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DANTE LUCCHESI

SINTAXE DA LINGUA
PORTUGUESA

2013
Copyright © 2013 Dante Lucchesi

Sumário

Introdução
O Estudo da Gramática................................................................03
Capítulo 1
A Arquitetura da Linguagem.......................................................16
Capítulo 2
As Classes de Palavras.................................................................25
Capítulo 3
O Núcleo da Estrutura Sintática...................................................63
Capítulo 4
Os Constituintes Oracionais.........................................................86
Capítulo 5
As Construções Sintáticas Especiais..........................................113
Capítulo 6
O Período Composto..................................................................118
Capítulo 7
Os Sintagmas..............................................................................133

2
Introdução
O Estudo da Gramática

A Sintaxe é a disciplina que estuda o sistema através do qual combinamos as


unidades significativas da língua (as palavras) para formar frases. Atualmente, esse
sistema é chamado pela Linguística, a ciência que estuda a linguagem humana, de
gramática. Porém, tradicionalmente o termo gramática tem outro significado: conjunto
de regras que devem ser usadas para falar e escrever corretamente em uma língua. Não
se trata de um conhecimento científico, mas de uma convenção social, perpetuada pela
tradição, nas sociedades letradas. Este livro não faz parte dessa corrente de estudos da
língua que se denomina tradição gramatical, pois não se preocupa em definir “o que é
certo ou errado” no uso da língua. Ao invés disso, apresenta uma proposta de estudo
científico da gramática (no sentido que a Linguística contemporânea atribui ao termo),
descrevendo sua estrutura e analisando suas propriedades essenciais. Assim, como
primeiro passo, vamos definir o objeto do estudo científico da língua, em contraposição
à visão de língua desenvolvida há mais de dois milênios pela tradição gramatical.

1. O que é gramática?

A gramática é o sistema mental através do qual transformamos os nossos


pensamentos em frases. Quando um indivíduo conversa em sua língua materna, ele
analisa a estrutura e interpreta o significado de todas as frases que fala e ouve, sem ter,
obviamente, a consciência de que está sempre fazendo essa “análise semântica e
sintática”, pois o conhecimento que o falante tem de sua língua materna (sua
competência linguística) pode ser definido como um conhecimento intuitivo ou
implícito – ou seja, trata-se de um saber do qual o indivíduo não tem consciência.

3
Contudo, essa competência linguística do falante nativo é um sistema tão complexo que
o mais poderoso computador já produzido é incapaz de fazer o que qualquer ser humano
faz trivialmente – conversar em sua língua materna –, seja esse indivíduo um falante
erudito, seja ele um falante iletrado. Tal constatação nos leva a uma conclusão muito
importante: não existe linguagem caótica e sem regras. Toda frase que qualquer falante
de uma língua humana produz é gerada por um sistema articulado de regras,
independentemente de se ajustar ou não aos modelos fixados socialmente pela tradição
gramatical. Por dominar esse sistema que gera todas as potenciais frases de sua língua, o
falante sabe distinguir uma frase bem formada (uma frase gramatical) de uma frase mal
formada (uma frase agramatical). Assim, qualquer falante nativo do português sabe
que a frase (1) é agramatical.

(1) * Eu cortar o cabelo amanhã.1

Se ouvirmos alguém falar essa frase, pensaremos logo que se trata de um


estrangeiro, que fala o português imperfeitamente, provavelmente como segunda língua.
Mas, de onde vem esse nosso conhecimento? Quem nos ensinou a reconhecer as
sentenças de nossa língua? Como já foi dito, trata-se de um conhecimento intuitivo, ou
seja, o falante nativo do português sabe que essa frase é mal formada, mas não sabe
explicar por que ela é mal formada. 2 O estudo científico da linguagem humana tem
como um de seus objetivos principais explicitar esse conhecimento intuitivo – a
competência linguística do falante nativo de uma língua humana –, por meio de
procedimentos analíticos que formalizam suas propriedades constitutivas.

1.1. As propriedades universais da linguagem humana


Com base na análise empírica da estrutura gramatical das línguas humanas, a
Linguística é capaz de dizer que a frase exemplificada acima em (1) é agramatical
porque não cumpre um dos requisitos universais da linguagem humana: o evento
referido em qualquer frase produzida em qualquer língua humana deve ser situado

1
O asterisco colocado antes da frase é a notação utilizada para indicar que a frase é agramatical.
2
Não se deve confundir esse conceito de gramaticalidade do conceito de correção gramatical. A frase
exemplificada em (a) abaixo não está correta de acordo com a norma gramatical vigente, mas não é uma
frase agramatical, pois é produzida naturalmente por um falante nativo do português brasileiro e aceita
com naturalidade pelos demais falantes que com ele convivem no mesmo universo cultural. Apesar de
violar as convenções sociais da língua, a frase não viola os mecanismos psíquico-biológicos da linguagem
humana, por isso ela é gramatical, conquanto seja considerada incorreta do ponto de vista normativo.
(a) Meus filho estuda muito.

4
temporalmente em relação ao momento em que a frase é produzida, por meio de um
elemento gramatical. Na frase (1), o ato de cortar o cabelo ocorrerá no dia seguinte ao
momento em que a frase é dita, mas essa informação é fornecida pela palavra amanhã,
ou seja, é fornecida lexicalmente. É preciso, então, introduzir um elemento gramatical
que expresse a informação de tempo futuro – o verbo auxiliar ir – para tornar essa
frase aceitável em português:
(2) Eu vou cortar o cabelo amanhã.
Como já foi dito, essa não é uma exigência exclusiva da língua portuguesa, ela
está presente em todas as línguas humanas e diz respeito ao que se denomina Sistema
de Tempo, Modo e Aspecto (TMA).3 Em francês, também não se pode dizer je me
couper les cheveux demain, é preciso introduzir o auxiliar vais, como em português: je
vais me couper les cheveux demain. O mesmo acontece em chinês. A frase (3) é
agramatical, porque falta o verbo auxiliar que marcará futuro 去 (qù). A frase assume a
forma gramatical em (4) com a partícula que indica tempo, modo e aspecto.

(3) * 明天 我 理发

(4) 明天 我 去 理发
Míngtiān wǒ qù lǐfà
Amanhã eu vou cortar-cabelo4

Além do sistema de TMA, todas as línguas humanas têm um sistema de


pronomes, para expressar as pessoas do discurso. Quando nos referimos a uma ação, por
exemplo, devemos informar se essa ação foi praticada por quem fala, por quem ouve ou
por uma terceira pessoa. Gramaticalmente, essa informação é dada por um pronome
(e.g., eu, você, eles) ou por uma flexão verbal (trabalhamos, partiram). Assim, toda
língua tem uma partícula gramatical, através do qual o falante se refere a si mesmo: eu,
em português; I [ái], em inglês; 我 [wǒ], em chinês mandarim; ami, em quimbundo;
saya, em malaio; ako, em tagalog (filipino), etc.
Também é possível, em qualquer língua humana, encaixar uma proposição na
outra, como podemos ver nos exemplos abaixo.

(5) Eu vi que ela caiu.


(6) J‟ai vu qu’elle était tombée. (francês)
3
Ver seção 7 do capítulo 1.
4
Lǐfà é uma lexia composta que reúne o verbo e objeto de cortar o cabelo em uma única palavra.

5
(7) Vido sam da je pala. (croata)
(8) Saya melihat bahawa dia jatuh. (malaio)

Mas será que estamos diante de meras coincidências? Não, o sistema de TMA,
os pronomes pessoais e o encaixamento de orações são propriedades universais da
linguagem humana. Fazem, parte, portanto, da Faculdade da Linguagem, também
chamada Gramática Universal (GU).

1.2. A Faculdade da Linguagem como parte do patrimônio genético


da espécie humana
A GU é uma representação de uma faculdade da mente humana, que distingue o
homo sapiens de todas as outras espécies animais, inclusive de outras espécies de
hominídeos, como o Homem de Neandertal, hoje extintas. Isso significa que a
Faculdade da Linguagem está presente na mente de todos os indivíduos da espécie
humana, desde o seu surgimento, há mais de cem mil anos; fazendo parte, portanto, do
patrimônio genético da espécie. Ela é o resultado de um longo processo de evolução, no
qual os hominídeos foram se tornando bípedes, desenvolvendo o polegar opositor;
rebaixando a glote e aumentando o espaço da cavidade faríngea; ingerindo mais
proteínas e aumentando sua massa cerebral, até que esse conjunto de condições deu
origem a um animal simbólico, com uma consciência que lhe permite decompor a sua
percepção do real em unidades significativas e articular essas unidades de sentido em
proposições lógicas. Essa capacidade cognitiva está intimamente associada à
linguagem verbal, na forma como a conhecemos hoje.
A substância natural da linguagem humana é a fala – ondas sonoras produzidas
por um conjunto de órgãos do corpo humano denominado aparelho fonador. Trata-se
de uma manifestação do que os antropólogos chamam de cultura imaterial. Isso torna a
questão da origem das línguas uma das mais desafiadoras para o conhecimento
científico, por conta da falta de evidências materiais que possam dar sustentação
empírica ao seu estudo pela ciência.5 Nesse campo de investigação, uma das hipóteses
fortes é a de que só o homo sapiens teria desenvolvido esse sistema tão sofisticado de

5
O conhecimento científico se baseia na observação rigorosamente controlada dos fatos do mundo real,
o que se denomina sustentação empírica – ou seja, qualquer afirmação científica deve ser comprovada
por meio de testes, experiências e observações controladas que demonstrem, de acordo com os
procedimentos metodológicos definidos e aceitos pela comunidade científica, se essa afirmação
corresponde aos fatos do mundo real ou não.

6
linguagem. Com isso, pode desenvolver formas mais avançadas de relação e cooperação
social, predominando sobre as demais espécies de hominídeos – como, por exemplo, o
homem de Neandertal –, levando ao desaparecimento total dessas outras espécies, o que
ocorreu há cerca de 30 mil anos.

1.3. Gramática Universal e gramática das línguas particulares


A Faculdade da Linguagem, ou Gramática Universal, presente na mente de
todos os indivíduos da espécie homo sapiens, constituiria o arcabouço estrutural que
está na base da linguagem humana – um conjunto de propriedades e mecanismos que
estão presentes na gramática de todas as línguas. Assim, em termos de estrutura
gramatical, haveria pequenas diferenças na forma como as línguas realizam as
propriedades universais da Linguagem. Por exemplo, a categoria pessoa do discurso,
como vimos, está presente na gramática de todas as línguas. Porém, há línguas, como o
italiano e o português (de Portugal), que expressam essa categoria, preferencialmente,
pela flexão verbal, omitindo o pronome sujeito – como se pode ver nas frases (9) e
(10);6 e há línguas, como o francês e o inglês, em que o pronome sujeito tem de estar
obrigatoriamente realizado para expressar essa categorial gramatical,7 já não
praticamente flexão no verbo para dar essa informação – cf. exemplos (11) e (12).

(9) Ieri siamo andati al teatro.


(10) Ontem fomos ao teatro.
(11) Hier nous sommes allés au théâtre.
* Hier sommes allés au théâtre.
(12) Yesterday we went to the theater.
* Yesterday went to the theater.

Outro exemplo de como as propriedades da Gramática Universal se apresentam


de forma diferente nas línguas humanas pode ser encontrado na ordem dos
constituintes na frase. Em todas as línguas, existe a relação entre o verbo transitivo e
seu complemento. Porém, em línguas, como o português, o complemento vem
normalmente após o verbo (ordem VO), já em línguas, como o japonês a ordem normal
é objeto-verbo (ordem OV), como se pode ver nos exemplos abaixo:

6
As formas verbais siamo e fomos indicam que o sujeito corresponde à 1ª pessoa do plural (nós).
7
A falta do pronome sujeito – nous e we, nos exemplos apresentados em (11) e (12) – torna a frase
agramatical em francês e inglês.

7
(13) Maria leu a carta.
SUJ verbo OBJ
(14) Miwa-ga tegami-o yonda.
SUJ OBJ verbo
Miwa a carta ler

1.4. A manifestação da gramática


A diferença na forma como as propriedades da Gramática Universal se
apresentam nas gramáticas particulares das línguas humanas fará com que certos
mecanismos gramaticais estejam mais explícitos em umas línguas e mais implícitos em
outras. Tomemos a relação entre o sujeito, o verbo e o objeto (SVO). Em latim essa
relação é expressa através de desinências, como exemplificado em (15) a., em que o –s
indica que lupus (lobo) é o sujeito de vidit (viu), e o –m indica que puellam (menina) é
o objeto, independentemente da ordem em que essas palavras figurem na frase, de
modo que, se alterarmos a ordem das palavras na frase – como se observa em (15) b. – o
significado permanece o mesmo: „o lobo viu a menina‟. Já em português, essa mesma
relação é expressa através da ordem, como exemplificado em (16) a. Se alterarmos a
ordem dos constituintes da frase em português, como em (16) b., o seu significado
muda. Para alterar as funções sintáticas na frase latina, é preciso mudar as desinências
nominais, como em (15) c., que tem o mesmo sentido de (16) b.:8
(15) a. Lupus puellam vidit
b. Puellam vidit lupus.
c. Lupum puella vidit.
(16) a. O lobo viu a menina.
b. A menina viu o lobo.
A chamada flexão de caso, expressa pelas desinências (como o –m final do caso
acusativo) que indicavam a função sintática dos nomes, propiciava uma liberdade maior
de colocação dos constituintes na frase em latim. Por outro lado, é evidente que o fato
de o português não ter uma sinalização explícita não significa que a relação SVO não

8
No caso da palavra para „lobo‟, lupus é a forma do caso nominativo, própria para a função sintática de
sujeito, enquanto que lupum (com a desinência final –m) é a forma do caso acusativo, própria para a
função sintática de objeto direto (OD). Já no caso da palavra para „menina‟, puella é forma do
nominativo (função sintática de sujeito), e puellam (com a mesma desinência –m), a forma do acusativo
(OD).

8
exista nessa língua. Portanto, as relações gramaticais podem ser sinalizadas
explicitamente numa língua e não serem em outra. O fato não significa que a língua
latina seja mais complexa do que a língua portuguesa, ou mesmo mais difícil. Podemos
afirmar, com muita segurança, que o tempo que as crianças romanas levavam para
adquirir o latim (na época em que essa língua era uma língua viva, obviamente) era o
mesmo tempo que as crianças do Brasil e de Portugal levam hoje para adquirir o
português, assim como as crianças suecas levam para adquirir o sueco, as crianças
nigerianas levam para adquirir o iorubá, e assim por diante, com qualquer lúngua
humana. Esse fato, sobejamente comprovado por inúmeros estudos de aquisição da
linguagem, nos autoriza a concluir que não há diferenças significativas entre as línguas
no que concerne à complexidade estrutural, se consideramos a gramática como um
todo.9 Consideramos uma língua estrangeira mais difícil do que a nossa simplesmente
porque não estamos condicionados à sua estrutura gramatical. Provavelmente o falante
dessa língua terá a mesma impressão em relação à nossa língua.10

1.5. A mudança na estrutura gramatical e o funcionamento das


línguas
Como vimos na seção anterior, na passagem do latim para as línguas românicas,
ou neolatinas, a flexão de caso dos nomes latinos desapareceu. Poderíamos pensar que,
durante essa transição (que durou muitos séculos – desde os primeiros séculos da nossa
era até os últimos do primeiro milênio), os falantes enfrentaram dificuldades em
identificar o sujeito e o objeto das frases, quando as desinências nominais (como o –m
do acusativo) foram desaparecendo. E, levando esse raciocínio às últimas
consequências, poderíamos até pensar que essa teria sido uma das causas da queda do
Império Romano do Ocidente, ocorrida no V século d.C. O absurdo desse raciocínio
serve para demonstrar a inconsistência da ideia de que a mudança linguística pode
comprometer o funcionamento da língua ou seu poder de expressão. Durante todo o
9
Isso significa que uma língua A pode ter um sistema de TMA morfologicamente mais complexo do que
uma língua B, mas essa língua B pode ter, em compensação, um sistema pronominal morfologicamente
mais complexo do que a língua A, de modo que considerando a gramática como um todo, e não módulos
específicos, não haveria grandes diferenças no grau de complexidade morfológica das línguas humanas
que têm uma longa tradição de transmissão geracional regular, na qual a língua materna dos pais vai
sendo transmitida para os seus filhos, de geração para geração.
10
No exemplo do latim, podemos imaginar que, se um falante nativo do latim viajasse no tempo e
entrasse em contato com falantes do português (ou de qualquer outra língua neolatina, como o francês e o
catalão), ele provavelmente acharia essas línguas muito difíceis, porque somos capazes de codificar as
frases de nossa língua sem as marcas de caso que facilitam tanto essa tarefa para ele. Ou seja, assim como
só outro tem sotaque, a língua difícil e exótica é a do outro, a nossa é sempre a mais lógica e simples.

9
período em que o latim se transformou nas línguas românicas, não se tem notícia de
casos de falhas ou colapsos linguísticos. A passagem de um sistema de marcação
morfológica de caso para sistemas sem essa marcação em nenhum momento
comprometeu o funcionamento da variedade linguística em uso. Na medida em que as
marcas de caso se enfraqueciam, a ordem das palavras e o uso das preposições
assumiam o papel de definir a função sintática de cada constituinte na frase. E assim,
gradualmente, a estrutura da língua foi mudando sem que o seu funcionamento fosse
comprometido.

1.6. A complexidade das Línguas


Da mesma forma que a ideia de que a perda da marcação morfológica de caso
poderia comprometer o funcionamento da língua não tem fundamento, não cabe pensar
que a língua latina é mais complexa que as línguas românicas, ou que lhes é superior.
Em sua essência, os processos estruturais são os mesmos em latim, português e italiano
– em todas essas línguas, a frase se constrói a partir de uma estrutura que une o verbo ao
seu sujeito e ao seu objeto. A diferença é que no latim essa relação é marcada de uma
forma mais explícita – com as desinências de caso –, enquanto, no português e no
italiano, ela é menos explícita – indicada apenas pela ordem. Mas a relação que o verbo
estabelece com seu sujeito, por um lado, e seu objeto, por outro, é a mesma em todas as
línguas. Podemos postular, portanto, que a estrutura subjacente da frase é a mesma,
independentemente da forma que ela assume em cada língua particular.
Assim, podemos pensar que a estrutura nuclear da gramática de todas as línguas
é a mesma, desde o surgimento do homo sapiens na terra. As milhares de línguas que a
humanidade tem falado ao longo de sua história nada mais são do que realizações
diferentes de uma mesma faculdade que integra o complexo da mente humana. As
diferentes formas que as línguas humanas assumem refletem as diferenças culturais e as
experiências particulares de cada povo, mas não entram em contradição com a estrutura
básica da Gramática Universal. Isso explica por que qualquer a criança nasce com a
capacidade de desenvolver indistintamente qualquer língua humana. Se uma criança
coreana for levada para a Suécia e for criada por uma família que fala sueco, ela
aprenderá o sueco como qualquer outra criança sueca. Da mesma forma que uma
criança sueca criada por uma família angolana falante do quimbundo falará o
quimbundo perfeitamente, como qualquer outro indivíduo dessa etnia.

10
1.7. A aquisição da linguagem
A concepção da Faculdade da Linguagem como uma espécie de software mental
inato permite explicar como as crianças adquirem sua língua materna tão rapidamente
sem a necessidade de qualquer treinamento específico para esse fim. Como enfatiza o
mais importante estudioso da Teoria da Gramática, o linguista norte-americano Noam
Chomsky, “um olhar cuidadoso sobre a interpretação de expressões revela bem
rapidamente que, desde os primeiros estágios [do desenvolvimento da linguagem], a
criança sabe muito mais do que lhe foi fornecido pela experiência”.11 A ideia central de
Chomsky é a de que as crianças estão programadas para falar. A mente da criança já
conteria um arcabouço básico da gramática de qualquer língua humana (a Gramática
Universal), composta por subsistemas como o sistema de TMA. Só que seriam valores
abstratos puros, sem uma forma definida. Ao ouvir, por exemplo, uma frase como “Eu
vou brincar com você.”, a criança receberia a forma concreta eu, com a qual deveria
preencher a categoria abstrata 1ª pessoa do singular de sua gramática mental; assim
como o verbo auxiliar ir é associado ao valor abstrato de futuro em seu sistema mental
de TMA. Ao associar as formas linguísticas que ouve dos adultos às categorias abstratas
da GU, a criança vai definindo os valores da gramática específica de sua língua materna.
E esse processo é regido por uma programação bem definida, em função das fases do
desenvolvimento biológico da criança, de modo que a aquisição das estruturas
gramaticais em cada fase ocorre com uma grande independência em relação às
condições socioambientais em que a criança se encontra. Isso explica por que, aos cinco
ou seis anos de idade, qualquer criança, que nessa fase da vida ainda tem um
desenvolvimento intelectual muito limitado (não é capaz, por exemplo, de realizar as
quatro operações aritméticas elementares), já domine a parte essencial de um sistema
gramatical tão sofisticado – seja essa criança moradora da periferia pobre de uma
grande cidade, seja ela membro da elite econômica e cultural do país.
Assim como a competência linguística, a aquisição da língua materna é um
processo mental intuitivo e espontâneo, que não carece de treinamento especial. 12 Bem
diferente é o processo de aquisição da escrita e da linguagem formal, que envolve
técnicas que requerem uma formação específica e um treinamento especial. A escola
deve fazer com que o aluno seja capaz de transitar do senso comum, o conhecimento

11
Revista DELTA, Vol. 13, Nº Especial, 1997, p. 54.
12
Ou seja, os pais não precisam se preocupar em ensinar os filhos a falar, pois isso ocorrerá naturalmente,
exceto em situações excepcionalmente traumáticas, ou em casos de sérios distúrbios mentais.

11
intuitivo com que ele lida com as coisas em sua vida cotidiana e familiar, para o saber
formal, da ciência e das representações institucionais da cultura de tipo civilizado. O
estudo da modalidade especial de língua (tradicionalmente denominada norma culta),
na qual é plasmado o saber formal e, é um dos requisitos essenciais para o aluno aceder
ao conhecimento científico, jurídico, institucional etc. A tradição gramatical está
intimamente ligada a esse estudo, próprio das sociedades letradas.

2. A Tradição Gramatical

O funcionamento da língua tem intrigado os estudiosos desde a Antiguidade. Na


Grécia Clássica, grandes filósofos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, procuraram
analisar o sistema da língua, decompondo a estrutura dos enunciados verbais, no que era
denominado partes do discurso. E categorias como verbo e substantivo, que até hoje são
utilizadas na análise gramatical, foram formuladas nessa época. Mas a análise
gramatical começou a adquirir as feições que a caracterizam nas sociedades modernas,
no século III a.C., na cidade de Alexandria, no Egito, um dos grandes centros do
conhecimento na época. Em seus scriptoria, os filólogos alexandrinos buscavam
recuperar a forma original dos grandes poemas homéricos – a Ilíada e a Odisséia (textos
capitais da cultura helênica) –, que haviam sido escritos cerca de quinhentos anos antes.
As mudanças que a língua grega sofrera nesse período eram vistas como corrupções de
sua forma mais perfeita: a língua de Homero. Assim, o estudo da língua passou a ter
como princípio norteador a fixação da forma considerada a mais perfeita do idioma –
aquela encontrada nos clássicos do cânone literário.
No pragmatismo da cultura romana, que dominou o mundo antigo, após o
período helênico, o estudo da Gramática adquiriu um fim mais prático, associando-se ao
estudo da Retórica. Os debates públicos travados no Fórum e no Senado eram cruciais
na disputa pelo poder na sociedade romana. Assim, era imperioso ser um exímio orador,
usando a língua com destreza e grande poder de persuasão. Nesse contexto, o estudo da
gramática se identificou com a arte de escrever e falar bem. Essa concepção atravessou
a Idade Média e foi transferida na era moderna ao estudo das línguas nacionais.
A homogeneização linguística em torno de uma forma de língua considerada
superior desempenhou um papel ideológico decisivo na formação dos modernos estados

12
nacionais, estabelecendo a equação: uma nação – um governo – uma língua. Isso
explica a força do paradigma da tradição gramatical nas sociedades contemporâneas,
dominadas pela cultura letrada. No senso comum, a existência de uma única forma
correta de língua é tida como uma verdade objetiva e inquestionável, de modo que o
estudo da língua só pode ser concebido como uma forma de fazer o aluno falar e
escrever corretamente. Por sua vez, o estudo científico da linguagem humana tem
demonstrado que há uma grande dose de mistificação nessa concepção de língua e do
seu ensino, mas o peso de uma tradição cultural secular e as poderosas forças
ideológicas que a sustentam fazem que uma visão mais realista de língua fique restrita
aos muros das universidades, e a modernização do ensino de língua materna ainda tem
de vencer uma enorme resistência na ideologia hegemônica na sociedade.

3. O estudo científico da gramática e a variação linguística

Com o advento da Linguística Moderna no início do século XX, pesquisas


empíricas demonstraram que toda variedade de língua tem uma organização estrutural e
goza de plenitude funcional dentro de seu universo cultural próprio. Em outras palavras,
qualquer falante de uma língua humana é capaz de dizer tudo o que ele pensa em sua
língua materna. Ele não é capaz de dizer o que não pensa. Isso implica que muitas
deficiências que são vistas como deficiências linguísticas são, na verdade, limitações de
ordem cognitiva e refletem a incapacidade do indivíduo em desenvolver um raciocínio
mais formalizado e complexo.
No plano estritamente linguístico, é muito difícil encontrar deficiências, já que
até os indivíduos com graves transtornos mentais têm a sua competência linguística
preservada; são raros os indivíduos que não conseguem dar uma forma verbal aos seus
pensamentos. Porém, elaborar textos mais longos e bem articulados, com encadeamento
lógico e coerência interna, não é uma habilidade vulgar, e requer todo um treinamento
especial para o indivíduo possa dominar essa técnica. Em seu sentido próprio, o nosso
saber linguístico é a competência que simplesmente nos permite transformar nossos
pensamentos em frases, produzir textos mais longos e complexos depende de outras
habilidades cognitivas. Diante disso, um axioma muito em voga em certos modelos
pedagógicos, segundo o qual o estudo da gramática tem de ser feito no texto e não em

13
frases soltas, não tem qualquer fundamento empírico. O material da análise gramatical é
constituído, sim, simplesmente por frases, sem necessitar, na larga maioria dos casos, do
texto ou do contexto, em que foram produzidas.
Todas as frases que os falantes de uma língua reconhecem como de sua língua
nativa são dados para o estudo científico da gramática, independentemente de serem
consideradas certas ou erradas pela tradição gramatical. E uma das características de
todas as línguas humanas vivas é que sempre existe mais de uma forma linguística de
expressar um mesmo conteúdo cognitivo, como se pode ver nos exemplos abaixo:

(17) A aluna cujo pai é engenheiro tirou uma nota boa na prova de
matemática.
(18) A aluna que o pai dela é engenheiro tirou uma nota boa na prova
de matemática.

Essa possibilidade de dizer a mesma coisa de forma diferente é o que a ciência


da linguagem chama de variação linguística. As frases (17) e (18) estão perfeitamente
estruturadas e são aceitas pelos falantes nativos do português como frases da sua língua,
ou seja, todas são gramaticais. Entretanto, as duas frases são avaliadas de forma
diferenciada, no plano sociocultural, em função das prescrições veiculadas pela tradição
gramatical. Segundo os preceitos da gramática normativa, a frase (17) é a forma correta,
enquanto a (18) está errada. Esta distinção baseia-se em uma convenção social, e não há
qualquer fundamentação linguística que sustente a avaliação de que (17) é melhor que
(18), nem o contrário.
O estudo científico da gramática deve contemplar a variação linguística,
tomando como objeto de análise legítimo qualquer variedade de uso da língua e
buscando explicar os mecanismos gramaticais que permitem a produção de estruturas
sintáticas alternativas. O estudo da variação linguística é importante, em primeiro lugar,
por que é essa flexibilidade inerente à estrutura da língua que permite que ela funcione
em situações culturais tão diversas, como uma feira livre e uma sessão de um tribunal de
justiça. Em segundo lugar, é importante estudar a variação linguística para tentar
compreender uma das características essenciais de todas as línguas humanas: elas estão
sempre mudando, mesmo que seus falantes não se deem conta disso. E as mudanças se
implementam na língua através dos processos de variação linguística. No início, uns
poucos falantes começam a expressar uma ideia com uma forma linguística diferente,
essa forma linguística nova se difunde socialmente e passa a alternar com a forma
14
linguística antiga. Essa situação de variação pode durar séculos ou mesmo se manter
indefinidamente na língua. Porém, pode acontecer de a forma antiga cair em desuso e
desaparecer. Assim, a mudança se completa.
Esses são os princípios que nortearão a análise gramatical da língua portuguesa
que será desenvolvida aqui. O objetivo principal deste estudo é descrever e analisar o
conhecimento que um falante nativo do português emprega quando usa sua língua, o
que inclui sua capacidade de produzir frases formalmente distintas, mas que têm o
mesmo significado, bem como compreender frases formadas de uma maneira diferente
daquela que ele normalmente emprega.

15
Capítulo 1
A Arquitetura da Linguagem

Em termos bem básicos, podemos dizer que quem sabe falar uma língua sabe um
conjunto mínimo de palavras dessa língua e as regras que nela se empregam para
combinar essas palavras em frases. Isso nos permite distinguir os dois módulos
essenciais do conhecimento linguístico: o léxico e a gramática (também denominada
sintaxe, ou ainda, morfossintaxe). Essa divisão do conhecimento linguístico é
confirmada pelos livros que tradicionalmente descrevem uma língua: o dicionário e a
gramática. Conquanto seja evidente essa separação entre o léxico e a gramática,
poderemos constatar que existe uma profunda interação entre esses dois módulos do
conhecimento linguístico, não se podendo falar de dois conjuntos discretos e sem pontos
de contato entre si.

1. O Léxico

O léxico é o conjunto de palavras de uma dada língua e resulta da capacidade


cognitiva dos seres humanos de decompor o real em coisas distintas, através da
faculdade mental de atribuir um significado individualizado a cada coisa. Podemos
denominar essa faculdade como a capacidade de conceituar. Assim, cada palavra da
língua expressa um conceito. Ou seja, uma palavra, em princípio, não remete a um
objeto do mundo real, mas expressa uma definição, com a qual é possível identificar um
conjunto potencialmente infinito de objetos que se ajustam a essa definição. A palavra
árvore não remete a um objeto do mundo real (uma árvore em particular), mas expressa
um conceito que permite ao indivíduo identificar um conjunto potencialmente infinito

16
de objetos que se enquadram no conceito „árvore‟. Portanto, cada palavra da língua é
uma unidade básica de sentido.
Ferdinand de Saussure, o fundador da Linguística Moderna, definiu, assim a
palavra como signo linguístico, constituído pela relação arbitrária entre uma sequência
sonora (a combinação de sons que formam a palavra árvore, por exemplo), dita
significante, e um conteúdo semântico (a ideia que vem a nossa mente quando ouvimos
a sequência sonora árvore), dita significado. A relação entre o significante e o
significado é imediata e indissociável, tanto que Saussure comparou o signo linguístico
a uma folha de papel, sendo um lado da folha o significante, e o seu verso, o
significado; portanto, não se pode separar um do outro. 13
O léxico de uma língua reflete o mundo cultural em que vive a coletividade que
usa essa língua, bem como seu meio ambiente. Assim, na língua dos esquimós existem
várias palavras para designar o que designamos apenas com uma única palavra: neve.
Por outro lado, palavras como cadeira, ortografia e computador, que fazem parte do
léxico da nossa língua, estão ausentes em muitas línguas de sociedades tribais, que
desconhecem esses objetos. O advento da civilização e da escrita são fatores que
determinam um enorme crescimento do léxico de uma língua, tanto que línguas como o
português, o alemão, o francês e o inglês, usadas por sociedades que têm uma tradição
escrita milenar, têm atualmente um léxico constituído por cerca de meio milhão de
palavras, enquanto o léxico de uma comunidade ágrafa (sem escrita) não chega a seis
mil palavras. Mas, se analisarmos o léxico de uma língua como o português, veremos
que a grande maioria das palavras pertence aos vocabulários técnicos da medicina, do
direito, da filosofia, da física etc., e são desconhecidas do grande público. Um falante
dessas línguas, com pouca ou nenhuma escolaridade, domina entre três a quatro mil
palavras somente.

2. A gramática

A gramática diz respeito às regras de combinação das palavras para formar as


frases e a forma adequada que cada palavra deve assumir em cada frase. As regras de
formação das frases definem, entre outras coisas, a ordem em que as palavras devem

13
Curso de Lingüística Geral. 5 ed. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein;
prefácio de Isaac Nicolau Salum. São Paulo: Cultrix, 1973.

17
figurar no enunciado verbal e a relação que se estabelece entre elas. Muitas vezes, é
necessário introduzir partículas gramaticais para sinalizar essas relações. Em uma frase
como:

(1) A Maria gosta de chocolate.

A partícula gramatical de indica que chocolate completa o sentido de gosta. Já


em uma expressão como o chocolate da Maria, a mesma partícula de é empregada para
estabelecer uma relação entre a coisa possuída (o primeiro termo da expressão: o
chocolate) e o possuidor (o segundo termo: a Maria).
Por outro lado, a forma que a palavra assume na frase tem a ver com algumas
informações que a gramática da língua determina que sejam fornecidas quando se usa
um determinado tipo de palavra. Essas informações são denominadas categorias
gramaticais. Quando se usa, por exemplo, um nome, como menino, é preciso dizer
normalmente se se trata de um ou mais de um indivíduo, bem como informar o seu
gênero. Assim, a palavra menino, ao ser empregada em uma frase concreta da língua,
deve assumir uma das seguintes formas: menino, menina, meninos, meninas. Cada uma
dessas formas indica um valor básico em relação ao gênero e ao número, da seguinte
maneira:14
 menino: um indivíduo do sexo masculino
 menina: um indivíduo do sexo feminino
 meninos: mais de um indivíduo do sexo masculino
 meninas: mais de um indivíduo do sexo feminino
Portanto, podemos dizer que o gênero e o número são as categorias
gramaticais da classe gramatical dos nomes, em português.15 E os valores das
categorias de gênero e número devem ser corretamente indicados no contexto de cada
frase; caso contrário, essa frase se torna agramatical, como se pode ver no exemplo
abaixo:

(2) *Essas menino são lindas.

As categorias gramaticais definem propriedades essenciais da faculdade da


linguagem, tornando-a um sistema muito eficaz e econômico. A categoria gramatical de

14
Apresentamos agora só o significado básico de cada forma, porém a questão da significação dessas
formas é mais complexa e será retomada adiante.
15
Esse tema será objeto do próximo capítulo deste livro.

18
número, por exemplo, é uma forma muito econômica de codificar a informação. Se
precisássemos de uma palavra para designar „um menino‟ e outra para designar „mais de
um menino‟, e assim por diante, necessitaríamos de quase o dobro das palavras de que
dispomos, para expressarmos essa informação que fazemos apenas com o acréscimo de
um –s ao final da palavra. Por outro lado, as categorias gramaticais correspondem às
categorias mentais, por meio das quais os seres humanos organizam a sua percepção do
mundo. Portanto, estudar gramática é também uma forma de estudar as categorias que
formam o pensamento humano.
Nesse sentido, uma das categorias essenciais da gramática das línguas humanas
é a categoria de tempo, modo e aspecto ligada à classe dos verbos. Qualquer frase
produzida em qualquer língua humana tem de conter ao menos um elemento gramatical
que: (i) situe temporalmente o evento referido em relação ao momento em que a frase é
proferida (a categoria tempo), (ii) indique se o evento referido é real ou irreal (a
categoria modo); (iii) as características de duração e realização do evento (a categoria
aspecto).
Como vimos na introdução deste livro, a frase abaixo é agramatical, porque não
possui uma marca gramatical de tempo, modo e aspecto (TMA).

(3) * Eu cortar o cabelo amanhã.

A frase só será bem formada se contiver uma marca gramatical que expresse os
valores de tempo, modo e aspecto, adequados à essa frase (os valores do futuro do
indicativo), seja pela flexão do verbo – cf. (4) a. –, seja pela introdução de um verbo
auxiliar, formando uma locução verbal – cf. (4) b.:16

(4) a. Eu cortarei o cabelo amanhã.


b. Eu vou cortar o cabelo amanhã.

A possibilidade de expressar os valores gramaticais do futuro do indicativo de


duas formas diferentes – uma única formal verbal flexionada (construção sintética) ou
uma locução verbal (construção analítica) – reflete uma das propriedades universais
das línguas humanas: a variação linguística (conforme vimos na seção 3 da Introdução
deste livro). Também aqui as duas formas diferentes de expressar o futuro do indicativo,
ou seja, as duas variantes linguísticas, funcionam perfeitamente, não havendo uma

16
Essa distinção entre flexão verbal e locução verbal será tratada no próximo capítulo.

19
variante que seja, superior, mais funcional, ou mais gramatical que a outra. E, embora a
forma sintética seja a preferida pela tradição gramatical, o que realmente interessa para
o bom funcionamento da língua é que os valores de tempo, modo e aspecto sejam
expressos gramaticalmente, seja na forma sintética, seja na forma analítica.
Assim, podemos concluir que as palavras possuem propriedades formais e
semânticas que definem a maneira como elas vão se combinar com as outras palavras da
língua para formar frases, bem como determinam a forma que elas devem assumir em
cada frase concreta da língua. Isso nos conduz à concepção de uma relação bem
dinâmica que reúne o léxico e a gramática.

3. A relação entre léxico e gramática

Como estamos vendo, o conhecimento do léxico não está dissociado do


conhecimento da gramática. Nesse sentido, o conhecimento que nos permite falar nossa
língua materna (a nossa competência linguística) resulta da relação dialética entre
léxico e gramática, na qual o conhecimento da gramática permeia o conhecimento do
léxico, e este se projeta naquele. Isso quer dizer que o conhecimento que o falante tem
das palavras de sua língua não se restringe ao conhecimento da relação entre forma e
significado referencial, esse conhecimento abarca também as propriedades gramaticais
de cada palavra. Essa especificação gramatical é que orienta a seleção das palavras
para formar as frases. Tomemos, como exemplo, as palavras brincar e brincadeira.
Ambas têm um significado referencial muito semelhante, que remete ao „ato de brincar‟,
mas essas duas palavras têm especificações gramaticais muito distintas, que fazem de
brincar um verbo e brincadeira um nome. O falante nativo sabe, por exemplo, que,
numa frase, um verbo como brincar deve ser acompanhado de um constituinte que
informe o agente da ação que esse verbo expressa, como exemplificado com a
expressão as crianças, no exemplo (5); já um nome como brincadeira deve ser
precedido por um determinante (como, por exemplo, o artigo definido a) e pode vir
seguido por um modificador (um sintagma preposicionado, como de roda, por
exemplo), formando um conjunto que pode funcionar como sujeito de um verbo, como
ocorre na frase apresentada em (6).

(5) As crianças brincaram à tarde toda.

20
(6) A brincadeira de roda acabou tarde.

Por saber isso, o falante nativo não se atrapalha, nem faz confusões, como
exemplificado abaixo:

(7) *As crianças brincadeiras à tarde toda.


(8) *Este brincamos de roda é muito divertido.

Isso nos leva a uma conclusão inexorável: para produzir e entender as frases de
sua língua materna, o falante deve ser capaz de analisar a estrutura sintática e semântica
de todas as frases que podem ser produzidas nessa língua. Quando falamos, estamos
fazendo, de forma inconsciente e ininterruptamente, a análise semântica e sintática das
frases que falamos e ouvimos. Isso significa que qualquer falante nativo do português,
mesmo que não tenha qualquer escolaridade, sabe que brincar é um verbo, ou seja, sabe
quais são as propriedades morfossintáticas e semânticas dessa palavra, de modo que é
capaz de empregá-la adequadamente nas frases que produz e interpretar as frases
construídas com esse palavra que ele ouve, mesmo que não seja capaz de explicar esse
conhecimento, ou sequer tenha consciência desse conhecimento internalizado em sua
mente.
Mas essa ignorância em relação ao funcionamento da linguagem humana não é
um “privilégio” apenas das pessoas sem instrução formal. A visão preconceituosa e
deformada da língua que predomina na sociedade faz com que muitas pessoas instruídas
digam disparates como: “a linguagem popular é caótica e sem regras”. Qualquer pessoa
que tenha um mínimo de informação sobre como funciona a linguagem humana sabe
que não existe frases formadas aleatoriamente, sem obedecer a um conjunto de regras
muito bem estruturadas e articuladas entre si. Muitos falantes do português no Brasil
produzem frases como a exemplificada em (9) – que é uma frase considerada errada, do
ponto de vista da tradição gramática, mas é uma frase gramatical, dentro da ótica do
estudo científico da gramática –, mas nenhum deles produz uma frase como a
apresentada em (10), que uma frase agramatical, porque viola as regras internalizadas
na mente de qualquer falante nativo da língua portuguesa.
(9) Meus filho trabalha muito.
(10) *Meus filhos trabalhamos muito.
A análise gramatical tem por objetivo explicitar essas regras que geram as frases
bem formadas na língua, o conhecimento intuitivo do falante nativo dessa língua. Por

21
essa razão, o termo gramática pode ser empregado com dois sentidos. Por um lado,
significa o conjunto de regras que compõem o conhecimento intuitivo do falante nativo
(gramática mental, implícita). Por outro lado, refere o livro que busca descrever essas
regras (gramática formalizada, explícita). A diferença entre a gramática tradicional, de
caráter normativo, e a análise científica da gramática, de caráter descritivo, é que a
primeira subordina sua descrição da formação das frases a uma forma específica de uso
da língua – a norma padrão, também denominada norma culta –, considerada superior
e a mais perfeita, enquanto a segunda busca depreender as regras que formam as frases
no uso concreto da língua, sem considerar as convenções sociais que restringem esse
uso. Porém, em sua essência, tanto a análise normativa, quanto a análise científica,
produzem o mesmo tipo de conhecimento: uma descrição estrutural das frases da
língua, base para a formalização das regras que geram essas frases. Para analisar a
gramática como sistema de regras que geram as frases de uma língua, é preciso, em
primeiro lugar, definir bem o produto desse sistema de regras. Assim, buscaremos
definir, na sessão seguinte, o que é uma frase da língua, ou mais precisamente, uma
frase gramaticalmente estruturada.17

4. Frase, Oração e Período

Com base no que foi dito até agora, podemos afirmar que a gramática é o
sistema mental que transforma os nossos pensamentos em frases sintaticamente
estruturadas.18 Uma frase sintaticamente estruturada deve conter ao menos uma forma
verbal marcada gramaticalmente para tempo, modo e aspecto; seja uma forma verbal
flexionada, como em (11) abaixo, seja uma locução verbal, como em (12). Essa forma
verbal pode ser apenas a conexão entre um predicador nominal ao seu argumento
externo, como em (11), ou ser um predicador verbal que seleciona seu(s) próprio(s)
argumento(s), como em (12):19

17
Com esse sentido, podemos dizer também uma frase sintaticamente estruturada.
18
Não estamos considerando aqui certos tipos especiais de frase que a tradição gramatical chama de frase
nominal e frase de situação – exemplificadas abaixo em (1) e (2) b., respectivamente – e que só são
usadas em situações muito específicas.
(1) Votação da reforma tributária hoje na Câmara dos Deputados.
(2) a. A Maria chegou?
b. Não.
19
A estrutura dessas predicações nominais e verbais será tratada no Capítulo 3.

22
(11) Maria estava insegura ontem, na reunião.
(12) João vai trabalhar com o avô no comércio.

Como se verá em detalhes no Capítulo 3, o conjunto formado por um


predicador nucelar, seja ele nominal ou verbal, e seu(s) argumento(s) é o núcleo da
estrutura sintática básica da língua, denominada oração. Além do predicador nucelar e
seu(s) argumento(s), a oração pode conter outros constituintes denominados adjuntos e
apostos. A oração per se pode constituir uma frase da língua, como em (11) e (12)
acima, o que a tradição gramatical denomina oração absoluta e período simples.
Porém, a frase pode ser constituída por mais de uma oração, como em (13) abaixo, em
que a frase é constituída por três orações que se organizam a partir das formas verbais
tinha dito, é e discordo. Portanto, o número de orações de um período é igual ao número
de formas verbais que esse período contém.

(13) João tinha dito que a Maria é imatura, mas eu discordo de sua
opinião.

A tradição gramatical denomina período composto a essas frases constituídas


por mais de uma oração. Portanto, uma frase é um conjunto de orações, podendo ser um
conjunto unitário. Por outro lado, uma oração só poderá constituir uma frase sozinha se
contiver uma forma verbal marcada em tempo modo e aspecto (TMA). As orações
abaixo, formadas em torno de formas verbais não marcadas em TMA não podem formar
sozinhas uma frase:

(14) *José agredir o colega.


(15) *João trabalhando com o irmão.
(16) *Finalizado o trabalho.

Em (14) o verbo está no infinitivo; em (15), no gerúndio e em (16), no


particípio passado; são as chamadas formas nominais ou formas não-finitas do
verbo. As orações que contêm esse tipo de forma verbal só podem formar uma frase se
combinadas com uma oração que tenha uma forma verbal finita, ou seja, uma forma
verbal flexionada em TMA, como em (17) e (18), ou uma locução verbal, como em
(19):

(17) Maria viu José agredir o colega.


(18) O pai quer o João trabalhando com o irmão.
(19) Finalizado o trabalho, vamos poder descansar.

23
Portanto, uma frase sintaticamente estruturada deve conter ao menos uma forma
verbal finita, ou uma locução verbal. E para ser bem formada (isto é, gramatical) ela
deve combinar as palavras que a compõem dentro da forma prevista pela gramática da
língua, e essas palavras devem assumir a forma adequada, de acordo com suas
propriedades gramaticais especificas.

5. Conclusão

Neste capítulo, buscamos delinear o conhecimento que nos torna falantes de uma
língua humana. Em linhas gerais, o conhecimento requerido para falar uma língua se
divide, por um lado, no conhecimento de um conjunto representativo de palavras dessa
língua e, por outro lado, no conhecimento do conjunto regras necessárias para combinar
essas palavras em frases sintaticamente estruturadas, definindo precisamente a forma
que cada palavra deve assumir em cada combinação frásica. Esses dois módulos do
conhecimento linguístico – denominados, respectivamente, léxico e gramática –
guardam uma relação dialética entre si. Quando aprendermos as palavras de uma língua,
não aprendemos apenas sua forma e seu significado referencial, aprendemos também
uma série de propriedades gramaticais que especificam a maneira como essa palavra
deve ser empregada na formação das frases da língua. Portanto, as palavras não estão
armazenadas em ordem alfabética, no que podemos chamar de dicionário mental do
falante, como no livro que retrata o léxico da língua (o dicionário), mas agrupadas de
acordo com suas especificações gramaticais. A análise gramatical denomina esses
subconjuntos do léxico, que o conjunto global de palavras de uma língua, classes de
palavras ou classes gramaticais. Esse será o objeto do próximo capítulo deste livro.

24
Capítulo 2
As Classes de Palavras

Como vimos no capítulo anterior, as palavras – ou seja, as unidades que


constituem o léxico de uma língua – estão organizadas na mente do falante nativo dessa
língua, de acordo com suas propriedades gramaticais. Esse conhecimento é necessário
para que o falante possa selecionar as palavras que devem figurar em cada frase da
língua, bem como definir a forma adequada que devem assumir em cada contexto
específico. Portanto, uma descrição do conhecimento que nos permite formar as frases
com que nos comunicamos deve começar pela análise dessas propriedades gramaticais
que estruturam o léxico da língua. Não é à toa que as gramáticas tradicionais contêm
uma parte destinada à descrição das classes de palavras, que precede a parte destinada
à descrição da sintaxe.20 As classes de palavras são, portanto, subconjuntos do léxico de
uma língua e se definem, essencialmente, por propriedades compartilhadas por um
conjunto de palavras, que as distinguem do restante de palavras dessa língua. Neste
capítulo, vamos procurar identificar que propriedades são essas.

1. Parâmetros para a classificação das palavras

Ao dividir as palavras de uma língua em classes, como a dos verbos, nomes,


preposições e advérbios, a tradição gramatical tem realizando um procedimento muito
frequente no saber formal, denominado taxonomia, o qual consiste basicamente em
dividir e classificar os elementos de um conjunto, segundo as propriedades e

20
Nos estudos linguísticos, as classes de palavras fazem parte do objeto de estudo de uma disciplina
específica denominada Morfologia. Em função disso, devemos advertir que a descrição que se apresenta
neste capítulo está longe de ser exaustiva e se presta, sobretudo, a fornecer bases mínimas sobre a
estruturação do léxico, necessárias ao desenvolvimento de uma análise sintática da língua, que será feita
nos capítulos seguintes.

25
características que agrupam esses elementos e os distinguem dos demais. É assim, por
exemplo, que a Biologia tem classificado os animais em mamíferos, aves, anfíbios,
repteis e peixes. Para fazer essa classificação, os biólogos se baseiam nas propriedades
mórficas e comportamentais que caracterizam cada grupo de animais. Os mamíferos são
animais que têm pelos, geram os filhotes em seu útero e os amamentam quando nascem,
enquanto as aves são animais que têm penas e bico, põem ovos e não amamentam os
seus filhotes, e assim por diante. A identificação precisa das propriedades que
individualizam cada grupo e o distinguem dos demais é a base para uma taxonomia
eficaz. É o que podemos denominar parâmetros de classificação.
Na tradição gramatical, o parâmetro semântico tem sido tomado como base
para a classificação das palavras. Dito de outro modo, as palavras da língua são
classificadas pelo tipo de significado que normalmente veiculam. Assim, o nome é
definido como “a palavra com que nomeamos os seres em geral”; o verbo, como a
palavra “que denota ação, estado ou fenômeno”; e o adjetivo, como a palavra que
exprime “aparência, modo de ser, ou qualidade”.21 Com efeito, se olharmos para as
palavras tradicionalmente classificadas como substantivos (isto é, os nomes),
encontraremos um grande número de palavras que designam seres ou coisas, como:
cachorro, orquídea, cadeira, estrela, farinha etc. Da mesma forma, muitas palavras
classificadas como verbos exprimem, de fato, uma ação – como, por, exemplo correr,
falar e esculpir –, e muitas das classificadas como adjetivos denotam qualidades, como
alto, magro e inteligente. Contudo, qualquer um que queira classificar as palavras de
uma língua utilizando apenas o parâmetro semântico enfrentará sérias dificuldades.
Senão, vejamos.
Uma palavra como corrida não denota uma ação („ato de correr‟)? Então deveria
ser classificada como verbo; porém, todos nós sabemos que se trata de um nome. E
brilhar, não é a palavra que exprime a qualidade ou propriedade de refletir a luz?
Entretanto, é classificada como verbo, não como adjetivo.22 Nós sabemos que brilhar é
um verbo, não por causa do seu significado, mas porque essa palavra pode figurar nas
frases da língua, assumindo formas como: brilharei, brilhamos, brilharam etc. Da
mesma forma que sabemos que corrida é um nome, porque é uma palavra que pode
figurar nas frases da língua precedida de uma palavra que lhe determina o sentido e

21
ROCHA LIMA, Carlos Henrique. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. 5 ed. Rio de Janeiro:
Briguiet & Cia, 1960.
22
Para uma discussão desse tema, veja-se: PERINI, Mário. Para uma nova Gramática do Português. 4
ed. São Paulo: Ática, 1989.

26
seguida por outra que o modifica, como em: uma corrida longa. Em vista disso,
conquanto não seja de todo inadequado, o parâmetro semântico está longe de ser o mais
eficaz para classificar as palavras da língua – apesar de, infelizmente, ser o mais
referido nas aulas de língua portuguesa que tratam das classes de palavras. Uma boa
taxonomia do léxico da língua precisa, necessariamente, mobilizar outros parâmetros,
para além do parâmetro semântico.
Considerando essa necessidade, vamos adotar aqui três parâmetros para proceder
à delimitação das Classes de Palavras da Língua Portuguesa:23
 parâmetro semântico
 parâmetro formal
 parâmetro distribucional
Para além do parâmetro semântico, já discutido aqui, o parâmetro formal (ou
parâmetro morfológico) tem a ver com a forma que a palavra deve assumir em cada
frase concreta, por meio do processo gramatical denominado flexão. Em línguas
flexivas como o português, existem partículas que se afixam à palavra para expressar
um valor de uma informação codificada na gramática da língua. Dizendo o mesmo em
linguagem técnica, essa partícula é um morfema flexional, que se une ao radical da
palavra para expressar um valor de uma categoria gramatical. Por exemplo, o
morfema de plural –s se junta a um nome, como gato, formando gatos, forma usada
para a referência a mais de um indivíduo dessa espécie doméstica de felinos, ou seja,
expressa o plural, valor da categoria gramatical de número da classe gramatical dos
nomes. As palavras de uma classe gramatical se flexionam de acordo com as categorias
gramaticais dessa classe gramatical. Assim, enquanto os nomes, em português, se
flexionam em função das categorias gramaticais de gênero e número, os verbos se
flexionam em tempo, modo e aspecto e pessoa e número.
Já o parâmetro distribucional (ou parâmetro sintático) diz respeito à posição
que uma palavra normalmente ocupa na frase, bem como a forma como ela deve se
combinar na formação frases (o que podemos chamar de distribuição da palavra).
Combinamos nomes com determinantes e modificadores para formar um conjunto que
se combina com um verbo para formar o núcleo de uma oração, que, por sua vez, pode
se combinar com um adjunto, para dar forma definitiva a uma frase da língua.
Exemplificando: combinamos o nome geladeira com o determinante esta e o

23
Cf., entre outros: BASILIO, Margarida. Teoria Lexical. 7 ed. São Paulo: Ática, 2001.

27
modificador velha para formar o Sintagma Nominal esta geladeira velha, o qual se
combina com o verbo pifar dando forma à predicação esta geladeira velha pifou, à qual
se adjunge o advérbio ontem, para formar a frase esta geladeira velha pifou ontem.
Nas próximas seções, vamos utilizar os parâmetros semântico, formal e
distribucional para descrever sumariamente as classes de palavras em português. Mas,
antes, vamos fazer uma distinção básica na composição do léxico da língua, a qual
divide as palavras em dois grandes grupos: palavras referências e palavras
gramaticais.

2. Palavras referenciais e palavras gramaticais

Observemos a seguinte frase:

(1) O cozinheiro disse que aquele peixe está gostoso.

A informação contida nessa frase está expressa pelas seguintes palavras:


COZINHEIRO DIZER PEIXE GOSTOSO.24 Já as palavras o, que, aquele e está não
contribuem para o conteúdo informacional da frase, mas são imprescindíveis para sua
boa formação, ou seja, para que essa frase tenha gramaticalidade. É como se as
primeiras palavras fossem os tijolos, e as últimas a argamassa usada para unir os tijolos
na construção de uma parede. Podemos denominar o primeiro tipo de palavra como
palavras referências (utiliza-se também a expressão palavras lexicais), e o segundo
tipo como palavras gramaticais (utiliza-se também a expressão palavras funcionais).
As palavras referenciais constituem a grande maioria das palavras de uma
língua e se referem às coisas do mundo exterior. Podem ser classificadas como
referenciais palavras como homem, micróbio, feiura, tempestade, falar, morrer,
trabalhar, sorrir, feliz, inteligente, simples, complexo, ruidosamente, sorrateiramente
etc. Ou seja, formam o conjunto das palavras referenciais de uma língua as palavras das
classes dos nomes, verbos, adjetivos e advérbios.
As palavras gramaticais, numericamente limitadas, ligam-se a palavras
referenciais, para expressar uma determinada informação, codificada na gramática da
língua. Na frase (1), por exemplo, o artigo definido o liga-se ao nome cozinheiro, para

24
Reparem que, em situação comunicativa favorável, esse conjunto de palavras pode transmitir a mesma
informação que transmitimos normalmente com a frase (1).

28
informar que o cozinheiro em questão é conhecido, tanto pelo falante, quanto pelo
ouvinte. Já o demonstrativo aquele se liga ao nome peixe, para informar que o referido
peixe não está próximo, nem do falante, nem do ouvinte. Por outro lado, a palavra
gramatical pode não ter qualquer significado servindo apenas para ligar os termos na
frase. Tal é o caso da partícula que, que seve apenas para ligar, ou melhor, articular a
primeira parte da frase (1) o cozinheiro disse com a segunda, aquele peixe está
gostoso.25 Pode-se dizer praticamente o mesmo da forma verbal está, que serve
basicamente para estabelecer uma ligação entre o grupo nominal aquele peixe e o
adjetivo gostoso. Por fim, há palavras gramaticais que servem pra recuperar uma
referência já feita anteriormente no discurso. Ampliando a frase (1) em (1) a. abaixo,
encontramos o pronome ele, cumprindo a função de retomar a referência ao cozinheiro
feita em oração anterior.

(1) a. O cozinheiro disse que aquele peixe está gostoso, e ele está certo.

As palavras referenciais e gramaticais também se distinguem em função do tipo


de conjunto que formam no léxico da língua. As palavras referenciais formam conjuntos
muito numerosos e potencialmente abertos, enquanto as palavras gramaticais formam
conjuntos numericamente restritos e virtualmente fechados. Em português existem
muitas dezenas de milhares de nome e verbos, e é praticamente impossível dizer, com
precisão, quantos nomes e verbos existem na língua, porque, a qualquer momento pode
surgir um nome ou um verbo novo. Periguete e deletar são, respectivamente, exemplos
de um nome e um verbo recentemente criados, o que ilustra bem o processo incessante
de ampliação do inventário dessas classes gramaticais. O mesmo não ocorre com as
palavras gramaticais. É possível, por exemplo, dizer com absoluta precisão o número de
artigos que existem em português. Existem tão somente dois artigos em português, que
se flexionam em número e gênero: o artigo definido (o, a, os, as) e o artigo indefinido
(um, uma, uns, umas). Trata-se de um conjunto binário e virtualmente fechado.
Quando dizemos que as classes de palavras gramaticais constituem um conjunto
virtualmente fechado, não queremos dizer que não é possível que se crie uma nova
palavra gramatical na língua. Estamos apenas fazendo referência ao fato de que, ao
contrário do que ocorre com as palavras referenciais, a criação de uma nova palavra
gramatical é um processo que envolve praticamente todos os falantes da língua e

25
Tanto é assim que, em inglês, por exemplo, essa partícula pode não figurar na frase:
(1) The chef said (that) that fish is delicious.

29
demanda séculos para sua implementação. Esse processo de mudança linguística, que
resulta na criação de uma nova palavra gramatical, é denominado gramaticalização. O
próprio artigo definido é o resultado de um processo de mudança linguística desse tipo,
sendo derivado da antiga forma do demonstrativo latino illum (illa, illos, illas).
Processos de gramaticalização mais recentes que se observam na língua portuguesa são
aqueles que deram origem ao pronome a gente, derivado da expressão nominal, que
originalmente significava „um grupo humano‟ (e.g., “a gente deste lugar é muito
desconfiada”), e passou a funcionar como pronome da primeira pessoa do plural,
concorrendo com a forma canônica nós, sobretudo na linguagem falada O mesmo
ocorreu com a expressão nominal Vossa Mercê, que, no século XIV, era uma forma de
tratamento do rei em Portugal e hoje, na forma reduzida você(s), funciona como
pronome da segunda pessoa, referindo-se a qualquer pessoa que atue como receptor
em um processo de interação verbal.
Por designarem as coisas do mundo exterior, o inventário de palavras
referenciais vai variar muito de língua para língua, tanto em termos quantitativos,
quanto em termos qualitativos. Como já foi dito aqui, línguas com uma tradição de
escrita milenar, como o português, o alemão e o francês, têm um léxico de quase meio
milhão de palavras, enquanto que o léxico de línguas de comunidades ágrafas mal chega
a seis mil palavras. Entretanto, a grande maioria das palavras das primeiras pertence aos
vocabulários técnicos de atividades especializadas que se desenvolvem em sociedades
de tipo civilizado. Assim, palavras como aeronave, ortografia e digitalizar não fazem
parte do léxico da maioria das línguas humanas que existem ou já existiram no mundo.
Portanto, essa enorme diferença quantitativa diz respeito somente ao inventário
das palavras referenciais. Podemos afirmar, com alguma segurança, que o número de
palavras gramaticais não varia muito de língua para língua. Por expressarem
significados e relações previstos pela gramática mental dos seres humanos (isto é, a
Gramática Universal ou Faculdade da Linguagem),26 as palavras gramaticais são
virtualmente universais. Pode-se esperar que qualquer língua humana tenha uma
partícula para que o falante se refira a si mesmo, como o pronome eu em português, ou
que tenha uma partícula de negação, similar ao nosso não, e assim por diante. Por que
isso acontece? Porque esses valores fazem parte programação mental inata da espécie
humana. Ou seja, todos os possíveis valores e relações expressos pelas partículas

26
Ver Introdução.

30
gramaticais de todas as línguas humanas estão presentes na mente de toda criança que
está adquirindo sua língua materna, mas só serão ativados os valores expressos nas
partículas gramaticais usadas na língua que ela houve, ou seja, na língua de sua
comunidade. O conjunto de relações e mecanismos gramaticais de cada língua humana
é uma combinação possível dentro das possibilidades previstas na Gramática Universal.
Portanto, se o elenco de palavras referências pode variar muito de língua para língua, os
inventários de palavras gramaticais tendem a ser mais uniformes entre as diversas
línguas, da mesma forma que a relação entre as classes de palavras também será mais ou
menos constante através das línguas.

3. Relações entre as classes de palavras referenciais

Tradicionalmente, as análises taxonômicas buscam decompor o seu objeto de


estudo em conjuntos discretos. Contudo, modelos epistemológicos mais recentes, como
a Teoria dos Conjuntos Difusos,27 têm argumentado no sentido de que um modelo que
prevê a existência de interseções entre os conjuntos, de modo que esses conjuntos
formem um continuum, se ajusta melhor à realidade. Esse princípio epistemológico será
adotado na análise que estamos desenvolvendo aqui. Dessa forma, a disposição das
classes de palavras na estruturação do léxico da língua deve ser vista como um
continuum, que vai desde as classes de palavras mais referências (como os nomes e
verbos) até as classes de palavras mais gramaticais (como os artigos e preposições).
Entre esses extremos, as demais classes de palavras vão se dispondo, de acordo com
suas propriedades e distribuição, de modo que, nos níveis intermediários se encontram
classes de palavras (como os advérbios e numerais) que apresentam, tanto
características de palavras referencias, quanto características de palavras gramaticais. Se
a demarcação entre esses dois conjuntos não é nítida, o mesmo se pode dizer do limite
entre as próprias classes de palavras, havendo muitas zonas de interseção entre elas.
Entre as classes de palavras, podemos afirmar que os nomes e verbos são
aquelas que reúnem a significação básica da grande maioria das frases da língua. Desde
os primórdios do estudo sistemático da linguagem no mundo ocidental, os filósofos
gregos perceberam que o núcleo das frases situava-se na relação entre o nome e o verbo,

27
Cf. ZADEH, Lotfali. Fuzzy Sets and Systems. In: FOX, J. (Ed.). System Theory. Nova York:
Polytechnic Press, 1965b. p. 29–39.

31
numa relação denominada predicação. Podemos, então, definir nomes e verbos como
primitivos da língua. Já os adjetivos são palavras que normalmente se relacionam aos
nomes, modificando-lhes o sentido, como em dia claro e bicho feroz. Isso faz dos
adjetivos uma classe de palavras mais gramatical que os nomes (dentro do continuum
referencial-gramatical), já que o adjetivo se liga ao nome por uma relação dependência
semântica e sintática a este. Mais além, estão os advérbios, que, não apenas se ligam
aos verbos (como em fala demais e escreve lentamente), mas também aos adjetivos
(como em muito alto e tremendamente estúpido), e aos próprios advérbios (como em
respondeu muito tranquilamente às perguntas). Ou seja, a relação de dependência
semântico-sintática que o adjetivo estabelece com o nome, é observada também entre o
advérbio e o verbo e entre o advérbio e o adjetivo, e mesmo entre um advérbio e outro.
A classe dos advérbios seria, portanto, a mais gramatical das classes de palavras
referenciais. Trata-se de uma classe muito heterogênea, reunindo tanto palavras de
natureza nitidamente gramatical (como não, muito e ontem), quanto palavras com
características das palavras referenciais, como os advérbios em –mente (e.g.,
claramente, notoriamente, friamente etc), que constituem, inclusive, um conjunto
potencialmente aberto, na medida em que, a qualquer momento, se pode criar um
advérbio, juntando-se o sufixo –mente a um adjetivo da língua.
Por outro lado, os limites entre as classes dos nomes, adjetivos e advérbios nem
sempre são nítidos, já que há palavras, como velho e brasileiro, que podem funcionar
tanto como nomes – cf. exemplos (2) e (3) – ou como adjetivos – cf. exemplos (4) e (5):

(2) Os velhos são sempre ranzinzas.


(3) O brasileiro adora samba e futebol.
(4) “O homem velho é o rei dos animais.”
(5) A mulher brasileira é muito admirada no mundo.

Já adjetivos como alto e redondo, podem funcionar também como advérbios,


como se observa, respectivamente, nos exemplos (6) e (7).

(6) O supervisor fala muito alto.


(7) “A cerveja que desce redondo.”

Assim, podemos agrupar de um lado nomes, adjetivos e advérbios, como classes


de palavras não verbais, em oposição à classe dos verbos, que se destacam como uma
classe de palavras muito diferenciada, seja por suas propriedades mórficas, seja por suas
propriedades distribucionais.
32
4. As palavras gramaticais

Como foi dito na seção 2 acima, as palavras gramaticais cumprem basicamente


três funções na língua:
(i) expressar o valor de uma categoria gramatical da palavra a que se liga;
(ii) recuperar uma informação já disponibilizada anteriormente no discurso,
ou fazer uma referência vinculada à situação em que ocorre a interação
verbal.
(iii) estabelecer relação entre palavras, sintagmas ou orações;
As palavras gramaticais que cumprem a função (i) podem ser definidas como
especificadores. As palavras gramaticais que cumprem a função (ii) podem ser
definidas como pronomes. Já as palavras que cumprem a função (iii) são denominadas
conectivos .

4.1. Os especificadores
Os especificadores ligam-se às palavras de uma determinada classe gramatical,
de cujas categorias gramaticais eles expressam os valores. Em português, os
especificadores gramaticais ligam-se precipuamente à classe dos nomes; são, portanto,
especificadores nominais. Incluem-se aí, as seguintes classes de palavras gramaticais:
artigos, demonstrativos, possessivos, pronomes indefinidos e numerais. Essas
palavras gramaticais, assim como o adjetivo, também se flexionam em gênero e número
de acordo com o nome com que se relacionam para formar um Sintagma Nominal
(SN), através do mecanismo sintático da concordância nominal, como se pode ver na
frase abaixo:
(8) As mulheres inteligentes intimidam os homens.
No SN as mulheres inteligentes, enquanto o artigo expressa os valores de
feminino e plural relativos ao nome mulheres, o adjetivo só se flexiona em número; no
SN os homens, o artigo também se flexiona em gênero e número para concordar com a
forma do nome núcleo homens. As informações de gênero e número, contudo, dizem
respeito apenas ao nome, e não ao artigo ou ao adjetivo. Na frase são feitas referências
no plural aos indivíduos adultos da espécie humana do gênero feminino e masculino. O
fato de estar no plural não significa que o adjetivo inteligente esteja se referindo a vários
tipos de inteligência. O adjetivo inteligente recebe a marca de plural apenas porque está

33
se relacionando com um nome mulher, este sim está sendo empregado no plural porque
se refere a mais de um indivíduo.
Portanto, o mecanismo sintático da concordância nominal, segundo o qual
todas as palavras flexionáveis que se relacionam com o nome dentro de um SN devem
exibir as mesmas marcas de gênero e número desse nome núcleo do SN, pode ser visto
apenas como um mecanismo de marcação de relações sintagmáticas, sem valor
informacional. Ou seja, é um mecanismo que não interfere no significado final da frase,
tanto que em línguas, como o inglês, ele está praticamente ausente, como se pode ver na
tradução da frase (8) apresentada em (9) abaixo:
(9) Intelligent women usually scare men.
Em inglês, praticamente só o nome se flexiona dentre as palavras que podem ser
selecionadas para formar um SN. E os nomes só se flexionam em número, pois não há
flexão de gênero nessa língua. No exemplo dado, o nome woman vai para o plural –
através da alternância vocálica: woman (singular) versus women (plural)28 –, enquanto o
adjetivo inteligent não se flexiona, como todos os adjetivos em inglês, que constituem,
nessa língua, uma classe de palavras invariáveis. Nessa frase, a gramática do inglês não
permite o uso do artigo definido, mas mesmo em contextos em que o artigo definido the
seja empregado – como na frase (10) –, isso não altera o quadro, porque em inglês essa
partícula gramatical também é invariável, da mesma forma como o pronome indefinido
all (todos/todas) também não se flexiona em gênero e número, ao contrário do que
ocorre em português.
(10) All the intellgent women i know get their respect in the workplace.
Todas as mulheres inteligentes que eu conheço conquistam seu
respeito no local de trabalho.
Como se pode ver, a ausência do mecanismo sintático da concordância nominal
não compromete o funcionamento da língua, nem a torna menos expressiva ou menos
eficaz. Esse mecanismo fazia parte da gramática da língua inglesa no passado. Nos
últimos séculos, ele desapareceu, e isso não impediu que o inglês se tornasse o idioma
mais valorizado no mundo contemporâneo – a língua da globalização, como se diz. Isso
demonstra que a avaliação negativa das variedades populares e coloquiais da língua
portuguesa no Brasil, nas quais o mecanismo da concordância nominal (e verbal) está

28
A forma mais comum de flexão de número em inglês é o acréscimo do morfema de plural –s, como
ocorre em português. Vejam-se os seguintes exemplos: book / books (livro / livros); girl / girls (garota /
garotas).

34
quase ausente – como exemplificado em (11), abaixo –, não tem qualquer fundamento
linguístico. Trata-se de uma mera convenção social.29
(11) As mulhé inteligente costuma assustá os home.
Por outro lado, não se pode pensar, no sentido inverso, que uma língua sem
concordância seja uma evolução em relação a uma língua com concordância, de modo
que aquela seria melhor do que esta, por ser mais econômica ou mais eficiente. A
concordância não onera a língua, nem a torna mais difícil. Uma criança adquire com
mesmo nível de esforço mental uma língua com concordância ou uma língua sem
concordância, porque as duas possibilidades já estão previstas em sua programação
mental inata.30
Algumas classes de palavras que funcionam como especificadores apresentam
igualmente propriedades pronominais, tal é o caso dos demonstrativos, dos pronomes
indefinidos e principalmente dos possessivos. Há, portanto, uma clara interseção, entre
os conjuntos dos especificadores e o dos pronomes, o que ratifica a perspectiva teórica
aqui adotada dos conjuntos difusos que formam um continuum. Essa questão será
desenvolvida nas seções seguintes.

4.2. Os pronomes
Os pronomes são palavras gramaticais que desempenham duas funções na
língua:
(i) função dêitica: fazer referência aos participantes da situação interação
verbal;31
(ii) função anafórica: recuperar o conteúdo referencial de um termo já
mencionado anteriormente no discurso.
Os pronomes pessoais eu e você cumprem uma função dêitica, o primeiro se
refere à pessoa que está falando na situação de interação verbal, ao passo que o segundo
se refere à pessoa que está ouvindo. Ou seja, o valor referencial dessas formas é
determinado, não apenas pela situação comunicativa em que elas são empregadas, mas

29
Na verdade, estamos diante de um poderoso mecanismo de discriminação social e de dominação
ideológica.
30
Ver Introdução.
31
A dêixis recobre “qualquer categoria gramatical [dita categoria dêitica] que expressa distinções que
dizem respeito ao tempo e lugar em que ocorre o ato de fala, ou aos diferentes papeis de seus
participantes. A palavra dêixis significa „apontar por meios linguísticos‟, e os falantes fazem uso da dêixis
sempre que usam palavras como aqui, lá, este, você, agora e então.” [TRASK, R. L. Dicionário de
Linguagem e Linguística. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2008. p. 51-52.]

35
inclusive pelo participante da situação que as emprega.32 Já o pronome ele tem um
valor anafórico, como podemos ver na frase (37) abaixo, na qual esse pronome serve
para recuperar a referência do SN O Pedro. Nesse caso, o termo ao qual o pronome se
refere é classificado como antecedente, e o pronome estabelece com seu antecedente
uma cadeia de correferência.33
(12) O Pedroi perdeu o filho. Elei está inconsolável.
A tradição gramatical costuma definir o pronome como a palavra que “substitui
um nome”. A definição não é muito precisa porque o pronome pode ter como
antecedente, não um SN, mas uma oração, como ocorre no exemplo abaixo, em que o
pronome o retoma o conteúdo referencial de denunciar o amigo.
(13) Não queria denunciar o amigoi, mas oi fez, por achar que era o
certo.
No plano semântico-morfológico, os pronomes expressam valores da categoria
gramatical pessoa do discurso, quais sejam: referência ao falante, 1ª pessoa; referência
ao ouvinte, 2ª pessoa; referência a uma pessoa ou coisa que não participa da interação
verbal, 3ª pessoa. A categoria pessoa se combina com a categoria número (singular e
plural), do que resultam seis valores da categoria gramatical compósita número-
pessoal. As formas canônicas dos pronomes pessoais que as gramáticas normativas
apresentam para expressar pessoa e número divergem bastante das formas em uso
corrente na língua, particularmente no Brasil, como se pode ver no quadro abaixo:
PESSOA/NÚMERO FORMA CANÔNICA FORMA(S) CORRENTE(S)
1ª pessoa do singular Eu Eu
2ª pessoa do singular Tu você / tu
3ª pessoa do singular ele/elas ele/elas
1ª pessoa do plural Nós nós / a gente
2ª pessoa do plural Vós Vocês
3ª pessoa do plural eles/elas eles/elas

32
Numa conversa entre João e Maria, o valor referencial dos pronomes eu e você só poderá ser João ou
Maria. Se esses pronomes ocorrerem na fala do João, o eu se refere ao próprio João e o você à Maria; e
vice-versa, se são usados pela Maria.
33
Na notação da análise linguística, os termos de uma cadeia de correferência são marcados com o
mesmo índice (um i subscrito, que é posto logo após o termo), são, portanto, coindexados. Isso foi feito
no exemplo (37), colocando-se um i logo após o SN O Pedro e logo após o pronome Ele, para indicar que
eles têm o mesmo valor referencial.

36
As mudanças afetaram, sobretudo, a 2ª pessoa, com o desaparecimento do vós e
a substituição do tu pelo você na maior parte do Brasil. A forma a gente, também
resultante de um processo de gramaticalização (como vimos acima) concorre
fortemente com a forma canônica nós, superando-a, inclusive, na língua falada.
Vários autores contestam o estatuto da chamada 3ª pessoa, alegando que ela se
distingue das demais (as pessoas propriamente ditas), nos níveis formais, semânticos e
funcionais, podendo ser melhor definida como não pessoa, em oposição à 1ª e à 2ª
pessoas, as pessoas propriamente ditas.34 Formalmente, a 3ª pessoa se flexiona em
gênero (ele versus ela) e número (ele versus eles; ela versus elas), como os nomes, ao
contrário do que ocorria com os pronomes da 1ª e 2ª pessoas, que não exibem flexão de
gênero e expressavam a oposição singular/plural lexicalmente (eu versus nós; tu versus
vós).35 Semanticamente, enquanto os pronomes de 1ª e 2ª pessoa se referem sempre a
seres humanos, o pronome da 3ª pessoa pode se referir a seres humanos, coisas e até a
eventos, conceitos e proposições. Por fim, no plano funcional, a diferença reside, como
vimos acima, no fato, de os pronomes da 1ª e 2ª pessoas terem uma função dêitica,
enquanto o pronome de 3ª pessoa cumpre sempre uma função anafórica.
Os pronomes pessoais ocupam na frase as posições sintáticas normalmente
ocupadas pelos nomes, mas, ao contrário dos nomes, que não se flexionam em função
disso, os pronomes alteram sua forma de acordo com a posição sintática que ocupam na
oração, o que se denomina flexão de caso. Assim, os pronomes pessoais têm uma forma
para ser usada na posição de sujeito (denominada pela tradição gramatical forma do
caso reto) e duas outras formas para serem usadas nas funções de complemento e
adjunto adverbial (as formas átonas e tônicas do caso oblíquo). As formas canônicas
que a tradição gramatical aponta para cada caso são apresentadas no quadro abaixo:36

34
Cf., entre outros: BENVENISTE, Emile. A natureza dos pronomes. In: DASCAL, Marcel (Org.).
Fundamentos metodológicos da lingüística. v.4: Pragmática - Problemas, críticas, perspectivas da
Lingüística. Campinas: Ed. do Autor, 1982.
35
Com o processo de gramaticalização da expressão pronominal Vossa Mercê, do que resultou a forma
você, que funciona hoje como pronome de 2ª pessoa, a forma pronominal dessa pessoa do discurso
também passou a se flexionar em número, como os nomes: você : vocês.
36
A flexão de caso dos pronomes nominais será retomada no Capítulo 4, quando será feita uma descrição
das formas efetivamente em uso na língua, no Brasil.

37
FORMAS DO FORMAS DO CASO OBLÍQUO
CASO RETO FORMAS ÁTONAS FORMAS TÔNICAS
Eu Me mim, comigo
Tu Te ti, contigo
Ele o/a e lhe si, consigo
Nós Nos nós, conosco
Vós Vos vós, convosco
Eles os/as e lhes si, consigo

Os pronomes possessivos constituem uma classe de palavras que combina as


propriedades de especificadores com a de pronomes. Na frase abaixo, o pronome
possessivo seu especifica o nome trabalho, estabelecendo uma relação gramatical
possuidor – coisa possuída, e, ao mesmo tempo, retoma a referência ao nome João, o
seu antecedente.

(14) Joãoi está muito feliz, pois seui trabalho foi o escolhido para
representar a escola.

A dupla função do pronome possessivo (a um só tempo especificador e


pronome) se manifesta no mecanismo da concordância. Enquanto os pronomes pessoais
concordam em gênero e número com o seu antecedente – como podemos ver na frase
(15) –, o pronome possessivo não concorda em gênero e número com o seu antecedente,
mas com o termo que especifica, como podemos ver no exemplo (16) abaixo. Em (15) o
pronome ele tem as marcas de masculino e singular, concordando com seu antecedente
João; da mesma forma, o pronome elas tem as marcas de feminino e plural do seu nome
antecedente irmãs. Já na frase (16), o pronome possessivo vem na forma do feminino
plural concordando com o nome que especifica (irmãs), e não com o seu antecedente
(João):

(15) As irmãsi do Joãoj implicam muito com elej. Elasi são muito
chatas.
(16) O Joãoi não se dá com suasi irmãs.

A natureza pronominal dos possessivos se evidencia também pelo fato de sua


significação estar associada às pessoas do discurso. Nesse sentido, podemos definir os
possessivos como a forma dos pronomes pessoais que expressa o caso genitivo (ou seja

38
a função sintática relacionada à expressão do possuidor). Se assim o fazemos,
podemos ampliar a tabela da flexão de caso dos pronomes pessoais da seguinte maneira:

FORMAS DO FORMAS DO CASO OBLÍQUO FORMAS DO CASO


CASO RETO FORMAS FORMAS GENITIVO
ÁTONAS TÔNICAS
eu me mim, comigo meu, minha, meus, minhas
tu Te ti, contigo teu, tua, teus, tuas
ele o/a e lhe si, consigo seu, sua, seus, suas
nós Nos nós, conosco nosso, nossa, nossos, nossas
vós Vos vós, convosco vosso, vossa, vossos, vossas
eles os/as e lhes si, consigo seu, sua, seus, suas

A tradição gramatical costuma distinguir a função adjetiva dos demonstrativos,


possessivos e dos chamados pronomes indefinidos (ou seja, quando eles funcionam
como espcificadores), do que chama função substantiva, que corresponderia à função de
pronome. A análise tradicional baseia-se seguintes casos, que configurariam a função
substantiva:
(17) Eu pego essa cadeira, você pega aquela.
(18) Meu trabalho está melhor que o seu.
(19) Eu escolho um prato, você escolhe outro.
Porém, o valor pronominal de aquela, seu e outro, respectivamente, nos
exemplos (17), (18) e (19) é apenas aparente. Em uma análise mais adequada, vamos
postular que essas palavras gramaticais atuam como especificadores de um núcleo
nominal não realizado na frase, como se pode ver baixo:
(17) a. Eu pego essa cadeira, você pega aquela (cadeira).
(18) a. Meu trabalho está melhor que o seu (trabalho).
(19) a. Eu escolho um prato, você escolhe outro (prato).
Ou seja, os nomes cadeira, trabalho e prato estão implícitos na segunda oração
de cada período acima, apesar de não estarem concretamente realizados. Esse fenômeno
é muito comum na língua e podemos denominá-lo elipse. Qualquer constituinte pode
ser omitido se o contexto o permitir. Isso é muito frequente nas chamadas construções
de coordenação, como se pode ver abaixo:

39
(20) O João comprou os salgadinhos, a Maria as bebidas.
(21) Maria entregou o trabalho, o João não.
A forma linguística de cada uma dessas frases é, de fato, a que está representada
abaixo, em (20)a. e (21)a. abaixo. Ocorre que os constituintes entre parênteses não estão
realizados na frase. Mas isso não significa que eles não façam parte da frase. Pode-se
dizer que sua presença é virtual, no que, como dissemos, denominamos elipse de
constituintes.
(20) a. O João comprou os salgadinhos, a Maria (comprou) as bebidas.
(21) a. Maria entregou o trabalho, o João não (entregou o trabalho).
Portanto, a elipse do núcleo nominal não altera a função de especificadores de
possessivos, demonstrativos e indefinidos.37

4.3. Os conectivos
As preposições e conjunções são as classes de palavras que funcionam como
conectivos gramaticais. No que concerne à morfologia, são palavras que, ao contrário
do que ocorre com os pronomes e especificadores nominais em português, não se
flexionam; sendo, portanto, chamadas de palavras invariáveis. Os conectivos são
empregados para estabelecer relações:
(i) entre um nome e um SN que o qualifica, como em (22) abaixo, em
que a cultura qualifica história;
(ii) entre um nome ou um adjetivo e um SN que lhes completa o
sentido, como em (23) e (24) abaixo, em que o estádio e o serviço
completam, respectivamente, o sentido do nome ingresso e do
adjetivo apto;
(iii) entre um verbo e SNs que podem funcionar como seu argumento,
como em (25), ou como um adjunto, como em (26) – em (25)
liberdade é o complemento do verbo clamar (quem clama clama por
alguma coisa); já em (26) com a Maria agrega uma informação
circunstancial ao ato de trabalhar;
(iv) entre orações, como em (17) e (18).

(22) a história da cultura

37
Essa questão será retomada na seção 5 abaixo.

40
(23) ingresso no estádio
(24) apto ao serviço
(25) clamou por liberdade
(26) trabalho com a Maria
(27) João disse que a Maria não participará da reunião.
(28) Maria estava doente, mas não faltou ao trabalho.

Em princípio, as preposições são empregadas para relacionar palavras e


sintagmas – como de, em, a, por e com, respectivamente em (22), (23), (24), (25) e (26)
–, enquanto as conjunções, para relacionar orações – como que e mas, respectivamente,
em (27) e (28). Entretanto, tanto as preposições podem ser empregadas para conectar
orações – como exemplificado em (29) abaixo –, quanto as conjunções podem ser
usadas para conectar palavras e sintagmas – cf., respectivamente, exemplos (30) e (31):
(29) Eu fiz tudo para o João não prejudicar a Maria.
(30) É preciso comprar frutas e verduras.
(31) Eu vou trabalhar com o João ou com a Maria?

4.3.1. As preposições
As preposições que integram o núcleo gramatical da língua são palavras
pequenas (ou seja, de pouca substância fonética) e com um alto valor funcional (ou seja,
cumprem muitas funções e são muito empregadas). Encontram-se nesse “núcleo duro”
as preposições: de, com, em, para, a, por, sem. Constituem um conjunto numericamente
reduzido de palavras relacionais, com conteúdo semântico muito abstrato, não raro
meramente gramatical (funcional). Juntam-se a essas preposições mais gramaticais, as
outras que, conquanto sejam também palavras relacionais, têm um conteúdo semântico
mais específico, tendo, portanto, um rendimento funcional menor. Tal é o caso das
seguintes preposições: até, contra, desde, sobre, sob, ante, perante, após, trás. Algumas
palavras que não são, ou não foram em sua origem preposições, são empregadas na
língua como preposição, sendo denominadas pela tradição gramatical preposições
acidentais. Tal é o caso de: durante, conforme, exceto, segundo, visto, salvo, mediante,
fora, afora, consoante etc.
Segundo a tradição gramatical, as preposições propriamente ditas, ou
preposições essenciais, distinguem-se das preposições acidentais, porque, enquanto as

41
preposições essenciais se relacionam com as formas pronominais do caso oblíquo – cf.
(32) –, as acidentais se relacionam com as formas do caso reto – cf. (33):38

(32) Sem mim não fariam isso.


(33) Exceto eu, todos foram contemplados.

Quando não estão atuando para conectar orações, as preposições ligam-se a um


Sintagma Nominal (SN), formando o que denominamos Sintagma Preposicionado
(SPrep).39 Sendo palavras fonologicamente dependentes, algumas preposições fundem-
se com os determinantes que introduzem o SN. Vejamos alguns exemplos no quadro
abaixo:
PREPOSIÇÃO SINTAGMA NOMINAL SINTAGMA PREPOSICIONADO
de o meu irmão mais velho do meu irmão mais velho
com o apoio da família com o apoio da família
em a aula de matemática na aula de matemática
para o bem de todos para o bem de todos40
a o lado do motorista ao lado do motorista
por o amor de Deus pelo amor de Deus41
sem qualquer ajuda sem qualquer ajuda

As relações que as preposições marcam entre as palavras não verbais (isto é,


nomes, adjetivos e advérbios) são basicamente as seguintes:

a. coisa possuída – possuidor


A preposição de é a utilizada para marcar essa relação, em que o nome que a
antecede refere-se à coisa possuída, e o SN a que ela se junta indica o
possuidor, como em casa da Maria, onde casa refere-se à coisa possuída e
da Maria indica o possuidor.42
b. termo qualificado – qualificador

38
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro, Lucerna, 2001. p. 301.
39
A estrutura dos Sintagmas será descrita em detalhe no Capítulo 7.
40
Na linguagem coloquial, faz-se a contração: pro bem de todos.
41
Manteve-se, nesse caso, a construção arcaica resultante da fusão da antiga preposição per com a forma
arcaica do artigo definido lo, com assimilação do –r final da preposição ao l- inicial do artigo e posterior
simplificação: per + lo > perlo > pello > pelo.
42
Essa construção substituiu o antigo caso genitivo da língua latina: domus Mariae, na qual a desinência
–e em Maria indica o caso genitivo, ou seja, a forma morfológica que corresponde a essa informação de
„possuidor‟.

42
A preposição de é também a mais utilizada para marcar a relação entre um
nome e um SN que lhe modifica o sentido, como em: a cor da esmeralda; o
livro de ouro; algumas questões de trabalho etc. Porém, outras preposições
podem ser empregadas também com essa função: aquele homem com uma
moral rígida; uma comida sem gosto; a palavra em negrito etc.
c. nome/adjetivo/advérbio – complemento
Alguns nomes, adjetivos e advérbios requerem um SN que lhes complete o
sentido. Esses SNs devem vir regidos por uma preposição, como podemos
ver nos seguintes exemplos: o pagamento dos impostos (nome + SPrep
Complemento); apto ao trabalho (adjetivo + SPrep Complemento); longe
dos pais (advérbio + SPrep Complemento).

No que concerne aos verbos, as preposições servem para marcar a relação, tanto
entre estes e seus complementos, quanto entre estes e adjuntos expressos por um SN.43
As frases de (34) a (37) são exemplos de complementos verbais introduzidos por
preposição, enquanto as frases (38) a (41) contêm exemplos de adjuntos adverbiais
preposicionados.

(34) Maria gosta de chocolate.


(35) O João só pensa no trabalho.
(36) Luísa foi ao teatro ontem.
(37) Pedro chegou em casa abatido.
(38) Nos divertimos muito com as crianças ontem.
(39) José trabalha em casa.
(40) Ontem passeamos de bicicleta.
(41) Sempre nos falamos por e-mail.

No plano lógico-semântico e no plano sintático-funcional, as preposições,


sobretudo as mais gramaticais, assumem inúmeros valores, como se pode ver, por
exemplo, no quadro abaixo que esquematiza os valores assumidos pela preposição de:
Valores e funções marcados pela preposição de
Valor / Função do SN que introduz Exemplo
possuidor / caso genitivo livro do João
qualificador / adjunto adnominal bandeira do Brasil

43
As relações entre verbos, argumentos e adjuntos serão tratadas no próximo capítulo.

43
argumento interno / complemento nominal destruição de Cartago
argumento interno / complemento verbal preciso da sua ajuda
proveniência / complemento verbal locativo saiu de casa
meio / adjunto adverbial voei de helicóptero

Em vista disso, não nos parecem muito profícuas as tentativas de precisar o valor
semântico de cada preposição, conquanto o valor semântico de preposições que
podemos definir como menos gramaticais (tais como contra, até e sobre/sob) seja mais
preciso.

4.3.2. As conjunções
Há basicamente dois tipos de conjunções. As conjunções propriamente ditas
conectam orações estabelecendo entre elas algum tipo de relação lógico-semântica –
como se pode ver no exemplo (42) abaixo, no qual a conjunção porque, além de
funcionar como conectivo das duas orações, indica que a segunda oração contem a
causa da primeira. O mesmo ocorre na frase (43), em que a conjunção mas relaciona a
segunda oração com a primeira, marcando entre elas uma relação lógica de
contradição. Ou seja, ao ver o mas, o leitor já sabe que a informação que vem em
seguida se opõe à informação que a antecede
(42) Não trabalhei ontem, porque meu filho estava doente.
(43) Pedro se esforçou bastante, mas não obteve o resultado esperado.
Há, entretanto, um tipo especial de conjunção que atua exclusivamente como
conectivo, sendo desprovido de qualquer conteúdo semântico. Tal é o caso do que no
exemplo (44) abaixo, que serve somente para encaixar a oração o João estava blefando
como complemento da forma verbal pensou da primeira oração (sem acrescentar
qualquer informação à frase).
(44) Pedro pensou que João estava blefando.
Em nossa classificação, vamos destacar os conectivos oracionais que não têm
conteúdo semântico, como uma subclasse especial das conjunções denominada
complementizadores.44 Trata-se de uma classe bem gramatical, praticamente
desprovida de valor semântico, exibindo apenas valor funcional, e sendo constituída por
um número reduzidíssimo de elementos – apenas dois: o que e o se. O se tem um

44
A tradição gramatical também reconhece essa especificidade, classificando os complementizadores
como conjunções integrantes.

44
emprego muito mais restrito que o que; e, ao contrário deste último, exibe um valor
semântico associado à dúvida, como se pode ver na frase abaixo:
(45) Não sei se a Maria vai trabalhar hoje.
Não se deve confundir o complementizador se, exemplificado em (45) acima,
com a conjunção condicional se, exemplificada em (46) abaixo. Esta última integra o
vasto elenco das conjunções propriamente ditas e indica que a oração que introduz
expressa uma condição para o que é proposto na oração principal ou matriz, com a
qual essa oração condicional se relaciona. Na frase (46), a vinda da Maria é condição
para a conclusão do trabalho.
(46) Se a Maria vier hoje, concluímos o trabalho.
As conjunções constituem uma classe muito numerosa e heterogênea, como os
advérbios (havendo, inclusive, uma zona de interseção entre essas duas classes de
palavras). Essa característica aproxima as conjunções das classes de palavras
referenciais.45 Ao lado das palavras gramaticais que funcionam como conjunções –
exemplos: e, ou, contudo, porém, todavia, pois, conquanto, embora etc –, existe um
grande número de conjuntos de palavras, denominados tradicionalmente locuções
conjuntivas, que exercem essa função, tais como: já que, desde que, visto que, tanto
que, posto que, ao passo que, à medida que etc. O caráter conjuntivo é fornecido pelo
complementizador que, que se combina com um sem número de palavras e expressões,
servindo de base para a locução conjuntiva.

4.4. Para uma taxonomia das palavras gramaticais


Do que foi dito até aqui, podemos sintetizar a classificação que propomos para
as palavras gramaticais, a qual toma como parâmetro a principal função que a palavra
exerce na língua. Essa taxonomia está esquematizada no quadro abaixo:
PALAVRAS GRAMATICAIS
TIPO FUNÇÃO CLASSES
especificadores especificam o conteúdo referencial de um Artigos
núcleo nominal em função de uma dada demonstrativos
categoria gramatical numerais
indefinidos

45
Devemos fazer aqui menção ao fato de que o elenco de conjunções tende a ser mais numeroso em
línguas usadas em sociedades letradas. Essa relação com a cultura é própria das palavras referenciais.

45
pronomes/ especificadores pronomes possessivos
pronomes referem-se a um dos participantes da pronomes pessoais
interação verbal (função dêitica) ou
retomam o conteúdo referencial de um
termo mencionado anteriormente (função
anafórica)
conectivos estabelecem relações entre palavras, Preposições
sintagmas e orações conjunções

E como foi dito acima, a fronteira entre o primeiro conjunto, dos especificadores
e o segundo, dos pronomes, não é tão nítida, já que os elementos do primeiro,
particularmente os pronomes possessivos, não deixam de exibir certas características do
segundo.46

4.5. Pronomes Relativos e Palavras Interrogativas


Assim como os pronomes possessivos, há outras palavras gramaticais que não se
enquadram perfeitamente nesse esquema. Tal é o caso dos pronomes relativos e das
palavras interrogativas47.

4.5.1. Os pronomes relativos


Os pronomes relativos cumprem uma dupla função: retomar o conteúdo
referencial de um termo antecedente e introduzir uma nova oração, denominada oração
relativa48; dessa forma essas palavras gramaticais são simultaneamente pronomes e
conectivos. Como podemos ver na frase (47) abaixo, o pronome relativo que liga-se ao
termo antecedente o livro, ao tempo em que introduz a oração relativa que eu comprei
ontem, da qual ele é um elemento constituinte.
(47) O livroi quei eu comprei ontem é muito caro.
O pronome relativo funciona como um elo na cadeia de correferência, ligando o
termo antecedente a uma posição vazia no interior da oração relativa.49 No caso da
frase (47), essa posição é a posição de complemento do verbo comprar – como

46
Essa questão será retomada na seção 5 a seguir.
47
A tradição gramatical as denomina pronomes interrogativos; a Gramática Gerativa usa o termo
Palavras QU- (do inglês WH- Words).
48
A tradição gramatical as nomeia orações subordinadas adjetivas.
49
A estrutura das orações relativas será analisada em detalhe no Capítulo 6.

46
podemos ver esquematicamente em (47)a. –, já que o significado da oração relativa é
„eu comprei o livro (que é muito caro) ontem‟.
(47) a. O livroi quei eu comprei ____i ontem é muito caro.
Compõem o elenco dos pronomes relativos do português: que, o qual (a qual, os
quais, as quais) e cujo (cuja, cujos, cujas). Os dois últimos se flexionam em gênero e
número, o que não ocorre com o que, o pronome relativo mais empregado na língua
corrente. Nesse sentido, é imprescindível distinguir o que que – como vimos na
subseção 4.3.2. acima – funciona como um mero conectivo oracional – que a tradição
gramatical denomina conjunção integrante, e nós denominamos complementizador,50
do que pronome relativo. São homônimos, ou seja, palavras distintas que têm o mesmo
significante.51 Vejamos as frases abaixo:
(48) A Maria disse que o João está muito doente.
(49) A meninai quei eu atendi ____i ontem estava com gastrenterite.
Em (48) o que é um complementizador – serve apenas para encaixar a oração o
João está muito doente como complemento da forma verbal disse da oração
denominada principal ou matriz; não recupera o conteúdo de um termo antecedente,
nem está ligado a qualquer posição vazia na oração que introduz, até porque não há
qualquer posição vazia nessa oração (com o sentido com que empregamos essa
expressão aqui). Já em (49), o que é um pronome relativo, que estabelece uma cadeia
de correferência entre o termo antecedente a menina e a posição vazia de
complemento da forma verbal atendi,52 na oração relativa, cujo significado é „eu atendi
a menina (que estava com gastrenterite) ontem‟.

4.5.2. As palavras interrogativas


As palavras interrogativas, como seu nome indica, têm como função básica
introduzir perguntas que focalizam uma determinada informação, como podemos ver
nos exemplos abaixo:
(50) Quem encontrou os documentos?
(51) O que você fez ontem?
(52) Quando a Maria chegou?
(53) Onde o João nasceu?

50
Denominação adotada na análise gerativa.
51
Tal como ocorre com manga „fruta‟ e manga „parte da camisa que cobre o braço‟.
52
Por isso os três elementos estão coindexados com um i, em nossa notação.

47
(54) Como ela descobriu isso?
(55) Quanto você me dá?
(56) Por que você chegou atrasado?
As palavras interrogativas quem, o que, quando, onde, como, quanto e por que
são especificadas semanticamente com os seguintes valores: quem => pessoa; o que =>
coisa; quando => tempo; onde => lugar; como => modo; quanto => quantidade; por que
=> causa. Em termos lógicos, essas palavras gramaticais funcionam como variáveis.
Em (50), por exemplo, o valor lógico de quem pode ser formalizado da seguinte
maneira:

quem = x tal que x é a pessoa que encontrou os documentos em questão

Algumas palavras gramaticais se juntam a um nome para formar um sintagma


que funciona como palavra interrogativa, como se pode ver nos exemplos abaixo:
(57) Qual a camisa você escolheu?
(58) Quantas vezes o João vomitou ontem?
(59) Que interesse a Maria tem nisso?
Por outro lado, as orações introduzidas por palavras interrogativas podem ser
encaixadas sintaticamente como um constituinte de outra oração, dita principal ou
matriz, como se pode ver nos exemplos abaixo:
(60) Não sei quando a Maria chegou.
(61) Estamos chegando onde o João nasceu.
(62) Já tenho uma ideia de quanto eu vou lhe dar.
Nesses casos, a palavra interrogativa acumula as funções de variável e
conectivo oracional. Cabe ainda fazer uma distinção entre a palavra interrogativa por
que e a conjunção causal porque. Apesar de terem a mesma carga semântica
relacionada à causa, trata-se de outro exemplo de homonímia, já que estamos diante de
duas palavras funcionais distintas. Tanto é assim que, outras línguas indo-europeias,
como o inglês e o francês, têm duas palavras distintas para desempenhar cada uma das
funções, como se pode ver nos exemplos abaixo:

(63) Why didn‟t Mary work yesterday?


She didn‟t work because she is sick.
(64) Por quoi Marie n‟a-t-ll travaille hier?
Elle n‟a travaille, parce qu‟elle était malade.

48
No português de Portugal, há uma diferenciação fônica, já que a palavra
interrogativa é oxítona como no Brasil [porquê], enquanto a conjunção causal é
pronunciada como paroxítona [púrqui], sendo fonologicamente mais fraca. No Brasil, a
distinção é feita apenas na convenção ortográfica, que prescreve que a palavra
interrogativa deve vir separada como se fossem duas palavras distintas, enquanto a
conjunção causal deve ser escrita como uma palavra única, como se pode ver abaixo em
(65), que é a tradução para o português das frases apresentadas em (63) e (64):

(65) Por que a Maria não trabalhou ontem?


Ela não trabalhou, porque estava doente.

As palavras interrogativas também podem funcionar como pronomes relativos,


referindo-se a um termo antecedente, como se pode ver nos exemplos abaixo:

(66) Esta é a casai ondei nasceu o grande poeta.


(67) O rapazi com quemi você saiu ontem é meu primo.

As palavras interrogativas são, portanto, palavras multifuncionais que


desempenham um papel importante na estrutura gramatical, estando virtualmente
presentes no elenco das palavras gramaticais de todas as línguas humanas.53

5. Nomes e especificadores nominais

Morfologicamente, os nomes se flexionam em número e gênero. A maioria dos


nomes se flexiona em número, através do acréscimo do morfema de plural –s, que
indica se tratar de mais de um indivíduo: casa : casas; ponto : pontos; pé : pés, etc. A
flexão de gênero informa o sexo, no caso dos nomes dos seres vivos: gato : gata;
menino : menina; sogro : sogra, etc. Mas, para a maioria dos nomes, o gênero é só um
classificador gramatical, indicado pela flexão dos determinantes e dos modificadores:

(68) uma casa bonita


(69) o muro alto
(70) essa foto é linda
(71) o planeta mais afastado

53
As funções exercidas pelas palavras interrogativas na articulação de orações serão retomadas no
Capítulo 6.

49
O gênero nesses casos é arbitrário. Não há nenhuma razão para casa e foto serem
nomes femininos e muro e planeta serem nomes masculinos; tanto que o gênero das
palavras que se referem às coisas varia mesmo entre línguas bem aparentadas, como as
línguas românicas. Em português mar é masculino (o mar); em francês, é feminino (la
mer). Já flor, que é feminino em português (a flor), é masculino em italiano (il fiori).

5.1. A relação dos artigos e demonstrativos com os nomes


No plano de sua significação, os nomes designam, tanto seres e coisas, em um
plano mais imediato de percepção do real, quanto, conceitos, lugares, ações e processos,
num plano mais abstrato de percepção do mundo. Tal distinção se traduz na distinção
entre substantivos concretos e abstratos, que é feita pela tradição gramatical. Mas
mesmo no plano de sua significação mais concreta, uma distinção importante deve ser
feita. O nome pode referir-se a espécie como um todo, no que se denomina referência
genérica, como exemplificado na frase (72), ou a um indivíduo dessa espécie, como
ocorre na frase (73), na chamada referência específica.
(72) Um livro é sempre uma boa companhia.
(73) Comprei um livro ontem.
Não há em português, uma marca gramatical específica para a referência
genérica. Um nome precedido por um artigo indefinido pode ter uma referência
genérica, como ocorre em (72) acima, e ter a mesma referência genérica sendo
precedido por um artigo definido, como em (74), ou mesmo não vir acompanhado por
qualquer determinante, como em (75), o que, na linguística contemporânea, se
denomina nome nu.
(74) O livro é o grande símbolo da civilização ocidental.
(75) Vou comprar um livro pra dar de presente ao João. Livro é
sempre bom.
Assim, a categoria gramatical que podemos chamar de nível de
referencialidade não é marcada em português. Porém, no plano da referência
específica, há uma marcação gramatical para a categoria definitude. Vejamos as frases
abaixo:
(76) Gente, eu já comprei o livro.
(77) Gente, eu comprei um livro ontem.

50
Em ambas as frases, o falante se refere a um livro específico, porém, na primeira
frase, o os ouvintes já sabem a qual livro o falante está se referindo, ao passo que, na
segunda frase, os ouvintes não sabem que livro o falante comprou. O artigo definido
indica que aquela referência faz parte do conhecimento compartilhado entre o falante e
o ouvinte. O artigo indefinido indica que o nome traz uma informação nova, ou seja,
indica uma primeira menção àquele referente. Anaforicamente, o artigo definido
substitui o artigo indefinido, após a primeira menção, como podemos ver no seguinte
exemplo:
(78) O João encontrou um meninoi perdido. O meninoi estava muito
assustado.
O demonstrativo também pode fazer as vezes do artigo definido, nesse contexto:
(79) O João emprestou um livroi para a Maria. Esse livroi lhe será
muito útil.
Não obstante seu emprego anafórico, a função básica dos demonstrativos está
relacionada à dêixis, da seguinte maneira: o demonstrativo este (esta, estes, estas)
indica proximidade ao falante; o demonstrativo esse (essa, esses, essas) indica
proximidade ao ouvinte; o demonstrativo aquele (aquela, aqueles, aquelas) indica
distância do falante e do ouvinte.54 Tal distinção funciona em planos mais abstratos, tal
como plano temporal, como exemplificado abaixo:
(80) Vamos resolver o problema ainda esta semana. [na semana em
curso]
(81) Naquele tempo, havia mais respeito. [um passado distante]
Retornando ao plano das relações anafóricas, os demonstrativos podem
funcionar como verdadeiros pronomes:
(82) O antibióticoi ataca a causa da doença, o analgésicoj atua sobre
os sintomas. Estej deve ser ministrado três vezes ao dia, enquanto
aquelei deve ser minitrado em dose única.
A distinção básica se mantém, de modo que o este se refere ao antecedente mais
próximo (o analgésico), enquanto o aquele retoma a referência do antecedente mais
distante (o antibiótico). Ainda nesse plano, existe a distinção entre esse, usado para
retomar um termo já referido – cf. exemplo (83) –, e este, usado para indicar um termo
que vem a seguir – cf. exemplo (84):

54
Atualmente, a distinção entre este e esse se perdeu, de modo que as duas formas são usadas
indistintamente.

51
(83) O nível do programa caiu. Esse problema deve ser reconhecido
pela produção.
(84) Temos que encontrar uma solução para este problema: a queda no
nível das vendas.

Alguns autores fazem a seguinte distinção, denominando a primeira –


exemplificada em (83) – como referência anafórica, e a segunda como referência
catafórica – cf. exemplo (84).
Quanto ao gênero, os demonstrativos conservam uma forma do gênero neutro:
isto, isso, aquilo. Essas formas não funcionam como especificadores, pois não podem
se ligar a um núcleo nominal,55 só funcionam como pronomes, seja no plano dêitico –
como exemplificado em (85) –, seja no plano anafórico – como exemplificado em (86):
(85) Pegue aquilo pra mim.
(86) Você desrespeitou seus pais. Isso não está correto.
Algumas análises agrupam artigos e demonstrativos em uma única classe: a
classe dos determinantes. Uma motivação para essa proposta é a impossibilidade de
coocorrência dessas duas partículas gramaticais, o que explica a agramaticalidade da
frase abaixo;
(87) *A esta cadeira está quebrada.
Os determinantes, em contrapartida, podem coocorrer com as outras palavras
que atuam como especificadores nominais, como os possessivos, numerais e
indefinidos.56

5.2. Os numerais e os pronomes indefinidos


Os numerais são especificadores nominais que quantificam exatamente os
nomes, como em: cinco cadeiras, três crianças, duas agremiações etc. Nesse caso, os
nomes se referem sempre a indivíduos (referência específica) e não à espécie (referência
genérica). Em um contexto mais específico, os numerais têm um valor nominal
indicando a quantidade em si mesma:
(88) “Tudo certo como dois e dois são cinco”57

55
Veja-se, como exemplo, a agramaticalidade desta frase:
56
Essa questão será retomada, quando tratarmos da composição do Sintagma Nominal no Capítulo 7.
57
Verso da famosa canção Como 2 e 2, do compositor e poeta Caetano Veloso.

52
Para além desses numerais que indicam quantidades aritméticas, denominados
numerais cardinais, existem numerais que indicam uma ordenação (numerais
ordinais): primeiro, segundo, terceiro etc. Os numerais cardinais e ordinais, para além
de funcionarem como especificadores nominais (e.g., o quarto candidato), podem
funcionar também como pronomes:
(89) Disputam uma única vaga o João, o Pedro e o Luís. Os três têm
chance de conquistá-la.
(90) Eu tinha de escolher entre o João e o Pedro. Escolhi o segundo.
Há ainda os numerais multiplicativos e fracionários. Esses tem um valor
nominal, como exemplificado em (91), ou podem funcionar como adjetivos, como em
(92). Porém, em seu emprego mais frequente, formam expressões quantificadoras,58
como exemplificado em (39):
(91) Um terço de seis é o dobro de um.
(92) Eu quero uma dose dupla.
(93) Já gastei dois terços do meu salário.
A maioria dos chamados pronomes indefinidos também expressa uma
quantificação: algum, nenhum, todo, muito, pouco, vário, tanto, quanto; por essa razão
são classificadores como quantificadores, em análises da linguística contemporânea.
Mas há também indefinidos que não têm um valor quantitativo como: outro, certo e
qualquer. A maioria dos indefinidos se flexiona em gênero e número, à exceção do
qualquer, que só se flexiona em número. Nessas formas os indefinidos funcionam
precipuamente como especificadores de um núcleo nominal, realizado ou não:
(94) Muitas questões foram resolvidas, mas algumas ficaram sem
resposta.
Mas podem funcionar esporadicamente como um núcleo nominal, como em:
(95) Você dá muito importância à opinião dos outros.
Para além das formas que se flexionam, os pronomes indefinidos apresentam as
seguintes formas neutras, que não se flexionam: alguém, ninguém, tudo, outrem, nada,
cada, algo. Essas formas têm sempre um valor nominal:
(96) Algo precisa ser feito.
(97) Ninguém me escuta!
(98) Tudo está em seu lugar.

58
As expressões quantificadoras serão tratadas no Capítulo 7, quando analisarmos a composição do
Sintagma Nominal .

53
A única exceção é a forma cada, que funciona sempre como especificador
nominal, como em , ou integra uma locução quantificadora, como em
(99) Cada macaco no seu galho.
(100) Cada um tem de fazer a sua parte.

6. Os adjetivos

No plano do significado, os adjetivos normalmente expressam estados e


qualidades. Na medida em que esses estados e qualidades são atribuídos a seres e coisas
expressos por nomes, os adjetivos atuam sintaticamente como predicadores desses
nomes. Essa predicação pode se desdobrar sintaticamente numa oração, como ocorre no
exemplo (101), ou ocorrer no âmbito de um Sintagma Nominal, como no exemplo
(102):59
(101) Aquele rapaz é tímido.
(102) O rapaz tímido evitou a moça.
No plano morfológico, os adjetivos se flexionam em gênero e número (bonito,
bonita, bonitos, bonitas), apenas em função do mecanismo sintático da concordância
nominal (cf. seção 4.1. acima), pois o conteúdo dessas categorias gramaticais nada tem
a ver com o valor semântico dos adjetivos. A flexão em número é mais geral do que a
flexão em gênero. São raros os adjetivos que não se flexionam em número (e.g.,
simples), mas há muitos que não se flexionam em gênero e só se flexionam em número:
feliz : felizes; grande : grandes; etc.
Como destacado anteriormente, na seção 3, a classe dos adjetivos mantém zonas
de interseção, com a classe dos nomes, por um lado, e com a classe dos advérbios, por
outro. Em (103), temos adjetivos funcionando como nomes, ao passo que em (104)
temos um exemplo de adjetivo funcionando como advérbio:
(103) Enquanto os fracos tremiam, os bravos retesavam os músculos.
(104) Não fale tão baixo.
Isso revela o continuum das classes não verbais, que vai desde a classe dos
nomes, a mais referencial, até a classe dos advérbios, a mais gramatical das classes de
palavras referenciais; ficando a classe dos adjetivos numa posição medial.

59
A estrutura sintática das predicações será analisada no próximo capítulo.

54
7. Os advérbios

Os advérbios são palavras que se situam na fronteira entre as classes de palavras


referenciais e as classes de palavras gramaticais. Trata-se de uma classe muito
heterogênea, pois há advérbios que têm um caráter bem gramatical – tais como: hoje,
sempre, longe, já, mais, muito etc – e advérbios que têm uma natureza mais referencial,
como é caso dos advérbios em -mente (tranquilamente, fatalmente, mansamente etc.),
que constituem, inclusive, um conjunto aberto (a qualquer momento, é possível criar um
novo advérbio em -mente), o que é uma característica proeminente das classes de
palavras referenciais. Portanto, como temos enfatizado aqui, a divisão de palavras em
classes, bem como a distinção entre palavras gramaticais e palavras gramaticais, deve
ser vista, menos como uma divisão do conjunto de palavras de uma língua em
compartimentos estanques, do que como um continuum, em que se passa gradualmente
de uma classe para outra.

8. Os verbos

Podemos dizer que os verbos são as palavras que desencadeiam a estrutura


sintática, tanto que não possível construir uma frase sintaticamente estruturada na língua
sem a presença de uma forma verbal flexionada. Os verbos se flexionam em função das
categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto, por um lado, e pessoa e número,
por outro. Essas categorias gramaticais do verbo podem ser marcadas separadamente –
como em trabalharemos e trabalhavam, em que os morfemas -re- e -va- expressam os
valores de tempo, modo e aspecto e os morfemas -mos e -m expressam os valores de
pessoa e número –, ou simultaneamente, como em trabalhei e trabalhou, em que os
morfemas -ei e -ou indicam cumulativamente tempo, modo e aspecto e pessoa e
número.

8.1. A flexão verbal


Sendo uma língua indo-europeia, o português é uma língua flexiva, de modo
que os valores de muitas categorias gramaticais são expressos através da flexão, tal é

55
caso das categorias verbais de tempo, modo e aspecto. Para marcar os valores dessas
categorias, um morfema flexional se une ao radical do verbo como um sufixo, gerando
formas como: trabalhará, corria, partiram, etc. Na primeira forma, o morfema –rá–
expressa a informação de modo indicativo e tempo futuro. Já na segunda forma, o
morfema –ra– informa que se trata do modo indicativo, tempo passado (que a tradição
gramatical chama de pretérito) e aspecto concluído (que a tradição gramatical chama
de perfeito).
O modo é categoria gramatical que se refere ao grau de realidade atribuído a um
enunciado. Essa informação pode ser fornecida lexicalmente por meio de expressões,
como:

(105) Eu acho que o João estava nervoso.


(106) Não há dúvida de que o João estava nervoso.

Gramaticalmente, essa informação de modo é fornecida pela flexão do verbo,


simultaneamente com a informação de tempo e, em alguns casos, com a informação de
aspecto. Tradicionalmente, distinguem-se três valores para a categoria gramatical de
modo: indicativo, subjuntivo e imperativo. O indicativo expressa a certeza do falante
sobre o evento referido, de modo que a frase traduz um fato real60 – cf. exemplo (107).
O subjuntivo é o modo da incerteza, quando o falante se refere a um evento possível,
hipotético ou mesmo irreal61 – cf. exemplo (108). Já o imperativo indica uma ordem,
um pedido ou um apelo – cf. exemplo (109).

(107) João estuda latim.


(108) Se eu me controlasse, não teria dito aquilo.
(109) Por favor, passe-me a caneta.

No plano lógico-semântico, devemos distinguir apenas dois modos: o indicativo


(realis) e o subjuntivo (irrealis), sendo o imperativo incluído no subjuntivo, já que um
evento referido numa ordem/pedido/apelo é um evento que não tem uma existência
objetiva. Porém, a distinção do modo imperativo pode ser mantida em função do seu
valor pragmático: a função de uma frase no imperativo afeta diretamente o ouvinte,
distinguindo-se das frases dos tempos indicativo e subjuntivo, normalmente frases
declarativas, em princípio, neutras, em relação ao ouvinte.

60
Na literatura linguística, usa-se também a palavra latina realis para indicar esse modo.
61
Donde a designação irrealis, que também se encontra na literatura linguística.

56
O tempo gramatical é sempre um tempo relativo, pois a categoria gramatical do
tempo situa o evento referido em relação ao momento da enunciação. Em (110), o
evento referido ocorreu antes do momento da enunciação – tempo passado; em (111),
está ocorrendo no momento da enunciação – tempo presente; e em (112), ocorrerá
depois do momento da enunciação – tempo futuro.

(110) A Maria saiu com o João.


(111) A Maria está em casa.
(112) Ela voltará.

Assim como ocorre em relação ao modo, a informação de tempo pode ser dada
lexicalmente, como se pode ver na frase abaixo, em que a essa informação de futuro é
dada pelo advérbio amanhã, enquanto o verbo exibe a forma morfológica do presente:

(113) A Maria viaja amanhã.


A categoria gramatical aspecto diz respeito a certas características ou dimensões
do evento ou processo designado pelo verbo, tais como: duração, início, conclusão,
frequência etc. A tradição gramatical não dá muita atenção a essa categoria gramatical,
fazendo somente a distinção aspectual de concluso e inconcluso em relação ao passado:

(114) A Maria saiu antes do João chegar.


(115) A Maria saía quando o João chegou.

Em (114) a ação de sair ocorreu no passado e já se concluiu – o que a tradição


gramatical denomina pretérito perfeito;62 já em (115), a ação situada no passado não se
concluiu – o que a tradição gramatical denomina pretérito imperfeito. Comparado a
outras línguas, como as línguas eslavas, o português exibe, de fato poucas marcas
gramaticais de aspecto. Contudo, essa informação é frequentemente expressa na língua
por meio de locuções verbais.

7.2. Locuções Verbais


Para além da flexão verbal, as informações de TMA também podem ser
fornecidas por meio de uma locução verbal, em que um verbo – denominado verbo
auxiliar – se liga a uma forma não-finita de outro verbo (infinitivo, gerúndio ou
particípio passado) – denominado verbo principal, como no exemplo abaixo:
(116) Maria já tinha saído, quando João chegou.

62
Em sua origem, o adjetivo perfeito significada „concluído‟.

57
O verbo principal (o particípio passado do verbo sair) carrega a significação
referencial do processo verbal (a ação de deixar um lugar). Já o verbo auxiliar combina-
se ao verbo principal para marcar o valor da categoria gramatical de TMA, no caso da
frase (116), a locução verbal tinha saído indica um passado anterior a outro passado
(que a tradição gramatical denomina pretérito mais-que-perfeito); ou seja a ação de
Maria sair já havia se concluído antes da ação de João chegar acontecer.
Os verbos auxiliares são partículas gramaticais. Portanto, devemos destacar essa
dupla possibilidade de emprego dos verbos, ora como palavras refernciais, ora como
palavras gramaticais. Vejamos as frases abaixo:
(117) Não vou trabalhar amanhã.
(118) Vou ao teatro esta noite.
(119) João tem estudado muito.
(120) João tem uma casa de praia.
Em (117) e (118), os verbos ir e ter são empregados como palavras gramaticais.
Em (118) e (120) são palavras referenciais. Em (117) o verbo ir é o verbo auxiliar, que
se combina com a forma do infinitivo do verbo principal, para expressar a informação
gramatical de futuro do indicativo. O conteúdo referencial da locução verbal vou
trabalhar, ou seja, „o ato de trabalhar‟, é dado pelo verbo principal. Já em (118) o valor
do verbo ir é referencial, designando o ato de deslocar-se para algum lugar. A
informação gramatical é dada pela flexão verbal, na forma vou, da 1ª pessoa do singular
do presente do indicativo. Em (119) o verbo ter é uma palavra gramatical que se
combina com a forma do particípio passado para expressar o que podemos denominar
de presente perfeito (uma ação que se inicia no passado esse prolonga até o presente).
Em (120) o verbo ter é uma palavra referencial que remete à relação de posse.
Atuando como palavras gramaticais, alguns verbos, denominados verbos
auxiliares, se ligam as formas do infinitivo, gerúndio e particípio passado de outros
verbos, ditos verbos principais, para formar as locuções verbais, conforme descrito no
início desta seção.
As locuções verbais por excelência são os chamados tempos compostos,
formados com os verbos que funcionam tipicamente verbos auxiliares: ter/haver, estar e
ir:
(121) A Maria tem saído bastante.
(122) A Maria já havia saído.
(123) A Maria está saindo.

58
(124) A Maria vai sair.
Como verbos auxiliares, funcionando como palavras gramaticais, esses verbos
têm um alto rendimento funcional, não obstante mantêm, como destacado acima, o seu
valor referencial, sendo também empregados como verbos plenos:

(125) Maria tem muitos livros.


(126) Há um depósito no fundo da construção.
(127) João está no escritório agora.
(128) Luíza vai à praia todo fim de semana.
Dessa forma, podem funcionar como verbos principais em locuções verbais:
(129) Maria vai ter muitas tarefas diferentes nessa nova função.
(130) Tem havido muitos problemas nesse setor.
(131) João vai estar no escritório amanhã.
(132) Estou indo agora para o trabalho.
Um verbo que tem uma função eminentemente gramatical é verbo poder. Esse
verbo, que indica possibilidade, é o verbo auxiliar modal prototípico:

(133) Maria poderia emprestar essa quantia ao João.


Dessa forma, o verbo poder pode ser definido como uma palavra gramatical, já
que é praticamente nula a possibilidade de seu emprego como palavra referencial.63 Já o
verbo dever também atua como auxiliar modal com valor deôntico (de obrigação):

(134) Devemos ajudar ao próximo.


O verbo querer também pode ser empregado como auxiliar modal, com o
sentido de volição (vontade):
(135) João quer terminar este trabalho hoje.
Outros verbos podem atuar como auxiliares, mas expressando um valor
aspectual. Tal é o caso de verbos como: continuar, indicando o prolongamento do
processo verbal; começar, indicando o início do processo verbal; ou acabar, indicando
a conclusão da ação expressa pelo verbo:

(136) Ela continua trabalhando em casa.


(137) Ela começou a gritar.
(138) Ela acabou de escrever um livro.
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A única frase em que o verbo poder não é empregado como auxiliar seria uma frase do tipo:
(1) O João pode tudo, eu não posso nada.
Mas, mesmo nesse caso, podemos postular a elipse do verbo principal fazer:
(2) O João pode (fazer) tudo, eu não posso (fazer) nada.

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Assim, como o verbo poder é o auxiliar modal prototípico, o verbo costumar é o
auxiliar aspectual prototípico. Assim, como aquele, este só é empregado como verbo
auxiliar, indicando a habitualidade de uma ação:
(139) Eu costumava correr todas as manhãs.
A locução verbal formada pelo verbo ser + o particípio passado do verbo
principal é usada para expressar a voz passiva.64 Nessa construção, a locução verbal
recebe como sujeito (denominado sujeito paciente), o que seria normalmente o
complemento do verbo principal, na chamada voz ativa, como se pode ver no cotejo
entre as frases (140) e (141), e entre as frases (142) e (143), estando as primeiras na voz
passiva e as segundas na voz ativa:

(140) Este documento é assinado pelo supervisor.


(141) O supervisor assinou o documento.
(142) Todos os sobreviventes do naufrágio já foram resgatados.
(143) Já resgataram todos os sobreviventes do naufrágio.
Por fim, podemos acrescentar algumas construções, que, não sendo
propriamente locuções verbais, são composições lexicais com valor verbal, que
denominamos lexias verbais compostas. Nessas construções, um verbo, denominado
verbo leve, forma com seu complemento uma expressão que equivale a um verbo da
língua, como ocorre nos seguintes exemplos:

(144) Ele deu um beijo na irmã. [ = Ele beijou a irmã]


(145) Vamos dar uma volta na cidade? [ = Vamos passear na cidade?]
(146) É melhor você dar um tempo. [ = É melhor você aguardar]
O verbo dar é o verbo leve por excelência, podendo ser empregado com esse
valor em um vasto elenco de expressões. Contudo outros verbos podem ser usados
como verbos leves, em um número mais restrito de expressões, como nos seguintes
casos:

(147) Depois do almoço, eu sempre tiro um cochilo. [ = cochilar ]


(148) O patrão passou uma descompostura no empregado. [ =
repreender]
(149) Chamou a atenção do subordinado. [ = advertir ]
Se considerarmos como locução verbal a combinação de um verbo auxiliar com
um verbo principal, a lexia verbal composta não seria propriamente uma locução verbal.
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A construção da voz passiva será tratada no capítulo 5.

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Mas, se considerarmos o termo locução verbal no sentido mais amplo de conjunto de
palavras que funcionam como um único verbo, a lexia verbal composta pode ser
considerada uma locução verbal.
As locuções verbais podem-se combinar, formando conjuntos com três ou quatro
formas verbais:
(150) Eu não estou podendo lhe atender agora.
(151) O supervisor já tinha chamado a atenção desse funcionário
antes.
(152) Desse jeito, o regulamento vai continuar sendo desrespeitado.
Em (150), temos o verbo auxiliar no tempo composto (estou podendo) em uma
locução modal (podendo atender); em (151) a lexia verbal composta (chamar a
atenção) vem na forma de um tempo composto (tinha chamado); e em (152),
combinam-se o tempo composto (vai continuar), com uma locução aspectual
(continuar sendo) e uma estrutura passiva (sendo desrespeitado), conjugando, assim,
quatro formas verbais em uma única locução. Portanto, a locução verbal é um conjunto
de duas ou mais formas verbais que funcionam como um único verbo.
Independentemente do número de verbos que congregue (dois, três ou quatro, no
máximo), a locução verbal terá apenas um verbo flexionado, estando os demais nas
formas não finitas (infinitivo, gerúndio e particípio passado).
Sumariamente, podemos classificar as locuções verbais (no sentido mais amplo
do termo) nos seguintes tipos:
1. Tempo composto
Locução verbal formada pela junção de um verbo auxiliar (ter/haver, estar e
ir) com uma forma particípio, gerúndio ou infinitivo de um verbo principal,
para dar as informações de TMA.
Ex.: A Maria vai viajar na semana que vem.

2. Locução modal
Locução verbal formada por verbos, como poder, querer e dever, com uma
forma do infinitivo de outro verbo, para expressar o modo irrealis.
Ex.: Eu posso terminar o relatório hoje mesmo.

3. Locução aspectual

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Locução verbal formada por verbos, como começar, continuar e costumar,
com uma forma do infinitivo de outro verbo, para expressar um valor do
aspecto verbal.
Ex.: Júlia continua trabalhando neste jornal.
4. Estrutura passiva
Locução verbal formada pelo verbo ser e o particípio passado do verbo
principal, que recebe como sujeito o que seria, de outra forma, complemento
do verbo principal.
Ex.: Este bilhete ainda não foi carimbado.

5. Lexia verbal
Combinação de um verbo leve (no geral o verbo dar) com um Sintagma
Nominal, que funciona como um único verbo.
Ex.: Ela até me deu um beliscão quando eu falei isso.

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