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territórios de invenção

à escuta

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territórios de invenção
à escuta 3 Escrita à escuta
Lúcia Campos

5 Konnakol, o sistema rítmico do Sul da Índia


Edson Fernando e Ricardo Passos

12 Som e improvisação
O Grivo
Marcos Moreira Marcos e Nelson Soares

17 Marco Antônio Guimarães: improvisação


estruturada e a notação das “figuras
geométricas”
Felipe José

26 Um barulhinho no sistema
Marina Cyrino e Matthias Koole

37 COM–PÔR  
Joana Queiroz

43 Todo Músico é uma Nanorquestra:


algumas reflexões sobre a ideia de
agrofloresta aplicada na cultura
Makely Ka

48 Os vales de Frei Chico,


do imaginário e da invenção
Letícia Bertelli

55 O projeto Territórios de Invenção


e o conceito de residência musical
Lúcia Campos e Patrícia Bizzotto

59 Sobre os autores

63 Créditos

2
ESCRita À escuta
Lúcia Campos

Escrevo como quem procura preencher uma sombra no papel. Escrevo à mão
como quem rabisca distraidamente enquanto fala ao telefone. Escrevo brincando
com o ritmo das teclas do computador. Deixo minhas mãos levarem essas pala-
vras com a estranha coragem de quem quer capturar a luz que parece grudar nas
árvores ao fim do dia. Busco uma escritura dos sons como aquela que Georges Didi-
Huberman atribui às imagens:

Escrever sobre as imagens é, antes de mais nada, escrever. É apesar de tudo articular
aquilo que aparece antes como uma experiência do inarticulável. É escrever esse mesmo
inarticulável, ou a partir dele, e preservando-o, é sabendo escrevê-lo que o preservamos.
É ir buscar toda a sua energia na própria escritura, é abrir as possibilidades poéticas e
filosóficas de tirar alguma coisa – uma palavra, um texto, um estilo particular que daria
conta dessa imagem particular – a partir de uma mudez primeira. É preciso, para isso,
uma espécie de coragem: coragem de olhar, olhar de novo, coragem de escrever apesar
de tudo.1

É preciso coragem para escutar, escutar de novo, para falar de som, de música,
para se lançar neste outro desafio de articular o inarticulável. Será a música a arte de
domar o espaço ao delimitar um tempo e desdobrá-lo em múltiplas dimensões? É
preciso coragem para se lançar nesse improviso que sem querer – é inevitável – torna-
se escritura.
Escrevo, organizamos, escolhemos papel, capa, fonte, diagramação. E essa escri-
tura – partitura aberta – torna-se por sua vez caminho para tantos outros improvisos
que são os textos aqui presentes. Escrevo, escrevemos. Rastros de experiências recen-
tes com sons e improvisação, lastros de encontros fortuitos em territórios vividos
conjuntamente. Improvisos que por sua vez também desdobram-se em partituras,
escutas, jogos, memórias, projetos, relatos.
Imagens e colagens que nos lembram que partituras podem estar por
toda parte: nos textos e nas nuvens, nos corpos e na barra do dia, em figuras

1  S’inquiéter devant chaque image: Entretien avec Georges Didi-Huberman. Vacarme, 37


(4), 2006. p. 4-12. [Tradução da autora]

3
Konnakol,
geométricas, em vocalizações. Relatos que nos lembram que sons e instrumentos
estão por toda parte: em objetos domésticos, em máquinas cotidianas, na paisa-

o sistema rítmico
gem sonora do agora.
Os textos aqui reunidos são pequenas janelas abertas sobre as experiências das

do sul da Índia
residências artísticas da segunda edição do projeto Territórios de Invenção,2 que
aconteceu entre julho e outubro de 2018, em Minas Gerais, nas cidades de Contagem,
Varginha, Juiz de Fora, São João del-Rei, Araçuaí e Araguari. São reflexões sobre os
processos criativos e pesquisas de cada artista, testemunhos sobre os trabalhos com
os/as participantes, questionamentos que partiram dos territórios, partituras e cola- Edson Fernando e Ricardo Passos
gens realizadas a partir das residências.
Não almeja-se aqui exatamente um aprendizado, um ensino, mas busca-se reco-
nhecê-los na liberdade, na atenção à escuta e na relação de curiosidade e afeto que
acontece no encontro. O improviso torna-se arte insurgente no encontro entre o coti-
diano e o inesperado. É a coragem de propor, de compor e de participar da interação
com práticas diversas: técnicas ancestrais, jogos, experimentação, diálogos, artesa- Introdução ao Konnakol
nia, escuta, invenção. É a confiança na memória e no saber de coração. É o silêncio
como espaço de ressonâncias. Chegamos em Araguari, cidade do triângulo mineiro, na noite anterior ao iní-
A potência dos coletivos está também na ideia de pessoas, objetos e ações distri- cio dos trabalhos na residência. No primeiro dia, fizemos uma roda de conversa
buídas ou, trazendo o pensamento de Alfred Gell, da “arte como um sistema de ação acerca do que iríamos abordar, apresentamos alguns vídeos de música carnática
cujo propósito é mudar o mundo”. Nos Territórios de Invenção, esta ação se desen- tradicional e outros de aplicação do sistema rítmico em música ocidental, dos
volve em residências artísticas, no dia a dia da interação e da experimentação sonoro- quais citamos:
musical, no espaço público virtual, como programa de rádio e como publicação.
Aceito aqui a desordem sem precisar (sem querer) colocá-la em prateleiras ou The Gateway to Rhythm - John Mclaughlin - School of Rhythm
categorias estanques. Aceito que a arte (que a música) pode acontecer na mediação Guru Kaaraikkudi Mani and Ghatam V Suresh Tani Avartanam
de encontros, na provocação de diálogos diversos, como redes flexíveis, dinâmicas e TM Krishna: Ragam Nalinakanthi
sempre desafiadoras – como armadilhas? A música constrói os meandros do pensa- Nandi Eka Aneka
mento que ainda não se dissociou do que é sentido. Lisa Young Quartet - The Eternal Pulse (Tha Thin Tha)
Se acredito que alguma resistência exista nesta ação: é sabendo escrevê-la que a Konnakol Duet: Selvaganesh & Steve Smith
inventamos. Sistema rítmico indiano e sua aplicação a outras músicas

Apesar da aridez do tema e da distância formal da música indiana para a nossa


música, tradicional ou clássica, todos os participantes presentes se mostraram
ávidos pela proposta de trabalho e apreciaram bastante o repertório apresentado.
Foi um deleite. Acreditamos que nenhum dos presentes já havia escutado música
carnática, visto que a maior parcela da música clássica indiana acessível no Brasil
é hindustani, do norte da Índia, podendo ser exemplificada aqui por nomes como
Ravi Shankar, Hariprasad Chaurasia e Zakir Hussain, entre outros. A cada vídeo apre-
sentado seguia-se a explicação de como se apresentava o Konnakol, o ciclo, o uso da
2  Realizado pela Fundação de Educação Artística, em convênio com a Secretaria de Estado marcação com palmas e dedos, e destacávamos sílabas e expressões que certamente
de Cultura de Minas Gerais, o projeto Territórios de Invenção teve a sua segunda edição. Para se tornariam parte do vocabulário que usaríamos posteriormente.
mais informações, ver nesta publicação o texto “O projeto Territórios de Invenção e o con- No segundo dia iniciamos com a apresentação teórica do sistema rítmico, deta-
ceito de residência musical”. lhando os termos, os ciclos, a marcação com palmas/dedos, as denominações das

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subdivisões do tempo, etc. Dessas denominações destacamos aqui algumas que Na.Din.Din.Na.NaNaDin.Din.Na.
serão recorrentes neste texto: TarikitaDin.Din.Na.TaTaKujamTakadina

Matras: subdivisões do tempo Na.Din.Din.Na.TaTaKujamTakadina


Nadai: número de subdivisões do tempo NaNaDin.Din.Na.TaTaKujamTakadina
Adi Tala: ciclo de 8 tempos.
Na.Din.Din.Na.TaTaKujamTakadina
Ao final da explicação definimos que o ciclo Adi Tala (8 tempos) seria o nosso foco TarikitaDin.Din.Na.TaTaKujamTakadina
na residência. Não caberia, em tão pouco tempo, trabalhar quaisquer dos outros 34
ciclos, dada a proximidade do ciclo Adi Tala com o padrão comumente utilizado na TaTaKujamTakadinaTam...TaTaKujam
música ocidental, o compasso quaternário. TakadinaTam...TaTaKujamTakadina
O resultado dessa apresentação teórica do Konnakol foi gratificante e ao final um
dos participantes ressaltou: “Essa aula foi extremamente enriquecedora, somente Da simbologia utilizada na escrita: cada duas linhas compreendem um ciclo de
ela já me valeu um curso inteiro!” Realmente, naquele momento estávamos dispo- Adi Tala; cada sílaba vale um Matra; os pontos simbolizam pausas; e as palavras
nibilizando aos alunos as ferramentas necessárias para dar prosseguimento ao tra- sublinhadas são recitadas no dobro da velocidade das demais; as sílabas destaca-
balho que estávamos iniciando. das marcam o ciclo de Adi Tala (8 tempos), sendo que a mais escura é o primeiro
Após a parte teórica iniciamos a prática de Nadai em Tisram, Chatusram e tempo do ciclo.
Khandam (3, 4 e 5 subdivisões do tempo respectivamente); utilizamos placas com Esse texto foi extraído do primeiro capítulo de Konnakol ensinado por Suresh
cores distintas para cada uma delas, e com algumas subdivisões bem comuns do Vaidyanathan. Foi também um dos primeiros que Edson Fernando aprendeu na
Konnakol. O exercício consistia em repetir as palavras do Konnakol, dentro do ciclo Índia, para uma apresentação com o grupo de Vaidyanathan, este grande mestre,
de Adi Tala, marcado com palmas/dedos. no incrível festival de música anual de sua cidade, Chennai, em 2014. Utilizamos
O Konnakol é um sistema que usa sílabas mnemônicas, derivadas da onomato- apenas uma parte dele, visto que as outras partes careciam de mais contato com
peia de tambores na formação de palavras/expressões, que ao fim desencadeiam o vocabulário.
textos sonoros. Tal tradição é ensinada de forma oral, o que torna a memória essen- Apesar de termos levado alguns textos previamente escolhidos (selecionados
cial no aprendizado. Este item pode ser considerado um obstáculo na dinâmica das pela musicalidade ou pela suposta facilidade no entendimento e memorização),
aulas, tendo em vista o costume geral de nossa cultura focado na necessidade de sentíamos também uma necessidade de extrapolar as possibilidades que o sis-
matéria escrita, papel, computador, etc. Não foi fácil a assimilação e memorização tema, o Konnakol, proporciona, para além das composições milenares que conhe-
por parte dos integrantes, pois os “textos”, sempre com uma lógica particular, sim- cemos. Nesse sentido, entre as práticas que desenvolvemos na residência, duas
plesmente não faziam sentido para boa parte dos alunos. delas acabaram por se tornar parte de nossa apresentação final, e se mostraram
originalmente musicais.
A primeira foi uma prática de adição: cada participante formava uma frase de 16
Desenvolvendo um repertório Matras, utilizando placas diversas de 3, 4, 5 e 7 Matras, em seguida recitada por todos.
Tal prática surgiu do desejo de colocar os alunos ativamente no processo de desen-
Já no terceiro dia da residência apresentamos o primeiro texto de Konnakol com volvimento de um repertório, além de provocar o entendimento da característica adi-
a intenção de que fizesse parte de nosso repertório: tiva do Konnakol. O uso de placas foi inspirado no jogo musical “Cobra” criado pelo
compositor John Zorn. O resultado foi sempre inusitado e surpreendente, gerando
Groove (excerto do capítulo I do Konnakol) ciclos rítmicos originais e envolventes.
A segunda também se baseava no uso das placas: Ricardo Passos assumiu a regên-
Na.Din.Din.Na.NaNaDin.Din.Na. cia e dividimos a turma em dois grupos; cada grupo recitava uma placa distinta, ora
TarikitaDin.Din.Na.TaTaKujamTakadina gerando uma polirritmia dentro de uma mesma subdivisão (Tisram/3 subdivisões ou
Chatusram/4 subdivisões), ou mesmo a polirritmia da sobreposição de placas com
subdivisões distintas (Tisram e Chatusram).

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O material sonoro gerado nessa prática tinha menos relação com a música clás- Ta.Di.TakadinaTam..Tadigenatom
sica indiana, que não utiliza dessa polirritmia de sobreposição de ritmos; muitas Di.TakadinaTam..TadigenatomTaka
vezes se ouvia ritmos remetendo ao samba, tambor de crioula, etc., e variações dinaTam..TadigenatomTam..TakaTa
aleatórias de acordo com as placas escolhidas; dentro dessa prática foram acres- digenatomTam..TakaNakaTadigenatom
cidas outras placas que sinalizavam dinâmica (crescendo e decrescendo) e ainda
placas que indicavam a velocidade; a mesma célula era recitada, de acordo com a No final de semana de descanso da residência, seguimos na imersão em música
regência, na 1a, 2a ou 3a velocidades (cada uma o dobro da outra respectivamente). clássica indiana. Fomos a Uberlândia, onde apresentamos, no sábado, um concerto
No quarto dia, além de dar sequência em todas as práticas com placas e na memo- de Canto Dhrupad (voz e pakhawaj; canto tradicional da música Hindustani), seguido,
rização do primeiro groove, apresentamos a segunda composição que havíamos no domingo, de uma oficina de canto ministrada por Ricardo Passos. Aproveitamos
escolhido para trabalhar. Um groove que por si só, na recitação do Konnakol, soa a passagem no triângulo mineiro para buscar apresentações de nosso duo, e além de
bastante musical e é apresentado da seguinte forma: um tema que se repete (dois Uberlândia fizemos outra em Uberaba, no final de semana seguinte.
primeiros ciclos), um pequena variação do tema (3o e metade do 4o ciclo), e o fecha-
mento, como se fosse uma virada (2a metade do 4o ciclo). A viola caipira no Tadigenatom

Groove em Adi Tala (Chatusram Nadai) Na segunda feira, 60 dia de residência, chegamos com a proposta de que todos
levassem seus instrumentos a fim de inserir melodias nas composições que apre-
Din.TaDimititakaDimiTaDimititaka sentamos. Para nossa surpresa um dos alunos já havia composto, na guitarra,
Din.TaDimititakaDin.TaDin.taritarikita uma melodia em cima do primeiro groove que estávamos trabalhando; usamos
a melodia tal e qual ele havia nos mostrado e fomos incorporando outros ins-
Din.TaDimititakaDimiTaDimititaka trumentos: violão, baixo, viola e derbak; o restante dos participantes continuou
Din.TaDimititakaDin.TaDin.taritarikita usando somente a voz.
Os dias que se seguiram até o final da residência foram de montagem das
DamtarikitaDimititakaDin.TaDin.taritarikita formas de apresentação das composições e de ensaios para memorização do
DamtarikitaDimititakaDin.TaDin.taritarikita Konnakol e/ou melodias. O segundo tema, denominado aqui de “Groove em Adi
Tala”, foi incrementado por uma base com harmonia de blues, e ao Korvai foi
DamtarikitaDin.taritarikitaDamtarikitaDin.taritarikita incorporada uma melodia composta por Ricardo Passos que era introduzida pela
Talon.kaDomkaTom.Talon.kaDomkaTom.Talon.kaDomka viola caipira de Luiz Salgado, reconhecido violeiro do triângulo mineiro. Todos
os temas seguiram a mesma formação instrumental, com exceção do Korvai,
Já no dia seguinte (último dia da primeira semana), apresentamos a última compo- que teve uma parte somente interpretada por Morchang (berimbau de boca) e
sição que havíamos separado: um Korvai. Os Korvais são composições que apresen- o Derbak malandro de Jack Will, ilustre participante que já havia participado do
tam duas partes com características diversas. Nesse caso, o Korvai que apresentamos projeto de residências Territórios de Invenção na primeira edição, em Uberlândia,
contém uma primeira parte que decresce a cada repetição, e uma segunda parte que com Rafael Macedo e Sérgio Rodrigo.
cresce a cada repetição, criando uma sensação de deslocamento dentro do ciclo de
Adi Tala. Primeiramente apresentamos a composição de forma que fosse bem visível
a subtração e a adição, e na sequência a apresentamos dentro do ciclo de Adi Tala: encerramento da residência

Ta.Di.TakadinaTam..Tadigenatom A experiência vivida na residência em Araguari foi extremamente enriquecedora


Di.TakadinaTam..Tadigenatom e demonstrou o quanto a linguagem do Konnakol pode ser acessível a qualquer pes-
TakadinaTam.. soa, independentemente de sua bagagem musical ou nacionalidade. Ao trabalhar
TadigenatomTam.. com um recurso ancestral usado desde tempos imemoriais, a onomatopeia, esta
TakaTadigenatomTam.. linguagem convida o indivíduo a se conectar diretamente com seu corpo e com sua
TakaNakaTadigenatom inteligência musical de forma leve e lúdica.

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No decorrer da vivência, os participantes foram se deparando com vários desafios A memória é fundamental, nada demonstra mais nossa essência do que ela. O
que revelaram algumas lacunas presentes na educação musical ocidental, e que são que fica da experiência de residência em Araguari é a questão de como essa memória
interessantes para refletirmos, e eventualmente tentarmos achar caminhos diferen- é negligenciada em nossas academias de música. A grande barreira no aprofunda-
tes no processo musical de ensino-aprendizagem. Por que sempre colocamos a razão mento de nosso trabalho foi a dificuldade na memorização dos pequenos textos que
à frente do corpo? Por que não se estimula mais o aprendizado através da memó- apresentamos. Era latente a necessidade de leitura. Saber “de cor”, de coração, é
ria? Por que não deixamos que nosso corpo se solte e reaja naturalmente aos sons fundamental para adentrar no universo do Konnakol e poder expandir a aplicação
que escutamos? Por que temos tanto medo de errar? Por que não usamos a voz para dessa linguagem em qualquer instrumento. O mestre de pakhawaj, Pt Manik Munde,
ensinar ritmos e, quando a usamos em ditados rítmicos, só usamos uma sílaba (nor- sempre dizia: “aprenda a recitar e suas mãos e dedos aprendem a tocar”. Se há algo
malmente “tá”) e de forma pouco musical? Por que o ritmo sempre fica relegado aqui relativo ao desenvolvimento cerebral, que é assunto para as neurociências, a
a segundo plano e submisso à melodia e harmonia? Quando usamos sons vocais sabedoria indiana tem isso muito bem resolvido, na prática.
para criar e expressar ritmos transformando nosso corpo num tambor, automatica- Nossa apresentação foi um momento de muita alegria para todos os participan-
mente entramos no fluxo da música, que simplesmente nos embala e nos conecta tes. Estavam ali, todos, executando uma música que havia surgido de forma bem
individual e coletivamente, de forma intuitiva. Trazemos a música para dentro de inusitada e inovadora para muitos deles. Um desafio. Foi uma pequena centelha que
nós, criamos uma partitura interna, que depois nos conduz de forma espontânea e suscitou o clamor de muitos participantes ao final da residência: havia que se dar
livre, abrindo espaço para a criatividade. continuidade àquilo que havíamos iniciado. Esse é, sem dúvida alguma, o melhor
Ao cantarmos os ritmos, criamos uma representação mental dos mesmos, e atra- retorno da experiência de dividir o que aprendemos com nossos mestres na Índia.
vés dela conseguimos guardá-los na nossa memória. Este processo de aprendizado é Sentir em todos o desejo de prosseguir e aproximá-los desse universo generoso que
característico de tradições baseadas na transmissão oral, em que o conhecimento se é a sabedoria indiana justifica nossa própria busca.
armazena na memória e nos apropriamos dele trazendo-o para o corpo. Como nosso
aprendizado musical se dá através da escrita, acabamos por ficar reféns de algo exte-
rior e distante do nosso corpo como a partitura, e dessa forma deixamos de usar nossa
memória, ferramenta essencial para podermos incorporar a música, neste caso, os
ritmos musicais.
Em relação à linguagem do Konnakol, num primeiro momento memorizamos ape-
nas as células rítmicas básicas, que seriam as matrizes da linguagem. Depois passamos
a memorizar estruturas rítmicas simples que vão revelando a poética da linguagem, e
finalmente são memorizadas composições rítmicas mais complexas que obedecem a
uma lógica matemática precisa, trabalhando com relações de proporção que resultam
num equilíbrio perfeito. As células básicas são geradas a partir de sílabas que vão desde
2 até 9 e são sempre construídas seguindo a lógica aditiva que identificamos com a
nossa percepção, ou seja, agrupamentos menores que se juntam para formar células
maiores. Por exemplo, uma célula de 8 sílabas poderia resultar da soma de 3 + 3 + 2
(TakitaTakita Tom.) ou 3 + 5 (TaTom.Tadigenatom). Esta imparidade rítmica quebra
a regularidade que estamos acostumados a sentir na música ocidental, na hierarquia
prevista do compasso, e provoca as mais variadas sensações corporais. Estruturas
maiores são construídas a partir de uma verdadeira dança de números e se encaixam
dentro de ciclos marcados por um gesto de mão.
O estudo desta linguagem desenvolve no músico um amplo domínio e expansão
da consciência do ritmo, assim como suas possibilidades para o groove, o acompa-
nhamento e a improvisação. Esta residência nos demonstrou mais uma vez que este
sistema pode ser aplicado em qualquer estilo e instrumento musical e que suas pos-
sibilidades criativas são infinitas.

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Som e
parece ainda que o curso deste movimento era
cada vez maior: quanto mais se experimentava e

improvisação 1
se arriscava num campo “desconhecido”, mais
forte e reverberante se tornava a história auditiva
do grupo e de cada um. Por vezes o “novo” e o
O Grivo “velho” eram conflitantes e por vezes harmôni-
Marcos Moreira Marcos cos; entretanto eram sempre parte de algo maior,
e Nelson Soares como velhos conhecidos.
A vivência musical de um determinado parti-
cipante (havia vários músicos) interferia na resi-
dência, no diálogo entre todos, e nas improvisa-
[Pequeno preâmbulo ções de maneiras diferentes das vivências dos
de utilidade duvidosa] participantes de outras áreas (atores, performers,
educadores).
A residência que propomos tinha duas ações Certamente, as impressões dos não músicos
diferentes, mas profundamente complementa- colocavam em jogo questões importantíssimas
res – sessões de escuta e sessões de improvisa- do ponto de vista sensorial, estético e, às vezes,
ção. As sessões de escuta, breve análise musical e inclusive ético.
troca de impressões/experiências eram seguidas Certamente, as impressões dos músicos
de exercícios de improvisação/criação que eram traziam propostas de caminhos e, por vezes,
seguidos de novas sessões de escuta, etc., etc., tensões fundamentais para a maturação das
etc. O que era escutado (e como era escutado) improvisações.
reverberava imediatamente nas improvisações; O segredo da condução do processo passava Só depois de algum tempo as ações se volta- escutá-lo, apreciá-lo, contemplá-lo.
e o resultado delas alimentava a escolha do que então por fazer estas diferentes camadas de ram na direção do fortalecimento e maturação Assim, por dispor só destes sons, não outros,
seria escutado nas novas sessões de “fruição”. informação conviverem e mutuamente se trans- das formas musicais e sonoridades inventadas. o que se ambiciona é algum sentido além da
A intenção de todo o processo da residência formarem buscando fazer crescer o curso do soma sonora das partes que compõe uma
passava ao largo de uma possível apresentação pêndulo (experiência/risco). Isso nem sempre Como se situa a relação entre improvisação. Você diz claramente: esses sons
de exercícios ou metodologias para improvisa- aconteceu de maneira tranquila, tanto do ponto som e improvisação? não. E diz sim para tantos outros. E sim, ora
ção, aproximando-se muito mais da tentativa de vista do grupo quanto do ponto de vista dos esses sons caem distraidamente aquém do
de estabelecimento de uma relação de curiosi- participantes individualmente. Isso porque no A escolha do som, na maioria das vezes, con- alvo, ora extrapolam de tal modo a condução
dade e afeto com: a escuta de cada som (antes fim das contas ia se criando um novo indivíduo… duz a improvisação. Pois, achado um som qual- musical. O que se faz? Se refaz todo um plano
e depois da forma musical, ou do gosto de cada o coletivo de improvisadores com sua história, quer, é nas características sonoras que nos ate- de ação?
um)/o diálogo entre as pessoas por meio do som mesmo que breve, e com seus novos riscos apa- mos. Conhecer mais e mais – do que é feito esse Na improvisação, quando estamos diante
e da música. recendo em escala geométrica. Cada sucesso ou som, quais são seus elementos acústicos, dinâ- de outros músicos, diante de vários outros
Parece que os participantes fizeram um fracasso abria uma série de novas questões, desa- micos, rítmicos, tímbricos, etc. É existindo como sons, torna-se mais importante a escuta do que
movimento pendular entre a experiência que já fios e possibilidades. E também de limites. tal que ele pode ser explorado. aquilo que os outros fazem, ou o que você faz.
tinham (com o som e com a música) e as expe- As experiências de apreciação lidavam tam- Estabelecido o repertório de sons, inicia- Paradoxalmente, são importantes também os
riências que construíam nesta residência. E bém com esta espécie de pêndulo. Ora confirma- se um diálogo, um jogo de possibilidades de momentos em que os seus sons ganham corpo,
vam ou se alinhavam com algo que havia nascido interação e coexistência entre os vários sons para que assumam o primeiro plano e, em um
ali (na residência), fortalecendo uma determi- que abarcam uma improvisação. momento seguinte, se dissolvam, se dispersem,
1  Este texto foi escrito a partir de questões formu- nada vivência, ora se contrapunham gerando Som: é necessário ter espaço e tempo sufi- dando lugar a outros sons, a sons de outros.
ladas, a pedido dos autores, por Patricia Bizzotto. ruído, dúvida e confusão. ciente na improvisação para que possamos Assim o silêncio se mostra como espaço de

12 13
ressonância dos sons que surgem. Espaço a a algum ponto? como funciona do ponto de Como objetos, instrumentos virtuais, circuitos eletrônicos, etc.
ser preenchido por um novo som. Agora, os vista do ritmo? a orquestração é claramente instrumentos, máquinas... Outro que improvisou com chaves, lápis, papel,
procedimentos que ocorrem são vários. O que reconhecível? etc., etc., etc., etc… participam da experimentação? programação de computador em tempo real. E
se segue pode soar por oposição ou por conti- Entretanto, se este processo de invenção ainda outro que experimentou violão com efei-
nuidade, por quebras bruscas ou suaves. Uma de uma escuta possível da peça que teima em Pelo timbre, pelo ritmo, pela densidade, pelo tos, oscilador de frequências, manipulação de
escala de gradação de procedimentos. Mas escapar não conseguia re-alimentar ou re-des- conteúdo… Por oposição, por complementari- sons no computador, etc.
tudo isso de forma bastante intuitiva. Uma cobrir ou mesmo provocar um certo frescor da dade. Pela continuidade ou pela descontinui- Ou seja, é exatamente a pesquisa focada na
conversa? Talvez. escuta natural (espécie de reflexo incontrolá- dade. Pelo som oco ou brilhante. Por ser áspero, exploração das sonoridades de uma multipli-
O som da porta do forninho elétrico que sur- vel que ao ser percebido já denuncia nossa seco e sem saliva. Por ser claro, luminoso e cidade de fontes que delimita o repertório do
giu na residência, por exemplo. Tinha um tim- captura pela curiosidade), nada de muito pro- refulgente. material sonoro. Escolhido o material sonoro,
bre metálico, mas ao mesmo tempo, em tem- veitoso era gerado… Talvez apenas como um Na residência do O Grivo, no projeto este é posto em prática através da música
peratura amena, soava metálico suave. Tinha repertório frio de procedimentos e um sem Territórios de Invenção, as mais diversas fontes improvisada. O que funciona na improvisação
harmônicos que flertavam com acordes. O fim de argumentos sem grande utilidade ou sonoras foram experimentadas. Teve um grupo fica, o que não funciona é descartado.
ritmo: sempre o da porta. Ou se abre bem lenta- frescor… que conjugou voz, violino, galhos, folhas de São bem-vindos os mais diversos objetos e o
mente, ou se pulsa, abrindo e fechando a porta. Mas no campo da improvisação, que coloca bananeira, percussão. Outro grupo trabalhou mundo sonoro que vem à tona com a amplifi-
De vez em quando tudo faz sentido. na mesa a necessidade de respostas a estí- com kalimba, hang drum, harpa, violão de brin- cação. Os mínimos sons das vozes caladas, das
Questão de lógica indecifrável, de ângulo, de mulos nem sempre esperados, o reflexo e a quedo, instrumento artesanal de uma corda e raspagens surdas em várias superfícies, das
reserva. Uma geografia de dúvidas se resolve. abertura a ele são a diferença entre a vida e bebedouro. Um grupo que misturou sinteti- cordas em diferentes caixas de ressonância. O
Será música? Você responde a um comentá- o repertório de formas, e gestos, e ritmos, e zador, forno elétrico amplificado, semente de universo dos objetos como fonte de descober-
rio inaudível. É como se abolíssemos o azar. harmonias todos meio frios… congelados… pinha amplificada, trombone, sinos tibetanos, tas sonoras.
Gesto impreciso fundamental. O instante pre- inertes.
sente se sustenta. O universo reduzido a atos, E ainda, para causar mais confusão, lem-
artefatos, artifícios, dispositivos. Entrementes bramos do John Cage (a possibilidade de
coisas mais surgem. engano mnemônico é grande) propondo que,
no encontro com um som que gera despra-
Escuta iniciada, zer, ou que nos pareça feio, talvez a melhor
escuta natural estratégia seja escutá-lo outras tantas e tan-
tas vezes. Provavelmente esta sensação desa-
Frequentemente, no processo de apre- parecerá sendo tomada por outra (escuta
ciação, ao colhermos as impressões de cada iniciada?...).
participante e do coletivo a respeito de uma Mas é neste campo dúbio e pouco firme
ou outra peça musical que desafiava o “enten- que caminhamos seja no campo da residên-
dimento” (inclusive em relação aos parâme- cia, seja no campo da composição, seja no
tros mais tradicionais de organização formal), campo do improviso. Até agora parece melhor
nos encontrávamos na posição de propor lidar com a situação de coração aberto. Ou
uma escuta mais “técnica” (iniciada? que dis- ouvidos abertos.
ponha de mais camadas de comparação?)...
Menos influenciada pelo prazer imediato ou
pela “transcendência” que a peça provocaria
e mais dirigida à construção de relações da
peça com ela mesma: motivos que se repe-
tem? algum movimento formal em direção

14 15
Marco Antônio Guimarães:
As máquinas com seus ritmos mecânicos, cada material sonoro aconteça calmamente
diante dos quais podemos fazer as mais diver- para que possamos percebê-los por completo…

improvisação estruturada
sas improvisações rítmicas. escutem… escutem não apenas o som que você
Os instrumentos musicais fazem parte da pôs na roda, mas como ele se transforma no

e a notação das
música desde sempre, e não é agora que vamos contato com os outros… escutem mais do que
recusá-los. Aqui cabe falar também do uso de tocam… estejam presentes... ATENÇÃO… etc.,

“figuras geométricas”
sintetizadores e instrumentos eletrônicos, da etc., etc…
manipulação de efeitos, da gravação e monta- Desta forma, parece que há uma ação no sen-
gem de sons em tempo real através do computa- tido da escuta curiosa. Acreditamos que este
dor. É exatamente essa interação que faz parte cuidado curioso move a música, ou pelo menos
da pesquisa do O Grivo. move uma música... Felipe José
Todo esse material explorado musicalmente Som?... Tudo aquilo que faz nossos tímpa-
é uma forma de improvisar. Essa manipulação é nos, ossos, sangue, pulmões, membros, espíri-
como tocar um instrumento musical. Os gestos, tos vibrarem… Parece bom?... Criar e/ou realizar algo sem preparo prévio define de maneira simples o verbo
a forma, as conduções, os ritmos, as mudanças improvisar. Entretanto, esse mesmo vocábulo e, consequentemente, seu conceito
de intensidade, a escolha das alturas, procedi- musical, são ampliados quando o tomamos como composição (em tempo real),
mentos interdependentes, comuns à música invenção, forja, e utilização criativa de recursos disponíveis. Podemos enxergar um
improvisada. largo espectro de situações que a improvisação alcança, desde as diversas “gramáti-
cas” de práticas musicais tradicionais, como música Hindustani, Karnatik, Gamelão,
Os efeitos na escuta, etc., até propostas de “livre improvisação” e abordagens “não-idiomáticas” do texto
a atenção ao som musical; passando por práticas articuladas e relativamente flexíveis como o universo
(e o que chamam de som?) plural do Jazz e outras propostas de improvisação estruturada, como o soundpainting,
conduction e alguns jogos de improvisação.
O efeito parece ser justamente a atenção. No Brasil, o trabalho do grupo UAKTI, idealizado e liderado pelo compositor e
Que prenuncia a curiosidade que prenuncia o inventor de instrumentos Marco Antônio Guimarães (1948), exemplifica o uso estru-
desejo. turado da improvisação. Discípulo de Walter Smetak (1913-1984), suíço radicado no
As vivências de improvisação e também de Brasil, Guimarães se propôs a realizar uma música a partir de novos instrumentos
apreciação são conduzidas por um vício nosso, e de novas abordagens para questões relacionadas à prática musical, como é o caso
supomos… da notação musical, situações musicais a partir de jogos de improvisação, pêndu-
Pensando agora nas peças que propomos na los, cartas de baralho e outras propostas de obra aberta. Sediado em Belo Horizonte,
apreciação: Minas Gerais, o grupo UAKTI – formado por Marco Antônio Guimarães, pelos per-
– a maioria tem como característica, para cussionistas Décio de Souza Ramos Filho, Paulo Sérgio dos Santos e pelo flautista
além das mais diversas organizações formais e Artur Andrés Ribeiro – se dedicou, desde os anos 1970 até o encerramento de suas
orquestrações, um cuidado quase zen para com atividades em 2015, a um repertório que fosse fruto do encontro entre práticas já
os sons. Chamando de zen (provavelmente de estabelecidas e propostas inovadoras da prática musical.
maneira reducionista) um estado de espírito Marco Antônio desenvolveu um sistema de notação musical baseado em
que acolhe com cordialidade e empatia os even- figuras geométricas, determinando estruturas de duração rítmica de maneira
tos que acontecem por aí. bastante simples e eficiente, acessível até mesmo para quem não conhece nota-
Pensando nos aspectos que ganham nossas ção musical convencional. Utilizando essa notação, desenvolveu composições
intervenções mais radicais ao comentar e ao nas quais – tendo a estrutura rítmica definida – outros parâmetros ficavam em
conduzir as improvisações: aberto, tais como: instrumentação, alturas, subdivisão das durações, modos de
– prestem atenção nos sons… deixem que ataque, perfis melódicos etc.; configurando assim uma “oportunidade e convite”

17
à improvisação, num contexto semelhante aos colocados por compositores como No caso da composição 11, algumas novas informações são incorporadas: uso
Karlheinz Stockhausen e Earl Brown, em suas propostas de “obra aberta”. da notação de dinâmica convencional; uso do círculo pontilhado representando
A composição 11 e balés como 21 e I-Ching (este usando ainda outro formato pausa ou ausência de som; e uso de uma figura dentro da outra: lendo-se primeiro
de notação, baseado nos trigramas e hexagramas do homônimo oráculo chinês) sempre a figura externa, no andamento geral da música, e, então, a figura interna,
são frutos dessa nova proposta de notação que, ao determinar de maneira espe- no dobro do andamento, numa proporção do inteiro para o dobro, a mesma pro-
cífica uma estrutura rítmica, libera outros parâmetros que podem (ou não) ser porção encontrada na notação convencional entre, por exemplo, uma colcheia e
atualizados na improvisação. Segundo Marco Antônio, o trabalho com dançarinos uma semicolcheia.
contribuiu no desenvolvimento deste novo método de notação: “Os coreógrafos As possibilidades de abordagens interpretativas abertas por essas novas notações
usam referências numéricas para contar os compassos. [...] nós incorporamos são inúmeras e, além da presença constante no trabalho artístico e pedagógico do
esta técnica como tema da música.” 1 grupo UAKTI, seguem sendo utilizadas em oficinas e projetos musicais afins com o
trabalho pioneiro do grupo.
A partir do ano de 1989, quando da composição e do registro do balé I-Ching, identifica-
mos na música do UAKTI o desenvolvimento e a utilização de novas formas de notação
musical. A leitura musical dos trigramas e hexagramas que deram origem, respectiva-
mente, às oito Músicas dos Trigramas e à Dança dos Hexagramas, que compõem o balé I
Ching, abriu caminho para a utilização de uma notação musical alternativa como ocorre
nas figuras geométricas do balé 21 e na música Onze e, mais tarde, nos desenhos de uma
toalha de mesa na peça Toalha de Cerejas. Todas essas formas alternativas de notação
musical criaram estruturas que estimularam a improvisação em grupo.2

Nessa proposta de notação, as figuras geométricas são uma representação grá-


fica de números inteiros, os quais por sua vez correspondem a séries de durações:
o círculo corresponde a 1; o triângulo, ao 3; o quadrado, ao 4; o pentágono, ao 5;
dois círculos superpostos (ou um semicírculo, como se pode ver na partitura do
11) correspondem ao 2; e dois triângulos, ao 6 (no caso do 11, o número 6 é repre-
sentado por dois triângulos atravessados, à estrela de David).3

1  Marco Antônio Guimarães. Grupo Uakti compõe trilha para o novo balé do Corpo. O Globo,
Rio de Janeiro, 24/01/1992.
2  Artur Ribeiro. UAKTI: um estudo sobre a construção de novos instrumentos musicais acús-
ticos. p. 133. Quadro dos 64 Hexagramas do I Ching,
3  As figuras geométricas a seguir foram utilizadas por Marco Antônio para o balé 21. Artur utilizados na “Dança dos Hexagramas”
Ribeiro. UAKTI: um estudo sobre a construção de novos instrumentos musicais acústicos. p. 135.

18 19
À esquerda
Partitura do balé 21
Marco Antônio Guimarães

Partitura da composição 11
Marco Antônio Guimarães

20 21
Relatos pessoais Num outro momento, em 2010, na cidade de Matozinhos/MG, fui professor de
música numa escola infantil particular. Nesse período, trabalhei com três turmas com
Apresento relatos da minha experiência com o uso das “figuras geométricas” alunos entre 8 e 11 anos de idade. Percebi, então, o enorme potencial que essa abor-
como método de ensino em diferentes contextos culturais e também como método dagem possibilitava para o ensino de música. Ao final de 3 ou 4 meses de trabalho, os
de composição e estruturação musical. alunos faziam fila para “competir” quem teria a melhor leitura à primeira vista das
Conheci a música feita pelo UAKTI na adolescência, no interior de Minas “músicas” que eu escrevia utilizando as figuras geométricas de maneira aleatória, ou
Gerais, através do contato com músicos mais experientes que me apresentaram propositadamente complexas. O resultado era impressionante: a maior parte dos estu-
discos como Águas da Amazônia e Oficina instrumental. Ainda sem saber dos dantes era capaz de efetuar a leitura rítmica à primeira vista em andamentos bastante
métodos e das abordagens propriamente musicais utilizados pelo grupo, me cha- rápidos, coisa que eu ainda não havia encontrado mesmo no círculo musical “profissio-
mou a atenção logo de início o emprego de instrumentos musicais novos, cons- nal” com o qual estava acostumado. O que favorecia essa facilidade e essa agilidade era,
truídos com materiais pouco usuais para esse fim: são instrumentos de percussão, sem dúvida, a simplicidade do material gráfico, representando de maneira direta e efe-
corda e sopro, instrumentos híbridos e eletromecânicos, tudo isso além da plas- tiva séries de durações que, notadas à maneira tradicional, não trariam um resultado
ticidade e do forte impacto visual dos mesmos. Havia ali todo um novo universo tão imediato quanto as figuras geométricas, que retratavam, de maneira mais efetiva,
que me fascinava, ainda que eu não soubesse da existência de nomes como Marco a própria realidade dos números. Em outras palavras, não me parecia (como não me
Antônio Guimarães e Walter Smetak, nem mesmo que o grupo residia na capital parece) haver uma figura melhor para representar o número 3 do que um triângulo; o
do meu estado, Minas Gerais. número 4, um quadrado; o número 1, um círculo etc.
Com o passar do tempo, conhecendo outros discos e assistindo vídeos de apre- Num momento específico, durante uma residência artística na Ecovila Terra Una,
sentações, ficava explícita a enorme desenvoltura dos músicos ao tocar diversos em Liberdade/MG, em maio de 2016, utilizei pela primeira vez as figuras geométri-
tipos de instrumentos e a flexibilidade do repertório, que podia ir do tradicional ao cas como suporte para meu próprio trabalho composicional. Transformar letras
experimental em questão de instantes. Além disso, fui percebendo o equilíbrio entre em números e números em figuras geométricas possibilitava que eu estabelecesse
momentos de improvisação e de composição estrita, técnicas convencionais e expe- estruturas rítmicas sem necessariamente me envolver afetivamente com o material.
rimentações no trabalho do grupo, um equilíbrio entre práticas musicais estabeleci- É como se eu pudesse iniciar o trabalho criativo fazendo uma tradução, e não escre-
das e abordagens novas, próprias. vendo um poema. De fato, ao longo do trabalho, o poema foi escrito, contudo ele teve
Depois de uma oficina com o grupo UAKTI em Tiradentes (sem a presença de sempre como ponto de partida uma estrutura rítmica/de durações que era abstrata,
Marco Antônio), finalmente me inteirei das notações empregadas pelo grupo. direta, mas que, ao longo do processo de arranjo, gravação, reelaboração etc., voltou
Primeiro, a notação dos trigramas e hexagramas utilizados no I Ching, segundo a ser afetiva, própria, íntima. O resultado desse processo gerou duas composições
Décio Ramos, “uma espécie de composição serial rítmica”. Mais tarde, a partitura que foram registradas e, em breve, estarão em disco.
do 11 e do balé 21, com todas aquelas figuras geométricas que me remeteram a um Em setembro de 2018, durante a residência Territórios de Invenção em São João
novo universo musical. A partir desse contato mais próximo e posteriormente do del-Rei, em parceria com Elise Pittenger e Fernando Rocha, tivemos a oportunidade
aprendizado com o Professor Dr. Fernando Rocha durante meu curso de graduação de montar a composição 11 com um grupo instrumental bastante heterogêneo.
em Composição na UFMG, me familiarizei com essa proposta de notação (que é de Tínhamos ali um número significativo de instrumentos de corda (violinos e violon-
fato bastante simples). Comecei a utilizá-la como ferramenta pedagógica, sempre celos) e sopro (flautas e clarinete), além de cordas dedilhadas (violões, cavaquinho),
obtendo resultados muito satisfatórios, num período de tempo menor que o normal- voz e percussão, o que configurou uma excelente oportunidade de usar a partitura
mente necessário com o uso de notação convencional e, o principal, sempre abor- do 11 como ponto de partida para uma “composição orquestrada”, utilizando os
dando algum elemento da música de maneira criativa. instrumentos ali disponíveis. Assim, o “tema” recorrente na partitura (3-3-3-2) foi
Recordo-me de iniciar o uso das figuras geométricas no meu trabalho peda- representado por uma espécie de valsa nos instrumentos de arco, seguidos por naipe
gógico quando era professor do Arena da Cultura, um projeto de descentralização do de violões e flautas (que tocavam os quadrados com triângulos internos), e assim por
ensino de artes da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte. O projeto reunia estudan- diante, numa espécie de orquestração da partitura. Foi como se eu estivesse “colo-
tes com experiências musicais muito diferentes entre si, e o uso dessa notação, de rindo” aquelas figuras com os timbres que tínhamos ali disponíveis. O resultado
certa forma, “equalizava” essas diferenças, estimulando aspectos criativos dos que já foi uma versão do 11 que usava de maneira equilibrada momentos de improvisa-
tinham mais experiência musical e demonstrando novas capacidades de percepção ção (estruturada em termos de duração) alternados com momentos de composição
rítmica e interativa para aqueles que tinham menos experiência. estrita (inclusive no âmbito das alturas)! Mais uma maneira de abordar a proposta

22 23
de Marco Antônio Guimarães, que ainda não havia encontrado nas versões que eu
conhecia, e mais uma vez demonstrando o rico potencial dessa proposta que, a partir
da minha experiência, começo a considerar um “método”.
Finalizando a questão do uso dessas figuras geométricas no meu trabalho
pedagógico, gostaria de apontar duas experiências recentes e bastante significa-
tivas. Primeiramente, em setembro de 2016, durante uma residência artística nos
EUA, pude apresentar esse “método” de notação musical para um grupo de mais
de 25 músicos, de diferentes nacionalidades, experiências e bagagens musicais.
Compositores, cantautores, instrumentistas de formação clássica, de formação
tradicional (de tradições como Hindustani, África Central, Sudeste Asiático, Latino-
Americana, para citar alguns exemplos), artistas conceituais (sound designers), além
de rappers, cantores de tradições diversas etc.; todos se dispuseram a fazer uma lei-
tura de uma série de figuras geométricas que elaborei e lhes apresentei numa manhã
ensolarada em New Smyrna Beach, Florida. Alguns tiveram inicialmente dificuldade
em compreender questões como “linha pontilhada = silêncio/pausa” e a relação de
proporção entre figuras uma dentro da outra. Entretanto, com um pouco de ensaio,
tudo se ajustou e, em menos de uma hora e meia, tínhamos uma “orquestra” inter-
nacional, utilizando a série de figuras geométricas como suporte para improvisação.
Improvisação “livre”, alguns poderiam dizer, talvez livre em relação às alturas, às
subdivisões, à instrumentação, harmonia, etc. Mas completa e perfeitamente estru-
turada no que diz respeito às durações.
Graças a essa pequena “amostra” da minha pesquisa, que durou menos de duas Apresentação da composição 11 durante o Ceramic Music Festival em Jatiwangi, Indonésia,
horas, fui convidado por um colega da Indonésia, o percussionista, construtor de no dia 11 de novembro de 2018.
instrumentos e ativista cultural Tedi En, para participar como professor e músico do
Ceramic Music Festival 2018, na cidade de Jatiwangi, West Java, Indonésia. A proposta
era específica: trabalhar esse método de notação com um grupo de pessoas da comu-
nidade, utilizando as figuras geométricas como base para a criação em conjunto. O
resultado foi surpreendente: em poucos dias, o grupo tocava células polirrítmicas Referências
(como 4:3 e 3:2) com desenvoltura, por meio do uso de quadrados e triângulos super-
postos. Ao final, apresentamos a composição 11, de Marco Antônio Guimarães, e Artur Ribeiro. UAKTI: um estudo sobre a construção
eles me “pediram” autorização para projetar a partitura ao fundo do teatro onde nos de novos instrumentos musicais acústicos.
apresentamos. Além das questões puramente musicais, haviam percebido e valori- Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2004.
zado ali um outro ponto importante: a beleza plástica das figuras geométricas, dos
grupos de quadrados e triângulos, dos crescendos em pontos estratégicos da compo- Marco Antônio Guimarães. Grupo Uakti compõe
sição, dos pentagramas e hexagramas, dos círculos pontilhados, dos semi-círculos... trilha para o novo balé do Corpo. O Globo, Rio de
Janeiro, 24/01/1992. Segundo Caderno. Citado
em Alexandre Campos Amaral Andrés. A Música
dos Trigramas e o balé I Ching de Marco Antônio
Guimarães com o UAKTI. Dissertação (Mestrado
em Performance Musical). Escola de Música,
UFMG, Belo Horizonte, 2014.

24
Um barulhinho
no sistema
Marina Cyrino e Matthias Koole

Homenagem à Pauline Oliveros


e seu A Little Noise in The System.

27
28 29
30 31
32 33
34 35
COM–PÔR
trazer riqueza aos processos musicais. Aliás,
as trocas coletivas podem ser potencializa-
das quando saímos da fórmula onde uma só
pessoa fala (ou toca, ou declama, ou atua,
Joana Queiroz etc.)  enquanto pessoas, de costas umas para
as outras, escutam. Nem sempre a logística é
fácil, mas imagine um show onde você pode
UM BARULHINHO NO SISTEMA realmente notar o semblante das pessoas à
Desde que comecei a dar oficinas de música, sua volta, trocar olhares e sensações, em vez
p.27  Sara Fraga. Foto: Bruno Figueiredo (Área De Serviço) me veio a vontade de propor um trabalho cria- de outro onde você vê apenas o palco (daí a
p.28  Jhonata Lino Machado, João Cordeiro. Foto: Bruno Figueiredo (Área De Serviço) tivo, que saísse um pouco da lógica de um con- minha predileção pelos teatros de arena, ou
  Excerto de partitura de Pedro Lima Campos , criado durante a residência teúdo dado, algo a ser reproduzido, para algo espaços alternativos em detrimento dos pal-
p.29  Sônico Vórtice. E-mail pós-residência de Pedro Lima Campos a Marina Cyrino e que fosse concretamente construído junto. A cos italianos). Tenho a mesma sensação ao
  Matthias Koole interpretação sempre é, também, um ato cria- pensar numa sala de aula onde os alunos estão
p.30  Excerto de partitura de Pedro Lima Campos tivo, em maior ou menor escala. Mas criar algo todos enfileirados na direção do professor,
  Excerto de artigo de Júlio Black publicado no Jornal Tribuna de Minas 25/08/2018 novo, do nada, e compartilhar esse processo de sem praticamente possibilidade de se verem e
p.31  Matthias Koole, Marina Cyrino e Isabela Guerra criação, tem uma magia que sempre me cap- de estabelecer uma comunicação efetiva entre
  Foto: Bruno Figueiredo (Área De Serviço) tou. Quando estamos criativamente envolvi- si. Quão mais rica me parece a experiência das
p.32  Partitura de Concerto a céu fechado para solos de aves e outros dos participantes dos num trabalho, nossa atenção é total, e há salas onde os alunos se encontram em círculo
  Diogo Santhiago, Farley Santana, Nathan Itaborahy, Pércio Faria Rios, um prazer enorme nisso: em criar. Colocar sua ou semicírculo, e podem com mais facilidade
  Renato da Lapa e Sérgio Spirito. imaginação em ação, experimentar ideias, ava- compartilhar impressões e informações.
p.33  Excertos de partitura de Pedro Lima Campos liar o que foi criado, escolher caminhos, requer Na música, independente da situação, neces-
p.34  Renato da Lapa e Pércio Faria Rios. Foto: Marina Cyrino uma atenção e uma entrega muito grande de sitamos de uma escuta ativa. Sempre estaremos
  Lucas Souza Miranda e Isabela Guerra Foto: Marina Cyrino todos. Pode ser um processo muito desafiador nos relacionando com o grupo ao tocar, e esse é
p.35  Participantes da residência no Estúdio Maquinaria. e complexo, mas também muito divertido e pra- talvez o maior aprendizado: ouvir, primordial-
  Foto: Bruno Figueiredo (Área De Serviço) zeroso. Como disse Einstein, “a criatividade é a mente. Tocar no contexto do que se ouve, a par-
inteligência se divertindo”.  tir do que se ouve, integrado com o que se ouve. 
Participantes Cada pessoa, independente de seu domínio Numa proposta de composição coletiva,
como instrumentista ou seu grau de conheci- radicalizamos esta ideia de experiência com-
Adrielly Oliveira de Souza, Arlana Dias, Bernardo Wilberg Costa, Bruno dos Santos Rocha, Carlos mento musical, tem coisas a somar num pro- partilhada, onde todos trazem suas visões, suas
Coelho, Diogo Santhiago Lopes, Farley Francisco Santana, Felipe Brito de Melo, Isabela Guerra, cesso de criação. A musicalidade está presente influências, suas opiniões. A partir disso, muitas
Jhonata Machado, João Paulo Cordeiro, Lucas Souza Miranda, Luís Henrique Carvalho, Luiz Valente, em todas as pessoas, e mesmo crianças, que coisas serão desenvolvidas, além da composição
Nathan Zanzoni Itaborahy, Pedro Lima Campos, Pércio Faria Rios, Philipe Daria, Renato Da Lapa, ainda têm relativamente pouca “bagagem” em si: as ideias, neste processo de criação con-
Sara Rosa Ramos Fraga, Sérgio Spirito, Túlio Edson, Wesley Fontes. musical em seus poucos anos de vida, podem junta, são experimentadas e comunicadas já nos
desenvolver criações musicais muito interes- instrumentos, então há o desafio de se aprender
santes se estimuladas. Pensando bem, em a tocar as frases (acordes, ritmos), quase sempre
quase qualquer atividade em grupo, mesmo ”de ouvido”, construir as camadas observando
havendo um professor que traz informações e as funções de cada instrumento (e como elas
proposições, havendo abertura para o diálogo, podem ser intercambiáveis), executá-las equili-
aprenderemos muito mais por compartilhar bradamente em conjunto, dar expressão ao que
coletivamente. O coletivo é algo potente, e as se cria, encadear as frases, decorar tudo o que
diferenças (e mesmo as dificuldades) podem foi criado, elaborar o arranjo, pensar nos estilos,

37
experimentar diferentes combinações de ritmo vivenciou em décadas de trabalho intensivo com formação tem: por alguns minutos, que todos Alguns tiveram dificuldade em decorar suas
etc., etc. E tudo atravessado pelas particularida- Hermeto Pascoal. Posteriormente orientei outras improvisem livremente, numa conversa sem partes, por terem o hábito de sempre tocarem
des de cada músico e sua relação com o instru- oficinas voltadas totalmente à criação coletiva, nenhuma regra. Depois das primeiras experi- lendo partitura. Lembrar a forma da música
mento, levando em conta questões específicas como no projeto de residência do Ibermúsicas ências (primeiro só com as vozes, depois com também foi um desafio. Para muitos a prática
como afinação, articulação, formação dos acor- na Argentina (com um grupo grande de músi- os instrumentos), avaliamos o que aconteceu e de improvisação livre também foi uma novi-
des, etc. cos de variados perfis, ao longo de vários encon- damos algumas sugestões, como buscar com- dade, e ficaram tímidos no começo, depois
Além das questões musicais propriamente tros) ou no projeto MIA, no qual experimentei binações com menos instrumentos tocando foram experimentando novas sonoridades e aos
ditas, há as questões relacionais, que dizem pela primeira vez compor algo em apenas duas por vez, variar mais as dinâmicas e densidades, poucos se integrando. Houve desafios de vários
respeito a como cada pessoa se comporta num horas, com grupos de crianças e adolescentes. Os etc. Foi assim que iniciamos o trabalho com o tipos e acredito que o grupo ficou movido de
processo como este: alguns, mais expansivos, resultados têm sido sempre extremamente ricos, grupo, e que eu e Rafael começamos, também, várias maneiras, o que pude comprovar lendo
naturalmente se colocarão bastante e darão prazerosos e surpreendentes (em termos de pro- nossa primeira composição feita em Varginha, as respostas do questionário feito posterior-
muitas sugestões, enquanto os mais introspec- cesso e também de resultado final, cada música das três que fizemos nesta semana. mente pela organização do projeto Territórios
tivos relutarão muito antes de se manifestar, e com nuances completamente diferentes entre si, A primeira peça que compusemos em dupla de Invenção. Aproveito para parabenizar a toda
o farão timidamente. Cabe a nós, mediadores, com a “cara” do grupo).  nesta residência teve início exatamente assim: a equipe pela bela iniciativa, pelo trabalho de
estarmos atentos a estas dinâmicas e sempre O convite para participar do projeto improvisamos livremente até Rafael encontrar produção e organização; imagino o quão ricas
que possível buscarmos um equilíbrio nas par- “Territórios de Invenção” numa residência em um ostinato que achamos interessante para devem ter sido as experiências das outras resi-
ticipações, dosando o espaço de fala de cada Varginha em colaboração com o meu grande começar; em cima dele fui criando melodias dências, cada uma com uma proposta dife-
um, instigando o envolvimento e manifestação amigo e parceiro de longa data Rafael Martini até chegarmos num resultado que agradasse rente, em lugares diferentes (fiquei com muita
de todos os participantes. Cada proposição é foi uma grande alegria. Teríamos a oportuni- a ambos como um primeiro trecho. Daí segui- vontade de estar em todas elas!). Aplaudo muito
avaliada em conjunto e as que parecem mais dade de desenvolver ainda mais nossa parceria mos com pequenas variações, que foram nos a ideia, agradeço o convite e desejo vida longa
interessantes ao grupo (ou a nós, mediadores, musical, com algumas horas dedicadas a com- levando a novos caminhos, até percebermos ao projeto!
de acordo com a situação) são experimentadas por juntos e a ensaiar, e o desafio de organizar um fechamento de ciclo e darmos a composi- A composição que surgiu nesse grupo foi
e reavaliadas até chegarmos num resultado que e orientar uma prática de composição coletiva ção por finalizada. No dia seguinte aprimora- bem diferente de todas as outras experiências
tenha uma espécie de consenso, mas que sem- dentro de um  conservatório, contando com mos as ideias e trabalhamos no trecho final, que tive antes, tanto por ter dividido o trabalho
pre pode ser modificado, por todo o tempo dis- a presença de alunos e professores, em um que tem uma variação rítmica que nos exigiu com Rafael Martini quanto pelas características
ponível de trabalho.  grande  grupo. Decidimos dedicar a primeira um tempinho de ensaio. A partitura da música do próprio grupo. Um trecho inteiro foi feito
O resultado final não é o mais importante, e semana ao trabalho em dupla e a alguns encon- em questão encontra-se anexada nas próximas sobre uma frase que o Léo, bandolinista, trouxe
não é necessário que se chegue a uma compo- tros abertos para tratar de temas musicais espe- páginas, com a melodia sem transposição para já pronta de casa e que todo o grupo gostou e
sição que todos considerem “bonita” ou bem cíficos, com conversas sobre arranjo, ritmo, que possa ser tocada por qualquer instrumento. acolheu, o que foi também algo novo e interes-
resolvida, ainda mais quando o tempo de traba- harmonia. Também compartilhamos com o O conservatório nos pareceu genial, enorme, sante. Em um momento alguém sugeriu adicio-
lho é limitado. O que está em foco é a vivência grupo o que tínhamos produzido em dupla, vivo. Cheio de salas, tem muitos alunos, aulas nar uma letra a uma parte criada pelo coro, e a
do processo de composição, e como este pode mostrando o processo, as primeiras ideias e seu e ensaios acontecendo o dia todo, todos os Andréa acabou achando uma frase do Manoel
ser trazido para o dia a dia de cada músico, ao desenvolvimento. Foi nossa primeira experiên- dias. É raro vermos uma instituição pública de de Barros que encaixou bem, em todos os senti-
mesmo tempo em que diferentes pontos sobre cia de composição presencial em dupla, e fluiu ensino musical deste porte, ficamos surpresos dos: “Tudo o que não invento é falso”.
o fazer musical de cada um e do grupo são abor- mais facilmente do que esperávamos, o que nos e impressionados. O fato de termos na oficina
dados e trabalhados. deixou muito felizes. tanto professores quanto alunos do conserva-
As primeiras oficinas que ministrei que O ponto de partida para uma composição tório, misturados às pessoas que não tinham
envolviam processos de criação coletiva foram pode surgir de várias maneiras (por exemplo, a ligação prévia com aquela instituição, foi uma
em parceria com o guitarrista, compositor e sugestão de alguém, um acorde ou um trecho experiência muito rica e interessante. Bonito pgs. 40-42
professor Bernardo Ramos, que compartilhou melódico). Mas tem uma prática interessante ver a troca generosa entre todos, a paciência, a Partitura de “Territórios de Invenção I”
comigo anos de experiência da “composição de para deixar a criação surgir em grupo, e para alegria de estarem fazendo música juntos, com- Joana Queiroz e Rafael Martini
corpo presente” de Itiberê Zwarg, método que ele já irmos sentindo a sonoridade que a presente partilhando, criando.

38 39
2
Territórios de Invenção I 16

Varginha-MG Joana Queiroz / Rafael Martini


31 jul/2018
q=125
5
q = 120

5
q = 120

4
5
4 20

24

Abm7 Gm7(9)

28

Abm7(9) Dbsus G/D¨

12 30

40 41
3 3
32
Todo músico
é uma nanorquestrA
Algumas reflexões sobre a ideia de
agrofloresta aplicada na cultura

35
Makely Ka

Sou cantor e compositor e tenho trabalhado muito em comunidades rurais no inte-


rior do país, próximo de pequenos agricultores, muitos deles também músicos ou brin-
cantes, como gostam de dizer. A partir desse convívio comecei a estabelecer algumas
relações entre as atividades de músico independente e de agricultores que trabalham
de forma sustentável. Na imersão que realizei por ocasião da Residência Artística em
38
Araçuaí, quando participei também do III Encontro de Flautas do Jequitinhonha em
Santo Antônio do Fanado,1 povoado de Capelinha, observei empiricamente algumas
das minhas hipóteses e levantei outras questões que passo a discorrer.
A partir desta experiência, pretendo neste texto fazer alguns apontamentos sobre
relações possíveis entre cultura e agricultura.
A ideia de sistemas agroflorestais como forma de recuperação de terras degrada-
das conciliando o manejo florestal com a produção de alimentos me parece muito
sugestiva em vários sentidos. Os sistemas agroflorestais são uma opção à agricul-
41 tura convencional, à monocultura, ao modelo adotado pelo agronegócio baseado na
exploração do solo com uma única cultura até a exaustão, na ocupação de grandes
extensões de terra, na utilização de quantidades cada vez maiores de defensivos agrí-
colas cada vez mais potentes e agressivos.
Sistemas que utilizam a floresta para cultivar alimentos não são necessaria-
mente uma novidade, diversas etnias indígenas em diferentes regiões do planeta
utilizavam técnicas semelhantes desde tempos imemoriais. O que está aconte-
cendo hoje é a sistematização dessas técnicas e a difusão do conceito entre peque-
nos e médios agricultores.
44

1  A imersão “Paisagens Sonoras em Trânsito”, realizada em parceria com a cantora e pesqui-


sadora Letícia Bertelli, fez parte do projeto “Territórios de Invenção - Residências Musicais”
da Fundação de Educação Artística, uma ação do Programa Música Minas. O Encontro de
Flautas é um encontro anual idealizado pelo músico, pesquisador e produtor cultural Daniel
Magalhães, que fomenta junto das comunidades as bandas de taquara, grupos centenários
do Vale do Jequitinhonha.

43
complexo. O sistema florestal se retroalimenta regido pelas leis da biologia. 
Em primeiro lugar é preciso dizer que qualquer sistema baseado em monocultura A diversidade de espécies é fundamental não somente para proteger um bioma,
necessita de agrotóxicos. Sem diversidade de espécies a lavoura fica vulnerável ao mas também para equilibrá-lo. Hoje há estudos sobre a teia de relações entre raízes
ataque de pragas e doenças. Quanto maior a biodiversidade de um ambiente, maior e fungos, criando uma rede de comunicação subterrânea, com troca de informações
a sua capacidade de responder às mais diversas ameaças. importantes entre diferentes plantas e também entre espécies distintas que ocupam
Na indústria da música, a monocultura, representada pela superexposição de um uma mesma área. 
determinado estilo, segmento ou artista é sustentada pelo pagamento ilegal de publi- Na cultura a diversidade e a relação entre as diferentes manifestações são funda-
cidade. Essa espécie de propina é um procedimento antigo na indústria fonográfica. mentais para manter o ambiente vivo e criativo. A música brasileira é resultado da
Houve transformações no decorrer das décadas, mas permanece essencialmente como biodiversidade e das trocas culturais intensas nos últimos três séculos. 
uma prática corrupta que consiste no pagamento em troca de espaço publicitário, com- Todo artista brasileiro absorve essas influências de forma mais ou menos incons-
pra de exposição. Para manter um estilo, um ritmo ou um mesmo perfil de música ciente, incorporando esse imenso repertório cultural no seu processo criativo de
tocando nas rádios com alta repetição, a indústria invariavelmente paga o que ficou diversas maneiras. Essa profusão de sons soa internamente em cada músico que foi
conhecido como jabá. É uma forma de garantir o retorno do investimento feito no pro- exposto a essas referências, como plantas que processam a luz do sol. 
duto. Desta forma não seria despropositado dizer que o agrotóxico da música é o jabá. Isso significa que cada músico traz dentro de si uma orquestra ancestral de sons e
Um dos princípios básicos do sistema agroflorestal2 é a estratificação do espaço sentidos que se manifestam no seu processo de criação, na sua performance, na sua
da floresta. Se pensarmos num corte longitudinal, poderemos visualizar as diversas música. Todo músico é uma nanorquestra3 seja tocando, cantando, compondo. A
camadas ou extratos que formam o corpo vegetal da floresta. Desde o solo – inclu- ideia de nanorquestra encerra uma diversidade de sentidos e possibilidades e vamos
sive abaixo dele – até a copa da árvore mais alta, todos os espaços são ocupados de abordar algumas delas a seguir. 
forma sistemática. Há raízes e gramíneas de extrato baixo, que vivem ao rés-do-chão; A floresta se desenvolve de acordo com leis da biodinâmica que determinam seus
os arbustos que ocupam o extrato médio; as árvores de porte alto, que abrem suas ciclos a partir da decomposição da matéria e da transformação da luz pelo processo
copas e formam o dossel, e ainda aquelas emergentes, que furam a copa das grandes da fotossíntese. 
árvores e despontam sozinhas no alto das florestas tropicais. A orquestra toca sob o jugo das leis da acústica a partir da composição dos sons
Outro princípio fundamental é a sucessão dos ciclos. Cada planta tem um ciclo que se sucedem no tempo sob a regência de um maestro. Uma nanorquestra atua
de vida determinado na ocupação do seu extrato espacial. As gramíneas, hortaliças e dentro de um recorte específico, um segmento, conciliando a diversidade de referên-
tubérculos são os primeiros a despontar nas clareiras recém-abertas. De crescimento cias, de meios disponíveis para seu desenvolvimento, buscando as interações possí-
rápido, florescem entre seis meses e um ano, quando são encobertos pelos arbus- veis no ambiente à sua volta, de forma orgânica e sistemática. Um desdobramento
tos de extrato médio, que fazem sombra e encerram o ciclo das pioneiras. Aqueles do conceito de nanorquestra é o desenvolvimento de carreiras orgânicas, cada uma
são ultrapassados, após os primeiros anos, pelas árvores de grande porte, de cres- no seu tempo, sem pressa, sem aditivos químicos, do tamanho necessário à sua
cimento mais lento, que vão ocupar o extrato alto da floresta. Esse processo pode sustentabilidade. 
levar várias décadas. Enquanto isso as emergentes, como jequitibás, embaúbas, cas- Alguns pequenos produtores rurais, que trabalham com orgânicos em sistemas
tanheiras, furam o dossel das folhas altas e despontam soberanas no cume. Por fim de agroflorestas, costumam dizer que não querem ampliar o negócio. Isso não sig-
uma grande árvore tomba, encerrando seu ciclo para dar lugar a uma clareira e reini- nifica falta de ambição. É difícil entender esse conceito de “suficiente” na lógica
ciar novamente todo o ciclo da vida florestal.  de uma economia de mercado. Mas chegar à conclusão de que atingiu o tamanho
É como uma orquestra, onde os sons se sucedem no tempo e cada instrumento suficiente é ter consciência de que aquele é o tamanho em que você consegue gerir
ocupa um espaço específico no espectro sonoro. Os conjuntos de instrumentos for- seu negócio com autonomia, sem comprometer seu trabalho e sua própria vida. É
mam naipes, com seus diferentes timbres e cores, que por sua vez formam a massa aquilo que você dá conta de fazer sem perder o controle, sem precisar se industria-
sonora regida pelo maestro na execução de uma composição. Essa massa sonora lizar, sem produzir em série num modelo fordista. Nesse sentido é uma produção
da orquestra pode ser comparada à biomassa da floresta, que se decompõe e forma
o húmus para alimentar as plantas, os fungos e toda a vida de um ecossistema

2  Quem tiver interesse em conhecer mais sobre agrofloresta e sintropia, indico os trabalhos 3  O conceito de nanorquestra está em processo de elaboração, é aberto a colaborações e
de Ernest Götsch e de Ana Maria Primavesi.  sugestões.

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contra-industrial.4 Uma nanorquestra é, portanto, uma unidade contra-industrial Outro ponto que pode ser observado é que quanto maior a diversidade cultural de
de produção cultural orgânica.  uma região maior a preservação do bioma. O êxodo rural está diretamente relacio-
A unidade nanorquestra segue ainda o princípio dos pequenos palcos.5 De acordo nado aos processos de monocultivo extensivo e isso implica a redução e muitas vezes
com esse princípio, é preferível por exemplo tocar num mesmo período determi- a extinção das manifestações da cultura popular. Por outro lado, a cultura é também
nado 50 vezes para 500 pessoas do que tocar uma vez para 25 mil espectadores. Ao uma espécie de amálgama que fortalece os laços da comunidade e possibilita mais
final do ciclo o artista que optou por atuar como uma nanorquestra vai atingir os 25 organização para enfrentar ameaças e dificuldades.
mil espectadores, mas essa opção pelo escalonamento possibilita um controle maior Por fim é importante dizer que a recuperação de solos degradados é um processo
da carreira, contato direto com o público, um ciclo longo de atividades e a perspec- lento e trabalhoso. Quando é realizado em conjunto, num mutirão, fica mais fácil e
tiva de sustentabilidade.  prazeroso. Se houver política pública, então as agroflorestas e as nanorquestras se
O que garante o alimento na mesa dos brasileiros são os pequenos e médios agri- desenvolvem que é uma beleza. Mãos na terra e pés pro ar! 
cultores, já que os grandes produtores rurais não plantam alimentos, plantam com-
modities. Soja e milho são matéria-prima para produção de ração, exportadas ao
menor preço de custo possível, como o minério. 
São os pequenos e médios espetáculos que sustentam o ecossistema cultural do
país. Essas nanorquestras espalhadas por todos os cantos, desde casas de espetácu-
los, passando por teatros, salas de aula, até chegar às ruas, calçadas e praças de todas
as cidades do país. 
Os grandes shows em geral são ações de marketing ostensivo, não criam um
ambiente sustentável e têm uma parcela grande de responsabilidade pela desertifi-
cação do solo cultural. A degradação dos ambientes culturais está relacionada, por-
tanto, à perda de diversidade, minimizando as possibilidades de troca e reduzindo
as chances de reação diante de ameaças externas como crises e recessões. Num
ambiente cultural saudável há biodiversidade e interrelação entre diferentes espé-
cies, fortalecendo toda a cadeia e criando um ambiente com maior imunidade. 
Em alguns sistemas agroflorestais foi identificado o surgimento de microclimas.
O artista que atua como uma nanorquestra busca o estabelecimento de redes de rela-
cionamento com os seus pares e com o seu público, criando um habitat próprio, de
acordo com suas habilidades, diversificando e alternando suas atividades. Assim, ele
faz música, mas pode atuar também no campo audiovisual, na literatura, na moda,
criando produtos com sua marca, na educação, ministrando oficinas, fazendo pales-
tras. Para atuar como nanorquestra o artista precisa se desdobrar em multifunções
sem perder o foco. Na verdade a diversificação retroalimenta o sistema, cada ativi-
dade funciona como gatilho para a seguinte, uma surge e se completa na outra.

4  O conceito de contra-indústria foi criado durante as Câmaras Setoriais da Música, nas


gestões de Gilberto Gil e Juca Ferreira à frente do MinC. Falo mais do tema no artigo para o
caderno Pensar Brasil do jornal Estado de Minas, publicado em 8 de janeiro de 2011 (http://
makelyka.com.br/textos/Artigos2.pdf).
5  Discorro mais detalhadamente sobre o princípio dos pequenos palcos em artigo para
a revista Vermelho, edição de junho de 2013 (https://issuu.com/revistavermelho/docs/
vermelho/50).

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Os Vales de Dele partiam questões, imagens, desejos, enfim, meio e fim determinados, uma lógica fechada

Frei Chico,
qualquer reflexão sobre si mesmo que, reunidas de apresentação. Pois os sub-temas gerados a
em torno dele, contribuíam para que as ideias, partir do tema central podem ser comentados

do imaginário
antes confusas, se tornassem mais claras. Pois sem ordem fixa, associando-se uns aos outros
além de convergirem em um ponto central (a da forma que lhe convém no momento.

e da invenção
pessoa), estas ideias encontram ainda outras,
que gravitam em torno deste ponto. Segundo Quando faço palestras, coloco o assunto no
ele, o “pensamento redondo”, como cunhou o meio e começo a associar sem censura. Isso é
Letícia Bertelli termo, foi a solução encontrada “para entender essencial, sem censura! Pois você pode pensar
uma cultura que não é minha e um povo que não assim: – Não vou escrever isso, não! Ah, vai ver
vive os mesmos problemas que o meu”. que não combina com alguma teoria na minha
A verdade não começa com uma bela teoria. Neste momento, ele abriu uma pasta com cabeça que não lembro agora, mas que está me
Frei Chico muitos papéis assim, usados durante seu pro- censurando.1
cesso de organização mental para a constru-
ção de textos, palestras ou verbetes, como no Este tipo de articulação dos assuntos foi
exemplo abaixo, cujo tema central era o corpo a resposta encontrada por ele para que o pro-
humano na cultura popular. jeto de um manual de religiosidade popular
Um homem com um passarinho no ombro final do ano seguinte à sua chegada, foi viver no Figuras saltavam de dentro de pastas, gave- se tornasse um dicionário. Explico: no início,
abriu-me a porta de seu pequeno quarto. Vale do Jequitinhonha, assumindo a Paróquia tas e cadernos, com assuntos das mais variadas Frei Chico não pretendia a realização de um
Aguardava-me com uma considerável pilha de Santo Antônio, em Araçuaí, onde residiu por áreas de conhecimento. Ele comentou como
de livros e discos, pequenas lembranças a ele dez anos. elas podem ilustrar a forma com que determi- 1  Todas as citações de Frei Chico que estão neste
presenteadas, dois ou três baús de papéis, a Eu o acompanhava há alguns anos, mas nado tema pode ser abordado, sem se preocu- texto foram retiradas de entrevista concedida à
pequena cama e uma escrivaninha de trabalho. nosso encontro só se deu em meados de 2016, par com uma estrutura rígida, com um começo, autora em 20 de maio de 2016.
Chama atenção a roupa pendurada atrás da quando tivemos a oportunidade de cantar jun-
porta: o rio São Francisco sobre o marrom do tos em um concerto de música medieval ibérica
hábito, bordado pelas bordadeiras de Pirapora. e tradição oral. Também foi nesta oportunidade
A casa da sede da Província de Santa Cruz aco- que registrei algumas de nossas conversas, ins-
lhe membros da Ordem dos Frades Menores, pirada no conteúdo da disciplina A Memória
no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte. Ali das Testemunhas, que tive a oportunidade
mora Frei Chico, como carinhosamente é cha- de ter com a professora Ecléa Bosi, na USP,
mado o Frei Francisco van der Poel, que nasceu durante o mestrado.
no dia 3 de agosto de 1940, em Zoeterwoude,
Holanda. Sua formação religiosa começou em O pensamento redondo
1955 com o ingresso no seminário diocesano
da cidade de Heemstede e depois no Noviciado Frei Chico gosta de alinhavar o discurso sem se
dos Franciscanos (Ordem dos Frades Menores) importar muito com perguntas. Ele tinha muito
em Wijchen. Graduou-se ainda em filosofia e o que dizer e já no início da conversa descreveu
teologia e completou seus estudos de violão no uma espécie de método: o pensamento redondo,
Conservatório Regional de Música de Wijchen. que desenvolveu a partir das experiências nas
Em 14 de julho de 1967 ordenou-se sacerdote aulas de psicologia ainda no noviciado. Ali, o
e em novembro do mesmo ano, junto a outros método consistia em organizar as ideias da pes-
jovens franciscanos, emigrou para o Brasil. No soa utilizando um desenho de um “bonequinho”.

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dicionário. Ele acabara de escrever Abra a Porta apenas as do catolicismo. Também desejava um senso religioso comum e, mesmo com suas Para um religioso, o encontro com a cultura
– Cartilha para o povo de Deus,2 em cujo conte- mais liberdade para os temas e abordagens, já escolhas pessoais, compreende ser o sacerdó- popular foi também o encontro com a religiosi-
údo estavam que Abra a Porta é uma espécie de cartilha dedi- cio uma condição intrínseca a um povo que crê. dade popular. Intrínsecas às tradições estavam
cada à prática cristã. Assim ele narra: a fé, o trabalho com seus cantos e tecnologias
300 cantos, uma série de orações, formulários, Não virei mais sacerdote do que minha mãe que autóctones, a relação com a natureza, sua espi-
folias de reis... e coisa que nenhum outro livro Eu queria fazer o manual, mas depois que ele benzia a nossa casa dos relâmpagos, que benzia ritualidade, sua lógica social.
tem. Tem aqui 80 reuniões para o povo se reunir ficou pronto, coloquei aulas, artigos que publi- o pão, que nos benzia. [...] Quando o papa pediu Sua relação com a cultura popular não se
nas comunidades de base com pergunta, leitura quei, prefácio e as conclusões. Pensei: – Não tem ao povo para benzê-lo, naquela primeira vez que limita tampouco à de um observador ou pes-
e cântico. Tem aqui como fundar um sindicato, conclusões, não tem síntese, não vou escrever apareceu, ele deu uma lição muito boa, ou seja, quisador distante. Ao contrário, ele assume seu
sobre plantas medicinais, os nomes dos santos manual coisa nenhuma, vou fazer um dicionário! que a benção do papa e a benção da minha mãe papel de líder religioso de uma maneira hori-
para dar nome ao filho. Aqui fala das plantas Colocam-se todos os assuntos em ordem alfabé- são do mesmo tamanho. zontal, orientando e dirigindo os rituais cató-
medicinais, para que servem: oxiúros... alho... tica e mantém o pensamento redondo. Faço as licos que lhe caibam e se nutrindo da sabedo-
como colher, como tomar e guardar. Fala sobre os ligações. É igual a um organismo: é coerente, Um Deus plural, vivo nas múltiplas formas ria popular com que toma contato. Para ele, a
direitos de propriedade e dos proprietários. Como mas não é doutrinal. Não é só racional. Há muita da fé: este foi o aprendizado que teve com o verdade é vivida, compartida e concreta e não
fundar uma associação trabalhista rural. Estatuto intuição. povo do Vale: começa com teorias prontas.
da terra. Dez mandamentos. Uma boa reunião. Entre as inúmeras falas que me atraíram
Dez compromissos dos bispos. Reforma agrária. O encontro com as tradições populares Pluralidade é riqueza/sincretismo, indica provi- sobre a publicação do Dicionário, duas pare-
Os documentos que o cidadão tem que ter e guar- deu a Frei Chico um novo lugar de reconheci- soriedade ou falta de síntese que são realidades. cem me apontar seu inevitável resultado: a pri-
dar. Aqui os Direitos humanos. Contextos bíblicos. mento da fé. Para ele, é evidente a existência Sincretismo é provisoriedade, não é erro não. É meira, um processo de criar verbetes utilizando
Coisas práticas para o cristão. Aqui, incelença3 de de um Deus que se manifesta independente uma fase da busca, né? Diversidade e ética na o método do pensamento redondo. Com isso,
defunto. O Hino Nacional Brasileiro. das religiões. Um Deus de muitos nomes e pesquisa em ciências humanas; integração ou os verbetes são interligados e promovem uma
para o qual foram criados distintos cultos. “O concessão? A diversidade e a pluralidade entram verdadeira peregrinação pelo livro, onde um
Espelhado neste livro, ele então projetou a culto, a explicação e a instituição são obras na mesma. Deus vivo. Povos sem síntese, plural, tema sempre levará a outro. A outra, cito com
edição de um segundo, mais completo e que aco- humanas” , disse. comunidade, cultura, buscar a verdade. Aqui é as palavras do próprio Frei Chico: “A primeira
lhesse outras práticas religiosas que não fossem Foi o povo do Jequitinhonha que o deu essa uma meia palestra. Pluralidade/liberdade, uma coisa que você aprende é ficar satisfeito com os
perspectiva e o fez mergulhar para dentro das relação estreita, elaborar o medo de pensar livre caquinhos que você descobre e não com uma
2  No site de vendas da editora Paulus, o livro tem casas, igrejas e terreiros em busca das múlti- e aberto. Na cultura e na religião, pluralidade é nova teoria completa e pronta para te dar segu-
a seguinte resenha: “Manual para as comunidades plas formas de diálogo com um “Deus vivo”: riqueza. Pluralidade de comportamentos de cul- rança. A busca é contínua.”
de base e para o povo simples, preparado pelas equi- “Se não tiver um Deus vivo agora, não faz sen- tos em formas culturais, nasce a arte sacra de
pes de pastoral das dioceses mineiras de Araçuaí, tido falar de religião. Uma liturgia que não povos e comunidades. Pluralismo em todo lugar. “Morei no assunto”
Divinópolis e Teófilo Otoni. A primeira parte dá uma leva em conta o Deus vivo, que o povo conhece Você vê que é bem criativo, né? Nossas diferen-
visão da natureza, da vida e da história, em capítulos em sua vida.” ças rural/urbano, pobre/rico, negro/branco/ O encontro com Frei Chico não apenas apon-
breves, que terminam sempre com perguntas, um Em sua trajetória, sempre foi presença mar- índio, homem/mulher, letrado/analfabeto, tava a Araçuaí que imaginava, com o som dos
texto bíblico e um canto. A segunda parte apresenta cante nas festas de congado, pois é um dos empregador/empregado. Pluralismo, não exige Trovadores do Vale, as cores do barro das cerâmi-
orações e cânticos. A terceira parte oferece normas sacerdotes mais requisitados para celebrar a síntese! Santo Daime, o catolicismo, o budismo... cas e pinturas da família Marques e o colorido da
para vivenciar a fé, na esperança que leva a construir missa conga. O hábito franciscano, seu violão tudo tem valor. Não apela para a ignorância. feira, uma das maiores da região. Apontava tam-
o Reino em comunidade. Um livro nascido do povo, com a palavra PAZ grafada no tampo em diver- Uma coisa é certa – Deus se revela! Pluralismo é bém a forma com que desejei viver a experiên-
na linguagem do povo, voltado para o povo.” Achei sas línguas, sua imagem e seu jeito peculiares, riqueza, sem síntese, é beleza! É ficar satisfeito cia de residência em Araçuaí, dentro do projeto
interessante compartilhar a resenha para que o lei- a atenção e simpatia no contato humano, tudo com os caquinhos. E como lidar com a plurali- Territórios de Invenção. Frei Chico conta que “O
tor possa, assim como eu o fiz, comparar com a des- isso lhe confere um lugar especial no seio da dade enquanto não existe síntese? Por falar em povo do Jequitinhonha, querendo entender a
crição do próprio Frei Chico sobre o livro. comunidade em que escolheu viver. Tudo lhe religião, Deus nunca acabará em nossas teorias. vida ou resolver algum problema urgente, diz: –
3  Cantos de tradição oral de velar os mortos. interessa. Em todas as tradições ele reconhece Pluralismo radical, tolerância não basta. Morei no assunto! Ou: – Pus aquilo no sentido.”

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Em setembro de 2018, Makely Ka e eu fomos propostos por Makely, aportei na cidade para benzimento. Tudo se transformou no silêncio rítmicos, melódicos e textuais. O “juntar” con-
“morar no assunto”. A ideia da residência artís- um segundo passo, que consistia em um pas- que só era interrompido pela voz calma e doce sistiu em musicar trovas escritas coletivamente
tica era que nossas experiências pudessem seio até o Quilombo do Arraial, passando antes de suas orações e o faiscar da vela que chorava e colocar letras em estruturas musicais trazidas
encontrar as dos demais e que juntos pudés- pela feira da cidade. Ouvidos e olhares atentos, na prateleira. Agradecemos e seguimos de volta da escuta pelo caminho. Por fim, em canções
semos viver um processo criativo. Um territó- foi deste tour que reunimos sons, imagens e para a cidade. Até a segunda-feira talvez nossos que soavam como síntese de boa parte da expe-
rio de invenções coletivas, mas coordenadas a temas. Todos agora vislumbravam caquinhos amigos fossem para a micareta ou passassem o riência destes dias.
partir de nossas práticas cotidianas de trabalho. nunca antes percebidos e estávamos numa domingo ressoando a experiência. Reunimos todos a cantar e tocar (incluindo
Um certo desafio, levando em conta que tam- mesma experiência repleta de novidades e Makely e eu partimos para o III Encontro quatro flautas), construindo arranjos em duas
bém meu colega e eu não tínhamos o costume imaginações. de Flautas do Jequitinhonha, que acontecia ou três vozes – afinal, a maior parte dos inte-
de trabalhar juntos musicalmente e viemos de em Santo Antônio do Fanado, área rural de grantes são membros dos coros da cidade – e
experiências muito distintas de aprendizado e Cada pequeno evento gravitava agora ao Capelinha. O som das flautas seguiu conosco de agora com o trabalho de preparação corporal
práticas artísticas. Algo em comum nos apro- redor dessa caminhada... volta para Araçuaí, com a presença do músico da bailarina e coreógrafa Rosa Antuña, que se
ximava: o encantamento pelo Vale e o desejo Daniel Magalhães, que ensinou alguns residen- juntou a nós nos últimos dias para nos lembrar
de “morar” ali ao menos por aqueles quinze Era sábado pela manhã e a cidade estava ainda tes a construir a gaita (como também é chamada que todo o corpo canta.
dias. Assim, foi olhando ao redor, encontrando mais cheia com a micareta agendada para aquele a flauta na região) e tirar os primeiros sons. Minha experiência em Araçuaí nasce no
pessoas, narrativas, sons e paisagens que reuni- final de semana. O público jovem que acompa- Como o pensamento redondo (e “sem cen- encontro com Frei Chico e Lira Marques, que
mos os “caquinhos” compartilhados de nossa nhara o carro de som na noite anterior ainda dor- sura!”), nossos caquinhos de inspiração foram fundaram em 1970 o coral Trovadores do Vale,
experiência. mia, mas a feira, nosso ponto de partida, estava dispostos para, com alguns ajustes e méto- cuja proposta artística consistia em cantar o
A diversidade se apresentou como a maior lotada. Com celulares para gravar ou fotografar dos simples, se transformarem em motivos cancioneiro tradicional local: beira-mar de
potência do trabalho. Nos cabia acolher o grupo e alguns bloquinhos de papel, todos caminha-
como uma rara e feliz oportunidade. Diversas ram entre as barracas, atentos aos sons, pregões,
eram também suas expectativas, entre as quais conversas, entonações, objetos. Confesso, usei
estavam: aprender conceitos e técnicas de dis- boa parte do meu tempo em bom diálogo sobre
ciplinas da música formal, encontrar meios política com dois feirantes opositores.
de expressão de suas próprias musicalidades, Ainda sem avaliar os resultados de nossa
experimentar a prática de compor, cantar e “caça” aos sons, seguimos a pé até alcançar a
tocar e compartilhar conosco e com o grupo entrada do Arraial dos Crioulos. O ruído branco
conteúdos pessoais, humanos e artísticos. da cidade deu lugar à água que corria no leito
Eram muitas as possibilidades de propor do Calhauzinho, às conversas de pássaros, ao
processos criativos que pudessem ser experi- pisar nas folhas secas. Sob a sombra de uma
mentados. Era preciso identificar que ferra- mangueira, tirei da bolsa uma dezena de kalim-
mentas o grupo possuía (ao menos as visíveis), bas sugerindo que observassem como os sons
traçar um roteiro permeável e partir de algum se organizam no instrumento, a sequência das
ponto. Meu colega tinha alguns conteúdos em escalas, os instrumentos que tinham a mesma
mente e deu início aos trabalhos. Percebi que afinação... e um improviso nasceu ali, da brin-
minha atuação seria dar retaguarda, comple- cadeira e das descobertas. Contracantos, osti-
mentando o processo a partir da minha obser- natos, um rabisco de letra.
vação e de minha própria caixa de ferramentas. Para nossa alegria, Dona Helena, residente
Estava atenta aos caquinhos e neles buscava conosco na empreitada, mora no quilombo e
chances de oferecer algo. já tinha se preparado para nos receber com um
Depois de alguns encontros mais exposi- delicioso lanche. Mas ainda estaria por vir a sur-
tivos e ensaios sobre repertórios existentes presa ainda mais especial. Ela nos ofereceu um

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canoeiros, contradanças, batuques, cantos de O projeto
Territórios de Invenção
roda, benditos e outros. O Trovadores come-
morou 48 anos de atividade em 2018 e, entre

e o conceito
suas contribuições, deu origem a um grande
movimento coral na cidade. Hoje, território da

de residência musical1
cultura popular e práticas sociais urbanas já
“globalizadas” se misturam mais, mas quando
chegamos para a empreitada, a maior parte dos
residentes integrava dois destes coros: Araras
Grandes e Ícaros do Vale. A pluralidade de nos- Lúcia Campos e Patrícia Bizzotto 2
sos companheiros de residência, sua capaci-
dade criativa e a resistência dos muitos fazedo-
res de cultura que ali vivem4 aliviam o receio de
que a riqueza cultural da cidade se enfraqueça
com o avanço de uma mídia pasteurizante. Uma ideia, muitas vozes, muitas escutas, muitas mãos, uma ação, um projeto,
Frei Chico diz que “quando acaba a comu- um caminho, uma continuidade. Um território que sofreu recentemente um crime
nidade nenhuma cultura sobrevive”. Em con- ambiental de enormes proporções, um país em ano de eleições, de copa do mundo, de
sonância, Ecléa Bosi afirma: quando a cultura ânimos exaltados, de polarizações políticas. Inventar um projeto que instigue à criação
popular entra em crise, se empobrece e desa- artística coletiva e colaborativa em um momento em que é preciso inventar saídas para
grega, os “prejuízos que daí advêm afetam a se imaginar o Brasil ou, ao menos, para se imaginar Minas Gerais, é um desafio, mas
segurança subjetiva do homem que a reduz de também uma responsabilidade e, sobretudo, uma necessidade urgente de praticar a
seu papel de criador e renovador da cultura para escuta, o diálogo, a democracia no cotidiano, de inventar e reinventar territórios pos-
o de consumidor”.5 Quando projetos como o síveis: o que é também uma das potências do trabalho artístico e criativo.
Territórios de Invenção atuam a partir da riqueza Territórios de Invenção – Residências Musicais nasceu no final de 2015, quando
que é o encontro com o diverso e o plural, a res- tivemos notícias de um edital inovador do programa Música Minas, que iria selecio-
posta está no reconhecimento da potencialidade nar uma entidade mineira para realizar, em convênio com a Secretaria de Cultura,
de cada indivíduo, incluindo o artista residente. seis residências musicais em seis cidades mineiras distintas. O edital nos pareceu
estar em total sintonia com o espírito da Fundação de Educação Artística – FEA. Além
Referências de ser uma escola de música onde muitos musicistas estudaram e fizeram parte de
suas formações, entre eles jovens em situação de vulnerabilidade social que pude-
Ecléa Bosi. Cultura de massa e cultura popular. ram ter acesso ao ensino de música consistente e descobrir ali suas vocações, este
13a edição. Rio de janeiro, Ed. Vozes, 2009. espaço-entidade carrega também décadas de uma história notável e influente nisso
que hoje chamamos de “residências musicais”.
Francisco van der Poel (Frei Chico). Belo
Horizonte/MG. 20/05/2016. 120 min. 1  Versão revista da apresentação da segunda edição do projeto Territórios de Invenção –
Entrevista concedida à autora. Residências Musicais – Paisagem Sonora Agora (2018), realizada no dia 5 de junho de 2018,
na Fundação de Educação Artística. Inserimos este texto aqui porque ele é um testemunho
dos desejos e ideias que perpassam a realização do projeto e que também fazem parte da
4  Recomendo também uma visita ao Museu de memória recente que trazemos à tona com essa publicação.
Araçuaí - Um Presente de Frei Xico e Lira Marques, e 2  Lúcia Campos e Patrícia Bizzotto foram coordenadoras artísticas e pedagógicas do pro-
ao Centro Cultural Luz da Lua. jeto Territórios de Invenção, edição 2018, realizado pela Fundação de Educação Artística em
5  BOSI, E., 2009. convênio com a Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais.

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Em 2016, quando idealizamos o projeto Territórios de Invenção, pensamos território. O “contemporâneo” na música aparece aqui mais como uma provocação,
antes de tudo em reconhecer e celebrar a trajetória da FEA em seus mais de cin- um estímulo à criação, do que como uma categoria musical. Assim como há várias
quenta anos de dedicação à criação e à formação musical em Minas, com pro- maneiras de se pensar o contemporâneo, há várias formas de se pensar o território:
funda admiração pela sua fundadora, Berenice Menegale, que sempre esteve à a partir das especificidades de cada local, dos seus habitantes (humanos e não-hu-
frente de tantas iniciativas pioneiras cujo lastro precisa ser reconhecido e tam- manos), de seus patrimônios naturais, suas paisagens, seus patrimônios culturais
bém continuado. Foi muito importante nos conectarmos com a memória dessa (materiais e imateriais), suas cenas musicais; suas instituições artísticas, conserva-
instituição e também com suas ações no presente. tórios, universidades; e também a partir da necessidade de criar redes, estabelecer
Podemos dizer que este projeto, que propusemos com a FEA, e que hoje está em contatos, de expandir as fronteiras, o imaginário, a circulação de ideias, de ampliar
sua segunda edição, começou na urgência deste encontro entre os espaços da educa- os espaços de formação e de interação.
ção e da arte, mais precisamente da música. As artistas e os artistas convidados para, Reconhecemos que ainda há muitas fronteiras a serem mobilizadas; que este
junto ao projeto, lançarem as propostas de residência são em sua maioria frequen- grande território em trânsito, Territórios de Invenção, pode e deve ser ainda mais
tadores do território FEA, isto é, ex-alunos, professores, artistas residentes, colabora- amplo, sempre, e que na difícil tarefa de se definir o que é música, o que é contem-
dores, concertistas, ouvintes, proponentes de ideias. Enfim, inventores. Cada uma e porâneo, a escuta, e o que são os espaços, torna-se evidente uma outra urgência:
cada um desses músicos-inventores possuem experiência considerável em residên- a urgência dos corpos, isto é, do corpo que ocupa, que expressa, que grita, que se
cias artísticas, em trabalhos de formação e criação musicais. Cada uma e cada um esconde, que canta, que performa, que é golpeado, que resiste, que cura e que cria
deles com trajetórias, pesquisas e inquietações artísticas singulares e notavelmente novas temporalidades para permanecer ocupando e vivo, em vibração.
distintas entre si, o que confere às propostas de residências, dentro do conjunto do Como já dito desde o começo, entendemos – nós, equipe e artistas – que cada
projeto, perspectivas musicais peculiares. uma das residências artísticas não tem por objetivo um resultado final, materiali-
Todas as residências tiveram duração de duas semanas. A primeira delas acon- zado em uma obra assinada pela dupla de artistas que se deslocou para o interior;
teceu em julho, na cidade de Contagem: “Som e Improvisação” foi proposta por apesar disto poder ser um dos efeitos de algumas das residências. Mas Territórios
Marcos Moreira e Nelson Soares, artistas sonoros do duo O Grivo. Em Varginha, de Invenção busca, antes, uma outra direção: a da pesquisa, da criação comparti-
Joana Queiroz e Rafael Martini experimentaram a composição em grupo entrela- lhada ou coletiva; do encontro de saberes e de perspectivas entre artistas visitan-
çando os campos da canção e da música instrumental. Em Juiz de Fora, Matthias tes e artistas locais, estes em sua maioria jovens do interior de Minas Gerais, com
Koole e Marina Cyrino trabalharam a prática e a contextualização da improvisação percursos recém-percorridos e em formação, mas certamente não menos criativos
livre. Já no mês de setembro, o Duo Qattus, formado por Fernando Rocha e Elise e propositivos. Por esse lado, em um sentido mais íntimo do projeto, por assim
Pittenger, juntamente com Felipe José, tiveram como ponto de partida as práticas dizer, ultrapassamos o limite do que se entende de forma mais restrita por edu-
musicais experimentais no repertório de música de concerto contemporânea, e a cação musical (como ensinamento ou transmissão em uma via de mão única de
residência aconteceu em São João del-Rei. Em Araçuaí, Letícia Bertelli e Makely Ka, uma técnica ou de um saber), e nos situamos em um território bem típico da arte,
com a residência Paisagem Sonora em Trânsito, fizeram do deslocamento e da explo- ou dos pensamentos artísticos; território este que é movido pelos afetos, pelos
ração sonora do território motivos para a criação. E em outubro, fechando a edição conflitos, pela diferença.
de 2018, Edson Fernando e Ricardo Passos propuseram uma imersão na música clás- Na edição deste ano, nota-se, de forma ainda mais emergente do que na edição
sica indiana, explorando a improvisação e a criação intrínsecas ao sistema de tala. pioneira, que todas as propostas de residências musicais trazem à tona a prática do
Esta última residência aconteceu na cidade de Araguari, no triângulo mineiro. improviso. O acaso e a contingência servem também, em maior ou menor grau, como
Desta forma, os territórios da música aparecem em multiplicidade. A tentativa do material artístico a priori das propostas. Portanto, o amplo sentido da ideia de impro-
Territórios de Invenção em lançar luz a pensamentos musicais múltiplos e distintos viso, ou ainda, a experimentação, participa não só como conteúdo ou ferramenta
dentro de um espaço é também uma forma de depurar as possibilidades de encon- de cada uma das propostas, mas como parte da trama conceitual que define nossa
tros e de sentidos para tudo isso que investigamos com o projeto, a saber: escuta, ideia de residência artística. Assim, deslocar-se, desfazer e recriar hábitos, perder-se,
construção de espaços, heterotopia, contemporaneidade, invenção de linguagens, observar, dialogar, confluir em todos esses fluxos – inerentes às paisagens vivas e, por
aprendizado, experimentação, fazeres artísticos. isso, paisagens sonoras –, são processos em que o acaso participa. E nestas paisagens
O projeto se delineia no intuito de propor uma política cultural inclusiva, dinâ- está presente aquele corpo-acontecimento expressivo e performático. Os artistas e
mica e cosmopolita, alinhada com processos artísticos contemporâneos e, ao todos os demais ocupantes desse espaço em movimento tornam-se, então, atores do
mesmo tempo, com a necessidade de se pensar o encontro, o coletivo, a formação, o acaso, criam encontros, retraçam planos, intervêm e fazem acontecer.

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Essa segunda edição, além de manter viva a relação estabelecida com a memória
da Fundação, cria novas expectativas e novos desafios, e vem propor experimentar
uma temática que instigue à percepção e à escuta dos territórios no momento pre-
sente: “Paisagem sonora agora”. O filósofo Michel Serres disse certa vez que “nossa
cultura tem horror do mundo”, aludindo à indiferença da vida urbana ocidental
diante dos territórios ocupados pela dita “civilização”, situação que caracteriza hoje
a era em que estamos, o antropoceno, quando o ser humano torna-se o principal
agente de transformação do planeta.
Em tempos de catástrofes ambientais, de guerras culturais e de revolução digital,
temos um duplo propósito, um duplo desafio. Por um lado, enfatizar a experiência
do lugar, a onipresença da paisagem sonora que nos envolve, a abertura para a escuta
e para o encontro, o som como presença, suas tensões e fricções, em uma frase: a
emergência sonora do agora. Por outro lado, que a experiência presente reverbere
para além daquele grupo de pessoas, que atinja o espaço público, ou esse espaço
público virtual que se expande através das tecnologias.
Há na lógica das residências diversos espaços públicos de participação a serem Sobre os autores
contemplados: o público imediato de artistas participantes, o público local que
vai assistir intervenções e apresentações ao longo ou ao final de cada residência e Edson Fernando é músico e pesquisador. Formado em percussão pela Universidade
o público que participa dos processos indiretamente, de perto ou de longe, que de Federal de Minas Gerais, atuou como baterista e percussionista, expandiu seus
uma forma ou de outra é capturado por suas ressonâncias. horizontes musicais para a música instrumental e a improvisação. Nos últimos
Em outras palavras, e trazendo as falas dos artistas participantes da primeira edi- anos vem se dedicando à música indiana, estudando kanjira e konnakol; estuda
ção, em 2016, há vários territórios a serem continuamente inventados e reinventa- também pakhawaj, tambor indiano que acompanha o canto ancestral dhrupad.
dos: o território do afeto, da prática musical, da experimentação, o território do con-
vívio, enfim, a relação estabelecida através do som, da música, como um território Felipe José é compositor, multi-instrumentista, educador e ativista cultural. É
possível... conectado ao mundo e à sustentabilidade da vida, porque praticar a arte, graduado em Composição e mestre em Improvisação Coletiva pela Universidade
a música, a escuta, o improviso, pensar o coletivo, é pensar e praticar o comum ou, Federal de Minas Gerais. Participou de diversos grupos na cena musical mineira,
como diria o filósofo John Dewey, praticar a democracia como experimentação. nacional e internacional, além de trabalhos relacionando música e dança, teatro
e cinema. Atualmente é professor da Universidade Federal da Integração Latino-
Americana (UNILA).

Joana Queiroz é clarinetista, saxofonista e compositora. Integrante do grupo


Quartabê, desenvolve paralelamente seu trabalho autoral, que conta com três
discos lançados: “Uma Maneira de Dizer” (2012), “Boa Noite pra Falar com o Mar”
(2016) e “Diários de Vento” (2016). Participa no palco e em gravações com diversos
músicos brasileiros.

Letícia Bertelli é mestre em musicologia pela USP e doutoranda na mesma insti-


tuição, pós-graduada em música antiga pela Staatliche Hochschule für Musik
Trossingen – Alemanha e bacharel em canto pela UEMG. Dedica-se ao estudo
da música histórica com ênfase para a música barroca e repertórios de tradição
oral. Colabora em diversos projetos de arte e ensino de música. Membro do grupo
Ilumiara, que alia performance e pesquisa em música.

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Lúcia Campos é etno/musicóloga, professora universitária, mãe, musicista, doutora Patrícia Bizzotto é instrumentista, compositora, professora e mestre em estética e
pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS - Paris). Interessa-se filosofia da arte pela Universidade Federal de Ouro Preto. É coordenadora artística
por etnografia de práticas sonoras, patrimônio cultural imaterial, antropologia e pedagógica do projeto  Territórios de Invenção - Residências Musicais. Como
da circulação e da transmissão musical. É professora na Universidade do Estado musicista privilegia o encontro da música com outras artes, trabalhando com tri-
de Minas Gerais e coordenadora artística do projeto Territórios de Invenção. lhas sonoras e nos limites da “música de concerto contemporânea”, onde inves-
Atualmente, realiza pesquisa pós-doutoral na UFMG. tiga, principalmente, a interseção música-performance.

Makely Ka é poeta, cantor, compositor, letrista, violonista e produtor cultural. Rafael Martini é compositor, arranjador, pianista e cantor. Lançou quatro discos
Publicou diversos livros (“Ego Excêntrico”, “Objeto Livro”, entre outros) e lançou – “Motivo” (2012), “Gesto” (2016), em parceria com os músicos Joana Queiroz e
vários discos (“Autófago” – 2008, “Cavalo Motor” – 2014, entre outros). Possui can- Bernardo Ramos, “Haru” (2017), em parceria com Alexandre Andrés, e “Suíte
ções em coletâneas, fez letras para diferentes espetáculos, e atua de modo intenso Onírica” (2017), gravado pelo Rafael Martini Sexteto e a Orquestra Sinfônica da
na política musical de Minas Gerais. Venezuela. Colabora como arranjador e diretor musical de diversos artistas do
Brasil e de outros países e atualmente integra, como acordeonista, o Egberto
Marina Cyrino é intérprete e compositora, dedicando-se também à improvisação. Gismonti Quarteto.
Formada em música no Brasil e na Suécia, é atualmente doutoranda em perfor-
mance musical na Universidade de Gotemburgo. O foco da sua prática musical é Ricardo Passos é multi-instrumentista, cantor, compositor, pesquisador e professor.
a mistura e o experimento: o possível (re)soar do corpo-músico atravessado por Busca explorar a improvisação e a espontaneidade misturando elementos da
imagens, objetos, elementos cênicos, palavra, escuro, movimento. cultura oriental com a polifonia da cultura ocidental. Estudou violão clássico
e  piano no Conservatório do Porto e guitarra jazz na Escola de Jazz do Porto
Matthias Koole é violonista e guitarrista. Interessa-se pela música contemporânea e (Portugal), violão flamenco na Espanha, guembri no Marrocos, derbake e rik no
experimental, atuando também em projetos interdisciplinares. É doutorando em Egito e konnakol, canto dhrupad,  pakhawaj e kanjira na Índia, entre outros ins-
Performance Musical na Universidade Federal de Minas Gerais, com orientação de trumentos e países. No Brasil há alguns anos, tem aprendido choro, latin drum,
Fernando Rocha e Lúcia Campos. É membro do selo/produtor Seminal Records. percussão cubana e brasileira. Acaba de concluir sua licenciatura em educação
musical na Universidade Estadual de Minas Gerais.
O Grivo, composto por Marcos Moreira Marcos e Nelson Soares realizou seu primeiro
concerto em Belo Horizonte no final dos anos 1990, iniciando suas pesquisas no
campo da ​“Música Nova”​. Interessado na ampliação do seu repertório de sons e
na descoberta de maneiras diferentes de organizar suas improvisações, o grupo
desenvolve sua linguagem musical, trabalhando com “Mecanismos Sonoros” e
“Fontes Sonoras” pouco usuais (eletrônicas e acústicas), além de instrumentos
musicais tradicionais. A proposição de um estado de curiosidade e disposição
contemplativa para a escuta, e a discussão das relações dos sons com o espaço,
são as questões sobre as quais se apoiam os trabalhos do grupo.

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Territórios de Invenção: Projeto Territórios de Invenção:
À escuta Residências Musicais

Organização Coordenação Artística e Pedagógica


Lúcia Campos Lúcia Campos e Patrícia Bizzotto

Coordenação Editorial Coordenação de Produção Executiva


Lúcia Campos e Maria Carolina Fenati Flávia Mafra

Autores Coordenação de Comunicação


Edson Fernando, Felipe José, Joana Queiroz, Camaleão Comunicação e Marketing Ltda.
Letícia Bertelli, Lúcia Campos, Makely Ka,
Marcos Moreira Marcos, Marina Cyrino, Coordenação Administrativa
Matthias Koole, Nelson Soares, Patrícia Bizzotto, Aparecida Carvalho
Rafael Martini, Ricardo Passos
O projeto Territórios de Invenção “Residências
Revisor Musicais em Minas Gerais” foi realizado pela
Bernardo Romagnoli Bethonico Fundação de Educação Artística, por meio de
Termo de Fomento firmado entre a Secretaria de
Projeto Gráfico Estado de Cultura de Minas Gerais e a FLAMA –
Luísa Rabello Associação de Amigos da Fundação de Educação
Artística, dentro do Programa Música Minas.

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Patrocínio Realização

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

T326  Territórios de invenção: à escuta / Organizadora Lúcia Campos.


   – Belo Horizonte (MG): Fundação de Educação Artística, 2019.
64 p. : 21 x 28 cm

ISBN 978-85-93753-01-5

1. Música – Minas Gerais. 2. Projeto Territórios de Invenção.
I. Campos, Lúcia.

CDD 780.98151 

Publicado em Belo Horizonte em 2019


pela Fundação de Educação Artística e impresso
pela Gráfica Formato sobre papéis Pólen e Kraft.
Tiragem 300 exemplares
Fontes Archia e Arnhem

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