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Mais do que isso, “A Miséria da Teoria” é um posicionamento político de Thompson ligado a “a tradição
de ‘1956’ e o ‘humanismo socialista” (MULLER, 2007, p. 99).
3
Há uma crítica geral de Thompson à filosofia. Aquilo que filósofos como Popper e Althusser, de modos
diferentes, dizem sobre a disciplina de história, está bem distante daquilo que os historiadores fazem;
existe uma arrogância disciplinar da filosofia (parte dela) em relação à história neste caso. Popper, por
exemplo, desconhece que tipo de fontes os historiadores usam, e critica a história por supostamente
se pautar em fontes intencionalmente deixadas para a posteridade, tais como as crônicas dos reis, o
que está bastante distante da prática efetiva do historiador, e ainda mais de um como Thompson, que
utiliza uma gama gigantesca de fontes.
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Há muito em jogo neste pequeno trecho. Primeiro está um pressuposto que para
Thompson, em certo sentido, funda a história: ela é humana, e os seres-humanos são sociais.
Como ser social, não existem dinâmicas separadas entre o que ele pensa, sua consciência
social, e o que ele faz, o que ele experimenta. Na vida a relação é de mão dupla, e, muitas
vezes, a experiência do ser social é determinante por exercer pressões sobre a consciência
social. Aparece, aqui, uma particularidade da própria história, não como disciplina, mas como
“história mesma”: a experiência está frequentemente adiantada à consciência social,
antecipando-se à teoria. Há muitas coisas acontecendo no mundo que não esperam o
momento em que a teoria apareça para categorizá-las. Um exemplo interessante é o dos
motins de fome (tema que será trabalhado mais adiante), que ilustra de forma contundente
como a experiência, por um lado, é vivida a partir de uma consciência social anterior, e por
outro modifica essa mesma consciência. O que existe é um diálogo constante entre estes dois
aspectos; “assim como o ser é pensado, também o pensamento é vivido” (THOMPSON, 1981,
p. 17).
Isso parece algo óbvio. Porque é dito? Talvez porque uma história tal como defendida
por Althusser, em que “a categoria ganhou uma primazia sobre seu referente material; a
estrutura conceitual paira sobre o ser social e o domina” (THOMPSON, 1981, p. 22), esquece-se
da experiência das pessoas na história, e por esquecer-se da experiência das pessoas, que é,
por natureza, mutável, variante, e por separar a experiência do ser social de sua consciência,
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julga que o próprio historiador deve determinar categoricamente seus rumos antes de buscar
nas fontes da pesquisa empírica, como se essa fosse a atitude das pessoas na história. O
exemplo do marceneiro e da mesa ilustra bem a situação (THOMPSON, 1981, p. 26). Ele,
quando transforma a madeira em mesa é determinado tanto pelas propriedades da madeira,
quanto pela sua habilidade, sua experiência: “a madeira impõe suas propriedades e sua ‘lógica’
ao marceneiro, tal como este impõe suas ferramentas, suas habilidades e sua concepção ideal
de mesas à madeira” (THOMPSON, 1981, p. 26).
É somente com essa perspectiva que leva em conta a experiência em um mundo em
modificação que Thompson é capaz de retomar o caráter histórico das categorias marxistas.
Classe, por exemplo, deixa de ser uma categoria previamente determinada, dotada de uma
série de características teóricas, que deve servir para organizar as evidências, sem dialogar com
elas. Ao contrário, Thompson busca uma experiência (este termo torna-se cada vez mais
fundamental) nas evidências que pode ter sido de classe ou não, e se for contém suas próprias
particularidades4.
A evidência, segundo Thompson, é o meio pelo qual podemos entender as
experiências passadas. Há aqui uma questão ontológica acerca do processo histórico (HOSTINS,
2004, p. 38; MULLER, 2007, p. 115); a história realmente aconteceu independente de qualquer
esforço cognitivo e das categorias empregadas5. Como aconteceu, deixou evidências, e neste
ponto um historiador “thompsoniano” faz uma “suposição epistemológica de caráter
provisório” (THOMPSON, 1981, p. 38), segundo a qual a evidência é testemunha do processo
histórico. Especificando um dos erros atribuídos a Althusser em sua análise do trabalho do
4
Koselleck (2006), em seu estudo sobre o uso dos termos “classe” e “estamento” na burocracia
prussiana do século XIX traz importantes contribuições para uma discussão conceitual. Os dois
conceitos operando simultaneamente na burocracia revelam um momento de transição, e chamam a
atenção para o uso do termo na época, no passado histórico, e o uso que hoje fazemos como
categorias heurísticas. Em certo sentido, é um caso particular do duplo significado de “história”, como
os acontecimentos passados (usavam o termo “classe” no XIX), e a história que hoje escrevemos
(usando o termo classe). Para Koselleck, essa discussão conceitual é fundamental para o entendimento
do tempo histórico, que é uma relação entre expectativa e experiência dos sujeitos históricos, de onde
é possível estabelecer uma relação com Thompson que, ao perguntar pela experiência, pergunta
também pelas expectativas das pessoas e grupos.
5
E, com isso, a preocupação da história é com a verdade. A retomada de algo que de fato aconteceu,
embora se reconheça que a totalidade dos acontecimentos passados reais nunca será atingida,
permanece sendo o alvo. “A historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode modificar, em
nenhum grau, o status ontológico do passado. O objetivo da disciplina histórica é a consecução dessa
verdade histórica” (THOMPSON, 1981, p 51). Certamente há muita discussão neste ponto, mas não é
este o tema deste ensaio.
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historiador, o britânico deixa claro que essa postura não implica uma série de visões
“filosoficamente primárias”, tais como se a evidência fosse falar por si mesma. A evidência só
irá responder algo se perguntada, e as perguntas podem ser feitas em diferentes direções,
considerando, inclusive, pressupostos teóricos profundos, mas que não devem impedir que as
evidências deem respostas que os contradigam. Ao mesmo tempo, a evidência não é
“infinitamente maleável” (THOMPSON, 1981, p. 40), isto é, embora só fale diante de
perguntas, não irá dizer qualquer coisa. O historiador, com essa preocupação, não inventa
história.
Há, portanto, dois diálogos:
primeiro o diálogo entre o ser social e a consciência social, que dá origem à
experiência; segundo o diálogo entre a organização teórica (em toda sua
complexidade) da evidência, de um lado, e o caráter determinado de seu
objeto [ou seja, não é algo moldável ao bel prazer do historiador, ainda que
tenha que ser questionado], do outro. (THOMPSON, 1981, p. 42)
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Com T maiúsculo, denotando uma teoria que se impõe sobre a pesquisa de forma totalitária.
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heurístico; não como modelos, mas como expectativas de comportamento das evidências que
podem ou não confirmar tais expectativas. Tampouco se nega que de algum modo as
categorias heurísticas podem direcionar as perguntas, e por isso a postura atenta e crítica, e a
pesquisa aberta para novas possibilidades é fundamental.
As categorias e conceitos históricos, pela própria lógica histórica, possuem uma
elasticidade difícil de ser compreendida de um ponto de visto filosófico. Um conceito com
tamanha mutabilidade deixa, em certo sentido, de ser um conceito, mas não deixa de ser um
conceito histórico. Enquanto um conceito tipicamente filosófico, no sentido de Althusser,
sintetiza-se em o que é, o conceito histórico analisa-se em o que, como, quando, onde, para
quem, etc.; em suma, o que é em tal contexto, sem que isso impeça a pergunta sobre o sentido
geral, sobre as características comuns de certos fenômenos em diferentes contextos. Um dos
grandes equívocos cometidos por Althusser e sua teoria é de que a história, por não ser tudo,
por ser incompleta, passa a ser nada (THOMPSON, 1981, p. 61), e como somente a teoria pode
ser tudo, é o que nos resta.
O materialismo histórico que defende Thompson é a expressão de tudo isso que veio
defendendo, ao contrário do que muitos pensadores, inclusive marxistas como Althusser,
propõem, com uma visão de história que se resume à descoberta de estruturas teóricas
determinantes, excluindo o espaço da agência humana, e ignorando as experiências de vida. É
um materialismo histórico cuja elaboração das categorias está nesse diálogo, e que, ao mesmo
tempo, não abandona sua teimosia de articular uma série de particularidades em um todo, não
necessariamente sistemático, porém relacionado.
O estruturalismo de Althusser é anti-histórico por desconsiderar o processo. Em uma
breve digressão sobre as origens do estruturalismo, Thompson aponta uma transição radical do
pensamento marxista de uma ação voluntarista e heroica capaz de mudar o mundo nas
décadas de 1930 e 1940, para uma visão sem esperanças diante da consolidação do
capitalismo no mundo ocidental, como uma estrutura independente das forças humanas. A
história da guerra fria passou a ser entendida como uma disputa entre duas estruturas
antagônicas monumentais, nas quais pouco espaço havia para a ação humana (MULLER, 2007,
p. 120). De fato, o stalinismo foi o próprio solapamento da ação humana dentro da tradição
marxista (literalmente, se pensarmos no sacrifício de milhões de pessoas na União Soviética em
nome do projeto socialista).
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O termo de ligação entre o modo de produção, entendido por Althusser e outros como
um elemento estrutural determinante, que engendra dentro de si mesmo processos relegados
a um papel secundário, e o processo, que Thompson tenta introduzir a partir de sua visão da
história, é, finalmente, o que se entende pela experiência humana. Nas próprias palavras do
britânico;
O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta:
‘experiência humana’. É esse, exatamente, o termo que Althusser e seus
seguidores desejam expulsar, sob injúrias, do clube do pensamento, com o
nome de ‘empirismo’. Os homens e mulheres também retornam como
sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos
livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações
produtivas determinadas como necessidades e interesses e como
antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e
sua cultura (as duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das
mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em seguida
(muitas vezes, mas nem sempre, através de estruturas de classe resultantes)
agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (THOMPSON, 1981, p.
182)
A experiência, por tanto, não chega ao sujeito da história como se este fosse uma
tábula rasa, como sonhavam os empiristas. Ela, enquanto acontece, possui sempre um
passado, um conjunto de experiências anteriores de consciência social e cultura. Em suma, a
experiência não é vivida por um sujeito idealmente livre, mas por um grupo real de pessoas.
Esta é uma questão que aparece com particular peso para um historiador da Inglaterra do
século XVIII, quando se passa por um momento de transição entre um modo de vida anterior e
o surgimento daquilo que viria a ser o capitalismo7. Neste tema, é a consideração pela
experiência, com uma consciência social e cultura, que permite a Thompson, como veremos,
criticar a “sociedade de mercado” de um ponto de vista histórico.
O “marxismo vulgar” (HOBSBAWM, 1998b)8 , quando desconsidera aspectos culturais,
tradições, religiões, etc., e resume o mundo em um assunto de disputa material entre os
detentores dos modos de produção e os vendedores de força de trabalho, colocando todas as
7
O texto de Thompson “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”, é emblemático ao tratar
da experiência de mudança de vida dos trabalhadores ingleses no processo da revolução industrial.
In:________, Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008. p. 267-304
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O marxismo vulgar é justamente aquele que, deixando de lado a parte histórica das preocupações de
Marx, transforma o marxismo em um determinismo econômico simplificado.
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O termo “moral”, aqui, não se trata, evidentemente, de um “moralismo”.
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O de Anderson intitulado Origins of the presente crisis, o de Nairn The British Politcal Elite, ambos em
New Left Review, I/23, jan-fev 1964.
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A primeira questão: tomar a França, ou qualquer outro lugar, como um modelo pelo
qual outras situações devem ser explicadas em termos de completude ou incompletude soa
absurda; este modelo passa a ser a teoria sob a qual os demais acontecimentos precisam ser
encaixados. Segundo, o pressuposto de que as classes subordinadas simplesmente assumem as
ideologias dos grupos dominantes não pode ser tomado como uma verdade a partir da
teoria11. Em 1963 Thompson havia publicado A Formação da Classe Operária Inglesa, que, com
exaustiva pesquisa em um número e variedade enorme de fontes, procurava mostrar, com
sucesso, julgo, as diversas maneiras com que a classe operária formou a si mesma e criou suas
próprias tradições.
Mas Thompson não se contentou em tecer considerações teóricas para criticar os
trabalhos de Anderson e Nairn. Em As Peculiaridades ele discute longamente a situação da
Inglaterra, com extensa quantidade de pesquisa nas fontes, além de colocar muitas das
considerações teóricas que anos mais tarde estariam em A Miséria. Ele destaca o papel
fundamental de parte da aristocracia inglesa no desenvolvimento do capitalismo agrário, sua
união com a burguesia para combater a Velha Corrupção (e substituí-la por uma nova) com o
Reform Act de 1832. Não se pode esquecer também da economia política, desenvolvida
principalmente na Inglaterra, e de que a revolução inglesa de 1640 é tida como “incompleta”,
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Thompson aponta que neste pressuposto existe uma interpretação equivocada do conceito de
hegemonia de Gramsci. (THOMPSON, 2002, p. 147).
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se comparada com a Revolução Francesa, devido a seu forte caráter religioso, mas que isso era
um fator indubitavelmente importante na época (THOMPSON, 2002, p. 121).
Inglaterra e França viveram histórias diferentes, passíveis de comparação, mas não de
tentativas de equiparação. Um dos erros está em tomar a relação de classe francesa, de uma
aristocracia irreconciliável com a burguesia, e transportá-lo para outros casos, tal como se a
classe se resumisse a uma categoria explicativa estática, e não fosse um composto de pessoas
historicamente determinado, com características que se modificam com o tempo. Não é o
caso, porém, do abandono total dos modelos. Em certo sentido, a historiografia só pode existir
porque cria modelos, retirados das evidências de maneira crítica; é a história escrita, como
modelo, indicando suas partes significativas e suas mudanças, e não a própria história quando
aconteceu. O problema é a petrificação dos modelos que se impõem às evidências, ou
consideram apenas aquelas que se encaixam na teoria; “no momento de empregá-lo [o
modelo], o historiador precisa saber encará-lo com um ceticismo radical e manter-se aberto a
respostas para evidências para as quais não tenha categorias” (THOMPSON, 2002, p. 156).
A classe operária inglesa, em suma, não é incompleta; tem, como em todos os lugares
onde uma classe operária se formou (e não simplesmente foi formada pelas circunstâncias),
suas particularidades. Seu reformismo, sugere Thompson, é fruto de uma tradição
constitucionalista da própria classe trabalhadora e do relativo sucesso, dentro de importante
limites, que o reformismo trabalhista inglês obteve no contexto particular do país. Somando-se
a isso uma postura crítica à alternativa estratégica que se colocava na época, o comunismo
soviético, o quadro reformista se torna mais claro (THOMPSON, 2002, p. 149).
Um ano após o lançamento da Miséria ocorreu em Oxford um debate entre Stuart Hall,
Richard Johnson e Edward Thompson. Os dois primeiros teceram críticas à polêmica obra do
terceiro. Hall apontou que levar em conta a “experiência” é, de fato, um passo importante da
crítica à Althusser, mas julgou que Thompson manteve-se com uma postura “empiricista” ao
separar, em nível teórico, o pensamento e a realidade na sua dialética histórica, e colocou peso
excessivo na experiência. Além disso, Hall questionou o status ontológico da história12. Johnson
acusou o historiador de “absolutismo”, pois sua exposição simplificada de Althusser induz a
12
Como já sugerido antes, este tema será deixado de lado. Suscita uma série de discussões, mas ao
mesmo tempo é um pressuposto sem o qual, para Thompson, a história perde o seu sentido. Temos
que conceder, afinal, que toda postura intelectual baseia-se, em algum momento (e talvez sempre em
seu momento primordial) em um pressuposto tido como pouco discutível.
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É interessante a comparação que ele faz entre essa visão dos historiadores, de um homem
respondendo mecanicamente a estímulos, e as sociedades extremamente complexas descritas por
antropólogos como Malinowski em sua pesquisa na ilha Trobriand. Thompson revela sua abertura à
antropologia, apontando para o atraso dos historiadores (THOMPSON, 2008a, p. 152).
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Thompson, essa visão dos motins é fruto de uma história econômica que desconsidera muitos
elementos humanos (aqui ele não está criticando historiadores como Anderson, ou outros
marxistas, e sim uma historiografia mais conservadora, mas há, como veremos, inúmeros
pontos de contato para uma crítica ao marxismo “althusseriano”) e na verdade não explica as
reações. Apenas aponta que nesses casos, diante de situações que supostamente fogem ao
controle humano, como uma má colheita ou um aumento de preços, a multidão reagiu com
quebradeira, e ponto.
Thompson traz novas perguntas: diante da obviedade de que com fome as pessoas se
rebelam14, pergunta-se estando com fome, “o que elas fazem? Como seu comportamento é
modificado pelo costume, pela cultura, pela razão?” (THOMPSON, 2008a, p. 151). Ele
questiona a visão do motim espasmódico, pois esta é uma perspectiva que encerra a
possibilidade de pesquisa nas fontes; determina o acontecimento antes que possa ser realizada
uma busca por verificação, essa busca tão cara à Thompson mesmo com todos os problemas e
dificuldades que a palavra verificação carrega. As novas perguntas do historiador exigem uma
volta às fontes para tratar o problema com mais propriedade; a nova hipótese que ele lança, e
que será buscada na pesquisa, é de que os motins eram, na verdade, uma reação com um
fundo complexo, cultural, tradicional, baseado em expectativas morais, que só podem
desaparecer do discurso histórico quando se excluem todos esses fatores em nome do
econômico. É certo que os aspectos econômicos pesam, e muito, mas estes não são o todo:
14
Mesmo essa obviedade será questionada, com o exemplo da fome na Índia colonial do século XIX, por
exemplo. Em Economia Moral Revisitada há uma importante consideração sobre a necessidade de que
exista ainda alguma esperança de melhoria da situação (o que ocorria na Inglaterra) para que o motim
ocorra; a total ausência de esperança na Índia colonial resultou que em situação de fome, muitas
vezes, não houve motim. A ocorrência do “motim de fome” é algo complexo, é uma manifestação
sofisticada (THOMPSON, 2008b).
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Finalmente, a pergunta que está por trás é pela experiência das pessoas nesse período
de transição da “economia moral dos pobres” para a economia de mercado; e é a experiência
da vida, para usar uma expressão anterior, arrombando as portas.
A pesquisa de Thompson indica que os motins que ocorreram em diversas partes da
Inglaterra em períodos de carestia tinham um forte senso de legitimidade pautado em uma
tradição paternalista anterior, codificada em leis (como no Book of Orders que vigorou entre
1580 e 1630) e no direito consuetudinário. Os hábitos de mercado eram absolutamente
diferentes das novas práticas que surgiam, e a venda de provisões era feita, de modo geral, do
produtor diretamente para o consumidor. Havia toda uma expectativa de comportamento de
vendedores e compradores nas vilas de mercado, de modo que se essas expectativas dadas
pela tradição fossem rompidas, haveria reação.
O “modelo paternalista”, dentro das possibilidades, determinava um mercado direto do
agricultor para o consumidor. Cereais deveriam ser levados a granel para a praça do mercado,
não podendo ser vendidos antes da colheita, nem retidos na esperança da elevação dos
preços. Os mercados tinham hora para funcionar, e os primeiros consumidores deveriam ser os
pequenos. Os comerciantes vinham depois, e tinham suas atividades restringidas: leis contra
compras antecipadas, compra para revenda futura, e açambarcamento. Não era permitida a
compra por amostragem e a compra antecipada das colheitas. Este modelo certamente não se
aplicava em totalidade em nenhum lugar, mas era base de legitimação que a multidão soube
aproveitar quando havia escassez local de alimentos. É interessante o texto de um folheto de
1768 que circulou por um mercado inglês, questionando o direito natural de venda dos
produtos de primeira necessidade, algo que hoje para nós é tão certo quanto dois e dois são
quatro: “portanto”, dizia o folheto, “não se pode dizer que isso seja a liberdade do cidadão, ou
de quem vive sobre a proteção de uma comunidade; é antes a liberdade de um selvagem;
assim, quem tira partido dessa liberdade não merece a proteção conferida pelo poder da
sociedade” (THOMPSON, 2008a, p. 158).
A resistência dos motins, dada tanto pelas práticas comuns do mercado direto, quanto
pelo paternalismo que protegia essas práticas, mas que entrou em decadência conforme o
modo de produção capitalista se alastrou não apenas nas cidades, mas também no campo,
possuía, dentro dessa lógica, suas características peculiares. Muitas vezes não eram turbas
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A fúria era dirigida a pessoas, e não ao “sistema”. Neste período, para Thompson, ainda não há classe
trabalhadora na Inglaterra, como veremos mais tarde.
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Talvez o grande problema da Teoria com esse questionamento crítico é que não existe uma fórmula,
um roteiro de perguntas a serem feitas. Em certo sentido é justamente esse o espaço intuitivo ou
criativo da história, o que não significa um pensamento desleixado, pois exige uma justificação
argumentativa, que tampouco possui uma fórmula metodológica que sirva para todos os casos.
17
As leis “descobertas” na economia política clássica só funcionam em uma situação de “concorrência
perfeita” (SANDRONI, 1999, p. 379), e o que é a concorrência perfeita se não aquela em que não
existem pessoas envolvidas? Certamente as ciências econômicas evoluíram muito e possuem
ferramentas para lidar com concorrências reais, monopólios, etc., mas, como mostra uma simples
olhada em um noticiário econômico, o mercado ainda tem vida e desejos próprios, tal como se não
fosse operado por pessoas.
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outros valores, que hoje estão distantes de nossa realidade, em que a “economia de mercado”
aparece como algo dominante, quase como uma mentalidade.
Sua dominância com leis universais é absolutamente falsa. Não é porque o Estado
diminui a sua intervenção na economia que ela passa a funcionar por si mesma; há muito mais
que o Estado, e por trás dos índices econômicos estão pessoas, produtores e consumidores
humanos. A noção de um mercado com suas próprias leis é uma metáfora ilusória que esconde
os conflitos de classe, que passam a ser considerados empecilhos ao seu triunfo. (THOMPSON,
2008b, p. 235). O mercado, hoje, é uma entidade que fica nervosa, tem altos e baixos de
humor, fica calmo, tem características humanas, vive por si mesmo, sem os homens, e assim
aparece como necessidade. O fetichismo da mercadoria multiplicou-se para um fetichismo do
mercado, essa coisa abstrata. Com esse estudo sobre a economia moral da multidão Thompson
nos fornece uma importante crítica histórica à economia de mercado, saindo das teorizações e
buscando a experiência da mudança das praças de mercado do século XVIII inglesas, de um
local onde as relações sociais afloravam, para uma entidade que é tida como meta-humana18.
REFERÊNCIAS
ANDERSON, Perry. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Brasiliense, 1989.
18
Nas palavras de Hobsbawm, a economia se perde nas teorias enquanto se separa de qualquer tipo de
preocupação histórica, decorrente do pressuposto das leis universais a serem descobertas: “Meu
raciocínio supõe que, divorciada da história, a economia é um navio desgovernado e os economistas
sem história não têm muita noção de para onde o navio navega. Mas não estou sugerindo que esses
defeitos possam ser sanados simplesmente pela aquisição de alguns mapas, ou seja, prestando mais
atenção às realidades econômicas concretas e à experiência histórica. Aliás, sempre houve abundância
de economistas dispostos e ansiosos por manter os olhos abertos. A dificuldade é que, conquanto
seguissem a tradição corrente, sua teoria e método como tais não os ajudaram a saber para onde olhar
e o que procurar. O estudo dos mecanismos econômicos estava divorciado do estudo dos fatores
sociais e de outros fatores que condicionam o comportamento dos agentes que constituem tais
mecanismos” (HOBSBAWM, 1998a, p. 118).
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RESUMO
_______________________________________________________________________
ABSTRACT
This article investigates the concept of experience and its operation in the works of Edward
Thompson. His criticism towards Louis Althusser, developed on The Poverty of Theory (1978), in
which he deals with the term in question, is reviewed to establish its theoretical position on the
English historian work, as a term that establishes a dialog between theories, by one hand, and
empirical investigation, by other. Then, we study how this concept operates on the
investigation about the food riots in 18th century England, concluding on its relevance to a
critic on “market economy” from a historical point of view.
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