período de espera, por volta das dez da
noite, um grupo sai à procura do seu dignitário e o encontra a duzentos metros de distância
do seu acampamento “silenciosamente acocorado, tiritando no frio noturno, desgrenhado e
privado (os Nambikwara não usam outras vestimentas) de seu cinto, colares e pulseiras”
(STRAUSS, 1989 p. 196). O feiticeiro lhes contara uma história sobre uma rápida
“viagem” (pequeno trajeto) realizada por intermédio de um trovão, como em um
teletransporte, causando uma comoção inicial a esse pequeno grupo sob a ótica de que, se
há algo de sobrenatural para acontecer, justifica-se que aconteça ao feiticeiro e seria aquela
uma prova concreta do poder sobrenatural que lhe fora entregue. Passado um período do
acontecido, uma nova versão da história foi evocada. Sendo o feiticeiro trazido de uma
tribo vizinha, e estando submetido a um outro chefe civil, utilizava a história do trovão
para motivações questionáveis, visando interesses particulares de sua tribo, o que
evidentemente fez o povo (não mais aquele pequeno grupo) da tribo Nambikwara
questionar a veracidade do fato após passado um tempo da experiência.

 
 
44  
 
Após a narração deste fato, Strauss analisa que: tanto a experiência mágica
“vivenciada” pelo feiticeiro e validação daquele pequeno grupo, quanto à do povo em
questionar a veracidade das informações contadas na história após a reflexão, são
experiências que coexistem, principalmente se analisadas do ponto de vista da experiência
individual (pequeno grupo) e coletiva (povo):

“As duas explicações são logicamente incompatíveis, mas nós admitimos


que uma ou outra possa ser verdadeira, segundo o caso: como são
igualmente plausíveis, passamos facilmente de uma à outra, segundo
ocasião e momento, e, para muitos, elas podem coexistir obscuramente na
consciência. Essas interpretações divergente, qualquer que possa ser sua
origem intelectiva, não são evocadas pela consciência individual ao termo
de uma análise objetiva, mas antes como dados complementares,
reclamados por atitudes muito fluídas e não elaboradas que, para cada um
de nós, tem um caráter de experiencial. Essas experiências permanecem,
entretanto, intelectualmente informes e afetivamente intoleráveis, a não
ser que se incorporem a tal ou qual esquema presente no grupo e cuja
assimilação é o único meio de objetivar os estados subjetivos, formular
impressões informuláveis e integrar experiências inarticuladas em
sistema” (STRAUSS, 1989, pg. 198)

O regresso do feiticeiro com sua história absurda é fruto de uma esquematização


individual de um pequeno do grupo, criada no entorno da figura do feiticeiro que validava
o seu caráter sobrenatural. No entanto, a mesma história contada na experiência de um
povo, que sabia de suas motivações escusas, apresentou-se como um ato dissimulado, ou
seja, a experiência não ecoa no universo simbólico construído ali. Até aqui, a crença na
magia do feiticeiro não é apenas fruto das suas próprias mãos e o eco em pequeno (e
individual) grupo, mas depende de uma opinião coletiva construída pelo povo (como já
dito pelo autor). A articulação da experiência dentro de um sistema proposto pelo grupo é
determinante para estabelecer o sentido do fato em si. Se individualmente não é possível
formular uma lógica plausível para a experiência, coletivamente ela é articulada e as duas
histórias podem coexistir. STRAUSS (1989, pg.198) ilustra em um exemplo prático sua
ideia de articulação individual e coletiva.

Se no momento de uma guerra o povo de um país aponta para uma lógica


sistematizada sobre a guerra como elemento último da libertação nacional e age em favor
deste fato, é absolutamente possível que, se o indivíduo se encontra com o negociante de

 
 
45  
 
canhões que porventura está tirando vantagem da guerra e ouve dele a real
intencionalidade de uma guerra para o lucro financeiro do vendedor, sua posição sobre a
guerra se fará conflitante em relação à liberdade que ela trará. No entanto, com a comoção
que a guerra traz ao povo e o indivíduo, ainda que saiba das motivações escusas, o autor
abre a possibilidade que as duas interpretações coexistam no mesmo individuo. Assim, o
mesmo indivíduo que desconfiava da guerra pela experiência com o negociante de canhões
estará em praça pública bradando a vitória e a liberdade. O primeiro exemplo do autor é
suficiente para encontrar a questão de como a experiência coletiva é estruturada por um
sistema de significação próprio, construído por um povo e, ainda que um indivíduo tenha
uma experiência contrária com determinada temática, o indivíduo agirá em favor do
sistema de significação dado pelo povo. Esta estruturação coletiva coexistirá com sua
percepção individual. No exemplo dado, ainda que o indivíduo questione o poder
sobrenatural do feiticeiro, a experiência coletiva validará para si mesmo o caráter
sobrenatural do feiticeiro.

A partir de então o autor recorre a um segundo exemplo:

“Esses mecanismos se esclarecerão melhor à luz de observações já


antigas, feitas entre Zuni do Novo México pela admirável investigadora
M. C. Stevenson. Uma mocinha de doze anos fora presa de uma crise
nervosa, imediatamente depois que uma adolescente lhe agarrara as mãos;
este último foi acusado de feitiçaria e arrastado diante do tribunal dos
sacerdotes” (STRAUSS, 1989, p.199)

A história, descrita pela pesquisadora STEVENSON (1905), é de um feiticeiro


criado pela opinião coletiva. Para o autor belga, o jovem adolescente que na tentativa de
explicar o ato citado se debateu contra o tribunal em vão, e que quando se percebe em uma
situação difícil com argumentos desacreditados por sua platéia em questão, improvisa uma
longa narrativa sobre as circunstâncias que havia sido iniciado na feitiçaria. A resistência
dos juízes em aceitar seus argumentos caminhou por uma longa jornada de investigação,
que motivou o jovem a passar por simulação de uma cura, plumas mágicas herdadas dos
antepassados místicos e muros quebrados na busca de instrumentos mágicos. O jovem após
um exaustivo processo de julgamento entre provas e contraprovas de sua “magia” voltou à
praça pública, “onde teve de repetir toda a sua história, que enriqueceu com um grande

 
 
46  
 
número de novos detalhes, terminou por uma peroração patética onde lamentava a perda de
seu poder natural. Assim tranquilizados, seus auditores consentiram em libertá-lo”
(STRAUSS, 1989, pg. 201).

Strauss questiona em que ponto o jovem não se tornara efetivamente um feiticeiro?


“Que a mocinha sare após administração do remédio, e que as experiências vividas no
curso de uma prova tão excepcional se elaborem e se organizem, nada mais é necessário,
sem dúvida, para que os poderes sobrenaturais, já reconhecidos pelo grupo, sejam
confessado definitivamente por seu inocente detentor” (STRAUSS, 1989, pg.202). O
feiticeiro é criado pelo grupo e o próprio jovem passa acreditar no fato, a origem não está
no indivíduo, mas no sistema coletivo de uma estrutura previamente estabelecida. Neste
momento vale um olhar para a atividade simbólica, a articulação simbólica construída pelo
grupo no julgamento do rapaz. O grande julgamento não tem por fim a justiça, mas a
validação de um sistema mágico onde a escolha não é entre este e outro sistema, mas entre
o sistema mágico e nenhum sistema. Ou seja, a desordem. O adolescente chegou a se
transformar, de ameaça para a segurança física de seu grupo, em garantia a sua coerência
mental. O eficácia do símbolo neste caso, se dá pela necessidade de articulação de uma
experiência em um todo coerente.

Levi Strauss, aponta para mais uma expressão da eficácia simbólica como efeito de
organização de uma cultura. No terceiro exemplo, temos a ocasião onde a criação de um
feiticeiro tem o seu apogeu no texto do autor na experiência do Quesalid que, impelido
pelo desejo de descobrir fraudes e pela curiosidade de investigar a dinâmica de
funcionamento dos grupos com os xamãs, aventura-se a aprender suas práticas.

“Um certo Quesalid (tal é, ao menos o nome que ele recebeu quando se
tornou feiticeiro) não acreditava no poder dos feiticeiros, ou, mais
exatamente, dos xamãs, visto que este termo convém melhor para denotar
um tipo de atividade específica em certas regiões do mundo; impelido
pela curiosidade de descobrir suas fraudes, e pelo desejo, de desmascará-
los, pôs-se a frequentá-los, até que um deles se ofereceu para introduzi-lo
em seu grupo, onde seria iniciado e tornar-se-ia rapidamente um dos
seus” (STRAUSS, 1989, pg.203)

Iniciado no grupo, o Quesalid vai aprendendo as práticas culturais e atividades


daquele povo. Após um processo de treinamento, em pouco tempo se torna feiticeiro. No
 
 
47  
 
seu processo de treinamento para a prática dos xamãs, não demorou a descobrir os
“simulacros” e subterfúgios das práticas xamanísticas. Segundo ele, a grande magia dos
xamãs eram realizadas com penas de aves misturadas a sangue humano que formariam
uma “gosma” ensanguentada, explicando: cada vez que um doente acionava o xamã, o
feiticeiro aplicava a técnica de amassar as penugens de seu cocar e a colocava em contato
com sangue humano gerado por um corte interno em sua boca. Após proferir as palavras
mágicas, o xamã simulava a extração do “mal” simbolizado na “gosma” ensanguentada.
Quesalid, em fase final do processo de formação como feiticeiro, foi convidado por uma
família para aplicar a cura em um doente que sonhara com sua figura como salvador que
traria a cura. O descrente recém-formado feiticeiro vai até a casa do rapaz e aplica a
técnica aprendida. O rapaz em questão foi surpreendentemente curado. O sucesso do
Quesalid foi estrondoso. O “novo” feiticeiro teria ainda outras oportunidades de testar a
eficácia de seus métodos, desmascarar outros xamãs tidos como impostores, e após um
tempo, o então incrédulo se tornara um feiticeiro “orgulhoso de seus sucessos”. Sob a
perspectiva do Quesalid, o autor concluiu que ele não se tornou um grande feiticeiro
porque curava os seus doentes, ele curava os seus doentes porque se tinha tornado um
grande feiticeiro (STRAUSS, 1989, pg. 208). O feiticeiro é um símbolo. Parece que nesse
momento a atividade simbólica apresenta diferentes manifestações e significações para o
tripé proposto por Strauss (feiticeiro-doente-público). Se, por um lado, para o doente o
feiticeiro é um símbolo de cura, conforto, resolução de uma determinada dificuldade para o
povo, por outro ele é sinônimo da validação de um sistema, de um processo mental /
intelectual estabelecido. O feiticeiro atua nesse cenário como agente que compõe uma
realidade estabelecida. Para o próprio feiticeiro, sua figura carrega a simbologia de um ser
mítico, representante de uma sobrenaturalidade perante o grupo que o conforta e o faz
acreditar que está, de algum modo, sendo intermediador de um processo de cura ou
libertação de algum mal, ou ainda de um sobressalto em relação a outras práticas
xamanísticas.

A “atividade simbólica” presente na obra Strauss, nas relações estabelecidas na


tribo e as “figuras” levantadas pelo povo, encontra seu eco no conceito de rede simbólica
de Cassirer (já descrito). São expressões culturais dadas pela arte, religião e mitos ali

 
 
48  
 
estabelecidos. A eficácia simbólica age como articulação de sentido para aquela cultura
que olha para os lados ou para cima, e articula seu universo de sentidos em elementos
externos ao indivíduo. O funcionamento do homem no sistema simbólico, debatido até
aqui, contribui para entender como o homem articula o sentido: do homem simbólico de
Cassirer, ilustrado na figura de Helen Keller, às experiências dos povos primitivos, de
Strauss. Estas são expressões desse processo. No entanto, há uma questão a ser
aprofundada, balizadora da proposta deste trabalho. Como que esse homem simbólico que
a tudo significa pode viver, na contemporaneidade, uma crise de sentido? Não seriam os
mesmos meios de articulação de sentido do homem contemporâneo os encontrados nas
tribos primitivas? Em busca desta questão uma formulação sobre o sentido mais amplo, da
vida, poderá contribuir na busca por respostas mais claras ou, ainda, perguntas com
melhores formulações.

 
 
49  
 

2. A PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA

2.1 A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DA VIDA NA MODERNIDADE

Posta a problemática do símbolo e o esclarecimento de Cassirer, complementada


pela visão de Levi Strauss, a segunda questão sobre o caso de Helen Keller nesse momento
assume ainda mais força. Apreender esse universo novo na experiência com Anne Sulivan,
e compreender o mundo e a cultura que está inserida, contribui de que maneira para sua
experiência? Como a sua experiência de alegria em abrir esta nova “janela da existência”
contribuiu para atribuir “sentido a sua vida?” Responder a esta questão de Helen Keller,
possivelmente seja fundamental para uma resposta sobre o funcionamento do homem na
crise de sentido contemporânea. Em busca desta resposta três caminhos serão, em vista do
texto aqui construído, necessárias: Primeira, uma demarcação do que seria esta crise de
sentido do homem; segundo, qual a relação entre homem e sentido da vida; e terceiro,
como seria possível ao homem estabelecer o sentido de vida diante de uma possível
ausência de sentido na contemporaneidade. Para compreender a primeira parte da questão,
o texto Modernidade e crise de sentido de Lima Vaz será uma importante referência. O
texto de Lima Vaz sobre a crise da civilização moderna está organizado em três momentos.
No primeiro momento introdutório, o autor empreende uma análise sobre o problema do
sentido, desde a sua concepção etimológica até uso moderno do termo para referir-se a
uma experiência existencial que, por sua vez, será sinalizada como o princípio fundante do
seu argumento.

Para o autor, o problema do sentido é caracterizado por sua importância e


abrangência no pensamento contemporâneo, e a tarefa de lançar luz sobre o conceito exige
considerar qual parte do problema será tratado. Esclarece que o desafio é não é o de
examinar os diversos aspectos da questão do sentido, mas o de situar essa questão no
contexto da reflexão sobre filosofia e cultura. Em particular, é o desafio de examinar a
trajetória conceitual seguida pelo tema do “sentido”, na acepção que denomina existencial.
Na leitura do autor, o uso filosófico do termo sentido traz em si uma polissemia que exige
cautela, uma necessidade imediata de identificar que tipo de sentido filosófico está sendo

 
 
50  
 
considerado e de explicitar seus diversos usos na trajetória do pensamento filosófico até a
modernidade VAZ (2002, p. 154).

Dois pontos são importantes para o autor no uso do termo “sentido” na linguagem
contemporânea: uma de maneira ordinária e outra de maneira filosófica. No primeiro
momento, chama de especificações mais vulgarizadas utilizadas na linguagem ordinária
como “sentido religioso”, “sentido moral” e outros exemplos que colocam o vocábulo
como uma expressão e força de linguagem. No segundo momento, Vaz delimita o campo
de estudo filosófico e se atenta a cada acepção técnica do seu uso na linguagem filosófica
contemporânea, considerando a lógico-linguística, a hermenêutica, a epistemológica e a
existencial. Há uma escolha de Lima Vaz neste momento, e seu critério é claro: ele escolhe
a lógico-linguística e a existencial por acreditar serem estas duas as acepções técnicas do
uso do sentido de maior abrangência no uso da sua expressão. Para ele, uma se configura
pelo significante e a outra pelo significado.

“A primeira vista ao sentido na sua face expressiva, a saber, na


linguagem, enquanto essa se apresenta como corpo significante. A
segunda, apoiando-se sobre a origem metafórica do termo sentido, tem
em vista o seu conteúdo significado, enquanto exprime a inteligibilidade
do objeto de acordo com o vetor teleológico no qual ele se situará na
compreensão e na linguagem do sujeito. Esta ultima acepção pode ser dita
existencial, pois nela o sentido abandona o campo neutro da acepção
lógico-linguistica para penetrar no terreno da existência do sujeito,
essencialmente orientada para os fins que ele se propõe ou para os quais
naturalmente é movido. O sentido configura-se, então, como “sentido da
vida” (sinn des lebens) ou “sentido da existência” (sinn des daseins). Já a
acepção lógico-linguística cinge-se à estrutura semântica da linguagem na
sua qualidade de lugar das significações e, por conseguinte, de lugar da
elaboração do sentido” (VAZ, 2002, p. 156).

Ainda em caráter introdutório, Lima Vaz aponta entre as duas a que lhe desperta
atenção para a construção do seu argumento sobre a crise de sentido. Para o autor, estas
acepções são pontos de chegada de um longo caminho na história do pensamento
ocidental, e brevemente explicita a acepção lógico-linguística. Afirma que esta acepção
está presente desde a Idade Média, estando presente na filosofia moderna e encontrando no
século XX “o clima intelectual propício que tornou possível o seu pleno desenvolvimento
na filosofia da linguagem no século XX”. Para o autor, atualmente, é em torno desta
acepção que se concentra o interesse filosófico pelo problema do sentido. Após esta breve

 
 
51  
 
descrição, Vaz reflete sobre a acepção existencial visando o que chama o “céu histórico da
modernidade”. Na visão do autor, a acepção existencial inaugura a reflexão filosófica na
Grécia e não tem por objeto inicial a linguagem, mas sim o ser, em suas diversas
manifestações, “seja ele o cosmos, a vida, o homem, o divino, ou próprio ser na sua
unidade absoluta, como na especulação eleática”. Para VAZ (2002, pg.156), a questão do
ser em torno do problema do sentido só se mostrará de maneira explícita a partir do
questionamento socrático. O problema da definição da areté como forma de vida melhor e
orientada para o Bem é considerado o momento inicial da questão do sentido em sua
acepção existencial.

Vaz resgata a proposta da reflexão filosófica grega (orientada para o Bem) para
além uma mera demarcação histórica sobre o fundamento da sua questão, mas faz uma
importante ponte de transição de uma reflexão baseada no homem do mundo antigo para
uma questão existencial do homem moderno. A reflexão de Vaz não é um caminho
arqueológico de Sócrates aos nossos dias sobre a questão existencial no problema do
sentido, mas as transformações sofridas na orientação do homem sobre o que responde ao
sentido de sua vida, sob o céu histórico da modernidade.

Uma análise importante que acreditamos ser uma contribuição para a leitura de Vaz
é que, até o advento da modernidade, as questões de sentido eram orientadas a algum
aspecto transcendente ao homem. O sagrado respondia ao todo do universo de significados
(como passível de observação no universo religioso) ou, no modelo grego, proposta sob a
busca do bem. A resposta para o sentido da vida estaria até este momento “trancada” a uma
única possibilidade, ou a um universo mais restrito de significação. Após a apreciação da
filosofia de Ernst Cassirer, junto com a polissemia de significados nas redes simbólicas, a
resposta de um sentido único parece não abarcar mais o desafio proposto pelo trabalho. O
que era até aquele momento articulado em um sentido, passa ser agora em sentidos. Para
Vaz, o céu da modernidade poderá ser o grande momento de transformação deste
movimento do homem em favor de uma polissemia, e pode lançar luz sobre estas
transformações ocorridas na modernidade. Vaz mantém na sua analogia astronômica do
“céu da modernidade” aquilo que a revolução copernicana representa em Kant.

 
 
52  
 
A revolução copernicana é utilizada como ilustração para se pensar o impacto da
transformação nas coordenadas do universo mental do homem ocidental (de uma
referência única para uma polissemia de sentidos) em uma transição de referenciais. Vaz
explicita este movimento da seguinte forma, finalizando seu processo introdutório de
delimitação do problema:

No primeiro caso, o sol passa ocupar o centro da descrição geométrica do


universo. No segundo caso, a representação virá a ocupar o centro do
universo mental. Esse novo regime gnosiológico provoca o retraimento
do ser, privando-o da sua amplitude analógica e instaurando um novo
sistema de referências intelectuais no qual o problema do sentido, na sua
acepção existencial, deverá ser profundamente reformulado. (VAZ, 2002,
p. 156).

A mudança de referenciais pede um esclarecimento sobre quais referenciais foram


alterados até chegar-se à problemática do sentido em um uma leitura na modernidade, o
que acontece tendo como base a acepção existencial. Para o autor, o homem sofre na
modernidade uma nova forma de obter conhecimento que não mais está centralizada no
objeto, mas agora no sujeito, e o problema da representação destes objetos apresenta-se
como centro de reflexão deste novo universo mental (voltado para o sujeito). É nele que a
mudança estrutural passa a ser debatida. No apogeu da modernidade, surge para o autor a
operação de um novo regime gnosiológico (conhecimento intelectual humano) que assume
papel de protagonismo em torno da problemática da representação. A partir de uma
exposição desde Sócrates até Santo Agostinho (que não receberá atenção nesta
investigação por uma questão de extensão), Lima Vaz introduz a ruptura entre a
representação e o ser como mudança de foco na forma de conhecimento do homem do
mundo antigo para a realidade moderna.

“A necessária representação do objeto do conhecimento, postulada pela


não-indentidade física entre o cognoscente e conhecido, permanece,
portanto, como elemento subordinado à primazia do ser na gnosiologia
antigo-medieval pelo menos até o século XIII. Essa primazia determina
igualmente a prioridade ontológica do sentido existencialmente
considerado, o que significa a prioridade da verdade objetiva sobre a sua
representação subjetiva e sobre o sentido da existência que nela tem seu
fundamento”(VAZ, 2002, p.157-158)

 
 
53  
 
O caminho “objetivado” do conhecimento do ser até o século XIII conhece o
“subjetivado” pela representação. A ontologia contida no modelo gnosiológico antigo-
medieval conhecerá, a partir do Renascimento, um movimento que transformará, na
concepção de Lima Vaz, a forma como o homem organiza seu universo mental. Para o
autor, o momento da ruptura entre a representação e o ser dar-se-á ao longo de um
complexo movimento de transformação nos fundamentos da vida espiritual e intelectual do
Ocidente. Lima Vaz chama a atenção para um marco na problemática da representação
ocorrida na chamada revolução no século XIV, referente ao novo tempo histórico vivido
pelo Renascimento, em que aparece para o autor como a primeira expressão da
modernidade. Neste momento, o autor aponta para a quebra de referenciais sofrida pelo
homem, não mais na alegoria astronômica – da revolução de Copérnico –, mas como um
edifício cujas estruturas de uma cultura antigo-medieval estão abaladas (ou “postas em
questão”, para usar a expressão do autor). É uma “inversão que passa a dar primazia à
representação no regime do conhecimento, a ela submetendo a face objetiva – o ser – do
objeto conhecido” (VAZ, 2002, p.158). Decifra o caminho do conhecimento e da
representação em sua evolução histórica até o advento da chamada modernidade, e atribui
ao êxito espetacular desta teoria há sete séculos apontando para o novo ciclo de civilização
que iria denominar-se “civilização moderna” ou “modernidade”. VAZ (2002, p.161),
escolhendo uma lente para olhar o problema da modernidade – o conhecimento – pôde
observar que o homem moderno assumiu o projeto de edificar um mundo simbólico
submetido a um sistema de medidas imanentes ao próprio homem. Neste cenário do século
XIV, o triunfo da representação sobre o ser consolida a profunda mudança na estrutura do
conhecimento intelectual em novos fundamentos desde a filosofia antiga.

A relação entre sujeito e objeto emerge então como o grande problema na teoria da
representação no que tange à ordem do conhecimento. A representação deixa de atuar,
conforme sugeria o olhar medieval, como um sinal que apontava para uma única direção
possível e é debatida na medida em que o sujeito cognoscente e o objeto no seu ser vai
sendo conhecido, abrindo assim um campo vasto de exploração em diversas perspectivas
que Vaz chama idealistas. Da filosofia medieval explorada por A. de Muralt a Ernst
Cassirer na contemporaneidade, o homem entra em um novo ciclo de civilização, e todos

 
 
54  
 
os grandes domínios das atividades humanas começam a ser redefinidos e reordenados
segundo a nova matriz de conhecimento. Interessante notar que neste momento o autor
alcança na sua construção uma fortaleza de argumento na representação como forma de
conhecimento que é chave para a compreensão da modernidade. Desde o esclarecimento
histórico na filosofia antiga, passando pelas sugestões de construções medievais até o
ponto de virada do século XIV, Vaz encontra, neste momento, terreno fértil para explorar
em cada área da atividade humana (ética, social, política) as implicações desta teoria de
representação moderna.

O autor escolhe três grandes formas de conhecimento propostas nos moldes


aristotélicos como fundo da sua discussão: teorético, prático e poiético. Vaz explica as
formas de conhecimento como sendo o teorético e prático tendo como objeto,
respectivamente, o ser (ousia) das coisas investigando e contemplando na sua verdade, e o
agir virtuoso (héxis, areté) segundo o costume (ethos), descrito e compreendido na sua
bondade. Já o conhecimento poiético dirige o fazer (poiesis) de objetos segundo sua
utilidade. Com estas três concepções de conhecimento, diante da primazia da
representação, há, para Vaz, um campo ilimitado de possibilidades para o sujeito referir-se
ao objeto. Um novo estilo de trabalho teórico é inaugurado para o autor, por meio de uma
forma de construtivismo que submete o objeto aos procedimentos operacionais definidos e
estabelecidos pelo próprio sujeito (VAZ, 2002, p.163). Neste campo, o ambiente mais
propício surgiu para o conhecimento da Natureza e o desenvolvimento do conhecimento
científico, de uma maneira diferente ao desenvolvido até ali, criando uma revolução
técnica com um novo mundo de objetos. Esta revolução, essencialmente poiética, com a
primazia da representação sobre o ser, trouxe na visão de Lima Vaz uma consequência:

“A reordenação radical das linhas de inteligibilidade de com que o


homem pensa e interpreta a realidade: ele passa a estatuir normas, valores
e fins de acordo com os princípios axiológicos por ele mesmo
estabelecido e que atendem sobretudo à satisfação das suas necessidades
naturais ou artificialmente suscitadas. E ainda, ele opera uma inversão
completa da direção do vetor metafísico do conhecimento, orientado-o
para a imanência do próprio sujeito, ali onde se desenrola a laboriosa
produção do objeto.” (VAZ, 2002, p.164)

 
 
55  
 
As implicações destas consequências serão amplamente debatidas na etapa de
fechamento do ensaio. Neste momento, Lima Vaz se ocupa em esclarecer como esta nova
forma de conceber o conhecimento na primazia da representação, da relação entre sujeito e
objeto, da inversão completa, da reordenação radical, se expressa no que denomina
“grandes vertentes teóricas” que configuram o terreno cultural da modernidade: ciência,
ética, política e filosofia. Para o autor, o modelo poiético mostrou-se eficaz no trato das
questões relacionadas à Natureza, e contribuiu de maneira significativa para o
desenvolvimento do método empírico-formal, alcançando resultados inquestionáveis no
campo da ciência. Ela atribui ao método o caráter de elemento mais poderoso na criação da
tecnociência, alterando substancialmente o mundo humano como conhecemos e os hábitos
dos homens. Além desta contribuição para a Natureza científica, também proporcionou
enormes avanços para as ciências humanas. Nesse cenário de desenvolvimento do método
empírico-formal pelo modelo poiético, onde a Natureza é desenvolvida e avanços ocorrem
nas ciências humanas, Vaz encontra no desenvolvimento destas últimas uma crise
epistemológica, pois a mesma exatidão obtida nas ciências da Natureza não se aplica às
ciências humanas. A partir de então, a chave-mestra para o acesso ao problema do sentido
aparece no argumento do autor, porque, se esta dificuldade é explícita em lidar com a
representação no trabalho teórico das ciências humanas, as dificuldades se agravam nos
“saberes normativos da ética”, na política ou mesmo na metafísica, sendo esta última
fundamental na visão do autor. A ponte para o problema do sentido está posta e o autor
expõe o caminho até a problemática da seguinte maneira:

“Mais graves, no entanto, apresentam-se aqui as dificuldades, já que se


trata de uma reinterpretação radical desses conceitos matriciais que
regem, de um lado, o conhecimento da ação humana livre, mas
constitutivamente ordenada ao universo do bem, dos valores e dos fins e,
de outro, o conhecimentos dos primeiros princípios do ser. É nesse
contexto que irá delinear-se a profunda crise do sentido que acompanha a
formação da modernidade e que hoje reconhece no niilismo seu fruto
mais legítimo” (VAZ, 2002, p.166)

Lima Vaz a partir deste momento pretende delimitar a expressão da crise de sentido
no mundo moderno valendo-se da questão da representação. Tendo por longo o caminho a
respeito da totalidade do pensamento ético-político e do pensamento metafísico na história
intelectual do ocidente, assinala ser importante para a discussão apresentar o fundamento
 
 
56  
 
gnosiológico sobre o qual teve lugar a “revolução copernicana” (aos moldes de Kant, a
mesma já citada anteriormente neste mesmo capítulo que operou uma inversão nas
direções fundamentais do universo simbólico do homem ocidental). Diante do campo
ético-político e metafísico, as mudanças das coordenadas humanas aparecem no argumento
do autor como a expressão do não sentido (ou da negação do sentido), e Lima Vaz, afirma
ser esse um dos sinais mais inquietantes da crise na modernidade.
Uma pausa no raciocínio do autor é importante neste momento. Como seria
possível um não sentido em um homem que a tudo atribui sentido o tempo todo? A
evidência de uma mudança do eixo referencial do homem, que atribui sentido em objetos
distanciados, assume agora o próprio homem como articulador de sentido, e neste processo
a crise de sentido se manifesta. O que terá o homem no lugar do sentido que anteriormente
era atribuído para além de si?
O autor reforça que a questão do sentido é, para o homem, suscitada pela
necessidade de traduzir a verdade do ser na verdade do conhecer, “onde o sentido desenha
a face humana da verdade, e nossa aspiração inata é a de que o sentido que damos às
proposições que enunciamos e, por elas, às coisas e aos eventos correspondam a verdade
do seu ser”. Se o sentido delineia a verdade do ser para homem, essa construção terá por
resultado uma polissemia de sentidos. O autor afirma que:
“Descobrir o sentido na floresta dos sentidos possíveis é, pois, a tarefa por
excelência do ser humano enquanto portador do logos, pois só a ele,
aberto constitutivamente ao ser e a verdade, é oferecido o supremo risco
de enunciar um sentido verdadeiro e, assim, de interpretar razões do ser
em razões do seu próprio viver” (VAZ, 2002, p.167)

A problemática da crise de sentido para o autor transita agora sob a forma da


interpretação do ser a partir da perspectiva do próprio homem (sujeito). Lima Vaz, após
essa conclusão embrionária, mergulha seu argumento novamente no mundo antigo. Aponta
a relação dialética entre verdade, existência e sentido como a origem da razão ética nos
tempos socráticos, como a ciência do que denomina o verdadeiro Ethos, quando a vida
vivida de acordo com o bem recebe o predicado de vida sensata. Vale dizer, vida segundo a
razão “do melhor” ou do “mais justo”. No movimento de leitura dos gregos, o autor
encontra um caráter exemplar para a leitura da nossa própria crise da modernidade, no
movimento da operação lógica que transforma “a produção humana do sentido em fábrica
 
 
57  
 
da aparência e do não-sentido desde o momento em que, tendo rompido seu vínculo com o
ser, passa a constituir-se paradoxalmente em matriz do não-ser” (VAZ, 2002, pg. 168). Um
estatuto gnosiológico é fundado nas diversas teorias da representação com uma poderosa
instrumentação epistemológica nas formas diversas com que se apresenta o modelo
poiético do conhecimento, onde a razão tem por visada maior o mundo dos fenômenos,
sendo o sujeito o protagonista teórico típico do trabalho da razão moderna (VAZ, 2002,
p.169).

Reforça Vaz que o homem recebe a metafísica da subjetividade como a filosofia


própria da subjetividade, e nesse cenário o sujeito cumpre o papel de hypokeimeno, de
substância primeira, que sustenta todo o edifício simbólico da cultura moderna. Ela
encontra no sujeito sua unidade profunda, e na visão do autor, neste momento manifesta-se
uma progressiva oposição entre sujeito e razão que resulta na dramática experiência do
não-sentido. O sujeito, a partir de então, vê-se impotente e desamparado em face do
domínio sempre maior exercido sobre o mundo da vida pela razão instrumental sistêmica.
Vaz delineia os passos da liberdade do sujeito na construção de um universo de
representações, a busca pelo mundo dos fenômenos que conduziram a mudança do
referencial do ser do objeto para o sujeito. O autor entende ainda que a crise de sentido da
modernidade está neste movimento da poiesis para além dos seus limites tecno-científicos:

“Não lhe resta senão submeter-se a esse domínio e tentar a paradoxal


“desconstrução” de si mesmo, celebrando o triunfo do Leviatã lógico-
estrutural, produzido pela sua própria razão no uso de sua função poiética.
Tal a face mais visível da crise da modernidade. Ela delineia justamente
como consequência da extensão indevida do modelo poiético ao âmbito
da teoria e da práxis, onde deveria prevalecer outra forma de
conhecimento, tendo como reto exercício a contemplação da verdade
do ser e a realização da bondade da vida” (VAZ, 2002, p.170)

Para Vaz, a problemática desta “extensão” poiética apresenta uma dificuldade mais
latente na práxis do homem moderno, e avalia essas implicações nas duas grandes regiões
do universo humano que exigem caminhos diversos de exploração a fim de obter uma
compreensão possível: a natureza e a liberdade. Considera a Natureza o campo das coisas
mensuráveis, razão matemática, em que o modelo poiético como forma de conhecimento
se apresenta de maneira extremamente fecunda. No entanto, a liberdade (como campo
 
 
58  
 
inteligível da práxis) não pode ser mensurada e submetida a cálculo da razão. Para o autor,
sua essência é a orientação para o bem. E é no curso do seu movimento que o sentido se
constitui como sentido da vida, devendo nele transluzir a verdade do ser que aponta para o
bem, sendo a escolha pela liberdade no modelo poiético o bloqueio que seria inato do
homem para a direção do bem VAZ (2002, p.171). Para Lima Vaz, a experiência da
liberdade do homem ocidental na modernidade, como centro da história destes tempos
modernos, aponta para o homem uma experiência conflitante de duas instâncias. Na
primeira, a liberdade se apresenta como o lugar de nascimento do sentido na medida em
que, operando em sinergia com a razão no seu uso contemplativo, torna possível o
exercício da inteligência espiritual na qual ela é, fundamentalmente, consentimento ao
bem, sendo consentimento ao ser. Na segunda perspectiva, é também o lugar da gênese do
não-sentido onde o indivíduo se lança em um espaço incapaz de apreender o verdadeiro
sentido da liberdade e se aliena. Este momento acontece para Vaz quando o movimento
dialético entre a liberdade e razão inverte a direção do seu movimento (em favor do bem).
A incoerência desta crise, sintetiza Vaz, é que o homem vive a contradição de ser um ser
finito e situado para uma pretensão ontológica infinita, onde torna-se ser criador do
absoluto. Vaz conclui:

“Essa contradição está instalada no cerne do projeto da civilização


moderna, e é ela que determina o seu destino, esse destino se torna hoje
visível no projeto de uma civilização que dispõe de todos os instrumento
e recursos materiais para assegurar sua sobrevivência e seu progresso
tecnológico, mas assiste inquieta a uma crise profunda do seu universo
simbólico e das suas próprias razões de ser” (VAZ, 2002, p.172)

A problemática simbólica suscitada por Vaz não está mais presa apenas à
polissemia dos sentidos, mas à constatação de um homem que concentrou em si o sentido
último das coisas, e desenha uma face do niilismo ético da modernidade, de uma
civilização que ousou reivindicar para o sujeito a responsabilidade de suportar todo o
universo humano do sentido, ou seja, de constituir-se em fundamento último dessa verdade
do ser que o sentido deve fazer brilhar para o homem (VAZ, 2002, p.174). O autor afirma
ter, neste momento, chegado ao ponto alto da crise de sentido da modernidade em sua raiz
espiritual, quando o homem achava ter encontrado a fonte última do sentido (liberdade)
aparentemente triunfante. O homem apresenta uma profunda crise de um dever ético

 
 
59  
 
fundamental que seria, para o autor, a instauração do sentido da vida do homem, ou seja, o
dever de realizar a verdade da sua existência.

Para Lima Vaz, não sairemos desta crise enquanto não superarmos a experiência do
não-sentido do humanismo antropocêntrico. É necessário dirigir as energias espirituais da
civilização para o reencontro da fonte transcendente do sentido, ou descobrir uma nova
estrutura da experiência do transcendente que se torne princípio de uma realização
autenticamente humana. Ele conclui assim o capítulo, apresentando um desafio à
modernidade:

Essas proposições parecem soar, é verdade, como um ingênuo arcaísmo


aos ouvidos de uma cultura estruturalmente ateia, que se orgulha de ter
ousado o passo que levou a humanidade da idade infantil das crenças para
a idade adulta da Razão. Mas, e se a exigência do Absoluto transcendente
estiver inscrita na própria essência e no dinamismo mais profundo da
Razão? E se foi à implacável dialética dessa exigência, desdobrando-se no
terreno da teoria da representação, a levar a humanidade moderna
ocidental à dramática experiência do niilismo, reverso dialético perfeito
da experiência do absoluto real, e a conviver com essas formas do não-
sentido absoluto da violência e da morte, presentes como símbolos de
uma civilização em crise, em todas as encruzilhadas do nosso tempo?
(VAZ, 2002, p.174)

A importante conclusão de Lima Vaz sobre a crise de sentido experimentada pelo


homem tem as origens na mudança de um eixo de referência para pensar seu mundo. Essa
mudança é aprofundada teoricamente no problema do conhecimento do homem na questão
da representação, mas nos deixa como principal mensagem o desafio de encontrar nele
mesmo o sentido necessário para explicar o seu mundo e sua realidade. O movimento de
liberdade do homem pelo modelo poético na busca pela liberdade refletiu em um niilismo,
um movimento autocentrado que não comporta uma articulação de sentido suprema e teve
como resultado um não sentido. A questão de um não sentido moderno será amplamente
debatida no final deste capítulo, mas uma provocação após a leitura do intelectual
brasileiro é necessária: seria possível, no mundo pós-moderno (ou seja, após o advento da
modernidade e não ampliando o conceito), uma articulação de sentido relevante? A saída
de Vaz como solução aponta para uma proposta aparentemente mais restrita às questões
espirituais e à busca do bem. Seriam estas as respostas definitivas para explicar solucionar
a crise de sentido do homem?
 
 
60  
 
Neste momento do trabalho, uma nova camada da problemática será investigada a
partir de uma perspectiva conflitante com a ideia de Vaz como solução para a crise de
sentido. O universo do autor Albert Camus será apresentado na tentativa de expressar uma
visão contemporânea desta crise de sentido, apresentando a ideia do absurdo como resposta
alternativa.

 
 
61  
 
2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA

A crise de sentido, aprendida com Vaz, que tem origem na modernidade, parece até
agora não ter demonstrado uma tratativa satisfatória para responder o porquê de o homem
contemporâneo viver uma crise de sentido. A obra de Albert Camus insere um caráter
teórico e filosófico absolutamente esclarecedor à questão. Por isso, foi o autor escolhido
para a compressão da experiência na questão do sentido da vida. O autor apresenta a obra
O mito de Sísifo como alternativa de resposta à questão do sentido da vida e, como
mencionado, será um importante eixo de suporte da discussão. Seu ensaio tem por visada o
sentido da vida a partir de uma reflexão clara sobre o que o autor entende pela “condição
humana”. Camus dedica as quatro últimas páginas do seu ensaio para explorar o mito
grego que nomeia sua obra e segue um caminho árido na busca de dar forma ao que
considera ser a melhor representação da condição humana e sua relação com o mundo: o
absurdo.

Camus é didático no caminho que está propondo, e coloca como disparador da sua
discussão a problemática do suicídio, arriscando dizer ser ele o “único problema filosófico
realmente sério”. Seu argumento é que:

“Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu,


que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com
maior tranquilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido,
fez bem. Esta verdade não valia o risco da fogueira. É profundamente
indiferente saber qual dos dois, a Terra ou o Sol, gira em torno do outro.
Em suma, é uma futilidade. Mas vejo, em contrapartida, que muitas
pessoas morreram porque consideraram que a vida não vale a pena ser
vivida” (CAMUS, 2013, p. 19)

A partir deste raciocínio, Camus diz ser o sentido da vida a mais premente das
perguntas, e questiona-se como se deve responder a ela. Observar o disparador do autor
para sua investigação filosófica da condição humana pode trazer a ideia de tragédia, de que
fatalmente seu discurso será encaminhado a uma abordagem de valor “pessimista” em
relação ao homem. Mas o autor, a partir desta questão, sustenta um trabalho sério e de
honestidade intelectual, expondo as problemáticas e delimitando as questões até onde lhe é
possível apontar caminhos. CAMUS (2013, pg. 22) aponta que, ao se matar, o homem,
raramente o faz por reflexão (embora não descarte a hipótese), e aponta pelo menos seis
motivos. Sendo: 1) Que foi superado pela vida; 2) Que não a entende; 3) O caráter ridículo
 
 
62  
 
do costume de fazer gestos que a existência impõe; 4) A ausência de qualquer motivo
profundo para viver; 5) O caráter insensato da agitação cotidiana; 6) A inutilidade do
sofrimento. Olhar a relação entre o suicídio e o absurdo, sendo o suicídio a solução para o
absurdo é a grande temática do ensaio. Se o suicídio apresenta seus argumentos de um
lado, para Albert Camus, esta luta em busca de sentido pode recuar, em outra extremidade,
àquilo que denominou de esquiva mortal, para uma saída bastante conhecida na filosofia e
muito difundida na religião:

“A esquiva mortal que constitui o terceiro tema deste ensaio é a


esperança. Esperança de uma outra vida que é preciso “merecer, ou
truque daqueles que vivem não pela vida em si, mas por alguma
grande ideia que a ultrapassa, sublima, lhe da um sentido e a trai”
CAMUS (2013 p.23)

O raciocínio polarizado entre o suicídio e a esperança é a grande problemática de


Camus: o desafio de elaborar um raciocínio capaz de se aprofundar na condição humana
sem dar fim a sua própria vida, ou esquivado por uma esperança para além do mundo
humano. A pergunta de Camus retorna ao seu argumento inicial entre o absurdo e o
suicídio: será que o absurdo da vida exige que escapemos dela pela esperança ou pelo
suicídio? Seriam apenas estas as duas alternativas possíveis para um não enfrentamento da
condição humana e o mundo que o envolve? O argumento do autor sobre a “esquiva
mortal” da esperança é complementado com a ideia de um suicídio do pensamento, e usa
como exemplo que diante destas questões o homem transita por lugares desertos, sem
água, onde o pensamento chega ao seus limites e homens com grande pressa para resolver
a questão do sentido da vida querem fugir dali. Neste eminente paradoxo – suicídio e
esperança –, o convite de Camus está neste fio delimitador entre o homem que põe fim a
sua própria vida e a esperança transcendental, um convite a permanecer em um deserto
onde, na visão do autor, nenhum outro filósofo se propôs a permanecer: o caminho árido
de explorar o mundo absurdo.

“Todas as grandes ações e todos os grandes pensamentos tem um começo


ridículo. Muitas vezes as grandes obras nascem na esquina de uma rua ou
na porta giratória de um restaurante. Absurdo assim. O mundo absurdo,
mais do que outro, obtém sua nobreza desse nascimento miserável. Em
certas situações, responder “nada” a uma pergunta sobre a natureza de
seus pensamentos pode ser uma finta do homem. Os seres amados sabem
disso. Mas se a resposta for sincera, se expressar aquele singular estado
da alma em que o vazio se torna eloquente, em que se rompe a corrente
 
 
63  
 
dos gestos cotidianos, em que o coração procura em vão o elo que lhe
falta, ela é então um primeiro sinal do absurdo” (CAMUS, 2013 p. 27)

O mundo do absurdo de Camus é uma forma de conceber o mundo em que


interagimos. O autor diz que não é algo específico de uma época, sociedade e nem é uma
questão situacional que traz esta condição. Ela já está presente no homem, mas é disfarçada
pelos hábitos, costumes que ocupam a vida humana e que, em algum momento, é
despertada pelas mais simples causalidades da vida, tal como um vento em uma esquina
qualquer. O homem simples pode ser tomado deste sentimento quando surge um “por
quê?”. Camus ilustra esta passagem do homem de rotinas, hábitos e costumes para uma
consciência de sua condição como cenários desabando diante de uma realidade dura. Estas
são para o autor apenas evidências da condição humana. Neste momento, o absurdo mostra
suas evidências, torna-se necessário ao autor apontar caminhos para sua compreensão. O
absurdo é a estranheza do mundo, “pantomima desprovida de sentido que torna estúpido
tudo o que os rodeia. Um homem fala ao telefone atrás de uma divisória de vidro: não se
ouve o que diz, mas vemos sua mímica sem sentido: perguntamo-nos porque ele vive?”
(CAMUS, 2013, p.24). Esse é o lugar onde nenhum esforço é justificável a priori (em
itálico aos moldes kantianos) diante das matemáticas sangrentas que ordenam nossa
condição. Para concluir uma breve ilustração do mundo absurdo, Camus aponta o seu
nascimento do confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo. Diante da
nossa questão, até este momento, Camus nomeia o sentido que dispara o texto de
introdução deste trabalho no sentimento do absurdo, este “vento” que no meio da rotina
repetitiva, e aparentemente insossa, dispara a pergunta: Qual é o sentido da vida?

Após uma ilustração do mundo absurdo, Camus investe uma profunda investigação
filosófica em Kierkegaard, Husserl, Jaspers e Chestov. Nesta empreitada, avalia o
movimento destes como suicídios filosóficos, ou seja, soluções rápidas para a realidade
massacrante dos desertos da existência. Não vamos nos aprofundar no ensaio sobre os
argumentos de Camus na contramão desta proposta filosófica a fim caminhar mais
lentamente naquilo que ele entende ser o homem absurdo.

Por definição, Camus o apresenta como:

 
 
64  
 
“Aquele que sem negá-lo, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe
seja alheia. Mas prefere a ela a sua coragem e seu raciocínio. A primeira
lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem, o segundo
lhe ensina seus limites. Seguro da sua liberdade com prazo determinado,
da sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue a
aventura no tempo de sua vida. Este é sem campo, lá está a sua ação, que
ele subtrai a todo juízo exceto o próprio. Uma vida maior não pode
significar para ele outra vida. Seria desonesto.” (CAMUS 2013, p.73)

O homem absurdo já se deparou com o sentimento de absurdo, tem consciência do


absurdo e esta consciência o liberta dos aspectos transcendentais da existência, de um
universo físico limitado à morte e preso no tempo que o tem até lá. Os exemplos de
homens absurdos são em Camus, “vidas privadas de futuro”. Tudo que faz o homem
trabalhar e se agitar utiliza a esperança. O único pensamento não enganoso é, então, um
pensamento estéril. No mundo absurdo o valor de uma noção ou de uma vida se mede por
sua infecundidade. Para compreender este homem absurdo de maneira mais ampla, Camus
lança mão de três exemplos: um sedutor, um comediante e um conquistador.

Para explicar o homem sedutor como expressão deste homem absurdo, Camus
recorre à história de Don Juan, dizendo que “quanto mais se ama, mais se consolida o
absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo
como um iluminado em busca de amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico
arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse
aprofundamento” CAMUS (2012, p.76). Para ele, Don Juan é um grande sábio e não
acredita no sentido profundo das coisas, contribui com mais um traço do homem absurdo
como aquele que não se separa do tempo. Para o autor, Don Juan não pensa em “colecionar
mulheres”. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser
capaz de viver no passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira de esperança.
Não sabe contemplar retratos: Camus também protege Don Juan dos argumentos que ele
seja egoísta, pois sua concepção de amor está presa à mistura de desejo, ternura e
entendimento que o liga às mulheres que lhe relaciona, sendo esta a sua maneira de dar
amor e fazer viver. Don Juan é o desenlace feroz de uma alegria sem futuro. O gozo
termina aqui em ascese. Após a ilustração do homem sedutor, Camus aponta para o
segundo exemplo do comediante.

 
 
65  
 
“Os comediantes da época se consideravam excomungados. Entrar na
profissão era escolher o inferno. E a igreja via neles seus piores inimigos.
Alguns literatos se indignam. “Como negar Molière 20 os últimos
socorros!” Mas isso era correto, sobretudo para ele, que morreu em cena
e acabou sob a maquiagem uma vida inteira dedicada à dispersão. Em
relação a ele, costumava invocar o gênio que tudo desculpa. Mas o gênio
não desculpa nada, justamente porque se nega a fazê-lo” (CAMUS, 2013,
p.86)

Camus resgata o ator como expressão do homem absurdo, que estabelece seu
reinado na experiência do palco, vivendo naquele espaço de tempo todas as emoções e
possibilidades possíveis. Como homem absurdo, é um viajante do tempo que transporta do
tempo e do espaço os personagens vividos. No período em que se apresenta, o ator vai até
o fim do caminho sem saída que o homem da plateia leva toda a sua vida para percorrer. O
absurdo da experiência do ator também não vê esperança, nem mesmo futuro, pois seus
personagens nascem com prazo de validade. Por fim, na sequência do argumento do
homem absurdo, Camus apresenta o conquistador:

“mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso viver dela. A


criatura é minha pátria. Por isso escolhi este esforço absurdo e sem
alcance. Por isso estou do lado da luta. Nossa época se presta a isto, já
disse. Até agora, a grandeza de um conquistador era geográfica. Ela se
media pela extensão dos territórios vencidos. Não é por acaso que a
palavra mudou de sentido e não designa um general vencedor. A grandeza
trocou de campo. Ela está no protesto e no sacrifício sem futuro”
(CAMUS, 2013, p.88)

Para Camus, os conquistadores são os homens que procuram vencer-se a si mesmos


com plena consciência de grandeza, sentindo-se como deuses frente às inocorrências da
vida, bastando-se por si mesmos sem nenhuma expectativa futura que o supere. O salto sob
todas as formas, a precipitação no divino ou no eterno, o abandono às ilusões do cotidiano
ou da ideia, todas essas telas ocultam o absurdo. O homem absurdo pode ser qualquer um
que conscientemente nada encobre. O argumento de Camus até aqui pode iniciar um
tratado sobre o desespero e, sabendo desta realidade, o autor aponta que carecer de
esperança não equivale a se desesperar. Haveria mais caminhos para explorar o homem
absurdo de Camus, mas neste momento o mais relevante é que o autor responde como
possibilidade ao homem absurdo a alegria na sua condição: gratuita, dada. Retorna ao mito
grego de Sísifo onde o herói no seu processo constante de empurrar a pedra acima e abaixo

                                                                                                                                   
20
 Dramaturgo  francês  do  século  XVII  
 
 
66  
 
da montanha depara-se com a alegria da sua atividade. Ora, que atividade repetitiva como
esta poderia carregar alegria? Camus responde da seguinte maneira.

“Toda a alegria silenciosa de Sísifo consiste nisso. Seu destino lhe


pertence. A rocha é sua casa. Da mesma forma, o homem absurdo manda
todos os ídolos se calarem enquanto contempla seu tormento [...] o
homem absurdo diz que sim e seu esforço não terá interrupção. Se há um
destino pessoal, não há um destino superior ou a menos só há um, que ele
julga fatal e desprezível. De resto, sabe que é dono de seus dias [...] A
própria luta para chegar ao cume basta para encher o coração do homem.
É preciso imaginar Sísifo feliz”. (CAMUS, 2013 p. 124)

A felicidade presente é a resposta do homem absurdo ao mundo absurdo, na


gratuidade da vida e nas coisas dadas, não há necessidade de transcendência. Camus
descobre um Sísifo feliz, alegre com sua condição, uma alegria curiosa diante do cenário
construído. Mas Sísifo é Don Juan, sabe de sua condição, é fidedigno a ela, não espera,
seja porque tenha se conformado, ou ainda porque não seja necessário. O retrato opaco,
fosco do autor para a vida diminui uma expectativa ou possível visada inicial de um
projeto que empreende buscar o sentido para a vida, a expectativa de um sentido geral, de
uma resposta mirabolante que abarque toda a existência e resuma cada fragmento em um
único lugar. Pode não ser animadora, mas esclarecem questões substanciais. Sísifo não tem
uma experiência aterrorizante e Don Juan não se arrepende ao final da sua trajetória. Na
construção de Camus, é possível que nós também não. Vale reforçar que a formulação
teórica do autor ganhou forma e personagem, em sua obra O estrangeiro (laureada prêmio
Nobel de literatura em 1957).

O autor apresenta o seu homem absurdo no protagonista Mersault, indica a vida de


um homem que sabia o que era “rolar a pedra morro acima para depois torná-la a rolar
morro a baixo”. Em uma cena clássica da obra, o personagem havia assassinado um
homem árabe na praia, em decorrência de uma briga que não sabia bem a razão de ter
entrado, e está diante de um tribunal para ser julgado. Retrata o momento da seguinte
forma:

“Quando o promotor se sentou, houve um momento de silêncio bastante


longo. Quanto a mim, estava atordoado pelo calor e pela perplexidade. O
presidente tossiu um pouco, e em tom muito baixo perguntou se eu tinha
algo a acrescentar. Levantei-me, e como estava com vontade de falar,
disse, aliás, um pouco ao acaso, que não tinha tido intenção de matar o
árabe. O presidente respondeu que isto era uma afirmação, que até então
 
 
67  
 
não tinha entendido muito bem meu sistema de defesa e gostaria, antes de
ouvir o meu advogado, que especificasse os motivos que inspiraram o
meu ato. Disse rapidamente, misturando um pouco as palavras e
consciente do meu ridículo, que fora por causa do sol” (CAMUS, 2013, p.
94-95)

Não, Camus não está usando de ironia. Mersault é uma personagem embebida da
noção de absurdo e estava absolutamente desconfortável com o momento, e ainda
ressaltava em todo o tempo que a sentença não faria a menor diferença. O homem absurdo
de Camus sabe de onde veio e para onde vai, parece que para o autor ele é a resposta para o
sentido vida e, neste momento, perde o seu tom intrigante, quase infantil e ganha uma
robustez investigativa na direção de uma saída mais ajustada e menos ufanista. Para
concluir a abordagem sobre o homem absurdo, vale um escrito curto do próprio Camus na
obra O homem revoltado:

“A conclusão última do raciocínio absurdo é, na verdade, a rejeição do


suicídio e a manutenção desde confronto desesperado entre a interrogação
humana e o silêncio do mundo. O suicídio significaria o fim desse
confronto, e o raciocínio absurdo considera que ele não poderia endossá-
lo sem negar suas próprias premissas. Tal conclusão, seria fuga u
liberação. Mas fica claro que, ao mesmo tempo, esse raciocínio admite a
vida como bem necessário porque permite justamente esse confronto, sem
o qual a aposta absurda não encontraria respaldo. Para dizer a que a vida é
absurda, a consciência tem necessidade de estar viva” (CAMUS, 2013, p.
16)

A gratuidade da vida se basta. A hipótese de Camus para o sentido da vida é


respondida na própria vida, sem a necessidade de algo que a transcenda. Possivelmente, a
maior contribuição de Camus para uma reflexão sobre o sentido da vida seja a ideia de que,
além de não ter um sentido, não precisaria ter. A ideia pode abrir um deserto árido ao que
espera uma resposta definitiva, ou ainda uma articulação única do sentido da vida, como
regresso de uma crise de sentido pós-moderna. No entanto, Camus não esgota a questão: o
conflito com o animal simbólico de Cassirer (debatido no capítulo 1) ainda permanece.
Como poderia um homem que a tudo atribui sentido, não atribuir sentido à própria vida? A
possibilidade de Sísifo na alegria ou a felicidade presente de Mersault seria a resposta
definitiva? Ao que parece, uma última camada possível de ser explorada neste trabalho
precisa ser melhor explicada. A vida não tem mesmo sentido e escolheremos o caminho de
Camus como resposta única aos nossos desertos existenciais? Para explorar melhor esta

 
 
68  
 
questão uma proposta de reflexão (mais curta) sobre o sentido geral da vida merece
atenção no trabalho, e o convite para o diálogo é feito ao filósofo Fernando Savater.

 
 
69  
 
2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ

Fernando Savater propõe uma construção teórica importante para concluir nosso
raciocínio sobre o sentido da vida, possivelmente neste momento celebrando a proposta de
Camus. No processo de busca por um esclarecimento desta questão, nos deparamos com a
obra do autor As perguntas da vida, que dentre as muitas reflexões, reserva lugar especial
(no epílogo) para explorar a questão do sentido na experiência humana no que estamos
neste momento tratando como a busca de um “sentido da vida em geral”. A apresentação
do texto está dividida em três seções. No posicionamento filosófico, o sentido da vida é
uma pergunta religiosa e a conclusão proposta é de que a vida não tem sentido. O autor
inicia sua reflexão delimitando a atuação do filósofo nas grandes questões da vida e, para
contextualizar, organiza seus argumentos em torno do hábito histórico de rir dos filósofos.
Faz referências desde Tales de Mileto, que caiu em um poço olhando para o firmamento e
arrancando sorrisos das criadas que passavam por ali, ao texto de Luciano de Samosata
(Século II d. C) onde Zeus, com a colaboração de Hermes, organiza um leilão onde os
compradores pagavam de acordo com a utilidade da doutrina dos leiloados. Os mais
cotados eram Sócrates e Platão a dois talentos cada um, e Heráclito, por exemplo, é
retirado por falta de comprador (SAVATER, 2001, p. 205)

A pergunta de Savater para justificar o porquê de os filósofos serem risíveis,


encontra resposta em três argumentos. No primeiro deles, uma ambição teórica para
investigar os porquês e o tempo todo fazer perguntas, atreladas a resultados práticos
escassos. No segundo momento, afirma que “com frequência os filósofos se chocam contra
as evidências do senso comum ou contra as respeitáveis tradições que as pessoas decentes
nunca criticam”. Em terceiro lugar, “a arrogância disparatada – ninguém sabe como eu”
atribui adjetivos incontáveis em uma mão sobre esse “ser supremo”. Neste momento,
Savater investe seus argumentos na tentativa de remeter ao que considera uma reflexão
filosófica genuína, contestando o posicionamento filosófico pretensioso de fechar questões
e resolver problemáticas de maneira sistemática, afirmando que “os filósofos devem tentar
responder às perguntas e inquietudes dos humanos, e não se fechar em discussões
melindrosas de terminologia só com os de seu grupo”. Mas afinal, qual deveria ser a
atribuição do filósofo frente a questões relevantes para a vida humana? Para o autor, “a
 
 
70  
 
tarefa da filosofia é refletir sobre a cultura que vivemos e seu significado, não só o objetivo
como também o subjetivo para nós”. Também vai argumentar que o exercício filosófico
deve vir acompanhado de um “preparo cultural prévio”. (SAVATER, 2001, p. 208)

O autor, para concluir seu discurso sobre o papel do filosófico, seleciona elementos
essenciais da formação do filósofo, indicando pontos chaves que um professor de filosofia
jamais deveria esconder dos seus alunos e que, para nossa reflexão, dois deles chamam a
atenção para o caminho até o sentido. A primeira é que não existe “a” filosofia, mas “as”
filosofias e, sobretudo, o filosofar, debatendo novamente contra a ideia de questões
concluídas em sistemas filosóficos e reflexões presas a grupos fechados com vocabulários
próprios. A outra ideia exposta é a de quê não existem “deuses” com opiniões
intransponíveis na filosofia, que o autor vê como um ramo da arqueologia e muito menos
simples veneração de tudo que vem assinado por um nome ilustre. A ideia central de
Savater, nesta primeira abordagem, não está apenas presa a um modelo de pensamento ou
posicionamento sobre o papel do filósofo frente às questões da vida, mas estas ideias
norteadoras serão de extrema importância para compreender a construção do filósofo até a
questão do sentido da vida alinhada ao seu posicionamento filosófico. O autor mantém sua
construção a respeito do papel do filósofo, apontando um exemplo prático de uma postura
adequada do filósofo nas perguntas a respeito do sentido da vida, atribuindo à questão um
caráter inteiramente religioso:

“um dos motivos de ridículo mais justificado em que os filósofos


costumam incorrer, é pretender competir com a religião na busca
redentora do sentido da vida. Acontece que a pergunta por esse “sentido”
já é religiosa pro si só, e a única coisa que a filosofia pode fazer com
relação a ela é mostrar – como estou tentando fazer agora – essa
religiosidade e tentar reformulá-la de outro modo para que se torne
filosoficamente válida” (SAVATER, 2001, p. 210)

Savater empenha seus argumentos em mostrar que quando se pergunta pelo o


sentido da vida, está se perguntando “qual tipo de sentido? O que se entende por sentido?”
Fidelizando seus argumentos até aqui sobre o trabalho filosófico, sua resposta vem ao
encontro da amplitude da questão:

“que tipo de “sentido” estamos nos referindo? Dizemos ter “sentido”


aquilo que quer significar algo por meio de uma outra coisa ou que foi
concebido de algo com determinado fim. O sentido de uma palavra ou de

 
 
71  
 
uma frase é o que ela quer dizer; o sentido de uma sinal é o que ele quer
indicar (uma direção, o escalão de uma pessoa, etc.) ou o que quer avisar
(um perigo, a hora de levantar, a passagem de pedestres, etc.); o sentido
de um objeto é aquilo para que ele quer servir (tomar a sopa, matar o
inimigo, falar com alguém que está longe, etc.); sentido de uma obra de
arte é o que seu autor quer expressa (uma forma de beleza, a
representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.);
o sentido de uma conduta ou de uma instituição é o que se quer conseguir
por meio dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.)”
(SAVATER, 2001, p. 211)

O sentido, para o autor, está relacionado à intenção que anima alguma coisa, uma
visada dada para esta coisa, como nos exemplos apresentados. Mais um exemplo concreto
que o autor retrata é o tropismo das plantas. A planta o realiza reagindo àquele ambiente
visando a preservação da sua vida com uma intenção específica, que se explica na própria
vida. Diante desta intencionalidade vital, o autor pergunta-se: se as intenções vitais são a
única resposta inteligível à pergunta pelo sentido, como poderia a própria vida ter
“sentido”? Para SAVATER (2001, p. 211), se é próprio do sentido de uma coisa remeter
intencionalmente a outra coisa que não a si mesma, o que a vida quer? A questão que fica
ao leitor então é: qual a saída para pensar o sentido no âmbito da vida?

Savater recorre a Wittgenstein na afirmação: “A pergunta pelo sentido termina onde


termina o mundo, ou podemos continuar perguntando pelo sentido ‘mais além’?” E esta
pergunta expõe o caráter religioso no questionamento sobre o sentido da vida, pois a única
alternativa de resposta para o autor, neste caso, será supra-humana. Na saída supra-
humana, o homem recorre a Deus como solução e aceita que seja Ele o Sentido Supremo.
Aquele que dá sentido a todos os sentidos é um pacto mais conformista ainda com a
escuridão do que responder que o sentido de todos os sentidos é a intencionalidade vital ou
a intenção humana (SAVATER, 2001, pg. 212)

A questão sobre o sentido da vida não é possível de ser respondida. E mais: não é
possível de ser concretamente formulada, pois qual seria a finalidade da vida se todas as
coisas intencionam a própria vida? Como seria possível o sentido da vida em seu conjunto?
Amparado na conclusão que a pergunta sobre o sentido é uma pergunta religiosa, e que o
posicionamento do filósofo na questão não é concluir, mas ampliar a questão e torná-la

 
 
72  
 
filosoficamente válida, Savater caminha para uma exposição que culminará na afirmação
que a vida, em si, não tem sentido e defende que isto não é um absurdo:

“Não é absurdo que a vida em seu conjunto não tenha sentido, porque não
conhecemos intenções fora das vitais, e mais além do âmbito intencional
a pergunta pelo sentido... carece de sentido! (...) Realmente “absurdo” não
é a vida não é a vida carecer de sentido, mas nos empenharmos em que
ela deva tê-lo” (SAVATER, 2001, p. 213)

Ora, se a vida não tem sentido, e o autor não considera isso um absurdo, porque nos
empenhamos em buscar que a vida deve ter sentido? A resposta para esta pergunta em
Savater é que, cada vez que nos perguntamos sobre o sentido da vida, o que queremos
saber é se “nossos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar
honradamente e respeitar o próximo, ou daria na mesma entregar-se a vícios criminosos,
em suma, se nos espera algo além e fora da vida ou só à tumba, como parece evidente”.
Continua o autor:

“Ao constatar esse panorama tão pouco alentador, a única defesa –


segundo Kant – que resta à pessoa decente para salvaguardar sua retidão e
não a considerar um empenho estéril é aceitar a existência de um Deus
que seja o criador moral do mundo, garantindo assim o “sentido”
ultramundano feliz para a boa vontade, tão tristemente retribuída aqui
embaixo” (SAVATER, 2001, p.214).

Savater escolhe responder a questão de Kant diante desse cenário trágico e


assolador recorrendo a Spinoza, que teria chamado o homem de “alegre”. Reforça que o
homem, sabendo ser ele mortal, se desperta para a tarefa de pensar sobre a sua primeira
certeza, a ideia óbvia de que irá morrer. Para o autor, nascem diante desta constatação pelo
menos três sentimentos: medo, avidez e ódio. Neste momento, as respostas possíveis
transitarão diante de aspectos como medo diante das coisas que ameaçam a chegada do seu
fim, seja doença, privações ou qualquer outra questão da vida; a avidez por querer
acumular tudo que possa lhe prover uma certa distância desta morte iminente, como fama
ou riqueza; e o sentimento de ódio contra aqueles que disputam esses bens. Estas três
condições levam o homem à condição do desespero. Neste momento emerge uma realidade
ainda mais palpável para este momento do homem, a certeza de que no agora está vivo e
que, se a morte é invencível, nos damos conta de que alguma forma a derrotamos quando
nascemos. No momento em que o homem constata a presença da vida, há uma exaltação
no coração humano, e aparece a alegria, onde assume o lugar diante do desespero da face
 
 
73  
 
da morte e a condição de algo que vai se desfazendo ao longo tempo caminhando para um
nada. Para Savater:

“A alegria não celebra conteúdos concretos da vida, com frequência


atrozes, mas a própria vida, porque não é a morte, porque não é “não”
mas “sim”, porque é tudo em face de nada. Mas a alegria não é puro
êxtase e, sim, atividade ainda mais: luta contra o mal-estar desesperado da
morte que nos infecta de medo, de avidez e de ódio. Nunca a alegria
poderá triunfar completamente sobre o desespero (dentro de cada um de
nós coexistem o desespero e a alegria), mas também não se renderá a ele.
A partir da alegria tentamos “aliviar” a vida do peso opressor e nefasto da
morte” (SAVATER, 2001, p.217)

A alegria de Sísifo encontra eco em Savater. Se o mundo em que vivemos não pode
acomodar um sentido ou significado próprio, somos nós, enquanto vivemos nele, que
atribuímos significados heterogêneos. Este sentido, como já exposto por Lima Vaz, é algo
que damos à vida e ao mundo em face de todas as questões que nos aprisionam, e de toda a
experiência e noção absurda sobre ela. Como diria Savater (2001): “Vitória significativa e
derrota insignificante porque morre o indivíduo, mas não o sentido que quis dar à sua
vida... esse fica para nós, seus companheiros de humanidade”.

A vida não carrega em si um sentido geral, não pode apontar um sentido que
compreenda toda a sua definição. Aliás, transitar por ela é viver no limite da experiência
do absurdo, buscando alternativas para superar esta falta de sentido. Uma nota é importante
neste momento: a pergunta sobre o sentido da vida, tal como a definição do homem e
presença na cultura do primeiro capítulo, é ilustrado na experiência. A questão sobre o
sentido da vida acompanha neste trabalho o mesmo movimento do capítulo um. É gerado
pela pergunta de uma observação quase aleatória. É fundamentada nos pressupostos da
filosofia e, neste momento, será retomada na experiência sensível do homem. Se o homem
pós-moderno de Lima Vaz vive um não-sentido, e a experiência desse homem é reforçada
por Camus como um não-sentido inerente à condição humana, a saída de Savater para a
possibilidade de um sentido não geral, mas específico, merece atenção ao final do capítulo
e será explorado em uma experiência limite do homem, aquela que seria, possivelmente, a
experiência mais indigesta de não-sentido do homem pós-moderno: O limiar de
Auschwitz.

 
 
74  
 
2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ

Jaanne Marie Gagnebin, em sua obra Lembrar, escrever e esquecer, propõe uma
reflexão sobre a importância da escrita rememorativa, como fonte de revisitar o passado e,
de algum modo, reescrever o presente. O quinto ensaio de sua obra está intitulado “Após
Auschwitz”, segundo a própria autora fruto de um colóquio sobre a temática com outros
colegas. No entanto, uma sentença em especial chama a atenção na discussão técnica sobre
a escrita, a percepção adquirida pela autora sobre esse silêncio na história recente da
humanidade.

“A problemática do colóquio parisiense era, portanto, profundamente


prática e atual; não se tratava de uma celebração piedosa das vítimas do
Holocausto, mas sim de sua rememoração, no sentido benjaminiano da
palavra, isto é, de uma memória afetiva que transforma o presente. No
entanto, as contribuições dos teóricos da linguagem e da literatura foram
decisivas, mesmo que a questão fosse tão prática e pragmática. Esse
colóquio acabou de me convencer que “Auschiwitz” – ou, ainda, “Após
Auschiwitz” – não representa somente um episódio dramático da história
judaica ou da história alemã, mas é um marco essencial e pouco
elaborado da história ocidental” (GAGNEBIN, 2006, p.59)

O colóquio foi, a partir do pensamento da autora, o movimento de irromper com um


silenciamento de não-sentido de Auschwitz, bem demarcado não apenas como um
problema da história alemã com o povo judeu, mas de toda a humanidade. Tornar esse
tema audível, no difícil movimento de rememorar essa lacuna na história humana, é uma
tarefa indigesta, mas é possível que terminado este trabalho de mergulho no Holocausto
encontremos importantes chaves para a questão do sentido da vida. Há muitos olhares que
podemos lançar sobre os muros de Auschwitz. Dois deles foram escolhidos para nossa
investigação, por um motivo simples: os questionamentos ancorados no sentido da vida e
alternativas respostas ancoradas na experiência. São eles: Primo Levi e Viktor Frankl.

A discussão em Primo Levi para nossa questão, parece ser a mais indigesta das
duas – se isso, de algum modo, é possível. O autor introduz sua obra É isto um homem?
reforçando que “já é bem conhecido do leitores de todo o mundo com referência ao tema
doloroso dos campos de extermínio” e que este trabalho não havia sido escrito “para fazer
novas denúncias; poderá antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos
aspectos das alma humana” (LEVI, 1998, p.07). A experiência do escritor italiano no

 
 
75  
 
campo de concentração foi retratada, como as demais descrições conhecidas, na eminência
da morte. Se há algo de comum nas experiências registradas é a certeza de que em todo o
tempo a possibilidade da morte está à espreita, seja por doença ou simples
desentendimento com um oficial da SS. O autor avalia que, na experiência limite de
contato presente com a morte, “cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a
felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que
também é irrealizável a infelicidade completa” (LEVI, 1998, p. 17). Na perspectiva de
quem está diante da morte, sabendo que suas chances são poucas e que a resposta é mais
provável é a de morrer – a construção teórica de Camus parece verossímil o bastante. O
momento presente não permite alimentar grande esperanças sobre a realidade futura, ainda
mais no caso de Primo Levi que, das 45 pessoas que estavam em seu vagão quando
desembarcou em Auschwitz, apenas quatro tornaram a ver suas casas. Ele avalia que seu
vagão foi um dos mais afortunados. Na chegada a Auschwitz, o silêncio que ecoaria
posteriormente nesta lacuna da humanidade, é sentido por Levi:

“Tudo era silêncio, como num aquário e como em certas cenas de sonhos.
Teríamos esperado algo mais apocalíptico, mas eles pareciam simples
guardas. Isso deixava-nos desconcertados, desarmados. Alguém ousou
perguntar pela bagagem, responderam: “Bagagem depois; outros não
queriam separar-se da mulher, responderam: “Depois, de novo juntos”;
muitas mães não queriam separar-se dos filhos; responderam-se: “Está
bem, ficar com o filho”. Sempre com a pacata segurança de quem apenas
cumpre com sua tarefa diária; mas Renzo demorou um instante a mais ao
se despedir de Francesca, sua noiva, e derrubaram-no com um único soco
na cara. Essa também era a tarefa diária” (LEVI, 1998, p.21)

E o vazio do não-sentido, nas primeiras horas apareceria para Primo Levi, da


seguinte forma:
“Isto é o inferno. Hoje, em nossos dias, o inferno deve ser assim: uma sala
grande e vazia, e nós, cansados, de pé, diante de uma torneira gigante
gotejante mas que não tem água potável, esperando algo certamente
terrível, e nada acontece, e continua não acontecendo nada. Como é
possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos.
Alguns sentam no chão. O tempo passa, gota a gota”(26)

Logo na chegada ao Auschwitz, o “padrão” de relação com os agentes da SS é


estabelecido. A cada desvio, receber um soco na cara era ação mínima de repressão. A
chegada ao campo reflete muitas cenas do universo em que estes homens entrariam: a
palavra Auschwitz já era sinônimo de medo. Aos que de dentro de um vagão avistavam a
placa com o nome do campo, não seria um mero sinal a respeito de um lugar, mas um
 
 
76  
 
conjunto de significados de “imagens horripilantes”. O vazio existencial daquela
experiência apresentava-se já nas primeiras horas. Levi a compara com uma experiência de
morte, no som ensurdecedor de um torneira de água não potável em uma sala de seres
(humanos? A pergunta de Levi no tema do livro começa a ganhar forma) sedentos. A
chegada a Auschwitz também é tema em Viktor Frankl. Neste momento do texto, a
contribuição do autor será útil para reforçar esta visão:

“De repente, do amontoado de gente esperando ansiosamente no vagão,


surge um grito: Olha a tabuleta: Auschiwitz” Naquele momento não
houve coração que não se abalasse. Rodos sabiam o que significava
Auschiwitz. Esse nome suscitava imagens confusas mas horripilantes de
câmara de gás, fornos crematórios e execuções em massa.”(FRANKL,
2008, p.23)

Se Levi, viu a violência logo na entrada do campo, para Frankl não foi diferente:
“Sobre os corpos nus descem chicotes. Somos levados para outra sala.
Então raspam o pelo de cima a baixo. Não somente da cabeça; não fica
um pelo no corpo inteiro. Dali somos tocados para dentro dos chuveiros
Entramos mais uma vez na fila. Um prisioneiro mal reconhece o outro.
Mas com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros
realmente sai água...” (FRANKL, 2008, p.39)

Um chuveiro é um chuveiro para qualquer pessoa livre, sempre sinônimo de


conforto. Não é assim em Auschwitz. O campo começa para Frankl e Levi a construir um
universo completamente novo (e horripilante) de significação. Aquilo que para os homens
livres é conforto, para os prisioneiros é sinônimo de morte. O alívio de Frankl é descobrir
que do chuveiro, apesar de gelada, sai água... não gás. As tintas que vão desenhando o
cenário de Auschwitz vão evidenciando mais uma hipótese sobre o porquê é uma lacuna na
nossa história recente. O efeito simbólico em Auschwitz é a experiência onde todos (ou
quase todos) os objetos de significação, que aparentemente são comuns às pessoas livres,
adquirem outras formas para os prisioneiros, e há ali dezenas de símbolos de sofrimento e
dor. Auschwitz não é uma máquina de destruição apenas na câmara de gás, mas um
exercício permanente de mutilação da alma humana. Se imaginarmos, como sugere Levi,
um homem privado não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua
roupa, tudo enfim, rigorosamente tudo que possuía, ele será um vazio, reduzido a puro
sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo,
muitas vezes perde também a si mesmo (LEVI, 1998, p.33). Se há uma dificuldade latente

 
 
77  
 
em atribuir sentido à vida sabendo elementos mínimos de identidade, essa tarefa torna-se
ainda mais difícil quando esta lhe é retirada. A perda de identidade em Auschwitz recebe
uma tintura diferenciada nas obra dos autores. Primo Levi em mais de um momento da sua
obra lembra momentos em que sua identidade vai se perdendo aos poucos, como o gotejar
inicial da torneira na sala vazia na chegada ao campo de concentração. Refere-se aos
colegas de campo inúmeras vezes como corpos, esqueletos (p.67), rostos pálidos, bonecos
sórdidos, miseráveis e fantasmas (p.32), relatando a respeito de si mesmo “Meu nome é
174.517” (p. 33). Ele continua a descrição com uma pergunta:

“eles nos ouvem falando muitas línguas diferentes que não compreendem
e que lhes soam grotescas, como gritos de bichos; veem-nos escravizados
ignobilmente, sem cabelo, sem honra nem nome, a cada dia espancados, a
cada dia mais abjetos, e nunca leem nosso olhar uma luz de revolta, de
paz, ou de fé. Sabem que somos ladrões e indignos de confiança, sujos,
esfarrapados, esfomeados, e, trocando o efeito pela causa, julgam-nos
merecedores da nossa abjeção. Quem poderia distinguir nossos rostos?”
(LEVI, 1998, p.179)

No tocante à perda da identidade, o eco em Viktor Frankl é o mesmo na referência


a ser reconhecido por um número:
“cada qual então representa pura e simplesmente uma cifra, pois na lista
constam apenas os números dos prisioneiros. Afinal de contas, é preciso
considerar que em Auschiwitz, por exemplo, quando o prisioneiro passa
pela recepção, ele é despojado de todos os seus haveres e assim também
acaba ficando sem nenhum documento, de modo que, quem quiser pode
simplesmente adotar um nome qualquer, alegar outra profissão e etc.”
(FRANKL, 2008, p. 17)

A perda de identidade em Auschwitz é um processo degenerativo, todo o universo


de significação do homem construído até ali parece ser minado dentro daqueles arames
farpados. Isso suscita uma pergunta para o nosso trabalho. Mesmo com a probabilidade de
não darmos conta de explorá-la, ela precisa ser feita, ainda que para um segundo texto de
exploração. Há um movimento reverso em Auschwitz de animalização, e não seria absurdo
pensá-lo nos moldes de como foi tratada a diferença entre um homem e um animal até aqui
no universo simbólico. O processo de animalização como uma perda de sentido por
intermédio dos símbolos, e o abandono de uma multiplicidade por universos mais restritos,
parece recuar a experiência humana à pantomima de sinais. Abrindo uma possibilidade
para uma questão reversa: se sabemos que passamos do animal para o homem pela
presença simbólica, é possível o caminho reverso à medida que o universo humano vai

 
 
78  
 
recuando a uma pantomima de sinais mais restritos? Talvez fosse uma questão mais
profunda para um segundo trabalho, mas a hipótese não parece absurda, principalmente se
levarmos em consideração este relato de primo Levi:

“justamente porque o campo é uma grande engrenagem para nos


transformar em animais, não devemos nos transformar em animais; até
num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar
nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos por salvar ao
menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos,
despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a
uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos
esforçar por defende-la a todo custo, justamente porque é a última: a
opção de recusar nosso consentimento. Portanto, devemos nos lavar, sim;
ainda que sem sabão, com essa água suja e usando o casaco como toalha.
Devemos engraxar o sapato, não porque assim reza o regulamento, e sim
por dignidade e alinho Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não
em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos,
para não começarmos a morrer.” (LEVI, 1998, p. 55)

Se um processo de animalização é dado aos prisioneiros, lampejos do universo


simbólico surgem, e serão destacados, começando a apontar as diferenças dos pensamentos
dos dois autores. A arte é uma forma simbólica profundamente debatida por Cassirer como
universo de significação. O autor alemão afirma que: “a arte nos proporciona uma imagem
mais rica, mais viva e colorida da realidade, e uma compreensão mais profunda de sua
estrutura formal” (CASSIRER, 1994, p.278). Para Victor Frankl, ainda diante do massacre
de Auschwitz, a arte foi descrita com base nestas estruturas:

Apresentam-se algumas canções e recitam-se poemas, contam-se ou


apresentam-se cenas cômicas, ou mesmo sátiras avulsivas à vida do
campo, tudo para ajudar a esquecer. E realmente ajuda! Ajuda a tal ponto
que alguns prisioneiros comuns, não privilegiados, vêm para esse teatro,
mesmo exaustos da labuta do dia, e mesmo perdendo por isso a
distribuição da sopa (...) Durante o intervalo podíamos nos reunir na sala
de máquinas, ainda em construção; na entrada cada um recebia uma
concha de sopa rala. Enquanto a sorvíamos sequiosamente, um
companheiro subia num tonel e cantava árias italianas. Enquanto para nós
isso representava um deleite musical, ele tinha garantida uma ração dupla
de sopa, “do fundo”, ou seja, até com ervilhas21 ”(FRANKL, 2008, p.59)

                                                                                                                                   
21
 As “famosas ervilhas” também são lembradas em Primo Levi. Seriam meras ervilhas, se não fosse a grande
símbólica de recompensas para os prisioneiros e motivição para o trabalho: “Sabemos que não é a mesma
coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições
de calcular, na base da capacidade dos diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente que entramos na
fila.”(LEVI, 1998, p.43)  
 
 
79  
 
Primo Levi revalida a polissemia de significados dos símbolos, sua percepção sobre
as músicas entoadas no campo de concentração não parece ecoar em Viktor Frankl:

“Pela primeira vez desde que estou no Campo, a alvorada pega-me no


meio de um sono profundo; acordar é regressar do nada. Na hora da
destruição do pão ouve-se ao longe, no ar escuro, a banda de música que
começa a tocar; são companheiros sadios que saem, formados, para o
trabalho (...) Entreolhamos uma cama a outra; sentimos todos que essa
música é infernal” (LEVI, 1998, p.70)

A experiência limite do campo de concentração, já recebeu o que acreditamos ser


até aqui dados suficientes para uma compreensão de como parte da vida humana era
articulada em um ambiente dado como expressão do que chamamos não-sentido. No
entanto, o sentido (como mostrado em diversos momentos até aqui) está presente em uma
multiplicidade de ações, em universo mais restrito, em muitos momentos com
significações de horror, mas sempre presente na narrativa de Primo Levi e Victor Frankl. A
abrangência desse sentido possivelmente é o grande divisor de águas no pensamento dos
autores, com a expressão de um Primo Levi mais tributário ao pensamento de Albert
Camus no homem absurdo e ao de Fernando Savater. Numa análise no imediatismo dos
fatos, Levi retrata com precisão a experiência da ausência de um sentido geral que
acomode a totalidade da experiência humana e afirma que:

“A convicção de que a vida tem um objetivo esta enraizada em cada fibra


do homem; é uma característica da substância humana. Os homens livres
dão a esse objetivo vários nomes, e muitos pensam e discutem quanto à
sua natureza. Para nós, a questão é mais simples. Hoje, e aqui, o nosso
objetivo é aguentarmos até a primavera. No momento, não pensamos em
outra coisa. Depois deste objetivo não há, por enquanto, outro” (LEVI,
1998, p.102)

Ou ainda, afirmando o que possivelmente seria por Sísifo em Camus, sem


esperança futura, mas o contato com a realidade imediata, o almoço que se aproximava
naquela hora do dia:

“quando volto ao trabalho, vejo passar os caminhões de rancho, o que


significa que são dez horas; já é alguma coisa, o intervalo do meio-dia já
se vislumbrava nas brumas do futuro e isso nos dá força”(LEVI, 1998,
p. 98)

Para Viktor Frankl, a possibilidade de um sentido de vida mais abrangente que


abarque a experiência humana como um todo também não parece possível. Antes, o

 
 
80  
 
convite do autor para a experiência trágica do campo de concentração assume um convite
mais próximo de uma experiência de esperança e maior que um instante momentâneo:

“Para nós no campo de concentração, nada disso era especulação inútil


sobre a vida, Essas reflexões eram a única coisa que ainda podia ajudar,
pois esses pensamentos não nos deixavam desesperar quando não
enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava
já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes
colocada, ingenuamente, referindo-se a nada mais do que a realização de
um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos
importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a
morte e assim não somente atribui sentido à “vida, mas também ao
sofrimento e à morte. Se era o sentido pelo qual estávamos lutando”.
(FRANKL, 1998, p.103)

Para Victor Frankl, a pergunta do sentido da vida também está enraizada em cada
célula da experiência humana e reforça ainda “que a vida tem um sentido potencial sob
quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis.” (FRANKL, 2008, pg.10). Quando se
refere a seu livro, reforça a importância da temática que é questão central neste trabalho, a
partir de uma evidência também pouco empírica ou fundamentada filosoficamente: o fato
de seu livro ser uma expressão da miséria dos nossos tempos. Se centenas de milhares de
pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida,
deve ser uma questão que as está incomodando muito (FRANKL, 2008, pg. 09).

Diante do caos de Auschwitz, Primo Levi e Viktor Frankl acompanharam o que,


possivelmente, foi o maior silêncio da história recente da humanidade, quando ambos
deram voz a ela com suas experiências escritas ao impactos que devastam a alma humana.
Ainda assim, ali, na experiência limiar da experiência do não-sentido, trouxeram o homem
simbólico em suas expressões. Se é verdade que a vida não tem um sentido como foi
levantado na questão inicial deste trabalho, e que o homem é envolto do sentimento do
absurdo em momentos mais frequentes do que gostaria, uma coisa é possível de ser
pensada: na impossibilidade da vida ter um sentido, no homem simbólico, ela assume a
possiblidade de sentidos, ainda que seja no limiar da experiência humana de Auschwitz:

“Aninhado ali, eu comtemplava – por entre a vinheta obrigatória do


arame farpado – os vastos campos verdejantes e floridos, as distantes
colinas azuis da paisagem bávara. Ali eu sonhava os sonhos de minha
saudade e enviava meus pensamentos para bem longe, para o norte e
nordeste, onde supunha pessoas amadas” (FRANKL, 2008, pg.71)

 
 
81  
 

 
 
82  
 
3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR

3.1 LINGUAGEM E FALA EM CASSIRER

De posse das construções feitas até o momento, no capítulo 3 encontraremos a


discussão do sentido da vida e da rede simbólica representada na história de Helen Keller.
Para chegarmos a este olhar em busca de uma conclusão sobre a temática trabalhada até
aqui, dois caminhos parecem ser necessários: a clareza do conceito de linguagem que o
autor Ernst Cassirer desenvolve, e o ganho de profundidade do processo de entrada da Srta.
Keller na rede simbólica pela forma simbólica da linguagem. Lembrando que a questão do
sentido da vida e do animal simbólico continua direcionando as investigações, neste
momento serão investigadas a partir do homem simbólico na busca pelas expressões do
sentido da vida em Helen Keller, na possibilidade de encontrar eco com as conclusões do
capítulo dois: não é possível ao homem articular um único sentido para a vida, mas
sentidos múltiplos em um tempo presente.

Para um ponto de partida, consideramos Ernst Cassirer assentado sobre as estruturas


da sua antropologia filosófica defendida até aqui, pois ele insere a sua discussão na forma
simbólica da linguagem abrigada na fala humana como aspecto organizador. O autor inicia
sua discussão em paralelo ao mito, no que chama de exercício constante do homem
primitivo que é a tentativa de organizar ambos em um sentido único: “sempre que
encontramos o homem, vemo-lo em possessão da faculdade da fala e sobre a influência da
função de fazer mitos. Logo é tentador, para uma antropologia filosófica, colocar essas
duas características especificamente humanas sob um mesmo título” (CASSIRER, 1994,
p.180)

Na busca por expressões do organizador comum, a rede simbólica, Cassirer parte do


argumento que a linguagem e o mito operam como parentes próximos, arriscando uma
impossibilidade de separar um do outro. Para ele, uma análise antropológica teria um apelo
porque colocaria ambos sob um mesmo título, mas avalia que, embora sejam parecidos,
referem-se a dois “brotos de uma mesma raiz”, pois vemos o homem primitivo com a
faculdade da fala sob a influência de fazer mitos. O autor avalia que algumas tentativas
foram feitas no sentido de unificar os dois temas, e aponta o exemplo de F. Max Muller,

 
 
83  
 
que desenvolvera uma teoria em que o mito era subproduto da linguagem. O primeiro
movimento proposto por Cassirer em seu texto é separar estes universos a partir da
perspectiva do homem primitivo. Para ele a linguagem – por sua própria natureza é
metafórica, sendo incapaz de descrever coisas diretamente – recorre a modos indiretos de
descrição, a termos ambíguos e equívocos. Ele acredita ser este o eixo de ligação a qual se
ancora a similaridade proposta por Max Muller. Para o autor, mito e linguagem atuam com
similaridade por uma questão natural, no seguinte exemplo avalia a ação primária da
criança no trato da linguagem:

“Muito antes de aprender a falar, a criança já descobriu outros meios


mais simples de se comunicar com as pessoas. Os gritos de desconforto,
dor e fome, medo e susto que encontramos em todo o mundo orgânico
começam a assumir uma nova forma. Deixam de ser reações instintivas
simples, pois são empregados de maneira mais consciente e deliberada.
Quando é deixada sozinha, a criança exige por sons mais ou menos
articulados a presença da babá ou da mãe, e percebe que essas exigências
surtem o efeito desejado. O homem primitivo transfere essa primeira
experiência social elementar para a totalidade da natureza”. (CASSIRER,
1994, p. 183)

A criança passa a responder ao mundo que a rodeia, não mais com reações fisiológicas,
insere em suas ações um processo simples de reflexão que precede sua ação. Na visão de
Cassirer, o homem primitivo estabelece com a natureza de forma total a mesma relação
que a criança, como a mãe na mobilização (ou manipulação) na direção de um favor ou
qualquer outro efeito necessário diante dos perigos visíveis e invisíveis aos quais é
submetido. O homem primitivo, enxergando a natureza como interligada, suscita a função
da palavra mágica para superar os perigos. Por meio da palavra mágica, o homem encontra
uma maneira de evocar os poderes da natureza de uma maneira específica e manipulá-la a
favor de seus interesses. No entanto, o homem descobre que a natureza é inexorável, não
porque não atendia as suas exigências, mas porque não entendia a linguagem que ele
falava. Para o autor, há nesse momento uma transição da relação do homem com a palavra.
Ora, se o efeito da palavra mágica não era mais o mesmo, se provavelmente (na visão de
Cassirer) o homem se frustraria com isto e não teria aberto outro caminho se não
encontrasse nesta relação com a linguagem uma possibilidade mais promissora, a partir
deste momento surge para o homem a palavra com uma função semântica. Já não é mais
mágica, pois a palavra deixa de ser dotada de poderes misteriosos, não tem mais influência

 
 
84  
 
física ou sobrenatural direta, não pode interferir na natureza, nem modificá-la e, muito
menos, mobilizar forças sobrenaturais. Mas, como reforça Cassirer, nem por isso deixa de
perder o seu poder, na função semântica. A expressão que o autor utiliza é que “o Logos
torna-se o princípio do universo e o primeiro princípio do conhecimento humano”
(CASSIRER 1994, p.184).

A função simbólica, por meio da linguagem, é o processo que leva o homem de uma
“palavra de manipulação” para a semântica das palavras, a potência física da palavra na
modificação da natureza perde força para um ganho de articulação lógica. Como o fez em
outros momentos de sua obra, o autor alemão retoma o histórico de uma temática a fim de
ampliar a visão sobre o problema estudado. Nesta altura do seu argumento recorre a
Heráclito como marco desta transição do homem da palavra mágica a semântica em
direção ao Logos.

“Não é no mundo material, mas no humano, que está a chave para uma
interpretação correta para a ordem cósmica. Neste mundo humano, a
faculdade da fala ocupa um lugar central. Portanto, precisamos entender o
que a fala significa para entendermos o “significado” do universo. Se
deixarmos de encontrar esta abordagem – a abordagem por meio da
linguagem em vez de pelos fenômenos físicos – não enxergamos a porta
da filosofia” (CASSIRER, 1994, p.185).

Há uma forma de relação do homem com o mundo de forma “não material”. Na relação
que o homem estabelece com a fala não é diferente. Logo, observar a fala não é apenas o
fenômeno físico de uma mera emissão de sons, mas uma perspectiva mais abrangente que
precisa de atenção. Para Cassirer (1994), esta reflexão para além de uma experiência
antropológica já está presente no argumento de Heráclito: o “logos” não é a expressão
confinada nos limites do nosso mundo humano, pois carrega em si uma verdade cósmica
universal. A diferença neste momento é que, em vez de ser um poder mágico, como queria
o argumento anterior, a palavra é entendida em sua função semântica e simbólica, pois
carrega em si uma carga de significado para além de uma realidade funcional, imediata.
Para CASSIRER (1994), neste momento a filosofia grega passa de uma filosofia da
natureza para uma filosofia da linguagem, o que inaugura uma nova realidade com grandes
dificuldades. Como continua o autor, é possível que haja algo mais desconcertante e
controvertido que o “significado do significado”. Se é verdade que até hoje psicólogos,

 
 
85  
 
linguistas e filósofos sustentam opiniões absolutamente divergentes sobre o significado, a
filosofia grega não podia, para o autor, enfrentar diretamente este problema em todos os
seus aspectos. Algumas verdades emergem para esta teoria. A primeira é que o sentido
deve ser explicado em termos de ser, pois seria o que liga o ser ou substância à realidade.
Logo, uma palavra não poderia significar uma coisa se não houvesse uma identidade
parcial entre as duas. Para o autor, teremos assim uma teoria que conseguirá abranger uma
teoria geral do conhecimento, mas apresentará limitações para a formulação de uma
filosofia da linguagem:

“A ligação entre o símbolo e seu objeto deve ser natural, e não


simplesmente convencional. Sem essa ligação natural, uma palavra da
linguagem humana não poderia cumprir sua tarefa; tornar-se-ia
ininteligível. Se admitirmos esse pressuposto, que tem sua origem mais
em uma teoria geral do conhecimento que em uma teoria da linguagem,
estaremos imediatamente diante de uma doutrina onomatopeica. Só esta
doutrina parece capaz de lançar uma ponte entre os nomes e as coisas.”.
(CASSIRER, 1994, p. 187)

No entanto, Cassirer não demora a dizer que esta teoria começa a ruir na primeira
tentativa de utilizá-la sob a ironia de Sócrates. Segundo o autor, Platão tentara embasar seu
argumento (no diálogo Kratylus) de que toda linguagem tem origem na imitação de sons de
maneira ingênua. A objeção ao argumento de Platão nasce do movimento de análise das
palavras da linguagem comum, e da percepção de que na maioria das vezes há uma lacuna
entre sons e seus objetos. Embora ela também pudesse ser removida na ideia de que a
linguagem humana ao longo do tempo sofre mudanças e deterioração e, para não nos
acomodar nesta ideia, Cassirer (1994) propõe um caminho de volta à origem do vínculo
que une os sons a seus objetos e encontra a etimologia. Segundo o autor, para regressarmos
ao étimo, a forma verdadeira e original de cada termo, em um movimento que se firmou
como um dos princípios da filosofia da linguagem e, até o século XIX, não recebera
nenhum tipo de tratativa científica, o autor retoma as formulações gregas em Heráclito e
Platão e estende o “caminho” até os sofistas. Para o autor, os sofistas foram os primeiros a
empregar uma tratativa mais sistemática dos problemas gramaticais e linguísticos, em que
uma teoria da linguagem teria de resolver tarefas mais urgentes, tais como “ensinar-nos a
falar e a agir no nosso mundo social”, perpassando pela utilidade nas lutas políticas. Isso
culminaria na ideia de que os nomes não estariam apenas a serviço de expressar “a

 
 
86  
 
natureza das coisas, sua verdadeira tarefa não é descrever as coisas, mas despertar emoções
humanas; não transmitir meras ideias ou pensamentos, mas incitar os homens a certas
ações” (CASSIRER, 2004, p.188)

Após a construção deste caminho até aqui, o autor conclui um caminho de três
aspectos da função e do valor da linguagem: o mitológico, o metafísico e o pragmático,
afirmando que nenhum deles parece apontar a direção correta, por deixar de apresentar o
que considera a característica mais evidente da linguagem: “as expressões humanas mais
elementares não se referem a coisas físicas, nem são arbitrárias, mas são expressões
involuntárias de sentimentos, interjeições e exclamações humanas” (CASSIRER, 1994,
p.189-190).

O autor alemão aponta que Demócrito foi o primeiro a propor que a fala humana
tem origem em certos sons de caráter meramente emocional, acompanhado por seus
sucessores Epicuro e Lucrécio. As ideias ali desenvolvidas exerceram influência sobre a
teoria da linguagem até os dias de hoje. Finalmente, para Cassirer, do ponto de vista
científico, a fala humana pode ser reduzida a um instinto fundamental implantado pela
natureza em todas as criaturas vivas. Exclamações violentas – medo, raiva, dor e alegria –
não são uma propriedade específica do homem, pois as encontramos por toda parte do
mundo animal. Isso torna plausível a causa social da fala ser atribuída a uma causa
biológica geral. Se seguirmos Demócrito, “a semântica deixa de ser uma província
separada; torna-se um ramo da biologia e da fisiologia” (CASSIRER, 1994, p.191). No
entanto, Cassirer está desde o início de sua obra ocupado a distinguir elementos da
atividade humana sem comparações com o reino animal. Para o autor:

“os criadores das teorias biológicas sobre a origem da linguagem


deixaram de ver o bosque por causa das árvores. Partiram de um
pressuposto de que um caminho direto liga a interjeição à fala. Mas isso é
evadir a questão, e não solucioná-la. Não era apenas o fato, mas toda a
estrutura da linguagem, que precisava de uma explicação. Uma análise
dessa estrutura revela uma diferença radical entre a linguagem emocional
e a proposicional. Os dois tipos não estão no mesmo nível (...) não temos
nenhuma prova psicológica de que algum animal atravessou jamais a
fronteira entre linguagem preposicional e a emocional” (CASSIRER,
2014, p.192).

 
 
87  
 
A passagem da linguagem proposicional para a linguagem emocional é o limiar das
expressões animais para a atividade humana. Um animal, por mais articulada que seja sua
formulação de sons e gestos em distinção e abrangência, para expressar sentimentos não
possui a capacidade de designar ou descrever um objeto. A fala, como característica da
atividade humana, permite articular os sentidos das palavras, objetivar e sistematizar no
que seria, para Cassirer (1994), a tarefa principal e mais importante da linguagem humana.
Diante da comparação com os animais, Susanne Langer insere-se na discussão
complementando a visão de Ernst Cassirer sobre a limitação dos animais que
impossibilitam uma semelhança direta com a atividade humana:

“Os animais, por outro lado, são todos destituídos de fala. Eles se
comunicam sem dúvida; mas não por algum método que possa comparar-se
ao falar. Expressam emoções, indicam seus desejos e controlam o
comportamento um dos outros por meio de sugestão. Um macaco tomara
outro pela mão e o arrastará a um jogo ou para sua cama; estenderá a mão
para implorar comida, e às vezes, recebê-la-á. Mas até os macacos
superiores não apresentam qualquer indício de fala (...)Se os macacos
realmente utilizassem sons definidos semelhantes a palavras para
simbolizar sentimentos e possivelmente também ideias, seria difícil negar
seu poder de fala. Mas todas as descrições de seu comportamento mostram
que eles empregam tais sons apenas para indicar as sensações e talvez os
desejos. Suas expressões vocais de amor são sintomas de uma emoção, não
o seu nome, nem qualquer outro símbolo que represente (como o coração
em um cartão de namorados). (LANGER, 2004, p.112- 113)

A função indicativa dos animais no movimento de sons relembra a discussão do


primeiro capítulo sobre a diferença entre símbolos e sinais, suscita a diferença substancial
do que seria uma função signa da palavra para uma função simbólica. O animal emite sons
que reagem às suas emoções, diferentemente do ser humano que responde aos seus
sentimentos – como no exemplo do amor – em uma forma simbólica. Para a autora, esta
passagem da função sígnica de uma palavra a sua função simbólica é gradativa, sendo um
resultado da organização social, um instrumento que se mostra indispensável uma vez
descoberto, e que se desenvolve por meio do uso bem sucedido (id p.43). A verdadeira
linguagem começa apenas quando um som mantém a respectiva referência além da
situação de sua pronunciação instintiva: por exemplo, quando um indivíduo pode dizer não
apenas: “meu amor, meu amor!”, mas também: “Ele me ama – ele não me ama”
(LANGER, 2004, p.113). O amor assume diferentes expressões e significados, não mais
como uma palavra trancada em seu objeto. Langer (2004) desenvolveu três critérios que
 
 
88  
 
considera substancial para configurar a linguagem como tal. Em primeiro lugar, a ideia de
que toda linguagem possui um vocabulário e uma sintaxe, e a partir das regras
estabelecidas pela sintaxe será possível construir símbolos com novos significados
resultantes. Em segundo lugar, em uma linguagem, algumas palavras equivalem a
combinações inteiras de outras palavras, de modo que a maioria dos significados é
exprimível de várias maneiras diferentes. Em terceiro, podem existir palavras alternativas
para o mesmo significado.

A exploração das palavras no mundo da fala humana, é uma relevante demarcação


para uma investigação da experiência de Helen Keller, que será tratada posteriormente o
quanto a polissemia das palavras e seus significados serão centrais para o encontro da
forma simbólica da linguagem e o sentido da vida. Nomear o mundo, possivelmente seja
um dos traços mais característicos humanos na atribuição de sentidos ao universo que o
rodeia, vimos o poder da palavra em seu sentido semântico como fonte desta afirmação.
Susanne Langer mais uma vez é evocada para consolidar o caminho até aqui:

“Por que possuem os homens linguagem? A resposta penso, é que todos


os homens a possuem porque todos têm a mesma natureza psicológica,
que alcançou, na raça humana inteira, um estágio de desenvolvimento em
que o uso de símbolos e a feitura de símbolos constituem atividades
dominantes. Se houve começos da linguagem ou poucos, ou mesmo
apenas um, não podemos dizer; mas onde quer que o primeiro estágio do
falar, o emprego de algum símbolo denotativo, foi atingido, ali ocorreu
provavelmente o desenvolvimento da fala com velocidade fenomenal.
Pois a noção de dar um nome a algo é a mais ampla idéia gerativa jamais
concebida” (LANGER, 2013, p.146)

Na direção de explorar o caminho humano na nomeação do universo como fonte de


sentido, a história de Helen Keller aparece no que sugere ser uma síntese de rede
simbólica, através da forma simbólica da linguagem, e sentido da vida.

 
 
89  
 
3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO

A construção exposta até este momento sobre a rede simbólica e o sentido da vida
aponta para um caminho ainda pouco integrado. Afinal, saber que o homem é um animal
simbólico que em tudo busca atribuir sentido também nos levou a um caminho
aparentemente oposto, guiado pela impossibilidade de se atribuir um sentido geral para a
vida que transcenda a experiência humana. Uma conclusão até aqui contribuiu para
propormos um caminho de conexão, a personagem chave da experiência simbólica descrita
por Cassirer, Helen Keller, cria uma hipótese como um exemplo claro do homem
simbólico imergindo de uma experiência semelhante a animal (aos moldes de Cassirer)
para a rede simbólica, a abundância de sentidos e como consequência a conquista do
humano.

Vimos que a forma simbólica da linguagem está enraizada na natureza humana


desde os povos mais primitivos, as sistematizações e objetivações da fala humana
configuraram a atuação humana no processo de nomear o mundo que o rodeia e estabelecer
significados e nomes distintos para cada objeto de representação. A entrada no mundo
humano da linguagem pela fala é para Cassirer (1994) um processo maior que de aprender
um certo vocabulário. Se a criança precisasse apenas imprimir em sua mente e em sua
memória uma grande massa de sons artificiais e arbitrários, isso seria um processo
puramente mecânico. A criança quando aprende que tudo tem um nome dispara uma busca
constante para objetivar o mundo:

“Ao aprender a dar nomes às coisas, a criança não se limita a acrescentar


uma lista de sinais artificiais ao seu conhecimento prévio de objetos
empíricos prontos. Aprende antes a formar conceitos desse objetos, a
entrar em acordo com o mundo objetivo. A partir de então, a criança
passa a estar em terreno mais firme. Suas percepções vagas, incertas e
flutuantes e seus sentimentos confusos começam a assumir um novo
aspecto. Pode-se dizer que eles se cristalizam em torno ao nome como um
centro fixo, um foco para o pensamento. Sem ajuda do nome, cada novo
avanço, feito no processo de objetivação correria sempre o risco de
perder-se no momento seguinte” (CASSIRER, 1994, p. 217–218)

A conclusão de Cassirer nos leva para a personagem protagonista do autor, e


consequentemente deste trabalho, Helen Keller. A então garota, nos dá o privilégio de
contemplar esse processo de objetivação do mundo, comum a crianças nos primeiros anos

 
 
90  
 
de vida, acontecer por alguém que não experimentou esse processo natural em seus
primeiros passos na fala. Em Cassirer (19944), a ideia é defendida na perspectiva de que as
crianças frequentemente ficam muito confusas ao saber pela primeira vez que nem todo
nome de objeto é um nome próprio, que a mesma coisa pode ter nomes diferentes em
lugares diferentes. Elas tendem a achar que uma coisa “é” aquilo que chamam. Mas este é
apenas o primeiro passo. Toda criança normal aprende logo que pode usar vários símbolos
para expressar o mesmo desejo ou pensamento. No caso de Helen Keller, segundo
BERGER,22 a menina encontrou a linguagem vinda de um universo de fora dela. Ou seja,
ao contrário das crianças que escutam a linguagem e instintivamente associam ao seu
mundo as palavras e seus significados, para Helen Keller a linguagem aparece como um
objeto estranho não participante do seu mundo. No prefácio do editor na obra A história da
minha vida, assinada pela própria Helen Keller, há um interessante tópico construído por
James Berger: a educação de Helen Keller, uma história de linguagem. Para Berger, a
maioria das pessoas experimenta a transição para a linguagem ao passar pela fase de bebê
para a infância e a maturidade. Contudo, são os casos especiais – como o de Helen – que
parecem mais atrativos e ilustrativos. A cena de Helen Keller junto à casa de bombas
merece ser rememorada neste momento para ilustrar a entrada da menina no mundo da
linguagem, desta vez com o depoimento da própria Srta. Keller:

“Descemos o caminho para a casa do poço, atraídas pela fragrância das


madressilvas que a cobriam, Alguém estava tirando água e a Srta.
Sullivan colocou minha mão sob o jorro da água. Enquanto a fria corrente
despejava-se sobre uma das minhas mãos, a Srta. Sullivan soletrava na
outra a palavra água, primeiro lentamente, depois rapidamente. Fiquei
imóvel, como toda a atenção fixada no movimento dos dedos. De repente
senti uma consciência envolta em nevoeiro, como de algo específico – o
eletrizar de um pensamento que voltava; e de algum modo o mistério da
linguagem foi revelado a mim, Soube então que “á-g-u-a” significava a
coisa fresca que fluía sobre a minha mão. Aquela palavra viva despertou
minha alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, enfim, libertou-a! Ainda
havia barreiras, é verdade, mas barreiras que poderiam ser varridas com o
tempo” (KELLER, 2008, p.21)

A entrada de Helen Keller no universo simbólico vem acompanhada de um salto


para uma posição de onde seria possível observar o mundo pela rede simbólica. O animal

                                                                                                                                   
22
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15

 
 
 
91  
 
simbólico emerge na experiência e o resultado disto para menina foi o ganho do mundo
humano ideal na realidade simbólica. Helen adentra a linguagem e compreende o exato
efeito da fala na linguagem. Para Cassirer (1994), ilustrou o fato de que, com o primeiro
entendimento do simbolismo da fala ocorre uma verdadeira revolução na vida da criança.
A partir desse momento, toda a sua vida pessoal e intelectual assume uma forma
inteiramente nova. De um modo geral, essa mudança pode ser descrita – em Cassirer -
dizendo que a criança passa de um estado mais subjetivo para um estado objetivo, de uma
atitude simplesmente emocional para uma atitude teórica. A mesma mudança pode ser
observada na vida de qualquer criança normal, embora de maneira muito menos
espetacular. A própria criança tem um sentido claro de significado do novo instrumento
para o seu desenvolvimento mental. Ela não se satisfaz em aprender de modo puramente
receptivo, mas assume um papel ativo no processo de fala, que é ao mesmo tempo um
processo de objetivação progressiva. Assim como para Helen, o ganho para o universo
simbólico foi uma experiência absolutamente iluminadora, sua professora Anne Sullivan
também descreveu esse processo, dizendo que:

“Durante todo o caminho de volta para à casa Helen estava altamente


excitada e aprendeu o nome de cada objeto que tocava, de modo que em
poucas horas ela acrescentara 30 novas palavras ao seu vocabulário (...)
Na noite passada, quando me deitei, ela correu para os meus braços
espontaneamente e me beijou pela primeira vez, pensei que meu coração
estouraria, tão cheio de alegria que estava.” (KELLER, 2008, p.302)

Anne Sullivan percebe um traço sensível da experiência de Helen Keller, o estado


de felicidade da menina subsequente a experiência de entrada na rede simbólica. A menina
não apenas aprendera novas palavras, mas compreendeu que tudo tem um nome e é função
do homem nomear seu mundo. Hellen Keller, encontrara ali a chave para toda a
linguagem, um universo de infinitas possibilidades de sentido, ela mesma descreve este
fato na volta para a casa da seguinte forma:

“Eu tinha agora a chave para toda a linguagem e estava ansiosa para
aprender a usá-la. As crianças que ouvem, aprendem a linguagem sem
qualquer esforço especial; as palavras que caem dos lábios alheios são
pegas por ela no ar, como se diz, prazerosamente, enquanto a criança
surda precisa aprendê-la numa armadilha através de um lento e
geralmente penoso processo. Contudo, seja qual for o processo, o
resultado é maravilhoso. De nomear um objeto, avançamos gradualmente
passo a passo até atravessarmos a vasta distância entra a nossa primeira

 
 
92  
 
sílaba gaguejada e o relâmpago de um pensamento num verso de
Shakespeare” (KELLER, 2008, p.28)

O mundo de Helen Keller é invadido por símbolos e a sensação é traduzida com


extrema felicidade. Helen Keller (2008) afirma que antes da chegada da sua professora,
não sabia que eu era vivendo em um mundo que não era um não-mundo, sem vontade nem
intelecto com apenas um certo ímpeto natural cego. No exemplo de Helen Keller, as
dimensões trabalhadas até aqui sobre o sentido da vida, mais uma vez ficam em evidência.
O processo de atribuir significado as palavras propõe a menina um movimento recorrente
de atribuição de sentido em tudo em que está objetivando em seu mundo. Segundo Berger
(2008), para longe da linguagem, Helen Keller também não possuía um senso ético. Anne
Sulivan descreveu-a como uma “tirana” com um temperamento violento, impossível de ser
controlado pela família e cujas “mãos não-educadas e insatisfeitas destroem o que quer que
toquem” (KELLER, 2008, p.287). As rápidas mudanças que chegaram com a aquisição
inicial da linguagem por Helen, como ela e Anne Sullivan descreveram, não foram apenas
cognitivas, mas também morais. Pouco depois da famosa revelação linguística junto ao
poço, Helen voltou para a casa e encontrou pedaços de uma boneca que quebrara
anteriormente naquele mesmo dia. Tentou então, sem conseguir, juntar os pedaços, e
afirmou que: “meus olhos se encheram de lágrimas, pois percebi o que fizera e, pela
primeira vez, senti arrependimento e tristeza” (KELLER, 2008, p.22). O ganho da
dimensão ética é mais um fruto do processo de entrada de Hellen Keller na forma
simbólica da linguagem. Aquilo que havia em princípio começado com uma simples
palavra, dispara um processo de formação de caráter na menina. Para Cassirer (1994), os
primeiros nomes que a criança faz uso podem ser comparados à bengala com que o cego
tateia seu caminho. A experiência de Srta Keller, tateando os objetos pós a descoberta da
palavra “água”, evidencia a analogia. E na linguagem, como um todo, torna-se a porta para
um novo mundo de articulação no símbolo. Nela, todo progresso abre uma nova
perspectiva, amplia e enriquece nossa experiência concreta.

Neste momento do trabalho, adotar a expressão sentidos para a experiência de


Helen Keller possivelmente seja o movimento mais adequado, inserida na rede simbólica, a
tudo buscava significar, ela mesma afirma que no início era apenas uma pequena massa de
possibilidades. A interferência da Srta. Sullivan quem as desdobrou e desenvolveu.
 
 
93  
 
“Quando ela veio, tudo em torno de mim passou a exalar amor e alegria e tornou cheio de
significado” (KELLER, 2008, p.37). Em outro momento, denomina esta transição como:
“os muitos incidentes no verão de 1887 que se seguiram ao súbito acordar da minha alma”
(p.23)

Do chão da existência Helen Keller grita diante do silencio de um possível não-


sentido atribuindo sentido para tudo quanto encontra e enquanto encontra significado
desfruta da felicidade presente descrita no capítulo dois. Sua história deve ser lembrada
como ilustração de alguém que, na multidão dos sentidos da rede simbólica, foi
significando a sua própria vida. Possivelmente, a experiência individual de Helen Keller
não ecoe em muitas situações cotidianas, mas já não é mais possível desconsiderá-la na
busca do homem contemporâneo por sentido.

“Sua vida se tornou uma lenda. Surda, cega, aprendeu a linguagem – na


verdade tão bem, que obteve um bacharelado em inglês cum laude na
faculdade de Radcliffe e escreveu 14 livros” (KELLER, 2008, p. 7)

 
 
94  
 
CONCLUSÃO

No caminho construído por este trabalho, procuramos compreender uma questão


contemporânea sobre o homem e uma atual perda de sentido. Essa perda é fruto de uma
observação da condição humana, não está calcada sobre uma pesquisa empírica nem sobre
uma elaboração filosófica pré-formulada, mas sobre uma experiência cotidiana evidenciada
pela busca constante do homem pelo alívio de uma dor ou desconforto existencial. Uma
outra sugestão foi a ideia de que a perda de sentido demonstrava uma herança histórica em
homens de outro tempo, a época retratada nas histórias antigas. A pesquisa proposta para o
trabalho procurou em todo o tempo, especialmente ao final de cada capítulo, retornar à
experiência sensível do homem diante das formulações propostas pelos autores estudados.
O caminho que nos levou ao confronto com esta perda de sentido do homem
contemporâneo teve início em uma pergunta sobre a natureza humana, em que
encontramos a construção de Ernst Cassirer. Diante de um questionamento sobre o
conhecimento do homem a respeito de si, Cassirer (1994) afirmou que seria esta a mais alta
meta do pensamento filosófico em geral. A busca empreendida pelo autor seguiu uma
análise histórica sobre o pensamento filosófico no entorno do conhecimento do homem, o
que o motivou a encontrar um princípio organizador para explicitar a natureza humana. No
debate com os cientistas do século XX, Cassirer (1994, p. 50) encontra no contraponto
feito à racionalidade do homem o ápice do que é tipicamente humano.

O autor nos entregou o primeiro delimitador relevante para pensar o homem, a ideia
de que, se ele seria adequadamente definido como animal (como queriam os biólogos), não
seria a racionalidade seu traço mais característico, mas o símbolo. Logo, o que já era
consenso entre a comunidade científica do homem como animal racional, dá lugar em
Cassirer ao animal simbólico. As evidências do autor para justificar seu posicionamento
lançaram luz em pontos importantes para o desenvolvimento deste trabalho. O primeiro
ponto – qualquer animal se desenvolveu num meio que emprega um sistema receptor e
efetuador. Os exemplos deste universo dos animais foram explorados também em Aganben
(2130) – não o universo no qual estes animais reagem aos estímulos oferecidos pela
natureza em vez de estar apenas se adaptando ao seu ambiente, mas se ajustando
devidamente diante de qualquer variação no seu universo de interação para que continue
 
 
95  
 
sobrevivendo a este mundo. No homem, este sistema de recepção e efetuação funciona a
mesma forma. No entanto, para Cassirer (1994. P. 47-48), o homem descobriu um novo
método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema de recepção e de efetuação
desenvolveu um terceiro chamado sistema simbólico, que lhe possibilita não apenas uma
realidade mais ampla, mas principalmente uma nova dimensão da realidade. Esta
conclusão sobre o homem simbólico nos encaminhou para um segundo ponto importante
na conclusão: a rede simbólica de Cassirer, como filósofo da cultura, está em todo o tempo
buscando encontrar organizadores para a atividade humana no mundo. O conceito de rede
simbólica consolida o raciocínio do autor nessa direção: para Cassirer (1994), o homem se
envolve de tal maneira na atividade de produzir símbolos que não consegue acessar a
realidade de nenhuma outra maneira que não pela interposição desse meio artificial. Duas
experiências validaram a proposta do autor: Helen Keller e Levi Strauss.

Helen Keller assumiu papel de protagonismo na obra de Cassirer e,


consequentemente, neste trabalho. Ela evidencia a exata passagem do animal racional para
o animal simbólico. A garota americana, cega e surda, se apresenta em uma cena
memorável junto à cisterna da sua casa no aprendizado do efeito simbólico da palavra
“água”. O efeito simbólico na menina contribui para a articulação de sentido em um
mundo mais amplo, onde a palavra não estava mais “trancada em seu objeto” (Cassirer,
1994, pg.61). Antes de um olhar conclusivo na experiência individual de Helen Keller, a
experiência do antropólogo Levi Strauss foi evocada. O autor contribuiu para uma
conclusão sobre a eficácia coletiva deste sistema simbólico em uma cultura de povos
primitivos: se é verdade que há um homem simbólico, nestas culturas se encontram as
evidências da eficácia do símbolo na construção do universo de significação do homem.

Na experiência individual da Srta. Keller, e nas evidências da eficácia do símbolo


em Levi Strauss, uma pergunta crucial surgiu para o trabalho: se o homem pode ser
considerado um animal simbólico e sua natureza está prescrita na atividade de produzir
símbolos, como poderia ele sofrer uma ausência de sentido se a tudo significa em todo o
tempo? Diante desta pergunta, o primeiro capítulo se encerrou com os ganhos do homem
simbólico para a discussão e suas diferentes expressões e presença no mundo. Diante de

 
 
96  
 
um mundo científico altamente expressivo, o retorno de uma resposta filosófica trouxe à
tona a possibilidade de pensar o homem com um fator organizador: o símbolo.

De posse do homem simbólico que a tudo significa, encontramos no autor brasileiro


Lima Vaz uma possível “origem” para o não-sentido moderno e contemporâneo. O autor
contribuiu para uma clarificação sobre o que seria a dimensão existencial da crise de
sentido vivenciada pelo homem, e localizou no advento da modernidade seu marco mais
representativo. Em meio a esta realidade, e motivado pelo modelo poiético de
conhecimento que aponta para o que é útil, surge a imanência do próprio sujeito como
significação do objeto (VAZ, 2002, p.164). O principal produto para o autor deste processo
de imanência do sujeito foi o homem assumir para si a tarefa de significar o seu mundo,
um ser imanente que traz para si a responsabilidade da transcendência, atraindo assim uma
crise profunda no universo simbólico do homem VAZ, 2002, p.172). O não-sentido do
homem, nesta acepção existencial, colocou-nos em uma pergunta crucial: existe a
possibilidade de, na modernidade, a vida ter um sentido único? A resposta foi tratada em
dois autores: Albert Camus e Fernando Savater, que nos apontaram uma conclusão
importante sobre o homem e sua elaboração do sentido da vida.

Camus colocou-nos diante da resposta indigesta do absurdo. No que denominou


“esquivas” (CAMUS, 2014, pg.23) para a problemática do sentido da vida, sendo a
esperança e o suicídio, propôs um caminho de investigação tipicamente moderno (ao
moldes da problemática de Vaz) em que é o homem o responsável por buscar uma resposta
para o sentido da vida e não via algo que pudesse superá-lo ou o transcendê-lo. A
conclusão de Camus por pouco não elimina todo um processo de construção. Sua resposta
para o sentido da vida está no homem absurdo que lida com a vida como se ela não tivesse
um sentido: no estrangeiro, no conquistador e principalmente em Sísifo, encontra um
homem que torna desnecessária a esperança de a vida ter um sentido (CAMUS, 2013,
pg.124). A resposta do homem absurdo está em uma felicidade presente e encontrou eco no
raciocínio de Savater (2011) em uma vida que não tem um porquê, mas encontra na alegria
uma maneira de lutar contra o mal do desespero de uma ausência de sentido. Antes da
conclusão do capítulo dois, recorremos ao mesmo caminho construído no capítulo um:
uma validação da tese filosófica pela experiência. Encontramos um exemplo nas
 
 
97  
 
experiências de Primo Levi e Viktor Frankl em Auschwitz. No limiar de uma experiência
humana, no que seria possivelmente o maior não sentido humano na modernidade, alguma
resposta poderíamos encontrar sobre a pergunta do sentido da vida. As experiências de
ambos são angustiantes, não há gritos neste silêncio da história humana. Toda a estrutura
de significação estabelecida de um sujeito com determinados objetos é refeita em
Auschwitz, assim como novas formulações de sentido são necessárias e outros caminhos
são tomados no trânsito da rede simbólica. Diante da construção filosófica do capítulo
dois, e da experiência dos prisioneiros no holocausto, uma conclusão determinante para a
pergunta inicial do trabalho emerge.

A ideia de que se a vida não tem um sentido único, no homem simbólico ela pode
ter sentidos. Na multiplicidade de significados e de formas simbólicas, o homem acessa o
mundo pela rede simbólica e em todo o tempo atribui um sentido. Sísifo estabeleceu um
sentido, menor, não abrangente da vida como um todo e o nomeou como alegria. Em
Savater, felicidade. Para os prisioneiros de Auschwitz, momentos de contemplação e
reflexão em uma expectativa futura aliada a experiências com a família. No caos, Levi e
Frankl encontraram, em um universo mais restrito, alternativas possíveis de sentidos
momentâneos. O homem simbólico de Cassirer ganha força e mais expressão diante das
difíceis questões existenciais enfrentadas no capitulo dois. Para nós fica a constatação de
que, de fato, a vida não tem um sentido, mas a possibilidade de uma infinidade de sentidos.
Identificá-los nas situações cotidianas, no momento presente, estão entre as alternativas de
resposta para o homem contemporâneo. Diante do sentimento do absurdo, a saída pela
esperança não é uma resposta legítima para Camus, mas se assim o entender o homem
contemporâneo, a esperança pode estar – como em Viktor Frankl em Auschwitz – na busca
por um mundo “ideal” como quer Cassirer nas diferentes formas simbólicas.

A evidência das conclusões propostas até aqui ganham vida no seu exemplo mais
significativo no capítulo três: a história de Helen Keller e sua entrada no universo
simbólico pela linguagem. Para compreender a forma simbólica da linguagem, algumas
conclusões em Cassirer foram importantes. Aparentemente, um caminho repetitivo seria
dizer que Cassirer novamente dialoga com os biólogos de seu tempo. No entanto, vale
reforçar que o autor está inserido no debate científico do século XX em uma
 
 
98  
 
predominância científica a respeito do homem. Para Cassirer (1994), a fala humana é o
aspecto característico da diferença para os sons emitidos pelos animais. Diante de qualquer
possibilidade de uma similaridade aparente, há um traço característico que demarca o
distanciamento de um animal em detrimento do homem. Em Susanne Langer (2004)
encontramos mais evidências da tese defendida por Cassirer e nos serviu de base segura
para pensar a experiência de Helen Keller como um salto para o mundo humano. Na
história de Helen Keller, o ganho para um mundo humano assume forma em diversos
relatos da sua professora Anne Sullivan, com especial atenção para o ganho do senso ético
(KELLER, 1998, p. 21), relação com o sagrado e o amor (p. 22), e todas as outras
expressões relatadas pela própria Hellen Keller, que responde a esta experiência, com uma
resposta existencial, de maneira que merece ser rememorada: “antes da chegada da minha
professora, eu não sabia que eu era” – escreveu em The World I Live In – “eu vivia num
mundo que não era um não-mundo, não tinha vontade nem intelecto (...) apenas um certo
ímpeto natural cego”. Diante de todas as experiências de Helen Keller, em uma leitura
sobre a sua entrada no mundo simbólico na experiência na cisterna e o relato da sua alegria
ao descobrir, pela linguagem, a efeito simbólico das palavras e seus significados,
encontramos a evidência de um ganho de sentido. Não foi possível afirmar que a Srta.
Keller articulou todo o sentido da sua vida, mas com alguma convicção podemos dizer que
descobriu naquele momento algum sentido, ou ainda, uma forma de atribuir sentido, pela
linguagem.

Helen Keller é o animal simbólico de Cassirer. Para nós é uma possível resposta
diante da pantomima das coisas e do desafio de romper com o suceder de dias sem sentido,
articulando novos sentidos, em diferentes formas simbólicas, e no momento presente.

 
 
99  
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, Giorgio. O aberto: o homem e o animal. Tradução de Pedro Mendes. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

BONDER, Nilton. A alma Imoral. Rio de Janeiro: Rocco, 1998

CANNON, W.B. Voodoo death. American Anthropologist, n.s., vol. 44, 1942

CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura

humana. Tradução: Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

_________________. A filosofia das formas simbólicas I – a Linguagem. Tradução:

Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_________________. A filosofia das formas simbólicas II – O Pensamento Mítico.

Tradução: Claudia Cavalcanti. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

_________________. A filosofia das formas simbólicas III – Fenomenologia do

conhecimento. Tradução: Eurides Avance de Souza. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

CAMUS, Albert. O mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Ed Record. Rio de Janeiro,

2004.

____________. O estrangeiro. Ed Best Bolso. Rio De Janeiro, 2013.

____________. O primeiro homem. Ed Best Bolso. Rio De Janeiro, 2013.

____________. O homem revoltado Ed Best Bolso. Rio De Janeiro, 2013.

GAGNEBIM, Jeanne Marie. Lembrar escrever e esquecer. Ed 34. São Paulo, 2006.

 
 
100  
 
KROIS, J. Cassirer: Symbolic Forms and History. New Haven. Yale University. Press,

1987.

KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio

de Janeiro, 2008.

KELLER, H. The world I live in. Century Co. Nova Iorque, 1908.

FRANKL, Viktor. Em busca de sentido. Traduzido por Walter O. Schlupp e Carlos C.

Aveline. Ed Vozes. Rio de Janeiro. 2008.

GARCIA, RAFAEL R. Genealogia da crítica da cultura: um estudo sobre a filosofia das

formas simbólicas de Ernst Cassirer. 2010. 189 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de

filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

HAMBURG, C. Symbol and reality. The Hague: Martinus Nijhoff,1956.

LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989.

___________________. Introducción a La lógica simbólica. México: Signus, 1974.

LEVI-STRAUSS. Claude. Antropologia estrutural. Tradução: Chaim Samuel Katz e

Eginardo Pires. Rio de janeiro: Tempo brasileiro, 1989.

LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988 (tradução de Luigi Del Re)

PEREIRA, Miguel Baptista. Para uma filosofia do símbolo, Revista de Filosófica de

Coimbra vol. 13, n.º 25, Março de 2004, pp.3-30.

________________________. O regresso do mito no diálogo entre E. Cassier e M.


Heidegger”, Revista Filosófica de Coimbra vol. 4, n.º 7, Março de 1995, pp. 3-66.

RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Tradução:


Hilton Japiassu. Rio de Janiero: Imago, 1978.

 
 
101  
 
_____________. Interpretação e ideologias. 4ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.
SCHILPP, P. The Philosophy of Ernst Cassirer. Library of Living Philosophers Vol. 6.

New York: Tudor Publishing Company, 1949.

SAVATER, Fernando. As perguntas da vida. Tradução: Monica Stahel.São Paulo:

Martins Fontes, 2001.

SKIDELSKY, Edward. Ernst Cassirer: The Last Philosopher of Culture. Princeton UP,

2008.

SILVA. S Nilton. O mito em Ernst Cassirer e Carl Gustav Jung: uma compreensão do ser

do humano. Rio de Janeiro, RJ: Litteris, 2002

STEVENSON, M.C., The Zuni Indians, 23rd Annual Report os the berau of American

Ethnlogy. Smithson Instution. Washington, 1905.

LIMA VAZ, H. C.de,.Escritos de Filosofia VII – Raízes da Modernidade. São Paulo:


Edições Loyola, 2002.

VERENE, Donald. “Kant, Hegel, and Cassirer: The Origins of the Philosophy of

Symbolic Forms”, Journal of the History of Ideas. Vol. XXX. 1969. Pennsylvania

University Press, 1969, p.33-46.

 
 

You might also like