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FELIPE URBANO
SÃO PAULO
2015
2
UNIVERSIDADE SÃO JUDAS TADEU
SÃO PAULO
2015
3
Urbano, Felipe
U72a A aventura de Helen Keller em Ernest Cassirer: rede simbólica e
sentido da vida / Felipe Urbano. - São Paulo, 2015.
101 f. ; 30 cm.
CDD 22 – 113.8
4
DEDICATÓRIA
5
AGRADECIMENTOS
A Talita, amada e presente, pela companhia de vida, pelo amor em todo o tempo.
A Fabiane Urbano. Sem ela não haveria graduação, e sem graduação não haveria
mestrado.
A Sergio Cruz, mestre e parceiro de caminhada, a quem sou eternamente grato por
ter compartilhado comigo este e tantos outros projetos de vida.
A Ed René, por ter inspirado boa parte dos lampejos aqui postos.
À querida Julie Oliva, por sua intelectualidade e afetividade no cuidado com este
amigo mestrando.
Aos professores Erinson Cardoso Otenio e Paulo Jonas de Lima Piva pela
contribuições na banca de qualificação deste trabalho e disponibilidade em contribuir.
Aqueles que tantos cafés comigo tomaram para tornar esse projeto possível.
Felicidade?
Disse o mais tolo: "Felicidade não existe."
O intelectual: "Não no sentido lato."
O empresário: "Desde que haja lucro."
O operário: "Sem emprego, nem pensar!"
O cientista: "Ainda será descoberta."
O místico: "Está escrito nas estrelas."
O político: "Poder"
A igreja: "Sem tristeza? Impossível.... (Amém)"
O poeta riu de todos,
E por alguns minutos...
Foi feliz!
(Sergio Vaz, Felicidade)
7
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo investigar a experiência de Helen Keller presente
na obra Ensaio sobre o homem de Ernst Cassirer, tendo por horizonte questões acerca de
quem é o homem e como faz parte de sua natureza uma interrogação sobre o sentido para a
vida. Examinamos, a partir das ideias de Ernest Cassirer, a presença do homem como
produtor de cultura que atua em mundo “ideal” produzido por ele mesmo, o mundo
simbólico. Este homem que, enquanto animal simbólico, busca estabelecer sentido para sua
presença no mundo, imerso em uma rede simbólica constituída pela arte, pelo mito,
religião e linguagem, história e ciência. Helen Keller é um exemplo que nos pareceu
ilustrar com precisão a teoria de Cassirer: uma criança surda e cega que entra neste
universo, novo para ela, vindo de fora dele. Ganha destaque na experiência dela algo que
se passa, de forma menos evidente, com todo ser humano. Para examinar o problema da
atribuição de sentido, a investigação do trabalho parte da consideração do homem
contemporâneo que parece experimentar uma crise pela ausência de sentido. Perguntamos
como conciliar a ideia de um não-sentido em relação a um homem simbólico que a tudo
atribui sentido, interrogando autores como Lima Vaz, Fernando Savater e Albert Camus,
que refletiram sobre a crise de sentido do homem moderno e contemporâneo. Como se
sabe, o não sentido do homem ganha voz gritante na experiência humana em Auschiwitz,
de que buscamos os testemunhos de Viktor Frankl e Primo Levi, com suas reflexões sobre
a ausência de sentido no campo de concentração. Os caminhos do não sentido e do homem
simbólico se encontram novamente na reflexão sobre a figura de Helen Keller e o relato
mais profundo de sua entrada no universo da linguagem, a partir da qual esboçamos nossas
conclusões. A impossibilidade de atribuir um sentido único a vida e a atuação do homem
no poder semântico do mundo são duas importantes conclusões sobre a ação do homem
simbólico.
8
ABSTRACT
This study aims to explore Helen Keller’s experience as described in Ernst Cassirer work,
An Essay on Man. It pursues to understand who is the man and how his nature implies a
quest for the meaning of life. By using Ernst Cassirer’s ideas as a starting point, we
examine man’s presence in the world as a culture generator that acts on an “ideal” world of
his own produce, the symbolic world. Such man, as a symbolic animal, seeks the definition
of meaning for his presence in the world surrounded by a symbolic network comprised of
art, myth, religion and language, history and science. Helen Keller is deemed as an
accurate example of Cassirer’s theory: a deaf and blind child enters this world, new to it
and into it. Her experience makes an usual occurrence a remarkable one: what is unusual to
her is taken for granted for most of us. In order to examine how meaning is ascribed, this
investigation examines the contemporary man that seems to go through a crisis because of
lack of meaning. We proceed questioning how to harmonize the idea of non-meaning by
looking through the works of Lima Vaz, Fernando Savater and Albert Camus, thinkers that
pondered on a meaning crisis experienced by modern and contemporary man. It is clear
that man’s non-meaning is intensely expressed by human experience in Auschwitz, so we
examine Viktor Frankl and Primo Levi reflections on the absence of meaning on a
concentration camp. Non-meaning and symbolic man cross pathways again on the
reflection about Helen Keller figure, and on a deeper report of his entry on language
universe. At that point we draw our conclusions. The impossibility of ascribing a single
meaning to life, besides the acting of man on world’s semantic power, are two prominent
conclusions on symbolic man action.
9
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA .......................................................................................................................................... 4
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................................ 5
RESUMO ..................................................................................................................................................... 7
ABSTRACT ................................................................................................................................................. 8
SUMÁRIO ................................................................................................................................................... 9
1. A REDE SIMBÓLICA EM CASSIRER ..................................................................................... 16
1.2 O SÍMBOLO E NATUREZA HUMANA ............................................................................ 19
1.3 “DO ANIMAL RACIONAL AO ANIMAL SIMBÓLICO” .................................................... 24
1.4 REDE SIMBÓLICA ................................................................................................................. 32
1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA........................................................................................... 38
1.5.1 EFEITO SIMBÓLICO EM CASSIRER............................................................................. 38
1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS ............................................................... 42
2. A PERGUNTA SOBRE O SENTIDO DA VIDA ........................................................................ 49
2.1 A PROBLEMÁTICA DO SENTIDO DA VIDA NA MODERNIDADE .................................... 49
2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA ...................................................... 61
2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ ................................................................................................... 69
2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ ...................................................................... 74
3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR ..................................................... 82
3.1 LINGUAGEM E FALA EM CASSIRER ................................................................................ 82
3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO ............................................................ 89
CONCLUSÃO ........................................................................................................................................... 94
10
INTRODUÇÃO
Esse movimento se percebe nas situações cotidianas, não é ocorrência rara. Olhar-
se no espelho, avaliar os passos a dar, não gostar dos passos que deu, sentar-se à mesa para
as refeições. Tudo, são movimentos simples e automáticos, como ficar olhando fixamente
para o prato, experimentar uma angústia e, na tentativa de lidar com essa angústia
nauseante, buscar o sono para esvaziar-se dela.
O acúmulo de entretenimento passa a ser um valor, não importa quão alienada seja
a postura de “não pensar em nada” enquanto o tempo passa. Muitos espaços passam a ter
esse potencial: a televisão, o estádio de futebol, o salão de beleza. A tecnologia também
acaba por exercer uma função anestésica, provendo contínuas interações com conteúdos ou
pessoas. Os aparelhos são projetados para aperfeiçoar a vida humana, torná-la mais prática.
Talvez a maior tentação seja a de colocar a suprema necessidade de se ocupar no lugar da
necessidade de reflexão. Ocupar-se o tempo todo, com o que quer que seja, parece ser o
mantra de nosso tempo.
Outro grande agente da súplica por um sentido de vida está ligado à tecnologia,
embora se expresse além dela: o consumo. Entretenimento é uma forma de consumo que
nem se prende à aquisição de um objeto, uma vez que é possível consumir ambientes,
pessoas, lugares ou experiências. Quanto mais destas experiências alguém ajunta em sua
coleção, mais contentamento se encontra na própria condição. Observa-se este movimento
até na experiência com o sagrado. Novas propostas religiosas surgem todos os dias.
Templos abarrotados, práticas as mais excêntricas, tudo porque o homem busca uma
experiência que “supere” a sucessão de dias, que lhe forneça um referencial, que prescreva
uma transcendência que possa ser sentida.
Como definir essa crise experimentada pelo homem? Qual é sua origem e quais são
as implicações? Estes fragmentos da vida humana são suficientes para incitar a pergunta
crucial: o que é este homem que a tudo busca significar? Seria este o traço mais
12
característico da experiência humana? Nenhum momento histórico é mais significativo
para a problemática desta crise de sentido do homem quanto o advento da modernidade3.
A proposta para esta investigação é examinar Ensaio sobre o homem, livro de Ernst
Cassirer. A saída do autor para estas questões terá a raiz no conceito de símbolo, tendo
como exemplo mais ilustrativo a história da americana Helen Keller. Cassirer encontra
3
A ideia será elaborada no decorrer do texto com o filósofo Henrique de Lima Vaz no texto “Crise de sentido e
Modernidade”
13
nela um exemplo tipicamente humano na natureza para trocar o conceito de um animal
racional para o de um animal simbólico, colocando em xeque as teorias existentes, aquelas
que apontavam a racionalidade como o traço mais característico do ser humano, uma
afirmação amplamente disseminada por biólogos ao longo do século XVIII e XIX.
Helen Keller, cega, surda e consequentemente muda, não apenas vive uma das mais
belas histórias da humanidade na sua relação com a professora Anne Sulivan, mas também
oferece o “abre-te, Sésamo!” para uma compreensão da natureza humana. Sua experiência
mostra como o conceito de símbolo pode nortear toda a discussão filosófica sobre o
homem em Cassirer. O autor reconhece que a discussão da relação entre homem e símbolo
deveria ter mais presença em outras áreas de estudo além da filosofia, defendendo a
necessidade de reencontrar este espaço de discussão. Esta evidência é possível ser
encontrada nos exemplos dados pelo autor nos estudos biológicos das reações animais e,
em uma análise contemporânea a Cassirer, na psicologia de Carl Gustav Jung4.
O tema deste trabalho tem Helen Keller como chave, pois pode ela ser ainda um
exemplo para investigarmos as questões primárias apresentadas por este texto sobre o
sentido da vida. Consideramos que sua condição de extremas limitações no símbolo é uma
oportunidade para a reflexão desta problemática. Que contribuição uma jovem que
aprendeu o sentido das palavras aos nove anos de idade, e que só se comunicou por meio
da professora pelo toque das mãos, poderia dar para a questão? O que ela descobriu nesta
sua entrada no universo simbólico que coloriu sua vida a ponto de ser tornar uma grande
ativista, militante, escritora e personalidade mundialmente conhecida pela plenitude de
vida?
5
LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25.
6
LANGER, Susanne K. Filosofia em nova chave. 2ed. São Paulo, Perspectiva, 1989, p. 25.
7 Skidelky, E. Cassirer, the last Philosopher of Culture. Princeton: Princeton University Press, 2008.
8 CASSIRER, Ernst. Ensaio sobre o homem: Introdução a uma filosofia da cultura humana. Tradução:
Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p.115
15
homem moderno9. A resposta para a questão do sentido da vida será explorada em Albert
Camus. O filósofo francês trará com a experiência e a noção de absurdo uma luz
importante e direcionadora para a problemática, como lidamos com esta questão e qual a
resposta possível para ela. Suas alternativas serão indigestas diante da expectativa: a vida
teria em si um sentido? A visão de Camus será corroborada por Fernando Savater. De
posse dos escritos do século XX sobre a problemática, apontará para um caminho
interessante para fundamentar suas respostas de que, na verdade, a vida não tem sentido.
Diante deste cenário pouco atrativo, duas experiências serão relevantes para a discussão: as
de Primo Levi e de Victor Frankl. As situações extremas que viveram em Auschwitz
apontam lampejos do limiar máximo da experiência humana e sua crise de sentido.
“Antes que a minha professora viesse a mim, eu não sabia que existia.
Vivia num mundo que não era mundo para mim. Não espero conseguir
descrever adequadamente aquele inconsciente, embora consciente, estado
do nada. Ignorava que sabia alguma coisa, que vivia, agia, desejava; não
tinha nem vontade, nem intelecto; eu era impelida para objetos e ações
por um impulso cego natural, instintivo. Só tinha uma inclinação para a
cólera, o prazer, o desejo... Não era noite e não era dia, mas um vazio que
absorvia o espaço, uma estabilidade sem fundamento. Não havia estrelas,
nem terra, nem tempo, nem freio, nem mudança, nem bem, nem crime”
(KELLER, 1908, pg.113).
9
A ideia de um homem moderno não está inserida em um debate sobre o real estado da modernidade ou
hipermodernidade como for a de radicalização como o quer autores contemporâneos (Gilles Lipovettsky
como expoente), mas uma referência simples de um homem que acompanha as questões postas pela
modernidade.
10
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008.
Pg. 36
16
e o universo simbólico. Desvendar o que ela encontrou foi um caminho muito bem trilhado
por Cassirer. A investigação do que esta experiência significou a uma menina que até então
encontrava possibilidades restritas poderá ser uma importante ponte para compreender um
pouco melhor a relação que estabelecemos com o sentido da vida.
Será um regresso para Cassirer, com a exposição da rede simbólica em sua forma
linguística por alguém vindo de um lugar “de fora dela”11. Cassirer, oriundo das ciências
da linguagem com sua formação em literatura anterior à filosofia, contribuirá para uma
alternativa mais específica sobre o problema. Como poderia Helen, por meio da
linguagem, estabelecer sentido para sua vida? Como a rede simbólica da linguagem é fonte
de sentido para qualquer humano? Estaria nela uma chave possível para dissolução da
problemática do sentido?
Para longe de uma resposta definitiva, a expectativa é que este caminho contribua
para uma ilustração sobre uma problemática contemporânea (com diversas manifestações
ao longo da história) sobre o sentido da vida. O que se apresenta nesse momento como
chave é a experiência de uma menina de sete anos, sua professora, e um arcabouço
carregado de densidade filosófica sobre símbolos.
A obra Ensaio sobre o homem foi o roteiro escolhido para remontar o caminho que
Ernst Cassirer construiu até o homem simbólico, como modelo considerado mais adequado
para uma investigação que nos auxilie na busca por uma abordagem inicial para a questão
inicial deste trabalho: o que é este homem que a tudo busca significar? Anterior a uma
reflexão sobre o homem simbólico, Cassirer inicia sua abordagem na questão sobre o
conhecimento que o homem tem a respeito de si e dos meios utilizados até então para
11
Esta
expressão
é
utilidade
por
James
Berger
editor
do
livro
A
história
da
Minha
Vida
de
Hellen
Keller
(2008:
36)
17
conhecê-lo. Considera ter sido esta uma questão que superou o conflito de escolas
filosóficas ao longo do tempo, e a avalia como a “mais alta meta” do pensamento filosófico
em geral. Para ele, nem mesmo os pensadores mais céticos negam a possibilidade e a
necessidade do autoconhecimento. O ponto de partida de Cassirer é o método da
introspecção na “tradição cartesiana”.
19
Escolhe como referência o biólogo Johannes Von Uexkull, cuja defesa biológica se
assenta em uma visão crítica em relação aos princípios calcados na biologia de então. De
certo modo, Uexkull se opôs a uma perspectiva mais técnica e mecanicista sobre
funcionamento de sistemas e formas dos organismo limitados aos termos da física e da
química. Sua proposta principal está representada na ideia que a vida é uma realidade
suprema e dependente de si mesma e não poderia ser descrita ou explicada (e reduzida)
apenas nos termos da física ou da química. O novo esquema ao qual o biólogo se propõe é
destacado por Cassirer na singularidade que cada espécie biológica dispõe em sua
concepção, criando para si um mundo próprio que não poderia dispor de uma “realidade
absoluta” como propõe a física e a química. Nesse processo, cada organismo é, por assim
dizer, um ser monódico. Os fenômenos que encontramos na vida de uma determinada
espécie biológica não são transferíveis para nenhuma outra espécie (CASSIRER, 1994, p.
46).
“Ajuste” e não adaptação reforça a ideia de que não haveria outra possibilidade
para o organismo senão aquelas condições, mas que uma adaptação ao ambiente é o
pressuposto de que qualquer alteração neste ambiente poderia ser de alguma forma fatal ao
organismo. O princípio de que isso se aplicaria a organismos superiores e inferiores não é
difícil de compreender. Em um exemplo prático, um urso polar que sofre a mínima
variação de temperatura no seu habitat, não resistiria a uma condição de vida com
temperaturas mais altas por muito tempo. O mesmo se aplica a uma planta longe de sua
fonte de energia em condições ideais de abastecimento de água e sol. O círculo funcional
de efetuação e recepção sugerido pelo biólogo, e que é enfatizado por Cassirer, pressupõe
que alterações em tamanho, ação e resposta do organismo em relação ao meio que está
inserido está dada, impedindo a possibilidade de variação de acordo com um raciocínio de
ação e resposta.
Para uma melhor exploração do conceito proposto por Uexkull, buscaremos uma
leitura para além de Cassirer, no filósofo italiano Giorgio Agamben, que também faz
referência aos estudos do biólogo em sua obra O Aberto, propondo como caminho a leitura
do homem em reconciliação com sua natureza animal. Ao olhar do autor italiano, o biólogo
Uexkull colocou uma infinita variedade de mundos perceptíveis que, embora sejam
incomunicáveis e reciprocamente exclusivos, são todos igualmente perfeitos e ligados
entre si. São como uma gigantesca partitura musical em cujo centro estão pequenos seres
familiares, onde cada ser vivo de algum modo é participante de um mundo singular. Para o
autor, Uexkull desmantela a ideia de que um único mundo situa todos os seres viventes. A
21
leitura do filósofo, sob o chão construído pelo biólogo, sugeriu um raciocínio relevante
para a compreensão da questão: sugere AGAMBEN (2013, p.69) que animais como a
abelha, a libélula ou a mosca, que observamos voar em torno de nós em um dia de sol
qualquer, não se movem no mesmo mundo em que nós os observamos, nem dividem
conosco – ou entre si – o mesmo tempo e o mesmo espaço. A leitura de Aganben reforça o
olhar que enfatizamos de Cassirer a respeito de Uexkull, na direção de mais
esclarecimentos sobre esta diversidade de mundos. O autor italiano recorre a duas palavras
alemãs, sendo Umgebung (vizinhança, arredores) e Umwelt (ambiente). Na primeira,
refere-se ao espaço objetivo no qual se move o ser vivente, ou seja, a realidade física que
presenciamos. Na seguinte, o mundo em que este ser vivente se insere, ou seja, um
ambiente construído de uma série mais ou menos ampla de elementos que Uexkull
chamará de “portadores de significados” ou “marcas” que são os únicos que interessam ao
animal:
23
científica, lógica ou conceitual, vem acompanhada em todo o instante de uma linguagem
emocional, imaginativa e poética. A religião, para o autor, é mera abstração de objetos,
símbolos distantes da realidade imediata ao homem, que transmite apenas a forma ideal de
uma prática, a sombra do que é a vida religiosa genuína e concreta. Quando posiciona a sua
análise nesse contraste é que autor apresenta o que seria “o fio de Ariadne” para acessar o
homem e organizar o conhecimento sobre ele: o símbolo. Não pela contramão de um
pensamento científico de homem como animal racional, mas utilizando um termo mais
adequado no que seria este universo característico. A partir desta concepção, Cassirer
propõe a investigar o que seria este animal simbólico, não em detrimento do animal
racional, mas adequando a resposta na tentativa de definição do homem.
24
25
No primeiro exemplo, o autor recorre aos estudos com macacos antropóides
propostos por JB Wolfe no estudo “Effectiveness of token rewards for chimpanzees” em
1936. Para CASSIRER (1994, p.53), “segundo Wolfe, os resultados das longas e variadas
experiências mostraram que processos simbólicos ocorrem no comportamento dos
macacos antropoides”. O conhecimento científico de sua época encaminhara a discussão
para a conclusão de que, possivelmente, os processos simbólicos dos animais poderiam ser
os antecedentes dos processos simbólicos humanos. Acompanhando os estudos de JB
Wolfe, o pesquisador americano Robert M Yerkes extrai uma importante conclusão sobre
este fato em sua obra “Chimpanzees. A Laboratory Colony” (apud CASSIRER, 1994,
p.53), afirmando que “os processos simbólicos são raros e difíceis de observar, mas
suspeito que logo serão identificados como antecedentes dos processos simbólicos
humanos”. Ambos os pesquisadores deixaram esta temática aberta para futuras
investigações. No entanto, um fato chama atenção de Cassirer ao analisar os estudos:
“No que toca aos chimpanzés, Wolfgang Koehler afirma que eles atingem
um alto grau de expressão por meio da gesticulação. Raiva, terror,
desespero, pesar, súplica, desejo, brincadeira e prazer são expressados
com facilidade deste modo. Falta, no entanto, um elemento, característico
e indispensável a toda a linguagem humana: não encontramos nenhum
sinal que tenha uma referência ou sentido objetivo. (CASSIRER, 1994, p.
55)
13
KOEHLER,
Wolfang.
The
mentality
of
apes.
Heracourt.
Nova
York,
Brace,
1925.
14
RÉVÉSZ,
Géza.
The
origins
and
Prehistory
of
language.
Philosophical
Library.
1940.
15
YERKES,
M.
Robert.
Chipanzees.
A
laboratory
Colony.
Yale
University
Press.New
Haven,
1923.
27
limitada, em comparação com os processos cognitivos humanos. A análise dos estudos
mais avançados das atividades animais em detrimento da atividade humana posiciona
Cassirer no desafio de enunciar o que melhor seria a atividade simbólica, pois, se a
atividade simbólica é exclusivamente humana, o que dizer dos estudos com os macacos
antropoides? E, se a fala é o limiar escolhido para delimitar o que seria a atividade animal e
uma resposta humana, como extrair deste exemplo a concepção de símbolo? Como
engendrar um raciocínio capaz de refutar as referências a símbolos utilizados até então
pelos biólogos de sua época? A saída escolhida por Cassirer é a delimitação do conceito de
símbolos e sinais, que será amplamente explorada neste momento. A preocupação do autor
neste momento é a construção dos seus argumentos a partir da perspectiva humana,
também explorado a partir de experimentos empíricos. Sobre símbolos e sinais, Cassirer
expõe o problema da seguinte forma:
28
“Charles Morris, em seu Signos, Linguagem e Comportamento, empregou
um tratamento que acho superior ao meu e que, consequentemente, adotei
desde a publicação de meu livro. Morris usa a palavra “sinal” pelo o que
eu chamava signo. O termo “sinal” é, naturalmente, estendido para cobrir
não apenas sinais explicitamente reconhecidos – luzes vermelhas,
campainhas, e etc. – mas também fenômenos que tacitamente respeitamos
como sinais para nossos sentidos, p ex., a vista de objetos e janelas pelos
quais somos orientados num aposento, a sensação provocada por um
garfo na mão de alguém que o guia erguendo-o a sua boca; em resumo,
abrangendo tudo que dominei “signo” (LANGER, 2004. p. 11)
29
Sinais e símbolos como reinos diferentes reforçam a ideia apresentada por Cassirer
sobre o “terceiro elo” humano para além de sistemas receptores e operadores, ou seja, para
além de uma perspectiva mecânica de respostas comum aos animais. Enquanto os sinais
operam no mundo presente das “coisas” (gestos, campainhas, objetos), o símbolo opera na
realidade do significado e possibilita ao homem o questionamento, o porquê. Cassirer
encontra na delimitação de símbolos e sinais uma contribuição para a reflexão sobre a
inteligência dos animais, que se aplica como bom exemplo sobre sinais “operadores” e
símbolos “designadores”. No entanto, a demarcação não resolve a questão central do autor:
poderíamos dizer que, além de symbolicum, o homem seria um animal caracterizadamente
rationale, configurado diante dos outros animais por sua capacidade de raciocínio? Logo, o
que teríamos não seria uma substituição de um termo (animal racional), mas a
sobreposição por outro (animal simbólico). Mas não parece ser esta a proposta de Ernst
Cassirer, que vê a racionalidade como termo inadequado.
32
33
Para o autor, antes mesmo de o homem descobrir uma forma de organização social,
“ele havia feito outras tentativas de organizar seus sentimentos, desejos e pensamentos.
Tais organizações e sistematizações estão contidas na linguagem, no mito, na religião e na
arte” (CASSIRER, 2004. pg 108). Diante de uma convicção destas organizações
“primitivas” (em relação à política, estado), o autor empreende um caminho de análise dos
muitos métodos empregados para compreender a presença do homem na cultura
(introspecção psicológica, experimentação biológica, investigação histórica) que serão
tratados neste trabalho. No entanto, o seu ponto de chegada (que será o grande ensaio da
sua construção filosófica) culminará na filosofia das formas simbólicas:
“A filosofia das formas simbólicas parte do pressuposto de que se houver
qualquer definição da natureza ou “essência” do homem, tal definição só
poderá ser entendida como sendo funcional e não substancial. Não
podemos definir o homem com base em qualquer princípio inerente que
constitua a sua essência metafísica – nem podemos definí-lo por qualquer
faculdade ou instinto inato que possa ser verificado pela observação
empírica. A característica destacada do homem, sua marca distintiva, não
é sua natureza metafísica ou física, mas o seu trabalho. É este trabalho, o
sistema das atividades humanas, que define e determina o círculo da
“humanidade. Linguagem, mito, religião, arte, ciência e história são os
constituintes, os vários setores desse círculo” (CASSIRER, 2004. pg 115)
34
“A filosofia não pode contentar-se em analisar as formas individuais da
cultura humana. Ela procura uma visão universal sintética que inclua
todas as formas individuais. Mas não seria uma tal visão abrangente uma
tarefa impossível uma simples quimera? Na experiência humana não
encontramos, de maneira alguma, as varias atividades que constituem o
mundo da cultura existindo em harmonia. Ao contrário, vemos o atrito
perpétuo entre forças conflitantes. O pensamento científico contradiz e
suprime o pensamento mítico. A religião, em seu mais alto
desenvolvimento teórico e ético, ve-sê na necessidade de defender a
pureza de seu próprio ideal contra as fantasias extravagantes do mito ou
da arte. Assim, a unidade e harmonia da cultura parece ser pouca coisa
mais um pium desiderium – um embuste virtuoso – que é constantemente
frustrado pelo curso real dos acontecimentos”( CASSIRER, 1994, pg.
119)
“Não fosse por essa síntese prévia efetuada pelas próprias ciências, a
filosofia não teria um ponto de partida. A filosofia, por outro lado, não
pode parar aqui. Ela deve procurar alcançar uma condensação e uma
centralização ainda maiores. Na ilimitada multiplicidade e variedade de
imagens míticas, dogmas religiosos, formas linguísticas, obras de arte, o
pensamento filosófico revela a unidade de uma função geral por meio da
qual todas essas criações são mantidas unidas. O mito, a religião, a arte, a
linguagem e até a ciência são hoje vistos como diversas variedades de um
tema comum – e a tarefa da filosofia é tornar esse tema audível e
compreensível.” (CASSIRER, 1994, pg. 119 – 120)
35
A função geral, a chave para o “funcionamento” do homem na cultura aparece em
Cassirer como resposta a esse princípio organizador. As formas simbólicas atuantes no
acesso do homem ao universo simbólico organizam-se em um função geral na qual todas
se encontram em um denominador comum. Ainda sob a ótica da função, outro autor,
tributário às formulações de Cassirer, resgata uma definição de símbolo alinhada ao
conceito debatido, até aqui:
36
imediato: o distanciamento é o movimento fundamental do símbolo. Na experiência
simbólica, o homem não acessa a realidade imediata por uma opção, mas porque não
consegue mais observar os fatos de outro modo, pois já está inserida neste mundo ideal
ditado pelo símbolo. A linguagem já não é um compilado alfabético cuja composição de
palavras que aponta para uma única realidade. A arte não é a apenas a impressão estética
do autor, mas um conjunto (rede) elaborado e polissêmico. A realidade imediata não é uma
referência tipicamente humana. O homem se envolveu de tal modo em formas linguísticas,
imagens artísticas, símbolos míticos, ou ritos religiosos, que não consegue ver ou conhecer
coisa alguma a não ser pela interposição desse meio artificial (CASSIRER 2004, p.48-49).
Diante deste cenário, o autor esclarece que, mesmo diante da rede simbólica, a
realidade humana não é apenas abstração, mas possui características únicas de
racionalidade. É pensada e organizada, tem lógica, e é uma parte importante para a
atividade humana. O próprio autor afirma que a racionalidade é de fato um traço inerente a
todas as atividades humanas. A própria mitologia não é uma massa grosseira de
superstições ou ilusões crassas. Não é meramente caótica, pois possui uma forma
sistemática e conceitual. Mas ele acrescenta que, por outro lado, seria impossível
caracterizar a estrutura do mito como racional. CASSIRER (2004, p.48-49). A rede
simbólica é um mundo construído pelo homem e somente acessado por ele. Cassirer
conclui:
38
1.5 DO SÍMBOLO À EXPERIÊNCIA
A questão inicial deste trabalho parte de uma observação da realidade, de falas comuns
ouvidas no cotidiano a respeito do homem contemporâneo. Sem qualquer fundamento
inicial empírico ou filosófico, a hipótese levantada na experiência vai ganhando contornos
sob a direção da organização filosófica de Cassirer, para quem é tarefa da filosofia tornar
uma temática audível. A rede simbólica como foi apresentada traz novamente a
necessidade de um exemplo prático de aplicação, onde a hipótese filosófica se prova na
experiência. Este texto, que partiu da experiência, mergulhou nos pressupostos filosóficos,
encontrou novamente outra expressão da experiência.
Cassirer apresenta o que seria seu argumento mais ilustrativo do momento em que
um humano salta da pantomima dos sinais para exercer a função simbólica da realidade.
Este raciocínio de Cassirer torna-se evidente com a jovem Helen Keller16 em sua fase de
formação, principalmente no desenrolar das diferenças entre sinais e símbolos. O caminho
de Helen Keller até o símbolo é reconhecidamente uma das mais belas histórias de
aprendizagem na história humana. Ela sempre intrigou pedagogos do mundo todo a
investigar o exercício de uma criança surda e cega nos seus primeiros passos de escrita. No
entanto, a história de Helen Keller é uma pérola no pressuposto filosófico do símbolo e
ilustração da filosofia de Cassirer. Uma em especial, acontecida em uma tarde de abril de
1887 na cidade americana de Tuscumbia, estado do Alabama, descrita por sua professora
Sra. Sullivan, que abriu a janela para uma compreensão mais abrangente e prática da rede
simbólica:
“Tenho de escrever- lhe uma linha esta manhã porque uma coisa muito
importante aconteceu. Helen deu o segundo grande passo em sua
educação. Aprendeu que tudo tem um nome, e que, o alfabeto manual é a
chave para tudo o que ela quer saber. Hoje de manhã, quando se estava
lavando, ela quis saber o nome da "água". Quando quer saber o nome de
alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha mão. Soletrei "a-g-
u-a" e não pensei mais nisso até depois do café da manhã...” (CASSIRER,
1994, p. 58)
16
Helen
Keller,
americana
que
ainda
na
infância
ficou
cega
e
surda
em
decorrência
de
uma
febre,
nascida
em
1880
no
Estados
Unidos
tornou-‐se
o
que
alguns
chamaram
de
“um
milagre
humano”
por
aprender
a
se
comunicar
e
se
tornar
ativista
em
direitos
humanos.
39
Aprender que cada coisa tem um nome foi sua primeira descoberta para apontar
sinais de cada elemento. Helen Keller é uma criança criada em uma cidade interiorana com
o desafio de aprender a nomear o mundo no qual está inserida. Anne Sullivan encontra
Srta. Keller recomendada por trabalhos recentes de alfabetização com crianças em
situações semelhantes. Não há fala, nem sentido. Há um sinal, uma referência imediata a
um objeto, ao que temos defendido em Cassirer. Fazer referência à palavra “água” não é
um exercício de atribuir sentido as coisas e é possível afirmar que o seu movimento de
referir-se ao mundo, neste caso, é mais semelhante à atividade dos animais que
propriamente a atividade humana. Não há interação da menina com o mundo
“propriamente humano”, pois o primeiro passo de Helen Keller na nomeação de seu
mundo é uma pantomima de sinais. Uma demarcação conceitual deve ser reforçada neste
momento. A exata experiência de atribuir sinais as coisas, ou “índices” como prefere o
biólogo Terrence Deacon, em sua obra The Symbolic Species (As espécies simbólicas), é
apontada por Cassirer:
40
“[Mais tarde] saímos para ir até a casa das bombas e fiz Helen segurar a
caneca dela debaixo da bica enquanto eu bombeava. Quando a água fria
correndo-lhe pela mão pareceu assombrá-la. Deixou cair a caneca e ficou
como que transfixada. Uma nova luz espalhou-se por seus rosto. Soletrou
“água” varias vezes. Então deixou-se cair e perguntou o nome dele e
apontou para bomba e para a treliça.”(CASSIRER, 1994, pg. 61)
Ora, o que acontecera com Helen Keller que a deixara transfixada e iluminara o seu
rosto? Ler a descrição é como ser lançado para uma cena em que uma menina é
transportada a outro universo, como se a porta de uma nova dimensão tivesse sido aberta e
um mundo cinza tivesse sido colorido gradativamente pelo movimento de descoberta em
cada objeto que tocava. Não era a descoberta de uma palavra que a espantava, mas
aplicabilidade universal dela, onde a palavra “água” não estava mais trancada em um
objeto, mas na multiplicidade de significados. Antes desta experiência na casa das bombas,
não parecia haver para ela nenhuma diferença entre a água contida na caneca e a que
jorrava pela treliça, assim como não havia diferença entre a água e a caneca: o vasilhame e
o conteúdo era um único objeto – algo para beber –, e ela não conseguia conceber que
“água” existisse independentemente do objeto em que a bebia. Na verdade, sua mente
trabalhava por indicação. Existe a “caneca d’água”. Água em outro contexto requer algum
outro sinal (tal como a experiência de Deacon com os macacos-vervet). No famoso
episódio junto ao poço, contudo “o mistério da linguagem foi revelado a mim”, disse Helen
Keller 17 , que entendeu com clareza (ou começou a entender) via o tato, tanto a
particularidade quanto a generalidade das palavras. Água, então, era a palavra para água na
caneca e água no poço e a água no rio e no oceano. Uma “caneca” podia conter água, leite
ou limonada, e havia canecas de formas e tamanhos diferentes, mesmo assim, o nome
“caneca” aplicava-se a todas”18.
17
Esta questão será aprofundada no terceiro capítulo do trabalho na relação da forma simbólica da linguagem na relação
com a atribuição de sentido, tendo o caso de Helen como exemplo mais ilustrativo desta relação
18
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15
41
como um instrumento inteiramente novo de pensamento. Um novo horizonte se abre a
partir deste momento, como uma criança que corre à vontade por uma área
incomparavelmente mais ampla e livre.
42
1.5.2 EFICÁCIA SIMBÓLICA EM LEVI STRAUSS
19
Os comentários que se seguem estão baseados nos capítulos IX e X, sendo respectivamente “O feiticeiro e sua magia”
e “A eficácia simbólica”, com objetivo de extrair de que forma o pensamento simbólico é parte da leitura social que
Strauss faz desses povos.
43
“a eficácia da magia implica a crença na magia, e que esta se apresenta
sobre três aspectos complementares: existe, inicialmente, a crença no
feiticeiro, na eficácia das suas técnicas; em seguida, a crença do doente
que ele cura, ou da vítima que ele persegue, no poder do feiticeiro,
finalmente, a confiança e suas exigências na opinião coletiva, que formam
à casa instante uma espécie de campo de gravitação no seio do qual se
definem e se situam as relações entre o feiticeiro e aquele que ele
enfeitiça” (STRAUSS, 1989, p. 194-195)
No primeiro exemplo, Strauss viaja até a tribo dos Nambikwara nas nascentes do
rio Tapajós, aqui mesmo no Brasil, em 1938. Relata que a tribo era organizada por um
chefe civil e um feiticeiro. Em determinado momento, o feiticeiro não apareceu no
acampamento (era um tribo nômade) à hora habitual. O grupo foi tomado de desespero,
mulheres que choravam, um estado de temor entre o coletivo imaginando que poderia ele
ter sido tragado por algum animal e o grupo evocava as consequências trágicas do
desaparecimento do seu feiticeiro. Após um longo período de espera, por volta das dez da
noite, um grupo sai à procura do seu dignitário e o encontra a duzentos metros de distância
do seu acampamento “silenciosamente acocorado, tiritando no frio noturno, desgrenhado e
privado (os Nambikwara não usam outras vestimentas) de seu cinto, colares e pulseiras”
(STRAUSS, 1989 p. 196). O feiticeiro lhes contara uma história sobre uma rápida
“viagem” (pequeno trajeto) realizada por intermédio de um trovão, como em um
teletransporte, causando uma comoção inicial a esse pequeno grupo sob a ótica de que, se
há algo de sobrenatural para acontecer, justifica-se que aconteça ao feiticeiro e seria aquela
uma prova concreta do poder sobrenatural que lhe fora entregue. Passado um período do
acontecido, uma nova versão da história foi evocada. Sendo o feiticeiro trazido de uma
tribo vizinha, e estando submetido a um outro chefe civil, utilizava a história do trovão
para motivações questionáveis, visando interesses particulares de sua tribo, o que
evidentemente fez o povo (não mais aquele pequeno grupo) da tribo Nambikwara
questionar a veracidade do fato após passado um tempo da experiência.
44
Após a narração deste fato, Strauss analisa que: tanto a experiência mágica
“vivenciada” pelo feiticeiro e validação daquele pequeno grupo, quanto à do povo em
questionar a veracidade das informações contadas na história após a reflexão, são
experiências que coexistem, principalmente se analisadas do ponto de vista da experiência
individual (pequeno grupo) e coletiva (povo):
45
canhões que porventura está tirando vantagem da guerra e ouve dele a real
intencionalidade de uma guerra para o lucro financeiro do vendedor, sua posição sobre a
guerra se fará conflitante em relação à liberdade que ela trará. No entanto, com a comoção
que a guerra traz ao povo e o indivíduo, ainda que saiba das motivações escusas, o autor
abre a possibilidade que as duas interpretações coexistam no mesmo individuo. Assim, o
mesmo indivíduo que desconfiava da guerra pela experiência com o negociante de canhões
estará em praça pública bradando a vitória e a liberdade. O primeiro exemplo do autor é
suficiente para encontrar a questão de como a experiência coletiva é estruturada por um
sistema de significação próprio, construído por um povo e, ainda que um indivíduo tenha
uma experiência contrária com determinada temática, o indivíduo agirá em favor do
sistema de significação dado pelo povo. Esta estruturação coletiva coexistirá com sua
percepção individual. No exemplo dado, ainda que o indivíduo questione o poder
sobrenatural do feiticeiro, a experiência coletiva validará para si mesmo o caráter
sobrenatural do feiticeiro.
46
número de novos detalhes, terminou por uma peroração patética onde lamentava a perda de
seu poder natural. Assim tranquilizados, seus auditores consentiram em libertá-lo”
(STRAUSS, 1989, pg. 201).
Levi Strauss, aponta para mais uma expressão da eficácia simbólica como efeito de
organização de uma cultura. No terceiro exemplo, temos a ocasião onde a criação de um
feiticeiro tem o seu apogeu no texto do autor na experiência do Quesalid que, impelido
pelo desejo de descobrir fraudes e pela curiosidade de investigar a dinâmica de
funcionamento dos grupos com os xamãs, aventura-se a aprender suas práticas.
“Um certo Quesalid (tal é, ao menos o nome que ele recebeu quando se
tornou feiticeiro) não acreditava no poder dos feiticeiros, ou, mais
exatamente, dos xamãs, visto que este termo convém melhor para denotar
um tipo de atividade específica em certas regiões do mundo; impelido
pela curiosidade de descobrir suas fraudes, e pelo desejo, de desmascará-
los, pôs-se a frequentá-los, até que um deles se ofereceu para introduzi-lo
em seu grupo, onde seria iniciado e tornar-se-ia rapidamente um dos
seus” (STRAUSS, 1989, pg.203)
48
estabelecidos. A eficácia simbólica age como articulação de sentido para aquela cultura
que olha para os lados ou para cima, e articula seu universo de sentidos em elementos
externos ao indivíduo. O funcionamento do homem no sistema simbólico, debatido até
aqui, contribui para entender como o homem articula o sentido: do homem simbólico de
Cassirer, ilustrado na figura de Helen Keller, às experiências dos povos primitivos, de
Strauss. Estas são expressões desse processo. No entanto, há uma questão a ser
aprofundada, balizadora da proposta deste trabalho. Como que esse homem simbólico que
a tudo significa pode viver, na contemporaneidade, uma crise de sentido? Não seriam os
mesmos meios de articulação de sentido do homem contemporâneo os encontrados nas
tribos primitivas? Em busca desta questão uma formulação sobre o sentido mais amplo, da
vida, poderá contribuir na busca por respostas mais claras ou, ainda, perguntas com
melhores formulações.
49
50
considerado e de explicitar seus diversos usos na trajetória do pensamento filosófico até a
modernidade VAZ (2002, p. 154).
Dois pontos são importantes para o autor no uso do termo “sentido” na linguagem
contemporânea: uma de maneira ordinária e outra de maneira filosófica. No primeiro
momento, chama de especificações mais vulgarizadas utilizadas na linguagem ordinária
como “sentido religioso”, “sentido moral” e outros exemplos que colocam o vocábulo
como uma expressão e força de linguagem. No segundo momento, Vaz delimita o campo
de estudo filosófico e se atenta a cada acepção técnica do seu uso na linguagem filosófica
contemporânea, considerando a lógico-linguística, a hermenêutica, a epistemológica e a
existencial. Há uma escolha de Lima Vaz neste momento, e seu critério é claro: ele escolhe
a lógico-linguística e a existencial por acreditar serem estas duas as acepções técnicas do
uso do sentido de maior abrangência no uso da sua expressão. Para ele, uma se configura
pelo significante e a outra pelo significado.
Ainda em caráter introdutório, Lima Vaz aponta entre as duas a que lhe desperta
atenção para a construção do seu argumento sobre a crise de sentido. Para o autor, estas
acepções são pontos de chegada de um longo caminho na história do pensamento
ocidental, e brevemente explicita a acepção lógico-linguística. Afirma que esta acepção
está presente desde a Idade Média, estando presente na filosofia moderna e encontrando no
século XX “o clima intelectual propício que tornou possível o seu pleno desenvolvimento
na filosofia da linguagem no século XX”. Para o autor, atualmente, é em torno desta
acepção que se concentra o interesse filosófico pelo problema do sentido. Após esta breve
51
descrição, Vaz reflete sobre a acepção existencial visando o que chama o “céu histórico da
modernidade”. Na visão do autor, a acepção existencial inaugura a reflexão filosófica na
Grécia e não tem por objeto inicial a linguagem, mas sim o ser, em suas diversas
manifestações, “seja ele o cosmos, a vida, o homem, o divino, ou próprio ser na sua
unidade absoluta, como na especulação eleática”. Para VAZ (2002, pg.156), a questão do
ser em torno do problema do sentido só se mostrará de maneira explícita a partir do
questionamento socrático. O problema da definição da areté como forma de vida melhor e
orientada para o Bem é considerado o momento inicial da questão do sentido em sua
acepção existencial.
Vaz resgata a proposta da reflexão filosófica grega (orientada para o Bem) para
além uma mera demarcação histórica sobre o fundamento da sua questão, mas faz uma
importante ponte de transição de uma reflexão baseada no homem do mundo antigo para
uma questão existencial do homem moderno. A reflexão de Vaz não é um caminho
arqueológico de Sócrates aos nossos dias sobre a questão existencial no problema do
sentido, mas as transformações sofridas na orientação do homem sobre o que responde ao
sentido de sua vida, sob o céu histórico da modernidade.
Uma análise importante que acreditamos ser uma contribuição para a leitura de Vaz
é que, até o advento da modernidade, as questões de sentido eram orientadas a algum
aspecto transcendente ao homem. O sagrado respondia ao todo do universo de significados
(como passível de observação no universo religioso) ou, no modelo grego, proposta sob a
busca do bem. A resposta para o sentido da vida estaria até este momento “trancada” a uma
única possibilidade, ou a um universo mais restrito de significação. Após a apreciação da
filosofia de Ernst Cassirer, junto com a polissemia de significados nas redes simbólicas, a
resposta de um sentido único parece não abarcar mais o desafio proposto pelo trabalho. O
que era até aquele momento articulado em um sentido, passa ser agora em sentidos. Para
Vaz, o céu da modernidade poderá ser o grande momento de transformação deste
movimento do homem em favor de uma polissemia, e pode lançar luz sobre estas
transformações ocorridas na modernidade. Vaz mantém na sua analogia astronômica do
“céu da modernidade” aquilo que a revolução copernicana representa em Kant.
52
A revolução copernicana é utilizada como ilustração para se pensar o impacto da
transformação nas coordenadas do universo mental do homem ocidental (de uma
referência única para uma polissemia de sentidos) em uma transição de referenciais. Vaz
explicita este movimento da seguinte forma, finalizando seu processo introdutório de
delimitação do problema:
53
O caminho “objetivado” do conhecimento do ser até o século XIII conhece o
“subjetivado” pela representação. A ontologia contida no modelo gnosiológico antigo-
medieval conhecerá, a partir do Renascimento, um movimento que transformará, na
concepção de Lima Vaz, a forma como o homem organiza seu universo mental. Para o
autor, o momento da ruptura entre a representação e o ser dar-se-á ao longo de um
complexo movimento de transformação nos fundamentos da vida espiritual e intelectual do
Ocidente. Lima Vaz chama a atenção para um marco na problemática da representação
ocorrida na chamada revolução no século XIV, referente ao novo tempo histórico vivido
pelo Renascimento, em que aparece para o autor como a primeira expressão da
modernidade. Neste momento, o autor aponta para a quebra de referenciais sofrida pelo
homem, não mais na alegoria astronômica – da revolução de Copérnico –, mas como um
edifício cujas estruturas de uma cultura antigo-medieval estão abaladas (ou “postas em
questão”, para usar a expressão do autor). É uma “inversão que passa a dar primazia à
representação no regime do conhecimento, a ela submetendo a face objetiva – o ser – do
objeto conhecido” (VAZ, 2002, p.158). Decifra o caminho do conhecimento e da
representação em sua evolução histórica até o advento da chamada modernidade, e atribui
ao êxito espetacular desta teoria há sete séculos apontando para o novo ciclo de civilização
que iria denominar-se “civilização moderna” ou “modernidade”. VAZ (2002, p.161),
escolhendo uma lente para olhar o problema da modernidade – o conhecimento – pôde
observar que o homem moderno assumiu o projeto de edificar um mundo simbólico
submetido a um sistema de medidas imanentes ao próprio homem. Neste cenário do século
XIV, o triunfo da representação sobre o ser consolida a profunda mudança na estrutura do
conhecimento intelectual em novos fundamentos desde a filosofia antiga.
A relação entre sujeito e objeto emerge então como o grande problema na teoria da
representação no que tange à ordem do conhecimento. A representação deixa de atuar,
conforme sugeria o olhar medieval, como um sinal que apontava para uma única direção
possível e é debatida na medida em que o sujeito cognoscente e o objeto no seu ser vai
sendo conhecido, abrindo assim um campo vasto de exploração em diversas perspectivas
que Vaz chama idealistas. Da filosofia medieval explorada por A. de Muralt a Ernst
Cassirer na contemporaneidade, o homem entra em um novo ciclo de civilização, e todos
54
os grandes domínios das atividades humanas começam a ser redefinidos e reordenados
segundo a nova matriz de conhecimento. Interessante notar que neste momento o autor
alcança na sua construção uma fortaleza de argumento na representação como forma de
conhecimento que é chave para a compreensão da modernidade. Desde o esclarecimento
histórico na filosofia antiga, passando pelas sugestões de construções medievais até o
ponto de virada do século XIV, Vaz encontra, neste momento, terreno fértil para explorar
em cada área da atividade humana (ética, social, política) as implicações desta teoria de
representação moderna.
55
As implicações destas consequências serão amplamente debatidas na etapa de
fechamento do ensaio. Neste momento, Lima Vaz se ocupa em esclarecer como esta nova
forma de conceber o conhecimento na primazia da representação, da relação entre sujeito e
objeto, da inversão completa, da reordenação radical, se expressa no que denomina
“grandes vertentes teóricas” que configuram o terreno cultural da modernidade: ciência,
ética, política e filosofia. Para o autor, o modelo poiético mostrou-se eficaz no trato das
questões relacionadas à Natureza, e contribuiu de maneira significativa para o
desenvolvimento do método empírico-formal, alcançando resultados inquestionáveis no
campo da ciência. Ela atribui ao método o caráter de elemento mais poderoso na criação da
tecnociência, alterando substancialmente o mundo humano como conhecemos e os hábitos
dos homens. Além desta contribuição para a Natureza científica, também proporcionou
enormes avanços para as ciências humanas. Nesse cenário de desenvolvimento do método
empírico-formal pelo modelo poiético, onde a Natureza é desenvolvida e avanços ocorrem
nas ciências humanas, Vaz encontra no desenvolvimento destas últimas uma crise
epistemológica, pois a mesma exatidão obtida nas ciências da Natureza não se aplica às
ciências humanas. A partir de então, a chave-mestra para o acesso ao problema do sentido
aparece no argumento do autor, porque, se esta dificuldade é explícita em lidar com a
representação no trabalho teórico das ciências humanas, as dificuldades se agravam nos
“saberes normativos da ética”, na política ou mesmo na metafísica, sendo esta última
fundamental na visão do autor. A ponte para o problema do sentido está posta e o autor
expõe o caminho até a problemática da seguinte maneira:
Lima Vaz a partir deste momento pretende delimitar a expressão da crise de sentido
no mundo moderno valendo-se da questão da representação. Tendo por longo o caminho a
respeito da totalidade do pensamento ético-político e do pensamento metafísico na história
intelectual do ocidente, assinala ser importante para a discussão apresentar o fundamento
56
gnosiológico sobre o qual teve lugar a “revolução copernicana” (aos moldes de Kant, a
mesma já citada anteriormente neste mesmo capítulo que operou uma inversão nas
direções fundamentais do universo simbólico do homem ocidental). Diante do campo
ético-político e metafísico, as mudanças das coordenadas humanas aparecem no argumento
do autor como a expressão do não sentido (ou da negação do sentido), e Lima Vaz, afirma
ser esse um dos sinais mais inquietantes da crise na modernidade.
Uma pausa no raciocínio do autor é importante neste momento. Como seria
possível um não sentido em um homem que a tudo atribui sentido o tempo todo? A
evidência de uma mudança do eixo referencial do homem, que atribui sentido em objetos
distanciados, assume agora o próprio homem como articulador de sentido, e neste processo
a crise de sentido se manifesta. O que terá o homem no lugar do sentido que anteriormente
era atribuído para além de si?
O autor reforça que a questão do sentido é, para o homem, suscitada pela
necessidade de traduzir a verdade do ser na verdade do conhecer, “onde o sentido desenha
a face humana da verdade, e nossa aspiração inata é a de que o sentido que damos às
proposições que enunciamos e, por elas, às coisas e aos eventos correspondam a verdade
do seu ser”. Se o sentido delineia a verdade do ser para homem, essa construção terá por
resultado uma polissemia de sentidos. O autor afirma que:
“Descobrir o sentido na floresta dos sentidos possíveis é, pois, a tarefa por
excelência do ser humano enquanto portador do logos, pois só a ele,
aberto constitutivamente ao ser e a verdade, é oferecido o supremo risco
de enunciar um sentido verdadeiro e, assim, de interpretar razões do ser
em razões do seu próprio viver” (VAZ, 2002, p.167)
Para Vaz, a problemática desta “extensão” poiética apresenta uma dificuldade mais
latente na práxis do homem moderno, e avalia essas implicações nas duas grandes regiões
do universo humano que exigem caminhos diversos de exploração a fim de obter uma
compreensão possível: a natureza e a liberdade. Considera a Natureza o campo das coisas
mensuráveis, razão matemática, em que o modelo poiético como forma de conhecimento
se apresenta de maneira extremamente fecunda. No entanto, a liberdade (como campo
58
inteligível da práxis) não pode ser mensurada e submetida a cálculo da razão. Para o autor,
sua essência é a orientação para o bem. E é no curso do seu movimento que o sentido se
constitui como sentido da vida, devendo nele transluzir a verdade do ser que aponta para o
bem, sendo a escolha pela liberdade no modelo poiético o bloqueio que seria inato do
homem para a direção do bem VAZ (2002, p.171). Para Lima Vaz, a experiência da
liberdade do homem ocidental na modernidade, como centro da história destes tempos
modernos, aponta para o homem uma experiência conflitante de duas instâncias. Na
primeira, a liberdade se apresenta como o lugar de nascimento do sentido na medida em
que, operando em sinergia com a razão no seu uso contemplativo, torna possível o
exercício da inteligência espiritual na qual ela é, fundamentalmente, consentimento ao
bem, sendo consentimento ao ser. Na segunda perspectiva, é também o lugar da gênese do
não-sentido onde o indivíduo se lança em um espaço incapaz de apreender o verdadeiro
sentido da liberdade e se aliena. Este momento acontece para Vaz quando o movimento
dialético entre a liberdade e razão inverte a direção do seu movimento (em favor do bem).
A incoerência desta crise, sintetiza Vaz, é que o homem vive a contradição de ser um ser
finito e situado para uma pretensão ontológica infinita, onde torna-se ser criador do
absoluto. Vaz conclui:
A problemática simbólica suscitada por Vaz não está mais presa apenas à
polissemia dos sentidos, mas à constatação de um homem que concentrou em si o sentido
último das coisas, e desenha uma face do niilismo ético da modernidade, de uma
civilização que ousou reivindicar para o sujeito a responsabilidade de suportar todo o
universo humano do sentido, ou seja, de constituir-se em fundamento último dessa verdade
do ser que o sentido deve fazer brilhar para o homem (VAZ, 2002, p.174). O autor afirma
ter, neste momento, chegado ao ponto alto da crise de sentido da modernidade em sua raiz
espiritual, quando o homem achava ter encontrado a fonte última do sentido (liberdade)
aparentemente triunfante. O homem apresenta uma profunda crise de um dever ético
59
fundamental que seria, para o autor, a instauração do sentido da vida do homem, ou seja, o
dever de realizar a verdade da sua existência.
Para Lima Vaz, não sairemos desta crise enquanto não superarmos a experiência do
não-sentido do humanismo antropocêntrico. É necessário dirigir as energias espirituais da
civilização para o reencontro da fonte transcendente do sentido, ou descobrir uma nova
estrutura da experiência do transcendente que se torne princípio de uma realização
autenticamente humana. Ele conclui assim o capítulo, apresentando um desafio à
modernidade:
61
2.2 O ABSURDO COMO ALTERNATIVA DE RESPOSTA
A crise de sentido, aprendida com Vaz, que tem origem na modernidade, parece até
agora não ter demonstrado uma tratativa satisfatória para responder o porquê de o homem
contemporâneo viver uma crise de sentido. A obra de Albert Camus insere um caráter
teórico e filosófico absolutamente esclarecedor à questão. Por isso, foi o autor escolhido
para a compressão da experiência na questão do sentido da vida. O autor apresenta a obra
O mito de Sísifo como alternativa de resposta à questão do sentido da vida e, como
mencionado, será um importante eixo de suporte da discussão. Seu ensaio tem por visada o
sentido da vida a partir de uma reflexão clara sobre o que o autor entende pela “condição
humana”. Camus dedica as quatro últimas páginas do seu ensaio para explorar o mito
grego que nomeia sua obra e segue um caminho árido na busca de dar forma ao que
considera ser a melhor representação da condição humana e sua relação com o mundo: o
absurdo.
Camus é didático no caminho que está propondo, e coloca como disparador da sua
discussão a problemática do suicídio, arriscando dizer ser ele o “único problema filosófico
realmente sério”. Seu argumento é que:
A partir deste raciocínio, Camus diz ser o sentido da vida a mais premente das
perguntas, e questiona-se como se deve responder a ela. Observar o disparador do autor
para sua investigação filosófica da condição humana pode trazer a ideia de tragédia, de que
fatalmente seu discurso será encaminhado a uma abordagem de valor “pessimista” em
relação ao homem. Mas o autor, a partir desta questão, sustenta um trabalho sério e de
honestidade intelectual, expondo as problemáticas e delimitando as questões até onde lhe é
possível apontar caminhos. CAMUS (2013, pg. 22) aponta que, ao se matar, o homem,
raramente o faz por reflexão (embora não descarte a hipótese), e aponta pelo menos seis
motivos. Sendo: 1) Que foi superado pela vida; 2) Que não a entende; 3) O caráter ridículo
62
do costume de fazer gestos que a existência impõe; 4) A ausência de qualquer motivo
profundo para viver; 5) O caráter insensato da agitação cotidiana; 6) A inutilidade do
sofrimento. Olhar a relação entre o suicídio e o absurdo, sendo o suicídio a solução para o
absurdo é a grande temática do ensaio. Se o suicídio apresenta seus argumentos de um
lado, para Albert Camus, esta luta em busca de sentido pode recuar, em outra extremidade,
àquilo que denominou de esquiva mortal, para uma saída bastante conhecida na filosofia e
muito difundida na religião:
Após uma ilustração do mundo absurdo, Camus investe uma profunda investigação
filosófica em Kierkegaard, Husserl, Jaspers e Chestov. Nesta empreitada, avalia o
movimento destes como suicídios filosóficos, ou seja, soluções rápidas para a realidade
massacrante dos desertos da existência. Não vamos nos aprofundar no ensaio sobre os
argumentos de Camus na contramão desta proposta filosófica a fim caminhar mais
lentamente naquilo que ele entende ser o homem absurdo.
64
“Aquele que sem negá-lo, nada faz pelo eterno. Não que a nostalgia lhe
seja alheia. Mas prefere a ela a sua coragem e seu raciocínio. A primeira
lhe ensina a viver sem apelo e a satisfazer-se com o que tem, o segundo
lhe ensina seus limites. Seguro da sua liberdade com prazo determinado,
da sua revolta sem futuro e de sua consciência perecível, prossegue a
aventura no tempo de sua vida. Este é sem campo, lá está a sua ação, que
ele subtrai a todo juízo exceto o próprio. Uma vida maior não pode
significar para ele outra vida. Seria desonesto.” (CAMUS 2013, p.73)
Para explicar o homem sedutor como expressão deste homem absurdo, Camus
recorre à história de Don Juan, dizendo que “quanto mais se ama, mais se consolida o
absurdo. Don Juan não vai de mulher em mulher por falta de amor. É ridículo representá-lo
como um iluminado em busca de amor total. Mas é justamente porque as ama com idêntico
arroubo, e sempre com todo o seu ser, que precisa repetir essa doação e esse
aprofundamento” CAMUS (2012, p.76). Para ele, Don Juan é um grande sábio e não
acredita no sentido profundo das coisas, contribui com mais um traço do homem absurdo
como aquele que não se separa do tempo. Para o autor, Don Juan não pensa em “colecionar
mulheres”. Esgota seu número e, com elas, suas possibilidades de vida. Colecionar é ser
capaz de viver no passado. Mas ele rejeita a nostalgia, essa outra maneira de esperança.
Não sabe contemplar retratos: Camus também protege Don Juan dos argumentos que ele
seja egoísta, pois sua concepção de amor está presa à mistura de desejo, ternura e
entendimento que o liga às mulheres que lhe relaciona, sendo esta a sua maneira de dar
amor e fazer viver. Don Juan é o desenlace feroz de uma alegria sem futuro. O gozo
termina aqui em ascese. Após a ilustração do homem sedutor, Camus aponta para o
segundo exemplo do comediante.
65
“Os comediantes da época se consideravam excomungados. Entrar na
profissão era escolher o inferno. E a igreja via neles seus piores inimigos.
Alguns literatos se indignam. “Como negar Molière 20 os últimos
socorros!” Mas isso era correto, sobretudo para ele, que morreu em cena
e acabou sob a maquiagem uma vida inteira dedicada à dispersão. Em
relação a ele, costumava invocar o gênio que tudo desculpa. Mas o gênio
não desculpa nada, justamente porque se nega a fazê-lo” (CAMUS, 2013,
p.86)
Camus resgata o ator como expressão do homem absurdo, que estabelece seu
reinado na experiência do palco, vivendo naquele espaço de tempo todas as emoções e
possibilidades possíveis. Como homem absurdo, é um viajante do tempo que transporta do
tempo e do espaço os personagens vividos. No período em que se apresenta, o ator vai até
o fim do caminho sem saída que o homem da plateia leva toda a sua vida para percorrer. O
absurdo da experiência do ator também não vê esperança, nem mesmo futuro, pois seus
personagens nascem com prazo de validade. Por fim, na sequência do argumento do
homem absurdo, Camus apresenta o conquistador:
20
Dramaturgo
francês
do
século
XVII
66
da montanha depara-se com a alegria da sua atividade. Ora, que atividade repetitiva como
esta poderia carregar alegria? Camus responde da seguinte maneira.
Não, Camus não está usando de ironia. Mersault é uma personagem embebida da
noção de absurdo e estava absolutamente desconfortável com o momento, e ainda
ressaltava em todo o tempo que a sentença não faria a menor diferença. O homem absurdo
de Camus sabe de onde veio e para onde vai, parece que para o autor ele é a resposta para o
sentido vida e, neste momento, perde o seu tom intrigante, quase infantil e ganha uma
robustez investigativa na direção de uma saída mais ajustada e menos ufanista. Para
concluir a abordagem sobre o homem absurdo, vale um escrito curto do próprio Camus na
obra O homem revoltado:
68
questão uma proposta de reflexão (mais curta) sobre o sentido geral da vida merece
atenção no trabalho, e o convite para o diálogo é feito ao filósofo Fernando Savater.
69
2.3 A VIDA SEM UM PORQUÊ
Fernando Savater propõe uma construção teórica importante para concluir nosso
raciocínio sobre o sentido da vida, possivelmente neste momento celebrando a proposta de
Camus. No processo de busca por um esclarecimento desta questão, nos deparamos com a
obra do autor As perguntas da vida, que dentre as muitas reflexões, reserva lugar especial
(no epílogo) para explorar a questão do sentido na experiência humana no que estamos
neste momento tratando como a busca de um “sentido da vida em geral”. A apresentação
do texto está dividida em três seções. No posicionamento filosófico, o sentido da vida é
uma pergunta religiosa e a conclusão proposta é de que a vida não tem sentido. O autor
inicia sua reflexão delimitando a atuação do filósofo nas grandes questões da vida e, para
contextualizar, organiza seus argumentos em torno do hábito histórico de rir dos filósofos.
Faz referências desde Tales de Mileto, que caiu em um poço olhando para o firmamento e
arrancando sorrisos das criadas que passavam por ali, ao texto de Luciano de Samosata
(Século II d. C) onde Zeus, com a colaboração de Hermes, organiza um leilão onde os
compradores pagavam de acordo com a utilidade da doutrina dos leiloados. Os mais
cotados eram Sócrates e Platão a dois talentos cada um, e Heráclito, por exemplo, é
retirado por falta de comprador (SAVATER, 2001, p. 205)
O autor, para concluir seu discurso sobre o papel do filosófico, seleciona elementos
essenciais da formação do filósofo, indicando pontos chaves que um professor de filosofia
jamais deveria esconder dos seus alunos e que, para nossa reflexão, dois deles chamam a
atenção para o caminho até o sentido. A primeira é que não existe “a” filosofia, mas “as”
filosofias e, sobretudo, o filosofar, debatendo novamente contra a ideia de questões
concluídas em sistemas filosóficos e reflexões presas a grupos fechados com vocabulários
próprios. A outra ideia exposta é a de quê não existem “deuses” com opiniões
intransponíveis na filosofia, que o autor vê como um ramo da arqueologia e muito menos
simples veneração de tudo que vem assinado por um nome ilustre. A ideia central de
Savater, nesta primeira abordagem, não está apenas presa a um modelo de pensamento ou
posicionamento sobre o papel do filósofo frente às questões da vida, mas estas ideias
norteadoras serão de extrema importância para compreender a construção do filósofo até a
questão do sentido da vida alinhada ao seu posicionamento filosófico. O autor mantém sua
construção a respeito do papel do filósofo, apontando um exemplo prático de uma postura
adequada do filósofo nas perguntas a respeito do sentido da vida, atribuindo à questão um
caráter inteiramente religioso:
71
uma frase é o que ela quer dizer; o sentido de uma sinal é o que ele quer
indicar (uma direção, o escalão de uma pessoa, etc.) ou o que quer avisar
(um perigo, a hora de levantar, a passagem de pedestres, etc.); o sentido
de um objeto é aquilo para que ele quer servir (tomar a sopa, matar o
inimigo, falar com alguém que está longe, etc.); sentido de uma obra de
arte é o que seu autor quer expressa (uma forma de beleza, a
representação do real, a insatisfação diante do real, a ilusão do ideal, etc.);
o sentido de uma conduta ou de uma instituição é o que se quer conseguir
por meio dela (amor, segurança, diversão, riqueza, ordem, justiça, etc.)”
(SAVATER, 2001, p. 211)
O sentido, para o autor, está relacionado à intenção que anima alguma coisa, uma
visada dada para esta coisa, como nos exemplos apresentados. Mais um exemplo concreto
que o autor retrata é o tropismo das plantas. A planta o realiza reagindo àquele ambiente
visando a preservação da sua vida com uma intenção específica, que se explica na própria
vida. Diante desta intencionalidade vital, o autor pergunta-se: se as intenções vitais são a
única resposta inteligível à pergunta pelo sentido, como poderia a própria vida ter
“sentido”? Para SAVATER (2001, p. 211), se é próprio do sentido de uma coisa remeter
intencionalmente a outra coisa que não a si mesma, o que a vida quer? A questão que fica
ao leitor então é: qual a saída para pensar o sentido no âmbito da vida?
A questão sobre o sentido da vida não é possível de ser respondida. E mais: não é
possível de ser concretamente formulada, pois qual seria a finalidade da vida se todas as
coisas intencionam a própria vida? Como seria possível o sentido da vida em seu conjunto?
Amparado na conclusão que a pergunta sobre o sentido é uma pergunta religiosa, e que o
posicionamento do filósofo na questão não é concluir, mas ampliar a questão e torná-la
72
filosoficamente válida, Savater caminha para uma exposição que culminará na afirmação
que a vida, em si, não tem sentido e defende que isto não é um absurdo:
“Não é absurdo que a vida em seu conjunto não tenha sentido, porque não
conhecemos intenções fora das vitais, e mais além do âmbito intencional
a pergunta pelo sentido... carece de sentido! (...) Realmente “absurdo” não
é a vida não é a vida carecer de sentido, mas nos empenharmos em que
ela deva tê-lo” (SAVATER, 2001, p. 213)
Ora, se a vida não tem sentido, e o autor não considera isso um absurdo, porque nos
empenhamos em buscar que a vida deve ter sentido? A resposta para esta pergunta em
Savater é que, cada vez que nos perguntamos sobre o sentido da vida, o que queremos
saber é se “nossos esforços morais serão recompensados, se vale a pena trabalhar
honradamente e respeitar o próximo, ou daria na mesma entregar-se a vícios criminosos,
em suma, se nos espera algo além e fora da vida ou só à tumba, como parece evidente”.
Continua o autor:
A alegria de Sísifo encontra eco em Savater. Se o mundo em que vivemos não pode
acomodar um sentido ou significado próprio, somos nós, enquanto vivemos nele, que
atribuímos significados heterogêneos. Este sentido, como já exposto por Lima Vaz, é algo
que damos à vida e ao mundo em face de todas as questões que nos aprisionam, e de toda a
experiência e noção absurda sobre ela. Como diria Savater (2001): “Vitória significativa e
derrota insignificante porque morre o indivíduo, mas não o sentido que quis dar à sua
vida... esse fica para nós, seus companheiros de humanidade”.
A vida não carrega em si um sentido geral, não pode apontar um sentido que
compreenda toda a sua definição. Aliás, transitar por ela é viver no limite da experiência
do absurdo, buscando alternativas para superar esta falta de sentido. Uma nota é importante
neste momento: a pergunta sobre o sentido da vida, tal como a definição do homem e
presença na cultura do primeiro capítulo, é ilustrado na experiência. A questão sobre o
sentido da vida acompanha neste trabalho o mesmo movimento do capítulo um. É gerado
pela pergunta de uma observação quase aleatória. É fundamentada nos pressupostos da
filosofia e, neste momento, será retomada na experiência sensível do homem. Se o homem
pós-moderno de Lima Vaz vive um não-sentido, e a experiência desse homem é reforçada
por Camus como um não-sentido inerente à condição humana, a saída de Savater para a
possibilidade de um sentido não geral, mas específico, merece atenção ao final do capítulo
e será explorado em uma experiência limite do homem, aquela que seria, possivelmente, a
experiência mais indigesta de não-sentido do homem pós-moderno: O limiar de
Auschwitz.
74
2.4 UMA EXPERIÊNCIA LIMITE: AUSCHWITZ
Jaanne Marie Gagnebin, em sua obra Lembrar, escrever e esquecer, propõe uma
reflexão sobre a importância da escrita rememorativa, como fonte de revisitar o passado e,
de algum modo, reescrever o presente. O quinto ensaio de sua obra está intitulado “Após
Auschwitz”, segundo a própria autora fruto de um colóquio sobre a temática com outros
colegas. No entanto, uma sentença em especial chama a atenção na discussão técnica sobre
a escrita, a percepção adquirida pela autora sobre esse silêncio na história recente da
humanidade.
A discussão em Primo Levi para nossa questão, parece ser a mais indigesta das
duas – se isso, de algum modo, é possível. O autor introduz sua obra É isto um homem?
reforçando que “já é bem conhecido do leitores de todo o mundo com referência ao tema
doloroso dos campos de extermínio” e que este trabalho não havia sido escrito “para fazer
novas denúncias; poderá antes, fornecer documentos para um sereno estudo de certos
aspectos das alma humana” (LEVI, 1998, p.07). A experiência do escritor italiano no
75
campo de concentração foi retratada, como as demais descrições conhecidas, na eminência
da morte. Se há algo de comum nas experiências registradas é a certeza de que em todo o
tempo a possibilidade da morte está à espreita, seja por doença ou simples
desentendimento com um oficial da SS. O autor avalia que, na experiência limite de
contato presente com a morte, “cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a
felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que
também é irrealizável a infelicidade completa” (LEVI, 1998, p. 17). Na perspectiva de
quem está diante da morte, sabendo que suas chances são poucas e que a resposta é mais
provável é a de morrer – a construção teórica de Camus parece verossímil o bastante. O
momento presente não permite alimentar grande esperanças sobre a realidade futura, ainda
mais no caso de Primo Levi que, das 45 pessoas que estavam em seu vagão quando
desembarcou em Auschwitz, apenas quatro tornaram a ver suas casas. Ele avalia que seu
vagão foi um dos mais afortunados. Na chegada a Auschwitz, o silêncio que ecoaria
posteriormente nesta lacuna da humanidade, é sentido por Levi:
“Tudo era silêncio, como num aquário e como em certas cenas de sonhos.
Teríamos esperado algo mais apocalíptico, mas eles pareciam simples
guardas. Isso deixava-nos desconcertados, desarmados. Alguém ousou
perguntar pela bagagem, responderam: “Bagagem depois; outros não
queriam separar-se da mulher, responderam: “Depois, de novo juntos”;
muitas mães não queriam separar-se dos filhos; responderam-se: “Está
bem, ficar com o filho”. Sempre com a pacata segurança de quem apenas
cumpre com sua tarefa diária; mas Renzo demorou um instante a mais ao
se despedir de Francesca, sua noiva, e derrubaram-no com um único soco
na cara. Essa também era a tarefa diária” (LEVI, 1998, p.21)
Se Levi, viu a violência logo na entrada do campo, para Frankl não foi diferente:
“Sobre os corpos nus descem chicotes. Somos levados para outra sala.
Então raspam o pelo de cima a baixo. Não somente da cabeça; não fica
um pelo no corpo inteiro. Dali somos tocados para dentro dos chuveiros
Entramos mais uma vez na fila. Um prisioneiro mal reconhece o outro.
Mas com grande alívio e alegria que alguns constatam que dos chuveiros
realmente sai água...” (FRANKL, 2008, p.39)
77
em atribuir sentido à vida sabendo elementos mínimos de identidade, essa tarefa torna-se
ainda mais difícil quando esta lhe é retirada. A perda de identidade em Auschwitz recebe
uma tintura diferenciada nas obra dos autores. Primo Levi em mais de um momento da sua
obra lembra momentos em que sua identidade vai se perdendo aos poucos, como o gotejar
inicial da torneira na sala vazia na chegada ao campo de concentração. Refere-se aos
colegas de campo inúmeras vezes como corpos, esqueletos (p.67), rostos pálidos, bonecos
sórdidos, miseráveis e fantasmas (p.32), relatando a respeito de si mesmo “Meu nome é
174.517” (p. 33). Ele continua a descrição com uma pergunta:
“eles nos ouvem falando muitas línguas diferentes que não compreendem
e que lhes soam grotescas, como gritos de bichos; veem-nos escravizados
ignobilmente, sem cabelo, sem honra nem nome, a cada dia espancados, a
cada dia mais abjetos, e nunca leem nosso olhar uma luz de revolta, de
paz, ou de fé. Sabem que somos ladrões e indignos de confiança, sujos,
esfarrapados, esfomeados, e, trocando o efeito pela causa, julgam-nos
merecedores da nossa abjeção. Quem poderia distinguir nossos rostos?”
(LEVI, 1998, p.179)
78
recuando a uma pantomima de sinais mais restritos? Talvez fosse uma questão mais
profunda para um segundo trabalho, mas a hipótese não parece absurda, principalmente se
levarmos em consideração este relato de primo Levi:
21
As “famosas ervilhas” também são lembradas em Primo Levi. Seriam meras ervilhas, se não fosse a grande
símbólica de recompensas para os prisioneiros e motivição para o trabalho: “Sabemos que não é a mesma
coisa receber uma concha de sopa retirada da superfície, ou do fundo do panelão, e já estamos em condições
de calcular, na base da capacidade dos diversos panelões, qual é o lugar mais conveniente que entramos na
fila.”(LEVI, 1998, p.43)
79
Primo Levi revalida a polissemia de significados dos símbolos, sua percepção sobre
as músicas entoadas no campo de concentração não parece ecoar em Viktor Frankl:
80
convite do autor para a experiência trágica do campo de concentração assume um convite
mais próximo de uma experiência de esperança e maior que um instante momentâneo:
Para Victor Frankl, a pergunta do sentido da vida também está enraizada em cada
célula da experiência humana e reforça ainda “que a vida tem um sentido potencial sob
quaisquer circunstâncias, mesmo as mais miseráveis.” (FRANKL, 2008, pg.10). Quando se
refere a seu livro, reforça a importância da temática que é questão central neste trabalho, a
partir de uma evidência também pouco empírica ou fundamentada filosoficamente: o fato
de seu livro ser uma expressão da miséria dos nossos tempos. Se centenas de milhares de
pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida,
deve ser uma questão que as está incomodando muito (FRANKL, 2008, pg. 09).
81
82
3. A LINGUAGEM COMO PRINCÍCPIO ORGANIZADOR
83
que desenvolvera uma teoria em que o mito era subproduto da linguagem. O primeiro
movimento proposto por Cassirer em seu texto é separar estes universos a partir da
perspectiva do homem primitivo. Para ele a linguagem – por sua própria natureza é
metafórica, sendo incapaz de descrever coisas diretamente – recorre a modos indiretos de
descrição, a termos ambíguos e equívocos. Ele acredita ser este o eixo de ligação a qual se
ancora a similaridade proposta por Max Muller. Para o autor, mito e linguagem atuam com
similaridade por uma questão natural, no seguinte exemplo avalia a ação primária da
criança no trato da linguagem:
A criança passa a responder ao mundo que a rodeia, não mais com reações fisiológicas,
insere em suas ações um processo simples de reflexão que precede sua ação. Na visão de
Cassirer, o homem primitivo estabelece com a natureza de forma total a mesma relação
que a criança, como a mãe na mobilização (ou manipulação) na direção de um favor ou
qualquer outro efeito necessário diante dos perigos visíveis e invisíveis aos quais é
submetido. O homem primitivo, enxergando a natureza como interligada, suscita a função
da palavra mágica para superar os perigos. Por meio da palavra mágica, o homem encontra
uma maneira de evocar os poderes da natureza de uma maneira específica e manipulá-la a
favor de seus interesses. No entanto, o homem descobre que a natureza é inexorável, não
porque não atendia as suas exigências, mas porque não entendia a linguagem que ele
falava. Para o autor, há nesse momento uma transição da relação do homem com a palavra.
Ora, se o efeito da palavra mágica não era mais o mesmo, se provavelmente (na visão de
Cassirer) o homem se frustraria com isto e não teria aberto outro caminho se não
encontrasse nesta relação com a linguagem uma possibilidade mais promissora, a partir
deste momento surge para o homem a palavra com uma função semântica. Já não é mais
mágica, pois a palavra deixa de ser dotada de poderes misteriosos, não tem mais influência
84
física ou sobrenatural direta, não pode interferir na natureza, nem modificá-la e, muito
menos, mobilizar forças sobrenaturais. Mas, como reforça Cassirer, nem por isso deixa de
perder o seu poder, na função semântica. A expressão que o autor utiliza é que “o Logos
torna-se o princípio do universo e o primeiro princípio do conhecimento humano”
(CASSIRER 1994, p.184).
A função simbólica, por meio da linguagem, é o processo que leva o homem de uma
“palavra de manipulação” para a semântica das palavras, a potência física da palavra na
modificação da natureza perde força para um ganho de articulação lógica. Como o fez em
outros momentos de sua obra, o autor alemão retoma o histórico de uma temática a fim de
ampliar a visão sobre o problema estudado. Nesta altura do seu argumento recorre a
Heráclito como marco desta transição do homem da palavra mágica a semântica em
direção ao Logos.
“Não é no mundo material, mas no humano, que está a chave para uma
interpretação correta para a ordem cósmica. Neste mundo humano, a
faculdade da fala ocupa um lugar central. Portanto, precisamos entender o
que a fala significa para entendermos o “significado” do universo. Se
deixarmos de encontrar esta abordagem – a abordagem por meio da
linguagem em vez de pelos fenômenos físicos – não enxergamos a porta
da filosofia” (CASSIRER, 1994, p.185).
Há uma forma de relação do homem com o mundo de forma “não material”. Na relação
que o homem estabelece com a fala não é diferente. Logo, observar a fala não é apenas o
fenômeno físico de uma mera emissão de sons, mas uma perspectiva mais abrangente que
precisa de atenção. Para Cassirer (1994), esta reflexão para além de uma experiência
antropológica já está presente no argumento de Heráclito: o “logos” não é a expressão
confinada nos limites do nosso mundo humano, pois carrega em si uma verdade cósmica
universal. A diferença neste momento é que, em vez de ser um poder mágico, como queria
o argumento anterior, a palavra é entendida em sua função semântica e simbólica, pois
carrega em si uma carga de significado para além de uma realidade funcional, imediata.
Para CASSIRER (1994), neste momento a filosofia grega passa de uma filosofia da
natureza para uma filosofia da linguagem, o que inaugura uma nova realidade com grandes
dificuldades. Como continua o autor, é possível que haja algo mais desconcertante e
controvertido que o “significado do significado”. Se é verdade que até hoje psicólogos,
85
linguistas e filósofos sustentam opiniões absolutamente divergentes sobre o significado, a
filosofia grega não podia, para o autor, enfrentar diretamente este problema em todos os
seus aspectos. Algumas verdades emergem para esta teoria. A primeira é que o sentido
deve ser explicado em termos de ser, pois seria o que liga o ser ou substância à realidade.
Logo, uma palavra não poderia significar uma coisa se não houvesse uma identidade
parcial entre as duas. Para o autor, teremos assim uma teoria que conseguirá abranger uma
teoria geral do conhecimento, mas apresentará limitações para a formulação de uma
filosofia da linguagem:
No entanto, Cassirer não demora a dizer que esta teoria começa a ruir na primeira
tentativa de utilizá-la sob a ironia de Sócrates. Segundo o autor, Platão tentara embasar seu
argumento (no diálogo Kratylus) de que toda linguagem tem origem na imitação de sons de
maneira ingênua. A objeção ao argumento de Platão nasce do movimento de análise das
palavras da linguagem comum, e da percepção de que na maioria das vezes há uma lacuna
entre sons e seus objetos. Embora ela também pudesse ser removida na ideia de que a
linguagem humana ao longo do tempo sofre mudanças e deterioração e, para não nos
acomodar nesta ideia, Cassirer (1994) propõe um caminho de volta à origem do vínculo
que une os sons a seus objetos e encontra a etimologia. Segundo o autor, para regressarmos
ao étimo, a forma verdadeira e original de cada termo, em um movimento que se firmou
como um dos princípios da filosofia da linguagem e, até o século XIX, não recebera
nenhum tipo de tratativa científica, o autor retoma as formulações gregas em Heráclito e
Platão e estende o “caminho” até os sofistas. Para o autor, os sofistas foram os primeiros a
empregar uma tratativa mais sistemática dos problemas gramaticais e linguísticos, em que
uma teoria da linguagem teria de resolver tarefas mais urgentes, tais como “ensinar-nos a
falar e a agir no nosso mundo social”, perpassando pela utilidade nas lutas políticas. Isso
culminaria na ideia de que os nomes não estariam apenas a serviço de expressar “a
86
natureza das coisas, sua verdadeira tarefa não é descrever as coisas, mas despertar emoções
humanas; não transmitir meras ideias ou pensamentos, mas incitar os homens a certas
ações” (CASSIRER, 2004, p.188)
Após a construção deste caminho até aqui, o autor conclui um caminho de três
aspectos da função e do valor da linguagem: o mitológico, o metafísico e o pragmático,
afirmando que nenhum deles parece apontar a direção correta, por deixar de apresentar o
que considera a característica mais evidente da linguagem: “as expressões humanas mais
elementares não se referem a coisas físicas, nem são arbitrárias, mas são expressões
involuntárias de sentimentos, interjeições e exclamações humanas” (CASSIRER, 1994,
p.189-190).
O autor alemão aponta que Demócrito foi o primeiro a propor que a fala humana
tem origem em certos sons de caráter meramente emocional, acompanhado por seus
sucessores Epicuro e Lucrécio. As ideias ali desenvolvidas exerceram influência sobre a
teoria da linguagem até os dias de hoje. Finalmente, para Cassirer, do ponto de vista
científico, a fala humana pode ser reduzida a um instinto fundamental implantado pela
natureza em todas as criaturas vivas. Exclamações violentas – medo, raiva, dor e alegria –
não são uma propriedade específica do homem, pois as encontramos por toda parte do
mundo animal. Isso torna plausível a causa social da fala ser atribuída a uma causa
biológica geral. Se seguirmos Demócrito, “a semântica deixa de ser uma província
separada; torna-se um ramo da biologia e da fisiologia” (CASSIRER, 1994, p.191). No
entanto, Cassirer está desde o início de sua obra ocupado a distinguir elementos da
atividade humana sem comparações com o reino animal. Para o autor:
87
A passagem da linguagem proposicional para a linguagem emocional é o limiar das
expressões animais para a atividade humana. Um animal, por mais articulada que seja sua
formulação de sons e gestos em distinção e abrangência, para expressar sentimentos não
possui a capacidade de designar ou descrever um objeto. A fala, como característica da
atividade humana, permite articular os sentidos das palavras, objetivar e sistematizar no
que seria, para Cassirer (1994), a tarefa principal e mais importante da linguagem humana.
Diante da comparação com os animais, Susanne Langer insere-se na discussão
complementando a visão de Ernst Cassirer sobre a limitação dos animais que
impossibilitam uma semelhança direta com a atividade humana:
“Os animais, por outro lado, são todos destituídos de fala. Eles se
comunicam sem dúvida; mas não por algum método que possa comparar-se
ao falar. Expressam emoções, indicam seus desejos e controlam o
comportamento um dos outros por meio de sugestão. Um macaco tomara
outro pela mão e o arrastará a um jogo ou para sua cama; estenderá a mão
para implorar comida, e às vezes, recebê-la-á. Mas até os macacos
superiores não apresentam qualquer indício de fala (...)Se os macacos
realmente utilizassem sons definidos semelhantes a palavras para
simbolizar sentimentos e possivelmente também ideias, seria difícil negar
seu poder de fala. Mas todas as descrições de seu comportamento mostram
que eles empregam tais sons apenas para indicar as sensações e talvez os
desejos. Suas expressões vocais de amor são sintomas de uma emoção, não
o seu nome, nem qualquer outro símbolo que represente (como o coração
em um cartão de namorados). (LANGER, 2004, p.112- 113)
89
3.2 HELEN KELLER E A CONQUISTA DO HUMANO
A construção exposta até este momento sobre a rede simbólica e o sentido da vida
aponta para um caminho ainda pouco integrado. Afinal, saber que o homem é um animal
simbólico que em tudo busca atribuir sentido também nos levou a um caminho
aparentemente oposto, guiado pela impossibilidade de se atribuir um sentido geral para a
vida que transcenda a experiência humana. Uma conclusão até aqui contribuiu para
propormos um caminho de conexão, a personagem chave da experiência simbólica descrita
por Cassirer, Helen Keller, cria uma hipótese como um exemplo claro do homem
simbólico imergindo de uma experiência semelhante a animal (aos moldes de Cassirer)
para a rede simbólica, a abundância de sentidos e como consequência a conquista do
humano.
90
de vida, acontecer por alguém que não experimentou esse processo natural em seus
primeiros passos na fala. Em Cassirer (19944), a ideia é defendida na perspectiva de que as
crianças frequentemente ficam muito confusas ao saber pela primeira vez que nem todo
nome de objeto é um nome próprio, que a mesma coisa pode ter nomes diferentes em
lugares diferentes. Elas tendem a achar que uma coisa “é” aquilo que chamam. Mas este é
apenas o primeiro passo. Toda criança normal aprende logo que pode usar vários símbolos
para expressar o mesmo desejo ou pensamento. No caso de Helen Keller, segundo
BERGER,22 a menina encontrou a linguagem vinda de um universo de fora dela. Ou seja,
ao contrário das crianças que escutam a linguagem e instintivamente associam ao seu
mundo as palavras e seus significados, para Helen Keller a linguagem aparece como um
objeto estranho não participante do seu mundo. No prefácio do editor na obra A história da
minha vida, assinada pela própria Helen Keller, há um interessante tópico construído por
James Berger: a educação de Helen Keller, uma história de linguagem. Para Berger, a
maioria das pessoas experimenta a transição para a linguagem ao passar pela fase de bebê
para a infância e a maturidade. Contudo, são os casos especiais – como o de Helen – que
parecem mais atrativos e ilustrativos. A cena de Helen Keller junto à casa de bombas
merece ser rememorada neste momento para ilustrar a entrada da menina no mundo da
linguagem, desta vez com o depoimento da própria Srta. Keller:
22
KELLER, H. A história da minha vida. Tradução de Myriam Campello. Ed. Revista. Rio de Janeiro, 2008, p.15
91
simbólico emerge na experiência e o resultado disto para menina foi o ganho do mundo
humano ideal na realidade simbólica. Helen adentra a linguagem e compreende o exato
efeito da fala na linguagem. Para Cassirer (1994), ilustrou o fato de que, com o primeiro
entendimento do simbolismo da fala ocorre uma verdadeira revolução na vida da criança.
A partir desse momento, toda a sua vida pessoal e intelectual assume uma forma
inteiramente nova. De um modo geral, essa mudança pode ser descrita – em Cassirer -
dizendo que a criança passa de um estado mais subjetivo para um estado objetivo, de uma
atitude simplesmente emocional para uma atitude teórica. A mesma mudança pode ser
observada na vida de qualquer criança normal, embora de maneira muito menos
espetacular. A própria criança tem um sentido claro de significado do novo instrumento
para o seu desenvolvimento mental. Ela não se satisfaz em aprender de modo puramente
receptivo, mas assume um papel ativo no processo de fala, que é ao mesmo tempo um
processo de objetivação progressiva. Assim como para Helen, o ganho para o universo
simbólico foi uma experiência absolutamente iluminadora, sua professora Anne Sullivan
também descreveu esse processo, dizendo que:
“Eu tinha agora a chave para toda a linguagem e estava ansiosa para
aprender a usá-la. As crianças que ouvem, aprendem a linguagem sem
qualquer esforço especial; as palavras que caem dos lábios alheios são
pegas por ela no ar, como se diz, prazerosamente, enquanto a criança
surda precisa aprendê-la numa armadilha através de um lento e
geralmente penoso processo. Contudo, seja qual for o processo, o
resultado é maravilhoso. De nomear um objeto, avançamos gradualmente
passo a passo até atravessarmos a vasta distância entra a nossa primeira
92
sílaba gaguejada e o relâmpago de um pensamento num verso de
Shakespeare” (KELLER, 2008, p.28)
94
CONCLUSÃO
O autor nos entregou o primeiro delimitador relevante para pensar o homem, a ideia
de que, se ele seria adequadamente definido como animal (como queriam os biólogos), não
seria a racionalidade seu traço mais característico, mas o símbolo. Logo, o que já era
consenso entre a comunidade científica do homem como animal racional, dá lugar em
Cassirer ao animal simbólico. As evidências do autor para justificar seu posicionamento
lançaram luz em pontos importantes para o desenvolvimento deste trabalho. O primeiro
ponto – qualquer animal se desenvolveu num meio que emprega um sistema receptor e
efetuador. Os exemplos deste universo dos animais foram explorados também em Aganben
(2130) – não o universo no qual estes animais reagem aos estímulos oferecidos pela
natureza em vez de estar apenas se adaptando ao seu ambiente, mas se ajustando
devidamente diante de qualquer variação no seu universo de interação para que continue
95
sobrevivendo a este mundo. No homem, este sistema de recepção e efetuação funciona a
mesma forma. No entanto, para Cassirer (1994. P. 47-48), o homem descobriu um novo
método para adaptar-se ao seu ambiente. Entre o sistema de recepção e de efetuação
desenvolveu um terceiro chamado sistema simbólico, que lhe possibilita não apenas uma
realidade mais ampla, mas principalmente uma nova dimensão da realidade. Esta
conclusão sobre o homem simbólico nos encaminhou para um segundo ponto importante
na conclusão: a rede simbólica de Cassirer, como filósofo da cultura, está em todo o tempo
buscando encontrar organizadores para a atividade humana no mundo. O conceito de rede
simbólica consolida o raciocínio do autor nessa direção: para Cassirer (1994), o homem se
envolve de tal maneira na atividade de produzir símbolos que não consegue acessar a
realidade de nenhuma outra maneira que não pela interposição desse meio artificial. Duas
experiências validaram a proposta do autor: Helen Keller e Levi Strauss.
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um mundo científico altamente expressivo, o retorno de uma resposta filosófica trouxe à
tona a possibilidade de pensar o homem com um fator organizador: o símbolo.
A ideia de que se a vida não tem um sentido único, no homem simbólico ela pode
ter sentidos. Na multiplicidade de significados e de formas simbólicas, o homem acessa o
mundo pela rede simbólica e em todo o tempo atribui um sentido. Sísifo estabeleceu um
sentido, menor, não abrangente da vida como um todo e o nomeou como alegria. Em
Savater, felicidade. Para os prisioneiros de Auschwitz, momentos de contemplação e
reflexão em uma expectativa futura aliada a experiências com a família. No caos, Levi e
Frankl encontraram, em um universo mais restrito, alternativas possíveis de sentidos
momentâneos. O homem simbólico de Cassirer ganha força e mais expressão diante das
difíceis questões existenciais enfrentadas no capitulo dois. Para nós fica a constatação de
que, de fato, a vida não tem um sentido, mas a possibilidade de uma infinidade de sentidos.
Identificá-los nas situações cotidianas, no momento presente, estão entre as alternativas de
resposta para o homem contemporâneo. Diante do sentimento do absurdo, a saída pela
esperança não é uma resposta legítima para Camus, mas se assim o entender o homem
contemporâneo, a esperança pode estar – como em Viktor Frankl em Auschwitz – na busca
por um mundo “ideal” como quer Cassirer nas diferentes formas simbólicas.
A evidência das conclusões propostas até aqui ganham vida no seu exemplo mais
significativo no capítulo três: a história de Helen Keller e sua entrada no universo
simbólico pela linguagem. Para compreender a forma simbólica da linguagem, algumas
conclusões em Cassirer foram importantes. Aparentemente, um caminho repetitivo seria
dizer que Cassirer novamente dialoga com os biólogos de seu tempo. No entanto, vale
reforçar que o autor está inserido no debate científico do século XX em uma
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predominância científica a respeito do homem. Para Cassirer (1994), a fala humana é o
aspecto característico da diferença para os sons emitidos pelos animais. Diante de qualquer
possibilidade de uma similaridade aparente, há um traço característico que demarca o
distanciamento de um animal em detrimento do homem. Em Susanne Langer (2004)
encontramos mais evidências da tese defendida por Cassirer e nos serviu de base segura
para pensar a experiência de Helen Keller como um salto para o mundo humano. Na
história de Helen Keller, o ganho para um mundo humano assume forma em diversos
relatos da sua professora Anne Sullivan, com especial atenção para o ganho do senso ético
(KELLER, 1998, p. 21), relação com o sagrado e o amor (p. 22), e todas as outras
expressões relatadas pela própria Hellen Keller, que responde a esta experiência, com uma
resposta existencial, de maneira que merece ser rememorada: “antes da chegada da minha
professora, eu não sabia que eu era” – escreveu em The World I Live In – “eu vivia num
mundo que não era um não-mundo, não tinha vontade nem intelecto (...) apenas um certo
ímpeto natural cego”. Diante de todas as experiências de Helen Keller, em uma leitura
sobre a sua entrada no mundo simbólico na experiência na cisterna e o relato da sua alegria
ao descobrir, pela linguagem, a efeito simbólico das palavras e seus significados,
encontramos a evidência de um ganho de sentido. Não foi possível afirmar que a Srta.
Keller articulou todo o sentido da sua vida, mas com alguma convicção podemos dizer que
descobriu naquele momento algum sentido, ou ainda, uma forma de atribuir sentido, pela
linguagem.
Helen Keller é o animal simbólico de Cassirer. Para nós é uma possível resposta
diante da pantomima das coisas e do desafio de romper com o suceder de dias sem sentido,
articulando novos sentidos, em diferentes formas simbólicas, e no momento presente.
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