You are on page 1of 6

• Narrativa e Hipertetxo

Projecto Redes:
C) Composição não-linear e hiper-narrativa

Hipertexto e narrativa não-linear


Maria Augusta Babo

Introdução:
Antes de mais, há que assinalar que a rede informática, onde se insere o hipertexto, se
define pela ausência de hierarquia na informação. A informação não é tratada nem
sujeita aos critérios editoriais vigentes na esfera do impresso. A amálgama de
informação cria desigualdade e heterogeneidade textual cabendo ao leitor um trabalho
complementar de selecção e ordenamento. O leitor é um utilizador que tem por tarefa
recriar o texto final mas, por natureza, sempre provisório. É que o hipertexto não
existe enquanto produto a consumir mas implica operações do utilizador, decisões de
traçados ou ligações de modo a constituir-se no próprio acto de utilização, sempre
único, sempre efémero.
Assim, o hipertexto e, de uma forma mais global, a era digital não se limita a aparecer
como uma tecnologia de substituição do impresso, mas assume-se antes como um
novo paradigma de texto que exprime um modelo de sociedade também ela
descentralizada, globalizada, tal como Manuel Castels o define: "as redes constituem
a nova morfologia social das nossas sociedades, e a difusão da lógica de criação de
redes determina largamente o processo de produção, de experiência, de poder, de
cultura" (Castels, 2001), já que remete para novas cartografias, industrial e urbana,
caracterizadas pela descontinuidade e atravessadas por fluxos de produção e fluxos de
informação.
A escrita digital possui a capacidade de criar um texto em formato de hipertexto que
convém definir. Com efeito, a passagem do texto impresso para o texto digital supõe
uma sobrecodificação que tem por função estabelecer ligações - laços textuais: o html
-hyper-text makup language-, espécie de tratamento formal do texto, por seu lado
suportado por uma sobrecodificação, o http -hyper-text-transfer-protocol-, conjunto de
regras que permite a conexão entre os sítios. Acrescente-se aos sistemas que suportam
o hipertexto, a necessidade de uma cartografia dos textos, que muitas vezes corre em
paralelo ao próprio texto, como carta de navegação.
Começando por ser um puro utensílio de tratamento de informação, o hipertexto, na
sua articulação com as práticas culturais vigentes, acabou por configurar uma
textualidade alargada, a qual está longe de ter atingido os limites da sua criação e
criatividade. Considerado, por si só, um novo media, ele criará, por certo, os seus
modos específicos de expressão, tornando-se um dispositivo configurador de novas
textualidades e de novos modos de recepção, nomeadamente a inclusão no próprio
dispositivo da participação activa do leitor.
Na verdade, o hipertexto é um caso exemplar de um ambiente heterogéneo,
participando ao mesmo tempo de uma dimensão técnica e simbólica e que, justamente
por isso, não se resume a ser um simples utensílio. Não se limita a ser um suporte
técnico da escrita pois tornou-se uma prática de escrita, abrangendo, por lhes dar uma
configuração nova, as próprias práticas literárias de experiência dos limites, limite da
narrativa e do livro como limite de uma certa racionalidade de escrita. É que quando
se fala do hipertexto rizomático, por exemplo, aquilo que mais directamente se põe
em causa é a univocidade semiósica do sistema textual em questão. O hipertexto
enquanto nova concepção de escrita encontra as teorias do texto nesse ponto extremo
que é o cruzamento de heterogeneidades semióticas. Como se sabe, o hipertexto não
é, à partida, um dispositivo textual, como o são os procedimentos intertextuais. Trata-
se antes de uma tecnologia electrónica de armazenamento e de conexão de
informação. Ele responde às necessidades actuais de busca automática e de
cruzamento de informação, necessidade à qual respondia já uma configuração
particular do livro impresso, a enciclopédia. Digamos que a finalidade primeira do
dispositivo hipertextual é de natureza enciclopédica e não poético-literária. Nesse
aspecto, ele aproxima-se das concepções iluministas do saber, preconizando um
espaço de informação ideal e um uso sem restrições. Tem por objectivo a totalização
do saber e a sua disponibilização em rede. Quer dizer que ele é um arquivador e um
organizador de informação, constituindo um universo total de remissões internas.
As alterações ao livro impresso que o hipertexto propõe foram formuladas por Régis
Debray (1995), da seguinte forma: - crescimento dos espaços de liberdade, por
associação não ordenada das sequências textuais; - desierarquização das obras de
referência e dos textos de autor, através da possibilidade de os imbricar e recompor; -
desaparecimento do estatuto diferido das obras impressas pela fabricação de
documentos em tempo real, escrita e leitura tornando-se simultâneas; - possibilidade
de criação de arquivos singularizados através da individuação das memórias e da
apropriação inventiva das fontes - manipulação individuada do arquivo cultural; -
acessibilidade universal ao acervo global. Esta mutação profunda da escrita e do uso
que é dado ao escrito provoca uma mobilidade e uma abertura incomensuráveis.
Por outro lado, ao mesmo tempo que expande o texto, o hipertexto contrai o tempo e o
espaço, contracção essa que constitui o cerne da revolução digital. A contracção do
tempo dá-se “porque grandes quantidades de informação podem ser tratadas em
unidades de tempo cada vez mais reduzidas”, uma espécie de “condensação do
presente”, no dizer de Pierre Lévy (1994, p. 147), que a apelida de “tempo pontual”;
quanto à contracção do espaço, ela é consequência da primeira: “graças ao
funcionamento em rede, bastam alguns segundos para ligar o que outrora se
encontrava fisicamente distante”. Ora, a rapidez, com que se percorrem textos, a
introdução da velocidade na leitura, implica a própria ideia de uma condensação no
momento presente - a ideia de tempo real -.
Do ponto de vista do utilizador-leitor, este tem a liberdade de executar todas as
ligações possíveis mas sempre no seio daquelas que foram pré-estabelecidas pelo
sistema de sobrecodificação. O que quer dizer que o potencial de remissões que
constitui a própria navegação do leitor está previamente programado, que faz parte da
própria máquina hipertextual. A liberdade situa-se mais ao nível do encadeamento de
conexões, da actualização dessas mesmas conexões, dentro da virtualidade das
possíveis. Já Lyotard havia prefigurado o desafio proposto pelas tecnologias de
natureza electrónica às sociedades contemporâneas e que é o seguinte: o de
configurarem um outro tipo de narrativas, não as que encadeiam o acontecimento
como acontecimento passado mas sim o de controlar um processo ao "subordinar o
presente ao que (ainda) chamamos 'futuro', já que nestas condições, o 'futuro' será
completamente predeterminado e o próprio presente deixará de se abrir sobre um
'após' incerto e contingente" (1989, p.72). Lyotard propunha uma perspectiva
temporal das sociedades capitalistas desenvolvidas em que tudo se joga - jogos de
estratégia - numa previsão, suportada pelas tecnologias digitais de globalização. Aí, o
futuro antecipa-se no presente: "Garantias, confiança, segurança, são meios para
neutralizar o caso como se fosse ocasional, para prever, digamos assim, o de-vir. De
acordo com esta maneira de tratar o tempo, porque é da apropriação da temporalidade
que aqui se trata, “o sucesso depende do processo informacional, o qual consiste em
assegurar que nada mais pode acontecer, no tempo t', a não ser a ocorrência
programada no tempo t" (1989, p.73). Ora, a programação que sustenta o hipertexto
torna-se uma visão antecipadora, uma pré-visão textual. A actualidade de qualquer
percurso não faz mais do que responder ou confirmar, como se queira, a sua previsão,
isto é, a antecipação do futuro num presente que, se não o cumpre, pelo menos o
configura como possível. Deparamo-nos, então, com a seguinte aporia: quanto mais
condicionada é a abertura futura dos possíveis pela sua hipoteca presente, mais as
narrativas hipertextuais, por seu turno, deslinearizam o tempo da sucessão, criando
uma ilusão de infinitude dos possíveis narrativos.

Narratividade:
O hipertexto torna-se objecto de questionamento da textualidade quando, atributos
inquestionáveis da escrita como a fixação e a rigidez - a fixidez -, a linearidade e até a
finitude imposta pelo livro, parecem estar postos em causa. As características que lhe
vêm sendo consensualmente assinaladas são o abandono da fixidez pela maleabilidade
ou mutabilidade constante, o abandono da linearidade pela natureza recticular, assim
como a abertura às remissões inter e intratextuais o que provoca um descentramento
quer da linearidade quer do próprio núcleo textual, para além do consequente
descentramento do nó-da-intriga e da unidade de acção, no caso dos textos narrativos.
É por demais conhecido o funcionamento por associação e não por sucessão do
hipertexto. Na textualidade formatada pelo livro, o texto do romance estava sujeito ao
princípio da narratividade - não esqueçamos que o romance, como género narrativo
por excelência, nasce com a imprensa - trata-se agora, de uma outra modalidade de
escrita aparentada à própria configuração dos procedimentos cognitivos e oníricos, a
associação. A associação é uma operação cognitiva que tem por missão estabelecer
relações entre entidades, neste caso, textos. A associação é já um princípio que põe
em causa os limites de um texto, a sua clausura ao relacioná-lo com outros textos,
concedendo-lhe uma abertura que é, em si mesma, transtextual. Ela proporciona então
o princípio da conexão intertextual. O texto deixa de ser um todo, uma totalidade
autónoma e fechada, para passar a estabelecer, nos seus limites, zonas de passagem,
de contacto. É esta abertura, ou melhor, esta propensão ao contacto que, questionando
os limites ao texto, a transformação hipertextual opera. Mas ela deve-se ainda a uma
outra transformação tecnológica. Se o livro obedece a uma configuração rígida, que
deriva do facto de ele fixar a escrita, já por si fixação da fala, o hipertexto, muito pelo
contrário, vem imprimir um carácter totalmente dinâmico ao texto. Esse dinamismo
advém do facto de o texto não se fixar numa formulação estável, mas ser sujeito a
constantes alterações, inserções e cortes. O princípio da velocidade, rapidez de acesso
aos textos, e o princípio da simultaneidade textual, capacidade de interrelação entre
textos, metamorfoseia o livro, de objecto físico, num princípio abstracto, virtual. Por
outro lado, como salientou Michael Joyce, desde Afternoon - a story, a organização
digital do texto permite ao autor, a refracção da realidade em perspectivas diversas,
inserindo uma multiplicidade de vozes narrativas, sem com isso pôr em causa a
unidade narrativa. O leitor, forçosamente, terá de fazer percursos próprios,
descobrindo em cada um uma nova experiência textual. Mas é necessário operar
dentro do complexo hipertextual, como o faz Michael Joyce, uma distinção
fundamental entre hipertextos exploratórios e construtivos. Enquanto os primeiros
servem de instrumentos de navegação que ajudam o utilizador a reunir e organizar
informação, os segundos possibilitam ao leitor conexões intra e intertextuais, exigindo
um esforço de construção de sentido. Efectivamente, nos hipertextos exploratórios os
caminhos são explicitamente determinados pelo autor, e o leitor não pode criar novas
ligações a partir do texto em questão. Existe assim, em algum grau, uma reprodução
da estrutura de poder hierárquica (autor/leitor) corrente nas formas literárias
tradicionais. Se no hipertexto construtivo o leitor tem uma liberdade de ligação, como
diz Bolter, este tipo de hipertexto caracteriza-se ainda por abre uma dimensão retórica
ainda não existente. É que as ligações hipertextuais constituem-se em ligações
intratextuais e fazem advir, para o leitor que as operou, mas também para o texto que
agora se efectiva, um novo texto, um texto em devir.
É aqui que se coloca toda a questão da manutenção ou alteração do texto narrativo,
isto é, da passagem da narrativa clássica, à narrativa não-linear. Na verdade, é ponto
assente, como refere Landow, que a narrativa projectada no dispositivo hipertextual se
deslinearizou. Segundo este especialista, o hipertexto veio desafiar as concepções
tradicionais de enredo (plot), de princípio (beginning) e de fim (ending), isto é, de
narrativa linear. Embora a hiperficção seja caracterizada pela não-lineariedade, este
conceito não torna obsoleto, mas antes se transforma numa “quality of the individual
reader’s experience within a single lexia and his or her experience of following a
particular path (…)” (Landow, 1992: 104). Efectivamente, a exigência da narrativa já
não se prende com a sequencialidade interna ao texto, que essa permite múltiplas
opções e conexões, mas sim com aquilo a que ele chama “ ‘followability’ of a story”,
na sequência de Paul Ricoeur. Mais do que uma história, um enredo, a narrativa
deslinearizada tem de ter uma conclusão, um thelos. É que o thelos não coincide com
o fim, é antes uma questão de finalidade. Ora, mesmo que o princípio da sucessão das
acções esteja alterado, a narratividade pode conservar o seu muthos e o seu thelos, isto
é, o nó da intriga e o seu sentido transcendente, digamos.
Mais do que definir se os hipertextos existentes até agora, incluindo o caso particular
da hiperficção, deslinearizam ou não completamente o texto e se essa deslinearização
coincide com o ponto de viragem da legibilidade, isto é, se põe em risco a própria
inteligibilidade do texto, é de salientar o facto da literatura moderna já ter operado
essa crise da narrativa que é sobretudo uma crise do sentido e da representação. Esta
questão é discutida por J. A. Furtado quando afirma (200, p.339) que o princípio da
inteligibilidade é o garante da legibilidade do hipertexto. Poderemos lembrar que esta
afirmação aplicada à textualidade em livro perde sentido dado que essa mesma
experiência dos limites já fora feita. Tratar-se-á mais de uma dimensão moral do que
de uma dimensão tecnológica da textualidade. Interessará talvez apontar o facto de a
própria mutação da configuração textual, já em embrião, aproveitar o dispositivo
hipertextual para explorar o que está em potência e que é a própria condição do virtual
- vir como força. É que o hipertexto recolhe, se assim se pode dizer, uma experiência
muito mais avassaladora, incontrolável e incontornável, a experiência de escrita ou da
escrita como experienciação dos limites. A chamada "experiência dos limites" que
marcou o posmodernismo na literatura, experienciou já o “fim das narrativas” como
lhe chamou Lyotard. A máquina narrativa entrou em crise e o dispositivo hipertextual
não fez senão potenciar essa crise, permitindo novas configurações narrativas.
Adoptando a concepção de Lyotard, devemos ter em conta que as narrativas se
caracterizam por serem, já elas, técnicas ou máquinas de ordenação do tempo, de
encadeamento do acontecimento, de modo a, numa lógica de causalidade, ou, mais
precisamente, numa lógica em que a contiguidade se funde ou coincide com a
causalidade, "engendrar o sentido". Ao inscrever o acontecimento num movimento
(temporal) e numa finalidade (o desenlace), a narrativa é portadora de sentido, a
narrativa é a própria técnica de conferição de sentido ao acontecimento e, por
extensão, ao próprio tempo: a história não será outra coisa senão este resultado
linguageiro do encontro da sequência com a causalidade e com o sentido, mesmo que
esta história seja estória, uma ficcionalidade, já que, mesmo neste caso, ela não
transportará uma referência de primeiro grau, a uma realidade imediata, mas é
seguramente portadora de uma referência mais profunda, ao mundo em geral, a uma
visão do mundo para a qual a literatura, até ao momento, remeteu. O fim da narrativa
passa, antes mesmo do seu confronto com as novas tecnologias do digital, por uma
abolição dos critérios aristotélicos de unidade e de completude, como o relembra Paul
Ricoeur (1984, p.35). A crise da composição narrativa advém da própria concepção
de um real fragmentado, onde o fim não coincidirá jamais com a finalidade.
De modo que o aparecimento do hipertexto se situa numa encruzilhada de termos
opostos. De um lado, a fragmentação do real e a deslinearização das narrativas,
potenciada pelo dispositivo hipertextual; do outro, a formatação narrativa do uso do
presente e da hipoteca do futuro, que se podem projectar na própria teoria dos jogos.
A esse propósito, a perspectiva de Lev Manovich é a de considerar que há uma
articulação específica dos textos entre eles a que chama algoritmo e que se define por
uma sequência finita de regras ou operações aplicadas a um número finito de dados.
Corresponde a uma estrutura lógica de regras subjacentes que condiciona percursos,
existente nos jogos de computador, nas hiperficções, por exemplo, e onde há
progressão, causalidade e sucessividade, assim como uma finalidade a atingir. Por seu
turno, a base de dados aparece como aparentemente oposta ao algoritmo, dado que só
este último parece exigir percursos determinados com objectivos muito próprios. Ora,
este modelo algorítmico de funcionamento de certos produtos digitais pode ser
transposto para o próprio universo do utilizador. Segundo o mesmo autor, este é um
exemplo do princípio genérico que rege o novo media, o hipertexto: “a projecção da
ontologia do computador na própria cultura” (2001). Assim, o mundo fica reduzido a
duas espécies de objectos que se complementam entre si: “estruturas de dados e
algoritmos”. Ou, de um lado, listas não ordenada de itens, desarticulação aleatória da
informação, do outro, a organização narrativa, que agencia efeitos a causas, tarefas e
cumprimentos de tarefas, progressão de nível, objectivos e finalidades. Estas são
formas diferentes mas coexistentes da cultura digital. A primeira, recolhe
documentos, digita textos e fotos, produz um mega acervo, transforma o mundo numa
lista aleatória e aberta de dados, a segunda, propõe tarefas, cumpre objectivos,
procede e prossegue por etapas.
No entanto, o atributo que caracteriza as narrativas hipertextuais, o não-linear, tornou-
se problemático já que a dita deslinearização só se refere à sequencialidade do texto e
não à da leitura, que essa, permanece linear qualquer que seja a sintagmática textual.
Assim, Espern J. Aarseth (1997) propõe o termo cibertexto que abrange a
configuração mais específica de ciberliteratura.

Conclusões:
O que acontece no texto rizomático, para utilizarmos a designação deleuziana, em
ambiente de hipertexto, é que o acesso propriamente perceptivo ao texto não pode
senão ser feito segundo aquele dispositivo, isto é, inevitavelmente deslinearizado,
adquirindo desde logo uma vocação ao descentramento, à infinitude, à fragmentação
ou à heterogeneidade semiótica, em imagem, som e letra, de que a textualidade
participa. Falando de acessibilidade, o que Aarseth põe em relevo é, não a abertura de
possíveis ligações ou janelas ou sequências textuais mas a inacessibilidade de tudo o
que foi preterido por uma escolha, como uma espécie de “ausência de possibilidade”
que constitui a aporia do próprio hipertexto. É desta noção que ele parte para uma
detecção da proximidade do cibertexto com o labirinto, por um lado, como Jorge Luís
Borges, premonitoriamente assim o entendeu, e o jogo, por outro. Esta perspectiva
veio aproximar o cibertexto da teoria dos jogos, introduzindo o lugar do leitor: um
decisor, jogador.
Acresce a este facto um outro fenómeno que caracteriza hoje as produções em
cibertexto e em hipermedia: a hibridação. É que nesta amplificação do sistema de
conversão digital aplicado ao som, ao texto e à imagem, não foi só possível reunir
estes três regimes semióticos num produto híbrido, mas o que se verifica de mais
curioso ainda é a própria hibridação dos géneros no desenvolvimento da
ciberliteratura. Entre a ficção, a autobiografia ou o diário e o ensaio, todos estes tipos
textuais se conjugam num texto híbrido que recorre a todos os géneros sem distinção
diluindo-lhes as fronteiras, as especificidades, os cânones. Como exemplo desta
imersão do texto no universo lúdico e da criação de um novo género no campo da
ciberliteratura, Aarserth avança o caso da Multi-user dungeon - MUD - que é um jogo
de aventuras em que os participantes constroem os seus próprios objectos textuais e
paisagens, criando um ambiente literário que é de natureza colectiva, envolvendo
todos os participantes.
Estas novas formas de textualidade emergentes definem antes campos de
sociabilidade novos do que propriamente invenções tecnológicas. O dispositivo
textual ou hipertextual permite, contudo, trazê-los ao campo da textualidade e não
deixá-los vagueando nas suas margens, como a instituição literária sempre foi
deixando restos não inseridos na cultura do livro, à margem dessa instituição criando
uma literatura dita marginal. O que o hipertexto veio permitir, e a ciberliteratura
configurar foi precisamente esse descentramento do campo e uma nova intervenção
do leitor na efectivação do texto. Mas noções como as de contexto, intertextualidade,
horizonte de recepção, etc., continuarão a definir o campo da textualidade.

Bibliografia
Aarseth, E. J., 1997, Cybertext: perspectives on ergodic literature, The Johns Hopkins University Press
BOLTER, J. D., 2001, Writing Space: Computers, Hypertext, and the Remediation of Print, Mahwah, New Jersey,
Lawrence ErlBaum Associates Publishers
Castells, M., 2003, “A Internet e a sociedade em rede” in: Trajectos - Revista de Comunicação, Cultura e
Educação - nº4, Lisboa, ISCTE/Notícias Editorial
Castels, M., 2001, La société en réseau, Paris, Fayard
Debray, R., 1995, “Dématérialisation et désacralisation: le livre comme objet symbolique”, in: Le Débat, nº86,
Paris, Gallimard
Furtado, J.A., 2000, Os Livros e as Leituras. Novas Ecologias da Informação, Lisboa, Livros e Leituras,
Furtado, J.A., 1995, O que é o Livro, Lisboa, Difusão Cultural,
Gervais, B., 2001, “Lire à l’écran. Les nouvelles expériences du texte”, in: De Gutenberg ao terceiro milénio -
Congresso Internacional de Comunicação, org. Alves, J. A. S., Universidade Autónoma de Lisboa
Guillaume, M., 1997, Où vont les autoroutes de l’information? Paris, Descartes &Cie
Huyghe, F.-B., 2001, “Des médias aux hypermédias”, in: L’ennemi à l’ère numérique, Paris, PUF
Heim, M., 1999, Electric Language, Yale U. Press, (1ª ed.1987)
Heim, M., 1994, “The Erotic Ontology of Cyberspace”, in David Trend, ed., Reading Digital Culture, Oxford:
Blackwell 2002 [2001]
Joyce, M., 2002, “Hypertext and Hypermedia” and “Siren Shapes: Exploratory and Constructive Hypertexts”, in
Of Two Minds: Hypertext Pedagogy and Poetics, Ann Arbor, The University of Michigan Press [1ª ed. 1995]
Landow, G., 1997, Hypertext 2.0: The Convergence of Contemporary Critical Theory and Technology, The John
Hopkins University Press, Baltimore and London
Lévy, P., 1994, As tecnologias da inteligência, Lisboa, Instituto Piaget,
Lyotard, J. F., 1989, O Inumano considerações sobre o tempo, Lisboa, Estampa
Manovich, L., 2001, The Language of New Media, MIT Press
Ricoeur, P., 1984, Temps et récit II, Paris Seuil

You might also like