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CATARINA MARCELINO

CIDADANIA E IGUALDADE
BOLSA DE ESPECIALISTAS
06.01.2019 às 15h16
Catarina Marcelino

Getty Images

RACISMO NÃO É FADO


Devemos recordar a inquisição, a escravatura, o holocausto,
enquadrando estes acontecimentos em momentos históricos
de normalização da intolerância em que a discriminação, o
fundamentalismo e o ódio foram aceites e integrados no
quotidiano
Em Cacheu, na terra onde existiu a primeira feitoria portuguesa na
Guiné, há um espaço museológico que conta o percurso de um dos
maiores flagelos da História da humanidade, o tráfico negreiro.
Estimam-se 7,7 milhões de Escravos transportados, inaugurando por
esta via o comércio triangular intercontinental de grande escala.

As pessoas escravas eram tratadas como coisas, agrilhoados e


marcados com ferros em brasa, arrumados nos navios como se de
carga se tratasse, imóveis, até não caberem mais, sendo o resultado a
morte de muitos e muitas durante a travessia.
Após o fim da escravatura no século XIX, o passado colonial do país
continuou a distinguir os cidadãos pela cor da pele. O termo mulato
que vem de mula, ou seja, de um animal cruzado entre duas espécies,
que serve como animal de carga ou a imobilidade das pessoas negras
nas funções de trabalho que exerciam quando eram escravas, são
exemplos evidentes da ostracização a que foram sendo sujeitas.

Chegámos ao Portugal do século XXI, com 45 anos de democracia e


com uma sociedade diversa, constituída por pessoas com diferentes
origens étnico-raciais, muitas delas com nacionalidade portuguesa.
Estas pessoas têm em comum a ascendência africana que hoje
contribui para este universo sociocultural de grande valor, mas
também fazem parte da herança histórica do racismo e da
discriminação, que não desaparece apenas por proclamação. É tempo
de assumir sem complexos ou preconceitos o nosso legado.

Portugal é um país democrático, com uma Constituição que protege a


liberdade, a igualdade e as garantias das pessoas e que não permite
discriminação formal em função da origem étnico-racial. Contudo, as
sociedades são diversas, influenciadas por múltiplos fatores. Em cada
individuo existe um sujeito com a sua história, a sua identidade e os
seus valores familiares e sociais.

Quando falamos em discriminação ou racismo institucional, não


estamos a falar de regras de conduta ou funcionamento instituídas por
imperativo normativo ou legal, mas sim de alguns comportamentos
individuais de quem trabalha nas instituições, que podem influenciar
posturas de desigualdade e discriminação, muitas vezes de forma
dissimulada, a que se impõe um combate institucionalmente assumido
enquadrado com transparência nos valores e na cultura das
organizações.

Mas quanto à segregação indireta, esta é formalmente aceite,


justificada por circunstâncias diversas, relacionadas com o território, a
mobilidade, a educação, os rendimentos, a classe social de pertença,
entre outros.

Assim se explicam bairros onde a maioria das pessoas que lá vivem


são de origem africana ou cigana, localizados em zonas menos
nobres e desvalorizadas do território, ou as escolas que têm crianças
maioritariamente destes grupos ou ainda turmas com um elevado
número de crianças afrodescendentes e ciganas muitas vezes em
currículos alternativos, enquanto que outras escolas muito próximas
são frequentadas quase exclusivamente por crianças da comunidade
maioritária.

A realidade nacional não encontra dados estatísticos que ajudem a


uma melhor caracterização e compreensão. Para que tal aconteça é
premente que os Censos de 2021, tendo obviamente em conta a
baliza constitucional, possam incluir perguntas que nos permitam
saber quem de facto somos nesta diversidade nacional, quantas
pessoas constituem as minorias étnico-raciais, cruzando com dados
sobre educação, rendimentos, justiça e habitação, podendo fazer um
retrato fidedigno desta realidade.

É fundamental que a sociedade portuguesa compreenda que a


discriminação étnico-racial, o racismo e a xenofobia têm expressões
diversas, que não são apenas as manifestações de violência física e
verbal extrema que de quando em vez nos acordam da apatia.

Os valores democráticos perigam pelo mundo, olhamos para países


europeus como a Hungria, a Polónia ou a Itália, mas também para o
Brasil ou os Estados Unidos e vemos a intolerância aos que são
diferentes, a crescer e a instalar-se. E não sejamos ingénuos em
acreditar que em Portugal simplesmente não é possível acontecer.

Em nome da liberdade não se podem transpor valores que põem em


causa a própria liberdade, sob pena de normalizarmos ideias e
comportamentos que são a antítese da cidadania, como aconteceu
com a TVI e a entrevista a Mário Machado que, assumidamente,
defende o fascismo e o racismo, tendo utilizado este tempo de antena
televisivo, com a conivência, mais ou menos consciente de quem o
convidou, para os promover.

Devemos recordar a inquisição, a escravatura, o holocausto,


enquadrando estes acontecimentos em momentos históricos de
normalização da intolerância em que a discriminação, o
fundamentalismo e o ódio foram aceites e integrados no quotidiano.
Só com esta consciência viva, nunca esquecendo, podemos estar
todos os dias vigilantes, contribuindo, de forma eficaz, para que o
triste fado não se repita.

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